O documento discute a resistência negra à escravidão através de táticas como a marronagem, o uso do ritmo e do segredo. Apresenta exemplos como as work songs e o vodu, que promoviam a organização e a subversão dos escravos de forma discreta. Também aborda como a fuga e a criação de quilombos e mocambos permitiam a autonomia das comunidades negras fugidas.
O documento discute a resistência negra à escravidão através de táticas como a marronagem, o uso do ritmo e do segredo. Apresenta exemplos como as work songs e o vodu, que promoviam a organização e a subversão dos escravos de forma discreta. Também aborda como a fuga e a criação de quilombos e mocambos permitiam a autonomia das comunidades negras fugidas.
O documento discute a resistência negra à escravidão através de táticas como a marronagem, o uso do ritmo e do segredo. Apresenta exemplos como as work songs e o vodu, que promoviam a organização e a subversão dos escravos de forma discreta. Também aborda como a fuga e a criação de quilombos e mocambos permitiam a autonomia das comunidades negras fugidas.
BONA, Denétem Touam. Cosmopoéticas do refúgio. Tradução Milena P. Duchiade.
Cultura e Barbarie: Desterro, 2020.
Prelúdio, p. 5.
Por plantation entendo aqui os sistemas industriais de monocultura e de criação
de animais que, por fragilizarem, empobrecendo-os ao extremo, os ambientes da vida, estimulam inevitavelmente a proligeração de agentes infectados tantopara as plantas (fungos, parasitas, etc) quanto para os animais (“gripe aviária”, “vaca louca”, etc) e para os humanos (Sars-CoV, Mers-Cow, Ebola, etc). Impondo aos ecossistemas uma simplificação radical – um verdadeiro processo de depuração biológica – a exploração capitalista produz ecocídios. (p. 6); Em suma, o “e-futuro”, atrás da tela de fumaça do clena, do soft, do smart, do “desmaterializado”, terá mais do que nunca como combustível a “e-scravidão”. De maneira que as fronteiras de gênero, de classe, de “raça”, etc, serão reforçadas e, sobretudo, bem mais insidiosas. (p. 7); É bem possível que, em nossas futuras lutas – lutas por um mundo não mais governado pelo medo do outro, pela predação e mercantilização generalizadas – tenhamos de aprender alguns subterfúgios com aqueles que, até bem pouco tempo, eram qualificados de “selvagens”. (p.8); A cosmopoética é a forma primeira da ecologia: uma ecologia dos sentidos e da imagine-ação pela qual pajés, ngangas, mães de santo, bruxas neopagãs e outros mestres do invisível estabelecem um diálogo obscurso, tecido de metáforas, com o conjunto de tudo que vibra. [...] um modo entre outros de apontar para uma outra relação com o mundo que privilegie a escuta – o sentido das ressonâncias e das correspondências – mais do que a visão. (p. 9); Ao garantir a sincronia dos gestos, a cadência regular dos esforços, o alinhamento coreográfico dos corpos, o ritmo produz a comunidade fraternal dos compé. Essa tradição do trabalho dançado e cantado assumiu, no sul dos Estados Unidos, a forma das work songs, matriz do blues. Trabalhar junto é partilhar uma pulsação coletiva, vibrar em uníssono, comungar num só canto. [...] No mundo rural haitiano, o ritmo representa um princípio de organização social integral que, por intermédio de práticas como a do coumbite, se opõe a toda e qualquer hierarquia. (p. 23); Longe de se resumir a práticas de “magia negra” ou a superstições, o voduo envolve uma espiritualidade (não emprego a palavra religião por não ser a mais adequada, devido à ausência de dogmas, às plasticidade dos rituais, etc.) e uma relação singular com o mundo, a matriz de uma agricultura cósmica: herdar um campo é na verdade herdar os lwas que o habitam, os únicos verdadeiros proprietários da terra. (p. 24); A vinculação da família camponesa a uma territorialidade ancestral constitui, no Haiti, a mais poderosa ferramenta de autodefesa contra os processos de cercamento, de privatização, de apropriação capitalista das terras. (p. 26); O “dono do orvalho” (“mèt lawouze”) é o responsável pela rega, o que está encarregado de distribuir a água e de repartir entre lavradores e lavradores os trabalhos de irrigação na comunidade. Esse personagem encarna um ideal de justiça, de equidade, de solidariedade e de vida em harmonia com a natureza. (p. 28); A essa mística “afro” enraizada nas ressonâncias do corpo, opõe a mística cristã que supõe, inversamente, a extinção do corpo. Por meio da tatuagem rítmica de seus corpos, é, portanto, toda uma cosmovisão que foi trazida por esses migrantes nus no porão do navio negreiro. E as resistências negras vão desencadear precisamente a partir da reativação criadora dessa memória, a partir do ritmo, pensamento encarnado. A libertação do escravo exige a reapropriação de seu corpo: um verdadeiro desencadeamento. (p. 30); É antes de tudo por meio do ritmo que o nègre traça uma linha de fuga. (p. 30); [...] as reativações de quilombos e mocambos não se limitam às lutas em defesa dos direitos e territórios das “comunidades remanescentes”, reconhecidas como herdeiras de comunidades marrons ou de comunidades camponesas em luta pela autonomia; redesenham, para além das comunidades afrodescendentes, as formas de luta, de criação e de organização popular nas mais variadas áreas [...]. (p. 33); A explosão das revoltas sempre corresponde ao desencadeameto dos poderes cósmicos. Prova disso é o evento fundador da Revolução Haitiana, “Bois- Cäiman”, a cccerimônia vodu em que foi selada em sangue a confuração entre escravos e marrons em revolta. (p. 34); Em fins do século XVIII, é durante as reuniões noturnas das “calenda” e “vodus” que se difunde a subversão, que são organizadas as redes de dissidentes, que se entrelaçam as solidariedades e os compromissos secretos. A marronagem alimenta o segredo e se alimenta do segredo como “secreção”, como forma de vida, como modus operandi. (p. 34); Não importa qual seja a forma de dissidência considerada, o segredo sempre desempenha um papel criador e dinâmico: prática do segredo (senhas, códigos, itinerários cantados, etc), experiência do segredo (com frequência, uma experiência do sagrado, o segredo representando um conhecimento proibido), comunidade do segredo (a dos conjurados, ligados pelo segredo). (p. 35); Das confrarias vodus aos bandos furtivos de marrons, trata-se sempre do mesmo modo menor de existência, uma mesma cadência poética, uma mesma potência opaca que se desdobra: à noite, acontecem os complôs, as danças, os sonhos, as rezas, os escritos, os debates, os sacrifícios. (p. 36); A resistência discreta ou “sutil” era mais eficaz a longo prazo do que a rebelião violenta, a qual, salvo algumas poucas exceções, conduzia a uma repressão maciça, sangrenta e exemplar. (p. 38); A menor que se exclua, por exemplo, as resistências “sutis” praticadas pelas mulheres negras: a riqueza dos modos de transmissão da memória, o domínio da farmacopeia e das cosmologias associadas, o poder de influência e de manipulação da “favorita” sobre o senhor, o infanticídio como gesto de amor paradoxal (retratado de modo magnífico no incandescente Beloved, de Toni Morrison). (p. 39); Forma coletiva da fuga, a secessão é resistencia territorial: faz parte de um território labiríntico cujos meandros e acidentes constituem aliados naturais para os rebelados. O marron não foge, ele se esquiva, escapa, desaparece; e pela sua retirada, se metamorfoseia e cria um fora: o quilombo, o palenque, o mocambo, o péyi na déyo... (p. 40); A fuga dos escravos não surge como covardia, como um fenômeno passivo, a menos que se adote uma concepção redutora da resistência, que confunda resistência e enfrentamento, e esteja restrita a uma visão viril e heroica do combate. Do mesmo modo que a batalha não passa de uma das modalidades particulares da guerra, o frente-à-frente constitui apenas uma das modalidades específicas da resistência. A guerrilha – tática privilegiada dos nômades, dos marrons, de todos os grupos e minorias banidos – apresenta-se então como uma não-batalha, em que a astúcia, as artimanhas enganosas, os disfarces, a camuflagem, as fugas e os ataques surpresa zombam da moral dos poderosos. (p. 41); A fronteira marron deve efetivamente marcar, codificar o território da comunidade sem deixar traços visíveis, sem permitir sua localização pelo aparato de captura colonial. Eis porque o sistema defensivo das comunidades marrons se apresenta desde o princípio como um sistema de camuflagem. A secessão marron é paradoxal pois, ao invés de inaugurar o nascimento oficial de um novo Estado, ratifica o ingresso na clandestinidade de uma comunidade de seres indóceis. Trata-se de não apenas combater o Estado escravagista, mas de repudiar o seu próprio princípio. Que o senhor nunca possa retornar ao seio da sociedade marron. (p. 42); A arte da fuga, de que a experiência histórica da marronagem representa apenas uma das modalidades, é subversão a partir de dentro, seja esse dentro a colônia ou nossa sociedade de controle – e por mais que ele nos pareça completamente fechado e sem saída. A fuga não é transgressão ilusória em direção a um fora transcendente, mas secreção de uma versão subterrânea – clandestina e herética – da realidade. Pois construir uma fuga não significa ser posto para correr. Pelo contrário, é fazer o real escapar, operar nele variações sem fim para contornar qualquer tentativa de captura. (p. 47); A marronagem, portanto, é menos uma forma de conquista do que de subtração ao poder. As táticas furtivas são táticas de des-captura: a qualquer tentativa de captura, opõem o vazio. É essa potência corrosiva da marronagem diante dos aparelhos de captura e dos simulacros produzidos que chamo de fuga. (p. 48)