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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS
ÉTNICOS E AFRICANOS

KARINE CONCEIÇÃO DE OLIVEIRA

Resenha

Resenha crítica apresentada como


avaliação da disciplina Teorias da
Etnicidade.

Professor Dr. Jesiel Oliveira Filho

05 de julho de 2021
Resenha “A questão Multicultural”

HALL, Stuart. A questão multicultural. In: Da diáspora: identidades e mediações


culturais. Organização de Liv Sovik. Belo Horizonte; Brasília: UFMG; Representação
da UNESCO No Brasil, 2003.

Trata-se “A questão Multicultural” do segundo capítulo da obra “Da diáspora:


identidades e mediações culturais” do sociólogo jamaicano Stuart Hall. O capítulo,
qualificado pelo autor como “um ensaio” versa sobre a questão do multiculturalismo,
e, logo na sua introdução demarca que a utilização universal do temo
“multiculturalismo” não contribuiu para a estabilização ou esclarecimento do seu
significado, pelo contrário, afirma que a sua utilização, a despeito de não haver outro
conceito menos complexo, não pode ser usado se não “sob rasura” sendo assim,
mantida a sua utilização, mas questionando a sua definição.

O capítulo está estruturado em nove seções onde o autor trata desde a distinção entre
os termos multicultural e multiculturalismo, a emergência desse último e proliferação
subalterna da diferença entre eles, finalizando com a tentativa de expor novos
contornos de uma lógica política multicultural.

Na primeira seção, “A distinção Multicultural/Multiculturalismo”, o autor distingue os


dois termos de modo a situar o leitor sobre as suas diferenças: “Multicultural é um
termo qualificativo. Descreve as características sociais e os problemas de
governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes
comunidades culturais convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo
tempo em que retêm algo de sua ‘identidade original...’ – o termo ‘multiculturalismo’ é
substantivo. Refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou
administrar problemas e multiplicidade gerados pelas sociedades múltiplas” (p. 52).
Segundo o autor, existem muitos tipos de sociedade distintamente “multiculturais”,
mas todas estas possuem como característica comum a heterogeneidade cultural, o
que as distinguem “do Estado-nação ‘moderno’, constitucional liberal do Ocidente, que
se afirma sobre o pressuposto (geralmente tácito) da homogeneidade cultural
organizada em torno de valores universais, seculares e individualistas liberais
(Goldberg, 1994).” (p. 52).
Assim, compreende-se que nas sociedades coexistem culturas/identidades
reconhecidamente diferentes e estas culturas/identidades se articulam umas com as
outras, num permanente movimento de encontros e desencontros.

O autor apresenta algumas dificuldades específicas trazidas no termo


“multiculturalismo”, dentre elas a conversão deste a uma doutrina política, confusão
trazida com a interpretação do sufixo “ismo”. Para Hall, o “multiculturalismo” não é
uma doutrina única, não caracteriza uma estratégia política e não pode representar
um “estado de coisa já acabado”, outrossim, é uma série de processos e estratégias
políticas inacabadas.

Para o autor, do mesmo modo que existem sociedades multiculturais, há, também,
“multiculturalismos”. Ele estabelece distinções entre estas formas de apresentação
multicultural, sendo: multiculturalismo conservador – aquele que insiste na
assimilação da diferença às tradições e costumes da maioria (Goldberg,1994); o
multiculturalismo liberal – interação rápida dos diferentes grupos à cultura majoritária;
o pluralista – concessão de direitos de grupos distintos a diferentes comunidades
dentro de uma ordem política comunitária; o comercial – reconhecimento público das
diferenças pressupondo a resolução de problemas culturais no campo privado, sem a
necessidade de redistribuição de poder; o corporativo – administra as diferenças
culturais das minorias, e; multiculturalismo crítico – focado no poder e movimentos de
resistência (McLaren, 1997).

Hall, ainda traz na primeira seção a contestação do “multiculturalismo” enquanto ideia,


o que o deixa distante de se caracterizar como doutrina. O termo é contestado pela
direita conservadora, pelos liberais, por modernizadores de distintas convicções
políticas, além das várias posições na esquerda. Algumas questões são levantadas
de modo a colocar o leitor em reflexão acerca do tema, o fato é que ao final dela Hall
evidência a importância do debate, uma vez que “por bem ou por mal, estamos
inevitavelmente implicados em suas práticas, que caracterizam e definem as
‘sociedades da modernidade tardia’” (p. 54).

Na seção seguinte, o ensaio se debruça nos processos históricos determinantes do


multiculturalismo: a expansão europeia; a migração e deslocamento dos povos – seja
em função de desastres naturais, guerras, mudanças climáticas ou escravização.
Assim, historicamente, as sociedades multiculturais, étnicas ou culturalmente mistas
são produzidas a partir deslocamentos dos povos e com a migração. Hall traz ainda
como elemento importante para a análise o colonialismo, que nas palavras do autor
“tentou inserir o colonizado no “tempo homogêneo vazio” da modernidade global, sem
abolir as profundas diferenças ou disjunturas de tempo, espaço e tradição” (p.55).

Os exemplos trazidos por Hall são os argumentos apresentados para evidenciar a


emergência do “multiculturalismo” no pós-guerra, entretanto, enfatiza não haver uma
linearidade dos fatos que produziram as condições efetivas para que ele ocupasse o
centro no campo da contestação política, sendo este, portanto, o resultado de uma
série de mudanças decisivas que reconfiguraram as forças e relações sociais em todo
o planeta. Para Hall, há uma relação entre o ressurgimento da questão multicultural e
o fenômeno do pós-colonial, uma vez que houve uma rearticulação de poder social
entre período colonial e pós-colonial. Hoje em dia, estas relações são desarticuladas
e rearticuladas como lutas entre forças sociais nativas, contradições internas e fontes
de desestabilização no dentro da sociedade descolonizada, ou entre ela e o sistema
global.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial novas formas de etnicidade têm surgido
como resultado da globalização; uma globalização desigual que revaloriza os
discursos nacionalistas mais antigos, como seria uma reinvenção do passado no
presente (nação como motor da modernização).

Hall, associa, ainda, a globalização contemporânea ao surgimento de novos mercados


financeiros desregulamentados, ao capital global e aos fluxos de moeda que têm o
poder de desestabilizar as demais economias, além disso, associa às formas
transnacionais de produção e consumo ao crescimento de novas indústrias culturais
impulsionadas pelas tecnologias de informação, bem como ao aparecimento da
“economia do conhecimento”.

O ensaio segue, agora evidenciado as contradições da globalização contemporânea,


trazendo o paradoxo do fato de que neste novo molde social “as coisas” parecem
culturalmente semelhantes, entretanto, concomitantemente prolifera-se as diferenças,
o eixo de poder aparenta estar marcado por conexões laterais, produzindo uma visão
de mundo composta por diferenças “locais” que obriga o olhar do “globo-vertical” (Hall,
1997).
A luta entre os interesses locais e os globais estão latentes. O conceito de Différance é
trazido para o contexto, é no movimento do jogo que se produz as diferenças e seus
efeitos, ou seja, uma onda de similaridades e diferenças. Para Bahba (1998), é um
significado que está sempre em processo e posicionado e opera no tempo liminar das
minorias. Para Hall, as estratégias surgem nos vazios gerando resistência,
intervenção e tradução. Daí emergem os localismos, algo novo acompanhado da
globalização, o exterior constitutivo da globalização dando vez ao particular e ao
específico.

Ainda nas palavras de Hall, “o local não possui caráter estável ou trans-histórico”, ele
é, sobretudo resistente ao fluxo da homogeneização universalizante, não possui
filiação política única, possui conjunturas e temporalidades distintas. Hall expõe,
desse modo, as fragilidades de uma “pós-colonialidade” em uma sociedade
globalizada.

Na sequência o caso britânico é citado como exemplo de força “transruptiva” dentro


da instituição política e social devido à tradição histórica de país com cultura
homogênea e unificada até a ocorrência das migrações do subcontinente caribenho e
asiático no pós-guerra, versão simples de uma história complexa, segundo Hall. ainda
que seja de conhecimento que existe diversas formas de ser “britânico”. A Grã-
bretanha é, supostamente, uma ilha “fixa e eterna”, constituída a partir de uma séria
de conquistas, tendo se tornado Estado-Nação ainda no século XVIII com o Pacto
Civil, tornando a Irlanda sua colônia, transformando os irlandeses no primeiro grupo
sistematicamente racializado. A homogeneidade da “britanidade” sempre foi
contestada pelos escoceses, gauleses e irlandeses, sempre existiram formas distintas
de ser “britânico”.

Há, ainda, a presença negra e asiática na Grã-Bretanha, mas apesar da presença


destes datarem do século dezesseis e dezoito respectivamente, a questão do
“multiculturalismo” é um fenômeno pós Segunda Guerra Mundial, quando migrantes
caribenhos e imigrantes asiáticos expulsos da África Oriental chegaram a Grã-
Bretanha, seguidos de africanos e outros povos do “Terceiro Mundo”, sendo seus
rumos marcados pelas antigas relações de dependência e subordinação herdadas do
tempo do Império, mas sem transformações sociais efetivas, tendo se reconfigurado
uma nova forma de exclusão social e desigualdades em geral, associadas ao racismo
e as relações de gênero. Paralelas à sociedade “britânica” majoritária surgiram
comunidades minorias étnicas que mantêm elos de continuidades com seus locais de
origem.

A partir da complexidade trazida pelo caso britânico, Hall formula questões para
discutir o termo “comunidade”, chamando a atenção para o cuidado com a
homogeneização dos grupos que possuem laços de união e fronteiras, os chamados
“grupos étnicos”, visto que eles guardam diferenças, a exemplo dos caribenhos. Para
o autor, citando Modood 1997, as escolhas identitárias são mais políticas que
antropológicas, mais associativas e menos designadas, por isso as generalizações
são difíceis, cita, ainda, Parekh, na tentativa de compartilha uma definição de
comunidade mais alinhada com o seu pensamento, a definição de “comunidades
étnicas”.

Com o caso britânico Hall demonstra que as comunidades não devem ser
enquadradas em uma tradição imutável e que é um erro confundir suas formas
diaspóricas com uma vagarosa transição de assimilação completa. Elas representam
uma nova configuração cultural – comunidade cosmopolita – marcadas por amplos
processos de transculturação (p.67). Tornaram-se os significantes mais avançados da
experiência metropolitana do pós-moderno urbano. Hall não espera que se concorde
com o que ele conjeturou, mas afirma ser necessário refletir a respeito das
consequências “transruptivas” dos seus desdobramentos para uma estratégia política
à questão “multicultural”.

O primeiro efeito trazido pelo autor é o que atua sobre as categorias de “raça” e “etnia”,
segundo ele, a questão multicultural produziu na Grã-Bretanha uma racialização
diferenciada de áreas centrais da vida e cultura da sociedade. Há um esforço para
que a questão da “raça” seja incorporada ne teoria política em geral, no pensamento
jornalístico e acadêmico. Nesses termos, a categoria “raça” é vista sob rasura, ou seja,
em uma nova configuração com etnicidade.

Conceitualmente, a categoria raça não é cientifica e está associada à cor (biologia), é


aplicada geralmente aos afro-caribenhos, os asiáticos, por sua vez, não constituem
“raça” nem uma única “etnia”. Desse modo, raça é uma construção política e social,
uma categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder
socioeconômico, de exploração e exclusão. O racismo tem, portanto, uma lógica
discursiva própria de efeito de naturalização. Outrossim, a etnicidade está associada
a características culturais e religiosas, ela articula a diferença com a natureza (o
biológico e o genético) desde que se desloque pelo parentesco e /ou pelo casamento
endógeno.

Observa-se, portanto, que os discursos da diferença biológica e cultural estão em jogo


simultaneamente, sendo dois registros de racismo, ou seja, estão articulados e
combinados de acordo com o momento multicultural.

O segundo efeito transruptivo é aquele exercido sobre a compreensão de cultura. A


posição binária derivada do iluminismo: tradição/modernidade. Nesta seção o autor
aborda esse binarismo de forma crítica menciona que o hibridismo é o termo mais
adequado para caracterizar culturas mistas e diaspóricas. Para o autor o hibridismo
trata da lógica cultural da tradução; de um processo de tradução cultural, em que a
ambivalência do tipo dentro/fora pode ser encontrada em toda parte e define a lógica
cultural composta e irregular pela qual a chamada “modernidade” ocidental tem
afetado o resto do mundo desde o início do projeto globalizante.

O hibridismo, de acordo com Hall, não se refere a indivíduos híbridos que podem ser
contratados com os “tradicionais” e “modernos”, trata-se sobretudo de um processo
de tradução cultural que nunca se completa. Pois, na tradução cultural, é necessário
negociar com a diferença do outro, algo que revela a insuficiência radical dos próprios
sistemas de significado e significação.

O terceiro efeito transruptivo é o questionamento dos discursos dominantes da teoria


politica ocidental e as funções do Estado Liberal, a neutralidade defendida em tese
pelo Estado Liberal garante autonomia pessoal e liberdade individual para a busca do
bem, desde que seja feito no domínio privado: o público e o privado se aproximaram.
O liberalismo constitui um dos grandes sistemas discursivos do mundo moderno,
reforça o individualismo e denuncia uma visão errônea de direitos coletivos e uma
definição frágil de cultura. Para Hall, corroborando com Habermas 1994, “a vida
individual significa está sempre incrustrada em contextos culturais e é somente dentro
destes que suas “escolhas livres’ fazem sentido” (p.80), desse modo, a identidade
está entrelaçada às identidades coletivas e pode ser estabilizada apenas em uma rede
cultural.

O Estado liberal reformista da social-democracia reconhece a crescente diversidade


cultural de seus cidadãos, admitindo certos direitos grupais e outros definidos pelo
indivíduo, adota estratégias de redistribuição para garantir a igualdade de condições
e avançou na prática para a busca do equilíbrio entre pluralismo cultural e as
concepções liberais de liberdade individual. Contudo é um movimento gradativo e
incerto devido a crescente visibilidade e presença das comunidades étnicas.

Na penúltima seção do ensaio, Hall traz uma questão reflexivas acerca do


multiculturalismo a luz da experiência britânica, a saber: que premissas podem haver
por trás de uma forma radicalmente distinta de multiculturalismo britânico?
Respondendo em seguida que este teria que ser fundado na análise do que a
comunidade realmente significa e como as diferentes comunidades que hoje
compõem a nação interagem concretamente e não pensado a partir de um modelo de
comunidade abstrata. Deveria levar em conta o que ele designou de “dois registros de
racismo” assumindo o compromisso de expor e confrontar o racismo em quaisquer de
suas formas, tratar da dupla demanda política que advém da interação entre as
desigualdades e as injustiças, uma estratégia que rompesse com a lógica majoritária
e reimaginasse a nação como um todo de forma radicalmente pós-nacional
(Hall,1999).

Hall alerta ainda para o cuidado de ao se fazer um movimento em direção a maior


diversidade cultural no âmago da modernidade não se reverter a novas formas de
fechamento étnico. Isto indica que a etnicidade e sua relação naturalizada com a
comunidade é outro termo que opera sob rasura; somos seres que pensamos dentro
de uma tradição, somos localizados e carregamos traços de uma etnia. Porém, nosso
sentimento de pertencimento é simplista, baseada em vínculos. O pertencimento
cultural é algo que todos partilham, é uma particularidade universal, ou uma
universalidade concreta.

Por fim Hall sugere que diante da questão multicultural se pense em algo novo, em
formas novas de combinar a diferença e a identidade desde que se considere a
liberdade e a igualdade junto com a diferença, o que torna necessário uma estrutura
de negociação democrática agonística.

A questão multicultural sugere a diferença como essencial à definição de democracia,


sugere a construção de novas e diversificadas esferas públicas nas quais todos serão
obrigados a negociar dentro de um horizonte democraticamente diverso, promovendo,
assim, transformações na sociedade. A nova lógica política multicultural proposta por
Hall busca, portanto, reconfigurar o particular e o universal, busca um horizonte
comum.

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