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Revista Expressão - UFSM 2014 - 1 e 2


Direção Cal, Elenara Quinhones, Camila Marchesan Cargnelutti

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Expressão - UFSM 2015-1


Camila Marchesan Cargnelut t i

Resenha: Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças


Crist iane Florek, Alex Barreiro

O fant asma de Simonet t a: para uma crít ica feminist a de ret rat os do Quat t rocent o
Henrique Marques Samyn
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA
CENTRO DE ARTES E LETRAS

ANO 18 • NÚMERO 1 e 2 • ISSN 1516-9340

EXPRESSÃO
REVISTA DO CENTRO DE ARTES E LETRAS

EXPRESSÃO • CAL/UFSM • Santa Maria • Ano 18 • Nº 1 e 2 • Jan./Dez./2014


ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA:
Fone: (055) 3220-8262 FAX: (055) 3220-8004
Prédio 40 - Sala 1212 - Direção do Centro
Campus Universitário
Rodovia 509 - Km 9 - Camobi
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OS TEXTOS PUBLICADOS SÃO DE EXCLUSIVA RESPONSABILIDADE DE SEUS AUTORES, TANTO NO QUE


SE REFERE AO CONTEÚDO QUANTO A QUESTÕES GRAMATICAIS.

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We wish to establish exchange with all similar journals
Wir wünschen den Austausch mit gleichartigen Zeitschriften

Expressão / Universidade Federal de Santa Maria


Centro de Artes e Letras – Vol. 1 e 2 (2014)
___________. – Santa Maria, 2014

Semestral
Expressão - Revista do Centro de Artes e Letras
Número 1 – Março/1996

1. Artes. 2. Letras. 3. Música.


CDU: 7/8 (05)

Ficha catalográfica elaborada por Luzia de Lima Sant’Anna, CRB-10/728


Biblioteca Central da UFSM
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Reinilda de Fátima Berguenmayer Minuzzi
COMISSÃO DE ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO (CEPE-CAL) Tânia Regina Taschetto
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EXPRESSÃO • REVISTA DO CENTRO DE ARTES E LETRAS • UFSM

CONSELHO EDITORIAL
Presidente: Anselmo Peres Alós (UFSM)

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CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO


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Marcus De Martini (UFSM) Yara Quercia Vieira (UFSM)
Maria Eulália Ramicelli (UFSM) Zulmira Newlands Borges (UFSM)
SUMÁRIO

VIVeR em TRÂnsITO: O sujeITO desTeRRITORIalIzadO em ALGUM LUGAr ..................................................... 07


Ana Cristina dos Santos

mOdulaÇÕes de alTeRIdade: as auTOnOmeaÇÕes de HumBeRT em RelaÇÃO À HeROÍna de LoLITA,


OBRa de naBOKOV ............................................................................................................................................................... 19
Andrio Santos

cRenÇas de PROfessORes sOBRe O PROcessO de ensInaR e aPRendeR nO InsTRumenTal de


lÍnGuas: um esTudO de casO ......................................................................................................................................... 29
Andriza Pujol de Avila

IdenTIdades em cOnsTRuÇÃO: lITeRaTuRa, educaÇÃO e aRTes na fORmaÇÃO cRÍTIcO-RefleXIVa


em sala de aula .................................................................................................................................................................. 39
Camila Marchesan Cargnelutti

asPecTOs cOlOnIaIs - a OPRessÃO dO femInInO na OBRa DesMUNDo, de ana mIRanda ...................... 49


Cristiano Mello de Oliveira

a RePResenTaÇÃO dO ÍndIO na OBRa D. NArcIsA De VILLAr, de ana luÍsa de azeVedO casTRO ......... 59
Elenara Walter Quinhones

nOVas TRaVessIas dO seRTÃO-BRasIl: suassuna e O roMANce D’A peDrA Do reINo ............................... 69


Emanuella Leite Rodrigues de Moraes • Marinyze Prates de Oliveira

cInema e escRIVIVêncIa em uma escOla PúBlIca nO munIcÍPIO de sÃO leOPOldO/Rs ....................... 81


Fábio Ramos

PadRÕes em desIGn de suPeRfÍcIe ceRÂmIca: um esTudO eXPlORaTÓRIO a PaRTIR da lInGuaGem


KAWAII....................................................................................................................................................................................... 95
Francis Marina Leitão Pacheco • Reinilda de Fátima Berguenmayer Minuzzi

O PaPel dO PROfessOR de lÍnGua PORTuGuesa InsTRumenTal aTuanTe em escOlas TÉcnIcas


PROfIssIOnalIzanTes: mITOs e desafIOs ................................................................................................................. 105
Guilherme da Silva dos Santos • Maria Tereza Nunes Marchesan

O fanTasma de sImOneTTa: PaRa uma cRÍTIca femInIsTa de ReTRaTOs dO QUATTroceNTo .............. 121
Henrique Marques Samyn

mIcHael K: a VOz de um maRGInalIzadO .................................................................................................................. 133


Juliana Prestes de Oliveira

a POPulaRIdade de orGULho e precoNceITo e a PeRda de uma jane ausTen cRÍTIca ........................ 143
Maria Clara Pivato Biajoli

O cORPO nOs PROcessOs de cOnduÇÃO aRTÍsTIcO-PedaGÓGIca: uma Busca PelO cORPO-em-


InTeRaÇÃO .............................................................................................................................................................................. 155
Marina Fazzio Simão • Juliano Casimiro de Camargo Sampaio

a aRQuITeTuRa HIsTÓRIca de sanTa maRIa cOmO RefeRencIal de desIGn de suPeRfÍcIe PaRa


maRcadORes de PÁGIna .................................................................................................................................................... 167
Regina Fonseca Michel de Souza

lInGuaGem cORPORal, eROTIsmO, GêneRO e desejO em “as PalaVRas dO cORPO”, de maRIa TeResa
HORTa ....................................................................................................................................................................................... 181
Rubenil da Silva Oliveira • Algemira de Macedo Mendes

ResenHa ................................................................................................................................................................................... 195


Ana Paula Pertile
ResenHa ................................................................................................................................................................................... 199
Livia Petry Jahn

ResenHa ................................................................................................................................................................................... 205


Tagiane Mai
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 7

VIVER EM TRÂNSITO: O SUJEITO


DESTERRITORIALIZADO EM ALGUM LUGAR

Ana Cristina dos Santos1

Toda viagem se destina a ultrapassar fronteiras, tanto dissolvendo-as como recriando-as.


(IANNI, 2003, p. 13)

RESUMO: Este trabalho objetiva discutir a experiência do deslocamento – territorial, linguístico e


cultural - nas narrativas contemporâneas de autoria feminina e verificar de que maneira esses des-
locamentos urbanos modificam e, consequentemente, redefinem os sujeitos femininos em um con-
texto globalizado. Para tanto, analisa-se o romance Algum lugar (2009), da escritora Paloma Vidal,
cujo tema enfoca a mobilidade espacial, as questões de gênero e de identidade em um mundo global
e cosmopolita. O texto de Vidal permite a discussão dessas questões ao problematizar o contínuo
“estar em trânsito” da narradora e suas ambiguidades culturais que permitem, com base nessas ex-
periências de deslocamento, a constante reconstrução da identidade do sujeito feminino diaspórico.
Para a análise proposta, utilizam-se os textos de Almeida (2010), Hollanda (2005) e Shohat (2004)
sobre as relações de gênero; de Toro (2010), Augé (2007) e Bauman (2006) para as noções de espa-
ço e deslocamento e Hall (2005) para as questões das identidades na contemporaneidade.
Palavras-chave: Espaços contemporâneos. Deslocamentos. Gênero. Identidade. Paloma Vidal.

ABSTRACT: This article focuses on the experience of displacement – territorial, linguistic and cul-
tural - in contemporary narratives of female authorship and checks how these urban shifts changes
and thus redefines the female subject in a globalized context. Therefore, analyzes Paloma Vidal’s
romance Algum lugar (2009), which theme focuses on spatial mobility, issues of gender and identity
in a global and cosmopolitan world. The text of Vidal continues the discuss while problematizes the
“being in transit” of the narrator and its cultural ambiguities that allow, based on these displacement
experiments, the continuous reconstruction of the identity of the diasporic female subject. For the
proposed analysis, this article uses the texts of Almeida (2010), Holland (2005) and Shohat (2004)
on gender relation; Toro (2010), Augé (2007) and Bauman (2006) for the notions of space and dis-
placement and Hall (2005) for questions of identity in contemporary society.
Keywords: Contemporary spaces. Displacement. Gender. Identity. Paloma Vidal.

DIÁLOGOS CONSTANTES
Deslocar-se de um lugar a outro é inerente ao ser humano desde os primórdios da civiliza-
ção. Para registrar esses deslocamentos, o homem escreve. Ao longo dos séculos, diferentes
formas discursivas registraram experiências que inscreveram o viajante no espaço e pro-
blematizaram o seu encontro com o diferente, com o outro. Esses discursos permitem-nos
compreender que o ato de deslocar-se acarreta no viajante uma experiência de profunda
transformação pessoal, decorrente basicamente do contato com o outro, pois o transitar,

1 Professora Adjunta do Departamento de Letras Neolatinas (Português/Espanhol) e do Mestrado em Teoria da Literatura e Literatura Comparada do Ins-
tituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
8 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

enquanto viagem “desvenda alteridades, re- que a cultura de destino tentava apagar, por
cria identidades e descortina pluralidades” processos de assimilação, as diferenças entre
(IANNI, 2000, p. 14). Desse modo, torna-se a sua cultura local e a do migrante. O objeti-
impossível desvincular os relatos oriundos vo era assimilar a outridade, homogeneizar
dos deslocamentos espaciais das questões as diferenças, negando ao outro tanto a sua
identitárias. As identidades afetam e são cultura quanto a sua língua que deveriam
afetadas pelos deslocamentos, já que a expe- se adaptar aos padrões da cultura dominan-
riência da errância permite, a partir do en- te local. Com isso, preserva-se a identidade
contro com o outro, um constante processo nacional que não podia ser maculada com a
de reconfiguração da subjetividade, ou seja, presença da diferença. Prevalecia a ideia da
uma (re)invenção de si mesmo. identidade com uma raiz única: a do local de
A relação entre movência e subjetividade destino. O objetivo dessa prática era a de ter-
explica o fato de as identidades estarem no ritorializar o Outro.
centro das discussões culturais contempo- Ainda para Toro (2010), o momento atu-
râneas, já que os deslocamentos – sejam por al – que denomina como Pós-modernidade -
questões políticas, econômicas, culturais ou produz migrações, exílios, diásporas, enfim,
militares – transformaram-se na nova condi- deslocamentos em que o global e o local se
ção da humanidade (TORO, 2010, p. 08) e pa- intersecionam. O movimento de desterrito-
recem caracterizar o momento atual deno- rialização é seguido pelo da reterritorializa-
minado de globalização. Identidade e espaço ção2, pois não há mais a supremacia da cul-
são conceitos imbricados na experiência dos tura do local de origem sobre a do destino.
sujeitos em trânsito da contemporaneidade. As identificações estão abertas ao diverso
Como consequência, muitos dos relatos con- que contém a relação de movimento, rejei-
temporâneos trazem em seu cerne persona- tando a ideia de uma identidade de origem
gens em constante movência, desterritoriali- única. O Outro não se incorpora à nova cul-
zados, conscientes de que o pertencimento é tura, mas ressignifica-a, criando uma outra
algo temporário e a identidade um conceito cultura. As heterogeneidades se mantêm e
em transformação e, portanto, negociável. esse reconhecimento da não homogenei-
São personagens que se caracterizam por zação étnica e cultural das sociedades con-
uma busca constante a fim de se redefinirem, temporâneas é, segundo o autor, o próprio
ou de (re)inventarem as suas próprias histó- multiculturalismo3.
rias, uma vez que “na situação da diáspora, O multiculturalismo oriundo do fluxo in-
as identidades tornam-se múltiplas” (HALL, cessante de pessoas vindas de diversos lu-
2008, p. 28-9). gares transformam os grandes centros urba-
Contudo, no mundo globalizado do sécu- nos em espaços cosmopolitas, pluriétnicos e
lo XXI, por todas as facilidades que o homem multiculturais. Nesse espaço cosmopolita e
encontra para mover-se, o deslocamento diverso se desestabilizam as noções homo-
para os grandes centros urbanos se sobre- geneizantes de identidade, nação e cidada-
põe sobre os demais tipos de movência. Não nia. Essas já não podem ser entendidas como
que ele seja uma prática humana específica
2 A desterritorialização é o movimento de saída do território, um afasta-
desse período, porém, os processos diaspó- mento do local de origem, ocasionando a perde de controle das territorialida-
des pessoais ou coletivas. A Reterritorialização é o movimento de construção
ricos contemporâneos produzem elementos do novo território, na qual o indivíduo inicia uma nova ocupação do território
ocupado. Os conceitos de desterritorialização e reterritorialização são utili-
culturais próprios que os distanciam dos zados nesse artigo conforme as definições de Deleuze e Gattari (1995, p. 24).

movimentos anteriores. Toro (2010) expli- 3 Entendido como “... as estratégias e políticas adotadas para governar ou
administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas socie-
ca que sempre houve deslocamentos, mas a dades multicultuais [que são] sociedades nas quais diferentes comunidades
culturais convivem e tentam construir uma vida em comum [...]” (Hall, 2008,
Modernidade produziu deslocamentos em p. 50).
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pertença única, pois na cidade cosmopolita feminina contemporâneas abarcam as novas


se concentram e convivem características de contingências políticas, culturais e geopolí-
vários outros lugares, com marcas de dife- ticas de um mundo global e cosmopolita no
rentes povos e culturas e distintos modos de qual a diáspora; a desterritorialização e re-
ser que se fundem como síntese de todas as territorialização; o entre-lugar e o hibridis-
cidades cosmopolitas. mo cultural são marcas predominantes.
Para a crítica feminista de origem india- Sob os efeitos dessas novas contingências
na Gayatri C. Spivak (1996 apud ALMEIDA, culturais, as narrativas escritas pelo sujeito
2010, p. 13), um dos elementos diferencia- feminino diaspórico retratam as diversas
dores dos deslocamentos anteriores para o maneiras de viver e transitar na contempo-
atual nas cidades cosmopolitas é a presença raneidade, enfocando a relação entre espa-
maciça do sujeito feminino, sua participação ço e construção identitária. Nas últimas dé-
e seu papel na sociedade. A autora denomina cadas, muitas escritoras situaram a cidade
esse movimento de nova diáspora contem- cosmopolita como o lugar de suas narrativas
porânea. Para ela, o papel da mulher como e os conflitos identitários decorrentes das
sujeito ativo é fundamental nos deslocamen- subjetividades migrantes, exiladas e nôma-
tos contemporâneos. Argumenta que não há des como tema principal. O espaço domésti-
como analisar a diáspora contemporânea co, privado e às vezes autobiográfico em que
sem compreender que a mulher se torna o transitavam as personagens femininas foi
foco de interesse das sociedades e é incor- deslocado para o espaço urbano e social, em
porada como parte integrante da sociedade consonância com esse novo contexto socio-
civil. A autora ressalta, assim, o caráter gen- cultural. As personagens femininas contem-
drado dessa nova diáspora. Para ela, a pre- porâneas passaram a habitar os entre-luga-
sença da mulher tanto nos movimentos mi- res provenientes dos espaços de movência,
gratórios quanto nas narrativas diaspóricas em um processo constante de desenraiza-
cria novas significações aos contatos cultu- mento. Com isso, experimentam identida-
rais, em um diálogo constante com as ques- des móveis, híbridas e traduzidas4, já que os
tões de raça, etnia e classe. espaços de transições requerem que o sujei-
Heloísa Buarque de Hollanda (2005, s/p), to se remodele, através de (re)negociações
ao relacionar estudos de gênero e globali- identitárias contínuas.
zação, também reflete sobre o feminino e o Nesse espaço múltiplo e diversificado dos
impacto do contexto global e multicultural centros urbanos cosmopolitas e de diálogo
da contemporaneidade nesses estudos: “... constante entre deslocamentos, identidade
pensar gênero nesse novo contexto é ainda e gênero se insere o romance Algum lugar
um horizonte enigmático porque passa ne- (2009), de Paloma Vidal, cuja análise nesse
cessariamente pelos problemas que o mul- trabalho objetiva verificar como se proble-
ticulturalismo e a globalização acabam de matiza a presença feminina em um contexto
nos colocar”. Essa reflexão se coaduna com o transnacional e de que maneira os desloca-
pensamento de Spivak. Ambas as estudiosas mentos modificam e, consequentemente, re-
veem a mulher contemporânea como sujeito definem o sujeito feminino.
participativo da sociedade, cuja intervenção
no social gera novos significados para os con- LUGARES MÓVEIS
tatos culturais, que, por sua vez, redireciona Desde seu título, a obra de Vidal apresen-
a análise do sujeito feminino e dos lugares ta a característica inerente da diáspora
de onde ele fala. Dessa forma, os estudos
4 Conforme o conceito de Tradução desenvolvido por Stuart Hall (2005, p.
de gênero e a produção literária de autoria 87-9).
10 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

contemporânea: a constatação de que o su- companheiro, a colega da universidade ame-


jeito está sempre em busca de algum lugar ricana Luci, a mãe e o filho.
para estar e, consequentemente, encontrar- O romance se divide em três partes: Los
se. No romance tudo circula ou parece atra- Angeles, Rio de Janeiro e Los Angeles. Esse
ído pela movência: o título, as personagens, terceiro capítulo, intitulado Los Angeles, leva
as relações entre as personagens, os lugares, o nome do cinema em Buenos Aires onde a
de modo que a obra nos remete ao desenrai- narradora está com o seu filho. A divisão já
zamento e às questões identitárias. Não só a dá indícios ao leitor da existência de um des-
obra, mas a própria autora convive com os locamento transnacional da narradora. São
processos de hibridez cultural5 provenientes as cidades que constituem o seu ser: o espa-
das experiências de desterritorialização e re- ço da infância e da juventude, o Rio de Janei-
territorialização. Nascida em Buenos Aires, ro; o espaço de suas raízes, de onde seus pais
Paloma Vidal veio aos dois anos, com os pais vieram e onde nasceu, Buenos Aires; e, o es-
exilados, para morar no Rio de Janeiro. Con- paço em que interroga as noções de origem,
viveu, assim, com o hibridismo procedente identidade e pertencimento, Los Angeles. Os
dos contatos culturais e linguísticos entre as deslocamentos por espaços cosmopolitas
duas culturas: a argentina que os pais man- possibilitam a troca e a participação cultural
tinham em casa e a brasileira de seu cotidia- e, principalmente, o questionamento iden-
no. Em 2009, realiza parte da pesquisa de titário. Neles, os processos de hibridização
seu doutoramento e da escrita de sua tese emergem e permitem o questionamento so-
de doutoramento na universidade da cidade bre a sua origem e a busca de si mesma e,
americana de Los Angeles. Em meio a essa possibilitam ainda que de forma espiral a in-
experiência, escreve o romance (autobiográ- venção de um pertencimento a algum lugar.
fico?) Algum lugar. Uma busca tal qual o romance que a narra-
No romance, a narradora autodiegética dora planeja escrever (e que em um proces-
também passa por todas as experiências de so metaficcional é o próprio romance que a
deslocamentos pelas quais passou a autora. autora apresenta ao leitor):
Igualmente apresenta filiações múltiplas e
pertencimentos diversos: é filha de argenti- Ela pensa em escrever um livro e imagina a
nos exilados no Rio de Janeiro6 e viaja com o história de uma viagem de um continente
companheiro, chamado apenas de M. no ro- a outro. O livro falaria de uma invenção de
mance, para realizar uma parte do seu curso um pertencimento; construiria uma genea-
de doutoramento em Los Angeles. Com esse logia, atravessando várias cidades, até vol-
deslocamento, fecham-se os espaços do ro- tar ao seu ponto de partida (grifo nosso)
mance: Los Angeles, Rio de Janeiro e Buenos (VIDAL, 2009. p. 112-3).
Aires. O romance não se detém sobre a figura
masculina. Dele sabemos apenas que se cha- OS LUGARES, OS NÃO-LUGARES E
ma M e que vai a Los Angeles também para OS ENTRE-LUGARES
estudar, mas volta antes dela e nada mais. A narrativa situa-se no espaço urbano e so-
A narrativa privilegia a perspectiva da nar- cial das cidades cosmopolitas de Los Ange-
radora e se centra nas suas relações com o les, Rio de Janeiro e Buenos Aires. Porém, não
um espaço qualquer, mas especificamente os
5 Entendemos como hibridez cultural os “[...] processos socioculturais espaços públicos: o aeroporto, o ônibus e a
nos quais estruturas ou práticas discretas, que existem de forma separa-
da, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas” (GARCÍA universidade na cidade de Los Angeles; as
CANCLINI, 2008, p. xix).
ruas do Rio de Janeiro, por onde caminha a
6 “Que significado tem isso para mim, que nem sequer sou argentina, mas
filha de uma argentina expatriada?” (VIDAL, 2009. p. 35). narradora quando volta à cidade e o cinema
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 11

Los Angeles na cidade de Buenos Aires. Se- desse espaço público não civil como o lugar
gundo Bauman (2006, p.104), os espaços de início da narrativa, parece-nos represen-
públicos são lugares que as pessoas com- tativo do espaço de movência presente em
partilham apenas como pessoas públicas toda a obra, pois agrupa “... aqueles que não
- ou seja, nesses espaços, o indivíduo pode param de se movimentar, partir e chegar”
interagir socialmente sem que seja obrigado (VIDAL, 2009. p. 115), característica ineren-
a “... retirar a máscara, soltar-se, expressar- te à própria narradora. O aeroporto configu-
se, confessar seus sentimentos, sonhos ou ra nas cidades contemporâneas um espaço
preocupações mais profundos”7. Enfim, nos público muito particular: o não-lugar. Nas
espaços públicos as pessoas não interagem cidades cosmopolitas, os não-lugares são “os
nem com o espaço e nem entre si. Nesses lu- espaços constituídos em relação a certos fins
gares, elas não precisam ser e, portanto, não (transporte, trânsito, comércio, lazer) e a re-
demonstram subjetividades. lação que os indivíduos mantêm com esses
Nas cidades contemporâneas cada vez espaços” (AUGÉ, 2007, p. 87). Esses são es-
há mais lugares que recebem o nome de es- paços criados para o contínuo deslocamento,
paços públicos e, ainda segundo Bauman são lugares de passagem como os aeropor-
(2006, p.104), podem ser classificados nas tos, as autoestradas, os supermercados, nos
categorias de civis e não civis. O espaço civil quais o sujeito perde seus vínculos sociais
é aquele onde as pessoas podem comparti- e de identidade pessoal como nos esclarece
lhar e interagir como pessoas públicas; mas Dias (2007, s/p):
sem ser possível a iniciativa individual. O se-
gundo, o espaço público não civil, divide-se [...] o não-lugar não inscreve a identidade,
em duas categorias: os que não estimulam nem a relação, nem a história, pois a histó-
a permanência e os que estão destinados a ria é aí reduzida à informação, a identidade
prestar serviços aos consumidores. Neles a um conjunto de descrições numéricas,
não se mantém nenhum tipo de interação como o número do cartão de crédito, da
social, pois “são espaços que instam à ação identidade, do passaporte etc., e a relação
e não à interação” (BAUMAN, 2006, p. 105). com o outro é reduzida à espetacularização
Na narrativa, os espaços urbanos e sociais (tela, video-câmeras, televisão).
são os públicos (tanto civis quanto não civis).
Por isso, são espaços de aglomeração de pes- Os não-lugares ganham cada vez espaço
soas de diversas procedências que, em maior nas urbes contemporâneas, e os seus habi-
ou menor escala, não estimulam a perma- tantes paulatinamente migram para eles. Nos
nência, pois são lugares de passagem. A es- não-lugares, o sujeito está só, ainda que este-
colha desses espaços como lugares de ação ja rodeado de vários outros: “As pessoas vão
da narrativa não nos parece casual, já que e vêm, esbarrando umas nas outra, tentan-
eles simbolizam os espaços de movência, em do achar sua esteira para poder pegar o que
que o encontro com o diferente, com o outro é seu e deixar ao mais rápido possível esse
é inevitável. Esses espaços favorecem na nar- aeroporto que faz questão de expulsá-las”
radora a experiência do estranhamento com (VIDAL, 2009, p. 16). São espaços que “criam
o lugar em que se encontra e possibilitam tensão solitária” (AUGÉ, 2007, 87) e não in-
sua reconfiguração identitária. duzem nem a relação nem a interação, pois o
A narrativa inicia com a chegada da narra- sujeito tem sua conduta em público limitada
dora no aeroporto de Los Angeles. A escolha por um número reduzido de regras simples
e de fácil aprendizagem que ele deve seguir,
7 Todas as citações de Bauman são traduções livres da autora do trabalho. como nos esclarece Bauman (2005, p. 111):
12 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Os não-lugares [...] desalentam qualquer Na narrativa, o espaço do não-lugar tam-


ideia de “permanência”, impossibilitando bém está representado pelo ônibus no qual
a colonização ou domesticação do espa- circula a protagonista para deslocar-se de
ço. [...] os não-lugares aceitam a inevita- seu apartamento à universidade. Nesses des-
bilidade de uma permanência prolongada locamentos, o ônibus se transforma no espa-
de estranhos, de modo que esses lugares ço da espetacularização, no qual vê os Outros,
permitem a presença “meramente física” sem qualquer interação pessoal ou espacial,
– ainda que diferenciando-a muito pouco pois espaço e pessoas estão ali apenas para
da ausência de seus “passageiros”, já que serem observados – tal como ela própria. No
anulam, nivelam ou esvaziam-se de toda espaço do ônibus, a narradora observa as
subjetividade idiossincrática. Os residen- pessoas e a paisagem ao seu redor como se
tes temporários dos não-lugares variam, e fizessem parte de um espetáculo, sem que
cada variedade tem seus próprios hábitos nenhum deles lhes importe realmente. Nes-
e expectativas: o truque consiste em trans- se espaço, sua posição é a de espectadora e a
formá-los em irrelevantes durante o tempo posição de espectadora é em si o seu próprio
de sua estada (grifo do autor). espetáculo: “Enquanto a paisagem urbana
passa pela janela, faço parte desse microcos-
O espaço público do aeroporto contribui mo provisório, sentada no meu banco como
para a sensação de estranhamento da narra- uma estátua viva” (VIDAL, 2009, p. 29. Grifos
dora com o espaço da cidade. Nesse local, a nossos).
narradora se perde do companheiro M. que A sensação de não-pertencimento da
decidira viajar em outro voo. Ela chega so- narradora com o espaço urbano acentua-se
zinha no aeroporto de Los Angeles. A narra- nesses momentos de trânsito: “Meu único
dora pressente o desencontro no aeroporto contato com ela [a cidade] é através da jane-
como um aviso de ela não deveria estar ali, la do carro, uma pequena tela particular, em
em uma cidade desconhecida e em uma si- movimento” (VIDAL, 2009, p. 21). Sua apro-
tuação em que não consegue interagir nem ximação com a cidade ocorre através das ja-
com o espaço e nem com os demais: “Cruzo nelas dos meios de transportes – do ônibus
com o guarda da chegada, que olha para mim, e do carro- o que lhe proporciona uma visão
mas não me reconhece” (VIDAL, 2009. p. 16). sempre parcial e deslocada da cidade. O que
O desencontro cria na narradora uma ten- percebe da cidade de Los Angeles é o que o
são solitária que se dissipa com o reencontro movimento lhe permite perceber. A narrado-
com o companheiro. Contudo, o fato de re- ra, assim, só tem visões parciais da cidade,
encontrá-lo não dissipa a sensação de estra- alguns retratos instantâneos que tenta recu-
nhamento com o espaço, apenas a ameniza. perar na memória e no relato que faz dela,
O desencontro entre os dois nas primeiras mas mesmo assim “a desconexão prevale-
linhas do romance não é por acaso. Ocorre ce, escrevo e-mails para amigos, contando
para marcar o início dos sentimentos de não acontecimentos, mas tudo soa falso. Atrás de
pertencimento e de estranhamento com a ci- cada frase, há uma pergunta que eu mesma
dade na qual está, consigo própria e com o não consigo responder” (VIDAL, 2009, p. 23).
companheiro. Sentimentos que perpassam Essa visão parcial da cidade contribui para o
por toda a obra: “Deixarei que ela [a cidade] contínuo questionamento que se faz ao lon-
me seduza [...] abandonando a impressão go desse capítulo: o que faço aqui? Como não
perturbadora do aeroporto por uma sensa- consegue interagir com uma cidade que não
ção de reconhecimento que nesse instante me reconhece como sua, cada vez mais aumen-
confortara”. (VIDAL, 2009, p, 17. Grifo nosso). ta a sensação de estranhamento: “me sinto
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 13

tentada a sobrepor uma geografia sobre a cidades cosmopolitas da narrativa em perso-


outra como para medir o grau do meu des- nagens da obra. Ainda que a obra enfoque as
locamento ou forçar uma adaptação necessá- relações pessoais entre os gêneros (da nar-
ria” (VIDAL, 2009, p. 29. Grifo nosso). Seus radora com o companheiro M) e dentro do
espaços na cidade - o ônibus e a universidade gênero feminino (da narradora com a colega
- não lhe permitem a interação, a troca de ex- Lucy), o eixo narrativo se desloca também
periências e, consequentemente, a criação de para as reflexões da narradora a respeito de
vínculos necessários para territorializar-se. seu mundo exterior. Sua realidade particular
A cidade de Los Angeles apresentada na está diretamente relacionada à realidade ci-
obra tem um contexto marcadamente dias- tadina: é ela versus o estranhamento que lhe
pórico e transnacional e, por isso, para a causam as cidades por onde passa. Em Los
narradora ela é “[...] uma cidade como qual- Angeles, o estranhamento ocorre por não
quer outra, penso, São Paulo, México, Cara- conseguir ajustar-se à cidade. Percorre-a,
cas” (VIDAL, 2009. p. 79): É uma cidade que como um flâuner, procurando reconhecer-
tem dentro de si várias outras cidades, como se nela. Porém, se conscientiza de que será
a Paris da Elysee Bakery (VIDAL, 2009. p. “sempre uma passante solitária nessa cida-
53), a cidade coreana, na Koreatown Galleria de” (VIDAL, 2009. p. 113), na qual resiste a se
(VIDAL, 2009. p. 395); ou cidades europeias ambientar e conclui que vive “na cidade sem
francesas e italianas no centro comercial que estar nela” (VIDAL, 2009. p. 110).
imita uma minicidade (VIDAL, 2009. p. 71). Ao retornar ao Rio de Janeiro, a sensa-
Tal contexto facilita a multiplicação dos não- ção de não-pertencimento se mantém, o que
lugares e, portanto, a não interação com o es- atesta de novo sua não coincidência com o
paço urbano e com as pessoas. lugar onde se encontra, por causa dos meses
O contexto diaspórico e transnacional se de afastamento. Caminha pela cidade para
reflete também no espaço da universidade, tentar reencontrá-la e refazê-la em sua me-
onde a narradora faz seu doutorado. A uni- mória, mas o que vê é uma cidade diferente.
versidade, tal qual o aeroporto, é o lugar em Após algumas errâncias, percebe que a sensa-
que se configuram os encontros intercul- ção de estranhamento é interna, é dela e não
turais. No romance, é o espaço no qual se da cidade: “O mesmo acontecia com a cidade:
manifesta os entre-lugares em que se entre- ela não exigia nada de mim. Não queria nada
cruzam as diversas nacionalidades e vozes de novo. Era eu quem buscava uma justifica-
presentes no romance. Esse espaço, criado tiva para a inadequação do retorno” (VIDAL,
pelo descentramento, debilita os esquemas 2009. p. 127). Conscientiza-se de que a ina-
tradicionais de unidade, pureza e autenti- dequação está em si mesma e sente a neces-
cidade (HANCIAU, 2005, p. 127), pois é um sidade de conectar-se com suas raízes cultu-
espaço de mescla, de diversidade que repre- rais na cidade de seus pais e avós. Viaja para
senta o microcosmo multiétnico e multicul- Buenos Aires com a mãe e o filho. Assim, fe-
tural da cidade cosmopolita americana. Nele cha-se o ciclo de pertencimentos com as três
intensificam-se os choques identitários da cidades que configuram a sua subjetividade.
narradora com os demais sujeitos desterri- Em Buenos Aires, o sentimento de estra-
torializados que perpassam pela obra, trans- nhamento se mantém ao perceber que a ci-
formando-se em um espaço intensificador dade visitada não é a mesma que ela se re-
da sensação de não-pertencimento. cordava por vozes passadas. A cidade está aí,
Esse sentimento de não-pertencimen- mas difere-se da Buenos Aires recriada inces-
to influi na relação entre a narradora e o santemente pelas conversas com a mãe e pe-
espaço em que convive, transformando as las memórias de viagem. A narradora deseja,
14 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

assim, outro espaço: a Buenos Aires de sua [...] à medida que os sistemas de significa-
memória. Percebe que a cidade atual não é a ção e representação cultural se multipli-
mesma da época em que visitava a avó. A ci- cam, somos confrontados por uma multi-
dade de sua infância estava distante da cida- plicidade desconcertante e cambiante de
de de agora (ou era mulher de agora que era identidades possíveis, com cada uma das
diferente?). O sentimento de desterritoriali- quais poderíamos nos identificar – ao me-
zação aumenta ao perceber em sua mãe um nos temporariamente. (HALL, 2005, p. 13)
sentimento idêntico de estranhamento com
a cidade onde viveu a sua juventude. A Bue- PERSONAGENS TRANSPASSADOS
nos Aires de sua mãe se converte no espelho As heterogeneidades presentes nos não-lu-
do Rio de Janeiro. Uma só existe em relação gares e nos entre-lugares da cidade ameri-
à outra. Cada cidade interfere na construção cana estão marcadas também nas persona-
espacial da outra. Sua mãe conseguia compa- gens que circulam pela obra. Transpassados
rar as duas cidades para poder encontra-se “... por duas ou mais culturas– a de seu país de
era fundamental que elas [as cidades] se dis- origem e a da cidade americana - são perso-
tinguissem, sem se importar tanto em bene- nagens desterritorializadas, definidas pelas
fício de qual das duas” (VIDAL, 2009. p. 167). diásporas internas e externas, como o zela-
Para a mãe, a distinção entre as duas cidades dor que vive em Los Angeles, mas é do Ten-
em que viveu é necessária para assegurar-se nessee; o aluno de espanhol Jay, americano,
de um pertencimento e, consequentemente, que sonha em sair dos Estados Unidos e vi-
de uma identidade. Contudo, o mesmo não ver no México; a coreana Luci e suas amigas
ocorre com a narradora. Ela não consegue também coreanas; a vizinha colombiana; o
associar nenhuma cidade como efetivamente médico argentino; a motorista guatemalteca
sua. A sensação de não-pertencimento ainda do ônibus da universidade; o amigo chileno e
se mantém em Buenos Aires. o palestrante argentino Pablo.
O encontro com a cidade de sua genea- As personagens das quais temos mais
logia faz retornar na narradora a sensação informações, além da narradora, são Luci,
de estranhamento sentido em Los Angeles. Pablo e a vizinha colombiana. Personagens
Como na cidade americana, a narradora per- que por um constante ir e vir compartilham
cebe que entre a imagem objetiva e a subjeti- com a narradora de um jogo identitário mó-
va da cidade, constrói uma terceira, um lugar vel e múltiplo, muito próximo ao conceito
móvel por excelência: a imagem de uma cida- de subjetividade nômade, desenvolvido por
de existente somente no entre-lugar, na zona Braidotti (2002). A teórica nos esclarece que
de contato entre as duas. Essa cidade criada os sujeitos nômades se posicionam pela re-
acarreta o não-pertencimento a nenhuma núncia e a desconstrução de qualquer senso
das cidades pelas quais transita e sugere a de lugares e de identidades fixas, pois vão
possibilidade de se desejar em algum outro além das fronteiras nacionais para produzir
lugar. Nessas zonas de contato entre a cidade novas formações identitárias:
imaginada e a cidade real, a narradora cons-
trói e reconstrói uma identidade híbrida, tra- Recebemos um telefonema de nossa vizinha
duzida, de afiliações múltiplas8, pois como colombiana. É para nos avisar que não mora
nos assevera Hall: mais no prédio: foi expulsa junto com a gata.
Quando perguntamos a ela o que iria fazer,
8 Para Almeida (2010, p. 13), as identidades afetam e são afetadas pelos
movimentos transnacionais e nesse espaço: “Torna-se possível, então, falar responde que não sabe ainda exatamente,
não apenas de uma identidade nacional ou subjetividade individual, mas sim
de identidades híbridas e afiliações múltiplas que definam os sujeitos, sobre- mas que uma tese escreve em qualquer lu-
tudo femininos, em um movimento constante, em um processo contínuo de
estar no mundo”. gar (grifo nosso). (VIDAL, 2009. p. 95).
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 15

Essas personagens se caracterizam mais ali cursando o doutorado. Durante o ano em


pela resistência a se assimilarem à cultura que está na universidade de Los Angeles, a
do local de destino e pela subversão das con- coreana é o único laço da narradora com o
venções tradicionais que pela necessidade mundo do campus, além de ser a única re-
de estarem sempre em deslocamento. Elas lação estabelecida fora do círculo instaura-
subvertem o tecido aparentemente homo- do entre ela e o companheiro M. Por suas
gêneo da cidade cosmopolita, enfatizando o características, Luci é o reflexo invertido da
sentimento de não-pertencimento por serem narradora: está adaptada à cidade, fez ami-
detentores de uma cidadania transitória. Ci- zade com outras pessoas no campus, possui
dadania essa que conduz à ressignificação da um carro para deslocar-se e, principalmente,
cultura local: para ela está claro o porquê está na cidade de
Los Angeles. Por ser o seu reflexo, a narrado-
Como Luci insiste, compartilhamos alguma ra apenas enxerga Luci como alguém que lhe
coisa; não tanto um assunto de trabalho, recorda que seu deslocamento para a cidade
que da minha parte eu nem saberia dizer americana possui um objetivo específico, o
direito qual é, algo mais efetivo, uma ne- doutorado:
cessidade de estar longe, de estar fora de
um lugar determinado, que deveria nos Constato que a presença dela me fazia
pertencer, mas não nos pertence (VIDAL, avançar mesmo sem saber para onde. Era
2009. p. 58). como se fosse uma espécie de prova de que
o que vim fazer ali não é um completo ab-
Contudo, a narrativa se centra principal- surdo, já que existia outra pessoa naquele
mente nas relações entre a narradora e a buraco pulguento, no subsolo do Rolfe Hall,
personagem Luci. Tal foco nas relações entre que viera do outro lado do mundo para fa-
as duas personagens objetiva ressaltar as di- zer algo parecido. (VIDAL, 2009, p. 83)
ferenças dentro do próprio gênero feminino.
Nos espaços multiétnicos e multiculturais da Porém, essa constatação não é suficien-
cidade de Los Angeles, a narrativa questio- te para estabelecer entre as duas mulheres
na a noção de essência cultural e ressalta o uma relação de amizade. A narradora não
que Shohat (2004, p. 26) denomina “os en- consegue enxergar analogias com esse su-
contros dialógicos das diferenças existentes jeito feminino tão culturalmente diferente
dentro do próprio feminino”. Ao reunir mul- de si e atua para que na relação estabelecida
ticulturalismo e gênero, a narrativa amplia sobressaiam apenas as diferenças, os con-
a visão da narradora para abarcar as diver- trastes culturais que geram uma não iden-
sidades culturais existentes no termo “femi- tificação. Com isso, o relacionamento entre
nino”. Mostra que os conflitos identitários elas está marcado pelo signo da incompre-
provenientes dos encontros interculturais ensão, no qual se destacam as diversidades
e sua aceitação ou não modificam o sujeito culturais que as separam: “Gostaria de ter
feminino. Dessa forma, contribue para a nar- perguntado de onde ela vinha, como veio pa-
radora perceber que a sua identidade se (re) rar nessa universidade, onde que aprendeu
constrói no entre-lugar gerado pelos conta- espanhol, mas acabei perguntando apenas o
tos espaciais e multiculturais entre ela pró- seu nome” (VIDAL, 2009, p. 34).
pria e o Outro. Ao focar a narrativa na impossibilida-
O primeiro encontro entre a narradora e de de comunicação entre narradora e Luci,
a coreana Luci ocorre o espaço multicultural a obra vai além das questões de alteridade
da universidade. Como ela, Luci também está da escrita feminina impostas pelas marcas
16 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

de gênero - o masculino versus o feminino. Numa das primeiras idas à universidade,


Essas marcas estão presentes quando a nar- fui interpelada por uma moça oriental que
radora s reflete sobre o seu relacionamento sorriu como se me conhecesse. Fiquei en-
com companheiro M. Entretanto, se com o vergonhada quando ela me disse que já
companheiro, a narradora se esforça para es- havíamos sido apresentadas. Poderia tê-la
tabelecer uma relação dialógica (ainda que confundido com qualquer outra das tan-
M. não faça nenhum esforço para mantê-la), tas orientais que andavam pelo campus
o mesmo não acontece como relacionamen- (VIDAL, 2009. p. 33)
to com Luci. A relação entre elas ressalta o
fato de que a desterritorialização afeta tam- Não há menção na narrativa de nenhum
bém as relações não só entre, mas dentro do dos traços característicos de Luci. Durante
próprio gênero. A cada encontro com Luci, a um ano, o relacionamento estabelecido entre
narradora se conscientiza da existência de as duas é superficial, gerado pela não aproxi-
diferenças culturais que as distanciam, mas mação. O tempo que passam juntas, na uni-
se recusa a tentar estabelecer um encontro versidade e fora dela, não traz nenhum laço
dialógico com essas diferenças. afetivo: Luci continua sendo apenas uma
Uma marca do distanciamento entre elas mulher oriental como outra qualquer para a
é a língua. Utilizam para se comunicarem um narradora9. A relação se destaca pela incom-
idioma que não pertence nem a uma nem a preensão gerada no contato de mulheres de
outra: o espanhol. Esse fato aumenta o estra- culturas diferentes que se comunicam com
nhamento entre as duas. Um estranhamento línguas que não são as suas: “Culpo a língua
que não ocorre pela incompreensão do idio- sem ter certeza se é disso que se trata. Sa-
ma utilizado, pois Luci o utiliza de maneira beria em português o que dizer a ela [Luci]?
correta; mas pelo sentimento de não identi- Saberia como organizar minhas ideias diante
ficação com o Outro - uma coreana falando dessa moça...” (VIDAL, 2009, p. 120). Entre-
espanhol: “Enquanto ela falava, eu tentava tanto, a falta de compreensão entre elas não
identificar o que me impedia de compre- está marcada na obra somente pela voz da
ender as suas frases com precisão” (VIDAL, narradora. Luci também está consciente de
2009. p. 34). que a narradora não tem interesse em man-
Não por coincidência Luci é oriental. A ter uma aproximação, que a vê como o Outro,
dicotomia mulher ocidental versus oriental aumentando cada vez mais o distanciamento
é umas das oposições mais marcantes den- entre elas: “Nunca entiendes nada, Luci diz
tro dos estudos do feminino. Essa dicotomia depois de mais uma pausa” (VIDAL, 2009. p.
sugere as dificuldades de se chegar às di- 106. Grifo da autora).
versidades do Outro, em especial, à hetero- Contudo, a constatação de que Luci tam-
geneidade de mulheres situadas no contra- bém teve que lidar com as consequências de
ponto de nosso horizonte cultural. Por isso, uma identidade fraturada pelos deslocamen-
ao olhar para a mulher oriental, o feminino tos presentes em sua infância, faz com que
ocidental primeiramente destaca a diferen- a personagem, pela primeira vez no roman-
ça - o Nós versus o Elas – para depois procu- ce, estabeleça uma relação dialógica com
rar as semelhanças. Essas diferenças são tão a colega coreana. Nesse momento, passa a
acentuadas na obra que a narradora apaga vê-la não mais como o Outro, mas como a si
as marcas identitárias de Luci como indiví-
9 “Quem é Luci? Não sei mais sobre ela do que sobre a moça oriental co-
duo, para agrupá-la apenas com relação a mendo seu potinho de arroz ao meu lado. Sinto-me tão incapaz de ter alguma
intimidade com ela quanto com essa moça. É como se tivesse acabado de co-
sua etnia: nhecê-la. Não, é maior a distância, porque com essa moça tudo ainda é uma
possibilidade, aberta, incerta e com Luci me sinto rodando em círculos”(-
VIDAL, 2009, p. 80).
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própria: um ser traduzido da contempora- femininos presentes na narrativa estão tan-


neidade, consciente de sua multiplicidade de genciados pelas relações diaspóricas prove-
pertencimentos. Luci ao narrar o seu passa- nientes dos processos de desterritorializa-
do de múltiplas pertenças, conta sua história ção de seus pais e de si próprios. Esses pro-
como se não fizesse parte dela – como o faz cessos deslocam os textos de Vidal - e muitos
a própria narradora ao contar sua estada em outros de autoria feminina - do espaço pri-
Los Angeles. Nesse momento, descobre que vado para o público e das relações entre os
Luci e ela compartilham problemas idênti- gêneros para as relações dentro do próprio
cos e buscam compreenderem a si mesmas gênero. Essas relações permitem compre-
em meio às fraturas impostas pelos desloca- ender as divergência do sujeito feminino e
mentos: “Então durante toda a infância ela instaura o diálogo com as questões de etnia.
[Luci] tinha a sensação de que havia duas Desse modo, a autora explora a literatura
realidades distintas, inconciliáveis, e de que como uma prática política e social que visi-
também não pertencia a nenhuma das duas” biliza a mulher como parte constitutiva da
(VIDAL, 2009, p. 98). A constatação de que sociedade cosmopolita.
viver na contemporaneidade é o resultados As relações entre as personagens, princi-
de múltiplos pertencimentos, acarreta na palmente entre as femininas, focam-se prin-
narradora a dissipação das diferenças cultu- cipalmente nos contatos multiétnicos e mul-
rais e contribui para estabelecer, entre ela e ticulturais presentes no contexto transnacio-
Luci, o elo de uma relação dialógica: nal das cidades contemporâneas da narra-
tiva. Nesse contexto, verifica-se que dester-
Conto a Luci minha lembrança e ela ri [...] ritorialização explica o desejo da narradora
Continuo falando. Conto coisas que nunca autodiegética da obra analisada de mover-se
tinha contado a ninguém [...] coisas que na por vários lugares. É um sujeito que descons-
verdade nunca tinha formulado nem para trói a identidade homogeneizante preestabe-
mim mesma e que só agora tomam forma... lecida para si e adquire, como consequência
(VIDAL, 2009, p. 98) desses deslocamentos e dos contatos com as
diferenças, uma subjetividade traduzida que
Nesse momento do encontro dialógico reflete a multiplicidade de pertencimentos e
entre as duas mulheres, a língua estrangei- as heterogeneidades presentes em seu ser.
ra utilizada para compartilhar a experiência Os constantes deslocamentos do sujeito
do deslocamento não se torna um empecilho feminino acabam por modificá-lo, fazendo
para a comunicação. O uso da língua espa- com que sua visão abranja a diversidade ét-
nhola - compreendida pelas duas - contribui nica e cultural e aceite as inúmeras diferen-
para construir uma identidade de gênero não ças existentes dentro de seu próprio gênero
marcada pelo essencialismo: “Luci então co- e perceba, tal qual a narradora de Vidal, que
meça a me contar sobre sua infância. Surpre- espaços de transição requerem negociações
endentemente, no relato das lembranças seu identitárias constantes, de modo que a sua
espanhol fica muito mais claro, começa a ga- identidade se constrói no entre-lugar gerado
nhar uma fluidez nova...” (VIDAL, 2009, p. 97). pelos contatos espaciais e multiculturais en-
tre ela mesma e o Outro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Algum lugar ilustra a (re)negociação iden-
A narrativa de Paloma Vidal foca as contradi- titária incessante, na qual a personagem em
ções do mundo cosmopolita e globalizado na constante deslocamento e desterritorializa-
figura feminina desterritorializada. A análi- da, sempre em busca de um lugar perdido,
se da obra permite verificar que os sujeitos múltiplo e em perpétua busca da identidade.
18 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Consciente de que o “algum lugar” para en- HALL, Stuart. A identidade cultural na Pós-Mo-
contrar-se entre as várias afiliações múlti- dernidade. Trad. de Tomaz Tadeu da Silva e
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 19

MODULAÇÕES DE ALTERIDADE: AS AUTONOMEAÇÕES


DE HUMBERT EM RELAÇÃO À HEROÍNA DE LOLITA,
OBRA DE NABOKOV1

Andrio Santos2

RESUMO: No romance “Lolita”, de Vladimir Nabokov, o personagem narrador, Humbert Humbert,


utiliza-se de autonomeações para se definir. Dessa forma, ele busca adaptar sua relação de alteri-
dade com a heroína do romance, Dolores Haze. Nessa perspectiva, a partir de apontamentos sumá-
rios sobre a questão da alteridade, do feminino e sua relação, este trabalho pretende apresentar
um argumento coerente sobre a possível significação de tais nomeações. Para tal, serão analisados
excertos do capítulo 11 da obra, que apresenta o diário de Humbert. Neste, são expostas suas pri-
meiras impressões e interações com a heroína, a quem o protagonista nomeia de Lolita. Para funda-
mentação teórica e crítica utilizaremos autores como Alfred Appel Jr., Simone de Beauvoir, Julian W.
Connelly e Eric Landowski.
Palavras-chave: Alteridade. Feminino.Outro. Lolita. Modulações.

ABSTRACT: In the novel “Lolita” by Vladimir Nabokov, the narrator character, Humbert Humbert,
uses self appointments to define yourself. Thus, he seeks to adapt your alterity relationship with the
novel heroin, Dolores Haze. From this perspective, from summary thoughts about the question of
alterity, the feminine and it’s relationship, this paper aims to present a coherent argument about the
possible significance of such epithets. To this end, excerpts from Chapter 11 of the book, which fea-
tures daily Humbert will be analyzed. In this chapter, their first impressions and interactions about
the heroine are exposed, who the protagonist names of Lolita. For theoretical and critical grounding
we use authors as Alfred Appel Jr., Simone de Beauvoir, Julian W. Connelly and Eric Landowski.
Key-words: Alterity; Feminine; Other; Lolita; Modulations.

RESUMEN: En la novela “Lolita” de Vladimir Nabokov, el personaje narrador, Humbert Humbert, se


utiliza para definir los autonomeações. De esta manera, se busca adaptar su relación con la alteri-
dad, con la heroína de la novela, Dolores Haze. En esta perspectiva, las notas de resumen de la cues-
tión de la alteridad, la mujer y su relación, este estudio tiene como objetivo presentar un argumento
coherente sobre el posible significado de esos nombramientos. Con este fin, se analizarán extractos
del capítulo 11 del libro, que cuenta con todos los días Humbert. En esto, las primeras impresiones
son expuestos y las interacciones con la heroína, que los nombres protagonistas de Lolita. Por el
razonamiento teórico y autores para usos críticos como Alfred Appel Jr., Simone de Beauvoir, Julian
W. Connelly y Eric Landowski.
Palabras clave: Alteridad; Mujer; Otros; Lolita; Modulación.

1 Trabalho desenvolvido como caráter avaliativo para a disciplina “Literatura e Figurações da Alteridade”, do curso de Pós-Graduação em Letras, nível
Mestrado, Estudos Literários, 1º Semestre de 2014, UFSM.

2 Mestrando em Letras – Estudos Literários pela UFSM.


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INTRODUÇÃO prefácio temos um ponto que poderia ser de-


Lolita é um romance de Vladimir Nabokov, terminante, uma vez que Humbert Humbert
construído em prosa floreada, repleto de não é o nome do protagonista, mas a másca-
ironias, publicado em 1955 em Paris e 1958 ra que ele assume para contar sua história.
em New York. Trata de um tema controver- Outra questão seria a alteridade encarnada
so, a obsessão de um professor de literatura na heroína. Logo no primeiro capítulo temos
de meia idade pela menina Dolores Haze, de uma Lolita que “Era Lo, apenas Lo, pela ma-
12 anos, a qual ele secretamente nomeia de nhã, com suas meias curtas e seu um metro
Lolita e com quem acaba se envolvendo se- e quarenta e oito centímetros de altura. Era
xualmente. A obra foi adaptada duas vezes Lola em seus slacks. Era Dolly na escola. Era
para o cinema, por Stanley Kubrick em 1962, Dolores quando assinava o nome. Mas, em
e Adrian Lyne em 1997. meus braços, era sempre Lolita” (NABOKOV,
O romance é composto por um prefácio e 1967, p. 11). O problema da alteridade da
é dividido ainda em duas partes. O prefácio é personagem fica claro, mesmo que sempre
parte do texto narrativo, assinado pelo per- exposto pela visão do narrador.
sonagem John Ray Jr., doutor em filosofia e Existe também uma questão similar em
responsável pela preparação do manuscrito relação ao protagonista, pois ele define ti-
de Lolita para publicação. O autor da obra, tulações para si mesmo, como epítetos. Um
apresentado pelo pseudônimo de Humbert exemplo disso é quando sua primeira esposa,
Humbert, teria falecido na prisão, de trom- Valéria, revela-lhe que está tendo um caso.
bose, três dias antes do seu julgamento. Na Ao entrar no taxi de volta para casa, “Hum-
primeira parte do romance, o personagem bert, o Terrível, deliberava com Humbert, o
narrador, o próprio Humbert, apresenta-se Pequeno, se Humbert Humbert devia matá-
ao leitor. Ele relata traços de sua vida jovem, -la, ou matar-lhe o amante, ou ambos, ou ne-
a emblemática relação de amor de infância nhum dos dois” (NABOKOV, 1967, p. 32).
com Annabel, a paixão pelas “ninfetas” e a Assim, a partir de observações sumárias
primeira esposa, Valéria. Temos também o em torno da questão da alteridade e da sua
início do seu relacionamento com Lolita e relação como feminino, pretendemos anali-
o casamento com Charlotte, mãe da garota, sar o capítulo 11 de Lolita – Capítulo com-
por mera conveniência, pois Humbert tinha posto pelo diário do protagonista, relatando
o intuito de permanecer perto da menina. seus primeiros contatos, impressões e expe-
Esta primeira parte se encerra com a morte riências com a heroína. Desse modo, inten-
acidental de Charlotte e o início das viagens tamos averiguar como as autonomeações
dos amantes Humbert e Lolita. Na segunda de Humbert, reflexos de sua alteridade, se
parte do livro, temos as viagens da menina e manifestam em relação à sua perspectiva
seu padrastro-amante pelo interior dos EUA, da personagem Lolita, presente na narrativa
a intensificação da obsessão do narrador por como um outro.
Lolita e a eventual fuga da garota, enquanto
permanecia internada num hospital. Mais 1. ALTERIDADE: O OUTRO E O
tarde, Humbert a reencontra e ela revela ter FEMININO
sido ajudada pelo dramaturgo Clare Quilt. A questão da alteridade está ligada dire-
Humbert assassina Quilt por tê-lo separado tamente a identidade, ou seja, tem relação
de sua pequena amante. com o reconhecimento e o autorreconhe-
Lolita é uma obra que oferece grande cimento de um indivíduo ou grupo social.
gama de possibilidades para uma análise Algo frequentemente em pauta em diversos
voltada à questão da alteridade. Logo no ramos de estudo, principalmente sob o viés
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 21

da pós-modernidade – ou qualquer termo reconhecimento do outro, é o espaço-tem-


utilizado para a caracterização do momento po. Entendendo o tempo como um agora e
atual da sociedade. Numa época em que tudo o espaço como um aqui, tal caráter funciona
parece líquido, em que mesmo o que parecia como um campo de diferenças entre o eu e o
mais sólido se desfaz em meio à poeira veloz outro. Como supracitado em relação à ausên-
do tempo, o próprio sujeito se liquefaz. Cer- cia, nesse âmbito, cabe à distância do aqui-
tamente, contudo, o sujeito ainda tem consci- -agora em relação a todo o resto, de outros
ência de si mesmo, de sua presença no mun- lugares e outros momentos, revelar ao indi-
do. De que forma então se daria este reco- víduo ele mesmo, à medida que reconhece
nhecimento? Eric Landowski menciona que seu espaço e seu momento.
o sujeito reconhece o mundo a partir da dife-
rença, independentemente de ordem, caráter [...] só há espaço-tempo em função da com-
ou variação. Só a diferença “permite consti- petência específica de sujeitos que, para se
tuir como unidades discretas e significantes reconhecerem, e antes de mais nada, para
as grandezas consideradas e associar a elas, se constituírem a si próprios enquanto tais,
não menos diferencialmente, certos valores, têm de construir também, entre outras coi-
por exemplo, de ordem existencial, tímica sas, a dimensão “temporal” de seu devir e o
ou estética” (LANDOWSKI, 2002, p. 3). Tanto quadro “espacial” de sua presença para si
em relação ao mundo que o cerca, quanto em e para o Outro (LANDOWSKI, 2002, p. 67).
relação a si mesmo e ao outro, o sujeito, des-
sa mesma forma, constitui-se pela diferença, Ser um sujeito em si mesmo, entretanto,
questão diretamente ligara à alteridade. não é apenas afirmar-se como o que o outro
O sujeito teria necessidade de um outro não é. Antes, trata-se de “captar o mínimo de
para alcançar um sentido de existência pró- coerência que dá sentido e unidade ao de-
pria. Isto porque o sujeito atribui algo espe- vir que faz com que cada um seja, individual
cífico a esta diferença, um conteúdo determi- ou coletivamente, o que é”. (LANDOWSKI,
nado ou sugerido, justamente o que segrega 2002, p. 26). O outro, podemos aferir, é tam-
o eu e o outro. Dessa forma, o sujeito define bém uma figura emblemática marcada pelo
a si mesmo, ou tenta definir, a partir de uma vazio, ou por algo de ausente, onde o sujei-
imagem autoconstruída e também conside- to procura negativamente se reconhecer. Ou
rando a imagem que este outro envia de vol- seja, o outro é um algo onde o sujeito busca
ta ao eu. Todavia, o espaço de diferença que o reconhecimento, preenchendo estes espa-
separa o eu do outro é fundamentalmente re- ços ausentes com algo de si mesmo.
levante para esta definição do sujeito. Como Em relação à obra aqui analisada, pode-
coloca Landowski: mos considerar que essa relação de reconhe-
cimento no outro se dá quando o homem, de
[...] um sujeito não pode, no fundo, apreen- forma moral, renuncia a ser para assumir uma
der-se a si mesmo enquanto “Eu”, ou “Nós”, existência. Desse modo, ele assume uma pos-
a não ser negativamente, por oposição a um se, pois “é a posse a forma de procura de todo
“outro”, que ele tem que construir como fi- o ser” (BEAUVOIR, 1980, p. 180). O homem,
gura antitética a fim de poder colocar-se a si assim, teria como mote a busca por esse re-
mesmo como eu contrário: “O que eu sou é o conhecimento, por esse algo a possuir. Ao
que você não é” (LANDOWSKI, 2002, p. 25). mesmo tempo, o homem teria consciência
da necessidade de certo afastamento para
Outro ponto relevante para o processo que se realizasse esse reconhecimento. Nes-
de autorreconhecimento do indivíduo, ou sa acepção, a representação dessa meta seria
22 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

justamente a mulher, algo que media a natu- do diário do protagonista e suas primeiras
reza exterior – que o homem deseja dominar impressões e intenções acerca da heroína,
– e algo que é também semelhante ao homem. pretendemos analisar como Humbert modu-
Por isso, “A mulher apresenta-se assim como la sua forma de autorreconhecimento – ou
o inessencial que nunca retorna ao essencial, tentativas de autorreconhecimento – em re-
como o Outro absoluto, sem reciprocidade” lação a sua visão da personagem Lolita.
(BEAUVOIR, 1980, p. 181). Como exemplo, Be-
auvoir cita o mito cristão de Adão e Eva. Pela 2. ANÁLISE DE OBRA: AS MODULA-
leitura da autora, Deus deu a Adão a esposa ÇÕES DE ALTERIDADE
para salvá-lo da solidão, ou seja, Eva teria seu Antes de abordarmos a análise dos excer-
início e seu fim na própria figura de Adão. tos selecionados, destacaremos dois pontos
Sobre a comparação da mulher com a Na- relevantes para a compreensão desta. Hum-
tureza, Beauvoir argumenta que o homem bert atribui seu amor por Lolita a duas carac-
necessita se apoderar dela, domá-la, dobrá- terísticas: a menina seria um reflexo de seu
-la, possuí-la, consumi-la. “Desde que o sujei- amor juvenil, Annabel, e o objeto de desejo
to busca afirmar-se, o Outro, que o limita e do personagem: uma “ninfeta”.
nega, é-lhe entretanto necessário: ele só se Humbert conhecera Annabel Leigh duran-
atinge através dessa realidade que ele não te um período de férias, quando esta era ainda
é” (BEAUVOIR, 1980, p. 179). Vemos nessa pouco mais de uma criança. A família da me-
colocação um paralelo com as considerações nina alugara uma Villa perto do Hotel Mirana,
de Landowski, quando o autor ressalta que o onde o protagonista vivia com seu pai. Após
indivíduo se reconhece na ausência. um período inicial, Annabel e Humbert apai-
Assim, a mulher seria também reconheci- xonaram-se um pelo outro. Contudo, perma-
da negativamente, pois embora haja outros neceram incapazes de consumar tal paixão. O
Outros, ela sempre seria o Outro por exce- narrador deixa claro em várias passagens que
lência. Sua ambiguidade, sua característica reencarnou, ao menos em princípio, Annabel
condicional garantiriam a ela tal papel, pois em Lolita: “Estou convencido, porém, de que,
a mulher não encarnaria um sentido único de uma certa maneira mágica e fatal, Lolita
e imutável, “através dela realiza-se sem ces- começou com Annabel” (NABOKOV, 1964, p.
sar a passagem da esperança ao malogro, 16). Ou ainda: “vinte e quatro anos depois,
do ódio ao amor, do bem ao mal, do mal ao quebrei seu encantamento, encarnando-a em
bem. Sob qualquer aspecto que se considere outra” (NABOKOV, 1964, p. 18).
é essa ambivalência que impressiona primei- Outro ponto a ser elucidado diz respeitos
ramente” (BEAUVOIR, 1980, p. 183). às “ninfetas”, objetos de desejo do narrador.
Neste caso, como intentamos analisar o De acordo com o personagem, existiriam
capítulo 11 da obra Lolita, poderíamos locar meninas, entre nove e quatorze anos de ida-
o protagonista, Humbert, no papel de sujei- de, possuidoras de uma outra natureza que
to que busca em suas “ninfetas” algo de per- não a humana, mas designadas por ele como
dido, um outro lugar, corpo ou consciência, “nínfica” ou “demoníaca” – daí o termo “nin-
algo que o complemente. Num sentido direto feta”. Ainda, o personagem deixa claro que
de alteridade, ele busca outro que possa re- nem todas as meninas entre tais idades se
velar-lhe ele mesmo. Lolita, por sua vez, ao enquadrariam no perfil. Para abordar as ca-
menos na perspectiva do narrador, seria este racterísticas definidoras ou identificadores
outro encarnado no feminino. dessas ninfetas, o personagem exclui espe-
Assim, a partir de excertos selecionados cificidades como beleza ou vulgaridade e
do capítulo 11 de Lolita, capítulo que trata alude a “certas características misteriosas, a
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graça tresloucada, o charme indefinível, as- alteridade do personagem. Isto é, Humbert


tuto, insidioso, que despedaça almas e que tentaria adaptar sua imagem na intenção de
distingue a ninfeta de certas de suas coevas atrair Lolita. Assim, intentaria tomá-la para
[...]” (NABOKOV, 1964, p. 19). si, reclamar posse sobre ela.
Vale destacar que a ninfeta – e por con- O capítulo 11, como relatado pelo nar-
sequência a heroína da obra, Lolita, uma rador, seria uma transcrição do seu diário,
vez que Humbert assim a identifica – seria abarcando o primeiro mês na casa das Haze
o outro absoluto. Segundo Beauvoir, o sexo e na convivência de Lolita. Sua relevância
feminino já estaria locado como outro. Sen- como objeto de análise está em conter a nar-
do a ninfeta algo discrepante entre os outros rativa inicial sobre a relação de Humbert
femininos, ela torna-se assim um outro entre com a heroína. O texto é fragmentado de
outros. O próprio narrador assim a localiza, acordo com os dias da semana, grafados em
quando menciona que “Eu tinha consciên- itálico. Muitas colocações são sumarizadas,
cia não de um, mas de dois sexos, nenhum contudo, há passagens relativas à Lolita nas
dos quais era o meu; ambos seriam desig- quais Humbert se detém e dá mais atenção à
nados como femininos pelo anatomista” narração e à descrição. Neste capítulo, uma
(NABOKOV, 1964, p. 21). Tal identificação da espécie de pequeno livro dentro de um livro,
ninfeta não se dá apenas em termos identitá- há passagens recorrentes capazes de ilustrar
rios, mas soma-lhe ainda algo vil e maléfico, as modulações de alteridade do narrador su-
como se este outro entre outros fosse dotado geridas neste estudo.
de perversidade: “o fatal diabrete entre as O texto analisado inicia-se numa quinta-
crianças saudáveis” (NABOKOV, 1964, p. 20). feira, com Humbert a espreita de Lolita. Ele
Poderia também existir uma relação en- a vê recolher roupas e deixa seu quarto para
tre Annabel e a caracterização “nínfica” de sentar-se aos degraus da escada da varanda
algumas meninas, uma vez que o desejo dos dos fundos. A menina senta-se perto dele
jovens amantes foi diluído pela morte. O pró- e passa a brincar com pedrinhas dentro de
prio narrador levanta essa questão: uma lata. Percebemos que ele, enquanto a
observa na tarde ensolarada, absorve tudo
[...] pergunto repetidamente a mim mes- o que pode dela, devorando-a com os olhos.
mo se foi então, no brilho daquele verão A partir de então, o que temos são imagens
remoto, que começou a brecha em minha de desorientação: “Zoada nos ouvidos. Não
vida – ou se acaso foi meu excessivo desejo se pode uma segunda vez... não se pode che-
por aquela criança apenas a primeira ma- gar a isso... a esta agonia... uma segunda vez.
nifestação de uma inerente singularidade? Zoada. Pele maravilhosa... oh, maravilhosa:
(NABOKOV, 1964, p. 16). suave e bronzeada, sem nenhuma imperfei-
ção” (NABOKOV, 1964, p. 45). Mais e mais ele
Considerando os apontamentos supraci- a descreve e a exalta, até que Charlotte Haze
tados em relação à questão da alteridade e surge e o fotografa de surpresa, “ali sentado
da obra, apresentaremos agora uma análise sobre os degraus, a piscar nervosamente,
de excertos selecionados do romance. Tal in- Humbert Le Bel” (NABOKOV, 1964, p. 46).
vestigação intenta construir um argumento Temos então a primeira modulação de al-
coerente sobre como o narrador modula sua teridade deste capítulo: “Humbert Le Bel”.
alteridade em relação ao outro entre outros, A titulação “Le Bel”, do francês “O Belo”, de
a figura da personagem Dolores Haze, quem acordo com Appel Jr. em The Annotated Loli-
ele denomina de Lolita. Por “modulação” ta, é uma referência a Charles IV, ou Charles
compreendemos aqui uma alternância na Le Bel, rei da França entre janeiro de 1322 e
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fevereiro de 1328. A relação entre Humbert da examinando, como olhos um tanto mío-
e o rei Charles, aferimos, pode ser traçada a pes, o pedaço de papel que segurava, minha
partir da observação dos três casamentos do pequena e inocente visitante colocou-se
monarca. O primeiro deles com Blanche de numa posição meio sentada sobre os meus
Bourgogne, que contava com 12 anos ao ser joelhos (NABOKOV, 1964, p. 53).
desposada, a mesma idade de Lolita quan-
do Humbert a conhece e passa a desejá-la. A Aqui vemos a autonomeação “Roufenho”.
segunda esposa de Le Bel, Marie of Luxem- Tal termo se refere a algo sonoro e rouco, que
bourg, ficou marcada pelo fato de todos os tem som áspero3. Essa nomeação poderia ser
seus filhos terem morrido prematuramente alusão ao poema que Lolita tenta ler, uma
logo após o parto ou mesmo durante a ges- vez que Humbert o classifica como “odiosos
tação. Uma relação pode ser traçada com a hieróglifos”. Outra possível referência seria
heroína, uma vez que no prefácio da obra, o comportamento do próprio narrador, pois
Lolita é identificada como “Srª. ‘Richard F. várias vezes ele se descreve como nervoso,
Schiller’ que morreu no parto, ao dar à luz agitado e impaciente na presença da meni-
uma menina natimorta, no natal de 1952” na. Contudo, essa alusão torna-se apenas um
(NABOKOV, 1964, p. 6). Já a terceira esposa indício do quanto o narrador pode não ser
do rei, Jeanne d’Évreux, era sua prima em confiável. Humbert, ao se autonomear “Rou-
primeiro grau, relação incestuosa que pode fenho”, se coloca numa posição dissonante,
ser posta em paralelo com a de Humbert e como alguém desorientado na presença dela.
Lolita, uma vez que ele acaba se tornando Porém, de forma contraditória, sutil e con-
padrasto da garota. Vemos assim, através da troladamente, ele a enlaça e a deixa sentar-
nomeação “Le Bel”, uma espécie de justifi- se no seu colo. Essa passagem seria ilustra-
cativa por parte do narrador em relação ao tiva do silenciamento da personagem. Lolita
seu desejo por Lolita. Além disso, podemos não tem voz, uma vez que é Humbert quem
aferir, a evocação histórica autorizaria a pos- conta a história. Dessa forma, podemos afe-
se do outro, pois Humbert se coloca no lugar rir a maneira idealizada como o protagonista
daquele que pode desposar esse outro de 12 abordas os fatos ou se refere a garota: “ ‘Lo-
anos, aparentado e que, já se sabe, morreu ao lita’ was always the creation of Humbert’s
dar a luz. craven self.... The Siren-like Humbert sings a
No segundo sábado apresentado no diário song of himself, to himself, and titles that self
temos outra manifestação das modulações de and that song ‘Lolita’ ” (LEMAY, 2012, p. 2).
alteridade sugeridas aqui. O narrador men- No último sábado apresentado no diário,
ciona que costumava deixar a porta do quar- nas páginas finais do capítulo 11, temos tal-
to aberta enquanto trabalhava, no intuito de vez uma das mais significativas passagens
atrair Lolita. Depois de alguns dias, um tanto que trazem tais modulações de alteridade.
sorrateira ou embaraçada, ela adentrou no Humbert percebe Lolita no parapeito da ja-
cômodo. A menina interessou-se por um po- nela do seu quarto, envolvida numa conversa
ema que Humbert compusera sobre os olhos entusiástica com o entregador de jornal, um
da garota. A cena é narrada da seguinte forma: garoto da sua idade. O personagem então se
esgueira até a menina e acaba repelido:
Enquanto ela inclinava sobre minha mesa
os crespos cabelos castanho-avermelha- Comecei a rastejar até ela... a ‘coxear’ em
dos, Humbert, o Roufenho, passou-lhe sua direção, como dizem os atores de
o braço pela cintura, numa miserável
3 Definição do dicionário online Priberam. Acessado em 13 de junho.
imitação de parentesco de sangue – e, ain- http://www.priberam.pt/
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pantominas. Meus braços e pernas eram abuse in Dostoevsky’s work are associated
superfícies convexas entre as quais – em with spiders. Arkady Svidrigailov in Crime
lugar de sobre as quais – eu avançava len- and Punishment imagine that the afterlife
tamente mediante algum meio neutro de is a small room, like a village bathhouse,
locomoção: Humbert, a Aranha Ferida. with spiders in all the corners, while Niko-
Devo ter levado horas para chegar até ela: lai Stravogin in The Devils recalls staring a
parecia-me vê-la através do lado errado de tiny spider on a geranium plant while he
um telescópio, e movia-me na direção de waits for the young girl he has abused to
seu pequeno e retesado traseiro como um kill herself out of a mortal shame. Humbert
paralítico, apoiado em membros moles e himself later returns to this image and calls
disformes, em terrível concentração. Final- himself “Humbert the Wounded Spider”
mente, estava bem atrás dela, quando tive (CONNOLLY, 2009, p. 84).
a infeliz ideia de assanhar-me um pouqui-
nho... puxei-a pela nuca, a fim de ocultar o Podemos aferir que esta significação tem
meu verdadeiro manège, e ela exclamou, valor no excerto analisado, considerando a
num ganido breve e agudo: ‘Deixe disso!’ relação pedófila entre o narrador e a heroí-
Mas disse-o de maneira sumamente gros- na, assim como os modos dissimulados que
seira, a prostitutazinha, e, com um esgar este utiliza para se aproximar dela. Apesar
medonho, Humbert, o Humilde, bateu triste- de Lolita muitas vezes aderir aos jogos de
mente em retirada, enquanto ela continuava Humbert, ela ainda é um ser jovem e em
a papaguear voltada para a rua (NABOKOV, formação, como ressalta Appel Jr.: “she is as
1964, p. 60). insensitive as children are to their parents;
sexuality aside, she demands anxious paren-
Temos, primeiramente, a nomeação “Ara- tal placation in a too typically American way,
nha Ferida”, sobre a qual podemos construir and […] she affords Nabokov an ideal oppor-
dois apontamentos. O primeiro deles refe- tunity to comment on the Teen and Sub-teen
renciando uma passagem anterior do mes- Tyranny” (1991, p. 32).
mo capítulo, no qual Humbert compara-se Ainda neste excerto, vemos a revolta e a
a uma aranha capaz de repuxar suas teias, resignação de Humbert ao ser recusado pela
espalhadas por toda a casa, para descobrir menina. Ele tenta puxá-la pela nunca, rendê-
a localização de Lolita: “Sou como uma des- -la e conquistá-la, se não em carne, ao menos
sas aranhas estufadas e pálidas que a gente em atenção. Contudo, o narrador é repelido
vê nos jardins. [...]. Minha teia estende-se por e ressalta que Lolita o faz “de maneira suma-
toda a casa, enquanto fico à escuta, da cadei- mente grosseira, a prostitutazinha”. Temos
ra em que estou sentado, como um feiticeiro na cena uma temática explicitamente carnal
ardiloso” (NABOKOV, 1964, p.54). Nosso se- e sexual, uma vez que Humbert menciona a
gundo apontamento faz menção a “Aranha” “pela brilhante” e o “pequeno e retesado tra-
como imagem literária. Sendo um animal seiro”. Nessa acepção, “Ele espera realizar-se
comumente nocivo, a aranha possui algo de como ser possuindo carnalmente um ser”
uma significação peçonhenta. Existe ainda (BEAUVOIR, 1980, p. 180). Todavia, devemos
uma relação da figura da aranha com o abu- lembrar que a mulher representa para o ho-
so infantil. Essa relação é expressa por Con- mem também a morte, pois ele a teme em
nolly, evocando obras de Dostoevsky: suas características físicas, associadas aos
abismos devoradores da terra e ao pecado. O
The spider image is itself significant, for the narrador nomeia Lolita de “prostitutazinha”
two most notorious perpetrators of child porque a teme em seu sexo livre, quando ela
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está fora de alcance ou de controle, pois “[...] do carona. O protagonista comenta que “De
é enquanto encarna a sexualidade que a mu- repente, sua mão deslizou sobre a minha e,
lher é temível. Nunca se pode separar o as- sem que a nossa dama de companhia visse,
pecto imanente do aspecto transcendente da segurei, acariciei e apertei durante todo o
experiência viva” (BEAUVOIR, 1980, p. 204). caminho até a loja aquela pequena e ardente
Dessa forma, quando o personagem é barra- pata” (NABOKOV, 1964, p. 56).
do e banido, ele torna-se incapaz de possuí- Todos os termos utilizados nos excertos
-la e incapaz também de se reconhecer. Por supracitados, “ferrão”, “focinho”, “presas ar-
isso, modula mais uma vez sua alteridade e reganhadas” e “pequena e ardente pata”, re-
de uma atitude predatória passa para a de metem a elementos animalescos, reduzindo
“Humbert, o Humilde”, mais condizente com o sujeito a algo mais visceral e instintivo do
a resolução da cena. que a racionalidade humana. Racional como
Vale-se ressaltar ainda passagens que tra- o próprio Humbert se proclama. Tais carac-
zem referências a animalidades. Além da no- terísticas conferem uma imagem predatória
meação “Aranha” já mencionada, o narrador, aos personagens, algo diretamente relacio-
quando prestes a algum contato ou interven- nado com a atração possessiva sentida pelo
ção direta com a heroína, frequentemente narrador em relação à Lolita. Uma vez que
esboça em si mesmo características predató- Humbert vê Lolita como um outro animales-
rias. Podemos constatar tal fato no trecho em co, “nínfico” e “demoníaco”, ele tenta também
ele a encontra no quarto da mãe, tentando re- colocar-se como uma figura dotada das mes-
tirar um cisco do olho. Humbert argumenta mas características, pois “[...] como cumprir,
que os camponeses suíços usariam a língua mesmo que seja ludicamente, o papel do Ou-
para tal, assim “Delicadamente, passei meu tro senão experimentando a si mesmo como
trêmulo ferrão pelo globo revirado e salgado outro?” (LANDOWSKI, 2002, p.18). Tal anima-
de seus olhos” (NABOKOV, 1964, p. 48). Em lidade sensual advinda do outro, poderíamos
outra passagem, quando o narrador, Lolita e aferir, “impõe ao homem a mesma resistência
sua mãe conversavam sentados em almofa- passiva e imprevista que lhe permite realizar-
das na varanda, Humbert alega aproveitar- se; uma recusa a ser vencida, uma presa a ser
se da obscuridade da noite para acaricia-la possuída” (BEAUVOIR, 1980, p. 199).
de forma dissimulada, “esticando o focinho Através dos excertos apresentados pode-
em meio de um gracejo” (NABOKOV, 1964, mos enumerar as relações das autonomea-
p. 50). Ainda, podemos destacar outra cena, ções feitas pelo narrador. Temos as titulações
quando o protagonista deixa a porta do seu “Le Bel”, “Roufenho”, “Aranha Ferida” e “Hu-
quarto aberta no intuito de atrair Lolita pela milde”. Aferimos que tais caracterizações ser-
curiosidade. Quando ela debruça-se sobre a vem ao narrador, e unicamente a ele, como
escrivaninha de Humbert, ele a enlaça e ela uma espécie de recurso para adaptar-se a
senta-se no seu colo: “Seu perfil adorável, lá- presença de Lolita, acercar-se dela e assim to-
bios entreabertos, cálidos cabelos, estavam a má-la para si. Quando ele acredita que ela está
umas três polegadas de minhas presas arre- vulnerável, ele torna-se “a Aranha” pronta a
ganhadas [...]” (NABOKOV, 1964, p. 53). Por enredar sua presa. Todavia, ao ser repudiado,
fim, o narrador não confere tal animalidade resume-se ao “Humilde”, pois assim ela exigia
apenas a si mesmo, mas igualmente a pró- dele. As nomeações também poderiam ser-
pria Lolita. Podemos perceber tal fato no ex- vir como uma espécie de autoconsciência do
certo em que Charlotte pede a Humbert que narrador. Ele se justifica através delas, como
a acompanha em suas compras. Contudo, Lo- no caso de “Le Bel”. A invocação histórica o
lita mete-se no carro ao lado dele no banco autoriza a possuí-la. Ainda, a própria imagem
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 27

da aranha, na sua relação com o nocivo e com com isso. Como o outro entre outros, Lolita,
o abuso infantil, implica que Humbert possui a “ninfeta”, é o objeto absoluto eleito pelo
a compreensão de que sua atração por Lolita narrador para reconhecer a si mesmo. Como
poderia ser danosa a ela. coloca Beauveur

CONSIDERAÇÕES FINAIS [...] unindo-se a esse outro que fez seu, es-
Lolita foi e é uma obra polêmica. Escrita em pera atingir a si próprio. Tesouro, presa,
inglês por um autor russo, autoexilado, que jogo e risco, musa, guia, juiz, mediadora,
escolheu os Estados Unidos como casa. A espelho, a mulher é o Outro em que o su-
obra foi rejeitada diversas vezes na América, jeito se supera sem ser limitado, que a ele
até que foi finalmente publicada na França, se opõe sem o negar. Ela é o Outro que se
só então ganhou uma edição para o inglês. A deixa anexar sem deixar de ser o Outro
problemática da alteridade no romance co- (BEAUVOIR, 1980, p. 230).
meça por seu autor e perpassa os persona-
gens Lolita e Humbert, em suas imagens tão Desse modo, seria somente através do
diversas dentro de uma relação que se baseia outro, de Lolita, por meio dessa assimila-
no reconhecimento do outro. ção, que Humbert muitas vezes ilustra como
Os apontamentos de Landowski esboçam predatória, que ele poderia reconhecer-se.
a ideia de reconhecimento do sujeito no ou- Sua identidade está diretamente relaciona-
tro, a fricção entre alteridade e identidade, a da à sua alteridade, e para atingi-la, vê-la e
problemática da interdependência de uma e compreendê-la, ele necessita tomar o outro
outra, pois “ ‘manter-se’ em relação ao Ou- para si. Assim, ele modula sua própria alte-
tro, como ‘manter-se’ perante si mesmo, será ridade para adequar-se a este outro e me-
lembrar-se de uma parte e de outra que se lhor atraí-lo, melhor envolvê-lo e, por fim,
foi, que ainda se é, e que não se pode deixar anexá-lo. Como Landowski ressalta, “quer a
de ser Sujeitos” (2002, p.24). Estes sujeitos encaremos no plano da vivência individual
serão distintos, mesmo que haja algo impe- ou [...] da consciência coletiva, a emergência
lindo sentidos na direção de uma suspensão do sentimento de ‘identidade’ parece passar
de fronteiras entre identidades. Essa acep- necessariamente pela intermediação de uma
ção pode ser colocada em paralelo com o ‘alteridade’ a ser construída” (2002, p.4).
pensamento de Beauveur. Segunda a autora,
a mulher estaria locada na imagem do outro, REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pois a mulher seria “O ideal que o homem
põe diante de si como o Outro essencial, ele o APPEL JR. Alfred. The annotated Lolita. New
feminiza porque a mulher é a figura sensível York: Random House, 1991.
da alteridade; eis porque quase todas as ale-
gorias, tanto na linguagem como na iconogra- BEAUVOIR, Simone de. Brigitte Bardot and the
fia, são mulheres” (BEAUVOIR, 1980, p. 223). Lolita syndrome. BLondon: New English Li-
Dessa forma, aferimos que as modulações brary Ltd, 1960.
realisadas por Humbert têm por finalidade
levá-lo a uma autorrealização ou autorre- . O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova
conhecimento. Ao nomear-se como “Le Bel”, Fronteira, 1980.
“Roufenho”, “Aranha Ferida” e “Humilde”, o
narrador acredita se justificar e isentar-se CONNELLY. Julian W. A reader’s guide to
de culpa, ao mesmo tempo em que admite a Nabokov Lolita. Academic Studies Press:
possibilidade de dano a Lolita e conforma-se Brighton, 2009.
28 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

LANDOWSKI, Eric. Presenças do outro: en-


saios de sociosemióica. São Paulo: Perspec-
tiva, 2002.

NABOKOV, Vladimir. Lolita. São Paulo: Círculo do


Livro, 1962.

NAFISI, Azar. Reading Lolita in Tehran. New


York: Random House, 2004.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 29

CRENÇAS DE PROFESSORES SOBRE O PROCESSO DE


ENSINAR E APRENDER NO INSTRUMENTAL DE LÍNGUAS:
UM ESTUDO DE CASO

Andriza Pujol de Avila

RESUMO: Ainda que recente no Brasil o estudo das crenças no ensino e aprendizagem de línguas
tem se mostrado um campo importante de investigação, visto que desenvolver pesquisas com essa
temática contribui para a identificação de comportamentos que guiam à ação de professores e alu-
nos em sala de aula. Neste sentido, este trabalho visa apresentar crenças de professores sobre o
processo de ensino e aprendizagem no ensino instrumental de línguas. Destaca-se que os dados
apresentados neste artigo fazem parte de uma pesquisa de dissertação desenvolvida no Programa
de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Participaram desse estudo
quatro professores que atuaram em cursos de língua estrangeira instrumental no Centro de Ensino
e Pesquisa em Línguas Estrangeiras Instrumentais (CEPESLI) na UFSM.
Palavras-chave: Crenças. Ensino e aprendizagem de línguas. Ensino instrumental.

ABSTRACT: Although recent in Brazil the study of beliefs in teaching and learning of languages has
been an important field of research, since developing research on this topic contributes to the identi-
fication of behaviors that guide the actions of teachers and students in the classroom. Thus, this pa-
per aims to present teachers’ beliefs about teaching and learning in instrumental language teaching.
It is important to emphasize that the data presented in this article are part of a dissertation research
developed in the Post-graduation Course in Language of Federal University of Santa Maria. Four pro-
fessors who worked in the instrumental courses of foreign language in the Center for Teaching and
Research on Instrumental Foreign Languages (CEPESLI) at UFSM participated of this study.
Keywords: Beliefs. Teaching and learning of languages. Instrumental teaching.

INTRODUÇÃO
O estudo das crenças no ensino e aprendizagem de línguas é um campo relativamente novo
na Linguística Aplicada (LA), no entanto o estudo de crenças tem se tornado um importante
tópico de investigação no ensino de línguas. Estudos nesta área são importantes por que
focalizam o modo como professores e aprendizes constroem suas próprias abordagens de
ensinar e aprender.
Conforme argumenta Barcelos (2001) ainda não existe um único conceito para definir
crenças sobre ensino e aprendizagem de línguas, porém, essa autora, defende que, em geral,
“elas podem ser definidas como opiniões e ideias que alunos (e professores) têm a respeito
dos processos de ensino e aprendizagem de línguas” (p. 72). As convicções de professores
são importantes por que segundo Barcelos (2001) são forte indicadores de como eles agem,
e por isso influenciam no seu comportamento e atitudes.
Sendo as crenças convicções, essas são moldadas a partir das experiências pessoais de
cada indivíduo e, portanto podem variar de acordo com o contexto, abordagem ou situação
de ensino e aprendizagem.
30 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Uma abordagem que envolve característi- (Inglês para Fins Específicos) ou Inglês Ins-
cas bem específicas de ensino e aprendiza- trumental, como ficou conhecido no Brasil.
gem é a abordagem instrumental. Para aten- A abordagem instrumental baseia-se no
der essa modalidade de ensino é essencial pressuposto de que a análise das necessida-
que seja feita à análise das necessidades dos des do aluno, a definição de objetivos espe-
alunos, a definição de objetivos específicos cíficos e a delimitação de temas e conteúdos
bem delimitados e a delimitação de conteú- relacionados à área de atuação do aluno são
dos relacionados à área de atuação do apren- aspectos definidores para a elaboração de
diz (RAMOS, 2005). Para contemplar uma cursos. (RAMOS, 2005)
abordagem de ensino com tais característi- Essa abordagem caracteriza-se pelo foco
cas faz-se necessário que todo o planejamen- no desenvolvimento de habilidades específi-
to das aulas esteja adequado aos interesses cas baseado no levantamento da análise de
dos aprendizes, que pode ser, aprender a fa- necessidades dos alunos; os objetivos, como
lar, ler, escrever e ouvir. o conteúdo a ser ensinado, são sempre cla-
Neste sentido, este trabalho visa apresen- ramente ajustados e restritos aos interesses
tar as crenças de professores relacionadas do aprendiz, de acordo com a situação-alvo
ao ensino e aprendizagem no ensino instru- em que o aluno irá atuar. Segundo Beltrán
mental de línguas. É importante destacar (2004) se trata de uma orientação de ensino
que os dados apresentados neste artigo são de língua estrangeira que tem como propósi-
um recorte de uma pesquisa maior, de dis- to proporcionar ao aprendiz a competência
sertação de mestrado, que buscou identificar necessária para comunicar-se em diferentes
quais são as crenças de professores sobre a contextos, seja acadêmico ou profissional.
avaliação da aprendizagem no ensino instru- Analisar as necessidades do aluno é o
mental de línguas. A referida pesquisa foi de- ponto de partida e característica definidora
senvolvida no Programa de Pós-graduação da abordagem instrumental, “em princípio,
em Letras da Universidade Federal de Santa não há um curso instrumental, sem análise
Maria. Foram sujeitos do estudo quatro pro- de necessidades”. (RAMOS, 2005, p. 112) De-
fessores que atuaram em cursos de língua finidas as necessidades dos alunos é preciso
estrangeira instrumental no Centro de Ensi- delimitar objetivos claros para satisfazer os
no e Pesquisa em Línguas Estrangeiras Ins- interesses dos aprendizes, isto é, aprender a
trumentais (CEPESLI) na UFSM. língua para desempenhar tarefas específicas
em contextos específicos.
CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO O ensino instrumental de línguas é baseado
INSTRUMENTAL DE LÍNGUAS em situações em que o conhecimento especí-
Com o final da segunda guerra mundial em fico de determinada língua permite ao aluno
1945 cresceu a demanda das atividades cien- desempenhar melhor uma função linguística
tíficas, tecnológicas e econômicas mundiais. pré-estabelecida, o que contribui para que os
Tal crescimento gerou a necessidade de uma aprendizes se sintam mais motivados a supe-
língua internacional para a comunicação nes- rar dificuldades dentro de um contexto deter-
sas áreas, e o inglês devido ao poder econô- minado e desenvolvam habilidades específi-
mico norte-americano foi a língua escolhida cas na língua-alvo. (SEDYCIAS, 2011).
para desempenhar esse papel. (MONTEIRO, A ênfase no atendimento das necessida-
2009) Neste sentido, surgiu uma geração de des dos alunos faz com que o material di-
aprendizes que buscavam aprender uma lín- dático utilizado atenda especificamente aos
gua estrangeira motivados por objetivos es- interesses do público a que se destina. Com
pecíficos, o English for Specific Purposes - ESP isso, é preciso muita atenção em relação à
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 31

escolha/elaboração/adaptação do material Almeida Filho (1993) defende que as


didático, que precisa, entre outras coisas, crenças fazem parte da abordagem de ensi-
abranger as temáticas e os conteúdos volta- nar do professor que inclui disposições pes-
dos à área de atuação e interesse dos alunos. soais e valores desejáveis que se integram a
Segundo Ramos (2005, p. 113), “a linguagem tradições de ensinar social e institucional-
a ser utilizada terá que ser apropriada em mente marcadas. Entende-se que as cren-
termos de léxico, gramática, discurso e ou- ças são pessoais, mas também sociais, pois
tros, a essa área de atuação”. emergem da experiência individual, do con-
Outro ponto importante no ensino instru- texto de interação e da capacidade de ajuizar
mental de línguas é a postura do professor sobre tudo aquilo que está em volta.
em sala de aula. Nesta abordagem o profes- Blatyta (2009) defende que o professor
sor é visto como um colaborador, já que as que atua de modo mais consciente em sala
experiências são compartilhadas, uma vez de aula, mesmo que não tenha condições de
que, o aluno normalmente é quem tem o co- analisar no ato cada gesto de seu ponto de
nhecimento da área em que atua. (CELANI, vista, saberá construir um saber justificado e
1998) O professor de instrumental também aplicá-lo adequadamente em momentos es-
é definido como pesquisador, designer e ava- pecíficos de sua prática. Richards & Lockart
liador de material didático, pois, na maioria (1998) defendem que o contexto de trabalho
das vezes, é necessário selecionar e adaptar do professor exerce importante influência
materiais restritos à proposta de ensino. no ensino, pois de acordo com a situação do-
cente serão os distintos papéis adotados pe-
SOBRE CRENÇAS NO ENSINO E los professores. A natureza dinâmica da sala
APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS de aula implica que decisões sejam tomadas
Todo profissional docente embasa suas a toda hora, o papel do professor atento as
ações em interpretações pedagógicas e expe- suas atitudes é de tomar continuamente de-
riências pessoais. Conforme defende Almei- cisões apropriadas à dinâmica específica da
da Filho (1993) o professor orienta sua ação classe de maneira a responder as necessida-
a partir de uma abordagem de ensinar, essa des dos alunos. Neste sentido, entendemos
abordagem é um conjunto de pressupostos que crenças e conhecimento científico são
explicitados ou mesmo crenças intuitivas interrelacionados e que refletir sobre as suas
que norteiam as ações de ensinar. próprias crenças permite ao professor (res)
Neste sentido, é possível dizer que as significar o seu próprio fazer. O modo de fa-
crenças influenciam a conduta do profes- zer do professor é resultado de como ele in-
sor e, conforme defende Mastrella (2002) terpreta o seu papel em aula, o que está dire-
são interpretações da realidade socialmen- tamente vinculado as suas próprias crenças.
te definidas que servem de base para uma (RICHARDS & LOCKART , 1998)
ação subsequente. Dessa forma, as crenças No que tange ao ensino e aprendizagem de
dos professores influenciam a sua prática língua são as experiências, conhecimentos e
docente, mas como são dinâmicas, intera- convicções aprendidas e vivenciadas no en-
tivas e socialmente construídas (Barcelos, sino formal e informal que dão suporte aos
2001) podem modificar-se a partir das ex- modos de ensinar e aprender. Nesta perspec-
periências pessoais e com isso re-influenciar tiva, elucida-se para orientar este trabalho
as ações do professor. Portanto, “as crenças a seguinte definição: Crenças sobre ensino e
exercem grande influência nas ações, mas as aprendizagem de línguas é tudo aquilo que se
ações também podem influenciar as cren- acredita, consciente ou inconscientemente, a
ças” (BARCELOS, 2006, p. 25). respeito de ensino, aprendizagem e avaliação
32 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

de línguas, resultante da experiência pessoal, possível da realidade. Neste caso, o ensino


acadêmica e profissional, influenciada pelo da LE deve corresponder à experiência do
contexto de interação e sujeito a modificações aprendiz com a sua própria língua, onde a
de acordo com o tempo e as novas experiências. comunicação se dá no nível do texto e do dis-
curso e não apenas com a produção de frases
CONSIDERAÇÕES SOBRE A isoladas. Neste sentido, Widdowson (2005)
ABORDAGEM COMUNICATIVA DE defende que a pessoa que domina uma LE
ENSINO DE LE sabe mais do que compreender, falar, ler e es-
O movimento comunicativo de ensino de crever orações, ela conhece também as ma-
línguas estrangeiras (LE) surgiu na década neiras como as orações são utilizadas para
de 70 com o objetivo de suprir lacunas dei- efeito de comunicação. No ensino comuni-
xadas pelos métodos de base estruturalis- cativo as habilidades de fala, audição, leitura
tas vigentes até o momento. A proposta co- e escrita têm lugar em um contexto que não
municativa tem a perspectiva de minimizar trata apenas da forma correta, mas também
as dificuldades do aprendiz em dominar a do uso apropriado.
oralidade e propor uma nova forma de en- Nos princípios do comunicativismo a in-
sinar e aprender com o foco na comunica- teração ganha destaque, uma vez que, para
ção (MOZOROV, MARTINEZ, 2008). Segundo que se desenvolva a competência comuni-
Widdowson (2005), um dos precursores da cativa, professores e alunos devem intera-
proposta comunicativa, o objetivo do ensino gir entre si. Nessa perspectiva a atenção se
e aprendizagem de uma língua estrangeira desloca do ensino e aprendizagem de estru-
deve favorecer o desenvolvimento da compe- turas linguísticas para o uso da língua, que
tência comunicativa e não só a competência se converte em uma ferramenta de atuação
linguística. na vida cotidiana. A linguagem deixa de ser
Nesta nova concepção de ensino e apren- objeto em si mesma e se concebe como um
dizagem a forma (gramática) e o uso (comu- instrumento de interação.
nicação) apresentam a mesma relevância O material didático e as atividades de
dentro do contexto de aprendizagem, para ensino desenvolvidas para o ensino comu-
Widdowson (2005) a estrutura não é consi- nicativo devem basear-se em situações se-
dera menos importante, mas não deve ser o melhantes a situações em que a língua-alvo
foco do ensino de línguas e sim compreen- será usada pelos aprendizes na interação
dida através do uso da língua pelos falantes com outros falantes. Compreende-se que o
nas interações reais de comunicação. Para material didático comunicativo contemple
Almeida Filho (1993, p.36), as mais variadas situações de uso da língua,
valorizando diversos contextos e dimensões
o ensino comunicativo é aquele que organi- socioculturais, uma vez que para atingir a
za as experiências de aprender em termos competência comunicativa o aluno deve sa-
de atividade relevantes/tarefas de real in- ber o quê, quando e como falar de acordo
teresse e/ou necessidade do aluno para com o contexto específico.
que ele se capacite a usar a língua para re-
alizar ações de verdade na interação com O CONTEXTO, OS PARTICIPANTES E
outros falantes- usuários dessa língua. A METODOLOGIA DA PESQUISA
O contexto de realização desta pesquisa é o
O ensino comunicativo de LE deve acon- Centro de Ensino e Pesquisa em Línguas Es-
tecer de maneira significativa para o alu- trangeiras Instrumentais- CEPESLI vincula-
no, através de situações o mais próximas do ao Departamento de Letras Estrangeiras
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 33

Modernas da Universidade Federal de San- aulas acontecem três vezes por semana e
ta Maria. O CEPESLI foi fundado no ano de duram duas semanas.
2006 e atualmente conta com a participação Os sujeitos desta pesquisa são professores
direta de vinte integrantes. Entre os objeti- em formação inicial e continuada que atuam
vos do centro estão a formação inicial e a for- ou atuaram nos cursos oferecidos no CEPES-
mação continuada de professores de línguas LI. Luis, Cora, Rosa e Vera são nomes fictícios
estrangeiras. O centro desenvolve pesquisa escolhidos pelos participantes da pesquisa
em material didático, formação de professo- para preservar as suas identidades.
res, ensino instrumental de línguas, crenças Luis: 26 anos, formou-se em Letras Língua
e avaliação. Portuguesa e Espanhola no ano de 2008 e
Dentre os projetos de extensão do Centro atualmente cursa especialização em Gestão
estão os seguintes cursos: Educacional. Luis ministrou dez cursos de
• O Curso de Capacitação em Português/LE Curso de Capacitação em Português L/E ins-
Instrumental oferecido a 328 agentes da trumental para agentes do governo uruguaio
Policía Caminera Uruguaya teve por ob- entre 2010 e 2011 e um Curso de Espanhol
jetivo capacitar os policiais rodoviários para viagens em março de 2012.
uruguaios a compreender e expressar-se Cora: 29 anos, formou-se em Letras Lín-
em português no cumprimento de sua gua Espanhola no ano de 2007 e possui ti-
função. Os cursos tinham turmas com, em tulação de Mestre em Estudos Linguísticos.
média, 20 alunos, a duração era de 40h de Cora ministrou dez Cursos de Capacitação
forma intensiva em uma semana. Os cur- em Português L/E instrumental para agen-
sos eram ministrados por dois professo- tes do governo uruguaio, sendo o último em
res simultaneamente, e dividiam-se nos maio de 2011.
turnos manhã e tarde. Rosa: 25 anos é formada em Letras Língua
• O Curso de Espanhol Língua Estrangeira Espanhola desde o ano de 2010, atualmente
Instrumental para a Polícia Rodoviária cursa Letras Português e está em fase con-
Brasileira seguiu a mesma estrutura e clusão de um curso de especialização em Me-
tem os mesmos objetivos do curso para todologia do Ensino de Língua Portuguesa e
a polícia uruguaia, porém a língua alvo Estrangeira. Rosa ministrou dois Cursos de
é a espanhola. As turmas eram compos- Espanhol para Viagens, um em 2011 e outro
tas, de em média, 12 policias rodoviários em 2012.
estaduais e federais da região de Santa Vera: 24 anos, cursa Letras Língua Espa-
Maria. nhola. Vera ministrou quatro Cursos de Ca-
• O Curso de Espanhol para viagens é ofere- pacitação em Espanhol L/E instrumental
cido pelo CEPESLI a acadêmicos da UFSM para Polícia Rodoviária Brasileira entre os
e a comunidade em geral. O curso tem por anos de 2009 e 2010 e dois Cursos de Espa-
objetivo instrumentalizar o participante nhol para viagens em 2011.
para comunicar-se em diversas situações Este trabalho é um estudo de caso realiza-
em que possa se deparar um viajante em do com as abordagens metacognitiva e con-
países de língua espanhola. Os cursos são textual para o estudo das crenças (BARCE-
oferecidos com turmas de, no máximo, LOS, 2001). Foram aplicados aos participan-
doze alunos e são ministrados por dois tes dois questionários, denominados ques-
professores simultaneamente. O curso tionário perfil e questionário investigativo.
acontece na modalidade intensiva com Foram feitas entrevistas individuais visando
carga horária total de 20h, dividida em aprofundar e esclarecer dúvidas surgidas
3h e 20 minutos em cada dia. Em geral, as do questionário, e por fim, foi realizada uma
34 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

sessão reflexiva com os quatro participantes delineados. (CELANI, 1998) Para que sejam
do estudo. oferecidos cursos LEI é imprescindível que
seja feita á análise das necessidades dos
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS alunos e que sejam estabelecidos objetivos
Buscando entender se os professores parti- específicos de ensino e aprendizagem para
cipantes (PPs) se sentem capacitados para o cada grupo de alunos. As colocações de Luis,
ensino de LEI (língua estrangeira instrumen- Vera e Rosa transparecem conhecimento
tal) e como eles entendem está abordagem de de como se caracteriza a abordagem instru-
ensino, no questionário, foi perguntado (Q-1; mental de ensino de línguas.
Q-2) se eles acreditam possuir conhecimento Na Q-3 do questionário, buscou-se inves-
suficiente sobre o que caracteriza, como é o tigar a visão dos professores quanto a algu-
ensino instrumental de línguas e se existe di- mas características de ensino e aprendiza-
ferença em atuar nessa modalidade de ensino. gem em cursos intensivos instrumentais de
Os PPs foram unânimes em afirmar que no máximo 40h. Para tanto, foram apresen-
possuem conhecimento suficiente do que é tadas 11 opções de respostas, que aparecem
a Abordagem instrumental de ensino de lín- no gráfico A.
guas e 3 deles declararam que existe sim di-
ferença em atuar no ensino de LEI.

Por ser mais direcionado, menos gramatical.


(Luis) [questionário]

A afirmação de Luis reflete, provavel-


mente, os objetivos dos cursos ministrados
por ele no CEPESLI, que tinham o objetivo
específico de capacitar os aprendizes para Gráfico A. Características de ensino e aprendizagem no ensino ins-

compreenderem e serem compreendidos na trumental.

língua alvo, tendo os aspectos gramaticais


da língua apresentados de maneira indutiva Como se vê apenas 3 das 11 opções fo-
quando necessário. ram citadas pelos professores. A ideia de
que o ensino/aprendizagem em cursos ins-
Vera: O Ensino Instrumental é mais especí- trumentais é suficiente foi mencionada por
fico e não tão amplo como um curso geral. Vera e Cora. O que se acredita tem relação
[questionário] com os cursos que ministraram, já que na
entrevista as professores confirmam essa
Rosa: No ensino instrumental de língua, afirmação.
os objetivos são definidos de modo a atin- Uma constatação que corroborra as ca-
gir um fim determinado a ser alcançado. racterísticas do ensino de LEI e que emergiu
[questionário] na resposta Vera, Rosa e Cora é a é crença
de que a aprendizagem só é possível em cur-
Faz-se necessário diferenciar o ensino sos intensivos de curta duração se houver
geral de línguas do ensino instrumental. interesse dos alunos. Essa crença consiste
A diferença entre um e outro está no fato no princípio de autonomia incorporado nos
de que, no primeiro, não há uma definição cursos instrumentais. Em cursos de curta
exata dos fins a serem alcançados, enquan- duração o aluno só pode desenvolver-se até
to no segundo, os objetivos são claramente certo ponto, portanto, os cursos precisam dar
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 35

subsídios para que o aluno trabalhe de ma- mencionaram a importância da interação e


neira autônoma posteriormente. (RAMOS, da comunicação na língua-alvo.
2005)
Uma opção que foi unanimidade entre os /.../ centra no desenvolvimento da língua
PPs é a de que o ensino e aprendizagem só alvo e busca a interação na língua alvo.
são produtivos se o material didático utiliza- (Vera) [questionário]
do no curso for bom.
Na tentativa de aprofundar a opinião dos /.../ a construção de significados por meio
informantes, na entrevista, foi solicitado aos da interação entre todos os sujeitos envol-
professores que falassem um pouco da im- vidos no processo de ensino/aprendizagem.
portância e de como viam o material didáti- (Rosa) [questionário]
co, doravante MD, nos cursos de LEI que mi-
nistraram no CEPESLI. Caracterizo como sendo o ensino de uma LE
para fins de comunicação e interação com
Rosa...é imprescindível. O professor vai fazer falantes desse idioma. (Cora) [questionário]
a mediação entre o conteúdo que tá nele, que
tem que passar e o aluno. Então é ele que vai As respostas dos professores aproxi-
te dar todas as bases. Ele estando assim re- mam-se, na maioria dos aspectos, da teoria
dondinho, né, todo formulado de forma con- da abordagem comunicativa do ensino de
tínua, na sequência, um conteúdo agregado línguas. A visão apresentada pelos infor-
ao outro, complementando o outro é extre- mantes é de um ensino voltado para a co-
mamente importante por que dá uma linha, municação na LE baseado na interação en-
um norte para o professor... [entrevista] tre os envolvidos no processo de ensino e
aprendizagem.
Luis: Com importância. Por que é a par- Uma das atividades recorrentes nos cur-
tir daquele material didático que tu vai se sos de LEI do CEPESLI são as simulações de
guiar, por que aquele material didático, aqui situações relacionadas ao contexto específi-
do cepesli já é feito... pra aquela habilidade, co em que o aprendiz irá atuar. Esse tipo de
aquela “deficiência” no caso que os alunos atividade é característico da Abordagem Co-
vêm apresentar...é importante...não é 100% municativa, uma vez que reproduz com se-
completo por que dependendo da turma é melhança a realidade e aproxima o aluno da
que tu vai complementando ele.[entrevista] comunicação efetiva na língua-alvo.
Com a intenção de saber como os pro-
A preocupação com a qualidade do mate- fessores entendem a potencialidade dessas
rial didático se justifica pela necessidade de atividades no processo de ensino, aprendi-
estar de acordo com os objetivos de ensino, zagem e avaliação, foi perguntado a eles na
buscando atender aos interesses do público entrevista: Qual o potencial pedagógico das
a que se destina. Agregado a isso encontra-se atividades de simulação?
o fato de que na abordagem instrumental o
professor atua como um mediador do conhe- Luis: Bastante... Simulação real...é muito
cimento, uma vez que, o aluno normalmente bom, por que ele vai usar isso aí no dia a dia
é quem tem o conhecimento da área em que dele.[entrevista]
atua. (CELANI, 1998)
Ao responderem como se caracteriza Cora: Essas são as melhores... são atividades
a Abordagem Comunicativa de ensino de parecidas ao cotidiano deles...[entrevista]
línguas (Q- 4), os professores participantes
36 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Quanto ao potencial pedagógico das material didático for adequado e coerente


atividades de simulação os quatro informan- com os objetivos de ensino. Tal concepção
tes acreditam que através delas o aluno tem a encontra eco na literatura da área, uma vez
oportunidade de reproduzir aquilo que eles que é característica do instrumental o ensino
de fato precisam saber para se comunicarem ser voltado principalmente a adultos que
adequadamente em determinadas situações buscam capacitação específica em determi-
específicas. Tais atividades foram classifica- nada língua. A precisão no material didático
das pelos PPs, basicamente, como de inte- também é uma característica dessa modali-
ração, mas também outras potencialidades, dade de ensino já que o mesmo precisa aten-
como ensino, aprendizagem e avaliação são der a objetivos bem delimitados e facilitar
mencionadas por eles. que o aluno siga aprendendo e praticando a
No quadro 1 são apresentadas as crenças língua-alvo posteriormente.
dos professores participantes sobre ensino Por buscar atender às necessidades de
e aprendizagem no instrumental de línguas comunicação na língua- alvo a Abordagem
inferidas no estudo. Comunicativa tem sido a abordagem de en-
sino mais utilizada atualmente, o que gera a
• as características do ensino instrumen- necessidade de os professores estarem pre-
tal são diferentes de outras modalida- parados para colocá-la em prática na sala de
des de ensino; aula comunicativa. Nesse sentido, inferiu-se
• a aprendizagem no LEI só acontece se que os participantes caracterizam a Aborda-
houver interesse do aluno; gem Comunicativa como a comunicação e a
• o ensino no LEI só é produtivo se o ma- interação dos aprendizes na língua estran-
terial didático for bom, adequado aos geira. Os mesmos acreditam também que as
objetivos. atividades que proporcionam a simulação da
• a Abordagem Comunicativa caracteri- realidade são as melhores para o processo
za-se pela comunicação e interação dos de ensino, aprendizagem e avaliação. As con-
aprendizes na língua- alvo; cepções apresentadas pelos professores são
• as atividades que proporcionam a si- coerentes com o que diz a teoria de ensino
mulação da realidade são as melhores comunicativo, porém, muitas vezes, perce-
para o processo de ensino, aprendiza- beu-se que os informantes guardam traços
gem e avaliação. também de abordagens tradicional de ensi-
Quadro 1: Crenças sobre ensino e aprendizagem no instrumental no de línguas.
de línguas. Em síntese, os resultados dessa pesqui-
sa indicam que os professores participantes
CONSIDERAÇÕES FINAIS possuem crenças coerentes com a proposta
Com relação às crenças sobre o ensino e a teórica do ensino instrumental de línguas.
aprendizagem foi possível verificar que os Sobre a abordagem comunicativa os infor-
professores acreditam que as características mantes apresentam conceitos compatíveis
do ensino instrumental de línguas são dife- com o proposto na literatura da área, embo-
rentes das características de outras modali- ra apresentem sinais de identificação com as
dades de ensino. Essa concepção demonstra abordagens tradicionais de ensino de línguas.
que os informantes conhecem os aspectos
que envolvem essa modalidade de ensino. REFERÊNCIAS
Outra crença dos informantes quanto ao en-
sino instrumental é que a aprendizagem só ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões comunicativas
acontece se existir interesse do aluno e se o no ensino de línguas. Campinas: Pontes, 1993.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 37

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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 39

IDENTIDADES EM CONSTRUÇÃO: LITERATURA,


EDUCAÇÃO E ARTES NA FORMAÇÃO CRÍTICO-REFLEXIVA
EM SALA DE AULA1

Camila Marchesan Cargnelutti2

RESUMO: Desde seus primórdios, a contação de histórias tem se configurado como um importante
instrumento de ensino e aprendizagem, ao aliar diversão, encantamento e construção coletiva de
conhecimentos, de acordo com estudos desenvolvidos por pesquisadores como Paulo Freire (1989),
Souza e Bernardino (2011) e Lippi e Fink (2012). O presente artigo tem como objetivos principais
pesquisar e refletir acerca das possibilidades da arte de contar histórias como uma ferramenta im-
pulsionadora de reflexões críticas no contexto escolar. O estudo tem como um dos focos a investi-
gação da abordagem de temas atuais e fundamentais em sala de aula, particularmente de questões
a respeito de preconceito racial, através da literatura. Nesse artigo, investiga-se como tal temática
poderia ser tratada, por exemplo, pelo trabalho de resgate de contos, mitos, tradições e canções de
origem africana, trazidas para a sala de aula por meio da contação de histórias e da discussão do as-
sunto em classe. Dessa forma, através das inter-relações entre os campos da literatura, da educação
e das artes, pretendemos refletir sobre a abordagem no contexto escolar de temas relacionados a
negritude, respeito a diversidade e promoção da igualdade, de modo a explorarmos as possibilida-
des da arte de contar histórias como um instrumento de crítica, reflexão e aprendizagem.
Palavras-chave: Literatura. Contação de histórias. Educação.

ABSTRACT: Since its beginnings, storytelling has emerged as an important tool for teaching and
learning, by the combination of fun, charming and collective building of knowledge, according to
studies conducted by researches such as Paulo Freire (1989), Souza and Bernardino (2011) and
Lippi and Fink (2012). This paper’s main objective is to research and reflect on the possibilities of
the art of storytelling as a driving tool for critical thinking within the school context. The study seeks
to investigate the approach of current key issues in the classroom, through literature, particularly
regarding matters such as racial prejudice. In this paper we inquire how this theme could be treated
over the work of retrieving tales, myths, traditions and songs of African origin, brought to the clas-
sroom through storytelling and over discussions of the subject in class. Thus, through the interrela-
tions between the fields of literature, education and arts, we intend to reflect on the approach, in the
school context, of topics related to Negro-ness, respect for diversity and equality, in order to explore
the possibilities of the art of storytelling as a tool for judgment, reflection and learning.
Keywords: Literature. Storytelling. Education.

INTRODUÇÃO: OS ENCANTOS E PODERES DA CONTAÇÃO DE HISTÓRIAS


A arte milenar de contar histórias tem se configurado ao longo dos tempos como um impor-
tante espaço para o desenvolvimento intelectual e cidadão e, uma vez apropriada como re-
curso pedagógico. possibilita experiências de ensino e aprendizagem marcadas por práticas

1 Uma versão deste artigo foi apresentada em comunicação no 5º Seminário Nacional de Língua e Literatura, na Universidade de Passo Fundo (UPF) em 2014.

2 Discente do Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado em Estudos Literários da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Jornalista formada
pela mesma instituição. E-mail: camila.m.cargnelutti@gmail.com
40 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

criativas, prazerosas e interessantes, que A respeito dessa questão, Nelly Coelho


contribuem para a formação crítica e refle- (2009) afirma que a literatura, especialmen-
xiva dos estudantes. De acordo com Alessan- te a infantil, “tem uma tarefa fundamental a
dra Fink (2001), o contato com a literatura cumprir nessa sociedade em transformação:
a partir da ludicidade, da magia e do encan- a de servir como agente de transformação,
tamento proporcionados pela contação de seja no espontâneo convívio leitor/livro, seja
histórias tem muito a contribuir para a for- no diálogo leitor/texto estimulado pela esco-
mação da criança e do adolescente leitor, la” (COELHO, 2009, p. 15). No entanto, con-
com a associação do ato de ler à construção forme explica Olivia Pires (2011) é necessá-
de um mundo formado simultaneamente de rio atenção ao trabalhar com literatura em
elementos de fantasia e de realidade. sala de aula, particularmente com o público
Nesse sentido, uma das principais vanta- infantil, uma vez que o excesso de didatismo
gens da arte de contar histórias está associa- ao tratar do tema pode ocasionar um afas-
da a incentivar o interesse do público em re- tamento das crianças em relação ao mundo
lação à literatura, contribuindo para seu de- literário:
senvolvimento como leitor. Sobre a relação
entre literatura infantil e desenvolvimento Na relação escola e literatura percebe-se
infantil, Maria Alexandre de Oliveira (1996) que o senso comum empregado à literatura
explica: infantil é que ela tem objetivo didático, não
sendo vista como arte, fazendo com que a
A literatura infantil deveria estar presente criança não tenha prazer na leitura. Muitas
na vida da criança como está o leite em sua vezes, torna-se uma atividade comprome-
mamadeira. Ambos contribuem para o seu tida com a dominação da criança, trazendo
desenvolvimento. Um, para o desenvolvi- problemáticas nas relações entre literatura
mento biológico: outro, para o psicológico, e ensino, o que faz com que alguns jovens
nas suas dimensões afetivas e intelectuais. tenham aversão pela instrução por meio da
A literatura infantil tem uma magia e um arte literária (PIRES, 2011, p. 15).
encantamento capazes de despertar no lei-
tor todo um potencial criativo. É uma força No entanto, a autora acrescenta que as es-
capaz de transformar a realidade quando colas não podem ser descartadas enquanto
trabalhada adequadamente com o educan- espaços para a aproximação entre literatura
do (OLIVEIRA, 1996, p. 27). e alunos, uma vez que a sala de aula se confi-
gura como um “ambiente privilegiado para o
Assim, a contação de histórias contribui desenvolvimento do gosto pela leitura, o lo-
para o despertar do interesse da criança e cal de atuação e mediação do professor, sen-
do adolescente pelo mundo literário, esti- do assim, um campo importante para o inter-
mulando a leitura e a qualificação da sua câmbio da cultura literária” (PIRES, 2011, p.
formação. Dessa forma, conforme Regina 15). Assim, uma apropriação de textos lite-
Zilberman (1998), as instituições escolares rários com objetivos menos didáticos e mais
possuem um papel fundamental para a for- prazerosos, livre para diversas interpreta-
mação infantil, e estão em uma relação cons- ções e criações, pode ser de grande valia
tante de intercâmbios e interações com a li- em contextos escolares. Para Jorge (2003),
teratura, auxiliando no desenvolvimento de o compartilhamento de narrativas literárias
leitores e cidadãos, que constroem sentidos, entre educandos e educadores contribui para
interpretações e reflexões a partir de e com a renovação e para a construção de conheci-
os textos literários. mentos, em domínios subjetivos e objetivos:
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 41

É fundamental que a criança possa viven- Ainda de acordo com as autoras, a arte de
ciar a palavra e a escuta em todas as suas contar histórias destaca-se por sua impor-
possibilidades, explorando diferentes lin- tância para o “desenvolvimento das aptidões
guagens, capturando-as e apropriando-se para o contato com a leitura, com a escrita,
do mundo que a cerca, para que este se com a oralidade, estimulando na criança a
desvele diante dela e se torne fonte de in- sua criatividade, imaginação, formas de ex-
teresse vivo e permanente, fonte de curio- pressão oral e corporal, proporcionando um
sidade, de espantos de desejos e descober- ambiente lúdico de aprendizagem e reple-
tas, numa dinâmica em que ela se socialize to de sentidos e significados” (LIPPI, FINK,
e se manifeste de forma ativa, cri(ativa), 2012, p. 24). De acordo com Paulo Freire
(particip)ativa em qualquer situação, não (1989), a leitura crítica do mundo está in-
apenas “recebendo” passivamente, mas trinsecamente relacionada à leitura crítica
produzindo e (re)produzindo cultura da palavra, sendo que a leitura daquele an-
( JORGE, 2003, p. 97). tecede a leitura desta que, por sua vez, im-
plica na continuidade, construção e recons-
Nesse sentido, o papel do contador de trução da leitura, percepção e interpretação
histórias é de importância fundamental, do mundo e da realidade.
buscando proporcionar ao público o encan- Linete Souza e Andreza Bernardino
tamento das histórias literárias através da (2011) também enumeram uma série de
utilização de diversos recursos como músi- benefícios que a contação de histórias pode
cas, iluminação, caracterização, vestimentas, proporcionar às crianças no cotidiano esco-
tom de voz, movimentos, gestos e olhares. lar, como o favorecimento da narração e de
Um dos principais desafios do contador de processos de alfabetização e de letramen-
histórias, por meio dos recursos que a lite- to, competências referentes a explicações e
ratura apresenta, é procurar estimular o pú- descrições e habilidades para a construção
blico pela história contada e, a partir disso, textual e ampliação do vocabulário. Além
atuar como um mediador entre o estudante das possibilidades apontadas acima, Souza
e o prazer pela leitura e pela escrita. Segundo e Bernardino destacam a regularidade en-
Elisiane Lippi e Alessandra Fink (2012), para contrada na estrutura das histórias apre-
que isso aconteça: sentadas aos alunos, usualmente contendo
personagens protagonistas e antagonistas,
[...] o contador de histórias não pode mera- apresentação inicial, sucessão de ações e fi-
mente escolher uma história aleatoriamen- nal, como um dos fatores que “facilita a com-
te e contá-la aos pequenos. Pelo contrário, preensão textual e a criação de histórias pela
o contador de histórias deve preparar o própria criança, assim contribuindo para as
enredo que irá contar, ensaiá-lo, gostar da habilidades linguísticas em nível oral e es-
história que vai contar, cuidar a tonalidade crito” (SOUZA, BERNARDINO, 2011, p. 238).
da voz, ser expressivo, elencar quais recur-
sos poderá utilizar, preparar o espaço ideal CONSTRUÇÃO CRÍTICA E REFLEXI-
para que essa contação ocorra com sucesso VA DO MUNDO E DA PALAVRA
e de maneira correta. Além desses cuidados, As reflexões a respeito das relações entre a
pode-se constatar que o contador de histó- leitura crítica do mundo e a leitura crítica
rias deve interagir com o público ouvinte da palavra de que fala Freire (1989), tam-
estimulando-os a criticar e pensar através bém podem ser percebidas em outros es-
de questionamentos e reflexões sobre a his- tudos, como os de Lippi e Fink (2012), por
tória contada (LIPPI, FINK, 2012, p. 28). exemplo. As autoras têm discutido sobre as
42 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

transformações contemporâneas no campo forma a excitar a imaginação do público, de-


da educação e a preocupação com a forma- senvolver sua oralidade, educar, instruir, co-
ção integral do educando, destacando o pa- nhecer a percepção dos alunos sobre diver-
pel fundamental desempenhado pela leitura sos assuntos e contribuir para a ampliação
e pela contação de histórias para o desen- ou reformulação de conhecimentos. Além
volvimento e formação da criança e do ado- disso, segundo as autoras a contação de his-
lescente, enquanto leitores e cidadãos cons- tórias pode fornecer o ponto de partida para
cientes e críticos: a introdução do conteúdo programático e
“favorecer a aprendizagem em diferentes dis-
Devido às constantes mudanças que vêm ciplinas, ao abordar temas relacionados aos
ocorrendo na educação e a grande preocu- conteúdos estudados e de interesse dos alu-
pação que se acentua cada vez mais em for- nos, de modo interdisciplinar, de uma rique-
mar o aluno integralmente, ou seja, um in- za singular” (NEDER, ALMEIDA, 2009, p. 62).
divíduo preparado para a vida, autônomo, Para Souza e Bernardino (2011, p. 239),
crítico e consciente do seu papel enquanto é possível aprender de forma interdiscipli-
cidadão, depara-se com a importância da nar (sobre diferentes povos e culturas, His-
leitura nos processos de aprendizagem do tória e Geografia...) através da contação de
ser humano, levando em consideração o histórias “na medida em que essas histórias
fato de que, lendo, se aprende a interpretar acontecem em tempo e espaço diversifica-
os diversos mundos que a literatura infantil dos, tornando-se um instrumental criativo
apresenta. Sabendo interpretar, automati- de exploração a ser usado pelo educador”.
camente acontece o ato de criticar. E nisso, Sobre a questão da contação de histórias e
encontra-se a oportunidade de através da suas possibilidades de interdisciplinaridade,
Contação de Histórias formar leitores crí- Fanny Abramovich (1995, p. 17) explica que
ticos, onde o botão mágico para despertar é através das histórias que se pode “desco-
o gosto pela leitura estará inserida nesta brir outros lugares, outros tempos, outros
prática (LIPPI; FINK, 2012, p. 22). jeitos de agir e de ser, outra ética, outra ótica.
É ficar sabendo história, geografia, política,
De acordo com Lippi e Fink (2012), a im- sociologia, sem precisar saber o nome disso
portância da leitura está ligada principal- tudo e muito menos achar que tem cara de
mente à sua relação com a interpretação dos aula [...]”.
diversos mundos literários e desta com a Assim, as narrativas literárias apropria-
construção de reflexões críticas. Embora as das pelos alunos, através da contação de
autoras dissertem sobre a interpretação de histórias nas escolas, configuram-se como
mundos literários, entendemos que o ato de importantes recursos pedagógicos para o es-
interpretar, refletir e criticar alcançado por tudo dos mais diversos conteúdos didáticos.
meio da leitura pode ultrapassar as frontei- Além disso, a arte de contar histórias pode
ras da literatura e aproximar-se de contextos ser utilizada em sala de aula para a discussão
reais, presentes no cotidiano das crianças e de temáticas fundamentais para a formação
dos adolescentes. Nesse sentido, a contação de crianças e de jovens cidadãos conscientes
de histórias pode contribuir na formação de e críticos em suas interpretações do mundo,
leitores e cidadãos com capacidade crítica tais como temas relacionados à negritude, ao
em domínios literários e reais. preconceito racial, ao respeito à diversidade
Divina Neder e Érica Almeida (2009) ex- e à valorização das identidades culturais.
plicam que a arte da contação de histórias Souza e Bernardino refletem sobre essa
deve ser explorada de maneira criativa, de situação e sugerem a promoção, por parte
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 43

das instituições educativas no contexto plu- importância fundamental – e urgente – em


ricultural brasileiro, da divulgação de histó- contextos escolares. Nesse sentido, a conta-
rias tradicionais africanas e indígenas, por ção de histórias pode contribuir, através da
exemplo, com o intuito de favorecer a cons- fantasia, do prazer e do encantamento, para
trução e a valorização de identidades histo- o tratamento de temáticas e problemas reais
ricamente excluídas: e presentes desde cedo na vida das crianças
e dos adolescentes negros, promovendo re-
Ler, ouvir/contar histórias desperta o pen- flexões e contribuindo para a formação iden-
samento narrativo. Uma forma de pensar titária negra.
coexistente com o pensamento lógico cien-
tífico, vinculado à subjetividade e ao emoti- NEGRITUDE EM SALA DE AULA
vo, surge em situações onde o sujeito busca Em seu discurso intitulado “O perigo de
compreender através de simbolismos a re- uma única história”4, a escritora nigeria-
alidade. Sendo assim, o conto de histórias na Chimamanda Adichie conta algumas de
favorece o psíquico e emocional da criança, suas experiências ao longo de sua infância
que enquanto cresce busca sua identidade e adolescência, para falar sobre os riscos de
baseada nos modelos que convive. A esco- conhecermos somente um lado da história
la tem uma grande responsabilidade nesse e de como a literatura desempenha um pa-
processo, o sistema educativo deve ajudar pel fundamental para que tenhamos acesso
quem cresce em determinada cultura a se a diversas histórias ou a diversas versões
identificar, a partir das narrativas é possí- de uma mesma história. Para exemplificar,
vel construir uma identidade e de encon- a escritora nigeriana relembra um episódio
trar-se dentro da própria cultura, a escola da sua infância, quando seus pais chama-
deveria promover e divulgar contos orais ram um menino para trabalhar na proprie-
e escritos que mostrem a realidade pluri- dade da família. A única coisa que sua mãe
cultural brasileira resgatando história da falava sobre o menino era que ele vinha de
tradição afro-indígena, favorecendo deste uma família muito pobre e essa era a única
modo a construção da identidade infantil. história que Chimamanda sabia sobre ele.
Há gerações isto vem sendo negado onde se Até que um dia seus pais levaram-na em
legitimam apenas os contos de origem euro- um passeio para conhecer o bairro onde a
peia (SOUZA, BERNARDINO, 2011, p. 241). família do menino morava, e ela descobriu
que a família do menino fazia cestas de pal-
O silenciamento e a desvalorização his- ha maravilhosamente bem, a partir do domí-
tórica das culturas, tradições e histórias de nio de elaboradas técnicas de trama e detin-
grupos sociais subalternizados, tais como gimento da palha:
a cultura afro-brasileira, em detrimento da
perpetuação e valorização de uma identi- Eu venho de uma família nigeriana con-
dade branca e europeia, tem reflexos ainda vencional, de classe média. Meu pai era
hoje em países como o Brasil, de colonização professor. Minha mãe, administradora.
europeia e com escravidão legal até 18883 Então nós tínhamos como era normal, em-
– menos de 130 anos atrás. Assim, debater pregada doméstica, que frequentemente
em sala de aula temas como racismo, identi- vinha das aldeias rurais próximas. Então,
dade cultural, respeito às diferenças e valo- quando eu fiz oito anos, arranjamos um
rização da pluralidade e da diversidade é de
4 Discurso proferido em Tecnology, Entertainment and Design Conferen-
3 No Brasil, a abolição da escravatura ocorreu a partir da Lei Áurea, san- ces (TED Conferences) em 2009. Disponível em: <https://www.youtube.com/
cionada em 13/05/1888. watch?v=wQk17RPuhW8>. Acesso em: 10 de abril de 2014.
44 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

novo menino para a casa. Seu nome era começou a escrever – ainda criança – suas
Fide. A única coisa que minha mãe nos dis- personagens eram brancas, tinham os olhos
se sobre ele foi que sua família era muito azuis, brincavam na neve, comiam maçãs e
pobre. Minha mãe enviava inhames, arroz bebiam cerveja de gengibre. Além disso, em
e nossas roupas usadas para sua família. E suas histórias inventadas quando criança,
quando eu não comia tudo no jantar, min- ainda vivendo na Nigéria, as personagens da
ha mãe dizia: “Termine sua comida! Você futura escritora comentavam o tempo todo
não sabe que pessoas como a família de sobre como era bom o sol ter aparecido. De
Fide não tem nada?” Então eu sentia uma acordo com a romancista, suas narrativas
enorme pena da família de Fide. E, em um reproduziam as leituras britânicas e ameri-
sábado, nós fomos visitar a sua aldeia e sua canas, demonstrando a vulnerabilidade, par-
mãe nos mostrou um cesto com um padrão ticularmente das crianças, em relação aos
lindo, feito de ráfia seca por seu irmão. Eu perigos de uma única história:
fiquei atônita! Nunca havia pensado que
alguém em sua família pudesse realmente A meu ver, o que isso demonstra é como
criar alguma coisa. Tudo que eu tinha ou- nós somos impressionáveis e vulneráveis
vido sobre eles era como eram pobres; as- em face de uma história, principalmen-
sim havia se tornado impossível para mim te quando somos crianças. Porque tudo
vê-los como alguma coisa além de pobres. que eu havia lido eram livros nos quais
Sua pobreza era minha história única sobre as personagens eram estrangeiras, eu me
eles (ADICHIE, 2009, 3m03s). convenci de que os livros, por sua própria
natureza, tinham que ter estrangeiros e
A história do menino, na visão de Chima- tinham que ser sobre coisas com as quais
manda, mudou – sua família continuava a eu não podia me identificar. Bem, as coisas
ser pobre, mas agora era pobre e trabalha- mudaram quando eu descobri os livros af-
dora. O exemplo é usado por Chimamanda ricanos (ADICHIE, 2009, 1m48s).
Adichie para mostrar como somos vulnerá-
veis e facilmente impressionáveis com uma A fala da escritora nigeriana, ao lon-
única história. As histórias únicas criam es- go de aproximadamente 18 minutos de
tereótipos, não que sejam necessariamente seu discurso, exemplifica perfeitamente a
mentirosos, mas são incompletos e reducio- questão do silenciamento histórico que ca-
nistas, isto é, não podem ser considerados lou histórias, culturas e manifestações de
como representativos de uma realidade que, identidade negra durante séculos. Nesse
na maioria das vezes, é muito mais comple- sentido, levar discussões desse teor para a
xa. Mostrar mais histórias ou as diferentes sala de aula através da contação de histór-
visões de uma mesma contribui para pro- ias, considerando a melhor maneira de ab-
mover questionamentos e reflexões. Assim, ordar tais temáticas de acordo com a idade e
a literatura assume um caráter de resistên- contexto dos estudantes, configura-se como
cia e de luta contra as violências cotidianas, uma alternativa essencial para o conheci-
contra os perigos de uma história única, mento de histórias de origem africana, no
contra arbitrariedades e desvalorizações, caso abordado por este artigo, levando ou-
enfrentando os silêncios, os esquecimentos tras visões de culturas, narrativas, costumes
e os preconceitos de muitas gerações. e tradições, diferentes das hegemônicas no
Em sua conferência, Chimamanda Adichie país, e colaborando para a reflexão sobre
conta também que sempre leu livros infan- preconceitos, diversidade e igualdade, e con-
tis britânicos e americanos e que, quando tribuindo para a valorização pluricultural e
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 45

identitária e para a promoção do respeito às na “plantação”7. Mussa Racua já esteve lá e


diferenças. não consegue nem pensar em ter que voltar,
Com a finalidade de instigar reflexões ao relembrar todo o sofrimento e exploração
a respeito de temas como esses a partir da sofridos.
contação de histórias literárias, há que se Nos diálogos simples entre os persona-
considerar o público a quem o contador se gens, nos silêncios pesados e através dos
dirige. Para estimular construções críticas pensamentos de Mussa Racua, somos toma-
com o público infantil, poder-se-ia partir, a dos por um contexto histórico e social que
título de exemplificação, da história Menina muitas vezes fica nas entrelinhas. A solução
bonita do laço de ita5, da escritora brasileira desesperada de Mussa Racua é o suicídio e
Ana Maria Machado. A narrativa conta a his- mesmo esse seu último gesto de resistência e
tória de um coelho branquinho que admirava luta contra os colonizadores é visto com des-
tanto a menina negra com um laço de fita nos prezo e tachado de “preguiça” de trabalhar
cabelos que tenta a todo custo ficar pretinho nas plantações de sisal dos colonizadores. A
igual a ela. Através da história de Ana Maria exploração, o medo, a miséria, a desigualda-
Machado, é possível abordar e desenvolver de social entre os negros e os brancos, bem
em classe temas relacionados à diversidade como o racismo são elementos presentes e
racial e cultural brasileira, bem como esti- evidentes neste e nos outros contos de Lília
mular o respeito à diversidade e promover Momplé. Ao mesmo tempo em que a autora
uma valorização da cultura e da identidade expõe a violência e a opressão sofridas pe-
negra entre as crianças. los negros moçambicanos, ela constitui sua
Já para promover discussões com estu- escrita como uma forma de denúncia e de
dantes do Ensino Médio poderiam ser uti- resistência, mostrando pelas palavras e pe-
lizados como base textos de autores africa- las entrelinhas preconceitos e silenciamen-
nos como a moçambicana Lilia Momplé e tos históricos, e constituindo uma excelente
os angolanos Pepetela e Ondjaki. Os cinco fonte para o estudo e a reflexão de temáticas
contos de Lília Momplé, reunidos em Nin- dessa ordem em sala de aula.
guém matou Suhura6, por exemplo, podem
ser uma fonte muito rica para debates e CONSIDERAÇÕES FINAIS
construções críticas em sala de aula. Embo- Dos conhecimentos milenares dos xamãs às
ra tratem de histórias distintas, apresentam apresentações das trupes atuais, a arte mi-
uma linha que os une e os caracteriza como lenar de contar histórias tem se configurado
escritas de resistência e denúncia. No conto como um importante espaço de diversão, en-
que abre o livro, “Aconteceu em Saua-Saua”, cantamento e aprendizagem. A contação de
por exemplo, a personagem principal Mus- histórias auxilia no processo de construção
sa Racua está a procura dos quilos de arroz coletiva de conhecimentos, possibilitando
que faltaram para pagar a Administração práticas de ensino e aprendizagem marca-
pelo uso da terra. Para isso, percorre toda a das por atividades prazerosas, interessan-
aldeia, pedindo ajuda a todos os conhecidos tes e criativas e contribuindo, dessa forma,
e vizinhos, sem que ninguém possa ajudá-lo. para a formação crítica e reflexiva em sala
A pena para os que não pagam o arroz para a de aula. Além disso, estudos desenvolvidos
Administração consiste em trabalhar um ano por pesquisadores de diversas áreas, como
Letras, Educação e Artes demonstram os
benefícios que a contação de histórias pode
5 MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Melho-
ramentos 1986.
7 Eufemismo utilizado para se referir aos campos de trabalho forçado
6 MOMPLÉ, Lília. Ninguém matou Suhura. Maputo: AEMO, 1988. mantidos pelos portugueses em terras africanas ao longo do período colonial.
46 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

proporcionar também em relação ao desen- à temática racial, contribuindo para a des-


volvimento da criança e do adolescente en- construção do imaginário negativo e para a
quanto leitores iniciantes. valorização da identidade cultural africana e
Vimos, ao longo deste trabalho, as possi- afro-brasileira.
bilidades da contação de histórias como uma Ao levar em consideração que o ato da
aliada da prática pedagógica, e os poderes e leitura vai muito além da simples decodifi-
encantos que a prática dessa arte pode pro- cação de signos, implicando em percepções,
porcionar dentro e fora do espaço escolar, interpretações e reflexões sobre o texto
tanto em relação ao desenvolvimento inte- (FREIRE, 1989), o professor contador de
lectual da criança ou do adolescente – lei- histórias possui um recurso muito rico para
tura, escrita, fala – quanto em relação à sua promover a criticidade entre os estudantes.
formação como leitor e cidadão crítico da Dessa forma, a arte da contação de histórias
palavra e do mundo. Nesse sentido, uma das também pode auxiliar na construção de lei-
principais possibilidades da arte de contar turas críticas não somente das palavras, mas
histórias pensada como um recurso pedagó- também do mundo. Mais do que isso, pode
gico está justamente na aproximação entre a contribuir para a escrita ou reescrita desse
literatura e novos públicos em formação. mundo por meio da construção ou recons-
Assim, a contação de histórias configura- trução coletiva de conhecimentos, saberes e
se como uma importante alternativa para reflexões.
que os estudantes experienciem a leitura e a
literatura positivamente – não apenas como REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
um dever didático – obtendo uma experiên-
cia prazerosa a partir de e com narrativas li- ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gos-
terárias, o que contribui para a formação de tosuras e bobices. São Paulo: Scipione, 1995.
estudantes leitores. De acordo com Villardi
(1997) para a formação de grandes leitores e COELHO, Nelly Novaes. Literatura infantil: te-
críticos não é suficiente apenas ensinar a ler oria, análise, didática. São Paulo: Moderna,
– é necessário ensinar o estudante a gostar 2009.
de ler, a tornar prazerosa sua leitura. Desta-
ca-se nesse processo a atuação do professor FINK, Alessandra Tiburski. O ensino-aprendi-
contador de histórias como um dos media- zagem e a formação do leitor a partir da
dores entre os estudantes e o gosto pela li- literatura infantil. Monografia de conclusão
teratura. de curso (Pedagogia). Universidade Regio-
Nesse artigo discutiu-se, particularmente, nal Integrada do Alto Uruguai e das Missões,
as possibilidades da contação de histórias na Campus de Frederico Westphalen, 2001.
abordagem de temas relacionados a negritu-
de, conjugando a fantasia e o encantamento FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. São
literários no tratamento e na discussão de Paulo: Autores Associados/Cortez, 1989.
temáticas difíceis, pautadas em problemas
reais e presentes no cotidiano de crianças e JORGE, L. S. Roda de histórias: a criança e o pra-
jovens negros de todo o país. Nesse sentido, zer de ler, ouvir e contar histórias. In: DIAS,
a “leveza” proporcionada pela imaginação na Marina Célia Moraes M. & NICOLAU, Marieta
contação de histórias pode funcionar como Lúcia Machado (Orgs). Oficinas de sonho e
um excelente ponto de partida para entabu- realidade na formação do educador da in-
lar discussões desse teor e facilitar a expres- fância. Campinas, SP: Papirus, 2003.
são de experiências e vivências relacionadas
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 47

LIPPI, Elisiane; FINK, Alessandra. A arte de con-


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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 49

ASPECTOS COLONIAIS - A OPRESSÃO DO FEMININO NA


OBRA DESMUNDO, DE ANA MIRANDA

Cristiano Mello de Oliveira1

RESUMO: A obra Desmundo (1997), da escritora Ana Miranda enseja algumas características que
contemplam a temática da submissão feminina no ambiente colonial do Brasil no século XVI. O pre-
sente artigo pretende examinar o comportamento opressivo imposto pelo marido Francisco, em
relação à vida de Oribela. Primeiramente, teceremos alguns pressupostos que descortinarão o nosso
objeto de análise de maneira mais reflexiva, objetivando cumprir um breve preâmbulo da investiga-
ção. Em um segundo momento, iremos destrinchar algumas características da estrutura romanesca
da obra. Em uma terceira parte, esmiuçaremos os principais fragmentos que evidenciem melhor a
temática opressora sofrida pela jovem órfã portuguesa Oribela. Como referencial teórico de aborda-
gem, dialogaremos com: Mary Del Priore (1982), Simone Beauvoir (1980), Simone Pereira Schmidt
(2004), entre outros. A contribuição parte de uma maior reflexão do romance Desmundo, sob a luz
das teorias de gênero e estudos pós-coloniais.
Palavras-chave: Aspectos coloniais; Opressão; gênero; Desmundo; Oribela; Ana Miranda.

ABSTRACT: The book Desmundo (1997), the writer Ana Miranda work entails some features that
come with the theme of female submission in the colonial ambiance of Brazil in the sixteenth cen-
tury. This paper examines the oppressive behavior imposed by her husband Francis in relation to
life Oribela. First we will first make some assumptions that descortinarão our object of analysis
more reflective way, aiming to fulfill a brief preamble to the investigation. In a second step , we tease
out some characteristics of the novel structure of the work. In a third part, esmiuçaremos major
fragments that best reveal the oppressive thematic suffered by young English orphan Oribela. Theo-
retical framework approach , with dialogaremos: Mary Del Priore (1982), Simone Beauvoir (1980),
Pereira Simone Schmidt (2004), among others. The contribution is part of a larger reflection of the
novel Desmundo, in light of theories of gender and postcolonial studies.
Keywords: Colonial aspects, Oppression, gender, Desmundo; Oribela; Ana Miranda.

1.1 ALGUNS PRESSUPOSTOS


Em 1996, a autora cearense Ana Miranda publica a primeira edição da obra literária Desmun-
do. O romance conquista um grande número de leitores nos anos seguintes e complementa
ainda mais a competência da escritora em realizar grandes obras literárias que mesclem a
temática ficcional e histórica, já conhecida nos seus romances anteriores. Pouco a pouco,
Desmundo (1996) ganha o tônus necessário das leituras acadêmicas, ampliando os horizon-
tes culturais existentes. A virada capital da romancista se torna marcante após a publicação
desse novo e curioso romance, portanto entrevistas, aparições em suplementos culturais,
jornais acadêmicos ganham espaço na crítica literária brasileira e até mesmo internacional.
Segundo o crítico Esteves: “o livro agradou à critica e ao público e permaneceu por longo tem-
po na lista dos mais vendidos do País, sendo traduzido posteriormente para vários idiomas.”

1 Doutorando em Literatura – UFSC –Capes


50 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

(ESTEVES, 2007, p. 116) Em suma, o romance Em linhas gerais, o romance Desmundo


adquire os foros necessários de reprodução (1996) narra a história de um grupo de jo-
cultural, especificamente com alguns diálo- vens mulheres órfãs portuguesas que são
gos com a teoria feminista e colonialista, ob- impulsionadas para o matrimônio arranjado
jeto pouco identificado e que merece melhor em terras brasileiras. Não obstante, Oribela
destaque aqui nessa investigação. vive uma vida restrita, excessivamente con-
Curioso notar que, desde o seu lançamen- trolada e protegida pelo seu tutor e marido.
to, em 1996, o romance Desmundo se afirmou Os empecilhos e obstáculos são os mais va-
como marco distinto e ousado, colocando na riados possíveis, inventados pela família que
sua escritura, Ana Miranda, entre as melho- ao mesmo tempo lhe deseja o bem e se dis-
res romancistas do Brasil. Afinal, o romance tancia dos seus sentimentos. Apesar da gran-
forneceu expressão cultural às questões do de proteção de seu marido, Oribela deseja
conhecimento da história do Brasil colonial, adquirir experiência com a vida lá fora, mas
sobretudo, os aspectos culturais das órfãs, frequentemente é cercada de dificuldades
que eram enviadas de Portugal para o ter- pelas circunstâncias religiosas e familiares.
ritório brasileiro, os quais a sociedade lei- Num belo dia, Oribela, juntamente com ou-
tora ainda não conhecia ou simplesmente tras mulheres órfãs acabam sendo enviadas
rotulava através dos livros didáticos de his- para território brasileiro. Chegando às terras
tórica ou do senso-comum. A esse respeito brasileiras, Oribela é quase obrigada a man-
o estudioso Wander de Melo escreve: “daí a ter relações amorosas com o mouro Francis-
originalidade do romance na cena brasileira co de Albuquerque. “Encontramos, portanto,
atual, ao constituir-se como uma versão fe- na narrativa, contraposto à cena paradisíaca
minina da colonização e, ao mesmo tempo, do lócus amoenus projetado pelos europeus
superar os limites do fato histórico a que re- na nova terra, o drama da brutalidade das
mete” (MIRANDA, 2008, p. 03). O rotulamen- relações travadas entre homens e mulheres”
to inconsciente do público leitor em geral (SCHMIDT, 2007, p. 02). Acontece que esse
sempre caía nas tentações de enxergar a pro- rude homem compromete toda sua liber-
tagonista Oribela como apenas uma mulher dade e autonomia, julgando Oribela como
aventureira, destemida e excessivamente refém dos seus aconchegos amorosos e res-
melancólica, sem antes saber que ela possuía tringindo a ela os afazeres domésticos. Em
toda uma carga de sentimentos humanistas suma, Oribela, sem novas chances no seu trá-
relacionados à sua própria existência.2 Ali- gico destino, acaba sendo obrigada a dividir
ás, a temática humanística e social, tal como a sua vida com Francisco, que a trata como
abordada por Ana Miranda, logo se tornou submissa e subalterna perante seus afazeres.
solo fértil para o roteiro do filme homôni- A estrutura do romance comunga com a
mo produzido anos depois.3 Portanto, foi ideia de um livro poético escrito com leveza
durante o lançamento do filme em questão e intimidade com a linguagem, isto é, algu-
que a leitura da obra tornou-se ainda mais mas estrofes poéticas descortinam cada ca-
instigante, levando a outros desdobramen- pítulo ou parte do mesmo criando a sensa-
tos férteis na academia, através da produção ção de uma obra literária bem estruturada
de teses, dissertações, monografias e artigos e organizada. Pouco mais de duzentas pá-
científicos. ginas angariam o horizonte do leitor pouco
acostumado a densas narrativas;4 as partes
2 Sobre tal questão, um estudo mais aprofundado poderia ser trabalhado
para futuros desdobramentos. 4 Segundo Antonio Roberto Esteves, no seu artigo O romance histórico
brasileiro no final do século XX: quatro leituras, esclarece que: “Como os capí-
3 FRESNOT, Alain. Desmundo. Coumbia TriStar Home Entertainment, tulos são curtos, tal estilo não prejudica o ritmo da leitura, nem mesmo nos
2003. 35280TNW. fragmentos dedicados à relação entre Oribela e Temericô, quando a nativa
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 51

ilustradas com desenhos que remetem a algo evidenciada na dissertação de mestrado de


bem trabalhado; os títulos dos capítulos ex- Cláudia Espíndola Gomes, intitulada Oribe-
tremamente sugestivos – “1. A chegada”, - “2. la: o uno que se desdobra (2000). Segundo a
“A terra” -, “3. “O casamento”, - “4. O fogo”,- “5. autora, a linguagem solta e lexicalizada pode
A fuga”,- “6. O desmundo”,- “7. A guerra”, - “8.O ser aproximada com a tessitura romanes-
mouro”,-“9.O filho”,-“10.O fim”, fornecem am- ca do escritor Guimarães Rosa. Para provar
pla reserva temática: todos mantêm a mescla tudo isso a autora não hesita em esmiuçar os
de desdobramentos das reflexões sobre uma diversos eixos semânticos que cada expres-
perspectiva mais espontânea e poética. Ro- são comporta, perfazendo o jogo linguístico
mance, além de histórico, tido também como como forma de exercício. “Alguns aspectos
uma narrativa em primeira pessoa, estabe- presentes na produção literária de Guima-
lecida como monólogo, muito semelhante rães Rosa surgem na linguagem da persona-
ao modelo cunhado por Gerard Genette, de gem narradora, como a revelar a necessida-
narrador autodiegético5, disposta a relatar de de compreender a realidade e o mundo,
os episódios e os variados acontecimentos ambos muitas vezes incompreensíveis” (GO-
de uma protagonista pouco comum aos ou- MES, 2000, p. 22). Não obstante, a estratégia
tros romances publicados por Ana Miranda. da falta de pontuação, mesclada com frases
É sabido que muitos pesquisadores versam extensas povoam boa parte da narrativa e
que o romance Desmundo, pela atenção foca- movimentam os variados anseios da perso-
da na protagonista, mantém a perspectiva de nagem Oribela. Por esse motivo, Desmundo
uma obra que contém aquela característica se afaste cada vez mais do tradicional mo-
marcante da obra Clara dos Anjos (1969), do delo dos romances confeccionados nas últi-
escritor carioca Lima Barreto.6 mas décadas. A acuidade desse problema, já
É significativo mencionarmos, efetiva- se patenteia, embora o leitor menos ousado
mente, que o romance carece de uma ur- tente ao máximo superar tais inovações nar-
didura dos episódios, fazendo confundir o rativas. Em suma, o fluir cronológico estabe-
leitor mais tradicional e pouco acostumado lecido em Desmundo esgarça a possível rela-
à predominante ejaculação de frases e sen- ção entre o narrador e a protagonista Oribe-
tenças.7 A característica pode ser muito bem la, fazendo fluir uma frenética tessitura onde
ambos se mesclam.
lhe ensina expressões em sua língua. As palavras em tupi, através da técnica
do “ensinar como se diz”, aparecem sempre ao lado de seu equivalente em O estudioso Ronaldo Vainfas, no seu capí-
português” (ESTEVES, 2007, p. 115) .
tulo “Homoerotismo feminino e o santo ofí-
5 Sobre tal conceito ver o livro: AGUIAR, Vitor Manuel. A estrutura do ro-
mance. Coimbra: Livraria Almedina, 1974, pp. 61. 62. cio”, contido no livro História das mulheres
6 Sobre esse aspecto do negro e da condição feminina, que respectiva- no Brasil (2007), esmiúça de forma acurada
mente aparece no romance Clara dos Anjos, pela mulata Clara e Desmundo,
pela órfã portuguesa Oribela a crítica Simone de Beauvoir afirma que: “Mas alguns precedentes sobre as precárias con-
as profundas analogias entre a situação das mulheres e a dos negros: umas
e outros emancipam- -se hoje de um mesmo paternalismo e a casta ante- dições subalternas que o universo feminino
riormente dominadora quer mantê-los “em seu lugar”, isto é, no lugar que
escolheu para eles; em ambos os casos, ela se expande em elogios mais ou estava submetido no Brasil, especificamen-
menos sinceros às virtudes do “bom negro”, de alma inconsciente, infantil
e alegre, do negro resignado, da mulher “realmente mulher”, isto é, frívola, te no século XVI. Extremamente sugestivo
pueril, irresponsável, submetida ao homem. (BEAUVOIR, 1980, p. 17-18)
o subtítulo do seu capítulo “Das mulheres
7 Há, na obra Desmundo, uma espécie de ruptura necessária com o marco
devidamente histórico e cronológico que rege uma obra literária menos tra- em terra brasílica”, no qual lembra uma pro-
dicional. Em outras palavras, escolhas vocabulares se mutuam e transitam
remetendo a formas frasais diferenciadas, realizando um completo painel ximidade das mulheres com os aspectos da
sintático, ousando nos períodos longos, mesclados por uma linguagem solta
e espontânea tão pouco trabalhada por outros escritores na Literatura Bra-
sileira. “Fui calada. Ruim do calar é que mais se pensa, mais se lembra e mais de Portugal com o Brasil, tentando ao máximo engrenar todos os episódios.
se ouve o outro e não a si. Dizia Francisco de Albuquerque [...]” (MIRANDA, Obviamente ou não, que a economia textual utilizada por Ana Miranda apre-
1996, p. 85). A nosso ver, seu romance acolhe e revela uma espécie de monó- senta oscilações com o fluxo de consciência pregado pelo escritor irlandês
logo narrativo que estabelece um profundo diálogo constante com aquilo que James Joyce. Em várias partes do romance a linguagem corre livre e soa como
cerca as suas possibilidades de consagração enquanto escritora renomada no uma espécie de monólogo interno que aparenta algo de melancólico e retra-
cenário nacional. Para chegar ao esboço ficcional, tanto da realidade do sé- ído. Por essa via de ruptura, o discurso narrativo, ao que tudo indica, revela
culo XVI quanto das circunstâncias historicistas linguísticas que cercaram as um posicionamento metafísico por parte da demasiada sensibilidade do pró-
falas das personagens, Miranda refaz a trajetória historiográfica ultramarina prio narrador.
52 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

nacionalidade brasileira. Devemos ressaltar “É no século XVI que se codificam as leis que
que o período estudado pelo autor corres- se perpetuam durante todo o Antigo Regime;
ponde exatamente ao qual Oribela chega às nessa época os costumes feudais já desapa-
terras brasílicas. Segundo o autor, boa parte receram totalmente e nada protege a mu-
das mulheres que viviam no Brasil durante lher contra as pretensões dos homens que
essa época estava condicionadas a serem re- a querem prender ao lar doméstico” (BEAU-
gidas pelo aprisionamento ou simplesmente VOIR, 1980, p. 125). Ora, podemos observar
pela obediência cruel dos seus companhei- que Beauvoir esclarece suas preocupações
ros, ou mesmo da própria religião imposta. históricas em relação ao contexto feminino,
Vainfas discorre da referência do clássico buscando evidenciar uma espécie de surgi-
Casa grande e senzala, para iniciar o seu estu- mento da primeira normalização das leis que
do, especificamente os desdobramentos das foram pregadas logo após os hábitos feudais.
reflexões de Gilberto Freyre acerca da sub- Antes de terminar, a autora reflete sobre tal
missão da mulher ao universo homoerótico. aspecto: “Textos análogos multiplicam- se
8
“As mulheres índias, essas sim, foram aman- nessa época. O interesse deste consiste em
tes dos portugueses desde o início e Freyre que cada acusação destina-se a justificar
sugere que o foram até por razões práticas”, uma das disposições que o código estabele-
(VAINFAS, 2007, p. 88), ressalta o estudioso. ce contra as mulheres e a situação inferior
Em suma, linhas adiante, Vainfas recompõe em que são mantidas” (BEAUVOIR, 1980, p.
ainda a prática de sodomia por boa parte das 125). Portanto, em ambos os trechos refle-
mulheres neste período ainda tão obscuro, tidos corroboram para uma visão regrada
seja pelo desconhecimento das repressões daquela sociedade já desdobrada em terras
monárquicas ibéricas, seja pelos efeitos mo- brasileiras.
ralizantes da Contrarreforma. Por outro viés, o pesquisador Antônio
Remando no mesmo contexto histórico, Roberto Esteves, no seu ensaio O romance
especificamente século XVI, período crono- histórico brasileiro contemporâneo (1975-
lógico estabelecido no romance Demundo 2000), discorre de forma acurada sobre o
teremos algumas reflexões contidas no clás- contexto histórico do romance Desmundo.
sico livro Segundo Sexo (1980), da estudio- Estudioso contumaz, Esteves é um dos prin-
sa Simone de Beauvoir. Aqui não desejamos cipais pesquisadores sobre a temática literá-
esmiuçar todos os detalhes em questão, mas ria histórica nos meios acadêmicos, estimu-
tecer alguns contrapontos que merecem um lando desdobramentos na investigação do
maior destaque à discussão empreendida. romance histórico em todo o Brasil.9 Para
Beauvoir recria todo um ambiente ensaístico montar sua linha de raciocínio, Esteves re-
histórico para o exame desses acontecimen- faz, grosso modo, uma espécie de panorama
tos que cercaram a vida do universo femini- literário ao qual busca abordar quais foram
no, advogando com a ideia da falta de liber- as principais características que marcaram
dade que privaria o universo feminino. Uma o enredo e a tessitura textual do romance de
passagem faz-se importante destacarmos: Ana Miranda. “O painel da sociedade colo-
nial é cuidadosamente reconstituído a partir
8 No livro Sobrados e mocambos (1998), do historiador Gilberto Freyre, de textos históricos que tratam do período.
também teremos uma reflexão aguçada sobre o universo “A exploração da
mulher pelo homem, característica de outros tipos de sociedade ou de or- [...] Da mesma forma, a autora tenta recriar
ganização social, mas notadamente do tipo patriarcal-agrário-tal-como, o
que dominou longo tempo no Brasil – convém a extrema especialização ou o estilo da época a partir de documentos”
diferenciação dos sexos. Por essa diferenciação, exagerada, se justifica o cha-
mado padrão duplo de moralidade, dando ao homem todas as liberdades de
gozo físico do amor e limitando o da mulher a ir para a cama com o mari-
do, toda a santa noite que ele estiver disposto a procriar. Gozo acompanha- 9 Uma produtiva parcela de contribuição pode ser revista na obra ESTE-
do da obrigação, para a mulher, de conceber, parir, ter filho, criar menino.” VES, Roberto. O romance histórico brasileiro contemporâneo (1975-2000).
(FREYRE, 1998, p. 93) Assis: UNESP. 2010.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 53

(ESTEVES, 1995, p. 195). Ora, Esteves exami- depressiva por imaginar um possível rela-
na a seriedade de Ana Miranda no trato ar- cionamento e, posteriormente no fundo ela
tístico do seu romance, criando um ambiente acaba entrando em depressão por tudo que
extremamente coerente com o universo ali cerca o seu destino tão cruel e trágico.
representado. Sobretudo, Esteves salienta a A presente investigação buscará realizar
importância da criação de “um universo lin- uma leitura dos principais excertos que iden-
guístico verossímil”, buscando ganhar os fo- tifiquem o grau de submissão da personagem
ros de originalidade e recriação junto a uma Oribela frente aos obstáculos encontrados ao
espécie de “pastiche” que, segundo o autor, chegar às terras brasileiras.10 Embora haja
ajuda a confeccionar o espaço colonial am- uma fortuna crítica sobre esta obra, nenhuma
bientado pela protagonista Oribela. se dispõe a analisá-la sob este prisma tão ori-
Não seria ingênuo afirmarmos que Ori- ginal. 11Para tanto, focalizamos aqui algumas
bela é uma moça órfã que se sente solitá- questões pertinentes que permearão a nossa
ria e ausente no seio da sociedade colonial evolução ensaística ao longo desse breve tra-
portuguesa no século XVI. Sente vontade de balho: como se condiciona o comportamento
usufruir de uma vida melhor e jamais pode opressor sofrido pela jovem portuguesa Ori-
realizar. Sente gosto pelas coisas do mundo bela? Por que a jovem aceita ficar subordina-
como toda mulher e nem pode pensar em fa- da ao marido Francisco de Albuquerque? Se
zer; sente paixões inusitadas e nem sequer fôssemos imaginar/pensar em situações pós-
pode imaginar um amor consistente. Como coloniais, qual seria o lugar da enunciação do
nos alerta novamente Simone Schmidt: “Ori- discurso da escritora Ana Miranda, ao falar e
bela, a protagonista-narradora, sente em opinar através do seu narrador sobre a po-
sua pele o peso dessa barbárie, já que em sição subalterna de Oribela, frente aos desa-
seu corpo ela experimenta todo o peso da fios da vida? Por que Oribela aceita o regime
violência imposta às mulheres, dentro e fora imposto pelo seu marido Francisco de Albu-
do casamento” (SCHMIDT, 2007, p. 03). Por- querque? Por que a jovem moça sentia-se re-
tanto, sua pacata e humilde vida acaba con- primida e fechada para as coisas da vida? Por
dicionando um comportamento sedentário, que Oribela não se mostrava indignada com
subordinada para os acontecimentos que a suas colegas diante de um comportamento
cercam. “[...] Eu era órfã do mosteiro, mur- tão reprimido imposto pelo próprio marido?
murei que sim e nada mais que isso, cheia São essas algumas questões fundamentais
de tanto amor-próprio e tão sentida feito que desejaríamos elucidar e são através delas
erva viva, que se arrufa e se quebranta com que iremos tecer as nossas considerações e
o mesmo ímpeto, sem mais mimos nem afa- permearemos o nosso progresso ensaístico.12
gos” (MIRANDA, 1996, p. 28). É subordinada
10 É sobre o contexto paralelo dessa ilusão imposto por Francisco de Albu-
ao mouro, por ser totalmente conduzida por querque que iremos guiar o nosso mote investigatório de escrita desse bre-
ve trabalho. Nessa manobra, iremos perquirir os principais fragmentos que
ele e, pela suposta mãe é condicionada a re- abordam a temática da opressão feminina exercida não somente por Francis-
co, mas pelos fanáticos religiosos que se aglomeram nas páginas desse genu-
alizar os afazeres domésticos e do ofício de íno romance. Devemos lembrar que não iremos destacar os fragmentos que
mais evidenciam a sua tristeza ou melancolia em si, mas aqueles que mais re-
costura que tenta ao menos aprender. “Que tratam o “comportamento opressor” sofrido por Oribela frente aos desafios
da vida imposta. Percebemos que a devida leitura desse romance, através do
nos fizéssemos de damas, só bordar mas recorte da dualidade entre gênero e supostamente o colonialismo recente de
Portugal, pode suscitar novas especulações, postulando, dessa forma, novas
guardássemos o pudor, o dinheiro santo do maneiras de explorar outras ficções que remam na mesma linhagem de enre-
do. Em suma, a contribuição desse breve artigo visa instigar novos ensaios e
trabalho, o homem por grosso e a mulher rumos para a crítica de gênero aplicada aos textos literários, especificamente
esse que recai sobre a representação opressora da jovem portuguesa Oribela.
por miúdo” (MIRANDA, 1996, p. 44). Por
11 Os principais estudos (teses, dissertações e artigos) serão pincelados ao
último, Oribela acaba tendo um amor não longo de nosso raciocínio ensaístico. Portanto, ao pesquisador interessado,
ver referências no fim do trabalho.
correspondido pelo próprio mouro quan-
12 Simone Pereira Schmidt acentua no seu artigo “Como e por que somos
do chega às terras brasileiras e isso a torna feministas?” que: “Um modo feminista de ler e interpretar o mundo, e de
54 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

1.2 ANA MIRANDA E O SISTEMA o casamento como valor importante para as


DO COMPORTAMENTO OPRES- sociedades dos séculos XVI, XVII e XVIII. A
SOR DE ORIBELA, NO ROMANCE autora postula que o casamento estava asso-
DESMUNDO ciado à expansão familiar que junto favorecia
Sempre em constante movimento, perambu- o povoamento das primeiras capitanias im-
lando numa geografia romanesca duvidosa e plantadas em território brasileiro. É, a partir
ao mesmo tempo sinuosa, o movimento nar- daí, segundo a autora, que o universo femi-
rativo de Ana Miranda, na obra Desmundo, é nino começa a permanecer preso às ordens
a viagem numa tessitura obtusa em que mui- do chefe familiar, ou seja, a mulher passa a
tos limites são abolidos. Ou seja, horizontes realizar os afazeres domésticos e mantém
temporais são problematizados por trajetos o sexo de forma utilitária. Navegando seus
complexos que cruzam o território literário horizontes especulativos sobre o universo
tradicional sem atingir uma definição co- feminino em terras coloniais, baseada em
erente. Sobre esse aspecto a pesquisadora forte pesquisa documental, especificamente,
Priscila Reis Franz, no seu artigo A viagem a partir do contexto histórico do Concílio de
de Oribela em Desmundo (2008), remonta Trento, Priore enfatiza que os desdobramen-
essa questão, especulando formas de repre- tos escravagistas percorreram também os
sentação das viagens exercidas por aquela anseios das mulheres e, consequentemente
personagem no interior do romance. “A obra fazendo com que elas se tornassem serventia
apresenta a viagem exterior e interior da do chefe familiar. “A Igreja apropriou-se tam-
protagonista, demonstrando toda a sua visão bém da mentalidade androcêntrica presente
sobre o Desmundo, isto é, o Brasil, com todas no caráter colonial e explorou as relações de
as lendas e crendices próprias da concepção dominação que presidiam o encontro de ho-
cristã portuguesa do Novo Mundo” (FRANZ, mem e mulher, incentivando a última a ser
2008, p. 02). Com extrema argúcia, Ana Mi- exemplarmente obediente e submissa” (DEL
randa cria algumas nuances psicológicas. No PRIORE, 1993, p. 29).
rol desses acontecimentos que virão adiante Para o leitor mais experiente, é fácil per-
é compreensível depreendermos uma reali- ceber essas inclinações e desdobramentos
dade psicológica que enseja o pensamento de comportamento submisso em relação ao
de submissão de Oribela. Ao metabolizar o universo masculino e colonial como um todo,
aspecto psíquico de Oribela, a autora acaba especificamente o casamento ajeitado. Ob-
permanecendo partícipe de suas próprias viamente que esse manancial aqui aponta-
angústias. Em suma, Miranda maneja carac- do no parágrafo anterior pela estudiosa Del
terísticas psicológicas que fertilizam alguns Priore, remete a pensarmos numa possibili-
desencadeamentos nos anseios da própria dade frutífera de leitura e especulação inves-
protagonista, ressoando nas articulações tigativa. Igualmente as reflexões teorizadas
dos demais episódios. pela estudiosa francesa Simone de Beauvoir,
No livro Ao Sul do corpo (1993), a autora no clássico estudo já apontado. Não obstan-
Mary Del Priore versa questões de imposição te, várias passagens iluminam o denso está-
da Igreja Católica no tratamento das mulhe- gio de melancolia que perpassa o cotidiano
res em submissão aos homens. Seu ensaio da protagonista Oribela. Conjuga-se, nesse
recria um verdadeiro painel relacionado universo de tristeza, uma forma de desaba-
aos aspectos coloniais e, a nosso ver, evoca fo e estranheza ao encontro com o universo
cultural distinto do continente latino-ameri-
produzir discursos que interfiram nos contextos em que atuamos, parece ser
a mais fundamental forma de luta política contemporânea. Esta nossa prática cano. Nessa manobra, tal perspectiva anun-
interpretativa e teórica deve constantemente rever e subverter lugares de
poder, dentro e fora do feminismo.” (SCHMIDT, 2004, p. 02) ciada pela protagonista acaba perfazendo
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 55

temas de seu sofrimento interno e provo- submetida. Em suma, a descrição acima deli-
cando uma espécie de introspecção. Nesse neia e segue como uma conjuntura pictórica
sentido, Oribela cria um jogo retórico frutí- e enérgica que se locomove com bastante ri-
fero de possibilidades de diálogo, que vistas gor, recompondo, à medida que o leitor avan-
em conjunto, corroboram para uma possível ça durante o fio da narrativa.
análise subjetivada do seu próprio pensa- Em linhas gerais e a guisa de conclusão,
mento, construindo uma cadeia de ideias so- percebemos que todas as citações e fragmen-
bre tal perspectiva. Em suma, Oribela retoma tos abrem discussões para questionarmos e
meditações permeadas de engrandecimen- problematizarmos a preferência da escritora
tos figurativos que acabam direcionando um cearense em relação às mulheres brasileiras.
olhar mais contemplativo sobre tal aspecto. No entanto, importa realçar que na esteira
O fragmento extraído adiante represen- dessas discussões teóricas sobre a questão
ta a descrição das impurezas masculinas na da submissão feminina, enquanto fator de
primeira viagem, daí se constrói a primeira análise ao qual realizamos aqui, tentamos
hipótese de submissão da protagonista. Ve- perfazer brevemente uma reflexão que não
jamos os detalhes: distanciasse dos olhares estéticos da leitura
do próprio romance. Assim, com base na re-
Tudo era flutuar. Minhas perdições, o san- flexão psicológica de sua personagem Oribe-
gue dos meus costumes, o cheiro de entre la, podemos dizer que “ser submissa” perante
minhas pernas, as histórias dos corsários o universo masculino, apenas reforça a tese
que se serviam de mulheres nas naus apre- de que tal perspectiva precisa ser desmon-
sadas que os perros contavam rindo no tada caso se deseja atingir uma nação mais
convés [...] (MIRANDA, 1996, p. 06). democrática. De todo modo, a preciosidade
poética trabalhada quase que artesanalmen-
Através do excerto extraído, é possível te no seu texto revela uma preocupação de
conjugarmos um olhar de natureza íntima conhecimento literário que consegue atingir
para o desabafo de Oribela. Igualmente, ao a escritora Ana Miranda. Fechando nosso ra-
utilizar a frase “sangue dos meus costumes”, ciocínio, durante a leitura desses fragmen-
subentende-se e sugere que a escritora cea- tos, verificamos que Miranda não evidenciou
rense desejava realizar uma comparação edi- a raça, nível de estudos, classe social, para
ficadora da psicologia da jovem. Nesse ce- diagnosticar a feminilidade da mulher brasi-
nário exposto, a infelicidade é escamoteada leira através da personagem Oribela, ou seja,
diante das incertezas do mundo visitado re- não agiu com preconceitos e sim, buscando
centemente, tudo parece exuberante e sensí- chamar atenção para outras especificidades
vel. Frente aos possíveis obstáculos sofridos, menos radicais. Sobretudo, a escritora des-
a protagonista revela o absurdo de sua exis- vencilha o provincianismo acomodado à bra-
tência diante de tanta impureza e insatisfa- sileira que perpetuou durante décadas e que,
ção pessoal. Ao que tudo indica a inflexão, de sobretudo, descortinaria novos horizontes.
natureza densamente poética, causa espanto
no leitor menos prevenido a tais devaneios. 1.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por conseguinte, a carga das frases distri- Sem ter construído propriamente uma teoria
buída pelos períodos longos, separados por do feminismo ou da subalternidade feminina
vírgulas, perpassa o imaginário narratológi- na obra Desmundo, Ana Miranda forjou suas
co da personagem e interage com uma pers- principais noções teóricas sobre o assunto no
pectiva um pouco mais desafiadora no novo embate crítico com a obra de grandes ensaís-
ambiente geográfico a que está diretamente tas, como Simone Schmidt, Mary Del Priore,
56 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Simone de Beauvoir, cada qual ao seu modo. DEL PRIORE, Mary. Ao Sul do Corpo: condição fe-
Observadora cultural privilegiada das novas minina, maternidades e mentalidades no Brasil
configurações no Brasil, especificamente du- Colônia. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília:
rante o contexto do fim do século XX, Miran- EdUnB, 1993.
da acompanhou de perto as mudanças his-
tóricas de seu tempo, o que talvez explique, ESTEVES, Antonio Roberto. O romance histórico
ao menos em parte, o sucesso atingido com brasileiro no final do século XX: quatro leitu-
a obra Desmundo, no seu lançamento em ras. Porto Alegre: Letras de Hoje, v. 42, n. 4, p.
1996. Sem exagerar, podemos postular que a 114-136, dezembro 2007.
autora inaugurou com seu romance, através
da protagonista Oribela, uma valiosa metáfo- FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. Rio de
ra de todas aquelas mulheres oprimidas no Janeiro: Record, 1998.
Brasil. Via de regra, a âncora dessa conjun-
tura é a hipótese recorrente de muitas inves-
tigações a serem descobertas e serem pos- FRANZ, Priscila Reis. A viagem de Oribela, em
tas para o público pesquisador. Em termos Desmundo. Porto Alegre: Nau Literária, Vol.
práticos, seu romance alimenta uma lacuna 04 N. 01 – jan/jun 2008.
que antes já tinha sido problematizada por
Lima Barreto, no seu clássico, Clara dos An- FRESNOT, Alain. Desmundo. Coumbia TriStar
jos, como abordamos no início do artigo. No Home Entertainment, 2003. 35280TNW.
que diz respeito a essa frutífera possibilida-
de de comparação literária ao investigador GOMES, Cláudia Espíndola. Oribela: o uno que se
mais curioso, em que direção a balança se desdobra. Florianópolis: Universidade Fede-
inclinará? 13Oribela continuará sendo a órfã ral de Santa Catarina, 2000 (Dissertação de
domesticada pelo marido Francisco ou a pro- mestrado).
tagonista Clara será novamente iludida pelo
malandro Cassi Jones? O problema suscitado HOLLANDA, Sergio Buarque de . A Época Colo-
permanece, porém, sem respostas coerentes. nial. Do descobrimento à expansão territorial.
Em suma, são direções de leitura que podem Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
angariar, como já dito, outros ensaios e arti-
gos científicos. JABOUR, Luciana Ragour. (RE) Contando a his-
tória: ficção e história no Desmundo, de Ana
REFERÊNCIAS Miranda. CES/JF. Juiz de Fora. 2006. (Disser-
tação de mestrado).
BARRETO, Lima. Clara dos Anjos. Rio de Janeiro:
Brasiliense, 1969. MIRANDA, Wander de Melo. Ana Miranda abre
caminhos em selva de signos. O Estado de São
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradu- Paulo. Disponível em: <http://www.anami-
ção de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova randaliteratura.hpgvip.ig.com.br/> Acesso
Fronteira, 1980. em: 19 abr. 2008.

DEL PRIORE, Mary. (Org) História das mulheres MIRANDA, Ana. Desmundo. São Paulo: Compa-
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. nhia das Letras, 1996.

13 Tive a oportunidade de explorar isso no artigo publicado: OLIVEIRA,


Cristiano Mello. Estudos de gênero - A opressão do feminino, na obra Clara MORAES, Eunice. Refigurações de nação no ro-
dos Anjos, de Lima Barreto. Revista Scripta. Curitiba: Universidade Campus
de Andrade, 2011. mance histórico e a paródia moderna, de Ana
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 57

Miranda. Curitiba: UFPR, 2009, (Tese de Dou-


torado).

OLIVEIRA, Cristiano Mello. Estudos de gênero - A


opressão do feminino, na obra Clara dos Anjos,
de Lima Barreto. Revista Scripta. Curitiba:
Universidade Campus de Andrade, 2011.

SCHMIDT, Simone Pereira. Como e por que somos


feministas. Florianópolis: Revistas dos Estu-
dos Feministas. Nr 12. 2004.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 59

A REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO NA OBRA D. NARCISA DE


VILLAR, DE ANA LUÍSA DE AZEVEDO CASTRO

Elenara Walter Quinhones1

RESUMO: Este artigo visa analisar o romance indianista D. Narcisa de Villar (1859), de Ana Luísa
de Azevedo Castro, tendo em vista que ele foi um dos primeiros romances brasileiros de autoria
feminina. A literatura produzida durante a segunda metade do século XIX, durante o período român-
tico, apresenta caráter fundacional, auxiliando na construção de um ideário nacional homogêneo e
unificado. Emerge assim a figura do índio como herói mítico nacional, por representar o elemento
nativo em sua essência. Este índio é representado pela lógica do branco europeizado e pelo conceito
do bom selvagem, de Jean Jacques Rousseau. Dessa forma, surge a necessidade de ser questionada a
exclusão da obra de autoria feminina num período de construção da identidade nacional e de repre-
sentação do índio. A obra de Castro não apenas servirá de mote para análise destas questões através
das quatro personagens: Simoa, Mãe Micaela, Efigênia e Leonardo, bem como tornará possível uma
reflexão crítica da historiografia literária nacional.
Palavras-chave: D. Narcisa de Villar. Autoria feminina. Romantismo. Nacionalismo. Indianismo.

ABSTRACT: This article propose to analyze the indianist novel Narcisa D. Villar (1859), by Ana Luiza
Azevedo Castro, considering that it was one of the first Brazilian novels by female authorship. The
literature produced in the second half of the 19th century, during the Romantic period, presents
foundational character it assists in the construction of a homogeneous and unified national ideolo-
gy. Therefore, it emerges the figure of the Indian as a mythic national hero for represent the native
element in its essence. This Indian is represented by the logic of europeanized white and by the Jean
Jacques Rousseau’s concepts about the noble savage. Thus, is necessary to question the exclusion of
the female authors’ work over a period of construction national identity and the representation of
the Indian. The Castro’s work will not only serve as a motto for analyzing these issues through four
characters: Simoa, Mãe Micaela, Efigênia and Leonardo as well as make possible a critical reflection
of the national literary historiography.
Keywords: D. Narcisa de Villar. Female Authorship. Romanticism. Nationalism. Indianism.

INTRODUÇÃO
Tendo em vista que o Brasil havia declarado sua independência de Portugal necessitava-se
encontrar elementos que dessem ao Império uma configuração de unidade. A literatura ser-
viu para consolidar a ideia de nação, então, a primeira fase romântica, o indianismo, é forte-
mente marcada pelo nacionalismo. A figura do índio surge como herói mítico nacional, por
representar o elemento nativo em sua essência e cria-se o mito da miscigenação das raças.
Tendo em vista que a literatura fundacional tinha caráter pedagógico de implantar o mito
da unidade territorial e da homogeneização seria natural que tudo que se contrapunha a esse
ideal fosse excluído e silenciado. Assim, a literatura de autoria feminina foi relegada as mar-
gens da literatura nacional. As mulheres eram irrelevantes culturalmente, suas produções

1 Graduada em Letras – Licenciatura em Português e Literaturas de Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mestranda em
Letras, Estudos Literários, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras pela mesma instituição. Email: elenaraquinhones@yahoo.com.br
60 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

não eram nem mesmo citadas dentro da uma tentativa de recuperação da cultura
historiografia literária nacional, e ainda não medieval. O Brasil sofreu forte influência do
exceto por alguns projetos atuais de resgate romantismo francês. As transformações po-
dessa autoria. líticas que resultaram em transformações
Neste contexto se insere a obra D.Narcisa sociais na França possibilitaram a ascen-
de Villar, a obra de autoria feminina apresen- são de uma nova classe social, a burguesia.
ta uma voz narrativa marcadamente femini- Conforme Nelson Werneck Sondré (1964), a
na que procura refletir a sua época sob a óti- burguesia e o romantismo são sinônimos, a
ca do oprimido. Ela aborda a temática india- segunda é a expressão literária da plena do-
nista com ênfase nas personagens Leonardo minação da primeira.
e Efigênia. Ao longo da narrativa percebe-se Baseando-se na dialética moderna de
um teor crítico demarcado pela postura des- igualdade e de liberdade fomentados pelas
sas personagens frente sua situação como Revoluções Francesa e Norte-Americana
escravos e subalternos ao colonizador. Con- (SCHMIDT, 2011), as nações ocidentais for-
trariando o mito de docilidade criado espe- maram-se sob a idealização de uma iden-
cialmente por José de Alencar na obra sím- tidade nacional homogeneizada e unifica-
bolo do indianismo O Guarani (1857). dora. Benedict Anderson (2008) menciona
Assim, este artigo visa analisar o romance que para a consolidação desses conceitos
indianista de Ana Luísa de Azevedo Castro, de homogeneização e unificação os roman-
tendo em vista que ele foi um dos primeiros ces fundacionais destacaram-se ao criar um
romances brasileiros de autoria feminina. passado comum. Conforme Rita Terezinha
Para isso seguir-se-á os seguintes passos: Schmidt (2011), o caráter fundacional da
primeiro se abordará o romantismo e como literatura romântica canônica é composto
esse contribuiu para o fortalecimento da por um corpus representativo caracterizado
concepção de estado-nação. Posteriormente pelo imbricamento de processos ideológi-
serão apresentadas algumas características cos, simbólicos e subjetivos que sustentam
do indianismo e a idealização do índio. Final- a ideia de pertencimento a uma identidade
mente, será feito a análise da narrativa res- nacional única.
saltando a representação do índio na obra. Paradoxalmente, enquanto as nações pro-
Evidenciando a escolha da voz narrativa e a curavam solidificar sua identidade singular,
forma estrutural escolhida para a construção os conceitos nacionalistas reverberavam
da diegese. Serão analisadas quatro persona- igualmente em toda a Europa e nas Américas,
gens indígenas: Simoa, Mãe Micaela, Efigê- repercutindo numa literatura do tipo emo-
nia e Leonardo, e os papéis sociais que elas cional e política, mesmo quando se pretende
representam na trama. Encerrando com as apolítica (CARPEAUX, 1987). “As figuras do
considerações finais que apresentará a sín- pensador, do crítico e do escritor definiam o
tese do tema proposto. lugar do sujeito que fala em nome da cultu-
ra, da cidadania e da hegemonia a partir de
A EXCLUSÃO DA AUTORIA FEMINI- uma lógica conjuntiva e horizontal, de cunho
NA NO ROMANTISMO BRASILEIRO universalista” (SCHMIDT, 2000, p. 1), obje-
A escola literária romantismo floresceu na tivando que todos no Império possuíssem a
Europa, durante o século XIX, a fim de contra- sensação de unidade. Mas, para manter esta
por-se ao classicismo. Seu nome provém do pretensa unidade a literatura nacional, vin-
francês e refere-se a certos poemas medie- culada ao processo político de consolidação
vais narrativos. Segundo Afrânio Coutinho e do estado-nação homogeneizado, desconsi-
Eduardo Coutinho (2002), há no movimento derou a participação das minorias,
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 61

[a] construção das literaturas nacionais, constantemente obrigadas a defender sua


acoplada ao processo político de consoli- participação)” (PRATT, 1994, p. 133). A obra
dação dos modernos estados nacionais, es- de Castro apresenta tanto o índio, quanto a
teve subordinada ao imperativo ideológico configuração espacial sob a ótica feminina,
que considerava a participação da mulher o que resulta em uma diferenciação das re-
na instância pública da produção cultural presentações canonizadas e masculinistas.
como irrelevante, para não dizer indeseja- Dessa forma há ampliação e redefinição das
da (SCHMIDT, 2011, p. 181). construções historicamente marcadas sobre
os romances fundacionais da literatura bra-
A autoria feminina, do século XIX e início sileira.
do século XX, manteve-se em um processo A história literária pode ser contada por
de invisibilidade. Estudos recentes sobre na- vários meios, conforme aponta Pratt (1994),
ção e nacionalismo demonstram que há uma ao ouvirmos a voz feminina criando um diá-
negação da diferença seja de raça, ou de gê- logo capaz de cruzar as linhas de gênero e po-
nero na fundação do estado-nação moderno der pode-se compreender criticamente a li-
(SCHMIDT, 2011). Para Anselmo Peres Alós teratura. Evitando empobrecimento e distor-
(2004) quando se nega o estatuto de auto- ções quando se reduz a uma história literária
ria às mulheres do século XIX, as exclui e as contada exclusivamente por homens. Zahidé
silencia duas vezes, quanto à categoria iden- Muzart em sua obra Escritoras Brasileiras do
titária brasileiro, exclui-se primeiro pelo gê- Século XIX (1999), afirma que em D. Narcisa
nero e depois pela raça. À mulher se nega o de Villar torna-se visível a voz feminina da
espaço como produtora de capital simbólico narradora. Entre os diversos temas tratados
e ao índio é impossibilitada outra espécie de na obra sobressaem à falta de liberdade da
representação que não apenas a do projeto mulher, o casamento como negócio, à escra-
indianista representado majoritariamente vidão dos índios pelo colono, tudo isso alia-
por José de Alencar. “A população feminina do ao machismo e racismo. Segundo a autora
das nações não era imaginada e sequer con- é um romance sobre oprimidos. Cabe agora
vidada a se imaginar como parte da irman- rever a obra para averiguar como todas es-
dade horizontal” (PRATT, 1994, p. 131). A tas temáticas são abordadas. Porém, antes
crítica feminista ainda afirma que o valor de ser feita a análise do romance, D.Narcisa
da mulher está associado à sua capacidade de Villar, será necessário contextualizá-la na
reprodutora. “Como mães da nação elas são primeira escola do romantismo brasileiro, o
precariamente outras para a nação” (Op. Cit., indianismo.
p. 131).
Resgatando algumas obras de autoria fe- INDIANISMO E A IDEALIZAÇÃO DO
minina percebe-se que as representações ÍNDIO
simbólicas-culturais diferem da voz patriar- Em 1822 o Império do Brasil se instituiu
cal hegemônica, como no caso da obra india- como entidade política independente, se
nista D. Narcisa de Villar (1859), de Ana Luísa libertado de Portugal. Necessitando con-
de Azevedo Castro. A obra é um dos primei- solidar uma identidade nacional o Estado
ros romances de autoria feminina publicado cria mitos e heróis para saudar seu passa-
no Brasil, juntamente com Úrsula (1859), do glorioso baseando-se na ideia de saudo-
de Maria Firmina dos Reis. “No século XIX, sismo histórico (SODRÉ, 1964). “Construir
apesar das pressões em torno da domestici- a nação significava constituir uma literatu-
dade, as mulheres continuaram colaboran- ra própria, começando pela demarcação de
do para a cultura literária (embora fossem sua história, conforme princípios de seleção
62 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

e continuidade que pudessem sustentar um indígena e negra, também auxilia na sua ca-
acesso um caráter eminentemente nacional” racterização como elemento nativo. Segundo
(SCHMIDT, 2000, p. 85). Portanto, a definição Nelson Werneck Sondré (1987), o indianis-
dos traços que pautaram a construção cultu- mo era a saída natural, valorizando o ele-
ral-literária da identidade nacional foi uma mento humano por sua resistência ao colono.
tarefa dos críticos românticos, de acordo Embora, a principal razão da valorização do
com Schmidt (2000). índio era que a camada culta convocada pela
Diferente da Europa, o Brasil não possuía classe dominante se recusava a valorizar o
um passado medieval, era necessário encon- negro, porque este representava o trabalho
trar um elemento que evidenciasse a indivi- e a camada inferior da população. Portanto,
dualidade local, para isso elegeu-se o índio esse novo herói fornecia os elementos pro-
como símbolo da nacionalidade. Este índio pícios para a autenticidade de uma identida-
idealizado ganhou as características de uma de cultural brasileira. Para Antonio Candido
espécie de herói que substituiria o cavaleiro (2009),
medieval, tendo em vista o conceito de bom
selvagem, de Jean Jacques Rousseau. Na bus- no século XIX, não foram apenas as famílias
ca por uma literatura genuinamente brasilei- importantes com as suas divertidas
ra o índio configurou-se como representante «princesas», mas toda a Nação que
legítimo da nação, pois a curiosidade pelos passou a ver no autóctone uma espécie de
seus hábitos e costumes levou a D. Pedro II antepassado mítico, de herói epônimo, que
pedir um estudo etnográfico dos indígenas acabou servindo para outra mistificação
a Joaquim Manuel de Macedo (AMARAL, de alcance bem geral: atribuir ao sangue
2012). Esses dados coletados forneceram indígena (previamente valorizado) a mes-
respaldo para a consolidação do índio como tiçagem com o africano, que por várias ra-
símbolo folclórico e nativista. Percebe-se zões, sobretudo a de ser ele ainda escravo,
que desde a constituição do mito indígena era cuidadosamente negada ou disfarçada,
até sua propagação através da literatura está terminando por ser ignorada nos casos in-
imbricado o processo político da formação dividuais (pelo esquecimento total do ante-
do imaginário nacional de unidade. Quanto passado negro) (CANDIDO, 2009, p. 11).
à questão do indigenismo na América Latina,
Pratt (1994), aborda que Embora houvera estudos sobre os índios
com vistas a criar os mitos fundadores da
[o]s escritos desse período sobre os índios nação brasileira o herói é delineado pela
demonstram uma variedade de momentos ótica do branco europeizado. Neste con-
ideológicos. Por um lado, existe um esforço texto surgem diversas publicações criadas
sincero no sentido de conhecer a realidade com a finalidade de exaltar a nação e propa-
dos indígenas e incorporá-la no projeto na- gandear o que é “ser brasileiro”, como por
cional. Por outro lado, uma certa tendência exemplo, o manifesto romântico na revista
em tratar o índio como exótico, distancia, Niterói (SODRÉ, 1964). O índio como pro-
objetifica e desumaniza os povos indíge- tagonista heroico surge na década de 1850,
nas de forma decididamente nada fraternal com os poemas épicos Os Timbiras (inacaba-
(PRATT, 1994, p. 144). do), de Gonçalves Dias e A Confederação dos
Tamoios (1857), de Gonçalves de Magalhães,
O fato dos índios já residirem nas terras mas a obra símbolo do Indianismo foi O Gua-
americanas antes da invasão portuguesa rani (1857), de José de Alencar (AMARAL,
permite um escamoteamento da escravidão 2012).
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Na obra O Guarani, o protagonista Peri é pode ser confirmado com outro diferencial
representado civilizadamente, aproximan- do romance, a narradora transmitirá uma
do-o ao máximo ao homem branco sua edu- história contada oralmente pela velha índia
cação, inteligência, trajar e posteriormente “Mãe Micaela”. Embora ela seja citada apenas
até sua conversão ao cristianismo. Perce- no início e no final da trama, percebe-se a in-
be-se nas obras indianistas de Alencar uma tenção de propiciar que outro fale e seja ou-
esteriotipização da figura indígena e de seu vido, valorizando sua cultura e o modo como
encontro com o branco, como se esse encon- a transmite. Alós (2004) indica que
tro tivesse ocorrido de forma dócil e pacífi-
ca. Antônio Soares Amora (1977) menciona [o] silenciamento da participação das mu-
que “a cultura nacional poderia ter recebido lheres, negros e índios no processo de cons-
aporte muito maior das culturas indígenas, tituição identitária nacional é operacionali-
não fora sua quase destruição” (p. 89). zado a partir de dois movimentos distintos:
Candido (2009) esclarece que a litera- através da exclusão desses grupos como
tura inventou um tipo de história, sobre a produtores de representações culturais
mestiçagem e o contato de culturas. O que (deslegitimação da autoria negra, indígena
se percebe, segundo o autor, é uma tentativa e/ou feminina), e também pela construção
de conciliar os padrões europeus à realida- de imagens estereotipadas desses sujeitos
de local, de forma sincrética culturalmente, sociais no âmbito do capital simbólico pro-
e mestiça racialmente. A “tendência genea- duzido (a mulher passional, o índio traves-
lógica” (CANDIDO, 2009, p. 11) baseia-se em tido de cavalheiro romântico, o negro pre-
escolher no passado de uma região os sub- guiçoso e indolente) (ALÓS, 2004, p. 32).
sídios adequados a uma visão nativista, mas
procurando aproximar o mais possível dos Segundo Beth Brait (1985), até o século
ideais e normas europeias. Portanto, a ide- XIX não havia um estudo organizado a res-
alização do índio na corrente indianista do peito da personagem, as ideias herdadas de
romantismo é um constructo político-lite- Aristóteles e Horácio entram em declínio.
rário para criar uma ideia de nacionalidade Para a autora “os seres fictícios não mais
unificada a um símbolo comum. A partir des- são vistos como imitação do mundo exterior,
se contexto pode-se analisar a aproximação mas como projeção da maneira de ser do
da obra D. Narcisa de Villar com essa escola escritor” (BRAIT, 1985, p. 38). Quando Ana
literária. Luísa de Azevedo Castro projeta no texto fic-
cional uma narradora feminina que ouve o
A REPRESENTAÇÃO DO ÍNDIO EM outro (indígena) e reconhece nele seu valor
D. NARCISA DE VILLAR cultural ela legitima a Identidade desse en-
A obra D. Narcisa de Villar, transcorre em quanto sujeito. “A escritora duplicada em in-
“Ponta Grossa, na Villa de S. Francisco Xavier, dígena, resolve desmascarar os desmandos
hoje cidade da Graça” (CASTRO, 1859, p. 11). do universo masculino de maneira clara, di-
A trama apresenta quatro personagens in- reta, mas não menos idealizada” (ALENCAR,
dígenas: Simoa, Mãe Micaela, Efigênia e Le- 2008, p. 67). Mas além de ouvi-lo, ela decide
onardo. Inicialmente, o pseudônimo utiliza- transmitir e transcrever este discurso, con-
do pela autora é Indígena do Ipiranga o que siderando que “[é] pelo e no discurso, como
pode apontar para um desejo de dar voz a articulação entre o nível linguístico e extra-
sujeitos silenciados pelo processo de coloni- linguístico que se opera a construção/des-
zação, muito mais que apenas a reprodução truição de Identidades – textuais, históricas,
de uma ideia literária em voga na época. Isso políticas” (SCHMIDT, 1998, p. 184).
64 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

A personagem Simoa é irmã de Mãe Mi- A obra apresenta o que Tzvetan Todorov
caela, uma personagem secundária que apa- (2006) define de narrativa de encaixe, ou
rece apenas no início da história sentada ao seja, uma narrativa encaixada dentro de ou-
redor do fogo junto a Taim e a Mãe Micaela. A tra. Além da história principal se inscrever
roda de mulheres em volta da fogueira a con- dentro da história narrada por Mãe Micaela,
tar histórias auxilia no imagético das tradi- há a recorrência de outras histórias como a
ções populares repassadas oralmente carac- origem do nome “Ilha do Mel”, ou a lenda da
terizando o elemento folclórico indianista. ave “Menino queimado”. Segundo Todorov
(2006), o narrador ouvinte de relatos cami-
A história não poderia ser melhor contada. nha mais ao lado dos leitores que dos per-
Um narrador, seguindo os passos de Ben- sonagens instigando o leitor e promovendo a
jamim, adapta uma história ouvida, atuali- estrutura subordinativa de autoencaixe.
zando-a, como no gesto de leitura. Um cír- A história narrada por Taim trata de uma
culo em volta de uma fogueira, à noite, em trama amorosa vivida por uma jovem órfã
uma ilha (do Mel) no arquipélago da Barra portuguesa, D. Narcisa de Villar e Leonar-
S. Francisco Xavier serve de ambiente de do, filho da índia Efigênia. Ao ficar órfã em
rememoração e inscrição da história pas- Portugal a jovem D. Narcisa é mandada para
sada limpo (ALENCAR, 2008, p. 67). o Brasil a fim de morar perto dos seus três
irmãos. Estes a colocam em uma pequena
Taim pede que Mãe Micaela conte-lhe a casa bastante afastada sob os cuidados de
história sobre a Ilha do Mel, a índia nega-se, Efigênia. A órfã cresce sendo amada e prote-
mas acaba cedendo sob a ameaça de não ou- gida pela índia tal como uma filha. Ela e Leo-
vir a leitura de livros e a lição religiosa que nardo estreitam laços de profunda amizade.
Taim ensinava-lhe. Observa-se que há uma D. Narcisa o ensina a ler, escrever, vestir-se
negociação de valores culturais, no sentido e comportar-se como um cavaleiro, também
de que “a lição religiosa” de Taim, que é uma o cristianiza. Leonardo declara seu amor
mulher branca, é trocada pela “história mí- pela moça e ela afirma correspondê-lo, am-
tica da Ilha do Mel”, de Mãe Micaela. Não há bos vivem dias agradáveis. Depois de algum
a imposição da cultura colonial no meio fe- tempo, D. Narcisa recebe a visita do irmão,
minino, elas dividem o mesmo espaço físico D. Martim de Villar, que a informa ter dado
e cultural, compartilhando igualitariamente sua mão em casamento para o Coronel Pedro
experiências e valores. A partir de então, os Paulo. Ela reage negando-se a casar, fato que
leitores tem história recontada pela voz nar- surpreende ao irmão. Finalmente a jovem
rativa de Taim. A narradora declaradamente cede por não possuir meios de resistência
feminina representa contra os desmandos do irmão. No dia do
casamento Leonardo foge com a amada para
“[a] emergência do “outro” da cultura, ou Ilha do Mel.
seja, as mulheres narradoras silenciadas Os três irmãos da protagonista junta-
pelas práticas narrativas dominantes da mente com seu noivo vão atrás deles e os
cultura patriarcal, sinaliza um novo episte- encontram. Leonardo luta contra os quatro
me narrativo em que novos saberes, para homens matando o noivo de D. Narcisa, não
além de limites sagrados e seculares im- resistindo aos inúmeros golpes ele morre.
postos pela tradição, atualizam um novo D. Luiz de Villar lança-se sobre Leonardo e
sujeito engajado na reconceptualização de continua o agredindo mesmo após a morte
si e do mundo” (SCHMIDT, 1998, p. 188). do rapaz. Nesse momento Efigênia chega e
conta a D. Luiz que Leonardo era seu filho.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 65

Narcisa é assassinada pelos irmãos que entre um índio e uma branca não tinha legi-
abandonam a ilha. timidade dentro do processo romântico de
Após algum tempo, D. Martim morre aco- constituição nacional por que não gerava
metido por uma doença, depois de longo uma descendência ligada ao colonizador”
sofrimento. D. José entra em estado de pro- (ALÓS, 2004, p. 34). No final da narrativa
funda melancolia e vai para um monastério isso se torna ainda mais evidente com o ca-
ao tornar-se monge falece e D. Luiz fica louco samento da índia Efigênia e D. João I, eles
morrendo em uma intensa luta contra ani- podem dar origem à nação, pois a linhagem
mais selvagens. Efigênia durante muito tem- viria do homem.
po guarda a gruta onde morreu seu filho, até Mesmo D.Narcisa sendo de ascendência
que casa-se com o capitão de uma nau que portuguesa, ou seja, branca, ela é apenas um
desembarcou na Ilha, o fidalgo é D. João I. objeto de troca para os irmãos, consoante ao
Ao longo do romance percebe-se que excerto a seguir: “Vou casal-a com o Coronel
“Castro desconstrói o mito do idílio india- Pedro Paulo; estou certo (acrescentou com
nista dando um desfecho trágico ao amor de malícia) que também a senhora approva-
Leonardo e D. Narcisa” (ALÓS, 2004, p. 34), rá esta minha resolução” (CASTRO, 1859, p.
com isso encerra-se a possibilidade da mis- 57). A obra reflete as condições do seu tem-
cigenação entre o índio e o branco que resul- po, com a expansão da colonização no país
taria num mestiço genuinamente brasileiro. ocorriam mudanças de todas as ordens: so-
Embora Leonardo possuísse as diversas qua- ciais, políticas e econômicas. O casamento
lidades idealizadas do bom selvagem como funcionava como uma transação comercial,
docilidade, meiguice, nobreza, evidenciados independente da vontade da mulher, confor-
nos seguintes excertos: me, também, outro fragmento,

Sua doçura, humildade e obediência o tor- Dom Martim de Villar muito desejava es-
navam tão digno aos olhos de sua ama, que treitar as relações que tinha com uma rica e
cada dia ela se ocupava com a tarefa de o nobre casa de Lisboa, cujo actual represen-
educar. (...) Leonardo, que respondia a to- tante tinha sido seu companheiro de estu-
dos os seus pensamentos, que expremia do. Casar sua irmã com seu antigo condis-
todos seus sentimentos com uma sensibi- cípulo era para elle o fim dsejado de seus
lidade tão meiga! (...) E quando comparava belos planos. (...) Assim a rica herança que
todos esses grandes senhores, que ella via a joven perceberia, não seria jamais desen-
diante de si enfatuados de sua nobreza e caminhada da família (Op. cit., p. 28).
fortuna, aos seus amigos que só possuíam
a nobreza que dá a virtude, o filho de Ephy- A escolha do casamento para a irmã esta-
genia merecia ter nascido príncipe. (...) va vinculada ao crescimento econômico da
Bom e generoso Leonardo (...) disse Leo- família. Narcisa era subalterna aos laços fa-
nardo com sublime e justa altivez (CASTRO, miliares ela via na consolidação do amor o
1859, p. 15; 23; 19-20; 91; 97). único meio capaz de encontrar sua liberdade
individual. Mas a realização amorosa desen-
Ele seria sempre inferior ao branco, o fru- cadearia a decadência social dos irmãos da
to do amor de ambos romperia com o ideá- protagonista, pois Leonardo era inferior so-
rio colonial, visto que a genealogia é sempre cialmente que a família Villar.
patrilinear (ALÓS, 2004) a mulher é apenas Leonardo possui consciência de sua con-
a incubadora que servirá para abrigar a li- dição inferior ao colonizador, de acordo com
nhagem do homem. “A consumação do amor o seguinte trecho: “Ele não andava vestido
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como seus companheiros de escravidão; alimentava-se em seu ventre e conhecendo


suas roupas eram elegantes e seus modos o desprezo e a execração a esse pobre in-
discrectos” (CASTRO, 1859, p. 15). Mesmo nocente seria votado desde seu nascimento
que suas vestimentas o diferenciassem a por toda a Tribu, correu após teus passos
expressão “companheiros de escravidão” o (Op. cit. p.108)
coloca na mesma instância social dos outros
índios, demonstrado na seguinte passagem: Nota-se que o branco não desejava ter a
“[...] o que é a vida de um ente da minha con- índia por esposa para reproduzir sua genea-
dição na estima de um grande senhor? Tor- logia, mas o índio também não queria misci-
nou o moço com azedume” (Op. cit., p. 39). genar-se com o branco. Contrariando a idea-
Apesar da representação do índio na perso- lização da miscigenação criada por Alencar.
nagem Leonardo não apresentar um grande Em relação às quatro personagens indí-
diferencial das representações indianistas, a genas da trama conclui-se que de formas
ruptura faz-se presente quando a narração distintas todas possuem traços represen-
evidência a consciência da sua função social tativos da estética indianista, além disso a
na hierarquia colonial. obra o propicia uma releitura do passado
Quanto à personagem Efigênia, ela rom- histórico diferentemente do cânone cristali-
pe com a imagem de docilidade e submissão zado. A narradora valoriza a cultura do ou-
tanto da mulher como do bom selvagem, ao tro e a mistura com a sua, mas sem excluir
ver que D. Martim perturbava D.Narcisa, “[a] lugar enunciativo desse outro, conforme
essa vista a filha dos bosques recuperou toda apontado por Walter Benjamim (1994), “[a]
sua energia, e tornou ao grande fidalgo: - Mi- experiência que passa de pessoa a pessoa é
nha nobre ama, senhor, não está habituada à a fonte que recorreram todos os narradores.
sua visita; ella nunca se separa de mim. Olhe, É, entre as narrativas escritas, as melhores
treme de medo e vai ficar doente! Perdão, são as que menos se distinguem das histó-
meu senhor; mas não sahirei de junto della rias contadas pelos inúmeros narradores
(Op. cit., p.52)”. Percebe-se ao longo do ro- anônimos” (p. 198).
mance que há uma simpatia pelo indígena
evidenciada pelos elogios a inteligência de CONSIDERAÇÕES FINAIS
Efigênia feitos pela protagonista. Reiterando A obra D. Narcisa de Villar trata-se de um ro-
a ideia de igualdade entre índios e brancos. mance indianista com caráter fundacional,
Além disso, a personagem Efigênia aponta demonstrando de forma idealizada a cons-
o elemento-chave da narrativa ela denuncia trução da identidade nacional. Mas, a obra
a violência da colonização portuguesa e da vai muito além de apenas apresentar carac-
miscigenação brasileira, como no fragmento terísticas estéticas do indianismo. A voz nar-
abaixo: rativa marcadamente feminina denuncia a
escravidão indígena, a forma indigna como
Sou filha do cacíque da Tribu Tuppys que estes sujeitos eram tratados, e o desmantela-
deu-te hospitalidade nas praias desertas de mento do mito da miscigenação entre portu-
Jurhés, onde havia a tua não naufragado, e gueses e índios.
onde por meu pai foste livre não só da mor- Acentua-se que o romantismo indianista
te, como de cair em poder dos Botocudos, era fortemente marcado pelo nacionalismo.
(...) mas em vez de reconhecer o benefício, Então, aos românticos coube à projeção e
seduziste sua filha única e a abandonas- organização do coletivo que “prescreve fun-
te depois de a perder. Sabendo ella então ções, atribui valores, naturaliza lugares e
que um fructo do seu desgraçado amor relações sociais, determinados pela política
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 67

homogeneizante de integração implementa- ALÓS, Anselmo Peres. O Indianismo revisitado:


da pelos estados nacionais” (SHIMIDT, 2011, A autoria feminina e a literatura brasileira do
p. 182 e 183). Dessa forma, percebe-se que século XIX. Organon, Porto Alegre: UFRGS, n.
a exclusão da obra analisada não se deu por 37, p. 27-49, 2004.
mero esquecimento, mas porque eviden-
ciava a violência implicada no processo de AMARAL, Sharyse. Entre Tupis e Botocudos. O
construção colonialista e a desfragmentação indianismo no segundo reinado. [On line]. Dis-
do mito indianista. ponível em <http://www.uesb.br/anpuhba/
As quatro personagens analisadas de- artigos/anpuh_ii/sharyse_amaral. pdf> Aces-
monstram o viés crítico da autora na concep- so em: 28 out 2013.
ção de sua obra. A personagem Mãe Micaela,
possibilita a emergência da voz do subalter- AMORA, Antônio Soares. O romantismo. 5 ed..
no e a valorização da cultura oral. A perso- São Paulo: Cultrix, 1977.
nagem secundária Simoa contribui para cria-
ção do espaço ficcional, as mulheres ao redor ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas:
da fogueira, contando histórias e compactu- reflexões sobre a origem e difusão do naciona-
ando valores, isso servirá para familiarizar lismo. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
o leitor com a cumplicidade entre as narra-
doras. Já as personagens Efigênia e Leonar- BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e polí-
do recebem destaque na narrativa. Efigênia tica: ensaios sobre literatura e história da cul-
será a voz de denúncia sobre as violências do tura. Tradução Sergio Paulo Rouanet, prefácio
processo de colonização e o herói Leonardo Jeanne Marie Gagnelin. 7 ed.. São Paulo: Bra-
será a consciência da hierarquia patriarcal e siliense, 1994.
a impossibilidade de lutar contra essa cons-
trução social. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
O romance contraria sistemas pré-esta- brasileira. 43 ed.. São Paulo: Cultrix, 2006.
belecidos de poder tanto históricos, quanto
culturais. Embora apresente inúmeras simi- BRAIT, Beth. A personagem. 3 ed.. São Paulo:
laridades com a obra O Guarani, de José de Ática, 1985.
Alencar, ele adentra mais profundamente as
questões culturais e sociais do índio. Ao que CANDIDO, Antonio. Literatura de dois gumes. In:
parece o silenciamento da obra guarda não Literatura Brasileira LBN3- Unicamp-2009.
somente o preconceito contra a autoria, mas [On line]. Disponível em: <http://stoa.usp.
também a preocupação com o discurso con- br/anacesar/files/1221/8606/LITERATU-
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 69

NOVAS TRAVESSIAS DO SERTÃO-BRASIL: SUASSUNA E O


ROMANCE D’A PEDRA DO REINO

Emanuella Leite Rodrigues de Moraes1


Marinyze Prates de Oliveira2

RESUMO: O presente trabalho investiga a representação do sertão nordestino no Romance d’A pedra
do reino e o príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), escrito pelo dramaturgo, poeta e romancista
paraibano Ariano Suassuna. Procura-se analisar certas imagens e temas que (re)constituem a cul-
tura do povo nordestino sob o prisma de novas incursões estéticas e travessias espaços-temporais:
um recorte do país reinventado a partir da intersecção entre o real e o fantasioso, do enlace entre
o passado e o futuro, dos casos rebordados no espaço nordestino que se entrelaçam às insígnias da
nação brasileira. Assim, debruça-se especialmente sobre a retomada crítica – porém positiva em
nível de enriquecimento cultural – das influências estrangeiras na cultura do território nordestino,
considerado, neste artigo, como uma metonímia do Brasil. O sertão descrito e narrado na criação li-
terária, por vezes, emerge envolto de emblemas, memórias, confissões e questionamentos, traçando
uma espécie de cartografia da “alma” do Nordeste e do Brasil.
Palavras-chave: Literatura. Cultura. Povo. Nordeste. Brasil.

ABSTRACT: This article investigates the representation of the northeastern hinterland in Romance
d’A pedra do reino e o príncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971), written by playwright, poet and wri-
ter Ariano Suassuna, born in Paraiba. It aims to analyze certain images and themes that (re)constitu-
te the culture of people from Northeast of Brazil through the prism of new aesthetic incursions and
spatio-temporal crossings: a division of the country reinvented from the intersection between the
real and fanciful, of the link between past and future, of recreated cases in northeastern area that in-
tertwine with the insignia of the Brazilian nation. Thus, highlighting particularly on the recapture of
critique - positive in terms of cultural enrichment - of foreign influences on the northeastern culture,
considered in this work as a metonymy of Brazil. The hinterland described and narrated in literary
creation, sometimes emerges wrapped emblems, memories, confessions and questions, drawing a
sort of cartography of the “soul” of the Northeast and Brazil.
Keywords: Literature. Culture. People. Northeast. Brazil.

O sertão se torna irreal, o sertão é na alma (mítico).


Ariano Suassuna

O Romance d’A pedra do reino e o príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, escrito pelo dramatur-
go, poeta e romancista paraibano Ariano Suassuna e publicado em 1971, foi, notoriamente,
considerado uma das obras literárias brasileiras mais memoráveis do último século. Este
livro, como Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, transcende a vocação da literatura
por contar histórias e convida o leitor a se aventurar por territórios novos, desconhecidos,

1 Doutoranda do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

2 Professora adjunta do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC/UFBA) e professora permanente do Programa Multidis-
ciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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seja nas temáticas, seja nas imagens, seja nos enobrecer as influências do sertão nordesti-
inusitados estilos linguísticos. A obra de Su- no. Suassuna busca revelar o sertão através
assuna, sem linearidade, sem reclusão do ro- do lado improvisador, sonhador e camaleô-
mance ao gênero da literatura, sem o uso de nico que se manifesta nos comportamentos
uma linguagem lacrada de sentidos, aborda e nas criações de seu povo:
o mundo nordestino a partir dos mistérios.
Trata-se, sobretudo, de uma criação mágico- Fui muito acusado de falsificar o sertão.
-realista sobre o imaginário de Taperoá, Pa- Não é que eu falsifique o sertão. É que eu,
raíba, sertão nordestino – local que ambien- a partir da realidade do sertão, procuro ser
ta todas as histórias presentes no enredo do fiel ao meu sonho, que é o que me interessa
livro. O Nordeste de que trata o romance, na literatura. Existem sertanejos que são
não se pode perder de vista, é exatamente o mudos mas, se quiserem, apresento mais
sertão3. de 30 sertanejos que passaram por mui-
O uso recorrente do estilo mágico-realis- tas dificuldades e enfrentaram a vida pela
ta (ficcional) no Romance d’A pedra do reino, festa, pelo canto, pela rabeca e pela dança
que narra as memórias e vivências dos serta- (SUASSUNA apud CARVALHO, 2007).
nejos, é um caminho que foi pouco percorri-
do pela literatura que tematiza o sertão. Este O escritor não só aborda o sertão, mas
local foi, por vezes, “documentado” como tra- reelabora-o a partir de suas imagens disse-
dicional, visto que, através dele, os intelectu- minadas, pinta com cores vivas todas as suas
ais nacionalistas lançaram críticas à cultura marcas e os seus estigmas. O sertão suassu-
de importação e à influência dos padrões niano trata de um espaço fabulesco, de um
culturais externos. Porém, na obra de Ariano reino encantado, reinventado, sendo pou-
Suassuna, não há precisamente uma preo- co provável saber se ele já existiu, existe ou
cupação em documentar o Nordeste – ainda existirá, ou, ainda, se ele consegue mesmo
que ele se configure como um espaço de tra- traçar um desenho legítimo do sertão “real”.
dição. Através da ficção, o escritor anseia por Contudo, este tipo de questionamento não
abrir outros caminhos, além daquele ligado parece importante ao se observar que, pro-
à crítica da contaminação da cultura nacio- positada e explicitamente, o romancista de-
nal pela estrangeira, feita mais no sentido de seja instituir em sua obra um sertão forte,
resistente e esperançoso, contraposto à idéia
3 Deve-se elucidar por que a Taperoá do romancista é sertão nordestino, tão propalada de um sertão sofrido, mórbido
quer dizer, o que a torna e a aproxima dessa descrição territorial e substan-
cial que faz do sertão e de Taperoá um lugar específico. Um primeiro esclare- e desistente. Nada pode compor melhor essa
cimento pode ser encontrado em Idelette Santos, na sua obra Em demanda da
poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial, quando a autora imagem revigorada e guerreira dos sertane-
discorre brevemente sobre as demarcações do Nordeste, espaço movediço.
Baseando-se nas caracterizações e nas formações das regiões do país, encon- jos do que a literatura de Ariano Suassuna. “A
tradas na sociologia de Gilberto Freire, ela destaca um primeiro Nordeste, o
do açúcar, do solo de massapé, do húmus, onde cresce uma vegetação rica e arte, para ele, deve tornar suportável a lou-
densa; um segundo, “o outro Nordeste”, onde a terra é dura e seca – sem água
e sem vegetação, caracterizado por suas carências e por suas necessidades, cura da vida, como o sol queimando as lágri-
Nordeste este que se chama sertão, que se chama Taperoá. Outro ponto de
vista pode ser observado em Durval Muniz de Albuquerque Jr., em seu livro A mas, neutralizando, na medida do possível,
Invenção do Nordeste e outras artes, no qual o teórico reflete sobre a constru-
ção da idéia de sertão em Euclides da Cunha, a partir do romance Os Sertões, a fome, a degradação, o desespero, a insânia
que destaca a existência do espaço sertanejo a partir da dicotomia com o
litoral: o litoral é o lugar que demarca o processo colonizador e desnaciona- deste mundo” (ALBUQUERQUE JR., 2006, p.
lizador, onde se observa a presença de culturas vinculadas com a Europa, e o
sertão é o local onde a nacionalidade se esconde, desvinculada das influên- 170). Não há culpa na literatura suassunia-
cias estrangeiras. Neste último, visto muito mais como espaço emocional do
que como um recorte territorial definido, se conjugam elementos geográfi- na, é nela que o sertão surge mais belo, mais
cos, culturais e linguísticos específicos, além de acontecimentos históricos
de interiorização como o cangaço, o latifúndio, o messianismo, as secas, etc. glorioso.
O encontro desses elementos e acontecimentos, em grande medida, pode ser
verificado nas histórias que rondam a Taperoá do romance de Ariano Suassu- O Romance d’A pedra do reino e o prínci-
na, identificando-a com o sertão euclidiano, ainda que não se possa ignorar o
fato de que o espaço cultural sertanejo suassuniano sofre influências estran- pe do Sangue do Vai-e-Volta chama a atenção,
geiras, tem raízes culturais na Europa, Ásia e África, que não prejudicam sua
nacionalidade, pelo contrário, a enriquecem. dentre outros aspectos, pela sua capacidade
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 71

de reunir histórias não só do Nordeste bra- Taperoá que aparece ali não é só a Taperoá, é
sileiro, mas de outras partes do mundo, que Recife, é qualquer cidade do mundo” (SUAS-
contribuíram de diferentes formas para a SUNA, 2000, p. 35). O Romance d’A pedra do
configuração da cultura até hoje viva nesta reino traz questões e emblemas que não se li-
região. Ariano Suassuna revela uma extraor- mitam a pensar somente Taperoá. A obra, em
dinária habilidade de se apropriar e (re)con- uma perspectiva mais ampla, porém partin-
tar casos e histórias que já foram narrados do do sertão paraibano, tende a esboçar e a
por outros, imprimindo-lhes um estilo pe- destrinchar as imagens e os temas da nação
culiar, inclusive por lançar mão de algumas brasileira. Nela, a Taperoá paraibana fun-
palavras inusitadas que pertencem ao seu ciona como metonímia, como microcosmo
universo inventivo e poético. Todavia, seus do Brasil, onde se aspira rever o imaginário
heróis e enredos existem graças à tradição do espaço nordestino – para o qual as esfin-
da sabedoria popular, em especial, aquela ges que consomem a sociedade brasileira se
que se encontra presente nos folhetos de alastraram. Ressalta-se que o autor escreveu
cordel, tomados como fontes principais de seu romance baseando-se na sua vivência
inspiração para seu livro. As tramas e perso- em Taperoá, considerada sua cidade natal, já
nagens que são extraídas dos romances em que passou nela boa parte de sua infância. A
versos sertanejos, quando lançadas no uni- obra de Suassuna fala do lugar de um serta-
verso literário suassuniano, se enredam na nejo, de um brasileiro, sedento por revelar,
teia histórica dos índios, negros, mouros e mais do que por solucionar, os enigmas tor-
portugueses. tuosos da sua nação:
O romancista paraibano não escreve so-
bre um Nordeste enclausurado, mas a res- Ariano não decifra os mitos do sertão, mas
peito daquele que representa questões co- o constrói como tal. Ele mitifica a socieda-
muns a todo indivíduo a partir do imaginário de sertaneja e seus homens, quer transfor-
dos sertanejos. Na verdade, ele lança sobre mar a memória de sua família, de sua raça,
a temática dessa região os anseios e os mar- da sociedade em que dominaram em um
tírios que rondam a humanidade, em qual- monumento de pedra, cheio de inscrições
quer lugar do mundo – do Brasil e do sertão a serem decifradas no futuro. Quer fazer
– capturando sua riqueza cultural, haja vista de sua obra um monumento a uma domi-
que este espaço herdou modos de expressão nação, a uma ordem, a ordem da sociedade
de povos diversos. Sua literatura revitaliza a patriarcal sertaneja. Quer ser o profeta, o
imagem do Nordeste, tornando-o mais em- sacerdote, o astrólogo, o poeta, o sábio des-
blemático frente à incompletude das descri- te Nordeste, onde o sol transforma o real
ções comumente feitas dessa região. em miragem, baralhando as formas, impe-
dindo de se ver e ler as verdades divinas
O NORDESTE COMO UM MICROCOSMO que estão inscritas, cifradas nos quartzos e
DO BRASIL malacachetas, na paisagem cortante, feroz
O romance de Ariano Suassuna, ainda que e enegrecedora. Ele quer ser o cantador
esboce imagens temáticas do Nordeste, des- dessa sociedade arcaica, dos novelários e
crevendo e narrando histórias que se pas- mal-assombros. Sociedade do sangue e da
sam em Taperoá, não se configura ou se cate- morte. A obra de Ariano é toda perpassada
goriza enquanto um romance regionalista ou por essa imagística do sangue e da morte,
rural. Na verdade, “ele se passa numa cida- que se liga aos fatos trágicos de seu passa-
dezinha do interior, porém os problemas que do, mas que também é, para ele, uma for-
aparecem ali não são do romance rural, [...] a ma de representar a própria essência da
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sociedade sertaneja, da sanguidade, dos seu Nordeste sertanejo. Ele mostra que “seu
preconceitos de raça (ALBUQUERQUE JR., sertão é inferno, é purgatório, mas também é
2006, p. 170). paraíso de riachos, açudes e pomares. Terra
espinhenta, parda, pobre e pedregosa, mas
A onipresença e a onipotência do imaginá- também lugar de brisas, luares, pássaros”
rio sertanejo, vivenciado e refletido por Aria- (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 169). É o lugar
no Suassuna, deseja falar através de seu ro- do país onde as onças e os heróis se fitam sem
mance. O escritor não deixa escapar nem por matança, onde, apesar de todos os contrastes
um segundo, ao compor sua obra, o anseio de da existência de seu povo, soa o eco audaz da
fazer dela um memorial do sertão, capaz de voz da vida, da sobrevivência astuta.
levar todos (os brasileiros, especialmente) a
repensarem sobre a constituição do país, do O ideal nacional
seu povo, posicionado nos preconceitos de A reinvenção do sertão por Ariano Suassuna
raça, da “raça nordestina”. Suassuna mistifica no Romance d’A pedra do reino não partiu de
a sociedade sertaneja, não por menos, quer elementos apenas fictícios. Para compor a
torná-la imortal, deixá-la cravada na lem- obra, durante alguns anos, o escritor fez um
brança de todos. Em um só golpe, ele quer trabalho de coleta de casos, eventos e aconte-
enlaçar o passado e o futuro do sertão, que cimentos marcantes, especialmente daqueles
tende a se constituir enquanto o passado e que conduziram a política e a história nacio-
o futuro do próprio país. Quem não for ca- nais, que foram adquiridos pela vivência e
paz de pensar o sertão não poderá pensar o pela observação, e, claro, enfeitados pela sua
Brasil. “O Nordeste é ‘terra’, ‘campo’, seus ha- imaginação criativa. O romance vinha sendo
bitantes são telúricos e tradicionais, os mais escrito desde 1958, mas só ficou pronto para
brasileiros pela conduta do que qualquer ou- publicação em 1971. Antes de buscar visitar,
tro tipo regional” (ORTIZ, 1994, p. 102). no romance de Suassuna, alguns personagens
Ariano Suassuna, dentro do seu romance, e narrativas nas quais se inscrevem contextos
está em busca exatamente de abordar e ex- históricos nacionais, vale a pena memorar as
pressar o Nordeste a partir dos elementos epígrafes que abrem a obra. Estas mostram
tradicionais da vida de seu povo. De acordo uma recorrente opção do escritor – mantida
com Albuquerque Junior (2006, p. 168), o ao longo de sua obra – por retomar perso-
cenário nordestino suassuniano é permeado nalidades e personagens históricas, que são
pelo sertão das caatingas ou das miúdas cida- (re)trabalhadas no seu romance e que, na sua
des empoeiradas, onde a Igreja e as autorida- visão, são imprescindíveis na construção da
des, como o padre, o juiz, o delegado, o coro- trajetória político-nacional monárquica. As
nel, exercem um papel de grande influência epígrafes, extraídas do livro de Ariano Suas-
no cotidiano da população. Suassuna chama suna, prenunciam a atmosfera emblemática e
sempre a atenção para esse Nordeste, o ser- revolucionária do enredo, de um sertão infla-
tão, sob o qual reinou a “civilização do couro”, do por heróis e guerreiros, por luta e ressur-
que é a própria genealogia do país, de suas reição, onde todos do passado, de passados
famílias, de suas aventuras e desventuras, de distintos, se unirão, retornarão, em favor do
seus devaneios. Por esse motivo, o escritor Brasil e do Sertão:
do Romance d’A pedra do reino prefere não
enfatizar as belezas e as conquistas da “civi- “Guardai, Padre, esta Espada, porque um
lização do açúcar”, do engenho, pertencentes dia me hei de valer dela com os Mouros, me-
ao outro Nordeste – da terra rica e produti- tendo o Reino pela África adentro!” (DOM
va. Só resta espaço e sentido para falar do SEBASTIÃO I – ou DOM SEBASTIÃO, O
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DESEJADO – Rei de Portugal, do Brasil e do O que está sintetizado através das epígra-
Sertão, 1578). fes “ideais” de Ariano Suassuna é um anseio
evidente por um sertão e por um país que
“Quem não sabe que o digno Príncipe, o seja governado por reis, príncipes, impera-
Senhor Dom Pedro III, tem poder legitima- dores – uma ode ao passado onírico. A Re-
mente constituído por Deus para governar pública, na voz dessas personalidades histó-
o Brasil? Das ondas do mar Dom Sebastião ricas reconfiguradas por ele, é uma proposta
sairá com todo o seu exército. Tira a todos ilusória, espinhenta e antinacional.
no fio da Espada deste papel da República e No enredo da obra de Suassuna, os perso-
o sangue há de ir até a junta grossa.” (DOM nagens Clemente e Samuel são dois filósofos
ANTÔNIO CONSELHEIRO, profeta e regen- que representam pensamentos políticos con-
te do Império do Belo-Monte de Canudos, trapostos. Dentro da trama, eles são os princi-
Sertão da Bahia, 1897). pais apoquentadores das cisões políticas que
dividem o país, o próprio sertão. Clemente se
“Soldados de todo o exército do Império! Lem- posiciona em favor de um Brasil sacudido pela
brai-vos das fogueiras do Sertão do Bonito! revolução do povo. Samuel acredita na volta
Aqui me tendes: quem defende o Brasil não de um Brasil e de um sertão ibérico e fidalgo,
morre! Com esta Bandeira em frente do cam- governado por um rei. Ambos demonstram
po da honra destruiremos os nossos inimigos como “o romance é um mergulho profun-
e, no maior dos combates, gritaremos: Viva do e minucioso na formação do pensamento
a Independência do Brasil!” (DOM PEDRO I, nacional e um embate entre as correntes de
Imperador do Brasil e Rei de Portugal, 1822). pensamento que contribuíram para essa for-
mação” (ABREU apud CARVALHO, 2007). Em
“Passa o município de Princesa a constituir, uma passagem memorável do romance de
com seus limites atuais, um Território Livre, Ariano Suassuna, no folheto intitulado A Ses-
que terá a denominação de Território de são a Cavalo e o Gênio da Raça, os personagens
Princesa. Cidadãos de Princesa aguerrida! Quaderna, Clemente e Samuel estão realizan-
Celebremos, com força e paixão, a beleza do uma “sessão a cavalo” para discutir a ques-
desta Lida e a bravura sem-par do Sertão!” tão do “gênio da raça”. Samuel explica para
(DOM JOSÉ PEREIRA – ou DOM JOSÉ I, O IN- Quaderna que o gênio de uma raça é aquele
VENCÍVEL – Rei Guerrilheiro de Princesa, que reúne em si as características acentuadas
Sertão da Paraíba, 1930). do país. Quaderna, de imediato, sente-se toca-
do, pois é exatamente assim que se sente em
“Estêjão certos que a República se acaba bre- relação ao Brasil, como sua encarnação viva,
ve. É princípio de espinhos. Entrando a Mo- seu representante genuíno. Então, ele incita
narquia, serão formados novos Batalhões, os filósofos Clemente e Samuel a explicarem
pois por serem os Batalhões feitos de cana- melhor as questões que rondam o gênio da
lhas é que tem chegado a tal ponto. O Prinspe raça, ou seja, que rondam o tipo de gênio que
é o verdadeiro dono do Brasil. Quem for re- salvará a raça brasileira e sertaneja, como se
publicano mude-se para os Estados-Unidos.” observa neste trecho do livro:
(De uma carta encontrada no bornal de ba-
las de E.P.ALMEIDA, guerrilheiro do Impé- - Mas como é que a pessoa é escolhida para
rio de Canudos, Sertão da Bahia, 1897) . 4
“Gênio da Raça”? Qual é seu tipo de ativi-
dade? Rei? Soldado? Capitão? Ladrão? Pro-
4 As epígrafes contidas no Romance d’A pedra do reino são citadas neste
trabalho da mesma maneira em que aparecem na obra: com aspas e com a prietário de terra? Vaqueiro? Cangaceiro?
conjugação de letras maiúsculas e minúsculas – procedimento muito utiliza-
do por Ariano Suassuna. Chefe revolucionário?
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- Não, nada disso! – respondeu Samuel. – Se que ainda não sabe como salvar sua pátria,
bem que eu não esteja, com isso, subesti- mas que deseja fazê-lo. Quaderna, Clemente
mando os Reis! Você sabe que esse é meu e Samuel representam a instabilidade políti-
sonho para o Brasil: o de um cavaleiro que ca do país, suas indecisões e indefinições em
se pusesse à frente de hostes e hostes de relação ao destino do Brasil e do sertão. A
Soldados e desse, em nossa Pátria, um ba- tríade de personagens inflamados pelo dis-
nho de sangue purificador, reconduzindo o curso político acirrado, na verdade, reflete o
Brasil a seus caminhos, o caminho ibérico momento que o país vivenciava:
e fidalgo dos Conquistadores e sertanistas!
O livro foi escrito num momento muito
- Nada disso! – rosnou Clemente de lá. – ruim politicamente, onde eu não estava
Que venha o banho de sangue, mas dado de acordo com o pessoal da direita, que
pelo povo, pelos descendentes negros e Ta- estava prendendo, matando e torturando,
puias, unidos em torno de um verdadeiro nem estava de acordo com os radicais de
Chefe revolucionário! Você, Quaderna, está esquerda, os marxistas, que naquele tem-
em favor do Rei ou do Chefe revolucioná- po eram stalinistas, e não davam margem
rio? a uma aliança. É por isso que aparece o
stalinismo caricaturado em Clemente e a
- Eu, Clemente, não quero banho de sangue, extrema direita caricaturada em Samuel.
nem dado pelo Rei, nem pelo Chefe revo- Quaderna, além de ter a influencia dos dois,
lucionário, nem pelo presidente da Repú- tem uma parte de Pedro Beato e uma par-
blica! Já vi essas coisas, aqui pelo sertão, te minha. Ele é soma de quatro tendências
em 1912, 26, 30, etc., de modo que posso (SUASSUNA apud CARVALHO, 2007).
garantir a vocês que um banho de sangue
deve ser a coisa mais horrorosa do mundo! O gesto simbólico de Suassuna de con-
(SUASSUNA, 2006, p. 187-188). densar em Quaderna as quatro tendências
possibilita dizer que esse personagem-pro-
A partir dos enunciados acima, depare-se tagonista é a própria síntese do país, de seus
com um olhar sobre o país que se abre em contrastes, de suas inclinações avessas. Ele é
três leques, em três perspectivas: Samuel candidato à monarquia, à fidalguia (influên-
está certo de que o gênio da raça brasileira cia de Samuel); líder revolucionário do povo
deve estar a favor do Brasil governado por (influência de Clemente); aspirante ao apa-
um rei; Clemente acredita que só uma revo- ziguamento do reino (influência de Pedro
lução do povo, dos descendentes de negros Beato, espécie de homem celestial na trama
e de índios, poderá salvar o país; Quaderna literária); desejante da recaptura de um pas-
toma ambos como grandes sábios, mas re- sado heroico perdido, usurpado (influência
jeita o banho de sangue do rei, do povo ou da “ira enterrada” do escritor, conforme as
da república. Enquanto Samuel e Clemente palavras de Raquel de Queiroz).
são bem definidos em suas posturas políti-
cas e visionárias para o país e para o sertão, O Brasil-português
Quaderna não está certo acerca de suas con- O Nordeste do qual se ouve falar ou que se
vicções ideológicas e políticas sobre o gênio lê na obra de Ariano Suassuna é aquele que
ideal da raça brasileira, mas sabe exatamente profere uma reação ao moderno. Interessa
o que não quer – rejeita um banho de sangue ao escritor fazer do território nordestino um
para lavar o sertão. O protagonista da obra espaço de nostalgia, de tradição, porém, ele
de Suassuna encarna as angústias do herói assume esta proposta enquanto um trabalho
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ficcional e não documental. Suassuna não a paz no sertão, na vila de Taperoá, na Pedra
está preocupado em “retratar” a realida- do Reino. O cavaleiro é a metáfora viva, res-
de do sertão nordestino, como haviam feito suscitada, do Sangue do Vai-e-Volta que en-
romancistas e sociólogos a partir de 1930, grossa o título da obra de Suassuna:
quando as temáticas do Nordeste mais in-
cisivamente penetraram a literatura e as in- O sangue do vai e volta se refere ao mito
vestigações sociológicas: de D. Sebastião, que é o rei que morre e
ressuscita. Sinésio é, de certa forma, a
Seu Nordeste popular [...] se junta àquela volta de D. Sebastião de Portugal, até pela
produção sociológica e literária anterior, semelhança física de ser um donzel. Ele é
bem como à pintura regionalista e tradi- uma figura crística. É o príncipe – o Prins-
cionalista e à música de Luiz Gonzaga, na po, como dizem os cordelistas –, que mor-
invenção, reinvenção e atualização da série re e ressuscita, vai e volta, a toda hora está
de temas, conceitos, imagens, enunciados e voltando. Assim como a história, que vai e
estratégias que instituem o Nordeste como volta. Essa inexatidão cronológica é para
o espaço oposto ao moderno, ao burguês, ao reforçar que o mito não tem tempo, é atem-
urbano, ao industrial. Nordeste sem espaço poral, anacrônico, reúne nas mesmas cenas
público, sem dessacralização da natureza, coisas que existiram em épocas diferentes
sem separação radical entre homens e coi- (TAVARES apud CARVALHO, 2007).
sas. Nordeste saudoso, de um passado míti-
co, idílico, de pureza, ingenuidade, glórias, O mito do sebastianismo sugere que o
fausto (ALBUQUERQUE JR., 2006, p. 172). sangue do rei português vai-e-volta através
de seus enviados, seus cavaleiros, espécies
O romance de Suassuna é uma espécie de de “Prinspos” sertanejos. A imortalidade se-
épico que está em busca de ressuscitar reis, bastiana, na trama do romance associada ao
de instituir no sertão o passado heroico. Por retorno de Sinésio, tende a reforçar e a re-
tal, o enredo conta com o reaparecimento de compor a imagem de um Nordeste onde ain-
Dom Sebastião, cuja volta traria ao sertão e da existe nobreza e não só cangaceiros atro-
à nação brasileira a salvação desejada. Ele é zes e profetas broncos. Uma nobreza que,
como um rei sagrado, uma divindade prote- via de regra, descende de Portugal. Na ver-
tora e justiceira. O poder divino conferido a dade, a retomada do sebastianismo na obra
Dom Sebastião pelos sertanejos, no romance de Ariano Suassuna tem forte vínculo com o
de Ariano Suassuna, vem da crença no mito anseio de trazer do passado a descendência
do sebastianismo, de origem lusitana, que nobre dos sertanejos. Contudo, não se res-
apregoa o retorno de Dom Sebastião, o len- tringe somente a isso, uma vez que a tenta-
dário rei português desaparecido em Alcá- tiva ficcional de ressuscitar Dom Sebastião, o
cer-Quibir, na África, numa disputa contra os rei português, tem também a ver com a lem-
mouros, em 1578. O monarca, reencarnado brança histórica do sentimento monarquista
ao lado de seus cavaleiros, retornaria à terra que marcou os sertanejos em suas lutas. Não
para fazer justiça aos bons e punir os maus. se pode esquecer que “[...] três séculos de co-
No Romance d’A pedra do reino, a volta de lônia sob regime monárquico deixara marcas
Dom Sebastião é representada pelo retorno profundas na população” (CARVALHO, 1998,
de Sinésio, cavaleiro sertanejo que dizem ser p. 238), em especial na população rural, ser-
a reencarnação do rei português. Tal como taneja, que acreditava ser a monarquia um
Dom Sebastião, na trama Sinésio desapare- símbolo imprescindível para manter a uni-
ce misteriosamente, mas retorna para selar dade do país.
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O retorno de Dom Sebastião no romance passaram um trator por cima disso no Su-
de Suassuna, o mítico delírio monárquico em deste mas, um século depois, essa cultura
Taperoá, não é muito diferente do real delírio ressurgiu no Nordeste, que tinha o mesmo
monárquico que se deu na divisa de Pernam- mundo economicamente de cem anos atrás.
buco e Alagoas, com a Revolta dos Cabanos A religião se tornou uma espécie de sítio
(1832-1835). Os rebeldes, constituídos por arqueológico vivo da cultura. Ariano, que
camponeses, pequenos proprietários, índios, foi criado no sertão, é uma dessas pessoas
escravos e alguns poucos senhores de en- que fazem a ponte entre a cultura ibérica
genho, reclamavam a restituição do trono a e a nordestina. Ele levanta essa bandeira
Dom Pedro I, rei do Brasil e de Portugal, que (TAVARES apud CARVALHO, 2007).
consideravam ter sido ilegalmente destituí-
do do poder por forças jacobinas. Também Trazer da história as raízes ibéricas do
não é muito diferente de outro real delírio sertão nordestino e lançá-las na sua obra é
monárquico que se deu no interior da Bahia, fazer o caminho inverso daqueles que tanto
com a Revolta de Canudos (1896-1897), no resistem à ideia da contaminação da cultura
período da República. Os seguidores do mo- nacional pela portuguesa. No caso brasileiro,
vimento popular, liderados por Antonio Con- as manifestações culturais ainda associam
selheiro, estavam unidos pela crença em uma o país à Península Ibérica, a Portugal desig-
salvação milagrosa que pouparia os sertane- nadamente – que, como destaca Sérgio Bu-
jos dos flagelos do clima e da exclusão socio- arque de Holanda (1995, p. 40), representa
econômica. De acordo com Carvalho (1998, uma tradição duradoura, suficiente para ali-
p. 238), eles nutriam sentimentos monárqui- mentar, até os dias de hoje, um espírito co-
cos – embora sem ligações com políticos mo- mum, a despeito de tudo quanto nos separa.
narquistas como acusavam os republicanos Podemos dizer que de lá herdamos a forma
– e católicos, reagindo contra a deposição do recente de nossa cultura. O resto foi matéria
Imperador, um ato considerado deslealdade que se amoldou mal ou bem a essa forma.
política e irreligiosidade. Suassuna, num golpe de coragem, reutiliza e
Observa-se, frequentemente, que Ariano desloca o legado português, logo aquele que
Suassuna em seu romance constrói o ima- nos custou uma histórica imagem de fraque-
ginário nordestino através de mitos, como za provinciana: o legado do português des-
o do sebastianismo, que resgatam a cultura bravador, conquistador, inspirou o roman-
ibérica, impregnada na cultura brasileira, cista a narrar seus personagens sertanejos,
por assumir sua incontestável influência nos brasileiros, como desejava provê-los, postos
destinos culturais do país: no papel de nobres, bravos, fortes, espécies
de cavaleiros com forte tendência a se reve-
Quem descobriu e colonizou o Brasil foram larem imperadores, conquistadores ao invés
os portugueses e espanhóis que estavam de conquistados, caçadores de peripécias, de
saindo de 700 anos de dominação árabe. versos e de cantos em uma terra ardorosa.
Isso contaminou nossa linguagem, religião,
poesia, vestuário, culinária e costumes. A O Brasil negro-tapuia
música nordestina ainda tem ecos nas es- Além de assumir e retomar a influência da
calas tônicas árabes, no norte da África. Os cultura portuguesa na cultura brasileira, o
cordéis, por sua vez, eram impressos como Romance d’A pedra do reino constrói narra-
folhetos em Portugal e vendidos no Rio de tivas que caracterizam o sertão nordestino
Janeiro, após a mudança da Corte para a enquanto um lugar em que convivem emble-
cidade, 1808. O progresso e a civilização maticamente brancos – os descendentes de
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portugueses – negros e índios. O enredo da ciganos, as lavadeiras, os cantadores, os can-


obra se alimenta, criativamente, do caldeirão gaceiros, os fazedores de chapéu de palha, os
cultural de três povos, revelando persona- cabras-do-rifle, os vaqueiros, os cambiteiros
gens e narrativas que referenciam histórias (SUASSUNA, 2006, p. 374), que simbolizam o
e origens africanas, mitos e sabedorias indí- lado mestiço, o lado negro-tapuia, o lado do
genas, conquistas e proezas portuguesas. Ao povo desapossado de Taperoá.
mesmo tempo, esse enredo funciona como Ainda na perspectiva dos duelos entre o
um termômetro das cisões sócio-culturais lado branco e o lado negro-tapuia no sertão,
que aninhavam – na época do romance – e Ariano Suassuna, em sua obra, narra A Trá-
que ainda hoje aninham o país. O escritor in- gica Desaventura do Rei Zumbi dos Palma-
jetou em seus personagens e suas narrações res. Neste folheto, a guerra entre brancos e
a disputa e o duelo entre esses povos, na ver- negros ocorrida no Quilombo dos Palmares,
dade, obrigados a conviver. Através de tais ar- símbolo da resistência do africano à escrava-
tifícios, ele retoma o legado problemático da tura no período colonial, é revivida e revista
colonização e da miscigenação no país, sua pela imaginação do escritor, que faz questão
disposição hierárquica e caótica geradas pela de memorar a bravura e a coragem dos ne-
disputa de poder, de espaço, de expressão. gros em reagir à artilharia branca:
Rememorando os personagens de Cle-
mente e Samuel, aqueles filósofos que discu- Os Negros resistiam galhardamente às ar-
tem e disputam um perfil ideal para a iden- mas de fogo, por meio de flechas dispara-
tidade nacional, não se pode deixar passar o das nos baluartes, água fervendo e brasas,
fato de que Clemente é descrito fenotipica- lançadas de cima! Reconhecendo os bran-
mente como mestiço, resultante de um cru- cos que da Artilharia é que depende o êxito,
zamento entre negro e índio, enquanto Sa- foi mandado o Capitão-Mor Bernardo Viera
muel é referido como branco, descendente da de Mello que, com o canhoneio, começou
nobreza portuguesa. Não por acaso, também a abrir a Muralha, pra dar entrada para
no discurso, Clemente está ao lado do Brasil os sete mil soldados que trazia. Os Negros
negro-tapuia (influência do negro e do índio, atiravam flechas, pedras e azagaias. Um
respectivamente), posiciona-se na condição artilheiro caiu sobre a peça, ao acender o
de povo, aspirante de uma revolução. Samuel chio, com a cabeça esfacelada, e um solda-
está posto em favor dos brancos, de um Bra- do abriu os braços e tombou para a frente,
sil fidalgo, nobre, português, que anseia o re- atravessado por uma flecha. Foram fontes
torno da monarquia. Outro exemplo dentro de sangue a avermelhar a terra. Subiu ao
da obra é dos personagens Arésio e Sinésio, ar um clamor bárbaro. Cumpria aos negros
os irmãos sertanejos filhos de Dom Pedro defender aquela brecha na sua muralha! De
Sebastião, o Dom Sebastião. Na pele desses momento, foram colocados ali enormes pe-
irmãos, outrora amigos, adiante rivais, o ser- drouços. Mas a infantaria branca, provida
tão se separa, formando dois partidos em de mosquetes, varreu a entrada e permitiu
torno deles. Os partidários de Arésio, espécie que as peças de Artilharia se aproximassem
de indivíduo “violento, brutal, individualis- da falda da Serra. Novos estampidos de co-
ta, filho do mato” (SUASSUNA apud CARVA- lubrinas retumbaram, e dessa vez a incisão
LHO, 2007), são as pessoas mais ricas e mais permitiu a entrada da tropa de vanguarda.
abastadas da vila de Taperoá – a aristocracia Em meio do fumo, do desmoronar das pe-
rural e a burguesia urbana – representando, dranceiras, dos estampidos secos dos mos-
simbolicamente, o lado branco e poderoso quetes, dos roncos formidáveis dos trabu-
do sertão. Já os partidários de Sinésio são os cos, das coronhadas, das imprecações, da
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fúria, da arremetida, a pluma escarlate de É marcante na obra de Ariano Suassuna


Bernardo Vieira de Mello mergulhou no o intento por recontar partes da história do
burburinho tremendo. Zumbi era um Titã Brasil, em especial, por recontá-la não só a
negro, agitado no meio da hecatombe. Não partir dos brancos, os colonizadores, mas
seria ele quem fosse morrer para a con- também a partir dos negros e dos índios, com
fiança dos seus antes de morrer para a vida suas histórias silenciadas. O escritor deseja
(SUASSUNA, 2006, p. 203-204). recontar a história desses povos que, muito
antes de 1500, já tinham história. Dito de
Em diversos momentos, percebe-se como outra forma, ele está em busca de uma lite-
Ariano Suassuna retoma em seu romance os ratura não oficial que alcance a atormentada
conflitos, as disputas e as guerras ocasiona- história do país silenciado – o país dos povos
das pela diferença entre os povos (os bran- oprimidos, esses povos mal compreendidos
cos – portugueses – os índios e os negros). No e mal lidos desde os primeiros registros es-
centro desses conflitos, o romancista busca critos do país, como na célebre carta de Pero
combater a supremacia e a dominação dos Vaz de Caminha, criticada por Suassuna, em
brancos em relação aos índios e aos negros, Aula Magna:
que sofreram um processo histórico de sufo-
camento e ofuscamento de suas culturas, ata- Caminha conta que, no terceiro ou quarto
cadas estrategicamente como bárbaras, como dia, Cabral sentou-se numa cadeira de espal-
não civilizadas. Não se trata de negar a influ- dar alto, botou uma alcatifa nos pés, um colar
ência dos brancos, os portugueses, na cultura de ouro no pescoço, um verdadeiro sobera-
brasileira, pois esta, para Ariano, é incontes- no. Mandou buscar os nativos, os pobres dos
tável, mas sim de buscar resistir à dissemina- índios que vieram para ele conhecer, pra ele
da superioridade da cultura branca em terras ver pela primeira vez. Os índios chegaram, aí
brasileiras, alcançando parte do seu proces- conta Caminha que um dos índios apontou
so histórico, das suas raízes, dos seus rumos o colar de Cabral, depois apontou lá dentro
tomados contra as demais culturas dos po- da terra, como que dizendo que tinha ouro.
vos colonizados. Nesse sentido, Suassuna Esta história é mentira! Caminha era um
escancara as cisões culturais do país, não de mentiroso, estava bajulando o rei. Porque,
qualquer maneira, e, sim, reforçando a ima- em primeiro lugar, os índios não sabiam o
gem dos índios e dos negros, encarnados no valor que o ouro tinha para os portugueses.
povo sertanejo, enquanto guerreiros; aqueles Então, não iam dar essa notícia, dizer: “Olhe,
que têm sede de justiça, aqueles que têm na tem isso lá dentro”. E, em segundo lugar, se
sua guarda um Príncipe cavaleiro, Sinésio, o algum deles tivesse visto ouro aflorando, te-
Alumioso, que os restituirá de todo o mal pro- ria sido lá dentro, não seriam os índios do
vocado pelos brancos opressores. Assim, não litoral. Caminha estava querendo bajular o
se pode deixar de considerar que esses tipos rei, porque, inclusive – não sei se vocês sa-
de conflitos vividos pelos personagens repre- bem – mas o primeiro pistolão da História
sentados no Romance d’A pedra do reino são do Brasil vem citado na carta de Caminha: lá
uma alusão à situação do Brasil, pois há de se no fim, ele pede ao rei um emprego pro gen-
convir que “trazendo de países distantes nos- ro dele. Então, ele estava querendo ajeitar o
sas formas de convívio, nossas instituições, rei, está certo? Mentiroso, cabra-sem-vergo-
nossas idéias, e timbrando em manter tudo nha, eu fico com vergonha do meu colega,
isso em ambiente muitas vezes desfavorável e o primeiro colega meu, o primeiro escritor
hostil, somos ainda uns desterrados em nossa que falou do Brasil, com essa indignidade
terra” (HOLANDA, 1995, p. 31). (SUASSUNA, 1994, p. 41-42).
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 79

Ariano Suassuna busca representar os te- . Romance d’A pedra do reino e o príncipe do
mas e imagens da cultura do povo nordesti- Sangue do Vai-e-Volta. São Paulo: José Olym-
no – que simbolizam uma pequena fração do pio, 2006.
Brasil, sendo o Nordeste marcado pela plu-
ralidade cultural, tipicamente brasileira, com
suas influências indígenas, negras e portu-
guesas. Desse modo, há de se reiterar que no
vertiginoso Romance d’A pedra do reino e o
príncipe do Sangue do Vai-e-Volta a retomada
do imaginário sertanejo serve, substancial-
mente, como ponto de partida para pensar
as esfinges do território brasileiro.

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz de. A invenção


do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez,
2006.

CARVALHO, José Murilo de. Brasil: nações “ima-


ginadas”. In: . Pontos e bordados: escritos
de história e política. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 1998.

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no/ da obra de Ariano Suassuna. São Paulo:
Globo, 2007.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.


São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade na-


cional. São Paulo: Brasiliense, 1994.

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10, nov. 2000.

. Aula magna. João Pessoa: Editora Universi-


tária da UFPB, 1994.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 81

CINEMA E ESCRIVIVÊNCIA EM UMA ESCOLA PÚBLICA NO


MUNICÍPIO DE SÃO LEOPOLDO/RS

Fábio Ramos1

RESUMO: este artigo analisa os antecedentes e o processo de elaboração de uma proposta de in-
tervenção em uma escola pública, com vistas a discutir a questão das complexidades das relações
étnico-raciais a partir de um ciclo de cinema. O projeto de intervenção surgiu após os alunos recla-
marem da forma como estavam assimilando os conteúdos da disciplina de Sociologia. O trabalho
centra-se sobre o processo de análise e discussão que deu origem ao projeto de intervenção, e traz
uma análise dos seus primeiros resultados, uma vez que tal projeto de intervenção encontra-se em
andamento.
Palavras-chave: relações étnico-raciais – cinema na sala de aula – interdisciplinaridade – escrivi-
vência.

ABSTRACT: this paper aims at analyzing the antecedents as well as the elaboration process of a in-
tervention proposal in a public school, with the intention of discuss the question of racial relations
complexities in movies. The project emerged after protests of some students around de pedagogical
practices during the Sociology classes. Once the pedagogical project is still in course, the main dis-
cussion presented here articulates de process of analysis and discussion that originates the project,
and brings to the public some of the first results.
Keywords: race and ethnicity – movies in the classromm – interdisciplinarity – writing/living.

INTRODUÇÃO

Liberdade completa ninguém desfruta: começamos oprimidos pela sintaxe


e acabamos às voltas com a delegacia de ordem política e social, mas,
nos estreitos limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda nos podemos mexer.
(Graciliano Ramos, Memórias do cárcere)

Escrivivências. Escrever as vivências. Textualizar, através do exercício da escrita, as experi-


ências vividas cotidianamente, buscando a compreensão e a intelecção, com vistas ao com-
partilhamento com o outro. Ou melhor, com os outros, uma vez que o outro não é nenhuma
instância metafísica singular, mas sim uma coletividade heterogênea formada por distintas
subjetividades, distintas materialidades cognitivas, distintos corpos que não o meu. A partir
de filmes sobre o(s) outro(s), encontrar a si mesmo e repensar as próprias relações com o(s)
outro(s), articulando através da produção textual um espaço devir a ser: essa foi a proposta
inicial de intervenção que deu origem a este artigo.
A escrivivência – seja ela entendida como uma prática (quase) autobiográfica ou como um
conceito, uma categoria, ou ainda uma ferramenta intelectual – não é um termo novo. A pri-
meira vez que me deparei com o termo foi lendo o romance Becos da memória, da escritora

1 Professor da Rede Estadual de Ensino – Rio Grande do Sul.


82 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

e militante afro-brasileira Conceição Eva- A noção de escrivivência, advinda das


risto. Segundo a autora, seu fazer literário é experiências literárias de uma romancista
pautado não apenas na escrita literária e na afro-brasileira é muito semelhante à noção
militância política, mas na escrivivência, uma de escrileitura proposta pela pesquisadora
dimensão que torna a escrita um lugar de Sandra Mara Corazza (2010). Desafiando as
articulação da escrita com o corpo e com a convenções da escrita acadêmica, Corazza
experiência vivida (EVARISTO, 2006b, p. 10). propõe a criatividade, a experimentação e
Para ela, acionar a memória não é apenas a imaginação como estratégias subversivas
acionar a memória individual: como escrito- para desestabilizar a produção de conhe-
ra e militante do movimento negro brasileiro, cimento no campo da educação. Suas pro-
ela declara-se comprometida com a memó- postas estão diretamente vinculadas às dis-
ria coletiva de todos os afro-brasileiros: ho- cussões de didática e ensino de artes, mas
mens e mulheres, jovens e velhos, todos os/ atrevo-me aqui a realizar um deslocamento
as afrodescententes fazem parte do tecido da de suas discussões, sobrepondo a noção de
memória que ela articula em sua escrita. escrileitura de Corazza àquela de escrivivên-
A noção de escrivivência tem sido conside- cia de Evaristo, no sentido de justificar uma
rada pelos críticos que se detêm sobre a obra postura frente à escrita que adoto ao pensar
de Conceição Evaristo como uma espécie de e repensar os compromissos que assumo ao
chave interpretativa. Oliveira (2009, p. 622), textualizar minhas reflexões e minhas expe-
em sua leitura da obra de Evaristo, faz a se- riências como docente. De acordo com Cora-
guinte reflexão acerca desta noção: zza e Sardagna (2002, p. 1):

Neste livro de corte tanto biográfico Problematizar conceitos e experienciar lei-


quanto memorialístico, nota-se o que a tura e a escrita, junto a professores de esco-
autora chama de escrevivência, ou seja, las públicas, para pensar o currículo, é tam-
a escrita de um corpo, de uma condição, bém exercitar uma analítica de como estes
de uma experiência negra no Brasil. sujeitos professores vêm se constituindo
Tanto na vida da autora quanto em Becos como seres políticos, ensinantes e apren-
da memória, a leitura antecede e nutre as dentes. Tal movimento pode ser potencia-
escritas de Evaristo e de Maria-Nova, ra- lizado em oficinas de problematizações
zão pela qual lutam contra a e existência de conceitos e de exercícios de possíveis
em condições desfavoráveis. Ler é tam- vivências, escritas e leituras do currículo
bém arquivar a si, pois se selecionam escolar.
momentos e estratégias de elaboração
do passado, o qual compõe as cenas vi- Vejo a prática da escrita por um docente/
vidas, escritas e recriadas em muitos de aprendente nos mesmos termos que as auto-
seus personagens. Finalmente, decodifi- ras acima citadas: como oportunidade ímpar
car o universo das palavras, para a autora para a constituição e a consolidação de sujei-
e para Maria-Nova, torna-se uma maneira tos como seres políticos. É neste sentido que
de suportar o mundo, o que proporciona me atrevo aqui a, talvez, “supervalorizar” pe-
um duplo movimento de fuga e inserção no quenos momentos das minhas práticas coti-
espaço. Não menos importante, a escrita dianas como professor de uma escola pública
também abarca estas duas possibilidades: municipal no município de São Leopoldo. As
evadir para sonhar e inserir-se para modi- cenas que trago e que discuto são momentos
ficar (grifos meus). “pinçados” da minha vida como docente, e
não “pinçadas” por acaso: são momentos que
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 83

me levaram a problematizar minhas práticas que aqui viviam em 1500 eram cerca de seis
e mesmo minhas concepções do fazer de um milhões e, atualmente, não passam de 300
educador comprometido com as questões mil pessoas vivendo em situação de extre-
da diferença étnico-racial em sala de aula. ma pobreza e miséria, muitos deles vivendo
Estas cenas também foram decisivas para a em precárias situações, caracterizando uma
“montagem” da programação de filmes a se- existência marcada por uma cidadania de se-
rem exibidos aos alunos, de maneira a fazer gunda categoria, mendigando dinheiro pelas
com que o texto fílmico os obrigasse a pensar ruas de nossas cidades.
suas próprias condições de existência, levan- Exatamente 514 anos depois desta “in-
do finalmente à produção textual da própria venção do Brasil”2, interessa-me refletir qual
escrivivência destes alunos. a situação dos povos originários remanes-
Neste sentido, não apenas as questões en- centes que vivem no entorno das nossas ci-
volvendo as relações entre educação e afro- dades, principalmente no município de São
descendência mereceram minha atenção. A Leopoldo. Para tanto, gostaria de rememorar
perpetuação de discursos e mitos envolvendo algumas conversas informais que tive com
a questão dos povos indígenas e as práticas alguns colegas docentes da E. M. E. F. Clodo-
docentes merecem atenção, justamente na mir Vianna Moog, na cidade de São Leopol-
medida em que estereótipos racializantes são do, sobre a presença de uma Comunidade
construídos em torno da figura do “indígena”. Indígena no entorno da nossa escola. A prin-
O advento da Lei nº 11.645, de 10 de março cipal comunidade formada por descenden-
de 2008, também toca em uma questão im- tes e remanescentes dos povos originários
portante, pois a necessidade de se tratar das da região está localizada no bairro Feitoria,
questões indígenas nos currículos das esco- entre a divisa dos municípios de São Leopol-
las brasileiras torna, em função da nova reda- do e Novo Hamburgo, mais precisamente na
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação rua conhecida como Estrada do Quilombo,
Brasileira, inevitável a associação das ques- nº 1015, em São Leopoldo. Trata-se de uma
tões envolvendo afrodescendência, história e comunidade kaingang:
cultura indígenas e a composição curricular.
Desde os primeiros contatos, os Kaingang
FUNDAMENTAÇÂO TEÓRICA: foram alvo de ações catequéticas pela Igre-
RELENDO A DIVERSIDADE ÉTNICA ja Católica. De fato, ao tempo do Império,
DESDE OS TEMPOS MAIS REMOTOS isso era parte da política indigenista ofi-
cial. A expedição militar que ocupou Gua-
A questão indígena rapuava contava com o capelão Francisco
O dia 22 de abril de 1500 representa para o das Chagas Lima (que antes missionara os
colonizador português – e para muitos brasi- Puri-Coroados, em São Paulo), e que desde
leiros - a data na qual os europeus descobri- o primeiro momento buscou catequizar os
ram o Brasil. Só que, nessas mesmas terras, Kaingang. No Rio Grande do Sul, poucos
já viviam os verdadeiros donos da terra. Para anos após o estabelecimento dos primeiros
estes, essa data inicia um período de morte, aldeamentos entre Kaingang, jesuítas lide-
crueldade, ganância, doenças, estupro, co- rados pelo Padre Bernardo Parés atuaram
lonialismo cultural e desmantelamento de na catequese da gente de Nonoai, Guarita
todo um conjunto de povos autóctones e de e Votouro. No norte do Paraná, a partir das
suas respectivas culturas. iniciativas mais permanentes de ocupação
Os povos originários da América do Sul, an-
2 Parafraseio aqui a noção de “invenção das tradições”, na esteira do pen-
tes da chegada dos colonizadores europeus, samento de E. Hobsbaum (1997, p. 9-23).
84 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

brasileira no vale do Tibagi, o governo pro- anos neste local, onde tinham condições mí-
vincial determinou a fundação de um alde- nimas de vida digna, pois a violência sempre
amento em São Jerônimo, com a catequese os rondava. As crianças viviam em um am-
entregue a capuchinhos italianos (o mais biente insalubre, com mínimas condições de
conhecido deles, Frei Timóteo de Castell- higiene e moradias precárias. Quando chovia
nuovo)3. no local, os moradores ficavam com suas ca-
sas alagadas e seus pertences eram danifica-
Os kaigang não habitam a cidade de São dos, tornando assim a vida insustentável.
Leopoldo por acaso. O território no qual hoje De acordo com relatos dos moradores da
se localiza o município já era ocupado pelos comunidade, tomados informalmente no ano
kaigang antes do inicio da colonização alemã. de 2005, a Prefeitura Municipal, por pres-
De acordo com Diogo Dreyer da Silva (s.d.): são das lideranças indígenas, e por se ver na
obrigação de assistir minimamente ao grupo
São Leopoldo, no Vale dos Sinos, Rio Gran- localizado embaixo do viaduto de sua cidade,
de do Sul, foi o ponto de partida de uma decidiu se reunir com as lideranças e propôs
luta pela sobrevivência que mudou a que o grupo se organizasse e saísse em bus-
história do Brasil e que começou em ca de alguns terrenos, previamente estipula-
1824 com a fundação da primeira colô- dos pelo município, para futura moradia do
nia de imigrantes alemães no país. Na grupo. Esse grupo, formado por lideranças
época, o Brasil havia acabado de se tornar kaigang locais, visitaram algumas áreas e
independente de Portugal. Então, por influ- terrenos no município. Entre as localidades
ência de José Bonifácio, o então imperador visitadas, o primeiro terreno escolhido pelo
Dom Pedro I decidiu inaugurar, com esses grupo não foi viabilizado por conta de entra-
imigrantes, um programa de imigração ves jurídicos. A opção que ficou em segundo
para o Sul, movido por questões de segu- lugar foi aquela que acabou materializando
rança nacional, diante das sucessivas dis- a aldeia Kaingang Voga. Este pode parecer
putas territoriais naquela então erma re- um argumento menor, mas é extremamente
gião fronteiriça4. significativo para ilustrar um dos postulados
do crítico pós-colonial Edward W. Said em se
A partir da colonização, os kaingang fo- livro Cultura e imperialismo (1990): afirma
ram sendo espremidos nos territórios ao o crítico palestino que, em todo e qualquer
norte do Rio Grande do Sul. O grupo ao qual lugar do planeta onde houve dominação co-
me refiro está localizado no Bairro Feitoria, lonialista, esta violência nunca foi uma for-
habitando a região há cerca de 8 anos, e já ça única, pois em maior ou menor grau ela
passaram por outros lugares, até serem alo- sempre teve de ligar com a resistência dos
cados na aldeia Voga. autóctones, promovendo assim espaços de
Anteriormente ao deslocamento dos kain- negociação não raro marcados por violentas
gang no bairro Feitoria, esta comunidade represálias dos povos dominadores.
encontrava-se alocada embaixo de um via- Durante as aulas que ministrei para o 7° e
duto na BR-116, próximo à rodoviária de o 8° anos do Ensino Fundamental, os alunos
São Leopoldo. Moraram por volta de quatro assistiram ao filme brasileiro Caramuru – A
Invenção do Brasil, leram trechos da carta
3 D’ANGELLIS, Wilmar da Rocha. A língua kaigang e seu estudo. Dispo- de Pero Vaz de Caminha, e discutiram sobre
nível em: <http://www.portalkaingang.org/index_lingua_2_1.htm>. Acesso
em: 15 de maio de 2014. a questão da invasão, do descobrimento ou
4 SILVA, Diogo Dreyer da. A imigração alemã. Disponível em: <http://
www.educacional.com.br/reportagens/alemanha/default.asp>. Acesso em
18 de maio de 2014.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 85

da invenção do nosso país5. Os alunos tam- batida pelo calendário escolar em minha
bém foram estimulados a refletir sobre qual escola, no ano de 2013, comemorações que
o papel dos povos indígenas na sociedade ficaram espremidas entre a Páscoa e o Dia
brasileira atual. Por fim, foram estimulados das mães. Nesse contexto, uma questão intri-
a criar painéis que refletissem acerca desta gante e preocupante vem à tona: é muitíssi-
história não contada, na qual o protagonista mo mais simples comemorarmos a festa de
era coletivo (o grupo dos povos autóctones Halloween do que o Dia do Índio. Existe uma
que ocupavam o território brasileiro), de total falta de percepção/preocupação, pre-
maneira a dar visibilidade a dinâmicas his- conceito e desrespeito em relação à cultura
tóricas e geográficas que tocavam estes gru- dos povos autóctones brasileiros na escola.
pos étnicos, questionando a versão única da Ironicamente, a visão que os brasileiros têm
historiografia oficiou que pautou a formação sobre os povos indígenas atualmente parece
de gerações de estudantes brasileiros e que tão superficial quanto aquela de 514 anos
subsumiu a imensa variedade de costumes, atrás, relatada no documento até hoje toma-
línguas e tradições autóctones sob o rótulo do como a Certidão de Nascimento da nação
essencializante e redutor de “indígena”6. brasileira: a Carta de Pero Vaz de Caminha.
Refletindo sobre esta vivência/experiên-
cia, que partiu da observação da realidade A questão do movimento negro e das
e redimensionou o exercício da minha prá- políticas públicas
tica docente, resultando em um exercício de Ao longo de muitas décadas, as lutas do
ação-reflexão ação, pautado da pedagogia li- movimento negro brasileiro no combate ao
bertadora de Paulo Freire7, o que pude notar racismo e na defesa de uma educação antir-
foi a falta de conhecimento da cultura indíge- racista e que englobasse a educação para as
na por parte dos professores e alunos. Como relações étnico-raciais esteve ligada às ini-
gesto de honestidade intelectual, cabe ressal- ciativas não governamentais, bem como às
tar que, ao longo das aulas em tais questões estratégias de resistência que não envolviam
foram trabalhadas (durante o primeiro se- as normas jurídicas ou políticas públicas. Fe-
mestre de 2013), tive de confrontar minhas lizmente, esse contexto se mostra bastante
próprias ignorâncias com relação à história diferente na contemporaneidade. O que mais
dos povos originários da América Latina, e a vem chamando minha atenção atualmente é
experiência docente transforou-se em uma a questão da educação para as relações étni-
experiência formativa e educadora para mim co-raciais, mais especificamente a questão
mesmo, o que torna irresistível a invocação da obrigatoriedade do ensino de história
de um outro postulado freireano: “ninguém e cultura dos povos africanos e afro-brasi-
educa ninguém, ninguém se educa a si mes- leiros. Recentemente, uma nova lei alterou
mo, os homens se educam entre si, mediati- uma vez mais a Lei nº 9394/96 e explicitou
zados pelo mundo” (FREIRE, 1981, p. 79). a necessidade de incluir também, como com-
A questão das comemorações do Dia do ponente curricular obrigatório, o ensino de
Índio e do Descobrimento do Brasil passou história e cultura dos povos originários (ex-
pressão que costumo utilizar em detrimento
5 Foi a partir dos resultados positivos com a exibição de Caramuru nestas do termo ‘indígenas’, que aparece na norma
turmas que nasceu a ideia de uma intervenção pedagógica tomando como
base a exibição e discussão de filmes em torno da diversidade étnica e racial jurídica acima referida): a Lei n 11.645, de
no Brasil.
10 de março de 2008. “Indígena”, etimolo-
6 Ver, a esse respeito, RIBEIRO (1976).
gicamente, não é um termo adequado para
7 Pensa-se aqui na concepção dialógica de educação proposta por Paulo
Freire, em especial na dinâmica de um processo formativo pautado na céle- se referir a coletividades “racializadas” pe-
bre fórmula ação-reflexão-ação como diretriz para uma educação transfor-
madora (FREIRE, 1997 e FREIRE, 2001). los discursos do poder público ou marcadas
86 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

pela etnicidade, pois é um termo vago que se e Inclusão do Ministério da Educação (SECA-
utiliza para designar qualquer ser vivo origi- DI/MEC); II - o Fundo Nacional de Desenvol-
nário de uma determinada localidade, e não vimento da Educação (FNDE/MEC); III) as
dá visibilidade à questão da heterogeneida- instituições públicas de educação superior
de que constitui o grande grupo dos povos (IPES); IV) os Institutos Federais de Educa-
originários das terras americanas que hoje ção, Ciência e Tecnologia (IF); V) as Secreta-
denominamos Brasil. rias de Educação das unidades federadas.
Em 2013, completarem-se dez anos do Cabe ainda destacar que o UNIAFRO pode
sancionamento da Lei 10.639/03, norma ser vinculado diretamente à Lei nº 10.639,
que institui a obrigatoriedade do ensino so- de 9 de janeiro de 2003. Esta lei altera a Lei
bre História e Cultura Afro-Brasileira, e que nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que
foi a primeira assinada pelo presidente Lula estabelece as diretrizes e bases da educação
no início do seu mandato em 2003. O UNIA- nacional, para incluir no currículo oficial da
FRO - Ações Afirmativas para a População Ne- Rede de Ensino a obrigatoriedade da temá-
gra na Educação Superior, enquanto política tica “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá
pública, tem o objetivo de apoiar a formação outras providências:
continuada de professores para a implemen-
tação da Lei 10.639/03 e para a educação Art. 1º. A Lei no 9.394, de 20 de dezembro
quilombola em parceria com Instituições de 1996, passa a vigorar acrescida dos se-
Públicas de Educação Superior (IPES). Como guintes artigos: 26-A, 79-A e 79-B:
diretrizes que pautam as ações do UNIAFRO,
destaca-se a oferta de cursos no nível de Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino
aperfeiçoamento e especialização, na moda- fundamental e médio, oficiais e particula-
lidade à distância, por meio da Universidade res, torna-se obrigatório o ensino sobre
Aberta do Brasil – UAB, e na modalidade pre- História e Cultura Afro-Brasileira.
sencial e semipresencial pela Rede Nacional
de Formação Continuada de Professores na § 1o O conteúdo programático a que se re-
Educação Básica – RENAFOR. fere o caput deste artigo incluirá o estudo
As escolas que desejam acessar o UNIA- da História da África e dos Africanos, a luta
FRO devem apresentar, por meio do siste- dos negros no Brasil, a cultura negra bra-
ma PDE Interativo, a demanda de formação sileira e o negro na formação da socieda-
para as Secretarias Estaduais de Educação de nacional, resgatando a contribuição do
(SEDUC) e Secretarias Municipais de Educa- povo negro nas áreas social, econômica e
ção (SEMED) que a validam e encaminham política pertinentes à História do Brasil.
ao Fórum Estadual Permanente de Apoio à
Formação Docente. O Fórum elabora o Plano § 2o Os conteúdos referentes à História e
Estratégico de Formação docente e o enca- Cultura Afro-Brasileira serão ministrados
minha ao Comitê Gestor da Rede Nacional de no âmbito de todo o currículo escolar, em
Formação/ MEC, responsável pela sua apro- especial nas áreas de Educação Artística e
vação e apoio financeiro. de Literatura e História Brasileiras.
Entre os movimentos e entidades que atu-
am na reivindicação da oferta da política ou Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o
de seu aperfeiçoamento, é mister destacar os dia 20 de novembro como “Dia Nacional da
agentes e suas responsabilidades no que diz Consciência Negra”8.
respeito ao UNIAFRO: I) a Secretaria de Edu-
8 Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.
cação Continuada, Alfabetização, Diversidade htm>. Acesso em: 13 de maio de 2014.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 87

É interessante de ser observado que o apresentado durante as aulas de Geografia,


UNIAFRO, como política pública de forma- pelos meus alunos da turma 7A2 da E. M. E.
ção continuada de professores, surge exata- F. Clodomir Viana Moog. De acordo com os
mente como uma política para assegurar a alunos relataram que, durante uma aula da
formação dos professores do Ensino Funda- disciplina de Sociologia, a professora havia
mental e Médio que atuarão como agentes da transcrito na lousa um texto para que eles
implementação da norma jurídica expressa copiassem, e que o texto era “racista ao con-
pela Lei 10.639/03, que assegura a obriga- trário”, pois, segundo o texto, “os brancos
toriedade do ensino de história e cultura dos não servem para nada”. Segundo os alunos,
povos africanos e afro-brasileiros. a professora trabalhou o texto de Pedro Ban-
Pensar o UNIAFRO juntamente com a Lei deira de forma racista e preconceituosa no
10.639/03 torna evidente o fato de que, se que diz respeito aos alunos brancos. Vejamos
por um lado a norma é uma das garantias de um trecho do texto:
implementação de determinados interesses
políticos rumo a uma educação efetivamente Os brancos são muito diferentes dos ne-
democrática e pluralista, são as políticas pú- gros. Mas depende do branco e depende
blicas (neste caso específico) que asseguram do negro. Na minha caixa de lápis de cor,
a formação de educadores competentes para o branco não serve para nada. Só o preto é
garantir o cumprimento da norma. De pou- que serve para desenhar. Por isso, os dois
co vale uma norma como a Lei 10.639/03, são muito diferentes9.
se não houverem educadores capacitados a
realizar articulação dos componentes curri- Os alunos comentaram que a “moral” do
culares tornados obrigatórios; aqui, é a po- texto era a de que os negros eram muito mais
lítica pública – o UNIAFRO – que permitirá o importantes que os brancos. No texto, o autor
cumprimento efetivo desta norma. pretenderia – ainda de acordo com o relato
dos alunos – estabelecer uma relação entre
ANÁLISE TEÓRICA DO PROJETO: A as cores, partindo de uma caixa de lápis de
REDAÇÃO DE MARIACLÁUDIA E A cor com a sociedade brasileira, que segundo
IDEIA DO CICLO DE CINEMA o autor do texto, seria simultaneamente tão
Quando você observa seus alunos e avalia diferente e ao mesmo tempo, tão semelhante.
quanto cada um já sabe antes de introduzir Como o relato dos alunos acerca da ati-
um novo conceito em sala de aula, você está vidade não me pareceu esclarecedor o sufi-
colocando em prática, mesmo sem se dar ciente, solicitei o caderno de um deles, com a
conta, as formulações de outros sujeitos. Su- intenção de ler cuidadosamente não apenas
jeitos estes que estão situados historicamen- o texto repassado pela professora de Socio-
tente, e devem ser devidamente contextuali- logia, mas também o comando de leitura ou
zados. Caso contrário, mesmo as ações mais as atividades que ela havia proposto para
bem-intencionadas podem resultar em ver- trabalhar com o referido texto. Ao ler e reler
dadeiros desastres, prestando um desserviço o texto, pois naquele momento eu ocupava
ao trabalho do professor preocupado com a o posto de Professor Conselheiro da turma
educação para as relações étnico-raciais. 7A2, resolvi analisar o texto coletivamente,
Gostaria de discutir aqui um texto pu- com os alunos, já que eu não assisti à aula e,
blicado por Pedro Bandeira, na revista Sal- de concreto, tinha apenas o texto no caderno
ve, em 13 de maio de 1988 – ou seja, há 26
anos atrás – intitulado “Brancos e negros”. 9 A fonte deste trecho foi o caderno de uma das minhas alunas. Mais
adiante, esclareço as origens e a referências bibliográficas completas deste
Tal texto é o motivo desse relato, pois me foi texto, cuja autoria foi erroneamente atribuída ao escritor Pedro Bandeira.
88 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

dos alunos. Li o texto em voz alta com os O leite é branco e o café é preto. De café eu
alunos e tentei explicar que o texto não era não gosto. Também não gosto de leite, quan-
racista e preconceituoso, e sim que ele mos- do ele está branco. Prefiro misturar com
trava, através de um texto lúdico – e até certo chocolate. E aí fica marrom.
ponto inocente – as diferenças e similarida- Marrom como a minha amiga Patrícia. Ou-
des entre as pessoas no país em que vivemos, tro dia me disseram que a Patrícia é negra,
independentemente de suas origens étnicas mas ela é marrom. Eu estou com raiva dela
e/ou raciais. Transcrevo abaixo o objeto de porque ela tirou uma nota melhor do que eu
tanta polêmica em minha sala de aula: na prova de matemática. Mas eu não quero
ser diferente dela. Vou estudar bastante. Na
[A redação da Maria Cláudia próxima prova, eu e ela vamos ficar iguais11.

Costumo dizer que a maior dádiva das Ao chegar em casa, fiquei analisando a si-
crianças é a sinceridade. Elas são sempre tuação vivenciada e percebendo o quanto um
verdadeiras e objetivas. O texto a seguir foi texto ou outro material pedagógico ajudam
escrito por uma garotinha chamada Maria em nossas aulas. No entanto, estes mesmos
Cláudia e publicado pelo escritor de livros materiais podem se revelar “armadilhas”
infantis, Pedro Bandeira, na Revista Salve, quando utilizados de forma errônea, ingênua
no dia 13 de maio, em 1988.]10 ou displicente pelos professores, mesmo nos
casos em que o professor se mostra bem-in-
Brancos e negros tencionado.
Pesquisando sobre o texto na internet,
Os brancos são muito diferentes dos negros. descobri que, na verdade, o texto era uma re-
Mas depende do branco e depende do negro. dação de uma aluna chamada Maria Cláudia,
Na minha caixa de lápis de cor, o branco não de apenas 9 anos de idade, e que havia sido
serve para nada. Só o preto é que serve para publicado por Pedro Bandeira pela manei-
desenhar. Por isso, os dois são muito diferen- ra simples, objetiva e sincera da menina ao
tes. escrever. O primeiro erro da professora de
Tem o giz e tem o carvão. Eles são iguais. Os Sociologia, no meu entender, foi o descuido
dois servem para desenhar. Com o giz, a gen- com que preparou a atividade, descuido esse
te desenha na lousa. Com o carvão, a gente que pode ser no fato de ela ter repassado o
desenha o bigode na cara do Paulinho para texto com atribuição de autoria errada aos
a festa de São João. alunos.
Nesse negócio de música, não tem branco. Após o ocorrido, os alunos acabaram com-
Só tem preto. Todos os discos que eu conheço preendendo que o texto não era preconcei-
são pretos. Nunca vi um disco branco. tuoso e racista, mas que apenas apresentava
O papel é branco e é igualzinho ao papel as diferenças e os contrastes das cores pela
preto chamado carbono que escreve embai- visão de uma menina de nove anos que, na
xo tudo o que a gente escreve em cima. verdade, nada tinha de racista.
A noite é preta mas o dia não é branco. O dia Ao utilizarmos esses recursos pedagó-
é azul. Então o preto da noite é só da noite. gicos, nós devemos construir e reconstruir,
Não é igual nem diferente de nada. ampliar e enriquecer o conhecimento ao
lado de nossos alunos e colegas de trabalho.
10 O trecho entre colchetes (“[xxx]”) não estava presente na transcrição
que visualizei nos cadernos dos meus alunos. Ela faz parte do material que
localizei, posteriormente, na internet. Incluo aqui como estratégia de leitura,
e também como estratégia de “economia textual”, no sentido de não ter de 11 A REDAÇÃO DE MARIA CLÁUDIA. (Disponível em: <http://ilianaalvo-
realizar, mais adiante, em minha exposição, uma nova e extensa e citação do rada.blogspot.com.br/2008/09/espao-da-diversidade.html>. Acesso em: 30
texto, como o acréscimo desta breve introdução colocada entre colchetes. de junho de 2013).
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 89

No meu ponto de vista, é fundamental que modo, uma visão estereotipada e preconcei-
os professores reúnam-se para comparti- tuosa sobre o texto e sobre a relação entre
lharem saberes, discutam suas dificuldades, brancos e negros no nosso país. A professo-
realizem pesquisas e troquem experiências. ra deveria atuar desconstruindo as ideias e
Na realidade, as práticas educativas, que os comportamentos presentes na sociedade,
se pretendem universalistas, isto é, iguais passando pela valorização das diversidades
para todos, acabam sendo as mais discrimi- na construção da identidade brasileira.
natórias. Daí a luta histórica dos movimen- Foi a partir desta experiência, somada à
tos sociais, e, de maneira específica, a dos produtividade de se discutir questões étni-
movimentos negros brasileiros por uma so- co-raciais com os alunos, a partir de filmes,
ciedade mais justa e uma educação que va- que surgiu a ideia de organizar o Ciclo de ci-
lorize cada sujeito, inclusive o negro, sempre nema sobre relações étnico-raciais na E. M. E.
excluído da história (ou incluído de maneira F. Clodomir Viana Moog.
estereotipada) e da cultura desse país. Pre-
firo utilizar o plural – movimentos negros O CICLO DE CINEMA
brasileiros – ao recorrente uso do singular O projeto de intervenção surgiu após os alu-
– movimento negro – , posto que muitas ve- nos reclamarem da forma como estavam
zes há uma importante heterogeneidade nas assimilando os conteúdos da disciplina de
bandeiras de luta que acaba por ser subsu- sociologia. O problema surgiu a partir de
mida, criando uma imagem reducionista e texto publicado por Pedro Bandeira na Re-
homogeneizante das lutas dos afro-brasilei- vista Salve em 13 de maio de 1988 e que é
ros na história de nosso país. Para ilustrar intitulado “A Redação de Maria Cláudia”. Tal
esta questão, menciono apenas o movimento texto é o motivo desse relato, pois me foi
de mulheres negras brasileiras, que possui apresentado durante as minhas aulas de ge-
uma agenda de reivindicações bastante di- ografia pelos alunos da turma 7A2. Esse fato
ferente daquela dos homens, uma vez que o foi fundamental para despertar o interesse
sexismo contra as mulheres negras, ademais nesse Curso de Especialização em Educação
de se sobrepor ao racismo que as mulheres para a Diversidade. Aproveitando o interesse
negras enfrentam, não é necessariamente da comunidade escolar por cinema, surgiu a
uma preocupação geral do movimento ne- ideia de criar um ciclo de exibição e debate
gro brasileiro as – muitas vezes – apenas das de filmes que tratassem, direta ou indireta-
mulheres negras que militam nas frentes mente, das relações étnico-raciais no Brasil,
do movimento (CARVALHO e ROCHA, 2012; e também em outros países. Seria possível
RODRIGUES e PRADO, 2010). sensibilizar este público a partir do re-
Nesse sentido, existe um silêncio da escola curso à produção cinematográfica nacio-
sobre as dinâmicas das relações raciais que nal e internacional? Apenas a exibição
tem permitido que seja transmitida aos alu- dos filmes seria um recurso frutífero para
nos uma pretensa superioridade branca, sem estabelecer este debate, ou seria mais in-
que haja questionamentos desses problemas teressante articular a exibição dos filmes
por parte dos profissionais em educação. No com breves falas e debates com o fim de
momento em que a professora simplesmente mediar e provocar uma discussão mais
copiou a redação de Maria Cláudia na lousa consistente?
– e atribuiu a autoria do texto ao escritor Pe- O Objetivo geral do projeto foi o de
dro Bandeira – , sem ler ou trabalhar o tex- ampliar o horizonte cultural dos estudan-
to com os alunos, a professora de Sociologia tes com relação às relações étnico-raciais
permitiu que cada aluno construísse, ao seu no Brasil e no Mundo através da produção
90 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

cinematográfica brasileira e internacional Exibição de filme seguida de 03 de maio de


com a realização de debates após a exibição debate: Cidade dos Homens 2014, das 9h às
dos filmes. Os Objetivos específicos foram 12h.
os seguintes: 1) aprofundar conhecimentos Exibição de filme seguida de 07 de junho de
relativos à cultura brasileira através de sua debate: Carandiru 2014, das 9h às
produção cinematográfica; 2) criar um espa- 12h.
ço para debate sobre as diferenças relaciona- Exibição de filme seguida de 05 de julho de
das à educação e às relações étnico-raciais no debate: Sarafina 2014, das 9h às
Brasil e no Mundo; 3) desenvolver competên- 12h.
cias relativas à compreensão e à autogestão Exibição de filme seguida de 02 de agosto de
de informações advindas do discurso cine- debate: A Cor Púrpura 2014, das 9h às
matográfico, relacionando-as com as discipli- 12h.
nas da grade curricular (em especial as disci- Exibição de filme seguida de 06 de setembro
plinas de Língua Portuguesa, Artes, História, debate: Amistad de 2014, das 9h
Geografia, Ensino Religioso e Sociologia). às 12h.
Aproveitando o interesse dos meus alunos Exibição de filme seguida de 04 de outubro de
do 7º, 8º e 9º ano do Ensino Fundamental debate: Django Livre! 2014, das 9h às
(em sua maioria entre 13 e 17 anos de idade) 12h.
por cinema brasileiro, surgiu a ideia de con-
ciliar lazer e formação, a partir de um Ciclo CONSIDERAÇÕES FINAIS
de Cinema e Relações Étnico-Raciais, com o Até o momento, já foram projetados os qua-
objetivo de discutir, refletir e problematizar tro primeiros dos oito filmes que compõem o
a questão não apenas junto aos alunos, mas cronograma. A ideia inicial, de um debatedor
também junto aos pais, professores, equipe a conduzir a discussão sobre o filme exibido
diretiva e funcionários da escola. não se mostrou muito produtiva, pois ao con-
Os filmes propostos foram os seguintes: trário que era esperado, a presença de uma
a) brasileiros: Carlota Joaquina, Princeza do “autoridade discursiva” a comentar o filme
Brazil; Cidade de Deus; Cidade dos Homens e (no caso do primeiro filme, o professor de
Carandiru; estrangeiros: Sarafina, A Cor Púr- História da escola) acabou inibindo a espon-
pura, Amistad e Django Livre! A metodologia taneidade que era esperada para o debate.
de realização do projeto consiste na exibi- Ao ouvir os comentários de alguns alunos
ção mensal de um filme na Escola, seguida sobre a primeira sessão de cinema, foi pos-
de um debate. As exibições iniciaram no dia sível perceber um certo descontentamento
15 de março de 2014, de acordo com o cro- justamente em função do ar “burocrático e
nograma abaixo, e se estenderão até 04 de escolar” que a atividade tomou. Na segunda
outubro de 2014. sessão, após a projeção do filme Cidade de
Deus, decidimos fazer um intervalo antes do
ATIVIDADE PERÍODO DE debate, e os alunos aproveitaram para fazer
EXECUÇÃO um lanche no pátio da escola com sanduí-
Exibição de filme seguida 15 de março de ches e refrigerantes que decidiram comprar
de debate: Carlota Joaquina, 2014, das 9h às previamente. Pude observar que, enquanto
Princeza do Brazil. 12h. os alunos faziam o seu lanche, sem o “deba-
Exibição de filme seguida de 05 de abril de tedor” ocupando o lugar do saber autoriza-
debate: Cidade de Deus 2014, das 9h às do para “interpretar” o filme e falar sobre
12h. a questão da exclusão, eles participavam
muito mais ativamente, faziam relações com
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 91

experiências do seu cotidiano e naturalmen- da igualdade social, justiça e desenvolvimen-


te estabeleciam relações com os conteúdos to humano é exatamente aquela educação
discutidos em sala de aula enfocando ques- que desperta os dominados para a necessi-
tões de Geografia discutidas nas aulas. A par- dade da ‘briga’, de cultivar a justa raiva, a in-
tir desse advento, tive a ideia de eliminar a dignação e rebeldia, pois tais atitudes é que
figura do debatedor e instaurar a prática do podem garantir a organização e mobilização
“lanche coletivo” após as sessões, retoman- necessária para uma luta justa, democrática,
do a temática do filme nas aulas da semana séria, rigorosa, sem manipulação, com vistas
seguinte. à reinvenção do poder e à democratização da
Ao conversar com a professora de portu- sociedade.
guês das minhas turmas e comentar o ocor- É claro, que com a interferência da esco-
rido, ela teve a ideia de retomar também nas la, a comunidade escolar em breve, talvez
aulas dela a experiência do ciclo de cinema chegue à conclusão de que baderneiros e
dos sábados, utilizando os filmes como mote antidemocráticos são o nossos governantes,
para atividades de produção textual. Motiva- os quais violentam os direitos diariamente,
dos pela experiência da produção textual, os que fazem a farra com o dinheiro público,
alunos estão assumindo suas próprias vozes que ignoram e matam silenciosamente sua
e relacionando experiências do seu cotidia- população. Tal fato impõe à sociedade, e em
no. Os alunos deixaram de ser meros espec- especial às escolas, a necessidade urgente de
tadores e passaram a ser autores de suas re- refletir sobre questões socioculturais, assim
flexões. como em novas formas de regulação social
A escola é vista por nós como agente que que contemple interesses distintos, visto que
tem o papel de refletir, agir e instigar ações a sociedade é plural. Dito de outro modo, os
que promovam a educação na e para a diver- discursos da diversidade (direitos da mu-
sidade. A escola e seus profissionais têm o lher, do negro, do índio, dos homossexuais,
compromisso ético de colocar em debate as do camponês, do analfabeto, do pobre, en-
diferenças, os assuntos e as abordagens con- fim, dos diversos) precisam ser entendidos
temporâneas, tendo em vista o fato de traba- não como o exercício da tolerância, que ao
lharem com a formação do indivíduo para o fim e ao cabo encobrem e mascaram uma re-
convívio social. As noções de reciprocidade, alidade social injusta e desigual.
pluralidade, experimentação e criticidade A redução das desigualdades, sejam elas
nos encaminham para detectar sinais na rea- locais, regionais ou mundiais, pressupõe a
lidade e produzir imaginação na perspectiva tomada de decisões e a adoção de modos de
do bem viver, principalmente para os nossos ser que vão além do direito de ser diferente.
estudantes. Precisamos despertar a comunidade escolar
Um processo educativo dialógico, reflexi- para a indignação da sociedade brasileira,
vo e transformador pode possibilitar a parti- pois sem a interferência da escola, a indigna-
cipação dos sujeitos, o fortalecimento de uma ção destes lembra mais a da letra da música
subjetividade com capacidade intelectual e Indignação do grupo Skank, já que ela mais
com sensibilidade para com o humano e com parece “uma mosca sem asas / que não ultra-
a natureza. Esta subjetividade cambiante e passa as janela / das nossas casas”.
desejosa não pode ser uma mera executora
de tarefas, de operacionalização dos proces- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 95

PADRÕES EM DESIGN DE SUPERFÍCIE CERÂMICA: UM ES-


TUDO EXPLORATÓRIO A PARTIR DA LINGUAGEM KAWAII

Francis Marina Leitão Pacheco1


Reinilda de Fátima Berguenmayer Minuzzi2

RESUMO: O texto remete ao estudo desenvolvido na Especialização em Design de Superfície da Uni-


versidade Federal de Santa Maria (UFSM), cujo foco temático e criativo da pesquisa monográfica bus-
ca explorar a linguagem Kawaii como uma forma de expressão. Originário do Japão, o Kawaii traz
referências do mundo infantil em suas formas, cores e temática. É caracterizado como cute, podendo
ser traduzido pela palavra “meigo” na língua portuguesa. Pode ser tratado como um estilo de vida que
ganha cada vez mais adeptos, rompendo as fronteiras asiáticas. Neste sentido a pesquisa teve como
proposta a criação e desenvolvimento de estampas e padrões com referência na linguagem Kawaii.
Para uma melhor compreensão e conhecimento de métodos e processos abordados no estudo, foi
realizada uma visita técnica em uma indústria de porcelana. O projeto gerou uma linha de utilitários
intitulada “Marina” composta por sete peças de porcelana para culinária japonesa.
Palavras-chave: Design de Superfície. Kawaii. Porcelana. Japão. Decalque.

ABSTRACT: The text refers to the study in the Specialization in Surface Design from the Federal Uni-
versity of Santa Maria (UFSM), whose thematic and creative focus of monographic research seeks to
explore the Kawaii language as a form of expression. Originally from Japan, Kawaii brings the world
of childhood references in their shapes, colors and themes. It is characterized as cute and can be
translated by the word meigo in Portuguese. Can be treated as a lifestyle that is gaining more fans,
breaking the Asian borders. In this sense the proposed research was the creation and development
of prints and patterns with reference in Kawaii language. For a better understanding and knowledge
of methods and processes addressed in this study, a technical visit in a porcelain industry was per-
formed. The project generated a set of utilities titled “Marina” composed of seven pieces of porcelain
to Japanese cuisine.
Keywords: Surface Design. Kawaii. Porcelain. Japan. Decal.

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa buscou desenvolver estampas e padrões com referência na linguagem
Kawaii aplicados no campo do Design de Superfície, na categoria cerâmica, mais especifica-
mente a porcelana.
A porcelana é encontrada em praticamente todas as residências e indispensável para o fun-
cionamento de hotéis, restaurantes, bares e similares, sendo parte integrante do nosso dia-a-dia.
O Kawaii é originário do Japão onde é parte integrante da cultura local. Trata-se de uma
linguagem que tem como principal aspecto o cute style (estilo meigo3, tradução nossa) que

1 Pós-Graduada em Design para Estamparia/UFSM. E-mail: francismpacheco@gmail.com

2 Doutorado em Engenharia de Produção/Gestão do Design/UFSC.

3 Para este estudo foi adotada a palavra “meigo” como tradução de cute.
96 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

é representado através de características es- KAWAII


pecíficas abordadas neste estudo. O Kawaii Kawaii é uma palavra japonesa comumente
se tornou muito popular em seu país de ori- traduzida pelo termo da língua inglesa cute
gem e acabou rompendo as fronteiras, prin- e pode significar: doce, adorável, inocente,
cipalmente nos países vizinhos como Coreia puro, simples, genuíno, meigo, vulnerável,
e China. frágil e inexperiente segundo Kinsella (1995).
Os seriados televisivos, os mangás4, ani- Charuca (2011) cita que é uma das pala-
mês5, eventos de cosplay6, entre outros, in- vras mais faladas pelas garotas japonesas,
fluenciam gerações no Brasil desde a década que frequentemente exclamam “Kawaiiiiiii-
de 60. A crescente oferta dos mangás, pro- ii” para definir tudo aquilo que consideram
gramas de televisão e eventos específicos “meigo”, seja para descrever um momento
demonstram que os brasileiros estão absor- agradável, qualidades percebidas em algo ou
vendo cada vez mais a cultura oriental. simplesmente aparência.
Com base nessas informações este proje- Kinsella (1995) relata que no início dos
to apresenta uma proposta para a aplicação anos 70 surge uma nova escrita entre os jo-
da linguagem Kawaii em peças utilitárias de vens colegiais, principalmente entre as ga-
porcelana visando atingir um nicho de mer- rotas. Denominada como Cute Handwriting
cado voltado para os apreciadores destes re- (Figura 1), que para este estudo está sendo
ferenciais. entendida como “escrita meiga”, tornou-se
Visando um maior aprendizado e melhor uma febre entre as crianças e adolescentes.
entendimento do processo de fabricação da
porcelana, foi realizada uma visita técnica
ao parque industrial da empresa Porcelana
Schmidt no município de Campo Largo no
estado do Paraná. Na ocasião foi observado o
funcionamento de uma empresa tradicional
com relevância e reconhecimento nacional e
internacional no fabrico de porcelana.
Para o desenvolvimento do projeto, em
uma primeira etapa foram realizados alguns
testes práticos que envolveram a elaboração
e aplicação de decalques com a finalidade de Figura 1 – Cute Handwriting.

conhecer e compreender a técnica da decal- Fonte: KINSELLA, 1995.

quemania.
Após a realização dos testes, e avaliação Tratava-se de uma escrita de forma arre-
dos resultados, foi elaborada a proposta final dondada, infantilizada, linhas mais finas e
desta pesquisa resultando na apresentação alguns ícones como corações, estrelas e cari-
de uma linha de produtos utilitários com de- nhas eram inseridos aleatoriamente no tex-
sign de superfície voltado ao público admira- to. Kinsella (1995) ainda coloca que algumas
dor da linguagem Kawaii. palavras eram escritas da forma como eram
faladas por uma criança muito pequena –
4 História em quadrinhos de origem japonesa (JBC MANGÁS, jul. 2013). que ainda é incapaz de falar corretamente –
5 No Brasil, são chamados animês para as animações feitas no Japão (SUA fortalecendo a característica infantil do dia-
PESQUISA, jul. 2013).
leto criado. No entanto, não eram somente
6 Consiste em fantasiar-se de personagens oriundos de história em qua-
drinhos, animes ou games. Os adeptos interpretam seus personagens favori- escritas gírias infantis e inocentes, a palavra
tos em eventos específicos que envolvem Mangás, Animês e Games (COSPLAY
BRASIL, jul. 2013). sexo, por exemplo, aparecia frequentemente.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 97

Assim, Kinsella (1995) narra que curiosa- de vendas neste mercado até 1990 e conti-
mente esta escrita não foi disseminada pela nua um grande sucesso nos dias atuais man-
mídia, que era muito criticada por lançar tendo uma vasta legião de fãs.
tendências entre a cultura jovem. Ela sur- Yano (2004) apresenta os aspectos e ca-
giu da necessidade que os jovens sentiam racteríscas dos desenhos que seguem o cute
de expressar algo diferente do que estavam style. Entre eles estão: tamanho pequeno,
acostumados. Algumas escolas baniram to- cores pastel, formas arrendodadas, toque
talmente esta escrita, onde os testes comple- macio, adoráveis, fantasiosos, enfeitados e
tados desta maneira eram desconsiderados. meigos. Kinsella (1995) observa que estes
E ainda, de acordo com Kinsella (1995), artigos não seguem um estilo tradicional ja-
palavras de origem inglesa como love e friend ponês e sim um estrangeirismo, em particu-
somadas ao uso liberal de sinais de excla- lar o americano ou europeu, principalmente
mação sugeriram que estes jovens estavam dos desenhos animados.
contra a cultura tradicional japonesa identi- Logo, as autoras Kinsella (1995) e Yano
ficando-se com a cultura européia que eles (2004) concluem que a anatomia perfeita
imaginavam ser mais interessante. para um personagem seguir este estilo se-
Esta escrita se alastrou pelo país inteiro ria: ser pequeno, macio, infantil, mamífero,
atingindo mais de cinco milhões de adeptos e com formas arredondadas, sem presença de
está fortemente associada ao comportamen- membros (braços ou pernas), sem alguns
to desses jovens, que falam como crianças, orifícios (como por exemplo, sem boca), as-
agem como crianças e se vestem como tal. sexuado, mudo, inseguro, aturdido e desam-
Este fenômeno chamou a atenção de em- parado.
presários que enxergaram um novo nicho De acordo com Charuca (2011) a lingua-
de mercado passando a desenvolver arti- gem Kawaii é muito fácil de ser identificada,
gos dentro do cute style a fim de atingir este pois seus gráficos possuem formas simples
público. e infantilizadas, com formas geométicas ar-
No design, o conceito de Kawaii foi culti- rendodadas, e aparecem cada vez mais com
vado durante décadas pelos japoneses. Oka- cores vibrantes e com mensagens de humor.
zaki e Johnson (2013) mencionam que ele Onde qualquer coisa, desde objetos a ani-
foi desenvolvido através do talento e paixão mais, são humanizados com uma proporção
de alguns artistas japoneses e designers. As distorcida, a cabeça costuma ser do mesmo
principais contribuições para o desenvolvi- tamanho ou maior que o resto do corpo (Fi-
mento da linguagem Kawaii foram as ilustra- gura 2).
ções de garotas, os mangás para garotas e os
artigos de presente.
A empresa Sanrio7 na década de 70, se-
gundo Kinsella (1995), começou a desenvol-
ver cute designs para impressão em blocos
de notas e diários direcionados para garotas
colegiais. O sucesso de vendas foi tão grande
que encorajou a empresa a expandir a pro-
dução ampliando para os artigos de presen- Figura 2 – Aranzi Aronzo. Exemplos de personagens que seguem

tes. Esta empresa se manteve no monopólio o cute style.

Fonte: ONE RED ROBIN, 2008.


7 Empresa japonesa de artigos para presentes. Com mais de 40 anos de
existência a Sanrio se destaca pela criação de personagens extremamente
cutes, entre eles a Hello Kitty, sucesso de vendas no mundo inteiro (SANRIO,
2013).
98 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

A empresa japonesa Sanrio criou um vas- sorvetes e guloseimas que nos remetem
to elenco de personagens priorizando o cute. instantaneamente à infância (Figura 4).
Em seu website “www.sanrio.com” é encon-
trado uma lista de figuras meigas, entre elas
os de mais destaque são: Keroppi, Little Twin
Stars, Pochacco, Chococat, Tuxedo Sam, Purin
e a mais famosa de todas: a Hello Kitty.
A referência Kawaii não está somente
nos objetos. Ela está pelas ruas, também
através da moda. As roupas neste estilo pa-
recem roupas de crianças, geralmente de Figura 4 – Embalagens com personagens Kawaii.

cores claras, tons pastel e cores do arco-íris Fonte: REBLOGGY, s.d.

(Figura 3).
A autora Diana Lee (2005) comenta sobre
o cute style. Colocando que ele significa um
pouco mais que somente consumir produtos
dentro deste estilo, significa também agir
como uma criança. E isso envolve expressões
inocentes, dieta balanceada, falar com voz de
criança, atitudes abobadas e essencialmente
a negação da existência de ideias, sentimen-
tos e atitudes que a maturidade abrange.

PERSONAGENS KAWAII
Figura 3 – Estilo cute na moda. Christopher Hart (2012) apresenta uma con-
Fonte: TOKYO FASHION, 2012. sistente definição sobre como seria um per-
sonagem Kawaii. Ele pontua as principais ca-
Okazaki e Johnson (2013) falam sobre racterísticas formais do desenho deliberado
Harajuku – um distrito de Tóquio – que reu- por ele como um estilo de arte pop:
ne milhares de fashionistas todos os dias
principalmente aos fins de semana. Hara- Os personagens kawaii são exaustivamente
juku inicialmente era uma área de pouca re- meigos. Alguns são alegres e agonizada-
levância, mas aos poucos, com o crescimento mente adoráveis. Outros podem ser som-
da economia, os jovens começaram a adotar brios, mas com uma qualidade má ado-
o local, que foi gradativamente se tornando rável. Outros ainda, incluindo os animais
um ponto de encontro para as subculturas: fantasiosos, são peculiares e estranhos, e
punks, rockabillies, skaters, dentre outros. tediosamente meigos. Qualquer que seja
Considerada atualmente como a meca da a forma de kawaii, as pessoas sempre irão
moda, Harajuku apresenta o street fashion achá-los irresistíveis (HART, 2012, tradu-
japonês para o mundo. Locais desfilam pelas ção nossa).
ruas com os mais diversos estilos, e a grande
maioria deles está relacionado ao Kawaii. Existe também uma subdivisão do man-
A linguagem Kawaii também está pre- gá que se chama mangá Kodomo – a palavra
sente na gastronomia seja nas embalagens kodomo significa criança em japonês. Cabe-
ou até mesmo dando forma aos alimen- zas (2009) define esta categoria como his-
tos. Principalmente nos doces como bolos, tória em quadrinhos ou conto de fadas para
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 99

crianças, publicados em revistas mensais ou Os autores Locher (2002) e Loy e Morre-


compilados em volumes tornando-se objeto all (1989) situam os principais aspectos da
de colecionadores. estética Kawaii. Dentre eles estão: tamanho
Este gênero do mangá comumente repre- físico pequeno, corpo arredondado, cabe-
senta os personagens com Chibis8, que são ça muito grande, testa arredondada, olhos
erroneamente comparados aos personagens grandes localizados abaixo da linha central
Kawaii. Hart (2012) coloca as principais dife- da cabeça, bochechas e mãos arredondadas.
renças entre eles conforme imagens a seguir A principal peculiaridade do personagem
(Figura 5). Kawaii certamente é o tamanho da cabeça
em relação ao corpo, Hart (2012) afirma que
o corpo precisa ter metade do tamanho da
cabeça.

INFLUÊNCIA DA CULTURA JAPONE-


SA NO BRASIL
No Brasil encontramos a maior colônia ni-
pônica fora do Japão. A imigração de japo-
neses concentrou-se na sua maior parte nos
estados de São Paulo, Paraná e Mato Grosso.
Em São Paulo existe um bairro predominan-
temente japonês, chamado Liberdade, que
abriga gerações que cultivam e preservam a
cultura e tradição japonesa.
Os brasileiros, em contato com os japone-
ses, sofreram influências da sua cultura, tra-
dição e costumes. Barreto (2008) comenta
no Jornal Estadão on-line a influência desses
imigrantes na implantação de novas técnicas
empresariais e agrícolas, o incentivo na prá-
Figura 5 – Personagem mangá x kawaii. tica de artes marciais e inovações na arqui-
Fonte: HART, 2012. tetura. A gastronomia foi marcada pela mis-
tura de ingredientes orientais e ocidentais
Desenhar um personagem Kawaii, não que modificaram até mesmo o tradicional
significa somente diminuir seu tamanho, drink brasileiro – a caipirinha – que passou
existe uma proporção específica para que a apresentar a versão nipônica no cardápio,
os personagens tenham esta característica. conhecida como “saquerinha” onde a cacha-
Hart (2012) comenta que: ça é substituída pelo saquê. Finalizando diz:

Você pode ter um lindo desenho com carac- A diáspora japonesa forneceu uma porta de
terísticas meigas e roupas adoráveis, mas entrada para a influência cultural em vários
se as proporções estiverem fora dos pa- níveis: dos mangás ao seriado de TV [...] da
drões Kawaii, não terá jeito, ele nunca será arquitetura ao design (BARRETO, 2008).
super meigo. (HART, 2012, p. 14, tradução
nossa). A exibição de seriados televisivos como o
Nacional Kid (Figura 6) em canais de TV do
8 Palavra japonesa que significa pequeno ou miniatura de um animal,
pessoa ou objeto (URBAN DICTIONARY, ago. 2013). Rio, Record e Globo, na década de 60, deram
100 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

início a divulgação da cultura japonesa por possui um mercado que consome a cultura
meio das mídias brasileiras, relata Maia nipônica com uma demanda bastante alta,
(2013). Este seriado foi de enorme sucesso que valeria o investimento na adaptação do
entre as crianças e jovens da época, já que gibi “Turma da Mônica” (Figura 7), um dos
contava com uma produção totalmente di- mais tradicionais do Brasil.
ferente do que eles estavam acostumados a
assistir. Após Nacional Kid outros seriados
asiáticos foram exibidos como o Ultramen na
TV Tupi, Fantomas no SBT, Princesa Safire e
Candy Candy na TV Record e Jaspion, na TV
Manchete, todos com sucesso de audiência,
destaca a autora Faria (2009).

Figura 7 – “Turma da Mônica” versão mangá.

Fonte: WEBIX, s.d.

Figura 6 – Nacional Kid. Os animês também colaboraram para


Fonte: CONTRA VERSÃO, 2013. a dissipação cultural. Esta denominação é
dada aos desenhos de origem japonesa que
As revistas em quadrinhos japonesas, co- apresentam algumas características como
nhecidas como Mangás, contribuíram, e mui- personagens de olhos grandes e expressivos,
to, para a disseminação da cultura oriental nariz pequeno, cabelos longos e corpo esguio
no Brasil. definidos por Batistella (2009).
Luyten (2003) pontua em seu artigo que Os animês começaram a participar cada
o interesse dos brasileiros pelas revistas em vez mais da programação televisiva brasileira.
quadrinhos orientais se deve ao fato da imi- Desencadearam legiões de fãs e admiradores.
gração de japoneses ao nosso país, que trou- Impulsionaram a criação de eventos como
xeram na bagagem este hábito de leitura. os “Animencontros”, que reúnem os fãs desta
Neto comenta que: cultura. Crescencio Neto (2012) finaliza:

No Brasil, essa tendência passou a ser A exibição de animes na televisão, encabe-


mais evidente quando os gibis “Turma da çado pela extinta TV Manchete no fim da
Mônica”, um símbolo da literatura clássica década de 80, foi um dos principais fato-
de quadrinhos nacional, passou a ter uma res da criação de uma geração de crianças
ramificação, descrita pelo próprio autor, que cresceram obtendo uma dose diária
Maurício de Souza, como sendo em “estilo da cultura nipônica. Essa geração se tor-
mangá” (CRESCENCIO NETO, 2012, p. 4). nou uma consumidora de cultura oriental,
o que teve como consequência uma maior
O autor conclui que esta mudança é um si- demanda dessa, o que catalisou a disse-
nal de que o mercado nacional, mesmo com minação da cultura no país (CRESCENCIO
uma cultura contrastante com a do Japão, NETO, 2012, p. 7).
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 101

Conhecidos nacionalmente como Otakus,


os fãs da cultura oriental crescem a cada dia.
Machado (2008) descreve como um estilo de
vida influenciado pelo Japão pontuando que
tem como função criar uma identidade, atu-
ando como marca de pertencimento.
A linguagem Kawaii aparece frequente-
mente nesses meios. Seja nos quadrinhos
japoneses, nos animês e até mesmo nos Figura 9 – Rótulo de espumante com a personagem Pucca.

eventos de cosplay onde facilmente são en-


contradas garotas de aparência “meiga”, que DESIGN DE SUPERFÍCIE APLICADO
utilizam o Kawaii como referência em suas À CERÂMICA
vestimentas (Figura 8). Esta pesquisa traz como proposta a criação
e desenvolvimento de estampas e padrões
com referência na linguagem Kawaii para a
aplicação na superfície cerâmica através da
técnica da decalcomania.
Na primeira etapa do projeto foram ela-
borados e aplicados decalques em peças de
porcelana diversificadas para testes de pro-
cessos técnicos e de avaliação.
Após a análise dos resultados foi verifica-
da a qualidade da impressão quanto a fideli-
dade de cores e formas. As aplicações foram
feitas em diferentes locais das peças, no lado
externo e interno, em diversas composições
cujos resultados forneceram informações
Figura 8 – Akemi Matsuda, “Lolita” brasileira. para a execução do projeto final.
Fonte: JORNAL NIPPAK, 2012.

PROCESSO CRIATIVO
Personagens Kawaii são usualmente en- O processo criativo iniciou com a definição
contrados nos produtos importados do de um conceito para uma linha de utilitários
oriente, comercializados principalmente em porcelana. A partir do referencial teórico
em papelarias, lojas de presente e do tipo levantado foi possível desenvolver este con-
“R$1,99”. Atualmente eles também estam- ceito. O mar do oriente foi escolhido como
pam rótulos de produtos nacionais, sinali- fonte de inspiração para a criação desta linha
zando a influência destes personagens em intitulada “Marina”. A escolha pelo tema se
nossa cultura. Um exemplo de produto com justifica na proximidade do povo oriental ao
esta referência é o último lançamento da oceano em sua vivência e tradições.
marca de bebidas Cereser, que apresenta Os personagens foram criados a partir da
estampado na embalagem, de uma linha de seleção de alguns animais marinhos que fazem
espumantes sem álcool, a personagem Pucca parte da culinária japonesa entre eles o salmão,
que é muito conhecida pelos admiradores do polvo, lula, camarão e caranguejo. Foram con-
Kawaii (Figura 9). siderados a popularidade de consumo destes
frutos do mar dentro da rotina do povo orien-
tal bem como suas características estéticas.
102 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Foi iniciada a pesquisa das imagens que que podem ser observadas, dentre elas, a
serviriam de referência para a criação dos simplificação e estilização da forma, contor-
personagens. A partir destas imagens são no com linha espessa, olhos abaixo da linha
feitos os primeiros esboços em grafite. central da cabeça, membros muito peque-
Com as ilustrações pré-definidas inicia- nos e cabeça grande. Na composição foram
ram os estudos de aplicabilidade nas peças inseridas mensagens grafadas baseadas na
que foram escolhidas de acordo com os uti- escrita Cute Handwriting. As tigelas trazem
litários da cozinha oriental. Todas elas se- as seguintes mensagens: “Bom apetite” e
guem um formato arredondado assim como “Obrigado por esta refeição”. O copo para sa-
as ilustrações desenvolvidas criando uma quê significa “Saúde” comumente falado em
uniformidade no conjunto. Os desenhos fo- comemorações ao se fazer um brinde.
ram reproduzidos em papel vegetal em um Efetuados os devidos ajustes de propor-
tamanho próximo ao desejado. Ao serem ção e/ou composição os desenhos estão
posicionados nas peças permitiram uma me- prontos para a etapa seguinte da produção
lhor definição do dimensionamento, ocor- dos decalques.
rendo correções (maior ou menor). A trans- A cartela de cores original é composta por
parência do papel utilizado contribuiu para tons pastel recorrentes no desenho Kawa-
uma melhor visualização. ii. Para atingir este resultado foi necessário
Uma vez definidos os desenhos foram fi- alterar para tons um pouco mais vibrantes,
xados com fita adesiva permitindo, desta for- pois na etapa de queima das peças as cores
ma, a observação dos resultados. sofrem mudanças para tons mais claros.
Após concluídos os estudos manuais foi Concluído os ajustes da cartela de cores
iniciada a digitalização dos esboços através foi preparado o arquivo para a impressão
de um scanner. A imagem digitalizada serve que trata basicamente do melhor aproveita-
como guia para a vetorização do desenho. De- mento possível da área a ser impressa atra-
pois de vetorizados os detalhes são concluí- vés do encaixe das composições. Tal proce-
dos e é adicionada a cor de preenchimento dimento foi realizado para reduzir custos.
(Figura 10). Com a impressão pronta os desenhos são
cuidadosamente recortados para a aplicação
nas peças.Os decalques são mergulhados em
um recipiente contendo água e, em alguns
segundos, já começam a descolar do papel
para serem cuidadosamente posicionados
no local desejado.
Após a aplicação dos decalques as peças
precisam ser submetidas a uma queima na
temperatura aproximada a 800º C para a fi-
xação do pigmento. É nesta fase que ocorrem
as alterações das cores.
As peças são retiradas do forno já prontas
para o uso. As peças que compõem a linha
Figura 10 – Estudo formal para estampa com base no motivo Marina são: duas tijelas(owan), dois prati-
“Camarão”. nhos(nazoki), dois copos para saquê(massu)
e um prato para sushi e sashimi(kakuzara)
Os personagens seguem a linguagem (Figura 11, 12 e 13).
Kawaii de acordo com algumas características
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 103

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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 105

O PAPEL DO PROFESSOR DE LÍNGUA PORTUGUESA


INSTRUMENTAL ATUANTE EM ESCOLAS TÉCNICAS
PROFISSIONALIZANTES: MITOS E DESAFIOS

Guilherme da Silva dos Santos1


Maria Tereza Nunes Marchesan2

RESUMO: Os cursos de formação técnico-profissionalizantes, por possuírem uma formação mais


rápida que a universidade e pela possibilidade do ingresso no mercado de trabalho com mesma
rapidez, são uma realidade em crescente ascensão no cenário educativo brasileiro. No tocante ao
elenco das disciplinas que compõe um curso de formação técnica, a língua portuguesa é uma das
que são contempladas, sendo que, na grande parte do tempo, amparada pela abordagem do ensino
instrumental de línguas. Nesse sentido, uma pergunta carece atenção: será que os professores de
língua portuguesa, em serviço em escolas de formação técnico profissionalizantes, estão familiari-
zados com esta abordagem de ensino de línguas? Para responder a essa questão, este trabalho ques-
tionou dois professores (um professor e uma professora) que trabalham com a língua portuguesa
instrumental em um curso de formação técnica na cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. Além
de apresentar a teoria que ampara a abordagem instrumental do ensino de línguas, o objetivo deste
trabalho é de apresentar algumas considerações e reflexões sobre o que esses professores pensam
sobre o ensino da língua portuguesa com viés instrumental. O estudo se fundamentou em uma breve
revisão teórica sobre o ensino instrumental de línguas; ensino técnico profissionalizante, formação
de professores com contribuição da teoria sóciointeracionista. Os resultados, ainda que de natureza
básica, mostraram que o ensino instrumental de línguas ainda necessita de mais divulgação entre
o meio acadêmico de formação de professores. Muito se prima pelo ensino da língua enquanto es-
trutura gramatical, porém, a língua como um instrumento de uso em determinadas necessidades
sociais também se apresenta como ponto imperativo da formação docente.
Palavras-chave: Ensino instrumental da língua portuguesa. Ensino técnico-profissionalizante. For-
mação de professores.

ABSTRACT: The technical-vocational courses training, by having a faster training that the univer-
sity and the possibility of entering the labor market as quickly, are a reality in increasing rise in the
Brazilian educational scenario. Regarding the list of disciplines that makes up a technical training
course, the Portuguese language is one that is contemplated, and, in large part, supported by the
instrumental approach to language teaching. In this sense, a question needs attention: will the Por-
tuguese language teachers, service in professional technical training schools, are familiar with this
approach to language teaching? To answer this question, this study asked two teachers (one male
teacher and one female teacher) working with the instrumental Portuguese language on a technical
course in the town of Santa Maria, Rio Grande do Sul. Besides presenting the theory that supports
the instrumental approach to language teaching, the aim of this work is to present some thoughts
and reflections on what these teachers think about the teaching of Portuguese language with instru-
mental bias. The study was based on a brief literature review on the instrumental language teaching;

1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Letras. Área de concentração dos Estudos Linguísticos. UFSM

2 Professora Doutora do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas – UFSM. Coordenadora do Centro de Ensino e Pesquisa em Línguas Estrangeiras
Instrumentais (Cepesli)
106 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

vocational technical education, teacher training trumentales todavía requiere mayor divulgación
with contribution of social interactionist theory. entre la formación académica de los docentes.
The results, although basic in nature, showed Gran parte es material para la enseñanza de la
that the instrumental language teaching still re- lengua como estructura gramatical, sin embargo,
quires more disclosure between the academic el lenguaje como una herramienta para su uso en
training of teachers. Much is material for the ciertas necesidades sociales también se conside-
teaching of language as grammatical structure, ra el punto de la formación docente.
however, the language as a tool for use in certain Palabras clave: Enseñanza Instrumental lengua
social needs is also considered imperative point portuguesa. La instrucción técnica y profesional.
of teacher education. La formación del profesorado.
Keywords: Instrumental Teaching Portuguese
language. Technical and vocational education.
Teacher training. 1. INTRODUÇÃO
Abordar questões de pesquisas que abar-
RESUMEN: La formación de cursos técnicos pro- quem problematizações envolvendo a forma-
fesionales, por tener una formación más rápida ção do professor de línguas tem sido objeto
que la universidad y la posibilidad de acceder al de pesquisas contínuas, visto que é uma área
mercado laboral lo más rápido, son una realidad que tomou particular impulso com relação
en aumento cada vez mayor en el escenario edu- ao crescente interesse pela ótica dos estudos
cativo brasileño. En cuanto a la lista de las disci- da linguagem (CELANI, 2008). Focalizando
plinas que componen un curso de capacitación essa problematização especificamente no
técnica, la lengua portuguesa es una de las que se papel do professor de Língua Portuguesa,
contempla, y, en gran parte, con el apoyo del en- traz à luz pesquisas que contribuem signifi-
foque instrumental de la enseñanza de idiomas. cativamente para o contexto de ensino atual,
En este sentido, una pregunta necesita atención: uma vez que é uma língua que ganha notória
¿los profesores de lengua portuguesa, trabajan- admiração em um espaço cada vez mais glo-
do en las escuelas profesionales de formación balizado (CANZIANI, 2009).
técnica, están familiarizados con este enfoque de Na explanação de Valezi e Cox (2011) a
la enseñanza de idiomas? Para responder a esta questão da formação do professor deve ser
pregunta, este estudio hizo algunas preguntas entendida como um processo contínuo e sis-
para dos profesores (un maestro y una maestra) tematizado pois, o que se aprende no perío-
que trabajan con la lengua portuguesa instru- do de estudos da faculdade são apenas uma
mental en un curso técnico en la ciudad de Santa base que deve ser aprimorada longitudinal-
María, Rio Grande del Sur. Además de presen- mente. Desse modo, a formação docente tem
tar la teoría que apoya el enfoque instrumental por objetivo preparar o futuro professor,
de la enseñanza de idiomas, el objetivo de este para que ele possa ensinar a partir de um
trabajo es presentar algunas ideas y reflexiones conjunto de conhecimentos que lhe possi-
sobre lo que estos profesores piensan acerca de bilitem enfrentar os desafios da profissão
la enseñanza de la lengua portuguesa con en- (GOMES, 2014).
foque instrumental. El estudio se basó en una Valezi e Cox (2011) corroboram que um
breve revisión de la literatura en la enseñanza desses desafios que o profissional de Letras
de la lengua instrumental; la educación técnica enfrenta em sua profissão de professor de
profesional, la formación del profesorado con la Língua Portuguesa3 é a sua atuação como
contribución de la teoría del interaccionismo so-
cial. Los resultados, aunque de naturaleza básica, 3 As autoras citadas usam a especificação de “professor de português”
para o profissional de Letras por este também estar apto a dar aulas como
mostraron que la enseñanza de las lenguas ins- professor de literaturas e redação.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 107

professor deslocado da escola tradicional ortográficas, regras de acentuação e conju-


(ensino fundamental e médio). Nesse ponto, gação de verbos; no Ensino Técnico Profis-
as pesquisadoras pontuam especialmente o sionalizante o professor parte do princípio
espaço pedagógico do Ensino Técnico Profis- de que o aluno já sabe essas regras da língua
sionalizante. materna e, agora, deverá usá-las em contexto
O ensino de nível Técnico Profissionali- de aplicação verbal e não verbal nas diversas
zante é uma modalidade em crescente ascen- linguagens possíveis no meio profissional.
são no cenário brasileiro, pois possui o cará- Nesse sentido, na visão de Gomes (2014)
ter de capacitar profissionalmente em um é que as instituições de Ensino Superior têm
curto espaço de tempo (2 anos, em média). a incumbência de preparar os futuros pro-
Desse modo, a disciplina de Língua Portu- fessores. Elas devem proporcionar uma ba-
guesa é ministrada com base na Abordagem gagem sólida não apenas no âmbito da cien-
do Ensino Instrumental de Línguas, a qual, tificidade, mas também cultural, contextual,
de acordo com Ramos (2005) possui como psicopedagógico e pessoal, para capacitar o
característica primeira o ensino dirigido a futuro docente a assumir a tarefa educativa
atender as necessidades dos alunos em um em toda a sua complexidade, atuando refle-
curto período de tempo. xivamente com a flexibilidade e o rigor ne-
A partir disso, Valezi e Cox (2011) argu- cessários a uma educação sólida e promisso-
mentam que não raramente escutamos dis- ra após a conclusão do curso de graduação.
cursos de insatisfação de docentes com rela- Diante deste exposto, este trabalho de
ção a formação teórica obtida na faculdade pesquisa se propõe a investigar a respeito
e a prática de ensino real vivenciada nas es- da formação de dois professores de Língua
colas de ensino a nível Técnico Profissiona- Portuguesa em serviço em uma escola de
lizante. Essa insatisfação tem como origem Ensino Técnico da cidade de Santa Maria, Rio
a formação do professor de português que Grande do Sul - RGS, sobre o ensino-apren-
desde o início do curso de Letras foi orienta- dizagem desse idioma por meio da Abor-
do a atuar em escolas de ensino tradicional dagem Instrumental. Diante disso, o aporte
- Fundamental e Médio. Assim, muitos pro- teórico utilizado para a investigação deste
fessores acabam reproduzindo as ações pe- artigo abrangeu questões relacionadas ao
dagógicas comuns a essas etapas do ensino conceito da Abordagem Instrumental, ba-
também no Ensino Técnico Profissionalizan- seado principalmente em Ramos (2005)
te (VALEZI e COX, 2011). Nesse prisma, os e Diniz e Marchesan (2010); Formação de
professores sentem-se desafiados a reorga- Professores (VALEZI e COX, 2011; CELANI,
nizar suas práticas pedagógicas para atender 2008; OLIVEIRA JUNIOR, 2008) e a respeito
efetivamente às novas demandas de aprendi- da Teoria Sociointeracionista de Vygotsky
zagem nos cursos de formação profissional, (BARROS, 2009; REGO, 2009; MOITA LOPES,
uma vez que durante a formação universitá- 1994), pois, o conceito de interação é funda-
ria não houve um momento didático voltado mental para a compreensão do processo de
para esse setor do ensino. (VALEZI, 2009) desenvolvimento humano, uma vez que é
Martins et al. (2010) contribui advogan- através dela, da relação estabelecida com o
do que o ensino de uma língua deve ser di- outro, que o ser humano se constitui como
ferenciadamente abordada na sua forma tal. Esta pesquisa se configura metodologi-
de aplicação, em seus diferentes níveis. De camente estruturada na pesquisa qualitativa
acordo com Valezi (2009) a diferença é que imersa em um estudo de caso (GIL, 1999 e
enquanto no Ensino Fundamental e Médio LÜDKE e ANDRÉ, 1986) e foi utilizado um
a Língua Portuguesa é baseada em normas questionário com quatro perguntas como
108 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

instrumentos para coleta de dados. Os re- 1980 e 1989 e tinha como objetivo melhorar
sultados mostraram, de forma ainda sucinta, o uso de Inglês dos pesquisadores brasilei-
em resposta às perguntas da pesquisa, que ros, professores e técnicos, especialmente no
entre os participantes há representações de que diz respeito à leitura de publicações es-
um dos mitos apontados por Ramos (2005), pecializadas e técnicas.
o qual apresenta que o ensino-aprendizagem Assim, pelo exposto, Ramos (2009, p.69)
da língua (neste caso, a Língua Portuguesa) afirma que não é possível “apresentar a his-
por meio da Abordagem Instrumental não tória de ESP no Brasil sem introduzir a his-
ensina a gramática da língua. tória do Projeto Nacional Ensino de Inglês
Instrumental em Universidades Brasileiras”,
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA pois são histórias que não podem ser separa-
das. Para a autora, “ESP também tem seu lu-
2.1 Considerações sobre a Abordagem gar no contexto educacional brasileiro. Ele é,
do Ensino Instrumental de Línguas: Ori- agora, uma área bem estabelecida no campo
gens, Práticas e Mitos do ensino-aprendizagem de línguas no país”
De acordo com Ramos (2005) o Ensino Ins- (RAMOS, 2009, p.68).
trumental de Línguas não é uma abordagem Ramos (2005) salienta que devido ao
de ensino da atualidade. Essa modalidade de sucesso desse projeto, o termo “Instrumen-
ensino remonta à Antiguidade greco-roma- tal” tornou-se sinônimo de ensino de leitu-
na. Porém, um marco histórico importante ra para muitos professores e pesquisadores.
para o desenvolvimento do Ensino Instru- Contudo, essa abordagem não se restringe
mental foi o fim da Segunda Guerra Mundial somente a habilidade de leitura, pois em seu
em 1945, que propiciou a ascensão de duas fundamento está o princípio de atender a
superpotências: Estados Unidos da América necessidade do aluno, seja ela na habilidade
- EUA e União Soviética (atual Rússia), des- cognitiva que for4. Assim, essa abordagem é
fazendo-se assim a hegemonia mundial da caracterizada em primeiro lugar pelo ensi-
Europa. O poder econômico assumido pós- no dirigido a atender à necessidade dos alu-
guerra pelos EUA fez com que o inglês assu- nos. Outras características definidoras desta
misse o papel de Língua Internacional au- abordagem são, de acordo com Diniz e Mar-
mentando a procura de cursos voltados para chesan (2010), as seguintes: cursos de curta
o ensino deste idioma. Além disso, “na época duração; a produção de material didático es-
houve necessidade de capacitar os imigran- pecífico; o grupo de alunos homogêneo em
tes que trabalhavam para a reconstrução da relação aos objetivos a serem alcançados;
Europa” (RAMOS, 2005, p.112) e, geralmente, ser constituído por pessoas
No Brasil, esta abordagem surgiu na dé- adultas.
cada de 70 do século XX, conforme ratifica Monteiro (2009) explica que a Aborda-
Ramos (2005, p.115), “essa abordagem apa- gem Instrumental pode ser adotada no ensi-
receu no país na década de 70 com trabalhos no-aprendizagem de qualquer língua e que
na área de ensino-aprendizagem de Francês. admite-se outras nomenclaturas para o ter-
Em fins da década de 70, a Língua Inglesa mo “instrumental”, tais como: “fins especí-
começou a despertar para essa área”. Porém, ficos”, “técnico”, “acadêmico”, “profissional”,
foi na PUC-SP a Instituição responsável pela entre outras terminologias de acordo com a
implantação, em 1980, do Projeto Nacional língua a ser ensinada. Contudo, como o pon-
Ensino de Inglês Instrumental em Universida- to basilar desta abordagem teve o berço no
des Brasileiras (Projeto ESP). De acordo com
4 Afirmação com base teórica nas habilidades de escrita – leitura – com-
Ramos (2005), o projeto foi executado entre preensão auditiva e oralidade.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 109

ensino da Língua Inglesa, normalmente es- não raramente é uma abordagem exigida em
cuta-se o nome “Inglês Instrumental”. Esse, certos centros educacionais e que, não rara-
não raramente voltado à leitura, deu origem mente, também, desafia muitos Professores
a um dos sete mitos que envolve a Aborda- de Língua na tarefa de pôr em prática essa
gem Instrumental do Ensino de Línguas: Abordagem.
o mito de que dar aulas de Instrumental é Nesse tocante, Valezi (2011), pesquisado-
dar aulas de leitura em língua estrangeira. ra da Abordagem Instrumental do Ensino de
Como corrobora Ramos (2005, p.116): “o Línguas, defende a formação do professor de
ensino de leitura foi a única habilidade que Língua Portuguesa que leciona em escolas de
recebeu tratamento especial5. Logo, por um Ensino Profissional. De acordo com a auto-
lado, Instrumental virou sinônimo de curso ra, esses professores sentem-se desafiados a
de leitura e, por outro lado, todo curso de- exercerem a profissão de docentes com base
dicado ao ensino-aprendizagem de leitura é na Abordagem Instrumental, pois, durante
Instrumental. o espaço acadêmico não houve um momen-
Porém, não é apenas esse mito que existe to - uma disciplina - voltada a análise deste
no meio do ensino-aprendizagem do Instru- ramo dos estudos linguísticos. Normalmen-
mental. Além desse, Ramos (2005, p.116- te, como assinala Monteiro (2009), alguns
117) aponta mais 7 mitos relacionados ao cursos de formação em Letras oferecem uma
ensino do Instrumental (voltado ao ensino disciplina – em grande parte, optativa – que
da língua inglesa, nesse caso, especificamen- trabalha dinâmicas de construção de mate-
te). A saber: rial didático para um determinado público
específico ou estratégias de leitura. Porém,
• é mono-skill; essa disciplina, mesmo que não obrigatória,
• é Inglês Técnico; basicamente é voltada para línguas estran-
• não faz uso de dicionário; geiras. Assim, o acadêmico do curso de Le-
• não ensina gramática; tras em Língua Portuguesa não tem um con-
• tem que ser ministrado em português; tato basilar com essa Abordagem.
• é ensinado apenas depois que o aluno do- Sendo assim, a próxima sessão deste tra-
mina o “inglês básico”; balho abordará a temática da Formação de
• proporciona uma aprendizagem “manca”. Professores relacionada ao papel que o pro-
fessor de Língua Portuguesa em espaço de
Logo, é possível desmistificar esses mitos ensino Técnico Profissionalizante apresenta.
que permeiam o ensino voltado a Abordagem Tal problemática se justifica pelo que esta
Instrumental? Monteiro (2009) contribui pesquisa se propõe: realizar uma investiga-
para com essa questão advogando que um ção com professores atuantes em uma escola
dos meios de combater e desconstruir esses de Ensino Técnico Profissional, em desem-
mitos que envolvem a Abordagem está arrai- penho com aulas de Português Instrumental,
gado no tema da Formação de Professores de para saber se esses docentes sabem sobre a
Língua. A autora afirma que assim, com uma Abordagem a qual estão operacionalizando
formação docente de base, inicializada na suas técnicas de aula. O espaço escolar in-
faculdade e, posteriormente, com cursos de vestigado, a pesquisa e seus sujeitos, assim
atualização para professores, o tema do Ins- como os dados da pesquisa serão expostos
trumental se tornará melhor visto e melhor no capítulo três deste trabalho.
desenvolvido em espaço educacional, pois,

5 Referindo-se ao Projeto ESP.


110 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

2.2. Breves considerações sobre Forma- formação do professor que desde o início do
ção de Professores de Língua e o Ensino curso de Letras foi orientado a atuar em es-
Técnico Profissionalizante colas de ensino Fundamental e Médio. Assim,
Abordar a temática da Formação de Profes- muitos professores acabam reproduzindo as
sores, além de ser um assunto inesgotável no ações pedagógicas comuns a essas etapas do
espaço da Educação, se faz de suma impor- ensino também no Ensino Técnico Profissio-
tância para o desenvolvimento da profissão nalizante (Valezi e Cox, 2011). Nesse pris-
docente. Nesse sentido, abordar questões de ma “os professores sentem-se desafiados a
pesquisas que abarquem problematizações reorganizar suas práticas pedagógicas para
envolvendo, especialmente, a Formação do atender efetivamente às novas demandas de
Professor de Línguas tem sido objeto de pes- aprendizagem nos cursos de formação pro-
quisas contínuas, visto que é uma área que fissional” (VALEZI, 2009 p.200) uma vez que
tomou particular impulso com relação ao durante a formação universitária não houve
crescente interesse pela ótica dos estudos da um momento didático voltado para esse se-
linguagem (CELANI, 2008). Focalizando essa tor do ensino.
problematização especificamente no papel Corroborando com tal opinião, Oliveira
do professor de Língua Portuguesa, traz à luz Junior (2008 p.72) aponta que:
pesquisas que contribuem significativamen-
te para o contexto de ensino atual, uma vez Um dos maiores problemas relacionado
que é uma língua que ganha notória admira- com a formação de professores em geral e
ção em um espaço cada vez mais globalizado que ficou mais evidenciado nas tentativas
(CANZIANI, 2009). de formação de professores para o ensino
Nesse ponto, a formação do docente de Lín- técnico é que as Universidades têm difi-
gua Portuguesa instiga à pesquisas em diversos culdades intrínsecas para lidar com essa
âmbitos de sua formação à atuação. Pesquisas questão. Nas licenciaturas o que se ensina
essas que variam desde estratégias de uso dos basicamente é a História da Educação [...]
diferentes gêneros textuais em sala de aula, a poucas vezes se discute o aqui e o agora.
investigações sobre o atuar do professor for- Poucas vezes se discute o real e o concreto,
mado em Letras (CANZINI, 2009), pois, de a escola da realidade e o que o professor irá
acordo com o que se apresenta, um curso de li- encontrar.
cenciatura em Letras – português e literaturas
da língua portuguesa –“incumbe-se da forma- Desse modo, o docente que atua nesse
ção proissional de professores para atuar com setor da educação deve estar em constante
o ensino da língua portuguesa em ensinos de atualização, buscando inovações didáticas
contexto Fundamental, Médio e Superior, bem para tornar a aula como um momento de
como em contextos diversos como empresas, acontecimento, de trocas de informações,
jornais, editoras e Curso Técnico Pós-Médio”6. de colocações de vivencias que incluem as
Nesse liame e com vistas ao contexto de práticas de conhecimento docente e dis-
atuação em Cursos Técnico Pós-Médio, Va- cente e, assim, considerar o vivido dos su-
lezi e Cox (2011) exprimem que o professor jeitos para que a concepção de aula como
de Língua Portuguesa, muitas vezes, se de- simples ritual de transmissão seja revista
para com um entrave a ser dialogado: como (GERALDI, 2010). Uma dessas atualizações,
ser professor de Língua Portuguesa na edu- muitas vezes, são os Cursos de Formação de
cação profissional? Essa dúvida é devida a Professores para a Educação Profissional.
A criação destes cursos decorre da necessi-
6 Informação sacada do site da Universidade Federal de Santa Maria, gra-
duação em Letras. www.ufsm.br dade firmada na Lei de Diretrizes e Bases
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 111

da Educação Nacional (Lei 9.394/96) de Acredita-se que a Formação Inicial pode


que a Formação dos Professores para atuar ser decisiva para o desenvolvimento pro-
na Educação Básica far-se-á em nível supe- fissional dos professores, no sentido da au-
rior, em curso de Licenciatura, de graduação tonomia, da competência técnico/política
plena, conforme o Artigo 62. Ainda, segun- e da responsabilidade social, pois, durante
do esta Lei, em seu Artigo 63, inciso II, está esse período, os futuros professores devem
prevista a criação de programas de formação incorporar competências e habilidades de
pedagógica para portadores de diplomas de distintas naturezas, que os tornarão capa-
educação superior que queiram se dedicar zes de propor diferentes conteúdos a se-
à educação básica. O objetivo destes cursos rem ensinados e, também, diversas manei-
é o de formar professores em nível superior ras de ensinar (GOMES, 2014, p.2)
para a docência na modalidade de Educação
Profissional, capacitados para atuar no Ensi- Dessa forma, é notória a atenção que os
no Técnico de nível Médio. pesquisadores direcionam ao espaço da fa-
Como pode-se perceber, a oferta de uma culdade como sendo o local basilar para os
capacitação qualificadamente de nível com- estudos formadores frente a Abordagem
plementar é obtida com o curso de forma- Instrumental do Ensino de Línguas. Aqui,
ção, porém, pelos editais de oferta, tal curso especialmente advogando a respeito da Lín-
é oferecido a bacharéis que queiram atuar na gua Portuguesa. Castanho e Costa (1999)
Educação Técnica Profissionalizante. Assim, contribuem objetando que dentre esse vasto
Licenciados, como o caso do professor de aporte teórico que se tem escrito a respeito
Língua Portuguesa, não estão aptos a reali- da Formação de Professores (sejam esses de
zarem tal formação complementar, por não línguas ou não), importante se faz mencionar
ser exigido pelos órgãos de leis. este tema na ótica do social e do interacio-
Dessa forma, cabe ao professor de Licen- nal. Nesse sentido, Castanho e Costa (1999)
ciaturas buscar por apoios pedagógicos e de afirmam que todo o processo de ensino, de
formação extra que o auxilie nos saberes a conhecimento e de sapiência se faz por meio
serem ensinados, que necessitam ser toma- da interação com parceiros pois, todo o co-
dos de forma didática ligados à gestão in- nhecimento é oriundo de um conhecimento
terativa em sala de aula no seu processo de compartilhado entre seres com experiências
atuação. (OLIVEIRA JUNIOR, 2008). diferenciadas.
Na visão de Gomes (2014) as instituições Partindo dessa contribuição, visualiza-se
de Ensino Superior têm a incumbência de que o papel da Teoria Sociointeracionista,
preparar os futuros professores para a atu- elaborada pelo psicólogo russo Lev Semeno-
ação nos diversos seios pedagógicos que a vich Vygotsky pode ser aplicada ao Ensino
formação admite. Elas devem proporcionar Instrumental de Línguas. Assim, como suge-
uma bagagem sólida não apenas no âmbi- re Castanho e Costa (1999) o papel da inte-
to da cientificidade, mas também cultural, ração no processo de aprendizagem aludi a
contextual, psicopedagógico e pessoal, para mudanças no comportamento do ser; uma
capacitar o futuro docente a assumir a ta- vez que essa interação propicia estratégias,
refa educativa em toda a sua complexidade, recursos e métodos de assimilação daquilo
atuando reflexivamente com a flexibilidade que é ponto base para qualquer processo
e o rigor necessários a uma educação sólida cognitivo: a linguagem. Nesse viés, Vygotsky
e promissora após a conclusão do curso de (1998) corrobora a leitura anterior expon-
graduação. do que a linguagem é o instrumento cogni-
tivo por excelência e é ela a responsável por
112 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

mediar as relações entre o ser humano e a pois todo novo conhecimento necessita ser
realidade do mundo que o cerca. mediado.
Vygotsky (1998, p. 21) elaborou sua te-
2.3 Considerações sobre o papel da Inte- oria tendo como principal objetivo “carac-
ração Social na formação dos professo- terizar os aspectos tipicamente humanos
res: Vygotsky e a Teoria do Sociointera- do comportamento e elaborar hipóteses de
cionismo como essas características se formaram ao
De acordo com Bronckart (1999) os estu- longo da história humana e de como se de-
dos interacionistas apresentam um caráter senvolvem durante a vida de um indivíduo”.
transdisciplinar, pois “a expressão interacio-
nismo social designa uma posição epistemo- 2.4 O Sociointeracionismo, o Professor e
lógica geral, na qual podem ser reconhecidas o Aluno
diversas correntes da filosofia e das ciências Vygotsky (1998) defende que o processo
humanas”. (BRONCKART, 1999, p.21). Moita de aprendizagem do ser humana é fruto das
Lopes (1994) advoga que o conceito de in- suas interações com indivíduos de sua mes-
teração passou a ser objeto de análise cien- ma espécie. Assim, a construção do conhe-
tífica a partir do século XX, porém o autor cimento é oriunda de ações compartilhadas
admite que antes dessa época a interação já entre os indivíduos humanos.
havia sido tema de reflexão filosófica desde Essa teoria Vygotskiana vem se desenvol-
o século XVIII. vendo no conceito da interação social da lin-
A Teoria Sociointeracionista ou Sócio- guagem e da cultura no desenvolver do ser
-Histórica, como também é conhecida, foi humano. De acordo com este referencial, o
elaborada pelo psicólogo russo Lev Semeno- conhecimento não é uma representação da
vich Vygotsky que “desde os anos 80 é con- realidade, sim, um mapeamento das ações
siderado o pai da corrente histórico-cultural que provaram ser indispensáveis na experi-
em psicologia e em ciências da educação” ência do indivíduo no seu meio social. Sendo
(FRIEDRICH, 2012, p.13). Lev Semenovich assim, a aprendizagem é um resultado adap-
Vygotsky nasceu em 1896 em uma singela tativo que tem natureza social, histórica e
cidade da Bielo-Rússia. Apesar de uma vida cultural (Boiko e Zamberlan, 2001).
relativamente curta, (1896-1934) Vygotsky Moretto (2001) advoga que é a partir da
alcançou uma considerável produção inte- Teoria Sociointeracionista que o professor,
lectual. De acordo com Rego (2009, p. 22): em contexto de ensino, elabora o seu proces-
“seu percurso acadêmico foi marcado pela so de ensino e aprendizagem. Este processo
interdisciplinaridade já que transitou por di- leva em conta a cultura e o contexto em que
versos assuntos, desde artes, literatura, lin- esse docente encontra-se inserido, pois, é a
güística, antropologia, cultura, ciências so- partir destes dois fenômenos que o profes-
ciais, psicologia, filosofia e, posteriormente, sor irá basear-se para fomentar no seu pú-
até medicina”. blico-alvo as curiosidades acerca do apren-
Vygotsky foi o pioneiro a defender de que der. Essa interação com o meio social faz-se
o desenvolvimento intelectual do ser huma- de suma importância, pois as relações com o
no ocorre em função das constantes intera- conhecimento prévio adquirido extraclasse
ções sociais que se dão durante toda a sua adquire suporte para o que o docente con-
vida. De acordo com Vygotsky (1998) é por textualizará em sala de aula.
intermédio da interação, que o ser humano Assim, cabe ao docente o papel de me-
se constitui como tal. Desse modo, para que diador entre a bagagem cultural que o
exista aprendizagem há que haver interação, aluno traz consigo do seu meio social e os
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 113

culturalmente estabelecidos pelo sistema aprendem a como abordar e resolver pro-


de ensino escolar, promovendo, assim, um blemas variados. É por meio do processo
aprendizado entre eles. de internalização que as crianças começam
Na assertiva de Boiko e Zamberlan (2001, a desempenhar suas atividades sob orien-
p. 01): tação e guia de outros e, paulatinamente,
aprendem a resolvê-las de forma indepen-
Na perspectiva de que o processo de desen- dente.
volvimento é otimizado pelo aprendizado e
que a presença ou a colaboração de outra Conforme argumenta Moita Lopes (1994)
pessoa mais capaz conduz este processo, o processo de aprendizagem tem sido, cada
o referencial sócio-construtivista situa a vez mais, visto como o resultado da co-par-
educação e a escola como tendo um papel ticipação entre professores e alunos. Dessa
essencial na promoção do desenvolvimen- forma, a interação entre os sujeitos envolvi-
to dos indivíduos, e o professor, como pla- dos no processo de ensino e aprendizagem
nejador, observador, promotor e desafiador deve ser estimulada ao máximo em sala de
do desenvolvimento dos mesmos. aula e essa iniciativa deve partir do próprio
professor, proporcionando aos alunos um
Sendo assim, os estudos com base nessa ambiente interativo adequado, que permita
teoria levam em consideração a natureza do a participação de todos nas discussões e ex-
ser humano no seu desenvolvimento socio- posição de ideias.
cultural, pois, não há um indivíduo que se de- Sabemos que para que haja aprendiza-
senvolva fora de um contexto cultural. Dessa gem, necessariamente há que haver intera-
forma, a ferramenta “cultura” faz-se capaz de ção, pois todo novo conhecimento necessita
atuar nos diversos rumos que o ensino pode ser mediado. Nesse sentido, é a sala de aula o
proporcionar. lugar ideal onde esse tipo de ambiente pode
De acordo com a ideia vygotskyana, Mar- e deve ser criado, um ambiente de co-partici-
tins (1997) declara que é na interação profes- pação, no qual professor e alunos trabalham
sor – aluno e o meio em que estão inseridos coletivamente para a construção conjunta do
que o conhecimento e as formas de expres- conhecimento.
sar o seu saber se constroem e se transfor- O professor, através da interação, deve
mam. Assim, a aprendizagem é fruto de um motivar seus alunos com relação aos novos
trabalho integrado, no qual o conhecimento conhecimentos, procurando relacioná-los
é construído de forma interacional. com a realidade que os cerca. No caso espe-
Esse cambio de informações que se esta- cifico dos professores de português em con-
belece entre o professor e o aluno se constitui texto de ensino técnico profissionalizante
como um terreno saudável, pois, a interação acredita-se que essa motivação seja maior
entre sujeitos com experiências diferentes pelo fato de que os conteúdos a ser trabalha-
se faz necessário para o desenvolvimento do dos em aula estão intimamente relaciona-
saber. De acordo com Martins (1997, p. 116): dos a situações do dia a dia desses alunos e
futuros profissionais. Além disso, os alunos
a interação de membros mais experientes conseguem perceber a importância do co-
com menos experientes de uma dada cul- nhecimento que a língua materna tem para a
tura é parte essencial da abordagem vygot- realização de seu trabalho perante o merca-
skyana, especialmente quando vinculada do de trabalho seleto que se faz, atualmente.
ao conceito de internalização: é ao longo A aplicação prática da abordagem vygot-
do processo interativo que as crianças skiana do sociointeracionismo requer que o
114 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

professor proporcione um ambiente intera- seu principal instrumento. A pesquisa qua-


tivo e colaborativo no qual os alunos tenham litativa supõe o contato direto e prolongado
liberdade para questionar e expor suas críti- do pesquisador com o ambiente”.
cas. Um ambiente de respeito onde todos tra- Conforme exposto na introdução deste
balham cooperativamente para a construção trabalho, esta pesquisa, também, baseia-
conjunta do conhecimento. se pelo estudo de caso. De acordo com Gil
No ensino instrumental da língua portu- (1999) o estudo de caso é um dos métodos
guesa em espaço técnico profissionalizante classificados como pesquisa qualitativa, sen-
estima-se que, talvez, o papel do professor do concebido como estudo profundo e exaus-
enquanto mediador seja tão importante tivo de um ou de poucos objetos, o que per-
quanto o papel estabelecido nas escolas tra- mite o seu conhecimento amplo e detalhado.
dicionais. Pois, nesse tipo de ensino temos Lüdke e André (1986) advogam que o estudo
que estimular ao máximo nossos alunos de caso considera a unidade social como um
para que eles consigam resultados satisfa- todo. Seu objetivo é reunir o maior número
tórios num espaço de tempo bastante redu- de informações detalhadas, por meio de di-
zido. Também é tarefa do professor instigar ferentes técnicas de pesquisa. Dessa forma,
a interação entre os próprios alunos, para esta pesquisa optou por aplicar um questio-
que aqueles mais capazes possam também nário. Essa opção se justifica por compre-
tornarem-se mediadores aos colegas menos ender que o questionário possibilita um le-
experientes. vantamento de informações tanto pessoais,
Por fim, nas palavras de Castanho e Costa profissionais e as expectativas do entrevis-
(1999), a aprendizagem docente ocorre no tado perante ao que está sendo perguntado.
contexto social da sala de aula, as quais são Conforme evidencia Gil (1999), frequente-
intensamente influenciadas pelas interações mente os questionários apresentam ques-
entre os seus participantes ativos. Assim, tões abertas e fechadas. Estas, se destinam
destaca-se a Abordagem Sociointeracionis- a identificar informações sociodemográfica
ta e as suas relações entre o pensamento e do entrevistado, tais como: sexo, idade, es-
a linguagem do Ser, perpassando o seu en- colaridade. Aquelas, por sua vez, objetivam
torno sócio-cultural e as manifestações de ao aprofundamento das opiniões (respostas)
interação no processo de construção deste que o entrevistado apresentou. Este trabalho
conhecimento. A Abordagem Sociointeracio- apresentou apenas o questionário no modo
nista, em um contexto contemporâneo de en- fechado.
sino-aprendizagem, propõe que o professor
seja um instrumento para o qual o aluno se 3.2 Contexto da pesquisa
espelhe na busca do seu conhecimento. Esta pesquisa optou por realizar a coleta de
dados com dois professores de uma escola
3. METODOLOGIA DA PESQUISA de Ensino Técnico Profissionalizante da cida-
de de Santa Maria, Rio Grande do Sul (RGS).
3.1 A pesquisa qualitativa e o estudo de Em todos os cursos de formação Técnica que
caso essa escola oferece, há a disciplina de Língua
A metodologia a ser seguida neste trabalho Portuguesa em modo Instrumental que, na
de pesquisa será a abordagem qualitativa. A maior parte deles, se apresenta com o nome
abordagem qualitativa, justifica-se neste tra- de Linguagem e Comunicação. As aulas de
balho, segundo Lüdke e André (1986, p. 11), Linguagem e Comunicação são oferecidas no
porque “tem o ambiente natural como sua módulo I com uma carga horária de 40 horas
fonte direta de dados e o pesquisador como distribuídas em dez encontros presenciais.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 115

Para o exercício da regência, os professores termo “instrumental”, tais como: “fins espe-
devem elaborar planos para suas aulas de cíficos”, “técnico”, “acadêmico”, “profissional”,
acordo com o Plano Pedagógico de cada cur- entre outras terminologias de acordo com a
so. É importante apresentar que ao total a língua a ser ensinada. Neste caso, a discipli-
referida escolas conta com sete professores na de Linguagem e Comunicação, ministrada
de Língua Portuguesa. A opção em coletar pela professora A também é Instrumental.
dados com apenas dois professores se justi- Desse modo, sua resposta foi aceita e agra-
fica pelo fato de este trabalho ser um piloto decida, passando, assim, a analisar apenas as
de um outro, maior. Assim, com esse núme- respostas do Professor B.
ro pequeno de sujeitos, futuramente, não se Para coleta dos dados, foi utilizado um
esgotará as fontes de pesquisa. Uma vez que questionário com quatro perguntas fecha-
essa mesma escola de nível Técnica será fon- das. De acordo com Gil (1999) as perguntas
te de novas coletas de dados. fechadas são padronizadas, de fácil aplicação,
simples de codificar e analisar. As perguntas
3.4 Os participantes da Pesquisa, o abertas, destinadas à obtenção de respostas
instrumento de coleta de dados e o livres, embora possibilitem recolher dados
procedimento de análise ou informações mais ricos e variados, são
Os participantes desta pesquisa foram dois codificadas e analisadas com mais dificulda-
professores atuantes no exercício da profis- de. Os dados desta pesquisa foram obtidos a
são de Língua Portuguesa Instrumental, em partir das respostas dos participantes. Para
atuação em uma escola de Ensino Técnico analisa-los foi utilizado a base da Aborda-
Profissionalizante da cidade de Santa Maria, gem Instrumental do Ensino de Línguas e
RGS. Um desses professores do sexo femini- seus Mitos (RAMOS, 2005).
no, atuante na escola desde o ano de 2011,
com formação em Letras Língua Portuguesa 4. APRESENTAÇÃO DO RESULTADO
e Língua Espanhola – Professora A. O outro DOS DADOS DA PESQUISA
professor, do sexo masculino, com formação Este capítulo abordará apenas os dados ob-
em Letras Língua Portuguesa e Língua Ingle- tidos através das respostas do Professor B,
sa, atuante na escola desde o ano de 2008 – pois, como elucidado anteriormente, a Pro-
Professor B. Os professores foram contata- fessora A alegou que não poderia responder
dos na semana de 20 de junho de 2014. Via às perguntas do questionário por não traba-
correio eletrônico, eles receberam o convite lhar com o Português Instrumental. Esses
para participarem desta pesquisa. Em respos- resultados expostos a partir das respostas
ta, a Professora A justificou que não poderia do Professor B estão norteados teoricamen-
responder ao questionário porque não traba- te com base em Ramos (2005) e sua funda-
lhava com Português Instrumental na escola. mentação teórica a respeito do Ensino Ins-
Sim, com Linguagem e Comunicação. Como a trumental de Línguas e os Mitos que envolve
intenção não era de induzir a respostas, o pes- essa abordagem de ensino e sobre a Forma-
quisador constatou que a Professora A não ção do Professor.
tem domínio da teoria sobre a Abordagem Desse modo, para uma melhor organiza-
Instrumental do Ensino de Línguas – a qual a ção deste capítulo, será exposto a pergunta,
Professora A atua em contexto pedagógico. logo, a resposta obtida7 e, por fim, o pare-
Monteiro (2009) explica que a Aborda- cer com base no aporte teórico eleito para a
gem Instrumental pode ser adotada no en- análise.
sino-aprendizagem de qualquer língua e
7 Aqui, o texto está tal como o Professor B argumentou em suas respos-
que admite-se outras nomenclaturas para o tas. Sem alteração alguma, a estrutura está por conta do autor das respostas.
116 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

A pergunta primeira questionava o se- tive alguns problemas no início pois, ensi-
guinte: “Professor, como se deu o seu contato nar instrumental não tem nada a ver com o
com a Abordagem Instrumental de Ensino de ensino da gramática. São estratégias de co-
Línguas? Em específico, o português? municação verbal, não verbal de escrita e
A resposta obtida pelo Professor B foi: noções de escrita técnica. É bem diferente”.

“Meu contato com a abordagem instru- A partir desta resposta, evidencia-se a


mental foi na graduação. Mas não com esse apresentação de um dos mitos que Ramos
nome. Tive a disciplina de Estratégias de (2005) coloca em destaque a respeito des-
Leitura em Língua Inglesa, na qual a pro- sa abordagem: o mito de quem opera com a
fessora levava textos sobre o instrumental. Abordagem Instrumental não trabalha com o
Mas foi o básico. No português não tivemos ensino da gramática. Então, fica uma questão
nada específico voltado ao instrumental”. a ser melhor desenhada na sequencia deste
tema de pesquisa: questionar este professor
Neste caso, fica exposto, a partir da res- se no ensino da escrita técnica, como foi a
posta do Professor B, que durante o turno resposta, não se ensina regras gramaticais?
de formação no curso de Letras não houve De acordo com a pergunta de número três,
um momento no qual a Língua Portuguesa o que se pretendia saber era sobre a noção
tivesse sido abordada de acordo com a Abor- de diferenciação entre o Ensino Instrumen-
dagem Instrumental. Monteiro (2009) expli- tal e o Geral. A pergunta assinalava: “Você
ca que a Abordagem Instrumental pode ser acha que há diferença(s) entre atuar como
adotada no ensino-aprendizagem de qual- professor de Português Geral e como professor
quer língua. Assim, não apenas na sua lín- de Português Instrumental? Caso sim, poderia
gua origem: a língua inglesa. Ainda, Gomes descrever?
(2014), contribui com a afirmação de que as Segundo o que foi obtido como resposta:
instituições de ensino superior têm a incum-
bência de preparar os futuros professores “Acho sim. No geral a gente ensina o gra-
para a atuação nos diversos seios pedagógi- matical. Verbos, regência, uso das vírgulas,
cos que a formação admite. Contudo, como enfim. No instrumental o ensino é diferente
advoga Oliveira Junior (2008), na maioria pois o professor deve elaborar suas aulas
das vezes cabe aos professores buscarem de acordo com a atuação profissional do
por atualizações que os ampare na atuação seu público (nesse caso os alunos de cada
em sala de aula. área de curso técnico) voltado para o mer-
A segunda pergunta questionava a res- cado de trabalho”.
peito: “Você já fez uso da Abordagem Instru-
mental em suas aulas de português antes de Assim, mais uma vez se confirma o mito
trabalhar nessa escola? caso sim, qual a sua exposto por Ramos (2005) sobre o ensino da
concepção dessa abordagem? língua com bases na Abordagem Instrumen-
Em resposta, o Professor B argumentou tal e a supressão da gramática. Na verdade,
que: talvez falte um pouco de conhecimento so-
bre a teoria que advoga sobre a Abordagem
“Não. Antes de trabalhar nessa escola so- Instrumental e o seu uso real, pois, em ne-
mente havia dado aulas de inglês. Aqui que nhuma regra assinala que a gramática deva
tive que trabalhar com o português voltado ser esquecida. Sim, que dependendo do grau
ao instrumental. Até pensei que seria igual de necessidades avaliada, o professor ensi-
ao inglês mas vi que não era. Admito que na mais ou menos por via das regras ditas
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 117

gramaticais (RAMOS, 2005). Essa constata- fica a dúvida aqui apresentada de como, o
ção fica melhor evidente na resposta última, professor de Língua Portuguesa, em atuação
a qual, a pergunta quarta questionava: “Você nesse contexto de ensino, deve abordar o
já participou de algum curso ou evento sobre ensino da linguagem diferenciado de aquele
Formação de Professores de Instrumental (ou método formal (gramatical) aprendido em
sobre a abordagem, apenas)?” sua formação? A busca pelo aprimoramento
A resposta do Professor B foi simples e profissional é de responsabilidade de todos
objetiva: os docentes que atuam no ensino. Porém,
cabe também a discussão de como os cursos
“Não. Mas, gostaria muito de saber mais so- de formação de professores de Letras estão
bre o que trabalho. elaborados visando uma formação mais pró-
xima da realidade. Nesse sentido, a inclusão
Portanto, nessa resposta fica claro a ne- da Abordagem Instrumental, no elenco de
cessidade de trabalhar melhor – ou começar disciplinas do curso de Letras, se faz a pen-
a trabalhar – com a teoria da Abordagem do sar sobre a sua importância na posterior atu-
Ensino Instrumental de Línguas desde sua ação desse profissional. Assim como, esses
raiz formadora – a faculdade de Letras. As- estudos amparados pela teoria do Sociointe-
sim como, fomentar eventos que abarquem racinismo de Vygotsky se fazem importantes
essa temática, pois, o seu uso em contexto serem elucidados, pois, o conceito de intera-
de ensino emerge cada vez mais em nosso ção é fundamental para a compreensão do
cenário das línguas e seus ensinamentos processo de desenvolvimento humano, uma
(MONTEIRO, 2009). vez que é através dela, da relação estabele-
cida com o outro, que o ser humano se cons-
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS titui como tal. Apenas criticar o sistema não
Conforme exposto, debater questões envol- se faz válido. Para isso, contribuir com pes-
vendo a Formação de Professores, em es- quisas que tencionem a ideias de melhorias
pecial de Língua Portuguesa, deve ser um sempre é uma opção válida, pois, não há dú-
aspecto tido como sempre presente nos cur- vidas de que muito ainda pode ser feito para
sos de Licenciatura. Pois, assim, se fazem conseguirmos uma melhor configuração no
formas de dirimirem possíveis problemas assunto de Formação de Professores.
acarretados na formação destes professores
de língua. Não raramente, um desses pro- REFERÊNCIAS
blemas que é verbalizado por professores já
formados é o de que a teoria aprendida na BARROS, Eliana Merlin Deganutti. Interacio-
faculdade não condiz com a realidade de atu- nismo instrumental: o gênero como fer-
ação exigida pelo contexto (escola), que, de ramenta mediadora do ensino da língua.
acordo com o contexto desta pesquisa, foi o ReVEL, v. 7, n. 13, 2009.
espaço educacional da Escola Técnica Pro-
fissionalizante. A estruturação curricular de BOIKO, V.A; ZAMBERLAN, M.A. A perspectiva só-
uma unidade de Ensino Técnico Profissional cio-construtivista na psicologia e na educação:
é diferente da estrutura de uma escola de o brincar na pré-escola. Psicologia em Estu-
Ensino Fundamental e Médio (local para o do, Maringá, v. 6, n. 1, p. 51-58, jan./jun. 2001.
qual, normalmente, o professor de Letras é
formado a atuar), pois, uma das caracterís- BRONCKART, J.P. Atividade de linguagem,
ticas apresentada nesse ensino é o rápido textos e discursos: por um interacionismo
acesso à informação. Com isso, muitas vezes sociodiscursivo. São Paulo: EDUC, 1999.
118 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 121

O FANTASMA DE SIMONETTA: PARA UMA CRÍTICA FEMINISTA


DE RETRATOS DO QUATTROCENTO

Henrique Marques Samyn1

RESUMO: O artigo visa a apresentar uma análise feminista de três pinturas do século XV, todas tradi-
cionalmente vistas como retratos de Simonetta Vespucci. Simonetta, que provavelmente viveu entre
1453 e 1476, foi considerada a mais bela mulher de Florença, em sua época; sua beleza foi louvada por
artistas e poetas, especialmente após sua morte, quando foi transformada em uma figura mitológica
em obras como as Stanze cominciate per la Giostra del Magnifico Giuliano di Piero de’ Medici, de Angelo
Poliziano. O artigo argumenta que, quando questionadas a partir de uma perspectiva feminista, as duas
pinturas atribuídas a Sandro Botticelli consideradas representações de Simonetta (c. 1475-1480) e a
obra de Piero di Cosimo na qual se reconhece um retrato de Simonetta ou de Cleópatra (c. 1485-1490)
revelam um processo por intermédio do qual uma mulher concreta é submetida a uma idealização
progressiva que a reduz a uma representação concebida no âmbito de estruturas patriarcais.
Palavras-chave: Simonetta Vespucci. Sandro Botticelli. Piero di Cosimo. Quattrocento. Crítica feminista.

ABSTRACT: The paper aims to provide a feminist analysis of three paintings of the 15th century, all
of them traditionally viewed as portraits of Simonetta Vespucci. Simonetta probably lived between
1453 and 1476, and was considered the most beautiful woman of Florence; her beauty was praised
by artists and poets, especially after her death, when she was turned into a mythological figure in
works like the Stanze cominciate per la Giostra del Magnifico Giuliano di Piero de’ Medici, by Ange-
lo Poliziano. The paper’s argument is that, when questioned from a feminist standpoint, the two
paintings attributed to Sandro Botticelli considered to represent Simonetta (c. 1475-1480) and the
painting by Piero di Cosimo recognized either as a portrait of Simonetta or Cleopatra (c. 1485-1490)
disclose a process by which a concrete woman is submitted to an idealization that turns her into a
representation conceived by patriarchal structures.
Keywords: Simonetta Vespucci. Sandro Botticelli. Piero di Cosimo. Quattrocento. Feminist criticism.

RESUMEN: El artículo pretende presentar un análisis feminista de tres pinturas del siglo XV, todas
tradicionalmente consideradas retratos de Simonetta Vespucci. Simonetta, que vivió probablemente
entre 1453 y 1476, fue considerada la más bella mujer de Florencia, en su época; su belleza fue ala-
bada por artistas y poetas, especialmente tras su muerte, cuando fue convertida en una figura mito-
lógica en obras como las Stanze cominciate per la Giostra del Magnifico Giuliano di Piero de’ Medici, de
Angelo Poliziano. El artículo argumenta que, cuando cuestionadas desde una perspectiva feminista,
las dos pinturas atribuidas a Sandro Botticelli consideradas representaciones de Simonetta (c. 1475-
1480) y la obra de Piero di Cosimo en que se reconoce un retrato de Simonetta o de Cleopatra (c.
1485-1490) revelan un proceso mediante el cual una mujer concreta es sometida a una idealización
progresiva que la reduce a una representación concebida en el ámbito de las estructuras patriarcales.
Palabras-clave: Simonetta Vespucci. Sandro Botticelli. Piero di Cosimo. Quattrocento. Crítica feminista.

1 Professor Adjunto de Literatura Portuguesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (ILE-UERJ).


122 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

1. O FANTASMA DE SIMONETTA obstante, o súbito desaparecimento material


Porque se revelou a encarnação de parâme- da bella, logo pranteada por seus muitos ad-
tros preconizados para a beleza feminina pe- miradores em Florença, só serviria para va-
las estruturas patriarcais de seu tempo, Si- ler-lhe a imortalidade. Sforza Bettini registra
monetta Vespucci logrou ofuscar as sombras que o cadáver da jovem foi levado pelas ruas
do anonimato, escapando ao esquecimento a até o túmulo em Ognissanti com a face des-
que incontáveis de suas contemporâneas fo- coberta: assim todos poderiam contemplar
ram relegadas. Os poucos detalhes que sabe- uma beleza que, após a morte, parecia ainda
mos sobre sua vida nos permitem conhecer mais fascinante. Se os encantos de Simonetta
uma meteórica trajetória rumo à idealização não mais poderiam fazer-se fisicamente pre-
que lhe abriria a senda para a eternidade2. sentes, continuariam a ser celebrados na arte
Simonetta Cattaneo deve ter nascido por de seu tempo: nas quatro décadas seguintes,
volta de 1453, provavelmente em Gênova ou não menos de treze poetas comporiam sobre
em alguma localidade próxima. De ascen- ela obras nas línguas latina e toscana. Impor-
dência nobre, devia ter quinze ou dezesseis ta não negligenciar, por outro lado, o quanto
anos quando encantou Marco Vespucci, des- essa centralidade ocupada pelas lamenta-
cendente de uma proeminente família flo- ções em torno do desaparecimento de Simo-
rentina – da qual fazia parte Américo, o ex- netta no âmbito cultural vinha ao encontro
plorador cujo nome batizou o “Novo Mundo” dos propósitos políticos de Lourenço de
–, que mantinha boas relações com os Médi- Médici, favorecendo o fortalecimento de um
ci. O casamento, vantajoso para a família da ideário convergente no espaço florentino3.
jovem, não tardou a ser realizado, levando-a A tradição artística resguardaria um es-
a mudar-se para Florença. paço privilegiado para Simonetta nas cria-
Foi ali que a graça de Simonetta encontrou ções de um dos mais importantes artistas
a consagração. Lourenço de Médici, il Magni- do Renascimento, conquanto destinado a so-
fico, registrou seu aspecto, a partir dele bali- frer um longo eclipse por séculos após sua
zando um modelo de perfeição: a pele alva, morte: Sandro Botticelli. A relação entre Si-
mas não pálida; a postura grave, mas não or- monetta e Botticelli – tanto o homem quanto
gulhosa, e doce, mas não frívola; a elegância o artista – é obscura a ponto de haver sus-
de seus movimentos; a beleza de suas mãos citado especulações sobre sua presença em
(TINAGLI, 1997, p. 67). Em 1475, ao surgir todas as obras maiores do pintor florentino,
ostentando as feições da deusa Palas Atena e mesmo infundadas narrativas românticas
num estandarte exibido por Juliano de Médi- sobre um amor não correspondido; não obs-
ci, a jovem se torna “a sem par”, numa justa tante, é o rastro de uma tradição que elevaria
dedicada precisamente a ela. Era o reconhe- Simonetta a uma posição abstrata e modelar,
cimento de sua repercussão na sociedade a ponto de gerar um corpus de produções
florentina. artísticas que adquiriu um sentido singular
Lamentavelmente, não lhe restaria muito precisamente por encerrar fantasmáticas fi-
tempo de vida para gozar a glória: no mês de gurações da bella.
abril do ano seguinte, Simonetta Vespucci Evidentemente, a eleição de Simonet-
faleceria, possivelmente antes de completar ta Vespucci ao pedestal em que se conver-
vinte e três anos, vitimada pela tuberculose teu no epítome estético de uma época não
– ao menos, é o que sustenta a tradição. Não constituiu um processo acidental, qual se

2 Para uma breve biografia de Simonetta Vespucci, com referências ao seu 3 A esse propósito, pode-se evocar também o lugar ocupado por Simo-
impacto na arte renascentista, cf. Jiminez, 2001; vale considerar a observação netta no Comento de’ miei sonetti, composto à maneira do Convivio de Dante,
de Paola Ventrone, que associa a escassez de informações biográficas ao des- que inclui uma defesa da materna lingua desde uma perspectiva política e
locamento de Simonetta para representação de cariz platônico (2007, p. 48). literária; cf. Marietti, 2007.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 123

espontaneamente sua beleza houvesse mo- uma visão do Renascimento ainda bastante
bilizado as sensibilidades de seus coevos. A difundida, segundo a qual nessa época ho-
isso subjaz a atualização de um modelo ante- mens e mulheres teriam vivido em condições
rior, proveniente de um conjunto de valores equivalentes – Jacob Burckhardt chegaria a
associados ao influxo petrarquista – cuja ma- falar em termos de uma “perfeita igualdade”,
téria essencial era, como sintetizava Leonard embora seus próprios escritos ensejassem
Forster no que tange à poética, o elogio da conclusões bastante diferentes; nesse senti-
mulher (1969, p. 9). Se o Petrarca autor do do, e como sugerem Marilyn Migiel e Juliana
Canzoniere e dos Triumphi só seria conheci- Schiesari (1994, p. 3), torna-se necessário
do pela Europa no século XVI, visto até então reler o Renascimento, subvertendo noções
ser conhecido como autor de obras em lín- pré-concebidas sobre essa época e revelando
gua latina, desde o Trezentos já atraía admi- a misoginia implícita e explícita em discur-
radores e imitadores no território italiano; sos e práticas sociais.
o Cinquecento italiano conheceria o apogeu A recepção de Simonetta Vespucci pelos
de um petrarquismo crescente enquanto fe- Médici e pela sociedade florentina deve ser
nômeno cultural, com a criação de desenhos considerada a partir de expectativas tribu-
seus e de Laura, peregrinações a Arquà e Val- tárias de preceitos patriarcais, consoante
clusa e edições portáteis de suas obras poéti- os quais eram atributos de primordial valor
cas (BENEDETTO, 2006). O responsável pela para as mulheres no ambiente cortesão sua
consagração definitiva de Petrarca – e tam- capacidade de inspirar beleza e prazer; as-
bém de Dante – é precisamente Lourenço de sim podiam tornar-se o centro das atenções
Médici (CHASTEL, 2012, p. 170), autor de já masculinas, às custas de lhes serem designa-
mencionados textos encomiásticos dedica- das apenas funções domésticas e uma posi-
dos à beleza de Simonetta. ção subalterna perante os homens. Por outro
Importa evitar algum reducionismo na lado, ao definir rigorosamente as posições
tentativa de divisar uma simples adequação masculinas e femininas na corte, elencando
os atributos vinculados a Laura à mulher as faculdades desejáveis para homens e para
concreta Simonetta; trata-se, com efeito, de mulheres desde parâmetros fundamenta-
um processo mais complexo, no decurso do dos em referenciais binários, o pensamento
qual a figura ideal concebida no âmbito do renascentista igualmente se preocupava em
petrarquismo é reelaborada de modo a con- explicitar a diferença.
figurar um novo modelo, viabilizando-se as- Um dos trechos mais citados de Il Cortegia-
sim o seu rastreamento na produção de Bot- no, tratado composto poucas décadas após o
ticelli. Simonetta, em outras palavras, é con- período em que transcorreu a curta vida de
cebida já como uma sombra de Laura, sem Simonetta, está nas primeiras páginas do li-
que haja motivos para divisar aí um sentido vro terceiro, em que se descreve “quello, que
depreciativo. cōuiene alla Donna”; ali, Castiglione insisten-
Todavia, se desejamos seguir uma clave temente vinca a necessidade de que mulhe-
de leitura feminista, importa ressaltar a lei- res e homens em nada se assemelhem, reco-
tura crítica que esse conjunto de processos nhecendo na aparência – modos, maneiras,
pode ensejar, tarefa viável a partir de um res- palavras, gestos – uma expressão da essência
gate do lugar designado às mulheres na so- que opõe um gênero ao outro. Se quisermos
ciedade renascentista4. Não obstante, a ava- compreender o que isso significa desde uma
liação desse lugar demanda que se conteste perspectiva filosófica feminista, bastará evo-
car aquilo que, séculos mais tarde, Simone
4 Para as reflexões desenvolvidas nos parágrafos seguintes, cf.: Migiel;
Schiesari, 1991; King, 1994, cap. III; Grieco, 1993; de Beauvoir conceituará como a redução da
124 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

mulher ao “inessencial que nunca retorna ao feminina, destacando sua beleza sem colocar
essencial” (2009, p. 19); com efeito, a abstra- em risco a modéstia5.
ção de Simonetta Vespucci no estandarte de
Juliano de Médici e nos retratos que analisa-
remos a seguir espelha a concepção da mu-
lher como acidente, justificada pela oposição
de gênero que demarca a autonomia mascu-
lina a partir do apagamento da condição fe-
minina.

2. DA CONSTRUÇÃO DA IDEALIDA-
DE: BOTTICELLI?
Afirma a tradição que vemos Simonetta na-
quele retrato pintado por Botticelli em al-
gum momento entre 1475 e 1480 – que, por-
tanto, teria sido retratada em seus últimos
momentos de vida, ou logo após a morte. Em
todo o caso, o modo de figuração pode ser in-
terpretado como uma das etapas iniciais de
um processo que, estendendo-se pelo último
quarto do século XV, consolidaria um percur-
so estético que avançaria rumo a uma abs-
tração cada vez mais intensa, se aceitamos a Sandro Botticelli (?). Retrato de jovem mulher (“Simonetta
Vespucci”). c. 1475-1480
sua inserção no conjunto de pinturas vincu-
ladas pela tradição a Simonetta Vespucci.
Esta primeira imagem ainda nos apre- A coloração da pele e o aspecto arredon-
senta uma mulher não plenamente distante dado do rosto, conjugados com a forma do
da existência concreta, como sugerem o seu busto destacada pela vestimenta – favore-
vestuário e o cenário em que surge figurada. cida, aliás, pelo contraste entre o tom aver-
O esmero perceptível na figuração dos cabe- melhado e a frente escura – sugerem uma
los, arranjados no elaboradíssimo penteado carnalidade que porventura remetem ainda
que compõe um delicado equilíbrio com as à Simonetta viva, ou apenas recentemente
feições da mulher, bem como os acessórios falecida, que encantara os seus contemporâ-
que demarcam discretamente os limites en- neos. Tiveram o privilégio de contemplá-la,
tre o rosto, o pescoço e o colo, explicitam um sobretudo, aqueles que fizeram parte do seu
recurso recorrente na história da arte, que círculo de convívio; essa intimidade é sugeri-
busca vincar o artifício – o modo como os da pelo cenário apresentado na tela: um es-
atributos estéticos naturais são acentuados paço interno, no qual recebe destaque a jane-
por um apuro disponível apenas a mulheres la que se abre atrás da cabeça da jovem. Em-
de alta estirpe, cuja elevada ascendência as bora esse não seja um elemento infrequente
distingue das mulheres de origem vulgar; nos retratos renascentistas, sua localização
evidentemente, a esses parâmetros subjaz parece particularmente intrigante, mesmo
o interesse em destacar o valor de mulheres havendo alguma temeridade em atribuí-la a
percebidas como valiosos instrumentos nas qualquer intentio autoral.
alianças matrimoniais. A postura de perfil re-
5 Cf. Rubin, 2011, p. 16. Sobre a função da fórmula do retrato de
flete os parâmetros epocais de representação perfil na sociedade florentina do século XV, cf. Castelnuovo, 2006, p. 30-37.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 125

Disposta na parte superior da tela, des- às mulheres que figuram nas telas de Botti-
locada à esquerda, em seu limite inferior a celli, por muito tempo considerado o autor
janela coincide com a fronte da mulher; o da tela, embora a atribuição seja atualmente
efeito de iluminação, incidindo sobre a testa, contestada – há ainda quem considere que a
simultaneamente enfatiza os olhos da mu- obra teria sido criada em seu ateliê, mesmo
lher figurada, algo favorecido pelo contras- que ele não fosse o verdadeiro autor.
te entre o azul celeste e a escuridão do am-
biente interior. O que a esse respeito importa
evocar é a associação, característica da esté-
tica feminina de extração petrarquista, dos
olhos e do semblante com a luz: não possuía
Laura o mais claro semblante que jamais es-
plendeu e olhos comparáveis a duas estrelas,
ambos capazes de emprestar sua luminosi-
dade à natureza, apenas para colher alguns
poucos exemplos do Canzoniere6? Ainda que
não ousemos atribuir isso a um propósito
deliberado, é notável perceber o que encer-
ra de um movimento idealizante, tanto capaz
de celebrar a exemplaridade da beleza de Si-
monetta quanto de deslocá-la para um âmbi-
to singular, algo ainda mais importante caso
seu falecimento fosse recente. E uma outra
obra, geralmente datada da mesma época,
acentua esse movimento.
Sobejam incertezas sobre o retrato, tam-
bém datado de entre 1475 e 1480, que figura
uma jovem mulher de traços muito seme-
lhantes àquele anteriormente analisado. So-
bre um fundo escuro, ela aparece de perfil, Sandro Botticelli (?). Retrato de jovem mulher (“Simonetta Ves-
pucci”). c. 1475-1480
com tez clara e plácido semblante, sugestiva-
mente contemplativo; veste um traje branco
e drapeado, que remete às representações Cotejemos essa imagem com a tela an-
renascentistas de aspecto mitológico; exibe terior. Novamente a mulher surge de perfil,
um ornamento adornado com penas – uma conquanto esteja agora voltada para a di-
brocchetta di testa – e um camafeu com fi- reção oposta; a postura austera e as feições
guras extraídas da mitologia. Seria mais um serenas vincam a distância que a separa do
retrato de Simonetta Vespucci? Diversas são espectador, de acordo com as convenções
as formas pelas quais se busca legitimar a pictóricas. Se não há mais uma janela que
associação – seja a fantasia etimológica acer- possa conceder um argumento naturalis-
ca do cabelo arranjado em meio à rede de ta para a luminosidade, os vívidos olhar e
pérolas, denominado vespaio por semelhar semblante parecem dotados de um brilho
um ‘vespeiro’ (MUSACCHIO, 2008, p. 30-31); intrínseco, acentuado pelo fundo escuro: um
seja pelos traços tipificados, tão semelhantes arranjo estético que, significativamente, es-
pelha aquele presente no camafeu.
6 Cf. Canzoniere 348, 157 e 162, respectivamente.
126 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Conquanto seja difícil compreender a que ocupa o dentro da tela ou em alguma das
específica seleção de figuras mitológicas Graças que figuram à esquerda – dividindo a
estampadas no retrato – Apolo, Mársias e tela com Semiramide Appiani, se aceitamos
Olympus –, é no mínimo notável que façam a suposição de que a pintura foi criada para
parte de narrativas associadas à morte. Má- celebrar o casamento desta com Lourenço il
rsias, o sátiro frígio, é quem recolhe a flauta Popolano. Datando da mesma época, Vênus
dispensada por Atena, enfurecida pelo preju- e Marte (c. 1483) também representaria Si-
ízo que o instrumento provocava à sua bela monetta – e aqui a relação etimológica ante-
aparência, já que precisava inflar as boche- riormente mencionada outra vez se poderia
chas para tocá-lo; orgulhoso pela sonorida- aplicar, uma vez que sobre a cabeça do deus
de obtida no instrumento, Mársias desafia desfalecido figuram vespas; suposição teme-
Apolo, mas é derrotado e punido com a mor- rária, como todas as outras, que chegariam a
te. Se procede a leitura das tranças que pen- enxergar em Marte um apaixonado Juliano.
dem sobre o colo da mulher como análogas E em O Nascimento de Vênus (c. 1486), tela
ao reflexo de uma couraça, o que remeteria datada apenas de uns poucos anos depois,
à associação entre Simonetta e Minerva (cf. não se faria presente, outra vez, a mesma
WEPPELMAN, 2011, p. 121), podemos pro- mulher?
por a seguinte leitura especulativa: a morte O fato de estas telas datarem de um perí-
prematura da jovem poderia ser lida pelos odo quase meia década posterior à morte de
humanistas de Florença como uma vingança Simonetta não é, na verdade, relevante: em
de Atena, insultada por ser desafiada em sua certo sentido, Simonetta Vespucci, a mulher
beleza. A esse propósito, vale recordar que concreta, já estava ontologicamente morta
o estandarte exibido por Juliano de Médici, como uma exigência do processo mesmo em
que celebrava a beleza de Simonetta meses que se converteu na suposta figura modelar
antes de sua morte, figurava a jovem repre- de Botticelli; por outro lado, seu desapare-
sentada como aquela deusa. cimento físico pode ter servido como um
O efeito desse conjunto de fatores é a elemento propulsor para que esse proces-
acentuação do estranhamento, perturbando so fosse efetivamente consumado. Quando
a insinuação de familiaridade ensejada pelos só o que restava de Simonetta era o que de
traços da mulher representada – ao menos sua aparência foi conservado no repertório
para quem a fita com o olhar habituado aos memorialístico de seus contemporâneos,
parâmetros estéticos epocais; desse modo, descortinavam-se infinitas possibilidades
há um jogo dialético que, por meio do pro- de representação que prescindiam plena-
cesso de representação pictórica, fortale- mente de qualquer compromisso com a ve-
ce o movimento abstratizante que elevou à rossimilhança. Essa clivagem, decerto, já se
idealidade a mulher real. Um outro porme- fazia presente enquanto estava viva – sobre-
nor que fortalece esse aspecto são as feições tudo se consideramos o retrato como uma
mais alongadas da segunda imagem, talvez figuração que necessariamente supõe uma
em decorrência de uma representação dis- intervenção idealizante do autor, algo re-
torciva já mais dedicada à figuração da exem- forçado por trata-se de uma pintura que se
plaridade. destinava à apresentação de um parâmetro
Longe de limitar-se a ver apenas nessas de beleza; não obstante, sua morte elimina-
obras a presença da esposa de Marco Ves- va definitivamente qualquer possibilidade
pucci, a tradição ousaria divisá-la por toda a de figuração que não estivesse fundamen-
parte. Na Primavera (c. 1482), críticos e entu- talmente comprometida com a memória de
siastas já a viram em Clóris/Flora, na Vênus Simonetta enquanto concretização de uma
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 127

beleza ideal, apenas resguardada na lem-


brança dos coevos.
Se porventura a mulher figurada não apre-
senta reais semelhanças com a verdadeira
Simonetta, como chega a sugerir Jacqueline
Marie Musacchio (2008, p. 31), isso de fato
importa? Tratam-se, afinal, de instâncias de
um mesmo tipo que múltiplas vezes se faz
presente, reconhecível pela convergência
dos atributos que lhe são característicos – os
claros e fulgentes cabelos, os olhos vívidos
e penetrantes, a austera e graciosa feição –,
compondo um fantasma pictórico em que di-
visamos Simonetta como não mais que uma
figuração daquele ideal a que foi reduzida
por seus contemporâneos. Ontologicamen-
te esvaziada, a mulher concreta que viveu
outrora pode ser entrevista por estes simu-
lacros graças aos quais, não obstante, sua
perene existência logrou imortalizar-se, por Piero di Cosimo. Retrato de Simonetta Vespucci / Cleópatra. c.
1485-1490
obra do talento de um mestre da pintura e
de seus pares. Decerto haverá quem nisso re- O estado das incontáveis disputas sobre
conheça a recorrência de um padrão: o reco- a tela que nos interessa pode ser percebido
nhecimento da singular qualidade facultada já pelas incertezas acerca de seu título: se há
à mulher – a beleza – não passa, de fato, do quem se sinta confortável para apresentá-la
reconhecimento da genialidade masculina, como um Retrato de Simonetta Vespucci, ou-
num gesto de patriarcal magnificência. tros optam por nomes mais genéricos, que se
limitam a qualificar a tela como um retrato
3. DA EFÍGIE ARQUETÍPICA: PIERO feminino; as tentativas de datação não avan-
DI COSIMO çaram além de situá-la aproximativamente
Piero di Cosimo era ainda jovem quando Si- no período entre 1485 e 1490, período que
monetta Vespucci faleceu, o que não obsta- coincide com a afirmação do pintor no ce-
ria que eventualmente lhe pudesse impres- nário artístico florentino. Persistem incer-
sionar o culto prestado pelos florentinos à tezas sobre as circunstâncias em que a tela
jovem desaparecida – na verdade, pode-se foi produzida; contudo, como mais à frente
mesmo indagar se a juventude não lhe au- veremos, é certamente legítimo inscrevê-la
mentaria a suscetibilidade. De todo modo, na tradição pictórica associada à mulher que
porventura pouco após retornar a Florença, tanto fascinara a sociedade quatrocentista
no início dos anos 1480 – após uma viagem daquela cidade.
a Roma a fim de trabalhar na decoração da Contemplada em contraste com as telas
Capela Sistina ao lado de seu mestre, Cosimo associadas a Botticelli, a pintura de Piero di
Rosselli –, começa a ocupar-se daquela que Cosimo apresenta diferenças tão manifestas
se tornaria uma das mais enigmáticas repre- que um observador menos informado tal-
sentações pictóricas que materializam o fan- vez sequer ousasse aproximá-las; de fato, as
tasma de Simonetta. únicas semelhanças porventura perceptíveis
são o fato de serem retratos de mulheres
128 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

representadas de perfil, com tez nívea, ca- para a leitura que propomos é o fato de que
belos claros e elaborados penteados, ainda aquela mulher foi, em algum momento, per-
que todos esses elementos fossem conven- cebida como sendo Simonetta, mesmo que
cionais. Por outro lado, em oposição às te- não o fosse na concepção pictórica original, e
las anteriormente analisadas, a mulher aqui assim foi integrada à tradição de representa-
surge com os seios descobertos, trajando ções artísticas que lhe é associada.
apenas uma espécie de manto cujo tecido su- Seja ou não tardia a inscrição na tela de
gere algum exotismo e exibindo, no pescoço, Piero di Cosimo, fato é que há séculos nela
um colar no qual se entrelaça uma pequena se reconhece o fantasma de Simonetta, ainda
serpente; se também neste retrato a pose da que suas feições em muito se afastem daque-
mulher figurada sugere austeridade, seus la mulher que vimos figurada nos retratos
lábios parecem trazer a insinuação de um atribuídos a Botticelli; na verdade, se acaso o
sorriso. Outra diferença patente é o modo de próprio pintor teve de fato a intenção de re-
figuração do cenário – que, vago ou reduzido tratá-la, certamente se viu obrigado a lançar
a uma janela nas outras obras, aqui assume a mão de registros e figurações que lhe infor-
forma de uma rica paisagem, na qual divisa- massem sobre seu aspecto, eventualmente de
mos árvores e nuvens minuciosamente pin- descrições ou, talvez mais improvavelmente,
tadas. Finalmente, há a inscrição que ocupa de sua memória – uma vez que a tela foi pin-
uma faixa na parte inferior da tela, pormenor tada cerca de uma década após sua morte.
que demanda comentários mais minuciosos. Nada disso, é claro, ofereceria qualquer tipo
Nada poderia evidenciar melhor a identi- de obstáculo a um pintor de seu porte; antes
dade da mulher figurada que a inscrição pre- o contrário: essas circunstâncias ganham re-
sente na própria tela – sImOneTTa IanVensIs levância quando consideramos que se trata
VesPVccIa; contudo, sua importância nesse de uma figuração francamente idealizada,
sentido se tornou objeto de suspeita quando que apresenta um conjunto de elementos
alguns estudiosos propuseram tratar-se de graças aos quais a pintura oferece um riquís-
uma adição tardia, datando-a de pelo menos simo repertório para a leitura.
um século após a pintura, o que enseja os Um exemplo de como essa leitura ideali-
questionamentos: seria a tela uma represen- zante seria exigida caso Piero di Cosimo te-
tação de Simonetta Vespucci, sendo assim nha, de fato, pretendido figurar Simonetta
reconhecida desde sempre, ou a associação Vespucci, está na exposição dos seios des-
emergiu tardiamente, à maneira de sugestão nudos – pormenor que já motivou uma es-
interpretativa para uma tela elaborada sobre tudiosa como Sharon Fermor (1993, p. 94) a
outro motivo? Não há ainda uma perspecti- refutar a possibilidade de que a figurada seja
va que se possa considerar conclusiva para Simonetta, visto subverter todas as conven-
essa questão7; no âmbito da problematiza- ções epocais para a pintura de retratos fe-
ção motivadora deste artigo, o que especifi- mininos e investir a imagem de um sentido
camente importará questionar é o sentido erótico incompatível com a posição de uma
mesmo dessa associação, de modo que a mulher aristocrática e louvada por sua casti-
adotaremos como pressuposto, dispensando dade; também a paisagem que surge ao fun-
considerações em torno de seu propósito ou do constitui um impedimento para a identi-
legitimidade. Em outras palavras, o relevante ficação, uma vez que o lugar adequado para
uma mulher de sua estirpe seria um espaço
7 A hipótese da adição tardia é defendida por Bacci (1966) e por
Forlani Tempesti e Capretti (1996), entre outros, mas disputada a partir de interior, ou mesmo um hortus conclusus, de
análises radiográficas realizadas em 1971 que levaram Madeleine Hours a
concluir que a incrição é “perfeitamente integrada à composição” e incontes- modo a ressaltar a disseminada noção de
tavelmente original (Annales, 1971, p. 84). A questão permanece como ponto
de disputa entre especialistas. que o ambiente próprio para o resguardo da
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 129

virtude feminina é no espaço doméstico. cados a damas famosas que serviam como
Fermor não é a única a defender essa po- decoração em câmaras nupciais (FORLANI
sição, e os que a advogam costumam evocar TEMPESTI; CAPRETTI, 1996, p. 100-101); a
em seu favor a referência de Giorgio Vasari, pintura constituiria, portanto, uma das pri-
no fim do século XVI, a um quadro por ele meiras manifestações dessa nova tendência.
visto na casa de Francesco di Sangallo, des- Também dessa época data uma importan-
crito como “uma belíssima cabeça de Cleó- te inovação nas convenções associadas à figu-
patra com uma víbora enrolada no pescoço” ração da rainha egípcia: se os relatos antigos
(“una testa bellissima di Cleopatra con un as- sustentavam que Cleópatra havia cometido o
pide avvolto intorno al collo”: VASARI, 1568, suicídio oferecendo o braço para ser picado
p. 26; trad. nossa). Vasari pode ter contem- pela víbora, é Paulo de Égina quem, no séc.
plado a pintura antes de nela ser feita a ins- VII, afirma que ela fez com que uma serpente
crição com o nome de Simonetta, caso essa a mordesse no seio esquerdo (1532, V. 11. 2),
não constasse ainda da tela, ou simplesmen- versão repetida no anônimo I fatti di Cesare,
te tê-la ignorado, o que ensejaria uma inter- já do século XIV – em que no momento da
pretação conforme as convenções epocais; morte se descreve como ela pôs “aquela ser-
estaria assim apto a reconhecer, sem maio- pente junto ao seio esquerdo” (“quello ser-
res dificuldades, o motivo figurado. De fato, pente alla poppa manca”: 1863, p. 307); essa
o efeito erótico decorrente da exposição dos versão do episódio começa a contaminar as
seios, estranha à figuração de uma mulher da representações de Cleópatra precisamente
posição de Simonetta e ao seu lugar no ima- nas últimas décadas do Quattrocento, como
ginário coletivo, é um elemento familiar à percebemos por uma imagem contemporâ-
imagem de Cleópatra, bem como a serpente nea à pintura de Piero di Cosimo: trata-se de
que lhe envolve o colo, confundindo-se com uma iluminura constante de um manuscrito
o colar, o que acentua a sensualidade pelo flamengo que traz uma tradução para o fran-
contraste entre a nudez e as vestes escassas, cês, por Laurent de Premierfait, da obra boc-
mas extravagantes: o exótico tecido que lhe cacciana De casibus virorum illustrium. Data-
envolve os ombros e o elaborado arranjo nos do aproximativamente de 1479 ou 1480, o
cabelos. Esses procedimentos figurativos manuscrito apresenta iluminuras original-
reiteram, assim, o estereótipo da mulher se- mente atribuídas ao Mestre das Inscrições
dutora e caprichosa, que ao longo dos tem- Brancas, mas qualidades da composição e da
pos se consolidaria como um dos principais palheta levaram Scot McKendrick a sugerir a
modelos de femme fatale – não por acaso, já a atribuição a um novo autor, por ele nomea-
Antiguidade concedeu a Cleópatra a alcunha do Mestre do Getty Froissart (KREN; MCKE-
de regina meretrix, enfatizando o seu papel NDRICK, 2003, p. 284-286). Estampada no
como figura ameaçadora e nociva à ordem fólio 339, a miniatura ilustra as mortes de
patriarcal. Marco Antônio e Cleópatra: ao lado do cônsul
Responsáveis pelo catálogo completo da romano, que comete o suicídio enterrando
obra de Piero di Cosimo, Anna Forlani Tem- uma espada no peito, vemos a rainha egípcia
pesti e Elena Capretti – que também identifi- com o busto desnudo, segurando um par de
cam na tela um retrato de Cleópatra – obser- serpentes que picam, cada qual, um de seus
vam que, embora esse fosse um motivo pic- mamilos. Nascia, portanto, nessa época uma
tórico raro no fim do Quattrocento, difundiu- convenção iconográfica que faria fortuna nos
se nos decênios seguintes, tanto como tema séculos seguintes8.
para composições independentes quanto
8 Num rol de maneira alguma exaustivo, podemos listar alguns exemplos
como elemento recorrente em ciclos dedi- de pintores de diversas nacionalidades que, até o período oitocentista, iguram
130 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Se a pintura de Piero di Cosimo figura, na qual a obra seria incorporada à tradição das
verdade, a rainha egípcia, em que momento e imagens de Simonetta.
por que motivo ela passa a ser lida como um Caso aceitemos a possibilidade da inscri-
retrato de Simonetta Vespucci? Acatemos, ção tardia, deveremos admitir que os atribu-
por um momento, o discurso daqueles que tos de Cleópatra puderam ser transferidos
defendem a hipótese de uma identificação para Simonetta Vespucci, mas a partir de que
imprópria. A legenda inscrita na tela seria fundamentos? Considerando o momento
posterior a 1586, época de que data a aqui- originário desse processo, podemos avançar
sição da obra pela família de Vespucci, em duas possibilidades: primeiro, que aos des-
cuja posse permaneceu até a primeira me- cendentes de Simonetta tenha sido possível
tade do século XIX; Mina Bacci (1966, p. 67) descolar a figura de Cleópatra do retrato
presume que os descendentes de Simonetta, criado por Piero di Cosimo a partir da repu-
na ingênua ambição de exibir um retrato de tação que o pintor já detinha desde Vasari – o
sua célebre ancestral, foram os responsá- “artista misantropo, extravagante e obceca-
veis pela transformação da obra, para isso do, que o amor por sua arte subtrai às nor-
recorrendo à inscrição. Ao fazê-lo, podem mas comuns”, na síntese de Chastel (2012, p.
ter se inspirado nas Stanze cominciate per 376) –, o que porventura justificaria a figu-
la Giostra del Magnifico Giuliano di Piero de’ ração excêntrica e demandaria uma leitura
Medici, de Angelo Poliziano – um épico ina- particular; segundo, e como um pressuposto
cabado, composto aproximadamente entre para a primeiro aspecto, que essa mobilida-
1475 e 1478, cujo tema é a vitória de Julia- de se tenha viabilizado pelo nível extremo de
no de Médici na justa dedicada a Simonetta. idealização que já alcançara a figura de Si-
O falecimento da jovem enquanto Poliziano monetta, o que facultaria o seu deslocamen-
compunha as Stanze – o trabalho só seria in- to a bel-prazer do imaginário androcêntrico,
terrompido com a morte de Juliano – pode moldando-lhe arbitrariamente as particula-
ter exacerbado uma idealização já tributária ridades em função do propósito almejado.
de influências dantescas e petrarquianas; Inúmeras foram as leituras propostas para a
Simonetta é associada a diversos elementos imagem cujo sentido parece abusivo: a víbo-
divinos, descrita como uma ninfa e compara- ra-colar teria uma função alegórica, fazendo
da a deusas como Minerva e Diana. No Libro de Simonetta uma Prosérpina, ou simboliza-
Secondo, pode ser especialmente relevante a ria a doença que lhe ocasionou a morte, em
passagem referente ao sonho em que Iulio se conjunção com as nuvens negras que ocupam
sente incapaz de enfrentar Simonetta, assim o fundo da tela9; chegou-se mesmo a suge-
atendendo aos rogos de Cupido, uma vez que rir que a áspide constituiria um ouroboros,
ela se defende com a armadura de Pallas, na ilustrando a imortalização da jovem após sua
qual figura a “terrível aparência de Medusa” e morte – muito embora apenas um esforço
as víboras que lhe servem como cabelos (“la imaginativo permitiria supor que a serpente
terribil sembianza di Medusa, / e ‘l rabbioso vá, de fato, morder sua própria cauda.
fischiar delle ceraste”: OLIVA, 1978, p. 179). Mas talvez não seja preciso ir tão longe.
A pintura que originalmente figurava um re- Se a serpente circular era utilizada como em-
trato de Cleópatra teria sido, então, ressig- blema pessoal por Lourenço de Médici, por
nificada; a inscrição aposta à pintura seria que seria necessário interpretá-la como um
o momento crucial dessa viragem, graças à elemento alegórico, sendo possível entrever
apenas um sinal do vínculo que Simonetta
Cleópatra com uma serpente próxima ao seio no momento do suicídio: no séc.
XVI, Rosso Fiorentino e Lambert Sustris; no séc. XVII, Bartolomeo Gennari e
Jacob Jordaens; no séc. XVIII, Antoine Rivalz e Johann Heinrich Tischbein, o
Velho; no séc. XIX, Reginald Arthur e Hans Makart. 9 Para uma síntese dessas leituras, cf. De Fusco, 1999, p. 401-403.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 131

teve com essa família – assim como o Ian- reitera o quanto, ao fim, a mulher concreta
VensIs da inscrição pode aludir ao seu lugar que outrora foi Simonetta se converteu em
de origem? Se já as Stanze de Poliziano favo- um mero fantasma celebrado pela capricho-
receram a abstração de Simonetta a ponto de sa imaginação androcêntrica.
granjear-lhe um espaço ao lado das deusas,
porque não supor que uma tela concebida tal- Referências
vez uma década depois apenas ousaria levar
adiante essa idealização, sobretudo quando Annales – Laboratoire de recherche des musées de
seu autor é um artista audacioso como Piero France. Paris: Laboratoire de recherche des
di Cosimo? Sem que seja necessário procurar musées de France, 1971.
um sentido além para esses elementos, po-
de-se propor, a partir deles, uma leitura em BACCI, M. Piero di Cosimo. Milão: Bramante, 1966.
perspectiva feminista para a pintura.
Ombreada com figuras mitológicas, Simo- CASTELNUOVO, E. Retrato e sociedade na arte
netta Vespucci é finalmente despojada de italiana: ensaios de história social da arte. Se-
tudo o que a particulariza, mesmo no que diz leção de textos e coordenação de Sergio Mi-
respeito à sua posição subalterna enquanto celi. Trad. F. de Mattos. São Paulo: Companhia
mulher de elevada estirpe; seja por intenção das Letras, 2006.
autoral, seja por um processo tardio de res-
significação da obra, o crucial é perceber que CHASTEL, A. Arte e Humanismo em Florença na
o esquecimento daquelas feições caracterís- época de Lourenço, o Magnífico: estudos sobre
ticas, acabando por reduzir Simonetta a uma o Renascimento e o Humanismo platônico.
representação genérica de mulher, opera de Trad. D. de Bruchard. São Paulo: Cosac Naify,
modo análogo à exposição dos seios: assim 2012.
como as deusas mitológicas podem ser lidas
como materializações arquetípicas, o pro- DE BEAUVOIR, S. O segundo sexo I: os factos e os
cesso de abstração culmina com o definitivo mitos. Trad. S. Milliet. Lisboa: Quetzal Edito-
obscurecimento do que pode ter sido a mu- res, 2009.
lher concreta, agora reduzida a um fantas-
ma concebido no âmbito de um imaginário DE FUSCO, R. El Quattrocento en Italia. Trad. Bea-
patriarcal. triz López González. Madri: Istmo, 1999.
Uma vez mais, a retórica da idealização
revela seu substrato misógino: o que resta de DI BENEDETTO, A. Un’introduzione al petrar-
Simonetta Vespucci, para além do que sobre chismo cinquecentesco. Italica, v. 83, n. 2. Ve-
ela projetou o olhar masculino? Se a nudez rão de 2006. p. 170-215.
pode ser lida como a “glorificação póstuma”
de uma “graça etérea para além da sepultu- FERMOR, S. Piero Di Cosimo: fiction, invention,
ra” (GERONIMUS, 2006, p. 59; trad. nossa), and fantasia. Londres: Reaktion Books, 1993.
essa visão celebratória se limita a materia-
lizar o que demanda o desejo masculino, FORLANI TEMPESTI, A.; CAPRETTI, E. Piero di
ajustando a beleza feminina a um modelo Cosimo: catalogo completo. Florença: Octavo,
que solapa definitivamente qualquer singu- 1996.
laridade; por outro lado, a possibilidade de
que a figuração da paisagem ao fundo seja FORSTER, L. W. The icy fire: five studies in Euro-
uma mera demonstração de perícia pictóri- pean petrarchism. Nova Iorque: Cambridge
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 133

MICHAEL K: A VOZ DE UM MARGINALIZADO

Juliana Prestes de Oliveira1

RESUMO: O romance “Vida e época de Michael K”, do escritor John Maxwell Coetzee, foi escrito em
1983. O enredo gira em torno das dificuldades que o personagem K passa enquanto tenta sobreviver
em um país arrasado por uma guerra civil. Coetzee nos dá um panorama da realidade do povo sul-a-
fricano, as injustiças, os preconceitos, a falta de liberdade que sofrem. Ao mostrar a situação desse
povo por meio de alguém que está fora do círculo de poder o autor dá voz aos marginalizados, ao
passo que cria uma literatura diferente, que não fala da elite, mas sim dos excluídos. Através dessa
estratégia discursiva, é possibilitado ao leitor enxergar de outra forma a (H)história. Além disso, há
a busca do sujeito pela sua identidade e pelo seu lugar na sociedade, e questionamentos acerca da
maneira como o governo tenta manter a ordem num país em conflito. É por meio dessas e de outros
elementos que podemos analisar o romance sob o viés do Pós-Modernismo, pois Coetzee utiliza os
personagens, citações e discussões para fazer-nos refletir acerca daquilo que é dito e aceito como
verdade absoluta, que os discursos são carregados de ideologias e que, destarte, devemos estar
preparados para imergir nos vários níveis do texto, tornando-nos sujeitos ativos e críticos. E desse
modo, tornamo-nos mais críticos e reflexivos diante dos acontecimentos que nos são expostos, per-
cebendo como é a versão da história a partir dos relatos dos marginalizados e quais são as estraté-
gias que as classes dominantes usam para manipular o discurso a seu favor.
Palavras-chave: Vida e época de Michael K.Marginalizado. Identidade. Pós-Modernismo.

ABSTRACT: The novel “Life and Times of Michael K”, by John Maxwell Coetzee , was written in 1983
The plot talks about the difficulties of character K faces while trying to survive in a country devas-
tated by civil war. Coetzee gives us an overview of the reality of the South African people, injustice,
prejudice, unfreedom suffering. To show the situation of these people by someone who is outside
the circle of power the author gives voice to the marginalized, while establishing a different litera-
ture that speaks not of the elite, but of the excluded. Through this discursive strategy, is allowed to
reader to see otherwise (H)history. Furthermore, there is the search for a subject for their identity
and their place in society, and questions about the way the government tries to keep order in a cou-
ntry in conflict. It is through these and other elements that we can analyze the romance under the
Postmodernism bias, because Coetzee uses the characters, quotes and discussions to make us reflect
about what is said and accepted as absolute truth, that discourses are loaded ideologies and we
must be prepared to immerse in the various levels of the text, making us active and critical subject.
And thus we become more critical and reflective up against the events that we are put in, understan-
ding how the version of the story from the narrations of is marginalized and what are the strategies
that the ruling classes use to manipulate speech in its favor.
Keywords: Vida e época de Michael K. Marginalized. Identity. Postmodernism.

1 Juliana Prestes de Oliveira é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria.
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INTRODUÇÃO pelo fato dele ter o lábio leporino, uns dos


Neste artigo, apresentaremos um breve estu- motivos pelos quais sofre rejeição ao longo
do sobre o romance Vida e época de Michael de sua trajetória. Ele vive com sua mãe, Anna
K (1983), do escritor sul-africano John Ma- K, na cidadezinha onde nasceu, até que ela
xwell Coetzee, tentando perceber as estraté- fica muito doente, por isso tentam sair da
gias utilizadas pelo autor para a elaboração cidade e voltar para fazenda onde ela vivia,
do enredo e a maneira como ele interligou a tendo sempre que se esconder da polícia
história do país, suas lutas e conflitos, com para não serem presos, no entanto ela piora
um enredo ficcional, bem como as questões e acaba morrendo. Michael recebe as cinzas
relativas a busca e formação de identidade da mãe e continua o caminho de volta à fa-
dos sujeitos presentes no livro. Para isso, zenda, onde a enterra, realizando, assim, o
analisamos a obra sob o viés do Pós-Moder- último desejo da mãe que era voltar àquele
nismo, a fim de tentar entender essa nova es- pedaço de chão.
tética e como ela se manifesta na literatura. Para não ser pego pelos militares, Michael
Coetzee traz em sua obra, vários intertex- passa a viver escondido em fazendas e caver-
tos, com o intuito de representar o povo ne- nas alimentando-se de raízes, insetos e de
gro e marginalizado do país, além de chamar algumas abóboras que ele cultivava, até ser
nossa atenção para os regimes de coloniza- capturado e levado para um campo de tra-
ção e segregação sofridos pela população. balho forçado. Mesmo fraco por não se ali-
No romance encontramos vários pontos que mentar e cansado de tanto trabalhar, conse-
podem nos ajudar a entender a constituição gue fugir e voltar para a fazenda. Lá cava um
do país sul-africano, bem como a sociedade buraco e passa a viver de uma maneira meio
contemporânea, a partir da história de al- animalesca, alimentando-se apenas daqui-
guém que geralmente e anulado pelo discur- lo que conseguia plantar. Sem delongas, ele
so oficial, promovendo assim, o encontro de é capturado novamente e levado para outro
múltiplas vozes, antes apagadas. campo onde tentam nutri-lo, porém se nega
Dessa forma, há a presença de inúmeras a comer ou falar e acaba fugindo, passando a
vozes, principalmente daqueles silenciados perambular solitário.
pelo poder, pelo discurso oficial, colocando Através da jornada vivida por K, um su-
em tensão o centro e a margem. Essa estraté- jeito a margem da sociedade, Coetzee quer
gia permite a compreensão dos mecanismos nos revelar o que está acontecendo no país,
utilizados pelos poderosos para se mante- as injustiças, as discriminações, a falta de li-
rem no centro e esmagarem os ex-cêntri- berdade, ou seja, a realidade do povo sul-afri-
cos. Assim, há a revisitação do passado com cano. E ao dar voz a esses marginalizados, o
intuito de rever os fatos, mas sem negar ou autor possibilita ao leitor enxergar a história
destruir o discurso histórico, apenas ques- de outra maneira, criando, assim, uma litera-
tioná-lo e permitir que outros discursos ve- tura diferente, que não fala da elite, mas sim
nham à tona. daqueles que sofrem com a anulação cívica e
a exclusão. A partir disso, percebemos que há
MICHAEL K O MARGINALIZADO EM questionamentos sobre os métodos adotados
SEU LAR pelo poder, governo, na tentativa de manter
O romance Vida e época de Michael K (1983) a ordem num país que está mergulhado no
relata a vida de Michael K, um homem negro caos devido a guerra civil. Além disso, o pro-
que vive no meio de uma guerra civil na Áfri- tagonista representa aqueles sujeitos que es-
ca do Sul. Sua história nos é narrada desde tão em busca da sua identidade e do seu lugar
o seu nascimento, acontecimento marcado na sociedade hostil em que vivem.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 135

Mas antes de aprofundarmos o estudo presente momento, “[...] pós-modernismo


da obra, é necessário entendermos a estéti- diz respeito a uma interrogação” (LEMERT,
ca que utilizamos para a análise, o Pós-Mo- 2000, p. 21) o que se propõe é o questio-
dernismo. Pós-Modernismo é “um fenôme- namento a reflexão diante do bombardeio
no cultural atual que existe, tem provocado de informações a que somos expostos dia-
muitos debates públicos e por isso merece riamente e daquilo que nos é apresentado
uma atenção crítica” (HUTCHEON, 1991, como verídico e imutável ele é “[...] um fenô-
p.11, grifo da autora). Porém, ainda não há meno contraditório, que usa e abusa, instala
uma resposta pronta sobre o que realmente e depois subverte, os próprios conceitos que
ele é, pois é difícil explicá-lo devido ao fato desafia” (HUTCHEON, 1991, p. 19), a fim de
de estar acontecendo nos dias atuais. Apesar fazer com que o leitor passe a refletir sobre
da pouca distância temporal, percebemos o que lê, vê ou escuta, repensando principal-
“[...] que o mundo mudou de alguma manei- mente sobre os acontecimentos passados e
ra difícil de descrever, mas inconfundível” o modo como ele nos é transmitido, como
(LEMERT, 2000, p. 42), por isso, é necessário afirma Hutcheon (1991) “A questão é: como
uma atenção especial e cuidadosa ao olhar- podemos conhecer esse passado hoje – e o
mos para essas mudanças que ocorreram e que podemos conhecer a seu respeito?” (p.
estão ocorrendo na sociedade contemporâ- 126, grifos da autora).
nea, e como possíveis modificações no âm- Porém, muitos críticos, defendem que o
bito do pensamento e da ação humana estão Pós-Modernismo é radical, é o capitalismo
refletindo construção na sociedade, na polí- tardio, que despreza as ideologias do Moder-
tica, no modo de compreender a História e a nismo, afirmando que a sociedade é movida
linguagem literária. Segundo Harvey (2012) pelo consumo em massa, e que dessa forma
não há certeza quanto aos pensamentos ocorre a produção de obras com qualidade
que possam substituir o Modernismo, pois inferior, mostrando que está acontecendo a
é difícil apreciar, entender ou mesmo expli- anulação de todas as formas de pensamento,
car as mudanças que todos vemos que têm principalmente no que tange a construção da
ocorrido. história. Mas nós vemos, por meio de outros
No que diz respeito a essa relação entre estudiosos, principalmente Linda Hutcheon,
Modernismo e Pós-Modernismo Linda Hut- que não se trata de um discurso onde vale
cheon (1991, p. 36), não só indica sua depen- tudo e que nada de bom e crítico está sendo
dência, mas também sua independência: produzido, mas sim como a busca pelo sur-
gimento de alguma coisa diferente, que faça
com que a os sujeitos se tornem mais partici-
[...] em relação àquilo que a precedeu no pativos e menos contemplativos em relação
tempo e que, literalmente, possibilitou sua a construção da história, da política, em fim
existência. Portanto, a relação do pós- mo- da sociedade em geral.
dernismo com o modernismo é tipicamen- Como uma das formas para colocar em dú-
te contraditória [...]. Ele não caracteriza um vida os discursos e a (H)história, e questio-
rompimento simples e radical nem uma nar o passado a partir do seu interior o Pós-
continuação direta em relação ao moder- Modernismo constrói a ideia de que “todos
nismo; ele tem esses dois aspectos e, ao os grupos têm direito de falar por si mesmo,
mesmo tempo, não tem nenhum dos dois. com sua própria voz, e de ter essa voz como
autêntica e legítima, é essencial para o plu-
Assim, o Pós-Modernismo não vem para ralismo pós-moderno” (HARVEY, 2012, p. 9),
destruir com o que foi construído até o por isso a versão dos fatos dadas por aqueles
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que considerados à margem da sociedade, (JAMESON, 2004, p. 199), que de a produção


pelos “ex-cêntricos”, é tão valorizada. Os es- escrita preocupa-se apenas com a comercia-
critores que inserem as vozes dos margina- lização, e devido a isso as obras de hoje tra-
lizados em suas obras, querem mostrar que zem as vozes dos excluídos, para que esses
discursos tidos como verdadeiros e imutá- se sintam envolvidos e valorizados, acredi-
veis podem ser revistos, questionados, e que tando que um dia a situação em que se en-
a história vai ser relatada de acordo com os contram pode ser mudada, levando-os a tra-
interesses daquele que está contando, que balhar, produzir e consumir mais, fortalecen-
geralmente é a classe dominadora. “É uma do o capitalismo. E que essa artimanha, além
tentativa de verificar o que ocorre quando de manipular os descentralizados, manipula
a cultura é desafiada a partir de seu próprio os das classes favorecidas, pois esses são ex-
interior: desafiada, questionada ou contesta- postos a realidade dos marginalizados e as-
da, mas não implodida.” (HUTCHEON, 1991, sim vão lutar pra não descer de classe. Enfim
p. 16). Não se trata, neste caso, de desfazer que somos uma sociedade facilmente forjada
ou negar a história e sim questioná-la, dando pelos meios de comunicação e pelo estado.
outros pontos de vistas para o leitor/recep- Mas não entendemos dessa maneira, ve-
tor, permitindo que, dessa forma, ele possa mos que o Pós-Modernismo é a reavaliação da
escolher no que acreditar e tenha mais base forma como as mudanças estão acontecendo
para formular suas ideias, além de possibili- e de que maneira essas transformações são
tar que sujeitos silenciados e esquecidos te- apresentadas à sociedade, “[...] consiste em
nham chance de falar o que viram e viveram. reconhecer que o passado, já que não pode
Através das leituras feitas dos textos teó- ser destruído porque sua destruição leva ao
ricos e do romance, observamos que o Pós- silêncio, deve ser revisitado: com ironia, de
Modernismo é a arte da reflexão, do questio- maneira não inocente.” (ECO, 1985, p. 57).
namento daquilo que o senso comum acre- Sendo assim, devemos realizar um questio-
dita ser verdadeiro, de uma forma investiga- namento acerca dos fatos históricos e cultu-
tiva que não fornece respostas concluídas. rais, debatendo e repensando criticamente,
Segundo Hutcheon, é uma reavaliação críti- buscando reescrever as experiências a partir
ca e irônica do passado, da arte e da socie- dos relatos dos excluídos. E, a partir disso, le-
dade e “[...] constitui, no mínimo, uma força var os escritores a produzirem textos literá-
problematizadora em nossa cultura atual” rios ainda mais envolventes, que tragam em
(HUTCHEON, 1991, p. 13). seu interior intertextualidades, subtextos e
Destarte, somos levados a enxergar que instrumentos que procuram convencer o lei-
nada do que nos é apresentado é neutro, que tor a respeito daquilo que está sendo dito.
sempre haverá uma carga ideológica oculta, Deste modo, a literatura de engajamento ul-
e por isso, é necessário desafiar e contestar trapassa os limites artísticos e torna-se um
os discursos sem negá-los ou destruí-los, ato influente dentro da sociedade, fazendo
mas questioná-los. com que a boa receptividade dos textos atre-
Já o crítico literário Fedric Jameson (2004) lada à presença total do escritor, acarrete
defende que os desdobramentos do Pós-Mo- para este, consequências das mais variadas
dernismo constituem simples inversões, ne- “[...] a literatura tem o poder de transcender
gações e cancelamentos das características os valores meramente estéticos e assumir
do modernismo. E “[..] que o pós-modernis- uma função social” (CATANELI, 2012, p. 44).
mo, afinal, é pouco mais que o modernismo Assim, ao buscar expor fatos não revelados
(ou que ele é parasitário ou atrasado com da (H)história e questionar o passado, o es-
respeito às conquistas do modernismo)” critor contribui para a formação de um leitor
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menos ingênuo, e passe a ser mais crítico e E uma das maneiras de fazer isso é a utiliza-
reflexivo, visto que “[...] um livro pode afetar ção da polifonia de vozes, principalmente do
a consciência – afetar a forma como as pesso- marginalizado. Segundo Hutcheon (1991) “O
as pensam e, portanto, a forma como agem. pós-modernismo não leva o marginal para o
Os livros criam eleitorados que tem seu pró- centro. Menos do que inverter a valorização
prio efeito na história” (TRENNER, Richard , dos centros para a das periferias e das fron-
1983, apud HUTCHEON, Linda, 1991, p. 253). teiras, ele utiliza esse posicionamento duplo
A poética do Pós-Modernismo procura paradoxal para criticar o interior a partir do
demonstrar que, apesar de vivermos em um exterior e do próprio interior” (HUTCHEON,
mundo globalizado e de sermos “[...] alguém 1991, p. 98, grifo da autora). E é isso que o
submetido a um bombardeio maciço e alea- livro Vida e época de Michael K (1983) nos
tório de informações parcelares, que nunca traz. É a vez da voz do marginalizado ser
formam um todo, e com importantes efei- ouvida.
tos culturais, sociais e políticos” (SANTOS, Coetzee nos apresenta a realidade da Áfri-
2004, p. 27), cada um tem a sua identidade, ca do Sul por meio do narrador que conta o
sua cultura, e que não devemos nos limitar que se passa com os personagens, uma sé-
ao consumismo que impera nas relações glo- rie de fatos que nos mostram a repressão, o
bais. Essas diferenças existentes entre indi- racismo e preconceito que o negro sofre, o
víduos, povos e nações e a constante busca isolamento que pessoas consideradas dife-
dos sujeitos pela confirmação e construção rentes são obrigadas a viver e as situações
da sua identidade que interessam ser estu- desumanas que o processo de colonização
dadas pelo Pós-Modernismo, mas sempre proporciona, dando-nos detalhes que muitas
com o cuidado de não marginalizar nada vezes passam despercebidos.
nem ninguém e para isso busca “[...] explorar Como podemos ver na exploração de
as mídias e arenas culturais abertas a todos” Anna, mãe de Michael K, que:
(HARVEY, 2012, p. 19).
Por meio disso, podemos dizer que as Durante oito anos Anna K fora empregada
obras pertencentes ao Pós-Modernismo não doméstica [...] Trabalhava cinco e seis dias
são vazias e sem sentido, os autores usam os na semana [...] O salário era justo, os pa-
personagens para confrontar o presente e o trões razoáveis, andava difícil arrumar em-
passado, permitindo que o leitor tenha uma prego [...] Um ano atrás [...] manifestou-se
visão diferenciada dos fatos. O tema é pos- a hidropisia. Os Buhrmann mantiveram no
to através do narrador, contextualizando e emprego para fazer comida, cortaram um
contestando, abrindo ao leitor um leque de terço do seu salário (COETZEE, 1983, p. 12).
possibilidades de interpretações. O romance
contemporâneo Anna retrata como os negros eram/são ex-
plorados pelos colonizadores e seus descen-
[...] reinterpreta o fato histórico, lançando tes dentro do seu próprio país, o tratamento
mão de uma série de artimanhas ficcionais que sofrem, sendo apenas meros serviçais
[...]. São textos que pretendem questionar a e não seres humanos. Eles passam por isso
veracidade do discurso histórico e também sem nem ao menos se darem conta, acham
se autoquestionar, dobrando-se sobre si que a condição de vida a que são condenados
mesmos, desmistificando a representação é normal, e se às vezes percebem que são ex-
e frisando a incapacidade de significar uma plorados se obrigam a não reclamar se não
“verdade única” (PELLEGRINI, 2001, p. 60- perdem o único meio de conseguir dinheiro
61, grifo da autora). para sobreviver. Como no trecho supracitado
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em que a personagem se conforma com o sa- e época de Michael K”, ao invés de “A vida e
lário, patrões e o serviço, pois não era fácil época de Michael K”. Nesse caso a utilização
arrumar emprego, mesmo doente e com o sa- do artigo definido “a” sugeriria que se trata
lário diminuído ela permanece trabalhando. de uma única pessoa, uma única vivência, as-
Além do que acontece com Anna, temos a sim, sua supressão permite uma abrangência
noção do que está acontecendo com o país e maior, indicando que os sofrimentos de K não
seu povo humilde por meio do olhar de Mi- são exclusivos dele, mas sim da maioria do
chael K. Através das dificuldades que encon- povo africano. Evidenciando, também, que
tra em sua trajetória vemos que o país está essa situação não mudou totalmente. Afora
em meio a uma guerra civil e quem mais sofre isso, a utilização de “época”, denota um en-
com esse tempo de violência são os pobres redo que não trata apenas de um indivíduo,
e negros, eles são as principais vítimas das mas de toda a história que envolve o período
injustiças, violências, incoerências e desam- e a população que o vivenciou. Destarte,
paros e que leva os cidadãos ao desânimos,
como exemplo há o que K pensa a respeito Vida e época de Michael K reflete de forma
da condição de sua mãe, uma das poucas ve- crítica a realidade sul-africana por meio do
zes que temos acesso aos pensamentos dele: indivíduo que sofre na pele (poder-se-ia
“[...] o mundo podia ser indiferente a uma ve- dizer, sobretudo, por sua “pele”) as contin-
lha que tinha uma doença feia em tempo de gências históricas que assolaram o conti-
guerra” (COETZEE, 1983, p.14). Eles já eram nente e o país, permitindo-nos, deste ponto
invisíveis aos olhos da sociedade, se esti- de vista, uma leitura arquetípica ou alegó-
vessem doentes e fossem velhos eram como rica (FIORUCI, 2014, p. 99, grifo do autor).
se realmente não existissem, não recebiam
atenção nem tratamento adequado, simples- Outro ponto que faz parte do Pós-Moder-
mente eram deixados para morrer. nismo que consta na romance de Coetzee é
Quando Michael K diz: “Eu não estou na o questionamento daquilo que o senso co-
guerra” (COETZEE, 1983, p. 161) e o narra- mum considera e conhece como verdadeiro
dor afirma dizendo “Ele não é deste mundo. e correto, “[...] o desafio da certeza, a formu-
Vive um mundo todo dele.” (COETZEE, 1983, lação de perguntas, a revelação da criação
p. 165), percebemos que ele não é protago- ficcional onde antes poderíamos ter aceitado
nista daquela história daquele mundo, ele a existência de alguma ‘verdade’ absoluta”
vê o que está acontecendo, mas vive em um (HUTCHEON, 1991, p. 73, grifo da autora), e
mundo a parte, é como se fosse intocado por a não aceitação do que nos é apresentado e
tudo aquilo que está ocorrendo, isso talvez imposto, pois é necessário refletir sobre as
porque ele se sente invisível na sociedade e histórias que nos são repassadas, buscando
por isso não vê a necessidade de fazer parte entender o que aconteceu, revendo os fatos
daquilo. Assim, ao criar um personagem nes- de forma crítica, para que assim, novas ideias
se molde, o autor mostra a visão de alguém surjam e algo seja feito para mudar a situa-
que não está diretamente envolvido com a ção. Visto que só conhecemos o passado por
guerra, permitindo ao leitor enxergar a his- meio dos seus relatos textuais e:
tória sem o filtro da moral, sem o ranço da
história. por que a história não existe a não ser como
Além disso, o próprio título sugere que texto, o pós-modernismo não nega estúpi-
será narrada, mais do que a vida do persona- da e “euforicamente”, que o passado exis-
gem, também será contada a história de uma tiu, mas apenas afirma que agora, para nós,
nação. Pois, o autor escolheu escrever “Vida seu acesso está totalmente condicionado
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 139

pela textualidade. Não podemos conhecer demonstrada quando o narrador das patru-
o passado, a não ser por meio de seus tex- lhas, dos toques de recolher, das exigências
tos: seus documentos, suas evidências, até de passes para sair da cidade e a dificuldade
seus relatos de testemunhas oculares são de obter um, e quando Michael é preso e sem
textos (HUTCHEON, 1991, p. 34, grifos da saber o que está acontecendo começa a per-
autora). guntar o porquê de estar passando por essa
situação, além de ser obrigado a trabalhar.
Desse modo, é importante questionar es- Contudo K fica sem obter nenhuma resposta.
ses textos, já que eles são frutos da lingua- Ao utilizar-se dessa estratégia Coetzee
gem como afirma Linda Hutcheon (1991, p. chama nossa atenção para a questão da li-
39, grifos da autora), que a ideia não é negar berdade ou falta dessa, mostrando que os
“[...] a existência do passado”, mas sim ques- personagens estão livres e presos ao mesmo
tionar “[...] se jamais poderemos conhecer o tempo. Um exemplo é quando narra a impos-
passado a não ser por meio de seus restos sibilidade de Michael voltar ao local onde
textualizados” e esta pode ser manipulada morava, tendo que passar a noite no quarto
de acordo com os interesses que quem a de sua mãe devido aos toques de recolher:
está usando. A linguagem “[...] é uma prática “Uma noite os ônibus não saíram às ruas [...]
social, um instrumento para manipulação e Sem poder dormir, sem poder sair, por causa
controle” (HUTCHEON, 1991, p. 237) e as- do toque de recolher, ficou sentado na cadei-
sim, os discursos oficiais não podem ser con- ra, tremendo, até de manhã [...] (COETZEE,
siderados como verdade absoluta, por isso, a 1983, p. 13).
importância de trazer relatos de pessoas que Na segunda parte do livro, esse questio-
estão fora do centro, do poder. namento se dá por meio de outro narrador,
O autor questiona os sistemas centraliza- o oficial que está cuidando de K. Esse come-
dos, onde uma minoria decide como o país ça a observar Michael e refletir sobre o que
deve ser e como as regras funcionarão. Ele está acontecendo com eles e ao seu redor.
reconhece a necessidade de estabelecer a or- Vê que Michael conseguiu viver e sobreviver
dem, mas indaga como isso está sendo feito, no meio da história conflituosa, e o narrador
quais os motivos da guerra e o modo de vida também quer fugir da realidade e se igualar
das pessoas que estão passando por isso, se a ele. Desse modo, o oficial começa a ques-
as medidas que estão sendo tomadas pelo tionar seu modo de vida e o que levou a essa
governo são para melhorar a vida da popu- guerra: “Além disso, falei, pode me lembrar
lação ou somente para benefícios dos pró- por que estamos fazendo essa guerra? Uma
prios. Segundo Hutcheon: vez me disseram, mas faz tempo e parece que
esqueci. Estamos fazendo esta guerra, disse
O pós-modernismo questiona sistemas Noel, para as minorias terem algo a dizer so-
centralizados, hierarquizados e fechados: bre seus destinos.” (COETZEE, 1983, p. 183)
questiona, mas não destrói. Ele reconhe- Ademais, Coetzee apresenta uma litera-
ce a necessidade humana de estabelecer a tura descentralizada, que fala e dá voz aos
ordem, e ao mesmo tempo observa que as menos favorecidos, aos marginalizados. Isso
ordens não passam disso: elaborações hu- se dá no momento em que o autor faz uma
manas, e não entidades naturais ou pree- literatura que não discorre sobre a elite ou
xistentes (HUTCHEON, 1991, p. 65) os brancos. Ao contrário, ela é popular, da
classe baixa, dos marginalizados, que rela-
Essa questão dos métodos utilizados pelo ta a história de um homem que vive numa
governo sul-africano para manter a ordem é sociedade onde a solidariedade raramente
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aparece. Michael percebe sua condição, em que estão em busca por uma identidade.
que o único papel que tem na sociedade é Percebemos isso ao ver as dúvidas que Mi-
de trabalhador, percebível nos momentos chael tem em relação ao seu lugar e papel no
em que ele é capturado e forçado a trabalhar mundo: “O problema que tanto o preocupava
sem receber nenhuma explicação: “Na com- anos antes, no galpão das bicicletas do Huis
panhia de cinquenta estranhos, K foi levado Norenius, o porquê de ter sido trazido ao
de caminhão para o pátio da ferrovia, comeu mundo, recebera sua resposta: tinha vindo
mingau frio e chá, e foi embarcando num va- ao mundo para cuidar da mãe.” (COETZEE,
gão isolado num ramal.” (COETZEE, 1983, p. 1983, p.13). Mesmo quando sua mãe já está
51). “Por que tenho que trabalhar?” “Porque morta ele insiste em realizar seu último de-
mandaram.” (COETZEE, 1983, p. 53). sejo, regressar à fazenda onde morava e lá
O fato de ter o lábio leporino e não con- enterrar as suas cinzas, mas não era somente
seguir se comunicar direito deixa o perso- para isso que Michael queria ir até esse local.
nagem isolado das demais pessoas, vivendo Ele tem curiosidade em saber as suas raízes,
à deriva pelo mundo. Mostra também que a sua origem, e por meio dessas descobertas,
pessoas como Michael são, desde crianças, poder assim, formar sua identidade. Mas não
ensinadas a desempenhar funções, para ser- é um voltar por voltar, é um retorno ao pas-
vir aos outros e que não os tornassem serem sado com uma perspectiva diferente, mais
pensantes, apenas trabalhadores: reflexiva, demonstrada através dos fluxos de
pensamentos dos personagens, pois apesar
Por causa da deformação, e porque não era de raramente aparecer sua fala no texto, te-
rápido de cabeça, Michael foi tirado da es- mos acesso às suas ideias, dada a focalização
cola depois de uma breve tentativa [...] pas- interna do relato.
sou o resto da infância na companhia de Outro ponto que nos mostra de que existe
outras crianças infelizes com afecções di- a falta de uma identidade definida é o fato do
versas, aprendendo os primeiros passos de sobrenome do personagem ser apenas “K”,
ler, escrever, contar, varrer, esfregar, arru- ou mesmo por ele ser chamado (nomeado)
mar camas, lavar pratos, fazer cestos, me- de formas diferentes durante o livro: “Micha-
xer com madeira e cavar”, “Por causa da sua el K”, “Michael”, “K” e “Michaels”, deixando-
cara, K não tinha amigas mulheres. Ficava nos a ideia que ele não sabe quem realmente
melhor quando estava sozinho (COETZEE, é e que outros indivíduos passam pela mes-
1983, p. 10). ma situação. O tempo todo ele tenta voltar
ao local da sua origem para tentar formar
Isso mostra que o diferente, o margina- sua identidade, a identidade da nação africa-
lizado, não é aceito e ouvido pela história, na. É nessas tentativas que compreendemos
sofrendo anulação cívica e falta de amparo que o maior rival de Michael é a História,
por parte da lei, e é através disso que o autor pois ela sacrifica sua existência, o anula, ele
quer defender a ideia de que esse deve ser é vítima de algo que não compreende e não
aceito, respeitado e acolhido pela História. reconhece.
Aliás é por meio da fala, da linguagem que Essa problematização dos acontecimen-
nos formamos como sujeito e expressamos tos históricos, das ideologias de um país em
nossa subjetividade, constituindo assim nos- conflito, ajuda-nos a compreender melhor
sa personalidade. como a cultura de uma nação é formada. É
Em Vida e época de Michael K (1983) o por meio desses relatos do passado que o
escritor se utiliza do personagem principal autor critica a história fazendo-nos refletir
para mostrar a situação de várias pessoas a respeito da formação das regras, leis, de
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 141

como é ditado a forma de vida que os cida- passado, analisar cuidadosamente tudo que
dão devem ter, exemplifica a maneira que os aconteceu, mas de uma forma mais crítica.
marginalizados são tratados, a total anulação Com isso, o texto literário exige um leitor
a sua voz desses diante da sociedade, sendo mais reflexivo e analítico, atento ao que está
meros fantoches, usados apenas como mão nas entrelinhas do discurso. Contribui, por-
de obra, beneficiando a classe dominadora. tanto, para formar sujeitos questionadores
Coetzee utiliza a literatura como uma for- diante de informações dadas como verda-
ma de libertar os oprimidos do silêncio que deiras e incontestáveis e, por consequência,
são obrigados a viver, inserindo-os na histó- para uma sociedade menos alienada e mani-
ria, dando a oportunidade para mais pessoas pulável.
saberem o que acontece aqueles que não es- Ao longo dessa pesquisa, percebemos que
tão no centro. Ele deixa transparecer a falta as obras pertencentes ao Pós-Modernismo
de interesse do estado em ajudar indivíduos trazem informações que muitas vezes po-
como Michael a se inserirem na sociedade, e dem passar despercebidas, elas fazem com o
como isso faz com que esse tipo de pessoas leitor saia da sua zona de conforto e passe
se isolem até quase se tornarem primitivos a pensar mais criticamente, refletindo sobre
ou animais. a nossa sociedade. Observa-se então, que os
Sua literatura traz à tona, de um modo estudos contribuem para a formação de se-
critico, o que os processos de colonização res humanos e sociais mais atentos e pers-
causaram na população nativa, e como isso picazes diante das informações a que somos
é visto, vivido e sentido por esses. O autor cansativamente expostos.
quer fazer com que nós tiremos as másca- A construção do romance de Coetzee é um
ras que nos foram postas e passamos, dessa entrelaçamento entre História e ficção, pois
maneira, a enxergar e raciocinar sobre o que através de seus personagens, a pluralidade
está acontecendo ao nosso redor. Para que de vozes, a atenção direcionada ao excêntri-
assim cada vez mais pessoas percebam como co, a busca pela identidade, o discurso como
está se formando a sociedade, e quem sabe, instrumento de poder ideológico, entre ou-
assim, os “Michaels” possam ter o direito de tros. Desse modo, percebe-se que o Pós-
se expressar, vivendo com dignidade, sendo Modernismo esforça-se por fazer ver que o
ouvidos, deixando de ser invisíveis, ou seja, “autêntico”, a “verdade”, são construções de
passando a existir de fato. linguagem. Pois, todo e qualquer discurso
carrega subjetividades intrínsecas, prove-
CONSIDERAÇÕES FINAIS nientes de um narrador ou mesmo de um
Com base na análise, podemos perceber que poder opressor. Por isso, a importância em
Vida e época de Michael K enquadra-se nos dar voz ao excêntrico, a aqueles que frequen-
moldes principais do Pós-Modernismo, es- temente são excluídos do discurso “genuíno”.
pecialmente por permitirque o silenciado, o Todavia, de modo algum, isso significa negar
marginalizado possa expor sua versão dos ou destruir o discurso Histórico ou qualquer
fatos, e dessa forma, a (H)história seja ques- outro. Denota na verdade, a sua desestabili-
tionada a partir do seu interior. Uma das in- zação, sua desconstrução, visto que são sem-
tenções do Pós-Modernismo é demonstrar pre já interpretados e editados. Assim, deve-
que os discursos são carregados de inten- mos revisitar o passado repetidamente, mas
ções e subjetividades, explicitar o modo de conscientes, de modo não inocente.
manipulação discursiva dos que estão no po- O Pós-Modernismo não faz outra coisa
der. Não se quer, no entanto, destruir ou ne- se não examinar também o discurso lite-
gar a História, o que se pretende é revisitar o rário. Assim sendo, demonstra o desejo e a
142 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

tentativa de criar uma nova literatura e uma Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. 330 p.
nova forma de escrever, que possibilite ao
leitor tornar-se alguém mais crítico diante JAMESON, Frederic. Espaço e Imagem: Teoria do
do mundo globalizado e dos meios de comu- Pós-moderno e outros ensaios. Tradução: Ana
nicação. Vê-se então, que tenta apenas en- Lúcia Almeida Gazolla. 3ª ed. Rio de Janeiro:
grandecer os seres humanos, almejando uma UFRJ, 2004. 290 p.
sociedade questionadora e mais consciente,
com maior poder interpretativo, e que não LEMERT, Charles. Pós-modernismo não é o que
aceite sem qualquer ponderação toda infor- você pensa. Tradução: Adail Ubirajara Sobral.
mação recebida, deixando assim, de ser facil- São Paulo: Loyola, 2000. 196 p.
mente manipulável.
PELLEGRINI, Tânia. Ficção brasileira contempo-
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 143

A POPULARIDADE DE ORGULHO E PRECONCEITO E A


PERDA DE UMA JANE AUSTEN CRÍTICA

Maria Clara Pivato Biajoli1

RESUMO: O presente artigo busca refletir, em primeiro lugar, sobre como a obra de Jane Austen
(1775-1817) pode ser lida como questionadora dos papeis de gênero da sociedade em que vivia,
em especial do lugar restrito a que as mulheres tinham direito. Essa é uma discussão importante
pois seus romances têm ganhado cada vez mais espaço dentro das editoras, dos cinemas e da TV
como apenas histórias ingênuas e românticas, o que faz com que suas críticas sejam esquecidas pelo
público em geral. A crescente popularidade de Austen, responsável pela publicação de inúmeras
continuações, adaptações e romances spin-offs a partir de sua obra, se alimenta dessa imagem ao
mesmo tempo em que ajuda a cristalizá-la. Dentro dessa preocupação, em um segundo momento
será analisada uma trilogia moderna que reconta a história de Orgulho e Preconceito a partir do
ponto de vista do herói Mr. Darcy, e a forma como essa trilogia contribui para o reforço de papeis de
gênero tradicionais e também para enfraquecer a obra de Austen.
Palavras-chave: Jane Austen. Orgulho e Preconceito. Gênero. Continuações. Popularização

ABSTRACT: The present article intends to reflect, firstly, on how Jane Austen’s books can be read as
critical of the gender roles presented in her time, especially how they question the restrict place that
was allowed to women then. This is an important discussion because her novels are receiving more
and more space in publishing houses and in the movies and TV industry just as romantic and naïve
stories, which makes the public in general to forget her social critics. Austen’s increasing populariza-
tion, responsible for the production of sequels and spin-off novels from her work, feeds on this image
and, at the same time, helps to fix it. Because of this problem, in a second part a modern trilogy which
retells the story of Pride and Prejudice from Mr. Darcy’s point of view will be analyzed to observe how
it reinforces traditional gender roles and also how it contributes to weaken Austen’s works.
Keywords: Jane Austen. Pride and Prejudice. Gender. Sequels. Popularization.

INTRODUÇÃO
Não é difícil entender porque o romance Orgulho e Preconceito (doravante O&P), publicado
pela escritora inglesa Jane Austen em 1813, é lido hoje como um conto de fadas do mundo
real. Ao invés de reis e rainhas, bruxas e dragões, encontramos personagens comuns – ainda
que de duzentos anos atrás – em uma complicada e deliciosa trama de encontros e desen-
contros coroada pelo final feliz da vitória do amor sobre os impedimentos da sociedade. Mr.
Darcy, por exemplo, é visto como o verdadeiro príncipe encantado, o homem perfeito a ser
encontrado, o homem que muda por amor. É quase como um príncipe que inicia a histó-
ria como sapo – arrogante, orgulhoso, cheio de si e de sua superioridade – para depois ser
transformado por uma saudável recusa ao seu pedido de casamento no herói charmoso e
agradável que conquista o amor de sua dama, Elizabeth Bennet, e a salva – e também a sua
família – do grande perigo do escândalo sexual causado pelo malvado Mr. Wickham. Ao final,
para deleite do leitor, o casal vai viver na grande propriedade de Pemberley, ou o castelo en-
144 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

cantado, e serão felizes para sempre já que De acordo com as memórias de seu sobri-
não podia ser diferente. nho Edward James Austen-Leigh, Jane Aus-
Esse pequeno resumo de O&P pode soar ten usava um tipo de papel mata-borrão para
estranho, algo como o encontro da rainha Vi- cobrir seus textos enquanto escrevia na sala
tória com Walt Disney, porém ele escancara a de estar de sua casa, para o caso de alguém
forma como um dos livros mais importantes entrar de repente e surpreende-la nessa ati-
da história da literatura inglesa vem sendo vidade incomum para as mulheres (WOOLF,
lido, adaptado e reciclado para o supersen- 1985, p.89). Para Gilbert e Gubar, a história
timentalismo construído e alimentado pela de amor tradicional dos romances de Austen
mídia nas últimas décadas. Pois, como vou seria o mata-borrão superficial, a estratégia
argumentar no presente artigo, as muitas paródica que disfarça outras camadas de sig-
continuações ou apropriações de Orgulho e nificado em seus textos mais críticas a sua
Preconceito, publicadas em grande número sociedade. Assim, em uma primeira leitura,
e com grande aceitação de público, centram- seus romances reforçariam valores conser-
se na exploração até aos últimos detalhes vadores ao narrar histórias em que as mu-
da história de amor entre Darcy e Elizabeth lheres parecem se adequar para garantir o
e acabam por gerar pelo menos dois efeitos casamento almejado. Por exemplo, em uma
muito prejudiciais sobre a obra de Austen: o reflexão sobre o romance Northanger Abbey,
primeiro, de que se trata apenas de roman- Gilbert e Gubar afirmam:
ces românticos; e o segundo, de colocar no
esquecimento todo o conteúdo político e Dramatizing the necessity of female sub-
de crítica social, especialmente em relação mission for female survival, Austen story
ao papel da mulher em sua sociedade, que is especially flattering to male readers be-
Austen soube incluir – e disfarçar – de ma- cause it describes the taming not just of
neira incrivelmente hábil em suas histórias. any woman but specifically of a rebellious,
Segundo Sandra Gilbert e Susan Gubar, na imaginative girl who is amorously mas-
grande obra de referência The Madwoman in tered by a sensible man. No less than the
the Attic: blotter literally held over the manuscript
on her writing desk, Austen’s cover story
(…) critics who patronize Austen for her of the necessity for silence and submission
acceptance of limits and boundaries are reinforces women’s subordinate position
overlooking a subversive strain in even in patriarchal culture. (GILBERT e GUBAR,
her earlier stories. (…) Although she has 2000, p.154)2
become a symbol of culture, it is shocking
how persistently Austen demonstrates her Não há como negar que essa cover story
discomfort with her cultural inheritance, foi um bom disfarce para Austen em sua épo-
specifically her dissatisfaction with the ti- ca, pois ainda que não adorada de imediato,
ght place assigned women in patriarchy
mesmo nas suas primeiras histórias. (...) Apesar de ela ter se tornado um sím-
and her analysis of the economics of sexual bolo de cultura, é chocante a forma como Austen demonstra persistentemente
seu desconforto com a sua herança cultural, especificamente a sua insatisfação
exploitation. (…) Austen is centrally con- com o pequeno espaço designado às mulheres na sociedade patriarcal e a sua
análise da economia da exploração sexual. (...) A preocupação central de Aus-
cerned with the impossibility of women es- ten é a impossibilidade de as mulheres escaparem às convenções e categorias
que, em todos os sentidos, as diminuem. (tradução nossa)
caping the conventions and categories that,
2 Ao dramatizar a necessidade da submissão feminina para a sobrevivência
in every sense, belittle them. (GILBERT e feminina, a história de Austen é especialmente bajuladora aos leitores homens
porque descreve a domesticação não de uma mulher qualquer, mas especifi-
GUBAR, 2000, p.112-113)1 camente de uma jovem rebelde e imaginativa que é dominada amorosamente
por um homem sensível. Não mais do que o mata-borrão colocado literalmente
sobre o manuscrito na sua escrivaninha, a história ‘disfarce’ de Austen sobre a
1 (...) Os críticos que tratam Austen com condescendência por conta de sua necessidade do silencio e da submissão reforça a posição subordinada da mu-
aceitação de limites e fronteiras não percebem o traço subversivo presente até lher na cultura patriarcal. (tradução nossa)
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 145

também nunca chegou a ser considerada do reino dependia do comportamento ade-


inapropriada. Mas há muito tempo que a quado das mulheres, em especial das jovens
crítica, em especial a feminista, vem mos- em época de se casar, e a sua conduta pode-
trando o caráter subversivo do que Austen ria definir tanto o sucesso quanto a destrui-
produziu, uma característica que está sendo ção da ordem política, já que a família é a
sistematicamente apagada pela indústria de base do Estado e da nação (JOHNSON, 1990,
histórias românticas, tanto editorial quanto pp.3-4). As mulheres deveriam, então, ser
cinematográfica. Assim, nas páginas a seguir obedientes aos seus pais, irmãos, maridos
abordarei, primeiro, a forma como a crítica e/ou tutores, e deveriam aceitar a proteção
feminista vem trabalhando esse caráter sub- destes enquanto ficam em casa, protegidas e
versivo de Austen para, depois, exemplificar ao mesmo tempo distanciadas dos aconteci-
o seu apagamento a partir de uma reescritu- mentos externos.
ra moderna de Orgulho e Preconceito. Segundo Gilbert e Gubar, as heroínas de
Austen poderiam parecer, à primeira vista,
JANE AUSTEN QUESTIONADORA muito semelhantes às personagens desses
Na época de Jane Austen havia um gênero de livros didáticos, mas se tomarmos como
romance muito comum de obras didáticas exemplo as falas da personagem Mary Ben-
voltadas para a instrução das mulheres, sem- net em O&P e a forma como ela é ridiculari-
pre centradas em personagens femininas de zada, podemos perceber que Austen era ex-
valor moral impecável, protetoras da famí- tremamente crítica a esse tipo de didatismo
lia e dos bons costumes. Segundo Claudia fervoroso. Além disso, em uma análise mais
Johnson, esse tipo de história tornou-se po- profunda de seus romances, encontramos,
pular em um momento de grandes questio- geralmente retratadas de forma discreta, fi-
namentos sociais encorajados, em especial, guras masculinas fracas, defeituosas: pais
pela Revolução Francesa. Se pensarmos que negligentes ou tirânicos, irmãos irrespon-
Austen nasceu em 1775 e faleceu em 1817, sáveis ou ausentes, primos estúpidos. Para
podemos perceber que toda a sua vida, em Claudia Johnson, essa é uma das formas que
especial seus anos como escritora, ocorreu Austen encontra para mostrar que a vida
em paralelo a esses acontecimentos políti- doméstica e a dependência das mulheres de
cos, e não há motivos para acreditar que seus seus familiares homens não era, em geral,
efeitos não a alcançaram, mesmo no interior algo tão eficiente e harmonioso como que-
da Inglaterra3. Os relatos de Edmund Burke4 riam os romances didáticos. Ela afirma:
a respeito dos acontecimentos na França,
por exemplo, mostram as reações conserva- Considered from within the compelling
doras que foram sentidas do outro lado do rhetorical structures conservative nove-
canal, e os romances didáticos para as mu- lists build, to suggest, as Austen, among
lheres foram produzidos em um momento many other, frequently does, that fathers,
em que, segundo Johnson, “female modesty sons, and brothers themselves may be sel-
is a matter of national security” (JOHNSON, fish, bullying and unscrupulous, and that
1990, p.14). Segundo essa autora, surge nes- the ‘bonds of domestic attachment’ are
se período uma ideia de que a estabilidade not always sweet, is to attack the institu-
tions which make morality possible and
3 Claudia Johnson, a partir da análise da correspondência pessoal de Jane so to contribute to the dissolution of the
Austen, defende que a escritora tinha contato com materiais considerados
‘radicais’ ou ‘revolucionários’, em especial sobre a igualdade das mulheres, e government. (JOHNSON, 1990, 10)5
que leu muitos dos romances didáticos escritos em resposta a essas ideias.

4 Reflections on the Revolution in France, de 1790, e Letter to a member of 5 A partir das estruturas retóricas conservadoras construídas pelos nove-
the National Assembly de 1791. listas, sugerir, como Austen faz frequentemente, entre muitos outros autores,
146 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Um bom exemplo de como Jane Austen tempo a tranquilidade de todos frente à su-
denuncia de forma discreta as falhas da so- cessão de propriedade somente pela linha
ciedade patriarcal e como elas geralmente masculina, que empobrece as mulheres
acabam prejudicando o seu lado mais fraco, do dia para a noite, a tirania e a indulgên-
as mulheres, está no livro Razão e Sensibili- cia dos que eram vistos como os proteto-
dade, publicado dois anos antes de O&P. A res dessas mulheres, tudo isso é mostrado
história é centrada em duas irmãs, Elinor e nas entrelinhas, denúncias escondidas sob
Marianne, que se apaixonam por homens que o mata-borrão dos conflitos amorosos vivi-
não são exatamente o modelo do cavalheiro dos pelas duas irmãs e da pretensa crítica
exemplar imaginado pelos conservadores da ao comportamento da mais jovem, Marian-
época: Willoughby, por ser um galã sedutor ne. Para Johnson, Razão e Sensibilidade é o
que assume o papel de vilão por preferir o livro de Austen mais conectado com uma
dinheiro ao amor; e Edward Ferrars, por ser, crítica social progressiva. Comparando-os
em última instância, fraco. Mas essa sua ca- com os livros didáticos de bons costumes,
racterística desaparece frente à ‘maldade’ ela diz:
de Willoughby e Ferrars acaba sendo visto
como uma vítima de suas circunstâncias e se Whereas conduct books teach young wom-
torna o galã das adaptações para o cinema en the social codes they must adopt if they
e TV, que escalaram para o papel os atores are to live acceptably as wives and daugh-
Hugh Grant e Dan Stevens, respectivamente. ters, fully integrated into their commu-
Razão e Sensibilidade é geralmente lido nities, Sense and Sensibility makes those
como uma lição, de que a primeira deve pre- codes and the communities that dictate
valecer sobre a segunda, mas Claudia John- them the subject of its interrogation, and
son afirma que não se trata de um livro de what is at stake finally is not propriety, but
boas maneiras, que mostraria que o compor- survival. (JOHNSON, 1990, p.50)7
tamento adequado é o silêncio de Elinor e
não a profusão de emoções de Marianne, e Para Gilbert e Gubar, Austen explora de-
sim um livro que mostra que nenhuma das talhadamente as formas do controle da so-
duas irmãs, detentoras de atitudes e com- ciedade patriarcal sobre as mulheres o qual,
portamentos quase opostos, conseguiram em última instância, depende da negação ou
escapar dos males infligidos por uma so- impedimento dessas mulheres de seus direi-
ciedade patriarcal. Diz Johnson: “this dark tos de poder receber seu próprio dinheiro,
and disenchanted novel exposes how those tanto via herança como via trabalho. Elas
sacred and supposedly benevolizing insti- concluem:
tutions of order – property, marriage, and
family – actually enforce avarice, shiftless- Thus, in all her novels, Austen examines the
ness, and oppressive mediocrity” (JOHNSON, female powerlessness that underlies mo-
1990, p.49)6. netary pressure to marry, the injustice of
A desordem da família como base da es- inheritance laws, the ignorance of women
tabilidade da nação, a crueldade e ao mesmo denied formal education, the psychologi-
cal vulnerability of the heiress or widow,
que pais, filhos e irmãos podem eles próprios serem egoístas, atormentadores the exploited dependency of the spinster,
e inescrupulosos, e que os ‘laços da afeição doméstica’ nem sempre são doces,
é atacar as instituições que tornam a moralidade possível e assim contribuir
para a dissolução do governo. (tradução nossa) 7 Enquanto livros de conduta ensinam a jovens mulheres os códigos sociais
que elas devem adotar se querem viver aceitavelmente como esposas e filhas
6 (...) essa novela escura e desencantada expõe como aquelas instituições totalmente integradas às suas comunidades, Razão e Sensibilidade faz desses
de ordem sagradas e supostamente benevolentes – propriedade, casamento códigos e das comunidades que os ditam o seu objeto de interrogação, e o que
e família – na verdade reforçam a avareza, a incapacidade e a mediocridade está em jogo no final não é o comportamento adequado, mas a sobrevivência.
opressiva. (tradução nossa) (tradução nossa)
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 147

the boredom of the lady provided with no única forma aceitável e acessível para uma
vocation. (GILBERT e GUBAR, 2000, 136) 8
jovem ter algum tipo de sucesso nessa socie-
dade, mostrando assim como suas vidas são
Essas mulheres enumeradas pelas auto- deficientes. Dizem as autoras:
ras aparecem em todos os romances de Aus-
ten, sem exceção: em Georgiana Darcy, rica Many critics have already noticed duplicity
herdeira, sendo enganada por Wickham; em in the ‘happy endings’ of Austen’s novels in
Lady Bertram, que vive uma vida tediosa; no which she brings her couples to the brink
empobrecimento de Elinor e Marianne por of bliss in such haste, or with such unlikely
não poderem ficar com a herança de seu pai; coincidences, or with such sarcasm that the
na dependência da “solteirona” Miss Bates entire message seems undercut: the impli-
da caridade de outros; na superficialidade cation remains that a girl without the aid
das irmãs Musgrove; na decisão – desespera- of a benevolent narrator would never find
da? – de Charlotte de se casar com o ridícu- a way out of either her mortifications or her
lo Mr. Collins porque já estava ficando velha parents’ house. (GILBERT e GUBAR, 2000,
demais. p.169)10
Dentro desse ataque velado aos valores
dessa sociedade, um dos pontos mais deba- Visto pelos conservadores como um dever
tidos pelos críticos de Austen é o casamento. social das jovens de boa família, o casamento
Não há como negar que todos os seus roman- não era uma união realizada com vistas à fe-
ces terminam com o casamento feliz das per- licidade do futuro casal, mas sim, novamen-
sonagens principais, que rendeu à escritora te, uma garantia do futuro e da estabilidade
algumas acusações de apoiar ou no mínimo da nação. Dentro desse discurso, autoras de
de ser conivente com esse grande projeto livros didáticos para mulheres como Jane
conservador para as mulheres. Para Clau- West (1758-1852) condenavam o casamen-
dia Johnson, deveríamos problematizar esse to por amor. Claudia Johnson aponta para
padrão e “[it] should make us chary about uma característica que passou despercebida
inferring that the marriages concluding her pelos críticos de Austen: todos os seus ca-
novels constitute an unequivocal ideological samentos foram feitos por amor, o que co-
statement about marriage itself, considered locaria a autora em direto conflito com essa
either as a goal for women, or as a boon to moral conservadora da época, inclusive com
society.” (JOHNSON, 1990, p.91)9. Jane West. Novamente cito Johnson:
Para Gilbert e Gubar, Austen ridiculari-
za as noções românticas de histórias com Furthermore, the wish to subordinate un-
fuga de amantes, bailes, pedidos de casa- ruly individual passions to prescribed so-
mento, mas ainda assim suas histórias estão cial duties prompts conservative novelists
limitadas a esses tópicos. Haveria então uma such as (…) West to minimize and even dis-
implicação clara a partir do silêncio de Aus- miss the importance of love as a precondi-
ten sobre outros assuntos: o casamento é a tion of marriage. Austen, on the other hand,
puts a premium on it. (JOHNSON, 1990,
8 Assim, em todos os seus romances, Austen examina a falta de poder femi- p.89)11
nina que está na base da pressão monetária para se casar, da injustiça das leis
de herança, da ignorância das mulheres que não tiveram acesso à educação
formal, da vulnerabilidade psicológica da herdeira ou da viúva, da dependên- 10 Muitos críticos já notaram a duplicidade nos ‘finais felizes’ dos romances
cia explorada da solteirona, do tédio da dama sem qualquer ocupação. (tradu- de Austen nos quais ela traz seus casais para a iminência da alegria de forma
ção nossa) tão apressada, ou então através de coincidências tão improváveis, ou com tan-
to sarcasmo, que toda a mensagem parece destruída: permanece a insinuação
9 [isto] deveria nos tornar mais cuidadosos sobre inferir que os casamentos de que uma jovem sem a ajuda de um narrador benevolente nunca encontraria
que concluem seus romances constituem tanto uma afirmação ideológica ine- uma saída para as suas aflições ou da casa de seus pais. (tradução nossa)
quívoca sobre o próprio casamento, quanto um objetivo para as mulheres ou
uma benção à sociedade. (tradução nossa) 11 Além disso, o desejo de subordinar as paixões individuais aos deveres so-
148 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

A busca pela felicidade como um direito e, dice is an ‘aesthetic solution’ that cannot
mais ainda, um direito também das mulheres, really address the ‘social problems’ the no-
em especial no casamento, torna-se então vel itself uncovers, and indeed that actually
uma ideia altamente radical. É nesse ponto conceals their depth. (…) To imagine ver-
que entra Orgulho e Preconceito. Trata-se de sions of authority responsive to criticism
um romance feliz, como afirma Claudia John- and capable of transformation is not ne-
son, e a personagem masculina principal, Mr. cessarily to ‘escape’ from urgent problems
Darcy, é uma hipérbole da perfeição que não into ‘romance’ and to settle for politically
vai ser encontrada em mais nenhum outro irresponsible ‘consolation of form’ which
livro de Jane Austen. Ao mesmo tempo, po- offer us a never-never land and leave the
rém, essa perfeição é questionada a partir da structures of the ‘real word’ unchanged.
atitude dele para com Elizabeth. Seu orgulho (…) Austen’s decision here to engage her
por pertencer a uma classe social superior exceptionally argumentative antagonists
e sua incapacidade de se fazer agradável às in direct, extensive, and mutually impro-
pessoas que não considera digna de sua con- ving debates can just as well be viewed
vivência questionam não a existência dessa as a step towards, rather than an ‘escape’
classe conservadora, detentora de terra, mas from, constructive political commentary.
seu direito de comandar a todos. As ofensas ( JOHNSON, 1990, p.74 – grifos meus)12
proferidas por Darcy em seu pedido de ca-
samento a Elizabeth, por exemplo, mostram Johnson admite que, de certa forma, O&P é
que ele não tinha dúvidas – e isso é afirmado uma novela conciliatória, permitindo ao final
por Austen no fim do romance – de que ela – com a entrada triunfante de Elizabeth na
aceitaria se casar com ele. A recusa de Eliza- alta classe a que Darcy pertencia – que essa
beth mostra um ponto forte do livro que diz mesma classe saísse relativamente intocada.
que, mesmo pertencendo a uma família infe- A autora acredita que é por isso que O&P pa-
rior à dele, ela tem o direito de ser tratada rece reforçar mitos conservadores, mas, em
com respeito como qualquer pessoa da ton sua opinião, o romance foi um experimento
inglesa. A sua discussão com Lady Catherine de Austen com esses mitos, que acabou se vi-
em que se recusa abertamente a aquiescer às rando depois contra ela.
suas ordens também é vista dessa forma. A Por outro lado, se tirarmos o foco do re-
mudança que se opera em Darcy, ou seja, a lacionamento entre Darcy e Elizabeth e nos
forma como Austen colocou de forma indire- voltamos para a sua irmã mais nova Lydia
ta a possibilidade de a alta classe possuir de- Bennet, todo o argumento da crítica contra
feitos e ter a necessidade de se corrigir, é um o lugar da mulher nessa sociedade retor-
dos pontos que escapam continuamente a na com um peso enorme. Lydia é retratada
quem lê o livro com um conto de fadas. Como como uma menina de 15 anos mimada por
afirma Claudia Johnson: sua mãe indulgente, tornando-se fútil e inte-
ressada somente em flertes com os oficiais
To some, Pride and Prejudice has a marke-
dly fairy-tale like quality which, while 12 Para alguns, Orgulho e Preconceito tem uma qualidade marcadamente
de contos de fada, a qual, enquanto justifica muito do sucesso duradouro do ro-
accounting for much of the novel’s endu- mance, é politicamente suspeita. (...) Os finais felizes de Orgulho e Preconceito
são uma ‘solução estética’ que não trata realmente dos ‘problemas sociais’ que
ring popular success, is politically suspect. o romance em si revela, e de fato isso até esconde a sua profundidade. (...) Ima-
ginar versões de autoridade reagindo a críticas e capazes de transformação
(…) the happy ending of Pride and Preju- não é necessariamente ‘fugir’ de problemas urgentes para dentro do ‘romance’
e se conformar com um ‘consolo da forma’ politicamente irresponsável que nos
oferece uma terra do nunca e deixa as estruturas do ‘mundo real’ intactas. (...)
A decisão de Austen aqui de engajar seus excelentes antagonistas inclinados a
ciais leva autores conservadores como (...) West a minimizar e até a descartar discussões em um debate direto, extenso e que melhora a ambos pode ser visto
a importância do amor como uma pré-condição para o casamento. Austen, ao da mesma forma como um passo em direção a, ao invés de uma fuga de, um
contrário, o premia. (tradução nossa) comentário politicamente construtivo. (tradução nossa)
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 149

do exército britânico. No fim do livro, porém, mundane, are just as thwarted as those
a sua inocência combinada com uma grande they read about so obsessively. (GILBERT e
tolice acaba fazendo com que ela fuja para GUBAR, 2000, p.121)13
Londres com Wickham, o grande inimigo de
Darcy, e viva com ele sem estarem casados Em outras palavras, a inutilidade da vida
– ou seja, permitindo relações sexuais – por a que as mulheres tinham direito dentro des-
mais de 15 dias. A solução mais aceitável sa sociedade patriarcal era responsável pela
para toda essa situação é que ela se case com produção das meninas tolas e de compor-
Wickham – de forma forçada – e ambos vão tamento chocante que a mesma sociedade
morar em Newcastle, uma região ao norte da patriarcal se esforçava por condenar, e isso
Inglaterra longe o suficiente para garantir a aparece claramente nas obras de Austen.
paz de todos por pelo menos um bom tempo. Contudo, conforme afirmei anteriormente,
Lydia parece receber um castigo pelo o que o que as continuações e apropriações dessas
ela própria construiu, pois gera problemas obras vão ressaltar é exatamente à supera-
desde o começo da narrativa. Por exemplo, valiação do amor, construindo histórias ex-
por seu comportamento totalmente inade- tremamente sentimentalistas, retornando a
quado, Darcy separa seu amigo Mr. Bingley obra de Austen a exatamente o que ela que-
de Jane Bennet, a irmã mais velha, angelical ria extirpar e apagando o que ela tanto se es-
e inocente, o contraponto mais contrastante forçou para divulgar.
com o comportamento da irmã caçula. Essa
construção de Lydia, porém, tem um outro JANE AUSTEN RECONSTRUÍDA
lado pouco explorado. Suas atitudes podem Para ilustrar o argumento que adiantei
ser vistas como resultado de uma educação na introdução desse artigo, vou apresentar
deficiente e de uma mãe ignorante também vários trechos da trilogia escrita por Pamela
pela mesma educação deficiente, pois ambas Aidan, sob o título de A novel of Fitzwilliam
foram ensinadas a se importar somente com Darcy, gentleman. Trata-se de uma reescritu-
futilidades, como suas roupas e chapéus, e a ra de Orgulho e Preconceito a partir do ponto
pensar que a coisa mais importante das suas de vista de Mr. Darcy, porém não em primei-
vidas é conquistar um marido. Segundo Su- ra pessoa como já existe em continuações no
san Gilbert e Sandra Gubar, desde seus es- formado de diários pessoais. Há uma tentati-
critos de juventude, Austen já parodiava ro- va de criar um narrador em terceira pessoa
mances sentimentais que contribuíam para como o usado por Jane Austen mas que, ao
a ideia de que as mulheres não tinham ou- contrário do original em que conhecemos
tro papel senão o de amar os homens. Essa apenas o lado ou os pensamentos de Eliza-
superavaliação do amor não trouxe nenhum beth Bennet, coloca o foco em Mr. Darcy. É
benefício, muito pelo contrário: uma proposta que parte do fato de que não
temos acesso ao ponto de vista dessa perso-
Austen demystifies the literature she has nagem, apenas àquilo que é dito a Elizabeth
read (…) to illustrate how such fictions ou observado por ela. Assim, há muito ma-
are the alien creations of writers who con- terial a ser explorado, especialmente porque
tribute to the enfeebling of women. (…) em O&P existem grandes espaços temporais
For even as she dramatizes her own alien-
ation from a society she cannot evade or 13 Austen desmistifica a literatura que ela leu (...) para ilustrar como essa
ficção era a criação estranha de escritores que contribuíam para o enfraqueci-
transcend, she subverts the conventions mento das mulheres. (...) Pois da mesma forma como ela dramatiza o seu próprio
estranhamento de uma sociedade da qual ela não pode escapar ou transcender,
of popular fiction to describe the lonely ela subverte as convenções da ficção popular ao descrever a vulnerabilidade
solitária das jovens cujas vidas, se mais mundanas, são tão frustradas quanto
vulnerability of girls whose lives, if more aquelas sobre as quais elas leem de forma tão obcecada. (tradução nossa)
150 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

em que as duas personagens principais não características de uma mulher verdadeira-


se encontram e, logo, não sabemos por onde mente talentosa. Ela diz,
anda, o que faz ou o que pensa Mr. Darcy nes-
ses ínterins. ‘A woman must have a thorough knowle-
Os três volumes estão divididos nos se- dge of music, singing, drawing, dancing,
guintes títulos: An Assembly Such As This, que and the modern languages, to deserve the
narra a ida de Darcy à Hertfordshire e o en- Word; and besides all this, she must pos-
contro com Elizabeth até o momento em que sess a certain something in her air and
ele e seu amigo Bingley deixam o condado manner of walking, the tone of her voice,
em novembro. O segundo volume, Duty and her address and expressions, or the word
Desire, centrado no espaço de tempo em que [accomplished] will be but half-deserved.’
Darcy desaparece totalmente do original, e ‘All this she must possess’, added Darcy,
Pamela Aidan decide colocá-lo em uma via- ‘and to all this she must yet add something
gem ao norte da Inglaterra em busca de uma more substantial, in the improvement of
mulher que pudesse fazer com que ele es- her mind by extensive reading.’ (AUSTEN,
quecesse Elizabeth. O terceiro volume, These 1994a, p.33)14
Three Remain, começa com o reencontro de
Darcy e Elizabeth em Kent em abril e termi- Nessa passagem, Austen está fazendo
na com o casamento dos dois junto com o de uma pequena piada com Miss Bingley, que
Bingley e Jane Bennet em dezembro. se esforça sempre para concordar com Mr.
O primeiro ponto que chama a atenção é Darcy e chamar sua atenção, e também com
como Pamela Aidan conseguiu transformar a própria ideia das exigências feitas às mu-
um romance de aproximadamente 200 pági- lheres. Nas palavras de Elizabeth Bennet,
nas em uma trilogia. Isso foi obtido em maior ouvimos um certo ressonar da autora quan-
parte com o segundo livro, criação totalmen- do ela diz “I never saw such a woman” (AUS-
te sua, mas também com uma linguagem ex- TEN, 1994, p.33). No entanto, ao longo de
tremamente prolixa e uma análise dos pen- toda a leitura dos três volumes de Pamela
samentos de Darcy em cada situação que Aidan, encontramos reiteradas descrições
beira a autorrepetição. Há também a criação de Elizabeth feitas por Darcy que parecem
de outras personagens como Lord Dy Brou- colocá-la exatamente como essa mulher
gham, amigo pessoal de Darcy, que acaba se perfeita. Além do uso incansável de adjeti-
revelando depois como um espião da coroa vos como “charming”, “with grace”, “lightly”,
inglesa para investigar o envolvimento das “entincingly” para as mais simples ações de
pessoas da alta classe em casos de traição, Elizabeth como andar, tocar ao piano, beber
como o apoio à luta de independência da Ir- vinho, algumas passagens parecem se refe-
landa ou o assassinato do primeiro ministro rir ao discurso de Caroline Bingley, como o
inglês. Nem é preciso dizer que essa trama excerto a seguir:
secundária não poderia ser mais estranha a
um romance que tenta imitar Jane Austen. He [Darcy] would have to exercise better
Apesar dessas temáticas inusitadas que care over his wandering attention. No, not
entram na trilogia, gostaria de destacar as wondering, he corrected himself. His pro-
passagens que são interessantes para uma
análise dos papeis de gênero criados nesses 14 ‘Uma mulher deve ter um conhecimento pleno de música, canto, desenho,
dança e línguas modernas para merecer a palavra; e além disso tudo, ela deve
livros. Por exemplo, em O&P encontramos possuir alguma coisa, um certo ar e maneira de andar, o tom da sua voz, sua
forma de se dirigir a alguém e de se expressar, ou a palavra [talentosa] será
um diálogo importante em que Caroline Bin- merecida apenas pela metade.’ / ‘Tudo isso ela deve possuir’, completou Darcy,
‘e a tudo isso ela deve ainda adicionar algo mais substancial na melhoria de sua
gley, a antítese de Elizabeth, tenta definir as mente pela leitura extensiva.’ (tradução nossa)
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 151

blem was the reverse; it was so very focu- forte senso de honra, do seu dever de chefe
sed... and entirely upon Elizabeth. Her face, de família, é protetor de sua irmã mais nova,
her figure, her hair, the way her voice tril- é caridoso com os parentes em necessidade
led up and down the scale so enchantingly, financeira. Também possui um lado senti-
the delicacy of her hands as her sure fin- mental, representado por uma lágrima der-
gers bent to her needlework. He dared not ramada após a primeira briga com Elizabeth.
even consider her eyes and those lips (…). A tudo isso Aidan adiciona uma descrição de
(AIDAN, 2007, p.77)15 um físico perfeito, como na cena em que ele
se despe enquanto pensa em Elizabeth:
E a tudo isso sabemos, já no primeiro livro
de Aidan, que Elizabeth adiciona algo mais Once back in his chambers, he shrugged off
substancial pelo seu gosto pela leitura, em his coat and threw it onto one of his chairs.
especial John Milton, Paradise Lost, que não His waistcoat and neckcloth soon followed,
é um livro qualquer, mas sim, nas palavras forming a negligent leap. (...) Running a
do crítico Ian Watt, “a epopeia do casamen- hand distractedly through his hair, he sat
to conjugal” (WATT, 2010, p.147)16. A ironia down on the bed and set about removing
de Austen ao mostrar o lugar esperado da his boots. That finished, he lay back and
mulher acaba sendo acatada sem qualquer stretched his frame, working his muscles
questionamento por Pamela Aidan, e não from the tips of his fingers down to his toes
há como não se exasperar frente a uma des- until the tension of the evening faded. He
crição da beleza de uma mulher enquanto... pulled himself up then and strode over to
costura! Elizabeth ainda é elogiada por sua the window, looking out into the night. (AI-
preocupação com as crianças, algo que “toca” DAN, 2006a, p.106)17
os sentimentos de Darcy, e adiciona às quali-
dades dela um instinto maternal latente. Ao Há também um destaque para a forma
mesmo tempo, a reiteração da coragem de como Darcy salva a família de Elizabeth ao
Elizabeth de dizer o que pensa, de enfrentar arranjar o casamento de Lydia. Em O&P, essa
as ofensas recebidas, inclusive de recusar a é uma história totalmente escondida dos lei-
primeira proposta de casamento de Darcy, tores, revelada somente em alguns pontos
algo que nenhuma outra mulher faria, torna- pela carta da tia de Elizabeth, Mrs. Gardiner,
-a uma mistura interessante da mulher do- porém em Aidan essa parte pode ser explo-
méstica perfeita com a mulher moderna, que rada em detalhes por ser escrita a partir da
mantém a sua independência. visão de Mr. Darcy. Essa personagem ganha
Não podemos nos esquecer também da ca- assim uma construção que o condecora como
racterização de Mr. Darcy. Cavalheiro exem- o verdadeiro herói, que superou vários obs-
plar, corajoso, anda armado para se defender. táculos, foi inteligente e corajoso para salvar
Ao mesmo tempo é doce com seus animais, a sua amada de forma totalmente altruísta
em especial com um pequeno filhote de ca- porque ainda não sabia que ela já o amava.
chorro com o qual adora brincar. Possui um Por fim, a autora parece reforçar também
alguns estereótipos sobre os espaços mas-
15 Ele [Darcy] teria que exercitar um melhor cuidado sobre sua atenção os-
cilante. Não, não oscilante, ele corrigiu a si mesmo. Seu problema era o oposto, culinos e femininos na época. Na passagem
ela estava muito focada... e totalmente em Elizabeth. O seu rosto, seu corpo,
seu cabelo, a forma como a sua voz vibrava para cima e para baixo da escala
de forma tão encantadora. Ele não se atrevia nem a considerar seus olhos e
aqueles lábios... (tradução nossa) 17 De volta a seu quarto, ele arrancou o casaco e o jogou em cima de uma das
cadeiras. Seu colete e gravata logo o seguiram, em um arremesso negligente
16 Em outro trecho de Aidan, somos informados que esse mesmo livro era (...). Passando a mão distraidamente em seu cabelo, ele se sentou na cama e
o favorito do pai de Mr. Darcy, que teve um casamento perfeito com a esposa começou a remover suas botas. Isso feito, ele se deitou e esticou seu corpo, tra-
e cujo exemplo é muito valorizado pelo filho na sua esperança de ter um ca- balhando seus músculos a partir das pontas dos dedos das mãos até os dos pés
samento feliz. O fato de Elizabeth gostar desse livro seria mais um indício de até que a tensão da noite se dissipasse. Ele se levantou e então caminhou até a
que ela era a mulher dos seus sonhos. janela, olhando para a noite lá fora. (tradução nossa)
152 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

a seguir, Aidan relata as impressões de Dar- repetição de algumas fórmulas de sucesso


cy após um jantar, ao sair da sala em que os (cenas dramáticas, cenas eróticas, final feli-
homens se retiravam para fumar charutos e císsimo, etc.), ao mesmo tempo em que pre-
cachimbo para se juntar às mulheres na sala cisa resolver um paradoxo interessante: por
de estar. um lado, há a necessidade de se trazer algo
novo e não simplesmente reconstituir a his-
The short distance down the hall from the tória original; porém, ao mesmo tempo, não
room the gentlemen were quitting to the deve se afastar muito dela para não correr o
one they were entering seemed (...) a jour- risco de não satisfazer, nas palavras de Deir-
ney between worlds. The card room had dre Lynch, o desejo dos leitores para mais do
exuded the familiar atmosphere of mascu- mesmo (LYNCH, 2007, p.166).
line society: the aroma of brandy and pipe A título de comparação, é interessante
smoke (...). Understandings were reached, lembrar que a própria Austen presenciou um
bargains struck, and connections made fenômeno parecido na explosão dos roman-
that would assure the Peace and prospe- ces góticos que ocorreu nas últimas décadas
rity of the region for some time to come. do século XVIII. Ela usou essa popularidade
The world into which they were entering como combustível para a sua paródia Nor-
glowed in a myriad of candles, flowered thanger Abbey. O enredo desse seu primeiro
wallpapers, and the sweet scent of tea and romance traz a heroína Catherine Morland,
sherry. All bespoke a female society, whose que não era uma jovem de especial intelecto
unwritten rules and unpredictable beha- como adverte a autora, encantada pelos ro-
vior had never ceased to cause Darcy cons- mances góticos que vem lendo, como Os mis-
ternation. (AIDAN, 2006a, pp.50-51)18 térios de Udolpho (1794), de Ann Radcliffe, o
que faz com que ela passe a enxergar prová-
Na sala dos homens, então, havia conver- veis mistérios em todos os cantos da casa em
sa racional, negociações políticas, assuntos que está hospedada. Por exemplo, Catherine
sérios. Na sala das mulheres, apenas com- encontra um manuscrito envelhecido den-
portamentos imprevisíveis e artes de sedu- tro de um armário e pensa que se trata de
ção para se conquistar maridos. Pamela Ai- algum segredo antigo da abadia, mas qual
dan poderia estar tentando reproduzir o que é a sua decepção – e o nosso riso – quando
seria a opinião de um cavalheiro da época, ela percebe ser apenas uma lista de roupas
porém acaba reforçando uma imagem sobre para serem lavadas! Essas pequenas decep-
os papeis dos homens e das mulheres naque- ções são recorrentes, e como se não fossem
la sociedade que o próprio brilhantismo de suficientes, Catherine ainda constrói em sua
Austen, a quem ela quer copiar, já seria o su- mente uma hipótese a respeito da morte da
ficiente para questionar. mãe de Mr. e Miss Tilney, seus amigos e anfi-
triões: ou ela havia sido morta pelo marido,
COMENTÁRIOS FINAIS General Tilney, ou pior, ainda poderia estar
A popularidade das continuações das obras viva e mantida em cativeiro dentro da aba-
de Jane Austen é construída a partir da dia. Ao decidir vasculhar a casa em busca de
pistas, Catherine esbarra com Mr. Tilney, por
18 A curta distância seguindo o corredor a partir da sala que os cavalheiros
deixavam até aquela em que eles estavam entrando parecia (...) uma viagem quem começava a se apaixonar, e finalmente
entre mundos. A sala de jogos transpirava a atmosfera familiar de uma so-
ciedade masculina: o aroma de conhaque e fumaça de cachimbo (...). Enten- aprende a lição da forma mais dura:
dimentos eram alcançados, barganhas realizadas, e conexões feitas que iriam
assegurar a paz e a prosperidade da região algum tempo. O mundo em que eles Catherine: ‘(...) Her dying so suddenly -
estavam entrando brilhava em uma miríade de velas, papel de parede florido,
e o doce cheiro de chá e licor. Tudo indicava uma sociedade feminina, cujas (slowly, and with hesitation it was spoken)
regras não escritas e comportamentos imprevisíveis nunca deixavam de cons-
ternar Darcy. (tradução nossa) -, and you, none of you being at home; and
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 153

your father, I thought, perhaps, had not ria que é visto como mais simples do que a
been very fond of her.’ vida caótica atual, e as continuações da obra
Mr. Tilney: ‘And from these circumstances de Austen são a porta para uma viagem – às
- he replied, his quick eye fixed on hers – vezes literal, como no seriado Lost in Austen,
you infer, perhaps, the probability of some ou escapista, como no filme Austenland, para
negligence, some – involuntarily she shook citar dois exemplos – a esse mundo sonhado
her head – or it may be, of something still da era regencial inglesa.
less pardonable (…) If I understand you O objetivo deste artigo foi mostrar como
rightly, you had formed a surmise of such as continuações e adaptações contemporâ-
horror as I have hardly words to… Dear neas de Orgulho e Preconceito, exemplifica-
Miss Morland, consider the dreadful natu- das aqui pelo caso da trilogia de Pamela Ai-
re of the suspicious you have entertained. dan, perdem a oportunidade de trazer para a
What have you been judging from? (...) nossa sociedade uma Jane Austen crítica, de
Dear Miss Morland, what ideas have you aproveitar a ironia dessa autora para proble-
been admitting? matizar as relações de gênero que continu-
They had reached the end of the gallery; am desiguais nos nossos dias. Ao contrário,
and with tears of shame she ran off to her essas obras reproduzem papeis tradicionais
own room.’ (AUSTEN, 1994b, pp.181-182)19 muito veiculados pela indústria cultural dos
contos de fada de que as mulheres hoje até
Para Sandra Vasconcelos, Northanger podem ser independentes, mas no fundo elas
Abbey avisa as leitoras que o mundo pode sempre necessitarão de um príncipe para
parecer às vezes, mas não é um romance protegê-las.
gótico (VASCONCELOS, 2002, p.118). Obser-
vando as produções para cinema e TV e os REFERÊNCIAS
romances publicados atualmente, quem avi-
sa as mulheres hoje que o mundo não é um AUSTEN, Jane Pride and prejudice London: Pen-
conto de fadas? A mensagem, na verdade, pa- guin Books, 1994 (a)
rece ser exatamente a oposta, e um alimen-
ta um grande número de mulheres infelizes . Northanger Abbey London: Penguin Books,
que ficam em casa, sozinhas, tomando sorve- 1994 (b)
te, assistindo cenas de Colin Firth como Mr.
Darcy na famosa adaptação da BBC de 1995 AIDAN, Pamela An assembly such as these: a no-
e esperando por seus príncipes encantados, vel of Fitzwilliam Darcy, gentleman. New York:
como no romance O diário de Bridget Jones, Touchstone, 2006. (a)
de Helen Fielding, baseado em O&P20. Há
nesses romances, nessa “austenmania”, uma . Duty and desire: a novel of Fitzwilliam Darcy,
nostalgia por um período anterior da histó- gentleman. New York: Touchstone, 2006. (b)

19 Catherine: (...) A morte dela, tão repentina – (isso foi dito de maneira de- . These three remains: a novel of Fitzwilliam
vagar e hesitante) - , e você, nenhum de vocês em casa; e seu pai, eu pensei,
talvez, que não fosse muito apegado a ela.’ Darcy, gentleman. New York: Touchstone,
Mr. Tilney: E a partir dessas circunstâncias – ele respondeu, seu olhar rápido
fixado no dela – você infere, talvez, a probabilidade de alguma negligência, al- 2007.
guma – involuntariamente ela negou com a cabeça – ou talvez, alguma coisa
ainda menos perdoável. (...) Se eu a entendo corretamente, você formou uma
suposição de um tal horror que eu quase não tenho palavras... querida Miss
Morland, considere a natureza terrível das suspeitas que você vem entretendo. GILBERT, Sandra M. and GUBAR, Susan The ma-
A partir do que você julga? (...) Querida Miss Morland, que ideias você vem con-
templando?’ Eles alcançaram o fim da galeria, e com lágrimas de vergonha ela dwoman in the attic: the woman writer and the
correu para o seu quarto. (tradução nossa)
nineteenth-century literary imagination. USA:
20 Não por coincidência, o mesmo Colin Firth foi escalado para viver Mark
Darcy na adaptação para os cinemas dos livros de Fielding. Yale University Press, 2000.
154 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

JOHNSON, Claudia L. Jane Austen. Women, politics


and the novel. EUA: The University of Chicago
Press, 1990.

LYNCH, Deirde “Sequels” in TODD, Janet Jane Aus-


ten in context. England: Cambridge University
Press, 2007, pp.160-168.

VASCONCELOS, Sandra Guardini Dez lições sobre


o romance inglês do século XVIII. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2002.

WATT, Ian A ascensão do romance: estudos sobre


Defoe, Richardson e Fielding. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2010.

WOOLF, Virginia Um teto todo seu. Tradução de


Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 155

O CORPO NOS PROCESSOS DE CONDUÇÃO ARTÍSTICO-


PEDAGÓGICA: UMA BUSCA PELO CORPO-EM-INTERAÇÃO1

Marina Fazzio Simão2


Juliano Casimiro de Camargo Sampaio3

RESUMO: O presente trabalho enfoca a dimensão do corpo nos processos de condução artístico-pe-
dagógicos, a partir de um diálogo entre as concepções de corpo propostas por Greiner (2005) e de
interações Eu-Outro/Mundo apresentadas por Sampaio (2011). O recorte teórico embasa análises
das práticas de condução artístico/corporais pelo diretor do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica,
Juliano Casimiro, durante a elaboração do espetáculo “Favores da Lua- O Prólogo”.
Palavras-chave: Teatro. Corpo. Interação.

ABSTRACT: This article focus the dimension of the body in process of artistic-pedagogical con-
ducting, from a dialogue among the concepts of the body proposed by Greiner (2005) and I-Other/
World interactions presented by Sampaio (2011). The theoretical framework underlies analyses of
the practices of artistic/body conducting by the director of I-Other Center of Scenic Search, Juliano
Casimiro, through the preparation of the theatrical spectacle “Favores da Lua – O Prólogo”.
Keywords: Theatre. Body. Interaction.

Este artigo apresenta uma abordagem teórico-prática sobre as relações de interação criativa,
tendo o corpo como o possibilitador da interação. Nesse sentido, o objetivo desta pesquisa é
compreender parte dos percursos realizados pelos atores do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa
Cênica, quando da elaboração do espetáculo teatral “Favores da Lua – O Prólogo”, do qual a
primeira autora deste trabalho participou como atriz, e cujo segundo autor assinou a ence-
nação e a preparação de atores.
O recorte teórico que aqui se apresenta emergiu da própria proposta de trabalho com a
qual os atores do citado Núcleo de Pesquisa Cênica (NPC) desenvolveram suas pesquisas
artísticas pessoais. Sendo assim, não se propõe confrontar diferentes teorias que tenham o
corpo ou a condução como eixo, mas sim explicitar a articulação teórico-prática que possibi-
litou a efetiva realização do espetáculo “Favores da Lua – O Prólogo”. Entretanto, a presente
pesquisa não se restringe a essa explicitação, ela adiciona a essa articulação teórica a análise
de registros de trabalho, em que algumas noções e discussões acerca da condução de atores
no jogo artístico aparecem pela primeira vez nos registros do encenador, marcando uma mu-
dança no seu percurso de trabalho com atores.
Nesse contexto, acredita-se ser acertado explicitar que o corpo tomou vulto no interes-
se da pesquisadora/atriz, primeira autora deste trabalho, em diferentes perspectivas: Se
por um lado as questões referentes à pedagogia, no que tange à construção e veiculação de

1 Este artigo é parte do Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Teatro) da primeira autora com orientação do segundo autor apresentado à Universidade
de Sorocaba.

2 Universidade de Sorocaba.

3 Universidade Federal do Tocantins


156 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

conhecimento, implicaram reflexões acerca Em outro sentido, o crescente interesse


da interação eu-outro, da interação corpo- da autora se deu em grande medida devi-
corpo, quanto à condução de práticas pe- do ao contato com as pesquisas e práticas
dagógicas no âmbito das artes cênicas, em desenvolvidas e registradas por Sampaio
outro sentido, mas em estrito diálogo com (2011).
as questões pertinentes ao conhecimento, a Se as interações sujeito-sujeito e corpo-
prática da pesquisadora como atriz do espe- corpo estão neste artigo elaboradas segundo
táculo teatral “Favores da Lua – O Prólogo”, as concepções teóricas de Sampaio (2011),
do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica, en- Greiner (2005) embasa a construção de um
volveu diretamente experimentações prá- conceito de CORPO que alicerça as análises
ticas e reflexões teóricas sobre a dimensão do processo vivenciado pela primeira autora
das interações entre sujeitos, entre corpos deste trabalho como atriz do espetáculo “Fa-
no trabalho do ator. Vale ainda reiterar que vores da Lua – O Prólogo”.
esses interesses dialogam diretamente com A escolha por Greiner (2005) se deu devi-
as reflexões teóricas, práticas e laboratoriais do às aproximações entre o conceito de cor-
do segundo autor deste artigo. po adotado por Sampaio (2011) nas condu-
ções das práticas artísticas e as elaborações
MÉTODO teóricas da autora.

Recorte Teórico Participantes e natureza dos dados


A partir do contexto acima descrito, a articu- Esta pesquisa surgiu após a estreia do espe-
lação teórico-analítica que aqui se apresenta táculo de que parte do processo aqui se ana-
se utiliza de método qualitativo de pesquisa. lisa. Portanto, os participantes da pesquisa
Parte do recorte teórico realizado para são os integrantes do “Eu-Outro Núcleo de
embasar as análises apresentadas no decor- Pesquisa Cênica, considerando-se o período
rer deste texto se deu em concordância com de execução das atividades que culminaram
as pesquisas que vem sendo realizadas pelo no levantamento do espetáculo teatral “Fa-
orientador artístico-pedagógico do Eu-Outro vores da Lua – O Prólogo”.
Núcleo de Pesquisa Cênica e segundo autor O material utilizado para análise advém
deste trabalho, quanto à interação eu-outro de registros realizados pelos integrantes do
e à construção de conhecimento, tendo como Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica, em es-
campo de pesquisa as práticas artísticas, pecial, o Diário de Bordo escrito pelo orien-
quer seja no espaço da sala de aula, quer seja tador artístico-pedagógico do Núcleo em
na sala de ensaio. questão4, quando da elaboração do citado
A escolha por tal recorte teórico se deu espetáculo teatral.
por duas razões:
1. O pesquisador em questão conduziu os EXPLICITAÇÕES TEÓRICAS SOBRE
trabalhos de preparação de ator e direção AS ATIVIDADES DO EU-OUTRO
cênica do espetáculo, cujo processo está NÚCLEO DE PESQUISA CÊNICA
parcialmente aqui analisado, em estreita
relação com as pesquisas teóricas que vi- O corpo como conceito
nha desenvolvendo; Dado o enquadramento teórico-metodológi-
2. Assim como o interesse da primeira auto- co e considerando-se o tema aqui abordado,
ra desse trabalho, o citado pesquisador/ a saber e reiterativamente: o corpo e seus
diretor também desenvolve suas pesqui-
4 O material completo está disponibilizado em www.euoutronpc.blogs-
sas tendo a interação eu-outro como foco. pot.com. Os registros feitos pelos atores constam no Blog como Vivências.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 157

processos de interação no contexto da cria- processadas ou experienciadas e, sem du-


ção teatral, acredita-se ser necessário enten- vida, a antecipação de futuras mensagens
der sua gênese (do corpo), ou melhor, a ori- que ainda serão trazidas à ação, mas já
gem etimológica da palavra. existem como possibilidade. (p. 130).
Segundo Greiner (2005, p. 17) “o substan-
tivo corpo vem do latim corpus e corporis, que As práticas desenvolvidas no processo de
são da mesma família de corpulência e incor- elaboração do espetáculo teatral “Favores
porar”. Ainda segundo Greiner (2005), no da Lua – O Prólogo” apoiaram-se na pers-
dicionário indo-iraniano o termo corpo tem pectiva de um corpo pensado em contex-
procedência em krp que sugere forma; e do to, na dimensão apontada por Sebeok; um
grego soma e demas, sendo a primeira deno- corpo que se estabelece como materialida-
minação para corpo morto e a segunda para de dotada de significação afetivo-cognitiva,
corpo vivo. que se faz na interdependência entre as di-
No Dicionário Silveira Bueno o corpo está mensões objetivas e subjetivas da sua cons-
considerado como: “matéria, porção, conjun- tituição. Esse corpo, todavia, é sempre pas-
to de órgãos, o esqueleto humano revestido de sível de ressignificação, ou seja, ele sempre
músculos; coleção, série de leis; grupo de mili- se apresentará em processo e nunca como
tares de determinada arma; tipo de letra, re- um produto final acabado. Tal fato produz
gulada pelo tamanho.” (BUENO, 1999, p. 259). uma bidirecionalidade na relação entre os
A importância da compreensão das raí- corpos e desses para com o mundo; da mes-
zes etimológicas do substantivo corpo, se- ma forma que um corpo interfere em um
gundo Greiner (2005), centra-se no fato de observador – em outro corpo, ele é regulado
que todas as origens do vocábulo corpo nos por aquele.
influenciam ainda hoje na maneira como o Ou seja, a condução, no contexto da cria-
pensamos, como no caso das fontes gregas ção que aqui se analisa, quando olhada pelo
que nos fizeram vê-lo como uma dualidade, prisma do corpo, também não poderá ser
uma cisão entre o material e o mental. pensada de modo unidirecional. Ao investir
A partir da constatação das citadas ori- sobre o corpo do outro, o condutor das prá-
gens do substantivo corpo e de sua aplicação ticas artístico-pedagógicas também dispo-
no campo das pesquisas histórico-filosóficas, nibiliza seu corpo; também ele, o condutor,
ou seja, por vezes como uma materialidade produzirá significações afetivo-cognitivas
objetiva e outras vezes como instrumento da sobre a interação. Os sujeitos, a partir dessa
alma (ORLANDI, 2004), pode-se notar que perspectiva, existem nas interações enquan-
há determinada convergência quanto à con- to corpos, enquanto materialidades dotadas
cepção de um corpo cindido, no qual se se- de significação. Assim, o corpo como “corpo-
para a mente de sua materialidade - corpo fí- -em-contexto” deve ser pensado como par-
sico, como também separe-se o corpo de seu te de uma corporeidade que extravasa sua
contexto, que está aqui compreendido como dimensão material e que, de certa forma,
em Greiner (2005), desde Sebeok, rompe com a cisão entre corpo e mente (cf.
SAMPAIO, 2011, pp. 77-86).
Como o reconhecimento que um organis- De onde, parece que para se estudar o
mo faz das condições e maneiras de usar corpo que cria é necessário pensá-lo como
efetivamente as mensagens. Contexto in- corpo no mundo, ou seja, o corpo não pode
clui, portanto, sistema cognitivo (mente), ser separado do meio em que se encontra -
mensagem que fluem paralelamente, a a cultura, a sociedade, as relações, as esco-
memória de mensagens prévias que foram lhas, as expectativas; todos esses aspectos
158 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

interferem diretamente no processo de cons- corpomidia lida, e não com a idéia de mídia
trução desta corporeidade. pensada como veiculo de transmissão. A
Nesse sentido, o corpo deve ser pensado mídia a qual o corpomidia se refere diz res-
a partir da interdependência entre suas di- peito ao processo evolutivo de selecionar
mensões biológica, social e cultural. Nas pa- informações que vão constituindo o corpo.
lavras de Greiner (2005, p. 37) “[...] a relação A informação se transmite em processo de
entre o corpo biológico e o corpo cultural é um contaminação. (p. 131).
aspecto para começarmos a mapear o corpo
como um sistema e não mais como um instru- A elaboração teórica construída sobre a
mento ou produto.” concepção de corpo, em estreito diálogo com
Entender que o ambiente movimenta o Greiner (2005) e suas formulações, que cul-
corpo conduz à suposição de que o corpo, minam na apresentação da ideia de corpo-
por sua vez, movimenta/regula o ambiente; mídia, conduz ao reconhecimento do corpo
para Greiner essa bidirecionalidade gera um – existindo em constante processo de trans-
processo de (co)evolução, em que toda infor- formação, como receptor-construtor e inter-
mação não chega em um corpo sem sofrer locutor-construtor.
alterações; todas as vivências estão interiori- Essa transformação, dado que o corpo é
zadas e, portanto, são como que reutilizadas, sempre um (co)construtor, quer seja como
dentro de novos contextos afetivo-cognitivos. “receptor”, quer seja como “interlocutor”,
As significações afetivo-cognitivas de ex- impossibilita uma situação de extrema pas-
periências anteriores, portanto, fazem parte sividade do corpo. Tal fato aponta para a
do corpo e compõem uma bagagem de sig- ideia de que uma condução sujeito/sujeito,
nificação que transita em um fluxo continuo corpo/corpo, será fracassada se o condutor
dentro da corporeidade; desta forma, cada não considerar a dimensão ativa do corpo do
corpo possui um teor próprio e, por isso, “conduzido”.
recebe de maneira especifica as influências Entretanto, ainda que se compreenda a
externas. necessidade de se pensar o corpo em proces-
O que se supõe neste trabalho, portanto, sos interativos, a construção teórica até aqui
e com fins nos processos de condução artís- realizada não satisfaz a uma questão que nos
tico-pedagógica, é um corpo ativo; um corpo parece central: “Como se dá a interação cor-
(co)construtor com o ambiente das experi- po/corpo, sujeito/sujeito, corpo/mundo, su-
ências e interações entre o sujeito e o mun- jeito/mundo?”
do, bem como de conhecimentos e de signifi-
cações afetivo-cognitivas. Corpo como interação
Esta definição de corpo-em-interação Pensando em responder à questão anterior
aproxima-se em grande medida da concep- e em completar o estofo teórico para as aná-
ção de corpomidia elaborada por Greiner lises do processo artístico-pedagógico en-
(2005): volvido na preparação do espetáculo teatral
“Favores da Lua – O Prólogo”, do Eu-Outro
O corpo não é um meio por onde a infor- Núcleo de Pesquisa Cênica, utiliza-se parte
mação simplesmente passa, pois toda in- da construção teórica realizada por Sam-
formação que chega entra em negociação paio (2011), a partir de um diálogo entre
com as que já estão. O corpo é o resultado processos artístico-pedagógicos e o Cons-
desses cruzamentos, e não um lugar onde trutivismo Semiótico-Cultural em Psicologia,
as informações são apenas abrigadas. É que, segundo o próprio autor, norteou seu
com esta noção de mídia de si mesmo que o trabalho de preparação de atores durante a
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 159

construção do espetáculo, cujo processo está consideram a existência do sujeito como


aqui analisado em parte. uma corporeidade contextualmente cons-
Ainda que este trabalho não centre seus truída. Tais negociações organizam-se sobre
esforços em um diálogo intenso com a psico- um espaço sociocultural determinado, sendo
logia, dada a aproximação do orientador das o Eu considerado como uma estrutura repre-
práticas artístico-pedagógicas do Eu-Outro sentacional do sujeito. Para Sampaio (2011),
Núcleo de Pesquisa Cênica e visto que parte
da construção teórica de Sampaio (2011) se Na constituição dessa estrutura represen-
constitui a partir do Construtivismo Semió- tacional do sujeito, em que se consideram
tico-Cultural em Psicologia, considera-se ne- as experiências mediadas provenientes do
cessário, ao menos, localizar o leitor de que trato com o espaço sociocultural e as expe-
campo de conhecimento se trata o citado riências não-mediadas, que localiza a cor-
Construtivismo. poreidade apriorísticamente, há, para nós,
Para Simão (2010), o Construtivismo Se- negociações intrassubjetivas. (p. 79).
miótico-Cultural em Psicologia
Pela maneira como ocorre, essa negocia-
[...] focaliza especialmente o processo indi- ção é entendida como processual e gradu-
vidual de desenvolvimento humano, em que almente construída, já que o sujeito está in-
as interações eu – outro, que se desdobram serido no mundo e ao agir sobre esse, ele, o
do espaço sociocultural, assim como o for- sujeito, sofre interferências constantes, que
mam, tem papel primordial. Nessa perspec- segundo o autor, exigem regulações da estru-
tiva, a comunicação eu-outro é entendida tura representacional do sujeito, o Eu. Nos
como um processo bidirecional de socializa- processos de interação, essa dinâmica de
ção, em que cada ator em interação transfor- construção de estruturas de representação
ma ativamente as mensagens comunicativas do sujeito ocorre tanto para o Eu como para
recebidas do outro, tentando integrá-las em o Outro, como um outro sujeito da interação,
sua base comunicativo-afetiva a qual, por e, portanto, as expectativas quanto à intera-
sua vez, também pode sofrer transforma- ção são alteradas continuamente, reorgani-
ções durante este processo. (p. 20). zando-se dentro do espaço sociocultural de
compartilhamento. Para Sampaio (2011)
Voltando-se à questão: “Como se dá a in-
teração corpo/corpo, sujeito/sujeito, corpo/ A expectativa de compartilhamento a partir
mundo, sujeito/mundo?”, que norteia o diálo- de uma ideia de espaço intersubjetivo total-
go que se pretende com a construção teórica mente satisfatório ao Eu e sua não realiza-
de Sampaio (2011), faz-se necessário que se ção coloca em tensão a própria relação en-
compreenda, ainda segundo o autor, a rela- tre Eu e Outro, que precisam se adequar ao
ção Sujeito – Eu. Isso se dá porque para Sam- “imprevisto” da impossibilidade do pleno
paio (2011, pp. 58 – 76), a relação sujeito/ compartilhamento intersubjetivo. (p. 63).
sujeito pressupõe a relação sujeito/eu.
De acordo com Sampaio (2011), o sujei- Porém, como afirma o autor, o sujeito é
to sempre que se coloca em interação, quer maior do que a pequena parte que entra
seja com outros sujeitos, quer seja com obje- em relação com o Outro; e é a essa parcela
tos, realiza uma negociação intrassubjetiva. que Sampaio (2011) chama de Eu - a porção
Ou seja, o sujeito negocia com suas próprias acessível do sujeito, configurando-se como a
experiências, contextos e significações an- estrutura a partir da qual o sujeito pode in-
teriores. Essas negociações intrassubjetivas teragir com o mundo e com outros sujeitos.
160 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Nesse sentido, a relação que o sujeito estabe- Em resumo, existe uma necessidade de
lece é bidirecional: entre um Eu e um Outro, se sentir compreendido para que Eu e Ou-
pelo menos. tro queiram se relacionar ou se manter em
Mas o Outro só terá acesso ao Eu, e vice- interação. (Cf. SIMÃO, 2010). Esse querer
versa, por meio de seu corpo (se preferir- se constrói necessariamente sobre significa-
mos, são os corpos que interagem); são os ções afetivo-cognitivas de experiências ante-
corpos que tornam possível qualquer espé- riores. Segundo Sampaio (2011), quando se
cie de condução, desde que, como explicita- dá essa ilusão de apreensão das intencionali-
do anteriormente, não consideremos uma dades dos sujeitos da interação
separação entre corpo e mente. Interação
está que será sempre cognitiva e afetiva- [...] o Sujeito veicula parte de seus conheci-
mente construída. E, nesse sentido, tanto as mentos e se dispõe na interação, conscien-
estruturas de percepção como as de cogni- temente ou não, a lidar com reorganizações
ção estarão ativas tanto no orientador como desse conhecimento. O Eu dá-se a conhecer
no orientado, no encenador e no ator, no enquanto tenta acessar o Outro. O Diálogo
professor e no aluno. com o Outro real permite ao Sujeito, por
No instante da interação são estabelecidas outro lado, acesso a si mesmo na medida
novas negociações, agora intersubjetivas, em que aquele se manifesta em relação à
que são possibilitadas desde as negociações existência do Eu. (p. 72).
intrassubjetivas, mas que não se restringem
a elas, e só são passíveis de ocorrer devido ao Assim, pode-se afirmar que toda vez em
compartilhamento de um espaço sociocultu- que acontece uma interação corpo/corpo,
ral. Nas palavras de Sampaio (2011, p. 82), “O Eu/Outro ou Eu/Mundo, o sujeito adquire
espaço sociocultural, nesses termos, conterá o novas experiências, constrói novos conhe-
espaço intersubjetivo, mas não se restringirá cimentos, reorganiza e ressignifica conheci-
a ele. É ele que permite a consolidação de co- mentos anteriores, e, desse modo, movimen-
nhecimentos tácitos e de acordos iniciais que ta futuras interações. Portanto, os sujeitos
configuram a existência do Espaço Intersubje- constantemente entram em renegociações,
tivo”. Ou seja, é dentro deste espaço que Eu e como em um ciclo: a cada vez que ocorre
Outro, corpo/corpo, relacionam-se. uma interação, os sujeitos envolvidos usam
Esta relação é possível quando ambas as de seus conhecimentos e significações afe-
partes envolvidas julgam compreender o ou- tivo-cognitivas, assim como os reorganizam
tro, ainda que parcialmente. Para Sampaio e os ressignificam, e, por conseguinte, a in-
(2011), teração está continuamente interferindo na
constituição dos sujeitos.
Entre os Sujeitos A e B há uma ilusão e um Como se pode observar, o corpo sobre o
desejo de apreensão total do outro, que, qual este artigo se debruça é um corpo que
como dito anteriormente, possibilitará a está em constante reorganização, quer seja
permanência de ambos na interação. Essa quanto à sua dimensão biológica, quer seja
ilusão possibilita para A e para B, em um quanto à sua dimensão sociocultural. E, as-
sentido contrário, a crença em que, se A se sim, nem só o condutor, nem só o conduzido,
sente capaz de apreender as intencionali- no contexto que nos interessa – criações ar-
dades de B e, portanto, de compreendê-lo, tísticas (e, portanto, pedagógicas) será res-
isso significa para A, que ele pode se fazer ponsável pela interação. Ambos trabalharão
compreensível para B e vice-versa. (p. 82). como (co)construtores e suas corporeidades
seletivamente reorganizarão conhecimentos
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 161

e expectativas, desde que sejam capazes de discussão teórica deste trabalho; a cena es-
compartilhar uma estrutura mínima que creve sobre o corpo, enquanto esse esforça-
faça com que a interação pareça produtiva a se por escrevê-la Ou seja, a cena e o jogo com
cada um dos envolvidos com a condução. os outros da cena, sejam atores, espaço ou
elementos ditos técnicos, tais como ilumina-
DADOS DA EXPERIÊNCIA CRIATI- ção, sonoplastia e figurino, são responsáveis
VA – PALAVRAS SOBRE O “CORPO pela produção de outras tensões sobre esse
ATENSO” corpo, que guardará em si sua estrutura cê-
Dadas as construções teóricas realizadas nes- nica básica, o “corpo atenso”, mas que, a par-
te artigo, o que se segue é a análise de parte tir da interação, construirá sobre si as outras
do processo artístico que resultou na monta- tensões necessárias à composição cênica.
gem do espetáculo teatral “Favores da Lua – Nesse sentido, o jogo simbólico de cons-
O Prólogo”, pelo Eu-Outro Núcleo de Pesquisa trução e reorganização do corpo, ainda que
Cênica (Eu-Outro NPC). Durante a prática de se dê na dimensão simbólica do corpo, po-
pesquisa artística desenvolvida/vivenciada derá reorganizar sua estrutura biológica, já
pelos integrantes do citado Núcleo, várias que, para além de uma dimensão de signi-
questões sobre o corpo foram abordadas, ficação, as intervenções são também sobre
mas aqui, o foco se manterá no conceito de a materialidade corpórea. Assim, reitera-
“corpo atenso” criado pelo diretor artístico- tivamente, como explicitado por Greiner
-pedagógico do Núcleo, com fins na articula- (2005), o corpo deve ser visto como um sis-
ção com o escopo teórico apresentado neste tema. Portanto, o trabalho do ator durante o
texto, anteriormente. jogo simbólico também pode ser assimilado
Por “corpo atenso” Casimiro (2010) pare- pelo seu corpo, ou melhor, pelo seu corpo
ce entender um corpo que guarda em si as cotidiano.
e se constrói sobre as tensões necessárias Ainda que o “corpo atenso” parta de uma
para que se organize enquanto tal, enquanto estrutura cotidiana do corpo do ator, não se
corpo. Esse corpo chamado “atenso” guarda trata, no processo de construção desse corpo,
fortes relações com o que se reconhece como de se padronizar um corpo-pré-cena; cada
corpo cotidiano, mas o extravasa enquan- ator reconhecerá na sua própria estrutura
to percepção e tônus. Segundo Casimiro, um possível “corpo atenso”. Nesse sentido,
(2010) o “corpo atenso” segundo Casimiro (2010), cada ator com seu
“corpo atenso” funcionará como uma cor pri-
[...] e o corpo comum têm um limiar de mária, que, ao entrar em contato com outros
separação muito tênue, mas é importan- corpos-cor-primária, produzirá o “colorido
te não os aceitar como o mesmo. O corpo corporal” da cena. Nas palavras de Casimiro
“atenso” deverá sempre estar em cena, já (2010, 16 de out.), “[...] a cor primária, a base
que se constrói sobre ele. O corpo cotidia- de um corpo ‘atenso’. Um conjunto de cores
no deverá estar em cena só quando a cena primárias possibilitam qualquer coloração
comportar. (16 de out.) das cenas. Cabe ao diretor orientar a mistura
das cores.” Se o que se espera é a coloração da
O “corpo atenso” se organiza como um cena, para que isso ocorra, os objetos e cor-
corpo em composição em cena e a partir pos precisam se misturar, interagir, para dar
disso em constante reorganização, como se a cena diferentes colorações. Vale ressaltar,
disponibilizasse a si a ser “moldado” para a entretanto, que esse misturar exige a não-fu-
cena enquanto a configura, segundo os prin- são completa dos elementos de composição;
cípios de bidirecionalidade apresentados na deve-se sempre reconhecer os contornos de
162 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

cada elemento da cena, incluindo-se aí os o trabalho de condução do diretor é um


corpos-em-interação. corpo-em-contexto, no sentido de Sebeok,
Como explicitado anteriormente, os cor- anteriormente apresentado, que se permite
pos ao interagirem constroem um percurso intencionalmente à interação. Há, portanto,
bidirecional de interação. Ou seja, dois cor- no caso da criação teatral, um doar-se à ação
pos em interação são mutuamente afetados. de compor a estrutura de apresentação para
Em Casimiro (2010), essa mútua afetação, o espectador, e, no caso da vida cotidiana,
quando se trata de “corpos-cor primária”, se a própria relação e o espaço de comparti-
dá pela pressão que um corpo exerce sobre o lhamento. Trata-se, como em Gil (2001), de
outro. Ou seja, para o diretor e pesquisador, permitir acontecimentos no corpo do artis-
quando um corpo pressiona o outro, então se ta e de assumir tal fato como o verdadeiro
pode pensar que esses estão em interação. trabalho em artes performativas. Ou seja,
Não se trata, entretanto, de uma pressão fí- nesse sentido, o corpo não realiza uma ação,
sica, necessariamente, mas sim de uma pres- ele, enquanto parte de uma corporeidade,
são perceptiva, algo que faz com que a outra é a ação que se direciona a um outro, que
materialidade se altere intencionalmente. pode ou não ser um sujeito. Nas palavras de
Como em Sampaio (2011), os sujeitos, por Casimiro (2010),
meio dos seus corpos, interagem por meio de
fricções (pressões) entre si e com os objetos. [...] eu devo ser essa ação escrita em um
espaço definido. Como a ação acontece em
Pintar com o corpo cor primária tem pres- mim, se eu estou em um espaço, ela acon-
são, para escrever na cena tem pressão. tece no espaço. Se eu estou numa relação,
Mas o Corpo é atenso. Um objeto simples ela acontece na relação. Minha coluna é o
em cena também deve ser objeto cor pri- espaço da minha existência. Minha coluna
mária, também atenso. Meu corpo cor escreve para que a coluna do outro leia. Es-
primaria, outros corpos cores primárias e tar em cena, me parece, é estar com a colu-
objetos cores primárias devem se misturar na presentificada. Meu corpo ideal é minha
com maiores intensidades aqui e ali para coluna ideal. (16 de out.)
que se diversifiquem ao longo do espetácu-
lo; suas cores serão captadas em diferentes Pensar no corpo ideal como este “corpo
vibrações - “tensidades”, pelos meus sen- atenso” é pensar num corpo que está dispos-
tidos, e os primários deverão se misturar to a ser construído em cena; e este construir
a tal ponto que só reste a opção do preto: parece ser uma das tarefas mais difíceis para
todas as cores, todas as “tensidades”! Black o trabalho do ator que se propõe a uma pes-
Out! (CASIMIRO, 2010, 23 de out.). quisa como a que aqui se analisa. É um cor-
po do qual ainda não se tem conhecimento
A função da pressão para o diretor do Eu- material: após os trabalhos realizados com
-Outro NPC é manipular o corpo do ator - a o Núcleo, parece que, para o ator, a percep-
luz deve pressionar o ator de modo que ele ção deste corpo é inicialmente muito mais
reaja ao seu estímulo. Para o diretor/pes- intuitiva.
quisador se o objeto não manipular o ator, e, Pode-se citar, por exemplo, nesse sentido,
sim, o ator manipulá-lo, então, este, o objeto, a passagem de um ator, com certa experiên-
não é mais necessário em cena. cia profissional, graduado em artes cênicas
Desde esta perspectiva, o corpo de que em uma universidade pública, que, após ter
Casimiro (2010) fala não é, de forma algu- julgado encontrar seu corpo ideal, durante
ma, um corpo cindido; o corpo que embasa um exercício corpo-vocal, em que os atores
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 163

deveriam chegar, deitados, ao “corpo atenso”, atenso”, cabia a cada um decidir se o corpo
para depois realizar emissões sonoras, per- apresentado se tratava de um “corpo aten-
cebeu uma grande tensão na região da gar- so” ou não. Claro que em alguns momentos
ganta. Reflexões posteriores levaram o ator o orientador apontava aos atores algo que
a atentar para o fato de que após alguns en- desestruturava a imagem que se tinha de um
saios ele percebia seu aparelho vocal exausto “corpo atenso”. E assim, realizava-se um ciclo
e apresentava, inclusive, quadros de rouqui- de pesquisa que transitava entre o intersub-
dão. Ou seja, ele podia achar que seu corpo jetivo, Encenador-Ator, e o intrassubjetivo,
estava relaxado, mas como em muitos exercí- ator-consigo-mesmo.
cios na busca do “corpo atenso” não se emitia As etapas produzidas durante os exercí-
sons, ele ainda não havia percebido tal fato. cios faziam com que se criassem imagens e
Há que se entender, entretanto, que para sensações, construindo-se direcionamentos
que o ator continue suas buscas pessoais, ele para a elaboração do “corpo atenso”, em que
deverá, ainda que provisoriamente, acredi- se pensava na coluna, na postura, na cami-
tar que conseguiu estabelecer parte daquilo nhada, até se ter ou se pensar ter o corpo
que se busca. Assim como o sujeito precisa todo “atenso”. Parece que realizar o passo-
se supor compreendido pelo outro para que -a-passo permitia que todo o corpo fosse
ele se mantenha em interação, ele, o sujeito/ pensado, como se de fato a tentativa de vi-
ator, deve reconhecer alguma estabilidade sualizar parte por parte do corpo levasse a
em suas negociações pessoais, intrassubje- uma consciência corporal maior do que se
tivas, para que a manutenção de si na pes- o corpo fosse pensado como um todo, como
quisa se torne plausível. Ou seja, a interação, um grande bloco. Mas essas partes não eram
a condução, deve considerar a coexistência isoladas entre sim. Pelo contrário, ainda que
de momentos de estabilidade, momentos de se pensasse o corpo em partes, essas eram
regulação e momentos de transformações tidas como absolutamente interdependen-
profundas. Com esse fim, muitas foram as tes e sua existência acional dependia da
“atividades-treinamento” realizadas pelos atenção que se dava para a coluna (LABAN,
integrantes do Eu-Outro Núcleo de Pesquisa 1978): as partes também se friccionam en-
na busca pelo “corpo atenso”. tre si produzido tensões, significações e re-
laxamentos.
Corpo ideal: Caminhem! Esse é o corpo que Dessa forma, a construção do “corpo aten-
vocês julgam ideal para a cena? Se sim, re- so” se dava aos poucos. Talvez, fosse essa a
parar qual é esse corpo. Se não, como che- sensação que os atores precisavam conhecer.
gar ao corpo ideal? Realizar a passagem de A necessidade de se acreditar que o “corpo
um a outro – passo-a-passo! O que realmen- atenso” foi construído repousava no fato de
te é necessário nesse corpo ideal? Escrever que só acreditando na construção que eles, os
na coluna e com a coluna a mudança de um atores, poderiam dar um passo adiante nos
corpo a outro. Dilatar a mudança. Minimi- exercícios, até porque as tensões sempre vão
zar a mudança. (CASIMIRO, 16 de out.) existir, e aos poucos podem ser localizadas.
Esta descoberta associada a outras emer-
Esse exercício foi repetido diversas vezes, gidas dos trabalhos práticos realizados com
e o passo-a-passo que era realizado auxilia- o Eu-Outro Núcleo de Pesquisa Cênica, con-
va bastante para se tentar chegar ao corpo duziu Casimiro (2010) a articular de modo
ideal. Deve-se atentar ao fato de que, consi- bastante intenso sua prática com a teoria por
derando a necessidade pessoal de reconhe- ele em desenvolvimento na época:
cimento, ainda que provisório, de um “corpo
164 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Um corpo cor primária dialoga com a ideia/ que der e depois saia-se em caminhada ex-
material original, se fricciona com ele e nos perimentando linhas de força da caminhada;
propõe uma primeira coloração em cena. e vertigem pelo giro com pressão no corpo
Os elementos da cena se friccionam em um do outro: gira-se e depois se ia ao encontro
movimento vertiginoso que coloca cada do outro e o pressiona como caminho de se
um dos elementos, inclusive os corpos dis- dominar a vertigem. Para Casimiro (2010, 13
poníveis à vertigem. A vertigem possibilita de Nov.) a investigação a partir de duas ques-
que os objetos de cena, quaisquer que se- tões conduziu a escolha desses exercícios: a
jam, movimentem os corpos, esses corpos vertigem “[...] é determinante para se desco-
passam a ser a ação mobilizada em última brir o ‘corpo atenso’ (não cotidiano)? É neces-
instância pelas ações, ou seja, substantiva- sário realizar intervenções em que ordem nas
ção. Por ser cíclico, esse último reorganiza linhas de força da caminhada para se chegar
a fricção com os originais... Se o que aconte- a um corpo cor primária?
ce em cena acontece na platéia, e isso dito O trabalho com a vertigem, dada a natu-
assim, sem contexto e sem maiores explica- reza das atividades, como no todo da pesqui-
ções pode soar estranho, esse pode ser o ca- sa pelo “corpo atenso”, reitera-se, ainda que
minho para o teatro que eu acredito/gosto se tenha a interação como foco, exige uma
plenamente de fazer. O Favores me parece dimensão de individualidade que deve ser
uma demonstração quase inconsciente da respeitada. O Outro e o condutor são corres-
teoria que aqui vem se construindo. Estou ponsáveis pela entrada do sujeito em ativi-
absolutamente feliz com essa reflexão, com dade, mas sempre caberá a esse, por meio
esse corpo emergido da prática e da pes- das suas negociações intrassubjetivas, com-
quisa teórica. Agora resta investigar ain- preender os limites da sua busca, para que
da mais os elementos aqui apresentados. não coloque seu corpo em risco, tanto quan-
(CASIMIRO, 13 de Nov.). do se pensa sua dimensão biológica, quanto
sua dimensão afetivo-cultural. Nota-se em
Para além da constatação acima realizada, Casimiro (2010, 22 de jan.) que
tem-se aqui a presença de um terceiro ele-
mento: a vertigem, que é inicialmente levado Ao propor a investigação coletiva de um
ao NPC com fins na descoberta por parte dos corpo atenso, pensamos na ideia de se
atores dos pontos de tensão em seus corpos, construir individualmente, e segundo ca-
já que Casimiro (2010, 13 de nov.) reconhece racterísticas específicas a cada corporei-
que é “[...] dessa maneira, pela vertigem, que dade, um caminho de se entender pratica-
as tensões dos corpos ficam ainda mais evi- mente a existência cênica dessa “atensão
denciadas.”. corpórea”.
Durante os ensaios foram feitos di-
versos exercícios que geravam vertigem nos Ou seja, esse “corpo atenso” é em si um
atores, como por exemplo, a caminhada com corpo que utiliza as interações que sofre de
ênfase nas linhas de ação (frente, trás, cima, modo ativo, que se vale de experiências an-
baixo): imaginava-se um fio em uma das di- teriores na seletividade dos seus percursos
mensões do corpo (frente, trás, cima, baixo), de construção. É um corpo que integra as di-
as velocidades da caminhada eram varia- mensões afetivas e cognitivas da sua existên-
das, bem como a direção do olhar também cia e que, portanto, não cinde corpo e mente.
(frente, trás, baixo, embaixo das pernas/trás, É um corpo que se disponibiliza a futuras in-
cima); vertigem pelo giro (com e sem linhas tervenções e com isso regula suas próprias
de ação de caminhada): girava-se o máximo expectativas.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 165

Tais fatos evidenciam para o orientador conhecimentos e de significações desde ex-


suas necessidades de negociações intrassub- periências anteriores sobre a criação (e so-
jetivas, de individualização, e a certeza de bre si mesmo, em certo sentido), bem como
que qualquer alteração simbólica que ele, o movimentação de desejos e expectativas.
corpo, sofra, já que essas resultam em esta- Ou seja, ao conduzir, o orientador da ativi-
dos de relaxamentos de tensões desneces- dade disponibilizará também seu corpo para
sárias, implicará em reorganizações da sua a interação. E, assim, qualquer conhecimen-
dimensão biológica. to que se construa nas atividades artístico-
E, portanto, é um corpo, que, por exigir -pedagógicas serão frutos da fricção entre as
cuidados individuais e específicos a cada cor- dimensões biológicas, sociais e culturais de
poreidade, mobiliza também a corporeidade todos os corpos em interação, com seus de-
do condutor. Assim, podemos dizer que é um sejos, conhecimentos prévios e expectativas.
corpo que, quer seja pela vertigem, quer seja É dessa perspectiva que se reconhece,
pela pressão, ou ainda por outro caminho neste trabalho, a importância de se aten-
aqui não explicitado, constrói-se no entre- tar para o corpo no ato interativo, na rela-
jogo de negociações intra e intersubjetivas e ção condutor/conduzido. O corpo aqui foi
sempre sobre espaços de compartilhamento tomado como imprescindível em qualquer
específicos e contextualizados. relação, e pensar a sua importância durante
a condução de um processo artístico-peda-
CONSIDERAÇÕES FINAIS gógico é olhar para a responsabilidade que
Ao se pensar um corpo como corpo-em-in- o condutor tem em mãos: o corpo do aluno/
teração, que se encontra em constante pro- ator está se dispondo a ser (co)regulado. Por
cesso de regulação das suas potencialidades isso é necessário entender que corpo é este
sociais, culturais e biológicas, que, ao inte- com que se “trabalha”, para perceber a me-
ragir com outros e com o mundo, constrói e lhor maneira para se conduzir com o outro. E
regula significações afetivo-cognitivas sobre mais, perceber que corpo é este que conduz,
as experiências de interação e sobre conheci- para que se garanta uma interação bidirecio-
mentos, e considerando-se a bidirecionalida- nal e efetivamente dialógica.
de das situações interativas corpo/corpo, su-
jeito/sujeito, não há como se pensar em um REFERÊNCIAS
princípio de condução que priorize o saber
do condutor. BUENO, Sílveira. Dicionário Silveira Bueno. 1 ed.
Como foi explicitado, a condução não es- São Paulo: Didática Paulista, 1999.
tabelece uma relação unidirecional em que
um sujeito transfere conhecimento ao outro. CASIMIRO, Juliano. (2010). Diário de bordo.
A condução artístico-pedagógica é uma das [online]. Disponível em: <http://www.euou-
atividades que propicia o estabelecimento tronpc.blogspot.com>. Acesso em: 26 de mar-
de espaços de compartilhamento, em que ço de 2013.
são negociados desejos e expectativas.
O condutor, nesses termos, deverá se GIL, José. Movimento total: o corpo e a dança. Lis-
atentar não só para os objetivos da atividade boa: Relógio D’Água, 2001.
proposta, mas também, e, talvez, prioritaria-
mente, às dimensões biológicas e culturais do GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos
corpo, já que a primeira estabelece os limites indisciplinares. 1 ed. São Paulo: Annablume,
e potencialidades materiais das ações, e a se- 2005.
gunda permite a construção e veiculação de
166 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

LABAN, Rudolf Von. O domínio do movimento. São


Paulo: Summus, 1978.

ORLANDI, Luiz B. L. Corporeidades em minides-


file. Revista Eletrônica Alegrar, n. 1, ago. 2004.

SAMPAIO, Juliano Casimiro de Camargo. Dra-


maturgias consensuais: a interação verbal no
ato criativo. 162f. Dissertação (Mestrado em
Psicologia Experimental) – Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Instituto de Psico-
logia da Universidade de São Paulo, São Paulo,
2011.

SIMÃO, Lívia Mathias. Ensaios dialógicos: com-


partilhamento e diferença nas relações eu-ou-
tro. São Paulo: Editora Hucitec, 2010.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 167

A ARQUITETURA HISTÓRICA DE SANTA MARIA COMO


REFERENCIAL DE DESIGN DE SUPERFÍCIE PARA
MARCADORES DE PÁGINA1

Regina Fonseca Michel de Souza2

INTRODUÇÃO
Ao retornar a Santa Maria, em 2010, após anos ausente, tomada por um sentimento de re-
memoração, saí às ruas como uma turista com olhar atento a tudo, e o que mais me chamou
a atenção foi sua “Arquitetura” que, muitas vezes passa desapercebida para os santa-marien-
ses em seu corrido dia a dia. Percorrendo a Avenida Rio Branco, observei o seu abandono,
naquele ano, ainda tomada por camelôs, o que tornava impossível o acesso aos monumentos
dos canteiros centrais. Através de entrevistas informais, soube da tentativa do prefeito em
relação à revitalização dessa rua central e na realocação do camelódromo em outro local, o
que devolveria à comunidade uma de suas principais avenidas.
Ao visitar a Confeitaria Copacabana, percebi que sua reforma deu ênfase à Arquitetura de
Santa Maria, criando uma exposição de fotografias de prédios antigos em suas paredes. Num
insight, lembrei-me de um importante fato ocorrido anos atrás, quando meu pai levou-me
à “Soteia”, onde fiquei extasiada com a beleza daquela arquitetura, que, mesmo castigada
pelo tempo, em evidente abandono e tomada pelo mato, ainda conservava a imponência de
suas colunas frontais, que naquele momento não fotografei (1990). Na visita feita em 2010
constatei que a casa se encontrava em ruínas, onde a parte frontal havia desabado, fazendo
desaparecer as belas colunas de sustentação, conforme registro abaixo, na Figura 01:

Figuras 01: Soteia em ruínas

Fonte: Acervo da Autora (2010)

A inspiração para essa pesquisa surgiu no momento em que percebi o valor da arquitetura
histórica de Santa Maria e a preocupante depredação de seu patrimônio arquitetônico, como
no caso da “Soteia, cuja beleza já fora notada e registrada, em 1869, através dos desenhos de
Poettcke (apud MARCHIORI & NOAL FILHO, 1997), observado na Figura 02, assim como na

1 Artigo elaborado para a conclusão do curso de Especialização em Design para Estamparia – Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), orientado pela
Profª Drª Vani Terezinha Foletto.

2 Artista Plástica especialista em Design para Estamparia pela UFSM, acadêmica de Design – Centro Universitário Franciscano (UNIFRA).
168 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

fotografia que faz parte do acervo do Arquivo camisetas com a escrita “I love New York”,
Histórico Municipal de Santa Maria (Figura e por que não “I LOVE SANTA MARIA DA
03). Em ambas as representações é possível BOCA DO MONTE”? Ou por que não, fazen-
encontrar as magníficas colunas, hoje desa- do uso da nossa língua: “EU AMO SANTA
parecidas, demonstrando, assim, a impor- MARIA”? Tal cenário reforça a importância
tância das duas linguagens como “registro da Arquitetura, embasada na fala de Foletto
documental”. (2008) quando exalta que “[...] esta arquite-
tura como elemento simbólico representa-
ria enquanto significante o homem que a ela-
borou, e assim passa a ser a representação
desse homem [...]”.
Portanto, este artigo tem a intenção de va-
lorizar o significado histórico de nossa cida-
de, apropriando-se e contextualizando a ar-
quitetura através de fotografias antigas (sé-
culos XIX/XX) e fotografias autorais (século
Figura 02: Desenho da Soteia por Poettcke, 1869 XXI), transformando-as em desenho autoral
Fonte: Marchiori & Noal Filho, 1997 e as utilizando como design de superfície em
estamparia (em metal) como instrumento
de “divulgação social”. Com isto, procura-se,
também, que ele não seja alvo de simples in-
formação, e sim, o foco de significação, crian-
do a possibilidade de reflexão e apropriação
simbólica.

1 HISTÓRIA DE SANTA MARIA


Depois da Pré-Colonização, o conhecimento
da Colonização no Rio Grande do Sul só pode
ser entendido com o conhecimento da histó-
Figura 03: Soteia ria do Brasil. Para entendermos a história da
Fonte: Arquivo Histórico Municipal fundação de Santa Maria, é importantíssimo
nos localizarmos na formação do nosso país
Como cidadã santa-mariense, através des- e nosso estado, já que o descobrimento do
tas imagens, compreendi profundamente as Brasil deu-se em 1500 e, o nosso estado, foi
palavras do pensador Karl Marx, quando re- o último a ser colonizado devido a sua loca-
lata que “o homem se apropria do seu global lização de difícil acesso. Sua formação con-
de forma local, isto é, como homem total”. E, cretiza o Tratado Preliminar de Restituições
neste contexto, ao procurar elementos de va- Recíprocas entre Portugal e Espanha, ser-
lorização e preservação da memória de San- vindo para consolidar o Tratado de Santo
ta Maria em relação à arquitetura histórica, Ildefonso e, assim, definindo as fronteiras
percebi, através de entrevistas informais, o do nosso estado, dando início à efetivação da
desconhecimento das pessoas quanto à his- paz e desenvolvimento da colônia.
tória da cidade. Em Belém (1933), encontra-se o impor-
Neste momento, ocorre o pensamento: tante Decreto desse tratado, registrado no
“Por que conhecemos e admiramos tanto Arquivo Nacional, volume X, que trata da cor-
a cultura americana, ao ponto de usarmos respondência entre o vice-rei e o governador
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 169

do Rio Grande do Sul e da criação da linha


divisória, com a Partida de Demarcação, que
corresponderia à divisão entre as coroas
portuguesa e espanhola, tendo como conse-
quência a reparação dos limites que deve-
riam ser demarcados:

[...] que se devem demarcar, estabelecendo e


assinalando a linha que há de ser para o fu-
turo a única divisória dos dois domínios na
forma estipulada no referido tratado. E por
firmeza de tudo mandei passar a presente Figura 04: Vista aérea e da Rua do Acampamento (linha azul) e

por mim assinada e selada com o sinete de Avenida Rio Branco (linha amarela)

minhas armas - Rio, 2 de janeiro de 1783. Fonte: acervo Olmiro Cezimbra Neto (2010)

O secretário de Estado Tomaz Pinto da Silva


a fez escrever. Luiz de Vasconcelos e Souza,
Vice-Rei do Brasil (BELÉM, 1933, p.12).

A partir deste decreto torna-se de suma


importância a localização de ruas, mesmo não
sendo este um trabalho urbanístico, já que no
seu entorno se formatou a cidade e onde há
resquícios da Arquitetura do século XX, que
ainda permanece em pleno século XXI.
Se olharmos atentamente as fotografias
aéreas, realizadas em 2010, podemos locali- Figura 05: Localização da placa com informações sobre o surgi-

zar o centro de Santa Maria no encontro da mento de Santa Maria

Rua do Acampamento (ponto/linha) em azul, Fonte: Acervo da Autora (2010)

com a Avenida Rio Branco, duplicada (ponto/


linha) em amarelo. No encontro destes dois
pontos, à esquerda, localiza-se a arborizada
Praça Saldanha Marinho (Figura 04).
Na Rua do Acampamento (o ponto azul, ao
alto), esquina com a Rua Dr. Turi, encontra-
se uma placa da fundação de Santa Maria na
parede da Casa das Linhas, com a inscrição
feita pela Prefeitura Municipal, indicando o
marco inicial do município. A importância
desse registro deve-se ao local onde acam-
param e estabeleceram-se os militares da
Partida Portuguesa da Segunda Subdivisão
da Comissão Demarcadora de Limites, che-
gados em 1797, sob o comando do capitão
Joaquim Félix da Fonseca, como demonstram Figura 06: Texto da placa sobre o surgimento de Santa Maria
as Figuras 05 e 06. Fonte: Acervo da Autora (2010)
170 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

O município de Santa Maria, considerado


o “Coração do Rio Grande” (entre a Rua dos
Andradas e Avenida Rio Branco foi constru-
ído um marco que simboliza o centro do Rio
Grande do Sul) , pela sua posição geográfi-
ca, possui área de 1.788 km², com cerca de
262.368 habitantes em 2011, segundo o cen-
so do Instituto Brasileiro de Geografia e Es-
tatística (IBGE), tendo seu bioma caracteri-
zado pela Mata Atlântica e cercado de colinas
e morros. Seu Centro Histórico - foco deste Figura 08: Estátua Cel. Niederauer Sobrinho, 2010

artigo - apresenta a praça principal, à direita Fonte: Acervo da Autora (2013)

na fotografia. Anteriormente essa praça foi


denominada Capelinha, cujo desenvolvimen-
to do povoamento ocorreu ao seu redor, ini-
cialmente com trinta imóveis e uma casa de
comércio. No século XX passou a chamar-se
Praça Saldanha Marinho, em homenagem ao
engenheiro Joaquim Saldanha Marinho Filho,
da Inspetoria Geral de Terras e Colonização,
conforme demonstra a Figura 07, registrada
em 2013, com a praça revitalizada, a seguir.

Figura 09: Estátua Cel. Niederauer Sobrinho, 2013

Fonte: Acervo da Autora (2013)

2 ARQUITETURA
Este artigo, visando a Arquitetura do Centro
histórico e a Avenida Roraima (UFSM), vê a
Arquitetura não só como abrigo, como cita-
do em Larrousse (1999), mas num sentido
Figura 07: O Centro Histórico de Santa Maria revitalizado (2013) mais amplo, podendo ser analisada também
Fonte: Acervo da Autora (2013) como “documento histórico” e “como ele-
mento simbólico”. Segundo ressalta Foletto
Outro importante registro para o presen- (2008, p.18), como documento histórico,
te trabalho está localizado na Praça Saldanha devido à “capacidade de durar e de vencer
Marinho, no encontro da Rua do Acampamen- o tempo” e, como elemento simbólico, por-
to com a Avenida Rio Branco. Trata-se de uma que “através dela podemos conhecer civili-
placa em homenagem ao Coronel José Niede- zações anteriores a nossa com seus hábitos
rauer Sobrinho, membro da Guarda Nacional e costumes”.
e morador da mencionada “Soteia”. Esse mo- Importante foi perceber que, no período do
numento aparece na praça ainda em processo Império, quando chegaram os colonizadores,
de revitalização, no ano de 2011 (Figura 08) já traziam em suas naus o modelo a ser segui-
e revitalizado em 2013 (Figura 09), a seguir: do, tanto urbanístico quanto arquitetônico,
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 171

para que as colônias tivessem o mesmo pa- ções, evolução essa demonstrada nas Figu-
drão português. ras 10,11, 12, 13 e 14, a seguir:
De acordo com Reis Filho, a arquitetura no
Brasil é diversificada de acordo com a estru-
tura urbana da época e ao tipo de lote em que
está implantada. As principais cidades brasi-
leiras em suas edificações foram, em grande
parte, estruturadas nos séculos passados.

[...] primeiro nos centros maiores do litoral,


produzindo exemplos de grande perfeição
formal e relativo apuro construtivo, mas
dependente não apenas de uma influência Figura 10: Rua Acampamento - Primeira vista fotográfica (aprox.

cultural importada, mas também de mão 1890)

de obra para construção, materiais, móveis, Fonte: Marchiori & Noal Filho, 1997

objetos de decoração, plantas para jardins


e empregados europeus para a sua opera-
ção. Constituiria, praticamente uma impor-
tação para uso de grupos que pretendiam
reproduzir no Brasil, com detalhes, o am-
biente europeu. E segundo na arquitetura
urbana mais modesta e as residências das
grandes propriedades rurais nas áreas com
maior prosperidade financeira, compre-
endida modificações apenas de detalhes,
através das quais nem sempre era possível Figura 11: Praça Saldanha Marinho,1920

reconhecer a influência Neoclássica (REIS Fonte: Arquivo Histórico Municipal

FILHO, 1973, p.15).

E, Santa Maria lentamente incorpora es-


tas mudanças sociais e econômicas, somente
assimilando os reflexos da Revolução Indus-
trial ocorrida na Inglaterra, com a vinda de
D. João VI para o Brasil, através do decreto
de liberação dos portos mediante taxação
para a importação e exportação de produtos,
possibilitando um maior desenvolvimento.
Primeiramente, houve a evolução nos meios Figura 12: Praça Saldanha Marinho, século XIX

de transporte, não só no sistema ferroviário Fonte: Arquivo Histórico Municipal

como naval, permitindo assim, a chegada ao


Rio Grande do Sul de novas, com isto, revigo- Na evolução da arquitetura de Santa Ma-
rando a região, com a inauguração da “Estra- ria do século XVIII ao século XIX é possível
da de Ferro” em janeiro de 1898 (século XIX), perceber as pequenas e lentas mudanças de-
possibilitando a vinda de materiais trazidos vido aos altos encargos dos impostos repas-
pelos europeus, na busca de refinamento e sados ao governo geral pelos proprietários
adequações decorativas nas suas constru- (Figura 15).
172 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Figuras 13: Esquema Português de construção

Fonte: Acervo da autora (2011) Figura 15: Rua do Acampamento no século XIX, antes de 1890

Fonte: Marchiori & Noal Filho, 1998

Figura 14: Casa de Aldorindo Fernandez, 1912 Avenida Rio Branco

Fonte: Acervo da autora (2011)

Figura 16: Praça Saldanha Marinho em 1920

É dentro desta lenta evolução que aconte- Fonte: Marchiori & Noal Filho, 1998

ce algumas mudanças no plano arquitetônico


onde, primeiramente, surgem sinais da evo- Assim, baseado na evolução da arquite-
lução, já que a arquitetura é mais facilmente tura de Santa Maria, serão criados marcado-
adaptável às modificações no plano econômi- res de página como design de superfície em
co e social, de acordo com Reis Filho (1973). estamparia (em metal), ilustrados à partir
O esquema arquitetônico português con- dos exemplares fotográficos ainda existen-
tinuou no início do século XIX, mesmo com tes no século 21 que fazem parte do Centro
a estrutura urbana avançando em relação à Histórico de Santa Maria, inspirando-se na
melhorias como calçamento de ruas, ilumina- arquitetura remanescente do século XX em
ção, transportes, etc. Como é possível obser- pleno século XXI, sendo que seis marcadores
var na imagem da praça Saldanha Marinho, trazem desenhos a partir de fotografias an-
datada de 1920, onde aparece a casa urbana, tigas da primeira década do século XX e um
a praça e o chafariz como elemento central, marcador registra a arquitetura da segunda
tipicamente europeus (Figura 16). metade do século XX, ilustrado pela Avenida
Assim, a arquitetura do início do sécu- Roraima, na Universidade Federal de Santa
lo XIX se aproveitava da antiga tradição ur- Maria (UFSM).
banística portuguesa, com ruas de aspecto
uniforme, residências construídas sobre o 3 FOTOGRAFIA & DESENHO &
alinhamento das vias públicas e paredes la- ARQUITETURA
terais sobre os limites dos terrenos, tendo O reconhecimento destas três linguagens de
um chafariz no ponto central da praça evi- representação vistas na fotografia, desenho
denciando o método europeu, como vemos e arquitetura torna-se importante no mo-
na fotografia de 1920. mento em que todas têm uma busca visual
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 173

e, com isto, possibilitam uma análise em sua E, através da fotografia, no presente trabalho
essência como via de possibilidade de cons- foi possível observar este tipo de pesquisa/
trução do conhecimento, sendo esta cultura registro, tendo a cidade de Santa Maria como
visual dada através de uma cultura mate- foco na arquitetura, pois se encontram foto-
rial, que, no presente artigo, é vinculado a grafias de cada ano da vida da cidade, fato
estas três linguagens de representação, já este registrado em Marchiori & Noal Filho
que concordo com Debes apud Hernandez (1997).
(2009), quando falam que “ver é ler uma A Fotografia documental (passado) e a
imagem e esta alfabetização visual se refere fotografia autoral (presente) encontram em
ao grupo de competências visuais que um outro sistema de representação, como o de-
ser humano pode desenvolver e, ao mesmo senho desta apropriação, grandes aliados
tempo, ter ou integrar outras experiências com foco na “Arquitetura” histórica, como re-
sensoriais”. ferencial para os Marcadores de Páginas.
O desenho, por si só, é uma linguagem
que pode ser plana ou bidimensional na 4 METODOLOGIA
construção de uma forma. Na construção Os conceitos de três autores foram utili-
de uma forma plana utiliza pontos que se zados para se atingir o objetivo proposto:
interligam e se transformam em linhas que Baxter (2000), com o estabelecimento de
se transformam em curvas ou retas e o seu um plano organizacional, Munari (1987),
caráter bidimensional, quando se é dada a com seu caráter liberatório do “faz por ti
perspectiva através de planos (AUMONT, mesmo” e, Bomfim (1987), o qual setoriza
1993). o designer como pesquisador, trazendo a
Quanto à fotografia, encontro dois autores possibilidade da apropriação de fotografias
que elucidaram essa compreensão. Primeiro, que, devido a sua conceituação, também
em relação à significação da fotografia, onde possibilitou a contextualização com figuras
Perez (1998) questiona se ela se dá no gesto, autorais, no sentido de criar um produto
no ato e o que é definido. Segundo ele, a foto- híbrido relacionando história, arquitetu-
grafia não é o mesmo que outros sistemas de ra, design de superfície e suas vertentes. O
representação. Não haveria fotografia se não design de superfície foi utilizado como um
houvesse uma imagem ou um signo, jamais viés da cultura visual para tirar a história do
se pode negar que a coisa esteve lá. Além dis- esquecimento dos museus e transpô-la para
so, ressalta Perez: um suvenir, um lugar mais acessível, como
o “marcador de páginas”, com a geração de
[...] a multiplicidade de informações que a seis alternativas referentes à arquitetura do
Fotografia proporciona possibilita estudos chamado Centro Histórico da cidade de San-
específicos nas mais variadas áreas de co- ta Maria e uma relacionada ao Campus da
nhecimento humano [...] a importância da Universidade Federal de Santa Maria, utili-
Fotografia não esgotam as possibilidades zando os conceitos simbólico, documental e
de uso da Fotografia como fonte para a pes- afetivo.
quisa histórica (PEREZ, 1998, p. 41). Com base nestas três metodologias, alia-
das e já mencionadas, foi possível a elabora-
Foletto (2008) define fotografia no seu va- ção de um plano organizacional, como vemos
lor documental, histórico e simbólico. A fo- a seguir, na Figura 17.
tografia permite uma reflexão sobre a sequ-
ência de acontecimentos que vão como que
demarcando a história de uma comunidade.
174 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

de dados pertinentes ao projeto em relação à


história, arquitetura, fotografia, design (design
de superfície/design sustentável), e também a
procura de métodos de gravação sustentável
em metal, existente em Santa Maria.
Importante salientar que esta coleta foi
realizada em dois níveis: primeiramente em
bibliotecas do âmbito geral de Santa Maria
nos anos de 2010 e 2011 onde, após o em-
basamento me apropriei da conceituação
Figura 17: Sistema utilizando ferramentas de análises de Baxter de Bomfim (1987), no caráter documental
(2000) “simbólico” deste trabalho. Neste momento
Fonte: Acervo da Autora (2010) houve a percepção de que algo estava faltan-
do, e quando foi realizada a segunda parte da
1ª Fase: este plano organizacional, utili- coleta, no segundo semestre de 2011, par-
zando como fio condutor o caráter liberató- ticipando de palestras, encontro no conhe-
rio de Munari (2008), foi contra as metodo- cimento do design emocional o que faltava
logias tradicionais onde, primeiramente, se para este trabalho - a conceituação de “afeti-
dá a conceituação do trabalho. Surgiu com a vo”. A partir do referencial arquitetônico es-
proposta apresentada na disciplina de Pro- colhido e da contextualização das fotografias
jeto de Metodologia, do curso de Especiali- da análise diacrônica (passado) e sincrônica
zação, quando foram utilizadas ferramentas (presente), foram realizadas inúmeras gera-
de Baxter (2000), sendo realizado em grupo, ções de alternativas. Optei somente por es-
um brainstorming (troca de idéias/projeto) canear a geração da alternativa escolhida e,
e, após, um brainwriting (registro de idéias/ através da gravação como experimento, foi
projeto) (Figura 18). Este foi um importante possível detectar falhas em relação ao dese-
momento, que possibilitou ver a abrangência nho e à grafia do entorno e, após as corre-
do trabalho, facilitando o entendimento do ções, percebi melhor o efeito desta estampa
foco desta pesquisa, que seria o Centro His- como produto final nos sete referenciais.
tórico e a Avenida Roraima. Para o desenvolvimento deste produto foi
levado em conta a “sustentabilidade” como
palavra de ordem ao qual foram encontradas
e testadas três técnicas de gravação em metal.
A primeira, gravação manual feita por joalhei-
ro, a qual seria muito onerosa. A partir daí,
optou-se por outras duas técnicas existente
em Santa Maria: o ULV e o transfer-sublimá-
tico. O trabalho final foi realizado em trans-
fer-sublimático que constam dos seguintes
Figura 18: Brainwriting realizado na aula de metodologia/2010 passos, demonstrado na Figura 19, a seguir:
Fonte: Acervo da Autora (2010) 1º Escaneados os desenhos (geração de
alternativas), o processo se inicia quando
2ª fase: utilizando-se da setorização do de- os desenhos escaneados são organizados no
signer como pesquisador, Bomfim (1987), e a softwer Corel e posicionados em relação às
sua possibilidade de apropriação de fotografias medidas da placa metálica onde será feita a
para contextualização, foi dado início à coleta gravação.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 175

2º Colocado o papel especial para a grava-


ção na impressora, inicia-se a impressão.
3º Retirado o papel especial da impresso-
ra, o mesmo é recortado.
4º Após serem impressos os desenhos
(geração de alternativas) no papel especial
para este tipo de gravação, o papel é retira-
do, deixando-se a parte adesiva sobreposta
na placa que também é específica para este
tipo de gravação. Depois é recortado na má-
quina no tamanho desejado.
5º Depois de cortada esta placa com este
adesivo é posicionada na máquina para a
transferência por sublimação, isto quer dizer
altas temperaturas.
6º Retirada, a placa já gravada é dividida
de acordo com o desenho.

RESULTADOS
Após a escolha do referencial arquitetônico
histórico e através da utilização dos méto-
dos anteriormente referidos, optou-se pela
elaboração dos marcadores de página em la-
tão dourado para o ULV e uma placa especial
para o transfer-sublimático que medem 8 x 8
cm baseados nas estampas a seguir:

1ª estampa: Referencial “Catedral Metro-


politana de Santa Maria”
Localizada na Avenida Rio Branco, a Catedral
de Santa Maria, foi escolhida pela sua im-
portância na arquitetura como documento
“simbólico” e “afetivo”, reconhecida por ser
o maior templo católico da primeira metade
do século XX, construído entre 1902 e 1909,
e também pela sua monumentalidade com
estilo eclético (FOLETTO, 2008).
Inicialmente, a construção possuía refe-
rências da arquitetura Barroca em sua facha-
da onde era comum a adoção de plantas com-
plexas, irregulares, com preferência para as
plantas de cruz latina. A elaboração da planta
Figura 19: Etapas de gravação com transfer-sublimático da Catedral aproveitou essa e outras caracte-
Fonte: Acervo da Autora (2010) rísticas, como a criação de cúpulas e pintu-
ras, que promovem uma sensação de “mo-
numentalidade”, observadas em elementos
176 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

arquitetônicos como pilastras, torres, vitrais também divulgado pelas imprensas nacional,
com cenas da Bíblia, nichos, domo, capitéis estadual e local. Como conseqüência desta di-
com volutas, conchas decorativas no frontão vulgação, ocorreu a criação de um “City Tour”
triangular e cúpulas (FOLETTO, 2008). organizado pela Prefeitura Municipal de San-
Em 1939, sofreu grande transformação ta Maria e Arquivo Histórico Municipal com
em suas formas e volumes, sendo notório o apoio da Empresa Planalto, com a doação de
“ecletismo”, já que a edificação passou a ter um ônibus permitindo um tour pelos pontos
seu revestimento em granitina e a pureza es- históricos da cidade, acompanhado de um
tilística deu lugar ao estilo Art déco, tornan- guia qualificado para relatar nossa história,
do-a com sentido decorativo eclético. Uma sendo colocado à disposição da comunidade
nova reforma aconteceu em 1953, sendo em visitas previamente agendadas.
concluída em 1954, quando foram agregados A Catedral Diocesana passou por uma res-
valores pelas pinturas dos artistas italianos tauração em 2003, visando mantê-la como um
Aldo Locatelli e Emílio Sessa. prédio de importância histórica para a cidade,
Nas feições “ecléticas” que ainda perma- porém não houve reformas, somente reparos
necem, mantiveram-se características Barro- de manutenção, como vemos abaixo em foto-
cas, embora tenham sido incorporadas a sua grafias do século XIX se contextualizada com
fachada elementos de outros estilos como fotografias do século XXI (FOLETTO, 2008),
Românico (nos arcos e cúpulas das torres conforme Figura 20 e Figura 21, a seguir.
campanárias), Renascentista (na distribui-
ção dos planos da fachada) e Barroco (no
tímpano do frontão triangular), além das co-
lunas com capitéis compósitos, que remon-
tam ao classicismo greco-romano, e Art Déco
no tratamento do revestimento em granitina
(FOLETTO, 2008).
A Catedral Diocesana foi inspiração para o Figura 20: Catedral (séc. XIX) Marcador de Página

registro da primeira Romaria em Santa Maria, Fonte: Arquivo Histórico Municipal

organizada por trinta senhoras com o objetivo


de apaziguar os ânimos frente à Revolução. E
em 2011, ano desta pesquisa, a edição da XIV
Romaria da Medianeira foi responsável pela
vinda em torno de 250.000 mil fiéis, quase a
população da cidade, apontando, não só seu
caráter documental e simbólico, mas seu po-
der agregado ao “turismo religioso”, aumenta-
do, quando em 14 de abril de 2011, o Vaticano Figura 21: Catedral Metropolitana (séc. XX) Marcador de Página

anunciou, em seu site oficial e amplamente di- Fonte: Acervo da Autora

vulgado na imprensa, a benção do Papa Bento


XVI à promoção da Diocese Santa-Mariense 2ª estampa: Referencial “Banco Nacional
para Arquidiocese, passando a chamar-se do Comércio” (século XIX), atual “Caixa
Catedral Metropolitana. Assim, as decisões Econômica Federal”
administrativas, antes deliberadas em Porto Sua construção foi iniciada em 1917 e
Alegre, passaram a ser de responsabilidade inaugurada em 1918 na esquina da Rua do
de Santa Maria, sendo que D. Hélio Adelar Acampamento com a Avenida Rio Branco.
Rubert, então Bispo, passa a Arcebispo, fato Esta importante arquitetura com valores
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 177

“documental”, “simbólico” e “afetivo” está li- 3ª estampa: Referencial Arquitetônico/


gada ao desenvolvimento de Santa Maria pela Sociedade União dos Caixeiros Viajantes
localização e pelas atividades desenvolvidas Arquitetura escolhida por ser um importan-
desde a sua construção. O Banco Nacional do te documento “simbólico” e “afetivo”, de San-
Comércio funcionou até 1973, quando ficou ta Maria, localizada na Praça Saldanha Mari-
deteriorado e foi desocupado. Importante nho, esquina com a Avenida Rio Branco.
salientar que a Caixa Econômica Federal tor- Sua construção foi iniciada em 1922 e inau-
nou-se proprietária do prédio, sendo pensa- gurada somente em 1926, sendo a planta
da a possibilidade de demolição, descartada encomendada à companhia construtora de
logo após a mobilização da sociedade san- Santos. Sua construção ficou sob a direção
ta-mariense. A partir daí, executou-se uma do engenheiro Alfredo Haessler (especialis-
reforma que não alterou a fachada existente. ta em construção em cimento armado), ten-
Mesmo com total reformulação interna, este do, como mestre de obras Otto Werner. Os
edifício permanece como símbolo de prospe- materiais utilizados foram importados. Na
ridade e desenvolvimento do início do século sua inauguração, em 1926, recebeu o nome
XX. Seu “tombamento”, em 1952, fez com que de “João Fontoura Borges”. A fachada é com-
fosse efetivada a sua identidade como elemen- posta por elementos com diferentes origens
to fundamental do centro. Em sua aparên- estilísticas, sendo predominante a sobrie-
cia atual, mesmo com o “ecletismo” vigente, dade neoclássica. O elevador é original da
ainda predominam os elementos “Art Déco”, época. Há a presença de um monograma que
caracterizados pela platibanda escalonada e identifica o prédio com as iniciais SUCV em
pelos frisos retos e, por isso, o referido “City relevo, inseridas em formas decorativas, jus-
Tour” tem início em sua frente (FOLETTO, tamente na área arredondada do vértice das
2008), conforme Figuras 22 e 23. suas fachadas. O ecletismo é marcado pela
existência das linhas verticais formadas pe-
las pilastras em relevo, de inspiração neo-
clássica, presentes na construção, além de
elementos Art Nouveau nas janelas e grades
de ferro na porta principal, com floreados
entrelaçados. No decorrer de sua história
houve reformas internas (divisórias) e ex-
ternas (portas). Ainda permanece original
a entradas principal do prédio, que dá aces-
Figura 22: Banco Nacional do Comércio (séc. XX) - Marcador de Página so aos espaços destinados exclusivamente à
Fonte: Arquivo Histórico Municipal SUCV (FOLETTO, 2008), conforme Figuras
24 e 25, a seguir:

Figura 23: Caixa Econômica Federal (séc. XIX) - Marcador de Página Figura 24: SUCV (século XIX) / Marcador

Fonte: Acervo da Autora Fonte: Arquivo Histórico Municipal/Autora


178 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Figura 26: Escola de Artes e Ofícios (século XIX)/Marcador

Figura 25: SUCV (século XX) / Marcador Fonte: Arquivo Histórico Municipal

Fonte: Acervo da Autora

4ª estampa: Referencial Arquitetônico/


Escola de Artes e Ofícios
A Cooperativa dos Empregados da Viação
Férrea do Rio Grande do Sul, fundou a Escola
de Artes e Ofícios em 1913, com a meta de
oferecer uma educação técnica aos filhos dos
ferroviários. Em 1934 passou a se chamar Figura 27: Atual Supermercado Carrefour/Marcador

Ginásio Industrial Hugo Taylor e, em 1943, Fonte: Acervo da Autora

Escola Industrial Hugo Taylor. Em 1960 foi


reconstruída, após um incêndio. Em 1970 5ª estampa: Referencial Arquitetônico
formou-se a última turma. Em 1986 foi de- Teatro Treze de Maio
sativada. Em 1990 o prédio foi vendido à Localizado na Praça Saldanha Marinho, foi
Nelida Soares Saccol da Silva, após tentati- construído entre 1889 e 1890, quando a ins-
vas de reativar a escola. No início de 2007 tituição de um espaço para abrigar espetácu-
foi implantado o Supermercado Carrefour. los era uma antiga aspiração dos moradores
A entrada monumental do primeiro prédio de Santa Maria.
traz a identificação da escola Hugo Taylor e Este imponente prédio foi construído ain-
está ladeada por colunas de inspiração jôni- da no século XIX, na praça central. Foi uma as-
ca, que se prolongam até a altura das janelas piração da cidade que resultou num local para
do segundo andar. a convivência com a cultura, tornando Santa
A platibanda possui balaústres de cimen- Maria um marco para apresentações teatrais,
to, dispostos em torno de todo o telhado em tal como acontecia em outras cidades como
ambas as construções. Frisos horizontais Pelotas e Porto Alegre. Foi uma idealização
sublinham a platibanda, projetando-se dis- que não se deu pela iniciativa do poder públi-
cretamente para fora dos limites do prédio. co, mas sim pelo esforço dos cidadãos e teve
Ao encontrar-se com os elementos que de- investimento particular. Funcionou durante
marcam a entrada, esses frisos e o pináculo seis anos à luz de lampião. Em 1909 começou
fazem um arco, com elementos decorativos a funcionar à luz elétrica. Em 1992 houve uma
em forma de ânforas e esculturas com fi- grande reforma que objetivou as instalações
guras humanas em bronze. Tais figuras são adequadas às atividades teatrais contempo-
alegorias das artes e ofícios. A pesada porta râneas, alterando a sua fachada, modificando
da fachada do prédio mais antigo mantém- seu estilo Neoclássico, mesmo assim o prédio
se original e é de madeira, com grades de não perdeu o status de referência da identida-
ferro com discreta inspiração Art Nouveau de histórica de Santa Maria (FOLETTO, 2008),
(FOLETTO, 2008), Figuras 26 e 27, a seguir: de acordo com as Figuras 28 e 29, a seguir:
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 179

produção industrial com a popularização


e barateamento dos materiais e processos,
aliando emprego do ferro (fundido e batido)
com concreto armado, propiciou uma nova
possibilidade construtiva. A sede da UFSM,
em Camobi, possui no pórtico de entrada
Figura 28: Teatro Treze de Maio (século XIX)/Marcador do Campus Universitário, um arco idealiza-
Fonte: Acervo da Autora do nos anos 1960 e construído nos anos 70,
que simboliza o ingresso ao “Mundo do Sa-
ber”, feito em estrutura de concreto armado,
simples, segundo o estilo funcionalista, com
design ovalado sobrepondo-se à Avenida Ro-
raima (FOLETTO, 2008), conforme Figuras
30 e 31, que segue.

Figura 29: Teatro Treze de Maio/Marcador

Fonte: Arquivo Histórico Municipal

6ª estampa: Referencial Arquitetônico


Campus da UFSM
A Universidade Federal de Santa Maria foi Figura 30: Universidade Federal de Santa em 1960/Marcador

criada em 1960, por lei sancionada pelo pre- Fonte: Arquivo Histórico Municipal

sidente Juscelino Kubitschek em 14 de de-


zembro. O Decreto de 1960 reuniu todas as
faculdades isoladas em uma administração
centralizada. A educação refletiu no cresci-
mento da cidade, sendo que as décadas de
1960 e 1970 foram de grande crescimento
para a Universidade, durante a gestão do
Reitor José Mariano da Rocha Filho, ideali-
zador e grande responsável pela criação da Figura 31: Prédio da Reitoria (UFSM) em 2011/Marcador

UFSM. Nesse período, a arquitetura moderna Fonte: Acervo da Autora

de cunho funcionalista começou a prevalecer


em detrimento dos estilos Art Nouveau e Art CONCLUSÃO
Déco. Estabelecendo-se a partir das primei- Com este estudo, foi possível detectar, de
ras décadas do século XX, neste período a maneira informal, em um primeiro momen-
arquitetura moderna com o cunho funciona- to, o desconhecimento da comunidade, tanto
lista em que “a forma deve seguir a função”, acadêmica quanto geral, em relação aos ele-
eram construídos prédios altos com formas mentos de referência histórica e cultural de
geométricas puras, com estruturas aparen- nossa cidade. E, também perceber, aspectos
tes. Com origem na escola Bauhaus, alemã importantes relacionados ao designer pes-
,que propõe uma arquitetura destituída de quisador que, aliado a vertentes como o de-
decorativismo sendo esta proposta difundi- sign de superfície, design emocional e design
da e implementada em todo o mundo, inclu- sustentável, torna possível a criação de uma
sive no Brasil. Esta concepção é apoiada pela estampa, embasada em pesquisa, com todas
180 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

estas características para solucionar estes MARCHIORI, José Newton Cardoso; NOAL FILHO,
aspectos. E, ainda, criar um produto durá- Valter Antônio. Santa Maria: relatos e im-
vel como estes marcadores de página (Figu- pressões de viagem. Santa Maria, RS: UFSM,
ra 32), que permitem a rememoração pelas 1997.
pessoas daquilo que lhes é significativo, ao
mesmo tempo em que valoriza nossa arqui- MUNARI, Bruno. A arte como ofício. Lisboa:
tetura histórica. Presença, 1987.

OLIVEIRA, Marilda Oliveira de. O papel da cul-


tura visual na formação inicial em artes vi-
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tiva dos Empregados da Viação Férrea do Rio
Grande do Sul”. Dissertação de Mestrado em
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Figura 32: Catedral (séc. XIX) Marcador de Página REIS FILHO, Nestor. Quadro da Arquitetura no
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 181

LINGUAGEM CORPORAL, EROTISMO, GÊNERO E DESEJO


EM “AS PALAVRAS DO CORPO”, DE MARIA TERESA HORTA

Rubenil da Silva Oliveira1


Algemira de Macedo Mendes2

RESUMO: Este artigo que tem como título “Linguagem corporal, erotismo, gênero e desejo em ‘As
Palavras do Corpo’, de Maria Teresa Horta” visa à análise dos conceitos subjacentes à teoria feminis-
ta e estudos de gênero na obra da poetisa lusitana. A metodologia utilizada seguiu a abordagem do
tipo qualitativa com ênfase no tipo bibliográfica, para isso usou-se como base o fichamento dos re-
ferenciais teóricos, pesquisa em livros e periódicos impressos e na internet e a seleção dos poemas
que servem de amostra a essa análise. A expressão do erotismo se dá a partir da linguagem usada na
constituição da obra, pois o vocabulário empregado leva o leitor a pensar na força da ação erótica a
partir dos movimentos sugeridos pelo corpo. Além dos estudos de gênero e feminismo mostrarem
a força da escrita feminina na utilização dos termos relativos à expressão da sexualidade dos corpos
femininos e masculinos, respectivamente “vagina” e “pênis” e dos movimentos corpóreos durante o
ato sexual. Portanto, a linguagem contida na obra da poetisa reveste-se da mais expressiva demons-
tração da eroticidade, o que em outras épocas não permitiria ser dito por mulheres.
Palavras-chave: Poesia erótica. Corpo. Sexualidade. Teoria feminista. Maria Teresa Horta.

ABSTRACT: This article that is intitled “Boby language, eroticism, gender and desire in ‘The words
of the body’, by Maria Teresa Horta” intends to analyze the concepts underlying to the feminist the-
ory and studies of gender in the work of the Lusitanian poetess. The metholology used followed the
qualitative approach with emphasis on bibliographic research, in which was used as bases of the
book report of theoric referentials, research in books and printed journals and in the Internet and
the selection of the poems that work as samples to this analizes. The expression of the erotismo is
made throught the language used in the constitution of the work, because the vocabulary chosen
makes the reader to think of the force of the erotic action from the movements sugested by the body.
Beyond the studies about gender and feminism show the power of the female writing in the usage
of the therms related to the expression of the sexuality of the female and male bodies, respectively
“vagina” and “penis” and the body movements during sexual act. Therefore, the language presented
in the work of the poetess has the most expressive showing of the eros, that in other times shouldn’t
be told by women.
Keywords: Erotic poetry. Body. Sexuality. Feminist Theory. Maria Teresa Horta.

RESUMEN: Este artículo que tiene como título “Lenguaje corporal, erotismo, género y deseo en ‘Las
palabras del cuerpo’, de Maria Teresa Horta” mira a la análisis de los conceptos subyacentes a la te-
oría feminista y estudios de género en el trabajo de la poetisa lusitana. La metodología utilizada ha
seguido la abordaje del tipo cualitativa con énfasis en el tipo bibliográfica, para eso se utilizó basado

1 Mestrando Acadêmico em Letras; Área de concentração: Literatura, memória e cultura; Linha de Pesquisa: Literatura e Relações de Gênero; Universidade
Estadual do Piauí (UESPI), Turma IV – 2014 – 2016; E-mail: rubenoliveira50@hotmail.com

2 Professora Doutora em Letras (PUC – RS/2006). Ministra a disciplina Literatura e Relações de Gênero. Professora permanente do Mestrado em Letras da
Universidade Estadual do Piauí (UESPI).
182 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

en libros y periódicos impresos y en la internet vertente poética conta em seus antepassa-


y la selección de los poemas que sirven de mues- dos com a presença da poetisa Marquesa de
tra a esa análisis. La expresión del erotismo Alorna. Graduada em Letras, na Faculdade
ocurre a partir del lenguaje usada en la constitu- de Letras da Universidade de Lisboa. Dirigiu
ción del trabajo, pues el vocabulario conduce el o ABC Cine-Clube, além de participar do Ci-
lector a pensar en la fuerza de la acción erótica a ne-clubismo, dedicou-se ao jornalismo e às
partir de los movimientos sugeridos por el cuer- questões feministas, inclusive do movimento
po. Además de los estudios de género y feminis- feminista português ao lado de Maria Isabel
mo mostraren la fuerza de la escrita femenina Barreno e Maria Velho da Costa, parceria
en la utilización de los términos relativos a la essa que rendeu a escrita do livro “Novas
expresión de la sexualidad de los cuerpos feme- Cartas Portuguesas” (1971), obra essa que
ninos y masculinos, respectivamente “vagina” y foi fortemente contestada à época.
“pene” y de los movimientos corpóreos durante A escritora participou do grupo Poesia
el acto sexual. Por lo tanto, la lenguaje conteni- 61 . Além de ter contribuído com vários jor-
3

da en el trabajo de la poetisa alineándose de la nais portugueses como: Diário de Lisboa, A


más expresiva demostración de erotismo, el que Capital, A República, O Século, Diário de No-
en otros tiempos no permitiría ser hablado por tícias, Jornal de Letras e Artes e da redação
mujeres. da Revista Mulheres. É casada, Grande-Oficial
Palabras-clave: Poesía erótica. Cuerpo. Sexuali- da Ordem do Infante D. Henrique e em 2011
dad. Teoría feminista. Maria Teresa Horta. recebeu o Prêmio D. Dinis da Fundação Casa
de Mateus pela obra “As Luzes de Leonor”.
A autora ainda escreveu poesia – Espelho
1 INTRODUÇÃO Inicial (1960), Tatuagem (1961), Cidadelas
A poesia de temática erótica de autoria femi- Submersas (1961), Verão Coincidente (1962),
nina não tem uma data precisa do seu sur- Amor Habitado (1963), Candelabro (1964),
gimento no mundo, os poucos escritos des- Jardim de Inverno (1966), Cronista Não é Re-
sa história dão conta de que Safo de Lesbos cado (1967), Minha Senhora de Mim (1967),
na Grécia foi a primeira mulher a carregar Educação Sentimental (1975), As Mulheres de
a escrita com as tintas de menor grau de li- Abril (1976), Poesia Completa I e II (1960 –
cenciosidade moral. No período medieval 1982) (1982), Os Anjos (1983), Minha Mãe,
não há registros dessa temática, talvez pelas Meu Amor (1984), Rosa Sangrenta (1987),
constantes ameaças do poder da Igreja, já Antologia Poética (1994), Destino (1998), Só
desde a Renascença à contemporaneidade de Amor (1999), Antologia Pessoal – 100 Poe-
foram muitas as mulheres que escreveram mas (2003), Inquietude (2006), Les Sorcières
sobre a sexualidade e erotismo, mesmo em – Feiticeiras (2006) edição bilíngue, Cem Po-
épocas que antecederam ao surgimento dos emas + 21 Inéditos (2007), Palavras Secretas
movimentos feministas na Literatura Oci- (Antologia) (2007), Poemas do Brasil (2009),
dental. Mas é somente a partir da segunda Poesia Reunida (1960 – 2006) (2009), As Pa-
metade do século XX que elas se notabilizam, lavras do Corpo (Antologia de poesia erótica)
tomando como exemplo, Cassandra Rios, Hil- (2012) e Poemas para Leonor (2012). Os es-
da Hilst, Adélia Prado, Gilka Machado, Maria critos ficcionais são – Ambas as Mãos sobre
Teresa Horta, dentre outras. o Corpo (1970), Novas Cartas Portuguesas
Maria Teresa Horta nasceu em 20 de maio
3 Revista temporária editada em Faro pelos poetas Casimiro de Brito, Lui-
de 1937, filha de Jorge Augusto da Silva Hor- za Neto Jorge, Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais Brandão e Maria Teresa Horta
nos anos 60. In. Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e
ta e Carlota Maria Mascarenhas, descenden- Africana da UFF, Vol. 5, n° 10, Abril de 2013. Disponível em: <http://www.
uff.br/revistaabril/revista-10/013_Pedro%20Eiras.pdf>. Acesso em 15 jun.
te da aristocracia portuguesa, inclusive na 2014.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 183

(1971) (obra conjunta), Ana (1974), O Trans- com suas intersecções entre gênero e desejo
fer (1984), Ema (1984), A Paixão Segundo como presente na obra de Maria Teresa Horta
Constança H. (1994), A Mãe na Literatura Por- encontra-se fundamentado na obra “O erotis-
tuguesa (1999) e As Luzes de Leonor (2011). mo” de Georges Bataille (1987). Desse modo,
Mesmo com essa diversidade de obras tomou-se o conceito de Bataille (1987, p. 20)
escritas esse artigo toma por base a obra que define o erotismo como sendo “um dos
“As Palavras do Corpo – Antologia de poesia aspectos da vida interior do homem”. Porém,
erótica” (2012), que é constituída de duzen- o próprio autor ressalta que essa noção de
tos e vinte dois poemas. Dos quais se tomou interioridade depende dos gostos individu-
como objeto para essa análise – Delírio, De- ais seja do homem ou da mulher, uma vez
sejo, Geografia, Educação Sentimental, A Veia que quando ele cita o homem no conceito é
do (teu) Pênis e A Vagina. Toda a antologia de uma referência ao humano não uma questão
poesia erótica da autora reveste-se da mais de gênero.
profunda sensibilidade e lirismo ao tratar Em As Palavras do Corpo, de Maria Tere-
do prazer feminino, uma vez que a voz do sa Horta desde a primeira página suscitam
eu lírico é feminina, a linguagem ora apenas no leitor o desejo de desvendar a linguagem
sugere o erotismo, ora o apresenta de forma contida no corpo, uma vez que a autora não
contumaz sem atingir o nível pornográfico. revela de todo seu comportamento linguísti-
Para uma melhor compreensão da abor- co. Não parecendo num primeiro momento
dagem pretendida neste artigo, optou-se por aquilo que é, pois a poetisa apenas sugere
dividi-lo em quatro capítulos. No capítulo a eroticidade nos primeiros poemas. Corro-
um, há uma breve descrição da história da borando com essa ideia Flôres (2009, p. 69)
escrita erótica feminina, um registro da bio- afirma que: “Os indivíduos, de modo geral,
grafia de Maria Teresa Horta, uma vez que fixam-se nos fins que têm em mente e usam
a poesia dela constitui o corpus dessa pes- a linguagem para obtê-los, não avaliando a
quisa, um breve detalhamento da obra ana- ação realizada pelas próprias palavras”. Por
lisada e da organização do artigo. O capítulo outro lado, os estudiosos de gênero apon-
dois trata da linguagem corporal, erotismo, tam o corpo como relacionado à biologia,
gênero e desejo na poesia erótica feminina o que o faz ser percebido como o “local da
a partir do uso de conceitos fundamentais sexualidade” (WEEKS, In. LOURO, 2013, p.
da teoria feminista e dos poemas “Delírio” e 38). Na escrita de Horta o corpo assume o
“Desejo”, contidos na obra estudada. Já no ca- papel de local do prazer, delírio e/ou onde
pítulo três há um estudo específico da poesia se registra as marcas da sexualidade do in-
erótica em “As Palavras do Corpo”, de Maria divíduo, conforme observado na leitura do
Teresa Horta, com base na análise dos poe- poema “Delírio” que abre a obra “As Palavras
mas – “Geografia”, “Educação Sentimental”, do Corpo”:
“A veia do (teu) pênis” e “A vagina”, análise
com base na recepção do leitor e teóricos dos Delírio
estudos feministas. Por último, o capítulo
quatro traz a conclusão do estudo feito. O desejo revolvido
A chama arrebatada
2 LINGUAGEM CORPORAL, EROTIS- O prazer entreaberto
MO, GÊNERO E DESEJO: A POESIA O delírio da palavra
ERÓTICA FEMININA Dou voz liberta aos sentidos
O erotismo como expressão do ato sexual Tiro vendas, ponho o grito
ligado às atividades de reprodução humana Escrevo o corpo, mostro o gosto
184 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Dou a ver o infinito que a mulher não trata de aspectos relacio-


(HORTA, 2012) nados ao erotismo como presente na lingua-
gem da obra. Nesse sentido, Salih (2012, p.
O poema acima se constitui de oito versos 143) ainda diz que:
livres e brancos e ritmo intenso que fazem
revelar o “delírio” contido no título, tam- [...] a linguagem é uma cadeia significante
bém evoca as lembranças que perturbam que se prolonga para trás e para além de
o inconsciente do eu lírico. Desse modo, “O que enuncia, então seria um erro supor que
desejo revolvido” (v.1) contribui para que a quem enuncia é o produtor isolado de sua
linguagem torne-se delirante, pois assim é o fala. Butler rejeita a noção de autonomia
pensamento da voz que fala “A chama arre- soberana na fala, e, embora insista que os
batada” (v.2) que busca incessantemente o falantes nunca estão no pleno controle do
prazer que está entreaberto como expresso que dizem, ela também argumenta que os
no verso três. falantes são em alguma medida, responsá-
O delírio é concretizado quando no ver- veis por seus enunciados e, em certos casos,
so cinco a voz do eu lírico que é feminina deveriam ser processados por palavras que
diz: “Dou voz liberta aos sentidos”, esse dar ferem. Soberania e responsabilidade não
a voz consiste em libertar todas as imagens são sinônimos.
do desejo erótico não manifestado ou negli-
genciado na história das mulheres, uma vez As ações do eu lírico ao tirar a venda, pôr
que nas sociedades patriarcais não se podia o grito, escrever o corpo e mostrar seus gos-
dar a elas o direito de expressar-se acerca do tos exprimem uma ação performativa de um
desejo erótico. E ainda que a liberdade dada indivíduo que assume a responsabilidade
aos sentidos não necessariamente significa o pelo que enuncia, inclusive é dono de seus
sexo em si “... falar sobre fazer sexo ou repre- delírios, sem ferir ou agravar o outro. Desse
sentá-lo não é o mesmo que realmente fazê- modo, a ação de delírio contida no poema
-lo, embora tenhamos tomado conhecimen- configura todo o desejo revolvido na alma do
to” (SALIH, 2012, p. 140). Nessa perspectiva eu lírico, o que é confirmado no verso final
o delírio é apenas um reforço à imaginação “Dou a ver o infinito”.
criadora do desejo do inconsciente do eu lí- Em se tratando da expressão do desejo fe-
rico, o que poderia ser explicado por meio da minino no poema “Desejo” a voz do eu lírico
psicanálise freudiana. exprime o descontrole da mulher diante do
A liberdade da voz sugere o direito de contato com o corpo masculino, mesmo que
fala à mulher, sobretudo, volta-se à ideia de não seja essa uma ação exagerada. Mas uma
Maria Teresa Horta recupera o que na An- desconstrução da hegemonia social onde os
tiguidade era atribuído à poesia de Safo de homens são agentes sociais ativos e as mu-
Lesbos no século VII a.C., e outras escritoras lheres sujeito paciente. O que se vê na obra
como Eleanor de Aquitaine, Marguerite de da poetisa lusitana é que há uma transgres-
Navarre, Louise Labé, Elizabeth I da Ingla- são do feminino, pois as formas de fazer-se
terra e Cristina da Suécia (BLOG ALQUIMIA, mulher, as possibilidades de prazer e satisfa-
EROTISMO E POESIA, 2009). Mulheres essas ção do desejo corporal são atitudes que an-
que se assemelham à autora em estudo pelo tes eram tomadas pelos homens e somente
fato de terem pertencido a famílias nobres as prostitutas teriam esse comportamento
e romperem com os paradigmas do patriar- mais ousado, exceto àquelas que infringiram
cado e classe social. Por essa razão, a autora as normas do patriarcado como visto na his-
contribui com a desconstrução da ideia de tória da poesia erótica. Isto porque a mulher
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 185

aristocrata ou burguesa deveria preservar imaginados pela sociedade para a escrita fe-
o seu corpo escondendo-o do olhar dos ho- minina – amor, memórias, é uma poética que
mens para que estes não a desejassem. chega a um “lugar impossível de ultrapassa-
O poema “Desejo” é constituído de doze gem (ultrapassaragem)” (BRANCO, 1991, p.
versos livres e brancos que demonstram o de- 81). Ao tratar da temática a autora se apro-
sejo mesmo que apenas imaginado da mulher xima de outros nomes que superam as condi-
pelo amante exercendo assim o que Bourdieu ções impostas pelas sociedades patriarcais e
(2014) nomeia de “força simbólica” por refe- atinge a sua força máxima, delimitando como
rir-se a dominação da mulher sobre o homem. espaço das emoções o corpo da mulher. O
tempo em que se insere a escrita da antologia
Desejo poética permite que se possa compreender o
erotismo como temática pertencente não só
Descontrolo devagar ao universo masculino. Mas ainda assim cau-
sobre o teu corpo sa estranheza aos leitores não acostumados
os lábios de súbito desmanchados a perceber o erotismo como sendo um “fe-
e as mãos não cedem nômeno cultural, impulso consciente em que
nos teus ombros nos lançamos na tentativa de transcender os
à sede de ter-te nos meus braços limites da existência” (BRANCO, 1985, p. 17).
Mas se desfeitos O poema “Geografia” faz alusão ao espaço
descubro nos lençóis ocupado pelos corpos, onde a junção entre
um suor curvado amachucado o corpo do eu lírico e o do outro (o interlo-
Vou-te mordendo – voraz cutor) é razão para a sublimação e perda da
numa doença consciência, mesmo que temporária por par-
bebendo em delírio o que me fazes te do primeiro como se percebe em “país de
(HORTA, 2012) minha evasão” (v.3). A evasão como sinôni-
mo de fuga evoca a perda da consciência e
O poema exprime também o avanço da o mistério que envolvia a representação do
identidade sexual feminina onde a mulher segredo do sexo das mulheres, uma vez que
subjuga o corpo masculino chegando até a elas eram vistas quanto à sexualidade como
desmanchar lhe os lábios ou mordê-los. Os sinal de perigo e prazer (PERROT, 2012).
corpos masculinos fazem quebrar o silêncio
das mulheres que antes apenas desejavam Geografia
em silêncio, agora expressam o seu desejo de
volúpia descrevendo até mesmo as partes do Deitar-me sobre
corpo que são evocadas na memória do eu o teu corpo
lírico. Com isso percebeu-se que as mulheres país de minha evasão
saíram da condição de subalternas e da obs- Geografia de agosto
curidade a que eram relegadas no contexto com um mês
da dominação masculina vigente no contexto em cada mão
da produção colonial (SPIVAK, 2012). O rio que corre
em teu ventre
3 A POESIA ERÓTICA DE MARIA desagua em tuas pernas
TERESA HORTA EM “AS PALAVRAS Meu amor
DO CORPO” a minha sede
A escrita de Maria Teresa Horta é trans- é uma fêmea – uma égua
gressora ao romper com os paradigmas (HORTA, 2012)
186 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

A lógica do corpo subjugado é invertida no A seleção do vocábulo “Geografia” que dá


poema de Maria Teresa Horta, pois agora é a título ao poema é uma ação intencional que
mulher que deita sobre o corpo do homem, intensifica a binariedade da relação e discus-
subjugando-o, o que provoca a desconstru- são sobre os espaços de poder na sociedade
ção da ideia do masculino como aquele que ocupada pelos gêneros feminino e masculi-
domina a relação. Até o mês não é mais Maio, no. Contudo, não subverte a ordem social,
o qual é considerado o mês das mulheres, pois a relação continua sendo heterossexual,
das mães como alusão à figura da materni- apenas a mulher se coloca como a posição
dade, mas é o mês de agosto. Além disso, usa- central do poder. Por outro lado, a ideia tra-
se o vocábulo “rio” como meio de alusão ao zida pelo uso da palavra “Geografia” busca a
líquido seminal como resultante do prazer definição de um território ou lugar do qual a
pelo contato dos corpos feminino e masculi- mulher se posiciona e exerce sua função de
no “O rio que corre/ em teu ventre/ desagua comando.
em tuas pernas”. Também a troca de fluidos Situação de desconstrução do sistema pa-
entre eles não suja apenas a mulher, mas o triarcal a partir do “empoderamento da cate-
homem, no caso do ato sexual percebe-se goria mulheres” (SAFFIOTI, 2004, p. 104) é
que tanto o feminino quanto o masculino são também percebida no poema “Educação Sen-
marcados pelo líquido que vertem dos cor- timental”. Poema esse formado por dezesseis
pos (BUTLER, 2003). Por último, a voz do versos obedecendo a princípios da estética
sujeito lírico exprime o seu delírio erótico, modernista, o ritmo segue a cadência dos
zoomorfizando-se, à medida que se coloca movimentos do corpo durante os prelimina-
numa relação binária – macho e fêmea e se res para a realização do contato sexual. A voz
transforma numa “égua”. do sujeito lírico que é feminino parece en-
Decerto, pensar a geografia do corpo é sinar ao amante os seus pontos de prazer, o
pensar “[...] a determinação dos lugares so- que acaba por subverter a ideia de educação
ciais ou das posições dos sujeitos no interior sentimental. Isto porque a educação no poe-
de um grupo” (LOURO, 2013, p. 77). Por essa ma é percebida como ato instrucional, ensi-
razão, o domínio do corpo do outro é uma no, tecnicista e sentimental que diz respeito
marca de poder que é impresso pela força da àquele que tem ou demonstra seus senti-
linguagem feminina demarcando assim uma mentos (SILVEIRA BUENO, 2008), o que há é
nova ideia acerca do avanço das mulheres a descrição de corpos em ação de erotização
na sociedade, na qual elas comandam as re- sem sentimentalismo, conforme se vê em:
lações sexuais e ainda escolhem os homens
com quem irão dividir o espaço. Vale ressal- Educação Sentimental
tar nessa discussão a implicação com o con-
ceito de gênero dado por Butler (2003, p. 45): Põe devagar os dedos
devagar...
O gênero só pode denotar uma unidade e sobe devagar
de experiência, de sexo, gênero e desejo, até ao cimo
quando se entende que o sexo, em algum o suco lento que sentes
sentido, exige um gênero – sendo o gênero escorregar
uma designação psíquica e/ou cultural do é o suor das grutas
eu – e um desejo – sendo o desejo heteros- o seu vinho
sexual e, portanto, diferenciando-se me- Contorna o poço
diante uma relação de oposição ao outro aí tens de parar
gênero que ele deseja. descer, talvez
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 187

tomar outro caminho... A poética erótica de Maria Teresa Horta


Mas põe os dedos ora é sugestiva, ora despudorada, essa va-
e sobes devagar... riação se dá mediante a utilização do voca-
Não tenhas medo bulário presente nos poemas, pois em parte
daquilo que te ensino deles apenas a recepção do leitor dirá que há
(HORTA, 2012) a presença do erotismo. Já em outros o títu-
lo já alude à presença do sexo, nesses vocá-
Desde o primeiro verso a sexualidade das bulos como gozo, masturbação e a presença
mulheres destitui-se da atmosfera de misté- dos órgãos definidores da genitália são evi-
rio que a envolvia e situa-se no polo da avi- denciados. Percebeu-se ainda que a vertente
dez ao descrever o percurso que deve ser erótica da poesia da escritora lusitana está
percorrido pelo amante. Nessa perspectiva, fundamentada na lógica heteronormativa,
ao tratar da sexualidade feminina Perrot expressão essa que para Alós (2012, p. 54):
(2012, p. 65) menciona: “[...] o sexo das mu- “funciona como sustentáculo para o funcio-
lheres é um poço sem fundo, onde o homem namento da matriz heterossexual e está cal-
se esgota, perde suas forças e sua vida beira cada em uma relação binária que simultane-
a impotência. É por isso que para o soldado, amente determina a oposição e complemen-
o atleta, que precisam de todas as suas forças taridade do gênero masculino e do gênero
para vencer, há a necessidade de se afasta- feminino”.
rem das mulheres”. O poema “A veia do (teu) pênis” rompe
A linguagem é de ruptura dos padrões he- com o erotismo camuflado desde o título e
gemônicos, pois quando do domínio patriar- funda-se no biologismo como determinante
cal as mulheres não poderiam ensinar aos da identidade masculina por sua anatomia
homens os seus movimentos durante a có- diferenciadora do masculino e do feminino.
pula, à mulher cabia apenas deitar e receber É também a ideia do poder do macho sobre
do homem o pênis em sua vagina e após ele a fêmea, como postulado nas ideias freudia-
satisfazer-se estava encerrado o ato. Consi- nas e lacanianas, nas do último atribui-se a
dera-se que não havia preliminares, porque ideia de inferiorização das mulheres por elas
a mulher era vista como frígida, não sentia não terem tal órgão. Por essa razão, o ter um
prazer, o prazer era demoníaco. Por outro pênis representa o poder, poder esse que é
lado, a situação expressa no poema eviden- muitas vezes estereotipado, por exemplo,
cia a prática de iniciação dos homens por Zumbi, depois de morto teve cortado o seu
mulheres mais velhas, as chamadas prostitu- pênis e colocado na boca, o que é entendido
tas que deveriam ensinar os adolescentes a como sinal de castigo para o homem. Tam-
serem homens fortes e exercerem sua mas- bém quando uma mulher perdia a virginda-
culinidade. de fora do casamento ou uma senhorinha
A educação serve no poema apenas de era deflorada por um escravo, o crime só era
instrução para que o homem reconheça o reparado com a castração do algoz. É nesse
corpo feminino e tenha o domínio sobre ele, espaço de poder que a poetisa situa as veias
uma vez que somente tendo conhecimento do pênis.
pode-se chegar ao controle da situação de
dominação e subjugá-lo (FOUCAULT, 1987). A veia do (teu) pênis
Desse o modo, o ensinar enquanto técnica
transmissiva de saberes constitui-se como O vulto...
arma fundamental para que o homem con- A vulva?
trole a mulher e exerça sua força sobre ela. A veia em movimento
188 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

que cresce e doma (PERROT, 2012). Agora, são elas que os


o nervo do teu pênis imaginam despidos e exercendo a sua fan-
O ventre tasia.
O vácuo? Para Teixeira e Magnabosco (2010, p. 44):
O vício do teu corpo
ópio de esperma [...] o corpo é social e historicamente cons-
com ele me enveneno truído por meio de discursos atravessados
(HORTA, 2012) por relações de poder. Esse poder é uma
constante não apenas nas pedagogias cul-
Os versos que formam o poema expres- turais da sexualidade, nas suas implicações
sam o fascínio e sedução da mulher desde o na constituição das identidades de gênero
primeiro quando ainda se vê apenas o vulto e nos modos de experienciar e configurar
do contato entre o pênis e a vulva que se en- a corporeidade, mas também na linguagem
treabre para recebê-lo. A observação atenta que utilizamos [...] uma linguagem que ain-
ao movimento que faz crescer a veia e “do- da se pauta nas diferenças biológicas e nas
mar” o nervo do pênis como referência ao suas polaridades exclusivas...
fenômeno fisiológico de que as veias se en-
chem de sangue que irrigam e possibilitam Considerando o excerto, verificou-se que
ao pênis ficar ereto durante a relação sexu- a construção do corpo como marca da iden-
al ou quando se pensa nela. Sem essa ideia, tidade e diferença dos gêneros situa-se além
é apenas um “pedaço de carne pendente” das marcas biológicas, uma vez que a lin-
(GIDDENS, 1993) entre as pernas de um guagem contribui para que essa diferença se
homem qualquer e que faz da sua genitália, acentue. Não só o pênis como parte do corpo
somente ereto, é a expressão da virilidade e masculino é assunto da poesia de Maria Te-
poder. resa Horta, a vagina também aparece em al-
Para Giddens (1993, p.169): “O falo é ape- guns poemas e um deles é intitulado “A vagi-
nas o pênis: que descoberta estarrecedora e na”, que aparece a partir de imagens metafo-
desconcertante para ambos os sexos! As rei- rizadas “cálida flor” “rosa do corpo”, “pulmão
vindicações de poder da masculinidade de- que não respira” e “flor carnívora”, conforme
pendem de um pedaço de carne pendente”. A se notou no poema:
ironia fina e corrosiva do autor alude à con-
cepção de que a sociedade procura sempre A vagina
“um lugar fixo para estabelecer seus limites”
(ALÓS, 2012, p. 55). Os lugares fixos, nesse É cálida flor
caso são o pênis no qual as veias crescem e o e trópica mansamente
domina, o ventre onde ele se aloja, lugar esse de leite entreaberto às tuas mãos
que pode estar vazio e se torna um vício ca- Feltro das pétalas que por dentro
paz de entorpecer os sentidos. tem a felpa das pálpebras
O envenenamento do corpo presente nos da língua a lentidão
versos finais faz alusão à perda momentâ- Rosa do corpo
nea da consciência, adquirida quando se pulmão que não respira
chega ao orgasmo na relação sexual. A visão dobada em cuspo tecida a sua água
do eu lírico subverte a ordem histórica, pois Flor carnívora voraz do próprio suco
antes eram os homens que “imaginavam o no ventre entorpecida
sexo das mulheres, que as viam como fonte nas pernas sequestrada
de erotismo, pornografia, sadomasoquismo” (HORTA, 2012)
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 189

Os elementos usados pela autora para ca- produzir em si mesma os líquidos necessá-
racterizar a vagina como parte do corpo in- rios a sua lubrificação e que se transformam
trínseca à mulher traz a ideia da fragilidade em ponto de prazer.
e ardência do sexo feminino, o que configu-
ra uma relação paradoxal entre o adjetivo 3 CONCLUSÃO
“cálida” e o substantivo “flor” presentes no A história das mulheres que ousaram a escre-
primeiro verso do poema. Ressalta-se ainda ver poesias de temática erótica representa
que, nos trópicos não existe essa mansidão uma vitória daquelas que não se conforma-
do clima, revelando assim outra imagem pa- ram com o regime das sociedades patriarca-
radoxal que reforça a anterior. Outra imagem listas em que viviam. Ousaram ao utilizar uma
é a da proteção sugerida a partir do uso dos linguagem que era de domínio dos homens e
vocábulos “feltro” e “felpa”, ambos os adje- marcaram seus nomes falando daquilo que
tivos que protegem o mistério o qual se en- seu insconsciente não permitia calar-se tan-
contra envolta a figura feminina. As imagens to em épocas de maior repressão quanto em
suscitadas evocam toda a atmosfera do ero- contexto de maior liberdade expressiva. A po-
tismo presente no poema. esia que tem por tema a licenciosidade moral
Ainda tratando da oposição da vagina da sociedade ainda carece de estudos para
como símbolo da fragilidade do sexo femi- que sejam dirimidos os preconceitos de que
nino, o que a diferencia do pênis enquanto tudo o que é erótico é, por sua vez, pornográ-
representação do poder e virilidade inerente fico, o que não é uma verdade, pois os graus
ao sexo masculino, Bourdieu (2014, p. 23) de licenciosidade moral variam, as de menor
afirma que: grau são chamadas eróticas e as de maior,
pornográficas. Ressalta-se ainda a necessida-
[...] a definição social dos órgãos sexuais, de de que a escrita da mulher não fale apenas
longe de ser um simples registro de pro- de amor ou de estereotipações atribuídas ao
priedades naturais, diretamente expostas comportamento feminino.
à percepção, é produto de uma construção Poesia de temática erótica pode ser ex-
efetuada à custa de uma série de escolhas pressa por quem tem a criatividade e desejo
orientadas, ou melhor, através da acentu- de escrever consentir, quer seja pura ou im-
ação de certas diferenças, ou do obscure- pura, de pureza a literatura tem o retrato das
cimento de certas semelhanças. A repre- mulheres lânguidas do Romantismo. Nessa
sentação da vagina como um falo invertido, perspectiva, devem-se adotar critérios para
que Marie-Christine Pouchelle descobriu uma análise proficiente do que é ou não ero-
nos escritos de um cirurgião da Idade Mé- tismo no texto literário e para a recepção das
dia, obedece às mesmas oposições funda- representações da mulher nas obras de te-
mentais entre o positivo e o negativo, o mática erótica.
direito e o avesso, que se impõem a partir A poética de Maria Teresa Horta em “As
do momento em que o princípio masculino Palavras do Corpo” a princípio apenas suge-
é tomado como medida de todas as coisas. re a presença do erotismo, camuflando a li-
cenciosidade desse tipo de escrita, median-
Essas representações presentes no pensa- te o que é percebido nos poemas “Delírio” e
mento de Bourdieu ganham reforço nos ver- “Desejo”. Depois se percebeu que ela utiliza o
sos seis e sete do poema e reforçada pela ex- corpo como lugar fixo para situar os aspec-
pressividade adquirida nos versos seguintes tos reveladores do desejo erótico, no poema
quando o eu lírico se mostra conhecedor da “Geografia”, desde o título tem-se essa marca,
fisiologia da vagina. Isto é, a vagina é capaz de o corpo é um território do prazer da mulher
190 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

e também dos homens. Por sua vez, no poe- BRANCO, Lucia Castello. Eros travestido: um es-
ma “Educação Sentimental”, todos os órgãos tudo do erotismo no realismo burguês. Belo
sensoriais são convocados a concentrar-se na Horizonte: UFMG, 1985.
inversão de poderes, uma vez que o eu lírico
feminino é quem ensina ao homem os pontos . O que é a escrita feminina? São Paulo:
de prazer do corpo feminino e vai instigando Brasiliense, 1991.
o leitor a imaginar as cenas. Nos poemas “A
veia do (teu) pênis” e “A vagina” a linguagem BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminis-
utilizada atinge maior grau de licenciosida- mo e subversão da identidade. Trad. Renato
de, mesmo que não transforme os poemas Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
em pornográficos causando assim surpresa 2003.
e estranhamento no leitor, pois o que está
contido no título faz esperar uma exploração EIRAS, Pedro. Da novidade de poesia 61, hoje:
maior do erotismo. recensão a Jorge Fernandes da Silveira e Luis
Portanto, a linguagem corporal, o erotis- Maffei (orgs) poesia 61 hoje. In. Revista do
mo, as questões de gênero e o desejo erotiza- Núcleo de Estudos de Literatura Portugue-
do são marcas essenciais da poesia contida sa e Africana da UFF, Vol. 5, n° 10, Abril de
em “As Palavras do Corpo (Antologia de poe- 2013. Disponível em: <http://www.uff.br/
sia erótica)”, de Maria Teresa Horta. A força revistaabril/revista-10/013_Pedro%20Eiras.
da escrita, as tensões propostas pelas ques- pdf>. Acesso em 15 jun. 2014.
tões de gênero são traços que devem ser ex-
plorados em outras produções, uma vez que FLÔRES, Onici Claro. O que tem a dizer a Psico-
apenas um artigo é muito pouco para tratar linguística a respeito da consciência humana.
de todos os aspectos envoltos nessa obra. In. COSTA, Jorge Campos da; PEREIRA, Vera
Wannmacher (orgs.). Linguagem e Cogni-
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2012. lis: Vozes, 1987.

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Antonio GIDDENS, Anthony. A transformação da inti-


Carlos Viana. Porto Alegre: L&PM, 1987. midade: sexualidade, amor e erotismo nas
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BLOG ALQUIMIA, EROTISMO E POESIA. Preli- 1993.
minares: um passeio pela história da poesia
erótica... 2009. Disponível em: <http://alqui- HORTA, Maria Teresa. As Palavras do Corpo
miaerotica.blogspot.com.br/ 2009/12/pre- (Antologia de poesia erótica). Alfragide –
liminares-um-passeio-pela-historia.html>. Portugal: Publicações Dom Quixote, 2012.
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PERROT, Michelle. Minha história das mulhe-


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deu da Silva. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica,
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expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 193

RESENHAS
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 195

RESENHA

COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. 251 p.

Ana Paula Pertile1

Um dos autores africanos mais lidos no Brasil – se não o mais lido – , António Emílio Leite
Couto é o escritor moçambicano mais traduzido fora de seu país, e desde 2008 seus roman-
ces são simultaneamente publicados em Moçambique, Portugal, Angola e Brasil. Mia Couto,
nome de pena pelo qual é conhecido, e que adotou graças ao tratamento recebido do ir-
mão mais novo, e a sua simpatia por gatos, é autor, entre outros títulos, de Terra sonâmbula
(1992), considerado um dos doze melhores livros africanos do século XX pelo júri da Feira
Internacional do Zimbabwe. Autor de uma vasta obra que reúne contos, crônicas, romances,
poesia e literatura infanto-juvenil2, Mia Couto foi o primeiro escritor africano a ser agraciado
com o prêmio União das Literaturas Românicas.
Biólogo de formação, Mia Couto investiu, após publicações despretensiosas em jornais
locais, na carreira literária. Depois de contribuições em antologias, publica seu livro de es-
treia, Raiz de orvalho, em 1983, e os anos seguintes foram sucedidos de mais lançamentos
e do reconhecimento de seu mérito em Moçambique, no continente africano e, finalmente,
em Portugal e no Brasil. Seu último romance, A confissão da leoa (2012), editado no Brasil
pela Companhia das Letras, torna visível a preocupação em discutir a situação feminina nas
sociedades campesinas moçambicanas. Uma discussão iniciada – no contexto do romance
moçambicano – vinte anos antes por Paulina Chiziane em Balada de amor ao vento (1990), a
opressão feminina frente à tradição autóctone arcaizante é central em A confissão da leoa. E
a narrativa privilegiará um espaço para a própria voz oprimida a partir da versão concedida
à personagem Mariamar.
O romance estrutura-se a partir de dois focos narrativos, identificados ao longo do ro-
mance como a Versão de Mariamar e o Diário do caçador. A cada troca de voz narrativa, é
intercalada uma epígrafe que, na maior parte das vezes, é atribuída aos rascunhos roubados
aos cadernos do escritor. Como destaca em uma “Explicação inicial” (COUTO, 2012, p. 7-8) do
romance, este escritor, o personagem Gustavo Regalo, pode ser lido alegoricamente como
a figura do próprio Mia Couto que deixou indícios de sua inspiração ao inclui-lo no enredo
como um desdobramento de si mesmo. Mas Gustavo não passa de um contraponto urbano e
intelectual da trama quando comparado aos demais personagens. Seus conflitos só aumen-
tam a complexidade das personagens centrais.

1 Graduanda do Curso de Bacharelado em Letras, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Inicia-
ção Científica – PROBIC/FAPERGS, no projeto de pesquisa Ressonâncias e dissonâncias no romance lusófono contemporâneo: o imaginário pós-colonial e a (des)
construção da identidade nacional, sob a orientação do Prof. Dr. Anselmo Peres Alós. E-mail: anap.pertile@gmail.com.

2 Obras do autor. Poesia: Raiz de orvalho (Maputo: AEMO, 1983); Raiz de orvalho e outros poemas (edição revista e aumentada. Lisboa: Caminho, 1999);
idades cidades divindades (Maputo: Ndjira, 2007). Contos: Vozes anoitecidas (Maputo: AEMO, 1986); Cada homem é uma raça (Lisboa: Caminho, 1990); Estórias
abensonhadas (Lisboa: Caminho, 1994); Contos do nascer da terra (Lisboa: Caminho, 1997); Na berma de nenhuma estrada (Lisboa: Caminho, 1999); O fio das
missangas (Lisboa: Caminho, 2003). Crônicas: Cronicando (Maputo: AEMO, 1988); O país do queixa andar (Maputo: Ndjira, 2003); Pensatempos: textos de opi-
nião (Lisboa: Caminho, 2005); Inter(in)venções (Maputo: Ndjira, 2009). Romances: Terra sonâmbula (Lisboa: Caminho, 1992); A varanda do frangipani (Lisboa:
Caminho, 1996); Mar me quer (Maputo: Parque EXPO/NJIRA, 1998); Vinte e zinco (Lisboa: Caminho, 1999); O último voo do flamingo (Lisboa: Caminho, 2000);
Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (Lisboa: Caminho, 2002); O outro pé da sereia (Lisboa: Caminho, 2006); Venenos de deus, remédios do diabo
(Maputo: Ndjira, 2008); Jesusalém (Maputo: Ndjira, 2009). Literatura infantil: O gato e o escuro (ilustrações de Danuta Wojciechowska. Lisboa: Caminho, 2001);
A chuva pasmada (ilustrações de Danuta Wojciechowska. Maputo: Njira, 2004); O beijo da palavrinha (ilustrações de Malangatana. Maputo: Língua Geral, 2006).
196 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

Também se fazem presentes epígrafes ins- pelo ambiente hostil que a rodeia. A cultu-
piradas em provérbios de nações africanas ra autóctone exerce forte repressão local, a
– em especial aqueles advindos da tradição ponto de reprimir a própria administração
oral da própria aldeia de Kulumani. Entre um da aldeia, que se vê controlada e manipula-
narrador-personagem e outro há digressões da pela tradição. “Quem, em Kulumani, tem
que recuperam suas histórias e, assim, ex- coragem de se erguer contra a tradição?”
plicam a situação em que se encontram tan- (COUTO, 2012, p. 148), transcreve Arcanjo
to o caçador, cuja caça é um refúgio para os no diário do caçador. Nesse ambiente adver-
pesadelos passados, quanto para Mariamar, so, constrói-se a vida de Mariamar Mpepe,
que encontra na escrita uma válvula de es- a responsável por narrar a versão dos fatos
cape para suportar os abusos aos quais está sob a ótica de um sujeito subalternizado:
exposta todos os dias: “Em Kulumani, muitos uma mulher, negra, vivendo em um país pós-
se admiram da minha habilidade de escrever. colonial.
Numa terra em que a maioria é analfabeta, Seus relatos oscilam entre o passado per-
causa estranheza que seja exatamente uma turbador de uma infância roubada, os refú-
mulher que domina a escrita” (COUTO, 2012, gios felizes criados para amenizar as feridas
p. 87-88). dessas lembranças e um presente cheio de
A narrativa inicia sintomaticamente dan- restrições, medos e opressões. Vítima de in-
do o tom que se abrirá para a discussão da cursos noturnos do pai, Mariamar observou
condição feminina: “Deus já foi mulher” a normalidade com isso se repetia com a
(COUTO, 2012, p. 13). Quem conta ao leitor a irmã mais velha e iniciava acontecer às gê-
nostalgia desse tempo é Mariamar Mpepe, a meas. Mariamar sofreu também condena-
responsável por retratar a opressão sofrida ções da mãe, que a acusava de roubar seu ho-
pelas mulheres de sua aldeia. À margem da mem, além de torturá-la pela secura de seu
sociedade e sem autonomia, as personagens útero: Mariamar fora diagnosticada como
femininas reclamam os tempos em que estéril pelo avô. Mas a lembrança de um ca-
eram deusas e donas de suas vontades. çador que, de passagem, solidarizou-se aos
Vinculadas ao poder de gerar a continuação seus olhos com sua dor ao impedir que o po-
da humanidade em seus ventres, são cons- lícia Maliqueto Próprio, que “inspecionava” a
truídas, ao longo do enredo, metáforas e atividade dos vendedores à beira da estrada,
comparações com a natureza e a fertilidade abusasse de sua condição de autoridade, fê-
que da natureza brota. E, embora responsá- -la sentir-se viva, não mais invisível.
veis pela vida, continuam a ser desprezadas Em Kulumani, Mariamar é acusada de
e objetificadas na sociedade patriarcal ins- manter um pacto com a leoa que encontrou
taurada em Kulumani. às margens do Lundi Lideia. No meio do rio,
Kulumani, onde acontecem os ataques a caminho da estrada grande que levava aos
felinos que vitimam curiosamente só mu- visitantes, sob a canoa, avista a leoa na ou-
lheres, é uma aldeia distante horas da cida- tra margem e sorri para si mesma, pois mal
de mais próxima, fruto do povoamento esti- sabem os homens que tamanha selvageria
mulado pelos sobreviventes da Guerra Civil é provocada por uma fêmea felina: “[o] rio
moçambicana3. Construída às margens do não me levou ao destino. Mas a viagem con-
rio Lundi Lideia, Kulumani chama a atenção duziu-me a quem de mim estava apartada: a
leoa, minha esperada irmã” (COUTO, 2012, p.
3 1976-1992: Após a Revolução dos Cravos em Portugal (1975) e a enfim 59). Metaforicamente, ao final da narrativa,
independência concedida às colônias lusófonas em África, iniciou-se em Mo-
çambique uma longa Guerra Civil, estimulada pela disputa interna do poder Mariamar revela sua metamorfose em leoa
recém conquistado entre os partidos originados nos movimentos de inde-
pendência. e justifica seu vaticínio, pois “foi a vida que
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 197

lhe roubou humanidade: tanto a trataram o levaram a seguir a mesma profissão do pai,
como bicho que você se pensou um animal” vocação tão condenada pela mãe. Com o pro-
(COUTO, 2012, p. 236-37)4. gresso da narrativa, Arcanjo, enfim, descobre
Mariamar reclama a condição mítica de a verdade e com ela o autoritarismo pater-
que os deuses voltem a ser mulheres, na no que oprimiu e matou sua mãe, internou
esperança de que esse retorno dê fim ao seu irmão diagnosticado com loucura em um
sofrimento feminino. Entretanto, a estagna- hospital psiquiátrico e deixou-o inquieto e
ção que a rodeia e a degradação das mulhe- ausente de família todos esses anos. A ofer-
res que continuam fadadas à submissão de ta de caça em Kulumani apresentasse como
(seus) homens obrigam-na a, no espírito de uma oportunidade, pois está em vias de afas-
leoa, matar a todas: tar-se da profissão e essa será sua última in-
cursão.
Este vaticínio será, para os de Kulumani, A confissão da leoa apresenta a condição
uma confirmação do meu estado de loucu- feminina frente à cultura autóctone moçam-
ra. [...] Agora já não há remorso. Porque, a bicana e vai além, ao questionar essa con-
bem ver, nunca cheguei a matar ninguém. dição a partir da sujeitada a essa relação de
Todas essas mulheres já estavam mortas. dominação, marcando o lugar da resistência
Não falavam, não pensavam, não amavam, da personagem ao mesmo tempo que, indi-
não sonhavam. De que valia viverem se não retamente, de uma personagem que viveu
podiam ser felizes? (COUTO, 2012, p. 240). a perda da presença materna. A linguagem
constrói-se como “um local de luta no dis-
Mariamar planeja um mundo ausente de curso pós-colonial, pois o processo de co-
mulheres, sem condição de continuar a espé- lonização começa primordialmente através
cie humana: um mundo onde os homens de- da linguagem” (GUEDES, 2002, p. 75); e pela
finhariam até a morte e a humanidade seria apropriação subversiva dessa linguagem o
extinta. “sujeito subalternizado” (no caso da perso-
O caçador, a caminho da aldeia para impe- nagem feminina, oprimida duplamente por
dir mais mortes, trata-se do homem de ati- carregar questões que ultrapassam a condi-
tudes solidárias de anos atrás. Ele, por outro ção pós-colonial, porque marca também uma
lado, alimenta sua escrita a partir das experi- discussão de gênero) pode ser representado
ências de caça e o reflexo que isso gera na sua e lido na ficção. Tendo em vista o locus de
relação com os homens. Suas interpretações enunciação – a jovem nação moçambicana
das interações humanas enriquecem o con- no cenário pós-colonial – e a partir do plano
fronto entre o homem civilizado e o animal simbólico-discursivo mobilizado pela lite-
selvagem, os leões ou, até mesmo, a própria ratura, A confissão da leoa inclui o discurso
humanidade, que esforçasse por ocultar seu feminino na (des)construção e na problema-
primitivismo. Também ligado a um passado tização da identidade nacional, uma vez que
perturbador – a morte da mãe seguida do “[o] estabelecimento do cânone literário de
assassinato do pai pelo irmão mais velho –, uma nação não é apenas um projeto estéti-
busca compreender os motivos que desenca- co, mas também um projeto político, projeto
dearam esses fatalismos e os caminhos que este que está permeado de interesses rela-
tivos à construção de uma imagem mais ou
4 Embora tal analogia não seja explorada ao longo desta resenha, cabe
lembrar que a história da arte ocidental tem uma longa tradição de associa- menos definida de uma identidade nacional”
ção de mulheres subversivas à imagens de felinos selvagens. Podem ser men-
cionados, a título de exemplificação, os filmes Cat People (1942) e The Curse (ALÓS, 2012, p. 67). Logo, em contrapartida
of the Cat People (1944), de Jacques Tourneur, a canção “Tigresa” (1977), de
Caetano Veloso, ou mesmo a personagem Mulher Gato (criada por Bill Finger às forças hegemônicas, a contribuição femi-
e Bob Cane) das histórias e quadrinhos de Batman, cuja primeira aparição se
dá em 1940. nina na construção da identidade nacional
198 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

– de certa forma apagada nos discursos ofi-


ciais – e os abusos a que estão expostas as
mulheres têm lugar no poder de fabulação
do discurso literário. Assim, o Diário do ca-
çador e a Versão de Mariamar representam
a resistência ao silenciamento e aos esqueci-
mentos de grupos subalternos pelo discurso
da história oficial.

REFERÊNCIAS

ALÓS, Anselmo Peres. “Identidade nacional em


tempos de pós-colonialidade: lendo a mo-
çambicanidade nos romances de Mia Couto”.
Letras. Santa Maria (PPG-Letras da UFSM), v.
22, n. 45, p. 65-82, 2012.

CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. 1.


ed. Maputo: Associação dos Escritores Mo-
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COUTO, Mia. A confissão da leoa. 1. ed. São Paulo:


Companhia das Letras, 2012.

GUEDES, Peônia Viana. “Can the subaltern spe-


ak?”: vozes femininas contemporâneas da
África Ocidental. In: GAZZOLA, A. L. DUARTE e
C. L. ALMEIDA, S. G. (Orgs.). Gênero e represen-
tação em literaturas de língua inglesa: ensaios.
Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 71-81.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 199

TEMPORALIDADES PÓS-COLONIAIS NO ROMANCE DE


MIA COUTO “VENENOS DE DEUS, REMÉDIOS DO DIABO”

Livia Petry Jahn

RESUMO: Esta resenha tem por objetivo analisar e apresentar o romance de Mia Couto “Venenos
de Deus, Remédios do Diabo”, a partir da perspectiva das temporalidades pós-coloniais, ou seja,
como as questões de colonialismo e pós-colonialismo dialogam com o passado, o presente e o futuro
da África, em especial Moçambique, desenhados pela ficção do romancista em questão. Para tanto,
utilizamos o método de análise do romance em três tempos: passado, presente e futuro, buscando
realizar uma síntese das várias personagens e tramas simbólicas desta obra.
Palavras-chave: Pós-Colonialismo. Tempo. África. Mia Couto. Romance.

ABSTRACT: This paper aims to analyse Mia Couto´s Novel “Poisons of God, Medicines of the Devil”,
from the perspective of post-colonial times and how colonialism and post-colonialism issues, dialo-
gues with the past, the present and the future of Africa, specialy Mozambique which is described by
this author´s fiction. To do this aproach of the novel, we used the method of analisis in three parts:
past, present and future, searching for a kind of sintesis of the simbolic frames and characters which
compose the book.
Keywords: Post-Colonialism. Time. Africa. Mia Couto. Novel.

1 ÁFRICA: ENTRE O PASSADO MÍTICO E O FUTURO NEBULOSO


Para compreendermos o romance de Mia Couto, “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” é
necessário, antes de mais nada, reportarmo-nos à África como descoberta de certo Orien-
te pelos portugueses. Este Oriente era a promessa de um Eldorado, de um lugar mítico de
abundância e riquezas sem fim. Este lugar da diferença, do exótico, tão diferente da Europa,
é também o espelho do “outro”, onde o homem europeu irá vislumbrar todas as desseme-
lhanças entre ele, homem branco, católico, civilizado, e este, negro, gentio, bárbaro. A visão
do homem africano e da África como lugar do exotismo e da diferença irá acentuar para o
português uma crença na superioridade da civilização europeia, ao mesmo tempo em que irá
descortinar a crença da descoberta de uma espécie de “Paraíso”, de lugar mítico da Idade de
Ouro, onde os rios contêm diamantes, onde a natureza é abundante, onde não há fome nem
peste. Segundo Boaventura de Souza Santos, os portugueses erigiram pelo menos os seguin-
tes tipos de visão sobre a África e o Oriente:

O Oriente foi o primeiro espelho da diferença e é o lugar cuja descoberta descobre o lugar do Ociden-
te. O Oriente é antes de mais nada a civilização alternativa do Ocidente. [...]. Um Ocidente decadente
vê no Oriente a Idade de Ouro, um Ocidente exaltante vê no Oriente a infância do progresso civiliza-
cional (SANTOS, 2006, p. 42).

Assim, Sidônio Rosa, viaja à África em busca de um Eldorado, em busca de um amor pro-
metido, de um idílio amoroso, de um paraíso. Mas o que ele encontra é algo completamente
200 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

diferente. Sidônio depara-se com Dona Mun- navegando nos infinitos oceanos!” (COUTO,
da e Bartolomeu Sozinho, com o passado co- 2008, p. 21).
lonial de Moçambique e com um presente e Porém, é justamente esta identidade que
um futuro cheios de incertezas. Bartolomeu irá desmantelar-se ao longo do romance e
Sozinho personifica já no nome, a solidão em tentará perpetuar-se nas cartas que Barto-
que se encontram os africanos no período lomeu insiste em enviar à Companhia Colo-
pós-colonial. Toda a sua vida resume-se a re- nial de Navegação, já extinta. Se Bartolomeu
lembrar um passado de glórias e aventuras, não pode vestir sua farda branca, se está
representados pelo colonialismo português. ausente dos oceanos e de si mesmo, o único
Essa rememoração saudosa do passado co- lugar onde pode procurar sua identidade é
lonial transforma-se numa espécie de “inver- nos confins da África, no ritual de “limpar o
são histórica”. Segundo Bakhtin: sangue”, ou seja, fazer sexo com uma meni-
na virgem e púbere. Assim, de mecânico da
a essência de tal inversão resume-se no se- casa das máquinas em um passado colonial,
guinte: o pensamento mitológico e literário Bartolomeu passa a um velho doente e sau-
localiza no passado categorias como o ob- doso, cujo único remédio é encontrar uma
jetivo, o ideal, a equidade, a perfeição, o es- jovenzinha que o receba como macho. Para
tado harmônico do homem e da sociedade, Bartolomeu, o presente é um fardo e o futuro
etc. Os mitos do paraíso, da idade do ouro, é tão incerto quanto às nuvens que dão à Vila
da época heróica [...] são as expressões des- Cacimba, o seu nome. Retomando Batkhtin, o
sa inversão histórica. [...]. A inversão histó- futuro esperado por Bartolomeu:
rica, no exato sentido da palavra e do ponto
de vista da realidade, prefere o passado a permanece sem conteúdo concreto, é vazio
tal futuro, como algo mais ponderável e e rarefeito, pois tudo o que é positivo, ideal,
firme (BAKHTIN, 1990, p. 264). necessário e desejado, refere-se ao passado
[...] por meio da inversão, já que por esse
Desta maneira, Bartolomeu Sozinho, meio tudo se torna mais ponderável, real e
através de suas narrativas do passado, “mi- convincente. Para dotar de realidade este
tifica” o colonialismo português e a socieda- ou aquele ideal, ele é imaginado como já
de moçambicana de então, como um lugar tendo ocorrido [...] ou é concebido no pre-
onde havia ordem e harmonia. Esse lugar sente em algum lugar nos confins do mun-
idílico é representado pelo Navio Infan- do, para além dos oceanos [...] (BAKHTIN,
te Dom Henrique e podemos vislumbrá-lo 1990, p. 264).
através da seguinte passagem: “Bartolomeu
entrou no navio como quem desembarca Podemos vislumbrar dessa forma na
em solo lunar. Olhos embaciados de mara- personagem de Bartolomeu, o símbolo do
vilhamento, pés flutuando sobre a realida- passado colonial africano e também a deca-
de, foi passeando pelo convés enquanto o dência de África, após a independência das
avô desceu à casa das máquinas”. (COUTO, colônias. Bartolomeu, assim como a Compa-
2008, p. 21) nhia Colonial de Navegação, entra num pro-
Se o Navio representa o colonizador, é com cesso de “extinção”, de espera pela morte, de
ele que Bartolomeu Sozinho se identifica: E decadência física, moral e emocional. Ele se
o jovem Bartolomeu sonhou que sua aldeia descobre inútil para Moçambique, sem nada
natal se convertia num barco e se lançava que o mantenha objetivamente vivo. Barto-
em altíssimo mar. E clamava do alto da proa: lomeu Sozinho sobrevive aos seus próprios
“Vejam! Terra de preto virou navio, estamos escombros como homem e ser humano. As
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 201

visitas de Sidônio Rosa e a possibilidade de dessa maneira à febre dos “tresandarilhos” –


encontrar uma jovenzinha para ter sexo são soldados que perderam o rumo com a guerra
as únicas ligações que Bartolomeu mantém – mostra ao leitor como vivem as mulheres
com a vida. O médico português é, dessa ma- em África nos tempos atuais. Desprezada
neira, sua ligação com um passado que já não pelo marido, ela trabalha de sol a sol, para
volta mais, e, ao mesmo tempo, a esperança ainda assim, manter a casa em ordem e pôr
de um momento fugaz de prazer no futuro, comida na mesa. Se Bartolomeu recusa-se a
já que o velho incumbe o médico de lhe en- sair do quarto, Dona Munda é a ligação dele
contrar uma rapariga. Temos assim, entre com uma realidade que ele insiste em negar.
Sidônio e Bartolomeu, uma ligação que se Ela é o retrato do abandono a que são rele-
baseia principalmente no passado, Deolinda gadas as mulheres em Moçambique. Sidô-
como o passado amoroso de Sidônio, o qual nio Rosa é sua única ligação com o mundo
ele busca reencontrar em África. O colonia- dos desejos e da libido. É através de Sidônio
lismo português que se vê espelhado como que Dona Munda se redescobre como mu-
o passado de Bartolomeu, o qual ele busca lher, tomando conta de seu corpo, tentando
resgatar através da figura do médico e das obter para si o namorado da filha através
conversas que mantém com o mesmo. África de artimanhas de sedução. Porém, se dona
e Portugal encontram-se não só através das Munda usa de jogos e artifícios para seduzir
personagens, mas também através do “Locus Sidônio, é ela também, que após incontáveis
Amoenus” que cada um busca no outro. Am- mentiras, descortina pelo menos uma parte
bos, o português e o africano, estão em bus- da verdade sobre Deolinda, ou pelo menos,
ca do Paraíso Perdido, do Passado Glorioso, o que Dona Munda julga ser a verdade. As-
de um tempo que já não tem mais volta, de sim, Dona Munda torna-se a única ligação
um passado ideal representado tanto pelo “confiável” que Sidônio estabelece com De-
exotismo da colônia e suas promessas, quan- olinda, ou com o que restou dela. Deolinda
to pelo empreendedorismo da Metrópole e aparece como um fantasma, uma miragem,
seus oceanos. uma memória, uma ferida que não quer pa-
rar de sangrar. E Dona Munda é a responsá-
2 ÁFRICA PRESENTIFICADA: DONA vel por manter viva a chama ou a chaga de tal
MUNDA ENTRE A TRADIÇÃO E A ferida, de tal memória. Dona Munda é desta
MODERNIDADE maneira, dentro da narrativa do romance, a
Se Bartolomeu Sozinho como personagem, personagem que faz a ligação entre o passa-
pode muito bem simbolizar o passado colo- do e o presente. Ela busca viver o momento,
nial africano, Dona Munda, por outro lado, porém, atém-se ao passado quando este lhe
representa o presente de África, um con- traz algum tipo de vantagem. Diferente de
tinente dividido entre a modernidade e a Bartolomeu, Dona Munda não acredita que
tradição. Dona Munda vive assim, num en- existiu um passado glorioso e que nada mais
tre-lugar cultural. Ao mesmo tempo em que resta senão relembrá-lo. Ela vive o presente
ela é acusada de bruxa pelo marido, deman- com suas contradições e dessa maneira mos-
da uma TV nova como forma de consolar-se tra ao leitor que a África e suas mulheres,
da ausência da filha e do descaso do esposo. vivem num tempo em que duas culturas se
Tudo isso, por meio de astúcias, onde ela chocam: a cultura tradicional e a cultura de
envolve os desejos mais secretos de Sidônio massas. Se a Televisão representa a cultura
Rosa, através de cartas fictícias supostamen- de massas, possuí-la é adentrar essa mesma
te enviadas por Deolinda. Dona Munda, que cultura, por outro lado, as benzedeiras e suas
lava as roupas do hospital no rio, e se expõe ervas fazem parte de uma cultura tradicional
202 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

representada pelas crenças mais arraiga- esfera das instituições políticas são larga-
das do povo. Temos em Dona Munda essas mente influenciadas pelo exercício do po-
duas culturas entrechocando-se, entrecru- der pessoal, o que caracteriza a política na
zando-se. Segundo Peter Burke (1995), essa África de hoje. Quando as propostas de um
mescla de culturas é o que o autor chama de órgão oficial colidem com a vontade de um
biculturalismo, ou seja, a combinação entre político poderoso, é a segunda que preva-
a cultura hegemônica e a cultura popular. A lece (CHABAL, 2009, p. 35).
personagem Munda, personifica, dessa for-
ma, esta transição de identidades da pós- Assim, o personagem Suacelência, perso-
modernidade, entre uma cultura autóctone nifica esse novo tipo de poder neo-patrimo-
e uma cultura estrangeira, ela transita com nial e, por conseguinte, podemos ter através
naturalidade, unindo ambas. Ainda assim, no dele, um vislumbre do futuro de Moçambique:
episódio em que Bartlomeu joga a TV pela ja-
nela e depois Munda colhe a flor do “esqueci- Por exemplo, Suacelência ordena que o
mento” e a oferece a Sidônio, vemos a cultura posto de saúde seja encerrado ao público
africana se sobrepujando à cultura de mas- sempre que ele faz uso dos seus serviços.
sas e deitando fora os valores que não são os E o médico aceita, complacente. Como se
seus. Esse embate de identidades e a busca cala perante as evidências que Suacelência
por valores autênticos é o que caracteriza o desvia do armazém comida, medicamentos,
presente da África e da globalização, é tam- combustível, lençóis, colchões. O português
bém o que aparece transposto nas palavras e aceita que é demasiado complacente. Mas
gestos da personagem Munda de Mia Couto. ele não sabe como reagir perante um univer-
Assim, ela é na temporalidade pós-colonial so de empresários sem empresa e de funcio-
do romance, a personificação do tempo pre- nários públicos que apenas desempenham
sente em África. funções privadas (COUTO, 2008, p. 45).

3. A ÁFRICA E O FUTURO: SUACE- Se com o fim do colonialismo europeu há


LÊNCIA E DEOLINDA um esvaziamento de poder, esse lugar va-
Após as guerras de independência, a África zio é justamente ocupado por funcionários
torna-se palco de uma política pós-colonial públicos e políticos parasitários, que exer-
que Chabal (2009) irá chamar de neo-patria- cem de forma contínua, uma usurpação dos
monialismo. Em linhas gerais, este novo tipo meios e bens públicos em prol de seus inte-
de existência política baseia-se no cliente- resses pessoais. Essa nova forma de governo
lismo e no personalismo como suportes de é justamente o que caracteriza a África atual,
suas práticas. O Estado passa a ter “donos” e, por conseguinte, Moçambique. Num certo
e “clientes”, ou seja, a coisa pública é tratada nível de interpretação podemos enxergar no
como coisa privada. Patrick Chabal descreve personagem de Mia Couto uma prospecção
essa nova gerência política africana da se- para o futuro econômico e político daquela
guinte forma: nação africana. Ele mostra o quanto o par-
tido único é poderoso, em manejar eleições
A política contemporânea na África é me- e utilizar a máquina pública, seja pagando
lhor entendida como o exercício do poder bandas de música, seja desbancando polí-
neo-patrimonial. Isso significa em termos ticos que se opõem às negociatas do gover-
concretos que apesar das estruturas for- no. Suacelência, desbancado de seu cargo
mais da política, o poder transita de forma administrativo por conta de um erro de
essencialmente informal. [...]. As ações na cálculo político, é bem o retrato desse tipo
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 203

de gerência pública que se estabeleceu em parte do resto do mundo, da realidade que se


África. Sendo também, o culpado, segundo vive em Moçambique.
alguns, da morte de Deolinda, Suacelência
une numa única personagem as caracterís- 4 ÁFRICA: ENTRE O PASSADO
ticas da impunidade e da corrupção, como COLONIAL E O FUTURO PÓS-COLO-
as novas formas do poder em Moçambique. NIAL – TEMPORALIDADES QUE SE
Assim, Suacelência, usa de seu cargo para CHOCAM
ameaçar o médico Sidônio Rosa de prisão, Através das personagens de Mia Couto, po-
caso ele não consiga “limpar” a Vila Cacimba demos ter uma visão do painel africano
de uma epidemia e “fechar” o quartel. Tudo desde os tempos do colonialismo, com seu
isso, em prol de votos para o político. De racismo e suas imaginações de império e de
acordo com Chabal: centro do mundo, e sendo dentro do roman-
ce, um tempo passado de glórias e saudades,
Num sistema neo-patrimonial a contabi- até os tempos atuais de pós-colonialismo e
lidade política se dá através de redes de de neo-patrimonialismo, como forma políti-
influência que seguem normas de reci- ca e econômica dos Estados Africanos. Entre
procidade. A busca por legitimidade polí- o passado e o futuro, temos o presente como
tica requer a concretização de obrigações um choque cultural de civilizações (Oriente
particulares que não têm nada a ver com X Ocidente / África X Europa) onde a cultura
a emergência de uma esfera pública que de massas entra de chofre na vida das cultu-
transcenda as identidades infra-nacionais. ras autóctones. Temos assim, no romance de
[...]. Em tal contexto, a representação polí- Mia Couto, o seguinte retrato: uma África di-
tica é vista quando os políticos cumprem vidida entre as memórias de um passado co-
suas obrigações/ acordos com seus clientes lonial que aparentemente era mais organiza-
(CHABAL, 2009, p.36). do e coerente, o presente num imbricamento
cultural entre a identidade moçambicana /
O neo-patrimonialismo como forma polí- africana e a globalização / cultura de massas,
tica mais acabada da realidade atual africana, e um futuro de políticas públicas voltadas
mostra através da personagem Suacêlencia aos benefícios privados. Onde essa mescla
qual o futuro podemos esperar para Moçam- irá desaguar? Não sabemos. Mas intuímos
bique. Esse futuro que Bakhtin (1990) em pelas palavras de Mia Couto, que o mundo
seus escritos chamou de escatológico (um há de cheirar a flor do esquecimento, que o
fim relativamente próximo, um novo caos, Continente Negro há de submergir em epide-
um fim das formas de vida presentes e pas- mias de AIDS e outras mais, resultantes das
sadas), e batizou de puramente “literário”, guerras tribais. E que num futuro próximo,
é o que melhor resume aquilo que se pode enquanto os europeus buscam miragens, os
esperar de África. Nesse sentido, e pensan- africanos padecerão de toda sorte de misé-
do também numa interpretação simbólica rias. Pode ser pura escatologia (como diria
da personagem, podemos enxergar Deolin- o velho Bakhtin), pode ser pura “literatura”,
da como uma espécie de apanágio do futu- mas pensando em Eliade (1998), podemos
ro africano: uma miragem, um não-ser, algo dizer que em toda literatura, em todo o mito,
nebuloso e incerto, uma teia de mentiras. Ou há um fundo de verdade que perpassa a alma
em outro sentido: a morte certa, a AIDS como humana. É esta verdade que Mia Couto traz
epidemia e futuro dos africanos, a impunida- em seu romance, é desse futuro incerto, ne-
de dos governos e governantes, a agonia dos buloso como a Cacimba, que tentamos falar
que permanecem vivos, o esquecimento por mais uma vez.
204 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de


estética (A Teoria do Romance). São Paulo:
UNESP / HUCITEC, 1990.

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna.


São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CHABAL, Patrick. “When Democracy Doesn´t De-


liver”. In: Africa: the politics of suffering and
smiling. Londres: Zed Books, 2009. (Tradução
livre do texto por Lívia Petry Jahn).

COUTO, Mia. Venenos de Deus, remédios do diabo.


São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo:


Perspectiva, 1998.

SANTOS, Boaventura de Souza. A gramática do


tempo. Para uma nova cultura política. São
Paulo: Cortez, 2006.
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 205

RESENHA

MOMPLÉ, Lília. Ninguém matou Suhura. 3. ed. Maputo: Edição da Autora, 2007.

Tagiane Mai1

A moçambicana Lília Maria Clara Carrière Momplé, nascida no ano de 1935, em Nampula,
Moçambique, é graduada em Serviço Social pelo Instituto Superior do Serviço Social de Lis-
boa e já exerceu as atividades de funcionária da Secretaria de Estado da Cultura, diretora
do Fundo para o Desenvolvimento Artístico e Cultural, ambos de Moçambique, secretária-
geral e presidente da Associação de Escritores de Moçambique e representante do Conse-
lho Executivo da Unesco. Porém, seu reconhecimento advém da publicação de seu romance
Neighbours (1996) e de seus contos reunidos em Os olhos da Cobra Verde (1997) e Ninguém
matou Suhura (1988), tendo recebido o Prêmio Caine para Escritores de África e o Prêmio de
Novelística no Concurso Literário do Centenário da cidade de Maputo.
Na coletânea Ninguém matou Suhura, constam as histórias “Aconteceu em Saua-Saua”, “Ca-
niço”, “O bailde de Celina”, “Ninguém matou Suhura” (subdividido em O dia do senhor admi-
nistrador, O dia de Suhura e O fim do dia) e “O último pesadelo”. São contos que representam
a vida de negros africanos sem perspectiva de futuro, devido à sua cor de pele, em Moçambi-
que e Angola do período colonial português.
Da primeira história, destaca-se o suicídio de Mussa Racua, que preferiu a morte a ser
mandado à “plantação” por não ter conseguido atingir a meta de oito sacas de arroz a serem
entregues à Administração colonial como pagamento de impostos. Momplé tematiza o dra-
ma de muitos camponeses africanos enviados a plantações nas ilhas de Açores e da Madeira
para serem usados como mão de obra escrava, sob a alegação de que esse trabalho pagaria
a dívida contraída com a Colônia. Destaca-se o termo “escrava” pois, de fato, o ambiente de
trabalho era sub-humano, tal como se pode observar por este comentário do narrador:

[...] como a vida é dura na plantação e quanto prejuízo traz aos homens que para lá vão e deixam
a sua casa. Outros morrem por lá, sem o consolo da família. Outros ainda voltam cegos. Basta um
gesto menos atento ao cortar o sisal e pronto, um espinho enfia-se pelo olho de um homem. E todos
regressam doentes e estropiados, moídos de pancada e de trabalho sem recompensa. (p. 17).

O segundo conto da coletânea intitula-se “Caniço” e é ambientado em Lourenço Marques,


atual Maputo, capital de Moçambique, no ano de 1945. Mais uma vez, a autora faz conhecer
o drama de um personagem negro, desta vez Naftal, jovem extremamente pobre de 17 anos
e órfão de pai que trabalha como “moleque” na casa de uma rica família de colonos. Não bas-
tasse ter convivido com a morte precoce do pai e da irmã prostituta devido à tuberculose,
Naftal é acusado, injustamente, de ter roubado um relógio de ouro da sua patroa. Juntamente
com o outro empregado negro da casa, o personagem é torturado por policiais, que desejam
a confissão de um deles (ou de ambos). Essa situação demonstra toda a brutalidade cometida

1 Bacharel em Letras - Português/Literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria.


206 expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014

contra os negros, mesmo quando nada con- citado, vê-se que o objetivo de D. Violante é
tra eles estivesse provado, como se o sofri- apagar a cor da pele, para, dessa forma, virar
mento fosse uma sina a se cumprir, diaria- gente, como se a condição de mulata/negra
mente. Daí o conto iniciar e terminar com a fosse uma condição sub-humana. O mesmo
descrição de Naftal acordando e sentindo-se pode ver visto em diálogo entre D. Violante e
completamente “sem vontade” de viver, pois D. Celeste e Leonar, suas amigas. A primeira
tem de enfrentar “a angústia de um novo dia” refere-se a uma mulher negra como mulher
(p. 38). Trata-se de uma repetição sucessiva de raça inferior, ao que as outras duas (tam-
de dor e angústia. bém negras) concordam, “pois elas também
Já em “O baile de Celina”, retorna à cena o estão convictas da inferioridade de sua pró-
preconceito de cor existente entre a socieda- pria raça” (p. 52). Acredita-se que essa ima-
de, evidente inclusive nas instituições esco- gem pessoal advenha da interiorização de
lares de então: uma condição de segregação já tão presente
na sociedade que se tornara natural, aceita
Vocacionado para servir os interesses dos sem ser questionada.
colonos, o Liceu reflecte bem a segrega- Na narrativa que dá nome ao livro, “Nin-
ção racial existente em Moçambique. No guém matou Suhura”, é contada a história
7º ano, Celina e um jovem indiano são os da jovem Suhura, analfabeta e órfã de pai e
únicos alunos de cor, e em todo o Liceu de mãe que vive com a avó. A personagem
não existe um só aluno negro. Durante os é estuprada e morta pelo Administrador do
primeiros anos, em tal ambiente, Celina só Distrito e também Presidente da Câmara, ho-
desejava passar despercebida. Mas, mesmo mem que exibe seu poder diante da comu-
assim, era-lhe frequente ler na expressão nidade e se usa dele para satisfazer desejos
da maioria dos colegas e professores estas pessoais, mesmo que isso signifique matar
interrogações: alguém.
− Mas o que faz aqui esta mulata? Não sabe Não bastasse a morte, ainda é preciso dis-
que não é este o seu lugar? (p. 50). farçá-la, sem acusar diretamente o culpado
caso este seja um branco munido de pode-
Celina é filha de uma modista, D. Violan- res. É o que se pode perceber da cena em
te, o que lhe garante condições financeiras que a avó de Suhura é orientada a calar-se
para poder estudar. A mãe acredita que “só sobre a identidade do assassino: “− Não gri-
a instrução pode apagar a nossa cor. Quanto ta, velha. Ninguém matou Suhura. Ninguém
mais estudares, mais depressa serás gente!” matou Suhura. Compreende!?” O conto dei-
(p. 50). Porém, nem a instrução é garantia xa muito claro como funcionam as relações
de igualdade social, pois, no dia anterior ao de poder existentes entre brancos e negros
baile de formatura do Liceu, Celina e o cole- na sociedade moçambicana representada:
ga indiano são proibidos pelo reitor da insti- “vence o mais forte” (p. 86), neste caso o
tuição de estarem presentes na solenidade, branco colonizador, em detrimento do negro
sob o argumento de que suas presenças po- colonizado.
derão “incomodar”, de certa forma, figuras Por fim, o conto “O último pesadelo”, di-
como o Governador-Geral, ou seja, esse não ferente dos anteriores, apresenta a perspec-
é o lugar deles, não há possibilidade real de tiva de um colono branco, Eugénio. Porém,
ascensão social. ele não é um branco que exerce seu poder
Interessa destacar desse conto também a sobre os locais ou os humilha; pelo contrá-
imagem que as personagens negras têm de rio, compadece-se deles e os defende da
si em relação à segregação de cor. No trecho opressão sofrida, o que é motivo de descon-
expressão - cal - ufsm - n. 1 e 2 - jan./dez. 2014 207

fiança e olhares atravessados por parte dos


outros colonos do hotel Guaraná, onde resi-
dia. Durante a noite do massacre dos 14 fun-
cionários negros desse hotel, por exemplo,
Eugénio tenta conter a violência dos brancos,
mas é ameaçado de morte e sua voz é calada:
“Queria responder, a todo o grupo que aguar-
dava ansiosamente a sua resposta, que não
era um assassino e que não desejava parti-
cipar naquele massacre. Mas tinha a certeza
que ninguém lhe perdoaria tais palavras.” (p.
99). Metaforicamente, a voz calada represen-
ta muitos brancos e negros que percebiam a
injustiça social então existente, mas que não
podiam rebelar-se contra ela.
De um modo geral, as histórias de Mom-
plé trazem à tona a opressão, a impunida-
de e a injustiça de um momento histórico
obscuro para moçambicanos e angolanos. A
autora se utiliza de uma linguagem simples
e direta, e os contos apresentam uma estru-
tura básica parecida, qual seja, a apresenta-
ção do protagonista e sua contextualização
na história, seguidos da narração de seu
drama pessoal e de seu fim trágico (ou da
tragicidade de não haver um final para esse
sofrimento). Ainda assim, possuem valor
enquanto registro de situações que não po-
dem ser esquecidas; ao contrário, precisam
ser recordadas e problematizadas, para que
não ocorram novamente.
expressão - cal - ufsm - n. 2 - jan./jun. 2013 209

NORMAS PARA A SUBMISSÃO DE CONTRIBUIÇÕES

Expressão: Revista do Centro de Artes e Letras da UFSM é um periódico semestral que pu-
blica artigos inéditos, entrevistas, resenhas e informes sobre eventos artísticos e científicos,
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dores internos e externos ao Centro de Artes e Letras da UFSM, o periódico aceita trabalhos
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torandos). Criada em 1996, Expressão recebeu a classificação B4 (Linguística/Letras, Artes/
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tação de trabalhos serão sumariamente recusados.
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nome(s) do(s) autor(es), resumo, palavras-chave, abstract e resumen, keywords e palabras-
-clave, corpo do trabalho, anexos e bibliografia. Em nota de rodapé, precedida de asterisco,
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Os autores deverão ter preferencialmente a titulação de doutor. Estudantes de pós-gra-
duação (mestrandos e doutorandos) poderão submeter contribuições a todas as seções da
revista. No caso dos artigos, entretanto, os respectivos orientadores devem possuir o título
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teúdo dos textos é de responsabilidade exclusiva de seus autores, bem como a adequação às
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Adotar 3 cm para as 4 (quatro) margens e espaçamento entre linhas de 1,5 para o texto,
página tamanho A4. Os autores, ao enviarem os artigos, estarão cedendo à Expressão os res-
pectivos direitos autorais e receberão 02 (dois) exemplares da revista em que seu trabalho
foi publicado. Insiste-se no fato de que as colaborações submetidas devem ser inéditas.

Cabeçalho
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título do trabalho, grafado em maiúsculas, negrito e corpo 16. Centralizado(s), a 2 espaços
abaixo do título, deve(m) vir o(s) nome(s) do(s) autor(es) em corpo 12, fonte Times New
Roman, utilizando maiúsculas apenas para as letras iniciais.
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Resumo de 300 dpi, em formato .jpeg. A revista publi-


Inicia 3 espaços abaixo do nome do autor, à ca ilustrações, tabelas e gráficos apenas em
margem esquerda, precedido da palavra RE- escala de cinza. Logo, é importante verificar
SUMO, em corpo 12, grafada em maiúsculas, as condições de visualização e impressão de
itálico e negrito, seguida de dois pontos. O elementos gráficos originalmente concebi-
texto do resumo, de 150 a 300 palavras, deve dos em cores.
ser redigido em português. Deve ser apre- As notas textuais, exclusivamente explica-
sentado em itálico, corpo 12, fonte Times tivas, devem ser colocadas no rodapé, nume-
New Roman e espaçamento entre linhas de radas, de modo sequencial, em algarismos
1,5. arábicos e apresentadas em espaço simples,
corpo 10, iniciando à margem esquerda, ali-
Palavras-chave nhamento justificado. O número de referên-
A seção inicia dois espaços abaixo do resu- cia, tanto no texto quanto no rodapé, deve ser
mo, à margem esquerda, em corpo 12, com sobrescrito. Os títulos das seções, sempre à
a expressão PALAVRAS-CHAVE em maiúscu- margem esquerda, a 2 espaços do parágrafo
las, itálico e negrito, seguida de dois-pontos. anterior e posterior:
Admitem-se até cinco palavras-chave, em
corpo 12, separadas entre si por ponto. a. TÍTULOS DE SEÇÕES PRIMÁRIAS: MAI-
ÚSCULAS, NEGRITO, CORPO 12;
Abstract/Keywords – Resumen/ b. Títulos de seções secundárias: inician-
Palabras-clave do a primeira palavra em maiúscula,
Seguir os mesmos padrões elencados para o negrito, corpo 12;
resumo e para as palavras-chave. É obriga-
tória a inclusão de versão do resumo e das Anexos
palavras-chave em inglês e em espanhol. A seção anexos, quando houver, deve ser
precedida, 3 espaços abaixo da última linha
Corpo do trabalho textual, da palavra ANEXOS, centralizada,
Deve ser disposto em forma sequencial, em maiúsculas, itálico e negrito, corpo 12,
sem espaços ociosos, iniciando a 3 espaços e seguida, 2 espaços após, do(s) anexo(s),
das palavras-chave, em espaçamento entre devidamente identificados e numerados,
linhas de 1,5, corpo 12 e fonte Times New separados entre si por 2 espaços.
Roman. A sinalização dos parágrafos corres-
ponde a 1 toque de tabulação (1,25 cm). As Referências
citações com até 3 linhas devem ser incor- A palavra REFERÊNCIAS deve ser digitada
poradas, com aspas, ao texto e seguidas do a 3 espaços da última linha textual ou dos
nome do autor, ano da obra e páginas, entre anexos, centralizada, em maiúsculas, itálico,
parênteses. Exemplo: x x x “[...] kshwj fiwf negrito e corpo 12, seguida, 2 espaços após,
jfisjd” (PARRET, 1988, p. 24). das referências bibliográficas. Inserir ape-
As citações com mais de 3 linhas devem nas as obras citadas, e não a totalidade
ser apresentadas, sem aspas, em margem das obras consultadas. Tais referências
própria de 4 cm, espaçamento simples, cor- devem ter corpo 12, fonte Times New Ro-
po 10, seguidas da referência bibliográfica man e ser ordenadas alfabeticamente, em
entre parênteses conforme exemplo acima. espaçamento 1,5 cm, à margem esquerda,
Tabelas, gráficos e ilustrações, quando pre- conforme exemplos que seguem. Obser-
sentes devem vir inseridos em sua posição vação importante: independentemente da
definitiva no texto, com resolução mínima língua de origem da obra citada, apenas a
expressão - cal - ufsm - n. 2 - jan./jun. 2013 211

primeira palavra dos títulos deve ser grafa- agosto de 2013.


da com maiúscula; exceção feita, por razões
óbvias, para substantivos próprios que es- Filmes
tejam inseridos como parte dos títulos, ou MADAME SATÃ. Direção e roteiro: Karim Aïnouz.
para substantivos em língua alemã. Elenco: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e
Flávio Bauraqui. Trilha sonora (não original):
Livros com um autor Bruno Barteli, Ismael Silva e Francisco Alves.
ALÓS, Anselmo Peres. A letra, o corpo e o de- Brasil, 2001, color., 105 min, 35 mm.
sejo: masculinidades subversivas no romance
latino-americano. Florianópolis: Mulheres,
2013.

Livros com até três autores


ORLANDI, Eni; GUIMARÃES, Eduardo; TARALLO,
Fernando. Vozes e contrastes. São Paulo: Cor-
tez, 1989.

Livros com mais de três autores


DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de linguística. São
Paulo: Cultrix, 1987.

Capítulo de livro de um autor


ETIEMBLE, René. Crise de la littérature com-
paré? In: _____. Comparaison n’est pas raison.
Paris: Gallimard, 1963. p. 23-58.

Capítulo de obra coletiva


FERREIRA, Maria Cristina Leandro. A antítese da
vantagem e do jeitinho na terra em que Deus é
brasileiro. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Discurso
fundador: a formação do país e a construção
da identidade nacional. Campinas: Pontes,
1993. p. 31-45.

Artigo de periódico
MATEUS, Maria Helena Mira. Unidade e varia-
ção na língua portuguesa: memória coletiva e
memória fraccionada. Organon, Porto Alegre
(UFRGS), v. 8, n. 21, p. 35-42, jan. 1994.

Documentos de internet (não utili-


zar sublinhado para os hiperlinks)
ALVES, L. R. G.; PRETTO, N. “Escola: espaço para
a produção de conhecimento”. Disponível em:
<http://www.lynn.pro.br/admin/files/lyn_
artigo/282955d83a.pdf> Acesso em: 02 de

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