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Coletânea de

histórias gaúchas
Capa:
Vagner Baldasso - Casa Baldasso Ateliê

Editoração Eletrônica:
Aline T. Fochi - Gráfica Editora Berthier

Impressão:

Pouco antes desta publicação vir ao mundo o Vô


Lauro foi chamado pelo Patrão Celestial.

Ficha Catalográfica Desculpe não ter sido mais rápido e obrigado por tudo.
Este livro é para o senhor.
Agradecimentos

Agradeço a todos que contribuíram de alguma forma


na publicação destas memórias, seja com dicas, relatos ou au-
torizando que nomes e acontecimentos verdadeiros pudessem
ser incluídos.
Meu mais sincero obrigado ao amigo e exímio artista
Vagner Baldasso, à professora Eni Maria Guadagnin, ao poe-
ta/radialista Altamir Souza e ao fotógrafo José Koch. Deixo,
também, um agradecimento especial aos meus pais Laudir e
Leonilde Gomes pelo inestimável apoio e por terem cuidado
do velhinho com máximo esmero e respeito até o último dia.
Este livro não teria saído do mundo das ideias sem sua ajuda!
Certamente o Vô Lauro, onde quer que esteja, também
agradece a todos vocês!

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Quem foi o Vô Lauro?

Este livro foi idealizado ao lado do fogão à lenha onde o


Sr. Lauro Teixeira Gomes, sempre que tinha expectadores, con-
tava histórias de antigamente. A riqueza de detalhes e a memória
inoxidável do velhinho trouxeram ao século XXI casos que, de
outra maneira, há muito teriam caído no esquecimento.
O interesse em publicar estas memórias está não apenas
em prestar uma humilde homenagem a este senhor que viveu por
mais de um século com muita saúde e bom humor. Espera-se,
também, resgatar e trazer às novas gerações histórias da região
nordeste do Rio Grande do Sul, em especial do município de
Lagoa Vermelha.
Nosso contador de histórias nasceu em 11 de março de
1912, na humilde casa que seus pais tinham no interior do mu-
nicípio. Como toda criança da época, começou a trabalhar muito
cedo na lida campeira e na agricultura, mas isto não impediu
que ele e os irmãos fossem alfabetizados. Mais tarde, já jovem, o
Lauro conseguiu um posto de auxiliar de carpintaria no povoado
onde vivia (atualmente o município de Ibiraiaras) e a partir de
então seguiu a profissão de carpinteiro.
Construiu várias casas, igrejas e moinhos. Eram obras
que demandavam até um ano de trabalho, pois partiam abso-
lutamente do zero: Mesmo o corte dos pinheiros e a confecção
das tábuas eram tarefas do carpinteiro. Seus relatos exemplifi-
cam bem o vínculo do Gaúcho Serrano com a Araucária - da
qual se retirava madeira até para confeccionar o telhado e os

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móveis das residências - e elucidam como ela, hoje ameaçada e mais uma vez a autorização dos envolvidos e/ou de seus descen-
protegida por lei, era o motor principal da economia e do pro- dentes. Entretanto, em alguns causos mais polêmicos, para evitar
gresso na região. desconfortos a terceiros, o nome dos personagens apenas rima
Para a época, ele casou-se tarde (já com seus trinta e pou- com o dos verdadeiros protagonistas. Esta se trata apenas de uma
cos anos) e teve poucos filhos (apenas um casal, Laudir e Develi). descontraída homenagem, um livro que não tem a mínima in-
O casamento, aliás, o fez abandonar a carpintaria para dedicar-se tenção de ofender ninguém!
à pecuária, com a qual trabalhou pelo resto de sua vida tendo ao O estimado leitor também irá perceber que não há preo-
lado seu filho. cupações com a escrita formal e nem com a concordância. A
A história do Sr. Lauro assemelha-se à de muitos cida- prioridade foi manter a forma de falar do Vô Lauro. É ele quem
dãos que viveram na mesma época e lugar que ele. Entretanto, conta, do seu jeito, com seu costumeiro bom humor.
conforme os anos passavam e o centenário de seu nascimento se
aproximava, sua saúde, sua lucidez e sua vontade de viver pare- Boa leitura!
ciam não apenas se manter, mas inclusive se intensificar. Contra
todas as probabilidades, por ter trabalhado no pesado durante
sua juventude, nenhum tipo de enfermidade se abateu sobre o
já velhinho Lauro. Celebrou sua festa de cem anos sem precisar
fazer uso de sequer um único medicamento, caminhando com
desenvoltura (ao lado de sua inseparável bengala, claro) e apre-
ciando sem restrições o churrasco, a cerveja e o que mais lhe
servissem à mesa.
Aos que lhe visitavam, entre um chimarrão e outro, ele
brindava histórias de sua época, com personagens cuja existência
muitas vezes os próprios descendentes desconheciam. Uma ver-
dadeira enciclopédia sobre o passado, lembrando de datas, nomes
e acontecimentos de um tempo que passou e o deixou como úni-
ca testemunha.
Todas as histórias deste livro são frutos de gravações reali-
zadas nos seus últimos anos de vida, sendo que as mesmas foram
o mais fielmente possível transcritas para o papel. Alguns no-
mes e sobrenomes foram mantidos, motivo que me faz agradecer

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Sumário
1
O Capão Assombrado

Todas as histórias deste livro são fielmente contadas se-


gundo as centenárias lembranças do Sr. Lauro Gomes. Este, en-
tretanto, é o único causo no qual vou precisar fazer uma pequena
introdução. Aconteceu enquanto viajávamos da sua residência,
no interior do município de Lagoa Vermelha, em direção à refe-
rida cidade.
Desde guri ouço histórias que perto de nossa casa existe
um capão de mato assombrado, a tal da “Restinga Seca”. O dito
cujo não é muito grande (quando muito se precisa atravessar du-
zentos metros dentro dele), mas é uma mata fechada, o sol quase
não entra e a estrada que corta a mesma faz uma curva bastante
acentuada, de forma que não se pode ver a saída depois de entrar
e nem a entrada quando se está saindo. Um xirú a cavalo, numa
noite escura, deveria mesmo passar teso pelo lugar... mas hoje o
trajeto não dura mais de vinte segundos de carro e as histórias de
aparições, desapareceram.
Quando passávamos por lá, o Vô Lauro me deu uma ex-
plicação que superou todas as minhas expectativas:
- Aqui é um capão muito assombrado. Era mata fechada, só
um trilho pra passar um cavalo e ainda por cima uma porteira pra ter
que abrir bem no meio do caminho. Seguido quem passava de a cavalo
enxergava aparição, de noite ou no querer anoitecer... Te conto um
causo do Guilherme Antunes, você não chegou conhecer, home valente
uma barbaridade, em casa vivia de facão na cintura e pra sair era
facão de um lado e revólver do outro! Quando ia contar os causos das

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peleia que ele tinha se metido, puxava o facão e começava a dar golpe
nas paredes da casa... Paiá! Paiá!
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Pois é ele mesmo que contava que debochou duma véia par-
teira, porque naqueles tempo não tinha hospital, eram as parteiras
Os Despropósitos do
que iam ajudar quando tinha alguma criança por nascer. Médico Manuel Izébio
não existia e quando tinha era muito longe, não dava tempo,
tocava chamar uma parteira. Essa tal desta véia chamava Mar-
O véio Manuel Izébio era muito muquirana. Segurava
ciana e encontrou a assombração dum home barbudo só com a metade
cada tostão com as duas mãos e não soltava, mesmo sendo dono
de cima do corpo neste capãozinho aqui. O tal do Guilherme, muito
de uns dez milhão de campo. Deixou mais de dois milhão de
debochado, fez troça a mais não poder da véia, que rogou praga pra
campo pra cada filho! Um capital sem fim, dos homens mais
ele: “Um dia há de aparecer pra você”.
ricos que eu conheci.
Aaah, mas não deu outra! Um dia ele ficou até tarde jogan-
Mas te conto que, se chegava visita, ele dizia pra muié:
do carta e tomando uns trago numa bodega ali pra diante da Res-
tinga Seca e na hora de voltar pra casa foi passar pelo capãozinho... - Vá buscar o mate, mas a erva tá boa!
Pois diz que apareceu a assombração e ele descarregou um revólver ...
inteiro nela! Diz que ela sumia e aparecia do lado dele, assoprava Quando ia dar sal pro gado, o filho dele tinha que pe-
nos ouvido... O home chegou em casa branco que nem uma vela, gar uma bolsa de sal e ir atrás escondido do pai pra colocar
as perna tremendo, mais suado que o cavalo baio que ele tinha na mais, porque o véio colocava só uma misérinha pros animal
época. E daí em diante sempre contava este causo pra todo mundo. malemal lamberem. Aí o rapaz esperava o pai colocar o sal,
Era home de muita coragem o Guilherme mas se arrepiava tudo de dar umas volteada e ir embora do rodeio pra ir lá colocar mais
contar da assombração! sal nos cochos.
Como bom cético, tentei desmistificar o lugar: O brabo era quando o véio Izébio resolvia de voltar no
- Mas porque será que hoje em dia ninguém mais vê assom- rodeio e via que ainda tinha sal nos chochos: na cabeça dele, o
bração aqui? gado não tinha comido nada do sal que ele tinha botado.
- Ah, pois ora, decerto agora o povo passa de carro, que é mais - Mas que despropósito! Já botei pouco pra não ir fora!
ligeiro, e não dá mais nem tempo das aparição aparecer que o carro já ...
passou e foi simbora!
O filho mais novo do Manuel Izébio, o José, ganhou a
loteria federal. Na época um dinheiro grosso uma barbaridade:
Quinhentos contos de réis! Pra você ter uma ideia o sujeito com

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oito contos naquela época comprava um milhão de terra. Deu
pra comprar campo de não ter mais fim.
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Pois diz que o rapaz tinha comprado na cidade uns quan-
tos bilhete da loteria e deu o acaso de um ser o premiado, não é?
O Bagual da
Quando ela quer, a sorte vem. Mas daí quando foi contar pro pai Costa do Turvo
que tinha ganhado na loteria e mostrou os bilhetes o véio ainda
ficou louco de brabo:
O casamento e a mortalha, do céu se detalha. Essa é a
- Mas que despropósito! Gastar toda esta quantia nestes coisa mais certa que tem. Eu namorei oito anos com uma moça
outros bilhete que não deu prêmio nenhum?? lá do Maragato, que me tocava sair de Ibiraiaras de madrugada
Você calcule só o quanto era impossível o Izébio. Depois pra chegar almoçar na casa dela, umas seis horas de a cavalo. E
de ganhar na loteria o José virou Seu José. Comprou até um carro acabamo se deixando e fui casar com que nunca tinha imagina-
pro pai andar, mas ele não quis porque gastava com gasolina! do! A coisa é assim, quem é pra acabar casando pode dar as volta
que der mas vão terminar junto.
E a mesma coisa é a mortalha. A hora da gente tá escrita
e não adianta: Vi home novo e forte morrer duma hora pra outra
e eu aqui, com esta idade. É que Deus tá me conservando, não é?
Então o casamento e a hora da morte ninguém manda, vem do
céu... E foi o que aconteceu com o João Moreira de Barros, que
morava perto do Rio Turvo, pouco adiante de onde tem a ponte
hoje. Ele era piadista, gostava de dançar quadrilha uma barbari-
dade e era cheio de mania. Uma das manias era colocar Bagual da
Costa do Turvo no sobrenome. Uia Moreira véio!
Te conto um causo só pra você ter uma idéia! Diz que
ele foi batizar um afilhado e o padre perguntou o nome dele, pra
escrever no registro.
O Milhão de campo é uma unidade de medida extraoficial utiliza-
da principalmente no linguajar campeiro. Equivale a 100 hecta- - João Moreira de Barros, Bagual da Costa do Turvo.
res ou 1.000.000 m2 (daí o nome). Aí o padre disse que um nome deste não podia ser, e o
Um Conto de Réis equivalia a um milhão de Réis, moeda que cir- Moreira embrabou:
culou no Brasil desde a época colonial até 1942. - Se não escrever, não te pago! Escreva, senão não te pago!

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Mas o que o Moreira gostava mesmo era da tal da quadri- paz indo atrás das filhas dele pra arrumar casamento. Só que
lha. Era home de idade já e seguia dançando, até mandar a dança elas nunca aceitavam os pretendentes. Daí teve um home que foi
ele sabia: “Olha o balançar!”, “Olha a cobra!”, “Aos seus postos!” e por falar com o Moreira, que as moças nunca queriam casamento e
aí vai. Certa feita tentou dizer “Tudo deita!”, mas não conseguiu coisa e tal, e cutucou:
que ninguém deitasse, ora, quem que ia tar deitando no chão? O - Mas Moreira, tuas filhas não casam, óia que elas termi-
véio era tirano! nam ficando véia...
Então, como eu tava contando, o causo é que num bai- - Pois deixe que fiquem! O dia que tiverem velha eu com-
le ele tava na cozinha proseando e tomando chimarrão e foram pro uns fiádaputa pra casar com elas!
chamar ele pra dançar uma quadrilha:
...
- Vamo dançar uma contradança, seu João?
E teve a vez que ele foi pagar imposto e tinha uma mons-
E ele respondeu: tra duma fila. Naquela época a gente ia pra Lagoa de a cavalo,
- Pois vamo, que eu já disse que quero morrê dançando tinha até duas forquilhas fincadas com um tronco atravessado
uma quadrilha! pra amarrar os cavalos na frente da prefeitura. Os imposto tinha
Começou a dança, deu duas passada e o véio caiu no meio que pagar na coletoria e aquele dia tava cheio de gente. Ele viu
do salão! Aí o pessoal disse, “Tudo deita!”, achando que era farra aquilo e não gostou, não é? Pois o Moreira pegou incomodar um,
do Moreira, mas o home tava era morto, tinha dado um xilique! cutucar outro, ficar mexendo com quem tava na fila... Tanto fez
O pessoal deitou no chão, levantou e o véio nada... que o fiscal se tapou de nojo e mandou:
E daí foi aquela coisa, de baile virou em velório. Era a - Cortem logo o talão do Moreira e mandem embora de
hora dele. uma vez pra não ficar aqui incomodando!
... ...
O Moreira era um home de sorte na vida, tinha bastante Outra passada dele foi quando ele tava posando no André
capital e uma muié bonita. Só as filhas dele que eram meio desa- da Rocha, que tinha ido lá fazer uns negócios e ia ter um comício
jeitadas, não puxaram a mãe. Mas eram umas moças muito alegres, com o Maximiliano de Almeida. O Maximiliano era Chimango
simpáticas... Era engraçado, começavam a falar ficavam bonitas! e o Moreira era Maragato, mas pra não ficar ruim ele ficou quie-
to, não é?
E o Moreira parecia faceiro com a feiura das filhas:
Daí, no fim do comício, o povo gritava “Viva o Seu Maxi-
- Quem quiser ter respeito numa casa precisa duas coisas:
miliano de Almeida!” e ele cochichava “Viva a puta que o pariu!”.
Uma muié bem feia e um cachorro bem brabo!
No outro dia o político veio agradecer o apoio, daí o Moreira véio
... respondeu:
Como o Moreira tinha campo e gado, sempre tinha ra- - Mas olhe, tudo o que eu disse foi de coração!

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Coletoria era o nome dado ao órgão responsável pela coleta de im- 4
postos. Como não havia rede bancária estabelecida, o pagamen-
to era feito em dinheiro diretamente na repartição. Existiam Seu Gomes, o Mentiroso
Coletorias Estaduais, para os impostos estaduais, e Federais
para os impostos da União (hoje denominadas Exatoria Esta-
dual e Receita Federal). Então os antigos contavam os causo do Seu Gomes, que
O Coronel Maximiliano de Almeida foi intendente do município foi dos maior mentiroso que já teve no mundo. Calcule só, ele
de Lagoa Vermelha nos anos de 1914-16 e de 1928-32 [5]. Tal mentia tanto que contava da vez que se meteu numa briga. Diz
foi sua importância política que acabou dando nome ao muni- que um homem pulou nele armado de ferro branco e ele levou
cípio emancipado de Marcelino Ramos em 1961. quatorze facadas! Ele não queria pelear, mas daí ficou brabo por-
Mortalha: vestimenta com a qual é sepultado o corpo de uma que tava doendo, tomou a faca e matou o tal homem.
pessoa que faleceu. Ainda por cima tinha um amigo que confirmava todas as
mentiras. Certa feita tava num bolicho tomando umas cachaça e
contando mentira pro povo que tava lá. Aí foram falar de caçada
e o Seu Gomes disse que tinha matado um veado com um tiro
só, que acertou no pé e no ouvido do bicho ao mesmo tempo. Aí
o pessoal pegou duvidar, e com razão, mas ele anunciou o amigo
como testemunha. O rapaz, então, saiu com esta:
- Pois acontece que o veado tava coçando o ouvido com o
pé quando levou o tiro.
Nesta imagem de 1930 está retratada, à esquerda, a antiga inten- Daí não teve recurso pra quem tava no bolicho do que
dência de Lagoa Vermelha (hoje denominada prefeitura), onde engolir a história do Seu Gomes, não é? Mas na saída o amigo
os lagoenses chegavam e amarravam seus cavalos, como em um
do mentiroso falou pra ele:
filme de faroeste. À direita, residência de Augusto Berthier.
[Acervo de José Oscar B. Koch] - Daqui pra diante, quiser mentir, minta só! Muito me
custou juntar ouvido com mocotó!
Assista o Vô Lauro contando esta história:
...
Tinha também o causo que ele arrumou uma casa na ci-
dade pra a família de um compadre, que era surdo mas bastante
rico. Só que passava errado no interior porque a família toda,

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mulher, filho e filha também não escutavam nem um tiro de 38 E gritou pra cozinha:
dentro da cozinha. Assim arrumaram as malas e se mudaram, - Não é, muié?
arrendaram os campos e foram aproveitar viver onde tinha mais
E ela, de saco cheio do tanto que ele era mentiroso, disse:
recurso, que na cidade a vida sempre é mais fácil.
-Pois eu vi foi um!
Conta o seu Gomes que, visitando o compadre, a conver-
sa foi a seguinte: E o Seu Gomes, tirano, não perdeu:
- E então, a casa tá do seu agrado? - Barbaridade, mas pozintão eram vinte e um!
E o compadre: ...
- Não, só te pago no fim do mês o combinado! Ele contava também que tinha feito um açude onde tinha
carpa uma barbaridade. Aí, um dia, numa chuvarada que deu, o
Saiu brabo contar pra mulher:
tal açude estourou. Diz que de tanta carpa que tinha elas ficaram
- Acredita que já vieram nos cobrar? presas na sanga e acabaram represando a água. Virou uma taipa
E ela: de carpa!
- Se o toicinho for bom, pode comprar!
E gostou tanto da novidade que foi avisar a filha:
- Que lugar mais bão, já vieram vender toicinho!
A moça alegrou-se:
-Se o moço é bom e tá sozinho, pode dizer que eu aceito!
Foi correndo contar pro irmão:
- Cheguêmo ontem e já vieram me pedir em casamento!
E o guri respondeu:
- Mas olha, diga pra costureira que a ceroula tá muito
folgada, mas ficou boa de comprimento!
...
Seu Gomes não se trata de uma pessoa, mas sim de um
Outra feita ele recebeu visita em casa e já foi aplicando personagem a quem se creditavam diversas histórias
que o pasto tava feio porque, só naquela manhã, tinha visto vinte inventadas na época. O fato de ele ter o mesmo sobrenome
veados pastando. que o Vô Lauro é mera coincidência.

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5 E ele:
- Mas daí então ao menos a comida eu ganho.
Pagando Imposto Virou as costas, foi simbora, não voltou mais e nunca fo-
ram nem procurar ele!
...
O imposto a gente pagava a partir dos dezoito anos. Os
que moravam no interior, como eu, tinha que prestar oito dias de E o Albertinho tinha um irmão, não vou saber dizer
trabalho por ano abrindo estrada. Quem tinha dinheiro justava qual... Não é que eu esteja fraco da memória, é que pra saber o
um peão pra trabalhar em nome dele, quem tinha uma junta de nome de todos os filhos do véio Ângelo acho que nem a mulher
bois levava eles pra abrir valeta, que com junta de bois cada dia dele! Ah, que, por sinal, teve os vinte e quatro filhos e ficou viú-
trabalhado valia por dois... E quem não tinha nem dinheiro nem va, que o véio Ângelo morreu antes dela! Tá pra nascer muié de
boi carreiro, ia pro batente. Fiz muita estrada na picareta pagan- saúde igual!
do imposto naquela época! Nem a comida a gente ganhava, a Mas como ia contando, este tal irmão vivia falando que
única coisa que o governo dava era o serviço pra fazer. queria casar, mas não era com qualquer uma. Dizia:
O capataz era o funcionário do governo que tomava conta - Quero casar com uma mulher que tenha um milhão de
da obra, dizia o que cada um deveria fazer e anotava os dias de terra, seje bonita, seje feia, seje puta, seje preta, seje branca, seje
serviço trabalhados. Lembro que aquele ano era o Bepe Luchese, como seje!
de Ibiraiaras. Fiscalizava tudo quanto é coisa!
Então tava lá trabalhando na picareta comigo o tal do Al-
bertinho, filho do seu Ângelo. Era um home rico, mas de irmãos:
tinha vinte e quatro. No demais não tinha onde cair morto... O
coitado era pobre, mas pobre, daqueles miserável mesmo. Tava lá
pagando imposto, trabalhou o primeiro dia e chegou pro capataz,
na frente de todos os outros:
- Óia seu Bepe, eu não venho mais trabaiá. Não tenho
nada no mundo senão a vida, vô pagá imposto de quê?
E o capataz tentou explicar:
O Sr. Bepe Luchese, chamava-se José Luchese e foi funcionário
- Pois olhe, você não trabalhando te levam pra cidade e
municipal de Lagoa Vermelha encarregado da abertura de es-
vai acabar na cadeia!
tradas no interior durante a década de 30 [4].

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O Touro com Placa Um Homem Muito
Certo na Terra
Tinha um baita fazendeiro de nome Olavo Oscar, casado (e no Cabaré)
com a filha de um conhecido meu. Era um home de muito dinheiro
no banco, mas esfarrapado e tirano uma barbaridade... Andava com
um cavalo caindo de magro, zarolho, sem falar que se vestia feito A verdade é que eu fui um home muito certo na Terra,
um mendigo. As encilhas eram um caco tão feio que ele deixava o que nem eu não nasce outro! Segui tudo como manda a lei de
cavalo onde queria porque ninguém tinha coragem de roubar. Deus: Sem tá com a tal da inveja, de orgulho, de se intrigar com
as pessoas. Nunca logrei ninguém nos negócios, pagava e cobrava
Fumava só pedindo palheiro pros outros. Ia no fumeiro e
as conta como tinha que ser, não é? E muié só fui conhecer quan-
pedia um pedacinho de fumo “pra exprimentá se é bom”, mas nunca
do casei com a Diva.
comprava nada. Teve um dia que ele me pediu o mesmo que pedia
pra todos os conhecidos: Uma palha, a faca pra picar o fumo, o Tá certo que eu tive, quando tinha meus dezoito anos, no
fumo e ainda depois o fogo. Aí eu não me aguentei e falei: tal do cabaré... Mas fui só uma vez!
- Quando quiser cuspir avise que eu cuspo pra você também! Cheguei lá e peguei prosear com uma loira. Nossa mãe,
era um florão! Arresolvi de ir pro quarto com ela e quando che-
...
guêmo lá ela me contou que tinha que pagar dez mil réis. Ora,
Teve uma vez no banco e o gerente, que não conhecia a eu ganhava dois por dia trabalhando de peão, precisava de cinco
figura, mandou dar cem réis pra ele, achando que era um pedinte. dias inteiros de serviço pra reunir aquele dinheiro... E ela ganha-
Calcule como se vestia o home! va ali, na hora! É bem certo o ditado que o Moreira véio, Bagual
Ele pegou o dinheiro e disse: da Costa do Turvo, sempre dizia: “O home nasce com a desgraça
- Eu aceito, até aproveite e já deposite na minha conta... dependurada e a mulher com a fortuna aberta!”

... Mas foi pra já! Peguei e disse pra tal da loira:

Mas o causo mais bonito dele era o do touro que ele tinha - Pois olhe, você manda no teu rabo, é justo, mas eu man-
e vivia escapando pra campo alheio. Daí ele ficou cansado de ter do no meu também.
que ir camperiar o animal e colocou uma placa no pescoço dele E fui-me embora. Nunca mais botei o pé nos tal dos cabaré!
escrita “Estou fugindo. Avise Olavo Oscar”.

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Depois, quando a Diva morreu, muié pra mim acabô-se.
Eu tava com oitenta anos mas ainda tava forte, não é? Depois
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que enviuvei apareceu umas quantas, dava bem pra ter casado
de novo, não quis porque minha era só a Diva. Agora o facho só As Tundas do Etevaldo
aquietou quando chegou os noventa, que daí pegou que caiu e
não teve mais jeito!
O pobre do Etevaldo era um índio sozinho no mundo,
vagava sem casa nem família atrás de uma cachacinha por es-
tes interior. Aí, como vivia sem compromisso, deixava a porteira
aberta quando passava pelo potreiro que o meu filho, o Laudir,
tinha em frente ao campo do Seu Joaquim.
Lá na tapera do Seu Joaquim moravam os filhos dele, um
de treze e outro de dezoito anos, uma gurizada medonha de loca.
O mais novo, pra se ter uma ideia, andava descalço e sem camisa,
só de calção e facão na cintura!
Os guris tinham um boi zebu mais loco que eles, que se
imbestava no campo do Laudir e se enfiava com resto do gado
gavião que ele tinha no potreiro. Sem falar no gado que troca-
va de campo, se misturava... Uma bagunça sem tamanho! Cada
passada do Etevaldo pela porteira, lá se ia uma tarde de serviço
e incomodação.
Mas o homem tanto fez que a paciência dos piá acabou e
eles ficaram de arapuca: Se esconderam numas moita e quando
ele passou e deixou a porteira no chão, apareceu um e ergueu ele
na açoiteira! Foi ele pegar correr pra fugir apareceu o outro logo
adiante e vá relho!
E foi aquela lida, lambaço no lombo do Etevaldo estrada
afora!
...

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Ele apanhou também de roubar linguiça em uma festa quebrou o guarda-chuva que o sujeito trazia e pra encurtar o
da Santa Clara, onde era acostumado ir um dia antes da festa e causo daquele ponto em diante ele foi apanhando do estranho e
tentar pegar uma no cair da tarde, sem que ninguém visse. Houve o Seu Edinho voltou pra casa tomar café.
um sábado que deixaram as linguiças solitas de propósito, e assim
que ele tentou sair com uma apareceu um da comunidade com
uma mangueira dobrada no meio e desceu no lombo do Eteval-
do! Ele saiu correndo, mas logo aparecia outro escondido numa
macega ou barranco com um pedaço de alguma coisa pra dar
nele. O Etevaldo foi abaixo de laço por um eito de estrada, mas
não largou a linguiça.
Também foi a última que ele levou de festa!
...
Outra tunda que deram nele foi por passar a noite com
seu companheiro de borracheira, o nego Medeira, no galpão do
Seu Edinho, onde tinha tido um torneio. O negro tinha um pou-
co mais de compromisso no mundo do que o Etevaldo, mas não
muito. O dono do galpão, sabendo que a dupla bebia e fumava
que nem uns condenado, passou a noite ressabiado de que eles
acabassem botando fogo no galpão com alguma bituca de pa-
lheiro, não é?
Aí, cedito da manhã, acordou os dois com o rabo de tatu.
Saíram correndo estrada afora, com o Seu Edinho dando laço
atrás. O nego Medeira, mais esperto, logo se embrenhou nas ma- Gado Gavião é uma expressão para se referir aos bovinos que não
cega e sumiu no mato, mas o Etevaldo seguiu pela estrada e dali são mansos, mas sim arredios.
em diante foi apanhando sozinho.
Rabo de Tatu é um tipo de açoiteira. Quem foi criança no interior
Quando o Edinho estava quase cansando de correr e ba- deve conhecer.
ter no vivente eles deram de cara, depois de uma curva fechada,
Tapera é uma denominação dada para uma casa velha e em con-
com um homem que andava pela estrada. Tão de repente foi o
dições de abandono na área rural.
encontro que o Etevaldo acabou trombando com o tal homem,

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9 - O cavalo se foi no buraco da Tia Candinha com saco de
polenta embaixo!
Aí o Tio Candeia pegou a rir do jeito que o italiano fa-
Os Italianos e o lou que não conseguia mais parar. O italiano contava o causo e
Chimarrão se queixava:
- Ele vá risá risá e quando cheguemo lá no buraco o ca-
Os imigrantes italianos sofriam com o tal do chimarrão. valo tava morto já!
Era chegar numa roda de conversa ou na casa de um vizinho e a Pobre do italiano, ficou sem cavalo e sem polenta!
cuia logo tava na mão. Que remédio, daí tinha que tomar, não é?
Então um italiano perguntou pra um conhecido como se dizia
quando não queria mais beber. E o home, muito sem-vergonha:
- É só dizer: “Mais outro depressa”.
Ora, com esta teve um dia que este italiano bebeu tanto
mate encordoado que chegou uma hora que ele levantou-se e
saiu gritando pro dono da casa:
- Ma ti spaco con questa zucca!!
Depois deste dia, cada vez que alguém puxava um mate,
ele já saia brabo que nem vespa amarela:
- Via con quella zucca!!
...
Encordoado: Um atrás do outro; em sequência.
Daí diz que o italiano tava voltando do moinho com oito
Foge: Cratera.
quartas de milho feita em farinha, que era a comida dos italiano
antigo que vieram, viviam só de polenta, não sei como que pode! Uma Quarta é uma unidade de medida já em desuso. Equivale
Mas então, ali onde hoje é a Fátima dos Candeias, o cavalo do a 7 kg.
home caiu num foge e o coitado foi correndo pedir ajuda pro Tio Tradução livre do italiano: “Te quebro com esta abóbora!” e
Candeia, que morava por perto. “Fora com aquela abóbora!”. Zucca devia ser, para os imigran-
Chegou lá sem fôlego e sem saber falar direito, só dizendo: tes, a palavra em italiano que mais parecia adequada para des-
crever uma cuia.

34 35
10 jirau!”
- Mas essa menina! Eu já disse pra não procurá ovo no

...
Causos de Moças
Contam os antigos que tinham três moças que não fa-
lavam quase nunca em público porque falavam tudo muito
No tempo antigo as moças não podiam aparecer pras vi- errado, e a mãe delas tinha dito que elas não podiam deixar
sitas de jeito nenhum, se fosse homem então nem pensar! Pois nenhum moço ouvir, senão elas nunca iam arranjar casamento.
certo dia um tropeiro chegou na casa da minha tia Maria da Luz, Então um dia o namorado de uma delas, encucado com aquele
que tinha umas moças nova, na idade de incomodar, pra negociar silêncio, pensou em assustar a namorada pra ouvir ela falar al-
um gado com o marido dela. Tavam os home na sala proseando guma coisa.
e deu vontade nas menina de ver o “homem pintoso”. Daí, pra Pediu uma água e, quando ela alcançou um potinho, jo-
acalmar as moças, a dona Maria disse que ela ia dar uma espiada gou no chão, quase nos pés das três moças. Uma delas gritou:
e contava se o moço era bonito ou não. Pegou e se deitou no as-
soalho atrás da cortina da sala pra espiar. - Quebrô o putinho da mãe!

Por sorte veio um vento e levantou a cortina, deixando a A outra:


mulher deitada de cara com o rapaz! Ela, desenchavida, começou - Mana!! A mãe disse pra nóis num faiá!!
a fingir que estava passando pano no chão, sem se dar conta que E a terceira:
estava sem pano nenhum na mão!
- Nossa Sinhora, bem fiz eu que num faiei!
...
A Família Fagundes, que morava ali no Campo do Meio,
tinha umas quantas moças em casa e as coitada viviam escon-
didas pelo pai. Daí quando chegava alguém elas espiavam pelas
frestas da casa pra poder ver as visitas. Que naquela época as
casas eram todas de madeira, rachão de pinheiro, ficava as frestas,
não é? E teve um dia que uma delas resolveu de subir no sótão
pra espiar quem tinha chegado, mas a madeira cedeu e ela caiu
no meio da sala, recheada de homem conversando de negócio Jirau: Sinônimo de sótão.
com o pai dela.
Rachão: Tábua de madeira rachada sem beneficiamento. São
O pai, pra não deixar o vexame maior, saiu logo dizendo:
cheias de irregularidades e não apresentam um padrão.

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11 Brabo mesmo era de manhã cedo. Ia todo mundo pra
sanga lavar a cara e assoar o nariz, que tava cheio de picumã dos
lampião e dos palheiro que o pessoal pitava. Mas era divertido,
Os Bailes de tinha muito respeito: pra poder dançar com uma moça precisava
Antigamente pedir permissão pros pais, que ficavam cuidando. Até se algum
rapaz inventasse de tirar o casaco pra dançar era falta de respeito
e já dava bochincho.
Os baile antigamente não aconteciam nos salões como Me lembro bem de um baile que fui quando era novo,
hoje, eram nas casas. Começavam com céu claro, duravam a noite deve fazer uns sessenta anos já. O Vasco Lenzi e mais uns deram
toda e só terminavam no outro dia. Tinha que ter uma gaita e uma surpresa no Ernesto, que morava ali no Santo Expedito.
uns gaiteiros, que um gaiteiro solito não aguentava, e pra alumiar Levar surpresa era coisa braba: Chegava o pessoal pro baile e o
de noite colocavam uns lampiões de querosene na sala... Mas dono da casa tinha que dar tudo, vaca pra carnear e cerveja, que
tendo só a gaita e as prenda já saia baile também! daí já existia mas se bebia quente. Tudo por conta do dono da
Na época as cozinhas eram de chão, não é, e lá ficava a roda casa! Coitado do Ernesto!
de chimarrão e as muié preparando o café. Quando dava perto da Foi dos maior bailão que teve, fizeram lá no Turvo. Trou-
meia noite se tomava café com pão, era o que tinha, nada de cacha- xeram foguete de trinta tiros lá de Nova Prata pra estourar e o
ça e muito menos de cerveja, que nem existia na época. Honeyde Bertussi pra tocar. Foi o primeiro baile dele na região,
Pra entrar no baile era por convite, mas sempre tinha al- era home novo ainda... E tocava uma barbaridade, não é por nada
gum que chegava de carancho: Aí era com o dono do Baile, que que ficou famoso! Que coisa mais linda: Bailão, churrasco, cer-
também era o dono da casa, decidir se podia ficar ou se tinha que veja e foguetório!
ir embora, não é? Se era rapaz de respeito logo mandava que fi- E o causo foi que terminou em briga o tal baile. Lá pelas
casse, mas tinha os incomodativos que iam pra brigar e terminar tantas contaram pro Ernesto que a vaca do churrasco tinha sido
com os bailes mesmo. uma bragada que tava louca de gorda... Mas por quê! O Ernesto
E os bêbado, porque bêbado sempre teve no mundo, não tinha prometido de nunca matar a tal vaca porque foi quem deu
podiam tomar cachaça no meio do baile. Então, o que que fa- leite pro Laudir, que se criou lá com eles.
ziam? Escondiam no mato perto da casa a garrafa e davam umas E daí virou em fervo, o home véio enlouqueceu e acabou
escapada pra beber de vez em quando... Mas que nem sempre com o baile!
teve bêbado, também sempre teve esperto. Tinha os que ficavam
bombiando onde que os cachaceiro tinham escondido pra ir lá e
beber depois que o dono voltasse pro baile!

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Alumiar: Iluminar. 12
Bombiando: Olhando.
O Cide Louco
Bochincho: Briga, de preferência generalizada. Favor consultar o
poema homônimo de Jayme Caetano Braun.
Bragada: Pelagem brasina, mas com a cara branca. Quando um home não tem inteligência pra negociar, vai
chão adentro. Sempre foi assim. Meu pai, Tarciso, era trabalha-
Carancho: Diz-se da pessoa que comparece a um evento sem dor, tinha três milhão de campo mas acabou-se na miséria, os
convite.
filho tiveram que se reunir pra pagar o velório dele... Isso sem
Honeyde Bertussi (1923–1996) e seu irmão Adelar Bertussi for- beber, sem jogar e nem ter vício nenhum! Só pelo tal do juro.
mavam a dupla Irmãos Bertussi, à qual devemos clássicos da Quem tá nos juros dorme pagando juro, come pagando juro e
música gaúcha como “Oh de casa!” e “O casamento da Doralice”. caga pagando juro, é uma sangria sem fim! Foi o aprendizado que
Picumã: Fuligem. tive com meu pai, nunca pegar dinheiro a juro.
Mas o tal do negócio é coisa que quem sabe fazer faz, não
A música favorita do Vô Lauro era o Xote Laranjeira, composta na
década de 1900 em Lagoa Vermelha pelo gaiteiro João Laran- é? Eu tinha um cunhado que era meio fora da cabeça, o Cide
jeira [1]. Sempre que encontrava um acordeonista, o velhinho louco. Não batia bem mas era negociador, comprava, vendia...
pedia que tocasse esta canção, que lhe lembrava dos bailes que E teve uma vez que ele foi aqui perto de casa, comprou uma
ele frequentou na sua juventude. novilha e veio me mostrar. Era uma novilha louca de especial,
mas não gostei quando ele contou que comprou de um infeliz
que vivia na pobreza e tinha atochado de pagar só metade do que
valia a rês pro home.
Eu, que nunca fui de lograr ninguém, peguei e falei pra ele:
- Mas Cide, pra que lograr o coitado do próximo??
Antes não tivesse dito nada. Tive que escutar essa:
- Você quer saber de uma coisa? O ativo vive do trouxa e
o trouxa vive trabalhando!

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13
Zeferino Baita

Dos home mais valente que eu conheci era meu tio Ze-
ferino Baita. Era Antunes, mas conheciam ele por Baita, que era
um baita mesmo, se botava no que fosse e não havia quem lidas-
se. Naquele tempo dava muita briga nos baile, era dois toques e já
tinha entrevero. Só que nos bailes que o Zeferino Baita ia ele ar-
rematava todas as brigas. Se o baile tivesse peleia, ia ser com ele.
Lembro que ele chegava no salão e anunciava:
Registro do Sr. Cide na Avenida Afonso Pena, na Lagoa Vermelha - Hoje chora neguinho novo!
da década de 50. E daí era aquele sossego, o Zeferino que mandava no baile.
Mas o coitado teve fim novo ainda. Aconteceu depois de
ele ter matado um tio dele, não é? A polícia queria prender mas
não podia. Quem que ia se meter com o Baita? Resolveram de
pedir ajuda e vieram quinze milico de Passo Fundo prender o
home. Capaz! Quando ele viu a milicada saiu com um berro em
cada mão, virou em tiroteio e ele escorou os quinze!
- Mas Seu Lauro, foi assim que mataram ele? Morreu no ti-
roteio?
Não, os milico só puderam pegar o home quando ele foi
pular uma taipa de pedra e levou um tiro na perna. Levaram pre-
so pra Passo Fundo mas a perna arruinou... No fim o Zeferino
Baita, depois de estar num tiroteio contra mais de uma dúzia de
milico, morreu de infecção no hospital!

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14 - Me empreste que eu já devolvo.
E no fim o alemão emprestou o tal do galo, que ele tinha
solto no terreno atrás do hotel. Diz que o Bastião colocou o bi-
Galo de Raça cho no jipe e saiu pelo interior de Veranópolis trocando o galo
nas colônia, dizendo que era galo “de raça”. Trocava dois por um
Lá no André da Rocha morava um home que era im- e, logo adiante, aplicava o golpe de novo. No fim do dia chegou
possível de se lidar, o Bastião. Ele tinha um jipe verde, comprou no hotel e devolveu um galo pro Seu Bertoldo, que ficou olhando
novo, mas já tava amarelando de tanto ficar no céu aberto. Aí o aquele jipe entulhado de galo e de galinha...
pessoal perguntava pra ele se ele não achava melhor colocar o
jipe no galpão invés de deixar ele na chuva, no sol e no sereno.
- Não. Ora, meus cavalos ficam bem no tempo, ele tam-
bém pode!
Agora o que ele era bom mesmo era pra passar conversa
nos outros. Deuzolivre! Ele apartava os terneiros das vacas e daí
elas ficavam de úbere cheio, não é? Pois o Bastião aproveitava e
saía pelo interior vendendo como vaca amojada!
...
Tem um outro causo dele que nunca ouvi nada parecido.
Aconteceu lá em Veranópolis.
Tinha um hotel lá que todo mundo que ia de Lagoa ou
de Ibiraiaras atrás de médico ou comprar alguma coisa ficava, o
tal Hotel Campeiro. Chamavam campeiro porque o pessoal que
passava a noite lá era tudo gaúcho, daqui da região, das banda da Amojada: Prenha.
Vacaria... e daí, pros gringo de Veranópolis, eram tudo “campeiro”.
O Hotel Campeiro do Sr. Winter funcionou entre 1952 e 1968
O dono do Hotel chamava Bertoldo Winter, era um ale- em um grande casarão de madeira que foi construído em 1892.
mão, e um dia o Bastião, que tava hospedado lá, pegou incomo- Tratava-se de um estabelecimento bastante popular entre os via-
dar o home: jantes que iam a Veranópolis e buscavam uma estadia mais eco-
- Me empreste este teu galo, fim da tarde eu te devolvo! nômica, em contraste com o Hotel Zanchetta, que concentrava
clientes de elevado poder aquisitivo.
- Mas o que que você quer com este galo véio, Bastião??

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15 de uns litros de álcool pra fazer sabão. Chegando lá, claro, se
entregou a tomar cachaça e voltou já de noitezinha, borracho...
Mas a barbaridade foi o home não ter visto que um dos
Os Causos do Jura potes de álcool tava mal fechado e tinha molhado todo o lombo
do cavalo. Foi só ele inventar de fumar um palheiro que na hora
Aqui em casa parou muitos anos o Juraci, que nós cha- de jogar fora a bituca botou fogo no pobre do animal!
mava de Jura. Trabalhou de peão ajudando meu filho na lida e
era home muito bão, trabalhador, gostava de contar causo. Nun-
ca esqueci ele contado que, certa lida, foram parar numa tapera
caindo aos pedaços, onde morava um home sozinho. Diz que
iam carregar uns bois no outro dia cedito e era mais fácil passar a
noite do que estar madrugando na estrada.
O tal home tinha um cachorro que mais parecia um ter-
neiro de tão grande, dava pra cima da cintura do dono. Tava ali,
deitado no chão batido da cozinha e foi atropelado pra fora pra
os homens entrarem, não é? Mas depois de umas voltas da cuia
o Jura percebeu que o cachorro estava lá dentro dormindo de
novo. O homem abriu a porta e atropelou o cachorro outra vez.
E assim seguia, não dava meia hora o cachorro voltava a aparecer
dentro da casa.
Aí o Jura pegou e perguntou pro dono:
- Mas de que jeito que este cachorro entra, se a porta tá
tramelada?
- Ah, isso aí é numa frestinha que tem na parede ali no
quarto...
...
Outro causo que nunca esqueço é do home foi fazer com-
pras numa casa de comércio de a cavalo, que a mulher precisava

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16 dele se assustou, velhaqueou, derrubou ele e foi-se campo afora
com encilha e tudo!
Só que quando ele entrou na bodega ninguém sabia disso
O Primeiro Carro e o Guillardi perguntou:
- O Sr. viu o tal do automóvel?
O primeiro carro que eu vi foi em trinta e três. O Borges - Óia, eu não sei se era oito ou era nove, só sei que ronca-
de Medeiros, que na época era governo do Estado, passou por va, peidava e fedia uma barbaridade! Até meu cavalo me derru-
Lagoa com um tal de bigode, de raiadura de madeira e capota de bou e disparou campo afora!
pano. Nem estrada não tinha, era tudo campo aberto... Dali pra
cá, quanta mudança! Ora, agora eu vou a Passo Fundo em nem
uma hora de carro! Se me dissessem isso quando eu era novo ia
debochar, que demorava três dias com tropa de cargueiro pra
levar trigo vender. Como as coisa mudam!
Sem falar que naquela época o tal automóvel custava dez
contos de réis. E pra juntar dez contos de Réis? Era caro que
deuzolivre! Pra você ter uma ideia, uma vaca se comprava com Borges de Medeiros (1863-1961) foi governador do Rio Grande do
oitenta mil réis! Sul por 25 anos (1898-1909 e 1913-1928). Na ocasião desta sua
Lembro que o primeiro que eu vi poder comprar carro passagem por Lagoa Vermelha ele já não estava mais no poder.
foi o véio Antônio Telles, que tinha um capital monstro. Hoje Raiadura: Raios da roda.
pra comprar um é a coisa mais fácil que tem, a gente vai na cida-
de e vê aquele aperto, que nem onde estacionar tem mais. Velhaquear: Corcovear.

Mas como tava contando do Borges de Medeiros, quan- Com duas alavancas opostas nas laterais do volante, o modelo
do veio notícia que ele ia vir com o tal de automóvel lá de Porto Ford T acabou conhecido no Brasil por Bigode. Foi fabricado
Alegre foi aquela novidade, o povo se reuniu pra ver o tal do auto entre 1908 e 1927.
cruzar. Passou o carro e o resto do dia foi aquele comentário, que Os primeiros automóveis do município de Lagoa Vermelha apa-
fazia barulho, que era bonito, que era feio, coisa e tal. receram em 1917 [5]. É provável que o Sr. Lauro tenha visto
O Armando Guillardi tinha uma casa de comércio ali um deles pela primeira vez apenas em 1933 por viver no interior
onde hoje é o povoado dos Barretos e diz que no fim da tarde do então distrito do São José do Carreiro, onde eles chegaram
apenas em 1936 [4]. Outras pessoas já haviam adquirido carros
apareceu um home que atendia por Raul. Este Raul tava indo de
no município antes do Sr. Antônio Telles.
a cavalo pra bodega quando passou o tal do automóvel. O cavalo

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Um Corretivo pro Sindo Melhor Comprar um Touro

Os baile antigamente não era nos salão, era em casa de Eu sempre tive cachorro bom pra lidar com o gado. O
família. Chegava um com uma gaita e se tivesse umas prenda gaúcho lidar com gado sem cachorro é brabo, porque o gado en-
na casa já chamavam os vizinhos, acendia uma fogueira ou uns tra no mato, nas macega e o cachorro sendo bom toca de volta.
lampião e virava em baile. Tudo coisa de respeito, não é? O último que eu tive foi o Guarani, que morreu de desgosto
Mas daí tinha o Sindo Lima, que era metido a valente quando eu tive que parar de andar a cavalo e ele não pôde mais
uma coisa de loco. Que os Lima já eram brigadores coisa por me acompanhar no campo. Mas também, eu tava com noventa
demais, e o Sindo puxou a raça. Não tinha um baile que o Sindo e cinco, as perna não ajudavam mais... A pessoa tem que saber
não desmanchasse, ainda mais que ninguém escorava o home, conhecer até onde dá pra ir, não é?
era novo e de força, não é? Me lembra o causo do João, filho do Manuel Isébio.
Até o dia que ele resolveu mexer com quem não podia. Quem me contava era o Leonel, irmão dele. O Leonel era de
fazer farra do irmão, porque ele tava sempre querendo comprar
Tava o baile bonito na Serrinha e daí, perto da meia noite,
mais e mais terra.
a muierada ia pra cozinha fazer café, que o costume era beber
café nos bailes e não cachaça que nem hoje. Então o causo é que - Se o João ficar de dono do Brasil, vai querer um pedaço
tava a muieda com a panela de café em cima do fogo de chão e da Argentina pra fazer um piquete!
chegou o Sindo. Aí o povo já viu que ia se acabar o baile, não é? Mas então diz que era um dia de chuva e o João foi bus-
Diz que ele entrou na cozinha, deu um coice na panela de café car uma vaca zebua que era meio gaviona. E o João não usava
que virou tudo e gritou: “Aqui não tem home!” cachorro na lida, só a açoiteira e pra trazer a tal da vaca que não
Tava loco por um bochincho o Sindo... Só não esperava obedecia deu laço e mais laço nela!
que a muierada da cozinha respondesse: Quando passou na casa do Leonel ele viu a coitada da
- Não tem homem mas tem mulher! vaca tudo listrada de tanto apanhar e disse pro João:
E desceram o mango no Sindo com os pedaço de pau em - Joãozinho, posso te dizer uma coisa?
brasa do fogo de chão! Aah, mas quando ele se pegou arrodeado - O que Leonel?
de muié e levando-le pau daquele jeito, garrou o mato e se sumiu! - Você, quando quiser criar gado brasino, compre um tou-
Desde aquele dia nunca mais tivemo notícia do Sindo: A vergo- ro porque com a açoiteira vai te custar muito apurar a raça!
nha foi tanta que ele se escafedeu sabe Deus pra onde!

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19 cabeça; Traziam cavalo cheio das frescura lá não sei daonde e to-
mavam pela cabeça; Tiravam o tempo dela e achavam que “agora
vai” e... Pronto, tomavam de novo!
As Carreiras Aí um dia arranjaram uma carreira a mil cruzeiros contra
uma petiça. Foi um comentário, até fui lá ver. Pois o compadre
Antigamente se fazia muita carreira. Hoje não existem Júlio deu “cara virada” pra tal petiça, que largava de frente en-
mais, não é, só sobraram os torneios, e não sei até quando. Tinha quanto a égua Venenosa largava de costas e tinha que se virar pra
vezes que as carreiras eram marcadas: Cavalo do fulano contra começar a correr. Então, quando soltaram o grito, o tempo que o
cavalo do ciclano e vinha pessoal assistir, apostavam dinheiro, Juvelino desvirou a égua e começou a correr a tal potranca tava
estas coisas. E o bonito é que o convite era no boca a boca, um com quase uma quadra de distância... Eu pensei: “Mas nunca
avisava o outro que dia tal em tal lugar ia ter corrida e no dia tava mais que alcança, a carreira só tem três quadras!”
cheio de gente pra assistir. Mas te conto que aquela égua foi encolhendo a diferença
O brabo das carreira eram as tal das “linguiça”. Linguiça e, bem no finzinho, ainda ganhou! Contando parece mentira...
era quando corriam combinado de um cavalo perder e apostavam Mas também com esta nunca mais ninguém se botou correr car-
grosso no outro. Dava rolo que Nossa Senhora! Lembro uma reira com a égua Venenosa!
vez que fui assistir uma carreira e o falecido Valdo, que era lam- ...
banceiro, fez uma linguiça com o Severino, que tinha um cavalo O falecido Ernesto era intrigado com os Isébio, não lem-
muito melhor. bro por quê, e tava ele bêbado numa carreira pegou fazer pia-
Ora, começou a parelha e o Severino segurando o cavalo da do João Isébio... Ah, mas ele mal terminou a troça o João já
pra não correr muito! Por sorte tava lá o também falecido Ernes- meteu-le o cabo do relho na testa do Ernesto! Cortou e lavou a
to, vinha num pangaré, chegou por trás e meteu a açoiteira no cara do home de sangue! Ele, muito brabo, puxou da faca e dava
cavalo do Severino... Aaah mas aquele cavalo saiu que ganhou golpes no ar, perigando acertar quem fosse! Não tava enxergando
estourado a carreira! Coisa mais linda! Mas acho que naquele dia nada, não é? Foi aquela correria de véia e muié gritando chaman-
não tinha no mundo inteiro um home mais brabo que o Valdo! do pelas criança e coisa e tal!
... Terminou-se a carreira e ficou o causo, tanto que o que
O compadre Júlio comprou uma potranca tostada, filha levou a cabada de relho na testa nunca mais bebeu e nem foi nas
de um cavalo puro e botou o nome de Venenosa. Mandou aman- carreiras. Então o compadre Guilherme, que era medonho pra
sar a égua e deu pro negro Juvelino cuidar dela pra correr nas mexer com os outros, ia visitar o Ernesto e fazia farra com ele:
carreiras. Mas óia, todas as vezes que a Venenosa correu, nunca - Mas você tinha que mandar uma gratificação pro Isébio,
perdeu. Ficou famosa a égua, vinha gente desafiar e tomava pela ora, te fez largar dois vícios numa cabada de relho só!

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Parelha: Corrida, disputa entre dois competidores. 20
Uma Quadra equivale a 100 metros.
O Pulo do Gato Preto

O véio Pimentel tinha duas moças muito bonitas, filhas


da Leopolda. Único causo que soube de um casal que teve dois
casamentos! Diz que eles combinaram o casório na casa dela,
que naquelas épocas não era em igreja nem nada, chamava o juiz
e os convidados na casa e fazia lá mesmo. Então contam que ele
cruzou na frente da casa dela tocando uma tropilha de cavalo,
não deu satisfação nenhuma e foi simbora! A Leopolda e os con-
vidado ficaram tudo lá, que nem bobo... Mas almoçaram, que o
banquete tava pronto mesmo, não é?
Daí uns tempo ele voltou, tratou casamento de novo e
daí sim casou-se. A moça devia de gostar muito dele pra ainda
aceitar depois duma desfeita destas!
“Tirar o tempo” de um animal consistia em averiguar em quan-
tos segundos o animal percorria uma determinada distância, Mas como tava contando, eu e o meu irmão Antoninho,
como na imagem acima, registrada no então distrito de Ca- que era companheiro de trabalhar de peão pra cá e pra lá, fomos
seiros. [Acervo de João Plínio Hoffman / Resgate Fotográfico de lá tentar namoro. Me lembro bem da casa, era feita de pinheiro
Caseiros – SMECD] farquejado, com metade do teto de rachão e metade aberto, dava
pra ver o telhado. O bonito foi na hora do almoço, todo mundo
na mesa comendo e proseando e de repente escutamos só um
“miaaaaau”!
Pois um gato bem preto boleou-se de cima da coberta de
rachão e caiu dentro da panela de feijão! Uma mira do bicho sem
tamanho! Saltou feijão por tudo que foi lado! Êta almoço véio
depois, levaram o feijão embora e trouxeram mais, mas quem
tinha coragem de comer? E o véio Pimentel, que era torto de um
olho, ficava insistindo que a gente se servisse...

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...
Também tem o causo dum rapaz foi na casa da namorada
21
pra conhecer o sogro e ficou pra jantar. Era a primeira vez que ia
na casa da moça, então ele tava nervoso, não é? E o véio pai dela
As Tropeadas
ali, especulando, perguntando, e o coitado se cuidando pra não
fazer feio. Aqui na região tinha uns quantos tropeiros, viviam na es-
Naqueles tempo não tinha luz, era tudo na base da vela, trada levando gado lá pra Bento e pra Porto Alegre. O João Isé-
que no interior não faz muito que veio a eletricidade. E o moço bio tropeou a vida inteira, chegava de uma venda e já ia atrás de
foi meter o garfo naquele soquete que serviram de janta mas o gado porque tinha deixado tratado de levar outra tropa. Dormia
garfo escorregou... Quando ele viu que o osso tava indo pro chão, em casa e no outro dia saía tropear de novo. Fez fortuna tropean-
resolveu ligeiro de assoprar e apagar a vela pros sogros e a namo- do gado gordo, comprou doze milhão de campo!
rada não verem que ele tinha derrubado. Mas os pobres sofriam, iam em comboio com aquele
Enquanto eles acendiam a vela de novo ele aproveitou o gado arisco, não tinha estrada que nem hoje, era só trilho no
escuro e juntou o soquete do chão e colocou de volta no prato, mato e ainda precisava cruzar o Rio das Antas à nado. Imagine
mas o azar era tanto que ele se enganou. só uma lida destas naqueles morros da Serra com uma tropa de
Quando acenderam a luz, tava ele com o tamanco do so- cem reses?
gro dentro do prato! O gado decaía bastante da viagem. A sorte é que naquele
tempo não se negociava na balança, era a olho, mas tinha que
comprar os bois gordos pra aguentarem a viagem.
O poso dos tropeiros era ali no Velho Leôncio, no Mara-
gato. Ele tinha um potreiro de aluguel e um galpão pra passarem
a noite. Mas cobrava assim que chegavam, porque os tropeiros
saíam ainda de madrugada pra estrada e o velho não era bobo!
O pior é quando chovia. Calcule você, andar de a cavalo
o dia todo tomando chuva no lombo, chegar molhado e com frio
num galpão pra dormir e não ter nem um pau de lenha pra fazer
Soquete: Cozido de ossos com pouca carne proveniente da coluna fogo, se secar e fazer comida? Sofria esta gente, tinha que gostar
vertebral, o popular ”espinhaço”. É um prato que visa o aprovei- muito do que fazia!
tamento desta parte pouco nobre dos animais, sendo comum
principalmente no interior. Lembro que tropeiros naquele tempo tinha vários: o José
e o irmão Leonel Amaral, o José e o Vito Eva, o Eduardinho

56 57
Antunes, o José Pinto, o Chico Danga do Tupinambá, todos le- Esta gente passava meses fora de casa e pra mandar no-
vavam gado por diante, tudo tropeiro. tícia era brabo, que naquele tempo telefone não existia, só tinha
Até tem um causo bonito do Seu Chico Mendes e do o tal telegrama e era muito caro porque cobravam por palavra,
véio Machado, que também eram tropeiros mas inventaram de ir não é?
levar uma tropa pras bandas de São Leopoldo sem estar tratada Aconteceu que o João pegou uma tropa de mula pra ven-
a venda pra comprador nenhum. Conta que chegando lá os ale- der em São Paulo mas elas chegaram lá fracas da viagem e ele
mão não sabiam falar português e não puderam vender a tropa. não pôde vender. O remédio era esperar elas se recuperarem um
Acabaram troteando um mês inteiro, o gado emagreceu, gasta- pouco. Daí, pra muié não se preocupar, resolveu passar um tele-
ram um dinheiral com poso... Tavam passando errado os coitado! grama avisando do acontecido... Mas como era caro acabou eco-
Nem alguém pra pedir uma informação não encontravam, que lá nomizando nas palavras e a mensagem chegou assim:
só tinha alemão loiro, não é? “João Lapa Burro Fraco”
Aí uma tarde chegaram num galpão deixar o gado passar Ela que entendesse como quisesse!
a noite e enxergaram um negro trabalhando. Daí o Machado
disse pro Chico:
- Temo feito! O nego deve falar brasileiro! Vai nos explicá
onde vender o gado!
Mas durou pouco a esperança do véio, porque mal chega-
ram perto do negro e ele já começou a cumprimentar em alemão.
Aí o Machado não deu nem boa noite:
- Negro fiadaputa!!
Contam que a capa de chuva do Seu Chico Mendes che-
gou apodrecer na viagem e que ele nunca mais foi tropear!
...
Tem também aquele causo do tropeiro João. O causo do tropeiro João merece um parêntese. Lapa é uma ci-
Ele era casado com a tal da Lapa e vivia tropeando mula, dade paranaense que fazia parte do caminho percorrido pelos
que lá pra cima em São Paulo eles usavam muita mula pra car- tropeiros que levavam bovinos e muares até a feira de Sorocaba
regar café e elas iam todas daqui. Então tinha tropeiro de gado, [5]. Desta forma, é possível que a mensagem viesse “da Lapa”
que nem o João Isébio, e tinha tropeiro de mula, que nem o João (cidade) e não “para a Lapa” (suposta esposa do tropeiro). Ja-
mais saberemos!
da Lapa.

58 59
22 Mas então o causo é que ele brigou com um tal Maruca
lá do Boqueirão. Pegou uma égua que tinha e trocou por um
38. Se perguntasse quedele o animal e como que ele tava de a
A Égua que Virou pé ele respondia:
um Chinelo - Dei por um revólver. Vou matar o Maruca.
E andava de a pé com o revolvão na cintura. Ah, mas
Antigamente tinha gente que vivia de fazer valos nos não demorou! Numa destas ia indo por uma picada fechada com
banhado. Faziam tudo no braço, só com duas pá, uma pra cor- pinhalão e espinhama dos dois lados que tinha lá pelo Boquerão
tar e a outra pra tirar a terra de dentro da valeta. Tinha que ser e deu de cara com o Maruca, que vinha de a cavalo. Diz que o
trabalhador e de força, porque era um serviço bem brabo... Lá cavaleiro levantou o arreador e gritou pra ele:
em casa, já faz muitos anos, justei o Santo Negrinho e ele fez - Você anda dizendo que quer me matar? Me mate agora
mil e duzentas braças de valo num banhadão atrás de um capão então!
de mato. É alguma coisa não é? Daí rocei, derrubei, queimei e Daí o Jango contava:
plantei milho trinta anos sem botar adubo! Terra muito boa a
- Pois me meti correndo naquelas capoeira, me rasguei de
dos banhados.
espinho e saí lá do outro lado do mato! De chimitão na cintura e
O primeiro valeiro que tive notícia na Lagoa foi o Jan- saí correndo, é de se acreditá?! Daí depois desta peguei e pensei
go Machado. O compadre Guri Melo trouxe ele pra secar os comigo mesmo: Pra que revólver pra quem não tem coragem??
banhado pro causo do gado poder aproveitar, que senão nossa
Negociou não sei com quem o trezoitão por um par de
vida era desatolar vaca. O tal Jango Machado gostava tanto da
botas, que o Jango andava só de pé no chão. Mas deu pra pior, que
profissão que dizia: “Quando morrer quero deixar as pá dentro do
quando ele foi no João Gomes, meu irmão que tinha comércio
banhado”. Morreu e capaz que botaram pá coisa nenhuma, mor-
lá no Turvo, chegou com os pé em tira! Ora, ele era acostumado
to não se governa.
calçar um chinelo lá de vez em quando, encheu de bolha os pés.
Mas era caprichoso uma barbaridade, tinha sempre uma
E aí tirou as botas e disse pro João Gomes:
muda de roupa pra quando saía do banhado não chegar almoçar
nas casa sujo de barro. E nem mate não tomava com ninguém, - Me dê um par de chinelo e fique com estas porcaria
tinha a cuia e a erva dele, só ele tomava... Aí já não sei se era ca- destas botas!
pricho ou sistema do home, não é? Ele prontamente aceitou, não é? E assim virou num par
Pobre Jango véio, queria ver o que que ele ia pensar se de chinelo a égua do Jango Machado...
fosse vivo hoje que a lei proíbe até de chegar perto dos banhados!

60 61
Chimitão: Revólver da marca americana Smith&Messon. Reza a 23
lenda que a pronúncia do nome em inglês foi sendo alterada
para o português por semelhança fonética: Smith&Messon –
Os Namoros de
Smith – “Chimite” – “Chimitão” (no aumentativo, por se tratar de
um revólver grande). Antigamente
Uma Braça é uma unidade de medida antiga que equivale a 2,20
metros. Namorar antigamente era muito custoso. Você ia numa
Ouça o Sr. Lauro contando este causo: casa visitar ou fazer algum serviço e as mulher não apareciam
cumprimentar que nem hoje em dia. Se você ficasse pro almoço
ou pra janta, daí que elas vinham servir a mesa, mas era só, nem
comer junto comiam. Pra se ver moça era só nos bailes e os
pais ainda ficavam um de cada lado cuidando a filha. O rapaz
tinha que ir lá pedir pros véios pra dançar, era uma marca só
e já tinha que devolver! Bah, sem falar que tinha o tal carão...
Carão era quando a prenda recusava de dançar. Algum até vi-
rava as costas e ia simbora, mas a maioria botava fervo e virava
em peleia o baile!
Mas então, como tava contando, namorei oito anos a Cla-
rinda lá da Água Branca, onde hoje é o Maragato. Ia de a cavalo
desde Ibiraiaras visitar ela, saía de madrugada e chegava lá perto
do meio dia... Posava no galpão, de manhã cedo tomava café e to-
cava de volta. Eu gostava muito dela, tenho até hoje uma foto que
ela me deu, e olha que foto naquele tempo era coisa cara não é?
Mas é como eu digo: “O casamento e a mortalha, do céu
se detalha”. A gente casa com que tem que ser, porque quando
vi se apartamo e se deixamo e fui casar com quem nem sonhava!
Agora, oito anos não são oito dias... Fiz alguma viagem!
Cada madrugada que eu tava indo pra casa dela fazer uma visita
eu pensava: “De hoje não passa, vou pedir a mão pro pai dela e
marcamos casamento”. Durava seis horas a viagem e eu ia pen-

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sando nisso daqui lá, não é? Mas daí chegava na casa, almoçava, prador de gado que pagava com prazo e tocava ir cobrar ele. E
a vontade de casar passava e acabava que ia embora. não sei que jeito ele achou uma gringuinha lá e pegaram namo-
Ora, mas também o namoro era de muito respeito: Sen- rar, mas ele ia ver ela cada dois ou três meses, que era longe, só
tava eu, o pai dela no meio e ela. Proseava quase só com ele, nem mesmo quando tinha que receber do tal home.
pegar na mão e nem sentar do lado da moça podia. Namoramos Acontece que os namoros eram de muito respeito, então
oito anos e nunca chegamos dar um beijo que fosse. É como diz ficava a moça na sala proseando com ele e a mãe dela junto, que
o ditado: Boi de cangalha não se lambe. Pensando hoje, a verdade era ela quem cuidava. Nem sentar perto podiam! E de tão viva
é que eu namorava mesmo o véio pai dela! que era a véia ela tinha, no canto da cozinha, um baita espelho
... que dava pra sala e deixava ela ver tudo lá de dentro quando ia
fritar uns bolo pro chá de meia tarde. Ah, mas nem inventar de
Acabou que terminei casando com a Diva, filha do Arcê-
pegar na mão da guria podia que ela enxergava tudo!
nio Mendes. Nós era vizinho ali na Roseira, na época de crian-
ça... Era pra nós terminarmos juntos, não é? Eu fui pra Ibiraiaras, O causo então foi que o Laudir pegou o irmão pequeno
saí trabalhar de carpinteiro muitos anos e no fim fui voltar morar da moça uma hora num canto e propostiou pra ele: Se quebrasse
justo ali perto dela! o espelho da cozinha, na próxima vez que ele voltasse visitar dava
uma caixa de bombom.
O casório foi muito bonito, deu uma baita festa porque
tinha dois casamentos: Eu com a Diva e o compadre Maximi- Ah, mas não deu outra! Na outra visita já não tinha espe-
liano Mello com uma irmã dela. Foi até engraçado, o véio pai lho, que o gurizinho tinha acertado uma bolada. Mas por azar daí
das noivas chegou lá e entregou uma pra mim e outra pra ele! também não teve mais bolo frito nem café!
Lembro que nem se fosse hoje... Eu fui a cavalo, apeei na frente
dos convidados todos, entreguei as rédeas prum outro ir amarrar
e dei o primeiro beijo na minha mulher. Se o véio pai dela não
gostasse, azar o dele, que ela já não era mais dele mesmo!
Vivemos quarenta anos junto e nunca brigamos nenhum
dia. Mas também nem falamos grosseria um pro outro nem de
alguém inventar de trair nunca aconteceu. Nós era os dois muito
certos e por isso que deu certo!
...
Aí naquele tempo o meu filho Laudir era novo, solteiro e
arrumou uma namorada lá por Veranópolis. Nós tinha um com-

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24
Carpintaria

Quando tinha meus vinte anos, larguei de trabalhar na


colônia e fui trabalhar de ajudante de carpinteiro. O Seu An-
tônio Martini era dono da oficina de móveis que tinha na Ibi-
raiaras no começo do povoado que ainda pertencia à Lagoa. Ele
fazia móveis, casa, de um tudo. Naquela época era tudo feito de
pinheiro, não é? A única madeira que não era pinheiro eram os
cepos das casas, tinha que ser madeira de lei, usavam Cambará.
Mas também os matos eram tapados pinheiro, coisa sem fim!
Lembro que ajudei construir a casa do Augusto Pomatti,
do Vicente Canaviese, fora uma pra Maria Rodrigues, uma pro
Foto do Sr. Lauro com sua esposa Diva no início da década de 60.
Mário Machado e outra pro Anselmo Vieira de Carvalho, meu
cunhado. Lidamos na construção dum moinho pro Alcidez Dal-
lroz no Santo Expedito e, por fim, fizemos a Igreja ali onde é
hoje a praça e tem a Matriz... Foi a segunda Igreja de Ibiraiaras,
ficou bonita que nossa mãe!
Então o Martini, meu patrão, empreitou uma casa pro
Rafael Mongoni lá em Caseiros, mas ele tava ocupado fazendo
o mobiliário pra casa dele e me chamou pra jantar com ele um
dia. Perguntou se eu me encorajava a fazer a casa pro gringo
solito. Fiquei meio assim, tinha vinte e poucos anos ainda, tava
aprendendo... Mas dei uma de metido, acabei aceitando e foi a
primeira casa que construí sozinho!
Daí em diante eu já tinha aprendido bem o ofício, fui-me
embora da Ibiraiaras trabalhar de carpinteiro por conta pelo in-
terior e nunca mais voltei. Nunca mais que eu digo é de morar,

66 67
não é? E foi construindo que cresci na vida: Fiz casa pro Aparício só lidar não dá. Quanta empreitada pegamos junto, a gente co-
Pimentel, pro Tanagildo Lensi, pro João Guita, pro Maximiliano meçava a casa do chão, socando os cepos, e entregava pronta e
Nunes, pro José Xavier, pra Marica Soares, pro Joaquim Borba pintada. Teve umas que até os móveis fizemos, roupeiro e tudo
de Freitas e pro João do Amaral, o João Isébio que chamavam. mais! Era lida de quase um ano pra aprontar uma casa... Uia
Esta casa do Isébio só fiz porque era pra ele, que era com- João, casou-se e foi pro Paraná, nunca mais tive notícias dele. Ás
padre e me pagava bem. Queria tudo encaixado, sem prego, deu vezes dá vontade de saber o que será que ele fez da vida!
um trabalho que vou te contar! Bom, mas daí teve a do Gustavo
Mendes, que foi a última que eu fiz pra fora, depois fiz a minha
e abandonei a carpintaria pra cuidar do gado. Ah, teve ainda as
igrejas! Carpinteiro tinha muito serviço na época!
Fiz a primeira igreja da Oliveira – o Lino Monteiro, ma-
rido da Rosamunda, foi quem me justou – e depois o José Bar-
reto tratou comigo a igreja do Divino. Lembro do dia que ele
veio me propostiar, que era pra mim fazer porque ele não queria
serviço de gringo, que faziam muito na pressa um serviço pra já
pegarem outro e ganhar dinheiro. E tá certo, que os gringo ficam
rico porque vivem trabalhando, não é? Mas o coitado morreu
antes de ficar pronta a construção e daí quem me pagou foi o tal
Manezinho Barreto.
Até meu primeiro cavalo foi a carpintaria que me deu.
Na época não existia telha pra cobrir as casa, era só tabuinha
tirada de pinheiro. Não sei quantas mil tabuinhas fiz na vida! O
Antônio Charó, na época casado com uma tia minha, me enco-
mendou cinco mil tabuinhas. Derrubei um baita dum pinheiro e
entreguei todas empilhadinhas a troco dum potro rosilho e dali
pra cá nunca mais fiquei sem animal. Bom, agora tô sem, mas é
que as perna não ajudam mais, não é?
Quem muito me ajudou tudo estes tempo de construção
foi o tal João Caruncho, que era meu peão. Tinha este nome Casa do Sr. Anselmo Vieira de Carvalho, construída em 1930 no
porque ele era tudo carunchado da varicela. Carpintaria pra um atual município de Ibiraiaras.

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Antônio Martini foi o carpinteiro responsável pela
construção da segunda igreja de Ibiraiaras. O trabalho
levou três anos para ser concluído, de 1932 a 1935. A
construção foi demolia em 1967 para dar lugar à atual Casa de Maximiliano Nunes, construída em 1935 na localidade
Matriz [4]. [Acervo da Prof. Eni Maria Guadagnin] do Turvo. (a foto saiu torta, a casa não!)

O Sr. Aparício Pimentel encomendou esta casa na


década de 30. Foi construída no atual município de Casa construída para o Sr. José Xavier em 1935, também na loca-
André da Rocha. lidade do Turvo.

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Residência do Sr. Tanagildo Lenzi, construída no fi-
nal da década de 30 no interior de Lagoa Vermelha. Uma das últimas empreitadas do carpinteiro Lauro, o
A obra se localizava próxima de onde se encontra casarão do Sr. João Amaral foi concluído em 1944
hoje a ponte sobre o Rio Turvo. na localidade do Turvo. Sua construção levou um
ano inteiro.

Casa e galpão, última obra e primeira residência do Sr.


Casa do Sr. Joaquim Borba de Freitas, construída em Lauro na localidade da Fazenda da Roseira. Finali-
1941 no município de André da Rocha. zada em 1952.

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25 E tratou alguma gente da tal da espanhola! E era uma
doença braba uma barbaridade, quando dava numa casa matava
a família inteira, que nem a febre amarela matou os bugios tudo!
Mais Fácil Chamar o Onde dava espanhola não sobrava um! E o meu bisavô ia de casa
Padre que o Médico em casa com aquelas remediaiama e nunca pegou a doença. Era
ou não era abençoado por Deus?
...
Tenho uma lembrança de quando era pequeno, lá pelos
meus cinco anos, do meu bisavô Evaristo Telles. Nunca esqueci Teve uma vez que eu fui pegado duma cobra e me curei
a feição dele, era um velhinho de cabeça branca, baixinho, cami- em casa. Tinha uns vinte e poucos anos, tava carpindo na roça de
nhava miúdo... Mas também, tinha cento e cinco anos! chinelo e, quando vi, aquela cobra tava grudada no meu garrão!
Meu pai ainda matou ela pra mostrar pro médico, era a tal Jara-
Quando foi um dia meu pai ajudou ele a montar no cava- raca, mas de pouco adiantou porque o farmacêutico que tinha na
lo e ele foi dali da Roseira até na Encruzilhada Velha, pra casa da Ibiraiaras, o Dr. Renato, recém tinha vindo da Itália e disse que
minha vó Candinha. Era um cavalo vermelho, de cabeça rosilha não conhecia “as bicha do Brasil”.
de tão véio... Pra gente de idade tem que ser cavalo também de
idade e manso, não é? Ah, mas passei errado! Me fizeram uma atadura com a
cinta na altura da canela lá na roça ainda, e de lá fui caminhando
Se ao menos tivesse uma charrete, uma carroça pra levar o até na farmácia... Cheguei com o pé véio inchado uma barba-
véio? Mas que nada, aquela época nem estrada não tinha, era só ridade, tiveram até que cortar a calça! Desta feita fiquei quinze
pelas picada de a cavalo... Fez os trinta quilômetros de viagem e, dias de cama com o pé doído sem poder botar no chão. Ah, se
quando ele chegou lá, falou pra ela: eu morasse nestes fundão aqui da Roseira e não lá na Ibiraiaras
- Minha filha, eu vim aqui pra morrer. já tinha viajado novo ainda! Mas é como diz o ditado, ninguém
Ela ficou braba e xingou ele de estar falando bobagem, morre na véspera, só leitão pra casamento. Se chegou o dia que
mas foi que naquela semana ele morreu mesmo! Quando foi um venceu a validade do sujeito ele vai mesmo, seja feio, seja bonito,
dia amanheceu morto... Isso que é morte bonita, não tá sofrendo não tem escapar!
num hospital. E sabe por que ele se foi deste jeito? ...
Acontece que o véio Evaristo era abençoado por Deus Até hoje só tive baixado em hospital duas vezes. Da
do tempo da tal espanhola. Ele era doutor homeopático, andava pegada da cobra, quando fiquei baixado em casa, que hospital
pelo interior com um cavalo carregado de vidro com remédio Ibiraiaras não tinha, e da vez que operei o estômago de uma
feito de ervas. Que naquela época se lidava só com homeopatia, úlcera. Naquela época eu já era casado, já tinha dois filhos...
que outro recurso tinha? Mas tava malecho, tudo que eu comia voltava. Aí fui até Alfre-

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do Chaves, que hoje trocaram o nome pra Veranópolis, con- de ervas. Sabe quantos dias de cama o Pedro Rosa, que lidava
sultar o Dr. Ivo. com homeopatia, dava pra curar uma pneumonia? Quarenta dias
Lagoa era um atraso monstro, só farmacêutico tinha, ne- sem se levantar!
nhum médico! Ficasse doente de coisa meio séria o recurso era ia Padre também era só nos povoado mais grande pra achar,
pra Veranópolis. Mas então chegando lá me disseram que tinha não é? Mas se o causo da doença ou do acidente fosse meio feio,
que fazer a tal da cirurgia e tirar um pedaço do bucho. Não gostei era mais fácil chamar o padre duma vez que um médico...
da novidade, mas que remédio? Tinha que ser, fazer o quê?
Voltei pra casa, avisei a muié, deixei uma lenha feita, pe-
guei o ônibus de linha e voltei pra Veranópolis. Nunca esqueci do
hospital, já era de material, um baita dum prédio, todo pintado de
branco. Fizemos a tal cirurgia e me deixaram uns par de dias no
quarto, deitado. Mas eu me sentia bem, não é? Uia Dr. Ivo! Abrir
um vivente naquela época de pouco recurso! E dizer que ainda tô
aqui, com mais de cem anos, e o coitado é falecido já faz tempo!
O Dr. Renato Piazza de fato veio da Itália, mas não era farma-
Mas o engraçado era um gringo, já véio, que tava bai- cêutico e sim médico. Por sinal, o primeiro do então distrito de
xado no hospital também. O problema dele devia ser pouca São José do Carreiro, hoje Ibiraiaras, entre os anos de 1929 e
coisa, porque caminhava dum quarto no outro contar causo e 1933 [4].
dar risada... Nunca esqueci dele, tratavam por Menegon. Vinha
Espanhola: A Gripe Espanhola matou ao redor de 300 mil pessoas
sempre no meu quarto contando dos doentes que tavam mais
no Brasil no final da década de 10, incluindo o então Presidente
pra lá do que pra cá:
da República Rodrigues Alves.
- Ma óia, aqui no quarto do lado tem um que tá com a
Médico Homeopata era o título informal dos chamados “enfer-
porcada na roça...
meiros qualificados por lei”, que trabalhavam no tratamento de
... doenças consideradas mais simples e comuns. Consistia em um
Hoje a coisa tá muito melhor, não é? Tem solução pra improviso da Secretaria da Saúde do Estado, que via nestas pes-
tudo que é enfermidade... Ih, no meu tempo de moço tinha que soas um paliativo para a falta de profissionais de saúde no inte-
ir a cavalo chamar o médico, que levar o doente não tinha meio, rior, visto que os graduados concentravam-se apenas nas maiores
cidades. Os médicos homeopatas receitavam apenas medicamen-
era esperar o doutor vir de a cavalo na casa! A falta de recurso era
tos à base de ervas e possuíam algum conhecimento empírico
muito grande, morria muita gente... Pegada de cobra, por exem-
em medicina, mas dedicavam-se a outras ocupações (fazendei-
plo, era só com benzedura. Se tinha um adoentado numa casa o
ros, agricultores, etc) [6].
recurso era chamar o tal do homeopata, que tratava com remédio

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As “Chiripiadas” do Luciano

O Joaquim tinha um filho que era domador coisa sem


igual, montava até pelos garrão, nunca vi outro pra domar que
nem ele. Chamava Luciano o rapaz, era um monstro na doma,
tanto cavalo como mula. Só tinha o defeito de ser muito ladrão.
Ladrão não, que ele mesmo dizia que não roubava, ele “chiripia-
va”. E ninguém contava, era ele mesmo que se gabava: “Chiripiei
uma ovelha do fulano, chiripiei uns bois do bertano, chiripieri uma
vaca do ciclano”... Rodava a fama do Luciano, tanto de domador
quanto de “chiripiador”!
O Dr. Ivo Sasso clinicou por mais de 30 anos no Hospital Del
Prete (acima), em Veranópolis. Por se tratar de um dos primeiros Então na entrada do verão o meu tio, o Severiano, tava
hospitais da região, atraía muitos enfermos das cidades vizinhas com um lote de uns cinquenta bois pra engordar e fez uma pro-
[3]. Foi nele que o Sr. Lauro realizou uma cirurgia para remover posta pro Luciano:
de parte do estômago, na longínqua década de 50. [Imagem do - Luciano, escuite: cada festa que nós ir eu te pago tudo,
livro Raízes de Veranópolis]
churrasco e bebida à vontade pra você não chiripiá nenhum boi
Como curiosidade, cabe outro parêntese. Ao contrário do que meu. Que tal?
afirma o Sr. Lauro, na década de 50 Lagoa Vermelha possuía Fizeram o trato. Aí, conforme ia indo o verão, os bois
médicos e inclusive um hospital. Os lagoenses (e adoentados de
foram desenvolvendo, ficando liso de gordo, um lote bonito uma
outros municípios) iam até Veranópolis buscar tratamento por
barbaridade. E o Luciano foi se arrependendo do acordo... Aca-
conta da fama de bom médico do Dr. Ivo.
bou que não roubou nada, mas vivia num sentimento sem fim!
Cada vez que passava na frente do campo e via o gado dizia:
- Mas que trato bem porco fui fazer com o Severiano!
...
Ainda tinha o companheiro de roubo do Luciano, o tal do
Mãozinha. Esse era o apelido porque ele tinha uma mão torta,

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o nome mesmo era Juvêncio. Viviam chiripiando, ovelha era uma - Seu Manuel, tá aqui sua mula. Já tá domada mas eu
por dia, coisa de louco! precisei dar umas saídas com ela, vendi e roubei de volta de três
Teve um dia que foram juntos numa invernada lá no San- lugar. Melhor o senhor deixar ela meio escondida uns dias.
to Expedito chiripiar uma junta de boi carreiro. Tocaram os bois Pegou o dinheiro da doma e foi simbora!
até a estrada e daí o Luciano disse: ...
- Vamos levar qual? Um sábado de aleluia o Luciano inventou de vender car-
- Ora, mas vamo levar os dois, que pergunta mais besta! ne pra churrasco. Comprou um vaca gorda dum conhecido e avi-
- Mas tu não sabe chiripiá mesmo! Se levar os dois o dono sou que quem quisesse comprar que aparecesse na casa dele. Ora,
vai no rastro procurar de tudo que é lado, levando só um ele fica naquele tempo não tinha luz, carne era só de charque, apareceu
aqui camperiando achando que o boi se extraviou! gente que não foi pouco pra comprar do Luciano.
- Mas é capaz que o dono vá achar os boi! Levemo os dois Acontece que ele tinha comprado uma e chiripiado outras
e deu! duas, tinha carne pra vender que não era pouco! Um chegou e
comentou:
Bateram boca e não se acertaram mais. Terminaram não
roubando nenhum e devolvendo os bois pra invernada. - Não deu carne meio demais esta vaca, tchê?
... - Era bastante pesada, você tinha que ter visto...
Teve a vez que o Manuel Antônio levou uma mula pro Outro reparou melhor e perguntou:
Luciano domar. Como contei, era domador famoso e pra do- - Mas Luciano, esta tua vaca tinha oito patas?
mar mula não serve qualquer domador, é um bicho enjoado. Mas - Barbaridade! Ainda que tu avisou, ando com a cabeça
aconteceu que, depois de domada a mula, ele pegou ela e saiu via- cheia, guardei só as outras quatro!
jando, foi pra longe, chegou numa fazenda e se apresentou como
...
vendedor de mula. Era bonita e tava domada, vendeu por um
preção! Aí diz que o fazendeiro convidou ele pra dormir dentro Pro fim o véio Joaquim, home do dinheiro, quando andou
de casa, que tava frio e tinha lugar mas ele agradeceu: meio adoentado que bateu a idade foi falar com o Luciano, que
era filho mas não era legítimo, não é? Garrou e ofertou:
- Eu prefiro dormir no galpão, que sou mais acostumado.
Sem falar que com frio me dá uma mijadeira que nossa, tando - Meu fio, vamo fazer o seguinte: Vou mandar fazer uma
aqui fora me facilita. casinha num pedaço de terra pra você viver, mas você não chiri-
peie mais, pelamordedeus termine com tuas cheripação!
Ficou dormindo no galpão e, alta madrugada, se mandou
com a mula. Diz que vendeu e chiripiou a mula de outras duas E parece mentira, mas o Luciano se mudou pra tal casa e
fazendas no caminho de volta até a casa do Seu Manuel Antônio. não chiripiou mais mesmo!

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Passou Adiante O Camisolão

Mas falando do Luciano me lembrei dum causo do pai Antigamente a falta de recurso era dum jeito que as crian-
dele. O Joaquim era viúvo, criava gado ali perto do Divino e já ça não usavam roupa que nem hoje, era só um camisolão que
não era muito moço quando arresolveu de se juntar com uma nem estes que a muierada usa. Eu lembro bem, até meus cinco
muié que encontrou não sei aonde. Fez que nem fazem hoje, anos só tinha um vestidão azul, sem nada por baixo. Isso que me
não teve casamento nem nada, pegaram e foram morar juntos. deixaram vestir roupa cedo, porque os mais antigos usavam até
Decerto se acertaram muito, porque logo ele pegou e passou pra ficar moço!
ela o fundo do terreno dele junto com a casa onde eles moravam. Então contavam o causo do guri que já era quase um ra-
Daí acabou que o tal Ventura, que era um solteirão muito paz, até namorada tinha e ainda usava camisolão. Quando foi
boa vida, tanto fez que acabou trovando a muié do Joaquim e um dia, comprou tecido tipo mesclinha do mascate pra mãe dele
ela largou dele. Muié quando dá de virar a cabeça não há quem fazer um macacão, mas como acabou comprando muito tecido
ataque, não é? Pois ainda tocou do pobre do home deixar a casa sobrou quase três metros depois dela terminar o serviço. Ah, mas
pro casal. Que remédio? Tinha escriturado e não era mais dono... ficou louco de faceiro por causa da roupa nova e quis ir dar uma
e assim o Ventura chiripiou a muié, a casa e vinte hectares de surpresa na namorada. Vestiu o camisolão por cima do macacão
campo do Joaquim. e foi lá mostrar a novidade.
Depois o pessoal pegava debochar dele: O brabo é que no meio do caminho precisou ir pro mato
- Mas escute, ouvi falar que o Ventura te passou pra trás, fazer uma necessidade e tocou tirar o macacão. Dependurou num
é verdade? galho, fez o que tinha que fazer e na hora de ir embora vestiu só
o camisolão. Ora, pelo costume de não usar nada por baixo nem
- Não! Muito pelo contrário, quem ficou pra trás foi ele!
se deu conta e foi simbora, não é?
Me passou foi pra frente, que tive que fazer outra casa lá adiante...
Então, chegando na casa da namorada, já foi avisando:
- Hoje vou te mostrar uma novidade que você nunca viu!
E começou a levantar o camisolão. Erguia um pedacinho
e perguntava:
-Viu?

82 83
- Não.
- E agora, viu?
29
- Ainda não. O Bailão do Zeca Chaves
- E agora?
- Agora vi!! Esses dias tava me lembrando duma passada do Seu
- Pois desta qualidade ainda deixei três metros em casa! Zeca Chaves. Não havia quem não conhecesse o home, pessoa
mais boa no mundo não tinha, só era positivo uma barbaridade!
Que não fizessem cambalacho pro lado dele que virava num
tigre o home!
Agora, o bonito era o monstro do salão que mandou fazer
do lado da casa dele. Dava os maior bailão da Lagoa! Lá chegou
tocar dos Serranos pra cima!
Muito caprichoso o home, tudo muito organizado: Você
comprava a mesa e tinha segurança, bodega com tudo que é tipo
de bebida e comida pra quando desse fome do baile. E o povo
comparecia, era afamado o bailão do Zeca Chaves, a gaita véia ia
a noite inteira e parava só de manhã.
O causo então foi que naquele ano deu uma chuvarada
sem fim, de levar a ponte do Turvo embora, nunca vi coisa pare-
cida. E o Seu Zeca Chaves foi marcar um baile justo num dia que
deu-le água sem parar, parecia derramado de balde, até as sanga
andavam atacando. Ah, mas quem é que ia se meter em baile com
um tempo destes? Não apareceu ninguém e daí ele chegou pra
banda que tava lá pra tocar e propostiou: Dessem um desconto
no preço e tavam dispensados, porque baile não ia ter.
Diz que um rapaz meio gerentão da banda não quis dar
desconto nenhum, que se ninguém tinha aparecido o problema
não era deles. E que pagasse o acordado meio logo que eles que-
riam ir embora. O Seu Zeca ainda tentou convencer os moços,

84 85
que eles não iam ter que tocar nada mesmo, que próximo baile ia
chamar eles de novo e coisa e tal, mas não houve conversa, que-
30
riam o dinheiro e pronto.
Aí o home embrabou e deu-le uns gritos:
Os Causos do
- Vocês querem dinheiro eu pago. Mas também vão tocar Compadre Guri
até o amanhecer que nem foi combinado!
E fez a tal banda tocar até de manhãzinha pro salão vazio, Seguido me alembro do compadre Guri Mello. Nós era
só com ele sentado numa cadeira cuidando os músicos! compadre duas vezes: Numa eu fui padrinho da filha mais nova
dele, na outra ele que foi do meu filho. Sem falar que casamos
juntos, no mesmo dia e com duas irmãs, filhas do véio Mendes.
Durou até os noventa e tantos anos o meu amigo, quanta risada
demos juntos!
Era o compadre Guri que contava um causo do irmão
dele, o Constante. Diz que o Constante tava visitando o Seu
Libório e conversa vai, conversa vem, apareceu um beija-flor no
telhado da casa. Aí ele puxou o revólver e disse que ia acertar um
tiro no passarinho.
O véio Libório pegou debochar, não é? Tava mais de dez
metros de distância! Até prometeu que se acertasse mesmo ele
dava um 38 que ele tinha - revólver legítimo - de presente.
Ah, o Constante, que teve muitos anos de cabo no exér-
cito, aceitou na hora! Fez a mira e... Pá! Derrubou o beija flor!
O Libório, quieto, pegou e entregou o revólver ali mesmo.
Ganhou a aposta o irmão do compadre Guri e levou o berro pra
casa... Só que não adiantou nada, porque dali uns dias o véio que
tinha perdido a aposta foi lá pedir a arma emprestada que preci-
sava dela não sei pra quê e nunca mais devolveu!
...

86 87
Outra história que nós dava risada que não era pouco ti-
nha acontecido com o pai do compadre Guri, o Seu Vasco Mel-
31
lo. Ele morava ali na Roseira, criava gado, umas ovelhas e sabia
capar bagual – que não é qualquer um que capa, é coisa difícil. O Primeiro Emprego
Uma tarde o mesmo véio Libório chegou lá de a cavalo
num bagual e pediu pro Vasco: Eu hoje só sirvo pra contar causo, não é, mas já trabalhei
- Por acaso, se o Sr. tem um tempo, podia aproveitar me que não foi pouco nesta vida... Desde piá ajudava meu pai na lida
capar... de campo e quando fiz doze anos, me lembro bem, foi quando
- Mas olhe, nunca fiz este tipo de operação! Agora, se o me justei pela primeira vez pra trabalhar pra fora.
Sr. quer mesmo, eu te capo sim. Um conhecido do meu pai, o Ângelo Faraon, tinha uma
- ... Me capar o bagual! Não eu! trilhadeira de trigo e eu passei três meses com ele pelos interior,
de casa em casa onde tinha trigo pra limpar. Esta máquina antiga
que eu falo era aquelas tocadas à cavalo, um trambolho enorme
que precisava umas doze pessoas trabalhando pro serviço sair!
Funcionava assim: A trilhadeira tinha um eixo que vinha dar no
macaco, que tinha dois braços. Em cada braço a gente colocava
dois cavalos caminhando em volta, arrodeando. Eram os animais
que faziam funcionar a máquina, nem motor tinha. Eu tocava os
cavalos. O dia inteiro caminhando atrás dos bichos, só parando
pra comer e dormir!
Você calcule, doze, até quinze pessoas lidando na mesma
coisa: Estendiam um pano no chão, eu e mais um piá tocávamos
os cavalos, o véio Ângelo comandava a trilhadeira enquanto ti-
nha gente levando trigo na boca da máquina, gente rastelando
aquela palha que saía com o trigo, a muierada tocando um ven-
tolão pra sair aquela sujeirama e mais uns com um garfo levando
a palha embora. Esta palha virava o tal paiaro, que era um monte
nos potreiros pro gado passar o inverno comendo. Veja quanta
gente precisava pra fazer o serviço! As famílias iam todas atrás
da máquina, um dia maquinavam pra um, outro dia pra outro e

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assim ia naquele puxirão! Ou todo mundo ajudava ou ninguém depois botar na carreta, levar no galpão e esperar que algum dia
tinha trigo limpo. viesse a máquina. Ela vinha, limpava o trigo e então a gente pre-
Que lida aquela! Começamos na Ibira, que na época era o cisava levar de a cavalo no moinho fazer a farinha. Feita a farinha
Carreiro, fomos por tudo que foi canto na Linha Café, passamos a muierada vá muque pra sovar a massa do pão e depois assar no
Monte Bérico e terminamos lá nuns cafundó, quase Guabijú! forno à lenha.
Menos mal que era verão, porque eu e o outro guri, terminado Hoje as coisas tão fácil de um maneira medonha e nin-
o trabalho, dava bóia pros cavalo e ia dormir em cima da palha guém dá valor!
mesmo, ás vezes num galpão, às vezes no relento. Dentro das casa
não tinha lugar, era só pros adultos. E também, entrar dentro de
casa de que jeito, se de noite a gente tava que era um cascão de
sujeira? Banho era só na sanga no fim de semana... Parece ruim,
não é, mas ainda tava muito melhor que lidar lá perto da máqui-
na, tinha poeira que dava medo!
Terminado o serviço numa casa a gente ia pra próxima
e tocava desmontar aquela bugiganga. Precisava de três carre-
tas, imagine! Uma pra máquina, uma pro ventolão e outra pro
macaco, que era pesado barbaridade. Iam os quatro cavalos mais
duas mulas das boas pra tocar a comitiva... Uia sofrimento! Do
raiar do dia até o anoitecer pra maquinar trinta, quando muito
quarenta sacos de trigo. E dizer que hoje estas colheitadeiras já
apartam o trigo e tudo mais?
Ganhei noventa mil réis nestes três meses, mais uma ca-
misa por mês, que se terminaram no serviço. Os primeiros troco
que eu fiz na vida!
Agora vou dar um exemplo e você calcule só como era a
antiguidade. Pra fazer um pão, haja sofrimento!
A gente semeava trigo com a mão, cobria com uma en- Registro da trilhagem de trigo no interior de Ibiraiaras (que na
xada, cortava com uma foicinha depois de pronto e deixava em época ainda não era um município) na década de 40. O relato do
cima da resteva pra tomar um dia de sol e secar. No outro dia Sr. Lauro se passa em 1924, ao redor de 20 anos antes. [Acervo
cedinho era fazer os feixes – atados com palha ou algum cipó – e da Prof. Eni Maria Guadagnin]

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32 metros um pé do outro... Pelo menos devia ser, que eu não media
com trena, era um passo uma cova da outra. Fincava o saraquá,
fazia o buraco, jogava quatro grãozinhos ali e fechava a cova.
Agricultura Nasciam assim mesmo, os quatro pés de milho juntos e ainda
plantavam feijão no meio. Ah e não tinha esses venenos que tem
agora pra deixar a lavoura limpa, capaz! Queria ver hoje quem se
Quem vê hoje não acredita, mas da Lagoa até em Ibi-
metia a plantar ou limpar um alqueire de milho no saraquá e na
raiaras era taquaral e pinheiro em cima de pinheiro, mata véia
enxada em um dia que nem meu pai fazia!
fechada! Meu tempo de moço foi derrubando e limpando mato
pros gringos plantarem. Num dia de trabalho você ganhava uma Ficou uma beleza depois que inventaram as tal das ma-
moeda de prata de dois mil réis e umas cruzeira pra matar naque- quininhas de mão pra plantar milho. Era só encher elas, regular
las capoeira. Vô te contar a lida. e... Check! Check! Dois toques tava pronto!
Primeiro derrubavam o mato na base do machado. Tinha ...
quem se divertia, até aposta faziam de ver quem derrubava mais A colheita até anda parecida, ainda tem muito colono
ligeiro aqueles pinheirão... Um de cada lado, vá machado, quando pequeno que quebra milho na mão e carrega no balaio e no car-
caía o tronco parecia até que tinha sido serrado de tão certeiros gueiro. O feijão arrancava o pé inteiro, deixava secar e levava pra
os golpes! Tinha nego bão no machado aquela época! Os tronco malhar de manguá. Só que lona era coisa que não existia e daí
mais bonitos e os cernes até usavam pra algum coisa, mas ma- pra não perder os grãos nem misturar na terra, os antigos faziam
deira ruim, pinheiro meio fino, aquela galhada e aquela pauleira o seguinte: Rebocavam com esterco de gado um terreiro e deixa-
tacavam era fogo. vam secar, ficava que era um cimento! Podia malhar o feijão ali,
Naquele queimado depois era plantado milho – que dei- não tinha perigo de misturar nem um grãozinho de terra, saía
xava preto de carvão os índio na hora de colher – e ficava aban- limpinho o feijão.
donado até o outro ano. Ah, mas vinha uma capoeira coisa mais ...
feia, tocava roçar e queimar de novo. Aí sim ficava que era um Mas bom, depois de tudo este serviço ainda tinha mais
colosso, que até os galhos que não tinham queimado no ano an- incomodação. De pouco adiantava o milho e o trigo em grão,
terior viravam cinza, ficava livre pra carpir e plantar o que fosse. não é? Precisava fazer farinha e o jeito era atirar um ou dois
Fiz muita roça no cabo da enxada até pegarem aparecer os ara- sacos na garupa duma mula e levar no moinho. Os brasileiros
dos, nossa mãe, até hoje tem noites que sonho estar carpindo faziam quirera e os gringo só polenta, que era a comida deles.
uma lavoura de milho! Agora tinha muito dono de moinho sem vergonha, deuzolivre!
Me conte uma coisa, você já ouviu falar no tal do saraquá? Você vê, eles cobravam uns dois mil réis pra moer cada saco e
Era com o que a gente plantava o milho, longe uns oitenta centí- ainda roubavam por fora, ganhavam de dois lados! As filas eram

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tão grande pra moer que você levava hoje e tinha que deixar lá,
ir buscar outro dia... Ah, neste meio tempo desviavam uns quilos
33
da tua farinha. Era até engraçado como moinheiro sempre tinha
chiqueirão cheio de porco gordo! O Vila Véio

Vila Véio vivia como farquejador, já que na época não ti-


nha serraria. Derrubavam os pinheiros, lascavam e farquejavam
pra fazer as tábuas das casas. Uia que tinha pinhalão antigamen-
Cruzeira: Cobra peçonhenta (Bothrops alternus), também conhe-
te! Aqui perto, os Eva mandaram fazer um serrote pra poder
cida como Urutu.
serrar um pinheiro de mais de dois metros. Era cada tronco véio
Manguá é objeto com dois cabos unidos por uma corda. Se bate do começo do mundo que derrubavam pra fazer casa... Hoje
nas plantas de feijão seco com uma das extremidades para que as contando ninguém acredita!
vagens soltem os grãos.
Mas como ia dizendo, o Vila tinha um machado bom
barbaridade, era o companheiro de serviço e o orgulho do home.
Pois o causo é que ele casou-se e no terceiro dia teve que sair de
casa resolver uns negócios. E deixou a mulher em casa sem lenha
feita. Ela, precisando fazer almoço, pegou o tal machado e, sem
prática nenhuma, encheu ele de dente.
Quando voltou e viu o acontecido, não houve índio mais
brabo que o Vila Véio:
- Mulher do diabo, não te quero mais! Me dentear todo
meu machado de farquejo?! Pode ir embora, vai pro inferno, vai!
E assim durou três dias o casamento dele.
...
Uma véia vizinha do Vila tinha deixado feijão por malhar
na sala por causa de uma chuva que veio de repente e ela não
tinha onde pôr. Acontece que lá ela tinha também um oratório,
O Saraquá (acima) consistia em um cabo de madeira com ponta já que naquela época era muito difícil alguém poder ir até uma
de metal utilizado na abertura de covas para o plantio de milho. igreja. O costume do povo era fazer um oratório nalgum canto

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da casa, colocavam uma imagem de algum santo e rezavam de
vez em quando.
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Então o oratório da tal véia tinha uma imagem de Santo
Antônio e quando ela pediu pro Vila malhar o feijão a imagem
Benzedura pra Azia
acabou indo junto sem ele ver. Daí depois que ele levou tudo pra
fora da casa, vá manguá naquele feijão! A velha chega, vê o santo A minha falecida muié, a Diva, vivia contando da vez
em pedaços e pergunta desconsolada pro Vila: que ela apanhou de uma visita. Era ainda meninota, morava
- Ora Vila! Foi quebrar meu Santo Antônio! na casa do pai dela no dia que chegou o véio Marcolino pra
E daí ele percebeu os pedaços de gesso e respondeu: tratar de negócios e trouxe junto a esposa, a Judite. Os home
foram pra sala conversar e as mulher ficaram na cozinha, como
- Má o que que este animal veio fazer aí?! era o costume.
... Na hora do almoço serviram charque cozido socado no
A mãe do seu Vila era uma senhora já de idade meio que pilão com farinha de mandioca no lugar do pão, que já fazia
bastante avançada, dona Tuquinha Fragosa. Tão avançada era a dias tavam sem farinha de trigo. A Judite comeu e atacou-se
idade dela que certo dia acordou morta. Então lá foi o Vila, meio da azia sobremaneira. A Diva pegou e chamou ela pra fora di-
desenchavido, justar uns conhecidos carpinteiros pra fazer o caixão. zendo conhecer uma benzedura que, pra azia, era o mesmo que
Chegou na casa e foi dando adeus, como se nada tivesse acontecido. tirar com a mão. Mas a reza tinha que ser feita com a pessoa
- E as novidades Vila? sentada numa pedra.
- Pois só a Tuquinha, coitada, que morreu. Eu vim saber Foi faceira a véia, já agradecendo, que tava que não podia
se vocês não podem fazer um caixãozinho pra ela... – E emen- mais, que seguido ela comia e o estômago atacava, que não sei
dou: - Se der hoje melhor, senão pode ser outro dia... mais o quê...
Acharam uma pedra graúda, sentou-se a adoentada e a
Diva benzeu:
- Azia azéda / Os bobo que senta na pedra!
Mas deuzolivre, levantou aquela véia mais braba que co-
Farquejador é aquele que desbasta a madeira para deixa-la com o bra caninana gritando:
formato desejado.
- Rapariguinha sem vergonha!!
Malhar feijão consiste em bater (com o manguá) nas plantas secas
E deu uma tunda nela ali mesmo.
para que os grãos se soltem das vagens.

96 97
Caninana: Cobra não peçonhenta conhecida por sua agressivida- 35
de (Spilotes pullatus).
Devon Contra Zebu

Quando eu ainda era solteiro e tava construindo a casa do


Maximiliano, ali no Turvo, fui até André da Rocha ver a aposta
dos Jacques contra os Vieira. Os dois eram uns baita fazendeiro,
com um capital sem fim, só que os Jaques criavam Devon e os
Vieira gado Zebu. O véio Firmino Jacques, pra você ter uma
idéia, foi o primeiro que criou gado Devon na região, mandou
trazer um touro lá da Inglaterra, de navio! Diz que o bicho veio
até Porto Alegre e fizeram um sapatão praquele touro vir andan-
do até o André da Rocha. Calcule que lida e que gasto não teve
o home!
Mazintão, não sei de que jeito, os Jacques e os Vieira in-
ventaram de fazer uma aposta pra ver qual raça era melhor: Cada
um engordou um boi por um ano, pra depois pesarem e ver quem
ganhava.
Ah, mas desde que começaram a tratar os tais bois o povo
já tava comentando e esperando o dia da pesagem. Calcule, diz
que até ovo cozido davam pra eles comerem! Chegou no dia da
aposta e apareceu gente de tudo que foi lado, da Lagoa acho que
tinha metade da cidade lá assistindo, tudo de a cavalo. É uma
viagem da Lagoa até no André no lombo dum animal, não é?
Chegaram com os bois e o pessoal se amontoou pra ver.
O Devon ficou exposto na praça, todomundo viu, era mansinho.
Só que o zebu véio viu aquela gente, embrabou e levaram direto
pro matador, pudemos ver só de relance. Pesaram os bichos: Os
dois passaram dos mil e duzentos quilos! Não me lembro bem

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certo o peso de cada um, mas o zebu ganhou a parada por uns
O Coronel Firmino Jacques, que lutou na Revolução Federalista,
dois quilos. Eram gordos que se eu não tivesse ido ver, duvidava.
foi o introdutor da raça Devon na região dos Campos de Cima
Quase um palmo de graxa na carne!
da Serra. Ele adquiriu, em 1912, um touro que veio de navio da
O dia daí foi aquela farra: A pesagem, a carneação, o Inglaterra com destino à sua fazenda no então distrito de André
churrasco, a bebida, uia festão! O povo foi embora de noitezinha da Rocha. Tratava-se do segundo reprodutor Devon a chegar ao
já, eu e o Seu Maximiliano também. Hoje conto o causo e acho Rio Grande do Sul (o primeiro foi trazido por Assis Brasil em
bonito, mas aquela noite pegamos chuva e eu passei mal na via- 1906 para Pedras Altas).
gem, tonto, vomitando... Espraguejei que não foi pouco aqueles Um dos pioneiros na atividade pecuária no Estado do Rio Grande
boi comedor de ovo! do Sul, o município de André da Rocha foi palco das famosas
e folclóricas carreiras de pesagem de gado, principalmente após
a introdução da raça Devon. Esta aposta presenciada pelo Vô
Lauro foi uma das muitas lá realizadas, envolvendo principal-
mente as famílias Vieira e Jacques.

Na ocasião o boi “Indu Serrano” (esquerda), de raça Devon, era


propriedade de Alberto Vieira Jacques e pesou 1228 kg após o
abate. Já o boi Zebu (direita), que se chamava “Mancha” e per-
tencia a Francisco Machado Vieira, pesou incríveis 1248 kg aba-
tido. [Colaboração do Sr. Cesar Vieira]

100 101
36 o morro lembrei de fazer um cigarro. Fiz um paieiro caprichado
e quando levei a mão no bolso... Quedele o isqueiro??
Ah, mas pinchei longe aquele cigarro e falei: “O Lauro não
O Remédio pra Deixar fuma mais!”
de Fumar Cheguei em casa e disse pra Diva:
- De hoje em diante você não vai mais me ver com cigarro
Dizia minha falecida mãe que, quando eu tinha dois anos, na boca!
queria mamar e ficava incomodando. A coitada tava ocupada, me Ela deu uma risada e eu falei:
deu dois tapas e botou pra fora de casa. Aí, de tarde, quando ela
- Você é casada comigo faz anos mas não me conhece!
me procurou pra me dar o peito, capaz que eu quis mais! Então
ela contava que foi assim que me desmamou, com dois tapas! Daí tomei o remédio do Dr. Ivo e, daquele dia em diante,
Mas a verdade é que eu mesmo me desmamei de birra, que eu nunca mais fumei!
com os outros não sou teimoso, mas quando é comigo mesmo se Sabe qual era o remédio do Dr. Ivo?
eu falei que faço é porque faço! O Ernesto tinha um compadre muito bêbado e decidiu
Depois de grande, quando me justei pra construir uma de tirar o vício dele. Foi em Veranópolis falar com o Dr. Ivo e
casa ali no Turvo, tinha dois piá que paravam lá e davam uma perguntou:
mão na construção. Um chamava Guilherme e o outro não me - O Sr. não sabe de nenhum remédio pra curar da bebida?
lembro o nome. Eram viciados a mais não poder no tal do cigar-
ro, mas eu não pitava e daí eles resolveram de me viciar... E eu, - Tem remédio sim.
na boa fé, caí! E ficou quieto. Até que o Ernesto pediu:
Cada deles puxarem a carteira pra pitar me ofereciam um - Mas e daí? Qual é o remédio?
e eu pegava. Foi indo que, quando viram que eu tava aviciado, - O capricho!
não me deram mais cigarro nenhum! Dali em diante me tocou
Foi o remédio que usei. Disse que não fumava mais e não
comprar! Porque o vício dá aquela tchanha, é cigarro, é cachaça...
fumei! A gente tem que se governar, não é? De que adianta falar
Você não queira nem saber! O sujeito vai tomando, tomando e
que não faz mais e depois ir lá e fazer?
quando vê tá entregue de bêbado!
E acertei porque a minha muié, a Diva, quem levou foi o
Mas então o causo é que desde que peguei fumar eu per-
tal do cigarro.
dia o avio. Tanto foi que um dia fui num campo que tinha arren-
dado dos Hoffman, tive o dia inteiro atrás do gado e perdi o avio
lidando na mangueira. Vinha embora de a cavalo e quando subia

102 103
37 visitar meu pai quando a gente ainda morava ali na Roseira. Coi-
sa que ele gostava era de contar os causo das degoladura que ele
tinha feito, que tinha degolado não sei quantos Chimangos e
A Revolução de 23 mais outro tanto de companheiros que tentavam fugir das peleia.
Dava risada o home e, de tão faceiro, chegava sapatear sentado na
cadeira enquanto falava!
Hoje eu tô com cento e três anos e não tenho dor, como
de tudo, tomo meu vinho de meio dia, uma cerveja nas festas e Hoje eu tenho toda esta idade e saúde porque Deus tá me
até aperitivo, se aparecer. Tirando os ouvidos e as pernas que não conservando, não é, que nem matar uma galinha eu matei a vida
ajudam, do resto eu tô novo. Tava pensando nisso esta noite e inteira. E o tal Mané Fredo, quando foi pra morrer, sofreu uma
lembrando do Mané Fredo. barbaridade. Terminou a vida acamado, gritando, dando coice e
mordendo a guarda da cama!
Quando eu era guri dos meus dez anos ainda, estourou a
tal da revolução. Antigamente vivia tendo estas anarquia, não é?
Só se acomodaram mesmo quando o Getúlio Vargas ganhou a
peleia em Itararé... Mas então, na época, eram os Ximango e os
Maragato que viviam anarquizando o interior. Apareciam aque-
les piquete e levavam de tudo: Gado, comida, dinheiro, cavalo
e se achassem um homem ou rapaz em casa obrigavam a virar
soldado do lado deles, senão matavam. Ih, mas quantos viviam Na realidade não houve nenhuma batalha em Itararé. Durante a
escondidos pelo mato pra escapar dos piquetes! revolução de 1930 havia muito estardalhaço e expectativa em
torno do encontro das tropas de Getúlio Vargas com as forças
Então aquele dia eu ia subindo a coxilha, costeando a leais ao então presidente Washington Luís, que deveria ocorrer
Restinga Seca, pra visitar minha avó Candinha quando escu- na referida cidade. É um fato curioso que o Vô Lauro mencione
tei aquela barulhada. Eram umas descargas que faziam Rrrrum! tal batalha e não saiba que, na verdade, ela acabou não acontecen-
Rrrrum! Depois mais fiquei sabendo que foi um tiroteio ali na do. Um acordo foi realizado a tempo e a prometida peleia acabou
Encruzilhada Velha, onde tinham feito uma emboscada. Peleia sendo “a batalha que não houve”. Provavelmente as notícias que
véia da tal revolução, não é? Ver os combates eu não vi, só escu- chegaram até ele, na época, mencionavam a iminência da batalha
tei... E também, morando naqueles fundão, nunca mais vi notí- e, em seguida, a tomada do poder por Getúlio. O fato de nenhu-
cia, só dali uns tempos, quando pegaram falar que tinha acabado ma peleia ter acontecido em Itararé deve ter passado batido.
os combates e terminado a baderna. A Batalha da Encruzilhada Velha consistiu em uma grande em-
Mas como tava contando, me lembrei do Mané Fredo, boscada e ocorreu em Lagoa Vermelha no dia 21 de setembro de
que era degolador. Eu era piá mas cheguei conhecer ele, vinha 1923 [1] [2] [5].

104 105
38 E é assim que existem as panelas de ouro, dos home do
tempo da revolução que esconderam o dinheiro que tinham, mor-
reram na peleia e deixaram umas fortunas enterradas até hoje!
A Panela de Ouro do - Mas Seu Lauro, e o que foi feito deste ouro todo do seu avô?
Mariano Pimentel Perdeu o mesmo que tivesse morrido na revolução! Ele
pegou aquele dinheiro mais uma tropa de gado gordo e foi pra
Você já ouviu falar nas tais das panelas de ouro? Clevelândia, no Paraná, pra comprar uma fazenda. Morreu na
viagem e consumiram com o ouro e com o gado do coitado!
Antigamente só o que circulava era moeda. Tinha as on-
ças de ouro, os patacão de prata e os troco de cobre. Moeda de ...
ouro era dinheiro grosso, compravam gado e fazenda, tudo com Um causo que contavam muito quando eu era criança era
as tal onça. Mas escute o causo do meu avô Zeferino Antunes: do João Mariano Pimentel, que teve as filhas sequestradas pelos
Quando ele foi pra guerra na tal revolução eu era gurizo- bugres.
te ainda. Nem lembro pra que lado ele se alistou, mas por sorte Antigamente os índios assaltavam as casas, matavam gen-
logo terminaram-se os combates e ele voltou pra casa. Parece que te, faziam arapuca, uma coisa fora de jeito. O que eles gostavam
estou vendo... Ele chegou de a cavalo, recebeu louvado de todo de levar era coisa de valor, coisa de ouro. Então diz que assalta-
mundo e foi direito buscar uma enxada. Nossa casa, na época, ram e levaram tudo que foi ouro da casa do Mariano Pimentel,
era de rachão de pinheiro, alta uns dois palmos do chão pra não junto com duas filhas dele.
entrar cobra e, na frente da porta da cozinha, tinha uma pedra Daí, quando ficou sabendo, o Mariano Pimentel saiu
que servia de degrau. Meu avô pegou, virou aquela pedra, cavo- pelo mato na caçada do grupo. Você calcule, naquela época era
cou um palmo nem isso e tirou de lá uma panela de barro cheia só mato e pinhalão, que jeito iam encontrar a bugrada? Mas di-
de moeda de ouro! zem que as meninas deixavam marca nas árvores onde os índios
Calcule só! Ele tinha reunido todo o dinheiro guardado acampavam... E decerto foi isso mesmo, porque depois de umas
a vida inteira e escondeu de medo que chegassem os piquetes na semanas de procura encontraram os tais índios. Mataram uns,
casa e roubassem. Minha vó ficou louca de braba, mas ele dizia fugiram outros e no fim recuperaram as filhas do home e mais
que ela não sabendo onde tava escondido era melhor, que assim todo o ouro dos índios.
ela não ia se apavorar e entregar. Agora se chegam pegar o véio Ora, o Mariano era rico uma barbaridade, pra ele não fa-
de jeito que morresse na revolução, tava perdido pra sempre tudo zia falta aquele ouro. Pegou e enterrou o tudo lá perto de onde
aquele ouro! hoje é o André da Rocha, que era onde ele morava.

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“Este ouro quem há de achar vai ser um plantadô”, ele dizia.
E deve de estar enterrada até hoje a panela de ouro do
39
Mariano Pimentel!
O Capitão Inacinho

Era afamado naquele tempo o tal do Inacinho. Era um


negro que lutou na revolução não sei pra que lado e voltou ca-
pitão. Decerto teve muito valor nas peleia, não é? Não sei bem
como foi, só sei que ele foi com uma mão na frente outra atrás e
voltou rico e capitão. Mas era cheio das manias, não havia quem
aguentasse o home!
Ele casou-se com uma moça bem branca, bonita que era
um florão! Contam que ele se fardava com o traje de capitão,
encilhava um cavalo branco que ele tinha e ficava desfilando na
frente de casa. Fazia aquele cavalo trotear, fazia ele fastrar, saía
correndo e esbarrava bem na frente da porta, onde a muié dele
tava assistindo:
- Diga lá: Quem sou eu aqui?
E ela sempre respondia:
- É o Sr. Capitão Inacinho!
E diz que ficava fazendo aquilo e perguntando pra coita-
da. Até o dia que ela foi garrando raiva. Tava ele fazendo aquela
peça de novo e perguntou:
- Quem sou eu aqui?
O caso do rapto dos familiares de Mariano Pimentel, ocorrido em - É um negro burro, igual um cavalo com estas bobagem!
1851, é um fato verídico da história de Lagoa Vermelha. Exis-
Mais que depressa ele apeou do cavalo, ficou de quatro pé
tem diversas versões e o causo do Sr. Lauro apenas se aproxima
dos acontecimentos verdadeiros, que são descritos com detalhes
e começou a comer a grama da frente da casa dizendo sem parar:
nas obras de Fidélis Dalcin Barbosa [2].

108 109
- Sou burro, sou preto, sou cavalo, sou preto, sou burro, - Mas que barbaridade, como vocês me aprontam esta pro
sou cavalo! Capitão Inacinho? Onde já se viu um serviço destes? O Sr me
E vá pastar! desculpe Seu Capitão, estes calaveira não arrespeitam mais nada,
nem home que teve na revolução!
Ficou tão brabo que fechou-se num quarto por três dias e
não saía nem pra comer! ...
... Outra feita o Capitão Inacinho mandou os peão dele
carnearem uma vaca gorda na entrada do inverno. Pegavam e
Naquele tempo não tinham cercas e pra apartar as reses
charqueavam a vaca inteira, que recurso tinha senão o charque?
levavam o rebanho pro rodeio e os cavaleiros tinham que ir cer-
Estragava tudo, não é? O que assavam na hora pra comer era
cando e apartando. Lida bem braba, tinha que ser uns índio meio
algum miúdo e a costela, só que que não deixavam muita carne
bão na encilha pra lidar! E o Capitão Inacinho, que era cheio das
nela porque tiravam aquela manta de cima pra charquear tam-
manias, quando alguém botava o cavalo errado e uma rês escapa-
bém. Ia pro fogo a tal da costela com bem pouca carne.
va já azedava e mandava:
Então, feito o serviço, foram almoçar. O Negro era rico
- Deixe, deixe, deixe, deixe! Não, não, não, não! Deixe dei-
e caprichoso, botava prato e talher na mesa e a peonada comia
xe deixe, deixe!
junto. Tavam ali comendo aquele assado quando um peão pegou
Aquele dia não deixava mais lidar com o gado, fazia os uma ripa de costela na mão e inventou de dizer:
peões voltarem no outro dia, começar a lida de novo!
- Costela, unha com ela!
Aconteceu então dele comprar um gado dum fazendeiro
Ah, mas foi pra já dar um dos ataques de mania do Ca-
que conhecia esta mania. O home avisou os peão dele:
pitão Inacinho!
- Hoje o Capitão Inacinho vem buscar umas vacas. Vocês
- É! É! É! É! É! É! Costela unha com ela! Tire, tire, tire,
vão apartar e se o negro começar a se enjoar com “deixe, deixe”
tire, talher não precisa, tire, tire, tire! Unha com ela, costela unha
vocês me finquem a açoiteira no lombo dele de deixar brasino!
com ela, tire, tire, tire!
Ah, mas não deu outra! Cerca daqui, cerca dali uma vaca
A muié recolheu os talheres e tiveram que terminar o al-
escapou. Na mesma hora já o Capitão Inacinho começou com
moço comendo com a mão.
“deixe deixe” e “não não”. Chegaram aqueles gaúcho e sentaram
o laço nele, que se mandou correndo pra casa do tal fazendeiro.
Depois desta a peonada apartou o gado e trouxe até na
casa, onde o patrão já estava esperando, o negro do lado com um
beiço de quase um palmo.

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40 não é? E ele foi naquela lida, tomando e ajudando a tarde inteira.
Na saída o dono da casa deu um pedaço de carne pra ele levar,
que onde viu chamar um pra ajudar e não dar nada, não é? Ele
Os Causos do Miltão pegou aquela bolsa e amarrou bem num tento dos arrelhos, pra
não perder na estrada.
Ali no São Luiz mora o Milton Bernardi, conhecido por Vindo embora, passou na frente da bodega do Zeca, ali
Miltão porque é um baita dum home, deve ter perto de dois perto da Restinga Seca, onde decerto viu algum conhecido e
metros de altura. Ele é casado com a Marli e os dois vivem aju- apeou pra contar um causo, coisa e tal. Acabou que anoiteceu
dando na capela da Oliveira, onde eu sou sócio, ele de assador e tomando trago e trovando no bolicho, que pra montar de novo
ela lidando na missa e na cozinha com a muierada. Hoje eu ando no cavalo não foi fácil. Veio despacito - que é coisa engraçada,
meio surdo, mas me lembro bem, uia Miltão, contando causo e bêbado dirigindo de carro corre que nem um louco e bêbado de
piada pra fazer aquela gente tudo dar risada! Não há quem possa a cavalo é o contrário, vai bem devagarzinho! – e chegou em casa
com o home! escuro, já alta madrugada.
Cada festa na Oliveira tá lá ele, faceiro, trovando, con- Ia pra entrar em casa e dormir quando lembrou da carne.
tando mentira e tocando gaita. É gaiteiro uma barbaridade, não Ora, você calcule, se nem desencilhar o cavalo tinha se encora-
é qualquer um que floreia uma gaita que nem ele. Me alembro jado, capaz que conseguiu desfazer a amarra pra soltar a bolsa
dele dizendo que até no tal gaitaço em Almirante Tamandaré o dos tentos! Tava osco o causo do Miltão: Se deixasse a carne ali,
home teve. Ele contava que tinha não sei quantos mil gaiteiros estragava. Pra levar a carne pro freezer, tocava cortar e estragar
lá e mesmo no meio dum entrevero destes o Xirú Missioneiro o tento.
tocou junto com ele: Por fim, no outro dia cedo, a Marli encontrou a bolsa de
- Tava o Xirú Missioneiro lá, sentado tocando gaita e uma carne junto com arreios e tudo lá dentro do freezer!
roda de gente escutando. Aí eu peguei, entrei no meio da roda e
comecei a tocar também. Me olharam meio atravessado, mas que
toquemo junto nós toquemo!
...
O município de Almirante Tamandaré do Sul realiza, desde 2002,
Agora pra contar mentira igual não existe outro. Escute uma reunião de acordeonistas que rendeu ao município a alcu-
só o causo que ele contou quando veio jantar lá em casa um dia. nha de “Terra do gaitaço”.
Diz ele que tinha ido ajudar numa carneação na casa de Osco: pelagem castanha escura, quase preta. Também pode se refe-
um conhecido, que lidar com carne é com ele também. Nas car- rir a uma situação complicada (como é o caso).
neação sempre tem uma caipira, um aperitivo pros carneador,

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41 Daí durante a noite eu ficava construindo o caixão, não é?
E a mulherada ficava rezando e velando o corpo, mas os home
tudo iam pros galpão jogar cartas com algum candeeiro. E vá ba-
Oito Onças cará até de manhã cedo! Não tavam nem aí pro falecido, velório
era churrasco e jogatina!
Quem me contava este causo era meu falecido sogro. Mas o bonito era que o Adolfo tinha uma muié que vivia
Contava e dava risada! Uma das filhas dele era a Otalívia, na resmungando e reclamando na frente das visitas, e ele sempre
época uma moça muito atipada, casada com o Ernesto. Diz que respondia:
o Ernesto era muito amigo do Trajano Mendes, um solteirão - Óia muié, que você dá um bacarázinho...
que vivia sozinho. Aí certo dia o Adolfo, cunhado do Trajano, Sentada na Fortuna
arrumou uma prenda pra casar com ele, chamava Verônica. Pro
home ter uma companhia, não é?
Pois casou-se o Trajano com a tal Verônica, mas a moça Tinha um negro que era peão de estância de um fazen-
não era das mais bonitas e, numa visita pro Ernesto, ele veio com deiro rico ali no Tupinambá e seguido tropeava gado gordo do
a proposta: patrão lá pra São Leopoldo. Numa destas idas conheceu uma
alemoa louca de bonita, que era formada professora e achou bom
- Ernesto, vamo fazê um negócio, troquemo de muié que de casar. Fez o seguinte: Arrumou uma foto da sede da fazenda
eu te volto oito onças de ouro! do patrão e foi de pilcha nova vender a tropa do tal fazendeiro.
... Ah, chegando lá todo arrumado, cheio de gado e mostrando a
Mas por falar no Adolfo, lembrei dum outro causo dele. foto da fazendona como se fosse dele, a moça aceitou, não é?
Bacará era um jogo de cartas muito afamado que era jo- Pegaram, casaram e vieram morar na Lagoa. Ah, mas quê!
gado nos galpões das estâncias durante as madrugadas dos ve- Quando a coitada chegou viu que ele morava era de favor num
lórios. Eu nunca pude jogar porque era carpinteiro e passava a casebre véio... Mas daí já tava casada, o remédio era aceitar e
noite inteira construindo o caixão do morto. acostumar.
Era serviço! Pregando e plainando tábua só com luz de Só que o azar da alemoa era tanto que o negro véio não
vela... Quando tinha sorte, tinha um lampião; Quando tinha era muito de trabalhar, sempre na miséria, bebia uma barbari-
bastante sorte, um lampião e um ajudante. Virei alguma noite dade e ainda batia na coitada. A pobre vivia desarrumada, com
fazendo caixão, minha nossa! Mas nunca cobrei nada pelo servi- roupa véia, mas era bonita a mais não poder! Loira, alta, era um
ço, porque a família já tinha tido prejuízo que chega. Além de ter florão! Acho que se ela se arrumasse bem ia ser a mais bonita da
morrido um da família ainda tinham que dar uma rês pra todos Lagoa Vermelha!
que apareciam no velório comerem!

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Então um dia eu e o meu irmão Antoninho tava passando
de a cavalo na frente da casa do nego véio e vimos a loira lá, sen-
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tada num degrau de pedra da porta do casebrezinho, chorando.
Nunca esqueci. O meu irmão pegou e me falou: O Profeta São João Maria
- Você veja só Lauro, uma mulher destas chorando por
causa da miséria e sentada em cima duma máquina de fazer di- O último profeta que teve no mundo foi o São João Ma-
nheiro... ria, que andava aqui pela Lagoa Vermelha. Era um véio que an-
dava sempre com a mesma roupa esfarrapada, caminhando por
aí, pelos mato, dum lado pro outro. Ele era profeta que fazia mi-
lagre, curava gente e dizia como ia ser as coisa no futuro, não é?
Chegava nas casa e não aceitava poso nem comida, só se dessem
couve pra ele levar. E ia comer sozinho, no mato! Vivia só de
couve o São João Maria, calcule!
Ah, e dormia pelo mato também, fizesse o tempo que fos-
se não aceitava posar em casa alheia. Me lembro que contavam
duma vez que tava fazendo as oração no mato com uma gente
que veio ver ele e se arrumou uma chuva no querer anoitecer. Aí
convidaram pra ir pra casa se escapar da chuva e ele disse:
- Vocês quiserem ir podem ir, mas aqui não chove!
Choveu derramado a noite inteira e daí no outro dia cedo
foram ver como tava o São João Maria... Diz que a roda onde ele
tinha passado a noite não choveu mesmo, tava bem sequinho!
Também era comentário que uma vez ele teve lá nos Eva.
Os Eva eram uns baita capitalista, tinham um mundo de mato e
campo que chegava até aqui atrás de casa! Então diz que o São
João Maria deu uns tição que ele usou pra fazer fogo pro véio
Jango Eva acender quando se armasse tormenta que ela desviava.
Eu nunca vi os tal tição, mas enquanto os Eva foram vivo nunca
deu tempo feio nem vendaval de fazer estrago aqui por perto!

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Outro causo foi quando ele chegou na casa duma muié
e ela resolveu dar uma galinha pro São João Maria. Deixou ele
esperando e foi buscar no galinheiro no fundo do terreno atrás
da casa, mas a galinha saiu correndo e ela disse:
-Uh bicho do diabo!
Aí quando conseguiu pegar a galinha e levou pra ele, o
home não aceitou:
- Dê este bicho pra quem você disse que era o dono!
Tinha quem fazia troça do São João Maria, que era men-
digo e coisa tal, mas isto é gente sem fé, porque foi Deus que
mandou ele no mundo. Calcule, diz que pegaram, mataram e
quando viram tava vivo de novo o home! Tiveram que matar
duas vez e ainda não morreu, contam que foi simbora não sei pra
onde... Mas tem o túmulo dele ali na reta da saída quem vai pra
Passo Fundo e cada vez que passo lá me lembro dos causo das
previsão dele. Fez umas quantas previsão do futuro de como que
ia ser e acertou tudo!
O Monge São João Maria de Agostinho é um dos mais ímpares
Uma que tô sempre lembrando era da profecia de que ia personagens da história e do folclore lagoense. Muitos historia-
chegar o dia que nós ia saber quando era inverno e quando era dores discutem a origem e a veracidade dos relatos sobre o mes-
verão pelos mês e não pelo clima. E não temo neste tempo que mo, mas o fato é que se tratava de um nômade que vagava pelo
ele falou?? Ora, este ano o inverno nem geada não teve e no forte interior fazendo previsões e supostos milagres. Teria sido mor-
do verão vem chuvarada e vento frio que tenho que botar casaco to degolado durante a Revolução Federalista de 1893 e no dia
e ficar do lado do fogão! seguinte fora encontrado vivo. Outras lendas falam ainda que
ele foi morto uma segunda vez pelos mesmos meliantes, mas
Nunca na vida que imaginei que eu ia alcançar os tempo
reapareceu vivo novamente. Existe um túmulo, próximo da BR
das previsão do profeta São João Maria! 285, na saída de Lagoa Vermelha para Caseiros, que acredita-se
ser o dele. Em diversos outros municípios brasileiros também
existem relatos sobre o andarilho profeta. [1] [5]

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As Mentiras do Causos Curtos!
Véio Arcêncio

O Arcêncio Mendes, meu sogro, era brabo que nem uma Vomitou um Guaipeca
onça, mas gostava muito de inventar umas mentira pra brincar
com as pessoas. Êta home fora de série!
O tal do Zé Gordão gostava de um carteado que nossa.
Chegou pra coitada da Bertolina, uma senhora já meio Ele e os filho eram loco por jogo de carta, passavam jogando
de idade que era duma família muito humilde, e inventou que o direto, coisa fora de série. Única coisa que ele gostava mais que
governo ia baixar uma lei de mandar tudo que era gente pobre jogo era de bebida. Era bêbado no extremo o home, chamavam
pro Mato Grosso. Falar em Mato Grosso na época era o bicho, ele o “chefe das bebida”.
pessoal tinha medo só de escutar!
E o povo conta que uma vez ele tinha tomado demais e
Aí a coitada da véia se assustou: tava vomitando, escorado numa cerca, e de tão mal chegava estar
-Ó! Ó! Mas é capaz que eu vá! Não fiz nada na vida por de olho fechado. Veio um cachorro ali no vomitado e quando o
aqui, que os mato são fino, que dirá com mato grosso! home abriu os olhos viu o bichinho e disse:
... - Mas onde é será que eu andei comendo guaipeca??
Outra mentira que ele aplicou foi na negra Antoninha.
Era uma véia que morava por perto e o Arcêncio caçoava dela
que não era pouco.
Quando pegou vir as tal das máquina, começou a aparecer de
tudo que era tipo, fabricando tudo que era coisa... e até agora, só foi
desenvolvendo! Tá duma maneira que hoje tem máquina pra tudo!
Mas então, na época, o Arcêncio pegou e falou pra véia:
- Óia, agora tão fazendo as tal máquina aí e vai sair uma
de fabricar gente!
E ela:
-Ora! Mas não há de ser bão que nem antigamente!

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Briga de Facão Encuierado para Fazer Amizade

Meu pai tá enterrado lá no cemitério do Turvo. Hoje é Causo brabo foi o dum falecido amigo meu, o Tanagildo.
um baita de um cemitério, mas diz que começou só com duas Dá uma coisa só de lembrar. Era um homem divertido que nossa!
pessoas. Eram dois home que se estranharam em uma reunião, Só pra se ter uma ideia, logo depois que ele enviuvou ficou mo-
mas daí invés de brigarem fizeram um trato: Não desmanchar rando solito com um cachorro e um gato. Daí teve uma vez que
com a festa. brigaram os bichos e ele pegou e amarrou os dois juntos. Deixou
Ah, mas combinaram de se acertarem no outro dia, numa eles encoleirados e ficou dando sermão:
briga de facão. - Nós moramos junto, temo que ter amizade!
Ora, diz o causo que chegaram no lugar marcado, ataram Mas foi triste o fim do pobre do meu amigo, acabou se
os cavalos numa árvore e se trançaram no facão... Daí iniciou-se enforcando. Uma barbaridade! Dizem que tinha brigado com os
o cemitério, porque encontraram os dois mortos e já enterraram filhos por causo de um guri que ele teve com outra muié depois
eles ali mesmo. de viúvo... Só sei que o desgosto foi tanto que o coitado terminou
Eu calculo o que não pensaram aqueles cavalos, ali, amar- fazendo o que fez, não é? É como dizia o compadre Henrique:
rados e assistindo tudo estas barbaridade! “O coração de um homem é uma estrada intransitável”. Não tem
como saber o que passa na cabeça de cada um.
Daí então eu tava por casa lidando quando chegaram de
a cavalo e deram a notícia que tinha morrido o home. Eu larguei
o serviço e fui pra onde ele morava, perto da estrada geral, quem
vai pro Turvo. Cheguei e já me pediram pra cuidar o morto até
irem buscar a polícia. Eu prontamente aceitei, não é? Ora, mas
demoraram um eito, e eu ali com o home dependurado... Te con-
to que deu uns arrepio quando anoiteceu naquele capão de mato
e eu tava solito com o morto ali!
Ah, mas pedi licença pro falecido e fui esperar os home
voltarem no alto da coxilha!

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Um Patacão Cada Laçaço Avião Perigoso

O Chico Telles era irmão da minha falecida avó Candi- Os primeiros avião que começaram a cruzar no céu aqui
nha. Ela sempre contava este causo. Ele era capitão da brigada na Lagoa fizeram um sucesso, o pessoal parava tudo pra ficar
provisória que fizeram por causa da revolução, ele e um tal de olhando. Teve um dia que Guilherme Antunes, o home que en-
Onorino. Mas já tavam por casa de novo, que tinha se acabado controu a assombração da Restinga Seca, tava carpindo uma la-
o salseiro. voura lá num morro bem alto. Ali perto ficava a casa dele e da
Diz que tavam os dois um dia jogando carta num bolicho, minha tia Matilde, que eles eram casados.
se desentenderam e começou a briga. Aí o Onorino foi provocar Diz que ela tinha ficado fazendo almoço quando passou
o outro, dizendo que ele era frouxo, e disse: um dos avião... Mas por quê! A tia Matilde ficou quase louca
- Te pago um patacão pra cada laçaço que você conseguir vendo o tal avião indo na direção do morro:
me dar! - Minha Nossa Senhora! Vai acertar bem na cabeça do
E o Chico levantou o relho e disse: Guilherme que tá lá em cima!
- Não se preocupe que não te custa nada!
E desceu o laço no tal Onorino. E foi tanto que ele aca-
bou pegando o revólver e passando fogo no Chico pra poder se
escapar!

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45 - A televisão vai ser uma caixa assim, meio quadradota,
vai aparecer a pessoa falando e se mexendo e vamos escutar tudo
que ela fala.
A Chegada da Aí - isso eu me lembro bem de ter dito pro home - falei
Tecnologia que queria ver pra crer!
Pois e veio! Mas bah, veio muito mais coisa ainda! O tal
A tal da eletricidade hoje, quando falta, todomundo re- do telefone quando começaram os comentários era coisa de ou-
clama, ninguém vive mais sem. Mas eu só fui ter luz em casa tro mundo e hoje quem que não tem? Da minha época pra cá
quando tinha meus oitenta anos! A pobre da Diva, que morreu só não inventaram como fazer velho ficar novo e como trazer os
nova por causa de andar pitando, durou só seis meses depois da falecidos de volta!
gente ter luz em casa. Nossa vida inteira foi na base do lampião
de querosene, fazendo charque e guardando a carne nos latão
de banha pra não estragar, tomando banho gelado nas sanga...
E hoje, se falta luz um dia que eu perco a novena na TV, já acho
ruim. A gente acostuma fácil com o que é bão, não é?
TV também foi coisa que eu só tive depois de velho. Eu
conto pra você, o primeiro rádio que eu vi era moço já. Eram uns
baita aparelho tocado à bateria e ela só durava quatro ou cinco
dias, aí tinha que carregar de novo. Uma incomodação, sem falar
que era coisa muito cara!
O falecido Ernesto pagou oito vacas por um dos primei-
ros que apareceu. Vinha junto com um cata-vento que ele ins-
talou pra carregar a bateria. Um monstro preço e ainda se não
tivesse vento, não tinha onde carregar a bateria. O tal Gino, que
era farmacêutico em Ibiraiaras, comprou um mais pequenininho,
uma novidade!
Por último, então, que vieram os rádios à pilha e daí me-
lhorou bastante. Era mais barato só trocar a pilha. Lembro que
quando eu e a minha muié, a Diva, compramos um destes o ven-
dedor falou que logo ia vim a tal da televisão:

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46 Teixeira Gomes. Servi quinze dias ali em Lagoa mesmo, um trei-
nozinho só pra dizer que não tivemos que fazer nada.
Lagoa mudou da água pro vinho! A cidade era diferen-
A Vida do Seu te uma barbaridade, um descampado! Quando eu ia pra lá, já
Lauro Gomes home feito, lembro bem de passar a noite no hotel do Bepe Ni-
colodi, que tinha uma estrebaria pra deixar os cavalos. Calcule
só, uma estrebaria no centro da cidade! Até a prefeitura era de
Quando é que eu ia imaginar de ver o que eu tô vendo aí madeira e tinha um tronco atravessado em duas forquilhas pra
hoje em dia? amarrar os cavalos... Hoje é cada baita prédio e carro que não
Eu sou de mil novecentos e doze, me criei no tempo da tem mais onde estacionar!
miséria, do cargueiro, do cavalo, de botar um saco na garupa e ir no Mas como ia contando, desde novo eu sempre trabalhei,
moinho pra poder trazer farinha de trigo e de polenta pra casa... foi só poder com o peso da enxada tava carpindo e ajudando
no tempo da falta de recurso, sem estrada, sem médico, nem rádio meu falecido pai. Na Ibiraiaras eu me justava por dia abrindo
não tinha. Até banheiro é coisa que veio faz pouco, na minha épo- mato pra lavoura, carpindo, plantando e colhendo... Isso até co-
ca era banho de sanga e as necessidade se fazia no mato. meçar de ajudante na carpintaria. Foi com ela que fiz minha vida,
O mundo hoje não é mais o mesmo. Precisava você ter porque depois que virei carpinteiro saí pelo interior construindo
visto! casas. Comprei uma colônia de terra só batendo martelo!
Usei a mesma roupa - um vestidão azul - até meus cinco Aí, quando casei, troquei de profissão. Ficar que nem ci-
anos. Conheci meu bisavô de cento e cinco anos andando a cava- gano acampado dum lado pro outro e deixar a muié sozinha não
lo. Me criei pelos mato, pelos campo... Brinquedo não tinha, era dava. Meu dinheiro comprei tudo em gado, cheguei a ter 200
só pedaço de osso fazendo de conta que era minha tropa de gado. cabeças e campo arrendado por toda parte! Pra quem começou a
Daí meu pai vendeu tudo e foi pro povoado do Carreiro, vida com uma mão na frente e outra atrás é alguma coisa, não é?
que hoje é Ibiraiaras. Fomos lá pra poder estudar, que profes- Mas também não amanhecia na cama, vivia na estrada cuidando
sor não tinha em outra parte. Lembro bem que só tinha duas do rebanho.
casas de comércio: A do Antônio Stella e a do Antônio Fabris. Uia que trabalhei que não foi pouco! Lidei trepado cons-
Mas vá em Ibiraiaras pra ver o tamanho que está hoje! Nem de truindo casa e com gado gavião... Caí algum tombo, mas nunca
longe lembra aquelas casinha de madeira no meio do mato que quebrei nada! Me entreguei a Deus desde novo e ele cuidou de
eu conheci! mim igual ele cuida de criança. Quem nem diz aquele ditado:
Meu nome era só Lauro até que eu fui servir a pátria. Lá “Criança e borracho Deus põe a mão por baixo”. E é uma baita
me fizeram arrumar os documentos com o sobrenome do pai: verdade, que nunca vi criança nem bêbado cair e se quebrar!

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Minha primeira casa foi uma casa-galpão, que como o só começou ir pra frente quando eu já tava velho, que os gringos
nome diz era metade casa e metade galpão. Desmanchei e man- pegaram plantar a tal da soja. Bem dizer terminou o gado na
dei fazer outra porque ficava um cheiro que não havia quem dor- Lagoa Vermelha que tanto tropeiro tinha antigamente!
misse de noite. Pra você ver: quando comprei o sítio aqui na Ro- Hoje a verdade é que o mundo tá muito mais fácil. Tem
seira, faz sessenta anos, plantei um pinhão pensando algum dia máquina pra tudo que é coisa. No meu tempo, quando morria
meus netos terem grimpa pro fogo e pinhão pra juntar do lado da alguém, tinha que sair de a cavalo avisar os vizinhos que tinha
casa. E não é que o pinheiro que eu plantei me dá pinhão todos falecido fulano de tal... Notícia de longe levava semanas pra vim,
os invernos já faz anos? que o carteiro, o Antônio Estafeta, imagine só, fazia a linha daqui
Lidei na lavoura e com o gado até meus noventa, quando até Porto Alegre de a cavalo! E hoje tem cada modernidade que
caí um tombo do cavalo e percebi que não era mais moço. Me nossa mãe! O meu neto foi estudar uns tempo na Espanha e eu
acomodei, agora meu trabalho é só rezar pro Divino Pai Eterno. via e conversava com ele no tal do computador! Ele falava lá, eu
Mas até hoje sonho que estou plantando milho e cortando trigo respondia daqui. É de se acreditar numa coisa destas?
de foicinha! Mas igual que a vida tá mais fácil também tá mais difícil,
Eu vi duas revolução e duas ditaduras. Quando era piá porque hoje a bandidagem tá fora de jeito... Ninguém mais tem
escutei as descarga de tiros da peleia que teve dos Maragato consideração por ninguém. Antigamente os vizinhos se estima-
com os Chimango ali na Encruzilhada Velha; Depois Getúlio vam, hoje nem olhar na cara se olham. Sem falar que tem roubo
Vargas tomou o poder e acabou com aquela anarquia de anti- e sem-vergonhice uma coisa de louco!
gamente, porque viviam se matando e incomodando. Getúlio Me lembro do meu pai fazendo negócio no fio do bigode:
tomou conta depois que ele ganhou a peleia em Itararé e foi um Cada um arrancava um fio do próprio bigode e colocava numa
sossego! Terminou-se a política e o povo se acomodou. Foi um caixinha de fósforos. Valia mais do que estar fazendo contrato
paraíso, os negócios só foram pra frente... A vida foi muito boa, hoje em dia, o pessoal tinha honra. Podia um dos lados se arre-
tanto é que ele largou de ser ditador e o povo votou nele pra pender do negócio mas honrava até o fim!
presidente! Se elegeu pelo voto e trouxe as tal lei trabalhista.
Agora tá virado numa coisa, cada qual quer passar a per-
Foi ele quem criou estes direitos tudo que tem aí hoje, apo-
na no outro... Tem muito homem ruim na terra, gente de mau
sentadoria, salário mínimo... Antes quem trabalhava não tinha
pensamento, sem Deus no coração! Tão que nem joio no trigo, os
nada de garantia, não é?
que não prestam aí no meio da gente de bem só pra incomodar!
Daí o Juscelino Kubitscheck mudou a capital lá pra Bra-
Então eu carrego este orgulho de ter feito tudo certo na
sília. Foi um tempo brabo, tudo que era dinheiro que a gente
vida. Nunca traí minha muié, nunca enganei ninguém, nunca
fazia ia pra tal da construção da capital. Eu vi, não sei de que
tive inimizade e nunca matei nem uma galinha. Estou com cento
maneira, venderem a Lagoa Vermelha de pedacinho em pedaci-
e três anos e Deus vai me conservando até que ele quiser.
nho. Nova Prata, Sananduva, Paim Filho, Capão Bonito... Lagoa

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Que nem o meu falecido vizinho Chico Lourenço me
perguntou quando eu tava fazendo aniversário de noventa e cin-
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co anos. O pessoal comentava que eu ia chegar nos cem, não é?
- Mas e quando chegar nos cem, vai pra onde Seu Lauro??
Linha do Tempo:
- Vou pra cento e um, ora! Mais de um Século
Acompanhando a História

1912 - Nasce o Sr. Lauro Gomes.


- Naufrágio do Titanic.
1913 - Henry Ford cria o sistema de produção em massa (For-
dismo).
1914 – Início da Primeira Guerra Mundial.
1918 - Pandemia de Gripe Espanhola.
1922 - Realizada a Semana de Arte Moderna em SP.
1923 - Revolução Federalista no RS.
1926 - Invenção da televisão.
1928 - Descoberta da Penicilina, o primeiro antibiótico.
1929 - “Quinta Feira Negra” e a grande depressão econômica
de 29.
1930 - Revolução de 30 e início da Era Vargas.
1932 - Revolução Constitucionalista em SP.
- Mulheres brasileiras ganham direito ao voto.

O Vô Lauro faleceu em 07 de Novembro de 2015 em Lagoa Vermelha. Mes-


1937 - Inicia a ditadura de Getúlio Vargas (Estado Novo).
mo internado e desenganado ele seguia bem humorado, contando seus cau- 1939 - Início da Segunda Guerra Mundial.
sos às enfermeiras que lhe atendiam e fazendo planos para o futuro.

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1940 - Criação do salário mínimo. 1981 - Primeiro caso de AIDS é registrado.
1942 - Os Réis, moeda em circulação desde 1822, são substituí- 1984 - Campanha Diretas Já.
dos pelo Cruzeiro.
1986 - Lançamento do Plano Cruzado.
1944 - Pracinhas brasileiros combatem na Itália.
1988 - Promulgada a constituição brasileira.
1945 - Bombardeio atômico em Hiroshima e Nagazaki. - André da Rocha e Caseiros emancipam-se de Lagoa
Vermelha.
1946 - Criado o primeiro computador digital eletrônico.
1989 - Queda do muro de Berlim
1948 - Fundado em Porto Alegre o primeiro CTG.
- Proposto o sistema world wide web (Internet)
1950 - Brasil sedia a Copa do Mundo e perde a final para o - Cruzado Novo substitui o Cruzado.
Uruguai.
1990 - Pela terceira vez o Cruzeiro torna-se a unidade monetária
1954 - Suicídio de Getúlio Vargas. brasileira.
- Sananduva emancipa-se de Lagoa Vermelha.
1992 - Impeachment de Collor.
1958 - É realizado o primeiro Rodeio Crioulo Gaúcho, no mu-
1993 - A moeda brasileira passa a ser o Cruzeiro Real.
nicípio de Vacaria.
1994 - É lançado o Plano Real.
1959 - Machadinho e São José do Ouro emancipam-se de La-
goa Vermelha. 1996 - Nasce a ovelha Dolly.
- Capão Bonito do Sul emancipa-se de Lagoa Vermelha.
1960 - Inauguração de Brasília.
2001 - Atentado às Torres Gêmeas.
1964 - Inicia a ditadura Militar.
- Barracão emancipa-se de Lagoa Vermelha. 2014 - Brasil sedia a Copa do Mundo pela segunda vez e leva
7x1 da Alemanha.
1965 - Ibiraiaras emancipa-se de Lagoa Vermelha.
2015 - Falece o Sr. Lauro Gomes.
1967 - O Cruzeiro é substituído pelo Cruzeiro Novo.
1969 - Ida do homem à Lua.
1970 - A moeda brasileira deixa de ser o Cruzeiro Novo e volta
a ser o Cruzeiro.
1971 - Aparição do e-mail.

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48 Falando sobre este gaúcho
Um homem de boas maneiras
Vô Lauro Sua querência por muitas décadas
A tal fazenda da Roseira

Mil novecentos e doze E como católico muito devoto

Início do século passado Da Nossa Senhora da Oliveira

Nascia Lauro Teixeira Gomes


Assim, mais tarde, registrado. Conviveu dos anos vinte e três a trinta

Quem com ele conviveu Em período de suspense e preocupação

Verdadeiros privilegiados Com Maragatos e Chimangos

E que fazem questão de destacar Numa sangrenta revolução

Do vô Lauro, o seu legado Uma ignorância descabida


Em peleia de fuzil, adaga e facão

Naquele referido ano A maior vergonha do nosso Rio Grande

O mundo teve algum pique Ensanguentando o nosso chão

De positivo o nascimento deste taura


Este foi o fato mais chique E quando passou a reinar a paz

Já de negativo em mil novecentos e doze Se tocou a vida em frente

Foi o naufrágio do Titanic O Lauro embora ainda uma criança

Tragédia de grandes proporções Juntando a fase de adolescente

No mundo causou um baita chilique Pelos seus pais Tarciso e Diva


Já foi colocado no batente

Deixamos o Titanic de lado Para ajudar nas despesas da família

Para um destaque de primeira E foi o caminho pro Lauro se tornar gente

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No manuseio do arado e da enxada E com o resultado das marteladas
Da Roseira ao São José do Carreiro Tornou-se quase um fazendeiro
Com o sol de cozinhar os miolos
Ou com geadas, serração e aguaceiro Quase cento e quatro anos
Até optou por ter vida própria Deus lhe presenteou com esta idade
Em busca de seu próprio dinheiro Apanhou fazes em sua vivência
E o destino já lhe presenteou Usos e costumes da antiguidade
Com o ofício de carpinteiro E a virada do século e milênio
Que a evolução trouxe muita modernidade
Casa, galpões e igrejas Das coisas ruins ficaram as lembranças
Feitas com esmero e perfeição E, das boas, a saudade
Desde as derrubadas de pinheiros
Na base do serrote de mão Até para o próprio casamento
Já para os defuntos o carpinteiro Lauro E a história é testemunha do que eu falo
Dizia até que fazia questão O Lauro foi ao encontro da noiva
De presentear o falecido No lombo do seu cavalo
Com o feitio do caixão Não haviam estradas, somente picadas
Rios sem pontes, barrocas e valos
Desde os Réis, Cruzeiros e Reais A para se fazer léguas de distância
Foi juntando o seu merecido dinheiro Se saía no cantar do galo
E assim foi enchendo a guaiaca
O tal de Lauro Carpinteiro Cavalos, carretas e charretes
Sem falar quando solicitado Eram a verdadeira condução
Também dava uma de marceneiro O automóvel aqui quase ninguém tinha
Para se ter estrada, só no arado e picão

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Era o serviço para se pagar imposto Em períodos de poucos recursos
Era lei que rezava na constituição Tempos sofridos, quanta dificuldade
E se quisesse claridade à noite Enfim, a chegada do tal progresso
Era vela de cera e lampião Transporte, educação e eletricidade
E por fim a chegada da Internet
Conviveu com duas ditaduras Que aproximou toda a humanidade
Estado Novo e Militar, foram dois momentos
Haviam políticos sérios O vô Lauro foi chamado
Mas também tinha os de mau pensamento Para a morada no reino da glória
E os que trabalhavam em favor do povo Vamos tirar proveito dos seus ensinamentos
E os que só pensavam em seus proventos Valorizando a sua invejável memória
Foram épocas em que fio de bigode Quem está seguindo seus conselhos
Valia mais que documento Que recebam como vitória
Herdado de quem teve o privilégio
Para quem viveu em época de respeito De fazer parte da história
De casa se trazia a educação
Até se apavorou com as mudanças do povo Ficamos na lembrança do vô Lauro
Meu Deus, quanta transformação Dos causos com boas gargalhadas
As leis só ficam nos papéis Nas festas de churrasco bem gordo
Perdeu-se o valor da constituição E as rodas de cervejadas
Houve sem-vergonhismo e falta de palavras Pois para quem só cultivou amizades
Com desrespeito, bandidagem e ladrão Se considerou, uma pessoa abençoada
Se não fosse isso, a vida não valeria nada
O Lauro presenciou tudo isso
Na sua abençoada longevidade

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Amigo dos seus amigos
Dos velhos, moços e crianças
De um dia reencontrá-lo
Todos nós alimentamos a esperança
Seus conselhos e ensinamentos
Nos trouxe equilíbrio na balança
E para os íntimos desta pessoa
Este livro como lembrança
Vô Lauro concedendo entrevista ao Sr. Altamir na Rádio
Cacique de Lagoa Vermelha. (Abril de 2015).

(do amigo Altamir Souza)

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Com sua cervejinha e rodeado de amigos na Capela
O Vô Lauro, já aos 103 anos, não dispensava Nossa Senhora da Oliveira, interior de Lagoa Vermelha,
vistorias periódicas aos seus campos. comunidade onde residiu até o fim de sua vida.

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Pinhão com salame era combinação obrigatória no café da
manhã do Vô Lauro. Chimarrão, uma taça de vinho no
almoço e feijão preto também faziam parte da sua dieta, a qual
sempre era motivo de curiosidade entre as pessoas que lhe Aos 90 anos, ainda cuidando do gado.
questionavam como viver tanto tempo com saúde.

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Ouça uma pequena mensagem final do Vô Lauro.

Nesta foto podemos ver como o Vô Lauro não exagerava


ao dizer que, no início do século XX, o município de
Ibiraiaras consistia em algumas casas no meio da mata.
Trata-se de uma Missão realizada em 1932
onde hoje se localiza a praça central.
[Acervo da Prof. Eni Maria Guadagnin]

Vô Lauro, aos 99 anos, palestrando para os alunos da Escola


Octacílio Gris, no distrito de São Luiz, em Ibiraiaras.
[Acervo digital da E.M.E.F. Octacílio Gris]

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Referências

(1) BARBOSA, Fidélis Dalcin. Lagoa Vermelha e sua história.


Lagoa Vermelha, 1974.
(2) BARBOSA, Fidélis Dalcin. Nova História de Lagoa Ver-
melha. Porto Alegre, 1981.
(3) COSTA, Rovílio (Org.) Raízes de Veranópolis. Porto Ale-
gre, 1998.
(4) GUADAGNIN, Eni Maria. Ibiraiaras: Sua Terra e Sua
Gente. Lagoa Vermelha, 2007.
(5) NEPOMUCENO, Davino Valdir. História de Lagoa Ver-
melha até o início do 3º milênio. Porto Alegre, 2003.
(6) RILLO, Aparício Silva. Rapa de Tacho. Porto Alegre, 1982.

Outras Obras Consultadas:

ALMEIDA, Ney Garcez de. Evolução territorial de Lagoa


Vermelha-RS. Passo Fundo, 2008.
BARBOSA, Fidélis Dalcin. Vacaria dos pinhais. Caxias do Sul
/ Porto Alegre, 1978.

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