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CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO

Entre o Paradigma da Destruição e


os Caminhos de Reconstrução
1ª edição — janeiro, 2006
1ª edição — 2ª tiragem, julho, 2007
1ª edição — 3ª tiragem, dezembro, 2008
2ª edição — setembro, 2015
3ª edição — junho, 2017 (obra atualizada até 25.5.2017)
MAURICIO GODINHO DELGADO

CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO

Entre o Paradigma da Destruição e


os Caminhos de Reconstrução

3ª edição

Revista e Ampliada
R

EDITORA LTDA.
 Todos os direitos reservados
Rua Jaguaribe, 571
CEP 01224-001
São Paulo, SP — Brasil
Fone (11) 2167-1101
www.ltr.com.br
JUNHO, 2017

Produção Gráfica e Editoração Eletrônica: RLUX


Projeto de capa: FABIO GIGLIO
Impressão: PIMENTA & CIA LTDA

Versão impressa — LTr 5822.3 — ISBN 978-85-361-9287-1


Versão digital — LTr 9185.7 — ISBN 978-85-361-9308-3

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Delgado, Mauricio Godinho


Capitalismo, trabalho e emprego : entre o paradigma da destruição e os
caminhos de reconstrução / Mauricio Godinho Delgado. — 3. ed. — São
Paulo : LTr, 2017.

Bibliografia.

1. Capitalismo 2. Direito do trabalho 3. Emprego (Teoria econômica)


4. Exclusão social 5. Globalização 6. Trabalho e classes trabalhadoras I. Título.

17-04618 CDU-34:331.6:330.82
Índice para catálogo sistemático:
1. Capitalismo, trabalho e emprego : Direito do trabalho 34:331.6:330.82
Dedico este livro, nesta 3ª edição, aos meus
interlocutores fundamentais, em cursos, palestras e eventos
acadêmicos desenvolvidos ao longo das últimas décadas.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 11

CAPÍTULO I
GLOBALIZAÇÃO E HEGEMONIA:
CENÁRIOS PARA A DESCONSTRUÇÃO DO PRIMADO DO TRABALHO E DO
EMPREGO NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

I — INTRODUÇÃO...................................................................................................... 15
II — GLOBALIZAÇÃO: CONCEITO............................................................................... 15
III — GLOBALIZAÇÃO: PRESSUPOSTOS E REQUISITOS................................................ 16
1. Pressupostos da Globalização............................................................................ 17
A) Generalização do Sistema Capitalista........................................................... 17
B) Nova Revolução Tecnológica........................................................................ 18
C) Hegemonia Financeiro-Especulativa.............................................................. 19
2. Requisitos da Globalização................................................................................ 20
A) Pensamento Econômico Hegemônico........................................................... 22
Liberalismo Readequado.............................................................................. 24
B) Hegemonia Política Ultraliberal..................................................................... 25
C) Ausência de Contraponto Eficaz................................................................... 26
a) Contraponto Externo................................................................................ 26
b) Contraponto Interno................................................................................ 26
D) Internalização Dependente do Ultraliberalismo............................................ 28
IV — DERRUIÇÃO (AINDA QUE RELATIVA) DO PENSAMENTO CRÍTICO NA RECENTE
HEGEMONIA POLÍTICO-CULTURAL CAPITALISTA............................................... 30
1. Núcleo Social e Ético do Pensamento Crítico: Primado do Trabalho e do Emprego
no Capitalismo.................................................................................................. 30
2. A Tentativa de Desconstrução do Primado do Trabalho e do Emprego no
Capitalismo Contemporâneo............................................................................ 32
8 MAURICIO GODINHO DELGADO

CAPÍTULO II
O FIM DO TRABALHO E DO EMPREGO NO CAPITALISMO ATUAL:
REALIDADE OU MITO?

I — INTRODUÇÃO...................................................................................................... 35
II — O MUNDO DO TRABALHO NA CONJUNTURA CAPITALISTA DA VIRADA DOS
SÉCULOS XX E XXI — CONDIÇÕES DO “DESEMPREGO ESTRUTURAL”................. 35
1. Fatores de Impacto no Trabalho e no Emprego: síntese.................................... 36
III — INOVAÇÕES E ALTERAÇÕES TECNOLÓGICAS (TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUS-
TRIAL)................................................................................................................ 37
1. Avaliação Crítica................................................................................................ 39
IV — REESTRUTURAÇÃO EMPRESARIAL..................................................................... 42
1. Estrutura Organizacional das Empresas............................................................. 42
2. Organização do Processo de Trabalho............................................................... 43
A) Redução de Cargos e Funções...................................................................... 44
B) Terceirização Trabalhista............................................................................... 44
C) Novos Sistemas de Gestão da Força de Trabalho.......................................... 46
Toyotismo/Ohnismo..................................................................................... 47
3. Reestruturação Empresarial: Avaliação Crítica ................................................... 49
V — ACENTUAÇÃO DA CONCORRÊNCIA CAPITALISTA.............................................. 53
1. Avaliação Crítica: adendos................................................................................. 54
VI — MATRIZ INTELECTUAL DESCONSTRUTIVISTA DO PRIMADO DO TRABALHO E
DO EMPREGO................................................................................................... 56
1. Avaliação Crítica................................................................................................ 58
VII — ALTERAÇÕES NORMATIVAS TRABALHISTAS..................................................... 60
1. Avaliação Crítica................................................................................................ 65
VIII — O ENUNCIADO DO FIM DO EMPREGO NO CAPITALISMO ATUAL — OMISSÃO
SINGULAR........................................................................................................ 66

CAPÍTULO III
CAPITALISMO SEM RECIPROCIDADE:
A POLÍTICA PÚBLICA DE DESTRUIÇÃO DO EMPREGO

I — INTRODUÇÃO...................................................................................................... 68
II — POLÍTICA PÚBLICA DE DESTRUIÇÃO DO EMPREGO — T­ RAÇOS RECORRENTES DA
ATUAL FASE CULTURAL, POLÍTICA E ECONÔMICA DO CAPITALISMO................ 69
1. Hegemonia Ultraliberal na Virada dos Séculos XX e XXI — síntese..................... 70
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 9

III — CONSTRUÇÃO CULTURAL DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL — MONTAGEM DE


UM SUPOSTO PENSAMENTO ÚNICO................................................................. 71
1. A Matriz Teórica Liberal no Sistema Capitalista................................................. 71
Liberalismo Econômico Originário................................................................. 73
2. A Matriz Econômica Keynesiana: meio século de hegemonia............................ 74
3. A Retomada da Hegemonia Cultural do Liberalismo Extremado........................ 77
A) Políticas Econômicas Ultraliberais................................................................. 79
B) Atuação Concertada de Organismos Internacionais...................................... 82
C) Tendência à Homogeneização Acadêmica.................................................... 83
D) Uniformização Ultraliberal dos Meios de Comunicação de Massa................. 86
E) Uniformização Ultraliberal das Burocracias Estatais....................................... 88
F) Intercâmbio de Influências Ultraliberais......................................................... 90
IV — CONSTRUÇÃO CULTURAL DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL — FRAGMENTAÇÃO
DE PARCELAS DO PENSAMENTO CRÍTICO......................................................... 91
1. O Primado do Trabalho e do Emprego: cerco e rendições................................. 92
2. Elementos da Fragmentação Crítica.................................................................. 95
3. Tecnologia, Organização e Mercado................................................................. 96
A) Tecnologia................................................................................................... 96
B) Organização................................................................................................. 97
C) Mercado...................................................................................................... 98
V — CONSTRUÇÃO POLÍTICA DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL.................................. 99
1. Vitórias Político-Eleitorais Ultraliberalistas.......................................................... 99
2. Desarticulação do Contraponto ao Capitalismo Desenfreado............................ 102
A) Derrocada do Império Soviético................................................................... 102
B) Enfraquecimento das Forças Políticas do Primado do Trabalho..................... 103
VI — CONSTRUÇÃO ECONÔMICA DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL........................... 106
1. Exacerbação do Ultraliberalismo........................................................................ 109
VII — HEGEMONIA ULTRALIBERAL E POLÍTICA PÚBLICA DE DESTRUIÇÃO DO EMPRE-
GO — SÍNTESE................................................................................................... 112

CAPÍTULO IV
DIREITO DO TRABALHO E INCLUSÃO SOCIAL:
O DESAFIO BRASILEIRO

I — INTRODUÇÃO...................................................................................................... 114
10 MAURICIO GODINHO DELGADO

II — O PAPEL DO DIREITO DO TRABALHO NO CAPITALISMO..................................... 115


1. Generalização na Ordem Econômico-Social....................................................... 120
III — RECUSA BRASILEIRA À GENERALIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E CONSE-
QUENTE EXCLUSÃO DAS GRANDES MAIORIAS.................................................. 122
1. Dados Históricos............................................................................................... 124
2. Cenários da Exclusão Social Brasileira................................................................ 127
3. Período Iniciado em 1990: novas formas de exclusão........................................ 129
IV — DIREITO DO TRABALHO COMO INSTRUMENTO DE CIVILIZAÇÃO...................... 133
V — ADENDO: A INCLUSÃO SOCIOECONÔMICA DEFLAGRADA NO SÉCULO XXI,
NO BRASIL, PELO CAMINHO DA RELAÇÃO DE EMPREGO E DO DIREITO DO
TRABALHO......................................................................................................... 136
VI — A RETOMADA DA REGRESSÃO ULTRALIBERALISTA NO DIREITO DO TRABALHO
BRASILEIRO........................................................................................................ 139
1. Preceitos Trabalhistas Restritivos....................................................................... 141
2. Síntese da Lógica Jurídica Regressiva................................................................. 150

CAPÍTULO V
O DESEMPREGO COMO ESTRATÉGIA NO CAPITALISMO DE FINANÇAS

I — INTRODUÇÃO...................................................................................................... 153
II — O DESEMPREGO E SEUS EFEITOS NA ECONOMIA, NA SOCIEDADE E NA DEMO-
CRACIA............................................................................................................... 153
III — EXPLICAÇÕES CORRENTES SOBRE O DESEMPREGO: INCONSISTÊNCIAS............ 156
IV — FATORES PRINCIPAIS DE PRODUÇÃO E INCREMENTO DO DESEMPREGO NO
CAPITALISMO.................................................................................................... 159
V — O DESEMPREGO COMO ESTRATÉGIA NO CAPITALISMO DE FINANÇAS.............. 161

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................................. 165


INTRODUÇÃO

I — O presente livro busca investigar um dos grandes enigmas do mundo


contemporâneo, com reflexos em todos os países ocidentais, especialmente
aqueles que, como o Brasil e demais latino-americanos, ainda não superaram os
impasses e desafios para a construção de uma sociedade realmente desenvolvida,
livre, justa e solidária.
Trata-se de estudar como a ideia do valor do trabalho, que se mostrou
fundamental para a grande maioria das populações despossuídas de riqueza
dos países capitalistas ocidentais, passou a ser cuidadosamente fustigada e
desconstruída nas últimas décadas, sem que aparentemente se aperceba da lógica
fria desse processo de destruição.
Ora, é sabido que o trabalho e especialmente o emprego tornaram-se o mais
importante instrumento de afirmação individual, social e econômica da larga maio-
ria das pessoas na sociedade capitalista, a partir da segunda metade do século XIX
e mais acentuadamente no século XX. Em torno deles, construíram-se as ideias-
-arquétipos da democracia social — inovação singular da contemporaneidade —,
fazendo girar a economia, a sociedade e as políticas públicas em função da valori-
zação do trabalho, do trabalhador e do pleno emprego.
Nas décadas finais do século XX e no início deste, entretanto, generalizou-
-se o diagnóstico do fim do trabalho e do emprego no mundo ocidental, sempre
atado a supostas razões estruturais intransponíveis pela inteligência humana. Elabo-
rou-se verdadeiro paradigma de destruição do emprego e do próprio trabalho na
sociedade capitalista.
Mais do que isso: por impressionante que pareça, muitas vezes esse novo e
sombrio suposto paradigma foi incorporado pelos próprios segmentos sociais que
mais iriam sofrer (e têm sofrido) os deletérios efeitos da destruição da cultura do
trabalho e do emprego na desigual sociedade capitalista.
Enigmas dessa magnitude evidenciam, sem dúvida, precedentes nos registros
históricos ou nas referências culturais da criatividade humana. Afinal, o que
explicaria, milênios atrás, a incrivelmente ingênua internalização pelo monarca
Príamo, no coração da cidade-estado de Troia, do engenho mortífero (mal)
dissimulado dos inimigos gregos? Não importa se, para os historiadores, o fato
não se deu; o mesmo enigma perpassa a historia, em vários momentos.
O que explica, então, liderança política tão consagrada e corajosa, como a
de Montezuma, imperador dos astecas, povo que construiu civilização notável,
ter simplesmente se mantido estupefata, inerte e resignada ante a violência e a
12 MAURICIO GODINHO DELGADO

destruição provocadas pelo singular invasor Fernando Cortez e suas tropas no


início do século XVI?
O que explica centenas de pessoas se internarem nas selvas e dramaticamente
se imolarem em insensato sacrifício coletivo, como evidenciado no chocante
experimento liderado por Jim Jones, na década de 1970?
Campos sistematizados de investigação e conhecimento, como Ciência Política,
Antropologia, Geografia, História, Sociologia e Biologia, além de outras ciências
que lidam com a experiência humana consolidada em locais, regiões e países na
Terra, têm se debruçado sobre situações enigmáticas congêneres, em distintas
fases históricas, demarcadas por irracional perseverança societária em direção à
desagregação ou até mesmo à sua própria derruição. Leiam-se, ilustrativamente,
A marcha da insensatez — de Troia ao Vietnã, da Historiadora Barbara Wertheim
Tuchman (Rio de Janeiro: BestBolso, 2012; edição original em inglês: 1984), ou
Colapso — como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso, do Biólogo e
Geógrafo Jared Diamond (2. ed., Rio de Janeiro: Record, 2005; edição original em
inglês: 2005; edição original em inglês: 2005). Ou se leia igualmente o best-seller
A Doutrina do Choque — a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2008, de autoria da pesquisadora canadense, Naomi Klein (edição
original em inglês: 2007).
II — O presente livro, Capitalismo, trabalho e emprego — entre o paradigma
da destruição e os caminhos de reconstrução, é formado de cinco capítulos,
estreitamente conectados.
O primeiro capítulo traça o cenário característico da contemporaneidade,
com os fenômenos da globalização e a atual hegemonia política e cultural que
tem caracterizado grande parte do Ocidente. Daí seu título: “Globalização e
Hegemonia: Cenários para a Desconstrução do Primado do Trabalho e do Emprego
no Capitalismo Contemporâneo”.
O segundo capítulo enfrenta os principais argumentos brandidos, nas últimas
quatro décadas, acerca do suposto ocaso do emprego e até mesmo do trabalho no
sistema econômico dominante. Daí seu título: “O Fim do Trabalho e do Emprego
no Capitalismo Atual: Realidade ou Mito?”
O terceiro capítulo trata dos argumentos não brandidos pela atual vertente
hegemônica e sua vasta literatura de suporte: a aplicação de uma política pública
que, de modo direto ou indireto, solapa inapelavelmente o emprego. Nessa
linha desponta seu título: “Capitalismo sem Reciprocidade: a Política Pública de
Destruição do Emprego.”
O quarto capítulo traz o debate para o Brasil, com sua singularidade perversa,
ou seja, a recusa tradicional da ordem jurídica, política e institucional brasileira
de buscar a generalização, no País, do Direito do Trabalho e seus instrumentos
civilizatórios. Nesse quadro, assim se demarca seu respectivo título: “Direito do
Trabalho e Inclusão Social: o Desafio Brasileiro.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 13

No quarto capítulo, a propósito, desponta uma peculiaridade: como o presente


livro foi originalmente escrito em torno de 2004/2005 (a primeira edição é de
janeiro de 2006), tornou-se necessário registrar, desde a sua 2ª edição (publicada
em maio de 2015), ao final do Capítulo IV, um item próprio (V — Adendo — A
Inclusão Socioeconômica Deflagrada no Século XXI, no Brasil, pelo Caminho da
Relação de Emprego e do Direito do Trabalho). Esse item V, conforme se percebe,
aborda o início da reversão da perversa singularidade na história política, social
e econômica brasileira. Trata-se, a saber, do significativo impulso conferido ao
emprego e ao Direito do Trabalho no período de 2003/2014, com substancial
elevação do número de empregos, efetivo aumento dos valores do salário mínimo
e importante inclusão social e econômica à base da relação de emprego e do
Direito do Trabalho.
Destaque-se que, nesta 3ª edição (publicada em junho de 2017), preferiu-
se manter o foco de análise do item V – Adendo, integrante do quarto capítulo,
no recente período de forte impulso conferido ao emprego no País, que foi
experimentado entre 2003 e 2014. É que esse período de doze anos demonstra,
na prática histórica, a clara compatibilidade entre o racional funcionamento do
capitalismo e a dinâmica socioeconômica do pleno emprego.
Contudo, foi necessário inserir-se, nesta 3ª edição, novo item, abordando as
regressões normativas e interpretativas vivenciadas pelo Direito do Trabalho do
País a partir dos anos de 2016 e 2017, sob a direção do mesmo pensamento neo-
liberalista que vicejou na realidade brasileira durante parte significativa da década
de 1990 — tema que foi longamente estudado na presente obra. Trata-se, pois, do
seguinte texto novo: “VI — A Retomada da Regressão Ultraliberalista no Direito do
Trabalho Brasileiro”.
Por fim, há outra substancial inovação nesta 3ª edição do livro, lançada em
junho de 2017: o acréscimo de um texto inédito, o quinto capítulo, sob o título
“O Desemprego como Estratégia no Capitalismo de Finanças”. Esse novo capítulo
se mostrou necessário, de maneira a evidenciar, em complemento às análises
anteriores, o manejo dos altos índices de desemprego, pela política pública, no
Capitalismo de Finanças, como ferramenta para o alcance da desconstrução de
direitos e garantias sociais no quadro da realidade econômico-social circundante.
— A 3ª edição desta obra, como se percebe, foi revista e ampliada. Nela
se mantiveram, onde necessário, as referências agregadas na versão de 2015 à
crise econômica deflagrada nos EUA a partir de 2007/2008, cujos efeitos ainda se
fazem sentir em diversos países ocidentais.
Entretanto — conforme já esclarecido na edição precedente (2ª, 2015) —,
preferiu-se manter o formato originalmente pensado para o livro, no suposto de
que, nessa moldura, ainda cumpre objetivo relevante, qual seja, o de sumarização
de pesquisa científica sobre tema que preserva indiscutível atualidade.
Brasília, maio de 2017
Mauricio Godinho Delgado
CAPÍTULO I

GLOBALIZAÇÃO E HEGEMONIA:
CENÁRIOS PARA A DESCONSTRUÇÃO DO
PRIMADO DO TRABALHO E DO EMPREGO
NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO(*)

I — INTRODUÇÃO

O primado do trabalho e do emprego na vida social constitui uma das maiores


conquistas da Democracia no mundo ocidental capitalista.
Tal conquista sedimentou-se na gestão pública do chamado Es­tado de Bem-
-Estar Social, característico de boa parte do século XX no Ocidente, incrustando-se,
desde então, no Direito.
Mesmo em países que não tiveram real experiência de Welfare State, como no
Brasil, esse primado incorporou-se à cultura jurídica, alcançando grande relevância
nos princípios e regras da Constitui­ção da República de 1988.
Entretanto, tem-se assistido, desde as últimas décadas do sé­culo passado,
ao iniludível processo de desconstrução cultural do pri­mado do trabalho e do
emprego no sistema capitalista.
A compreensão desse processo passa pela nova modalidade de hegemonia
gestada no sistema econômico-social dominante, que envolve, inclusive, o
fenômeno apelidado de globalização.
Esse cenário, em que se gesta a desconstrução do primado do trabalho e do
emprego no capitalismo contemporâneo, com o significa­do dessa desconstrução,
será aqui analisado.

II — GLOBALIZAÇÃO: CONCEITO

Globalização ou globalismo corresponde à fase do sistema ca­ pitalista,


despontada no último quartel do século XX, que se carac­teriza por uma vinculação
especialmente estreita entre os diversos subsistemas nacionais, regionais ou

(*) A primeira versão deste texto foi originalmente publicada na Revista LTr, São Paulo: LTr, ano 69,
n. 5, p. 539-548, maio de 2005. Também na Revista Síntese Trabalhista, Porto Alegre: Síntese, ano
XVII, n. 194, p. 5-24, agosto de 2005.
16 MAURICIO GODINHO DELGADO

comunitários, de modo a criar, como parâmetro relevante para o mercado, a


noção de globo terres­tre, e não mais, exclusivamente, nação ou região.
A globalização traduz-se não somente como fase do capitalis­ mo, mas,
também, como processo, na medida em que tende a afetar, hoje, de maneira
direta ou indireta, as realidades econômicas (e, ainda, sociais, políticas e culturais)
nos diversos segmentos da terra. Fase e processo que demarcam significativamente
o presente pe­ríodo vivido pelo sistema econômico-social gestado nos séculos XVII
e XVIII na Europa ocidental, atingindo, de um modo ou de outro, as diversas
sociedades e economias nacional ou regionalmente estru­turadas ao longo do
mundo.
Contudo, é preciso que fique claro que o nível (isto é, a inten­sidade) e o tipo
(ou seja, a qualidade) de integração econômico-so­cial de certo país ao quadro
do sistema capitalista podem aprofundar ou restringir tais reflexos do processo
globalizante. E o nível e o tipo de inserção desse país no conjunto do processo po-
dem deter­minar sua aptidão de dele receber maiores ou menores vantagens ou
restrições.
Registre-se, ainda, que a fase e processos globalizantes não traduzem efetiva
ruptura com fases e processos anteriores, mas, essencialmente, transformação
e/ou aprofundamento. Sabe-se, afi­ nal, que o sistema capitalista sempre teve
como característica a tendência à sua própria generalização, do que resulta sua
tendência à exteriorização e ao estabelecimento de laços com economias exter­nas
aos centros hegemônicos. Nesse sentido, o globalismo não seria mais do que um
aprofundamento de uma tradicional tendência pri­mitiva do sistema em qualquer
de suas fases.
Contudo, inegavelmente, é também algo mais do que isso, na medida
em que a intensidade e a amplitude atuais das tendências gene­ ralizantes e
de exteriorização e a estreiteza dos laços formados entre os diversos sistemas
econômico-sociais são características que, em sua unidade, traduzem, ao mesmo
tempo, certa transformação no modo operativo de todo o sistema.
O fenômeno tem sido conhecido por distintos epítetos. Os mais utilizados são
globalização, globalismo, mundialização, mundialismo. Embora existam intentos
de enquadramento diferenciado de mode­los segundo as denominações ora refe-
ridas, na verdade correspon­dem, em suas linhas essenciais, a uma mesma fase e
processo vivenciados pelo sistema capitalista.

III — GLOBALIZAÇÃO: PRESSUPOSTOS E REQUISITOS

O globalismo, enquanto fase e processo do sistema econômi­ co-social


circundante, tem pressupostos e requisitos viabilizadores de sua realização.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 17

São seus pressupostos certas transformações significativas na estrutura


e na dinâmica do capitalismo, que permitiram o ingresso do sistema na fase
generalizante e abrangente ora vivenciada.
São seus requisitos certos fatores, preponderantemente de ca­ráter superestrutu-
ral, que incrementaram as tendências estruturais surgidas no sistema, demarcando
a face atual que caracteriza o fe­nômeno globalista.

1. Pressupostos da Globalização

São pressupostos da globalização as seguintes modificações verificadas, nas


últimas décadas do século XX, na estrutura e dinâ­mica do sistema capitalista:
generalização ampliada do sistema eco­nômico; nova revolução tecnológica, em
especial vinculada aos meios de comunicação; hegemonia do capital financeiro-
-especulativo.

A) Generalização do Sistema Capitalista

A generalização do sistema econômico, enquanto produção e circulação de


mercadorias, a par do próprio capital monetário, a di­versificados pontos relevantes
do globo, por além do núcleo original (Europa) e hegemônico (EUA), é traço
estrutural marcante da nova fase capitalista (e do processo a ela inerente). Nesse
quadro, inscre­vem-se Ásia (com Japão, Coreia do Sul, Formosa e demais países
apelidados de “tigres asiáticos”, além dos algo singulares China e Índia), Oceania
e América Latina, além da nova inserção da Europa Oriental.
É evidente que diversos desses países e regiões já se integra­vam ao sistema
capitalista mundial, no período anterior; nesse sen­ tido, não ocorreu efetiva
inovação nas últimas décadas do século XX. Contudo, a distinção reside no fato
de se terem aprofundado os laços entre tais economias e regiões, inclusive com a
significativa participação no mercado internacional das economias asiáticas, quer
no plano da produção e circulação de bens e serviços, quer no plano da própria
dinâmica financeira.
A intensificação do processo generalizante do sistema capi­talista passa, em
certos casos, pela formação institucionalizada de grandes blocos econômicos, por
além dos clássicos marcos na­cionais. O exemplo mais bem acabado dessa linha de
organização e atuação do sistema encontra-se na União Europeia, instituída em
1992 por meio do Tratado de Maastricht, em sucessão à Comu­nidade Econômica
Europeia (CEE), criada pelo Tratado de Roma em 1957. A União Europeia viabiliza
não só o livre trânsito de capi­tais, bens e serviços dentro de seu espaço geográfico,
como tam­bém dos indivíduos comunitários, passando a assegurar, desde 1º de
janeiro de 2002, o pioneiro curso de uma moeda única comuni­tária (euro)(1). A

(1) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, p. 51.
18 MAURICIO GODINHO DELGADO

singularidade dessa união chega a ultrapassar os próprios marcos de um mero


instrumento econômico de agregação de países.
De todo modo, outros blocos estruturam-se, em maior ou me­nor grau, em
distintas partes do globo. Ilustrativamente, na América, há o NAFTA (Acordo de
Livre Comércio da América do Norte), ini­ciado na década de 1980 entre EUA
e Canadá, recebendo a adesão do México em 1993. No mesmo continente, há
o MERCOSUL (Mer­cado Comum do Sul), criado em 1991 por Brasil, Argentina,
Para­guai e Uruguai. Ainda neste continente há o projeto da ALCA (Área de Livre
Comércio das Américas), capitaneado pelos EUA a partir de 1994, com a pretensão
de envolver 34 países da região(2).
Outros blocos econômicos (ou com objetivos mais diversifica­dos) surgiram
na mesma época. Por exemplo, a Associação das Na­ções do Sudeste Asiático
(ASEAN), criada em 1967, envolvendo Cingapura, Indonésia, Filipinas e Tailândia.
Há ainda a Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC), surgida em 1989,
envol­vendo cerca de duas dezenas de países, sendo diversos da Ásia, além de EUA,
Canadá, México e outros. No continente africano, por sua vez, foi criada em 1992
a Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento (SADC), formada por
14 países(3).
Essa generalização do sistema capitalista a, praticamente, todo o globo
terrestre, com o aprofundamento dos laços entre as distin­tas economias nacionais,
propicia um incremento inusitado no co­mércio mundial. Ilustrativamente, o volume
das transações comer­ciais totais do mundo contemporâneo cresceu cerca de 100
vezes no último meio século, saltando de US$ 61 bilhões em 1950 para US$ 6,16
trilhões em 2001(4).
É claro que tais generalização e aprofundamento do capitalismo não
importam, necessariamente, o alcance de efetiva interdepen­dência entre países
e regiões. Ao revés, muitas vezes — como claro no exemplo latino-americano —,
terminam, preferentemente, por acentuar antigas dependências e debilidades de
certas economias nacionais.

B) Nova Revolução Tecnológica

Os avanços tecnológicos das últimas décadas, permitindo in­tercomunicação


imediata (e a custo muito mais reduzido do que anteriormente) entre os inúmeros
pontos do globo e as diversas di­nâmicas econômicas, representam outro traço
estrutural importante da nova fase do sistema econômico dominante.

(2) Idem, p. 48-52.


(3) Idem, p. 49-56.
(4) Idem, p. 64.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 19

Tais avanços tecnológicos não se limitam apenas ao aperfei­çoamento e à dis-


seminação de instrumentos de comunicação relati­vamente antigos da sociedade
capitalista, como o rádio e, principal­mente, a telefonia — esta, além de se genera-
lizar, ingressa em novo nível, por meio das conexões sem fio.
Passam esses avanços também pela potenciação do novo ins­ trumento
revolucionário do imediato pós-II Guerra Mundial, que é a televisão, com suas redes
nacionais e mundiais, a par dos distintos meios comunicantes a ela vinculados. Em
torno da televisão dissemina-se a via de comunicação por satélite, que propicia
impressionante visibilidade, segurança, rapidez e simultaneidade à trans­missão de
dados, fatos e opiniões ao longo de toda a Terra.
No período final do século XX, atinge-se o ápice de tais avan­ços tecnológicos,
com a microinformática e a rede internacional de informação e comunicação,
internet, de acesso barato e generaliza­do a organizações e indivíduos.
Toda essa tecnologia direcionada à comunicação viabiliza análi­ses simultâneas
e imediatas sobre a dinâmica do sistema econômico em diferenciadas partes da
Terra, permitindo também a realização de operações econômicas, pelos mesmos
agentes, a partir do mes­mo ponto de atuação, em inúmeras localidades. Em
consequência, acentua-se a interinfluência entre as diversas regiões e economias
ou, em grande parte dos casos (como, regra geral, verificou-se na América Latina),
aprofunda-se a tradicional influência de certas eco­nomias e regiões sobre outras.
Por decorrência do mesmo processo, tornam-se, de certo modo, anacrônicas
as tradicionais noções muito demarcadas de espaço e de tempo — ao menos no
tocante àqueles segmentos e ações forte­mente dependentes de tais novas vias
céleres de comunicação(5).

C) Hegemonia Financeiro-Especulativa

A absoluta liderança do capital financeiro-especulativo sobre os demais


segmentos do próprio capitalismo é outro pressuposto importante da atual
conformação assumida por esse sistema econô­mico-social.
Não se trata, aqui, do tradicional capital financeiro, da virada do século XIX para
o século XX, que, no conceito de Hilferding, tra­duzia uma articulação específica
entre o segmento financeiro e o industrial, sob o domínio do primeiro(6).

(5) A revolução tecnológica da segunda metade do século XX é, obviamente, mais ampla.


Nela se englobam também os importantes avanços relacionados à micro­ eletrônica, robótica e
microinformática, todos com profunda influência na área do trabalho, em especial. Entretanto,
com respeito à ideia e ao processo da chamada globalização, a revolução tecnológica vinculada às
comunicações é que foi mais relevante.
(6) HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro. São Paulo: Zahar, 1985. A obra data do início do século
XX (1910), examinando o processo de desenvolvimento do capitalis­mo na época.
20 MAURICIO GODINHO DELGADO

Ao invés, trata-se, agora, do capital substantivamente especu­lativo, que gera


sua reprodução essencialmente com o próprio jogo de inversões financeiras, sem
compromisso relevante com a noção de produção, tão cara às fases anteriores do
capitalismo.
Goran Therborn descreve essa impressionante ascensão e do­mínio do setor
financeiro-especulativo nas últimas décadas: “Para dar somente um exemplo,
durante um dia em Londres, é negocia­do um montante de divisas correspondente
ao PIB mexicano de um ano inteiro. Em um dia e meio, os traficantes de divisas
vendem e compram o equivalente ao PIB anual do Brasil. (...) na Alemanha, um
dos países mais importantes do capitalismo avançado, por vol­ta de 1985, as
transações externas de capital representavam 80% do comércio externo do país.
Em 1993, estas transações foram cinco vezes mais importantes do que o negócio
de mercadorias naquele país. Se considerarmos todos os mercados internacionais
de moedas, divisas, ações, etc., veremos que estes têm uma di­mensão 19 vezes
maior do que todo o comércio mundial de merca­dorias e serviços”.(7)
Luiz Gonzaga Belluzzo demonstraria, por sua vez, que o “valor da massa
de ativos financeiros transacionáveis nos mercados de capitais de todo o mundo
saltou de cerca de US$ 5 trilhões no início de 80 para US$ 35 trilhões em 1995,
segundo estimativas do BIS”.(8)
Compõe também esse quadro a generalização do sistema de financiamento
entre as economias nacionais, aprofundando-se os laços de endividamento das
regiões periféricas em face das domi­nantes do sistema global.

2. Requisitos da Globalização

O globalismo, na contextura apresentada no mundo ocidental no último


quartel do século XX, teve também requisitos específicos, os quais, reunidos,
viabilizaram sua realização nos moldes que apre­sentou. Note-se que, enquanto os
pressupostos são fatores estruturais verificados no sistema capitalista, que criaram
condições para seu ingresso na fase generalizante e abrangente ora vivenciada,
os re­quisitos são fatores de caráter mais circunstancial, fatores essencial­mente
político-culturais, que, reunidos, propiciaram o aprofundamento das tendências
despontadas no sistema, conferindo ao fenômeno globalizante a face assumida
nas últimas décadas.
São quatro os principais requisitos da atual realidade globalizan­te. Em primeiro
plano, o alcance de larga hegemonia por certo tipo de pensamento econômico,

(7) THERBORN, Goran. A crise e o futuro do capitalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. Pós-Neoli-
beralismo — as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Ja­neiro: Paz e Terra, 1998. p. 44-45.
(8) BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Finança global e ciclos de expansão. In: FIORI, José Luís (Org.). Estados
e moedas no desenvolvimento das nações. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 105.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 21

orientador das estratégias de atuação dos Estados nacionais — o chamado


neoliberalismo (ou ultraliberalismo).
A seu lado, o domínio político de longo prazo, em Estados­-chave do Ocidente,
de importantes lideranças políticas neoliberais, universalizando e acentuando a
influência desse pensamento eco­nômico e de seus reflexos políticos e culturais.
O terceiro requisito, eminentemente político-cultural, desdobra­-se em duas
dimensões, externa e interna.
No plano externo, trata-se da ausência, no quadro comparativo internacional,
de qualquer experiência sociopolítica consistente que traduzisse antítese ou, pelo
menos, eficaz contraponto ao formulá­ rio ideológico ultraliberal — aquilo que
Hobsbawm chama de “amea­ça política digna de crédito ao sistema”.(9) Com a
derrocada da URSS, desaparece o mais forte contraponto capitalista do século XX.
No plano interno (embora Hobsbawm centre-se, essencialmente, no aspecto
internacional do problema), a ausência desse contraponto eficaz configura-se
pelo enfraquecimento dos distintos projetos de hegemonia popular no Ocidente
(socialistas, social-democratas, traba­
lhistas etc.), com a perda de consistência
político-programática de certos partidos de algum modo vinculados a esses
projetos. A esse quadro agrega-se o enfraquecimento do sindicalismo nas últimas
décadas (em­bora se trate de fenômeno resultante de fatores nem sempre comuns,
segundo as distintas experiências históricas nacionais).
O plano interno de ausência ou atenuação de um contraponto eficaz ao
ideário ultraliberal passa também por certa derruição do pensamento crítico, o
qual comumente passa a acolher, com apa­ rente ingenuidade, a proposição
teórica do fim do primado do traba­lho e do emprego na sociedade capitalista
contemporânea.
O quarto requisito é reflexo dos anteriores — ou resultado da afirmação
dos requisitos precedentes. Trata-se da incorporação, pe­ los Estados nacionais
responsáveis pelas economias periféricas ao sistema capitalista central, do
pensamento econômico hegemônico, reproduzindo-o internamente sem maiores
adequações — ou, até mesmo, com franco entusiasmo (vide experiências argentina
e brasileira da década de 1990; vide refluxo civilizatório brasileiro deflagrado
em 2016/2017). Ou seja, a oficialização de um pensa­mento único nos distintos
países integrantes do sistema global, com a uniformização de práticas políticas e
econômicas que favorecem o próprio processo globalizante, com a supressão ou
atenuação de barreiras ou restrições nacionais à ideia de uma economia mundial(10).

(9) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos — o breve século XX — 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 552.
(10) O historiador e cientista político Francisco Fonseca prefere o termo “ultraliberal, em vez de
neoliberal”, não só diante da vulgarização do segundo, como pelo fato de que “[...] a ideia de um
22 MAURICIO GODINHO DELGADO

A) Pensamento Econômico Hegemônico

O primeiro de tais requisitos foi a generalização de um pensa­ mento


econômico específico, que tem sido identificado pelo epíteto de neoliberalismo
(ou ultraliberalismo). Trata-se, na verdade, de reade­quação aos tempos recentes
da antiga matriz liberal, hegemônica nos primórdios do sistema capitalista, ainda
no século XVIII e no início do século XIX.
Esse pensamento liberal readequado tende a reconhecer, como a velha
tradição teórica dominante nos séculos XVIII e XIX no Ocidente, o império da
dinâmica econômica privada, a quem devem se submeter a normatividade pública
e a atuação estatal.
Ajustando-se, porém, aos novos tempos, respalda a hegemo­nia do capital
financeiro-especulativo, propondo estratégia de seve­ra redução dos investimentos
e gastos do Estado, exceto aqueles correspondentes à reprodução do próprio
capital financeiro-especu­lativo; propõe, como linha geral, o redirecionamento da
atuação dos Estados nacionais, de modo a garantir a estreita vinculação de suas
economias ao mercado globalizado; propugna, por fim, pela mitigação das políticas
sociais, inclusive trabalhistas, em favor do exercício cada vez mais desregulado do
mercado de bens e de serviços.
A generalização desse tipo de pensamento fez-se mediante o concurso
de diversos fatores e agentes, entre os quais se destacam distintos organismos
internacionais de forte influência no conjunto do sistema econômico e político,
como, ilustrativamente, Banco Mun­dial (BIRD), Fundo Monetário Internacional
(FMI), Banco Interame­ricano de Desenvolvimento (BID), Organização Mundial do
Comér­cio (OMC) e outras entidades congêneres.
Nessa generalização, também cumpriram (e vêm cumprindo) importante
papel inúmeros seminários, encontros, palestras e ou­tros mecanismos formais ou
informais de direcionamento intelec­tual, de debates e troca de propostas teóricas e
experiências, nos planos internacionais e nacionais, os quais tendiam (e tendem) a
desaguar em receituários relativamente padronizados de políticas públicas a serem
cumpridas pelos governos dos países dependen­tes. No caso latino-americano,
destacou-se o receituário conhecido pelo apelido de Consenso de Washington —
expressão que, segun­do José Luís Fiori, foi “[...] cunhada em 1989 pelo economista
anglo-­
americano John Williamson para dar conta do conjunto de políticas e
reformas propostas pelos organismos multilaterais na renegociação das dívidas

ultraliberalismo revela-nos a radicalidade — no sentido de im­plementação de uma agenda bem


determinada e em razão de seu modus operandi — com que os liberais do século XX atuaram visando
a obtenção da hegemonia”. Noutras palavras, sua escolha se faz “[...], em razão do radicalismo tanto
dos pressu­postos desta doutrina quanto da forma de agir de seus adeptos”. FONSECA, Fran­cisco.
O consenso forjado — a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo:
HUCITEC, 2005. p. 28 e 49. Nesta obra, iremos nos valer dos dois termos.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 23

externas dos países em desenvolvimento e que passam ser chamados a partir dos
anos 90 — dentro do espírito do novo consenso — de mercados emergentes(11).
É bem verdade que, já antes do apelidado Consenso de Wa­shington, vinha
se tornando recorrente e cada vez mais dissemina­do nos países latino-americanos
o receituário ultraliberalista, uma vez que padronizado em significativa medida,
desde o início dos anos 1980, por organismos multilaterais, como FMI, BIRD e BID.
referido Consenso de Washington seria, portanto, não mais do que continuidade
e desdobramento de tal processo.
No quadro de generalização de um pensamento econômico li­beral-monetarista,
também cumpriu (e cumpre) significativo papel a própria comunidade acadêmica
de várias universidades de países centrais, em especial do gigantesco e sofisticado
complexo de uni­versidades dos EUA, que propiciou (e propicia) a for­mação de
seleto e influente conjunto de economistas e burocratas estreitamente vinculados
a esse pensamento econômico oficial.
A propósito, aparentemente não por acaso, nesse processo de construção
intelectual de nova hegemonia, os dois maiores arautos do liberalismo readequado,
Friedrich Hayek e Milton Friedman, foram agraciados, na mesma década, em
curta distância temporal (1974 e 1976, respectivamente), com o Prêmio Nobel de
Economia(12).
Esse pensamento econômico com pretensões unívocas passa a ter influência
cada vez maior nas burocracias nacionais, em espe­ cial nos setores-chave de
finanças públicas e gestão de moeda, os quais preponderam sobre os demais,
inclusive o anterior­mente importante setor de planejamento e formulação de
políticas públicas.
Por curioso que pareça, essa influência se preserva e se acen­tua muitas vezes
independentemente da própria aliança política interna eventualmente no poder.(13)
Tal pensamento passa a ser praticamente exclusivo também nos meios de
comunicação de massa, propiciando a geração de uma ideologia aparentemente

(11) FIORI, José Luís (Org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999. p. 36 (destaques no original). A respeito desse e outros receituários e encontros
análogos, ver também outra obra do mesmo autor, Os moedeiros falsos. 4. ed. Petrópolis:
Vozes, 1998.
(12) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 508.
(13) Os países dependentes chegam a ofertar grotescos exemplos de semelhante in­fluência. Observe-
-se, por exemplo, fato ocorrido com a autoridade monetária brasilei­ra, que tem papel decisivo na
gestão interna e externa das relações econômico-finan­ceiras do Brasil com o exterior. O Banco Cen-
tral abriu concurso público para econo­mista, em 1999/2000, privilegiando, no respectivo edital,
“... candidatos de 45 institui­ções de ensino superior e pós-graduação, dentre as quais 39 (78%)
norte-americanas”. A estas se somavam “quatro instituições inglesas, uma belga e uma espanhola,
contra apenas cinco escolas do Brasil (FGV-Rio, PUC-Rio, UFRGS, UNB, USP)”. Mo­nitor Mercantil, ano
LXXXVIII, n. 23.650, Rio de Janeiro, 16.3.2000, p. 1 e 3. A discri­minação resultante desse manifesto
viés ideológico foi objeto de questionamento judi­cial (loc. cit.).
24 MAURICIO GODINHO DELGADO

consensual no contexto da sociedade (o chamado jornalismo de mercado). Não


é exagero afirmar-se que, considerados os marcos da democracia formal, jamais
se alcançou nos mass media contemporâneos tamanha uniformidade de pers­
pectivas, análises e argumentos, como nas matérias sobre econo­mia veiculadas
nos últimos tempos.

Liberalismo Readequado
Esse liberalismo readaptado — neoliberalismo ou ultraliberalismo — corres-
ponde a um conjunto orgânico de ideias, que se fortaleceu política e culturalmente
a contar dos anos 1970 nos países capitalistas desenvolvidos, dirigidas à estrutu-
ração do Estado e sociedade no sistema capitalista, em anteposição à matriz do
Estado de Bem-Estar Social, que foi hegemônica nas décadas subsequentes à Se-
gunda Guerra Mundial tanto nos EUA como, principalmente, na Europa Ocidental.
Em sua mais recente formulação, o liberalismo reascendeu a partir do veio
teórico de economistas como Friedrich Hayek (aus­tríaco) e Milton Friedman (norte-
-americano), antepondo-se à linha teórica então hegemônica no Ocidente, que
conferia suporte ao Wel­fare State, lastreada, em grande medida, nas concepções
do econo­mista John Maynard Keynes (inglês) e em vertentes pragmáticas das di-
versas tendências da social-democracia do pós-guerra.
O pensamento liberal renovado sustenta, em síntese, na linha da velha matriz
oriunda dos séculos XVIII e XIX, o primado do mercado econômico privado na
estruturação e no funcionamento da economia e da sociedade, com a submissão
do Estado e das políticas públicas a tal prevalência.
Em consequência, a atuação econômica estatal deve ser restringida de modo
muito substantivo, em contraponto ao modelo multifacetado, normatizador e
intervencionista do Welfare State.
Deve o novo Estado neoliberalista centrar seu foco, em essência, na gestão
monetária da economia e na criação de condições cada vez mais favoráveis aos
investimentos privados.
Pela gestão monetária da economia, o Estado, a um só tempo, conferiria
respaldo à nova hegemonia do segmento financeiro-espe­culativo do sistema, por
meio das políticas de gestão da dívida pú­blica, de juros e de câmbio, assim como
enquadraria o dinamismo do maior agente econômico de qualquer sociedade
capitalista — o Estado mesmo — à busca da máxima restrição de suas próprias
atividades econômicas.
A criação de condições cada vez mais favoráveis aos investi­mentos priva-
dos passaria, de um lado, pela redução da presença do Estado na dinâmica da
economia, o que seria alcançado quer me­diante programas de privatização de em-
presas estatais, quer por meio de programas de desregulamentação de atividades
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 25

econômi­cas já situadas no âmbito privado. Essa criação passaria ainda pela inces-
sante procura de novos campos para a desregulamentação nor­mativa, de modo
a reduzir o antigo império da norma jurídica —
­ enquanto síntese de certa vontade
geral — sobre os movimentos dos agentes econômicos privados.
As condições econômicas mais favoráveis ao capital supõem, ainda, a derru-
bada de barreiras ao chamado livre comércio, a par da garantia de livre acesso de
capitais às diferentes partes do globo.
Em anteposição ao forte intervencionismo estatal — seja dire­to, via empresas
estatais, seja indireto, via regulamentação econô­mico-social —, tão característico
do Estado de Bem-Estar Social, o neoliberalismo advoga, desse modo, o conceito
de Estado mínimo, transformado em mero indutor das livres forças do capital
privado na economia(14).

B) Hegemonia Política Ultraliberal

O segundo dos requisitos para que a atual fase/processo capi­talista assumisse


as características hoje preponderantes reside no domínio político de significativo
prazo de importantes lideranças po­líticas ultraliberais. Trata-se de cerca de década
e meia, a partir do final dos anos 1970 até o início da década de 1990, de firme
hege­monia político-partidária de correntes assumidamente neoliberais, em Estados
e nações de decisiva influência política e cultural em todo o globo terrestre.
Foram destaques nesse domínio político os governos de Mar­garet Thatcher, na
Grâ-Bretanha (1979-1990), iniciando uma hegemonia conservadora de aproximada-
mente 17 anos; Ronald Reagan, nos EUA (1980-1988), iniciando uma hegemonia
republicana de 12 anos; Helmut Kohl, na Alemanha Ocidental (1982-1988), que se-
dimentou uma hege­monia conservadora (Democrata Cristã) por cerca de 16 anos.
Esse simultâneo controle político de Estados-chave do capi­talismo oci-
dental, por substantivo período de tempo, permitiu a sedimentação e a
generalização da influência de tal pensamento eco­nômico, com seus reflexos
políticos e culturais. A articulação concertada desses Estados líderes do siste-
ma capitalista mundial, viabilizando a atuação também concertada das mais
importantes agências oficiais nacionais e internacionais de índole econômica,
gerando um caldo cultural uniforme para os meios de comunicação de massa
em todo o Ocidente, conduziu a construção de sólida hegemonia da matriz
teórica contraposta ao Welfare State.

(14) Sobre essa matriz neoliberal (ou ultraliberal), consultar FIORI, José Luís. Os moe­deiros falsos. 4.
ed. Petrópolis: Vozes, 1998, passim; também FONSECA, Francisco. O consenso forjado — a grande
imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo: Hucitec, 2005 (Introdução e
Capítulo 1).
26 MAURICIO GODINHO DELGADO

C) Ausência de Contraponto Eficaz

O terceiro desses requisitos reside na ausência, na conjuntura dos anos


1980/1990 e início do século seguinte, de contraponto políti­co consistente e eficaz
ao próprio capitalismo (ou, pelo menos, a certo tipo de capitalismo, que atue sem
peias ou controles civilizatórios).
A falta desse contraponto verificou-se principalmente no plano externo das
nações do Ocidente, em face da derrocada da experiên­cia socialista soviética.
Contudo, essa falta também apresentou aspectos internos es­pecíficos às
sociedades capitalistas desenvolvidas, que não devem ser negligenciados.

a) Contraponto Externo
No plano externo, desapareceu do universo comparativo dos países ocidentais
aquilo que o Historiador do Capitalismo, Eric Hobs­bawm, chamaria de “ameaça
política digna de crédito ao sistema”.(15)
A ausência desse contraponto, no âmbito internacional, verifi­cou-se pelo
desaparecimento do império soviético, em rápido processo experimentado em fins
da década de 1980 e início da seguinte. De fato, o império europeu da URSS ruiu
em 1989 (queda do muro de Berlim), desaparecendo, logo a seguir, a própria
União Soviética, no âmbito da Rússia e de diversas repúblicas anteriormente
vinculadas (1991).
A ausência de um contraponto externo realmente eficaz ao sis­tema econômico
ocidental hegemônico, em um quadro de inevitável refluxo do movimento operário
nos países do Ocidente (plano inter­no desse fator), favoreceu a adoção de ideologias
e políticas públi­cas sem qualquer preocupação com contrapartidas sociais.
De fato, uma estratégia de assumida irresponsabilidade social do Estado
dificilmente imperaria no complexo cenário do Ocidente caso pudesse, politica-
mente, colocar em risco a sorte do conjunto do sistema capitalista. Apenas em um
instante histórico específico de desaparecimento da lancinante ameaça política
socialista, no leste da Europa, e de grave enfraquecimento das forças populares,
nos países ocidentais, é que se tornou viável, do ponto de vista político, a consu-
mação de uma estratégia de atuação interna do Estado sem qualquer consistente
preocupação social.

b) Contraponto Interno
O historiador Eric Hobsbawm, ao mencionar a ideia de contra­ponto, dirige-a,
essencialmente, ao plano internacional, em face da alta relevância, naquele
contexto, do fim do império soviético.

(15) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos — o breve século XX — 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 552.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 27

Entretanto, não pode haver dúvida de que, também no plano interno dos
países capitalistas, tornou-se elemento importante para a hegemonia neoliberal
o enfraquecimento, a partir de fins dos anos 1970, das forças sociopolíticas e
culturais classicamente oposi­toras da noção de império do mercado econômico
privado no âmbito das sociedades democráticas.
O enfraquecimento desse contraponto democrático-popular ao estuário
teórico liberal resulta de três processos distintos, embora claramente combinados:
de um lado, o refluxo do movimento sindi­cal, a contar da crise econômica de
meados dos anos 1970; de outro lado, a perda de consistência dos projetos
políticos democrático-­ populares europeus a partir dessa conjuntura adversa,
ainda que eventualmente conquistada ou recuperada, nesse mesmo período, a
direção política do Estado por vitórias eleitorais trabalhistas ou social-democratas;
finalmente, uma relativa derruição do pensamento crítico clássico, que passa a
acolher, ainda que de modo indireto, certos pressupostos da matriz explicativa
ultraliberal sobre a socie­dade capitalista mais recente.
No que tange ao refluxo do movimento sindical, ele não é, evi­dentemente,
uniforme em toda a Europa, não se mostrando sequer relevante em determinadas
experiências históricas (países nórdicos, por exemplo). Contudo, ele é claro em
alguns países, cuja importân­cia estratégica no imaginário do Ocidente é inequívoca.
E o que se passa, ilustrativamente, com a Grã Bretanha.
O refluxo do sindicalismo origina-se, em parte, da crise econô­ mica de
meados dos anos 1970 e do incremento profundo do desemprego despontado
nos anos subsequentes. É bem verdade que esse incremento do desemprego já
seria resultante da nova orien­tação econômica imposta aos países capitalistas
desenvolvidos pelo receituário ultraliberal em expansão — responsável no Ocidente,
nas décadas seguintes aos anos 1970, por taxas de desocupação inusitadas se
compa­radas aos índices tradicionais do período de Welfare State.
Esse refluxo também decorre, sem dúvida, da nova linha de enfrentamento
das questões sociais por parte das lideranças ultrali­berais ascendidas ao poder
desde 1979/1980, que se mostraram duras e inflexíveis com a atuação e reivindi-
cações sindicalistas(16).
No que concerne à perda de consistência dos projetos políti­cos democrático-
-populares europeus, no último quartel do século XX, também não é obviamente
elemento absoluto, nem mesmo uni­forme às distintas experiências europeias; con-
tudo, tal perda mani­festou-se, ainda que de modo diferenciado e relativo, em
alguns exem­plos fundamentais, dotados de largo potencial de propagação.

(16) É ilustrativo dessa nova postura estatal o enfrentamento por Margaret Thatcher da greve de
mineiros de 1984/1985, que durou mais de um ano, sem quaisquer concessões governamentais.
28 MAURICIO GODINHO DELGADO

É o que se verificou, ilustrativamente, com o governo socialista de Mitterrand,


na França (1981-95), que, após iniciar seu mandato com a adoção de medidas social-
democratas clássicas (algumas incisivas, como a estatização do sistema financeiro),
logo alteraria, fortemente, os rumos governamentais, em direção à linha de auste­
ridade monetária tão cara ao neoliberalismo(17). De certo modo tam­bém é o que
se deu com o governo socialista de Felipe González, na Espanha (1982-96),
que viria adotar, nos anos 1980, receituário radi­ cal de desregulamentação e
flexibilização do Direito do Trabalho. Em alguma medida, tal tendência também
se perceberia no governo trabalhista britânico de Tony Blair (começado em 1997),
que preferiu anunciar uma suposta terceira via de gestão socioeconômica, dis­tinta
do neoliberalismo radical de Thatcher, mas também não se con­fundindo com o
keynesianismo hegemônico nos trinta anos seguin­tes à 2ª Guerra Mundial(18).
Nas duas últimas décadas do século XX, portanto, o contra­ponto político
ao liberalismo, situado internamente nas sociedades europeias e vinculado aos
tradicionais partidos trabalhistas e socia­
listas característicos de sua história,
enfraqueceu-se em significati­va extensão. É que essas próprias forças políticas
muitas vezes ado­taram, quando no poder, nesse período, medidas muito próximas
àquelas recomendadas pelo pensamento econômico ultraliberal a­ este, conferindo,
ironicamente, a real aparência de pensamento único.
No que tange, por fim, à derruição (ainda que também apenas relativa) do
pensamento crítico clássico, é fenômeno que se perce­be, igualmente, a partir
de finais dos anos 1970. À proporção que se aprofunda e se generaliza, essa
derruição irá comprometer, de modo importante, a presença de contrapontos
eficazes à hegemo­nia da matriz neoliberal neste período histórico.
Na medida em que essa derruição tem vínculo direto com a tentativa
incansável de desconstrução do primado do trabalho e do emprego na sociedade
capitalista contemporânea, será sua análise retomada no item IV do presente
capítulo, no seu final.

D) Internalização Dependente do Ultraliberalismo

O quarto requisito para a atual conformação da fase e do proces­ so


globalizantes situa-se fora do centro hegemônico do conjunto de todo o sistema
capitalista. Reside, ao revés, em alguns dos núcleos periféricos mais significativos
do sistema hegemônico, em especial na América Latina.

(17) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 273-274.
(18) O economista José Carlos de Assis discorre, com ilustrativos exemplos, sobre a guinada
conservadora de parte importante das lideranças de esquerda e de sua curio­ sa ambiguidade
ideológico-programática, nessa fase histórica do Ocidente. ASSIS, J. Carlos de. Trabalho como
direito — fundamentos para uma política de promoção do pleno emprego no Brasil. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2002. p. 67-79.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 29

Trata-se, de toda sorte, da oficialização de um mesmo pensa­mento econômico


padrão nos países integrantes do sistema global, com a uniformização de práti-
cas políticas e econômicas favorece­doras do próprio processo globalizante, por
meio da supressão ou atenuação de barreiras ou restrições nacionais à ideia de
uma econo­mia mundial, a par de outros ajustes internos inerentes ao receituário
ultraliberal (com a desregulamentação do mercado de trabalho em destaque). Em
síntese, independentemente do exame acerca dos efetivos ganhos para as popula-
ções e os países envolvidos, os di­rigentes políticos de parte significativa dos países
periféricos — na América Latina, especialmente — têm traçado estratégias de ade­
quações radicais das respectivas economias, sociedades, políticas e instituições
públicas ao receituário ultraliberal construído nos paí­ses centrais do capitalismo
(no caso latino-americano, principalmente nos EUA).
Um dos exemplos mais dramáticos dessa internalização acrítica do pensamento
liberal globalizante verificou-se, neste continente, na Argentina, em particular na
gestão Carlos Menem (1989-1999). Iniciando seu mandato com política monetária
rigorosa, seguida de política cambial inflexível, o novo governante promoveu a
descons­trução drástica da participação estatal na economia, com privatizações
generalizadas, a par de impor reforma trabalhista célebre por sua agressividade,
com profunda desregulamentação normativa. O resultado de tal estratégia é
por todos conhecido: poucos anos de­pois, no final do século, mais de 50% da
população do país vivia abaixo da linha de pobreza, segundo o internacional Índice
de De­senvolvimento Humano (IDH), ao passo que, duas décadas antes, apenas
5% dos argentinos se submetiam a tal condição; o desem­prego, em 2002, atingia
cerca de 25% da força de trabalho do país; a criminalidade elevou-se cerca de
290% em torno de 10 anos(19).
O Brasil também se perfilou a essa corrente de internalização acrítica do
pensamento ultraliberal. Nessa linha, já em 1982, durante a última gestão do
regime militar, o País celebraria o primeiro de vários compromissos de políticas
públicas com o FMI, fixando o tom principal da atuação do Estado brasileiro nos
anos subsequentes.
É bem verdade que, nos anos 1980, a assunção estatal do recei­ tuário
ultraliberalista ainda não seria plena, seja em face do quadro político de crescente
desagregação do regime autoritário (que se encerra em 1985), seja em vista da
experiência econômica hetero­doxa do início da Nova República (1985-1987), seja
em virtude do imperativo da transição político-constitucional de 1987-1988.
Contudo, ainda assim, o marco de 1982 confirmaria o que já vinha sendo
demonstrado desde fins dos anos 1970, ou seja, o gradativo abandono de qualquer
estratégia consistente de desenvol­vimento econômico, em favor da priorização,
pela política pública, do estrito ( e estreito), temário financeiro.

(19) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003, São Paulo: 2003. p. 160.
30 MAURICIO GODINHO DELGADO

Será a partir do governo Fernando Collor (1990-1992) e, principalmente, com


o governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) que o receituário neolibera-
lista radical passaria a ser entusiasticamente seguido pelo Estado brasileiro. Desde
então, foram tomadas medidas de abertura comercial acentuada, desconstrução
das políticas industriais, privatizações amplas de entidades estatais, deterioração
acentuada das instituições e equipamentos públicos, degradação e/ou acanha-
mento dos serviços públicos, desregulamentação e flexibilização do Direito do
Trabalho.
A partir de 2016/2017, recrudesceu, no País, a adoção, nas políticas públicas,
do receituário ultraliberalista de gestão da economia, da sociedade e das institui-
ções, com os mesmos efeitos deletérios que tem caracterizado tal estratégia nos
diversos países em que é perfilada.

IV — DERRUIÇÃO (AINDA QUE RELATIVA) DO PENSAMENTO CRÍTICO NA


RECENTE HEGEMONIA POLÍTICO-CULTURAL CAPITALISTA

Conforme já exposto, a presente hegemonia político-cultural capitalista, que


tem dado curso a modelos de gestão socioeconômica extremamente excludentes
no mundo ocidental, passa pela relativa derruição do pensamento crítico ao
capitalismo, processo que se evidencia a partir de fins da década de 1970.
É claro que o aprofundamento e a generalização desse processo desconstrutivo
tende a comprometer, de modo significativo, o eficaz contraponto político, social
e cultural à matriz antissocial liberalizante que prepondera no presente momento
da História.
No que diz respeito ao mundo do trabalho, importa reconhecer que seme-
lhante derruição tem vínculo direto com a recorrente ten­tativa de desconstrução
do primado do trabalho e do emprego na sociedade capitalista contemporânea.

1. Núcleo Social e Ético do Pensamento Crítico: Primado do Trabalho e do


Emprego no Capitalismo

O capitalismo, logo após seu nascimento, já no início do século XIX, começou


a sofrer críticas quanto à sua estrutura e dinâmica de operação, em face da enorme
desigualdade social que propiciava. Embora parte importante de tais críticas tivesse
conteúdo e objeti­vos revolucionários — propondo a superação do próprio sistema
(vide pensamento socialista) —, outras tinham natureza meramente re­formista da
sociedade e economia então vigentes.
Não obstante, todas essas críticas tendiam a convergir em tor­no de um núcleo
fundamental de reflexão, situado na essencialidade do valor-trabalho.
Tal convergência encontraria no século XX seu momento ideal de realização.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 31

De fato, o pensamento crítico radical do capitalismo, formulado a partir do


século XIX, tendo em Marx e Engels o seu principal fulcro teórico, iria encontrar-
-se, já no século XX, com vertentes reformis­tas desse sistema socioeconômico,
que angariaram forte prestígio após a brutal crise de 1929; o fulcro teórico mais
importante dessas vertentes reformistas situava-se, ao menos no plano da econo-
mia, em John Maynard Keynes.
Estabelece-se, desde então, uma conjugação teórica crítica ao sistema
capitalista, porém de caráter essencialmente democrático e reformador, que
teria grande importância no processo sociopolítico seguinte de adequação desse
sistema às demandas socioeconômi­cas e culturais da maior parte das populações
dos países ocidentais desenvolvidos. Ou seja, uma síntese teórica crítica, mas
não revolu­cionária, estrutura-se desde então, com grande capacidade analíti­ca
acerca das regras de funcionamento do capitalismo e dos meios de adaptá-lo às
necessidades sociais.
A partir desse pensamento crítico e de uma experiência política diferenciada,
porém bastante pragmática, nas décadas seguintes, arquitetou-se o chamado
Estado de Bem-Estar Social, que iria se constituir no ponto máximo de distribuição
de renda e poder já vivenciado pelo capitalismo desde suas origens.
A matriz cultural então consolidada — com o correlato critério de exame
da realidade — tinha como um de seus postulados fundamen­tais o primado do
trabalho na sociedade capitalista. A centralidade do trabalho — e, em especial, sua
forma mais articulada e comum no capitalismo, o emprego — torna-se o epicentro
de organização da vida social e da economia. Percebe tal matriz a essencialidade
da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de afirmação
do ser humano, quer no plano de sua própria individua­lidade, quer no plano de
sua inserção familiar, social e econômica. A centralidade do trabalho em todos os
níveis da vida da ampla maio­ria das pessoas é percebida por essa matriz cultural,
com notável sensibilidade social e ética, erigindo-se como um dos pilares princi­
pais de estruturação da ordem econômica, social e cultural de qual­quer sociedade
capitalista que se queira minimamente democrática.
Por meio da centralidade do trabalho e do emprego, a nova matriz cultural
submetia a dinâmica econômica do capitalismo a certa função social, ao mesmo
tempo que restringia as tendências autofágicas, destrutivas, irracionais e
desigualitárias que a história comprovou serem inerentes ao dinamismo normal
desse sistema econômico.
Essa matriz cultural sabiamente detectou que o trabalho, em especial
o regulado (o emprego, em suma), por ser assecuratório de certo patamar de
garantias ao ser humano, constitui-se no mais im­portante veículo de afirmação
socioeconômica da grande maioria dos indivíduos componentes da sociedade
capitalista, sendo, desse modo, um dos mais relevantes (senão o maior deles)
instrumentos de afirmação da Democracia na vida social.
32 MAURICIO GODINHO DELGADO

Na medida em que Democracia consiste, em essência, na atribui­ção de poder


também a quem é destituído de riqueza — ao contrário das sociedades estritamente
excludentes de antes do século XIX, na História —, o trabalho assume caráter de ser
o mais relevante meio garantidor de um mínimo de poder social à grande massa
da população, que é destituída de riqueza e de outros meios lícitos de alcance
desta. Percebeu, desse modo, com sabedoria, essa matriz cultural, a falácia de se
instituir Democracia sem um correspondente sistema econômico-social valorizador
do trabalho humano.
Registre-se que não se está referindo, abstratamente, a qual­quer tipo de
trabalho — embora, é claro, todos sejam importantes —, mas, fundamentalmente,
ao trabalho regulado, isto é, ao emprego, não apenas por se tratar do mais
importante tipo de labor no siste­ma capitalista, como também por ser aquele
submetido a um feixe jurídico de proteções e garantias expressivas(20).
Efetivamente, excluídas modalidades autônomas de labor su­ mamente
especializado e, por consequência, muito valorizado no sistema econômico (as
quais não são, regra geral, numericamente tão comuns), a oferta de trabalho no
capitalismo tende a não gerar para o prestador de serviços vantagens econômicas
e proteções jurídicas significativas, salvo se induzidas ou impostas tais prote­ções e
vantagens pela norma jurídica interventora na respectiva contratação. O complexo
mais sofisticado dessas normas jurídicas encontra-se, classicamente, no Direito do
Trabalho, essencialmente regulatório da relação de emprego.
O emprego, regulado e protegido por normas jurídicas, desponta, desse modo,
como o principal veículo de inserção do tra­balhador na arena socioeconômica
capitalista, visando propiciar-lhe um patamar consistente de afirmação individual,
familiar, social, econômica e, até mesmo, ética. É óbvio que não se trata do único
veículo de afirmação econômico-social da pessoa física prestadora de serviço, uma
vez que, como visto, o trabalho autônomo especia­lizado e valorizado também tem
esse caráter. Sem dúvida, porém, se trata do principal e mais abrangente veículo
de afirmação socio­econômica da ampla maioria das pessoas humanas na desigual
sociedade capitalista.

2. A Tentativa de Desconstrução do Primado do Trabalho e do Emprego


no Capitalismo Contemporâneo

A partir da década de 1970, com o recrudescimento da corrente ultraliberal


de análise e conformação da economia, da sociedade e do Estado, segundo

(20) A importância do emprego no capitalismo é óbvia, uma vez que, mesmo após todo o fluxo
desregulamentador e flexibilizatório dos anos 1980/1990 na Europa Ocidental, ainda tende a
abranger cerca de 80% do pessoal ocupado em importantes países daquele continente (por exemplo,
Alemanha e França). A respeito, dirigir-se ao capítu­lo IV do presente livro. Consultar também, se for
o caso, DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 4. ed./1ª reimpr. São Paulo: LTr,
2005, Capítulo I, item V, p. 58-62 (a edição 16ª, de 2017, é a mais recente desse Curso).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 33

as versões capitaneadas por Friedrich Hayek, Milton Friedman e subsequentes


divulgadores, o primado do traba­lho e do emprego no sistema capitalista passa a
ser severamente fustigado.
A nova corrente de pensamento, com impressionante voraci­dade de cons-
trução hegemônica, teria mesmo de agredir, de maneira frontal, a matriz cultural
afirmativa do valor trabalho/emprego, por ser esse valor o grande instrumento teó-
rico de construção e repro­dução da democracia social no Ocidente. A permanência
da noção de centralidade do trabalho e do emprego inviabilizaria, drastica­mente,
a aplicação do receituário de império do mercado econômico estruturado pelo
pensamento neoliberal.
A antítese entre as duas vertentes teóricas era (e é), afinal, simplesmente
manifesta.
A desconstrução da matriz teórica afirmativa da centralidade do trabalho e
do emprego na sociedade democrática contemporâ­nea e no sistema econômico-
-social capitalista passava a ser um dos desafios mais relevantes e urgentes para as
vertentes de renovação do velho liberalismo.
Não é por outra razão que o velho liberalismo, reconstruído na segunda
metade do século XX, evitava buscar inspiração nos mais notáveis clássicos liberais
de fins do século XVIII e início do século XIX, como Adam Smith (1723-1790) e
David Ricardo (1772-1823), uma vez que estes ainda firmaram suas reflexões em
torno do valor­-trabalho. O liberalismo readequado iria preferir, ao revés, colher sua
seiva em autores como Jean-Baptiste Say (1767-1832), Nassau Se­nior (1790-1864)
e Frederic Bastiat (1801-1850), que, desde o século XIX, já elaboravam sua teoriza-
ção desconsiderando a centralidade do trabalho no capitalismo(21).
Ora, a centralidade (ou não) do trabalho e do emprego no sis­tema capitalista
é, essencialmente (embora não apenas isso, é claro), uma escolha, uma perspec-
tiva, uma decisão — considerado qualquer plano do conhecimento, seja filosófico,
político, econômico ou cultural. Isso é o que bem demonstraram tanto a história
do capita­lismo ocidental no século XX, como alguns dos economistas mais céle-
bres do período do Estado de Bem-Estar Social — keynesianos ou, até mesmo,
marxistas —, como John Keynes, Mikal Kalecki e Joan Robinson (a propósito, não
parece ocasional que, sugestiva­mente, a mais famosa obra econômica de Keynes
tenha recebido o título de A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda)(22).

(21) A respeito, HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 7. ed. Rio de Janei­ro: Campus,
1981, passim.
(22) A respeito, consultar: HUNT, E. K. Ob. cit., passim. Ver ainda: POMERANZ, Lenina et al. Dinâmica
econômica do capitalismo contemporâneo — homenagem a M. Kalecki. São Paulo: EDUSP/FAPESP,
2001, passim. Cite-se, por fim, KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da
moeda. São Paulo: Atlas, 1992.
34 MAURICIO GODINHO DELGADO

Se, ao invés, se concentram todas as energias do Estado e da sociedade na


gestão da moeda — este ícone da vertente liberalizante reconstruída —, é óbvio
que restarão menores espaços, iniciativas, recursos e energia para a geração de
empregos e disseminação da renda nos respectivos países e economias. No entanto,
esse será um pro­blema menor, residual, para a perspectiva neoconservadora que
se tornou hegemônica nas últimas décadas.
O que surpreende nessa conjuntura histórica é que um seg­mento importante
das formulações teóricas tendencialmente enquadradas (ou enquadráveis) na
matriz crítica hegemônica até os anos 1970 parte inclusive de origem marxista,
tenha passado também a incorporar — ainda que por razões distintas às dos ul­
traliberais — a perspectiva do fim do primado do trabalho e do emprego, do fim da
sociedade do trabalho e do emprego, assumin­do a ideia do suposto surgimento de
novo paradigma na vida so­cioeconômica, que não transitaria mais pelas noções e
realidades do emprego e do trabalho.
Impressionado pelas inovações tecnológicas e organizacionais aprofundadas
no sistema econômico, nas últimas décadas do século XX, além dos índices
elevados de desemprego que passaram a persistir desde meados dos anos 1970,
esse segmento crítico dissonante acolheu o cerne da proposta explicativa do
neoliberalismo, mesmo que com adequações e argumentos teóricos distintos. Em
síntese, também para essas correntes críticas — algo perplexas e, de certo modo,
ingênuas —, o trabalho teria se tornado desimportante na estrutura e na dinâmica
do novo capitalismo, sendo que o emprego, a tradicional e dominante fórmula de
trabalho nesse sistema, teria decaído para inevitável anacronismo.
Essa derruição de parte relevante do pensamento crítico, des­de finais dos anos
1970, sem dúvida contribuiria para comprome­ter a existência de contrapontos
internos eficazes à hegemonia das correntes neoliberais nas últimas décadas, no
Ocidente.(23)

(23) Sobre a manutenção da centralidade do trabalho e do emprego na contemporânea realidade


capitalista — com as contraposições, inclusive, ao segmento do pensamento crítico que acolheu,
indiretamente, o cerne da proposta explicativa do neoliberalismo sobre a suposta perda, nos dias
atuais, dessa centralidade -, consultar notáveis obras do cientista social brasileiro, Ricardo Antunes,
Pesquisador e Professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ilustrativamente, Adeus
ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 16. ed., São
Paulo: Cortez, 2015 (a edição original da obra é de 1995); Os Sentidos do Trabalho. Os sentidos
do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed./10ª reimpr., São Paulo:
Boitempo, 2015 (a edição original da obra é de 1999).
CAPÍTULO II

O FIM DO TRABALHO E DO EMPREGO


NO CAPITALISMO ATUAL:
REALIDADE OU MITO?

I — INTRODUÇÃO

O desemprego, a partir de meados dos anos 1970, tornou-­se, de modo


notório, fenômeno socioeconômico persistente e grave em inúmeros países
capitalistas ocidentais, desde o universo europeu desenvolvido até a realidade de
distintas economias latino-americanas.
O elevado índice de muitas das taxas nacionais de desempre­go (comumente
próximas ou acima de dois dígitos) e a sua renitente continuidade ao longo do
tempo têm ensejado a busca de explica­ções sobre o fenômeno.
Ganhou hegemonia, desde a década de 1980, a linha explicativa que perfila
argumentos em torno da singularidade do fenômeno na presente fase capitalista:
o desemprego, ao invés da natureza con­juntural (ainda que eventualmente grave)
sempre ostentada em períodos anteriores do sistema econômico, teria assumido,
nas últi­mas décadas, efetivo caráter estrutural.
A natureza estrutural do desemprego contemporâneo derivaria de nova
maneira específica de se organizar e se desenvolver o novo capitalismo, em
que estariam inexoravelmente sendo colocadas em xeque não apenas a relação
empregatícia, como também a própria realidade do trabalho.
Esse tipo de diagnóstico, que prevê o fim do emprego e do tra­balho no
capitalismo atual, que enuncia a natureza estrutural irreprimível do desemprego,
será objeto do presente capítulo.

II — O MUNDO DO TRABALHO NA CONJUNTURA CAPITALISTA DA VIRADA


DOS SÉCULOS XX E XXI — CONDIÇÕES DO “DESEMPREGO ESTRUTURAL”

A conjuntura do sistema econômico, social e político capitalis­ta, ao longo do


último quartel do século XX, propiciou a realização de importantes acontecimentos

(*) A primeira versão deste artigo foi originalmente publicada na Revista O Trabalho — suplemento
especial de doutrina em fascículos, Curitiba: Decisório Trabalhista, ano 23, n. 278, encarte n. 103,
p. 2.906-2.926, setembro de 2005.
36 MAURICIO GODINHO DELGADO

e tendências de notável impacto no mundo do trabalho. A concentração de tais


tendências e aconteci­mentos em curto período histórico fez brotar diagnóstico
bastante generalizado a respeito da presença de irremediável crise estrutural no
tocante ao trabalho e ao emprego na atualidade do capitalismo.
Tal diagnóstico e o caráter sombrio de suas previsões têm, evi­dentemente,
pontos de contato com a dinâmica atual do sistema socioeconômico prevalecente.
É o que será examinado nos itens II até VII deste capítulo.
No entanto, é necessário já se antecipar que, em boa medida, mes­ mo
considerada a atual fase capitalista, não se mostra rigorosamen­te correto esse
diagnóstico, e, muito menos, são inevitáveis suas pre­visões sombrias. Os equívocos
de tal diagnóstico e de suas lúgu­bres previsões serão estudados nos mesmos itens
II até VII do pre­sente capítulo.
O item final (VIII) deste estudo faz breve referência a uma sin­gular omissão
no cerne da linha explicativa dominante acerca do fenômeno contemporâneo
do desemprego: o tipo de política públi­ca, notadamente econômico-financeira,
seguida pelos Estados Na­ cionais capitalistas no mesmo período considerado.
A referência, contudo, será efetivamente breve, uma vez que não comportaria
aos objetivos do presente capítulo investigar, com maior minúcia, tal política
econômico-financeira(1).

1. Fatores de Impacto no Trabalho e no Emprego: síntese

O diagnóstico hegemônico no Ocidente a respeito do atual de­semprego,


tido como estrutural, toma em consideração três princi­pais fatores ocorridos (ou
acentuados) a contar dos anos 1970, todos relacionados à estrutura do próprio
capitalismo. São eles: ter­ceira revolução tecnológica; processo de reestruturação
empre­sarial; acentuação da concorrência capitalista, inclusive no plano interna-
cional.
A construção desse diagnóstico, contudo, por si somente, já produz outro
fator de grande influência nesta temática nas últimas décadas, qual seja, a
formação de matriz intelectual apologética (ou resignada) quanto ao suposto fim
do emprego e, mesmo, do próprio trabalho.
A referida matriz intelectual, que acredita na derruição estrutu­ ral do
trabalho e do emprego na presente fase do sistema socioeco­nômico vigorante,
tem evidenciado notável prestígio em grande parte dos governos ocidentais nos
últimos anos, induzindo à formulação de políticas públicas reformistas na área
regulatória do trabalho e do emprego.

(1) O exame de tal política pública será efetuado no capítulo III deste livro.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 37

Surge aqui outro fator que acaba por influenciar, direta ou indi­retamente, a
dinâmica da equação emprego/desemprego. Trata-se das modificações jurídicas
implementadas na configuração institu­cional do mercado de trabalho e das normas
que regulam suas rela­ções integrantes (ou modificações normativas trabalhistas).
Esses cinco fatores, que têm trazido forte impacto à área do trabalho e do
emprego desde os anos 1970/1980, serão examina­dos nos itens a seguir.
Esclareça-se, porém, de início, que não existe, necessariamen­te, gradação
temporal ou de importância entre esses fatores, uma vez que tendem a se
configurar mediante combinações, ritmos, in­tensidade e momentos diferenciados,
em conformidade com cada experiência histórica específica. Em consequência, a
ordem aqui es­tipulada tem caráter meramente expositivo, sem traduzir qualquer
valoração classificatória.
O primeiro de tais fatores destaca-se por um complexo signi­ ficativo de
inovações ou alterações tecnológicas ocorridas ou acentuadas nas últimas
décadas, que se passou a denominar de ter­ceira revolução tecnológica, indutora,
em seu conjunto, de mudanças relevantes no campo da estruturação e dinâmica
do trabalho.
O segundo desses fatores diz respeito ao importante processo de
reestruturação empresarial vivenciado nestes últimos 30/40 anos, que também
provocou forte impacto no mundo do trabalho.
O terceiro fator concerne ao aprofundamento e à generalização da concor-
rência capitalista, em todos os planos, inclusive interna­cional, acirrando, de modo
muito mais intenso do que verificado em épocas anteriores, a competição entre
empresas e economias, com reflexos importantes no mundo do trabalho.
O quarto fator, de incomparável relevância, abrange a forma­ção de matriz
intelectual apologética (ou resignada) quanto ao su­ posto fim do emprego
e, mesmo, do próprio trabalho. O alegado fim da sociedade do trabalho e do
emprego, o suposto ocaso do empre­go e, até mesmo, do trabalho que essa matriz
intelectual propaga, tudo terá, evidentemente, forte impacto no mundo laborativo.
O quinto fator, por fim, tem vinculação com as próprias mo­dificações
implementadas na configuração institucional e jurídica do mercado de trabalho e
das normas que regulam suas relações integrantes.

III — INOVAÇÕES E ALTERAÇÕES TECNOLÓGICAS


(TERCEIRA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL)

O primeiro grupo de fatores (inovações e alterações tecnológi­ cas) tem


caráter preponderantemente estrutural. Envolve significati­vas inovações e
aperfeiçoamentos no campo da tecnologia, que afe­tam de modo direto o processo
38 MAURICIO GODINHO DELGADO

de realização do trabalho, a estrutura interna do empreendimento empresarial e


até mesmo a configuração de aspectos relevantes do sistema capitalista.
Tais aperfeiçoamentos e inovações, por sua profundidade, têm sido denomi-
nados de terceira revolução tecnológica do capitalismo. Seus pontos mais notáveis
consistem nas conquistas da microele­trônica, da robotização, da microinformática,
inclusive internet, e das telecomunicações(2).
Esses avanços, isoladamente e em seu conjunto, agravaram a redução de
postos de trabalho em diversos segmentos econômicos, em especial na indústria,
aprofundando o desemprego deflagrado pela crise econômica de meados dos
anos 1970.
Além disso, criaram ou acentuaram formas de prestação labo­ rativa que
pareciam estranhas ao tradicional sistema de contratação e controle empregatícios
— por exemplo, o teletrabalho e o escritório em casa (home-office).
Em acréscimo, esses aperfeiçoamentos e inovações da tecnologia mitigaram,
em inúmeros segmentos, as antes impermeáveis bar­reiras do espaço e do tempo,
propiciando modalidades inusitadas de conexões interempresariais nos diversos
países e, até mesmo, ao longo do globo.
A redução de postos de trabalho decorrente de tais mudanças tecnológicas
- em si, fato já importante — implicava ainda modifi­cações notáveis nos processos
de concretização do labor no plano empresarial, atenuando, em certa medida,
a tendência (que antes parecia incontrolável) de agregação de grandes massas
de traba­ lhadores em grandes estabelecimentos produtivos. É que o trabalho
repetitivo e uniforme, mobilizador de grandes grupos humanos, perdia sua anterior
exponencial relevância, substituído, em razoável medida, pela nova tecnologia.
Essa redução de postos laborativos, somada à potenciação do trabalho
individual na realização de tarefas, permitida pela microin­formática e pela
telecomunicação, tudo contribuiu para incentivar novas formas de estruturação
do empreendimento empresarial (home-office, pequenos estabelecimentos,
etc.), também na dire­ção contrária ao modelo organizacional anteriormente
consagrado.
A terceira revolução tecnológica, em síntese, pela profundidade de suas
inovações, afetou, portanto, o mundo do trabalho, provo­cando-lhe mudanças
importantes em contraponto com as caracte­rísticas consolidadas nas décadas
precedentes.

(2) A quinta inovação da terceira revolução tecnológica, envolvendo a descoberta de nova fonte
de energia (no caso, a atômica), por não se ter amplamente disseminada — t­alvez em face de seus
elevados custos e riscos —, não chegou a produzir efeitos profundos e generalizados no mundo do
trabalho. ­
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 39

1. Avaliação Crítica

A profundidade e a extensão das inovações tecnológicas desen­volvidas no


último quartel do século XX e em período subsequente do novo século conferiram
suporte a previ­sões catastrofistas sobre o fim do emprego e do próprio trabalho
na sociedade contemporânea.
O equívoco de tais previsões, porém, é manifesto.
Em primeiro lugar, as consequências no mundo do trabalho da chamada
terceira revolução tecnológica foram (e têm sido) profun­das e extensas, mas,
seguramente, não são (nem serão), como é óbvio, absolutas.
Foram consequências devastadoras para algumas funções e profissões, é
claro, muitas vezes simplesmente extinguindo-as. De­terminadas funções e mesmo
profissões de caráter manual, a par de outras de natureza intelectual, foram
severamente afetadas ou, até mesmo, suprimidas em face da microeletrônica, da
robótica, da microinformática e dos novos meios de telecomunicação.
Esse processo de afetação, contudo, não foi (nem será), repita­-se, absoluto,
uma vez que tende a atingir com intensidade muito variada as inúmeras atividades,
segmentos, funções e profissões existentes na vida socioeconômica. Ao lado de
funções e profis­sões simplesmente extintas (uma evidente minoria, diga-se de pas­
sagem), há incontável universo de outras que apenas incorporaram os avanços
tecnológicos em seu interior — potenciando, sem dúvida, a produtividade do
trabalho, mas sem eliminar a necessidade deste.
A propósito, consequências diferenciadas de natureza e inten­ sidade
semelhantes também já se verificaram durante a segunda revolução tecnológica,
ocorrida nas fronteiras entre os séculos XIX e XX. Naquela época, com o surgimento
e a propagação de novas modalidades de energia (elétrica e petrolífera, por
exemplo), de novos meios de comunicação (telefone, por exemplo) e principalmente
de novos meios de transporte (veículos automoto­res e aviões, ilustrativamente),
certas atividades, funções e profissões simplesmente desapareceram, ao passo que
outras sofreram modificações inter­nas, adaptando-se ao avanço da tecnologia.
As repercussões da segunda revolução tecnológica foram tam­bém profundas
e extensas, mas não, obviamente, absolutas.
Em segundo lugar, a redução de postos laborativos em de­ corrência do
exponencial aumento da produtividade do trabalho ocorrido nas últimas décadas
tende a ser inferior ao índice de elevação dessa produtividade — o que evidencia
mais um limite quanto aos impactos da terceira revolução tecnológica no mundo
do trabalho. Ou seja, a grande elevação da produtividade não cor­ta, na mesma
proporção, os postos de trabalho; esse corte é me­ nor, significando que o
crescimento da produtividade não só cons­pira contra os trabalhadores.
40 MAURICIO GODINHO DELGADO

Explique-se melhor essa específica relação.


É que há, na verdade, também uma relação positiva criada pe­los mesmos
avanços tecnológicos (e não somente a relação negati­va usualmente mencionada).
Ora, tais avanços, ao mesmo tempo que potenciam a produtividade do trabalho,
potenciam também a própria produção e, com isso, provocam importante
diminuição no preço das mercadorias; por reflexo lógico, imediatamente tendem
a incrementar, de modo exponencial, o mercado de consumo dos mes­mos bens.
Isso quer dizer que a tecnologia não eleva só a produtividade, mas,
tendencialmente, impulsiona também a produção, o mercado e o consumo dos
respectivos bens e serviços produzidos. Os dados do comércio mundial nos últimos
50 anos, por exemplo, são um en­ fático comprovante dessa relação positiva
derivada das conquistas tecnológicas: entre 1950 e 2001, o volume das transações
comer­ciais totais do mundo contemporâneo cresceu cerca de 100 vezes, saltando
de US$ 61 bilhões para US$ 6,16 trilhões(3).
Em terceiro lugar, não se pode esquecer que as inovações tec­nológicas, no
mesmo instante em que ceifam certos tipos de traba­lho e emprego no sistema
socioeconômico, imediatamente criam outros em substituição, atados estes à
nova tecnologia substitutiva do labor precedente. Ora, se os veículos automotores
(carros, cami­nhões, ônibus etc.) substituíram, no início do século XX, o transpor­
te por tração animal (individual e coletivo), eliminando as respecti­vas atividades
e funções econômico-sociais, aquela mesma tecno­ logia de transportes, então
revolucionária, criou imediatamente no­ vas funções e profissões, muito mais
dinâmicas e massivas do que as então superadas. Assim, do mesmo modo que
a microcomputa­ção está a ceifar, nas duas últimas décadas, diversas funções e
empregos, também está, automaticamente, criando novas ocupa­ções e atividades,
inimagináveis no período anterior.
Nesse cenário, fica bastante claro não ser apenas negativa a relação da
tecnologia com o trabalho, podendo, ao revés, ter efei­tos realmente positivos na
geração de novas funções, profissões e empregos.
Em quarto lugar, não se pode esquecer que a terceira revolu­ção tecnológica,
ao invés de somente suprimir empregos e trabalho ao longo do globo — conforme
sistematicamente repetido no discur­so dominante das últimas décadas —, também
criou inúmeras novas necessidades para os indivíduos, instituições e comunidades,
alar­gando de modo espetacular o mercado laborativo, em contraponto com os
períodos anteriores.
A atividade turística (turismo de lazer e também de negócios, esclareça-se) é
um marcante exemplo disso, uma vez que é direta e exponencialmente estimulada

(3) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003, São Paulo: Abril, 2003. p. 84.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 41

pelos avanços tecnológicos de comu­nicação e transporte (além do estímulo que


recebe da própria dinâ­mica de expansão dos mercados econômicos).
De fato, esquece-se, neste debate, talvez da maior conquista das inovações
tecnológicas das últimas décadas, com influência di­reta no nível de atividades,
funções e empregos na vida econômico­-social. É que os avanços recentes da
tecnologia e da ciência propi­ciaram ganho de mais de 20 anos na expectativa de
vida das popu­lações dos países ocidentais mais bem desenvolvidos, em contra­
ponto com o patamar estimado nos anos 1940-1950 (ganho que atingiu inclusive
certos países dependentes, como o Brasil). Ora, isso significa acréscimo exponencial
no mercado consumidor, a par­tir de segmento composto por pessoas adultas e
experientes, regra geral, dotadas de razoável poder aquisitivo.
Esse acréscimo inusitado no mercado consumidor de bens e serviços provoca,
por razões óbvias, inevitável repercussão positiva genérica no mercado laborativo.
Mais do que isso, contudo, a elevação da expectativa de vida das populações
dá origem a demandas absolutamente novas na comunidade, necessariamente
indutoras de inúmeras novas funções, postos de trabalho e empregos (os setores
de educação e saúde ligados à terceira idade, por exemplo, evidenciam esse
importante fenômeno recente).
Nesse quadro, uma vez mais é necessário enfatizar-se que a relação da
tecnologia com o trabalho não é apenas negativa — con­forme se prefere propagar.
Ao contrário, ela pode ser, no conjunto, até mesmo muito positiva, a teor dessas
novas e impressionantes necessidades e mercados instituídos.
Por fim, é preciso resgatar o papel civilizador das políticas pú­blicas no que se
refere à equação tecnologia/emprego.
Ora, da mesma maneira que o Estado pode e deve incentivar a renovação,
a criação e o avanço tecnológico no campo socioeconô­mico, de modo geral, com
políticas públicas convergentes nessa di­reção, deve também incorporar, no seio
dessas suas preocupações, a variante relacionada à geração de empregos.
Na economia capitalista, sempre existirão setores notoriamen­te estimuladores
do emprego, ao lado de outros que não têm seme­lhante característica; no próprio
universo tecnológico há mecanis­mos fortemente poupadores de força de trabalho,
ao lado de outros que não têm esse inevitável caráter. As políticas públicas podem
e devem ponderar essas considerações ao longo de sua formulação e prática
social, sem perda do direcionamento geral incentivador do aperfeiçoamento e da
inovação da tecnologia na dinâmica econômi­ca do país(4).

(4) Sobre a relação tecnologia/emprego, com as contribuições dos importantes eco­nomistas do


século XX, Michal Kalecki e Joan Violet Robinson, consultar: HELLER, Cláudia. Progresso técnico e
nível de emprego: o teorema de Kalecki e o modelo de Joan Robinson. In: POMERANZ, Lenina et al.
Dinâmica econômica do capitalis­mo contemporâneo: homenagem a M. Kalecki, São Paulo: EDUSP/
FAPESP, 2001. p. 157-186.
42 MAURICIO GODINHO DELGADO

Tudo isso demonstra que o argumento tecnológico tem sido, no fundo,


artificialmente extremado nas últimas décadas, de modo a se tornar relevante meio
político-cultural de combate ao primado do trabalho e do emprego na sociedade
capitalista.

IV — REESTRUTURAÇÃO EMPRESARIAL

O segundo grupo de fatores (processo de reestruturação em­presarial) tam-


bém tem caráter preponderantemente estrutural, ­embora não de modo exclusivo,
é claro.
Ele envolve significativas modificações econômicas e organi­zacionais no plano
da estruturação das empresas, ou seja, mudan­ças que se verificam no próprio
processo de organização das enti­dades empresariais e nos sistemas de produção
internos a essas entidades. São alterações, portanto, que afetam de maneira mais
direta a estrutura do empreendimento empresarial, alterando-lhe a conformação
e o modo de operar.
De fato, do ponto de vista estrutural, os anos 1970 e décadas seguintes
assis­tem à profunda alteração tecnológica envolvendo o processo produ­tivo. Essa
alteração produz-se mediante absorção ou incremento nas empresas da automação
acentuada (e seu ápice, a robotiza­ ção), da microeletrônica e, finalmente, da
informática. Na mesma conjuntura, acentuam-se as inovações e melhorias no
campo das comunicações, tanto no tocante à transmissão de dados (telecomu­
nicações, inclusive internet), como no referente à facilitação e ao bara­teamento
do transporte de bens e pessoas.
Esse quadro de modificações tecnológicas viabiliza e se asso­cia à disseminação
de novas formas de organização tanto das em­presas como do próprio processo
de trabalho.

1. Estrutura Organizacional das Empresas

No que tange às mudanças na estrutura organizacional do em­preendimento


capitalista, ganha prestígio, em certos segmentos, a estratégia de diluição das
grandes unidades empresariais.
Em face da grande praticidade e do menor custo dos meios de comunicação
e de transporte disponibilizados nas últimas décadas, ao lado do objetivo gerencial
de redução do tempo de produção e diminuição do montante de estoques, as
empresas podem abando­nar ou, pelo menos, restringir o antigo critério organiza-
cional de ver­ticalização e concentração do sistema produtivo.
Passam, assim, à diferença da sistemática anteriormente do­ minante, a
delegar, por subcontratação, a outras entidades empre­sariais conexas ou mesmo
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 43

independentes a tarefa de produzir dis­tintos implementos necessários a seu produto


final ou, até mesmo, realizar fases inteiras de seu tradicional ciclo produtivo. A
empresa líder reduz, em consequência, sua própria dimensão estrutural e ope­
racional, sem prejuízo de poder conseguir elevação em sua produ­ção final no
mesmo (ou menor) período de tempo.
Ganha prestígio, assim, a ideia de empresas em rede, uma modalidade de
estruturação do empreendimento capitalista pela qual as clássicas concentração e
centralização do capital se realizam mediante unidades empresariais de pequeno e
médio porte, e outras de gran­de porte, ao invés da via tradicional estruturada em
torno de megaplantas empresariais.
Embora tal novo estratagema — mais prestigiado na indústria — não atinja,
necessariamente e na mesma proporção, todo o em­presariado, terá, de qualquer
modo, impacto importante no mundo empresarial e do trabalho.
Para ilustrar esse impacto, note-se que tal descentralização ou subcontratação
empresarial (às vezes conhecida como terceiriza­ção empresarial)(5) enfraquece os
caminhos clássicos de atuação do sindicalismo — por ser esse, tradicionalmente,
mais forte nas gran­des empresas —, contribuindo também para fracionar, em
alguma medida, ainda que em um primeiro instante, esse mesmo movimento
sindical.
Registre-se, a propósito, que, no segmento do comércio, a ideia de empresas
em rede dissemina-se também de maneira muito signi­ficativa, aqui potenciada por
inovador mecanismo de conexão inte­rempresarial, que é o regime de franquias.

2. Organização do Processo de Trabalho

No que tange às mudanças na organização do processo de trabalho dentro


das empresas, ganham prestígio três principais fór­mulas de gestão trabalhista: a
redução de cargos e funções (e, con­sequentemente, de postos de trabalho), com
maior agregação fun­cional nos mesmos indivíduos; a terceirização trabalhista; o
sistema toyotista ou ohnista de gestão do trabalho.
Todas essas três fórmulas visam, em seu conjunto, acentuar a produtividade
do trabalho, diminuindo, ao mesmo tempo, os custos a este vinculados. Todas são
fórmulas de gestão social, de gestão trabalhista, métodos de gerenciamento da
força de trabalho.

(5) A referência à expressão terceirização empresarial, para designar essas situações de


descentralização de serviços por certa empresa em favor de outra, a serem realiza­dos dentro
dessa empresa subcontratada, não é recomendável, por propiciar certa confusão conceitual com
fenômeno distinto, de grande relevância no mundo do traba­lho, que é a terceirização trabalhista — a
ser examinada no item IV.2.B, logo a seguir.
44 MAURICIO GODINHO DELGADO

A) Redução de Cargos e Funções

A fórmula de redução de cargos e funções — logo, também de postos


laborativos — é propiciada, é claro, pelos ganhos tecnológicos advindos da terceira
revolução industrial, como já visto.
Entretanto não se deve apenas a eles: tem papel fundamental nessa fórmula
a decisão gerencial de se atribuir ao mesmo trabalha­dor número maior de tarefas
e funções, sem perda notável da quali­dade do labor desempenhado.
A partir da noção de trabalho flexível e, por consequência, do conceito de
trabalhador flexível e multifuncional, passam a ser con­centradas na mesma pessoa
atividades que, anteriormente, seriam exercidas por outros trabalhadores. Ainda
que essa concentração não seja plena, melhor correspondendo a um processo
de agrega­ção de atividades, tarefas, funções e poderes em um número menor
de pessoas, o fato é que, em seu conjunto, tem grande impacto na elevação da
produtividade do trabalho e na diminuição no montante de empregos na vida
empresarial.
Em síntese, com esse novo estratagema de gestão, muitos pos­tos de trabalho
são eliminados, ainda que a efetiva função continue a ser importante na divisão de
trabalho interna à empresa.
Note-se que a presente fórmula de redução de cargos e fun­ções, com
a concentração de atividades laborativas no mesmo tra­ balhador (ideia de
multifuncionalidade do obreiro, de trabalhador flexível), enquadra-se em
certa concepção de gestão da força de trabalho, cognominada toyotismo
ou ohnismo, de grande prestígio a partir dos anos 1970, principalmente no
segmento industrial do capitalismo (tal concepção será examinada no subitem
IV.2.C des­te capítulo).
Contudo, tal fórmula não se circunscreve, estritamente, à ma­ triz do
toyotismo, uma vez que, sendo diretamente vinculada aos avanços da tecnologia,
tornou-se genericamente aplicável a quase todos os segmentos do mercado
laborativo, reduzindo os postos de trabalho e acentuando a produtividade deste,
independentemente de adotar ou não a empresa, em sua inteireza, a matriz
toyotista de gestão capitalista.

B) Terceirização Trabalhista

A fórmula da terceirização trabalhista permite a desconexão entre a relação


socioeconômica de real prestação laborativa e o vín­culo empregatício do trabalha-
dor que seria correspondente com o próprio tomador de seus serviços.
Por essa fórmula, insere-se, no interior da relação efetiva entre trabalhador
e seu tomador de serviços, uma empresa intermediária, chamada prestadora de
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 45

serviços, que passa a responder pelo vín­culo empregatício com o obreiro. Ao


invés, portanto, da clássica sis­temática pela qual o tomador de serviços habituais
se enquadra como empregador da pessoa física que lhe presta serviços, separam-
-se, artificialmente, as relações, por meio da inserção, nessa seara, da empresa
prestadora de serviços, que passa a deter o vínculo em­pregatício com o obreiro.
Registre-se distinção relevante entre terceirização trabalhista e terceirização
empresarial (ou, conforme Márcio Túlio Viana, ter­ceirização interna e externa)(6).
Terceirização trabalhista (ora examinada) diz respeito ao men­ cionado
processo de dissociação do vínculo socioeconômico de pres­tação laborativa em
detrimento do respectivo vínculo jurídico-traba­lhista, o qual se ata com a empresa
chamada prestadora de servi­ços. Pela terceirização trabalhista, o efetivo tomador
de serviços deixa de ser, por meio de ladina fórmula jurídico-administrativa, real
em­pregador do obreiro.
Já a denominada terceirização empresarial é processo dis­tinto, de simples
descentralização empresarial, em favor de outra empresa, a qual preserva planta
empresarial própria e empregados próprios (processo que melhor se designa por
subcontratação empresarial)(7).
Embora a terceirização trabalhista não seja, necessariamente, redutora de
postos de trabalho, ela é, essencialmente, desorganiza­dora do sistema de garantias
e direitos estipulados pelo clássico Direito do Trabalho. Nessa medida ela propicia,
ao menos em um momento inicial, significativa redução das garantias e ganhos
obreiros.
A desorganização do sistema de garantias e direitos estipula­dos pelo Direito
do Trabalho, propiciada pela terceirização, ocorre em face de múltiplos fatores: de
um lado, ela diminui, artificialmente, o número de trabalhadores estatisticamente
alocados em certos importantes segmentos empresariais (como indústria e setor
finan­ceiro, por exemplo). É que os trabalhadores terceirizados enqua­dram-se, do
ponto de vista técnico-jurídico, como integrantes do setor terciário da economia,
por serem vinculados a empresas de presta­ção de serviço.
De outro lado, a fórmula terceirizante pulveriza a classe tra­balhadora, criando
dificuldades práticas quase intransponíveis para a efetiva aplicação do Direito do

(6) A distinção do jurista Márcio Túlio Viana encontra-se em seu artigo “Terceirização e sindicatos: um
enfoque para além do direito”. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte: PUCMINAS,
v. 7, n. 13 e 14, p. 50-82, 1º e 2º sem. 2004.
(7) A chamada terceirização empresarial corresponde a um simples processo de des­centralização
de empresas, pela qual uma delega parte de suas atividades a outra(s) entidade(s) empresarial(is),
esta(s) com estabelecimento e empregados próprios. Con­forme já advertido, não se deve utilizar
tal expressão (preferindo-se descentralização empresarial, subcontratação de empresas ou outra
semelhante), a fim de se evitar confusão com fenômeno distinto e de grande repercussão no mundo
do trabalho e de seu ramo jurídico regulador — que é a terceirização trabalhista.
46 MAURICIO GODINHO DELGADO

Trabalho, em face das inúmeras peculiaridades que passa a criar, em função dos
tipos de segmen­to econômico, de empresa e de trabalhadores envolvidos. Tais
pe­culiaridades provocam dispersões na própria compreensão e regulação do
fenômeno pela ordem jurídica, assim como pelos ope­radores desta ordem, como
o sistema judicial e o sistema de fisca­lização trabalhista.
Finalmente, o artifício da terceirização, em virtude de todos os fatores citados,
dispersa a atuação sindical pelos trabalhadores, di­ficultando o intercâmbio entre o
trabalhador terceirizado e o empre­gado efetivo da entidade tomadora de serviços.
Trata-se, portanto, de fórmula de gestão social, de gerencia­mento da força
de trabalho, que tem tido grande impacto na redução dos ganhos do trabalho no
mundo capitalista.

C) Novos Sistemas de Gestão da Força de Trabalho

O sistema de gestão empresarial, especialmente da força de trabalho,


prevalecente nos países desenvolvidos, ao longo do sé­culo XX até os anos 1970,
era conhecido pela denominação de fordismo/taylorismo, tendo sua origem na
virada dos séculos XIX/XX, em especial na economia dos EUA.
Sua base inicial fundava-se, essencialmente, no método de gestão trabalhista
estruturado a partir de fins do século XIX pelo engenheiro norte-americano
Frederick Winslow Taylor (1856-1915).
O taylorismo, aplicando análise sistemática ao exercício práti­co do trabalho no
estabelecimento capitalista, viabilizou a simplifica­ção e a agilização do treinamento
da mão de obra, mesmo não quali­ficada, além de potenciar, significativamente,
a produtividade do tra­balho. Propondo a minuciosa separação de tarefas e sua
consequente rotinização no processo laborativo interno à empresa, o método
taylorista reduzia a necessidade de sofisticada especialização do trabalho,
transformando-o em uma sequência de atos basicamente simples. A partir daí, essa
gerência científica do trabalho multiplica­va a produtividade laborativa, viabilizando
a explosão da produção massiva característica do sistema capitalista.(8)
Esse método foi incorporado pelo empresário norte-americano do setor
automobilístico, Henry Ford (1863-1947), na produção de seu veículo modelo T,
a partir de 1913, consolidando novo sistema de gestão de força de trabalho e de
estruturação do próprio empre­endimento produtivo capitalista.

(8) A autodenominada gerência científica do trabalho, de Frederick Taylor, divulgada na prática


empresarial norte-americana da virada dos séculos XIX-XX, também se disseminou por meio de
suas obras publicadas. Eis algumas delas, com a respectiva data original de publicação: Piece Rating
System, 1895; Shop Management, 1903; Principies of Scientific Management, 1911. In: FERREIRA,
Ademir Antonio et al. Gestão empresarial: de Taylor aos nossos dias — evolução e tendências da
moderna administração de empresas. São Paulo: Thomson, 2002. p. 15.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 47

O fordismo, ao lado de implementar as proposições tayloristas, produz inova-


ções no estratagema de gestão da força de trabalho e do próprio empreendimento
empresarial, dando origem a um modelo de grande influência nas décadas seguin-
tes no Ocidente desenvolvido.
O fordismo/taylorismo conduz ao elogio da grande planta in­ dustrial ca-
pitalista, com grandes massas de trabalhadores vincula­ dos a funções pouco
especializadas, que se conectavam pela estei­ra rolante da linha de produção,
permitindo o incessante incremento da produtividade do trabalho e da geração
massiva de mercadorias. Nessa mesma concepção gerencial e administrativa, era
também lógica a integração vertical entre as empresas (a matriz e as filiadas), de
modo a assegurar a uniformidade dos componentes e a rapidez e segurança de
seu municiamento.

Toyotismo/Ohnismo
A partir dos anos 1970, entretanto, modificações importan­tes irão ocorrer
nesse padrão de gestão empresarial e da própria força de trabalho.
No cenário da forte crise econômica então desencadeada no Ocidente,
com a exacerbação da concorrência interempresarial e mundial, inclusive com a
célere invasão, naqueles anos, do mercado econômico europeu e norte-americano
pelo novo concorrente japo­nês, tudo associado ao desenvolvimento da chamada
terceira revo­lução tecnológica e das condições macropolíticas então desfavoráveis
ao Estado de Bem-Estar Social, passa-se a assistir à incorporação de novos sistemas
de gestão empresarial e laborativa.
Entre esses, o que produz maior impacto, sem dúvida, é aquele apelidado de
toyotismo ou ohnismo.
Em sua origem, tais novas proposições de gestão empresarial foram marcada-
mente influenciadas pelo revigorado capitalismo ja­ponês do período subsequente
à Segunda Guerra Mundial, em especial a partir das experiên­cias de gestão imple-
mentadas por algumas de suas grandes empre­sas, particularmente a Toyota, cujo
vice-presidente era o engenhei­ro Taiichi Ohno(9).
Sintetizados, em consequência, pelas expressões toyotismo e ohnismo,
esses novos sistemas de gestão das empresas, inclusive de sua força de trabalho,
evidentemente foram aprofundados e reade­quados, na própria ambientação do
capitalismo ocidental, ao longo dos anos seguintes à década de 1970. Pode-se
dizer, de certo modo, em decorrência de tais aprofundamentos e readequações,
que toyo­tismo e ohnismo representam, hoje, fundamentalmente, um emble­ma ou

(9) Em 1978, Taiichi Ohno descreveria suas proposições, implementadas na empresa automobilística
japonesa Toyota, no livro O Espírito Toyota.
48 MAURICIO GODINHO DELGADO

uma síntese do conjunto de transformações operadas na ges­tão das empresas e


de sua força de trabalho ao longo das últimas duas a três décadas no Ocidente.(10)
O toyotismo visa, em síntese, elevar a produtividade do trabalho e a adapta-
bilidade da empresa a contextos de alta competitividade no sistema econômico e
de insuficiente demanda no mercado consumidor (portanto, adaptar a empresa
mesmo a contextos de crise). Conforme indagava Taiichi Ohno: “o que fazer para
elevar a produtividade quando as quantidades não se elevam?”(11)
A resposta implicava o abandono — ainda que parcial — de algumas consagra-
das fórmulas inerentes à sistemática taylorista/fordista.
Nesse quadro, perde força o modelo de verticalização da em­presa, que deu
origem a superplantas empresariais no período pre­cedente. Ao invés disso, o
toyotismo propõe a subcontratação de empresas, a fim de delegar a estas tarefas
instrumentais ao produto final da empresa-polo. Passa-se a defender, então, a ideia
de em­presa enxuta, disposta a concentrar em si apenas as atividades es­senciais a
seu objetivo principal, repassando para empresas meno­res, suas subcontratadas,
o cumprimento das demais atividades ne­cessárias à obtenção do produto final
almejado.
Embora tal estratagema não reduza, forçosamente, o número global de
postos de trabalho naquele segmento econômico envolvido, ele tende a diminuir,
de modo drástico, o valor econômico desse mes­mo trabalho, por ser, de maneira
geral, muito mais modesto o padrão de pactuação trabalhista observado por tais
entes subcontratados.
O resultado socioeconômico obtido pelo implemento de tal mecanismo
de subcontratação empresarial tende a significar, a um só tempo, a diminuição
do custo da empresa-polo, o incremento da produtividade do trabalho, além da
própria redução da renda propi­ciada aos trabalhadores.
Nesse mesmo quadro também perde força o modelo de super­fracionamento e
fragmentação do trabalho, com rigorosa definição de funções, tal como propugnado

(10) Na verdade, são inúmeros os sistemas e as teorias aplicáveis à gestão das empre­sas e de sua
força de trabalho formuladas ao longo do século XX e, notadamente, nas últimas décadas (para
ilustração, consultar: PLANTULLO, Vicente Lentini. Teoria geral da administração. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas, 2001; FERREIRA, Ademir Antonio et al. Gestão empresarial: de Taylor
aos nossos dias — evolução e tendên­ cias da moderna administração de empresas. São Paulo:
Thomson, 2002; SILVA, Benedicto. Taylor e Fayol. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1987; RA­MOS, Guerreiro. Uma introdução ao histórico da organização racional do trabalho. Rio de
Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional, 1950). Em consequência dessa diversidade, o simples
contraponto entre a matriz fordista-taylorista e a matriz toyotista, muito comum na bibliografia,
embora expresse uma comparação indubitavelmente re­ levante, não esgota, por óbvio, toda a
temática da gestão administrativa e trabalhista das empresas no capitalismo dos últimos cem anos.
(11) OHNO, Taiichi. O espírito Toyota, cit. In: GOUNET, Thomas. Fordismo e toyotismo na civilização
do automóvel. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 65.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 49

pelo taylorismo. Fala-se, ao invés disso, na já citada ideia de multifuncional idade


do trabalhador, qual seja, a agregação de várias funções em torno da mesma
pessoa.
Conforme já exposto, esse segundo mecanismo, por si somen­te, já tem o
condão de afetar, de modo importante, o número de postos de trabalho no plano
do universo empresarial.
É também fórmula ohnista/toyotista a redução radical de esto­ques, ajustando
a produção dos implementos intermediários e do próprio produto final à mais
próxima necessidade do mercado con­sumidor (sistema de produção just in time e
de estoque zero). No conjunto da restrição geral de custos que esse mecanismo
viabiliza (financeiros e administrativos, por exemplo), encontra-se também,
inevitavelmente, a diminuição de custos com a força de trabalho(12).

3. Reestruturação Empresarial: Avaliação Crítica

Em face de todos esses aspectos expostos, a reestruturação empresarial,


seja quanto ao formato das empresas e seus estabele­cimentos, seja quanto ao
seu processo interno de prestação de la­bor, que se implementou nas décadas
seguintes a 1970, pela pro­fundidade de suas inovações, iria afetar, sem dúvida, o
mundo do trabalho, provocando-lhe mudanças importantes em contraponto com
as características consolidadas nas décadas precedentes.
A profundidade e a extensão de tais mudanças empresariais ocorridas nas
últimas décadas do século XX e período subsequente, inclusive no tocante ao
sistema de gestão da força de trabalho, também conferiram impor­tante suporte
a previsões sombrias sobre o fim do emprego e do próprio trabalho na sociedade
contemporânea.
Mais uma vez, é manifesto o equívoco dessas previsões fata­listas.
Na verdade, as mudanças na estrutura organizacional do em­preendimento
capitalista, com a subcontratação de empresas e a diluição das grandes unidades
empresariais, que se verificaram prin­cipalmente no plano da indústria, não são,
nem neste segmento empresarial nem em qualquer outro, tão universais e
avassaladoras como insistentemente apregoado.

(12) Sobre o fordismo/taylorismo e o subsequente ohnismo, consultar: GOUNET, Thomas.


Fordismo e toyotismo na civilização do automóvel. São Paulo: Boitempo, 2002; SALAMA, Pierre.
A financeirização excludente: as lições das economias latino-­americanas. In: CHESNAIS, François
(Coord.), A mundialização financeira — gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 242-243;
SILVA, Benedito. Taylor e Fayol. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1987; VIANA, Márcio
Túlio. As andanças da economia e as mudanças no direito. In: RENAULT, Luiz Otávio Linhares et al.
O novo contrato a prazo — crítica, teoria e prática da Lei n. 9.601/98. São Paulo: LTr, 1998. p. 17-34.
50 MAURICIO GODINHO DELGADO

No capitalismo ocidental — inclusive e especialmente em paí­ses como o Brasil —,


as clássicas concentração e centralização do capital continuam a se realizar por
meio da consagrada estrutura de grandes plantas empresariais. A economicidade
que esse modelo propicia, em termos de aplicação intensiva de capital, organização
e racionalização de instalações e equipamentos, de treinamento de mão de
obra, de apropriação, desenvolvimento, aplicação e resguardo da tecnologia,
de viabilização do controle rigoroso de todas as fases empresariais, inclusive da
direção estratégica de mercado, tudo, em seu conjunto, permanece simplesmente
insuperável, a maioria das vezes, nos casos de produção massiva de mercadorias,
em contra­ponto com a estratégia de criação de redes pulverizadas de unida­des
empresariais de portes médio e pequeno.
Eis aqui mais uma clara situação em que o exagero do argu­mento (no caso, o
argumento organizacional) atua com maior efi­ciência no plano do convencimento,
no plano da cultura — ou, para ser mais direto, no plano ideológico —, do que no
plano da efetiva realidade do sistema capitalista ocidental.
Note-se que a disseminação da terceirização trabalhista den­tro das empresas
— um fato de grande impacto na realidade — apenas comprova a manutenção do
império das grandes organizações empresariais (ao invés de ser prova demonstrativa
do ocaso dessa estratégia de organização do grande capital — contrariamente ao
que tem sido dito).
É que a terceirização trabalhista se faz dentro dos domínios das empresas
tomadoras de serviços, evidenciando que estas não podem delegar inteiramente,
de modo pulverizado, a efetiva realiza­ção das funções e tarefas terceirizadas.
Na terceirização, portanto, mantém-se intocável o paradigma capitalista de
concentração e cen­tralização por meio de grandes plantas empresariais, em virtude
de sua superior economicidade. Não obstante, essa terceirização irá permitir a
precarização do valor-trabalho no conjunto do sistema empresarial.
Ou seja: o sistema capitalista preserva o tradicional estratage­ ma de
concentração e centralização das empresas, em face de sua superioridade
econômica e organizacional, porém o ajusta a um novo critério (a ter­ceirização),
apto a propiciar a diminuição da reciprocidade para o trabalho nessas mesmas
empresas.
Por outro lado, as mudanças na organização do processo de trabalho
dentro das empresas também não são universais e, com toda certeza, não são
necessariamente avassaladoras quanto à sorte do trabalho e do emprego, ao
contrário daquilo que é insistentemen­te apregoado.
No tocante à suposta universalidade dos novos métodos de organização do
processo do trabalho dentro das empresas, envol­vendo três principais fórmulas
de gestão trabalhista (a redução de cargos e funções, com maior agregação
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 51

funcional nos mesmos indi­víduos, terceirização trabalhista e sistema toyotista de


gestão do trabalho), o argumento não tem sustentação na realidade do capita­
lismo globalizado.
A economia que mais cresceu nas últimas décadas em todo o planeta (a
China) não tem significativa proximidade com qualquer rigorosa incorporação de
modernas técnicas de gestão trabalhista, conforme notoriamente se conhece. O
impressionante sucesso com­petitivo dessa economia deve-se, na essência, a uma
racional gestão de câmbio pelo governo do país, induzindo a que a moeda chinesa
se mantenha bastante desvalorizada em contraste com as princi­pais moedas — e
mercados consumidores — do planeta (dólar e euro, principalmente). Essa gestão
cambial inteligente — se consi­derados os interesses daquele país, é claro — cria
circunstâncias extremamente favoráveis à concorrência de seus produtos no pla­no
externo, por torná-los sumamente baratos, em contraponto ao poder de compra
dos mercados consumidores. Além disso, essa mes­ma sagaz gestão de câmbio
tem o condão de proteger e incentivar, com grande eficiência, o parque industrial
interno chinês (porque torna caros os produtos importados).
Estratégia cambial semelhante é seguida por diversos outros países recém-
-industrializados da Ásia, também com espetacular êxito no cenário concorrencial
do capitalismo em todo o mundo — sem que vários deles sejam paradigmas quanto
à incorporação de siste­mas inovadores de gestão da força de trabalho (muito ao
contrário!).
Mesmo com respeito a regiões menos remotas do sistema ca­pitalista, a
generalização dos novos métodos de organização do pro­cesso do trabalho dentro
das empresas não é, seguramente, unifor­me, variando conforme o tipo de região,
de economia e de segmento empresarial.
Essa diversidade ocorre inclusive quanto à maior agregação de funções nos
mesmos trabalhadores (critério gerencial que pro­voca a redução de postos de
trabalho). O potencial de generaliza­ção desse método para trabalhadores não
qualificados é, como se sabe, muito reduzido, se comparado com o universo de
força de trabalho qualificada.
De todo modo, mesmo com relação aos trabalhadores qualifi­cados, não
é ilimitado o potencial de acumulação de funções em um mesmo trabalhador,
evidentemente. Portanto não é irrestrita a dimi­nuição de postos de trabalho
resultantes do manejo de tal método de gestão de força de trabalho.
Afinal, há limites físicos à aplicação desse tipo de método, por óbvio. Além
disso, também há limites relacionados à própria racionalidade do método, que
fica prejudicada caso haja excesso em seu manejo: o acúmulo intenso de tarefas
na mesma pessoa conduz à inevitável ineficiência no cumprimento das funções
planejadas.
52 MAURICIO GODINHO DELGADO

A generalização da terceirização trabalhista, por sua vez, é muito dependente


da política trabalhista adotada em cada país específico; não é uniforme, portanto,
não sendo também, de maneira alguma, inevitável.
Na verdade, o estímulo ou a resignação ao crescimento das práticas
terceirizantes traduzem muito mais o império de uma con­juntura de desvalorização
do trabalho e do emprego — e do traba­lhador, evidentemente — do que uma
consequência inexorável de algum determinismo econômico.
O que é intolerável para as empresas, regra geral, são condi­ções desiguais de
concorrência em um mesmo mercado; sendo se­melhantes tais condições, todas
elas podem se ajustar ao custo básico da mercadoria produzida, projetando-o no
preço final do pro­duto. Se a terceirização, porém, passa a ser tolerada ou mesmo
estimulada, todo o empresariado tem de adotá-la em seus estabele­cimentos, sob
pena de passar a se submeter a condições desiguais de competição.
Finalmente, a generalização do denominado sistema toyotista de gestão
do trabalho também não é plena nem uniforme. Como aponta Pierre Salama,
referindo-se à América Latina, a “organiza­ ção da produção permanece
profundamente heterogênea (...) Seria um erro pensar que a difusão dos novos
modos de organização da produção e do trabalho é generalizada.”(13)
No fundo, grande parte das vezes, o toyotismo é adotado de modo apenas
parcial, de maneira a permitir o manejo combinado, pelo capitalista, de técnicas
oriundas de distintos métodos de admi­nistração empresarial e de gestão de força
de trabalho, inclusive o não tão anacrônico taylorismo.
Na verdade, o que tem sido abandonado reiteradamente nas últimas décadas
é a reciprocidade trabalhista elogiada pelo fordis­mo (reciprocidade material
e cultural quanto ao trabalho), em direção a modalidades de administração de
mão de obra cada vez menos retributivas do trabalho. Não se trata tanto de uma
acumulação flexível, como prefere brandir a literatura das últimas décadas — termo
algo eufemístico para descrever o presente contexto capitalista —, mas, de modo
prioritário, de uma acumulação sem reciprocidade, de um capitalismo sem controles
civilizatórios(14).
O que se nota, na verdade, é que a reestruturação empresa­rial, inclusive
quanto aos sistemas de gestão de força de trabalho no interior das empresas,

(13) SALAMA, Pierre. A financeirização excludente: as lições das economias latino-­americanas. In:
CHESNAIS, François (Coord.). A mundialização financeira — gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã,
1999. p. 245 (edição original em francês: 1996).
(14) Embora a excelente obra de David Harvey, em que se lança a expressão acumu­lação flexível,
seja bastante crítica no tocante ao novo quadro operacional do sistema capitalista, a expressão eleita
(acumulação flexível) tem algo de claramente eufemístico (HARVEY, David. Condição pós-moderna.
10. ed. São Paulo: Loyola, 2001, passim. A obra original é de 1989, sob o título: The Condition of
Postmodernity — an inquiry into the origins of cultural change).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 53

vincula-se a processos essencialmente atados a uma combinação específica de


circunstâncias econômi­cas e também de políticas públicas, combinação que se
altera em face do contexto de cada país, segmento empresarial e mesmo cada
empresa ou seu estabelecimento. Não desponta, assim, como uma suposta
determinação estrutural que incida, de maneira impe­riosa, sobre o conjunto do
sistema capitalista e de suas empresas integrantes.
Tudo isso demonstra que o argumento em torno da reestrutu­ração empresarial
ocorrida nas últimas décadas, com a correlata mudança nos sistemas que as empresas
vêm adotando quanto à sua gestão laborativa, todos também têm sido, sem dúvida,
artifi­cialmente extremados nesta conjuntura, como relevante meio políti­co-cultural de
combate ao primado do trabalho e do emprego na sociedade capitalista.

V — ACENTUAÇÃO DA CONCORRÊNCIA CAPITALISTA

O terceiro grupo de fatores (acentuação da concorrência capi­talista, inclusive


no plano internacional) é de natureza ambígua, clas­ sificando-se seja como
estrutural seja como conjuntural. Ele envolve o incremento e a generalização da
concorrência interempresarial, em particular com respeito à mais aberta inserção
das economias nacionais no cenário do mercado mundial. Não há dúvida de que
se deve considerar, em certa medida, como determinante estrutural, esse processo
de ampliação e aprofundamento da concorrência interna­cional no plano interno
das economias nacionais, já que decorrente de uma tendência própria à nova fase
globalizante do capitalismo.
Em contrapartida, não se pode negar, que a intensida­de e a generalização
de tal processo são moduladas de acordo com a política pública que se adota
internamente em cada Estado. Essa circunstância acaba por conferir também
relevante natureza conjun­tural ao referido processo.
Em que medida a acentuação da competição capitalista, inter­namente e no
plano externo, produz reflexos importantes no mundo do trabalho?
É que tal acentuação competitiva pode prejudicar o desem­ penho do
empreendimento empresarial, com direto comprometimento no montante de sua
força de trabalho.
É bem verdade que o inverso também pode ser verdadeiro, ou seja, a
eficiente inserção no mercado competitivo capitalista, inter­no ou externo, pode,
sem dúvida, potenciar o dinamismo empresa­rial, alimentando a contratação de
trabalhadores pelas respectivas empresas.
Isso significa que tais reflexos no mundo do trabalho irão de­pender, é claro, da
capacidade de a economia e seu universo em­presarial enfrentarem, positivamente,
a competição exacerbada. Tal capacidade encontra-se lógica e diretamente atada
às políticas públi­cas que o respectivo Estado observa no tocante à inserção de sua
economia no cenário global, além do sentido que confere às suas próprias políticas
econômicas internas.
54 MAURICIO GODINHO DELGADO

O argumento dominante relacionado à exacerbação da concor­rência ca-


pitalista, entretanto, não toma em consideração a existência desses caminhos
diferenciados de inserção internacional das econo­mias nacionais, preferindo enfa-
tizar a natureza inevitável e destrutiva de tal processo de integração econômica.
Nessa linha, sustenta-se que a globalização dos mercados, a queda das
barreiras contrárias ao livre comércio, a ausência de res­trições à livre mobilidade
do capital e das plantas empresariais, tudo tornaria anacrônicas eventuais medidas
internas de proteção ao tra­balho e ao emprego. A qualquer aceno desfavorável à
plena acumu­lação capitalista, o capital levantaria voo em direção a mercados mais
benignos, abandonando, se necessário, plantas empresariais inteiras no espaço da
economia insensível.
Nesse quadro de competição hobbesiana pela sobrevivência empresarial, a
destruição de postos de trabalho seria consequência irreprimível. Mais do que
isso, despontaria como insensatez quanto à eficiência competitiva da respectiva
economia se manterem ou se erigirem proteções significativas em benefício do
trabalhador, tais como as consolidadas no Direito do Trabalho.
Embora os dados da realidade não corroborem, regra geral, o estado de alerta
diante de um suposto caos que se mostra subjacente a essa tese, a incessante
repetição de seu argumento tem-na favo­recido nas últimas décadas.
De todo modo, não há dúvida de que, incentivando o Estado Nacional
uma integração submissa e desfavorável ao contexto eco­nômico mundial (ou se
resignando a esse tipo de inserção), ele há de provocar ou permitir, sim, o esta-
belecimento de um processo com­petitivo predatório no âmbito interno de sua
economia, o qual, segu­ramente, irá eliminar impressionante número de postos de
trabalho, contribuindo, ainda, para precarizar os que sobreviverem.
Além disso, essa mesma via irresponsável de integração inter­nacional não será
capaz de viabilizar condições mais benéficas de competição junto aos consumidores
externos, impedindo, mais uma vez, o impulso a uma dinâmica interna importante
de geração de trabalho e emprego.
Nesse contexto, a acentuação da concorrência capitalista, caso não seja ma-
nejada com sabedoria e sensatez pela estratégia inte­grativa ao mercado mundial
trilhada pelo respectivo Estado Nacio­nal, pode afetar, sem dúvida, o mundo do
trabalho, provocando-lhe repercussões de grande importância.

1. Avaliação Crítica: adendos

A acentuação da concorrência capitalista, inclusive e especial­mente no plano


externo das economias nacionais, também conferiu suporte a previsões catastrofis-
tas sobre o fim do emprego e do pró­prio trabalho na sociedade contemporânea.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 55

Uma vez mais, o equívoco de tais previsões mostra-se, como já evidenciado,


manifesto.
Não pode haver dúvida de que, embora vinculada a uma ten­dência própria
à atual fase globalizante do capitalismo, a inserção das economias nacionais no
mercado mundial tem claros vínculos com o caminho trilhado pela política pública
que se segue interna­mente em cada Estado, relativamente a esse processo de
inserção. A intensidade e a generalização de tal processo integrativo, além de
seu caráter favorável ou predatório, dependem talvez até mais do tipo de política
pública adotada pelo respectivo Estado Nacional do que das estritas determinações
internacionais envolventes.
Ora, caso o Estado Nacional incentive uma integração rigoro­ samente
subordinada e desfavorável ao cenário econômico mundial (ou se resigne a ela),
provocando — ou permitindo — uma competi­ção predatória no âmbito interno
de sua economia, além de não via­bilizar condições mais benéficas de competição
junto aos consumi­dores externos, certamente que os níveis de trabalho e de
emprego serão gravemente afetados no interior de suas fronteiras.
Isso significa que, regra geral, a intensidade e a generalização dos efeitos
maléficos ou benéficos de tal processo de integração à economia internacional
são, em boa medida, moduladas de acordo com a política pública que se adota
internamente em cada Estado.
Ou seja, a acentuação competitiva decorrente da integração internacional
pode, indubitavelmente, prejudicar o desempenho do empreendimento empre-
sarial, com direto comprometimento no mon­tante de sua força de trabalho — ou
pode ter repercussão diametral­mente oposta, de natureza favorável. Essa reper-
cussão favorável passa pela eficiente inserção no mercado competitivo capitalista,
potenciando o dinamismo empresarial e contribuindo para a contra­tação de traba-
lhadores pelas respectivas empresas.
Conforme já explicitado, quer isso dizer que tais reflexos no mundo do traba-
lho irão depender, é claro, da capacidade de a eco­nomia e seu universo empresarial
enfrentarem, positivamente, a com­petição exacerbada. Tal capacidade encontra-se
lógica e diretamen­te atada às políticas públicas que o respectivo Estado observa
no tocante à inserção de sua economia no cenário global, além do sen­tido que
confere às suas próprias políticas econômicas internas.
Se, por exemplo, o Estado resigna-se a uma política econômi­ca ingênua,
submissa ou irresponsável no plano de sua inserção externa, os impactos se-
rão desastrosos quanto ao nível do desem­penho de sua própria economia e
das empresas dela integrantes (ressalvados, evidentemente, certos empreen-
dimentos com dinâmi­ca e mercado muito específicos). Em consequência, tais
impactos serão também desastrosos com respeito aos níveis de emprego den-
tro do respectivo país.
56 MAURICIO GODINHO DELGADO

É o que se tem passado, ilustrativamente, com os países lati­no-americanos,


em geral — e com o Brasil, de maneira muito especial, senão até mesmo enfática.
Este país, de modo muito frequente, tem seguido políticas cambiais deletérias,
quanto à sua inserção na eco­nomia internacional, incentivando ou permitindo,
repetidas vezes e por longos períodos, a artificial valorização de sua moeda.
Embora tal estratégia de valorização artificial da moeda pátria produza
espetaculares ganhos para o segmento financeiro-espe­ culativo da economia,
inclusive o capital internacional de caráter vo­látil, além de produzir uma ilusória —
porque meramente contábil — r­edução no montante aparente da dívida pública,
essa mesma es­tratégia também produz, automaticamente, brutal desproteção
do mercado interno de todo o País, que se abre candidamente à descontrolada
importação de produtos estrangeiros.
O mais grave e irreparável nesse tipo de política cambial é que ela desorganiza
ou, até mesmo, simplesmente solapa todo o siste­ma produtivo nacional, a partir
do campo até a indústria, chegando, inclusive, a certos segmentos do setor de
serviços, desde que pas­síveis de sofrer concorrência de bens importados.
Se isso não fosse bastante, tal estratégia ainda compromete, severamente, o
potencial de geração de divisas por parte dos seto­res exportadores do País, (princi-
palmente segmentos relevantes da indústria), que perdem efetiva competitividade
no plano externo da economia.
Tamanho desastre — tantas vezes repetido na história brasilei­ra, sem que
se aprenda com os próprios erros — ceifa milhares (ou milhões, se prolongado
no tempo) de postos de trabalho, por preju­dicar a própria atividade econômica
interna do País.
Ora, em face de todo o exposto, fica bastante claro que o argu­ mento
em torno da acentuação da concorrência e sua maior interna­cionalização nas
últimas décadas tem sido gravemente viezado e extremado nessa conjuntura,
transformando-se, a partir desse viés e de sua exacerbação unilateral, em relevante
meio político-cultural de combate ao primado do trabalho e do emprego na
sociedade capitalista(15).

VI — MATRIZ INTELECTUAL DESCONSTRUTIVISTA DO


PRIMADO DO TRABALHO E DO EMPREGO

O quarto grupo de fatores (concepções intelectuais anunciado­ras do suposto


fim do trabalho e do emprego) é de clara natureza conjuntural, atando-se, direta

(15) Para exame da essencialidade do Estado e de suas políticas públicas na direção do


desenvolvimento capitalista, consultar FIORI, José Luís. Sistema Mundial: império e pauperização
para retomar o pensamento crítico latino-americano. In: FIORI, José Luís; MEDEIROS, Carlos (Org.).
Polarização mundial e crescimento. Petrópolis: Vo­zes, 2001. p. 39-75.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 57

ou indiretamente, à sedimentação da hegemonia liberal recente. Embora se dirija à


análise da estrutura da sociedade econômica, em especial no campo do trabalho,
é de natureza essencialmente cultural, ao propor uma nova visão de mun­do, novo
“paradigma” de compreensão do sistema capitalista.
A simples circunstância de tais concepções sustentarem — ain­da que a partir
de diferentes parâmetros — o eclipse do emprego e, em algumas das variantes mais
extremadas, do próprio trabalho, ou, pelo menos, a perda da relevância destes na atual
fase do capi­talismo, tudo isso agride, frontalmente, a raiz cultural da democracia social
contemporânea (consistente no primado do trabalho e do em­prego), a concepção
filosófica democrática subordinadora da eco­nomia à política, além de todo o sistema
jurídico de valorização material e moral do indivíduo que trabalha.
A matriz intelectual desconstrutivista do primado do traba­lho e do emprego,
embora comportando vertentes com indubitável diversidade entre si, elabora sua
reflexão a partir, principalmen­te, de três tipos de parâmetro: o tecnológico, o
organizacional e o mercadológico.
O parâmetro tecnológico é, seguramente, entre todos, o que mais impressiona,
sendo inclusive aquele que mais embeveceu par­te da intelectualidade oriunda da
própria tradição de esquerda.
Por essa diretriz, entende-se que a terceira revolução tecnológi­ca teria sido
tão intensa e inovadora que comprometeu a antiga crucial necessidade do trabalho
e do emprego pelo sistema capitalista, le­vando ao eclipse tais modalidades de
inserção do ser humano na dinâmica econômico-social. Em resultado de tais
transformações, não haveria mais como se falar em centralidade do trabalho e do
empre­go no mundo atual.
O parâmetro organizacional, também de razoável atratividade lógica, conta
ainda com certa adesão junto a vertentes oriundas do pensamento crítico clássico,
inclusive marxista.
Por essa diretriz, entende-se que as transformações provocadas no modelo
fordista/taylorista, hegemônico até os anos 1970 nos países desenvolvidos, em
face do advento do novo paradigma de or­ganização empresarial, denominado
toyotista/ohnista, tudo teria con­duzido ao ocaso das megaplantas empresariais,
ao desprestí­gio da produção em massa, à maior qualificação e multifunciona­
lidade do trabalhador em detrimento do império do trabalho desquali­ficado e
segmentado da fase precedente. Em consequência, teriam sido solapadas as bases
de estruturação da clássica relação de emprego e do próprio Direito do Trabalho,
estando o mundo capitalista em busca de novas modalidades de conexão do ser
humano à economia.
O parâmetro mercadológico, finalmente, consiste no menos sutil e sofisticado
dos três, comumente sequer conseguindo disfarçar seu real e cru intento de
acumulação de riquezas.
58 MAURICIO GODINHO DELGADO

Por essa diretriz, propaga-se que a globalização dos mercados, a intensificação


da concorrência capitalista, o fim das fronteiras en­tre Estados e economias, tudo
teria tornado obsoleta qualquer ten­tativa de restrição ao franco uso da força de
trabalho pelos agentes econômicos, uma vez que tais restrições viriam prejudicar
ou invia­bilizar a mais ágil e eficiente inserção das economias nacionais ou regionais
específicas no cenário mundial.
Em síntese, a matriz intelectual desconstrutivista do primado do trabalho
e do emprego no capitalismo, em qualquer de suas dis­ tintas vertentes, mas
principalmente considerada em seu conjunto, em vista de seu avanço e generalização
a partir da década de 1970, também afetou gravemente o mundo do trabalho,
contribuindo para as importantes mudanças que este sofreu em contraponto com
as características consolidadas nas décadas precedentes.(16)

1. Avaliação Crítica

A profundidade e a extensão das mudanças vivenciadas pelo capitalismo nas


últimas décadas do século XX deram origem a di­versificada matriz intelectual,
produtora de diagnóstico sombrio quan­to à continuidade do emprego e, talvez,
do próprio trabalho na so­ciedade contemporânea.
Tal matriz passou a enxergar o surgimento de novo ou novos paradigmas
de inserção dos indivíduos no sistema socioeconômico capitalista, diferentes da
relação empregatícia. Algumas variantes mais extremadas dessa matriz intelectual
chegaram ao clímax de praticamente excluírem essa nova sociedade supostamente
surgida dos marcos analíticos do próprio capitalismo.
A busca ou o encontro desses novos paradigmas iriam colocar em questão,
inevitavelmente, o primado do trabalho e do emprego no sistema capitalista
contemporâneo.
Conforme já exposto, a matriz intelectual desconstrutivista do primado do
trabalho e do emprego, embora comportando vertentes com notável diversidade

(16) A respeito de estudos comprobatórios da clara manutenção da centralidade do trabalho e do


emprego no capitalismo atual, consultar notáveis obras do cientista social brasileiro, Ricardo Antunes,
Pesquisador e Professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Ilustrativamente, Adeus ao
Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 16. ed., São Paulo:
Cortez, 2015 (a edição original da obra é de 1995); Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação
e a negação do trabalho. 2. ed./10ª reimpr., São Paulo: Boitempo, 2015 (a edição original da obra é
de 1999). Nesses livros — e em outros de seus estudos e publicações —, o Professor Ricardo Antunes
apresenta consistentes contraposições ao segmento do pensamento crítico europeu, capitaneado,
ilustrativamente, por textos de Jürgen Habermas (1929-at.) e de Claus Off (1940-at.), ambos da
Alemanha, e também de André Gorz (1923-2007), este nascido na Áustria e com carreira acadêmica
especialmente na França, os quais, em visão marcadamente eurocentrista, advogaram pela perda da
centralidade do trabalho e do emprego nas contemporâneas economia e sociedade capitalistas.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 59

entre si, elabora sua reflexão a partir, prin­cipalmente, de três tipos de parâmetro:
o tecnológico, o organiza­cional e o mercadológico.
O parâmetro tecnológico — entre todos, o que mais impressio­na — tem sido
inclusive aquele que mais embeveceu parte da inte­lectualidade oriunda da própria
tradição marxista.
Por esse parâmetro, as concepções desconstrutivistas do pri­mado do trabalho
e do emprego na sociedade capitalista sustentam que as mudanças derivadas da
chamada terceira revolução tecnoló­gica do capitalismo teriam sido tão intensas,
diversas e dissemina­das que abalaram, de modo implacável, o primado do emprego
e do próprio trabalho nesse sistema socioeconômico.
Ao teor dessa diretriz entende-se que a terceira revolução tec­ nológica
teria ocorrido de modo tão intenso e criativo que compro­meteu a antiga crucial
necessidade do trabalho e do emprego pelo sistema capitalista, levando ao eclipse
tais modalidades de inserção do ser humano na dinâmica econômico-social. Como
resultado de tais transformações, não haveria mais se falar em centralidade do
traba­lho e do emprego no mundo atual.
Conforme já examinado neste capítulo, é muito evidente o equí­voco deste
fundamento tecnológico que dá suporte a semelhantes matrizes intelectuais. Afinal,
como visto, as inovações derivadas da tecnologia não têm caráter estritamente
negativo com respeito à ge­ração de trabalho e emprego; a relação tecnologia/
emprego não é, pois, meramente unidirecional. Ao revés, os avanços tecnológicos
podem, sem dúvida, produzir repercussões bastante favoráveis quan­to à geração
de trabalho e emprego nas economias.
No fundo o que se percebe é uma exacerbação do argumento tecnológico
como meio ao primado do trabalho e do emprego na sociedade capitalista.
Também o parâmetro organizacional, dotado ainda de razoável atratividade
lógica, conta com certa adesão junto a vertentes oriun­ das do pensamento
crítico clássico. Sua hegemonia incontestável, entretanto, situa-se no segmento
intelectual direcionado às práticas administrativas e gerenciais dentro das empresas
capitalistas.
Pelo parâmetro organizacional, as concepções desconstrutivis­tas do primado
do trabalho e do emprego na sociedade capitalista sustentam que as mudanças
vivenciadas desde os anos 1970 na estrutura organizacional das empresas e na
forma de gerenciamen­to de sua força de trabalho foram tão intensas, múltiplas
e dissemi­nadas que abalaram, de modo implacável, o primado do emprego e do
próprio trabalho nesse sistema socioeconômico.
Não obstante, é também muito claro o equívoco desse funda­ mento
organizacional, que confere suporte a semelhantes matrizes intelectuais, à luz do
60 MAURICIO GODINHO DELGADO

que já se expôs no presente capítulo. Também aqui o que se percebe é uma


exacerbação do argumento organiza­cional, como meio relevante de convencimento
no processo de com­bate ao primado do trabalho e do emprego na sociedade
capitalista.
Finalmente, pelo parâmetro mercadológico, as concepções des­construtivistas
do primado do trabalho e do emprego na sociedade capitalista, de igual modo,
sustentam que as mudanças na estrutura e dinâmica do mercado econômico,
com a generalização e o acirra­mento da competitividade interempresarial na atual
fase do capita­lismo, foram tão intensas, diversas e disseminadas que abalaram,
mais uma vez, também de modo implacável, o primado do emprego e do próprio
trabalho nesse sistema socioeconômico.
O caráter falacioso desse parâmetro é manifesto, não disfarçan­do sequer seu
real intento acumulativio de riquezas. Mais claro ainda desponta aqui o manejo
exacerbado de certo tipo de argumento como mecanismo ideológico importante
na dinâmica histórica de combate ao primado do trabalho e do emprego na
sociedade capitalista.

VII — ALTERAÇÕES NORMATIVAS TRABALHISTAS

O quinto grupo de fatores (modificações implementadas na configuração


institucional e jurídica do mercado de trabalho e das normas que regulam suas
relações integrantes) é de caráter pre­ ponderantemente conjuntural, variando
segundo a experiência polí­tica interna a cada Estado,
Tal grupo de fatores envolve as políticas públicas gestadas na­cionalmente,
dirigidas a acentuar a reestruturação do antigo siste­ma trabalhista, em busca de
um modelo desregulado de mercado de trabalho. À medida que as mudanças
no mercado laborativo, mesmo quando institucionais, tendem a se cristalizar na
ordem jurídica, pode-­se identificar esse grupo, em resumo, a partir das próprias
altera­ções normativas trabalhistas.
É evidente que tais alterações normativas trabalhistas são pro­ dutos de
diagnósticos da economia e da sociedade que foram hege­monicamente construídos
nas últimas décadas. De maneira geral, tais diagnósticos têm se mostrado
receptivos, em maior ou menor extensão, ao império das supostas determinações
inescapáveis quer da terceira revolução tecnológica, quer da reestruturação
empresa­rial externa e interna, quer da acentuação da concorrência capitalista.
São diagnósticos que incorporam, portanto, em alguma medida, os traços centrais
da matriz intelectual desconstrutivista do primado do trabalho e do emprego no
capitalismo de finais do século XX e início deste século.
Contudo, a partir do instante em que semelhantes diagnósti­cos se convolam
em políticas públicas, em normas jurídicas, em meios de institucionalização de
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 61

direcionamentos e condutas indivi­duais e sociais, eles contribuem para exacerbar


os efeitos deletérios sobre o trabalho e o emprego inerentes a tais fatores estruturais
e conjunturais que presidiram sua elaboração. Ou seja, as alterações normativas
trabalhistas implementadas nas últimas décadas em parte significativa de países
capitalistas ocidentais aprofundaram a crise e desvalorização do emprego e do trabalho,
ao invés de reafirma­rem seu primado na sociedade capitalista contemporânea.
Três exemplos são paradigmáticos nesse processo de normati­zação perversa
das relações de trabalho nas últimas décadas: Es­panha, Argentina e Brasil.
No tocante à Espanha, trata-se de um dos primeiros países europeus, ao
lado da Inglaterra de Margareth Thatcher, a partir ain­da de fins da década de
1970, ao incorporar uma agenda de moderni­zação trabalhista (sic!), à base da
desregulação e flexibilização do emprego, isto é, da redução de garantias e
proteções ao empregado no contexto de sua contratação laborativa.
Antonio Baylos refere-se, nesse quadro, ao implemento de uma “política
de emprego flexível levada a cabo desde as primeiras nor­mas de 1979”(17). Tal
política somente sofreria reversão efetiva no ano de 1997, quando retomou
prestígio a noção de emprego está­vel, visando diminuir a precariedade contratual
trabalhista(18).
Joaquín Pérez Rey fixa esse marco inicial até mesmo um pou­co antes, em
1976, no Real Decreto-Ley (RDL) n. 18/1976, “em que se revisam dois pilares da
estabilidade, a dispensa e a contratação provisória”(19). A propósito, o elogio aos
contratos de curta dura­ção passaria a ser um dos sustentáculos da nova política
trabalhista espanhola naquele período.
O diagnóstico sobre tais alterações normativas espanholas, que perduraram
cerca de duas décadas, é claramente negativo: como se sabe, aquele país, naquela
mesma época, liderou os índices negati­vos de desemprego em todo o Ocidente
desenvolvido. Por essa razão é que o jurista Antonio Baylos censura o processo
de flexibiliza­ção e desregulamentação aplicado durante vinte anos na Espanha,
por meio do que qualifica de “obstinadas reformas do mercado de trabalho que
jamais obtiveram os resultados perseguidos”: foram apresentadas, naquele tempo,
“altas ou desmesuradas taxas de de­semprego com um processo permanente de
precarização e even­tualização da população assalariada”.(20)
No que diz respeito à Argentina, trata-se do protótipo, na Amé­rica Latina,
da suposta modernização trabalhista baseada na flexibi­lização e/desregulação

(17) BAYLOS, Antonio. Prólogo. In: REY, Joaquín Pérez. Estabilidad en el empleo. Madrid: Trota,
2004. p. 14.
(18) BAYLOS, Antonio. Loc. cit.
(19) REY, Joaquín Pérez. Estabilidad em el empleo, Madrid: Trotta, 2004. p. 62.
(20) BAYLOS, Antonio. Loc. cit. Sobre o percurso flexibilizatório trabalhista espanhol, consultar ainda
BAYLOS, Antonio. Las relaciones laborales en España desde Ia Constitución hasta nuestros dias
(1978-2003). Madrid: GPS, 2003.
62 MAURICIO GODINHO DELGADO

do emprego. O governo Menem (1989-1999), no conjunto de medidas radicais


de propagada integração da econo­ mia ao mercado internacional (tais como
privatização ampla de em­presas estatais, eliminação de barreiras alfandegárias,
valorização artificial da moeda interna em benefício da competição externa den­tro
do país(21)), também se caracterizou por ampla desregulamenta­ção e flexibilização
da ordem jurídica trabalhista.
Um dos pontos de destaque dessa nova política trabalhista seria a incorporação
da experiência espanhola de favorecimento aos contratos a termo, o elogio à
provisoriedade da contratação de empregados, em contraste com a mais estável
contratação por tem­po indeterminado.
O resultado de todo esse estratagema disciplinadamente cum­prido pelo governo
e sociedade argentinos é bastante conhecido: em comparação ao marco de 1980, em
que apenas 5% da popula­ção se situavam abaixo da linha de pobreza, conforme o
Índice de Desenvolvimento Humano, da ONU (IDH), em torno do ano 2000, mais de
50% dos argentinos viviam abaixo da linha de pobreza. Some­-se a esse quadro o fato
de atingir o desemprego em 2002 em torno de 25% da força de trabalho do país,
após uma década de índices também sempre significativamente elevados. A par disso,
a crimina­lidade elevou-se cerca de 290% em torno de 10 anos(22).
No que tange ao Brasil, por fim, o cumprimento de uma estra­tégia em busca
de um modelo desregulado de mercado de trabalho tem seu início com o advento
do regime militar, em meados dos anos 1960.
Com a criação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), pela Lei n.
5.107/66, vigorante a partir de janeiro de 1967, se estabelece sistemática alternativa
à regulada pela CLT, de modo a tor­nar a dispensa do trabalhador inquestionável
direito potestativo do empregador, sem amarras legais e institucionais relevantes
(em con­traste com a sistemática legal precedente, que previa alta indeniza­ção por
tempo de serviço e, desde os dez anos de emprego, a pró­pria estabilidade).
O regime militar, ademais, criaria, poucos anos após, o contra­to de trabalho
temporário, propiciador de importante tipo de terceiri­zação trabalhista, embora
ainda de extensão restrita no tempo ­três meses (Lei n. 6.019, de 1974).(23)

(21) A impressionante e insensata paridade cambial (1 peso = 1 dólar), criada e man­tida no Governo
Menem, durou nada menos do que cerca de 10 anos, de 1991 até fevereiro de 2002. In: Almanaque
Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 160-163.
(22) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003, São Paulo: 2003. p. 160. Diversas referências legais
quanto ao processo de desregulamentação e flexibilização trabalhistas na Es­panha e na Argentina
são encontradas em GONÇALVES, Antônio Fabrício de Matos. Fle­xibilização trabalhista. Capítulo 6.
Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p. 109-140.
(23) Sobre a Lei do FGTS e suas mudanças no sistema regulador da permanência do contrato de
emprego no Brasil, consultar DELGADO, M. G. Curso de direito do traba­lho. 4. ed. 1ª reimpr. São
Paulo: LTr, 2005, Capítulo XXVIII, item IV, e Capítulo XXXII. Sobre a Lei do Trabalho Temporário e a
terceirização trabalhista, consultar, do mesmo autor e livro, o Capítulo XIII.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 63

Curiosamente, será, entretanto, logo em seguida à Constitui­ção de 1988


(que foi um dos pontos altos de afirmação do Direito do Trabalho no País), que os
governos da década de 1990 iriam extremar a estratégia de desregulamentação e
flexibilização trabalhistas.
O primeiro governo eleito a partir da CF/1988 (1990-1992) cons­tituiu comissão
autorizada a estudar a própria substituição da CLT, de centenas de preceitos
jurídicos, por diploma legal de poucos ar­ tigos (trabalho que foi, felizmente,
abortado em face da constrange­dora deposição do Presidente da República, no
segundo semestre de 1992).(24)
O curto governo subsequente (1992-1994) aprovou a Lei n. 8.949, de 1994, de
origem congressual, que iria deflagrar, na realidade so­cioeconômica, verdadeira ava-
lanche de cooperativas de mão de obra (novo parágrafo único do art. 442 da CLT),
agenciadoras de milhares de trabalhadores sem qualquer direito laborativo consistente.
O governo seguinte, contudo, ao longo de seus oito anos (1995-­2002), é que
iria produzir incomparável blitzkrieg em favor da desre­gulamentação trabalhista.
Duas medidas legais bem ilustram a orientação econômico-fi­losófica de tal
governo: de um lado, a nova estruturação que confe­re, por medida provisória, ao
contrato de estágio (Lei n. 6.494, de 1977), de modo a tentar permitir que este pacto
seja estendido ao estudante de ensino médio e perca a imperiosa conexão com a
for­mação acadêmico-profissional do estudante (artifício que permitiria transformar
o importante estágio em uma espécie de contrato de servidão voluntária); de outro
lado, a aprovação da Lei do Contrato Provisório de Trabalho (n. 9.601, de 1998),
que cria fórmula de con­tratação precária, quer quanto ao tempo (máximo de dois
anos, com renovações sucessivas de curto período dentro deste lapso), quer quanto
aos direitos laborativos (restrições a clássicos direitos regu­lados na CLT).
Registre-se que o intento mais agressivo dessa época, do pon­to de vista
da desregulamentação legal trabalhista, consistente no Projeto de Lei n. 5.483,
de 2001, que permitia o afastamento do império da lei em face da negociação
coletiva, acabou não se implementando no Parlamento(25).

(24) A Comissão de Modernização da Legislação do Trabalho, instituída por Decreto de 22.6.1992,


chegou a divulgar, em novembro de 1992, dois anteprojetos de lei, um tratando das relações coletivas
de trabalho e o outro das relações individuais de traba­lho. A partir do diagnóstico de que “... a
CLT perdeu a razão de ser”, a Comissão propu­nha que a regulamentação dos direitos individuais
do trabalho se transformasse em “um conjunto de normas dispositivas”, invertendo-se a pirâmide
normativa “... para fazer prevalecer o produto da negociação coletiva sobre os direitos individuais
estabe­lecidos em lei, aplicáveis apenas na hipótese de não ter sido exercitada a autonomia privada
coletiva”. Em consequência, seu anteprojeto da Lei de Relações Individuais do Trabalho, com exíguos
14 artigos, dispunha no art. 1º: “A presente lei disciplina as relações individuais de trabalho urbano,
rural e avulso, na ausência de instrumento normativo que disponha de modo diverso, ressalvadas as
garantias constitucionais”. Fonte: Revista LTr, São Paulo: LTr, ano 57, v. 4, p. 396-409, abril de 1993.
(25) Excelente pesquisa sobre as normas jurídicas de flexibilização e desregula­mentação trabalhistas, a
contar do regime militar até o final do Governo Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, encontra-se em
GONÇALVES, A. F. de M. Ob. cit., em seu Capítulo 8, p. 159-266. A respeito dessa onda reformista no
64 MAURICIO GODINHO DELGADO

No que diz respeito ao Brasil, entretanto, dois outros fatores foram


decisivos ao cumprimento do estratagema de busca de um modelo desregulado
e flexibilizado de mercado de trabalho.
De um lado, a flexibilização interpretativa realizada pela jurispru­
dência
trabalhista nos anos seguintes à Constituição de 1988.
É claro que, em certa medida, essa jurisprudência corrigiu ine­gáveis excessos
protecionistas do Direito do Trabalho construído nas décadas precedentes, correção
essa algumas vezes estimulada pela própria nova Constituição da República.
É claro também que, muitas vezes, a jurisprudência, juntamen­te com as
funções exercidas pelo Ministério Público do Trabalho e pela auditoria fiscal do
Ministério do Trabalho e Emprego, todos tiveram funda­mental papel na defesa do
Direito do Trabalho e da dignidade do trabalhador, em contraste com as iniciativas
desregulamentadoras, flexibilizatórias e precarizantes oriundas do Parlamento ou
Presi­dência da República na década de 1990.
Contudo, ainda assim, é necessário reconhecer que a flexibili­zação interpre-
tativa foi muito além de certos naturais ajustes e ade­quações da ordem jurídica à
mudança social: é que ela contribuiu para construir, nos anos de 1990, verdadeira
nova cultura em torno do Direito Individual e Coletivo do Trabalho, reduzindo, em
muito, a efetividade de suas regras e princípios jurídicos.
No Brasil, outro fator que tem sido decisivo à realização do es­tratagema
de desregulação e flexibilização do mercado de trabalho centra-se na contínua
resistência à generalização do Direito do Tra­balho como padrão de contratação
de força de trabalho em nossa economia e sociedade — resistência histórica, a
propósito, que somente começou a ser vencida na evolução brasileira no período
de 2003. Na verdade, o ramo jurídico tra­ balhista no País já é naturalmente
desregulado e flexibilizado, uma vez que cumprido apenas quanto a parte muito
pequena da popula­ção economicamente ativa (não mais do que 30% da PEA,
excluí­dos os desempregados)(26).

Ocidente, inclusive no Brasil, consultar também POCHMANN, Márcio; MORETTO, Amilton. Reforma
Tra­balhista: a experiência internacional e o caso brasileiro. In: Cadernos Adenauer­— Sindicalismo e
relações trabalhistas. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, ano III, n. 2, p. 69-89, 2002.
(26) Segundo o economista Márcio Pochmann, a partir de dados do Ministério do Tra­ balho
e Emprego, em 1999, por exemplo, existiam apenas 22,3 milhões de assalaria­dos com carteira
assinada no País (in O emprego na globalização — a nova divisão internacional do trabalho e os
caminhos que o Brasil escolheu. 1. ed./1ª reimpr. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 98). Dados do
IBGE, relativos a dois anos após (2001), por sua vez, indicam que o total da PEA ocupada — excluídos
os desempregados, pois a­ lcança cerca de 75 milhões de pessoas (in Almanaque Abril Brasil 2003
— Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003, p. 136 e 138). Conforme ressaltado, somente a partir do
período 2003-2013, é que se passou a reverter, efetivamente, o isolamento do Direito do Trabalho
no mercado laborativo brasileiro, com o incremento de aproximadamente 20 milhões de novos
empregos formalizados em cerca de 11 anos. A respeito, consultar, no capítulo IV deste livro, o seu
item V (“Adendo: a inclusão socioeconômica deflagrada no século XXI, no Brasil, pelo caminho da
relação de emprego e do Direito do Trabalho”).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 65

Em conexão com essa constrangedora característica brasilei­ ra, grande


parte do avanço desregulamentador e flexibilizador da ordem jurídica trabalhista
se concretizou por várias décadas inde­pendentemente de autorização legal —
simplesmente realizou-se como fato supostamente incontrolável e superior a todo
o Direito. Em boa medida, é o que se passou com a terceirização trabalhista, por
exemplo, que se generalizou no mercado laborativo sem previ­são legal bastante
para seu disseminado implemento.
Ressalte-se, por fim, que, no caso brasileiro e de países com semelhante
inserção tardia no capitalismo, não existia especifica­ mente um paradigma
trabalhista genérico e consolidado no período histórico precedente à atual fase
de flexibilização e desregulamen­tação normativas. Afinal, neste País, o Direito do
Trabalho sequer havia se generalizado, no plano formal, até os anos 1960, não
se tornando genérica e efetivamente aplicado nem mesmo nas várias décadas
seguintes, conforme exposto. Dessa maneira, as alterações normativas trabalhistas
implementadas a partir dos anos 1970 (e, no caso brasileiro, acentuadas nos anos
1990) tiveram o condão, na verdade, de inviabilizar a inserção mais favorável e
civilizada dos trabalhadores na economia e sociedade que se desenvolvia(27).
De todo modo, grande parte das alterações normativas traba­lhistas, efeti-
vadas nas últimas décadas do século passado e na vira­da para o século XXI, na
proporção em que implementaram fórmulas de rebaixamento do patamar de in-
serção dos trabalhadores no siste­ma socioeconômico capitalista, afetaram, em
substancial medida, o mundo do trabalho, provocando-lhe mudanças importantes
em con­traste com as características consolidadas nas décadas precedentes.(28)

1. Avaliação Crítica

As experiências de alterações normativas trabalhistas concre­tizadas nas dé-


cadas finais do século XX, a partir do diagnóstico de que o trabalho e o emprego
estavam em crise, tiveram um mesmo direcionamento essencial: a desregulamen-
tação e a flexibilização das normas jurídicas trabalhistas, de modo a diminuir a
retribuição do valor-trabalho na sociedade contemporânea.
Tal direção legislativa harmoniza-se com as análises da econo­
mia e da
sociedade, com suas respectivas recomendações, que foram hegemonicamente

(27) O Estatuto do Trabalhador Rural, de 1963 (Lei n. 4.214/63), estendeu a legisla­ção trabalhista
brasileira ao campo, suplantando a original restrição do art. 7º da CLT. No entanto, mesmo nas
décadas seguintes, não se cumpriu um real e eficiente processo de generalização dessa ordem jurídica
a grande maioria da população economicamente ativa ocupada do Brasil, conforme evidenciado
pelos dados oficiais acima descritos.
(28) A regressão jurídica trabalhista retomou força no Brasil a partir dos anos de 2016/2017,
com a apresentação de graves reformas legais precarizantes no Direito do Trabalho, ao lado do
recrudescimento de certo tipo de interpretação jurídica liberalista do Direito Social do País.
66 MAURICIO GODINHO DELGADO

construídas nas décadas seguintes a 1970/1980. De maneira geral, tais análises


perfilaram-se em torno do suposto império de determinações inescapáveis da
terceira revolução tecnológica, da reestruturação empresarial externa e interna,
além da acentuação da concorrência capitalista. Todos são diagnósticos que
incorpora­vam (e incorporam), em maior ou menor medida, os traços centrais
da matriz intelectual desconstrutivista do primado do trabalho e do emprego no
capitalismo de finais do século XX e início deste século.
Assentado tal diagnóstico sombrio, tornava-se politicamente palatável o
rigoroso remédio da precarização dos direitos trabalhis­tas. O argumento corrente
sustentava (e ainda o faz) que a redução do custo trabalhista para as empresas
teria o condão de elevar o número de contratações no sistema socioeconômico,
mesmo que por meio de pactos menos retributivos da força de trabalho.
De maneira geral, entretanto, o implemento desse tipo de re­formulação traba-
lhista tende a agravar os efeitos sofridos pelos ní­veis de emprego e pelos trabalhadores
nas respectivas economias e sociedades, em face da repercussão concentracionista de
riqueza que enseja, além da diminuição da participação do valor-trabalho na renda
nacional correspondente. Semelhante correlação foi exausti­vamente percebida na
Espanha da década de 1980 até a reversão legislativa de 1997; na Argentina dos
anos 1990; no Brasil da última década do século XX.(29)

VIII — O ENUNCIADO DO FIM DO EMPREGO NO


CAPITALISMO ATUAL — OMISSÃO SINGULAR

A conjuntura do sistema econômico, social e político capita­lista, ao longo do


último quartel do século XX, propiciou a realização de importantes acontecimentos
e tendências de notável impacto no mundo do trabalho. A concentração de tais
tendências e aconte­cimentos em curto período histórico fez brotar diagnóstico
relati­vamente generalizado a respeito da presença de irremediável crise estrutural
no tocante ao trabalho e ao emprego na atualidade do capitalismo.
Esse diagnóstico e o caráter sombrio de suas previsões, em­bora tendo,
evidentemente, pontos de contato com a dinâmica atual do sistema socioeconô-

(29) O ideário ultraliberalista perdeu certo prestígio, reconheça-se, em face das inúmeras crises
econômicas e sociais que provocou desde o início dos anos 1980 (a começar pela “crise da dívida”, com
início em 1981/1982, que fez sucumbir a grande maioria dos países latino-americanos), culminando
com a ampla crise socioeconômica ocidental iniciada nos EUA em 2007/2008 e propagada pela Europa
e pela América Latina. Entretanto despontam ainda assim, em certos países, refluxos de reformas
trabalhistas desregulamentadoras do mercado de trabalho e flexibilizadoras da ordem jurídica
trabalhista. A Espanha ilustra isso: ao enfrentar a crise econômica iniciada em 2007/2008, o País, logo
a seguir, iria retomar uma anterior e malsucedida agenda legislativa precarizadora do trabalho e do
emprego, aprofundando, dentro de suas fronteiras, o próprio desemprego e a desigualdade social. O
Brasil de 2016/2017, sem dúvida, também representa lamentável exemplo desse refluxo ultraliberalista
e antissocial, com as propostas de reformas trabalhistas e previdenciárias deflagradas nesses anos.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 67

mico prevalecente, não se mostram efetivamente corretos, conforme exposto no


presente texto. Na verdade, acabam por traduzir, em boa medida, decisivo instru-
mento cultural no processo de combate ao primado do trabalho e do emprego no
sistema capitalista contemporâneo.
Um dos pontos mais instigantes na presente temática diz res­peito a uma
singular omissão no cerne da linha explicativa dominante acerca do fenômeno
contemporâneo do desemprego: o tipo de política pública, notadamente econô-
mico-financeira, seguida pelos Estados Nacionais capitalistas no mesmo período
considerado.
Não obstante haja notável coincidência temporal entre o pro­fundo desemprego
vivenciado por inúmeros países do Ocidente e o implemento rigoroso por seus
respectivos Estados de inexpugnável política econômico-financeira de natureza
liberal-monetarista, tal diag­nóstico hegemônico e suas previsões sombrias tendem
a desconsi­derar em suas análises a relevância desse fator político-conjuntural.
Não é objetivo do presente capítulo, evidentemente, esmiuçar as relações
entre semelhante política pública, fortemente direciona­ dora das atividades
do Estado e da economia nacional, com os índi­ces de emprego/desemprego
no respectivo país capitalista. No entanto, não se poderia encerrar o presente
texto, sem o destaque dessa instigante omissão no quadro da matriz explicativa
hegemônica sobre o fenô­meno do desemprego no capitalismo de nossos dias(30).

(30) A respeito dessa política pública econômico-financeira e sua influência no siste­ma mundial e nos
países capitalistas ocidentais, inclusive da América Latina, no final do século XX e despertar do novo
século, consideradas ainda suas repercussões na equação emprego/desemprego, dirigir-se ao capítulo
III do presente livro (“Capitalismo sem reciprocidade: a política pública de destruição do emprego”).
Consultar, ainda, ilustrativamente: FIORI, José Luís; MEDEIROS, Carlos (Org.). Polarização mundial e
crescimento. Petrópolis: Vozes. 2001; TAVARES, Maria da Conceição: FIORI, José Luís (Org.). Poder e
dinheiro — uma economia política da globalização. 3. ed. Petrópolis: Vozes. 1997; FIORI, José Luis. Os
moedeiros falsos. 4. ed. Petrópolis: Vozes. 1998; POCHMANN, Márcio. O emprego na globalização
— a nova divisão internacional do trabalho e os caminhos que o Brasil escolheu. 1. ed./1ª reimpr. São
Paulo: Boitempo, 2002; ASSIS, J. Carlos de. Trabalho como direito — fundamentos para uma política
de promoção do pleno emprego no Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002; PLIHON, Dominique.
Desequilíbrios mundiais e instabilidade financeira: a res­ponsabilidade das politicas liberais. Um ponto
de vista keynesiano. In: CHESNAIS, François (Coord.). A mundialização financeira — gênese, custos e
riscos. São Paulo: Xamã, 1998.
CAPÍTULO III

CAPITALISMO SEM RECIPROCIDADE:


A POLÍTICA PÚBLICA DE DESTRUIÇÃO DO EMPREGO(*)

I — INTRODUÇÃO

A conjuntura do sistema econômico, social e político capitalis­ta, ao longo do


último quartel do século XX, propiciou a realização de importantes acontecimentos
e tendências de notável impacto no mundo do trabalho. A concentração de tais
tendências e aconte­cimentos, em curto período histórico, fez brotar diagnóstico
relativa­mente generalizado a respeito da presença de irremediável crise estrutural
no tocante ao trabalho e ao emprego na atualidade do capitalismo.
Esse diagnóstico e o caráter sombrio de suas previsões — em­bora tendo,
evidentemente, pontos de contato com a dinâmica atual do sistema socioeconômico
prevalecente — não se mostram efetiva­mente corretos, conforme explicitado nos
capítulos anteriores. Na verdade, acabam por traduzir, em boa medida, instrumento
cultural no processo de combate ao primado do trabalho e do emprego no sistema
capitalista contemporâneo.
A construção desse tipo de diagnóstico e de tais previsões som­ brias
fundamenta-se em três eixos de argumentação, às vezes ex­postos de maneira
combinada: as mudanças provocadas pela ter­ ceira revolução tecnológica do
capitalismo; as mudanças vinculadas à reestruturação empresarial nas últimas
décadas, quer no plano da descentralização do empreendimento capitalista,
quer no plano das alterações nos métodos e sistemas de gestão das empresas
e de sua força de trabalho; a acentuação da concorrência capitalista, in­clusive e
especialmente no quadro do mercado mundial.
Esses três grandes fatores teriam dado origem a um desem­prego estrutural
no sistema capitalista, desemprego supostamente inevitável, ao lado de um
processo irreprimível de perda de relevân­cia, no sistema, da relação de emprego
e do próprio trabalho.
A falácia desse tipo de argumentação — que atua muito mais como
instrumento justificador e apologético de certo tipo de gestão pública da sociedade
e do sistema econômico, que se tornou domi­nante na virada dos séculos XX e XXI —
já foi exaustivamente de­monstrada nos textos citados.
Entretanto, um dos pontos mais instigantes no estudo do presente tema
diz respeito a uma singular omissão no cerne da linha explica­tiva dominante
acerca do fenômeno contemporâneo do desemprego: o tipo de política pública,

(*) A primeira versão deste artigo foi originalmente publicada na Revista LTr, São Pau­lo: LTr, ano 69,
n. 8, p. 915-937, agosto de 2005.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 69

notadamente econômico-financeira, seguida pelos Estados Nacionais capitalistas


no mesmo período considerado.
Não obstante haja notável coincidência temporal entre o profun­do desemprego
vivenciado por inúmeros países do Ocidente e o im­plemento rigoroso por seus
respectivos Estados de inexpugnável po­lítica econômico-financeira de natureza
liberal-monetarista, tal diag­nóstico hegemónico e suas previsões sombrias tendem
a desconsi­derar, em suas análises, a relevância desse fator político-conjuntural.
O presente capítulo objetiva, exatamente, apontar o inverso, ou seja, as
relações entre semelhante política pública, fortemente dire­cionadora das atividades
do Estado e da economia nacional, com o desprestígio do trabalho e do emprego
no respectivo país capitalista.
O eixo argumentativo do presente texto é, desse modo, sim­ples e direto: há
uma orgânica conexão entre o tipo de política pública seguida, hegemonicamente,
hoje, na maioria dos países capita­ listas ocidentais (e que, no Brasil, imperou
durante a década de 1990 e o início do novo século) e o desprestígio do
trabalho e do emprego nas mesmas sociedades. O núcleo dessa política públi­ca
é, inclusive, o grande responsável pelas elevadíssimas taxas de desemprego que
têm caracterizado tais economias nesse período. Há, pois, uma política pública
sistemática de devastação do emprego e do trabalho nesses Estados e em suas
economias e sociedades renitentemente aplicada nas últimas décadas (embora,
evidentemente — e cuidadosamente — não se assuma como tal).
Tal política pública sistemática tem se acobertado — e se forta­lecido — sob
o manto explicativo do chamado desemprego estrutural, em seus três eixos
(tecnológico, organizacional e mercadológico), e com isso vem conseguindo se
manter intocada nas últimas décadas.
Noutras palavras, o desprestígio do trabalho e do emprego no atual
capitalismo e as elevadas taxas de desocupação que ora o caracterizam não
têm caráter prevalentemente estrutural, mas, sim, conjuntural, sendo produto
concertado de políticas públicas dirigidas, precisamente, a alcançar esses objetivos
perversos e concentradores de renda no sistema socioeconômico vigorante.
Trata-se não mais do que o império de um capitalismo sem reciprocidade,
capitalismo sem peias — que não tem necessaria­mente de funcionar assim, mas o
faz em face da reiteração da mes­ma matriz de suas políticas públicas principais.

II — POLÍTICA PÚBLICA DE DESTRUIÇÃO DO EMPREGO


— ­TRAÇOS RECORRENTES DA ATUAL FASE CULTURAL,
POLÍTICA E ECONÔMICA DO CAPITALISMO

A elaboração e organização das políticas públicas de desvalorização do traba-


lho e do emprego no capitalismo ocidental das últimas décadas estrutura-se a
70 MAURICIO GODINHO DELGADO

partir do alcance da hegemonia cultural, política e econômica pela matriz neolibe-


ral (ou ultraliberal) de pensamento nos países ocidentais.
Não obstante essa hegemonia tenha várias faces e projeções, torna-se muito
claro que todas elas produzem fortes impactos no tocante à reversão do primado
do trabalho e do emprego que carac­terizou a civilização ocidental durante o
período europeu e norte-americano de primazia do Estado de Bem-Estar Social
(1945 até meados dos anos 1970).
A análise dessa verdadeira política pública multidimensional di­recionada à
destruição do emprego e à desvalorização do próprio trabalho no capitalismo
contemporâneo passa, desse modo, pelo estudo do processo de construção da
hegemonia neoliberal no últi­mo quartel do século XX no mundo ocidental.

1. Hegemonia Ultraliberal na Virada dos Séculos XX e XXI — síntese

A hegemonia da matriz neoliberal de gestão do Estado e da sociedade capi-


talistas pode ser bem sintetizada em três principais dimensões: cultural, política e
econômica.
É evidente que tais dimensões tendem a ocorrer conjugadamente no tempo
e no espaço, embora com pesos e facetas natu­ralmente diferenciados quanto a
cada uma delas segundo a realidade histórica de cada país. Apesar disso, podem
ser identificadas, em linhas gerais, a partir das características a seguir explicitadas.
A construção cultural dessa hegemonia realiza-se, essencial­mente, em torno
de dois grandes processos.
Em primeiro lugar, por meio da formatação e generalização de um suposto
pensamento econômico único, de caráter ultraliberal. Em segundo lugar, por meio
da fragmentação de parte relevante do pensamento crítico ao capitalismo ou, pelo
menos, crítico ao mode­lo laissez-faire capitalista.
A construção política da hegemonia neoliberal realiza-se tam­bém em torno
de dois grandes processos.
De um lado, por meio de vitórias político-eleitorais relevantes e de longo curso
temporal, em países líderes do capitalismo ociden­tal, a partir de fins dos anos 1970
e década de 1980. Por outro lado, mediante o desaparecimento ou, pelo menos, a
debilitação dos contrapontos políticos consistentes externos e internos ao sistema
capitalista ocidental, como um todo.
Já a construção econômica dessa hegemonia realiza-se me­diante um processo
cardeal, inclusive direcionador dos demais. Trata-se da destacada dominância do
setor financeiro-espe­culativo no âmbito do capitalismo mundial, subordinando,
visivelmen­te, os outros segmentos do mesmo sistema socioeconômico.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 71

A direção do capital financeiro-especulativo, no conjunto do pro­cesso hege-


mônico ultraliberal, tem o condão, além de tudo, de exa­cerbar os aspectos cruciais
do próprio neoliberalismo, radicalizando o caráter antissocial desse tipo de política
pública.
Nesse quadro, a construção e a manifestação das três princi­pais dimensões
da hegemonia ultraliberal no Ocidente, a partir do último quartel do século XX,
serão examinadas, sequencialmente, nos itens a seguir (itens III, IV e V)(1).

III — CONSTRUÇÃO CULTURAL DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL —


MONTAGEM DE UM SUPOSTO PENSAMENTO ÚNICO

A construção cultural da hegemonia da matriz neoliberal de pen­sar e gerir a


sociedade e a economia capitalistas realiza-se, como visto, a partir de fins dos anos
1970, no Ocidente, em torno de dois grandes processos.
O mais importante desses processos reside na formatação e generalização de
um pensamento de natureza ultraliberal, que busca status na cultura dominante
de pretenso pensamento econômico único, supostamente sem competidores
consistentes no que tange à expli­cação e ao gerenciamento da economia e
sociedade contemporâneas.
Esse processo é que será examinado no presente item III.
O segundo de tais processos que atuam na construção cultu­ral da presente
hegemonia liberalista reside na fragmentação de parte relevante do pensamento
crítico ao capitalismo ou, pelo menos, na fragmentação do pensamento crítico
ao capitalismo descontrolado, capitalismo sem peias, que se estrutura à base da
filosofia do laissez-faire.
Esse segundo processo será estudado no item IV, seguinte, deste capítulo.

1. A Matriz Teórica Liberal no Sistema Capitalista

O processo de construção, no Ocidente, da atual hegemonia do liberalismo


econômico extremado deflagrou-se, com sucesso, a partir de meados dos anos
1970, no contexto da forte crise eco­nômica então surgida nos países capitalistas
e da incapacidade con­juntural de as políticas públicas então dominantes, enqua-

(1) Conforme já indicado neste livro, o cientista político e historiador Francisco Fonseca prefere
“... utilizar a expressão ultraliberal, ao invés de neoliberal, em razão do radica­lismo tanto dos
pressupostos desta doutrina quanto da forma de agir de seus adeptos”. FONSECA, Francisco. O
consenso forjado — a grande imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo:
HUCITEC, 2005. p. 49. Na presente obra, como já esclarecido, temos alternado o uso das duas
expressões, por considerá-las reveladoras do mesmo conteúdo.
72 MAURICIO GODINHO DELGADO

dráveis como keynesianas, enfrentarem, com resultados rápidos, a estagnação e a


inflação despontadas naquela época (estagflação).
Entretanto, deve ser ressaltado que a matriz econômica liberal tem história
muito mais extensa e longínqua no capitalismo, embora nem sempre fosse
hegemônica, ao menos quanto a suas vertentes mais ortodoxas e extremadas.
De fato, o pensamento liberal de análise da sociedade e de gestão da
economia e das próprias políticas públicas constituiu-se na primeira corrente de
pensamento econômico a alcançar efetiva hegemonia na história do capitalismo,
desde a afirmação desse sis­tema socioeconômico a partir do século XVIII.
Essa hegemonia liberalista permaneceu incólume durante todo o século XIX,
não obstante, em sua segunda metade, já despontassem críticas consistentes e
cada vez mais generalizadas ao capitalismo desenfreado, sem peias, instigado por
essa matriz de interpretação e gestão da economia e sociedade. O surgimento do
Direito do Tra­balho, aliás, nesse período final do século XIX, já traduzia um revés
imposto à plena dominância do liberalismo radical.
O império cultural liberalista somente iria sofrer, porém, sua mais severa e
abrangente derrota a contar do desastre econômico­-social verificado em fins da
década de 1920 e desenrolar dos anos 1930: a profunda recessão econômica, com
elevadíssimas taxas de desemprego (em média, acima de 20% nos EUA e em países
euro­peus), circunstâncias provocadas pela gestão descontrolada da economia
que o liberalismo tanto elogiava e impunha. A profundi­dade e a generalização
desse desastre, tudo conduziu ao fim da hegemonia dessa matriz de explicação e
gerenciamento da vida socioeconômica.
Nesse quadro de ineficiência, insensibilidade e desastre ultra­liberais, firmou-
-se, pelos quase cinquenta anos subsequentes, a he­gemonia de outra matriz de
pensamento, sinteticamente apelidada de intervencionismo keynesiano (também
conhecida, vulgarmente, como reformismo capitalista).
A propósito, durante o longo período de hegemonia keynesiana, as vozes
liberais radicais mantiveram-se culturalmente isoladas, sem capacidade de influência
significativa na sociedade e nas políticas públicas, embora confortavelmente
protegidas pela interlocução es­treita com o segmento mais abastado e conservador
do capitalismo — o capital financeiro-especulativo. Mesmo assim, vez por outra,
conseguiam sensibilizar as políticas públicas, com seu ternário fis­cal, financeiro e
desregulamentador ortodoxo.
Apenas a contar de finais da década de 1970 e, principal­mente, durante os
anos 1980 e período seguinte, é que iria se recompor a hegemonia do liberalismo
econômico radical no capita­lismo do Ocidente.
Por tudo isso, é preciso que fique claro que, ao se falar na montagem du-
rante as últimas décadas de um suposto pensamento econômico único, expressão
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 73

de uma forte hegemonia ultraliberal, está-se reportando a um processo histórico-


-conjuntural que não se compreende sem a referência, ainda que breve, às fases
distintas que o precederam.

Liberalismo Econômico Originário


A matriz econômica neoliberal recente tem antecedentes his­tóricos longínquos
no capitalismo, remontando às primeiras fases desse sistema econômico-social.
Efetivamente, como já apontado, o pensamento liberal de aná­ lise da
sociedade e de gestão da economia e das políticas públicas constituiu-se na
primeira corrente de pensamento econômico a al­cançar efetiva hegemonia na
história do capitalismo, desde a conso­lidação desse sistema socioeconômico a
partir do século XVIII.
Alguns dos principais clássicos da teoria econômica estruturada nos primór-
dios do capitalismo podem ser arrolados, em regra, como construtores da matriz
econômica liberal, de grande fôlego intelec­tual e político nos séculos seguintes.
Nesse rol, destacam-se Adam Smith (1723-1790), com sua mais notável
obra, Uma investigação sobre a natureza e causa da rique­za das nações, de
1776; Thomas Robert Malthus (1766-1834) e seu livro mais conhecido, cujo título
(sintetizado) é Ensaio sobre o princí­pio da população (1798); David Ricardo (1772-
1823), cuja obra mais célebre intitula-se Princípios da economia política e tributação
(1817); Jeremy Bentham (1748-1832), cujo trabalho mais influente sobre a teoria
econômica do século XIX, segundo E. K. Hunt, foi Uma intro­dução aos princípios
da moral e direito (1780)(2); Jean-Baptiste Say (1767-1832), com seu livro mais
conhecido, Um tratado de economia política (1821); Nassau Senior (1790-1864),
com obras como Três lições sobre o preço dos salários (1830) e Um esboço da
ciência da economia política (1836); Frederic Bastiat (1801-1850), com seu mais
influente livro, Harmonias econômicas (1850); John Stuart Mill(1806-1873), cuja
obra mais relevante intitula-se Princípios de economia política (1848)(3).
O conjunto desses autores confere suporte a alguns veios teó­ricos relevantes
do pensamento liberalista em qualquer de suas épo­cas, mesmo no século XX e
nos próprios dias atuais. Citem-se, ilus­trativamente, a perspectiva individualista de
análise da economia e da sociedade; a defesa da propriedade privada, do lucro e do
capita­lismo como valores naturais e prevalentes de organização socio­econômica;
a censura ao intervencionismo e ao dirigismo estatais, por serem considerados
tendentes a produzir restrições ao livre interesse das forças do capital; a concepção

(2) HUNT, E. K. História do pensamento econômico — uma perspectiva crítica. 7. ed./22ª tir. Rio de
Janeiro: Campus, 1981. p. 147.
(3) O presente rol foi retirado da obra de E. K. Hunt, cit., passim.
74 MAURICIO GODINHO DELGADO

de equidade e justiça com base no estrito esforço individual, em harmonia com a


ideia da ima­nente racionalidade do funcionamento do sistema capitalista.
Entretanto, já na primeira metade do século XIX, essa teorização econômica
capitalista clássica evidenciaria importante cisão, dando origem a uma versão mais
extremada de pensamento econômico, com rigorosa e insaciável lealdade aos
estritos interesses do capi­tal: trata-se da versão ultraliberal de teoria econômica,
que desa­guaria, já no século XX, na escola austríaca, de Frederick Hayek, e na
escola de Chicago, de Milton Friedman, “proponentes de um con­servadorismo
extremo e defensores rígidos e intransigentes do ca­pitalismo laissez-faire”.(4)
A essa vertente oriunda da teorização econômica liberal clássica do capitalismo
tem-se conferido o epíteto de teoria neoclássica monetarista.
A partir da ideia de utilidade, sugerida por Jeremy Bentham em sua obra de
1780, Jean-Baptiste Say iria sustentar, em seu livro de 1821 — e ao contrário de
Adam Smith e David Ricardo —, não ser o trabalho a fonte do valor na economia,
porém a utilidade atribuída aos bens na vida econômico-social. Essa teorização,
que reduzia a relevância do trabalho na vida real e na própria teoria econômica,
seria, logo a seguir, aprofundada por Nassau Senior, em sua obra de 1936, que
iria contribuir, conforme exposto por E. K. Hunt, para assegurar certo padrão de
objetividade e neutralidade científica ao veio teórico utilitarista(5). Mais à frente,
ainda em meados do século XIX, Frederic Bastiat alcançaria uma mais abrangente
formulação da teoria econômica utilitarista, pela qual seriam reduzidas a sim­
ples atos de troca “todas as interações econômicas, políticas e so­ciais dos seres
humanos”.(6)
Essa matriz liberal radical — que desprestigia claramente o tra­ balho — é
que serviria de base inspiradora do ultraliberalismo que iria se disseminar
hegemonicamente nas últimas décadas do século XX, liderado por autores
europeus e norte-americanos de grande notoriedade, alguns já atuantes na
primeira metade do século XX, em pleno império hegemônico do keynesianismo.
Nesse rol, citem-­se, por ilustração, Ludwig von Mises, Walter Lippmann, Friedrich
von Hayek, Milton Friedman, James Buchanan(7).

2. A Matriz Econômica Keynesiana: meio século de hegemonia

Retomando-se o pensamento liberalista mais extremado de fins do século


XVIII e início do século XIX (Jean-Baptiste Say, Nassau Senior e Frederic Bastiat,

(4) HUNT, E. K. Ob. cit., p. 202.


(5) HUNT, E. K. Ob. cit., p. 160.
(6) HUNT, E. K. Ob. cit., p. 193.
(7) A respeito, consultar HUNT, E. K. Ob. cit., passim; FONSECA, F. Ob. cit., p. 27-81 (“Introdução”
e “Capítulo I”).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 75

principalmente), nota-se que ele se afasta da vertente também liberal capitaneada


por Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill, que atribuíam, ainda que em
graus dife­renciados, ao trabalho o papel de instrumento de criação de valor na
economia.
Essa relevante noção do trabalho como valor (também conheci­da como
valor-trabalho) é que daria suporte a concepções mais igua­litárias de gestão do
sistema capitalista — concepções não revolu­cionárias, certamente —, que foram
se formulando ao longo do século XIX até atingir seu ápice com a obra de John
Maynard Keynes (1883-1946) no século XX(8).
Assim, pode-se perceber, de certo modo, a construção de uma crescente
linha reformista do capitalismo no plano da teoria econô­mica neoclássica, que se
estrutura desde John Stuart Mill, ainda na década de 1840 (“Mill foi o precursor
da escola econômica neoclás­sica marshalliana... e que, quase sempre, defende
reformas liberais e a intervenção governamental”).(9)
Essa linha reformista do atual sistema econômico ganharia con­tornos mais
claros com Alfred Marshall (1842-1924), cujos “Princí­pios de Economia Política”
datam de 1890. Esse teórico é considera­do o “fundador do grupo tradicional da
economia neoclássica do sé­culo XX, que combina sua defesa do capitalismo laissez-
Faire com uma grande flexibilidade, que admite pequenas reformas, visando ao
funcionamento menos cruel do sistema econômico”(10).
Não obstante a existência dessas primeiras (e muito modera­das) formulações
neoclássicas intervencionistas e reformistas do capitalismo, elas conviveram,
durante o século XIX e início do sécu­lo XX, com a firme hegemonia do pensamento
liberal mais extremado, defensor, essencialmente, do império do laissez-faire na
economia, com a não intervenção do Estado e da norma jurídica na dinâmica
socioeconômica do capitalismo.
Nesse quadro, somente a partir da gravíssima crise econômica de 1929, que
se propagou, generalizadamente, por todo o Ocidente, durante inúmeros anos
seguintes, é que o pensamento liberal orto­doxo perdeu seu anterior poder de
influência. Em tal contexto, estru­turou-se a hegemonia cultural de nova vertente
explicativa do fun­cionamento do sistema capitalista, consubstanciada na escola
neo­clássica intervencionista ou reformista.
A teoria econômica neoclássica intervencionista ganhou siste­matização e
consistência com a obra de John Maynard Keynes, pu­blicada desde a segunda
década do século XX até os anos 1940(11).

(8) Não por acaso, a mais célebre obra econômica de Keynes intitula-se A teoria geral do emprego,
do juro e da moeda.
(9) HUNT, E. K. Ob. cit., p. 202.
(10) Conforme E. K. Hunt. Ob. cit., p. 316.
(11) O mais renomado livro de Keynes. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda,
data de 1936.
76 MAURICIO GODINHO DELGADO

Contemporaneamente ou em seguida a Keynes, arrolam-se ain­da outros


importantes autores que também produziram fortes críticas à teoria liberal
ortodoxa, ainda que se valendo de pressupostos diferentes entre si. Nesse rol,
mencione-se, preferencialmente, o notável grupo de economistas que trabalhou
na década de 1930 com Keynes na Universidade de Cambridge, na Inglaterra,
formado pelo italiano Piero Sraffa (1898-1983), com o artigo “As leis de ren­
dimentos em condições competitivas” (1926), o “Prefácio” às obras de David
Ricardo que organizou (estas, em nove volumes, editadas de 1951 a 1953), além
do livro A produção de mercadorias por meio de mercadorias (1960); a inglesa
Joan Violet Robinson (1903-1983), com livros como A economia da concorrência
imperfeita (1933), En­saios sobre a teoria do emprego (1937), A acumulação do
capital (1956) e Ensaios sobre a teoria do crescimento econômico (1963), entre
outras obras; o polonês Michal Kalecki (1899-1970), com o artigo Esboço de uma
teoria do ciclo econômico (1933), os livros En­saios sobre a teoria das flutuações
econômicas (1939) e Estudos de dinâmica econômica (1943), além do fundamental
texto Aspectos políticos do pleno emprego (1943), entre outros estudos(12).
A essa vertente da teorização econômica reformista do capita­lismo tem-se
conferido, portanto, a denominação de teoria neoclás­sica intervencionista (ou
teoria neoclássica keynesiana)(13).
A hegemonia do pensamento reformista e intervencionista no capitalismo,
desde os anos 1930, conferiu aos países industriali­zados ocidentais, a partir de
1945, cerca de três décadas de eleva­do crescimento econômico, de generalizada
distribuição de serviços públicos e de significativa participação da renda-trabalho
nas res­pectivas riquezas nacionais. Com isso, deu origem à fase que o his­toriador
inglês Eric Hobsbawm denominou de “a era de ouro” ou “os anos dourados do
capitalismo”.(14)
Dominique Plihon, economista francês menciona aquilo que considera os três
pilares da sociedade e da economia capitalistas nesse período da história:

(12) As referências às obras de Piero Sraffa, Joan Robinson e Michal Kalecki foram retiradas de:
Dicionário de economia — consultoria de Paulo Sandroni, São Paulo: Best Seller/Nova Cultural, 1987,
respectivamente p. 412-413 (Sraffa), p. 381-382 (Robinson), p. 220-221 (Kalecki). Quanto a Joan
Robinson e Michall Kalecki, consultar também o artigo de HELLER, Cláudia, “Progresso técnico e
nível de emprego: o teorema de Kalecki e o modelo de Joan Robinson”. In: POMERANZ, Lenina et al
(Org.). Dinâmi­ca econômica do capitalismo contemporâneo — homenagem a M. Kalecki. São Pau­lo:
EDUSP/FAPESP, 2001. p. 157-185.
(13) Ressalte-se que Michal Kalecki melhor se enquadra como teórico marxista do que integrante da
linha neoclássica-intervencionista. Contudo seus estudos sobre desen­volvimento e emprego dentro
do capitalismo muito bem o associam às preocupações centrais do keynesianismo. Sobre o autor
polonês, consultar a importante obra coleti­va: POMERANZ, Lenina et al (Org.). Dinâmica econômica
do capitalismo contem­porâneo — homenagem a M. Kalecki. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 2001.
(14) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos — o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 221 e 253-281.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 77

a) uma “relação salarial fordista”, fundada em um “compromis­so capital-


-trabalho”, apto a organizar “a divisão dos ganhos de pro­dutividade provenientes
da organização científica do trabalho”, dan­do origem a uma “rápida e regular
evolução dos salários”;
b) a existência de políticas públicas concertadas de “estabiliza­ção macroe-
conômica, de inspiração keynesiana”, que tinham o con­dão de garantir uma
“progressão regular da demanda direcionada às empresas”;
c) a administração ou o controle sobre os sistemas financeiros, viabilizando o
financiamento bancário competitivo e eficiente das for­ças econômicas, mediante
taxas de juros baixas, submetidas às au­toridades monetárias.(15)
Noutras palavras, uma política pública intervencionista, apta a garantir o equi-
líbrio, a estabilidade e o crescimento econômico, assegurando o ganho empresarial
em face da combinação de fato­res como a ampliação permanente de mercado,
a renovação tec­nológica e o financiamento a custo razoável, tudo permitindo a
con­trapartida empresarial e de todo o conjunto do sistema no sentido de assegu-
rar a participação consistente dos trabalhadores nos benefícios conquistados pelo
sistema econômico. Um círculo virtuo­so, portanto, de crescimento e distribuição
de renda à base do em­prego e da correspondente retribuição material e cultural
assegu­rada a este.
Registre-se, por fim, que a teoria econômica clássica originá­ria, oriunda da
segunda metade do século XVIII e início do século XIX, propiciaria o surgimento de
uma terceira variante, de caráter revolucionário, que apresentava diferente com-
preensão do sistema capitalista, mas com o objetivo de efetivamente superá-lo.
Trata-se da teoria econômica marxista.
De todo o modo, também essa vertente teórica, capitaneada pela obra de
Marx e Engels — como, de resto, praticamente toda a tradição socialista dentro
do capitalismo —, erigia-se a partir da con­cepção fundante do valor-trabalho (em
grande medida, também cap­turada de David Ricardo).

3. A Retomada da Hegemonia Cultural do Liberalismo Extremado

A corrente liberal radical, entretanto, conseguiu reconstruir sua hegemonia


cultural (também hegemonia política e econômica, é claro) nos países ocidentais a
partir do contexto gerado pela crise econô­mica deflagrada em 1973-1974.
Os governos europeus, filiados à matriz keynesiana de pensar e gerir a
economia e as políticas públicas, não conseguiram dar res­posta rápida e eficiente

(15) PLIHON, Dominique. Desequilíbrios mundiais e instabilidade financeira: a res­ponsabilidade das


políticas liberais. Um ponto de vista keynesiano. In: CHESNAIS, François (Coord.). A mundialização
financeira — gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 98.
78 MAURICIO GODINHO DELGADO

quanto à debelação da crise surgida, abrin­do espaço, em consequência, para o


retorno do império cultural li­beralista extremado.
A generalização do pensamento ultraliberal fez-se mediante o concurso
de diversos fatores e agentes, que passaram a atuar de modo cada vez mais
concertado a partir de finais da década de 1970, rapidamente procurando derruir
as bases do pensamento reformis­ ta-intervencionista-keynesiano anteriormente
hegemônico.
É prudente reenfatizar que essa reconstrução hegemônica não se elaborou
desde eventual terra nua, desde o nada. Ao contrário, conforme já exposto, o
ultraliberalismo já tivera mais de cem anos de hegemonia no sistema capitalista,
anteriormente à década de 1930, conseguindo manter e gestar, mesmo no período
subsequen­te à grande depressão, fortes laços econômicos, políticos e cultu­rais
com importantes segmentos, instituições, vertentes e lideran­ças da economia e
sociedade capitalistas ocidentais.
De todo modo, no período de hegemonia da matriz intervencio­nista-keynesiana,
a vertente liberal ortodoxa encontrava-se, é claro, em refluxo e relativo isolamento.
Como observa o historiador Eric Hobsbawm, na economia reformada e sob inter-
venção estatal da fase mais próspera e igualitária do sistema capitalista, vozes do
liberalis­mo econômico extremado, como, ilustrativamente, Friedrich von Hayek,
continuavam “(...) a condenar as políticas que faziam de ouro a Era de Ouro (...),
com base na mistura de mercados e governos. Mas entre a década de 1940 e a
de 1970 ninguém dava ouvidos a tais Velhos Crentes”.(16) Ou como insistia o mes-
mo historiador inglês em outra de suas obras: “Durante os quarenta anos que se
seguiram ao início da década de 30, os defensores teóricos de uma economia de
livre concorrência pura foram uma minoria isolada ...(17)
A retomada, nas últimas décadas, da hegemonia cultural do ul­traliberalismo
passa pelo concertamento de, pelo menos, os seguin­tes fatores, agentes e canais
de atuação sociopolítica e cultural:
a) uma profunda, rápida, uniforme e concomitante reorientação das políticas
macroeconômicas perfiladas pelos principais países líderes do capitalismo mundial,
em favor de rigorosas medidas de natureza liberal-monetarista, com o consequente
abandono das prá­ticas keynesianas, a partir, principalmente, dos anos 1979-1981;

(16) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos — o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 266.
(17) HOBSBAWM, Eric. A era dos impérios — 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988, p.
461. A economista Leda Paulani aponta o mesmo isolamento das vozes ultraliberais, mencionando
que, no período da hegemonia keynesiana, pré-anos 1970, “advogar a redução da presença do
Estado ou insistir no caráter virtuoso do mercado era quase uma heresia. Os liberais estavam então
completamente na defensiva”. PAU­LANI, Leda. Modernidade e discurso econômico. São Paulo:
Boitempo, 2005. p. 122.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 79

b) uma atuação generalizada, uniforme e sistematizada de distintos organis-


mos internacionais ou multilaterais de estrutura­ção da economia e das políticas
públicas nas diversas partes do globo, com suporte na rigorosa observância do
novo ideário ultra­liberal-monetarista;
c) uma tendência à homogeneização da prática teórica de na­ tureza
acadêmica nas universidades dos países centrais, em es­pecial dos Estados Unidos,
e também em parte significativa das instituições de ensino da periferia ocidental
do capitalismo, nota­damente América Latina, em torno da matriz neoliberal de
reflexão econômica;
d) uma quase completa uniformização liberalista no tocante às abordagens ao
respeito de economia nos distintos meios de comuni­cação de massa, quer quanto
às matérias internacionais, quer no que tange aos temas nacionais, propiciando a
geração de uma ideo­logia aparentemente consensual no contexto da sociedade (o
cha­mado jornalismo de mercado);
e) uma crescente uniformização das burocracias técnicas dos diversos Estados
capitalistas, em especial nos países periféricos, em torno da matriz neoliberal de
pensar e gerir a sociedade, a eco­nomia e as respectivas políticas públicas;
f) o intercâmbio de influências do pensamento neoliberal, por meio de uma
rede permanente e diversificada de congressos, seminários, palestras, encontros,
oficinas, simpósios e mecanismos congêneres.
A atuação sociopolítica e cultural desses mencionados fatores, agentes e
canais — que, de modo concertado, permitiram o alcance, nas últimas décadas, da
hegemonia cultural do liberalismo extremado — deve ser mais bem examinada nos
subitens específicos a seguir expostos.

A) Políticas Econômicas Ultraliberais

A contar de 1979-1981, como visto, os principais países líderes do capitalismo


mundial decidiram estabelecer uma profunda reorien­tação das políticas macroeco-
nômicas, com o abandono das ante­riores práticas keynesianas e o implemento de
rigorosas medidas de natureza liberal-monetarista.
A decisiva circunstância de essa reorientação ter sido realizada de modo
relativamente rápido, uniforme e concomitante, envolvendo as maiores economias
nacionais do globo, provocou, inevitavelmente, grande impacto no sistema mundial.
Conforme expõe o economista francês Dominique Plihon, no ano de 1979,
pela “... primeira vez, os dirigentes dos principais paí­ses industrializados reunidos
em Tóquio, por ocasião da cúpula do G-5, decidem eleger como prioridade absoluta
a luta contra a infla­ção”.(18) No contexto dessa decisão, “... a política monetária

(18) PLIHON, Dominique. Desequilíbrios Mundiais e Instabilidade Financeira: a res­ponsabilidade das


políticas liberais. Um ponto de vista keynesiano. In: CHESNAIS, François (Coord.). A mundialização
financeira — génese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 100.
80 MAURICIO GODINHO DELGADO

torna-se o principal instrumento de regulação macroeconômica, conforme os


preceitos monetaristas (...) Monetarismo e liberalismo tornam-se, assim, os novos
princípios fundamentais da política econômica”(19).
Essa nova orientação da política macroeconômica tem certo antecedente,
registre-se, na profunda mudança operada no sistema cambial e financeiro do
mundo, que se verificou ainda no início da década, em 1971: é que os EUA põem
fim à prevalente sistemá­tica de conversibilidade do dólar e da regra orientadora de
câmbios nacionais fixos, conforme estabelecido pelas grandes potências em 1944,
na Conferência de Bretton Woods. Dava-se início, assim, ao atual período de taxas
flutuantes de câmbio(20).
Essa desregulação do sistema cambial iria propiciar, logo a se­ guir, em
conjugação com as demais medidas de liberalização do sis­tema financeiro, o início
de uma fase de ampla dominância mundial das transações em finanças, firmando
o império do setor financeiro­-especulativo no conjunto do sistema econômico
contemporâneo.
O exclusivismo liberal-monetarista na gestão da economia e das políticas
públicas conduz ao início de uma longa fase com as seguintes características de
maneira geral: liberalização crescente das fronteiras nacionais à livre circulação
de mercadorias; liberalização crescente das fronteiras nacionais à livre circulação do
capital finan­ceiro, inclusive o estritamente especulativo; elevação acentuada dos
juros, com rentabilidade desproporcional para as aplicações finan­ceiras; firme
contração do crédito para os agentes econômicos ou, quando existente tal crédito,
sua oneração com juros elevadíssimos para empresas e para consumidores;
diminuição acentuada ou, sim­plesmente, eliminação da atuação econômica direta
do Estado, com a privatização radical das empresas estatais; restrição profunda do
próprio investimento público na economia e na sociedade, seja aquele realizado
diretamente, seja o contratado a entidades privadas; deterioração contínua e
crescente das instituições, equipamentos e serviços públicos.
Em consequência desse receituário perverso e irracional de gestão econômico-
-social e de elaboração de políticas públicas, tor­nam-se inevitáveis as seguintes
recorrentes e intensas repercus­sões econômicas e sociais: redução ou eliminação
(mediocrização, em síntese) do desenvolvimento econômico nas distintas reali-
dades nacionais; elevação inusitada do desemprego; desvalorização gené­rica e
diversificada do trabalho e de sua participação na respectiva renda e riqueza nacio-
nais; acentuação da concentração de renda e das distâncias econômico-financeiras
entre pessoas, segmentos sociais e até países.

(19) PLIHON, Dominique. Loc. cit.


(20) A respeito do sistema cambial fixado em Bretton Woods, em 1944, e sua extinção no início
dos anos 1970, com suas consequências financeiro-especulativas na eco­nomia mundial, consultar
MODIGLIANI, Franco. Aventuras de um economista. São Paulo: Fundamento, 2003. p. 136-155.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 81

Instituiu-se, em síntese, o paradigma do capitalismo sem reci­procidade, o


qual passa a ser considerado e gerido como não mais do que um cru sistema de
acumulação excludente de riquezas.
O individualismo, coerentemente, exacerba-se: o sonho da se­gurança, da
prosperidade mínima e do bem-estar passa a ser tido como estritamente individual,
submetido à eficiência de cada pes­soa melhor se integrar ao sistema socioeconômico
existente. As ideias de bem-estar e de segurança material dissociam-se inteira­
mente das preocupações sociais e públicas — passam a ser temas estranhos ao
Estado e às políticas públicas, especialmente às polí­ticas de gestão da economia.
É claro que todos esses efeitos antissociais desastrosos não tendem a ocorrer,
na mesma intensidade, na economia líder do ca­pitalismo (EUA), uma vez que
esta tem a contrapartida de ser a grande favorecida pelo rearranjo do sistema
econômico mundial nas décadas seguintes aos anos 1970.
A par disso, embora os EUA e as inúmeras enti­dades sob sua direta ou indireta
influência inflexivelmente prescre­vam duros receituários liberais-monetaristas para
serem seguidos pelos demais países aliados ou seus satélites (como os latino-
america­nos), usualmente os EUA, quer por estratégia quer por sensatez, ob­servam
certas terapias keynesianas em sua economia interna — o que evita as repercussões
econômico-sociais devastadoras perce­bidas em outras regiões do planeta.
São exemplos de tais terapias intervencionistas de caráter keynesiano tanto
a concretização recorrente de elevados investimen­tos estatais (vide a economia
de guerra de Reagan, na década de 1980)(21), como o estabelecimento oficial de
moderadas taxas de ju­ros (vide governos Clinton e George Bush-filho, na década
de 1990 e anos subsequentes). Ora, em conformidade com os ensinamentos e com
as práticas consagradas do keynesianismo (que tiveram ple­no sucesso por cerca
de 50 anos, reduzindo a irracionalidade e as mais graves distorções do sistema
capitalista), qualquer dessas duas medidas, se consistentes e de longo prazo,
elevam a demanda agre­gada na economia, favorecendo, por razões lógicas, o
desenvolvi­mento econômico e aumentando o nível de emprego(22).
No que tange às economias e às sociedades europeias, os efeitos deletérios
do monetarismo ortodoxo ali seguido são significativamente atenuados, em face

(21) A dívida federal norte-americana era de US$ 322 bilhões em 1970, US$ 906 bi­lhões em 1980,
saltando, após o governo Reagan (1980-1988) e seu programa militar “Guerra nas Estrelas”, seguido
por um mandato do também republicano Bush (pai), para o montante de US$ 4.061 bilhões, em
1992. Fonte: CHESNAIS, François. Intro­dução geral. In: CHESNAIS, F. (Coord.). A mundialização
financeira — gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 27.
(22) Por isso é que o economista ítalo-americano Franco Modigliani, laureado com o Prêmio Nobel
de Economia em 1985, sustenta, em obra concluída no ano de 2001, que os EUA têm seguido de
perto os ensinamento de Keynes, ao contrário dos países europeus ocidentais desenvolvidos. In: ob.
cit., p. 157.
82 MAURICIO GODINHO DELGADO

do largo colchão de garantias de seguridade social advindas da fase anterior


à década de 1980. Ainda assim, os juros altos, a restrição monetária, o baixo
crescimento econômico e as elevadas taxas de desemprego têm sido, de maneira
geral, re­percussões presentes por longos anos mesmo no abastado conti­nente
europeu ocidental.(23)
Contudo, tais dramáticas consequências do império ultraliberal de gestão
da economia e das políticas públicas desabam com toda sua força antissocial em
países e economias da periferia do capita­lismo, em especial aqueles que mais
cândida, servil e irresponsavel­mente se submetem ao seu ideário — tal como se
passa, regra ge­ral, com a América Latina. O que é mais grave é que não se adotam
aqui quaisquer mínimos contrapesos keynesianos à ortodoxia ultra­liberal, nem
existe nestes países qualquer traço de proteções reais de seguridade social.

B) Atuação Concertada de Organismos Internacionais

A atuação generalizada e coerente de distintos organismos internacionais


de estruturação da economia e das políticas públi­ cas nas diversas partes do
globo, fundada na rigorosa observância do novo ideário ultraliberal e monetarista,
também desempenhou notável papel na reconstrução da hegemonia liberalista
nas últimas décadas.
Afinal, são organismos que contam com forte influência no con­junto do
sistema econômico e político, agindo não somente como entidades de poderoso
calibre monetário, mas ainda como institui­ções reguladoras do próprio sistema
financeiro internacional. Curio­samente, são instituições financeiras do tipo imperial
ou semi-impe­rial, que propagam a desregulamentação econômico-financeira ao
longo da terra, naquilo que se contraponha às próprias regras e aos re­ceituários
que estipulam. Postam-se como liberais no que tange à desregulamentação de
regras e defesas contrárias ao ideário que propagam; porém, tornam-se inflexíveis,
rigorosíssimas e altamente interventivas no que diz respeito à implementação da
agenda finan­ceira e antissocial que estipulam.

(23) O economista ítalo-americano Franco Modigliani atribui, essencialmente, ao rigor monetarista


dos bancos centrais europeus, em especial o Bundesbank alemão (que inspiraria, em seguida,
o Banco Central de toda a Comunidade Europeia), a persistên­cia de tais índices censuráveis de
desempenho econômico e social na Europa Ociden­tal desde fins da década de 1970 (MODIGLIANI,
Franco. Ob. cit., p. 156-177). O autor sintetiza sua longa análise: “... essa retrospectiva demonstra
que o elevado nível de desemprego, na segunda metade da década de 1970, era justificado pela
necessidade de frear a espiral inflacionária, que era causada por um fenômeno real: o aumento no
preço dos produtos derivados de petróleo; entretanto, também fica claro que os cres­centes níveis
de desemprego, após 1993, foram devidos à rígida política monetária de elevadas taxas de juros
reais, que sufocaram os investimentos e o crescimento da renda futura” (MODIGLIANI, F. Ob. cit.,
p. 163; grifos acrescidos).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 83

Neste rol, situam-se, ilustrativamente, o Banco Mundial (BIRD), o Fundo


Monetário Internacional (FMI), o Banco de Compensações Internacionais (BIS), o Banco
Interamericano de Desenvolvimento Econômico (BID), além de outras entidades afins.
Registre-se que esse concertamento singular de orientações econômicas e
de políticas públicas faz agregar a esse irreprimível elenco de entidades bancárias
oficiais o vasto universo de institui­ções financeiras privadas que administram
operações e empreendi­mentos nas distintas economias nacionais.
Some-se a essa impressionante coorte de instituições finan­ceiras a presença
de outras entidades que também buscam discipli­nar o mercado mundial. Um
dos segmentos mais significativos para esse disciplinamento situa-se no comércio
de mercadorias (em com­paração com o mercado de divisas e títulos, objeto do
sistema fi­nanceiro). Nessa seara tem destaque, desde os anos 1940, o antigo
GATT — Acordo Geral de Tarifas e Comércio, que se estrutu­rou como “organização
internacional, com um Secretariado em Ge­nebra”, entrando em efetiva operação
em 1948, “tendo por princípio básico o livre-comércio”(24). Esse organismo, a
propósito, deu origem em 1995 a uma entidade ainda mais influente, a Organização
Mun­dial do Comércio (OMC).
Saliente-se que tanto o velho GATT como a nova OMC propa­gam e buscam
implementar um dos mais clássicos postulados do liberalismo, ou seja, o fim das
barreiras nacionais e regionais ao comércio internacional(25).

C) Tendência à Homogeneização Acadêmica

A tendência à homogeneização da prática teórica de natureza acadêmica


nas universidades dos países centrais, em especial dos Estados Unidos, mas
também em parte significativa das instituições de ensino da periferia ocidental do
capitalismo, notadamente Améri­ca Latina, em torno da matriz liberal de reflexão e
proposições eco­nômicas, é fator, sem dúvida, de grande impacto na construção da
nova hegemonia cultural do ultraliberalismo na virada dos séculos XX-XXI.
Nesse quadro, tem cumprido importantíssimo papel a comuni­dade acadêmica
de várias universidades de países centrais, em es­pecial do gigantesco e sofisticado
complexo de universidades dos Estados Unidos, que propiciou (e propicia) a
formação de seleto e influente conjunto de economistas e burocratas estreitamente
vin­culados a esse pensamento econômico oficial.

(24) Dicionário de Economia, consultoria de Paulo Sandroni. São Paulo: Best-Seller/Nova Cultural,
1987, respectivamente p. 185.
(25) Nesse rol de importantes instituições multilaterais e internacionais, cabe hoje acres­centar-se a
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que se tem também mostrado
bastante ajustada à visão de mundo neoliberalista. Ver, a esse respeito, Valor Econômico, 13.7.2005,
p. A-9 (“Sem reformas, crescimento da EU cairá pela metade, afirma a OCDE”).
84 MAURICIO GODINHO DELGADO

Esse incessante labor em direção à harmonia ideológica tem sido percebido na


própria academia. O economista belga Jacques Nagels, em sua obra, Elementos de
economia política, após indi­car estarem se tornando cada vez mais transnacionais
e coletivos “os fundamentos teóricos e as linhas condutoras da política econô­mica
e social” de caráter neoliberalista, explica esse movimento sincronizado:
... os economistas das universidades americanas, ingle­sas e da Europa
ocidental trabalham de maneira em família, comunicam entre si em
tempo real e na mesma língua — o inglês —, participam dos mesmos
colóquios e seminários in­ternacionais, lêem e publicam nas mesmas
revistas — o “Ame­ rican Economic Review”, o “Journal of Political
Economy”, o “Economic Journal”, o “Quarterly Journal of Economics”
... As equi­pes de pesquisa participam de certo modo na elaboração
e na afinação desse pensamento único. Formam os seus elos. Este
pensamento neoliberal tem sede nas grandes universidades ­e entre
elas as universidades americanas dão o tom —, nos centros de estudos
das firmas e dos bancos multinacionais, nos bancos centrais, no Fundo
Monetário Internacional, no Banco Mundial, na Comissão da União
Europeia... A osmose entre os diferentes elementos deste núcleo duro
do pensa­mento único sobrepõe-se vantajosamente às clivagens cada
vez mais tênues entre os organismos, as instituições ou os países. A
partir deste centro, este pensamento propaga-se no mundo inteiro por
intermédio dos mass media e da imprensa internacional ...(26)
A propósito, aparentemente não por acaso, nesse processo de construção
intelectual de nova hegemonia, dois dos maiores e mais extremados arautos do
liberalismo readequado, Friedrich Hayek e Milton Friedman, foram agraciados,
na mesma decisiva década de 1970, em curta distância temporal (1974 e 1976,
respectivamente), com o Prêmio Nobel de Economia(27).
A tendência à homogeneização cada vez maior da prática teó­rica de natureza
econômica também se percebe, contemporanea­mente, na academia brasileira,
por exemplo.
Embora os primeiros cursos superiores de economia tenham sido criados no
País nos anos 1940(28), somente após meados da década de 1960, já no regime
militar, é que se generalizou e se conso­lidou o ensino universitário dessa área
temática no Brasil, com a estruturação dos cursos de pós-graduação(29). No período

(26) NAGELS, Jacques. Elementos de economia política — crítica do pensamento único. Lisboa:
Piaget, 2001. p. 23.
(27) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 508.
(28) LOUREIRO, Maria Rita. Os economistas no governo — gestão econômica e de­mocracia. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 33.
(29) LOUREIRO, M. R. Ob. cit., p. 23. O primeiro curso de pós-graduação em economia somente
surgiu, conforme Ricardo Bielschowsky, “em meados dos anos 60, na Funda­ção Getúlio Vargas. Antes,
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 85

anterior, conforme aponta a socióloga Maria Rita Loureiro, a dinâmica de iden­


tificação da “competência específica do economista e de sua identi­dade como
segmento da elite dirigente no Brasil” desenvolveu-se, preferencialmente, nos
“órgãos governamentais e nas instituições de pesquisa aplicada”, além do contexto
das “lutas político-ideológi­cas que atravessaram as décadas de 30 a 60 no país”.(30)
Isso significa que, historicamente, a efetiva estruturação, ex­pansão e con-
solidação da academia econômica no Brasil iria coinci­dir com o advento do
regime militar (1964-1985) e sua reforma uni­versitária de 1967-1968, e com
a profunda aproximação então insti­gada com o paradigma universitário norte-
-americano.
Como bem indica Maria Rita Loureiro, cabe notar “... que tal modernização
ocorre no contexto da incorporação sistemática, por parte das instituições de ensino
e pesquisa do país, dos padrões teóricos e metodológicos vigentes nos países
desenvolvidos, em par­ticular nos Estados Unidos. Nesse sentido, modernização
significa internacionalização ou, se se quiser, ‘americanização’ da produção
acadêmica em ciência econômica”(31).
Dados de 1991, coligidos pela socióloga, evidenciam que quase a metade
(46%!) dos professores que então lecionavam em cursos de pós-graduação em
economia neste País cursaram universidades nor­te-americanas(32). Como se trata
de um processo contínuo e crescente de homogeneização doutrinária, pode-se
estimar, hoje, o elevadíssi­mo nível de influência desse mainstream nos cursos
universitários de economia do País. Há cursos de pós-graduação que, já em 1991,
apre­sentavam cerca de 80% de professores com diplomas norte-america­ nos
de mestrado e doutorado (sic!). Índices próximos ou superiores a 50% já eram
comuns quase quinze anos atrás!(33)
Ainda segundo Maria Rita Loureiro, “... cerca de 40% das ci­tações contidas
no conjunto de todos os artigos publicados... (nas quatro principais revistas

tudo o que se teve foram cursos de aperfeiçoamento em planejamento econômico, organizados pela
Cepal, em colaboração com o BNDE”. BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro —
o ciclo ideológico do desenvolvimento. 5. ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. p. 7.
(30) LOUREIRO, Maria Rita. Ob. cit., p. 23. Em direção semelhante, BIELSCHOWSKY, Ricardo.
Pensamento econômico brasileiro — o ciclo ideológico do desenvolvimento. 5. ed. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2004. p. 7.
(31) LOUREIRO, M. R. Ob. cit., p. 65. Grifos acrescidos.
(32) LOUREIRO, M. R. Ob. cit., p. 67.
(33) LOUREIRO, M. R. Ob. cit., p. 68. Esclarece a autora que, estando associada “... ideologicamente
ao chamado imperialismo norte-americano e vista, consequentemente, como expressão de colo-
nialismo cultural, a ‘americanização’ dessa disciplina não se deu de forma homogênea nas diversas
escolas do Brasil” (ob. cit. p. 69). Entre as instituições que apresentaram maior resistência ou rejeição
a semelhante processo estaria o Instituto de Economia da Unicamp, que, entre seus 28 professores-
-doutores existentes em 1991, apenas dois “fizeram PhD nos Estados Unidos” (loc. cit.).
86 MAURICIO GODINHO DELGADO

econômicas do Brasil, que menciona ... desde o primeiro número de cada uma
delas, são de autores ame­ricanos ou ligados a universidades americanas. (...) Em
contrapar­tida, o peso quantitativo dos estudos gerados em outros países, em
particular a Inglaterra e a França, vem caindo sistematicamen­te no conjunto do
período analisado, que se estende de 1946 até 1992”.(34)
A pesquisa sociológica demonstra, por fim, diversas facetas dessa profun-
da incorporação do pensamento hegemônico nos Esta­dos Unidos em alguns dos
mais importantes cursos de pós-gradua­ção em economia do Brasil: um peso me-
nor, nos processos seleti­vos, à prova de “economia brasileira” em comparação
com as provas de “teoria econômica” e de “métodos quantitativos”;(35) na grade
curri­cular, uma presença irrisória de disciplinas com abordagem históri­ca e institu-
cional, privilegiando-se, ao invés, as disciplinas ligadas aos métodos quantitativos,
matemáticos e estatísticos;(36) a absolu­ta prevalência de uma bibliografia muito
recente (“... uns poucos, mais antigos, são do final dos anos 70 e início dos 80”),(37)
na linha do mainstream acadêmico norte-americano das últimas décadas, sem
presença relevante dos clássicos da economia (Alfred Marshall, Joan Robinson,
Schumpeter, Keynes, Kalecki, por exemplo) e de linhas alternativas ou críticas à
corrente ora hegemônica; a absoluta prevalência de textos em inglês (90% e 78%,
respectivamente, em dois cursos enfocadas pela socióloga)(38); as “estratégias de
carrei­ra” com intensa participação no circuito internacional, especialmen­te norte-
-americano, “e ainda em agências internacionais como o FMI, o Banco Mundial,
etc.”(39), valorizando-se “teoricamente o papel do mercado no sistema econômico”,
ao mesmo tempo em que se esta­belecem “laços estreitos com empresas privadas,
particularmente com bancos, onde são consultores”(40).

D) Uniformização Ultraliberal dos Meios de Comunicação de Massa

A quase completa uniformização dos meios de comunicação de massa


contemporâneos, em torno da perspectiva ultraliberal, no que diz respeito aos
editoriais, matérias e enfoques relativos aos problemas e fatos econômicos, viabilizando
a formação de uma ideo­logia econômica aparentemente consensual na sociedade,
indubita­velmente é um dos mais importantes fatores que atuam na recons­trução e na
mantença da hegemonia dessa matriz de pensamento nas últimas décadas.

(34) LOUREIRO, M. R. Ob. cit., p. 69 (observação entre colchetes acrescida ao origi­nal). A autora
reporta-se, quanto a essa pesquisa, à seguinte fonte: LOUREIRO, M. R.; LIMA, G. T. A internaciona-
lização da ciência econômica no Brasil. Revista de Econo­mia Política, São Paulo: Nobel, 14(3), p. 44,
jul./set. 1994.
(35) Idem, p. 71.
(36) Idem, p. 71-73.
(37) Idem, p. 72.
(38) Idem, p. 73.
(39) Idem, p. 74.
(40) Idem, p. 76-77.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 87

De fato, os canais televisivos abertos, os canais fechados de TV — quer os


dirigidos aos noticiários de caráter genérico, quer os concentrados no mercado
econômico-financeiro —, os jornais diá­rios de maneira geral, as revistas semanais
em sua quase unanimi­ dade, além do rádio — quando tratando de matéria
econômica —, em suma, praticamente todos os meios de comunicação massiva
(mass media), reproduzem, na essência, a mesma perspectiva de abordagem e
análise econômico-financeira, o mesmo discurso eco­nômico-financeiro, as mesmas
teses, os mesmos argumentos no tocante à realidade da economia.
Semelhante uniformização de pensamento nos meios de co­municação de
massa, em torno das premissas, do raciocínio e do próprio ideário ultraliberal,
propicia a sedimentação de uma ideolo­gia aparentemente consensual no contexto
da sociedade. Por curio­so que pareça, jamais se alcançou nos mass media, desde
os primórdios do século XX, tamanha identidade de perspectivas, aná­ lises e
argumentos, como nas matérias sobre economia veiculadas nos últimos tempos.
Trata-se, na verdade, de um efetivo jornalismo de mercado, que se recusa a
pensar, investigar, questionar, contrapor, criticar, mantendo-se uníssono no elogio
e na justificação, direta ou indire­ta, do ideário extremado do neoliberalismo. Nesse
instante (e nesse tipo de área temática), o chamado quarto poder desveste-se da
independência investigativa e questionadora que lhe tem eventual­mente conferido
honra na história recente para assumir o papel político-cultural cru de decisivo
aparelho ideológico do capitalismo sem peias.
O economista belga Jacques Nagels, ao se referir ao singular artifício dos
mass media de condensar e simplificar as “ideias-ar­quétipo” do neoliberalismo,
para permitir que entrem “nos lares”, conclui que tais ideias assim veiculadas
“... acabam por se impor sem passar pela consciência”. E arremata: “À força de
serem repeti­das, repisadas, marteladas, condicionam as estruturas mentais e são
entendidas como evidências”.(41)
Essa uniformidade de postura dos meios de comunicação massiva (no caso,
especificamente da grande imprensa) quanto aos pontos essenciais do que
denomina “agenda ultraliberal”, durante o processo de transição do “regime
militar” para a “nova república” no Brasil (1985­1992), é exaustivamente investigada
pelo cientista político e historia­dor Francisco Fonseca, em sua obra “O consenso
forjado — a gran­de imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasi1”(42).

(41) NAGELS, Jacques. Elementos de economia política — crítica do pensamento único. Lisboa:
Piaget, 2001. p. 23.
(42) Conforme já exposto, Francisco Fonseca prefere o termo “ultraliberal, em vez de neoliberal” não
só em face da vulgarização do segundo, como pelo fato de que “... a ideia de um ultraliberalismo
revela-nos a radicalidade — no sentido de implementação de uma agenda bem determinada e em
razão de seu modus operandi — com que os liberais do século XX atuaram visando à obtenção da
hegemonia”. Noutras palavras, a escolha se faz “... em razão do radicalismo tanto dos pressupostos
desta doutrina quan­to da forma de agir de seus adeptos”. In: O consenso forjado — a grande
imprensa e a formação da agenda ultraliberal no Brasil, São Paulo: HUCITEC, 2005. p. 28 e 49.
88 MAURICIO GODINHO DELGADO

Em sua vasta pesquisa, abrangendo sete anos de publicações e baseada em


quatro grandes jornais diários do Rio de Janeiro e de São Paulo, o autor apreende
não apenas uma uniformidade quanto aos pontos essenciais de defesa do neoli-
beralismo, como também uma barreira severa no tocante aos questionamentos
acerca desse receituário socioeconômico e de sua efetiva adequação para o de­
senvolvimento brasileiro.(43)
Essa severa barreira aos contrapontos à teorização e aos receituá­rios neolibe-
rais, com a consequente obsessão pela unidade ideoló­gica desse tipo de pensamento,
são também notadas pela econo­mista Leda Paulani: “Muito mais incisivo, por isso,
do que o liberalis­mo original, o neoliberalismo demonstra uma capacidade insuspei-
tada de ocupar todos os espaços, de não dar lugar ao dissenso”.(44)
Nesse jornalismo de mercado, em síntese, não existe espaço para a reflexão,
o contraponto, o dissenso quanto ao ideário e a tare­fas ultraliberalistas.

E) Uniformização Ultraliberal das Burocracias Estatais

A uniformização, cada vez mais acentuada, das burocracias técnicas dos


diversos Estados capitalistas, em especial nos periféricos, em torno da matriz
neoliberal de pensar e gerir a socie­dade, a economia e as respectivas políticas
públicas, constitui, in­dubitavelmente, outro fator de exponencial relevância na
elaboração e preservação da hegemonia cultural do neoliberalismo nos dias atuais.
O pensamento econômico liberalista extremado — com seu re­ ceituário
esterilizante do potencial de atuação do Estado, inclusive quanto a investimentos
públicos, de desregulação generalizada dos distintos segmentos da economia, de
elevação persistente do ren­dimento do capital financeiro, de contração radical do
crédito às empresas e aos consumidores, de debilitação dos níveis de cresci­mento
econômico e de emprego —, todo esse pensamento unitário de manifesto conteúdo
antissocial passa a ter influência cada vez maior nas burocracias nacionais.
Tal influência desponta, em primeiro lugar e enfaticamente, nos setores-
-chave das finanças públicas e de gestão da moeda (minis­térios das finanças e
bancos centrais, regra geral), os quais passam a preponderar sobre todos os de-
mais segmentos da burocracia es­tatal. O comando maior que se passa a atribuir
ao ministério das finanças (ou denominações congêneres, como fazenda, eco-
nomia etc.) torna, regra geral, medíocre o desempenho de qualquer das outras
pastas da administração pública, independentemente da re­levância intrínseca de
cada uma delas.

(43) FONSECA, Francisco. Ob. cit., passim.


(44) PAULANI, Leda. Modernidade e discurso econômico. São Paulo: Boitempo, 2005. p. 126 (grifos
acrescidos ao original).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 89

Essa preponderância do ministério das finanças atinge, inclusi­ve, a anterior-


mente fundamental área de planejamento e formula­ção de políticas públicas, que
se esvazia e se descaracteriza de modo até mesmo grotesco, pela redução da ideia
ampla e estratégi­ca de planejamento a pouco mais do que um tíbio cronograma
de restrições e metas monetárias. Na verdade, o receituário ultraliberal despreza
qualquer efetiva noção de planejamento, por considerar incabível uma atuação de
longo prazo do Estado, que seja efetiva indutora do desenvolvimento econômico-
-social, por além do livre curso que imagina ser inerente aos mercados.
A propósito, esse desprezo do ultraliberalismo pelo planejamento tem con-
duzido à dilapidação sistemática das agências e instituições estatais e paraestatais
vocacionadas a pensar a realidade do País e traçar estratégias para seu desenvolvi-
mento, reduzindo gravemente o espaço para a atuação das correntes econômicas
estruturalistas, desenvolvimentistas, keynesianas e similares.
Registre-se que a assimilação do pensamento ultraliberal pe­las burocracias
públicas passa, evidentemente, por distintos proces­sos de sedimentação.
De um lado, desponta a fórmula de recrutamento dos técnicos integrantes da
administração financeira e cambial da economia que — não obstante realizada por
concurso público (o que é extrema­mente positivo, ressalte-se) — acaba por favorecer
certo tipo de for­mação econômica de natureza liberal, pela simples razão de ser
essa a linha teórica dominante, como visto, no interior não só dessa burocracia
como no próprio universo dos cursos universitários de economia do País.
Ainda assim, favorecimento, há situações de grosseira acentuação desse —
como ilustra o fato ocorrido em certo concurso pú­blico aberto pela autoridade
monetária brasileira, que tem papel de­cisivo na gestão interna e externa das
relações econômico-financei­ras do Brasil com o exterior. O Banco Central abriu
concurso público para economista, em 1999-2000, privilegiando, segundo o
jornal “Mo­nitor Mercantil”, no respectivo edital, em face do tipo de critério esti­
pulado, “... candidatos de 45 instituições de ensino superior e pós-­graduação,
dentre as quais 39 (78%) norte-americanas ...”. A essas entidades somavam-se
“quatro instituições inglesas, uma belga e uma espanhola, contra apenas cinco
escolas do Brasil (FGV-Rio, PUC-Rio, UFRGS, UNB, USP)”(45). Semelhante extremado
critério de favorecimento desconectava-se de qualquer efetiva ponderação técnica,
enquadrando-se como típica discriminação, derivada de ma­nifesto viés ideológico
(a propósito, por essa razão, segundo a mes­ma fonte, foi objeto, na época, de
questionamento judicial).(46)
De outro lado, há a inevitável influência funcional resultante da escolha
política (recrutamento amplo, e não concurso) de diretorias notoriamente atadas

(45) Monitor Mercantil, ano LXXXVIII, n. 23.650, Rio de Janeiro, 16.3.2000, p. 01 e 03.
(46) Monitor Mercantil, loc. cit.
90 MAURICIO GODINHO DELGADO

às correntes teóricas e práticas do ultralibera­lismo monetarista, as quais têm se


sucedido, regra geral, monocor­diamente, nas últimas décadas, na gestão financeira
e cambial do Estado, sedimentando o império da mainstream antissocial.
Finalmente, não se pode desconsiderar a força atrativa nefasta sobre os
quadros tecnocráticos estatais do censurável caminho de afirmação econômico-
-profissional inaugurado pelo período de hege­monia na administração pública das
lideranças intelectuais neolibe­ralistas. É que estas, terminadas as suas passagens
pelo Estado, co­mumente se deslocam em direção ao mercado privado, regra geral
promissor em face das vantagens comparativas de conhecimento, experiência, re-
lacionamentos e informações reunidos durantes os anos de gestão estatal.
Discorrendo sobre esse verdadeiro fato notório envolvendo parte significativa
dos dirigentes neoliberais da área cambial e de finan­ças do Estado brasileiro das
últimas décadas, o livro intitulado Os economistas no governo assim explica:
Após uma passagem mais ou menos longa, por cargos no governo, a
maioria dos acadêmicos não retorna à universi­dade, no sentido de vê-la
como seu espaço de ação profissio­nal mais importante. Eles preferem
seguir carreira no setor pri­vado, abrindo empresas de consultoria, nas
quais têm opor­tunidade de rentabilizar os “capitais” de informação e
de conhe­cimento acumulados durante sua experiência em organismos
governamentais.(47)
Registre-se, em acréscimo a tudo isso, que essa significativa influência
do pensamento ultraliberal tem se preservado e se acen­ tuado muitas vezes
independentemente da própria aliança política interna eventualmente no poder.
Ou seja, governos que se definem, originalmente, como social-democratas ou
congêneres, mas que pas­sam a adotar, quando instalados no poder, alguns dos
mais retró­grados programas liberal-monetaristas de gestão da economia e das
políticas públicas — sem obter, evidentemente, os almejados índi­ ces de bom
desempenho econômico e bom nível de emprego.

F) Intercâmbio de Influências Ultraliberais

A dinamização do intercâmbio de influências em torno do pen­ samento


neoliberal, por meio de uma permanente e diversificada rede de congressos,
seminários, palestras, encontros, oficinas, simpó­sios e mecanismos congêneres,
de caráter nacional, regional ou mun­dial, também constitui notável mecanismo
de propagação e reforço da hegemonia do ultraliberalismo no presente momento
histórico.

(47) LOUREIRO, Maria Rita. Os economistas no governo — gestão econômica e de­mocracia. Rio de
Janeiro. Fundação Getúlio Vargas, 1997. p. 90.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 91

Tais eventos não somente aperfeiçoam, agilizam e propagam a matriz ora


hegemônica, como eventualmente assumem preten­ são muito mais ousada,
buscando firmar prescrições para as polí­ticas públicas de determinado(s) país(es)
em certo período histórico considerado.
Observe-se o caso paradigmático da América Latina. A seu respeito, tornou-se
célebre o receituário conhecido pelo apelido de Consenso de Washington —
expressão que, segundo José Luís Fiori, foi “... cunhada em 1989 pelo economista
anglo-americano John Williamson para dar conta do conjunto de políticas e reformas
pro­postas pelos organismos multilaterais na renegociação das dívidas externas dos
países em desenvolvimento e que passam a ser chama­dos, a partir dos anos 1990
— dentro do espírito do novo consenso — ­de mercados emergentes(48).
É evidente que a dinamização desse intercâmbio de influên­cias neoliberais
se realiza pela agregação de vários dos fatores já mencionados, despontando,
desse modo, como uma espécie de fórum permanente para a eficaz atuação de
tais fatores. Ou seja, um fórum universal envolvendo, ilustrativamente, a atuação
genera­lizada e sistemática dos diversos organismos internacionais de es­truturação
da economia e políticas públicas no sistema capitalista, a dinâmica intensa da
comunidade acadêmica econômica neoliberal, a integração em tais processos das
burocracias nacionais vincula­das à gestão das finanças e do câmbio, a integração
com os meios de comunicação de massa internacionais e nacionais, a par de ou­
tros processos semelhantes e convergentes.

IV — CONSTRUÇÃO CULTURAL DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL —


FRAGMENTAÇÃO DE PARCELAS DO PENSAMENTO CRÍTICO

A construção cultural da hegemonia da matriz neoliberal de pensar e gerir a


sociedade e a economia capitalistas realiza-se, como visto, a partir de fins dos anos
1970, no Ocidente, em torno de dois grandes processos.
O mais importante desses processos reside, como visto, na formatação e
generalização de um pensamento de natureza ultralibe­ral, com pretensões de
se tornar único pensamento econômico válido, supostamente sem competidores
consistentes no que tange à explica­
ção e ao gerenciamento da economia e
sociedade contemporâneas.
O segundo dos processos que atuam na construção cultural da presente
hegemonia liberalista reside na fragmentação de parte rele­vante do pensamento
crítico ao capitalismo ou, pelo menos, na fragmentação do pensamento crítico

(48) FIORI, José Luis (Org.). Estados e moedas no desenvolvimento das nações. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1999. p. 36 (destaques no original). A respeito deste e outros receituários e encontros
análogos, ver também outra obra do mesmo autor, Os moe­deiros falsos. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
1998.
92 MAURICIO GODINHO DELGADO

ao capitalismo descontrolado, capitalismo sem peias, que se estrutura à base da


filosofia do laissez­-faire. A propósito, a matriz liberalista somente pôde espraiar-se
e consolidar-se de maneira tão ousada nos últimos tempos precisa­mente porque
a reflexão crítica sobre o sistema capitalista entrou em refluxo, mostrando-se
acuada, dispersa ou, em certos instantes e segmentos, até mesmo cooptada pelo
ideário hegemônico das úl­timas décadas.
Este segundo processo é que será estudado no presente item IV.

1. O Primado do Trabalho e do Emprego: cerco e rendições

O processo de construção, no Ocidente, da atual hegemonia do pensamento


econômico liberal extremado deflagrou-se, com su­cesso, a partir de fins dos anos
1970, no contexto da forte crise econômica então surgida nos países capitalistas
e da incapacidade conjuntural de as políticas públicas então dominantes, de
natureza keynesiana, enfrentarem, com resultados rápidos, a estagnação e a
inflação despontadas naquela época (estagflação).
Desde esse período, com a reascensão da corrente liberal de análise e confor-
mação da economia, da sociedade e do Estado, se­gundo as versões capitaneadas
por Friedrich Hayek, Milton Friedman e demais divulgadores, o primado do traba-
lho e do emprego no sis­tema capitalista passou a ser severamente fustigado.
A nova corrente antissocial de pensamento, com impressionante voracidade
de construção hegemônica — urdida e acumulada ao longo dos quase cinquenta
anos precedentes de isolamento na Eu­ropa e EUA —, passou a agredir, de maneira
frontal, a matriz cultural afirmativa do valor-trabalho/emprego, por ser esse valor
o grande instrumento teórico de construção e reprodução da democracia so­cial
no Ocidente. Em suma, a permanência da noção de centralida­de do trabalho e do
emprego no sistema econômico e na sociedade capitalistas, tal como predominante
na cultura das várias décadas anteriores, desde os anos 1930, inviabilizaria, de
modo absoluto, a aplicação do receituário de império do mercado econômico,
estru­turado pelo pensamento neoliberal.
Enfatize-se este aspecto crucial do problema: se reduzida aos seus elementos
principais, fundantes, a presente matriz ultralibera­ lista revela, no seu núcleo,
indisfarçável desprezo e desrespeito quanto ao trabalho.
Desse núcleo, decorre seu segundo principal elemento fundante: o super-
privilégio que confere ao capital financeiro-especulativo, por este representar, na
essência, a moeda, o dinheiro, a riqueza em seu estado puro. Em coerência com
isso, o império do capital financei­ro-especulativo na economia e na sociedade
tem traduzido, de ma­neira recorrente, na história do capitalismo, o máximo de
negligên­cia pelas considerações relativas ao trabalho, sendo-lhe inerente certa im-
pávida insensibilidade quanto às taxas elevadas de desemprego que a hegemonia
financeiro-especulativa naturalmente provoca.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 93

Em suma, desponta como manifesta a antítese entre as duas vertentes


teóricas de compreensão e gestão da vida socioeconômi­ca que se digladiaram na
conjuntura da década de 1970.
Ora, nesse quadro de construção de hegemonia cultural e po­lítica no ca-
pitalismo das últimas décadas, passava a ser um dos desafios mais relevantes
e urgentes para as vertentes de renova­ção do velho liberalismo exatamente a
desconstrução da matriz teórica afirmativa da centralidade do trabalho e do
emprego na so­ciedade democrática contemporânea e no sistema econômico-
-social capitalista.
Não é por outra razão que o velho liberalismo, reconstruído na segunda
metade do século XX, evitava buscar inspiração nos mais notáveis clássicos liberais
de fins do século XVIII e início do século XIX, como Adam Smith (1723-1790) e
David Ricardo (1772-1823), uma vez que estes ainda firmaram suas reflexões em
torno do valor­-trabalho.
O liberalismo readequado e extremado dessas últimas décadas iria preferir,
ao invés, colher sua seiva em autores como Jean-Bap­ tiste Say (1767-1832),
Nassau Senior (1790-1864) e Frederic Bastiat (1801-1850), que, desde o século
XIX, já elaboravam sua teorização desconsiderando a centralidade do trabalho no
capitalismo(49).
O que parece que não tem sido percebido neste contexto é que a centralidade
(ou não) do trabalho e do emprego no sistema capita­lista desponta, essencialmente
(embora não seja apenas isso, é cla­ro), como uma escolha, uma perspectiva, como
uma decisão — qual­quer que seja o plano de conhecimento considerado, quer
filosófico, político, econômico ou cultural. Isso é o que bem demonstraram tan­to a
história do capitalismo ocidental no século XX, como alguns dos economistas mais
célebres do período do Estado de Bem-Estar So­cial — keynesianos ou, até mesmo,
marxistas —, como John Keynes, Joan Robinson e Mikal Kaleckit(50).
Por essa razão, não é, certamente, ocasional que, de modo muito sugestivo,
a mais famosa obra econômica de Keynes, de 1936, te­nha recebido o título de
“Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda” (grifos acrescidos)(51). O emprego
foi, propositadamente, co­locado à frente, no frontispício de uma teoria econômica
geral de compreensão do capitalismo, em prevalência sobre os dois ícones
financeiros desse sistema, o juro e a moeda.

(49) A respeito, HUNT, E. K. História do pensamento econômico. 7. ed. Rio de Janei­ro: Campus,
1981, passim.
(50) A respeito, consultar: HUNT, E. K. Ob. cit., passim. Ver ainda: POMERANZ, Lenina et al. Dinâmica
econômica do capitalismo contemporâneo — homenagem a M. Kalecki. São Paulo: EDUSP/FAPESP,
2001, passim.
(51) KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Alias, 1992.
94 MAURICIO GODINHO DELGADO

Essa prevalência é, portanto, uma escolha, uma decisão, insista-se.


Entretanto, se acolhido o núcleo neoliberal de reflexão — des­prezo pelo
trabalho e pelo emprego, com o consequente superprivi­ légio conferido ao
capital financeiro-especulativo —, passando-se a concentrar todas as energias do
Estado e da sociedade na gestão da moeda — este ícone da vertente liberalizante
reconstruída —, é óbvio que restarão menores espaços, iniciativas, recursos e
energia para a geração de empregos e disseminação da renda nos respecti­vos
países e economias.
Obviamente que esse efeito socioeconômico devastador será tido como um
problema menor, uma repercussão residual da dinâ­mica dos mercados, à luz da
perspectiva neoconservadora que se tornou hegemônica nas últimas décadas.
Em suma, não surpreende, é claro, o incessante cerco que o ultraliberalismo
passou a fazer contra o primado do trabalho e do emprego desde o início do
processo de retomada de sua hegemo­nia em meados e fins dos anos 1970. O
que surpreende são certas rendições ocorridas no plano do pensamento crítico ao
capi­talismo — inclusive na esfera marxista —, assim como no plano das vertentes
tradicionalmente críticas ao laissez-faire capitalista.
Noutras palavras, o que surpreende nessa conjuntura históri­ca é que um
segmento importante das formulações teóricas que se enquadram, regra geral,
na matriz crítica do capitalismo sem peias, que fora hegemônica até os anos 1970
(parte inclusive de tais formulações com origem marxista), tenha passado também
a incorporar — ainda que por razões distintas às dos neoliberais — a­ perspectiva do
fim do primado do trabalho e do emprego, do fim da sociedade do trabalho e do
emprego, assumindo a ideia do su­posto surgimento de novo paradigma na vida
socioeconômica, que não transitaria mais pelas noções e realidades do emprego
e do trabalho.
Impressionado pelas inovações tecnológicas e organizacionais aprofundadas
no sistema econômico nas últimas décadas do século XX, além dos índices
elevados de desemprego que passaram a per­sistir desde meados dos anos 1970,
esse segmento crítico disso­nante acolheu o cerne da proposta explicativa do
liberalismo, mes­mo que com adequações e argumentos teóricos distintos.
Em síntese, também para essas correntes anteriormente críti­ cas — algo
perplexas e, de certo modo, ingênuas —, o trabalho teria se tornado desimportante
na estrutura e dinâmica do novo capitalis­mo, sendo que o emprego, a tradicional
e dominante fórmula de tra­balho nesse sistema, teria decaído para inevitável
anacronismo.
Essa fragmentação de parte relevante do pensamento crítico, desde finais dos
anos 1970, sem dúvida, tornar-se-ia um elemen­to de peso em favor da construção
cultural da hegemonia ultralibe­ralista nas últimas décadas no Ocidente.(52)

(52) Conforme já exposto neste livro, há autores que buscaram pesquisar essa linha teórica de
fragmentação do pensamento crítico, apontando as inconsistências de suas elaborações contrárias à
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 95

2. Elementos da Fragmentação Crítica

A simples circunstância de qualquer interpretação sobre o ca­pitalismo — ainda


que a partir de diferentes parâmetros — susten­tar, como fatalidade irreprimível,
o eclipse do emprego e, quem sabe, do próprio trabalho, ou até insistir na perda
de sua relevância na atual fase desse sistema econômico, tudo se transforma em
fato cul­tural e político de notável impacto, por entrar em choque direto com a
raiz cultural da democracia social contemporânea (consistente no primado do
trabalho e do emprego), com a concepção filosófica de­mocrática subordinadora
da economia à política, além de enfraque­cer todo o sistema jurídico de valorização
material e moral do indiví­duo que trabalha.
A interpretação, nesse caso, torna-se mais importante do que o fato em si —
se é que este existe na dimensão que se lhe atribui. Repetida cotidianamente, de
modo intenso e diversificado, uma in­terpretação desse tipo acaba por contribuir,
sem dúvida, para a con­sumação do próprio fato, isto é, a real desvalorização do
trabalho e do emprego, além do próprio trabalhador, na sociedade e economia
contemporâneas (caso típico daquilo que os próprios economistas denominam de
“profecia auto-realizável”).
Esse mainstream interpretativo — mesmo em certas variantes marxistas — sequer
se questiona se os elevados níveis de desem­prego e a generalizada desvalorização
do trabalho e do trabalhador não seriam, na verdade, em sua essência, uma re-
sultante direta e necessária da política pública econômico-financeira ultraliberal
se­guida, quase que uniformemente, desde fins dos anos 1970, na ampla maioria
dos países capitalistas ocidentais.
Tal mainstream esquece-se de refletir sobre os elevadíssimos índices de
desemprego (e consequente desvalorização do trabalho e do trabalhador) que
também assolaram os países da Europa oci­dental desde os anos 1920, além
da década de 1930, em pleno desenrolar da segunda revolução tecnológica do
capitalismo (a qual também, obviamente, afetou empregos, funções e postos
de traba­lho). O desemprego, mesmo nos anos 1920, alcançava índices muito
superiores até mesmo aos contemporâneos: ilustrativamente, “entre 10% e 12%

centralidade do trabalho e do emprego na dinâmica capitalista mais recente. É o que se passa com
estudos importantes do cientista social brasileiro Ricardo Antunes, Professor Titular da UNICAMP.
Citem-se, por exemplo, dois de seus livros nessa específica direção: Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre
as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 16. ed., São Paulo: Cortez, 2015 (1ª
edição: 1995) e, igualmente, Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre a afirmação e a negação do
trabalho. 2. ed./10ª reimpr., São Paulo: Boitempo, 2015 (1ª edição: 1999). Nesses livros – e em
outros de seus estudos e publicações -, o Professor Ricardo Antunes apresenta sólidos argumentos no
sentido oposto ao professado pelos notáveis autores do pensamento crítico europeu, como Jürgen
Habermas (1929-at.) e Claus Off (1940-at.), ambos da Alemanha, além de André Gorz (1923-2007),
este oriundo da Áustria mas com carreira acadêmica especialmente na França, os quais, em seu
conjunto, advogaram pela perda da centralidade do trabalho e do emprego nas contemporâneas
economia e sociedade capitalistas.
96 MAURICIO GODINHO DELGADO

na Grã-Bretanha, Alemanha e Suécia, e nada menos de 17% a 18% na Dinamarca


e na Noruega”.(53) Tais taxas explodi­ram com a crise de 1929, alcançando, em
certo período da década de 1930, cerca de “22% a 23% da força de trabalho
britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana, 29% da austríaca, 31% da
no­rueguesa, 32% da dinamarquesa”, além de 44% da alemã.(54)
Ora, tamanho desastre econômico-social foi firmemente venci­do por meio de
uma drástica mudança na política econômico-finan­ceira dos respectivos Estados
nacionais, abandonando-se, inteira­
mente, a irresponsável aventura econômica
ultraliberal até então dominante.
Diagnósticos sobre imperativos tecnológicos ou excesso regu­lador do Direito
do Trabalho não prosperaram, à época, cedendo espaço à crítica direta e franca
do laissez-faire, em favor de mais intervenção econômica do Estado, mais restrição
ao mercado finan­ceiro, mais legislação trabalhista, mais valorização do trabalho e
do emprego. Esse modelo intervencionista, como se sabe, é que salvou o sistema
econômico-social de mercado, abrindo a possibilidade de surgimento, logo após,
do período mais abastado e equânime do capitalismo na história.

3. Tecnologia, Organização e Mercado


De todo modo, o mainstream interpretativo que censura o pri­ mado do
trabalho e do emprego tem elaborado suas reflexões a partir, principalmente,
de três tipos de parâmetros, conforme já ex­ posto neste livro (Capítulo II): o
tecnológico, o organizacional e o mercadológico.
O parâmetro tecnológico é, seguramente, entre todos, o que mais impressiona,
sendo inclusive aquele que mais embeveceu par­te da intelectualidade oriunda da
própria tradição de esquerda.
O parâmetro organizacional também conta com razoável atrativi­dade lógica,
tendo recebido, igualmente, certa adesão por parte de vertentes oriundas do
pensamento crítico clássico, inclusive marxista.
O parâmetro mercadológico, finalmente, consiste no menos sutil e sofisti-
cado dos três, comumente sequer conseguindo disfarçar seu direto intento de
acumulação de riquezas.

A) Tecnologia
O parâmetro tecnológico — entre todos, o que mais impressio­na — tem sido
inclusive aquele que mais embeveceu parte da inte­lectualidade oriunda da própria
tradição marxista.

(53) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos — o breve século XX — 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 95. Apenas nos EUA, durante a década de 1920, a taxa média de desemprego
era favorável, em torno de 4% (loc. cit.).
(54) HOBSBAWM, E. Ob. cit., p. 97.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 97

Por esta diretriz, entende-se que a terceira revolução tecnológi­ca teria sido
tão intensa e inovadora que comprometeu a antiga crucial necessidade do trabalho
e do emprego pelo sistema capitalista, le­vando ao eclipse tais modalidades de
inserção do ser humano na dinâmica econômico-social. Como resultado de tais
transformações, não haveria mais como se falar em centralidade do trabalho e do
emprego no mundo atual.
Insista-se no sentido dessa tese: as mudanças decorrentes da chamada
terceira revolução tecnológica do capitalismo teriam sido tão intensas, diversas
e disseminadas que abalariam, de modo im­placável, o primado do emprego e do
próprio trabalho nesse sistema socioeconômico.
Não obstante o prestígio dessa vertente, torna-se muito claro o equívoco
desse fundamento tecnológico, que dá suporte a semelhan­tes matrizes intelectuais.
Afinal, as inovações derivadas da tecnolo­gia não têm caráter estritamente negativo
com respeito à geração de trabalho e emprego; a relação tecnologia/emprego
não é, segu­ramente, apenas unidirecional. Ao invés, os avanços tecnológicos
podem, sem dúvida, produzir repercussões bastante favoráveis quan­to à geração
de trabalho e emprego nas economias.
Aliás, o próprio universo dos países capitalistas não evidencia existir relações
tão claras e automáticas entre economias altamente desenvolvidas, do ponto de
vista tecnológico, e desemprego, ao lado de economias menos desenvolvidas
tecnologicamente e baixas ta­xas de desemprego.
No fundo, o que se percebe é uma exacerbação do argumento tecnológico,
como meio político-cultural relevante para o combate ao primado do trabalho e do
emprego na sociedade capitalista(55).

B) Organização

Também o parâmetro organizacional, dotado de razoável atra­ tividade


lógica, conta com certa adesão junto a vertentes oriundas do pensamento
crítico clássico. Sua hegemonia incontestável, en­tretanto, situa-se no segmento
intelectual direcionado às práticas administrativas e gerenciais dentro das empresas
capitalistas.
Pelo parâmetro organizacional, argumenta-se que as mudan­ças vivenciadas
desde os anos 1970 na estrutura organizacional das empresas e na forma
de gerenciamento de sua força de traba­ lho foram tão intensas, múltiplas e
disseminadas que abalaram, de modo implacável, o primado do emprego e do
próprio trabalho nesse sistema socioeconômico.

(55) A respeito dos equívocos do fatalismo tecnológico quanto ao emprego e ao traba­lho, consultar
capítulo II deste livro.
98 MAURICIO GODINHO DELGADO

Por essa diretriz entende-se que as transformações provocadas no modelo


fordista/taylorista (hegemônico até os anos 1970 nos paí­ ses desenvolvidos),
resultantes do advento do novo paradigma de organização empresarial,
denominado toyotista/ohnista, tudo teria conduzido ao ocaso das megaplantas
empresariais, ao desprestí­ gio da produção em massa, à maior qualificação e
multifunciona­lidade do trabalhador em detrimento do império do trabalho des­
qualificado e segmentado da fase precedente. Em consequência, teriam sido
solapadas as bases de estruturação da clássica relação de emprego e do próprio
Direito do Trabalho, estando o mundo capi­talista em busca de novas modalidades
de conexão do ser humano à economia.
Não obstante, conforme já examinado anteriormente (capítulo II), não há
sequer evidências reais de uma efetiva generalização do supos­to “novo paradigma”
toyotista de organização empresarial e gestão de força de trabalho. Ao contrário, há
incontáveis exemplos de continuida­de dos modelos de megaplantas empresariais,
além da permanência do não tão obsoleto sistema taylorista de gestão laborativa.
De par com tudo, o que parece prevalecer é, no fundo, uma combinação
diferenciada de modos de organização e de gestão, mas qualificados, conjuntu-
ralmente, hoje, pela deterioração dos patama­res de reciprocidade conferida ao
trabalho. Em síntese, uma agre­gação ladina de métodos (e de justificativas) dire-
cionados ao rebai­xamento do valor-trabalho no capitalismo sem peias.
Ou seja, eliminou-se do antigo taylorismo seu correlato mais civilizado, o
fordismo (que assegurava melhor retribuição ao traba­lho no contexto empresa-
rial). No tocante ao novo toyotismo, tam­bém dele se excluiu o aspecto correlato
da longevidade do emprego (que, igualmente, garantia melhor retribuição ao valor-
-trabalho no contexto das empresas).
Na verdade, é também muito claro o equívoco desse funda­mento organiza-
cional, que confere suporte a semelhantes matrizes intelectuais. Também aqui o
que se nota é uma exacerbação do ar­gumento organizacional, como meio rele-
vante de convencimento no processo de combate ao primado do trabalho e do
emprego na so­ciedade capitalista.

C) Mercado

Finalmente, pelo parâmetro mercadológico, estatui-se que as mudanças na


estrutura e dinâmica do mercado econômico, com a ge­neralização e o acirramento
da competitividade interempresarial na atual fase do capitalismo, foram tão
intensas, diversas e disseminadas que abalaram, mais uma vez, também de
modo implacável, o primado do emprego e do próprio trabalho nesse sistema
socioeconômico.
Por essa diretriz propaga-se que a globalização dos mercados, a intensificação
da concorrência capitalista, o fim das fronteiras en­tre Estados e economias, tudo
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 99

teria tornado obsoleta qualquer ten­tativa de restrição ao franco uso da força de


trabalho pelos agentes econômicos, uma vez que tais restrições viriam prejudicar
ou invia­bilizar a mais ágil e eficiente inserção das economias nacionais ou regionais
específicas no cenário mundial.
O caráter equivocado desse parâmetro é manifesto, não disfar­çando sequer
seu real intento acumulativo de riquezas. Mais claro ainda desponta aqui o manejo
exacerbado de certo tipo de argumento como mecanismo ideológico importante
na dinâmica histórica de com­bate ao primado do trabalho e do emprego na
sociedade capitalista.

V — CONSTRUÇÃO POLÍTICA DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL

A construção política da hegemonia da matriz neoliberal de pensar e gerir


a sociedade e a economia capitalistas realizou-se, como visto, a partir de fins dos
anos 1970, no Ocidente, em torno de dois grandes processos.
O primeiro desses processos reside na concretização de vitó­rias político-
-eleitorais relevantes e de longo alcance temporal, em países líderes do capitalismo
ocidental, a partir de fins dos anos 1970 e década de 1980.
Esse processo será examinado no subitem 1, à frente.
O segundo de tais processos que atuam na construção política da presente
hegemonia liberalista reside no desaparecimento ou, pelo menos, debilitação
de contrapontos políticos consistentes ex­ternos e internos ao sistema capitalista
ocidental.
Esse segundo processo será estudado no subitem 2, logo após.

1. Vitórias Político-Eleitorais Ultraliberalistas

O processo de construção, no Ocidente, da atual hegemonia do ultraliberalismo


econômico, conforme já exposto, deflagrou-se, com sucesso, a partir de meados
dos anos 1970, no contexto da forte crise econômica então surgida nos países
capitalistas e da incapacidade conjuntural de as políticas públicas então domi­
nantes, fundadas no chamado keynesianismo, enfrentarem, com resultados
rápidos, a estagflação despontada naquela época (es­tagnação + inflação).
Nesse processo de construção hegemônica, tiveram papel fun­damental as
vitórias político-eleitorais de dois líderes radicais e agressivos do neoliberalismo,
Margaret Thatcher (1979) e Ronald Reagan (1980), nos dois países-chave do
sistema financeiro mun­dial e da cultura mais assumidamente capitalista do globo,
a de língua inglesa.
100 MAURICIO GODINHO DELGADO

A esses dois eventos políticos decisivos para o novo projeto hegemônico


somou-se a ascensão imediatamente seguinte do líder conservador alemão Helmut
Kohl (1982), no país que tinha, à épo­ca, a economia mais forte da Europa e o
Banco Central mais ortodo­xo, entre os principais europeus.
Tais fatos político-eleitorais deram propulsão a um domínio po­ lítico de
significativo prazo de importantes lideranças políticas ultra­liberais. Trata-se, afinal,
de cerca de década e meia, a partir do final dos anos 1970 até o início da década
de 1990, de firme hegemonia político-partidária de correntes assumidamente
ultraliberais, em Es­tados e nações de decisiva influência política e cultural em todo
o globo terrestre, notadamente entre os países ocidentais.
Conforme visto, foram destaques, nesse domínio político, os go­ vernos
de Margaret Thatcher, na Inglaterra (1979-1990), iniciando uma hegemonia
conservadora de aproximadamente 17 anos; Ronald Reagan, nos EUA (1980-1988),
iniciando uma hegemonia republica­na de 12 anos; Helmut Kohl, na Alemanha
(1982-1998), que sedi­mentou uma hegemonia conservadora (Democrata Cristã)
por cerca de 16 anos.
Esse simultâneo controle político de Estados-chave do capi­talismo ocidental,
por substantivo período de tempo, permitiu a se­dimentação e a generalização da
influência de tal pensamento econô­mico, com seus reflexos políticos e culturais.
A articulação concer­tada desses Estados líderes do sistema capitalista mundial,
viabili­zando a atuação também concertada das mais importantes agên­cias oficiais
nacionais e internacionais de índole econômica, geran­do um caldo cultural uniforme
para os meios de comunicação de massa em todo o Ocidente, tudo conduziu à
construção de sólida hegemonia da matriz teórica contraposta ao Welfare State.
Note-se que o marco da alteração da política econômico-finan­ ceira dos
principais países capitalistas, com o pleno abandono do keynesianismo e a
consequente rigorosa adoção de políticas libe­rais-monetaristas, fixa-se exatamente
no emblemático ano de 1979, quando “os dirigentes dos principais países
industrializados reuni­dos em Tóquio, por ocasião da reunião de cúpula do G-5,
decidem eleger como prioridade absoluta a luta contra a inflação”.(56) Confor­
me observa Dominique Plihon, a estabilidade monetária passa a ser, “doravante,
o objetivo prioritário e a política monetária torna-se o principal instrumento de
regulação macroeconômica, conforme os preceitos monetaristas”.(57) Isso significa
que, desde esse momento, tanto o monetarismo como o liberalismo tornam-se “os
novos prin­cípios fundamentais da política econômica”.(58)
Essa afinação político-econômica entre EUA e Inglaterra, nesse período, teve
efetivamente grande impacto na conjuntura em evolu­ção, uma vez que esses

(56) PLIHON, Dominique. Ob. cit., p. 100.


(57) PLIHON. D. Loc. cit.
(58) PLIHON, D. Loc. cit.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 101

dois países e economias líderes foram os que impulsionaram pioneiramente o


redirecionamento do sistema econômico-financeiro mundial, em especial no que
diz respeito à nova preponderância do capital essencialmente especulativo sobre o
capital essencialmente produtivo.
De fato, a decisiva conquista de hegemonia econômica pelo segmento
financeiro-especulativo do capitalismo muito deve à lide­ rança de Reagan e
Thatcher. É que, entre 1979 e 1987, conforme François Chesnais, os EUA e o
Reino Unido provocaram a desregu­lamentação e a liberalização de seus sistemas
nacionais — no que foram acompanhados, “nos anos seguintes, pelos demais
países in­dustrializados” —, com isso estruturando “a emergência de um es­paço
financeiro mundial”, ainda que “fortemente hierarquizado”.(59)
A Alemanha, por outro lado, com seu Banco Central classica­mente rigoroso,
cumpriu o papel de líder do aperto monetário no cenário ainda razoavelmente
diversificado da Europa Ocidental.(60)
A agressividade política de tais lideranças, especialmente That­cher e Reagan,
permitiu, por outro lado, um combate frontal ao pri­ mado do trabalho e do
emprego, que fora hegemônico nas várias décadas precedentes, rompendo o
consenso cultural em torno da noção de valor-trabalho. Nesse sentido, a postura
bélica e desrespei­tosa do thatcherismo com relação ao Direito do Trabalho inglês
e ao sindicalismo do país gerou um efeito-demonstração de grande im­portância
político-cultural no processo de construção da hegemonia ultraliberalista.
Em síntese, o afinamento, por cerca de década e meia, dessas lideranças
ultraliberais dos países líderes do sistema capitalista no Ocidente permitiu a
pavimentação de larga estrada a serviço do capi­talismo desenfreado, com todas as
suas mais recorrentes e perver­sas características, tais como a hegemonia do capital
financeiro-es­peculativo, a elevação genérica dos juros,(61) a contração monetária e
creditícia, a desconstrução da atividade econômica estatal, a mitigação do potencial
de investimento do Estado(62), a deterioração das instituições, equipamentos e
serviços públicos, a tibieza dos níveis de de­senvolvimento econômico, a exacerbação
dos índices de desempre­go, a desvalorização contínua do emprego e do trabalho.

(59) CHESNAIS, François. Introdução geral. In: CHESNAIS, F. (Coord.). A mundiali­zação financeira —
gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 12.
(60) Dominique Plihon esclarece que “... dentro da Comunidade Europeia, conduzida por uma
Alemanha obcecada pela inflação, que as políticas foram mais restritivas”. In: ob. cit., p. 101.
(61) Importante exceção a essa uniforme política monetária de juros altos encontra-se, ladinamente,
nos EUA, mormente desde os anos 1990.
(62) Aqui também, os EUA despontam, sagazmente, como exceção no cenário dos países capitalistas
ocidentais mais importantes. É que o governo Reagan, não obstan­te o grande aumento de juros
em sua época, promoveu elevadíssimo investimento estatal de natureza bélica durante os anos
1980, favorecendo, no conjunto, a manuten­ção do bom desempenho da economia interna e dos
respectivos índices de emprego.
102 MAURICIO GODINHO DELGADO

2. Desarticulação do Contraponto ao Capitalismo Desenfreado

O segundo processo que atua na construção política da hege­monia liberalista


contemporânea no Ocidente reside no desapareci­ mento ou, pelo menos, na
debilitação de contrapontos políticos con­sistentes ao sistema capitalista, quer no
plano externo aos respecti­vos países, quer em seu plano interno.
Esse tipo de contraponto deve ser compreendido não apenas quanto
àquilo que Eric Hobsbawm chama de “ameaça política de crédito ao sistema”(63)
— consistente no socialismo, é claro —, como também no tocante à existência,
naquela específica conjuntu­ra, de um contraponto sério ao próprio modelo de
capitalismo de­senfreado, que se espraia à base do laissez-faire.
A falta desse tipo de contraponto verificou-se, na época, no pla­no externo
das nações do Ocidente, em face da derrocada da expe­riência socialista soviética.
No plano interno das sociedades capitalistas desenvolvidas, a ausência de
tal contraponto verificou-se em face da relativa desarti­culação do sindicalismo,
além da perda de direção da matriz política socialdemocrata europeia, que
passa, curiosamente, a incorporar vários dos principais postulados e projetos do
ultraliberalismo.
Verifica-se, desse modo, nessa conjuntura iniciada em fins dos anos 1970,
uma desarticulação das propostas, movimentos e modelos político-institucionais
contrários ao chamado capitalismo sem peias, capitalismo desenfreado, ao
sistema econômico capita­lista gerido segundo a velha e antissocial filosofia do
laissez-faire(64).

A) Derrocada do Império Soviético

No plano externo, desapareceu do universo comparativo dos países ocidentais


a “ameaça política digna de crédito ao sistema”, referida pelo historiador do
capitalismo, Eric Hobsbawm.(65)
A ausência desse contraponto, no âmbito internacional, verifi­ cou-se pelo
desaparecimento do império soviético, em rápido proces­so ocorrido em fins da
década de 1980 e início da seguinte. De fato, o império europeu da URSS ruiu em
1989 (queda do muro de Berlim), desaparecendo, logo a seguir, a própria União
Soviética, no âmbito da Rússia e diversas repúblicas anteriormente vinculadas (1991).

(63) HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos — o breve século XX — 1914-1991. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995. p. 552.
(64) A expressão capitalismo desenfreado, como já exposto, encontra-se em NAGELS, Jacques.
Elementos de economia política — crítica do pensamento único. Lisboa: Piaget, 2001. p. 29.
(65) HOBSBAWM, E. Loc. cit.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 103

A relevância que esse espelho socialista europeu teve no de­senvolvimento do


Estado de Bem-Estar Social nos países ocidentais não pode ser, de fato, inteiramente
negligenciada. Ainda que não se admita a existência de uma relação direta,
automática e insuperável entre esses dois processos (império soviético e Estado de
Bem-Es­tar Social), é inquestionável a presença de importante interinfluência entre
tais realidades histórico-sociais e econômicas.
Nessa linha, o economista J. Carlos de Assis chega a enxergar verdadeira
gradação na intensidade do Welfare State ocidental em vista de sua maior ou
menor aproximação com as fronteiras do so­cialismo oriental europeu. Ouça-se o
autor:
Um mapa aproximado da qualidade da democracia so­cial na Europa
acompanha as próprias linhas da geografia eu­ ropeia. Quanto mais
perto do “perigo vermelho”, mais a social­democracia avançou. Avançou
mais na Finlândia, na Suécia e na Noruega, na Dinamarca, Holanda e
na Áustria que na Ale­manha; mais na Alemanha que na França; mais
na França que na Itália; e mais na Itália que na Espanha e Portugal.(66)
Mesmo que não se aceite tamanha correlação como a sugerida pelo autor,
torna-se inquestionável, de todo modo, que a ausência de um contraponto
externo realmente eficaz ao sistema econômico ocidental hegemônico, em um
quadro de inevitável refluxo do movi­mento operário nos países do Ocidente (plano
interno desse fator), favoreceu a adoção de ideologias e políticas públicas sem
preo­cupação com contrapartidas sociais, a partir das últimas décadas do século
XX. Em suma, esse quadro específico no âmbito externo e no interno favoreceu,
em razoável medida, a implementação do pre­sente capitalismo sem reciprocidade.
De fato, uma estratégia de assumida irresponsabilidade social do Estado e
da propriedade privada dificilmente imperaria no com­plexo cenário do Ocidente,
caso pudesse, politicamente, colocar em risco a sorte do conjunto do sistema
capitalista. Apenas em um ins­tante histórico específico de desaparecimento da
lancinante amea­ça política socialista, no leste da Europa, e também de grave enfra­
quecimento das forças populares, nos países ocidentais, é que se tornou viável, do
ponto de vista político, a consumação de uma es­tratégia de atuação interna do
Estado sem qualquer consistente pre­ocupação social.

B) Enfraquecimento das Forças Políticas do Primado do Trabalho

No plano interno dos países capitalistas ocidentais desenvolvi­dos, também


se tornou elemento importante para a construção da nova hegemonia liberal o

(66) ASSIS, J. Carlos de. Trabalho como direito — fundamentos para uma política de promoção do
pleno emprego no Brasil. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. p. 93-94.
104 MAURICIO GODINHO DELGADO

enfraquecimento, a partir de fins dos anos 1970, das forças sociais, políticas e
culturais classicamente opo­sitoras da noção de império do mercado econômico
privado no âm­bito das sociedades democráticas.
A debilitação desse contraponto democrático-popular ao estu­ário teórico
ultraliberalista resulta de três processos distintos, em­bora claramente combinados:
de um lado, o refluxo do movimento sindical, a contar da crise econômica de
meados dos anos 1970; de outro lado, a perda de consistência dos projetos
políticos democrá­ tico-populares europeus a partir dessa conjuntura adversa
(ainda que eventualmente conquistada ou recuperada, em torno dessa fase, a
direção política do Estado por vitórias eleitorais trabalhistas ou socialdemocratas);
finalmente, uma relativa fragmentação do pen­samento crítico clássico, que passa
a acolher, ainda que de modo indireto, certos pressupostos da matriz explicativa
liberal sobre a sociedade capitalista mais recente.
No que diz respeito ao refluxo do movimento sindical, ele não é, evidentemente,
uniforme em toda a Europa, não se mostrando sequer relevante em determinadas
experiências históricas (países nórdicos, por exemplo). Contudo, ele é claro em
alguns países, cuja importância estratégica no imaginário do Ocidente é inequívoca.
É o que se passa, ilustrativamente, com a Grã-Bretanha.
O refluxo do sindicalismo origina-se, em parte, da crise econô­mica de meados
dos anos 1970 e do profundo incremento e du­rabilidade do desemprego então
despontado.
É bem verdade que esse incremento e essa duração do desem­ prego já
seriam resultantes da nova orientação econômica imposta aos países capitalistas
desenvolvidos pelo receituário liberal em ex­pansão — responsável, no Ocidente,
a partir dos anos 1980, por taxas de desocupação inusitadas se comparadas aos
índices tradi­cionais do período de Welfare State. Entretanto, a permanência e
profundidade desse desemprego, em um contexto de atuação de outras variáveis
adversas — inclusive a rendição teórica ocorrida em segmentos importantes da
própria esquerda —, tudo contribuiu para que a debilitação sindical cumprisse
papel significativo na con­solidação da nova hegemonia liberalista.
É ainda claro que esse refluxo sindical também decorre da nova linha de
enfrentamento das questões sociais por parte das lideranças ultraliberais ascendidas
ao poder desde 1979-1980, que se mostraram duras e inflexíveis com a atuação e
reivindicações sindicalistas(67).
No que concerne à perda de consistência dos projetos políti­cos democrático-
-populares europeus no último quartel do século XX, também não é obviamente
elemento absoluto, nem mesmo unifor­me às distintas experiências europeias; con-

(67) Ilustra muito bem essa nova postura estatal o enfrentamento por Margaret That­cher da greve
de mineiros de 1984-1985, que durou mais de um ano, sem quaisquer concessões governamentais.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 105

tudo, tal perda manifes­tou-se, ainda que de modo diferenciado e relativo, em


alguns exem­plos fundamentais, dotados de largo potencial de propagação.
É o que se verificou, ilustrativamente, como governo socialis­ta de François
Mitterrand, na França (1981-1995), que, após iniciar seu mandato com a adoção
de medidas social-democratas clássi­cas (algumas incisivas, como a estatização do
sistema financeiro), logo alteraria, acentuadamente, os rumos governamentais,
em di­reção à linha de austeridade monetária tão cara ao receituário ul­traliberal(68).
De certo modo, também é o que se deu com o gover­no socialista de Felipe
González, na Espanha (1982-1996), que viria adotar, nos anos 1980, programa
radical de desregulamentação e flexibilização do Direito do Trabalho. Em alguma
medida, tal ten­dência também se perceberia no governo trabalhista inglês de Tony
Blair (começado em 1997), que preferiu anunciar uma suposta ter­ceira via de
gestão socioeconômica, distinta do neoliberalismo ra­dical de Thatcher, mas que
também não queria se confundir com o keynesianismo hegemônico nos trinta
anos seguintes à 2ª Guerra Mundial(69).
Nas duas últimas décadas do século XX, portanto, o contra­ponto político
ao liberalismo, situado internamente nas sociedades europeias e vinculado aos
tradicionais partidos trabalhistas e socia­listas característicos de sua história,
enfraqueceu-se em significa­tiva extensão. É que essas próprias forças políticas
muitas vezes adotaram, quando no poder, nesse período, medidas muito próxi­
mas àquelas recomendadas pelo pensamento econômico ultralibe­ral — a este
conferindo, ironicamente, a real aparência de pensa­mento único.
No que tange, por fim, à fragmentação (ainda que também ape­nas relativa)
do pensamento crítico clássico, é fenômeno que se percebe, igualmente, a partir
de finais dos anos 1970.
Tal fragmentação, conforme já exposto, passa em boa medida pela
incorporação de certos pressupostos teóricos ao suposto fim do primado do
trabalho e do emprego no capitalismo contemporâ­ neo. Tais pressupostos se
enquadram em três parâmetros mais co­nhecidos, sinteticamente denominados
tecnológicos, organiza­cionais ou mercadológicos.
Essa incorporação verificou-se até mesmo em frações do clás­sico pensamento
crítico ao capitalismo (inclusive de origem marxis­ta), a par de ter atingido também
vertentes do pensamento reformis­ta desse sistema socioeconômico.

(68) Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 273-274.
(69) O economista José Carlos de Assis discorre, com ilustrativos exemplos, sobre a guinada
conservadora de parte importante das lideranças de esquerda e de sua curio­ sa ambiguidade
ideológico-programática, nessa fase histórica do Ocidente. ASSIS, J. Carlos de. Trabalho como
Direito — fundamentos para uma política de promoção do pleno emprego no Brasil, Rio de Janeiro:
Contraponto, 2002. p. 67-79.
106 MAURICIO GODINHO DELGADO

É claro que, à proporção que se aprofunda e se generaliza essa fragmentação,


ela irá comprometer, de modo importante, a presen­ça de contrapontos eficazes à
hegemonia da matriz ultraliberal nes­se período histórico(70).

VI — CONSTRUÇÃO ECONÔMICA DA HEGEMONIA ULTRALIBERAL

A construção econômica da hegemonia da matriz ultraliberalista realiza-se,


conforme já apontado, por meio do alcance de destacada prevalência do setor
financeiro-especulativo no âmbito do capitalis­mo mundial, subordinando, visivel-
mente, os demais segmentos do mesmo sistema socioeconômico.
A substantiva liderança do capital financeiro-especulativo so­bre os demais
segmentos do próprio capitalismo passa a ser carac­terística importante da atual
conformação assumida por esse siste­ma econômico-social.
Não se trata, aqui, do tradicional capital financeiro, da vira­da do século XIX
para o século XX, que, no conceito de Hilferding, traduzia uma articulação específica
entre o segmento financeiro — particularmente o bancário — e o industrial, sob o
domínio do primeiro(71).
Ao invés disso, trata-se, agora, do capital substantivamente especulativo, que
gera sua reprodução essencialmente com o pró­prio jogo de inversões financeiras,
sem compromisso relevante com a noção de produção, tão cara às fases anteriores
do capitalismo.
Esse caráter essencialmente especulativo desse segmento eco­ nômico
e seu incessante afastamento da esfera da economia real são diagnosticados,
por exemplo, por Dominique Plihon. Segundo o autor, reportando-se também a
H. Bourguinat, teria havido, nas últi­mas décadas, uma “mudança sistêmica” no
mundo das finanças, modificando-se “a própria natureza do sistema financeiro
internacio­nal”(...), “sendo ele, doravante, dominado pela especulação”(72).

(70) Sobre essa fragmentação (relativa) do clássico pensamento crítico ao capitalismo (ou das
vertentes reformistas desse sistema), com suas compreensões acerca do su­posto ocaso do trabalho
e do emprego, consultar o capítulo II deste livro. Ainda sobre o mesmo processo de fragmentação
do denominado “pensamento crítico do capitalismo”, consultar estudos relevantes do cientista social
brasileiro, Ricardo Antunes, Professor Titular da UNICAMP, tais como, ilustrativamente, Adeus ao
Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 16. ed., São
Paulo: Cortez, 2015 (a edição original da obra é de 1995), e Os Sentidos do Trabalho. Ensaio sobre
a afirmação e a negação do trabalho. 2. ed./10ª reimpr., São Paulo: Boitempo, 2015 (a edição
original da obra é de 1999). Nesses dois livros — e em outros de seus vários estudos e publicações —,
o Professor Ricardo Antunes apresenta sólidas contraposições ao segmento do pensamento crítico
europeu que advoga a contraditória tese da perda da centralidade do trabalho e do emprego no
capitalismo contemporâneo. .
(71) HILFERDING, Rudolf. O capital financeiro, São Paulo: Zahar, 1985. A obra data do início do
século XX (1910), examinando o processo de desenvolvimento do capita­lismo na época.
(72) PLIHON, Dominique. Ob. cit., p. 113.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 107

Essa atual prevalência financeiro-especulativa tem seus pressu­ postos,


conforme François Chesnais, no início dos anos 1970, com a revogação do
“sistema de Bretton Woods, decretada unilateralmente pelos Estados Unidos, em
agosto de 1971 (...), decidida em resposta a problemas específicos daquele país”.
O economista europeu, após esclarecer que essa revogação, ao colocar “fim ao
padrão-ouro para o dólar, abrindo caminho, imediatamente, para o sistema de
‘taxas de câmbio flexíveis’, (...) fez do mercado de câmbio o primeiro comparti­
mento a entrar na mundialização financeira contemporânea ...”(73)
A segunda fase do processo que François Chesnais chama de mundialização
financeira ocorre logo a seguir, entre 1979 e 1981, sob liderança da Inglaterra
e dos EUA, quando esses países, segun­do Chesnais, “deram origem ao sistema
contemporâneo de finanças liberalizadas e mundializadas” (...), pondo fim “ao
controle dos movi­mentos de capitais com o exterior”, abrindo externamente os
res­pectivos “sistemas financeiros nacionais”(74). Logo em seguida, EUA e Reino
Unido foram acompanhados nessa liberalização e desregu­lamentação financeiras
“pelos demais países industrializados”(75).
Em consequência, todas “as formas de controle administrativo das taxas de
juros, do crédito e dos movimentos de capitais foram progressivamente abolidas.
O objetivo era desenvolver as finanças de mercado. A ‘desregulamentação’ foi
um dos elementos motores da globalização financeira, pois acelerou a circulação
internacional do capital financeiro”...(76)
Já na década de 1980, sedimenta-se, desse modo, uma longa e cada vez mais
intensa e generalizada fase de dominância mundial das transações em finanças, de
maneira a deixar firmado o império incontestável do setor financeiro-especulativo
no conjunto do siste­ma econômico contemporâneo.
Uma pletora crescente de indicadores descreve essa impres­sionante ascensão
e domínio do setor financeiro-especulativo no sis­tema capitalista contemporâneo.
Goran Therborn assim expõe: “Para dar somente um exemplo, durante um
dia em Londres, é negociado um montante de divisas correspondente ao PIB
mexicano de um ano inteiro. Em um dia e meio, os traficantes de divisas vendem
e compram o equivalente ao PIB anual do Brasil”.(77)
Luiz Gonzaga Belluzo, por sua vez, demonstra ainda que o “va­lor da massa
de ativos financeiros transacionáveis nos mercados de capitais de todo o mundo

(73) CHESNAIS, François. Introdução geral. In: CHESNAIS, F. (Coord.). A mundiali­zação financeira —
gênese, custos e riscos. São Paulo: Xamã, 1998. p. 25 (grifos acrescidos ao original).
(74) CHESNAIS, François. Loc. cit.
(75) CHESNAIS, François. Ob. cit., p. 12.
(76) PLIHON, Dominique. Ob. cit., p. 111.
(77) THERBORN, Goran. A crise e o futuro do capitalismo. In: SADER, Emir; GENTI­LI, Pablo. Pós-
-Neoliberalismo — as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
p. 44-45.
108 MAURICIO GODINHO DELGADO

saltou de cerca de US$ 5 trilhões no início de 80 para US$ 35 trilhões em 1995,


segundo estimativas do BIS”.(78)
Dominique Plihon, finalmente, evidencia que o “peso das tran­ sações
financeiras transnacionais passou, em média, de 10% do PIB, em 1980, nos países
industrializados, a mais de 100% do PIB, em 1992”.(79)
Essa ascensão e prevalência do segmento financeiro-especu­lativo é de tal
monta que o valor total das inversões meramente fi­nanceiras passou até mesmo a
suplantar, nas últimas décadas, o valor total das operações vinculadas ao mercado
efetivo de bens e serviços.
Nessa linha, estão os dados arrolados por Goran Therborn relati­vos à mais
importante economia europeia: “... na Alemanha, um dos países mais importantes
do capitalismo avançado, por volta de 1985, as transações externas de capital
representavam 80% do comércio externo do país. Em 1993, estas transações foram
cinco vezes mais importantes do que o negócio de mercadorias naquele país”.(80)
Completa o autor sua impressionante exposição, agora com dados de caráter
global: “Se considerarmos todos os mercados in­ternacionais de moedas, divisas,
ações, etc., veremos que estes têm uma dimensão 19 vezes maior do que todo o
comércio mundial de mercadorias e serviços”.(81)
Note-se que esse predomínio do capital financeiro-especulati­vo traduz, é
claro, a dominância do capital de curto prazo, em detri­mento das aplicações de
longo prazo (que, muitas vezes, tendem a se conectar com o setor produtivo da
economia). Nessa linha atesta Otaviano Canuto:
O volume diário de transações cambiais nas principais economias
do mundo se expandiu a uma taxa de 30% ao ano nos anos 1980,
ultrapassando cifras de US$ 1 trilhão a partir de 1992. Estima-se que
cerca de 15% das transações corres­pondem hoje a operações primárias
dos itens básicos do ba­lanço de pagamentos (comércio de bens e
serviços e de ativos de longo prazo), enquanto 85% dizem respeito
à aquisição de ativos de curto prazo, incluindo as operações de
especulação e cobertura de risco, além da arbitragem.(82)
Esse descolamento entre a economia real (produção e comér­cio de serviços e
mercadorias, além do financiamento de efetivos investimentos públicos e privados)

(78) BELLUZZO, Luiz Gonzaga. Finança global e ciclos de expansão. In: FIORI, José Luís (Org.). Estados
e moedas no desenvolvimento das nações. 2. ed. Petrópo­lis: Vozes, 1999. p. 105.
(79) PLIHON, Dominique. Ob. cit., p. 112.
(80) THERBORN, Goran. A crise e o futuro do capitalismo. In: SADER, Emir; GENTILI, Pablo. Pós-Neo-
liberalismo — as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de Ja­neiro: Paz e Terra, 1998. p. 44-45.
(81) THERBORN, Goran. Ob. cit., p. 44-45 (grifos acrescidos).
(82) CANUTO, Otaviano. Mobilidade de capital e equilíbrio de portfólios. In: FERRARI FILHO,
Fernando; PAULA, Luiz Fernando de (Orgs.). Globalização financeira — en­saios de macroeconomia
aberta. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 107 (grifos acrescidos).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 109

e as inversões estritamente fi­nanceiro-especulativas — estas se tornando muito


maiores —, é também percebido por Dominique Plihon: “as finanças internacio­nais
desenvolvem-se, atualmente, segundo sua própria lógica que não guarda mais do
que uma relação indireta com o financiamento do comércio e dos investimentos
produtivos na economia mundial”.(83)
Observe-se que a nova hegemonia financeiro-especulativa não traduz sim-
plesmente um domínio do clássico segmento bancário capitalista. Na verdade, este
se tornou apenas uma fração do con­junto diferenciado do mercado financeiro, em
que passaram a cumprir função decisiva também os fundos de investimento, os
fundos de aposentadoria, as companhias de seguro, a par dos próprios emis­sores
de títulos de dívida monetária, sejam públicos, sejam priva­dos. A propósito, como
lembra Dominique Plihon, parte significativa das operações concretizadas não
passa mais por intermediários (que eram, tradicionalmente, os bancos), realizando-
-se as transações de maneira direta, sem os custos anteriores da intermediação(84).

1. Exacerbação do Ultraliberalismo

Essa hegemonia do capital financeiro-especulativo exacerba o direcionamento


ultraliberal da economia pelos Estados nacionais e instituições internacionais
vinculadas, conferindo longevidade e le­vando ao paroxismo a política antissocial
do neoliberalismo.
São vários os fatores que atuam nessa perversa direção.
Em primeiro lugar, há que se pôr em destaque a instigação pela mantença do
elevado patamar dos juros no conjunto da econo­mia, garantindo-se remuneração
privilegiada ao universo de credo­res financeiros.
A manutenção de altas taxas de juros tem repercussões de­vastadoras na
economia, na sociedade e no próprio Estado. Arro­lem-se algumas dessas nefastas
repercussões:
a) As altas taxas de juros reduzem a atividade econômica pri­vada. Isso
acontece em decorrência de vários aspectos interinfluen­tes: de um lado, pela
melhor remuneração conferida ao capital mo­netariamente aplicado em confronto
com o capital investido na pro­dução e no comércio. De outro lado, pela inviabilidade
econômica que tais taxas provocam no que tange ao crédito empresarial, em
virtude do desproporcional custo deste, comparativamente com os ganhos
potenciais da produção. Em terceiro lugar, pelo enfraqueci­mento que essas taxas
altas implementam no correspondente mer­cado consumidor, deprimindo, por mais
uma razão, a economia pri­vada. Finalmente, pela exacerbação que os altos juros

(83) PLIHON, Dominique. Ob. cit., p. 112.


(84) Conforme PLIHON, D. Ob. cit., p. 110-111.
110 MAURICIO GODINHO DELGADO

produzem quanto ao risco dos empreendimentos capitalistas em geral, elevan­do-o


para níveis inteiramente irracionais.
b) As taxas altas de juros também reduzem o investimento pú­blico na eco-
nomia e na sociedade. Esse terrível efeito resulta do brutal crescimento que elas
provocam na dívida pública, impondo o direcionamento dos recursos estatais em
favor da própria renova­ção dessa dívida. A propósito, mesmo nos países europeus
(em que as taxas de juros têm sido altas, nos últimos 20/25 anos, mas não tão
escandalosas, como no Brasil), já se vê “claramente que os encargos de juros tor-
naram-se a causa essencial, e cada vez mais importante, dos déficits públicos”.(85)
Ressalte-se, a propósito, que a tibieza do investimento público no sistema
socioeconômico é, de maneira geral, a mais importante variável inibidora do
crescimento da economia e da elevação e ge­ neralização do desemprego na
sociedade (a análise dessa relação será retomada logo à frente).
c) As altas taxas de juros ainda reduzem ou eliminam a possi­bilidade de
efetivo e consistente crescimento econômico no respec­tivo país, em decorrência
das diversas razões já expostas.
d) As elevadas taxas de juros, como derivação dos inúmeros malefícios
mencionados, também potenciam os índices de desem­ prego nas respectivas
economia e sociedade, induzindo, ainda, à cres­cente desvalorização do trabalho.
e) As altas taxas de juros, finalmente, por tudo o que foi expos­to, aprofundam
os problemas relacionados ao perfil de concentra­ção de renda na respectiva
sociedade e economia.
Retomando-se os fatores que atuam na linha da exacerbação do direciona-
mento ultraliberal da economia, em face do domínio em sua dinâmica do capital
financeiro-especulativo, há que se conferir ênfase, em segundo lugar, à insistên-
cia na preservação de políticas redutoras dos investimentos públicos, diretos ou
indiretos.
Essa insistência deriva da tenaz perseguição, pelo Estado, de equilíbrios
orçamentários na área pública (maior arrecadação do que dispêndio), de maneira
a garantir o cumprimento disciplinado da pesada dívida pública interna e externa.
Note-se — sem ironia — ­que se está aqui diante de um verdadeiro mito de Sísifo,
dado que o mesmo ultraliberalismo determina o incremento incessante dessa
dívida pública, mediante a exacerbação dos juros que a oneram em benefício dos
credores.

(85) PLILHON, Dominique. Ob. cit., p. 107. O nível elevado das taxas de juros que caracterizou
também a Europa Ocidental a partir dos anos 1980 refluiu com a crise econômica deflagrada a partir
de 2007/2008 nos EUA, com repercussões na economia da zona do euro. Como parte das medidas
para combater a recessão, a autoridade monetária europeia diminuiu o padrão dos juros do sistema
econômico-financeiro para patamares bem inferiores aos vigorantes nas décadas precedentes.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 111

Ora, a mantença de baixos investimentos públicos, diretos e indiretos, na


economia capitalista, inviabiliza, praticamente, o alcan­ce de índices razoáveis de
crescimento econômico. Isso ocorre por duas decisivas razões: de uma parte, em
vista do papel que o inves­timento estatal tem como indutor destacado da iniciativa
privada (o Estado, no capitalismo, alavanca os investimentos privados, ao con­trário
da imagem estatal negativa que o ideário ultraliberal insiste em propagar).
De outra parte, o baixo nível de investimentos públicos tende a inviabilizar
o alcance de razoável desempenho econômico geral em decorrência do inevitável
e substantivo peso proporcional que as inversões públicas têm no conjunto da
economia. Afinal, os entes estatais tendem a se posicionar, de maneira geral,
no respectivo mercado interno entre os maiores investidores, empregadores e
con­sumidores existentes (se não tiverem a efetiva liderança em alguns desses
segmentos, caso unitariamente considerados).
Quer tudo isso dizer que a filosofia restritiva da atuação inves­tidora do
Estado (mesmo que não direta, porém indireta, via iniciati­va privada) tornou-se,
contemporaneamente, um dos mais podero­sos mecanismos de empobrecimento
da economia e da sociedade capitalistas, de perda de oportunidades de crescimento
mercadoló­gico, de acentuação do desemprego e de desvalorização do traba­lho,
de enfraquecimento da economia no cenário interno e no con­texto comparativo
internacional.
Além de tudo, é necessário reenfatizar-se que o baixo nível de investimento
estatal compromete, frontalmente, qualquer política sé­ ria de combate ao
desemprego. É que os investimentos do Estado, em suas múltiplas dimensões,
por sua própria dinâmica e pela pro­jeção que têm junto ao mercado econômico
privado, elevam, com rapidez, as taxas de emprego, melhorando, ainda, por
consequên­cia, a valorização do trabalho na economia e na sociedade.
Um terceiro fator que atua na exacerbação ultraliberal da eco­nomia, em
virtude da prevalência do capital financeiro-especulativo, consiste na destruição do
aparelho público de prestação de serviços e de intervenção do Estado na dinâmica
econômica.
Essa destruição objetiva, sob certo ponto de vista, atender à agenda prioritária
do capital financeiro-especulativo. Não se desco­nhece que semelhante destruição
também resulta de outras consi­ derações e metas integrantes da inspiração
neoliberal (por exemplo, suposta busca da maior eficiência da economia privada
em contra­ponto com a atuação pública). Entretanto, o que é fundamental per­ceber
é que tal processo de desestatização se encontra em estreito afinamento com os
interesses do segmento financeiro-especulativo do capitalismo contemporâneo.
Essa harmonia resulta do fato de que a desestatização visa, no plano imediato,
gerar arrecadação líquida em favor dos credores da dívida pública (vide recursos
monetários líquidos advindos da priva­tização das entidades estatais, por exemplo).
112 MAURICIO GODINHO DELGADO

A par disso, o caminho desestatizante, a prazos médios e lon­gos, contribui


para reduzir a necessidade de novos e intensos flu­xos de investimentos estatais,
propiciando, desse modo, a concen­tração de esforços do Estado para a dinâmica
de gestão da própria dívida pública.

VII — HEGEMONIA ULTRALIBERAL E POLÍTICA PÚBLICA DE


DESTRUIÇÃO DO EMPREGO — SÍNTESE

A conjuntura do sistema capitalista, ao longo das dé­cadas iniciadas em fins de


1970 e nos anos 1980, deu origem à realização de importantes acontecimentos
e tendências de notável impacto no mundo do trabalho. A concentra­ção de tais
tendências e acontecimentos nesse curto período histó­rico fez brotar diagnóstico
relativamente generalizado a respeito da presença de irremediável crise estrutural
no tocante ao trabalho e ao emprego na atualidade do capitalismo.
Esse diagnóstico e o caráter sombrio de suas previsões, em­ bora tendo,
evidentemente, pontos de contato com a dinâmica atual do sistema socioeconômico
prevalecente, acabam por tra­duzir, em boa medida, sagaz instrumento cultural no
processo de combate ao primado do trabalho e do emprego no sistema capita­lista
contemporâneo.
A construção desse tipo de diagnóstico e de tais previsões som­ brias
fundamenta-se em três eixos de argumentação, às vezes ex­postos de maneira
combinada: as mudanças provocadas pela ter­ ceira revolução tecnológica do
capitalismo; as mudanças vinculadas à recente reestruturação empresarial, quer
no plano da descentrali­zação do empreendimento capitalista, quer no plano das
alterações nos métodos e sistemas de gestão das empresas e de sua força de
trabalho; a acentuação da concorrência capitalista, inclusive e espe­cialmente no
quadro do mercado mundial.
Esses três grandes fatores teriam dado origem a um desem­prego estrutural
no sistema capitalista, desemprego supostamente inevitável, ao lado de um
processo irreprimível de perda de relevân­cia, no sistema, da relação de emprego
e do próprio trabalho.
A falácia desse tipo de argumentação — que atua muito mais como
instrumento justificador e apologético de certo tipo desastro­so de gestão pública
da sociedade e do sistema econômico, que se tornou dominante na virada dos
séculos XX/XXI — torna-se mais evidente quando se examina o tipo de política
pública, notadamente econômico-financeira, seguida pelos Estados Nacionais
capitalistas no mesmo período considerado, e seus gravíssimos efeitos sobre os
níveis de desenvolvimento econômico e de emprego nas econo­mias e sociedades
envolvidas.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 113

O curioso é que, não obstante haja notável coincidência tem­poral entre o


profundo desemprego vivenciado por inúmeros países do Ocidente e o implemento
rigoroso por seus respectivos Estados de inexpugnável política econômico-finan-
ceira de natureza liberal-monetarista, tal diagnóstico hegemônico e suas previsões
sombrias tendem a desconsiderar, em suas análises, a relevância desse fator polí-
tico-conjuntural.
O presente capítulo procurou demonstrar o inverso, isto é, as relações entre
semelhante política pública, fortemente direcionado­ra das atividades do Estado e
da economia nacional, com o des­prestígio do trabalho e do emprego no respectivo
país capitalista.
O eixo argumentativo deste capítulo foi, em consequência, sim­ples e direto:
procurou evidenciar a existência de uma orgânica co­nexão entre o tipo de política
pública seguida, hegemonicamente, hoje, na maioria dos países capitalistas
ocidentais, inclusive no Bra­sil, e o desprestígio do trabalho e do emprego nas
mesmas socieda­des. O núcleo dessa política pública tem sido, inclusive, o grande
responsável pelas elevadíssimas taxas de desemprego que têm ca­racterizado tais
economias nesse período.(86)
O que este estudo procurou comprovar é que há, pois, uma política pública
sistemática de derruição do emprego e do trabalho nesses Estados e em suas
economias e sociedades, política reni­tentemente aplicada nas últimas décadas
(embora, com todo o cui­dado, jamais se assuma como tal).
Essa política pública sistemática e antissocial tem se acobertado — e se
fortalecido — sob o manto explicativo do chamado desem­prego estrutural, em
seus três eixos (tecnológico, organizacional e mercadológico), e, com isso, vem
conseguindo se manter intocada nas últimas décadas.
Noutras palavras, o desprestígio do trabalho e do emprego no atual capitalis-
mo, e as elevadas taxas de desocupação que ora o caracterizam, não têm caráter
prevalentemente estrutural, mas, sim, conjuntural, sendo produto concertado de
políticas públicas dirigidas, precisamente, a alcançar esses objetivos perversos e
concentradores de renda no sistema socioeconômico vigorante.
Trata-se não mais do que o império de um capitalismo sem reciprocidade,
capitalismo sem peias — que não tem necessaria­mente de funcionar assim, mas o
faz em face da reiteração da mes­ma matriz de suas políticas públicas principais.

(86) No caso brasileiro, tal política pública antissocial, de manifesta destruição de empregos, em seu
conjunto, foi seguida em largo período da década de 1990, conforme exaustivamente exposto no
presente livro. Lamentavelmente, foi retomada, com rigor e radicalidade impressionantes, a partir
dos anos de 2016/2017 (tendo certos antecedentes no próprio ano de 2015) — fato que deflagrou o
rápido e acelerado aumento das taxas de desemprego no País, em seguida a vários anos de notável
redução do desemprego.
CAPÍTULO IV

DIREITO DO TRABALHO E INCLUSÃO SOCIAL:


O DESAFIO BRASILEIRO(*)

I — INTRODUÇÃO

A afirmação do valor-trabalho nas principais economias ca­pitalistas ocidentais


desenvolvidas despontou como um dos mais notáveis marcos de estruturação da
democracia social no mundo contemporâneo.
Por meio dessa afirmação, o sistema capitalista, essencialmente desigual,
passou a incorporar as grandes massas populacionais à sua dinâmica operativa,
segundo um padrão relativamente racional de desenvolvimento econômico e
distribuição de riquezas.
Esse engenho de incorporação econômica e de justiça social realizava-se em
torno da relação empregatícia — a principal forma de conexão do indivíduo à
economia capitalista — e de seu ramo jurídico regulador, o Direito do Trabalho.
Com a centralidade do trabalho e, especialmente, do emprego — e de
seu ramo normativo regente especializado —, conseguia-se submeter o moinho
implacável da economia a certa função social, ao mesmo tempo que se restringiam
as tendências autofágicas, destrutivas, irracionais e desigualitárias que a História
comprovou serem inerentes ao dinamismo corrente desse sistema econômico.
A evolução brasileira nessa seara mostrou-se diferenciada.
Efetivamente, de maneira geral, no contexto socioeconômico do capitalismo
no País, o valor-trabalho e seu ramo jurídico regu­lador não chegaram a alcançar
plena afirmação.
Esse aparente paradoxo, que tanta influência tem no desnível econômico-
-social do Brasil, é que será analisado neste capítulo.

(*) Este artigo, como tal, era inédito na data da 1ª edição deste livro (janeiro de 2006). Entretanto
vários dados e reflexões nele expostos já haviam sido inseridos pelo autor em outros estudos
divulgados tempos atrás. Ilustrativamente suas ideias foram expostas no Fórum Internacional sobre
Direitos Humanos e Direitos Sociais, realizado entre 29 de março e 1º.04.2004, em Brasília, no
Tribunal Superior do Trabalho, com a participação de autoridades e intelectuais do Brasil, da OIT
e de outros países e instituições internacionais. No painel “Discriminação”, este autor abordou o
tema retomado no presente capítulo IV, na época sob o título Discriminação e Exclusão Social – As
Grandes Maiorias e o Direito do Trabalho. Com esse mesmo título, o estudo foi publicado no livro
coletivo referente ao Fórum Internacional, a saber: DELGADO, Mauricio Godinho Discriminação e
Exclusão Social — As Grandes Maiorias e o Direito do Trabalho. In: Tribunal Superior do Trabalho.
Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais. São Paulo: LTr, 2004, p. 366-376.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 115

II — O PAPEL DO DIREITO DO TRABALHO NO CAPITALISMO

O Direito do Trabalho é o ramo jurídico especializado que regu­la o principal


tipo de vínculo entre a pessoa humana que trabalha e o sistema econômico
capitalista: a relação de emprego.
É, pois, o conjunto de regras, institutos e princípios jurídicos reguladores da
relação de emprego (além de outros vínculos jurídi­cos, de menor impacto social,
se especificados em lei).(1)
A ordem jurídica como um todo, na qualidade de instrumento de regulação de
instituições e vínculos entre pessoas, atende a fins preestabelecidos em determinado
contexto histórico. Sendo as re­gras e os diplomas jurídicos resultado de processos
políticos bem-su­cedidos em determinado quadro sociopolítico, tendem a correspon­
der ao estuário cultural hegemônico ou, pelo menos, importante no desenrolar de
seu processo criador. Todo Direito é, por isso, finalístico, à proporção que incorpora
e realiza um conjunto de valores socialmente considerados relevantes.
O Direito do Trabalho não escapa a essa configuração a que se submete
genericamente o fenômeno jurídico. Na verdade, o ramo trabalhista destaca-se
por levar a um ponto alto esse caráter teleo­lógico que caracteriza o fenômeno
do Direito. De fato, esse ramo incorpora, no conjunto de seus princípios, regras
e institutos, al­guns cruciais valores e fins, que respondem por sua formatação e
existência.
A realização de tais valores e fins concretiza-se por meio das funções do
segmento jurídico enfocado.
As principais funções do Direito do Trabalho, afirmadas na ex­ periência
capitalista dos países desenvolvidos, consistem, em sín­ tese, na melhoria das
condições de pactuação da força de trabalho na vida econômico-social, no
caráter modernizante e progressista, do ponto de vista econômico e social, desse
ramo jurídico, ao lado de seu papel civilizatório e democrático no contexto do
capitalismo. Em aparente contraponto a tudo isso, desponta a função política
conservadora desse segmento jurídico especializado.

(1) Entre os tipos de trabalhadores não empregados (eventuais e autônomos, por exem­plo), no
Brasil, a categoria portuária de trabalhadores avulsos destaca-se por ter a vantagem de receber
a incidência do Direito do Trabalho no tocante à sua prestação de serviços nos portos marítimos
do País. Mais recentemente, por meio da Lei n. 12.023, de 2009, foi regulada a contratação, via
sindicato profissional, de trabalhadores no segmento de atividades de movimentação de mercadorias
em geral (os chamados portos secos). Esses trabalhadores, embora não sejam empregados, devem
ter seus direitos trabalhistas devidamente observados, em correspondência com a gestão de mão
de obra organizada pelo respectivo sindicato profissional. Sobre os antigos e novos avulsos (ou seja,
marítimos e não marítimos), consultar DELGADO, Mauricio Godinho, Curso de direito do trabalho.
14. ed. São Paulo: LTr, 2015. p. 364-370.
116 MAURICIO GODINHO DELGADO

A função de melhoria das condições de pactuação da força de trabalho na


ordem socioeconômica é a que mais claramente se per­cebe na evolução de 150
anos do Direito do Trabalho. Na verdade, sem ela, esse campo do Direito sequer
poderia ser compreendido his­toricamente e tampouco iria se justificar, socialmente,
deixando, pois, de cumprir sua função mais notável na sociedade contemporânea.
Essa função central, evidentemente, tem sido desempenhada no capitalismo
de modo diferenciado e com intensidade distinta, se­ gundo cada experiência
histórica específica.
Esclareça-se que essa função não pode ser apreendida sob uma perspectiva
meramente individualista, enfocando o trabalhador isola­do. Como é próprio ao
Direito — e fundamentalmente ao Direito do Trabalho, em que o ser coletivo prepon-
dera sobre o ser individual —, a lógica básica do sistema jurídico deve ser captada,
tomando-se o conjunto de situações envolvidas, jamais sua fração isolada. Assim,
deve-se considerar, no exame do cumprimento da função jurídico-­trabalhista, o ser
coletivo obreiro, o universo mais global de traba­lhadores, independentemente dos
estritos efeitos sobre o ser indivi­dual destacado.
Discorra-se um pouco mais sobre essa função decisiva: é pela norma jurídica
trabalhista, interventora no contrato de emprego, que a sociedade capitalista,
estruturalmente desigual, consegue realizar certo padrão genérico de justiça
social, distribuindo a um número significativo de indivíduos (os empregados), em
alguma medida, ganhos do sistema econômico.
Na medida em que o contrato empregatício desponta como o princi­pal
veículo de conexão do indivíduo com a economia, seu ramo jurí­dico regulador — o
Direito do Trabalho — torna-se um dos mais eficientes e genéricos mecanismos de
realização de justiça social no sistema capitalista.
Ora, sabe-se que a economia de mercado não visa à procura de equidade,
de justiça social, porém à busca da eficiência, da pro­dutividade e do lucro. Nesse
contexto o Direito do Trabalho tem se afirmado na História como uma racional
intervenção da ideia de jus­tiça social, por meio da norma jurídica, no quadro
genérico de toda a sociedade e economia capitalista, sem inviabilizar o próprio
avanço desse sistema socioeconômico.
A segunda função relevante do Direito do Trabalho é seu ca­ráter moderni-
zante e progressista, do ponto de vista econômico e social.
Isso significa que, nas formações socioeconômicas centrais — a­ Europa
Ocidental, em particular —, a legislação trabalhista, desde seu nascimento,
cumpriu o relevante papel de generalizar ao con­junto do mercado de trabalho
aquelas condutas e direitos alcança­dos pelos trabalhadores nos segmentos mais
avançados da economia, impondo, desse modo, a partir do setor mais moderno e
dinâmico da economia, condições mais modernas, dinâmicas e civilizadas de ges­
tão da força de trabalho.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 117

É verdade que esse caráter progressista não se percebe com tanta clareza
no caso brasileiro, principalmente em vista de não ter merecido aqui o Direito
do Trabalho generalização significativa no âmbito do mercado laborativo do País.
De fato, curiosamente, em nossa economia e sociedade, o padrão normativo
trabalhista tende a abranger fração pequena do impressionante universo de mais
de 80 milhões de trabalhadores que formam a população economica­mente ativa
do País (essa curiosa defasagem será examinada no item III deste capítulo, à
frente). Não obstante, cabe enfatizar —­ como faz o economista Marcio Pochmann
— que, ainda assim, “o emprego assalariado formal representa o que de melhor
o capita­lismo brasileiro tem constituído para a sua classe trabalhadora, pois vem
acompanhado de um conjunto de normas de proteção social e trabalhista”(2).
Insista-se um pouco mais nessa função jurídico-trabalhista es­pecial: é que
o Direito do Trabalho, do ponto de vista socioeconômi­co, se generalizado na
respectiva realidade nacional, torna-se im­portante incentivo ao crescimento do
capitalismo, assumindo papel indutor do progresso socioeconômico no respectivo
país.
Esse seu caráter modernizante e progressista resulta de, pelo menos, dois
fatores combinados.
De um lado, do fato de o Direito do Trabalho estruturar, impelir e organizar o
mercado interno de absorção dos próprios bens e ser­viços gerados pela economia,
mantendo-o renovado e dinâmico, por suas próprias forças de sustentação. Ora,
ao elevar as condições de pactuação da força de trabalho, esse ramo jurídico não
só realiza justiça social, como cria e preserva mercado para o próprio capitalismo
interno, devolvendo a este os ganhos materiais socialmente distribuídos em
decorrência da aplicação de suas regras jurídicas.
De outro lado, esse caráter modernizante e progressista se manifesta pelo
fato de esse ramo jurídico, ao incrementar o nível de pactuação do trabalho,
induzir os empregadores ao investimento tecnológico, como meio de redução
numérica de suas próprias ne­cessidades laborativas.
Nota-se, portanto, que a primeira das funções desse ramo jurídi­co (elevação
das condições de pactuação da força de trabalho) é, do ponto de vista econômico,
atenuada por sua segunda função (caráter modernizante e progressista), de modo
a permitir que seu critério de inserção das pessoas no sistema socioeconômico não
seja irracional, mas bastante compatível e favorável ao próprio capitalismo.
Não é por outra razão, a propósito, que os países mais desen­volvidos, do
ponto de vista econômico, social e cultural, são os que apresentam o nível mais
elevado de retribuição ao trabalho. Ilustra­tivamente, considerada a moeda Euro,

(2) POCHMANN, Marcio. O emprego na globalização — a nova divisão internacional do trabalho e os


caminhos que o Brasil escolheu. 1. ed./1ª reimpr. São Paulo: Boitempo, 2002. p. 98.
118 MAURICIO GODINHO DELGADO

eis os dados de salários, en­cargos sociais e custos totais por hora de trabalho em
alguns países desenvolvidos, no ano de 2004, segundo o órgão alemão de pesqui­
sas econômicas, Instituto Wirtschaft Köln — IW, em quadro divulga­do pelo jornal
Valor Econômico:(3)

País Salários (hora) Encargos Sociais (hora) Custos Totais (hora)


Dinamarca 21,06 7,08 28,14
Alemanha 15,45 12,15 27,60
Noruega 18,46 8,86 27,31
Suíça 16,66 8,65 25,31
Bélgica 13,16 11,85 25,01
Finlândia 14,06 10,82 24,88
Holanda 13,15 10,60 23,74
Reino Unido 13,61 6,27 19,89
Irlanda 13,45 5,34 18,79
EUA 12,98 5,78 18,76
Japão 10,62 7,33 17,95
Itália 8,84 8,40 17,24
Espanha 8,98 7,61 16,59
Grécia 6,21 4,21 10,42
Portugal 4,10 3,11 7,21

O elevado nível dos salários e do próprio custo total do traba­lho não se


constitui, como se percebe, em obstáculo ao desenvolvi­mento de tais países — ao
contrário do que propaga certo tipo de discurso hoje dominante(4). Ao invés, a
densidade e o vigor dessas economias e sociedades muito devem à consistente
retribuição que tendem a deferir ao valor-trabalho dentro de suas fronteiras(5).

(3) Valor Econômico, 11.8.2005, p. A-9, “Custo do trabalho na Alemanha é o 2º maior”. A pesquisa
indica também os números correspondentes a certos países europeus menos desenvolvidos, situados
fora da zona do curo. Ilustrativamente, Hungria: sal./hora: 2,55; enc. soc./hora: 1,97; cust. tot./hora:
4,53; República Tcheca: sal./hora: 2,45; enc. soc./hora: 2,04; cust. tol./hora: 4,49.
(4) É evidente que a análise acerca de certos países arrolados, como Portugal e Grécia, passa pelo
fato exponencial de seu ingresso na comunidade europeia, que teve fortíssimo impacto em suas
economias e sociedades.
(5) Conforme já discorrido no capítulo III deste livro, a persistente combinação de bai­xas taxas de
crescimento e elevado desemprego que a Europa Ocidental tem de­monstrado nas últimas décadas
deve-se, claramente, à prevalência de rigorosa políti­ ca monetarista imposta pelos respectivos
bancos centrais nacionais — principalmente o alemão — e, hoje, capitaneada pelo Banco Central
Europeu (contração monetária, contração de crédito, baixo investimento público, juros elevados, por
exemplo). A isso se soma mais recentemente a artificial elevação do valor da moeda única, Euro, fato
que só tem acentuado tais efeitos econômicos contracionistas (nota de rodapé da edição original
do livro, de janeiro de 2006). Acrescente-se, por outro lado, que a crise econômica deflagrada em
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 119

A terceira importante função do Direito do Trabalho é seu cará­ter civilizatório


e democrático.
Esse ramo jurídico especializado tornou-se, na História do Ca­ pitalismo
Ocidental, um dos instrumentos mais relevantes de inser­ ção na sociedade
econômica de parte significativa dos segmentos sociais despossuídos de riqueza
material, e que, por isso mesmo, vivem, essencialmente, de seu próprio trabalho.
Nessa linha, ele as­sumiu o papel, ao longo dos últimos 150 anos, de ser um dos
princi­pais mecanismos de controle e atenuação das distorções socioeco­nômicas
inevitáveis do mercado e sistema capitalistas.
Juntamente com isso, também dentro de sua função democrá­tica e civilizatória,
o Direito do Trabalho consumou-se como um dos mais eficazes instrumentos de
gestão e moderação de uma das mais importantes relações de poder existentes na
sociedade contempo­rânea, a relação de emprego.
Deve ser notado, portanto, que a primeira e terceira funções, conjugadas
(elevação das condições de pactuação da força de tra­balho e caráter modernizante
e progressista), realizam objetivos de direto interesse dos grandes segmentos
populacionais da socieda­ de capitalista contemporânea, quais sejam, justiça
social e demo­cratização do poder. Na proporção em que se sabe que o mercado
econômico, por si só, é incapaz de realizar tais objetivos — tais objetivos — uma
vez que tende, na verdade, a exacerbar dinâmicas e efeitos contrários a eles —,
pode-se aquilatar a essencialidade desse ramo jurídico-trabalhista no processo de
construção de sociedades mais igualitárias, justas e democráticas nos marcos do
sistema econômico dominante.
Concluindo-se o exame dos papéis mais relevantes do Direito do Trabalho,
seria ingenuidade negar-se que não tenha tal ramo jurídico, de modo concomitante,
também uma função política conservadora.
Essa função existe na medida em que esse segmento normativo especializado
confere legitimidade política e cultural à relação de pro­dução básica da sociedade
contemporânea. A existência do Direito do Trabalho não deixa de ser, assim, um
meio de legitimação cultu­ral e política do capitalismo — porém concretizada em
padrão civili­zatório mais alto (e não nos moldes do capitalismo sem reciprocida­de,
sem peias).
Por isso é que o reconhecimento desse papel conservador não invalida as
funções anteriormente especificadas. Na verdade, o divisor aqui pertinente é o

2007/2008, a partir da economia norte-americana, aprofundou os problemas até então observados.


Não obstante tenha havido certo afrouxamento da política monetária no enfrentamento da crise
(diminuição dos juros e diminuição da contração monetária, por exemplo), a generosa proteção
monetária estendida ao mercado financeiro em geral agravou o endividamento público de grande
parte dos Estados componentes da União Europeia; com isso, cresceu a força do discurso liberalista
de redução dos custos tanto do Welfare State como da contratação e gestão do trabalho humano.
120 MAURICIO GODINHO DELGADO

que identifica dois polos opostos: no primeiro, o capitalismo sem reciprocidade,


desenfreado, que exacerba os me­canismos de concentração de renda e exclusão
econômico-social próprios ao mercado; no segundo polo, a existência de
mecanismos racionais que civilizam o sistema socioeconômico dominante, fa­
zendo-o bem funcionar, porém adequado a parâmetros mínimos de justiça social.
Nesse quadro, todas essas funções enunciadas confirmam o diagnóstico de que
o Direito do Trabalho tem contribuído para asse­gurar, nestes 150 anos, a elevação
do padrão de gestão das rela­ções empregatícias e do próprio nível socioeconômico
assegurado aos trabalhadores por sua inserção no processo produtivo(6).

1. Generalização na Ordem Econômico-Social

Note-se, por fim, que todas essas importantes funções do ramo jurídico
trabalhista passaram a se destacar desde as primeiras dé­cadas de sua formação
na Europa Ocidental, ainda na segunda me­tade do século XIX. No entanto, é claro
que se acentuaram durante o século XX, especialmente ao longo do período de
vigência do Estado de Bem-Estar Social e da prevalência da orientação keynesiana
de ges­tão econômico-social do capitalismo.
É necessário se perceber que, mesmo considerada a domi­nância da matriz
ultraliberalista de gestão econômico-social na Eu­ropa desde fins dos anos 1970, o
Direito do Trabalho manteve ali sua amplitude e abrangência, de modo a preservar
a essência dos fundamentais papéis por ele cumpridos no capitalismo.
De fato, tomados dois parâmetros muito ilustrativos (Alemanha e França),
com dados aplicáveis à década de 1990 (portanto, bas­tante pertinentes ainda),
vê-se que o Direito do Trabalho tem sido, no desenrolar do sistema econômico-
-social contemporâneo, notável instrumento de inclusão social das grandes massas
populacionais dos países capitalistas desenvolvidos. Enfocadas as situações da Ale-
manha e da França, percebe-se que mais de 80% da população eco­nomicamente
ativa daqueles países, já excluído o percentual de de­sempregados, insere-se no
mercado laborativo capitalista com as proteções inerentes ao Direito do Trabalho.
Em síntese, mais de 80% do pessoal ocupado nesses dois paí­ses europeus de-
senvolvidos, mesmo após longos anos de fluxo desregulamentador e flexibilizatório
oriundo da década de 1970, en­contra-se, sim, regido pelo Direito do Trabalho.
A respeito da Alemanha, assim expõe Wolfgang Däubler:
Nas estatísticas, os autônomos aparecem como exce­ção relativamente
insignificante. Apenas 8,53% de todas as pessoas economicamente
ativas exerciam em maio de 1987 uma atividade autônoma. 1,78%

(6) Sobre as funções jurídico-trabalhistas na História, consultar também MAIOR, Jor­ge Luiz Souto. O
direito do trabalho como instrumento de justiça social. São Paulo: LTr, 2000.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 121

eram colaboradores familia­res que podem ser encontrados sobretudo


na agricultura, no varejo e em atividades artesanais. 80,62% de todos
os ativos eram operários e empregados. 9,07% eram funcionários
cos e militares. Assim, praticamente nove entre dez pessoas
públi­
economicamente ativas são assalariadas, pois de lá para cá não houve
mudanças maiores nesta relação. Enquanto a condição de funcionário
público se fundamenta em ato administrativo, sendo regulamentada
exclusivamente por lei, estão os operá­rios e empregados sujeitos ao
Direito do Trabalho”(7).
Note-se que Wolfgang Däubler, embora tenha se baseado em dados de 1987,
afirma, em sua citada obra de fins dos anos 1990, não ter havido “mudanças
maiores nesta relação”. De todo modo, o livro de informações oficiais daquele
país, “Perfil da Alemanha”, edi­tado pela Societäts-Verlag, de Frankfurt/Meno, em
1996, reitera a mesma linha de constatações:
trabalhadores, empregados, aprendizes e funcionários públi­cos, isto
é, os chamados assalariados, perfazem na Alemanha 89,5 por cento
dos 36,1 milhões de pessoas ativas (29,7 mi­lhões nos antigos estados
e 6,7 milhões nos novos estados). Além dos assalariados, há 3,3
milhões de autônomos, que atuam como empregadores. Ao lado dos
488.000 familiares que os ajudam, os autônomos empregam também
um grande nú­mero de assalariados(8).
No tocante à França, por sua vez, Jean-Claude Javillier, refe­rindo-se ao ano
de 1996, expõe que a população assalariada, regida pelo Direito do Trabalho,
atinge cerca de 19,5 milhões de pessoas, sendo de 22,5 milhões a população ativa
ocupada, em um contexto de uma população total de 58,4 milhões(9). Por tais
dados, em torno de 86% da população economicamente ativa ocupada rege-se
pelo ramo jurídico trabalhista naquele país.
Tudo isso significa que o Direito do Trabalho foi o grande instru­ mento
que as democracias ocidentais mais avançadas tiveram de integração social,
de distribuição de renda, de democratização so­ cial. Um poderoso e eficaz
instrumento que conseguiu exatamente estabelecer uma forma de incorporação
do ser humano ao sistema socioeconômico, em especial daqueles que não tenham
outro meio de afirmação senão a própria força de seu labor. Trata-se de uma
generalizada e eficiente modalidade de integração dos seres humanos ao sistema
econômico, ainda que considerados todos os problemas e diferenciações da vida
social, um notável mecanismo assecurató­rio de efetiva cidadania. Está-se diante,

(7) DÄUBLER, Wolfgang. Direito do trabalho e sociedade na Alemanha. São Paulo: LTr/Fundação
Friedrich Ebert/ILDES, 1997. p. 41-42 (grifos acrescidos).
(8) Perfil da Alemanha, Frankfurt/Menos: Societäts-Verlag, 1996. p. 386.
(9) JAVILLIER, Jean-Claude. Manuel droit du travail. Paris: LGDJ, 1998. p. 50.
122 MAURICIO GODINHO DELGADO

pois, de um potente e arti­culado sistema garantidor de significativo patamar de


democracia social. Em síntese, naqueles países líderes do capitalismo, conside­
rada sua população economicamente ativa, mais de 80% do pes­soal ocupado está
regido pelo Direito do Trabalho.
Claro que têm despontado, sem dúvida, novas formas de tra­balho e de
contratação que escapam ao padrão trabalhista tradicio­ nal. Contudo, nesses
dados, já estão consideradas tais novas formas de contratação e de labor, uma vez
que eles dizem respeito à se­gunda metade da década de 1990, já incorporando
todos os efeitos da crise jurídico-trabalhista iniciada na Europa 20 anos antes.

III — RECUSA BRASILEIRA À GENERALIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO E


CONSEQUENTE EXCLUSÃO DAS GRANDES MAIORIAS

A evolução jurídico-trabalhista no Brasil — em contraponto ao padrão europeu


ocidental — evidencia, irrefutavelmente, a recusa sistemática à generalização do
Direito do Trabalho em nossa econo­mia e sociedade.
Essa omissão histórica tem constituído, no fundo, um dos mais poderosos
veículos de exclusão social das grandes maiorias no País.
Na verdade, parece claro que o decisivo segredo acerca da impressionante
exclusão social neste País reside no fato de o de­senvolvimento capitalista aqui, ao
longo do século XX, ter se reali­zado sem a compatível generalização do Direito
do Trabalho na eco­nomia e sociedade brasileiras — omissão que não permitiu a
sedimentação de um eficaz, amplo e ágil mecanismo de distribuição de renda e
poder no contexto socioeconômico.
Em síntese, há uma tradição na evolução do capitalismo neste País que se
demarca pelo singular desprestígio e isolamento aqui conferidos ao Direito do
Trabalho. Em contraponto à vitoriosa expe­riência democrática europeia ocidental,
no Brasil, cuidou-se de refre­ar a expansão do ramo jurídico-trabalhista especializado
ao conjun­to da economia e sociedade — certamente objetivando atenuar seu
comprovado efeito distributivo de poder e renda no contexto socio­econômico.
Esse processo de isolamento foi patente na chamada Repúbli­ ca Velha.
(Primeira República) Como se sabe, mesmo com a abolição da escravatura (1888),
o País não chegou a construir, nas quatro décadas seguintes, um mercado de
trabalho capitalista bem estruturado, com suporte no clássico instrumento de
conexão do indivíduo a esse sistema econô­mico-social, qual seja, a relação de
emprego. Muito menos instituiu um Direito do Trabalho efetivo, seja com fulcro
na negociação coleti­va, seja com base na legislação estatal, uma vez que ambas
se mos­traram rarefeitas até o início da década de 1930. Tudo isso certa­mente
conectado ao fato de a industrialização — principal veículo de generalização das
normas trabalhistas nas fases iniciais do capi­talismo — ainda não se ter expandido
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 123

de modo relevante na econo­ mia do País, já que apenas despontava, porém


pressionada, nos meandros da hegemonia agroexportadora da época.
No período subsequente — entre os anos 1930 e 1945 —, é inegável que o
Direito do Trabalho, à diferença da fase anterior, erigiu­-se como inequívoca política
pública oficial, no contexto de uma es­tratégia estatal explícita de industrialização
da economia e de incor­poração política dos novos trabalhadores urbanos. Nessa
medida, abriu-se importante exceção à tendência de recusa à generalização do
Direito do Trabalho, afirmada nas décadas precedentes.
É bem verdade que essa generalização não seria plena, mes­mo nos anos do
desenvolvimentismo inaugurado em 1930. É que, nos marcos do compromisso
político que dava sustentação à dita­dura Vargas (1930-1945), que contava com o
decisivo apoio das oli­garquias estaduais conservadoras, o governo central cuidou
de não permitir a extensão da legislação trabalhista ao campo brasileiro, deixando
essa seara social e econômica ao arbítrio incontrastável dos fazendeiros oligarcas(10).
Em consequência desse pacto político singular, cerca de 70% da população
brasileira ficaria excluída dos efeitos modernizantes e progressistas do Direito do
Trabalho, uma vez que a taxa de urbani­zação do País se situava, durante os anos
1930 e 1940, apenas em torno de 30%(11).
No transcorrer do período democrático seguinte (1945-1964), deve ser
reconhecido que o processo de generalização trabalhista se acentuou, embora
ainda restrito às cidades. Essa acentuação de­ corria não só da continuidade
do modelo econômico desenvolvimen­ tista iniciado em 1930 — naturalmente
impulsionador da industriali­zação e da urbanização —, como também do explícito
interesse ofi­cial em ver efetivado na sociedade o ramo jurídico trabalhista.(12)
Não obstante tais avanços, os governos democráticos desen­volvimentistas
dessa época não chegaram a implementar a efetiva extensão da legislação
trabalhista ao campo brasileiro. Embora em 1963 tenham aprovado diploma legal
nessa direção (Lei n. 4.214/63 — Estatuto do Trabalhador Rural), tal medida não
produziu efeitos reais, em face da queda da democracia logo a seguir, logo a
seguir, no primeiro semestre de 1964.

(10) O art. 7º da CLT, como se sabe, cuidadosamente dispunha que seus preceitos, de maneira
geral, não se aplicavam aos empregados rurais. A propósito, a exclusão tam­bém se estendia aos
empregados domésticos.
(11) O Censo de 1940, “o primeiro a dividir a população brasileira em rural e urbana, registra que
31,1 % dos habitantes estavam nas cidades”. Almanaque Abril 2003 — Brasil 2003. São Paulo: Abril,
2003. p. 166.
(12) Em 1940, a taxa de urbanização era de 31,1 %, como já visto. Passou a 44,67% em 1960 e,
finalmente, no censo de 1970, atingiu 55,92%. Em meados dos anos 1960, por­tanto, a urbanização
alcançou a metade da população do País. Fonte: Almanaque Abril 2003 — Brasil 2003. São Paulo:
Abril, 2003. p. 147 e 166.
124 MAURICIO GODINHO DELGADO

Com o regime militar (1964-1985), retomou-se a tradição de isolamento do


Direito do Trabalho na história brasileira.
De fato, a falta de prestígio desse ramo jurídico no concerto das políticas
públicas autoritárias era, sem dúvida, indissimulável. Não se pode esquecer, a esse
propósito, que o regime se inaugura com centenas de intervenções nos sindicatos
do País e a prisão e processamento dos mais combativos líderes do sindicalismo
brasi­
leiro. Ainda em seu primeiro governo (1964-1967), estabeleceria po­ lítica
salarial contracionista e inflexível, além de abrir combate mor­tal à sistemática de
estabilidade no emprego e de indenização por tempo de serviço, regulada pela
CLT dos anos 1940, por meio da cria­ção do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (Lei n. 6.107/66).
Com a redemocratização de 1985 e a Constituição de 1988, conferiu-se novo
status ao ramo jurídico trabalhista, reconheça-se. Despontava novo momento
em que aparentemente se tornaria pos­sível a reversão dessa antiga tendência
isolacionista conferida ao Direito do Trabalho no capitalismo brasileiro. De fato,
assegurou-se liberdade sindical e conferiu-se respeitabilidade às questões traba­
lhistas no bojo da vitória alcançada na luta contra o regime autoritá­rio. Logo a
seguir, com a Constituição de 1988, o Direito do Trabalho alcançou significativo
destaque, com a ampliação da estrutura insti­ tucional para o implemento de
sua efetividade (generalização da Justiça do Trabalho ao território brasileiro e
incremento de novas e mais abrangentes funções para o Ministério Público do
Trabalho). Ao lado disso, regras constitucionais importantes foram direciona­das ao
Direito Individual e ao Direito Coletivo do Trabalho.
Contudo esse novo status foi imediatamente fustigado por nova linha de
desgastes que se erigia quanto ao ramo jurídico especiali­zado trabalhista.
É que, já desde o início da década de 1990, a contar do Gover­no Collor, a
velha tradição de isolamento e desprestígio do Direito do Trabalho — que tem
respondido, em boa medida, pela brutal e inflexível concentração de riqueza e
poder no cenário socioeconô­mico brasileiro — iria ganhar inusitadas cores culturais.
De fato, nesse último período, iria se disseminar, no plano institucional e da socie­
dade civil, o conveniente discurso sobre o suposto envelhecimento de tal ramo
jurídico.

1. Dados Históricos

Ainda que seja inevitável reconhecer que o período iniciado na década de


1930 até 1945 — não obstante os graves efeitos da ideologia e prática autoritárias
então dominantes — tenha se demarcado por significativo processo de inclusão
social, o fato é que, também nessa época, o Direito do Trabalho não se generalizou
para o conjun­to do mundo laborativo brasileiro.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 125

Nessa medida, também esse período conferiu alguma continui­dade à clássica


tendência de forte exclusão oriunda da história pre­cedente, dado que a moderni-
zação jurídico-trabalhista ficou restrita, à época, apenas aos segmentos urbanos
da sociedade brasileira.
Ora, conforme visto, a legislação trabalhista estruturada ou am­ pliada
naquela fase histórica não se aplicou aos trabalhadores ru­rais, não obstante cerca
de 70% da população do País ainda esti­vesse situada no campo. Isso permite
concluir-se pela presença de uma dualidade no tocante à política pública e seus
impactos socioeconômicos em tal momento histórico: de um lado, a constatação
da existência de um real processo de inclusão social, via Direito do Trabalho,
sistematizado a partir de 1930, com repercussões até meados da década de 1960
— e que teve grande relevância socio­econômica, se contraposto às características
da sociedade e eco­nomia anteriores à década de 1930. De outro lado, também
a constata­ção de que esse processo não deixou de ser significativamente limi­
tado, uma vez que abrangeu, ao menos em seu começo, não mais do que 1/3 da
população brasileira(13).
Com o Governo João Goulart, no início dos anos 1960, surgiu o Estatuto
do Trabalhador Rural (Lei n. 4.214, de 1963), diploma que estendeu a legislação
trabalhista ao campo — algo que poderia ter modificado o curso dessa renitente
estratégia de exclusão social que tanto caracteriza a história brasileira.
Como é de conhecimento geral, porém, essa extensão norma­tiva manteve-se
mais teórica do que efetivamente prática nas déca­das seguintes. Com o advento
do regime militar, logo a seguir (um ano apenas depois do advento do ETR — Lei
n. 4.214/63), o Estado demonstraria não mais possuir interesse político na busca
da gene­ralização do Direito do Trabalho para toda a economia e sociedade. Em
consequência, sequer equipou-se com os instrumentos institu­cionais necessários
para realizar, eficazmente, semelhante proces­so de generalização.
Efetivamente, não só se verifica, desde 1964, por 20 anos, a instauração de
um regime político autoritário assumidamente imper­meável a qualquer política
pública sistematizada de inclusão social (e, portanto, sem maior interesse na
disseminação do Direito do Tra­ balho), como o próprio aparelho institucional
público encarregado de efetivar tal ramo jurídico era ainda claramente incipiente,
com modesta presença no território nacional. É o que se passava com a Justiça do
Trabalho, constituída de poucos juízes e praticamente ins­talada apenas em grandes
cidades; com o Ministério do Trabalho, também com presença muito reduzida
no interior do País; finalmente, do mesmo modo, com o Ministério Público do
Trabalho presente ape­nas nos grandes centros, junto aos TRTs e ao TST, e que

(13) Conforme já exposto, o Censo de 1940, “o primeiro a dividir a população brasileira em rural e
urbana, registra que 31,1 % dos habitantes estavam nas cidades”. Almanaque Abril 2003 — Brasil
2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 166.
126 MAURICIO GODINHO DELGADO

sequer possuía a estrutura e as atribuições alargadas de órgão agente, as quais só


despontaram com a Constituição de 1988.
Tudo isso sem falar na profunda repressão dirigida ao movi­mento sindical
durante a ditadura — o que tinha o condão de silen­ciar essa importante fonte de
apoio à efetividade do ramo jurídico trabalhista.
O processo de inclusão social das grandes maiorias, pela via clássica das
democracias ocidentais — que foi aquela conectada à generalização do Direito do
Trabalho —, não se implementou no Bra­sil, mesmo depois da edição do Estatuto
do Trabalhador Rural (1963), em decorrência de tais razões políticas, institucionais
e, até mesmo, práticas.
Curiosamente, nesse mesmo período, incrementa-se um pro­cesso social e
econômico de grande celeridade e impacto, que pode­ria, por outros caminhos,
ainda que transversos, ter influenciado na superação dessa grande chaga da
exclusão social das grandes maio­rias no Brasil. E que houve, entre 1964 e fins
dos anos 1970, uma acen­ tuação da anterior dinâmica de industrialização e
urbanização do País, em decorrência das características do sistema econômico que
foi impulsionado pela política oficial do regime autoritário então implantado(14).
O fato é que, em 1960, ainda tínhamos mais de 50% da popu­lação situada no
campo, ao passo que, nos anos seguintes, a urbani­zação se generalizou, atingindo
cerca de 55% em 1970, em torno de 67% em 1980, para alcançar mais de 80%
no Censo do ano 2000(15).
Não se desconhece a existência de questionamentos aos cri­ térios de
enquadramento estatístico seguidos pelo IBGE, baseados na circunstância de
que segmentos importantes das populações das pequenas cidades muitas vezes
vivem em função da economia e realidade rurais, não sendo, pois, inteiramente
urbanizados. Não obs­tante tais críticas, ponderando que seja atenuada a força
dos dados oficiais, não pode haver mais dúvidas, hoje, de que pelo menos um
percentual superior a 70/75% da população brasileira enquadra-se, inegavelmente,
no segmento urbano.
Tudo isso significa que o País teve, nos últimos 40 anos (mes­mo considerado
o regime autocrático recente, por contraditório que seja), uma oportunidade

(14) Trata-se, em rápidas linhas, da continuidade do desenvolvimentismo econômico precedente


(iniciado nos anos 1930), só que, em face das políticas públicas autori­tárias pós-64, com maior
grau de internacionalização da economia do que nas déca­das anteriores. Após uma fase inicial de
monetarismo rigoroso (1964-1966), o regime militar, a partir de seu segundo governo, retomaria
traços importantes da orientação desenvolvimentista precedente, incentivando a industrialização e o
crescimento eco­nômico do País, até à segunda metade dos anos 1970.
(15) Eis alguns dados das taxas de urbanização da sociedade brasileira, segundo os respectivos
censos demográficos realizados oficialmente no País: 1940: 31,1%; 1960: 44,67%; 1970: 55,92%;
1980: 67,6%; 2000: 81,25%. Fonte: Almanaque Abril 2003 — Brasil 2003. São Paulo: Abril, 2003.
p. 147 e 166.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 127

verdadeira de realizar substantivo processo de inclusão social, pela via clássica do


Direito do Trabalho, no curso dessa tendência acentuada de urbanização. É que
a nova força de trabalho, por meio das levas de migrações ocorridas, chegaria
às cidades e se incorporaria ao mercado laborativo, em um contexto de regência
jurídica pelo Direito do Trabalho, uma vez que, no meio urbano, as estruturas
institucionais e operativas desse ramo norma­tivo já se encontrariam razoavelmente
montadas e em funcionamento. Se incorporados os novos trabalhadores, em sua
grande maioria, ao sistema socioeconômico pelo caminho jurídico trabalhista
clássico, parte significativa da resistente chaga de exclusão social caracterís­tica do
Brasil teria sido forçosamente mitigada.
Entretanto, como se conhece, essa oportunidade notável não se concretizou
nas últimas décadas. O que se verificou nesse perío­do foi um processo de quase
esterilização da taxa de inserção dos indivíduos no Direito do Trabalho, por meio
do surgimento — acentu­ado na década de 1990 e anos seguintes — de formas
alternativas de contratação laborativa, todas elas, não por coincidência, assegu­
rando um patamar civilizatório muito mais acanhado do que aquele garantido pelo
Direito do Trabalho.
Em consequência, mantém-se e se vivencia, hoje, quadro cons­trangedor de
exclusão social.

2. Cenários da Exclusão Social Brasileira

Os dados do IBGE, pela Pesquisa Nacional de Amostra de Do­micílios, de


2001, evidenciavam que apenas pouco mais de 23 milhões de pessoas estavam
explicitamente regidas pelo Direito do Trabalho no País, naquela época, não
obstante o largo universo de mais de 75 milhões de pes­soas ocupadas, integrantes
da população economicamente ativa (já não computando nesse rol os mais de 7
milhões de desempregados).
Portanto menos de 30% do pessoal ocupado no Brasil corres­ pondia,
formalmente, a empregados, em contraponto com o índice de 80% que
caracterizava a realidade europeia exposta (ver final do item II deste capítulo).
A própria pesquisa do IBGE detectava a existência de nada me­nos do que
cerca de 18 milhões de empregados sem carteira assi­nada no País!
Quer isso dizer que os dados oficiais demonstravam a presença de aproximada-
mente 41 milhões de trabalhadores que deveriam estar sob inquestionável regência
do ramo jurídico trabalhista (41 milhões, e não apenas 23 milhões, repita-se).
Ao lado desse impressionante número de reais empregados, existiam
ainda quase 17 milhões de pessoas enquadradas pelo IBGE como trabalhadores
autônomos, a par de mais 9 milhões de pes­soas inseridas naquilo que a estatística
128 MAURICIO GODINHO DELGADO

oficial chamava de economia familiar, no setor de subsistência, ou, simplesmente,


trabalhado­res não remunerados. Tratava-se, aqui, segundo os dados oficiais, de
aproximadamente 26 milhões de trabalhadores não empregados — quase 35% do
pessoal ocupado no País. Ora, o descompasso de tais números (35% do pessoal
ocupado, em contraponto com me­nos de 15% no parâmetro europeu comparado)
evidenciava que, nesse grupo de 26 milhões de pessoas, existiam, sem dúvida,
inúmeros trabalhadores que se enquadrariam mais corretamente como efeti­vos
empregados.
Em síntese, mesmo não considerados os verdadeiros profis­sionais autôno-
mos, os efetivos trabalhadores eventuais, o grupo de indivíduos realmente inseridos
na economia familiar de subsis­tência e/ou sem remuneração, o que despontava
desses dados ofi­ciais era a inquestionável existência de algumas dezenas de mi-
lhões de pessoas ocupadas no Brasil, a quem se denegava o patamar civi­lizatório
básico de inclusão socioeconômica assegurado pelo Di­reito do Trabalho (16).
Conforme se percebe, no Brasil sempre foi recorrente o isola­mento e certo
desprestígio cultural do ramo jurídico trabalhista, em contraponto com o largo
prestígio e inserção social alcançados na história dos países capitalistas europeus
mais avançados.
Tais isolamento e desprestígio exacerbaram-se na década de 1990 na rea-
lidade brasileira, em meio ao ideário de descomprometi­mento social do Estado,
aqui veiculado laudatoriamente desde o iní­cio daqueles anos (ideário ultraliberalista
que já manifestara sua for­ça na Europa Ocidental pós-1970). Os efeitos deletérios
desse des­prestígio e isolamento disseminaram-se ainda mais em decorrência do
apelo da variante intelectual especificamente brandida contra as conquistas da
Democracia Social no Ocidente, qual seja, a ideia do fim da sociedade do trabalho,
do fim da centralidade do trabalho e do em­prego no mundo capitalista.
Nesse contexto, o Direito do Trabalho — a mais significativa conquista das
grandes massas populacionais na economia e socie­dade capitalistas ocidentais,
a mais eficiente e generalizada política de distribuição de renda e poder na
história do capitalismo — pas­sou a ser acentuadamente desgastado, em irresistível
blitzkrieg de críticas, as quais, curiosamente, originavam-se desde os segmen­tos
mais conservadores da sociedade, passando pelas novas ver­tentes de renovação
ideológica do sistema hegemônico, despontan­do até mesmo de certas searas
oriundas do clássico pensamento democratizante e distributivista gestado nos
séculos XIX e XX.
O estratagema de implosão das conquistas socioeconômicas alcançadas
pelas macropopulações nas sociedades capitalistas, das políticas públicas distributi-

(16) Os dados da citada Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (Pnad), do IBGE, de 2001,
encontram-se em: Almanaque Abril 2003 — Mundo 2003. São Paulo: Abril, 2003. p. 136 e 138.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 129

vistas de poder e renda, supunha a der­ruição da matriz filosófico-cultural de todo


o avanço da Democracia Social no Ocidente, qual seja, as noções de sociedade do
trabalho, de centralidade do trabalho e emprego, em suma, noções apregoado-
ras do trabalho e do emprego como valores, fundamentos e princípios do Direito
contemporâneo.
No Brasil — onde sequer se havia construído qualquer projeto de Democracia
Social, com suas conquistas e garantias em benefí­ cio das grandes maiorias
populacionais —, a reunião, na década de 1990, do velho padrão cultural
excludente aqui hegemônico, com as novas vertentes intelectuais justificadoras do
descompromisso so­cial, tudo conduziu a um movimento irreprimível de fustigação
e des­prestígio do Direito do Trabalho.

3. Período Iniciado em 1990: novas formas de exclusão

Essa linha de desprestígio do Direito do Trabalho, como instru­mento assecura-


tório da tendência perversa de concentração de ri­quezas no Brasil, recrudesceu no
período iniciado em 1990.
Nessa fase histórica, acentua-se no País a absorção do pensa­mento ultralibe-
ralista, que se tornara hegemônico no ocidente capi­talista desenvolvido a partir
de fins dos anos 1970. A teor desse ideário de gestão econômico-social, deve-se
reduzir, no que for possível, o valor da força de trabalho em oferta no mercado,
quer por meio de medidas de desregulamentação e flexibilização radicais do Di-
reito do Traba­lho, quer mediante o aumento da massa trabalhadora disponível à
contratação trabalhista (incremento do desemprego).
A desregulamentação e a flexibilização jurídico-trabalhistas fo­ram tenaz-
mente perseguidas desde o começo dos anos 1990.
O Governo Collor, como se sabe (1990-1992), constituiu Co­ missão de
Modernização da Legislação do Trabalho (Decreto de 22.6.1992), que chegou a
divulgar, em novembro de 1992, dois an­teprojetos de lei, um tratando das relações
coletivas de trabalho e o outro das relações individuais de trabalho.
A partir do diagnóstico de que “... a CLT perdeu a razão de ser”, a
Comissão propunha que a regulamentação dos direitos indi­viduais do trabalho se
transformasse em “um conjunto de normas dispositivas”, invertendo-se a pirâmide
normativa “... para fazer pre­valecer o produto da negociação coletiva sobre os
direitos indivi­duais estabelecidos em lei, aplicáveis apenas na hipótese de não ter
sido exercitada a autonomia privada coletiva”. Em consequência, seu anteprojeto
da Lei de Relações Individuais do Trabalho, com exí­guos 14 artigos, dispunha no
art. 1º: “A presente lei disciplina as relações individuais de trabalho urbano, rural
130 MAURICIO GODINHO DELGADO

e avulso, na ausência de instrumento normativo que disponha de modo diverso,


ressalva­das as garantias constitucionais” (grifos acrescidos).(17)
Essa extremada proposição ultraliberalista abortou-se, felizmen­te, em face
da constrangedora deposição do Presidente da Repúbli­ca, no segundo semestre
de 1992.
O curto governo subsequente (1992-1994) aprovou a Lei n. 8.949, de 1994 (de
origem congressual, registre-se), que iria deflagrar, na realidade socioeconômica,
verdadeira avalanche de cooperativas de mão de obra (novo parágrafo único do
art. 442 da CLT), agenciadoras de milhares de trabalhadores sem qualquer direito
trabalhista.
A tentativa legal de extensão da fórmula jurídica cooperada ao mercado
laborativo parecia querer criar nova ordem jurídica regula­ dora da relação de
produção nuclear ao sistema capitalista (o víncu­lo empregatício), mas que fosse
capaz de permitir a inserção do ser humano no sistema econômico sem o patamar
civilizatório mínimo estabelecido pelo Direito do Trabalho. Sob a perspectiva de
restauração de um suposto mercado de trabalho liberalista, sem amarras ou
garantias ao prestador de serviços subordinados, o intento normativo da Lei n.
8.949/94 parecia avassalador.
A propósito, a curiosa origem desse diploma legal (foi apresen­tado por
parlamentar de esquerda) denotava a impressionante in­ fluência no País do
pensamento desregulamentador ultraliberal, que já se tornara hegemônico
desde a década anterior nos países oci­dentais desenvolvidos; mais do que isso,
demonstrava também a pro­fundidade da desagregação, no próprio âmbito da
esquerda brasilei­ra, do pensamento crítico ao capitalismo desenfreado(18).
O governo seguinte, entretanto, de 1995 a 2002, é que iria produ­
zir
incomparável blitzkrieg em favor da desregulamentação trabalhista.
Em primeiro lugar, destaca-se a própria postura governamental da época,
de franca censura ao Direito do Trabalho — como se este fosse incompatível com
a suposta modernidade que se pretendia implementar no País. Ora, o discurso
oficial de descrédito quanto a qualquer ramo jurídico torna-se fatal no tocante

(17) “Comissão de Modernização da Legislação do Trabalho, Relatório”. In: Revista LTr, São Paulo:
LTr, ano 57, v. 4, p. 396-409, abril de 1993.
(18) Os órgãos de interpretação e aplicação do Direito do Trabalho, contudo, de 1995 em diante,
submetendo o novo dispositivo legal (novo parágrafo único do art. 442 da CLT) ao conjunto da
ordem jurídica, inclusive Constituição da República, acabaram por reduzir sua conotação ofensiva
ao universo de princípios e regras trabalhistas, considerando, assim, o preceito como instituidor
de simples presunção relativa no âmbito do mercado de trabalho (e não uma regra impe­rativa
excludente das normas trabalhistas). É o que se percebeu a partir da atuação da auditoria fiscal
trabalhista (Ministério do Trabalho), do Ministério Público do Trabalho, a par da jurisprudência
majoritária da Justiça do Trabalho.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 131

a seu efetivo cum­primento e generalização: afinal, o Direito é não só coerção,


mas prin­cipalmente conduta voluntária, compreensão educativa — elementos que
perdem eficiência quando fustigados por um discurso, hierarqui­camente superior,
de desprestígio, censura e negligência.
Em segundo lugar, modificações normativas concretas, em di­
reção à
desregulamentação e flexibilização trabalhistas.
Algumas medidas legais bem ilustram a orientação econômi­ co-filosófica
desse período governamental: cite-se a nova estrutura­ção que confere, por medida
provisória (por exemplo, MP n. 2.164­41, de 24.8.2001), ao contrato de estágio
(Lei n. 6.494, de 1977), de modo a tentar permitir que esse pacto seja estendido
ao estudante de ensino médio e perca a imperiosa conexão com a formação aca­
dêmico-profissional do estudante (artifício que permitiria transfor­mar o importante
estágio em uma espécie de contrato de servidão voluntária, quando não conectado
à educação formal); mencione-se também a Lei do Contrato Provisório de Trabalho
(n. 9.601, de 1998), que cria impressionante fórmula de contratação precária,
quer quanto ao tempo (máximo de dois anos, com renovações sucessivas de curto
período dentro desse lapso), quer quanto aos direitos laborativos (restrições a
clássicos direitos regulados na CLT); fale-se ainda do estabelecimento, pela Lei
n. 9.601/98, do regime de compensação anual de horas laboradas — banco de horas
— que, na prática, per­mite contínua violação ao limite constitucional de horas de
trabalho (8 ao dia e 44 na semana).
Registre-se que um dos intentos mais agressivos dessa época, do ponto
de vista da desregulamentação legal trabalhista — consis­tente no Projeto de Lei
n. 5.483, de 2001, que permitia o afastamen­to do império da lei em face da
negociação coletiva —, acabou não se implementando no Parlamento(19).
Cabe aduzir-se, nesta análise, que parte significativa do avan­ ço
desregulamentador e flexibilizador da ordem jurídica trabalhista concretizou-se
nas últimas décadas (desde o regime militar e se aprofundando nos anos 1990)
independentemente de autorização le­gal — ou seja, simplesmente realizou-se
como fato supostamente incontrolável e superior a todo o Direito. Em boa medida,
é o que se passou com a terceirização trabalhista, que se generalizou no mer­
cado laborativo sem previsão legal bastante para seu disseminado implemento.
É bem verdade que, neste caso, a impressionante omis­são do poder político
federal (Parlamento e Presidência da Repúbli­ca) parecia ter o caráter de verdadeira

(19) Para exame das normas jurídicas de flexibilização e desregulamentação traba­lhistas, desde
o regime militar até o final do Governo Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, consulte-se
GONÇALVES, Antônio Fabrício de Matos. Flexibilização trabalhista. Belo Horizonte: Mandamentos,
2004. p. 159-266. Sobre essa onda de mudanças le­gais trabalhistas no Ocidente, inclusive Brasil,
reporte-se também a POCHMANN, Marcio; MORETTO, Amilton. “Reforma Trabalhista: a experiência
internacional e o caso brasileiro”. In: Cadernos Adenauer-sindicalismo e relações trabalhistas, Rio de
Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, ano III, n. 2, p. 69-89, 2002.
132 MAURICIO GODINHO DELGADO

senha para a desenfreada propagação da desregulamentação e flexibilização


terceirizantes vi­venciadas nessa fase.
Deve ser ressaltado, ainda, com respeito ao Brasil, outro fator importante no
que tange à desregulamentação e à flexibilização da ordem jurídica trabalhista nos
anos 1990. Trata-se da flexibilização in­terpretativa realizada pela jurisprudência
trabalhista no período se­guinte à Constituição de 1988.
É preciso ponderar, neste tópico, entretanto, que, em certa medida, a
jurisprudência apenas corrigiu inegáveis excessos prote­ cionistas do Direito do
Trabalho construído nas décadas preceden­ tes, correção essa algumas vezes
estimulada pela própria nova Cons­tituição da República.
É claro também que, muitas vezes, a jurisprudência, juntamen­te com as
funções exercidas pelo Ministério Público do Trabalho e pela auditoria fiscal do
Ministério do Trabalho, todos tiveram funda­mental papel na defesa do Direito
do Trabalho e da dignidade do trabalhador, em contraste com as iniciativas
desregulamentadoras, flexibilizatórias e precarizantes oriundas do Parlamento ou
da Presi­dência da República desde o início da década de 1990.
Contudo, ainda assim, é necessário reconhecer que a flexibili­ zação
interpretativa realizada na década de 1990 foi muito além de certos naturais
ajustes e ade­quações da ordem jurídica à mudança social: é que ela contribuiu
para construir, naquela década, verdadeira nova cultura em torno do Direito
Individual e Coletivo do Trabalho, reduzindo, em muito, a efetividade de suas
regras e princípios jurídicos(20).
Reenfatize-se, por fim, que, no caso brasileiro, não existia es­pecificamente
um paradigma trabalhista genérico e consolidado, advindo do período histórico
precedente à atual fase de flexibiliza­ção e desregulamentação normativas (como já
exaustivamente de­monstrado, a ordem jurídica trabalhista não chegava a abranger
se­quer 30% da população economicamente ativa ocupada do País). Afinal, neste
País, o Direito do Trabalho sequer havia se generaliza­do, no plano formal, até
os anos 1960, não se tornando genérica e efetivamente aplicado nem mesmo
nas várias décadas seguintes, conforme exposto. Dessa maneira, as alterações
normativas traba­lhistas ocorridas nos anos 1990 tiveram o condão, na verdade, de
inviabilizar a inserção mais favorável e civilizada dos trabalhado­res na economia e
sociedade brasileiras.

(20) Ressalte-se, porém, que o Tribunal Superior do Trabalho, a partir da Resolução Administrativa
n. 121, publicada em 19.11.2003, iniciou importante processo de rees­truturação de praticamente
toda a sua jurisprudência sumulada. Essa reestruturação, felizmente, passou a balizar, de modo
muito claro, as fronteiras máximas do processo interpretativo flexibilizatório, colocando aparente
termo final à tendência dominante na década de 1990.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 133

IV — DIREITO DO TRABALHO COMO INSTRUMENTO DE CIVILIZAÇÃO

É necessário se insistir que a grave exclusão social das gran­des maiorias no


Brasil (dezenas de milhões de trabalhadores sem as proteções mínimas da ordem
jurídica trabalhista), percebida com enfática clareza nas últimas décadas do século
XX até o início do século XXI, entrava em cho­que com os padrões minimamente
aceitáveis de evolução do siste­ma capitalista no mundo ocidental.
Afinal trata-se de padrões que permaneceram vigorantes na Europa Ocidental
desenvolvida, registre-se, mesmo após a maciça crítica ideológica desferida ao
Direito do Trabalho nas décadas finais do século XX.
O que fica bastante claro é que essa grosseira defasagem eco­nômico-social
brasileira se encontra no fato de o Direito do Trabalho não ter cumprido no País,
por várias décadas sequenciais, seu notável papel civilizatório afir­mado nos países
de capitalismo central.
De fato, se tomados dois parâmetros bastante ilustrativos (Ale­ manha
e França), com dados aplicáveis à recente década de 1990 — portanto, dados
bastante pertinentes ainda —, ver-se-á que o Direito do Trabalho tem sido, no
desenrolar do sistema econômico-social contemporâneo, o grande instrumento
de inclusão social das grandes massas populacionais dos países capitalistas
desenvolvi­dos. Enfocadas as situações da Alemanha e da França, percebe-se que
mais de 80% da população economicamente ativa daqueles países (já excluído o
percentual de desempregados) se insere no mercado laborativo capitalista com
as proteções inerentes ao Direito do Tra­balho. Mais de 80% do pessoal ocupado
nesses dois países, mes­mo após 20 anos do fluxo desregulamentador insaciável na
própria Europa, oriundo da década de 1970, encontra-se, sim, regido pelo Direito
do Trabalho naquelas sociedades desenvolvidas(21).

(21) No tocante à Alemanha, expõe Wolfgang Däubler: “Nas estatísticas, os autôno­mos aparecem
como exceção relativamente insignificante. Apenas 8,53% de todas as pessoas economicamente
ativas exerciam em maio de 1987 uma atividade autônoma. 1,78% eram colaboradores familiares
que podem ser encontrados sobretudo na agri­cultura, no varejo e em atividades artesanais. 80,62%
de todos os ativos eram operá­rios e empregados. 9,07% eram funcionários públicos e militares.
Assim, praticamente nove entre dez pessoas economicamente ativas são assalariadas, pois de lá
para cá não houve mudanças maiores nesta relação. Enquanto a condição de funcionário pú­blico se
fundamenta em ato administrativo, sendo regulamentada exclusivamente por lei, estão os operários
e empregados sujeitos ao direito do trabalho”. In: Direito do tra­balho e sociedade na Alemanha.
São Paulo: LTr/Fundação Friedrich Ebert/ILDES, 1997. p. 41-42 (grifos acrescidos). Note-se que o
autor, embora se fundando em da­dos de 1987, afirma, em sua obra de fins dos anos 1990, não
ter havido “mudanças maiores nesta relação”. De todo modo, a obra Perfil da Alemanha, editada
pela Societäts-­Verlag, de Frankfurt/Meno, daquele país, em 1996, dispõe que os “trabalhadores,
em­pregados, aprendizes e funcionários públicos, isto é, os chamados assalariados, per­fazem na
Alemanha 89,5 por cento dos 36,1 milhões de pessoas ativas (29,7 milhões nos antigos estados e 6,7
milhões nos novos estados). Além dos assalariados, há 3,3 milhões de autônomos, que atuam como
empregadores. Ao lado dos 488.000 familia­res que os ajudam, os autônomos empregam também
134 MAURICIO GODINHO DELGADO

Isso significa que o Direito do Trabalho foi o grande instru­mento que as


democracias ocidentais mais avançadas tiveram para implementar a integração
social de suas populações, a dis­tribuição de renda e de poder em suas economias e
sociedades, enfim, garantir a consecução da democracia social em seus res­pectivos
países. Um poderoso e eficaz instrumento que conse­guiu exatamente estabelecer
uma forma de incorporação do ser humano ao sistema socioeconômico, em
especial daqueles que não tivessem (ou tenham) outro meio de afirmação senão
a pró­pria força de seu labor.
O que a realidade histórica do próprio capitalismo demonstra é que o Direito
do Trabalho consiste no mais abrangente e eficaz me­canismo de integração dos
seres humanos ao sistema econômico, ainda que considerados todos os problemas
e diferenciações das pessoas e vida social. Respeitados os marcos do sistema
capitalis­ta, trata-se do mais generalizante e consistente instrumento asse­curatório
de efetiva cidadania, no plano socioeconômico, e de efeti­va dignidade, no plano
individual. Está-se diante, pois, de um poten­te e articulado sistema garantidor de
significativo patamar de demo­cracia social.
Em síntese, naqueles países líderes do capitalismo, conside­rada sua população
economicamente ativa ocupada, mais de 80% dos trabalhadores estão regidos
pelo Direito do Trabalho, ao passo que, no Brasil, tradicionalmente, por várias
décadas sequenciais, cerca de 60/70% dos trabalhadores ocupados, ao revés,
mantiveram-se excluídos do Direito do Trabalho.
Claro que não se vai desconhecer a existência de outras for­mas de labor que
escapam, a princípio, ao padrão empregatício tra­dicional. No entanto, tais formas
alternativas não alcançam, de modo al­gum, o relevo, a extensão e o impacto
alardeados pela ideologia de descomprometimento social de fins do século XX. E
que, nesses dados europeus expostos, já estão consideradas essas outras formas
de labor, uma vez que os números dizem respeito à segunda metade da década de
1990, já incorporando todos os efeitos da pro­pagandeada crise trabalhista europeia
pós-1970. Ou seja, mesmo em seguida a duas décadas de ação coordenada em
favor da de­sarticulação institucional e normativa das conquistas democráticas do
Estado de Bem-Estar Social na Europa, os dois importantes paí­ses mencionados
preservam cerca de 80% de sua força de traba­lho ocupada dentro dos marcos do
Direito do Trabalho.
O que tudo demonstra é que o Brasil ainda não havia enfrentado, até o
início do século XXI, seu grande desafio, que tem maior abrangência e impacto

um grande número de assalari­ados” (ob. cit., p. 386). No tocante à França, referindo-se ao ano de
1996, expõe Jean-­Claude Javillier que a população assalariada, regida pelo direito do trabalho, atinge
em torno de 19,5 milhões de pessoas, sendo de 22,5 milhões a população ativa ocupada, em um
contexto de uma população total de 58,4 milhões. In: Manuel droit du travail. Paris: LGDJ, 1998, p.
50. A respeito desses dados relativos à Alemanha e à França, consultar também o final do item II do
presente capítulo.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 135

social do que qualquer outro: assegurar efetividade ao Direito do Trabalho, em


face do diagnóstico de ser baixíssimo aqui (menos de 30%) tradicionalmente, o
percentual de integração das pessoas na sociedade econômica pela via civilizatória
desse ramo jurídico especializado.
Reafirme-se, pois, que existia, portanto, uma singularidade no desenvolvi­mento
econômico-social brasileiro: aqui, em torno de somente 1/3 dos trabalhadores
ocupados era regido pelo Direito do Trabalho, em contraponto com o percentual-
-padrão de mais de 80% de relevantes países capitalistas. Quer dizer, por mais que
se intente justificar se tra­tar de realidade nacional incomunicável, a defasagem de
dados e situações era simplesmente brutal. Estava-se diante de uma discrimi­nação
acentuada, gravíssima, pois, neste País, milhões de pes­soas laboravam em dinâ-
mica qualificada pelos elementos integrantes da relação de emprego, porém sem
que tivessem garantido o pata­mar civilizatório mínimo característico do Direito
do Trabalho. Ob­serve-se que não se está falando de discriminação contra setores
especiais da população, segmentos isolados (o que seria também grave, obvia-
mente), porém trata-se de discriminação contra cerca de 2/3 do pessoal ocupado
no Brasil, algo que escapa inteiramente ao padrão mínimo de desenvolvimento da
civilização ocidental.
Tudo isso demonstra ainda haver largo espaço para a atuação do Direito do
Trabalho no Brasil, como instrumento civilizatório fundamental para a construção
da democracia social e também da cidadania neste País.
É chegado o momento de conferir-se ao Direito do Trabalho, no Brasil, seu
papel fundamental, histórico, seu papel promocional da cidadania. Afinal, esse
ramo jurídico é um dos principais instrumen­tos de exercício das denominadas ações
afirmativas de combate à exclusão social, com a virtude de também incentivar o
próprio cres­cimento da economia do País.
A generalização do Direito do Trabalho é o veículo para a afir­ mação
do caminho do desenvolvimento econômico com justiça so­ cial. A principal
das ações afirmativas de combate à exclusão social no Brasil, desse modo, é a
própria efetividade do Direito do Trabalho. Afinal, segundo esses dados oficiais
especificados, existiriam deze­nas de milhões de brasileiros laborando com aquilo
que tecnicamente seria considerado como elementos da relação de emprego,
porém posicionados em uma situação de rebaixamento de direitos, quer pela pura
e simples informalidade, quer pela submissão a outras fórmulas engenhosas (ou
grosseiras) de não reconhecimento de cidadania profissional, social e econômica
a esses indivíduos.
A exclusão social, pela negativa de implemento do Direito do Trabalho,
consubstancia forma enfática de discriminação das gran­des maiorias, essa chaga
gritante da exclusão social, que nos colo­ca em posição constrangedora no rol dos
piores países e socieda­des em termos de distribuição de renda em redor do mundo.
136 MAURICIO GODINHO DELGADO

V — ADENDO: A INCLUSÃO SOCIOECONÔMICA DEFLAGRADA


NO SÉCULO XXI, NO BRASIL, PELO CAMINHO DA RELAÇÃO DE
EMPREGO E DO DIREITO DO TRABALHO

A brutal discriminação das grandes maiorias que caracteriza o desenvolvimento


econômico e social brasileiro desde o século XX, pela qual 60/70% dos
trabalhadores ocupados no País situavam-se fora das proteções e vantagens do
Direito do Trabalho — característica excludente que foi demonstrada no item III
deste Capítulo IV —, começou, pelo menos, a ser revertida, nos primeiros instantes
do século XXI, a contar do ano de 2003.(22)
De fato, durante o período de 11/12 anos, entre 2003 e 2014, o Brasil realizou
notável inflexão em sua lamentável tendência de recusa à generalização do Direito
do Trabalho na economia e na sociedade. Nesse curto período de 11/12 anos,
foram formalizados mais de 20 milhões de empregos no País, de maneira a atingir
a população economicamente ativa ocupada o montante de, aproximadamente,
49 milhões de pessoas, em dezembro de 2013, e um pouco mais do que isso, em
dezembro de 2014.
Realmente, considerados os dados oficiais do índice CAGED, construído a
partir da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), documento informado
pelas próprias empresas e instituições empregadoras, existiam no País, em
dezembro de 2002, 28,6 milhões de trabalhadores formalizados. Esse montante
cresceu fortemente a cada ano seguinte, até atingir a marca aproximada de 49
milhões de trabalhadores formalizados em dezembro de 2013, um incremento de
cerca de 20 milhões de postos formais de trabalho. Dessa maneira, em onze anos
(2003/2013), o acréscimo de empregos formais (empregados típicos) e relações
de trabalho congêneres (trabalhadores avulsos e servidores públicos) alcançou
mais de 20 milhões de postos, uma evolução de aproximadamente 70% sobre o
patamar de dezembro de 2002.(23)
Um ano após dezembro de 2013, esse número de trabalhadores formalizados
encorpou-se de mais 623.077 indivíduos, alcançando o montante de 49.671.510
pessoas humanas no mês de dezembro de 2014.(24)

(22) O presente item V deste Capítulo IV somente foi inserido na 2ª edição do livro, que foi publicada
em setembro de 2015. Naturalmente que recebeu aperfeiçoamentos redacionais na presente 3ª edição.
(23) CAGED significa “Cadastro Geral de Empregados e Desempregados”, tendo sido criado pela
Lei n. 4.923, de 1965, sendo administrado pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Já a RAIS traduz
“Relação Anual de Informações Sociais”, criada pelo Decreto n. 76.900, de 1975. Os dados do CAGED
referem-se a relações de trabalho formalizadas, no sentido amplo, ou seja, empregados formalizados,
trabalhadores avulsos formalizados e servidores públicos, quer celetistas ou administrativos. Os dados
mensais e anuais do CAGED, inclusive sua relação anual histórica, são publicados pelo Ministério do
Trabalho e Emprego (MTE), em seu sítio eletrônico, na internet, no denominado Portal do MTE:
www.mte.gov.br/A descrição desses dados encontra-se ainda em: DELGADO, Mauricio Godinho.
Curso de Direito do Trabalho. 14. ed., São Paulo: 2015, p. 55-58.
(24) Fonte: RAIS-CAGET/DES/SPPE/MTE. Texto: “Características do Emprego Formal - Relação Anual de
Informações Sociais - 2014”. Secretaria de Políticas Públicas de Emprego do Ministério do Trabalho e Emprego.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 137

Essa importante reversão das políticas públicas tradicionais do País, de


maneira a acentuar o papel democrático, progressista e inclusivo do Direito do
Trabalho, deveu-se à reunião, nesse período de 11/12 anos, de distintas medidas
institucionais, com decisivo impacto social e econômico na realidade brasileira.
Essa importante reversão das políticas públicas tradicionais do País, de
maneira a acentuar o papel democrático, progressista e inclusivo do Direito do
Trabalho, deveu-se à reunião, nesse período de onze anos, de distintas medidas
institucionais, com decisivo impacto social e econômico na realidade brasileira.
De um lado, aponte-se a busca de instituir e manter, com firmeza, uma
tendência anual contínua de valorização do salário mínimo, incrementando
automaticamente o valor trabalho na vida social e econômica presente em todo o
País. Em uma realidade demarcada pela participação significativa, no mercado de
trabalho, de largos segmentos populacionais pouco ou não qualificados, a firme
estipulação de níveis crescentes do salário mínimo constitui medida de notável
impacto econômico e social.(25)
De outro lado, indique-se a diretriz de aprofundar a inclusão trabalhista de
importante e numerosa categoria tradicionalmente segregada, a dos empregados
domésticos. Nessa curta fase histórica, a categoria recebeu três diplomas normativos
fortemente inclusivos: a Lei n. 11.324, de 2006, que agregou quatro novos
direitos em favor dos empregados domésticos, perante o anterior rol de apenas
12 direitos até então concedidos imperativamente a essa categoria; a Emenda
Constitucional n. 72, de 2013, que estendeu, com efeitos imediatos, oito novas
regras e institutos jurídicos aos integrantes da mesma categoria, determinando,
ademais, que diploma legal subsequente regulasse outras vantagens jurídicas; a
Lei Complementar n. 150, de 2015, que regulamentou a EC n. 72, estendendo,
desse modo, mais oito novos institutos jurídicos à categoria doméstica.
No mesmo período, registre-se a incisiva atuação de entidades e órgãos
oficiais (Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério Público do Trabalho e Justiça
do Trabalho, principalmente) no sentido do combate incessante ao trabalho infantil
e ao trabalho análogo ao de escravo, enfatizando o prestígio ao cumprimento da
legislação trabalhista e previdenciária.
Na mesma época, saliente-se, os mesmos órgãos e instituições públicos
enfatizaram, reiteradamente, a relevância dos vínculos empregatícios e do Direito
do Trabalho como instrumentos de construção de efetiva justiça social na realidade
socioeconômico do País. Singularmente, nessa fase, passaram a contar com a
harmonização do próprio discurso oficial do Poder Executivo brasileiro, então
claramente afirmativo do campo jurídico trabalhista.

(25) Sobre a política de incremento contínuo do valor do salário mínimo, consultar MELLO, Roberta
Dantas de. Relação de Emprego e Direito do Trabalho — papel histórico, crise e renascimento. São
Paulo: LTr, 2015. p. 193-213.
138 MAURICIO GODINHO DELGADO

Identifica também essa mesma época a institucionalização das Centrais


Sindicais, promovida pela Lei n. 11.648, de 2008, circunstância que propiciou o
fortalecimento de sua influência nas questões trabalhistas de maneira geral – com
inegável ganho para o Direito do Trabalho.
Caracteriza igualmente esse período o engrandecimento da atuação
jurisdicional da Justiça do Trabalho, por meio da ampliação de sua competência
processual, efetivada pela Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004.
A contar dessa reforma normativa de 2004 (denominada reforma do Judiciário),
o ramo especializado do Poder Judiciário passou a concentrar a competência
jurisdicional para conhecer e julgar não somente as ações entre empregadores
e empregados (como tradicional no Direito do País), porém até mesmo as ações
conexas às relações de trabalho (ilustrativamente conflitos que envolvam o
exercício do direito de greve; conflitos intersindicais ou entre as entidades sindicais
e empregadores e/ou trabalhadores; conflitos entre empregadores e o Estado, em
vista de atos da fiscalização trabalhista; a execução, de ofício, das contribuições
sociais de seguridade social decorrentes das sentenças que proferir; os mandados
de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver
matéria sujeita à sua jurisdição). É o que estipulou o importante novo preceito
inserido no art. 114 da Constituição da República, em seus vários incisos.
Na mesma época, deu-se ainda importante passo à tendência de fortaleci-
mento da negociação coletiva trabalhista, mediante a atenuação e moderação
da intervenção estatal, pelo Judiciário, na criação de normas jurídicas trabalhis-
tas, consubstanciada no denominado poder normativo judicial trabalhista. Pela
Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004 (novo texto do § 2º do art. 114
da Constituição), estreitou-se a margem de atuação do poder normativo judicial nos
processos de dissídios coletivos de natureza econômica.
Na mesma fase histórica, verificou-se a consolidação de uma jurisprudência
trabalhista afirmativa dos direitos individuais e sociais trabalhistas, harmônica à
restrição interpretativa a experimentos normativos flexibilizatórios, ainda que
tentados pela negociação coletiva sindical. De fato, a jurisprudência dessa época
notabilizou-se por acentuar a validade dos direitos individuais e sociais trabalhistas,
como também por prestigiar sua crescente generalização ao conjunto societário.
Nesse quadro, coerentemente, a nova jurisprudência destacou-se por restringir o
(mal) uso precarizador dos poderes negociais coletivos pelas entidades sindicais
pactuantes.
Todos esses dados fáticos e jurídicos evidenciam que o desafio da inclusão
econômica e social das pessoas pelo caminho da generalização do Direito do
Trabalho no País começou, pelo menos, a ser enfrentado no Brasil.
Tão importante quanto isso, a experiência desse recente período evidencia
o largo potencial e a testada eficácia do Direito do Trabalho para alcançar,
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 139

simultaneamente, crescimento econômico, justiça social, distribuição de renda e


bem estar individual e social no contexto de uma economia capitalista.

VI — A RETOMADA DA REGRESSÃO ULTRALIBERALISTA


NO DIREITO DO TRABALHO BRASILEIRO

Lamentavelmente, nos anos de 2016/2017, o País assistiu à retomada dos


desgastados pensamento e agenda ultraliberalistas, com propostas agressivas
de derruição das políticas públicas democráticas e de inclusão socioeconômica e,
nesse conjunto, consequentemente, também propostas agressivas de restrições
previdenciárias e de desregulamentação e flexibilização justrabalhistas.(26)
Essa retomada se produziu, de maneira incisiva, a partir da derrubada do
governo democrático precedente, adotando-se, a partir de então, entre outras,
medidas fortes de restrição dos investimentos e gastos públicos em geral,
privatização de segmentos estatais, política monetária restritiva, degradação das
instituições, equipamentos e serviços públicos, extinção, diminuição ou restrição
dos direitos e garantias sociais.
Deve-se reconhecer, objetivamente, que, de maneira inusitada e injustificável,
durante o ano de 2015, o antigo governo também acenara na direção de medidas
governamentais econômico-financeiras de caráter monetarista, no contexto das
deficiências orçamentárias públicas detectadas. Curiosamente, deflagrou, já na
abertura de 2015, medidas monetárias recessivas, que romperam com a evolução
positiva das contratações trabalhistas e administrativas formalizadas de pessoas
humanas, fazendo começar a ascender os níveis do desemprego na economia e
na sociedade, após anos de constante redução nessa linha estatística de grande
impacto na realidade do sistema socioeconômico e da própria Democracia.
De todo modo, com o novo governo instaurado logo a seguir, desde 12 de
maio de 2016, é que a política pública recessiva se generalizou e se aprofundou,
passando a implementar, praticamente, todos os pontos da agenda e ideário
ultraliberalistas provindos dos anos de 1990 no País, além de incrementados pelo
pensamento neoconservador ao longo do tempo.
A recidiva da regressão antissocial ultraliberalista no Direito do Trabalho
brasileiro recebia o impactante e uníssono suporte ideológico dos grandes meios
de comunicação de massa do Brasil (televisões, rádios, jornais e revistas), atuando
em concertação disciplinada e aguda no sentido do desprestígio de todo o Direito
Social (Direito da Seguridade Social e Direito do Trabalho) e de suas instituições
públicas e privadas específicas mais relevantes.

(26) O presente item V deste Capítulo IV somente foi inserido na 2ª edição do livro, que foi publicada
em setembro de 2015. Naturalmente que recebeu aperfeiçoamentos redacionais na presente 3ª edição.
140 MAURICIO GODINHO DELGADO

A essa blitzkrieg impressionante e avassaladora somaram-se interpretações


jurídicas relativamente novas, provindas de decisões judiciais de grave impacto.
Tais interpretações jurídicas perfilavam-se, infelizmente, na linha de desconstrução
dos direitos individuais e sociais trabalhistas como direitos fundamentais da pessoa
humana, além da desconstrução da matriz humanística e social da Constituição da
República Federativa do Brasil, com seus vários e importantes princípios humanísticos
e sociais, conhecidos na doutrina pelo epíteto de princípios constitucionais do
trabalho — os quais passaram a ser repetidamente negligenciados.(27)
Essa retomada da regressão ultraliberalista no Direito do Trabalho brasileiro,
dentro de um quadro caracterizado por políticas públicas assumidamente
antissociais, lamentavelmente aponta para o alargamento do fosso da desigualdade
social no País, com o rebaixamento inevitável do valor trabalho e o impulso à
concentração de riqueza na economia e na sociedade.
Nesse cenário lúgubre para a pessoa humana que vive do trabalho no Brasil
(a grande parte da população, registre-se), o Projeto de Lei de Reforma Trabalhista
aprovado pela Câmara dos Deputados em abril de 2017 (PL da Câmara n. 38/2017
ou, simplesmente, PLC n. 38), construído após indução lançada por PL remetido
pela Presidência da República no mês de dezembro de 2016, simplesmente elimina
ou restringe, de imediato ou a médio prazo, dezenas de direitos individuais e
sociais trabalhistas classicamente assegurados no País às pessoas humanas que
vivem do trabalho empregatício e similares (relações de emprego e relações de
trabalho avulso, ilustrativamente).
A eliminação imediata de direitos (dentro do campo do chamado Direito
Individual do Trabalho) recai sobre diversas parcelas, as quais alcançam muito mais
do que 20 (vinte) direitos trabalhistas (sic!), alguns deles, na verdade, de dimensão
variada, abrangendo mais de uma única parcela (ver, logo à frente, subitem 1, do
presente item VI).
Ainda dentro desse campo jurídico (o Direito Individual do Trabalho), o PLC n.
38/2017 estabelece larga e descontrolada permissão para a terceirização de serviços
em favor do poder econômico — regra esta que, mesmo considerada isoladamente,
produz uma dantesca e automática supressão de direitos trabalhistas, conduzindo
a uma impressionante redução do patamar civilizatório mínimo instituído no Brasil
pela Constituição da República, Convenções Internacionais da OIT ratificadas
internamente e legislação federal do trabalho imperativa no País.
Ao lado dessa lamentável redução de direitos, o PLC n. 38/2017 elimina ou
enfraquece mais de 20 (vinte) dezenas de regras e institutos de proteção trabalhista
ou de afirmação de maior igualdade em sentido material no âmbito da relação

(27) A respeito desses princípios humanísticos e sociais da Constituição de 1988, consultar DELGADO,
Mauricio Godinho. Princípios Constitucionais do Trabalho e Princípios de Direito Individual e Coletivo
do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2017, particulamente em seu Capítulo II (“Princípios Constitucionais
do Trabalho”).
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 141

empregatícia — preceitos mais à frente indicados neste próprio item VI, em seu
subitem 1. A intenção do PLC n. 38/2017 parece clara no sentido de mercantilizar
(ou remercantilizar), ao máximo, a força de trabalho na economia e na sociedade
brasileiras, retirando, no que for possível, controles jurídicos e civilizatórios no que
tange à gestão trabalhista e à própria análise institucional dos temas e conflitos
trabalhistas.
Seguindo nessa linha de desregulamentação e flexibilização trabalhistas
extremadas, o PLC n. 38/2017 enfraquece, enormemente, os sindicatos de
trabalhadores, por meio de diversos mecanismos expostos no interior do diploma
normativo aprovado pela Câmara dos Deputados — alguns deles também indicados
mais à frente neste item VI, em seu subitem 1. O PLC n. 38/2017 claramente
enfraquece ou afasta, no possível, no interior da relação de emprego a normatização
heterônoma estatal de proteção às pessoas humanas trabalhadoras; enfraquece,
no possível, as entidades sindicais representativas desses trabalhadores; e eleva, no
possível, a margem de atuação do poder empregatício, apesar de o contrato de
trabalho se tratar, conforme se sabe, de evidente contrato de adesão (o qual já
favorece, naturalmente, de modo significativo, o polo empresarial da avença).
O PLC n. 38, de 2017, entretanto, também atua sobre o Direito Processual
do Trabalho, criando inúmeros mecanismos de restrição do acesso à jurisdição à
pessoa humana do trabalhador — mecanismos que serão, logo a seguir, indicados
neste mesmo item VI, em seu subitem 1. Neste campo jurídico (Direito Processual
do Trabalho), o número de regras danosas (algumas já mencionadas, pois atuam
em campos complementares) alcança em torno de 15 preceitos!
Naturalmente que não cabe, neste estudo, se analisarem todos os dispositivos
do Projeto de Lei da Câmara, por ser tarefa que escapa aos objetivos deste livro e
deste item VI do presente Capítulo. Serão indicados, essencialmente, as dezenas
de regras jurídicas que, em seu impressionante conjunto, promovem notória
regressão normativa, cultural, democrática, social e até mesmo econômica no
plano das relações empregatícias no País.

1. Preceitos Trabalhistas Restritivas

Para a indicação desse conjunto de regras jurídicas contrárias ao espírito


humanístico, democrático e social da Constituição da República de 1988 e do Direito
Individual do Trabalho, do Direito Coletivo do Trabalho e do Direito Processual do
Trabalho, realiza-se a citação do documento de considerações jurídicas divulgado
em final de maio de 2017 por expressivo número de Ministros do Tribunal Superior
do Trabalho — todos, seguramente, com consistente experiência jurídica de várias
décadas no campo do Direito Material e Processual do Trabalho.
Apesar de se tratar de texto longo — são várias páginas de escrita analítica
sobre dezenas de preceitos normativos do PLC n. 38/2017 —, o documento
142 MAURICIO GODINHO DELGADO

consiste, seguramente, no mais profundo estudo técnico-jurídico até então


publicado sobre o mencionado Projeto de Lei. Daí a pertinência de sua reprodução
no presente livro.
Esclareça-se que o documento de considerações jurídicas dos Ministros do
TST, com data de 18 de maio de 2017, mas divulgado na semana seguinte a essa
data, foi dirigido ao Presidente do Senado Federal da República Federativa do Brasil.

“Os MINISTROS do TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO, assinados a seguir,


vêm, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência e de todos os Exce-
lentíssimos SENADORES, trazer este documento de considerações jurídicas
acerca do Projeto de Lei da Câmara n. 38/2017, que trata da “Reforma
Trabalhista”, e que ora se encontra em análise no SENADO FEDERAL.
A grande preocupação dos MINISTROS do TST que subscrevem este
documento — os quais contam, todos, com várias décadas de experiência
diária no segmento jurídico trabalhista —, é com o fato de o PLC n. 38/2017
eliminar ou restringir, de imediato ou a médio prazo, várias dezenas de
direitos individuais e sociais trabalhistas que estão assegurados no País
às pessoas humanas que vivem do trabalho empregatício e similares
(relações de emprego e avulsas, ilustrativamente).
A título de contribuição à análise do PLC/38 pelo SENADO FEDERAL,
este documento aponta, especificamente, as várias dezenas de regras
prejudiciais que foram instituídas pelo referido Projeto de Lei.
I — Em primeiro lugar — e com forte destaque —, cabe se indicar a
ampla autorização que o PLC n. 28 traz para a terceirização de serviços
em benefício das empresas tomadoras de serviços — regra que, por
si somente, produz uma significativa redução do patamar civilizatório
mínimo fixado pela ordem jurídica trabalhista vigorante no Brasil (novo
art. 4-A, caput, da Lei n. 6.019/74, segundo alteração proposta pelo art.
2º do PLC n. 38/2017). A par dessa larga autorização, a nova regra legal
também elimina a isonomia obrigatória entre o trabalhador terceirizado
e o empregado da empresa tomadora de serviços, tornando tal isonomia
mera faculdade empresarial (art. 4º-C, caput e § 1º, da Lei n. 6.019/74,
segundo alteração promovida pelo art. 2º do PLC n. 38/2017).
II — Em segundo lugar, há que se por em destaque a eliminação de
direitos que recai sobre diversas parcelas, as quais alcançam cerca de
25 (vinte e cinco) direitos trabalhistas — alguns deles, na verdade, de
caráter múltiplo.
Citem-se esses dispositivos que suprimem ou restringem direitos
individuais e sociais trabalhistas: 1) eliminação de diversos tipos de tempo
à disposição (art. 4º, § 2º, CLT, conforme PLC n. 38); 2) eliminação de
horas itinerantes (art. 58, § 2º, CLT, conforme PLC n. 38); 3) ampliação
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 143

do trabalho em tempo parcial (art. 58-A, CLT, conforme PLC n. 38); 4)


permissão para prestação de horas extras no regime de tempo parcial
(revogação do § 4º do art. 59 da CLT pelo art. 5º I, “b”, do PLC n. 38);
5) regime de compensação de horários por intermédio de mero acordo
tácito, ao invés de acordo escrito, eliminando as respectivas horas extras
(art. 59, § 6º, da CLT, conforme PLC n. 38); 6) banco de horas por mero
acordo escrito, eliminando as respectivas horas extras (art. 59, § 5º,
da CLT, conforme PLC n. 38); 7) pactuação genérica do regime de 12
horas de trabalho versus 36 de horas de descanso, autorizada de modo
irrestrito e por intermédio de mero acordo escrito (ao invés de mediante
norma jurídica ou por negociação coletiva e, inclusive, com determinadas
restrições), eliminando as respectivas horas extras (art. 59-A da CLT,
conforme PLC n. 38/2017); 8) eliminação do pagamento do feriado
trabalhado, no regime 12 X 36 horas (art. 59-A, parágrafo único, da
CLT, conforme PLC n. 38); 9) possibilidade de simples indenização
substitutiva do intervalo para refeição e descanso na jornada 12 X 36
horas (art. 59-A, caput, da CLT, conforme PLC n. 38); 10) eliminação da
obrigatoriedade do intervalo de 1 (uma) hora para refeição e descanso,
por negociação coletiva trabalhista, restando apenas o mínimo de 30
minutos (art. 611-A, caput e inciso III, da CLT, conforme PLC n. 38);
ademais, ocorrido o desrespeito ao intervalo, em qualquer hipótese,
o PLC estipula que isso gera mera indenização, ao invés de horas de
sobretrabalho prestado nos tempos legais de folga (art. 71, § 4º, da
CLT, conforme PLC n. 38); 11) eliminação do intervalo de 15 minutos
da mulher trabalhadora, antes de qualquer prestação de horas extras
(revogação do art. 384 da CLT pelo art. 5º, I, “i”, do PLC n. 38); 12)
regulação do teletrabalho, mas com exclusão, em qualquer hipótese,
do pagamento de horas extras, além dos encargos tecnológicos não
estarem previstos, legalmente, por conta do empregador (art. 62, III,
combinado com art. 75-D, ambos da CLT, conforme redação proposta
pelo PLC n. 38).
Continue-se a citação desses 25 dispositivos que eliminam ou restringem
direitos trabalhistas hoje assegurados à população brasileira que vive do
trabalho empregatício: 13) parcelamento das férias em até três períodos,
um deles não inferior a 14 dias corridos (art. 134, § 1º, da CLT, conforme
PLC n. 38); 14) caracterização restritiva das hipóteses de dano moral
(“extrapatrimonial”, segundo o PLC) do trabalhador (art. 223-C da CLT,
conforme PLC n. 38); 15) caracterização de dano extrapatrimonial em
favor do empregador (art. 223-D da CLT, conforme PLC n. 38);16)
tarifação das indenizações por danos extrapatrimoniais (art. 223-G,
§ 1º, da CLT, conforme PL n. 38); 17) criação da figura do trabalho
intermitente (art. 443, caput e § 3º, da CLT, conforme PLC n. 38); 18)
eliminação da natureza salarial de distintas parcelas tradicionalmente
componentes do salário contratual do empregado — alteração que, na
144 MAURICIO GODINHO DELGADO

verdade, envolve, em si, a perda de vários direitos (art. 457, §§ 1º,


2º e 4º, da CLT, conforme PLC n. 38); 19) restrição das hipóteses de
equiparação salarial, extirpando-se a validade da referência ao denominado
“paradigma remoto” (art. 461, caput e § 5º, da CLT, conforme PLC n.
38); 20) eliminação da exigência de o regulamento interno da empresa
(RI), para ser inviabilizador da equiparação salarial, ter de apresentar
efetivamente critério alternado de promoções por antiguidade e
por merecimento, acoplado este requisito ao reconhecimento do
RI ou do PCS por negociação coletiva trabalhista e/ou homologação
administrativa (art. 461, caput e § 2º, CLT, conforme redação do PLC n.
38/2017); 21) eliminação da incorporação do valor médio da gratificação
habitualmente paga ao empregado (art. 469, § 2º, da CLT, conforme
PLC n. 38); 22) eliminação da necessidade de prévia negociação coletiva
trabalhista para as dispensas coletivas de trabalhadores (art. 477-A da CLT,
conforme PLC n. 38/2007); 23) criação da figura da extinção contratual
parcial, com restrição de direitos rescisórios (art. 484-A, caput, I, da CLT,
conforme PLC n. 38); 24) autorização para a instauração da arbitragem no
plano do Direito Individual do Trabalho, em conformidade com o padrão
remuneratório do empregado (art. 507-A da CLT, conforme PLC n. 38);
25) autorização para a lavratura, pelo empregado e pelo empregador,
perante o sindicato de empregados da categoria, de termo escrito de
quitação anual de obrigações trabalhistas, com eficácia liberatória das
parcelas nele especificadas (art. 507-B, caput e parágrafo único, da CLT,
conforme PLC n. 38).
III — Em terceiro lugar, o PLC n. 38/2017, a par das várias extinções
e restrições a direitos trabalhistas acima expostas, elimina também
importantes garantias trabalhistas dos empregados brasileiros, além
de criar institutos e situações de periclitação de garantias e regras de
segurança desses trabalhadores.
Trata-se de 23 (vinte e três) regras de desproteção ou periclitação de
diferentes dimensões e facetas, sem contar a desproteção e periclitação
provocadas pela regra da terceirização ampla de serviços na economia
e na sociedade.
São elas: 1) descaracterização e enfraquecimento da figura do grupo
econômico para fins trabalhistas, diminuindo, acentuadamente, as
garantias jurídicas e patrimoniais dos trabalhadores (novo § 3º do
art. 2º da CLT, conforme PLC n. 38); 2) diminuição e rebaixamento
da função constitucional interpretativa dos Tribunais do Trabalho, em
contraponto à matriz da Constituição de 1988 e em comparação com
os demais Tribunais da República Federativa do Brasil (art. 8º, §§ 1º, 2º
e 3º da CLT, conforme PLC n. 38); 3) exacerbação do papel do Direito
Civil (“Direito Comum”) dentro do Direito Individual do Trabalho e do
Direito Coletivo do Trabalho (art. 8º, § 1º e 3º, da CLT, conforme PLC
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 145

n. 38), induzindo a que esses campos sociais do Direito se afastem de


sua clássica, histórica e constitucional matriz social e humanística; 4)
restrição da responsabilidade do sócio da entidade societária no campo
do Direito Individual do Trabalho (art. 10-A, caput, incisos I, II e III, e
parágrafo único da CLT, conforme PLC n. 38); 5) inserção da prescrição
intercorrente no processo do trabalho, instituto que propicia a extinção
dos processos judiciais, ainda que na fase de execução (mesmo com
coisa julgada já existente), particularmente perante devedores sem
lastro econômico aparente ou efetivo (art. 11-A, caput e §§ 1º e 2º
da CLT, conforme PLC n. 38); 6) alargamento de fórmulas extintivas
de horas extras, mas sem maiores garantias jurídicas, tal como ocorre
com o regime compensatório mensal meramente tácito e o banco de
horas até seis meses meramente bilateral (art. 59, caput e § 5º e 6º,
conforme PLC n. 38); 7) ampliação da possibilidade de alargamento da
jornada diária do trabalhador, mediante acordo meramente bilateral,
com a eliminação das restrições jurisprudenciais existentes a respeito
(art. 59-A, combinado com art. 59-B, parágrafo único, em conformidade
com o PLC n. 38); 8) eliminação das restrições relativas à saúde da
pessoa humana trabalhadora com respeito ao regime de trabalho de
12 X 36 horas (art. 60, parágrafo único, CLT, conforme PLC n. 38); 9)
diminuição das proteções e garantias à saúde da mulher trabalhadora,
inclusive da mulher gestante (art. 394-A, caput e incisos II e III, CLT,
conforme PLC n. 38); 10) autorização para a pactuação do trabalho
intermitente até mesmo tacitamente (art. 443, caput, CLT, conforme
PLC n. 38); 11) alargamento do poder empregatício até mesmo para
a desregulamentação e/ou flexibilização de direitos fixados por lei, nos
casos de empregados portadores de diploma superior e que percebam
salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos
benefícios do Regime Geral de Previdência Social (art. 444, parágrafo
único, da CLT, segundo o PLC n. 38/2017); 12) eliminação da assistência
administrativa pelo sindicato, Ministério do Trabalho e outros órgãos ou
autoridades, nos casos de extinção de contratos de trabalho com mais
de 1 (um) ano de serviço (art. 477, §§ 1º e 3º, revogados, conforme
proposto pelo PLC n. 38).
Continue-se aqui a citação das 23 regras de desproteção ou periclitação
jurídicas em desfavor da pessoa humana trabalhadora no âmbito da
relação empregatícia: 13) determinação legal no sentido de que as
dispensas massivas de trabalhadores tenham a mesma regência jurídica
da dispensa estritamente arbitrária da pessoa individual do trabalhador
(art. 477-A, CLT, conforme PLC n. 38/2017); 14) reconhecimento da
quitação ampla dos PDVs e dos PDIs, mas sem a estipulação de garantias
mínimas aos trabalhadores envolvidos (art. 477-B da CLT, conforme
146 MAURICIO GODINHO DELGADO

PLC n. 38); 15) inserção da arbitragem privada no Direito Individual do


Trabalho, superando a previsão constitucional relativa apenas ao Direito
Coletivo do Trabalho (art. 507-A da CLT, conforme PLC n. 38); 16)
inserção, no Direito Individual do Trabalho, de um sistema de quitação
escrita anual e taxativa de parcelas contratuais trabalhistas, diante do
sindicato profissional respectivo, porém mesmo durante o período de
exercício pleno do poder empregatício (art. 507-B da CLT, nos termos
do PLC n. 38); 17) criação de comissões internas de representação dos
empregados dentro de empresas com mais de 200 empregados, mas
sem vinculação com o respectivo sindicato de trabalhadores, e com este
podendo concorrer (arts. 510-A até 510-D, CLT, especialmente o art.
510-C, caput e § 1º, in fine, tudo conforme PLC n. 38/2017); 18) oferta
de garantias frágeis de emprego aos trabalhadores integrantes de tais
comissões internas de representação dos empregados (art. 510-D, caput
e §§ 1º, 2º e 3º, CLT, conforme PLC n. 38); 19) enfraquecimento das
entidades sindicais em decorrência do estabelecimento da terceirização
ampla de serviços no País (art. 4-A, caput, da Lei n. 6.019/74, conforme
art. 2º do PLC n. 38); 20) enfraquecimento também das entidades
sindicais dos trabalhadores, em vista da concorrência das comissões
internas de representação dos empregados (item 17, supra citado); e,
igualmente, em decorrência da criação do artifício de se tornarem os
sindicatos litisconsortes necessários em ação individual ou ação
coletiva que tenham por objeto a anulação de cláusulas de ACTs
ou CCTs no País (art. 611-A, § 5º, CLT, conforme PLC n. 38);
21) descaracterização legal das regras sobre duração do trabalho e sobre
intervalos trabalhistas como normas de saúde, higiene e segurança do
trabalho, para os fins da negociação coletiva trabalhista (art. 611-B, XXX, da
CLT, conforme PLC n. 38; 22) vedação da ultratividade de convenções
coletivas e acordos coletivos do trabalho, nos casos de ausência de novo
documento coletivo negociado, mesmo em decorrência de falta de
conciliação entre as partes coletivas, conforme inserido no art. 614, § 3º,
da CLT, pelo PLC n. 38/2017; 23) determinação da prevalência do acordo
coletivo do trabalho sobre a convenção coletiva do trabalho, em afronta
ao princípio constitucional da norma mais favorável, conforme explicitado
pela nova redação proposta para o art. 620 da CLT pelo PLC n. 38/2017.
IV — Em quarto lugar, cabe se aduzir que o PLC n. 38 não projeta os seus
efeitos restritivos somente sobre o Direito Individual do Trabalho e o
Direito Coletivo do Trabalho. Como indicado, o PLC, nestes dois campos
jurídicos, ostenta nada menos do que 49 (quarenta e nove) regras
jurídicas desfavoráveis às pessoas humanas trabalhadoras brasileiras, em
comparação com o padrão jurídico existente nas últimas décadas. Porém
o fato é que o PLC n. 38 também cria regras restritivas no âmbito do
Direito Processual do Trabalho.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 147

Na verdade, se prevalecerem os dispositivos lançados pelo PLC n. 38/2017,


o princípio do amplo acesso à jurisdição, estabelecido pela Constituição
de 1988 (art. 5º, XXXV), estará afastado do Direito Processual do Tra-
balho. Especialmente caso se trate do acesso à jurisdição por pessoas
humanas trabalhadoras que sejam simples e pobres — a regra geral das
pessoas regidas pelo Direito do Trabalho e dos componentes da popula-
ção brasileira e reclamantes na Justiça do Trabalho.
Citem-se, ilustrativamente, preceitos que irão afetar o princípio
constitucional do amplo acesso à jurisdição, afetando também, se não
bastasse, o princípio constitucional da igualdade em sentido material,
que deve presidir o processo judicial em situações de grande disparidade
de forças entre os sujeitos processuais contrapostos.
Inicie-se com a menção — já efetivada neste documento — a diversos
preceitos do PLC n. 38/2017 que buscam eliminar qualquer resquício de
passivo trabalhista durante o próprio desenrolar do vínculo empregatício
ou logo em seguida à sua extinção.
São eles: 1) criação da figura da extinção contratual parcial, com restrição
de direitos rescisórios (art. 484-A, caput, I, da CLT, conforme PLC n. 38);
2) autorização para a lavratura, pelo empregado e pelo empregador,
perante o sindicato de empregados da categoria, de termo escrito
de quitação anual de obrigações trabalhistas, com eficácia liberatória
das parcelas nele especificadas (art. 507-B, caput e parágrafo único,
da CLT, conforme PLC n. 38); 3) reconhecimento da quitação ampla
dos PDVs e dos PDIs, mas sem a estipulação de garantias mínimas aos
trabalhadores envolvidos (art. 477-B da CLT, conforme PLC n. 38); 4)
inserção da arbitragem privada no Direito Individual do Trabalho, em
conformidade com o padrão remuneratório do empregado, superando
a previsão constitucional relativa apenas ao Direito Coletivo do Trabalho
(art. 507-A da CLT, conforme PLC n. 38).
Esses 5 (cinco) preceitos normativos constantes do PLC n. 38 — já
anteriormente identificados — fecham o acesso à jurisdição trabalhista
antes de sequer proposta a ação trabalhista. Se efetivada, ainda assim,
a propositura da ação, pode-se arguir, segundo o PLC n. 38, combinado
com as demais regras processuais existentes, a respectiva preliminar
ou prejudicial de mérito no início da defesa, de maneira a se obter,
de imediato, a extinção do processo sem resolução do mérito ou,
alternativamente, com resolução do mérito, conforme a preliminar ou
prejudicial de mérito manejada.
Além desses cinco preceitos desfavoráveis, há um conjunto de regras, no
interior do PLC n. 38/2017, que firmam novo e restritivo direcionamento
do processo do trabalho em desfavor do reclamante trabalhista (em torno
de 10/11 regras, que se somam às cinco anteriormente mencionadas).
148 MAURICIO GODINHO DELGADO

Observe-se o conjunto dessas regras jurídicas novas: 1) competência


franqueada ao Juiz do Trabalho da respectiva Vara Trabalhista para
decidir a respeito de homologação de acordo extrajudicial em assunto
de competência da Justiça do Trabalho (art. 652, “f”, da CLT, conforme
PLC n. 38/2017). Relativamente ao assunto, o PLC n. 38 inseriu também
novo Capítulo III-A ao Título X da CLT, composto pelos artigos 855-
B, 855-C, 855-D, 855-E e parágrafo único, de modo a regulamentar o
novo processo de jurisdição voluntária para homologação de acordo
extrajudicial; 2) restrição ao instituto constitucional da justiça gratuita,
que deixará de abranger honorários periciais e também honorários
advocatícios (art. 790, §§ 3º e 4º, combinados com art. 790-B, caput e
§ 4º, e com art. 791-A, caput, §§ 1º, 2º, 3º, 4º e 5º, todos da CLT, em
conformidade com redação conferida pelo PLC n. 38/2017; 3) restrição
adicional ao instituto constitucional da justiça gratuita, que deixará
de abranger até mesmo o pagamento de custas, no caso de ausência
injustificada do reclamante à audiência inaugural, com a extinção do
processo sem resolução do mérito (situação denominada pelo caput do
art. 844 da CLT de “arquivamento da reclamação”); o encargo poderá
ser relevado se o beneficiário da justiça gratuita comprovar, “no prazo de
quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legamente justificável”.
A regra restritiva e sua ressalva constam do art. 844, § 2º, da CLT,
conforme redação proposta pelo PLC n. 38/2017; 4) inviabilidade de
propositura de nova ação caso o reclamante não comprove a quitação
das custas a que foi condenado por ausência à audiência inaugural no
processo anterior (o denominado “arquivamento da reclamação”). É o
que dispõe o art. 844, § 3º, em conformidade com redação promovida
pelo PLC n. 38/2017; 5) incorporação do incidente de desconsideração
da personalidade jurídica do CPC de 2015 sem qualquer pertinente
adequação ao Direito Processual do Trabalho (nova Seção IV do
Capítulo III do Título X da CLT, em seu art. 855-A, conforme redação
explicitada pelo PLC n. 38/2017); 6) eliminação da execução de ofício no
processo do trabalho, salvo nos casos em que as partes não estiverem
representadas por advogado (novo texto do art. 878 da CLT, conforme
PLC n. 38) ou no caso das contribuições sociais (novo texto do parágrafo
único do art. 876 da CLT, conforme redação promovida pelo PLC n.
38/2017); 7) escolha, pela reforma processual, do modesto índice de
correção dos créditos trabalhistas, com base na Taxa Referencial (TR),
conforme novo § 7º do art. 879 da CLT, inserido pelo PLC n. 38/2017;
8) restrição, pelo PLC n. 38, da inovação do CPC de 2015, no sentido de
permitir o protesto da decisão judicial transitada em julgado (art. 517
do NCPC); pelo art. 883-A da CLT, conforme nova redação promovida pelo
PLC n. 38, esse protesto somente poderá acontecer após transcorrido
o prazo de 45 dias (o CPC prevê o transcurso do prazo de 15 dias:
art. 517, combinado com art. 523 do novo Código Processual Civil);
ressalva o PLC n. 38 que o protesto também não prevalecerá se houver
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 149

“garantia do juízo”, deixando, porém, de explicitar que se trata,


naturalmente, de garantia do juízo em dinheiro, sob pena de colocar o
processo de execução trabalhista muito menos eficiente do que o novo
processo civil; 9) o PLC n. 38 restringe a garantia do juízo ou penhora,
não as considerando mais aplicáveis às entidades filantrópicas e/ou
àqueles que compõem ou compuseram a diretoria dessas instituições
(novo § 6º do art. 884 da CLT, conforme redação promovida pelo PLC
n. 38/2017); 10) o PLC n. 38, conferindo nova redação ao art. 896-A
da CLT, minudencia o instituto processual da transcendência, que é
fortemente criticado por seu subjetivismo e pela maior burocratização
que imporá ao processo do trabalho, criando desnecessária ineficiência
e inefetividade processual; 11) o PLC n. 38 elimina a exigência do
depósito recursal na conta vinculada do empregado, além de o
substituir também por fiança bancária ou seguro garantia judicial (novo
texto do art. 899, §§ 4º, 9º, 10º e 11º, revogando-se ainda o § 5º do
mesmo artigo); com isso reduz a efetividade do processo do trabalho e
compromete, substantivamente, o fundo social de destinação variada,
de grande importância para o País, denominado FGTS.
V — Estas as observações jurídicas necessárias a serem feitas sobre o
conteúdo normativo do PLC n. 38/20127.
Solicitamos, outrossim, a Vossa Excelência que este documento de
considerações jurídicas seja encaminhado aos Exmos. Senadores
Presidentes das Comissões do SENADO FEDERAL que estão analisando
o Projeto de Lei em destaque, assim como aos Exmos. Senadores
Relatores designados em tais Comissões, a par de todos os Exmos.
Senadores integrantes do SENADO FEDERAL.
Respeitosamente,
NOME DO MINISTRO ASSINATURA DO MINISTRO”(28)
Esclareça-se que subscreveram o referido documento de considerações jurídicas(29)
um conjunto de 17 (dezessete) Ministros do Tribunal Superior do Trabalho, os quais
representam mais de 62% dos componentes da Corte Superior Trabalhista (27
Ministros, no total). Pela ordem de assinaturas, trata-se dos seguintes Ministros:
1) João Oreste Dalazen; 2) Antônio José de Barros Levenhagen; 3) Lelio Bentes
Corrêa; 4) Luiz Philippe Vieira de Mello Filho; 5) Alberto Luiz Bresciani de Fontan
Pereira; 6) Maria de Assis Calsing; 7) Guilherme A. C. Bastos; 8) Walmir Oliveira da
Costa; 9) Mauricio Godinho Delgado; 10) Katia Magalhães Arruda; 11) Alexandre
Belmonte; 12) Augusto César Leite de Carvalho; 13) José Roberto Freire Pimenta;
14) Delaíde Alves Miranda Arantes; 15) Hugo Carlos Scheuermann; 16) Cláudio
Mascarenhas Brandão; 17) Maria Helena Mallmann.

(28) Grifos do documento em seu original.


(29) Os grifos indicados no documento de considerações jurídicas supra reproduzido constam do original.
150 MAURICIO GODINHO DELGADO

Conforme se observa, o documento em referência apresenta as várias dezenas


de regras jurídicas do PLC n. 38 (mais de 50, na verdade) gravemente dissociadas do
patamar civilizatório mínimo arquitetado pela Constituição da República de 1988,
pelas Convenções Internacionais da OIT ratificadas pelo Brasil e pela legislação fede-
ral trabalhista que rege a sociedade política e a sociedade civil no País.

2. Síntese da Lógica Jurídica Regressiva

Desafortunadamente, o Projeto de Lei aprovado pela Câmara dos Deputados


em abril de 2017 (PLC n. 38/2017) retoma cenários da realidade jurídica dantesca
da Primeira República no Brasil (1889-1930), restaurando a ideia de poder
incontrastável do empregador na relação de emprego, ao lhe ampliar a prerrogativa
de impor, no contrato de adesão trabalhista, cláusulas imunes a qualquer padrão
jurídico distinto da só vontade unilateral da parte regente do contrato de emprego.
O referido projeto de lei reverbera ainda a antiga ideia do “negociado versus
o legislado”, ampliando os poderes da negociação coletiva trabalhista por além
do patamar mínimo fixado em norma jurídica heterônoma estatal imperativa, ao
invés de respeitar — e aperfeiçoar, no que for pertinente, é claro — o consagrado
princípio da adequação setorial negociada, que tão bem explicita e equilibra os
poderes e os limites do processo negocial coletivo sindical a partir do advento da
Constituição de 1988.
A par dessas graves regressões, o PLC n. 38 também autoriza a ampla
terceirização de serviços na economia e sociedade brasileiras, sem controles
civilizatórios quaisquer (inclusive sem isonomia imperativa), aprofundando um
direcionamento de precarização trabalhista que suas inúmeras regras já acentuam.
Com tudo isso, o PLC n. 38/2017 desconsidera o patamar civilizatório mínimo
instituído pelas leis federais do País, pelas dezenas de Convenções Internacionais
da OIT ratificadas pelo Brasil (mais de 75 Convenções ratificadas, já excluídas as
denunciadas), além da larga e firme matriz humanística e social arquitetada pela
Constituição da República de 1988, com seus diversos princípios humanísticos e
sociais, englobados no que se denomina princípios constitucionais do trabalho.
No que tange à Constituição Federal, a propósito, o PLC n. 38 negligencia
a incorporação do princípio da norma mais favorável pelo art. 7º, caput, da
Constituição (“Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de
outros que visem à melhoria de sua condição social: ...” — grifos acrescidos),
negligenciando também a absorção desse mesmo princípio pelo enfático art. 5º, § 2º,
da Constituição da República (“Art. 5º. ... § 2º. Os direitos e garantias expressos
nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por
ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte” — grifos acrescidos).
Ora, o regime adotado pela Constituição de 1988 (art. 5º, § 2º, CF/88),
conforme se sabe, é o do Estado Democrático de Direito, que conta com um
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 151

tripé conceitual basilar: a pessoa humana e sua dignidade; a sociedade política,


democrática e inclusiva; a sociedade civil, igualmente democrática e inclusiva. Esse
regime constitucional de 1988, do Estado Democrático de Direito, não possui
qualquer correspondência com a adoção de regras, institutos e práticas inspiradas
quer no velho quer no novo liberalismo excludente, unilateral e darwinista —, que
era mais próprio à Constituição de 1891, de cerca de 100 anos antes de 1988.(30)
O princípio da norma mais favorável é desrespeitado quando o projeto de
lei exacerba o poder do empregador para fixar cláusulas contratuais contrárias ao
patamar civilizatório mínimo fixado pelo ordenamento jurídico heterônomo estatal
imperativo brasileiro; quando incorpora a tese desproporcional do negociado
sobre o legislado; quando determina que as regras do acordo coletivo de trabalho
preponderem sobre as regras da convenção coletiva do trabalho.
Se não bastasse, no plano do Direito Coletivo do Trabalho, o PLC n. 38/2017
também investe contra o sindicalismo de trabalhadores no País, ao instituir
comissões de representantes de empregados na empresa sem a participação
sindical — ao passo que o correto e mais lógico, do ponto de vista organizacional
e democrático, seria instituir tais comissões como entidades representativas do
respectivo sindicato profissional dentro das empresas do País, para melhor agregar
forças ao princípio da equivalência entre os contratantes coletivos e à própria
organização coletiva dos trabalhadores.
Além disso, o PLC diminui, severamente, o custeio das entidades sindicais,
ao eliminar, de pronto, sem qualquer período mínimo de transição, a antiga
contribuição sindical obrigatória, oriunda da década de 1940 (originalmente
apelidada de “imposto sindical”). Ora, essa extinção jamais poderia ser feita sem
a prudência de certo lapso temporal de transição. Ademais, dentro do mesmo
assunto, o PLC n. 38 não trata da necessária regulação da contribuição assistencial/
negocial (também conhecida pelo epíteto de “cláusula de solidariedade”), que
é inerente ao custeio sindical em decorrência da celebração dos documentos
coletivos negociados (CCTs e ACTs).
Mais do que tudo, o projeto de lei praticamente instiga os sindicatos
profissionais a que se tornem instrumentos de precarização trabalhista, com
largo espaço temático para a redução de direitos trabalhistas tradicionalmente
assegurados pela ordem jurídica heterônoma estatal no País.
No plano do Direito Processual do Trabalho, o projeto derrui o intento
constitucional de 1988 de ampliar o acesso ao Poder Judiciário para as pessoas
humanas simples do País, relativamente ao mundo do trabalho.

(30) Sobre o sentido constitucional de Estado Democrático de Direito, com o seu tripé conceitual
distintivo, claramente estruturado pela Constituição de 1988 no Brasil, consultar o artigo de
DELGADO, Mauricio Godinho. Constituição da República, Estado Democrático de Direito e Direito
do Trabalho, originalmente publicado em 2012 e que consta, como Capítulo II, do seguinte livro:
DELGADO, M. G.; DELGADO, G. N. Constituição da República e Direitos Fundamentais — Dignidade
da Pessoa Humana, Justiça Social e Direito do Trabalho. 4ª ed. São Paulo: LTr, 2017.
152 MAURICIO GODINHO DELGADO

De fato, em uma primeira dimensão, o PL cria vários mecanismos de quitação


absoluta de parcelas trabalhistas ao longo do contrato de trabalho e ao final
do contrato de trabalho. Ele também instiga a instauração da arbitragem no
Direito Individual do Trabalho, instituto que, no cenário de relações econômicas
significativamente díspares, tende a não passar de mero instrumento de extinção
de direitos individuais e sociais fundamentais. Em síntese, nesta primeira dimensão,
o PL desconsidera, portanto, manifestamente, o princípio constitucional do amplo
acesso à jurisdição (o art. 5º, XXXV, da Constituição Federal estatui: “a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”).
Em uma segunda dimensão — caso a pessoa humana trabalhadora consiga
alcançar o Poder Judiciário Trabalhista, propondo a sua ação judicial —, o PLC
n. 38 tem o cuidado de criar uma série de regras restritivas e censórias, tornando o
processo judicial verdadeiro risco econômico grave para o trabalhador perante o seu
empregador. Faz do instituto da justiça gratuita — de explícito fundo constitucional
(art. 5º, LXXIV, CF) — quase um simulacro para as pessoas humanas simples, que
dificilmente deixarão de arcar, às suas próprias expensas, com as despesas de
honorários periciais e de honorários advocatícios, sem contar com o risco de várias
apenações que instiga ao Juiz aplicar severamente às Partes processuais.
Nesse campo temático, o PLC elimina ainda o impulso oficial do Magistrado do
Trabalho na fase de execução do processo judicial (ou de cumprimento espontâneo
do título executivo em análise). Institui, a seguir, a prescrição intercorrente, regra
que tenderá a ceifar, ao final, eventual crédito trabalhista existente em favor do
ex-empregado, particularmente nos casos de execuções de difícil sucesso, em face
de se tratar de devedores contumazes ou sem lastro econômico aparente ou real.
Ao especificar também, no plano do Direito Individual do Trabalho, vários
direitos e pretensões do empregador contra o trabalhador, o PLC n. 38/2017 lança
a mensagem de ser o processo judicial, a partir de então, caminho de perigoso curso
para as pessoas humanas, em face do passivo trabalhista reverso que pode produzir,
via reconvenção processual, apta a dar origem a inusitado débito trabalhista para a
pessoa humana trabalhadora ao final de seu itinerário perante a Justiça Especializada.
Como se infere, a recidiva, desde 2016, do pensamento e ideário ultraliberalistas
antissociais e excludentes pode, sem dúvida, instigar a uma regressão social,
econômica, jurídica, institucional e cultural no País de enorme proporções.(31)

(31) Conforme exposto neste item VI deste Capítulo IV, a partir de janeiro de 2015, o antigo governo
passou a adotar, equivocadamente, medidas ultraliberalistas em sua política econômica; porém,
sem dúvida, não incorporou o ideário ultraliberal nas demais políticas públicas. Apenas a contar
de 12 de maio de 2016, com o início da derrubada do governo eleito em fins de 2014, é que,
realmente, o novo governo instalado passou a seguir, com intensidade, rigor e generalidade, a
agenda ultraliberalista em todos os níveis da atividade estatal e das políticas públicas, inclusive no
campo do Direito de Seguridade Social (reforma previdenciária) e do Direito do Trabalho e seus
distintos segmentos (reforma trabalhista).
CAPÍTULO V

O DESEMPREGO COMO ESTRATÉGIA NO


CAPITALISMO DE FINANÇAS

I — INTRODUÇÃO

O presente capítulo sintetiza observações dissertadas neste livro a respeito de


fenômeno antigo e novo na História do Capitalismo: o desemprego.(1)
Analisa, em primeiro plano, os efeitos do desemprego na economia e na
sociedade, com os impactos que proporciona em pessoas e empresas na vida
concreta dos indivíduos, famílias e países.
Nesse quadro, aponta, inclusive, o impacto negativo que o desemprego pode
apresentar com relação à consolidação e à permanência da Democracia, sistema
político e social relevante do Constitucionalismo Humanista e Social de após a
Segunda Grande Guerra.
O texto retoma a análise exposta neste livro sobre as explicações correntes
acerca do desemprego, procurando evidenciar as suas mais notórias inconsistências.
Passa a examinar, em seguida, este capítulo os fatores mais relevantes para
a produção e o incremento do desemprego na sociedade capitalista, indicando os
pontos da política pública que atuam nessa direção censurável.
Por fim, o texto se completa com a exame do papel do desemprego na
presente fase do sistema capitalista, que é identificada pelo epíteto de “capitalismo
de finanças”. Nesse tópico, o estudo percebe a tendência contemporânea de se
utilizar, no Ocidente, o desemprego como estratégia sagaz do capitalismo de
finanças, como meio de preservar a sua hegemonia e aprofundar a realização de
seus interesses no período histórico recente vivenciado no mundo ocidental.

II — O DESEMPREGO E SEUS EFEITOS NA ECONOMIA,


NA SOCIEDADE E NA DEMOCRACIA

O desemprego é uma das mais impactantes e antissociais disfunções do


sistema econômico capitalista.
Ele está presente desde os primeiros momentos do sistema econômico-
-social contemporâneo, percorrendo todo o itinerário de existência do capitalismo
industrial inaugurado na Grã Bretanha no século XVIII, que foi generalizado para

(1) O presente Capítulo V somente foi inserido na 3ª edição deste livro, divulgada no mês de junho
de 2017.
154 MAURICIO GODINHO DELGADO

a Europa Continental e os Estados Unidos da América durante o século XIX,


espraiando-se para o restante do globo terrestre ao longo dos séculos XX e XXI.
Mesmo consideradas as modificações sofridas pelo sistema capitalista nesses
dois séculos e meio de História — desde o capitalismo acentuadamente industrial
e concorrencial dos séculos XVIII e XIX (a primeira grande fase do capitalismo),
passando pelo capitalismo industrial e financeiro oligopolista das décadas iniciais
do século XX (a segunda grande fase do capitalismo, tomando-se como parâme-
tro os países ocidentais desenvolvidos — Europa Ocidental e EUA) e, finalmente,
atingindo o atual período histórico, que é característico do capitalismo multidimen-
sional, marcadamente tecnológico, internacionalizado e oligopolizado, porém sob
inequívoca hegemonia financeiro-especulativa (trata-se da fase atual do sistema,
deflagrada em seguida à crise econômica dos anos de 1970) —, o fato é que o
desemprego recorrentemente desponta na vivência do sistema econômico, em
intensidade e periodicidade distintas, segundo as economias envolvidas.
O desemprego, entretanto, de maneira geral, não é efetivamente contínuo;
ao invés, apresenta, ao longo do tempo, algumas fases agudas de manifestação,
entrecortadas por fases econômicas de pleno emprego ou, pelo menos, de
modesto desemprego.
Ilustram as fases mais conhecidas de alto desemprego no Ocidente, a partir do
início do século XX e período posterior, os seguintes exemplos: os anos de 1920 e
1930, na Europa, no pós-Primeira Guerra Mundial; no caso dos EUA, a fase de alto
desemprego, nessa conjuntura, apresentou-se somente a partir da crise de 1929,
avançando por período relevante da década imediatamente seguinte.
Depois da Segunda Guerra Mundial, o alto desemprego despontou nos EUA
apenas recentemente, a partir da crise econômica de 2007/2008 ali deflagrada,
mantendo-se por alguns anos subsequentes a essa crise.(2)
Na Europa Ocidental, o desemprego manteve-se baixo durante algumas
décadas em seguida à Segunda Grande Guerra, no contexto da construção e
hegemonia do Estado de Bem-Estar Social e de suas políticas públicas de natureza
keynesiana.
Essa tendência se modificou, porém, a partir da crise econômica deflagrada
em 1973/1974 (denominada, então, de crise do petróleo), momento em que o
refluxo econômico se generalizou na região e os altos índices de desemprego se
alojaram em diversos países europeus.

(2) Esclareça-se que houve um curto período de desemprego nos EUA em meados dos anos de 1970,
com a denominada crise do petróleo (1973/1974) e anos subsequentes da mesma década. Porém,
a contar do Governo Reagan — posse em janeiro de 1981; término do mandato em janeiro de 1989
—, com o (mal) chamado “keynesianismo de guerra” daquele governo, retomou-se o crescimento
econômico no país, reduzindo-se, em consequência, com certa rapidez (em comparação com a
Europa), o desemprego nos Estados Unidos.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 155

Desde essa época, a propósito (meados e finais dos anos de 1970), o


desemprego tem ostentado uma presença relativamente alta em distintos países
europeus; uma presença muitas vezes quase contínua, expressada por lapso tem-
poral significativamente longo. O fato é que o elevado desemprego configurado
na Europa Ocidental desde 1973/1974 (data do “primeiro choque do petróleo”)
manteve-se em patamar significativo no período subsequente, quando passou a
ser impulsionado por fatores distintos; entre estes fatores distintos destacam-se
o abandono das políticas públicas keynesianas anteriormente seguidas na Europa
Ocidental, ao lado da rigorosa adoção de largo rol de políticas públicas ultralibe-
ralistas, as quais galvanizaram aquela região ocidental desde 1979, tendo como
fulcro a Grã-Bretanha (Governo Thatcher: 1979-1990), e, logo depois, tomando
espaço em outros países do ocidente europeu.
No Brasil das últimas décadas, o desemprego passou a se evidenciar com
maior profundidade durante os anos de 1990 (fase coincidente também com a
adoção de políticas públicas ultraliberais) e, tempos depois, a partir do ano de
2015 e período subsequente — fase que igualmente coincide com a adoção de
políticas ultraliberalistas pelo Estado brasileiro.
Os efeitos do desemprego na economia e na sociedade são muito importantes
e até dramáticos, embora atinjam de modo diverso os segmentos econômicos,
sociais e institucionais.
A repercussão mais impactante do desemprego é, sem dúvida, a de caráter
individual e, ao mesmo tempo, social. É que o desemprego atinge as pessoas
humanas que vivem da relação empregatícia ou de qualquer relação de trabalho
minimamente consistente, uma vez que lhes retira a fonte de sustento e de afirmação
na vida econômica e social. Sendo prolongado o desemprego, tais efeitos tornam-se
simplesmente devastadores, em especial em economias e sociedades mais primitivas,
que não tenham tido a aptidão e o descortino de instituirem uma rede de seguridade
social de proteção individual aos desempregados e às suas famílias.
O desemprego ostenta, entretanto, também inegável impacto econômico,
afetando, inclusive, interesses próprios à dinâmica da economia capitalista. É que,
em sociedades e economias mais complexas (especialmente as de população
numerosa), uma das principais fontes de sustentação do dinamismo econômico
consiste no mercado interno do respectivo país, que é formado, principalmente,
pelo poder aquisitivo das pessoas humanas e de suas respectivas famílias. E esse
mercado econômico interno se estrutura, em sua maior dimensão, pela renda do
emprego e do trabalho exercitado pelas pessoas humanas. O desemprego, dessa
maneira — principalmente se em índices elevados —, conspira contra a estruturação,
a preservação e a consistência do mercado interno, ao qual compete absorver,
pelo consumo das pessoas naturais e de suas famílias, a parte mais importante
dos bens de consumo duráveis e não duráveis produzidos pelas empresas, além dos
serviços igualmente por elas ofertados a tais indivíduos e famílias.
156 MAURICIO GODINHO DELGADO

A partir desse impacto negativo na formação e mantença do mercado


interno da economia, o desemprego lança igualmente graves repercussões sobre
o financiamento do Estado, de suas instituições e de suas políticas públicas. Dessa
maneira, necessariamente o desemprego faz aprofundar o déficit público, em vista
da diminuição da arrecadação de tributos tanto com respeito às pessoas humanas
quanto com relação às pessoas jurídicas.
Porém o desemprego promove impactos deletérios inclusive na estruturação
e no desenvolvimento da Democracia, historicamente arquitetada pelo Direito
Constitucional humanístico e social contemporâneo. Isso porque a realidade e a
sensação cotidiana do desemprego, ao longo da vida e do imaginário das pessoas
humanas que o sofrem, comprometem os seus justos e acalentados sentimento
e orgulho de cidadania. O desemprego, quando profundo e generalizado,
inapelavelmente impõe ao indivíduo a sensação de exclusão econômica, social e
cultural; mais do que isso, a sensação de ausência de reciprocidade, pela sociedade
política e pela sociedade civil, em relação à pessoa humana desempregada —
sentimento e compreensão racional que podem, a médio e longo prazos, colocar
em risco as próprias ideia e realidade de Democracia.
É que a sensação de ausência de qualquer reciprocidade entre a sociedade
política e seus indivíduos componentes — e (por que não?) entre a sociedade civil,
inclusive a sua economia, e seus indivíduos componentes — pode ensejar a noção, na
História, da máxima injustiça, tal como apreendido pela célebre obra de Barrington
Moore Jr., “Injustiça — bases sociais da obediência e da revolta”. Ora, a sensação
máxima de injustiça, resultante da falta de qualquer reciprocidade do sistema com
relação ao indivíduo e aos grupos sociais, provoca, quase que inevitavelmente, a
convicção clara sobre a ilegitimidade dos governos e do próprio sistema político e
econômico, com a deflagração, em consequência, da entropia e da revolta.(3)
Evidentemente, que semelhante situação ou sensação de ruptura social grave
não pode interessar a qualquer espírito ou racionalidade democráticos.

III — EXPLICAÇÕES CORRENTES SOBRE O DESEMPREGO: INCONSISTÊNCIAS

As explicações correntes sobre o desemprego foram exaustivamente


analisadas no presente livro, em seus três primeiros capítulos. Particularmente em
seu Capítulo II (“O Fim do Trabalho e do Emprego no Capitalismo Atual: Realidade
ou Mito?”), estudaram-se as linhas explicativas principais que se apresentam,
hodiernamente, para a compreensão do desemprego no capitalismo das últimas
décadas no mundo ocidental.
Trata-se da explicação tecnológica, que se arrima na expressão bastante
enfatizada e repetida: “desemprego tecnológico”. Ou seja, a máquina ou
simplesmente a tecnologia, ambas substituem irreprimivelmente a pessoa humana.

(3) MOORE JR, Barrington. Injustiça — bases sociais da obediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987.
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 157

Trata-se também da explicação organizacional, que se arrima nas novas formas


de estruturação das empresas e das instituições, isto é, na ideia de desemprego em
decorrência da nova estruturação organizacional das empresas e instituições. Por
exemplo, mire-se na multifuncionalidade do trabalhador que, acumulando tarefas
e funções antes desempenhadas por distintas pessoas, suprime postos de trabalho
nas instituições e nas empresas.
Trata-se, por fim, da explicação mercadológica, baseada na ideia de que
o desemprego surge e se mantém em vista do acirramento da concorrência
capitalista, quer no plano local, quer no plano inter-regional, quer no plano da
competição internacional.
O presente livro procurou demonstrar que todas essas explicações ostentam
certo fundo de verdade, evidentemente. Entretanto, buscou o livro igualmente
comprovar que nenhum desses fatores do desemprego mostra-se universal e
absoluto, não respondendo, sozinhos — ou mesmo em conjunto — pelo surgimento
ou pelo crescimento do desemprego na contemporânea sociedade capitalista
ocidental, inclusive no Brasil.
É claro que qualquer dos três mencionados fatores pode atuar topicamente, em
dimensão localizada, setorialmente — tendo, nesses momento ou local específicos
de atuação, impacto algo relevante. Porém, nenhum deles, seja isoladamente, seja
em conjugação unitária, desempenha o papel central de provocação e incremento
do desemprego na contemporânea sociedade e economia capitalistas.
Tais explicações segmentadas são brandidas, no fundo, como arsenal
ideológico sagaz para evitar o encontro dos fatores principais de produção e
aumento do desemprego no capitalismo ocidental contemporâneo — fatores que
serão examinados no item IV do presente Capítulo V, logo a seguir. Isso porque, se
fossem explicações verdadeiras e consistentes, valeriam também para o restante do
globo terrestre — onde há regiões muito importantes, fortemente industrializadas e
capitalisticamente arquitetadas (embora dispostas longe do padrão do capitalismo
ultraliberal), que não experimentam, há décadas, semelhante e suposto tipo de
desemprego estrutural.(4)
Se fossem verdadeiras e consistentes tais explicações correntes, ademais,
deveriam valer para todos os momentos da economia e da sociedade em um certo
período histórico relativamente uniforme — o que não acontece a partir do instante
em que se altera a política econômica adotada na respectiva sociedade e economia.

(4) Vide distintos países da Ásia, onde imperam políticas públicas do tipo keynesianas, há
várias décadas, com enorme sucesso quanto às baixas taxas de desemprego e bons índices de
desenvolvimento econômico. Aliás, com a exceção do Japão (que tem ostentado, desde os anos
de 1990, claros problemas quanto ao desempenho de seus índices econômicos e de emprego/
desemprego). Neste específico país (Japão), curiosamente, prepondera a influência de um Banco
Central que, nas últimas décadas, foi reconhecidamente influenciado e disciplinado no seguimento
da linha monetarista rigorosa elogiada no imaginário das políticas públicas do Ocidente.
158 MAURICIO GODINHO DELGADO

É o que se passou, a propósito, no Brasil, nas últimas três décadas. Observe-


-se o seguinte: nos anos de 1990, em que foi avassaladora a influência ultraliberal
nas políticas públicas, assistiu-se a constrangedor índice elevado de desemprego
na economia e na sociedade brasileiras; consequentemente, naquele período, vi-
cejou a coorte de explicações “estruturais” sobre o desemprego na economia e na
sociedade do País.
Tão logo alterada a direção das políticas públicas, em determinado período
situado nas duas primeiras décadas do século XXI — mesmo tendo as inovações
tecnológicas e organizacionais certamente aumentado no País e no mundo, além
de se ter elevado a própria competição internacional —, não obstante tais fatores
“estruturais”, portanto, terem igualmente estado presentes e atuantes, o fato
é que os índices de desemprego reduziram-se acentuadamente, até o ponto de
atingirem patamar inferior a 5% anuais na economia e na sociedade. Tudo isso
porque se adotou, naqueles anos — ainda que moderadamente — políticas públicas
keynesianas na economia, ao invés do estrito receituário ultraliberal perfilado nos
anos precedentes.(5)

(5) Dados oficiais brasileiros (IBGE: mês base de referência: dezembro) demonstram que os índices
de desemprego ostentaram números superiores a 10,0% da população economicamente ativa do
País até o ano de 2003 (dezembro de 2003: 10,9%), caindo, acentuadamente, a partir de então,
até atingir índice inferior a 5,0% relativamente aos meses de dezembro de 2011 até dezembro de
2014. Notem-se os índices do IBGE, todos relativos a dezembro de cada ano: 2002 — 10,5; 2003
— 10.9; 2004 — 9,6; 2005 — 8,4; 2006 — 8,4; 2007 — 7,4; 2008 — 6,8; 2009 — 6,8; 2010 — 5,3;
2011 — 4,7; 2012 — 4,6; 2013 — 4,3; 2014 — 4,3; 2015 — 6,9; 2016 (neste caso, fevereiro) — 8,2.
Conforme se percebe, depois de dezembro de 2014, tais índices voltaram a subir aceleradamente,
atingindo já 8,2% em fevereiro de 2016. (FONTE: IBGE. Diretoria de Pesquisas, Coordenação de
Trabalho e Rendimento. Pesquisa Mensal de Emprego: mar.2001-fev.2016. URL: http://www.ibge.
gov.br/home/estatistica/indicadores/trabalhoerendimento/pme_defaulttab_hist.shtm Acesso em
12/05/2017, às 17:05h). A elevação dos índices de desemprego, a partir do ano de 2015 (em
dezembro de 2014, relembre-se, tal número estava em apenas 4,3%) — e em crescimento acentuado
e constante já por dois anos, desde o primeiro semestre de 2015 até o presente primeiro semestre de
2017 -, coincide exatamente com a alteração da política econômica e financeira do Brasil, na direção
monetarista extremada (neste caso, a partir de janeiro de 2015) e, a contar de maio de 2016, até
mesmo na direção ultraliberalista, em sentido mais geral. O último índice divulgado pelo IBGE (até a
data do fechamento da redação deste livro, em maio de 2017), foi concernente ao mês de março de
2017, que atingiu o patamar superior a 13%, em conformidade com a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua (FONTE: IBGE. Coordenação de Trabalho e Rendimento. Pesquisa Nacional
por Amostra de Domicílios Contínua. Indicadores para população de 14 anos ou mais de idade.
BRASIL. Divulgação em 18 de maio de 2017). Embora esta última pesquisa se trate de investigação
e/ou análises distintas das explicitadas na primeira tabela acima exposta, o fato é que ambas as
pesquisas e seus dados foram coletados, examinados e divulgados pelo IBGE. Para não haver dúvidas,
esclareça-se que os dados recém publicizados pelo IBGE, relativamente à pesquisa “PNAD Contínua”,
evidenciam o seguinte: Taxa de Desocupação: jan-fev-mar/2016 — 10,9; out-nov-dez/2016 — 12,0;
jan-fev-mar/2017 — 13,7. De todo modo, qualquer que seja a pesquisa considerada, os dados e seu
sentido são, efetivamente, manifestos, isto é, o tipo de política pública é que, fundamentalmente,
cria, aumenta e/ou mantem elevados os índices de desemprego no capitalismo de finanças. .
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 159

Tão logo se abandonou a matriz keynesiana de políticas públicas, relativamente


à gestão monetária e das estratégias de gastos e investimentos sociais e públicos
— o que passou a acontecer a partir de janeiro de 2015 até os dias atuais (primeiro
semestre de 2017); ou seja, em menos de dois anos e meio, portanto, de reversão
ultraliberalista —, catapultaram-se os índices do desemprego no Brasil, passando
para patamares superiores a 13% ao ano, em conformidade com o critério e fonte
oficiais estatísticos adotados.(6)

IV — FATORES PRINCIPAIS DE PRODUÇÃO E INCREMENTO DO


DESEMPREGO NO CAPITALISMO

As medidas centrais de incremento do emprego — e, ao reverso, de aprofun-


damento do desemprego — na economia e na sociedade dos países capitalistas,
em geral, estão vinculadas, na verdade, ao tipo de política pública adotada no
respectivo país.
Caso se trate de uma política pública do tipo ultraliberal, seguramente as
taxas de desemprego serão incrementadas e exponenciadas.
Caso se trate de política pública de matriz distinta, influenciada pela linha
keynesiana de gestão dos juros, da moeda, do orçamento público e do emprego,
não submetida ortodoxamente ao receituário ultraliberalista — ainda que
preservando, é claro, racionalidade nos gastos públicos e na gestão da moeda —,
a tendência será que as taxas de desemprego recuem, declinem e ingressem em
um patamar razoável para a boa gestão da economia e da sociedade.
Nesse contexto, os fatores principais de produção e incremento do desem-
prego no capitalismo contemporâneo são, sem dúvida, os componentes das
políticas públicas inerentes ao modelo ultraliberal de gestão da economia, das finan-
ças públicas e da sociedade, os quais, em sua maioria, tendem a provocar graves
impactos negativos na curva do emprego na economia e na dinâmica social.
Citem-se, ilustrativamente, tais componentes da política pública ultraliberalista,
bastante comum aos países ocidentais, especialmente aos países dependentes do
centro hegemônico da economia e da sociedade, como os da América Latina.
Evidentemente que nem todos esses componentes são seguidos, em todo o seu

(6) O índice de 13% de desemprego (na verdade, 13,7!), relativamente ao mês de março de 2017,
foi divulgado pelo IBGE em 18 de maio de 2017, conforme exposto na nota de rodapé anterior,
referindo-se, porém, à pesquisa «PNAD Contínua». Conforme já explicitado, o próprio IBGE apresenta
números um pouco diferentes sobre o tema dos índices do desemprego no País, em conformidade,
é claro, com os métodos, cenários e pesquisas considerados. Não obstante essa relativa disparidade,
o fato é que os números demonstram uma clara e lógica evolução: quando o País adota políticas
públicas ultraliberalistas, com o seu receituário monetarista rigoroso característico e outras medidas
ultraliberais vinculadas, os índices do desemprego se aceleram; quando as políticas públicas ostentam
outros teor e direcionamento, os índices de desemprego recuam.
160 MAURICIO GODINHO DELGADO

conjunto e em igual intensidade, nos diversos países objeto de experimentações


ultraliberalistas; de todo modo, a tendência é que sejam observados em grande
medida durante os contextos de retomadas de hegemonias ultraliberalistas.
São os seguintes os principais componentes desse desse receituário de polí-
ticas públicas ultraliberalistas, que tendem a ostentar forte impacto negativo na
curva do emprego na realidade socioeconômica, catapultando, em decorrência, os
índices de desemprego:
1) gestão monetária rigorosa, com restrição dos recursos financeiros dispo-
níveis na economia e na sociedade, de maneira a provocar o enfraquecimento
da demanda em todos os segmentos da órbita do mercado econômico (ou nos
principais segmentos existentes);
2) gestão rigorosa da taxa de juros, de modo a preservá-la em patamar sig-
nificativamente elevado, restringindo, de uma maneira adicional, a demanda por
bens e serviços na sociedade e na economia;
3) restrição firme à oferta do crédito no plano econômico, social e institucio-
nal, quer pela elevação da taxa de juros (que torna o crédito pouco atraente, do
ponto de vista de sua racionalidade econômico-financeira, para o tomador), quer
por medidas concretas de contingenciamento da oferta desse instrumento de ges-
tão de interesses e negócios na vida social e econômica;
4) acentuação das vantagens e perspectivas do segmento financeiro da
economia, garantindo a sua hegemonia inconteste na nova fase do sistema eco-
nômico capitalista e, por consequência, a higidez das medidas ultramonetaristas
implementadas;
5) gestão do câmbio compatível com as medidas anteriores, usualmente me-
diante a artificial valorização da moeda interna;
6) restrição acentuada dos gastos públicos, sejam os gastos de custeio da
máquina estatal, sejam os gastos com investimento público; com tal redução de
gastos e investimentos estatais, a propósito, aprofunda-se a retirada de recursos
financeiros da economia e da sociedade, complementando-se as medidas monetá-
rias contingenciadoras precedentes;
7) deterioração das condições de manutenção dos equipamentos, instituições
e serviços públicos, de maneira a diminuir a participação do Estado na economia e
na sociedade e a valorizar os produtos e serviços ofertados pelo mercado privado;
8) privatização das entidades e patrimônio estatais;
9) desconstrução das instituições públicas vocacionadas para o planejamento
da economia e da sociedade;
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 161

10) desregulamentação crescente e contínua da economia e da sociedade;


11) desregulamentação e mercantilização crescentes e contínuas dos serviços
estatais para a população;
12) desregulamentação e privatizaçao dos serviços de seguridade social, no
que for conjunturalmente viável;
13) desregulamentação e flexibilização do mercado de trabalho, no que for
conjunturalmente viável.
O implemento dessas treze medidas — ou, pelo menos, de algumas delas,
mesmo que em dimensões e graus diversos — inapelavelmente provoca o rápido
incremento da taxa de desemprego na economia e na sociedade.
Estes têm sido, portanto, ao longo dos últimos 30/40 anos, os fatores principais
de produção e incremento do desemprego no capitalismo contemporâneo no
Ocidente desenvolvido (especialmente na Europa) e nas regiões a ele vinculadoas
(particularmente a região da América Latina).

V — O DESEMPREGO COMO ESTRATÉGIA NO CAPITALISMO DE FINANÇAS

A presente fase do sistema capitalista, deflagrada a partir do final da década


de 1970 no Ocidente, se caracteriza por algumas marcas claramente diferenciadas,
em comparação com os períodos anteriores do desenvolvimento desse sistema
econômico-social.
Citem-se, por ilustração, os seguintes pontos: 1) a perda da hegemonia, no
interior das economias ocidentais, do setor eminentemente industrial (fala-se, hoje,
inclusive, no epíteto “capitalismo pós-industrial” 2); aprofundamento da tendência
à oligopolização de todo o sistema econômico, quer no plano nacional, quer no
plano internacional; 3) a presença maciça da tecnologia e de seus múltiplos artefatos
e mecanismos, em qualquer área de estruturação da economia e da sociedade; 4)
a generalização ainda mais abrangente e sofisticada das práticas capitalistas nos
diversos segmentos da economia (ou, pelo menos, nos mais importantes), seja
no agronegócio, seja no setor de serviços, seja no setor financeiro, em síntese,
nos diversos segmentos de produção e circulação de bens e serviços na economia
contemporânea; 5) a internacionalização crescente do sistema econômico dos
distintos países e regiões, especialmente os mais largamente inseridos nas práticas
e culturas de mercado; 6) a presença e inserção generalizadas nas instituições e na
vida econômico-social de um padrão uniforme de pensamento e de interpretação
da economia e da sociedade, dotado de inquestionável força hegemônica —
conhecido pelo epíteto de neoliberalismo ou de ultraliberalismo; 7) a presença
e atuação generalizadas e altamente interventivas dos meios de comunicação
162 MAURICIO GODINHO DELGADO

de massa (televisões, rádios e mídia impressa), cada vez mais estreitamente


vinculados a uma perspectiva ideológica de mercado, ou seja, a perspectiva
unitária de pensamento neoliberalista ou ultraliberalista; 8) a presença crescente
do novo meio de comunicação de massa, consistente na internet; 9) hegemonia
firme, pujante e crescente do sistema financeiro-especulativo, com indisputável
dominância no círculo de riquezas e rendas da economia e da sociedade, além de
uma relevância sistêmica nos diversos segmentos de toda a economia.
Esta nova fase do capitalismo — que já persevera por três a quatro décadas no
mundo ocidental — pode ser batizada, simplesmente, de capitalismo de finanças,
em decorrência da irreprimível e avassaladora hegemonia do segmento financeiro-
especulativo no conjunto da economia e das instituições públicas e privadas, além
da força da matriz ideológica dominante na sociedade política e na sociedade civil,
o chamado neoliberalismo.
No capitalismo de finanças (vicejante, no Ocidente, desde meados ou finais dos
anos de 1970, em diante), o tema do desemprego ostenta certas peculiaridades,
em contraponto aos períodos anteriores do sistema capitalista.
Nas fases precedentes do capitalismo, os elevados índices de desemprego
sempre apresentaram inegável dose de riscos e problemas para a segura higidez e
continuidade do próprio sistema econômico e político.
De um lado, pela circunstância de que, tratando-se de um sistema preva-
lentemente de produção e circulação de bens e serviços (fases do capitalismo
industrial hegemônico, seja concorrencial, seja oligopolizado), o colapso ou o significativo
enfraquecimento na venda de seus produtos e serviços colocava em periclitação a
própria sobrevivência de boa parte dos setores empresariais. Sem a técnica e a prá-
tica — comum no subsequente capitalismo de finanças — de cada empreendimento
capitalista se tornar, ao mesmo tempo, independentemente de seu foco de atua-
ção original, um forte agente de finanças, que direciona parte importante de seu
capital para as aplicações específicas no mercado financeiro, a firme e contínua
venda de produtos se mostrava crucial à própria sobrevivência de todo o negócio.
Nessa medida, os elevados e persistentes índices de desemprego ameaçavam,
realmente, os próprios interesses dos setores econômicos e produtivos do sistema
econômico.
No capitalismo de finanças, entretanto, todo empreendimento tem de se
tornar, concomitantemente à sua atividade original, também um agente do
sistema financeiro, extraindo da lógica e operação desse sistema parte significativa
de seus ganhos econômicos. Nesse quadro novo e peculiar de gestão e estratégia
empresariais, a pressão derivada do desemprego se torna muito menos dramática
para os grandes empreendedores capitalistas, em comparação com a dinâmica
experimentada nas fases anteriores do capitalismo ocidental.
De outro lado, o setor ora hegemônico do sistema capitalista — o segmento
financeiro-especulativo — situa-se entre os que mais intensamente se tornaram
CAPITALISMO, TRABALHO E EMPREGO 163

tecnológicos, além de se destacar por ser um dos setores da economia que menos
necessita, para operar, de força de trabalho intensiva. Este fato, aliado à influência
generalizada do pensamento econômico ultraliberalista — em si, um padrão de
explicação da economia e da sociedade elaborado preponderantemente sob a
perspectiva do segmento financeiro-especulativo —, tudo leva à percepção muito
mais benevolente, pelo pensamento dominante, acerca dos altos índices de
desemprego no mundo concreto da vida econômica e social.
Historicamente se sabe que os segmentos dominantes no capitalismo jamais
ostentaram inteira ojeriza e repulsa perante os altos índices de desemprego. Há
quase 75 anos, em texto publicado no ano de 1943 (“Aspectos Políticos do Pleno
Emprego”), o economista Michal Kalecki insistia que o pleno emprego elevava,
significativamente, o valor do trabalho e do próprio trabalhador na realidade
econômica e social (fato que não era de especial agrado do poder econômico), ao
passo que o desemprego, sob a perspectiva desses mesmos setores econômicos
dominantes, reduzia a força, a organização e o valor econômico, social e político
dos trabalhadores, em seu conjunto.(7) Em impressionante inferência, o autor chega
a estatuir que se pode esperar, das forças econômicas dominantes, “a oposição
à manutenção do pleno emprego e não apenas à tentativa de evitar profundas e
prolongadas depressões econômicas”.(8)
No capitalismo de finanças, entretanto, a tensão e o dilema entre o combate
às recessões econômicas versus a suposta necessidade, para o capitalismo, de
certo grau de desemprego na sociedade, se tornaram claramente resolvidos: as
últimas décadas demonstram que o pensamento ultraliberalista dominante fez
a clara escolha pela criação ou mantença de elevados índices de desemprego na
economia e na sociedade, negligenciando, manifestamente, o manejo de políticas
públicas de combate à recessão, o desaquecimento ou a letargia econômicos.
Ou seja, para esse tipo de pensamento ora hegemônico - que é expressão típica
do capitalismo de finanças -, prevalece a concepção no sentido da relevância do
desemprego como estratégia em benefício do sistema econômico, no contexto da
permanência de certo (suposto) necessário grau de desaquecimento da economia
e também da pressão trabalhista no âmbito socioeconômico.
O desemprego, na qualidade de fato social impactante e de estratégia
de gestão política, social e econômica, efetivamente enfraquece, desalenta e
desorganiza as pessoas humanas que vivem do emprego e do trabalho, propiciando,
em decorrência, a consecução de mudanças supressivas de direitos no plano da
sociedade política e da sociedade civil.

(7) KALECKI, Michal. Os Aspectos Políticos do Pleno Emprego. In KALECKI, Michal. Crescimento e
Ciclo das Economias Capitalistas. Ensaios selecionados e traduzidos por Jorge Miglioli. 2. ed. São
Paulo: HUCITEC, 1987, p. 54-60. O texto original em inglês (Political Aspects of Full Employment) foi
publicado em revista da Grã-Bretanha, Political Quarterly, em 1943. Na internet, existem hoje versões
traduzidas em Português e em Espanhol do relevante texto desse economista, falecido em 1970.
(8) KALECKI, Michal. Ob. cit., p. 58 (grifos no original).
164 MAURICIO GODINHO DELGADO

No capitalismo de finanças, em suma — ao inverso do que ocorria nos períodos


precedentes do sistema capitalista —, sedimentou-se notável uniformização de
pensamento nos meios de comunicação de massas (televisão, rádios e mídia
impressa), de maneira a esterilizar a possibilidade de conexão entre as políticas
públicas ultraliberais e o crescimento e/ou a preservação dos próprios índices
elevados de desemprego.
No capitalismo de finanças, igualmente, possuem os setores econômicos mais
pujantes a tecnologia apta para enfrentar as crises de mercado e de desemprego;
esta tecnologia consiste na reserva técnica e operacional financeira, reiteradamente
recomendada aos sujeitos econômicos mais bem preparados e estruturados de
toda a economia e sociedade.
Nesse novo contexto histórico do sistema capitalista no mundo ocidental,
oo desemprego, em boa medida, para a ideologia ora hegemônica, deixa de ser
considerado uma falha injustificável em seu bom funcionamento, passando a
ostentar, fundamentalmente, o papel de estratégia de gestão social e política na
sociedade de massas do capitalismo de finanças.
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