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Lisboa:
Antigona, 2014.
“Pela primeira vez na história humana, o nome Negro deixa de remeter (...)
para a condição atribuída aos genes de origem africana durante o primeiro
capitalismo (predações de toda espécie, desapossamento da autodeterminação e,
sobretudo, das duas matrizes do possível, que são o futuro e o tempo). A este novo
caráter descartável e solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida e à
sua generalização ao mundo inteiro, chamamos o devir-negro do mundo” (orelha do
livro).
p. 10: “(...) de uma a outra ponta de sua história, o pensamento europeu sempre
teve tendência para abordar a identidade não em termos de pertença mútua (co-pertença)
a um mesmo mundo, mas antes, na relação do mesmo ao mesmo, de surgimento do ser e
de sua manifestação em seu ser primeiro, ou ainda no seu próprio espelho (1) (...)”.
p. 11: “A que se deve então esse delírio [visto que o negro tem significado, para
o imaginário das sociedades europeias, segundo Achille, designações pesadas,
perturbadoras e desequilibradas, símbolos de repulsa e de crueza, e que constituiu o
subsolo, o núcleo a partir do qual o projeto moderno de conhecimento e de governação
se difundiu (2)], e quais as suas manifestações mais elementares? Primeiro, deve-se ao
fato de o Negro ser aquele (ou ainda aquele) que vemos quando não se vê, quando nada
compreendemos e, sobretudo, quando nada queremos compreender. Em qualquer lado
onde apareça, o Negro liberta dinâmicas passionais e provoca uma exuberância
irracional que tem abalado o próprio sistema racional (...) como explicou Gilles
Deleuze, ‘há sempre um negro, um judeu, um chinês, um mongol, um ariano no delírio’,
pois aquilo que faz fermentar os delírios são as raças (3). Ao reduzir o corpo e o ser
vivo a uma questão de aparência, de pele ou de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto
de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro-americanos em particular fizeram do
negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura, a da loucura codificada (4).
(...) a raça [seja como categoria originária, material e fantasmagórica] tem estado, no
decorrer dos séculos precedentes, na origem de inúmeras catástrofes, e terá sido a causa
de devastações físicas inauditas e de incalculáveis crimes e carnificinas (5)”.
p. 12-13: “Três momentos marcaram a biografia deste vertiginoso conjunto. O
primeiro foi a espoliação organizada quando, em proveito do tráfico atlântico (século
XV ao XIX), homens e mulheres originários de África foram transformados em
homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda (6). Apesar de sua vida e o seu
trabalho serem a partir de então a vida e o trabalho dos outros, com quem estavam
condenados a viver (...) eles não deixariam de ser sujeitos activos (7). O segundo
momento corresponde ao acesso à escrita e tem início no final do século XVIII, quando,
pelos seus próprios traços, os Negros, estes seres-capturados-pelos-outros, conseguiram
articular uma linguagem para si, reivindicando o estatuto de sujeitos completos do
mundo vivo (8). Tal período, pontuado por (...) revoltas de escravos, pela independência
do Haiti em 1804, por combates pela abolição do tráfico, pelas descolonizações
africanas e lutas pelos direitos cívicos nos Estados Unidos, viria a completar-se com o
desmantelamento do apartheid nos últimos anos do século XX. O terceiro momento
(início do século XXI) refere-se à globalização dos mercados, à privatização do mundo
sob a égide do neoliberalismo e do intrincado crescimento da economia financeira, do
complexo militar pós-imperial e das tecnologias eletrônicas e digitais”.
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p. 18: “(...) o nome Negro deixa remeter unicamente para a codificação atribuída
aos genes de origem africana durante o primeiro capitalismo (predações de toda a
espécie, desapossamento da autodeterminação e, sobretudo, das duas matizes do
possível, que são o futuro e o tempo). A este novo caráter descartável e solúvel, à sua
institucionalização enquanto padrão de vida e à sua generalização ao mundo inteiro,
chamados o devir-negro do mundo”.
RAÇA E FUTURO
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p. 21: “(...) terá sobrado qualquer coisa, das fendas e até das lesões da crueldade
colonial, para dividir, classificar, hierarquizar e diferenciar. Pior ainda, a clivagem
criada permanece. Será mesmo verdade que hoje em dia estabelecemos com o Negro
relações diferentes das que ligam o senhor ao seu criado? Ele próprio não continuará a
ver-se apenas pela e na diferença? Não estará convencido de ser habitado por um duplo,
uma entidade alheia que o impede de chegar ao conhecimento de si mesmo? Não viverá
nu mundo de perda e de cisão, mantendo o sonho de regresso a uma identidade que se
declina a si própria em função da essencialidade prua e, portanto, muitas vezes, do que
lhe é dissemelhante? A partir de quando o projeto de levantamento radical de autonomia
em nome da diferença se tornou simples inversão mimética daquilo que durante tanto
tempo foi a sua maldição?”.
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p. 24: “No decorrer da minha esta no WISER, pude beneficiar do apoio dos
meus colegas Deborah Posel Sarah Nutall, Jonh Hyslop, Ashelee Neeser, Pamila Gupta
e, recentemente, Cathy Burns e Keith Breckenridge. As páginas que se seguem devem
imenso à amizade de David Theo Goldberg, Arjun Appadurai, Ackbar Abbas, Françoise
Vergès, Pascal Balnchard, Laurent Dubois, Éric Fassin, Ian Baucom, Srinivas
Aravamudan Charlie Piot e Jean-Pierre Chrétien.
O meu editor François Gèze e a sua equipa (Pascale Iltis e thomas Deltombe em
particular) mostraram, como de costume, um irrepreensível apoio.
1. A questão da Raça
p. 25: “(...)
p. 57: “Numa primeira instância, a razão negra consiste portanto num conjunto
de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates, cujo objeto é a
coisa ou as pessoas ‘de origem africana’ e aquilo que afirmamos ser o seu nome e a sua
verdade (os seus atributos e qualidade, o seu destino e significações enquanto segmento
empírico do mundo). Composta por múltiplos estratos, esta razão data da Antiguidade,
pelo menos. As suas fontes gregas, árabes ou egípcias, até chinesas, originaram muitos
trabalhos1. Têm consistido, desde sempre, numa atividade primitiva de efabulação.
Trata-se, no fundo, de salientar vestígios reais ou comprovados, urdir histórias e
constituir imagens. A Idade Moderna é, no entanto, um momento decisivo para a sua
formação, devido, por um lado, às narrativas dos viajantes, exploradores, soldados e
aventureiros, missionários e colonos e, por outro, à elaboração de uma ‘ciência
1
“Engelbert Mveng, Les Sources gregcques de l’histoire négro-africaine, depuis Homère jusqu’à
Strabon, Présence africaine, Paris, 1972; Cheikh Anta Diop, Nations nègres et cultures, Présence
africaine, Paris, 1954, e Antériorité des civilisations nègres. Mythe ou vérité historique?, Présence
africaine, Paris, 1967; Théophile Obenga, L’Afrique dans l’Antiquité. Égypte pharaonique, Afrique noire,
Présence africaine, Paris, 1973”.
colonial’, na qual o africanismo’ é o último patamar. Toda uma gama de intermediários
e de instituições, tais como sociedades eruditas, exposições universais, coleções de
amadores de arte ‘primitiva’, colaborou, na devida altura, na constituição desta razão e
com a sua transformação em senso comum ou em habitus”.
2
“Evelyn Baring Cromer, ‘The Governement of subject races’, Edinburgh Reveiw, janeiro 1908, pp. 1-
27; e Modern Egypt, vols. 1 e 2, Macmillan, Nova Iorque, 1908”.
3
“A propósito de diversas formulações destas questões na historiografia americana, ver Stephen G. Hall,
Faithful Account of Race. African American Historial Writing in Nineteenth-Century America,
University of North Carolina Press, Chapel Hill, 2009. Do lado africano, ver por exemplo Cheikh Anta
Diop, Nations nègres et culture, op. cit.”.
p. 59: “(...). Um arquivo é (...) indispensável para restituir os Negros à sua
história [numa segunda escrita], mas é uma tarefa especialmente complicada. Na
realidade, tudo o que os Negros viveram como história não tem forçosamente de ter
deixado vestígios; e, nos lugares onde foram produzidos, esses vestígios não foram
preservados. Assim, impõe-se saber: na ausência de vestígios e de fontes com fatos
historiográficos, como se escreve a história? (...) começou a criar-se a ideia de que a
escrita da história dos Negros só pode ser feita com base em fragmentos, convocados
pra relatar uma experiência em si mesma fragmentada, a de um povo em pontilhado,
lutando para se definir não como um compósito absurdo, mas como uma comunidade
cujas manchas de sangue são visíveis em toda a modernidade”.
p. 60: “Esta escrita esforça-se (...) por edificar uma comunidade que se forja a
partir de restos dispersos em todos os cantos do mundo. No Ocidente, a realidade é a de
um grupo composto por escravos e homens de cor livres que vivem, na maior parte dos
casos, nas zonas cinzentas de uma cidadania nominal, no meio de um estado que, apesar
de celebrar a liberdade e a democracia, é, fundamental, um estado esclavagista. Ao
longo deste período, a escrita da história tem uma dimensão performativa. A estrutura
de tal performance é de ordem teológica. O objetivo passa (...) por escrever uma história
que reabre, para os descendentes de escravos, a possibilidade de voltarem a ser agentes
da própria história (24)
NOTAS
(1) “Acerca da complexidade e das tensões inerentes a este gesto, ver Srivinas
Aravamudan, Elightenment Orientalism, Revisiting the Risco of Novel,
University of Chicago Press Chicago, 2012”.
(2) “William Max Nelson, ‘Making men: enlightenment ideas of racial
engeneering’, American Historical Review, vol. 115, n. 2, 2010, pp. 185-
4
“Alain Locke, ‘The Negro Spirituals’, in The Souls of Black Folk, Library of America, Nova Iorque,
1990 [1903]; Samuel A. Floyd Jr., The Power of Black Music, Oxford University Press, Nova Iorque,
1990; Paul Gilroy, O Atlântico Negro, Modernidade e Dupla Consciência, Ucam, Rio de Janeiro, 2001
[1992], e Darker than Blue, Havard University Press, Cambridge, Mass., 2010. Ver igualmente Paul
Allen Anderson, Music anda Memory in Harlem Renaissance Thought, Duke University Press, Durham,
2001”.
207; e Nicolas Hudson, ‘From nation to race: the origins of racial
classification in eighteenth-century thought’, Eighteenth Century Studies,
vol. 29, nº. 3, 1996, pp. 247-264”.
(3) “Gilles Deleuze, Deux regimes de fous. Textes et entretiens, 1975-1995,
Minuit, Paris, 2003, p. 25”.
(4) “Miriam Eliav-Feldon, Benjamin Isaac e Joseph Ziegler, The Origins of
Racism in the West, Cambridge University Press, Cambridge, 2009”.
(5) Frantz Fanon, Pele Negra, Máscaras Brancas. Edufba, Salvador, 2008.
Tradução de Renato da Silveira (1952); William Bloke Modisane, Blema Me
on History, Dutton, Nova Iorque, 1963”.
(6) “Wlater Johnson, Soul by Soul, Life Inside the Antelbellum Slave Market,
Havard University Press Cambridge , Mass, 1999; e Ian BAucom. Specters
of the Atlantic Finance. Capital Slavery, and the Philosophy of History,
Duke University Press, Durham, 2005”.
(7) “Acerca destes debates, ver John W. Blassingame, The Slave Community.
Plantation Life in the Ante Bellum South, Oxford University Press, Noca
Iorque, 1972; Engeno D. Genovese. Roll, Jordan Roll. The World the Slaves
made, Panthenon Books. Nova Iorque, 1974”.
(8) “Doroty Porter, Early Negro Writing, 1760-1837, Black Classic Press,
Baltimore, 1995. E sobretudo John Ernest, \Liberation Historiograph African
Amerian Writes and Challenge of History, 1794-1861, university of North
Carolina Press, Chapel Hill, 2004, e Stephen G. Hall, A Faithful Account of
the Race, African Amerian Historical Writing in Nineteenth-Century
America, university of North Carolina Press, Chapel hill, 2009. Tratando-se
das Antilhas, em particular, ver Patrick Cahmoiseau e Raphael Confiant,
Lettres créoles, tracées antillaises et continantales, 1635-1975, Haiter, Paris,
1991. No mundo africano de língua inglesa, esta entrada efectua-se, como no
Haiti, no decorrer do século XIX. Ver, por exemplo, S.E.K. Mqhayi, Abantu
Besizwe. Historical and Biogaphical Writings, 1992-1944, Wits University
Press, Janesburgo, 2009. Ela ocorre um pouco mais tarde no mundo
francófono. A tal respeito, ver Alain Ricard, Naissance du roman africain:
Félix Couchouro (1900-1968), Présence Africaine, Paris, 1987”.
(9) “Joseph Vogl, Le Spectre du capital, Diaphanes, Paris, 2013, p. 152”.
(10) “Ver Béatrice Hibou, La Bureaucratisation du monde à l’ère néolibérale,
La Découverte, Paris, 2012”.
(11) “Ver Joseph Vogl, op., cit. pp. 166 e seguintes”.
(12) “Ver, deste ponto de vista, Francesco Masci, L’Ordre règne à Berlin,
Éditions Allia, Paris, 2013”.
(13) “Ver Pierre Dardot e Christian Laval, La Nouvelle Raison du monde.
Essai sur la société néolibérale, La Découverte, Paris, 2009. Ver também
Roland Gori, ‘Le dispositifs de réification de l’humain (conversa com
Philippe Schepens)’, Semen. Revue de sémio-linguistique des textes et
discours, nº 30, 2011, pp. 57-70”.
(14) “Ver os trabalhos de Stephen Graham, Cities under Siege. The New
Military Urbanism, Verso, Londres, 2010; derek Gregory, ‘From a view to a
kill. Drones and late modern war’, Theory, Culture & Society, vol. 28, nº 7-
8, 2011, pp. 188-215; Bem Anderson, ‘Facing the future enemy. US
counterinsurgency doctrine anda the pre-insurgent’, Theory, Culture &
Society, vol. 28, nº 7, 2011, pp. 216-240; e Eyal Weizman, Hollow Land.
Israel’s Architecture of Occupation, Verso, Londres, 2011”.
(15) “David H. Ucko, The New Counterinsurgency Era. Transforming the US
Military for Modern Wars, Georgetown University Press, Washington, DC,
2009; Jeremy Scahill. Blackwater. The Rise of the World’s Most Powerful
Mercenary Army, Nation Book, Nova Iorque, 2007; John A. Nagl, Learning
to Eat Soup with a Knife. Counterinsurgency Lessons from Malaya and
Vietnam, Chicago University Press, Chicago, 2009; Grégoire Chamayou,
Théorie du drone, La Fabrique, Paris, 2013”.
(16) “Maurizio Lazzarato, La Fabrique de l’homme endetté, Amesterdão,
Paris, 2011”.
(17) “Didier Anzieu, Le Moi-Peau, Dunod, Paris, 1995, p. 31”.
(18) “Ver espcialmente a posesia de Aimé Césaire. Acerca da temática do
lodo, ver Édouard Glissant e Patrick Chamoiseau, L’Intraitable Beauté du
monde, Galaade, Paris, 2008”.
(19) “Éric Fassin, Démocratie précaire, La Découverte, Paris, 2012; e Fassin
(dir.), Les Nouvelles Frontières de la société française, La Découverte, Paris,
2010”.
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