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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

CÂMPUS UNIVERSITÁRIO DO ARAGUAIA


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
CURSO DE LETRAS

LIDIANE BASTOS SILVA

MULHERES NEGRAS NO BRASIL:


A VIOLÊNCIA E A DISCRIMINAÇÃO SOB A PERSPECTIVA EM “DIÁRIO
DE BITITA”, DE CAROLINA MARIA DE JESUS

BARRA DO GARÇAS - MT
2022
LIDIANE BASTOS SILVA

MULHERES NEGRAS NO BRASIL:


A VIOLÊNCIA E A DISCRIMINAÇÃO SOB A PERSPECTIVA EM “DIÁRIO
DE BITITA”, DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Trabalho Monográfico apresentado ao Curso de


Licenciatura em Letras, na Universidade Federal de
Mato Grosso – UFMT, como requisito para a
obtenção do título de licenciada em Letras.

Orientadora: Prof.ª. Dra. Marinete Luzia Francisca


de Souza.

BARRA DO GARÇAS - MT
2021
FICHA DE APROVAÇÃO

LIDIANE BASTOS SILVA

MULHERES NEGRAS NO BRASIL:


A VIOLÊNCIA E A DISCRIMINAÇÃO SOB A PERSPECTIVA EM “DIÁRIO
DE BITITA”, DE CAROLINA MARIA DE JESUS

Trabalho Monográfico apresentado ao Curso de


Licenciatura em Letras, Câmpus Universitário do
Araguaia, da Universidade Federal de Mato Grosso –
UFMT, como requisito para a obtenção do título de
Licenciada em Letras.

Orientadora: Prof.ª. Dra. Marinete Luzia Francisca


de Souza.

Aprovada em______ Fevereiro 2022.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________________________

______________________________________________________________________

Conceito:______________________________________________________________.
DEDICATÓRIA

Primeiramente a Deus, por ter me proporcionado vida,


saúde e força para chegar até aqui. Aos meus filhos, é por
eles que luto diariamente; aos meus netos, que deixarei
este legado para que eles o sigam e tenham como
exemplo. A toda minha família e amigos que de forma
direta ou indireta contribuíram para que eu conquistasse
mais essa vitória em minha vida.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço a Deus, pois me agraciou com a dádiva da vida para


que eu pudesse estar vivenciando este e vários outros momentos. Aos meus filhos
Liziane Bastos da Silva Reis, Luis Felipe Bastos da Silva Reis e Maria Clara Bastos
Silva Reis, motivos pelos quais luto diariamente, ao meu marido Thiago Gomes Santos
pela paciência e companheirismo em todos os momentos. Aos professores da UFMT
com os quais tive o privilegio de aprender e em especial as professoras Maria Claudino
(minha deusa) e Mônica (moça bonita) que são minhas inspirações e exemplos de
mulheres fortes. A minha orientadora, Profª. Dra. Marinete Luzia Francisca de Souza
pelas orientações e observações quanto à escolha do corpus e, principalmente, em
relação às indicações de leitura. Aos meus amigos de curso Mizael, Samilla, Hortência e
Valéria pelo apoio e por vivenciarem comigo grande parte dessa jornada. Enfim,
agradeço a todos as pessoas que passaram por minha vida e que deixou de alguma
forma sua marca.
RESUMO- O presente trabalho visa compreender como a violência e a discriminação é
expressa no livro Diário de Bitita escrito por Carolina Maria de Jesus, uma mulher
pobre, negra e semi-analfabetas que enfrentou a discriminação racial, social, mas que
mesmo assim consegue deixar seu legado para as mulheres negras, a literatura, os
movimentos negros. Para a realização deste trabalho foi necessário um estudo
bibliográfico de caráter qualitativa, análise da linguagem e estrutura da obra e uso do
seguinte referencial teórico:, Ângela Davis, Grada Kilomba, Simone Beauvoir, José
Carlos Sebe Bom Meihy, Robert M. Levine, dentre outros de modo a identificar e
categorizar discussões que remetam as questões de discriminação. Traz discussões
acerca do conceito de feminismo e feminismo, teoriza a importância e as contribuições
da autora bem como de suas obras para a literatura brasileira. Por fim, faz-se a análise
de fragmentos da obra ao passo que tece análises e conclui que a violência e a
discriminação é uma marca determinante na obra estudada, visto que a escritora
denuncia essas atitudes na sociedade brasileira através não só de sua produção como
também de suas vivências.

Palavras-chave: Carolina Maria de Jesus. Mulher. Negra. Discriminação. Violência.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................10

CAPÍTULO I - MULHERES NEGRAS NO BRASIL............................................12

1.1. A mulher negra: para começo de conversa

1.2. A trajetória da mulher negra no Brasil: da escravidão à atualidade

1.3. Um pouco de Carolina Maria de Jesus

1.4. Mulheres negras: conquistando espaços apesar da violência e discriminação

CAPÍTULO II- CAROLINA MARIA DE JESUS: ESCRITORA E ATIVISTA


PELA CAUSA DAS MULHERES NEGRAS............................................................20

2.1. A obra “Diário de Bitita”

2.2. Feminismo e feminismo negro

2.3. Fortuna crítica de Carolina Maria de Jesus.

2.4. Carolina Maria de Jesus por ela mesma: análise de fragmentos da obra nos
quais a autora se apresenta

CAPÍTULO III- VIOLÊNCIA E DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA OBRA


DIÁRIO DE BITITA.................................................................................................31

3.1. Discriminação racial na obra Diário de Bitita.

3.2. Violência e discriminação

3.3. Violência física versus violência psicossocial na obra Diário de Bitita.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................35

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................36
INTRODUÇÃO

As discussões sobre a discriminação e violência sofridas pelas mulheres negras


no Brasil é um assunto que começou no passado, mas que se faz tão presente e
importante na atualidade. Existe uma urgente necessidade de rompimento com idéias e
práticas dessa natureza que são historicamente presentes no país. A trajetória da
brasileira Carolina Maria de Jesus e sua obra Diário de Bitita dialoga com essas
problemáticas, não por apenas precisar refletir sobre o assunto, mas por ela ter sido uma
mulher negra que conseguiu, através da sua escrita, ser reconhecida mundialmente a
partir de suas obras que trazem denúncias de um Brasil pós abolição que não tirou da
condição de subalternizado.
O livro Diário de Bitita escrito por Carolina foi publicado em 1982 na França e
é uma obra marcada pelas memórias e lembranças da infância e fase adulta da autora,
elementos importantes a interpretação das situações históricas, sociais e culturais que
ela vivenciava e que refletiam em sua vida. Esse livro traz em seu escopo maturidade na
escrita de Carolina, sendo esta sua última produção que consiste numa autobiografia, em
um período em que ela havia sido esquecida. Carolina Maria de Jesus foi uma mulher
negra, com uma vida difícil, semianalfabeta, que enfrentou muitas situações que fez
com que ela questionasse o ser mulher, negra e escritora numa sociedade tão racista e
violenta para com essas questões.
A escritora Carolina Maria de Jesus, através das suas memórias e vivencias, faz
denúncias sobre o que ela viveu na sociedade brasileira da época por meio da escrita
autobiográfica. Este estudo tem como objetivo compreender como é expressa na obra
Diário de Bitita a violência e a discriminação que sofria as mulheres negras no Brasil
desde a década de 1960, retomando os resíduos da escravização dos negros, até os dias
atuais.
O intuito desta pesquisa é ainda responder as seguintes perguntas de pesquisa:
de que modo a violência a discriminação contra a mulher negra é retratada na obra
Diário de Bitita, de Carolina Maria Jesus? Como Carolina se autorretrata? Para
conseguirmos responder as interrogações acima mencionadas foram realizadas várias
leituras as obra. Em seguida a fichamos e identificamos fragmentos que abordem o
escopo deste trabalho de maneira que a metodologia de pesquisa é, essencialmente,
qualitativa e analítica. Passe-se pelo estudo e análise do texto literários e por questões
histórico-sociológicas por meio da contextualização da história da mulher negra no
Brasil e fundamentação teórica na qual recorremos à teóricos como Grada Kilomba,
Ângela Davis, Florestan Fernandes e outros, chegando à análise textual estilísticas da
obra, para depois, voltarmos à temática, violência e discriminação da mulher negra.
A importância dessa monografia, fala por si mesma, pois se apresenta através
de um ícone para a literatura e também retomada pelo movimento feminista negro. As
produções de Carolina Maria de Jesus podem ser consideradas uma fonte de pesquisa de
peso, pois vem de uma voz subalternizada, por vezes silenciada e que quebrou tabus,
rompeu obstáculos e conquistou reconhecimento,dando visibilidade a uma parcela da
sociedade considerada invisível e excluída. Estudar Carolina Maria de Jesus é
pertinente, porque ela aborda temas tão relevantes para a construção de uma sociedade
mais justa e igualitária.
Além disso, este trabalho poderá subsidiar outros trabalhos científicos e
proporcionar mais visibilidade às obras de Carolina que nos levam, a refletir nossa
realidade brasileira no que se refere às desigualdades sociais, raciais. Essa pesquisa é
baseada em estudos bibliográficos e o método utilizado foi a pesquisa qualitativa,
buscando questões que remetessem a discriminação e violência contra a mulher negra,
para tanto, o primeiro passo foi fazer a leitura da obra Diário de Bitita, em seguida
compreender a sua vivencia e por fim, a analisar o conteúdo teórico que se baseia esse
trabalho, sendo os principais autores, Ângela Davis,Grada Kilomba,Simone de Beauvoir
dentre outros.
CAPÍTULO I- MULHERES NEGRAS NO BRASIL

1. A mulher negra: para começo de conversa

A construção da identidade e do perfil social das mulheres negras no Brasil tem


ocorrido dentro do processo de discriminação e de negação dos seus direitos. Após a
abolição da escravatura, em 1888, as mulheres ficaram à própria sorte. Antes do fato
histórico mencionado, havia uma condição contínua de desigualdade entre a mulher
negra e a branca, tendo em vista que a branca desfrutava de privilégios somente pela
condição de ser branca, embora elas tivessem que ser subordinadas pela condição do
gênero. As negras eram subalternizadas tanto pelo fato de ser mulher, quanto pelo fato
de ser negra. Apesar das mudanças ocorridas historicamente, tais desigualdades
perduram.
Portanto, discutir o tema faz parte de um processo maior que torna visível o
questionamento da naturalidade com que este processo histórico de discriminação e
violência contra a mulher negra é tratado na sociedade. Há ainda apagamento das suas
experiências de vida, sua identidade, e de como elas se relacionam em meio a um
contexto discriminatório e violento. Uma das formas de fazê-lo é por meio do estudo da
literatura e, especialmente, de obras cujos gêneros como o diário e autobiografia, cujas
narrativas contam fatos que, embora perpassados pela realidade, são reais.
Estabelecer relação entre violência, discriminação e a mulher negra requer
compreender os fatores históricos que reforçaram processos de desigualdades que
legitimaram tal condição e um dos focos deste capitulo é propor o rompimento desse
processo e reconhecer a sua trajetória histórica.
Perceber que apesar de passarem por violências, discriminações,
desigualdades, isso não foi o suficiente para silenciar as vozes femininas, a visão de
mulher negra discriminada, maltratada e violentada é a que encontramos retratada na
obra “Diária de Bitita” de Carolina Maria de Jesus, que na condição de mulher, negra,
pobre e escritora não desistiu de buscar seu espaço na sociedade da época, uma mulher
que deixou na história seu legado o qual contribui com o processo de descolonização da
imagens e das políticas públicas relativas à da mulher negra
1.2. A trajetória da mulher negra no Brasil: da escravidão a atualidade

Para entender a história da identidade da mulher negra no Brasil é necessário


nos reportarmos, ainda que brevemente, ao longo processo histórico de escravização
que foi instaurado no país, no qual escravizados oriundos de países da África
Subsaariana eram traficados para a demanda do trabalho nas Américas, com isso, é
possível ter em nosso prima que o processo de construção populacional negra, com
ênfase nas mulheres negras, no Brasil não foi um processo pacífico. Neste sentido,
Ângela Davis (2016) autora feminista, retrata muito bem em seu livro Mulheres, Raça e
Classe que foi vivido pelas mulheres negras:

Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas


as formas de coerção sexual. Enquanto as punições mais violentas
impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as
mulheres eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro,
na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do
proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na
condição de trabalhadoras. Os abusos especialmente infligidos a elas
facilitavam a cruel exploração econômica de seu trabalho. As
exigências dessa exploração levavam os proprietários da mão de obra
escrava a deixar de lado suas atitudes sexistas ortodoxas, exceto
quando seu objetivo era a repressão (DAVIS, 2016, p.20).

Por isso é importante observar, discutir e refletir sobre o papel dessas mulheres
negras numa sociedade que passou por processos fortemente patriarcais e escravocratas.
Ser mulher e negra, sem dúvida mostra que a cor adquire um significado importante,
pois traz consigo uma marca e que tem na sua base a desigualdade ligada às
discriminações, preconceitos e subalternização da mulher negra. Outro aspecto
importante é refletir sobre o papel positivo dessas mulheres, suas experiências e
contribuições, enquanto trabalhadoras que viviam, na época de Carolina Maria de Jesus
e ainda hoje, boas parte delas vem sendo discriminadas, violentadas e agredidas.
Os estudos históricos sobre escravidão não revelam tudo sobre as mulheres
negras, camuflam muitas realidades e violências contra elas na escravidão e pós-
abolição e sobre isso, escreve Florestan Fernandes: “aos escravos foi concedida à
liberdade teórica sem qualquer garantia de segurança econômica ou de assistência
compulsória” (FERNANDES, 1965, p.147). As mulheres negras são exemplos de luta,
inteligência e superação das dificuldades, para elas liberdade significava o direito de ir e
vir, ficar com seus filhos sem vê-los ser vendido como mercadorias, livrarem-se de
todos os tipos de violências praticadas pelos seus senhores, terem autonomia de
trabalho, habitação, salário.
Mesmo libertas, na condição de não escravizadas, as mulheres negras foram
condicionadas à violência, discriminação e ao cárcere privado, se viram sem moradia,
alimentação, sem condições de sobreviver e caiam mais uma vez na escravidão, mas
agora na escravidão sexual, pois necessitavam se prostituir em troca de dinheiro,
comida. Ou acabaram por se tornarem mão de obra barata sem direito algum, vindo à
tona a continuidade da divisão racial e sexual, da discriminação e violência.

1.3. Um pouco de Carolina Maria de Jesus

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento-MG, em 14 de março de 1914,


vinda de família muito humilde. Mudou-se para São Paulo em 1947 com seus três
filhos, quando a cidade iniciava seu processo de modernização e o surgimento das
primeiras favelas. Residiram por um bom tempo na favela do Canindé. Sozinha, vivia
da recolha de materiais recicláveis (papéis, ferros e outros materiais nas ruas da cidade):

Carolina, sozinha no mundo, dormiu sob pontes, em estradas e lugares


desprotegidos. Fez várias coisas para ganhar dinheiro, principalmente
trabalhou como empregada doméstica. Foi também faxineira em
hotéis, auxiliar de enfermagem em um hospital, vendeu cerveja,
Algumas vezes tentou ser artista de circo. (MEIHY; LEVINE, 1995,
p. 21).

Carolina Maria De Jesus começou a trabalhar como doméstica, mas logo


desistiu e começou a apanhar papelão nas ruas de São Paulo para que tivesse mais
tempo para os filhos e para leitura. Apesar de ter estudado pouco Carolina se tornou
uma leitora voraz de livros e de tudo o que lhe caía nas mãos, logo tomou o hábito de
escrever suas memórias de infância e adolescência e seu cotidiano depois de adulta,
colocando em seus diários suas vivencias enquanto mulher, negra, mãe e moradora de
favela que sofria desde criança com vários tipos de violência e discriminação e assim
iniciou sua trajetória literária. Segundo Amaral (2003) uma mulher negra que conseguiu
contar sua historia através de obras literárias é um fato extraordinário.

Uma mulher negra, favelada, mãe solteira de três filhos, que vive de
catar detritos nas ruas de uma megalópole latino-americana, consegue
produzir e publicar um diário contando a história de sua vida e do
local em que vive. É um fato extraordinário, um marco para aqueles
que trabalham com a literatura de testemunho [ou marginal-
periférica]. (AMARAL, 2003, p. 51).

Os relatos feitos na obra “Diários de Bitita” da realidade cruel ao qual


Carolina era submetida trouxeram um novo padrão de representação da mulher negra na
literatura abrindo espaço para a voz dos emudecidos, fato que simboliza a conquista de
um direito que foi negado às mulheres negras antes e em sua época. Sabe-se que suas
obras são basicamente autobiográficas. Para ela a escrita era o seu alento, causa e efeito
da solidão que sentia e do convívio conturbado com seus vizinhos, fato que a tornou
uma pessoa isolada. Vivendo neste contexto, as ideias para escrita a literárias lhe
invadiam a mente de forma incessante, traduzidas na escrita que lhe servia como
remédio contra a dor da discriminação, da pobreza e da violência.
Carolina se encaixa no estereótipo de que mulher negra só serve para os
trabalhos domésticos e prostituição, mas busca força na escrita para mudar a realidade
seu destino, isso nos leva a outra questão: como a intelectualidade das mulheres negras
é negligenciada. Percorrer os caminhos da intelectualidade não é uma tarefa fácil,
principalmente e o racismo propriamente dito molda e delimita os espaços sociais da
mulher negra.
Até aqui a discussão se fez em torno da trajetória de Carolina Maria de Jesus
que foi marcada pelas desigualdades sociais, pela violência e pela discriminação além
de compreensão de seu processo de escrita. No entanto, essa trajetória nos provoca a
seguinte dúvida: a solidão de Carolina, apesar de ter se relacionado com o pai de seus
filhos, ela não queria se submeter às agressões por parte dos homens.
Para a personagem narradora ter um companheiro era submeter-se ao que
muitas mulheres na favela viviam: brigas e violência, o que nos leva a crer que ela
optou por não compartilhar sua vida com um homem e sobre isso ela dizia: “E eu
pensava: “Tem mulher que diz que o homem é bom. Que. Bondade pode ter o homem,
se ele mata e espanca, cruelmente? Quando eu crescer eu não quero homem. Prefiro
viver sozinha. ”(JESUS, 1986, p. 86).
Carolina não trata somente a questão racial como tema central no contexto de
suas obras e nem se coloca como defensora da causa negra. Ela reflete sobre os mais
variados assunto em diversas passagens ao longo do Diário de Bitita, o que nos permite
compreender como a violência e a discriminação é exercida no cotidiano das
personagens femininas que compõem suas obras.
Apesar de não se posicionar explicitamente sobre o assunto, isso não nos
impede de analisar como essa violência é exercida e como acaba sendo legitimada,
reproduzida e, ao mesmo tempo, questionada pela escritora. Carolina Maria de Jesus foi
uma mulher negra que conquistou seu espaço através de sua escrita, não só da sua
própria vida, mas da vida de muitos outros que viviam como ela na sociedade da época.

1.4. Escritoras negras: conquistando espaços

Carolina Maria de Jesus se tornou uma referência, não só para as mulheres


negras de sua época, mas também para escritoras negras de outras épocas, exemplo de
luta contra todos os tipos de violência, discriminação e estereótipos negativos
construídos ao longo da história. Ela viria a ser uma escritora improvável por conta de
sua trajetória de vida: catadora de lixo, favelada e sem educação formal, mas também
pelo fato de sua escrita ser exercida apesar de todas as adversidades materiais, sociais e
culturais. Sobre essa força que se apresenta na mulher negra, a exemplo de Carolina
Maria de Jesus, Ângela Davis diz que:

[...] essas mulheres podem ter aprendido a extrair das circunstâncias


opressoras de sua vida a força necessária para resistir à desumanização
diária da escravidão. A consciência que tinham de sua capacidade
ilimitada para o trabalho pesado pode ter dado a elas a confiança em
sua habilidade para lutar por si mesmas, sua família e seu povo.
(DAVIS, 2016, p. 24).

Carolina vai da ascensão ao declínio muito rapidamente, pois havia muitos


usurpadores em sua companhia, assim ela perde tudo e volta a recolher papel nas ruas e
essa atitude prova que ela não desistiu de lutar. É preciso entender que as mulheres
negras vivem uma realidade de enfrentamento cotidiano contra tudo que lhe foi negativo
durante a trajetória de sua vida, o racismo, o machismo, a pobreza, a violência e a
discriminação.
A história de resistência da mulher negra no Brasil confirma a luta por
valorização de gênero e raça. Atualmente, estas mulheres têm resgatado sua autoestima
e conquistado seu espaço, colocando-as em condições de igualdade. As mulheres são
oprimidas por várias situações, sua cor, seu gênero, mas ainda assim, formas de
resistência, como o feminismo negro, têm ganhado cada vez mais visibilidade. Acredita-
se que a ação organizada de mulheres negras, facilitada pelas tecnologias digitais, o
acesso à educação, a ocupação de cargos na política, na universidade e no mundo do
trabalho, tem feito a diferença.
No que diz respeito à literatura, identifica-se personagens femininas negras
desde o romantismo até a atualidade como, por exemplo, a obra Úrsula de Maria
Firmina dos Reis.Na obra “Escrava Isaura” a negra (de pele branca) Isaura, escrava
desde que nasceu era vista como ser inferior mesmo tendo sido educada na casa grande,
isso não significava que não seria tratada como as outras negras, sua serventia era como
escrava e mucama mesmo tendo pele branca e é provável que se ela tivesse a pele negra
nem tivesse acesso à casa grande. Muitos outros autores também descreveram a situação
que a mulher negra vivia, mas poucas foram além dessa mera descrição, elas deram voz,
vieram como ato de ruptura para que as mulheres negras pudessem viver melhor. Na
atualidade, essas discussões são freqüentes nas páginas da literatura brasileira por meio
das obras de Geni Guimarães, Conceição Evaristo e outras.
Esse engajamento aliado ao acesso a informações e a consolidação da autoria
negra tem tornado a consolidação desses direitos mais fáceis e com isso produzido e
recuperado conhecimento sobre a negritude. Contemporaneamente, alguns movimentos
de mulheres negras estão desconstruindo o discurso estereotipado e socialmente
construído sobre a mulher negra (ama de leite, doméstica, prostituta). Agora elas estão
contando sua própria história questionando às hierarquias de gênero, raça, classe e
sexualidade.
O caminho de luta ainda é árduo, é preciso pensar sobre políticas que
reafirmem ainda mais a pós-memória e identidade de mulheres que foram estupradas
por escravocratas, que foram desprovidas de gênero e da sua feminilidade pelo regime
escravista, mulheres que deixam seus filhos para criar os filhos de outras mulheres
como babás e domésticas, que sofreram violências e discriminação de toda sorte.
Abordar as questões que rodeiam a mulher negra é necessário, devido à enorme
bagagem de lutas e fatos históricos que pesam sobre elas, isso essa monografia se torna
tão importante, pois ressalta a trajetória de vida de mulheres negras como Carolina
Maria de Jesus que lutou em prol da superação das desigualdades buscando entender
como elas se via no contexto de sua trajetória, por meio do estudo de sua narrativa
autobiográfica.
CAPÍTULO II- CAROLINA MARIA DE JESUS: ESCRITORA E ATIVISTA
PELA CAUSA DAS MULHERES NEGRAS

2.1. A obra “Diário de Bitita”

Carolina Maria de Jesus nasceu na cidade de Sacramento em 14 de março de


1914, Bitita como era chamada pelos seus parentes, era uma menina um tanto quanto
diferente das outras da época, desde muito pequena era curiosa, freqüentou apenas dois
anos da escola primária, período em seu gosto pela leitura veio à tona. Passa boa parte
da sua juventude em Sacramento com a mãe e, anos mais tarde, se mudaram para São
Paulo, onde passou por várias situações difíceis na tentativa de se tornar uma escritora,
não obtendo o sucesso que almejava,foi morar na favela do Canindé. A sua obra “Diário
de Bitita” é um livro autobiográficos que traz em seu contexto as memórias da escritora
no período em que viveu em Sacramento com a sua família, sendo publicado pela
primeira vez na França em 1982.
O livro narra a luta diária de uma família negra vivendo quase um século após
a Lei Áurea, mas ainda passando por preconceitos de raça de fundo colonial. A narrativa
ocorre sob o olhar de uma menina que lutou com muito esforço para conseguir trabalho
e tentar viver de forma digna. Ela narra também sua infância, sua juventude e a vida
adulta, a relação com a família, com a escola e como surgiu o desejo e o gosto pela
leitura e os preconceitos que sofreu principalmente por ser mulher e negra. A autora
retrata os sofrimentos da vida que ela viveu na pele por ser negra e pobre, mas que
apesar de todo o peso que isso lhe trouxe encontrou nos livros e na paixão literária uma
forma de se fazer ser vista e ouvida perante a sociedade que tanto a oprimiu.
Questões raciais, falta de perspectiva de vida, racismo explícito, discriminação,
violência física, psicológica e sexual são narrados em cada capítulo do livro. Em cada
parte dele é encontrado um pedaço da sociedade que vai se apresentando e desvelando o
Brasil da época. Carolina Maria de Jesus ocupa um lugar de importância na literatura
brasileira, traz a tona uma voz segura, inquieta, aguerrida e líquida demais para ser
rotulada sob este ou aquele estilo literário. Uma mulher negra cuja voz resiste, existindo
apesar de todo preconceito, violência e discriminação que sofreu. Por fim, recordamos
que, Carolina Maria de Jesus não foi uma feminista militante, embora em suas obras
haja algo nas entrelinhas que nos leva a pensar em feminismo e que, com certeza
influenciou muitos movimentos feministas negros, pois tiveram como referencia, a sua
vivencia relatada em suas obras deixando clara a força da mulher negra.

2.2. Feminismo e feminismo negro

O feminismo tratado como movimento social, surge no contexto das idéias


iluministas e transformadoras da Revolução Francesa e Americana e a luta em primeiro
momento, dá-se por direitos sociais e políticos, por igualdade entre os sexos, e que não
era possível considerar tudo que fosse contra ao que já era estabelecido como normal ou
que escapa da ordem, da moral e dos bons costumes, por isso tornou-se um movimento
tão polêmico. Esse movimento foi iniciado por mulheres brancas, mas isso não quer
dizer que não havia mulheres negras feministas, apenas o numero era mais reduzidos.
Louro diz que.

(...) Os estudos feministas constituem-se, assim, como um campo


polêmico, plural, dinâmico e constantemente desafiado; um campo
que tem o autoquestionamento como “marca de nascença”. Como
consequência, isso implica um fazer científico que supõe lidar com a
crítica, assumir a subversão e, o que é extremamente difícil, operar
com as incertezas (LOURO, 2002, p.14).

Os primeiros movimentos feministas traziam um perfil de militantes feministas


composto, principalmente, por mulheres com formação universitária, de classe média e
em alguns casos, que estudaram fora de seus países. A ideia inicial que se tinha sobre o
feminismo era apenas integrar as mulheres à sociedade como um sujeito político e
social, porém o movimento feminista buscava ir além, buscava a inclusão da mulher de
maneira integral, a quebra dos paradigmas impostos pela sociedade, reivindicando o
lugar da mulher como dona de si, de suas vontades e direitos, um grito de socorro, uma
luta que explicita as dificuldades para que a mulher torne-se independente.
No entanto, houve a necessidade de fragmentar essa luta para contemplar
todas as mulheres, com isso surge, dentre tantos, o Feminismo Negro que acontece a
partir dos descontentamentos, da falta de representatividade, de oportunidade e de
direitos sociais da mulher negra. As mulheres negras iniciaram esse movimento com
aspirações e reivindicações que também poderiam contemplar mulheres de outras
etnias.

O feminismo negro começou a ganhar força a partir da segunda onda


do feminismo, entre 1960 e 1980, por conta da fundação da National
Black Feminist, nos Estados Unidos, em 1973, e porque feministas
negras passaram a escrever sobre o tema, criando uma literatura
feminista negra. Porém, gosto de dizer que, bem antes disso, mulheres
negras já desafiavam o sujeito mulher determinado pelo feminismo.
(RIBEIRO, 2018 p.148)

As mulheres negras viveram por muito tempo carregando o farto de serem


vistas como corpos desumanizados, servis, exóticos ou super sexualizados, batalharam
para ter seu reconhecimento efetivado e não mais serem vistas como a negra
subserviente e o movimento feminista negro surge para empoderar essas mulheres.
Muitas autoras negras, se fazendo valer da intelectualidade e da literatura deram voz a
estes movimentos, permitindo a mulher negra ser autora de sua própria história,
possibilitando a melhor compreensão da realidade e do mundo em que vivia, uma autora
que representa bem essa ideia é Grada Kilomba que nos diz: “enquanto escrevo, eu me
torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na
minha própria história. Neste sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto
colonial predeterminou” (2019, p. 28); ou ainda Joice Berth, quando esta destaca a
necessidade de darmos “voz a pensamentos específicos de intelectuais que se formam
dentro dos grupos diretamente atingidos” (2019, p. 45), para que tenhamos a dimensão
exata de quais ações de fato desencadeiam mudanças.
Carolina Maria de Jesus tem uma importância indiscutível para a literatura
brasileira, se tornou uma das porta-vozes da mulher negra e pobre de uma realidade não
tão distante, mas que, aliás, persiste na sociedade brasileira. Ela expõe seu ponto de
vista sobre a fome, a pobreza, a solidão, a maternidade, o amor, a discriminação, a
violência e diversos outros temas em suas obras. Sendo ela uma autora de tal
importância muitos autores revisitaram suas obras fazendo estudos sobre os diversos
assuntos que Carolina aborda, a exemplo podemos citar José Carlos Sebe Bom Meihy,
um pesquisador e editor de obras da autora, com destaque para Cinderela negra: a saga
de Carolina Maria de Jesus (1994), em parceria com o norte-americano Robert M.
Levine, os dois fizeram nesta obra uma valiosa reflexão sobre a trajetória da autora,
tratando de temas como a ausência de dados biográficos confirmados sobre a escritora, a
maneira como foram editados os diários dela pelo jornalista Audálio Dantas, mostra
também o lado humano de Carolina, com seus defeitos e incoerências, fatos que os
autores dizem terem sido omitidos pelo jornalista em suas interferências na transição
dos diários publicados.
Outro estudo é a Dissertação de Mestrado de Edson Guimarães de Azeredo
intitulado As muitas vidas e identidades de Carolina Maria de Jesus: o uso do
biográfico e do autobiográfico no ensino das relações étnicos raciais (2018), que
discute sobre as possibilidades de ensinar História a partir de estudos biográficos e
autobiográficos, utilizando como objeto de estudo as biografias de Carolina Maria de
Jesus como seu livro mais famoso, o Quarto de Despejo, com o objetivo de se fazer
uma reflexão sobre o ensino das relações étnico raciais, no Brasil republicano. O autor
da dissertação ressalta que Carolina Maria de Jesus, foi escolhida por possibilitar o
debate em torno da temática étnico racial, pois sua trajetória propicia uma discussão
bastante significativa em torno do assunto.
Na tese de Fabiana Souza Valadão de Castro Macena com o título Carolina
Maria de Jesus e Clarice Lispector: Representações do Feminino na literatura
Brasileira Contemporânea (2017) analisa dos textos Quarto de Despejo (1960) e Onde
estas felicidade? (2014) de Carolina Maria de Jesus e Perto do Coração Selvagem
(1998) e Amor (1998) de Clarice Lispector, com a finalidade de estabelecer um diálogo
entre essas duas autoras e alguns de seus textos, mostrando como a participação
feminina na produção literária interfere na representação da mulher, nos aspectos
étnicos, sociais e culturais dentro da escrita e também da possibilidade de uma mulher
representar a si mesma, escrevendo a mulher faz vir à tona as angústias, os conflitos e os
anseios próprios de seu universo.
No livro Carolina Maria de Jesus: uma escritora improvável (2009), o autor
Joel Rufino dos Santos conta a história de uma mulher que causou impacto no país no
ano de 1960, por ser negra, semialfabetizada, favelada e sofrida, acreditava-se que ela
seria apenas mais uma das tantas mulheres negras das classes pobres, que não alcançaria
nada além daquilo que já era estipulado pelos estigmas sobre a mulher negra e pobre
impregnados da época se não fosse um detalhe: a paixão pela leitura e pela escrita, que a
transformou numa das maiores escritoras do país. Carolina foi a escritora improvável,
forte, contraditória. Revisitar as obras de Carolina Maria de Jesus é fazer uma leitura de
seu discurso e mostrar como a diferença cultural se faz tão presente, é refazer a
construção de uma narrativa que não esteja vinculada à tradição de representação
cultural.
Considerando o exposto, acentuamos que o surgimento da autoria negra
feminina e seu reconhecimento pela academia tal como os movimentos feministas
negros promovem muitas formas de enfrentamento a violências, discriminações e
preconceitos e coloca a intelectualidade como uma dessas formas, saber unir o
pensamento a prática, já que as mulheres negras tiveram suas identidades ligadas ao
corpo e não ao pensar, outro fator muito relevante desses movimentos é o protagonismo
e empoderamento, quando uma mulher e negra se colocam em um espaço que lhe é
negado, está quebrando a negação de direitos e reivindicando o seu direito e com isso
entende-se o lugar de fala da mulher negra e a representatividade que tem o feminismo
negro. Compreender o que é ser uma mulher negra, com olhar além das convenções
históricas, é romper com os paradigmas e convenções de uma sociedade racista e
machista.

2.3. Carolina Maria de Jesus por ela mesma: análise de fragmentos da obra nos
quais a autora se apresenta.

A obra Diário de Bitita é uma narrativa autobiográfica que conta as


experiências da infância e do começo da fase adulta de uma mulher negra Carolina
Maria de Jesus, cuja colonialidade da cultura e os dramas são explicitados. Seu contexto
é construído como se fosse sendo costurada uma colcha de retalhos, com diversos
pedaços de histórias e vivências da autora e de pessoas que perpassaram pela sua vida.
Para que possamos conhecer um pouco mais de Carolina Maria de Jesus e
como ela se apresenta destacaremos alguns fragmentos da obra, começando pela
infância quando ela já se mostrava ativa e determinada: “Eu era insuportável. Quando
queria alguma coisa era capaz de chorar dia e noite até conseguir. Eu era persistente em
todos os caprichos. Pensava que o importante era conseguir o que desejamos.” (JESUS,
1986, p. 12,13). Observemos o uso do verbo ser no pretérito perfeito, o que indica que
se trata mais de uma escrita autobiográfica que de um diário. Observemos ainda que a
autora opta por retratar a si mesma como alguém persistente na busca de seus objetivos,
algo que, nem sempre, a sociedade daquele período esperava de alguém que convive
com a fome. Espera-se que ele almeje apenas o acesso ao alimento.
E também muito questionadora em relação a sua existência, ela queria entender
a sua condição no mundo: “Um dia perguntei a minha mãe: — Mamãe, eu sou gente ou
bicho? — Você é gente, minha filha! — O que é ser gente? A minha mãe não
respondeu. (JESUS, 1986, p. 10). Um ponto importante nesse fragmento é o
questionamento que a autora faz sobre a sua existência no mundo, aos quatro anos já
indagando sua mãe sobre sua condição no mundo nos faz perceber que a autora já se
mostrava com idéia que não era típica de uma criança dessa idade e que daí para frente
pará-la seria impossível.
Outra passagem muito marcante na obra é quando Carolina vai para escola e
ouve seu nome pela primeira vez aos sete anos, isto porque a autora fora apelidada de
“Bitita” quando criança e acostumou-se em ser chamada assim, é como se ela perdesse a
própria identidade e somente se reconhecia como Bitita:

[...] Eu gosto de ser obedecida. Está me ouvindo-me, dona Carolina


Maria de Jesus!
Fiquei furiosa e respondi com insolência:
- O meu nome é Bitita.
- O teu nome é Carolina Maria de Jesus. Era a primeira vez que eu
ouvia pronunciar o meu nome (JESUS, 1986, p. 127).

Vivendo um contexto de desigualdade, Bitita vivencia o mundo em constante


rompimento dos limites, deixando de ser menina para se tornar mulher, que em primeiro
momento queria ser homem por achar que este era mais valorizado e de fato era,
destaque ai para a questão de gênero que se sobrepunha na época:

No mato eu vi um homem cortar uma árvore. Fiquei com inveja e


decidi ser homem para ter forças. Fui procurar a minha mãe e
supliquei-lhe: – Mamãe... eu quero virar homem. Não gosto de ser
mulher! Vamos mamãe! Faça eu virar homem! – Vai deitar-se.
Amanhã, quando despertar, você já virou homem. (...) Deitei e
adormeci. Quando despertei, fui procurar a minha mãe e lamentei. –
Eu não virei homem! A senhora me enganou. (...) Seguia a minha mãe
por todos os cantos, chorando e pedindo: – eu quero virar homem! Eu
quero virar homem. Falava o dia todo. (...) Minha mãe tolerava e
dizia: – Quando você ver o arco-íris, você passa por debaixo dele que
você vira homem (...). Minha mãe falava pouco. – Por que é que você
quer virar homem? – Quero ter a força que tem um homem. O homem
pode cortar uma árvore com machado. Quero ter a coragem que tem
um homem. Ele anda nas matas e não tem medo de cobras. O homem
que trabalha ganha mais dinheiro do que uma mulher e fica rico e
pode comprar uma casa bonita para morar (JESUS, 1986, p. 11-2).

Identificamos no fragmento acima que Bitita questionar as relações de


gênero,mas, em seu pensamento infantil, o faz pela positividade, ou seja, ela ainda não
critica o mundo baseado no mito da forçado homem e fragilidade da mulher, mas
afirmar quer ser homem. Ela ainda não consciência que quer ter os mesmo direitos que
homem e quer. Já se nota que Carolina é determinada. Trata-se de uma imagem de si
que ela constrói por meio do discurso e das ações.
CAPÍTULO III- VIOLÊNCIA E DISCRIMINAÇÃO RACIAL NA OBRA
DIÁRIO DE BITITA

3.1. Discriminação racial na obra Diário de Bitita.

A obra Diário de Bitita é repleta de resquícios da colonialidade da cultura e


escravidão no Brasil e a discriminação que os negros sofriam e ainda sofrem,. Carolina
em seus escritos trás à tona denúncias sobre o completo abandono dos negros e a
continuidade da exploração e discriminação a que eram submetidos, quanto mais escura
a cor da pele, mais eram considerados inferiores, mostrando a triste e cruel
discriminação racial. O texto nos apresenta, em diversos momentos, a desvalorização do
negro, a classificação das pessoas por raça, por isso, podemos considerar que a obra põe
em causa a “democracia racial brasileira”.
Desde a infância Bitita sofre discriminação racial, pois é uma menina de pele
escura, fato que constantemente é destacado na narrativa, mostrando que a cor da pele
é um aspecto que marca a diferenciação social e dá acesso fracionado à cidadania:
“Quando alguém ia me xingar era: – Negrinha! Negrinha!” (JESUS, 1986, p. 74).
“Dona Cota, espanca esta negrinha! Que menina cacete. Macaca” (JESUS, 1986, p. 11).
“Que negrinha feia! Além de feia, antipática. Se fosse minha filha eu matava.” (JESUS,
1986, p. 11). A questão de raça e racismo era abordada na narrativa sob vários pontos de
vista. “Eu sabia que era negra por causa dos meninos brancos. Quando brigavam
comigo, diziam: – Negrinha! Negrinha fedida!” (JESUS, 1986, p. 92).
Um fato marcante narrado na obra e que mostra bem essa questão da
discriminação racial é quando Bitita vai para escola, seu letramento reflete o lugar de
poder do branco na ordem social. Ela só foi matriculada porque a patroa de sua mãe
mandou. “Minha mãe era tímida. E dizia que os negros devem obedecer aos brancos.
Por isso ela devia enviar-me à escola, para não desgostar a dona Maria leite” (JESUS,
1986, p. 123).
As memórias de Carolina retratada na obra trazem à tona passagens da vida de
Bitita, uma mulher que questiona a diferenciação entre negros, mulatos e brancos, que
expõem as explorações nos trabalhos domésticos em casas de brancos, apontam os
privilégios dos homens em relação às mulheres, principalmente as negras, as prisões
injustas das quais foi vítima simplesmente por ser negra.
Uma das consequências dessa discriminação é o branqueamento da raça e da
miscigenação, isso é mostrado em vários momentos do texto nos quais a autora trata da
separação e a marcação das pessoas de acordo com a cor da pele: “os brancos não iam
presos” (JESUS, 2014, p. 46), “ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto”
(JESUS, 2014, p. 55), “aquela filha branca era o orgulho da tia Ana. Era a predileta”
(JESUS, 2014, p. 75), “a Jerônima fugiu com um homem branco. Porque tinha nojo de
ter uma sogra preta” (JESUS, 2014, p. 80), “o meu irmão era o predileto. Eu pensava:
‘Ela trata-o com todo carinho, porque ele é mulato. E eu sou negrinha” (JESUS, 2014,
p. 83) e “o soldado que matou o nortista era branco. O delegado era branco. E eu fiquei
com medo dos brancos e olhei a minha pele preta” (JESUS, 2014, p. 116).
Os fragmentos acima demonstram que, por medo da discriminação social,
alguns negros preferem inconscientemente serem brancos, casarem-se com brancos ou
preferirem os filhos mais claros isso porque o preconceito é algo enraizado na cultura e
que atingem suas crenças limitantes e chegam as ações e decisões que tomam na vida.
Carolina fala que a cor da pele gerou um racismo muito grande, admitindo a
discriminação em várias esferas, narra uma experiência que viveu na pele a política de
branqueamento da raça, onde uma patroa branca, que além de explorar sua força de
trabalho, também julgava sua aparência como inadequada e promete deixá-la com a
fisionomia de uma menina branca:

Minha mãe respondia com polidez. Minha mãe era do ventre livre e
dizia que os brancos é que são os donos do mundo. Ela aprendeu a
dizer aos brancos apenas:

- Sim, senhora, sim, senhor.

Quando chegou a minha vez, a fazendeira examinou-me


minuciosamente com o olhar. Como se eu estivesse à venda, dizendo
que eu era uma negrinha esperta. [...]

A dona Maria Cândida pediu à minha mãe para eu ir todas as manhãs


auxiliá-la na limpeza da casa. Minha mãe consentiu. [...]

- Sabe, Carolina, você vem trabalhar para mim, e quando eu for a


Uberaba eu compro um vestido novo para você, vou comprar um
remédio para você ficar branca e arranjar um outro remédio para o seu
cabelo ficar escorrido. Depois vou arranjar um doutor para afilar o seu
nariz.

[...]
Ela permaneceu dois dias fora. Quando regressou, encontrou-me de
plantão à sua espera, mas fiquei decepcionada. Ela não trazia pacotes.
Então ela enganou-me. Pensei nos seis meses que trabalhei para ela
sem receber um tostão. Minha mãe me dizia que o protesto ainda não
estava ao dispor dos pretos. Chorei. (JESUS, 2014, p. 136-137)

É visível em toda a obra que o Brasil da época não estava disponível, nem
acessível para os negros, percebendo que a abolição da escravatura ainda não tinha sido
concretizada completamente, que a transição de ex-escravizado para um sujeito
nacional, um cidadão com todos os direitos e atribuições não havia se tornado real.
Carolina mostra isso quando ela reflete sobre a opressão racial continuada sobre o
negro. Isso nos lembra o trocadilho feito por Franz Fanon no título de sua obra Peles
Negro, Máscaras Brancas porque embora o Brasil não se fizesse mais uma país
escravocrata.

3.2. Violência e discriminação

A construção da personagem Bitita mostra muito da força de Carolina Maria de


Jesus, apresenta uma maturidade no que se refere a sua força como mulher negra, sua
identidade agora é autentica. Ela consegue não aceitar mais a opressão e sabe que o seu
dom da palavra pode ser usado para se defender, fato que pode ser visto na briga que ela
teve com Humbertinho, ela sabia que a palavra escrita (a citação) podia ferir mais que
ofensas orais. Esse fato já mostra a Carolina que deu voz aos negros:

Um dia, eu andava pelas ruas, ia contente. Ganhei uma lima e ia


oferecer a minha mãe quando apareceu o Humbertinho e me tomou a
lima. Chorei. Ele era branco. Tinha servido no exército. Quando eu
encontrava-o, xingava: – Me dá minha lima! (...) Todos temiam-no,
ele era filho do juiz. E o juiz manda prender. (...) Uma tarde quando
eu passava na frente da sua casa, ele abordou-me e me jogou várias
limas no rosto, nas pernas. Que dor! Então eu xinguei: – Cachorro
ordinário, ninguém aqui gosta de você! Vai embora, você é um sujo.
Foram contar ao doutor Brand que foi ver a nossa discussão. (..) O
doutor Brand interferiu: – Você não tem educação? – Eu tenho. O teu
filho que não tem. – Cala a boca. Eu posso te internar. Para o seu filho
fazer porcaria em mim como faz com as meninas que o senhor
recolhe? (...) Foram avisar a minha mãe que eu estava brigando com
doutor Brand. Foram avisar os soldados. O povo corria para ver a
briga. Quando o Doutor Brand caminhou na minha direção, não corri
e ele não me bateu. Minha mãe puxou-me: – Cala a boca cadela!
Gritei: – Deixa isto aqui é uma briga de homem com homem. (JESUS,
1986, p. 28). [...] Quando ele ia me bater, eu disse-lhe: — O Rui
Barbosa falou que os brancos não devem roubar, não devem matar.
Não devem prevalecer porque é o branco quem predomina. A chave
do mundo está nas mãos dos brancos, o branco tem que ser superior
para dar o exemplo. O branco tem que ser semelhante ao maestro na
orquestra. O branco tem que andar na linha. (JESUS, 1986, p. 29)

Notamos aqui a violência verbal presente nos discursos do juiz e de seu filho
assim como no uso que faz das forças do Estado para punir aqueles que ele considerava
inferiores. Nota-se que Carolina tem consciência da discriminação racial e de classe
vigente na sociedade brasileira porque ela se refere a Hubertinho como “um branco”,
“filho de juiz” e ela explicita sua consciência ao juiz ao citar Rui Barbosa. É ainda
interessante notar que ela toca também nas questões de gênero ao tratar dos abusos
sexuais a mulheres reclusas ao se propor a discutir com o juiz de “homem pra homem”.
A honestidade era uma característica importante para Carolina, mesmo em face
da fome que a fazia ter atitudes como pular o muro para pegar frutas no quintal da
vizinha, tal atitude lhe incomodava a consciência.

— Se eu pudesse comprar isto! Se eu pudesse comprar aquilo! Vestia


um vestido de minha mãe, amarrava um barbante na cintura e pulava o
muro da vizinha, trepava nas árvores, colhia as frutas, ia introduzindo-
as dentro do seio, depois descia e ia saboreá-las. Mas não sentia
tranqüilidade interior. O meu subconsciente me advertia que havia
praticado um ato indigno. Eu não tenho coragem de roubar. Devo e
deverei lutar para conseguir tudo com honestidade. Tinha a impressão
que alguém sussurrava nos meus ouvidos — seja honesta, seja
honesta, seja honesta — como se fosse um tique-taque de um relógio.
Parece que eu tinha um preceptor dirigindo-me. Quando eu ganhava
uma fruta, ou comprava, não ficava atemorizada, todos têm o bom
senso. Se o homem rouba, é porque ele é canalha. (JESUS, 1986, p.
54)

Nota-se que no fragmento acima, Carolina coloca-se a si mesma a tarefa de


ser honesta apesar de viver em uma sociedade que a excluí e, por isso, a violenta por sua
pobreza. O excerto demonstra como a autora constrói uma imagem de si mesma como
alguém que tem consciência do que o roubo, mas que também considera que a fome
deve ser saciada.
Na obra, Carolina narra como foi sua entrada na educação formal (no
Colégio Alan Kardec), ela ainda era uma criança que mamava do peito e que era
ensinada pela mãe que negro tinha que obedecer ao branco e, por insistência de dona
Maria Leite, a mãe de Carolina lhe enviou para a escola e assustada ela dizia:
Quando eu olhava os quadros dos esqueletos, o meu coração
acelerava-se. Amanhã, eu não volto aqui. Eu não preciso aprender a
ler. E que eu estava revoltada com os
Colegas de classe por terem dito-quando eu entrei:
— Que negrinha feia!
Ninguém quer ser feio.
— Que olhos grandes, parece sapo. (JESUS, 1986, p. 122)

Mesmo a escola se mostrando um lugar de opressão, mesmo lidando com


discriminação racial e violência verbal em relação a si, Carolina resolveu estudar com
assiduidade e estudou por apenas dois anos, mas isso já foi o suficiente para iniciar o
rompimento da subalternidade, pois neste espaço ela aprendeu mais do que apenas
decodificar os signos alfabéticos, aprendeu que, com conhecimento ela poderia ir mais
longe, numa realidade na qual negros não tinham os mesmos direitos e tratamentos que
os brancos. Carolina era uma menina muito inteligente, logo aprendeu a ler e se
apaixonou pela leitura e nunca mais deixou de ler, passando a ser uma das primeiras da
classe.

[...] Decidi estudar com assiduidade, compreendendo que devemos até


agradecer quando alguém quer nos ensinar. Compreendi que estava
sendo indelicada com a dona Lonita, cansando-lhe a paciência.
O desenho permaneceu no quadro, três meses. Depois percebi que já
sabia ler. Que bom! Senti um grande contentamento interior. Lía os
nomes das lojas! “Casa Brasileira, de Armond Goulart.” Não é só esta
loja que é
uma casa brasileira. Mas as casas, as árvores, os homens que aqui
nascem tudo pertence ao Brasil. Percebi que os que sabem ler têm
mais possibilidades de compreensão. Se desajustarem-se na vida,
poderão reajustar-se. Li:
“Farmácia Modelo.” Fui correndo para casa. Entrei como os raios
solares.
Mamãe assustou-se. Interrogou-me:
— O que é isto? Está ficando louca?
— Oh! Mamãe! Eu já sei ler! Como é bom saber
ler!
Vasculhei as gavetas procurando qualquer coisa para eu ler. A nossa
casa não tinha livros. Era uma casa pobre.
O livro enriquece o espírito. Uma vizinha emprestou-me um livro, a
romance Escrava Isaura. Eu, que já estava farta de ouvir falar na
nefasta escravidão, decidi que deveria ler tudo que mencionasse o que
foi a escravidão. Compreendi tão bem o romance que chorei com dó
da escrava. Analisei o livro. Compreendi que naquela época os
escravizadores eram ignorantes, porque quem é culto não escraviza, ê
os que são cultos não aceitam o jugo da escravidão. (JESUS, 1986, p.
126).
No fragmento acima vemos que Carolina toma consciência da importância da
leitura em sua vida e do quanto isso coloca o sujeito em outra posição social, a de
sujeito de sua história. Também é significativo o fato de a jovem leitora questionar o
nome das lojas, como faz com a “Casa Brasileira”, ou questionar o adjetivo brasileira
para uma das lojas, pois, em sua interpretação tudo aquilo que estivesse no Brasil
poderia receber tal qualificador. Também é significativo o fato de o primeiro livro lido
por ela ser Escrava Isaura, o que a leva a refletir sobre a escravização.
A adolescência e fase adulta de Carolina foram bastante conturbadas, a
pobreza, fez de Carolina uma caminhante, passando por diversos lugares em busca de
condições de vida que garantissem o mínimo de sobrevivência a ela e sua família.
Passou pela fazenda Lajeado do senhor Olímpio Rodrigues de Araújo

Quem nos conduziu até a fazenda Lajeado foi o motorista José


Fernandes. Foi a primeira vez que viajei de caminhão. Conseguia ir
tão depressa! Quando chegamos fiquei descontente, queria voltar para
a cidade. Olhava aquele local, vendo apenas as árvores com suas
tonalidades de verdes claros e escuros. (JESUS, 1986, p. 131)

O fragmento acima indica que Carolina está descobrindo o mundo (Foi a


primeira vez que viajei de caminhão). Ela observa o modo como o caminhão se
locomove com rapidez, mas também estranha o movimento da cidade diante da
novidade que o campo é para ela. À volta para a cidade não foi muito agradável para
Carolina, que achava boa a vida no campo, apesar de sofrida, pois era o lugar onde ela
sabia que não passaria fome, havia fartura. “- Que saudades da vida ridente do campo!”
(pag. 137).
Na cidade as dificuldades eram muitas, o trabalho era muito e os ganhos pouco
e foi nesse momento que Carolina adoece uma doença não identificada que afeta suas
pernas causando feridas que não cicatrizavam facilmente e essa situação impedia a
personagem de trabalhar e ajudar no sustento de sua família foram muitas idas e vindas,
muitos conflitos e dificuldades enfrentadas, muitas violências foram cometidas contra
ela. Analisando a vida de trabalhos domésticos sem garantias trabalhistas, a dificuldade
de acesso à saúde, Carolina tem que optar por se tratar ou trabalhar e isso indica que à
negra e pobre não é oferecida possibilidade alguma de recurso a saúde.
Carolina se tornou adulta, passou a viver na favela, morando em um barraco,
ela sonhava em sair da favela, trabalhar e adquirir uma casa e melhores condições de
vida,coisa que só o dinheiro podia proporcionar, neste momento ela sabia que vivia
numa sociedade capitalista.

Pagou-me, dividi o dinheiro com a minha mãe (...). Eu olhava o


dinheiro e pensava: ‘Sem este papel ninguém vive. Ele nos domina, e
predomina na nossa vida. Os que têm bastante são fortes, são
respeitados, são donos do leme; quem não tem em grandes
quantidades, é joão-ninguém, pé-rapado, são os desconsiderados, são
os fracos’. Eu só conseguia comer quando estava empregada. (JESUS,
1986, p. 193).

Carolina reflete sobre o valor do dinheiro e o modo como ele dá poder a uns e a
outros não, eles tem consciência de que vive em uma sociedade capitalista e, embora
saiba, do modo como ela funciona, também deseja ter uma casa e os bens que o dinheiro
pode comprar, sempre questionando a divisão social imposta por tal modelo
econômico.Ela teve certa melhoria em sua qualidade de vida quando foi vista pelo
jornalista Audálio Dantas que se interessou pela história da mulher negra e pobre que
escrevia sua vida em meio à precariedade, o que resulta de sua paixão pela escrita e
leitura só aumentava, registrava seu dia a dia na favela.

3.3. Violência física versus violência psicossocial na obra Diário de Bitita

A obra “Diário de Bitita” traz denúncias sobre violência e discriminação contra


mulheres negras, fatos que apontam com urgência a necessidade de reflexões e políticas
públicas voltadas para esse tema, pois, embora estas sejam majoritariamente violentadas
e discriminadas, são invisíveis socialmente. Em diversos países, as mulheres negras são
em sua maioria, vítimas nos índices de violações de direitos humanos e no Brasil não é
diferente.
A respeito da violência contra mulher, Lourdes Bandeira (2014) afirma que
esse tipo de violência não se refere a atitudes e pensamentos de aniquilação de alguém
considerado como igual e visto nas mesmas condições de existência e valor como
aquele que a pratica. Pelo contrário, a motivação da violência seria as expressões de
desigualdades, que começa no seio familiar, onde as relações se constituem por meio de
hierarquia. Porém, não se negam as situações em que marcas de raça, idade, classe,
dentre outras, modificam a posição em relação àquela do núcleo familiar (BANDEIRA,
2014). A violência e a discriminação cometida contra as mulheres negras servem a um
propósito maior de desumanizar-las, negando-lhes a condição de pessoa e
transformando-as em “coisas”.
Além da violência e discriminação que Carolina Maria de Jesus descreve na
obra, também a violência psicossocial ou simbólica, que vem caracterizada em primeiro
momento na anulação da identidade dela como mulher negra através do ideário branco,
que aprendeu logo cedo que o “branco” era quem ditava as regras, dura realidade que
Carolina reflete em sua obra, pela qual descreve e rememora as situações de violência
física e simbólica advinda de uma estrutura social moldada pela colonialidade do poder
e ser, para lembrar Aníbal Quijano, num país já republicando, que ainda mantém traços
de subalternização do Outro que não condizem com o regime político adotado.
Carolina conseguiu transmitir sua vivencia através da literatura e isso nos ajuda
a compreender como a violência e a discriminação se mantém no âmbito social e como
as mulheres negras lutaram e lutam para desconstruir todo um processo de supremacia
racial branca que traz muitas consequências e que incentivam ainda mais a propagação
de atos violentos e discriminatórios contra as mulheres negras.
CONSIDERAÇOES FINAIS

Ao ler “Diário de Bitita” e buscar saber mais sobre Carolina Maria de Jesus
percebemos que ela faz parte de um pedaço da sociedade do Brasil da época que vai se
transformando aos poucos e que reflete diretamente na atualidade, se tornou uma das
porta-vozes da mulher negra e pobre de um Brasil não tão distante. Carolina relata suas
vivências de fatos de violência, discriminação, fome, pobreza, e diversos outros temas
em seus diários, tudo isso usando como exemplo a família e as experiências que ela
vive. “Diário de Bitita” é uma obra que traz em seu contexto a visão de uma mulher
negra, pobre e desfavorecida de uma sociedade que falhou com ela de diversas formas,
mas que se tornou um caso exemplar de que, quando se têm acesso ao conhecimento,
um novo mundo se abre.

Carolina deu voz a quem era invisível e silenciado e até hoje sua voz ecoa
cada dia mais forte,fato que fez com que muitas mulheres negras usassem suas obras
como escudo e instrumento de força, resistência e empoderamento. O seu legado hoje é
usado pelos movimentos feministas negros, que estão na luta por espaço,
reconhecimento e pelo fim das violências e discriminações que são cometidas contra
essas mulheres, que historicamente foram submetidas à servidão, aos abusos e à solidão.

Outra conclusão a que chegamos é a de que Carolina Maria de Jesus se


autorretrata como mulher e um ser que não aceita o lugar de subalternidade a ela
imposto e ainda que se proponha a tratar de suas memórias sem focar nas questões de
discriminação racial e gênero estas se sobressaem na obra Diário de Bitita. Isso ocorre
porque sua interação social é social familiar e de escolar de trabalho foram definidas
pelo modo como a sociedade de sua época viam a mulher negra.

O livro Diário de Bitita pode ser considerado um texto literário de denúncia do


racismo, da violência, da discriminação e de muitos outros aspectos, que ainda são tão
presentes na sociedade brasileira. Carolina foi uma mulher à frente de seu tempo,
rompeu barreiras, quebrou tabu e nos deixou um legado literário por isso é tão
importante revisitar suas obras para propagar a escritora e poetisa que, mesmo vivendo
às margens da vida, mostrou que ainda sem condições favoráveis e cadernos encardidos
é possível escrever e protagonizar a própria história.
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