Você está na página 1de 236

SUMÁRIO

Textos de membros do Fórum relativos ao tema

A resposta que convém ao estilo do inconsciente (2011) 00


Dominique Fingermann

A responsabilidade do dizer (2012) 00


Dominique Fingermann

A psicoterapia retorna ao pior (2005) 00


Dominique Fingermann

Interpretação: da lógica do significante, à (po)ética do ato 00


Ana Laura Prates Pacheco

O que responde o psicanalista? 00


Ana Laura Prates Pacheco

Por uma prática sem valor 00


Ana Laura Prates Pacheco

O livro de cabeceira 00
Ana Laura Prates Pacheco

A pressão: uma leitura da transferência 00


Sandra Berta

A interpretação como equívoco: a subversão do sentido 00


Sandra Berta

O objeto a, separador dos gozos 00


Sandra Berta

A Estética da Interpretação 00
Christian Dunker

A Ética da Interpretação 00
Christian Dunker

A Lógica da Interpretação 00
Christian Dunker

A Interpretação do Chiste e a Retórica da Interpretação Psicanalítica 00


Christian Dunker
Alienação e Separação nos Processos Interpretativos em Psicanálise 00
Christian Dunker

A Interpretação da Clínica Psicanalítica 00


Christian Dunker

A causa final na psicanálise e na arte 00


Silvana Pessoa

A certeza do final – identificação ao sintoma 00


Silvana Pessoa

Interpretação: uma resposta orientada pela ética 00


Silvana Pessoa

Para além do fim do toro neurótico: uma invenção no final da análise 00


Beatriz Oliveira

Algumas reflexões sobre o AME, em nossa Escola, segundo


a proposta de Lacan em 1967-1968 00
Sandra Berta

O objeto a, separador dos gozos 00


Sandra Berta

O objeto a no Seminário XXIII: ainda h(a)eresis 00


Sandra Berta

A interpretação como equívoco: a subversão do sentido 00


Sandra Berta

O dote que o saber paga ao gozo (la jouissance) 00


no casamento fictício com a verdade
Ana Laura Prates Pacheco

O que responde o analista ? Ética e clínica (Prelúdio 1) 00


Colette Soler

Se fazer no real, clínica e ética (Prelúdio 2). 00


Carmen Gallano

o que o analista responde (Prelúdio 3) 00


Ana Laura Prates Pacheco

O frenesi teórico sobre o sujeito do capitalismo tardio 00


Raul Albino Pacheco Filho

  2  
A RESPOSTA QUE CONVÉM AO ESTILO DO INCONSCIENTE
Dominique Fingermann

A interpretação é a resposta do analista, “a resposta que convém ao estilo


do inconsciente1”, condicionada pelo seu desejo, seu discurso, seu ato, operação
que a ética do Bem-Dizer lhe outorga, em consequência de sua própria analise,
“prática da tagarelice2”, do babablar3. O que convém, é que o psicanalista saiba
operar a (na) transferência do começo ao fim; por isso é necessário “que ele saiba
operar convenientemente, ou seja, que se dê conta do alcance das palavras para o
seu analisante4”. Por isso ele deve ele mesmo alcançar a diz-mensão poemática
do dito, ou seja, a vivacidade do movimento pendular como descreve Paul Valéry5
entre a “voz em ação “e “todos os valores significativos” constantemente
permeados e renovados pela sua música, tal uma fonte cujo espetáculo é
produzido por algo tão inapreensível e resoluto quanto a força da água e o cristal
de seu respingar perpétuo.
Antes de tudo, é o analisante que interpreta, e por isso mesmo supõe no
analista um parceiro, um complemento da interpretação que disparou
precocemente a seu périplo subjetivo: alucinação da experiência de satisfação,
teorias sexuais infantis, interpretação fantasmática do silêncio do Outro. O
analisante interpreta, no fio da associação livre ele tece o seu texto, bordado
barroco em torno do litoral da letra, ele tece a textura das suas elucubrações,
narrativa, mito, ficções, novela familiar, verdade mentirosa, o sentido transborda do
furo do ab-sens, ab-sexo.
O analista pode “ajudar”, “colaborar” nessa tarefa - diz Lacan várias vezes -
as suas escansões, pontuações, “estimulam” a sua capacidade ficcional, a
produção de significação via metáfora e metonímia. Mas o que ele vai qualificar
como “interpretação” a partir do Seminário “O Ato psicanalítico” é mesmo uma
entrada do analista, uma intrusão, que não se acumplicia com isso: o analisante
costura, o analista corta.
Sabemos que Lacan deu diferentes formulações da interpretação que
acompanharam as mudanças de sua apreensão do real da clínica; no entanto,
persiste, e insiste ao longo do ensino lacaniano o seu valor fundamental de corte.
Fundamentalmente é corte em relação à esperança transferencial, “o lugar de onde
o psicanalista fala, não é o mesmo que aquele de onde está suposto falar na
transferência6”.
                                                                                                               
1
Jacques Lacan. “A psicanálise e seu ensino”[1957] In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003, p.449.
2
Jacques Lacan. Le moment de conclure (Le Séminaire XXV). Paris: Éditions de l’ALI (inédito), p.11,
3
Babablar: neologismo que traduz bavardage, tagarelice, onde Lacan ressalta a dimensão corporal
da “bave; baba”
4
Jacques Lacan. Le moment de conclure (Le Séminaire XXV). Paris: Éditions de l’ALI (inédito), p.11,
tradução nossa. “[...] Ce qu'il faudrait, c'est qu'il sache opérer convenablement, c'est-à-dire qu'il se
rende compte de 1a portée des mots pour son analysant”.
5
Paul Valéry. « Variété » in Œuvres complètes. Paris: Gallimard (Pléiade), p. 1332.
6
Jacques Lacan. L’objet de la psychanalyse (Le Séminaire XIII). Paris: Version ALI (inédito), p.138,
tradução nossa. “[...] La place d'où le psychanalyste parle n'est pas la même que celle d'où, dans le

  3  
Embora Lacan precise que a interpretação limite o “pas de dialogue” (não há
diálogo), ou seja, constitui uma certa “interlocução”, a intervenção do analista
atualiza essencialmente a alteridade, a hiância, o hiato, o “pas-de sens” (não
sentido), o “não há relação sexual”, o gozo de Um sozinho. Ao longo da análise
esse corte tem efeito paradoxal de propiciar os passos de sentido (pas de sens),
até que, ao cingir o impasse ao qual conduzem necessariamente os passos, o
analisante consinta topar com o ab-sens, a falha original de sentido.
Que seja escansão da cadeia significante que revela a produção de
significação do sujeito suposto, que seja intrusão, imisção, suplemento de
significante, “ligar (ler) de um outro jeito7”, que seja surpresa, equívoco, citação,
enigma, poesia, todas as variantes da interpretação produzem um corte no sentido
e na verdade, todas suspendem o SsS. Em geral o analisante demora um certo
tempo antes de perceber que a intervenção do analista não completa a sua
verdade, mas responde à verdade com o saber: a posição do inconsciente é
resposta e responsabilidade do analista.
No Seminário XVI Lacan diz que a interpretação responde à verdade, produzindo
uma falha, que tem efeitos de saber, que torna sensível, apreensível “um saber
primitivo”.
No Seminário XXII ele precisa dizendo que “a interpretação reverbera mais
longe do que a fala8”, a interpretação repercute algo mais longe do que a fala, ela
“força aí outra coisa”, ela toca “a ek-sistencia de alíngua”.
O corte, portanto, não é simplesmente negativação dos ditos, pelo contrário,
a interpretação silencia o sentido que sutura o inter-dito, para produzir, atualizar no
intervalo, o oco que permite que ressoe o eco do dizer: nesse sentido Lacan
valorizou em algum momento a intervenção “tu l’as dit!” (“Você o diz”, ou “o dito foi
seu!”) como uma das melhores interpretações, pois ela corta a suposição de saber
no outro ( foi você que diz) e aponta que o dito não vai sem o dizer: o dito permite
localizar e autentificar o lugar do dizer (“Ça ne va pas sans dire””). O corte da
sessão produz igualmente esse mesmo efeito de esvaziamento do sentido e de
ressonância do dizer: “Tu l’as dit!”.
A resposta do analista, a interpretação que convém ao estilo do inconsciente
e que conduz a análise até seu fim tem consequências além do final da análise:
quando ao insucesso do sujeito suposto saber e da verdade mentirosa responde o
sucesso da repetição. Quando da repetição foi destacado o Um, do Um-Dizer, ou
seja, a sua potência de acontecimento poético, então, no meio da psicanálise
encontra-se o fim, encontro que ultrapassa as esperanças do encontro marcado
com o sujeito suposto saber, encontrão de um “oco sempre futuro” como diz Paul
Valéry9. É da solidão enquanto separação com o outro que pode emergir, irromper
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       
transfert, il est supposé parler”.
7
Jacques Lacan. O ato psicanalítico ( O seminário XV), inédito.
8
Jacques Lacan. RSI (Le Séminaire XXII). Paris: Version ALI (inédito), p.78, tradução nossa.
“[...] Il est certain qu'elle porte, l'interprétation analytique porte d'une façon qui va beaucoup plus loin
que la parole”.
9
Paul Valéry. “Le cimetière marin (1920)” in La bibliothèque de poésie (volume III): Paris, Éditions
France Loisirs, 2004, p.803.

  4  
o amor e a criação. É do vazio da solidão radical do ser que a acontecência possa
ter lugar: um oco proporcionando sempre o eco por vir.

“O pour moi seul, à moi seul, en moi-même,


Auprès d'un cœur, aux sources du poème,
Entre le vide et l'événement pur,
J'attends l'écho de ma grandeur interne,
Amère, sombre, et sonore citerne,
Sonnant dans l'âme un creux toujours futur!”

“Ó só por mim, só de mim, em mim mesmo,


Junto a um coração, às fontes do poema,
Entre o vazio e o acontecimento puro,
Espero o eco de minha grandeza interna,
Amarga, escura e sonora cisterna,
Ressoando na alma um oco, sempre futuro!”

  5  
DA LÓGICA DA INTERPRETAÇÃO À PRÁTICA DA LETRA

Dominique Fingermann

“Da lógica da interpretação à prática da letra”: esse título formaliza um


percurso: “de” ...“à” e, portanto, anuncia, indica, promete, uma orientação, uma
passagem, uma operação.
Uma operação lógica que afete, que tenha efeitos, é isso mesmo que esperamos da
direção da psicanálise pelo psicanalista: orientados eticamente pelo Real, visamos
uma passagem, “uma mutação” diz Lacan, que tenha consequências poéticas e
políticas, já que apostamos com um novo laço enraizado no radical da letra do
sinthoma.
A letra do sinthoma dispara o jogo do parlêtre (falaser- faletra). Tempo
lógico (ver- compreender- concluir) da estrutura quando o significante do Outro toma
corpo e proporciona a identificação do Um.
Um significante faz furo, incisão primordial no corpo, e decide a consistência de Um
e a ex-sistencia. Decisão primordial que divide o corpo pulsional (ligado ao Outro e
sua demanda) e o corpo –en-corps- que não se liga, nem articula, mas fomenta o
eco da repetição ( encore!). A hystória pode começar: a partir desse tempo lógico da
identificação, isto é, a “transformação operada quando se assume..” um furo como
marca do Um, primeiro enodamento RSI entre o furo, a ex-sistencia e a
consistência.
Dessa letra - enodamento RSI - se nomeia “alguma coisa” que se transforma
em “alguém”: Y a quelqu’un! ( Aí tem gente!). Lacan explicita no Seminário RSI o
enlaçamento entre a letra, a fala e o sentido:
« Donc, R.S.I. j'écris, cette année, en titre. Ce ne sont que des lettres, et
comme telles, supposant une équivalence. Qu'est-ce qui résulte de ce que je
les parle, ces lettres, à m'en servir comme initiales, et si je les parle comme
Réel, Symbolique et Imaginaire ? Ça prend du sens, et cette question du
sens, c'est bien ce que, rien de moins, j'essaie de situer cette année.
Ça prend du sens, mais le propre du sens, c'est qu'on y nomme quelque
chose. Et ceci fait surgir la dit-mansion, la dit-mansion justement de cette
chose vague qu'on appelle les choses, et qui ne prennent leur assise que du
Réel, c'est-à-dire d'un des trois termes dont j'ai fait quelque chose qu'on
pourrait appeler l'émergence du sens.10 »

Da letra inicia-se o parlêtre, o ser que ao falar procura o sentido da ex-


sistencia (Real) no outro significante (S1->S2): equivoco fundamental.
A análise proporciona um caminho ao avesso do momento inaugural do
parlêtre: da prática do blábláblá à prática da letra.
Sabemos, por experiência, que a lógica do significante – desdobrada e
                                                                                                               
10
Jacques Lacan. R.S.I. (Inédito). Aula de 11 de março de 1975, p.101-102.

  6  
evidenciada pela interpretação psicanalítica – leva a um impasse: o necessário
impasse do sujeito suposto saber, que conduz à constatação, ao discernimento do
irremediável, ininterpretável, incurável, indecidível. Topar essa parada não se
acumplicia com a impotência, mas com o ato. Apenas um ato, de-cisivo, decidindo
o passo fora da lógica do significante, ex-cisão, extravagância oriunda do saber sem
sujeito, permite o passe.
Passe fora de série que possibilita um acesso à soltura, desenvoltura,
atrevimento, impudência, diz mesmo Lacan falando da Marguerite Duras e da sua
“prática da letra” 11 . Prática da letra, na qual o literato, litter-rasuror precede o
psicanalista, “chegando diretamente onde a psicanálise pode chegar de melhor no
fim”, ou mais precisamente, na sequência do fim, como continuação, repercussão
do fim, dada à lógica inesgotável do significante. De fato, o fim de uma análise inclui
as suas sequências na temporalidade do ato que a decide. “O ato se julga na sua
lógica pelas suas consequências”. É a prática da letra do sinthoma, em alguma
medida, que valida a decisão do fim.
Portanto, há enodamento da lógica, da ética e da poética, em consequência
do ato que condiciona a direção da cura psicanalítica. Isso se produz desde o seu
início: desde a evidência de uma falha, perda, que susta o sentido lógico, ético,
poético da vida. Uma falha que na fala se enuncia como falta, traduzindo,
transferindo-se em queixa que pode ter a boa hora de encontrar um analista que
”tenha chance de responder” a essa letra (carta) em sofrimento, em instância, em
suspenso. Pas de sens: notícia da letra do sintoma.

Pas-de-sens – Não há sentido.


Pas-de-sens, meu casamento, meu trabalho, meu filho, minha vida. Perdi: o
sentido, o sentir da vida. Perdi. Desde quando? Desde que me conheço por gente.
Pas-de-sens: inibição, sintoma, angústia. Inibição que embaça, sintoma que estorva,
angústia que ofusca, o sentido da vida. Uma análise poderia re-nomear, essas
“nomeações”, manifestações, índex, instancias do “ser” preso no “falso self” 12
verdadeiro da significação fantasmática?
De uma análise, de seu “pas-de-sens”, o passo de sentido almejado, isto é de
sua interpretação, é esperada uma nomeação.
Pas de sens: passo de sentido, transformar esse susto em queixa, já é uma
resposta corajosa, ética, já é um lance do dizer: produzir “do nada”, da dor de existir
um passo de sentido que a psicanálise desde sempre (ou seja, há mais de 120
anos) acolhe: Traumdeutung disse Freud, Trauma-deutung.

Lógica da interpretação: o que está em jogo, é uma prática do logos (dia-logos)


Desde a origem, por ser marcado (furado) no corpo pelo significante do Outro
que não tem sentido (letra), o parlêtre toma a palavra, VOZ ÚNICA, e de falado
torna-se falante.
                                                                                                               
11
Jacques Lacan. “Hommage à Marguerite Duras” in Autres Écrits p. (única ocorrência no ensino de
Lacan)
12
Jacques Lacan citando Winnicott no seminário “O Ato psicanalítico”

  7  
A experiência da psicanálise oferece uma boa ocasião para reabrir esse
passo inaugural, do pas-de-sens (não-sentido) ao pas-de-sens (passo de sentido). A
nossa prática do blablablár orienta-se, portanto, como uma prática do sentido: lógica
do significante. A fala trilha seus descaminhos, se procura no sulco da letra em
direção a uma suposta verdade, que o Outro e seu “poder discricionário” alojaria.
S1→ S2, lança mão da fuga do sentido que alcançaria a verdade no caminho da
transferência.
É a estrutura interpretativa do próprio ato de fala que o dispositivo analítico
encena. A escrita do matema dos “Discursos” evidencia como o Outro da relação de
fala é convocado naturalmente (ou, antes, estruturalmente) num certo lugar: o
endereço do suposto saber.
Ao falar, o analisante interpreta. A sua fala é vetorizada pelo suposto
intérprete do endereço da cadeia associativa, ou seja, é com uma mensagem
invertida de seu próprio enigma que o analisante se dirige ao analista.
A fala, desenrolada na associação livre, desdobra aí a estrutura, como
“mostra” a escrita do “Grafo” que escancara as três diz-mensões de qualquer ato de
fala: o enunciador (o dizer), o enunciado, a enunciação.
A entrada do analista (e não do “suposto”) na lógica da interpretação, a tática
de sua presença na estrutura precisa levar sempre em consideração essas três diz-
mensões, como lembrado por Lacan na famosa declaração de l'Etourdit: “Que se
diga permanece esquecido atrás do que se diz no que se ouve”.
Colocado pela estrutura da fala como complemento do inconsciente, o
psicanalista vai se fazer “responsável” do inconsciente: respondendo a partir de sua
alteridade radical, respondendo por sua ex-sistência real.
A escrita dos “Discursos” formaliza essa operação possível na estrutura, ou
seja, evidencia como a posição do psicanalista permite uma interpretação “outra”
da estrutura. a/S2. Inter-prestando o que perdura de perda pura13, e garantindo,
salvaguardando a posição do inconsciente como referência ininterpretável, saber
sem sujeito, ponto da partida.
Ao calar, o analista interpreta. Se emprestando como objeto – ou seja,
como o que não dá sequência à suposição do sujeito – com o “dizer que não” do
ato, ele põe o analisante para trabalhar, a→$ (expondo assim o que era enunciação
suposta do Discurso do Mestre).
O Discurso Histérico é resposta do analisante ao ato do analista,
desdobramentos do desejo e da sua interpretação pelo fantasma.
Quando o analisante interpreta, a sua interpretação tem efeitos de
verdade. Hystoricisação. Hystória sem fim da verdade mentirosa da conjunção do
gozo com o sentido : jouis-sens.(gozo-sentido)
Cale-se o analista – a sua interpretação não valida essa “verdade”, e nisso
mesmo denuncia seu “semblant” apontando para o real que ela encobre.
Quando o analista interpreta, ele interpresta (como um ator ou um músico) a
pura perda, e a sua interpretação (para o traumatizado que só aposta do pai ao pior)
                                                                                                               
13
Jaques Lacan. “Télévision” In: Autres écrits. Paris : Seuil, 2001.

  8  
tem efeito real: trou- matismo. A interpretação “faz ressoar aí outra coisa do que o
sentido”. “Ela reverbera mais longe do que a fala” “ela força aí outra coisa”, ela toca
“a ek-sistência de alingua”14

Pas-de-dialogue?
- Lacan, no entanto, precisa que a interpretação limita o “pas de dialogue”
(não há diálogo), ou seja, constitui certo tipo “interlocução”.
Interlocução entre a interpretação do analisante e a interpretação do analista, que
operam em sentidos opostos (sentido de verdade x sentido real): lógica da
interpretação.
- Vale notar, contudo, que Lacan, até o final de seu ensino, menciona um
certo tipo de intervenção do analista que ele chama “ajuda”, “colaboração”,
“contribuição” na construção interpretativa do analisante vetorizada pela verdade (“a
interpretação tem efeitos de verdade”, dizia Lacan até o Seminário XIV o que
corresponde a essa vertente “verdadeira” da fala do analisante) .
- Precisamos igualmente que se a interpretação analisante constrói sua
interpretação do desejo pelo fantasma, a interpretação do analista, quando visa a
incógnita do desejo, é para esvaziar o seu sentido constrangedor, constrangido pelo
fantasma e flagrar o ab-sens que o causa.
- Ao longo da análise o corte tem efeito paradoxal de propiciar os passos de
sentido (pas de sens) até que, ao cingir o impasse ao qual conduzem
necessariamente os passos, o analisante consinta em topar com o ab-sens, a falha
original de sentido.
Convocado nesse dia-logo na estrutura de fala o analista responde desde o
seu devido lugar no Discurso .Analítico.

Corte no jouis-sens
“É nosso dever interpretar”, diz Lacan; Soler precisa: “l'interprétation doit
entamer le sens joui”.
Sabemos que Lacan deu diferentes formulações da interpretação, que
acompanharam as mudanças de sua apreensão do real da clínica; no entanto,
persiste, e insiste ao longo do ensino lacaniano o seu valor fundamental de corte.
Fundamentalmente é corte em relação à esperança transferencial, “o lugar de
onde o psicanalista fala, não é o mesmo que aquele de onde está suposto falar na
transferência15”.
Que seja pontuação, escansão da cadeia significante que revela a
produção de significação do sujeito suposto, que seja intrusão, imisção,
alusão, suplemento de significante, “ligar (ler) de um outro jeito16”, que seja

                                                                                                               
14
Jacques Lacan. RSI (Inédito), p.78. “Il est certain qu’elle porte, l’interprétation analytique porte
d’une façon qui va plus loin que la parole”.
15
Jacques Lacan. L’objet de la psychanalyse (Le Séminaire XIII). Paris: Version ALI (inédito), p.138,
tradução nossa. “[...] La place d’où le psychanalyste parle n'est pas la même que celle d'où, dans le
transfert, il est supposé parler”.
16
Jacques Lacan. O ato psicanalítico ( O seminário XV), inédito.

  9  
surpresa, equívoco, citação, enigma, poesia, todas as variantes da
interpretação produzem um corte no sentido e na verdade, todas suspendem o
Sujeito suposto Saber, e o sentido gozado ( Jouis-sens) a ele atribuído.
Em geral o analisante demora um certo tempo antes de perceber que a
intervenção do analista não completa a sua verdade, mas responde à verdade
com o saber: a posição do inconsciente é resposta e responsabilidade do
analista.

Pas sans dire.


Todavia, vale notar que o corte interpretativo (equívoco, citação etc),
não tem apenas valor de “dizer que não” da negativização dos ditos, e de
invalidação da verdade mentirosa.
Pelo contrário, o corte interpretativo, na lógica do significante, é dizer
silencioso (“um calar muito alto”), ele silencia o sentido que sutura o inter-dito,
para produzir, atualizar no intervalo, o oco que permite que ressoe o eco do
dizer:Y a d’l’Un.
Nesse sentido Lacan valorizou em algum momento a intervenção “tu
l’as dit!” (“Você o diz”, ou “o dito foi seu!”) como uma das melhores
interpretações, pois ela corta a suposição de saber no outro (foi você que diz)
e aponta que o dito não vai sem o dizer: o dito permite localizar e autentificar o
lugar do dizer (“Ça ne va pas sans dire”). O corte da sessão produz igualmente
esse mesmo efeito de esvaziamento do sentido e de ressonância do dizer: “Tu
l’as dit!”.
A interpretação é fundamentalmente apofântica: Y a d’l’Un!
Limite ao pas de dialogue, pois aponta para a emergência através do logos –
da presença viva e única do parlêtre.
A interpretação atualiza o interdito, encena, mostra, apofântica,
“discurso sem palavra”.
Destacando o inter-dito a interpretação solta alíngua presa na palavra e no
sentido.
A lógica da interpretação no seu termo propicia a prática da letra que
podemos chamar, com Lévinas, de “A Responsabilidade do dizer” e, com
François Cheng, de “o sopro do vazio mediano”, terceira diz-mensão sem a
qual não há via (voix/voie), com Paul Valéry, “o movimento pendular entre o
som e o sentido” e, com Manoel de Barros, “os deslimites da palavra”.

  10  
RESPONSABILIDADE DO DIZER

Dominique Fingermann

Minha prova só toca no ser ao fazê-lo


nascer da falha que o ente produz ao se
dizer.

J. Lacan, Radiofonia

Nos dias de hoje, é ainda possível que a dor de existir “se dê um parceiro que
tenha chance de responder”.*
A resposta do analista, como a própria palavra indica, é sua
responsabilidade, ela se qualifica como responsabilidade do Dizer.
Resposta, responsabilidade, do latim: spondeo – spondere = prometer. Re-spondere
= prometer, re: “em retorno”. Responder é responder a um outro dizer, é um dizer à
altura do Outro; o Dizer toma a medida da alteridade e daí sua unicidade
(uniqueness) toma posição.
A dimensão radicalmente ética da resposta de analista é, desde o princípio,
anunciada.
Pelo que responde o analista? O que é um psicanalista que responde pela
psicanálise? É analista quem responde pelo seu ato. Ele é quem assegura, em
réplica à demanda, seus ditos, desditos e reditos, que seja levada em conta o
aturdito1 que torna a demanda singular e, por isso, condiciona o passe ao ato,
passagem ao Dizer.
O analista é aquele que, em réplica ao mal estar que tem a coragem de se
fazer demanda de saber, toma posição e assume a responsabilidade do Dizer;
posição do analista, posição do inconsciente, em-corpo [en-corps], ele se faz pivô
da redução do Dito ao Dizer.
Fazemos aí, evidentemente, um empréstimo a Emmanuel Lévinas, e isso
zelando para não reduzir os conceitos do ensino de Lacan que nos orientam na
experiência clínica aos conceitos da filosofia. Sem querer abusar de ou maltratar
essa referência, lembremos sucintamente o campo conceitual que nos interessa, na
medida em que ele pode nos permitir discernir a responsabilidade clínica do
analista, ou seja, sua resposta, o dizer que funda seu ato, o Bem-Dizer, ou seja, a
ética que o garante.
A responsabilidade é uma responsabilidade por Outrem, “resposta
respondendo a uma provocação”2 da alteridade: traumatismo. Ela é “o lugar onde se
                                                                                                               
*
Referência ao texto L'Etourdit, O Aturdito, e a volta não contada nas voltas dos ditos que é a sua
volta real.
2
Emmanuel Lévinas (1978). Autrement qu'être ou au-delà de l'essence. Paris : Le Livre de Poche-
Biblio Essais, 1996, p.26.

  11  
instala o não lugar da subjetividade”, onde se sinaliza “num lapso um tempo sem
retorno”,3 “outro modo que ser, para além da essência” [l’Autrement qu’être, au delà
de l’essence]; responder é Dizer a partir de nenhuma essência prévia.
A responsabilidade por Outrem é “responsabilidade entre seres separados
que ela clama”; 4 an-árquica, ela é Dizer de origem, pré-original, “de antes da
linguagem”. Ela é marca da origem ética e não ontolôgica, a essência só podendo aí
fazer sequência no Dito (nem mais, nem menos).
“Ponto de ruptura, mas também de enodamento”,5 pois a separação “é a conversão
em responsabilidade” da “positividade do infinito”.

O Dizer e o Dito.
O Dizer é exposição a Outrem, responder por outrem é “uma forma de ser
afetado”6 e, daí, é incluir a alteridade radical (alienação e separação); o traumatismo
provoca o Dizer: “a alteridade do próximo daí invoca, evoca, à singularidade
insubstituível que está em mim”7, princípio de “relação entre termos desparelhados,
sem tempo comum”.8
A resposta ética do Dizer prossegue no Dito. “O dizer que tende para o Dito
mantém essa tensão do Outro, de Outrem, que me arranca a fala antes de aparecer
para mim”.9
O Dito correlacionado ao Dizer é “mostração”, ele mostra, manifesta, ele é
sentido, verdade, fábula ou escrito que representam, tematizam e cuja traição
permite um acesso ao ser.
“Nesse Dito surpreendemos o eco do Dizer, cuja significação não é de
juntamento”.10
“O Dizer descobre o um que fala”, 11 um “Desnudamento até o um
inqualificável, até o puro alguém, único...”.12 Por um lado, fabulação da verdade do
Dito, por outro, “impudor” do Dizer.
Lacan, por sua vez, isola essa função do Dizer nos anos 1970, logo em
seguida à sua elaboração dos Discursos, substantivando o Dizer como Ato princeps.
Ele começa localizando o que chama de Dizer de Freud, que ele infere a
partir de todos os seus Ditos, tanto quanto de todos os ditos da psicanálise. O que
se ouve também como: de todos os ditos de uma psicanálise se deduz o Dizer de
Freud “não há relação sexual”.
Mas isso não é dizer tudo [pas-tout dire].

                                                                                                               
3
Idem p.23.
4
Idem p.24.
5
Idem p.27.
6
Idem p.159.
7
Idem p.239.
8
Idem p.114.
9
Idem p.124.
10
Idem p.48.
11
Idem p.83.
12
Idem p.85.

  12  
Lacan dá sequência a esse Dizer “não há...” colocando o que ele nomeia “meu
dizer” que enunciará o “Um Dizer”. O Dizer de Lacan é o Real como Ex-sistência,
ou seja, o nó borromeano em que se encontra que para fazer Um, é preciso três.
Ele deduzirá daí o Sinthoma como maneira singular de responder ao “não há...”
graças ao “Há Um” [Y a d’l’Un], um a mais que enoda os três.
Nessas duas ocorrências do Dizer (o Dizer de Freud e o Dizer de Lacan)
encontramos dois momentos de Dizer que fabricam o sujeito como resposta do Real
“Não há”, “Há...”, dois momentos que “Posição do Inconsciente”13 anunciava com a
dupla causação do sujeito da alineação e separação.
Na clínica da demanda, na transferência dos Ditos da queixa e de seus
enunciados, há Um que ressoa, “Há Um” [Y a d’l’Un] de um saber que excede à
verdade.
A responsabilidade de Dizer do analista é responder por esse Um sem
qualidade, mas não sem estilo. A responsabilidade de Dizer do analista é sua
resposta à demanda de verdade desde uma posição que leva em conta o Real fora
de sentido, isto é, “a resposta que convém ao estilo do inconsciente”.14
“Tratar-se-ia”, adverte Soler em 2008, “de atualizar nossa concepção do ato e
da interpretação de uma análise orientada para o Real fora de sentido, embora esta
só proceda da fala. A aposta é de peso, pois esse real é o único suscetível de fazer
limite às errâncias intermináveis da verdade”.15
O ato e a interpretação: é possível distingui-los nitidamente, se tanto um
quanto o outro devem responder pelo Dizer que existe aos Ditos, do Dizer
impossível e ex-sistente que indica singularmente o lugar do Real?
Fazendo intrusão no curso da fala de forma tal que se atualiza aí ao mesmo
tempo a ruptura e o laço, o “Dizer que Não” do ato e da interpretação rompe o
semblante da verdade fazendo uma volta a mais, um novo laço com o Real do qual
ele sinaliza o furo: o Dizer faz corte e faz nó.
Que ele se cale ou que fale, enigma ou equívoco do sentido, é com seus
cortes no Dito que o analista sinaliza, ou antes, captura em seu lapso o Dizer que
atravessa aquele de cabo a rabo. Como o lapsus, quando não faz mais sentido, o
analista, ou seja, seu ato faz ex-sistir o Dizer.
Que ele fale ou se cale, é a posição, a presença, enigma ou equívoco, que
opera fazendo objeção ao sentido. O analista em-corpo [en-corps] “interpreta”
prestando-se ao jogo do ato como um ator. Fazer o analista é fazer o objeto que
objeta ao bom sentido da verdade. Fazer objeção é fazer abjeção “para representar
esse efeito que designo como objeto pequeno a, para nós fazermos a esse desser
de ser o suporte, o dejeto, a abjeção a que pode se fisgar o que vai, graças à nós,
nascer de dizer, de dizer que seja interpretante, claro, com o auxílio daquilo que é

                                                                                                               
13
Jacques Lacan. “Posição do inconsciente” In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.
14
Jacques Lacan. “A Psicanálise e seu ensino” In: Ecrits. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998,
p.449.
15
Colette Soler. 14 de out 2008

  13  
ao que convido o analista, a se suportar, de forma a ser digno da transferência, a se
suportar por esse saber... no lugar da verdade”.16
A responsabilidade do Dizer do analista é que encarnando o “Dizer-que-não”
ao “Dizer verdadeiro”, ele faz lugar para Um dizer: “O que vai, graças a nós, nascer
de dizer”.
A ética da resposta do analista é “um dizer, um dizer que poderia ter
consequências”, 17 espera Lacan: consequências clínicas. Fazendo bascular uma
letra nos ditos do analisante, pode acontecer que o Um bascule do Pior ao Dizer18
[du Pire au Dire], e talvez o “Não há” da repetição e o “Há” do sintoma encontrem ali
uma ressonância diferente daquela do fantasma, uma chance de Um Dizer [Un Dire]
de outro modo.
Se para o analista “há Dizer para ser demostrado”,19 para o analisante há a
“impudência do Dizer”20 poemático, em guisa de resposta ética e poética frente à
lógica da cura: “responsabilidade sexual” frente ao “Não há relação...” do Héteros.

                                                                                                               
16
Jacques Lacan (1971-1972). Le Séminaire Livre 19 – ...ou pire. Paris : Seuil, 2011, p.235, tradução
minha.
17
Jacques Lacan (1974-1975). Le Séminaire Livre 22 – R.S.I., inédit (Aula de 15/04/1975).
18
Jacques Lacan (1971-1972). Le Séminaire Livre 19 – ...ou pire, op. cit., p.12.
19
Jacques Lacan (1974-1975). Le Séminaire Livre 22 – R.S.I., inédit (Aula de 13/05/1975).
20
Jacques Lacan ( 1973-1974). Le Séminaire Livre 21 – Les non dupes errent, inédit (Aula de
11/06/1974).

  14  
A PSICOTERAPIA RETORNA AO PIOR1

Dominique Fingermann

“C’est là que la psychothérapie tourne court, non


qu’elle n’exerce quelque bien, mais qui ramène au
2
pire”.
Jacques
Lacan, Télévision.

O título “A PSICOTERAPIA RETORNA AO PIOR”, destacado de uma frase


de Lacan, ecoa como uma provocação, mas introduzindo este trabalho ele nos
convoca (e nos compromete) a responder uma série de perguntas que colocam em
questão o ato do psicanalista:
- Qual é a diferença entre psicanálise e psicoterapia?
- O que faz a psicanálise, qual é a sua incidência, sua operação, sua eficácia?
- Qual é a responsabilidade do psicanalista nessa operação?
- Qual é o pior em causa quando se fala aqui do efeito da psicoterapia?
- Qual é o alcance clínico e ético da experiência e da operação que a psicanálise
oferece em resposta à demanda de quem sofre?
De fato, eis a questão crucial: há mais de um século, quem sofre dirige à
psicanálise uma demanda de melhora. Há mais de um século existem psicanalistas
para responder a esta demanda. É, portanto legítimo perguntar que tipo de resposta
à demanda oriunda do sofrimento, está sendo oferecido pela psicanálise. Pode-se
esperar o melhor com a psicanálise? ...Ou pior?3
Os psicanalistas “lacanianos” costumam dizer que não se pode responder à
demanda. Como então qualificar a oferta de psicanálise, que cria no mundo uma
demanda à qual não se pode responder? Trata-se de charlatanismo, impostura... ou
pior?
É pior. É pior, antes de tudo para quem se atreve a acolher essa demanda
sem resposta, sabendo que na condição de analista não poderá se reconfortar nos
suspiros (no suspi(o)rar4 ironiza Lacan), nem na angústia. É pior para o analista,
Lacan designou essa versão do pior como “o horror do ato analítico”, e muitas vezes
evocou a resistência na análise como resistência do analista em relação ao
desconforto de seu próprio ato: não responder à demanda que ele mesmo fomenta.

                                                                                                               
1
Lacan J. –Télévision - Seuil – Paris- p 19 “Le bon sens représente la suggestion, la comédie, le
rire. Est-ce à dire qu’ils suffisent, outre qu’ils soient peu compatibles? C’est là que la psychothérapie
tourne
court, non qu’elle n’exerce quelque bien, mais qui ramène au pire.”
2
idem
3
Lacan J. Séminaire: ...Ou pire – publicação não comercializável da AIF- Paris -2000
4
Lacan J. ...ou pire Compte rendu du Séminaire 1971-72 – in Autres Ecrits p 547- com o trocadilho
”s’oupirent” Lacan equivoca o verbo soupirer-suspirar evocando os analistas que, por não suportarem
sua posição desconfortável no ato analítico, suspiram. “...ou pire. Titre d’un choix. D’autres s’oupirent.
Je mets à ne pas le faire mon honneur. “

  15  
A experiência da psicanálise começa com o mal-estar, a dor, o sintoma que
se transformam em demanda. O psicanalista recebe essa queixa e inaugura, assim,
a cena chamada neurose de transferência. Oferecendo-se inicialmente como
destinatário da queixa, o analista se encontra repentinamente incluído na neurose -
mas isto não é o pior. O pior é que o tratamento psicanalítico do mal-estar consiste
em subverter essa demanda para transformá-la em desejo. Embora a proposta
pareça empolgante – “dê-me sua demanda, que eu te devolverei seu desejo!” –
encontram-se algumas pedras no caminho chamado desejo: falta, angústia, culpa
etc., todas decorrentes de um rochedo denominado castração.
O caminho das pedras do desejo, a provação do desejo na experiência
analítica, passa pelo tratamento da demanda. Este tratamento não pode se
preocupar em suturar ou saturar essa demanda, restaurando um hipotético bem-
estar, como haveria de se esperar de uma terapia, pois o que se descobre no
caminho do desejo é que o mal-estar é efeito e defeito de estrutura, é irremediável.
Portanto, por incrível que pareça, por pior que seja, ao contrário do que
acontece numa psicoterapia, o que vai orientar paradoxalmente a direção do
tratamento analítico é a dimensão estrutural desse mal-estar, que denominamos: “a
causa do Pior”, ou o pior como causa do ser humano. Esse é o paradoxo da
psicanálise, que decididamente não combina com o bom senso, e que Lacan
descreveu no Seminário sobre “A Ética da Psicanálise”5 como: “a dimensão trágica
da sua experiência“. Todavia, este “pior” em causa não é a substância maligna de
um mal radical no princípio do ser humano, mas um princípio lógico, tal como o zero
precede e sustenta o 1 e a consequente série dos números; tal como a ausência de
essência precede (e determina) a existência.
Dito isto, retomaremos em quatro tempos as perguntas que o título provocou:

1- De que pior se trata?


2- O que fazemos quando fazemos análise?
3- A psicoterapia reconduz ao pior.
4- Ética do desejo e “bon-heur”.

DE QUE PIOR SE TRATA?


Primeiramente, é necessário precisar a questão estrutural - o defeito de
estrutura - desenvolvendo as suas incidências clínicas, isto é, quais são as versões
do mal- estar estrutural que se transformam em demanda e acabam sendo
transferidas no dispositivo analítico?
“Pior” não é um conceito no ensino de Lacan, mas um dos qualificativos possíveis
do princípio lógico que determina o humano “mais além” do princípio do melhor. O
superlativo “pior” é usado diversas vezes por Lacan, com valores diferentes
dependendo do contexto.
De fato, o valor do “pior” no discurso depende de como é situado e, por
consequência, usado. A referência polivalente ao termo “pior” delimita um campo,
                                                                                                               
5
Lacan J. « Éthique de la Psychanalytique » Séminaire Livre 7 Seuil –Paris 1986

  16  
portanto não indica uma dimensão única ou unívoca. Trata-se de um campo para
além do bem e do mal, um campo de força, campo de jogo, campo de guerra:
aquele que Lacan chegou a designar como campo lacaniano - campo de Das Ding
(no Seminário 7), 6 campo do gozo (no Seminário 17)7.
Se o campo freudiano foi inaugurado pelo princípio de prazer, Lacan extraiu
as consequências lógicas de seu limite: o além do princípio de prazer; localizando e
desbravando esse campo do gozo, ao qual nos referimos aqui como campo do pior,
para além do bem e do mal. Não é do bem, não é do mal, é lógico; mas,
humanamente falando, pode ter as piores consequências. Constatemos aqui a
conjugação de uma exigência ética com uma necessidade lógica: trata-se de saber
contar com essa constante oculta que aparece em tantos cálculos do ser humano e
que deve ser incluída nas suas apostas. Se o pior não for incluído nos cálculos, é
pior.
Portanto, não há nada de abstrato, hermético, cínico ou esotérico nesse
vocabulário. É lógico, ético, e clínico:
1- Há, no ponto de origem do sujeito, um trauma, uma incompatibilidade: castração,
impasse, ”spaltung”, divisão.
2- Inibição, sintoma, angústia, repetição, obsessão, conversão, depressão, pânico,
pesadelo, estranheza, culpa, masoquismo etc. testemunham essa dimensão no
mundo e na clínica.
3- Diversos destinos e avatares dessa causa comum indicam que é possível haver
transformação e remanejamentos. A psicanálise propõe-se a explorar as condições
de tratamento da causa do pior: analisar, deslocar, desmontar, demonstrar,
esvaziar, “matemizar”, poetizar, inverter, retroverter, subverter, sublimar, enlaçar.
Os “discursos”, tal como Lacan os identificou e ordenou, podem ser
considerados os quatro destinos possíveis, as quatro maneiras diferentes de tratar
este pior no laço social: enlaçando-o na estrutura sem prejudicá-lo seja com a
recusa psicótica, seja com seu uso perverso.
A psicanálise como “discurso” (O Discurso Analítico) inaugura uma nova
forma de tratar o pior, incluindo-o na aposta desde o início do jogo, embora, ao
acolher um sujeito e sua dor singular, ela também se disponha a acolher os outros
discursos, ou seja, as diversas possibilidades deste sujeito tratar a impossibilidade.
Exposta a tese decorrente da hipótese do pior, vamos agora demonstrá-la.
- Não há nada de abstrato, é clínico: a clínica é pródiga em ocorrências das piores
soluções.
Maria não consegue amar, nem ler, nem sair, nem olhar, nem dançar, nem
estudar; só consegue repetir: “não consigo, não posso”.
Olga não consegue não beber, não comer, não se drogar, não se violentar.
Marina decidiu muito cedo “não querer saber de nada” da morte e da castração e
“programou” sua vida numa autossuficiência e autodeterminação. Mas assaltada

                                                                                                               
6
Lacan J. L’Éthique de la Psychanalytique- Séminaire Livre VII Seuil –Paris 1986
7
Lacan J. L’envers de la Psychanalyse – Séminaire Livre XVII- Paris 1991

  17  
pelo horror de seus atos falhos, que denunciavam sua farsa, ela preferiria morrer.
Castrada? Nem morta!
Flavia só sabe contestar, criticar, denunciar, se ferrar: fazer-se de
insuportável é a sua maneira infalível para provar o escândalo do outro, nunca
suficientemente à altura de um Outro provedor e garante de existência. Carolina
prefere fazer-se de morta. Marcos nem chove nem molha, nem... nem sai de cima;
ele se “cadaveriza” numa indecisão perpétua.
Bia, Ricardo, Marcelo e Boris fazem tudo certo, conseguem tudo: dinheiro,
trabalhos, namorados,... Sempre tiveram as melhores notas, mas no auge do
sucesso surgiu o imprevisto: vertigem, pânico, depressão, impotência. A
psicoterapia, oferecida globalmente pela ordem e o progresso da ciência, não pôde
evitar a volta ao pior!
Todos “sofrem o diabo”, e entre gritos e sussurros dizem: “tem algo em mim que é
mais forte do que eu”. Riobaldo, personagem do “Grande Sertão: Veredas”, chama
isso de capeta, capiroto, Diabo, demo, demônio e mil outros nomes. “Explico ao
senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem - ou é o homem
arruinado, ou o homem dos avessos”8.
Riobaldo explicava também que dar tantos nomes era um jeito de disfarçar, de
“rebuçar” o que não cabia nas ideias, apesar de seu gosto para especular ideias. O
que não cabe nas ideias para o narrador do “Grande sertão...” são: o redemoinho, o
sertão, a doçura cúmplice da violência, o bem e o mal emaranhados, o desejo, o
Diadorim, e todas as coisas em que “o Demo regula seu estado preto”. Riobaldo
especula assim: “E, o respeito de dar assim esses nomes de rebuço, é que é
mesmo um querer invocar que ele forme forma, com as presenças”.
Freud deu para isto o nome de “Isso”, ou pulsão de morte, ou ainda “o fator
quantitativo da pulsão”. Freud também especulava, e deu vários nomes para o
“Unheimlich”; essa coisa tão íntima, todavia descabida, que não cabe no Eu, no
Ideal, na lei do Pai.
Lacan, relendo Freud, colocou a experiência da psicanálise à altura do Pior e não ao
nível do Pai. O Pai é o que dá sentido às coisas; a experiência da psicanálise trata
do sem sentido da Coisa. Lacan resgatou a Coisa freudiana, “Das Ding”, como este
“êxtimo”9- íntimo que está fora de mim, excluído do ‘mim-mesmo’
- é esta parte mal-dita do sujeito que, por incrível que pareça, constitui o âmago do
ser, “Kern unseren Wesen” , dizia Freud, parte maldita que Lacan denominou
“objeto a”, âmago do ser, certo, mas como substância vazia; apenas uma letra a
indicar que o desejo é causado por uma falha no sentido.
“Tenho dentro de mim uma ausência que me atormenta”, escreve Camille Claudel.
É uma ausência que atormenta, que faz sofrer o diabo e dar todos esses nomes,
“formar forma com as presenças” de todos esses sintomas, manifestações do
tormento da ausência, rebuço e suplência da ausência.

                                                                                                               
8
João Guimarães Rosa- Grande Sertão :Veredas- p2 e 3 Editora Nova Fronteira
9
Seminário 7 « L ‘Éthique de la psychanalyse » “peut- être ce que nous décrivons comme ce lieu
central, cette extériorité intime, cette extériorité qui est la Chose » 10 /02/60

  18  
O pior do humano é este: transformar, transferir, o Pior lógico em pathos –
patológico – transformar o mal dito do sujeito em maldição do destino, como se o
marco do humano fosse um pecado original. E é mesmo, já que no princípio, o
acesso à condição humana se faz radicalmente, com a perda de ser que a
passagem pelo Outro provoca. “Pecado original” neste sentido é uma falta que dá
origem, é falta de essência original e originária. A origem do sujeito, que lhe permite
contar-se como Um, é um conjunto vazio ao qual vem atrelar-se o signo do Outro,
que não identifica a sua substância essencial, mas apenas designa a diferença,
cifrando sua distinção e singularidade...
É uma maldição mesmo o que a dor de existir vem testemunhar! O sintoma,
procede do “afeto do ex-sistir”10 (ex-sistir como escreve Lacan para designar o que
“siste” do lado de fora, de fora do sentido ) insiste em manifestar a existência mal
dita. O sofrimento do sintoma testemunha a verdade esquecida, a essência nunca
ocorrida, foracluída, que retorna no real do corpo, da vida ou dos pensamentos. O
sintoma, na repetição lancinante de seu tormento, insiste como o eco que dá
presença ao oco da substância, ao vazio da identidade, insiste como se quisesse
dizer alguma coisa.
É daí, desde a ausência de sentido que atormenta e obtém a consistência de
sintoma, que se produz algo que pode configurar-se como queixa e parecer “querer
dizer” alguma coisa. O sintoma se conjuga fundamentalmente com a demanda, que
consiste essencialmente em uma demanda de sentido, à qual, de uma certa forma,
Freud respondeu com a invenção da Psicanálise.
É uma demanda de sentido que faz Riobaldo insistir em dirigir-se a um
interlocutor silencioso até o fim de sua travessia. Para além das demandas de cura,
de atenção, de cuidado, de acolhimento, de restauração, de reconciliação, é uma
demanda de sentido, isto é, de interpretação que convoca quotidianamente os
psicanalistas para responder – de uma certa forma.
Então, como, de que forma, podem os psicanalistas responder a essa demanda, se
a dor que a fomenta é inevitável, sem remédio, sem terapia possível?

O QUE FAZEMOS QUANDO FAZEMOS ANÁLISE?


A psicanálise é o tratamento específico da demanda que surge de quem
sofre. Há tantas maneiras de sofrer da falta-a-ser! Os enunciados dessa dor se
conjugam em todos os tempos verbais: “EU fui, mas já era...; EU sou, mas não sou
o que poderia ou deveria ser; ISSO não sou EU; EU sou, mas não tenho; tenho,
mas não sou..” . Essa demanda é o ponto de partida e o princípio operador de
qualquer análise. “Eu acentuo a questão da demanda. – diz Lacan em 1975, nas
Conferências aos Americanos – É necessário, com efeito, que alguma coisa
empurre” 11 . Se a psicanálise constitui-se como um tratamento específico da
demanda, é necessário definir esta especificidade. Antes de tudo, ela tem que ser
                                                                                                               
10
Lacan J. Séminaire R.S.I. 1974-75 – inédito – aula do 21/01/75 « Qu’est-ce que l’affect d’ex-
sister ? Qu’est-ce qui de l’inconsciente fait ex-sistence ? C’est ce que je souligne du support du
symptôme »
11
Jacques Lacan – Conférences et entretiens dans les universités américaines – Scilicet 6/7 p.33

  19  
levada a sério, pois se a oferta de psicanálise cria e baliza a demanda, é na medida
em que essa demanda tem uma função primordial na produção do sujeito e na
experiência de subversão que lhe proporciona a psicanálise .
1- A demanda, nos volteios repetitivos de seus ditos, permite articular o inarticulável.
Articular, no sentido de enlaçar o impronunciável do sujeito, um significante: S1
vem se substituir ao sujeito barrado, dividido, apartado de sua suposta essência: $;
substituição metafórica que Lacan a partir do algoritmo saussuriano escreve: S1
$
2- A demanda manifesta e formula a relação singular que cada um tem com a
estrutura: a falta original de saber sobre o ser ( $) e a suposição deste saber no
Outro ( S2) , decorrente da sua alienação: S1àS2
$
3- A demanda, na medida em que é demanda de resposta para a questão do ser,
proporciona o encontro com o limite do saber chamado “desejo” na cena analítica da
transferência.
4- O acolhimento da demanda é, portanto um tipo de cilada que oferece ao sujeito
uma cena em que possa se desdobrar sua dor de ex-sistir, com a melhor das
intenções, e subvertê-la até devolver ao sujeito a questão de seu desejo.
5- A crença no sintoma – a crença de que ele quer dizer alguma coisa – e a
esperança no sujeito suposto saber, S1 à S2
$ , pontos de alavanca da
transferência, baseiam-se nesse valor estrutural da demanda e fundam o princípio
operatório da psicanálise.
6- A experiência da clínica confirma que em uma certa medida a eficácia da
psicanálise se apoia no aspecto estrutural da demanda. Com efeito, as entrevistas
preliminares têm muitas vezes um certo efeito terapêutico imediato e quase mágico.
“Mágica” esta que aparece na frase de Lacan, denotando uma equivalência entre
cura e demanda: “A cura é a demanda que parte da voz de quem sofre, de um que
sofre no seu corpo ou pensamento. O espantoso é que tenha resposta, e que em
todos os tempos a medicina tenha acertado na mosca com a palavra.”12
Favorecer a fala de quem sofre tem portanto um efeito terapêutico inegável. Que
poder da palavra é este? O princípio de seu poder é a lei do significante e seus
efeitos: “O significante representa o sujeito para um significante, sempre Outro“.
S1àS2
$
Parece que a oferta de psicanálise constitui uma promessa de felicidade, na medida
em que o analista, ao se posicionar como destinatário da queixa inicial, vem
completá-la como um possível lugar de significação, de interpretação: S1à S2.
Essa complementação da falta-a-ser com um suposto saber é divulgada pelo senso
comum no slogan “Freud explica!”. O problema é que se produz invariavelmente
algo estranho, que não cabe na promessa de felicidade e nas explicações do senso

                                                                                                               
12
Lacan J. – Télévision—Seuil – p. 17

  20  
comum, algo estranho ao sentido e ao senso comum, algo estranho que Lacan
designou como objeto a S1 è S2
$ a
É neste ponto que se localiza e se sustenta a especificidade da resposta do
analista.
“...Dans notre travail de tous les jours nous avons à répondre dans l’expérience à ce
que nous avons appris à articuler comme une demande, demande du malade à quoi
notre réponse donne sa signification exacte - une réponse dont il nous faut garder la
discipline la plus sévère pour ne pas laisser s’adultérer le sens, profondément
inconscient de cette demande.”13
A primeira resposta específica da psicanálise, a resposta que “dá à demanda
a sua significação exata” é a associação livre, embora essa regra que funda a
relação analítica pareça hoje ter perdido em parte o impacto de subversão da
demanda que lhe dá início. Com efeito, a partir da demanda inicial (de cuidados,
atenção, saber) é respondido ao “suplicante”: “Fale tudo o que for possível, mesmo
que pareça ridículo etc.” , e ainda: volte amanhã...”. Esta primeira resposta é de
saída bastante ardilosa, apesar da aparente ingenuidade e benevolência, pois
implicitamente ela supõe e solicita: ” Fale mais... há mais para dizer, o que você
quer saber? O que você quer dizer? O que você quer?...” No início ela convoca um
saber sobre um sujeito suposto à queixa, e ao mesmo tempo sustenta um “Não é
exatamente isso que você quer... Não é isto... isso não é tudo, não–tudo, volte para
dizer...”
Assim, a proposta de associação livre já é um prenúncio da destituição
subjetiva do final de análise14, pois ela destitui a crença de que o sujeito poderia
estar instituído, expresso em qualquer um dos enunciados. Por outro lado, já é uma
antecipação de que talvez o que interessa esteja alojado nos intervalos, entre os
ditos (traço estrutural que tantas vezes produz este equívoco do sujeito, o de achar
o seu elo perdido não nos inter-ditos, mas sim nos interditos).
A regra fundamental produz-se como o terreno de experiência do sujeito que,
ao vivo, em ato vai provar-se (provadura e provação) o limite da estrutura e o resto
que a causa. A regra fundamental funciona então como amplificador (amplifica a
dor) da demanda, instaura e instala a transferência na sua lógica.
A transferência, por sua vez, tem a particularidade de apresentar a questão e
a resposta, pelo menos uma, das respostas possíveis à questão sobre o ser. A
questão transferêncial convoca um Outro e é uma demanda de saber; a resposta
transferêncial inclui o outro assim convocado na solução do fantasma. O analista

                                                                                                               
13
Lacan J – Séminaire 7- “L’Ethique de la Psychanalyse”- Seuil - Paris - p .10 e Zahar editor Rio de
Janiero p. 10 " ... como é nosso trabalho de todos os dias, ou seja, a maneira pela qual temos de
responder na experiência ao que lhes ensinei a articular como uma demanda, demanda do doente à
qual nossa resposta confere uma significação exata - uma resposta da qual devemos conservar a
mais severa disciplina para não deixar adulterar o sentido, em suma profundamente inconsciente,
dessa demanda."
14
como é observado por Lacan no seminário do “Ato Psicanalítico”- L’Acte Psychanalytique –
Séminaire 1967/68- publicação não comercializável de a A.L.I. p.151

  21  
está aí incluído (metido) nas duas dimensões: como destinatário do saber e como
alvo da inclusão fantasmática.
É como agente duplo que o analista responde, dando a “significação exata da
demanda” nas duas vertentes e encenando por sua vez, frente à “pantomima 15
neurótica, o pior da estrutura: a ausência de resposta à demanda. Esta encenação
qualifica o ato analítico como horror.
A interpretação e o ato analítico são as respostas especificamente analíticas,
do “desejo de analista”, à demanda neurótica. “Interprestando” “o que perdure de
perda pura”,16 a resposta faz vacilar o sentido e abala a significação na qual o
neurótico se institui, mediante o equívoco exercido pela interpretação. Por outro
lado, presentifica, em ato, a não-cumplicidade com a fantasia pela qual o sujeito
tenta enrolar o parceiro.
“Nossa resposta dá sua significação exata à demanda”17 “, ou seja, cava o
intervalo significante em que se motiva o desejo, “Cinge na enunciação da demanda
o que diz respeito à falha do desejo”18.
Talvez possamos interpretar a significação exata da demanda a partir desta
frase que Lacan enuncia mais de uma vez, particularmente no Seminário “...Ou
pire”: “Je te demande de me refuser ce que je t’offre car ce n’est pas ça” “Eu te peço
de me recusar o que estou te oferecendo porque não é isso “
“Ce n’est pas ça...”: “não é Isso”, porque os significantes da trama simbólica,
as palavras sempre “outras”, sempre do Outro, com as quais se formula a demanda
nunca podem ser “Isso”, o significante nunca pode alcançar a pulsão, embora ela
se enrole em tentar se encaixar nos moldes da demanda do Outro . “Isso” que
causa toda e qualquer demanda não pode encontrar sossego na resposta do Outro.
Essa recusa ao pedido de sentido é uma recusa que depende da estrutura e não da
boa vontade do interlocutor; não adianta colmatar, completar: “não há”, “não tem
como”. Essa “privação” fundamental é o que Freud chamou Versagung 19 –
traduzido por frustração, frustração primordial – indicando várias vezes sua função
na direção do tratamento analítico.
Responder à demanda como se fosse “Isso”, como se fosse possível achatar
o sujeito e sua divisão na resposta, provoca, sabemos por experiência, a inflação de
demandas, trasbordamentos, esmagamentos e outras devastações: as piores
soluções.
Portanto, a especificidade da resposta analítica à demanda de pronto-socorro
do sentido perdido consiste em levar a sério a dimensão da demanda e servir-se
dela, driblando os curtos-circuitos para fazer o sujeito produzir a resposta de seu

                                                                                                               
15
Freud S. Algumas Observações sobre o ataque histéricos – Vol IX 1909 “ a representação mímica
da fantasia”é traduzida em francês por a “pantomima”da fantasia
16
Lacan J. - Télévision – Seuil- Paris -
17
Lacan J – Séminaire 7- “L’Ethique de la Psychanalyse”- Seuil - Paris - p .10 “Notre réponse donne
sa signification exacte à la demande”
18
Lacan J. – D’un Autre à l’autre - Seminaire 16 – PublicaçãonÃo comercializável ’AFI p . 70
19
Hanns L – Dicionário comentado do alemão de Freud- Imago – p 252

  22  
desejo. O enigma que o move: uma bola invisível no campo das jogadas de sua
vida, enlaçando sua causa irremediável com os parceiros de seu jogo.
Portanto, a “resposta exata” não aposta no lado do Pai e do princípio de
prazer, mas prestemente “interprestando o que perdura de perda pura”, aposta no
pior: do pai ao pior, para que se abra o campo do desejo comprimido pelos
constrangimentos fantasmáticos.
O que o ser humano ganha com isso? “Travessia” – diria Riobaldo.

A PSICOTERAPIA RETORNA AO PIOR.


Iniciaremos este ponto de conclusão tentando elucidar o eventual equívoco
que possa permanecer na leitura do parágrafo anterior. De que pior se trata quando
se fala da psicoterapia e quando se fala de psicanálise? Simplesmente, na
psicoterapia o pior está situado no lugar da produção desse discurso, enquanto na
psicanálise ele está colocado em posição de causa. Portanto, o pior é pior quando
se localiza no plano da produção de qualquer operação, isto é, do lado da solução e
de seu resto.
Psicoterapia X Psicanálise
S1à S2 X a à $
$ a S2 S1
O nosso título “A psicoterapia retorna ao pior ” foi extraída do texto de Lacan
Télévision, na resposta a uma pergunta precisa de J.A.Miller: “ Psicanálise e
psicoterapia, as duas só agem com palavras. No entanto, elas se opõem. Em quê?”
Lacan responde então sem rodeios: “O bom senso representa a sugestão. É
aí que a psicoterapia se revira num curto-circuito; não que ela não exerça algum
bem, mas que reconduz ao pior.”20 Inegavelmente a psicoterapia exerce algum bem,
mas este bem não evita o retorno do pior, o retorno do real excluído pela política
do bem-estar.
- O que estamos chamando de psicoterapia, no contexto dessa discussão, e qual é
o seu limite?
Chamamos de psicoterapia o acolhimento da dor humana e da demanda de
cura (S1) que pretende responder (S2), costurando e suturando ( S1àS2) a ferida(
$), expulsando o mal (mal-entendido, mal-estar) como dejeto (a).
A preocupação psicoterapêutica, com as melhores intenções, pre-ocupa-se
em apaziguar a dor da falta-a-ser com uma fala, uma resposta, uma interpretação
que dê sentido, bom sentido, bom senso ao que do sujeito emerge como
testemunho da ausência de sentido que o atormenta. Conduzido por essa
preocupação, o terapeuta compreende, aconselha, orienta, indica solução, explica,
restaura, restitui ao Ego sua função de maestria, por fim: tenta remediar, mas
permanece na dimensão da sugestão: S1àS2.
Via de regra o terapeuta, na posição de destinatário da demanda, acha-se na
incumbência de responder: S1à S2, e por isso é flagrado pela incompetência de
sua resposta para suturar a dor à S2
                                                                                                               
20
Jacques Lacan – Télévision – p. Seuil – Paris - 1974

  23  
a
Essa bem conhecida sensação de impotência, e até mesmo de impostura, é
a marca de uma posição atrelada à crença de que poderia haver uma resposta
certa para a ausência de saber que atormenta, para a dor de ex-sistir. Ela marca
uma posição submetida à crença em um Outro suficientemente grande ou bom que
poderia, que saberia ‘dar conta do recado’. A posição psicoterapêutica, porquanto
ela não é referida ao impossível da estrutura (impossibilidade, para o segundo
significante, S2, de corresponder ao primeiro, S1), está fadada à impotência, e é
isto que faz “sus ...piorar” os “analistas” que fundam seus gestos na referência a
essa posição. Dizer que o Discurso Analítico “coloca o saber em posição de
verdade” é dizer que o saber na psicanálise é suposto e não resposta, embora esta
suposição sustente a perlaboração, a elaboração, a ficção do saber do analisante.
O Discurso Analítico, pelo avesso do discurso da terapia, implica que este saber
suposto só possa ficar em posição de verdade num “meio-dizer”, incompleto e
impossível de completar: a à
S2
- Efeitos terapêuticos
No entanto, como já dissemos, a psicanálise, na medida em que acolhe a
transferência e propicia a via da fala, tem efeitos terapêuticos. Freud, inúmeras
vezes, define a psicanálise como psicoterapia, e Lacan brinca ao dizer que a
psicanálise até pode: “massagear, revigorar, assoprar, limpar”, mas também
explicita como ela consegue apaziguar o horror do fora de sentido com a suposição
e solicitação do saber S1à S2. Assim, a experiência da análise, acolhendo a
transferência de quem sofre, responde, apazigua e acolhe as diferentes maneiras
de tratar a estrutura e o seu resto: o discurso da Histérica, o discurso Universitário e
o discurso do Mestre.
No entanto, não são esses efeitos que orientam a experiência, mas o
Discurso do Analista. O analista opera, em ato (no ato), cortes e faz vacilar essas
“soluções”; ele se arrisca a subpor o saber e dispensar o pai. O seu ato não se faz
em nome do pai, ele intervém em nome daquilo que “não cessa de não se
inscrever”, em nome daquilo que surge em cada discurso como fora do sentido. Ele
se mete, intromete a sua presença nas soluções do sujeito em nome daquilo que faz
mal quando transborda, intervém em nome do pior como causa: “a”.
Neste ponto, não podemos negar que existem momentos cruciais das
análises, provocados pelo próprio tratamento ou por circunstâncias externas, que
desencadeiam uma angústia tal que torna difícil essa direção “do pai ao pior”. São
momentos em que o manejo da transferência e o manejo da angústia parecem
entrar em colapso e tornam particularmente árdua a manutenção da via analítica, o
que Lacan nota ao evocar o horror do ato analítico.
A manutenção da via analítica é desconfortável mas é responsabilidade do
analista, o que conduz Lacan a localizar a resistência do lado deste. Ele próprio
testemunhou os encontros com esses desconfortos circunstanciais e estruturais na
sua experiência clínica, como por exemplo quando declara “O pior é tentador até

  24  
para mim” – “pior” aqui tomado no sentido da solução que escamoteia o real da
castração.
Há portanto uma dimensão terapêutica primordial na experiência de fala e de
transferência da análise, mas não é essa dimensão que especifica o ato analítico.
Freud várias vezes denunciou o limite desses efeitos curativos do dispositivo
analítico, mencionando em vários lugares que: “O melhor pode ser o inimigo do
bem” e evocando pacientes que rapidamente sossegavam e adormeciam numa
inércia encobridora e sonegadora.
Por outro lado, em “ Análise terminável e interminável” 21 , enquanto
apresenta a dimensão terapêutica da psicanálise como domesticação das pulsões e
como experiência de reforço do trabalho agregador do Eu, ele não deixa de
demonstrar e desenvolver, com amplas referências à clínica, a impossibilidade do
adestramento do “fator quantitativo da pulsão” que, cedo ou tarde, acaba por
transbordar os limites estreitos do Eu, complicando a possibilidade de determinar
com precisão o fim de uma análise.
Apesar do questionamento, pelo próprio Freud, desse caminho da
domesticação pulsional, foi o mal-entendido causado pelo “ Wo es War soll Ich
werden” 22 que autorizou as interpretações da direção da análise em termos de
adestramento, reeducação emocional, pedagogia e sugestão.
Outra possibilidade de desvio da proposta analítica se encontra do lado do
bom samaritano, que pretende medicar, restaurar, remediar a dor de existir. Tanto o
pedagogo quanto o médico encontram-se indubitavelmente ao avesso do analítico.
Isto não quer dizer que esses esforços não valem nada, “Não que não exerçam
algum bem..”, mas não têm chance alguma de suturar a divisão do sujeito que o
determina e o real que o afeta. As boas intenções não reduzem a divisão subjetiva e
suas manifestações na clínica: inibição, sintoma, angústia, culpa, pesadelos.
Essas soluções retornam ao pior na medida em que, tentando preservar o
sujeito, colocando-o à distância do real, contribuem de uma certa forma para
debilitá-lo, deixando-o sem recursos ou desenvoltura frente às eventualidades
inevitáveis de suas reviravoltas.
A tentação psicoterapêutica retorna ao pior porque a tentativa de responder à
divisão, almejando completar o sujeito com a boa palavra que faltaria, parece uma
tentativa de fazer Um com o dois do S2, o significante sempre Outro, ou seja,
qualifica-se como uma tentativa de forclusão do sujeito dividido, esmagando o seu
âmago que ex-siste e reside no intervalo entre um significante e outro. O pior se
manifesta quando “o que é recusado no simbólico retorna no real” conforme
advertiram tanto Freud quanto Lacan.
A psicoterapia volta ao pior porque mantém a crença em um grande Outro
consistente o bastante para responder à questão do ser. Esta crença tem um preço
alto, já que a neurose nela se alicerça. O neurótico se furta e sacrifica com a
dedicação fantasmática que lhe assegura a presença do Outro. Ele se equivoca

                                                                                                               
21
Freud S. Análise terminável e interminável –Obras completas – Imago – Vol XXIII
22
Freud S. Novas conferências introdutórias à psicanálise – Obras Completas – Imago vol. XXII

  25  
quando completa o Outro com seu sintoma neurótico para dar-lhe razão e garantir
sua consistência, reduzindo sua transcendência radical à imanência trivial realizada
pelo seu sintoma.
A psicoterapia retorna ao pior porque a resposta fantasmática, embora
possa ser qualificada como autoterapia ( como o delírio é uma auto-cura), esbanja
na clínica as suas piores versões e perversões. Lembrando do paradigma de “Bate–
se em uma criança” 23 , notemos que o fantasma encontra frequentemente uma
solução baseada no modelo analógico que constitui o masoquismo, fazendo-se de
estrupício e dejeto como analogia à Coisa que não cabe no significante.
A psicoterapia volta ao pior porque o circuito, curto, da “realização”
fantasmática provoca curtos-circuitos na humanidade de cada um.  É a partir dessas
considerações que podemos apreender os fenômenos de acting out, de passagem
ao ato, de recrudescência do sintomas (diversificação e/ou inflação) assim como as
análises infinitas e a conhecida “reação terapêutica negativa”, que tanto
impressionava Freud. É a partir dessas considerações que podemos retomar a
frase: “a psicoterapia retorna ao pior – ramène au pire.”
Mas então o que podemos esperar, depois de tanto trabalho, de tantas vezes
transferir a dor em palavras, de tantas e tantas voltas nos ditos? Qual é a incidência
almejada pelo procedimento analítico, qual é o fim destes meios tão paradoxais, tão
fora do bom senso?

ÉTICA DO DESEJO E BON-HEUR.


O que se pode esperar da psicanálise? Nada do lado da esperança; bastante
do lado do saber (“saber ao que te destina teu inconsciente”... de um lado, e de
outro o “gaio saber”); bastante no caminho do desejo e também do lado do Bon-
heur! Se não fosse por demais provocante, eu poderia completar o nosso título
dizendo: a psicoterapia retorna ao pior e a psicanálise conduz ao bon-heur!
Várias vezes Lacan lança mão desse desafio que parece até piada e
geralmente espanta quem sofre a experiência trágica da psicanálise.
Não se pode esperar o bon-heur, a boa hora, a sorte feliz; mas ele pode
eventualmente se produzir em decorrência de uma análise. Para isso, diz Lacan, a
esperança é fútil, pois o que se almeja é a própria contingência, o inesperado. A
contingência depende da capacidade de se separar da teimosia de querer fazer Um
com o Outro, da capacidade de se separar da solução fantasmática repetitiva,
limitada e previsível e devolver à repetição pulsional a sua plasticidade.
Produzir o “incurável”, como dizia Lacan ao falar do que se poderia esperar
de um processo analítico, consiste em esvaziar a autoterapia da fixação
fantasmática e dar chance a outro tipo de satisfação. Neste sentido o “não ceder
em seu desejo” que formula, no Seminário 724, a orientação ética da psicanálise
não é uma saída permissiva de acesso a todos os gozos possíveis, nem uma
conformação, no sentido de uma acomodação pela infinitização da insatisfação.

                                                                                                               
23
Freud S. Uma criança é espancada – Obras Completas – Vol -XVII
24
Lacan J. Séminaire livre 7 - L’Éthique de la psychanalyse -

  26  
Não ceder em seu desejo é, a partir do incurável, da castração, estar
disposto a acolher o bom encontro como algo que satis-faça .
“Resulta disso – diz Lacan em Télévision – que a análise inverte o preceito do
bem-fazer e deixar dizer até o ponto que o Bem dizer satisfaça.”
Um dos nomes possíveis para a satis-fação – um fazer que basta – poderia ser o
que Lacan chama no final de seu ensino; “A identificação ao sintoma”.
Nem ficção nem fixação , “fixão “ inventa Lacan , indicando assim a via da
invenção na qual cada um precisa se arriscar quando larga as suas aderências ao
Outro suposto mandamento ou desejo.
Vemos que a partir desta perspectiva, embora Lacan defina a experiência de
uma análise como experiência trágica na qual o que perdura de pura perda se
empresta na interpretação para quem aposta na direção do pai ao pior, mesmo
assim a direção que ele indica para a saída ultrapassa o impasse freudiano da
castração, propondo-a como princípio de um passo, de um passe.
Na psicanálise, colocar o pior em causa faz passe.
Bem dizia Riobaldo – no fim:
“Nonada – O diabo não há ! E o que eu digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia”.25

                                                                                                               
25
J. Guimarães Rosa – Grande Sertão :Veredas – Editora nova fronteira 1997- p.538

  27  
INTERPRETAÇÃO: DA LÓGICA DO SIGNIFICANTE, À (PO)ÉTICA DO ATO

Ana Laura Prates Pacheco

Quero começar fazendo um pequeno comentário a respeito do título de


minha apresentação. Eu estava com a última aula do Seminário L’insu na cabeça,
com o qual trabalhamos em 2010 no FCL-SP. Então me lembrei do jogo de palavras
que Lacan faz, em francês, entre ato (ate) e poeta (poete) e que ele escreve poâte.
Quando tentei traduzir para o português, entretanto, algo se perdeu na escrita do
(po) ato. Resignei-me ao que talvez pudesse significar uma falta de talento para a
poesia, e enviei o título bem comportado: “da lógica do significante à ética do ato”.
Eis que, iniciando o escrito que hoje apresentarei a vocês, olhei novamente para o
título, com certo desânimo, mas qual não foi minha surpresa quando pude ler ali: “da
lógica do significante à (po)ética do ato. Confesso que fui tomada por certo frisson
ao retomar minha pretensão de poeta, ainda que deslocada do ato para a ética.
Mas vamos direto ao assunto: na aula de 17 de maio de 1977, Lacan lança
uma pergunta: seria, o Psicanalista, poeta o suficiente? Essa é a provocação que
Laca nos faz no Seminário 24 Línsu que sait de l´une bévue s´aile à mourre (1976-
1977), afirmando que “apenas a poesia permite a interpretação”. Articular a
interpretação à poesia e, portanto, às leis da linguagem não é exatamente uma
novidade no ensino de Lacan. Desde o início, ele demonstrou – com Freud – que o
sintoma, assim com o sonho, é uma cifra suja lógica responde às mesmas leis que
regem a combinatória significante: a metáfora e a metonímia (“Instância da letra”: “a
estrutura metafórica, que indica que é na substituição do significante pelo
significante que se produz um efeito de significação que é de poesia ou criação”, p.
519).
Temos aqui, de saída, uma tomada de posição: a orientação lacaniana em
relação ao tema da interpretação em psicanálise. Ora não seria excessivo afirmar
que interpretação, enquanto resposta própria do psicanalista, funda a especificidade
de seu discurso. Sendo solidária da transferência, é ela que permite ao psicanalista
interferir, com seu ato, na tarefa do analisante, isto é, na associação livre.
Mas qual seria a visada dessa resposta específica, que faz girar o discurso,
fundando uma nova razão? Como dissemos anteriormente, há dois aspectos que se
colocam de saída e de modo imbricado: a questão da verdade e a do sentido.
Sabemos que Freud, inicialmente, interessou-se pela interpretação na
vertente de uma exegese: “o que isso quer dizer”? Tomando “A Interpretação dos
sonhos” (Die Traumdeutung) como paradigmática do método psicanalítico, ele
visava elucidar os significados ocultos do sonho, tomado como um texto. Em que
pese o fato de que esse significado fosse tributário à história pessoal do sujeito, isso
não anulava certo parentesco inicial da psicanálise com a hermenêutica, o que até
hoje confunde os mais desavisados.
O que ocorre, entretanto, é que Freud rapidamente se dá conta de que os
processos pelos quais os pensamentos latentes produzem o conteúdo manifesto
dos sonhos – ou seja, a condensação e o deslocamento –, são os mesmos que

  28  
produzem as demais formações do inconsciente: lapsos, chistes e sintomas. Ora,
aqui é patente o deslocamento do plano hermenêutico para o estrutural, já que não
é possível encontrar o par ordenado entre interpretante e interpretado, objeto e
representação.
Assim, Freud rapidamente se dá conta de que, ao invés de tentar esgotar o
significado último de um determinado sonho – acompanhado cada vereda e
decifrando cada elemento, até encontrar, após minuciosa análise, a síntese final que
apontaria “o sentido” – o analista, antes, deve possibilitar que a via régia do
inconsciente, a associação livre (chamada por Lacan de cadeia significante) não
seja interrompida. Dessa forma, a interpretação – como Lacan formalizará em seu
texto “A Direção do tratamento e os princípios de seu poder” – não é apenas um
método para se alcançar a verdade recalcada, nem uma técnica de decifração, mas
tática relativa a uma política. Retomaremos esse ponto mais tarde.
Ora, por outro lado, não se pode desconsiderar as voltas e revoltas
freudianas no que tange a relação da interpretação com o plano da realidade. Em
que pese que os sonhos, bem como os sintomas sejam a realização de desejos
sexuais infantis recalcados, ou seja – revelem a fantasia inconsciente – Freud –
assim como Frege, como veremos a seguir – se vê às voltas constantemente
(como, por exemplo, no caso do Homem dos Lobos) com a questão da referência à
realidade – o que causou muitos problemas para os psicanalistas pós-freudianos.
Faltava-lhes o conceito de real.
Avancemos para o Lacan de 1972, para destacarmos esse ponto, que me
parece essencial: “é a partir do discurso em que se funda a realidade da fantasia
que aquilo que há de real nessa realidade se acha inscrito” (O Aturdito, Outros
escritos, p. 478). Com efeito, a partir de 1920, Freud pergunta-se de modo cada vez
mais sagaz a respeito dos limites da interpretação. No texto que tem exatamente
esse nome: “Os limites da Interpretação dos Sonhos” (1925), ele destaca a
incompletude da interpretação, bem como – em muitos casos – sua impossibilidade
de decisão frente à multiplicidade de sentidos.
Assim, aquilo que não se pode conhecer – e que não pode ser alcançado
pela rememoração – aponta para a repetição, a “pregnância pulsional”, algo que a
interpretação não alcança. Para Freud, se a interpretação visa o recalque
secundário, o recalque primário – constitutivo do inconsciente –, só poderá ser
construído. No limite da rememoração – visada pela interpretação –, encontramos,
em Freud, uma direção do tratamento que conduz à construção da fantasia.
Diríamos, com Lacan, que ali onde Freud depara-se com o real, ele coloca a
realidade da fantasia. Outra forma de dizer que a análise freudiana termina com a
construção da fantasia, esbarrando no rochedo da castração.
Sabemos que o grande mérito de Lacan em seus anos de “retorno a Freud”
consistiu justamente em apontar para a estrutura de linguagem desse rochedo,
retirando-o do viés bilogicista que indicava o “Complexo de Édipo” – re-editado na
pessoa do analista, sob transferência – como o pólo atrativo de todas as
interpretações em psicanálise. Daí todos os desvios, com cansou de denunciar
Lacan, de uma clínica psicanalítica sustentada na interpretação da transferência. A

  29  
interpretação da transferência só pode conduzir ao acing-out, como mostra o
exemplo paradigmático do caso de Ernest Kris que, saindo da sessão, foi comer
miolos frescos de macacos, após o analista contrapor a realidade à sua fantasia de
plagiador.
Se tomarmos o texto “A Direção do tratamento” como parâmetro, notamos
que Lacan nesse momento já faz um deslocamento da questão da realidade (visada
pela interpretação pós-freudiana) para a questão da verdade, ou, em suas palavras:
“a importância do significante na localização da verdade analítica”. Aqui, gostaria de
registrar, embora eu não pretenda desenvolvê-lo, que não se trata da idéia de
“palavra verdadeira” ou “palavra plena” anteriormente defendida por Lacan. Aquela
se baseava na noção de inter-subjetividade e, portanto, visava apreender o sujeito.
Agora, como diz Lacan: “Nenhum indicador basta para mostrar onde age a
interpretação, quando não se admite radicalmente um conceito da função do
significante que capte onde o sujeito se subordina a ele, a ponto de ser por ele
subordinado”. (Escritos, p. 599).
A verdade revelada pela decifração, portanto, está menos no nível semântico
que responderia “o que isso quer dizer” – como em Freud – e mais na estrutura de
“como isso diz”. Com efeito, a proposta lacaniana dos anos 50 de “tomar o desejo
ao pé da letra” indica a extração da fantasia pela via da estrutura lógica do
significante. Assim, podemos afirmar que a resposta à interpretação do desejo é a
fantasia fundamental, inicialmente como montagem gramatical (“bate-se numa
criança”) e, um pouco mais tarde, em “Subversão do sujeito” como “montagem
pulsional”.
Ora, talvez a principal conseqüência desse resgate da psicanálise a partir da
materialidade do significante seja uma releitura do complexo de Édipo como
estrutural. Tal leitura implica a redução do Édipo freudiano a quatro operadores: o
infans, o desejo do Outro, o Nome-do-Pai e o falo, tal como encontramos no
esquema R. À proposta de que o mito de Édipo revela a estrutura universal do
sujeito em sua relação com o Outro, acompanha um modo de compreender a
sexualidade humana como fundamentalmente simbólica, já que seu operador
universal – o falo – é definido agora como o significante do desejo.
Muito embora os primeiros dez anos do “retorno a Freud” tenham gerado
uma divisão de águas no que diz respeito à política do tratamento psicanalítico –
com correspondentes conseqüências importantes em nível estratégico e tático –, ele
não chegou a fazer Escola. Com efeito, Lacan continuava propondo o final da
análise como “rochedo da castração” (como vemos no Seminário 5 – As formações
do inconsciente), ainda que em seu entendimento, o rochedo não fosse da ordem
da diferença anatômica, mas sim da irredutibilidade do significante que impunha
uma impossibilidade de acesso complementar aos objetos do desejo. De qualquer
forma, a submissão à dívida simbólica com o Pai (ainda que reduzido a um nome)
implicava que o sujeito, ao longo de uma análise, aceitasse sua “falta e ser”
estrutural que o constituía como sujeito desejante a partir da assunção da falta.
Acusado por alguns de negligenciar os aspectos econômicos da obra
freudiana e, por outros, de produzir uma clínica da resignação ou mesmo uma

  30  
teleologia negativa, com apologia da falta, Lacan inicia os próximos dez anos de seu
ensino com um conceito que ele mesmo considera – nesse caso com modéstia –
sua única criação na psicanálise. Ora, com a criação do conceito do objeto a como
resto da operação significante de causação do sujeito, entretanto fora da cadeia e
mesmo do campo da linguagem, Lacan inaugura finalmente um projeto que “faz
Escola” e que ele nomeia de “uma clínica além do rochedo da castração” (Seminário
10). Lacan inverte a ordem lógica que sempre orientou a clássica clínica
psicanalítica, qual seja, a de que a castração é aquilo que o sujeito quer evitar em
nome de um retorno à satisfação plena e narcísica (em algumas abordagens,
fusional).
No segundo retorno a Freud, inaugurado por Lacan no seminário 10 A
angústia (1962/63), o sujeito neurótico é aquele que tem na castração seu bem mais
precioso, já que ele a escolheu ao ceder o objeto no instante de separar-se do
Outro. Ora, o que o neurótico cria em sua fantasia, é um Outro que demanda sua
castração, ou seja, o coloca como objeto, promovendo sua desubjetivação e a
anulação de seu desejo. A partir da formulação da angústia como afeto mediano
entre gozo e desejo, afeto que não engana e que é produzido pela “falta da falta”,
Lacan promove uma reformulação clínica que permite pensá-la não mais apenas
pela via da falta, mas fundamentalmente pela via do excesso, já que o objeto a
“causa do desejo” é uma criação do sujeito positivada na fantasia.
Quais as conseqüências dessa virada lacaniana para a interpretação? A
primeira delas, obviamente, é que a interpretação deve visar essa causa. Isso não
significa, como adverte C. Soler (1994) que se deva apontar o objeto da fantasia,
sob pena de apenas fazê-lo consistir ainda mais. Trata-se, novamente, da extração
de uma lógica: “A interpretação não visa tanto o sentido quanto reduzir os
significantes a seu não-senso, para que possamos reencontrar os determinantes de
toda a conduta do sujeito” (Os quatro conceitos, p. 201)
A segunda consequência é tributária do debate com Laplanche, que havia
rompido com Lacan, atribuindo a primazia do inconsciente em relação à linguagem.
Laplanche reduz a proposta lacaniana de que a interpretação deve visar o
significante como sendo uma autorização para a polissemia infinita: a interpretação
estaria aberta a qualquer sentido. A resposta de Lacan no Seminário 11 é
contundente. Ele diz: “A interpretação não está aberta a todos os sentidos (...). A
interpretação é uma significação que não é não importa qual. Ela vem aqui no lugar
do x, e reverte a relação que faz com que o significante tenha por efeito, na
linguagem, o significado. Ela tem por efeito fazer surgir um significante irredutível.(p.
236)
Vemos aqui antecipada de forma extraordinária a escrita do discurso do
analista, tal com Lacan apresenta no Seminário 17 O avesso da psicanálise, com a
produção do S1. Da mesma forma, Lacan chega num impasse que podemos
nomear de “impasse da fantasia” 26 e que se expressa de modo patente no
Seminário 15 O ato analítico. Se a fantasia, agora formalizada como “escrita do
                                                                                                               
26
Remeto ao livro de Ronaldo Torres, Dimensões do ato em psicanálise.

  31  
impossível” é reduzida a sua operacionalidade lógica, ela realiza de modo paradoxal
o que adquiriu valor de verdade para o sujeito e, ao ser construída e atravessada,
revela que a falta é perda pura. Como, entretanto, ir além da fantasia? A clínica
lacaniana concebida como “além da rocha da castração” conduz, logicamente, ao
impasse da fantasia.
Esses avanços e desdobramentos são acompanhados de uma profunda
revisão da proposta de formação dos analistas, com a criação do conceito de Escola
e uma colocação em ato de uma prática institucional inédita. A idéia de que o ato
analítico possa promover a passagem dos impasses da fantasia ao passe encontra
seu correspondente institucional, como sabemos, na proposição do passe como
dispositivo apto a recolher a singularidade dessa passagem que não pode ser
experimentada apenas no nível do significante.

A imposição de formalizar esse algo que, embora não seja da ordem da


linguagem, é da ordem da estrutura leva Lacan à escrita dos quatro discursos, como
tratamentos do impossível no laço social. Que os “discursos sem fala (ou palavra)”
sejam da ordem de uma escrita, é algo notável, embora não possamos desenvolvê-
lo agora.
Ora, para formalizar a atravessamento do impasse rumo ao passe, via ato
analítico, Lacan, do meu ponto de vista, recorre a dois recursos:
1) A criação de uma subversão no plano da lógica: o matema que
corresponde à inerpretação como apofãntico
2) A valorização do ato e, portanto, o desenvolvimento do plano da ética: a
pó(ética) [ou o poema – ou o poâte] que corresponde à interpretação
como equívoco.
O primeiro recurso tem sua proposta explicitada no texto L´Étourdit de 1972,
contemporâneo ao Seminário 20 Encore. Há um texto brilhante de C. Soler (“As
respostas do analista”), de 1994, comentando L´`Etourdit e por isso remeto vocês a
esse texto e não vou retomá-lo de modo exaustivo. Remeto também ao capítulo do
livro de Christian Dunker “Lacan e a clínica da interpretação” (1996), sobretudo o
capítulo “A lógica da interpretação” que também comenta L´Etourdit. Há, entretanto
alguns pontos que merecem ser comentados para nossos propósitos nessa noite.
“Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se ouve”. Eis a
frase que orienta todo o texto e que apresenta a tese radical de que os ditos não
são da mesma ordem do dizer. Lacan, que em vários momentos havia usado de
modo um pouco confuso os termos sentido e significação, aqui parece retomar a
distinção proposta por Frege no texto “Sobre o sentido e a significação”.
Criador do logicismo, Frege está interessado na relação entre a linguagem e
a realidade. “Para isso, estabelece uma distinção fundamental e muito influente no
desenvolvimento dessa discussão entre Sinn (sentido) e Bedeutung (referência)”
(Marcondes, D. p. 80) na qual o primeiro é relacionado à conotação e a segunda à
denotação. Frege propõe, ainda, uma distinção entre a forma lógica de uma
proposição e sua forma gramatical. A indicação de Frege de que a referência de
uma proposição é seu valor de verdade é bastante coerente com a posição

  32  
sustentada por Lacan quanto à lógica da fantasia. O diálogo com Frege, entretanto,
não parece ser simplesmente da ordem de uma apropriação conceitual. Ao
contrário, se Lacan se refere a Frege é, de certa forma, para subvertê-lo.
Encontramos em L`Etourdit uma articulação bastante peculiar entre a lógica
modal e a lógica proposicional que, para Frege, seria inaceitável, já que, sua
prerrogativa é a de que apenas proposições do tipo indicativo podem ser
verdadeiras ou falsas e, desse modo, são as únicas a ter referência. A lógica modal
utiliza exatamente das modalidades que indicam possibilidades tais como
necessário, possível, contingente e impossível. Lacan afirma que a primeira frase:
“que se diga” – que aponta para o dizer, por tratar-se de um modo gramatical
subjuntivo, está do lado do modal. Assim ele conclui algo extraordinário: o dizer ex-
siste à verdade (p. 449), pois a ele não se aplicariam as atribuições de falso ou
verdadeiro. Ora, se a afirmação proposicional está do lado dos ditos, há que se
levar em conta, entretanto, que “para que um dito seja verdadeiro, é preciso ainda
um dizer” (p. 449).
A complexidade do que Lacan articula aqui é extraordinária. Poderíamos cair
na tentação de colocar de um lado a função proposicional e a significação/referência
(Bedeutung) do falo e, do outro, o modal do lado do “um dizer” que adquire sentido a
partir do lugar que o semblante ocupa. O que Lacan está formalizando, entretanto é
bem mais complexo, já que “o dito não vai sem o dizer” (p. 451). Assim, é
necessário que um dizer passe a ocupar o lugar de significante mestre para que os
ditos possam articular-se à verdade, ainda que fantasmática. É dessa forma que o
dizer se demonstra por escapar ao dito, e ex-siste em relação à verdade. A
interpretação, segundo Lacan, é sentido, e vai contra a significação. (p. 481)
Há aqui uma reviravolta incrível de Lacan no que tange o plano da relação da
verdade com o real. Vejamos o que diz Lacan a esse respeito, no Seminário 23: “A
rememoração consiste em fazer essas cadeias entrarem em alguma coisa que já
está lá e que se nomeia como saber; (...) o que Freud sustenta como inconsciente
supõe sempre em saber, e um saber falado. O inconsciente é inteiramente redutível
a um saber. É o mínimo que supõe o fato de ele poder ser interpretado. É claro que
esse saber exige no mínimo dois suportes, que denominamos termos, simbolizando-
os por letras. Daí minha escrita do saber como tendo suporte no S com índice S2. A
definição que dou do significante ao qual confiro o suporte S índice 1 é representar
um sujeito como tal e representá-lo verdadeiramente. Verdadeiramente quer dizer,
nesse caso, conforme a realidade. O verdadeiro é dizer conforme a realidade. A
realidade, nesse caso, é o que funciona verdadeiramente. Mas o que funciona
verdadeiramente não tem nada a ver com o que designo como real. (...) Em outros
termos, a instância do saber renovada por Freud, quero dizer renovada sob a forma
do inconsciente, não supõe obrigatoriamente de modo algum o real de que me
sirvo” (Lacan, “Joyce – O Sinthoma”, p. 127/128)
O real, quer dizer, o impossível da relação sexual, é que comanda a
verdade. Assim é que a função fálica supre a relação sexual e o sujeito, como puro
efeito de significação, é “resposta do real” (p. 458). E é por isso que Lacan sustenta
que é apenas no discurso analítico que o dizer ex-siste, já que, graças à

  33  
interpretação, o analista pode, com seu dizer específico, operar sobre o modal da
demanda neurótica que envelopa o conjunto dos ditos, extraindo daí, um dizer.
Vejam que Lacan introduz aqui ainda outro problema, ao precisar justamente
que o dizer modal está do lado da demanda, ou seja, do lado da neurose. A neurose
suspende a asserção pela via da suspensão infinita da decisão: “pode ser isso” ou
“pode ser aquilo”. Assim, o sujeito não precisa se posicionar. O dizer do analista, ao
contrário, seria da ordem do apofântico. Ora, tradicionalmente o apofãntico, desde
Aristóteles, aplica-se ao proposicional, ou seja, aos enunciados aos quais se pode
atribuir valor de verdade (V ou F). Em outras palavras, como aplicar algo que parece
dizer respeito, segundo o próprio Lacan, à ordem do dito, a um dizer? Como atribuir
ao dizer do analista – à interpretação – algo da ordem da verdade?
Penso que é preciso tomar a etimologia da palavra apofãntico: apo (embaixo)
e phaos (luz). O apofãntico, assim, aponta para algo da ordem de uma iluminação,
uma revelação. É curioso que Lacan, após afirmar que o dizer da interpretação tem
o estatuto apofãntico, retoma o fato de que ela incide sobre a causa do desejo. E
completa: “causa que ela revela”. E mais à frente, ele afirma que “a estrutura é o
real que vem à luz na linguagem”. Assim, penso que o termo apofântico aqui, está
menos do lado de uma atribuição de verdade do dizer do analista, e, antes, do lado
de algo que aponta, que ilumina o limite da verdade, ou seja, o real.
Assim, entendo que Lacan está dizendo que se o discurso que funda a
estrutura, o discurso do mestre – enquanto discurso do inconsciente – é aquele que
“funda a realidade da fantasia” (p. 478), inscrevendo um dizer, ou em outras
palavras, tornando necessário o que é contingente (RSI), é a prática do analista
(como ele coloca) que “deve dar conta de que haja cortes do discurso tais que
modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente” (p. 479).
É assim que Lacan subverte a lógica proposicional de Aristóteles a Frege,
introduzindo o modo impensável para qualquer lógica consistente: o impossível: “O
dizer da análise – afirma Lacan – realiza o apofãntico que por sua simples ex-
sistência distingue-se da proposição. Assim é que coloca em seu lugar a função
proposicional posto que ela nos dá o único apoio que supre o ab-senso (ausência/
sem sentido) da relação sexual” (p.492).
E aqui entramos no último ponto de meu desenvolvimento essa noite, que é
aquela que chamei de poética do ato, e que, me parece, Lacan parece começar a
desenvolver no final desse texto e prossegue nos Seminários finais de seu ensino.
Qual a arma do analista frente aos modos redutivos da demanda neurótica? Digo
redutivos, porque Lacan ensina que a demanda reduz o impossível ao contingente,
e possível ao necessário. Vemos novamente aqui, a exclusão do real como
impossível, próprio da neurose. O analista, com seu ato “opera com a equivocidade
pela qual cada lalíngua se distingue” (p. 492). Vou leu uma das frases mais bonitas
de L´Étourdit: “Uma língua entre outras não é nada além da integral dos equívocos
que sua história deixou persistirem nela. É o veio em que o real – o único, para o
discurso analítico, a motivar seu resultado, o real de que não existe relação sexual –
se depositou ao longo das eras”.

  34  
Quanto à interpretação pelo equívoco, Lacan privilegia aqui a homofonia, as
brincadeiras e jogos com a língua que, segundo ele, são eles que jogam conosco,
exceto “quando os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles onde convém”
(p.493). À homofonia, poderíamos acrescentar também a homonímia e o próprio
jogo inter-línguas diferentes, cujo paradigma é o texto de Joyce.
E aqui, eu gostaria de fazer uma observação que me parece importante.
Frequentemente ouvimos que o texto de Joyce não tem sentido. Talvez
pudéssemos corrigir essa afirmação, dizendo que, se nos ativermos apenas à
semântica, talvez ela fracasse na significação. Mas quanto ao sentido, o que
encontramos é uma proliferação tão grande que ele perde o valor (lembrem-se do
valor de verdade da fantasia), apontando então para o ab-sens. Cada frase de
Joyce foi construída como uma escultura, de modo totalmente artificial e calculado.
Não se trata de uma escrita automática. Acho isso importante, porque me parece
que Lacan faz disso uma espécie de paradigma metodológico.
Encontramos, por exemplo, esse método no próprio titulo do Seminário 24:
L´Insue que sait de l´une bévue s´aille a mourre. Do ponto de vista da tradução
semântica, temos: “O não sabido que sabe de um equívoco vai à morra”. Pelo
equívoco temos o amor, o muro, a morte. Ou: O insucesso, o inconsciente. Do lado
do verbo: que sabe, que é. E assim por diante. Assim, me parece que Lacan está
propondo em ato (pó)ético a mostração (para além da demonstração) do que ele
chamou no Seminário 23 de usar até gastar. Não nos esqueçamos que se na
topologia de L´Etourdit o sentido às vezes parece estar entre o simbólico e o real, no
nó borromeano o sentido está no enodamento do imaginário e do simbólico, já que o
real ex-siste ao sentido. Usá-lo até gastar: eis a escroqueria, a trapaça do
psicanalista. Penso que Lacan utiliza as rodinhas de barbante (ronds de ficelles)
que em francês também quer dizer “truque” – justamente para realizar a “mostração”
da impossibilidade deslocar o peso do sentido para o “peso do real” sem os
“sedimentos de linguagem”.
Na conferência proferida em Bruxelas no dia 26 de fevereiro de 1977, Lacan
afirma que a psicanálise não tem outra saída a não ser passar pelo sentido e,
necessariamente, pelas palavras. Lacan diz que aí chega Freud nos “Estudos sobre
a histeria”: “é com palavras que isso se resolve e é com palavras da própria
paciente que o afeto se evapora”.
Para Lacan, portanto, trata-se de dar outro corpo ao inconsciente, diferente
da idéia de representação: “O inconsciente? Bastam ali as palavras; as palavras
fazem corpo, isso não quer dizer em absoluto que se compreenda qualquer coisa. É
isso o inconsciente: se é guiado por palavras das quais não se compreende nada”.
O que está fora, portanto, é o peso do sentido. Em seu lugar, Lacan coloca o peso
do real.
A pergunta que não se cala, é qual a relação da linguagem com o real. Lacan
a responde de modo bastante direto: “O essencial do que disse Freud, é que há a
maior relação entre esse uso das palavras em uma espécie que tem palavras à sua
disposição, e a sexualidade que reina nessa espécie”. “A sexualidade é inteiramente
tomada nessas palavras, esse é o passo essencial que ele deu. É muito mais

  35  
importante do que saber o que quer dizer”. Essa é a questão clínica essencial: a
interpretação não visa “o que quer dizer”, mas o fato de “se dizer”.
Assim, borra-se a diferença entre a verdade e a escroqueria, já que não pode
haver A Verdade como universal. Não se visa com isso, entretanto, um relativismo
da desconstrução, já que as “verdades mentirosas” apontam todas para o real de
que “o gozo é a castração”. E aqui, Lacan avança de modo muito interessante,
afirmando que tampouco A castração é unívoca. Ao contrário, ele diz: “há muitos
tipos de castração”. Como ele não cansa de ensinar, não é o mesmo forma e
estrutura.
Termino Com Lacan: “More geométrico... O corpo falante não pode conseguir
se reproduzir que por uma falha, quer dizer, graças a um mal entendido de seu
gozo”. “O que nossa prática revela é que o saber inconsciente tem uma relação com
o amor”.

  36  
O QUE RESPONDE O PSICANALISTA?

Ana Laura Prates Pacheco

Em 1969, Lacan escreveu que em sua concepção, “o sintoma da criança


acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura
familiar”: a verdade do casal parental. O emprego do verbo responder atribuído à
posição da criança, nesse contexto, pode ter também o sentido de corresponder, tal
como no poema de Baudelaire1 Correspondences: Lês parfums, les coulers et les
sons se répondent.2 Essa correspondência entre o Outro e o sujeito, remete ao
irredutível da transmissão de um desejo que não seja anônimo3.
Há uma topologia na transmissão, que reforça sua conotação de envio, de
algo que passa de um lugar para outro. Aqui, lembramos d’ A Carta Roubada, de
Edgar Alain Poe e do Seminário que Lacan lhe dedica: aquilo que falta em seu lugar
é o simbólico, já que o real o leva colado na sola. Quando se trata do sujeito do
inconsciente, do desejo e da falta, a carta – em sua eficácia simbólica – sempre
chega a seu destino. Ora, se cabe ao Outro transmitir a castração, cabe ao sujeito,
a resposta. Num primeiro momento, poderíamos afirmar que a resposta do sujeito à
falta do Outro é a fantasia, que sustenta o sintoma enquanto metáfora. Mas Lacan
avança do passo de sentido da metáfora ao sem sentido do gozo. Se a partir da
letra (carta), enquanto distinta do significante, podemos escrever o discurso sem
palavras, é porque há uma impossibilidade lógica do lado do pai. É lá onde o pai é
um lugar “vazio e sem comunicação” 4 (sem resposta) que ele exerce sua função de
transmissão, não somente do sentido que insiste e consiste, mas, sobretudo de uma
orientação que aponta para o real que ex-siste e para A mulher que não existe. À
verdade do casal parental – não há relação sexual –, o sujeito, resposta do real, co-
responde com o sintoma, um modo singular de gozo.
É com essa carta na manga que se chega ao psicanalista, aquele cuja oferta
possibilita a escrita do único discurso que agencia o objto a no lugar do semblante.
Eis a possibilidade inédita de um dispositivo que acolhendo a co-respondência entre
o sujeito e o Outro permitirá, entretanto, a escrita de uma carta (letra) que não seja
mais uma « roubada ». Não é que Lacan alce o analista – como queria Derrida – no
lugar do « carteiro da verdade ». Longe disso!
Qual é, então, a resposta do analista frente aos modos redutivos da demanda
neurótica que operam a exclusão do real como impossível? O analista, com seu ato,
responde com “a equivocidade pela qual cada alíngua se distingue”5. Assim, se a
resposta do analista – radicalmente original na civilização – resgata por um lado a
correspondência estraviada entre o sujeito e o Outro, é tão somente para
embaralhar suas letras esvaziando seu sentido. É a prática do analista que “deve
                                                                                                               
1
Baudelaire (1961). Les fleurs du mal. Paris, Librairie Marcel Didier.
2
Devo essa observação e a referência a esse poema a Sílmia Sobreira.
3
Lacan, Nota sobre a criança. (1969) In: Outros Escritos
4
Lacan, O Seminário – livro 17 O avesso da psicanálise.
5
LACAN, J. O Aturdito. In Outros Escritos, p.492

  37  
dar conta de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ele
acolhe originalmente” 6. Eis a po(ética) do ato analítico. Em 1977, Lacan lança uma
provocação: seria, o Psicanalista, poeta o suficiente? Aqui, a resposta da
interpretação encontra a via pela qual se privilegia a homofonia e os jogos com a
língua. Esses jogos, segundo Lacan, “os poetas os calculam e o psicanalista se
serve deles onde convém”7. A suficiência poética do psicanalista, portanto, está,
desde sempre, no cálculo tático e na conveniência da resposta à orientação real do
nó bo que foraclui o sentido. À homofonia, poderíamos acrescenta a homonímia e o
jogo interlínguas, cujo paradigma é o texto de Joyce. Diz-se que o texto de Joyce
não tem sentido. Com efeito, no nível semântico, há um fracasso patente na
significação. Mas, quanto ao sentido, há uma proliferação tão grande que ele perde
o valor, apontando então para o ab-sens. Não se trata de modo algum de uma
escrita automática. Cada frase de Joyce foi construída como uma escultura, de
modo totalmente artificial e calculado. Lacan faz disso uma espécie de paradigma
metodológico: passar pelo sentido, usa-lo até gastar e deslocar seu peso para o
peso do real.
Ora, se a correspondência entre a linguagem e o real é da ordem do
impossível, se a transmissão integral é impossível, a pergunta que não se cala é
qual a resposta ética do psicanalista quando o destino da mensagem passa a ser o
ab-sens da relação sexual humana, tomada pelas palavras? Essa é a questão
clínica e ética essencial: a psicanálise não visa tanto a verdade por traz do que isso
quer dizer mas, antes, o fato de “que se diga”. Assim, borra-se a diferença entre a
verdade e a escroqueria. Mas, atenção: essa despretensão da verdade não justifica
em absoluto um relativismo da desconstrução, já que as “verdades mentirosas”
apontam todas para o real de que o gozo é a castração. Eis a ousadia clínica e ética
que a Psicanálise oferece: A aposta no bem dizer como resposta do psicanalista
frente ao impossível de dizer tudo é o que se espera da clínica do passe. Nas
palavras de Seprum: “Só o artifício de um relato que se possa controlar conseguirá
transmitir parcialmente a verdade do testemunho”.8 A construção de um artifício,
emprestar a materialidade da letra ao testemunho não é, portanto, algo espontâneo
e exige um desejo decisão, lá onde não há Outro que responda, nem sujeito que
corresponda. Lá onde não há carteiro da verdade há, entretanto algo que a
letra/carta carrega: “A borda do furo no saber, não é isso que a letra desenha?”9
Estamos, em nossa Escola, enfrentando o desafio de responder à questão
sobre quais as consequências de sustentar essa aposta, dando voz ao testemunho,
amplificando nossos sussurros na Polis, sem nos resignarmos ao “mutismo aflito”10,
como tão bem ilustra a magnífica foto da instalação de Anish Kapoor no cartaz de
nosso Encontro.

                                                                                                               
6
LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 479
7
LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 493
8
SEPRUM, J. A Escrita ou a vida. São Paulo, Companhia da Letras, p. 22
9
LACAN, J. Lituraterra. In op.Cit.
10
SOLER, C. As condições do ato, como reconhecê-las? In: Wunsh n. 8

  38  
  39  
POR UMA PRÁTICA SEM VALOR: A SUFICIÊNCIA E A CONVENIÊNCIA
POÉTICA DO PSICANALISTA

Ana Laura Prates Pacheco

Na aula de 17 de maio de 1977 do Seminário 24 Línsu que sait de l´une


bévue s´aile à mourre (1976-1977) Lacan lança uma pergunta: seria, o Psicanalista,
poeta o suficiente? Essa é a provocação que ele nos deixa, afirmando a seguir que
“apenas a poesia permite a interpretação”. Articular a interpretação à poesia e,
portanto, às leis da linguagem não é exatamente uma novidade em seu ensino.
Desde o início, Lacan demonstrou – com Freud – que o sintoma, assim com o
sonho, é uma cifra cuja lógica responde às mesmas leis que regem a combinatória
significante: a metáfora e a metonímia: “a estrutura metafórica, que indica que é na
substituição do significante pelo significante que se produz um efeito de significação
que é de poesia ou criação”. (Instância da Letra, Escritos, p. 519). Seria, então, a
interpretação, homóloga à estrutura do inconsciente? Vou tentar encaminhar essa
questão a partir de três breves recortes:

1) Um significante irredutível
Ora, não seria excessivo afirmar que a interpretação, enquanto resposta
própria do psicanalista, funda a especificidade de seu discurso. Sendo solidária da
transferência, é ela que permite ao psicanalista interferir, com seu ato, na tarefa do
analisante, isto é, na associação livre. Mas qual seria a visada dessa resposta
específica, que faz girar o discurso, fundando uma nova razão? Há, então, dois
aspectos que se colocam de saída e de modo imbricado: a questão da verdade e a
do sentido. Para Lacan, desde o início de seu ensino, a verdade revelada pela
decifração está menos no nível semântico que responderia “o que isso quer dizer” e
mais na estrutura de “como isso diz”. Aqui é patente o deslocamento do plano
hermenêutico para o estrutural, já que não é possível encontrar o par ordenado
entre interpretante e interpretado, objeto e representação.
Dessa forma, a interpretação é menos um método para se alcançar a
verdade recalcada, ou uma técnica de decifração, do que a tática relativa a uma
política de cura.
O tempo restrito me impedirá de demonstrar os problemas teórico-clínicos
que foram se colocando, a partir de quando Lacan, fazendo Escola, inaugurou uma
clinica “além da rocha da castração”, com a criação do conceito de objeto a, causa
do desejo e mais de gozar. Deixo apenas indicado que essas questões o levaram a
se deparar com o impasse da fantasia, em relação ao qual sua resposta é a clínica
do passe. E aponto, rapidamente, duas conseqüências específicas para a
interpretação: A primeira delas, obviamente, é que a interpretação deve visar essa
causa. A segunda é tributária do debate com Laplanche, o qual reduz a proposta
lacaniana de que a interpretação deve visar o significante como sendo uma
autorização para a polissemia infinita: a interpretação estaria aberta a qualquer

  40  
sentido. A resposta de Lacan no Seminário 11 é contundente. Ele diz: “A
interpretação não está aberta a todos os sentidos (...). Ela tem por efeito fazer surgir
um significante irredutível”. (p. 236)
Vemos aqui antecipada de forma extraordinária a escrita do discurso do
analista, tal com Lacan apresenta no Seminário 17 O avesso da psicanálise, com o
S1 no lugar da produção. Seria esse S1 o mesmo que, no discurso fundante da
estrutura, o Discurso do Mestre, estava no lugar do agente da produção da causa
do desejo?

2) Um dizer
Avancemos para o Lacan de 1972, para destacarmos esse ponto, que me
parece essencial: “é a partir do discurso em que se funda a realidade da fantasia
que aquilo que há de real nessa realidade se acha inscrito” (O Aturdito, Outros
escritos, p. 478). A questão, portanto, que orienta os últimos 10 anos do ensino de
Lacan é exatamente essa: como propor uma clínica que possa ser orientada pelo
que há de real nessa realidade? No Seminário 20, por exemplo, Lacan formula
essa ousadia da clínica psicanalítica desse modo: “O sério (...) só pode ser o serial.
Isto só se obtém depois de um tempo muito longo de extração, de extração para
fora da linguagem, de algo que lá está preso.”
Assim, por um lado, a interpretação deve visar extrair esse “algo”, a partir, da
produção do UM determinante, tal como lemos na escrita do discurso do
psicanalista. Por outro, e eis o paradoxo, não há como operar essa extração, a não
ser passando pelo sentido. Essa é a razão pela qual, no meu entender, Lacan
precisará recorrer de modo simultâneo e indissociável a dois recursos: A criação de
uma subversão no plano da lógica pela via do matema (sobretudo as fórmulas da
sexuação), que corresponde à interpretação como apofântico, e a valorização do ato
pela via do poema, que corresponde à interpretação como equívoco. Eu diria que a
apresentação desse programa está declarada no texto O Aturdito, e que Lacan, em
seus últimos Seminários, nos deixa de herança várias indicações a respeito desses
dois eixos – como eu disse, indissociáveis em nossa experiência – e em relação aos
quais estamos nos havendo com as conseqüências, sobretudo no dispositivo do
passe.
É a prática do analista, ele nos diz, que “deve dar conta de que haja cortes do
discurso tais que modifiquem a estrutura que ele acolhe originalmente” (O Aturdito,
p. 479). Qual a estrutura que ele acolhe? Trata-se justamente da estrutura que
possibilitou que um dizer passasse a ocupar o lugar de significante mestre para que
os ditos pudessem articular-se à verdade, ainda que fantasmática. É dessa forma
que o dizer se demonstra por escapar ao dito, e ex-siste em relação à verdade.
Vejamos o que diz Lacan a esse respeito, no Seminário 23: “O que Freud sustenta

  41  
como inconsciente supõe sempre um saber, e um saber falado. O inconsciente é
inteiramente redutível a um saber. É o mínimo que supõe o fato de ele poder ser
interpretado. É claro que esse saber exige no mínimo dois suportes, que
denominamos termos, simbolizando-os por letras. Daí minha escrita do saber como
tendo suporte no S com índice S2. A definição que dou do significante ao qual
confiro o suporte S índice 1 é representar um sujeito como tal e representá-lo
verdadeiramente. Verdadeiramente quer dizer, nesse caso, conforme a realidade. O
verdadeiro é dizer conforme a realidade. A realidade, nesse caso, é o que funciona
verdadeiramente. Mas o que funciona verdadeiramente não tem nada a ver com o
que designo como real. (...) Em outros termos, a instância do saber renovada por
Freud, quero dizer renovada sob a forma do inconsciente, não supõe
obrigatoriamente de modo algum o real de que me sirvo” (Lacan, “Joyce – O
Sinthoma”, p. 127/128)
Assim, é graças à interpretação que o analista pode, com seu dizer
apofântico, operar sobre os modos redutivos da demanda neurótica que envelopa o
conjunto dos ditos, e extrair daí, um dizer. Aqui, é preciso tomar a etimologia da
palavra apofântico: apo (embaixo) e phaos (luz). É curioso que Lacan, após afirmar
que o dizer da interpretação tem o estatuto apofântico, retoma o fato de que ela
incide sobre a causa do desejo. E completa: “causa que ela revela” – poderíamos
acrescentar: mostra. E mais à frente, ele afirma que “a estrutura é o real que vem à
luz na linguagem”. A questão fundamental aqui colocada é que à extração do “um
dizer” corresponde o ab-sens, o não senso, o sem sentido, e a não relação sexual.
Porque? Ora, afirma Lacan: “O essencial do que disse Freud, é que há a maior
relação entre esse uso das palavras em uma espécie que tem palavras à sua
disposição, e a sexualidade que reina nessa espécie. A sexualidade é inteiramente
tomada nessas palavras, esse é o passo essencial que ele deu. É muito mais
importante do que saber o que quer dizer.” (“Conferência de Bruxelas”). E em
“Momento de concluir”, ele acrescenta: “O sexo é um dizer. Isso vale quanto pesa.
O sexo não define uma relação. Foi o que enunciei com a fórmula: não há relação
sexual”. Assim, podemos afirmar: “que se diga” é equivalente a “não há relação
sexual”.

3) Um significante novo
Vejam, portanto, que não basta a redução ao UM determinante, e a extração
da causa, já que é preciso se perguntar, ainda, como viver depois? É preciso se
virar (savoir y faire). Eu gosto bastante dessa tradução do savoir y fair por “se virar”:
Aponta, por um lado, para uma decisão ativa, para um improviso, para a solidão do
ato no final da análise. Por outro, inclui o reviramento (do toro)11, a virada pelo
avesso necessária para desfazer o envelopamento do simbólico. E ainda, porta a
conotação sexual, na origem chula da gíria “se vira”, apontando para um
consentimento com um modo sexuado de gozo implicado na identificação ao

                                                                                                               
1111
Remeto ao texto de Conrado Ramos “Considerações topológicas da passagem do sintoma ao
sinthoma”. In Stylus n. 23.

  42  
sinthoma – ao contrário do gozo (a)sexuado da fantasia. Lacan é sensível ao fato
clínico de que esse “se virar” não seja algo automático, muito menos espontâneo.
Entre a extração do “que se diga” e o “se virar” há uma ato que instaura dois
tempos. Além disso, o sujeito sempre poderá promover, ainda, uma retenção ao UM
como chancela pseudo-paranóica (saída não tão rara, inclusive no movimento
psicanalítico) ou forjar um cinismo relativista sustentado no redobramento da
consistência de seu modo de gozo. Se coloco a questão assim de modo um pouco
dramático é porque é dessa forma que essa passagem se apresenta na clínica. A
questão aqui é sempre a mesma, formulada de várias formas: “E agora, o que é que
eu faço com isso?” Questão que aponta para o ato, e que convoca o analista e o
analisante a terem que se posicionar eticamente.
Essa é, assim me parece, a visada de Lacan quando nos provoca, nos
convocando a responder com nossa suficiência poética: a pó(ética) do ato. Aqui o
paradigma é a interpretação pelo equívoco, na qual se privilegiam a homofonia, as
brincadeiras e jogos com a língua. Mas, atenção, pois há aqui uma precisão
importante: são eles, os jogos de linguagem, que jogam conosco, exceto – como
observa Lacan – “quando os poetas os calculam e o psicanalista se serve deles
onde convém” (p.493). À homofonia, poderíamos acrescentar também a homonímia
e o próprio jogo inter-línguas diferentes, cujo paradigma é o texto de Joyce.
Nesse ponto, eu gostaria de fazer uma observação que me parece importante
e que diz respeito ao cálculo poético. Frequentemente ouvimos que o texto de Joyce
não tem sentido. Talvez pudéssemos corrigir essa afirmação, dizendo que, se nos
ativermos apenas à semântica, talvez ela fracasse na significação (Bedeutung). Mas
quanto ao sentido, o que encontramos é uma proliferação tão grande que ele perde
o valor (lembrem-se do valor de verdade da fantasia), apontando então para o ab-
sens. Cada frase de Joyce foi construída como uma escultura, de modo totalmente
artificial e calculado. Não se trata de uma escrita automática. Considero esse ponto
importante, porque me parece que Lacan faz disso uma espécie de paradigma
metodológico, apresentado no próprio título do Seminário L´insue.
Assim, me parece que Lacan está propondo em ato (pó)ético a mostração
(para além da demonstração) do que ele chamou no Seminário 23 de usar até
gastar. A questão inicial da relação entre a verdade e o sentido desloca-se para a
de como “se virar” de forma inédita com a não relação entre o real e o sentido que o
sinthoma escreve. Lacan apela à topologia da planificação dos nós – rodinhas de
barbante (ronds de ficelles) que em francês também quer dizer “truque” –
justamente para realizar a “mostração” da impossibilidade de aceder ao “peso do
real” sem os “sedimentos de linguagem”. Não nos esqueçamos que no “nó bo” o
sentido está no enodamento do imaginário e do simbólico, já que o real ex-siste ao
sentido. Usá-lo até gastar! Eis a escroqueria, a trapaça do psicanalista.
Na Conferência proferida em Bruxelas, em 26/02/1977, Lacan volta às
histéricas, realçando que foi o Discurso da Histérica e seu encontro com o
Psicanalista, que criou um laço social sem precedentes na história: o Discurso do
Psicanalista. “Elas, as histéricas, evidentemente não sabem o que dizem com seu
bla bla bla e seu chiqué, sua metidez”, sua verdade mentirosa – como dirá Lacan

  43  
em outro lugar. Eis o inconsciente Une-bévue, corpo de palavras, que nada tem a
ver com as representações. Nessa mesma conferência ele afirma que a psicanálise
não tem outra saída a não ser passar pelo sentido e, necessariamente, pelas
palavras. Lacan diz que aí chega Freud nos “Estudos sobre a histeria”: “é com
palavras que isso se resolve e é com palavras da própria paciente que o afeto se
evapora”.
Eis, no meu entender, o que faz com que em “Momento de concluir” ele diga
que a Psicanálise é a “prática da tagarelice”, e uma prática –ressalta – eficaz. E
indague: “Como é preciso que o analista opere para ser um retórico conveniente?”
Vimos que Lacan já havia advertido que o analista usa os jogos de linguagem,
assim como os poetas, quando lhe convém. Como sabemos, Lacan não é inocente.
Ele, que vinha há um bom tempo definindo a psicanálise como práxis – ou seja, a
modalidade de ato na qual, para Aristóteles o agente, a finalidade e a produção são
indissociáveis –, nos últimos Seminários cria um neoligismo (pouâte) que articula o
ato com o poeta, remetendo então a poiesis (Arte) – cuja característica, para
Aristóteles, é justamente a de uma produção (obra) que apresenta um caráter
externo em relação ao agente. Esse é um terreno fértil para ser explorado,
sobretudo no que diz respeito à relação entre o papel do saber, o tipo de formação e
experiências implicadas em cada uma dessas ações, bem como o lugar da intenção
e da deliberação em cada uma delas, e ainda como as modalidades (necessário,
possível e contingente) aí camparecem.
Parece-me, entretanto, que mais uma vez Lacan está aqui operando uma
subversão nessa separação aristotélica. É evidente, também, que a poiesis
Aristotélica não se restringe à poesia e que, por outro lado, Lacan está nesse
momento conversando com Jackobson, para quem “qualquer tentativa de reduzir a
esfera da função poética à poesia, ou de confinar a poesia à função poética seria
uma simplificação excessiva e enganadora”. (“Linguística e poética”. In Linguística e
comunicação) Na função poética, a ênfase é dada na mensagem em si e não no
que ela comunica12. Aqui Lacan pontua o efeito poético não pela via da criação de
sentido como havia feito em “A instância da letra”. Aqui, prioriza-se a ressonância, o
som: “o forçamento por onde um psicanalista pode fazer ressoar outra coisa que o
sentido” (L´insue, 18/04/1977). Eis a suficiência poética do psicanalista que está,
desde sempre, no cálculo tático e na conveniência da resposta à orientação real do
“nó bo”, que foraclui o sentido apontando para o ab-sens . Essa outra ressonância,
afirma Lacan, nada tem a ver com o belo: “Uma prática sem valor, eis o que trataria
para nós de instituir”.

                                                                                                               
12
Para um maior aprofundamento dessa questão, remeto-os ao texto de Silmia Sobreira apresentado
nas Conferências de AME do FCL-SP: “Um significante novo: porque não?”

  44  
O livro de cabeceira:
da escrita como sintoma ao sintoma como letra

Ana Laura Prates Pacheco

Inicio este trabalho com uma questão colocada por Lacan (1975/2007, p. 38)
no Seminário 23: “O problema todo reside nisso – como uma arte pode pretender,
de maneira divinatória, substancializar o sinthoma em sua consistência, mas
também em sua ex-sistência e em seu furo?”. É com essa inspiração que contarei
com o auxílio de um filme de Peter Greenway, chamado O livro de cabeceira, (1996)
para me ajudar a transmitir como o conceito de letra no último ensino de Lacan
permitirá a reformulação do lugar do sintoma na clínica psicanalítica.
Encontramos aqui uma inspiração do cineasta na escrita feminina do Japão
ancestral, especificamente na obra de Sei Shonagon – Livro de Cabeceira (Makura
– nosôshi) – escrita no ano 1000. Shonagon era uma dama da corte imperial
japonesa, que ajudou a criar um gênero literário, caracterizado por crônicas na
forma de diário íntimo. Escrevia vários poemas/listas, tais como: “Coisas que fazem
o coração bater mais forte” ou “Lista de coisas esplêndidas” e experiências eróticas.
No filme de Greenway não há nenhuma pretensão realista como a do
cineasta japonês Nagisa Oshima, por exemplo, em O império dos sentidos. Aqui, ao
contrário, tudo no filme é como a escrita de uma iluminura. Cada imagem, e mesmo
a música, são cuidadosamente desenhados e emaranhados aos caracteres da
língua japonesa e às outras línguas que aparecem na tela. Ele comenta: “quis fazer
um filme que unisse o prazer da literatura e o prazer da carne. Uma das coisas que
sempre me fascinaram é a noção de que as letras do alfabeto japonês são
caracteres e significados ao mesmo tempo. Elas são imagens e texto,
simultaneamente. Podem ser lidas como texto e vistas como imagens”.13
Ora, a relação entre o som e a letra e a imagem está no centro do interesse
de Lacan pela língua japonesa que, segundo ele, se alimentou da escrita. No texto
que apresentei em Roma14 – A letra de amor no corpo – tratei da relação da letra
com o verdadeiro e o real no último ensino de Lacan. Não será possível retomar
aqui essas elaborações, mas vou resumir brevemente um aspecto do debate a
respeito do estatuto do conceito de letra para Lacan, que será fundamental para
acompanharmos meu comentário sobre o filme O livro de cabeceira.
Trata-se de indagarmos se o advento do conceito de letra, em sua
especificidade, implicaria uma renúncia de Lacan à tese da primazia do significante.
Ora, no texto O carteiro da verdade (1975), Derrida acusa Lacan de pertencer à
tradição idealista da filosofia ocidental, que defende – desde Platão – o privilégio da
transmissão oral em detrimento da escrita. Se vocês se lembrarem, em várias
passagens do Seminário 18, Lacan responde às críticas de Derrida, bem como em
Lituraterra em A Terceira e no Seminário 24. Também em seu livro A Farmácia de
Platão, Derrida retoma a distinção entre a fala e a escrita, a partir do Fedro, de
Platão.
Tradicionalmente concebe-se esse diálogo como uma condenação da escrita,
feita por Sócrates contra os sofistas. Platão retoma, no Fedro, um debate entre os
oradores da época, a respeito da soberania da oralidade ou da escrita na
                                                                                                               
13
Entrevista concedida a Wladimir Weltman, 2006.
14
Durante no Encontro Internacional da EPFCL em 2010.

  45  
possibilidade de transmissão da verdade. Em Fedro (2002, p.119), Sócrates conta
para seu discípulo o mito do deus Theuth, que levou a escrita para o rei Thamous,
do Egito. Esse lhe pede que declare a utilidade de tal descoberta: “um
conhecimento (máthema) que terá por efeito tornar os egípcios mais instruídos e
mais aptos para rememorar: memória e instrução ganham seu remédio
(phármakon). Responde Thamous: “Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois
deixarão de cultivar a memória (...). Transmites uma aparência de saber, e não a
verdade”.
Com esse mito, Sócrates tenta convencer Fedro de que não se pode chegar
ao justo, ao bom e ao verdadeiro pela via da escrita, já que ela vaga sem pai,
indiscriminadamente. A memória, para Platão, é a compreensão viva da alma.
Assim “só há sabedoria na alma e nunca em escrituras” (Ibid). Daí a supremacia do
conhecimento oral (verdadeiro) em detrimento da escrita (aparência). Ao mesmo
tempo, o logos é tratado como um corpo vivo: “ter um corpo que seja o seu” (Ibid).
Derrida retoma esse mito platônico apresentado no Fedro, fazendo uma
crítica à tradição platônica ocidental que preconizaria, segundo seu argumento, a
irredutibilidade do significante e sua primazia em relação à escrita. Pode-se
perceber a presença constante de Lacan como referência oculta nesse livro. 15
Tomando como eixo uma análise minuciosa da escrita como Phármakon (a um só
tempo veneno e remédio), Derrida inverte, entretanto, seu sinal, apontando
positividades exatamente ali onde Platão encontrava seus inconvenientes e acusa
Lacan de promover um formalismo estruturalista. Lacan responde lindamente em
uma conferência proferida na Bélgica em 26 de fevereiro de 1977, dizendo que não
é a mesma coisa a forma e a estrutura, já que a noção de estrutura se fia na
esperança de alcançar o real.
Proponho, entretanto, como contraponto, outra leitura de Fedro – do meu
ponto de vista, mais coerente com Lacan –, que destaca a escrita como ikhnos, o
sinal, as pegadas, as pistas “de caminhos já trilhados, de diálogos vivos que
forjaram modos de ser”. (PINHEIRO, 2008) Essa, me parece, é a dimensão que
Lacan almeja dar à escrita: nem o simulacro do corpo imagem, nem o verdadeiro
incorpóreo, nem mesmo a experiência do corpo como substância gozante da
lalíngua, mas a dimensão de cifra dessa experiência de gozo. É do sintoma como
letra que se trata, na minha leitura, o filme O livro de cabeceira. Há, evidentemente,
várias leituras possíveis, especialmente para um filme complexo como esse, mas
tomarei a licença poética de tomá-lo como um caso clínico e dividi-lo em alguns
recortes:

Primeiro recorte

O sintoma que opera de modo selvagem: do contingente ao necessário.


Trata-se, inicialmente, da letra no corpo como marca do gozo, e suas
consequências fantasmáticas. Nagiko, a personagem do filme, é criada com uma
cena que se repete desde a mais tenra infância. No dia de seu aniversário, o pai
escreve os seguintes dizeres em seu corpo:
Quando Deus fez o primeiro modelo em barro de um ser humano, Ele pintou
os olhos, os lábios e o sexo. Depois, Ele pintou o nome de cada pessoa para que o

                                                                                                               
15
Se vocês se lembrarem, em várias passagens do Seminário 18, Lacan responde às críticas de
Derrida, bem como em Lituraterra em A Terceira e no Seminário 24.

  46  
dono jamais esquecesse. Como Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vida o
modelo de barro pintado, assinando seu próprio nome. (GREENWAY, op.cit.).
A mãe ouvia na vitrola o disco que escutava quando conheceu seu pai, e ao
mesmo tempo cantava em mandarim. A tia lia para ela, antes de dormir, o livro de
cabeceira de Shonagon. Aos 4 anos, Nagiko vê uma cena sexual entre o pai, um
escritor e seu editor chantagista, cena fantasmática que cristaliza sua posição a um
só tempo excluída e identificada à posição masoquista do pai diante do editor: mito
familiar do neurótico. Aos 6 anos, jura que terá, um dia, seu próprio Livro de
Cabeceira.
Vemos, então, que o gozo da lalíngua materna, a letra que cifra esse gozo, a
produção das primeiras identificações e a verificação fantasmática estão presentes.
Como afirma Lacan na aula de 21/01/1975 do Seminário RSI, o sintoma é a função
do sintoma, no sentido matemático. E o x da função “é o que, do Inconsciente, pode
ser traduzido por uma letra”. Mas, segundo Lacan, “qualquer um é suscetível de se
escrever como letra”. (Ibid). Da contingência da cifra de “qualquer um que para de
não se escrever” (Ibid), entretanto, opera-se, de modo selvagem, como ele ensina,
algo que passará para a modalidade lógica do necessário: o que não cessa de se
escrever. No caso de nossa personagem, é a própria escrita no corpo que ocupa o
lugar do x na função sintoma.

Segundo recorte

A fantasia: essa cadeia indefinida de significações que se chama destino.


O filme mostra, então, a escrita do destino, ou seja, a verdade mentirosa de
Nagiko na tentativa de salvar o pai da humilhação diante do editor. O primeiro
marido é escolhido pelo editor do pai, numa troca de favores aos moldes daquela
suposta por Dora entre seu pai e o Sr. K. Trata-se de um praticante de arco e flecha,
incapaz de reconhecer o valor da literatura e da escrita, que são vitais para Nagiko.
Na ausência do pai, ela tenta escrever a saudação ritualística dos aniversários no
espelho. Seu Livro de cabeceira é repleto de listas negativas. O marido,
inconformado, incendeia seus escritos. Os papéis são queimados, mas a
“substância gozante” resiste ao fogo.
O pai, humilhado e subjugado pelo editor, acaba por cometer um suicídio
ritual. Nagiko foge então para Hong Kong, e para manter a tradição do pai, obstina-
se em encontrar, nos seus amantes, o calígrafo ideal, fazendo de seu próprio corpo,
o papel. O que importa para ela é o ato da escrita, a caligrafia em si: “a palavra
significando chuva deveria cair como chuva. A palavra significando fumaça deveria
cair como fumaça”. (LIVRO DE CABECEIRA, op.cit) Nagiko repete o destino
paterno, fazendo-se de objeto de troca sexual, recebendo como “mais de gozar” a
escrita em seu corpo.
Aqui, evidencia-se a montagem fantasmática do tipo histérico, sustentando o
pai castrado pela via do sintoma. Sintoma que desafia o discurso do Mestre, na
medida em que extrai o gozo como mais valia da suposta exploração do Outro.
Sintoma metáfora – que em sua vertente significante seria passível de decifração,
na medida em que substitui o irredutível da fantasia fundamental –, mas que desliza
metonimicamente enquanto tenta correr atrás da cadeia infinita de significações que
chamamos de destino.

Terceiro recorte

  47  
Ser sintoma e devastação.
Ocorre, então, nova contingência, e Nagiko encontra o amor. Se, entretanto,
o encontro é contingente, o que produz uma retificação subjetiva é da ordem do ato.
Jerome se recusa a ocupar o lugar de Outro expropriador. Ele não se interessa pela
troca que ela lhe oferece. Embora ele conceda em escrever em seu corpo a
saudação ritualística paterna, propõe-lhe, em contraponto, uma inversão dialética:
que ela passe a escrever em seu corpo. Podemos supor aqui uma passagem da
ordem do ter um sintoma como f(x) a ser o sintoma de um homem.
Agora, a partir da convocação de Jerome, é ela quem passa a escrever em
seu corpo: “Trate-me como a página de um livro”. E ela lhe responde: “Agora, serei
o pincel, não só o papel”. (Ibid) A inversão, entretanto, não se dá sem certa
escroqueria, certa trapaça, como brinca Lacan em 1977. Nagiko trama um plano no
qual usará o amante para vingar-se do editor. Ele, literalmente, empresta o corpo
para portar a letra/carta que interpelará o Outro obsceno na fantasia. O plano
consiste em que Jerome se torne amante do editor, e seduza-a por meio da
escritura do Livro de Cabeceira de Nagiko em seu corpo. Não é o corpo de Jerome
que é o fetiche do editor, mas a letra ali desenhada: “O aroma do papel em branco é
como o aroma da pele de um novo amante”. (Ibid). Seriam 13 os livros/poemas
escritos no corpo do amante.
Quem é, entretanto, enganado no jogo do amor? Para a mulher, o homem
pode ser uma devastação. Tomada pelo ciúme, Nagiko rompe com Jerome e passa
ao ato, voltando a seus amantes. Ainda jogando com semblantes, Jerome decide
simular a cena de Romeu e Julieta que, entretanto, torna-se real. Jerome morre
envenenado com a tinta usada por sua amada para escrever em seu corpo. Eis a
face veneno do phármakon. Numa das cenas mais fortes do filme, o editor rouba o
cadáver de Jerome, e tira a sua pele para fazê-la, literalmente de papel. As vísceras
e outros pedaços de carne vão para a lixeira. Incrível transmissão em linguagem
cinematográfica, do que Lacan nos ensina em Radiofonia (1970/2003): nada melhor
para representar o corpo simbólico do que o cadáver.

Quarto recorte

A queda do Outro e a identificação do sintoma.


Mas, para além do verdadeiro incorpóreo, há substância gozante. E quanto
ao gozo cifrado no sintoma, é preciso com isso se virar, ou, como diz Lacan: “usar
isso até atingir seu real, até se fartar” (1975/2007, p. 16.). No filme, o uso lógico de
Nagiko é aquele necessário para fazer cair o Outro instituído na personagem do
editor. Pela escrita de 13 livros, nos corpos de sucessivos amantes, Nagiko
consuma seu destino de vingança no último livro: O livro dos mortos. Enterra, então,
o livro feito com a pele do amante e pode se separar de seu destino fantasmático.
O filme acaba em seu 28o aniversário, quando o Livro de cabeceira de
Shonagon completa mil anos. Nagiko diz: “agora posso escrever meu próprio Livro
de cabeceira”. (Op. Cit.) Na vitrola, toca a música em mandarim cantada por sua
mãe. Segurando nos braços seu filho, ela escreve em seu corpo os mesmos dizeres
do pai. Como afirma Lacan, não há relação sexual, a não ser entre gerações.
Há alguns comentadores desse filme que veem nesse final a confirmação da
ideia de Derrida de que a escrita é mais verdadeira porque pode prescindir do pai.
Eu prefiro, com Lacan, entendê-lo pela via da identificação ao sintoma: “sintoma
como aquilo que se conhece melhor” (1976, L’insu...). Ou, em outras palavras,

  48  
tornar o gozo possível por meio da emenda entre ser sinthoma e o real parasita de
gozo. (LIVRO 23, op.cit., p.71).
Para mim, o que O Livro de cabeceira ensina é que é possível separar-se do
sentido da fantasia. E quanto ao Pai, fiquemos com Lacan: “Por isso a psicanálise,
ao ser bem-sucedida, prova que podemos prescindir do Nome-do-Pai. Podemos,
sobretudo, prescindir com a condição de nos servirmos dele”. (Ibid., p.132).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DERRIDA, J. (1975). O carteiro da Verdade. In: O cartão-postal. De Sócrates a


Freud e além. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2007.
DERRIDA, J. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005.
GREENWAY, P. The Pillow Book. (O livro de cabeceira). Filme franco-britânico
baseado nas Notas de Cabeceira da escritora medieval japonesa Sei Shonagon, no
século X. 1996.
GREENWAY, P. Entrevista concedida a Wladimir Weltman. In:
http://blogdogutemberg.blogspot.com/2006/06/livro-de-cabeceira-de-greenaway.html
LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003.
LACAN, J. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1974-1975). Inédito.
LACAN, J. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2007.
LACAN, J. O Seminário, livro 24: L’insu que sait de l’une bévue s’aile à mourre
(1976-1977). Inédito.
LACAN, J. (1977). Intervention de Jacques Lacan à Bruxelles en 26/02, publiée
dans Quarto (Supplément belge à La lettre mensuelle de l’École de la cause
freudienne), 1981, no 2. In: http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan70.php
PINHEIRO, M. Fedro e a escrita. In: Anais de filosofia clássica, vol. 2 n. 4, 2008.
PLATÃO. Fedro. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002.

  49  
A PRESSÃO: UMA LEITURA DA TRANSFERÊNCIA16
Sandra Leticia Berta

E o que não sabes ë só o que sabes


e o que possuis é o que não possuis
e aonde estás é aonde não estás.
T.S.Elliot.

Há causa de sobra para a transferência.


Lacan 17

Em 1890 no “Tratamento psíquico (tratamento da alma)” Freud propõe o


mesmo como um tratamento a partir da alma com recursos que influenciam o
psiquismo do homem. Um recurso será a palavra, ela é o instrumento essencial do
tratamento psíquico. Aqui, a palavra é o “ensalmo” (procedimento de cura através
de orações). “As palavras são um bom meio de provocar modificações psíquicas
naquele a quem são dirigidas e pôr isso já não soa enigmático afirmar que o
ensalmo das palavras pode eliminar os sintomas patológicos, sobretudo aqueles
que tem sua origem nos estados psíquicos”. (1)
É a época da hipnose. A relação médico-paciente se dava em termos de
hipnotizador-hipnotizado e a cura era pôr sugestão. Os dizeres do hipnotizador
podiam exercer efeitos “ensalmadores” sobre o hipnotizado, porém isto oferecia,
dentre outros, um limite preciso: os resultados do tratamento hipnótico dependiam
mais que dos ensalmos do médico, do livre arbítrio do paciente, que determinava
seu grau de obediência á sugestão.
Sabemos que Freud não precisou de muito tempo para questionar os efeitos
da terapia hipnótica, a qual encobria e disfarçava algo existente na vida psíquica.
Tal terapia não atuava sobre as condições e portanto não podia evitar que
surgissem novos sintomas no lugar dos suprimidos.
A pressão do hipnotizador se deparava com o desconhecimento da etiologia
dos sintomas e com o livre arbítrio do paciente.
Cinco anos depois, em 1895, na “Psicoterapia da Histeria”, Freud questiona
em relação á etiologia das neuroses o conceito de defesa, a qual era operada pelo
Eu, que expulsava da consciência a representação intolerável. Esta representação
patogênica deixava atrás de si um rasto psíquico, rasto que servirá no trabalho
analítico como corpo do delito “(o analista) Ao se esforçar em dirigir a atenção do
paciente para esta representação, percebia, a titulo de resistência, a mesma
energia que fora demonstrada como repulsão antes da formação do sintoma”. (2)
                                                                                                               
16
Texto apresentado nas primeiras Jornadas de Cartéis da EOL, Escuela de Orientación Lacaniana,
nas vésperas da fundação do Campo Freudiano fundado por J-A Miller, Novembro de 1992, Buenos
Aires –Argentina.
17
* N.T. A edição portuguesa feita pôr Ari Roitman traduziu: “Há bons motivos para causar a
transferência” na página 50. Preferi respeitar o modo como está traduzida na língua espanhola, pôr
ser uma tradução mais aberta quanto ao conceito lacaniano de “causa”.

  50  
O complexo patogênico e sua tríplice estratificação oferecia em seu terceiro
nível de ordenação um caracter lógico, não só contava a cronologia dos
acontecimentos, mas também as ligações lógicas que se poderiam realizar com as
distintas estratificações; esta ligação lógica estaria a cargo do analista que deixaria
ao paciente o trabalho periférico. Do lado do analista ficava a direção radial, do lado
do paciente o trabalho periférico, as associações; a Regra Fundamental convidava
ao paciente a falar. Podemos pensar este terceiro nível em relação a
sobredeterminação, a qual está na linha associativa, ou seja, deixar que o paciente
fale, que recorde. O sinto-ma está sobredeteminado pôr várias “falsas ligações” e
uma de estas, muito singular, pode ser a pessoa do analista. O paciente transfere
representações desprazeirosas surgidas durante uma análise e tal transferência,
freqüente e regular, se dá pôr intermédio de uma “falsa conexão”.
A sobredeterminação não é a causa. A causa opera a partir do núcleo
patogênico, como corpo estranho á cadeia, corpo não extirpável -este não é um
trabalho de cirurgia, dirá Frued. Com o núcleo não há “falsa ligação”, o que há é
resistência. A resistência surge do núcleo patogênico, este núcleo seria a causa da
resistência. O sintoma está sobredeterminado pôr várias “falsas ligações”; a causa
advém do núcleo patogênico que é o que fica fora, o que determina o limite da
Regra Fundamental, deixando como resto aquilo que não é possível de ser dito.
Nesta primeira fase da direção da cura freudiana, a transferência ao analista
é enquanto este pode ser “vítima” de uma “falsa ligação”, o analista como outra
representação inscrita na cadeia associativa. Nesta linha o paciente pode continuar
associando.
Porém, Freud diz algo mais: “Já admiti a possibilidade de a técnica de
pressão falhar, de não extrair nenhuma reminiscência apesar de toda garantia e
insistência... mas existe ainda uma terceira possibilidade que é também um
obstáculo não intrínseco mas exterior. Isso acontece quando a relação entre o
paciente e o médico é perturbada, constituindo o pior obstáculo que podemos
encontrar”. (3)
O analista apresentado como obstáculo, não intrínseco, mas exterior. Se no
complexo patogênico, o núcleo patogênico é o que causa a resistência -o traumático
impossível de entrar no trato associativo; o analista como obstáculo externo e o
núcleo patogênico como o irredutível. De que forma poderão ser relacionados?.
É interessante pensar que espécie de “pressão” fica do lado do analista.
Parece que não se trata aqui somente de exercer a ação de pressionar a fronte do
paciente.
Nas duas primeiras décadas deste século, Freud formulou alguns conceitos que
deram uma virada em sua formulação da etiologia das neuroses. A fantasia abre um
novo campo de verdade, a mesma se encontrará na realidade psíquica do paciente.
O acontecimento traumático acidental perde seu valor determinante como fato
realmente acontecido e via das lembranças encobridoras, as quais conservam tudo
o que na vida infantil teve importância, a realidade psíquica se redimensiona no
horizonte da escuta analítica. O traumático estará causado pela sexualidade, o

  51  
conceito não se perde, porém, se delineia sob a pluma da sexualidade infantil. A
sexualidade como corpo erógeno, como pulsão.
A partir daí é que vemos aparecer novos desenvolvimentos em relação á
cura. A recordação encontrará um limite: a ação. O paciente não recorda o
esquecido ou recalcado senão que o atua, o repete sem saber que o repete. Esta
compulsão a repetir (termo que será retomado em 1920) se dará desde o início e,
através do transcurso do tratamento, o paciente não poderá liberarse desta
repetição -somente o fará ao final da cura.
A doença é “potência atual”, e para que a neuroses propriamente dita se
transforme numa neuroses artificial, algo tem que se prestar como objeto: o analista
como objeto no centro desta “neuroses de transferência”. A cura aponta á
suspensão das resistências.
Se no primeiro momento da direção da cura, a transferência é repetição, no
sentido da repetição significante, repetição via “falsas ligações”, no segundo tempo
da cura , a transferência convoca o analista àquele lugar que é definido pôr Freud:
nada pode ser vencido em ausência ou em efígie.
Esta concepção do lugar do analista é retomada por J. Lacan no Seminário
XI. A resistência de significação dá conta daquilo que é impossível dizer. Se a
transferência serve como meio pelo qual se interrompe a comunicação do
inconsciente, é porque este, definido em sua função como pulsação temporal,
encontra seu ponto de basta: o Real. A repetição excede o Agierem e a
transferência como “fechamento do inconsciente” marca o encontro, sempre falido,
com o impossível de dizer. Encontro com o Real, “Tyche”. No capítulo “Presença do
analista” o Real se relaciona com o lugar a que o analista é convocado ao ser
tomado como objeto de amor: com sua presença encarnará o que Lacan vai chamar
de “objeto a “.
Anteriormente me perguntei de que pressão se trataria, que pressão o
analista teria que exercer. Freud nos diz que o analista não deve tentar acalmar com
substitutos exigências amorosas que o paciente demanda que sejam satisfeitas. A
abstinência implica não reprimir nem satisfazer essa demanda, mas suportar, deixar
atravessar essa transferência amorosa inevitável.
Pode-se situar esta pressão em relação á causa e ao suporte. Já não se trata
de que o analisado sofra a pressão sobre a fronte, mas que o analista possa
“pressionar” no sentido de causar. O analista situado como causa do dizer do
analisado, situado nesse lugar em que o analisado supõe que o analista sabe
acerca de seu padecimento. Porém, Lacan nos fala de um encontro paradoxal: a
descoberta do analista, ali onde o amor serve de véu à presença angustiante, o
analista como objeto da satisfação pulsional, o analista na transferência como
“fechamento do inconsciente. Algo resta a bordear, o objeto a, de que o analista
encarnando-o, porém esvaziado de gozo, é suporte.
A partir de Lacan, proponho ler esta “pressão”, a respeito daquilo que funda
no discurso analítico -sua ética: o Desejo do Analista. O analista além de oferecer
sua presença como implicação de escuta, além de decifrar o desejo como desejo do
Outro, deve, mantendo seu desejo em x, ser suporte deste objeto, promovendo

  52  
assim a resposta do analisado a este enigma, “o que se põe em ato” (puesta en
acto) que convoca a presentificação da pulsão. “Se a transferência é aquilo que da
pulsão separa a demanda, o desejo do analista é aquilo que a leva de volta à
pulsão”.(4).
Em 1920 vermos surgir uma nova conceitualização na obra freudiana que
aponta desvelar aquilo que mais se opõe a cura.
A compulsão a repetição situa o que está mais além. O prazer e a satisfação
não coincidem, posto que mais além a pulsão é causa dos pontos de fixação. Ali
onde na cura deles nos aproximamos, há maior sofrimento e recrudescimento dos
sintomas.
O tratamento analítico como neo-criação encontra limites, os quais são
definidos em torno da segunda tópica. As tendências masoquistas se articulam com
o masoquismo moral, que se manifestará na cura como puro sofrimento. A
necessidade de castigo é a marca mais forte do ganho da enfermidade, o sofrimento
neurótico aparece como o mais apreciado na tendência masoquista. O Supereu
exige renúncia pulsional, a mesma entranha um modo de satisfação que põe no
horizonte a pulsão de destruição, a qual tem o valor psíquico de um componente
erótico.
Este desenvolvimento teórico tem seu par na clínica. A Reação Terapêutica
Negativa e a Necessidade de Castigo indicam um novo lugar para o analista: o
analista como “estranho” proferidor de palavras cruéis. ”No horizonte da psicanálise
há uma ética que não é a do Supereu; uma ética que não consiste em transformar o
gozo primário para que tome a face cruel e feroz do supereu”. (5)
Novo limite a pressão, de maneira tal que funcione como causa e não como
coação.
Tradução para português: Sérgio Augusto Passos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
(1) Tratamiemto psíquico (tratamiento del alma) 1890.
Ob. Com. S. Freud. Ed. Amorrortu T.1. Bs. As.
(2) Estudios sobre Histeria. Psicoterapia de la Histeria. 1895.
Ob. Com. S. Freud. Ed. Ballesteros. Bs. As.
(3) Estudios sobre Histeria. (idem)
(4) Los Cuatro Conceptos Fundamentales del Psicoanálisis.
J. Lacan. Sem. XI Ed. Paidós. Bs. As.
(5) Lógicas de la Vida Amorosa.
J.A. Miller Ed. Manantial. Bs. As.

  53  
A INTERPRETAÇÃO COMO EQUÍVOCO: A SUBVERSÃO DO SENTIDO
Sandra Berta
Qu’est-ce que la clinique psychanalytique ?
Ce n’est pas compliqué. Elle a une base –
C’est ce qu’on dit dans une psychanalyse.
Lacan 5 de janeiro de 1977

Como operam as palavras?


Em Exercices de style18, Raymond Queneau põe a prova 99 modos diferentes de
dizer uma pequena historia, comum, singela e banal, brincando com a noção de
simulacro. Múltipla repetição. Variações de um tema “cujo original é abolido”.
Segundo Marcia Arbex (2009)19 a gêneses de Exercícios está na música. Certa vez,
tendo ouvido a Arte da fuga, de Bach, em companhia de Michel Leiris, os amigos
pensaram em construir no gênero literário algo similar, isto é: construir uma obra no
gênero de variações proliferando quase até o infinito em torno de um tema bastante
reduzido. O projeto iniciou-se em 1942 em uma série de 12 “exercícios” com o título
Le dodécaèdre (Dodecaedro). Os demais textos foram escritos aos poucos e
somente em 1947 chegaram ao número 99. Queneau parou porque a preguiça e o
receio de cansar o leitor o fizeram parar: “nem muito nem pouco: o ideal grego”, diz
ele.
Em 1960 Queneau fundava, junto com Françõis Le Lionnais, matemático e
historiador, o Oulipo, Ouvroir de Littérature Potentielle, com a participação de
escritores, matemáticos e artistas. A proposta do grupo era a de inventar novas
formas poéticas ou romanescas, a partir de experiências da matemática e da
literatura. O Oulipo foi definido como um ateliê em que se fabrica literatura
potencialmente produzível até o fim dos tempos.
Vejamos o exercício Notações:

No ônibus S, em hora de aperto. Um cara de uns 26 anos, chapéu mole


com cordão em vez de fita, pescoço comprido demais, como se tivesse
sido estiado. Sobe e desce gente. O cara discute com o vizinho. Acha
que é espremido quando passam. Tom choramingas, jeito de pirraça. Mal
vê um lugar vago, corre pra se aboletar. Duas horas depois, vejo o
mesmo cara pelo Paço de Roma, defronte à estação São Lázaro. Lá vai
com outro que diz: "Você devia pôr mais um botão no sobretudo". Mostra
onde (no decote) e como (para fechar)

Conjugação verbal, estilos literários, aféreses, apócopes, síncopas, etc, servem a


Queneau e seu grupo para exprimir esse original que vai se perdendo, deixando os
rastos desse primeiro evento, encontro, contingência, poderíamos dizer. Um
excelente exercício de repetição, de ampliação, de redução de uma cena que logo
                                                                                                               
18
QUENEAU R. (1947). Ejercícios de estilo. Versão em PD
19
ARBEX, M. Exercícios de estilo com sotaque tupiniquim: Luiz Resende tradutor de Raymond
Queneau. In: O eixo e a roda, v18. 2009, pp.129-145

  54  
nos lembra as voltas e reviravoltas dos ditos nos quais os analisantes se enredam e
desenredam até que, com o uso do significante, evocar que isso se diz, que Isso
fala. Se gasta dizendo e por isso se equivoca. O equívoco é exatamente equivalente
a esse gasto. Não importa qual! “Há une-bévue quando se equivoca de
significante20”
Equivocar-se de significante, nada mais é do que fazer signo do que o significante
produz: equívoco. É por isso que retornando a Saussure, Lacan lembra o debate
que Benveniste acrescenta ao signo saussuriano: entre significado e significante o
laço não somente é arbitrário, também ele é necessário. Esse laço é testemunha da
insistência do significante que o encadeia de modo necessário: não para de se
escrever.
Colocação a prova do saber que não se sabe, L´une bévue, o um-equívoco, como
nos diz Lacan em 1977. Os Exercícios de estilo são a escrita do necessário, do que
não cessa de se escrever. Até que isso, às vezes cessa. Bom, uma boa opção seria
pensar que isso cessa para não cansar o leitor, como Queneau aponta, outra opção
é a que nos oferece Lacan em 1976 retomando o corte da banda de Moebius, o que
ele chama de dupla banda, a ser considerada a partir do corte que ele mesmo
realiza no toro.
Produzir a dupla banda é a demostração da relação entre o necessário e o
contingente, ou de considerar que o necessário é o efeito do contingente. É desse
“efeito de saber” que se trata, efeito de saber que faz borda o um real a ser
nomeado como “saber sem sujeito”. Cito Lacan quando se refere ao um-equívoco
nesse corte na dupla banda21
[...] o um-equívoco é alguma coisa que substitui o que se funda como
saber que se sabe, o princípio do saber que se sabe sem sabê-lo, o “lo” é
um pronome que, no caso, incide sobre o próprio saber, não enquanto
saber mas enquanto ato de saber. É bem nisso que o inconsciente se
presta ao que acreditei dever suspender sob o título de “um-equívoco”.

Esse efeito de saber não é sem considerarmos que o saber é efeito de significantes.
Acontece que o homem é débil para tratar desses efeitos. Ao dizer débil nos
referimos ao fato de tratar ditos efeitos como sentido fixado. Interessa-me destacar
o que Lacan aponta como efeito de sentido. O mesmo, leva àqueles que praticam a
psicanálise a se perguntarem pela passagem da tagarelice à escroqueria. Não há
como se safar desse abuso, se seguirmos somente por essa via. Segundo Lacan,
em 1977, trata-se de saber que entre real e simbólico não há relação. O que
engancha é o imaginário e por essa razão quando dizemos “o sentido” não estamos
ao nível da linguística, mas da linguisteria: a de Lacan. Será por isso que ele nos
indica: o inconsciente é um sedimento de linguajem? Efeitos de cristalização:
detritos? Portanto se o real está num extremo de nossa prática, se o real é esse
                                                                                                               
20
Lacan, J. Ouverture da la Section Clinique. 5 de Janeiro de 1977. Inédito.
21
Lacan, J. (1976 – 1977) L ´insu que sait de l´une bévue s´aile à morre. Inédito. Tradução livre de
Jairo Gerbase, publicada em www. campopsicanalitico.com.br. Outra fonte de consulta: Document
interne à l´Association freudienne internationale.

  55  
ponto de fuga, nossa fraude é que na interpretação operamos pelo sentido “O
sentido é isso com o que operamos em nossa prática: a interpretação”22 . Esta
afirmação de Lacan nos incomoda quando pensamos na interpretação como
equívoco. Incomoda porque entendemos que o equívoco é o produto do corte da
banda, da sua subversão. Vejamos se isso se sustenta.
A interpretação como a operação analítica se fundamenta na ética da psicanálise: a
da Coisa freudiana. Essa ética é parceira do conceito de inconsciente. Buscar o
sentido da Coisa é uma escroqueria. Há de se saber-fazer-aí (savoir y faire). Por
essa razão Lacan afirmar que o inconsciente é lacaniano, apontando que Freud se
tropeçou com a interpretação. A interpretação como equívoco visa não o não-
sabido, mas o insabido (insu): o trou.
Esse inconsciente é feito de palavras que não representam nada, mas que afetam.
Ele cria a tagarelice do falaser, que fala sem saber o que Isso diz. Isso faz buraco.
O buraco da Coisa. E por esse buraco se corre atrás do sentido, na sua fuga, porém
presos na cristalização da significação. Vigaristas do sentido: os seres falantes. Isso
faz buraco porque o inconsciente, ele é o corpo estranho, o núcleo patogênico. Não
temos um osso. O corpo estranho é o buraco que se verifica na reta infinita. O corpo
estranho não é um núcleo, ele é a reta infinita. Por isso o no bó. Somente
nachträglich se constata o insabido. A isso Lacan o chama: real.
A interpretação é o sentido. É por isso que o equívoco é um limite dessa definição
da interpretação. O equívoco é uma subversão do sentido, ele se apoia na
neutralidade do analista. Lacan vai desde o corte da banda até o corte do toro: mas
seu intuito é de fazer do saber algo que não copula com a verdade. A interpretação
como equívoco vai contra a escroqueria. Portanto, interrogar o equívoco é nossa
ética, na qual não tratamos de ir até o osso do real, mas de ser “aspirados” pelo
real. De estarmos numa “aspiração” pelo real. Assim é como podemos nos
persuadir do efeito de linguagem. É por essa razão que Lacan põe o acento no
“efeito” ao falar do sentido. Efeito de sentido: o que evacua-se do sentido fixado. Por
ai se engancha a importância do equívoco. “O que disse, Freud, affreud, é que aí
não há su-je. Dito de outro modo, no jeu do je se substitui o que intento enunciar
hoje: o baffouille-à-je”23. Entre o balbuceio e a letra se ilumina o equívoco. Assim um
analista se orienta na “aspiração” pelo real.
Isso é o inconsciente, somos guiados por palavras. Aliás, adoecemos e nos
curamos pelas palavras. E é por isso que em 1958 Lacan observa que a
significação, a Bedeutung, do falo faz aparecer no corpo dos significantes o
significável. É pela prova (épreuve) do desejo que a significação se produz.
Significação fantasmática, escrita entre o imaginário e o simbólico, onde o gozo-
sentido (jouis-sens) possibilita a interpretação produzindo o efeito de sentido.

                                                                                                               
22
Lacan J. Intervenção em Bruxelas. 26 de fevereiro de 1977. Inédito. Intervention de Jacques Lacan
à Bruxelles, publiée dans Quarto (Supplément belge à La lettre mensuelle de l’École de la cause
freudienne), 1981, n° 2.
23
Su-je: “sujeto” / “sabido-eu”. Jeu: “jogo”/ bafouillé-à-je: jogo entre o je, o bafouillage: balbuciar e
bafouille: carta. Encerramento das jornadas da École freudienne de paris. 25.09.1977. Inédito.

  56  
Tinha apresentado em nosso Encontro Nacional parte desse trabalho, quando me
deparei, ontem mesmo, com o texto de Bernard Nominé, O Luto do Sentido?24. A
leitura desse texto me escalreceu algo do que eu tinha escrito. Porque ele destaca o
valor de fixação do fantasma e adverte que a operação analítica “mostra sua
eficácia quando ela questiona essa significação fixada”25. Lembremos que o falo,
como função velada, aponta a Verdragnung, sendo, ele mesmo “o significante dessa
própria Aufhebung [suspensão] que ele inaugura (inicia) por seu
desaparecimento”26. O sujeito carrega em si as marcas dessa obliteração. Por ela
escreve seu fantasma e produz seu sintoma. O psicanalista com elas opera. Razão
pela qual, parece-me crucial a questão levantada por Nominé quando diferencia o
gozo cifrado no sintoma da satisfação obtida pelo deciframento; e quando adverte
que o sentido sempre fuga, mas que a significação fálica – cifrada no sintoma – é
um modo de detenção, de cristalização dessa fuga de sentido.
Talvez seja por essas diferenças que Lacan continua a insistir que a operação
analítica equivoca o sentido fixado evidenciando; que Isso fala, quer que alguém
ouça ou não. Porque Isso faz nó. Lacan27 se pergunta e responde:
“O inconsciente? Prefiro dar a isso outro corpo porque é pensável que se
pensem as coisas sem pensá-las. Ali bastam as palavras. As palavras
fazem corpo, isso não quer dizer para nada que se compreenda qualquer
coisa. A pesar de tudo temos um esboço disso quando as pessoas falam
- seja lá o que for – é totalmente claro que não dão às palavras seu peso
e seu sentido. Entre o uso do significante e o peso da significação, o
modo em que opera um significante, há um mundo. Aí está nossa prática:
aproximar-se a como operam as palavras.
O passo dado por Freud é que nessa falta de relação, a significação engendra
relação. É o modo de Freud de falar da sexualidade. É o modo em que as histéricas
ensinaram a Freud essa relação vigarista que gambela a não relação. O passo de
Lacan, entendo, é diferenciar o “uso do significante” e o “peso da significação”.
A clínica nos o demonstra. Uma analisante equivoca “la perdida” (em espanhol) com
“la pérdida” tentando dizer em português “a perda”. Nada demais. Nesse equivoco
se murcha a posição fantasmática que diz respeito a uma versão do que entendia
ser seu desejo, sua épreuve. Um equívoco translinsguístico que desmonta, no início
do fim, isto é: do início ao fim, a versão da sua neurose. O analista esteve ali para
marcar a ressonância daquilo que poderia ser a versão 99 do Excercício de estilo.
Ali se atestou da contingencia, e se atestou também da sequencia ao necessário.

                                                                                                               
24
Nominé, B. Luto do Sentido? In: Wunsch 11. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos
Fóruns do Campo Lacaniano. Outubro de 2011, p. 66-68.
25
Ibid, p. 66.
26
Lacan J. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.
699.
27
Lacan J. Intervenção em Bruxelas. 26 de fevereiro de 1977. Inédito. Intervention de Jacques Lacan
à Bruxelles, publiée dans Quarto (Supplément belge à La lettre mensuelle de l’École de la cause
freudienne), 1981, n° 2.

  57  
Entretanto, é pelo equívoco que o efeito de sentido se produz. Esse equívoco,
considerado como contingencia mostra como o necessário, pela contingencia,
passa ao possível, isto é: para de se escrever como elucubração e faz desses
detritos, desses cristais, os uns que não fazem mais laço. São cristais que apontam
ao “uso do significante”, não à troca (oriunda da fixação da significação articula na
demanda). Um efeito de saber, um efeito de sentido. Lembremos para concluir que
é assim como Lacan nomeia o objeto a na sua época borromeana: efeito de sentido.
Efeito de sentido que faz borda ao trou-matismo. Esse efeito de sentido é uma
causa nachträglich. Eis o que proponho pensar.
Porque os seres falantes somos troumatizados: sendo seres com ex-sistencia de
linguagem vamos em direção a esse encontro: as palavras equivocam, assim
operam. O inconsciente é testemunha pelos “pontos de fuga” de que somos feitos
de palavras que não dizem nada a não ser que se o façamos dizer, que isso faz
corpo, que isso afeta.
Como operam as palavras? Gozando. Acontece que os seres falantes, pelo
desamparo da nossa própria palavra, precisamos das versões desse gozo. O
problema é que comumente acreditamos em uma versão. A chance se dá quando
conseguimos vislumbrar que, brincando com 99 versões, podemos retirar o “peso”
do necessário de A Uma versão. Se assim for: a subversão do sentido será a prova,
apontando para sua fuga (trou) e para seu efeito (borda)28. Ai opera a psicanálise.
Mas para isso se precisa de tempo, de exercício e de estilo.

São Paulo, 29 de novembro de 2011.

                                                                                                               
28
Agradeço a Conrado Ramos por diferenciar a borda e o furo no texto “Do objeto como borda ao
sintoma como furo”, 2011.

  58  
O OBJETO a, SEPARADOR DOS GOZOS.
Sandra Leticia Berta

Junto com as considerações exaustivas do três registros RSI, no Seminário


de J. Lacan, assim intitulado, encontrei uma frase que gostaria de destacar para
abordar a questão que me propus. A frase diz “[...] no que muito precisamente opera
a psicanálise, é entrar na fineza desses campos de ex-sistência”29. Uma vez que o
tema que nos convoca é O inconsciente e o corpo, o que me propus expor foi um
recorte da clínica para pensar essa fineza dos campos de ex-sistencia, campos de
gozo, e em particular, a ex-sistencia que promove o objeto a, separador dos gozos
e sua relação com o inconsciente real.
No ensino de Lacan o nó borromeano é a última forma de apresentar a
estrutura. Real, Simbólico e Imaginário é a estrutura do parlêtre. RSI, o nó bo, é a
escrita da estrutura que ele nos convida a ler e que serve para transmitir
considerações cruciais da clínica psicanalítica. A trilogia RSI corresponde a uma
outra, a saber: consistência (imaginário), ex-sistência (real) e furo (simbólico).
Embora assim definidas no início do Seminário XXII, podemos ver que, avançado,
troca o “barbante” pelas “cordas”, constatando que cada círculo de cordas define
uma consistência e circunscreve um furo, e uma ex-sistência. Dito de outro modo, a
cada consistência imaginária do nó (o qual significa dizer que a mesma afeta RSI),
lhe corresponde um furo e um campo intermediário que abre para a ex-sistência. Os
gozos que o objeto a condiciona são o litoral da ex-sistência, sem com ele se
confundir. Veremos isso a seguir.
O nó bo é escrita de RSI, portanto, isso que, da linguagem, deixa traço. Dito
de outro modo: um traço onde se lê o efeito da linguagem. Todavia, esse nó RSI
suporta o Real que para o parlêtre deixa traços de letra. Sabemos que as
formulações do inconsciente real são solidárias com as formulações do objeto a,
também no seu estatuto real. Entendo que, por tanto “gastar” o significante, uma
análise pode dar lugar a esse ravinamento do Real, mas para isso se deve contar
com os efeitos que, no significante, produz o corte, efeitos que se enodam ao mais-
de-gozar.
Em 1975 o objeto a, causa de desejo e mais de gozar, é o núcleo ao qual
deve dirigir-se uma psicanálise, esta dependendo somente da ex-sistência do nó bo.
A questão que Lacan se coloca é a seguinte: por que razão o gozo, seja qual for,
supõe um objeto, do qual o mais de gozar é sua condição? Assim agencia
novamente a trilogia dos gozos que comprometem a estrutura: JA30 (gozo do Outro
– “entre” Real – I), JФ (gozo fálico – “entre” Simbólico e Real) e o sentido (“entre”
Imaginário e Simbólico), restando, no centro, o furo que cerne, circunscreve, ajusta,
os gozos, isto é: o objeto a. Esse objeto “conjuga, na ocasião, três superfícies que
                                                                                                               
29
LACAN, J. (1974-1975). Seminário RSI, Inédito, aula de 14 de janeiro.
30
Observação: falta a barra em “A”. O que nos chegas da escrita de Lacan no texto A terceira é um
“A” sem barrar, mas sabemos que o Gozo do Outro que faz litoral com o objeto a, é o gozo barrado,
isto é, o fato de não termos complementareidade entre os sexos, portanto escrevo: “J ”.

  59  
igualmente se cruzam”.31 Tomo de A Terceira (figura 7) 32 a escrita mínima do nó bo,
na qual se lê a função do objeto a, separador de cada um desses gozos.
Entretanto, um ano antes do Seminário RSI, Lacan advertia aos não incautos:
do que se precisa ser enganado? Do inconsciente. Avancemos: ser enganados do
nó bo e da sua planificação. A planificação, não sendo projeção, respeita os
cruzamentos. Mas a projeção nos leva ao engano, fazendo-nos tomar as rodas de
barbante como se fossem diagramas de Venn. Assim temos tanto em A Terceira
quanto em RSI um contraponto entre planificação e projeção, na qual somos
enganados do necessário (não cessa de se escrever), isto é, de “nosso real”, do real
da estrutura, entanto que constitui o nó borromeano.33
Lacan afirma que é pelo objeto a que se separa o gozo fálico (JФ) do gozo
imaginário do corpo; o Gozo do Outro (JA) do simbólico; e, o sentido (jouissens,
gozo do sentido, equivocando com jouissance, gozo) do Real. De fato são
enunciados complexos os que se encontram nesses anos sobre o objeto, ao mesmo
tempo, causa de desejo e mais de gozar. Uma pista é quando ele nos diz que todo
gozo está conectado com esse mais-de-gozar, porém a condição radical de ex-
sistencia do objeto a, na escrita de RSI se define como resto impossível de
simbolizar. O que significa esse estatuto separador do objeto a na estrutura RSI?
Para responder, partirei de um recorte clínico. Uma mulher sabe da sua fobia,
mesmo antes de iniciar a análise. Ela nomeia o que diz ser seu medo desse modo:
“ser pega de surpresa”. Isso complica sua vida demais, porque assim como não
pode ficar sozinha, tampouco pode exercer sua profissão, a qual muitas vezes lhe
obriga a falar para outros. Essa mulher passa o primeiro tempo da sua análise a
separar-se minimamente das dependências absurdas que estabeleceu com o
marido, dependências que ela mesma gerou, e nas quais se reconhece perturbada
pelo temor a perdê-lo. Isso lhe paralisa. Todavia, uma vez que trabalha
diagnosticando imagens, ela teme, a cada laudo, dar um diagnóstico errado. Vive se
escondendo atrás dos exames, até que um dia, cansada, desanimada por uma
crítica que lhe chega de um colega, ela comprova que, apesar dos esforços, não

                                                                                                               
31
Idem, 10 de dezembro de 1974.
32
LACAN, J. (1974). La tercera. In: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1993, pp. 73
– 113. Figura 7, p. 104.

33
DREYFUSS, J-P. Le non-dupes errent. In : DREYFUSS. J-P , JADIN J-M. E RITTER M. Escritures
de l’inconscient. De la lettre à la topologie. Ed. Arcanes, Apertura, 2001. p.p. 213-265.

  60  
consegue ficar no anonimato e acrescenta “Estou aí, mas sou invisível”. A
intervenção da analista: “in-visível” e o corte da sessão imediatamente a seguir, lhe
pega no seu lapso. Então, a analisante, paga sua sessão acrescentando algo que
nunca tinha dito antes: “não sei por que não posso ter relações sexuais quando ele
me abraça de costas, isso me dá muita aflição, é como ser pega de surpresa”.
“Ser pega de surpresa” se articula ao temor que lhe faz dormir sempre
olhando para a porta - nunca dorme de costas –, à sua dificuldade de falar em
público, e, nesse momento, a uma cena que, segundo ela, jamais tinha lembrado.
Curiosamente, ela diz que se repete em várias oportunidades no tempo da sua
primeira infância. Na cena infantil estão ela e um primo, mais velho, que nas tardes
tranqüilas de uma cidade do interior, lhe “pegava de surpresa” num corredor, levava-
a para seu quarto, a sentava no seu colo e se esfregava. Ela lembra-se com não
mais de 5 anos, andando de triciclo e sabendo que ele poderia lhe pegar. Segundo
ela, ficava rezando para sair, mas ficava lá, paralisada. Ficava sabendo que não
tinha conseguido se fazer invisível para o primo. Ela está avisada do seu “ficar aí”
embora pouco sabe, por enquanto. Abrem-se, a seguir, outras lembranças infantis,
todas elas masturbatórias, até suas tardes da adolescência quando fechava as
portas, se masturbava, e pensava “posso ser pega de surpresa”.
Retomo a questão: o que significa esse estatuto separador do objeto a na
estrutura RSI? Se Lacan liga o objeto a aos orifícios do corpo, mas se além disso
não lhe outorga nenhuma qualidade substancial é porque esse objeto do qual não
se tem idéia, esse objeto lógico, deve ser diferenciado do objeto da pulsão.
Segundo Jairo Gerbase34, o objeto a, parcial, pode representar-se na demanda,
mas o estatuto do objeto em RSI depende da sua queda, isto é de um efeito a ser
tomado como “um vislumbre, uma fugacidade”, ou mesmo aparelhado a um afeto:
angustia.
“Fazer-se invisível” é estar causado por esse objeto a, mesmo que seja pelo
olhar enquanto “fragmento” desse objeto, que é, também, paradigmático da
angústia. Vemos quando não olhamos, nos diz Lacan em 1963, por isso a imagem
vela esse olhar. Portanto, se vemos elidimos o olhar. A pulsão escópica nos mostra
que queremos ver, que pedimos ver. “Fazer-se in-visível” é demandar o máximo de
visibilidade nessa cena recalcada. Nesse sentido entendo que esse olhar dá
consistência e significação fálica à cena fantasmática na qual o “corpo in-visível” da
cena infantil erige-se como tal. No Sinthome35, Lacan diz que o parlêtre adora seu
corpo porque ele acredita tê-lo. Entretanto, o único que ele tem do seu corpo é sua
consistência mental. Nesse sentido, podemos entender melhor por que a angústia é
essa suspeita de reduzirmo-nos a nosso corpo, ali onde já não o temos, mas o
somos. Razão pela qual “fazer-se in-visível” conjuga com “ser pega” nos momentos
em que, por exemplo, de costas para a bancada da copa, ela treme, por temor de
que “algo desconhecido lhe pegue de surpresa”.
                                                                                                               
34
GERBASE, J. Os paradigmas da psicanálise. Salvador: Associação Científica do Campo
Psicanalítico, 2008, p. 70-71.
35
LACAN, J. El Seminário 23: el sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006.

  61  
O poder separador do objeto a também se verifica no valor de interpretação
desse corte, uma vez que deixa de nutrir de sentido o sintoma. Portanto isso nos
coloca na pista do poder separador do objeto a entre o Real e o sentido. Dito de
outro modo, a cena fantasmática recalcada, sustenta a equivocação “in-visível”
(considerando aqui o circuito pulsional pelo qual responde a fantasia “ser pega de
surpresa, ser pega de costas”), equivocação que o lapso evidenciado pelo corte, fez
surgir. “Fazer-se in-visível” é a significação sintomática (JФ) que essa mulher se
agencia, e pela qual, posso dizer, entra em análise; não nesse momento que
destaco, mas num tempo anterior quando se verifica sua estratégia de .demandar a
presença do Outro, da qual se queixava. Se o sintoma “é irrupção dessa anomalia
em que consiste o gozo fálico, na medida em que aí se mostra, se desabrocha essa
falta fundamental que qualifico de não-relação sexual”; a interpretação analítica
pode fazer retroceder algo do sintoma. Lalingua que suporta o simbólico possibilita
essa equivocação, evidenciando o gozo-sentido. O Real como non-sense se vincula
ao “efeito de sentido”, veiculado pelo equívoco produzido pela Lalingua. O efeito de
sentido tem uma relação de ex-sistencia com o simbólico. “Digo que o efeito de
sentido ex-siste e que nisso ele é Real”.36 O efeito de sentido, isso que se visa com
a interpretação, na medida em que ele aparece, ilumina o jouis-sens (gozo-sentido),
isto é: algo que fazia a cifra do sentido. Aqui se verifica mais uma vez a condição de
mais de gozar desse gozo-sentido, isto é, onde o objeto a “litoraliza” essa ex-
sistencia do gozo-sentido.
Se a psicanálise opera na fineza dos campos de ex-sistencia, ela tem como
dever ético pôr à prova o que possa ser elaborável desse gozo, uma vez que ele
tem um limite, uma vez que há um impossível de dizer, isso é o que o objeto a,
separador dos gozos, em última instância evoca.

                                                                                                               
36
Idem. Aula de 11 de fevereiro de 1975.

  62  
A ESTÉTICA DA INTERPRETAÇÃO

Christian Dunker

A ação do psicanalista pode ser apreendida a partir de três dimensões: a


política, a estratégia e a tática (Lacan, 1958). No nível tático encontramos o maior
grau de liberdade do modo interpretativo, uma vez que este leva em conta
diretamente o estilo singular de cada analista. A política é o campo de discussão
dos princípios a que se estará sujeito se se tratar de uma análise. A estratégia rege
os caminhos possíveis na direção da cura, como por exemplo o manejo da
transferência. A tática pode ser definida como o campo de discussão da forma das
intervenções.
Pensamos que é no nível tático que se pode falar de uma estética da
interpretação. Em outras perspectivas, como a hermenêutica bíblica, a interpretação
da cultura ou a crítica da arte, o estilo da própria interpretação não é decisivo. No
caso da psicanálise, a forma como se coloca uma fala pode fazer toda a diferença
entre constituí-la como uma interpretação ou como um comentário vazio. A
perspectiva estética não está portanto descartada, mas como falar dela sem incorrer
numa tomada de posição sobre o estilo, a rigor problemática e improdutiva?
Nossa hipótese é que o fundamento estético da interpretação em psicanálise
pertence ao campo da retórica. No caso das estéticas cujo programa é a
compensação de fatos artísticos à luz de uma teoria da percepção, do juízo ou
simplesmente a partir de uma certa noção acerca do Belo, a eficácia da
interpretação não constitui o critério fundamental. No caso da psicanálise, se
excluíssemos a eficácia da fala e do silêncio não teríamos nem mesmo como
reconhecer uma interpretação. Ora, a retórica é justamente o campo da
investigação em que a linguagem e a fala são consideradas como veículos de
transformação do sujeito. em função disso, ela costuma ser entendida como uma
área perigosa, principalmente quando desligada de uma reflexão ética.
A extração retórica de certos procedimentos interpretativos vem constituindo
um campo de pesquisa acerca das relações entre psicanálise e outras disciplinas
como a literatura, a poesia ou a filosofia da linguagem (Forrester) e até mesmo a
gramática (Mahony). Este é o veio de aproximação mais tradicional quando se
pensa em estética da interpretação, isto é, no quadro do diálogo interdisciplinar. Não
o escolhemos tanto pela amplitude desta empreitada quanto por partilharmos da
tese de que o fundamento mesmo da poesia e da literatura é a retórica.

RETÓRICA E FILOSOFIA
Consideremos a retórica como um modo de lidar com a palavra originado na
Magna Grécia do século VI a .c. De acordo com Zenão, ela se define como “a
ciência do bem dizer”. Historicamente a retórica possui uma dupla vinculação, de
um lado à medicina, onde se manifesta como um método de cura pela palavra,
especialmente desenvolvido na Escola de Epidauro. Tal método, chamado

  63  
psicagogia, se refere à condução ou direção da alma segundo o desejo de quem
fala e se encontra na raiz da idéia de psicoterapia.
Por outro lado, a retórica se vincula à política e a ética, por sua presença no
discurso sofístico. É o caso das escolas retóricas de Górgias e Isócrates.
A retórica compunha assim o cenário em que nascia a filosofia platônico-
aristotélica. Tal filosofia se caracteriza pela tentativa de superação da doxa, da
opinião, não sujeita à demonstração, que compunha assim um tipo menor de
conhecimento, variável, relativo, não universal. A retórica se vê, assim, questionada,
uma vez que visa apenas constituir opiniões e não propriamente conhecimento. As
primeiras reflexões sobre o que é uma demonstração emergem no quadro
simultâneo de crítica sistemática à retórica e de solução para a crise das
matemáticas pitagóricas. Procurando sistematizar os procedimentos envolvidos nas
demonstrações, e tendo em vista a tradição aristotélica, podemos falar em três tipos
de argumentos: o retórico, cujo fim é a persuasão, o dialético, que tem por objetivo a
prova indireta, e o apodítico, que funciona a partir de um sistema referencial
discursivo que vai dos axiomas aos teoremas.
Os três níveis da clínica antes tratados traduzem, a nosso ver, os três tipos
de argumentos fundamentais: a tática, domínio da forma, da interpretação, de seu
estilo, que associamos à retórica; a estratégia, domínio do diagnóstico e da
transferência, cujo modus operandi é a dialética domo motor; finalmente a política,
que traduz o tema dos princípios envolvidos no tratamento, sua axiomática. Neste
trabalho examinaremos apenas a aproximação entre retórica e interpretação,
entendida na sua dimensão tática.
A valorização dos argumentos dialéticos e apodíticos e, portanto, da
estratégia e da política, se dá em função de sua capacidade de ultrapassar a doxa
(opinião) e estabelecer um conhecimento matemata, isto é, suficientemente formal
para ser transmitido ou ensinado. A crítica filosófica da retórica passa pela crítica da
singularização do discurso a que ela está sujeita. O bom retórico deve ajustar sua
fala a seu destinatário. No limite isso levaria à produção de um discurso que seria
apropriado para um único interlocutor, o que se opõe às pretensões universalizantes
de Aristóteles e da filosofia em geral. Mesmo em Platão a ambigüidade com que se
trata a palavra (pharmakon), expressa o perigo que a retórica representa para a
filosofia. A palavra é pharmakon porque como meio da dialética é função da cura e
do conhecimento, mas como veículo da retórica envenena e mata.
Os perigos da retórica são claramente atestados pela tradição filosófica que
procura a identidade das essências e sua tradução num discurso que as espelhe. A
palavra singular e a verdade parcial que ela traz consigo respondem, no entanto,
exatamente às pretensões da psicanálise. Mais recentemente autores como Éric
Laurent, Alain Badiou, inspirados em Lacan, mas também nietzscheanos e
heideggerianos vêm pondo à prova os limites do discurso universalizante, abrindo
espaço dessa maneira para o ressurgimento da antiga questão retórica. O
compromisso da retórica não é com a verdade, mas com a verossimilhança, não é
com o universal e necessário, mas com o particular e o contingente. Isto levará um
comentador como Zizek (1993) a afirmar que “a retórica representa, na filosofia, o

  64  
que não pode ser pensado de outra maneira senão na linguagem.” Se a dialética
filosófica é cooperativa e conduz à ascese rumo à verdade, a retórica é narrativa e
agonística.
Outro problema que a retórica constituía para a filosofia é que sua
transmissão não poderia ser integral. Há um elemento idiossincrático em sua
assimilação. Esse elemento foi historicamente eliminado, transformando-se a
retórica num simples conjunto de técnicas para ornamentar a fala e a escrita, estas
sim de fácil transmissão. A história da filosofia pode ser considerada, nesta
perspectiva, como a história da exclusão da retórica pela dialética e pela axiomática.
O que não pode ser perfeitamente ensinado consiste na parte de inventar
idéias e de dispô-las de modo a provocar certos efeitos, a inventio, segundo a
designação de Hortêncio e Cícero. A inventio deve levar em conta a solidificação
das fórmulas retóricas e seu desgaste no tempo e por isso convida à criação e
transformação do estilo. A retórica é o lugar de origem da questão do estilo, da
estilística.

LACAN E A RETÓRICA

As referências diretas de Lacan à retórica não podem ser desconsideradas.


Tomemos para tanto o texto “A metáfora do Sujeito” (1961) que representa a síntese
de um debate entre Lacan e um dos responsáveis pelo renascimento dos estudos
retóricos na década de 1950, Perelman. A obra de Perelman é marcada tanto pela
preocupação em formalizar e classificar as figuras retóricas, quanto por procurar um
debate aberto com a filosofia, visando mostrar o aspecto retórico de algumas de
suas questões cruciais.
O impacto causado pela filosofia da linguagem anglo-saxônica já se fizera
nesta época. De fato, se a crítica da metafísica levada a cabo por esta linhagem
filosófica foi acolhida no ambiente francês, um de seus efeitos constitui a
transformação dos “grandes problemas filosóficos” em questões de índole retórica
(em poesia, como diria Carnap). Neste contexto, um resgate da filosofia se faria
possível pela cientificização das práticas de persuasão e dos fenômenos subjetivos
da linguagem.
Nesta mesma época, mas no contexto da filosofia germânica, encontramos
em um autor como Heidegger a afirmação de que a retórica está muito melhor
ajustada à concepção de linguagem procurada por seu pensamento, especialmente
na analítica da existência, do que a própria “filosofia da linguagem” (Kush, 1989). No
cenário alemão o resgate da filosofia se dá pela valorização das dimensões
históricas e poética que as práticas retóricas contém.
A posição de Lacan, no debate em questão, é parcialmente convergente com
a de Perelman e segue, grosso modo, a solução francesa. Os efeitos de significação
obtidos pela articulação significante são anexados por Lacan ao nível dos processos
retóricos. Desta forma, a condensação e o deslocamento são compreendidos, por
exemplo, a partir de sua estrutura respectiva de metáfora e metonímia. Se a

  65  
concordância com Perelman se dá ao nível do fundamento retórico da significação,
as diferenças surgirão em torno do próprio estatuto da metáfora.
Lacan argumenta, tomando partido de um modelo algébrico, que a metáfora
é irredutível à analogia. A perspectiva psicossociológica de Perelman postula, ao
contrário, que existe uma espécie de “contato de mentes” que asseguraria a meta
da persuasão e ao mesmo tempo explicaria como a comparação, ou transporte de
significação, em jogo na metáfora, extrai seus efeitos. Esse contato entre mentes se
ajusta à idéia de que a metáfora parte de um significado compartilhado e permite
sua apreensão a partir de quatro lugares (dois significantes e dois significados)
como uma analogia entre dois significados.
O subsídio teórico da concepção de metáfora ao qual se alinha o retórico
francês decorre de uma leitura parcial de Kant (plebe, 1992), notadamente da
distinção entre convicção (Übersetzung) e persuasão (Überredung). A convicção,
para Kant, é o resultado de uma argumentação objetiva, enquanto a persuasão é
fruto de um convencimento subjetivo. O exemplo desta última modalidade é o
discurso de tribunal onde muitas vezes a persuasão pode se impor aos argumentos
objetivos, notadamente quando está em jogo o júri. Esta oposição é recolhida por
Perelman que se vê então forçado a localizar a retórica do lado da persuasão
subjetiva, incluindo-a desta maneira num compartimento da psicossociologia. No
entanto, há em Kant um terceiro termo além da convicção e da persuasão, que é a
Überlistung (logro, engano). Podemos entender esse logro, ou sugestionabilidade,
como a sugestão, no sentido da técnica da sugestão hipnótica. A desqualificação
que Kant promove da persuasão se justifica por sua ligação ocasional com a
sugestão. Em resumo: toda sugestão implica em convicção subjetiva, mas nem toda
convicção decorre da sugestão. Portanto, a idéia de que a persuasão permite uma
argumentação subjetiva investida de racionalidade mantém-se de pé se
conseguirmos separá-la da sugestão. Este será o caminho tomado por Lacan em
sua crítica a Perelman.
O formalismo algébrico de Lacan é a rigor uma recusa dos pressupostos
semânticos envolvidos nos processos retóricos. Desta forma não seria necessária
uma teoria do significado, literal ou estrito para pensar a metáfora. O significado do
signo a ser substituído é considerado a partir da notação “x”, isto é, uma variável de
valor indeterminado. Lacan chega a comparar esse “x” ao apeiron de Anaximandro.
Para o pré-socrático este termo parece corresponder à idéia de um originário
ilimitado e ao mesmo tempo indefinido. Peters (1974) afirma que de acordo com a
tradição interpretativa inaugurada por Aristóteles o que definitivamente: “... está
incluído na idéia de apeiron é a duração no tempo, um fornecimento infinito de
substâncias básicas para que a geração e destruição não faltem” (p.32).
Para demonstrar esta tese anti-analógica Lacan recorre ao caso do Homem
dos Ratos e, mais especificamente, a uma cena de infância em que este dirige
impropérios ao pai (“Seu guardanapo! Sua lâmpada!”). Lacan argumenta que o que
menos importa nesta metaforização do pai é o significado dos signos envolvidos
(“guardanapo”, “lâmpada”). O essencial é a presença da relação de substituição
envolvida na metáfora, que permite nomear o pai pelo que ele não é.

  66  
Contudo, esta indeterminação do significado não pode ser confundida com a
abolição do plano do significado. Ela implica numa flutuação e numa indeterminação
do significado em relação ao significante. A interpretação, pelo menos de acordo
com a concepção em vigor à altura do texto “Função e campo da palavra e da
linguagem” (1953), visa: “jogar com o poder do símbolo evocando-o de uma maneira
calculada nas ressonâncias semânticas de sua expressão”.
Ora, isso nos faria procurar em Lacan uma concepção mínima do significado
que torne compatível a tese da primazia do significante com a idéia de “ressonância
semânticas” da interpretação. Essa concepção deveria se ancorar em alguma
referência ao tempo ou à duração, se nos atemos ao termo apeiron, antes
examinado. Nossa hipótese é que tais ressonâncias (os equívocos significantes)
respondem a uma racionalidade subjetiva inconfundível com a sugestão. Tal é a
racionalidade retórica.

INTERPRETAÇÃO E RETÓRICA

Uma pergunta freqüente entre os que iniciam a prática da psicanálise é a


seguinte: porque o estilo das interpretações de Freud não parece produzir efeito
algum na clínica contemporânea? Se apreendemos a interpretação como revelação
de uma verdade fundada em proposições metapsicológicas e se estas proposições
são de caráter universal e atemporal, caso contrário não seriam metapsicológicas,
não há como explicar seu desgaste pela passagem do tempo ou pelas variações
histórico-sociológicas que esta passagem produz.
Nossa hipótese é que o desgaste da retórica freudiana é diretamente
proporcional à absorção desta retórica à cultura. Neste ponto devemos explicitar
nossa concepção de retórica como tributária de uma estética, própria de um tipo de
sociedade. Desta forma, o estudo da retórica deve levar em conta tanto o plano
ideológico quanto o lingüístico (Delas e Fillolet, 1975). Oponho-me aqui àqueles que
pensam a retórica como um inventário descritivo dos possíveis da linguagem ou
como a chave transcendental de seu funcionamento.
O estilo das interpretações freudianas se mostra hoje ineficaz unicamente
porque a retórica que as impregna se degradou no tempo, como toda dimensão
retórica dos discursos. A antiga tese de que o retórico deve encontrar o estilo
absolutamente particular de seu interlocutor subsume que ele se acomode às
variações temporais que modificam este interlocutor, do início do século aos nossos
dias e mesmo no interior de um percurso analítico. Isto não significa que devamos
abandonar o estilo freudiano em função da apologia do progresso e da atualidade
das novas formas retóricas, mas, pelo contrário, retornar aos fundamentos de sua
retórica se quisermos reinventar o estilo.
Colette Soler, uma comentadora especialmente interessada no tema da
interpretação, partindo de “L’Étourdit” (1973), postula a presença do equívoco de
linguagem como ponto unificador da interpretação. Equívoco de diferentes
incidências, quer o tomemos no nível gramático, homofônico ou lógico. Lacan,
chega a afirmar, no Seminário XXIII, que a única coisa de que dispomos para

  67  
enfrentar o sintoma é o equívoco. Ora, um equívoco só se constitui a partir da
ruptura entre uma certa racionalidade intencional e algo que se impõe a ela segundo
uma lógica alheia ao sujeito da intenção. Freud falava deste sujeito da intenção a
partir da idéia de desejo pré-consciente e nunca deixou de supô-lo como parte
integrante e necessária na constituição das formações do inconsciente como o
sintoma, o chiste, o lapso e o sonho. No entanto, o desejo (inconsciente) não se
reduz a uma intencionalidade latente, uma espécie de vontade não admitida. Esta
só aparece como uma das partes do compromisso. Não é exagerado dizer que este
sujeito é a expressão da racionalidade, uma vez que se caracteriza pelo processo
secundário e pelo estabelecimento da identidade de palavra.
No entanto, mesmo este sujeito, criticado por Freud quanto a sua soberania,
vem sofrendo abalos sérios no quadro da filosofia contemporânea. A crítica literária,
por exemplo, cada vez leva menos em conta as intenções do autor na análise das
determinações de sua obra. O estruturalismo e o pós estruturalismo francês
realizaram uma espécie de cruzada contra a consistência e as pretensões deste
sujeito. mesmo o pragmatismo e a filosofia analítica anglo-saxônica não cessam, ao
seu modo, de celebrar o funeral do sujeito. No interior deste movimento a própria
noção de interpretação, fundamento metodológico geral das ciências humanas vê-
se revirada. Interpretar torna-se sinônimo de usar, como lembra Eco (1993).
É nesse contexto que uma afirmação de Lacan, salientada pelo comentário
de Soler (1994) torna-se problemática. Referimo-nos ao enunciado de “L’Étourdit”
que diz: “a interpretação visa o apofântico”. Ora, apofântico é um termo do
vocabulário aristotélico que significa um enunciado do qual se pode decidir seu valor
de verdade. Fainos (radical contido em ‘apofântico’) é um termo seriamente
comprometido com a noção de olhar, que domina a concepção grega do
conhecimento. Apofântico é o que faz aparecer, o que faz mostrar ao olhar da alma
as essências ou o nous.
Levando em consideração esta afirmação e juntando-a com a equivocidade
da interpretação chegamos à idéia de que a interpretação mostra o verdadeiro
contido no equívoco. O problema, diante desta derrocada da interpretação clássica,
é saber se é necessário e possível reunir o tema da interpretação ao da verdade. O
que fazer com a idéia de verdade num universo comandado pelo valor aferido pelo
uso (caso pragmatista) ou num mundo regido pela sobre-determinação estrutural? A
associação entre interpretação e o plano apofânico, pleiteada por Lacan é
incompatível com estes dois modos de considerar a interpretação; assim, qual seria
sua procedência?
A tradição pragmatista, em geral, e Austin em particular, mostraram que o
discurso apofânico não faz sentido quando a fala de que se trata não é
representacional mas desiderativa, isto é, quando a fala faz e efetua e não apenas
descreve ou representa. Por exemplo, num performativo como: “passe ao divã” não
há sentido em perguntar o que ela revela em termos de uma representação ou
descrição falsa ou verdadeira de um estado de coisas do mundo. É interessante
como esta perspectiva se coliga com a tradição retórica. Isócrates, no século IV a .
c., já considerava que o discurso é um tipo de ação e não apenas um meio para

  68  
referir-se a objetos (Prates e Silva, 1973). A apreensão da interpretação como
apofântica só é paradoxal numa perspectiva axiomática e não retórica como propus.
A interpretação como apofântica só pode se preservar, a meu ver, se se tratar de
uma apofântica retórica, que vise a verossimilhança e não a verdade (no sentido
clássico), ao preço de fazer ressuscitar o sujeito das intenções.
A interpretação se mede por seus efeitos, pela modificação que introduz na
posição do sujeito, do seu discurso ou de seu sintoma. Ela deve ser surpresiva,
concisa e cair no tempo exato. Tais características constituem efeitos procurados
desde sempre pela retórica. No entanto, o convencimento agonístico, antípoda da
cooperação dialética, coloca problemas quando temos em vista o cenário analítico.
Como destituir o analista da temerária sugestão, de sua intencionalidade e do
potencial de convencimento agonístico com que a suposição de saber transferencial
o investe?
É interessante que o tema da sugestão, originariamente vinculado à fala do
analista (veja-se a crítica de Freud ao método catártico), tenha se deslocado para a
fala do analisante. Assim, é no nível da própria associação livre (que excluiria o
analista) que a retórica e a persuasão vêm sendo tratadas, especialmente na
psicanálise de extração anglo-saxônica.
Mahony (1987), por exemplo, examinando a associação livre, propõe que ela
seja considerada a partir das oscilações entre quatro diferentes tipos de discurso: o
discurso retórico (ênfase no receptor), o discurso dialético (ênfase no referente), o
discurso expressivo (ênfase no emissor) e o discurso estético (ênfase nos próprios
signos). Segundo Mahony, estes diferentes discursos se substituiriam ao longo do
desenvolvimento da análise, na seqüência acima apresentada. Assim, o início da
análise seria marcado pelo predomínio do discurso retórico, por meio do qual o
paciente tenta convencer o analista e termina num momento em que predomina o
discurso estético. Este movimento corresponderia a um atravessamento da
transferência uma vez que esta “implica, em alto grau, um paciente tentando
persuadir uma audiência que ele mesmo criou” (p.80). Nota-se uma aproximação
entre o discurso retórico e a transferência na sua vertente de resistência. Quando
esta audiência se desfaz restaria uma valorização do meio pelo qual se efetuava
esta pseudo-comunicação – as palavras – daí o predomínio do discurso estético.
Ultrapassar as resistências significa, nesses termos, suspender a inflexão retórica
do discurso.
A argumentação de Mahony, apesar de descritivamente interessante, incorre
na ingenuidade que fixa a interpretação como um evento comunicacional. Daí o
emparelhamento do discurso retórico à resistência. Em função deste modelo
comunicacional a retórica será reduzida à uma intenção persuasiva do discurso. A
fragilidade da perspectiva assumida por Mahony decorre do fato de que nela a
interpretação se transforma num ato de comunicação e não num apontar para o
ruído, ou para a equivocidade desta comunicação.
Mannoni (1991) ao falar da perspectiva geral da interpretação compara-a ao
dito de Sancho Pança dirigido a D. Quixote: “Olhe Vossa Mercê o que diz o Senhor”.
O grau zero da interpretação pertence à dimensão deste dito: “Escuta bem o que

  69  
disse”. Se lemos a partir desta perspectiva a tese de Mahony, vemos que o modelo
comunicacional se vê revertido a uma situação em que o emissor coincide com o
receptor e isto pela primazia dada ao próprio movimento dos signos e à
ambigüidade de sua escuta. Assim os discursos retórico, expressivo e estético se
vêem reunidos pela e na própria interpretação. Resta da classificação proposta por
Mahony uma distinção entre o retórico e o dialético, este último fundado no referente
e na verdade. Mas que referente? – o trauma, a fantasia, a realidade, a
sexualidade? Veremos nos próximos ensaios a dificuldade em considerar a noção
de referente na psicanálise.
O que obtemos quando confrontamos um autor como Mahony, ligado à
tradição anglo-saxônica, com O . Mannoni, ligado à tradição francesa, nos parece
elucidativo. Mahony dilui saber em verdade ao pensar a interpretação como uma
comunicação. Mannoni, pelo contrário, ressalta que a interpretação reside no não
saber. Num caso a legitimidade da interpretação pende para o analista, no outro
para o analisante. Num caso torna-se premente uma teoria da verdade, no outro
uma teoria do sujeito. Numa terceira perspectiva, ou seja, do ponto de vista da
retórica, o tema da verdade se resolve pela verossimilhança e o tema do sujeito pela
persuasão.
O cuidado com os perigos da retórica fica patente, por exemplo, no caso do
Homem dos Ratos, em que Freud exige que o paciente reconheça que chegou à
ligação entre o sintoma e a sexualidade infantil por si mesmo, não tendo sido, por
assim dizer, sugestionado por Freud. Em Dora o reconhecimento da ligação com o
Sr. K. segue uma estratégia semelhante. Nos dois casos há um inevitável efeito
imaginário da interpretação que se encontra do lado da persuasão, ou da sugestão.
É nesse sentido que Lacan postula que a resistência é resistência do analista. A
análise caminha no sentido de uma dupla dissolução da perspectiva do
convencimento: do lado do analista, pela elaboração do desejo de analista, um
desejo sem sujeito, logo sem persuasão possível; do lado do analisante, pela
dissolução da alienação que o torna apto e mesmo demandante de ser persuadido.
A interpretação é uma fala que escuta o dito, que faz dito sem dissolvê-lo
completamente num saber. É uma fala guiada não integralmente pela intenção. A
interpretação confia assim numa certa racionalidade do discurso ou do ‘texto’, supõe
que ele possa dar suas próprias razões. Ainda sem tocar no problema da diferença
entre o escrito e o falado diríamos que a interpretação em psicanálise concorda com
a teoria proposta por Eco (1993) acerca do texto, isto é, de que além da intenção do
autor e da intenção do leitor existe algo como uma intenção da obra, que se move
na independência do autor e do leitor. Por isso, numa análise, o dito é soberano:
uma vez realizado, deve impor-se à situação clínica a partir de sua lógica interna.
Lacan, no prefácio à edição alemã dos Écrits, fala da interpretação a partir da
Midrash. A Midrash é um método judaico de interpretação da Torá que se pauta
exatamente por esta suposição de soberania do texto. Detalhe sugestivo é que em
raras ocasiões o rabino está autorizado a fazer interpolações no texto, uma delas,
de acordo com Ischmael, é denominada de método de Ceres ou método da
castração. Tal procedimento se autoriza quando ou a irracionalidade do texto é

  70  
patente (por contradição entre duas passagens) ou quando há uma contradição
forte entre a lei escrita e a tradição oral de uma certa época. Uma característica
comum entre o surgimento da Midrash entre os fariseus e da filosofia entre os
gregos é uma tensão, historicamente atestada, entre tradição oral e tradição escrita.
Os retóricos estão do lado da tradição oral, os filósofos da escrita.
A tensão entre fala e escrita é o que torna possível a suspeita que recai sobre
o sentido do escrito. Ela se altera historicamente porque a rede de significação é
histórica e não transcendental. Assim como o método de Ceres visava conciliar esta
tensão no terreno da hermenêutica judaica, em solo cristão isto está no núcleo da
hermenêutica patrística. A estratégia cristã para conter as variações de sentido a
que um texto está sujeito foi basicamente a de dividi-lo em camadas de sentido e de
limitar o acesso a estas camadas segundo uma hierarquia religiosa. Assim, pode-se
dividir os diferentes sentidos de um texto, segundo a hermenêutica cristã,
encontrada em Orígenes, em:
a) literal: o texto é soberano, logo não contraditório e imune ao tempo e à
transformação da tradição na qual se inclui o leitor;
b) psíquico ou moral: o texto é tributário de algo que lhe é exterior mas
igualmente contraditório, dada a unidade moral ou psíquica desta exterioridade. Ele
resiste ao tempo porque o “Bem” resiste ao tempo;
c) místico ou espiritual: o texto extrai seu sentido a partir de uma
exterioridade, a “mente divina” que é impenetrável aos não iniciados ou não
partícipes de uma comunhão direta com a mente e o desejo divinos. Veja-se a teoria
da iluminação em Santo Agostinho e de modo geral a idéia de participação entre os
medievais.
Lacan ao situara interpretação ao lado da Midrash nos leva a crer que seu
caráter deve ser eminentemente literal. O discurso do paciente e suas associações
possuem soberania na determinação do sentido. Caberia ao analista reenviar os
diversos fragmentos a si próprios para que a interpretação se efetive. Contudo isto
representaria a aplicação de princípios de análise de textos à análise de discursos.
A primeira versão de Lacan acerca do simbólico como uma estrutura formal de
oposições e de redes significantes se ajusta ao método teologal que supõe o
fechamento do sentido no texto.
Esta seria uma maneira de entender o uso interpretativo das “ressonâncias
da palavra” proposto em “Função e campo da palavra” (1953). As ressonâncias
seriam absorvidas por outros pontos do discurso abrindo novas séries associativas.
Outra maneira de entender as “ressonâncias da palavra” é a que
encontramos num comentador como Miller (1994). Seu ponto de partida não é a
teoria da interpretação dada na Midrash ou na patrística, mas a retórica indiana.
Para tanto, Miller se apoia nos escritos de um dissidente do surrealismo, R. Dumal,
que em 1938 publica um texto sobre a poética indiana onde se acentua o papel das
ressonâncias da palavra. Dumal divide os sentidos possíveis da poética indiana em
três:
a) o sentido literal (que se obtém, por exemplo, num dicionário);
b) o sentido figurado ou metafórico (a conotação);

  71  
c) o sentido sugerido.
As duas primeiras categorias mantém uma relativa proximidade com a
hermenêutica de Orígenes. No caso do sentido sugerido, explica Miller, trata-se de
algo irredutível ao código, “...é algo que depende das circunstâncias. Ocorre num
lugar e momento específico”. No caso do sentido sugerido, ocorre o que Dumal
chama de plus de sentido, um “a mais de sentido”, que os indianos chamam de
duhani. Esse “a mais de sentido”, se ele se distingue das categorias anteriores é
porque não está presente em nenhum dicionário ou enciclopédia. À luz de nossas
reflexões acerca da tensão entre o escrito e o falado diríamos que o duhani possui
uma temporalidade diferente da do escrito.
A clínica mostra como o nível de interpretação midráschico-estrutural permite
ao sujeito circular com mais desenvoltura no que em nossa metáfora corresponde à
cidade (por sua histórias, as filiações que ela implica, etc.); no entanto, este nível é
insuficiente se temos em vista a presença de um resíduo não completamente
assimilável pela interpretação.
A pulsão de modo geral e o tema do gozo em Lacan são uma boa ilustração
do que seria este resíduo não completamente assimilável às interconexões da
história do sujeito. E encontramos, desta forma, em torno da idéia de interpretação
como “ressonância da palavra” uma vertente teologal, midráschica e estruturalista,
calcada na autoridade do texto, e por outro lado indicações de sua insuficiência: o
método da Castração, o duhani e o peso da tradição oral.
No entanto, o pressuposto subentendido ao método teologal, conforme a
designação de Eco (1991) é que o sujeito do texto é um sujeito sem falta e mais, um
sujeito que aplica sua intenção na criação do escrito. O ponto de colisão com a
psicanálise é justamente a tese de que o sujeito em questão se dá na falta. Teorizar
o estatuto do sujeito numa vertente estritamente midráschica-estruturalista torna-se
impossível. Conceber o sujeito, em psicanálise, e ao mesmo tempo uma primazia do
código, implica em dizer que o código está em algum momento exposto a um
colapso, a uma contradição que destrói seu próprio estatuto de código. Neste
sentido o Outro não pode ser reduzido a uma forma de código geral de onde
emergem as mensagens do inconsciente. assim salientamos o método de Ceres,
uma vez que sua existência mostra historicamente que de alguma forma as
remissões são insuficientes e que a identificação entre o simbólico e o puramente
semiótico não nos fornece todos os subsídios necessários para pensar a
interpretação. Como afirma Eco (1994):

“No nível teórico, no lacanismo, o simbólico se identifica ao semiótico, e este ao


lingüístico; parece que a prática do lacanismo reintroduz modalidades
interpretativas que se estaria mais propenso a definir em termos de modo
simbólico” (p.203)

De fato, a dificuldade em pensar a clínica da interpretação a partir da redução


do simbólico ao semiótico decorre da dificuldade de apreensão que o semiótico traz
com relação ao problema do sujeito. Eco parece desconhecer a alteração da noção

  72  
de Outro que se opera na obra lacaniana no período posterior a 1966. De fato, o
que esta filiação estruturalista, que procede uma diluição do simbólico ao semiótico
(ao modo, por exemplo, de Lévi-Strauss), ignora é a auctoritas da interpretação. No
caso do mito parece pertinente ignorar a questão da autoria, mas e no caso da
psicanálise? Quanto mais estrutural é uma interpretação menos autoria ela possui.
É justamente a hipervalorização da auctoritas no âmbito da psicanálise anglo-
saxônica o que Lacan parece condenar no modelo interpretativo calcado na
sugestão e no imaginário transferencial.
A oposição entre letra e espírito, que contempla os termos da oposição que
estamos tratando, se traduziu ao final da Idade Média numa concorrência entre a
autoria e a autoridade da interpretação, portanto, uma oscilação do fundamento em
quem interpreta ou no código (o que interpreta) e sua autonomia. O problema da
interpretação pode ser colocado, ao final deste percurso histórico, nos seguintes
termos:

1. uma posição estritamente literal, midráschica e estruturalista: sua


consistência se ancora no ponto de vista epistemológico de um sujeito
purificado que esta vertente acentua como condição da interpretação. Seu
problema maior é considerar o desejo do analista, uma vez que suas
premissas tornam esta reflexão estritamente impossível;

2. a posição psiquista e espiritualista, que seria a alternativa imediata, é a


rigor insustentável do ponto de vista epistemológico e perigosa do ponto
de vista ético. O interpretador apela a uma competência ética que o deixa
livre para exercer a persuasão e seu derivado alienante;

3. uma terceira solução, que leva em conta a retórica, mostra-se necessária:


ela nos faz levar em conta as vicissitudes do ser falante (para o qual as
leis da língua não são inteiramente transportáveis), isto é, o tempo, sua
particularidade histórica e desejante e ao mesmo tempo reconhecer a
pertinência do nível da letra.

Ora, esta conexão poderia ser realizada justamente no plano retórico, desde
que este se desligasse do interesse persuasivo ou que esta intenção se substituísse
por outra forma de desejo. Esta outra forma de desejo torna-se então o centro do
problema. Afirmá-lo como desejo de analista parece ter sido a solução encontrada
por Lacan.
O tema é bastante vasto e remete a muitas outras articulações (com a ética,
por exemplo). No que toca o âmbito deste artigo pensamos que é possível falar
deste desejo a partir do estilo retórico de cada analista, isto é, da forma como incide
a tentação persuasiva e de como ele se ‘auctoriza’. É neste estilo e na tática que ele
implica que podemos falar da liberdade e da inventio na clínica. O analista está mais
livre em sua tática, isto é, em seu estilo, do que em sua estratégia e em sua política.
Reencontramos aqui a tese de Lacan.

  73  
SINTOMA E INTERPRETAÇÃO

Examinemos o estatuto do sintoma e suas relações com a interpretação. O


que se pode chamar de sintoma analítico, o único propriamente interpretável, não
aparece imediatamente na análise. Há um sintoma, enquanto forma de sofrimento
subjetivo, que existe antes e fora do dispositivo analítico. Chamemo-lo sintoma-letra,
que demanda um sistema referencial discursivo que o inclua e pede de fato uma
explicação que o paciente não poupa esforços para obter. O discurso de mestre e o
discurso universitário são respostas a este tipo de sintoma. Entendemos aqui o
sintoma-letra como sendo pré-analítico e não como sint(h)omme.
No texto “Variantes da cura tipo” (1955), no contexto de crítica à análise
orientada pelo ego do analista, Lacan valoriza um autor cujas idéias aparentemente
estão bastantes distantes da psicanálise lacaniana: Wilhelm Reich. Esta
surpreendente retomada se apoia nas pesquisas de Reich acerca da análise do
caráter. Lacan afirma que Reich fora o primeiro a levar em conta a idéia freudiana
de que o ego possui uma estrutura equivalente à do sintoma. Os sintomas ao nível
do caráter se diferenciam clinicamente dos sintomas propriamente ditos (idéias
obsessivas, conversões, etc.) por não se traduzirem na forma de uma queixa. São
sintomas, deste ponto de vista, silenciosos. Eles acusam, em termos freudianos, a
prevalência da defesa sobre o desejo (Laplanche, 1986). Caberia então perguntar
se em relação à interpretação esse sintoma-letra não requer alguma especificidade.
Lacan afirma, no texto anteriormente citado, que o eu é “o que se barra para dar
lugar ao ponto sujeito da interpretação” (p.328). Esse “ponto-sujeito” da
interpretação se endereçaria à estrutura metafórica do sintoma. Mas seria o
sintoma-letra estruturado como uma metáfora? Nossa hipótese é que seria mais
apropriado falar, no caso do sintoma-letra, de um tipo especial de metáfora: aquilo
que os retóricos chamam de alegoria.
A chamada “envoltura formal” do sintoma, isto é, quando a queixa se
formaliza no campo do Outro (Miller, 1989), é o exato contrário do “sintoma-letra”,
uma vez que este é a própria formalização do campo do Outro, como um campo
sem falta. É por não estar formalizado no campo do Outro, por não possuir uma
“envoltura formal” que o “sintoma-letra” é de difícil acesso à interpretação. Um
sintoma-metáfora é o único propriamente reativo à interpretação, uma vez que porta
uma demanda de equivocidade e é também uma formação desejante. Propusemos
que o sintoma-letra funcione como a estrutura do que os retóricos chamam de
alegoria.
A alegoria está no centro de um método de interpretação desenvolvido por
Filo de Alexandria. Essencialmente este método visava extirpar, a partir de um
saber exterior ao texto, seus elementos percebidos como irracionais. Duas grandes
aplicações históricas deste método são conhecidas: aos textos épicos de Homero e
Hesíodo, injetando-lhes filosofia platônico-aristotélica, e à cristologia, que fixou o
sentido do texto bíblico, forçando a Antigo Testamento de forma a fazê-lo confessar
um tom profético que este não possuía.

  74  
Uma alegoria é uma metáfora indutora, uma metáfora ‘enlouquecida’, capaz
de gerar uma série metaforizante interminável. A alegoria é o que se obtém, ao
nosso entender, quando se considera a metáfora como analogia, como quer
Perelman. A alegoria parte de um signo em que seu significado não é
indeterminado, mas determinado e unido à uma significação atemporal.
A teoria nasal-cósmica de Fliess é um exemplo de interpretação alegórica.
Fliess, que para alguns fora o analista de Freud, parte em sua teorização de dois
significados matriciais: as “substâncias” masculina e feminina, a partir das quais o
universo se vê alegorizado. O lugar originário dessas duas substâncias pode ser
captado numa parte do corpo: o nariz. Desta forma os sangramentos nasais
representam a menstruação, a congestão nasal a gravidez, as duas narinas
referem-se a cada um dos sexos e assim por diante. Essa associação entre a
menstruação e o nariz (associação alegórica) será a base para a hiperinterpretação,
cuja característica maior é não poder ser desmentida (daí o tom delirante). Como
afirma André (1987):

“De tudo o que é menstrual é periódico ele chega a ‘tudo o que é periódico é
menstrual’. Atinge-se então a concepção grandiosa de um universo regulado pela
menstruação (...) se o dia do parto é regulado por estes períodos, o dia da morte
também deve sê-lo, bem como o ritmo do desenvolvimento dos tecidos e das
funções (inclusive da fala), a ocorrência de moléstias etc.” (p.35)

O sintoma-letra é um sintoma que não vacila, que se integra de tal forma ao


ego que nenhuma questão dele emerge. Pensamos que isso se ajusta à tese de
Lacan de que o ego possui uma disposição intrinsecamente paranóica. Lemos esta
disposição paranóica não apenas em sua hiperinterpretação própria da alegoria,
mas também na resistências que dele emana a que simplesmente algo perca
sentido. Um universo paranóico é essencialmente isso: um universo onde tudo
possui sentido.
Dizemos que um sintoma-letra se estrutura como uma alegoria, pois funciona
pela assimilação das “irracionalidades” próprias ao inconsciente fornecendo-lhes
explicações e consistência subjetiva.
A crítica de Lacan à psicanálise do ego e também à escola inglesa coloca-o,
em termos de história da interpretação, ao lado da Midrash e contra o alegorismo.
Quando um sintoma pode ser escutado apenas como uma metáfora, ele se
dissolve. No entanto, responder por metaforização, em intervenções do tipo “é como
se...”, nada mais faz do que alimentar a alegoria e o excesso de sentido que lhe é
próprio. A interpretação pela nomeação retórica do equívoco introduz ao mesmo
tempo um ganho e uma perda de sentido, daí a expressão “inter-perda-ção”
sugerida por Lacan. Do lado da perda encontra-se a castração como perda de gozo,
do lado do ganho encontra-se o gozo fálico possível a partir da parcialização do
sentido. A análise procederia, portanto, do sintoma-letra ao sintoma metáfora.
A rigor o ganho ou perda de sentido derivam de duas formas diferentes de
compreender a interpretação. Isolamos estas formas em termos teóricos a partir da

  75  
retórica patrística e da retórica indiana. Talvez estas duas vertentes aproximem-se
da separação que Freud (1907) fazia entre interpretação histórica e interpretação
simbólica.
A interpretação histórica é aquela que recupera o sentido de uma formação
do inconsciente a partir de elementos ou conexões entre estes na esfera da
biografia discursiva do sujeito. Mas que interpretação não teria isso por horizonte?
Poderíamos pensar na interpretação simbólica como apoiada em algo trans-
histórico, uma espécie de código transcendental que seria o responsável por certas
equivalências. Assim, Freud dá exemplos, na Interpretação dos sonhos (1900),
desse tipo de interpretação ao sugerir uma ligação quase “natural” entre “pênis” e
“guarda chuva” ou entre “escadas” e “relação sexual”. No entanto, esta espécie de
significação universal de determinados signos ficaria completamente excluída no
quadro da teoria de Lacan. o que fazer então com a idéia freudiana de interpretação
simbólica? Parece-nos que um bom caminho para pensá-la, depois de Lacan, é
considerá-la à luz da crítica da idéia de simbolismo universal. Se não há simbolismo
universal trata-se de dar lugar a algo, que mesmo após a interpretação, permanece
parcialmente destituído de sentido. A idéia freudiana de “umbigo do sonho”, o limite
do interpretável, seria contemplada se aderíssemos a este raciocínio. Voltamos
então à tese da perda de sentido como efeito da interpretação. Isto é, não só perda
e substituição de um sentido por outro mas abertura ao que permanece por dizer.
Exemplifiquemos isto num fragmento clínico analisado por Freud (1927). O Glanz
auf die Nase, brilho do nariz que regia as escolhas amorosas do paciente de Freud
resolve-se pela nomeação do equívoco Glanz (brilho em alemão) – Glance (olhar
em inglês). Não há propriamente uma explicação ou demonstração, como exigiria
Aristóteles, mas Bindung, ligação entre os elementos do equívoco. O equívoco, ao
ser nomeado, separa o gozo do olhar da significação ligada ao brilho. A significação
de “brilho” integra-se à história do sujeito cuja língua materna era o inglês. No
entanto não se reduz a esta na medida em que evoca um elemento pulsional (o
olhar erotizado) que, enquanto tal, resiste à plena inscrição na linguagem.
Pensamos que a “exegese” do sentido de Glanz corresponde a uma espécie de
etimologia retórica. O limite desta etimologia é o elemento pulsional e seu correlato
subjetivo.
Tomemos o caso da interpretação histórica: qual poderia ser sua ligação com
a retórica? Atentemos para a dimensão significante desta história e ao fato de que a
interpretação deva captar o ponto de encontro entre a diacronia e a sincronia, isto é,
o cruzamento da simultaneidade da ressonância e da sucessão de significações.
Uma forma de pensar estes processos em termos retóricos seria pensar de um lado
na etimologia (como sucessão de significados historicamente variáveis) e de outro
em algo que refletisse o paradoxo de um sujeito causado pela concorrência de
significações simultâneas e contraditórias.
Freud (1912) partilhava da tese de que o significado primitivo das palavras
seria antitético em relação ao seu significado contemporâneo, isto é, haveria uma
espécie de inversão histórica operando ao nível do sentido. A tese freudiana
(retirada de Abel), à luz da filologia moderna, mostra-se incorreta. No entanto, se

  76  
assumirmos sua dimensão retórica, ela se mostrará verossímil e capaz de acolher a
contradição de significações que a interpretação deve procurar.
Interpretações que trabalham o equívoco a partir de uma referência ao que
Freud chamava de “infantil” mereceriam ser consideradas como se examina um
processo etimológico. Para contemplar tal etimologia, sem nos projetarmos na
fixação dos significados primordiais (uma simbólica, por exemplo como faz Jung)
será necessário recorrer à idéia de uma etimologia que do ponto de vista filológico
seria no mínimo duvidosa.
Lacan, assim como Heidegger, utiliza em vários momentos à eficácia de uma
etimologia que podemos dominar de retórica. Por exemplo, ao derivar perversion de
père-version (versão do pai) Lacan faz equivaler o radical latino “per” ao francês
père, o que linguisticamente é injustificável, mas que se apoia numa “ressonância”
cujo efeito é de verossimilhança. A interpretação como pontuação pode funcionar
como um convite à fabricação de uma etimologia não semântica mas homofônica.
Deste modo, a associação livre que lhe segue traduz a história das conjugações que
dão ao significante sua feição singular.
A idéia de etimologias retóricas foi localizada por Plebe (1992) em certos
procedimentos heideggerianos. Trata-se de traduzir, notadamente do grego, certos
termos, impregnando-os de uma significação que originalmente estes não poderiam
ter. É o caso do dito de Anaximandro onde Heidegger introduz termos como “cura
existencial” ou “estada na terra” que são estranhos ao mundo grego e ao seu
universo de discurso.
Trata-se de manipulação, justificada pelo conceito de Unterschiebung (troca).
Em outras palavras, atribuição ilegítima de uma idéia ou propósito. Mais importante
que a fidelidade ao texto é a “tendência efetiva da problemática” (Die sachliche
Tendenz der Problematik). A questão orienta e legitima a troca ou “forçagem” do
sentido. Os jogos de palavras, trocadilhos e demais distorções que num primeiro
momento caracterizavam e até popularizaram o lacanismo no Brasil correspondem
ao que a retórica chama de dissociação semântica, da qual a Unterschiebung é uma
variante.
Se o problema da interpretação pode ser resumido a como encontrar o termo
significativo do discurso, como afirma o texto da “Função e campo da palavra”
(Lacan, 1987:242) ou o ponto em que o sujeito chega ao limite do que o momento
permite a seu discurso efetuar a palavra, como se dá no texto “Instância da letra”
(idem:358), podemos supor que a localização da questão do sujeito precede a
etimologia retórica e que esta só se autoriza se levar em conta algo além da
homofonia pertinente. Se a poesia é o campo de estreitamento da diferença entre o
som e o sentido (Filolet, 1975) não é entretanto a qualquer momento que se trata de
introduzir a dissociação semântica que cause tal estreitamento.
Por exemplo, uma determinada paciente encontra-se às voltas com um
contexto sintomático que é nomeado pelo significante “distraída”. Por outro lado traz
também uma questão relativa ao exercício de sua fidelidade. A intervenção do
analista faz escandir o termo “distraída” em “diz-traída” de modo a ligar o sintoma ao
desejo em questão em torno da fidelidade. O que este analista realizou em termos

  77  
retóricos corresponde à dissociação semântica de “distraída”, no entanto ela não
poderia ser realizada antes que o discurso do sujeito o permitisse. Antes do ponto
em que o princípio de Sancho Pança pudesse ser aplicado.
Procedimento semelhante encontramos em Freud (1900) quando este se
detém sobre o sonho de Alexandre o Grande. O general macedônio sitiava a cidade
de Tiro e hesitava entre atacá-la ou não. Neste momento sonha com um sátiro
dançando sobre um escudo. A interpretação dada pelos adivinhos realiza-se pela
dissociação semântica de “Sátiro” em “Sá-Tiro” (a cidade de Tiro é sua). O
significado de Sátiro, ser mitológico, metade homem metade bode vê-se trocado,
substituído não apenas por outro significado, mas por um desejo expresso na
substituição. No entanto, o “novo” significado não está imune à dissociação. Isso
nos permitiria uma definição provisória do significado como a fixação temporal de
um significante. A história das conjugações do significante possui autonomia e
primazia em relação à história das conjugações do significado, como mostrou
Lacan; entretanto, quanto à tática da interpretação trata-se de encontrar o momento
em que as duas temporalidades se cruzam.
O que a interpretação alegórica visa contornar é justamente esta
temporalidade: suas pretensões são sempre as de fixar um código semântico
atemporal. No caso da interpretação psicanalítica, a atenção ao tempo da
interpretação e o momento de sua entrada são cruciais justamente porque o que a
comanda não é a atemporalidade. Quando o instante de uma intervenção é perdido,
é possível confiar, pela equivalência entre discurso e estrutura, na repetição da
questão. Porém, nesta repetição será proposto novamente um instante temporal
para a interpretação.
Em “Função e campo da palavra...”, Lacan fala da interpretação como uma
forma de reviravolta formal do discurso; ele se refere a tomar:
a) uma história cotidiana por um apólogo;
b) uma larga prosopopéia por uma interjeição direta;
c) um simples lapso por uma declaração completa;
d) o suspiro de um silêncio por um desenvolvimento lírico (Lacan, 1987:342).
Em todos os casos a reviravolta traduz a ruptura da temporalidade da
significação. Em todos os casos ou se trata de dizer mais com menos palavras ou
de dizer menos com mais palavras. Esta espécie de dinâmica temporal das
significações constituiu desde sempre o objeto da retórica. Para os retóricos gregos
tratava-se de encontrar o kayrós, o instante em que a palavra extraía o máximo de
efeito. O kayrós pertence a uma temporalidade que não é nem a da sucessão, nem
a da simultaneidade, mas a do acontecimento. A busca desse acontecimento de
linguagem é o que permeia a tática de interpretação. Nesta, estão envolvidos
portanto a dissociação semântica, a etimologia retórica e o tempo. Essas três
dimensões respondem pela criação, historicização e temporalização da significação
e são dimensões interpretativas pouco consideradas no quadro da interpretação
midráschico-estruturalista.
Falta ainda um quarto elemento que nos permita fazer com que a
aproximação entre a interpretação psicanalítica e a retórica responda pela evocação

  78  
subjetiva que deve-se esperar de uma intervenção analítica. Isto é, se o paciente
não se “re-escutar” mais além do que “queria dizer”, simplesmente não podemos
falar em interpretação. Para atender a esta exigência devemos supor que a
estrutura da interpretação seja isomorfa à estrutura do sujeito. Ora, Lacan fala desta
estrutura a partir de dois modelos: a metáfora paterna e a banda de Moebius. No
primeiro caso o sujeito se define como um resíduo da metáfora. Assim como ele
será o resíduo do sintoma após a interpretação, isto é, uma questão e não apenas
saber sobre o sintoma. No segundo caso o sujeito se localiza no ponto de torção ou
corte da Banda de Moebius, o que permite defini-la como uma superfície sem
avesso e direito ou onde o avesso e o direito se intercomunicam. Tanto com relação
ao sujeito como resíduo da metáfora quanto como lugar de torção o estatuto do
sujeito é equivalente ao do paradoxo. Isto é, efeito-sujeito se associa à ruptura da
significação aparentemente totalizável. Por outro lado, o efeito-sujeito remete ao “a
mais de sentido” da retórica indiana.
O problema representado pelo conceito de sujeito pode ser brevemente
resumido da seguinte forma: se pensamos o sujeito como um lugar interno à
estrutura, no sentido de um sujeito inconsciente, ele responderia ao quesito
freudiano da sobredeterminação; isso, porém, comprometeria o projeto clínico da
psicanálise, uma vez que não faria sentido, nesses termos, falar em alteração da
posição do sujeito em relação ao sintoma ou em relação ao Outro. Pensá-lo assim é
teoricamente sustentável, mas operacionalmente problemático. Instalado em seu
lugar estrutural, o sujeito se fixa, imuniza a qualquer alteração.
Por outro lado, afirmar como uma exterioridade em relação à estrutura (um
sujeito desde o inconsciente), é retornar ao velho problema do fantasma na
máquina, uma vez que não se poderia precisar sua ligação com a estrutura. Se ele
é um efeito da estrutura, onde se poderia conceber tal efeito? Em algo fora da
estrutura? Fora da linguagem? Se optamos pela primeira leitura, localizamos o
sujeito no simbólico, se optamos pela segunda ele está no real. Estamos mais
propensos a admitir uma solução que se aproxime da segunda alternativa. Já que
este não é o tema imediato deste artigo retenhamos apenas que nas duas
alternativas o sujeito se manifesta como um paradoxo. Sua ligação com a estrutura
é por um lado lingüística (um efeito de linguagem) e por outro localizada no tempo
(que não possui uma estrutura, pelo menos no sentido lingüístico). Do ponto de vista
estrutural o tempo é o indutor de paradoxos, paradoxos estes que representam o
aparecimento do sujeito.
No nível da tática da interpretação este paradoxo pode ser entendido como
ruptura da verossimilhança e não como ruptura em relação à verdade. É a diferença
entre paradoxo lógico e o paradoxo semântico. Este último pertence por excelência
à retórica como mostra um pequeno apólogo das origens desta disciplina. Nele
Tísias viaja ao sul da Itália para ter aulas de retórica com Cárpax. Depois de algum
tempo este, considerando o ensinamento concluído, pede a Tísias um pagamento,
ao que este responde: “Se de fato me tornei um retórico, sou capaz de convencê-lo
de que não devo pagar, se no entanto não conseguir persuadi-lo, isso mostra que
não sou um bom retórico e portanto não devo pagá-lo”. Onde o axiomático procura a

  79  
solução para um problema, o retórico se contenta com o efeito de linguagem e sua
proliferação. No apólogo em questão a conclusão do ensinamento e o pagamento
são simultaneamente negados e afirmados. Se Tísias pagasse pelo ensinamento
recebido ele negaria tê-lo concluído. No entanto, a única forma de concluí-lo é
provar que ele não deve ser pago. Trata-se de um paradoxo semântico porque sua
chave é a significação que faz do retórico “aquele capaz de persuadir o outro”.
A figura retórica que resume a idéia de paradoxo semântico é o oxímoro.
Chama-se oxímoro uma oposição entre um termo e a qualificação que lhe é dada,
ou entre duas qualidades atribuídas a um mesmo termo, ou entre a simultânea
negação e asserção de um mesmo fato ou conceito (Plebe, 1992). O tó oxímoron do
grego refere-se literalmente ao “agudamente louco”. O oxímoro é a essência da
contradição semântica cujas variantes são o paradoxo (no sentido de figura retórica)
e a antítese. Ele é a realização semântica da coincidência entre os opostos, que a
dialética realiza no nível conceitual, a simultânea negação e afirmação.
Um aspecto do caso do Homem dos Ratos se presta à demonstração de
como o efeito da interpretação é tributário da figura do oxímoro. Trata-se de uma
fórmula protetora à qual o paciente recorria para livrar-se de certos pensamentos
libidinosos que lhe ocorriam em relação a determinada dama. Para impedir-se de
pensá-los ele proferia para si mesmo a palavra glejisamen, neologismo que
construíra da seguinte forma:

“gl” – glücklich (feliz)


“e”
“j” – jetzt und immer (agora e para sempre)
“is”
“amen” – amen (que assim seja)

A fórmula protetora remetia também ao próprio nome da dama (Gisela). A


significação do conjunto seria então: “Gisela, feliz agora e para sempre, amén”. É
nesse ponto que a interpretação proposta por Freud subverte o sentido da frase ao
escutar em glejisamen a terminação samen, literalmente “sêmen”. A fórmula
protetora reunia justamente o que visava evitar: a união de Gisela e sêmen pelo ato
masturbatório. Se examinamos agora o estatuto retórico da fórmula protetora
podemos afirmar que ele passa de uma antítese a um oxímoro. A interpretação
muda o estatuto retórico do termo: a Unterschiebung da significação obedece e é
extraída da problemática sexual, a partir da qual emergira.
O que aconteceria se o Homem dos Ratos recusasse esse transporte da
significação? Isso não seria surpreendente, uma vez que Freud desenvolve
extensas reflexões para explicar esse fenômeno: a resistência. Durante boa parte
da trajetória clínico teórica de Freud o tema da resistência ocupou um lugar de
destaque. Vencer as resistências seria uma das maiores dificuldades técnicas de
uma análise. À medida que este ponto ganha em importância multiplicam-se no
texto freudiano os lugares de proveniência do agente da resistência: ego, id,
superego. A análise se transforma então no problema da solução das resistências, o

  80  
que permanece como problema clínico crucial especialmente no cenário pós-
freudiano.
O conceito de resistência se dilui e torna-se perigosamente próximo do tema
da conversão (no sentido de persuasão ou doutrinamento). Ele pode nos colocar,
em termos da recepção da interpretação, numa situação do tipo: cara eu ganho,
coroa você perde. O que legitimaria a validade da interpretação seria uma
“inquestionável” capacidade do analista de perceber a realidade tal qual ela é, limpa
e expurgada das ilusões e devaneios neuróticos.
Ora, pensar que a validade da interpretação se dá pela verdade que ela
expressa sobre a realidade psíquica, é situar o problema absolutamente fora do
âmbito retórico da verossimilhança, é confundir, desprevenidamente, retórica e
filosofia. Por outro lado, é fazer pender excessivamente a legitimidade para o lado
do analista. Ao conduzir o problema desta forma, pretende-se extrair da psicanálise
uma teoria do conhecimento. Gellner (1985) apontou que esta teoria nada mais é do
que uma forma de realismo ingênuo e incondicional. Simanke (1994) trabalhando
sobre um outro ponto de vista (o tema das psicoses), mostrou que tal realismo,
mesmo que assimilado à posição epistemológica de Freud, merece um refinamento
de que a teoria da resistência não nos provê, ao reunir a realidade psíquica à
totalidade do mundo subjetivo. O caminho tomado por Lacan é outro e pode ser
resumido em dois pontos:
a resistência é efeito da intromissão imaginária que tende a incluir o analista como
um objeto (i(a)), recíproco e simétrico ao analisante. Analisar a resistência seria
portanto escutar a emergência do simbólico que atravessa essa posição alienante;
a resistência é fundamentalmente resistência do analista quando este se entrega à
reciprocidade proposta pelo analisante. Se o paciente não acede à palavra é porque
o lugar ocupado pelo analista veda, obtura a possibilidade do dito.
Pensamos que uma parte das resistências do analista se refere ao modo
como este faz introduzir a vertente retórica de suas intervenções. As próprias
metáforas que cercam o termo como: ‘vencer a resistência’, ‘a luta contra a
resistência’ etc. expressam o tom agonístico, próprio à retórica. Se assumirmos esta
perspectiva, devemos estar aptos a responder não apenas porque o âmbito da
resistência implica na retórica ou estilística do analista, mas também como a
concepção não retórica extrai sua eficácia.
De fato, a perspectiva que pretende passar da ilusão à realidade a partir da
translucidez do analista não deixa ela própria de ser uma estratégia retórica. A
nosso ver esta estratégia é sofrível pois se apoia num único tipo de argumento: o
argumento de autoridade. Esse argumento não pode ser absolutamente descartado
e há situações extremas onde ele parece ser o único recurso possível. Fundar,
contudo, toda a questão a partir daí é descartar de vez a racionalidade e nos
entregarmos à Überlistung (sugestão), confundindo psicanálise com psicoterapia.
Outro problema grave que daí surge é a preservação da idéia que assimila o
dispositivo analítico a uma situação em que se trata de convencer alguém de algo. A
retórica na psicanálise encontra-se ao lado da convicção e da emergência da
certeza que caracteriza o momento de concluir e não ao lado da crença numa certa

  81  
explicação sobre o inconsciente e suas conseqüências. Desta forma, se uma
interpretação não vigora como tal, no efeito que a caracteriza, é porque de fato ela
não é uma interpretação.
Concluindo, o reconhecimento de certas dificuldades derivadas do modo
estrutural de conceber a interpretação levaram-nos a pleitear um uso alternativo da
retórica. A possibilidade de discutir temas clínicos como o sintoma, a resistência e a
interpretação à luz desta proposta não nos privou de estabelecer um diálogo com a
metapsicologia. Entendemos que se trata de uma aproximação preliminar e que
depende de um esclarecimento de suas implicações éticas, bem como da
elucidação da questão da verdade em psicanálise para que em seu conjunto a
proposta se sustente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRÉ, S. (1987). O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
AUSTIN, J. L. (1990). Quando dizer é fazer –palavras e ação. Porto Alegre: Artes
Médicas.
DELAS, D. e FILLIOLET, J. (1975). Lingüística e poética. São Paulo: Cultrix/EDUSP.
ECO, U. (1971). A estrutura ausente. São Paulo: Perspectiva.
_______. (1991). Semiótica e filosofia da linguagem. São Paulo: Ática.
_______. (1993). Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes.
FREUD, S. (1989). Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu [“La interpretacion
de los sueños” (1900); “Fragmento de análisis de un caso de histeria” (1905); “A
proposito de un caso de neurosis obsessiva” (1909); “Sobre el fetichismo” (1927)].
GELLNER, H. (1980). O movimento psicanalítico. São Paulo: Martins Fontes.
JURANVILLE, A . (1984). Lacan e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
KANT, I. (1992). Kritik der Praktischen Vernunft. Stuttgard: Reclam.
LACAN, J. (1987). Escritos. México: Siglo XXI [“Função e campo da palavra e da
linguagem em psicanálise” (1953); “Variantes de la cura tipo” (1955); “La instancia
de la letra en el inconsciente o la razón desde Freud” (1957); “A direção da cura e
os princípios de seu poder” (1958); “La metáfora del sujeito” (1961)].
________. “L’Étourdit” (1973). Scilicet, n.4. Paris: Seuil.
LAPLANCHE, J. e PONTALIS, B. (1986). Vocabulário de psicanálise. São Paulo:
Martins Fontes.
MAHONY, P. (1987). “O lugar do tratamento psicanalítico na história do discurso”. In
Psicanálise e discurso. Rio de Janeiro: Imago.
MANNONI, O . (1991). “O divã de Procusto”. In MACDOUGALL, J. (org.). O divã de
Procusto, (org.). Porto Alegre: Artes Médicas.
MILLER, J. A. (1989). La envoltura formal del sintoma. Buenos Aires: Manantial.
________. (1994). Seminário sobre a interpretação: E = UWK. Buenos Aires.
PETERS, F. E. (1990). Termos filosóficos gregos – um léxico histórico. Lisboa:
Calouste Goulbekian.
PLEBE, A. (1978). Breve história da retórica antiga. São Paulo: EPU/EDUSP.

  82  
________. (1992). Manual da retórica. São Paulo: EDU/EPUSP.
PRATES E SILVA, R. (1973). Isócrates e a filosofia. Dissertação de mestrado.
Araraquara: FFCL.
SIMANKE, P. (1995). A formação da teoria freudiana das psicoses. São Paulo:
Trinta e Quatro.
SOLER, C. (setembro de 1994). “Seminário sobre a interpretação”. Inédito.
ZIZEK, S. (1990). Eles não sabem o que fazem – o sublime objeto da
ideologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

  83  
A ÉTICA DA INTERPRETAÇÃO

Christian Dunker

Considerar o tema da interpretação a partir da sua dimensão ética não


significa apenas ter em vista o valor judicativo que pode permear certas
intervenções mas nos exige uma explicitação da própria ética que compõe o cenário
discursivo onde esta interpretação é possível. Uma posição bastante consolidada no
espaço psicanalítico contemporâneo é a de que a psicanálise possui uma ética
específica e irredutível à da medicina, da ciência ou da religião. Esta tese da
especificidade ética vem sendo utilizada até mesmo para situar a diversidade das
correntes psicológicas (Figueiredo, 1995) ou para a crítica social da psicanálise
(Gellner, 1985). É interessante notar que até mesmo uma ciência como a
economia pode ser repensada a partir da tese da ética distintiva e do seu papel na
produção (Fonseca, 1994).

Nosso objetivo, neste trabalho, será o de examinar os pressupostos básicos


desta ética no caso da psicanálise e em seguida mostrar como estes pressupostos
interferem na atividade interpretativa. O autor que se dedicou mais
sistemáticamente à configuração de uma ética da psicanálise foi Lacan.
Circunstâncias institucionais precisas que envolviam a questão da formação de
analistas na década de 50 bem como a necessidade teórica de precisar a ação do
analista certamente concorreram para a emergência do tema da ética.

Dois aspectos fundamentais da clínica exigem mais diretamente uma


reflexão ética: a transferência e o sofrimento psíquico. A transferência pois ela é o
vetor fundamental para entender como uma fala é acolhida no interior do
tratamento. O sofrimento psíquico pois apesar da psicanálise não se resumir a uma
terapêutica é a partir do reconhecimento do estatuto particular do sofrimento
neurótico ou psicótico que se pode avaliar boa parte de suas pretensões clínicas.

Na obra de Lacan os temas da ética, da transferência e da angústia formam


um feixe de reflexões que se concentra entre 1959 e 1964. Este período contém
ainda um tema subsidiário recorrente: o desejo do analista. A preocupação teórica
que se desenvolve em torno destes temas visa constituir a psicanálise para além de
uma terapêutica além de responder à difícil situação do quadro institucional relativa
ao problema da formação de analistas. As indicações de Lacan procuram sempre
destacar a psicanálise de uma visão de mundo (como aliás já o fizera Freud), mas
igualmente se nota um certo desconforto em acomodá-la como uma variante das
ciências aplicadas, como a medicina. A solução que se insinua é postular que a
psicanálise não apenas possua uma ética, mas seja uma ética, uma ética cujo
campo é a linguagem. Uma ética do bem dizer como se formula no Seminário VII .

  84  
É próprio de nosso século traduzir as questõers clásicas da filosofia em
termos da âncora metafísica que nos domina, qual seja, a linguagem. Assim os
antigos problemas éticos que giravam em torno da forma como realizamos nossas
escolhas e as orientamos a partir da distância entre o que é e o que deveria ser ou
entre o que ocorre e o que gostaríamos que ocorresse se transformam, à luz da
consideração de que o ato humano por excelência é o ato na linguagem ou com a
linguagem.

Um linguísta como Mainguenau (1990), observou que os contextos


discursivos são figuras notadamente éticas. Recuperando o uso do termos ethos
(comportamento, hábito) este autor mostrou como em Aristóteles (Retórica) ethos
se refere à inspiração fundamental de um discurso. Aristóteles fala em três ethos, o
da sofrosine (sabedoria), o da aretê (virtude) e o da enóia (sedução). Cada ethos
discursivo traria consigo toda uma forma de encarar as relações com o outro, um
estilo e uma teoria de como devemos agir e considerar nossas ações. Participar de
um ethos discursivo é partilhar uma forma de vida e as suposições e obrigações que
ela implica. Processos fundamentais da cultura contemporânea como a propaganda,
a assimilação de tecnologia, a religiosidade e mesmo a forma de considerar o
sofrimento psíquico se traduzem em geral pela concorrência de diversos ethos
discursivos. Estabelecer os termos em que uma questão será discutida é, em geral,
vencer a discussão. Estabelecer o ethos da questão é incluí-la na forma de
linguagem em que a questão será tratada. Se todo problema encerra sua própria
solução o que torna possível a emergência de uma rede de problemas não é outra
coisa que não o ethos discursivo.

A nosso ver Lacan participa deste movimento propondo a tradução de uma


questão clássica - Como agir ? Como julgar nossas ações ? em termos equivalentes
a - Como agir na linguagem dada a hipótese do inconsciente ? ou - Como julgar
nossos atos linguísticos na situação de análise ? Comparemos portanto as
principais posições contemporâneas quanto a forma de tradução da ética em termos
de linguagem com o objetivo de mostrar o nível distintivo em que se encontra a
psicanálise e em que medida o ethos discursivo da psicanálise concorre e se alia a
outros. Nosso interesse panorâmico é mais um convite à avaliação das categorias
propostas e dos termos nelas incluídos do que a exaustão do assunto, o que
transcenderia os limites deste trabalho. Neste sentido podemos isolar cinco
concepções fundamentais sobre a ética no pensamento contemporâneo:

(1) uma ética ligada a uma práxis negativa: como se pode extrair do pensamento
da Escola de Frankfurt e de seus continuadores, mas que também transparece no
cultivo sartreano das aporias éticas e no pensamento de Cioran e Rosset. Conciliar
razão subjetiva e razão objetiva ou se transforma no exercício ético fundamental ou
conduz à admissão de um insolúvel. Para esta perspectiva trata-se de criticar
qualquer ideal de totalização ou universalização harmonizante pelo exame dos seus
núcleos de equivalência: o capital, a lógica formal e o inconsciente. O sofrimento

  85  
individual é considerado à luz da ligação intrínceca entre cultura e barbárie. Por em
ato, teóricamente (a práxis negativa por exemplo), ou experimentar essa
contradição (a náusea por exemplo) são os horizontes possíveis. A atividade
interpretativa preserva o núcleo duro do objeto como perspectiva. Interpretar se
assimila à noção de crítica, como tal seu objetivo é a contínua desobstrução das
categorias reificantes. No entanto o sentido desta atividade tem seu fim em si
mesmo, ela é o espaço que resta à liberdade num mundo comandado pela técnica e
pela escolha forçada. A crítica imediata a esta perspectiva passa pelo seu caráter
excessivamente teorético.

(2) uma ética ligada a uma práxis positiva: como se apresenta no discurso
marxiniano de interlocução psicológica que vai de Reich e Politzer a Marcuse. Essa
perspectiva assume o compromisso direto como a idéia de "transformação social"
conectando o sofrimento individual às contradições orgânicas da sociedade. Sua
proposta, de índole modernista, aposta no ideal de totalização como solução efetiva
para a contradição entre o público (Estado) e o privado (socieddade civil). O
horizonte possível passa pela crítica da ideologia, encarada como
desmascaramento, e o acesso à consciência exemplar, motor da transformação
desejada. Nela a interpretação se organiza a partir de categorias consideradas
como determinantes do momento de contradição de um processo. Interpretar é
conduzir os signos desta contradição à sua explicitação e resolução. Está em jogo
uma perspectiva objetivante onde a interpretação pode ser avaliada como
verdadeira ou falsa a partir de seu caráter crítico ou ideológico. A interpretação visa
não apenas desobstruir as categorias reificantes e alienantes mas atingir o próprio
núcleo da realidade histórica. A crítica de praxe se dirige a seu excessivo
economicismo.

(3) uma ética transcendental-universalista: talvez a mais clássica das que aqui
apresentamos pois remonta a Platão (pelo aspecto transcendental) e Aristóteles
(pelo caráter universal da razão humana). Seu postulado fundamental é de que o
acesso a um determinado saber se liga lógicamente a uma ação "virtuosa". É a ética
moderna por excelência. O sujeito em questão é uma entidade epistêmico-
transcendental, a essência da consciência autônoma. O sofrimento torna-se então a
falta deste saber ou falta das condições de possibilidade para sua aparição. A
solução passa pela injeção deste saber produtor da conduta ética. De Piaget a
Skinner, do discurso psicopedagógico ao psicanalismo (eventualmente
combinados), de Bordieu à empreitada neopragmática de Apel essa vertente é uma
espécie de herdeira otimista do ideário das iluminista. Progresso e desenvolvimento
dominam a perspectiva que visa garantir a autonomia da razão. Interpretar, para
esta vertente, é reduzido a explicar, isto é, remeter um fenômeno à sua causalidade.
Aqui a interpretação busca não apenas um sentido mas o sentido, isto é, a
adequação ou correspondência representacional entre o intelecto e a coisa. A
verdade da interpretação traz consigo o ideal de unificação entre o aspecto lógico,
relativo à conexidade e coincidência do pensamento ou do juízo consigo mesmo e o

  86  
aspecto ontológico, relativo à fenomenalização do mundo tal como ele é, na
heteronomia que lhe é própria. A interpretação busca se sustentar portanto em
categorias transhistóricas e positivas de tipo biológico, metafísico ou mesmo
teológico. A crítica que se coloca é seu intelectualismo.

(4) uma ética desconstrutivista: que se poderia associar aos pós nietzscheanos e
pós heideggerianos de Foucault a Derrida e uma parte do discurso da "pós
modernidade", Deleuze, Guatarri, mas também Gadamer. Tem como projeto a
crítica das metafísicas objetivistas, subjetivistas, humanistas, etc., a partir de sua
implantação nas formas de uso e apreensão da linguagem. Herdeira do romantismo,
nela se nota uma estetização da ética como forma de superar as dicotomias
clássicas:sujeito/objeto, capital/trabalho, significante/significado, etc. Sua gestação
se dá no interior da chamada perspectiva pós-moderna. O sofrimento ganha aqui o
aspecto do aprisionamento e da angústia gerada pela sedimentação de certas
práticas discursivas ( o falocentrismo, por exemplo). O horizonte possível passa pela
valorização do fundo ambiente da linguagem, pela invenção de novos "jogos de
fala". Interpretar é dar prosseguimento ao discurso, remetê-lo à sua teia de
intertextualidades. Não há um objeto intensional compartilhado capaz de
exteriormente legitimar os critérios de verdade da interpretação. Interpretar é deixar-
se falar por um certo ambiente de linguagem e eventualmente produzir eventos,
efeitos, agenciamentos semióticos cuja medida é estética._A crítica imediata à esta
vertente se remete ao "despotismo" ou à tirania que ela sutilmente introduz.__

(5) uma ética pragmática: que se poderia associar aos projetos de Habermas e
Rorty, mas também aos herdeiros do segundo Wittgenstein, como Davidson. Seu
postulado geral é a primazia do contrato imanente à situação de comunicação. A
linguagem é questão de convenção, de contrato portanto. O sujeito em jogo é o
sujeito dos interesses, orientado pela economia do prazer e da utilidade. A
sociedade do Bem Estar é seu corolário fundamental. Sua apreensão da linguagem,
em geral, combina a fenomenologia com a tradição analítica (especialmente Searle
e a teoria dos atos de fala). Ricoeur, nesse sentido é um exemplo paradigmático.
Seu encaminhamento ético busca as condições de possibilidade de um debate
viável e "razoável", o que não quer dizer "racional". O relativismo constitui-se
portanto como uma espécie de condição da ética pragmática. O sofrimento é
entendido aqui ou como exclusão (do ambiente discursivo, o LebensWelt) ou como
efeito da falta de entendimento e compreensão intersubjetivos. Interpretar aqui é
fundamentalmente fazer, construir uma nova forma de vida, um novo jogo de
linguagem. Este fazer interpretativo desqualifica a possibilidade de critérios
transcendentais de verdade. Tais critérios são substituídos pela convenção e pela
força e "felicidade" do ato de fala (para usar um termo de Austin) ou pelo contexto
em que uma re-descrição se realiza. Desta forma se criam comunidades de
falantes ao qual cabe legitimar os jogos de fala possíveis. Há portanto uma
autoregulação da interpretação no interior dessa comunidade, regras para a conduta

  87  
hermenêutica que são definidas por uma concorrência de descrições. A premissa
comunicativa se vê preservada e como tal o ideal de entendimento intersubjetivo. A
crítica imediata à esta perspectiva se refere à ingenuidade com que considera a
figura do interlocutor.

Do ponto de vista epistemológico a discussão com as posições acima


representadas possui sua própria história. Pretendemos examinar aqui a situação
do ponto de vista da ética, e de suas consequencias para a interpretação.

Façamos um esclarecimento. A hipótese que perpassa esta introdução é que


quando a psicanálise justifica sua prática a partir e no interior de uma certa
concepção de linguagem esta justificativa não implica apenas na escolha da mais
adequada versão sobre o que seja "a linguagem". A escolha não é meramente
epistemológica. Quando o linguísta ou filósofo procuram entender a linguagem sua
posição diante do problema visa alcançar ummodelo geral ou particular para o
funcionamento desta. O problema é equivalente, por exemplo, a determinar se as
órbitas dos planetas são elípticas ou circulares. No caso da psicanálise a discussão
sobre a linguagem está impregnada pela dimensõa ética. Isto porque a clínica, seu
interrogante fundamental, é um espaço onde não apenas cabe saber como os
acontecimentos (no caso acontecimentos de fala), mas como eles deveriam se dar
ou o que nos é possível esperar a partir da concepção de linguagem utilizada.

Em que medida a psicanálise, e mais precisamente o pensamento de Lacan,


responde e argumenta com as posições apresentadas tendo em vista a referência
tomada em relação à linguagem ? Em que termos se pode falar de uma ética
própria à experiência analítica ? Esta perspectiva teria como horizonte a inclusão
do inconsciente e do desejo como seus princípios fundamentais. A sublimação, por
um lado, e a invenção de uma "nova" relação com a fala, por outro são duas
vertentes localizáveis. Seu modo de considerar o sujeito pensa-o como duplamente
dividido: entre o falar e o dizer e entre o prazer e o gozo. O sofrimento decorre
diretamente desta divisão, não sendo portanto integralmente eliminável. Sua
estratégia é reduzir o a-mais de sofrimento produzido, especialmente nos modos
neurótico e psicótico de relação com o inconsciente. Encontramos por trás desta
ética, que se pretende trágica, a promessa de um novo tipo de laço social, de uma
nova "erótica" e uma nova forma de relação com a lei. A crítica que a ela se pode
endereçar diz respeito ao seu caráter relativista-particularizador que torna
incomensuráveis, por exemplo ética (privada) e política (pública). Até o momento
suas pretensões se referem às de uma ética regional. Interpretar, nesta perspectiva,
se justifica a partir de uma categoria problemática: o inconsciente. Certamente as
cinco dimensões precedentes poderiam absorver este conceito à sua maneira,
transformando-o respectivamente:

(1) numa determinação e num determinante da cultura

  88  
(2) numa categoria histórico-antropológica
(3) num ente metafísico-ontológico
(4) numa categoria estética
(5) numa condição de possibilidade do consenso social

A especificidade da interpretação psicanalítica, decorre portanto da forma de


absorção do conceito de inconsciente. Apesar das versões examinadas constituirem
ao seu modo uma ética ligada à forma de conceber o estar na linguagem, nenhuma
delas pensa o estatuto do inconsciente como ele mesmo de ordem ética. É o caso
da psicanálise. Isto significa dizer que estamos às voltas com a responsbilidade
possível que um determinado sujeito poderia manter com relação a algo que lhe
aparece de forma paradoxal como não seu, como estrangeiro a si mesmo. A
hipótese do inconsciente pressupõe, no nível ético, um modo de nos relacionarmos
com nossas próprias sombras, com o que rejeitamos e configuramos como
fundamentalmente dejeto não incluído. Interpretar, neste sentido é radicalizar a
relação ética do homem com sua palavra e com um aspecto subversivo desta: o
desejo. Interpretar é reconhecer este desejo, bem dizê-lo sem no entanto todo dizê-
lo. O termo bem, da expressão anterior, supõe por um lado o campo ético, por outro
uma forma já subentendida de dizê-lo mal. É o que ocorre, notadamente no
sofrimento psíquico gerado pelo sintoma, pela inibição e pela angústia. Um autor
como Badiou (1994), no quadro de reflexão que busca uma nova teoria do sujeito,
chega a postular que uma ética do mal seria justamente uma ética do todo dizer,
uma ética que não admitisse e reconhecesse o estatuto próprio e irredutível do
dejeto e do excluído.

Enquanto um projeto atento às vicissitudes do falante singularizado a ética


da psicanálise é anti-universalista e anti-normativa. A verdade da interpretação se
mostra como efeito da inadequação entre o sujeito e o desejo. A verdade é menos
uma representação verdadeira sobre um determinado estado de coisas subjetivo
(no mundo interior por exemplo) e mais uma experiência, um encontro com o dizer.

Procurando as raízes da ética discursiva em Lacan não podemos deixar de


assinalar as ligações que este autor mantém com o surrealismo. Tanto do ponto de
vista biográfico (Raudinesco, 1992, 1994) quanto do ponto de vista teórico (Das
Concepções Paranóicas do Estilo, 1933) a presença do surrealismo é atestada. A
idéia de que o conhecimento possui uma dimensão paranóica, que se preserva
ainda à altura do Seminário I (1953), provavelmente remonta a uma sugestão de
Salvador Dali. No entanto mais do que intuições promissoras o que o surrealismo
fornece é um desligamento entre ética e moral capaz de organizar a ação
discursiva descolando-a da antiga questão sobre os valores e sua fundamentação.

O hiato entre o que se é e o que se deveria ser é preenchido pelo


reconhecimento do absurdo dos termos em que se coloca a questão. O surrealismo,

  89  
de acordo com a interpretação sugerida por Figueiredo (1991) é uma estética
eticista, propõe além de uma nova concepção de arte uma espécie de estilo de vida.
Segundo uma das numerosas definições fornecidas por Breton (1985) o surrealismo
é: "um automatismo psíquico que procura demonstrar o real pensamento a par de
qualquer pressuposto moral." Trata-se de uma forma de antídoto para os problemas
da vida social e moral. Isto combina com a associação com o partido comunista por
parte de vários dos integrantes do movimento como Aragon, Prevet, etc. O
surrealismo contém uma pesquisa sobre um certo formato do diálogo. Um diálogo
que dispensaria os interlocutores da polidez e escrupulosidade reflexiva. O bom
diálogo é aquele onde se fala o que se quer e escuta-se o que não se quer, ao
contrário dos diálogos tradicionais onde fala-se para dar e receber prazer ou
informação ou para firmar contratos. É como se estivéssemos às voltas com uma
disciplina da não disciplina verbal.
Breton logo percebeu as semelhanças de tal diálogo com a associação livre e
com a experiência analítica em geral . Procura contatos com Freud e Jung mas os
encontros não são frutíferos. Lacan, que nesta época esboça sua aproximação com
o hegelianismo de Kojéve, está às voltas com algo muito parecido, uma forma de
diálogo e um tipo de fala capaz de produzir efeitos de transformação tanto ao nível
da remoção dos sintomas quanto de reunir em termos hegelianos a moralidade
privada (Moralitat) e a ética pública (Sittlichkeit). A linguagem, por ser ao mesmo
tempo universal (língua) e particular (fala) oferece-se como o campo privilegiado
para realizar tal empreendimento. O esboço de uma lógica do coletivo, tal qual
aparece no texto sobre o tempo lógico (1945) e no ensaio sobre o mito individual do
neurótico (1953) não deixam de ter como horizonte a invenção de um ethos
discursivo.

No Seminário VII o projeto de uma ética da psicanálise muda de contornos.


Uma ética puramente discursiva teria que incorporar uma parte da teoria freudiana
por natureza mais refratária à esta absorção: a teoria das pulsões. Como introduzir
as vicissitudes da satisfação pulsional em relação a uma ética sem ao mesmo
tempo perder o caráter subversivo da sexualidade ? Como posteriormente alertará
Foucault (1985) muitas vezes falar sobre a sexualidade, libertá-la dos seus
meandros privados, não é mais que submetê-la à um novo jugo discursivo tão ou
mais aprisionante. De fato o modelo ético suposto a partir da teoria das pulsões não
se refere à dicotomia ocultamento revelação.

Seria mais apropriado falar numa espécie de ética parasita, uma ética cujo
fundamento é mostrar as fraquezas dos ideais das éticas discursivas concorrentes
em termos da forma como devemos lidar com a sexualidade. Nào há discurso
autorizado sobre a sexualidade singularizada. No entanto para que isto seja
possível é necessário antes singularizar a sexualidade, historicizando-a, por
exemplo. É nesse sentido que o Seminário sobre a ética se abre com uma investida
furiosa de Lacan contra os ideais adaptacionistas dizendo o que não comporia os
pilares da ética da psicanálise, a saber:

  90  
1) a resignação diante da perda ou falta do objeto (nos termos de uma ética estóica)
2) a perspectiva do amor concluído (como postulam as éticas de extração
romântica)
3) o ideal de não dependência e autonomia (como quer a ética transcendental-
universalista de inspiração liberal)
4) o ideal do caráter adequado (como pretende uma ética disciplinar)

Todos estes ideais seriam tributários de uma certa cultura da culpa e são
exteriores e anteriores à psicanálise. Todos eles se sustentam numa perspectiva
aristotélico kantiana onde o fundamento ético remonta a um Bem Supremo e à
conduta adequada e conforme a este ou, acrescentemos, ao reconhecimento do
Mal Supremo (Hobbes) e à conduta adequada e conforme para evitá-lo. O problema
maior para pensar a ética da psicanálise nesses termos é que as idéias de princípio
do prazer por um lado e princípio de realidade por outro são inconciliáveis com o
universalismo implícito na noção de Bem supremo. Tendo em vista textos como Mal
Estar na Civilização, Por que a Guerra ? , etc transparece o pessimismo freudiano
ante a possibilidade de resolução desta oposição. Ora, bem antes da psicanálise o
utilitarismo de Bentham e a teoria política de Maquiavel já haviam percebido o tom
artificial dos ideais agregadores e a ingenuidade que implicam no trato da coisa
ética.

Lacan salientará, em resposta a dialética do prazer-realidade, o papel da


pulsão de morte, destacando-se assim da posição utilitarista. Além dos objetos
parciais da satisfação pulsional e da sua eventual indisponibilidade o problema é
que a ação não pode ser avaliada em termos de um puro cálculo de custos e
benefícios porque nem sempre o prazer se reduz ao benefício e os custos à
realidade. A crítica de Lacan ao utilitarismo é que este desconhece a distinção entre
prazer, satisfação e gozo. Nem sempre o que nos dá prazer nos traz satisfação e
vice versa, assim como nem sempre a dor nos traz insatisfação e desprazer.

A tese de Lacan é que para além da dialética entre princípio do prazer e


princípio da realidade haveria o fundo que a torna possível, este fundo é designado
pela Coisa (Das Ding). A Coisa se define em vários sentidos: como o Outro
absoluto, como o fora do significado e como o núcleo mesmo da repetição
(Wiederzufinden). Trata-se de uma unidade velada e pertencente ao regime do
Real. É justamente a Coisa o que traduz o Bem Supremo na psicanálise. A Coisa é
a Mãe, o Objeto perdido e na condição de perdido, a partir do qual se tecerá uma
rede significante de ocultamento. A Coisa figura assim como uma espécie de
negatividade fundamental que o prazer e a realidade virão a encocobrir. O que o
fantasma na neurose realiza é a ocupação deste vazio com um objeto, o objeto a
tomado em sua identificação narcísica ao eu.

  91  
Esta separação entre o objeto e a Coisa de fato imuniza Lacan contra o
argumento utilitarista contudo traz consigo um outro decalcamento. Esta separação
se aproxima do que Kant propunha na Crítica da Razão Prática em termos de uma
separação entre o "wohl" (bem, no sentido do que nos trazem os objetos
fenomênicos de usofruto) e o "Gute" (Bem, no sentido de um imperativo
transcendental de preservação da razão e do dever ("sollen") que ele implica). O
perigo da posição tomada por Lacan aqui é que ela aproxima o "Gute" da Coisa e o
"wohl" do objeto a. A diferença residiria unicamente no fato de que no caso de Kant
estamos diante de uma positividade formal enquanto no caso de Lacan se trataria
de uma negatividade. A diferença a rigor seria entre uma teologia positiva e uma
teologia negativa. Portanto não se trata simplesmente de negativar o Bem e mostrar
a perversão constitutiva do objeto substitutivo mas de pensar justamente uma ética
da relação entre objeto (prazer) e Coisa (gozo). Pra fazê-lo Lacan recorre ao
fragmento de otimismo da teoria freudiana: a sublimação.

A sublimação se refere em termos freudianos à utilização da pulsão sexual


onde esta é derivada para um novo alvo não sexual e que se liga a instâncias
socialmente valorizadas como a atividade artística e a investigação intelectual. O
alvo (Ziel) da pulsão é sempre a satisfação, quer no seu modo ativo, que no
passivo. Portanto o que se está em jogo na sublimação é uma satisfação de tipo
diferente em relação a outras montagens pulsionais como a formação reativa, a
inibição quanto ao alvo, a idealização e o recalcamento. Esta satisfação alternativa
à neurose se encontra pouco definida, em termos metapsicológicos, por Freud.
Sabe-se que um manuscrito relativo ao tema e que integraria o conjunto de textos
metapsicológicos de 1915-1917 foi perdido.

Como tornar compatível a teoria da libido e a possibilidade da sublimação ?


Em relação à primeira tópica a sublimação corresponde a um desvio da libido em
relação ao objeto tornado interditado. Como distinguir tal desvio do reinvestimento
sintomático ? Simplesmente pelo tipo de objeto, quanto à sua pertinência social ?
Mas justamente o sintoma não se ajustaria perfeitamente a certas pertinências
sociais, como na instrumentalização obsessiva do trabalho no mundo
contemporâneo ?

No quadro da segunda tópica Freud fala da sublimação referindo-se ao fato


de que nela se utilizaria uma "libido dessexualizada", pertencente à esfera do Ego.
Ora, as duas posições sobre o assunto conduzem a um franco paradoxo. Falar de
uma satisfação pulsional em relação a um alvo não sexual, no quadro da primeira
teoria da libido, é referir-se às pulsões de autoconservação (cuja energia é o
interesse e não a libido). Desta forma a sublimação seria uma espécie de contraface
da teoria do apoio, isto é, ao invés da pulsão sexual se apoiar (Anlehnung) nas
pulsões de autoconservação, ela se separaria desta e pela sublimação retornaria
aos seu emparelhamento original. Isto seria uma alternativa à neurose uma vez que
o conflito que a gera se dá entre a pulsão de autoconservação e a pulsão sexual.

  92  
No entanto esta tese se altera a partir de 1914 com a introdução do
narcisismo e o deslocamento do conflito fundamental para a esfera interior às
próprias pulsões sexuais, entre libido do eu e libido do objeto. Finalmente a partir
de 1920 o conflito volta a ser situado entre algo sexual, a pulsão de vida (que reúne
a antiga pulsão sexual e a de autoconservação) e algo de ordem extra-sexual, a
pulsão de morte. É justamente a este momento que pertence a tese de que a
sublimação implicaria em dessexualização da libido. Contudo, libido não sexual
simplesmente não é libido, ou então estaríamos diante de uma contradição bastante
séria em termos teóricos. Uma solução seria pleitear que a dessexualização da
libido seria uma passagem desta ao domínio da pulsão de morte, isto é à condição
da energia própria à esta pulsão: a separação ou fragmentação. Isto se chocaria
frontalmente com as indicações iniciais da sublimação como ligada aos objetos de
interesse social e ao próprio otimismo que cerca o conceito.

É em face deste quadro de incerteza conceitual que Lacan introduzirá um


conceito que responda às exigências teóricas de uma "libido dessexualizada".
Trata-se do conceito (seria mais apropriado falar em noção) de gozo. O gozo seria
uma parte da pulsão de morte que não se libidiniza, isto é, que não se conjuga à
dialética do princípio do prazer e princípio da realidade. O gozo é a energia psíquica
correspondente à pulsão de morte, a destrutividade desde que associada a um tipo
paradoxal de satisfação (como no masoquismo). O gozo representa portanto a
porção do Real irredutível à cadeia significante: "... o que do real padece do
significante" (Seminário VII).

Clinicamente o gozo corresponde ao que Freud chamava de ganho primário


do sintoma, ganho que reponde sempre a um imperativo superegóico. Podemos
distinguir três modalidades de realização pulsional: o prazer, aquilo que se obtém ao
nível da zona erógena; a satisfação, o que se obtém pela passagem do gozo à
cadeia significante e o gozo, aquilo que se obtém na posição de objeto. Desta
maneira torna-se conceitualmente viável falar em libido dessexualizada. Libido
dessexualizada supõe a passagem do gozo à cadeia significante (leia-se ao nível
próprio ao desejo) e daí seu reenvio a uma dimensão que possua a "dignidade" da
Coisa. É essa a definição que Lacan dá da sublimação: "elevar o objeto à dignidade
da Coisa." Sublimar, neste sentido, é produzir, criar, reinventar mesmo a falta e a
negatividade do objeto. Três exemplos são oferecidos desses processo: o amor, o
processo de criação e a relação com a morte.

O primeiro exemplo é extraído por Lacan de uma formação literária precisa: o


amor cortês. As cantigas do trovadorismo português, especialmente as de amor e
de amigo são formas acessíveis do que está em questão no exemplo. Nelas a dama
é louvada à condição de sua ausência fenomênica. O epistolário amoroso entre
Abelardo e Heloísa, pode ser situado como um precedente medieval importante
deste discurso cujo centro é a elevação da dama à condição de Dama.

  93  
No caso da criação o exemplo é tomado de Heidegger e da forma como este
autor a concebe. No artesanato grego arcaico, por exemplo, a modelagem de uma
ânfora supõe uma espécie de contorno do vazio central. O fundamento do vaso está
justamente naquilo que não o compõe mas no que ele cerca, envolve. É a criação
de um espaço de utilização cuja condição é o seu não preenchimento. Criar torna-se
assim, em termo lacanianos, rodear A Coisa de significantes.

O caso da relação com a morte, que aproxima sublimação e luto, também é


extraído do cenário grego. Seu modelo é a tragédia e em especial a de Antígona de
Sófocles. De fato a interpretação de Lacan é empobrecedora se tomada em termos
estéticos literários e mesmo filosóficos. Contrariando a tradição que localiza nesta
tragédia o conflito entre o Estado (Creonte) e a sociedade civil (Antígona), Lacan
valoriza a posição heróica de Antígona e seu desejo de celebrar os ritos fúnebres do
irmão Polinice. Ao enfrentar as leis da pólis Antígona se coloca mais além do
princípio do prazer-realidade e do serviço dos bens que por ele se implica.

Arendt (1983) comentanto o ideal grego de imortalidade, no qual se insere a


gravidade do ato de Antígona se deixasse seu irmão insepulto, mostra como esse
ideal é imanente à presença do espaço público, lugar da liberdade e da diferença
entre iguais. Antígona comete o ultrapassamento, o excesso (hybris) trágico, pois
faz as leis do espaço familiar (oikós) prevalecer sobre as do espaço público (pólis).
Seria portanto uma ética do espaço privado, do estilo de vida, o que encontraríamos
na psicanálise ? A morte, o amor e a criação se opõem aos contextos clássicos da
ética: a imortalidade, a diferença-liberdade e o espaço público. Igualmente os
contextos modernos em que se coloca a questão ética, a saber, o prazer, o serviço
dos bens e o bem estar, não são os termos finais do problema para a ética da
psicanálise.

Nesses termos o projeto de fundar um programa de transformação social a


partir da psicanálise e da expansão de sua ética seria francamente contraditório. A
psicanálise possuiria uma ética regional. No entanto é justamente por este aspecto
de experimentação local de ordem ética que os psicanalistas se encontram num
lugar privilegiados para exercer a crítica social de outras formações éticas. É claro
que quando o fazem não o fazem como analistas mas no máximo como analisantes.

O contexto local que torna possível e necessária a ética da psicanálise é a


transferência. Esse contexto é organizado para além do serviço dos bens e da
regra tácita que ele impõe em termos da forma de utilização da linguagem, isto é:
falar é dar e receber prazer ou informação e seus equivalentes a partir da
maximização da comunicação. No entanto se o contexto fixa o campo da ética da
psicanálise é preciso especificar em que termos a interpretação a ele se vincula se
quisermos ultrapassar uma definição meramente negativa da ética da psicanálise.

  94  
2. Acontecimento e Contexto:

O contexto transferencial é a condição da interpretação. Tal afirmação parece


ser consenso na bibliografia analítica sobre o assunto. Os problemas começam
quando se quer precisar os conceitos de transferência e de interpretação. Com o
intuito de simplificar o tratamento do problema ético envolvido na interpretação
gostaríamos de introduzir duas noções cuja serventia é meramente operatória e
didática. Lacan ao formalizar a estrutura da fala introduz a idéia de Outro como lugar
simbólico de onde a mensagem ganha um sentido (invertido) para o sujeito. O
conceito é complexo e varia de acepção ao longo da obra de Lacan, ora se
aproxima da idéia de lei, ora da de tesouro dos significantes ora remete ao próprio
estatuto do inconsciente. Gostaríamos de propor a noção de contexto como uma
determinada posição temporal e singular sob a qual o campo do Outro se configura
para um sujeito. Pensamos que um contexto pode ser entendido como o conjunto
de possíveis de uma determinada situação. Portanto a essência de um contexto
está em algo fora dele mesmo, em algo que ele mantém irrealizado.

Por outro lado a noção de acontecimento se refere a um evento, a uma


escolha significante efetivada pelo sujeito falante, que neste momento mesmo
aparece como dividido (em fading). O acontecimento traduz a idéia, veiculada por
Lacan de palavra plena, uma palavra redescoberta como um fragmento perdido e
equívoco da história do sujeito. O instante de concluir, assim como o ato analítico e
a idéia de Tichê compõem o cenário semântico do que chamaremos acontecimento.
A explicitação rigorosa destas noções perverteriam o sentido deste trabalho, seu
uso operacional se limitará portanto à dimensão ética da interpretação uma vez que
esta é sempre uma forma de lidar e provocar mesmo uma relação entre contexto e
acontecimento.

Se o contexto é o que ainda não aconteceu, mas que cerca e torna possível
um determinado acontecimento podemos dizer que um contexto é sempre uma
virtualidade. A versão mais simples para compreender a transferência é pensá-la
como a reatualização de um contexto, isto é, como repetição de protótipos infantis
tomando o analista como objeto de investimento dos desejos a eles associados.
Assim como o paciente sofre essencialmente pela repetição que introduz na
sigificação dada a sua história e seus acontecimentos cruciais, a transferência
poderia ser entendida como uma significação repetidora deste sofrer. Ocorre que
nestes termos a repetição não é própriamente a repetição de um acontecimento
mas a repetição de uma interpretação. É portanto em relação a uma interpretação
recorrente que se articulam transferência e sofrimento psíquico. Sabe-se que é no
momento em que esta interpretação vacila que em geral se procura uma análise e

  95  
se a inicia pelo pedido de uma nova interpretação, é o que Lacan chama de
suposição de saber inerente e constitutiva do contexto transferencial.

Uma primeira forma de considerar a transferência como contexto é atentar


para seu poder antecipatório. Todo contexto engendra uma antecipação e portanto
uma sugestão. A forma narrativa do suspense e do romance na literatura e no
cinema são exemplos de como se pode manipular esta antecipação de forma a
obter certos efeitos precisos como a surpresa ou a decepção. Um comentador como
Juranville (1987) chega a notar que o que caracteriza o inconsciente é justamente
um conjunto de fenômenos e efeitos não antecipáveis. De fato, a vertente de
antecipação da transferência é a vertente imaginária. A gênese do conceito de
imaginário em Lacan mostra como este surge da leitura de certas pesquisas da
etologia alemã e da psicologia de Wallon que permitem destacar o valor de certas
imagens-traço na produção do comportamento. A constituição do ego é postulada
por Lacan como a antecipação de uma unidade corporal a partir da imagem do
semelhante. A mesma antecipação marcará a atividade da consciência como
unificadora do signo, isto é, da relação entre o significante e o significado. As éticas
que procuram a consistência subjetiva (como a transcendental-universalista e a de
práxis positiva) seriam portanto éticas da antecipação, pois entendem a linguagem
como um meio de antecipar, de forma coletivamente concordante as relações entre
significante e significado. No entanto a eficácia, inclusive explicativa, da primazia do
contexto se vê contestada quando o que está em questão é o não antecipável.

O primeiro atributo que se pode esperar da interpretação, tendo em vista o


poder antecipatório do contexto, é justamente que ela não se conforme a atualizar
as possibilidades pré-fixadas por este. Os três exemplos tratados por Lacan no
seminário sobre a ética falam justamente de três situações onde a antecipação, isto
é, a introdução de um saber antecipatório ganham uma dimensão sintomática: a
morte, o amor e a criação. Trata-se de realizar uma travessia ou um
atravessamento do contexto transferencial e não apenas de se acomodar a ele e
aos possíveis que ele gera a cada momento.

Por exemplo, pensemos naquele paciente altamente psicologizado e que


inicia sua fala remetendo-se ao seu "complexo de Édipo"", à sua "depresão
orgânica" etc. Esta fala antecipa um contexto imaginário, que se propõe a ser
compartilhado com analista. Nesses termos o manejo da transferência poderia
apontar para a incompreensão dos termos utilizados. Uma recusa `inclusão no
contexto

A segunda forma de entender a transferência como contexto é notar que um


contexto, a rigor, não é interpretável. Isto se dá uma vez que quando interpretamos
um contexto ele se torna um acontecimento incluido num novo contexto. Não se
pode interpretar um contexto simplesmente porque estamos incluidos nele quando o
fazemos. É o que os fenomenólogos chamam de círculo hermenêutico. Por

  96  
exemplo, quando interpretamos a obra de Freud nossa versão é incluída no que
chammaos própriamente de a obra de Freud.

Essa descoberta é plenamente reconhecida no espaço do que chamamos de


ética desconstrutivista, que mantém no seu fulcro uma desconfiança radical com
relação à idéia de um sentido original e imanente ao texto ou à fala. Ora, essa
prevenção contra a totalização do contexto, numa interpretação que o abarque
completamente tem consequencias clínicas relevantes. Uma vasta tradição
psicanalítica se orienta pela idéia de que a transferência é algo a ser interpretado e
que todas as falas do paciente, por estarem endereçadas de alguma forma ao
analista, possuem sua significação pré-fixada pelo tipo de transferência em
andamento.

Assim um incidente cotidiano infeliz se transforma numa declaração de ódio


ao analista. Interpreta-se, por exemplo, que na verdade ele gostaria de dizer isso
mas as vicissitudes do inconsciente não o permitiram. A crítica que Lacan
desenvolve a essa tradição, principalmente inglesa e americana de psicanálise, tem
como eixo uma estrita separação entre acontecimento e contexto no trato da
questão transferencial e de um de seus temas subsidiários mais discutidos, a
resistência. O contexto transferêncial é o que autoriza a interpretação, mas esta
recai sempre sobre o acontecimento, daí a máxima enfatizada por comentadores
como Miller (1985) de que se trata de interpretação na transferência e não da
transferência. O segundo atributo da interpretação portanto é a sua atenção ao
acontecimento significante, isto é, sua dimensão própriamente simbólica. Tal
acontecimento é justamente o ponto de subversão de um contexto e sua abertura a
um novo horizonte de significações onde se modifica inclusive a posição
interpretante.

Por exemplo, Freud, no contexto da interpretação do sonho de Dora com a


caixinha de jóias intervém da seguinte forma:

" - Quiçá você não saiba que "caixinha de jóias" é uma designação
proferida para o mesmo que você aludiu, não faz muito tempo com a
bolsinha de mão: os genitais femeninos. "

Ao que Dora responde:

" - Sabia que você diria isso."

Ao que Freud retruca:

" - Quer dizer que você sabia ... Agora o sentido do sonho se torna mais
claro." (p.63)

  97  
Podemos pensar que a interpretação está do lado da tradução proposta por
Freud: caixinha de jóias = genitais femeninos. No entanto a resposta de Dora acusa
que esta equivalência é completamente antecipável no contexto transferencial.
Como tal seu efeito é mínimo. No entanto a efetiva interpretação capta o ponto de
contradição deste contexto. O acontecimento ignorado até então de que Dora sabia
que Freud diria isso ganha uma nova posição. Ela sabia porque havia pensado
nisso e se havia pensado nisso antes de Freud dizê-lo o desejo suposto à Freud
pertencia agora a própria Dora. É quando o contexto se fazia nomear: no dito "Sabia
que você diria isso." que Freud consegue realocar esta fala como um acontecimento
que dissolve o contexto.

A terceira forma de considerar a transferência como contexto se refere à


dimensão de realidade que ela introduz. Poderiamos considerar, a partir de uma
posição ontológica despretensiosa, que a realidade é fundamentalmente contexto
compartilhado. Nisto nos aproximamos da perspectiva da ética pragmática onde a
realidade é antes de tudo uma palavra cuja significação está sujeita a uma
concorrência de descrições. Concorrência que não escapa às vicissitudes do poder
como o mostram os críticos da ideologia.

Ora, a realidade da transferência não é uma realidade integralmente verbal


apesar de ser puramente significante. Se assim o fosse seria possível fazer uma
análise com um computador ou pelo telefone. Pelo menos no sentido em que uma
análise é terminável deve-se supor que ela é um contexto capaz de se dissolver ou
que ela, no seu conjunto, possa ser tomada como um acontecimento. A realidade da
transferência se resolve nos termos do real que a funda.

No Seminário XI Lacan afirma que "a transferência é a realidade do


inconsciente posta em ato". Há inúmeras consequencias desta formulação. Uma
das mais interessantes nos parece ser a inclusão do analista na própria idéia de
inconsciente. O analista, enquanto lugar e função, faz parte do inconsciente e é por
isso que o agente do discurso analítico é o objeto a (Seminário XVII). Quer como
semblante deste objeto, quer como lugar onde se enreda a suposição de saber, a
tese de Lacan é que a realidade da transferência pode ser dissolvida ao final de
uma análise. Tal dissolução teria como condição a travessia do fantasma, o
encontro daquilo que do ral suporta a realidade da transferência.

O fantasma pode ser definido como o articulador fundamental entre gozo e


desejo para um determinado sujeito, numa determinada análise. A queda do
analista deste ponto geratriz da transferência permite que não se precise mais da
situação de análise para prosseguir a dialética do acontecimento e contexto na
chamada análise interminável. O objeto elevado à dignidade da Coisa nos parece
uma formulação apropriada para designar esta perspectiva. Quando falamos dessa
dimensão própria ao real, e não apenas à realidade, nos afastamos da perspectiva

  98  
pragmática e abrimos uma perigosa porta para a entrada, sob os auspícios do real,
do velho inefável, indizível, transcendental que justamente caracteriza as teologias
negativas e em relação à qual cabe esperar da psicanálise um distanciamento. A
estratégia de Lacan ao sistematizar o real a partir da lógica parece ter sido uma
alternativa relativamente eficaz. Contudo esta estratégia é de pouca valia quando a
perspectiva assumida é a da ética.

Retornemos deste ponto de vista à afirmação de Lacan no Seminário XI: "a


transferência é a realidade do inconsciente posta em ato". No mesmo seminário
Lacan, respondendo a uma pergunta direta, postula que o estatuto do inconsciente
não é ontológico mas ético. Portanto a realidade de que se trata em ato na
transferência é uma realidade ética. Isto quer dizer, uma realidade que leva em
conta o desejo para se constituir. Freud já se referia a isto através do conceito de
realidade psíquica. O desejo, assim como a realidade psíquica freudiana não se
confundem no entanto com a totalidade da subjetividade mas se referem ao que
nesta pertence ao inconsciente. Mas além do desejo a ética em questão deve-se
haver com outro componente fundamental da realidade psíquica, a pulsão. Desejo e
pulsão são os dois componentes do contexto transferencial. A realidade da
transferência se traduz assim pela consistência interna deste contexto.

Se a análise é finita devemos supor que este contexto possa ser esvaziado
quanto a sua consistência. Este esvaziamento é justamente dado no trabalho de
interpretação. Chegamos assim ao terceiro atributo da interpretação, nas suas
ligações com a transferência. Ela deve ser capaz de desconstruir o contexto que a
tornou possível. Aqui aparecem as ligações entre a ética da psicanálise e as éticas
que chamamos de descontrutivistas.

3. As Vicissitudes do Contexto:

Vimos que a interpretação só se relaciona indiretamente com o tema da


transferência. Seria mais apropriado falar então em manejo da transferência, como
procedimento que visa tornar a interpretação possível e eficaz, do que em
interpretação da transferência. É interessante como essa separação entre
interpretação e transferência se encontra num dos mais antigos textos de Lacan.
Em Mais Além do Princípio da Realidade (1936) ele afirma que o analista: "opera
em dois registros, o da elucidação intelectual, pela interpretação e o da manobra
afetiva, pela transferência." (p.78). A oposição intelectual-afetivo será abandonada
mas o tratamento diferencial a interpretação e a transferência não.

O que orienta o manejo, ou a manobra da transferência, é a estratégia , de


fazer acontecer análise e não apenas de garantir a manutenção e consistência do
contexto analítico. Durante muito tempo a bibliografia sobre a técnica da psicanálise
enfatizou, a nosso ver exageradamente, o "setting" ou enquadre como condição

  99  
prínceps da análise. Como se a manutenção do contrato, do número de sessões por
semana, pagamento, tempo etc, fosse garantia da realização de uma análise.
Pensamos que ao propor que o termo "técnica da psicanálise" fosse substituído pelo
de "ética da psicanálise" Lacan acentua justamente que as questões de manejo da
transferência não poderiam prescindir de uma ética que pusesse o desejo de
analista como condutor fundamental do tratamento.

Esse tipo de manejo é estritamente contextual pois corta, isola e produz um


determinado conjunto de possíveis de fala sem própriamente retificar a posição
subjetiva do paciente. A única coisa que pode fazê-lo é um acontecimento
interpretativo e nunca um puro contexto.

Aliás, a pura substituição de um contexto por outro, onde no fim eles acabam
se reduzindo ao mesmo é uma estratégia neurótica frequente. A estratégia de
simplesmente subsituir o contexto atual do paciente por seu contexto infantil não fica
atrás disso. A procura da solução para as vicissitudes do sofrimento pela
substituição de contexto é o que se mostra em discursos do tipo: "farei uma
viagem", "vou mudar de namorada" ou "devo fazer ginástica" como se a alteração
do ambiente físico modificasse o contexto. O fato é que a transposição de contextos
sem interpretação é ineficaz. O trágico é que depois de algum tempo o contexto se
reinstala iniciando uma série de substituições cuja marca é a repetição da mesma
posição subjetiva.

As vicissitudes do contexto são básicamente de duas formas: o acting out e


a passagem ao ato. Nelas o acontecimento discursivo, isto é a interpretação, entra
em descompasso com o contexto transferencial. O manejo da transferência implica
portanto além da manutenção da posição interpretativa a preservação da sua
estrutura dialética. Quando isto se rompe trata-se ou de uma absorção do sujeito ao
campo do Outro ou de uma absorção do sujeito ao significante de forma a acentuar
sua divisão. Rompe-se com isso a dialética entre desejo e gozo que vimos constituir
o eixo central da ética da psicanálise.

O acting out se define pela encenação do acontecimento ao invés de sua


recordação. Ele é uma resposta dada ao hiperfechamento do contexto, isto é, pelo
acirramento dos três aspectos da transferência: o seu poder antecipatório, a
impossibilidade de interpretação e o avivamento da realidade que ele institui. É o
caso do paciente de Glover, comentado por Lacan no Seminário I e no Texto da
Direção da Cura (1958). Após ser informado por seu analista de que não era um
plagiário como pensava, uma vez que seu analista fora a uma biblioteca conferir a
originalidade do que o paciente havia escrito, este sai da sessão e se dirige a um
restaurante para comer miolos frescos (comer as "idéias" dos outros). A intervenção
de Glover faz contradizer o desejo do paciente, dito no seu sintoma, com a realidade
no sentido do senso comum. Glover interpreta fora do contexto dado pela

  100  
transferência. A resposta do paciente segue estritamente o novo contexto oferecido:
A REALIDADE. Glover diz - Nao há por que sofrer !, e ao dizê-lo ignora que no
sofrimento do paciente se expressa um desejo e uma modalidade de gozo. O
paciente acata esse ignorar do desejo (e nisso come a "idéia" de Glover) e ao
mesmo tempo mantém a solução de gozo que ele expressa.

No caso do acting out se trata de acolher o contexto oferecido pelo Outro,


acompanhando sua surdez quanto ao acontecimento. Em face da passagem ao ato
a situação é inversa, trata-se de fazer vigorar um novo contexto a partir de um
acontecimento desenraizante. É o caso da psicose, onde a partir deste
acontecimento, desta injunção significante (Calligaris,1989), o sujeito se põe a
construir um mundo habitável. Trata-se de um acontecimento tão radical que
nenhum contexto poderia servir de antemão para significá-lo. No caso das irmãs
Papin (1932) pode-se atestar tal configuração de forma resumida. Mãe e filha (as
patroas) chegam em casa e apontam - Isto está sujo ! As duas empregadas (as
irmãs Papin) matam então as patroas, cortam seus membros, arrancam seus olhos,
dispõem os corpos sobre a cama que é cuidadosamente arrumada e poderiam
concluir - Agora está tudo limpo ! O acontecimento significante, a acusação das
patroas é escutado como uma espécie de imperativo de gozo que desarvora o
contexto até que este seja reintroduzido pela resposta delirante.

A passagem ao ato e o acting out são os limites da transferência. A cada


momento da análise em que se coloca em jogo um atravessamento da transferência
corre-se o risco ético de incorrer numa vicissitude contextual. A recomendação
freudiana de que o momento da interpretação deve aguardar o desenvolvimento da
transferência não se refere apenas à eficácia interpretativa mas também às suas
consequências éticas. Eventualmente uma análise pode se estacionar em função do
acomodamento do analista à sua posição transferencial. O limite entre recusar esta
posição (o que inviabiliza o tratamento) e acomodar-se a ela (o que o infinitiza)
depende do desejo de analisar e é por isso que este desejo é uma questão ética e
não apenas técnica.

A interpretação no interior da transferência fica sujeita ao modo de apreensão


dialético. É o que Lacan acentua no texto de 1951 (Intervenção sobre a
Transferência). Pensar a transferência como uma dialética é supor que em algum
lugar deste contexto é possível isolar sua contradição estruturante. O "engano"
transferencial deve ser desconstruido internamente e não pelo apelo a uma
exterioridade. Essa perspectiva aproxima a psicanálise de uma ética
desconstrutivista. Uma desconstrução da suposição de saber que teria como
programa revelar o fundamento de engano da transferência. Aniquilaria-se assim a
metafísica do sujeito suposto em prol da assumpção do puro jogo de interremissões
significantes. Não há mais lugar para a interpretação uma vez que ela se faz em
toda parte, em toda repetição (iteração seria o termo mais apropriado).

  101  
Pode-se argumentar contra esta perspectiva na medida em que ela assume
tácitamente que a análise se desenvolveria inteiramente apesar do analista. Caberia
a este simplesmente elaborar teóricamente, isto é, fora da sessão, como o discurso
do paciente ao final fala sobre nada e apesar disso se ajusta às suas complexas
divagações. É o que se poderia chamar de clínica do mutismo, onde a significação
que o analista dá ao seu próprio silêncio é a única intervenção possível diante das
desesperadas tentativas do paciente de fazer-se sujeito em sua própria fala.

A alternativa imediata à clínica do mutismo faz supor que além das


interremissões significantes faça parte do jogo analítico uma hipótese sobre a
possibilidade de transformar o sujeito suposto da transferência num sujeito exposto,
isto é, num acontecimento de desejo e de gozo que represente quem fala e não
apenas de onde fala (o tipo de discurso envolvido, por exemplo). Uma vez que este
acontecimento é simplesmente um evento, como tal, atado à sua efemeridade ,
trata-se de ajustar o tempo da interpretação ao tempo de significação do sujeito.
Este ponto é justamente o lugar onde se torna possível a interpretação. No caso
Dora, por exemplo, Freud se acomoda à posição paterna, que é de onde suas
interpretações, no sentido de fazer reconhecer em Dora o desejo em relação ao Sr.
K. extraem seus efeitos. No entanto é por garantir demais tal contexto e
atemporalidade que ele traz consigo que ele deixa de fazer entar na análise o
desejo de Dora em relação à Sra. K.. Este desejo é o ponto de negação da posição
que Freud ocupa e fornece o acesso a outra versão da transferência. Neste ponto
seria necessário que o desejo de analisar se impusesse ao desejo de Pai, que faz
do lado de Freud resistência à análise. O acting out que perpassa a interrupção do
tratamento é uma forma cômica de manter o contexto transferencial oferecido por
Freud. Dora despede-o como se despede a uma governanta. É importante notar que
isto se passa após um período onde as intervenções de Freud tornam-se quase
antecipáveis.

4. O Mal Estar na Linguagem:

A dialética entre acontecimento e contexto é um modo de considerar o meio


ambiente no qual se desenvolve uma análise. Obtivémos assim uma representação
da análise onde ela aparece como uma espécie de jogo, de exercício de invenção
não apenas de novas formas expressivas mas de uma relação com a palavra onde
o sujeito se encontra sucessivamente com o excluído que o produziu. Esta produção
subjetiva a partir do que estava excluído caracteriza o sujeito psicológico em
questão como um ser marcado radicalmente pelo acontecimento. Acontecimento
para o qual ele parece sempre insuficientemente capaz de absorvê-lo ou de
contextualizá-lo com o uso da linguagem. A angústia talvez seja a melhor forma de
falar deste acontecimento em estado puro.

  102  
Isto que pede significantização ou que do Real padece do significante, expõe
a psicanálise aos riscos da teologia negativa e ao modo simbólico (Eco, 1991) que a
esta pode se conjugar, isto é, a proliferação indefinida de uma nova significação que
estará sempre mais além da esperada. Eco, define modo simbólico como uma
forma interpretativa onde; "os símbolos não podem ser completamente interpretados
nem como signos (seméia) nem como alegoria. São símbolos autênticos porque são
plurívocos, carregados de alusões, inexauríveis."(p. 219). Neste sentido o Real
enquanto negatividade de sentido ou o impossível de se incluir completamente no
campo da significação não deve se confundir com o inefável. O centro da ética não
está nessa negatividade mas no que lhe dá contorno e nas fomas de abordá-lo. Isto
que Lacan chamou de Real, onde se encontra o campo da Coisa, do trauma, do
estranho (unheimlich), responde por uma parte significativa do que diz respeito à
ética da psicanálise. Lacan fala em três formas de dar contorno a esta negatividade
produzida pelo puro acontecimento:

1) a arte: que fixa uma organização estética que envolve o vazio a partir da beleza
de suas imediações.

2) a religião: que procura evitar e desmentir o próprio vazio, negando-lhe existência

3) a ciência: que procura ocupar este vazio com o saber

A psicanálise seria uma quarta forma de lidar com o acontecimento e com a


negatividade que ele implica. A única a reconhecer nesta negatividade
simultaneamente a causa do desejo e do gozo. A interpretação por um lado e a
transferência por outro são formas éticas de abordar esta negatividade. O
sofrimento psíquico ao qual elas se ajustam, seja o do sintoma (simbólico) a inibição
(imaginário) ou a angústia (real) é encarado não apenas como um problema mas é
como se, ao contrário eles expressassem uma solução. A negatividade do Real não
é traduzida como uma falha biológica, cognitiva, social ou existencial mas como
uma pergunta sobre o acontecimento. Um sintoma, por exemplo, realiza um desejo,
não apenas no sentido em que o satisfaz, mas também no sentido em que ele se
encena, se representa, se diz numa questão. Mas que outra relação com o
inconsciente se poderia esperar além desta ? Se a ética da psicanálise se dirige à
produção de uma subjetividade expurgada do inconsciente, límpida, adequada e
transparente a si mesma como pretende uma ética da práxis positiva trataria-se
simplesmente da erradicação do mal estar na linguagem, o que nos tornaria normais
com certeza mas que nos destituiria do poder indagativo imanente a este mal estar.

Se olhamos na direção oposta e pensamos o analista como o agente de um


saber transcendental-universalisante, do qual ele se faz funcionário diríamos que se
trata de tradução do acontecimento. Estaríamos diante da tradução de um contexto
atual, intencional e de temática variada, fornecido pela associação livre, para um
outro contexto, infantil, sexual e desejante. Contudo uma tradução de contexto a

  103  
contexto perde de vista a dimensão do acontecimento. Podemos argumentar que
contra a tese da tradução pesa o fato de que ela aposta na idéia de que a solução
do sofrimento psíquico é uma questão de acesso ao saber quando justamente é o
excesso de saber o que o caracteriza, especialmente no caso do sintoma e da
inibição.

O saber infantil, desejante e sexual poderia assim realizar uma espécie de


contexto definitivo capaz de absorver a totalidade dos acontecimentos. A ética
pragmática podemos dirigir o mesmo argumento, produzir uma descrição eficaz,
consensualmente estabelecida e socialmente aprovada do acontecimento não é
mais do que introduzir um contexto de saber capaz de amparar o sujeito contra o
acontecimento.

A dimensão ética da interpretação não se dá pelo saber que ela


eventualmente produz mas pelo encontro que ela provoca. Encontro que se pode
localizar na reviravolta introduzida pelo acontecimento em relação ao contexto. Pela
substituição da temporalidade infinita do contexto pela efemeridade do
acontecimento. Pode-se dizer que a ética da psicanálise visa reduzir a velocidade
antecipatória do contexto, reduzir a previsibilidade do outro. Se é como objeto que
ele se torna previsível e gozável é como Coisa que ele se faz causa da questão e
do desejo que ela implica.

Um sintoma, neste sentido pode ser entendido como a fixação de um certo


possível desejante, de outro possível pulsional e de um possível identificatório. Isto
se liga às formas fundamentais que encontramos em Freud quanto a sua definição,
isto é, como um compromisso entre desejo e defesa, como a regressão a um ponto
de fixação pulsional e como a realização de uma identificação narcísica ao objeto.
Um sintoma é sempre a fixação de um contexto cujas arestas são delimitáveis
nestes termos. É por sua aptidão contextual que o sintoma é sempre coletivizador.
Ele é o ethos discursivo ao qual a vida de um sujeito se encontra ligada. Ao
contrário do fantasma que se caracteriza sempre pelo solipsismo silencioso o
sintoma coordena a abordagem e relação com outros ethos discursivos.

É o que pudémos presenciar com relação a um caso que atendemos durante


o estagiário de um curso de psicologia. Tratava-se de uma senhora que padecia a
mais de trinta anos de uma dor de dente, inexplicável do ponto de vista odontológico
e neurológico. O dente que doía havia sido extraído na ocasião de sua primeira
menstruação, quando a paciente tinha treze anos. Na verdade a dor se referia a
uma parte do corpo, um dente, que simplesmente não existia mais. Ele não podia
doer simplesmente porque não estava lá. Mas doía, e movida por isso vinha diante
de um psicólogo a exigir uma solução. Tudo levava a crer numa conversão. No
entanto este sintoma rápidamente se mostrou mais do que uma forma de
padecimento a ser erradicada pelo exercício de um saber.

  104  
Esta paciente fazia a totalidade de suas relações girar em torno desse
contexto sintomático. Abordava pessoas a partir deste tema, vinculava-se a uma
religião em função dele, mantinha uma peregrinação por instituições médicas,
odontológicas e finalmente psicológica onde a falta de saber sobre a causa deste
sofrimento era um verdadeiro estilo de socialização. Tratava-se de um ethos
discursivo, um pretexto fundamental para falar e uma rede de interpretações para
assuntos dos mais variados como a profissão, as relações amorosas, a vida e a
morte. Um sintoma é tão mais problemático do ponto de vista de sua desconstrução
quanto maior a sua capacidade contextual. Ele só se torna desnecessário quando
um ethos alternativo está disponível e quando se pode usufruir da linguagem de
modo a situar o acontecimento em outra parte. O grande prejuízo ético introduzido
por discursos que enrraizam o sofrimento num significante como: alcólatra,
drogadito, homosexual, etc. é que eles reforçam o contexto sintomático, mantendo o
acontecimento atado às suas determinações contextuais. É pela inclusão de um
significante ao contexto sintomático que uma análise começa (como o mostra o
matemna da transferência), no entanto o que caracteriza esta inclusão como uma
análise é justamente o aspecto problemático com que se realiza.

Supomos que a angústia revela a primazia do acontecimento e que o sintoma


aponta para a primazia do contexto. Nossa hipótese quanto à inibição é que ela faz
opor, e não contradizer, acontecimento e contexto. Uma inibição como a que faz
deter a histérica diante do olhar do outro ou da criança diante da escolarização pode
ser entendida como uma forma de garantir um acontecimento. A fobia, quadro
clínico bastante associado à inibição, se caracteriza por um desejo prevenido. Um
desejo constituído na estrita separação entre acontecimento e contexto. É por isso
que o objeto fóbico parece imune às variações contextuais. Entre a posição
subjetiva e o contexto se interpõe um eu reduzido à condição de objeto. O corpo
como objeto e não como Coisa é o que falta ao Outro para constituí-lo como um
contexto fechado. A interpretação entra neste ponto como uma separação entre o
acontecimento como uma redução ao corpo e o acontecimento como um fato
puramente significante.

Um ajuste de contas ético entre a condição do sofrimento e o estatuto da


interpretação que lhe é endereçada suporá em todos os casos, inibição, sintoma ou
angústia a invenção de um novo contexto e a valorização da irredutibilidade do
acontecimento à este contexto. É só no intervalo desta separação que se poderá
prosseguir a dialética de que se trata manter. Isto significa reconhecer o mal estar
na linguagem como a condição básica da ética psicanalítica.

BIBLIOGRAFIA

Arent, H. - A Condição Humana, Martins Fontes, SP, 1983.

  105  
Breton, A. - Manifestos do Surrealismo, Brasiliense, SP,1985.
Calligaris, C. - Introdução a uma Clínica Diferencial das
Psicoses, Artes Médicas, PA, 1989.
Eco, U. - Semiótica e Filosofia da Linguagem, Ática, SP,1991.
Foucault, M. - História da Sexualidade - a vontade de saber (Vol. 1), Graal, RJ,
1985.
Freud, S. - Introdução ao Narcisismo (1914)
- Fragmentos da Análise de um Caso de Histeria - o caso Dora (1905) in.
Sigmund Freud Obras Completas, Amorrortu, BA. 1988.
Gellner, E. - O Movimento Psicanalítico, Jorge Zahar, RJ, 1985.

Lacan, J. - O Seminário, livros:


- I Os Escritos Técnicos de Freud
- VII A Ética da Psicanálise
- XI Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise in Jorge Zahar,
RJ.
- O Problema do Estilo e a Concepção Psiquiátrica das Formas Paranóicas
da Experiência (1933)
- Motivos do Crime Paranóico: o Crime das Irmãs Papin (1933) in Da
Psicose Paranóica e suas Relações com a Personalidade, Forense-Universitária,
RJ, 1987.
- O Tempo Lógico e a Asserção da Certeza Antecipada (1944)
- Intervenção sobre a Transferência (1951)
- Mais Além do Princípio da Realidade (1936)
- A Direção da Cura e os Princípios de seu Poder (1958)
in. Escritos, Siglo XXI, Barcelona, 1988.
- O Mito Individual do Neurótico (1953) in Jacques Lacan Intervenciones e
Textos, Manantial, BA, 1985.
Mainguenau, D. - Pragmatique pour le Discours Littéraire, Dunod, Paris,1990.
Miller, J.A. - Percurso de Lacan, Jorge Zahar, RJ, 1985.
Roudinesco, E. - História da Psicanálise na França, Jorge Zahar, 1992.
- Jacques Lacan - Esboço de uma vida, história de um sistema de
pensamento, Companhia das Letras, SP, 1994.

  106  
A LÓGICA DA INTERPRETAÇÃO
Christian Dunker

1. Aspectos Teóricos:

Suponhamos que considerar a interpretação a partir da lógica implique numa


tomada de posição acerca do que vem a ser um tratamento analítico. Signifique
pensá-lo como envolvendo uma espécie de demonstração. Assim cada
interpretação reenviaria-se de alguma forma ao que a teoria prescreve para a
generalidade da estrutura cínica. Num outro nível cada interpretação se articularia à
premissa que a torna possível e o conjunto destas premissas se articularia num
axioma que a análise visaria construir na forma singular junto a um sujeito
específico. Admite-se ainda que tal demonstração possua efeitos terapêuticos.
Seguindo adiante nesta suposição veríamos que cada interpretação apareceria
justificada como um teorema que pode ser provado à luz deste axioma particular.

Nosso objetivo é constatar a pertinência em se considerar a interpretação à


luz de uma teoria da prova e de que forma ela se ajusta ou se distancia do esquema
hipotético proposto. Nos manteremos no campo da lógica aristotélica até mesmo
para verificar a necessidade da utilização de lógicas não clássicas na teorização da
interpretação.

Algumas diferenças se colocam quando o sistema referencial discursivo, no


qual a demonstração se realiza, é o discurso analítico. Em primeiro lugar as
condições tradicionais em que se considera uma teoria da prova não se ajustam,
isto é, os critérios de verdade, a ontologia e a teoria dos raciocínios ou juízos
envolvidos não parecem corresponder às exigidas pela psicanálise. Em segundo
lugar o agente desta demonstração não é o analista, que teria neste caso a posição
de mestre. Por outro lado seria artificial atribuir este lugar ao analisante. Dizemos
com isso que o agente da interpretação em psicanálise não é nem o sujeito
universal e necessário da ciência e da filosofia nem o sujeito psicológico. A
apreensão em termos lógicos do papel que a interpretação exerce no tratamento
implica em considerar qual o lugar que a ontologia, a verdade e a teoria dos
raciocínios ocupam no espaço do discurso analítico.

Essas categorias estruturam a mais antiga teoria da prova de que se tem


notícia; a de Aristóteles. A confirmação da eficácia da teoria da prova aristotélica foi
mostrada pela sua capacidade de explicar a consistência interna da geometria de
Euclides. Através dela realizou-se pela primeira vez uma associação entre a lógica e
matemática, que se preservou no pensamento moderno e perdura, de certa forma,
até nossos dias. A perfeição e consistência de um modelo lógico responde
diretamente à capacidade que este modelo possui de absorver impasses do campo
da aritmética e da geometria. Uma coisa no entanto é formalizar lógicamente uma
rede de conceitos de forma a demonstrar sua coerência interna, outra bem diferente

  107  
é requerer da realidade (ou da referência) um ajuste à coerência expressada
teóricamente. Assim podemos compreender porque Lacan ao pensar a lógica do
tratamento analítico se vê obrigado a revisar as categorias clássicas da teoria da
prova e ao mesmo tempo introduzir uma geometria que pudesse lhe servir como
suporte: a topologia.

Pode-se argumentar que a lógica moderna se desligou de qualquer


compromisso ontológico, destacando-se do cenário filosófico que lhe deu origem
para se constituir em discurso puramente formal (a linguagem artificial) com suas
próprias regras de consistência e coerência que independem de qualquer relação
com a realidade ou com a intuição. No pensamento posterior ao neopositivismo,
como o que podemos reconhecer em Granger (1966). Costumamos encontrar esta
independência da lógica como um ponto de honra; garantia de um conhecimento
purificado dos impasses da "linguagem natural" e autofundado enquanto tal.

Fala-se então em "seres de linguagem", "existência" e "mundos possíveis",


sem que em nenhum caso tais figuras lógico-matemáticas contemplem uma relação
com o Ser ou uma hipótese sobre ele. Confunde-se ontologia com um vago
empirismo ou uma ultrapassada relação entre palavras e coisas ou ainda toma-se o
tema da ontologia confundindo-o com com algum tipo de idealismo que ainda não
compreendeu o poder constitutivo da linguagem e sua autoreferência fundamental.
A pretexto de descarte das considerações éticas ou estéticas o logicismo reconhece
com dificuldade sua implantação numa ontologia que identifica Ser e linguagem.
Nossa posição, em função disso, é de buscar a explicitação de tal ontologia, no
caso da psicanálise, e de sua implicações para a lógica.

Não pretendemos com isso retornar à oposição entre realismo ou


nominalismo mas apenas salientar que a redução da linguagem à sua sintaxe
lógica, com o franco desconhecimento da semântica (ou de uma teoria da
consciência) torna impossível a apreensão de certas questões da psicanálise a não
ser pela analogia entre certos problemas de um e outro campo. Ora, analogias
podem ser encontradas entre a psicanálise e qualquer outro campo teórico sem que
com isso se logre qualquer avanço para a solução dos problemas em questão.
Resumindo: ou assumimos criticamente um compromisso ontológico (mesmo que
seja com a linguagem como realidade) ou nos tornamos estudiosos da lógica sem
podermos mais retornar à sua eventual relação com a psicanálise. Neste último
caso o papel da lógica seria o de formalizar numa linguagem menos ambígua e
mais purificada o que de alguma forma já sabemos.

O que sempre caracterizou a tradição ocidental quanto à lógica, e que explica


boa parte do fascínio que ela exerce, é a possibilidade que ela nos oferece de nos
elevar à esfera do necessário. O conhecimento lógicamente justificado responde às
exigências que os gregos faziam para o tipo de conhecimento visado nos primórdios
da filosofia: a epistemê, isto é um conhecimento eterno, universal, absoluto, não

  108  
contraditório mas fundamentalmente regido pela necessidade interna com que se
impunha. Tal conhecimento se torna possível no quadro de uma sociedade que se
organiza política e jurídicamente a partir de um princípio, o que os gregos dos
século IV a.c chamavam de "logon didonai", isto é a suficiência e necessidade da
razão para prestar contas dos atos humanos . O princípio justificador surge, no
entanto, absorvendo a tradição jurídica que lhe antecedia. A idéia de necessidade é
um exemplo disso. Uma de suas conotações mais importantes encontramos na
palavra "anankê". Supõe-se que originalmente a "anankê" pertencia ao vocabulário
jurídico e se referia à necessidade, no sentido de obrigação legal, de receber uma
herança, de não recusá-la. Assim a necessidade se liga a algo que foi, deve ser e
será e, que de certa forma independe do sujeito. O conhecimento, lógicamente
justificado, torna-se assim uma forma de contornar o tempo.

O que se formaliza lógicamente é o não temporal, o que resiste ao devir e à


transformação e em função disso pode explicá-la. Neste sentido se diz, no interior
da teoria dos silogismos, por exemplo, que dadas determinadas premissas a
conclusão (se o raciocínio é conclusivo) é necessária. O problema é que se o
raciocínio não é conclusivo, ou se ele conduz a uma contradição ele não é
própriamente um raciocínio, ele não é pensamento, ele é não Ser. É por isso, como
afirma Lacan, que a lógica nunca deixou de evoluir a partir de um núcleo de
paradoxos. O ideal logicista tem por horizonte mostrar que o paradoxo nasce
apenas da insuficiência do sujeito em se apropiar da racionalidade.

Ora, é justamente na expressão do paradoxo que se constitui algo de


própriamente fundamental para a psicanálise. O paradoxo, nos seus diversos
sentidos, isto é como absurdo, como não senso ou como contradição exprime a
condição a que está submetido o ser falante a partir da hipótese do inconsciente. Os
atributos que Freud postula para descrever o inconsciente, em relação ao sujeito por
ele afetado (e não em sua consistência teórica) são a ausência de contradição, de
negação e de temporalidade. Tais atributos a princípio inviabilizariam a apreensão
lógica de tal hipótese. No entanto a descoberta de alguns entes matemáticos e
geométricos, no início de nosso século (as geometrias não euclidianas por exemplo)
deu impulso ao desenvolvimento de modelos lógicos mais tolerantes à assimilação
de paradoxos. Lacan, ao seu modo, se interessa por esta possibilidade aberta na
esfera lógica. Nossa hipótese é que no centro dos desenvolvimentos lógicos de
Lacan se encontra uma substituição do axioma da necessidade, derivado da
ontologia parmenidiana, pelo axioma do impossível.

Seguindo uma trilha semelhante, Gueller (1995) realizou um exame de certos


aspectos da teoria psicanalítica (o tempo, a escolha da neurose, a pulsão)
mostrando que há a necessidade de uma espécie de revisão ontológica da
psicanálise de modo a que esta incorpore a noção de consingência ou de acaso
radical. Apoiada em certos desenvolvimentos contemporâneos da física, na filosofia
tyrágica de Rosset e na leitura da pulsão de morte sugerida por Garcia-Roza a

  109  
autora convida-nos a reconsiderar a ontologia da ciência calcada no axioma da
necessidade. A forma exemplar deste axioma seria encontrada em Laplace e
corresponde à idéia de que se pudermos descrever com absoluta precisão o
passado de um sistema poderemos deduzir com igual precisão e necessariamente o
estado deste sistema no presente e no futuro. Argumentando simulâneamente no
plano da filosofia e no da teoria da ciência ela mostra que há certos sistemas (da
mecânica quântica por um lado e a determinação da neurose por outro) onde este
ideal deve se submeter à presença de uma contingência originária. Se a
contingência se mostra uma alternativa no terreno da teoria freudiana pensamos
que é a impossibilidade o veio central mais apropriado para pensar a revisão em
questão no quadro da teoria de Lacan.

Se o inconsciente e a pulsão são impossíveis de serem pensados, se são


exteriores ao pensamento, como abordar este impossível ? Nossa hipótese é que
Lacan o faz a partir de três níveis distintos: o sexo, o sentido e a significação.

2. A Sexuação:

O impossível quanto ao sexo foi elaborado por Lacan a partir do Seminário


XX através das chamadas fórmulas quânticas da sexuação. O problema em questão
é a releitura da incidência diferencial da castração no homem e na mulher,
problema para o qual as teses freudianas não nos levam de fato a uma conclusão. A
posição masculina se funda lógicamente na seguinte contradição: para todo homem
vigora a função fálica da castração. Ao mesmo tempo para que este campo
"homens" se constitua é necessário um elemento que pertença a este conjunto de
forma paradoxal pois é o "ao menos um" que escapa à função fálica da castração.
Este "ao menos um" pode ser representado pela figura freudiana, postulada em
Totem e Tabu, do Urvater, o pai da horda primitiva, que teria acesso à todas as
mulheres. Lacan assume o paradoxo da antropologia ficcional de Freud que exige
que a lei para se constituir precise da própria lei e dá contornos lógicos a este
paradoxo.

Na posição feminina há uma contradição constitutiva de outra ordem. De um


lado temos a proposição de que não há nenhuma mulher que escape a castração, o
que se justifica freudianamente pelo apelo ao nível anatômico. A proposição que
torna a primeira um paradoxo é que a mulher, por não se constituir em relação à
figura mítica do incastrado estaria "Não Toda" submetida à função fálica da
castração. O que se obtém ao final é uma incomensurabilidade entre a posição
masculina e a posição feminina o que leva ao aforismo de que "não há relação
sexual."

A rigor o conjunto de quatro proposições que compõe as fórmulas da


sexuação é o produto de um longo embate de Lacan com a lógica aristotélica. Tal

  110  
referência aparece desde o Seminário sobre a identificação e se reveza com as
demonstrações topológicas até os últimos momentos de seu ensino. A referência à
Aristóteles de que estamos falando aqui passa por uma simplificação das
premissas da lógica realizada por Apuleio no século III d.c. Este simplificação
representad os tipos e modos de juízos possíveis. Situemos o quadrado de Apuleio
acrescentando a ele os enunciados de Lacan quanto à sexuação:

Necessário Contingente
(universal afirmativa) (universal negativa)
"Todo homem ..." "Nao toda mulher ..."
- não cessa de se inscrever - cessa de não se increver

Possível Impossível
(particular afirmativa) (particular negativa)
"Existe um homem ..." "Não existe uma ..."
- cessa de se inscrever - não cessa de não se increver

Nas diagonais deste quadrado encontramos as relações de contradição, nas


colunas proposições subalternas e nas linhas relações entre contrários (linha
superior) e subcontrários (linha inferior). O quadrado de Apuleio na verdade
expressa uma junção entre a lógica de predicados, que trata da universalidade e da
existência (particular) com a lógica modal, que aborda as proposições a partir de
sua necessidade, possibilidade, contingência e impossibilidade. O quadrado é
utilizado para designar sucessivamente as relações entre o pensamento e a
existência (Seminário XIV), entre saber e verdade (Seminário XV), entre a
transferência e repetição (Seminário XVI) e aparece de uma forma simplificada na
abordagem do problema da sexuação. A questão em todos os casos remonta a uma
certa incoordenação entre o aspecto universal da castração e a sua existência num
sujeito particular. Ora, o tratamento dado por Aristóteles associa o nível ontológico à
esfera da necessidade: o Ser necessáriamente é. No caso dos aspectos
considerados pela psicanálise o Ser justamente se associa ao impossível, O Real é
o que não cessa de não se inscrever, o Real não é, ou ele é impossível de ser.

3. O Sentido:

  111  
A segundo nível de tratamento dado à impossibilidade se dá no ordem do
sentido. O sentido pode ser definido como uma camada da linguagem onde se dá o
que Lacan chama de dizer. O dizer é o que funciona no nível do discurso e não da
fala. O dizer aparece no revezamento ou na tradução de um discurso a outro. O
inconsciente no sentido da antropologia estruturalista ou das formações discursivas
propostas por Foucault pertencem à um nível parecido com aquele no qual Lacan
postula o dizer. Assim por exemplo quando o discurso de Kant acerca da ética é
traduzido ou conectado ao discurso de Sade, conexão realizada não apenas por
Lacan mas também por autores como Foucault e Adorno, há um efeito de sentido
que apaga e transforma toda a significação que se realizava antes desta tradução.

No entanto o dizer de Kant permanece o mesmo, sua letra permanece


guardando o sentido do dizer até que uma nova extração de significação, produza
sob um novo giro discursivo um novo conjunto de ditos. Em termos de teoria da
interpretação esta possibilidade infinita de tradução implica que se considere a
inexistência de uma espécie de "sentido original", o texto permanece aberto à
extração de significação justamente porque ele não possui um sentido, mas
simplesmente sentido. Trata-se de uma espécie de balança, quanto mais
significação menos sentido e quanto menos significação mais sentido. Desta
maneira o sentido se define como o impossível de ser reduzido à significação.

O nível do dizer corresponde a uma parte importante da revisão da noção de


demonstração empreendida por Lacan. A demonstração considerada como o
exercício de um certo número de regras a partir de axiomas, postulados e teoremas
não se interessa pela relação do que está sendo demonstrado com a realidade, seja
ela tomada em qualquer acepção. É o que permite separar a verdade no sentido
lógico, como legitimidade da forma de raciocínio, da verdade no sentido ontológico,
como adequação, correspondência ou pragmática entre o mundo e o que se está
dizendo pela demonstração. Por exemplo, a definição aristotélica de verdade reúne
estes dois aspectos:

"Dizer do que é, que é, e do que não é que não é, isto é a verdade.


Dizer do que é, que não é, e do que não é, que é, isto
é o erro."

Suponhamos que o termo dizer da definição acima se relaciona com o


conceito lacaniano de dizer. A suposição não é totalmente arbitrária se observarmos
que Aristóteles é um autor de referência para Lacan neste período que costuma
marcar a substituição do paradigma linguístico pelo paradigma lógico. Período cujo
epicentro pode ser datado nos anos de 1969-1970.

Três aspectos da filosofia de Aristóteles são destacados: a teoria das causas


(inclusive a Tichê e Automaton), a teoria do sujeito como epokeimenon e a lógica.
Se aceitamos esta hipótese de que o dizer como conceito em Lacan procede de

  112  
uma interlocução com Aristóteles e levamos em conta sua importância para a
própria definição de verdade é justo supor que o dizer diz respeito à reformulação
da teoria da verdade a que Lacan deve se submeter se pretende rever a teoria da
prova e da demonstrabilidade. O dizer se relaciona, nestes termos ao tema da
verdade enquanto não totalizável. Mas o que teria uma análise a demonstrar sobre
isso ? A afirmação de Lacan é clara: há uma impossibilidade de dizer o verdadeiro
sobre o real. Encontramos novamente o tema do impossível. O Ser não tem sentido
que possa ser traduzido integralmente em termos de verdade ontológica.

A análise demonstraria esta impossibilidade sendo considerada como uma


espécie de queda de sentido, ou queda de discurso. Antes de uma análise o sujeito
está às voltas não com a impossibilidade mas com a impotência de dizê-lo. Quando
uma comentadora como Soller (1994) afirma que o significado do dizer é a ex-
sistência, sua preocupação é mostrar a disjunção entre o nível da verdade e do
sujeito com relação ao nível do dizer e da ex-sistência. Disjunção tomada por Lacan
para especificar o final de uma análise como momento de disjunção entre saber e
verdade.

O impossível a demonstrar quanto ao dizer toca clínicamente o nível da


demanda. A demanda é um conceito que em Lacan traduz uma parte da teoria
freudiana das pulsões. A demanda é re-petição (um pedido que se repete) de um
signo de amor (Juranvile, 1984). Esta demanda é o que faz suplência, isto é, não o
que complementa mas o que vem à mais, em relação à impossibilidade da relação
sexual. A disparidade entre o masculino e o feminino de que tratamos acima é
acrescida ou suplementada num arremedo que é a dimensão amorosa. Quanto a
este aspecto Lacan salienta seu pessimismo em relação à conclusão do drama
amoroso (Seminário VII) e o impasse que isto pode representar para a transferência
(Seminário VIII). A novidade da "virada" lógica é pensar a demanda como
estruturada a partir da lógica modal e a função fálica, na qual se inclui o desejo,
como estruturada a partir da lógica proposicional.

A demanda na neurose por exemplo faz emparceirar o impossível ao


contingente e o possível ao necessário (L'Etourdit). Desta forma Lacan transforma
os dois aspectos que tornam o incesto impossível, e não apenas proibido, em uma
ficção. O primeiro aspecto do emparceiramento da demanda transforma a
impossibilidade da existência do objeto numa contingência, isto é o desencontro em
relação ao objeto é recebido como fruto de um acaso infeliz. A fantasia de castração
por exemplo revela que o objeto não é constitutiva e essencialmente faltante mas foi
tornado indisponível por uma contingência. O efeito de frustração imaginária, que
atravessa a depressão por exemplo, é fruto desta diluição da impossibilidade à
contingência.

O segundo aspecto deste emparceiramento transforma o gozo possível, pela


limitação paterna num gozo necessário, que não cessa de se escrever. Em outras

  113  
palavras, o efeito da função paterna é tornar o "gozo interditado a quem fala"
(Subversão do Sujeito, 1960). No entanto, é por meio desta interdição que se
tornará possível um gozo parcial, cuja característica é seu aspecto substitutivo e
simbólico. O termo "objeto" é problemático, neste contexto. A substituição simbólica
(intermediada pela função paterna) veicula-se a partir daí pelo significante. O que o
emparceiramento da demanda realiza é a transformação deste possível
(significante) em necessário.

Esta idéia do gozo como obrigação e necessidade imposta pelo superego


remonta ao texto de Kant com Sade (1963). A incidência da função paterna tem
neste texto um duplo papel. Podemos exemplificá-lo a partir do seguinte exemplo,
suponhamos que o imperativo superegóico se enuncie numa sentença do tipo: "Não
toque nisso !". No plano do significante esta sentença limita à interdição a "isto" e
fica sujeito à derivação metonímica e metafórica habilitando desta maneira o desejo.
No plano do emparceiramento da demanda este imperativo pode ser tomado como
uma obrigação insensata ou de manter-se tocando no objeto ou de nunca poder
substituí-lo. Resumindo o esquema do empareceiramento das demandas:

impossível ---------------------> contingente

possível ---------------------> necessário

A forma modal da demanda tem como efeito fundamental fornecer


consistência subjetiva. Se há emparceiramento da demanda é porque de algum
modo se preserva o objeto (aquilo que Freud chama de identificação narcísica).
Esta preservação do objeto numa espécie de entificação reificante é justamente o
que a análise visa atravessar.

Diante deste quadro como entender a concorrência, ao lado de um discurso


matemático topológico de uma espécie de ontologia negativa ? Se a existência só
pode ser pensada como ex-sistência, isto é, como exterioridade em relação ao
pensamento o que nos autorizaria a falar sobre ela ? Lacan leu o primeiro
Wittgenstein, como se atesta pelo Seminário XVII, e ao que parece está atento a
impossibilidade de sair da linguagem para falar dela. No entanto como abordar
temas da psicanálise que parecem se referir a algo que ultrapassa a linguagem ? A
teoria do dizer é uma forma de tocar neste problema. No dizer está em jogo não
uma demonstração mas uma "mostração".

Expliquemo-nos. Os gregos diferenciavam dois grandes tipos de prova, a


apodeixis, que é aquela apoiada num sistema referencial discursivo que permite a
plena dedução e a deixis, que não prova pela dedução desde o axioma mas por
mostrar ao interlocutor a evidência do que se está afirmando em relação a um fato

  114  
incontestável mas não incluido num sistema referencial discursivo específico ou
explicitado enquanto tal. A deixis mantém suposto o que a apodeixis põe às claras.
A dialética platônica é um exemplo de deixis, assim como a geometria contida nos
Elementos de Euclides é um paradigma da apodeixis. O exemplo dado por Lacan
para ilustrar a ordem do dizer é a topologia. Lacan, em L'Etourdit, a define da
seguinte forma:

a) ela não é uma teoria (não é portanto um sistema referencial discursivo)


b) ela não é uma substância (pois vimos que o Real é sinônimo do impossível)
c) ela é um discurso sem consciência (pois não há sujeito do dizer)
d) ela é um puro dizer (pois não diz sobre nada e muito menos explicita suas
premissas)

O uso da topologia é puro exercício de sentido. Quando se o transforma


numa chave metafórica ele ganha em significação o que perde em sentido. A
topologia responde assim a exigência de algo que esteja no limite entre o que se
pode demonstrar e o que se pode apenas mostrar. Nossa hipótese é que a
topologia em Lacan corresponde, não apenas a um veículo de formalização da
psicanálise, e neste sentido de aproximá-la da ciência, mas também a uma forma de
mostar o que nela não é formalizável. Percorrer a topologia, neste sentido se
equipara a ler um texto de Joyce. Deixar-se tomar pelo puro dizer e pelos limites da
significação.

4. A Significação:

O terceiro nível em que podemos comparar a teoria da interpretação à uma


teoria da prova é o da significação. Nele trata-se de situar a teoria dos raciocínios.
Se para Aristóteles a pergunta que regia o tema era: o que torna um conjunto de
proposições um silogismo válido, para Lacan talvez o problema seja: o que torna um
ato de fala significativo ou analiticamente interessante para um sujeito. Em termos
preliminares a fala significativa buscada pela interpretação (a fala plena do
Seminário I) implica sempre na transformação da temporalidade. O tempo é
justamente um fator ausente na teoria dos raciocínios clássica. Nela trata-se sempre
de um eterno presente. Para a psicanálise, ao contrário, todo o problema se dá ao
nível das relações de construção, desconstrução, escamoteamento e redução do
desejo como fio que entrelaça passado, presente e futuro (Freud, 1909). No caso do
sonho podemos simplificar tal movimento falando de um movimento que parte do
presente (reminiscências diurnas), vai ao passado (desejos infantis) e aponta para o
futuro (figuração do desejo como realizado).

A significação pode ser definida como efeito temporal do ato de fala. Já no


texto da Subversão do Sujeito (1960) Lacan ancora a significação ao ponto de
inversão e ressignificação significante (o ponto de basta). Enquanto temporal será

  115  
sempre um semi-dito, isto é, um dito que não diz tudo e preserva a possibilidade
futura de ser re-dito. É no nível da significação e do dito que Lacan tem por
horizonte o inconsciente. A significação é o momento em que a fala faz ato,
instituindo um antes e um depois irreversível. O poder performativo da linguagem,
assinalado por filósofos da linguagem como Austin e Searle, responde bem à noção
lacaniana de significação (como o mostrou Forrester, 1984). A significação
corresponde ao momento em que a fala faz alguma coisa além de descrever um
estado de coisas.

A "teoria dos raciocínios" em pauta na demonstração psicanalítica toca ao


poder do dito. É porque o dito re-vela uma ato de fala feliz que se o pode considerar
legítimo. A manutenção do nível da significação absorve ao período lógico da obra
de Lacan os avanços do período linguístico. O texto sobre a Subversão do Sujeito é
uma boa síntese dessa hibridização dos paradigmas linguístico e lógico. No que
toca ao projeto clínico de por em marcha a demonstração do impossível envolvido
na interpretação pode-se destacar deste texto a definição algébrica que nele
aparece do conceito de significação. Ela é definida como a raíz quadrada de -1. Isto
quer dizer que o que organiza e orienta a cadeia significante é este impossível
tomado no nível matemático para representar a falta. Impossível tem aqui a
conotação de irracional ou de incomensurável.

As formações do inconsciente como o sonho, o sintoma, o ato falho, etc.


correspondem a um tipo de articulação significante que Lacan chama de metáfora.
O desejo e o sujeito a ele suposto correspondem a outra forma de articulação: a
metonímia. Ocorre, e isto parece linguísticamente confirmado, que toda metáfora é
redutível a uma metonímia. É isto que torna possível interpretar uma formação do
inconsciente, isto é, transformar a metáfora do sintoma na metonímia do desejo pela
explicitação do sujeito. O que permite compreender a oposição entre realização de
desejo e reconhecimento de desejo (presente por exemplo no texto da Direção da
Cura, 1958). O reconhecimento do desejo só se obtém por um ato subjetivo.

Apropriar-se de uma significação, desta forma, é o contrário de realizar uma


significação. No caso das formações do inconsciente o sujeito aparece como um
efeito da significação e não como sua causa ou motivo, como pensa a filosofia da
linguagem intencionalista. Se a causa da significação não é a vontade ou a intenção
de realizá-la, muito menos é o sujeito clássico, que como um fantasma na máquina
escolheria as significações que pretende produzir cabe perguntar, o que causa a
significação ? A resposta de Lacan a este problema é tripla. De um lado é a falta
considerada no registro simbólico significante, isto é a raíz quadrada de -1. Por
outro é a falta tomada no registro imaginário, isto é o -1. Se tomamos um momento
posterior da obra de Lacan vamos encontrar formulação pertinentes como isso, por
exemplo, no Seminário XXII (RSI) e no Seminário XXIII (O Sinthoma) Lacan
localizará a significação entre o imaginário e o simbólico.

  116  
Tudo se passa como se no conjunto de todas as escolhas linguísticamente
possíveis, no conjunto organizado e estruturado que é a linguagem uma casela,
uma possibilidade permanecesse vaga. Falar, e produzir significação, é preencher
esta casela com uma das duas alternativas apresentadas. O efeito deste
preenchimento é o sujeito que no seu aparecimento traz consigo a abertura de uma
nova casela. Efeito cujo estautot metapiscológico se situa no Real. Isto permite a
Lacan argumentar que a divisão (Spaltung) do sujeito é dupla pois se dá ao nível
do significante (significação) e ao nivel do objeto a (sentido). O lugar em que se
realiza esta falta é o Outro, que se vê assim submetido à duas acepções; o Outro
como discurso do inconsciente, tesouro dos significantes, lugar originário do desejo
e o Outro como corpo fantasmático, sede da demanda e do imperativo de gozo.

Como considerar, depois desta incursão pela noção de significação, o


impossível que lhe caracteriza ? Se retornarmos a Aristóteles e aos projetos
clássicos em termos de teoria da prova podemos observar que uma prova só é
perfeita se ela não porta nenhuma contradição formal ou ontológica e ao mesmo
tempo nos permite alcançar a verdade ou a falsidade. A crítica da dimensão
ontológica foi efetuada por Lacan através do tema da sexuação, a da noção de
verdade se efetuou no tema do sentido . Quanto ao aspecto formal, este será posto
em pauta no nível da significação e do dito.

Se o pensamento é considerado como uma exterioridade em relação ao


inconsciente (Seminários XI e XIV), e Freud já afirmava o inconsciente como não
submetido à lógica, ao tempo e à negação (três atributos que vimos estarem
intríncicamente ligados) então a conexidade ou gramática que articula a significação
não é completamente redutível a um saber de contornos lógicos. Diante de um
significante enigmático, assemântico (L'Etourdit) ou enlouquecido (segundo a
conotação dada por um comentador como Zizek, 1993) como é o chamado S1 se
poderá sempre articular um saber inconsciente (S2) e com isso engendrar uma nova
significação e um novo efeito sujeito.

Isto é um jeito assaz complexo de afirmar algo práticamente banal: nunca se


poderá dizer tudo. O senso comum, especialmente aquele orientado pelo discurso
histérico, sabe disso sem que um psicanalista tenha que afirmá-lo. Pois bem, a
demonstração de que a significação se comporta como um conjunto aberto, que
sempre se poderá "saber" mais sobre as determinações inconscientes (tornar
consciente o inconsciente na expressão de Freud) coloca um problema sério
quando perguntamos o que uma psicanálise poderia fazer quando justamente o
problema é um "excesso" de significação. Quando este reenvio interminável da
significação é causa de sofrimento, e sempre o é em alguma medida, se trataria de
produzir um basta a este saber.

  117  
Ao nível da significação imaginária este basta é a própria interpretação como
reendereçamento entre S1 e S2. Ao nível da significação simbólica se trata de
mostrar a impossiblidade de reduzir o dizer ao dito ou, o sentido à significação.

Esta impossibilidade será pensada por Lacan a partir de uma leitura logicista
da função fálica. Vimos que a função fálica é o que organiza os reendereçamentos
da significação. Em textos como L'Etourdit (1969) e A Terceira (1970) o tratamento
dado a esta função faz coincidir a função fálica com a função proposicional.
Provavelmente isto se deve a leitura, um tanto parcial aliás, de um lógico alemão
chamado Gottlob Frege. Frege afirmava que toda proposição lógica é a rigor
redutível a uma função matemática. Ora, a forma lógica de uma proposição é
sempre gramatical: Sujeito, Verbo e Predicado. Mesmo a lógica das relações
proposta por Russel e Whitehead não deixa de manter absorvido ao predicado a
cópula, como afirma Simpson (1976):

"Um predicado será qualquer expressão que combinada com um ou mais


nomes de objeto, de acordo com as regras sintáticas, permite obter uma
proposição" (p.40)

A corrupção deste formato impede-nos de falar em proposição. A resolução


que uma análise pode oferecer ao problema da infinitude da significação passa da
redução dos conjuntos de significação a uma proposição fundamental. É a forma
"gramatical" do fantasma que Freud explora em textos como Uma Criança é
Espancada e no exame do problema das psicoses, no caso Schreber (1911). As
reviravoltas de certos enunciados fundamentais produzidas a partir de um
enunciado como: "Eu o amo", explicariam as formações delirantes como a a
erotomania ("Ele me ama"), a perseguição ("Ele me odeia") e a megalomania ("Eu o
odeio"). Em todos os casos se trata de negação de um aspecto da proposição; do
sujeito, do verbo, do objeto e até mesmo no conjunto da sentença (esquizofrenia). A
frase fantasmática, no caso da neurose, é no entanto um paradoxo. Por um lado
cifra a temporalidade da significação e o gozo a ela atinente, por outro é ele mesmo
resistente à temporalização pois seu tempo verbal corresponde à forma reflexiva
(segundo Lacan a voz média do grego - o ariosto). Como afirma Lacan no Seminário
VI:

"O fantasma na perversão é apelável. Situa-se no espaço. Suspende uma


relação essencial. Não é atemporal mas fora do tempo. Na neurose pelo contrário a
própria base das relações do sujeito com o objeto ao nível do fantasma é a relação
do sujeito com o tempo (...) o obsessivo procrastina porque antecipa sempre
demasiado tarde, enquanto a histérica repete sempre o que há de inicial no seu
trauma, isto é, um certo demasiado cedo, uma imaturação fundamental" (p.80)

É por fixar as relações temporais do sujeito que o fantasma é, por assim


dizer, imune a interpretação, uma vez que esta operaria no interior da temporalidade

  118  
fixada pelo fantasma. Em função disso o fantasma (estrutura fundamental das
diversas versões das fantasias) requer o conceito clínico de construção, que não
abordaremos nos limites deste trabalho.

Não se pode localizar na frase fantasmática o sujeito, ele é por assim dizer
indeterminado (Bate-se...) de modo que a própria forma lógica da proposição (e da
função fálica) são postas em colapso. Lacan afirma que quando o fantasma toca o
Real ele perde sua significação e é nesse sentido que a partir da hipótese do
fantasma é possível pensar o ponto de conexão entre os ditos e o dizer. É pelo dizer
que se toca no "Bate-se numa criança." que a significação encontra seu impossível.

Recapitulemos nosso percurso. Postulamos a existência de três domínios: a


sexuação, o sentido e a significação que se mostram mutuamente limitados e
articulados a partir da idéia de impossível. Do lado da significação a formalização de
Lacan apela para a noção de estrutura. Do lado do sentido a formalização apela
para a noção de discurso. A sexuação, como monstrou Bruno (1989), parece ser
uma ponte entre a estrutura e o discurso. Em termos da metapsicologia lacaniana
podemos supor que a significação se encontra entre o imaginário e o simbólico, o
sentido entre o simbólico e o real e a sexuação entre o real e o imaginário.

Apenas a título de justificação mínima tomemos o caso da psicose onde,


grosso modo, o simbólico separa-se dos outros registros. Notamos a a primazia do
problema da sexuação (o empuxo à mulher, a invenção de uma sexuação
fantástica, etc.). Num segundo plano temos a ilimitação da significação pelo sentido
(delírio, alterações de código e mensagem). Finalmente num terceiro aspecto ocorre
a aparição macissa do sentido destituído de significação (a compactação
significante e o idioleto).

5. A Clínica da Interpretação:

Uma parte significativa do discurso do analisante se apresenta através de


uma forma narrativa assimilável a uma demonstração. Especialmente no início de
uma análise o paciente parece falar de modo a justificar sua posição subjetiva e de
como esta se determina apesar dele e de todos os seus esforços. O discurso apesar
de tudo é demonstrativo pois busca justificar, segundo uma racionalidade própria, as
determinações de seu sofrimento. Essas determinações muitas vezes se ligam às
vicissitudes de sua história, as contingências de sua vida amorosa, profissional e
enfim à forma como se está com o outro (enquanto semelhante) e com o Outro
(enquanto campo das determinações da linguagem). Algo tônico nesta narrativa é
que ela parece visar de algum modo a isenção do sujeito, seja pela retirada de sua
implicação , seja pelo excesso de implicação. Uma forma de considerar o lugar que
o analista toma em relação a este discurso é pensar que ele oferecerá uma

  119  
demonstração concorrente, supostamente adequada e científicamente autorizada
em relação à que se produz no discurso do analisante. Trataria-se assim de um tipo
de explicação ou de tradução que em nada modifica a estrutura do discurso do
paciente.

No entanto a escuta analítica se caracteriza justamente pelo relevo que dá à


impossibilidade desta demonstração. Pela escuta dos paradoxos que se constituem
na prova empreendida pelo analisante. Seja ao nível da transferência, pela escuta
da contradição que a move, seja ao nível da sexuação, do sentido ou da
significação a análise visará a desconstrução dos aspectos que guiam esta teoria
da prova ao nível do analisante, a saber: sua ontologia (o que é ser e não ser ?) ,
sua teoria da verdade (o que é dizer ?), e sua teoria dos juízos ou proposições (o
que é falar ?). Essas três esferas são pertinentes aos três modos fundamentais de
pensar a interpretação.

Em cada caso a interpretação implicaria um tipo de paradoxo diferente. No


caso da significação pensamos que se trata de uma paradoxo de simultaneidade,
cujo efeito é o absurdo. No caso do sentido trata-se de um paradoxo de autoria, cujo
efeito é o não senso (ou des-senso) e em se tratando de sexuação o paradoxo é de
incomensurabilidade. Nos próximos parágrafos procuraremos mostrar como estas
distinções implicam diferentes procedimento clínicos quanto à escuta e à
interpretação.

6. O Dito:

Lacan fala da interpretação, em L'etourdit (1972), situando a como um tipo de


intervenção sujeita à três contingências: a da homofonia, a da gramática e a da
lógica.

A vertente homofônica é a que melhor traduz a dimensão da significação.


Nela o analista joga com o equívoco fazendo aparecer uma espécie de significação
latente, um segundo sentido. Segundo o comentário de Soller (1994) no equívoco
se trata de revelar as remissões que fazem ligar sincrônica e diacrônicamente um
significante a outro. Por exemplo, o "apoio" que Elizabeth Von R. não recebeu de
seu pai se liga à falta de "apoio" que a impedia de andar (o sintoma da astasia-
abasia). A paciente, comentada por Miller (1994), que não bebia outra coisa a não
ser "Coca-Cola" até que a análise revelasse as ligações desse sintoma com a irmã
da paciente, apelidada "Coco". Enfim, a literatura analítica está repleta de exemplos
como esses, mostrando a pertinência equívoca do significante, e da significação
com as formações do inconsciente. Entre as duas séries de significação que o
equívoco significante reúne está o lugar do sujeito, isto é, no lugar em que a
significação se torna paradoxal pois refere-se a coisas contrárias e impossíveis de
serem significadas em conjunto a não ser por estas artimanhas da linguagem.

  120  
O sujeito está igualmente dividido pois onde numa série há enunciação na
outra há enunciado, e vice-versa. Lacan, no Seminário XI, recorre ao paradoxo de
Epimênides para explicar esse desacordo de significações como o lugar do sujeito.
Se para a filosofia o sujeito aparece sempre no lugar daquilo que diz a verdade e a
necessidade (lógica), para a psicanálise o sujeito aparece sempre dizendo a mentira
e o impossível. Quando Epimênides diz; "Todos os cretenses são mentirosos"
(sendo ele mesmo um cretense), a verdade de seu dito só aparece porque ele diz
simultâneamente a verdade e a mentira. A verdade no plano da enunciação, a
mentira no plano do enunciado. Os paradoxos visuais de Escher, onde se
representam por exemplo homens que andam simultâneamente para cima e para
baixo, os cânones de Bach que apresentam escalas crescentes com um efeito
fônico decrescente, a literatura de Lewis Carrol, a prova lógica de Godel são alguns
exemplos que podem ilustrar o que está em jogo, em termos do sujeito, nos
paradoxos da significação.

Hofstadter (1989) mostrou como a construção de certas fugas de Bach


(especialmente os canones contidos em "Musical Offerig") possuem uma
interessante propriedade que pode ser resumida da seguinte forma: no interior de
um sistema musical hierárquico nos movemos para cima ou para baixo até o ponto
em que estranhamente retornamos ao ponto de partida. Por exemplo, no "Canon
per Tono" a voz superior segue uma variante do tema real, as duas outras vozes
provém de uma harmonização canonica baseada num segundo tema. A mais alta
esta em C menor e a mais baixa segue um intervalo de quinta. O que torna este
canon absolutamente paradoxal é que quando ele termina ele não está mais na
chave C menor mas em D menor. De alguma forma Bach trocou a chave fazendo
esta regredir quando o efeito para o ouvinte é de ascenção. Depois de seis
modulações retornamos à chave original em C menor com todas as vozes uma
oitava acima. A partitura executa assim um movimento contrário ao da escuta. É
uma ilusão acústica.

No caso dos desenhos do holandês Escher, comparado por Hofstadter à


música de Bach, um paradoxo similar se reaaliza. A água que simultaneamente cai
e sobe (Waterfall, 1961) os homens da torre que simultaneamente sobem e descem
as escadas, o retrato do retrato que se contem a si mesmo, são alguns exemplos de
como certas simultaneidades induzem a um infinito aparentemente impossível.

O teorema de Godel, no entender de Hofstadter, é o reconhecimento deste


aspecto no campo da lógica. De acordo com tal teorema:

"Todas as formulações axiomáticas consistentes da teoria dos números


incluem uma proposição indecidível"

As consequencias desse teorema representaram um duro golpe às


pretensões de formalização não equívoca de sistemas axiomáticos. Derivar

  121  
implicações disso para as ciências humanas parece atraente (apesar das
recomendações em contrário de Nagel,1973 ). No entanto não nos aprofundaremos
nisso uma vez que nosso objetivo é apenas exemplificar o que entendemos por
paradoxos de simultaneidade.

O caso do duplo sentido aferido pela interpretação é um caso de


simultaneidade. Não que a percepção apreenda ao mesmo tempo figuras opostas (o
que os teóricos da percepção mostraram ser impossível) mas algo que depende do
nível simbólico permite reunir significações contraditórias no mesmo enunciado. Em
psicanálise isso se aplica à esfera do significante que simultaneamente pode se
ligar a mais de uma série de significaçães. É por isso que o significante pode ser
definido como aquilo que é diferente de si mesmo (Dor, 1995).

A técnica empregada na interpretação, do ponto de vista homofônico, faz


privilegiar a escuta da polissemia embutida na palavra, a ambiguidade presente a
cada "giro significante". A pontuação, por exemplo, é um tipo de interpretação que
altera e decide a significação pela introdução de uma contra-significação, isto é,
uma segunda forma de escutar o que foi dito, não completamente estranha ao dito
original e nem completamente redutível a este. Um aspecto interessante da
pontuação é como ela altera a velocidade da significação, concentrando-a num
ponto, dispersando-a, apressando sua conclusão e assim por diante. A velocidade
da significação atesta a forma singular da divisão do sujeito ao nível do significante.

Outro aspecto da pontuação é sua atenção ao que insiste na fala do


paciente, seja ao nível fônico, semântico, gramatical ou de estilo narrativo. Fica
claro por isso que o significante, no sentido lacaniano, não é própriamente uma
palavra. A pontuação isola, a partir da insistência, a fala como um dito. É do dito que
se engendram histórias, microhistórias e interhistórias que nos levam a uma nova
rede de insistências.

Portanto o que legitima uma interpretação não é o assentimento do


analisante, nem o cálculo do analista mas o prosseguimento do "texto" nele mesmo.
Uma interpretação se mede pelos seus efeitos, pelas suas consequências nos
destinos da associação livre, não pelo estado psicológico do sujeito, sua crença ou
indiferença psicológicas. Muitas vezes a crença no poder representacional da
interpretação, isto é, no mundo descrito e proposto por ela, é fonte mesma da
resistência. Por outro lado eventualmente uma intervenção completamente em
desacordo com a questão tratada se transforma numa interpretação quando o
analisante diz: " Não, de forma alguma pode ser isso, pois ...", e traz uma versão
significante nova numa posição subjetiva diferente.

Um exemplo. Certa vez, no interior de minha análise, discorria


professoralmente sobre o sexo dos anjos quando escuto algo como um "Tzz, Tzz
...". Tomado de raiva pelo desdém e desaprovação, demonstrados pelo meu

  122  
analista, viro-me no divã, disposto a promover um "ajuste de contas" transferencial
e, para minha surpresa, contemplo em sua mão um isqueiro, que teima em não
funcionar, produzindo o som "Tzz, Tzz ..." . Este isqueiro, fucionara, para mim,
naquele momento, como analista. Evidentemente tive que rever minha fala sobre o
sexo dos anjos e introduzir uma nova série associativa. Este exemplo se presta a
mostar como uma interpretação pode se produzir apesar das intensões de analista e
analisante, a interpretação se faz, neste caso, a partir de algo que poderíamos
denominar de "analisando", o texto mesmo e suas rupturas.

Outra maneira de explorar a polissemia da significação é provocar o


equívoco, isto é, escutar contra-comunicativamente, furtar-se ao entendimento para
apostar no "mal entendido", criando assim uma espécie de ato falho artificial. O que
se obtém, tanto pelo equívoco quanto pela pontuação é um a-mais de significação.
O percurso de uma análise, deste ponto de vista, corresponde à redução dos
significantes, que passam a ser condensados por séries, e ao mesmo tempo um
aumento da significação neles contida. Cada vez se diz mais com menos. Isto
permite dizer que cada significante representa um sujeito para um número crescente
de outros significantes. Há portanto, em cada momento, um significante que nomeia
a série nele contida. Por exemplo, o significante "ratos", no caso do Homem dos
Ratos contém a série: pênis (pequeno como um rato), jogo ( o pai fora um "rato de
jogo" - Spielrate), mordidas (ele mordera como um rato na cena infantil), ânus (ratos
entram pelo ânus na cena da tortura), crianças (como no conto literário), dívida
(prestação - Rate) etc. "Ratos" é uma autêntica geratriz de significação e de de re-
significação que vai sendo extraida pela polissemia da interpretação. O que está em
jogo na relação entre a série e seu nomeante é que os ditos estão em exterioridade
com relação a eles mesmos.

É da estrutura mesma do paradoxo da significação incluir nela algo que


deveria ser exterior, isto é, incluir na fala o sujeito que fala. O paradoxo de Russel é
um bom exemplo do que estamos falando. Portanto para que haja interpretação é
necessário que a palavra interpretante não seja também da ordem do dito, caso em
que se incluiria como um dito a mais. Segundo Lacan o nível a que pertence este
interpretante é o do dizer. Do lado do analista a interpretação depende de que seu
dizer ultrapasse seu dito, que o sentido ultrapasse a significação.

Vimos que do ponto de vista formal, atinente ao campo da significação, trata-


se da função fálico proposicional. A entrada do dizer no campo da significação, o
que caracteriza a interpretação, pode ser descrita como produzindo os seguintes
efeitos na gramática da significação:

1. quanto ao tempo verbal - do passado ou futuro ao presente


2. quanto à voz - da voz passiva à voz ativa
3. quanto ao modo - do subjuntivo e imperativo ao indicativo

  123  
4. quanto ao sujeito - da condição de oculto ou indeterminado à de determinado
paradoxalmente
5. quanto ao tipo de juízo: do modal ao apofântico

Examinando de perto as transformações gramaticais realizadas pela


incidência do dizer sobre o dito chegamos a um tipo de enunciado absolutamente
clássico, isto é, aquele que permite a passagem do universal à existência. Neste
ponto saímos do âmbito da significação e passamos ao do sentido. É nele que
Lacan postula a tese de que o domínio da existência é heterogêneo ao da
universalidade (existe Um que não está submetido à função universal e
universalizante do falo). Portanto há algo que ultrapassa a significação fálica,
representa uma dimensão da linguagem e que ao incidir sobre a significação de
modo específico altera o seu formato. Isto é o que Lacan chama de dizer.

7. O Dizer:

As formas da interpretação ligadas mais diretamente ao dizer são o corte, a


alusão e a citação. Nestes três casos encontramos um tipo específico de paradoxo,
que chamaremos de paradoxo de autoria. Paradoxos de autoria são aqueles em
que o sentido se mostra, ou, como dizia Lacan, ocorre um "efeito de sentido Real".
Toda a teoria do ato analítico (Seminário XV) é uma tentativa de explicitar essa
dimensão em que o real pode aparecer na linguagem. Daí a definição de Lacan de
que o ato "é por sua própria dimensão um dizer" (Seminário XV).

Quanto à interpretação seguimos aqui a classificação proposta por Soller


(1995) e também por Pommier (1989). A ligação destes com o plano do sentido
corre por nossa conta.

O corte se refere a uma interrupção da série associativa, com ou sem


interrupção da sessão. Seu efeito é a detenção dos laços de significação (S1 -->
S2). Em termos imaginários o corte é sempre apreendido com desagrado uma vez
que implica na interrupçã do exercício da função fálica. O corte, se de fato tem efeito
de corte, corresponde a uma estratégia para fazer aparecer o Real na linguagem. É
por isso que o nível do dizer se aproxima do des-senso, aparição do impossível do
dizer.

A relação entre o dizer e a alusão é similar à existente entre o dito e o


equívoco. Nos dois casos se trata de dar inconsistência ao produto do ato de fala.
No caso do dito essa inconsistência aparece em função da polissemia, no caso do
dizer se trata do gesto de apontar com palavras, designanado algo sem nomeá-lo.

  124  
Wittegenstein nos parece um autor especialmente útil para abordar os
paradoxos do dizer. Numa época marcada pela revisão do logicismo do Tractatus,
Wittgenstein, retomando Santo Agostinho, investiga o seguinte problema:

"Mas suponham que eu apontasse com minha mão para uma camisola azul.
Como se poderá distinguir o apontar para a cor do apontar para a forma ? (...) A
diferença, poderia dizer-se, não reside no ato de demonstração, mas antes no que
rodeia este ato, no uso da linguagem." (Livro Castanho, p.13)

A alusão, como afirma Wittegenstein (e a posição de Lacan parece concordar


com isto), joga com o uso não demonstrativo mas "mostrativo" da linguagem. Mas
como o discurso poderia realizar esta ação de apontamento ? Na fala do analisante
este uso se mostra nos termos que designam o sujeito sem nomeá-lo, como: "aqui",
"ali", "lá", "isto", "agora", "depois" etc. são alusivos pois falam de uma ambiguidade
ao nível do dizer. O silêncio do analista, quando ganha uma função interpretativa, é
um silêncio alusivo. Um paradoxal silêncio que diz algo. Na psicose, onde a função
fálico-proposicional se desorganiza, temos um bom exemplo da inflação do aspecto
alusivo da linguagem. Figuras como "eles" e "aquilo", desconectadas da
significação, acabam por introduzir o psicótico frontalemente no puro dizer. Trata-se
de uma alusividade radical. A resposta ao sentido, que como tal é sempre
devastador, é o delírio, uma espécie de rede de significação que serve de anteparo
ao dizer.

A terceira forma de intervenção que se associa ao dizer, segundo nossa


hipótese, é a citação. Colocar entre aspas ou parênteses um fragmento do discurso
do analisante desenraiza os laços entre enunciação e enunciado, garantidos pela
significação. Ao perguntar "Quem diz isso ?" coloca-se em suspensão,
momentâneamente, a ligação entre o falante e o produto de seu ato de fala. O
trabalho do analisante pode eventualmente localizar, histórico-genealógicamente a
procedência deste dizer. No entanto, antes de fazê-lo a questão da autoria
permanece. Se atentamos para a radicalidade da pergunta vemos que ela não
admite uma resposta conclusiva. De fato - Quem fala ? só admite resposta se se
partimos de uma concepção intencionalista da linguagem onde os indivíduos falam
pela linguagem e não são falados por ela, como postula Lacan. O aforisma
lacaniano de que "isto fala" (Ça parle), pode ser lido tanto como uma forma de
atestar a presença das pulsões na linguagem (o "isto" como Id) como um modo de
fazer referência à sobredeterminação do sujeito pela linguagem na qual ele está
inserido. Isto é, não a linguagem, como um sistema abstrato, objeto de estudo da
linguística, mas a linguagem como marcada por um dizer, como tal histórica e
temporal.

Um autor como Figueiredo (1994), que procura aproximar o pensamento de


Heidegger da clínica psicanalítica valoriza justamente este aspecto da relação do
homem com a linguagem. Nesses termos a idéia de uma fala "acontecimental"

  125  
como momento em que a fala fala, em que a fala constitui um dizer que ultrapassa o
sujeito corresponde bem à idéia lacaniana de dizer. O mérito da aproximação com
Heidegger seria a possibilidade de acesso a um aparato conceitual capaz de pensar
a historicidade do dizer. O aspecto temporal do dizer se encontra apenas aludido
por Lacan e pensamos que este é um bom espaço de interlocução com a filosofia
heideggeriana. A afirmação de Figueiredo (p.130) de que a interpretação seria o
circundar de silêncio o dito para que ele ressoe é especialmente pertinente à teoria
lacaniana do dizer, talvez não à teoria da significação.

É interessante notar que um pensamento extensamente perpassado pelo


heideggerianismo, como é o caso do de Derrida traga reflexões inovadoras sobre o
estatuto da citação. Ao criticar a teoria dos atos de fala, tal como fora apreendida
por Searle, Derrida (1990) argumenta que não há como separar a citação (o
discurso teatral por exemplo) de uma fala "séria". Se o fizermos admitiremos,
implícitamente, que podemos controlar a propriedade da fala. E se admitimos que
podemos controlar a propriedade da fala desconhecemos o sujeito da enunciação e
a hipótese do inconsciente. Ocorre que a autenticidade e legitimidade desta
propriedade acaba desconhecendo o aspecto crativo da linguagem. A iteração
(repetição diferenciante), mesmo feita pelo "proprietário" da fala é sempre uma
modificação não correspondente à fala original. Assim a citação como modalidade
interpretativa se demonstra um convite ao impossível.

Tanto no corte como na alusão e na citação encontramos a autoria como um


paradoxo. Isto é, nos três casos o ato subverte sua autoria. Lacan dizia que o único
ato bem sucedido é o suicídio. De fato no suicídio o sujeito não pode se aprorpiar de
seu ato. Justamente nisso ele é bem sucedido. Há um agente mas não há autoria, a
não ser a que diz respeito a outros sujeitos. O mesmo aparece nas formas
interpretativas antes antes designadas: o ato aparece sem sujeito. Um desejo sem
sujeito, é assim que Lacan se refe ao desejo de analista. Talvez em nenhuma outra
diomensão da interpretação ele seja tão necessário.

8. A Sexuação:

Finalmente quanto ao nível da sexuação o impossível se mostra na


interpretação cujo fundamento não é nem a homofonia da significação, nem a
gramática do sentido mas a lógica. Vimos que tal impossível se demonstra
teóricamente a partir das fórmulas quânticas da sexuação. Clinicamente o tipo
interpretativo que melhor se ajusta a esta vertente é o enigma. O enigma pode se
fazer desde uma interjeição do analista até uma formulação explícita. O enigma, se
refere à revisão ontológica promovida por Lacan em termos de teoria da prova. Ele
se refere básiamente à condição enigmática dos seres sexuados. De fato a
sexualidade sempre esteve associada à um tipo especial de paradoxo, aquele
expressado pelas teorias sexuais infantis descritas por Freud (1907) é um bom

  126  
exemplo disso. O núcleo deste paradoxo é a castração e sua ligação com a origem
da vida e seu término, a origem da diferença entre os sexos, e a origem da
satisfação. O enigma, nesses termos não se reduz a uma pergunta, mas expressa a
partir dela. Ele se reduz ao puro "?".

A entrada em cena de um primeiro enigma (uma primeira questão como se


diz no ambiente lacaniano) determina o início de uma análise e inclusive sua
eventual realização. Mas se o analisante constitui por si só seus próprios enigmas o
que viria a crescentar um enigma do lado do analista ? De fato a manutenção ou
reatualização do enigma tem por objetivo preservar o paradoxo da sexualidade
como um paradoxo. Dizemos que se trata de ontologia pois a afirmação do caráter
paradoxal da condição humana tem aqui sentido de afirmação sobre a condição do
Ser sexuado. O tipo de paradoxo empregado para o tratamento do problema é
relativo à incomensurabilidade entre a posição feminina e masculina.

Um exemplo deste tipo de paradoxo é o paradoxo de Zenão sobre o


movimento (Aquiles e a Tartaruga) e que é utilizado para falar do objeto a como
número de ouro (Seminário XIV). O paradoxo de Aquiles e a Tartaruga pode ser
resumido da seguinte forma. Suponhamos uma corrida entre Aquiles, veloz corredor
e uma tartaruga. Dada a morosidade do referido quelônio concedamos à tartaruga
uma vantagem, digamos de dez metros. A partir desta vantagem Zenão mostra que
é impossível que Aquiles ultrapasse a tartaruga. Isso porque para Aquiles alcançar a
posição inicial da tartaruga (So + 10) ele deve percorrer infinitos pontos que o
separam desta posição. Ora, é impossível percorrer num tempo finito um espaço
infinito e não há dúvida de que podemos encontrar infinitos pontos intermediários
entre dois pontos numa reta. Portanto se fizemos equiparar o problema do objeto a
aos paradoxos da incomensurabilidade é porque em ambos os casos um resto
irredutível preside a abordagem da questão.

A estratégia neurótica para lidar com este paradoxo é contabilizar o gozo


envolvido a cada movimento. A todo gozo a menos se suporá um gozo a mais que
lhe será entregue adiante. Soller (1995) faz um exame muito interessante do tema
do sacrifício a partir desta economia do gozo. O sacrifício condicional (regido pelo
Ideal de Eu), a crença, as escolhas amorosas e boa parte dos sintomas neuróticos
são regidos por esta lógica. Isto fica mais claro se pensamos que o sintoma é algo
que se interpõe entre a posição masculina e a posição feminina produzindo uma
espécie de relação sexual artificial, um complemento. Freud já dizia que os sintomas
são a prática sexual (simbólica) dos neuróticos. De fato quando um sintoma é
descifrado, quando sua dimensão de significação e sua dimensão de sentido são
atravessadas resta o "núcleo gozante" do sintoma. O destino deste resto é
relativamente incerto ao longo de uma análise. Uma parte é claramente
transformada em satisfação ou em prazer (conforme a distinção proposta por Leguil,
1994). Outra, no entanto, permanece no que Soller (1995) chama de "sintoma

  127  
reduzido" a partir do qual se poderá entender a afirmação de Laca, sobre o final da
análise como "identificação ao sint (h) oma".

Portanto a enigmatização, que aparece ostensivamente no enigma e


lateralmente nas perguntas de cunho interpretativo visa alterar a lógica em que um
gozo a menos corresponde à promessa de um gozo a mais. A enigmatização não
se dá pela introdução de um saber a mais sobre a sexualidade mas pela
constatação de que nela há sempre um saber a menos.

Do ponto de vista do sofrimento impingido no quadro das relações entre


demanda e desejo o enigma é especialmente frutífero. O gozo, como uma espécie
de saber excessivo (na neurose obsessiva) ou faltante (na histeria), sobre um
aspecto da sexualidade é posto em suspensão pelo enigma. A demanda, como
vimos, produz um objeto (e um signo de amor) fazendo consistência do Ser, da sua
universalidade à sua existência. O enigma dissolve esta consistência. A direção da
análise, neste sentido, é dada pela direção do enigma. No momento em que o
enigma não precisa mais ser drenado para uma pergunta, para uma demanda
portanto, o analisante pode continuar sua análise por si só. A análise termina onde
começa: no enigma.

BIBLIOGRAFIA

Aristóteles - Analíticos, in Col. Os Pensadores, Abril Cultural, SP, 1973.


Bruno, P. - Satisfação e Gozo, Tahl, BH, 1989.
Derrida, J. - Limited Inc. , Papirus, Campinas, 1990.
Figueiredo, L.C.M. - Escutar, Recordar, Dizer. Encontros
heideggerianos com a clínica psicanalítica, Escuta/EDUC, SP, 1994.
Forrester, J. - Seduções da Psicanálise, Papirus, Campinas, 1985.
Freud, S. - Uma Criança é Espancada
- Sobre um Caso de Paranóia Descrito Autobiograficamente (1911)
- A Propósito de um Caso de Neurose Obsessiva (1909) - O Homem dos
Lobos in. Sigmund Freud Obras Completas, Amorrortu, BA,
1988.
Gueller, A.S. - Psicanálise e Contingência, tese de mestrado PUC-SP, 1995.
Granger, P. G. - Formalismo e Ciências Humanas, Rés, Lisboa,
1966.
Hofstadter, D. - Godel, Escher, Bach - an Eternal Golden Braid, Vintage, NY,
1989.
Juranville, A. - Lacan e a Filosofia, Jorge Zahar, RJ, 1984.
Lacan, J. - O Seminário, livros:
- VI O Desejo e sua Interpretação (1)
- VII A Ética da Psicanálise
- VIII A Transferência
- XI Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise

  128  
- XIV A Lógica do Fantasma (*)
- XV O Ato Analítico (*)
- XVI De um outro ao Outro (*)
- XVII O Avesso da Psicanálise
- XX Mais, ainda
- XXII RSI (*)
- XXIII O Sinthoma (*) in Jorge Zahar, RJ.
(*) cópia mimeografada.
(1) in Hamlet por Lacan, Escuta, SP, 1983.
- L'Etourdit, in Scilicet, 1973, 4.
- A Terceira, Lettres de lÉ.F.P., 1975, 15.
- Direccion de la Cura e los Princípios de su poder (1958)
- Kant con Sade (1963)
- Subversion del Sujeto e Dialética del Desejo (1960) in Escritos, Siglo XXI,
BA, 1987.
Nagel, E. - Prova de Godel, Perspectiva, SP, 1973
Pommier, G. - El Desenlace de un Analisis, Nueva Vision, BA, 1989.
Soller, C. - in Seminário El Decir del Analista, BA, 1994.

- Variantes do Final de Análise, Papirus,


Campinas, 1995.
Miller, J.A. - (1992)
Wittgenstein, L. - O Livro Castanho, Edições 70, Portugal.

  129  
A FORMA RETÓRICA DOS PENSAMENTOS INCONSCIENTES INVESTIGADA A
PARTIR DOS CHISTES

Christian Dunker

Resumo

O presente artigo procura examinar a noção de “chistes de pensamento” presente


em Freud. O objetivo é propor um modelo de interpretação deste tipo de formação
do inconsciente baseado na retórica dos argumentos e na retórica das figuras.
Entende-se que a explicitação de uma teoria linguística do sujeito é imprescindível
para a tematização deste caso em particular. Propõe-se a utilização de noções
como as de “oráculo” e “questão” extraídas da tradição retórica para melhor
apreender os problemas da interpretação psicanalítica do chiste e por coextensão
das formações do inconsciente em geral.

Palavras Chave: interpretação, chistes, retórica

1. O Lugar dos Chistes de Pensamento

Os chistes de pensamento talvez sejam o grupo menos estudado pelos


teóricos das relações entre psicanálise e retórica. Apesar de sua correlação
evidente com materiais clínicos e da ênfase que Freud dá a este grupo em seu
estudo específico (Freud, 1905 a) as contribuições ainda são esparsas quanto a
esta aproximação. Talvez isto se possa atribuir ao fato de que esta vertente dos
chistes parece estar mais próxima de análise próprias à retórica dos argumentos, e
portanto da filosofia da linguagem e da lógica, do que da perspectiva linguística ou
semiológica. Outro motivo para tal afastamento refere-se ao fato de que no centro
dos chistes de pensamento encontra-se a idéia de contradição e portanto as noções
de conceito, argumento e razão; atributos, como se sabe, refratários ao inconsciente
e normalmente associados ao pré-consciente e aos processos secundários.
No entanto, é face aos chistes de pensamento que Freud introduz e utiliza
amplamente a importante noção de deslocamento (Verschiebung), como atesta a
seguinte passagem:
“Consistirá a técnica do chiste precisamente no deslocamento da réplica em
relação ao sentido da reprovação ? Se tanto, uma modificação similar do ponto de
vista, uma mutação da ênfase psíquica, será talvez rastreável (…)” (p.67)
A mesma ambiguidade que encontramos no uso freudiano da idéia de
condensação replica-se no caso do deslocamento, como apontou Todorov (1996,
p.320). Isto porque o conceito refere-se alternadamente a:
a) Qualquer substituição de sentido, como em:

  130  
“Deve-se contar entre os deslocamentos não apenas o desvio no curso das
idéias, mas também todas as espécies de representação indireta, especialmente a
substituição de um elemento representativo (…) (p.291). O problema aqui é a
evidente generalidade da categoria.
b) Mudança de acento psíquico; quando uma expressão supõe a ênfase em
um de seus termos e a resposta toma outro termo como essencial. É o caso dos
chistes de prontidão. Esta acepção representa de fato um movimento específico,
não tematizado até então, e que exige novas categorias de análise.
c) Incoerência semântica entre termos contíguos. O problema nesta acepção
é que também na metáfora e nos chistes de palavra ocorre incoerência semântica, o
que, aliás, promove o processo interpretativo. O mesmo pode se aplicar aos casos
morfológicos e sintáticos. Ocorre que a incoerência nos chistes de palavra não é
semântica mas conceitual ou referente à relação entre o falante e seus ditos.
Portanto a acepção melhor aproveitável é também a que mais dificuldades de
compreensão apresenta. Pela hipótese da mudança de acento psíquico pode se
entender a dissonância semântica e a substituição de sentido ao passo que a
recíproca não é válida. Mas o que quer dizer “acento psíquico” ? A expressão injeta
a idéia de força, intensidade ou ainda presença do psíquico na linguagem. Em
outras palavras, a noção exige, à primeira vista, uma teoria do sujeito, para ser
assimilada.

2. Interpretação e Argumentação

O chiste de pensamento é compreensível no contexto da argumentação


intersubjetiva e não apenas no contexto da palavra, frase ou discurso. Um
argumento, retoricamente, comporta dois aspectos principais: o desejo dos
envolvidos e a forma de conduzi-lo ou enunciá-lo (sua estratégia). Historicamente
três contextos mostram-se particularmente apropriados ao jogo retórico: o jurídico
(que inclui o político e o comercial), o epidítico (o elogio estético por exemplo) e o
ético. Contextos onde não se trata apenas de provar a verdade das teses mas
realizar a implicação do sujeito a estas. É sugestivo, face a aproximação que
propomos, que a maioria dos chistes de pensamento descritos por Freud se
efetivem em situações enunciativas do tipo: vendedor-comprador, casamenteiro-
noivo, rabino-fiéis; isto é, situações que introduzem por si a lógica da justificação
pela prova persuasiva; mais do que verdadeira apenas verossímil. A importância
das condições enunciativas explicaria a presença de certos adejetivos
insistentemente aderidos aos chistes em questão: capacidade de produzir surpresa,
desconcerto, iluminação, engano por um segundo. Termos que aludem, quer pela
recorrência à temporalidade quer pela detenção do sujeito na linguagem em face do
inconsciente.
A mudança de acento psíquico pode ser entendida como mudança do
significante que representa o sujeito para outro significante; retomando a definição
de Lacan. Distingue-se assim este sujeito do sujeito tradicional da intencionalidade,
que segundo uma certa tradição idealista de entendimento da linguagem, estaria por

  131  
trás da fala, expressando conteúdos mentais em acordo com sua volição. O sujeito,
na acepção lacaniana, é melhor definido como um efeito das articulações
significantes. Ele ocupa justamente este lugar representado nos chiste de
pensamento pelo paradoxo ou contradição. Outra maneira de dizê-lo seria associar
este sujeito ao lugar da questão, o que aliás é feito por Lacan em diversos
momentos (1955, 1966). Questão é um termo de largo emprego na história da
retórica. Referia-se na retórica latina ao ponto inicial do processo retórico, a inventio
ou problema que se deve levar à solução, ou melhor, ao consenso. Na idade média
a questio representava a parte introdutória das disputae ou obligationes , disputas
universitárias que tinham por objetivo desenvolver a argumentação, isto é chamar à
fala, para o encaminhamento do problema. É interessante que a questão, neste
sentido, não é propriamente uma pergunta, se bem que possa ser traduzida em
várias, mas uma forma de assunto indecidido, aberto ou paradoxal, que permite
assim retomada sob diversas perspectivas.
Em virtude desta assunção tácita da indecidibilidade de uma questão a
estratégia argumentativa mais apropriada está calcada no entimema, isto é, uma
forma de silogismo que não explicita todas as premissas envolvidas, deixando-as
supostas (em absentia) com o objetivo de reter a atenção do ouvinte e obedecer ao
princípio retórico (e do chiste) da brevidade. Hintikka (1994, p.74) chama estas
premissas de oráculo da argumentação. Ora, o oráculo é o que torna possível esta
espécie de inversão com que Freud caracteriza o chiste. Isto é, assumindo-se que a
estrutura linear da argumentação se mostra numa sequencia do tipo: -Questão-
Resposta-Questão …n , o oráculo é o lugar de onde se extraem as respostas.
Assim, como nos oráculos da antiguidade, sob certas circunstâncias, o lugar
previsto para a resposta pode ser ocupado por uma outra questão. Este movimento
teria por efeito inverter os sinais da estrutura argumentativa, transformando a
questão inicial em resposta, fazendo da pergunta uma afirmação. O oráculo
corresponde, em outras palavras, ao lugar de onde se extraem os significantes que
representam o sujeito, uma definição que se aproxima do que Lacan chama de
Outro; a saber:
a) o tesouro dos significantes;
b) o lugar de onde o sujeito recebe sua própria mensagem de forma invertida;
c) o discurso do inconsciente;
d) o lugar onde se articulam lei e desejo por intermédio do significante fálico.
Se nos atemos a outros momentos do ensino de Lacan podemos notar que a
sequencia: Questão-Resposta-Questão … n, converge com a chamada dialética
entre saber e verdade. A continuidade desta dialética é uma das propostas mais
importantes do tratamento psicanalítico e sua interrupção associa-se à produções
sintomáticas, de estrututra metafórica portanto.

3. Ironia, Antítese e Oxímoro: formas retóricas de figuração do desejo

Passemos então ao exame dos casos prescritos por Freud de chistes de


pensamento, a saber: falhas de raciocínio (deslocamento e contra-senso),

  132  
unificação e representação indireta (pelo contrário, por semelhança e por
comparação). O chiste por falha de raciocínio é ilustrado da seguinte forma:
Um indivíduo empobrecido toma emprestado uma certa quantia de um
conhecido. Neste mesmo dia o benfeitor encontra-o num restaurante comendo
maionese de salmão. O benfeitor o repreende:
“Como ? Você me toma dinheiro emprestado e vem comer maionese de
salmão ? É nisso que você usou o meu dinheiro ? Não lhe compreendo - retrucou o
objeto deste ataque; se não tenho dinheiro, não posso comer maionese de salmão;
se o tenho não devo comer maionese de salmão. Bem, quando então vou comer
maionese de salmão ?” (p.66-67)
Evidencia-se claramente aqui a estrutura: Questão-Resposta do diálogo. O
lugar prescrito para a resposta é ocupado por uma nova questão. Para tanto retira-
se do oráculo a seguinte pergunta: “Quando então vou comer maionese de
salmão?” O efeito disso é transformar a pergunta inicial em uma afirmação: “você
não deve comer maionese de salmão sob tais circunstâncias econômicas”. A contra
pergunta destrói, por explicitação, o caráter retórico da primeira pergunta, posto que
de fato ela não é uma pergunta, no plano da enunciação, mas uma afirmação ou um
imperativo. Ora, a figura de pensamento que melhor representa o descentramento
entre sujeito da enunciação e sujeito do enunciado é precisamente a ironia. Por que
então o chiste não a revela diretamente ? Se assim o assumíssemos ele não seria
motivado por um “raciocínio falho” , como o quer Freud (p.73), mas por uma eficaz
estratégia retórica para desviar a questão do ponto que se pretende evitar, em
suma, falso porém eficiente. Falta à concepção freudiana a noção de que em boa
parte dos processos sociais não se está procurando a verdade a partir de
raciocínios rigorosos mas sim efetuando-se uma espécie de jogo cuja finalidade
pode ser produzir prazer, como nas próprias circunstância do chiste, ou ainda fazer-
se amável ou desejante. O chiste não soa como ironia 37 pois não revela
insinseridade no empobrecido comedor de salmão, isto é, deixa vago o lugar em
que um sujeito sabe que não deveria agir e mesmo assim o faz. É este lugar, que
Freud chama de “terceira pessoa” (driten Person), que é ocupado pelo ouvinte do
chiste, produzindo correlativamente a esta identificação uma satisfação cujo índice é
o riso. O lugar desta terceira pessoa está claramente exemplificado no seguinte
chiste:
Dois comerciantes concorrentes tomam o mesmo trem. Cada um sabe que o
outro está em busca do lugar onde se encontram os melhores preços de tecidos,
nas cidades de Lemberg ou Cracóvia. A situação pressupõe portanto que não se
revele o destino de cada um. É então que um deles pergunta:
“ - Para onde vai ?
- Para Lemberg.
- Porque me diz que vai para Lemberg para que eu pense que você vai a
Cracóvia quando de fato você vai a Lemberg ?

                                                                                                               
37
O paradoxo de Epimênides ilustra a forma retórica deste tipo de chiste. Nele se afirma “Eu estou
mentindo”. Como posso estar mentindo se estou dizendo a verdade, a saber, que estou mentindo ?

  133  
O chiste extrai sua força da inclusão de uma premissa, presente no oráculo, a
saber, que nesta situação não deve-se dizer a verdade. Ocorre que esta premissa
pode ser chamada de uma metapremissa localizada na terceira pessoa, pois não
versa sobre os ditos possíveis mas sobre a própria situação de enunciação ou seja
o dizer. Quando isso acontece o efeito é a imediata transformação do contexto de
enunciação, pois ele não é mais sustentado por esta metapremissa, e outra deve
ocupar seu lugar. Isso esclarece a diferença entre ironia, ou sua variante cínica
presente neste caso, e o chiste. Suponhamos que estivéssemos no lugar de um dos
comerciantes, certamente não teríamos dificuldades em interpretar a situação como
uma profunda ironia ou como um ato de cinismo. O chiste depende de estarmos
indiretamente fora e dentro da situação, isto é, de uma reduplicação da enunciação
entre os personagens e entre quem conta e quem escuta o chiste. Todorov (1996)
descreve este processo da seguinte maneira:
“Em primeiro lugar, percebe o enunciado do primeiro interlocutor; na ausência
de qualquer contexto sintagmático, interpreta-o da mesma maneira que este;
percebendo a réplica do segundo, constata que ela não corresponde ao primeiro
enunciado; para explicar essa incoerência, ele substitui a sua primeira interpretação
do enunciado inicial por uma nova interpretação.” (p.324)
O que Todorov salienta ao isolar dois tempos na interpretação do chiste pode
ser assimilado ao movimento conhecido como ressignificação (Nachträglichkeit, ou
aprés coup); movimento utilizado por Freud em diversos contextos para
compreender certos processos psíquicos 38. Ora, o que a ressignificação realiza é
uma escansão temporal do discurso, faz com que um significante posterior altere o
valor do significante anterior, na sucessão discursiva. Mesmo que o significante se
apresente uma única vez (como no caso da antanáclase nos chistes de palavra) ele
é submetido a duas leituras, o que faz concluir que ele é, diante destas duas
leituras, igual e diferente de si mesmo. Ora, se entendemos que o contexto
sintagmático é uma forma de referir-se ao que Lacan chama de S2 (saber) e que S1
é o significante que permite a reinterpretação, chamado justamente por isso, de
significante assemântico, chegamos na idéia de que o que caracteriza o chiste é
justamente a alteração de uma certa temporalidade sucessiva suposta ao discurso39
. Vejamos como isso permite esclarecer certos aspectos da ironia.
Tradicionalmente a ironia é definida como a figura de linguagem onde se diz
algo visando afirmar justamente o contrário. O ironista mente, mas deseja que sua
mentira seja descoberta. Neste sentido toda ironia pressupõe a mentira mas nem
toda mentira pressupõe ironia. Estabelece-se assim uma linha divisória entre falar
seriamente (de modo sincero) e falar mentirosamente (de modo não sincero). A
                                                                                                               
38
O movimento aparece sob forma teórica na carta 56 a Fliess (1896), para designar a transcrição
retrospectiva de signos de percepção em signos de inconsciência, aparece de forma generalizada no
entendimento do processo de recalcamento e na gênese dos sintomas neuróticos, além de ser
crucial para o entendimento do investimento retrospectivo das experiências sexuais infantis. Lacan
valorizou sobretudo a forma linguística que permite compreender a resignificação.
39
Em termos freudianos isso equivale a dizer que a representação meta, levada a cabo por uma
dada ilação de pensamento é desinvestida, fazendo com que a conexidade associativa da série se
interrompa e caia sob a égide dos modos de associação inconscientes.

  134  
ironia corresponde a ruptura dessa linha divisória pois implica que através de um
enunciado não sincero realize-se uma enunciação sincera. Também nos chistes de
palavra pode-se levantar uma oposição semelhante, a saber, entre sentido literal e
sentido figurado. Ocorre que tais oposições estão fundadas em premissas não
completamente assimiláveis no quadro teórico da psicanálise, a saber:
a) que o falante saiba plenamente de suas intenções no ato de fala
b) que o falante saiba distinguir, em todos os momentos, quando sua fala é literal e
quando ela é figurada (simbólica, por exemplo)
Inclusive a técnica da associação livre suspende calculadamente os
elementos que subsidiam a imaginada comunicação perfeita, não se sabe mais com
quem se está falando (transferência), por que se está falando (a intencionalidade) e
o que se está falando (a fixação do sentido). Suspende-se enfim as regras
conversacionais de Grice (1967) 40, que servem, indiretamente, de parâmetro para
boa parte das teorias sobre a metáfora e sobre o discurso. Com isso a divisão entre
a fala séria e a fala mentirosa, discurso racional e discurso irracional, sentido literal
e sentido metafórico tornam-se categorias inadequadas 41 . A inclusão de uma
categoria temporal permite contornar o problema e está, como observou Perelman
(1997) em estrita concordância com a idéia de argumentação retórica e em
oposição à de demonstração.
Além do deslocamento os chistes por erro de raciocínio dependem ainda de
outro movimento: o contra-sentido, provocado não pelo deslocamento do acento
psíquico mas pela fragmentação da ordem ou estratégia do raciocínio. Isso se
mostra particularmente no seguinte chiste:
“A toma emprestado um caldeirão a B. Quando o devolve o caldeirão
apresenta-se furado. B procura A para tomar satisfações. B argumenta da seguinte
forma:
Em primeiro lugar eu não tomei nenhum caldeirão emprestado.
Em segundo lugar ela já estava furado quando eu o tomei emprestado.
Em terceiro lugar eu o devolvi intacto.”
Separadamente as respostas são razoáveis, o paradoxo surge quando estas
se põem em adjunção, ou no que Freud chama de unificação 42 . Aqui não há
nenhuma premissa oculta no oráculo que é chamada a inverter os sinais da
                                                                                                               
40
Sumariamente estas regras podem ser resumidas a quatro: (1) a máxima da qualidade (Faça com
que sua contribuição á conversação seja verdadeira); (2) máxima da quantidade (Faça com que sua
contribuição à conversação seja o mais informativa possível); (3) máxima da maneira (Seja claro.) e
(4) máxima da relação (Faça com que sua contribuição seja relevante em relação ao argumento).
41
A crítica destas oposições encontra-se desenvolvida no cenário filosófico contemporâneo,
especialemnte no pragmatismo de Davidson (1992, p.48) e no pós estruturalismo de Derrida (1996,
p91). Ambos, por caminhos diferentes, colocam sérias restrições à idéia de um sentido literal,
essencial, ou refratário aos seus contextos históricos de utilização.
42
O caso clássico que ilustra este tipo de chiste é o do paradoxo de Zenão. Nele se argumenta
contra a existência do movimento a partir de premissas, que tomadas em separado são plausíveis,
por exemplo, entre Aquiles e a tartaruga existe uma distância, para percorrê-la Aquiles deve transpor
a metade desta distância, mas para transpô-la ele deve transpor a metade da metade desta
distância, e assim por diante. Como existem infinitos pontos que separam Aquiles e a Tartaruga e é
impossível ultrapassar infinitos pontos em um tempo finito prova-se que Aquiles jamais ultrapassará
a Tartaruga e que portanto o movimento é impossível.

  135  
estrutura argumentativa. O conjunto pode ser descrito como um sofisma, ou melhor
uma falácia dada sua intencionalidade, do tipo extra dictione segundo a
classificação aristotélica), uma vez que não há qualquer equívoco semântico em
jogo. Compare-se com este outro chiste para clarificar a diferença:
Um casamenteiro diz que o pai de uma certa noiva não vive mais. Depois de
algum tempo o noivo descobre que o pai está de fato na prisão. Diante disso o noivo
exclama: Você me disse que ele não vivia mais. Ao que o casamenteiro retruca:
Mas isto é vida ?”
Aqui encontramo-nos diante de um sofisma in dictione, centrado no equívoco
semântico do conceito de vida que se leva em conta. Aqui não é do oráculo que se
retira a ambiguidade mas da própria do caráter vago do termo 43. Podem ocorrer
casos onde a contradição não deriva da dificuldade definicional do conceito mas da
sua própria corrupção, como em:
“Para muitas pessoas seria melhor não ter nascido, mas infelizmente isto é
algo que não acontece nem uma vez em 100.000.”
O chiste alude, ou representa indiretamente, a possibilidade de que uma
pessoa possa existir e não ter nascido. É como dizer: “este é um círculo quadrado”,
uma afirmação que não possui sentido, do ponto de vista da referência ou do
referente mas que retoricamente se vê contemplada em figuras retóricas como a
antítese e o oxímoro.
Chegamos assim a uma curiosa convergência entre os chistes de
pensamento e as categorias de análise dos chistes de palavra. Nestes isolamos
processos morfológicos, sintáticos e semânticos, ao passo que nos chistes de
pensamento sua motivação pode derivar de:
a) corrupção da intensionalidade 44 do conceito (sofisma in dictione)
b) processos gramaticais ou lógicos (sofisma extra dictione)
c) processos de transferência de acento psíquico (deslocamento)
A categoria freudiana dos chistes de pensamento por figuração indireta é , a
princípio frágil, posto que também os chistes de palavra implicam em figuração
indireta, também neles existem subgrupos que levam em conta a semelhança, a
comparação, o símil e o contrário. A figuração indireta, exige, no entanto, algo
dispensável no caso nos chistes de palavra, a saber, a contradição. Mas o que é
uma contradição ? Uma definição possível é de que a contradição exige recíproca
negação determinada. Vemos assim que o problema relativo à incompatibilidade
entre contradição e inconsciente se desloca agora para a incompatibilidade entre
inconsciente e negação. Vimos que nos três casos possíveis de chistes de
pensamento ocorre uma espécie de contradição entre o dito e o dizer. Podemos
agora concluir que em cada um deles o dizer nega diferentemente o dito e o dito
                                                                                                               
43
Esse caso pode ser aproximado de certos paradoxos propostos por Eubúlides como o dito do
monte. Suponha-se que um grão de areia seja depositado num lugar, isto não faz um monte. Nem se
acrescentarmos mais um grão, e assim por diante, logo não se pode dizer que um monte é um
conjunto de grãos de areia.
44
Referimo-nos aqui ao sentido medieval da palavra onde ela designa atributos próprios ou
necessários de uma determinada classe representada pelo termo. Opõem-se a extensão como
sinônimo de atributos possíveis ou acidentais do termo representativo da classe.

  136  
nega reciprocamente o dizer. A negação pode se dar em face do predicado, do
conectivo ou do sujeito. Em termos retóricos no primeiro caso estamos diante da
antítese, no segundo do paralogismo e no terceiro da ironia.
Ora, esta divisão, converge com a que Gabbi Jr. (1994) estabelece a partir de
Davidson para caracterizar uma teoria dos atos acráticos, ou uma teoria sobre a
irracionalidade linguisticamente considerada na psicanálise. Tal teoria deveria
acatar três princípios:
“a) conceber a mente como dividida em instâncias;
b) as instâncias apresentam uma certa independência entre si;
c) as relações causais entre as partes não são lógicas.” (p.1)
Ocorre que a teoria dos atos acráticos toma como premissa o ato irracional
definido como “fracasso dentro de uma mesma pessoa, em ser coerente, ou
consistente dentro de um certo padrão de crenças atitudes, emoções, intenções e
ações.” (p.1). Ora, isso equivale a privilegiar a coereência como atributo de uma
certa instância psíquica e indiretamente compreender as formações inconscientes
como corrupção desta disposição. A verdade, no sentido pragmático aqui utilizado,
derivaria do reestabelecimento da referência que torna o sujeito novamente
consistente. Isto foi suficientemente demonstrado por Gabi Jr. na análise dos
sintomas em pacientes histéricos, efetuada pelo jovem Freud. A interpretação dos
sintomas encontrados no caso Emma, por exemplo, se efetua pela retirada dos
contra-sensos que o organizavam. O mesmo não se aplica nas circunstâncias do
chiste uma vez que sua eficácia depende da manutenção do contra-sentido. Um
chiste parafraseado ou explicado simplesmente deixa de ser um chiste. Antes,
porém ,de refletirmos sobre as consequencias de nossa teoria para a noção de
interpretação façamos um esquema da aproximação entre chistes de pensamento e
sua forma retórica:

Princípio Chiste Forma Retórica

deslocamento falhas de raciocínio ironia


a) deslocamento
b) sofismas

subverção do conceito representação indireta


a) pelo contrário antítese
b) por semelhança
c) comparações comparação

subverção da ordem unificação oxímoro


lógica das proposições falhas de raciocínio
a) contra senso zeugma

Bibliografia

  137  
Dunker, C. - Lacan e a Clínica da Interpretação, Hacker/Cespuc, São Paulo, 1996a.
Eco, U. - Semiótica e Filosofia da Linguagem, Ática, São Paulo, 1991
- A Estrutura Ausente, Perspectiva, São Paulo, 1980.
Freud, S. - - (1900a) Interpretação dos Sonhos
- (1901b) Psicopatologia da Vida Cotidiana
- (1905c) O Chiste e sua Relação com o Inconsciente
in Obras Completas de Sigmund Freud, Amorrortu, Buenos Aires,
1985.
Ediçõesde controle: Studienausgabe, Fischer, Frankfurt, 1989.
Obras Completas de Sigmund Freud, Imago, Rio de Janeiro, 1987.
Lacan, J. - - (1953a) Função e Campo da Palavra e da Linguagem em Psicanálise
- (1958b) Direção da Cura e os Princípios de seu Poder
- (1958c) Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud
- (1961) A Metáfora do Sujeito
in Escritos, Siglo XXI, Barcelona, 1988.
Edições de controle: Écrits, Seuil, Paris, 1985.
Escritos, Perspectiva, São Paulo 1897.
- Todorov, T. - Os Gêneros do Discurso, Martins Fontes, São Paulo, 1980.
- Teorias do Símbolo, Papirus, Campinas, 1988

  138  
ALIENAÇÃO E SEPARAÇÃO NOS PROCESSOS INTERPRETATIVOS EM
PSICANÁLISE

Christian Dunker & Tatiana Assadi

Núcleo de Constituição do Sujeito na Família e na


Clínica, Universidade São Marcos, São Paulo, Brasil.

1. Linguística e Lógica da Interpretação:

Entre 1964 e 1968 encontramos no ensino de Lacan o uso sistemático dos


conceitos de alienação e separação com o objetivo de especificar as relações
possíveis entre o Sujeito e o campo do Outro. Trata-se de um momento crucial na
trajetória deste pensador pois conjuga transformações políticas internas e externas
às instituições psicanalíticas, produzindo mudança de referência na formalização de
conceitos. Até então Lacan trabalhara com um paradigma linguístico-estruturalista
combinando aspectos da teoria hegeliana para extrair deste paradigma o que ele
em primeira instância não poderia oferecer, ou seja, uma teoria do sujeito.
Até o Seminário XI (1964) o problema era contornado por Lacan com o uso
de hipóteses que tornavam isomórfica a posição do sujeito ao efeito de certas
produções linguísticas. Assim, em Instância da Letra (Lacan,1957,p.519) o lugar do
sujeito é “confundido provisoriamente” com a condição de passagem do significante
ao significado na metonímia e na metáfora. Em Subversão do Sujeito
(Lacan,1960,p.814) afirma-se que o sujeito; “não é nada além do shifter ou
indicativo que, no sujeito do enunciado, designa o sujeito enquanto ele fala naquele
momento”. Ao tornar o sujeito comensurável com a linguagem, seja no modo da
fala, do discurso, ou da escrita, seja segundo as estruturas do signo, da metáfora,
da holófrase ou do código/mensagem Lacan propicia diretrizes bastante claras
sobre o processo interpretativo. Ocorre que este ganho em termos de clareza
técnica se apoia numa teoria insatisfatória do sujeito. O sujeito dividido pela
linguagem, em posição intervalar na cadeia significante, entendido como efeito do
inconsciente, é em última instância um sujeito alienado (Fink, 1998, p.68).
A partir de 1964, todavia, do uso da lingüística por Lacan parece ceder lugar
à lógica e à topologia como instrumentos de reflexão. O sujeito é pensado como um
conjunto vazio mas ao mesmo tempo capaz de subjetivar sua causa.
Estranhamente causa e efeito, no ensino lacaniano deste período, não são
conceitos recíprocos: o sujeito é um efeito do significante, entretanto sua causa não
é o próprio significante mas o objeto a. Esta dualidade de apreensões do sujeito tem
levado alguns comentadores a falar em uma clínica do significante em oposição a
uma clínica do real, centrada nos desenvolvimentos posteriores sobre o objeto a.
                                                                                                               

  139  
A noção de separação, sucedida pela de travessia do fantasma, emerge no
período em questão como forma de representar logicamente a relação entre o
sujeito, o objeto que lhe dá causa e a cadeia significante. Em 1968, no Seminário
sobre o Ato Analítico (1968), as categorias de alienação e separação, que exprimem
em última instância a releitura lacaniana do cogito de Descartes, encontram sua
consolidação final e sua presença em textos posteriores é bastante esparsa.
Se, no entanto, a modificação na noção de sujeito, apresentada acima, é
substancial, presume-se que ela traga conseqüências para a teoria da interpretação.
Verificar tal possibilidade é o objetivo da presente pesquisa. O problema que
procuramos aprofundar diz respeito à compatibilidade entre a noção de
interpretação no período anterior a 1964 e no âmbito das transformações teóricas
regidas pela introdução dos conceitos de alienação e separação. Trabalharemos
com a dimensão retórica para verificar em que termos é possível encontrar
disparidades e convergências com o modelo lógico de causação do sujeito no
interior de processos interpretativos. A escolha da retórica, como guia metodológico,
se justifica pois ela é um campo de estudos sobre a linguagem que congrega a
análise das condições de produção do sentido (Jacobson, 1995; Todorov, 1996)
com a tematização do aspecto performativo ou pragmático necessário para a
abordagem do sujeito (Maingenau, 1995)

2. Processos Interpretativos:

Por processo interpretativo entendemos o conjunto de transformações


enunciativas que envolvem a posição do sujeito, a estrutrura do discurso ou o teor
da significação no interior de um segmento de análise. Trata-se de uma definição
pragmática orientada para a perspectiva clínica e assumidamente não exaustiva.
Outra característica de nossa definição é que ela evita localizar, necessariamente, a
interpretação com um pronunciamento do analista. Distanciamo-nos assim da
definição de Laplanche e Pontalis em que a interpretação seria: “ uma
comunicação feita ao indivíduo procurando fazê-lo aceder ao sentido latente,
segundo as regras determinadas pela direção e evolução do tratamento”
(Laplanche, 1986, p. 319). Acompanhamos Lacan na idéia de que uma
interpretação se mede por seus efeitos, logo, se uma interpretação não tem efeitos
não pode ser legitimamente considerada como tal, independente da exatidão de seu
conteúdo ou da intencionalidade de quem a expressa.
Freud parece reservar a expressão “interpretação” ao trabalho de
resignificação pontual, como, via de regra, observa-se em relação aos sonhos,
pequenos esquecimentos, atos falhos e chistes. O emprego do termo em relação a
sintomas, fantasias e manifestações transferenciais é mais raro e geralmente
subentende a combinação de elementos originados do trabalho interpretativo do
primeiro tipo. No entanto, em ambos os casos, os efeitos clínicos da interpretação
podem ser agrupados em duas dimensões:

  140  
1. Modificações no teor do discurso associativo: aparição de lembranças, evocação
de outras formações inconscientes, interrupções da fala ou desvios temáticos, que
de modo geral ponderam o eventual sentido comprobatório da intervenção. Incluem-
se aqui o efeito de resignificação produzido pela análise no âmbito da história do
sujeito a partir da reapropriação de seus significantes fundamentais;
2. Modificações nos processos de causação do sujeito: como se pode inferir
ocasionalmente da desaparição, deslocamento ou irrupção de sintomas, alterações
no plano da angústia, emergência de acting out e de modo geral efeitos que
indicam a relação antinômica entre desejo e gozo. Conjugam-se neste caso os
processos de alienação e separação do sujeito em face ao objeto a.
Nos dois ângulos de consideração dos efeitos da interpretação a escuta
analítica orienta-se respectivamente para a articulação significante e para a
causação do sujeito. No primeiro caso, este é compreendido como uma atividade de
tradução ou retradução do sentido, permitindo a continuidade de seu deslizamento.
Não é, entretanto, o produto desta tradução o que importa ao processo mas a
articulação significante necessária para sua efetuação. Nesses termos a
interpretação introduz algo que repentinamente torna a tradução possível (Lacan,
1956). Em outras palavras, trata-se de limitar a significação ao introduzi-la numa
série sincrônica, quando se exploram as ressonâncias homofônicas de um
significante, por exemplo, ou ainda de captá-la numa série diacrônica como no caso
da pontuação da insistência de um significante no discurso. No segundo caso a
interpretação refere-se à modificação do lugar de onde emerge o sentido e
acompanha-se de uma fratura da significação. Tal perda de significação se deve à
incidência da interpretação sobre a causa do desejo (Lacan, 1972). Obtém-se como
efeito um sujeito separado do campo do Outro. Por exemplo, no caso Dora (Freud,
1905), a paciente encontra-se alienada em uma trama amorosa onde a única
posição que lhe parece possível é de reivindicação e denúncia. Freud alude
sucessivamente: (a) a implicação de Dora na trama, (b) ao desejo pelo Sr. K e (c) a
fantasia de felação. Neste movimento o objeto se destaca do campo do Outro ao
mesmo tempo em que o sujeito se separa deste Outro. O produto é a modificação
da posição subjetiva da paciente, no caso, com sérias conseqüências para a
transferência.
Nossas categorias poderiam se ramificar se as combinamos com a distinção
proposta por Allouch (1995) que aborda a interpretação a partir das múltiplas
operações contidas na idéia de deciframento, ou seja, transcrição, tradução e
transliteração. Para este autor a tradução opera na perspectiva de preservação do
sentido entre línguas diferentes. No caso da psicanálise isto se exemplificaria na
idéia de traduzir o material manifesto recuperando o sentido latente. É este
esquema interpretativo que permitiu a Freud no caso conhecido como Homem dos
Ratos (Freud, 1909) explorar a polisemia do significante "Ratten" que, no desenrolar
do tratamento, foi traduzido por ratos (no sintoma fóbico), mas também dívida (na
relação ao pai), e secundariamente por filhos (na relação com a Dama) e por
excrementos (na "língua" da pulsão anal).

  141  
A transcrição supõe variações na produção do sentido levando-se em conta
diferentes modos expressivos de uma língua, ou suas condições de figurabilidade,
notadamente da língua falada para a escrita. A interpretação de heterogeneidades
temporais e dialetais que habitam uma língua também são objeto do trabalho de
transcrição. Freud utiliza o termo transcrição para referir-se às diferentes formas de
associação e dissociação entre representação-palavra e representação coisa. Por
exemplo, no artigo O Inconsciente (1915), discute-se a incidência diferencial da
expressão “Augenverdrehen” (literalmente, virador de olhos, no sentido metafórico,
sedutor) supondo-se formas distintas de transcrição desta representação no caso da
histeria (conversão ocular) e no caso da psicose (sensação subjetiva de reviramento
nos olhos). A "linguagem de órgão" varia de um caso para outro pois tratam-se a
modos diversos de transcrição da mesma moção pulsional.
A transliteração, por sua vez, refere-se aos diferentes sistemas de escrita
possíveis na linguagem. Sabe-se que a maioria das línguas glossográficas, isto é,
baseadas na representação da fala, podem admitir variações conforme o princípio
associativo seja o morfema (caso do chinês), um segmento da fala (como nas
línguas semíticas) ou a sílaba (caso do Linear B) ou ainda o fonema (caso da
maioria das línguas ocidentais). Estes exemplos servem para mostrar, como
apontou Sampson (1996), que não se deve confundir o grafema, derivado de um
sistema de escrita, com o significante, derivado de um sistema composto por fala e
língua. No caso da psicanálise a transliteração é um modo de escuta
particularmente útil para compreender operações de deciframento em torno do
chamado rébus de transferência. O rébus é uma forma de funcionamento da
linguagem onde as palavras se representam por desenhos ou imagens gráficas.
Ocorre que no rébus de transferência é possível falar seguindo regras deste sistema
de escrita. Por exemplo, uma paciente, mencionada por Allouch (1995,p.171),
observando o colarinho feito de celulóide (Celuloid) de um enfermeiro, conclui que o
jogo de damas que usava lhe foi enviado por Lulu (a filha de seu patrão) por meio
de um navio (Loyd). A interpretação de “Celuloid” para “C’est Lulu Loyd”, (É Lulu
Loyd) apesar de baseada na homofonia, tem como princípio a suposição de
diferentes sistemas de escrita.
A idéia de que na psicanálise também se deve levar em conta o modo de
escuta transliterativo recebe forte apoio na seguinte observação de Freud:

Se pensarmos que os meios de representação nos sonhos são


principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é ainda
mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de escrita do que a
uma linguagem. Na realidade, a interpretação dos sonhos é totalmente
análoga ao deciframento de uma antiga escrita pictográfica, como os
hieróglifos egípcios. Em ambos os casos há certos elementos que não
se destinam a ser interpretados (ou lidos, segundo for o caso), mas
têm por intenção servir de ‘determinativos’, ou seja, estabelecer o
significado de algum outro elemento. (Freud,1913, p.180)

  142  
A expressão “deciframento”, contida na passagem, sugere que pelo menos
dois processos que indicamos acima são necessários para compor a interpretação.
Isso porque tanto a transcrição quanto a trasliteração implicam em ciframento, o que
não ocorre na tradução.
Admitindo-se as variações que delimitamos quanto ao processo interpretativo
e conjugando-as aos modos de escuta posteriormente discutidos concluímos que de
fato a abordagem lingüística e retórica de Lacan, anterior a 1964, é insuficiente para
captar uma série de pontos cruciais. Isto porque o aspecto semântico, elaborado e
contornado habilmente na esfera da primeira doutrina do significante é insuficiente
para lidar com as propriedades sintáticas, morfológicas e narrativas da linguagem,
propriedades estas que são necessárias para o trabalho de transcrição e
transliteração.

3. A Forma Retórica da Interpretação:

A compreensão dos processos interpretativos como mera produção ou


tradução de sentido surge então como uma abordagem bastante parcial da questão.
O método psicanalítico possui inúmeras proximidades com a atividade de leitura ou
interpretação de um texto mas estas não esgotam o problema. Isso porque a
intenção deste método não é apenas produzir um saber sobre o desejo, derivado de
uma exegese do sentido, mas transformar os modos de produção do sujeito a partir
de suas alteridades (Birman, 1991).
Desta maneira convivem na prática psicanalítica da interpretação
hermenêutica, criptologia e análise estrutural por um lado, mas também, retórica,
pragmática e análise funcional da linguagem, por outro. A co-dependência entre
interpretação e transferência no tratamento analítico, largamente tematizada pelos
pesquisadores, é um exemplo do aspecto híbrido deste método. A tensão entre a
produção do sentido e a produção do sujeito é um aspecto específico do mesmo
problema.
Se as formações do inconsciente possuem estrutura equivalente à de certas
figuras retóricas, como a metáfora e a metonímia, é razoável supor que a
interpretação seria o processo de desconstrução do sentido veiculado por essas
figuras. Trataria-se assim de escutar "ao pé da letra" até extrair o sentido literal
expresso em linguagem metapsicológica, que em última instância seria não
ambígua. Não pensamos desta maneira. A idéia de que haveria tal ponto como o
sentido literal é uma contradição com as premissas da teoria da linguagem em
Lacan. Igualmente é preciso recusar a idéia de que a interpretação seria um
processo de prolongamento da metáfora na qual se expressam certas formações do
inconsciente idéia esta defendida por Spence (1992). Isso porque tal
prolongamento não é suficiente para abordar as transformações subjetivas
esperadas de uma análise.
Nossa hipótese é de que a marcação lingüística dessas transformações
subjetivas, da alienação à separação, é expressa pela modificação da forma
retórica dominante no discurso. Isso não quer dizer que toda transformação deste

  143  
tipo implique modificação do sujeito mas que toda modificação do sujeito seria
acusada por este indicador. A desconstrução da metáfora não é sua redução ao
sentido literal mas sua transformação em outra forma retórica.
Em outro momento (Dunker, 1996) exploramos este problema confrontando o
que chamamos de interpretação fundada na metáfora à interpretação fundada na
alegoria mostrando como cada uma derivava de concepções diferentes do que é um
sintoma. Hoje percebemos como a crítica da interpretação alegórica não é suficiente
para justificar a unidade da interpretação baseada na desconstrução da metáfora.
De fato a forma retórica da interpretação admite inúmeras variações mas, se
considerada do ponto de vista pragmático, o critério mais claro para abordá-la
baseia-se na suposição de que o efeito da interpretação é uma transformação da
forma retórica original. Ora, a forma retórica da metáfora implica a substituição de
um significante por outro com a elisão do primeiro. Mas há inúmeros exemplos de
interpretação que não baseiam-se nesta estrutura.
Ao analisar as formas retóricas contidas no livro de Freud sobre o chiste
mostramos como ao lado da metáfora e da metonímia é preciso considerar a
sinédoque como uma forma retórica importante nas interpretações psicanalíticas
(Dunker, 1999). Igualmente tais figuras de palavra não subsumem todas as
possibilidades de constituição do chiste, logo de estruturação das formações do
inconsciente. Há formas retóricas baseadas em processos sintáticos, como a
silepse, a antanáclase e a elipse que são cruciais para a interpretação de certos
tipos de chiste e que não se conformam a estrutura geral do dualismo metáfora e
metonímia expresso em Lacan. Há também formas retóricas baseadas em
processos morfológicos, como o neologismo, a aliteração e a síncope que são
irredutíveis sob o mesmo argumento. Finalmente o último ponto fraco da
formalização lingüística de Lacan anterior a 1964 é a exclusão que ela implica das
chamadas formas retóricas de pensamento, que servem de base a um extenso
grupo de chistes analisados por Freud. A ironia, a antítese e o oxímoro são
exemplos de jogos de palavras baseados no pensamento que perderam sua
dignidade em face da supremacia dos dois grandes tropos organizadores da
linguagem que Lacan retoma da teoria de Jacobson (1995). Neste sentido o
abandono da lingüística por Lacan pode representar uma insuficiência no
desenvolvimento de suas categorias e não uma ruptura irredutível.

4. A Forma Retórica da Alienação e da Separação:

Que as formações do inconsciente admitam estrutura similar a de formas


retóricas isso não é suficiente para estabelecer uma teoria da interpretação. Esta
precisa contar ainda com as regras de transformação que esta forma retórica está
sujeita na situação analítica. Vimos que estas transformações podem ser
distribuídas em função do teor do discurso e da posição do sujeito e que estas se
combinam, aos modos de escuta tradutivo, transcritivo e transliterativo. Vamos
agora mostrar como a conjugação é possível a partir da análise de um sonho
relatado pelo Homem dos Lobos (Freud, 1918):

  144  
Sonhei que um homem arranca as asas de uma "Espe". "Espe"?, não
pude deixar de perguntar; o que você quer dizer ? "Um inseto de
ventre listrado de amarelo, capaz de picar. Deve ser uma alusão à
Grusha, a pêra pintada de amarelo". "Vespa (Wespe), você quer dizer"
corrigi. "Se chama Wespe ? Realmente acreditei que se chamava
Espe. (...) "Mas Espe, esse sou eu, S.P."(as iniciais de seu nome). A
"Espe" é naturalmente, uma Wespe mutilada. O sonho o diz
claramente: ele se vinga de Grusha por sua ameaça de castração.
(Freud,1918,p.86-87)

O primeiro movimento da interpretação é claramente tradutivo, Serguei


Pankieff substitui a vespa pela sua antiga babá - Grusha, cujo nome em russo quer
dizer pêra. Figura-se assim a ameaça de castração sofrida na infância através da
mutilação do inseto. Neste sentido a interpretação que o Homem dos Lobos dá a
seu próprio sonho corresponde a desconstrução de uma metonímia pois conjuga
associações contíguas entre os significantes envolvidos transportando o mesmo
significado por meio de um novo arranjo significante. Sua interpretação entende o
acontecimento significante contido no sonho como um elemento a mais na série
associativa desenvolvida até então.
Vale a pena notar que no início da análise o paciente recordara que durante o
período de angústia vivido na infância, ele fora tomado pelo medo quando caçava
uma borboleta listrada de amarelo. Meses mais tarde o paciente associou o abrir e
fechar das asas de uma borboleta com uma mulher abrindo e fechando suas pernas
em forma de “V”. O “V” , na escrita latina, liga-se ao horário em que culminam suas
depressões diárias e supostamente indicaria a hora em que se passara a cena
primária, o que se poderia inferir por uma interpretação transliterativa. Num período
posterior o paciente recorda-se das pêras listradas de amarelo, que apreciava na
juventude e que aparecem no discurso em contiguidade com Nanya, a babá que
antecedeu Grusha. Assim o sonho insere-se no processo interpretativo evocando
significantes em associação metonímica. Propomos, como forma retórica da
metonímia a adjunção de dois conjuntos que contém em si diferentes séries
associativas:

Borboleta à listras amarelas ßvespa


Nanya à pêra ß Gruscha

A relação entre os dois conjuntos é de reunião, as propriedades do primeiro


conjunto se transportam ao segundo. A reunião contém dentro de si a interceção
das propriedades comuns. O significado permanece estável e não há ruptura da
barra de resistência à significação. Observe-se que esta metonímia é composta
pela adjunção de duas sinédoques [listra amarela pela borboleta e a lista amarela
pela vespa.] ou ainda [pêra por Nanya e pêra por Grusha]. Na sinédoque observa-se
a relação entre dois significantes baseada na generalização ou particularização. A

  145  
sinédoque é um caso particular da metonímia, único caso que realiza perfeitamente
a fórmula “parte pelo todo” (reunião). Formalizado desta maneira a compatibilidade
com o diagrama da alienação, que esquematizamos abaixo, aparece facilmente:

Sujeito à S1 ßS2

S1 indica o significante enigmático, carregado de não-senso ao ser realizado


no sonho, ponto que pede associação. S2 representa o saber efetivado pela ligação
com S1 a partir da alienação do sujeito. Assim a tradução se completa mas deixa
em aberto a causa do desejo. Afinal o que deseja o Homem dos Lobos nesta
insistência ? Isso é apenas parcialmente respondido pela desconstrução da
metonímia.
Voltemos ao sonho. O segundo movimento compreende uma pontuação de
Freud que chama a atenção para o rigor do dito "Espe", deixando de lado a unidade
do sentido que se preservara pela continuidade do discurso e tomando por
irrelevante o fato do paciente ter o russo por língua materna e apresentar naturais
dificuldades ao expressar-se em alemão. Aqui a escuta privilegia o modo transcritivo
pois aponta a incompatibilidade ou equivocidade entre o dizer e o dito. Neste
sentido Freud se apóia na deformação morfológica da palavra, mais precisamente
na presença de uma síncope, ou seja figura retórica que opera pela supressão de
um fragmento fonético da palavra. Note-se que ao alterar o modo de escuta Freud
recusa a contiguidade da interpretação metonímica e reintroduz a posição
enigmática de S1 (Espe), que agora não está mais indicado por listras amarelas ou
por Grusha. Em outras palavras esta intervenção convida a associação a
prosseguir sob outro modo de inserção subjetivo, marcado aqui por outra forma
retórica.
A seqüência revela, no paciente, a aparição de um terceiro modo de escuta,
o transliterativo: "Espe, este sou eu". Toma-se duas expressões foneticamente
semelhantes e se as diferencia pelo modo de escrita: "Espe" e "S.P.", em alemão,
pronunciam-se da mesma forma, o que permite diferenciá-los é justamente a
presença de determinativos, ou seja, os pontos escritos que marcam a abreviatura.
A escuta de Freud enfatizou portanto a dimensão de escritura e não apenas a
dimensão fonemática da fala.
Os determinativos, mencionados por Freud no trecho que citamos acima são
empregados na escrita hieroglífica, e serviram a Champollion de modo decisivo
para a decifração da pedra Roseta. No caso do egiptólogo foram os chamados
cartuchos, que circundavam nomes próprios como "Ptolomeu" e "Cleópatra", o que
permitiu isolar o valor dos grafemas da escrita egípcia. No caso do Homem dos
Lobos encontramos pontos (S.P.), mas poderiam tratar-se de aspas ou de um sinal
equivalente. Sinais que funcionam como embreantes (shifter) na passagem de um
modo de escuta ou leitura a outro.
Do ponto vista retórico não se pode dizer que a relação entre "Espe" e "S.P."
está baseada na metáfora, na metonímia ou na sinédoque. A atribuição do efeito da
interpretação à homofonia significante, apesar de correta, é ampla em demasia, pois

  146  
a homofonia está presente tanto na dimensão morfológica quanto na sintática e na
semântica. O mesmo argumento se aplica a equivocidade, outro critério da
interpretação assinalado por Lacan (1973). No entanto, se combinamos a análise
lógica com a transformação retórica podemos especificar a direção do processo
interpretativo.
O efeito produzido pela emergência de “S.P.” faz com que o sujeito
apreenda-se em sua causa: “ Mas S.P. sou eu.” Neste movimento, todo o conjunto
de pulsões que coordenavam as associações são realocados. Não se trata apenas
de olhar sadicamente a mutilação do Outro, nem de identificar-se à sua castração
imaginária, mas de uma sobreposição das faltas que põe o sujeito em posição de
separação. Em termos lógicos trata-se da operação de interceção e não de reunião.
É importante notar que esta separação só pode ser apreendida no contexto do
processo interpretativo que, propiciou no primeiro momento a alienação.
Outro movimento importante é a passagem do plano dos predicados ao plano
do ser. Segundo Soller (1997) esta é uma inovação trazida pelos diagramas da
separação/alienação, isto é a possibilidade de responder a questão do desejo com
a do ser.
Poderíamos imaginar a contingência desta passagem numa outra
continuidade do discurso. Segundo Mahony (1992,p.88) e Obholzer (1993, p.107) o
próprio Serguei Pankieff associara as iniciais “S.P.” também à figura de um famoso
ator homosexual de Odessa, sua cidade natal, que certa vez se aproximara dele
com intenções sedutoras. Igualmente a letra “W”, elidida pelo ato falho, é bastante
sugestiva e deu margem a comentários bizarros entre alguns autores que se
dedicaram ao caso clínico em questão, por exemplo: o “W” é composto pela
duplicação do “V”, hora suposta da cena primária (cinco horas da tarde); o “V”
invertido torna-se “>”, ou seja “menor que” mas também o perfil gráfico da boca do
lobo devorador; “W” se pronuncia “Weh”, que em alemão significa “dor” e no dialeto
austríaco “desgosto” (Mahony,1992,p.86). Se as associações seguissem estes
caminhos provavelmente não teria se alterado a posição subjetiva e o processo
interpretativo deveria ser considerado sob outro ângulo.
Freud encerra seu comentário afirmando que o sentido do sonho é claro; a
Espe é uma Wespe mutilada (sem o W). No entanto, a idéia de que isso permitiria
retornar ao conjunto do sonho, sob a égide do desejo de vingança quanto à ameaça
de castração sofrida pela babá, levanta problemas. Ela é compreensível pelo lugar
que o sonho ocupa na narrativa do caso, funcionando como peça probatória da
ameaça de castração. Mas essa meta-interpretação contradiz diretamente os fatos
da associação. O que o paciente diz é “A vespa mutilada sou eu” e não apenas “A
vespa mutilada representa Grusha” - o que afinal se obteve no primeiro movimento
interpretativo e que foi percebido como insuficiente.
Nesse plano meta-interpretativo é possível reencontrar a forma metafórica ou
contra metafórica do processo. Propomos representar a forma retórica desta
metáfora pela adjunção de dois conjuntos onde sua interceção não contém nenhum
elemento significante mas justamente o que lhe está em exterioridade. A letra, o

  147  
objeto a e o S de A barrado são conceitos que Lacan propõe para designar este
campo. Na fase lingüística de sua obra isto corresponde à idéia de que:

(…) é entre o significante do nome próprio de um homem e aquele que


o abole metaforicamente que se produz a centelha
poética.(Lacan,1957,p. 511)

A metáfora não é pensada, neste caso, em acordo com a tradição aristotélica


da conjugação de semelhanças mas no recobrimento de diferenças, daí a posição
vazia na interceção. Assim se pode escrever a forma retórica do processo
interpretativo:

Espeà inseto de listras amarelas (alienação)


Espeà ? à Wespe (pontuação)
Espeà Wespe mutilada ß Gruscha, cena da castração (alienação)
Espeß S.P. à Sou eu... (separação)

Note-se que se não houvesse a passagem do modo de escuta tradutivo ao


transcritivo, o que se acompanhou de uma passagem da forma retórica semântica
para a morfológica, não se poderia distinguir a dupla função de “S.P.”. De modo
inverso se não contássemos com a localização da série significante obtida no
primeiro movimento do processo interpretativo não se poderia fixar a cadeia
associativa posterior organizada metonimicamente. Isso concorda com a tese
defendida por alguns lingüistas de que a metáfora é composta pela relação entre
duas metonímias. Freudianamente isso equivale a dizer que a condensação é
composta pela adjunção de dois deslocamentos. A forma retórica sugerida acima
replica a formalização lógica proposta por Lacan para expressar a separação, a
saber:

Sujeito ß a à S1 - S2

O campo do Outro (conjunto da direita) está ocupado pela cadeia significante


(S1 - S2) mas algo deste campo se destacou (o objeto a) tornando o campo do
Outro incompleto. Como isto que se destacou não é um elemento do Outro (um
significante) mas uma parte dele, mais precisamente a parte dotada de gozo, a
interceção poder ser lida como vazia. Inversamente o campo do sujeito (conjunto da
esquerda) está agora ocupado por um sujeito cuja falta se inscreve na letra e não no
significante. Essa relação entre o sujeito e o objeto a (fantasma), é de disjunção, ou
seja, perda de gozo. Assim ele se encontra duplamente dividido: pela cadeia
significante e pelo gozo.
A análise do “vel” lógico, feita por Lacan para especificar as operações de
alienação e separação que expressam a causação do sujeito, é em última instância
a análise das funções lógicas possíveis do conectivo “ou-ou”. Ora, o “ou” inclusivo
(alienação), exclusivo (separação) e o “ou” da escolha forçada (um tipo especial de

  148  
alienação), não podem ser apreendidas fora de um processo interpretativo. Isso
combina com a tematização inicial destes conceitos no artigo Posição do
Inconsciente (Lacan, 1964) em termos da temporalidade.

5. Conclusão:

A idéia de que os conceitos de metáfora e metonímia foram substituídos


pelos de alienação e separação, no período de 1964 a 1968 da obra de Lacan, já foi
apontada por alguns comentadores (Laurent,1997,p.31; Fink,1998,p.81). A
tendência era compreender esta substituição como uma ruptura que separava
claramente o Lacan lingüístico do Lacan lógico, mormente acrescida de uma
desvalorização do primeiro. Nosso estudo procurou mostrar que tal ruptura deixa
em aberto uma rica perspectiva de releitura do primeiro Lacan através da
conjugação da análise retórica com a análise lógica. O dualismo, certamente
herdado da perspectiva estrutural, poderia assim ser redimensionado naquilo que
tem de redutor, para além das vantagens metodológicas que ele inegavelmente
carrega.
Dois pontos permanecem ainda obscuros após este percurso. O primeiro diz
respeito a apreensão clínica do sujeito no caso da separação realizada na operação
de travessia do fantasma. O que o distinguiria da primeira separação do sujeito,
analisada do ponto de vista retórico? A resposta talvez resida na ampliação da
pesquisa para o campo da chamada retórica dos argumentos, campo este capaz de
fornecer uma nova base de consideração do Outro em termos psicanalíticos.
O segundo ponto problemático diz respeito à relação entre os diferentes tipos
de efeitos da interpretação e os modos de escuta possíveis do discurso. Vimos, no
fragmento de análise examinado, que a passagem pelo modo transcritivo foi
fundamental para a separação entre letra e significante, e para a emergência do
sujeito em separação, mas não teria sido isso uma contingência? Seria de fato,
necessária esta passagem ? O problema ganha em amplitude se notamos que em
um exemplo clássico da clínica lacaniana. No caso apresentado por Laplanche e
Leclaire (1961) em torno do sonho do Licorne (unicórnio) as mesmas operações de
transformação lingüístico-retóricas podem ser constatadas. A solução do problema
traria conseqüências importantes para o entendimento de temas clínicos como a
travessia do fantasma e a destituição subjetiva que são francamente inabordáveis
se nos mantemos na esfera do sujeito da alienação e das operações de
desalienação baseadas no reconhecimento do desejo.

BIBLIOGRAFIA

Allouch, J. Letra a Letra - transcrever, traduzir, transliterar, Companhia de Freud,


Rio de Janeiro, 1995.
Birman, J. Freud e a Interpretação Psicanalítica, Relume Dumará, Rio de Janeiro,
1981.

  149  
Dunker, C.I.L. Lacan e a Clínica da Interpretação, Hacker/Cespuc, São Paulo,
1996.
___________. Processos Retóricos na Teoria Freudiana do Chiste, (separata),
1999.
Fink, B. O Sujeito Lacaniano - entre linguagem e gozo, Jorge Zahar, Rio de janiro,
1998.
Freud, S. - Fragmento da Análise de um Caso de Histeria (1905)
- A Propósito de um Caso de Neurose Obsesssiva (1909)
- O Interesse pela Psicanálise (1913)
- O Inconsciente (1915)
- Da História de uma Neurose Infantil (1918)
Jacobson, R.- Linguística e Comunicação, Cultrix, São Paulo, 1995.
Lacan, J. O Seminário - Livro XI Os Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1964),
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
- O Seminário, Livro XV O Ato Analítico (1968) (separata)
- Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud (1957)
- Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1956)
- Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano
(1960)
- Posição do Inconsciente (1964)in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1998.
- L'Etourdit (1972), in Scilicet, nº4.1973. Seuil. Paris.
Laplanche, J. & Leclaire, S. O Inconsciente um estudo psicanalítico (1961), in O
Inconsciente e o Id, J. Laplanche, Martins Fontes, São Paulo, 1992.
Laurent, E. Alienação e Separação I. in para Ler o Seminário 11 de Lacan
(Feldstein,R.et alli org.), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997.
Laplanche, J & Pontalis, B. - Vocabulário de Psicanálise, Martins Fontes, São
Paulo, 1986.
Maingueneau, D. O Contexto da Obra Literária, Martins Fontes, São Paulo, 1995.
Mahony, P. O Grito do Homem dos Lobos, Imago, Rio de Janeiro, 1992.
Sampson, G. Sistemas de Escrita, Tipologia, História e Psicologia, Ática, São
Paulo, 1996.
Spence, D. P. A Metáfora Freudiana, Imago, Rio de Janeiro, 1992.
Soller, C. O Sujeito e o Outro II. in Para Ler o Seminário 11 de Lacan (Feldstein,
R.et alli org.), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997.
Obholzer, K. Conversas com o Homem dos Lobos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1993.
Todorov, T. Teorias do Símbolo, Papirus, Campinas, 1996.

  150  
A INTERPRETAÇÃO NA CLÍNICA PSICANALÍTICA

Christian Dunker

A noção de interpretação em psicanálise não é unívoca. Isso pode ser


atribuído ao fato de que ela não é apenas uma técnica que permanece a mesma
independente dos fins para o qual é utilizada. Ela não é um elemento que pode ser
separado, sem consequencias, do projeto clínico no qual se inclui, da ética que o
subjaz e das premissas teóricas das quais faz parte. Neste sentido propomo-nos a
apresentar a noção de interpretação tendo em vista, primordialmente, as posições
de Freud e Lacan sobre o tema. Isso não indica a inexistência de contribuições
decisivas por parte de outros autores, ou outras tradições psicanalíticas, mas reflete
nosso interesse em tratar o tema de forma introdutória e ao mesmo tempo trazer
algumas discussões atuais sobre o assunto.
A interpretação analítica pode ser descrita como uma comunicação feita pelo
analista ao analisante, comunicação esta que esclarece, indica ou transforma o
sentido de certos pontos enigmáticos contidos no discurso analisante, trazendo à
consciência o recalcado, infantil e sexual que neles reside. Veremos mais adiante
algumas limitações de tal definição, uma vez que esta isola como elemento central a
comunicação.
Um aspecto que dificulta nossa tarefa é o caráter fragmentário das
observações de Freud acerca da interpretação, o que aliás combina com a forma
como este abordava as ditas questões de técnica, isto é, como estritamente ligadas
a constituição de um estilo, como se observa na seguinte passagem:

"Estou obrigado a dizer expressamente que esta técnica resultou a única adequada
para minha individualidade; não me atrevo a por em dúvida que uma personalidade
médica de constituição diversa possa ser forçada a preferir outra atitude frente aos
enfermos e as tarefas por solucionar. "( 1912b)

Vê-se por esta afimação, e no geral pelo tom pouco normativo dos
chamados artigos técnicos, tanto os do período 1911-1914, quanto pelas
recomendações contidas nos artigos sobre a histeria, quanto em "Construções em
Análise" (193 c), que Freud considerava os temas técnicos como uma espécie de
solução de compromisso entre as exigências das descobertas clínicas, suas
consequencias teóricas e as contingências do estilo de cada analista. Suas
indicações sobre a técnica são, na maior parte das vezes negativas, referem-se
mais ao que não se deve fazer do que ao que se deve.
O nascimento da psicanálise marca a aparição de um novo modo
interpretativo, não mais centrado no olhar, como na clínica clássica, mas na escuta.
Trataria-se então de uma técnica de escuta ? Esta questão pode ser melhor
examinada pela própria peculiaridade semântica do termo utilizado por Freud para
se referir à interpretação. “Deutung”, partícula presente, por exemplo,
"Traumdeutung" (Interpretação dos Sonhos), refere-se a descoberta do sentido

  151  
(Bedeutung) não evidente em um texto ou fala e contrasta com o termo
“interpretieren” cujo sentido poderia ser o de interpretação no sentido de tradução
ou expressão:

“ A Deutungkunst (arte da interpretação) tem o sentido de uma “habilidade”


ou “arte” no manuseio e aplicação de uma técnica, no sentido puramente
tecnológico do termo. De maneira geral, a forma como Freud emprega os
termos Deutungkunst (arte de interpretação) e Deutungstechnik (técnica de
interpretação) é diversa tanto de uma arte divinatória quanto de uma
tecnologia desvinculada de quem a aplica.” (Hanns, 1996, p.291)

Este estatuto ambíguo da atividade interpretativa decorre da especificidade


da ética que a sustenta, e que define a forma de escuta onde esta se insere. Isto
distingue a interpretação psicanalítica de diversas outras tradições interpretativas,
como as que emergem da teologia (hermenêutica bíblica), do direito, da crítica
literária e até mesmo da música ou do teatro. Neste sentido trata-se da
interpretação não apenas como método para reduzir a ambiguidade, fixar o sentido
ou restabelecer um texto, mas como ato dirigido a alguém que sofre, como ato que
transforma o sujeito a quem se dirige.
Neste último ponto cabe esclarecer que a interpretação, apesar de
interpenetrar quase todos os pontos da teoria e da clínica psicanalítica, não constitui
seu único procedimento e, eventualmente, nem o mais importante. Salientamos
com isso que nem tudo o que o analista, faz, diz ou exprime possui estrutura de
interpretação.

1. Condições para a Interpretação

A palavra interpretação, deriva do termo latino interpretio. Supõe-se que sua


origem remonta o contexto comercial onde a troca de mercadorias, entre povos que
falavam línguas diferentes e utilizavem unidades de medida e valor diversos,
pudesse ser mediada por um preço (pretium) comum. Também na palavra grega
que designa tal ação (hermenéia), encontramos uma referência a Hermes, o deus
das trocas, do comércio e da comunicação, não só entre os homens mas destes
para com os deuses. Interpretar, neste sentido, implica trocar, decifrar, traduzir,
estabelecer um sentido comum, mas também revelar, conduzir um eenigma e
estabelecer um sentido novo e diferente.
Mas na situação clínica da psicanálise tal, troca, de palavras ou de silêncios,
não se realiza diretamente, como na tradução de uma língua a outra, da língua
obsucura, profunda ou hieroglífica do inconsciente, para a língua, clara, linear e
distinta da consciência. Isso seria apenas uma forma de intelectualização ou
racionalização psicologizante, que se mostra por um lado ineficaz e por outro
alienante. A questão é então qual elemento de qual universo de linguagem, em qual
configuração ética, que tornaria a interpretação possível, necessária e desejável.

  152  
A rigor qualquer ponto do discurso do analisante pode articular uma
interpretação, mas é importante salientar que tal discurso deve possuir certas
propriedades, que o tornam, por assim dizer interpretável, ou analisável. Tais
propriedades dependem da estrutura clínica do analisante, logo de uma hipótese
diagnóstica. A interpretação não incide da mesma maneira na neurose, na psicose
ou na perversão, ela não toca da mesma forma a neurose obsessiva ou a histeria.
No limite pode-se afirmar que ela é condicionada pela particularidade daquele que
se apresenta à análise, e deve se ajustar a este na sua forma, temporalidade e
tática.
Tal hipótese diagnóstica, por sua vez, só pode ser tecida no interior da
transferência. Ao contrário do diagnóstico psiquiátrico, que se realiza a partir de
determinados signos universalizáveis, de valor fixo e independente do sujeito, o
diagnóstico em psicanálise se faz em torno de uma relação singular, onde os
sintomas adquirem valor face a particularidade da história e das vicissitudes de cada
paciente.
Se examinamos então o diagnóstico sob transferência veremos que este se
realiza, fundamentalmente, sobre o modo como o sujeito aparece como efeito de
sua própria fala, como ele lida com aquilo que nela lhe escapa e divide. eva-se em
conta, por exemplo, como o sujeito se implica, separa ou se aliena diante do outro.
A interpretação precisa da mediação de um tipo especial de discurso no analisante:
a associação livre. Nem sempre tal discurso é espontâneo e natural, pelo contrário,
ele é, via de regra, um efeito artificial causado pelo manejo da transferência,
presente, por exemplo, na apresentação da regra fundamental e na escuta
equiflutuante do analista.
Não é simplesmente porque o paciente comparece às sessões e relata ou
descreve acontecimentos de sua vida que podemos dizer que há associação livre.
Esta pressupõe certas características formais do discurso, sobre as quais não nos
estenderemos mas que aparecem, por exemplo, através da presença de diferentes
cenas enunciativas em articulação, pela presença de rupturas, recuos e
interrupções na fala, pela presença ainda de uma fala que não é inteiramente
redutível à estrutura de uma conversa, de uma narração ou de uma "falação", vazia
de implicações para o sujeito.
Chegamos assim ao que poderia caracterizar o campo sobre o qual a
interpretação se autoriza: a fala, a transferência, e o sujeito. São condições
necessárias para que se possa falar em interpretação. Por isso uma interpretação
que anteceda ou desconheça um destes elementos corre o sério risco de incorrer
em imperícia clínica.
Dadas tais condições permanece ainda a questão acerca dos pontos
significativos do discurso que constituirão o ponto de partida para a interpretação.
Esses pontos enigmáticos, que de algum modo reclamam sentido, podem ser
enumerados entre as formações do inconsciente: o sonho, o chiste, o ato falho, a
fantasia, e o sintoma. Além destes, comumente citados, poderíamos nos referir a
outros como a inibição, a angústia, o deja recontè, o deja vu, a despersonalização,
o sentimento de estranheza (unheimlich) e assim por diante.

  153  
A interpretação, no entanto, não equivale a uma tradução direta ou
explicação adequada acerca de tais formações do inconsciente. A escuta
interpretativa recairá priomordialmente sobre os elementos dessas formações do
inconsciente, pressupostas teoricamente como compósitas: compromisso entre
desejo e defesa, identificação entre eu e objeto, combinação entre exigências do Id
e do superego, sucesso e fracasso do recalcamento. As formações em questão
veiculam a realização de desejo e para tanto envolvem processos específicos da
memória, como a lembrança e esquecimento, além de modos de encobrimento,
deformação (Enstellung) ou ciframento do desejo. No entanto, tais elementos não
devem adquirir soberania sobre aquilo que captura a atenção flutuante no analista,
ou sobre a questão que se articula no sujeito. Em outras palavras, a interpretação
de um sonho ou de um sintoma não devem se impor como uma finalidade em si,
que uma vez iniciada deve alcançar seu esgotamento. Pelo contrário ela se faz
através de intervenções sucessivas, giros, retornos e progressões alternadas ao
longo do tratamento.

2. Processos Interpretativos:

Por processo interpretativo entendemos o conjunto de transformações


enunciativas que envolvem a posição do sujeito, a estrutura do discurso ou o teor da
significação, no interior de um segmento de análise. Trata-se de uma definição
pragmática orientada para a perspectiva clínica e assumidamente não exaustiva.
Outra característica de nossa definição é que ela evita localizar, necessariamente, a
interpretação com um pronunciamento do analista.
Se tivéssemos, neste sentido, que responder a pergunta acerca de quem é o
agente da interpretação, na clínica psicanalítica, a resposta seria necessariamente
tríplice. É o analista, pois é ele que corta, pontua, propõe resignificações ao
analisante. É também o próprio analisante pois sua elaboração, escuta, ou
apropriação do que foi dito é o que constituirá a interpretação enquanto tal. Em um
terceiro sentido, podemos dizer que é o próprio discurso quem interpreta. Freud
afirmava que a legitimidade de uma interpretação poderia se verificar pela sucessão
da associação livre. Portanto, menos que assentimento ou a negativa do analisante,
o que faz com que uma intervenção do analista tenha valor de interpretação é a
partir do que, e como, o analisante dá continuidade ao discurso. Um ato falho, um
sonho ou uma lembrança subsequente possuem este valor probatório pois, se
aderirmos à tese de Lacan (1966), consideremos o discurso como uma estrutura
onde cada elemento possuirá valor pela sua oposição com os demais e pela rede de
articulações e interremissões, que conferem a todos os atos psíquicos o seu caráter
sobredeterminado.
Tal sobredeterminação incluirá a conjugação de séries diferentes, de diversas
trilhas associativas, que se reúnem em uma formação inconsciente e que devem ser
decifradas pela interpretação. Assim a interpretação fará o caminho inverso ao da
produção inconsciente. Ela poderia se equiparada a uma desconstrução, o que

  154  
combinaria com o contraste estabelecido por Freud entre interpretação e
construção. A construção reuniria o trabalho precipitado por diferentes processos
interpretativos, conferindo a estes uma articulação lógica.
Admitindo-se que a interpretação de um sonho é formalmente equivalente a
interpretação de qualquer outra formação inconsciente poderíamos indicar alguns
movimentos envolvidos nos processos interpretativos em geral. Nem sempre estes
são utilizados integralmentee em cada situação da clínica cotidiana, mas apenas
com a finalidade de ilustrar tais passagem poderíamos sugerir a seguinte ordem de
operações:
1. Relato do sonho: que pode incluir a lembrança de passagens esquecidas
ou detalhes ignorados inicialmente. Freud atribui especial importância a tais
fragmentos e a sua emergência pode ser atribuída ao desenrolar do processo
interpretativo. Cabe salientar aqui que as vezes a alusão a um sonho, por exemplo,
"ontem a noite sonhei com melancias", pede pelo detalhamento da narrativa que o
envolve, das cenas que por mais desconexas ou absurdas compõe o sonho. Às
vezes este de fato se reduz a um único elemento, o que não constitui impedimento
para sua interpretação. Vemos assim como o que se interpreta é o relato do sonho e
não, sua experiência alucinatória concreta.
2. Evocações iniciais: aqui em geral aparecem atribuições do analisando
acerca da causalidade do sonho. Retomam-se reminiscências do dia anterior ao
sonho. É comum referências, neste nível, ao sonho como uma espécie de reflexo
comprensível da situação vivida pelo analisante, figurando de outra maneira o já
sabido e sendo interpretado como possuindo uma significação em seu conjunto. O
sonho, neste nível de apreensão traduz uma incorporação imaginária, que incide
sobre o eu e não, necessariamente sobre o sujeito. É importante ter em conta que a
própria ação da elaboração secundária, que confere ao sonho certa coerência,
costuma-se prolongar na sua interpretação preliminar trazida pelo analisante. Tal
"interpretação preliminar" é semelhante, no caso do sintoma, ao saber que o
envolve. Suposições, ligações, datações simbólicas, atribuições de causalidades
compõe exemplos da apresentação deste saber do qual partirá a interpretação.
Cabe observar que é sempre no quadro de uma certa insuficiência deste saber, que
a interpretação encontrará sua condição .
3. Pedidos de associação: neste caso pede-se ao paciente que traga
lembranças, associações ou ligações entre e sobre os diferentes elementos do
sonho tomados um a um. Aqui o discurso anterior pode indicar alguns pontos sobre
os quais se irá começar. A intensidade, incongruência ou ênfase de um elemento
pode sugerir um ponto de partida. Sua ligação com questões, trazidas
anteriormente, pode ser outra porta de entrada. Mas nem só o que destaca ou
insiste pode atrair a atenção, também o que é posto na sombra, ou explicitamente
afirmado como irrelevante ou menor, cumpre tal papel. Os pedidos de associação
implicam pois certas "decisões" da escuta e se pautam pela situação clínica
particular, por exemplo, em alguns sonhos de angústia, às vezes torna-se
estratégico começar pelos pontos de menor ênfase, em casos onde a posição da
angústia não está clara o procedimento inverso pode ser uma boa saída.

  155  
4. Consideração dos processos primários: a partir da trama de associações
poderá se identificar alguns processos de deformação concorrentes para a
formação do sonho, por exemplo: condensações, deslocamentos, considerações de
figurabilidade. Os elementos que representam o sonhante no sonho podem ser
isolados, bem como suas principais conexões com certas questões do sujeito. Aqui
o sonho começa a ser decifrado como um rébus, ou seja, como se a imagem
acústica da palavra se impusesse ao seu significado convencional. Para tanto cabe
conferir atenção à certas assonâncias e reverberações contidas na associação livre.
A escuta poética admite aqui grande convergência com a escuta psicanalítica.
5. Localização dos aspectos pulsionais: ainda a partir das associações
começa a se precipitar a posição ocupada pelo sujeito no sonho, por exemplo, ele
olha ou é olhado, ele é perseguido ou se faz perseguir. Aqui se isola quais são as
formas precisas em que o sonho figura uma satisfação da pulsão e qual é a
gramática que a comanda. Tal procedimento permitirá ligar o produto das formações
inconscientes à fantasia inconsciente que as comanda e que de toda forma nelas se
inscrevem.
6. Localização do sonho em uma cena enunciativa: ou seja, considerar os
destinatários do sonho, inserir sua posição na estrutura do diálogo, verificar sua
reaparição, ou situá-lo no prolongamento da rememoração ou da história do
analisante. Por exemplo, escutar o sonho na transferência, ou que lugar este pode
tomar em seu interior. As formações do inconsciente, mesmo no caso do sintoma,
são sempre maneiras de articular uma resposta para um destinatário. No limite este
destinatário é o que Lacan chamou de Outro, ou seja, um lugar onde se
depositariam as possibilidades de significação que escapam ao sujeito.
7. Consideração da temporalidade envolvida no discurso: aqui a escuta deve
levar em conta o tempo próprio da articulação do sujeito no discurso. A forma como
se ordenam as descontinuidades que o colocam face a sua questão. O instante em
que a questão se apresenta, o seu tempo de compreensão e o seu momento de
conclusão, que é, por sua vez, abertura para uma nova questão. O tempo da
interpretação não é apenas uma questão de tato, mas é decisivo para sua
constituição. Muitos autores utilizam expressões que procuram circunscrever esta
temporalidade na interpretação. Ela deve ser surpresiva e repentinamente tornar a
tradução possível (Lacan), ela deve vir quando o paciente está prestes a encontrá-la
(Freud), e ainda, ela se coloca de forma inábil quando é precipitada (Glover) ou se
adianta ao material.
8. Subjetivação do desejo: aqui inclui-se as diversas maneiras atravéz das
quais o analista convida o analisante a escutar o produto de sua associação livre.
Implicando-o em seus ditos, reunindo fragmentos de sua fala, indicando insistências
em seu discurso, ou ainda, interpelando o seu dizer, apontando similaridades e
diferenças em sua enunciação. Aqui trata-se de fazer avançar a questão do sujeito,
ao por em cena a "fala plena", ou pela alusão ao objeto causa de seu desejo. Aqui
trata-se de tirar conseqüências, e conseqüências radicais do que foi dito. Isso não
significa convencimento ou persuasão do analisante sobre o conteúdo do que foi

  156  
falado mas geralmente se mostra na realização de uma divisão subjetiva, pelo
confronto com o que lhe é irreconhecível, estranho ou inconciliável.
Estes diferentes indicadores que atravessam a escuta interpretativa
combinam-se no quadro da estratégia que organiza a direção da cura e a esta
devem se submeter. Vemos, portanto que a interpretação não se resume a uma
intervenção mas adquire sentido no quadro de um processo que a inclui.
Distanciamo-nos assim parcialmente da definição de Laplanche onde a
interpretação seria: “ uma comunicação feita ao indivíduo procurando fazê-lo aceder
ao sentido latente, segundo as regras determinadas pela direção e evolução do
tratamento” (Laplanche, 1986, p. 31). Um ato comunicativo tem por objetivo o mútuo
entendimento entre os sujeitos, deve-se pautar por um código comum e fazer com
que a mensagem chegue a seu destinatário de modo a espelhar as intenções do
emissor de forma compreensível, clara e distinta.
Ora, no caso da interpretação psicanalítica vários elementos contidos nesta
definição de comunicação são questionados. Ela não visa, necessariamente o
entendimento. Nela a mensagem não chega sob forma de espelho cristalino das
intenções do emissor (que em geral permanecem enigmáticas), mas como retorno
invertido da mensagem ao próprio sujeito. Ela deve conter certa parcela de
ambigüidade e muitas vezes atem-se ao que foi dito "ao pé da letra", mesmo que
sua significação não corresponda às intenções explícitas do emissor. Ela se dirige
ao sujeito e não ao eu do analisante, considerado aqui como mero emissor. Se a
comunicação se mede pela sua capacidade de transmitir informação uma
interpretação se avalia por seus efeitos, logo, se uma interpretação não tem efeitos
não pode ser legitimamente considerada como tal, independente da exatidão de seu
conteúdo, da intencionalidade de quem a expressa ou da veracidade de seu
conteúdo informacional.
Freud parece reservar a expressão “interpretação” ao trabalho de
resignificação pontual, como, via de regra, observa-se em relação a sonhos,
pequenos esquecimentos, atos falhos e chistes. O emprego do termo em relação a
sintomas, fantasias e manifestações transferenciais é mais raro e geralmente
subentende a combinação de elementos originados do trabalho interpretativo do
primeiro tipo. No entanto, em ambos os casos, os efeitos clínicos da interpretação
podem ser agrupados em duas dimensões:
1. Modificações no teor do discurso: aparição de lembranças, evocação de outras
formações inconscientes, interrupções da fala ou desvios temáticos, que de modo
geral ponderam o eventual sentido comprobatório da intervenção. Incluem-se aqui o
efeito de ressignificação produzido pela análise no âmbito da história do sujeito a
partir da reapropriação de seus significantes fundamentais.
2. Modificações na posição do sujeito: como se pode inferir ocasionalmente da
desaparição, deslocamento ou irrupção de sintomas, alterações no plano da
angústia, emergência de acting out e de modo geral efeitos que resituam o sujeito
diante do Outro, quer no plano da transferência, quer no plano da fantasia.
Nos dois ângulos de consideração dos efeitos da interpretação a escuta
analítica orienta-se respectivamente para a articulação do discurso e do sujeito.

  157  
Birman (1981) aponta esta duplicidade ao falar da interpretação psicanalítica como
um processo que implica na arqueologia do sentido e na genealogia do sujeito. No
primeiro caso esta é compreendida como uma atividade de tradução ou retradução
do sentido, permitindo a continuidade de seu deslizamento. Não é, entretanto,
apenas o produto desta tradução o que importa ao processo, mas sobretudo a
articulação significante necessária para sua efetuação. Isso aparece em Freud em
sua definição da simbolização como efetuação de novas ligações (Bingungen)
responsáveis pela redistribuição da libido no aparelho psíquico. Neste sentido a
interpretação religaria a representação palavra à representação-coisa, desfaria a
"falsa conexão" ou restauraria as lacunas, introduzidas pela censura, que tornam o
discurso do paciente fragmentado.
Portanto a interpretação psicanalítica joga com uma transformação do
discurso na condição em que isto implica uma modificação da posição do sujeito.
Examinemos em separado, cada um destes aspectos, lembrando que eles se
encontram de forma indissociável na clínica.

3. As Transformações do Discurso

Nesses termos a interpretação introduz algo que "repentinamente torna a


tradução possível " (Lacan, 1956, p. 230). Em outras palavras, trata-se de alterar a
significação trivial que um termo possui, escutando-o a partir de uma outra cena, de
um outro contexto, muitas vezes trazido pelo próprio analisando. Isso pode ser feito
de várias maneiras, por exemplo:
1) Apontando o uso da mesma palavra, com sentidos diferentes, em
situações que, em tese, possuam alguma ligação inconsciente. A insistência de um
termo no discurso pode fazê-lo variar de forma sintática, morfológica ou semântica,
no entanto a consonância da palavra, revelada por vezes em sua homofonia ou
aliteração com outra, tem precedência na escuta. Por exemplo, no caso de
Elisabeth Von R. o sintoma da astasia-abasia, ou seja impossibilidade de levantar-
se (aufsetzen) e andar, é interpretado a partir da conjugação de diferentes cenas
onde a paciente:
- levanta-se abruptamente de uma pedra onde se sentava (setzen) junto a um
possível pretendente,
- encontra-se sentada (setzen) ao lado do pai enfermo,
- ou ainda estabelece para si determinadas idéias (sich setzen).
Observe-se como a expressão "setzen" figura como um articulador de
situações e desejos em conflito: casar-se ou cuidar do pai, luto pela morte da irmã
ou desejo de se casar com seu marido. .
2) Escutando a ênfase que recai sobre a negação de algo, como uma forma
de admití-lo e parcialmente afirmá-lo. Isso pode ocorrer ainda na representação
antitética de certos elementos do discurso: preocupação excessiva com limpeza
indicando a conotação inversa interditada (sujeira). Por exemplo um paciente de
Freud sonha com um determinado personagem feminino e em seguida afirma

  158  
assertivamente que "não se trata de sua mãe". Tal veemência em negá-lo (denegá-
lo) indica tratar-se justamente da mãe. É importante salientar que isso é tão mais
legítimo quanto mais espontâneo for sua aparição na fala do próprio paciente,
aplicando-se com reservas quando se trata e de uma resposta a uma proposição do
analista.
3) Pontuando como atributos, predicados ou referências feitas a um mesmo
personagem, tema ou assunto da narrativa do analisando reaparecem em outros
diferentes cenas de seu discurso, inclusive referindo-se o próprio analisando. Isso
pode ser feito valorizando a simultaneidade de empregos a que uma palavra ou
termo está submetida no discurso do analisando. É este esquema interpretativo que
permitiu a Freud no caso conhecido como Homem dos Ratos (Freud, 1909) explorar
a polisemia do significante "Ratten" que, no desenrolar do tratamento, foi remetido
a:
- ratos, no sintoma fóbico,
- mas também a dívida, na relação com seu pai (Spielrate),
- secundariamente a filhos, na relação com a dama amada
- a excrementos, na "língua" da pulsão anal.
4) Indicando como a ausência de ênfase em um determinado ponto do
discurso é congruente com o excessivo e inexplicável acento que recai sobre outra
parte deste mesmo discurso, e vice versa.
5) Sinalizando as elipses, suposições e indeterminações do discurso a partir
da ambigüidade de sentido que estas podem expressar.
6) Marcando alterações temáticas, silêncios e rupturas de forma a salientar a
possível relação existente entre os elementos sucessivos no discurso, em que pese
a dissociação em termos das idéias ou intenções expressas.
7) Nomeando contradições, paradoxos e sofismas contidos no discurso do
analisando, não com a finalidade de "purificar o discurso destas imperfeições", mas
de modo a revelar a forma como estes figuram conflitos, tensões ou oposições entre
moções psíquicas. Isso pode ser feito pela colocação de um fragmento discursivo
na forma de enigma ao analisando.
8) Transformando a relação entre enunciado e enunciação que atravessa a
fala do paciente, explorando termos do enunciado que indicam a posição do sujeito.
Isso inclui desde estratégias de distanciamento, como a ironia e o humor, até
vacilações e incongruências no tom de voz e na prosódia em geral. A escuta da
enunciação reside sobretudo na atenção a certas partículas que a lingüística
denomina de embreantes (shifters), e de aspectos dêixicos da linguagem, que
marcam o discurso na situação em que este se endereça a alguém, em um tempo e
em um lugar, por ex "eu", "aqui", "agora", "também", "eles", etc..
9) Citando fragmentos da fala do analisando de modo a introduzir ou retirar o
enunciado de sua enunciação intencionada. Isso pode se dar pela elevação de
certas expressões à condição de aforisma, título ou epígrafe que condicionam
diferentes cenas enunciativas.

  159  
A lista de procedimentos clínicos que podem envolvidos na interpretação não
é exaustiva e ficará sempre aberta a criação e ao estilo de cada analista e de cada
analisante. Introduzimos tais exemplos apenas pelo caráter didático deste estudo.
Eles foram extraídos tendo em mente as regras para composição de chistes,
examinadas e descritas por Freud em seu livro sobre o assunto (Freud, 1905a).
Das regras de composição do chiste podemos derivar também outros atributos da
interpretação: sua brevidade, seu aparente contra-senso, seu jogo com duplos
sentidos e ambigüidades, bem como sua dependência em relação a estrutura de
linguagem baseada em três lugares (quem conta a piada, quem a escuta e o
personagem sobre o qual a piada se desenvolve).

4. Os Efeitos sobre o Sujeito

Vimos acima como a interpretação implica uma espécie de técnica do manejo


do discurso. Vejamos agora as suas implicações na esfera das transformações
subjetivas.
Neste caso a interpretação refere-se à modificação do lugar de onde emerge
o sentido e acompanha-se de uma fratura da significação. Assim a interpretação
deve deixar sempre um espaço para o "mal entendido", deve conter um "semi-dizer"
e não colocar-se como algo completamente entendido e razoável à consciência
intelectiva do analisante.
Tal perda de significação se deve à incidência da interpretação sobre a causa
do desejo, o que jamais pode ser completamente nomeado. Obtém-se, assim um
"efeito de sujeito" . Por exemplo, no caso Dora (Freud, 1905), a paciente encontra-
se alienada em uma trama amorosa onde única posição que lhe parece possível é
de reinvindicação e denúncia. Freud alude sucessivamente:
(a) a implicação de Dora na trama,
(b) ao desejo pelo Sr. K,
(c) e a fantasia de felação.
O produto é a modificação da posição subjetiva da paciente, com sérias
conseqüências para a transferência. Não se trata mais de uma posição de
exterioridade face ao que lhe sucede mas de inclusão como agente desta mesma
trama, sujeito deste desejo e elemento do gozo expresso pela fantasia.
Lacan (1964) apresenta inicialmente duas posições nas quais o sujeito pode
se instalar no discurso, em relação ao inconsciente: a alienação e a separação.
Mais tarde ele acrescentará a transferência e a verdade à esta lista. O tema da
alienação atravessa diversos momentos de seu ensino e remonta à incorporação de
certas teses da dialética pensada por Hegel ao campo teórico e clínico da
psicanálise. Alienar-se possui diversas acepções, genericamente significa, estar
separado de, não reconhecer-se, negar ou excluir uma forma qualquer de
alteridade. Assim a alienação pode ocorrer quando não nos reconhecemos como
causados ou determinados pelo outro, ou quando negamos seu papel em nossa

  160  
constituição, ou ainda quando não nos reconhecemos como agente, nos meios e
fins de um processo.
Lacan tematiza diversas figuras desta alteridade: a imagem do outro, a lei, a
loucura, a história, o desejo, o inconsciente e a linguagem, são alguns exemplos.
Tais figuras respondem pela oscilação da noção de Outro, essencial para pensar a
interpretação, pois é deste lugar que esta pode interrogar o sujeito. A análise, neste
sentido, poderia ser pensada como um processo de desalienação, como processo
de reconhecimento e subjetivação do desejo. Mas, em uma acepção mais radical,
tal desalienação encontra-se com elementos irredutíveis, por exemplo: o simples ato
de falar e usar a linguagem, já nos coloca alienados à produção de sentido por meio
de algo que nos submete. Além disso há algo não completamente eliminável na
posição de objeto para o Outro, que de certa maneira nos aliena a uma forma
específica e dolorosa de satisfação, que Lacan chamou de gozo.
Separar-se do outro, neste sentido em que o neurótico aliena-se por
intermédio do gozo, é uma das operações que a interpretação, e mais
especificamente o ato analítico, deve produzir. Lacan chega a esta segunda
possibilidade, diferente da mera desalienação, pelo exame crítico de um enunciado
fundamental da filosofia de Descartes: "penso logo existo". Enunciado que inspirou
uma parte significativa da concepção moderna de sujeito. A separação, neste
sentido, apontaria não apenas que ali "onde não existo, penso (no inconsciente)",
mas também que ali onde "não penso, existo (no gozo)".
A interpretação como separação de gozo não explora apenas os equívocos
da linguagem e as dobras do sentido, mas preocupa-se em demarcar os limites do
sentido. Se a interpretação, face ao inconsciente pode ser entendida como um
processo de deciframento, diante do gozo ela é melhor representada por um
processo de ciframento. Cifrar, nesta acepção, corresponde a produzir, junto com o
analisante, a forma particular de escrita que comanda seu gozo.

5. Um Exemplo de Processo Interpretativo

Vamos agora mostrar como esta conjugação entre transformações


subjetivas e discursivas é possível a partir da análise de um sonho relatado pelo
Homem dos Lobos (Freud, 1918):
"Sonhei que um homem arranca as asas de uma "Espe". "Espe" ?, não pude
deixar de perguntar; o que você quer dizer ? "Um inseto de ventre listrado de
amarelo, capaz de picar. Deve ser uma alusão à Grusha, a pêra pintada de
amarelo". "Vespa (Wespe), você quer dizer" corrigi. "Se chama Wespe ? Realmente
acreditei que se chamava Espe. (...) "Mas Espe, esse sou eu, S.P."(as iniciais de
seu nome). A "Espe" é naturalmente, uma Wespe mutilada. O sonho o diz
claramente: ele se vinga de Grusha por sua ameaça de castração." (p.86-87)
O primeiro movimento da interpretação é claramente tradutivo, Serguei
Pankieff substitui a vespa pela sua antiga babá - Grusha, cujo nome em russo quer
dizer pêra. Figura-se assim a ameaça de castração sofrida na infância através da

  161  
mutilação do inseto. Neste sentido a interpretação que o Homem dos Lobos dá a
seu próprio sonho corresponde à uma redescrição do que ele já sabia. Sua
interpretação entende o acontecimento significante contido no sonho como um
elemento a mais na série associativa desenvolvida até então.
Vale a pena notar que no início da análise o paciente recordara que durante o
período de angústia vivido na infância, ele fora tomado pelo medo quando caçava
uma borboleta listrada de amarelo. Meses mais tarde o paciente associou o abrir e
fechar das asas de uma borboleta com uma mulher abrindo e fechando suas pernas
em forma de “V”. O “V” , na escrita latina, liga-se ao horário em que culminam suas
depressões diárias (cinco horas da tarde) e supostamente indicaria a hora em que
se passara a cena primária. Destacamos aqui como Freud conjuga diferentes cenas
que são postas em simultaneidade: a cena infantil, a cena do sintoma e a cena da
sedução.
Num período posterior o paciente recorda-se das pêras listradas de amarelo,
que apreciava na juventude e que aparecem no discurso em contigüidade com
Nanya, a babá que antecedeu Grusha. Temos então duas séries convergentes:

Borboleta à listras amarelas ßvespa


Nanya à pêra ß Gruscha

"Pêra de listras amarelas" indica o elemento enigmático, carregado de não-


senso, a ser realizado no sonho, ponto que pede, portanto, associação livre e
interpretação. Assim a mera tradução se completa mas deixa em aberto a causa
do desejo. Afinal o que deseja o Homem dos Lobos nesta insistência ? Por que ele
retorna a este ponto, em certo sentido, já esclarecido pela análise ?
Voltemos ao sonho. O segundo movimento do processo interpretativo
compreende uma pontuação de Freud que chama a atenção para a letra do que foi
dito: "Espe". Freud acaba deixando de lado a unidade do sentido que se preservara
pela continuidade do discurso e tomando por irrelevante o fato do paciente ter o
russo por língua materna e apresentar naturais dificuldades ao expressar-se em
alemão, ao afirmar que isto é utilizado pela resistência. No contexto da escuta
analítica não há, rigorosamente falando, sinônimos e o fato de que o que o paciente
"quis dizer" ser completamente compreensível no contexto acaba por se submeter
ao que o paciente "efetivamente disse".
Note-se que ao alterar o modo de escuta Freud recusa a continuidade da
interpretação como tradução imediata proposta pelo analisante e reintroduz a
posição enigmática representada pelo termo "Espe", que agora não está mais
reduzido a um sinônimo de listras amarelas ou de Grusha. Em outras palavras esta
intervenção convida a associação a prosseguir sob outro modo de insersão
subjetivo.
A seqüência revela, no paciente, a aparição de um terceiro modo de escuta:
"Espe, este sou eu". Toma-se duas expressões foneticamente semelhantes e se as
diferencia pelo modo de escrita: "Espe" e "S.P.", em alemão, pronunciam-se da

  162  
mesma forma. O que permite diferenciá-los é justamente a presença de
determinativos, ou seja, os pontos escritos que marcam a abreviatura.
O efeito produzido pela emergência de “S.P.” faz com que o sujeito
apreenda-se em sua causa: “ Mas S.P. sou eu.” Neste movimento, todo o conjunto
de pulsões que coordenavam as associações são realocados. Não se trata apenas
de olhar sadicamente a mutilação do Outro, nem de identificar-se à sua castração
imaginária, mas de uma sobreposição das faltas que põe o sujeito em posição de
separação. É importante notar que esta separação só pode ser apreendida no
contexto do processo interpretativo que, propiciou no primeiro momento a
desalienação. Por outro lado a separação se efetuou por uma passagem do modo
tradutivo de escuta, relativo à diferentes formas de expressão para um modo
transliterativo, relativo à diferentes formas de escrita, como aponta Alouch (1995).
Poderíamos imaginar a contingência desta passagem numa outra
continuidade posssível do discurso. Segundo Mahony (1992, p.88) e Obholzer
(1993, p.107) o próprio Serguei Pankieff associara as iniciais “S.P.” também à figura
de um famoso ator homosexual de Odessa, sua cidade natal, que certa vez se
aproximara dele com intenções sedutoras. Igualmente a letra “W”, elidida pelo ato
falho, é bastante sugestiva e deu margem a comentários bizarros entre alguns
autores que se dedicaram ao caso clínico em questão, por exemplo: o “W” é
composto pela duplicação do “V”, hora suposta da cena primária; o “V” invertido
torna-se “>”, ou seja “menor que” mas também o perfil gráfico da boca do lobo
devorador; “W” se pronuncia “Weh”, que em alemão significa “dor” e no dialeto
austríaco “desgosto” (Mahony, 1992, p. 86). Se as associações seguissem estes
caminhos provavelmente não teria se alterado a posição subjetiva e o processo
interpretativo deveria ser considerado sob outro ângulo.
Freud encerra seu comentário afirmando que o sentido do sonho é claro; a
Espe é uma Wespe mutilada (sem o W). No entanto, a idéia de que isso permitiria
retornar ao conjunto do sonho, sob a égide do desejo de vingança quanto à ameaça
de castração sofrida pela babá, levanta problemas. Ela é compreensível pelo lugar
que o sonho ocupa na narrativa do caso, funcionado como peça probatória da
ameaça de castração. Mas essa meta-interpretação contradiz diretamente os fatos
da associação. O que o paciente diz é “A vespa mutilada sou eu” e não apenas “A
vespa mutilada representa Grusha” - o que afinal se obteve no primeiro movimento
interpretativo e que foi percebido como insuficiente.

Espe à inseto de listras amarelas (alienação)


Espe à ? à Wespe (pontuação)
Espe à Wespe mutilada ß Gruscha, cena da castração (alienação)
Espe ß S.P. à Sou eu... (separação)

Note-se que se não houvesse a passagem do modo de escuta tradutivo para


a implicação do sujeito, a interpretação poderia seguir indefinidamente. De modo
inverso se não contássemos com a localização da série significante obtida no

  163  
primeiro movimento do processo interpretativo não se poderia fixar a cadeia
associativa na qual o sujeito se encontrava alienado.

  164  
BIBLIOGRAFIA

Allouch, J. - Letra a Letra - transcrever, traduzir, transliterar, Companhia de Freud,


Rio de Janeiro, 1995.
Birman, J. - Freud e a Interpretação Psicanalítica, Relume Dumará, Rio de Janeiro,
1981.
Dunker, C.I.L. - Lacan e a Clínica da Interpretação, Hacker/Cespuc, São Paulo,
1996.
- Processos Retóricos na Teoria Freudiana do Chiste, (separata), 1999.
Freud, S. - Fragmento da Análise de um Caso de Histeria (1905)
- A Propósito de um Caso de Neurose Obsesssiva (1909)
- (1912b)
-O Interesse pela Psicanálise (1913)
- Da História de uma Neurose Infantil (1918)
- Construções em Análise
Hanns, L.A. - Dicionário Comentado do Alemão de Freud, Imago, Rio de Janeiro,
1996.
Lacan, J. - O Seminário - Livro XI Os Conceitos Fundamentais da Psicanálise
(1964),
Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1988.
- O Seminário, Livro XV O Ato Analítico (1968) (separata)
- Instância da Letra no Inconsciente ou a Razão desde Freud (1957)
- Função e Campo da Fala e da Linguagem em Psicanálise (1956)
- Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano
(1960)
- Posição do Inconsciente (1964)
in Escritos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1998.
- L'Etourdit (1972), in Scilicet, nº4.1973. Seuil. Paris.
Laplanche, J. & Leclaire, S – O Inconsciente um estudo psicanalítico (1961), in O
Inconsciente e o Id, J. Laplanche, Martins Fontes, São Paulo, 1992.
Laurent, E. - Alienação e Separação I in para Ler o Seminário 11 de Lacan
(Feldstein,R.et alli org.), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997.
Laplanche, J. - Vocabulário de Psicanálise, Martins Fontes, São Paulo, 1986.
Maingueneau, D. - O Contexto da Obra Literéria, Martins Fontes, São Paulo, 1995.
Mahony, P. - O Grito do Homem dos Lobos, Imago, Rio de Janeiro, 1992.
Sampson, G. - Sistemas de Escrita, Tipologia, História e Psicologia, Ática, São
Paulo, 1996.
Spence, D. P. - A Metáfora Freudiana, Imago, Rio de Janeiro, 1992.
Soller, C. - O Sujeito e o Outro II, in Para Ler o Seminário 11 de Lacan (Feldstein,
R.et alli org.), Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1997.
Obholzer, K. - Conversas com o Homem dos Lobos, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1993.
Todorov, T. - Teorias do Símbolo, Papirus, Campinas, 1996.

  165  
A CAUSA FINAL NA PSICANÁLISE E NA ARTE
Silvana Pessoa

Qual o tempo necessário à transformação de uma estrutura, seja ela de um


bloco de mármore ou do sujeito em análise? Depende. Se o artista for muito
perfeccionista, o processo de construção não acabará nunca. Se o analisando e o
analista colocarem o final como um ideal, a resposta será a mesma. Se não há
abandono da obra ou da análise - que serão considerados inacabados -, chegará o
momento de concluir.
Nas artes, o momento de uma exposição ou publicação precipita a produção,
mesmo que haja procrastinação durante todo o processo. Assim foi com Leonardo
da Vinci, assim é com muitos escritores, pintores e escultores que trabalham com
datas marcadas para a entrega da obra. Na psicanálise a pressa também é
necessária para a conclusão. Entretanto, não se pode fixar uma data para a
“finalização do produto”, pois não há produto final e uma antecipação desse tempo
pode deixar o sujeito prisioneiro na sua própria repetição.
A duração de um processo psicanalítico precisa ser indefinida, pois não
podemos prever o tempo necessário para compreender e o tempo que levará o
alargamento das tramas discursivas, a (de)formação ou a destituição subjetiva. Mas
é preciso verificar o que encontramos no percurso ou ao final de uma análise, após
decorrido um tempo: a transformação do mesmo ou a emergência do novo?
Analisaremos o que as artes, particularmente na literatura e na música,
podem nos ensinar a esse respeito.
Nem sempre, a um primeiro olhar de uma cena qualquer, se percebe a
existência de algo novo: e, quando isso se dá, no instante seguinte tenta-se
explicar, dar um nome, associá-lo a algo visto, inseri-lo num mundo das coisas
conhecidas. Busca-se reduzir o desconhecido, o que nos causa preocupação, ao
familiar, ao “mesmo”, que nos acalma. Mas, com isso, lamentavelmente perde-se o
novo.
Esse mecanismo também acontece na leitura: adquirimos o vício de não ler
ou não ler direito. Buscamos no que lemos e no que escutamos, aquilo que tem
relação com as nossas verdades. Inventamos, para nós mesmos, boa parte do fato.
Somos todos inventores. Mas vemos e ouvimos o geral segundo as nossas
verdades e perdemos o detalhe. Isso também pode ocorrer em algumas análises,
quando não entendem a linguagem como causa do inconsciente.
Na psicanálise, temos familiaridade com os chistes que são importantes por
terem a característica de uma escuta que capta o detalhe. Eles despertam prazer
nos ouvintes, pelo seu jogo com as palavras e por estarem ligados a fontes
reprimidas ou a hostilidades. Através da técnica de condensação acompanhada de
um substituto, do nonsense ou o duplo sentido das palavras, nos vingamos do
nosso inimigo ao trazemos o outro, um terceiro para rir do nosso lado.
Naturalmente, alteramos a estrutura discursiva – é como abrir lugar para a
emergência de algo diferente, algo novo.

  166  
Dar tempo para a coisa aparecer, deixar a coisa ser, sem pensarmos em
nada, sem emitir parecer ou julgamento, deixar a coisa se mostrar é a orientação
nesses campos; o da linguagem, da arte e da psicanálise, talvez particularmente no
passe. Entretanto, nem sempre se consegue isso – um momento difícil de capturar,
difícil de se apresentar e de passar.
Deixar as imagens irem e virem, sem julgar a priori – sentir o mundo sem
tentar explicá-lo, mesmo que num segundo momento possamos rotulá-lo - o que é
inevitável. Criar o silêncio, um espaço, um momento, entre esses dois tempos, para
termos o aparecimento das coisas como recompensa – estrutura de linguagem que
possibilita a aparição do sujeito do inconsciente entre dois significantes.
A música de John Cage nos ensina a fazer isso na sua forma dadaísta de
compor. Cage impõe, na sua obra, o uso deliberado do acaso, ‘da indeterminação e
da indistinção entre som estruturado e ruídos vindos da vida ordinária. Ele “[...] leva
às últimas conseqüências seu projeto de crítica à racionalidade da música
ocidental”1. Racionalidade que, ao contrário, tem uma ansiedade enorme de dizer,
comentar, murmurar, remedar, expressar-se, buscar sentido – expressa nas
estruturas dos romances, nas grandes sinfonias, nas falas dos analisandos.
“Todos querem através da palavra, e não do silêncio, provar que estão
2
vivos” e perdem a oportunidade de permitir que se instale um espaço para outras
vozes irromperem. Um horror a vacui, expressão utilizada na era do renascimento,
quando os pintores não deixavam um pedaço de sua tela sem cor, por menor que
fosse o espaço, e os compositores criavam priorizando o sentido e os afetos –
pensando em termos de progressão, expectativa e resolução.
Mas é no vazio que as coisas acontecem. ( ). A problematização que
queremos introduzir com este trabalho é investigar a capacidade de criação de um
significante novo no percurso ou no final de análise, ou seja, de um novo saber que
colocamos nesse vazio, da nossa capacidade de depor nosso julgamento e deixar
os sons serem eles mesmos, como nos aponta Cage na conjugação da sua
“gramática da desafeccão”3. Gramática, que podemos aproximar do analista, como
alguém “não afetado” pelas paixões ou ignorância.
O movimento de dialética que uma psicanálise instaura, “não determina
somente o sujeito, à sua revelia (...), mas o constitui numa ordem que só pode ser
excêntrica em relação a qualquer realização da consciência de si”.4 Os analistas,
que fazem parte desse movimento - e para quem se dirige a fala -, devem aprender
a “agir com a linguagem como se faz com o som: seguir a velocidade dela para
romper o seu muro”5, muro que lhe é próprio e passar esse modo de funcionamento
ao analisando, transmitindo-lhe, com isso, a psicanálise .

                                                                                                               
1
Safatle, V. Destituição subjetiva e dissolução do eu na obra de John Cage. In. Sobre arte e
psicanálise / orgs; Tânia RIVERA e Vladimir SAFATLE – São Paulo: Escuta, 2006, p. 177.
2
Marcondes, C. Perca tempo: é no lento que a vida acontece. São Paulo: Paulus, 2005. p. 570.
3
Safatle, opus cit. p.182.
4
Lacan, J. Discurso de Roma (1953). In. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.
p.145.
5
ibid, p.167.

  167  
Rapidez exigida para antecipar-se às defesas do sujeito, às crenças que esse
sujeito se apega na civilização e constituem uma variedade de delírio. É preciso
seguir a velocidade própria da linguagem para que possa emergir o desejo, captado
pela brincadeira do Fort-Da, mas que o sujeito faz abolir, desaparecer cem vezes,
para poder vê-lo aparecer novamente, nas repetições que voltam para ser
elaboradas.
Para adquirir essa prática, convém não nos enganarmos com regras, modas
e proibições presentes em todos os lados, principalmente nas instituições. Risco
que sempre corremos.
Lacan sugere que os analistas abram os ouvidos para as canções populares
e para os maravilhosos diálogos de rua.6 Sugestão que aponta para um aspecto que
nunca engana: que toda sabedoria é um gaio saber, desde que o homem começou
a enfrentar o seu destino, como ele diz.
Uma linguagem que subverte, canta, instrui e ri, um gaio saber. Alimentam-se
dessa tradição, para citar alguns: Joyce, Machado de Assis, Rabelais, esse último
representante da sátira menipéia 7 , gênero literário que destaco nesse trabalho
porque consiste em produzir um tipo particularmente fragmentário de narrativa e
incluir particularidades que, quando não detectadas ou bem analisadas, são
geralmente consideradas como aberrações ou irregularidades, que aproximamos da
estratégia de desconstrução do mesmo ou emergência do significante novo 8
proposto por Lacan.
Tanto a psicanálise, como a obra de Rabelais, convidam os analisandos ou
leitores a realizarem eles mesmos a tarefa de procurarem a sua própria sabedoria.
A pedagogia rabelaisiana e lacaniana ensinam que se devem dissolver as fórmulas,
as idéias recebidas e, no lugar delas, desenvolver-se um espírito critico, ampliar a
trama discursiva, aquela em que todos estamos peados.
Pantagruel, personagem criado por Rabelais acolhe no Terceiro Livro 9 a
angústia de Panurge - que tal como um neurótico obsessivo buscava garantias do
futuro e procrastinava a decisão de contrair matrimônio. Pantagruel acolhe o que
vem do outro, por saber que existe igualdade na imperfeição - situação
essencialmente humana, que jamais deve ser pretexto para a intolerância.
Pantagruel, tal como os analistas, sabe a limitação e a incapacidade de
adaptação que as viseiras das idéias feitas tendem a impor aos seres humanos, que
através da psicanálise, literatura e/ou das artes procuram minimamente libertar-se.
                                                                                                               
6
ibid. p. 152.
7
A sátira menipéia deve seu nome a Menipo, que escreveu sátiras com intenso interesse pelas
palavras e pela linguagem. Nesse gênero o peso cômico é preponderante, assim com a liberdade de
invenção filosófica e temática, liberdade que não aceita restrições de ordem histórica ou temporal
aliada a falta de restrição espacial. (Oliver, E. V. Rabelais e Joyce: três leituras menipéias. São
Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
8
Lacan, J. Seminário 24 - L’insu-que-sait de l’une-unbevue s’aile à mourre - aula de 17/05/77 – rumo
a um significante novo.Texto estabelecido por Jacques Alain Miller, traduzido por Jairo Gerbase em
01/02/99 e revisado em 17/05/99.
9
Rabelais, François. O terceiro livro dos fatos e ditos heróicos do bom Pantagruel; tradução,
introdução, notas e comentários Elide Valarani Oliver – Cotia, SP: Atelê Editorial; Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2006.

  168  
“Tudo o que impede a multiplicidade da realidade, da constante
descoberta do mundo são vícios. É essa forma de estupidez que se
apresenta em Panurge. Sua obsessão em não aceitar as verdades
e as mudanças da vida fazem com que o próprio curso dessa se
10
repita incessantemente dizendo-lhe sempre a mesma verdade”.
Qual a verdade em questão? Para a filosofia de Pantagruel: casar ou não
casar dá no mesmo. Crer ou não crer dá no mesmo, já que, para Rabelais e vários
outros vivemos num lusco-fusco da consciência, nunca certos de quem somos ou
supomos ser, há sempre um erro cujo ângulo não sabemos.11 Estamos falando de
autores que ensinam sobre o indecidível, sobre a impossibilidade de fazer uma
escolha, acertada, sem dúvidas, baseado no por vir – a psicanálise segue o mesmo
trilho.
Panurge tem dúvidas deve casar-se, pois teme ser traído pela esposa. Nada
do que lhe digam o convence que deve seguir o seu desejo. O que quer que se
diga, já foi. Para Rabelais, melhor mesmo que se esqueça. Pessoa diz12 que, depois
que escreve, já não mais se reconhece, e Lacan, que os significantes que nos são
dados do Outro, apesar de terem diversas combinatórias, seguem um determinado
padrão e estrutura, representantes do mesmo, que, ainda assim, nos causam
estranheza.
Na verdade, não há a opinião verdadeira e única: já que há paradoxos. Não vale
confrontar, desafiar as coisas. Resta-nos, ao final, respeitá-las no seu tempo com
humor, valorizando os chistes e tropeços da linguagem na clínica, com a certeza
que há o indecidível demonstrado por Rabelais, assim como os mundos simultâneos
e mundos impossíveis, representados por Escher; ou, na música criada por John
Cage, formas possíveis do fim, que podem vir em socorro e transformar algo do
mesmo (transformação inerente à própria estrutura de linguagem) em um
significante novo - que pode emergir do silêncio, no vazio entre dois significantes
durante todo o processo e também no final.

                                                                                                               
10
Ibid. p. 150.
11
Pessoa, F. O livro do desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na
cidade de Lisboa/ Fernando Pessoa; organização Richard Zenith – São Paulo: Compainha das
Letras, 2006. p. 95.
12
Ibid. 95.

  169  
A CERTEZA DO FINAL: IDENTIFICAÇÃO AO SINTOMA
Silvana Pessoa

Introdução
O que significa a “identificação ao sintoma”13 no final de análise? Se fosse
apenas saber lidar com o sintoma de entrada, ou seja, aquele sintoma-queixa do
início, ou com um ato de resignação ou cansaço por não mais suportar a repetição –
o que faz com que algumas pessoas busquem análise –, não precisaríamos publicar
artigos, pois não haveria razão para existir essa revista e tampouco a psicanálise.
Interessa-me, neste trabalho, abordar como se passa do analisando ao
“analisado”, no particípio 14 ; do sofrimento do início à satisfação do final; da
impotência à impossibilidade; de ter um sintoma e da incerteza do seu sentido à
certeza do fim; de ser o sintoma e poder dizer “esse sintoma sou eu” sem precisar
continuar pedindo que ele se explique, uma vez que não se pode dizer de onde isso
vem, apenas demonstra-se, percebe-se.
Para atingir este objetivo, tomarei por base os últimos seminários de Lacan,
nos quais ele demonstra esse fim com a escrita “Joyciana”, sendo que elegerei para
reflexão a nossa versão “Manoelesca” de escrita – com o intuito de verificar os
sinais do fim que se observa na clínica cotidiana.

Reticências [...]
Uma pessoa “só se dirige a uma análise, salvo algumas exceções, a partir de
uma manifestação sintomática de sua divisão, que põe em cheque a sua unidade”,
ou seja, quando as identificações, modos de apreensão da realidade imaginária,
simbólica ou real, passam a não responder ao sujeito.15 Todavia, o sujeito busca
uma análise porque crê no sintoma, crê que um S1 vai desencadear um S2, crê que
o sintoma diz algo, que é decifrável, que tem um sentido que irá restaurar essa
unidade perdida. Podemos dizer aqui que a noção de sujeito representado por um
significante para outro significante, em que, por definição, não é igual a si mesmo,
condiz com a noção lacaniana de sintoma, definida nos anos 50 a partir do
simbólico, e que, nos anos 70, passou a ser definida pelo real, no qual o sujeito é
identificado “com o sintoma como letra”, portanto, “igual a si mesma”16, contendo a
dimensão de hieróglifo e enigma.
No entanto, o caráter de “cifra” do sintoma – que pede decifração –, ou seja,
o caráter de signo do real do sintoma, está presente desde o início da psicanálise,
quando Freud concebe que as histéricas reviviam no corpo um trauma impossível
de ser simbolizado que deveria ser decifrado. Mesmo que posteriormente essa
                                                                                                               
13
LACAN, J. O Seminário, livro 24, L’insu-que-sait de l‘une-bévue s’aile à mourre. [16/11/1976].
Inédito. Trad. Jairo Gerbase
14
SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. p. 189
15
GERBASE, J. Complexo de Lacan: RSI∑. In. Revista Stylus: revista de psicanálise – Rio de
Janeiro: Associação de Fóruns do campo Lacaniano. p. 77-86
16
QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas – Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2009. p. 167-8

  170  
concepção fosse um pouco modificada com a introdução da noção de formação de
compromisso, Freud propõe pensar o sintoma não mais como evento, mas como
síntese entre o desejo e o recalque, não mais pautada num evento da realidade,
mas na inadequação de um desejo.
Portanto, do sintoma de entrada como divisão do sujeito, como uma
mensagem a ser decifrada e endereçada ao analista, ao sintoma de saída, como um
signo do real em que não há sentido, que comporta a certeza do “não sei por que
faço isso, mas não sei fazer de outro jeito”, – que põe fim às reticências do início,
que abriam caminhos para novas significações, que não cessavam de se escrever e
que eram necessárias, mas não suficientes –, contemplamos, na clínica, uma
metamorfose do sintoma, que será examinada a seguir.
Passagem [metamorfose]
A queda das identificações, isto é, a quebra das certezas imaginárias ao
longo do percurso, vai deixando quem procurou a análise cada vez mais “em
cheque”. O modo de abordagem da realidade que anteriormente era satisfatório
passa a não servir mais. A destituição subjetiva – outro nome dado para essa
“queda” – leva o sujeito a experimentar novas modalidades de gozo, sujeito esse
transformado pela análise, que “se definirá por uma nova relação tanto com a
castração quanto com a pulsão”17. Porém, ainda resiste e insiste um resquício de
sentido inefável no sintoma, algo a que ele se vê “peado”. Em Freud, a última
palavra sobre o final de análise aponta para “a insondável decisão do ser”18, quando
diz “consolamo-nos com a certeza de havermos proporcionado ao analisado todo o
estímulo possível para rever e modificar a sua posição diante desse fator”.19 Lacan,
por sua vez, define o final da análise da seguinte maneira:
“É possível definir o fim da análise. O fim da análise é quando se deu
duas voltas, isto é, quando se achou aquilo de que se está prisioneiro.
Recomeçar duas vezes a volta em círculo certamente não é
necessário, basta que se veja de que se está cativo, e o inconsciente é
isso. É a face de real [...] à qual se está peado. [...] A análise não
consiste em ser liberado de seus sintomas [sinthomes], pois é assim
que escrevo sintoma [symptôme]. A análise consiste em que se saiba
porque se está peado a ele. Isso se produz pelo fato de que há o
simbólico. O simbólico é a linguagem. Aprendemos a falar e isso deixa
traços. Porque isso deixa traços, isso tem conseqüências, que não é
outra senão o sintoma [sinthome], e a análise consiste [...] em se dar
conta de porque se tem esses sintomas [sinthomes]. De modo que a
análise é ligada ao saber”.20

                                                                                                               
17
SOLER, C. op. cit. p. 191
18
LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica in Escritos – Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed. 1998. p. 179
19
FREUD, S. Análise terminável e interminável. In Obras Completas – Rio de Janeiro: Imago. 1975.
vol. XXIII. P. 287
20
LACAN, J. O Seminário, livro 25, O momento de concluir. [10/01/1978]. Inédito. Trad. Jairo
Gerbase

  171  
Um saber paradoxal que junta dois termos aparentemente antinômicos: a
identificação que cria o mesmo, um estigma que marca o sujeito, que passa a
orientá-lo e que assiná-la o seu caráter educável e sujeito à influência; e o sintoma
que cria a diferença, que resiste às ordens do significante-mestre, que é sempre
rebelde à universalização e que tem alguma coisa de real.21 A junção destes dois
termos que se opõem como princípio de homogeneização só pode designar uma
mudança mais radical na maneira por meio da qual o sujeito se relaciona com o seu
sintoma, que precisa ser definido.
“A que, pois a gente se identifica ao fim da análise? Identificar-se-ia a
seu inconsciente? É o que não creio, porque o inconsciente
permanece [...] o Outro. [...] Em que consiste essa situação que é a
análise? Seria ou não se identificar [...] a seu sintoma? Propus que o
sintoma pode ser o parceiro sexual. [...] Tomado nesse sentido, o
sintoma é o que se conhece [...] melhor. [...] Conhecer seu sintoma
quer dizer saber fazer com, saber desvencilhar-se dele, manipulá-lo. O
que o homem sabe fazer com sua imagem corresponde de algum
modo a isto e permite imaginar a maneira como a gente se
desvencilha do sintoma. [...] Saber lidar com (savoir y faire avec) seu
sintoma, é isso o fim da análise”.22
Identificação ao sintoma é isso, é o que o sujeito pode fazer de melhor,
e não a identificação ao analista, como está implícito para os que se orientam
pela psicologia do ego, ou seja, “sendo a normalidade assintomática pensada
em termos de identificação, é isso que se busca restaurar no sujeito (...)
restabelecer, no final, um efeito de identificação melhorada” 23 . Neste
tratamento analítico, o analista é tomado como modelo e a análise como uma
segunda educação. Forma equivocada que, em vez de abalar as
identificações, “retifica e reforças as marcas identificatórias deixadas pelo
Outro. Para isso não seria necessário inventar a análise”.24

Ponto final [ . ]
O sintoma do final de uma análise não é mais um sofrimento a ser removido,
como aquele da entrada, mas uma forma descoberta de gozar do inconsciente, o
modo como cada sujeito ata os três registros. Dizendo de outro modo, a
identificação ao sintoma, “o modo mais particular de enlaçamento de um desejo e
de um modo de gozo, bem como os feitos e desfeitos dos sujeitos (...) como Zorro, o
justiceiro; Jack, o estripador; Joyce, o sintoma. Isso faz com que o sujeito tenha dois
nomes próprios: no sentido comum do termo, seu patronímico (...) e seu nome
reservado, o de seu sintoma25, que fixa a sua identidade verdadeira, que registra
                                                                                                               
21
SOLER, C. op. cit. p. 192
22
LACAN, J. O Seminário, livro 24, L’insu-que-sait de l‘une-bévue s’aile à mourre. [16/11/1976].
Inédito. Trad. Jairo Gerbase
23
SOLER, C. op. cit. p. 194
24
SOLER, C. ibid.
25
SOLER, C. Os nomes da identidade. In Caderno de Stylus, Internacional dos Fóruns/ Escola
Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil. Rio de Janeiro, 2010. p. 53

  172  
esse gozo sem par, solitário; o “mas isso não”, caráter de impossível, após a vírgula
do tudo.26
Alguns podem prescindir da psicanálise para descobrir seu nome reservado,
seu modo de gozo. Joyce certamente prescindiu. Nada podemos dizer sobre
Manoel de Barros, escritor brasileiro que pretendemos examinar. Não temos
informações suficientes. Em sua única biografia documentada27, que é mais uma
“desbiografia”, ele se recusa a falar, e argumenta da seguinte forma: “minha vida
não tem nada interessante. O que é interessante é o que escrevo”.
Durante todo o documentário não há referência alguma à família ou à
atividade profissional, mas sabemos que ele foi advogado, que morou em Nova
York, que sofreu influencia dos modernistas e que casou e teve três filhos. Dos
familiares, recebemos algumas informações: “meu irmão nasceu com uma
disfunção lírica afetiva” – hoje, um poeta em tempo integral, não pensa em nada
mais a não ser poesia; diz que “comprou o ócio e fica à disposição da poesia” –
aquela em que a palavra poética chega a um grau de brinquedo –, que não quer
dizer nada, não quer dar informações, quer dar encantamento.
Podemos também dizer isso de outro modo: “quando o esp de um laps (...), o
espaço de um lapso, já não tem nenhum impacto de sentido (ou interpretação), só
então temos a certeza28 de estar no inconsciente”.29 Isso é a certeza do final. Apaga
as reticências e insere um ponto final do silêncio. Ponto de ateísmo da falha na
transferência, de não mais crer no sintoma.
Quanto a isso, os analistas precisam ser prudentes na direção do tratamento,
para não idealizarem um final e levarem a coisa longe demais. Quem nos adverte
disso é o próprio Lacan:
“Não penso que se possa dizer realmente que os neuróticos sejam
doentes mentais. A maioria dos neuróticos são o que são. Felizmente
não são psicóticos. O que se chama de um sintoma neurótico é
alguma coisa que lhes permite viver. Eles vivem uma vida difícil e nós
tentamos aliviar seu desconforto. Às vezes lhes damos o sentimento
de que são normais. Graças a Deus, não os tornamos tão normais
para que acabem psicóticos. É o ponto em que temos de ser muito
prudentes. Alguns dentre eles têm realmente a vocação de levar as
coisas até o limite [...] Uma analise não tem de ser levada longe
demais. Quando o analisando pensa que está feliz em viver, é o
suficiente”.30

                                                                                                               
26
No seminário 23, o sintoma é o “mas isso não”, contida na frase: “Tudo, mas isso não” que aponta
para o impossível, para o S(A/barrado). Diz Lacan, “O mais isso não é o que introduzo sob meu título
desse ano como sintoma” (p. 15).
27
CESAR, P. Documentário: Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial de Manoel de Barros.
Petrobras, 2009.
28
Formatação em itálico feita por mim. Não está presente no original.
29
LACAN, J. Conférences et entretiens dans dês universités nord-américaines. Yale University,
Kanzer Seminar. [24/11/1975]. In Scilicet 6/7. Paris: Éditions du Seuil, 1976, p. 15
30
LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In Outros Escritos – Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed. 2003, p. 567

  173  
A questão que submeto à apreciação é como alguém que levou a sua análise
até esse ponto, após esgotadas as interpretações que ela poderia gerar, de
identificar-se com algo que não pode ser mais reduzido, mudado ou interpretado, ou
seja, até atingir a certeza do sem-sentido do sintoma, a esse savoire-y-faire, que
leva à satisfação, “que só é atingida no uso, no uso em particular”31 ou quando o
sujeito pára de colocar obstáculos ao saber sobre a inconsistência do Outro, possa
ainda desejar endereçar-se a um Outro, supondo, talvez, a um outro analista – já
que o outro “não funcionou” – o lugar de Sujeito suposto saber?
Voltar a colocar a questão do sentido em campo mais uma vez e voltar a se
perguntar “o quero dizer com isso?” faz com que o “esp de um lapso” volte a ter
sentido. Basta querer, mais uma vez, “levar isso para análise” para que se saia da
certeza atingida no fim, pois “não há verdade que, ao passar pela atenção, não
minta. O que não se impede de que se corra atrás dela”.32 Mas, como passar por
isso novamente, já tendo gastado até se fartar do gozo do sentido, tal como faz
Manoel de Barros, tal como faz Joyce, tal como fizeram muitos analisandos? Seria
por isso que Lacan recomendava a leitura do Finnegans Wake aos psicanalistas, ou
melhor, será que é porque Joyce demonstra a psicanálise, instaura a prática da
homonímia – do joyer com os significantes?
Certamente Lacan recomendaria também Manoel de Barros, se o
conhecesse, e talvez até o colocasse na série do “Tudo, mas isso não”, inventando:
“Manoel, vagabundo profissional”, pois ele também, através do seu idioleto
manoelês arcaico33 explode significâncias, inventa sem querer dizer nada, apenas
porque “as coisas pedem socorro para serem vistas de forma diferente. Elas pedem
para ser olhadas de outro modo e não com o olhar das pessoas razoáveis.”34
Só virando as coisas de ponta cabeça, costurando e descosturando os
sentidos trazidos pelos analisantes na sua prática, podem levar os analisandos da
crença no sintoma à certeza da identificação ao sintoma, que não se justifica ou se
explica, mas se percebe.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, M. Livro sobre nada – Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 43

                                                                                                               
31
LACAN, J. ibid.
32
LACAN, J. opus cit.
33
BARROS, M. Livro sobre nada – Rio de Janeiro: Record, 2009. p. 43
34
Comentário feito em CESAR, P. Documentário: Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial
de Manoel de Barros. Petrobras, 2009.

  174  
CESAR, P. Documentário: Só dez por cento é mentira: a desbiografia oficial de
Manoel de Barros. Petrobras, 2009.
FREUD, S. Análise terminável e interminável. In Obras Completas – Rio de Janeiro:
Imago. 1975. vol. XXIII. P. 287
GERBASE, J. Complexo de Lacan: RSI∑. In. Revista Stylus: revista de psicanálise
– Rio de Janeiro: Associação de Fóruns do campo Lacaniano. p. 77-86
LACAN, J. Conférences et entretiens dans dês universités nord-américaines. Yale
University, Kanzer Seminar. [24/11/1975]. In Scilicet 6/7. Paris: Éditions du Seuil,
1976, p. 15

LACAN, J. Formulações sobre a causalidade psíquica in Escritos – Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed. 1998. p. 179
LACAN, J. O Seminário, livro 24, L’insu-que-sait de l‘une-bévue s’aile à mourre.
[16/11/1976]. Inédito. Trad. Jairo Gerbase

LACAN, J. O Seminário, livro 23,O sinthoma. [1975-1976]. – Rio de janeiro: Jorge


Zahar Ed. 2007, p. 15

LACAN, J. O Seminário, livro 25, O momento de concluir. [10/01/1978]. Inédito.


Trad. Jairo Gerbase
LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In Outros Escritos – Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2003, p. 567
QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas – Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. p. 167-8
SOLER, C. O que Lacan dizia das mulheres – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2005. p. 189
SOLER, C. Os nomes da identidade. In Caderno de Stylus, Internacional dos
Fóruns/ Escola Internacional dos Fóruns do Campo Lacaniano - Brasil. Rio de
Janeiro, 2010. p. 53

  175  
INTERPRETAÇÃO: UMA RESPOSTA ORIENTADA PELA ÉTICA
Silvana Pessoa

Precisões sobre a ética e a política não são nada simples para serem
desenvolvidas em um trabalho de seis laudas, mas são um esforço necessário para
um Encontro Nacional sobre esse tema. Como nos diz Lacan (Seminário 7,1959-60,
p. 33), “na medida em que um assunto delicado como o da ética não é hoje
absolutamente separável do que se chama de uma ideologia, parece oportuno dar
algumas precisões sobre o sentido político dessa virada da ética da qual somos
responsáveis, nós, os herdeiros de Freud”. A relação desta com a interpretação se
impõe neste trabalho.
Para conceber a novidade que Freud introduziu no domínio ético e para
questionar como chegar mais perto desse campo chamado desejo, Lacan trabalhou,
no Seminário 7 com Antígona, a virada ética, que foi transmitida de Aristóteles à
Freud, passando pelo filosofo inglês Jeremy Bentham, com o intuito de desmistificar
a perspectiva do Bem Supremo e levá-la para o nível da economia dos bens,
reaprendendo-a na perspectiva freudiana do princípio do prazer e do princípio de
realidade.
“Qual deve ser a nossa relação efetiva com o desejo de fazer o bem? Com o
desejo de curar? (...) poder-se-ia de maneira paradoxal (...) designar o nosso desejo
como um não-desejo de curar. Essa expressão não tem outro sentido senão nos
alertar contra as vias vulgares do bem, tal como eles se oferecem a nós tão
facilmente em seu pendor, contra a falcatrua benéfica de querer o bem do sujeito”
(Ibid, p. 267).
Se não é querer o bem do sujeito com as vias vulgares do bem, “de que
desejam vocês curar o sujeito?”, nos pergunta Lacan (Ibid). Essa pergunta é difícil
de ser respondida e é o cerne da clínica, está em nosso dia a dia. Trata-se de um
questionamento sério, que nos obriga a retomar algumas passagens importantes do
texto freudiano e do utilitarismo benthoniano.
De um lado, está a psicanálise, que reconhece a existência de um mal-estar:
“Os homens adquiriram dum tal controle sobre as forças da natureza que não
surpreende que, com a sua ajuda, não teriam dificuldade em se exterminarem uns
aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém grande parte da
sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade.” (Freud, Mal-estar da
Civilização, 1930, p. 170).
Freud se recusava a se erguer como profeta dando respostas para essas
inquietações e curvava-se à sua censura, pois “não lhes podia oferecer consolo
algum, pois, no fundo é isso que todos estão exigindo, e os mais arrebatados
revolucionários não menos apaixonadamente do que os mais virtuosos crentes”.
Uma resposta analítica orientada pela ética.
Do outro lado está o utilitarismo, que tem em seu centro o panopticon, que
visa o máximo de felicidade para o maior número possível de pessoas, onde nada é
sem utilidade, tudo deve servir para algo. Em sua estrutura, há um cálculo das

  176  
aparências e Bentham o pratica em todos os seus escritos. O olho, que reina sobre
o império do panóptico, é o órgão predominante de suas astúcias.
Na base localiza-se o que define a função dos bens: a teoria das ficções, o
artifício cultural e a fiction, que não sendo o ilusório e nem o engano é da ordem
simbólica, ou seja, da ordem da linguagem. É nessa base que o pensamento
utilitarista constitui o objeto da partilha, e Bentham, seu principal representante, foi
quem abordou essa questão ao nível do significante, pois primariamente apontou
que qualquer articulação significante é uma ficção. Ele estava advertido, não queria
anulá-las e, por isso, manejava-as a seu favor.
Entretanto, há algo que o pensamento utilitarista não consegue apreender,
algo que é da ordem do desejo do homem e que é o impasse do utilitarismo, onde
se tornam visíveis as suas virtualidades, mas também os seus limites, já que há
uma tentativa de realizar uma foraclusão do engano. Esta é uma questão que
aponta para o impossível, para a incompletude. É uma mirada necessária para a
realização da interpretação.
“Tal como para a humanidade em geral, também para o indivíduo a vida é
dura de suportar. O homem sofre privações, a natureza indomada pode lhes
ameaçar, isso gera um estado de ansiosa expectativa e um grave prejuízo ao
narcisismo. A auto-estima ameaçada exige consolação e cria ilusões” (Freud, Futuro
de uma ilusão, 1927, p. 27). Buscando realizar as suas potencialidades, o homem
busca abrigo organizando-se na polis, com suas instituições, leis, constituições e
distintos modos de gerir a coisa pública.
A história mostra que “o desamparo da raça humana não pode ser
remediado.” (ibid, p. 27). Freud, entretanto, tinha uma esperança: substituir, tal
como em um tratamento analítico, os efeitos da repressão pelos resultados da
operação racional do intelecto, acreditando que “tal remodelamento não se deterá
na renuncia à transfiguração solene dos preceitos culturais, mas sua revisão
resultará que muitos deles sejam eliminados.” (ibid, p. 58).
Podemos questionar o termo remodelamento, pois gera uma falsa ideia
educativa. Todavia, ele aponta para a política da psicanálise, a falta-a-ser, quando
Freud diz que o homem terá que admitir não ser mais o centro da criação, objeto de
terno cuidado por parte de uma Providência beneficente. Sugere, então, que o
homem abandone o conforto da casa paterna e supere o infantilismo.
No entanto, é preciso que o sujeito queira abandonar certas “seguranças”,
como as ilusões e o infantilismo. O limite da resistência não será simplesmente
individual, pois a “ruptura das ilusões é uma questão da ciência.” (Lacan, Seminário
7, 1959-60, p. 267). Pode-se dizer, ainda, que a ruptura das ilusões também é uma
questão da ciência política, pois há momentos em que o poder político quer tomar a
promessa da felicidade como função do Estado democrático e obrigá-la para todos,
num claro exercício de poder, ainda que haja boas intenções implícitas.
Se por um lado podemos considerar a política como ordem do poder,
enquanto ordem do significante em que o cetro e o falo se confundem (Lacan, A
relação de objeto, 1956-7, p. 195), por outro é preciso analisar a sua dimensão real
ao dizer que “o inconsciente é a política” (Seminário 7, op.cit., p.218.), campo de

  177  
conflito entre a afirmação e a negação, ou seja, oriundo da necessária instauração –
e da negação – do significante Um e da lei paterna. Podemos dar como exemplo o
descrito em Totem e tabu (Freud, 1912–3), ou seja, o assassinato do pai e a
instauração da lei no mesmo evento. Qual a orientação política que a psicanálise
nos oferece diante da ambiguidade?
Com Freud, encontramos a resposta na origem e no seu centro. Em se
tratando da origem, sabemos que a psicanálise nasce do abandono do uso da
sugestão, do poder autoritário do médico, pois é só deste lugar que as
manifestações inconscientes e as interpretações poderão ser escutadas. Por sua
vez, no centro está o vazio, que inaugura as cadeias dos S1, no qual o
inconsciente e a política são efeitos (Checcia, A política do sintoma I, In: Stylus
22, 2011).
Com Lacan, encontramos a orientação: “Tratem de não perder o fio da
meada concernente ao que somos como efeito do saber. Como efeito do saber,
somos cindidos. Na fantasia, ($ a), S barrado, punção, pequeno a ; somos, por
mais estranho que isso pareça, causa de nós mesmos. Só que não existe o si
mesmo. Há, antes, um “si” dividido. Entrar nesse caminho, é dai que pode
decorrer a única verdadeira revolução política.” (Lacan, De um Outro ao outro,
1968-9).
Como demonstrar pela clínica esse tipo de revolução que propõe a
psicanálise? Qual a tese de Lacan (A transferência, 1960-1, p. 12): “No ano passado
– seminário da Ética – quis explicar para vocês a estrutura criacionista do ethos
humana enquanto tal, o ex-nihilo que subsiste em seu cerne e que constitui, para
empregar os termos de Freud, o núcleo de nosso ser. Quis mostrar que esse ethos
toma forma em torno desse ex-nihilo, que subsiste num vazio impenetrável.”
Utilizo-me de um fragmento para mostrar uma resposta possível do analista,
que orientado pela ética e pela política modifica e revoluciona completamente aquilo
que estava sendo dito e faz aparecer outro lado da costura da linguagem. Quando o
CERTO vira FALSO, exemplo de Augusto de Campos: CERTO/ CURTO/ FURTO/
FARTO/ FALTO/ FALSO (Gerbase, A hipótese lacaniana, 2011, p.50).
Alguém que trabalha para o Serviço Público e que está no início de uma
análise, queixava-se numa sessão de como as pessoas são PODADAS na
Instituição e o quanto isso impossibilita a execução de qualquer trabalho
interessante. Marcada a palavra podada em tom exclamativo e interrogativo (?!), –
significante sozinho é sempre um enigma, em falta de uma interpretação –, a
analista propicia uma “revolução”: uma nova sequência de fala, um significante
outro, que surge após breve silêncio:
“Isso me lembra as podas que a minha mãe fazia no interior no jardim da
nossa casa. Realmente o jardim ficava devastado. Não se imaginava que podia
surgir algo dali. Mas, eis que de repente as plantas ganhavam força e cresciam
muito mais fortes” (pausa)... Interessante... (nova pausa).
Verificamos acima que após a marcação de um único significante, por que
seu tom saltava na cadeia, a analista faz uma intervenção, que como enigma a ser
desvendado, provocou a abertura para a multiplicidade de sentidos. Desta vez, o

  178  
significante, PODADA, transformou-se em PODAR e PODA e teve como provocar
uma virada, fazer surgir novas ramificações em terreno onde existia a certeza do
mesmo. Saiu-se no discurso do “poder-cristalizado-para-sempre” de um adjetivo (as
pessoas SÃO...), para a fumaça-possível de um verbo (as pessoas ESTÃO...),
dando abertura para criação, advinda da própria estrutura criacionista do
significante.
Enigma que levou à produção de mais sentido e, a partir desta, a mais uma
intervenção concisa do analista no estilo citação: “As pessoas são podadas... um
adjetivo... no seu trabalho..., podar, podada... (Nova pausa) – Analisando retoma:
“Realmente a poda, o verbo, o corte pode fazer alterações importantes, mas isso
depende do momento certo, do tempo e da mão do podador.” Dito que, para esse
analisando em início da análise, implicava um dizer, uma implicação na queixa, uma
‘demanda a ser interpretada’”.
Mais uma intervenção, desta vez, com a tesoura: a analista faz uma “poda”,
ou seja, faz o corte da sessão – tática da interpretação em sua dimensão
fundamental de corte –, apostando que este coordenador possa abrir novas
possibilidades no seu campo semântico e profissional, a uma abertura para a
multiplicidade de sentido, pois “não se pode dizer que não intervenhamos nunca no
campo de virtude alguma. Desobstruímos as vias e caminhos e lá esperamos que
aquilo que se chama virtude florescerá.”
Ética possível, orientada por uma política singular: a do discurso
inconsciente, que também faz laço, e que, de equívocos em equívocos, de sentidos
em sentidos, alcança-se, ao final de percurso, após muitas desconstruções, o último
significante fora do sentido. Certamente, saber se “saber se virar com” o sem
sentido do sintoma, o sem sentido da alíngua, – saber experimentar esse saber,
sem pedir que ele se explique, sem prestar atenção nele, deixando o inconsciente
interpretar sem demandar interpretações, sem esperar o saber no Outro – tem o seu
poder.

  179  
PARA ALÉM DO FIM DO TORO NEURÓTICO: UMA INVENÇÃO NO
FINAL DA ANÁLISE

Beatriz Oliveira

Quero apresentar a vocês o que me parece ser produto do que nos


propomos a fazer nos espaços de transmissão da psicanálise, no FCL-SP: uma
série. Uma série de repetições, não do mesmo, mas repetição de traços que se
diferenciam e ao mesmo tempo marcam, singularizam, na via do estilo de cada um.
Esse escrito é conseqüência dessa série.
Após um ano acompanhando os enigmas do Aturdito (72) e dois meses
decifrando a Lettre aos Italianos (de 74 e não de 73), apresento aqui uma
articulação que me pareceu interessante. Embora sejam textos cronologicamente
muito próximos, entendo que em 74 Lacan apresenta mais alguns elementos que
permitem avançar em sua formalização a respeito do final de análise. Assim,
enquanto em 72, Lacan já nos aponta que é necessário atravessar o luto pela queda
do analista deste lugar de objeto a, sustentado pela transferência ao longo de uma
análise, em 74 ele nos indicará que, no final, há um saber que “ainda nem foi para o
forno” e que é preciso “inventá-lo”. Este trabalho pretende destacar a “invenção”
como resposta do que cada um fez para “sair de sua neurose”.
Ao falar do final da análise do toro neurótico no texto O Aturdito, Lacan
retoma a mesma tese proposta em 64, no final do Seminário 11: a destituição
subjetiva com a queda do analista deste lugar de SSS e a necessidade do luto por
essa perda. No entanto, me parece que o que ele dirá em seguida a esta retomada,
é fundamental para o salto que apresenta neste texto a respeito do final de análise .
Ele dirá:
“Resta o estável de pôr-se no plano do falo, isto é, da banda, onde a análise
encontra seu fim, aquele que garante seu sujeito suposto DO saber.”(Lacan, 1972,
p.489)
Ora, o que isso poderia querer dizer? Não se trata de sujeito suposto saber,
mas suposto DO saber. Em Finais de Análise, C. Soler já nos indica que ao final,
resta o saber assegurado. Resta um sujeito seguro do saber. Ele já não se assegura
do fantasma, mas sim do saber. Ora, de que saber se trata? É pelo saber (como diz
Soler no comentário anterior) que algo pára de se escrever. Diz o Fierens: “Graças
ao percurso da cura, o sujeito suposto dá agora lugar ao saber o qual dá a certeza
do sujeito suposto, o qual se situa nas três dimensões do impossível”.
Em seu texto De que modo o real comanda a verdade (Stylus, 19, p. 17), C.
Soler nos dirá que “há um “saber sem sujeito”, o qual inscreve um impossível e há o
sujeito representado por um S1 junto ao saber que deciframos”. Ela remete a Lacan:
“alíngua articula coisas que vão muito mais longe que aquilo que o ser falante
sustenta como saber enunciado”, é “o lugar de um saber que ultrapassa o sujeito.. E

  180  
ela conclui: “Existem, portanto, dois saberes: o saber decifrado, que pode se
constituir como linguagem; e o saber falado de alíngua, que não é linguagem” (p.19)
Essa distinção me parece importante para acompanharmos a introdução que
Lacan faz das dimensões do impossível no texto de 72.
Ele dirá: “ uma demanda pode se repetir por ser enumerável, o que equivale
a dizer que ela só se emparelha com a volta dupla em que se funda a banda ao se
colocar a partir do transfinito.// De todo modo a banda só pode se constituir se as
voltas da demanda forem em número ímpar.// Como o transfinito continua exigível,
pelo fato de nada se contar aí se o corte não se fechar, é intimado a SER ÍMPAR.//
É isso que acrescenta uma diz-mensão à topologia de nossa prática do dizer.” Ou
seja, é o transfinito ímpar que acrescenta uma diz-mensão à topologia de nossa
prática do dizer.
Só para lembrá-los, vejam o que Lacan disse no texto, na p. 463: “Até aqui,
seguimos Freud, e nada mais, no que se enuncia da função sexual por um
paratodo, mas igualmente ficando numa metade, das duas que por sua vez ele
discerne, a partir do mesmo côvado (medida de comprimento usado em civilizações
antigas), por lhe remeter às mesmas diz-mensões”. Ou seja, se ficássemos no
paratodo homem freudiano de um saber que se decifra, não se acrescentaria outra
diz-mensão à prática do dizer.
Ora, me parece que não haveria como introduzir uma outra diz-mensão
nessa prática do dizer, se nos mantivéssemos na série transfinita biunívoca,
portanto enumerável. Entendo que aí encontramos um saber decifrável, tal como
falávamos anteriormente. A questão é que não há só o conjunto dos enumeráveis,
Aleph zero, mas o C, o cardinal do contínuo, que não se pode contar, mas se divide
ao infinito. Justamente, aquele que não faz correspondência biunívoca, por isso
ímpar. Lacan dirá: “o transfinito ímpar da demanda resolve-se pela volta dupla da
interpretação”. Só consigo entender da seguinte maneira: a volta dupla da
interpretação faz o conjunto se fechar separando aquele que é ímpar (o objeto a,
causa do desejo, do conjunto cuja série foi contável, de onde se depreende S1).
Ora, é a exigência de um transfinito ímpar, que não faz par, que permite que
uma psicanálise se feche:
Esse dizer que convoco à ex-sistência, esse dizer que não se deve esquecer
do dito primário, é com ele que a psicanálise pode pretender se fechar. (p.490)
Lacan continua: A psicanálise, por sua vez, só acessa a isso pela entrada em
jogo de uma Outra diz-mensão, o objeto pelo qual se (a)nima o corte que com isso
ela permite: o objeto (a).
Ou seja, Lacan aqui insiste que é necessário uma outra diz-mensão para que
um corte verdadeiro aconteça, para que uma psicanálise se feche. Caso contrário,
não se sai do toro neurótico. Essa outra diz-mensão é o objeto (a), representado
pelo analista, ao longo da análise. Esse ímpar que não faz par com o Outro, o
analista situa-o por seu semblante (discurso do psicanalista).
Como então pensar a questão do saber tal como estávamos tratando no
início do texto? É a partir dos anos 70, com as fórmulas da sexuação e a introdução
dos modos lógicos possível, necessário, impossível e contingente que Lacan

  181  
sustenta a formalização apresentada em O Aturdito, qual seja, a ex-sistência do
dizer a partir dos ditos em uma análise. Assim, estou acompanhando que esta
relação entre dizer e dito só pode ser pensada a partir desta outra diz-mensão, a
qual Lacan sustenta como impossível. Nesse sentido, entendo também a proposta
de um saber que se decifra, através dos ditos de uma análise e um saber que se
situa a partir das dimensões do impossível, o qual não se decifra, mas de que se
goza ao final de uma análise.
Lacan destaca três diz-mensões do impossível que se desdobram no “sexo,
no sentido e na significação”: não há relação sexual; para que uma série se
constitua é necessário uma exceção fora do conjunto; e não há uma última
significação que venha significar S (A barrado).
“Que o sentido e a significação sejam dimensões do impossível, como o é o
sexo, entendemos por seus laços com o Real, o que quer dizer que faltará algo
neles em relação a si mesmos e aos outros. // Se trata assim de chegar a entender
a possibilidade de emergência da INVENÇÃO, em um mundo no qual a repetição
molda o caminho inicial”(Feinsilber, p.32)
Feinsilber, neste comentário, abre justamente para o ponto ao que quero
chegar neste trabalho: a invenção no final da análise. Ainda em 72, Lacan é muito
claro em relação ao perigo de se fiar no meio-dizer da volta simples. Ele indica que
há uma questão ética em jogo no final para que se leve a análise mais além desse
lugar agalmático do outro que pode nos ofuscar. Uma análise que não leva ao
tempo do luto, do de-ser, mas que fica tomado pelo parecer que o SSS produz pela
via da “boa lógica” que faz “entender” o impossível, não se fecha pelo transfinito
ímpar que a dupla volta permite.
Como então pensar a questão da invenção tal como Lacan nos apresenta no
texto Lettre aos italianos? Antes de continuar, gostaria de fazer um comentário a
respeito da escolha de nomear este texto como Lettre e não “Nota”, como foi
estabelecido e encontramos nos Outros Escritos. Como sabem, Lettre implica não
só a possibilidade de se pensar em carta (fazendo alusão à carta roubada) tanto
quanto à letra. E aqui, volto (já citei em outros textos) a citar um comentário de
Lacan do Sem XVIII para vocês verem a importância dessa escolha:
“Trata-se, expressamente, de estudar a lettre como tal, na medida em que ela
tem, como eu disse, um efeito feminizante. É com isso que abro meus Escritos.
Essa carta, como voltei a sublinhar da última vez, funciona, muito especificamente,
por ninguém saber nada sobre seu conteúdo, e porque, até o fim, ninguém saberá
nada dele”(LACAN, 1971, p.121)
A escolha de lettre me parece fundamental inclusive para sustentar o que
queremos neste trabalho, qual seja, a importância de se pensar em um saber novo,
uma invenção absolutamente singular no final da análise, da qual se goza, mas a
qual não se decifra na série dos uns que se precipitam em uma análise. Trata-se
mais de um saber fazer com isso com o qual o sujeito só se depara a partir deste
efeito feminizante aberto pela diz-mensão do impossível.
Vamos à questão da invenção.

  182  
No texto de 74. Lacan dirá : “O saber em jogo(...) trata-se de que não existe
relação sexual, relação aqui, quero dizer, que possa pôr-se em escrita.// A verdade
não serve para nada senão criar o lugar onde se denuncia este saber. Mas esse
saber não é pouco. Pois o que se trata é de que, acessando o real, ele o determina.
Naturalmente esse saber ainda nem foi para o forno. Porque é preciso inventá-lo”
(p.315)
A questão que se coloca neste momento é justamente a passagem deste
saber enumerável construído em análise, para aquilo que já não é mais decifrável e
que se situa no campo do gozo. Falar em passagem aqui é apenas um recurso
retórico para este escrito, pois não entendo que passamos de um lado a outro como
se enquanto estivéssemos em um campo, o outro neste momento estaria excluído.
Pelo contrário, desde o início os campos estão enodados, assim como os dois lados
do quadro da sexuação também formalizam uma estrutura que está dada de saída
para o sujeito neurótico. Essa me parece ser a possibilidade de se pensar o dizer e
o dito ao mesmo tempo. É dessa forma que entendo o seguinte comentário de
Lacan em O Aturdito:
“Esse dizer provém apenas do fato de que o inconsciente, por ser estruturado
como uma linguagem, isto é, como a lalíngua que ele habita, está sujeito à
equivocidade pela qual cada uma delas se distingue.”(492)
Ou seja, é só por haver equivocidade entre linguagem e lalíngua que um
dizer provém. Nesse sentido, não se separa linguagem e lalíngua como campos
excludentes, mas, pelo contrário, um não vai sem o outro. Assim, um dizer se
sustenta a partir do impossível e corta na fala do analisante aquilo que se lê em
seus ditos: as homofonias, equívocos, “efeitos de língua” que permitem uma escrita.
Assim é que podemos abrir aqui para se pensar este novo saber, que deve
ser inventado, como conseqüência de um percurso que oferece as condições de
possibilidade para um efeito feminizante. Estou entendendo o efeito feminizante
como aquilo que permite o sujeito se posicionar num modo de gozo não-todo fálico,
a patir do qual algo cessa de não se escrever. Esse efeito feminizante, contingente,
me parece ser aquilo que Lacan pôde nomear como LETTRE, não mais como carta,
mas sim como letra, borda no furo do saber, litoral entre saber e gozo.
Assim Lacan (1971) dirá:
“Entre centro e ausência, entre saber e gozo, há litoral que só vira literal
quando, essa virada, vocês podem tomá-la, a mesma, a todo instante. É somente a
partir daí que podem tomar-se pelo agente que a sustenta”.(p.21,22)
Tomar-se como agente que sustenta essa borda entre saber e gozo, tornar-
se analista, é a única condição de possibilidade de conduzir uma análise até o fim.
Mas o saber sobre o que faz de um analisante um analista, aquele que ocupa esse
lugar que sustenta essa lettre, isso é o que se inventa, um a um.
Como diz D. Rabinovich:
“O próprio da invenção é que nunca se inventa um saber todo, se inventa a
partir da falta de fechamento do saber inconsciente como real. // Esse saber que
são pedaços de saber, fragmentos de saber, a esse saber só resta inventar. Como?

  183  
Inventar sob a forma do bem-dizer, do um por um que cabe ao analista enfrentar a
cada vez.” (p.165,166)
Ora, é só a partir disso que se escreve em uma análise, que um analisante
pode aprender a ler sua própria língua e com isso inventar um outro modo de saber
fazer, ou, bem dizer com ela.
(Ao final, ler o Manuel de Barros)

Referências Bibliográficas
LACAN (1971) – Seminário XVIII – De um discurso que não seria do
semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
LACAN (1971) – Lituraterra. In: Outros Escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003
LACAN (1972) – Seminário XX – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.
LACAN (1972) – O Aturdito. In: Outros Escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003
LACAN (1974) - Nota Italiana. In: Outros Escritos.Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2003
- Fainsilber,E. Hacia el sonsentido del analista. In: L’Étourdit. La lectura como
política. Colección Convergencia Psicoanálisis. Buenos Aires: Letra Viva, 2008.
- Fierens, C. – Lecture de L’Étourdit. Lacan 1972. Collection Études
psychanalytiques. Paris: L’Harmattan, 2010.
- Rabinovich,D. –O desejo do psicanalista – liberdade e determinação em
psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000.
- Soler C. – Finales de analisis. Buenos Aires: Mantial,2007.
-Soler, C. – De que modo o real comanda a verdade. In: STYLUS: revista de
psicanálise, n.19, outubro 2009.
ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O AME, EM NOSSA ESCOLA, SEGUNDO A
PROPOSTA DE LACAN EM 1967-1968

Sandra Berta

Neste texto, realizamos um comentário sobre o lugar e a função do AME em


nossa Escola, com base leitura nas duas versões da Proposição de 9 de outubro de
1967. Retomamos, após essa leitura, algumas considerações oriundas do debate
atual na Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano.
Existem duas versões da Proposição. A primeira foi apresentada na Escola
Freudiana de Paris em outubro de 1967 e publicada em 1978 na revista Analytica, e
em 2003 nos Outros Escritos (LACAN, 1967a/2003, pp. 570-586). A segunda versão
foi publicada em Scilicet, número 1, no primeiro trimestre de 1968, sendo a reedição
da primeira versão apresentada (LACAN, 1967b/2003, pp. 248-264).

  184  
De saída, nos perguntamos pelo intervalo de tempo existente entre ambas as
versões da Proposição e pela produção de Lacan nesse intervalo. Pudemos conferir
imediatamente que tínhamos entre ambas as versões um lapso de tempo de seis
meses. Nesse intervalo, houve uma vasta produção de textos, cartas e entrevistas
de Jacques Lacan, que não podemos obviar para analisarmos as diferenças entre
ambas as versões, no que diz respeito à função e lugar do AME na Escola.
Em 9 de outubro de 1967, Lacan escreve outro texto, que foi publicado na
revista Ornicar no 37, intitulado Une procédure pour la passe (LACAN, 1967c), no
qual ele se refere ao AME.
Após os membros da Escola debaterem a Proposição em novembro de 1967,
Lacan redige um texto em resposta a essa segunda reunião e para ser apresentado
na terceira reunião, que consta nos Outros Escritos com o título Discurso na Escola
Freudiana de Paris (LACAN, 1967d/2003, 265-287), datado de 6 de dezembro de
1967. Desse escrito temos uma primeira versão, que é a transcrição realizada pelo
Dra. Solange Faladé, sobre o que Lacan teria pronunciado naquela reunião, apoiado
no seu Seminário, recentemente iniciado, sobre O ato psicanalítico (LACAN, 1967-
1968). Essa transcrição tem como título Reponse aux avis manifestes sur la
proposition (LACAN, 1967e).
Em 14 de dezembro de 1967, no momento em que se encontra em Nápoles,
na Itália, está datado o texto O engano do sujeito suposto saber (LACAN,
1967f/2003, pp. 329-340).
Em 15 de dezembro de 1967, em Roma, é datado o texto A Psicanálise,
Razão de um fracasso (LACAN, 1967g/2003, pp. 341-349).
Em 18 de dezembro de 1967, no Instituto Francês de Milão, Lacan realiza
uma conferência com base no texto escrito Da psicanálise em suas relações com a
realidade (LACAN, 1967h/2003, pp. 351-358).
Em janeiro de 1968, encontramos a Introdução de Scilicet no título da revista
da Escola Freudiana de Paris (LACAN, 1968a/2003, pp. 288-298).
Em janeiro de 1968, também foi escrito Notas sobre o Número de L’Arc,
consagrado a Freud, publicado em In Scilicet no 1, p. 192, Seuil, Paris, 1968
(LACAN, 1968b/2003, p. 586).
Em 1o de fevereiro de 1968, escreve a Carta aos AE e AME (LACAN, 1968c).
Em 16 de março de 1968, Entrevista dada ao Jornal Le Monde (LACAN,
1968d), Lacan comenta o nascimento de Scilicet.
Como podemos observar, trata-se de uma produção referida à Escola que
tinha sido fundada em 1964, à luz dos debates promovidos no cerne dessa Escola,
nesses quatro anos (1964-1968). Como escreve Lacan : “[...] a Escola não é apenas
no destino de distribuir um ensino, mas de instaurar entre seus membros uma
comunidade de experiência cujo cerne é dado pela experiência dos praticantes”
(LACAN, 1967a/2003, p. 571).
A intervenção de Lacan, tomada ao longo do seu trabalho, apontara a
problemática da formação do analista deslocando a questão dos didatas às
didáticas. Dito de outro modo: da produção dos analistas indicados pelos didatas
para a formação do analista. É nesse sentido que podemos acompanhar a

  185  
afirmação de Lacan: “o analista só se autoriza de se mesmo”. Ao que se acrescenta:
“Isso não exclui que um psicanalista depende de sua formação”. As análises
didáticas não garantem “O Psicanalista”. Completar uma análise didática não é
garantia da “função” analista. A análise deve ser lida com base no que Lacan já
coloca em 1967 “Há do psicanalista” (Il y a du...). Vejamos que a afirmação de “Há
do” e a afirmação do inconsciente como saber sem sujeito são contemporâneas à
Proposição. Se a psicanálise pode ser didática, não o será pelo didata, antes pela
formação. Dizer da função, em 1967, nos aproxima das articulações de função
propostas por Frege, que possibilitou a generalização do conceito de função para
objetos não numéricos. A notação para representar o valor de uma função é
formada pelo nome da função, seguido pelo do argumento. Portanto, se f é uma
função e x está no domínio de f , a expressão f(x) denota o valor de f para o
argumento x, isto é: qual é o valor do argumento x para essa função?
A falta estrutural de poder considerar o psicanalista como predicado, ou
mesmo como atributo, parece a Lacan ser a condição de pronunciar “Há do
psicanalista”, o que possibilitaria, também, medir o ato pelas suas consequências.
Fundamental condição para o que seja da ordem de uma nomeação AE, no
dispositivo do passe. Citemos o que Lacan afirma em Discurso na Escola Freudiana
de Paris: “É nesse sentido que o atributo do não-psicanalista é o garante da
psicanálise, e que de fato desejo não-analistas, que pelo menos se distingam dos
psicanalistas de agora, daqueles que pagam pelo seu status de analistas com o
esquecimento do ato que e os funda” (LACAN, 1967d/2003, p. 277). Esse ato que
os funda é o ato psicanalítico do qual se extrai que o psicanalista não é predicável.
É fundamentado nessa escola que Lacan propõe o gradus: AME e AE. Fazer
do AME uma função que indique o gradus e não hierarquia: eis a aposta forte para a
Escola. Posteriormente, em 1973, Lacan apostara num funcionamento de gradus
quase exclusivo dos AE, mas em 1967, a aposta era essa, qual seja: fazer sustentar
na hiância, na borda real, o AME e o AE.
Essa proposição, levada ao extremo, nos coloca a questão de saber se há
psicanálise sem psicanalista. Dito de outro modo: caso não tenhamos psicanalista,
não teremos psicanálise. O didata não é quem nomeia o psicanalista. O psicanalista
se vincula à prova. Por essa razão, Lacan dirá “A Escola ou a Prova (Epreuve)”.
Nessa empreitada localizamos, seja o passador, seja o AME, seja o Cartel, e, como
produto do dispositivo, a nomeação AE. Vejamos como o diz Lacan em 1967: “Com
o que chamei o fim da partida (análise) nos encontramos – enfim – no coração da
fala dessa noite. A terminação da Psicanálise chamada redundantemente de
didática é a passagem, com efeito, do psicanalisando a psicanalista” (LACAN,
1967b/2003, p. 257). Ele assinala que a hierarquia nas Sociedades Psicanalíticas
promoveu a pane na qual se encontrava a psicanálise, em 1967.
Ao propor a diferenciação entre gradus e hierarquia, Lacan indica que o
gradus não pode ser entendido sem o real em jogo que comporta a experiência de
uma psicanálise. Desse modo, propõe o gradus como operador do dispositivo do
Passe, fundamentado no mal-estar e no real da experiência. Ele não nega a
hierarquia, mas a formação do analista, numa Escola, não poderia depender desta.

  186  
Podemos contemplar que nessa nova proposta, nos novos dispositivos
institucionais, apostava-se na formação do analista e nos princípios da sua ética e
sua política: “O fato não é menos patente – e para nós concebível – que este real
provoque seu próprio desconhecimento, e até mesmo produza sua negação
sistemática” (LACAN, 1967b/2003, p. 249). Com base nessa proposta formulam-se
os órgãos de garantia da Escola, no que refere à nomeação dos AMEs e dos AEs:
“Nossos pontos de junção, onde devem funcionar nossos órgãos de garantia, são
conhecidos: são o começo e o fim da psicanálise, como no xadrez. Por sorte são
eles os mais exemplares por sua estrutura. Essa sorte deve provir do que
chamamos de encontro” (LACAN, 1967b/2003, p. 252).
Na primeira versão, Lacan afirma que a Escola pode garantir a relação do
analista com a formação que ela dispensa. Se a Escola é aquilo que garante que
um psicanalista depende de sua formação, o analista pode querer essa garantia de
modo a tornar-se responsável pelo progresso da Escola e a tornar-se psicanalista
da sua própria experiência. “A Escola pode ser testemunha de que o psicanalista,
nessa iniciativa, traz uma garantia suficiente de formação” (LACAN, 1967a/2003, p.
570). Ora, o que é que testemunha a Escola, a não ser essa passagem de
psicanalisante a psicanalista, a qual Lacan nos indica na imagem da porta cuja
dobradiça é o resto que constitui a divisão entre eles? Porque “esta divisão não é
outra senão a do sujeito, da qual esse resto é causa” (LACAN, 1967b/2003, p. 259).
A reviravolta em que deflagra a verdade mentirosa do fantasma, e na qual o
sujeito “vê soçobrar a segurança extraída da fantasia constitui, para cada um, sua
janela para o real; o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão
a de um des-ser” (LACAN, 1967b/2003, p. 259). Poucos meses depois de outubro
de 1967, o desejo do analista aponta para o real do ato. O analista depende de seu
ato, “balizando-se pelo falacioso daquilo que o satisfaz, assegurando-se através
dele, de não ser aquilo que ali se acostuma” (LACAN, 1967d/2003, p. 277).
Não conseguirmos avançar sem antes comentar o que traz a primeira versão
da Proposição sobre o lugar do AME. Lacan propõe a seguinte estrutura:
Um júri de acolhida escolhido pela Diretoria e encarregado de acolher
os membros de Escola, sem limitação de seus títulos ou de sua
proveniência. Trata-se dos AP (analistas praticantes);
Um júri de aprovação composto por 7 membros: 3 AEs e 3
psicanalisantes retirados de uma lista apresentada pelos AEs. Os AEs
e os APs seriam escolhidos por sorteio de cada lista. Caso se
apresente um postulante a AE, ele terá de lidar com os 3
psicanalisantes, sendo esses os que apresentariam um relatório ao júri
de aprovação. O júri de aprovação teria que trabalhar sobre os critérios
do fim da análise didática. Sua renovação, pelo mesmo processo de
sorteio seria feita a cada 6 meses, até obter resultados suficientes para
ser publicáveis.

  187  
O AME será escolhido pela qualificação que funde essas duas qualidades,
sem ter que apresentar uma candidatura a esse título, pela totalidade do júri de
aprovação, que tomará essa iniciativa com base no critério de seus trabalhos e de
seu estilo de prática. “Um analista praticante, não qualificado AME, passará por
esse estágio, caso um de seus psicanalisantes seja aceito na categoria de AE
(LACAN, 1967/2003, p. 585).
É evidente que AME e AE ficam, a partir daí, comprometidos na sua relação.
É possível que um AP seja nomeado AME porque um psicanalisante, oriundo da
sua clínica, fez a prova da Escola. Por tanto, fez a passagem de psicanalisante a
psicanalista. É curioso verificar que se somam: a não predicação do analista e a
causalidade. Entendemos que se Lacan já tinha afirmado que a causa que interessa
à psicanálise é a causa eficiente (potência e ato), trata-se dessa causalidade em
questão quando afirma as diferentes “afetações” entre AE, AME e AP. Isso se
verifica com a proposta do grafo à qual se refere para dizer da função e do lugar
desses. Não estamos numa relação de causa-efeito, menos ainda de transitivismo;
estamos numa relação de causas e consequências. Ou, melhor dito, de
consequências que verificam nachtraglich, uma causa em questão, na psicanálise e
na Escola.
Assim entendo como podemos ler a proposta do grafo do desejo, articulado à
Escola. Lacan, usando o grafo do desejo como referência – referência essa que lhe
permitiu pensar a travessia da fantasia, a consistência do agalma, e sua pergunta
que mantém desde 1964 a respeito de como viver a pulsão, após o final – localiza
os seguintes lugares:
[S( )]: AE
[ D]: psicanalisantes do júri de aprovação
[s(A)]: AME
[A]: psicanalisantes em geral

Lembremos a escrita do grafo:

  188  
Lacan aponta que, no grafo, a direção das setas mostra a ruptura e não a
supressão da hierarquia. Ele acrescenta que a demonstração ficará por conta da
experiência a ser recolhida.
Na segunda versão da Proposição consta que o AME se constitui pelo fato de
“a Escola o reconhecer como psicanalista que comprovou sua capacidade. É isso
que constitui a garantia proveniente da Escola, destacada desde o começo. Sua
iniciativa compete à Escola, na qual é admitido com base em um projeto de
Trabalho e sem consideração para com a proveniência nem para as qualificações”
(LACAN, 1967b/2003, p. 249). Desde já, apontamos que a “capacidade” não nos
parece ser uma “aptidão”.
Notadamente, em 1967 o AME está no lugar do sintoma, em contraposição à
alteridade indicada para o AE. Sintoma como significado que retorna do Outro, qual
uma mensagem invertida. Sintoma que se interpõe entre o fading do sujeito e a
prova pela castração que se localiza nesse momento como “[-φ]”, articulando as
versões do objeto a: [ a]. Trata-se da escrita do fantasma que antecede –
logicamente – no grafo à escrita do sintoma. Essa prova pela castração é
concomitante da queda do Sujeito suposto Saber e da destituição subjetiva. Lacan
logo se preocupa com os enunciados que passarão no dispositivo sobre esse des-
ser, no que refere à destituição subjetiva. Lembremos, ainda, que o sintoma nessa
época se define como aquilo que, na sua função, é índice do saber: ele é questão
de saber (LACAN, 5.5.1965, inédito). Ainda: o sintoma é aquilo que vai no sentido
do reconhecimento do desejo inconsciente. Entendemos que todas essas
afirmações podem convir ao lugar do AME com relação ao sintoma, mas também à
função.
Segundo Maria Anita Carneiro Ribeiro:

A garantia funciona para o gradus, que depende de uma


nomeação. Os Analistas Membros da Escola (AME) são
chistosamente chamados por Lacan de âme, as almas da
Escola. Na sua primeira versão da “Proposição de 9 de
outubro” ele os coloca no lugar do sintoma no grafo do desejo.
Os AME são o sintoma de uma Escola porque são a resposta
que a Escola dá ao Outro social que interroga: “Afinal, quem
são os analistas desta Escola?” A resposta vem na nomeação
dos AME: “Estes são os analistas garantidos por esta Escola”.
Já a garantia do Analista da Escola (AE) corresponde,
segundo Lacan, ao significante da falta no Outro S ( ). Sua
nomeação não provém de uma questão que chega do socius:
ela responde à questão interna da Escola no que diz respeito à
pulsão (RIBEIRO, 2000, p. 85).

De fato, Lacan avança sustentando esse chiste. Porém, os AMEs estão em


relação ao saber e à verdade. Indiquemos que, nesse lugar ocupado pelo sentido do
sintoma há o que faz furo, e que se coloca em relação com o S ( ). A relação do

  189  
AME com o AE é o compromisso que eles têm no momento da indicação do
passador. Isso ainda está em causa em nossa Escola. Isso foi motivo dos debates
do III Encontro de Escola. É fato que Lacan dirá na Nota italiana: “O analista só se
autoriza de si mesmo, isso é óbvio. Pouco lhe importa uma garantia que minha
Escola lhe dê, provavelmene sobre a irônica sigla AME. Não é com isso que ele
opera” (LACAN, 1973/2003, p. 311, itálica do autor). Entretanto, entendemos que
essa advertência é oriunda dos impasses, mas que não nega o lugar e a função. O
analista não opera com nenhuma garantia. O sintoma tem uma função, não se trata
de extirpá-lo, mas de fazê-lo operar aí onde é o seu lugar.
Qualquer um está em perigo de se autorritualizar. Não há garantia: vale para
o AME, vale para o AE, vale também para todos os lugares da hierarquia quando se
trata de uma Escola.
Entendemos que estamos atravessando um franco debate sobre os impasses
na Escola, ou dito de outro modo, sobre os impasses no Passe.
Citemos Dominique Fingermann:

O que faz, portanto, um passador. O que é que faz com que


como AME nos distingamos um momento de seu tratamento
como um momento de passe? Qual é a experiência daquele
momento, que qualifica sua “sensibilidade” e nos faz apostar
no bom ouvido do passante, e seu discernimento dos efeitos
de sua passagem ao ato? [...] O passador, se ele estiver no
passe, precisa ter uma experiência da análise que não seja
simplesmente a do analisante e de sua neurose de
transferência. Indicamos, portanto, os passadores para o
dispositivo do passe quando distinguimos que um analisante
tem, a partir da experiência da análise, sensibilidade suficiente,
ou seja, ouvidos para ter a “ouvidoria”, (entendement) do
passe do passante. Isto é, que nós lhe supomos a ética
daquele que tem o entendimento do não acesso ao real, a
escuta das repercussões poéticas do trou-matismo, a lógica
das “passagens” que permitem essa conclusão
(FINGERMANN, 2011, p. 15).

Também é Carmen Gallano quem nos adverte as relações do saber e da


verdade, no que refere ao AME. Citemos:

Lacan, em sua nota sobre “A eleição dos passadores” (1974),


coloca que uma coisa é dar testemunho “dos primeiros passos
na função do analista” – e que isso não é “indigno” do
passante, mesmo como “funcionário do discurso analítico”,
como mais frequentemente é o caso – e outra coisa é como
um analisante “torna-se um passador”. Pois “qualquer um não
poderia interrogar sobre isso a outro, mesmo quando ele

  190  
mesmo está tomado nisso”. E a esse respeito articula a
dimensão da verdade com o desejo de saber (GALLANO,
2011, p. 44).

O gradus está vinculado ao mal-estar nas instituições e ao real da


experiência. Isso se recolhe da Proposição. O fato de Lacan não retomar o grafo do
desejo na segunda versão poderia ser considerado à luz do seminário que profere
nesse ano sobre o Ato Psicanalítico. Temos que considerar que no Discurso na EFP
ele refere-se quase exclusivamente ao ato. Esse Discurso foi proferido em 6 de
dezembro de 1967. Entre uma e outra versão, Lacan afirma que:

A Proposição foi seu ato e que dependerá das suas consequências;


O impróprio não é que alguém se atribua superioridade, ou até a sublime
escuta, nem que o grupo se garanta com base nas margens terapêuticas,
mas que a enfatuação e a prudência façam as vezes de organização;
Que a Escola tem a ver com o que fundamenta o ato psicanalítico, uma
vez que nela o psicanalista deve dispor de sua relação com o ato;
Que uma topologia que vincula intensão e extensão, por meio da figura do
oito interior há de ser pensada, quando se tratar dos órgãos de base de
uma Escola;
Que essa mesma figura topológica há de ser relacionada com o que ele
chamou desejo do psicanalista;
Que um passo a mais se vincula com as coordenadas do Ato, “ato que
poderia ser apreendido no momento em que se produz”. Salientemos aqui
o texto publicado por Colette Soler na Wunsch 11, no qual trabalhará
extensamente essa citação (SOLER, 2011, pp. 3-7).

São essas e outras as colocações que me permitem dizer que, embora Lacan
não traga à tona a referência ao grafo do desejo na função e o lugar do AME, ele
continua a dizer que sua função sintomática pode pôr à prova a Escola.
Citemos, para finalizar, o momento em que propõe: a Escola ou a Prova
[Épreuve]:

Pretendo apontar unicamente na psicanálise como intensão a


iniciativa possível de um modo de acesso do psicanalista a
uma garantia coletiva. Isso não quer dizer que considerar a
psicanálise em extensão – ou seja, os interesses, a pesquisa,
a ideologia que ela cumula – não seja necessário à crítica das
Sociedades, tal como elas sustentam essa garantia fora de
nossa casa, na orientação a ser dada a uma Escola. Hoje me
ocupo apenas da construção de órgãos para um
funcionamento imediato (LACAN, 1967a/2003, p. 582).

  191  
Passaram-se 45 anos. Temos uma Escola que aposta ao gradus, não como
suficiência, mas como compromisso inadiável com a formação. É fato que se na
epígrafe da Proposição, Lacan nos remete ao texto de 1956, Situação da
Psicanálise e formação do psicanalista em 1956 (LACAN, 1956/1998, pp. 461-195),
é para nos alertar desse perigo na Escola, e não simplesmente para diferenciar-se
das suficiências.
Entretanto, perguntemo-nos se o fato de manter no cerne da Escola a
questão do Passe e, consequentemente, do AME, não é uma forma precisa de
implicar a pergunta pelo ato e suas consequências, não tão somente para o
passante, mas também para aquele que indica o passador, isto é: para o AME?

Referências:

FINGERMANN, D. A presença do passador: atualidade da Escola. In: Wunsch 11,


Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano,
2011, p.10-18. Disponível em: Acesso em 5 de abril de 2012.
GALLANO, C. A designação de passadores: uma aposta orientada. In: Wunsch 11,
Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano,
2011, p. 44-46. Disponível em:
http://www.champlacanien.net/public/docu/4/wunsch11. Acesso em 5 de abril de
2012.
LACAN, J. (1965). O Seminário Problemas cruciais da psicanálise, inédito.
LACAN, J. (1967a). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 570-586.
LACAN, J. (1967b). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da
Escola. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 248-264.
LACAN, J. (1967c). Une procédure pour la passe. Disponível em http://www.ecole-
lacanienne.net/pastoutlacan60.php. Acesso em 5 de abril de 2012.
LACAN, J. (1967d). Discurso na Escola Freudiana de Paris. In: Outros Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 265-287.
LACAN, J. (1967e). Reponse aux avis manifestes sur la proposition. Disponível em:
http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan60. Acesso em 5 de abril de 2012.
LACAN, J. (1967f). O engano do sujeito suposto saber. In: Outros Escritos. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 329-340.
LACAN, J. (1967g). A psicanálise. Razão de um fracasso. In: Outros Escritos. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 341-349.
LACAN, J. (1967h). Da psicanálise em suas relações com a realidade. In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 351-358.
LACAN, J. (1968a). Introdução de Scilicet no título da revista da Escola Freudiana
de Paris. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 288-298.
LACAN, J. (1968b). Notas sobre o Número de L’Arc, consagrado a Freud. In: Outros
Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 586.
LACAN, J. (1968c). Carta aos AE e aos AME. Publicada em Analytica no 7, 1978,
pp. 52. Disponível em: http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan60. Acesso

  192  
em 5 de abril de 2012.
LACAN, J. (1968d). Entrevista dada por Lacan ao Jornal Le Monde. Disponível em:
http://www.ecole-lacanienne.net/pastoutlacan60. Acesso em 5 de abril de 2012.
LACAN, J. Nota Italiana. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2003, pp. 311-315.
RIBEIRO, M. A. A cissão de 1998. In: Pulsional Revista de Psicanálise. São Paulo:
2000, ano XIII, n. 137, pp. 83-89.
SOLER, C. O tempo Longo. In: Wunsch 11, Boletim Internacional da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano, 2011, pp. 3-7. Disponível em:
http://www.champlacanien.net/public/docu/4/wunsch11. Acesso em 5 de abril de
2012.

  193  
O OBJETO A, SEPARADOR DOS GOZOS
Sandra Leticia Berta

Junto com as considerações exaustivas dos três registros RSI, no Seminário


de J. Lacan, assim intitulado, encontrei uma frase que gostaria de destacar para
abordar a questão que me propus. A frase diz “[...] no que muito precisamente opera
a psicanálise, é entrar na fineza desses campos de ex-sistência”35 Uma vez que o
tema que nos convoca é O inconsciente e o corpo, o que me propus expor foi um
recorte da clínica para pensar essa fineza dos campos de ex-sistencia, campos de
gozo, e em particular, a ex-sistencia que promove o objeto a, separador dos gozos e
sua relação com o inconsciente real.
No ensino de Lacan o nó borromeano é a última forma de apresentar a
estrutura. Real, Simbólico e Imaginário é a estrutura do parlêtre. RSI, o nó bo, é a
escrita da estrutura que ele nos convida a ler e que serve para transmitir
considerações cruciais da clínica psicanalítica. A trilogia RSI corresponde a uma
outra, a saber: consistência (imaginário), ex-sistência (real) e furo (simbólico).
Embora assim definidas no início do Seminário XXII, podemos ver que, avançado,
troca o “barbante” pelas “cordas”, constatando que cada círculo de cordas define
uma consistência e circunscreve um furo, e uma ex-sistência. Dito de outro modo, a
cada consistência imaginária do nó (o qual significa dizer que a mesma afeta RSI),
lhe corresponde um furo e um campo intermediário que abre para a ex-sistência. Os
gozos que o objeto a condiciona são o litoral da ex-sistência, sem com ele se
confundir. Veremos isso a seguir.
O nó bo é escrita de RSI, portanto, isso que, da linguagem, deixa traço. Dito
de outro modo: um traço onde se lê o efeito da linguagem. Todavia, esse nó RSI
suporta o Real que para o parlêtre deixa traços de letra. Sabemos que as
formulações do inconsciente real são solidárias com as formulações do objeto a,
também no seu estatuto real. Entendo que, por tanto “gastar” o significante, uma
análise pode dar lugar a esse ravinamento do Real, mas para isso se deve contar
com os efeitos que, no significante, produz o corte, efeitos que se enodam ao mais-
de-gozar.
Em 1975 o objeto a, causa de desejo e mais de gozar, é o núcleo ao qual
deve dirigir-se uma psicanálise, esta dependendo somente da ex-sistência do nó bo.
A questão que Lacan se coloca é a seguinte: por que razão o gozo, seja qual for,
supõe um objeto, do qual o mais de gozar é sua condição? Assim agencia
novamente a trilogia dos gozos que comprometem a estrutura: JA36 (gozo do Outro
– “entre” Real – I), JФ (gozo fálico – “entre” Simbólico e Real) e o sentido (“entre”
Imaginário e Simbólico), restando, no centro, o furo que cerne, circunscreve, ajusta,
os gozos, isto é: o objeto a. Esse objeto “conjuga, na ocasião, três superfícies que

                                                                                                               
35
Lacan. O Seminário: RSI (1974-1975 lição de 14 de janeiro).
36
Observação: falta a barra em “A”. O que nos chega da escrita de Lacan no texto A terceira é um
“A” sem barrar, mas sabemos que o Gozo do Outro que faz litoral com o objeto a, é o gozo barrado,
isto é, o fato de não termos complementareidade entre os sexos.

  194  
igualmente se cruzam”.37 Tomo de A Terceira (figura 7) 1 a escrita mínima do nó bo,
na qual se lê a função do objeto a, separador de cada um desses gozos.
Entretanto, um ano antes do Seminário RSI, Lacan interrogava aos não
incautos: do que se precisa ser enganado? Do inconsciente. Avancemos: ser
enganados do nó bo e da sua planificação. A planificação, não sendo projeção,
respeita os cruzamentos. Mas a projeção nos leva ao engano, fazendo-nos tomar as
rodas de barbante como se fossem diagramas de Venn. Assim temos tanto em A
Terceira quanto em RSI um contraponto entre planificação e projeção, na qual
somos enganados do necessário (não cessa de se escrever), isto é, de “nosso real”,
do real da estrutura, entanto que constitui o nó borromeano (Fig. 1).

Figura 138

Lacan afirma que é pelo objeto a que se separa o gozo fálico (JФ) do gozo
imaginário do corpo; o Gozo do Outro (JA) do simbólico; e, o sentido (jouissens,
gozo do sentido, equivocando com jouissance, gozo) do Real. De fato são
enunciados complexos os que se encontram nesses anos sobre o objeto, ao mesmo
tempo, causa de desejo e mais de gozar. Uma pista é quando ele nos diz que todo
gozo está conectado com esse mais-de-gozar, porém a condição radical de ex-
sistencia do objeto a, na escrita de RSI se define como resto impossível de
simbolizar. O que significa esse estatuto separador do objeto a na estrutura RSI?
Para responder, partirei de um recorte clínico. Uma mulher sabe da sua fobia,
mesmo antes de iniciar a análise. Ela nomeia o que diz ser seu medo desse modo:
“ser pega de surpresa”. Isso complica sua vida demais, porque assim como não
pode ficar sozinha, tampouco pode exercer sua profissão, a qual muitas vezes lhe
obriga a falar para outros. Essa mulher passa o primeiro tempo da sua análise a
separar-se minimamente das dependências absurdas que estabeleceu com o
marido, dependências que ela mesma gerou, e nas quais se reconhece perturbada
pelo temor a perdê-lo. Isso lhe paralisa. Todavia, uma vez que trabalha

                                                                                                               
37
Lacan. O Seminário: RSI (1974-1975 lição de 10 de dezembro).
38
Lacan. (1974). La tercera. In: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial, 1993, pp. 73 –
113. Figura 7, p. 104.

  195  
diagnosticando imagens, ela teme, a cada laudo, dar um diagnóstico errado. Sua
fobia apresenta-se associada a efeitos de inibição que provocam uma consistência
imaginária que se revela em frases tais como “estar paralisada”, “ficar muda”, “ser
transparente”. Vivia se escondendo atrás dos exames, até que um dia, cansada,
desanimada por uma crítica que lhe chega de um colega, ela comprova que, apesar
dos esforços, não consegue ficar no anonimato e acrescenta “Estou aí, mas sou
invisível”. A intervenção da analista: “in-visível” e o corte da sessão imediatamente a
seguir, lhe pega no seu lapso. Então, a analisante, paga sua sessão acrescentando
algo que nunca tinha dito antes: “não sei por que não posso ter relações sexuais
quando ele me abraça de costas, isso me dá muita aflição, é como ser pega de
surpresa”.
“Ser pega de surpresa” se articula ao temor que lhe faz dormir sempre
olhando para a porta - nunca dorme de costas –, à sua dificuldade de falar em
público, e, nesse momento, a uma cena que, segundo ela, jamais tinha lembrado.
Curiosamente, ela diz que se repete em várias oportunidades no tempo da sua
primeira infância. Na cena infantil estão ela e um primo, mais velho, que nas tardes
tranqüilas de uma cidade do interior, lhe “pegava de surpresa” num corredor, levava-
a para seu quarto, a sentava no seu colo e se esfregava. Ela lembra-se com não
mais de 5 anos, andando de triciclo e sabendo que ele poderia lhe pegar. Segundo
ela, ficava rezando para sair, mas ficava lá, paralisada. Ficava sabendo que não
tinha conseguido se fazer invisível para o primo. Ela está avisada do seu “ficar aí”
embora pouco sabe, por enquanto. Abrem-se, a seguir, outras lembranças infantis,
todas elas masturbatórias, até suas tardes da adolescência quando fechava as
portas, se masturbava, e pensava “posso ser pega de surpresa”.
Retomo a questão: o que significa esse estatuto separador do objeto a na
estrutura RSI? Se Lacan liga o objeto a aos orifícios do corpo, mas se além disso
não lhe outorga nenhuma qualidade substancial é porque esse objeto do qual não
se tem idéia, esse objeto lógico, deve ser diferenciado do objeto da pulsão.
Segundo Jairo Gerbase39 o objeto a, parcial, pode representar-se na demanda, mas
o estatuto do objeto em RSI depende da sua queda, isto é de um efeito a ser
tomado como “um vislumbre, uma fugacidade”, ou mesmo aparelhado a um afeto:
angustia.
“Fazer-se invisível” é estar causado por esse objeto a, mesmo que seja pelo
olhar enquanto “fragmento” desse objeto, que é, também, paradigmático da
angústia. Vemos quando não olhamos, nos diz Lacan em 1963, por isso a imagem
vela esse olhar. Portanto, se vemos elidimos o olhar. A pulsão escópica nos mostra
que queremos ver, que pedimos ver. “Fazer-se in-visível” é demandar o máximo de
visibilidade nessa cena recalcada. Nesse sentido entendo que esse olhar dá
consistência e significação fálica à cena fantasmática na qual o “corpo in-visível” da
cena infantil erige-se como tal. No Sinthome40, Lacan diz que o parlêtre adora seu
corpo porque ele acredita tê-lo. Entretanto, o único que ele tem do seu corpo é sua
                                                                                                               
39
Gerbase. Os paradigmas da psicanálise. Salvador: Associação Científica do Campo Psicanalítico,
2008, p. 70-71.
40
Lacan. El Seminário, libro XXIII: El sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006.

  196  
consistência mental. Nesse sentido, podemos entender melhor por que a angústia é
essa suspeita de reduzirmo-nos a nosso corpo, ali onde já não o temos, mas o
somos. Razão pela qual “fazer-se in-visível” conjuga com “ser pega” nos momentos
em que, por exemplo, de costas para a bancada da copa, ela treme, por temor de
que “algo desconhecido lhe pegue de surpresa”.
O poder separador do objeto a também se verifica no valor de interpretação
desse corte, uma vez que deixa de nutrir de sentido o sintoma. Portanto isso nos
coloca na pista do poder separador do objeto a entre o Real e o sentido. Dito de
outro modo, a cena fantasmática recalcada, sustenta a equivocação “in-visível”
(considerando aqui o circuito pulsional pelo qual responde a fantasia “ser pega de
surpresa, ser pega de costas”), equivocação que o lapso evidenciado pelo corte, fez
surgir. “Fazer-se in-visível” é a significação sintomática (JФ) que essa mulher se
agencia, e pela qual, posso dizer, entra em análise; não nesse momento que
destaco, mas num tempo anterior quando se verifica sua estratégia de .demandar a
presença do Outro, da qual se queixava. Se o sintoma “é irrupção dessa anomalia
em que consiste o gozo fálico, na medida em que aí se mostra, se desabrocha essa
falta fundamental que qualifico de não-relação sexual”; a interpretação analítica
pode fazer retroceder algo do sintoma. Lalingua que suporta o simbólico possibilita
essa equivocação, evidenciando o gozo-sentido. O Real como non-sense se vincula
ao “efeito de sentido”, veiculado pelo equívoco produzido pela Lalingua. O efeito de
sentido tem uma relação de ex-sistencia com o simbólico. “Digo que o efeito de
sentido ex-siste e que nisso ele é Real”41. O efeito de sentido, isso que se visa com
a interpretação, na medida em que ele aparece, ilumina o jouis-sens (gozo-sentido),
isto é: algo que fazia a cifra do sentido. Aqui se verifica mais uma vez a condição de
mais de gozar desse gozo-sentido, onde o objeto a “litoraliza” essa ex-sistencia do
gozo-sentido.
A consistência que a inibição promovia no sujeito dava conta de uma invasão
do imaginário no simbólico. O corte interpretativo “in-visível” equivoca o sentido
apontando o furo simbólico. Portanto, evidenciando o não-sense e litoralizando o
impossível de dizer.
Se a psicanálise opera na fineza dos campos de ex-sistencia, ela tem como
dever ético pôr à prova o que possa ser elaborável desse gozo, uma vez que ele
tem um limite, uma vez que há um impossível de dizer, isso é o que o objeto a,
separador dos gozos, em última instância evoca.

Referências bibliográficas:

GERBASE, J. Os paradigmas da psicanálise. Salvador: Associação Científica do


Campo Psicanalítico, 2008.
LACAN, J. O Seminário: RSI (1974-1975). Inédito.
LACAN, J. La tercera (1974). In: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires: Manantial,
                                                                                                               
41
Lacan. O Seminário: RSI (1974-1975 lição de 10 de dezembro).

  197  
1993, pp. 73 – 113.
LACAN, J. El Seminário, libro XXIII: El sinthome. Buenos Aires: Paidós, 2006.
   

  198  
O objeto a no Seminário XXIII: ainda h(a)eresis42
Sandra Berta

Watson, você vê, mas não observa. (Sherlock Holmes)

A questão colocada é simples: onde foi parar o objeto a no Seminário XXIII,


se comparado com o furo central no seminário anterior, RSI?

Cena I
Lá, em RSI, o objeto a era o furo central, o ponto nodal, o ponto de
articulação dos gozos como campos de finezas. Mas aqui, no Seminário XXIII, o
objeto parece ficar num lugar que tem a ver com a estrutura RSI, Heresia. E
sabemos que nesse seminário a heresia diz respeito ao sinthoma, ao savoir y faire
com o sintoma, a savoir y faire se enrolar com o sinthoma. Pergunto-me se a
heresia, que deriva de Háiresis – palavra que designa a eleição de fazer uma
escolha, e que Lacan neologiza “haeresis” – não tem já um a: o “a” da invenção de
Lacan [observem que antes ele disse “há alguns que já estão acostumados a ouvir o
que invento]” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 14).
Primeira suspeita: E então, se assim for, o a da heresia se vincula com o
sinthoma. Isto porque ser herege é saber usá-lo logicamente, até atingir seu real,
até se fartar.

Cena II
O sentido, imaginário, se equivoca com a interpretação. Isto porque a
interpretação pode ser operada pelo equívoco significante. Ao fazer equívoco, o que
se evoca é o que fissura o semblante, isto é: o significante. E isso é o que Joyce,
por muito andar com o significante, sabe fazer aí com ele: equivocá-lo. Não porque
está totalmente louco, é porque lhe quebra o sentido, o esfacela e aponta “o que se
dizcondimente (ce qu’on dit mente) (LACAN, Ibid., p. 18). Joyce, com seu savoir y
faire com a palavra, aponta que somos parlêtres, seres de linguagem. E Lacan
aponta sua pitada sobre o húmus humanos, “[...] me senti mais sugado (humé –
mais humano – humain). Ou, ainda se quiserem, lá fui aspirado, aspirado numa
espécie de turbilhão que só encontra seu correspondente no que evidencio pelo
meu nó” (LACAN, Ibid., p. 28).
Os humé somos aspirados por isso que faz furo no real, o simbólico, e então
falamos como papagaio. Algo vai em direção a essa tensão do nó. Os angustiados
não param de falar porque se lhes escapa o sentido, o poder fálico. O gozo fálico é
testemunha de que Isso goza no sentido e a interpretação pelo equívoco lhe acerta
“na mosca”. Lembro, nesse momento, que é por esta razão que Lacan pode
localizar no imaginário a enfatuação fálica na qual se articulam os objetos da pulsão.
                                                                                                               
42
Esse é o produto que escrevi na conclusão do cartel sobre o Seminário XXIII “O Sinthoma”,
de J. Lacan. O cartel finalizou seu trabalho em julho de 2011. Membros: Ana Laura Prates Pacheco,
Ana Paula Pires. Beatriz Oliveira, Conrado Ramos, Sandra Berta (Mais-Um). Subtema: O objeto a no
Seminário XXIII.

  199  
O gozo peniano surge da imagem especular, do imaginário, ele constitui os objetos
que ocupam as hiâncias das quais o corpo é suporte imaginário. Isso nada tem a
ver com o gozo fálico, estranho parasita, na conjunção entre real e simbólico.

Isso na medida em que no sujeito em que se sustenta o


falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a
capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo
gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário,
devido a essa própria fala, devido ao falasser (LACAN, Ibid., p.
55).

A conjunção do real com o simbólico (J ) faz contrapeso com a conjunção


entre imaginário e simbólico (sentido).
Segunda suspeita: Nada destitui o objeto a da sua função de causa.
Deixemos apontado que em toda essa primeira parte do Seminário XXIII há um
momento em que o objeto a confirma seu estatuto de causa, justamente quando,
debatendo com Chomsky, Lacan afirma que a psicanálise não acredita no objeto,
mas constata o desejo e que “dessa constatação do desejo deduzimos a causa
objetivada” (LACAN, Ibid., p. 37).

Cena III
O humé – humano, por querer encontrar a dit-mansão da verdade fala como
um papagaio. Dit-mensão (mension, mensão, mensonage, mentira) “Com efeito, é
unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que alguma coisa
no significante ressoe” (LACAN, Ibid., p. 18). Por isso, parafraseando Sherlock: o
problema é que você não escuta o que ouve. E vejamos, então, que essa história do
equívoco vai parar, por culpa de Joyce!!!, no sinthoma:

Esse dizer para que ressoe, para que consoe, outra palavra do
sinthoma mandaquino, é preciso que o corpo lhe seja sensível.
É um fato que ele o é. Porque o corpo tem alguns orifícios, dos
quais o mais importante é o ouvido porque ele não pode se
tapar, não pode se cerrar, não pode se fechar. É por esse viés
que, no corpo, responde o que chamei de voz. O embaraçoso
é que não há apenas ouvido, e que o olhar lhe faz uma
eminente concorrência (LACAN, Ibid., p. 18).

Isso acerta o alvo a partir de uma das versões do objeto, a voz, que habita
lalangue. Razão pela qual Lacan pode afirmar (é minha leitura) que na heresia algo
intercepta: h(a)eresis – se me permitem escrevê-lo desse modo. Lacan diz: “temos
apenas o equívoco como arma para o sinthoma” (LACAN, Ibid., p. 18). È claro: o
sinthoma, que é o quarto nó, a realidade psíquica freudiana, o sonho de Freud, o
mito de Édipo, para savoir y faire com ele, até se fartar, para isso precisamos do
equívoco, que faz surgir a dit-mansão: voz e lalangue. Mas a verdade da estrutura

  200  
do mito somente se revela quando o saber no lugar da verdade é da ordem da
disjunção. Onde S2 era o saber que revelava a verdade de S1, isso manca.
Terceira suspeita: Vai o equívoco trabalhar de bandido para arruinar o
sentido sexual, sentido edipiano, e numa tacada só, revelar que o 1 confirma sua
separação do 2 e que o significado tenta fazer umpire, (império) sobre o corpo a
partir do significado que umpire (arbitra) entre 1 e 2. Isso é o efeito ardiloso do
imaginário.

Cena IV
O sentido sexual somente é possível com o enodamento do RSI, porque ele
é um efeito de sentido. A opacidade sexual nos leva ao conhecimento, ao poder do
macho. Mas como isso não funciona, é possível que cada um, ao seu modo, se faça
herege, com (a) no meio, se faça artista da sua escolha porque não há relação –
proporção sexual que possa se escrever. O artifício do parlêtre é saber fazer aí com
o gozo que adquire desse exercício do seu artifício. Lá o a causa a h(a)eresis.
Lacan aponta que o artifício é um fazer que nos escapa, que transborda, em muito,
o gozo que podemos ter dele. Se pudéssemos captar que o Outro do Outro Real é
impossível, então nos aborreceríamos a cada vez que tentamos dar sentido ao real.
Lacan vai e volta, e nos faz o favor de voltar ao nó de três, como se isso
ainda constasse, contasse, enfim... Então, precisamente ao observar que não há
Outro do Outro e que o objeto a é causa de desejo, o que responde o analista
aponta ao que se produz como sentido, nessa sutura entre o simbólico e o
imaginário, entre saber inconsciente e sentido. O que responde o analista é para aí
fazer ouvir o gozo-sentido [j’ouis-sens]. Cito Lacan:

[...] Tudo isso para obter um sentido, o que é objeto da


resposta do analista ao exposto, pelo analisando ao longo de
seu sintoma. Quando fazemos essa emenda, fazemos ao
mesmo tempo uma outra, precisamente entre o que é
simbólico e o real. Isso quer dizer que, por algum lado,
ensinamos o analisante a emendar, a fazer emenda entre seu
sinthoma e o real parasita do gozo. O que é característico de
nossa operação, tornar esse gozo possível, é a mesma coisa
que o que escreverei como gouço-sentido (j’ouis-sens). É a
mesma coisa que ouvir um sentido (LACAN, Ibid., pp. 70-71).

Quarta suspeita: O objeto a não é o sinthoma, mas cria as condições para


savoir y faire com o sinthoma. Na medida em que não há equivalência há sinthoma,
e portanto há relação. O objeto a é um dos nomes da não relação, é um dos nomes
da equivalência. Ainda: o a cria as condições do nó, porque poderia ser encontrado
em cada furo do nó. Será que não é isso o que uma psicanálise promove: saber
fazer com isso aí, que não tem sentido algum, que não adianta lhe fazer adquirir um
sentido? Se o sexual mente (sexualmente), tentemos “seguir o rastro do nó, que

  201  
consiste e que ex-siste apenas no nó” (LACAN, Ibid., p. 64). E por que não dizer que
esse rastro são os fiapos do nó?

Cena V
Porque o real encontra-se nos emaranhados do verdadeiro. E se foi possível
chegar à ideia do nó – diz Lacan que entretanto já tinha apontado que isso lhe
serve-cerra –, se foi possível é porque o verdadeiro se autoperfura e que isso é
sugado pelo que faz furo à consistência do corpo: a boca enquanto suga, o ponto
cego do olhar, e onde se recolhe que “o objeto que chamei de pequeno a é, com
efeito, apenas um único e mesmo objeto. Eu lhe atribuí o nome de objeto em razão
do seguinte: o objeto é ob, obstáculo “expansão imaginário concêntrico, isto é,
englobante” (LACAN, Ibid., p. 83). O objeto é uma arma... de arremesso.
Esse obstáculo, que é o objeto a, é o que permite uma orientação.
Lembremos que a orientação não é o sentido. O a está aí para impedir a copulação
do imaginário e o simbólico, ou melhor para tropeçá-la. A orientação do real foraclui
o sentido. E me parece ser por essa razão que o ob, do objeto a, ao impedir o
sentido, permite “atingir” os fragmentos de real da lalangue. O real é um fragmento,
um caroço (LACAN, Ibid., p. 119). Assim também o chamava Freud: núcleo
patogênico. É algo que não se enoda com nada. Cria as condições dos artifícios,
mas não enoda com nada. O humés tenta copular as pegadas do inconsciente e
com isso as apaga. O analista ao faire semblant de objeto a aponta um real, não se
constata (não se toca!!!), escreve-se: S1 → a.

A simples introdução dos nós bo sugere que eles sustentam


um osso. Isso sugere, se posso dizer assim, suficientemente
alguma coisa que chamarei, nessa ocasião ossobjeto. É isso
que caracteriza efetivamente a letra com que faço acompanhar
esse ossobjeto, a saber, a letra pequeno a. Se reduzo esse
ossobjeto a esse pequeno a é precisamente para marcar que a
letra, nesse caso, apenas testemunha a intrusão de um a
escrita como outro (autre) com um pequeno a (LACAN, Ibid., p.
141).

Quinta suspeita: O objeto a é letra que faz borda entre o saber inconsciente
e o que causa. Isso se lê no produto que temos entre o discurso do mestre (onde o
produto é o a) e o seu avesso, isto é, o discurso do psicanalista (onde o produto é
S1).

Cena VI
Sem suspeitas: O objeto a se vincula com o sinthoma. O objeto a é causa de
desejo. Na passagem da Háiresis (eleição de fazer uma escolha) para a heresia,
Lacan inclui o objeto a da sua invenção. Escrevemos, então, h(a)eresis. No
Seminário XXIII, o objeto a não é o sinthoma, mas cria as condições para savoir y
faire com o sinthoma. O objeto a é o osso, o ossobjeto que é uma letra que se

  202  
escreve como produto do que farfulha no inconsciente. Entre S1 e S2 se escreve o
a. O ossobjeto cria as condições do sinthoma, articulando nesse osso saber e gozo.
O objeto é uma arma... de arremesso.

Cena final
(Sherlock Holmes sai pelo corredor do hospital conversando com Watson.
Está preocupado.)
S. H. Nada do que disse me convenceu: ele não é o assassino. Ele não é um
homem normal. Mas sei que não é coisa da verdade, é coisa do que ele diz que nos
indica que ele não é um homem normal. Isso porque ele ouve o que ele diz.
W. Ele ouve? Nós também. Ele assassinou o político!!!!!!
S. H. – Ele não o assassinou, ele o assistanou, o assistiu. Ele é certamente
um telepata emissor. E por isso ele assistiu o presidente. Ele ao assistanou, não o
assassinou. É simplesmente um equívoco, uma inflexão da voz.
Esse sujeito não rememora nada, ele já lhe disse que o verdadeiro é um dizer
conforme a realidade. E nesse caso, não se trata disso. “Assassinou – assistanou” é
simplesmente um equívoco, uma inflexão da voz. Mas, também, ouça bem o que
lhe digo, porque você não ouve, você não me ouve Watson!!!
W. – Ouço sim.
S. H. Que nada!!!! Ouça, eis assim como ele escreveu esse fato: Assistanou
– Assassinou!! Se você me ouvisse, Watson, você saberia ler no que lhe digo.
NODAL WATSON!!!

Referências:
DOYLE, A. C. Sherlock Holmes. Um escândalo na Boêmia e outras aventuras.
Ediouro Editora, 1996.
LACAN, J. Seminário: RSI. Inédito. 1974-1975.
LACAN, J. (1975-1976). O Seminário, livro 22: O Sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, Editor, 2007.

 
   

  203  
A interpretação como equívoco: a subversão do sentido
Sandra Berta

Qu’est-ce que la clinique psychanalytique ? Ce


n’est pas compliqué. Elle a une base – C’est ce
qu’on dit dans une psychanalyse.
Lacan 5 de janeiro de 1977

Como operam as palavras?


Em Exercices de style43, Raymond Queneau põe a prova 99 modos diferentes de
dizer uma pequena historia, comum, singela e banal, brincando com a noção de
simulacro. Múltipla repetição. Variações de um tema “cujo original é abolido”.
Segundo Marcia Arbex (2009)44 a gêneses de Exercícios está na música. Certa vez,
tendo ouvido a Arte da fuga, de Bach, em companhia de Michel Leiris, os amigos
pensaram em construir no gênero literário algo similar, isto é: construir uma obra no
gênero de variações proliferando quase até o infinito em torno de um tema bastante
reduzido. O projeto iniciou-se em 1942 em uma série de 12 “exercícios” com o título
Le dodécaèdre (Dodecaedro). Os demais textos foram escritos aos poucos e
somente em 1947 chegaram ao número 99. Queneau parou porque a preguiça e o
receio de cansar o leitor o fizeram parar: “nem muito nem pouco: o ideal grego”, diz
ele.
Em 1960 Queneau fundava, junto com Françõis Le Lionnais, matemático e
historiador, o Oulipo, Ouvroir de Littérature Potentielle, com a participação de
escritores, matemáticos e artistas. A proposta do grupo era a de inventar novas
formas poéticas ou romanescas, a partir de experiências da matemática e da
literatura. O Oulipo foi definido como um ateliê em que se fabrica literatura
potencialmente produzível até o fim dos tempos.
Vejamos o exercício Notações:

No ônibus S, em hora de aperto. Um cara de uns 26 anos, chapéu mole


com cordão em vez de fita, pescoço comprido demais, como se tivesse
sido estiado. Sobe e desce gente. O cara discute com o vizinho. Acha
que é espremido quando passam. Tom choramingas, jeito de pirraça. Mal
vê um lugar vago, corre pra se aboletar. Duas horas depois, vejo o
mesmo cara pelo Paço de Roma, defronte à estação São Lázaro. Lá vai
com outro que diz: "Você devia pôr mais um botão no sobretudo". Mostra
onde (no decote) e como (para fechar)

                                                                                                               
43
QUENEAU R. (1947). Ejercícios de estilo. Versão em PDF.
44
ARBEX, M. Exercícios de estilo com sotaque tupiniquim: Luiz Resende tradutor de Raymond
Queneau. In: O eixo e a roda, v18. 2009, pp.129-145

  204  
Conjugação verbal, estilos literários, aféreses, apócopes, síncopas, etc, servem a
Queneau e seu grupo para exprimir esse original que vai se perdendo, deixando os
rastos desse primeiro evento, encontro, contingência, poderíamos dizer. Um
excelente exercício de repetição, de ampliação, de redução de uma cena que logo
nos lembra as voltas e reviravoltas dos ditos nos quais os analisantes se enredam e
desenredam até que, com o uso do significante, evocar que isso se diz, que Isso
fala. Se gasta dizendo e por isso se equivoca. O equívoco é exatamente equivalente
a esse gasto. Não importa qual! “Há une-bévue quando se equivoca de
significante45”
Equivocar-se de significante, nada mais é do que fazer signo do que o significante
produz: equívoco. É por isso que retornando a Saussure, Lacan lembra o debate
que Benveniste acrescenta ao signo saussuriano: entre significado e significante o
laço não somente é arbitrário, também ele é necessário. Esse laço é testemunha da
insistência do significante que o encadeia de modo necessário: não para de se
escrever.
Colocação a prova do saber que não se sabe, L´une bévue, o um-equívoco, como
nos diz Lacan em 1977. Os Exercícios de estilo são a escrita do necessário, do que
não cessa de se escrever. Até que isso, às vezes cessa. Bom, uma boa opção seria
pensar que isso cessa para não cansar o leitor, como Queneau aponta, outra opção
é a que nos oferece Lacan em 1976 retomando o corte da banda de Moebius, o que
ele chama de dupla banda, a ser considerada a partir do corte que ele mesmo
realiza no toro.
Produzir a dupla banda é a demostração da relação entre o necessário e o
contingente, ou de considerar que o necessário é o efeito do contingente. É desse
“efeito de saber” que se trata, efeito de saber que faz borda o um real a ser
nomeado como “saber sem sujeito”. Cito Lacan quando se refere ao um-equívoco
nesse corte na dupla banda46

[...] o um-equívoco é alguma coisa que substitui o que se funda como


saber que se sabe, o princípio do saber que se sabe sem sabê-lo, o “lo” é
um pronome que, no caso, incide sobre o próprio saber, não enquanto
saber mas enquanto ato de saber. É bem nisso que o inconsciente se
presta ao que acreditei dever suspender sob o título de “um-equívoco”.

Esse efeito de saber não é sem considerarmos que o saber é efeito de significantes.
Acontece que o homem é débil para tratar desses efeitos. Ao dizer débil nos
referimos ao fato de tratar ditos efeitos como sentido fixado. Interessa-me destacar
o que Lacan aponta como efeito de sentido. O mesmo, leva àqueles que praticam a
psicanálise a se perguntarem pela passagem da tagarelice à escroqueria. Não há
como se safar desse abuso, se seguirmos somente por essa via. Segundo Lacan,
                                                                                                               
45
Lacan, J. Ouverture da la Section Clinique. 5 de Janeiro de 1977. Inédito.
46
Lacan, J. (1976 – 1977) L ´insu que sait de l´une bévue s´aile à morre. Inédito. Tradução livre de
Jairo Gerbase, publicada em www. campopsicanalitico.com.br. Outra fonte de consulta: Document
interne à l´Association freudienne internationale.

  205  
em 1977, trata-se de saber que entre real e simbólico não há relação. O que
engancha é o imaginário e por essa razão quando dizemos “o sentido” não estamos
ao nível da linguística, mas da linguisteria: a de Lacan. Será por isso que ele nos
indica: o inconsciente é um sedimento de linguajem? Efeitos de cristalização:
detritos? Portanto se o real está num extremo de nossa prática, se o real é esse
ponto de fuga, nossa fraude é que na interpretação operamos pelo sentido “O
sentido é isso com o que operamos em nossa prática: a interpretação”47 . Esta
afirmação de Lacan nos incomoda quando pensamos na interpretação como
equívoco. Incomoda porque entendemos que o equívoco é o produto do corte da
banda, da sua subversão. Vejamos se isso se sustenta.
A interpretação como a operação analítica se fundamenta na ética da
psicanálise: a da Coisa freudiana. Essa ética é parceira do conceito de inconsciente.
Buscar o sentido da Coisa é uma escroqueria. Há de se saber-fazer-aí (savoir y
faire). Por essa razão Lacan afirmar que o inconsciente é lacaniano, apontando que
Freud se tropeçou com a interpretação. A interpretação como equívoco visa não o
não-sabido, mas o insabido (insu): o trou.
Esse inconsciente é feito de palavras que não representam nada, mas que
afetam. Ele cria a tagarelice do falaser, que fala sem saber o que Isso diz. Isso faz
buraco. O buraco da Coisa. E por esse buraco se corre atrás do sentido, na sua
fuga, porém presos na cristalização da significação. Vigaristas do sentido: os seres
falantes. Isso faz buraco porque o inconsciente, ele é o corpo estranho, o núcleo
patogênico. Não temos um osso. O corpo estranho é o buraco que se verifica na
reta infinita. O corpo estranho não é um núcleo, ele é a reta infinita. Por isso o no
bó. Somente nachträglich se constata o insabido. A isso Lacan o chama: real.
A interpretação é o sentido. É por isso que o equívoco é um limite dessa
definição da interpretação. O equívoco é uma subversão do sentido, ele se apoia na
neutralidade do analista. Lacan vai desde o corte da banda até o corte do toro: mas
seu intuito é de fazer do saber algo que não copula com a verdade. A interpretação
como equívoco vai contra a escroqueria. Portanto, interrogar o equívoco é nossa
ética, na qual não tratamos de ir até o osso do real, mas de ser “aspirados” pelo
real. De estarmos numa “aspiração” pelo real. Assim é como podemos nos
persuadir do efeito de linguagem. É por essa razão que Lacan põe o acento no
“efeito” ao falar do sentido. Efeito de sentido: o que evacua-se do sentido fixado. Por
ai se engancha a importância do equívoco. “O que disse, Freud, affreud, é que aí
não há su-je. Dito de outro modo, no jeu do je se substitui o que intento enunciar
hoje: o baffouille-à-je”48. Entre o balbuceio e a letra se ilumina o equívoco. Assim um
analista se orienta na “aspiração” pelo real.
Isso é o inconsciente, somos guiados por palavras. Aliás, adoecemos e nos
curamos pelas palavras. E é por isso que em 1958 Lacan observa que a
                                                                                                               
47
Lacan J. Intervenção em Bruxelas. 26 de fevereiro de 1977. Inédito. Intervention de Jacques Lacan
à Bruxelles, publiée dans Quarto (Supplément belge à La lettre mensuelle de l’École de la cause
freudienne), 1981, n° 2.
48
Su-je: “sujeto” / “sabido-eu”. Jeu: “jogo”/ bafouillé-à-je: jogo entre o je, o bafouillage: balbuciar e
bafouille: carta. Encerramento das jornadas da École freudienne de paris. 25.09.1977. Inédito.

  206  
significação, a Bedeutung, do falo faz aparecer no corpo dos significantes o
significável. É pela prova (épreuve) do desejo que a significação se produz.
Significação fantasmática, escrita entre o imaginário e o simbólico, onde o gozo-
sentido (jouis-sens) possibilita a interpretação produzindo o efeito de sentido.
Tinha apresentado em nosso Encontro Nacional parte desse trabalho, quando me
deparei, ontem mesmo, com o texto de Bernard Nominé, O Luto do Sentido?49. A
leitura desse texto me escalreceu algo do que eu tinha escrito. Porque ele destaca o
valor de fixação do fantasma e adverte que a operação analítica “mostra sua
eficácia quando ela questiona essa significação fixada”50. Lembremos que o falo,
como função velada, aponta a Verdragnung, sendo, ele mesmo “o significante dessa
própria Aufhebung [suspensão] que ele inaugura (inicia) por seu
desaparecimento”51. O sujeito carrega em si as marcas dessa obliteração. Por ela
escreve seu fantasma e produz seu sintoma. O psicanalista com elas opera. Razão
pela qual, parece-me crucial a questão levantada por Nominé quando diferencia o
gozo cifrado no sintoma da satisfação obtida pelo deciframento; e quando adverte
que o sentido sempre fuga, mas que a significação fálica – cifrada no sintoma – é
um modo de detenção, de cristalização dessa fuga de sentido.
Talvez seja por essas diferenças que Lacan continua a insistir que a operação
analítica equivoca o sentido fixado evidenciando; que Isso fala, quer que alguém
ouça ou não. Porque Isso faz nó. Lacan52 se pergunta e responde:

“O inconsciente? Prefiro dar a isso outro corpo porque é pensável que se


pensem as coisas sem pensá-las. Ali bastam as palavras. As palavras
fazem corpo, isso não quer dizer para nada que se compreenda qualquer
coisa. A pesar de tudo temos um esboço disso quando as pessoas falam
- seja lá o que for – é totalmente claro que não dão às palavras seu peso
e seu sentido. Entre o uso do significante e o peso da significação, o
modo em que opera um significante, há um mundo. Aí está nossa prática:
aproximar-se a como operam as palavras.

O passo dado por Freud é que nessa falta de relação, a significação


engendra relação. É o modo de Freud de falar da sexualidade. É o modo em que as
histéricas ensinaram a Freud essa relação vigarista que gambela a não relação. O
passo de Lacan, entendo, é diferenciar o “uso do significante” e o “peso da
significação”.

                                                                                                               
49
Nominé, B. Luto do Sentido? In: Wunsch 11. Boletim Internacional da Escola de Psicanálise dos
Fóruns do Campo Lacaniano. Outubro de 2011, p. 66-68.
50
Ibid, p. 66.
51
Lacan J. (1958). A significação do falo. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998, p.
699.
52
Lacan J. Intervenção em Bruxelas. 26 de fevereiro de 1977. Inédito. Intervention de Jacques Lacan
à Bruxelles, publiée dans Quarto (Supplément belge à La lettre mensuelle de l’École de la cause
freudienne), 1981, n° 2.

  207  
A clínica nos o demonstra. Uma analisante equivoca “la perdida” (em
espanhol) com “la pérdida” tentando dizer em português “a perda”. Nada demais.
Nesse equivoco se murcha a posição fantasmática que diz respeito a uma versão
do que entendia ser seu desejo, sua épreuve. Um equívoco translinsguístico que
desmonta, no início do fim, isto é: do início ao fim, a versão da sua neurose. O
analista esteve ali para marcar a ressonância daquilo que poderia ser a versão 99
do Excercício de estilo. Ali se atestou da contingencia, e se atestou também da
sequencia ao necessário. Entretanto, é pelo equívoco que o efeito de sentido se
produz. Esse equívoco, considerado como contingencia mostra como o necessário,
pela contingencia, passa ao possível, isto é: para de se escrever como elucubração
e faz desses detritos, desses cristais, os uns que não fazem mais laço. São cristais
que apontam ao “uso do significante”, não à troca (oriunda da fixação da
significação articula na demanda). Um efeito de saber, um efeito de sentido.
Lembremos para concluir que é assim como Lacan nomeia o objeto a na sua época
borromeana: efeito de sentido. Efeito de sentido que faz borda ao trou-matismo.
Esse efeito de sentido é uma causa nachträglich. Eis o que proponho pensar.
Porque os seres falantes somos troumatizados: sendo seres com ex-sistencia
de linguagem vamos em direção a esse encontro: as palavras equivocam, assim
operam. O inconsciente é testemunha pelos “pontos de fuga” de que somos feitos
de palavras que não dizem nada a não ser que se o façamos dizer, que isso faz
corpo, que isso afeta.
Como operam as palavras? Gozando. Acontece que os seres falantes, pelo
desamparo da nossa própria palavra, precisamos das versões desse gozo. O
problema é que comumente acreditamos em uma versão. A chance se dá quando
conseguimos vislumbrar que, brincando com 99 versões, podemos retirar o “peso”
do necessário de A Uma versão. Se assim for: a subversão do sentido será a prova,
apontando para sua fuga (trou) e para seu efeito (borda)53. Ai opera a psicanálise.
Mas para isso se precisa de tempo, de exercício e de estilo.
 
   

                                                                                                               
53
Agradeço a Conrado Ramos por diferenciar a borda e o furo no texto “Do objeto como borda ao
sintoma como furo”, 2011.

  208  
O DOTE QUE O SABER PAGA AO GOZO (LA JOUISSANCE) NO CASAMENTO
FICTÍCIO COM A VERDADE54

Ana Laura Prates Pacheco

Se existe fantasia, é no mais rigoroso sentido da instituição de


um real que cobre a verdade

Lacan, 1965 (2001)


1) Amar a Verdade?

Entre nós e o real, há a verdade


Lacan, 1992 [969/70]

Em Radiofonia, pergunta-se a Lacan: “em que saber e verdade são


incompatíveis?”. Não se trata de compatibilidade, ele declara, mas de
compadecimento: padecer junto; já que Saber e Verdade não são complementares,
não compõem um todo. Ocorre que, “com a verdade, não há relação amorosa
possível, nem de casamento, nem de união livre” (Lacan, 2003 [1970], p. 442).
Embora pareça paradoxal, entretanto, Lacan assinala que “o saber pode arcar com
a despesa de uma relação com a verdade, se nos der vontade de tê-la” (Lacan,
2003 [1970], p. 441). E ele vai além, afirmando que “o saber compõe um dote”
(Lacan, 2003 [1970] p. 441).
Vejam que há nessas afirmações alguns aspectos intrigantes, se não
contraditórios à primeira vista: se não há relação amorosa possível de casamento,
como é que o Saber paga um dote? E para quem ele pagaria? Em primeiro lugar,
creio ser relevante observar que um casamento não se dá necessariamente por
amor, ainda mais quando há um dote envolvido na transação. Há, então, outros
interesses em jogo! Daí a insistência quanto ao fato de que não há “todo” entre
Saber e Verdade; o todo que, como sabemos, é visado pelo amor que quer fazer
Um.
Ora, se a noiva parece inacessível pela via do amor, do lado do noivo, há uma
impotência: “o efeito de verdade – diz Lacan – decorre do que cai do saber, isto é,
do que se produz dele, apesar de impotente para alimentar o dito efeito” (Lacan,
2003 [1970] p. 443). Sabemos que é no discurso da histérica que o Saber,
ocupando o lugar da produção, depara-se com a impotência. Apenas ressalto, de
passagem, a função da Outra mulher na histeria.
Assim, chegamos ao cúmulo da compatibilidade, ou da comblatibilité, como
afirma Lacan, superpondo cúmulo (comble), compatibilidade e contabilidade.
Intrigada com esse “casamento de interesse”, no qual a noiva é inacessível e o
noivo impotente, fui atrás de pistas das relações de parentesco da noiva e as
encontrei, como vocês já devem presumir, no Seminário “O Avesso da Psicanálise”,
contemporâneo à entrevista radiofônica. Aí, encontramos, em primeiro lugar, quem
realmente é amante da Verdade: Sade, o próprio. Ele a ama, afirma Lacan, e a
prova é que a rechaça. E o que é o amor à Verdade senão “o amor a essa
                                                                                                               
54
Apresentado no VII Encontro da EPFCL-Brasil “OS paradoxos do gozo”, Belo
Horizonte, 2006.

  209  
fragilidade cujo véu nós levantamos, é o amor à castração” (Lacan, 1992 [1969/70],
p. 49). Lembremos que é Sade quem revela a verdade sobre a razão kantiana, na
medida em que o Bem (Das Gute) – que sustenta o imperativo categórico da lei
moral – revela-se, em realidade, imperativo de gozo. Ocorre que o imperativo
sadiano do direito ao gozo, longe de alcançar a radical liberdade prometida, renova,
ao contrário, o limite do enquadre da fantasia, no qual o desejo se apóia. Sade tenta
transpor esses limites; mas, como adverte Lacan:

Ele não encontra nada melhor para nos encorajar a segui-lo do que a
promessa de que a natureza, magicamente, como mulher que é, nos fará
cada vez mais concessões. Será um erro fiarmos nesse típico sonho de
poder. (Lacan, 1998 [1962], p. 802)

Sade não pode alcançar o gozo a não ser mediante aqueles “pequenos
recursos” que restam de sua interdição.
O mistério da Verdade começa a ser desvelado, entretanto, quando recebemos
a notícia de que ela é irmã do gozo. Em português, tudo fica confuso e até mesmo
incompreensível, se não nos lembrarmos que o gozo, La Jouissance, é uma mulher!
“Não é em vão, nem por acaso – afirma Lacan – que designo como fraterna a
relação da verdade em relação ao gozo (La Jouissance) – salvo ao enunciá-la no
discurso da histérica” (Lacan, 1992 [1969/70], p. 64).
Com efeito, nem em vão, nem por acaso – o que é importante, nesse caso, é
nos determos no que Lacan, de modo surpreendente, introduz aqui: a função da
cunhada.

Mas retenho, ele diz, essa posição da cunhada. Sade, de quem todos
sabem que a interdição edípica separou-o de sua mulher – como desde
sempre dizem os teóricos do amor cortês, não há amor no casamento –,
não será por causa de sua cunhada que ele amava tanto a verdade? Vou
deixá-los com essa pergunta. (Lacan, 1992 [1969/70], p. 64)

2) A cunhada
O sujeito é dividido pela Jouissance

Lacan,1985 [1972/73]

Ele nos deixou com a pergunta e só pude chegar a uma conclusão: a cunhada é
ela – La Jouissance! É ela quem divide, no sujeito, Saber e Verdade. Se Eros une,
Thanatos divide. A cunhada, a Outra – justiça seja feita – já havia sido cortejada por
Freud.
Desde o início da psicanálise, Freud transmitiu que há uma falta fundamental na
relação do homem com a realidade, falta esta que é a causa do seu desejo e que o
move na busca incessante de um objeto que o satisfaça parcialmente. Essa falta,
entretanto, produz um represamento de energia, um acúmulo que gera desprazer e
que precisa, portanto, ser descarregado. A esse funcionamento do psiquismo
humano ele chamou de “Princípio do prazer” (Lustprinzip). A clínica – os sonhos
traumáticos, a repetição sintomática e a trivial brincadeira das crianças – mostrou a
Freud que há algo no humano que o atrai para esse excesso. Há um “além do
princípio do prazer” (Jenseits des Lustprizips): se o acúmulo traz sofrimento,

  210  
também produz uma satisfação estranha e paradoxal, que Lacan chamou de gozo
(Jouissance).
Submetido, a um só tempo, à castração e ao imperativo categórico – Goza! –, o
sujeito está sempre dividido entre o Saber nascido do Outro e a Verdade. Falta de
um lado, excesso de outro: a conta nunca fecha! E é com essa desproporção que o
ser humano tem que se haver, em sua economia libidinal: “O gozo é interditado a
quem fala” – afirmou Lacan num momento de seu ensino –, acrescentando que ele
só pode ser alcançado “na escala invertida da lei do desejo”. Trata-se do gozo
fálico, sexual, que inclui a possibilidade do cálculo e da partilha. Entretanto, assim
como Freud se deu conta de um “Mais além”, Lacan, por sua vez, acrescentou um
“Mais ainda” (Encore): o Outro gozo, suplementar, fora da linguagem e, portanto,
inacessível pela via do saber.
Falemos, então, um pouco do noivo e seu dote. No dicionário, encontramos
que “dote” é o “conjunto de bens que leva a pessoa que se casa”. O Saber,
portanto, paga. “O que é admirável – acrescenta Lacan – é a pretensão daqueles
que gostariam de se fazer amar sem esse colchão” (Lacan, 2003 [1970] p. 441).
O saber de que se trata, aqui, como ressalta Lacan, é da ordem de “um saber
que não se sabe” – definição de inconsciente que aponta para a ordem do
significante. Não estamos, evidentemente, no nível do conhecimento. A articulação
significante – ou, em outras palavras, o saber inconsciente – implica uma repetição,
e essa repetição visa o gozo. O Saber, portanto, pretende abarcar a Verdade,
visando, entretanto, sua irmã – la Jouissance. Ora, o dote pago pelo Saber no
casamento com a Verdade oculta a tentativa vã de alcançar a mulher inacessível: “A
mulher, é a verdade” (Lacan, 1992 [1969/70] p. 141). Por sua vez, o Saber, nos
ensina Lacan, “é o meio do gozo”, ou seja, la Jouissance vive de seu trabalho: “É
com o saber como meio de gozo (moyen de la Jouissance) que se produz o trabalho
que tem um sentido, um sentido obscuro. Esse sentido obscuro é a verdade”
(Lacan, 1992 [1969/70] p. 48)
Assim, ele, a um só tempo, fornece à Jouissance os meios e fica com os
restos: “É no lugar dessa perda (de gozo) introduzida pela repetição, que vemos
aparecer a função do objeto perdido, disso que eu chamo a”.

3) Fantasia: o casamento fictício

No seu livro A insustentável leveza do ser, Milan Kundera escreve:

Depois que o homem aprendeu a dar nome a todas as partes de seu


corpo, esse corpo o inquieta menos. Atualmente, cada um de nós sabe
que a alma nada mais é que a atividade da matéria cinza do cérebro. A
dualidade da alma e do corpo estava dissimulada por termos científicos;
hoje isso é preconceito fora de moda que só nos faz rir. Mas basta
amar loucamente e ouvir o ruído dos intestinos para que a unidade da
alma e do corpo, ilusão lírica da era científica, imediatamente se
desfaça. (Kundera, 1983, p.46)

Assim como a ciência, a fantasia também é uma ilusão lírica de união entre
Saber e Verdade. É o que afirma Lacan no Seminário A lógica da fantasia:

  211  
A associação livre nos conduz sobre o plano da estrutura de rede em
uma dimensão que não é a da realidade, mas a da Verdade. O
essencial, portanto, é saber de que modo o sujeito pôde articular a cena
da fantasia em significantes. (Lacan, 1966)

Trata-se, com efeito, de indagar a relação da Verdade com o significante.


Ora, mas o que significa deslocar o debate do plano da realidade para o da
verdade? Temos, por um lado, a questão do significante, ou seja, do Saber; por
outro, a questão da Verdade. A articulação desses dois aspectos será
proporcionada exatamente pela escrita da fantasia. “Bate-se numa criança” é o
paradigma dessa montagem, na qual o sujeito está a um só tempo presente
como agente e como objeto.
Essa produção pode ser tratada, inicialmente, no nível de uma sintaxe, uma
montagem gramatical na qual estão presentes três elementos: aquele que se
submete, o agente e o sujeito. Esse último, é claro, está presente sempre de forma
excentrada, já que não podemos nos esquecer que o sujeito do inconsciente é o
assujeitado. O que a frase irredutível “Bate-se numa criança” revela, portanto é, na
verdade, a posição estrutural do sujeito frente ao Outro.
A fantasia, assim, é formulada como uma produção de linguagem que
revela, a um só tempo, o assujeitamento estrutural à realidade do significante e a
produção do sujeito na tentativa de responder à falta do Outro, tomada como
demanda endereçada a ele. Lá onde não há referência na realidade, lá onde falta o
saber sobre o que não há, o sujeito cria o objeto, positivando a falta que o constituiu.
Mas na fantasia também está presente a questão pulsional. Assim, a
dialética do desejo, embora ordenada pelo falo enquanto significante,é, ao mesmo
tempo, regulada pela fantasia enquanto montagem pulsional: A sigla ($ a), portanto,
rompe o elemento fonemático que permite “um sem número de leituras”, e aponta
para o aprisionamento da álgebra que é o índice de uma significação absoluta “que
parecerá apropriada à condição da fantasia”. (Lacan, 1998 [1960], p. 830)
A questão que se nos coloca é a de como conciliar o “sem-número de
leituras” com uma “significação absoluta”. Lacan traz à tona algo que havia ficado
negligenciado até então em seu ensino: a noção de objeto parcial. Essa
parcialidade, entretanto, longe de ser entendida como “a parte de um todo”, é
tomada num sentido completamente inovador, qual seja, o de que os objetos são
parciais em relação à função que os produz, ou seja, eles são, digamos,
parcialmente necessários. A demanda do Outro, então – resumida na frase Che
vuoi? – passa a ser o paradigma propriamente dito da pulsão. Esse será um
aspecto fundamental para a compreensão do algoritmo da fantasia como a resposta
neurótica, ou “uma espécie de cálculo” (Lacan, 1998 [1960], p. 835) do que faltaria
para ter acesso ao gozo. Nesse sentido, a fantasia enquanto resposta ao S(A)
resolve a antiga questão freudiana a respeito do aspecto a um só tempo prazeroso
e defensivo da fantasia.
A fantasia, portanto, é “simultaneamente flexível e inextensível” (Lacan,
1998 [1960], p. 841) graças a seu duplo aspecto: um alcançável pela linguagem e
outro estranho à linguagem. No Seminário A lógica da fantasia (1966/1967), Lacan
afirma:

  212  
O objeto verdadeiro, autêntico, de que se trata quando falamos de
objeto, não é de modo algum apreendido, transmissível, cambiável.
Ele está no horizonte daquilo em torno do que gravitam nossas
fantasias. E, no entanto, é com isso que devemos fazer objetos que,
por seu lado, sejam cambiáveis.

É o que permite finalmente a Lacan articular a fantasia com esse corte que
“faz parir” a um só tempo o sujeito e o objeto em sua relação de excentricidade
fundamental. Esse mínimo de estrutura é o que permite ao sujeito orientar-se no
nível sexual, construindo sua singular “realidade psíquica”. Assim, o nome do filho
parido a partir deste casamento, nós já sabemos: Desejo.
A fantasia, assim, constitui-se como a referência do sujeito, lá onde não há
referência. Assim sendo, a fantasia é a escrita de um casamento impossível, pois,
tal como no paradoxo de Russel, ela escreve a impossibilidade da relação sexual, a
impossibilidade da relação de objeto, ou seja, ela aponta, inexoravelmente, para
aquilo que quer ocultar: a falta estrutural do significante para nomear o ser: “O
fantasma, o $ em relação ao a, toma aqui valor significante da entrada do sujeito
neste algo que vai levá-lo a esta cadeia indefinida de significações que se chama
destino. Pode-se dele escapar indefinidamente; a saber que isso que se trataria de
reencontrar é justamente o começo: como ele entrou nesse negócio de significante”.
(Lacan, 2005 [1962/63], p.78)

4) O equívoco do SSS: do parcial ao “não-todo”

O inconsciente não é perder a memória;


é não lembrar do que se sabe.

Lacan,2003 [1967]

Supor um saber sobre a verdade: a transferência que é, por um lado, a


condição de uma análise, por outro, é o cúmulo do engano: o cúmulo que faria do
analista o noivo da verdade (Lacan, 1970). Alcançar a verdade via operação
transferência – portanto, via saber – eis a aspiração vã que sustenta a inclusão do
analista na fantasia fundamental. O psicanalista, entretanto, é sábio “de um saber
que não pode cultivar, o que não pode ser confundido – segundo Lacan – com a
mistagonia do não-saber” (Lacan, 2003 [1967], p. 358). Com efeito, não há acesso
possível ao “não sabido que sabe da castração”, ao insucesso da relação sexual, a
não ser pelo casamento fictício, ou seja, pela fantasia. Se não há outra entrada para
o sujeito no real que não a fantasia, trata-se, numa análise, de construí-la e
atravessá-la.
A travessia implica uma passagem: a passagem da lógica dos objetos
parciais da fantasia (a parte pelo todo) para a lógica do não-todo. A parcialidade do
objeto fixado na fantasia supõe o equívoco da totalidade do gozo. Mais uma vez,
aos “dois” que querem fazer Um da fantasia, deve ser introduzida a terceira, a
Outra:

  213  
A dualidade aqui apreendida de dois princípios – afirma Lacan – só nos
divide como sujeito ao se repetir três vezes por cada essência que se
separa, cada qual apreendida por sua perda na hiância das outras
duas. Nós as chamaremos: Jouissance, Saber e Verdade. Assim, é
pela Jouissance que a Verdade vem resistir ao Saber. Nós,
psicanalistas, sabemos que a Verdade é a satisfação a que o prazer só
se opõe na medida em que ela se exila no deserto da Jouissance.
(Lacan, 2003 [1967], p. 357)

Retomo, então, a citação de Lacan no seminário O saber do psicanalista:


“Entre o homem e a mulher, há o amor. Entre o homem e o amor, há um mundo.
Entre o homem e o mundo, há o muro” (Lacan, 1972). O muro, a rocha – com
preferia Freud – é simplesmente o lugar da castração, “o que faz com que o saber
deixe intacto o campo da verdade, reciprocamente, aliás” (Lacan, 1972). E ele
acrescenta:

Se só se pode semi-dizer a verdade, está aí o nó, o essencial do saber


do analista [...]. É um saber que deve ser sempre colocado em questão.
Em compensação, da análise, há uma coisa que deve prevalecer, é que
há um saber que se retira do próprio sujeito [...]. É do tropeço, da ação
fracassada, do sonho, do trabalho do analisante que esse saber resulta,
esse saber que não é suposto, ele é saber, saber caduco, migalhas de
saber, sobremigalhas de saber, é isso o inconsciente. Esse saber é o
que assumo, o que defino, como somente podendo colocar-se pela
Jouissance do sujeito. (Lacan, 1972)

Assim, a realidade sexual, que é o inconsciente, inclui o impasse do não-


todo. E não é do defrontar-se com este impasse – questiona Lacan em
Encore – com essa impossibilidade de onde se define o real, que é posto
à prova o amor? Se é de um desejo de obter a diferença absoluta, à qual
o sujeito está assujeitado, que pode advir o amor fora dos limites da lei;
então esse novo amor, que pode ser escrito como (a)muro, só pode ser
sustentado em sua contingência se a presença da terceira puder ser
suportada.(Lacan, 1985 [1972/73])

É o que Lacan chama em Radiofonia de um savoir y faire (“se virar”) com a


Verdade, através de uma “outra ficção”, mais além da fixação da fantasia.

Referências bibliográficas

KUNDERA, M. (1983). A insustentável leveza do ser. Editora Nova Fronteira.


Rio de Janeiro.
LACAN, J. (1960). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano. In: Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1998.
_________ (1965). A ciencia e a verdade. In: Escritos. Op. Cit
_________ (1967). Da psicanálise e sua relação com a realidade. In: Outros
Escritos. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 2003.

  214  
________ (1970). Radiofonia. In: Outros Escritos. Op. Cit.
________ (1966-67). A Lógica da fantasia. Edição não oficial
________ (1969 – 70). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Trad. Ari
Roitman. Rio de Janeiro, Zahar, 1992.
_________ (1972-73). O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Trad. M.D.Magdo. Rio de
Janeiro, Zahar, 1982.
_________ (1972). O Saber do Psicanalista. Edição não oficial.

  215  
PRELÚDIO 1

O QUE RESPONDE O ANALISTA ? ÉTICA E CLÍNICA

Colette Soler

Falar de resposta é evocar indiretamente uma demanda ou uma questão prévia. Ambas
estão presentes em cada psicanálise e o analista, uma vez aceita a demanda de
análise, responde com a interpretação. No entanto, na estrutura do discurso, a oferta é
anterior à demanda e a condiciona, antes que o analista possa responder pela
interpretação. Em consequência, nosso título interroga tanto a especificidade da oferta
analítica quanto as vias de sua operação, e introduz duas grandes questões: a do ato
que o analista coloca em função de causa no tratamento e... na civilização, e a da
interpretação.
A oferta analítica inaugurada por Freud já era, ela mesma, uma resposta ao que ele
chamou de mal-estar. Era uma resposta que colocava em jogo um desejo dosaber, do
saber inconsciente, inédito. Mais de um século depois, as ofertas se multiplicaram pois
muitos se propõem a responder ao grande clamor da humanidade que sofre, mas sem
passar por um desejo do saber: os sacerdotes das diversas religiões, os gurus
inspirados das seitas, os especialistas da religião da ciência, e também os diversos
psicoterapeutas. Todos prometem outra coisa, e nesse concerto de vozes, de que
forma a do psicanalista ainda pode prevalecer? Será pelo saber específico que dela se
deposita, ou pelo desejo transformado que ela produz, ou através da solidariedade dos
dois?

A primeira urgência então é, sem dúvida, a de colocar a questão do passe como o fez
Lacan: o que leva alguém, se não é nem o dinheiro, nem a compaixão caritativa, a se
posicionar na trilha de Freud e a relançar o ato analítico? Só que esse passe tem um
alcance que não é somente individual, ele engaja a incidência política do ato na cultura
da época, sempre reafirmada por Lacan, e é bem possível que a perenidade da
psicanálise dele dependa.
Com efeito, se o discurso sobre o inconsciente é um discurso condenado de saída,
nada se deve esperar de qualquer proselitismo analítico mesmo que mediatisado, mas
sim, alguma coisa a aguardar dos efeitos do desejo de saber que faz o analista. Esse
desejo descentrado das finalidades do capitalismo, separa do rebanho, permite assumir
as consequências da solidão que o inconsciente programa para o falante exilado da
relação sexual. Essas consequências têm dois nomes clássicos: castração e sintoma.
Da primeira, ninguém escapa, a segunda inscreve a « diferença absoluta », real, de
cada um. A oferta que a psicanálise endereça aos sujeitos desvairados pelo capitalismo
pode então ser reformulada: você não quer saber nada sobre o que promovia seu
sofrimento?, você nada quer saber sobre o que você compartilha com todos os falantes
e que, ao mesmo tempo, produz a sua unicidade ímpar? Uma satisfação inédita poderia
seguir.
No tratamento propriamente dito, a questão é outra. Qual deve ser a réplica da
interpretação que responde à demanda analisante para que o analista seja esse
« parceiro com alguma chance de responder »[1], conforme a expressão de Lacan.
Chance, boa sorte (bon heur)? Mas isso não está ganho de saída, e Lacan precisava:
essa chance, desta vez devo fornecê-la. Será que isso quer dizer – e parece que sim –
que Freud não forneceu esse parceiro que tem a chance de responder ao amor de
transferência, esse amor que « se endereça ao saber »[2] ?
Sobre esse último ponto é preciso repartir de um pouco mais acima e, também, do
próprio Freud. Ele o merece por ter sido ele o inventor do dispositivo que constitui o
analista. Como ele respondeu e como ele procedeu em relação ao sintoma que o

  216  
inconsciente fomenta para dar sua resposta de interpretação? Ele inicia com o
deciframento da série dos signos que fazem o sintoma, do qual o Homem dos ratos é
um paradigma. Mas da série dos signos decifrados o sentido surge e é o que a
interpretação freudiana visa: o sentido do desejo. Ela pára no sentido dito sexual que a
fantasia sustenta. Lacan não se contrapõe, e o justifica ao dizer que esse sentido
sexual é antes ab-sexo por ter por expressão a « realidade sexual »[3] do inconsciente,
a saber, da memória de Freud, as pulsões recalcadas e seus mais de gozar, essas
« quatro substâncias episódicas »[4] do objeto a. Com elas se verifica que o sentido
sexual é somente « teste » da falta da relação sexual, fórmula imposta por todos os
ditos de Freud.
No entanto, resta o que não é nem « realidade sexual » nem fantasia, mas sintoma.
Sintoma como o que faz suplência à carência da relação mas não sem que seu núcleo
real, sem sentido, « antinômico a toda verossimilhança »[5]deixe de ter aí seu papel.
Que interpretação específica solicita o sintoma, não dada por Freud, e que possa dar
limite, como o diz Lacan[6], ao « sem diálogo » que é a regra na troca de palavras? A
chance de resposta se encontra do lado de Lacan: é preciso uma interpretação que não
se contente com a verdade, mas que leve em conta o real fora de sentido. A cargo
daqueles que aí se inspiram de fazerem sua clínica com isso.

Junho de 2011.

Tradução: Sonia Alberti e Elisabete Thamer

[1] Introduction à l’édition allemande des Ecrits, Scilicet 5 p. 16


[2] Ibid.
[3] Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Seuil, Paris 19 , p. 138.
[4] Note italienne, Autres écrits, Seuil, Paris 2001, p. 309.
[5] Préface à l’édition anglaise du Séminaire XI, Autres écrits, op. cité, p. 573
[6] Ou pire, Autres écrits, p. 551

  217  
SE FAZER NO REAL, CLÍNICA E ÉTICA.

Carmen Gallano

Clínica e ética, se definem com Lacan em uma relação com o real. A clínica é o que
chega ao analista a partir de seu encontro com o paciente: o real como o impossível
de suportar para esse sujeito. Quanto à Ética, Lacan assinala desde a primeira lição
de seu Seminário "A Ética da Psicanálise": "A questão ética, pelo quanto a posição
de Freud nos faz progredir nisso, articula-se numa orientação do homem em relação
com o real".

Na prática, a primeira resposta do analista, com seu dizer e seu fazer dizer ao
sujeito, aponta para que o real se inclua em um sintoma analisável: um nó de
sentido gozado nesses significantes que no inconsciente do sujeito portam um gozo
fora do sentido.

Só assim, quando o gozo desprazeroso do sintoma traz consigo o enigma do


sentido, o real da clínica abre caminho para a experiência do inconsciente. Pois a
emergência da pergunta no sujeito sobre "o que quer dizer este mal-estar?" o
impulsionará a querer decifrá-lo nos significantes de sua história, aqueles que o
determinaram no Outro e para o Outro.

Vemos então que tanto a Clínica psicanalítica, a do sintoma, como a Ética, a


do psicanalista, conectam o real com um dizer. São dois dizeres heterogêneos.

O dizer do analisante que entra na experiência do inconsciente na


transferência se dirige a uma busca de sentido que pudesse resolver o “ser de
verdade” do sintoma em um saber. E o que descobrirá é a significação de uma
repetição, que não esgota nenhum sentido, na qual o real se manifestará como
encontro falho, até que se desvele como motor. Quando cai a crença nos efeitos de
sentido e o sentido gozado na elucubração analisante, se joga para ele sua ética,
nesse encontro com o real, e se está disposto a renunciar à sustentação de seu
fantasma, que se tornou fonte de nefasta repetição e inoperante para encobrir a
radical falta do Outro.

Nos cartéis do Passe assistimos às vezes a testemunhos de analisantes em


duas vertentes: uns continuam degustando a proliferação de sentido com as
formações do inconsciente, deixando fora da análise algumas emergências do real
em passagens ao ato e acting-outs, que como de soslaio aparecem nos avatares de
sua história relatada, e outros situaram, não sem horror de saber, o objeto a de sua
fantasia de desejo, posto no analista, olhar ou voz, que então cai como depositário
do Sujeito suposto Saber, e o objeto de gozo pulsional que se fazem ser em sua
fantasia neurótica, oral ou anal, com as conseqüentes servidões na relação com o
Outro para mantê-lo sem falta.

Outros, ainda, e que têm mérito, testemunham do real com o qual se


confrontam em sua psicose, e suas respostas subjetivas frente a esse real, às vezes

  218  
com resultados surpreendentes de invenção sintomática, outras com uma certeza
que deriva em convicção delirante inquestionável.

Alguns se detém aí e outros não, pois alguns testemunham desse passo pelo
real que, trransformando-o de traumático em causa de um desejo de saber,
surpreendem o cartel com o modo singular pelo qual um sujeito se satisfaz do fora
de sentido de seu gozo e da relatividade de uma verdade de seu saber de sujeito,
com o que não se ocupará mais dela, para orientar-se nas marcas próprias de
sua lalingua.

É o que promoveu Gracián – e lhe custou a prisão pelas autoridades


religiosas – de quem Lacan tomou a ética do “bem dizer”. Disse sobre a verdade,
que esta sempre “estará de parto” e nunca terá nascido completamente em uma
ética do “bem dizer”, a do “discreto”. Nessa época, um bom autor de teatro do
“Século de Ouro”, Ruiz de Alarcón, encenou com genialidade os difíceis caminhos
de “A verdade mentirosa”, obra que não acredito que Lacan tenha lido, pois nesse
caso, a teria citado. E outro espanhol, não menos lúcido, o melancólico Goya,
ilustrou, em século posterior, quantos “sonhos da razão” engendram monstros ao
pretender fazer das verdades, saber.

Os monstros, como sabemos, são as figuras da fantasia, os modos nos quais


alguém “se sente ser” objeto do gozo do Outro, e nos quais se faz horrendo o gozo
do Outro. O modo no qual essas figurações deixam margem ao dizer do analista,
para que o analisante não fique nessas imaginarizações do real de sua posição de
objeto de gozo ou o de seus traumáticos parceiros, é um assunto crucial para o
desejo do analista. Esse desejo do analista se expressará em seu dizer e em seus
atos, orientados a tirar o analisante desse impasse.

Prestemos atenção ao que diz Lacan em seu Seminário Problemas cruciais


da psicanálise: “Nenhum desenlace é possível no enigma de meu desejo sem essa
passagem pelo objeto a. Escutei em uma de minhas análises, faz pouco tempo,
utilizar o termo, a propósito de alguém cuja análise não parece ter-lhe servido muito,
por suas qualidades pessoais. Ocorrem então – dizia meu analisado – ‘abortos
analíticos’. Me agradou bastante essa fórmula. Eu não a havia inventado. De fato;
existe um giro da análise, onde o sujeito permanece perigosamente suspenso nesse
feito de reencontrar sua verdade no objeto a. Pode manter-se aí, e isso se vê”1.

É nesse momento crucial no qual o sujeito padece de reduzir sua verdade ao


objeto a que se faz ser em sua fantasia, que se joga verdadeiramente a ética do
desejo do analista, quando já cabem apenas escassas interpretações significantes,
por mais que sabidas, que acentuem as marcas do dizer do Outro nas quais o
sujeito se fixou. E como nesses momentos cruciais, nos quais ocorre o final de uma
análise e o destino do desejo e do gozo de um analisante, opera ou não com
incidência na posição do sujeito, seu analista? Seria apenas assunto de uma
“qualidade pessoal” ou de como incide nela o analista?

Pouco se pode avaliar da resposta do analista nesses momentos cruciais


pela via dos testemunhos do Passe, eu o comprovei ao longo de 12 passes
recolhidos nos cartéis em que estive até agora: o falho do passe a analista fica do

  219  
lado do passante, por lógica, exceto em casos flagrantes de mal proceder do
analista dos quais testemunha, eventualmente, o passante.

Por isso, a questão que quero abordar neste Prelúdio para nosso Encontro no
Rio, é a que é mais difícil de examinar e sobre a qual careço de resposta: de que
modo o dizer do analista, que parte de sua relação com o real do inconsciente, com
um real que não é o da Clínica, pode incidir nos diversos avatares em que o
analisante padece do real de um gozo que não entra em seu desejo e incidir em
benefício da satisfação subjetiva desse analisante.

Na lição do Seminário citado, Lacan diz: “o real é o que não pode não ser”.
Definição que não resolve a especificidade do real que explode na crise atual do
capitalismo tardio e que gera “impossíveis de suportar” para massas crescentes de
população, tremendos sintomas sociais, mas Lacan, depois, esclareceu muito bem,
em “A Terceira”, a diferença do real que atravessa o discurso do mestre e o real do
sintoma de um sujeito, no qual atua o seu inconsciente particular.

E cabe a cada analista não deixar nunca de interrogar-se sobre o que o faz
analista: esse peculiar e incalculado dizer que tece suas respostas em relação com
o real que de tão diversos modos se apresenta em seus pacientes.

Madrid, 4 de setembro de 2011.

Tradução de Maria Luiza Sant‛Ana

1 Lição de 16 de junho de 1965. Seminario não publicado.


 
 

  220  
PRELÚDIO 3

O QUE O ANALISTA RESPONDE

Ana Laura Prates Pacheco

Em 1969, Lacan escreveu que em sua concepção, “o sintoma da criança acha-se


em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar”: a
verdade do casal parental. O emprego do verbo responder atribuído à posição da
criança, nesse contexto, pode ter também o sentido de corresponder, tal como no
poema de Baudelaire1 Correspondences: Lês parfums, les coulers et les sons se
répondent.2 Essa correspondência entre o Outro e o sujeito, remete ao irredutível da
transmissão de um desejo que não seja anônimo3.
Há uma topologia na transmissão, que reforça sua conotação de envio, de
algo que passa de um lugar para outro. Aqui, lembramos d’ A Carta Roubada, de
Edgar Alain Poe e do Seminário que Lacan lhe dedica: aquilo que falta em seu lugar
é o simbólico, já que o real o leva colado na sola. Quando se trata do sujeito do
inconsciente, do desejo e da falta, a carta – em sua eficácia simbólica – sempre
chega a seu destino. Ora, se cabe ao Outro transmitir a castração, cabe ao sujeito,
a resposta. Num primeiro momento, poderíamos afirmar que a resposta do sujeito à
falta do Outro é a fantasia, que sustenta o sintoma enquanto metáfora. Mas Lacan
avança do passo de sentido da metáfora ao sem sentido do gozo. Se a partir da
letra (carta), enquanto distinta do significante, podemos escrever o discurso sem
palavras, é porque há uma impossibilidade lógica do lado do pai. É lá onde o pai é
um lugar “vazio e sem comunicação” 4 (sem resposta) que ele exerce sua função de
transmissão, não somente do sentido que insiste e consiste, mas, sobretudo de uma
orientação que aponta para o real que ex-siste e para A mulher que não existe. À
verdade do casal parental – não há relação sexual –, o sujeito, resposta do real, co-
responde com o sintoma, um modo singular de gozo.
É com essa carta na manga que se chega ao psicanalista, aquele cuja oferta
possibilita a escrita do único discurso que agencia o objto a no lugar do semblante.
Eis a possibilidade inédita de um dispositivo que acolhendo a co-respondência entre
o sujeito e o Outro permitirá, entretanto, a escrita de uma carta (letra) que não seja
mais uma « roubada ». Não é que Lacan alce o analista – como queria Derrida – no
lugar do « carteiro da verdade ». Longe disso!
Qual é, então, a resposta do analista frente aos modos redutivos da demanda
neurótica que operam a exclusão do real como impossível? O analista, com seu ato,
responde com “a equivocidade pela qual cada alíngua se distingue”5. Assim, se a
resposta do analista – radicalmente original na civilização – resgata por um lado a
correspondência estraviada entre o sujeito e o Outro, é tão somente para
embaralhar suas letras esvaziando seu sentido. É a prática do analista que “deve
dar conta de que haja cortes do discurso tais que modifiquem a estrutura que ele
acolhe originalmente” 6. Eis a po(ética) do ato analítico. Em 1977, Lacan lança uma
provocação: seria, o Psicanalista, poeta o suficiente? Aqui, a resposta da
interpretação encontra a via pela qual se privilegia a homofonia e os jogos com a
língua. Esses jogos, segundo Lacan, “os poetas os calculam e o psicanalista se
serve deles onde convém”7. A suficiência poética do psicanalista, portanto, está,
desde sempre, no cálculo tático e na conveniência da resposta à orientação real do

  221  
nó bo que foraclui o sentido. À homofonia, poderíamos acrescenta a homonímia e o
jogo interlínguas, cujo paradigma é o texto de Joyce. Diz-se que o texto de Joyce
não tem sentido. Com efeito, no nível semântico, há um fracasso patente na
significação. Mas, quanto ao sentido, há uma proliferação tão grande que ele perde
o valor, apontando então para o ab-sens. Não se trata de modo algum de uma
escrita automática. Cada frase de Joyce foi construída como uma escultura, de
modo totalmente artificial e calculado. Lacan faz disso uma espécie de paradigma
metodológico: passar pelo sentido, usa-lo até gastar e deslocar seu peso para o
peso do real.
Ora, se a correspondência entre a linguagem e o real é da ordem do
impossível, se a transmissão integral é impossível, a pergunta que não se cala é
qual a resposta ética do psicanalista quando o destino da mensagem passa a ser
o ab-sens da relação sexual humana, tomada pelas palavras? Essa é a questão
clínica e ética essencial: a psicanálise não visa tanto a verdade por traz do que isso
quer dizer mas, antes, o fato de “que se diga”. Assim, borra-se a diferença entre a
verdade e a escroqueria. Mas, atenção: essa despretensão da verdade não justifica
em absoluto um relativismo da desconstrução, já que as “verdades mentirosas”
apontam todas para o real de que o gozo é a castração. Eis a ousadia clínica e ética
que a Psicanálise oferece: A aposta no bem dizer como resposta do psicanalista
frente ao impossível de dizer tudo é o que se espera da clínica do passe. Nas
palavras de Seprum: “Só o artifício de um relato que se possa controlar conseguirá
transmitir parcialmente a verdade do testemunho”.8 A construção de um artifício,
emprestar a materialidade da letra ao testemunho não é, portanto, algo espontâneo
e exige um desejo decisão, lá onde não há Outro que responda, nem sujeito que
corresponda. Lá onde não há carteiro da verdade há, entretanto algo que a
letra/carta carrega: “A borda do furo no saber, não é isso que a letra desenha?”9
Estamos, em nossa Escola, enfrentando o desafio de responder à questão sobre
quais as conseqüências de sustentar essa aposta, dando voz ao testemunho,
amplificando nossos sussurros na Polis, sem nos resignarmos ao “mutismo aflito”10,
como tão bem ilustra a magnífica foto da instalação de Anish Kapoor no cartaz de
nosso Encontro.

1 Baudelaire (1961). Les fleurs du mal. Paris, Librairie Marcel Didier.


2 Devo essa observação e a referência a esse poema a Sílmia Sobreira.
3 Lacan, Nota sobre a criança. (1969) In: Outros Escritos.
4 Lacan, O Seminário – livro 17 O avesso da psicanálise.
5 LACAN, J. O Aturdito. In Outros Escritos, p.492
6 LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 479
7 LACAN, J. O Aturdito. In op. Cit. p. 493.
8 SEPRUM, J. A Escrita ou a vida. São Paulo, Companhia da Letras, p. 22
9 LACAN, J. Lituraterra. In op.Cit.
10 SOLER, C. As condições do ato, como reconhecê-las? In: Wunsh n. 8
 
 

  222  
O FRENESI TEÓRICO SOBRE O SUJEITO DO CAPITALISMO TARDIO1
Raul Albino Pacheco Filho2

Ainda que a vocação proeminente e inquestionável da Psicanálise seja o


contexto clínico em que se originou, ela nunca se furtou a pronunciar-se sobre
aspectos e eventos relativos à sociedade e à cultura, desde o trabalho pioneiro de
Freud. Isso perpassa quase toda a obra freudiana, ainda que talvez se possa
observar uma intensificação progressiva, à medida que ela evolui: tanto na
quantidade dos textos, quanto na densidade e profundidade das reflexões. Aí estão
"Totem e tabu" (1913/1980), "Psicologia das massas e a análise do eu" (1921/1980),
"O futuro de uma ilusão" (1927/1980), "O mal-estar na civilização" (1930/1980), "Por
que a guerra?" (1933/1980) e "Moisés e o monoteísmo" (1939/1980), entre os mais
importantes, para nos lembrar que a relevância e qualidade do pensamento
freudiano dedicado às questões sociais não podem ser subestimadas.
Legitimados pelo fundador do seu campo, muitos psicanalistas têm se
animado a trazer novas contribuições. Sabemos que aí se inclui Lacan e, ainda que
se possa conferir merecido destaque ao Seminário 17 "O avesso da Psicanálise"
(1969-1970/1992), pela contribuição da teoria dos discursos ao entendimento do
laço social, é inegável que as reflexões que articulam o sujeito ao social fazem-se
presentes ao longo de todo o seu percurso. E não se poderia mesmo esperar algo
diferente de um pensador que desde a primeira fase de sua obra concebe a
subversão psicanalítica do sujeito a partir das ideias de "inconsciente como discurso
do Outro" e "desejo como desejo do Outro", representando-o topologicamente por
meio de modelos em que não é possível distinguir-se interior de exterior (como é o
caso da banda de Möebius).3
A importância que tem para a Psicanálise a articulação do sujeito ao social
pode ser dimensionada na frase de Freud encontrada no primeiro parágrafo de
"Psicologia das massas", de que "apenas raramente e sob certas condições
excepcionais, a psicologia individual se acha em posição de desprezar as relações
desse indivíduo com os outros" (1921/1980, p. 91). Isso não implica que a maior
parte da reflexão psicanalítica se dedique a investigar aspectos específicos dos
laços sociais em sociedades e culturas determinadas. Pelo contrário, em grande
parte das vezes o pensamento da Psicanálise volta-se para teorizar um sujeito
genérico (o sujeito humano) em suas relações com a estrutura transistórica da
Linguagem. Para raciocinarmos a partir de um exemplo bem conhecido, basta
                                                                                                               
1
Publicado em RUDGE, Ana Maria & BESSET, Vera L. (orgs.) Psicanálise e outros saberes. Rio de
Janeiro, Cia de Freud/FAPERJ, 2012. Uma versão bastante reduzida do conteúdo deste artigo foi
apresentada no I Congresso Latino-Americano de Psicanálise na Universidade "A Clínica do Mal-
Estar", realizado de 29 a 31 de agosto de 2011, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), sob patrocínio da UERJ e da Universidade de Buenos Aires (UBA).
2
Raul Albino Pacheco Filho é Professor Titular da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), atuando na graduação e na pós-
graduação, onde coordena o Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade. Membro da Escola de
Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano (EPFCL - Brasil) e da Internacional dos Fóruns do
Campo Lacaniano (Fórum de São Paulo).
3
É claro que cabe aqui um alerta contra simplificações da obra de Lacan que distorcem a essência
do seu pensamento, já que, como nos lembra Ogilvie, o que Lacan descobriu no confronto entre
Biologia e Clínica é a "descontinuidade radical que separa a cultura da função subjetiva. (...)
Natureza, cultura, subjetividade: é pensando a negatividade que as une sob a forma de sua
separação que se confere ao psiquismo uma dimensão própria." (OGILVIE, 1987/1991, p.97)

  1  
lembrarmos as formalizações teóricas do Seminário 11 "Os quatro conceitos
fundamentais da Psicanálise" (1964/1985), sobre as operações de alienação e
separação, em sua relação com a constituição do sujeito no campo do Outro. Aqui o
pensamento de Lacan remete à relação do ser humano genérico com o campo do
Simbólico, o Outro em suas articulações com o Imaginário e o Real, e não à
elucidação de aspectos específicos encontrados em uma sociedade particular. A
alienação de que se trata, aqui, é estrutural e não se confunde com a alienação
histórica do capitalismo, teorizada por Marx, do mesmo modo que o 'mais-de-gozar'
não se confunde com a 'mais-valia'. Cito Lacan no Seminário 16 "De um Outro ao
outro" (1968-1969/2008): "Não é pelo fato de o trabalho implicar a renúncia ao gozo
que toda renúncia ao gozo só se faz pelo trabalho." (p. 39)
Mas os psicanalistas também têm trazido suas contribuições para se pensar
os laços sociais em sociedades específicas, como o fez Lacan, por exemplo, com
suas reflexões sobre o que, em certas ocasiões, chamou o "discurso do capitalista":
“Não se esperou, para ver isso, que o discurso do mestre tivesse se desenvolvido
plenamente para mostrar sua clave no discurso do capitalista, em sua curiosa
copulação com a ciência.” (LACAN, 1969-1970/1992, p.103). E foi em uma
conferência realizada na cidade de Milão, em 12 de maio de 1972 (LACAN,
1972/1978), que ele colocou na lousa uma fórmula para representar esse discurso4:

Desde então, muitos outros psicanalistas ou pensadores inspirados na


Psicanálise têm trazido reflexões a respeito das transformações que se
observariam, da época de Freud até nossos dias, nos sujeitos da sociedade
ocidental capitalista e nos laços sociais estabelecidos entre eles. E o que vou tomar
como foco de atenção crítica aqui é um conjunto determinado de formulações, a
esse respeito, que incidem no mesmo erro comum de pretenderem delimitar um
ponto de ruptura, a partir do qual teria emergido um 'novo sujeito'. Novo sujeito que
poria em xeque as formulações teóricas e conceituais desenvolvidas para a
compreensão do sujeito de períodos históricos precedentes, ou, no mínimo, exigiria
uma utilização radicalmente distinta dos conceitos e proposições anteriormente
empregados. Refiro-me a concepções como "queda do simbólico", "declínio da
função paterna", "sujeito pós-moderno", "perversão generalizada", "condição pós-
humana" e "substituição de um supereu repressivo por um supereu que convoca ao
gozo".
Não é minha intenção oferecer uma crítica aprofundada de cada uma destas
formulações, nem os argumentos que se poderia arrolar para cada uma delas, em
particular. Fiz isso de forma algo breve, mas minimamente suficiente, em um artigo
no primeiro número de A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e Filosofia – "A
praga do capitalismo e a peste da Psicanálise" (2009) –, em relação à proposição de

                                                                                                               
4
Passo ao largo das controvérsias sobre se o "discurso do capitalista" seria ou não um quinto
discurso, por entender que isso não modifica substancialmente os argumentos aqui apresentados,
dada a distinção que se deve estabelecer entre alienação histórica e alienação estrutural do sujeito e
a diferença entre sujeito e subjetividade, comentadas adiante, no texto. Uma visão geral dessa
querela pode ser encontrada nos textos a seguir: (BRUNO et al, 1991/1997; CHEMAMA, 1991/1997;
SOUEIX, 1991/1997; e GOLDEMBERG 1997). Braunstein (2010) também traz uma opinião sobre o
assunto.

  2  
um pretenso (mas falso) declínio da função paterna. Remeto a ele os que se
interessarem em conhecer minha crítica a esse respeito. E remeto ao livro "Lacan y
las ciencias sociales: la declinación del padre" (2001/2002), os que quiserem
conhecer as evidências importantes e aprofundadas que Zafiropoulos traz para se
rejeitar a pretensão de se buscar apoio, na obra de Lacan, para as idéias de declínio
da função paterna, de desaparecimento do recalque e de perda da relevância dos
processos de simbolização. Remeto, finalmente, a Askofaré (2006), os que
quiserem conhecer sua crítica sobre a noção de "perversão generalizada".
O que eu pretendo apontar, neste texto, são as consequências negativas,
para o campo da Psicanálise, da já mencionada estratégia explicativa comum a todo
o conjunto dessas formulações postas em foco. Ou seja, a de elas recorrerem à
concepção de um sujeito inédito, na cena histórica, que teria emergido no
capitalismo tardio ou capitalismo de consumo: sujeito, este, para o qual não mais
teriam vigência as concepções psicanalíticas anteriormente formuladas por Freud,
ou por um suposto "primeiro Lacan" (ao qual se oporia um suposto "segundo" ou um
suposto "terceiro"), ou por outros pensadores da Psicanálise anteriores ao período
de surgimento deste sujeito. É este o elemento comum subjacente a todas as
formulações referidas: a preferência por se conjecturar uma modificação na
estrutura do sujeito, em lugar de se enfatizarem as transformações discursivas (no
laço social) que surgiram nas novas circunstâncias históricas.
E o primeiro âmbito em que eu quero inserir minhas considerações é o
epistemológico. Para isto buscarei apoio nos adversários do Positivismo, que
questionam a idéia de um desenvolvimento linear, gradualmente progressivo e
contínuo das investigações e realizações científicas e privilegiam uma concepção de
corte epistemológico, revolução e ruptura5. Refiro-me a pensadores como Koyré,
Bachelard e Kuhn, lembrando que Koyré foi uma referência essencial tanto para
Lacan6 quanto para Kuhn7:
As principais obras de Koyré são seus estudos de história da filosofia e
história da ciência, bem como suas pesquisas sobre a estrutura das teorias
científicas modernas. Koyré contribuiu para o desenvolvimento da idéia de
estrutura epistemológica e de paradigma epistemológico, que depois
alcançou grande ressonância na obra de Thomas Kuhn, que reconheceu a
influência de Koyré sobre seus trabalhos de história e de filosofia da ciência.
Essa mesma idéia, ao lado da noção de "corte epistemológico", que
encontramos, em diversas formas e graus de desenvolvimento, em autores
como Gaston Bachelard e Michel Foucault, teve abertos os caminhos de seu
desenvolvimento nos detalhados estudo históricos – sobre Galileu, a
"revolução astronômica" etc. – realizados por Koyré. (FERRATER-MORA,
1994/2004, v. 3, p. 1657)
São autores que, além do mais, contestam a separação radical entre fato e
teoria: "O empirismo não conduz a parte alguma." (Koyré, 1966/1982, p.77); "Longe
de se oporem uma à outra, a experiência e a teoria são ligadas e mutuamente
interdeterminadas (...)" (Koyré, Ibid.). Ou ainda, como diz Hanson:
                                                                                                               
5
Ruptura epistemológica: Expressão introduzida por Bachelard para evidenciar que a historia da
ciência não avança de modo "continuísta", ou seja, de maneira unilinear e cumulativa, mas segundo
saltos e fraturas, através de verdadeiras "revoluções" teóricas, que anulam ou retificam radicalmente
(pensemos em Galileu, Darwin, Einstein etc.) os quadros conceituais precedentes. (ABBAGNANO,
1998/2007, p.394)
6
Em "A ciência e a verdade", Lacan afirmou: "Koyré é nosso guia aqui" (1966/1998a, p.870).
7
Em "A tensão essencial" Kuhn disse "Koyré tem sido meu maître" (1977/2011, p.46).

  3  
(...) observações e interpretações são inseparáveis – não apenas no sentido
de que nunca se manifestam separadamente, mas no sentido de que é
inconcebível manifestar-se qualquer das partes sem a outra. (...) Separar a
urdidura do tecido destrói o produto; separar a pintura da tela destrói o
quadro; separar matéria e forma numa estátua torna-a ininteligível. Assim
também, separa os sinais-de-apreensão-de-sensações da apreciação-do-
significado desses sinais destruiria o que entendemos por observação
científica ... A concepção de observação proposta pelos neopositivistas – por
meio da qual o registro de dados sensórios e nossas elaborações intelectuais
relativas a eles se mantêm apartados – é um golpe analítico equivalente ao
de um açougueiro lógico. (1967/1975, p. 127-128)
Vamos lembrar a incorreção, apontada por Kuhn, da abordagem dos campos
científicos que dão ênfase quase exclusiva à 'obra individual': "Tentei enfatizar, ao
contrário, que, embora a ciência seja feita por indivíduos, o conhecimento científico
é intrinsecamente produto de um grupo" (1977/2011, p.21). A própria eficácia
peculiar dos empreendimentos científicos e a maneira como eles se desenvolvem
não podem ser compreendidos "se não houver referência à natureza especial dos
grupos que o produzem." (Id.) E o aspecto importante a registrar é o fato de que o
campo de uma nova disciplina científica sempre se constitui a partir de uma ruptura
com a ordem científica anterior (um corte epistemológico), em que surgem novos
'compromissos de investigação' adotados pela comunidade do campo. Resumi da
seguinte forma, em outro lugar, a concepção kuhniana de revolução científica:
As revoluções científicas consistiriam nesses episódios extraordinários, em
que investigadores extraordinários conduziriam a comunidade da disciplina a
um novo conjunto de compromissos de investigação, que subverteriam a
tradição de pesquisa da área ditada pelo paradigma anteriormente vigente.
Eles implicariam transformações radicais, tanto da concepção do universo em
estudo e dos objetos de pesquisa, quanto das regras que ditam a prática
científica na disciplina. (PACHECO FILHO, 2000, p. 242)

Incluídos entre estes "compromissos de investigação' compartilhados pela


comunidade de um campo científico, implicados pela instalação de um paradigma,
encontraríamos: a) o que se refere às entidades fundamentais que compõem o seu
universo de estudos; b) o modo pelo qual elas interagem umas com as outras; c) as
questões, a respeito destas entidades, que constituem problemas legítimos e
relevantes a serem investigados; e d) os métodos pelos quais elas podem ser
investigadas.
É pensando a este respeito, no caso específico da Psicanálise, que eu quero
lembrar a proposição de Althusser, de que Freud pôde oferecer à Psicanálise a
estrutura de uma verdadeira ciência, ao delinear de modo adequado e consistente:
"a definição de seu objeto, de seus limites e de sua extensão, a caracterização de
suas condições, de suas formas de existência e de seus efeitos, a formulação das
exigências que se devem cumprir para compreendê-lo e atuar sobre ele." 8
(ALTHUSSER, 1976/1985, p.76) Proposição à qual deveríamos alinhar a seguinte
afirmação de Lacan no Seminário 11 "Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise":
Assim, para autorizar à psicanálise chamar-se uma ciência, exigiremos um
pouco mais. O que especifica uma ciência é ter um objeto. Podemos
                                                                                                               
8
Grifos meus.

  4  
sustentar que uma ciência é especificada por um objeto definido, pelo menos
por um certo nível de operação, reprodutível, que chamamos experiência.9
(1964/1985, p.15).
E se estamos falando do objeto de estudo da Psicanálise, parece-me fora de
dúvida que isso implica em se considerar a sua descoberta do inconsciente, a
subversão do sujeito que ela implica e o gozo.
O que temos a salientar aqui é que pretendemos trilhar a posição científica,
analisar de que modo ela já está implicada no que há de mais íntimo na
descoberta psicanalítica.
Essa reforma do sujeito, que é aqui inauguradora,deve ser relacionada com a
que se produz no princípio da ciência. (LACAN, 1966/1998b, p.234)
Mas lembremos que, em se tratando da Psicanálise, "o sujeito está, se nos
permitem dizê-lo, em uma exclusão interna a seu objeto." (LACAN, 1966/1998a,
p.875) Esse objeto, o objeto a, "deve ser inserido, já o sabemos, na divisão do
sujeito pela qual se estrutura, muito especialmente, e foi disso que hoje tornamos a
partir, o campo psicanalítico." (Ibid., p.877-878) E, em meados dos anos 60, Lacan
já tinha como absolutamente claro que, para a Psicanálise, a teoria do objeto a era
necessária "para uma integração correta da função, no tocante ao saber e ao
sujeito, da verdade como causa." (Ibid., p. 890)
Como lembra Chatelard (2005), "o brilho do objeto sob sua face agalmática
brilha e dá corpo à vacuidade do sujeito" (p. 186), sustentando a fantasia e lhe
fornecendo a sua armação. E sabemos como as formulações sobre o sujeito, assim
como as a respeito do objeto, passaram por uma progressão teórica substancial, ao
longo da obra lacaniana, embora sempre convergindo para uma direção consistente
e unívoca, cada vez melhor posta em relevo. No caso do objeto, foi preciso passar
primeiramente pela versão do objeto agalmático, em seguida "pelo objeto dejeto, até
chegar ao objeto sem idéia introduzido por Lacan na última parte de seu ensino." 10
(Ibid., p.187).
Se concordarmos com Lacan, nenhuma confusão é possível: "a investigação
de Freud não nos introduziu a casos mais ou menos curiosos de uma segunda
personalidade". (1958/1998a, p.528) Empregando suas próprias palavras: "Wo Es
war, soll Ich werden" (Freud, 1933/1999, p.86), traduzidas por Lacan: "Lá onde isso
foi, ali devo advir." (1958/1998a, p.528,) Para Lacan, o que a experiência freudiana
atesta é que o sujeito humano é habitado por um desejo inconsciente, que pode ser
encontrado numa estrutura do sujeito enquanto falante (Ogilvie, 1987/1991, p.130);
e cujo entendimento sempre requer que se considerem os três componentes da
tríade RSI (real, simbólico e imaginário). Em se tratando de Psicanálise, seu objeto
compreende necessariamente o sujeito do inconsciente, sua fantasia e seu gozo; o
que inclui, obviamente, o objeto a.
Não vou entrar aqui na questão das convergências ou divergências que se
poderiam divisar entre as concepções de Freud e Lacan, ou na discussão sobre se
Freud é ou não 'Pai' de Lacan11, ou ainda sobre se Lacan subverte ou não as
concepções freudianas. Escrevi sobre isso em "Freud e Lacan: filiação ou
subversão?" (PACHECO FILHO, 2008). Também não entrarei na discussão sobre
                                                                                                               
9
Grifos meus.
10
Grifos incluídos no original.
11
No sentido em que Althusser (1976/1985) disse que Freud e Marx são “filhos sem pai”, em virtude
da “solidão teórica” em que se encontraram, por não poderem contar com ‘pais teóricos’ que lhes
oferecessem conceitos para poderem exprimir as descobertas extraordinárias com que se depararam
em suas práticas.

  5  
se Lacan mudou ou não, mais para o final do seu ensino, sua posição a respeito da
articulação entre Psicanálise e Ciência 12 . Embora esta seja uma discussão
relevante, não é o meu foco neste trabalho. Para o que desenvolvo aqui, basta-me
considerar que houve um período em que Lacan manifestou-se positivamente sobre
esta articulação.
O importante para o argumento que desenvolvo aqui é considerar que, uma
vez estabelecidos e consolidados os 'compromissos de investigação' que
inauguraram o novo campo, em seu corte epistemológico, eles aí passam a guiar
todo o trabalho de pesquisa: seja ele teórico, ou de investigação e sistematização
dos fatos relevantes. Como diz Koyré (1953/1991):
"(...) uma pura coleção de dados da observação e da experiência não
constitui uma ciência. Os 'fatos' têm de ser ordenados, interpretados,
explicados. Em outras palavras, só quando é submetido a um tratamento
teórico é que o conhecimento dos fatos se torna uma ciência."
Ou, como diz Kuhn, "os chamados fatos demonstraram jamais ser meros
fatos, independentes das crenças e teorias existentes." (1991/2006, p.136) E os
conceitos de sujeito e de objeto (aí implicados o inconsciente, o desejo, a falta e o
gozo) parecem-me ser o aspecto principal da radical subversão trazida pela
Psicanálise: sua subversão, sua 'peste'. Como diz Lacan no próprio título de um dos
capítulos dos "Escritos": "Do sujeito enfim em questão" (1966/1998b, p.229).
Também não pode ser considerado casual que a sua escolha para o título de suas
contribuições aos "Colóquios Filosóficos Internacionais" de Royaumont, em 1960,
tenha sido "Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano".
Este sujeito e seu objeto constituem as marcas essenciais da Psicanálise. São eles
que delimitam suas fronteiras e a distinguem de outras abordagens do ser humano.
"A Psicanálise, o que ela nos ensina: ... no inconsciente, que é menos profundo do
que inacessível para o aprofundamento consciente, isso fala: um sujeito no sujeito
(...)" 13 (1957/1966, p.438)
Daí minha crítica às formulações que buscam elucidar os acontecimentos da
sociedade contemporânea a partir da postulação de um 'novo sujeito'. Elas se
furtam a uma das atividades de importância destacada na investigação científica em
um campo consolidado, que é a busca de se encontrar articulações entre a teoria e
fatos novos a ela ainda não subsumidos, sem a modificação dos seus fundamentos
principais. Pois, quando "um paradigma que foi desenvolvido para um determinado
conjunto de problemas é ambíguo na sua aplicação a outros fenômenos
estreitamente relacionados" (KUHN, 1962/1998, p.50), desencadeia-se uma
atividade dos investigadores do campo destinada a encontrar modos de se integrar
os novos fenômenos ao universo dos eventos que encontram sua explicação no
âmbito do paradigma. Apenas para tomarmos um exemplo conhecido por todos,
                                                                                                               
12
Lacan iniciou a aula de 15 de novembro de 1977 do Seminário 25 "O momento de concluir",
afirmando: "O que tenho a dizer é que a psicanálise deve ser levada a sério embora não seja uma
ciência. O problema, como Karl Popper mostrou com insistência, é que ela não é absolutamente uma
ciência porque é irrefutável. É uma prática, uma prática que durará o que durar. É uma prática de
tagarelice." (1977-1978/2000) ["Ce que J'ai à vous dire, je vais vous le dire, c'est que 1a
psychanalyse est à prendre au sérieux, bien que ça ne soit pas une science. C'est même pas une
science du tout. Parce que l'ennuyeux, comme l'a montré surabondamment un nommé Karl Popper,
c'est que ce n'est pas une science parce que c'est irréfutable. C'est une pratique. C'est une pratique
qui durera ce qu'elle durera, c'est une pratique de bavardage." (1977-1978)] Lembro que a
concepção de ciência de Popper foi criticada por Kuhn.
13
Grifos meus.

  6  
considere-se a maneira pela qual Lacan subsumiu a psicose à teoria psicanalítica,
por meio da Verwerfung freudiana, possibilitando à Psicanálise "não mais recuar
diante da psicose" em sua prática clínica. É "(...) no fracasso da metáfora, que
apontamos a falha que confere à psicose sua condição essencial, com a estrutura
que a separa da neurose." (LACAN, 1958/1998b, p.582) Solução, esta, encontrada
por Lacan para dar conta do fato de que "meio século de freudismo, aplicado à
psicose deixa[va] seu problema ainda por repensar, ou, em outros termos, no statu
quo ante." (Ibid., p.537) Kuhn chamou a isto de atividade de resolução de "enigmas
de pesquisa" ou "quebra-cabeças".
Determinação de fatos significativos, harmonização dos fatos com a teoria e
articulação da teoria (...) a maioria esmagadora dos problemas que ocupam
os melhores cientistas coincidem com uma das três categorias delineadas
acima. O trabalho orientado por um paradigma só pode ser conduzido dessa
maneira. Abandonar o paradigma é deixar de praticar a ciência que este
define. (KUHN, 1962/1998, p.55)
Não é que o abandono de paradigmas seja uma situação inteiramente
ausente da história do conhecimento científico: "tais deserções realmente ocorrem."
(Id.) Porém, aqui estamos no âmbito das circunstâncias muito mais raras,
constituídas pelas grandes "revoluções científicas". E, ao menos em 1957, Lacan
não pretendia afastar-se do paradigma freudiano:
Deixaremos neste ponto, por ora, essa questão preliminar a todo tratamento
possível das psicoses, que introduz, como vemos, a concepção a ser
formada do manejo, nesse tratamento, da transferência.
Dizer o que podemos fazer nesse terreno seria prematuro, porque seria ir,
agora, 'para -além de Freud', e não se trata de superar Freud quando a
psicanálise segundo Freud, como dissemos, voltou à etapa anterior.
Pelo menos, é isso que nos afasta de qualquer outro objetivo senão o de
restaurar o acesso à experiência que Freud descobriu.
Pois usar a técnica que ele instituiu fora da experiência a que ela se aplica é
tão estúpido quanto esfalfar-se nos remos quando o barco está encalhado na
areia. (1957/1998, p. 590)
É neste ponto que eu quero realçar os problemas derivados do abandono
precipitado dos fundamentos principais do arcabouço psicanalítico, como via
explicativa para os novos acontecimentos da sociedade contemporânea. Tendo ou
não consciência do fato, quem segue este caminho arroga-se a pretensão de
revolucionar o campo da Psicanálise. A proposição de novas bases conceituais
('novo sujeito') para se explicar os fenômenos do capitalismo tardio, em substituição
à busca de resolução dos "enigmas de pesquisa" ou "quebra-cabeças" que eles
constituem para a já consolidada concepção de sujeito da Psicanálise, esconde um
perigo importante para o campo, ainda que pareça uma alternativa mais cômoda e
fácil, em sua aparente 'novidade'. Refiro-me à fragmentação do campo: um
problema recorrente que há muito merece ser objeto de maior atenção dos
psicanalistas interessados em que seu campo não se dissolva por pulverização. E
para isto é essencial um maior cuidado com o eixo conceitual central, a um só
tempo teórico, metodológico e epistemológico, que aglutina a comunidade
psicanalítica.
A proliferação indiscriminada de conceitos centrais não é indício de
criatividade teórica ou originalidade das idéias. Pelo contrário, ela mimetiza a lógica
do 'discurso capitalista', em sua substituição frenética de
mercadorias/marcas/modelos, de modo a se tamponar a 'falta'. Serve-se o

  7  
semblante de totalização da 'falta', por meio da troca acelerada e irrefletida dos
fundamentos teóricos e conceituais, como modo de se tentar lidar com a
impossibilidade de totalização do saber. Uma nova marca, um novo modelo, um
novo 'paradigma' (no sentido kuhniano) por mês talvez caracterize a estratégia de
marketing que se dissimula por trás do argumento de que nenhum campo do saber
é absoluto e completo: proposição correta em seu conteúdo, mas falsa na pretensão
de embasar o referido modus operandi como solução. E não se alegue em seu favor
a flexibilização que o último Lacan oferece às diferenças conceituais entre as
estruturas, com o seu questionamento à prerrogativa do Nome-do-Pai na amarração
dos três registros, pois isto não desaconselha a desarticulação com a primeira parte
de sua obra. Lacan nunca fez isto com Freud: não desconsiderou nem mesmo o
"Projeto de uma psicologia para neurólogos" ([1895]/1980), como se pode constatar,
por exemplo, no Seminário 7 (1959-1960/2008).
O segundo âmbito de minhas considerações é o político. Além do já citado
emprego da lógica do discurso capitalista, a estratégia explicativa que se propõe
apoiar-se essencialmente na formulação do surgimento de um 'novo sujeito', em
lugar de apoiar-se na investigação das transformações no laço social do capitalismo
tardio, implica ainda o prejuízo de se subestimar a importância apontada por Marx
das relações de produção e do aspecto econômico.
O que é a sociedade, qualquer que seja a sua forma? O produto da ação
recíproca dos homens. Os homens podem escolher, livremente, esta ou
aquela forma social? Nada disso. A um determinado estágio de
desenvolvimento das faculdades produtivas dos homens corresponde
determinada forma de comércio e de consumo. A determinadas fases de
desenvolvimento da produção, do comércio e do consumo correspondem
determinadas formas de constituição social, determinada organização da
família, das ordens ou das classes; numa palavra, uma determinada
sociedade civil. A uma determinada sociedade civil corresponde um
determinado estado político, que não é mais que a expressão oficial da
sociedade civil. (...) É supérfluo acrescentar que os homens não são livres
para escolher as suas forças produtivas – base de toda a sua história –, pois
toda força produtiva é uma força adquirida, produto de uma atividade anterior.
Portanto, as forças produtivas são o resultado da energia prática dos
homens, mas essa mesma energia é circunscrita pelas condições em que os
homens se acham colocados pelas forças produtivas já adquiridas pela forma
social anterior, que não foi criada por eles e é produto da geração
precedente. O simples fato de cada geração posterior deparar-se com forças
produtivas adquiridas pela geração precedente (...) cria na história dos
homens uma conexão, cria uma história da humanidade (...). 14 (MARX,
1846/2009, p.245, apud PAULO NETTO, 2011, p.34)
É verdade que uma versão reducionista e simplificada do pensamento
marxiano, pretendendo alocar na infraestrutura econômica os únicos fatores causais
relevantes para a compreensão do capitalismo, subestima a importância do
imaginário e do simbólico no entendimento da sideração que a ideologia provoca
nos sujeitos. Mas o acento em um dos pólos não aconselha a negligência do outro,
como quando "a ciência burguesa suprimiu os nexos íntimos, essenciais, entre a
economia e a política, e a subordinação ontológica da segunda à primeira" (TONET,
2010, p.16), com o pretexto de "defender a autonomia dos diversos momentos do
                                                                                                               
14
Grifos do próprio Marx.

  8  
ser social e de evitar o economicismo" (Id.). Mesmo porque, a estratégia explicativa
de Marx "não se restringe às relações econômicas (...). Ao analisar o capitalismo,
Marx apanha os fenômenos como fenômenos sociais totais" (IANNI, 1992, p.7),
tanto em seus aspectos econômicos quanto políticos e ideológicos.15
Sem excluir os determinantes históricos, econômicos e ideológicos,
considere-se agora que cabe acrescentar, ainda, ao entendimento da vida social e
das relações entre os seres humanos, aquilo que remete às relações do sujeito com
a estrutura da linguagem e o que isso implica a respeito do seu gozo. Pois as
determinações históricas – aí incluído o que diz respeito à infraestrutura e à
superestrutura – não esgotam o assunto:
Vocês estariam errados em acreditar que a relação do homem com o objeto
de sua produção, quanto a seu móvel primordial, esteja completamente
elucidada, e até mesmo em Marx, que a esse respeito levou as coisas bem
adiante. (LACAN, 1959-1960/2008, p.270)
O problema dos bens se coloca no interior do que é a estrutura, se devemos
acreditar nos linguistas. (Ibid., p.272)
(...) há no início outra coisa além de seu valor de uso – há sua utilização de
gozo. (Ibid., p.273)

Mas há ainda mais! Não se podem esquecer, além de todo o anterior, os


discursos que estruturam os laços sociais, que a Psicanálise permitiu esclarecer.
Sim, porque, como mostra Lacan no "Seminário 17" (1969-1970/1992) e em outros
pontos de sua obra, os discursos são aparelhos ordenadores do gozo. E aqui cabe
compreender que mais-valia e fetichismo da mercadoria remetem às formas
particulares em que o mais-de-gozar, os discursos de mestria e a fetichização das
relações entre os sujeitos se estruturam em um momento definido da História.
O que Marx denuncia na mais-valia é a espoliação do gozo. No entanto, essa
mais-valia é o memorial do mais-de-gozar, é o seu equivalente do mais-de-
gozar. A sociedade de consumidores adquire seu sentido quando ao
elemento, entre aspas, que se qualifica de humano, se dá o equivalente
homogêneo de um mais-de-gozar qualquer, que é o produto de nossa
indústria, um mais-de-gozar – para dizer de uma vez – forjado. (LACAN,
1969-1970/1992, p.76)
Aquilo a que Lacan se refere quando menciona o discurso do capitalismo –
independentemente das controvérsias sobre se constitui um quinto discurso ou uma
versão modificada de algum dos outros quatro –, mostra a forma histórica particular
em que, em nossa época, se exerce a mestria do discurso: capitalista e operário são
as versões contemporâneas do Senhor e do Escravo. E a fetichização das relações
entre os objetos (fetichismo da mercadoria) constitui a forma contemporânea pela
qual se exercem as relações de dominação entre os sujeitos.
Substituir todo o anterior pela concepção do surgimento de um 'novo sujeito'
incorre no equívoco de se tentar subsumir a alienação histórica na alienação
estrutural do sujeito, quando, de fato, trata-se de fatores interconectados que não se
                                                                                                               
15
Defendendo o pensamento de Marx e o seu próprio da acusação de reducionismo economicista,
Engels observou que a tese sustentada por eles era de que a produção e a reprodução da vida real
apenas em última instância determinavam a história: "Se alguém o tergiversa, fazendo do fator
15
econômico o único determinante, converte esta tese numa frase vazia, abstrata, absurda." (MARX
e ENGELS, apud PAULO NETTO, 2011, p.14) Como disse Lukács, "é o ponto de vista da totalidade
e não a predominância das causas econômicas na explicação da história que distingue de forma
decisiva o marxismo da ciência burguesa." (´1923/2003, p.14).

  9  
subsumem um no outro e que também não são mutuamente excludentes. Como diz
Lacan, "não vejo bem em que a referência estrutural desconheceria a dimensão da
história." (LACAN, 1968-1969/2008, p.36) Analisando essa questão, Askofaré
esclarece a diferença entre sujeito – um conceito lacaniano bem definido, em que
prevalecem "sua determinação e sua definição a partir da estrutura da linguagem e
das operações trans-históricas que ela impõe" (ASKOFARÉ, 2009, p.165) – e
subjetividade, um termo empregado por Lacan apenas em algumas ocasiões16, mas
que permite pôr em relevo um tema essencial:
No presente artigo, nós nos ativemos a reanimar uma outra perspectiva,
aquela da subjetividade histórica, sustentada sobre as categorias de discurso
e de saber, que indica em que a articulação do sujeito e do laço social requer
a colocação em jogo de figuras da subjetividade – distinta da estrutura do
sujeito – relativas aos tipos de saberes histórica e culturalmente
determinados. (Askofaré, 2009, p.165)
A confusão entre as duas coisas implica em um problema a mais, que se
agrega ao já discutido problema de abandono dos fundamentos essenciais do
campo da Psicanálise. As desatenções às determinações históricas e às formas
discursivas de regulação do gozo do sujeito desconsideram o capitalismo como
forma histórica de sociedade, colocando fora do escopo de discussão as
possibilidades de sua superação. A menção à forma histórica capitalista é
substituída pela oposição entre sujeito moderno e sujeito pós-moderno, ou pelas
formulações sobre a 'perversão generalizada' dos sujeitos, ou ainda pelos distúrbios
que o 'declínio do Pai' ou a 'queda do simbólico' teriam operado sobre os sujeitos. E
estas formulações servem ao recobrimento e à dissimulação do conflito17 entre as
classes e os grupos sociais.
Esta via só pode conduzir à bifurcação que deixa como únicas alternativas: a)
de um lado, a glamorização de uma certa crítica inócua e sem consequências, que
se satisfaz em descrever e lamentar os acontecimentos, sem apontar um caminho
de transformação social (atitude de um certo 'relaxa e goza', pois não há o que
fazer); b) de outro, ainda pior, uma certa indignação moralista combinada com uma
nostalgia reacionária, que reclama a volta do 'Pai' poderoso e prepotente, que seria
capaz de utilizar sua mão forte e sua lei isenta de ambiguidades na restauração da
ordem e das certezas. 18 Será este o caminho que resolverá os problemas do
capitalismo tardio?
No já mencionado artigo para A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade e
Filosofia (PACHECO FILHO, 2009), argumentei que a crítica de Lacan ao
capitalismo está adiante do que seria um ponto de vista meramente moral. Fiz isto a
partir da análise de como o valor-de-troca, ao surgir na cena histórica, constituiu
algo da ordem de uma fixação/padronização/homogeneização do 'valor-desejo' dos
objetos para os sujeitos do capitalismo. E sugeri que, em decorrência da disparada
dessa padronização de 'valores-desejo' pelos objetos do mundo, produziu-se uma
aceleração sem precedentes históricos da tendência totalitária à alienação existente
em todo laço social. Perigo tanto maior quanto o próprio sujeito, reduzido a mera
                                                                                                               
16
Veja-se, por exemplo, LACAN (1953/1998, p. 322).
17
Conflito: idéia que sempre ocupou um lugar de preeminência e centralidade nos pensamentos de
Freud, Marx e Lacan, seja na compreensão da estrutura e funcionamento do sujeito, da sociedade,
ou dos contextos de produção e circulação dos saberes.
18
Digamos, um comtismo ou durkheimianismo temperado com um autoritarismo, que impusesse
uma ortopedia dos sujeitos restauradora dos 'limites' perdidos em função devido a uma socialização
e uma educação demasiadamente complacentes.

  10  
"encarnação do trabalho assalariado", torne-se igualmente "um objeto com 'valor-
desejo' quantificado e padronizado." (Ibid., p.160) Uso as palavras de Lacan para
afirmar que o problema central do capitalismo contemporâneo, menos que o
isolamento entre os sujeitos, é a "assimilação cada vez mais horizontal" do "ideal
individualista":
(...) numa civilização em que o ideal individualista foi alçado a um grau de
afirmação até então desconhecido, os indivíduos descobrem-se tendendo
para um estado em que pensam, sentem, fazem e amam exatamente as
mesmas coisas nas mesmas horas, em porções do espaço estreitamente
equivalentes. (1950/1998, p.146)
A massificação e o consumo alienado, com tudo o mais que daí se deriva –
segregação, violência, desemprego crônico, despolitização etc – é o que constitui o
verdadeiro problema. E isto em nada independe da estrutura econômica, nem muito
menos da estrutura discursiva a ela articulada: "o discurso está ligado aos
interesses do sujeito. É o que na ocasião Marx chamou de economia, porque esses
interesses são, na sociedade capitalista, inteiramente mercantis." (Lacan, 1969-
1970, p.86)
Conviria agora perguntarmo-nos sobre o porquê do prestígio atualmente
desfrutado por proposições explicativas dos acontecimentos sociais que
subestimam os aspectos da estrutura econômica e das estruturas discursivas.
Proposições que, além disso, 'jogam fora' o conceito de sujeito do inconsciente,
consolidado no campo da Psicanálise, ao substituí-lo por um "novo sujeito pós-
moderno" que estaria imerso no gozo e na "perversão generalizada", decorrentes de
supostos "declínio da função paterna" e "queda do simbólico".
Adiantando-me um pouco sobre uma análise que ainda necessita ser feita, eu
aponto apenas um ponto que provavelmente deva estar nela incluído. Refiro-me aos
fatos que, segundo Perry Anderson (1983/2004) responderam por um declínio do
prestígio do Materialismo Histórico, como teoria crítica, na França – e, por extensão
de sua influência, na Itália e na Espanha –, a partir dos anos 70.
É evidente que poderíamos conduzir esta discussão no plano do debate
sobre a ideologia, estendendo e aprofundando as mencionadas críticas sobre a
bifurcação de alternativas politicamente inócuas, a que as formulações sobre o
'novo sujeito' conduzem. Alternativas que têm como função colmatar fissuras
produzidas pela insatisfação com o modo de vida sob o capitalismo contemporâneo,
na medida em que, ao mesmo tempo em que possibilitam a circulação de críticas
que nomeiam essa insatisfação, revestem-se de um certo glamour, ao parecer
deslocar seu propositor para longe de uma posição de cumplicidade com o
establishment; porém, sem tocar na questão das ações políticas realmente efetivas
que poderiam produzir transformações no status quo.
Contudo, limitarmo-nos a isto nos encerraria em uma espécie de
circularidade tautológica autoexplicativa, de que a ausência de reação à ideologia
capitalista é explicada pelo seu efeito ideológico: posição, além do mais, niilista, se
encerrada nela mesma. A necessidade de combinar uma explicação que explore as
causas externas ao campo dos saberes, com uma explicação que busque "a história
interna da teoria, medindo sua vitalidade enquanto programa de pesquisa
governado pela busca da verdade (...) é o que separa o marxismo de qualquer
variante do pragmatismo ou do relativismo." (Anderson, 1983/2004, p.168) E em
relação a isto Anderson chama a atenção para o que sempre constituiu, segundo
ele, não um "ponto de incerteza local ou marginal na teoria marxista", mas sim "um
dos problemas centrais e fundamentais do materialismo histórico, enquanto

  11  
explicação do desenvolvimento da civilização humana" (Id.): essencialmente, sua
dificuldade no que concerne à concepção da natureza das relações entre estrutura e
sujeito, na história e sociedade humanas. Sem pretender adensar aqui as
complexas análises sobre o assunto que ele oferece, registro apenas a conclusão
de que estrutura e sujeito têm sido sempre categorias interdependentes, na história
dos embates entre Marxismo e Estruturalismo. E "um ataque indiscriminado ao
sujeito estava fadado, em seu devido tempo, a subverter também a estrutura." (Ibid.,
p.188) Isso é que conduziu, em consequência, a formulações e teorizações sobre
uma "subjetividade finalmente desenfreada". Quem sabe se a retomada de uma
interlocução entre Psicanálise e Marxismo, mais assídua, rigorosa e profícua,
especialmente a partir das concepções lacanianas sobre o sujeito e sobre os
discursos como formas do laço social, não poderá trazer nova luz sobre estes
problemas e atender ao alerta de Adorno (1982, apud Anderson, 1983/2004, p.188,
nota 42):
"A objetividade da verdade realmente requer o sujeito. Uma vez separada do
sujeito, ela se torna vítima da pura subjetividade."

BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola (1998/2007) Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo, Martins


Fontes, 2207.
ALTHUSSER, Louis (1964-1965/1985) Freud e Lacan. In: Freud e Lacan. Marx e
Freud. 2ª ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
ALTHUSSER, Louis (1976/1985) Marx e Freud. In: Freud e Lacan. Marx e Freud. 2ª
ed. Rio de Janeiro, Graal, 1985.
ANDERSON, Perry (1983/2004) Nas trilhas do materialismo histórico. In:
ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental; Nas trilhas do
materialismo histórico. São Paulo, Boitempo, 2004.
ASKOFARÉ, Sidi (2006) La perversion généralizée. Disponível no site da Equipe de
Recherche Cliniques en Psychanalyse e Psychopathologie da Université de
Toulouse Le Mirail:
< http://w3.erc.univ-tlse2.fr/pdf/La_perversion_generalisee.pdf>. Acesso em: 23 mai.
2010.
ASKFARÉ, Sidi (2009) Da subjetividade contemporânea. A Peste: Revista de
Psicanálise e Sociedade e Filosofia, São Paulo, v.1, n.1, p.165-175, jan./jun.
2009.
BRAUNSTEIN, Néstor (2010) O discurso capitalista: quinto discurso? O discurso
dos mercados (PST): sexto discurso? A Peste: Revista de Psicanálise e
Sociedade e Filosofia, São Paulo, v.2, n.1, jan./jun. 2009.
BRUNO, Pierre et al (1991/1997) Discussão Geral. In: GOLDENBERG, R. (Org.)
Goza!: capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador, Ágalma, 1997, p. 269-
288.
CHATELARD, Daniela Scheinkman (2005) Conceito de objeto na Piscanálise: do
fenômeno à escrita.Brasília, Ed. Univ. Brasília, 2005.
CHEMAMA, Roland (1991/1997) Um sujeito para o objeto. In: GOLDENBERG, R.
(Org.) Goza!: capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador, Ágalma, 1997, p.
23-39.
SOUEIX, André (1991/1997) O discurso capitalista. In: GOLDENBERG, R. (Org.)
Goza!: capitalismo, globalização e psicanálise. Salvador, Ágalma, 1997, p. 40-48.
GOLDENBERG, Ricardo (1991/1997) Prefácio: consumidores consumidos. In:

  12  
GOLDENBERG, R. (Org.) Goza!: capitalismo, globalização e psicanálise.
Salvador, Ágalma, 1997, p. 9-19.
FERRATER-MORA, José (1994/2004) Dicionário de Filosofia. 2. ed. Loyola, 2004.
FREUD, Sigmund ([1985]/1980) Projeto para uma psicologia científica. Ed. Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v. I,
1980.
_________ (1913/1980) Totem e tabu. Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v. XIII, 1980.
_________ (1921/1980) Psicologia de grupo e a análise do ego. Ed. Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v.
XVIII, 1980.
_________ (1927/1980) O futuro de uma ilusão. Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v. XXI, 1980.
_________ (1930/1980) O mal-estar na civilização. Ed. Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v. XXI, 1980.
_________ (1933/1980) Por que a guerra? Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v. XXII, 1980.
_________ (1933/1999) Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die
Psychoanalyse. Gesammelte Werke. Frankfurt, Fischer, v. XV, 1999.
_________ (1939/1980) Moisés e o monoteísmo. Ed. Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas. Rio de Janeiro, Imago, 2ª ed., v. XXIII, 1980.
HANSON, Norwood R. (1967/1975) Observação e intepretação. In:
MORGENBESSER, S. (org.). Filosofia da ciência. 2. ed. São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 1975, p. 127-138.
IANNI, Octavio (1992) Introdução. In: MARX, K. Marx. São Paulo, Ática, 1992.
KOYRÉ, Alexandre (1966/1982) Estudos de história do pensamento científico. Rio
de Janeiro, Forense Universitária, 1982.
KOYRÉ, Alexandre. (1953/1991) Uma experiência de medida. In: KOYRÉ, A.
Estudos de história do pensamento científico. 2. ed. Rio de Janeiro, Forense
Universitária, 1991.
KUHN, Thomas S. (1962/1998) A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São
Paulo, Perspectiva, 1998.
KUHN, Thomas S. (1977/2011) A tensão essencial. São Paul, UNESP, 2011.
KUHN, Thomas S. (1991/2006) O caminho desde 'A Estrutura'. São Paulo, UNESP,
2006.
LACAN, Jacques (1950/1998) Introdução teórica às funções da Psicanálise em
criminologia. In: Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_________ (1953/1998) Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise. In:
Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_________ (1957/1998) A Psicanálise e seu ensino. In: Escritos. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1998.
_________ (1958/1998a) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde
Freud. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_________ (1958/1998b) De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_________ (1959-1960/2008) O seminário, Livro 7: A ética da Psicanálise. 2. ed.,
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2008.
_________ (1960/1998) Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.
_________ (1964/1985) O seminário, Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da

  13  
Psicanálise. 3. ed. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.
_________ (1966/1998a) A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar, 1998.
_________ (1966/1998b) Do sujeito enfim em questão. In: Escritos. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar, 1998.
_________ (1968-1969/2008) O seminário, Livro 16: De um Outro ao outro. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 2008.
_________ (1969-1970/1992) O seminário, Livro 17: O avesso da Psicanálise. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.
_________ (1972/1978) Conferencia en la Universidad de Milán del 12 de mayo de
1972. In: Lacan in Italia (1953-1978). Roma: La Salamandra, p.32-55, 1978.
_________ (1977-1978) Le séminaire, Livre 25: Le moment de conclure. Disponível
em: <http://gaogoa.free.fr/Seminaires_pdf/25-
le%20moment%20de%20conclure/XXV-01-LMC15111977.pdf>. Acesso em 30
set. 2011.
_________ (1977-1978/2000) O seminário, Livro 25: O momento de concluir. Texto
estabelecido e traduzido por Jairo Gerbase. Disponível em:
<http://www.campopsicanalitico.com.br/biblioteca/a_tagarelice.pdf>. Acesso em 30
set. 2011.
LUKÁCS, György (1923/2003) História e consciência de classe. São Paulo, Martins
Fontes, 2003.
MARX, Karl (1846/2009) Miséria da Filosofia (Carta a P. V. Annenkov). São Paulo,
Expressão Popular, 2009.
OGILVIE, Bertrand (1987/1991) Lacan: A formação do conceito de sujeito. 2ª ed.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991.
PACHECO FILHO, Raul Albino (2000) O método de Freud para produzir
conhecimento: revolução na investigação dos fenômenos psíquicos? In:
PACHECO FILHO, R. A.; COELHO JUNIOR, N. C.; e ROSA, M. D. (orgs.)
Ciência, pesquisa, representação e realidade em Psicanálise. São Paulo, Casa
do Psicólogo, 2000.
PACHECO FILHO, Raul Albino (2008) Freud e Lacan: filiação ou subversão? In:
SAFATLE, V.; MANZI, R. (orgs.) A Filosofia após Freud. São Paulo, Humanitas,
2008, 363-379.
PACHECO FILHO, Raul Albino (2009) A praga do capitalismo e a peste da
psicanálise. A Peste: Revista de Psicanálise e Sociedade, São Paulo, v.1, n.1,
p.143-163, jan./jun. 2009.
PAULO NETTO, José (2011) Introdução ao estudo do método de Marx. São Paulo,
Expressão Popular, 2011.
TONET, Ivo (2010) A propósito de "Glosas críticas'. In: MARX, K. Glosas críticas
marginais ao artigo 'O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano'. São
Paulo, Expressão Popular, 2010.
ZAFIROPOULOS, Markos (2001/2002) Lacan y las ciencias sociales: la declinación
del padre (1938-1953). Buenos Aires, Nueva Visión, 2002.
 
                                                                                                               

  14  

Você também pode gostar