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e
A pequena sereia ou Aladim, por exemplo, McDonald's têm "adotado" escolas públicas
Giroux vê uma pauta pedagógica carregada que, de uma forma ou outra, são obrigadas
de pressupostos etnocêntricos e sexistas a moldar seu currículo de acordo com ma-
que, longe de serem inocentes, moldam as teriais fornecidos por estas empresas. Não
identidades infantis e juvenis de forma bem é difícil imaginar quais seriam as noções de
particular. De forma similar,Joe Kincheloe nutrição que seriam ensinadas às crianças
analisa as peças publicitárias da McDonald's a partir da perspectiva da McDonald's ou
para flagrar aí imagens e representações as noções sobre conservação do meio
que celebram os valores mais conservado- ambiente desenvolvidas a partir da pers-
res de uma suposta e tradicional "família pectiva e dos interesses de uma companhia
americana". Shirley Steinberg vai analisar petrolífera. Essa indistinção, estimulada
os valores morais e sociais contidos no pela própria indústria cultural, torna, assim,
currículo cultural de um artefato talvez menos estranha a ideia, sustentada por
ainda mais insuspeito: a boneca Barbie. uma teoria curricular inspirada nos Estudos
Ela chama de "kindercultura" essa indústria Culturais, de examinar a indústria cultural
cultural voltada para o público infantil. como uma forma de pedagogia cultural.
É curioso observar que a permeabili- O que caracteriza a cena social e cul-
dade e a interpenetração entre as peda- tural contemporânea é precisamente o
gogias culturais mais amplas e a pedagogia apagamento das fronteiras entre institui-
propriamente escolar têm sido exploradas ções e esferas anteriormente consideradas
pelas próprias indústrias culturais que como distintas e separadas. Revoluções
estendem, cada vez mais, seu currículo nos sistemas de informação e comunicação,
cultural para o currículo propriamente como a Internet, por exemplo, tornam cada
dito.Assim, a Mattel, empresa que fabrica vez mais problemáticas as separações e dis-
a boneca Barbie, desenvolveu todo um tinções entre o conhecimento cotidiano,
currículo de história dos Estados Unidos, o conhecimento da cultura de massa e o
ª qual é narrada precisamente através - de conhecimento escolar. É essa permeabi-
quem mais? - da boneca Barbie (presu- lidade que é enfatizada pela perspectiva
mivelmente também através do Ken). Da dos Estudos Culturais. A teoria curricular
mesma forma, empresas como a Disney e a crítica vê tanto a indústria cultural quanto
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Currículo: uma questão de saber,
1
poder e identidade
A aparente disjunção entre uma te- de poder tais como os analisados por
oria crítica e uma teoria pós-crítica do Foucault, é também evidente que conti-
currículo tem sido descrita como uma nuamos sendo também governados, de
disjunção entre uma análise fundamentada forma talvez menos sutil, por relações e
numa economia política do poder e uma estruturas de poder baseadas na proprie-
teorização que se baseia em formas tex- dade de recursos econômicos e culturais.
tuais e discursivas de análise. Ou ainda, O poder econômico das grandes corpo-
entre uma análise materialista, no sentido rações industriais, comerciais e financeiras
marxista, e uma análise textualista. A não pode ser facilmente equacionado com
cisão pode ser descrita ainda como uma as formas capilares de poder tão bem
cisão entre a hipótese da determinação descritas por Foucault. De forma similar,
econômica e a hipótese da construção dis- o poder político e militar de nações im-
cursiva; ou entre, de um lado, marxismo periais como os Estados Unidos não pode
e, de outro, pós-estruturalismo e pós-mo- ser facilmente descrito pela "microfísica"
dernismo.A tensão entre os conceitos de foucaultiana do poder.
ideologia e de discurso, mesmo que eles É também verdade que a teorização
se combinem em algumas análises, é uma pós-crítica tornou problemáticas certas
demonstração dessa fratura no campo da premissas e análises da teoria crítica que a
teoria social crítica. precederam. Assim, parece incontestável,
É preciso reconhecer que a chamada por exemplo, o questionamento lançado
"virada linguística" pode nos ter levado às pretensões totalizantes das grandes nar-
a negligenciar certos mecanismos de rativas. Não há como refutar, tampouco,
dominação e poder que tinham sido deta- a crítica feita tanto pelo pós-modernismo
lhadamente analisados pela teoria crítica. quanto pelo pós-estruturalismo ao sujeito
Embora seja evidente que somos cada vez autônomo e centrado das narrativas mo- I'
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a ideologia dominante. O currículo é, em e histórica que faz com que o currículo seja
suma, um território político. dividido em matérias ou disciplinas, que
As teorias críticas também nos en- o currículo se distribua sequencialmente
sinaram que é através da formação da em intervalos de tempo determinados,
consciência que o currículo contribui para que o currículo esteja organizado hierar-
reproduzir a estrutura da sociedade capi- quicamente ... É também através de um
talista. O currículo atua ideologicamente processo de invenção social que certos
para manter a crença de que a forma capi- conhecimentos acabam fazendo parte do
talista de organização da sociedade é boa currículo e outros não. Com a noção de
e desejável. Através das relações sociais que o currículo é uma construção social
do currículo, as diferentes classes sociais aprendemos que a pergunta importante
aprendem quais são seus respectivos papéis não é "quais conhecimentos são válidos?",
nas relações sociais mais amplas. Há uma mas sim "quais conhecimentos são consi-
conexão estreita entre o código dominante derados válidos?".
do currículo e a reprodução de formas de As teorias pós-críticas ampliam e, ao
consciência de acordo com a classe social. mesmo tempo, modificam aquilo que as
A formação da consciência - dominante ou teorias críticas nos ensinaram. As teorias
dominada - é determinada pela gramática pós-críticas continuam a enfatizar que o
social do currículo. currículo não pode ser compreendido
Foi também com as teorias críticas sem uma análise das relações de poder
que pela primeira vez aprendemos que nas quais ele está envolvido. Nas teorias
o currículo é uma construção social. O pós-críticas, entretanto, o poder torna-
currículo é uma invenção social como qual- se descentrado. O poder não tem mais
quer outra: o Estado, a nação, a religião, o um único centro, como o Estado, por
futebol. .. Ele é o resultado de um processo exemplo. O poder está espalhado por
histórico. Em determinado momento, toda a rede social. As teorias pós-críticas
através de processos de disputa e conflito desconfiam de qualquer postulação que
social, certas formas curriculares - e não tenha como pressuposto uma situação
outras-tornaram-se consolidadas como o finalmente livre de poder. Para as teorias
currículo. É apenas uma contingência social pós-críticas o poder transforma-se, mas
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não desaparece. Nas teorias pós-críticas, currículo.Todo conhecimento depende da
0 conhecimento não é exterior ao poder, significação e esta, por sua vez, depende de
0 conhecimento não se opõe ao poder. O relações de poder. Não há conhecimento
conhecimento não é aquilo que põe em fora desses processos.
xeque o poder: o conhecimento é parte As teorias pós-críticas continuam enfati-
inerente do poder. Em contraste com as zando o papel formativo do currículo. Dife-
teorias críticas, as teorias pós-críticas não rentemente das teorias críticas, entretanto,
limitam a análise do poder ao campo das as teorias pós-críticas rejeitam a hipótese de
relações econômicas do capitalismo. Com uma consciência coerente, centrada, unitá-
as teorias pós-críticas, o mapa do poder ria.As teorias pós-críticas rejeitam, na ver-
é ampliado para incluir os processos de dade, a própria noção de consciência, com
dominação centrados na raça, na etnia, no suas conotações racionalistas e cartesianas.
gênero e na sexualidade. Elas desconfiam também da tendência das
Embora as teorias críticas sustentassem teorias críticas a postular a existência de
que o currículo é uma invenção social, elas um núcleo subjetivo pré-social que teria
ainda mantinham uma certa noção realista sido contaminado pelas relações de poder
do currículo. Se a ideologia cedesse lugar do capitalismo e que seria libertado pelos
ao verdadeiro conhecimento, o currículo procedimentos de uma pedagogia crítica.
e a sociedade seriam finalmente emanci- Para as teorias pós-críticas, a subjetivida-
pados e libertados. Se pudéssemos nos de é já e sempre social. Não existe, por
livrar das relações de poder inerentes ao isso, nenhum processo de libertação que
capitalismo, o conhecimento corporificado torne possível a emergência - finalmente
no currículo já não seria um conhecimen- - de um eu livre e autônomo. As teorias
to distorcido e espúrio. Com sua ênfase pós-críticas olham com desconfiança para
pós-estruturalista na linguagem e nos pro- conceitos como alienação, emancipação,
cessos de significação, as teorias pós-crí- libertação, autonomia, que supõem, todos,
ticas já não precisam da referência de um uma essência subjetiva que foi alterada e
conhecimento verdadeiro baseado num precisa ser restaurada.
suposto "real" para submeter à crítica o Em suma, depois das teorias críticas
conhecimento socialmente construído do e pós-críticas, não podemos mais olhar
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►
para o currículo com a mesma inocência
de antes. O currículo tem significados
que vão muito além daqueles aos quais
as teorias tradicionais nos confinaram.
O currículo é lugar, espaço, território. O
currículo é relação de poder. O currículo
é trajetória, viagem, percurso. O currículo
é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae:
no currículo se forja nossa identidade. O
currículo é texto, discurso, documento.
O currículo é documento de identidade.
ISO
,---
Referências
Para não sobrecarregar o texto com o apa- retiradas de Britzman, 1995, p. 160, p. 156 e p. 159,
rato acadêmico, as fontes das citações foram respectivamente. A citação de Foucault no tópico
aqui reunidas, na ordem em que aparecem nos sobre o pós-estruturalismo foi retirada de Foucault,
respectivos tópicos: 1994, p. 135 (não estão indicadas as supressões).
A citação de Bobbitt no tópico sobre as teorias A caricatura dos estruturalistas está descrita em
tradicionais está em Callahan, 1962, p. 81 . As per- Peters, 1996, p. 21 . Uma reprodução dessa cari-
guntas de Tyler no mesmo tópico estão em Tyler, catura aparece na folha de rosto de Dosse, 1994.
1974, p. 1. Os textos de análise fenomenológica da A referência ao filme Sixguns and society, no tópico
educação coletados por Max van Manen, mencio- sobre o pós-estruturalismo, é retirada de Storey,
nados no tópico sobre os reconceptualistas, podem 1993, p. 74. Em vários capítulos, beneficiei-me da
ser encontrados na página de van Manen na Inter- enciclopédida revisão da literatura estadunidense
net, conforme referido abaixo. A citação de Paulo sobre currículo feita por Pinar et alii, 1995.
Freire sobre "conteúdos programáticos" no tópico
sobre Freire e Saviani é retirada de Freire, 1973, BERNSTEIN, Basil. Class, codes and contrai. volume
p. 111 (com supressão de uma pequena expressão, 3. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1975.
não indicada). A citação de Schaffer no tópico
BRITZMAN, Deborah."Is there a queer pedagogy?
sobre a "Nova Sociologia da Educação" é feita por
Or, stop reading straight". Educational theory,
Michael Young em Young, 1971, p. 27. A citação 1995, (45) 2: p.151-165.
de Geoffrey Esland no mesmo tópico é retirada
de Esland, 1971, p. 75. A citação de Bernstein no CALLAHAN, R. E. Education and the cult o( eff,ciency.
Chicago:The University of Chicago Press, 1962.
tópico respectivo é retirada de Bernstein, 1975, p.
85. O conceito de "justiça curricular" de Connell, CONNELL, Robert W. "Política educacional, hege-
referido no tópico sobre multiculturalismo, está monia e estratégias de mudança social". Teoria
em Connell, 1992, 1995. A origem da palavra e educação, 5, 1992: p.66-80.
gênero tal como utilizada na literatura feminista CONNELL, Robert W. "Justiça, conhecimento e
está descrita em Frank e Treichler, 1989, p. 11 . O currículo na educação contemporânea". ln Luiz
diálogo entre Cornel West e Jorge K. de Alba está H. da Silva e José C. de Azevedo (orgs.). Reestru-
em West e Alba, 1996. As citações de Deborah turação curricular. Teoria e prática no cotidiano da
Britzman no tópico sobre pedagogia queer são escola. Petrópolis:Vozes, 1995: p.11-35.
151
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Nova York: Modern Language Association of
America, 1989.
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A capa reproduz, em primeiro plano, a pintura "A professo-
ra" e, em segundo plano, a pintura "jesus - Sereno", ambas de
Marlene Dumas. Marlene Dumas nasceu em 1953 na África do
Sul e vive, desde 1976, em Amsterdam, Holanda.
"Eu pinto porque sou uma mulher desordenada. A pintura é
uma coisa desarrumada. Ela jamais poderá ser um meio conceituai.
Quanto mais "conceituai" ou limpa for a arte, mais a cabeça po-
derá ser separada do corpo [.. .].A pintura diz respeito ao traço
do toque humano. Diz respeito à epiderme de uma superfície.
Uma pintura não é um cartão postal. O conteúdo da pintura
não pode ser separado da sensação de sua superfície."
"Há uma crise da Representação. Eles estão procurando
pelo Significado como se ele fosse uma coisa. Como se fosse
uma garota obrigada a tirar sua calcinha, como se ela quisesse
fazê-lo, assim que aparecesse o verdadeiro intérprete. Como
se houvesse alguma coisa para tirar."
Marlene Dumas*
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O autor
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O currículo é lugar, espaço, território.
Ô currículo é relação de poder.
O currículo é trajetória, viagem, percurso.
O ·currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum
'
vitae: no currículo se forja nossa identidade.
O currículo é texto, discurso, documento.
O currículo é documento de identidade.
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