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A pedagogia como cultura,


a cultura como pedagogia

Uma das consequências da "virada culturais, é o conceito de "pedagogia"


culturalista" na teorização curricular con- que permite que se realize a operação
sistiu na diminuição das fronteiras entre, inversa. Tal como a educação, as outras
de um lado, o conhecimento acadêmico instâncias culturais também são peda-
e escolar e, de outro, o conhecimento gógicas, também têm uma "pedagogia",
cotidiano e o conhecimento da cultura de também ensinam alguma coisa. Tanto a
massa. Sob a ótica dos Estudos Culturais, educação quanto a cultura em geral estão
todo conhecimento, na medida em que envolvidas em processos de transformação
se constitui num sistema de significação, da identidade e da subjetividade. Agora a
é cultural. Além disso, como sistema de equiparação está completa: através dessa
significação, todo conhecimento está es- perspectiva, ao mesmo tempo que a cultu-
treitamente vinculado com relações de ra em geral é vista como uma pedagogia,
poder. É dessa perspectiva que os Estudos a pedagogia é vista como uma forma
Culturais analisam instâncias, instituições cultural: o cultural torna-se pedagógico
e processos culturais aparentemente tão e a pedagogia torna-se cultural. É dessa
diversos quanto exibições de museus, perspectiva que os processos escolares se
filmes, livros de ficção, turismo, ciência, tornam comparáveis aos processos de
televisão, publicidade, medicina, artes sistemas culturais extraescolares, como
visuais, música ... Ao abordá-los, todos, os programas de televisão ou as exposi-
como processos culturais orientados por ções de museus, por exemplo, para citar
relações sociais assimétricas, a perspectiva duas instâncias praticamente "opostas".
dos Estudos Culturais efetua uma espécie Da perspectiva da teoria curricular,
de equivalência entre essas diferentes poderíamos dizer que as instituições e
formas culturais. instâncias culturais mais amplas também
Se é o conceito de "cultura" que permite têm um currículo. É óbvio que elas não
e .
quiparar a educação a outras instâncias têm um currículo no sentido mais restrito
139

D
e

1 de .que tenham um objetivo planejado de trário do currículo acadêmico e escolar,


ensinar um certo corpo de conhecimentos, de uma forma sedutora e irresistível. Elas
embora isso até ocorra em alguns casos, apelam para a emoção e a fantasia, para
como nos programas da televisão educa- o sonho e a imaginação: elas mobilizam
tiva ou nas visitas a museus, por exemplo. uma economia afetiva que é tanto mais
Na medida em que não têm um currículo eficaz quanto mais é inconsciente. É pre-
explícito, tampouco poderíamos dizer cisamente a força desse investimento das
que têm um currículo oculto. Sem ter o pedagogias culturais no afeto e na emoção
objetivo explícito de ensinar, entretanto, que tornam seu "currículo" um objeto tão
é óbvio que elas ensinam alguma coisa, fascinante de análise para a teoria crítica
que transmitem uma variedade de formas do currículo. A forma envolvente pela
de conhecimento que embora não sejam qual a pedagogia cultural está presente
reconhecidas como tais são vitais na for- nas vidas de crianças e jovens não pode
mação da identidade e da subjetividade. ser simplesmente ignorada por qualquer
Poderíamos listar o que se aprende vendo, teoria contemporânea do currículo.
por exemplo, um noticiário ou uma peça É precisamente para a análise dessa
de publicidade na televisão. Do ponto de pedagogia ou desse currículo cultural que
vista pedagógico e cultural, não se trata se têm voltado autoras e autores que, de
simplesmente de informação ou entrete- certa forma, inauguram aquilo se poderia
nimento: trata-se, em ambos os casos, de chamar de "crítica cultural do currículo". É
formas de conhecimento que influenciarão o caso de Roger Simon, Henry Giroux,Joe
o comportamento das pessoas de maneiras Kincheloe e Shirley Steinberg, por exemplo.
cruciais e até vitais. Henry Giroux, particularmente, tem se
O currículo e a pedagogia dessas formas voltado, cada vez mais, para a análise da
culturais mais amplas diferem, entretanto, pedagogia da mídia. Suas análises dos filmes
da pedagogia e do currículo escolares, produzidos pela Disney, por exemplo, pro-
num aspecto importante. Pelos imensos blematizam a suposta inocência e o caráter
recursos econômicos e tecnológicos que aparentemente inofensivo e até benigno
mobilizam, por seus objetivos - em geral das produções culturais da poderosa Dis-
- comerciais, elas se apresentam, ao con- ney para o público infantil. Em filmes como
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A pequena sereia ou Aladim, por exemplo, McDonald's têm "adotado" escolas públicas
Giroux vê uma pauta pedagógica carregada que, de uma forma ou outra, são obrigadas
de pressupostos etnocêntricos e sexistas a moldar seu currículo de acordo com ma-
que, longe de serem inocentes, moldam as teriais fornecidos por estas empresas. Não
identidades infantis e juvenis de forma bem é difícil imaginar quais seriam as noções de
particular. De forma similar,Joe Kincheloe nutrição que seriam ensinadas às crianças
analisa as peças publicitárias da McDonald's a partir da perspectiva da McDonald's ou
para flagrar aí imagens e representações as noções sobre conservação do meio
que celebram os valores mais conservado- ambiente desenvolvidas a partir da pers-
res de uma suposta e tradicional "família pectiva e dos interesses de uma companhia
americana". Shirley Steinberg vai analisar petrolífera. Essa indistinção, estimulada
os valores morais e sociais contidos no pela própria indústria cultural, torna, assim,
currículo cultural de um artefato talvez menos estranha a ideia, sustentada por
ainda mais insuspeito: a boneca Barbie. uma teoria curricular inspirada nos Estudos
Ela chama de "kindercultura" essa indústria Culturais, de examinar a indústria cultural
cultural voltada para o público infantil. como uma forma de pedagogia cultural.
É curioso observar que a permeabili- O que caracteriza a cena social e cul-
dade e a interpenetração entre as peda- tural contemporânea é precisamente o
gogias culturais mais amplas e a pedagogia apagamento das fronteiras entre institui-
propriamente escolar têm sido exploradas ções e esferas anteriormente consideradas
pelas próprias indústrias culturais que como distintas e separadas. Revoluções
estendem, cada vez mais, seu currículo nos sistemas de informação e comunicação,
cultural para o currículo propriamente como a Internet, por exemplo, tornam cada
dito.Assim, a Mattel, empresa que fabrica vez mais problemáticas as separações e dis-
a boneca Barbie, desenvolveu todo um tinções entre o conhecimento cotidiano,
currículo de história dos Estados Unidos, o conhecimento da cultura de massa e o
ª qual é narrada precisamente através - de conhecimento escolar. É essa permeabi-
quem mais? - da boneca Barbie (presu- lidade que é enfatizada pela perspectiva
mivelmente também através do Ken). Da dos Estudos Culturais. A teoria curricular
mesma forma, empresas como a Disney e a crítica vê tanto a indústria cultural quanto
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<

o currículo propriamente escolar como Leituras


artefatos culturais - sistemas de significação GIROUX, Henry. "Memória e pedagogia no ma-
implicados na produção de identidades e ravilhoso mundo da Disney". ln Tomaz Tadeu
subjetividades, no contexto de relações de da Silva (org.). Alienígenas na sala de aula. Uma
introdução aos estudos culturais em educação. Rio:
poder. A crítica curricular torna-se, assim,
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legitimamente, também crítica cultural.
GIROUX, Henry. "A disneyzação da cultura infan-
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novos mapas políticos e culturais. Petrópolis:
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I re· Se-
a construção do conhecimento. Porto A eg ·
- 1997·· p·98- 145 ·
cretaria Municipal de Educaçao,

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Currículo: uma questão de saber,
1
poder e identidade

A aparente disjunção entre uma te- de poder tais como os analisados por
oria crítica e uma teoria pós-crítica do Foucault, é também evidente que conti-
currículo tem sido descrita como uma nuamos sendo também governados, de
disjunção entre uma análise fundamentada forma talvez menos sutil, por relações e
numa economia política do poder e uma estruturas de poder baseadas na proprie-
teorização que se baseia em formas tex- dade de recursos econômicos e culturais.
tuais e discursivas de análise. Ou ainda, O poder econômico das grandes corpo-
entre uma análise materialista, no sentido rações industriais, comerciais e financeiras
marxista, e uma análise textualista. A não pode ser facilmente equacionado com
cisão pode ser descrita ainda como uma as formas capilares de poder tão bem
cisão entre a hipótese da determinação descritas por Foucault. De forma similar,
econômica e a hipótese da construção dis- o poder político e militar de nações im-
cursiva; ou entre, de um lado, marxismo periais como os Estados Unidos não pode
e, de outro, pós-estruturalismo e pós-mo- ser facilmente descrito pela "microfísica"
dernismo.A tensão entre os conceitos de foucaultiana do poder.
ideologia e de discurso, mesmo que eles É também verdade que a teorização
se combinem em algumas análises, é uma pós-crítica tornou problemáticas certas
demonstração dessa fratura no campo da premissas e análises da teoria crítica que a
teoria social crítica. precederam. Assim, parece incontestável,
É preciso reconhecer que a chamada por exemplo, o questionamento lançado
"virada linguística" pode nos ter levado às pretensões totalizantes das grandes nar-
a negligenciar certos mecanismos de rativas. Não há como refutar, tampouco,
dominação e poder que tinham sido deta- a crítica feita tanto pelo pós-modernismo
lhadamente analisados pela teoria crítica. quanto pelo pós-estruturalismo ao sujeito
Embora seja evidente que somos cada vez autônomo e centrado das narrativas mo- I'

mais governados por mecanismos sutis dernas. No campo mais especificamente


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-
educacional, os questionamentos feitos conceito de ideologia tem ajudado a desfa-
aos impulsos emancipatórios de certas zer alguns dos embaraços do legado das te-
pedagogias críticas, na medida em que orias críticas. Particularmente, a oposição
estão fundamentados no pressuposto do entre ideologia e ciência, que, explícita ou
retorno a algum núcleo subjetivo essencial implicitamente, fazia parte da conceptuali-
e autêntico, dificilmente podem deixar de zação do conceito de ideologia desenvol-
ser levados em consideração. vido por várias vertentes marxistas, não
As teorias pós-críticas também pode, depois do pós-estruturalismo, ser
estenderam nossa compreensão dos tão facilmente sustentada. Depois do pós-
processos de dominação. Como procu- -estruturalismo e particularmente depois
rei demonstrar em alguns dos tópicos de Foucault, a oposição entre ciência e ide-
deste livro, a análise da dinâmica de ologia, fundamentada como é na oposição
poder envolvida nas relações de gênero, "verdadeiro-falso", simplesmente se desfaz.
etnia, raça e sexualidade nos fornece um Nesse sentido, as teorias pós-críticas, ao
mapa muito mais completo e complexo contrário das acusações que lhes são feitas,
das relações sociais de dominação do que ao deslocarem a questão da verdade para
aquele que as teorias críticas, com sua aquilo que é considerado verdade, tornam
ênfase quase exclusiva na classe social, o campo social ainda mais politizado. A
nos tinham anteriormente fornecido. A ciência e o conhecimento, longe de serem
concepção de identidade cultural e social o outro do poder, são também campos de
desenvolvida pelas teorias pós-críticas nos luta em torno da verdade. Parece, pois,
tem permitido estender nossa concepção inquestionável que, depois das teorias pós-
de política para muito além de seu sentido críticas, a teoria educacional crítica não pode
tradicional - focalizado nas atividades ao voltar a ser simplesmente "crítica".
redor do Estado. A conhecida consigna "o O legado das teorias críticas, sobretudo
pessoal também é político", difundido pelo aquele de suas vertentes marxistas, não
movimento feminista, é apenas um exemplo pode, entretanto, ser facilmente negado.
dessa produtiva tendência. Não se pode dizer que os processos de
Não se pode tampouco negar que a dominação de classe, baseados na explo-
crítica feita pelas teorias pós-críticas ao ração econômica, tenham simplesmente
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desaparecido. Na verdade, eles continuam mos. Ambas nos ensinaram, de diferentes
mais evidentes e dolorosos do que nunca. formas, que o currículo é uma questão de
Se alguma coisa pode ser salientada no saber, identidade e poder.
glorificado processo de globalização é pre- Depois das teorias críticas e pós-
cisamente a extensão dos níveis de explo- críticas do currículo torna-se impossível
ração econômica da maioria dos países do pensar o currículo simplesmente através
mundo por um grupo reduzido de países de conceitos técnicos como os de ensino
nos quais se concentra a riqueza mundial. e eficiência ou de categorias psicológicas
Nesse contexto, nenhuma análise textual como as de aprendizagem e desenvolvimento
pode substituir as poderosas ferramentas ou ainda de imagens estáticas como as de
de análise da sociedade de classes que nos grade curricular e lista de conteúdos. Num
foram legadas pela economia política mar- cenário pós-crítico, o currículo pode ser
xista. As teorias pós-críticas podem nos ter todas essas coisas, pois ele é também aquilo
ensinado que o poder está em toda parte que dele se faz, mas nossa imaginação está
e que é multiforme. As teorias críticas não agora livre para pensá-lo através de outras
nos deixam esquecer, entretanto, que algu- metáforas, para concebê-lo de outras for-
mas formas de poder são visivelmente mais mas, para vê-lo de perspectivas que não se
perigosas e ameaçadoras do que outras. restringem àquelas que nos foram legadas
Ao questionar alguns dos pressupos- pelas estreitas categorias da tradição.
tos da teoria crítica de currículo, a teoria Com as teorias críticas aprendemos que
pós-crítica introduz um claro elemento de o currículo é, definitivamente, um espaço
tensão no centro mesmo da teorização de poder. O conhecimento corporificado
crítica. Sendo "pós", ela não é, entretanto, no currículo carrega as marcas indeléveis
simplesmente superação. Na teoria do das relações sociais de poder. O currículo
currículo, assim como ocorre na teoria é capitalista. O currículo reproduz - cultu-
social mais geral, a teoria pós-crítica deve ralmente - as estruturas sociais. O currículo
se combinar com a teoria crítica para tem um papel decisivo na reprodução da
nos ajudar a compreender os processos estrutura de classes da sociedade capitalista.
pelos quais, através de relações de poder O currículo é um aparelho ideológico do
e controle, nos tornamos aquilo que so- Estado capitalista. O currículo transmite

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a ideologia dominante. O currículo é, em e histórica que faz com que o currículo seja
suma, um território político. dividido em matérias ou disciplinas, que
As teorias críticas também nos en- o currículo se distribua sequencialmente
sinaram que é através da formação da em intervalos de tempo determinados,
consciência que o currículo contribui para que o currículo esteja organizado hierar-
reproduzir a estrutura da sociedade capi- quicamente ... É também através de um
talista. O currículo atua ideologicamente processo de invenção social que certos
para manter a crença de que a forma capi- conhecimentos acabam fazendo parte do
talista de organização da sociedade é boa currículo e outros não. Com a noção de
e desejável. Através das relações sociais que o currículo é uma construção social
do currículo, as diferentes classes sociais aprendemos que a pergunta importante
aprendem quais são seus respectivos papéis não é "quais conhecimentos são válidos?",
nas relações sociais mais amplas. Há uma mas sim "quais conhecimentos são consi-
conexão estreita entre o código dominante derados válidos?".
do currículo e a reprodução de formas de As teorias pós-críticas ampliam e, ao
consciência de acordo com a classe social. mesmo tempo, modificam aquilo que as
A formação da consciência - dominante ou teorias críticas nos ensinaram. As teorias
dominada - é determinada pela gramática pós-críticas continuam a enfatizar que o
social do currículo. currículo não pode ser compreendido
Foi também com as teorias críticas sem uma análise das relações de poder
que pela primeira vez aprendemos que nas quais ele está envolvido. Nas teorias
o currículo é uma construção social. O pós-críticas, entretanto, o poder torna-
currículo é uma invenção social como qual- se descentrado. O poder não tem mais
quer outra: o Estado, a nação, a religião, o um único centro, como o Estado, por
futebol. .. Ele é o resultado de um processo exemplo. O poder está espalhado por
histórico. Em determinado momento, toda a rede social. As teorias pós-críticas
através de processos de disputa e conflito desconfiam de qualquer postulação que
social, certas formas curriculares - e não tenha como pressuposto uma situação
outras-tornaram-se consolidadas como o finalmente livre de poder. Para as teorias
currículo. É apenas uma contingência social pós-críticas o poder transforma-se, mas
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não desaparece. Nas teorias pós-críticas, currículo.Todo conhecimento depende da
0 conhecimento não é exterior ao poder, significação e esta, por sua vez, depende de
0 conhecimento não se opõe ao poder. O relações de poder. Não há conhecimento
conhecimento não é aquilo que põe em fora desses processos.
xeque o poder: o conhecimento é parte As teorias pós-críticas continuam enfati-
inerente do poder. Em contraste com as zando o papel formativo do currículo. Dife-
teorias críticas, as teorias pós-críticas não rentemente das teorias críticas, entretanto,
limitam a análise do poder ao campo das as teorias pós-críticas rejeitam a hipótese de
relações econômicas do capitalismo. Com uma consciência coerente, centrada, unitá-
as teorias pós-críticas, o mapa do poder ria.As teorias pós-críticas rejeitam, na ver-
é ampliado para incluir os processos de dade, a própria noção de consciência, com
dominação centrados na raça, na etnia, no suas conotações racionalistas e cartesianas.
gênero e na sexualidade. Elas desconfiam também da tendência das
Embora as teorias críticas sustentassem teorias críticas a postular a existência de
que o currículo é uma invenção social, elas um núcleo subjetivo pré-social que teria
ainda mantinham uma certa noção realista sido contaminado pelas relações de poder
do currículo. Se a ideologia cedesse lugar do capitalismo e que seria libertado pelos
ao verdadeiro conhecimento, o currículo procedimentos de uma pedagogia crítica.
e a sociedade seriam finalmente emanci- Para as teorias pós-críticas, a subjetivida-
pados e libertados. Se pudéssemos nos de é já e sempre social. Não existe, por
livrar das relações de poder inerentes ao isso, nenhum processo de libertação que
capitalismo, o conhecimento corporificado torne possível a emergência - finalmente
no currículo já não seria um conhecimen- - de um eu livre e autônomo. As teorias
to distorcido e espúrio. Com sua ênfase pós-críticas olham com desconfiança para
pós-estruturalista na linguagem e nos pro- conceitos como alienação, emancipação,
cessos de significação, as teorias pós-crí- libertação, autonomia, que supõem, todos,
ticas já não precisam da referência de um uma essência subjetiva que foi alterada e
conhecimento verdadeiro baseado num precisa ser restaurada.
suposto "real" para submeter à crítica o Em suma, depois das teorias críticas
conhecimento socialmente construído do e pós-críticas, não podemos mais olhar
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para o currículo com a mesma inocência
de antes. O currículo tem significados
que vão muito além daqueles aos quais
as teorias tradicionais nos confinaram.
O currículo é lugar, espaço, território. O
currículo é relação de poder. O currículo
é trajetória, viagem, percurso. O currículo
é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae:
no currículo se forja nossa identidade. O
currículo é texto, discurso, documento.
O currículo é documento de identidade.

ISO
,---

Referências

Para não sobrecarregar o texto com o apa- retiradas de Britzman, 1995, p. 160, p. 156 e p. 159,
rato acadêmico, as fontes das citações foram respectivamente. A citação de Foucault no tópico
aqui reunidas, na ordem em que aparecem nos sobre o pós-estruturalismo foi retirada de Foucault,
respectivos tópicos: 1994, p. 135 (não estão indicadas as supressões).
A citação de Bobbitt no tópico sobre as teorias A caricatura dos estruturalistas está descrita em
tradicionais está em Callahan, 1962, p. 81 . As per- Peters, 1996, p. 21 . Uma reprodução dessa cari-
guntas de Tyler no mesmo tópico estão em Tyler, catura aparece na folha de rosto de Dosse, 1994.
1974, p. 1. Os textos de análise fenomenológica da A referência ao filme Sixguns and society, no tópico
educação coletados por Max van Manen, mencio- sobre o pós-estruturalismo, é retirada de Storey,
nados no tópico sobre os reconceptualistas, podem 1993, p. 74. Em vários capítulos, beneficiei-me da
ser encontrados na página de van Manen na Inter- enciclopédida revisão da literatura estadunidense
net, conforme referido abaixo. A citação de Paulo sobre currículo feita por Pinar et alii, 1995.
Freire sobre "conteúdos programáticos" no tópico
sobre Freire e Saviani é retirada de Freire, 1973, BERNSTEIN, Basil. Class, codes and contrai. volume
p. 111 (com supressão de uma pequena expressão, 3. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1975.
não indicada). A citação de Schaffer no tópico
BRITZMAN, Deborah."Is there a queer pedagogy?
sobre a "Nova Sociologia da Educação" é feita por
Or, stop reading straight". Educational theory,
Michael Young em Young, 1971, p. 27. A citação 1995, (45) 2: p.151-165.
de Geoffrey Esland no mesmo tópico é retirada
de Esland, 1971, p. 75. A citação de Bernstein no CALLAHAN, R. E. Education and the cult o( eff,ciency.
Chicago:The University of Chicago Press, 1962.
tópico respectivo é retirada de Bernstein, 1975, p.
85. O conceito de "justiça curricular" de Connell, CONNELL, Robert W. "Política educacional, hege-
referido no tópico sobre multiculturalismo, está monia e estratégias de mudança social". Teoria
em Connell, 1992, 1995. A origem da palavra e educação, 5, 1992: p.66-80.
gênero tal como utilizada na literatura feminista CONNELL, Robert W. "Justiça, conhecimento e
está descrita em Frank e Treichler, 1989, p. 11 . O currículo na educação contemporânea". ln Luiz
diálogo entre Cornel West e Jorge K. de Alba está H. da Silva e José C. de Azevedo (orgs.). Reestru-
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PINAR, William F. Understanding curriculum. Nova
York: Peter Lang, 1995.

152
A capa reproduz, em primeiro plano, a pintura "A professo-
ra" e, em segundo plano, a pintura "jesus - Sereno", ambas de
Marlene Dumas. Marlene Dumas nasceu em 1953 na África do
Sul e vive, desde 1976, em Amsterdam, Holanda.
"Eu pinto porque sou uma mulher desordenada. A pintura é
uma coisa desarrumada. Ela jamais poderá ser um meio conceituai.
Quanto mais "conceituai" ou limpa for a arte, mais a cabeça po-
derá ser separada do corpo [.. .].A pintura diz respeito ao traço
do toque humano. Diz respeito à epiderme de uma superfície.
Uma pintura não é um cartão postal. O conteúdo da pintura
não pode ser separado da sensação de sua superfície."
"Há uma crise da Representação. Eles estão procurando
pelo Significado como se ele fosse uma coisa. Como se fosse
uma garota obrigada a tirar sua calcinha, como se ela quisesse
fazê-lo, assim que aparecesse o verdadeiro intérprete. Como
se houvesse alguma coisa para tirar."

Marlene Dumas*

*Na Internet: http://www.oasinet.com/postmedia/artp/dumas.htm/

153
O autor

Tomaz Tadeu da Silva é professor do Programa de Pós-Gra-


duação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Pertence ao Conselho Editorial das revistas Curriculum
Studies; Journal of Education Policy; Discourse e Heuresis. É autor
dos livros O que produz e o que reproduz em educação (Artes
Médicas); Identidades terminais (Vozes); Escuela, conocimiento y
curriculum (Mino y Dávila) e Cultura, política y curriculum (com
Michael Apple e Pablo Gentili; Lesada). Organizou os seguintes
livros: Teoria educacional crítica em tempos pós-modernos (Artes
Médicas);Alienígenas na sala de aula (Vozes); O sujeito da educação
(Vozes); Liberdades reguladas (Vozes); Neoliberalismo, qualidade
total e educação (com Pablo Gentili;Vozes); Currículo, cultura e
sociedade (com Antonio Flavio Moreira; Cortez); Escola S. A.
(com Pablo Gentili; CNTE); Territórios contestados (com Antonio
Flavio Moreira;Vozes).

154
O currículo é lugar, espaço, território.
Ô currículo é relação de poder.
O currículo é trajetória, viagem, percurso.
O ·currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum
'
vitae: no currículo se forja nossa identidade.
O currículo é texto, discurso, documento.
O currículo é documento de identidade.

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.
autentica
....
www.grupoautentica.com.br

IS B N 9 78-85-86583-44-5

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9 78 85 8 (, 58 3 44 5

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