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Comitê Científico - Alexa Cultural


Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)

Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)

Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Aldair Oliveira de Andrade (UFAM – Manaus/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid/Espanha)
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Gilse Elisa Rodrigues (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Roberta Ferreira Coelho de Andrade (UFAM – Manaus/AM)
Tharcisio Santiago Cruz (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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Adan Renê Pereira da Silva
Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas
(Organizadores)

GÊNERO, SEXUALIDADE E
EDUCAÇÃO:
perspectivas, cidadania e saberes para a
inclusão da diversidade

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL

Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

Comitê editorial da EDUA


Louis Marmoz - Université de Versailles
Antônio Cattani - UFRGS
Alfredo Bosi - USP
Arminda Mourão Botelho - Ufam
Spartacus Astolfi - Ufam
Boaventura Sousa Santos - Universidade de Coimbra
Bernard Emery - Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira - UFC
Conceição Almeira - UFRN
Edgard de Assis Carvalho - PUC/SP
Gabriel Conh - USP
Gerusa Ferreira - PUC/SP
José Vicente Tavares - UFRGS
José Paulo Netto - UFRJ
Paulo Emílio - FGV/RJ
Élide Rugai Bastos - Unicamp
Renan Freitas Pinto - Ufam
Renato Ortiz - Unicamp
Rosa Ester Rossini - USP
Renato Tribuzy - Ufam

Diretor da Edua
Sérgio Augusto Freire de Souza

Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe

Reitor
Sylvio Puga

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Adan Renê Pereira da Silva
Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas
(Organizadores)

GÊNERO, SEXUALIDADE E
EDUCAÇÃO:
perspectivas, cidadania e saberes para a
inclusão da diversidade

Embu das Artes - SP


2021

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© by Alexa Cultural

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans e Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Adan Renê Pereira da Silva e Michel Justamand
Revisão de língua
Rayesley Ricarte Costa
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S586, SILVA, Adan Renê Pereira da


M395, MASCARENHAS, Suely Aparecida do Nascimento

Gênero, Sexualidade e Educação: perspectivas, cidadania e sa-


beres para a inclusão da diversidade, Adan Renê Pereira da Silva
e Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas (orgs). Alexa Cultural:
São Paulo, EDUA: Manaus, 2021

14x21cm -242 páginas


ISBN -978-85-5467-161-7

1. Ciências Sociais - 2. Sociologis e Antropologia - 3. Gênero - 3. Se-


xualidade, 4. Educação, I. Índice - II- Prefácio - III Bibliografia

CDD - 301/361.30981

Índices para catálogo sistemático:


Ciências Sociais
Gênero e Sexualidade
Educação

Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610


Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem expressa autorização.
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emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da editora e dos organizadores.

Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do Amazonas


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Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM
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www.alexaloja.com E-mail: ufam.editora@gmail.com

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Agradecemos a todos os autores e a todas as
autoras deste livro, pela coragem de resistir e lutar por um
mundo mais justo e equânime. Dedicamos esta obra a todas
as pessoas oprimidas, discriminadas, vítimas de
preconceito e exclusão social, que já foram expul-
sas de casa ou de outros espaços sociais importantes, como o
são a escola e o próprio ambiente religioso, apenas por serem
quem são. Se não devemos romantizar a dor e o sofrimento
– afinal, ninguém merece passar por isso! –, fato é que estas
histórias são recursos para não desistirmos de lutar por um
mundo melhor e lembrá-las é uma forma de combater a vio-
lência da invisibilização e da negação destas existências

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PREFÁCIO
Vivemos em um tempo que seria classificado, na literatura,
como distopia, onde o absurdo se torna cada vez mais real, aproximan-
do-nos do autoritarismo e totalitarismo. Um momento em que direitos
são anulados, desejos cerceados e o fundamentalismo religioso cada vez
mais toma conta de nossa sociedade.
Falar de sexualidade é um risco, desde os tempos de Freud e
mais ainda nos dias de hoje. Pesquisar e produzir passa a ser um ato de
resistência. Resistência do tipo que os mais novos, nascidos depois do
golpe militar, achavam que só teriam contato por meio dos livros de his-
tória, como um passado sombrio que deveria ter ensinado algo a nossa
população. Infelizmente estavam errados.
Essa obra é um reflexo disso, um momento de resistência. Um
momento de contrapor achismos e retrocessos com o que há de mais
importante no momento: a ciência. Só conseguiremos evitar a aniquila-
ção social através da ciência e da constante produção.
Não é à toa que a história nos mostra o quanto os livros fo-
ram e são temidos. Parte por trazerem as verdades do momento no qual
estão inseridos, parte por sempre contestarem aquilo que mantém as
pessoas presas: o medo e a ignorância, que são a base do preconceito.
Esta obra contém uma compilação de artigos oriundos de
pesquisas que têm como fio condutor a sexualidade humana em seu
amplo significado e seus mais variados aspectos e impactos. Temos aqui
a possibilidade de entender a diversidade sexual e sua importância no
processo de formação dos professores, preciosos soldados nesse pro-
cesso social. Entender um pouco mais sobre gênero e sexualidade no
ambiente escolar, de um ponto de vista cultural e pós-estruturalista,
torna-se assim um instrumento de esclarecimento e ensinamento sobre
transexualidade e suas vivências na escola e gera reflexões sobre motivos
pelos quais essa população, transexuais, tem apenas 35 anos de expecta-
tiva de vida e o que lhes resta como oportunidades de trabalho.
Há uma alienação social sobre conceitos de gênero e uma per-
seguição a aqueles que ousam falar sobre o tema. Desconstruir a “ideo-
logia de gênero” e seus alicerces religiosos e preconceituosos é de gran-
de importância, pois ainda vemos esse discurso sendo reverberado em
diversos ambientes, até mesmo nos acadêmicos. Em tempos de debates
sobre a criminalização da Homofobia é de suma importância termos

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embasamento para dar suporte a todo o movimento social de luta pela
nossa sobrevivência enquanto sociedade civilizada.
Não se pretende, jamais, esgotar a temática, mas aqui você
encontrará pesquisadores de diversas áreas, abordagens, com variedade
de objetos de estudos, mas fundamentalmente, seres que não se calam e
usam suas mentes e suas maiores armas, o conhecimento, para que essas
informações sejam propagadas e barreiras sejam vencidas.
Boa leitura, boa reflexão, mas principalmente, boa propaga-
ção das informações aqui contidas!

Prof. Dr. Eduardo J. S. Honorato, BS, LPsy, PhD.


Doutor em Saúde da Criança e da Mulher - Sexualidade e
Gênero (FioCruz- RJ),
Pós- Doutorando em Medicina Tropical -
Infecções Sexualmente Transmissíveis e Hepatites Virais –
FMT

- 10 -
SUMÁRIO

PREFÁCIO
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INTRODUÇÃO
DOS DESAFIOS QUE FALAM DE VIDA E DE (RE)EXISTÊNCIA
- 13 -

DIVERSIDADE SEXUAL E FORMAÇÃO DOCENTE NA SECRETA-


RIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE MANAUS (SEMED):
DISCUSSÕES PRELIMINARES
- 21 -

A DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA:


EM BUSCA DO ESTATUTO DA DIFERENÇA
- 43 -

DISPUTAS E TENSÕES EM TORNO DE GÊNERO E EDUCAÇÃO


NA CIDADE DE MANAUS - AMAZONAS
- 67 -

CAÇA ÀS BRUXAS NA EDUCAÇÃO? IMPACTOS DO DISCUR-


SO DA IDEOLOGIA DE GÊNERO NA PRÁTICA EDUCATIVA DE
PROFESSORAS DO MUNICÍPIO
- 93 -

DISPOSITIVO CURRICULAR, PANOPTISMO ESCOLAR E RESIS-


TÊNCIA: IDEOLOGIA DE GÊNERO E ESCOLA SEM PARTIDO NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
- 117 -

VIDAS CONTADAS, ENVELHECIMENTO, GÊNERO E EDUCA-


ÇÃO: MEMÓRIAS DE IDOSAS DO SESC-DEODORO
EM SÃO LUÍS/MA
- 155 -

- 11 -
GÊNERO, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO:
ARTICULAÇÕES POSSÍVEIS
- 187 -

LUTA E LIBERTAÇÃO: SENTIDOS E SIGNIFICADOS DAS


VIVÊNCIAS DE ESCOLARIZAÇÃO DAS
TRAVESTIS E TRANSEXUAIS NA ESCOLA
- 205 -

CRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA HOMOFÓBICA NO BRASIL


- 215 -

POSFÁCIO
- 237 -

- 12 -
INTRODUÇÃO

DOS DESAFIOS QUE FALAM DE VIDA


E DE (RE)EXISTÊNCIA

A educação é um processo que “atravessa” várias dimensões


da vida humana. Esta obra ratifica tal afirmação ao propor discussões
destes “atravessamentos”: na velhice, na escola, nas discussões travadas
no Legislativo, na formação de professores e de professoras, na cultura
popular brasileira. Lançá-la, na atual conjuntura, é uma resposta a um
chamamento ético: o de posicionar-se em favor da diversidade humana
em meio ao combate travado entre setores conservadores, reacionários
(de um lado) e um viés progressista (de outro), carregando o segundo a
visão das múltiplas expressões sexuais e de gênero como um valor.
A educação foi privilegiada, neste volume, por ser um dos
palcos desta disputa, que se materializa na escola. Ainda que tenhamos
uma lei máxima, a Constituição Federal, a garantir, entre outros princí-
pios, a liberdade de cátedra, a existência da pluralidade de ideias e a dig-
nidade da pessoa humana, sem acrescentar condicionantes, “meandros”
são criados por setores religiosos, em suas bancadas “evangélicas”, dei-
xando em situação de perplexidade qualquer pessoa que entenda o real
significado da laicidade do Estado. Durkheim (1985) fornece pistas para
se entender porque tanto foco na educação: ao debater o conceito de
“fato social”, ele via nos processos educativos um instrumento sui gene-
ris para perpetuar os valores sociais. Ao nascer, as pessoas já encontram
os fatos sociais “prontos” e precisam ser “educadas” para internalizá-los.
A escola aparece como local privilegiado de socialização.
Nela, crianças conviverão com outras crianças, com adultos e tam-
bém com outras famílias. Pode ser o primeiro local em que meninos
e meninas se deparam com o fenômeno da “alteridade” (a descoberta
de um “outro” diferente de mim) em seu sentido mais radical. Ganha
força uma reflexão: como eu espero que elas/eles “percebam” esse outro,
quando ele não condiz com a religião que eu professo, com uma etnia
que não é a minha ou quando o/a “diferente” quebra a fronteira do pa-
radigma cis-heterossexual?
Estas perguntas carecem de aprofundamento, porque diferen-
tes visões do espaço escolar ganham destaque. Para algumas pessoas, a

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escola deve apenas ensinar “conteúdos técnicos”. O/A docente ganha um
contorno de “instrutor/a” e o que foge disso adquire caráter secundário
ou não deve ser pautado (empurram-se o preconceito e a discriminação
para onde? Quando a escola se torna hostil aos/às diferentes, gerando
evasão escolar, a quem se atribui responsabilidade?). Para outras pes-
soas, pode-se ultrapassar a barreira do tecnicismo, mas não se deve falar
de sexualidade ou gênero, pois estas seriam atribuições da família. Per-
gunta-se: e o que faz a escola quando meninos e meninas apresentam
dúvidas sobre o assunto? O que fazer com estas pautas, que surgem a
todo o momento - da aula de Biologia, sobre reprodução, aos corpos que
se tocam e se veem desnudos durante a Educação Física, passando pelos
casos de abuso/violência sexual que extrapolam o limite do lar e chegam
ao colégio? Quando infecções sexualmente transmissíveis, como sífilis
e HIV/AIDS, “ameaçam” nossos/nossas adolescentes dentro dos muros
escolares, a escola deve omitir-se?
Há ainda homens e mulheres que, cindidos/as entre a igno-
rância e o preconceito, ou contaminados/as pelo pânico moral desenvol-
vido por setores conservadores, acreditam piamente que a escola deve
ser um local “sem partido” e que corre o risco de ser “contaminada” pela
nefasta “ideologia de gênero”. Mobilizam-se em manifestações aos gri-
tos de “deixem nossas crianças em paz!” e defendem a ideia de que pro-
fessores e professoras querem “homossexualizar” crianças. Para quem
duvida, sugerimos a análise do cenário da última eleição presidencial
brasileira, quando um então candidato levou para um veículo de im-
prensa televisiva de grande impacto social um material representativo
do que denominou de “kit gay” ou quando o mesmo, à época presiden-
ciável, fez uso maciço de fake news. Entre elas, estava uma que divulgava
uma pretensa distribuição nas escolas de “mamadeiras de piroca”, que
promovia a “ideologia de gênero”.
Tal análise, se empreendida com olhar crítico, levará à con-
clusão de que a educação escolar corre perigo: deixa-se a ela somente
um pretenso “neutro tecnicismo” – não seria tal opção também política
e pouco neutra? – vazio da humanidade de quem a habita: de profes-
sores/as, discentes e demais membros da equipe pedagógica e corpo
técnico. Apenas a “ordem”. Ordem de quem para que? Partindo de que
referencial? Por que as pessoas seriam assexuadas ou como fazer para
que, em se reconhecendo a sexualidade humana, ela ficasse ausente do
espaço escolar?

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As nomenclaturas e termos técnicos aqui utilizados são expli-
cados no decorrer da obra. Neste momento introdutório, servem para
chamar atenção do/a leitor/a perspicaz para a realidade em que estamos
inseridos e a necessidade de uma discussão aprofundada e responsável
sobre gênero e sexualidade, no intuito de desfazer ideias pré-concebidas
e pouco coerentes com a realidade, já que elas parecem estar em todo
lugar, incluindo o ambiente acadêmico, que deveria combater discur-
sos mentirosos e promover a ciência. Porque, sim, o debate sério sobre
gênero e diversidade sexual é um debate científico e deve servir como
remédio à ignorância.
Os tempos tornaram-se difíceis para quem não se enquadra
em nenhum destes discursos enviesados. São sombrios e dolorosos para
quem vê na escola um ambiente de promoção de respeito, de absorção
de valores democráticos, e para quem enxerga a diversidade humana
como fator positivo. Quem observa os contornos dados ao que se pôs o
epíteto de “ideologia de gênero” ou olha mais profundamente o conteú-
do sinistro proposto pelo movimento ideológico “Escola Sem Partido”
percebe os meandros promovidos por ambos para manutenção do sta-
tus quo de privilégios adquiridos e, quando empático/a, tende a se sen-
tir, para dizer o mínimo, desconfortável. Todo comportamento ocorre
sustentado por ideologia. Não existe neutralidade. Não há perguntas
nem comportamentos neutros em se tratando de ser humano.
Quem traduz a escola como um espaço de acesso a melhores
oportunidades de vida, como local que deveria promover a equidade e
ser acessível a todos e a todas, fica perplexo ante as investidas feitas em
sentido contrário. A “demonização” de professores e professoras favo-
ráveis ao pensamento crítico segue em máxima intensidade, ignorando
a autonomia legal e constitucional da liberdade de ensino assegurada
aos/às docentes. A eleição de um candidato que não mede esforços em
dar declarações contrárias à diversidade humana, a ocupação de cargos
públicos por ministras-pastoras ou pastoras-ministras (difícil precisar
a ordem adequada) fomentam um ambiente de insegurança e receio,
considerando os fatos da recente história nacional. Este ambiente deve
ser enfrentado enfaticamente, com respaldo nos princípios estabeleci-
dos na Carta Magna do Brasil. Os direitos e garantias individuais, mais
do que nunca, desde a promulgação da Constituição de 1988, precisam
ser retomados e respeitados.
A presente obra, diante da conjuntura em comento, entende
que a única maneira de lidar com este macabro cenário é resistir. Com-

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preende que o combate às trevas da ignorância faz-se pela incidência
da luz. A “luz do saber” pode ser colocada, metaforicamente, como o
objetivo deste livro em cada um dos capítulos que o compõe.
Desta forma, optou-se por dar voz a variados/as autores e
autoras. De seus locais de pesquisa e de escrita, cada uma e cada um
trouxe a luz de distintos pontos para incidir em vários ângulos. Algumas
vezes, há coincidência, outras vezes, pouco distanciamento. Entretanto,
as luzernas seguem todas acesas!
No capítulo que abre o livro, Adan Renê Pereira da Silva e
Suely Mascarenhas discutem desafios e perspectivas da formação do-
cente para a diversidade sexual humana. Os resultados parciais de uma
pesquisa de doutorado salientam a urgência do tema, posto que acossa-
do pelo preconceito, estigma e silenciamento, o que pode mesmo levar
à evasão escolar sujeitos LGBT.
A seguir, o professor Ênio de Souza Tavares problematiza o
tema da diversidade sexual por meio da categoria diferença. Defenden-
do a escola como local de expressão da pluralidade, o autor faz um pas-
seio junto a autores como Foucault e Deleuze, perspectivando a escola
para além da sua clássica representação como “local de ajustamento”.
Em “Disputas e tensões de gênero e educação na cidade de
Manaus, Amazonas”, as autoras Fátima Weiss de Jesus, Ramily Frota
Pantoja e Márcia Calderipe Farias Rufino retratam as experiências de
um projeto de extensão e de uma pesquisa de iniciação científica. Com
tal feito, auxiliam a visualizar os embates enfrentados por ativistas de
direitos humanos e de pesquisadores/as dos estudos de gênero contra
grupos conservadores em torno dos planos municipal e estadual de
educação em Manaus. As autoras salientam a necessidade de reverter o
pânico moral, categoria utilizada por conservadores para perpetuação
do caos instaurado contra os estudos de gênero.
O quarto capítulo é fruto de etnografia desenvolvida pela pro-
fessora da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Érica Vital Ro-
tondano. Vivenciando o processo de formação continuada na Secretaria
Municipal de Educação de Manaus (SEMED), a autora discute dois ca-
sos observados com mais ênfase, aprofundando o impacto da chamada
“ideologia de gênero” na prática de professoras da Educação Infantil.

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Desta forma, a autora mostra o desafio de realizar uma educação que
vise acolher todos e todas, para além dos padrões heteronormativos.
O capítulo seguinte contempla uma esmerada teorização so-
bre dois representantes do conservadorismo brasileiro atual: o ativismo
religioso contra a “ideologia de gênero” e o Movimento Escola sem Par-
tido (MESP). O texto articula, em sua análise, a obstrução de direitos
sexuais gerada pelas forças conservadoras e o estímulo a uma “pedago-
gia persecutória” – na feliz expressão do autor e da autora – por parte do
MESP. Jeffeson Pereira e Flávia Melo demonstram como o parlamento
brasileiro transmuta-se em instância reguladora da educação pública,
proporcionando uma verdadeira judicialização das questões escolares e
fragilizando os espaços participativos de controle social da escola.
Em “Vidas contadas, envelhecimento, gênero e educação”,
Thayza Felipe e Rarielle Lima levam-nos a São Luís do Maranhão, mais
especificamente ao SESC Deodoro, para apresentar idosas que estudam.
Enfocando a categoria gênero para compreendê-las em suas vivências
com a educação, as autoras possibilitam vislumbrar a potência desta
categoria na significação das histórias de vida de mulheres: os discur-
sos em torno da construção social que é o gênero definem e orientam
comportamentos tidos como “adequados” para elas, em um primeiro
momento. Após a vivência educativa no SESC, entretanto, há um novo
sentido para o percurso, gerador de uma nova velhice.
“Gênero, sexualidade e educação: articulações possíveis” é
assinado por Bianca Salazar Guizzo e Dinah Beck, autoras que discu-
tem possibilidades de problematizações das questões de gênero e se-
xualidade em ambientes educacionais com foco nos Estudos de Gênero
e nos Estudos Culturais, de vieses pós-estruturalistas. Apresentando a
compreensão de conceitos-chave e discutindo dados de pesquisas, elas
concluem pela necessidade de a escola tornar-se um espaço de cons-
tante discussão das referidas temáticas, convocando leitoras e leitores
a saírem de lugares previamente estabelecidos e conclamando-as/os à
mudança.
Enfocando o “universo trans”, Ane Nunes, Andrews Duque,
André Neves e Iolete Silva fornecem instigantes reflexões com base nas
vivências de escolarização de travestis e transexuais. Por meio de nar-

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rativas por elas tecidas, percebe-se a escola como um local de possível
superação dos processos de exclusão comumente vividos por estas pes-
soas. Entretanto, tal possibilidade tem um longo percurso a percorrer,
longe de ser finalizado. Antes de o ser efetivamente, a escola precisa se
responsabilizar e assumir-se excludente e promotora de sofrimento para
esta população. Só assim poderá transformar-se em um local de liberta-
ção e acolhimento para pessoas trans.
Em um momento no qual o Supremo Tribunal Federal traz
à baila o debate sobre a criminalização da LGBTfobia, Renata de Melo
e Perla Lima fornecem subsídios para melhor compreensão do tema,
valendo-se de um embasamento sorvido nas Ciências Jurídicas. Pro-
pugnando pela criminalização das condutas LGBTofóbicas, a coletânea
aqui gestada ganha fôlego com a articulação entre Educação e Direito.
Como dito anteriormente, é necessário se posicionar. E nosso
posicionamento é pela necessidade do respeito. O respeito pelas pes-
soas, pelo meio ambiente, pelo ordenamento jurídico do Estado Demo-
crático de Direito. Pelos ideais democráticos de igualdade, soberania,
justiça social e bem comum estabelecidos pela Constituição do Brasil de
1988. De acordo com o estabelecido pelo citado ordenamento jurídico,
o objetivo da educação escolar é favorecer o desenvolvimento das capa-
cidades e potencialidades dos estudantes, preparando-os para o exercí-
cio consciente da cidadania. O que por definição consiste em objetivo
amplo e profundo que permeia diversas dimensões da atividade escolar
e social. As finalidades legais e constitucionais da educação nos levam a
refletir sobre a qualidade do respeito aos direitos da pessoa humana, aos
direitos dos cidadãos e cidadãs na sociedade brasileira na atualidade.
A qualidade do processo de educação é conhecida pela qualidade do
comportamento das pessoas em sociedade. O respeito pela unicidade,
soberania e liberdade de cada pessoa consiste em um valor a ser resga-
tado pelo sistema escolar.
Diante do exposto, entende-se que este livro pode ser enca-
rado como aceitação de um desafio: tocar em temas que são alvos de
tentativas constantes de sufocamento, invisibilização e negação, na ex-
pectativa de reversão do quadro, por intermédio de uma leitura séria do
tangenciamento da escola e da educação – em sentido amplo! - pelas

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questões de gênero e diversidade sexual. Desafio que autores e auto-
ras aceitaram e desenvolveram com mestria – mestria mesmo, como os
mestres e mestras que são – o que redundou em falar de vida: vida de
pessoas cis, trans, homo, agêneras, bi, idosos e idosas e tudo mais que
se encaixa – ou não, não há problema! – no “catálogo” ampliado que
até então se conseguiu nomear. Queremos uma educação para todos e
todas, porque uma educação que liberta é também uma educação que
proporciona vida – na mais ampla acepção que esse termo possa com-
portar e também extrapolar!

Adan Renê Pereira da Silva


Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas

De Manaus, Amazonas, Brasil, e da Cidade do México, regis-


tre-se o tempo de resistência, meados de 2021.

REFERÊNCIA
DURKHEIM, Emille. As regras do método sociológico. São Paulo: Abril
Cultural, 1985.

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DIVERSIDADE SEXUAL E FORMAÇÃO
DOCENTE NA SECRETARIA MUNICIPAL
DE EDUCAÇÃO DE MANAUS (SEMED):
DISCUSSÕES PRELIMINARES
Adan Renê Pereira da Silva1
Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas2

RESUMO: Enquanto espaço de acolhimento pelo qual, em tese, todo sujeito deve
passar, a escola precisa estar preparada para a diversidade. Nesse sentido, ainda se
percebe grande dificuldade de aceitação e inclusão do sujeito que foge da heteronor-
matividade vigente, o que necessita ser problematizado no campo de formação dos/
as professores/as. Este texto objetiva discutir perspectivas e desafios da formação de
professores e de professoras com foco inclusivo da diversidade sexual humana. Para
tal, utilizaram-se duas entrevistas realizadas com professoras da rede municipal de
ensino de Manaus, Amazonas, fruto de pesquisa de doutorado. Os resultados mos-
traram que a formação de professores e de professoras para a diversidade sexual é
urgente, principalmente quando consideramos as premissas dos Direitos Humanos,
já que o campo ainda é atravessado por preconceitos, estigmas e silenciamentos que
potencializam a evasão escolar de sujeitos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transe-
xuais e travestis).
Palavras-chave: Educação. Diversidade sexual. Formação de professores.

INTRODUÇÃO
Quando criança, um dos autores deste texto sofreu homofo-
bia em uma escola da rede pública da cidade de Manaus. Aos 9 anos, du-
rante a assim chamada “hora da merenda”, corria com os demais colegas
brincando de “manja pega” e gritava em alto e bom tom enquanto fazia
isso. Uma outra criança, mais velha, abordou-o no corredor e disse, com
a voz alterada: “--Pare de gritar como um veadinho ou vou te dar uma
surra”. Ao voltar do intervalo, queixou-se para a professora. O caso foi
simplesmente abafado e, à época, perdeu-se boa parte da vontade de
brincar durante o intervalo, porque precisaria abdicar de uma parte de
si, se quisesse brincar de manja pega3.
1 Adan Renê Pereira da Silva é psicólogo na Universidade Federal do Amazonas, doutorando
em Educação pela Faculdade de Educação da mesma instituição. adansilva.1@hotmail.com.
2 Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas é pós-doutora pela Universidade de Minho,
Portugal. Professora do Programa e Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Amazonas. suelyanm@ufam.edu.br.
3 Brincadeira que as crianças realizam em grupo, com dois tipos de participantes: os pegadores
(no Amazonas chamado de “manja”) e os que evitam serem apanhados (“pegados”) para não
se tornarem os pegadores (“a manja”).

- 21 -
Tomando a liberdade de manter somente mais um parágrafo
em tom pessoal, acreditamos que situações como estas não sejam tão
isoladas assim, especialmente em Manaus, realidade de onde parte a
presente pesquisa. Henriques et al (2007) citam uma pesquisa intitulada
Perfil dos Professores Brasileiros, realizada pela UNESCO, entre abril
e maio de 2002, em todas as unidades da federação brasileira, na qual
foram entrevistados 5 mil professores da rede pública e privada, a qual
revelou, entre outros dados, que, para 59,7% dos docentes é inadmis-
sível que uma pessoa tenha relações homossexuais e que 21,2% deles
tampouco gostariam de ter vizinhos homossexuais.
Outra pesquisa realizada pelo mesmo organismo evidenciou,
por exemplo, que em Manaus, 20,5% dos professores acreditam que a
homossexualidade é uma doença. Em uma lista de seis exemplos de vio-
lência, estudantes do sexo masculino colocaram “bater em homosse-
xuais” no sexto lugar (HENRIQUES et al, 2007).
Assim, para além de alarmante, esses estudos induzem à re-
flexão acerca da formação de professores e de professoras para a diversi-
dade sexual. Afinal, em uma sociedade que se diz democrática, e em um
sistema jurídico que se pauta na principiologia dos Direitos Humanos,
cuja Constituição chegou a ter o epíteto de Constituição Cidadã, é as-
sustador que sujeitos passem por constrangimentos em um ambiente
por natureza plural como é a escola, unicamente por terem orientações
sexuais e identidades de gênero discrepantes do padrão heterossexual,
ou seja, por não estarem nos padrões heteronormativos. Assim, enten-
de-se ser importante refletir sobre os desafios e perspectivas postos à
formação docente em um momento em que se constata o aumento do
conservadorismo no Brasil, o qual se manifesta ora juridicamente, por
meio de propostas de leis como o projeto “Escola sem Partido”, ora pelo
desmerecimento de teorias científicas como a de “gênero”, que se tornou
“ideologia de gênero” no meio religioso, bem como pelo reaparecimen-
to de posturas como a repatologização da homossexualidade, mesmo
estando tal orientação sexual excluída do rol oficial de doenças estabe-
lecido pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS). Entende-se
que falar sobre o tema é uma maneira de resistir.
Assim, a proposta desta escrita é apresentar dados parciais de
pesquisa em nível de doutoramento acerca de como gênero e diversida-
de sexual estão sendo produzidos em cursos de formação de professo-
res, tal como representados pelos docentes que passaram pela formação,

- 22 -
pensando como tal entrecruzamento pode fornecer subsídios para tor-
nar a formação docente inclusiva e equânime. Para tanto, apresenta-se
o resultado obtido por meio de duas entrevistas já realizadas com pro-
fessoras da rede municipal de ensino da cidade de Manaus, capital do
Amazonas.

GÊNERO, DIVERSIDADE SEXUAL E EDUCAÇÃO


Para Campos (2015), a reflexão sobre mentalidades e práti-
cas em relação à sexualidade, gênero e diversidade sexual nos remete
aos conceitos de significado, sentido e prática social. Significados cons-
truídos, compartilhados e cristalizados historicamente que, apropriados
pelos indivíduos, tornam-se sentidos (subjetivação de significados) e,
articulados, sustentam a abordagem dessa temática nas escolas: discipli-
nar, normativa e reducionista.
Sexo e gênero são componentes da sexualidade, sendo que o
gênero se refere à construção social do sexo anatômico, distinguindo-
-se, assim, a dimensão biológica (sexo) da social (gênero) e implicando
uma variedade de possibilidades de ser/existir no mundo, para além do
binarismo tradicionalmente enraizado no pensamento ocidental e in-
ternalizado por meio de instrumentos como a religião judaico-cristã e
a própria educação acrítica. Se ser macho ou fêmea é determinado pela
anatomia, a maneira de ser homem e de ser mulher é o resultado da
cultura, da realidade social (CAMPOS, 2015).
Este trabalho segue a perspectiva de Reis (2016), autora que
entende a diversidade como valor, característica natural do ser huma-
no, como forma de existir: variedade e convivência de pessoas de ideias
diferentes no mesmo espaço das salas de aula do ensino regular, onde a
heterogeneidade deve se sobrepor à homogeneidade.
Concorda-se com Seffner (2017), para quem, nos tempos
atuais, qualquer pessoa atenta perceberá questões de gênero e sexualida-
de no epicentro dos debates. Grupos com propostas éticas e políticas di-
versas radicalmente produzem enfrentamentos nessas questões, sendo a
escola um território especial nessa arena. Para o autor, basta pensarmos
no movimento conhecido como “ideologia de gênero” (o qual retirou
de numerosos planos de educação a menção a questões de gênero e suas
desigualdades); as proposições legislativas que se alinham com o Projeto
Escola sem Partido (onde se afirma que existe a “ideologização” de con-
teúdos de disciplinas por parte dos docentes, para adoção de condutas

- 23 -
de acordo com a moral do/a professor/a, especialmente moral sexual,
contrapondo-se à família) ou as tentativas de modificação da Lei de Di-
retrizes e Bases (com a tentativa de sobreposição dos valores familiares
sobre a educação escolar nos aspectos ligados à educação moral, sexual
e religiosa, vedando-se a transversalidade ou técnicas subliminares no
ensino desses temas), sem contar as demais iniciativas legislativas, para
percebermos as disputas que permeiam o cotidiano escolar pela sobera-
nia do que pode ser dito e ensinado ou não.
Nesta linha de raciocínio caminham Wenetz, Schweng e Dor-
nelles (2017), os quais corroboram a necessidade de uma análise social
complexa e um engajamento teórico-político, principalmente após aná-
lise do cenário brasileiro como exposto no parágrafo anterior: com gru-
pos organizados que movimentam um “ativismo religioso reacionário”
(p. 24) no Brasil e em outros países e que aqui difundiram o pensamento
de que qualquer aproximação do currículo com discussões de gênero e
sexualidade se constituiria como uma ação de ideologia de gênero. Nes-
te diapasão, inicialmente vinculado a grupos católicos e neopentecos-
tais, tais ações seriam meios de ataque a famílias, sendo a contenção da
discussão uma maneira de retomar a primazia da família na educação
moral dos/das sucessores/as e disputar concepções de gênero, voltando-
-as para as bases biológicas. Para os autores (2017, p. 24):
Assim, a organização e a envergadura política destes grupos junto
as bancadas religiosas no Legislativo criaram mobilizações diversas
em âmbito nacional de modo a produzirem a exclusão das expres-
sões gênero, igualdade de gênero, diversidade sexual e sexualidade,
bem como objetivos que estivessem vinculados à pluralização de gê-
nero e da sexualidade dos Planos Municipais, Estaduais e do Plano
Nacional de Educação.

Fato é que, negando-se ou não, as diferentes vivências da


sexualidade e as plurais expressões de gênero estão sendo vividas e
aprendidas cotidianamente. Os modos de educação e ensino sobre se-
xualidade e sobre ser/viver um corpo são produzidos por diferentes pe-
dagogias culturais, entre elas, a escola (WENETZ; SCHWENGBWER;
DORNELLES, 2017).
Um fator de ordem histórica para a ausência do debate sobre
gênero e sexualidade na área de educação é apontada por Dinis (2008),
para quem, no cenário brasileiro, o debate esteve restrito durante vá-
rios anos a áreas como a Sociologia, a Psicologia e a Crítica Literária,

- 24 -
sendo bastante sintomática sua ausência na área da Educação. Contu-
do, salienta o autor que houve uma virada de quadro a partir de 1990,
com trabalhos como o da pesquisadora Guacira Lopes Louro sobre a
exclusão das minorias de gênero na educação. Desde então, pesquisa-
dores e pesquisadoras, de importantes centros universitários do país,
têm debatido temas como gênero e sexualidade com foco em uma visão
culturalista, rompendo com o paradigma biologizante predominante.
Rossi, Vilaronga, Garcia e Lima (2012) prelecionam que, com
o movimento feminista, o respaldo de novas legislações e incentivos, o
coletivo de mulheres começa a se fortalecer e passa a cobrar ações do
governo, da sociedade, do coletivo. Nessa linha histórica, os movimen-
tos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros (LGBT) ganham mais
visibilidade, e a temática começa a entrar na escola, ainda que de manei-
ra muito discreta. Enfim a sexualidade ganhará um espaço no contexto
escolar, embora muitas vezes de maneira errônea e resistente, multipli-
cando sua ação nesse ambiente e também no ambiente extramuros.
Ainda olhando para a escola de uma perspectiva histórica,
poderemos ver as diferentes formas como ela foi conclamada a colocar
a sexualidade em discurso e como tais questões estão ligadas a fatos
constituídos como problemas sociais no contexto e no momento em
que estão situados. Estratégias pedagógicas foram criadas de modo a
administrar a sexualidade e a vida social. Assim, as intervenções sobre a
sexualidade na escola passaram por diferentes focos de atenção, como o
onanismo, as IST, a chamada gravidez na adolescência e agora o respeito
à diversidade sexual (ALTMANN, 2013).
A literatura também aponta que tal situação tem muito a ver
com uma educação que foi marcada por uma concepção de sujeito ba-
seada em ideais da Psicologia da Aprendizagem e da Psicologia do De-
senvolvimento, repletas de discussões normativas e naturalizadas que a
Biologia corroborou – particularmente aquela de leitura mais darwinis-
ta de evolução, fazendo com que o olhar sobre a diversidade fosse or-
denado e sistematizado em uma escala hierárquica de desenvolvimento
(DINIS, 2008).
Para o autor, apesar de termos algum avanço, ainda se podem
notar vários espaços a serem preenchidos, como a resistência institu-
cional de financiadoras de pesquisa como o CNPq na criação de uma
nova área de conhecimento que englobe os estudos de gênero. Além
disso, a necessidade de mais espaço junto aos Parâmetros Curriculares

- 25 -
Nacionais (PCNs), os quais, embora ressaltem a necessidade de se tratar
a sexualidade como tema transversal, não mencionam nada especifica-
mente em relação à homossexualidade, por exemplo.
Apesar de falhas encontradas, há de se reconhecer com Rossi,
Vilaronga, Garcia e Lima (2012) que o primeiro documento oficial que
abriu possibilidades para essas temáticas serem levadas à escola foram
justamente os Parâmetros Curriculares Nacionais. Ainda que repletos
de ideias biologizantes, naturalizantes e normativas, tanto da sexualida-
de quanto das relações de gênero e de excluírem uma problematização
adequada acerca da diversidade sexual, foi o documento que deu o pri-
meiro passo para os avanços na discussão e apresentação da temática da
sexualidade.
Quando se critica o documento é por se entender com Cam-
pos (2015) que a sexualidade humana não se limita a um corpo que pos-
sibilita reprodução, que engravida, que adoece e que se previne. É uma
construção pessoal/social que se forma ao longo da vida, num processo
contínuo e complexo, que articula aspectos biológicos, psicológicos, so-
ciais, culturais e históricos, e que pode ser vivenciada com foco em di-
ferentes possibilidades em relação às orientações sexuais (hétero, homo
e bissexualidade) e às identidades de gênero (percepção subjetiva de ser
masculino ou feminino, conforme o convencionalismo estabelecido).
Um dos dados obtidos nessa revisão foi a de duas disciplinas
presentes na escola que aparecem com bastante potencial para pensar
questões de gênero e sexualidade. A Educação Física, pelo seu contato
com corpos e pelo contato entre corpos propiciado por suas ativida-
des, e a Biologia/Ciências, por ter como um de seus temas a reprodu-
ção humana. Passa-se aqui a enfatizar algumas reflexões neste sentido,
para que professores e professoras tenham material para subsidiar suas
práticas em uma perspectiva cultural, ao passo que se salienta que, por
serem temas transversais, gênero e sexualidade podem ser trabalhados
em qualquer disciplina escolar.
Para Wenetz, Schwengber e Dornelles (2017), a Educação Físi-
ca teria, em uma pedagogia cultural, potência no gênero-sexualização dos
corpos, por ser uma instância prática de fabricação do sujeito com foco em
caminhos normativos, campos de inteligibilidade e de políticas fundantes
por meio dos quais os sujeitos escolares tornam-se (im)possíveis e (ir)reco-
nhecíveis, afinal, o sujeito pode ser compreendido como efeito dos proces-
sos educativos e práticas pedagógicas normalizadoras da Educação Física.

- 26 -
Um exemplo nos é fornecido por Anjos e Goellner (2017), via
fenômeno da transexualidade. Para eles, se a transexualidade implica a
discordância entre a identidade de gênero e a designação sexo/gênero
atribuída no nascimento, ao transformar as representações de femini-
lidade/masculinidade, deslocando o sexo do gênero, as/os atletas trans
visibilizam não apenas novos corpos e subjetividades, como demandam
ações em prol de sua inclusão nas práticas corporais e esportivas, exer-
cendo, assim, uma função política e pedagógica. Dessa forma, a presen-
ça de pessoas trans no esporte torna-se fundamental não apenas para
a sua visibilidade e empoderamento, mas também como temática a ser
discutida no contexto escolar, sobretudo na disciplina Educação Física,
que não raras vezes torna o esporte espetacularizado como fonte de ins-
piração para seu acontecer.
No que tange à ligação com a Biologia/Ciências, esta pode
ser explicada parcialmente pelo surgimento da epidemia de aids, a qual,
para Altmann (2013), deu visibilidade à pluralidade de expressões da
sexualidade, bem como reafirmou um lugar de importância para a es-
cola no que se refere ao tema. O caráter preventivo da prática educati-
va consolidou-se quando desta epidemia, ainda que a sexualidade de
crianças e adolescentes já fosse objeto de atenção das instituições peda-
gógicas desde a modernidade.
Entretanto, quando pensadas de uma perspectiva biológica,
práticas educativas sobre a sexualidade têm dificuldades de contemplar
a diversidade sexual. As relações sexuais acabam sendo pensadas com
foco em uma lógica reprodutora, enfatizando o papel que ocupam na
geração de um novo ser no ciclo reprodutivo. Isto acaba gerando uma
estratégia limitada por não contemplar outros aspectos da sexualidade,
correndo o risco de pouca eficiência nos objetivos preventivos, além de
não contemplar a diversidade sexual, ficando restrita à heterossexuali-
dade (ALTMANN, 2013).
Neste mesmo viés, pensam Silva e Santos (2017). Para eles,
o enfoque excessivo da sexualidade em prevenção – ISTs (infecções
sexualmente transmissíveis) e gravidez, reduzida a uma leitura biolo-
gicista – legitimam a associação da sexualidade exclusivamente com a
reprodução, levando à convicção de que a educação sexual inclui apenas
conteúdos afeitos à biologia e à fisiologia do aparelho reprodutor e é
consequência da negação do sexo como fonte de prazer.
Estratégias de resistência não implicam simplesmente elevar
a quantidade de estudos e referências à exclusão da homossexualida-

- 27 -
de na educação à mesma quantidade de estudos e referências dadas às
mulheres, mas fazer com que a categoria gênero possa também emergir
durante o debate, já que no aspecto teórico tal categoria (gênero) precisa
ser trabalhada. Um risco da naturalização das orientações sexuais é que
a relação com a diferença fique apenas no plano das políticas de tolerân-
cia, um respeito aos direitos do outro desde que o outro permaneça no
seu eterno lugar de si mesmo, mantendo seguro os territórios delimita-
dos de formas padronizadas de viver as condutas sexuais (DINIS, 2008).
Para o autor, discutir a questão da diversidade sexual e de
gênero não seria apenas uma condição particular pertinente a grupos
minoritários especiais e, portanto, algo a ser ignorado por um currículo
que visa atender a maioria heterossexual que frequenta o espaço escolar.
Antes de educar sobre a sexualidade, talvez os/as próprios/as educado-
res/as tenham que ser educados/as.
A associação entre educação e diversidade sexual está inserida
no contexto de relações de poder instauradas, geradas por intermédio
de produções discursivas e não discursivas sobre a sexualidade que, em
outros momentos históricos, teve como atenção diferentes temas, como
a masturbação, a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis,
a aids, as relações de gênero e gravidez (ALTMANN, 2013).
Dessa maneira, por meio da historiação do tema e da pro-
blematização de como encontra-se estruturado atualmente, é sugestiva
a necessidade de revisão do modo como a escola pensa gênero e di-
versidade sexual, havendo necessidade de um olhar menos biologicista
e regulatório do corpo e da sexualidade e maior abertura para que os
temas sejam trabalhados no ambiente escolar pautados por uma pers-
pectiva culturalista, da inclusão e do respeito pela alteridade. Como um
dos polos que possui grande potencial para proporcionar a mudança é o
docente, encaminha-se a discussão para pensar, no campo da formação,
como mudar o atual panorama.

DIVERSIDADE SEXUAL E FORMAÇÃO DE PROFESSO-


RES E DE PROFESSORAS: O QUE QUEREMOS?
Em interessante pesquisa de revisão bibliográfica, Scherer e
Cruz (2016) revisaram a temática gênero, sexualidade e formação de
professores, com foco nos trabalhos apresentados na Associação Nacio-
nal de Pesquisadores em Educação (ANPEd), examinando 25 trabalhos
apresentados em reuniões anuais, no período de 2004 a 2014. Como

- 28 -
conclusão, os autores apontam a importância da discussão dessas temá-
ticas tanto na formação inicial como na formação continuada de docen-
tes e que, mesmo que possa ser visível a ampliação de conhecimentos e
a reflexão e debates em torno das temáticas de gênero e sexualidade, não
devemos entender esses movimentos como garantia de mudanças de-
finitivas aos comportamentos discriminatórios que ocorrem na escola
com os diferentes sujeitos envolvidos, sejam eles professores/as, funcio-
nários/as, alunos/as ou a comunidade escolar como um todo.
Já em estudo de André, Simões, Carvalho e Brzezinski (1999)
realizaram análise de conteúdo de 115 artigos publicados em dez perió-
dicos nacionais e internacionais de 284 dissertações e teses produzidas
nos programas de pós-graduação em educação e de 70 trabalhos apre-
sentados no Grupo de Trabalho Formação de Professores da ANPEd
na década de 1990, e encontraram trabalhos que focalizam o papel das
tecnologias da comunicação, dos multimeios ou da informática no pro-
cesso de formação, mas perceberam quão raras são as pesquisas que
enfatizam o papel da escola no atendimento às diferenças e à diversida-
de cultural, o que nos mostra a recentidade dos trabalhos com gênero
e diversidade sexual e, de certo modo, sua insuficiência, o que torna
precária a formação docente na temática.
Isso é confirmado, pelo menos em âmbito nacional, por Ca-
nen e Xavier (2011) que, ao analisarem a produção do conhecimento
nos periódicos Revista Brasileira de Educação e Cadernos de Pesquisa,
por serem ambos de alcance internacional, no período de 2001 a 2009,
não verificaram, em nenhum deles, qualquer menção a estudos de gê-
nero que abordassem a perspectiva da identidade coletiva homossexual,
ao contrário da literatura internacional, no qual os denominados queer
studies (teoria queer) têm embasado a questão. As autoras também per-
ceberam a ausência de experiências com diversidade sexual nas escolas.
Ainda nesta linha de raciocínio, pesquisa de campo de Madu-
reira e Branco (2015) com professores e professoras da rede pública do
Ensino Fundamental da rede pública de ensino do Distrito Federal indi-
cou a necessidade de incorporação dos estudos de gênero e sexualidade
nos cursos de Licenciatura, atividades de capacitação na área, que con-
templem discussões sobre as raízes histórico-culturais e as bases afetivas
dos preconceitos e adoção de uma abordagem integrada de combate à
homofobia e ao sexismo.
Assim, as pesquisas caminham no sentido de nos alarmar so-
bre a ausência das discussões e sobre o que fazer para torná-las efetivas.

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Altmann (2013) chama a atenção para um ponto interessante. Diferen-
temente das estratégias educativas de prevenção das IST, da aids e da
gravidez, que em muitos casos se pautaram em um discurso negativo
que mostrava os malefícios das doenças e da própria gravidez, o com-
bate à homofobia tem buscado se afirmar a partir de estratégias posi-
tivas, como a promoção do respeito à diversidade sexual. Entretanto,
nem sempre tal perspectiva é socialmente aceita, pois, em alguns casos,
ela é equivocadamente lida como incentivadora da homossexualidade,
especialmente por segmentos religiosos, como foi o caso da distribuição
de vídeos produzidos pelo Programa Brasil sem Homofobia, em 2011, o
qual obteve forte reação por parte da bancada evangélica conservadora.
Aliás, a negação social do tema potencializa-se quando este
é encarado pela perspectiva religiosa judaico-cristã. Alcantara (2015) é
um dos autores que percebe a influência das ideias religiosas no silen-
ciamento e invisibilização da diversidade em sala de aula. Na pesquisa
por ele conduzida, o autor salienta a emissão de opiniões enfáticas por
parte dos alunos fundamentadas na religião e tratadas como verdades
indiscutíveis. Ao indagar os sujeitos da pesquisa sobre um possível im-
passe entre seus valores religiosos e a perspectiva dos direitos humanos
que está nas legislações educacionais, não raro os valores religiosos se
sobrepuseram a um discurso mais voltado para o respeito e a compreen-
são da diversidade sexual. Em suas palavras:
Minha problematização se situa nesse impasse da fé como verdade
inquestionável. No discurso de alguns religiosos está presente a con-
vicção de que o direito da igreja está acima dos direitos humanos
e que se há fé, não se pode problematizar, mas somente aceitar e
seguir. Quando o debate entra nessa esfera da fé, não cabe a mim
discutir ou discordar, apenas respeitar. Mas sinalizo que esses dis-
cursos encaminham o debate para a polêmica e funcionam como
obstáculos para se pensar a formação de professores para a diversi-
dade sexual (ALCANTARA, 2015, p. 70).

No que tange à formação de professores, Rossi, Vilaronga,


Garcia e Lima (2012) destacam a incipiência da formação continuada.
Não há formação adequada para trabalhar com a temática da sexualida-
de e da diversidade sexual, falha presente tanto na Graduação quanto na
formação continuada dos/as professores/as no Brasil.
Nesse sentido, para Reis (2015), temos um sério desafio, pois
a efetivação do direito à educação requer estratégias eficazes de enfren-

- 30 -
tamento aos desafios que se interpõem ao processo de construção dos
sistemas educacionais inclusivos. Um dos caminhos mais seguros, na
consecução da tarefa, é exatamente a incipiência da formação (inicial e
continuada) dos/das profissionais docentes, sobretudo para o cumpri-
mento do papel social que a eles compete. É necessária a autonomia do-
cente, pois é por meio do exercício dela que se poderão buscar soluções
para as diversas situações que perpassam e circundam a sala de aula,
bem como informações e conhecimentos que os tornem mais habilita-
dos a trabalhar e desenvolver projetos interdisciplinares e interculturais.
Essa ideia vai ao encontro do pensamento de Rossi, Vila-
ronga, Garcia e Lima (2012), autores que definem a escola como um
espaço de igualdade e equidade social, definição que encontra eco no
presente trabalho. A importância da escola diante destas questões está
relacionada ao caráter democrático de tal instituição, sendo o respeito à
diversidade sexual imprescindível, caso contrário, ela instaura práticas
discriminatórias e heteronormativas que excluem ou invisibilizam as di-
ferenças (ALTMANN, 2013).
Altmann (2013) nos aponta algumas possíveis estratégias de
formação diante da diversidade sexual, quais sejam:
1. A inclusão do tema da diversidade sexual e de gênero
nos currículos de formação de nível superior, para que
novos/as profissionais possam desenvolver futuramente
estratégias de resistência no currículo heteronormativo;
2. Manter a exploração de possibilidades educativas em
eventos, cursos de formação continuada e de especiali-
zação, pesquisas de pós-graduação etc, no que tange à
temática;
3. Há um espaço que pode ser potencializado, o Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID),
o qual pode tornar possível a criação de programas de
intervenção sobre gênero e diversidade sexual, ou que te-
nham esses temas como um dos seus objetos de atenção,
por conseguinte, de formação profissional;
4. Possibilidades educativas ligadas à diversidade sexual po-
dem ser construídas por intermédio da arte, como artes
plásticas, filmes, curta-metragens, literatura adulta e in-
fantil, entre outros. A diversidade sexual tem sido tema
tratado direta ou indiretamente nestes campos, o que

- 31 -
permite seu reaproveitamento na esfera educativa. Tais
recursos podem contribuir para o trato da sexualidade
para além da dimensão biológica.

No que tange ao primeiro ponto elencado, Alcantara (2015)


respalda tal pensamento salientando que cabe à universidade, pelo seu
compromisso social com uma sociedade mais justa, pensar estratégias
de formação que dialogue com esses valores que pautam o preconceito
e a discriminação. Afinal, para ele, a diversidade sexual, bem como a
diversidade étnico-racial e todas as dimensões da diversidade, não estão
sendo pensadas de forma articulada para que se formem professores/as
que atuem como transformadores/as da escola colonizada, que mantém
um preconceito transversalizado sobre aquilo que está fora de seu es-
pectro de normalidade.
Silva e Santos (2017) ajudam a pensar a questão de quem deve
realizar o papel do orientador. Por razões já destacadas neste texto, os
autores salientam que, historicamente, a comunidade escolar tem de-
legado às professoras e aos professores de Ciências e de Biologia a res-
ponsabilidade pela prática de Educação Sexual na escola, bem como a
tarefa de discutir quaisquer situações que envolvam manifestações da
sexualidade, o que, na verdade, por ser um tema transversal, deve ser
responsabilidade de todos e de todas os/as professores/as.
Corre-se o risco de, ao associar educação sexual aos docentes
de Ciências e de Biologia, torná-la extremamente associada ao corpo
humano e aos aparelhos reprodutores masculino e feminino. Isso ge-
ralmente conduz a um caráter preventivo, associado à disseminação do
medo e da doença, contribuindo para concepções rigidamente estereo-
tipadas e heterossexistas, em relação ao gênero e à diversidade sexual.
Para Silva e Santos (2017, p. 5):
Nessa perspectiva, para adequação da abordagem de uma educação
sexual, como proposta pelos PCN’s, se faz necessárias mudanças na
formação dos profissionais da educação, visto que os mesmos ainda
se encontram despreparados diante de tal assunto. É necessária uma
formação voltada para o sentido amplo da sexualidade, de forma a
abranger todas as questões, extrapolando as influências do contexto
cultural e biológico.

Para Canen e Xavier (2011), a diversidade deve ser assumida


dentro de uma política de crítica e de compromisso com a justiça social.

- 32 -
Isso significa questionar, desvelar e superar os mecanismos que forjam
as desigualdades e calam sujeitos e grupos oprimidos, privilegiando
projetos, práticas e espaços que permitam sua valorização, seu resgate
e sua representação. Dentro dessa abordagem, a formação continuada
de professores tem papel muito importante, uma vez que preparar pro-
fessores/as para refletirem e trabalharem com a diversidade cultural no
contexto escolar significa abrir espaços que permitam a transformação
da escola em um local em que as diferentes identidades são respeitadas
e valorizadas, consideradas fatores enriquecedores da cidadania.
Pensar conceitos como heterossexualidade e homossexuali-
dade como sendo historicamente produzidos constitui-se como estraté-
gia de resistência às tentativas de rígidas fronteiras entre as práticas se-
xuais, permitindo a construção de uma variação temática bastante vasta.
Ao apontar a construção histórico-cultural das identidades sexuais e de
gênero, o/a professor/a pode auxiliar a/o educando/a a descobrir os li-
mites e possibilidades impostas a cada indivíduo quando se submete aos
estereótipos que são atribuídos a uma identidade sexual e de gênero. E
isso parte exatamente na direção oposta à determinada abordagem da
questão homossexual realizada pelos veículos midiáticos na produção
de uma “naturalização” do sujeito homossexual (DINIS, 2008).
Para repensar a maneira de trabalhar com gênero/diversida-
de sexual, o autor propõe alguns questionamentos de práticas postas
como “naturalizadas”, como o uso da linguagem sempre no masculino
para referir-se à coletividade – o que denomina de “papel fascista da
linguagem”, por nos obrigar a dizer o que se quer que seja dito; o em-
prego de “homossexualidade” no lugar de “homossexualismo”, por ter
o segundo sido o termo usado para designar categorias psiquiátricas
patológicas de perversão ou usar o termo “homoerotismo”, bem como
outras estratégias de resistência, como incluir os estudos sobre gênero
nos cursos de formação de professores/as; divulgar as principais produ-
ções bibliográficas sobre o assunto; incentivar novas pesquisas; exigir
critérios mais rigorosos na publicação de textos didáticos e científicos
– em termos macropolíticos -, além de analisar criticamente com os/
as discentes imagens do masculino e do feminino e também acerca da
homossexualidade e heterossexualidade produzidas pelos veículos da
mídia como a internet e a televisão, já que os recursos midiáticos con-
correm na modernidade com a formação escolarizada, educando e pro-
duzindo signos de identidade às vezes tão sexistas e excludentes quanto

- 33 -
à escolarização, ou mesmo utilizar os conteúdos de disciplinas como a
História ou as Ciências Sociais para apontar a construção histórica da
subjetividade em cada cultura, ajudando a/o educanda/o a descobrir os
limites e possibilidades impostos a cada indivíduo quando se submete
aos estereótipos que são atribuídos a uma identidade de gênero – aspec-
tos denominados pelo autor de micropolíticos.
Interessante, para ele, que:
No entanto, essa excessiva discursividade da mídia em relação ao
tema nem sempre tem resultado em uma diminuição dos sintomas
de sexismo e homofobia. Se a visibilidade de formas alternativas de
viver a sexualidade, tematizadas pela mídia, impõe certo reconheci-
mento das causas ligadas às minorias sexuais e de gênero, forçando
também a escola a rever padrões normativos que produzem a se-
xualidade dos/das estudantes, por outro lado também não deixa de
acirrar manifestações de grupos mais conservadores. Pois, em um
momento histórico em que mais se fala sobre educar para a diferen-
ça, vivemos em um cenário político mundial de intolerância que se
repete também no espaço da vida privada, em determinada dificul-
dade generalizada em nos libertarmos de formas padronizadas de
concebermos nossa relação com o outro (DINIS, 2008, p. 478-479).

Outro aspecto salientado pelo autor, que impacta diretamente


a formação de professores e de professores na perspectiva da diversida-
de sexual e do gênero, é o confronto de como o docente vive sua própria
sexualidade, pois, somente quando seguro de si, pode-se falar na pers-
pectiva do outro.
Assim, pode-se notar, por meio dessa revisão, que há muitas
alternativas para o trabalho com sexualidade e gênero que extrapolam
a leitura biológica. Entretanto, todas elas parecem esbarrar em uma for-
mação inicial e continuada docente falha ou na sua ausência. A temática
parece invisibilizada e silenciada na escola, o que aponta para a necessi-
dade de sua problematização. Sendo a/o professor/a figura proeminente
no espaço educativo, é necessário que se torne elo enquanto elemento
resistência, entretanto, para isso, precisa-se que ela/ele tenha uma for-
mação crítica e problematizadora, o que, infelizmente, como aqui visto,
não está acontecendo nem quando de sua formação para a docência –
especialmente em nível universitário -, tampouco nos demais espaços
de formação de professores e de professoras.
RESULTADOS
Neste momento, descreve-se a análise dos resultados obtidos
preliminarmente por meio de duas entrevistas semiestruturadas com

- 34 -
docentes que passaram pelo curso de formação continuada da Secreta-
ria Municipal de Educação de Manaus (SEMED). Como outrora salien-
tado, tais entrevistas são resultado preliminar de uma pesquisa maior da
temática em nível de doutoramento.
Tomando em consideração a totalidade de informações apon-
tadas pelo atual estágio dos trabalhos e das entrevistas, pode-se afirmar
que a pauta de gênero e diversidade sexual nas escolas é incipiente. As
profissionais entrevistadas deixam entrever boa vontade em suas práti-
cas, entretanto, o cenário parece não ser dos mais favoráveis. As profes-
soras encontram resistências em efetivar o conteúdo da formação acerca
da inclusão da diversidade sexual e de gênero como parte de seu fazer
docente. Parece existir a compra do discurso do “pânico moral” do que
os setores conservadores chamam de “ideologia de gênero”. Os dados
obtidos apontam múltiplas variáveis envolvidas, como as questões re-
ligiosas em duplo viés: tanto da fé que as docentes professam, quanto a
das famílias dos discentes.
No caso dos primeiros, ambas as entrevistadas se declararam
espíritas, deixando margem para que entendamos sua religião como
progressista e que não visualiza a diversidade sexual como um “proble-
ma”. No caso dos segundos, os pais se sentem incomodados com as ati-
vidades que as professoras realizam no campo do gênero ou até mesmo
quando se viola algum preceito de consciência da família. Ganha terre-
no uma celeuma: a quem cabe educar sobre sexualidade e diversidade
sexual? À escola ou à família?
As influências religiosas aparecem na fala das duas entrevis-
tadas. Conforme relato da primeira: “-- Tem o mesmo pensamento, que
é seguido por igreja, que é seguido por preconceitos, por falta de lei-
tura, né?”. A segunda entrevistada chega a associar periferia e religião
evangélica como um obstáculo para trabalhar com gênero e diversidade
sexual: “--Se você for olhar a comunidade dos pais, dos alunos, a maio-
ria é evangélica. Isso dificulta muito, porque esse é um entendimento
totalmente diferente da diversidade sexual e de gênero”.
Ao lado da questão religiosa, três dificuldades ficaram paten-
tes na fala das entrevistadas como sendo as principais para trabalhar
gênero e diversidade sexual nas escolas. São elas:
• Resistência da família: a entrevistada 1 cita uma mãe que
chegou a procurar a diretora da escola chorando por con-
ta de um trabalho que a docente realizava com esta cate-

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goria: “[...] aí eu soube depois que ela procurou a diretora
da escola chorando, porque isso tava errado e não sei o
que. E alegando que isso não era papel da escola, enfim
[...]”. A segunda entrevistada relata que um familiar che-
gou a procurá-la pedindo que uma criança não fizesse
educação física porque o pai não gostava.
• Falta de apoio da escola: a primeira entrevistada fala da
surpresa que foi encontrar resistência dos próprios cole-
gas da escola: “eu já esperava essa resistência. Agora eu
não esperava a resistência dos colegas da escola: as outras
professoras e a pedagoga”. E fala da importância que pos-
sui esse apoio: “porque se a gente tem uma equipe escolar
que lapida a gente, que apoia a gente nas nossas decisões,
é muito mais fácil”.
• Falta de formação específica: apontada por ambas as en-
trevistadas, desde a formação na Universidade até as for-
mações inicial e continuada, há queixa geral de que os
processos de formação em torno desse eixo foram e são
deficitários.

É interessante notar como as professoras percebem as crianças


no processo formativo. Ambas entendem que elas são abertas ao tema,
corroborando a ideia de que o preconceito é socialmente construído e
que a escola pode funcionar como mediadora de uma sociedade mais
justa e fraterna.
Entretanto, se até agora foram apontados fatores que
fragilizam o processo, outros aparecem como potencializado-
res. As entrevistadas encontram fontes de resistência para lidar
com o conservadorismo vigente. Algumas falas são significati-
vas para mostrar o que as motiva a trabalhar com a temática de
gênero e diversidade sexual, como a da primeira entrevistada:
“Eu acho que tudo isso de ruim que acontece na sociedade hoje é
também herança de uma escola que se negou a trabalhar gênero,
a trabalhar diversidade, a trabalhar respeito. E eu acho que esse é
o momento da gente começar a discutir isso nas escolas, por mais
difícil que seja”. A segunda entrevistada é pontual: “É ver um dia o
mundo mais justo, sabe...”

Para ela: “--A gente que é professor, a gente precisa entender


que essa é a nossa responsabilidade de mudar o mundo [...]”. Prova-

- 36 -
velmente, tais falas são oriundas da representação que as docentes têm
de sua profissão. A primeira entrevistada pensa à docência para além
de mero tecnicismo, no que é seguida pela colega de profissão: “--pen-
sando sempre no bem-estar dos alunos e (no que) a gente pode levar
de bom pra eles [...]” (E1). “Mas a parte principal é a parte do cidadão,
do ser humano... dessa educação mais é... como eu poderia dizer? Mais
voltada aos direitos humanos” (E2).
De modo geral, as docentes sabem diferenciar gênero, orien-
tação sexual, sexo e refletir acerca da diversidade sexual. Pensa-se ser
tal constatação importante, tendo em vista a realização de um trabalho
sério, científico e comprometido com a ética inclusiva. Talvez o fato de
os temas surgirem espontaneamente na realidade docente fomente as
categorizações como unidade de análise. Entretanto, conhecer concei-
tos básicos não é o suficiente. As professoras sinalizam isso ao afirmar,
quando da pergunta, “eu não conheço muito” ou quando das oscilações
na hora da resposta ou mesmo quando do uso de alguns termos durante
a entrevista que estão inadequados ou em desuso. Por exemplo, ainda
se utilizou a expressão homossexualismo e talvez parte do relato da se-
gunda entrevistada verse sobre transexualidade e não sobre homosse-
xualidade.
Fato é que as demandas estão presentes na escola e, conforme
mostrado nas respostas, surgem de diversas formas: pela presença de
LGBT, pela violência, pelo preconceito e outras formas de discriminação,
inclusive partindo de professores/as, o que é alarmante. A família também
não dá conta das demandas, o que é explicitado pela segunda entrevista-
da, a qual relata que os alunos a procuram para tratarem de questões que
a família não sabe ou não quer falar sobre, no campo da sexualidade.
De maneira geral, o trabalho com as categorias gênero, se-
xualidade e diversidade sexual, na formação recebida, proporcionou aos
docentes instrumentos para ajudar a desconstruir papéis sociais estereo-
tipados em relação ao sistema sexo-gênero, principalmente. Também
foi visto como luta contra a desinformação. Diz a segunda entrevistada
que o senso comum carrega uma impressão errônea do que é o trabalho
com essas categorias e que o real trabalho pode ser instrumento contra
os estereótipos: “Não é esse o trabalho que se faz, só que as pessoas não
buscam se informar, as pessoas não buscam se qualificar”.
Outro ponto visualizado na fala das docentes foi sobre a im-
portância da formação ofertada pela SEMED: denotam que o instru-

- 37 -
mento é útil na desconstrução de papéis sociais, especialmente para a
Educação Física (ajudou uma das entrevistadas a desfazer o ideal de que
meninos brincam somente de bola e as mulheres fazem apenas dan-
ça), auxiliou a mostrar o quanto as questões de sexualidade e gênero
estavam invisibilizadas, o quanto há de erros e de lacunas no processo
de formação docente e serviu para dar respaldo ao que os professores
já pensavam, como diz uma das entrevistadas: “--Porque algumas já se
ofendiam, achavam que não, que estava errada essa história de dar rosa
para os meninos, porque isso iria fazer com que o menino seja gay”.
Interessante perceber que esse dado corrobora a literatura na
área, a qual afirma que a Educação Física acaba sendo um campo privi-
legiado para abordar a temática, pelo trabalho que acaba mobilizando
corpos e pondo-os em visibilidade.
Por fim, as professoras entrevistadas visualizam no curso uma
oportunidade para se (re) identificarem como docentes, sendo este um
elemento que forneceu subsídios para entenderem melhor seu papel
como professora.
Tendo em vista o exposto, ainda se evidencia como antecipa-
do tentar inferir das entrevistas elementos para corroborar ou refutar a
tese defendida neste trabalho. No que diz respeito à literatura sobre o
tema, foram corroboradas até o momento. É necessário lutar para uma
educação de fato para tod@s.

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
Tendo em vista o que foi exposto, pode-se perceber que as
diferentes sexualidades e a categoria gênero têm muito a oferecer ao
docente. Espera-se que este estudo tenha levantado a importância de
o sujeito ser entendido enquanto construção, para que a atuação do/a
professor/a seja pautada pela ética profissional e não por julgamentos
morais e/ou religiosos. Crê-se também que a produção aqui empreen-
dida pode contribuir para se pensar a importância da transversalidade
dos direitos humanos quando da atuação profissional. O sujeito precisa
ser respeitado em sua singularidade, para que a constante violação de
direitos seja erradicada e/ou minimizada.
Por meio dessa revisão, conseguiu-se perceber porque tantos
vieses e interesses estão em jogo quando se pretende discutir gênero e
diversidade sexual nas escolas: a constituição desse campo foi marcada
majoritariamente por estigmas, preconceito e discriminação, o que dá à

- 38 -
educação uma dívida histórica com os diversos segmentos da população
LGBT, sendo a escola, ainda, um espaço de exclusão do diferente.
Em um contexto no qual avanços e retrocessos caminham em
um processo de idas e vindas, como demonstra o Brasil dos dias atuais,
a escola precisa ser um local de discussão e pluralidade, sob pena de
ser perpetuada lócus de segregação do “diferente”. Para isso, o debate
sobre gênero e diversidade sexual precisa estar presente, o que tem se
tornado um grande desafio em um momento de instabilidade política,
social e econômica, fazendo com que a formação docente voltada para
o acolhimento da diversidade sexual seja uma proposta desnecessária,
incoerente, “ideologizada”.
Há um verdadeiro “pânico moral” em torno dos debates da
pluralidade sexual e expressão de gênero, tutelado pelo aumento do
conservadorismo. Mais uma vez a pluralidade de expressões sexuais e
de gênero saem rotuladas como “perigosas”, discurso esse muitas ve-
zes reproduzido em ambiente escolar, propiciando um espaço de não
aceitação que tende a gerar evasão. Daí que a formação inicial e fal-
ta da continuada docente seja palco de invisibilização e silenciamento
da temática, o que traz consequências extremamente danosas quando
consideramos a escola como um espaço de equidade e de promoção de
justiça social, sendo o maior dos desafios tirar a formação deste local
insalubre.
Terminamos a presente exposição com uma inquietante
pergunta que parece ser um eco interminável e que precisa reverberar
nos olhos e ouvidos do leitor atento: para quem queremos que a esco-
la exista? É com foco nesta resposta que as perspectivas de formação
docente, seja inicial ou continuada, podem ser pensadas. Daí a opção
pela expressão “considerações transitórias”, posto que muito do futuro
depende da resposta que a sociedade dará a essa questão. Todavia, a fun-
ção essencial do processo educacional escolar e não escolar é favorecer
o desenvolvimento das capacidades e potencialidades humanas tendo
em vista sua realização e bem-estar, o que requer, incontornavelmente,
respeito à diversidade por parte dos integrantes da sociedade humana.

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- 42 -
A DIVERSIDADE SEXUAL NA ESCOLA: EM
BUSCA DO ESTATUTO DA DIFERENÇA
Enio de Souza Tavares 4

RESUMO: O presente texto se refere à problematização do tema da diversidade


sexual por meio da categoria diferença. Buscamos nos afastar do conceito das re-
presentações da diferença como motivo de desigualdade e opressão que gera sofri-
mento, para encontrar o sentido mais potente do termo que pudesse nos dar fer-
ramentas para pensar uma educação mais libertária. Neste movimento buscamos
nas filosofias rebeldes, especialmente de Deleuze e Foucault, as provocações que
achamos consistentes para este intuito. De Deleuze tomamos seu argumento contra
o platonismo e sua interpretação de que Nietzsche convocava a afirmação dos simu-
lacros, entidades que não queriam ser cópias nem modelos. De Foucault extraímos
sua leitura dos gregos e romanos antigos a respeito do cuidado de si e a ética como
prática da liberdade, articulado com seu conceito de heterotopias, lugares que se
constituem pela heterogeneidade e pluralidades de fenômenos coexistindo. Essas
provocações nos colocam direto no contexto escolar para pensá-lo não como um
espaço de ajustamento, mas como um território que se esforça por se reinventar
para ser ocupado por habitantes diversos e legítimos.
PALAVRAS-CHAVE: Diversidade sexual. Educação libertária. Filosofia da dif-
erença.

INTRODUÇÃO
A problematização da educação quanto à diversidade sexual
tem sido tema polêmico no campo das disputas políticas atuais, colo-
cando em embate teórico e político pessoas extremamente conservado-
ras e pessoas atreladas a um discurso bastante libertário.
Queremos nesse texto abrir possibilidades de discussão no
campo da educação e no seu viés mais libertário, tomando como mote
uma forte crítica ao modelo de escola como uma instituição moderna,
reprodutora de um tipo de ideologia específica e construtora de uma
forma de produção de subjetividade.
Nesse sentido, vamos apontando para as contradições pre-
sentes no modelo de escola com sua função especifica, alcançando o
caminho das outras possibilidades de existências que podem se encon-
trar nas brechas dessas contradições, para parafrasear Gramsci.
Encontrando tais brechas, então, podermos pensar outros
modos de vida possíveis dentro da escola e outras formas de subjetiva-
ção em potência que ali estão. E é um pressuposto nosso que as brechas
4 Psicólogo, Mestre em Psicologia, doutorando em Educação pelo Programa de Pós-gradu-
ação em Educação da Universidade Federal do Amazonas.

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serão encontradas sempre, pela própria representação ontológica que
temos da realidade, de qualquer realidade: sempre dotada de contradi-
ção, heterogeneidade e fluxos.
Ao mesmo tempo em que seguiremos os fortes movimentos
de entrada do tema da diversidade sexual na escola por meio de profes-
sores, pesquisadores e pensadores da educação, os quais, em sua maio-
ria, têm como suporte as bandeiras do movimento feminista e o antigo
movimento gay. A entrada em cena das temáticas do gênero e da sexua-
lidade, tomadas como categorias históricas, produzem uma mudança
no cenário escolar e na própria forma de pensar a cultura escolar, pro-
movendo novas formas de existência, que caminham lado a lado com
modelos reacionários e conservadores (BALESTRINI, 2018).
Por essa via, e por fim, delinearemos nossos pressupostos
que sustentam nossas afirmativas e conjecturas, sempre aqui nos ba-
seando nas provocações dos chamados filósofos rebeldes. Em especial,
traremos aqui, algumas ideias de Deleuze e Foucault. Em Deleuze to-
maremos suas ideias em torno do simulacro platônico e sua forma de
lidar com tal fenômeno. De Foucault extrairemos sua discussão sobre
ética e liberdade e, em especial, trataremos de suas construções sobre
as heterotopias, uma alternativa ao que chamamos de utopia e que fica
no campo apenas do sonhado e jamais possível de ser alcançado (sobre
o conceito de heteropia trataremos mais adiante). Este empenho todo
no sentido de rastrearmos o estatuto da diferença em nossos processos
educativos que validem a pluralidade e não as encarcere em discursos
fechados.

A ESCOLA E SUA RELAÇÃO COM A DIVERSIDADE


Tomamos inicialmente aqui a ideia de Althusser, a de que
a escola é um aparelho ideológico do Estado, sabendo que o autor é
inspirado no marxismo e reconhecemos aqui a ideologia como aquelas
ideias que camuflam e/ou perpetuam as realidades de desigualdade. A
escola seria o espaço, nas nossas sociedades contemporâneas, junto com
a família e a igreja, onde tais ideologias seriam difundidas.
É importante nos determos sobre esse assunto, posto que te-
mos ouvido circular nos meios políticos e no cotidiano brasileiro o que
tem sido chamado de ideologia de gênero. Este termo não é um termo
utilizado pelos estudiosos de gênero, mas uma categoria utilizada por
pessoas conservadoras que de alguma maneira não aceitam as ideias

- 44 -
oriundas dos estudos de gênero. O conceito de gênero, segundo os cien-
tistas da área, é fortemente associado à historicidade e retira as perfor-
mances do masculino e do feminino do campo da biologia.
Assim, ser homem e ser mulher não é algo natural, mas cons-
truído social e historicamente. É isso que afirmam os estudiosos de gê-
nero. Eles denunciam que tomar o feminino e o masculino como natu-
rais, significa esconder as realidades que constroem as subjetividades e
as corporeidades do nosso tempo. E é bom lembrar que tais determi-
nantes produzem um mundo desigual para homens, entre si e, muito
mais, quando colocamos o foco na relação homem-mulher.
Desta forma, podemos, em boa lógica marxista, dizer que se
há alguma ideologia de gênero (tomando como ideias que camuflam
realidades de desigualdade) ela se assenta na biologização do homem
e da mulher. Atributos que são conquistadas pelo contexto das trocas
simbólicas e localizadas em uma data histórica, são tomados como par-
te da natureza de homens e mulheres. A ideologia está a resumir esta
diferença ao biológico; é ideologia porque cristaliza as situações de de-
sigualdades e de opressão. E, neste sentido, a escola também fez e faz
parte desse processo de construção das realidades opressoras.
Note-se que estamos falando ainda apenas em torno do bi-
narismo masculino e feminino, nem estamos mencionando as tantas
outras performances de gênero e de sexualidade que são possíveis no
campo do humano e que não são contempladas pelo que chamamos
de feminino e masculino. Para isso, ainda, a escola consegue ser muito
mais fechada, porque esse hermetismo está na sociedade e nas ideias e
afetos dos indivíduos concretos.
De alguma maneira a escola sempre tratou do tema da se-
xualidade, seja por meio da educação sexual ou pela docilização5 dos
corpos escolarizados. Por meio de diversas inserções, como programas
de saúde na escola, a escola sem homofobia, direito à diversidade, den-
tre outros, as questões de gênero e sexualidade irrompem no cenário
escolar (BALESTRIN, 2018).
5 O conceito de docilização refere-se ao fato de o poder disciplinar descrito por Foucault, e
presente nas instituições disciplinares por excelência, constituir um certo tipo de individuali-
dade com potencialização das habilidades e aptidões, ao mesmo tempo em que ligada à sutis
estratégias de obediência. No poder disciplinar, a disciplina “faz indivíduos”, instrumentaliza
e objetifica os indivíduos no seu exercício. Isso se realiza tendo o corpo como alvo. Foucault
demostra que o poder disciplinar se detém no controle exaustivo, meticuloso e contínuo das
atividades dos corpos, a ponto tal em que tais formas possam constituir o corpo como porta-
dor de uma relação particular entre utilidade e docilidade (não resistência, obediência)

- 45 -
Ao mencionarmos o tema da desigualdade e tomarmos a
escola como parte desse processo, podemos enxergar claramente suas
estratégias, posto que a escola sempre tratou o tema da diferença não
como uma potência, mas como dado para a construção das desigualda-
des, naturalizando-as, como estratégias claramente ideológicas.
Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende dis-
so. Na verdade, a escola produz isso. Desde seus inícios, a ins-
tituição escolar exerceu uma ação distintiva. Ela se incumbiu
de separar os sujeitos - tornando aqueles que nela entravam
distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela divi-
diu também, internamento os que lá estavam, através de múl-
tiplos mecanismos de classificação, ordenamento, hierarqui-
zação. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental
moderna começou por separar adultos de crianças, católicos
e protestantes. Ela também se fez diferente para os ricos e
para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das
meninas (LOURO, 2014).
Louro (2014) afirma que a escola delimita os espaços e serve
de códigos e símbolos para afirmar o que cada um pode ou não pode fa-
zer. Somente dessa afirmativa de Louro podemos concordar que a escola
se constitui como um lugar onde se expressa da subjetividade social. É
um campo desta.
Para González Rey (2004), a subjetividade se expressa como
um sistema complexo de signos e significados. Quando na afirmativa de
Louro identificamos a construção de delimitações por meio de códigos
e símbolos, parece-me que estamos falando de um mesmo tipo de ma-
nifestação ou pelo menos em algo que se toca, e se toca no campo da
semiótica.
A subjetividade social é uma expressão suprapessoal de senti-
dos e significados, com uma parte desses constituída de representações
(ideias, imagens) e outra constituída de afetos. Talvez seja esse o avanço
que González Rey faz em sua teoria da subjetividade: conceber a dimen-
são afetiva que compõe o cenário das trocas em nível mais propriamente
social. Em suas próprias palavras, ao retirarmos o afeto e as emoções
dessa discussão, ficamos apenas com o descrito na teoria das represen-
tações sociais, ou seja, apenas uma explicação em termos de produção
simbólica. O que me parece que é o que Louro está apontando.
Acrescentamos, portanto, ao conjunto das afirmativas de
Louro, a visão gozalezreyana6 para o nosso debate. Mesmo porque acre-
6 Fernando Gonzàlez Rey (1949-2019) foi psicólogo que criou uma teoria da subjetividade
em bases pós-modernas, articulando a teoria de Vygotsky ao terreno da Epistemologia da

- 46 -
ditamos na escola como um espaço não só como onde compartilha de
uma determinada subjetividade social, como também entendemos que
a escola é produtora de subjetividade. E, nesse sentido, a afeto não pode
ser desprezado.
Pensamos, e nisso concordamos com Foucault, que, acima de
tudo, esses códigos e símbolos que nos permitem ser ou não ser, poder
ou não poder fazer, também não apenas nos negam possibilidades como
constroem coisas. Ou seja, o poder não só proíbe, mas ele cria, produz.
E produz formas de existências, modulações afetivas, e humanidades
especificas.
Essa é uma das principais contribuições foucaultianas a res-
peito do poder. E o que é que se quer produzir na escola quando se pen-
sa nesses códigos e símbolos como produtores, ao mesmo tempo que
limitadores? Que tipo de subjetividade se quer produzir? Poderíamos
aqui ficar por algum tempo em digressões a esse respeito, mas vamos
eleger algumas coisas que podem estar em jogo.
A primeira coisa que podemos falar é que a escola produz
tristeza e tédio. Uma escola que trata as diferenças dessa forma e não
legitima todas os modos de existência e expressões de sexualidade, por
exemplo, produz pelo menos tristeza e tédio. E aqui não estamos falan-
do em termos daquela tristeza descrita por Melanie Klein e outros au-
tores psicólogos, a qual auxilia no processo de reflexão e de apropriação
do mundo como mais real.
Snyders (1993), em sua obra, questiona sobre a felicidade e a
alegria na escola, e tenta entender a razão pela qual a escola não é um
espaço de alegria. A conclusão de Snyders é política, em certa medida.
Seu argumento é de que pessoas tristes e entediadas não fazem revolu-
ção, para fazer revolução precisa de afeto alegre. O afeto alegre pode ser
contagiante, mobilizador de coletivos. Lembramos que isso também é
uma afirmativa walloniana7, pensada para dentro da sala de aula: um
professor empolgado pode contagiar a turma (GALVÃO, 2013).
Complexidade. Sua proposta teórica central se localiza na hipótese de que a subjetividade é um
sistema complexo de produção de sentidos e significados. Esse sistema se expressa em duas
dimensões: a subjetividade social e a subjetividade individual, as quais mantêm uma relação
tensa de constituição dialética.
7 Henri Wallon (1879-1962) tem uma teoria do desenvolvimento humano que foge das
visões simplista de causa e efeito para uma relação entre ambiente e organismo que se realiza
a partir de uma causalidade não-linear. Para o autor, as emoções estão na base da formação
da consciência, operando a passagem do mundo fisiológico para o psíquico. Sua abordagem
sobre as emoções no processo de desenvolvimento revela que as emoções percorrem os vários
campos de interação da pessoa, potencializando ou inibindo aspectos do desenvolvimento.

- 47 -
Se formos pensar, faz sentido para a manutenção do status
quo uma escola desacreditada, onde existam alunos desmotivados. Uma
instituição que é sinônimo de “chatice” e queixosa, não pode fazer nada
em termos de crítica social, por estar comprometida como o lamento de
sua própria condição. Dessa forma, o afeto tem a ver com política e suas
consequências também.
A escola também produz um corpo. Pensado corpo aqui não
como essa entidade da qual se ocupa a biologia, mas como um cor-
po institucionalizado, atravessado por uma história social, corpo que
é moldado e educado para um fim: o corpo escolarizado. Parece óbvio
ou pode soar estranha essa afirmativa somente para aqueles que veem o
corpo e as práticas corporais como naturais.
Foucault é excelente interlocutor, mais uma vez, para pen-
sar no não natural do corpo: o corpo subjetivado. Mas no sentido mais
provocativo, ao pensar a relação entre biologia e cultura, e a formação
dos processos tipicamente humanos, podemos trazer melhor à baila o
modelo vygotskyano, o qual pressupõe que aquilo que é tipicamente
humano só pode ser dado quando do encontro do biológico com o cul-
tural. A condição para que o homem se torne humano está na cultura
(AGUIAR, 2002).
Como um bom leitor de Hegel, Vygotsky, em seu modelo de
desenvolvimento humano, pensa em termos de tese, antítese e síntese.
Para este teórico russo, os processos psicológicos tipicamente humanos
são uma conquista que se dá na negação da biologia pela cultura. Note-
-se que o que estamos chamando de negação não se trata de seu sentido
como no senso comum. Negação aqui é tomada como uma das carac-
terísticas da dialética. Negação como encontro dos contrários, em que
pela contradição um elemento “nega” o outro, produzindo um terceiro
elemento que incorpora os dois elementos anteriores. A partir disso é
possível afirmar que os processos psicológicos superiores são a síntese
do encontro da biologia com a cultura. O homem deixa de ser um su-
jeito biológico e passa ao status de sujeito sócio-histórico (OLIVEIRA,
1993).
Vygotsky é um pensador preocupado com a escola. Para ele,
o que determina os rumos do desenvolvimento são as práticas cultural-
mente estabelecidas. Se em boa lógica pensarmos na escola como esse
conjunto de práticas, podemos chegar a conclusão do grande valor que
esta instituição tem para a construção de uma determinada síntese do

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sujeito contemporâneo, sendo mais concreto: dos alunos e de seus cor-
pos. O que queremos afirmar e reafirmar, no fim, é que esse processo
não é natural, mas naturalizado, que precisa ser desnaturalizado.

Tal ‘naturalidade’ tão fortemente construída talvez nos impeça de


notar que, no interior das atuais escolas, onde convivem meninos e
meninas, rapazes e moças, eles e elas se movimentem, circulem e se
agrupem de formas distintas. Observamos, então que eles parecem
“precisar” de mais espaços do que elas, parecem preferir “natural-
mente” as atividades ao ar livre. Registramos a tendência dos meni-
nos de “invadir” os espaços das meninas, de interromper suas brin-
cadeiras. E, usualmente consideramos tudo isso de algum modo
inscrito na “ordem das coisas”. Talvez também pareça “natural” que
algumas crianças possam usufruir de tempo livre, enquanto que
outras tenham que trabalhar após o horário escolar; que algumas
devam “poupar” enquanto que outras tenham o direito a “matar”
o tempo. Mas as divisões de raça, classe, etnia, sexualidade e gêne-
ro estão, sem dúvida, implicadas nessas construções e é somente
na história dessas divisões que podemos encontrar uma explicação
para a lógica que as rege (LOURO, 2014, p. 64).

Talvez esse ponto seja ainda importante de ser examinado na


medida em que a maioria das pessoas continua com a representação de
que a sexualidade seria algo natural. Essa visão se ancora na premissa de
que estamos destinados pela referência do nosso corpo e que tal desti-
nação seria vivida de forma universal.

No entanto, podemos entender que a sexualidade envolve rituais,


linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções... Pro-
cessos profundamente culturais e plurais. Nessa perspectiva, nada
há de exclusivamente “natural” nesse terreno, a começar pela pró-
pria concepção de corpo, ou mesmo de natureza. Através de proces-
sos culturais, definimos o que é — ou não — natural; produzimos
e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as
tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. A ins-
crição dos gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita,
sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com
as marcas dessa cultura. As possibilidades da sexualidade — das
formas de expressar os desejos e prazeres — também são sempre
socialmente estabelecidas e codificadas. As identidades de gênero
e sexuais são, portanto, compostas e definidas por relações sociais,
elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO,
2000, p. 6)

Desta forma, a sexualidade passa a ser entendida como uma


invenção social, regulada pelos diversos discursos sobre o sexo, discur-

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sos esses que normatizam e instauram saberes sobre as práticas sexuais
e constroem regimes de verdades sobre essa dimensão. Essas linhas nos
aproximam das palavras chaves de Foucault sobre dispositivos históricos,
ao mesmo tempo em que nos fazem pensar que a própria verdade, seja
ela qual for, tem uma história. Por dispositivo o filósofo entende ser o
conjunto de elementos que vão desde a arquitetura, passando pela ciên-
cia, pelos enunciados, pela moral até a campos do não-dito e do inter-
ditado que constituem uma rede bem estabelecida (FOUCAULT, 1988).
No que se refere à questão da verdade, o filósofo fran-
cês, inspirado em Nietzsche, afirma que toda verdade é uma invenção
(FOUCAULT, 1968). Se transpusermos isso para a dimensão da sexua-
lidade e dos saberes sobre o sexo, solidificamos os argumentos de que a
sexualidade, bem como suas verdades, são construções. Os regi-
mes de verdade e de exercício de poder são produtivos. De alguma ma-
neira, um desdobramento dessa produção dos corpos está na produção
das diferenças. Seguimos aqui ainda as ideias de Louro.
Isso é interessante de pensar: se a diferença é fabricada, isso
significa dizer que houve um preço de relações de poder a se pagar nessa
produção. É importante notar que a diferença aqui apontada é a diferen-
ça que em seu bojo carrega a exclusão. O termo diferença que abordare-
mos mais tarde, dentro do conjunto de escrito da filosofia da diferença
e do pensamento foucaultiano, nada tem a ver como a fabricação dessas
diferenças que são um fenômeno na escola e fora dela.
Louro se refere a produção de algo na diferença que se encon-
tra assentado sobre o sexismo e a homofobia. E isso se apresenta ou se
manifesta de forma sutil nas normas, nos procedimentos de ensino, na
linguagem, nos materiais didáticos, nos processos de avalição, etc. Aliás,
assim são as formas de poder, como entendemos aqui: expressam-se no
meticuloso detalhe, no capilar da vida.

QUEM É O SUJEITO?
Essa questão que apresentamos no título dessa sessão sobre
o sujeito nos remete à uma dimensão filosófica, mais propriamente do
campo da ontologia. Como concebemos a realidade da pessoa e sua vida
interna, sua constituição na relação com outras pessoas, com o mundo
que a circunda e na relação consigo mesma? Qual o estatuto do sujeito?
Tomamos aqui o sujeito como uma categoria.
Já de muito sabemos que nossa cultura ocidental pressupõe a
fixidez nas identidades e isso remonta, evidente, a algo histórico, por se

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tratar de um conjunto de verdades sobre os sujeitos. No entanto, essas
verdades são baseadas na concepção de um mundo também estável e
imutável. Essa visão combina com o modelo de pensamento que natu-
raliza as identidades sexuais e de gênero, e que os atrela às dimensões
anatômicas das pessoas.
Tal cosmovisão está amplamente disseminada na cultura oci-
dental e reificada pelas proposições científicas, como é o caso da psico-
logia e sua categoria mais preciosa: a personalidade. De acordo com os
diversos teóricos, as formas de estabelecer as diferentes personalidades
variam, no entanto, algo atravessa a maioria (para não dizer todas) das
proposições sobre essa categoria: há um quê de imutabilidade nas estru-
turas de personalidade que estão associadas à essência da pessoa.
Essa forma de fazer psicologia explica isso de modo geral, to-
mando o social como algo que não tem a ver com a constituição do su-
jeito, mas como um tipo distorcido de ambientalismo, em que o contex-
to vai apenas modelar o que virtualmente e em essência vai se expressar
em cada personalidade. A visão é sempre intrapsíquica (GONZÁLEZ
REY, 2004). Falamos aqui desse ambientalismo, que pode ser bem ex-
presso em um enunciado muito comum nas conversas do dia a dia: “o
meio influencia”. Essa influência parece radicalmente diferente quan-
do, por exemplo, podemos pensar que não é uma questão de influência
pontual, mas o social pode estar altamente implicado na constituição
do sujeito.
De todo modo as categorias utilizadas para explicar os indi-
víduos concretos carregam fortemente esse ranço da fixidez. A exceção
talvez seja, nos últimos tempos, nas ciências sociais (incluindo a pró-
pria psicologia social) quando utilizam o termo identidade. A identi-
dade que por muito tempo foi tomada como algo definitivo em vários
movimentos tem sido pensada como algo mais fluido, mesmo partir de
enfoques teóricos divergentes.
Parece-nos que há algo que soa estranho dentro e fora da
escola, quando pensamos nesse fluido, nessa deriva que alguém pode
passar, e especialmente quando pensamos essas questões ligadas a fenô-
menos tão naturalizados e tomados como fixos como é o caso do gênero
e da sexualidade. É algo que toca o campo do inadmissível porque pa-
rece que tememos de alguma maneira não termos uma identidade fixa,
como se o preço a ser pago fosse a completa dissolução do sujeito. Muito
embora seja bastante possível de, teoricamente, ser entendido que nos-
sos desejos nos empurram para várias direções (LOURO, 2000).

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Pela centralidade que a sexualidade adquiriu nas modernas
sociedades ocidentais, parece ser difícil entendê-la como ten-
do as propriedades de fluidez e inconstância. frequentemente
nos apresentamos (ou nos representamos) a partir de nos-
sa identidade de gênero e de nossa identidade sexual. Essa
parece ser, usualmente, a referência mais “segura” sobre os
indivíduos [...] Precisamos de algo que dê um fundamento
para nossas ações e, então, construímos nossas “narrativas
pessoais”, nossas biografias, de uma forma que lhes garanta
coerência (LOURO, 2000, p. 07)

No entanto, outras formas de ver o mundo e a vida, incluin-


do aí o sujeito, são possíveis. Nem sempre as coisas foram vistas como
estanques, nem sempre a sexualidade teve, por exemplo, essa condição
tão primordial como a vemos em nossa cultural, e nem sempre esteve
encerrada a algo dado como definitivo. Em outros tempos e em outros
momentos o devir era a regra ontológica, e era o que dimensionava as
cosmovisões.
Há ainda algo a mais a se acrescentar na questão do sujeito e
em especial na sua dimensão de devir: a inexatidão de compreensão. A
modernidade se estabelece com o universo da precisão e mais propria-
mente da precisão cientifica. Muito diferente dos gregos que entendiam
que no mundo sublunar a imprecisão era característica, ficando a preci-
são para o mundo celeste (PENNA, 1990).
Falar para um sujeito moderno que o que achamos hoje e o
que afirmamos carrega imprecisão, mesmo em termos de ciência e de
sua linguagem hermética, pode parecer bizarro e estranho. No entan-
to, o resgate dessa tinta epistemológica é feito pelos chamados filósofos
pós-estruturalistas, entre outros. E no campo da sexualidade encontra o
amplo desenvolvimento nas referências da teoria queer.
O sujeito, na teoria queer e, especialmente, em Judith Butler
é considerado a partir do não essencialismo, e a identidade sexual se
torna algo que escapa à linguagem. Dito de outra maneira, a linguagem
é um sistema que embora fale sobre o real, nunca o é de fato. A realidade
sempre escapa.

Não existe nem um ‘referente puro’, uma palavra que signifique em


si mesma e por si mesma, pois as palavras apenas adquirem signi-
ficado em relação a outras palavras, numa cadeia significante [...]
De acordo com Butler, a afirmação de Derrida de que o signo não
consegue chegar à completude constitui um desafio a Hegel por-
que revela que ‘ambição’ do sujeito de atingir o ser absoluto é uma

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impossibilidade. Se o sujeito é construído na linguagem e a lingua-
gem tal como é teorizada por Derrida é incompleta e aberta, então o
próprio sujeito será igualmente caracterizado por sua incompletude
(SALIH, 2013, p. 54).

É a esta compreensão ontológica que queremos nos referir


aqui, tomando a linguagem como metáfora e criadora, mas que não
necessariamente alcança o puro da realidade. E é a partir desse ponto de
vista que queremos tratar o tema da diferença. Não queremos tomar a
diferença aqui como uma negação do que está fora da norma, ao mesmo
tempo que se reafirma na mesmidade. Afirmamos aqui a natureza da
constituição do sujeito que se dá pela diferença de si e dos outros num
movimento contínuo de fluxos, o qual não pode ser capturado por
explicações estanques, mas acompanhado em uma língua menor, para
tomar emprestado o termo esquizoanalítico.
As explicações mais rígidas no campo do imutável apenas
constroem um cenário em que as performances sexuais ou de gênero
serão normatizadas. A linguagem também compõe essa rede de ele-
mentos que chamamos de dispositivo da sexualidade, o qual tem como
efeito a vida concreta dos sujeitos sexuais.
Louro (2014) aponta que as diferenças, de modo geral, quan-
do tomadas por um viés moralista e tradicional, são constituídas em
marcadores sociais e, ao se tratar do gênero e da sexualidade, as dife-
renças entre homens e mulheres, por exemplo, se tornam quase que
irrefutáveis e, muitas vezes, acompanhadas de um caloroso: “E viva a
diferença”! Mas sempre e fortemente marcada pela dimensão biológica
da questão. Também segundo a autora, é muito comum ouvir dizer que
“as mulheres são diferentes dos homens”, em uma clara alusão ao fato de
que o homem é o modelo de referência.
Diante disso também podemos entender o modelo de ho-
mem que está implícito: o homem heterossexual, branco, provedor, pê-
nis grande, pouco afetivo, enfim, todas aquelas características que se
encaixam no hábitus masculino como descrito tão bem nas análises de
Pierre Bourdieu (2003). De todo modo, a mulher, nessa afirmação, é o
não homem, ou o seu oposto. Daí podemos começar a pensar na respos-
ta à indagação de Louro: “Afinal, quem é o diferente? ”
Diante desse cenário talvez fique mais fácil entender o que o
Roberto DaMatta, antropólogo brasileiro, quis dizer ao considerar que
os homens ficam o tempo todo tentando se diferenciar das mulheres.

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Em linguagem coloquial, o autor aponta que os homens ficam o tempo
todo “vigiando o traseiro”, numa alusão de que todos somos iguais na
“parte de trás” (homens e mulheres) e isso seria o que igualaria e não
diferenciaria os gêneros. Além de tudo, e só para pensar criticamente,
tomar o homem (e este homem padrão) como o modelo é, pelo menos,
misógino.
Além do mais, o apelo à diferença tem se banalizado e talvez
perdido o seu sentido político como o é no âmbito dos estudos femi-
nistas e culturais, tendo sido capturado por vieses conservadores, por
setores mais tradicionais da sociedade e até mesmo pelo novo direito
(LOURO, 2014). A diferença que os estudos feministas apontam são
aquelas que denunciam também as desigualdades e neste sentido con-
cordamos com Boaventura de Souza Santos (2003, p. 56), o qual afirma:

[...] temos direito de ser iguais quando a nossa diferença nos infe-
rioriza, e temos direito de ser diferentes quando a igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou re-
produza as desigualdades

E é a partir desse ponto de partida que queremos afirmar as


possibilidades da diversidade sexual na escola: pela intuição de que a
diferença é constitutiva do desejo e da orientação sexual, e esta não pode
ser encapsulada nem normatizada com o receio de que a concepção de
diversidade seria constituída de caos total e desvio da ordem natural das
coisas.

EDUCAR PARA A DIFERENÇA


A luta por uma subjetividade moderna passa por uma resistência
a duas formas atuais de sujeição: uma que consiste em individuar-
-nos de acordo com as exigências do poder, e outra que consiste em
prender cada indivíduo a uma identidade sabida, conhecida, bem
determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade apre-
senta-se, então, como direito à diferença e como direito à variação,
à metamorfose (DELEUZE, 2005, p 23).

Essa citação de Deleuze nos ajuda a pensar no micropolítico


do dia a dia, que se instaura como uma necessidade de produção de
novos clarões em torno do tema da subjetividade, e aqui pensamos in-
cluindo a sexualidade. É político no sentido das forças coletivas em con-

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fronto, lugar onde a afirmação da diferença como potência é urgente.
Deleuze faz uma crítica ao conhecimento ocidental, que constitui nosso
modo de subjetivação, evidentemente. A crítica dele recai sobre Platão e
seu alerta no que concerne às cópias e os simulacros (DELEUZE, 2015)
Platão afirmava a divisão do mundo em dois: o das essências
e o das aparências. O mundo das essências era o modelo para o mundo
das aparências. Para o homem comum do mundo das aparências, cabe-
ria a tarefa de tentar ser como o definido no mundo das essências. Ser
como o modelo, copiar sua perfeição e adotar as suas características.
Os homens do mundo das aparências seriam, por condição, pretenden-
tes. No entanto, essa empreitada estava destinada ao fracasso, posto que
ninguém jamais obteria êxito nessa tarefa (BENEVIDES, 2009).
Além dos modelos e das cópias (dividas em boas e más có-
pias) também existiam os simulacros. Os simulacros seriam como falsos
pretendentes que viriam do subterrâneo. A imagem do que ficou co-
nhecido como reversão platônica, pensada por Nietzsche, era a de que
este filósofo queria abolir a divisão entre os dois mundos, mas Deleuze
afirma que a ideia nietzschiana era autorizar e fazer subir os simulacros.
“O simulacro não é uma cópia degradada; ele encerra uma potência po-
sitiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a
reprodução” (DELEUZE, 2015, p. 267).
O simulacro faz pensar em um mundo que em que só há apa-
rência, onde não se buscam as essências, onde as máscaras não precisam
ser retiradas para que a identidade surja. As máscaras são a expressão
onde os afetos atuais são vividos. Elas são operadoras de intensidade,
dispositivos que possibilitam a passagem de afetos. Não se trata, como
afirmado no mundo platônico, de retirá-las para que sua verdadeira face
apareça. Elas são legítimas pelo o que estão operando. As máscaras in-
ventam existências legítimas, elas criam mundos (BENEVIDES, 2009).
Benevides comenta sobre o significado do simulacro, supon-
do que a dualidade entre essências e aparências, assim como todas as
dualidades só cabem quando acreditamos em valores universais. Ainda
continua falando que o simulacro impossibilita a fixidez e convida ao
nomadismo sem fundamentos, sem origens e sem identidades. Para ela,
o simulacro aponta para a desnaturalização dos objetos e das práticas.
Em termos mais propriamente de sexualidade, mesmo Freud
pode ser trazido à baila sem cairmos na contradição do que estamos
defendendo, embora não se possa dizer que a psicanálise não seja platô-

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nica (GARCIA-ROZA, 2016). Ao pensar o termo Trieb, traduzido como
pulsão, Freud menciona que esta sua teoria (a teoria das pulsões) é a sua
mitologia. O próprio Freud aponta a teoria das pulsões como um mode-
lo; “o termo pulsão não designa uma realidade existente, mas um modo
de falar de existentes” (GARCIA-ROZA, 2014, p. 14).
Para Freud, a pulsão tem como fim a satisfação, a excitação
corporal, de origem somática, tem seu fim em um objeto de satisfação.
Digamos que aí reside a diferença da pulsão para instinto como uma
programação meramente biológica, como se pode falar no caso instinto
sexual, que tem como finalidade a reprodução.
Nota-se que na teoria psicanalítica o que está no campo do
desejo, dos prazeres, e da satisfação, ocupa o território das pulsões e tem
como natureza e finalidade algo que escapa o biológico. Por essa razão,
Freud chegou a afirmar que toda sexualidade humana é, em si, aberra-
ção, na medida em que ela subverte a função biológica de reprodução e
encontra na cultura a multiplicação de suas possibilidades de satisfação
(GARCIA-ROZA, 2014, p. 14).
Desta forma pensamos em uma educação que considera essa
perspectiva nômade dos destinos dos nossos desejos e da pluralidade de
arranjos que as práticas sexuais podem ter, fazendo com que os sujeitos
sexuais consigam ter condição de decidir sobre seus corpos, negociar
sexo seguro, explorar prazeres, enfim, tornarem-se sujeitos sexuais, ten-
do como premissa a diferença e o direito à diferença.
Tomamos aqui a histórica discussão sobre a educação e se-
xualidade, e seus derivados como a orientação sexual, educação sexual,
educação em sexualidade, nos últimos tempos adotou-se o termo “edu-
car para a sexualidade”. Talvez nossa reflexão aqui se amplie de forma
provocativa e propomos em termos de reflexão uma educação para a
diferença. Mas também poderíamos usar outros derivados como “edu-
cação para a potência” e “educação para a liberdade”. Porque essas ques-
tões estão todas amplamente atravessadas.
Aliás, o tema da liberdade merece nota. Em tempos de biopo-
der, onde o poder não está mais fixado apenas nas instituições, gerando
os corpos dóceis, mas diluído no corpo social, e tem como objetivo a
gerência das populações, é muito difícil digerir a ideia foucaultiana, a
de que cada um sabe o que é melhor para si. O tema da liberdade em
Foucault está intimamente ligado a tudo isso e especialmente à noção
de cuidado de si.

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Em tempos em que somos convocados em grandes pacotes
para cuidar da alimentação, da higiene, do psiquismo, enfim, da vida
biológica, mas a partir de algo que vem de fora do próprio individuo, a
lógica da liberdade pode ser entendida como irresponsabilidade. E sa-
bemos o quanto a população juvenil, que é a maioria nas nossas escolas,
é vista com o rótulo da falta de sabedoria e discernimento, e isso inclui
as decisões que precisam tomar sobre a própria vida.
Existe talvez um conluio nisso, porque dentro do nosso modo
sujeitado de dar sentido à vida, a maioria dos jovens (mas adultos tam-
bém) não localiza dentro de si mesmo a intuição sobre qual é a vida
que devem viver, sempre outorgando ao outro a autoridade sobre suas
próprias existências. Difícil é o sujeito que sustenta uma vida que para
ele, a partir de suas próprias reflexões, é o melhor naquele momento.
Estamos sempre alienados ao desejo do Outro, para parafrasear Lacan.
E, para Foucault, esse trabalho de desconexão com aquilo que no social
me sujeita é a grande tarefa para a conquista de um modo de vida belo,
como chamavam os gregos antigos.
O preceito do cuidado de si (epiméleia heatoû), é constituído
do chamado ao conhecimento de si (gnôthi seautón). O “conhece-te a ti
mesmo”, atribuído amplamente à Sócrates, já está na religião grega antes
do filósofo sair pela cidade exclamando esse convite aos cidadãos. Esse
si mesmo também não tem nada de essencial. Um bom exemplo disso,
na Grécia, são os estoicos.
Os estoicos são puramente nominalistas. Os universais, as essências,
as ideias, não existem. Para eles, as ideias gerais são abstrações que
não expressam o ser das coisas. O real só pode ser individual (...)
Não é sobre as coisas ou sobre as essências que versa a lógica estoica,
mas sobre o sentido, o “incorporal”, o efeito-acontecimento (GAR-
CIA-ROZA, 2016, p. 13).

De alguma maneira, então, estamos pensando em um conhe-


cimento que é a verdade do sujeito naquele momento e o que ele pode
dizer sobre si, sem essencialismos. Para Foucault, o mundo moderno
ocidental tem muito mais dificuldade nessa empresa de voltar-se para
si, de cuidar de si, por essa posição não fazer parte da nossa forma de
subjetivar a vida. O convite no do cuidado de si no ocidente, por meio
no mundo cristianizado, tem sido uma renúncia de si, em vez de uma
volta para si mesmo.
Essas provocações nos rementem à ideia de liberdade. Na
Grécia Antiga, a liberdade era uma agonística, ou seja, algo que fora

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conquistado com esforço de submissão a práticas de si e aos prazeres,
sem que nem uma dessas práticas ou experiência prazerosa fosse viven-
ciada a ponto de se tornar algo que escraviza. O escravo é aquele que
não é capaz de decidir sobre sua vida. A liberdade implica dizer sim
quando quero e dizer não, mesmo querendo. A partir disso, o cidadão
grego escolhe, segundo seu julgamento muito pessoal, o que é melhor
para si, e isso faz com que sua vida se torne algo singular. É o que o grego
antigo dizia sobre transformar a vida em uma obra de arte. O artista é
aquele que opera sobre a natureza e produz beleza no mundo. No fundo,
a liberdade agonística, dentro da lógica do cuidado de si, quer produzir
uma vida que seja bela porque é uma vida única, em que o sujeito se
debruça sobre si mesmo, se faz e se fabrica, como um artesão de si.
É exatamente nisso que reside a ética em Foucault: um
movimento muito singular de apropriação das práticas de si (techné tou
biou) dentro da cultura, transformando-as em artes do viver, a tal ponto
em que o sujeito seja o seu soberano e seu governo dependa de si. E isso
não tem nada a ver com o modelo de produção capitalística da subjetivi-
dade, apoiado no neoliberalismo. Dizemos isso pelo fato de que nos úl-
timos anos Foucault tenha sido acusado de ter um enamoramento pelo
neoliberalismo, sugando deste a possibilidade de desassujeitamento.
Avelino (2016) defende a ideia de que não é muito difícil veri-
ficar esse erro, posto que Foucault compreendeu as práticas de desassu-
jeitamento não na tradição neoliberal, mas no paganismo greco-romano
e na sua correspondente “ética do cuidado de si como prática da liber-
dade”. Como já dito anteriormente, para que essa prática da liberdade
acontecesse e para que fosse ético, era necessário que fosse refletida. No
neoliberalismo acontece exatamente o seu contrário: o indivíduo não se
fortalece como sujeito da vontade ao pensar a sua conduta em um gesto
reflexivo. A rigor, nesse sistema poítico-econômico, o sujeito não pensa,
ele é antes pensado e objetivado pelas regras da economia que também
irão estruturar sua liberdade, seu campo de ação e constitui-lo como
sujeito econômico.
Dito isto, entendemos, à esteira de Foucault, que a produção
do cuidado de si como prática da liberdade precisa operar na contramão
da governamentalidade. Esse termo é um neologismo do filósofo e que
significaria o “governo das mentalidades”, governo que seria uma forma
mais sofistica de exercício do poder, talvez uma derivação do poder
disciplinar.

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Pela palavra governamentalidade eu quero dizer três coisas – que
eu agora aqui só vou falar de duas – por governamentalidade eu en-
tendo o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos,
as análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa
forma bem específica, ainda que muito complexo, de poder que tem
por alvo principal a população. Por forma maior de saber a eco-
nomia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos
de segurança. Em segundo lugar, eu entendo governamentalidade
a tendência à linha de força, que por todo o Ocidente não deixou
de conduzir, já há muito tempo para a preeminência do tipo do sa-
ber que eu chamo “o governo sobre todos os outros” – soberania,
disciplina – que levaram de um lado a todo uma série de aparelhos
tecnológicos específicos de governo e o desenvolvimento de toda
uma série de saberes (FOUCAULT, 2008, p. 112)

Acredito que tenha ficado clara a que se refere o termo. Em


outras palavras, ela está associada às técnicas de controle social para
realizar a gestão da sociedade. Seu objetivo é uma boa circulação:
circulação de saúde, mercadorias, bens e, em último caso, de capital
(AVELINO, 2016).
Disso tudo, podemos pensar no empreendimento que deva
ser, aos moldes greco-romano, a produção hoje de uma vida bela para
si, quando a lógica que opera na macropolítica é de um regime de pro-
dução de pensamento para todos, a fim de que todos sejam governados
de fora para dentro. Por estarmos vivendo em um tempo e em contextos
diferentes do vivido pelos gregos e romanos, tudo isso acaba sendo um
desafio para viver uma vida que seja realmente sua.
Ao tocarmos nesse ponto – de uma vida que seja sua – nos
deparamos com questões complexas, posto que acreditamos que somos
habitados por várias vozes, e o que dá sentido à nossa vida está sempre
em articulação de constituição com algo que não foi antes nosso e que
ainda está no externo, na medida em que ele é o contexto que me forma.
O homem isolado é uma abstração.
Ao mesmo tempo fazemos esse esforço de tentar entender o
que significaria isso de “viver uma vida que seja sua”, pois entendemos
que aí está a diferença de que tanto falamos e que tanto buscamos. Esse
termo podia ser atribuído tanto a Foucault como a grandes psicanalistas
como Winnicott, Lacan ou Bion. Essa capacidade que o sujeito teria de
conseguir sustentar a sua própria estranheza e fazê-la passar pelo social
em uma negociação constante, em que também seria possível a produ-
ção de novos territórios de existências e de existências em comum. Mas
tudo isso não sem um esforço profundo.

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É de se imaginar que tal empreendimento, no campo da
educação, que visa promover a liberdade, acaba por ser abortado, dada
a realidade da governamentalidade e os espaços de produção de um
único tipo de existência ou da normatização destas. E a escola é forte
nesse sentido. Ela uniformiza, às vezes chegando, como foi e ainda é
muito comum, à utilização externa dessa “uniformização”: o uso literal
de uniformes.
No entanto, seguindo as brechas, e nesse caso uma brecha
mais teórica, podemos vislumbrar nossa perspectiva não como uma
utopia. A utopia seria algo que está no campo da quimera, do inalcan-
çável. Propomos, a pretexto de reflexão, a escola, e nossa pretensão de
que seja um espaço de educação para diferença, não como uma utopia,
mas queremos ver e pensar em termos das heterotopias.

As heterotopias inquietam, sem dúvida, porque minam secretamen-


te a linguagem, porque impedem de nomear isto e aquilo, porque
quebram os nomes comuns ou os emaranham, porque de antemão
arruínam a ‘sintaxe’, e não apenas a que constrói frases, mas tam-
bém a que, embora menos manifesta, ‘faz manter em conjunto’ (ao
lado e em frente umas das outras) as palavras e as coisas. É por isso
que as utopias permitem as fábulas e os discursos: elas situam-se
na própria linha da linguagem, na dimensão fundamental da fábu-
la: as heterotopias (como as que se encontram tão frequentemente
em Borges) dessecam o assunto, detêm as palavras sobre si mesmas,
contestam, desde a sua raiz, toda a possibilidade de gramática; des-
fazem os mitos e tornam estéril o lirismo das frases (FOUCAULT,
1968 [1966], p. 5-6).

O termo vem da junção de hetero (outro, diferente) e topos


(lugar). Na medicina e na biologia, o termo é utilizado para pensar a for-
mação de tecidos que se formam em um determinado órgão, mas que
teriam características de um outro órgão. Foucault faz a transposição
desse conceito para pensar os lugares, mesmos os lugares geográficos,
os espaços sociais compartilhados, os quais seriam, por natureza, carre-
gados de heterogeneidade. Lugares onde a diferença, a outridade, o não
uniforme seriam características.
Dessa feita, tomar a escola com o viés das heterotopias signifi-
ca entender, por uma outra percepção, que há algo de potência e de dife-
renciação constante em qualquer lugar, tornando as ideias foucaultianos
aqui como possíveis. O novo viés perceptível que é antes explicativo,
talvez, pode ser comparado, por analogia, às ideias da teoria do caos

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que pressupõem sim uma ordem e uma lógica na desordem, mas que
também assumem a ideia forte de que, mesmo no movimento conside-
rado mais preciso de repetição, existe desordem e caos, ou seja, outras
relações com o tempo e o espaço. Tudo é dotado desse aspecto.
O que as heterotopias possibilitam e, importante ressaltar, é
essa dimensão constrangedora da ordem social e cientifica. Ela assu-
me o equívoco e a não captura da linguagem dos fenômenos existentes.
Estes sempre escaparão e, ao produzir uma explicação na linguagem, o
cientista e o homem comum estarão, no máximo, construindo outros
fenômenos. E isso acaba sendo uma crítica epistemológica contundente.
Isso constitui um desafio, e esse texto tem por objetivo princi-
pal o seu conteúdo provocativo, mas não diretivo necessariamente e tem
algo de bom nisso. Foucault tem sido acusado de não apresentar uma
alternativa para a estruturação da sociedade diante daquilo que ele mes-
mo criticou. Pensamos ser isso uma estratégia coerente com toda sua
obra. Propor algo em termo de um itinerário a ser cumprido, acabaria
por se tornar um manual de como viver individual e coletivamente, o
que nos parece é que isso é do que mais Foucault tenta fugir.
No entanto, parece-nos que se conseguimos dar uma pequena
olhada para a própria tradição pedagógica, tanto em termos de forma-
ção de professores como de prática de ensino, até mesmo chegando às
teorizações de como se aprende, nós podemos ter uma munição para
travar essa batalha. Não é de hoje que falamos em pedagogias libertá-
rias, anárquicas e mesmo das perspectivas construtivistas.

RASTREANDO A DIFERENÇA NA TRADIÇÃO


PEDAGÓGICA
Ao que nos parece, a pedagogia, ou seus teóricos dentro da
psicologia da educação, tem apontado para algo que podemos chamar
de educação para a diferença. Se pensarmos em Piaget e seu interesse
pelas respostas erradas das crianças, há algo de inovador na sua visão.
O interesse de Piaget era explicado pela ideia de que as respostas con-
sideradas erradas para o executor e avaliador dos testes de inteligência
eram muito bem compreendidas se este avaliador considerasse a lógica
que levou a criança a responder daquele jeito e não de outro. A lógica
está na criança e não fora dela; somente a partir dessa concepção de que
o estudante, mesmo sendo criança, é capaz de reflexividade, podemos
pensar em uma educação que dê conta das diferenças.

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Há quem, sustentado por essa reflexão, critique o modelo tra-
dicional de avaliação por meio de provas, dado que o certo e o errado
ficariam a cargo do professor ou de algum sistema mais ou menos rígido
que convenciona o que é certo ou errado, cabendo ao estudante apenas
apreender isso que já fora pensado anteriormente por ele.
Na lógica vigotyskyana essa não é uma realidade oposta, em-
bora dita de outro jeito e com outro sistema de explicação. Vygostky
(1989) trabalha com os conceitos de sentido e significado, sendo o pri-
meiro de caráter mais individual e o segundo entendido como mais so-
cial.
O sentido de uma palavra é um agregado de todos os fatos psico-
lógicos que surgem em nossa consciência como resultado daquela
palavra. O sentido é uma formação dinâmica, fluida e complexa que
tem inúmeras zonas que variam em sua instabilidade. O significa-
do é apenas uma dessas zonas de sentido que a palavra adquire no
contexto da fala. É a mais estável, unificada e precisa dessas zonas.
Em contextos diferentes o sentido de uma palavra muda. Ao con-
trário, o significado é, comparativamente, um ponto fixo e estável
que permanece constante apesar de todas as mudanças no sentido
da palavra. Que são associados com seu uso em contextos diferentes
(p. 275-276).

Disto podemos entender que a heterogeneidade e os luga-


res que coexistem em diversidade já são uma realidade ao menos em
termos psíquicos. O que se ensina nem sempre é o que se aprende, os
“lugares” de apreensão comunicativa são diferentes. A heterotopia, en-
quanto chave teórica para algo prático deve ser utilizada sem romantis-
mos também, porque a escola muitas vezes tem sido aterrorizante para
as crianças e adolescentes que fogem à norma.
Segundo Bento (2011), no cotidiano da escola, as crianças
que não se encaixam vivem um heteroterrorismo. Pessoas transexuais
podem ser, segundo a autora, as que mais sofrem com a crueldade do
cotidiano escolar. “Cruzar os limites dos gêneros é colocar-se em uma
posição de risco. Quando se afirma que existe uma norma de gênero,
deve-se pensar em regras, leis, interdições e punições (p.554)”.
A aposta da autora é de que, apesar de dominante, as proposi-
ções de gênero são bastante vulneráveis e esse é o caminho das resistên-
cias dentro e fora da escola. Também acreditamos nisso, e especialmente
pelos pressupostos foucaultianos, de que onde há poder, há resistência.
Acreditamos que tomar a escola e suas vivências, a partir do viés das he-
terotopias, acaba sendo um forte aliado nessa empreitada de resistência.

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Quanto ao desafio que isso significa, Miskolci (2016) comenta:
O grande desafio da educação talvez permaneça o mesmo: o de
pensar o que é educar e para que educar. Em uma perspectiva não
normalizadora, educar seria uma atividade dialógica em que as ex-
periências até hoje invisibilizadas, não reconhecidas ou, mais co-
mumente, violentadas, passassem a ser incorporadas no cotidiano
escolar, modificando a hierarquia entre quem educa e quem é edu-
cado e buscando estabelecer mais simetria entre eles de forma a se
passar da educação para um aprendizado relacional e transforma-
dor para ambos (p. 55).

Essa visão dialógica dentro da pedagogia não é novidade. O


cerne de isso não acontecer tem sido o fato de que o estudante em pro-
cesso não é visto como alguém que tem competência para colocar-se em
diálogo, por não ter nada a dizer. Paulo Freire (2011) faz sua denúncia
do mundo, ao dizer que se não passar pelo diálogo, a educação não po-
derá ser libertadora, pelo contrário, ela se torna dispositivo de opressão.
Freire nessa ocasião está centrado na luta de classe, mas agora podemos
usar a categoria sexualidade e gênero para ampliar o debate e pensar em
um tipo de opressão que incide sobre a expressão mais íntima da sexua-
lidade de alguém quando esta não cabe nos discursos normativos sobre
as leis que regem os gêneros sabidos e construídos socialmente.

CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
O caminho educativo que visa à liberdade e à diferença deve
conceber não o ajustamento do considerado anormal, pois o anormal
não tem espaço e nem lugar no contexto da escola atual, mas a educação
potente deve construir e inventar novas relações com as identidades ou
nos limites destas, que estão cada vez mais borrados, e daí construir es-
paços onde as várias formas de existências podem ser legitimadas como
possíveis. Para tanto, a escola deve se imaginar em outros lugares tam-
bém, buscar afastar-se do que ela é, para descobrir novos caminhos e
acompanhar os devires próprios das subjetividades, formando a cada
tempo um mosaico que lhe couber e lhe trouxer possibilidades de cons-
truções mais solidárias e abertas ao inusitado que é próprio desse pro-
cesso. Mas, sobretudo, sem medo de encontrar e possibilitar uma vida
sempre mais bela.

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- 66 -
DISPUTAS E TENSÕES EM TORNO DE GÊNERO
E EDUCAÇÃO NA CIDADE DE MANAUS
- AMAZONAS
Fátima Weiss de Jesus8
Ramily Frota Pantoja9
Márcia Calderipe Farias Rufino10

RESUMO: Esse trabalho resulta da experiência de extensão no Projeto “Bora Lá?:


Oficinas sobre Gênero e Diversidade nas Escolas Públicas de Manaus e de uma pes-
quisa de iniciação científica cujo objetivo era investigar os embates enfrentados por
ativistas dos direitos humanos, das mulheres e LGBTs, bem como pesquisadoras/es
em defesa dos estudos de gênero frente aos grupos conservadores que se utilizam
do termo “ideologia de gênero” e se organizaram para a retirada das discussões de
gênero dos planos municipal e estadual de educação em Manaus. Ambos os proje-
tos foram desenvolvidos no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero,
Sexualidades e Interseccionalidades (GESECS) coordenados pelas professoras Dra.
Fátima Weiss de Jesus e Dra. Márcia Calderipe. As reflexões aqui propostas visam
contribuir para análise do campo da educação em direitos humanos, para as diver-
sidades de gênero e sexual no Amazonas.
PALAVRAS-CHAVE: Antropologia. Política. Estudos de Gênero e Sexualidade.
Ideologia de Gênero.

INTRODUÇÃO
Com o objetivo de entender diferenças produzidas social-
mente entre homens e mulheres e hierarquizações que geram padrões
de violências, o campo dos Estudos de Gênero, consolidado nas Ciên-
cias Humanas, compreende diversas disciplinas e linhas teóricas, tratan-
do-se de um campo com uma gama de abordagens e dotado de cunho
científico. A experiência do projeto de extensão Bora Lá? Oficinas sobre
Gênero e Diversidade nas Escolas Públicas de Manaus11 nos leva a per-
8 Professora Dra. do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social - PPGAS/UFAM.
9 Graduanda em História pela Universidade Federal do Amazonas
10 Professora Dra. do Departamento de Antropologia e do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social - PPGAS/UFAM.
11 Projeto de extensão proposto pelo Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexuali-
dades e Interseccionalidades (GESECS - UFAM), coordenado pelas professoras dra. Fátima
Weiss de Jesus e Márcia Calderipe através dos editais PROEXT/MEC-SeSu e realizado em um
primeiro momento entre os anos de 2014 e 2015, cujo objetivo era levar para escolas públicas
em Manaus discussões referentes à violências e discriminações geradas por padrões heteros-
sexistas e pelo homo/lesbo/transfobia, trazendo ainda reflexões sobre direitos humanos, com
intuito de contribuir para o respeito às diferenças. Para ver mais, consultar: CALDERIPE,

- 67 -
ceber como a inserção das discussões sobre gênero na escola podem
contribuir na difusão do conhecimento sobre os estudos de gênero, se-
xualidades e diversidades, bem como na construção de uma socieda-
de mais equitativa, considerando as oficinas como intervenção social
(CALDERIPE e WEISS, 2015). Contudo, Junqueira (2017) alerta para
os usos distorcidos do que entendemos como Estudos de Gênero, quan-
do transformados na expressão falaciosa “ideologia de gênero” propala-
da por setores conservadores, transformando-a em categoria política, a
fim de sustentar mobilizações reacionárias.
Ao passo que os estudos de gênero nos permitem sanar ou
compreender modelos e as diferenças socialmente produzidas, buscan-
do reparar violências e levantar reflexões a partir de nosso trabalho em
campo e produções, com frequência aliados a intervenções sociais, se-
tores conservadores também se levantam contra essas atividades e bus-
cam, por diversos caminhos, bloquear as discussões, levando a cabo a
proibição do tema na escola, respaldados em interpretações que fogem
ao campo supracitado.
Em Manaus, podemos acompanhar esse fenômeno através
das ocasiões de discussão e aprovação dos planos municipal e estadual
de educação, na Câmara Municipal de Manaus e Assembleia Legislativa
do Amazonas, respectivamente, além do PL 389/2015 que culminou na
Lei Municipal nº 439/201712.
Na primeira parte desse artigo contextualizaremos o proje-
to “Bora Lá? ” enquanto atividade de extensão que foi realizada com
professoras/es e alunas/os da rede pública de ensino, com discentes de
cursos de graduação e com participantes dos movimentos sociais de
Manaus. É importante ressaltar que as atividades de extensão foram
realizadas de forma participativa, buscando trocar experiências e opor-
tunizar diálogos entre as/os participantes. Também nesse primeiro item
serão apresentados os conflitos e percalços na implementação do pro-
jeto provenientes da atuação de grupos de interesse que tem realizado
uma cruzada moral contra os direitos sexuais e reprodutivos (MISKOL-
CI, 2018).

Márcia; JESUS, Fátima Weiss de. Discutindo Gênero e violências nas Escolas - por uma cultura
de respeito às diversidades. In: Colóquio Interdisciplinar, Gênero e Violências. Florianópolis;
(IEG,/IFSC). 2015. v.1, p. 123-136.
12 Lei Municipal nº 439/2017, oriunda do PL 389/2015, proposto pelo vereador Marcel
Alexandre. “Proíbe na grade curricular das escolas do município de Manaus, as atividades
pedagógicas que visem à reprodução do conceito de ideologia de gênero”.

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A segunda parte do texto apresenta como foram realizadas
as discussões em torno do Plano Municipal de Educação, quais foram
os grupos de interesse que participaram das sessões na Câmara Muni-
cipal de Manaus – CMM e como se deram os embates sobre a inclusão
das questões de gênero e sexualidades no referido plano. Sob acusação
de que não se trata de conhecimento científico e denominando-as pelo
termo “ideologia de gênero”, tais conhecimentos foram desqualificados
por meio de um discurso acusatório (VELHO, 1981) pautado por ideias
conservadoras e contrárias aos direitos humanos. Neste item são discu-
tidos elementos a partir das atas da CMM e as falas de participantes que
se contrapuseram à retirada das referências a gênero do Plano Munici-
pal de Educação.
O terceiro item do artigo traz uma discussão sobre a cons-
trução de um movimento de resistência e enfrentamento que reuniu
pesquisadoras/es, estudantes e participantes dos movimentos sociais
com o intuito de buscar alternativas frente ao ataque aos direitos sexuais
e reprodutivos. As intervenções desse movimento foram fundamentais
para reverter o resultado controverso que excluiu gênero das políticas
públicas de educação em Manaus.
As questões abordadas permitem compreender os mecanis-
mos pelos quais o termo “ideologia de gênero” tornou-se um eixo arti-
culador (MISKOLCI, 2018) que trouxe à tona concepções equivocadas
sobre gênero e sexualidades de grupos religiosos e/ou conservadores e
que se fazem presentes no legislativo brasileiro. Pensar sobre o impacto
do termo falacioso “ideologia de gênero” para práticas escolares e po-
líticas de educação torna-se crucial para reverter o pânico moral 13ins-
taurado na sociedade que levou à exclusão desse tema das salas de aula.

13 Segundo Miiskolci (2007, p. 114), “Os pânicos morais são fenômenos antigos, mas se
sucedem com enorme rapidez na sociedade contemporânea, na qual a moralidade não é mais
redutível a um conjunto de regras simples pronunciado por líderes religiosos ou políticos.
Vivemos em um período em que é preciso debater e renegociar a toda hora os limites morais
da coletividade. Nos momentos de renegociar esses limites, aumenta a preocupação com certo
tipo de comportamento, ao que se segue maior hostilidade com relação a ele até se chegar a
um consenso sobre um grupo ou categoria social. O pânico moral fica plenamente caracteri-
zado quando a preocupação aumenta em desproporção ao perigo real e gera reações coletivas
também desproporcionais”.

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O PROJETO “BORA LÁ?”: OFICINAS SOBRE GÊNERO
E DIVERSIDADE NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE
MANAUS.
O projeto de extensão Bora Lá?: Oficinas sobre Gênero e Di-
versidade nas Escolas Públicas de Manaus, realizado entre os anos de
2014 e 2015, foi uma das atividades que sofreu em meio às ações de seto-
res conservadores. Antes realizado em parceria com a SEDUC-AM, aos
poucos passou a ser realizado através de uma via de mão única, qual era
o nosso próprio esforço para que ele acontecesse, uma vez que percebe-
mos a paulatina diminuição do apoio da secretaria, mesmo após alguns
questionários aplicados pela mesma terem avaliado o projeto positiva-
mente14, a continuidade do projeto, tal como foi pensado inicialmente,
ficou comprometida. Além disso, no ano de 2016, o projeto Bora Lá? foi
mencionado na CMM, ganhando repercussão na internet, através da
fala do vereador criador do PL 389/2015, que se colocava contra as ati-
vidades, embora não conhecesse o projeto e não tivesse havido diálogo
algum com a coordenação15. É importante dizer que as discussões sobre
gênero, realizadas pelo GESECS, não deixaram de acontecer, e nossas
oficinas passaram a ser realizadas no âmbito da UFAM, em eventos aca-
dêmicos e parcerias com outros núcleos e junto aos movimentos sociais,
como o Fórum Permanente de Mulheres de Manaus, além da Secretaria
Municipal de Educação, com a qual foram realizadas formação de pro-
fessores sobre o mesmo tema.
Quando realizadas nas escolas, as atividades versavam, na
sua maioria, sobre gênero e diversidade e ocorriam através de oficinas
selecionadas pelo GESECS, que eram coordenadas pelas professoras e
ministradas por integrantes do grupo: estudantes de graduação e pós-
-graduação. Direcionadas para estudantes, em escolas selecionadas pela
própria secretaria através de reuniões com suas coordenações distritais,
as oficinas foram realizadas majoritariamente com alunas/os do ensino
médio. Além das oficinas para estudantes, o GESECS também possuía
um projeto semelhante, mas de formação com professores/as. As ofici-
nas realizadas nas escolas eram direcionadas exclusivamente para es-
14 As autoras explicam que, segundo a secretaria, o intuito do questionário seria dar con-
tinuidade ao projeto, a partir da avaliação dos resultados, que serviria como um respaldo.
Entretanto, a avaliação, afinal, aponta significativamente para resultados positivos, enquanto
não obtivemos da secretaria o contínuo apoio (CALDERIPE e WEISS, 2015)
15 “Vereador é contra o projeto Bora Lá nas escolas” Em: https://noticias.band.uol.com.
br/cidades/amazonas/noticias/100000796542/vereador-%C3%A9-contra-projeto-bora-l%-
C3%A1-nas-escolas.html. Acesso: 04 de nov. 2018.

- 70 -
tudantes, entretanto, não ocorriam sem a presença de um professor ou
professora na turma e, mais tarde, com membros da secretaria também
assistindo.
Em muitos casos, a presença de professores levou à interfe-
rência em nosso trabalho, quando de sua intervenção contrariando a
fala dos/as estudantes, ou marcando sua perspectiva negativa sobre gê-
nero. Em geral, essas falas não traziam fundamentação e eram pautadas
na experiência e visão de mundos individuais. Em uma das oficinas,
uma professora de ciências não chegou a intervir, mas pôde-se observar
que ela abriu seu livro na seção de sexualidade e reprodução e se pôs
a grifar alguns trechos de seu conteúdo. Noutra escola, um professor
quase apresentou mais perguntas que os próprios alunos, entretanto,
percebemos que estas perguntas não passavam de um tom de teste às
ministrantes das oficinas, sendo que o professor, em algumas coloca-
ções, foi respondido pelos próprios alunos que estavam ali acompa-
nhando o tema. Assim, lembramos da constatação de limites percebidos
pelas professoras/pesquisadoras, que diz respeito, entre outras coisas, à
formação dos professores e à forma como alguns conteúdos são apre-
sentados aquém das vivências dos alunos e alunas. Nesse sentido, com-
partilhamos a percepção de Calderipe e Weiss (2015) sobre as oficinas
De modo geral, a proposta das oficinas foi bem recebida pelas alu-
nas e alunos que estão habituados a uma organização rígida na sala
de aula. A dinâmica das oficinas quebrou com a rigidez e pouca
criatividade que caracterizam os sistemas escolares (GROSSI et al,
2014), incentivando a participação das alunos e alunos nas ativida-
des em pequenos grupos e quando da apresentação de suas refle-
xões para a turma.16

Um outro ponto levantado pelas autoras, que pode ser trazido


aqui, diz respeito à contribuição do projeto às pessoas nele envolvidas,
sejam do próprio núcleo e estudantes das escolas para sua escolarização,
além do impacto positivo para seu cotidiano escolar. As autoras desta-
cam “a mudança na trajetória de vida” através do acesso à informação,
que transforma o cotidiano. Para estudantes da graduação e pós elas sa-
lientam a “necessidade de atividades contínuas de transposição didática
nos conteúdos aprendidos na sala de aula”17
Essa questão nos leva a pensar o papel do projeto enquanto
extensão universitária que, conforme apontado por Incrocci e Andrade
16 Calderipe e Weiss. (2015, p.132)
17 Calderipe e Weiss. (2015, p.134)

- 71 -
(2018), após passar por diversos momentos na história do país e rece-
ber diferentes concepções e atribuições, finalmente deixa de ter como
finalidade apenas o acesso dos de fora, da comunidade à universidade, e
passa a ter significativo papel na formação dos estudantes universitários
e produção do conhecimento científico, considerando também um co-
nhecimento produzido coletivamente e com contribuições de diferentes
saberes18. A exemplo disso, temos essas reflexões e produções acerca do
trabalho realizado com a extensão nas escolas.
À medida que as/os alunas/os participantes na extensão
inseriram-se em um grupo de estudos com material bibliográfico sobre
os diversos temas do campo de gênero, qualificaram sua reflexão e
intervenção, construindo coletivamente estratégias para solucionar
problemas e conflitos na sua vida e na escola. Dessa forma, as atividades
de extensão cumprem um duplo papel quando as/os estudantes
de graduação e pós-graduação responsabilizam-se por levar seus
conhecimentos àquelas/es estudantes do nível médio com os quais tem
mais proximidade, compartilhando suas experiências e expectativas
para o futuro, ao mesmo tempo em que são também preparados.
O embate político que passaremos a relatar diz respeito a uma
cruzada moral que utiliza a política do medo e da perseguição contra
intelectuais, artistas e educadores/as (MISKOLCI, 2018):
Um medo que faz do Outro um inimigo a ser combatido por supos-
tas ‘pessoas de bem’, as quais têm agido performaticamente como
membros de uma espécie de cruzada moral. A despeito da forma
antiga, buscarei argumentar que tal movimento é contemporâneo e
o que o alimenta são objetivos bem terrenos.

O autor questiona se estamos vivendo uma onda conservado-


ra na qual as ideias que defendem a igualdade entre homens e mulheres,
hetero e homossexuais estão sendo perseguidas e, assim como Bento
(2017), acredita que o jogo está só começando e teremos que esperar os
próximos desdobramentos. Considerando que os artigos foram elabora-
dos antes da eleição de 2018, o próprio resultado das eleições mostra as
dificuldades que serão enfrentadas no próximo período19.
18 INCROCCI, Lígia Maria de Mendonça Chaves; ANDRADE, Thales Haddad Novaes. O
fortalecimento da extensão no campo científico: uma análise dos editais ProExt/MEC. Revista
Sociedade e Estado. vol. 33, n.1., p.187-212, 2018.
19 O candidato eleito, Jair Messias Bolsonaro, do Partido Social Liberal - PSL, desde sua atu-
ação como deputado federal por sete mandatos, tem defendido a família tradicional (https://
www.bolsonaro.com.br), mostrando-se contrário aos estudos sobre gênero, inclusive afirman-
do que os governos do Partido dos Trabalhadores – PT, seu principal adversário nas eleições

- 72 -
O PLANO MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO EM MANAUS
No dia 22 de junho ocorreu na Câmara Municipal de Ma-
naus sessão extraordinária, com a finalidade de discussão sobre o Pla-
no Municipal de Educação, evento que contou com a participação da
sociedade, que assistia a discussão entre os parlamentares e protesta-
va, à sua maneira, de acordo com seus interesses. Entre o público, dois
grupos antagônicos apontavam seus interesses na discussão: o primei-
ro composto de pessoas militantes LGBTs, juventudes, universitárias,
professoras, pesquisadoras; o segundo, em sua maioria, formado por
religiosos, católicos e protestantes. A tensão era a respeito das questões
de gênero e diversidade previstas para o plano, questões que, para o se-
gundo grupo eram resumidas à “ideologia de gênero”, e que também era
o modo como a maioria dos parlamentares tratava, em harmonia com
a mídia em geral, ao divulgar matérias sobre o evento, que entrava em
consonância com o tema discutido em diversas regiões do país naquele
momento.
Na realização dessa pesquisa contamos com a análise das ma-
térias veiculadas nos portais de notícia online, atas da Câmara Munici-
pal de Manaus - disponíveis no próprio site, e fontes orais, por meio da
realização de entrevistas com pessoas que estiveram presentes na oca-
sião de discussão dos planos municipal e estadual de educação.
Rogério Junqueira (2017) se propõe a analisar como o termo
“ideologia de gênero”, cunhado por grupos religiosos, forja-se como ca-
tegoria política e como a luta por direitos humanos “ameaça a família
natural”. Nesse sentido também nos apoiamos em outra autora, Aline
Bonetti (2016), que nos ajuda a verificar como o termo “ideologia de
gênero” trata-se de uma armadilha ideológica, gerando confusões pro-
positais.
Na genealogia elabora por Miskolci (2018) sobre a construção
do termo “ideologia de gênero”, a qual remonta a vinte anos, observa que
após a IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher em Beijing,
no ano de 1995, os “intelectuais laicos assim como lideranças religiosas
católicas cunharam a noção de “ideologia de gênero” para sintetizar o
que compreendem como divergência entre o pensamento feminista e
seus interesses”. Nessa cruzada, teve papel fundamental a militante pró-
-vida Dale O’Leary que participou das conferências do Cairo (1994) e
presidenciais de 2018, utilizou um kit gay para disseminar a “ideologia de gênero” nas escolas,
informação desmentida pelo próprio MEC e pelos mais diversos meios de comunicação.

- 73 -
de Pequim (1995), e publicou o livro Gender Agenda, em 1996, no qual
acusa a ONU de adotar a perspectiva de gênero para as políticas públi-
cas (BONETTI, 2016, JUNQUEIRA, 2017; MISKOLCI, 2018).
Na construção do termo ideologia de gênero, Miskolci (2018)
afirma que a igreja católica teve atuação preponderante a partir de 1997
quando o Papa Bento XVI defendeu que o conceito de gênero ia de en-
contro ao catolicismo; também observa que, em 1998, a Conferência
Episcopal da Igreja Católica do Peru teve como tema os perigos e alcan-
ces da ideologia de gênero, trazendo à baila essa noção.
Além disso, para o autor, a inclusão dos direitos sexuais e re-
produtivos na agenda dos países do sul global, capitaneados pelo Brasil
e México, bem como a preocupação da própria igreja católica com os
homossexuais, expressa no Documento de Aparecida, de 2007, resul-
tado da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do
Caribe, contribuiu para pôr em evidencia a pauta do gênero. Miskol-
ci (2018), entretanto, atribui ao reconhecimento legal das uniões entre
pessoas do mesmo sexo na Argentina e no Brasil, respectivamente em
2010 e 2011, o gatilho para o pânico moral sobre ideologia de gênero na
América Latina.
Como desdobramentos disso, houve reação na Câmara Fede-
ral dos Deputados, situação que foi amplamente retomada e contestada
nas eleições de 2018. Como observa Miskolci (2018), após o reconheci-
mento das uniões entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal
Federal brasileiro, o então deputado Jair Bolsonaro liderou um movi-
mento contra o material que seria distribuído nas escolas para enfrentar
a discriminação e a violência contra homossexuais, bissexuais, travestis
e transexuais. Várias referências equivocadas ao material foram feitas
(cartilhas falsas circularam pelo país) e o material foi chamado de kit
gay e o deputado recebeu apoio da frente parlamentar evangélica e de
congressistas católicos e conservadores agnósticos.
Em relação ao campo da educação, Miskolci (2018) observam
que a discussão sobre o novo Plano Nacional de Educação, em 2014,
trouxe outros grupos para o debate, como o movimento “Escola Sem
Partido”, associação criada em 2004, com a finalidade de combater o
que considerava como “doutrinação marxista” nas escolas, aliando-se
à perspectiva econômica neoliberal do Instituto Millenium20 e sua pla-
taforma foi incorporada por diferentes grupos políticos. Dessa forma,
20 Na sua caracterização, o Instituto Millenium define-se como sem vinculação político-
-partidária, agregando intelectuais e empresários que têm se manifestado e produzido material
escrito sobre temas como liberdade individual, direito de propriedade, economia de mercado,
democracia representativa, Estado de Direito e limites institucionais à ação do governo. Fonte:
https://www.institutomillenium.org.br Acesso realizado em 12 de novembro de 2018.

- 74 -
Laicos, evangélicos (neopentecostais ou não) e católicos uniram-se
disseminando o espectro da “ideologia de gênero” como supos-
ta ameaça às crianças e à família brasileira em 2015, ano em que
Estados e municípios discutiram – respectivamente – os planos de
educação estaduais e municipais” (MISKOLCI, 2018)

O autor observa que a discussão sobre os planos educacio-


nais trouxe destaque para esta temática, tornando-a de conhecimento
público. A atuação de grupos de interesse, para além do envolvimento
religioso, ampliou seu alcance, ao mesmo tempo em que foi constituída
uma aliança de cunho moral, homofóbica e contra o reconhecimento da
diversidade de gênero:
Assim, foi por meio da discussão dos planos educacionais país afora
que o fantasma se alastrou pelo Brasil e – ao contrário do que se
noticiou na maior parte da imprensa – menos por meio de lide-
ranças neopentecostais do que por católicas e laicas. Empreendedo-
res morais formados por grupos de interesses diversos uniram-se
para reagir ao avanço dos direitos sexuais, em especial para barrar
a luta contra a homofobia no ambiente escolar e o reconhecimento
da diversidade de gênero. Sua aliança, que tem características cir-
cunstanciais, prováveis divergências internas e até objetivos que vão
muito além de combater o que chamam de “ideologia de gênero”,
indubitavelmente pôs em ação uma cruzada moral que se assenta
em um mesmo campo discursivo de ação.

Veremos, então, como ocorreu a adesão ao termo e como os


embates deram-se em Manaus em torno desta discussão, onde tal termo
foi manipulado pelos setores conservadores acima mencionados, inte-
grantes do segundo grupo, em contraposição à luta do primeiro grupo
pelo direito de ter essas discussões apoiadas nos estudos sobre gênero.
Através da análise das atas da Câmara Municipal de Manaus,
podemos ver, por exemplo, como chega a ser gritante o silêncio sobre
minorias, (neste caso, mulheres e comunidade LGBT); é ausente qual-
quer menção à organização da sociedade que luta por aquilo que eles
buscam suprimir, por sua vez, apoiados por outros setores que se colo-
cam contrários à diversidade em detrimento da unidade familiar proje-
tada a seu molde. Se há ausência sobre uma parte, esta é preenchida por
um bloco de falas que compõem um uníssono de reprodução do senso
comum e conservadorismo.
Nesse caso, consideramos a situação de perda de conquis-
tas e direitos que temos passado, de acordo com Almeida (2017), que
afirma que “consolidaram-se nos últimos anos forças que trabalham a

- 75 -
favor da contenção, da restrição e do retrocesso de alguns direitos ga-
rantidos com a promulgação da Constituição de 1988”21. E no caminho
do pensamento do autor, também temos cuidado com a expressão con-
servadorismo e compreendemos que só pode ser definida de maneira
relacional, sendo assim, o que nos leva a separar os setores conserva-
dores no segundo grupo justamente por, em relação ao primeiro grupo,
se empenhar na manutenção de seus privilégios (JUNQUEIRA, 2007)
e concepções, ao propagar que sua pretensa “família tradicional” está
ameaçada com os estudos de gênero.
Como nos mostra o ambiente hostil elaborado por essas pes-
soas e seus apoiadores e apoiados, bem como a literatura acerca do que
tomaram como “ideologia de gênero”22, é estabelecido um pânico moral
na sociedade a fim de sustentar mobilizações reacionárias (JUNQUEI-
RA, 2017). Em Manaus, vemos em prática essas mobilizações na atua-
ção dos parlamentares presentes na reunião:
Em Questão de Ordem o vereador Mário Frota declarou que os
homens estavam vivendo num mundo surreal, porque o deputado
federal Jean Willys estava pretendendo censurar a bíblia. O sexto
orador, vereador Júnior Ribeiro, argumentou em defesa da famí-
lia brasileira, a despeito de ser considerado ultrapassado [...]. Em
Questão de Ordem o vereador Marcel Alexandre também se mani-
festou em favor da família, contrário à ideologia de gênero. [...] O
nono orador, vereador Marcel Alexandre, destacou a iniciativa da
Igreja do Ministério Internacional da Restauração, que trouxe para
Manaus mais três mil líderes do Brasil e do mundo para uma grande
celebração no Sambódromo, onde todos gritaram não à ideologia
de gênero.

Ocorre que, como sustentamos nesta pesquisa, o campo dos


Estudos de Gênero, consolidado nas Ciências Humanas, compreende
linhas teóricas, e diversas disciplinas, tratando-se de um campo com
uma gama de abordagens, dotado de cunho científico. Os estudos de
gênero permitem sanar ou compreender esses modelos e as diferenças
socialmente produzidas; buscam reparar violências e levantar reflexões

21 ALMEIDA, Ronaldo de. A onda quebrada - evangélicos e conservadorismo. Cad. Pagu


[online]. n.50, 2017.
22 Ressaltamos, de acordo com Marina Alves Amorim e Ana Paula Salej, que o termo ca-
racteriza uma “insustentabilidade científica”, uma vez que não é utilizado pelo campo dos es-
tudos de gênero. As autoras apontam ainda que “não é um equívoco e sim uma estratégia”.
AMORIM, Marina Alves; SALEJ, Ana Paula. O Conservadorismo Saiu do Armário!: A luta
contra a ideologia de gênero do Movimento Escola Sem Partido. Revista Ártemis, Vol. XXII
nº1; jul-dez, 2016. p. 32-42

- 76 -
a partir de nosso trabalho em campo e com produções, aliadas a inter-
venções sociais. Os setores conservadores também se levantam contra
essas atividades e buscam, por diversos caminhos, bloquear discussões,
levando a cabo a proibição do tema na escola, respaldados em interpre-
tações que fogem ao campo de estudos supracitado.
Esses setores, como podemos observar até então, a partir de
nossas fontes, são compostos por grupos religiosos, evangélicos e cató-
licos que se organizam para disseminar em seus espaços as distorções
acerca do gênero, bem como se fazerem presentes nos espaços públicos
de discussão sobre o tema, marcando território e fazendo-se ouvir, ain-
da que no grito, além de conseguir representação nas instâncias oficiais.
Se antes as ideias não passavam de seus nichos familiares e religiosos,
percebemos o avançar de suas posições sobre a mídia e casas legislati-
vas, estes, sim, gerando uma ameaça concreta ao ameaçado: o estado
laico. Débora Diniz (2013) apresenta características que dizem respeito
ao estado laico ou não23. Entre elas, a autora esclarece: “A presença das
religiões na esfera pública é garantida pelo Estado, mas não se confunde
com a colonização das religiões nos atos do Estado”. Para a antropólo-
ga “não há espaço para todos no campo do dogmatismo religioso [...]
sempre há opressão, quando há uma hegemonia de crença – seja ela de
renda, de força, de cor, de sexo”. Afirma que a laicidade garante a diversi-
dade, bem como funciona como mecanismo de proteção dos discursos
do ódio e hegemonia moral (DINIZ, 2013).
Uma das interlocutoras da pesquisa, estudante de história,
é uma mulher trans que acompanhou o movimento e esteve presen-
te na Câmara Municipal. Ao falar, em entrevista, sobre o dia em que
chegou na CMM para acompanhar as discussões em torno de gênero
e diversidade, lembra da percepção que teve dos grupos presentes fora
da plenária:
Eu achei que todo mundo que tava ali… na arquibancada - que a
gente não podia entrar, era pessoas a favor, que.. dessas discussões.
Mas a nossa turma, eu, Flávia, Tamily, se não me engano foi, Rafae-
la Bastos, deixa eu ver quem mais… O Walter também foi, Diana..
Diana também foi, Tiana também...era muito, muito pequeno em
relação a oposição - que depois me disseram: o pessoal todinho lá
era da Renovação Carismática. Um grupo muito grande de gente lá
orando, fazendo as preces, dizendo que… tudo que é ruim, né
23 DINIZ, Débora. Dez palavras sobre laicidade. Texto apresentado no X Seminário LGBT
do Congresso Nacional no dia 14 de maio de 2013. Disponível em: http://www.acaoeducativa.
org.br/fdh/wp-content/uploads/2015/12/Dez_palavras_sobre_laicidade_Diniz.pdf

- 77 -
Entre os diversos momentos ocorridos na sessão, destacou o
posicionamento do vereador Marcel Alexandre. Na sua fala, observa o
seguinte: “Marcel Alexandre começou a dizer que aquilo não podia, que
aquilo ia destruir as famílias, esse tipo de discussão sobre sexualidade
deve ser dado no âmbito familiar, né, que aquilo não se discutia na esco-
la, que era assunto dos pais tratarem com os filhos”24.
É importante dizer que a estudante, enquanto pessoa que não
se encaixa nos padrões desejados por esta sociedade, mas não se abstém
de seus espaços, enfrentou de maneira peculiar esses embates, por dois
motivos: por se tratar de uma mulher trans e por fazer parte de uma
igreja católica naquele momento:
[...] era muito triste ver isso… Eu, na época, é… uma pessoa que era
cristã, uma pessoa que ia pra igreja católica, é… consequentemente
ver um grupo de gente que é católica, se diz cristã, é…. não tendo o
menor conhecimento do que se trata,né de que se trata essas discus-
sões, a necessidade dessas discussões, é um problema muito grande.

Apesar disso, sua fala aponta também para as possibilidades


que são construídas coletivamente e têm importância na vida pessoal
dessas pessoas:
O meu maior… uma das coisas que mais me… me… impactou
naquele momento foi eu virar pro lado e ver que a igreja que eu
participava tava se mobilizando contra esse tipo de discussão, sabe?
Eu olhei assim e eu fiquei muito triste, muito triste por esse… por
esse tipo de posicionamento. [...] Tanto que foi uma das coisas que
me levou a sair e não frequentar mais, entre outras coisas. Não fre-
quentar mais por esse tipo de posicionamento, posição da igreja em
relação a gente, em tratar as pessoas trans: querer tratar as pessoas
trans pelo nome civil sempre. Isso é muito chato, não ter a empa-
tia e chegar “como eu posso te chamar?”. E assim, na luta, eu acho
que ali foi um dos passos iniciais na minha trajetória de lutas, sabe?
Porque antes eu ficava na minha, e aí eu vi “não, eu não posso ficar
calada”. Não posso ficar calada porque o pessoal vai massacrar, já
massacram, né? Já matam a torto e a direito travestis e transexuais,
mulheres cis, né… E eu não posso ficar calada a isso enquanto uma
massa significativa de pessoas é…. discursa de forma conservadora,
de forma preconceituosa e tem um público grande que vai lá e bate
palma e acha isso um espetáculo. Então acho que isso é o início, foi
um dos traços da minha insistência em lutar contra isso, da minha
insistência em lutar contra um sistema que é um sistema transfóbi-
co, racista, um sistema que construiu uma estigmatização à figura
da travesti e da transexual25.

24 Estudante de história, mulher trans, entrevista.


25 Idem.

- 78 -
Um movimento coletivo de resistência é engendrado por pes-
soas que são estudantes, professoras e militantes em Manaus desde a Câ-
mara Municipal de Manaus sobre o PME e vai se fortalecendo à medida
em que ocorrem os encontros nesses espaços de discussão. Posterior-
mente, é na Assembleia Legislativa do Estado do Amazonas, por oca-
sião da discussão do Plano Estadual de Educação, que vão novamente se
encontrar, estabelecer contatos, visto que sentem a necessidade de uma
organização mais efetiva. Pensando em como essas lutas não acontecem
de forma isolada e alheia à experiência dos sujeitos que se propõem
aos embates, como percebido no caso da estudante trans, trago a fala
de outra pessoa que acompanhou as discussões; também estudante de
história e interlocutora da pesquisa. Ela destaca o seu envolvimento
como parte de um momento em que também se organizava dentro
da universidade, no sentido de discutir com um grupo de diversas/os
estudantes questões que diziam respeito às suas vivências:
Nesse período penso que eu tava muito envolvida com um grupo
de estudantes que estava participando do movimento de greve na
UFAM e com esse envolvimento, é... nós estávamos discutindo
questões que estavam ali além das pautas necessariamente voltadas
pra questão da universidade, né? No sentido da greve, da luta dos
professores, da luta dos técnicos, enfim... esse grupo de estudantes é
um grupo muito diverso no sentido de orientação sexual, no senti-
do da formação da identidade de gênero, no sentido étnico racial...
então a gente acabava discutindo várias questões. Discutindo polí-
tica, discutindo projetos políticos que iam afetar grupos dos quais
nós fazíamos parte, no sentido da militância, no sentido dessa ex-
periência diversa26

Semelhante ao modo como as estudantes envolveram-se nos


embates, a partir de suas vivências e sentimentos, uma professora, ao
fazer seu trabalho, revela-nos como não ocorre de maneira isolada de
um contexto. Nossas experiências e aquilo que nos sensibiliza têm forte
influência sobre o que produzimos, sobre o ponto de vista que escolhe-
mos e a força política presente no campo dos estudos de gênero. Silva
(2007) nos convida a pensar em visibilidades sem perder de vista que
devem estar articuladas às “relações históricas e sociais que constroem
processos de dominação”27. Isso é percebido no momento em que fala
sobre a construção de um texto sobre ideologia de gênero, denominado
26 Mulher jovem, estudante de história, em entrevista concedida em abril de 2018 em sua
residência.
27 SILVA, Daniel Vieira. Diálogos sobre escola e diferença: uma perspectiva interseccional
sobre o cotidiano escolar. Revista Interinstitucional Artes de Educar, v.3 n.1, p.154-169,2017.

- 79 -
“O túnel, o Frota e a Ideologia de Gênero”28. Nas suas palavras:
Eu escrevi no calor das emoções. Foi assim, eu acordei, eu soube
do estupro … eu comecei a acompanhar as histórias do estupro da
menina no face porque eu não tenho instagram e aí a gente tava ter-
minando uma disciplina na USP, que era sobre a crise, que naquele
momento tava explodindo aquele tema. Então eu acompanhava a
mobilização do 33 contra elas, da hastag lá em São Paulo [...] E daí
eu tinha acompanhado, né, as votações do processo admissibilidade
do impeachment29

Essas situações nos remetem às reflexões de Louro (2007), nas


quais chama atenção para “estar atenta ao intolerável”, que para ela é um
“critério significativo para alguém reconhecer o que vale a pena colocar
em primeiro plano em sua vida, em suas reflexões e ações”30. Enquanto
pesquisadora, percebe no trabalho um “horizonte político que garante
nossa identidade”, isso a conduz a outros pontos de reflexão de ordem
metodológica que também nos interessam: peculiaridades e potenciali-
dades de nosso campo de estudo. Admitimos, como a autora, que faze-
mos escolhas que não devem ser de compactuação com a intolerância e
a reprodução de violências.
Ainda em entrevista, percebemos, por parte da pesquisadora,
uma escolha por se colocar em enfrentamento político ao invés de uma
postura deliberadamente científica e acadêmica:
“Olha, nas primeiras sessões da Assembleia e da Câmara eu me po-
sicionei muito mais no campo do enfrentamento político, sabe? Eu
não tava muito preocupada em ter um discurso científico, acadê-
mico, orientado para… Então, como era um espaço legislativo de
enfrentamento, eu me lembro que na minha fala lá na audiência, a
minha insistência era pra pontuar alguns equívocos das emendas
que eu havia escutado na Assembleia [...] Então naquele momento
a minha preocupação era desmistificar umas coisas que a galera fa-
lava [...] que as crianças podiam mudar de nome na infância, que os
pais não poderiam mais colocar o sexo na certidão de nascimento,
que as meninas seriam proibidas de usar rosa e os meninos de azul,
que os professores ensinariam sobre sexo, faziam com muita fre-
quência essa relação entre homossexualidade e homossexualismo,
porque eles usavam esses termos assim mesmo, pejorativos, com
pedofilia, abuso sexual e prostituição infantil. Então eu me lembro

28 CUNHA, Flávia M. da. O túnel, o Frota, a ideologia de gênero. Ponto Urbe (USP), v.1.,
p.1-14, 2016.
29 Flávia Cunha, em entrevista.
30 LOURO, Guarcira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às ten-
sões teórico-metodológicas. In: Educação em Revista. Belo Horizonte. n.46 p.201-218. Dez. 2007.

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que naqueles momentos primeiro de enfrentamento a minha preo-
cupação sempre que eu falava era desconstruir isso”31

Em enfrentamento, busca-se aliados ou pessoas que minima-


mente possam contribuir com o objetivo posto. Para o evento na CMM,
apesar do sobressalto, pois a discussão chegou aos envolvidos de manei-
ra repentina e via redes sociais (lugar onde também se deram grande
parte das articulações), as pessoas que estavam na Câmara enviavam
mensagens para companheiras de movimentos, de pesquisa, de lugar de
trabalho para que também se fizessem presentes ao momento:
Naquele primeiro dia o que a gente tentava fazer era conversar,
mandar mensagem, então eu fiquei o dia inteiro mandando mensa-
gem para amigas do movimento de mulheres dizendo “venham pra
cá, venham pra cá” e do movimento negro porque eles propuseram
tirar “gênero, orientação sexual, LGBT e diversidade, e num dos tre-
chos do plano, do projeto do plano municipal, tirar diversidade in-
cluía tirar diversidade religiosa, então a gente tentou angariar outros
apoios. [...] Mas naquela primeira sessão, o grupo ficou aquele mes-
mo. Apareceu assim uma amiga, uma outra professora da Uninorte,
apareceram pontualmente, porque era um dia de semana também,
um dia de trabalho”32

A estudante também fala dessa busca de mais pessoas para


participarem do que estava ocorrendo, e diferente da fala da professora
acima, é menos compreensiva com as ausências. Lembra que não esta-
vam só em pauta gênero e sexualidade, mas questões relativas às discus-
sões étnico-raciais também, além de chamar atenção para direitos que,
até o momento, são garantidos, mas que podem deixar de ser:
A gente foi chamando as pessoas, pelo facebook principalmente.
“Olha, vai ter isso e se puder aparecer e contar, vai ser de grande
ajuda”. Porque eram professores que a gente chamava, eram pes-
quisadores, professores pesquisadores aqui da universidade, né?
Mas poucos apareceram, poucos apareceram, entendeu? Pra ti ver
como que é, o que é importante e o que não é importante. Claro,
tem os seus afazeres, mas eu acho que isso também é importante,
né? E tipo, os professores da universidade é eles que formam os pro-
fessores do ensino básico, então eu acho que tem que partir deles
também [...] Então, Ramily, uma das coisas que eu tava pensando é
assim: não tava só se discutindo questões de gênero e sexualidade,
que era o que tava mais sendo combatido. Mas havia também as
questões étnico-raciais, que era uma das coisas que poderiam ter

31 Flávia Cunha, em entrevista.


32 Professora ensino superior, entrevista.

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saído do plano [...] E as pessoas que trabalham com esse assunto,
questões étnico-raciais não se man… não tiveram presentes, sabe?
Eu sei que tem uma lei, tem uma lei que ampara isso, né, discussões
da África e Afrodescendentes dentro do campo da história, a gente
sabe, história indígena também. Eu não sei se as pessoas se despreo-
cupam por causa disso… porque a qualquer momento isso pode
sair! [...] Acham que já está consolidado. Mas a qualquer momento
podem tirar, entendeu? Podem tirar esse tipo de discussão”33

Entre outras coisas presentes nos discursos proferidos por


parlamentares na CMM e que já haviam sido verificados nas atas dis-
poníveis no portal da CMM, alguns aspectos voltaram ao debate através
das falas de nossas entrevistadas, que apresentam indignação frente a
estes discursos conservadores:
A gente se deparou simplesmente com discursos altamente igno-
rantes, conservadores, alheios a qualquer debate acadêmico, a um
debate sério, a um debate que preze pelas múltiplas vozes de sujeitos
que estão ali lutando por pautas concretas que não são inventadas
[...] Teve uma vereadora que falou... é... como ela falou? Os trans-
gênicos! [...] Entendeu? Eles não sabiam o que tavam falando, né,
eles não sabiam o que era, eles não sabiam o que que é sexualidade.
Eles confundiam o tempo todo muito, muito provavelmente propo-
sitalmente mesmo, né, confundiam o tempo todo sexualidade com
promiscuidade, então foi com isso que a gente se deparou34

Considerando isso, a intransigência de alguns membros de


igrejas que estavam presentes na CMM através de gestos, cartazes e eu-
foria, a estudante percebeu uma falta de abertura ao diálogo, contudo,
traz ao presente a memória de um suposto historiador que a abordou
Até que um membro desse grupo se aproximou de mim e de outra
colega e perguntou o que a gente fazia, por que a gente tava ali e
se era estudante o que a gente estudava e o que a gente queria com
aquilo. Esse rapaz que… esse senhor que se aproximou ele pergun-
tou qual curso que eu fazia, eu e minha colega. Eu disse que fazia
história, ela também fazia história. E aí ele falou eu também tinha
feito história, mas assim, eu percebi que... uma superficialidade ex-
trema na fala dele com relação à própria histórica, com relação a
universidade... Eu entendo que ele falou isso como uma forma de se
aproximar, mas não pra discutir qualquer coisa, mas sim pra saber
se a gente sabia defender o que tava em pauta pelo nosso grupo, né,
“por que vocês tão aqui?” “por que vocês acham que é certo?” eram
essas as perguntas, né, perguntas que não incentivavam o diálogo,

33 Estudante de história, mulher trans., entrevista.


34 Mulher cis, estudante de história, entrevista.

- 82 -
perguntas que eram simplesmente pra sondar o grupo35

Esta situação nos remete à uma oficina realizada pelo projeto


de extensão Bora Lá?: Formação em Gênero e Diversidades em Manaus,
no ano de 2017, com a Divisão de Desenvolvimento Profissional do Ma-
gistério (DDPM) - Secretaria Municipal de Educação - SEMED cujo
público era formado por professoras e professores da rede de educação
do município, de diversas disciplinas. Nesta oficina foram desenvolvi-
das algumas dinâmicas que instigavam que as professoras e professo-
res pensassem, divididos em grupos, sobre diversas situações em que o
gênero era tema central em um conflito do cotidiano escolar. Ao final
de determinado tempo, os grupos apresentaram para os demais os con-
flitos presentes e as soluções que eles definiram como cabíveis. Nesse
dia, houve um momento da discussão em que um homem, que se apre-
sentou como professor de filosofia, começou a questionar o GESECS so-
bre as referências que nós tínhamos para falar sobre aquilo. Embora ao
longo de nossa apresentação inicial e no decorrer da oficina tenhamos
citado autoras/es e algumas produções do campo, o professor não per-
cebeu. Então, repetimos alguns conteúdos e ele insistiu que gostaria de
ver coisas escritas, falou algo sobre filosofia e, neste momento, o grupo
percebeu que não estava interessado em diálogo ou mesmo para ouvir
o que tínhamos a dizer.
Na percepção da professora, houve ainda tentativa de aproxi-
mação e interesse em conhecer o tema, por parte de um vereador do PT:
[...] o Waldemir eu me lembro de nos chamar e pedir documento
dizendo assim “olha, eu não conheço, eu não sei o que é, mas…” e
daí a gente começou a trocar um monte de coisas, todo mundo, a
galera da SEMED… E foi por pressão nossa e do Waldemir José que
a gente conseguiu interromper a sessão e convocar uma reunião36

Nessa reunião estiveram presentes o vereador acima mencio-


nado e outros do mesmo partido, a vereadora presidenta da comissão
de educação e membros do grupo que foram protestar a favor do gênero
no PME. Estes ficavam revezando a presença na sala, em grupos de três.
Percebemos, a partir daí, a importância dessa presença e a diversidade
de pessoas que lá estiveram, seja da educação, estudantes e trabalhado-
res/as ou o que Flávia Cunha reconhece como “referências LGBTs” em

35 Estudante de História, entrevista.


36 Professora, em entrevista.

- 83 -
Manaus37. Fim do dia, a bancada do PT mudou de posição, colocando-
-se a favor da permanência do gênero no PME. Entretanto, em votação,
a plenária retirou o termo.

RESISTÊNCIA E FORMAS DE ENFRENTAMENTO


COLETIVAS
Com a discussão do mesmo tema, dessa vez no Plano Esta-
dual de Educação, posteriormente ao PL 389/2015, esse grupo volta a
se encontrar. É nesse contexto que se constrói o projeto Educação pela
Diversidade no Amazonas (EDIVERSA), grupo que se engajou no de-
bate e na contestação do PL 389/2015, que dispõe sobre a proibição das
atividades pedagógicas que visem a reprodução do conceito de “ideolo-
gia de gênero” na grade curricular das escolas do município de Manaus.
Em relação ao grupo formado, Flávia Cunha nota que, an-
teriormente, sua atuação “era menos formulada academicamente e era
muito mais de oposição política [...] Eu vou começar a tentar formular
isso teoricamente a partir de 2016 com aquele texto d“O túnel, o Frota e
a Ideologia de Gênero”38
Junto com seu movimento, no que diz respeito à postura po-
lítica, acadêmica e científica, percebemos no EDIVERSA um teor mais
voltado às leis, e embasado no discurso científico tomado dos estudos
de gênero, com ações institucionais. Se inicialmente as pessoas envolvi-
das nas discussões que se colocavam a favor do gênero acreditavam que
o grupo que se mobilizava contra não sabia do que estava falando, isso
se modificou ao longo do embate:
Depois eu comecei a entender que ideologia de gênero existia
sim, era um discurso muito potente, um discurso religioso
muito potente que tava conseguindo quase tudo que se pro-
punha nesse cenário. Então eu disse “não, acho que é uma
estratégia errada dizer que eles são loucos, fanáticos, igno-
rantes e que eles não sabem o que eles estão dizendo”. Eles
sabem sim e tem dado muitos resultados positivos pra eles39

Percebendo isso, o grupo decide combater o que há de insus-


tentável e que é propagado pelos conservadores, sem perder de vista
a maneira como lhes era colocado “a gente tinha muita preocupação
porque a gente tava num campo de enfrentamento em que as pessoas

37 Professora, em entrevista.
38 Flávia Cunha, em entrevista.
39 Flávia Cunha, em entrevista.

- 84 -
mobilizavam coisas muito, muito rasas”40. Quando ainda acreditavam
que eles não sabiam do que falavam, as pessoas que se reuniram para
compor o EDIVERSA construíram uma série de documentos que fa-
cilitaria a compreensão de quem precisasse e nos diversos locais em
que julgassem necessários. Entre estes documentos destacamos o que
Flávia Cunha chamou de “instrumento pedagógico”, o manifesto e a
contraposição ao projeto de Marcel Alexandre. Ainda do EDIVERSA,
a professora explica que “pra uma lei, uma contraposição formal é uma
apreciação da lei”41 e justifica as ações que o EDIVERSA realizou junto
às instituições de poder e órgãos públicos em Manaus, com documentos
protocolados nos ministérios públicos estadual e municipal e defensoria
pública, e debates realizados na SEMED, Secretaria de Justiça e UFAM.
Ela também atribui esse caráter devido ao vínculo que boa parte de seus
membros possuía com a universidade, ou que levavam suas lutas a ou-
tros lugares, outros coletivos e também destaca a importância do meio
acadêmico, que não deixa de ser político, a exemplo do GESECS:

Então o EDIVERSA foi meio que uma identidade política que nos
agregou, com mais intensidade em alguns momentos, com menos
intensidade em outros, mas a gente já tinha um engajamento em
outras frentes, então, independente do EDIVERSA e das ações do
EDIVERSA, tipo a Fátima, a Márcia, com a galera do GESECS, com
o Bora Lá continuavam fazendo um trabalho que é acadêmico, mas
que é de extensão e que tem uma atuação política nesse campo, né?42

As ações do EDIVERSA trouxeram resultados. Em julho de


2017 o Ministério Público Federal, na Procuradoria da República no
Amazonas expediu uma recomendação43 às secretarias municipal e es-
tadual em favor da educação pedagógica sobre gênero, que a mesma deve
ser “promovida e incentivada, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa para a elaboração e reflexão crítica da realidade, a preparação
para o trabalho e para o exercício da cidadania por meio da liberdade de
expressão, da não discriminação e do respeito aos direitos humanos”44.
Na recomendação, diversos argumentos foram levados em
consideração, entre eles a decisão do STF sobre caso semelhante ocor-
40 Flávia Cunha, em entrevista.
41 Flávia Cunha, em entrevista.
42 Flávia Cunha, em entrevista.
43 Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Amazonas. Recomendação
Nº 08/2017.
44 Ministério Público Federal. Procuradoria da República no Amazonas. Recomendação
Nº 08/2017.

- 85 -
rido no Paraná, em seguida, a consideração de que a ausência da dis-
cussão, implicaria em uma condenação dos educandos “ao desconheci-
mento e à ignorância sobre uma dimensão fundamental da experiência
humana”. Além de argumentos já defendidos pelos estudos de gênero e
presentes neste relatório, no que diz respeito à “construção social, polí-
tica e histórica” do que entendemos por gênero e uma série de argumen-
tos dos quais citamos alguns abaixo:

Considerando que impedir ou omitir a alusão aos termos gênero


e orientação sexual na escola significa conferir invisibilidade a tais
questões, obstando-se que o aparato estatal seja utilizado para a
superação da exclusão e o combate a discriminação;
Considerando que a educação tem objetivos de fortalecer o respeito
pelos direitos humanos e liberdades fundamentais e capacitar todas
as pessoas a participar de uma sociedade que favoreça a compre-
ensão e tolerância entre as nações e entre todos os grupos raciais,
étnicos ou religiosos;
Considerando que a abordagem temática de gênero e que orienta-
ção sexual no ambiente educacional, por todo exposto, encontram-
-se em consonância com os preceitos fundamentais da Constituição
Federal, não possuindo finalidade ideológica, mas sólida base aca-
dêmica;
Considerando, por fim, que a norma municipal viola a competência
privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação
nacional45

Mais tarde, em maio de 2018, o TJ-AM suspendeu dois ar-


tigos da Lei Municipal nº 439/2017 que se sucedeu ao PL 389/2015 de
autoria de Marcel Alexandre46. A notícia foi bem recebida entre educa-
dores e movimentos sociais e compõe parte do resultado de uma luta
empreendida por diversas pessoas na cidade de Manaus. Luta iniciada
a partir do enfrentamento aos setores conservadores e religiosos que
se fizeram presentes nas discussões do Plano Municipal de Educação e
Plano Estadual de Educação no ano de 2015.
Tais aspectos referentes a medidas adotadas pelos órgãos aci-
ma citados, e como ocorreu o processo em Manaus, não apenas no legis-
lativo, têm significado importante para a luta pelo respeito à diversidade
e o combate à intolerância. Entretanto, cabe lembrar que os embates não
se dão somente nesses espaços, pois como revelado pelas fontes orais,
45 Ministério Público Federal, Procuradoria da República no Amazonas. Recomendação
Nº 08/2017.
46 G1, Globo: “Justiça suspende artigos que proíbem atividades sobre ideologia de gênero
em escolas de Manaus”. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/ justica-
-suspende-artigos-que-proibem-atividades-sobre-ideologia-de-genero-em-escolas-de-ma-
naus.ghtml

- 86 -
estão presentes nos diversos lugares por onde seus sujeitos transitam,
assim, outros aspectos tiveram relevância nesse embate:

Foi uma experiência muito importante pra gente definir assim


como direcionar a fala, né? Pra gente definir... pra gente definir não,
aliás, pra gente ter uma dimensão maior do que é estar diretamente
lidando com os nossos problemas com relação a essas pautas. Então
foi uma forma também de preparo porque assim, a gente sabe que
o discurso oposto é violento, a gente sabe que o discurso oposto é
constrangedor, né? Quer se colocar... aliás, se coloca como domi-
nante, e isso muitas vezes a gente... a gente discute internamente. A
gente discute falando disso, das nossas experiências para os nossos
colegas, falando para uma pessoa dali do mesmo grupo, enfim. Um
coletivo como aquele estar diante de um coletivo oposto, é uma ex-
periência assim que vai... que vai impactar mutuamente e que vai
preparar a gente pra uma fala mais cautelosa, não mais passiva, não
mais pacífica, mas cautelosa, no sentido de entender que eles real-
mente não sabem como a gente tá articulando ideias, né, de eles não
entenderem que aquilo é real, não é algo inventado”47

Como revela a aluna, é importante garantir seu espaço de fala


nessa disputa, é importante ter uma rede de articulação entre pessoas
que passam pelas mesmas dificuldades a partir de uma experiência, e/
ou que têm propósitos para uma sociedade, quais sejam: na garantia de
direitos e na luta pela superação das desigualdades.
Num artigo em que aborda o debate sobre diversidade sexual
na Câmara dos Deputados em 2015, Luna (2017) refere-se à existência
de um “confronto de moralidades”, marcado por disputas que incluem
os modos de regulação moral, reações contrárias a manifestações cul-
turais, como a parada LGBT, quanto a conteúdos referentes a gênero e
sexualidade no Plano Nacional de Educação. Esse confronto de morali-
dades pode ser percebido nas discussões realizadas nas casas legislativas
no Amazonas, no qual grupos de interesse disputaram diferentes posi-
ções quanto a manter as discussões de gênero nas escolas ou eliminá-las.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
As atividades de extensão foram momentos oportunos para
formação de alunas/os do ensino médio, graduação e pós-graduação
nas temáticas de gênero. A partir da receptividade e riqueza dos debates
nas escolas, avaliamos que gênero, sexualidades e diversidades podem
ser efetivamente trabalhados de forma transversal nos currículos esco-
47 Aluna do curso de História, entrevista.

- 87 -
lares, pois asseguram o acesso responsável e criativo a um conhecimen-
to científico construído e consolidado na área de Ciências Humanas.
Neste caso, o acesso à informação é capaz de mudar trajetórias de vida,
garantindo cuidado com o corpo, sexo seguro e responsável, relações
mais afetivas e de cuidado com o outro, consciência de si, prevenção às
violências sexuais e de gênero, entre outras questões.
Atualmente, temos observado e experienciado a ten-
tativa de desqualificação dos temas citados, sob a alegação de que as
famílias devem formar suas/seus filhas/os em casa, não sendo a escola
um lugar apropriado para essas discussões. Com isso, tais temas perma-
necem distanciados da rotina das salas de aula e são excluídos de polí-
ticas educacionais e da área de saúde. Os conhecimentos sobre gênero,
produzidos como resultado de inúmeras pesquisas em diversos campos
do conhecimento, foram abarcados pelo termo “ideologia de gênero”,
esvaziados seus significados e convergindo para ignorâncias, visões ten-
denciosas e não críticas do lugar da escola na discussão de temas que
não devem ficar restritos ao mundo privado, sob pena de tornarem alu-
nas e alunos vulneráveis aos muitos modos de violências sexuais e de
gênero.
O construto ideologia de gênero trata-se de algo falacioso,
mas que serve de eixo aglutinador de uma política que usa o medo e a
perseguição para se efetivar e toma como inimigos setores da popula-
ção, especialmente professores, artistas e intelectuais, e defensoras dos
direitos humanos, como observa Miskolci (2018).
O forte uso religioso para legitimar posições conserva-
doras tem contribuído para acirrar ânimos, como no exemplo da sessão
da Câmara Municipal de Vereadores de Manaus, na qual os embates
mostraram que estes setores têm se organizado para defender pautas
contrárias aos direitos sexuais e reprodutivos. Dentre os grupos de
interesse, vistos de forma relacional e com diferenças internas, desta-
cam-se lideranças políticas conservadoras laicas ou religiosas (católicas
e evangélicas) por um lado e, de outro lado, profissionais da educação,
estudantes e movimentos sociais que se opõem. Na cruzada moral
em andamento, da qual as alterações nos planos municipal e estadual de
educação são acetas, há um retrocesso em relação aos direitos garanti-
dos pela Constituição de 1988.
Os grupos conservadores, com a finalidade de desqualificar o
campo de estudos de gênero, levaram ao que Junqueira (2017) denomi-

- 88 -
na como pânico moral, trazendo medo e insegurança em relação a va-
lores como família, que tem sido retomado para contrapor-se a suposta
ideologia de gênero.
Na perspectiva de resistência, de “estar alerta ao intolerável”
e não compactuar com as violências (LOURO, 2007), intelectuais, pro-
fessores e militantes dos movimentos sociais participaram ativamente
durante as discussões sobre os planos de educação no município de
Manaus e Estado do Amazonas, tentando garantir seu espaço de fala
e posicionar-se diante de legisladores, comunidade em geral, demons-
trando que desconsiderar gênero e sexualidades nos referidos planos é
pensar na educação de forma limitada e sem atenção à vida, aos direitos
humanos e à cidadania.
Durante esse processo surgiu o EDIVERSA, grupo que uniu
profissionais e estudantes de diferentes formações nas Ciências Huma-
nas e Educação para se contrapor as mudanças nos planos e garantir
políticas públicas de Educação que assegurem as discussões de gêne-
ro nas escolas. O grupo produziu documentos e procurou diálogo com
o Ministério Público Federal, que realizou a recomendação para que a
“educação pedagógica sobre gênero”, fosse garantida. Esta foi uma me-
dida importante, mas que não significou o fim do embate, considerando
que o que está em disputa é um projeto de sociedade. Por isso, é uma
pauta que ultrapassa os limites das casas legislativas, tornando-se de do-
mínio público, marcada por posições que não se utilizam de argumen-
tos sólidos usados para desqualificar os conhecimentos produzidos por
pesquisadoras/es de um campo científico com sólidas produções.

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- 91 -
- 92 -
CAÇA ÀS BRUXAS NA EDUCAÇÃO?
IMPACTOS DO DISCURSO DA IDEOLOGIA
DE GÊNERO NA PRÁTICA EDUCATIVA DE
PROFESSORAS DO MUNICÍPIO48
Érica Vidal Rotondano49

RESUMO: O artigo foi produzido a partir da pesquisa de doutorado da autora, uma


etnografia em torno do processo de formação continuada em sexualidade no âmbito
da Divisão de Desenvolvimento Profissional do Magistério (DDPM) da Secretaria
Municipal de Educação (SEMED). No artigo, pretende-se, a partir de dois casos
observados, discutir alguns dos impactos da “ideologia de gênero” sobre a prática
de professoras da Educação Infantil no ano de 2017, quando passou a vigorar no
Município a Lei 439, que objetiva retirar da grade curricular do município qualquer
referência à diversidade sexual e de gênero.
Palavras-chave: Ideologia de gênero. Professoras. Educação.

INTRODUÇÃO
Sancionada pelo Governo Federal, a Lei Federal nº
13.005/2014, que trata do Plano Nacional da Educação (PNE) para o
período de 2014-2024, o Plano Nacional da Educação (PNE), para o
período de 2014-2024, estabeleceu prazo de um ano para que estados
e municípios do país elaborassem suas diretrizes educacionais para os
dez anos seguintes. A partir disso, o ano de 2015 foi emblemático para
as políticas de educação no Estado e Município, pois, nos dois casos,
refletindo o que acontecera ao longo do processo de aprovação do PNE,
bem como de outros Planos Estaduais e Municipais pelo Brasil, estabe-
leceu-se disputas em torno da permanência, ou não, das referências ao
gênero nos documentos.
Para apoiadores(as) da retirada de qualquer referência à gêne-
ro e diversidade sexual na escola, o argumento era a defesa da institui-
ção familiar, dos valores cristãos e da própria Constituição, ao garantir
que os valores fundamentais da formação da pessoa humana não fos-
sem ameaçados pela “ideologia de gênero”, bem como o próprio Plano
48 Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
49 Graduada em Serviço Social, Psicologia e Mestra em Educação pela Universidade Fe-
deral do Amazonas (UFAM). Doutora em Saúde Coletiva pelo Doutorado Interinstitucional
(DINTER) do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Professora do Curso de Licenciatu-
ra em Pedagogia da Escola Normal Superior (ENS) da UEA.

- 93 -
Nacional de Educação (PNE), de 2014, do qual as expressões já haviam
sido retiradas, invisibilizando identidades.
Segundo relato das professoras Calderipe e Weiss (2017), am-
bas vinculadas ao Curso de Antropologia da UFAM, no dia 22 de julho
de 2015 ocorreu assembleia extraordinária para análise das ementas do
Plano Municipal de Educação (PME). Na ocasião, foi proibida a entrada
de grupos interessados no tema. Assim, na galeria do prédio da Câmara
Municipal de Manaus (CMM) posicionaram-se, de um lado militantes
LGBT, estudantes e professoras(es), em sua maioria das universidades, e
de outro, grupos religiosos formados especialmente por católicos caris-
máticos e protestantes, ficando evidente, nesta configuração do espaço,
a existência de um campo de tensões e disputas em torno da política
educacional ali discutida.
Sobre o evento, uma das participantes da pesquisa, que não
pode ser identificada por questões éticas, que estava presente na oca-
sião, relatou:
O movimento LGBT ali em peso, e gritando às vezes de uma forma
agressiva, e claro, era uma forma de reação ao tamanho de agressivi-
dade que vinha do outro lado. Então um dos colegas do movimento
LGBT falou pra mim ´- A mulher ficava apontando a imagem de
Nossa Senhora, o crucifixo pra mim, tipo assim, é o demônio que
está ali’. E eu não me recordo muito bem a palavra que ele me disse,
mas foi uma coisa tipo “exorcizando”, e que a pessoa falou à queima
roupa perto dele. E foi um momento muito visceral (Trecho de en-
trevista realizada no dia 5 de abril de 2018).

No mesmo ano, foi apresentado à Câmara Municipal de Ma-


naus (CMM) o Projeto de Lei (PL) 389/2015 do Vereador Marcel Ale-
xandre50 do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro)51,
que ao longo de um texto repleto de incorreções gramaticais e justifica-
tivas que evocam a moral religiosa, propunha o veto, na grade curricular
das escolas do município de Manaus, das atividades pedagógicas repro-
dutoras do conceito de “ideologia de gênero”.
No Artigo 2º. do PL, tal ideologia era caracterizada como
aquela na qual “os dois sexos, masculino e feminino, são considerados
50 Consagrado pastor em 1992 e hoje Apóstolo do Ministério Internacional da Restauração
(MIR).
51 Em 2016, surgiu também o PL 102/2016 - Programa Escola sem Partido - do Deputado
Estadual Platiny Soares do DEM (Democratas), contendo um tópico que impedia a discussão
de questões que envolvessem “orientação sexual” nas salas de aula da rede pública (inclusive
na Universidade do Estado do Amazonas).

- 94 -
construções culturais e sociais”. A seguir, na justificativa do documento,
o autor fazia referência ao fato de quem a “discriminação, tão presente
na sociedade, também permeia o ambiente escolar”. No entanto, a partir
deste ponto, desqualificava a “ideologia de gênero” e a sua “persistência
de difundir a ideia de que o homem nasce um ser andrógino, diante de
tantas outras formas que existem de discriminação”. Argumentava que
“é de julgar ser apenas a força da desvergonha – da desfaçatez de uma
minoria para transformar moral no imoral”.
O PL reconheceu que o trabalho de Orientação Sexual52 nas
escolas brasileiras não é algo atual, mas que ao deixar de lado assun-
tos de “maior relevância para o discente como, por exemplo, a prevenção
quanto à gravidez na adolescência e a disseminação das DST’s”, a ideo-
logia de gênero estava ganhando maior importância no planejamento
político pedagógico nas escolas públicas, outra vez desqualificando a
temática.
Embora não se constitua foco deste artigo, faz-se interessante
ressaltar que as propostas apresentadas à CMM suscitaram, por sua vez,
a emergência de grupos de resistência constituídos por professoras e
professores do Estado, Município e universidades públicas; organiza-
ções de classe (como o Conselho Regional de Psicologia e de Serviço
Social), bem como entidades envolvidas na defesa dos direitos da po-
pulação LGBT na cidade: o Movimento Amazonas Contra Mordaça, que
surgiu em 2016 para fazer frente ao Programa Escola sem Partido, e o
Ediversa: Movimento Educação pela Diversidade, que começou a se reu-
nir em 2015, buscando fazer oposição ao PL nº 389/2015.
Como produto da mobilização do Ediversa, um documento
de contestação ao PL nº 389/2015, produzido pelos participantes do
mesmo, foi protocolado no dia 17 de agosto junto ao Ministério Público
Estadual (MPE) e também Federal. Na ocasião, o documento contou
com mais de 400 assinaturas, incluindo a de diversas entidades como
o Fórum LGBT, o Conselho Federal de Psicologia e o Conselho Regio-
nal de Serviço Social, Grupos de pesquisa da UEA/UFAM, Sindicato
das(os) assistentes sociais e membros do Grupo de Estudos e Pesquisas
em Gênero, Sexualidades e Interseccionalidades (GESECS).

52 O termo foi utilizado entre aspas como forma de marcar a diferença entre o que se enten-
de por direcionamento do desejo sexual e o processo educativo desenvolvido pelas escolas em
torno da sexualidade, previsto pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), referenciado
no PL pelo vereador.

- 95 -
Apesar dos esforços empreendidos, o PL foi promulgado no
dia 3 de março de 2017, por meio da Lei nº 439, que entrou em vigor no
dia 7 do mesmo mês, data da sua publicação.
Em julho do mesmo ano, o Ministério Público Federal (MPF)
emitiu a Recomendação no. 08/2017 para a Secretaria Municipal e a Es-
tadual de Educação para que, com base nela, fosse
[...] feita a conscientização de professores e servidores lotados nas
funções pedagógicas e de ensino dos órgãos mencionados para que
a educação pedagógica sobre gênero continue a ser promovida e
incentivada, visando o pleno desenvolvimento da pessoa para a ela-
boração e reflexão crítica da realidade, a preparação para o trabalho
e para o exercício da cidadania por meio de liberdade de expressão,
da não discriminação e do respeito aos direitos humanos (p.3).

A recomendação deu respaldo para que a DDPM prosseguisse


com as formações em sexualidade53, bem como para que professoras(es)
da rede continuassem a desenvolver atividades na área em suas escolas.
No entanto, como expressa Carrara (2015), estamos diante de
um cenário no qual transitam diferentes formas de pensar a sexualida-
de, e que coexistem juntas, promovendo embates e disputas: se por um
lado vemos ascender a luta (e a obtenção de algumas conquistas) no
plano dos direitos sexuais, por outro há discursos que se contrapõem a
tais mudanças. Desta forma, a existência de normativas que referendam
trabalhos na temática da sexualidade, gênero e direitos humanos, não
garante por si só a realização dos mesmos, ou que tal operacionalização
não se dê em contextos de oposição, como veremos logo mais.

‘IDEOLOGIA DE GÊNERO” VERSUS ESTUDOS DE


GÊNERO
Em Manaus, como já observamos anteriormente, foram reti-
radas do PME, no ano de 2015, sob a alegação de combate à ideologia
de gênero, todas as referências a ‘gênero’, ‘diversidade e orientação se-
xual’. No processo de votação do plano, apenas os vereadores Professor
Bibiano e Waldemir José, e a vereadora Rosi Matos votaram contra os
pareceres favoráveis à supressão das referências.

53 Iniciadas desde o início dos anos 2000, na DDPM, como forma de atender ao Tema
Transversal em “Orientação Sexual” publicado nos PCNs no final da década de 90. Especial-
mente a partir de 2013/2014 as formações em sexualidade passam a debater gênero e a se vin-
cular à proposta de educação em direitos humanos embasada no Plano Nacional de Educação
em Direitos Humanos (PNEDH/2006).

- 96 -
Temos assistido, nos últimos anos, a intensificação da circula-
ção da expressão “ideologia de gênero”, categoria política que combate o
postulado do gênero como construção social, tanto em vídeos na inter-
net, marchas populares e discursos religiosos e políticos contra o aborto,
por exemplo.
Em linhas gerais, o termo passou a ser defendido por um
crescente movimento global (presente na Europa, Estados Unidos e Ca-
nadá, e mais especialmente na América Latina, em países como o Brasil,
Colômbia e México), que consolida e organiza uma “onda conservado-
ra”54 que se opõe à igualdade de gênero e a medidas como casamento e
adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a educação para a sexua-
lidade55 nas escolas, sob o argumento de que ameaçariam a “família e a
ordem social natural” e a própria vida (WILKINSON, 2017).
Com o fim da ditadura no país, ao menos no plano verbal,
havia, como sinaliza Miguel (2016), um consenso no sentido da necessi-
dade de combater a desigualdade social e defender os direitos humanos,
inclusive no âmbito da educação. Mesmo ao logo do governo FHC (e
no de seus antecessores), com a implementação de uma série de medi-
das neoliberais56, os idealizadores das propostas negavam que a médio e
longo prazo, estas redundariam em mais prejuízos sociais.
Hoje, no entanto, temos observado a propagação de discur-
sos contra os direitos humanos, já que para seus opositores estes teriam
como intuito defender “bandidos”; em que a desigualdade é conside-
rada inevitável, uma vez que os melhores e mais aptos mereceriam os
54 Almeida (2017) defende que tal conceito tem sido construído no campo de relações es-
tabelecidas em meio a embates políticos intensos, com participação significativa dos meios
de comunicação neste processo. Apresenta-se, no momento, como uma categoria acusatória,
envolvendo variados discursos, valores, ações e posicionamentos com interesses de grupos
diversos que podem se aproximar e igualar em alguns momentos. Assim, a onda não repre-
senta um fenômeno homogêneo, uniforme (por isso mesmo, sendo chamada por ele de “onda
quebrada”), mas composta por diferentes atores, advindos de diferentes campos, e que podem
ter divergências em alguns pontos, mas se articulam em torno de inimigos comuns, o que
contribui para a configuração atual. Da mesma forma, adverte que para entender o sentido de
conservador, devemos estar atentos ao que está sendo negociado.
55 Tendo em vista diferentes concepções e propostas em torno da educação sexual em vá-
rios momentos do país, aqui a educação para a sexualidade é entendida como uma forma de
olhar que vai além de dados biológicos, determinismo e regulações, estando baseada numa
pedagogia que rompe e desconstrói padronizações de gêneros tradicionais.
56 O neoliberalismo foi uma alternativa à crise do capitalismo de base fordista, constituin-
do-se num projeto de reestruturação não apenas política, econômica e jurídica, mas também
ideológica e cultural, que preconiza que o Estado deve intervir o mínimo possível na econo-
mia, deixando agir livremente os mecanismos de mercado, onde impera a competição (GEN-
TILLI, 1995; AZEVEDO & SILVA, 1997)

- 97 -
primeiros lugares no podium. Junta-se a isso, o fato de que a crítica a
hierarquias tradicionais é interpretada como crime de lesa-natureza.
Para Miguel (2016), tais discursos reacionários têm uma origem hete-
rogênea, conjugando, ao mesmo tempo, fundamentalismo religioso57, o
anticomunismo e o libertarianismo58. Para ele, estas três correntes não
são estanques e impenetráveis uma a outra: da ação conjunta das três
contra a “ideologia de gênero”, advém uma proposta de ampla abertura
para a economia de mercado, mas fortemente reguladora da vida pri-
vada.
O uso do termo ideologia de gênero não é recente, remontando
aos anos 90. Sobre suas origens, “os interessados no assunto são concor-
des em afirmar que o nebuloso sintagma “teoria/ideologia de gênero”,
com suas variações, é uma invenção católica que emergiu sob os desíg-
nios do Conselho Pontifício para a Família e de conferências episcopais,
entre meados da década de 1990 e no início dos 2000” (JUNQUEIRA,
2017, p. 26-27).
Miguel (2016) observa que a categoria gênero passa a ser sen-
tida como ameaça sobretudo a partir de duas conferências patrocinadas
pela Organização das Nações Unidas: as Conferências Internacionais
sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, em 1994 e da Mulher,
ocorrida em Pequim, em 1995. Em ambas, a igualdade de gênero foi
posta como alvo a ser perseguido, o que entrou em choque com a dou-
trina católica, que encara a diversidade sexual e a liberdade da mulher,
inclusive no mercado de trabalho, como uma ameaça à estrutura tradi-
cional de família heterossexual.
O discurso construído pela Igreja Católica, exalta a comple-
mentariedade dos sexos e o desempenho dos papéis femininos tradi-
cionais (procriar, amar, cuidar, todos estes considerados dons naturais
concedidos por Deus). A igualdade pregada pelo feminismo represen-

57 Despontou, sobretudo a partir dos anos 90, com o investimento das igrejas neopentecos-
tais em prol da eleição de seus pastores. Não é adequado falarmos em “bancada evangélica”,
pois isto seria desconsiderar a presença de uma ala mais conservadora da Igreja católica, bem
como ignorar as diferenças entre as religiões protestantes. Em termos ideológicos, por exem-
plo, o uso do termo conservador tem relação com posicionamentos contra o aborto e à com-
preensão inclusiva de famílias. No cenário político, relaciona-se a alianças com outras forças
conservadoras, como latifundiários e defensores de armamento.
58 A ideologia ultraliberal libertariana preconiza o menor Estado possível e acredita que
toda situação que nasça de mecanismos de mercado é justa. Originalmente, defende a ideia
de que cada um é dono de si mesmo, o que tenderia para uma agenda mais progressista em
relação a temas polêmicos como aborto e direitos homossexuais. No entanto, no Brasil, a asso-
ciação a outros setores da direita faz com que tais temas sejam invisibilizados ou aceitos numa
lógica mais conservadora.

- 98 -
taria um rebaixamento da mulher e a igualdade de gênero levaria a uma
confusão de papéis maléfica para a preservação da ordem familiar e
social, devendo ser combatida por questões éticas, inclusive. Estrategi-
camente, a Igreja vislumbrou também no ataque a tal igualdade, a pos-
sibilidade de garantir sua autoridade sobre católicos(as) cada vez mais
liberados(as) sexualmente da moral por ela prescrita. Ao mesmo tempo,
ela despolitizou a busca de direitos, colocando a questão no plano da
dos valores59.
A construção do ataque à igualdade de gênero começou no
pontificado do Papa Wojtyla (João Paulo II), sob o comando do prefeito
da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Ratzinger, que em 2005
sucederia a Wojtyla no papado, adotando o nome de Bento XVI. A par-
tir dos anos 2000, delineia-se com clareza o adversário a ser combatido:
aquilo que no Brasil recebeu o nome de “ideologia de gênero”, mas que
na França e na Itália costuma ser chamada de “teoria do gender” (“théo-
rie du gender”, “teoria del gender”).
Embora o conceito de gênero não seja uma unanimidade no
âmbito do feminismo60, havendo sobre ele diferentes interpretações, tais
possibilidades variadas são ignoradas pelos adeptos da ideologia de gê-
nero, esvaziando a riqueza e a complexidade dos estudos da área.
A “ideologia de gênero” como se apercebe, tem encontrado
nos debates legislativos sobre a política educativa, no Brasil, espaço pri-
vilegiado para seu estabelecimento e difusão, dissociando, como adverte
Junqueira (2017) e Melo da Cunha (2016) as violências contra as mulhe-
res de processos sócio históricos, naturalizando desigualdades por meio
da essencialização do binarismo sexual; evidencia o binômio gênero/
homossexualidade de forma negativada e moralizante.

59 Interessante se faz observar, como nota Rosado-Nunes (2008), que embora no Brasil a
Igreja Católica tenha tido importante papel no enfrentamento da ditadura militar, na consti-
tuição de uma cultura de direitos via Teologia da Libertação e movimento das Comunidades
Eclesiais de Base, atuando em causas relacionadas à justiça social, como reforma agrária, defesa
dos povos indígenas e direitos dos trabalhadores, em que estaria alinhada à esquerda, quando
o plano é o de direitos sexuais e reprodutivos, sua atuação tem sido marcante em outra direção.
60 Segundo Pelúcio (2014), o gênero apresentou-se como um conceito promissor para cer-
tos segmentos do movimento feminista a partir de meados dos anos 80, tanto no que diz
respeito ao estabelecimento de reflexões quanto de campo de lutas, uma vez que a categoria
“mulher” bastante utilizada até então, não parecia dar conta das múltiplas experiências relacio-
nadas ao feminino, que pareciam não se referir apenas ao fato de possuir certos orgão biológi-
cos, mas ser igualmente atravessada por elementos sociais como raça, etnia, classe, geração e
religião, por exemplo. Além disso, nos permitiu pensar também os homens como possuidores
de gênero.

- 99 -
Diante da expansão da “ideologia de gênero” no continente
americano, faz-se importante resgatar as análises de Wilkinson (2017)
e de Carrara (2015), na medida em que ambos apontam para mudanças
em torno do dispositivo da sexualidade na atualidade, o que vai confi-
gurando um campo de disputas entre diferentes moralidades: ao mesmo
tempo em que muitos ativistas e intelectuais comemoram o surgimen-
to de um regime de direitos sexuais61, diferentes sujeitos sociais, cujas
identidades articulam-se, seja na linguagem do gênero, na da sexualida-
de ou orientação sexual passam por um conflituoso processo de cidada-
nização62, do qual a exclusão das expressões gênero, orientação sexual e
diversidade sexual dos planos de educação foi só mais um round.
Neste processo tenso de disputas, Carrara observa que uma
nova geografia do mal vai sendo desenhada, dando espaço ao surgimen-
to de pânicos morais, o que pode ser percebido quando as narrativas
antigênero postulam que a educação das crianças não deve sofrer inter-
ferências indevidas por parte de escolas, acusando-se tais instituições
(que teriam se convertido em espaço de “doutrinação”) e seus docentes
de planejar implantar a “ditadura do gênero”: Não raro, esta nova geo-
grafia passa a interferir na elaboração de políticas públicas, colocando
em risco a continuidade de projetos em educação para a sexualidade

Propostas educacionais inclusivas, antidiscriminatórias, voltadas a


valorizar a laicidade, o pluralismo, a promover o reconhecimento
da diferença e garantir o caráter público e cidadão da formação es-
colar, tendem a ser percebidas e denunciadas por esses movimentos
como uma “ameaça à liberdade de expressão, crença e consciência”
daquelas famílias cujos valores morais e religiosos (de ordem es-
tritamente privada) são, segundo eles mesmos, inconciliáveis com
as normativas sobre direitos humanos produzidas por instituições,
como a ONU, “colonizadas pela agenda do gender” (JUNQUEIRA,
2017, p.44).

A disseminação de pânicos morais em torno da educação


para a sexualidade nas escolas pode ser ilustrada pela polêmica em tor-
no da implementação do Projeto Escola sem Homofobia (ESH), apoiado
61 Para Carrara (2010), “direitos sexuais se referem a prerrogativas legais relativas ou à se-
xualidade ou a grupos sociais cujas identidades foram forjadas sobre formas específicas de
desejos e de práticas sexuais” (p.135). Observa também que alguns desses direitos não estão
relacionados à sexualidade, como questões previdenciárias, adoção, mudança de nome e sexo
em certidões, mas têm sido compreendidos dessa forma.
62 O termo cidadanização trata de um amplo projeto de incorporação social e política de
categorias sociais marginalizadas que tem como pilar o processo de individualização, raciona-
lização e responsabilização.

- 100 -
pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfa-
betização, Diversidade e Inclusão (MEC/SECADI63), estando articulado
ao lançamento, pelo Governo Federal em maio de 2004, do Brasil sem
Homofobia – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra
LGBT e Promoção da Cidadania Homossexual.
Tal polêmica se deu a partir da propagação da ideia de que o
Estado estaria financiando um projeto que incitaria a homossexualida-
de e a promiscuidade, sendo uma via de acesso à pedofilia e desvirtua-
mento das crianças, o que mais uma vez denuncia um entrelaçamento
entre homossexualidade e ameaça à proteção da infância, causando ver-
dadeiro pânico moral na população.
O conceito de pânico moral foi elaborado por Stanley Cohen
na obra Folk Devils and Moral Panics (1972). Ele se caracteriza por rea-
ções coletivas exageradas, desproporcionais diante do que se sente ser
uma ameaça potencial a valores e interesses sociais. Desenvolve-se hos-
tilidade em relação a personagens ou condições que passam a encar-
nar a causa do problema. Grupos influentes, especialmente os meios
de comunicação de massa, compartilham deste consenso, reproduzindo
a ideia de que se está sob uma ameaça que deve ser combatida (o que
pode, inclusive, ser manejado com fins políticos, como veremos adian-
te). Uma outra característica importante de tais pânicos é a volatilidade:
eles entram em erupção e se dissipam repentinamente, sem aviso64.
Para Lancaster (2011), para que o pânico moral opere é cen-
tral a questão do tabu, pois nada parece causar mais medo e aversão,
incitando a censura coletiva, do que questões consideradas proibidas,
impuras, sacrílegas. A ideia de bode expiatório é importante aqui, na
medida em que a ameaça moral tende a ser projetada em determinadas
figuras controversas da sociedade.
Em outra chave analítica, Irvine (2006), ao estudar o que de-
nomina “pânico sexual local” promovido, contra o currículo de educa-
ção sexual em escolas em centenas de distritos escolares nos Estados
Unidos na década de 1980, observa que não se trata de uma erupção
espontânea de indignação e hostilidade, mas sim de um evento político,
alimentado por scripts emocionais – uma retórica estrategicamente ela-
borada para produzir respostas emocionais (como medo, nojo e raiva)
intensas, mas ainda assim, voláteis. Tais emoções mobilizadas não são
nem irracionais, nem simplesmente espontâneas, mas produzidas num

63 Criada em 2001 como SECAD.


64 Livre tradução.

- 101 -
contexto social, sendo um meio pelo qual empreendedores morais ten-
tam reforçar uma determinada moralidade sexual.
Irvine descreve que os pânicos sexuais locais surgem regular-
mente nos Estados Unidos desde a década de 60, e têm sido associados
por ela a políticas conservadoras de direita, constituindo um aspecto da
estratégia política iniciada por organizações religiosas nacionais con-
servadoras para reduzir as liberdades civis e os direitos sexuais através
do controle do conhecimento sexual. Para a autora, embora seja difícil
de verificar, na maioria dos casos, a oposição à presença da sexualidade
nos currículos era composta por uma minoria de pessoas, mas apesar
disso, os oponentes exerciam enorme poder, em virtude da capacidade
aglutinadora de emoções em torno do tabu da sexualidade infantil. O
medo e a raiva sustentavam o pânico à Educação Sexual, ganhando in-
tensa cobertura de mídias locais. Os defensores de sua permanência nas
escolas foram frequentemente atacados com estigmatização retórica.
As estratégias discursivas das organizações nacionais de con-
servadores religiosos, influenciaram não só o modo como os cidadãos
pensavam, mas também o que sentiam em relação à Educação Sexual, o
que serviu para atacar direitos sexuais. Assim como o pânico moral, um
pânico sexual local emerge, entra em erupção, arde pública e ferozmen-
te para depois desaparecer, não sem deixar cinzas: desmantela, muitas
vezes, programas já bem estabelecidos e/ou deixa como legado medidas
políticas repressivas (IRVINE, 2006).
Também compondo o cenário de ataques ao gênero no campo
das políticas educacionais no Brasil, temos o Projeto de Lei 7180/2014,
mais conhecido como Movimento Escola Sem Partido (MESP). Funda-
do em 2004 pelo advogado Miguel Nagib, o MESP se apresenta como
“uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau
de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os
níveis: do ensino básico ao superior”65.
No entanto, se no princípio o foco do MESP se restringia ao
combate do marxismo na educação, temor que já estava presente no pe-
ríodo da ditadura militar, na atualidade, para Miguel (2016), a popula-
ridade do movimento deu-se pela confluência estratégica de suas ideias
contra o marxismo ao combate da “ideologia de gênero”: “a dissolução da
moral sexual convencional é um passo da estratégia comunista” (p. 601).

65 Disponível em: http://www.escolasempartido.org/quem-somos (acesso em 21 de setem-


bro de 2018).

- 102 -
Ganha espaço, assim, a noção de primazia da família sobre
a escola66, que pretende impedir que docentes transmitam conteúdos
contrários aos valores prezados pelos pais, seja no âmbito da sexuali-
dade, seja em termos de posições partidárias e religiosas67. As escolas
públicas, como no caso daquelas vinculadas à SEMED, teriam que se
curvar, assim, aos ditames das famílias que quisessem usar tais prerro-
gativas.
Para ilustrar o que afirmamos, um fato relatado por parti-
cipantes de uma formação continuada em sexualidade realizada na
DDPM no ano de 2018 parece ser bem siginificativo: ao saber que uma
professora falara sobre menstruação em sala de aula, um grupo de pais,
incitados pelo pastor de uma das igrejas da comunidade, que acusou a
docente de infrigir o direito da família de dirigir a educação de estudan-
tes, organizou-se e dirigiu-se até a escola para agredir a professora, que
teve que sair escoltada por policiais a fim de não ser linchada.
O slogan “meus filhos, minhas regras” passa a ser utilizado
reiteradas vezes pelo MESP, negando, ao mesmo tempo, tanto o cará-
ter republicano da escola (que tem por base o convívio entre diferentes
visões de mundo, inerente a uma sociedade pluralista e democrática)
quanto a condição da criança e do adolescente de sujeitos de direito,
frente à absoluta autoridade dos pais.
De acordo com Miguel (2016), enquanto a legislação não ade-
re a tal medida, difundiu-se em meados de 2015:

Uma campanha para que os pais encaminhem notificações extraju-


diciais às escolas68, sustentadas no artigo 12 da Convenção Ameri-
cana sobre Direitos Humanos, segundo o qual “os pais, e quando for
o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam
a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias
convicções” (p. 602).

66 . Esta posição teórica encontra-se embasada no professor português, radicado no Paraná,


Armindo Moreira, que no livro “Professor não é Educador”, defende que a função da escola e
do professor é repassar conteúdos de forma “neutra” e objetiva, enquanto a da família, da igreja
e sociedade é educar.
67 . Para Sefner (2011), quando a escola, influenciada pelo conservadorismo e valores fami-
liares, abandona este papel, acaba dificultando a prática formadora da igualdade entre indiví-
duos, das relações sociais que deveriam promover a equidade de gênero e de orientação sexual
na instituição pública.
68 A campanha em torno de tais notificações surgiu na direita católica, tendo como inicia-
dor o procurador Guilherme Schelb.

- 103 -
O autor ressalta também que o MESP contou, inclusive, com
a simpatia do ex-ministro da Educação do governo do presidente Te-
mer, Mendonça Filho, que foi expressa em vários de seus discursos e
entrevistas, antes e depois de sua posse, tendo chegado a nomear como
assessor especial um fervoroso adepto do movimento, que foi destituído
às pressas do cargo por conta da repercussão negativa do caso.
A seguir, discorreremos sobre os impactos do discurso da
“ideologia de gênero” na prática de duas professoras da Educação In-
fantil, aqui chamadas de Ingrid e Fernanda, que a partir das formações
continuadas em sexualidade e gênero promovidas pela DDPM, propu-
seram-se a realizar em sala de aula atividades relacionadas ao brincar
como forma de promover reflexões em torno de padrões de gênero es-
tabelecidos pela cultura heteronormativa. Tais propostas foram desen-
volvidas, à época, com o intuito de serem apresentadas na III Mostra de
Práticas Educativas promovidas pela DDPM, evento que divulga práti-
cas de docentes da rede, empreendidas a partir dos encontros de forma-
ção continuada, realizados a cada ano.

APRESENTANDO AS PROFESSORAS
Ingrid e Fernanda69 eram professoras da SEMED e em 2017,
a partir de uma formação continuada em sexualidade promovida pela
DDPM, sentiram-se motivadas a realizar, nas escolas em que atuam,
projetos intitulados respectivamente de “Menino brinca de boneca e me-
nina brinca de carrinho? Refletindo questões de gênero em sala de aula” e
Nem de Menina, Nem de Menino: apenas brinquedos.
As duas professoras observaram que além da atividade dire-
cionada para apresentação na Mostra, no dia a dia da sala de aula tam-
bém costumam levantar debates e realizar outras ações em torno das
questões de gênero e da sexualidade.
Não era novidade essa questão dos brinquedos, das cores porque a
gente já recebe as crianças aqui e elas chegam com esses preconcei-
tos, aí desde o início do ano eu já trabalho com eles essas temáticas.
Tipo, essa semana a gente está trabalhando a temática da explora-
ção sexual e a gente está fazendo um monte de coisas que eles vão
chegando em casa e já vão falando para os pais (Entrevista realizada
com Fernanda no dia 17 de maio de 2018 na escola em que trabalha)

Ambas também partem do princípio de que a escola fala mui-

69 Os nomes apresentados são fictícios.

- 104 -
to, e o tempo todo, sobre sexualidade e gênero, inclusive na Educação
Infantil, seja na forma como se distribui tradicionalmente meninos e
meninas em filas separadas, seja quando se instrui uma criança de que
existem brinquedos específicos para meninos e meninas, reconhecendo
no espaço da escola a existência de uma pedagogia da sexualidade que
vai normatizando, vigiando e disciplinando, sendo necessário prestar
atenção aos padrões e valores que estão sendo reproduzidos; ao que está
sendo falado e como (LOURO, 1997; COLBERT, 2014).
Na hora da brincadeira, Ingrid e Fernanda sempre deixam os
brinquedos livres para as crianças, nunca determinado o que devem es-
colher, uma vez que partem do princípio defendido por Furlani (2011),
e muito discutido ao longo das formações, de que se deve garantir às
crianças, de forma igualitária, o direito de desenvolver diferentes habili-
dades, contribuindo para a eliminação de atitudes discriminatórias. Por
outro lado, o relato das docentes também revelou que tal prática nem
sempre é recebida de forma positiva por outras colegas de trabalho, o
que aponta tanto para um cenário de disputas, já assinalado antes, quan-
to para a contribuição da escola na reprodução de desigualdades:

Algumas vezes entrava uma colega da escola na minha sala e fala-


va: `- Menino, larga essa boneca’. E aí, alguns alunos meus, às vezes
rebatiam, ´- Não. A minha professora deixa. Aqui na sala pode´.
Então, eu sempre converso com eles muito nesse sentido, de que
bonecas também podem ser brinquedos de meninos. Carrinhos
podem ser brinquedos de meninas, porque mulheres e homens cui-
dam de bebê, mulheres dirigem carro, enfim, eu tento inserir isso
no dia a dia de uma forma, assim, como eu posso dizer? Como se
fosse o comum (Entrevista realizada com Fernanda no dia 17 de
maio de 2018).

No desenvolvimento de suas ações em sala de aula, Ingrid e


Fernanda partiram de outra concepção que tem pautado as formações
em sexualidade na DDPM: de que os papéis de gênero a serem desem-
penhados por meninos e meninas não são definidos naturalmente, mas
socialmente construídos, sendo reproduzidos e reforçados pela escola e
outras instituições, como a família, através, por exemplo, do discurso e
práticas instituídas como normais para este ou aquele gênero, como no
brincar, por exemplo.
A questão é que um menino não corre naturalmente atrás de uma
bola. Ele vai brincar de boneca, e apanha do pai porque estava brin-

- 105 -
cando, e aprende que esse não é o seu brinquedo. Uma menina não
vai naturalmente atrás de uma boneca. Ela ganha bonecas em todos
os aniversários, no natal, no dia das crianças, e aprende que aquele
é o seu brinquedo, e que aquele é o modelo de mulher que ela deve
ser (COLBERT, 2014, p. 51-52).

Em relação a datas comemorativas, Ingrid também costuma


ir em outra direção, quando comparada às colegas de trabalho. Para ela,
não se pode continuar deixando de fora da escola a variedade de confi-
gurações familiares existentes, inclusive, na própria realidade vivida por
alunas(os) e docentes em suas casas:
Dia das Mães, Dia dos Pais muitas professoras fazem o quê? Partem
do princípio que todo mundo tem uma mãe, mas, eu falava: ´- Não
nem todo mundo tem uma mãe, mas às vezes o pai mora com outro
pai, ou às vezes mora com avô, avó, ou às vezes é duas mães´. Então,
na roda de conversa eu tentava inserir esse assunto que às vezes é
um tabu. Às vezes as crianças percebem que tem duas mães, mas
não entendem muito bem, ou acham que é errado porque alguém
falou para elas que não, que o certo é uma mãe e um pai. Aí, mesma
coisa no Dia dos Pais, falava a mesma coisa na roda de conversa (En-
trevista realizada com Ingrid no dia 7 de junho de 2018 na UFAM).

IMPACTOS DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO” EM PRÁ-


TICAS EDUCATIVAS DE DOCENTES DA EDUCAÇÃO
INFANTIL
Especificamente em relação ao trabalho de Ingrid, durante
a fase de planejamento a pedagoga da escola estava em férias. Sendo
assim, apenas a gestora foi informada pela professora e uma das forma-
doras em sexualidade da DDPM sobre o projeto, tendo dado sua auto-
rização. Na ocasião da visita da formadora à escola, Ingrid citou que a
gestora achou a proposta “maravilhosa”, chegando a comentar que na
escola sabia de casos de “alunos que brincam de boneca e às vezes os
colegas tratam mal”.
Foi pedido aos familiares dos(as) alunos(as) a assinatura de
um termo pedindo autorização para o registro de fotos de uma ativi-
dade prevista no currículo. Ao fazer a entrega do termo, alguns pais
pediam mais informações, sendo esclarecidos por Ingrid.
A metodologia da atividade consistiu, inicialmente, em ações
a serem realizadas ao longo de 5 dias de aula, cada uma com 1 hora de
duração aproximadamente, assim distribuídas:

- 106 -
No dia 1: realização de uma roda de conversa com as
crianças sobre brinquedos e brincadeiras;
No dia 2: leitura, exploração da história e produção de de-
senhos do livro “Bibi brinca com meninos70”. A narrativa,
que inicia com a frase “o único requisito para brincar é ter
uma vontade muito séria de se divertir”, conta a história da
menina Bibi, que juntamente com a mãe e o pai, planejam
ir à casa de um casal de tios, a fim de visitá-los. Lá, ela vai
conhecer dois de seus primos e fica contando os dias para
o encontro. Na expectativa de brincar com eles, a menina
leva na mala bonecas, roupinhas, bichinhos de pelúcia e
um batom que havia ganhado no Natal.

É interessante observar que no dia da viagem, é o pai de Bibi


que coloca as malas no carro, enquanto a mãe prepara lanches para a
viagem. Diante desta dinâmica, Bibi pensa em como seria engraçado
se, um dia, para variar, seus pais invertessem os papéis e ele passasse
roupa, enquanto a mãe arrumasse o carro. Na viagem, pelas gravuras,
percebemos que é o pai de Bibi quem dirige o carro e sua mãe tem uma
flor no cabelo. Os homens adultos sempre são representados usando
calças compridas e as mulheres adultas, vestidos, assim como Bibi.
Ao chegar ao destino, enquanto os adultos conversam, Bibi e
os primos vão brincar no quintal, e apresentam seus brinquedos à pri-
ma: bola, caminhão, carrinhos, bonecos de super-heróis e de monstros,
coisas com as quais a menina nunca havia brincado. Da mesma forma,
os meninos não sabiam o que fazer com os brinquedos de Bibi, achando
até que o batom era para comer. Nisso, Bibi ensina os meninos a brincar
de salão de beleza, trocar as roupas das bonecas, e fazer os animais de
pelúcia dormirem. Por sua vez, os meninos ensinam a Bibi a jogar bola
com o pé, brincar de luta de avião contra monstros voadores, subir em
árvores, andar de carrinho de rolimã e outras coisas “de menino”, como
dizia a tia da menina. São tantas as brincadeiras compartilhadas que, se-
gundo Bibi, ao final, eles e ela não sabiam mais se estas eram de garotos
ou de garotas.
Bibi reflete, a partir desta experiência, que é estranho classifi-
car algumas brincadeiras como sendo de meninos e outras de meninas
(até porque há meninas que gostam de futebol, e meninos que gostam
70 ROSAS, Alejandro. Coleção Primeiras Decisões. São Paulo: Scipione, 2011.

- 107 -
de brincar de casinha), sendo o mais importante fazer novas amizades e
se divertir, bem como aprender coisas novas.
Em relação às falas registradas por Ingrid na sala de aula
nesta etapa do trabalho, destacam-se os seguintes diálogos, retira-
dos de sua apresentação na Mostra de Práticas em 9 de novembro de
2017:
(P) Por que será que a Bibi não tinha brinquedos iguais aos
brinquedos dos primos dela?71
(C) Porque ela é mulher. Ela tem que ganhar boneca.
(P) Mas menina só pode brincar de boneca?
(C) Sim; Não.
(P) Mas ela poderia brincar de carrinho?
(C)Sim.
(C) Professora, lá em casa o papai falou assim que a profes-
sora vai contar uma história que menino pode brincar de boneca, aí ele
falou que menina é para brincar de boneca mesmo.
(P) Ele falou para você?
(C) Sim.
(P) Tudo bem. Mas como eu falei para vocês, se a menina
brincar de carrinho ela vai deixar de ser menina?
(C) Não.
(P) Ela vai continuar sendo menina?
(C) Sim.

Para o terceiro dia foi programada a apresentação de figu-


ras reais de homens e mulheres desempenhando variados papéis na
sociedade.
Do trabalho desenvolvido por Ingrid nesta fase, observou-
-se o seguinte registro de diálogos entre ela e as crianças, também
exposto na mesma mostra de práticas:

(P) Vocês já saíram na rua e viram mulher dirigindo carro?


(C) Já.
(P) Vocês já viram que quando eu saio da escola eu dirijo meu
carro?
71 C para criança(as) e P para professora.

- 108 -
(C) Eu já vi.
(P) Então, carro é só para homem?
(C) Não, é para mulher também.
(C) A minha vó faz sopa e meu avô faz peixe.
(C) Hoje a minha irmã dirige o carro.
(C) Eu vi uma mulher dirigindo uma moto.

Nos dias 4º e 5º, brincadeiras com brinquedos diversos e


dinâmica estavam programadas, mas não puderam ser realizadas, em
virtude da manifestação de alguns pais, que apresentaram resistência à
continuidade de desenvolvimento da atividade:
Aí, no outro dia que foi a bomba, quando uma mãe veio comigo, aí
ela falou assim: ´- Ah, eu não concordo não, professora, com esse
trabalho. Eu até briguei com o meu marido, porque ele achava que
eu estava sendo preconceituosa, mas eu não concordo com isso
não´. Aí eu tentei explicar que isso faz parte do currículo, que isso
não vai fazer o filho dela ser menos menino do que ela imagina, que
isso na verdade só é uma forma de propor uma brincadeira livre
com as crianças, mas enfim, ela não gostou. Depois disso ela foi com
a diretora (ela é muito amiga da diretora). Chorou na frente da dire-
tora, que ficou comovida porque não gosta que nenhum pai reclame
de nada na escola. Aí, imagina, a mãe chorou, enfim (Entrevista rea-
lizada no dia 7 de junho de 2018).

E as reclamações não pararam por aí, já que o pai de um outro


aluno ficou insatisfeito com a atividade:

Não gostou, ele falou que isso não é papel da escola, que ele
ensinava uma moral para os filhos dele, de acordo com a Bí-
blia, que não condizia com isso. Que eu estava roubando o
papel dele ensinando uma coisa muito errada para o filho
dele (e coincidentemente o filho dele é uma criança que gosta
muito de rosa, que gosta de boneca, que dança, sabe?). Então,
de uma certa forma eu acho que ele já percebia isso, e com
medo de que eu transformasse o filho dele no que ele temia.
Aí, ele foi me questionar, falou que queria uma reunião com
a diretora, com essa formadora para saber, porque ele não
havia sentido segurança no que eu falei. Aí a gente marcou. A
Bianca72 foi no dia, e na ocasião foi ele e a esposa. E a pedago-
ga tinha voltado de férias e ela é completamente Escola Sem
Partido, “ideologia de gênero”, enfim (Entrevista realizada no
dia 7 de junho de 2018).

72 Uma das formadoras em sexualidade da DDPM. Possui graduação e mestrado em Psi-


cologia pela UFAM.

- 109 -
Na reunião, a despeito das explicações pormenorizadas de
Ingrid e a formadora sobre a atividade, que estava amparada, inclusive,
pelo currículo da SEMED73, e de explicações em torno do fato de que
brincar com boneca não significava que a criança seria homossexual, a
família continuou chateada, “não tendo sido convencida”, como expres-
sou a professora. Ao final, Ingrid interrompeu o trabalho desenvolvido
em classe.
Sobre os reflexos da experiência, o relato da docente foi bas-
tante significativo no que tange à descrição de um campo de tensões:
Aquilo me deixou muito chateada, muito desestimulada. E além
disso, ninguém, ninguém na equipe na minha escola achava que o
que eu estava fazendo era certo. Então, os olhares dos teus pares te
julgando, te dizendo que você está fazendo uma grande besteira,
que isso não é seu papel. E você pensa: ´- Poxa, são pessoas forma-
das, que devem se informar e não têm o interesse de mudar de ideia,
de mudar essa concepção delas tão arraigada por uma religião, um
preconceito. Eu acho que isso pesou bem mais que a posição do
pais, porque os pais de certa forma eu tolero, talvez por pensar que
talvez eles não tenham muito estudo, talvez eles sejam muito envol-
vidos com religião. Mas agora, pessoas formadas...? Deveriam ter
um olhar um pouco além, isso pesou bem mais (Entrevista realizada
no dia 7 de junho de 2018).

Diante do ocorrido, Ingrid salientou que sua atuação continua


na mesma direção, no entanto, observa que a equipe de trabalho con-
tinua evitando aproximação. Como sempre faz postagens no Facebook
que remetem a críticas à ideologia de gênero, já surpreendeu professo-
ras(es) comentando na escola que não gostam de seu posicionamento.
Quanto ao projeto desenvolvido por Fernanda, esta contou
que na instituição na qual trabalha existe um projeto chamado O Ar-
tista sou Eu. Nele, as crianças participam de pequenos vídeos feitos por
suas professoras discutindo algum tema escolhido por estas. Em 2017,
Fernanda estava muito interessada em produzir um material sobre brin-
quedos, mas, ela e a gestora, receosas por conta da Lei nº 439/17, deci-
diram esquecer a proposta. No entanto, quando naquele mesmo ano ao
participar da Formação em Sexualidade e Gênero e ficar sabendo da
recomendação do MPF, e que uma formadora da área a supervisionaria
nas atividades, Fernanda resolveu arriscar, mesmo faltando pouco tem-
73 Proposta Curricular da Educação Infantil da SEMED (2016), que ao discorrer sobre as
experiências a serem oportunizadas às crianças, menciona, por exemplo, da importância de
oportunizar, por meio das brincadeiras, “diferentes tipos de aprendizagens, respeitando o dia
a dia e costumes dos grupos culturais existentes na instituição e comunidade (p.61).

- 110 -
po para a Mostra.
Reuniu-se então com os pais de seus alunos, explicou para
eles a intenção do trabalho e solicitou para que aqueles que concordas-
sem assinassem um termo autorizando-a a fazer registros fotográficos
e pequenos vídeos da atividade. Nesse momento, não houve nenhuma
dificuldade, todos concordaram e assinaram prontamente:
Eles até me questionaram na reunião: ´- Ah, professora eu não vejo
problema nenhum, mas assim, vai falar sobre sexo´? Eles me ques-
tionaram e eu falei: ´- Não, não tem nada a ver com sexo, é sobre
brinquedos (Entrevista realizada no dia 17 de maio de 2018).

Fernanda, após esta etapa, numa aula de sexta-feira, realizou


a dinâmica em classe, inclusive com a preocupação de fazer registros
fotográficos e filmar apenas as crianças cujos pais teriam estado na reu-
nião e assinado o termo:
No começo eles fizeram um desenho de profissões que eles queriam,
eles explicaram a razão. Aparece menina dizendo que queria ser
mãe, que queria ser professora e meninos só as profissões mesmo
mais ditas de menino: bombeiro, policial. Aí, depois disso, peguei
todos os brinquedos que a gente tinha na sala e coloquei na rodinha,
eles iam pegando e eu perguntava o que eles poderiam aprender
com aqueles brinquedos para quando crescessem. Aí, filmei, tudo
certinho. Fiz o meu aluno com a boneca e eu perguntando: ´- E aí,
por que a boneca? O que você irá aprender brincando com ela? ´. Aí,
ele diz exatamente no vídeo que ele iria aprender a ser pai. Ia brincar
de ser pai (Entrevista realizada no dia 17 de maio de 2018).

No final da aula após, a atividade, Fernanda teve a primeira


surpresa:
Vem a mãe do menino dizendo que o pai dele, que não ha-
via participado da reunião - só a mãe - ficou questionando a
razão do trabalho, enfim. Eu expliquei de novo e como eles
tinham me dado o papel que eu poderia filmar, disse que eu
mandaria para eles o vídeo para eles entenderem melhor. En-
tão, eu mandei. Acho que esse foi um erro, um erro. Mas,
enfim... mandei o vídeo e expliquei de novo exatamente (En-
trevista realizada no dia 17 de maio de 2018).

Ao tomar contato com o material, Fernanda declarou que “O


pai surtou. Ele não ouvia o que o menino falava, só via o menino com
a boneca. Inclusive, no vídeo o aluno falava e eu reforçava umas três ou
quatro vezes que ele estava ali representando o papel de pai. Mas parece

- 111 -
que não estavam ouvindo nada, só vendo a imagem”. Diante disso, Fer-
nanda avisou que não iria mais usar o vídeo, apagando-o imediatamen-
te do celular. No entanto, para sua surpresa, na segunda-feira:
Começaram a ligar para escola absurdamente, várias vezes e ligaram
para a diretora, perguntando se ela iria aceitar que as professoras da
escola fizessem essa “ideologia de gênero”, esse trabalho com “ideo-
logia de gênero”. Quem ligou, falou que era assessor político de um
vereador aí (Entrevista realizada no dia 17 de maio de 2018).

Fernanda e a diretora, ficaram aguardando os pais da criança


para conversarem, mas no encontro, diante das tentativas de explicação
da professora em relação aos objetivos da atividade, o pai apenas repetia
que ele não concordava.
Na reunião vieram os responsáveis e o tal assessor do vereador que
não se identificou, e eu não entendi a razão dele ter sido recebido
na verdade, porque os responsáveis legais eram os pais. Enfim, o
assessor do vereador estava muito mais com ‘sangue nos olhos´ do
que os pais. Estava muito mais fervoroso que os pais. E teve algumas
palavras proferidas que eu senti que foram ameaçadoras, do tipo: ´-
A gente não quer dar prosseguimento nesse caso, mas se a senhora
continuar fazendo isso a gente vai acionar as medidas, e a gente vai
trazer um documento extrajudicial que a senhora se compromete a
não fazer mais isso. O assessor do vereador disse que tinha a tal lei
do Marcel Alexandre e eles já estavam indo a várias escolas que esta-
vam tentando trabalhar, que estavam acabando com o trabalho das
professoras que queriam fazer isso. E aí foi bem tenso, foi bem tenso
mesmo (Entrevista realizada no dia 17 de maio de 2018).

Em conversa com a diretora, ambas combinaram que não


iriam assinar nada. E apesar de sentir que a diretora estava com receio
de contrariar os pais, tanto ela como toda SEDUC, ficaram a seu lado:
Eu fiquei sabendo que antes dessa reunião com os pais, esse mesmo
vereador havia ligado para a secretária de educação perguntando se
ela ia aceitar que os professores continuassem a fazer esse trabalho
nas escolas do município, aí pelas conversas a secretaria ficou toda
do meu lado (Entrevista realizada no dia 17 de maio de 2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar hoje a educação para a sexualidade, numa pers-
pectiva de direitos sexuais de crianças e adolescentes, assim como
numa vertente de direitos humanos, é caminhar na contramão de

- 112 -
noções que concebem a criança como propriedade parental e que
invisibilizam sua sexualidade, suas curiosidades, dúvidas e descobertas
ao longo do processo de desenvolvimento, bem como de um modelo
heteronormativo que inferioriza e patologiza diferentes formas de ser
homem e de ser mulher, de estar no mundo e amar, no qual grande parte
de nós foi educada, tendo desenvolvido valores, crenças, modos de ser e
pensar que passaram a constituir até nossa identidade docente.
Sendo assim, constitui-se num desafio, não apenas relaciona-
do ao campo da formação de professoras(es), mas a diversas esferas,
dentro e fora da escola, e mesmo em nossa própria atuação profissional,
a desconstrução de desigualdades de gênero e a promoção da criança e
do adolescente como sujeitos de direitos, inclusive, sexuais.

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- 115 -
- 116 -
DISPOSITIVO CURRICULAR, PANOPTISMO
ESCOLAR E RESISTÊNCIA: IDEOLOGIA
DE GÊNERO E ESCOLA SEM PARTIDO NA
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Jeffeson William Pereira74
Flávia Melo75

RESUMO: O artigo analisa as imbricações de duas frentes do conservadorismo


contemporâneo no Brasil: o ativismo religioso contra a “ideologia de gênero” e o
Movimento Escola Sem Partido (MESP). O trabalho ancora-se em pesquisa docu-
mental e no método de análise do discurso de abordagem foucaultiana, em estreito
diálogo com produções sobre Educação e Currículo. O emprego da categoria acusa-
tória “ideologia de gênero” revela o recrudescimento das forças conservadoras com
severa atuação na obstrução de direitos sexuais. O MESP, por sua vez, representa
uma pedagogia persecutória, aqui definida como panoptismo escolar. Pela atuação
confluente dessas frentes, demonstramos como o parlamento brasileiro se constitui
como instância reguladora da educação pública. Os efeitos desses processos condu-
zem ao enfraquecendo dos espaços participativos de controle social da escola, em
favor da judicialização das relações escolares.
Palavras chaves: Ideologia de Gênero. Escola Sem Partido. Educação. Foucault.

INTRODUÇÃO
Nós precisamos de um presidente honesto, que tenha Deus no co-
ração, seja patriota e seja independente para, pelo exemplo, gover-
nar esse grande país. Um presidente que honre e respeite a família;
que trate com consideração criança em sala de aula, não admitindo
ideologia de gênero, impondo a (sic) Escola Sem Partido. Um pre-
sidente que não divida homos (sic) e héteros, pais e filhos, nordes-
tinos e sulistas, brancos e negros, ricos e pobres. Um presidente que
deixe para trás o comunismo e o socialismo.

Este excerto foi extraído do discurso final do, à época, o pre-


sidenciável Jair Messias Bolsonaro (Partido Social Liberal - PSL) no
primeiro debate eleitoral realizado pela Rede Bandeirantes de Televi-
são (Band), em 201876. Nas semanas seguintes, e após o primeiro turno
74 Mestre em Serviço Social e Doutorando em Educação, ambos pela Universidade Federal
do Amazonas (Ufam). Professor de cursos de pós-graduação na área sócio-jurídica. E-mail:
jeffesonpereira@yahoo.com.br.
75 Doutoranda em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisa-
dora visitante na Universidad Complutense de Madrid (2018-19). Professora da Universidade
Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: fmcunhamelo@gmail.com.
76 Debate transmitido pela Rede Bandeirantes em 09/08/2018. O vídeo tem duração de

- 117 -
das eleições, em entrevistas para a Rede Globo de Televisão e outras
emissoras brasileiras, o candidato eleito para a presidência do Brasil
(2019-2022) reiterou tanto a sua objeção ao que chamou de ideologia
de gênero, como o seu compromisso com a imposição do projeto Escola
Sem Partido.
Ao mencionar o respeito à família e às crianças – ao mesmo
tempo em que rechaçou a ideologia de gênero, o comunismo e o socia-
lismo –, o candidato reafirmou sua oposição àquilo que denominou,
em sua proposta de governo, de “doutrinação e sexualização precoce”
(p.41). Dentre as sugestões para a educação nacional, seu plano men-
cionava ainda o intuito de alterar a Base Nacional Comum Curricular
(BNCC)77 e “expurgar” da educação brasileira a “ideologia de Paulo
Freire”78 (p.46)79.
O conteúdo dessa epígrafe é emblemático não apenas porque
pronunciado pelo chefe do poder executivo brasileiro. Por um lado, é
representativo do modo como grupos políticos religiosos lograram di-
fundir, no Brasil, a oposição à “ideologia de gênero” ao ponto de esta
dividir espaço na agenda política e eleitoral com temas como segurança
pública e corrupção. Por outro lado, demonstra como grupos anties-
querda disseminaram, com igual sucesso, a expressão “doutrinação
ideológica” que se constituiu importante ferramenta para o controle e
a criminalização da atividade docente e para a judicialização da relação
professores-estudantes/escola-família.
Não por acaso, a menção aos termos ideologia de gênero e
doutrinação ideológica, remete-nos à mesma aproximação discursiva
observada em propostas legislativas para a reforma da educação no
Brasil e em publicações internacionais que “denunciam” uma conspi-
ração internacional entre marxistas, comunistas, feministas e movi-
mentos LGBT+ para a “sexualização infantil” e a “destruição da família”
4:16:49s e o excerto analisado localiza-se entre os minutos 03:42:44s – 03:43:34s. Disponível
em: https://youtu.be/ Acesso: 01 dez. 2018.
77 Documento que normatiza as aprendizagens e o currículo da Educação Básica do Bra-
sil. Após um amplo e conflituoso processo iniciado em 2015, o texto da base para Educação
Infantil e Ensino Fundamental foi homologado em dezembro de 2017. Disponível em http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/ Acesso 01 dez. 2018.
78 Paulo Freire (1921-1997) foi pedagogo e filósofo brasileiro de notável influência para a
pedagogia crítica mundial. No livro “Pedagogia do oprimido” (1968), uma de suas obras mais
populares, propôs uma nova relação ensino-aprendizagem baseada em um processo de valo-
rização dos conhecimentos apriorísticos e no compromisso com a emancipação e a libertação
das pessoas oprimidas.
79 Disponível em http://www.psl-sp.org.br/ Acesso: 01 dez.2018.

- 118 -
(O’LEARY, 1997; REVOREDO, 1998; SCALA, 2010; 2015; MÁRQUEZ
& LAJE, 2016).
O excerto revela, ainda, os efeitos de uma poderosa aliança
entre grupos políticos religiosos – representados majoritariamente pela
Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional – e movimentos
antiesquerda e de extrema direita contrários ao Partido dos Trabalhado-
res (PT), como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Revoltados On-Line
e o Movimento Escola Sem Partido (MESP).
Com efeito, essas expressões e os grupos políticos a elas asso-
ciados não foram forjados no âmbito da última campanha presidencial.
Tampouco surgiram do plano de governo proposto pelo candidato elei-
to. Na verdade, guardam relação com processos observáveis em contex-
tos internacionais muito diversos e, no Brasil, emergiram de processos
políticos em curso há pelo menos uma década.
Esse é o caso do Movimento Escola Sem Partido (MESP),
criado em 2004, e no qual foram inspirados os projetos de lei (PL) nº
7180/2014, nº 867/2015 e o projeto de lei do senado (PLS) nº 193/201680.
A oposição à “ideologia de gênero”, embora difundida na América La-
tina desde o fim dos anos 1990 (O’LEARY, 1997; REVOREDO, 1998),
emergiu durante a aprovação do Plano Nacional de Educação em 2014,
e, depois, foi difundida por dezenas de leis que proibiram a difusão de
conteúdos curriculares relacionados à diversidade, orientação sexual e
relações de gênero em muitas cidades brasileiras.
Em comum, as centenas de projetos de lei81 que almejam im-
plantar o programa Escola Sem Partido e/ou coibir a ideologia de gênero
80 O primeiro desses projetos foi proposto pelo deputado Erivelton Santana (PSC/BA) em
2014 e propunha alterações na Lei nº. 9394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Bra-
sileira - LDB) para assegurar o respeito às convicções e aos valores morais e religiosos de es-
tudantes e suas famílias. O segundo projeto, do deputado federal Izalci Lucas Ferreira (PSDB/
DF), propunha implantar o Programa Escola Sem Partido. O PLS nº. 193/2016, apresentado
pelo senador Magno Malta (PR/ES), foi retirado pelo autor em 2017. Este projeto continha a
mesma proposta do PL nº. 7180/2014 que tramitou anexado ao PL nº 867/2015 e propunha a
alteração da LDB, a implantação do Programa Escola Sem Partido e a proibição da “ideologia
de gênero”. Em 11/11/2018, após semanas de intensos enfrentamentos e frustradas tentativas
de aprovação do relatório sobre o PL, o presidente da comissão especial da Câmara Federal
criada para analisar a proposta encerrou as atividades da comissão. Assim, de acordo com
o rito legislativo brasileiro, o projeto de lei foi arquivado. O trâmite completo das propostas
supracitadas pode ser consultado nas páginas da Câmara e do Senado Federal.
81 Segundo o mapa interativo produzido pela página Professores contra o Escola Sem Parti-
do (https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/), até janeiro/2018 foram apresenta-
das ou aprovadas centenas de propostas legislativas para implantar o ESP e/ou proibir a “ideo-
logia de gênero”: 14 projetos de lei e decretos legislativos federais; 25 projetos de leis estaduais;
124 projetos de leis municipais. Disponível em https://goo.gl/DkaDKs Acesso em 15dez2018.

- 119 -
nos diferentes níveis de gestão da educação brasileira (federal, estaduais
e municipais) denunciam a existência da audiência cativa de estudan-
tes vulneráveis e suscetíveis àx autoridade de professores. Estes, seriam
doutrinadores ideológicos usam inadequadamente a liberdade de ensinar
para dissimular conteúdos que difundem a “ideologia de gênero” e esti-
mulam a sexualização infantil. Além de coibir a atuação de professores e
estimular um sistema de vigilância exercido por mães, pais e estudantes,
esses projetos têm dedicado especial atenção à censura de conteúdos
curriculares por meio da contestação e reforma de leis e outras norma-
tivas.
Embora tenham origens e trajetórias distintas, os movimen-
tos de oposição à ideologia de gênero e à doutrinação ideológica estão
fortemente imbricados no contexto brasileiro atual e, por esse motivo,
não podem ser analisados separadamente. Essa confluência já foi ana-
lisada anteriormente. Miguel (2016) explica que a preocupação inicial
do Movimento Escola Sem Partido (MESP) era impedir a contamina-
ção político-ideológica promovida pela doutrinação marxista. Logo, a
principal oposição do movimento se direcionava apenas ao suposto
conteúdo comunista (ou de esquerda) observado na educação pública
brasileira. Contudo, a grande projeção do MESP ocorre somente uma
década depois da sua criação, justamente quando suas propostas são
incorporadas por “outra vertente da agenda conservadora: o combate à
chamada “ideologia de gênero” (MIGUEL, 2016, p. 595), combinando
duas frentes do conservadorismo contemporâneo no Brasil: o antico-
munismo (atualizado nos grupos antiesquerda) e o fundamentalismo
religioso cristão.
É a partir desse cenário controverso que nos propomos, neste
artigo, a apresentar uma breve genealogia da “ideologia de gênero” e
do Movimento Escola Sem Partido, concentrando-nos no modo como
suas propostas de reforma incidem na educação pública brasileira,
especialmente sobre o currículo, o exercício da atividade docente e a
participação de famílias e estudantes em mecanismos que judicializam
(RIFIOTIS 2012) as relações escolares.

- 120 -
EMERGÊNCIA DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO” NO
BRASIL82
A expressão ideologia de gênero se estabeleceu no Brasil como
componente fundamental para o entendimento de um discurso que
encontrou no legislativo brasileiro um espaço privilegiado para a sua
difusão e institucionalização. Mediante a apropriação desse termo, nos
últimos cinco anos, grupos políticos e religiosos conseguiram banir a
perspectiva de gênero dos principais marcos reguladores da educação
pública (ROSADO-NUNES, 2015; CARRARA 2015; MIGUEL, 2016;
FRY & CARRARA, 2016; LUNA, 2017).
Apesar de alusivo às teorias de gênero e sexualidade oriundas
das Ciências Humanas e Sociais, o termo ideologia de gênero não é um
conceito científico, mas uma “distorção semântica” (CORNEJO-VALLE
& PICHARDO, 2017, p. 06), uma “categoria acusatória” (LUNA, 2017,
p. 34) forjada por intelectuais e teólogos católicos (O’LEARY, 1997; RE-
VOREDO, 1998; BURGGRAFF, 2004; SCALA, 2010; BONNEWIJN,
2012; MARQUÉZ & LAGE, 2016; GUISASOLA, 2018). Difundida hoje
em muitos países americanos e europeus, a expressão tem sido utilizada
para questionar, inclusive, a cientificidade do vasto campo de estudos
multidisciplinares no qual se desenvolveu o conceito de gênero.
Usualmente empregado para ressaltar “o caráter cultural das
diferenças entre homens e mulheres”, o termo gênero foi adotado por pri-
meira vez pelo psicanalista Robert Stoller (1963) para diferenciar – no
âmbito da oposição natureza e cultura – sexo e identidade. Assim, Stol-
ler definiu o caráter cultural da identidade, denominando-a de “iden-
tidade de gênero”. Anos mais tarde, a antropóloga Gayle Rubin (1975)
propôs o conceito “sistema sexo/gênero”, descrito como modos de inter-
venção social sobre o sexo humano baseados no “constrangimento da
sexualidade feminina, [n]o tabu do incesto e [n]a heterossexualidade”.
Em meados da década de 1980, a historiadora Joan Scott (1986) definiu
“gênero” como uma categoria relacional de análise histórica, postulan-
do que a experiência corporal deveria ser compreendida como inserida
em processos sociais e históricos. Na década seguinte, a filósofa Judith
82 Versões anteriores desse texto foram apresentadas ou publicadas parcialmente em pe-
riódicos e anais de eventos nacionais e internacionais: Congresso Nacional de Graduações e
Pós-Graduações em Ciência da Religião (Juiz de Fora, 2016); XXIII Colóquio Internacional de
Estudos de Gênero (México, 2016); V Seminário Internacional Violência e Conflitos Sociais
(Fortaleza, 2016) e Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13º Mundos de Mulheres
(Florianópolis, 2017). Cf.: MELO DA CUNHA 2016a; 2016b; 2016c; MELO DA CUNHA &
CANDOTTI, 2017.

- 121 -
Butler (1990) superou a dicotomia sexo/gênero ao formular o conceito
“performatividade de gênero” segundo o qual todos os corpos são pro-
duto de discursividades reguladoras e, assim, sexuados, generificados e
racializados (MAZZARIELLO & FERREIRA, 2015, p. 01).
A ideologia de gênero, como categoria acusatória, surgiu em
publicações católicas no final dos anos 1990 (O’LEARY, 1997; REVO-
REDO, 1998). Já o ativismo religioso contrário à perspectiva de gênero
– principalmente na educação – conquista mais força e visibilidade 20
anos depois, na segunda década do século XXI. Desde então, tem se
propagado exponencialmente por muitos países. Vários trabalhos des-
creveram a emergência desse movimento em diferentes países da Amé-
rica Latina - como Brasil, Colômbia, Equador, México e Peru (MELO
DA CUNHA, 2016d; MUELLE, 2017; SOLARI, 2017) – e da Europa
(CORNEJO-VALLE & PICHARDO, 2017), o que evidencia a abrangên-
cia desse “fenômeno transnacional bem organizado por partidos con-
servadores e lobbies com a mesma retórica da hierarquia da Igreja Cató-
lica (e depois compartilhada por outras igrejas)” (CORNEJO-VALLE &
PICHARDO, 2017, p. 03).
Uma simples busca de dados na internet demonstra o quão
difícil foi perseguir e dimensionar a difusão dessa expressão no meio
virtual e também fora dele. Em julho de 2019, a pesquisa pela expressão
exata ideologia de gênero (em língua portuguesa) indicou mais de dois
milhões de resultados. Em 2016, essa mesma busca gerava algo em torno
de 500 mil resultados (MELO, 2016). Atualmente, a página de buscas do
Google oferece, inclusive, uma definição automática, gerada a partir da
coleta dos milhares de dados compartilhados na rede: “expressão usada
pelos críticos da ideia de que os gêneros são, na realidade, construções
sociais. Para os defensores desta “ideologia”, não existe apenas o gêne-
ro “masculino” e “feminino”, mas um espectro que pode ser livremente
escolhido pelo indivíduo83. Esta definição automática ilustra exemplar-
mente a abrangência e a difusão dessa expressão nas redes sociais, o que
nos diz muito sobre o seu alcance e seus efeitos no mundo real.
Para esquadrinhar a genealogia e a difusão da “ideologia de
gênero”, Melo da Cunha (2016a) identificou autores e livros citados
amiúde nas redes sociais e publicações da internet, e selecionou algumas
das referências mais remotas. Segundo a autora, em uma breve análi-
se desse material, três publicações figuram como centrais: o livro The
83 Disponível em https://www.google.com.br/ Acesso em: 10 jul. 2019.

- 122 -
gender Agenda: redefining equality da escritora norte-americana Dale
O’Leary (1997); o documento Ideología de género: sus peligros y alcance,
publicado Conferência Episcopal Peruana (1998); e o livro do advogado
argentino Jorge Scala (2010), La Ideología de Género o el Género como
herramienta de poder (2010).
O livro publicado por Dale O’Leary (1997) é a mais antiga e
a principal referência na concepção da “ideologia de gênero”. Centenas
de publicações a mencionam e reproduzem suas principais ideias. Em
The gender agenda, a autora analisa as conclusões IV Conferência Mun-
dial das Nações Unidas sobre a Mulher (Pequim, 1995) para demonstrar
como, a partir desse evento, o termo gênero (e uma agenda de políti-
cas) foi progressivamente induzido por agências internacionais graças
à atuação de ativistas e feministas radicais. Para O’Leary, a perspectiva
das mulheres – uma luta justa pela igualdade entre homens e mulheres
observada durante os anos 1960 – teria sido suplantada pela perspectiva
de gênero. O “feminismo de gênero”, surgido nos anos 1970 sob influên-
cia das teorias de classe, seria um movimento radical e neomarxista de
rechaço à família, à maternidade e de apoio à promiscuidade.
As principais ideais de O’Leary foram condensadas no docu-
mento da Conferência Episcopal Peruana assinado pelo bispo católico
Oscar Alzamora Revoredo (1998) para conclamar um posicionamento
de católicos diante do avanço da “ideologia de gênero”. Com menções às
publicações de Judith Butler – a quem classifica como ficção científica –
o documento episcopal peruano critica definições de gênero, feminismo
e patriarcado oriundas dos estudos de gênero e sexualidade, e denuncia
a “agenda” de direitos sexuais e reprodutivos introduzida pela Organi-
zação das Nações Unidas (REVOREDO, 1998, p. 594). Em 2004, esse
texto é publicado novamente como verbete num léxico publicado pelo
Conselho Pontifício para a Família, em Madri/Espanha.
A terceira referência é o livro de Jorge Scala (2010), traduzido
no Brasil sob o título “Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte
da família” (2015). Comparado ao documento de Revoredo (1998), o
livro de Scala (2010; 2015) demonstra maior densidade teórica e recorre
a autores como Karl Marx, Jacques Derrida, Michel Foucault e Simone
de Beauvoir para construir o que classifica como antecedentes teóricos
do conceito de gênero. O alerta às ameaças da “ideologia de gênero” está
presente desde as suas primeiras páginas:

- 123 -
A chamada ‘teoria’ – ‘enfoque’, ‘perspectiva’ etc. - de ‘gênero’ é, na
realidade, uma ideologia. Provavelmente a ideologia mais radical
da história, uma vez que - se for imposta - destruiria o ser huma-
no em seu núcleo mais íntimo e, ao mesmo tempo, acabaria com a
sociedade. Além disso, é a mais sutil, porque não procura se impor
pela força das armas - como o marxismo e o nazismo -, mas usando
propaganda para mudar a mente e o coração dos homens, sem der-
ramamento de sangue aparente (SCALA, 2010, p. 07).

Existe ainda um livro pouco mencionado, intitulado The


Agenda: The homosexual plan to change America (2005) de autoria do
ex-pastor presbiteriano norte-americano Louis Sheldon, traduzido no
Brasil pela Editora Central Gospel como A estratégia: o plano dos ho-
mossexuais para transformar a sociedade (2012). Trata-se da única re-
ferência não católica identificada. No livro, a expressão ideologia de gê-
nero, forjada por intelectuais católicos, não é empregada, mas a palavra
gênero aparece dezenas de vezes em uma argumentação que interpreta
a introdução dos conceitos de gênero e identidade de gênero como uma
estratégia homossexual que foi assimilada e divulgada pela mídia norte-
-americana e induziu o conteúdo de políticas governamentais.
Reaparecem uma série de aproximações discursivas como
aquelas que associam uma certa influência externa da ONU – no caso
das publicações católicas – ou dos EUA – no caso do livro do reverendo
– a uma agenda ou estratégia para induzir políticas públicas que amea-
çam a família e a humanidade. Tal como nos textos anteriores, nota-
mos a preocupação com o alcance político da perspectiva de gênero. No
entanto, à diferença das outras publicações mencionadas, não encon-
tramos em Sheldon a oposição a um certo conteúdo ideológico, mas a
abjeção a sujeitos específicos, os homossexuais:
[...] que baniram as práticas religiosas em todas as sociedades co-
nhecidas pelo homem cuja expectativa de vida é correspondente à
metade da de um heterossexual; que contraem e propagam doenças
contagiosas que têm devastado nações inteiras; que são sexualmente
imaturos, moralmente irresponsáveis e emocionalmente instáveis;
que são infiéis a seus parceiros; que cometem atos sexuais aberran-
tes com pelo menos 500 parceiros em uma vida curta; que buscam
constantemente aventuras eróticas; que insultam minorias legíti-
mas falando em direitos civis; e que disseminam ódio e violência
em nome da ‘tolerância’ e da ‘diversidade’ — querem que o governo
federal ‘incentive’ e ‘apoie’ o ensino sobre seu estilo de vida às crian-
ças dos Estados Unidos. Quem eles querem enganar? (SHELDON,
2012, p. 147)

- 124 -
Como demonstraremos, apesar de frequentemente emprega-
da por parlamentares autodenominados evangélicos no legislativo bra-
sileiro84, a categoria ideologia de gênero foi forjada na tradição católica
e, no parlamento brasileiro, incorporada por parlamentares declarados
evangélicos. Essa confluência representou uma importante estratégia
que, na prática, tem significado um intenso, diversificado e capilar ati-
vismo religioso contra a ideologia de gênero, como observamos durante
o processo de aprovação do Plano Nacional de Educação (PNE) quando
lideranças católicas e neopentecostais – dentro e fora do parlamento –
uniram-se para banir a perspectiva de gênero da educação.

DESFAZENDO GÊNERO: O CASO DO PLANO


NACIONAL DE EDUCAÇÃO
Como sabemos, o embate em torno do reconhecimento le-
gal da diversidade sexual e de gênero se observa no Brasil, ao menos,
desde o período da Assembleia Nacional Constituinte (1988) quando
“a inclusão do termo ‘orientação sexual’ foi objeto de uma violenta rejei-
ção ancorada em valores religiosos” (NATIVIDADE et al., 2009, p. 19).
Outrossim, no debate sobre o PNE, em 2014, o enfrentamento em torno
dessas questões ocupou lugar crucial quando a “ideologia de gênero”
emergiu como inimigo moral a ser perseguido.
A discussão do projeto de lei que originou o PNE (Lei Federal
nº. 13005/2014) foi abalizada pela mobilização de grupos políticos re-
ligiosos para a exclusão das expressões igualdade de gênero, orientação
sexual e diversidade sexual do texto do substitutivo da Câmara Federal,
o que provocou intenso enfrentamento com defensores da permanência
da perspectiva de gênero, especialmente feministas e LGBT+.
No documento oficial publicado após a sanção da lei, o emba-
te sobre a questão de gênero foi descrito como “a mais ruidosa polêmi-
ca” dentre aquelas debatidas na apreciação do projeto (CUNHA, 2016).
Os conflitos se produziram em torno da alteração do inciso III do artigo
2º do substitutivo apresentado pela Câmara Federal “que previa a supe-
ração das desigualdades educacionais”. No Senado, o inciso foi alterado
e a ênfase na promoção da “igualdade racial, regional, de gênero e de
orientação sexual” foi substituída pela expressão ‘cidadania e na erradi-
84 No ano de 2015 foi registrada a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) do Congresso Na-
cional Brasileiro, composta por 198 deputados federais e 4 senadores. O Congresso tem um
total de 513 deputados e 81 senadores, logo, a FPE representava na legislatura encerrada em
2018 o percentual de 34% dos parlamentares. Disponível em https://www.camara.leg.br/ Aces-
so 04dez2018.

- 125 -
cação de todas as formas de discriminação’” (PLANO NACIONAL DE
EDUCAÇÃO, 2015, p.22).
Esse confronto extrapolou o Congresso Nacional e em 2015
ocupou as plenárias das casas legislativas de todos os estados brasileiros,
gerando novos embates durante a aprovação dos planos estaduais e mu-
nicipais de educação. Em todo o país, os planos aprovados excluíram as
expressões relativas a diversidade de gênero, sexualidade ou orientação
sexual, incluindo-as genericamente com expressões de respeito aos di-
reitos humanos ou alusões à igualdade entre todas as pessoas.
Aprovados os planos de educação nos estados e municípios,
multiplicaram-se projetos de leis para proibir os debates sobre gênero
e sexualidade nas escolas, dentre eles o Programa Escola Sem Partido.
Nos projetos, repetem-se as censuras àquilo que seus proponentes de-
nominam “doutrinação ideológica” e “ideologia de gênero”, definidas
como práticas e conteúdos ameaçadores à educação posto que ferem a
autonomia dos pais de educar seus filhos de acordo com seus princípios
morais.

ORIGEM E ATUALIDADE DO MOVIMENTO ESCOLA


SEM PARTIDO
O Movimento Escola Sem Partido (MESP) surgiu em 2004
e é coordenado pelo advogado e procurador do Estado de São Paulo,
Miguel Francisco Urbano Nagib, proprietário da empresa Escola Sem
Partido Treinamento e Aperfeiçoamento Eireli ME (Treinamento em
Desenvolvimento Profissional e Gerencial) e criador da Associação Es-
cola Sem Partido. Como vice coordenador do movimento é apontado o
professor universitário da Faculdade de Educação de Brasília, Bráulio
Porto de Matos.
O MESP permaneceu com pouca visibilidade até o início da
década de 2010, quando passou a ser uma voz frequente nos debates so-
bre educação no país. Como afirmamos antes, foi em 2014 – a partir das
discussões sobre o Plano Nacional de Educação – que seus pressupostos
passaram a ser amplamente defendidos pelo movimento conservador
apoiado inicialmente pelos partidos de extrema-direita e pela bancada
evangélica. Desse modo, a proposta curricular do MESP para educa-
ção brasileira ganhou capilaridade no país, motivado por uma ampla
campanha contra o reconhecimento da diversidade sexual nos planos
decenais de educação, a começar pelo Plano Nacional de Educação

- 126 -
2014-2024.
De acordo com Ximenes (2016, p. 51) a agenda de reformas
do direito à educação promovida pelo Movimento Escola Sem Partido
(MESP) está articulada em ao menos três níveis:
(i) a promoção de alterações na LDB, em nível nacional; (ii) a pro-
moção de projetos de lei específicos, no máximo de entes federa-
tivos (estados e municípios); e (iii) uma campanha de estímulo à
responsabilização de professores que, pelos critérios do movimento,
tenham atuado de modo contrário aos seus princípios.

É importante ressaltar que houve uma estratégia discursiva


adotada pelo MESP para que o debate curricular proposto pelo movi-
mento pudesse ganhar novos adeptos e se popularizar, tal estratégia foi
identificada da seguinte maneira:
Antes, a ideia de uma ‘Escola Sem Partido’ focava sobretudo no
temor da ‘doutrinação marxista’, algo que estava presente desde o
período da ditadura militar. O receio da discussão sobre os papéis
de gênero cresceu com iniciativas para o combate à homofobia e ao
sexismo nas escolas foi acompanhado como bandeira prioritária pe-
los grupos religiosos conservadores. Ao fundi-lo à sua pauta origi-
nal, o MESP transferiu a discussão para um terreno aparentemente
‘moral’ (em contraposição ao ‘político’) e passou enquadrá-la nos
termos de uma disputa entre escolarização e autoridade da família
sobre as crianças (MIGUEL, 2016, p. 595-596).

Após a destituição da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, a


proposta do MESP passou a contar com a simpatia do novo ministro da
Educação, o administrador e político pernambucano Mendonça Filho.
Um dos primeiros compromissos da agenda do novo ministro foi uma
reunião com representantes dos movimentos Revoltados On Line e Es-
cola Sem Partido (CUNHA, 2016). Um dos participantes dessa reunião,
o ator Alexandre Frota (PSL/São Paulo) foi eleito deputado federal nas
eleições de 2018 com mais de 150 mil votos.
Em 2018, após a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência
da República, a bancada evangélica cobrou o apoio durante a campa-
nha eleitoral recusando alguns nomes para o Ministério da Educação e
exigindo um perfil alinhado aos seus anseios. Após a pressão de líderes
da Frente Parlamentar Evangélica o presidente anunciou em uma rede
social que o professor de filosofia ligado à Escola de Comando e Esta-
do-Maior do Exército, Ricardo Vélez Rodríguez, será o seu ministro da

- 127 -
Educação, trata-se de um colombiano naturalizado brasileiro defensor
da proposta do Movimento Escola Sem Partido.
Fica evidente, pois, a armadilha discursiva mobilizada pelos
agentes interessados em propagar o pânico moral contra a “ideologia de
gênero” e o rechaço à ideologia marxista. A confluência e aliança desses
movimentos permitiu ao MESP angariar importantes simpatizantes e
defensores de sua causa, deslocando a discussão para o enfrentamento
moral. Isso tornou palatável e cativante a defesa de uma escola que pre-
servasse a heteronormatividade compulsória (BUTLER, 1990) e a pola-
ridade de gênero, em nome da “preeminência dos valores familiares” e
em defesa de um estado não totalitário e oposto ao comunismo.

O DISPOSITIVO CURRICULAR DISCIPLINAR


No âmbito da educação escolarizada, foi o currículo – inven-
tado na virada do século XVI para o século XVII – o artefato que veio
cumprir o papel ordenador e representacional requerido pela nova epis-
teme da ordem e da representação (VEIGA-NETO, 1996). Segundo a
acepção moderno-ocidental, o currículo é, portanto, um instrumento
que reúne e organiza conteúdos eleitos como necessários para a instru-
ção, inserção social e empregabilidade. O alcance dessa invenção so-
bre o mundo social mais amplo logrou enorme abrangência pois, não
apenas “a escola fez do currículo o seu eixo central, [como] ela própria
tomou a si a tarefa de educar setores cada vez mais amplos e numerosos
da sociedade” (VEIGA-NETO, 2002, p. 164). Desse modo, o currículo
constituiu-se como o cerne, o âmago das concepções pedagógicas trava-
das nas mais diversas instituições educacionais.
No entanto, o currículo deve ser compreendido como um ar-
tefato cuja invenção guarda uma relação imanente com o mundo social
e o com a cultura, sendo produzido em contextos de contínuas trans-
formações e tensionamentos entre visões de mundo, projetos de socie-
dade e projetos de educação. Logo, existem muitas e distintas formas
de conceber a relação entre projeto de educação e projeto de sociedade,
e é das tensões entre esses projetos que se materializam as propostas
curriculares.
Assim, desde a as críticas elaboradas pelas perspectivas pós-
-modernistas e pós-estruturalista, o conhecimento almejado por uma
determinada estrutura curricular não se ergue sobre pilares absoluta-
mente abstratos e universalmente definidos, mas é concebido como re-
sultado de processos históricos conflitivos e mesmo antagônicos:

- 128 -
Nessa visão, a noção de Razão é encarada como produto de uma
construção histórica que deve suas características às condições da
época em que foi desenvolvida e não a uma essência humana abs-
trata e universalizante. Desta forma, a construção do conhecimen-
to tem um caráter histórico-contextual do qual não podemos nos
eximir, por vezes, essa Razão é eurocêntrica, masculina, branca,
burguesa, setecentista e, portanto, particular, local, histórica, e não
pode ser generalista (SILVA, 2011, p. 258).

Além da constituição curricular correspondente a um tem-


po situado historicamente, o currículo carrega ainda a intencionalidade
formativa do sujeito, ou seja, a pessoa que almeja ser formada, a partir
de um determinado quadro de valores em detrimento de outros e, con-
sequentemente, a legitimidade da existência da instituição escolar. Em
face desses aspectos que os compõem, os currículos “tornam-se, então,
dispositivos de governamentalidade e de tecnologias empregadas no go-
verno das pessoas ao nível individual e ao nível dos grupos que ocupam
em suas culturas” (VEIGA-NETO, 2012; SILVA, 2011, 2015).
Em última instância o que está em disputa é o devir formativo
e o seu consequente propósito político. E é a partir desse intento que se
diferenciam as propostas da pedagogia de disciplinamento da pedago-
gia emancipatória. Isso explica as tensões ao decorrer de todo ciclo da
política educacional, desde sua elaboração, execução e monitoramen-
to à sua avaliação. O currículo não é compreendido simplesmente por
quais conteúdos que comporão a formação em uma área específica, mas
também quais concepções pedagógicas serão eleitas; quais estratégias de
ensino-aprendizagem serão utilizadas; quais saberes serão difundidos e
ocultados; enfim quais modos de existência serão permitidos em detri-
mento de outros aviltados.
Desta forma, na esteira de Foucault (1998, 2004, 2011, 2014),
Fischer (2012), Silva (2011, 2015) e Veiga-Neto (2012) compreendemos
o dispositivo do currículo enquanto práticas discursivas heterogêneas,
como dispositivo de saber-poder. Na literatura foucaultiana o conceito
de dispositivo é pensado a partir da necessidade de incluir essas práticas
discursivas entre as condições de possibilidade da formação dos saberes.
Ferraro (2009, p.02) demonstra o quanto de discurso há no
currículo na medida em que revela o propósito do exame deste artefato
pedagógico: “É necessário analisá-lo como um campo de práticas discursi-
vas para tentar desvelar o quanto as relações que nele se estabelecem (e to-
mam forma) interferem no processo de subjetivação na sociedade atual”.

- 129 -
A partir da obra A ordem do discurso, do filósofo francês Mi-
chel Foucault (2013), podemos inferir que o estudo do currículo para
além de uma teoria deve ser analisado em termos de campo discursi-
vo. Ao tratar o currículo como discurso é necessário observar questões
fundamentais, dentre elas como se organizam as formações discursivas?
Como funcionam os dispositivos de saber/poder direcionados ao am-
biente educacional? Quais mecanismos disciplinares asseguram o seu
funcionamento? De que maneira capacitam para determinadas postu-
ras frente à realidade? Por que privilegiar alguns saberes em detrimento
de outros? É necessário ainda indagarmos, quais estratégias de resistên-
cias surgem no jogo das relações de saber-poder?
No Brasil as relações de saber-poder que disputam o currícu-
lo tornaram-se mais evidentes nas últimas edições da Conferência Na-
cional de Educação (2010, 2014 e 2018) quando notamos o crescimento
do conservadorismo. Nessas conferências – por constituírem-se estra-
tégias de controle social – há uma disputa de hegemonia entre diversas
tendências da sociedade, e o resultado é consubstanciado na criação de
um plano. O Plano Nacional de Educação, por meio de suas metas, sina-
liza o direcionamento do investimento público que o Poder Executivo
deve implementar na área. Como demonstramos antes, foi justamente
na ocasião da aprovação do último PNE que se fortaleceu a cruzada
anti-gênero e o MESP.

EDUCAÇÃO É A BASE: DISPUTAS EM TORNO DA


BNCC
Outra arena que expressa a correlação de forças pela con-
corrência dos regimes de verdade direcionados à Educação esteve pre-
sente no processo de discussão da Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), norma que define o conjunto de aprendizagens essenciais da
educação básica. O suporte legislativo para a criação da BNCC advém
da Constituição de 1988 em seu artigo 205. Em 1996, a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), definiu que a
Base nortearia os currículos dos sistemas e redes de ensino do país,
como também as propostas pedagógicas de todas as escolas públicas
e privadas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Isso foi reiterado em 2014 pelo PNE que ratificou a necessidade de se
estabelecer diretrizes pedagógicas para a educação básica, e, para tanto,
fazia-se necessário criar um nova Base Nacional.

- 130 -
O documento da BNCC foi construído com o envolvimento
de educadores e a participação de diferentes grupos da sociedade. De
acordo com informações do Ministério da Educação85, a primeira ver-
são do documento contou com mais de 12 milhões de contribuições que
subsidiaram a produção da segunda versão, novamente colocada em de-
bate em 27 seminários estaduais. Nesta etapa, realizada pela parceria
entre o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e a
União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME), a
Base recebeu a colaboração de 9 mil professores e especialistas.
Consolidada a versão final, o produto foi entregue ao Conse-
lho Nacional de Educação (CNE) que discutiu o documento em 5 au-
diências públicas. Finalmente, a BNCC foi homologada em dezembro
de 2017. No entanto, antes, o documento foi questionado e submetido
a alterações, a despeito do amplo processo de consulta que precedeu o
texto final.
De acordo com Macedo (2017, p. 514), após o impeachment
de Dilma Rousseff, e tal como observamos no processo de aprovação do
PNE em 2014, se intensificaram as reivindicações conservadoras con-
trárias ao texto final da BNCC agenciadas, como antes, pela forte asso-
ciação entre parlamentares da Frente Parlamentar Evangélica e defen-
sores do MESP que apresentaram duas ordens de demandas à BNCC:
“quanto à instância competente para sua aprovação e quanto ao seu con-
teúdo, mais especificamente, aos objetivos de aprendizagem e ensino”
(MACEDO, 2017, p. 514).
Quanto à instância de competência, o MESP reivindicava que
a aprovação da BNCC não deveria ser responsabilidade do CNE e do
Ministério da Educação (MEC), mas do Congresso Nacional. Observa-
mos, uma vez mais, como o parlamento é reivindicado como instância
absoluta na elaboração dessa ferramenta normativa. A reivindicação re-
presentava o enfraquecimento, ao mesmo tempo, da autonomia do Po-
der Executivo e da participação da sociedade organizada representados,
nesse caso, pelo MEC e CNE, respectivamente.
Quanto ao conteúdo, os opositores da BNCC defendiam que
– por tratar de currículo – a base deveria restringir-se à escolha de con-
teúdos e não à defesa de direitos, pois estes já estavam contemplados na
Constituição. Assim, o ataque concentrou-se na ofensiva “aos direitos,
no intuito de reduzir a BNCC a um conjunto de conteúdo a ser en-
85 Disponível em http://basenacionalcomum.mec.gov.br/ . Acesso em: 16 dez. 2018.

- 131 -
sinado” deslocando “o jogo político na direção do fortalecimento das
demandas neoliberais por accountability” (MACEDO, 2017, p. 515).
As demandas conservadoras, referentes aos objetivos de
aprendizagem e conteúdo de ensino na BNCC, consistiam em primeiro,
diferenciar e apartar educação e ensino, cabendo a primeira à família
como única responsável pela formação moral das crianças. Segundo, a
competência do ensino escolar se restringiria à transmissão de conteú-
do. Terceiro, tais conteúdos deveriam esquivar-se do viés ideológico de
esquerda. Por fim, excluir a “ideologia de gênero” (MACEDO, 2017, p.
516-517).
Apesar do avanço do conservadorismo nas discussões da
BNCC, o texto homologado permaneceu representando um instrumen-
to para equidade, na medida em que definiu as aprendizagens essenciais
e orienta as políticas educacionais a serem implementadas nas escolas
de todo o país. De acordo com o documento final (BRASIL, 2017, p.
08), as aprendizagens essenciais devem assegurar o desenvolvimento de
dez competências gerais que consubstanciam, no âmbito pedagógico, os
direitos de aprendizagem e desenvolvimento. Na BNCC, competência
é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedi-
mentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes
e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno
exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Dentre as dez competências, mencionamos três que, ao nosso
ver, são fundamentais para cumprir a intencionalidade da formação ci-
dadã inclusiva e a promoção dos direitos humanos:
[...] 6. Valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais [...]
fazer escolhas alinhadas ao exercício da cidadania e ao seu projeto
de vida, com liberdade, autonomia, consciência crítica e responsa-
bilidade.
[...] 9. Exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a
cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo o respeito ao outro
e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da diversi-
dade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades,
culturas e potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.
10. Agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilida-
de, flexibilidade, resiliência e determinação, tomando decisões com
base em princípios éticos, democráticos, inclusivos, sustentáveis e
solidários (BRASIL, 2017, p. 09-10).

Ainda que cumprindo a intencionalidade das competências


supracitadas com vistas a uma formação cidadã, emancipatória e plural;

- 132 -
a inclusão e a permanência de temas como sexualidade e equidade de
gênero no currículo são fundamentais para o reconhecimento da diver-
sidade humana e a defesa de uma cultura da não violência e de respeito
ao outro, condição para o exercício da autonomia individual e da cida-
dania. “Cabe aos educadores, sim, promover a diversidade como um
valor intrínseco à democracia e não reproduzir particularismos familia-
res” (VASCONCELOS, 2016, p. 81).
Com efeito, reiteramos, não existe currículo neutro, pois
currículos são resultado de inúmeras discussões e negociações sobre
concepções de formação dos indivíduos em determinado contexto. A
suposta neutralidade acaba por organizar e legitimar saberes que em
si expressam os regimes de verdade de determinados grupos, em de-
trimento de outros. Dessa perspectiva de análise, quaisquer disciplinas
escolares estão situadas em dispositivos de governo e controle, logo,
contêm, necessariamente, aspectos reguladores dos quais não podem
ser separadas (SILVA, 2011, p. 254).

O PANOPTISMO ESCOLAR
A página do MESP traz o lema do programa: “Por uma lei
contra o abuso da liberdade de ensinar”. Tal intento é apresentado por
meio de um cartaz que integra o dispositivo curricular disciplinador
da prática docente. De acordo com a página, “o Programa Escola Sem
Partido é uma proposta de lei que torna obrigatório a afixação em todas
as salas de ensino fundamental e médio de um cartaz com o seguinte
conteúdo”.

- 133 -
Figura 1- Deveres do professor

Fonte: www.programaescolasempartido.org

A limitação da liberdade defendida pelos defensores do MESP


seria alcançada por meio da neutralidade, ou seja, uma lógica discursiva
que visa difundir a ideia de uma educação neutra, supostamente desvin-
culada de um projeto de sociedade e de interesses de diferentes ordens.
“Tratar-se-ia, portanto, de uma educação com a finalidade única de do-
tar os indivíduos de conhecimentos, competências e habilidades, conce-
bidas como neutras, para que os mesmos possam se inserir no mundo”
(GIROTTO, 2016, p. 70). A neutralidade corresponderia ao enquadra-
mento do que é ensinado pelo professor aos pensamentos e crenças dos
pais. O que pressupõe uma homogeneidade de crença que inexiste nas
salas de aula, seja ela pública ou privada.
O cartaz afixado é emblema do sistema de vigilância e dis-
ciplinamento preconizado pelo MESP, o que chamamos panoptismo
escolar. Foucault, em Vigiar e Punir, almejava analisar os mecanismos

- 134 -
da disciplina, isto é, a tecnologia política dos corpos. Nesse sentido, o
nascimento da prisão situava-se no contexto geral do panoptismo da
sociedade moderna.
O panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição.
O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no
centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre
a face interna do anel [...]. Basta então colocar um vigia na torre
central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condena-
do, um operário ou um escolar. [...]. O Panóptico é uma máquina
de dissociar o par ver - ser visto: no anel periférico, se é totalmente
visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser
visto (Grifos do autor, FOUCAULT, 2014, p. 194-195).

Seguindo essa descrição e argumentos, acreditamos que o


MESP estimula a vigilância perene entre os principais atores do proces-
so de ensino-aprendizagem, quais sejam: os professores, os alunos e a
família. Logo, para assegurar a adequada formação, faz-se necessária a
contínua e difusa vigilância, a denúncia e a punição dos professores que
fugirem dos “direitos” afixados no cartaz.
Para além da penalização, Ferraro (2009, p. 11) nos chama
atenção para observamos que a ontogênese dos sujeitos da educação
é extremamente influenciada pela organização curricular. O currículo
constituiria então o campo de relações que molda, através da ação do
processo educativo, o sujeito da educação, fazendo-o identificar-se ou
não com certas práticas pelas quais ele passa durante sua estada em uma
instituição escolar. Aquilo que Michel Foucault cunhou como práticas
de si, o conhecer-se a si mesmo, aplica-se muito bem a essa questão de
quais efeitos o currículo escolar deveria produzir no educando:
A prática de si é concebida como um combate permanente. Não se
trata, simplesmente, de formar para o futuro um homem de valor.
É preciso dar ao indivíduo as armas e a coragem que lhe permitirão
lutar durante toda a sua vida (FOUCAULT, 1997, p.124).

Na exploração dessa dobradiça histórica que articula sujeito


e verdade/conhecimento, abre-se a possibilidade de interrogar o pen-
samento, ou seja, “liberar o pensamento daquilo que ele pensa silen-
ciosamente, e permitir-lhe pensar diferentemente?” (Foucault, 1998, p.
14). Essa modalidade de pensamento é qualificada por Foucault (2004)
como problematização: atitude que busca investigar de que modo al-
guma coisa entra no jogo do verdadeiro e do falso e se torna objeto do

- 135 -
pensar. Assim, problematizar requer uma investida histórico-genealógi-
ca diante do próprio pensamento, como condição do agir crítico.
Em face dessas considerações, importa questionar: qual sub-
jetividade, quais modos de existência o MESP quer cultivar? O desen-
volvimento de uma postura cidadã ou de uma postura policialesca?
Frente a uma discordância, a atitude dos estudantes deve ser dialógica
ou inquisitorial?
Castro (2009, p. 407) afirma que “para compreender o de-
senvolvimento do sujeito na obra de Foucault, há que ter presente que,
antes de tudo, se trata de uma abordagem histórica da questão da sub-
jetividade”. Em clara oposição à tradição cartesiana, Foucault susten-
ta que o sujeito não é uma substância. É uma forma e esta forma não
é, sobretudo nem sempre, idêntica em si mesma. Para empreender tal
análise devemos interrogar a constituição histórica dos universais an-
tropológicos e do humanismo que faria valer os direitos, os privilégios
e a natureza de um ser humano como verdade imediata e intemporal
do sujeito. O sujeito aparece não como uma instância de fundação, mas
como efeito de uma constituição. Assim, os modos de subjetivação são
precisamente, as práticas de constituição do sujeito.
Assim, podemos entender a expressão “modos de subjetiva-
ção”, como modos de objetivação do sujeito, isto é, modos em que o
sujeito aparece como objeto de uma determinada relação de conheci-
mento e de poder. Com efeito os modos de subjetivação e de objetivação
não são independentes uns dos outros; seu desenvolvimento é mútuo,
trata-se de uma história dos jogos de verdade nos quais o sujeito, en-
quanto sujeito, pode converter-se em objeto do conhecimento.
Por outro lado, os modos de subjetivação podem ser com-
preendidos como formas de atividades sobre si mesmo, pois se acen-
tuam o elemento dinâmico deste processo: as formas da relação consigo
mesmo, as técnicas e os procedimentos mediante os quais se elabora
essa relação, os exercícios pelos quais o sujeito se constitui como objeto
de conhecimento, as práticas que permitem ao sujeito transformar seu
próprio ser.
Passemos, pois, a analisar os atores do panoptismo escolar
proposto pelo MESP e os modos de subjetivação presentes nas relações
de saber-poder que formam seus modos de existência.

- 136 -
PROFESSORES
Um dos pilares fundamentais do magistério moderno é a li-
berdade de cátedra, o que é frontalmente atacado pelos projetos de lei
propostos pelo MESP a partir da suposição de que há uma doutrinação
moral e ideológica de esquerda nas escolas brasileiras. Os professores
são tidos como “bode expiatório”, esses devem ser vigiados e controla-
dos no exercício de sua profissão, para assegurar uma educação neutra
da “doutrinação ideológica”. Sabemos que educar não é adestrar, uma
vez que o proselitismo deve ser combatido na escola.
O papel do professor não pode ser o de um pregador ou doutrina-
dor. A escola deve ser livre. O ensino deve ser plural. Pluralismo não
significa não ter nenhuma opinião, não tomar partido. Significa ter
um ponto de vista e dialogar com outros pontos de vista. Quanto
mais debate político, quanto mais reflexão crítica, mais se torna pos-
sível o equilíbrio e a pluralidade de opiniões [...] o doutrinador não
problematiza, impõe sua própria verdade, é sectário” (GADOTTI,
2016, p. 157-158).

O argumento principal utilizado pelos defensores do Movi-


mento Escola Sem Partido para justificar seu posicionamento é a ga-
rantia constitucional da liberdade de consciência e de crença, assegu-
rado pelo inciso VI, VIII do artigo 5º da atual Constituição Federal:
“VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença [...]; VIII -
ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alter-
nativa, fixada em lei”, a ideia do MESP é no sentido de que o(a) estu-
dante não é obrigado(a) a ser exposto(a) na sala de aula à ideologias
contrárias às suas crenças pessoais ou às dos seus responsáveis legais”.
Porém, ressaltamos que a compreensão de crença deve ser entendida
em termos de diversidade religiosa, logo não excluindo as religiões
de matrizes africanas, entendemos ainda que não há turma de alunos
exclusivamente pertencentes a determinada religião, ainda que a Escola
seja privada e religiosa, muitos alunos de outras denominações estudam
na instituição. Ou seja, na proposta do MESP há uma homogeneização
apriorística que invisibiliza a diversidade de religiões no país.
Além do mais a Constituição Federal é explícita quanto à li-
berdade de cátedra dos(as) professores(as), estabelecendo à prática do
ensino no Art. 206, incisos II e III os seguintes princípios: “II - liberdade

- 137 -
de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o sa-
ber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.
O MESP defende que o professor deveria transmitir conteúdo
sem crítica, problematização ou contextualização, em um ato mecânico,
há um imenso debate nesta área do saber que assevera que o professor
não pode ser um mero transmissor de informações, pelo simples fato de
que o conhecimento é uma construção pautada na dúvida, na reflexão e
no diálogo. Os professores não podem ser considerados meros reprodu-
tores de conteúdos estanques e métodos customizados externamente ao
processo de ensino. “Espera-se que pelo contrário, que trabalhem como
intelectuais capazes de construir percurso profissional e pedagógico,
com responsabilidade e honestidade. É nesse sentido que a liberdade
de ensinar e aprender se contrapõe à alienação do trabalho docente e
da aprendizagem pretendida na proposta de amordaçamento defendida
pelo ESP” (XIMENES, 2016, p. 57).
Os professores no Brasil têm uma baixa remuneração, pou-
co prestígio profissional e, frente ao volumoso acesso a informações,
sua docência tem sido ressignificada enquanto mediadora da aprendi-
zagem. Mas, o MESP intensifica esse descrédito ao transformar o pro-
fessor em inimigo público. Entre as tramitações no Congresso Nacional
que corroboram para esse ideário destacam-se o projeto de lei do de-
putado Victório Galli (PSC/MT) que proíbe a distribuição de livros di-
dáticos que falem de diversidade sexual, o projeto de lei nº. 1411/2015,
do deputado Rogério Marinho (PSDB/RN), cujo relator é o deputado
Izalci. Esse projeto tipifica o crime de assédio ideológico, que, de acordo
com o projeto, significa: “toda prática que condicione o aluno a adotar
determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qual-
quer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar
posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente”.
E informa ainda que o professor, orientador, coordenador, que praticar
dentro do estabelecimento de ensino terá a pena acrescida de um terço.
Ou seja, as opiniões fora da escola, como nas redes sociais, poderão pe-
nalizar o profissional da educação.
Assim, mais grave que as invisibilidades dos reais problemas
da educação ou a redução da autonomia profissional almejada pelo
MESP, Vasconcelos (2016, p. 81) nos alerta para “a criminalização de
professores que incluam em suas aulas debates sobre a religiosidade
afro-brasileira, sobre diversidade de gêneros ou sobre pensamento mar-

- 138 -
xista. A proposta de criminalização por ‘assédio ideológico’ ou ‘doutri-
nação marxista’ é muito semelhante ao que as ditaduras do Cone Sul
chamaram de ‘terrorismo intelectual’.
Há um incentivo para que pais e alunos possam denunciar
seus professores, o MESP somente enxerga a participação dos familiares
e dos alunos em termos de delação, não os chama para discutir os pro-
blemas da escola, pressionar o governo por uma educação de qualida-
de ou para dirimir seus conflitos internamente, instala-se uma cultura
persecutória no lugar da problematização e da reflexão. É a antítese da
liberdade de expressão é censura que cala, abafa os debates e os diálo-
gos. No limite é a impossibilidade de educar-se enquanto cidadão. “O
objetivo desse movimento é silenciar vozes, criminalizando o trabalho
docente; é perseguir, demitir e até prender docentes que defendem uma
visão de mundo contrário ao status quo e colocar a educação a serviço
dos interesses do mercado (GADOTTI, 2016, p. 151-153).
Segundo informou Manhas (2016, p. 20) o MESP criou uma
Associação Escola Sem Partido para ter uma entidade com a qual pu-
desse recorrer à Justiça em casos que julgassem relevantes. E a primeira
ação por eles promovida foi contra o INEP (Instituto Nacional de Pes-
quisas Educacionais Anísio Teixeira), devido ao tema do Enem 2015,
que tratava de violência contra as mulheres, tema que julgaram doutri-
nador e partidário.
A violência contra a mulher é reconhecida como grave pro-
blema em diversos tratados internacionais de direitos humanos, como
a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação
contra as Mulheres (CEDAW), aprovada pela ONU em 1979, e outros
que a seguiram. No Brasil, apesar dos avanços em termos de legislação
como a Lei Maria da Penha, e a Lei de Feminicídio o número de assassi-
natos em decorrência do gênero é alarmante.
A respeito do rechaço ao papel da educação e da necessidade
de um currículo que corrobora para a desconstrução das moralidades e
papéis de gênero que sustentam a persistência e a prevalência da violên-
cia contra mulheres no Brasil, Melo (2016) argumentou sobre como a
expressão “ideologia de gênero” provoca deslocamentos semânticos que
desconstroem o conceito científico de gênero e desqualificam-no como
categoria analítica para compreensão histórica das violências praticadas
contra mulheres e baseadas no gênero.
Contudo, é necessário superar o rótulo superficial de ideo-
logia de gênero e entender que a sexualidade e o gênero se expressam

- 139 -
na escola desde as pichações nos banheiros aos comportamentos em
sala de aula, cabe aos professores discutir a complexidade desses temas,
deve-se prezar pela pluralidade de ideias e não se negar a discutir as
realidades que permeiam os alunos, capacitá-los para compreender a
sociedade e mais que isso, transformá-la visando uma cultura de paz e
de redução das desigualdades socioeconômicas.

ESTUDANTES
Para o Movimento Escola Sem Partido (MESP) o professor
ter o poder de convencimentos dos alunos, enquanto estes são apresen-
tados como vítimas de doutrinadores. A imagem de passividade apre-
goada aos jovens não corresponde à realidade nas escolas, os jovens são
questionadores e não aceitam com facilidade o que se diz, ouvir uma
informação é bem diferente de aceitá-la.
Há uma exagerada atribuição da formação de pensamento
das pessoas. A Escola no século XXI definitivamente não é a instituição
única da formação de uma pessoa, ainda que muito relevante. As pes-
soas formam-se no seu local de trabalho, na igreja que frequenta, nos
movimentos sociais, em partidos políticos, nas suas casas e também nas
ruas. Há diversas esferas de socialização, a complementaridade e o con-
flito entre essas esferas são, ambos, essenciais para que as pessoas cons-
truam sua visão de mundo a partir do contraste de ideias e experiências.
Tentar evitar essa relação é fazer com que os filhos fiquem presos ao que
pensam os pais, gerando uma visão anacrônica de mundo.
A regulação e o governo dos sujeitos e das populações são
mecanismos necessários para “canalizar” suas capacidades para objeti-
vos produtivos, no sentido de utilidade para o poder. Mas essa regulação
e governo (no sentido foucaultiano) não estão necessariamente centra-
lizados em qualquer instituição específica, como o Estado, por exemplo.
O que caracteriza a sociedade contemporânea é precisamente o caráter
difuso desses mecanismos de regulação e controle, dispersos que estão
em uma ampla série de instituições e dispositivos da vida cotidiana
(SILVA, 2011, p. 254).
Acreditamos que invés da censura aos professores, deve-se
encorajar ainda mais o debate sobre as concepções políticas, os pre-
conceitos vivenciados por determinados segmentos sociais para que os
alunos possam analisar com profundidade tais temas e não transformar
alguns tópicos do currículo em assuntos tabus.

- 140 -
Os professores brasileiros têm e terão professores socialistas,
liberais, social democratas e conservadores, pois os professores inexora-
velmente têm seus posicionamentos políticos. Mas o Escola sem Partido
trata o estudante como uma tábua rasa, que somente reproduz aquilo
que escuta. Subestimam radicalmente a capacidade de os alunos pen-
sarem por conta própria e desenvolver raciocínios autônomos a partir
de suas experiências na escola, na rua e na família (VASCONCELOS,
2016, p. 81).

FAMILIARES
Um dos principais argumentos do MESP é que a “doutrinação
ideológica” por parte dos professores afronta o artigo 12 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos, que afirma que pais e seus filhos
têm que ter uma educação moral de acordo com suas convicções. Há na
verdade uma deturpação do citado artigo que diz respeito à liberdade
religiosa que deve ser respeitada individualmente. Além do mais os Tra-
tados Internacionais que o Brasil é signatário em termos de erradicação
da violência contra a mulher e a favor dos direitos sexuais e reproduti-
vos não são sequer citados.
A não problematização do preconceito, da discriminação e da
violência direcionada aos grupos não hegemônicos na sociedade devem
ser discutidos nas escolas, pois tais temas estão diretamente relaciona-
dos ao fracasso escolar de muitos estudantes, com implicações graves
em sua família e em sua empregabilidade. Ademais, há uma síntese
ilusória sobre o conceito de família, um significado uno que não cor-
responde à diversidade familiar, pois aprisiona os modos de existência
em termos de heteronormatividade e de família cristã. Em termos de
gênero naturaliza os lugares sociais de homens e mulheres como únicas
representações, e segregam qualquer outra forma de manifestação.
A escola não é extensão da casa dos alunos, os professores
devem ter autonomia para implementar os currículos pensados coleti-
vamente enquanto instituição escolar.
Na prática, ao impor as concepções religiosas, políticas e morais
dos pais e das comunidades, pretende-se retirar a autonomia rela-
tiva das escolas e dos professores na produção de suas propostas
pedagógicas (LDB, art. 12, I; art. 13, I; e art. 15), que, por sua vez é
condição para a construção de ambientes educacionais plurais (XI-
MENES, 2016, p. 56).

- 141 -
A conclusão que Gadotti (2016, p. 153) chega, talvez por seus
idealizadores terem relações com o ensino privado é de que o MESP:
É um movimento em favor da privatização da educação.
Primeiramente se desqualifica a escola pública e, depois, se propõe
“recuperar” essa escola por meio da gestão privada da escola
pública ou por meio dos critérios privados de institutos e fundações
empresariais. O Escola Sem Partido é apenas mais uma tentativa
de destruir a Escola Democrática, a Escola Cidadã, uma conquista
da Constituição de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional 1996.

Essas frentes de ataques à escola pública – às quais se deve


somar a militarização das escolas – estão se fortalecendo mutuamen-
te em torno de um renovado projeto liberal-conservador (XIMENES,
2016, p. 57). Desta forma, o panoptismo imposto pelo MESP se espraia
na judicialização do ato de ensinar, na mesma medida em que recorre à
lei para exercer sua legitimidade e ao parlamento como censor absoluto.

JUDICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E CRIMINALIZA-


ÇÃO DA DOCÊNCIA
A educação pública brasileira tem várias dificuldades, dentre
as mais graves estão os sucessivos cortes de verbas, a não efetivação da
progressão na carreira dos profissionais da educação, não reconheci-
mento das gratificações de pós-graduação, não investimento em forma-
ção continuada do professor, fragilidade da gestão nas redes municipais
e estaduais, evasão escolar, sem falar nos obstáculos ao acesso e à quali-
dade da educação. A historiadora Joana Vasconcelos assevera que a es-
cola pública brasileira vive hoje uma contradição agravada pela herança
escravista:
Temos leis que garantem o direito de todos ao conhecimento por
meio da escola. Porém, nosso sistema educacional público vive em
estado de exceção permanente que nos acostumamos, ingenuamen-
te, a chamar de ‘crise’. Nascida como espaço de encontro entre dife-
rentes classes sociais, no Brasil a escola pública tornou-se o lugar de
socialização dos mais pobres e dos mais negros. As classes médias e
altas, predominantemente brancas, retiram seus filhos da realidade
desagradável da gente comum, e os protegem dentro das escolas par-
ticulares, nas quais provavelmente encontrarão maridos e esposas.
(Grifos da autora VASCONCELOS, 2016, p. 78-79).

Frente a tantos problemas nos perguntamos se a alternativa


seria levar a escola para os tribunais, uma vez que descumprisse as nor-

- 142 -
mas prolatadas pelo MESP? Acreditamos que o diálogo é um princípio
de resolução de conflitos e que o ambiente escolar tem instâncias admi-
nistrativas para dirimir seus impasses.
O MESP estimula uma cultura persecutória dos familiares,
alunos, gestores, técnicos e até mesmo professores contra os professo-
res. A família não é convidada para propor sugestões de melhoria, mas
estimulada a denunciar. As associações de pais e mestres que poderiam
ser potencializadas para o exercício plural e democrático de melhoria
do ensino é invisibilizada, pois o que é ressaltado é a construção de uma
cultura persecutória que tem por base a delação e não o diálogo.
A partir da genealogia da sociedade disciplinar, Foucault
(2014) define quais os recursos utilizados para o bom adestramento. O
autor ressalta que o poder disciplinar não está somente na esfera da re-
pressão, ou da interdição, o poder é mais que isso, ele produz sujeitos. “A
disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que
toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumen-
tos de seu exercício”. (FOUCAULT, 2004, p. 167).
Nesse diapasão, o sucesso do disciplinamento escolar deve-
-se à vigilância hierárquica, à sanção normalizadora e a combinação
de ambas em um procedimento específico: o exame. Assim, a proposta
pedagógica persecutória do MESP estabelece a vigilância hierárquica
institucional e dos familiares que solapa o poder concedido a priori ao
educador. Ademais, todos aqueles que fugirem das prescrições sofre-
rão sanções por desobedecem a norma determinada pelo dispositivo
curricular disciplinar: as normas descritas no cartaz. Tais técnicas de
disciplinamento, tanto a vigilância como a normalização, devem estar
expressas nas provas e nos exercícios escolares, a partir dos saberes que
conduzam a produção de sujeitos dóceis politicamente e uteis econo-
micamente.
Há na página do Escola Sem Partido o ícone de um alto falan-
te onde está escrito “Enviar denúncia”. Ali também se encontra um mo-
delo de notificação extrajudicial que adverte que medidas serão toma-
das para reparar os ‘danos que Vossa Senhoria porventura vier a causar,
no exercício de suas funções se praticar a doutrinação ideológica acima
referida’. De acordo com Reis (2016, p. 120) “Outros movimentos vei-
culam modelo de notificação extrajudicial parecida, diferenciada quase
que unicamente pela referência ao ensino de ‘ideologia de gênero’ no lu-
gar dos exemplos de doutrinação ideológica definidos pelo Escola Sem

- 143 -
Partido”. São esses mecanismos que já vem sedo utilizados e configuram
o professor enquanto inimigo público, forjando a figura do “professor
doutrinador”, uma realidade fabricada pelo panoptismo escolar.
Como tem demonstrado Rifiotis (2012), a “judicialização das
relações sociais” não é fenômeno recente, tampouco circunscrito à pro-
posta do MESP que aqui analisamos. No entanto, nela observamos de
forma evidente e eficaz, mais um dos efeitos de tal judicialização. Como
explica o autor, a expressão tem sido por ele usada “para designar os
processos que se visibilizam através da ampliação da ação do Estado
em áreas de ‘problemas sociais’ como mecanismo de garantia e promo-
ção de direitos” (RIFIOTIS, 2014, p. 02). No caso analisado, notamos
justamente o fortalecimento e espraiamento da intervenção estatal; à
diferença que o mecanismo de garantia de direitos está fundamentado
em uma lógica inversa (e liberal) segundo a qual o direito de uns deve
prevalecer sobre os de outros.

OS PARTIDOS DA ESCOLA SEM PARTIDO


Descritos os mecanismos pelos quais operam o panoptismo
escolar, resta ainda um questionamento pertinente: se o MESP defende
projetos de leis, qual ou quais partidos têm impulsionado sua aprova-
ção? De acordo com informações coletadas na página do MESP, cen-
tenas de candidatos e candidatas se comprometeram publicamente em
apoiar a proposta do Movimento. Para ratificar esse comprometimento
foi criado o “Compromisso Político Público”, no qual as pessoas interes-
sadas firmavam nome, partido e cargo disputado, seguido pelo texto:
Assumo publicamente o compromisso de, sendo eleito, apoiar com
meu voto projeto de lei contra o uso das escolas e universidades
para fins de propaganda ideológica, política e partidária, nos mol-
des da proposta elaborada pelo Movimento Escola Sem Partido.

Dos 128 candidatos que firmaram o compromisso, 36 foram


eleitos. A partir das 128 adesões ao “Compromisso Político Público”
de votar favorável aos projetos de lei do MESP, podemos responder ao
questionamento anterior. O Partido Social Liberal (PSL), partido do
presidente eleito, possui 32,4% do total de apoiadores. O segundo par-
tido com mais adesões foi o Partido Novo (NOVO) com 18 assinaturas
que correspondem a 14% do total de compromissos.
A despeito da neutralidade e do apartidarismo reivindicado
por defensores do Movimento Escola Sem Partido, sua proposta legisla-

- 144 -
tiva tem sido assumida por partidos políticos de centro e de direita – no
espectro da política partidária brasileira – e por parlamentares de estrei-
ta relação com aqueles movimentos antiesquerda antes mencionados,
o que sugere caminhos interpretativos intrigantes para compreender a
oposição do MESP a conteúdos considerados de esquerda ou comunis-
tas, ou à suposta “doutrinação ideológica”.

Tabela 01 - Partidos que assinaram o “Compromisso Político Público” do


MESP
PARTIDO APOIADORES
Partido Social Liberal (PSL) 59
Partido Novo (NOVO) 18
Partido Renovador Trabalhista Brasileiro (PRTB) 06
Democratas (DEM) 06
Patriota (PATRI) 05
Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) 05
Partido da República (PR) 04
Partido Social Cristão (PSC) 04
Avante (AVANTE) 04
Progressistas (PP) 03
Partido Republicano Progressista (PRP) 03
Partido Social Democrático (PSD) 03
Solidariedade (SOLIDARIEDADE) 02
Democracia Cristã (DC) 01
Movimento Democrático Brasileiro (MDB) 01
Partido Popular Socialista (PPS) 01
Partido Republicano Brasileiro (PRB) 01
Partido Trabalhista Cristão (PTC) 01
Partido Verde (PV) 01
TOTAL 128
Fonte: Elaborada pelos autores.

Na composição partidária da Câmara Federal para a legisla-


tura 2019-2022 temos a ampliação da representatividade de 28 para 30
partidos. O Partido dos Trabalhadores (PT) – principal inimigo da cam-
panha antiesquerda no Brasil – teve sua bancada reduzida de 69 para 56,

- 145 -
enquanto o Partido Social Liberal (PSL) ampliou seus representantes de
01 para 52 deputados federais. No último pleito, os maiores derrotados
foram o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e o (PSDB) cujos
quadro foram reduzidos. No entanto, no Senado Federal, composto por
81 parlamentares, esses dois últimos partidos conquistaram as maiores
bancadas, como demonstram os gráficos abaixo (figuras 02 e 03).

Figura 02 - Número de Deputados Federais por partido (Legislatura

2019-2022)

Fonte: Elaborado pelos autores.

Gráfico 03 - Número de Senadores por partido (Legislatura 2019-2022)

Fonte: Elaborado pelos autores.

- 146 -
Uma dedução possível – confirmada no primeiro semestre da
legislatura – é a de que as maiores bancadas da Câmara dos Deputados,
bem como as maiores bancadas do Senado apoiariam os projetos de lei
do MESP que pautarão a matéria nos anos seguintes.
Em face de tal contradição, nos resta questionar se a melhor
saída frente à alegada “doutrinação” é a interdição do debate. Afinal,
estariam os defensores do MESP sendo tão “doutrinadores” quanto os
seus opositores? Na verdade, essa contradição revela a impossibilidade
da neutralidade e explicita o autoritarismo da censura a determinados
temas do currículo, como a sexualidade e a equidade de gênero.
Como atestam uma série de legislações, a educação escolar
não pode ser neutra. É o que afirma o art. 205 da Constituição e tantas
outras normas e tratados internacionais como Declaração Universal dos
Direitos Humanos (artigo 26 § 2º); a Convenção relativa à luta contra
a Discriminação no Campo de Ensino (artigo 5º ‘a’); o Pacto Interna-
cional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 13º); a Con-
venção contra a discriminação Racial (artigo 7º); a Convenção sobre
os Direitos da Mulher (artigo 1º) e a Convenção sobre os Direitos da
Criança (artigo 29 § 1º ‘d’)” (XIMENES, 2016, p. 53).
Em face de críticas como essas, o MESP teve que reinventar-
-se discursivamente, passando de maneira sagaz a defender uma educa-
ção mais pluralista, ainda que o projeto de lei original – atualmente ar-
quivado – não tenha sofrido alterações no mesmo sentido. Afinal, como
defende Cara (2016, p.45), “sob o véu da pluralidade declarada, o que se
observa é a promoção de um perigoso dogmatismo conservador”.
A censura dos conteúdos curriculares, a suposta neutralidade
e a homogeneização das práticas escolares silenciam diferentes vozes
dos sujeitos da educação e introduz ou restitui um modelo de ensino
que restringe as possibilidades – sobretudo das pessoas mais pobres – de
conhecer e pensar além dos saberes técnicos e profissionalizantes. Esses
últimos – quando isolados ou fim único do processo de ensino-apren-
dizagem – visam exclusivamente o mercado e a produção nefasta de
trabalhadores. A ampliação das formas de pensar e de conhecer prepara
pessoas para a vida e para a cidadania, o que não está necessariamente
dissociado da capacitação técnica (de qualidade) para o exercício pro-
fissional (com dignidade).

- 147 -
ONDE HÁ PODER, HÁ RESISTÊNCIA
Na minuta para projetos de lei fornecida pelo MESP (incluída
em muitos dos projetos de lei antes mencionados neste artigo), obser-
vamos a mesma retórica de preocupação com a proteção das crianças
e a salvaguarda da família, ameaçadas por professores que disseminam
um suposto conteúdo feminista, radical e neomarxista que contesta a
maternidade, a família e incentiva a sexualização infantil:
É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se
utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão
dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e
para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta
moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que
lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis.

Essa retórica, como demonstramos, advém de livros e docu-


mentos católicos – como os que analisamos na primeira seção de nosso
artigo –, mas também é produzida pela incorporação e atualização de
seus conteúdo por uma hermenêutica evangélica, habilmente mobiliza-
da por parlamentares brasileiros, como é possível observar no teor dos
projetos de lei que tramitam por todo o Brasil; em discursos parlamen-
tares (como os analisados por LUNA, 2017); ou mesmo no discurso do
presidenciável citado em nossa epígrafe.
A persistente atuação da Frente Parlamentar Evangélica na
censura dos parâmetros que regem a educação pública brasileira; a
enxurrada legislativa para banir a perspectiva de gênero – intencional-
mente convertida na famigerada “ideologia de gênero” –; o lobby políti-
co para impor o programa Escola Sem Partido nos três níveis do estado
brasileiro; a numerosa e assídua participação de ativistas religiosos (ca-
tólicos e evangélicos) nas seções e audiências públicas para a discussão
de proposições legislativas atinentes à educação são apenas alguns dos
fatores que – como descrevemos anteriormente – demonstram dois as-
pectos. Primeiro, como o Poder Legislativo se constituiu, nos últimos
anos, lugar privilegiado para enfrentamentos, disputas, negociações,
legitimação e legalização do reconhecimento ou rechaço de direitos se-
xuais e morais religiosas, principalmente na educação pública. Segun-
do, evidenciam como o parlamento se constitui importante ator nesse
campo para onde, antes, já se direcionavam muitas das lutas feministas e
LGBT por reconhecimento de direitos nas últimas décadas (MELO DA
CUNHA & CANDOTTI, 2017, p. 06).

- 148 -
A compreensão dessa dinâmica e da atuação de forças de re-
sistência internas ao dispositivo aqui analisado, nos ajuda a compreen-
der esses acontecimentos desde a abordagem foucaultiana. Como bem
afirmou Foucault “onde há poder, há resistência”. Nesse sentido, tan-
to podemos analisar a emergência dessas frentes conservadoras como
resistência aos avanços no reconhecimento dos direitos sexuais, com-
preendendo-as na dinâmica interna dos dispositivos que as engendram,
como podemos reconhecer outras formas de resistência, aquelas que
se empenham em conter o conservadorismo manifesto na atuação das
frentes analisadas.
Em todos os processos aqui analisados, da sanção do PNE até
a aprovação da BNCC, passando por todos os intentos legislativos de
coibir a perspectiva de gênero e impor a censura escolar, notamos tam-
bém a existência de massivas manifestações populares; a apropriação
didática da linguagem das redes sociais; a formação de associações de
professores em defesa da autonomia profissional; a produção de vídeos
orientando professores a se defender frente a censura, ameaça e difama-
ção; a emissão de pareceres judiciais atestando a inconstitucionalidade
de leis de censura.
Para oferecer exemplos mais concretos, recentemente, foi
produzido um Manual de defesa contra a censura nas Escolas elaborado
por mais de 60 organizações de defesa da educação e dos direitos huma-
nos com apoio da Fundação Malala, Procuradoria Federal dos Direitos
do Cidadão (PFDC) e do Ministério Público Federal (MPF). E isso nos
remete a compreender a resistência como parte das relações de saber-
-poder, tal como concebia Foucault:
As relações de poder suscitam necessariamente, reclamam a cada
instante, abrem a possibilidade de uma resistência; porque há pos-
sibilidade de resistência e resistência real, o poder daquele que do-
mina trata de manter-se com tanto mais força, tanto mais astúcia
quanto a resistência (FOUCAULT, 1994, p. 387).

A homogeneização e a naturalização devem ser criticadas, a


escola não deve ocultar suas divergências. Ao contrário, o debate plural
e democrático deve ser estimulado. Não pode haver censura sobre as-
suntos relevantes à compreensão de nossa sociedade, de seus desafios,
diversidade, conflitos e dificuldades.
A escola, como parte do mundo, reflete sua sociedade e, por-
tanto, encontra-se atravessada por várias ideologias, moralidades, po-

- 149 -
sicionamentos políticos e formas de conhecimento, científicas ou não.
A limitação da liberdade pelo interdito de políticas educacionais que
reconheçam e respeitem a diversidade de gênero e que favoreçam a for-
mação cidadã prejudicará sobremaneira a formação de estudantes e, em
última instância, estacionará a compreensão desses estudantes sobre si
mesmos, sobre a sociedade da qual participam e do Brasil enquanto na-
ção diversa e plural.
Os objetivos educacionais públicos de justiça social e equida-
de devem ser praticados por todos, não apenas pela educação formal,
mas pelo Estado, pelo conjunto da sociedade e pela família. Projetos
de lei como os propostos pelo Movimento Escola Sem Partido e pelos
atores contrários à “ideologia de gênero” contribuem para o fortaleci-
mento do radicalismo e da incapacidade de diálogo em favor de uma
escola tecnocrata, conservadora e da imposição de um currículo e uma
pedagogia persecutória, mantida pela vigilância perene de professores.

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VIDAS CONTADAS, ENVELHECIMENTO,
GÊNERO E EDUCAÇÃO: MEMÓRIAS DE IDOSAS
DO SESC-DEODORO EM SÃO LUÍS/MA
Thayza Wanessa Silva Souza Felipe86
Rarielle Rodrigues Lima87

RESUMO: Este estudo buscou registrar recordações de experiências vividas por


idosas participantes do Trabalho Social com Idosos desenvolvido pelo SESC Deo-
doro, em São Luís – MA. Através dos relatos foi permitido compreender os aconte-
cimentos por elas vividos e como estas mulheres ressignificaram suas experiências
a partir da sua inserção no trabalho educativo e de convivência do SESC Deodoro.
A pesquisa foi constituída com dez mulheres, com idade a partir de 60 anos. Por
meio de entrevistas semiestruturadas individuais e focais foi permitido que elas
narrassem trechos de suas histórias de vida, como pensam, se comportam, expe-
riências relacionadas aos seus corpos e às diferentes relações que possuem. Para as
entrevistadas a atual fase em que vivem é um momento de liberdade que não pôde
ser vivenciado quando mais jovens. O núcleo familiar rememorado é constituído a
partir de um modelo hierárquico assentado na distribuição desigual de poder. Foi
possível constatar o processo de construção social de gênero a partir de discursos
que definem e orientam os comportamentos tidos como adequados para as mulhe-
res. No entanto, foi revelada uma mudança de comportamento das idosas, o que está
relacionado com os discursos de especialistas que atuam como atores no processo
de educação de uma nova velhice.
Palavras-chave: Envelhecimento. Gênero. Trabalho Social com Ido-
sos. Educação.

INTRODUÇÃO
A parcela mais velha da população tem crescido de forma
acelerada em diversos países e a demografia vem registrando esse cres-
cimento populacional também no Brasil. No ano de 2014 o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) já apontava que nosso país
possui mais de 26 milhões de pessoas com idade a partir de 60 anos, o
que representa 13% da população brasileira (IBGE, 2014).
Diante de tais mudanças, a Organização das Nações Unidas
(ONU) inseriu o tema nas agendas de suas Assembleias Mundiais com a
86 Mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Dou-
toranda em Educação pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), professora na Facul-
dade La Salle – Manaus. thayzawanessa@hotmail.com.
87 Mestra em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Dou-
toranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Professora da
Rede Estadual de Ensino (SEDUC/MA), Coordenadora do Laboratório Interdisciplinar de Es-
tudos e Pesquisas Pedagógicas (LIEPP). rariellerodrigues@gmail.com.

- 155 -
intenção de convencer e estimular os Estados a se dedicarem a essa nova
problemática social. No entanto, deve aqui ser destacado que os princí-
pios de classificação utilizados em nossa sociedade, até mesmo os que
nos parecem como “naturais”, como o sexo ou a idade, são na verdade
construções sociais. Características físicas ou especificidades biológicas
são usadas como critérios para classificação social dos sujeitos.
Guita Debert (1998) afirma que o curso da vida foi institu-
cionalizado e possui a idade cronológica como elementar para a orga-
nização social. Estágios foram criados, separados e organizados através
da idade cronológica. Tal institucionalização pode ser reconhecida na
organização do sistema produtivo, nas instituições educativas, no mer-
cado de consumo, assim como nas políticas públicas empreendidas pelo
Estado.
Debert (1998) aponta que os primeiros discursos sobre a ve-
lhice pertenciam ao campo médico. Nele, o envelhecimento era tratado
como desgaste fisiológico que demandava medidas de higiene corpo-
ral. Só mais tarde, com as políticas de aposentadoria e problemas fi-
nanceiros, que diferentes especialistas, como gerontólogos e psicólogos,
passaram a analisar o envelhecimento populacional e a estabelecer as
necessidades dos idosos.
Ainda segundo Debert (1997b), houve uma inversão na re-
presentação da velhice. Essa fase da vida passou a ter novos significa-
dos, o que proporcionou que novos espaços fossem criados para que o
envelhecimento pudesse ser vivido de forma agradável e coletivamente.
Sendo assim, as novas categorias, idoso e terceira idade, foram legitima-
das, dando início a novas formas de se viver essa fase da vida.
Atualmente, várias instituições e especialistas utilizam dessa
nova designação e identidade para orientar ações e programas voltados
para o público mais velho, como aulas de dança, ginástica, informática,
universidades, etc. Tal estratégia, como uma nova maneira de se viver
o envelhecimento, é encontrada no Trabalho Social com Idosos (TSI)
realizado pelo Serviço Social do Comércio (SESC).
Em seu discurso oficial, o SESC afirma que as ações do TSI
estão voltadas para os interesses dos idosos atendidos. A integralidade
do participante é trabalhada através de projetos que atendem às diver-
sas dimensões do envelhecimento, buscando relações intergeracionais,
o envelhecimento ativo e o protagonismo do idoso, para que a exclusão
social na velhice seja enfrentada (SESC, 2011).

- 156 -
Partindo da compreensão de que o envelhecimento é uma
construção política e histórica, é possível entender que tais ações pos-
sibilitam que os próprios sujeitos envolvidos ressignifiquem suas expe-
riências. Nesse sentido, o entendimento sobre o envelhecer deve levar
em consideração semelhanças e diferenças no percurso de vida de cada
pessoa, suas particularidades, suas relações sociais construídas, além
das mudanças e permanências nas reconfigurações de identidades.
No presente estudo, resultado de uma dissertação de Mestra-
do em Cultura e Sociedade88, serão apresentadas narrativas oriundas de
lembranças, modos de ser e de pensar de Agatha, Inês, Bárbara, Rita,
Clara, Helena, Luzia, Marta, Isabel e Mônica89. Buscamos registrar re-
cordações de experiências por elas vividas, entendendo que a memória é
um recurso apropriado para compreender a sociedade como produtora
e reprodutora de significados.

PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa foi constituída com dez mulheres, com idade a
partir de 60 anos de idade, que participavam das atividades disponibili-
zadas pelo Trabalho Social com Idosos do SESC Deodoro, na cidade de
São Luís – MA, que assinaram o termo de consentimento livre e escla-
recido. Através de entrevistas semiestruturadas, buscou-se relatos que
permitissem compreender acontecimentos por elas vividos e como estas
mulheres ressignificaram suas experiências através de discursos que fa-
zem parte do trabalho educativo desenvolvido pela instituição.
Trabalhar com relatos de experiências comprovou como esses
depoimentos estão repletos de significações sociais e processos históri-
cos. Concordando com Sanches e Minayo (1993), em relação à aborda-
gem qualitativa, foi preciso aprofundar-se na complexidade de fatos e
processos específicos a certos indivíduos. Como afirma Chizotti (1991),
em um estudo qualitativo, o pesquisador precisa mergulhar nos senti-
dos e emoções do grupo em análise; reconhecer os atores como sujeitos;
e aceitar que a fala e os momentos de silêncio são importantes.
O primeiro contato foi feito com a coordenadora do TSI, para
explicação dos objetivos da pesquisa e os procedimentos que seriam

88 Programa de pós-graduação da Universidade Federal do Maranhão.


89 Os nomes das senhoras, utilizados no presente trabalho, são fictícios, decisão tomada
conjuntamente para que o sigilo fosse mantido. A escolha foi por nomes de santas, devido ao
forte viés católico do grupo Trabalho Social com Idosos do SESC Deodoro (São Luís/MA) e
das entrevistadas participantes da pesquisa.

- 157 -
empregados. Um pedido formal teve que ser encaminhado à Secretaria
Geral do SESC, solicitando uma autorização para a realização da pes-
quisa junto ao grupo. Somente após a resposta direcionada ao Programa
de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFMA é que a pesquisa
pôde ser iniciada.
A primeira técnica utilizada nas visitas ao grupo TSI foi a ob-
servação sistemática. Foram sendo registradas as primeiras impressões
à medida que as atividades iam se desenrolando. De acordo com Alva-
rez (1991), a observação é um instrumento de pesquisa e coleta de da-
dos que permite informar o que ocorre na situação real. O intuito da ob-
servação foi ter um conhecimento inicial do grupo, seu funcionamento,
quem são os participantes, seus hábitos, entre outras características.
Construídas algumas das informações iniciais, fazia-se neces-
sário ouvir as idosas integrantes do grupo. Segundo Tim May (2004, p.
145), entrevistas bem orientadas “geram compreensões ricas das biogra-
fias, experiências, opiniões, valores, aspirações, atitudes e sentimentos
das pessoas”.
Neste estudo foram utilizadas duas formas de entrevistas defi-
nidas por May (2004) como semiestruturadas e em grupo. Na entrevista
semiestruturada as idosas construíram suas narrativas e/ou relatos den-
tro de sua concepção da experiência da velhice e as relações nas quais
estão inseridas com familiares, amigos, companheiros de grupo, etc. Foi
através do trabalho de rememoração que as idosas elegeram passagens
de suas vidas em que foi possível perceber a maneira como pensam, se
comportam e suas atuais visões de mundo.
Deve ser salientado que as lembranças rememoradas pelas
idosas estão sob influência do atual momento que cada uma delas vive,
pois, no ato de rememorar, a memória é uma construção. O passado
das senhoras entrevistadas não chegou ao presente exatamente como foi
vivido por elas. Como compreende Maurice Halbwachs (2004), a lem-
brança é em larga medida uma reconstrução que fazemos do passado,
mas com a ajuda de dados do presente.
O trabalho com lembranças e rememorações deve atenção
também ao fenômeno do esquecimento. Sigmund Freud (1901) adverte
que o esquecimento nos direciona para motivações que estão em nosso
inconsciente. Para o autor, o mecanismo do esquecimento é uma inter-
ferência em nosso ato de reproduzir impressões, nomes ou aconteci-
mentos. Essa interferência ocorre propositadamente para que lembran-
ças desagradáveis não sejam manifestadas.

- 158 -
Através dessa compreensão, Freud (1901) destaca que a me-
mória humana possui uma natureza tendenciosa, levando em conside-
ração que selecionamos os acontecimentos e as impressões que serão
relatados. Assim, não existe garantia de que as lembranças rememora-
das pelas idosas estão exatamente da mesma forma como foram vividas.
Como o autor parte do princípio de que a lembrança é uma reconstru-
ção de fatos vividos, estando eles relacionados com informações do pre-
sente, essas imagens construídas podem estar incompletas, modificadas
ou ter tido seu lugar alterado no tempo e no espaço.
Após algumas interlocuções individuais foi utilizado outro
recurso técnico para o aprofundamento de algumas questões, a entre-
vista em grupo, já conhecida como grupo focal. Utilizando como pres-
suposto o pensamento de Tim May (2004), o número de participantes
foi composto de 10 mulheres idosas que, guiadas pela pesquisadora,
discutiram os tópicos em pauta, mediante estímulos apropriados para o
debate, como uma música ou alguma atividade.
Essa técnica também proporcionou a interação grupal, trans-
formando o momento em descontração, em que as participantes res-
ponderam de forma mais intensa e espontânea algumas questões. Foi
permitida a revelação do ponto de vista de cada uma, mas também foi
possível examinar as diferentes análises particulares em relação a certos
temas e, ainda, compreender como as diversas experiências são articu-
ladas, confrontadas, alteradas ou censuradas entre elas.
Segundo Iervolino e Pelicioni (2001), a maior riqueza da co-
leta de dados através do grupo focal é basear-se na tendência humana
de formar opiniões na interação com outros indivíduos. Nesse sentido,
o indivíduo é convocado a emitir opiniões sobre assuntos que talvez
nunca tenha pensado anteriormente. Ele permitiu que singularidades,
semelhanças e diferenças fossem reveladas na complexidade das expe-
riências, das expressões e dos sentimentos dessas idosas.

O SESC E O TRABALHO SOCIAL COM IDOSOS


O SESC foi criado no dia 13 de setembro de 1946 como resul-
tado da ação de empresários e organizações sindicais, através do Decre-
to-lei nº 9.853. Em documentos oficiais, a entidade propõe-se a atender
às necessidades sociais mais urgentes da sua clientela específica: os ope-
rários do comércio e da indústria e seus dependentes. Tais necessidades
foram reconhecidas e, em nome de uma harmonia social e do desen-

- 159 -
volvimento econômico, buscou-se não apenas uma transformação, mas
também um aprimoramento cultural e profissional mediante uma obra
disciplinar com a classe trabalhadora.
O serviço social do SESC, de forma geral, implanta suas ati-
vidades pelo viés da educação, de modo que o perfil assistencialista seja
superado e que seja possível, de fato, disciplinar os hábitos dos seus par-
ticipantes. Tal proposição pode ser vista no documento Diretrizes Gerais
do SESC (2010), que estabelece que a instituição possui como um dos
seus objetivos: fortalecer, por meio de ações educativas, a capacidade
dos indivíduos para buscarem, eles mesmos, melhorar suas condições
de vida (SESC, 2010).
O trabalho desenvolvido pelo SESC é voltado para uma clien-
tela específica, mas contém exceções. Inicialmente é direcionado para
comerciários que estiverem exercendo atividades em empresas ou enti-
dades enquadradas nos planos da Confederação Nacional do Comércio,
ou vinculados à Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comér-
cio, sendo contribuintes do SESC. Desta forma, são beneficiários: o co-
merciário e seus dependentes; os servidores e os estagiários do SESC e
SENAC; os empregados de entidades sindicais do comércio e dos co-
merciários e seus dependentes, em atividade ou aposentados (SESC,
2010). Além desses, podem ser admitidos outros usuários que não se
enquadram nas citadas exigências, como nos serviços e atividades es-
tendidos à comunidade e que atendem a um grande número de pessoas.
Junto à sua clientela, o SESC desenvolve atividades como edu-
cação infantil, fundamental e complementar; cursos de valorização so-
cial; restaurantes; assistência odontológica; bibliotecas; desenvolvimen-
to artístico e cultural; atividades esportivas; turismo social; trabalho
com grupos; ações comunitárias, entre outras. Todas elas fazem parte
de quatro campos prioritários: saúde, cultura, lazer e educação.
No tocante à Educação, a ênfase recai sobre a necessidade de
que os serviços prestados tenham um caráter educativo que permita
o enriquecimento espiritual dos indivíduos, contribuindo para que se
tornem agentes conscientes do processo de desenvolvimento político,
econômico e social brasileiro. Assim, a educação apresenta-se como o
processo social por excelência, para tornar os indivíduos eficientes no
seu autodesenvolvimento e capazes de produzirem respostas às suas ne-
cessidades e às de seus familiares (SESC, 2010).
Quanto ao atendimento específico para idosos, de acordo
com Carvalho (2007), muitos idosos, antigos trabalhadores do comér-

- 160 -
cio e da indústria, frequentavam a Unidade Operacional do SESC Car-
mo em São Paulo, na década de 1960. Esta presença estava relacionada
com a busca da ocupação do tempo livre, pois esse grupo etário não
era o segmento da clientela do SESC, nem os serviços oferecidos pela
instituição buscavam atender indivíduos com idade a partir de 60 anos.
Entretanto, o número de aposentados nas dependências da entidade foi
aumentando até ser transformado em um espaço de convívio entre eles.
Como essa maciça presença de idosos manifestava uma de-
manda de programas que também atendessem este público dentro da
instituição; agentes do SESC, no ano de 1962, fizeram uma visita aos
Estados Unidos com o objetivo de conhecer as propostas dos centros
sociais para os idosos que lá já existiam.
Em 1963, utilizando a metodologia aplicada nos centros ame-
ricanos, foi apresentada uma proposta para que o SESC ofertasse aten-
dimento aos aposentados; assim o trabalho foi iniciado na Unidade do
SESC Carmo, em São Paulo. Tal iniciativa é considerada como um dos
programas sociais pioneiros no continente latino-americano na organi-
zação de programas socioeducativos e culturais voltados ao atendimen-
to aos idosos (SESC. DR SP, 1999).
As primeiras ações desenvolvidas possuíam uma programa-
ção voltada para o lazer. Apenas no ano de 1970 é que o trabalho no
grupo passaria por um processo de reorganização, em que é possível
perceber, através do discurso da instituição, novamente a preocupação
com os padrões comportamentais e sua busca para educar e disciplinar
os idosos, definindo a partir do pioneirismo as características do Traba-
lho Social com Idosos – TSI.
A partir de 1970, o técnico Marcelo Antonio Salgado reorganizou e
sistematizou as ações da atividade Trabalho Social com Idosos, pos-
sibilitando assim o crescimento significativo de grupos e número de
novos integrantes, além da diversificação e da qualidade dos pro-
gramas. Esta ação deu maior visibilidade ao tipo de serviço social e,
principalmente, à forma eficiente e educativa do SESC encaminhar
o processo de convivência grupal do idoso e o seu envolvimento
comunitário; trabalho que auxilia o idoso a redimensionar sua vida,
através da ocupação do tempo livre com práticas e relações saudá-
veis. (SESC. DR. SP, 1999, p. 6).

Na década de 1970, o trabalho desenvolvido pelo SESC é


reconhecido e o programa foi ampliando para que outros grupos sur-
gissem pelo Brasil. No SESC Maranhão, a criação do primeiro Grupo

- 161 -
de Convivência de idosos aconteceu em 1989, no SESC Deodoro, com
66 participantes. Seguindo a mesma perspectiva das outras unidades, o
programa propunha atender aos comerciários e usuários de ambos os
sexos, com idades a partir de 50 anos90, apresentando como objetivos: ti-
rar o idoso do isolamento, ser uma possibilidade de socialização fora do
âmbito familiar, buscar uma melhoria na saúde, na autonomia e na au-
toestima do idoso, além de proporcionar um espaço no qual as pessoas,
na velhice, tenham oportunidade de interagir, socializar, ter momentos
de novas aprendizagens e comemorações, encontrar interesses em co-
mum, convivendo com outras pessoas na mesma faixa etária e, desta
forma, reconstruir novos papéis e identidades (DRUMOND, 2004).
Com a mesma proposta, ainda foram criados mais dois gru-
pos no estado do Maranhão: um no SESC Caxias, na cidade de Caxias,
no ano de 1990, e o terceiro em 1998, no SESC Turismo também na
cidade de São Luís.
Debert (2012, p. 159) compreende que o fato de se inscreve-
rem em um programa como o TSI “é para eles [os idosos] a prova de
que a experiência de envelhecimento está sendo recodificada por um
número grande de pessoas – pessoas de mais idade e experts no enve-
lhecimento”. Isto é, mostra que os participantes utilizam dos discursos
empreendidos no TSI, da possibilidade que estão tendo, para vivenciar a
experiência de reconstruir o envelhecer. Nele, os sujeitos podem ressig-
nificar suas experiências vividas, como veremos a partir das narrativas
de idosas participantes do TSI do SESC Deodoro, em São Luís.

CONSTRUÇÕES SOBRE O ENVELHECIMENTO


Partindo da compreensão que a categoria velhice é uma cons-
trução, assistimos à velhice emergir como objeto político de gestão da
vida, mas com novas configurações dos modos de gestão específicos do
envelhecimento. Tal fato está relacionado, segundo Debert (2012), com
a criação de uma série de etapas intermediárias no interior da vida adul-
ta, como a “terceira idade” ou “meia-idade”. Acompanhadas dessa mu-
dança estão novas linguagens sobre o envelhecimento, em que a idade
não é mais um marcador de comportamentos, hábitos e estilos de vida.
A autora acredita que essas mudanças apontam transforma-
ções na maneira como a vida passa a ser periodizada, mas, acima de
tudo, os novos padrões de envelhecimento redefinem formas de consu-
90 Hoje, a matrícula no TSI do SESC segue a definição da Lei no 10.741, de 1º de outubro de
2003, que define como idoso a pessoa com idade igual ou superior a 60 anos.

- 162 -
mo e o perfil das demandas políticas relacionadas com a aposentadoria
e o envelhecimento:
Uma parafernália de receitas envolvendo técnicas de manutenção
corporal, comidas saudáveis, medicamentos, bailes e outras formas
de lazer é proposta, desestabilizando expectativas e imagens tradi-
cionais associadas a homens e mulheres em estágios mais avançados
da vida. Meia idade, terceira idade, aposentadoria ativa não são in-
terlúdios maduros entre a idade adulta e a velhice; indicam, antes,
estágios propícios para a satisfação pessoal, o prazer, a realização de
sonhos adiados em outras etapas da vida (DEBERT, 1997a, p. 04).

Medidas públicas e assistenciais passam a ser dirigidas à po-


pulação idosa com o objetivo de otimizar a antiga figura estigmatizada
do velho. As ações implementadas promovem uma nova imagem a par-
tir de ações preventivas e da divulgação de uma imagem positiva do cor-
po envelhecido. A gestão dessa nova figura social é feita principalmente
por meio da divulgação do que Laslett (1987) compreende ser outros
lugares sociais, como os grupos de convivência.
De acordo com Debert (2012, p. 62), esses novos lugares so-
ciais e seus respectivos discursos são como “formas de criação de uma
sociabilidade mais gratificante entre os mais velhos”. Essas associações
para os idosos, presentes hoje em quase todas as cidades brasileiras, são
os principais meios propagadores da imagem do envelhecimento ativo
e saudável, sendo expressas principalmente pelas atividades oferecidas,
como dança, canto, bailes, viagens, entre outras.
No entanto, seria ilusório acreditar que essas mudanças acon-
tecem por acaso. Mais uma vez essas transformações ocorrem pelo viés
discursivo e são acompanhadas pela criação de uma nova linguagem
que se opõe a antigos tratamentos direcionados aos idosos, buscando
ensinar que um novo estilo de vida específico independe da idade bio-
lógica.
Embora se observe a proliferação dos grupos de convivência
para a terceira idade, uma análise crítica deve ser dirigida a esses pro-
gramas. Um aspecto importante a ser questionado é o poder de indução
comportamental. Como esses programas são o principal meio propaga-
dor da nova imagem do envelhecimento ativo, eles acabam não apenas
reproduzindo, mas manipulando atitudes e visões de mundo.
Como compreende Teixeira (2007), é em nome desses novos
valores, que se enfatizam as funções do lazer, base de onde emergem

- 163 -
os objetivos buscados nesses programas para a terceira idade. E é nesta
direção que caminham os grupos de convivência. Pautados na ideia de
uma nova ocupação do tempo livre da população idosa, busca-se uma
maneira de “ensinar” a envelhecer ou até mesmo como não envelhecer,
através de suas recomendações.

MULHERES ATIVAS, MEMÓRIAS GUARDADAS: O


PROCESSO DE ENVELHECIMENTO E O TSI
Em nosso cotidiano nos deparamos com uma pluralidade de
sujeitos, homens e mulheres, classificados como velhos ou idosos, mas
que por infinitas razões não estão inseridos em grupos de convivência.
Alguns vivem com a família ou sozinhos, outros se encontram aban-
donados, em instituições asilares, uns estão saudáveis ou em hospitais,
além daqueles que possuem todas as condições possíveis, mas preferem
não frequentar os lugares voltados para atividades com idosos. Assim,
fica claro que o envelhecimento não é apenas o resultado de um estilo de
vida ocasionado com a chegada dos 60 anos, mas é um processo com-
plexo, ligado a mudanças no aspecto biológico, assim como relacionado
a outros fatores.
O principal elemento que se destacou na configuração do TSI
Deodoro foi a predominante participação de mulheres. Nas atividades
fixas desenvolvidas pelo grupo o número de mulheres participantes era
de 100% no total. Apenas em algumas reuniões, que são utilizadas para
debater alguma temática, e era permitida a participação de idosos de
outros grupos de convivência, que foi constatada a participação de, no
máximo, dois homens durante meses em observação, o que nos levou a
visibilizar questões sobre gênero e envelhecimento.
Primeiramente, a predominante participação de mulheres
nos grupos de convivência para idosos pode ser explicada pelo viés
demográfico. As Nações Unidas, no documento Population ageing and
sustainable development, enfatizou que a população mais velha é e con-
tinuará a ser predominantemente do sexo feminino. Mundialmente as
mulheres estão vivendo uma média de 4,5 anos a mais do que os ho-
mens, representando 54% das pessoas com 60 anos (UN, 2014).
No Brasil também ficou evidente que quanto mais velho o
contingente idoso, maior é a proporção de mulheres. Carvalho e Wong
(2008) observaram que, no ano 2000, para cada 100 mulheres idosas
havia 81 homens idosos. Já Ana Amélia Camarano (2005) prevê que no

- 164 -
ano de 2050, para cada 100 mulheres idosas com idade a partir de 80
anos, deverão existir apenas 61 homens.
Sobre essa diferença entre o quantitativo de homens e mulhe-
res dentro do grupo dos idosos, Ana Maria Goldani (1999) afirma que a
desproporção está relacionada com as taxas de mortalidade masculina.
Para a autora, as hipóteses explicativas para o fato de os homens mor-
rerem mais cedo incluem diferenças sociais, estilos de vida, comporta-
mento e ocupação, o que comprovaria que as mulheres vivem mais.
Embora as análises demográficas apontarem para um maior
número de mulheres dentro do grupo etário de idosos, tais informações
não são determinantes no que se refere a maior presença de mulheres
em grupos de convivência. Nesse caso, outras motivações devem ser
consideradas.
As idosas entrevistadas mostram diferentes motivos para que
a participação no TSI fosse iniciada. Algumas buscaram simplesmente
ocupar o tempo livre proporcionado pela aposentadoria, outras procu-
ravam um lugar para fazer novas amizades e se distrair, também houve
as que tinham certa rejeição para essas atividades e demoraram a acei-
tar o convite de amigos e familiares. Além destas, ainda existem as que
buscaram participar do grupo para esquecer o sofrimento causado pela
morte do marido. Assim, seus relatos mostram o TSI como um espaço
para novos relacionamentos e experiências benéficas e satisfatórias em
suas vidas.
Quando meu marido morreu há 11 anos atrás eu fiquei doente, so-
zinha em uma casa que tinha cinco quartos [...]. Eu não sabia nem o
que fazer. Quando ele tava vivo, mesmo com os nossos problemas, a
gente saía todo sábado, íamos para seresta, dançávamos até 3 horas
da madrugada, saía de lá e ia comer peixada na praia. Quando ele
morreu tudo isso acabou. Aí um belo dia meu filho que era comer-
ciário disse que aqui no SESC tinha um grupo para terceira idade e
perguntou se eu queria participar. Ele disse que aqui eu podia fazer
dança, atividades físicas, passear, viajar, almoçar, e me mandou vir.
Eu era abatida, abatida. Quando eu cheguei aqui fui logo fazer dan-
ça de salão, fui me envolvendo com as pessoas. Mas, se eu te disser,
isso aqui foi o que mudou a minha vida. (Marta)

Trabalhei muito desde cedo e quando me aposentei eu não conse-


guia ficar em casa o tempo todo sem fazer nada. Eu pensei que fosse
enlouquecer, até que a Bárbara disse que ia pra UNITI (Universida-
de da Terceira Idade) e me chamou. Depois foi que a gente veio pra
cá e os resultados em minha vida são os melhores. (Clara)

- 165 -
Minhas irmãs já participavam, aí quando elas viram que eu me apo-
sentei já mandaram eu ir pra não ficar parada. [...] Hoje o SESC é
muito importante na minha vida, por causa das oportunidades que
ele me deu de fazer o canto, de participar da banda. [...] Hoje isso
aqui faz parte da vida da gente. (Helena)

Eu descobri o SESC através de uma amiga minha que já participava


daqui. Eu sei que ela me convidou e eu sem querer ir, sem querer ir.
Sei lá, eu não queria largar a minha casa pra vir. E ela “bora minha
irmã, lá é tão bom, é só tu e teu marido, tua filha tá aí já grande, ela
toma de conta tua casa”. [...] Aí um belo dia eu vim, gostei e fiquei.
Até hoje! [...] Tudo que eu faço de divertido, os passeios, minhas
amigas, tudo, eu só tenho aqui no SESC. (Luzia)

Eu trabalhei até dois anos atrás. Minhas filhas sempre mandavam


eu largar, mas eu não queria ficar sem fazer nada. Até que teve um
dia que uma moça foi buscar uma encomenda dela lá onde eu traba-
lhava. Aí eu disse que a bolsa dela ainda não tava pronta. Ela virou,
saiu e disse: “essa velha deveria sair e dar lugar para uma pessoa
nova trabalhar”. Aquilo me doeu demais. Quando eu cheguei em
casa eu disse as minhas filhas que eu não iria mais voltar a trabalhar,
ia me aposentar. Aí foi quando minha filha viu que eu não ia mais
trabalhar lá que pediu para eu entrar aqui. Isso aqui mudou demais
a minha vida. [...] aqui eu arrumei colegas de verdade! A gente ri, se
diverte, passeia. Eu não fico mais só com aquelas obrigações de tra-
balho e casa, porque agora eu tenho mais tempo para mim. (Isabel)

As senhoras entrevistadas mostraram uma diversidade de


contextos em que nasceram e foram criadas. As particularidades por
elas apresentadas estendem-se quando elas relatam as relações com os
pais e as experiências mais significativas que vieram à mente:
Eu nasci aqui em São Luís mesmo, nasci e me criei aqui. [...] Olhe,
minha infância foi assim maravilha. Até os seis anos eu vivi com
meus avôs. Aí com 7 anos eu fui para casa dos meus pais. Meu pai
era um homem maravilhoso. Eu fui a primeira neta [...] aí minha
vó disse: “não, o primeiro neto sempre tem que passar pelas mãos
dos avós”. Mas eles eram muito pobres, só eram ricos em educação.
(Bárbara)

Eu nasci em Parnaíba [...] Depois meus pais vieram embora, eles


eram cearenses, não aguentaram a seca de lá. Ave Maria, eu não
lembro de muita coisa daquela época, porque eu era muito nova,
mas lembro das histórias que meus pais contavam. De vez em quan-
do ele contava umas histórias, comentava sobre as dificuldades que
eles passaram, né? Sem ter o que comer e beber direito, era muito
triste. Aí eles vieram pra cá com a família toda. (Luzia)

- 166 -
Nasci aqui mesmo em São Luís [...] Foram oito filhos, eu sou a últi-
ma, a caçula. [...] Minha mãe passou muito tempo viúva e nem por
isso arrumou ninguém. Como éramos cinco filhas ela tinha medo
de arrumar alguém e os homens querer comer a gente. E a gente era
tudo assim, né? Galegas, bonitonas. [...] Eu tive uma infância bem
atropelada. Meu pai morreu eu tinha quatro anos. Meu pai jogava
muito apostando dinheiro e deixou minha mãe sem nada. Pra co-
mer muitas vezes ele tinha que pescar. Aí de madrugada minha mãe
chamava a gente e todo mundo ia comer o peixe, sentados no chão
naquele negócio de palha. Mas nem por isso nós crescemos revolta-
dos. Não ficou nenhum doido. (Marta)

Nasci aqui em São Luís, no mesmo lugar onde eu moro, só mudou


de uma rua para outra, passei a minha vida toda no mesmo lugar.
[...] Nós éramos 5 irmãos ao todo. Primeiro a minha mãe teve 3 com
meu pai, meu pai morreu, ela arrumou outro esposo e com esse teve
mais dois. Minha infância foi muito aperriada, né? Porque mamãe
ficou viúva novinha, tinha apenas 20 anos, aí ela ficou trabalhando
pra dar de comida a esses 5 filhos.[...] (Isabel)

Além da diversidade de experiências vividas pelas senhoras


na fase da infância, no contexto de suas famílias de origem, a educa-
ção das senhoras é uma forte característica que as diferenciam e que
trouxe diferentes consequências para cada uma dela. Das dez entrevis-
tadas, apenas três fizeram o ensino superior e, mesmo assim, passando
por muitas dificuldades, como dona Bárbara, que casou grávida e so-
freu bastante para conseguir finalizar o curso, e também a dona Agatha,
que teve que pausar o curso de enfermagem depois que teve a filha, só
conseguindo retornar anos depois por causa do auxílio que recebeu da
família após o divórcio. Entre as senhoras que não possuem o ensino su-
perior, há diversos outros contextos, como dona Marta, que optou pelo
curso técnico de Contabilidade, pois seria melhor para ela profissional-
mente, e dona Rita que foi expulsa de todos os colégios que estudou, não
concluindo nem o ensino fundamental.
Estudei uma parte lá no interior e vim para cá no ginásio. [...] Minha
mãe que insistia para a gente vim pra cá, pra estudar, não casar logo
[...] Meu pai não queria, falava que não tinha condições de criar lá
no interior, muito menos estar mandando dinheiro pra cá. Meu pai
era da lavoura e minha mãe era doméstica, só fazia as coisas dentro
de casa. A gente só veio mesmo por causa da minha mãe que insistiu
muito, mas pelo meu pai não. [...] Tive que fazer exame de admis-
são, naquela época tinha isso, e ainda fiz um exame de bolsa pra
estudar no Rosa Castro, consegui tudo. Aí estudei o ginásio todinho
lá, com essa bolsa. (Helena)

- 167 -
Eu comecei a estudar tudinho direitinho. Isso só quando meu pai
resolveu atender a minha mãe. Ela pedia muito para ele pra colocar
a gente para estudar, mas ele não deixava. Papai não queria que ne-
nhuma filha estudasse, ele dizia que não era pra gente aprender a es-
crever pra não fazer carta pra namorado. [...] eu só fiz até o segundo
ano. Antigamente se dizia segundo ano do primário, ABC. (Luzia)

Pra estudar eu comecei já tarde. Mamãe me colocava para estudar,


aí ou era do Estado ou era em colégio particular. [...] Só que era
difícil pra mim porque mamãe não sabia ler, não sabia de nada. Isso
é a coisa mais difícil que existe, você colocar um filho para estudar
sem saber ler, porque você não tem nem como ajudar essa criança.
(Isabel)

Estudar que é bom eu não queria. Todo mundo na minha casa estu-
dou, menos eu. [...] Olhe, duas coisas na vida não me interessou: o
colégio e o casamento. O colégio porque eu realmente não gostava
de estudar. Isso na minha família era uma loucura. Eu era expulsa
de um colégio e meus pais me colocavam em outro. [...] por mau
comportamento mesmo, era gritando na sala, miando, assoviando,
batendo palma [...] até que minha mãe me mandou para o Rio de
Janeiro para fazer um tratamento e saber se eu era doida. (Rita)

A diferença em níveis de educação possui reflexo nas diferen-


ças a nível profissional das senhoras. Dona Agatha, Bárbara e Clara, que
conseguiram concluir o ensino superior, trabalharam até a aposenta-
doria, respectivamente, como enfermeira, professora concursada e fun-
cionária pública da Secretaria da Saúde. Todas elas demonstraram em
suas narrativas que foi o trabalho e a independência financeira, o grande
marcador da liberdade que hoje elas possuem. A educação proporcional
a elas a possibilidade de viver a fase da velhice de uma forma diferente
de como viveram suas mães e avós. Como elas relatam:
Foi por causa desses meus estudos que eu fiquei trabalhando a mi-
nha vida como enfermeira. [...] A sorte foi ter me dedicado muito
ao meu trabalho. Fiquei trabalhando como enfermeira no berçário,
só com bebezinho. E desse jeito fiquei a minha vida toda, até me
aposentar. Sou muito feliz hoje por causa disso. Tive muita sorte.
(Agatha)

Eu acho também que a nossa geração pra cá nós já começamos a


trabalhar e então passamos a ter voz dentro de casa. Eu tenho cole-
gas que nunca trabalharam e tenho colegas que trabalharam igual
a mim, fazendo concurso, estudando e tudo mais, e essas que não
trabalharam sempre foram submissas. Então nós somos de uma ge-
ração que a gente tinha o dinheiro da gente e fazia o que a gente
queria. A mudança começou por aí. [...] nossa geração foi um pou-

- 168 -
co privilegiada, um pouco não, muito. Porque de mamãe para trás,
meu Deus do céu! (Bárbara)

Quando eu tinha 19 anos comecei a trabalhar no Estado, nova, por


isso que quando me aposentei não tinha nem 50 anos. Fiz dois con-
cursos, aí foi a época que eu me formei [...] Eu praticamente não fi-
quei parada nenhum momento. Comecei a trabalhar cedo, naquela
época a gente tinha que trabalhar dois expedientes, aí eu trabalhava,
fazia faculdade e tinha menino quase todo ano. [...] Quando a gente
fica em movimento desde cedo a gente não consegue parar. (Clara)

Em contextos diferentes, entre as entrevistadas existem dois


casos de mulheres que nunca trabalharam. Dona Luzia, cujo pai não
deixou estudar, com receio de que a filha escrevesse cartas a rapazes, não
trabalhou enquanto solteira e justifica a falta de uma profissão depois
de casada à criação dos filhos; e dona Rita, que foi expulsa de todos os
colégios e atribui a falta de estudo porque “não teve interesse”, relata que
tudo que possui em sua velhice lhe é dado pela sua família:
Quando eu fui morar com ele (marido) eu não trabalhava [...] eu
emprenhei logo e foi um atrás do outro, né? 10 filhos. Quando dava
dez meses eu já estava me sentindo grávida. E meus filhos não ma-
maram muito, só um que mamou mais de ano, assim mesmo por-
que eu tive a menina depois dele e ele não largou o peito, ela mama-
va de um lado e ele do outro. (Luzia)

Eu nunca trabalhei fora [...] Minha família sempre me deu tudo, até
hoje, tudo que eu tenho foi minha família que me deu. Minha mãe
antes de morrer me deu uma casa. Eu tenho até meu enterro pago
com caixão, café e bolachinhas. [...] Trabalhar como? Esses empre-
guinhos eles não queriam, eles me dão dinheiro e ainda hoje. Eu sou
aposentada porque minha mãe pagou meu INSS, mas mesmo as-
sim meu irmão não cortou a mesada que ele me dá. Eu recebo meu
INSS, tenho a mesada que meu irmão me dá, tenho a cesta básica
que minha irmã manda para mim. A minha família é muito boa pra
mim e sem a minha família eu nem respiro. (Rita).

Os contextos familiares sobre o qual as idosas narram tam-


bém nos mostrou outro importante elemento, a diversidade de cenários
no tocante à autoridade exercida no lar. Em alguns casos, o pai foi a figu-
ra marcante, em outros casos pertencia a mãe a autoridade de todas as
decisões tomadas, como também houve relatos em que a mãe só possuía
a função de gerenciadora do lar e da educação dos filhos. Esse controle
familiar pode ser percebido nos seguintes relatos:

- 169 -
Meu pai era muito rígido mesmo, muito machista. E eu a primei-
ra filha, aí já viu, né? Mas naquele tempo a maioria dos pais era
tudo assim. Já a minha mãe, ela era aquele tipo de pessoa, era um
amor, super amável, para ela qualquer coisa tava bom, ajudava todo
mundo. Ela era capaz de sofrer calada para ninguém sofrer, mas
eu também acho que ela devia esconder muita coisa do meu pai.
Porque às vezes assim, ela tava triste e não dizia nada a meu pai, não
conversavam. (Inês)
[...] Meu pai tinha um coração maravilhoso, doce. [...] Mamãe in-
ventava que quando batia em um irmão meu tinha que bater em
mim também. (Bárbara)

[...] na minha adolescência eu não trabalhei, meu pai não deixava a


gente nem sair de casa. Aí eu fui pro interior, papai ia e vinha, e toda
vez ele levava nós. Era pra lá e pra cá e a gente não podia reclamar
nem fazer nada! [...] Eu lembro que ele levou minha irmã pra lá pro
interior, ela casou lá e pra lá ela ficou. Aí a última vítima fui eu. [...]
papai me obrigou a casar com um velho de 60 anos mais ou menos.
(Luzia)

Mamãe batia muito na gente, ela colocava a gente de castigo e meu


pai não podia tirar. Ela dizia que era um contrato que eles fizeram,
quando um castigava o outro não podia tirar. Era assim, se papai era
bravo mamãe era pior. (Isabel)

Pra você ter uma ideia como minha mãe era, naquele tempo meu
pai já reclamava com as decisões dela, de querer prender a gente,
de não deixar fazer nada. Meu pai já queria que a gente tivesse um
pouco mais de liberdade, que a gente saísse, passeasse, mas mamãe
não, só queria prender pra viver como ela viveu. (Rita)

Os relatos das senhoras mostram em um primeiro plano a


forma de autoridade exercida pelos pais. Existia o controle para que,
principalmente, as filhas tivessem determinado comportamento, que
era prescrito normativamente para o momento histórico e o contexto
sociocultural que elas se encontravam. O ideal normativo regia a neces-
sidade da virgindade e da inserção das mulheres no casamento, além da
total dedicação aos papéis já definidos: o de esposa e de mãe.
Através dos relados das senhoras também foi possível com-
preender o modelo hegemônico existente, no qual, dentro do núcleo
familiar, homens e mulheres deveriam desempenhar papeis distintos.
Como afirma Riolando Azzi (1987), a figura do homem é apresenta-
da como chefe da unidade familiar encarregado de oferecer o sustento
econômico. Já a figura da mulher é de esposa e mãe. Ela é valorizada em
seus aspectos de submissão e fidelidade ao homem.

- 170 -
O núcleo familiar que as senhoras nos mostram é constituído
através de um modelo hierárquico familiar que se assentava na distri-
buição desigual de poder configurada discursivamente. Tal modelo foi
propagado inicialmente pelo discurso católico e foi incorporado por
muitas mulheres que participavam das atividades da igreja.
A divisão no exercício de certas atividades ou funções pode
ser percebida quando elas, a todo o momento, buscam reforçar a ima-
gem de uma boa mãe, boa esposa e boa dona de casa, e que, mesmo es-
tando fora de casa participando das atividades do grupo de convivência,
elas não deixam de exercer seu papel e suas funções no ambiente do lar.

Meu marido bebia muito e eu estava sempre lá para segurar as pon-


tas. Muita mulher passa pelo que eu passei e não sabe lidar com isso,
mas eu ia deixar meus filhos com quem? Eu tinha que ficar com eles.
Eu sei lá, ele podia achar alguém e ficar com essa mulher. Sabe Deus
como é que ela criaria meus filhos. Ele mesmo com esse problema
não batia em ninguém, não fazia mal a ninguém, só bebia. [...] Ele
chegava bêbado, eu ia lá cuidar dele, tirava a roupa, dava banho,
colocava a roupa de dormir, era desse jeito. [...] Eu tenho certeza
que fui uma boa mãe, uma boa esposa, uma boa dona de casa. Não
deixei nada a desejar. (Marta)

Meu marido tem uma amante. Eu deixei ele bem à vontade, sabe?
Continuo tratando ele bem, continuo na minha casa. Faz 5 anos que
eu vivo assim, muito magoada. [...] Ele pode ter todos os defeitos,
mas ele sempre gostou de cumprir com as responsabilidades dele
dentro de casa. Por isso que essas coisas que ele faz agora eu relevo,
porque tem muitos pontos que ele me ajudou, me deu apoio, e eu
sempre avalio as pessoas pelos pontos positivos. [...] Agora, eu faço
tudo em casa, eu acho que ele não tem nada a reclamar de mim. [...]
Eu faço o meu papel de mãe. Sempre eu tive à frente na educação
dos meus filhos, tudo foi minha responsabilidade. Agora ele sempre
foi um bom pai, assim em termo de educação, pra dentro de casa e
tudo e ainda continua. (Bárbara)

É possível compreender a partir das narrativas das senhoras


que o matrimônio, dentro da concepção social do século passado, re-
presentava para a mulher a sua relação com os filhos e com o lar, o que
revela como as identidades e os papéis de gênero estavam articulados.
As características da mulher dentro do casamento faziam parte de dis-
cursos produzidos em um sistema heteronormativo, e as particularida-
des atribuídas a cada gênero se encontram polarizadas em razão da dife-
rença sexual, o que justifica os diferentes papéis de homens e mulheres.

- 171 -
Para discutir sobre gênero enquanto categoria e instrumen-
to de análise sociológica, deve-se passar, necessariamente, pela análise
do processo de transformações sociais e políticas iniciadas no início do
século XX. Como comenta Marlise Matos (2008), os movimentos orga-
nizados de mulheres, e depois os movimentos feministas, inauguraram
no século XX grandes viradas, inclusive no modo de se perceber o co-
nhecimento.
Especialmente entre as décadas de 1930 e 1970, discussões
foram aprofundadas por “grupos acadêmicos que problematizaram a
produção do conhecimento a partir de um viés crítico gerando os estu-
dos feministas ou os estudos de mulheres” (MATOS, 2008, p. 335-336).
A crítica e o questionamento visavam ampliar, nas ciências humanas e
sociais, o escopo das reflexões para adotar uma nova proposta teórico-
-conceitual: os estudos de gênero.
Tal mudança, além de dar visibilidade às mulheres, também
contribuía para o questionamento de pressupostos tradicionais da ciên-
cia, tais como a objetividade, a neutralidade, o distanciamento e a isen-
ção, considerados elementos indispensáveis para um fazer acadêmico
legítimo.
Joan Scott (1995, p. 72), em seu texto Gênero uma categoria
útil de análise histórica, comenta que “as feministas começaram a utilizar
a palavra ‘gênero’ [...] como uma maneira de referir-se à organização so-
cial da relação entre os sexos”, especialmente as feministas americanas,
como forma de rejeição ao determinismo biológico tácito na utilização
dos termos ‘sexo’ e ‘diferença sexual’ destacando o aspecto relacional e
cultural das definições das feminilidades e masculinidades.
Segundo Guacira Lopes Louro (2002, p. 15),
A emergência da categoria [gênero] representou, pelo menos para
aquelas e aqueles que investiram na radicalidade que ela sugeria
uma virada epistemológica. Ao utilizar gênero, deixava-se de fazer
uma história, uma psicologia, ou uma literatura das mulheres, sobre
as mulheres e passava-se a analisar a construção social e cultural do
feminino e do masculino, atentando para as formas pelas quais os
sujeitos se constituíam e eram constituídos, em meio a relações de
poder.

No intuito de conceber uma concepção de gênero para além


da limitação da diferenciação sexual, Lauretis (1994) aponta, em seu
texto A tecnologia do gênero, como possibilidade uma percepção par-

- 172 -
tindo do viés teórico foucaultiano que apresenta a sexualidade como
tecnologia sexual para pensar o gênero como uma representação e au-
torrepresentação produzidas pelas diversas tecnologias sociais, discur-
sos, epistemologias e práticas. Portanto, o gênero não se constitui como
“propriedade dos corpos ou como algo que existe a priori no ser huma-
no, mas um conjunto de efeitos produzidos em corpos, comportamen-
tos e relações sociais por meios de desdobramentos de uma complexa
tecnologia política” (LAURETIS, 1994, 208).
Judith Butler (2003), em sua obra Problemas de gênero: femi-
nismos e subversão da identidade, corrobora com o posicionamento de
desconstrução da binaridade sexo/gênero, acrescentando que a percep-
ção de sexo como biológico e o gênero como construção cultural é um
discurso limitante para os estudos feministas. Nessa perspectiva, Butler
(2003) radicaliza tal posicionamento ao defender que tanto a constitui-
ção de gênero quanto a de sexo são social e culturalmente construídas,
extrapolando assim as amarras presentes na apreensão estática de sexo/
gênero.
O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cul-
tural de significado num sexo previamente dado (uma concepção
jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção
mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos. Resulta daí que
o gênero não está para a cultura como o sexo para a natureza; ele
também é o meio discursivo/cultural pelo qual a ‘natureza sexuada’
ou um ‘sexo natural’ é produzido e estabelecido como ‘pré-discursi-
vo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a
qual age a cultura (BUTLER, 2003, p. 25).

Desse modo, utilizando o pensamento de Judith Butler (2003,


p. 200), o gênero é percebido como atos sociais performativos. “[...] é
uma identidade tenuemente constituída no tempo [temporalidade so-
cial], instituído num espaço externo por meio de uma repetição estiliza-
da de atos [...] [onde] os próprios atores, passam a acreditar, exercendo-
-a sob a forma de uma crença”.
Partindo dessas compreensões, outro exemplo da materiali-
zação discursiva do processo de construção social de gênero foi cons-
tatado nos discursos das senhoras. Partindo da existência de todo um
conjunto de discursos sociais que regulam, definem e orientam os com-
portamentos, representações e significados tidos como adequados para
homens e para mulheres, as entrevistadas nos mostram características
naturalizadas da masculinidade e feminilidade.

- 173 -
De acordo com uma análise empreendida pela filósofa Elize-
te Passos (1999) sobre as representações de gênero, tradicionalmente a
masculinidade vem sendo associada à competição e a dominação. Os
homens devem ser ocupados, cheios de problemas e decisões a tomar,
a fim de cumprirem o seu papel masculino. Para as mulheres, a socie-
dade ensina que existe uma estreita relação entre a feminilidade com a
docilidade, timidez, dependência e pureza, levando a crer que homens e
mulheres diferenciam-se tanto no sentido quanto no significado.
A pureza da identidade feminina é muitas vezes atrelada à
falta de conhecimento sobre sua sexualidade, assim como a falta de ins-
trução a respeito das transformações que ocorreram nos corpos dessas
senhoras. Alguns dos seus relatos evidenciaram, além do desconheci-
mento, o silenciamento sobre as transformações corporais, o que con-
solida a construção do papel de gênero e o comportamento socialmente
esperado das mulheres em relação à sua sexualidade:
Olhe, eu não orientei minhas filhas não foi por falta de conhecimen-
to, nem por não saber das minhas responsabilidades como mãe, foi
por vergonha! Eu não me via sentada dizendo para minha filha que
ela ia casar e que ia acontecer isso, isso e isso. Eu morria de vergo-
nha daquilo. Só de pensar eu me tremo todinha. [...] eu não fiz isso
também porque naquele tempo nossa mãe não falava essas coisas
com a gente. (Bárbara)
[...] quando eu pensei, eu só senti aquela coisa descendo nas minhas
pernas. Minha madrasta tava bem pertinho de mim, eu olhei para
baixo, olhei para ela, mas não tinha coragem de falar. “Ai minha
nossa senhora, o que será isso? Será que eu me cortei?” [...] Quando
deu a hora de ir para casa, o povo me chamando e eu sentada, aí
minha madrinha pegou no meu braço, me levantou e eu toda mela-
da. Aí ela: “minha irmã, tu tava aí desse jeito e não disse nada? Por
que tu não disse?”. Aí eu coloquei para chorar, eu disse que tinha
me cortado, mas não tinha visto. Quando chegamos em casa, ela
mandou eu tomar banho e só depois ela foi me explicar o que era (a
mestruação). (Luzia)
Mamãe faleceu eu tinha 14 anos, mas ela nunca me falou sobre nada,
nem nada da vida com o esposo com nenhuma das filhas. Tem a his-
tória de uma das minhas primas que menstruou sem saber o que era
e apareceu na sala de casa chorando dizendo que tinha engravidado.
Depois de muito custo foi que ela explicou o que estava acontecendo
e minha tia foi explicar as coisas para ela. Naquele tempo eu nunca
vi ninguém conversar sobre isso, ninguém! (Mônica)

Houve muitas vezes por parte das entrevistadas a omissão de


acontecimentos e/ou experiências que consideraram não mencionáveis.

- 174 -
Esse silêncio ou a “ausência de certos ditos” é considerado um
elemento constante em trabalhos que utilizam memórias como recurso
teórico-metodológico.
Os silêncios e os não ditos encontrados ao logo das entrevis-
tas, quando elas não detalhavam assuntos específicos, podem estar rela-
cionados também as possibilidades de timidez, medo, repreensão social
e até mesmo de uma vigilância própria, para não deixar “escapar” algo
considerado não apropriado para ser dito, o que evidencia as tensões
existentes e as relações de poder vigentes na sociedade.
O que foi censurado e não dito por Agatha, Inês, Bárbara,
Rita, Clara, Helena, Luzia, Marta, Isabel e Mônica, em parte pode ser
compreendido como memórias subterrâneas. São as lembranças marca-
das por silêncios que essas idosas trazem consigo, que não são expressas.
De acordo com Pollak (1989), essa tipologia de silêncios é moldada pela
angústia de ser punido por aquilo que diz, de se expor a mal-entendidos
e até mesmo de não encontrar uma escuta.
As lembranças dessas senhoras também trouxeram à tona o
padrão normativo existente, que configurava como atributos da femi-
nilidade o segredo sobre os seus desejos, diferenciando dos atributos
da masculinidade, como a sedução e competência nas relações sexuais.
Tal diferença ganha legitimidade através dos discursos de especialistas
sobre a diferença sexual, segundo os quais os homens teriam “natural-
mente” instintos sexuais mais fortes e intensos, diferentes das mulheres
que tinham disposição para a maternidade.
Michel Foucault (2001) estudou como a sociedade ocidental
fez do sexo um instrumento de poder através da sua expressão. Seu ob-
jetivo foi compreender o discurso da sexualidade humana, o que se diz
e o que é silenciado e proibido em relação ao sexo, nos proporcionando
entender as condições que possibilitaram o surgimento de uma teoria
da sexualidade e seu campo de domínio.
Foucault busca romper com o que até o momento se conhecia
sobre o sexo. Sua denúncia é de que os discursos sobre a sexualidade
não são reprimidos, mas, ao contrário, são incitados através de deter-
minadas instituições e relações sociais, com o intuito de conhecer tudo
sobre o sexo. Assim, esclarece-nos sobre a existência de uma rede de
elementos e de um conjunto de funções que, partindo de um jogo de in-
teresses, não apenas determinam, mas condicionam os sujeitos em certo
momento da história.

- 175 -
Se algumas entrevistadas escolheram não contar detalhes ín-
timos de suas relações amorosas ou sexuais, foi devido ao temor que
ainda existem em nossa sociedade com relação à conduta sexual das
mulheres. Fazer e falar determinadas coisas referentes ao sexo era algo
impensável, principalmente porque, para elas, a representação da dife-
rença sexual como uma diferenciação entre a sexualidade do homem,
como mais aflorada, e a sexualidade da mulher, como mais discreta e
passiva, constituiu-se como eixo de referência para as relações de gê-
nero.
Contudo, apesar de todo um contexto de repreensão contra a
sexualidade da mulher na velhice, uma nova mentalidade surge entre as
entrevistadas. Dona Helena (divorciada) e dona Marta (viúva), relata-
ram seus desejos por um novo parceiro:
Eu até queria outra pessoa, um companheiro. Mesmo separada há
10 anos, se aparecesse um que valesse a pena, ora se não! Eu me per-
mito amar, o que passou, passou. Eu ainda não tenho uma pessoa
do meu lado porque ainda não encontrei uma pessoa que valesse a
pena de verdade. (Helena)

Agora o que eu gostaria muito era de começar a minha vida com um


par afetivo. Quem não gosta? Eu não morri pro mundo não, estou
inteira, estou em pé, tô aqui. Eu gostaria de ter um companheiro
que fosse meu amigo, que me desse momentos felizes. Gostaria de
acabar a vida com outra pessoa. (Marta)

As narrativas de dona Marta e dona Helena são exemplos de


que a busca pela satisfação sexual continua na velhice, indo contra a
perspectiva de que o desejo e o prazer devem acabar com o divórcio
ou a viuvez. Entretanto, por serem mulheres em processo de envelheci-
mento, as idosas passam a ser ainda mais recriminadas se manifestarem
socialmente que buscam práticas e prazeres sexuais. Nesse caso, a dife-
rença em relação aos homens idosos vem de todo um contexto que os
estimula desde a infância a terem sua sexualidade ativa.
Se na juventude as questões relacionadas ao corpo foram si-
nais de surpresa e espanto por falta de conhecimento, no envelhecimen-
to, as mudanças ocasionadas pelo avançar da idade não causam tanta
estranheza para as senhoras entrevistadas. Como afirma dona Bárbara,
hoje elas se sentem preparadas para lidar com as mudanças corporais.
Quando meu corpo tava se transformando na adolescência
eu me apavorei muito mais do que agora da maturidade para
a velhice. Não tive nenhuma orientação na juventude, tudo

- 176 -
foi apavorante [...]. Hoje qualquer sinal ou ruga que nasce no
meu corpo eu não me apavoro mais. Com o SESC e com ou-
tros conhecimentos que a gente tem a gente se prepara para
isso, coisa que eu não tive quando jovem. (Bárbara)

Em um contexto diferente do qual viveram suas juventudes,


as idosas entrevistadas demonstram possuir mais conhecimento em re-
lação aos seus corpos. Segundo Debert (1997a, 1999) essa mudança de
comportamento está relacionada com a grande propagação dos discur-
sos de especialistas do envelhecimento, que tem os grupos de convivên-
cia como principal representante e como atores no processo de educa-
ção de uma nova velhice. Para Debert, a tendência contemporânea é a
de contrapor-se à antiga representação do envelhecimento, promoven-
do-a como um novo começo, um momento de novas oportunidades.
A nova mentalidade que emergiu entre as idosas, resultado
da ressignificação de suas experiências, pôde ser vista quando muitas
entrevistadas mostraram certa rejeição à criação dos netos e uma nova
configuração nos papeis de mãe e esposa.
Utilizando a compreensão de Margareth Rago (1991), sobre
os discursos vigentes, a primeira função da mulher era a de educadora,
ou seja, seu ofício era ser formadora do caráter dos filhos e sua atuação
seria privilegiada para a regeneração moral da sociedade. Essa concep-
ção faz parte do discurso na perspectiva positivista europeia, elaborado
no século XIX, no qual a representação simbólica da mulher era de um
ser instintivamente maternal, assim, “naturalmente” voltado aos filhos
e ao lar.
Leers (1987), em sua análise sobre moral, ética, família e so-
ciedade no Brasil, compreende que essa idealização da mulher como
mãe, esposa e dona de casa, encontra-se em fase de depreciação. Para
o autor, uma nova mentalidade está surgindo. Por um lado, temos mu-
lheres que procuram emprego fora do lar para ter sua independência
financeira ou dividir as despesas com o marido; por outro, da mesma
forma também há uma desvalorização do papel da mulher como dona
de casa, visto agora por muitas como escravizante. Nessa nova esfera
cultural, muitas jovens poderão estudar mais tempo, buscar um bom
emprego ou não casar.
Essa nova perspectiva foi encontrada nas narrativas das ido-
sas:

- 177 -
Eu pensaria duas vezes antes de casar. A gente casa muito nova e
acaba perdendo muita coisa da vida, muita coisa que poderia ter
feito enquanto solteira. Depois que casa aí acaba as coisas, tem fi-
lho, marido, casa. O tempo passa e as oportunidades também. [...]
Olha, eu não namorei muito. Eu não aproveitei não! Meu primeiro
namorado foi meu marido e eu estou há quase 50 anos com ele. Tô
cansada, né? Esgotada! (Clara)

Eu casei com 18 anos, se fosse hoje eu não queria mais um negócio


desse. Aos 32 anos eu já tinha feito laqueadura. [...] Até os 38 anos
de idade eu só tinha tido mesmo o meu marido. Então, o que eu não
faria mais era isso, casar cedo, me encher de filho. Eu ia estudar, me
formar, ter um apartamento, ter um namorado, viajar e dançar, sair
por aí com ele, cuidar de não ter filhos, porque eu ia me prender e
eu queria uma vida mais livre, entendeu? (Marta)

Neto é neto, neto não é filho. Não tem aquela história “quem pariu
Mateus que balance”? Então, é desse jeito. Eu não vou me acabar
dentro da minha casa, nem morrer para a vida porque vou ter que
cuidar de neto. De jeito nenhum. A mãe não cria vai dá para a vó?
Se dane pra lá. (Luzia)
Filho sim é para ser criado com pai e mãe, agora neto não tem essa
historia de ficar com avó não, tem que ser criado com seu pai e sua
mãe do mesmo jeito. Eu tenho uma filha, a mais nova, e o marido
dela cismou comigo eu não sei por quê. Ele queria que eu ficasse
tomando conta do filho dele para minha filha ir trabalhar. [...] mas
eu não vou tomar conta de neto, porque eu tenho minha vida e não
sei se amanhã eu vou poder fazer o que eu quero. [...] Eles queriam
tirar minha qualidade de vida, eu ia deixar de viver, de fazer o que
eu gosto. (Marta)

É possível compreender que a rejeição dessas idosas às pos-


síveis obrigações com os netos está atrelada à perda de liberdade que
elas teriam, ao se sentirem passando mais uma vez pelos encargos da
maternidade. A experiência do envelhecer que estas mulheres do TSI
possuem é radicalmente nova se comparada à antiga imagem do enve-
lhecimento. Para elas, a liberdade e independência que hoje aprenderam
a valorizar, deram às suas vivências uma noção de bem-estar, levando
em consideração, principalmente, que muitas mulheres da sua geração
orientaram-se em relações de poder, relações de subordinação aos pa-
drões normativos. Como afirma Debert (2012), a liberdade feminina
por elas conquistada é um “fato irreversível e redefine o que é envelhe-
cer”.
As narrativas delas estão, em grande parte, perpassa-
das pelas construções discursivas do TSI, um processo educativo focado

- 178 -
na liberdade, independência e na atividade na terceira idade. Deve ser
destacada a legitimidade do discurso dos gerontólogos e técnicos como
especialistas dessa nova forma de viver o envelhecimento. É o discurso
é autorizado mediante o status do sujeito que fala e o lugar institucional
de onde esse sujeito fala, no caso, o grupo de convivência.
Na obra A Arqueologia do Saber, Foucault (2005) argumenta
que as diferentes modalidades da enunciação estão relacionadas ao sta-
tus do sujeito que fala, aos lugares institucionais e à inserção do sujeito
falante. Para o autor, a detenção e o exercício de saberes não está dispo-
nível a qualquer pessoa, mas a grupos que possuem o status garantido
de proferir enunciados e desempenhar ações que legitimem sua fala.
Assim, no tocante aos trabalhos desenvolvidos com idosos, o status do
gerontólogo decorre da legitimidade social que assume na condição de
especialista, de forma que seu poder, eficácia e existência não podem ser
dissociados do personagem historicamente construído.
Em relação aos lugares institucionais, Foucault (2005) argu-
menta que é necessário descrever de que lugares procedem os discursos,
pois eles funcionarão como legitimadores da verdade. Não basta apenas
o status do gerontólogo como detentor do estatuto da fala, mas também
é necessário um lugar que autorize a prática dessa palavra. Em nosso
caso, o discurso especializado e autorizado sobre envelhecimento ativo
circula nos grupos de convivência para idosos.
Após compreender o contexto do trabalho desenvolvido pelo
TSI, não podemos deixar de mencionar que as idosas têm o grupo como
algo acolhedor, que muitas vezes serve de apoio e consolo para pro-
blemas trazidos de casa. Algumas idosas que participam do grupo há
muitos anos, tendo novas experiências e vínculos pessoais, projetam e
definem aquele espaço como uma extensão das suas famílias, um segun-
do lar, que teve o poder de mudar significativamente suas vidas.
Eu boto meu joelho no chão pra agradecer a Deus o SESC em mi-
nha vida. Eu tive uma época que minha salvação foi o SESC. Era só
aperreio dentro de casa, esse meu genro dando dor de cabeça. Eu
agradeço toda noite, obrigada meu Jesus por eu ter o SESC no meu
caminho. Hoje graças a Deus as coisas já melhoraram um pouco,
pelo menos tem uma paz dentro de casa. [...] o SESC foi transfor-
mador na minha vida. Eu depois que passei a frequentar aqui tomei
outra iniciativa. Eu não queria sair de casa, hoje eu não quero é mais
ficar em casa. Tenho minhas colegas, nós conversamos, temos nos-
sos passeios, brincadeiras. (Mônica)

- 179 -
Isso aqui é minha segunda casa e minha segunda família. Venho
todos os dias, vou ficar em casa fazendo o quê? Aqui aumentou até
a minha autoestima, eu só vivia abatida, me sentindo feia, só vivia
com prisão de ventre, pressão alta. Agora eu só vou no hospital a
passeio. Antes eu não sabia nem me expressar, tímida, toda jogada
no canto. A casa dos meus filhos nunca que ia ser assim. Só aqui eu
tenho isso. (Marta)

Se eu chegar a sair daqui por algum motivo eu vou sentir muito.


Muito mesmo. Ah, minha vida mudou demais depois que eu en-
trei aqui. Eu antes era muito calada, tímida, travada, não gostava de
conversar. Eu sempre fui tímida, mas depois que eu comecei nesses
grupos eu mudei muito, bastante. (Clara)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante compreender a constituição da velhice como
objeto do discurso científico. Inicialmente os discursos sobre a velhice
pertenciam apenas ao campo médico, mais tarde, com as políticas de
aposentadoria e com os problemas econômicos, a atuação de diferen-
tes especialistas, como gerontólogos, psicólogos e demógrafos, passou a
ser recrutada como fundamental para a constituição de orientações e a
execução de programas e políticas voltados à velhice, das quais derivam
recomendações sobre as necessidades dos idosos e a forma correta de
vivenciar um novo tipo de envelhecimento.
O discurso sobre os idosos passou a ser utilizado por agentes
envolvidos na “gestão coletiva da velhice”. Foram a inversão na repre-
sentação da velhice e toda a atribuição de novos significados, como o
de momento para novas conquistas, novas identidades, novos projetos,
como tempo de lazer, que proporcionaram a criação de espaços onde a
velhice pode ser vivenciada de forma coletiva, os chamados grupos de
convivência para a terceira idade, o que fez com que uma grande parcela
de idosos busque essas experiências segundo as quais suas vidas possam
ser (re)significadas.
Tal estratégia pôde ser vista na perspectiva do Trabalho Social
com Idosos desenvolvido pelo SESC, e foi nesse lugar que escolhemos
compreender a complexidade da experiência do envelhecer, a partir de
diferentes histórias e contextos sociais.
Ter como objeto de pesquisa as lembranças de mulheres fez
com que elas destacassem os significados que foram aceitos, absorvidos,
reproduzidos e vivenciados durante suas vidas. Trabalhar com a memó-
ria de mulheres idosas ajudou a compreender como as especificidades

- 180 -
de gênero foram construídas ao longo do tempo. Suas narrativas de-
monstraram que as características específicas da feminilidade, de acor-
do com o padrão heteronormativo, foram internalizadas e reproduzidas
por elas, desde a infância, com o intuito de que iniciassem, ainda meni-
nas, a assimilação de comportamentos socialmente esperados e que se-
riam cobrados no decorrer de suas vidas, especialmente quando desta-
camos os processos educacionais formais e não formais nesse contexto.
Atos performáticos foram reforçados inicialmente no núcleo
familiar, como se pode observar na vigilância sobre as filhas, mas essa
identidade é reforçada com o passar dos anos e fez-se presente na vida
das idosas através da cobrança sobre os cuidados com lar, com filhos, ao
vestirem determinadas roupas, para terem comportamentos adequados,
etc. Mesmo no casamento, era esperado das mulheres características
como a pureza, a passividade e a inocência em relação a sexualidade,
desejo e prazer.
Contudo, foram percebidas mudanças na percepção dos pa-
péis de gênero nos relatos das idosas como, por exemplo, na recusa aos
trabalhos domésticos e na criação dos netos, o que acarretaria a perda
de uma liberdade conquistada. Essa mudança foi compreendida como
resultado das novas referências que as entrevistadas possuem, oriun-
das, principalmente, dos discursos reproduzidos no TSI. Por meio da
educação, todo o trabalho nele desenvolvido valoriza e busca ensinar
uma nova forma de viver essa fase da vida, agora pautada no prazer e
na independência. Como a participação de mulheres é predominante,
são elas que reavaliam seus conceitos e visões de mundo em suas vivên-
cias.
Para as idosas entrevistadas, a atual fase da vida represen-
ta um momento de realizações que não pôde ser por elas vivenciada
quando mais jovens. É um momento de prazer, de independência, de
liberdade, é o momento no qual elas estão vivendo para si mesmas. Tal
fato, deixa transparecer uma libertação de todo controle exercido sobre
o papel da mulher na sociedade, para que sigam determinado compor-
tamento prescrito normativamente.
Compreender o processo educacional informal que o SESC
Deodoro oferece às idosas, para além da compreensão de que educar é
estar em uma sala aula, permite correlacionar e convergir com outras
possibilidades de transformações de visão de mundo que entremeiam
as construções sociais vividas em um determinado tempo, as quais são
acionadas no processo de recordação.

- 181 -
Nas narrativas das idosas, em grande parte, não há saudo-
sismo ou referências positivas ao passado. As referências gratificantes
estão todas atreladas às atividades e aos relacionamentos que agora pos-
suem dentro do TSI. A reavaliação de si, de suas visões de mundo e de
seus comportamentos após o ingresso no grupo está perpassada pelos
discursos de especialistas que agem nos grupos de convivência. Mas,
as concepções que cada idosa participante tem de si mesma, além de
problematizarem preceitos normativos que regem seu comportamento,
situam-na diante da constatação de outros modos possíveis de experen-
ciar sua velhice.

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- 185 -
- 186 -
GÊNERO, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO:
ARTICULAÇÕES POSSÍVEIS
Bianca Salazar Guizzo91
Dinah Quesada Beck92

RESUMO: O presente trabalho tem como principal objetivo apresentar e discutir


algumas possibilidades de problematização das questões de gênero e sexualidade
em ambientes educacionais (escolares e não escolares), tomando como referencial
teórico os Estudos de Gênero e os Estudos Culturais, de viés pós-estruturalista. Para
dar conta deste objetivo, o artigo está estruturado da seguinte maneira: 1) expõe-se
o modo como são compreendidos alguns conceitos, dentre os quais destacam-se:
gênero, identidade e sexualidade; 2) discute-se como, a partir de algumas pesquisas
de mestrado e doutorado, jovens escolares e não-escolares tiveram a oportunidade
de discutir as temáticas de gênero e sexualidade, tendo como deflagradores alguns
artefatos presentes nas culturas em que estão inseridos; 3) apresentam-se algumas
considerações finais nas quais salienta-se a importância de a escola ser um espaço
para problematização das referidas temáticas.
Palavras-chave: Gênero. Sexualidade. Identidade. Educação.

INTRODUÇÃO
O conceito de gênero surgiu para contestar o entendimen-
to de que condições, posições e funções subordinadas em que, muitas
vezes, as mulheres eram colocadas explicavam-se a partir de um viés
estritamente biológico. Dito de outro modo, o conceito surgiu para de-
sestabilizar e questionar ‘verdades’ de gênero que não são dadas biolo-
gicamente, mas inventadas e sustentadas através de discursos e repre-
sentações colocados em evidência cotidianamente (LOURO, 2007). De
acordo com Donna Haraway (2004), o conceito foi desenvolvido com o
intuito de contestar e transformar a naturalização da diferença sexual
que acaba por posicionar homens e mulheres de maneira diferenciada
e, até, hierarquizada.
Conforme aponta Dagmar Meyer (2007), algumas historia-
doras feministas, em geral, apresentam como referência do movimen-
to feminista dois significativos momentos históricos, os quais criaram
condições de possibilidade para o surgimento do conceito de gênero. O
91 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pro-
fessora do Curso de Pedagogia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
92 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Profes-
sora do Instituto de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da
Universidade Federal de Rio Grande (FURG).

- 187 -
primeiro deles, que remete a uma primeira onda do feminismo, agluti-
na-se do movimento sufragista que buscou direitos iguais entre homens
e mulheres. A luta pelo direito ao voto caracteriza um destes ganhos da-
dos às mulheres. Em termos de Brasil, vale salientar, que tal benefício só
fora garantido com a Constituição de 1934, mais de quarenta anos após
a Proclamação da República. Justamente com tal ganho, outras lutas tra-
vadas pelas mulheres passaram a ser desenvolvidas. Entre elas sobres-
saem-se o exercício da docência, as condições de trabalho, a realização
do ensino superior, entre outras.
Nesse período já convergiam diferentes vertentes do femi-
nismo, as quais proliferavam no corpus social estudos, manifestos e
reivindicações das mulheres. Correntes consideradas mais burguesas e
liberais, lutando pelo direito ao voto; outras de caráter mais político,
aliadas aos movimentos sociais, na busca pelo direito à educação; e ain-
da àquelas de vertente anarquista, na luta pelo direito das mulheres de
decidir sobre os destinos dados aos seus corpos e à vivência das suas
sexualidades já se encontravam em vigor na pauta dos movimentos fe-
ministas, caracterizando-os.
Dessa forma já podemos perceber a polissemia de sentidos e
significados que emergiam de um movimento multifacetado, decorren-
te das diferentes mulheres e necessidades que vinham de suas vivências
sociais, políticas, históricas e culturais.
Outro momento histórico que marca o que é concebido como
a segunda onda do feminismo encontra abrigo nos anos 60 e 70 do sé-
culo passado. No Brasil, essa vertente do feminismo eclode com mo-
vimentos políticos e sociais de oposição à ditadura militar. Adiante, já
nos anos 80, essa vertente polariza-se com os movimentos de redemo-
cratização da sociedade brasileira. Na esteira das discussões e lutas des-
sa onda feminista visibilizaram-se o maciço investimento na produção
intelectual sobre gênero, possibilitando o desenvolvimento de pesquisas
e estudos que não apenas buscavam denunciar as diferenciações entre
homens e mulheres construídas social, histórica, culturalmente, mas,
fundamentalmente, na busca por problematizar essa subordinação his-
tórica que minorava as mulheres em relação aos homens.
Segundo Meyer (2007, p. 13):
Essa trajetória rica e multifacetada do feminismo também foi, e é,
permeada por confrontos e resistências tanto com aqueles e aquelas
que continuavam utilizando e reforçando justificativas biológicas ou

- 188 -
teológicas para as diferenças e desigualdades entre as mulheres e
os homens, quanto com aqueles que, desde perspectivas marxistas,
defendiam a centralidade da categoria de classe social para a com-
preensão das diferenças e desigualdades sociais.

Contemporaneamente, as estudiosas feministas se desafiam


frente ao histórico binômio de ordem biológica homem x mulher, na
busca por demonstrar que não são as características fisiológicas e anatô-
micas, nem ao menos distinções socioeconômicas, vistas isoladamente,
que tem o poder de definir diferenças e inferioridades às mulheres.
Joan Scott (1995) considera o conceito de gênero como pro-
duto de um profícuo trabalho de mulheres, inseridas no movimento
feminista, no intuito de cunhar o entendimento de que ele não é algo
ligado ao determinismo biológico. Essa possibilidade de ampliar a com-
preensão sobre o significado que se atribui ao conceito de gênero é re-
sultado das movimentações sociais e políticas dos anos 1960 e 1970, em
especial. Por esse período intensifica-se a noção de que não se nasce
homem ou mulher. Compreende-se que são ensinados atributos e le-
gados, por meio de discursos e representações sociais e culturais, que
promovem a produção de diferentes posições de sujeito, imbricados na
constituição de suas identidades.
No bojo desses estudos e movimentos feministas têm sido
debatidas questões relevantes e até mesmo, centrais, no intuito de des-
naturalizar distinções “essencializadas” sobre os termos masculino e
feminino, uma vez que os mesmos são compreendidos como termos re-
cíprocos e não como definições separadas uma da outra. Justamente por
acolher essa noção é que se torna cada vez mais coerente e importante
falar em relações de gênero. Ao utilizar essa expressão mostramos a rele-
vância que a mesma carrega: são os modos distintos de se constituírem
homens e mulheres, na esteira da cultura, atravessados por discursos e
representações, que ganham destaque no cenário atual de tais investi-
gações.
Inúmeras pesquisas têm sido desenvolvidas imersas no cam-
po dos Estudos de Gênero, investigando a produção das identidades de
gênero, tanto na escola como fora dela. Suas pesquisas têm contribuído,
significativamente, para problematizar as diferenças conferidas a ho-
mens e mulheres, a meninos e meninas, produzidas na esteira da cultu-
ra. Certamente, uma de suas contribuições para o campo da educação
seja justamente a de relativizar a centralidade que alguns estudos sobre

- 189 -
tais diferenças, principalmente direcionadas de áreas como a biologia e
a medicina, as quais alegam que nossos corpos e nossas identidades são
naturalmente dados.
A esse respeito, Beatriz Preciado93 (2010) argumenta que os
modos como nos expressamos enquanto sujeitos de um determinado
gênero são vivenciados de forma contratual e normativa e que esses
modos vão sendo inscritos e naturalizados nos corpos como verdades
biológicas. Judith Butler (2003) é outra estudiosa que auxilia na com-
preensão desse conceito. Segundo ela, os sujeitos são ensinados a viver
as identidades de gênero e sexuais a partir da ideia de que nascer com
uma determinada genitália é determinante para se definir quais modos
e comportamentos adotar. Contudo, agir e viver a partir desse marcador
é colocar em andamento uma série de verdades que operam como fun-
damentos advindos exclusivamente da ‘natureza’, da ‘biologia’, de uma
‘essência interna’, de uma ‘identidade inata’ do sujeito.
Recentemente essa mesma autora tem passado a utilizar o
entendimento de sujeitos cisgênero. Tal entendimento liga-se à ideia
de que cisgênero são aqueles sujeitos cujos comportamentos e atitudes
correspondem às expectativas que sobre eles são criadas, a partir de
convenções que são construídas e reiteradas social e culturalmente em
decorrência da sua composição genital e hormonal.
Butler (2005) também argumenta que gênero é uma forma
de regulação social. O sujeito generificado só passa a existir na medida
em que se sujeita às regulações determinadas e validadas dentro de uma
determinada cultura ou sociedade. Em decorrência, por exemplo, das
declarações “é um menino!”ou “é uma menina!” inicia-se uma viagem
em que sujeitos devem seguir um certo rumo ou direção pré-estabeleci-
do socialmente para ele/a (LOURO, 2004).
Joan Scott (1995) e Louro (2007), entre outras estudiosas do
conceito de gênero, o tem compreendido como uma “categoria relacio-
nal”. Relacional no sentido de perceberem existir uma relação estabele-
cida entre homens e mulheres. Ao dizer isso convergem com a noção
de que a construção do feminino se dá levando-se em conta os aspectos
estritamente vinculados ao masculino. Tão logo se aceita essa premissa,
percebe-se o movimento oposto — a construção do masculino levando-
-se em conta o feminino —, instaurado e em vigor.

93 Atualmente esse/a autor/a utiliza o nome social Paul Preciado. Entretanto aqui utilizo
Beatriz, pois é o nome presente na obra utilizada.

- 190 -
[...] ‘gênero’, além de um substituto para o termo mulheres, é tam-
bém utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mu-
lheres é necessariamente informação sobre os homens, que implica
o estudo do outro. Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo
das mulheres faz parte do mundo dos homens (...) (SCOTT, 1995,
p. 75).

Na atualidade, em que tecnologias diversas avançam veloz-


mente e que é possível saber, a partir de alguns procedimentos qual é o
‘sexo’ do bebê mesmo antes do seu nascimento, a sujeição às regulações
já começa a ser posta em prática nos âmbitos sociais e familiares (GUI-
ZZO, 2011). Caso um sujeito não atenda a essas regulações no decorrer
de sua vida, haverá grande probabilidade de ele/a ser marginalizado/a,
ignorado/a ou perseguido/a por práticas sociais, crenças ou políticas,
porque – de certo modo – esse sujeito desestabiliza, desacomoda as nor-
mas regulatórias vigentes.
Através de um conjunto articulado de saberes e conhecimen-
tos, fazendo uso de discursos e representações que circulam em nosso
meio social e cultural imensamente tecnológico, podemos aqui apontar
a mídia como aquela considerada como uma das principais e mais im-
portantes instâncias que hoje produzem uma polissemia de significados
na vida das pessoas, educando-as, inclusive no campo do gênero e da
sexualidade. Podemos dizer, inclusive, que a mídia não apenas faz uso
de discursos e representações sociais e culturais sobre as masculinida-
des e feminilidades e sobre o uso dos prazeres; ela os cria, inventa e
produz. Como ferramenta de uso, vale-se de imagens, artefatos, símbo-
los, produtos, sujeitos, ícones e programas como instâncias pedagógicas
por onde circulam múltiplos ensinamentos, integrantes de um conjunto
articulado de sentidos e conhecimentos significativos. A mídia, ao se
projetar como uma pedagogia cultural em nossas vidas, assumindo seu
potente papel educativo, se posiciona, também, como uma rede de so-
cialização em que são partilhadas identidades a serem consumidas.
Em função desses entendimentos que vêm sendo aqui ex-
postos, há uma ideia fortemente propagada de que os sujeitos podem
incluir-se estritamente em duas categorias opostas, distintas e comple-
mentares: masculino e feminino. Guacira Louro (1996, p. 12) afirma
que:
Para muitas(os) de nós, a polaridade parece ser essencial à constru-
ção de gênero. Masculino e feminino se constroem na oposição e

- 191 -
como oposição um ao outro; constituem pólos opostos. Esta pare-
ce ser uma constatação básica em diferentes sociedades e culturas.
No entanto, tal polarização talvez seja não apenas uma constatação,
mas um esquema lógico que, ao nos prender em seu interior, vem
nos dificultando perceber e constituir o mundo de outras formas.

Porém, é preciso considerar que para além das categorias fe-


minino e masculino, heterossexual e homossexual, há outras formas de
viver as identidades de gênero e sexuais que são possíveis. Sobre isso,
Louro (1996, p. 12) afirma que “O desafio de romper este esquema biná-
rio não é, na verdade, nada banal [...]”. Mais do que isso, é fato que ainda
há um longo caminho a percorrer para que desigualdades decorrentes
de diferenças de gênero e sexuais sejam, ao menos, minimizadas.
Ainda assim nos parece importante salientar que embora as
identidades de gênero e as identidades sexuais mantenham entre si uma
relação, que a mesma não é sustentada por um caráter de dependência.
O que isso significa? Que as identidades sexuais (o que é da ordem dos
desejos, dos prazeres e da vivência da sexualidade) não são fixas, termi-
nais e dependentes por conta do sexo biológico dotado dos sujeitos. As
identidades de gênero (o que é da ordem das feminilidades e das mas-
culinidades) são construções sociais e culturais, e não estão ‘presas’ ao
sexo biológico de homens e mulheres.
Pode-se aferir que os Estudos Culturais em Educação e os
Estudos de Gênero - campos de estudo nos quais apoiamo-nos ao de-
senvolver nossas pesquisas - percorrem o entendimento de que nossas
identidades não são fixas, naturais, duradouras, imutáveis, herança ge-
nética dada no momento da nossa concepção e descoberta com o nosso
nascimento. Para ambos, nossas identidades – inclusive as sexuais e de
gênero – são cambiantes, mutáveis, flexíveis, inacabadas, inconclusas,
por vezes contraditórias e ganham múltiplos e variados sentidos, estri-
tamente ligados aos contextos sociais e culturais em que são produzidas
e ressignificadas. Por esse motivo nossas identidades são construídas so-
cial, cultural e historicamente e dão significado à experiência que temos
de nós mesmos, estando em constante criação (WOODWARD, 2000).
Ainda que tenhamos presente em sociedades como a nossa
uma forte tendência e raiz heteronormativa em seus diversos processos
educativos no que tange ao campo da sexualidade, precisamos perceber
que as construções identitárias dos sujeitos perpassam suas distintas vi-
vências e, dessa forma, a sexualidade, assim como o gênero, são constru-
ções muito pessoais e multifacetadas.

- 192 -
Para Stuart Hall (2000, 2002) devemos pensar nas identida-
des culturais como uma constante produção. Não olhar as identidades
como completas, mas sempre num processo inacabado que não se dá
fora da representação.
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes mo-
mentos, identidades que não são unificadas ao redor de um
“eu” coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias,
empurrando em diferentes direções, de tal modo que nos-
sas identificações estão sendo continuadamente deslocadas.
(...) A identidade plenamente unificada, completa, segura e
coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que
os sistemas de significação e representação cultural se multi-
plicam, somos confrontados por uma multiplicidade descon-
certante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma
das quais poderíamos nos identificar — ao menos tempora-
riamente (HALL, 2002, p. 13).
Enfim, é importante esclarecer que o conceito de gênero não
se resume à diferenciação de “papéis” e “funções” femininas e mascu-
linas94, assim como o conceito de sexualidade não se resume ao sexo
biológico do qual os sujeitos são dotados. Quando tais conceitos são
pensados simplesmente como sinônimos de papéis ou de sexo/genitá-
lia, damos margem a se pensar em regras arbitrárias que determinadas
culturas e/ou sociedades impõem aos seus membros, definindo com-
portamentos, modos de ser, modos de se vestir, atitudes, vivência da
sexualidade, etc., e deixamos de problematizar as relações de poder exis-
tentes entre homens e mulheres e a própria construção da sexualidade
enquanto algo da ordem do desejo e dos prazeres dos sujeitos (LOURO,
2007).

DISCUTINDO GÊNERO E SEXUALIDADE EM AM-


BIENTES EDUCATIVOS
Contemporaneamente, tem sido possível acompanhar a cres-
cente visibilidade que determinadas temáticas têm ganhado no cam-
po da educação, dentre elas estão aquelas que se vinculam às possíveis
identidades de gênero e sexuais. Debates, discussões, elaboração de do-
cumentos são algumas das iniciativas que vêm sendo promovidas por
instâncias governamentais com o intuito de proporcionar uma educa-
ção similar para todos e todas.
94 A escrita desse capítulo toma como referências principais os Estudos Culturais em Educa-
ção e os Estudos de Gênero que se vinculam à perspectiva pós-estruturalista de análise.

- 193 -
Tem se defendido que as escolas, ao invés de reiterar posições
que mulheres e homens devem assumir, precisam promover discussões
cujo propósito vincular-se-ia ao questionamento a respeito de lugares
que os sujeitos, dependendo do gênero, e das identidades sexuais que vi-
venciam, tradicionalmente, ocupam. Há a necessidade de desmanchar o
que está cristalizado como sendo verdadeiro ou adequado e mostrar que
características e funções tomadas como “naturais” a mulheres e homens
não são pautadas única e exclusivamente por aspectos biológicos, mas
são – também – pautadas por aspectos sociais e culturais.
Para pensar sobre isso é profícuo trazer para essa discussão
o conceito de identidade. Conforme Louro (2007, p. 240), em algumas
vertentes teóricas, “se entende a identidade como algo que é essencial
ao sujeito, como aquilo que lhe dá coerência ao longo da vida”. Entre-
tanto, de acordo com a mesma autora, vertentes pós-estruturalistas têm
assumido o entendimento de que nossas identidades (de gênero, de se-
xualidade, de raça, por exemplo) são construídas no âmbito da cultura
e da história e que, além disso, elas são fragmentadas, contraditórias,
instáveis e plurais.
A seguir, são trazidos alguns exemplos que mostram possibi-
lidades de se problematizar as questões de gênero dentro do ambiente
escolar.
Um deles vincula-se à pesquisa de mestrado realizada por
Aline Ülrich Bloedow (2015). Ela procurou discutir e problematizar
as falas de alunos e alunas pertencentes ao Ensino Médio sobre as re-
presentações de feminino exibidas no programa televisivo Pânico na
Band95. Para isso ela selecionou trechos do programa em que, de certo
modo, as mulheres eram posicionadas como objetos a serem desejados
e consumidos. Ou seja, o enquadramento das imagens recaía sobre de-
terminadas partes de seus corpos, especialmente peitos e bunda.
Um dos quadros exibido e discutido com o grupo de jovens
intitulava-se “Mulheres Papáveis”. O quadro foi gravado ao ar livre, em
uma praia na qual algumas mulheres eram abordadas. Essas mulheres
eram entrevistadas e, em seguida, questionadas se queriam concorrer
ao título de “Mulher Papável”. Se a resposta fosse positiva, era feito um

95 O Pânico na Band é veiculado semanalmente aos domingos à noite pela emissora Band.
Tem como apresentador principal Emílio Surita. De acordo com a campanha “Quem Financia
a Baixaria é Contra a Cidadania”, da Comissão de Direitos Humanos, o programa incita o
machismo e desvaloriza a imagem da mulher na medida em que a expõe quase que exclusiva-
mente como objeto de desejo sexual (BLOEDOW, 2015).

- 194 -
“Conclave” através da votação de homens que estavam nas proximida-
des. As candidatas eram convidadas a dar “voltinhas”; além disso, me-
didas dos quadris e dos bustos eram tiradas. Se a mulher fosse eleita
papável (ou seja, se ela fosse sarada e dotada de bunda e peitos grandes)
uma fumaça branca era solta, se eleita não papável, a fumaça era preta.
Ainda segundo a autora, o quadro foi pensado na mesma época em que
estava para sair o resultado do “Conclave” da Igreja Católica que elegeria
o novo Papa, daí o título do quadro (BLOEDOW, 2015).
As discussões em torno do quadro foram em distintas di-
reções: alguns alunos e algumas alunas apontaram a representação de
mulher-mercadoria (alvo de olhar e desejo masculinos) salientada pelo
programa; outros/as culpabilizaram as mulheres que aceitaram parti-
cipar do quadro, argumentando que elas estavam aproveitando-se da
situação para conquistarem fama e para se sentirem desejadas. A outra
direção vinculou-se ao entendimento de que as mulheres participantes
eram despudoradas, desavergonhadas e desvalorizantes.
A partir das discussões desenroladas pelos sujeitos da referida
pesquisa, é possível afirmar que as temáticas de gênero e de sexualida-
de precisam estar presentes no cotidiano das instituições educacionais
com o intuito de desmistificar estereótipos que reiteram determinadas
posições como sendo “naturalmente” femininas ou masculinas. Outro
aspecto que choca atrela-se ao julgamento moral que meninos e me-
ninas fizeram das mulheres participantes do quadro. Segundo Louro
(2009), tal julgamento pode ser entendido como uma herança sexista
que é realimentada pelas escolas, pelas famílias e também pela mídia.
Bloedow (2015, p. 96), sobre isso, salienta que “[...] numa sociedade bra-
sileira sexista em que o homem é o polo dominante e que ‘tem direitos
de posse’ sobre a mulher, o título ‘Mulheres Papáveis’ encontra terreno
fértil para reproduzir tal significado”.
Outra pesquisa que também propôs a discussão das questões
de gênero e de sexualidade no âmbito escolar foi de Evelyn Santos Perei-
ra (2016). Ela propôs discussões a um grupo de jovens meninas perten-
centes ao Ensino Médio de uma instituição de ensino público do litoral
norte do Rio Grande do Sul. Para deflagar as discussões, ela utilizou sel-
fies96 em que jovens mulheres estavam em poses sensualizadas. Uma das
discussões desencadeadas vinculou-se ao vazamento não autorizado de
96 A palavra selfie ganhou, recentemente, popularidade em diversos países opara designar a
prática de fazer fotos de si mesmo(s)/mesma(s) utilizando a câmera do celular, a webcam ou
uma câmera fotográfica (PEREIRA, 2016).

- 195 -
selfies em que meninas aparecem nuas ou seminuas. Muitas meninas
argumentaram que, ao enviar uma selfie (seja para um namorado/a ou
para um grupo de amigos/as), as meninas devem saber que sofrerão
consequências, caso a foto se espalhe na rede.
Nesse encontro elas mencionaram o caso de uma colega que
enviou uma selfie seminua ao namorado e, ao término do namoro, ele
tratou de enviá-la a um número significativo de colegas da escola em
que estudavam. O pai da menina também teve acesso à foto, o que o le-
vou a, ao final de um dia de aula, ir até a escola e dar, publicamente, uma
surra em sua filha. Tal fato repercutiu entre os diferentes membros dessa
comunidade escolar, gerando discussões e embates que diziam respeito
às relações de gênero e de sexualidade estabelecidas na contemporanei-
dade.
Louro (2000) salienta que sobre os comportamentos femini-
nos redobra-se a vigilância, porém tal vigilância algumas vezes acaba
não sufocando a curiosidade, o interesse, a experimentação. Entretanto,
como no caso da menina supracitada, seu ato acarretou a censura e o
controle por parte de seu pai, além de ter sido submetida a sentimentos
como culpa e vergonha, por ter – de certo modo – infringido normas
que ainda vigoram para ela enquanto sujeito do gênero feminino.
Além disso, tal episódio nos faz pensar sobre as opiniões das
próprias meninas sobre a colega cuja foto em que aparecia seminua ti-
nha vazado. Muitas delas, afirmaram que ela era “sem-vergonha”, que
merecia a surra dada pelo pai, já que ele precisava “mostrar publicamen-
te que não concordava com o que sua filha havia feito”.
Nas falas das meninas fica evidente a predominância de re-
presentações femininas forjadas por discursos masculinos de poder.
Discursos esses (re)criados e postos em circulação desde há séculos
e que ainda hoje ganham status de verdade: meninas/mulheres, por
exemplo, devem ser recatadas e comportadas, caso contrário, merecem
ser penalizadas e submetidas a situações de constrangimento.
Pereira (2016) salienta que tem se tornado frequente o va-
zamento de fotos íntimas publicadas e compartilhadas sem que haja o
consentimento das protagonistas, o que as leva a viverem sentimentos
de culpa e vergonha. Em alguns casos, como no de uma menina de 16
anos da cidade de Veranópolis/RS, o desfecho foi fatal, já que a situação
levou a menina envolvida ao suicídio. Segundo Pereira (2016), o namo-

- 196 -
rado dessa menina fez um printscreen97da tela do computador em uma
conversa através da webcam em que ela aparecia mostrando os seios. Ao
término do namoro, o garoto enviou a imagem para alguns amigos e a
foto se espalhou na rede. Em função da pressão sofrida, a menina enfor-
cou-se com um fio de seda.
Esse exemplo mostra o quão forte ainda são as normas esta-
belecidas com relação às possibilidades e às proibições com relação ao
feminino. Como argumentou Haraway (2004), o conceito de gênero foi
pensado com o intuito de contestar a naturalização da diferença sexual
que acaba por posicionar homens e mulheres de maneira diferenciada
e, até, hierarquizada.
Outra pesquisa que pode aqui ser apresentada como deflagra-
dora de discussões sobre as identidades de gênero e sexuais dos sujeitos
é a dissertação de mestrado de Ana Carolina Sampaio Zdradek (2017).
A pesquisadora propôs, a partir de alguns disparadores de discussão
selecionados em forma de quatro artefatos apresentados ao grupo de
dezenove jovens em idade escolar que participaram do estudo organiza-
do através do aplicativo de mensagens instantâneas WhatsApp, a proble-
matização sobre o tensionamento e os entrelugares no qual acontecem
as conexões e a produção de identidades entre os/as jovens. Um artefato
em especial, o aplicativo móvel de embelezamento instantâneo deno-
minado YouCamMakeUp suscitou entre os/as participantes da pesquisa
a discussão sobre o poder do embelezamento em uma câmera frontal.
O aplicativo em questão foi criado em 2014 e na época da pesquisa já
havia batido a marca de 100 milhões de downloads, sendo considerado
o aplicativo de maquiagem número um do mundo. O aplicativo possi-
bilita que o/a usuário/a transforme e edite a sua aparência em imagem
e movimento por meio da câmera frontal do celular. Como a pesquisa
de mestrado de Zdradek, intitulada “Olha o meu post! Juventudes em
tempos líquidos: um estudo sobre consumo e artefatos culturais das
mídias digitais” buscava discutir e problematizar a constituição dos/as
jovens na contemporaneidade marcados/as pelos aparatos tecnológicos,
tal aplicativo móvel oportunizou essa discussão em torno das denomi-
nações e representações de gênero e sexuais dos/as jovens participantes.
Ao olhar para essa ferramenta constitutiva, a pesquisadora fez os se-
guintes questionamentos: Quem que este aplicativo quer que os/as jo-
vens se tornem? Como os/as jovens se veem interpelados por instâncias
educativas como este aplicativo móvel?

97 Comando que permite transformar em imagem o conteúdo da tela.

- 197 -
As discussões apontam para um fato muito alarmante: prati-
camente todos/as os/as participantes demonstraram a insatisfação con-
temporânea com o próprio corpo, corpo este visibilizado e produzido
por meio de imagens fotográficas no ciberespaço. Tal insatisfação tem
levado muitos sujeitos a aderirem a tais práticas contemporâneas de
produção e de distorção de suas imagens de si. O grupo de participan-
tes afirmou que ainda que o produto final após o uso do aplicativo seja
“algo que não sou”, é a possibilidade de celebrar as inúmeras curtidas
das fotos disponibilizadas nos sites de redes sociais que alavanca o seu
uso contínuo.
E é nesse sentido que Louro problematiza que os espaços edu-
cativos e sociais, ao inscreverem uma série de normas e regras às nossas
vidas, faz com que “aprendamos a viver o gênero e a sexualidade na
cultura, através dos discursos repetidos da mídia, da igreja, da ciência e
das leis também [...]”. O aplicativo em questão educa que, por seus ele-
mentos serem do universo feminino, aquele aparato não é para homens,
bem como ensina que mulheres que celebram sua “feminilidade”, devem
aderir e gostar de fazer uso de artefatos digitais como este. Marcas sutis
que são traçadas por diversas instâncias, como as digitais e tecnológicas.
Outras pesquisas que podem aqui também ser apresentadas
são as que desenvolvemos em nossos doutoramentos. A Tese de Dou-
torado de Dinah Quesada Beck, intitulada “Com que roupa eu vou?
Embelezamento e Consumo na composição dos uniformes escolares in-
fantis ocupou-se de problematizar, discutir e investigar a produção das
identidades de gênero femininas infantis escolarizadas marcadas pelo
processo de pedofilização como prática social contemporânea. O estudo
empreendido buscou responder em sua narrativa, mesmo que proviso-
riamente, a seguinte questão: de que forma as práticas de uniformização
escolar infantil interferem no modo como as meninas investem, em seus
corpos, padrões estéticos e corporais de embelezamento e consumo tão di-
fundidos em nossa sociedade e propagados pela escola na constituição de
suas identidades de gênero? Foram desenvolvidas entrevistas semiestru-
turadas com crianças e com profissionais da escola em questão, no intui-
to de produzir dados acerca do problema pesquisado. A pesquisadora
desenvolveu, também, observações em momentos livres das crianças na
escola num período aproximado de seis meses, registrados num cader-
no de anotações, com o intuito de problematizar, discutir e investigar o
problema de pesquisa apontado.

- 198 -
O estudo suscitou a compreensão de que as práticas de com-
posição em torno dos uniformes escolares infantis, glamourosamente
produzidas pela escola e propagadas pelas crianças estabelecem uma
consistente relação entre consumo e embelezamento dos corpos, de-
marcando dois processos recorrentes em tais práticas: pertencimento e
erotização autorizada. Em tal prática escolar foi possível também perce-
ber a demarcação de discursos e representações sociais e culturais con-
temporâneos da importância do maciço investimento, desde a infância,
nos corpos, na imagem e na aparência, reforçando a adesão das meninas
na produção/composição de suas identidades de gênero.
Diariamente as crianças compunham seus visuais uniformi-
zados, utilizando a variedade de peças que integraram o vasto rol de pe-
ças dos uniformes da escola em questão, bem como faziam uso de uma
série de intervenções estéticas (maquiagem, cabelo, acessórios), suge-
rindo alguns questionamentos acerca de tal prática: que razões e princí-
pios levavam uma instituição a sugerir e a implementar a possibilidade
de variação da vestimenta para ir à escola? Que ideários eram afixados
naqueles que consumiam e trajavam diferentes peças do uniforme (e
outras tantas também)? Que noção de infância escolarizada se produzia
e se propagava neste meio? Que representações de corpo uniformizado
a escola parecia desejar ver inscritas nos corpos infantis? Será que des-
te modo e com a difusão de tal proposta a escola não estava, de certo
modo, aproximando-se de práticas de consumo e embelezamento na
infância e distanciando-se, ou ainda, deixando para um segundo plano,
sua primordial função, o ensino?
Com o tempo, e em especial durante o desenvolvimento da
pesquisa foi possível perceber que tal proposta de uniformização do
vestuário escolar não se convertia num distanciamento da escola de sua
principal função, o ensino, mas, sim, que a proposta para os uniformes
escolares era também, uma de suas práticas pedagógicas educativas, di-
fundidas pela instituição. Proposta essa, que ao sugerir e possibilitar a
variação das peças dos uniformes educava as crianças a cuidarem de
suas imagens e aparências e sugeria, nesse revestimento, um pertenci-
mento social e cultural vinculado à moda, ao embelezamento, ao consu-
mo e à produção dos corpos almejado pela escola. Também foi possível
perceber que cuidar do corpo, educando-o, imprimindo desígnios de
gênero e assegurando uma matriz heterossexual através das vestimentas
sugeridas pela escola foram mecanismos adotados por essa instituição

- 199 -
ao longo de sua trajetória como princípio educativo disciplinar e regu-
lador dos corpos, ainda que os mesmos, em alguns momentos, suscitas-
sem composições sensuais e erotizadas.
A pesquisa de Bianca Salazar Guizzo, de título “Aquele negrão
me chamou de leitão!”: representações e práticas corporais de embele-
zamento na Educação Infantil procurou discutir os seguinte objetivos:
1) apresentar como determinadas representações de gênero e de sexua-
lidade, construídas e reiteradas diariamente por meio das mais diversas
pedagogias culturais e visuais, ecoam e circulam, como verdades quase
que absolutas, no ambiente educacional infantil; 2) a partir dessas re-
presentações propagadas em diferentes meios culturais e sociais na con-
temporaneidade, mostrar como as meninas dessa turma investem em
certas práticas corporais para serem consideradas belas. Para tanto rea-
lizou pesquisa de campo em uma turma de crianças vinculada à Educa-
ção Infantil. Os resultados da pesquisa apontaram que pelo fato de que
na contemporaneidade questões relacionadas à aparência e à imagem
do corpo serem reconhecidas como elementos centrais nos processos de
constituição de identidades desde a infância, as meninas da turma – em
especial – preocupavam-se excessivamente com as suas aparências e,
desde muito pequenas, valiam-se de estratégias para se sentirem belas,
ou seja, o embelezamento mostrou-se como um aspecto que marcava
fortemente o modo como aquelas meninas viviam suas feminilidades.
Tal preocupação provavelmente é construída a partir das re-
presentações e imagens aos quais elas têm acesso através de diversos
meios. Em função da intensa presença de representações e imagens,
meninas, em especial, são encorajadas a investir em seus corpos, o que
colabora na constituição de suas identidades. Elas, muitas vezes, de-
monstravam almejar ter corpos perfeitos e investiam em práticas para
esconderem seus “defeitos”. Entretanto, os investimentos dos quais se
valiam não foram analisados como “naturais” ao comportamento femi-
nino, mas como parte de uma construção histórica, social e cultural.
Através de algumas das situações aqui apresentadas é possível
perceber que existe dentro dos espaços escolares uma certa vigilância
dos corpos e das condutas de seus alunos e alunas. A partir de visões
pautadas nas diferenças anatômicas, professores direcionam os alunos
para a construção de um comportamento aceito pela sociedade como
sendo próprio para homens e mulheres. Essa atitude dos professores
mesmo que não intencional acaba afirmando as desigualdades de gêne-

- 200 -
ro e sexualidade dentro da escola. A respeito da importância que a esco-
la tem na construção das identidades dos sujeitos e na demarcação das
diferenças, Dagmar Meyer e Rosângela Soares (2013, p. 8) afirmam que:
Desde sua constituição, a escola é marcada por diferenças e está im-
plicada, também, com a produção dessas diferenças. Embora não
seja possível atribuir a ela toda a responsabilidade pela construção
das identidades sociais, ela continua sendo para crianças e jovens
um local importante de vivências cotidianas específicas e, ao mesmo
tempo, plurais.

Entretanto, apesar da intensificação das discussões em torno


das identidades de gênero e sexuais nas últimas décadas, a produção de
normas culturalmente aceitas no que diz respeito aos comportamentos
de homens e mulheres ainda é uma função central da autoridade social
e cultural e está mediada pela complexa interação de um amplo espectro
de instituições educacionais, sociais, políticas e religiosas (CONWAY,
BOURQUE e SCOTT, 2003).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mesmo que a chamada “política de identidades” (relacionada
aos movimentos políticos e culturais por meio dos quais grupos histo-
ricamente subordinados vêm lutando por reconhecimento e respeito às
suas experiências e à sua história) venha se expressando desde o final da
década de 1960 de forma crescente, ainda há um longo percurso a seguir
no sentido de minimizar privilégios que são atribuídos a uns em função
de marcadores sexuais e de gênero.
Nesse percurso, a escola apresenta-se como um importante
espaço que reforça e aprofunda determinados discursos e representa-
ções que circulam em uma sociedade, mas pode – como foi mostrado
com os exemplos trazidos – tornar-se um espaço para a problematiza-
ção e para a discussão de questões relacionadas a gênero e a sexualidade,
que tenham como objetivo mostrar o caráter histórico, social e cultural
da construção das nossas identidades.
Como locais de importantes vivências cotidianas e de apren-
dizagens que são as escolas, precisamos vê-las como aquelas que ampla-
mente implicam nessa construção das identidades culturais de crianças
e jovens. Mas, também, como uma “instância imersa nas complexas
relações sociais e culturais contemporâneas” e, por isso, a necessidade

- 201 -
de perceber que suas práticas em torno dos corpos revelam sua adesão
(e produção, certamente) aos desígnios do tempo presente (MEYER e
SOARES, 2007).
Berenice Bento (2008) afirma que as escolas ainda têm, pre-
dominantemente, cumprido o papel de reprodutora de visões naturali-
zadas das relações sociais, entretanto, aos poucos, interessantes debates
têm atravessado a sociedade brasileira e, simultaneamente, têm sido le-
vados para as salas de aula. Nesse sentido, é relevante que as escolas se
preocupem com
A desnaturalização dos fenômenos sociais – ou seja, tomá-los não
como algo desde sempre dado, mas como algo historicamente cons-
truído – é um primeiro passo para intervir nesses fenômenos. Saber
como chegamos a ser o que somos é condição absolutamente neces-
sária, ainda que insuficiente, para resistir, para desarmar, reverter,
subverter o que somos e o que fazemos (VEIGA-NETO, 2003, p. 7).

Enquanto professores/as, é muito provável que nossas atitu-


des, nossas opiniões produzam efeitos sobre as identidades e subjeti-
vidades de nossos alunos e alunas, ou seja, eles/as aprendem não só a
partir dos conteúdos curriculares pelos quais somos responsáveis quan-
do ministramos certa disciplina, mas aprendem também a partir dos
posicionamentos que tomamos e das opiniões que expressamos. Muitas
vezes as temáticas sobre as quais estamos falando acabam sendo traba-
lhadas de maneira episódica e pontual, o que talvez contribua pouco
para a constituição de uma sociedade mais similar para todos e todas.
São os nossos posicionamentos e opiniões que contribuem para que
nossos/as alunos/as aprendam sobre gênero, sexualidade, diversidade
e diferenças. Então, mesmo que não intencionalmente, várias situações
com as quais nos envolvemos e as quais colocamos em prática ensinam
e dizem sobre identidades de gênero e sexuais.
Por fim, convém reiterar que as instituições escolares, ao invés
de mostrarem-se como espaços que reforçam determinadas posições
em relação aos gêneros, poderiam por em andamento discussões que
tenham como propósito analisar como e por que surgem preconceitos
e discriminações, como e por que há a falta de oportunidades para uns/
umas e privilégios para outros/as. Para isso, como mencionou Alfredo
Veiga-Neto (2003), é necessário procurar desnaturalizar aquilo que já se
tornou corriqueiro, senso comum em relação às nossas habituais classi-
ficações e marcações quando o assunto é gênero e sexualidade.

- 202 -
REFERÊNCIAS
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2008.
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- 204 -
LUTA E LIBERTAÇÃO: SENTIDOS E
SIGNIFICADOS DAS VIVÊNCIAS DE
ESCOLARIZAÇÃO DAS TRAVESTIS E
TRANSEXUAIS NA ESCOLA98
Ane Caroline Coutinho Nunes99
Andrews do Nascimento Duque100
André Luiz Machado das Neves101
Iolete Ribeiro da Silva102

RESUMO: Este capítulo privilegia reflexões produzidas mediante narrativas de um


grupo de travestis e transexuais de diferentes classes sociais de Manaus. De forma
geral, os relatos das interlocutoras indicam uma compreensão positiva sobre a es-
cola como uma instituição que pode contribuir para a superação dos processos de
exclusão comumente vivenciados/as por pessoas transexuais e travestis. Elas consi-
deram que a escolarização significa para a possibilidade de terem uma profissão e,
concomitantemente, serem reconhecidas e respeitadas. Porém, os resultados desta
pesquisa apontaram que temos um longo caminho pela frente, para que a escola
possa se transformar em um espaço que pode libertar, abrindo os caminhos para a
profissionalização das pessoas trans. Assumir que a escola também exclui e produz
sofrimento, na maioria das vezes, é um passo importante para a transformação des-
se lugar na direção da libertação e do acolhimento das identidades trans.

Palavras-chave: Travesti. Transexual. Escola. Identidade de gênero.

INTRODUÇÃO
Este capítulo é fruto de reflexões produzidas a partir dos da-
dos construídos em uma pesquisa realizada com um grupo de travestis
e transexuais de diferentes classes sociais na cidade de Manaus. A ênfase
da pesquisa foi a descrição da produção de sentidos e significados das
vivências delas/deles na educação básica.
A escola é uma instituição social de grande importância na
sociedade e pode se constituir em espaço de promoção dos processos
98 Agradecemos o apoio recebido do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e
Tecnológico - CNPq Brasil e pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado do Amazonas –
FAPEAM.
99 Psicóloga, graduada pela Universidade Federal do Amazonas.
100 Psicólogo, mestre em psicologia pela Universidade Federal do Amazonas.
Professor da Escola Superior Batista – ESBAM.
101 Psicólogo, doutor em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Professor da Universidade Estadual do Amazonas.
102 Psicóloga, doutora em psicologia pela Universidade de Brasília. Professora da Univer-
sidade Federal do Amazonas.

- 205 -
de desenvolvimento e de aprendizagem. Para além da função pedagógi-
ca, a escola atua na reprodução de valores, crenças, práticas sociais que
circulam na sociedade e que muitas vezes implicam em preconceitos e
violências. Por outro lado, é também na escola que temos contato com
conhecimentos/aprendizagens pertinentes para que uma pessoa seja in-
serida na sociedade (REGO, 2003). A escola se constitui, dessa forma,
em contexto importante na promoção do desenvolvimento do indiví-
duo, interferindo nas escolhas de vida, profissionais, afetivas etc.
Na perspectiva histórico-cultural entende-se que o desenvol-
vimento se dá em um contexto sociocultural e a partir das interações
sociais. As pessoas para se desenvolverem, necessitam da convivência
com outros. É por meio das interações sociais que construímos aprendi-
zagens, por meio do contato com indivíduos mais experientes cultural-
mente. A escola é um dos lugares privilegiados para essas aprendizagens,
pois internalizamos expectativas e objetivos socialmente orientados,
aprendemos tecnologias, elaboramos novos conhecimentos. Portanto,
ter a possibilidade de estar na escola afeta diretamente a possibilidade
de estar inscrito na sociedade para a maioria das pessoas.
No contexto das práticas pedagógicas entende-se que

[...] as relações educativas constituem-se de ações de mediação. Os


elementos da cultura, advindos da criação artística, científica, do
cotidiano são o material aos quais os encontros de ensino e apren-
dizagem dão conformação pessoal e irrepetível” (FERNANDES;
CARVALHO; CAMPOS, 2012, p. 107).

Esse processo de escolarização participa da produção das


subjetividades, podendo suscitar repressões ou sanções quando um su-
jeito não atende as expectativas de seu grupo.
Ao problematizar o processo de escolarização, Louro (2012)
afirma que o sistema de educação impõe um modelo de escolarização
heteronormativo, binário e sexista. Esse modelo transversalizado, pela
lógica da heteronormatividade103, esquadrinha corpos de meninos e
meninas que, segundo essa lógica, devem estar e crescer/desenvolver-se
“no seu devido lugar”. Essa lógica opera por meio de mecanismos, em
103 Aquelas instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que não apenas
fazem com que a heterossexualidade pareça coerente – ou seja, organizada como sexualidade
– mas também que seja privilegiada. Sua coerência é sempre provisional e seu privilégio pode
adotar várias formas (que às vezes são contraditórias): passa desapercebida como linguagem
básica sobre aspectos sociais e pessoais; é percebida como um estado natural; também se pro-
jeta como um objetivo ideal ou moral (BERLANT; WARNER, 2002, p. 229).

- 206 -
que se diferenciam corpos e mentes dos alunos. Banheiros, materiais es-
colares, roupas, cores, brinquedos, brincadeiras, geralmente fazem par-
te do repertório de mecanismos que farão com que esses alunos sejam
educados/as a performatizarem de acordo com o binarismo socialmente
construído do ser menino e menina.
Neste capítulo damos ênfase ao processo de escolarização de
travestis e transexuais. As pessoas travestis e transexuais deslocam, ne-
gociam, reconstroem outra forma de exercerem sua sexualidade e gêne-
ro. As pessoas travestis e transexuais não operam conforme o binaris-
mo socialmente construído, portanto, na maioria das vezes, encontram
dificuldades para acessar e permanecer no ambiente escolar (PEREZ,
2005).
A escolarização pautada na lógica da heteronormatividade
pode influenciar nas significações atribuídas por pessoas que não se
encaixam nesta lógica macho=menino, fêmea=menina, sendo conside-
rados abjetos, podendo receber sanções por isso. Nesse contexto, este
capítulo se baseou em uma perspectiva de compreensão dos aspectos
subjetivos das travestis e transexuais durante o processo de escolariza-
ção, e propõe explorar a produção de sentidos e significado decorrentes
das suas vivencias escolares.
O acesso à produção subjetiva de um grupo de cinco pessoas
que se auto identificaram como travestis ou transexuais se deu a partir
da realização de grupo focal. Foram quatro mulheres trans e uma tra-
vesti. As idades das interlocutoras variaram entre vinte e trinta e cinco
anos. Uma tinha o ensino fundamental incompleto, outra com o ensi-
no médio completo, duas com superior incompleto e uma com ensino
médio profissionalizante. Os relatos do grupo focal foram transcritos
e submetidos à análise dos núcleos de significação para apreensão de
sentidos proposta por Aguiar e Ozella (2013).
Nas próximas seções apresentaremos dados construídos a partir
dos discursos das entrevistadas e da discussão à luz da abordagem históri-
co-cultural. Após a leitura das transcrições foram definidos os pré-indica-
dores, indicadores e núcleos de significação, apresentados no Quadro 01 e
02. Apresentaremos dados parciais referentes a dois núcleos de significação.
O primeiro núcleo aponta para uma compreensão da escola como um pos-
sível espaço de libertação; o segundo núcleo aponta as contradições da es-
cola como lugar de luta constante em busca de inclusão, mas que na maioria
das vezes produz a exclusão de pessoas consideradas indesejáveis.

- 207 -
A ESCOLA COMO POSSIBILIDADE DE SERMOS VIS-
TAS COMO “PESSOAS NORMAIS” E OBTER UMA
PROFISSÃO.
De forma geral, os relatos registrados no grupo focal indicam
uma compreensão positiva sobre a escola como uma instituição que
pode contribuir para a superação dos processos de exclusão comumente
vivenciados/as por pessoas transexuais e travestis.

Quadro 01. A escola como possibilidade de obter reconhecimento e vida


digna
PRÉ-INDICADORES INDICADORES NÚCLEO DE SIGNIFICAÇÃO

1 Ter um trabalho digno


2 ter uma vida digna 1. Vida digna
3 ser mais digna
4 vencer o mundo 1 . A escola como possibilidade
de sermos vistas como “pessoas
5 Formação normais” e obter uma profissão.
6 formação de trabalho 2. Ter um trabalho
7 Ter um trabalho digno
8 ter um diploma
9 tirar minha graduação
10 ver (estar) num bom
trabalho
11 ser bem representada
12 a humanidade aceitar
3. Ser aceita
13 não é um bicho de sete
cabeças
14 ter um reconhecimento
eu tinha que estudar
15 pra poder ter lugar na
sociedade
Fonte: Elaborado pelas (os) autoras (es).

Entre as participantes entrevistadas, Beatriz e Laura104 produ-


ziram os sentidos sobre a escolarização em torno de um eixo comum:
ter um trabalho. Primeiramente, Beatriz narra que estar na escola é par-
te de um esforço cotidiano para “estar na norma”. A “vida digna”, em

104 Foram atribuídos nomes fictícios a todas as participantes da pesquisa.

- 208 -
sua perspectiva, poderia ser adquirida na escola, uma vez que o estudo
possibilitaria conquistar “trabalho fixo”.
Para Beatriz e Laura, se as travestis e transexuais estudam e
obtém uma formação acadêmica, a sociedade pode vir a enxerga-las
como “pessoas normais”. Beatriz relatou:
[...] para gente travesti, é ter um trabalho digno, né? Ter uma for-
mação, ajudaria as pessoas não verem a gente como garotas de pro-
grama e sim como pessoas normais. Eu posso trabalhar, eu posso
estudar, eu terminei meus estudos, posso ter uma vida digna normal
de estudo e vê que a gente pode estar aí igual a vocês e ter um tra-
balho fixo normal.

O sentido produzido por Beatriz revela a escolarização como


um processo de legitimação de sua existência por meio do cumprimen-
to da norma. Esse processo significaria que ao reproduzir os padrões
sociais (a norma), consequentemente, seria alcançada a dignidade. Bea-
triz considera que a escolarização é a possibilidade de se igualar aos
padrões sociais convencionados como normais. Conforme Picchetti e
Seffner (2016, p. 80),
[...] a norma tem relação direta com nossos desejos e prazeres, e
com noções morais do permitido e do proibido. Atender a norma
em geral nos dá prazer, não é visto como algo ruim ou que fazemos
de modo forçado. Nos sentimos reconhecidos, existimos, na medi-
da em que estamos na norma.

A escolarização narrada por Beatriz seria a oportunidade que


lhe forneceria legitimidade e a instrumentaria a viver na sociedade em
igualdade de condições às outras pessoas. Beatriz, embora descontrua a
norma de gênero, busca em outros aspectos de sua vida o ajustamento
constante às normas hegemônicas. Picchetti e Seffner (2016) destacam
que várias das instituições do nosso convívio oscilam entre reiterar a
norma ou apresentar possibilidades de resistir a ela.
A escolarização é um direito negado à maioria das travestis e
transexuais. Não basta ingressar na escola; a permanência e a conclusão
dos estudos são grandes desafios.
Dada a constante reprodução de preconceitos e violências não
é fácil conviver cotidianamente com reprovação, assédios, violências de
várias ordens. A escola precisa assumir o compromisso de promover o
direito a educação para que a escolarização assuma esse caráter libertador.

- 209 -
Assim como Beatriz, Laura também atribuiu sentidos da esco-
larização vinculados a trabalho/profissionalização. E é exatamente esse
direito de ingresso no mundo do trabalho que lhe é negado ao afirmar:
A sociedade inteira marginaliza a travesti de toda maneira possível,
né? Ela exclui da escola, exclui do trabalho. O que consequentemen-
te contribui para a marginalização, pois bem sabemos da importân-
cia dada aos estudos e à profissão em nossa sociedade. (Informação
verbal)

Os sentidos construídos por Laura nos remetem à compreen-


são de que a sociedade marginaliza todos os que escapam à “norma”, no
caso dela, a construção social de gênero. Embora Laura tenha produzi-
do sentidos sobre a escolarização, vinculados à importância da profis-
sionalização e estudos, considera que a escolarização lhe é negada por
meio da exclusão e da marginalização. Louro (2010) e Pinho e Pulcino
(2016) refletem que a escolarização em sua maioria assume um desenho
pautado na regulação de corpos e padrões culturais socialmente cons-
truídos, direcionada para uma educação não democrática. Cruz (2008)
aponta que a escola e diversos espaços sociais são lugares onde há regu-
lação de posturas e modos a partir do biológico.
Cruz expressa, ainda, que a escola e outros espaços sociais
fazem esforços para reafirmar a regra heteronormativa e silenciam as
outras manifestações da sexualidade e gênero. Outro aspecto levantado
pelo autor é que o cotidiano escolar pode proporcionar um ambiente de
exclusão, permeado por dificuldades frente à diversidade. Como exem-
plo, o caso de as travestis serem constrangidas pelo fato de ser negado
a elas o uso do nome social ou na realização de tarefas simples como o
uso do “banheiro feminino”.
Quando questionamos sobre o cotidiano escolar e a experiên-
cia na escola, Sofia respondeu:
Se é difícil para uma mulher ou homem supostamente ‘normal’,
imagina para um transexual ou uma travesti, entendeu? Ninguém
sabe como tratar muitas vezes. E não é só os alunos, os professores
também! Têm muita piada, é professor e aluno fazendo piadas sobre
a gente. Não chama pelo nosso nome social. Então não é um cami-
nho fácil a ser percorrido. (Informação verbal)

No relato de Sofia, apresenta-se um sentido sobre escolariza-


ção, alicerçado em torno da dificuldade de conviver no ambiente esco-
lar. Isso torna o processo de escolarização difícil de ser percorrido. Os
professores e alunos reafirmam e legitimam um não lugar das travestis/

- 210 -
transexuais na escola. Numa visão histórico-cultural, o/a professor/a
pode ser um agente de transformação social, contudo, faz-se necessária
uma educação humanizada, que promova a igualdade pautada no res-
peito às diferenças. O/A professor/a ao se fazer protagonista na promo-
ção da equidade de direitos é construtor de novas alternativas. É promo-
vendo autonomia que as pessoas podem construir um projeto de vida e
se desenvolver (GONZÁLEZ-REY, 2003). Contudo, conforme pode ser
visto na fala de Sofia, notamos a ausência do/a professor/a que fomente
isso na comunidade escolar.

A ESCOLA COMO ESPAÇO DA CONTRADIÇÃO: POS-


SIBILIDADES DE LUTA E LIBERTAÇÃO
A escola, ao mesmo em que é percebida como um lugar, onde
é possível desenvolver-se, também é vivenciada como arena de luta em
busca de inclusão e equidade e como espaço de sofrimento e exclusão.
O Quadro 2 mostra a organização dos pré-indicadores, indi-
cadores e núcleo de significação.
Quadro 2. Vivências de inclusão e de exclusão
PRÉ-INDICADORES INDICADORES NÚCLEO DE SIGNI-
FICAÇÃO
16 me deixava muito feliz
17 um caminho muito prazeroso

18 foi maravilhosa

19 eu era babado

20 eu era um bom aluno

21 Mal

22 sempre mal 2. Prazer, luta e liber-


tação: a gramática da
23 não é um caminho fácil exclusão e inclusão

24 não tem um acolhimento ideal

25 Luta 5. Luta diária

26 experiência muito terrível

27 uma luta diária

28 não foi um mar de rosas

29 somos vistas com outros olhos

- 211 -
30 uma necessidade

31 necessidade de aprender

o conhecimento é o que vai te 2. Prazer, luta e liber-


libertar da cadeia de precon- 6. Libertação tação: a gramática da
32
ceito exclusão e inclusão

educação é que vai libertar ela


33 da marginalização

Fonte: Elaborado pelas (os) autoras (es).

Identificamos que a experiência das pessoas travestis e transe-


xuais acionam a gramática da exclusão e inclusão e suas múltiplas con-
jugações. Partindo do pressuposto que cada experiência é subjetiva, a
vida das travestis e transexuais na escola são significadas de diferentes
formas (Quadro 2). Ao mesmo tempo em que a escola pode ser um
espaço de acolhimento, libertação dos preconceitos, por outro lado, ela
pode ser significada através da indiferença e de luta diária para as tra-
vestis e transexuais.
Como pode ser observado na fala de Isabela: “por mais que
seja uma lésbica, uma travesti, um gay ou até mesmo uma pessoa de
cadeira de roda, assim, elas também são vistas com outros olhos, né?”,
esses “outros olhos” referem-se aos olhares direcionados a essas pessoas
na lógica da heteronormatividade. Olhares que muitas vezes são per-
cebidos pela interlocutora como excludentes, conforme relatou Beatriz
“Você consegue perceber que não é legal [...] que eles não estão gostando
da tua presença ali”. Beatriz, em sua entrevista relatou-nos ainda que
desistiu de continuar em um curso de Língua Inglesa porque as pessoas
da turma dela não a aceitavam.
No aspecto da inclusão, evidenciamos interlocutoras que per-
cebem que a escola é um “caminho prazeroso”; “é um espaço que me dei-
xava muito feliz”, como disse Sofia. Embora seja uma narrativa positiva,
ela realiza uma crítica à escola: “ninguém sabe como tratar uma tran-
sexual ou travesti”. Para falar sobre essas vivências, ela recorre à noção
de “luta”. Lutas pelo seu espaço, lutas para garantia de respeito por sua
identidade, por ser quem verdadeiramente ela é.
Embora a escola seja esse espaço de sofrimento, é através des-
se espaço que é possível libertar-se, de acordo com Laura: “vai libertar,
te libertar da cadeia de preconceitos”, “é que vai libertá-la as travestis e
transexuais da marginalização”.

- 212 -
Já Izabela associa a escolarização à possibilidade de conquista
de respeito. Para ela, ser uma “boa aluna” possibilita mudar o olhar das
pessoas sobre você: “você precisa ter uma escolaridade acima do que uma
pessoa comum teria que ter. Tirar boas notas”. Essa exigência de um de-
sempenho acima da média é um indicador das iniquidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sentidos e significados da experiência das travestis e tran-
sexuais na escola demonstram que o espaço escolar deve ser um espaço
inclusivo, dada sua importância na promoção de desenvolvimento. Os
relatos demonstram que a escolarização significa para elas a possibi-
lidade de terem uma profissão serem reconhecidas e respeitadas. Mas
questiona-se: a escola tem ciência dessa responsabilidade? Tem havido
esforço no acolhimento e respeito às pessoas transexuais e travestis?
Os resultados desta pesquisa apontaram que temos um longo
caminho pela frente, para que a escola possa se transformar em um es-
paço que pode libertar, abrindo os caminhos para a profissionalização.
Assumir que a escola também exclui e produz sofrimento, na maioria
das vezes, é um passo importante para a transformação desse lugar na
direção da libertação e do acolhimento das identidades trans.
Considera-se que no ambiente escolar as diversidades mani-
festam-se e, portanto, precisam ser respeitadas. É da relação entre pro-
fessores/as em formação e seus pares, entre estes/as e seus alunos/as e
entre os próprios alunos/as que nasce a aprendizagem da convivência e
do respeito à diversidade. Sugere-se a realização de pesquisas na área
de formação de professores, especificamente, que compreendam as vi-
vências de gênero e sexualidades, suas construções subjetivas sobre seus
momentos escolares para que professores e alunos sejam protagonistas
de uma escola que promova a diversidade e a democracia, devidamente
reconhecida e referenciada.

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- 214 -
CRIMINALIZAÇÃO DA CONDUTA
HOMOFÓBICA NO BRASIL
Renata Louise Silva de Melo105
Perla Alves Martins Lima106

RESUMO: Este capítulo aborda a Criminalização da conduta homofóbica no Brasil,


objetivando demonstrar a necessidade da criação de uma lei que criminalize a ho-
mofobia no Brasil e os seus impactos sociais. A metodologia utilizada foi revisão bi-
bliográfica, cuja pesquisa se deu em fontes literárias, artigos científicos, legislações,
artigos publicados por doutrinadores do Direito e outros. Nesse sentido, buscou-se
entender o conceito de orientação sexual, identificar o significado de homofobia e
seus efeitos na sociedade, bem como analisar a necessidade de lei que torne crime a
homofobia no país e apontar as propostas existentes para a tipificação dessa condu-
ta. Pôde-se concluir que tal medida visa desnaturalizar a violência e efetivar direitos
já garantidos, além de legitimar vozes e reconhecer a diversidade.
Palavras-chave: Homofobia. Efeitos sociais. Brasil. Lei. Criminalização.

INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como tema a criminalização da con-
duta homofóbica no Brasil e busca questionar a necessidade de uma
lei que criminalize a homofobia no país. Objetivando demonstrar tal
necessidade e seus impactos no meio social.
Para alcançar tais questões, torna-se relevante despertar o
tema dentro do contexto da sexualidade humana e conhecer os concei-
tos atuais sobre as manifestações dessa sexualidade, percebendo tam-
bém as perspectivas trazidas ao longo do tempo.
A orientação sexual do indivíduo é uma das formas de ex-
pressão de sua sexualidade, sendo involuntária e, portanto, inerente ao
ser, bem como uma demonstração plural que reforça o direito de cada
um de pertencer a si mesmo, de forma que, a homossexualidade, assim
como as outras possibilidades da orientação sexual do indivíduo, é uma
demonstração natural e saudável. Contudo, ainda é motivação de muita
polêmica.
Recentemente, o Conselho Federal de Psicologia trouxe o as-
sunto novamente a debate, quando foi aprovada judicialmente liminar
que sugere estudos e atendimentos profissionais ligados à reorientação
sexual, colocando em discussão a resolução nº 001/1999 do CFP, que
105 Bacharel em Direito. mrenatalouise@gmail.com
106 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Biodiversidade e Biotecnologia (Bio-
norte) da Universidade Federal do Amazonas, Docente da Universidade Estadual de Roraima.
perla.psicologia@gmail.com .

- 215 -
reafirma a decisão da Organização Mundial de Saúde ao desclassificar a
homossexualidade como doença.
Já a homofobia, causa principal da necessidade de discussão
do tema, é considerada produto de um contexto social machista que
institucionaliza padrões.
Perceber os efeitos sociais produzidos por tal comportamen-
to preconceituoso e discriminatório, bem como entender o conceito de
crime e verificar os direitos já garantidos por lei, é fundamental para
reconhecer a necessidade de criminalizar a conduta homofóbica no país
e, assim, analisar as propostas legislativas referentes à temática.
A metodologia utilizada para realização do trabalho constitui
no raciocínio dedutivo a partir de uma revisão bibliográfica por meio de
fontes variadas: livros, artigos científicos, legislações, artigos publicados
por doutrinadores do Direito e outros, além de dados subnotificados,
disponibilizados por grupos que atuam no assunto, uma vez que não há
estatística oficial.
Destarte, o capítulo está organizado em tópicos com o objeti-
vo de expor o tema de forma clara e fomentar as discussões necessárias:
será abordado o tema sexualidade, em que se pretende alcançar tópicos
relativos à orientação sexual e à resolução CFP nº 001/99; a homofobia
e seus efeitos sociais; a necessidade de lei que criminalize tal conduta,
além da caracterização de crime, em seu aspecto geral. Buscou-se ana-
lisar as propostas legislativas, como o PL 122/06 e ideias de projetos de
lei com participação popular, sugestão nº 5 de 2016 e sugestão nº 28
de 2017, bem como a equiparação ao crime de racismo e o estatuto da
diversidade sexual.

SEXUALIDADE
Antes de se falar em que medida é necessária a criminalização
da homofobia, é importante contextualizar o que vem a ser a homofo-
bia e quais os seus efeitos na sociedade, e ainda, a homossexualidade,
de maneira a entender a orientação sexual como uma das formas de
manifestação da sexualidade, para assim, poder analisar as propostas
legislativas referentes ao assunto.
Ao longo do tempo o assunto tem sido objeto de estudo de
psicólogos e estudiosos, surgindo uma dicotomia entre gênero e sexo,
de forma que a expressão gênero passou a ser usada para apresentar
uma diferença social e psicológica entre homens e mulheres. Com a in-

- 216 -
fluência do movimento feminista, a ideia de que componentes sociais e
culturais influenciam na construção do gênero se expandiu. A escrito-
ra e filósofa francesa Simone de Beauvoir, conforme citado por SILVA
(2010), tornou uma referência em relação ao tema ao manifestar que
“não se nasce mulher, torna-se mulher”. A dissociação entre gênero e
sexo biológico (genitais ou outras características físicas) foi reforçada,
entendendo-se, assim, que o espectro de apresentações de sexualidade é
amplo, podendo ser classificado em algumas manifestações.
Podemos entender tais manifestações, conforme a APF (As-
sociação para o Planejamento da Família) e o Manual de Comunicação
LGBT, da seguinte maneira:
• Sexo biológico: conjunto de informações cromossômi-
cas, órgãos sexuais externos e internos que distinguem
macho e fêmea. No caso dos intersexuais, ocorre a inde-
terminação do sexo biológico, caracterizado pela simul-
taneidade dos órgãos femininos e masculinos ou por não
condizer com o tipo cromossômico.
• Identidade de gênero: refere-se ao gênero com que a pes-
soa se identifica, seja ele feminino ou masculino. Haven-
do distinção entre indivíduos cis (aqueles que se iden-
tificam com o sexo biológico e se expressam de acordo
com ele) e trans (quando não há identificação com o sexo
biológico). Aqui prevalece a forma como o indivíduo se
sente psicologicamente, independente do fato dessa sen-
sação condizer ou não com o sexo biológico.
• Expressão de gênero: é a manifestação social da sexuali-
dade de acordo com os padrões pré-definidos. O andro-
ginismo apresenta combinações de estereótipos traçados
tanto para o feminino quanto ao masculino, não manifes-
tando claramente o gênero do indivíduo.
• Orientação Sexual: indica por qual gênero o indivíduo
sente atração sexual, afetiva e emocional.
A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo históri-
co: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade,
mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos,
a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação
dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, en-
cadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de
saber e de poder. (FOUCAULT, 1988, p.100)

- 217 -
A sexualidade não pode ser limitada somente ao sentido pu-
ramente biológico do ser, deve também ser observada como a forma de
expressão ampla do indivíduo no meio social e cultural em que vive,
sendo consideradas características biológicas, psicológicas, sociais e his-
tóricas.
As definições de sexualidade não podem ser engessadas e a
melhor forma para defini-la é como cada um a percebe em si mesmo.

Não é opção, é orientação

Atualmente o termo orientação sexual é considerado mais


apropriado que o termo opção sexual, usado às vezes para mencionar a
maneira como o indivíduo demonstra atração por outros indivíduos ou
por nenhum (no caso do assexual).
No dizer de Roger Raupp Rios (apud VECCHIATTI, 2012,
p.116),
Orientação sexual é a afirmação de uma identidade pessoal cuja
atração e/ou conduta sexual direciona-se para alguém do mesmo
sexo (homossexualidade), sexo oposto (heterossexualidade), ambos
os sexos (bissexualidade) ou a ninguém (abstinência sexual).

Falar em opção seria sugerir que o Homem, aqui usado para


definir o ser humano em sua abrangência, escolhe por quem sentirá
atração e a forma de expressar esse campo da sua sexualidade, fato que a
psicologia e a medicina já descartaram, haja vista a involuntariedade da
atração e do desejo sexual.
Com efeito, nenhuma pessoa escolhe ser homo, hétero ou bisse-
xual: as pessoas simplesmente se descobrem de uma forma ou de
outra. Não há “escolha”, mesmo porque, se opção houvesse, certa-
mente as pessoas optariam pela orientação sexual mais fácil de ser
vivida, qual seja aquela que não sofre com o preconceito social: a
heterossexual. Em suma: sexualidade não se escolhe, se descobre.
(...) Aponte-se, ainda, que a orientação sexual independe de “opção”
da pessoa, pois a realidade empírica já demonstrou que um ato de
vontade é incapaz de alterar a orientação sexual de alguém, sendo
assim tecnicamente incorreta a expressão opção sexual. Ainda que a
ciência médica não saiba definir o que forma a sexualidade, aduzin-
do tratarem-se de fatores biopsicossociais, ponto pacífico na seara
científica séria é aquele segundo o qual a pessoa não escolhe ser
homo, hétero ou bissexual, simplesmente descobre-se de uma forma
ou de outra. (VECCHIATTI, 2012, p.99-102)

- 218 -
De tal modo, Maria Berenice Dias (2010, p.1) defende que
“como não é uma opção livre, não deve ser objeto de marginalização ou
reprovabilidade social ou jurídica”.
Ninguém decide a própria sexualidade; é algo natural que
pertence a cada um. A discriminação que ocorre devido ao comporta-
mento sexual do indivíduo é fruto da ignorância que cega e não percebe
que todo ser, inclusive ele próprio, é livre para demonstrar sua essência
e viver como tal.

HOMOSSEXUALIDADE
A homossexualidade é uma das formas de expressão da
orientação sexual. Uma vez que o indivíduo pode ser homossexual,
heterossexual ou bissexual, havendo, ainda, outras classificações como
pansexual e assexual.
Sempre esteve presente, a homossexualidade, na diversidade
de expressão da sexualidade humana, sendo condenada em algumas
culturas e épocas ao longo da história por ser considerada pecado ou
crime, ou ainda, promiscuidade, contrária aos chamados bons costu-
mes.
Historicamente a homossexualidade é considerada um pecado, um
defeito, um erro ou um crime, que não pode ser revelada. Tida por
degradante, precisa ser ocultada. Por ser uma atitude desviante,
cabe ser corrigida. Ou melhor, eliminada. Por isso é que, ser iden-
tificado ou confundido com homossexual, gera um sentimento de
menos valia, a ponto de ser esta a forma mais comum de xingar
alguém. (DIAS, 2012, p.1)

A homossexualidade não é uma exclusividade do ser huma-


no, sendo percebida em diversas espécies de animais na natureza. O
termo homossexual foi criado pelo húngaro Karoly Maria Kertbeny em
1869. A partir de então, é utilizado para fazer referência àqueles que
sentem atração por indivíduos do mesmo sexo.
A homossexualidade deve ser considerada tão legítima quanto a he-
terossexualidade. De fato, ela não é mais que a simples manifestação
do pluralismo sexual, uma variante constante e regular da sexuali-
dade humana (BORRILLO, 2001, p.16).

Assim como a heterossexualidade, qualquer outra manifesta-


ção da sexualidade humana é natural e saudável.

- 219 -
POR QUE NÃO HOMOSSEXUALISMO?
Por muito tempo a homossexualidade foi considerada como
um distúrbio, procurando-se até mesmo a cura para sua existência. O
dia 17 de maio é considerado o Dia Internacional contra a Homofobia,
em referência a data em que a Organização Mundial de Saúde retirou
a homossexualidade da Classificação Internacional de Doenças (CID),
em 1990. Até então, era usado o termo homossexualismo, por estar na
lista de doenças mentais da OMS.
O sufixo –ismo, na medicina, é associado a doenças e trans-
tornos. Uma vez que relações homossexuais deixaram de ser considera-
das resultados de causas patológicas, houve a necessidade de mudança
do termo, de modo que a expressão homossexualidade, foi considerada
mais adequada e aceita para se referir à orientação sexual de quem se
relaciona com pessoas do mesmo sexo.
A homossexualidade sempre existiu. Não é crime nem pecado; não
é uma doença nem um vício. Também não é um mal contagioso,
nada justificando a dificuldade que as pessoas têm de conviver
com lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais,
identificados pela sigla LGBTI. É simplesmente, nada mais, nada
menos, uma outra forma de viver, diferente do padrão majoritário.
Mas nem tudo o que é diferente merece ser discriminado. Muito
menos ser alvo de exclusão social. A origem da homossexualidade,
não se conhece. Aliás, nem interessa, pois, quando se buscam cau-
sas, parece que se está atrás de um remédio, de um tratamento para
encontrar cura para algum mal. (DIAS, 2016, p.433)

Genival Veloso de França (2015, p.666, grifo do autor) obser-


va que com o passar do tempo a “homossexualidade masculina deixou
de ser um transtorno da identidade sexual para se constituir em mais
uma forma de manifestação da sexualidade”.
Apesar de alguns autores ainda fazerem dissociação da ho-
mossexualidade masculina e feminina, entende-se que a orientação
sexual do indivíduo não se confunde com gênero tão pouco com sua
identidade, como visto anteriormente, posto que, a homossexualidade,
de maneira geral, independentemente de ser masculina ou feminina, é
uma manifestação saudável da sexualidade.

RESOLUÇÃO CFP Nº 001/1999


Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) proibiu a
realização de terapias para tratar ou curar a homossexualidade no Bra-

- 220 -
sil. Contudo, no dia 15 de setembro de 2017, a Justiça Federal da Seção
Judiciária do Distrito Federal acatou parcialmente um pedido liminar
de ação popular contra a resolução nº 001/1999 do CFP que estabelece
normas de atuação para os psicólogos em relação à orientação sexual.
A resolução mencionada considera o conflito existente em re-
lação ao tema, tendo em vista as normas socioculturais estabelecidas na
sociedade. E reafirma o entendimento de que “a homossexualidade não
constitui doença, nem distúrbio e nem perversão”. Além de considerar
que “a forma como cada um vive sua sexualidade faz parte da identidade
do sujeito, a qual deve ser compreendida na sua totalidade”.
O CFP entende que “a Psicologia pode e deve contribuir com
seu conhecimento para o esclarecimento sobre as questões da sexuali-
dade, permitindo a superação de preconceitos e discriminações”.
A decisão do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho não
suspende os efeitos da resolução 001/99, mas determina que o Conselho
de Psicologia não impeça ou censure os psicólogos de realizarem estu-
dos ou atendimentos profissionais aos quais chamam de reorientação
sexual. A ação foi movida por um grupo de psicólogos que defendem
essa prática e objetivava a suspensão da resolução.
O Conselho Federal de Psicologia se posicionou contrário à
ação, destacando que a homossexualidade não é mais considerada uma
patologia segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), e tal en-
tendimento é reconhecido internacionalmente. O processo ainda está
na fase inicial e o CFP afirma que vai recorrer e pretende lutar em todas
as instâncias, visto que representa uma violação aos direitos humanos.
A decisão proferida representa ainda um retrocesso e um pe-
rigo para as conquistas já alcançadas. O Conselho Federal de Psicologia
nunca impediu o atendimento de pacientes para versar sobre orienta-
ção sexual, porém falar em reorientação sexual é reviver a ideia de uma
cura gay, que logicamente não existe, pois não há cura para o que não
é doença.
Essa determinação dá margem para que mitos relacionados a
sexualidade continuem sendo propagados, alimentando uma visão que
considera a homossexualidade e a bissexualidade como um comporta-
mento errado e por isso alvo de tantas discriminações.
A discriminação é reforçada, ao ser sustentada a associação
da orientação sexual com o estigma que a percebe como transtorno e
anomalia, resultado da hierarquização do comportamento sexual deter-

- 221 -
minado pelo contexto social, desrespeitando, assim, a livre orientação
sexual.
Ademais, o CFP alerta que terapias de reversão sexual não
possuem resultados comprovados cientificamente, além de provocarem
sofrimento e sequelas graves ao paciente. Assim como na literatura ro-
mancista, em que na obra Laranja Mecânica do autor Anthony Burgess,
adaptada ao cinema por Stanley Kubrick, retrata técnicas terapêuticas
de reversão humana que resultaram em distúrbios psicológicos, na prá-
tica, há casos de pessoas que foram submetidas a tratamentos em vir-
tude de sua orientação sexual como o caso do britânico Alan Turing,
conhecido por ser o pai da computação, submetido a um tratamento
com hormônios e castração química.
Em 2011, já havia sido falado em um projeto de cura gay
quando o deputado federal João Campos do PSDB-GO, protocolou na
Câmara dos Deputados um Projeto de Decreto Legislativo para suspen-
der essa mesma resolução do CFP. O projeto chegou a ser aprovado, mas
depois o deputado apresentou um requerimento pedindo a retirada de
tramitação da sua proposta na Câmara. Após isso, um novo projeto com
a mesma matéria foi apresentado, mas indeferido.
Apesar de a resolução reafirmar que a homossexualidade não
é uma doença, e, portanto, não deve haver tratamentos psicológicos
nesse sentido, grupos de psicólogos, sobretudo religiosos, defendem a
ideia da reorientação e por isso tentam mudar a legislação. O Conselho
afirma que a psicologia brasileira não pode ser um instrumento de pro-
moção de sofrimento, preconceito, intolerância e exclusão.
Ninguém pode controlar o desejo humano e o direito de cada
um pertencer a si mesmo. A sexualidade deve ser vista de maneira plu-
ral, concebendo a diversidade compreendida na orientação sexual.

HOMOFOBIA
A expressão tem sido um dos termos mais utilizados nos últi-
mos tempos para retratar situações de discriminação e preconceito com
pessoas e grupos sociais em virtude da sexualidade.
Ainda que muitos não saibam, homofobia significa aversão a ho-
mossexuais. Sem precisar ir ao dicionário, a expressão compreende
qualquer ato ou manifestação de ódio ou rejeição a homossexuais,
lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais. Apesar de a palavra ho-
mofobia albergar todos esses segmentos, novas expressões, como
lesbofobia, bifobia e transfobia, surgem para dar ainda mais visi-
bilidade à intolerância em todos os seus matizes (DIAS, 2012, p.1).

- 222 -
Geralmente palavras com a terminação –fobia estão associa-
das a distúrbios caracterizados pelo medo ou repulsa em relação a algo
ou alguém. No entanto, cabe a seara da psicologia estudar de forma mais
aprofundada tal fator. Tais quais outras manifestações de preconceito, a
homofobia consiste em inferiorizar alguém por ser considerado diferen-
te, a partir da visão preconceituosa do outro.
Assim como a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, ela é uma
manifestação arbitrária que consiste em qualificar o outro como
contrário, inferior ou anormal. Devido a sua diferença, esse outro
é posto fora do universo comum dos humanos. Crime abominável,
amor pecaminoso, tendência perversa, prática infame, paixão abje-
ta, pecado contra a natureza, vício de Sodoma: tantas designações
que durante séculos serviram para qualificar o desejo e as relações
sexuais ou afetivas entre pessoas do mesmo sexo. Relegado ao papel
de marginal ou excêntrico, o homossexual é tido pela norma social
como bizarro, estranho ou disparatado. Como o mal sempre vem de
fora, na França, por exemplo, qualificou-se a homossexualidade de
“vício italiano”, “costume árabe”, “vício grego” ou, ainda, “costume
colonial”. O homossexual, assim como o negro, o judeu ou o es-
trangeiro, é sempre o outro, o diferente, aquele com o qual qualquer
identificação é impensável (BORRILLO, 2001, p.15).

Roger Raupp Rios citado por Vecchiatti (2012, p.68) observa


que o machismo é a origem remota da homofobia, afirmando, ainda,
que a homofobia, além de se caracterizar como “aversão fóbica”, carac-
teriza-se também pelo heterossexismo, “um sistema onde a heterosse-
xualidade é institucionalizada como norma social, política, econômica e
jurídica, não importa se de modo explícito ou implícito”.
E complementa:
A homofobia revela-se como contraface do sexismo e da superiori-
dade masculina, na medida em que a homossexualidade põe em pe-
rigo estabilidade do binarismo das identidades sexuais e de gênero,
estruturadas pela polaridade masculino/feminino.

Observa-se, portanto, que a homofobia possui raízes na nossa


cultura, ao ser firmada uma estrutura heteronormativa que coloca a he-
terossexualidade como o padrão a ser seguido, ou seja, é uma constru-
ção social que impulsiona as pessoas a suprimir o diferente e dar poder
ao que pertence ao campo padronizado.
A homofobia pode ser definida como a hostilidade geral, psicoló-
gica e social contra aquelas e aqueles que, supostamente, sentem

- 223 -
desejo ou têm práticas sexuais com indivíduos de seu próprio sexo.
Forma específica do sexismo, a homofobia rejeita, igualmente, to-
dos aqueles que não se conformam com o papel predeterminado
para seu sexo biológico. Construção ideológica que consiste na pro-
moção constante de uma forma de sexualidade (hétero) em detri-
mento de outra (homo), a homofobia organiza uma hierarquização
das sexualidades. (BORRILLO, 2010, p.34)

Analisar a homofobia não apenas como uma característica de


um indivíduo particular, mas sim como uma institucionalização que faz
parte da nossa sociedade, demonstra que esse não é um problema isola-
do, mas uma questão social.
EFEITOS SOCIAIS
A homofobia não afeta apenas a comunidade LGBT (Lésbi-
cas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, além de outras representa-
ções), interfere também no tipo de construção da sociedade. Uma cul-
tura homofóbica gera um sistema de exclusão e discriminação de uma
minoria que não atende aos padrões. Negar direitos e discriminar parte
da população devido a sua orientação sexual significa não reconhecer a
diversidade e pluralidade do país democrático em que se vive.
Reconhecer o preconceito como uma construção social, re-
quer olhar para um cenário onde não há representatividade de uma
minoria, em que a discriminação e a violência, resultantes dessa, são
aceitas e banalizadas por fazerem parte da sociedade e não serem consi-
deradas crime. Apesar de ser um problema antigo, muitos não reconhe-
cem e negam sua existência.
O preconceito gera intolerância e, por conseguinte, alimenta a
violência, a exclusão social e o desrespeito à dignidade da pessoa e a sua
liberdade, fazendo com que a população LGBT seja um grupo vulnerá-
vel, alvo de inúmeras violações.
Por não existir lei que criminalize a homofobia no Brasil, não
há dados oficiais sobre esse tipo de crime no país. E a falta de informa-
ção ajuda a não reconhecer o problema. No entanto, há instituições que
se preocupam em buscar esses dados e, de acordo com o Grupo Gay da
Bahia (GGB), a associação mais antiga no país que versa sobre a defesa
dos direitos homossexuais, a cada 25 horas um homossexual é morto no
Brasil. Uma das razões seria a impunidade, uma vez que há ausência de
lei que criminalize esse tipo de violência gerada pelo preconceito.
De acordo com o grupo, 2016 foi o ano com maior número de
assassinatos de pessoas da comunidade LGBT no país, sendo que esses

- 224 -
dados são subnotificados, já que não há uma estatística oficial.
Segundo o GGB, em 2016 foram registradas 343 (trezentas e
quarenta e três) mortes entre os meses de janeiro e dezembro.
O Brasil tem sido considerado um dos países mais perigosos
para a população LGBT, que mais mata devido a orientação sexual ou
a identidade de gênero da vítima. No ano de 2016, o jornal americano
The New York Times publicou uma matéria anunciando que o Brasil vive
uma epidemia de violência contra homossexuais.
Em 2017 já foram documentadas 352 (trezentas e cinquenta e
duas) mortes de pessoas que fazem parte da comunidade LGBT, e esse
índice tende a aumentar.
A homofobia engessa as fronteiras do gênero. Quando, com Pierre
Dutey, foram interrogadas umas 500 pessoas sobre a forma como
elas reconheciam pessoas homossexuais na rua, na sua grande
maioria, elas falam de homens homossexuais (o lesbianismo é in-
visível). E mais, elas associam aos homossexuais os homens que
apresentam sinais de feminilidade (voz, roupas, jeito corporal). Os
homens que não mostram sinais redundantes de virilidade são asso-
ciados às mulheres e/ou a seus equivalentes simbólicos: os homos-
sexuais. (WELZER-LANG, 2001, p.465)

Quando não há mecanismos que gerem dados estatísticos


como estes apresentados anteriormente, ela continua existindo, por ser
constantemente sustentada pelo machismo que se faz presente na so-
ciedade, como visto anteriormente. Pode se manifestar de diversas for-
mas, isso implica em atitudes de repressão e discursos preconceituosos
e desrespeitosos, que por vezes não chegam a ser atos físicos de violên-
cia, mas que ferem a liberdade do indivíduo de expor sua sexualidade
livremente, afetando, inclusive, o entendimento da própria sexualidade
humana e o significado das suas formas no meio social, mantendo este-
reótipos e tabus.

NECESSIDADE DE LEI QUE CRIMINALIZE A


HOMOFOBIA
A criminalização da homofobia ainda é um tema polêmico
que divide opiniões. Quando se fala em criminalizar a homofobia, mui-
tas pessoas consideram desnecessário, visto que o alto índice de vio-
lência atinge a todos, independentemente da sua orientação sexual. A
grande questão é que crimes de natureza homofóbica são motivados
principalmente pela orientação sexual da vítima.

- 225 -
De fato, assim como qualquer cidadão brasileiro, pessoas que
fazem parte da comunidade LGBT estão sujeitas à falta de segurança
que aflige o país. Mas também são duplamente desprotegidas por, além
de tudo, sua orientação sexual ser divergente do padrão convencionado
pela sociedade.
Dois fatores são significativos para posicionamentos contrá-
rios a criminalização da homofobia: aspectos religiosos e o entendimen-
to de que criminalizar a homofobia é atentar contra a liberdade de ex-
pressão. Quanto ao primeiro, deve ser lembrado que o Estado é laico, de
maneira que a liberdade de credo deve ser respeitada sem que interfira
nas decisões em prol da coletividade. Já o segundo ponto, cabe ressaltar
que liberdade de expressão difere de discurso de ódio.
Apesar do código penal brasileiro já punir crimes contra a
pessoa e contra a dignidade sexual, quando se fala em homofobia, não
se trata de uma simples agressão, por exemplo, mas sim de um indiví-
duo ser agredido, ou até mesmo morto, por ser homossexual.
Quando um crime assim acontece e o seu autor é identifi-
cado, ele é punido pela legislação penal, porém, não há tipificação em
relação à homofobia especificamente. A razão para haver necessidade de
regulamentar essa questão na legislação significa deixar de se omitir em
relação ao tema e se posicionar quanto aos crimes motivados por ódio
ao que difere do convencional.
Falar em criminalizar a homofobia também significa desnatu-
ralizar uma violência que assola o país há tanto tempo. A simples tipifi-
cação da conduta não garante a extinção dos crimes de ódio motivados
por preconceito, assim como, a tipificação de outros crimes não faz com
que eles deixem de existir também. No entanto, é preciso se posicionar
em relação ao tema ao em vez de continuar tolerando a existência de
crimes dessa natureza.

O repúdio social a segmentos marginalizados acaba intimidando o


legislador, que tem enorme resistência em chancelar lei que vise a
proteger quem a sociedade rejeita. Omitem-se na vã tentativa de
excluir da tutela jurídica as minorias alvo da discriminação. Nada
mais do que uma perversa condenação à invisibilidade. (DIAS,
2016, p.437)

O ser humano precisa viver em sociedade para garantir a sua


sobrevivência e a evolução de sua espécie, mas para viver em sociedade

- 226 -
precisa estar regido por normas que regulem seus direitos e deveres no
meio social. A função da legislação é garantir que todos os setores da
sociedade tenham seus direitos protegidos, e não apenas a maioria.
A Constituição Federal da República já em seu preâmbulo
assegura
O exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segu-
rança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem pre-
conceitos, fundada na harmonia social.

E tem como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa,


conforme artigo 1º, inciso III. Além disso, dentre os seus objetivos elen-
cados no artigo 3º constam: “construir uma sociedade livre, justa e igua-
litária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Ao tratar
dos direitos e garantias fundamentais, afirma em seu artigo 5º, caput, a
igualdade de todos perante a lei, “sem distinção de qualquer natureza”,
determinando mais adiante no inciso XLI que a lei deve punir “qualquer
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”.
Tais especificidades faz com que a constituição promulgada
em 1988 seja conhecida como constituição cidadã, responsável por con-
solidar o retorno do Estado Democrático de Direito. No entanto, ainda
assim, cidadãos são marginalizados devido sua orientação sexual, de-
monstrando que os direitos e garantias previstos na constituição nem
sempre apresentam efetividade e, ainda, prosseguimos sem uma legisla-
ção que criminalize atos de homofobia.
A lei precisa acompanhar as necessidades da sociedade, sen-
do fundamental que o direito se ajuste às mudanças sociais para cum-
prir seu papel, visto que, diante de tal omissão, não há como punir ações
dessa natureza já que a conduta não está tipificada e consoante a Cons-
tituição Federal, artigo 5º, inciso XXXIX, “não há crime sem lei anterior
que o defina, nem pena sem prévia comunicação legal”.
Segundo Rogério Greco (2015, p.4), a finalidade do direito
penal é a “proteção dos bens essenciais ao convívio em sociedade”, de-
vendo a constituição ser a primeira fonte de pesquisa para selecionar
esses bens.
Os valores abrigados pela Constituição, tais como a liberdade, a se-
gurança, o bem-estar social, a igualdade e a justiça, são de tal gran-

- 227 -
deza que o Direito Penal não poderá virar-lhes as costas, servindo
a Lei Maior de norte ao legislador na seleção dos bens tidos como
fundamentais. (GRECO, 2015, p.4)

Uma vez que direitos, já garantidos pela Constituição Federal,


como igualdade, liberdade e privacidade estão sendo desrespeitados, é
necessário que o legislador intervenha para procurar dar efetividade a
tais direitos e proteger a dignidade daqueles que estão sendo vítimas do
preconceito diariamente.
Falar em dar efetividade a tais direitos significa exercê-los por
excelência, já que a orientação sexual do indivíduo não deve ser um
obstáculo ao acesso da sua cidadania. Direitos como liberdade e privaci-
dade estão ligados à forma do sujeito expressar a sua sexualidade, sendo
particular de cada um, pertencendo ao foro íntimo.
Para viver em um Estado Democrático de Direito é necessá-
rio que a diversidade seja respeitada, e mais, que seja garantida a segu-
rança e resguardada a integridade física, para que o indivíduo exerça sua
cidadania livremente, sem precisar se ocultar. Ser diferente dos padrões
supostamente estabelecidos pela maioria predominante no ambiente
social é um direito do indivíduo, de modo que aceitar e respeitar tais
diferenças é um dever de todos. A sociedade já é pluralista, agora é pre-
ciso saber conviver com as diferenças e eliminar os preconceitos para
buscar a harmonia social e a fraternidade almejadas pela Constituição
Federal cidadã.

DO CONCEITO DE CRIME
Para falar sobre criminalização é essencial analisar o conceito
de crime. Dessa forma, de acordo com Rogério Greco (2015, p. 194-
195),
Sob o aspecto formal, crime seria toda conduta que atentasse, que
colidisse frontalmente contra a lei penal e ditada pelo Estado. Con-
siderando-se o seu aspecto material, conceituamos o crime como
aquela conduta que viola os bens jurídicos mais importantes.

Desse modo, para existir crime é imprescindível a existência


de tipificação penal da conduta, como já garantido na constituição fede-
ral, de forma que tal conduta esteja violando um bem jurídico.
O Direito Penal exige lei expressa para a criminalização de
condutas, logo, para homofobia ser crime, indispensável é o reconheci-

- 228 -
mento legislativo expressamente manifestado.
Tornar crime a conduta homofóbica significa criminalizar a
violência contra a população LGBT e, assim, proteger os direitos de uma
minoria que sofre diariamente mazelas devido ao preconceito. É uma
forma de acabar com a omissão do Estado e garantir um posicionamen-
to em relação aos crimes motivados por ódio, buscando dar visibilidade
para quem sofre há anos sem ser ouvido.

PROPOSTAS PARA A CRIAÇÃO DA LEI


O tema tem sido discutido por vários movimentos sociais e
até mesmo foi pauta em campanhas eleitorais. A comunidade LGBT já
vem conseguindo adquirir alguns direitos ao longo dos anos, como o
casamento homoafetivo, que se tornou realidade, devido ao Supremo
Tribunal Federal. Mas, quanto a criminalização da homofobia, existem
vários projetos e ideias legislativas que ainda não foram aprovados.

PL 122/06
O PL 122 de 2006 foi um polêmico projeto da câmara, cujo
objetivo era criminalizar a homofobia no país, sendo tramitado durante
anos até ser arquivado.

Ementa: Altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os


crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, dá nova redação
ao § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de
1940 - Código Penal, e ao art. 5º da Consolidação das Leis do Tra-
balho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e
dá outras providências.

Conforme disponibilização da página do Senado Federal, o


PL nº 122/06 de autoria da então Deputada Federal Iara Bernadi, ver-
sava sobre assunto social de Direitos Humanos e Minoria e tinha como
proposta alterar a Lei de Racismo, o Código Penal e a CLT para definir
os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de gênero, sexo,
orientação sexual e identidade de gênero, estabelecendo as tipificações e
delimitando as responsabilidades do ato e dos agentes.
O projeto foi criado em 2001 e chegou a ser aprovado na câ-
mara cinco anos depois, no entanto passou anos no Senado sem conse-
guir o apoio necessário, foi arquivado e desarquivado diversas vezes, até
que em maio de 2018 foi enviado novamente à coordenação de arquivos.

- 229 -
IDEIAS DE PROJETOS DE LEI COM PARTICIPAÇÃO
POPULAR
Conforme plataforma eletrônica do Senado Federal, qualquer
cidadão pode apresentar ideias de projetos de lei por meio do portal
e-Cidadania. Ao ter a ideia, o cidadão deve cadastrá-la no portal, apre-
sentando de forma sucinta o assunto, o problema que a ideia pretende
resolver e o que espera que seja realizado. Após apresentada, a ideia fica
durante 4 (quatro) meses aberta para manifestação e apoio de outras
pessoas. Aquelas que conseguem atingir 20 (vinte) mil votos favoráveis
no prazo estabelecido tornam-se uma sugestão legislativa e são envia-
das à Comissão de Direitos Humanos do Senado para serem avaliadas.
Quando a sugestão é acatada vira um projeto de lei que tramita no Se-
nado, depois na Câmara e por fim, vira lei.
Um dos exemplos de sugestões populares que tramitam no
Senado Federal é a nº 5, de 2016, cuja ementa propõe “a criminalização
da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, equipa-
rando ao crime de Racismo”.
A proposta foi realizada pelo cidadão Gustavo Don, do Es-
tado de São Paulo, e encontra-se na Comissão de Direitos Humanos
e Legislação Participativa (CDH) desde julho do ano passado, onde o
relator da sugestão é o Senador Paulo Paim (PT-RS).
A proposta tem como finalidade criminalizar atos de discri-
minação não só devido a orientação sexual da vítima, mas também em
relação a sua identidade de gênero, e ainda, propõe que seja equiparado
ao crime de racismo previsto na Lei nº 7.716/89.
Da mesma forma, outra ideia legislativa no Senado propõe a
criminalização da homofobia e recebeu mais de cinquenta mil apoios. A
ementa aponta como objetivo “criminalizar a homofobia para punição
de pessoas que atacam outras pessoas por serem LGBT”.
A sugestão legislativa foi feita pelo internauta Lucas Veiga
Couto, do Estado do Paraná com o objetivo de criminalizar a homofo-
bia, haja vista a quantidade de pessoas que são assassinadas por serem
LGBT.
Segundo a página do Senado Federal, a proposta recebeu mais
que os 20. 000 (vinte mil) votos necessários para se tornar uma sugestão
legislativa em apenas 8 (oito) dias; no total, foram 55.698 (cinquenta e
cinco mil, seiscentas e noventa e oito) manifestações favoráveis. E, desde
28 de junho de 2017 encontra-se na CDH-Comissão de Direitos Huma-

- 230 -
nos e Legislação Participativa, onde aguardava a designação de um rela-
tor, e desde 13 de julho de 2017 a matéria está na relatoria, cuja relatora
atual é a Senadora Regina Sousa (PT/PI).
Além dessas sugestões populares e do PL 122/06 no Senado,
que ficou sendo a proposta mais conhecida devido ao tempo em que
ficou em discussão, existem outros projetos de lei na Câmara, como o
PL 7582/2014 de autoria da Deputada Maria do Rosário (PT/RS), cuja
ementa “define os crimes de ódio e intolerância e cria mecanismos para
coibi-los, nos termos do inciso III do art. 1º e caput do art. 5º da Cons-
tituição Federal, e dá outras providências”.

EQUIPARAÇÃO AO CRIME DE RACISMO


Algumas sugestões legislativas propõem que a discriminação
por orientação sexual, assim como a discriminação por identidade de
gênero, seja incorporada a Lei nº7.716/89, que versa sobre crimes de
preconceito de raça e de cor. A lei já pune crimes resultantes de discri-
minação de raça, cor, religião e procedência nacional, mas é omissa em
relação a gênero e orientação.
Inicialmente, a Lei n. º 7.716/89 definia apenas crimes resul-
tantes de preconceito de raça ou cor. Conforme nova redação dada pela
Lei nº 9.459/97 passou a alcançar crimes resultantes de discriminação
ou preconceito não somente de raça ou cor, mas também etnia, religião
ou procedência nacional. Por efeito, atualmente também é nomeada lei
dos crimes de preconceito. Estender a lei à comunidade LGBT significa
incluir as expressões orientação de gênero e identidade sexual no artigo
1º da Lei nº 7.716/89, já reformado uma vez, garantindo a proteção da-
queles que são discriminados por tais fatores.
A Constituição Federal (artigo 5º, inciso XLII) define que o
crime de racismo é inafiançável e imprescritível, estando “sujeito à pena
de reclusão, nos termos da lei”. Sendo o crime de racismo uma das ex-
ceções à regra da prescritibilidade, o decurso do tempo não extingue o
direito do Estado de punir.
A Lei nº 7.716/89 prevê pena de reclusão para quem, por mo-
tivo de discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacio-
nal, impedir o acesso de alguém a cargos ou emprego em empresas pri-
vadas, bem como na administração direta e indireta e concessionárias
de serviços públicos, e ainda, impossibilitar a promoção funcional ou
proporcionar tratamento diferenciado no ambiente de trabalho. Além

- 231 -
disso, a lei também prevê pena de multa e prestação de serviço comu-
nitário àquele que exigir características de aparência para emprego do
qual as atividades não justifiquem as exigências.
A lei estabelece pena de reclusão também em casos de recu-
sa de atendimento ou impedimento de acesso em estabelecimentos co-
merciais, instituições de ensino público ou privado, hotéis, restaurantes,
clubes, edifícios ou locais semelhantes abertos ao público, igualmente o
impedimento ao uso de transportes públicos, ou acesso ao serviço das
forças armadas e, ainda, quando obstar o casamento ou a convivência
familiar e social.
Sendo também penalizado com reclusão e multa quem “prati-
car, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia,
religião ou procedência nacional”, conforme caput do artigo 20 da lei
dos crimes de preconceito. O parágrafo 2º desse artigo também prevê
o aumento da reclusão e multa quando qualquer dos crimes previstos
no caput do artigo for realizado por meios de comunicação social ou
“publicação de qualquer natureza”.
Se a discriminação por orientação sexual fosse incluída no
rol dos preconceitos estabelecidos na referida lei, tais penalizações al-
cançariam também autores de condutas homofóbicas, além de fornecer
dados oficiais que contribuiriam para a elaboração de políticas públicas
de combate à homofobia.

ESTATUTO DA DIVERSIDADE SEXUAL


O Estatuto da Diversidade Sexual é um projeto de iniciativa
da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), com o objetivo de crimina-
lizar a homofobia e garantir direitos à comunidade LGBT. Consoante
Maria Berenice Dias, tal projeto foi elaborado com a colaboração de
movimentos sociais e busca consagrar uma série de prerrogativas e di-
reitos já reconhecidos pelo poder judiciário a homossexuais, lésbicas,
bissexuais, transexuais, intersexuais e travestis.
Para a autora, “Trata-se de um microssistema - moderna for-
ma de legislar em prol de segmentos vulneráveis - que traz princípios,
incorpora todos os direitos já reconhecidos pela jurisprudência e crimi-
naliza a homofobia”. (DIAS, 2016, p.437)
Foram criadas comissões em todo país para tratar da diver-
sidade sexual e capacitar advogados para atuarem em demandas que
envolvem direitos da comunidade LGBT, o que, para Maria Berenice
Dias, representa um novo ramo do Direito.

- 232 -
CONSIDERAÇÕES TRANSITÓRIAS
Diante do que foi exposto, propõe-se uma maior discussão
sobre a necessidade de lei que condene a homofobia no país, sendo ob-
servadas nuances da pluralidade humana em relação a sua sexualidade
e aos padrões culturais do meio social.
Uma vez que a lei já busca proteger o indivíduo em aspectos
de raça, cor, gênero, nacionalidade e afins, há relevância de ampliação
dessa proteção a questões de orientação sexual e identidade de gênero.
Nessa conformidade, deve o Direito se adequar às exigências e condi-
ções sociais.
A falta de informação e discussão sobre o assunto é uma for-
ma de não reconhecer o problema e, assim, perpetuar um mal que atinge
tantos indivíduos no ambiente nacional, considerando que o Brasil é o
país mais violento para pessoas que fazem parte da comunidade LGBT.
Discursos e condutas de ódio não podem sobrepor-se à forma
livre que cada indivíduo tem de amar e viver. É preciso que se puna a
violência e não o amor.
Criminalizar condutas homofóbicas significa desnaturalizar
tal violência e dar visibilidade para uma população que vive à margem
do padrão institucionalizado, de modo a efetivar direitos já garantidos
pela constituição cidadã promulgada em 1988.
É ainda dar autonomia para que as pessoas possam ser quem
são livremente, legitimando vozes e vivências. É humanizar e reconhecer
a diversidade!

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Jurídicos. Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997. Altera os arts. 1º e 20 da
Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes
de preconceito de raça ou de cor, e acrescenta parágrafo ao art. 140 do
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- 235 -
- 236 -
POSFÁCIO
DAS NOSSAS RESISTÊNCIAS MICRO-GIGANTES

Em tempos de afirmações autoritárias e reducionistas do tipo


“menino veste azul e menina veste rosa”107, esse livro que você acaba de
ler nos leva para caminhos mais esperançosos diante do atual momento
histórico, em especial, para o campo das Ciências Humanas. Em uma
“nova era” marcada por uma cruzada moral em torno do tema gênero,
sexualidade e educação, esses textos são de fundamental importância
para a consolidação do que temos discutidos em diferentes instâncias:
uma sociedade mais justa e democrática em relação às diferenças, inclu-
sive as de gênero e sexualidade, passa, necessariamente, por processos
educativos ainda mais críticos e transformadores em relação às normas
binárias, essencialistas e naturalizadas sobre nossa experiência humana.
Nas últimas décadas houve um fortalecimento das áreas de
pesquisa de gênero e das iniciativas de políticas educacionais nessa
temática no Brasil. Em resposta a isso, ocorreu uma crescente reação
conservadora, articulada politicamente, que passou a conceber gêne-
ro, a partir de uma leitura enviesada, como uma ameaça às famílias, às
crianças e, com isso, à sociedade (DESLANDES, 2015). A questão da
sexualidade não ficou de fora do foco dessas reações. Afinal, é possível
afirmar que há, pelo menos, dois momentos em que a cruzada moral
parece tomar traços de um pânico moral (BALIEIRO, DUQUE, 2018).
Um primeiro, em torno da sexualidade, envolvendo a pos-
sibilidade de implementação do kit anti-homofobia, isto é, de um ma-
terial apelidado pejorativamente de “kit gay” pela bancada evangélica
e/ou parlamentares ultraconservadores que acreditavam que o Estado
iria incentivar, entre outras coisas, a homossexualidade nas escolas. Na
verdade, o Kit anti-homofobia, a partir de pesquisas e da escuta de pro-
fessoras/es e ativistas dos direitos humanos, busca enfrentar a violência
cotidiana que lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais enfren-
tam nas escolas brasileiras.
Posteriormente, em um segundo momento, o pânico foi foca-
do mais no gênero, direcionado às tentativas de garantir, via os planos
107 Frase proferida pela Ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos do atual
governo brasileiro. Informações disponíveis em: https://oglobo.globo.com/socieda-
de/menino-veste-azul-menina-veste-rosa-diz-damares-alves-em-video-23343024.
Acesso em: 18 fev. 2019.

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municipais e estaduais de educação, a discussão de gênero na escola.
Esse momento ainda tem sido vivido em diferentes cidades do país, e foi
debatido em alguns dos capítulos desse livro, quando discutido sobre o
que tem sido usado, de forma acusatória aos estudos de gênero, isto é, à
Ciência, como “ideologia de gênero”.
A percepção de um enfoque mais na sexualidade em um mo-
mento e mais no gênero em outro, não implica em considerarmos que
gênero e sexualidade possam ser analisados em separado, antes, permite
melhor caracterizar as especificidades da emergência de contornos de
pânico moral em meio a cruzada anti-gênero e anti-sexualidade, pelo
menos anti-gênero como construção cultural/performática (BUTLER,
2003) e anti-sexualidade enquanto um dispositivo histórico (FOU-
CAULT, 2007).
A existência dessa cruzada moral, demarcada por pânicos
morais, não é uma característica apenas nacional. Ela tem demarca-
do outros contextos nacionais, e viajado e se reproduzindo em escala
transnacional. Por exemplo, segundo Miskolci e Campana (2017), essa
batalha se dá devido a avanços em alguns países latino-americanos em
relação aos direitos sexuais e reprodutivos (como a descriminalização
do aborto, o reconhecimento de casais do mesmo sexo ou a inclusão da
educação sexual nas escolas).
Os mesmos dois autores também apontam para o fato de que
“diversas pesquisas mostram um paulatino distanciamento de católicos
e católicas em relação às normas de moral sexual impostas pelo Vatica-
no” (Idem, p. 278). Assim, por mais que os capítulos aqui apresentados
tratem de questões localizadas em regiões muito específicas, eles tam-
bém servem para pensar para além de nossas fronteiras nacionais, afi-
nal, há impactos aqui de movimentações moralistas que também estão
se dando em outros países.
Esse clima, portanto, em que empreendedores morais (reli-
giosos e leigos) produzem a cruzada moral via pânicos morais, foi dis-
cutido nesse livro, mas, ao mesmo tempo, as experiências de resistên-
cias foram apontadas e analisadas. Ainda que existam professoras/es sob
ameaça, por parte, por exemplo, de familiares das/os estudantes e até
de agentes públicos, há sem dúvida, contra-ataques em prol dos direi-
tos. Muitas vezes, como lemos, a resistência pode vir via judicialização
(da educação ou da própria violência lgbtfóbica), ou, até mesmo, via
mobilização, como é o caso do “instrumento pedagógico” EDIVERSA,
discutido nessas páginas.

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Para além das experiências de grupo que contribuem para o
fortalecimento do ensino de gênero e sexualidade, assim como, para o
fortalecimento das políticas públicas, inclusive no campo das pesquisas
sobre as diferenças, há a vida cotidiana, as práticas ordinárias, que in-
sistem em corroborar a nossa verdade científica em relação às questões
de gênero e sexualidade. Por exemplo, desde a professora que utiliza do
espaço pedagógico do brincar para refletir sobre estereótipos de gênero
e sexualidade, até o olhar sobre gênero diante da cultura, temos inúme-
ras experiências que professoras/es e pesquisadoras/es têm produzido
o que são, ao mesmo tempo, micro e gigantes atos de resistência. A re-
sistência está presente também em quem tem vivido longe da formação
docente ou até mesmo da Universidade, como as mulheres idosas que,
mesmo com as cobranças antes e depois do casamento, têm aprendido
novas formas de ser mulher no mundo.
Há muito a ser feito, ainda que a “política da identidade” te-
nha conquistado importantes mudanças sociais, afinal, persistem as
experiências de jovens insatisfeitas com o próprio corpo, adolescentes
e mulheres sendo acusadas/punidas por demonstrarem seus desejos,
travestis e transexuais lutando pelo direito à educação, etc.
No entanto, nas páginas que antecedem esse posfácio lê-se
reflexões importantes sobre a multiplicidade de resistências diante do
que se produziu de ameaças. Não tenhamos dúvidas de que estamos
no caminho certo. Em tempos de cruzadas morais, enfrenta-se os pâni-
cos com informação, mobilização e atenção redobrada à vida cotidiana,
diária, que é o espaço das experiências/das diferenças. Afinal, em meio
às violências, brotam fortes as ações que fazem com que o caminho se
torne menos vulnerável, e as vidas mais vivíveis.

Tiago Duque108
Centro-oeste brasileiro.

REFERÊNCIAS
BALIEIRO, Fernando de Figueiredo; DUQUE, Tiago. Notas sobre uma
cruzada moral na era digital: a “ideologia de gênero” como ameaça à
sociedade brasileira. In: AMARAL, Fernanda Pattaro et al (Comp.). El

108 Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP),


professor na Faculdade de Ciências Humanas (FACH) da Universidade Federal de Mato Gros-
so do Sul (UFMS), líder do Impróprias – Grupo de Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Dife-
renças.

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desangramiento latinoamericano: un panorama político contemporá-
neo sobre la reorganización y la reconfiguración del estado neoliberal.
Barranquilla: Corporación Universitaria Americana, 2018. p. 277-310.
Disponível em: https://improprias.ufms.br/files/2018/09/EL-DESAN-
GRAMIENTO-LATINO-AMERICANO-Livro.pdf . Acesso em: 18 fev.
2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da rea-
lidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
DESLANDES, Keila. Formação de professores e Direitos Humanos:
construindo escolas promotoras da igualdade. Belo Horizonte: Autên-
tica Editora, 2015.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio
de Janeiro, Edições Graal, 2007.
MISKOLCI, Richard. CAMPANA, Maximiliano. “Ideologia de Gênero”:
notas para a genealogia de um pânico moral contemporâneo. In: Revista
Sociedade e Estado, v. 35. N. 03, 2017. p. 725-747. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/se/v32n3/0102-6992-se-32-03-725.pdf. Acesso: 18
fev. 2019.

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