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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - UNEB

DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS X


COLEGIADO DE LETRAS: LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURAS

VIOLÊNCIA SEXUAL E MULHERES NEGRAS: UMA ANÁLISE DA


PRESENTIFICAÇÃO DA DORORIDADE EM INSUBMISSAS
LÁGRIMAS DE MULHERES

ELIZA MARIA DA SILVA METZKER


LAIS NONATO DOS SANTOS
SAMANTA TEIXEIRA OLIVEIRA

Teixeira de Freitas- Bahia


2022
ELIZA MARIA DA SILVA METZKER
LAIS NONATO DOS SANTOS
SAMANTA TEIXEIRA OLIVEIRA

VIOLÊNCIA SEXUAL E MULHERES NEGRAS: UMA ANÁLISE DA


PRESENTIFICAÇÃO DA DORORIDADE EM INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE
MULHERES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus X,
como requisito final para a obtenção do título de
licenciatura em Letras: Língua Portuguesa e Literaturas,
sob a orientação da Professora Doutora Karina Lima
Sales.

Teixeira de Freitas- Bahia


2022
ELIZA MARIA DA SILVA METZKER
LAIS NONATO DOS SANTOS
SAMANTA TEIXEIRA OLIVEIRA

Monografia intitulada VIOLÊNCIA SEXUAL E MULHERES NEGRAS: UMA


ANÁLISE DA PRESENTIFICAÇÃO DA DORORIDADE EM INSUBMISSAS
LÁGRIMAS DE MULHERES apresentada à Banca Examinadora constituída por docentes
do Colegiado de Letras: Língua Portuguesa e Literaturas do Departamento de Educação da
Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus X, como requisito parcial para a obtenção
do título de licenciadas em Letras, Língua Portuguesa e Literaturas.

Aprovação em 08 de julho de 2022.

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________________
Profa. Dra. Karina Lima Sales (Orientadora)

__________________________________________________________
Profa. Dra. Ivana Teixeira Gund (Examinadora)

__________________________________________________________
Profa. Profª Me. Quitéria Rodrigues Costa (Examinadora)
FICHA CATALOGRÁFICA
Sistema de Bibliotecas da UNEB

METZKER, Eliza Maria da Silva; SANTOS, Laís Nonato dos; OLIVEIRA,


Samanta Teixeira.
Violência Sexual e Mulheres Negras: uma análise da presentificação da
Dororidade em Insubmissas Lágrimas de Mulheres / Eliza Maria da Silva
Metzker. Laís Nonato dos Santos. Samanta Teixeira Oliveira. – Teixeira de
Freitas, 2022. 56 f.:il
Orientadora: Profa. Dra. Karina Lima Sales.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Universidade do Estado da
Bahia. Departamento de Educação, Campus X. 2022.

Não contém anexo.

1. Literatura Contemporânea. 2. Literatura Feminina Negra. 3. Conceição


Evaristo. 4. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. 5. Dororidade. I.
Metzker, Eliza Maria da Silva. II. Santos, Laís Nonato dos. III. Oliveira,
Samanta Teixeira. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de
Educação, Campus X.
AGRADECIMENTOS

À Universidade do Estado da Bahia – UNEB Campus X, por seu espaço de formação


profissional e pessoal e pela contribuição em nossa trajetória acadêmica.
À nossa professora-orientadora, Karina Lima Sales, pelo acolhimento, compreensão e zelo no
decorrer de toda a feitura desta pesquisa.
A Deus e outras forças do universo que me regem, por me permitirem trilhar essa jornada sem
desistir. (Eliza Maria da Silva Metzker)
Aos meus pais, Esther dos Santos da Silva Metzker e Hidelbrando de Souza Metzker, por todo
apoio e por ser o esteio para que eu continuasse nos estudos. (Eliza Maria da Silva Metzker)
À minha amiga, Adriana Silva Abreu, por todo incentivo e por acreditar no meu potencial,
bem como pelo companheirismo na caminhada. (Eliza Maria da Silva Metzker)
Aos meus professores e professoras, por acreditarem em mim e confiado que este momento
chegaria. (Eliza Maria da Silva Metzker)
Aos demais familiares e amigos, por me encorajarem a persistir em meio às adversidades.
(Eliza Maria da Silva Metzker)
À minha mãe e maior parceira, Kathia Nonato dos Santos, por todo afeto, acolhimento, amor
e suporte sempre dados e por sempre me encorajar e me incentivar a seguir com os estudos.
(Laís Nonato dos Santos)
A meu companheiro, Adriano Robbson Ferraz Costa, com quem partilho a vida, pelo amor,
afeto, parceria, compreensão e por estar ao meu lado nos processos mais difíceis. (Laís
Nonato dos Santos)
À minha irmã, Kamilla Nonato Costa, pelo afeto, por sempre acreditar em mim e me lembrar
das minhas potencialidades diariamente. (Laís Nonato dos Santos)
Aos demais familiares e amigos que de muitas formas me encorajaram e deram suporte para
que eu seguisse. (Laís Nonato dos Santos)
Agradeço a Deus por ter sido minha força durante toda a caminhada da graduação. Aos meus
pais, Sebastiana Santos Teixeira Oliveira e Gelson Lopes de Oliveira, por estarem ao meu
lado, me apoiando e aconselhando sempre com muito amor e ternura. (Samanta Teixeira
Oliveira)
Ao meu irmão, Jefferson Teixeira Oliveira, por ser um dos meus maiores incentivadores,
sempre acreditando no meu potencial. Agradeço por ter me encorajado, fazendo com que eu
seguisse. (Samanta Teixeira Oliveira)
Ao meu esposo, Wesley Rodrigo de Jesus Nascimento, por ter segurado em minha mão e
caminhado junto comigo, tornando a caminhada mais leve e afetuosa. (Samanta Teixeira
Oliveira)
Às minhas amigas, Eliza Metzker e Laís Nonato, por terem embarcado nesse projeto junto
comigo. Agradeço por todo companheirismo durante toda a jornada acadêmica. (Samanta
Teixeira Oliveira)
À minha madrinha, Gesiane, e sua família, Pablo, Ingrid e Erick, por terem me acolhido de
braços abertos quando iniciei minha jornada acadêmica. (Samanta Teixeira Oliveira)
Aos demais familiares e amigos que sempre me incentivaram a seguir. (Samanta Teixeira
Oliveira)
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
(ANGELA DAVIS)
“Pensar novas epistemologias, discutir lugares sociais e romper com uma visão
única não é imposição — é busca por coexistência”.
(DJAMILA RIBEIRO)

"A nossa escrevivência não pode ser lida como 'canções para ninar os da casa grande', mas sim para
incomodá-los em seus sonhos injustos".
(CONCEIÇÃO EVARISTO)

RESUMO

O presente estudo possui como corpus de análise a obra de Conceição Evaristo Insubmissas
Lágrimas de Mulheres (2016), constituída por 13 contos. Pretendeu-se, com este estudo,
investigar de que forma a escrita feminista negra de Conceição Evaristo, em Insubmissas
Lágrimas de Mulheres, atua como ferramenta de denúncia social no que se refere à violência
sexual sofrida pelas mulheres negras, que constantemente são submetidas à cultura racista e
sexista. Diante disso, identificou-se quais os tipos de estupro que aparecem na narrativa e
posteriormente realizou-se um recorte com o intuito de selecionar dentro do corpus quais os
contos tratavam da violência sexual sofrida pelos corpos femininos negros. Buscou-se ainda
estabelecer uma relação de diálogo entre as formas de violência sexual e o conceito de
“Dororidade”, postulado por Vilma Piedade. Trata-se de uma pesquisa de caráter qualitativo e
de cunho bibliográfico, tendo como principais aportes teóricos-críticos os estudos de
Kilomba (2008) e Kintê (2019), acerca da problemática que envolve o termo “Sororidade”;
Carneiro(2011) e Ribeiro (2018), no que diz respeito a falta de representatividade da mulher
negra dentro do movimento feminista; Gonzalez (2020) para tratar aspectos do feminismo
negro; Akotirene (2022), acerca do termo Interseccionalidade; Davis(2017), no que se refere a
hiperssexualização do corpo feminino negro; Piedade (2017), para tratar do conceito de
Dororidade; e Evaristo (2005) no tocante ao termo Escrevivência. Inicialmente, realizou-se
um panorama geral a respeito da violência contra a mulher em diversos âmbitos sociais, e a
importância do movimento feminino negro por colocar em pauta todas as especificidades que
atravessam a mulher negra, associado ao conceito de “Dororidade”. Em seguida, abordou-se o
silenciamento histórico da voz feminina negra na literatura, com isso, destacou-se ainda as
contribuições de autoras negras para a quebra deste paradigma. Por fim, analisaram-se os
contos selecionados e identificou-se o estupro marital, de vulnerável e o corretivo/coletivo.
Com a conclusão deste estudo, evidencia-se a importância da escrita de Conceição Evaristo
por conferir o protagonismo à mulher negra. Além disso, os contos analisados também podem
ser vistos como uma importante ferramenta de denúncia, no que diz respeito à violência
sexual contra os corpos femininos negros.

Palavras-chave: Violência sexual; Dororidade; Conceição Evaristo; Insubmissas Lágrimas


de Mulheres.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 08
1 “A NOITE NÃO ADORMECE NOS OLHOS DAS MULHERES”:
ATRAVESSAMENTOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES NOS MAIS
DIVERSOS ÂMBITOS SOCIAIS........................................................................................ 11
1.1 MULHERES NEGRAS E DORES ANCESTRAIS: UM RECORTE
NECESSÁRIO….11
2 “NAS CONTAS DE MEU ROSÁRIO EU CANTO, EU GRITO”: MULHERES
NEGRAS, LITERATURA AFRO-BRASILEIRA E ESCREVIVÊNCIA........................ 27
2.1 O TRAÇADO POÉTICO VISCERAL DA ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO
EVARISTO ............................................................................................................................. 31
2.2 INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES: DIÁLOGOS VIVOS QUE INSURGEM E
ECOAM................................................................................................................................... 35
3 “A VOZ DE MINHA FILHA RECOLHE TODAS AS NOSSAS VOZES”:
MULHERES
NEGRAS, TIPOS DE ESTUPRO E ANÁLISE DAS MANCHAS PATRIARCAIS EM
INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES ....................................................................39
3.1 “UMA MANCHA DE SANGUE ME ENFEITA ENTRE AS PERNAS”: O RASTRO DO
ESTUPRO MARITAL EM ARAMIDES FLORENÇA ..........................................................
39
3.2 “MINHA MÃE SEMPRE COSTUROU A VIDA COM FIOS DE FERRO”: SHIRLEY
PAIXÃO E SUA “CONFRARIA DE MULHERES” ..............................................................45
3.3 “A MENINA CRESCIA, CRESCIA VIOLENTAMENTE POR DENTRO”: ISALTINA
CAMPO BELO E A PUNIÇÃO DO EXISTIR........................................................................48
“VIVIFICO-ME EU-MULHER E TEIMO”: LINHAS EM CONSTRUÇÃO.................52
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................53
8

INTRODUÇÃO

Segundo matéria produzida no ano de 2019 pelo Jornal Folha de São Paulo 1, a partir
de dados coletados da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, o número de estupros no
Brasil contra mulheres, mais comum entre as mais jovens, tem aumentado consideravelmente,
tendo como principais agressores homens que estabelecem uma relação de confiança e
vínculo afetivo com a vítima. É significativo chamar a atenção para o fato de o estupro se
configurar não apenas quando há a violência sexual com penetração, pois outros aspectos
também são determinantes para que o estupro se concretize, como, por exemplo, o toque sem
consentimento ou qualquer forma de importunação sexual contra a vítima. Neste sentido, o
Código Penal Brasileiro, no artigo 213 (Lei n.º 12.015, de 2009) 2 concebe como estupro o ato
de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Além de acontecer mais comumente com mulheres mais jovens, fatores como
vulnerabilidade social ou econômica e consequentemente a questão étnica também implicam
diretamente nos índices mais altos de violência sexual. Dentro de tal contexto, em que há
desigualdade racial, de gênero e socioeconômica, percebe-se, atualmente, certo avanço no
desenvolvimento de pesquisas científicas que se debruçam em dados estatísticos acerca das
violências sofridas pelas mulheres na sociedade, especificamente a sexual.
Nesse contexto, destaca-se a importância do papel da literatura no meio social, através
dela grupos constantemente silenciados pelo sistema patriarcal, como o das mulheres negras,
conseguem, ora representar suas vivências, ora ter suas vivências, dores e opressões
representadas por outras mulheres escritoras através de suas produções literárias, como é o
caso da autora Conceição Evaristo, que se configura como grande porta-voz de histórias de
outras mulheres negras, através de relatos cotidianos que estão diretamente ligados com a
opressão patriarcal. A característica de denúncia presente na literatura produzida pela autora
insere sua produção no âmbito da literatura contemporânea, que segundo Schollhammer, está:
“[...] à procura de um impacto numa determinada realidade social, ou na busca de se refazer a
relação de responsabilidade e solidariedade com os problemas sociais e culturais de seu tempo
[...]”, desta forma, a escrita de Conceição Evaristo, comprometida com vivências sociais e
questões envoltas nestas, é capaz de quebrar inúmeros paradigmas sociais.
1
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-mais-de-180-estupros-por-dia-
numero-e-o-maior-desde-2009.shtml. Acesso em: 12 nov. 2019.
2
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10612010/artigo-213-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-
dezembro-de-1940. Acesso em: 26 nov. 2019.
9

Neste sentido, no intuito de dar continuidade a tais discussões, utiliza-se o texto


literário como instrumento de representação social, a fim de perceber de que forma a literatura
trata da violência sexual, por meio do corpus em análise. Este diz respeito à obra Insubmissas
Lágrimas de Mulheres (2011), da autora Conceição Evaristo, professora e militante nas
questões étnico-raciais e no feminismo negro. A escolha do tema se deu através de
inquietações perante o aumento dos registros de violência sexual contra a mulher vistos,
enquanto a escolha do corpus deu-se pelo fato de o objeto em questão ter por autoria uma
mulher negra e consequentemente carregar uma voz feminina que também se configura como
porta voz das histórias de mulheres negras. Além disso, destaca-se que houve um contato
prévio com a obra em determinado período da graduação que pela temática despertou
interesse de estudo aprofundado. Durante o processo inicial de percepção e investigação do
corpus, procurou-se entender: De que forma a literatura contribui para potencializar o
discurso feminino negro socialmente silenciado, e como esta serve de instrumento
denunciador da violência sexual sofrida pelos corpos das mulheres negras?
A pesquisa desenvolveu-se através de uma perspectiva bibliográfica, sendo assim de
caráter descritivo e qualitativo. Teve como objetivo geral investigar de que forma a escrita
feminina negra de Conceição Evaristo, em Insubmissas lágrimas de mulheres, atua como
ferramenta de denúncia social e como esta trata da violência sexual, visando assim conferir
maior visibilidade ao grupo que por vezes é submetido à cultura racista e sexista, mais
especificamente as mulheres negras. E como objetivos específicos: discutir as manifestações
de violências contra a mulher (com maior enfoque na mulher negra) na sociedade e a relação
com o conceito de “dororidade”; tratar o silenciamento social historicamente destinado às
mulheres negras; analisar os contos “Aramides Florença”, “Shirley Paixão” e “Isaltina Campo
Belo” e a manifestação, nos contos, do estupro marital, de vulnerável e corretivo/coletivo,
respectivamente.
O estudo está organizado em três capítulos. No primeiro capítulo, A noite não
adormece nos olhos das mulheres: violências contra a mulher na sociedade brasileira,
realiza-se um panorama de como a figura da mulher foi e vem sendo tradada socialmente e as
manifestações de violência que envolvem tal tratamento. Além da violência física, sexual e
psicológica citadas, também é abordado o pouco espaço conferido às mulheres, por exemplo,
no âmbito da política. Destaca-se que, considerando o conceito de “interseccionalidade”,
inaugurado por Kimberlé Crenshaw3 (1989), discutem-se as violências e dores sofridas

3
Feminista estadunidense, professora de direito e defensora americana dos direitos civis e uma das principais
estudiosas da teoria crítica da raça. 
10

especificamente por mulheres negras, para tanto, é levado em conta o conceito de


“dororidade” cunhado por Vilma Piedade, que se refere às dores que atravessam as vivências
de mulheres negras por serem quem são. Além de considerar as violências sofridas por serem
mulheres, também são consideradas as problemáticas racistas que agravam as mesmas.
O segundo capítulo, Nas contas de meu rosário eu canto, eu grito: mulheres negras,
literatura afro-brasileira e escrevivência, apresenta discussões acerca do fazer literário
feminino e negro e dos obstáculos sociais envolvidos. Aborda-se a trajetória da formação da
escrita de Conceição Evaristo, o poder de representatividade que suas produções poéticas
carregam e de que forma tal escrita denuncia as problemáticas sociais da misoginia e racismo,
a discussão de sua trajetória e potencialidade de seu fazer literário é feita através da
consideração do conceito de “escrevivência”, pautado pela própria autora, tal conceito é
caracterizado pelo grande teor de subjetividade, que relaciona-se com as especificidades da
vida da autora enquanto mulher negra.
Por fim, no terceiro capítulo A voz de minha filha recolhe todas as nossas vozes:
mulheres negras, tipos de estupro e análise das manchas patriarcais em Insubmissas
Lágrimas de Mulheres são realizadas as análises dos contos previamente selecionados:
“Aramides Florença”, “Shirley Paixão” e “Isaltina Campo Belo”. Em cada conto, observa-se a
manifestação da violência sexual e de que forma a mesma é caracterizada. No primeiro conto
identifica-se o estupro marital sofrido pela personagem Aramides Florença, no segundo
observa-se o estupro de vulnerável, cometido contra Seni no próprio âmbito familiar e no
último identificam-se duas manifestações de estupro, coletiva e corretiva, contra uma mulher
lésbica, na intenção violenta e bárbara de corrigir tal orientação e “torná-la” mulher.
Levando em conta as questões sociais que contribuem para a objetificação, violação
dos corpos femininos negros, exploração e marginalização dos mesmos discutidas durante o
desenvolvimento da pesquisa, considera-se importante que o estudo alcance e dialogue com a
comunidade de maneira geral. É importante que os mais diversos âmbitos sociais –
principalmente os espaços escolares, em que há indivíduos em fase de formação e
amadurecimento – tenham acesso às discussões acerca das diversas violências sofridas por
mulheres negras que ainda se fazem presentes, pois tais discussões promovem a reflexão
sobre a problemática e sobre a cultura do estupro e pode contribuir para o rompimento dos
ciclos de violência.
11

1 “A NOITE NÃO ADORMECE NOS OLHOS DAS MULHERES”: 4


ATRAVESSAMENTOS DE VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES NOS MAIS
DIVERSOS ÂMBITOS SOCIAIS

1.1 VIOLÊNCIAS CONTRA A MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA: ALGUMAS


CONSIDERAÇÕES

A imagem da mulher historicamente foi relacionada a uma posição de inferioridade e


este lócus de subalternidade se perpetua dentro das diversas relações e instituições sociais. Tal
estigma sempre esteve relacionado à ideia de poder conferida ao homem, ao ser socialmente
normalizada a adjetivação sempre positiva acerca da imagem do homem. Nossa sociedade,
estruturalmente machista e misógina, sempre definiu aspectos como virilidade, força,
inteligência, comando, agilidade, como sendo atribuições inerentes à figura masculina. Nesse
sentido, Pierre Bourdieu, em sua obra A dominação masculina, aborda a seguinte perspectiva:

A divisão entre os sexos parece estar "na ordem das coisas", como se diz por
vezes para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está
presente, ao mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por
exemplo, cujas partes são todas "sexuadas"), em todo o mundo social e, em
estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como
sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e de ação (BOURDIEU,
1998, p.17).

Assim, compreende-se a dominação masculina em sua dimensão simbólica, analisada


por estruturas de poder que se fundam por meio das instituições sociais (Estado, Igreja,
Família, Escola, etc.) e se disseminam em forma de princípios e valores construídos
historicamente. A violência simbólica, mesmo que tecnicamente quase imperceptível,
legitima práticas cotidianas de dominação e normaliza opressões das mais variadas formas.
Porém, será adotada aqui uma perspectiva feminina acerca dessa discussão, partindo do status
quo de uma sociedade extremamente misógina e racista.
Com o decorrer do tempo, pôde-se perceber que a estrutura social, no que diz respeito
à imposição da hegemonia masculina, não sofreu modificações suficientemente
transformadoras a ponto de apagar os resquícios de marginalização tão presentes nas ações
sociais. No período do Iluminismo, por exemplo, também conhecido como o “Século das
luzes”, em que se pregava a ideia de que os pensamentos deveriam ser regidos pela ciência e
pela razão, notaram-se também diversos episódios de opressão. Apesar dos avanços obtidos

4
Título de poema de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e outros poemas. Rio de
Janeiro: Malê, 2017, p. 26-27.
12

no âmbito científico durante este período histórico, ainda perdurava a disseminação de uma
visão predominantemente masculina, na qual o raciocínio e a razão eram atributos dos
homens.
Tal disseminação deu-se até mesmo por parte de alguns filósofos que embasaram o
movimento iluminista, como no caso do suíço Jean Jacques Rousseau, que publicou uma obra
em 1762 intitulada Emílio ou Da Educação, tendo como personagem principal Emílio. Para
narrar a vida e o processo educacional do personagem, o autor dividiu o livro em cinco partes.
E na última, criou a personagem Sofia, a quem era atribuído o papel de ser companheira de
Emílio. O autor utiliza-se de Sofia para ilustrar como seria um exemplo de mulher ideal e
quais funções deveria executar, como ilustrado no fragmento a seguir:

[...] O macho só é macho em certos momentos, a fêmea é fêmea durante a


vida toda, ou, ao menos, durante a sua mocidade; tudo a leva sem cessar a
seu sexo, e, para bem desempenhar-lhe as funções, precisam uma
constituição que se prenda a ele; precisam cuidados durante a gravidez;
precisam repouso quando do parto; precisam de vida fácil e sedentária para
aleitar os filhos; precisam, para bem os educar, paciência e doçura, um zelo e
uma afeição que nada perturbe; só elas servem de ligação entre eles e os
pais, só elas os fazem amá-los e lhes dão a confiança de considerá-los seus.
Quanta ternura e cuidado não precisam para manter a união em toda a
família! E, finalmente, tudo isso não deve ser virtudes, mas sim gostos [...]
(ROUSSEAU, 1995, p. 428).

Desta maneira, nota-se que o autor, por meio da personagem Sofia, reforça e
naturaliza a pretensa superioridade masculina que era imposta sobre a mulher, sendo exigido a
ela a submissão ao homem e a realização de determinadas tarefas que lhe foram culturalmente
pré-estabelecidas. Tal situação é recorrente atualmente, ao se observar como a condição do
gênero feminino é ainda inferiorizada, e por vezes romantizada, já que os atributos de ordem
subjetiva e/ou emocional devem sempre estar presentes nos atos da mulher. Do contrário, a
união de sua base familiar é abalada e sua “função principal” (de mãe, esposa e dona do lar)
não é desempenhada com êxito.
Todos estes aspectos até aqui citados tratam de manifestações de silenciamento que
ganharam ainda mais força ao longo da história, e tomam maiores proporções, resultando em
ações violentas nos mais diversos âmbitos. No ambiente familiar, por exemplo, levando em
consideração a perspectiva tradicional patriarcal, a mulher desde seu nascimento recebe uma
carga cultural misógina preestabelecida que dita o que ela irá vestir, como deverá se
comportar e a função que ocupará na sociedade.
Essa mesma tendência hierárquica ocorre também no espaço público governamental, pois a
mulher por um longo período não era considerada um sujeito político, sendo negado a ela até
13

mesmo o direito ao voto. Somente no ano de 1932 que a conquista feminina pelo direito ao
voto foi alcançada no Brasil. Entretanto, com algumas restrições, como aponta Marques
(2018):
Apenas as mulheres viúvas ou solteiras com renda própria poderiam votar.
As mulheres casadas, mesmo que também tivessem renda própria, fruto de
atividade profissional, só poderiam votar se autorizadas pelo marido. A
comissão buscava assim impor restrições que, segundo alguns de seus
membros, eram “indispensáveis à boa ordem das relações privadas na
família brasileira” (CABRAL, 2004 apud MARQUES, 2018, p.103).

Diante de tal cenário, nota-se o longo trajeto que a mulher precisou percorrer para ter
acesso a tal ato político e democrático. Destaca-se ainda que, quando se refere à mulher negra,
o processo de luta foi ainda mais penoso, pois boa parte do eleitorado feminino negro não
possuía renda própria, o que dificultava ainda mais o exercício da cidadania desta parte da
sociedade. Além disso, “[...] as solteiras ou viúvas deveriam comprovar que exerciam trabalho
remunerado. Legislações anteriores ainda proibiam que pessoas analfabetas votassem. Ou
seja, as exigências excluíam boa parte das mulheres negras”.5
Assim, percebe-se que tal realidade se reflete nos dias atuais, pois, apesar de o público
feminino ser a maioria do eleitorado brasileiro, a mulher não tem tanto espaço na política, e,
por vezes, é descredibilizada, sendo julgada incapaz de exercer funções de liderança perante a
sociedade. Por isso, ocupa menos cargos eleitorais que os homens, como aponta dados de
2020 publicados pelo site do Tribunal Superior Eleitoral:

Apesar de representarem mais de 51,8% da população e mais de 52% do


eleitorado brasileiro, as mulheres ainda são minoria na política. E
os números das Eleições Municipais de 2020, levantados pela área de
estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), atualizados até esta terça-
feira (24), mostram a baixa representatividade feminina na política do país.
Foram eleitas, neste ano, 651 prefeitas (12,1%), contra 4.750 prefeitos
(87,9%). Já para as câmaras municipais, foram 9.196 vereadoras eleitas
(16%), contra 48.265 vereadores (84%).6

Observa-se, diante dos dados estatísticos expostos, que a participação das mulheres na
vida política como protagonistas em suas reivindicações é urgente e vem enfrentando
historicamente diversos entraves. Vale ressaltar a baixa representatividade das mulheres
negras neste contexto político, fruto do sistema estrutural machista e racista, pois as
estatísticas se apresentam de forma mais alarmante, segundo dados do Tribunal Superior
Eleitoral: “Mesmo com mais negras eleitas na última eleição, elas ainda representam apenas
5
Disponível em: https://almapreta.com/sessao/politica/voto-feminino-negras. Acesso em: 22 jun. 2021
6
Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Novembro/mulheres-representam-apenas-12-
dos-prefeitos-eleitos-no-1o-turno-das-eleicoes-2020. Acesso em: 16 abr. 2021
14

5% do total de mulheres eleitas - 545 de um total de 10.769 mulheres, incluindo prefeitas,


vice-prefeitas e vereadoras”.7
Além disso, os atos de controle e repressão acometidos à mulher, que também se
configuram como um tipo de violência, revelam-se na questão patrimonial, ao ser negado a
ela, por vezes, o direito de usufruir e manter posse de seus recursos, sejam eles materiais ou
não. Na maioria das vezes, tais atitudes limitantes partem de alguém com quem essa mulher
estabelece algum tipo de relação, como em situação parental ou matrimonial. Segundo a Lei
11340/2006, entende-se por violência patrimonial qualquer conduta que configure retenção,
subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer
suas necessidades.8
Nessas situações castradoras, a mulher, além de sofrer subtração de seus bens e
recursos, muitas vezes se vê refém do abusador e tem sua subjetividade completamente
destruída. Essa violência, por ser ainda pouco conhecida e possuir muitas vertentes, pode se
manifestar de forma isolada ou atrelada a outros tipos de violência mais explícitas, fazendo
com que a mulher, a principal vítima, contribua indiretamente com o seu silêncio (seja por
falta de conhecimento, seja pela submissão compulsória ao agressor).
Alguns exemplos concretos geralmente presentes no contexto doméstico dessa mulher,
no que se refere ao abuso de poder por meio de patrimônio físico e/ou afetivo, traduzem-se na
atitude de seu parceiro de reter seus bens materiais visando a permanência dela no
relacionamento atual, bem como ameaçá-la ao desamparo. Tal contexto se intensifica se esta
mulher tem filhos e, sendo extorquida, as condições se tornam ainda mais precárias a sua
dignidade.
Tais tipos de subalternização podem ser entendidos como exemplos de violências
físicas e sociais exercidas contra a mulher. Destaca-se aqui a falta de amparo historicamente
evidente para a mulher perante a justiça, como no caso da farmacêutica cearense Maria da
Penha Maia Fernandes. Seu ciclo de violência, envolvendo agressões físicas e psicológicas,
bem como tentativas de assassinato cometidas pelo seu próprio parceiro, perdurou por 19 anos
e 6 meses sem que nenhuma medida legal fosse tomada em prol dela e, dessa forma, Maria da
Penha precisou recorrer a órgãos exteriores para ser ouvida, como aponta uma matéria
produzida pelo Instituto Maria da Penha:

7
Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/709211-deputadas-dizem-que-numero-de-mulheres-eleitas-
cresceu-pouco-e-defendem-reserva-de-vagas/. Acesso em: 16 abr. 2021
8
Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_3/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11340.htm. Acesso em: 16
abr. 2021.
15

O ano de 1998 foi muito importante para o caso, que ganhou uma dimensão
internacional. Maria da Penha, o Centro para a Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-americano e do Caribe para a
Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) denunciaram o caso para a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados
Americanos (CIDH/OEA).9

Mediante tal denúncia, no ano de 2001 o Estado brasileiro foi responsabilizado por
negligência em relação ao caso, pois inicialmente o agressor foi julgado e indiciado a cumprir
uma sentença de 15 anos de prisão e, em um segundo julgamento, 10 anos e 6 meses.
Entretanto, tais determinações não foram cumpridas com êxito, já que o malfeitor respondeu
ao processo em liberdade, pouco tempo depois. Em decorrência disso, a justiça brasileira foi
obrigada a iniciar ações judiciais rápidas e eficazes em relação ao caso. Com isso, no ano de
2006, foi sancionada no Brasil a Lei nº 11.340/2006, também conhecida como Lei Maria da
Penha, no intuito de coibir a violência contra a mulher e assegurar os seus direitos.
Para tanto, a Lei se divide em capítulos que categorizam, por exemplo, os tipos de
violência doméstica e familiar a que a mulher constantemente é submetida. Dentre tais
violências, consta no capítulo II, art. 7º, a tipificação da violência psicológica. Segundo o
artigo 7º da Lei nº 11.340/2006 esta consiste na:
ação ou omissão destinada a degradar ou controlar as ações,
comportamentos, crenças e decisões de outra pessoa por meio de
intimidação, manipulação, ameaça direta ou indireta, humilhação,
isolamento ou qualquer outra conduta que implique prejuízo à saúde
psicológica, à autodeterminação ou ao desenvolvimento pessoal. (BRASIL,
Lei nº. 11.340, de 7 de agosto de 2006).

Esse tipo de opressão psicológica é recorrente no cotidiano da mulher e, infelizmente,


muitas vezes não é encarado como uma forma de violência. Os abusos, em alguns casos, não
acontecem de forma palpável, como é o caso do abuso físico, e assim não se tornam evidentes
para quem está distante do contexto. O agressor intimida a vítima para que ela se sinta
culpada, no intuito de isolá-la de grupos mais próximos, impossibilitando-a de buscar ajuda e
denunciar.
Outra categoria de violência prevista na lei diz respeito à violência física que, diferente
da anteriormente citada, pode acontecer de maneira mais escancarada, pois em alguns casos é
possível notar marcas no corpo da vítima que causam prejuízos à sua integridade física.
Porém, mesmo diante de tamanhos danos, o processo de denúncia pode ser constrangedor

9
Disponível em: https://www.institutomariadapenha.org.br/quem-e-maria-da-penha.html. Acesso em: 30 abr.
2021
16

para a mulher, devido à ausência de acolhimento por parte de autoridades que acabam
descredibilizando a queixa/registro, atribuindo a ela a culpa da agressão, o que também pode
ser entendido como violência moral por envolver calúnia e ridicularização da vítima, além de
manchar sua reputação.
Destaca-se também a violência de gênero, que é definida, segundo o artigo 7º da Lei
nº 11.340/2006, como “[...] violência sofrida pelo fato de se ser mulher, sem distinção de raça,
classe social, religião, idade ou qualquer outra condição, produto de um sistema social que
subordina o sexo feminino”. Socialmente, há uma negação desta motivação principal por trás
dessa violência, pois o fato de a vítima ser mulher em alguns casos não é encarado como
único motivo de tal agressão, o que pode contribuir para que esta seja invalidada e suavizada.
Um dos exemplos desse tipo de violência é o feminicídio, em que a vítima é
assassinada por ser do gênero feminino. Em alguns casos o crime parte de pessoas que
estabelecem uma relação familiar com a vítima, e este aspecto de proximidade entre a vítima
e o agressor intensificou, no período de pandemia, o número de feminicídios no Brasil, pois as
mulheres são obrigadas a conviver por mais tempo com seu agressor. No que diz respeito aos
índices registrados dessa violência, uma matéria produzida pela BBC News Brasil aponta que

No primeiro semestre deste ano [2021], os feminicídios aumentaram 2% no


país em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o 14º Anuário
Brasileiro de Segurança Pública, divulgado neste domingo. O relatório é
produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública a partir de dados
fornecidos por secretarias estaduais. 10

Dado esse aumento, constata-se que o contexto de isolamento coloca em evidência a


fragilidade e insegurança da mulher onde deveria ser seu lugar de refúgio. Esta convivência
obrigatória resulta muitas vezes em danos físicos ou psicológicos permanentes, quando não
em um desfecho fatal.
Por fim, destaca-se também em tal categorização a violência sexual, que pode se
configurar de diversas maneiras (importunação, assédio, etc.), que consiste em forçar a
mulher a manter algum tipo de relação não consensual, podendo gerar danos físicos e
psicológicos na vítima. Essa violência também pode ser entendida como reflexo da cultura
misógina de uma sociedade patriarcal, que corrobora com a objetificação do corpo da mulher
visto pelo homem como posse e fonte de satisfação do prazer masculino.

10
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54587404. Acesso em: 19 jun. 2021
17

Uma das ramificações desse tipo de violência é o estupro, que segundo o Código Penal
Brasileiro, artigo 213 (Lei n.º 12.015, de 2009)11 é concebido como ato de “constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir
que com ele se pratique outro ato libidinoso”. É significativo chamar a atenção para o fato de
o estupro se configurar não apenas quando há a violência sexual com penetração, pois outros
aspectos também são determinantes para que o estupro se concretize, como, por exemplo, o
toque sem consentimento. Também, em alguns casos, tem-se como principais agressores
homens que estabelecem uma relação de confiança e vínculo afetivo com a vítima.
Segundo uma matéria produzida no ano de 2019 pelo Jornal Folha de São Paulo, a
partir de dados coletados da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, “o Brasil
contabilizou mais de 66 mil casos de violência sexual em 2018, o que corresponde a mais de
180 estupros por dia. Entre as vítimas, 54% tinham até 13 anos”.12 Diante disso, percebe-se
que o número de estupros no Brasil contra mulheres, mais comum entre as mais jovens, tem
aumentado consideravelmente. Esse tipo de violência é nomeada como “estupro de
vulnerável” que, segundo a Lei 12.015/0913 caracteriza-se por envolver vítimas menores de 14
anos de idade e/ou indivíduos que não exercem plenos poderes de suas faculdades físicas e
mentais.
Sobre o estupro de vulnerável, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020),
tomando como base os dados do ano de 2019, aponta que, dentre a distribuição dos crimes de
estupro e estupro de vulnerável no Brasil no período anteriormente citado, 70,5%
correspondem a tal tipificação. Cerca de 84,1% são agressores conhecidos pelas vítimas, ou
seja, tem-se como principais abusadores homens que estabelecem uma relação de confiança e
vínculo afetivo com a vítima. Além disso, traçando um recorte de raça/cor, 44,6% referem-se
às pessoas brancas e 54,9% às negras.
Diante das estatísticas apresentadas anteriormente, nota-se que o estupro acontece na
maioria das vezes com mulheres que se encontram em uma condição de maior
vulnerabilidade, podendo esta ser social ou econômica, como é o caso de mulheres negras,
que estão inseridas em tal contexto. Segundo o Instituto Patrícia Galvão, tomando como base
o Dossiê Mulher de 201814 “As mulheres negras foram 56,3% das vítimas de estupro,
enquanto as mulheres brancas corresponderam a 37% das vítimas.”
11
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10612010/artigo-213-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-
dezembro-de-1940. Acesso em: 26 nov. 2019.
12
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/09/brasil-registra-mais-de-180-estupros-por-
dia-numero-e-o-maior-desde-2009.shtml. Acesso em: 26 nov. 2019.
13
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em: 22 jun.
2021
18

Assim, diante dos dados expostos, destaca-se a posição de inferioridade socialmente


aplicada à mulher, sendo negado a ela o direito de falar e ser ouvida, ou seja, um
silenciamento histórico que perpassa sua trajetória na sociedade. Dada a contextualização de
tal cenário e, pensando em alternativas na busca da equidade de gênero e em políticas
públicas de denúncia acerca das opressões acometidas às mulheres, vale destacar a
insurgência do Movimento Feminista, visando propiciar instrumentos para adaptar as
condições subalternizadas da mulher na sociedade infelizmente subalternizadas. Suas
primeiras manifestações surgem com o movimento sufragista15 e, nesse período, lutava-se
principalmente por direitos democráticos anteriormente negados às mulheres.
Com o passar da história, o movimento ampliou suas pautas, aderindo também às
reivindicações contra as desigualdades de gênero e medidas que assegurassem o direito e
segurança das mulheres. Na década de 1960, surge o slogan “Mulheres do mundo, unam-se”,
responsável por marcar o cenário de lutas da segunda onda feminista nos Estados
Unidos e, consequentemente, abriu caminho para o surgimento do termo
“Sororidade”, cunhado pela ativista norte-americana Kate Millett, em 1970. O slogan
inspirava a ideia de que houvesse uma união universal feminina, independente de dogmas,
classe ou etnias. A “sororidade” se apresenta por meio de um conjunto de sentimentos como
irmandade, respeito e empatia feminina, contrariando a ideia de rivalidade
feminina construída socialmente pelo patriarcado. A união proposta foi e é considerada como
mecanismo essencial para o fortalecimento das mulheres e para a reivindicação dos direitos
das mulheres em um sistema patriarcal.   Entretanto, a universalização muitas vezes presente
neste conceito imprime muito mais uma noção superficial do sentido de união e irmandade
do que uma ideia que abrange e retrata diferentes realidades, de diferentes mulheres.

1.2 MULHERES NEGRAS E DORES ANCESTRAIS: UM RECORTE NECESSÁRIO

As especificidades de determinados grupos femininos praticamente não são levadas


em conta, como se apenas o fator gênero fosse o suficiente para ligar todas as mulheres de
forma igual e tratar de toda a opressão sofrida como uma só.  É sabido que,
historicamente, grupos específicos de mulheres passaram e passam por opressões que, além
14
Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/pesquisa/dossie-mulher-2018-isp-rj-
2018/. Acesso em: 26 nov. 2019.
15
“Foram diversas campanhas realizadas a partir de meados do século XIX para garantir às mulheres da
Inglaterra e dos Estados Unidos algo então inédito para elas: o sufrágio, direito de votar em eleições políticas.”
Disponível em: https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-o-movimento-sufragista/. Acesso em 11 jun.
2021
19

de dialogarem com seu gênero, dialogam também com sua religião, etnia e classe. No Brasil,


por exemplo, mulheres pretas e indígenas tiveram seus corpos
violentados, animalizados, objetificados, preteridos e escravizados. Dessa forma, não basta
considerar apenas o gênero destes grupos, mas também a questão racial.   
No livro Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano (2008), a autora
Grada Kilomba aponta problemáticas que fazem parte da ideia central lançada sobre
a sororidade e disserta acerca das desigualdades e opressões sofridas por mulheres pretas nos
âmbitos em que há a presença de mulheres brancas. Quando as diferenças de classe e
raça são expostas e discutidas, torna-se nítida a incoerência em tratar a sororidade numa
ótica universal. Neste sentido, a escritora, ao tratar do conceito, apresenta sua definição
como: 

[...] O termo “sororidade” supõe a crença em uma conexão familiar entre


todas as mulheres do mundo – as irmãs [...] Quando contextualizada, a ideia
pode parecer bastante poderosa; quando não, ela permanece uma presunção
falsa e simplista que negligência a história de escravização, do colonialismo,
e do racismo nos quais as mulheres brancas têm recebido sua parcela de
poder branco masculino em relação tanto a mulheres negras quanto a
homens negros (KILOMBA, 2008, p. 100-101. Grifos da autora).

Segundo a autora, entender a sororidade apenas pensando na união de mulheres contra


uma única opressão não é possível, mesmo porque mulheres brancas são,
historicamente, indivíduos sociais também responsáveis pela reprodução de
opressões contra mulheres pretas. É importante entender as dores que perpassaram e ainda
perpassam a existência de mulheres negras, compreendendo, sobretudo, que historicamente
elas não puderam estar lado a lado de mulheres brancas, como suas irmãs. Além desta aliança
não acontecer entre mulheres inseridas em diferentes contextos, apenas um lado acaba vendo
como opção ceder e servir à ideia de sororidade, o que constitui uma sororidade unilateral. 
No texto Mulher Negra e a Sororidade Unilateral16 (2019), escrito pela jornalista
baiana Sueide Kintê, são discutidas as questões que fizeram com que mulheres pretas, por
questão de sobrevivência, exercessem tal “sororidade” com mulheres brancas,
exemplificando esta desigualdade histórica de união. Assim disserta: 

No período da escravidão, mulheres negras, frente aos seus algozes, eram


capazes de garantir nutrição para as sinhás e seus filhos sem envenená-los –
daí o surgimento da figura das Bás e amas de leite, que se transformam em
babás. Não se tratava de cristianismo, “Oferece a outra face!”. Era isso ou a
16
KINTÊ, Sueide. Mulher negra e a sororidade unilateral. Usina de Valores, 2019. Disponível em:
https://www.usinadevalores.org.br/mulher-negra-e-a-sororidade-unilateral/>. Acesso em: 18 jun. 2020.
20

morte. Esse legado nos coloca diante de uma realidade em que, mesmo num
contexto nefasto como a escravidão, a empatia diante da vulnerabilidade de
outra mulher estava presente, porque esta mesma Bá cuidava do parto, da
saúde e, inclusive, das outras gestações de sua sinhá. E, ali se desenhava,
também, mesmo que de forma desequilibrada, uma relação de afetividade
entre duas mulheres, o que eu de alguma maneira posso chamar
de sororidade unilateral (2019, s/p.).

Sueide Kintê aponta ainda para a necessidade de atualização do termo, já que


desigualdades sociais e raciais persistem diariamente e por isso é necessário que se pense em
uma reparação histórica. Ao se tratar de sororidade, é necessário refletir e questionar se de
fato ocorre a união proposta, se de fato as especificidades de grupos femininos
marginalizados estão sendo levadas em conta, para que estes não continuem no limbo da
subalternidade. Não se trata de uma medição de dores, mas sim, do
reconhecimento necessário das diversas realidades e opressões sofridas e do impacto causado
no exercício da união de mulheres.  
Diante do que já foi mencionado, a sororidade se propaga dentro do amplo movimento
feminista e percebe-se que tal movimento alcançou conquistas nos campos social, político e
econômico ao conferir uma maior visibilidade à mulher nas esferas públicas. Entretanto,
apesar dos avanços, o movimento feminista por vezes considera que todas as mulheres
apresentam as mesmas demandas diante de um cenário social sexista e machista, sem
considerar os privilégios das mulheres brancas e o racismo como pauta. Ao consultar a
literatura feminina negra, Sueli Carneiro, em Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil,
aponta que:

As mulheres negras assistiram, em diferentes momentos de sua militância, à


temática específica da mulher negra ser secundarizada na suposta
universalidade de gênero. Essa temática da mulher negra invariavelmente era
tratada como subitem da questão geral da mulher, mesmo em um país em
que as afrodescendentes compõem aproximadamente metade da população
feminina. Ou seja, o movimento feminista brasileiro se recusava a
reconhecer que há uma dimensão racial na temática de gênero que estabelece
privilégios e desvantagens entre as mulheres. [...] (CARNEIRO, 2011, p.
112).

Com isto, enquanto uma parte das mulheres (as brancas) alcança visibilidade e usufrui
determinados privilégios por meio das reivindicações do feminismo, a outra parte (as negras)
ainda ocupa uma posição de inferioridade e é constantemente submetida ao racismo
historicamente enraizado na sociedade e seus cruéis desdobramentos expressos de diversas
maneiras por meio das desigualdades sociais existentes.
21

Diante disto, observa-se que as pautas propostas pelo movimento feminista podem ser
encaradas como um reflexo dessas desigualdades, já que não se destina a todas as mulheres,
ao invalidar as dores das negras negando que as questões étnico-raciais devam ser colocadas
em discussão dentro do movimento. Como aponta Djamila Ribeiro (2018):

Existe ainda, por parte de muitas feministas brancas, uma resistência muito
grande em perceber que, apesar do gênero nos unir, há outras especificidades
que nos separam e afastam. Enquanto feministas brancas tratarem a questão
racial como birra e disputa, em vez de reconhecer seus privilégios, o
movimento não vai avançar, só reproduzir as velhas e conhecidas lógicas de
opressão. [...] (RIBEIRO, 2018, p. 35).

Assim, as pautas das mulheres dentro do movimento feminista perpassam por aspectos
que se assemelham entre si, no que diz respeito ao gênero, e diferem no tocante à raça e classe
social, pois as negras, além de enfrentarem as amarras de um sistema patriarcal, sexista e
machista, ainda lidam com o racismo e suas consequências. Daí surgiu a necessidade de se
criar um movimento de mulheres negras para discutir as lacunas existentes, e, com isto, tem-
se a criação do Feminismo Negro, que inicialmente surge dentro do movimento negro de
maneira geral e posteriormente direciona-se especificamente para as mulheres. Conforme
Lélia Gonzalez (2020):
[...] E fato da maior importância (comumente “esquecido” pelo próprio
movimento negro) era justamente o da atuação das mulheres negras, que, ao
que parece, antes mesmo da existência de organizações do movimento de
mulheres se reuniam para discutir o seu cotidiano, marcado, por um lado,
pela discriminação racial e, por outro, pelo machismo não só dos homens
brancos, mas dos próprios negros. [...]Nesse sentido, o feminismo negro
possui sua diferença específica em face do ocidental: a solidariedade,
fundada numa experiência histórica comum. [...] (GONZALEZ, 2020, p. 86).

Sendo assim, mediante a necessidade de se criar um espaço para diálogo que atendesse
às demandas das mulheres negras, subalternizadas como categoria pertencente à base da
pirâmide social, o Feminismo Negro surge como uma importante ferramenta de estudos,
análises, críticas, reflexões e denúncia acerca do papel que a mulher negra ocupa na
sociedade, pois ela além de lidar com o silenciamento de suas pautas dentro do movimento
feminista (branco e elitista), também enfrenta o machismo dos homens brancos e dos homens
negros.
Ainda no que diz respeito às reivindicações do movimento feminista negro, é
fundamental discorrer um pouco sobre o mito da democracia racial, que historicamente se
tornou respaldo para a normalização e perpetuação das práticas machistas e sexistas tão
latentes na sociedade. De modo que, se o ideal de igualdade racial é tido como verdade
22

absoluta, vão se construindo estereótipos difíceis de serem rompidos e as fortes bases


estruturais do racismo, por exemplo, se fortalecem, alcançando níveis cada vez mais altos de
segregação. A respeito da discussão sobre tal imaginário, Silvio Almeida aponta:

No Brasil, a negação do racismo e a ideologia da democracia racial


sustentam-se pelo discurso da meritocracia. Se não há racismo, a culpa pela
própria condição é das pessoas negras que, eventualmente, não fizeram tudo
que estava ao seu alcance. [...] No contexto brasileiro, o discurso da
meritocracia é altamente racista, uma vez que promove a conformação
ideológica dos indivíduos à desigualdade racial (ALMEIDA, 2018, p. 63).

Nesse sentido, nota-se que o racismo, por ser um fenômeno estrutural, engloba
diversas outras temáticas que, alinhadas pelo viés das inúmeras desigualdades existentes,
evidenciam o cenário de marginalização o qual foi e tem sido imposto às pessoas negras. O
discurso da meritocracia, por exemplo, com relação às mulheres negras, ignora os privilégios
existentes de determinada parcela da sociedade (homens, brancos, héteros, de classe social
mais favorecida) e dissemina a falsa ideia de que todos possuem condições necessárias para
que alcancem êxito a partir de seu esforço pessoal.
No que se refere às pautas até aqui discutidas, em se tratando especificamente das
mulheres negras, e diante das diversas opressões de gênero, raça e classe utilizadas para
preteri-las, surge um termo fundamental que pertence às discussões do movimento feminista
negro, que é a “interseccionalidade”. Inaugurado em 1989 por Kimberlé Crenshaw , tal
conceito diz respeito à multiplicidade que a categoria “mulher” engloba e aos diferentes
lugares sociais dos quais elas partem. De modo que o feminismo, se embasado por uma
perspectiva homogênea e universal, reforça estereótipos machistas, racistas e LGBTfóbicos e
enfraquece o ideal de coletividade que veio sendo construído no decorrer do movimento.
Nesse sentido, Carla Akotirene aborda que “[...] a classe trabalhadora dirige-se a nós
por não sermos capitalistas, e o cruzamento do racismo e sexismo geram vulnerabilidades e
ausência de seguridade social para mulheres negras” (2020, p.63) Tais mulheres são
historicamente discriminadas de maneira mais acentuada, pois seus entrecruzamentos
perpassam por vieses de gênero, raça e classe e, assim, muitas das suas experiências são
invisibilizadas dentro dos próprios coletivos feministas. E, assim como essas opressões fazem
parte de um sistema estrutural, torna-se imprescindível analisá-las abrangendo as
especificidades existentes nas vivências de cada mulher.
Em outras palavras, a concepção interseccional tão presente nos debates dentro do
Movimento Feminista Negro defende que as condições socioculturais nas quais as mulheres
23

negras estão inseridas são agravantes em seu processo de exclusão e que falar de união e
empatia, mas não abranger a todas é um erro crasso, já que reproduz o racismo, por exemplo.
Diante desse cenário:
[...] frequentemente e por engano, pensamos que a interseccionalidade é
apenas sobre múltiplas identidades, no entanto, a interseccionalidade é, antes
de tudo, uma lente analítica sobre a interação estrutural em seus efeitos
políticos e legais. [...] nos mostra como e quando mulheres negras são
discriminadas e estão mais vezes posicionadas em avenidas identitárias, que
farão delas vulneráveis à colisão das estruturas e fluxos modernos
(AKOTIRENE, 2020, p. 63).

Sendo assim, levando em consideração os questionamentos acerca de a quais mulheres


estamos nos referindo e quais são seus pontos de partida, a compreensão de que apoio e
irmandade entre elas é fundamental, porém não basta, torna-se mais evidente. Diante disso,
entra em cena o termo “Dororidade”, conceito chave cunhado pela professora e militante da
causa negra feminista Vilma Piedade. Partindo de sua condição identitária de negritude, a
autora (2017) direciona a atenção para o reflexo específico da opressão sofrida pelo ser
feminino negro e cunha tal termo se referindo à dor exclusivamente sentida e compartilhada
pelas mulheres negras. Sobre o conceito de dororidade, Piedade aponta que:

Dororidade carrega no seu significado a dor provocada em todas as Mulheres


pelo Machismo. Contudo, quando se trata de Nós, Mulheres Pretas, têm um
agravo nessa dor. A Pele Preta nos marca na escala inferior da sociedade.
[...]
A sororidade parece não dar conta da nossa pretitude. Foi a partir dessa
percepção que pensei em outra direção, um novo conceito que, apesar de
muito novo, já carrega um fardo antigo, velho conhecido das mulheres: a
Dor – mas, neste caso, especificamente, a Dor que só pode ser sentida a
depender da cor da pele. Quanto mais preta, mais racismo, mais dor
(PIEDADE, 2017, p. 17).

Diante de tal conceito, a teórica discute o espaço socialmente direcionado à mulher


negra dentro de uma sociedade que carrega as marcas de um sistema patriarcal e escravocrata,
com constantes manifestações de opressões e violências. Além disso, por vezes, ainda se tem
a naturalização de tais aspectos, pois, nos casos de mulheres com a pele preta as opressões são
geralmente silenciadas. Nesse sentido, novamente recorre-se à Vilma Piedade, que aborda o
conceito com suas particularidades: “[...] Dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a
ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. Essa Dor é Preta” (PIEDADE, 2017,
p.16).
Com isto, o conceito “Dororidade” carrega em si as angústias concretas partilhadas
pelas mulheres pretas que são cruelmente atravessadas pelo racismo, sexismo, violação de
24

direitos básicos, objetificação de seus corpos, desigualdades sociais, entre outros. Posto isto,
Dororidade significa também representatividade e instrumento de resistência e, vale ressaltar,
seu objetivo não é anular a concepção muito pertinente de Sororidade, mas sim ampliar os
objetivos fundamentais de modo que as mulheres pretas também possam ser representadas.
Acerca das dores sofridas em comum pelas mulheres negras, destaca-se a questão da
hiperssexualização do corpo feminino negro, destacado por meio da reprodução de
estereótipos racistas e sexistas, frutos de uma cultura patriarcal que faz com que tal corpo seja
encarado como fonte de satisfação sexual dos homens e/ou objeto cobiçado por outros. Essas
opressões possuem raízes históricas e fincaram alicerces no período escravocrata perdurando
até os dias atuais. Nesse sentido, a ativista Ângela Davis, em sua obra Mulheres, Raça e
Classe aponta:

A escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual, quanto no tronco


e no açoite. Impulsos sexuais excessivos, existentes ou não entre os homens
brancos como indivíduos, não tinham nenhuma relação com essa verdadeira
institucionalização do estupro. A coerção sexual, em vez disso, era uma
dimensão essencial das relações sociais entre o senhor e a escrava. Em outras
palavras, o direito alegado pelos proprietários e seus agentes sobre o corpo
das escravas era uma expressão direta de seu suposto direito de propriedade
sobre pessoas negras como um todo. A licença para estuprar emanava da
cruel dominação econômica e era por ela facilitada, como marca grotesca da
escravidão (DAVIS, 2016, p. 174).

Assim, torna-se evidente a lógica de dominação construída e reforçada no intuito de


negar o direito e a liberdade sexual da mulher negra, mais especificamente as de pele retinta,
já que seu único propósito estava somente voltado para a submissão. Hoje, este imaginário
social permeado de ideais de posse por parte dos homens é expresso de diferentes formas
como, por exemplo, pela negação do direito feminino de viver plenamente o processo de
autoconhecimento de seu corpo e sua autonomia, e isso implica na exclusão da presença do
afeto em suas vidas. Assim, esse corpo feminino negro é erotizado a todo momento e esse
processo resulta no apagamento da subjetividade da mulher negra.
Em seu artigo “Racismo e sexismo na cultura brasileira”, Lélia Gonzalez aborda, por
uma outra perspectiva, as noções de “mulata” e “doméstica” atribuídas às mulheres negras.
Aqui, pretende-se enfatizar a expressão pejorativa socialmente difundida “mulata
exportação”, direcionada às negras de pele clara que, em situações muito específicas, deixam
de ser anônimas e passam a adquirir uma enorme reverência e admiração, mas por meio de
conotações eróticas. O termo “mulata”, extremamente racista e que etimologicamente
animaliza a figura feminina, é utilizado como estratégia para a manutenção da hiper
25

sexualização dos corpos das mulheres negras e, consequentemente, culmina na cultura do


estupro.
O termo surge na década de 1970 e se refere às práticas sociais e estruturantes que
sempre serviram de suporte ou aval para a violência sexual contra a mulher. Para início da
discussão, é relevante entender que o sentido de “cultura” dialoga diretamente com condutas
comportamentais que foram socialmente criadas e consequentemente normalizadas, não se
trata de práticas indissociáveis da natureza humana, ou seja, que acompanham o ser social
desde seu nascimento, algo incutido no mesmo. Apesar de o estupro não ser um crime
escancaradamente tolerável em nosso meio social, diversas condutas subsidiam
historicamente a construção da chamada Cultura do Estupro.
Tal cultura se constitui desde questões ideológicas referentes ao gênero, do que se
destina ao comportamento feminino e ao masculino; até mesmo através da mídia, quando há a
aparição de corpos femininos, na maioria das vezes, objetificados (principalmente em
produções que tem como alvo o público masculino). Desta forma, estes corpos são
desumanizados e apresentados por meio de cunho sexual. Além disso, há produções musicais
que endossam e normalizam práticas sexuais violentas e de assédio contra mulheres, com uso
de termos de baixo calão que inferiorizam as mesmas ou até mesmo que objetificam corpos de
mulheres menores de idade, bem como a não consideração da imposição por parte da mulher,
já que, em determinadas situações, o “não” emitido por uma mulher não é respeitado ou até
mesmo é entendido como uma tática de sedução/charme. Tudo isso, por fim, pode levar à
culpabilização da vítima.
A culpabilização da mulher em casos de violência sexual se dá desde o
reconhecimento de tal crime. As ações punitivas para o crime se voltam à mulher, não no
sentido de amparo e garantia de seus direitos, mas no intuito de julgá-la, levando em conta
questões morais e outras questões pessoais da vítima para determinar qual deveria ser a pena
do culpado. O que era chamado de crime de defloramento, presente no Código Penal de 1890,
por exemplo, consistia no ato de desvirginar uma mulher menor de idade antes de se casar
com ela. A pena do homem responsável pelo ato era pautada na moral da mulher, se
comprovado, ele deveria se casar com ela ou seria condenado e preso. Em parte dos casos, a
escolha entre o matrimônio ou a reclusão ficava a critério do homem. Segundo o portal Que
República é essa?,17 um dos pontos a serem destacados é a respeito de como a mulher era
vista na sociedade,

17
Defloramento. Que República é essa?, 2019. Disponível em: <http://querepublicaeessa.an.gov.br/uma-
surpresa/148-defloramento.html>. Acesso em: 18 jun.2020.
26

O defloramento não era considerado um crime contra a pessoa, mas sim


contra os costumes. Além disso, a comprovação do ato sexual e do uso de
“sedução, engano ou fraude” só levavam à condenação após uma detalhada
investigação, pelas autoridades, da vida familiar, da “moral” e da
“honestidade” da mulher. Isso, algumas vezes, acabava por beneficiar as
ditas “damas da alta sociedade”, assim como os acusados que pertenciam a
famílias mais ricas e poderosas, enquanto os homens mais pobres eram mais
facilmente condenados e as mulheres de famílias mais humildes tinham mais
dificuldade para obterem êxito em suas denúncias.

Assim, torna-se evidente o preterimento sofrido por parte das mulheres, mesmo
quando vítimas de violência sexual, principalmente nos casos de mulheres negras que ainda
enfrentam duplos e cruéis atravessamentos ocasionados pelo machismo e pelo racismo. Dessa
forma, verifica-se a urgência de se discutir termos já em voga na sociedade, como
“dororidade”, “interseccionalidade” e “racismo estrutural”, unindo-os com outros que ainda
não são tão conhecidos, mas se tornaram tão necessários quanto, e aprofundando as
discussões sobre gênero.
No próximo capítulo serão abordadas questões relacionadas à pouca presença do
protagonismo das mulheres negras no rol das narrativas literárias, tanto exercendo o papel de
personagens como também de escritoras, o que impacta negativamente sua atuação de forma
geral na sociedade. Além disso, com o objetivo de trazer à luz caminhos para reflexão-ação
acerca da questão norteadora da pesquisa, serão discutidos aspectos que ampliam a relevância
de se pensar a literatura como uma potente ferramenta de denúncia e resistência.
27

2 “NAS CONTAS DE MEU ROSÁRIO EU CANTO, EU GRITO”: 18 MULHERES


NEGRAS, LITERATURA AFRO-BRASILEIRA E ESCREVIVÊNCIA

A mulher negra no Brasil teve seu corpo coisificado por uma sociedade que carregava
(e carrega, mesmo hoje) marcas ancestrais eurocêntricas, e ainda precisou lutar contra o
silenciamento de sua voz até mesmo dentro do texto ficcional, ou seja, por um período não se
tinha mulher negra ocupando o lugar de sujeito da sua própria história. Nas obras literárias
produzidas até o século XIX, no Brasil, o lugar concedido a ela era o de escravizada, alguém
que estava presente apenas para servir e/ou satisfazer os desejos das famílias brancas e de seus
senhores. Sendo assim, não era conferido um espaço de protagonismo para a mulher negra,
quando aparecia era de forma secundária. Conceição Evaristo, em seu texto, “Gênero e Etnia:
uma escre(vivência) de dupla face”, discute sobre tais aspectos e aponta que:

Colocada a questão da identidade e diferença no interior da linguagem, isto é,


como atos de criação linguística, a literatura, espaço privilegiado de produção e
reprodução simbólica de sentidos, apresenta um discurso que se prima em
proclamar, em instituir uma diferença negativa para a mulher negra. Percebe-se que
na literatura brasileira a mulher negra não aparece como musa ou heroína
romântica, aliás, representação nem sempre relevante para as mulheres brancas em
geral. A representação literária da mulher negra, ainda ancorada nas imagens de
seu passado escravo, de corpo-procriação e/ou corpo-objeto de prazer do macho
senhor, não desenha para ela a imagem de mulher-mãe, perfil desenhado para as
mulheres brancas em geral (EVARISTO, 2005, p. 02).

Sendo assim, quando se tratava da mulher negra dentro do texto ficcional, ela era
enquadrada dentro de estereótipos socialmente estabelecidos, de cuidadora dos serviços da
casa grande e da cozinha, de mãe preta, de um corpo sensual e objeto de satisfação pessoal de
seus senhores. Com isso, mesmo após o fim da escravidão no Brasil, na literatura a mulher
negra continuou sendo reduzida apenas a personagens que possuíam um corpo “quente”
sexualizado. Em diversas obras é possível notar tais evidências, como aponta Eduardo de
Assis Duarte:

18
Verso do poema “Meu rosário”, de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e outros
poemas. Rio de Janeiro: Malê, 2017, p. 43-44.
28

Enquanto personagem, a mulher afrodescendente integra o arquivo da literatura


brasileira desde seus começos. De Gregório de Matos Guerra a Jorge Amado e
Guimarães Rosa, a personagem feminina oriunda da diáspora africana no Brasil
tem lugar garantido, em especial, no que toca à representação estereotipada que une
sensualidade e desrepressão. [...] assim a doxa patriarcal herdada dos tempos
coloniais inscreve a figura da mulher presente no imaginário masculino brasileiro e
a repassa à ficção e à poesia de inúmeros autores (DUARTE, 2009, p. 01).

Além disso, a mulher negra ainda precisou lutar para ser autora de sua própria história,
ou seja, quando ela aparecia como personagem nas obras literárias, era apresentada
geralmente por homens brancos, pertencentes à classe média. Diante disso, o silenciamento da
voz feminina negra ocorria também no âmbito da escrita e publicação de suas obras, pois, a
atribuição de produção de conhecimento destinava-se aos homens brancos. Para romper com
tal hegemonia presente na literatura, a mulher afro-brasileira precisou percorrer um caminho
de luta e resistência visando alcançar a legitimação de seus textos e também o reconhecimento
e a valorização como produtoras intelectuais.
A quebra desse paradigma iniciou-se ainda no século XIX com a atuação da escritora
negra maranhense Maria Firmina dos Reis (1822-1917), que encarou as marcas cruéis da
segregação racial e da fome. Mesmo diante a tal cenário, formou-se como professora e
exerceu sua profissão. Segundo o site: Literafro - O portal da literatura Afro-Brasileira, 19
com a publicação de sua obra Úrsula, Maria Firmina dos Reis tornou-se a primeira mulher
negra latino-americana a ter um romance publicado.
Além de Maria Firmina dos Reis, outra escritora de destaque é a mineira Carolina
Maria de Jesus, nascida em 1914 e que desde nova também sofreu com o racismo e a fome.
Frequentou a escola somente por dois anos, e em busca de melhores condições de vida
mudou-se para São Paulo. Ao chegar lá deparou-se com o mesmo cenário de exclusão racial e
social, tendo que exercer então a profissão que era destinada somente à mulher negra: a de
empregada doméstica. Tempo depois, torna-se catadora de papel, e ao levar os cadernos que
encontrava no lixo para casa, passa a escrever acerca das dificuldades que encontrava por ser
mulher, preta e pobre.
Ambas as escritoras fazem parte das autoras que inspiram o movimento feminista
negro no Brasil e, na contemporaneidade, servem como referência para outras mulheres
negras escritoras. Através da literatura, elas preservaram suas raízes ancestrais ao transporem
para o papel suas vivências e memórias, entendendo como memória a concepção dada por
19
Maria Firmina dos Reis. literafro - O portal da literatura Afro-Brasileira, 2021. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/322-maria-firmina-dos-reis. Acesso em: 23 nov.2021
29

Lélia Gonzalez (1984), que aponta: “[...] a gente considera como o não saber que conhece,
esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita, o lugar da emergência
da verdade, dessa verdade que se estrutura como ficção. [...]” (GONZALEZ, 1984, p. 240).
Evaristo, em uma entrevista20 concedida ao Jornal Correio Brasiliense, partindo da
condição de mulher-negra, relata a dificuldade enfrentada pelas mulheres afrodescendentes de
terem suas produções de conhecimento reconhecidas e até mesmo validadas pela sociedade,
pois, por vezes são inviabilizadas e invalidadas. A autora discorre acerca da temática e afirma:

[...] Sem sombra de dúvida existe esse imaginário em relação às mulheres


negras, que é um imaginário que, normalmente, não nos coloca como
sujeitos produtores de saber, sujeitos produtores de determinada arte. A
literatura, até hoje, está nas mãos de homens e homens brancos. [...]. 21

Sob essa perspectiva abordada por Conceição Evaristo, ressalta-se a relevância e a


função de transformação social dos movimentos negros, surgidos no intuito de reivindicar
direitos à população negra e que, no decorrer das décadas, foi adquirindo um caráter cada vez
mais plural referente às temáticas e discussões realizadas em prol do coletivo. Dessa forma,
considerando a escrita como símbolo de resistência e postura ética-política, além de ser uma
estratégia de sobrevivência, destacam-se ações adotadas por parte do ativismo negro a partir
da década de 1960, como por exemplo a criação dos Cadernos Negros,22 tendo seu primeiro
volume publicado no ano de 1978.
Devido ao período de ditadura militar brasileira, de 1960 em diante, a imprensa negra
e todas as outras possíveis formas de expressões artísticas/culturais eram cerceadas. Porém,
em meados da década de 1970, poetas e escritores negros mobilizaram-se no enfrentamento
ao epistemicídio, ou seja, ao apagamento das diversas formas de conhecimento produzidas
por este grupo considerado minoritário. Uma das estratégias adotadas foi a criação dos
Cadernos Negros, que logo em seu início assim se apresenta:

Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África, vida nova, mais


justa e mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras
brancas, pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos
poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando
nosso espírito das ideias que nos enfraquecem e que só servem aos que

20
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao
arte/2018/07/15/interna_diversao_arte,694873/entrevista-conceicao-evaristo.shtml. Acesso em: 23 jun.2021
21
Idem Ibidem.
22
Organizado, publicado e distribuído, a partir de 1983, pelo QUILOMBHOJE LITERATURA, grupo
paulistano de escritores, foi fundado em 1980, por Cuti, Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo
Rodrigues e outros, com objetivo de discutir e aprofundar a experiência afro-brasileira na literatura, bem como
ecoar vozes historicamente silenciadas.
30

querem nos dominar e explorar (Cadernos Negros 1, apud DUARTE, 2011,


p. 272).

Diferentemente das narrativas canônicas, que privilegiam um sistema branco


hegemônico, as personagens e vozes que permeiam os Cadernos Negros são retratadas com
base nas vivências, lutas e conquistas do povo preto. Além disso, apresentam perfis distintos,
rompendo com determinados estereótipos de igualdade, marcas frequentemente utilizadas
para perpetuar práticas racistas na sociedade, como se todos os negros não possuíssem suas
individualidades. Os Cadernos Negros surgem então em um contexto inflamado por grandes
acontecimentos da época:

O marco é 1978, ano politicamente conturbado. Enquanto um grande jornal


publicava um artigo de página inteira de Gilberto Freire louvando ‘a
democracia racial brasileira como modelo de convivência entre as raças’,
militantes negros organizavam uma manifestação nas escadarias do Teatro
Municipal, que, realizada em novembro, daria início a uma série de
denúncias e protestos sob o signo do Movimento Negro Unificado Contra a
Discriminação Racial.
[...]
Do útero desta fermentação, nascia o Cadernos Negros.
(Cadernos Negros 11, 1988, s/p)

Nesse sentido, no que se refere à escrita de autoria negra, em especial a feminina,


Conceição Evaristo aborda que esta consiste em um ato político de existência também, já que
a escrita consiste em um dos principais instrumentos de comprovação da vigência de um povo
ou grupo. É dessa maneira que a memória pode ser preservada, que a oralidade se perpetua e a
cultura e o conhecimento pretos em constante engendramento podem alcançar maior
amplitude. Desse modo, tal escrita perpassa por temáticas complexas, como as manifestações
de violência, ancestralidade e memória, o que evidencia o engajamento social tão presente na
literatura afro-brasileira. Assim, Evaristo aponta que

[...] as escritoras negras buscam inscrever no corpus literário brasileiro


imagens de uma autorrepresentação. Criam, então, uma literatura em que o
corpo-mulher-negra deixa de ser o corpo-do-outro como objeto a ser
descrito, para se impor como sujeito-mulher-negra que se descreve, a partir
de uma subjetividade própria experimentada como mulher negra na
sociedade brasileira (EVARISTO, 2005, p. 54).

Ser então o sujeito da narrativa e não mais o objeto frequentemente manipulado por
outros no campo literário é considerar que existem vivências únicas que só determinados
corpos, com características bem definidas – mas lidos socialmente por uma perspectiva
31

padrão – sentem e experenciam. As mulheres negras sofrem atravessamentos dos mais


diversos níveis, baseados na objetificação, hiperssexualização ou até mesmo animalização de
seus corpos e/ou personalidades. Escrever sobre elas, ler seus livros publicados e apoiá-las na
divulgação de sua arte é conferir, cada vez mais, um espaço de acolhimento e afeto,
auxiliando-as em seus processos de cura e fortalecendo a todas nos entraves do sistema.
Assim, ressalta-se o papel transformador da arte em iniciativas como a criação dos
Cadernos Negros (1978), que se constituem como estratégias de enfrentamento ao sistema
patriarcal, pois tem como um de seus objetivos principais a divulgação e publicação de
autoras iniciantes. Desta maneira, ao longo da história, mulheres negras, por meio da escrita,
mantiveram vivas suas memórias e utilizaram/utilizam da literatura como um espaço de
reivindicações e representatividade. Assim, esta “ciranda poética” não para de girar e, a cada
movimento, unem-se outras vozes de denúncia, fortalecendo as pautas étnico-raciais e a
formação de coletivos negros.

2.1 O TRAÇADO POÉTICO VISCERAL DA ESCREVIVÊNCIA DE CONCEIÇÃO


EVARISTO

A escritora Conceição Evaristo, assim como inúmeras mulheres de origem afro-


brasileira, teve sua trajetória de vida marcada pelas desigualdades raciais e sociais. Conceição
Evaristo nasceu no estado de Minas Gerais em 29 de novembro de 1946. Cresceu com a
ausência do pai, em contrapartida teve duas mães responsáveis por sua criação, a mãe
biológica, Joana Josefina Evaristo, e sua tia, Maria Filomena da Silva, que diante da
dificuldade da irmã em criar suas quatro filhas sozinha e por ter uma condição melhor,
acolheu a sobrinha e a criou também. Convivendo com a tia, Conceição teve a oportunidade
de conduzir seus estudos.23
Assim como a mãe e a tia, ambas lavadeiras que trabalhavam também em outras
funções de serviços domésticos, a escritora trabalhou desde muito nova para outras pessoas,
cuidando das crianças das patroas, arrumando suas casas, ajudando a mãe e a tia na lavagem
de roupas, levando crianças para a escola e também sendo responsável por ajudá-las em suas
atividades escolares. Em alguns momentos, Evaristo chegava a ser minimamente
recompensada pelo auxílio dado, já em outras ocasiões, catar lixos e sobras das pessoas ricas
também foi uma forma de manter a sobrevivência da família.
23
Conceição Evaristo. literafro - O portal da literatura Afro-Brasileira, 2021. Disponível em:
http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo. Acesso em: 22 nov.2021
32

O racismo sofrido em vários momentos por Conceição Evaristo não deixou de ser
presente em sua trajetória escolar. Em entrevistas disponíveis em plataformas digitais e em
depoimento feito no I Colóquio de Escritoras Mineiras, a autora relata a segregação explícita
que acontecia numa escola em que estudava durante os anos iniciais da Educação básica. A
estrutura da instituição era basicamente dividida em duas partes, separando alunos brancos de
melhores condições numa parte superior privilegiada, enquanto alunos de condições menos
favorecidas eram alocados em porões.
Um marco inicial de Conceição enquanto escritora acontece ainda no término do
ensino primário, no ano de 1958, quando ela vence um concurso de redação, que teve como
título “Por que me orgulho de ser brasileira”. No período de escola, Evaristo já se impunha e
ocupava lugares de seu direito, incluía-se nas atividades, ainda que a escola não a estimulasse
ou minimamente fizesse questão de que participasse de maneira ativa nas propostas. Vale
ressaltar que, no âmbito familiar, a escritora já tinha contato com a formação de uma
consciência social e racial.
Na década de 1970, no contexto de extrema dificuldade e falta de oportunidades em
Minas Gerais, Conceição muda-se para o Rio de Janeiro, estado em que se formou no Curso
de Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O contato da escritora com a
literatura deu-se inicialmente no âmbito familiar com o exercício da oralidade, pois, na
ausência de livros em casa, sua mãe, tia (pessoas interessadas e ligadas à literatura apesar da
pouca alfabetização), tio e pessoas mais próximas narravam diversas histórias. Em uma
conversa sobre ancestralidade publicada na plataforma YouTube,24 a escritora chama a atenção
para a criatividade e o tom de ficcionalidade que as histórias contadas ganhavam, inclusive a
ficcionalidade foi fonte de escape das situações de dificuldades enfrentadas por ela.
Em sua arte, a poeta via a possibilidade de viver uma outra realidade, viver aquilo que
estava em seus sonhos, e sua escrita/depoimento é marcada pelo entrelaçamento de suas
memórias e de quem é, no momento presente. A escrevivência, termo cunhado por Evaristo e
que constitui sua escrita, diz respeito à partilha de sua subjetividade, incluindo essencialmente
sua experiência pessoal enquanto mulher afro-brasileira, as dores, injustiças e opressões que
isso carrega, além de suas memórias afetivas e alegres. Todas estas questões misturam-se com
histórias alheias ficcionalizadas e aproximadas por meio de entrecruzamentos ancestrais.
A primeira obra de Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio, foi publicada em 2003, vinte
anos depois de ter sido escrita. Este espaçamento de tempo entre o período de escrita e
24
Qual é a importância da história na resistência negra? | Consciência Negra | Mini Saia | Saia Justa, 2019. 1
vídeo (16min11s). Publicado pelo Canal GNT. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=tNy7rwUE_KY&t=428s>. Acesso em: 26 out. 2021.
33

finalmente a publicação configura-se mais uma vez como um reflexo do racismo. Assim como
em outras esferas sociais, no mercado editorial, mulheres pretas encaram a dificuldade de
terem suas obras publicadas. A autora afirma que assim como o ato de escrita é político, a
publicação também se faz como tal.
Em sua experiência pessoal, Evaristo explicita que o fato de ter sido uma escritora
negra sem qualquer contato neste mercado tão excludente, ocasionou este atraso na
publicação de seu livro. Vale ressaltar que, apesar de a autora escrever desde sua juventude,
sua trajetória literária foi se consolidando através de sua atuação nos Cadernos Negros, por
meio das antologias.25 Assim, Conceição Evaristo busca contrariar o processo de
silenciamento pelo mercado editorial racista aos poucos adentrando no cenário literário,
mesmo que ainda não houvesse publicado seu livro solo.
O incentivo à publicação de coletâneas ou antologias literárias é de suma importância,
já que consiste em um movimento que destaca a arte de autores iniciantes, até então
pertencentes ao anonimato, e de sujeitos historicamente marginalizados e silenciados. Essas
iniciativas podem ser vistas como uma postura política de enfrentamento às estratégias
excludentes por parte do grande mercado editorial. Em um país como o Brasil, em que a
maioria populacional é negra, conferir maior visibilidade a estes denuncia as inúmeras
desigualdades que os atravessam e corrobora com a luta antirracista.
Nesse sentido, vale ressaltar a insurgência das editoras independentes no cenário da
literatura contemporânea de autoria feminina. Historicamente, mais e mais editoras
independentes surgem ano a ano no país e há, inclusive editoras independentes direcionadas a
segmentos específicos, como a pioneira editora mineira Mazza Edições, que publica há mais
de quatro décadas autores negros e autoras negras, reafirmando o seu compromisso de
difundir a cultura brasileira e afro-brasileira a seus leitores. Criar e manter uma editora
independente em funcionamento é sempre um desafio. Em 2020, com o contexto pandêmico
do coronavírus e suas trágicas consequências nos diferentes setores da sociedade, o setor
livreiro foi drasticamente atingido, de modo que se tornou urgente pensar em novas táticas de
sobrevivência. Tomando como base essa “força de resistência”, Karina Lima Sales, em seu
artigo “Miradas Femininas: reflexão sobre a atuação de editoras independentes geridas por
mulheres no Brasil”, aponta que

Atuar como editora independente no mercado editorial brasileiro é uma


espécie de luta, com desafios os mais variados que se interpõem aos
editores-autores-envolvidos em cada um dos projetos. E as editoras
25
Conjunto de textos de diferentes gêneros (poesia, conto, crônica) com autoria de mais de um(a) escritor(a).
34

independentes que intentam consolidar suas ações vinculando práticas


editoriais com conteúdo, para além da mera ação de publicar e vender livros,
podem ser analisadas como focos de resistência cultural (SALES, 2020, p.
148).

Assim, defende-se o livro não apenas como um objeto vendável, mas sim como um
instrumento político capaz de propiciar transformações sociais ao questionar ideologias
hegemônicas e visibilizar histórias apagadas de um povo e de sua cultura. Além disso, os
fenômenos de criação e edição, antes de adentrar à publicação propriamente dita, aliam-se a
esta perspectiva político-cultural, pois se entende que, transcendendo a relevância do
conteúdo das obras escritas, o processo em que estas se submetem diz muito acerca do
silenciamento e apagamento dos(as) autores(as) pertencentes aos grupos socialmente
marginalizados, como é o caso das mulheres negras que escrevem.
Devido à efervescência das pautas de cunho étnico-racial, tomando como parâmetro
de maneira específica o século XXI, o mercado editorial independente, principalmente os
selos próprios de autoria negra, vem adquirindo um maior reconhecimento e visibilidade.
Muitas editoras inclusive possuem apenas mulheres em sua frente organizacional e intentam
divulgar escritoras de todas as regiões brasileiras. Diante deste cenário, mesmo com todos os
enfrentamentos opressores, Conceição Evaristo é um exemplo notável de escritora afro-
brasileira que continua a abrir caminhos para que outras escritoras também afro-brasileiras
tenham mais oportunidades e consequentemente passem por experiências diferentes,
alcançando êxito ao ecoar suas vozes e, finalmente, serem ouvidas.
Dessa forma, destaca-se aqui o conceito de escrevivência, criado por Evaristo, e sua
importância, visto que consiste em potencializar narrativas negras que partem das
experiências pessoais das próprias autoras e também do ponto de vista coletivo, do povo
preto. Vozes negras em conjunto na intenção de burlar o imaginário social construído e
reforçado que difunde o ideal de que mulheres negras não são intelectuais e que por isso são
incapazes de produzir saberes.
Todos esses apontamentos consistem em exemplos concretos da esteira elitista que é o
mercado editorial, no que diz respeito à divulgação e o reconhecimento de autores afro-
brasileiros. Mas, acima de tudo, representam possibilidades de expansão, aceitação e
reconhecimento da potência de escrita de autoras negras sujeitas de si, munidas de
insubmissão e resistência.
35

2.2 INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE MULHERES: DIÁLOGOS VIVOS QUE INSURGEM E


ECOAM

Em seu livro Insubmissas Lágrimas de Mulheres, Conceição Evaristo apresenta


histórias que se cruzam entre si, como diálogos vivos em uma roda composta de mulheres. A
autora parte da condição de mulher preta e escritora e torna-se porta voz de outras mulheres
afro-brasileiras. A obra teve sua primeira publicação no ano de 2011 e uma segunda
publicação em 2016, dessa vez pela editora Malê,26 e estrutura-se através de treze contos, o
que já se evidencia de forma acentuada no título dos contos. Apesar desta divisão, o
entrecruzar citado se constitui como um elo que se forma através da identificação, empatia e
semelhanças da experiência de ser mulher e negra que une todas as narrativas, e os relatos
partilhados são dispostos e conduzidos por meio de uma estratégia narrativa que consiste na
criação de uma personagem ouvinte de tais histórias.
Além de se colocar como porta voz dos relatos das mulheres, essa personagem
também é uma mulher que, a partir da escuta, coleta os depoimentos e os guarda,
demonstrando uma espécie de compromisso com a preservação e transmissão das narrativas
orais e consequentemente de memórias afro-brasileiras que dizem sobre questões raciais,
socioeconômicas e de gênero.
Na interação de escuta e proferimento de histórias, a personagem criada por Conceição
Evaristo, enquanto elemento provocador das narrativas conduz o enredo como uma griotte,
segundo Hampâté Bâ (2010, p. 193), os griots (termo no masculino) ou dieli (na língua
bambara) são caracterizados como uma “[...] espécie de trovadores ou menestréis que
percorrem o país ou estão ligados a uma família”, possuem um status especial social e são as
guardiãs e os guardiões da memória, é através deles que os conhecimentos a respeito da
história do povo africano foram e são transmitidos através da oralidade. Hampâté Bâ (2010, p.
193) esclarece que, diferentemente de outros papéis ou funções sociais africanos, os griots
“[...] não têm compromisso algum que os obrigue a ser discretos ou a guardar respeito
absoluto para com a verdade”, há uma liberdade sobre a palavra proferida.
Evaristo, através dessa fusão de “vozes-mulheres”, conduz o enredo por meio de uma
identificação pessoal e aproximações com algumas personagens, colocando-se no texto à
medida que escuta e por vezes narra a respeito de alguma história, faz-se representante de um
26
A editora Malê é um importante meio de publicação dos livros de autores negros. O site Literafro publicou um
texto referente à editora apontando que: “A Malê é uma editora e uma produtora cultural, fundada por Vagner
Amaro e Francisco Jorge, em agosto de 2015, no Rio de Janeiro, RJ. Foi planejada com objetivos bem
específicos: “aumentar a visibilidade de escritores e escritoras negros contemporâneos; ampliar o acesso às suas
obras; e contribuir com a modificação das ideias pré-concebidas sobre os indivíduos negros no Brasil [...]”
Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/editoras/1092-editora-male. Acesso em: 23 out. 2021.
36

coletivo. Assim como aquilo que é transmitido pelos griots não depende de uma verdade
absoluta, na apresentação inicial da obra, a autora esclarece sobre os traços de ficcionalidade
presentes, pois as narrativas ou depoimentos que são passados adiante através da oralidade
estarão sempre sujeitos a algumas alterações:

[...] Invento? Sim invento sem o menor pudor. Então as histórias não são
inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar
fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato,
alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica
comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não
comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso.
Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no
premeditado ato de traçar uma escrevivência (EVARISTO, 2016, p. 07.
Grifos nossos).

Sendo assim, a obra em estudo é permeada pelo conceito da escrevivência, ou seja, ao


longo das suas múltiplas vivências, Evaristo entra em contato com narrativas de mulheres
negras que carregam traumas em suas trajetórias. Dessa forma, a autora utiliza-se da literatura
como uma ferramenta de representação de tais narrativas. Para isso, cada conto representa um
capítulo no livro e são, respectivamente, intitulados: Aramides Florença, Natalina Soledad,
Shirley Paixão, Adelha Santana Limoeiro, Maria do Rosário Imaculada dos Santos, Isaltina
Campo Belo, Mary Benedita, Mirtes Aparecida da Luz, Líbia Moirã, Lia Gabriel, Rose
Dusreis, Saura Benevides Amarantino e Regina Anástacia.
Além de terem seus próprios nomes como títulos dos capítulos, as protagonistas da
obra apresentam outros pontos em comum, como as diferentes manifestações de violência aos
corpos negros, seja de maneira física ou psicológica, além de precisarem lutar diariamente
contra as opressões do racismo. Entretanto, como o próprio título do livro sugere, apesar de
toda a dor, essas mulheres se mantiveram fortes e de alguma forma romperam com a
submissão em que eram enquadradas, ou seja, protagonistas vítimas de racismo, machismo e
sexismo, mas tornaram-se insubmissas e assumiram o controle de suas próprias histórias.
A narrativa de Conceição Evaristo em Insubmissas Lágrimas de Mulheres é costurada
pelas diversas manifestações de violência cotidianamente vivenciadas pelo gênero feminino,
tendo atravessamentos adicionais às mulheres negras. A título de exemplificação, no conto
intitulado "Natalina Soledad", a protagonista nos revela sua trajetória de vida permeada pela
misoginia, o ódio e desprezo a sua condição de mulher. Seu nascimento foi sinônimo de
desgosto em especial para o seu pai, que por meio de uma postura totalmente misógina,
refere-se à existência da filha como uma "falha", motivo de vergonha para sua família, que
sempre seguiu os moldes patriarcais.
37

Fica evidente no conto em questão a ramificação da violência psicológica oriunda da


instituição familiar, conceituada e explorada no primeiro capítulo desta pesquisa, pois durante
toda sua infância e no decorrer da adolescência, a protagonista sofre um processo de
dominação muito acentuado, como se comprova no trecho: “[...] E, como não queria passar
por mais esse vexame, permitiu que a coisa menina, mal-vinda ao seio familiar, fizesse parte
da prole dele, mas só no nome.[...]” (EVARISTO,2016, p. 21). Nesse sentido, o âmbito familiar
de Natalina a oprime devido ao seu gênero e reafirma tal violência ao nomeá-la
pejorativamente como "Troçoléia", a menina tem sua humanidade negada ao ser comparada a
um "troço", algo sem valor.
Um outro exemplo evidenciado na obra é o conto intitulado “Lia Gabriel”, uma
mulher preta e mãe, que vivenciou um relacionamento de constantes agressões físicas por
parte do pai dos seus três filhos. Com o passar do tempo as agressões foram se intensificando
e seu parceiro tentou agredir também uma das crianças, como se evidencia no fragmento a
seguir: “[...] começou, então, nova sessão de torturas. Ele me chicoteando e eu com o Gabriel
no colo. E, quando uma das chicotadas pegou no corpo do meu menino, eu só tive tempo de
me envergar sobre meu filho e oferecer minhas costas e minhas nádegas nuas ao homem que
me torturava. [...]” (EVARISTO,2016, p. 102). Diante de tal situação, Lia sai de casa com as
três crianças e ao retornar nota que seu marido tinha ido embora e levado todos os móveis da
casa.
A protagonista, após ter sido abandonada com seus filhos ainda pequenos, passa a
exercer uma jornada tripla de trabalho, sem ter ninguém que a amparasse e, além disso,
precisou lidar sozinha com o diagnóstico de esquizofrenia do seu filho Gabriel. Lia é mais um
exemplo de mulher insubmissa, pois mesmo diante de tantas dores, manteve-se forte e
conseguiu romper com a condição na qual se encontrava, tornando-se empreendedora, ao
abrir sua própria oficina de consertos eletrônicos, e era a única mulher a ter esse tipo de
comércio na cidade em que vivia.
Já no conto “Maria do Rosário Imaculada dos Santos”, a narrativa é desenvolvida
através de um relato que envolve questões como rapto de menor, ruptura de vínculo familiar e
afetivo, reminiscências relacionadas às violências sofridas por escravizados, silenciamentos
de aspectos culturais identitários, entre outras. A protagonista conta que por volta dos seis,
sete anos, inserida numa casa simples de poucos recursos, mas que acolhia uma grande
família, foi levada por um casal (entendido até então como estrangeiro) para passear, o
passeio terminou com seu irmão sendo abandonado numa estrada e ela sendo levada a um
lugar bastante distante de onde morava.
38

Sete anos se passaram, anos estes que, por parte do casal, foram pautados pela
indiferença e negação da história de Maria do Rosário construída com sua família antes de ter
sido levada para aquele lugar. Após todo este tempo longe de sua família e sentindo
diariamente a dor da separação dos seus, descobre que o casal havia se separado e seria levada
novamente para um outro lugar, a perda de esperança em conseguir voltar para sua terra já se
fazia presente. Passa um período cumprindo diversos trabalhos domésticos no intuito de ter
dinheiro suficiente para em algum momento conseguir retomar a sua terra. O desfecho se dá
com o desejo e a busca pelo reencontro com sua família.
Apesar de todos os contos da obra em estudo serem permeados por violência em seu
viés narrativo, o corpus foi escolhido baseado no objetivo principal deste trabalho, que
consiste no aprofundamento de um tipo de violência sexual específica, o estupro. Dessa
forma, realizou-se um recorte de suas três manifestações, a saber o estupro marital, o estupro
coletivo/corretivo e o estupro de vulnerável. Vale ressaltar que, sobre os dois primeiros, não
são encontradas tipificações previstas no Código Penal Brasileiro, mas se configuram como
uma modalidade do crime em si.
Segundo o Código Penal Brasileiro, artigo 213 (Lei n.º 12.015, de 2009) 27 o estupro é
concebido como ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter
conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Já no
que diz respeito ao estupro de vulnerável segundo a Lei 12.015/09 28 caracteriza-se por
envolver vítimas menores de 14 anos de idade e/ou indivíduos que não exercem plenos
poderes de suas faculdades físicas e mentais.
O próximo capítulo analisará os seguintes contos: “Aramides Florença”, acerca do
estupro marital; “Shirley Paixão”, pela égide do estupro de vulnerável e “Isaltina Campo
Belo”, com a presença do estupro coletivo/corretivo. Serão compreendidas de quais formas
essas ramificações se fazem presentes nos textos literários, quais as consequências advindas
desses estupros, o reflexo da sociedade atual e o desfecho das protagonistas diante de tamanha
violência.

27
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10612010/artigo-213-do-decreto-lei-n-2848-de-07-de-
dezembro-de-1940. Acesso em: 26 nov. 2019.
28
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em: 22 jun.
2021
39

3 “A VOZ DE MINHA FILHA RECOLHE TODAS AS NOSSAS VOZES”:29TIPOS DE


ESTUPRO E MANCHAS PATRIARCAIS EM INSUBMISSAS LÁGRIMAS DE
MULHERES

Nos contos em análise: “Aramides Florença”, “Shirley Paixão” e “Isaltina Campo


Belo”, é possível perceber a presentificação da “Dororidade” nas narrativas ao apresentarem
histórias compostas por mulheres negras que compartilham entre si as dores e cicatrizes
causadas por uma sociedade marcada pelo patriarcado, racismo e sexismo. Com isso, a
narradora dos contos, também uma mulher negra, coloca-se como porta-voz das histórias
ouvidas e, através da sua “Escrevivência”, vai tecendo os acontecimentos relatados de forma
sensível e ao mesmo tempo denunciativa acerca das agressões acometidas aos corpos
femininos negros.

3.1 “UMA MANCHA DE SANGUE ME ENFEITA ENTRE AS PERNAS”: 30O RASTRO


DO ESTUPRO MARITAL EM ARAMIDES FLORENÇA

Neste conto em questão, tem-se uma protagonista que, desde o início da sua juventude,
sonhava em ter uma casa segura e confortável no intuito de poder vivenciar a maternidade de
uma forma tranquila e feliz, além disso, almejava também encontrar um parceiro em quem
pudesse confiar e compartilhar os prazeres e deveres do seu sonho de tornar-se mãe. Aramides
Florença consegue então realizar os seus maiores sonhos e vivenciar uma grande felicidade
pelas conquistas alcançadas. O que se evidencia no fragmento a seguir: 

Florença tivera uma gestação feliz. Ter um filho havia sido uma escolha que
ela fizera desde mocinha, mas que vinha adiando desde sempre. Vivia à
espera de um encontro, em que o homem certo lhe chegaria, para ser o seu
companheiro e pai do seu filho. Um dia, realmente esse homem apareceu.
Foram felizes no namoro. E mais felizes quando decidiram ficar juntos. [...]
(EVARISTO, 2016, p. 11). 

   Assim, Aramides e seu parceiro, tendo empregos estáveis e promissores, conseguiram


em um curto período mobiliar o apartamento no qual viviam, tornando-o aconchegante e
seguro para a nova família que acabara de formar-se, podendo, desta maneira, proporcionar
um ambiente tranquilo no qual Aramides pudesse vivenciar juntamente com seu companheiro

29
 Trecho do poema “Vozes-mulheres”, de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e
outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008.
30
Trecho do poema “Eu-Mulher”, de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e outros
movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008.
40

os prazeres e dificuldades que a gestação proporcionava e irem desbravando cada vez mais
esse novo universo ainda pouco conhecido pelos dois. A protagonista experimenta cada fase
da gestação com muita alegria e entusiasmo, afinal, estava concretizando todos os seus sonhos
e contavam com uma rede de apoio constituída por amigos, familiares e principalmente seu
parceiro. O que se confirma no excerto:

[...] O pai, embevecido e encabulado com o milagre que ele também fazia
acontecer, repartia os seus mil sorrisos ao lado da mãe. E mais se
desmanchava em alegrias, quando percebia, com o toque da mão ou com o
encostar do corpo no ventre engrandecido da mulher, a vital movimentação
da criança. Desse modo, o felizardo casal seguia e media ansioso o tempo, à
espera da hora maior (EVARISTO, 2016, p. 12).

Desta maneira, ainda tomada por tremenda euforia de seu cônjuge, Florença acreditava
que, se durante a gestação estava vivenciando tamanha felicidade, no seu pós parto e durante
toda a sua jornada maternal seria acompanhada e contaria com o auxílio do seu companheiro.
Entretanto, com o passar do tempo a história foi tomando um novo rumo e o que antes era
apenas felicidade começou então a transformar-se em dúvida e sofrimento. Aramides
Florença encontrava-se com nove meses de gestação, já nas vésperas de conhecer seu filho,
quando ao deitar-se foi surpreendida com um aparelho de barbear em cima da cama, ferindo
sua barriga, fato evidenciado no fragmento a seguir: 

[...] Já estavam deitados, ela virava para lá e para cá, procurando uma melhor
posição para encaixar a barriga e, no lugar em que se deitou, seus dedos
esbarraram-se em algo estranho. Lá estava um desses aparelhos de barbear,
em que se acopla a lâmina na hora do uso. Com dificuldades para se erguer,
gritou de dor. Um filete de sangue escorria de um dos lados do seu ventre.
Aramides não conseguiu entender a presença daquele objeto estranho em
cima da cama[...] (EVARISTO, 2016, p. 13).

Diante de tal ocorrido, a moça foi tomada pela dúvida, ao começar a desconfiar que
seu companheiro pudesse ter deixado aquele objeto ali de forma proposital. Nesse momento,
tem-se então o início das séries de violências domésticas que Aramides sofreria. Sem ter
como confirmar suas suspeitas, a moça passa a acreditar que possa ter sido apenas um
acidente. Alguns dias depois outro fato acontece, seu cônjuge ao abraçá-la com um cigarro
aceso nas mãos, acabou queimando a barriga da grávida: “[...] Foi um gesto tão rápido e tão
41

violento que o cigarro foi macerado e apagado no ventre de Aramides. Um ligeiro odor de
carne queimada invadiu o ar. [...]” (EVARISTO, 2016, p. 14).   
Ao narrar tais sequências evidencia-se as agressões sofridas pela protagonista por parte
do seu companheiro, que em um primeiro momento ofereceu todo suporte e se mostrou muito
satisfeito com a família e o filho que estava prestes a nascer. Os acontecimentos narrados no
conto representam também a história de outras mulheres vítimas de violência dentro de seus
próprios âmbitos familiares, e as constantes tentativas de silenciamento de tais vítimas, por
parte de seus parceiros na tentativa de convencê-las que não foi proposital ou até mesmo
ameaçá-las, caso denunciem. 
Outro aspecto a ser evidenciado é o fato de as agressões sofridas por Florença irem se
tornando cada vez mais frequentes, fazendo com que a protagonista passasse a sentir-se
coibida pelo parceiro e, desta maneira, começou a vivenciar um ambiente doméstico pautado
no medo e na insegurança de que a qualquer momento pudesse ser agredida novamente. O
que se evidencia no excerto a seguir: 

Um medo começou a rodar o coração e o corpo de Aramides. Antes, o olhar


caloroso e convidativo do homem, que tanto lhe agradava, e a que ela
correspondia de bom grado, com sentimentos de pré-gozo, passou a
incomodá-la. Já não era mais um olhar sedutor, como fora inclusive durante
quase toda a gravidez, e sim uma mirada de olhos como se ele quisesse
agarrá-la à força. [...] (EVARISTO, 2016, p. 16).   

Sendo assim, Florença, ainda grávida, teve que conviver com o agressor dentro da sua
própria casa, tomada pela insegurança ao observar a transformação do homem que no início
do relacionamento lhe oferecia segurança e carinho e posteriormente tornara-se o responsável
pelas agressões sofridas pela moça. Ainda não se sentindo satisfeito, alguns dias após o
nascimento de Emildes, filho do casal, o companheiro de Aramides violentou-a sexualmente,
passando por cima até mesmo do puerpério da esposa, que na ocasião estava em um momento
único entre mãe e filho, a amamentação: 

De chofre arrancou o menino de meus braços, colocando-o no bercinho sem


nenhum cuidado. Só faltou arremessar a criança. Tive a impressão de que
tenha sido o desejo dele. No mesmo instante, eu já estava de pé, agarrando-o
pelas costas e gritando desamparadamente. Ninguém por perto para socorrer
meu filho e a mim. Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou na
nossa cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca
um dos meus seios que já estava descoberto, no ato da amamentação de meu
filho. E, dessa forma, o pai de Emildes me violentou. E, em mim, o que
42

ainda doía um pouco pela passagem de meu filho, de dor aprofundada, sofri,
sentindo o sangue jorrar. (EVARISTO, 2016, p. 17).   

O trecho mencionado anteriormente é um retrato de ações violentas sofridas por


diversas mulheres cotidianamente, ainda mais comum entre as negras, como aponta o Instituto
Patrícia Galvão, tomando como base o Dossiê Mulher de 2018: “As mulheres negras foram
56,3% das vítimas de estupro, enquanto as mulheres brancas corresponderam a 37% das
vítimas”.31 Tais dados são reflexos de atos machistas de homens que acreditam terem respaldo
para praticarem tais ações e as consideram como sinônimo de virilidade. Além disso, vale
salientar o grau de intimidade entre a vítima e o agressor, nesse caso o próprio marido, como
se o casamento concedesse autonomia para praticarem estas atrocidades.
Entretanto, nota-se que a violência sexual dentro do matrimônio é reflexo de parte da
sociedade que, infelizmente, ainda considera o casamento como um relacionamento baseado
em posse, no qual o homem após a união torna-se o “dono” da mulher, de suas vontades, do
seu corpo, ou seja, a figura feminina vista apenas como um objeto de satisfação pessoal do
companheiro. Aspecto retratado no conto através da dor vivida por uma mulher negra ao se
ver violentada sexualmente, desamparada e sozinha em um momento que mais precisava de
afeto e proteção. 
Ainda convém ressaltar a constante “romantização” do sexo no casamento, como se
fosse obrigação da mulher corresponder a todo momento às investidas sexuais do cônjuge, e
sentir os mesmos desejos, aspecto que exemplifica o desrespeito com a liberdade sexual
feminina no matrimônio. Tal fato pode ocasionar o aumento dos casos de violência sexual no
casamento, e, apesar de estabelecer uma relação de intimidade com o agressor, ainda assim
configura-se um caso de estupro, mais especificamente nomeado de estupro marital, ou seja, a
prática do sexo sem consentimento no matrimônio. No conto em análise, fica evidente a
presentificação do estupro marital sofrido por Aramides Florença, pois em diversos trechos é
possível perceber a falta de consentimento da mulher e a insistência do marido ao agarrá-la
violentamente. Como se nota no fragmento que segue:

Era esse o homem, que me violentava, que machucava meu corpo e a minha
pessoa, no que eu tinha de mais íntimo. Esse homem estava me fazendo
coisa dele, sem se importar com nada, nem com o nosso filho, que chorava
no berço ao lado. 

31
Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/pesquisa/dossie-mulher-2018-isp-rj-
2018/. Acesso em: 20 abril. 2022.
43

E quando ele se levantou com o seu membro murcho e satisfeito, a escorrer o


sangue que jorrava de mim, ainda murmurou entre os dentes que não me
queria mais, pois eu não havia sido dele, como sempre fora, nos outros
momentos de prazer (EVARISTO, 2016, p. 18).  

A protagonista, além de ser obrigada a satisfazer os desejos abruptos do homem, ainda


foi violentada com o seu filho recém-nascido ao lado. Nem mesmo tal situação fez com que o
homem recuasse em seu violento ato. Além disso, ainda não se dando por satisfeito, o esposo
de Florença a deixou violentada e sozinha para cuidar de Emildes, fugindo de toda a
responsabilidade com a criança e a mãe.

  
Aramides Florença buscava ser o alimento do filho. E literalmente, era. O
menino só se nutria do leite materno. A sopinha que o pediatra havia
recomendado, e que a mãe preparava cuidadosamente, o bebê mal provava,
recusando sempre. [...] O nome do pai do menino desconheço, pois
Aramides Florença só se referia ao homem que havia partido, como “o pai
de Emildes” ou como “o pai do meu filho” (EVARISTO, 2016, p. 10).  

Diante disso, percebe-se que o agressor saiu impune de toda situação, pois, no conto
em estudo, a protagonista ao compartilhar a sua dor com a narradora em nenhum momento
relatou que seu cônjuge havia sido preso ou estava respondendo legalmente na justiça pelo
seu ato. Florença aborda apenas a ausência do marido após o ocorrido, evidenciando, desta
maneira, a falta de amparo com a mulher negra na sociedade, e até mesmo a normalização do
sexo forçado no casamento. 
Dessa forma, Aramides precisou lutar contra todo o sofrimento causado pelo antigo
cônjuge para dedicar-se à criação do seu filho, e assim o fez. A mulher, mesmo diante deste
cenário, cuidava da criança com muito zelo e amor e não deixava nada faltar ao pequeno. Ela,
que sempre sonhara em vivenciar a maternidade, via em Emildes, seu filho, a concretização
de um sonho. E apresentou-o à narradora do conto logo no início da história, como comprova-
se no trecho a seguir: “Esta é a minha criança, – me disse a mãe, antes de qualquer outra
palavra –, o meu bem-amado. O nome dele é Emildes Florença” (EVARISTO, 2016, p. 09).
Ao dizer o nome de seu filho, percebe-se que a criança foi registrada apenas com o sobrenome
da mãe, evidenciando outra vez a ausência do pai até mesmo no registro do filho, o que se
pode perceber majoritariamente e em grande escala nas famílias negras marginalizadas pela
sociedade brasileira.
Diante de todos os fatos já discutidos até o momento, nota-se a força de Aramides
Florença para lutar contra suas dores e marcas sofridas ao longo de toda sua gestação, em prol
44

do amor pelo seu filho. Salienta-se ainda o fato de a protagonista, ao contar a sua história,
representar também outras mulheres negras e mães que constantemente vivenciam contextos
semelhantes ao de Aramides. Mulheres negras obrigadas a serem fortes e “guerreiras” durante
todos os anos de suas vidas, mas que são dignas de amor e afeto e se veem totalmente
desamparadas por aqueles em quem mais confiam.
Além do mais, destaca-se a importância de toda a narrativa por servir como porta-voz
da mulher negra em uma sociedade que constantemente dissemina atos machistas, racistas e
sexistas. E, apesar de se tratar de um texto literário, ele representa também o cenário não
ficcional de constante violência sexual sofrida pela mulher negra. Também pode ser visto
como objeto de denúncia do estupro dentro do casamento, além da disseminação de
informações relevantes a respeito do sexo no matrimônio, pois nota-se que parte da sociedade
ainda insiste em acreditar que após a união o homem tem liberdade de ter relações sexuais
com a esposa no momento em que desejar e, em muitos casos, ocorre a relação sem
consentimento e esta é banalizada.
Salienta-se também outro aspecto que o texto literário utiliza para representar o não
ficcional, que é o fato de o agressor sair impune de todos os atos cometidos contra a mulher,
fato que é comumente visto na sociedade e em alguns casos percebe-se a atribuição de
masculinidade a tais feitos, como se ao realizar o estupro marital o homem torna-se o
“dominador” na relação. Além disso, fica evidente a falta de amparo para a mulher vítima de
violência sexual no casamento, como se tal aspecto não configurasse um tipo de estupro, pois
por muitas pessoas, infelizmente, o matrimônio ainda é visto como uma espécie de aval para a
prática de violência sexual. 
Por fim, evidencia-se no texto literário o ficcional como um importante instrumento de
denúncia social, afinal ele faz abordagens de diversas temáticas emergentes da sociedade,
pautas até então pouco discutidas, ou até mesmo que necessitam serem amplamente
fomentadas e visibilizadas. Como é o caso da temática do conto em estudo, a violência sexual
contra a mulher negra precisa ser colocada no centro de discussão, dado o grande aumento do
número de casos de estupro sofridos pela mulher negra no Brasil. Ao tratar sobre tal assunto o
conto chama a atenção da sociedade para a violência sexual escondida atrás do casamento,
nesse caso, o estupro marital que em muitos casos não é visto como um ato violento. 
45

3.2 “MINHA MÃE SEMPRE COSTUROU A VIDA COM FIOS DE FERRO”:32 SHIRLEY
PAIXÃO E SUA “CONFRARIA DE MULHERES”

 No segundo conto em análise, “Shirley Paixão”, nota-se a presença da violência física
no âmbito familiar, bem como a ocorrência do estupro de vulnerável na narrativa costurada e
vivenciada por mais essa mulher negra. Logo de início, Shirley expõe o cenário de sua família
e o ambiente em que ela e suas filhas estavam inseridas. Seu companheiro havia tido um
relacionamento anterior e deste foram concebidas três meninas, de modo que ao se “juntar”
com sua atual esposa, que já tinha duas filhas com outro homem, se formou um casal com
cinco filhas ao todo. 
A narradora afirma que as meninas possuíam muita semelhança entre si e, com o
passar do tempo, estabeleceram e fortaleceram o vínculo de irmandade, como se observa no
excerto: “E assim seguia a vida cumpliciada entre nós. Eu, feliz, assistindo às minhas cinco
meninas crescendo. Uma confraria de mulheres” (EVARISTO, 2016, p. 28. Grifos nossos).
Tal união feminina incomodou o “homem da casa”, de modo que Shirley já pressentia que
algo muito ruim e árduo de se enfrentar estava prestes a acontecer, como se verifica no trecho:
“Uma batalha nos esperava e no centro do combate o inimigo seria ele” (EVARISTO, 2016,
p. 28).
Assim como no conto anterior, o agressor é o próprio companheiro, fato que pode ser
visto nos índices estatísticos que registram casos da violência sexual de estupro de vulnerável,
e atestam para a maior incidência no âmbito familiar, preferencialmente à figura masculina a
quem se deposita confiança e respeito dentro de casa. Reforçando a tipificação de tal violência
no código penal brasileiro, segundo a Lei 12.015/09, 33 caracteriza-se por envolver vítimas
menores de 14 anos de idade e/ou indivíduos que não exercem plenos poderes de suas
faculdades físicas e mentais, encontrando-se assim em condições diversas de vulnerabilidade.
Dessa forma, torna-se evidente a estratégia de manipulação e coerção das vítimas, que se
baseia no fortalecimento dos laços familiares e/ou na troca de presentes e favores no intuito de
silenciá-las. 
Neste conto em análise, pode-se perceber o protagonismo em conjunto de duas
mulheres, pois além de Shirley Paixão, sua filha mais velha, Seni, é a principal vítima do ato
violento consumado pelo seu próprio “pai”. Ela, a mais calada dentre todas as meninas,
assumia obrigações e responsabilidades da fase adulta ao cuidar de suas irmãs, talvez no

32
Trecho da obra Olhos d’água. Rio de Janeiro: Pallas/FBN, 2014.
33
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l12015.htm. Acesso em: 22 jun.
2021
46

intuito de fugir das lembranças saudosas de sua mãe biológica que faleceu. Mas, neste
aspecto, torna-se evidente o fardo colocado nas costas de jovens moças, em especial meninas
pretas, no que se refere às tarefas domésticas e até mesmo aos cuidados com outras crianças.
Famílias negras sustentadas e amparadas por uma mãe-solo em situação de vulnerabilidade
social, residentes de zonas periféricas e totalmente desamparadas pelo Estado. Para fins de
sobrevivência, consequentemente as filhas mais velhas são adultizadas precocemente e vistas
pela sociedade como mulheres jovens de “ombros largos”, naturalmente capazes de suportar
todo tipo de violência no contexto em que estão inseridas.
Outro aspecto a ser destacado é que Shirley Paixão e suas meninas, por quem ela
“morreria ou mataria se fosse preciso” (EVARISTO, 2016, p. 31), sofriam com os acessos de
raiva do homem da casa e temiam que ele comprometesse a integridade física da “confraria de
mulheres”. Antes disso, o pai já havia proliferado crueldade na vida de suas três filhas,
durante alguns anos, fruto de um matrimônio anterior. A casa de Paixão era como um refúgio
para as crianças órfãs de mãe e completamente aterrorizadas pelo “pai” com quem eram
obrigadas a conviver. 
Em uma noite, consumando tamanha crueldade e expondo de uma vez o caráter
horrendo de “macho alfa”, o homem aproveitou que Shirley estava dormindo e foi até o
quarto das meninas. A cena assim se seguiu, como narra Shirley Paixão: 

Então, puxou violentamente Seni da cama, modificando naquela noite, a


maneira silenciosa como ele retirava a filha do quarto e levava aos fundos da
casa, para machucá-la, como acontecendo há anos. Naquela noite, o animal
estava tão furioso [...] que Seni, para a sua salvação, fez do medo, do pavor,
coragem. E se irrompeu em prantos e gritos. As irmãs acordaram apavoradas
engrossando a gritaria e o pedido de socorro. A princípio, não reconheceram
o pai - só podia ser um estranho - e começaram a chamar por ele e por mim.
Nem assim o desgraçado recuou (EVARISTO, 2016, p. 31).

Assim, fica evidente a consumação do ato de violência sexual, mais especificamente o


estupro de vulnerável, do pai sobre sua filha de doze anos. A menina teve seu corpo
violentado e violado mais uma vez por um homem que agia como um animal e utilizava da
força bruta e, ao mesmo tempo, de sua paternidade apenas titular para intimidar e se
aproveitar da criança. Em continuação à cena narrada por Shirley Paixão, devido ao enorme
desespero das outras meninas no quarto, pela presença de um desconhecido, como pensou ao
ouvir os gritos das crianças, ela se dirige ao aposento e se depara com a cena mais horrenda de
47

sua vida: o único homem da casa é o algoz. Em um ato de impulsividade, repugnância e amor
por sua “confraria de mulheres”, já que seria matar ou morrer naquele contexto, Paixão narra: 

[...] Uma pequena barra de ferro, que funcionava como tranca para a janela,
jazia em um dos cantos do quarto. Foi só um levantar e abaixar da barra.
Quando vi, o animal ruim caiu estatelado no chão. Na metade do segundo
movimento, alguém me segurou - uma vizinha. Outras e outras pessoas
chegaram, despertadas pelos gritos [...] (EVARISTO, 2016, p. 32-33).

A agressão de Shirley Paixão a seu companheiro, pai de suas filhas, ocorre como
impulsiva e violenta resposta ao ato visto, mas incompreensível, por perceber que o agressor
era o próprio pai de Seni. A consumação do estupro de vulnerável, neste trecho específico do
conto, deixa entrever as principais marcas da violência sexual acometida à Seni. Durante
muitos anos, na mente do agressor, essas práticas cruéis foram se normalizando e sendo
cotidianamente realizadas levando em consideração sua autoridade de um pai, e até mesmo
erroneamente se justificando diante de um contexto de vulnerabilidade social e emocional por
parte da criança. A representação de uma figura paterna que teoricamente viria permeada pela
proteção e sustentação de uma família é evidenciada aqui como o total oposto disso. 
Além disso, evidenciam-se as consequências de ordem física e psicológica na menina
de doze anos, vista desde sempre como uma criança calada. Aspectos como medo,
introversão, isolamento social e perfeccionismo ao extremo podem ser indícios fortes de que
algo grave aconteceu. Em casos de estupro, por exemplo, esse comportamento se evidencia
devido à coerção sexual que um próprio membro da família cometeu, já que, na maioria dos
casos, o agressor estabelece uma relação de proximidade física e emocional com a vítima.
A sequência de dor e sofrimento por parte de Shirley Paixão e suas meninas não
cessou com a consumação do ato cruel do homem, mas se intensificou com as cenas de horror
que se seguiram. Ali estava Seni, uma menina de doze anos totalmente despida após ser
violentada mais uma vez (dessa vez sem sigilo, por parte do “pai”) e que, posteriormente,
teria que passar pelo exame de corpo de delito. Esse procedimento consiste na verificação e
análise de todos os vestígios materiais deixados por um determinado ato delituoso e que
indicam a ocorrência de um crime: 
[...] a imagem de minha menina nua, desamparada, envergonhada diante de
mim, das irmãs e dos vizinhos, eu jamais esquecerei. [...] a sensação que
experimentei foi a de que pegava um bebê estrangulado no meu colo.
Naquele momento de total incompreensão diante da vida, eu não sabia o que
dizer para Sem. Somente a embrulhei no lençol e fiquei com ela no colo,
chorávamos [...] (EVARISTO, 2016, p. 33).
48

Por fim, o desfecho do conto se dá com a prisão do algoz e de Shirley Paixão, até
mesmo chamando esse terrível momento de sua vida como “meia-morte”, cumprindo pena de
três anos atrás das grades por quase ter matado aquele “animal”, como ela mesma a ele se
refere e, depois, ganhando a condicional. Quase trinta anos depois desses acontecimentos
trágicos e marcantes, Shirley Paixão narra que ela e suas meninas tiveram a chance de
reconstruir suas vidas. Seni, em sua luta diária de lidar com este passado sombrio, seguiu o
ramo profissional médico, especificamente o da pediatria, utilizando seu dom de cuidado e
proteção com as pessoas.

3.3 “A MENINA CRESCIA, CRESCIA VIOLENTAMENTE POR DENTRO”: 34 ISALTINA


CAMPO BELO E A PUNIÇÃO DO EXISTIR

O conto “Isaltina Campo Belo”, terceiro e último selecionado para análise, é marcado
principalmente pelo grande descontentamento e espaço de “não lugar” que se fizeram
presentes na caminhada de Isaltina, que por sua vez, desde sua infância não se reconhecia
enquanto mulher e também pelo episódio de violência sexual brutal (estupro corretivo e
coletivo) vivenciado por ela. Campo Belo, como prefere ser chamada, dá início ao seu relato
falando de sua infância e de suas famílias (materna e paterna) que, juntamente aos seus
antepassados, através das lutas vividas, foram símbolo de resistência e motivo de orgulho, a
imagem de sua filha também se faz muito presente enquanto profere suas vivências.
O diálogo entre as duas mulheres, a narradora/porta-voz das histórias e a própria
protagonista da história partilhada, segue com o compartilhamento do incômodo e indignação
sentidos por ela desde pequena. Apesar de ter passado por uma infância tranquila, que contou
com brincadeiras, estudos e interações sociais normais da fase infantil e com estabilidade
familiar, Campo Belo se via em constante dúvida com relação à sua própria identidade como
mulher, o sentimento de que na verdade era um menino e o fato de que as pessoas ao seu
redor não a reconheciam assim, tomava conta de si e a angustiava todos os dias:

[...] Tive uma infância feliz, só uma dúvida me perseguia. Eu me sentia


menino e me angustiava com o fato de ninguém perceber. Tinham me dado
um nome errado, me tratavam de modo errado, me vestiam de maneira
errada... Estavam todos enganados. [...] Ainda novinha, talvez antes mesmo
dos meus cinco anos, eu já descobrira o menino que eu trazia em mim e

34
Trecho do romance Becos da Memória, de Conceição Evaristo. Belo Horizonte: Mazza, 2006, p. 76.
49

acreditava piamente que, um dia, os grandes iriam perceber o erro que


estavam cometendo (EVARISTO, 2016, p. 58).

Acreditava que o engano seria desfeito e sua real identidade seria finalmente
descoberta por um médico, quando precisou ir às pressas para o hospital ao passar por um
episódio de crise de apendicite. Diferente do esperado, nem mesmo o médico notou quem
realmente acreditava ser, sua angústia e incompreensão neste espaço de “não lugar”
perduraram por mais tempo, até que questões que envolvem o desenvolvimento biológico do
corpo feminino e da sexualidade entre homens e mulheres passam a fazer parte da vida de
Campo Belo, não de forma prática, mas de seu conhecimento e até mesmo em conversas com
sua irmã. Neste período, ela é tomada novamente por este sentimento de não pertencimento,
não se sentia encaixada no “padrão” de relação visto, por mais que agora soubesse das
diferenças existentes entre o seu corpo e de seu irmão, por exemplo, não se sentia igual ou
com as mesmas vontades das outras meninas, não correspondia ao lugar de feminilidade
construído socialmente.
A incompreensão que ganhava espaço em sua vida agora se direcionava aos seus
interesses afetuosos. Campo Belo entendia que, diferente de outras garotas, seus desejos não
eram direcionados aos meninos, mas sim às outras mulheres, figuras femininas eram as que
ganhavam espaço em suas imaginações. Estes desejos resultaram em constantes fugas, fuga
de questionamentos alheios sobre sua vida amorosa ou a ausência desta, fuga de propostas
amorosas vindas de homens. Por muito tempo continuava sem ter qualquer experiência do
tipo, até que o sentimento de estranheza se torna insustentável e faz com que ela saia de onde
morava e parta para a cidade na intenção de fugir (mais uma vez) deste lugar e, além disso,
buscar novas oportunidades de estudo e trabalho em sua área e formação.
A estranheza sentida por Campo Belo parte do lugar de não reconhecimento e de não
validação das outras configurações de relações amorosas, o fato de gostar de outras mulheres
faz com que haja, desde sua infância, uma incompreensão ou não consideração da
possibilidade de ser uma mulher que pode amar, numa perspectiva romântica/sexual, outras
mulheres, já que havia um “padrão” visto em seu contexto que diferia de seus reais
sentimentos e desejos. Desta maneira, o sentimento de masculinidade tomava sua existência
por conta da construção social em que o homem é o único “apropriado” para relacionar-se
com uma mulher.
Em sua nova fase, Campo Belo conhece um rapaz que se diz interessado nela e ainda
que de forma não recíproca por parte dela, começam um namoro. Passado certo tempo, as
propostas e intenções relacionadas a questões sexuais surgem por parte do rapaz. A ausência
50

de interesse de Campo Belo não é respeitada e considerada em momento algum, mesmo


partilhando sua história e contando de sua falta de interesse em se relacionar com homens, o
rapaz insiste e partindo de um discurso violento e falocêntrico, argumenta que Campo Belo
mudaria de opinião sobre seus desejos caso tivesse uma experiência sexual com ele,

[...] sorrindo, dizia não acreditar e apostava que a razão de tudo deveria ser
algum medo que eu trazia escondido no inconsciente. Afirmava que eu
deveria gostar muito e muito de homem, apenas não sabia. Se eu ficasse com
ele, qualquer dúvida que eu pudesse ter sobre o sexo entre um homem e uma
mulher acabaria. Ele iria me ensinar, me despertar, me fazer mulher
(EVARISTO, 2016, p. 63 - 64).

O trecho acima expõe um discurso de violência contra as demais formas de se


relacionar afetivamente e escancara aspectos da heteronormatividade compulsória que
invalida sistematicamente desejos femininos e intenções afetivas que não sejam destinados a
corpos masculinos e consequentemente, quando estes desejos contrários são expostos, a figura
masculina aparece como a responsável por uma “redenção” ou como aquela que proporciona
uma experiência “verdadeira” e “apropriada” de forma que tais desejos de mulheres por outras
mulheres, considerados como falta de ter encontrado “um homem de verdade” ou até mesmo
como um grande trauma tido, deixem de existir. Além disso, a figura masculina, no contexto
das afirmações acima, é considerada pelo homem como a única capaz de tornar Campo Belo
uma mulher de fato, desta maneira, sua existência e identidade femininas só passariam a
existir através de uma interação sexual com um homem.
A violência presente no discurso do homem interessado por Campo Belo relaciona-se
também com aspectos étnico-raciais, o momento de convencimento por parte dele volta-se a
um argumento que animaliza corpos femininos pretos. Isaltina, enquanto mulher preta, tem
seu corpo sexualizado e mais uma vez sua existência é posta à prova. Ele dizia que como
mulher preta com certeza teria muito fogo. Tal discurso hiperssexualiza corpos como o de
Isaltina, reforçando a objetificação e animalização dos mesmos, como se estes tivessem como
único fim a satisfação sexual masculina. Após insistências frequentes através de pedidos, a
consequência desta sexualização/objetificação é concretizada num episódio de extrema
violação sexual relatado por Isaltina:

[...] Um dia, ele me convidou para a festa de seu aniversário e dizia ter
convidado outros colegas de trabalho, entre os quais, duas enfermeiras do
setor. Fui. Nunca poderia imaginar o que me esperava. Ele e mais cinco
homens, todos desconhecidos. Não bebo. Um guaraná me foi oferecido.
Aceitei. Bastou. Cinco homens deflorando a inexperiência e a solidão do
meu corpo. Diziam, entre eles, que estavam me ensinando a ser mulher.
Tenho vergonha e nojo do momento. [...] (EVARISTO, 2016, p. 64).
51

O episódio de violência sexual sofrido e contado por Campo Belo representa outras
inúmeras vivências femininas que se assemelham a esta, os estupros praticados, corretivo 35 e
coletivo,36 reafirmam a ideia patriarcal e lesbofóbica sobre as existências destas mulheres, as
violências são praticadas na intenção de punição e “correção” da orientação sexual da vítima.
Outro aspecto socialmente reforçado é o da culpa que se volta a elas, por muito tempo Isaltina
guarda pra si todas as lembranças do crime, os sentimentos de impotência, culpa e vergonha
não permitem que a denúncia ou desabafo sejam feitos antes. A quebra do silêncio de Isaltina
e sua maneira de compartilhar, além de ser objeto de representatividade de outras mulheres,
também são capazes de encorajar que outras denúncias ou rompimentos sejam realizados, o
relato proferido dá voz e representa vivências que carregam dores parecidas.
A violência sofrida, além do trauma e da dor, trouxe como consequência uma gravidez
não desejada ou com qualquer consideração de risco que um dia acontecesse, Isaltina passa a
maior parte de sua gestação alheia ao desenvolvimento da criança, a percepção se dá apenas
no sétimo mês. A figura de sua filha aparece desde o início de forma bastante afetuosa em seu
relato, o amor da filha sempre se manteve vivo, apesar das dores, traumas e violências.
Também foi sua filha que possibilitou o primeiro encontro com quem seria mais tarde sua
companheira. No momento em que se encontra com Miríades, Isaltina através de uma
regressão a suas questões indenitárias, percebe finalmente que não há um homem dentro de si,
reconhece que é preciso permitir se interessar e manter seu desejo vivo por outra mulher,
neste momento percebe suas semelhanças e diferenças com relação às mulheres ali presentes.
Assim, Campo Belo vive pela primeira vez o amor genuíno por quem realmente se interessa e
com quem deseja estar, Miríades, sua semelhante.
Em síntese, os três contos selecionados partiram da mesma perspectiva de análise, no
intuito de identificar qual o tipo de violência sexual presente no enredo de cada um.
Entretanto, observou-se que as narrativas apresentam aspectos em comum, além da violência
sexual, pois retratam histórias de dores e violências sofridas por mulheres negras, que mesmo
passando por tamanha crueldade permaneceram firmes. Assim, fica evidente a presença da
Dororidade, pois as protagonistas compartilham suas dores com outra mulher negra que se
coloca como porta-voz das histórias, o que também pode ser visto como uma maneira de
resistência, de permanecerem insubmissas diante daqueles que tentaram silenciá-las.

35
O estupro corretivo caracteriza-se como uma prática criminosa voltada a mulheres lésbicas como forma de
punição.
36
Estupro coletivo é uma forma de violência sexual que envolve mais de um abusador.
52

“VIVIFICO-ME EU-MULHER E TEIMO”:37LINHAS EM CONSTRUÇÃO

Esse estudo caminhou por uma perspectiva de análise pautada em discutir a violência
do estupro e sua cultura perpetrada na sociedade e estabeleceu diálogos com o conceito de
“Dororidade”, postulado por Vilma Piedade. O objetivo geral da monografia foi alcançado
com êxito, bem como a sua questão norteadora que consistiu na investigação de como a
escrita feminina negra de Conceição Evaristo, em Insubmissas Lágrimas de Mulheres, atua
como ferramenta de denúncia social e base para reflexão acerca de estereótipos ancorados
pelos discursos e agenciamentos sexistas e racistas. Assim, visou-se conferir maior
visibilidade ao grupo, mulheres negras, que por vezes é acometido por inúmeros e cruéis
atravessamentos, por uma perspectiva interseccional.
Após as discussões realizadas, conclui-se que as temáticas que perpassam o cotidiano
e as experiências de mulheres negras, levando em consideração questões de gênero, raça e
classe, são de extrema importância para se compreender a estrutura social opressora em que
estas vivem e assim lutar e resistir contra as investidas do patriarcado. É necessário discutir e
problematizar o que é comumente naturalizado, como a pouca presença de mulheres negras
como personagens e/ou escritoras de narrativas literárias. Dessa forma, destacou-se a
importância de se ter cada vez mais produções de mulheres negras que compartilham suas
escrevivências e estabelecem um elo de representatividade ao atravessarem vivências de
tantas outras mulheres que sangram as mesmas dores.
Por fim, observaram-se oportunidades para ampliar as leituras e debates sobre o tema
em questão, no intuito de acionar movimentos voltados para o contexto escolar, para
comunidades de regiões periféricas e o público de forma geral. O tema desta pesquisa pode
ser observado por diversos ângulos, mas a perspectiva de abordagem escolhida dá-se pelo
contexto de violência que urge e, portanto, precisa ser valorizada e debatida. Nesse sentido,
no que se refere à escrita de autoria negra, em especial a feminina, comprovou-se que esta
consiste em um ato político de resistência e existência, pois a escrita consiste em um dos
principais instrumentos de comprovação da vigência de um povo ou grupo, o que evidencia o
engajamento social tão presente na literatura afro-brasileira e a importância da representação
social que esta confere.
REFERÊNCIAS
37
Trecho do poema Fêmea-Fênix, de Conceição Evaristo, publicado no livro Poemas da recordação e outros
movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.
53

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