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NO MAR E EM TERRA

História e cultura de trabalhadores escravos e livres

2ª edição
Jaime Rodrigues

NO MAR E EM TERRA
História e cultura de trabalhadores escravos e livres

2ª edição
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

COMISSÃO EDITORIAL DO DEPARTAMENTO DE CONSELHO CONSULTIVO


HISTÓRIA – EFLCH/ UNIFESP Ana Luiza Martins Camargo de Oliveira - Ex
Coordenação – Luigi Biondi Condephaat/ Pós-doc. FFC/Unesp - Marília
Representação Docente – Marcia Fernandes Andrew Britt - University of North Carolina School
Equipe editorial of Arts
Gabriel Henrique Santos Mendes Armelle Enders - Université de Paris IV
Laís Fernanda dos Santos Almeida Carlos Antonio Garriga Acosta - Universidad del País
Larissa Favilla Beluchi Vasco
Luana Sena Chicol Eugénia Rodrigues - Universidade de Lisboa
Raian Silva Vidal Fabrícia Cabral de Lira Jordão - Universidade
Shirley Paredes Salluco Federal do Paraná
Vitória dos Santos Ribeiro Gianluca Fiocco - Università degli studi di Roma Tor
Vitoria Ferreira Vergata
Vinícius Lima Trindade Gustavo Junqueira Duarte Oliveira - Pontifícia
Edição: Priscilla Marques Campos Universidade Católica de Campinas
Jeffrey Lesser - Emory University
Capa: Laís Charleaux José Manuel Viegas Neves - Universidade Nova de
Arte da capa sobre imagem de Charles Landseer, Cerimônia Lisboa
da passagem do Equador, lápis e bico de pena, 8x10cm, 1825 Marcelo Cândido - Universidade de São Paulo
Mônica Raisa Schpun - École des Hautes Études en
Sciences Sociales
Renata Cristina de Sousa Nascimento - Universidade
Federal de Goiás
Renata Senna Garraffoni - Universidade Federal do
Paraná
Stella Maris Scatena Franco - Universidade de São
Paulo
Valdei Lopes de Araújo - Universidade Federal de
Ouro Preto

A primeira edição deste livro contou com apoio da FAPESP e foi publicada pela Ed. Alameda em 2016.

Departamento de História/EFLCH/UNIFESP
Estrada do Caminho Velho, 333 – Jardim Cidade Nova – Água
Chata – CEP 07252-312 – Guarulhos – SP
Tel. (011) 5576.4848
www.unifesp.br/campus/gua
AGRADECIMENTOS

Agradeço às instituições de fomento à pesquisa que apoiaram este trabalho entre


2011 e 2013, período em que produzi ou revisei os escritos reunidos nesta edição. A
CAPES proporcionou o financiamento que me permitiu frequentar arquivos em uma
temporada lisboeta em 2011. Da FAP/UNIFESP, obtive uma bolsa produtividade em
pesquisa entre 2012 e 2013, além de um auxílio-viagem a Chicago e Urbana/Champaign,
Estados Unidos, em 2012. A FAPESP apoiou a apresentação de parte das reflexões do
projeto em Lisboa e a pesquisa em arquivos sediados naquela cidade em 2013. Por fim, o
CNPq contemplou o projeto com um auxílio à pesquisa em 2013, recurso que permitiu
consolidar um repertório a partir de relatos de viajantes.
Editores de periódicos científicos e coletâneas publicaram versões iniciais dos
textos aqui reformulados. Agradeço a acolhida de Andrea Slemian, Claudia Maria das
Graças Chaves, Eduardo França Paiva, Eduardo Natalino dos Santos, Flavio dos Santos
Gomes, Flávio Gonçalves dos Santos, Juliana Farias, Jose Maciel Honrado Morais
Santos, Marco Antônio Silveira, Marta Emisia Jacinto Barbosa, Patrícia Teixeira Santos,
Vanicléia Silva Santos e Wilma Peres Costa.
Stella Maris Scatena Franco e Karen Macknow Lisboa, líderes do grupo de
estudantes com os quais nos reuníamos para discutir textos de viajantes e historiografia,
entre 2011 e 2012, foram importantes para a reflexão sobre fontes e formas de escrita.
Importantes também foram Mary Anne Junqueira e o grupo do Leha/USP, que criaram
a ocasião para que eu apresentasse minhas indagações sobre o mundo dos marinheiros
de forma mais sistematizada, em um debate muito útil para o conjunto da reflexão,
ocorrido em 2013. Gabriel Passetti e Diego Galeano, membros desse grupo naquela
oportunidade, disponibilizaram materiais de forma gentil. Os colegas e estudantes do
Departamento de História da UNIFESP, em seminários realizados em nosso programa
de pós-graduação, fizeram comentários que me levaram a rever partes dos escritos que
compõem o livro.
Na UNIFESP, as dívidas de gratidão são muitas. Entre os colegas que cumpriram
atividades de gestão e fizeram o Departamento de História caminhar, menciono Maria
Rita Toledo, André Machado, Fábio Franzini, Edilene Toledo, Samira Adel Osman,
Alexandre Godoy, Glaydson José da Silva e Claudia Regina Plens. Marcia Eckert Miranda
e Patricia Teixeira Santos são amigas queridas, com quem construí parcerias intelectuais
estimulantes. Fabiano Fernandes e Luis Filipe Silverio Lima ofereceram indicações
bibliográficas preciosas. Agradeço ainda a Aline Souto Leal, Amanda Rodrigues de
Miranda, Andréia Kelly Marques, Elson Granzoto Jr., Fabio Dantas Rocha, Karina
Oliveira Morais dos Santos, Philippe Arthur dos Reis, Rafael José Barbi, Rafael
Domingos de Oliveira, Rodrigo Gonçalves, Rodrigo Hotta, Yuri Scardino e o grupo de
estudantes do PET-História, por me encherem de orgulho.
Em Portugal, agradeço o apoio e a interlocução de Elvira Cunha Azevedo Mea,
Maciel Santos, Nuno Falcão, Eugénia Rodrigues e Maria Isabel Beato.
Mariana Pinho Candido ofereceu generosamente suas anotações a partir de
documentos fundamentais para esta pesquisa. Renato Pinto Venancio fez uma leitura
atenta e sugestiva de parte dos textos. Rogelio Paredes (in memorian) e Marcelo Figueroa
conduziram boas tardes de debate na Universidad de Buenos Aires em 2012, nas quais
tive o prazer de ser participante. Pedro Puntoni e a equipe da Brasiliana durante sua gestão
viabilizaram o acesso a materiais inestimáveis aos pesquisadores brasileiros, e este livro
se valeu muito disso. Ao Marcus Carvalho, agradeço pelas conversas inspiradoras e pelas
oportunidades de interlocução. Com Silvia Hunold Lara tenho dívidas antigas e que
provavelmente não vou saldar. Ela talvez tenha uma vaga lembrança de ter lido e
comentado as versões iniciais de três dos capítulos aqui reunidos e provavelmente não
sabe que guardei por anos a fio suas observações.
Laura Antunes Maciel e André Bezerra Cavalcanti são amigos queridos e
hospitaleiros no Rio de Janeiro, o que viabiliza pesquisas mas, principalmente, torna as
visitas sempre muito divertidas. Ainda no Rio, agradeço a Gladys Sabina Ribeiro, Keila
Grinberg e Verônica Secreto, pela disposição intelectual e pelo acesso aos materiais que
disponibilizaram.
Ivan Martin e Maria Mercedes Arias são amigos incríveis e versados em muitas
coisas: recebem bem, traduzem o que eu não sei dizer, enfim, são os melhores professores.
Agradeço à Flávia e ao Hermann Tatsch pela irmandade antiga, pelos jantares deliciosos
e pela cessão de imagens de família.
Silvana Jeha e Daisy de Camargo muito me ensinaram sobre o mar, o bar e a
amizade que pode, sim, extravasar para a academia sem perder a ternura.
Mathilde, minha mãe, partiu quase calmamente, quando a escrita deste livro estava
chegando ao final. Sua partida desarrumou uma porção de coisas e me deixou às voltas
com a lembrança daquilo que eu gostava e que ficou inacessível para sempre. Busquei,
então, o que eu conseguia recuperar – gostos musicais compartilhados, por exemplo.
“Cidades, mares, povo, rio” e outros versos de Mãe, canção de Caetano Veloso na
linda voz de Gal Costa, era um gosto em comum, e me valem agora paradizer que
sinto saudades:
Meninos, ondas, becos, mãe
E só porque não estais
És para mim que nada mais
Na boca das manhãs.
Glaucia, presença total em minha vida, me mantêm de pé e feliz. Ela é tudo o
que eu queria, mesmo quando ainda não sabia disso.
SUMÁRIO

Abreviaturas……………………………………………..…………..…….……..10

Prefácio – João José Reis…………………………………………………………11


Prólogo…….…….………..………………………………………………………14

Apresentação………………………………………………………......................16
1. Um mundo novo no Atlântico: marinheiros e rituais de passagem da linha do
equador, séculos XV-XX…………………………………………….…………...19

2. Um sepulcro grande, amplo e fundo: saúde alimentar no Atlântico, séculos


XVI ao XVIII……………………...……………………………………………...82

3. Escravos, senhores e vida marítima, séculos XVIII e XIX…………………103

4. Liberdade, humanidade e propriedade: os escravos e a Assembleia


Constituinte de 1823………………………………………….............................180

5. Índios e africanos: do “pouco ou nenhum fruto” do trabalho à criação de


“uma classe trabalhadora” ……………………………..……………..……….192

6. Ferro, trabalho e conflito: os africanos livres na Fábrica de Ipanema……204

7. Comércio de africanos, doenças e cura…………………..…………………215


Fontes……………………………………………………....................................229

Bibliografia………..…………………….…………..…………………………..237
ABREVIATURAS

AAC - Anais da Assembleia Constituinte de 1823


CDI - Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados (Brasília)
AHI - Arquivo Histórico do Itamaraty, Processos da Comissão Mista Anglo-Brasileira (Rio
de Janeiro)
AHM - Arquivo Histórico da Marinha (Lisboa)
AHU - Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa)
AN - Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
ANTT - Arquivos Nacionais/Torre do Tombo (Lisboa), documentos da:
IGP - Intendência Geral da Polícia de Lisboa
JC - Junta do Comércio
APESP - Arquivo Público do Estado de São Paulo (São Paulo)
BN/DM - Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro), Divisão de Manuscritos
RIHGB - Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
PREFÁCIO

Jaime Rodrigues é um historiador de muitos assuntos, porém sua produção mais conhecida
diz respeito à história do comércio transatlântico de escravos. Sobre o tema, já publicou trabalhos
imperdíveis, um sobre os debates em torno da proibição – O infame comércio –, outro, no qual
estuda o tráfico negreiro de uma perspectiva da História Social – De costa a costa. No livro que o
leitor tem em mãos, o historiador reuniu ensaios sobre temas diversos, embora na sua maioria,
como nos livros acima citados, conectados direta ou indiretamente com a História Marítima ou
histórias passadas no mar.
Uma característica deste historiador é dialogar de modo judicioso com a bibliografia
sobre os temas tratados: tece críticas, aponta convergências e esclarece sua contribuição
específica. Com isso, nos permite perceber com clareza sua originalidade e seu método de
reconstrução do passado, o que é também alcançado com a mobilização de invejável aparato
documental, mais saliente nuns do que noutros capítulos.
Jaime Rodrigues se destaca no Brasil entre os historiadores da escravidão que levam a
sério sua dimensão atlântica, inclusive o que se passava durante a travessia oceânica. Em De
costa a costa, por exemplo, o navio negreiro é objeto central de reflexão, inspirada em Marcus
Rediker, mas antes deste publicar seu festejado Navio negreiro, uma história humana.
Em No mar e em terra, os três primeiros ensaios se encaixam plenamente na
perspectiva atlântica, quando aborda o ritual de passagem pela linha do Equador celebrado
pelos homens do mar (um ritual identitário, não rebelde, ele avisa); as doenças e a alimentação
nos navios (destaque para o escorbuto, enfermidade das mais comuns a bordo, e a farinha de
mandioca, alimento típico da carreira luso-brasileira do tráfico); a representação africana nas
tripulações, sem a qual o navio não navegava e os negócios emperravam); e a fuga de marinheiros
escravizados ao aportarem em Portugal após 1761, quando se proibiu a introdução de escravos
em seu território (estratégia de resistência comentada mais adiante).
O autor cerra fileiras com outros historiadores brasileiros – lembro-me de Luiz Felipe
de Alencastro e Roquinaldo Ferreira, mas há outros – na crítica à extensa literatura anglófona
sobre o Atlântico. Esta, com raras e honrosas exceções, se fixa no Atlântico norte, até porque
raros são os historiadores lá do andar de cima que conseguem ler o português falado aqui no
andar de baixo, daí perderem a chance de aprender conosco sobre outros mares. Ao contrário,
esses historiadores terminam por “acrescentar mais uma divisão – a hemisférica – às tradicionais
divisões nacionais, coloniais ou continentais”, escreve Rodrigues. Enquanto isso, este livro
rompe com tal paradigma ao reunir pesquisa que une o norte com o sul, conectando Brasil e
regiões do hemisfério norte, além de navegar pelas duas margens do Atlântico tropical, unindo

11
Brasil e África.
Exercício dessa magnitude exige, além de controle da literatura internacional, um
trabalho cuidadoso de levantamento de fontes manuscritas e impressas. Estas últimas, sobretudo
na forma de diários e memórias de viajantes de diversas nacionalidades, predominam no
capítulo que trata do ritual de batismo sobre a linha imaginária do Equador. Já no capítulo sobre
as tripulações africanas e escravizadas, Rodrigues mergulha fundo nos manuscritos levantados
nos arquivos portugueses, sobretudo.
Sendo este livro um esforço para escrever a História Social pelo ângulo dos
subalternos, não poderia faltar o tema da resistência, que emerge em diversos momentos. Num
deles, o autor desembarca do navio para tratar de reivindicações de africanos livres (aqueles
confiscados de contrabando após a abolição do tráfico) que exigem um basta ao tratamento de
escravos a eles dispensado, comportamento aliás generalizado segundo apontam outras
pesquisas sobre este segmento da população africana. Mas o ponto alto sobre o assunto
(resistência), pela novidade e qualidade das fontes – e que considero o momento mais vibrante
do livro –, é o que trata dos marinheiros escravizados que desertaram de seus navios em
Portugal.
Essa dimensão internacional da resistência escrava amplia consideravelmente o registro
sobre um tópico que tem sido diminuído por estudiosos cujas pesquisas os conduziram a
enfatizar demasiadamente a convergência de interesses entre escravizadose escravizadores. Não
digo que essa convergência nunca existisse, e eu mesmo jáescrevi muitas páginas sobre
negociação entre esses sujeitos, mas o historiador não precisa por isso perder de vista o conflito
de interesses. A noção de que a vida marítima estimulava projetos de liberdade – embora às
vezes romantizada demais, como Rodrigues explica ‒ ganha uma dimensão precisa, necessária
e inspiradora nestas páginas.
Conforme registrado no título do livro, não é somente das coisas do mar que o autor
trata. Entre os assuntos terrestres, além da já mencionada experiência dos africanos livres (que,
no entanto, vieram do mar), o historiador escreve sobre temas que têm, com insistência,
chamado a atenção de outros praticantes do ofício. A crise do fim do tráfico, por exemplo,
ronda dois capítulos. Em meados do Oitocentos, um altodirigente do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro pregava o uso do trabalhoindígena para substituir o africano (a revista da
instituição vivia a discutir a matéria), e sua pregação resulta num dos primeiros esboços mais
sistemáticos do pensamento racialista que ganharia corpo ao longo da segunda metade do
Oitocentos. A mesma disposição Rodrigues descobre na mentalidade de quem via o africano
traficado como o vetor por excelência das epidemias que grassavam no Brasil. Mas se o descarte
do tráfico virou consenso, o descarte da escravidão se arrastaria por quase meio século (e foi
também acompanhado de discursos racistas) ‒ tendo sido a propriedade escravista consagrada

12
na constituição imperial, conforme explicado no capítulo 4.
Apesar de reunir textos sobre diversas matérias e escritos ao longo de muitos anos, este
livro é coerente e atual. Sobre sua atualidade, o próprio autor cuida de nos guiar através da
bibliografia mais recente e convence de que seus achados e interpretações permanecem válidos.
Quanto à coerência, conforme tentei indicar, o livro é composto por eixos temáticos que se
engatam uns aos outros, com predomínio da história atlântica. No mínimo, o leitor tem sob os
olhos uma parte da produção dispersa de um talentoso historiador da escravidão. Um livro,
além disso, que evita o jargão acadêmico, escrito que foi para ser usado não apenas pelo leitor
especializado, mas também pelo leigo curioso pelas histórias do mar e algumas da terra firme.

João José Reis


Salvador, 2015

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PRÓLOGO

Esta obra de Jaime Rodrigues é um percurso pela sua trajetória de pesquisador e


pelos caminhos que os trabalhadores livres e escravos fizeram por águas turbulentas, porém
plenas de pessoas, aprendizados e experiências, no “mar-oceano” Atlântico e no espaço
plurissecular dos séculos XVI ao XX.
Neste itinerário, Rodrigues nos apresenta trajetórias de vidas que se efetivam no
percurso do trabalho, no mar e em terra, e nos traz uma importante contribuição para o
estudo da história social dos trabalhadores e seus protagonismos, evidenciando a dimensão
humana desses personagens. Além disso, nos proporciona uma reflexão historiográfica
inovadora sobre a construção do mundo do trabalho na sua dimensão territorial local e
conectada aos espaços e sociedades onde a África teve um papel fundamental na
constituição do Brasil atlântico.
Neste espaço amplo, articulam-se projetos de sociedades, instituições e contextos
do mundo do trabalho que dão às experiências apreendidas pelos trabalhadores nas suas
diversas condições um caráter para além de fronteiras rígidas que sugeriam uma leitura
redutora da importância da experiência e da agência social destes indivíduos.
O fazer-se do trabalho, as condições materiais disponíveis, o modo e as situações
para obter a alimentação e como estas se condicionam abrem caminhos para a ação dos
trabalhadores, dá a esses personagens uma rica dimensão histórica e humana que torna essa
obra de Rodrigues um estímulo e uma provocação para investigações sobre os mundos do
trabalho nas sociedades atlânticas.
Os relatos sobre os trabalhadores livres e escravos foram construídos por Rodrigues
numa primorosa interpretação que conseguiu identificar nas filigranas da vasta e
diferenciada documentação que percorreu no Brasil e em Portugal as evidências das
trajetórias desses indivíduos e de suas ações construídas historicamente.
A abordagem teórica e metodológica para encontrar a agência desses trabalhadores
são de uma riqueza analítica que produz um olhar historiográfico original e enriquecedor
para os estudos do Brasil e da África na dimensão atlântica.
Viajar no vai e vem dessa verdadeira teia de Ariadne da odisseia histórica desses
trabalhadores é o convite que faço aos leitores. Dos meandros desse tecido que se faz e
desfaz emerge uma nova forma de ver o Brasil e as sociedades atlânticas, descortinando
surpresas boas e uma perspectiva histórica bastante singular.
Patricia Teixeira Santos
Professora de História da África do Departamento de História
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Paulo

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15
APRESENTAÇÃO
Os escritos reunidos neste livro foram produzidos em tempos e contextos diversos.
A maneira como os dispus aqui estabelece uma ordem cronológica para as temáticas
abordadas, entre os séculos XV e XX. A reunião dos textos promove uma conexão entre
escravizados e livres e entre a vida material e a cultura profissional dos marítimos que se
transformaram ao longo do tempo, em terra e no mar, no espaço atlântico.
O olhar sempre esteve focado no mundo do trabalho, na condição do trabalhador e
em sua agência. Os três primeiros capítulos, de espectro temporal mais amplo, privilegiam
o espaço marítimo, fluido no que se refere à sua superfície e também no que traz de
possibilidade de deslocamento e mudanças rápidas, dadas no tempo de uma viagem. Os
demais se centram nas experiências de terra e em uma temporalidade mais rígida: o século
XIX, exceto por uma abordagem mais longa e um ensaio de aproximação com o tempo
presente no capítulo final. Política, cultura e História Social estão em diálogo em todos eles.
No primeiro capítulo, analiso o rito de passagem da travessia da linha do equador e
suas transformações ao longo do tempo, partindo dos registros contidos em narrativas de
viagens escolhidas, entre os séculos XV e XX. Nos séculos XX e XXI, a persistência desse
ritual deixa a impressão de que suas formas teriam sido sempre as mesmas. Todavia, ao
acompanhar as fontes desde o século XV, pude perceber asorigens dessa cerimônia, sua
disseminação e transformação na cultura marítima. Marinheiros e oficiais participaram da
construção do ritual, repleto de significados paraa vida profissional dos trabalhadores do
mar.
O segundo capítulo mantém o interesse pela leitura das narrativas de viagens
transatlânticas e incorpora a crônica colonial e contribuições da historiografia para esboçar
um estudo sobre a alimentação dos marinheiros e os problemas de saúde decorrentes do
abastecimento dos navios. Quantidade e qualidade da comida são entendidas como
elementos que interferiam no desenvolvimento das viagens. Procurei problematizar também
a apropriação e a circulação de conhecimentos através do Atlântico entre os séculos XVI e
XVIII no que se refere aos alimentos adequados ao consumo humano e à preservação da
saúde das equipagens marítimas.
O capítulo 3 debruça-se sobre a atuação de escravizados e libertos como
trabalhadores do mar. Partindo da experiência marítima de africanos anterior ou
simultaneamente à escravidão mercantil moderna, analiso as transformações ocorridas em
função da legislação portuguesa sobre a mobilidade e o registro dos marinheiros cativos, bem
como as leituras desse processo na historiografia. Entre meados do século XVIII e as
primeiras décadas do século XIX, marinheiros forros e cativos atuaram na navegação de
longa distância, ligando os portos situados nos domínios lusos de diferentes continentes.
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Discuto, aqui, as especificidades contidas nos registros feitos sobre esses homens ao
embarcarem; ao mesmo tempo, distingo forros e escravizados, sobretudo africanos, e as
formas e perspectivas de engajamento desses homens no mundo do trabalho marítimo no
Atlântico. O capítulo tem seu desfecho na análise das perspectivas de liberdade de
marinheiros escravizados em trânsito pelos domínios portugueses e o Reino no período
assinalado.
Os capítulos 4, 5 e 6 retomam escritos de anos atrás. Avaliei que a repercussão desses
textos os fazia merecer uma nova edição, ligeiramente atualizada em termos bibliográficos,
mas sem perder de vista as preocupações originais. Todos os três abordam as ações dos
escravizados ou as visões construídas sobre eles em ambientes sociais distintos e
comunicantes durante o Império brasileiro, mas precisamente na primeira metade do século
XIX: o poder Legislativo, o espaço produtivo e os primórdios de uma historiografia
nacional(ista).
O capítulo 4 aborda a liberdade dos cativos, discutindo os poucos casos registrados
de escravizados que pediram sua liberdade no Legislativo em fase de implantação no Brasil,
no ano de 1823. Por meio dessas solicitações, pude avaliar as estratégias desses homens e
mulheres no âmbito da discussão parlamentar e aventar algumas hipóteses acerca do
entendimento do papel da instituição legislativa na vida social. Senhores de escravos e
parlamentares também são sujeitos dessa história e as evidências apontam que, para além da
arena judicial e do confronto cotidiano direto entre senhores e homens e mulheres
submetidos à escravização, o parlamento também foi entendido como campo de confronto
no interior da escravidão brasileira no imediato pós-Independência.
O quinto capítulo recupera uma das primeiras discussões temáticas ocorridas no
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1840. Aqui, explorei os conceitos de
liberdade e civilização, utilizando para isso o texto de Januário da Cunha Barbosa sobre a
necessidade de “civilizar” os índios brasileiros para empregá-los como força de trabalho, em
substituição aos escravos africanos, em um período no qual a grande migração de
estrangeiros ainda não se colocava como realidade factível.
A partir da definição do estatuto legal dos africanos contrabandeados para o Brasil
depois de 1831 e de sua inserção compulsória no mercado de trabalho na ambígua condição
de “livres”, o capítulo 6 discute as questões relativas à disciplina que se tentava impor aos
africanos livres, através do estudo do caso da Fábrica de Ferro de Ipanema – instituição que
tem merecido estudos ampliados, sobretudo a partir da décadade 1990. Como contraponto,
surgem também os atos de resistência às tentativas de disciplinar os trabalhadores, através do
caso exemplar de africanos que requereram, de próprio punho, liberdade para poderem
tratar de suas vidas.
O capítulo 7 parte de preconceitos raciais identificáveis no presente para ensaiar uma
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análise retrospectiva da forma pela qual autores médicos, com base em evidências empíricas
contidas em relatos de viajantes europeus e na crônica colonial, atribuíramaos africanos
a responsabilidade pela introdução de doenças no Brasil. O debate, com raízes antigas,
passou por transformações importantes entre fins do século XIX e início do século XX e
prossegue até a atualidade. Proponho um empenho dos historiadores da escravidão, da
saúde e da medicina em lidar com as doenças como parte da experiência dos africanos
desembarcados no Brasil, tendo em vista as concepções de doença/cura entre diferentes
culturas africanas.

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CAPÍTULO 1

UM MUNDO NOVO NO ATLÂNTICO: MARINHEIROS E RITOS DE


PASSAGEM NA LINHA DO EQUADOR, SÉCULOS XV-XX1

Um ritual da cultura marítima

Em meados do século XX, o almirante brasileiro Amphilóquio Reis descreveu, em


poucas linhas, como se dava o batismo da linha do equador, recorrendo a personagens e
práticas de bordo:

(...) o batismo do mar ou da linha ‘equinoxial’ (sic) é uso antigo dos


marinheiros, em meio de festas, [d]aquele que pela primeira vez
transpõe a linha do Equador. Para isso os encarregados do batismo
mascaram-se de Netuno, de Tempo e outras personagens; depois de
várias perguntas e respostas, um marinheiro, com uma seringa ou
mangueira, jorra sobre o neófito tanta água do mar quanto preciso para
ficar bem batizado (...)2.

Embora tenha dito tratar-se de “uso antigo dos marinheiros”, ele não se arriscoua
datá-lo e, caso tenha procurado, não encontrou apoio em dicionários de termos náuticos
escritos antes do seu. A obra de Reis é a única em língua portuguesa, dentre os dicionários
técnicos que consultei, a mencionar o batismo dos marinheiros na passagem da linha. As
referências à festa, à presença de Netuno, às questões lançadas aos tripulantes e ao despejo
de água sobre os homens que cruzavam o equador pela primeira vez aparecem aqui como
elementos de um antigo ritual ocorrido em alto mar. Parecia que os passos eram e sempre
tinham sido os mesmos. Como qualquer dicionário, este nos coloca diante de uma resposta
objetiva e de um uso corrente da linguagem, mas não podemos esperar dessa fonte um
esclarecimento mais amplo do processo histórico. Reis registrou a antiguidade da prática e
os elementos presentes na sua execução em meados do século XX, mas para conhecer
outros elementos e suas transformações, o historiador deve visitar fontes diferentes. É o
que farei neste capítulo, ao apresentar um inventário das descrições desse ritual ao longo
dos séculos, sem pretensões totalizantes.
Partirei da definição ampla de Peter Burke para ritual, referente à ação que expressa
significados, “em oposição às ações mais utilitárias e também à expressão de significados

1
Esta versão retoma e amplia consideravelmente o texto com mesmo título publicado na Revista Brasileira
de História, 33(65): 2013, 235-276. Graças ao apoio da FAPESP, uma versão reduzida foi apresentada no
Colóquio Internacional Conhecimento e Ciência Colonial, promovido pela Universidade de Lisboa e pelo
Instituto de Investigação Científica Tropical em novembro de 2013.
2
REIS, Amphilóquio. Dicionário técnico de marinha. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1947, p. 61.
19
através de palavras ou imagens”3. O batismo é um rito religioso inaugural; para os cristãos,
é o primeiro dos sacramentos, demarcando o início da vida na religião com o desencargo
do pecado original e o ingresso na comunidade dos que professam o cristianismo. É pela
água batismal que novos membros incorporam-se à cristandade. Raphael Bluteau, que
incluiu estas informações no verbete sobre o batismo inserido no dicionário elaborado por
ele no início do século XVIII4, não chamou a atenção para outros elementos do batismo
cristão. Moraes Silva ampliou a definição, lembrando, entre outras coisas, que no batismo
atribui-se um nome ao fiel:

“Sacramento da Igreja Cristã, pelo qual se dá o nome e se alista entre


os cristãos; é o primeiro que se recebe, e é ou de fogo, i.e., desejo
ardente de viver e morrer na fé de Jesu Cristo; ou de sangue, que
consiste no sofrimento e martírio por amor da fé de Jesu Cristo; de
água, que é o mais ordinário (...)”5.

Ambos os dicionários não observam nessa palavra outras rubricas para além da
estritamente religiosa, e deve haver motivos para isso. Afinal, entre os marinheiros e
nos antigos dicionários de marinharia portugueses, não há referências à prática dobatismo
a bordo, ao passo que elas são relativamente abundantes em relatos de viajantesde outras
nacionalidades, tanto entre católicos como em meio aos protestantes.
Por analogia, o batismo do equador demarca a integração efetiva dos homens à
comunidade marítima. Além do caráter integrativo e do uso da água – que, juntamente com
o fogo são “símbolos usuais de purificação”6 –, não encontrei, nas descrições de cronistas
coloniais ou de viajantes entre os séculos XV e XX, o procedimento denomear ou
renomear aqueles que eram batizados quando cruzavam a linha. O ingresso dos novatos se
dava pelo reconhecimento da experiência, e não pela atribuição de um antropônimo ou
uma alcunha.
Sendo a navegação uma atividade humana exercida desde as primeiras sociedades
em seus deslocamentos pelo planeta, é possível supor a existência de rituais integrativos
marítimos anteriores aos monoteísmos que vieram a se valer do batismo. Houve quem
defendesse a hipótese de que os primeiros habitantes da América teriam vindo das
4
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesu, 1712, Tomo 2, p. 37.
5
SILVA, Antônio Moraes. Diccionario da lingua portugueza, recompilado dos vocabularios impressos ate
agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typographia Lacerdina,
1813, Tomo 1, p. 260. Destaques no original.
6
BURKE, Cultura popular na Idade Moderna, op. cit., p. 205.

3
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 204.
20
ilhas do Pacífico em barcos de cujas dimensões e formas não restaramvestígios.
Porém, interessam-me não os deslocamentos marítimos de todo tipo ao longo da
História, mas sim um ritual que ocorria tão somente numa zona determinada da terra e
nos limites de uma comunidade profissional formada exclusivamente por homens. Não
era, portanto, um dado comum da cultura dos povos da Europa moderna, e sim um dado
da cultura marítima, envolvendo trabalhadores especializados e que, em geral,
permaneciam muitos anos engajados. Para analisar esse ritual, reuni uma série deevidências
que permitem afirmar sua importância e persistência entre os marinheiros e a aprovação
comunitária que legitimava sua ocorrência. Pouco usual e independente do calendário,
como eram outros rituais que permeavam diferentes dimensões da vida política, social e
doméstica7, ele estimulava os curiosos de fora da comunidade aregistrá-lo, mas não foi
objeto de registro sistemático pelos próprios marinheiros.
Carlo Ginzbug empreendeu uma inspiradora busca de semelhanças morfológicas
nos rituais praticados em tempos e sociedades ancestrais para tentar decifrar eventos da era
moderna8. Não é o caso, aqui, de esmiuçar tradições similares em tempos e lugares tão
diversos: a longevidade do ritual de travessia do equador é mais curta, pode ser datada um
pouco mais precisamente e sua circunscrição geográfica está limitada ao Atlântico. Embora
a cintura imaginária cruze toda a Terra, não encontrei menção ao batismo de marinheiros
ocidentais quando da passagem pela linha no Índico ou no Pacífico.
Observei, em outra oportunidade, que as descrições dos rituais de batismo na
passagem da linha do equador contidas nos relatos de viajantes se afiguram estranhas à
nossa compreensão9. Procuro, agora, ampliar o leque das fontes e o recorte temporal para
revisitar o tema, com novas perguntas e em busca de novas respostas.
Inicialmente, apresentarei os termos dos estudos sobre os rituais na sociedade
europeia da época moderna. Ginzburg, debruçando-se sobre evidências imemoriais,
detectou tradições similares (ou ao menos ele assim as percebeu) em tempos e lugares
diferentes10, e que podem ter informado os inquisidores na construção intelectual do

7
Refiro-me àquele praticado na Inglaterra dos séculos XVIII e XIX e analisado por E. P. Thompson em “A
venda de esposas”. In: Costumes em comum. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 305-352 e “Folklore,
Anthropology and Social History”. The Indian Historical Review, 3(2): jan.1977, p. 253.
8
GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Cia. das Letras, 1991.
9
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de
Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Cia. das Letras, 2005, p. 36-37.
10
GINZBURG, História noturna, op. cit., p. 96 e 101.

21
sabá. Os estudiosos da ação inquisitorial têm de saber contornar certos filtros ao lidar com
os dados da documentação produzida por homens que combatiam aquilo queentendiam
ser comportamentos e práticas desviantes. De forma similar, a cultura popular da Idade
Moderna vem sendo estudada a partir de materiais descritivos coletados por folcloristas do
século XIX, fontes valiosas, mas que também precisam ser manejadas com cuidado para
não repetir seus procedimentos paternalistas e observadores das “antiguidades populares’
de uma cultura alienígena através de uma grande distância social”11:

“Muitas vezes, costumes e rituais foram observados com um olhar


paternalista (...), a partir de cima e com um abismo de classe, estando
os observadores divorciados da situação ou do contexto. As questões
propostas pelos folcloristas acerca dos costumes raramente eram
aquelas de função ou uso contemporâneos (...)”12.

A cautela no procedimento também toma em conta a analogia com textos como


o de Heródoto, cuja curiosidade, reunião e apresentação das notícias eram balizadas por
“esquemas e categorias sólidos (e potencialmente deformantes), embora muitas vezes
inconscientes”. Ignorar esses esquemas e categorias seria ingênuo; concluir que é
impossível ultrapassar o horizonte do texto seria absurdo13. O historiador do ritual de
travessia do equador depende dos relatos dos viajantes que estavam a bordo no momento
das cerimônias e que não necessariamente compreendiam o significado daquilo que
presenciavam. A presença deles a bordo, diferentemente dos marinheiros deprofissão, era
episódica, e entre o narrador e o objeto da narrativa havia abismos de classe e outras
diferenças. Embora compartilhassem experiências amplas, a cultura de classe dos
marinheiros não era disseminada entre todos os contemporâneos, particularmente entre
os passageiros ocasionais. Ainda assim, é somente com essas narrativas que podemos
contar, fazendo-lhes a crítica e tentando transpor os problemas nelas colocados.
Nas descrições dos viajantes entre os séculos XV e XX encontramos categorias e
esquemas explicativos imprecisos e deformantes, mas eles são tudo o que temos para tentar
uma aproximação com o ritual atlântico em questão e com seus praticantes, que raramente
deixaram textos de próprio punho descrevendo os eventos de bordo. A raridade de relatos

11
THOMPSON, E. P. “Rough music”. In: Costumes em comum, op. cit., p. 369.
12
THOMPSON, “Folklore, Anthropology and Social History”, op. cit., p. 249.
13
GINZBURG, História noturna, op. cit., p. 188.

22
escritos pelos próprios marinheiros expressa o fato de que muitos deles eram iletrados. Ao
apresentar dados sobre as tripulações britânicas do século XVIII, Rediker afirmou que dois
ou três entre cada dez marujos sequer sabiam assinar seus nomes, ainda que a cultura
marítima tivesse produzido formas disponíveis para letrados e iletrados, tais como livros,
fábulas e baladas, que funcionavam como meio importante de comunicação, educação e
diversão14. A cerimônia de travessia do equador, como veremos, era integrativa e
legitimadora da experiência, não diferenciando marinheiros letrados de iletrados.
Na maior parte das vezes, as descrições de que dispomos para tratar da cerimônia
ocorrida na passagem do equador provêm dos escritos e imagens elaborados por
passageiros – comerciantes, cientistas, artistas, religiosos, militares ou turistas –,
espectadores externos que tinham uma vivência marítima limitada ao tempo da travessiado
Atlântico e que, chegando ao seu destino, iriam cuidar de outros interesses. Paraesses
expectadores, aquilo não era uma vivência cotidiana, e sim uma experiência curiosa e
excitante. Eles não construíam nem compartilhavam a cultura marítima, o que não retira
de suas descrições a condição de preciosas fontes de informação acerca desse rito de
passagem e de outros aspectos das práticas dos homens do mar.
Diante da longuíssima duração e das diferenças culturais e geográficas nasevidências
que colheu, Ginzburg teve a cautela de afirmar que continuidade não significa identidade15
e, embora não firme uma teoria explicativa para todo e qualquer ritual, os cuidados
tomados por ele no trato com as evidências devem ser considerados. No batismo do
equador, a continuidade do ritual significava, efetivamente, um dado identitário para os
homens do mar. Os batizados passavam a fazer parte de uma comunidade e uma cultura
nas quais eles eram neófitos e pouco experientes. Enfrentar as adversidades da zona
equatorial e submeter-se a um ritual praticado pelos que o haviam antecedido nessa rota
era ingressar em uma espécie de confraria de iniciados, conquistando o direito de oficiar a
cerimônia frente aos novos calouros quando aocasião se apresentasse. A identidade de
marinheiro, como tantas, podia se transformar ao longo do tempo e em contato com a
alteridade das culturas e as transformações da vida material que, criadas em terra, se
cruzavam no oceano.

14
REDIKER, Marcus. Between the Devil and the Deep Blue Sea: Merchant Seamen, Pirates, and the
Anglo-American Maritime World (1700-1750). Nova York: Cambridge University Press, 1987, p. 158.
15
GINZBURG, História noturna, op. cit., p. 123.

23
Mencionado por muitos viajantes vindos do hemisfério norte, o ritual não aparece
na descrição da viagem de volta. As poucas exceções que encontrei foram escritas por
brasileiros e muito tardiamente – como as de Jayme Adour da Câmara e António de
Alcântara Machado16, ambos escritores modernistas brasileiros da década de 1920. A
menção à cerimônia de passagem do equador nesse período emergia em contextos
diversos, que detalharei no momento apropriado.
Algumas hipóteses podem ser levantadas para tentar explicar essa ausência de
relatos nas viagens de sul para norte ao longo da Idade Moderna. A cerimônia, seus
praticantes e narradores eram todos oriundos do norte, sobretudo da Europa, o que pode
significar que somente a passagem do equador do hemisfério setentrional para o
meridional merecesse ser assinalada como um rito de passagem. Ao cruzar a linha, esses
homens ingressavam em um mundo de ponta cabeça na perspectiva deles, no qual as
estações eram invertidas, as correntes marítimas eram desconhecidas e a orientaçãopelos
astros precisava descobrir outros referenciais. Os mares do hemisfério norte estavam
simbolicamente ligados ao lar e à realidade, enquanto os do sul eram distantese exóticos;
cruzar a linha era romper com as práticas repressivas no vestir, no comportamento, na
sexualidade. A cerimônia de batismo poderia representar um “corretivo social”, lembrando
a todos que haveria um retorno17.
Mas é fato que, em inúmeras viagens de sul para norte – de portos africanos,
brasileiros ou do Rio da Prata para a Europa e América do Norte– tripulações e navios
diferentes daqueles com os quais se fizera a viagem de ida cumpriam o percurso de
volta e, dentre os marinheiros, alguns ou muitos poderiam cruzar a linha pela primeira vez,
nativos do hemisfério sul fazendo seu ingresso no mundo do trabalho marítimo de longo
curso. Ocorre que os narradores da travessia já haviam descrito o ritual na vinda,e talvez
tenham julgado enfadonho fazê-lo também no retorno – o que não quer dizer que o ritual
deixasse de acontecer. Como dependemos dos narradores, a curiosidade e a excitação
deles já poderiam estar satisfeitas e o que consumia suas atenções na volta eram as
novidades colhidas na terra que deixavam para trás. Também não devemos esquecer que
os viajantes eram leitores de outras narrativas de viagem, e as primeiras dentre elas

16
CÂMARA, Jayme Adour da. Oropa, França e Bahia (documentário de viagem). São Paulo: Cia. Ed.
Nacional, s/d, p. 28-33; MACHADO, António de Alcântara. Pathé-Baby e prosa turística: o viajante
europeu e platino. Obras, v. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1983, p. 188.
17
BRONNER, Simon J. Crossing the Line: Violence, Play, and Drama in Naval Equator Traditions.
Amsterdã: Amsterdã Universty Press, 2006, p. 26.

24
podem ter fixado um protocolo de escrita e descrição das viagens marítimas seguido pelos
demais autores.
As formas do ritual e suas alterações merecem nossa atenção. Se os dados utilizados
por Ginzburg na decifração dos mitos incluem séries culturalmente heterogêneas, mas
morfologicamente coerentes18, no que tange às cerimônias de passagem do equador tanto
a série como a morfologia são do mesmo tipo. Recorri às narrativas de viajantes que,
embora com origens culturais e inserções sociais diferenciadas, fixaram um modo de
apresentar as informações ao longo do tempo, sendoas variações concentradas, sobretudo,
no gênero: diários, quando os registros foram feitos no calor dos acontecimentos; ou
narrativa posterior aos eventos e com mais tempopara reflexão e elaboração. Ambos os
gêneros, porém, não foram inventados por seus narradores, fazendo parte da uma forma
de expressão comum aos europeus letrados desde muito tempo.
Recorro ao percurso metodológico de Ginzburg para analisar essas evidências,
tendo em mente que a identificação das semelhanças formais não é algo óbvio nem simples
de operar, sobretudo se reconhecermos que, para além de divergências superficiais, há
analogias profundas19. Para estabelecer a grandeza das divergências ou semelhanças, será
preciso lidar com os relatos de travessia do equador, ordená-los cronologicamente e
verificar suas origens identificáveis, sua morfologia e as transformações, relacionando-as
aos contextos em que foram produzidos, tentando extrair daí significados mutantes.
O ritual de travessia do equador cumpria as funções assinaladas por Louisa Pittman ao lidar
com as quatro proposições básicas do antropólogo estadunidense William Bascom acerca
do folclore: divertir ou entreter, fazendo aflorar coisas que normalmente não seriam
discutidas e torná-las motivo de riso, permitindo um escape à repressão socialmente
imposta; validar uma cultura, suas instituições e rituais; educar, por meio de um reforço da
moral e dos valores; e manter os padrões aceitos de comportamento, aprovando o
comportamento de quem se conforma, agindo como instrumento de controle social20. A
estas proposições, a estudiosa acrescentou: “dar aos indivíduos uma sensação de controle
sobre eventos e elementos incontroláveis”21.
O professor de estudos americanos e folclore Simon Bronner indica a teoria de
Henning Henningsen em Crossing the Equator: Sailors’ Baptism and Other Initiation Rites
(1961) como a mais citada acerca da origem do batismo do equador. Segundo essa teoria,
o batismo era feito pelos franceses em águas europeias no século XVI e, depois, difundiu-
se entre potências marítimas como Holanda, Grã-Bretanha22, Escandinávia, Alemanha,
Estados bálticos e Rússia.

18
GINZBURG, História noturna, op. cit., p. 225.
19
GINZBURG, História noturna, op. cit., p. 149.

25
Ao longo do processo de difusão, a cerimônia transformara-se continuamente
desde o século XVI, não sendo tão bizarra como observadores contemporâneos a retratam
e quando comparada às iniciações de artesãos, comerciantes e estudantes europeus dos
séculos XVI ao XVIII. Se em terra muitas dessas iniciações desapareceram ou perderam
a importância original, a travessia do equador teria se avolumado e tornado cada vez mais
forte desde o século XVIII. Ainda de acordo com Bronner, um dos problemas com a
teoria da origem francesa é que ela deixa de fora a tradição nas marinhas das potências
entre os séculos XVI e XVIII, como Espanha, Portugal e estados italianos:

“Se o princípio é que a semelhança do batismo como um rito existente


entre as culturas cristãs facilitou a difusão da França para os Países
Baixos e, em seguida, para a Grã-Bretanha, parece surpreendente que
ele não iria seespalhar entre espanhóis e portugueses que cruzaram
repetidamente o equador em viagens de comércio e colonização.
Além disso, a cerimônianão aparece nos relatos de navios latino-
americanos, embora seja vivamente descrita na América do Norte em
navios da Marinha dos Estados Unidos depois de 1800 (sem dúvida, a
partir de laços de colonização e comércio britânicos)”23.

Embora devamos problematizar a teoria francesa da origem do ritual, há uma


questão incontornável: as fontes portuguesas e espanholas, anteriores ou posteriores ao
século XVI, efetivamente não mencionam o batismo do equador nas embarcações sobas
ordens desses reis católicos. Parti do princípio de que os portugueses, particularmente,
tendo cruzado o equador antes dos demais europeus e de forma sistemática, pudessem ter
inventado a tradição do batismo da linha, mas as evidências não confirmaram essa prática.
20
Cf. BASCOM, William R. “Four Functions of Folklore”. The Journal of American Folklore, 67: 333-
349, 1954.
21
PITTMAN, Louisa W. “Appeasing Neptune: The Functions of Nautical Tradition”. Chrestomathy, 5:
2006, p. 199-200.
22
REDIKER afirma que o ritual apareceu entre os ingleses no final do século XVII, cf. Between the Devil
and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 186.
23
BRONNER, Crossing the Line, op. cit., p. 27-28.

26
Para explicar a persistência mais incisiva das deusas noturnas em mitos da Europa Oriental
do que da Ocidental, Ginzburg aventou a hipótese de que “a ofensiva da Igreja Ortodoxa
contra as superstições foi mais débil que a lançada no Ocidente pela Igreja romana”24. Resta
saber se a hipótese pode ser adaptada e transposta para as navegações atlânticas de séculos
depois, confrontando a repressão às heterodoxias em países católicos ibéricos, em países
de maioria protestante ou naqueles que, embora de forte presença católica, não haviam
instituído o mesmo tipode controle inquisitorial. Os marinheiros lusos foram personagens
relativamente frequentes nas perseguições inquisitoriais25, e rituais pouco piedosos como
esses abordo de navios portugueses poderiam motivar denúncias ao tribunal do Santo
Ofício. Os soberanos protestantes parecem ter sido mais tolerantes com práticas desse tipo
na cultura marítima ou talvez não se importassem com elas. Mais adiante retomarei a
questão, ao lidar com as evidências e os problemas que elas nos colocam.
Na visão de Thompson, o recurso dos historiadores às categorias e aos modelos da
Antropologia e do Folclore pode se dar mais ou menos livremente, observando comoesse
instrumental se viabiliza no contexto, refinando-o e reformulando-o no fazer da
investigação histórica:

“o impulso antropológico é sentido principalmente não na construção


de modelos, mas na localização de novos problemas, para observar
velhos problemas de novas maneiras, com ênfase nas normas ou
sistemas de valores e nos rituais, atentando para as funções expressivas
das formas de motins ou distúrbios, e sobre expressões simbólicas de
autoridade, controlee hegemonia”26.

Para os europeus do norte e estadunidenses de fins do século XVIII e início do


XIX que ingressavam no hemisfério sul pela primeira vez, demarcava-se o fato com um
rito de passagem: sob as ordens de Netuno, os novatos eram humilhados antes de serem
considerados iniciados no universo exclusivo dos marinheiros experientes. Netuno e sua
esposa Anfitrite não foram escolhidos por acaso: deus grego dos mares, que os romanos
associavam a Poseidon (embora este não apareça nos relatos que coletei), ele é tido na
mitologia como um dos seis filhos de Kronos e Rhea, irmão de Hades e Zeus. O tridente

24
GINZBURG, História noturna, op. cit., p. 174.
25
Sobre o assunto ver, entre outros, LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São
Paulo: Cia. Ed. Nacional; Edusp, 1968, p. 209; SIQUEIRA, Sonia Aparecida. A Inquisição portuguesa e
a sociedade colonial. São Paulo: Ática, 1978; SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma
etnografia histórica sobre as gentes do mar (séculos XVII ao XIX). Campinas: Papirus, 2001.
26
THOMPSON, “Folklore, Anthropology and Social History”, op. cit., p. 247-248.

27
que carrega é o emblema de sua soberania nos mares e, entre seus poderes, incluem-se
vários dos medos e desejos inevitavelmente encarados pelos homens do mar, semdistinções
de classe: as inundações, a criação de tempestades, o envio de monstros marinhos e outros
animais, o afogamento, os naufrágios, a criação de calmarias e de fontes de água doce27.
Enfrentar a intensidade e a violência dos mares era parte indissociável do trabalho dos
marinheiros. O terror do mar teria feito surgir uma instância especial na sociedade e na
cultura marítimas e, nessas situações, era urgente trabalhar de forma cooperativa28; se
pudessem contar com o apoio de Netuno, ainda que simbólico, tanto melhor. Se tiver
algum estranhamento em relação ao ritual, o historiador pode tentar superá-lo adentrando
exatamente naquela via que lhe parecer mais opaca. Neste caso, a opacidade está na própria
cerimônia e, se pudermos “captar um sistema estranho de significação”29, talvez seja possível
decifrá-la.
O deus pagão Netuno surge nos relatos para a passagem em direção à parte
meridional da Terra no início do século XVIII e era parte de uma visão de mundo dos
marinheiros que, embora contrariasse a religião formal, vinha no bojo de crenças e práticas
cristãs e pré-cristãs que combinavam o natural e o sobrenatural, o mágico e o material, e
eram entendidas como “superstições” pelos oficiais e habitantes letrados de terra
eventualmente embarcados. Rediker assinala que um homem tornava-se um homem do
mar não apenas por aprender o trabalho e a linguagem marítima, mas pela iniciação. O
batismo do marinheiro era, assim, um rito de passagem clássico, realizado quando os
calouros cruzavam o equador, e ele afirma que tal rito era praticado por marinheiros de
todas as nacionalidades, parte da cultura marítima internacional, uma cerimônia de
iniciação essencial que marcava a passagem para o mundo cultural e social dos
marinheiros30.
O processo do batismo do equador merece acompanhamento e problematização,
de início por sua atipicidade, que pode oferecer “uma valiosa janela para as normas”31. O
ritual é antigo, é seguramente uma herança europeia a todos os americanos do sul edo
norte e não há sinais de que Netuno o presidisse desde sua origem. Um bom meio

27
Cf. HANSEN, William. Classical Mythology: A Guide to the Mythical World of the Greeks and Romans.
Nova York: Oxford University Press, 2004, p. 266.
28
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 94 e 154.
29
Segundo a sugestão de inspiração antropológica feita por DARNTON, Robert. O grande massacre de
gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 106.
30
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 179-189; CREIGHTON, Margareth.
“Fraternity in the American Forecastle, 1830-1870”. The New England Quarterly, 63(4): dez.1990, p.
534.
31
THOMPSON, “Folklore, Anthropology and Social History”, op. cit., p. 252.

28
para tentar desvendar tudo isso é ingressar no caminho sugerido por Robert Darnton,
aceitando o estranhamento como um desafio, permitindo ao historiador analisar a
opacidade nos documentos e “descobrir um sistema de significados estranhos”32.

Representações do mundo no início dos tempos modernos e hipóteses para a


origem do ritual

Cruzar o equador com os aparatos técnicos da navegação à vela era um desafio. A


ausência de ventos na zona equatorial, um dado da História Natural, tinha fortes
implicações na História humana, não apenas por oferecer uma dificuldade a ser superada
pelos mareantes, mas também por criar uma situação propiciadora de um relaxamento no
tempo da faina e na rígida hierarquia das tripulações, em meio ao qual era realizado um
ritual a bordo dos navios de longo curso. Tal relaxamento, porém, não significava a abolição
completa das barreiras entre oficiais e o restante da equipagem: como lembrou Rediker,
alguns capitães ficavam à parte da festa para garantir a manutenção de sua autoridade. Havia
motivos para fazê-lo: a cerimônia invertia temporariamente a hierarquia oficial do navio, e
muitos capitães eram tratados com desprezo e escárnio33.
Analisar esse ritual é contribuir para a construção de uma história social dos
embarcados em meio à calmaria ao longo de um período de tempo dilatado, que vai de
fins do século XV até meados do século XIX. Em outra oportunidade, pude constatar a
fixação de um padrão no ritual de travessia da linha na primeira metade do século XIX.
Aventei a hipótese de que a representação de Netuno no ritual fosse uma reinvenção dos
marinheiros ibéricos nos séculos XV e XVI, ao atravessarem o equador sem derreter sob
o Sol ou cair em um abismo, nos termos de uma certa geografia antiga e medieval34.
Usei a expressão “uma certa geografia antiga e medieval” tendo em vista o
argumento de que, desde a Antiguidade tardia, homens como Macróbio e Marciano
Capela, no século IV, afirmavam a esfericidade da Terra. Os argumentos deles foram
reforçados posteriormente:

32
DARNTON, O grande massacre de gatos, op. cit., p. XV e 103-139.
33
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 187-188. Ver também BARREIRO,
José Carlos. “A formação da força de trabalho marítima no Brasil: cultura e cotidiano, tradição eresistência
(1808-1850)”. Tempo, 15 (29): jul./dez.2010, p. 197.
34
RODRIGUES, De costa a costa, p. 214. Ver também FONSECA, Luís Adão da. “O imaginário dos
navegantes portugueses dos séculos XV e XVI”. Estudos Avançados, 6 (16): set./dez.1992, p. 35-37 e 42,
e BERNAL, Rafael. El gran océano. México: Fondo de Cultura Económica, 2012, p. 94.

29
“Isidoro de Sevilha, talvez uma das figuras mais celebradas da época
no quetange ao conhecimento geográfico, teria, em meio à ortodoxia
de sua Etymologiae, se deparado com a possibilidade de um planeta
esférico ao retomar a teoria das cinco zonas (climatas), de Parmênides.
Portanto, é no mínimo temerosa a afirmação de que teria
predominado, ao longo do período medieval, a convicção irrestrita
em uma Terra plana. Simek chega a afirmar que, ao longo dos séculos
XI e XII, existiam bem poucas dúvidas acerca da forma da Terra”35.

O medo medieval do abismo equatorial não afetava a todos igualmente. Segundo


especialistas no período, os medos e as representações do espaço marítimo na Idade Média
eram muito mais complexos. A esfericidade da terra não era novidade no século XV, assim
como muitos símbolos religiosos também foram inscritos no espaço marítimo, traduzindo
uma certa domesticação dos medos. A angústia com relação ao mar envolvia também
medos mal definido, as hagiografias dos santos viajantes, aexpectativa do encontro com o
bizarro e tantas outras questões em meio às quais o medoda queda no abismo também
estava inscrita. Separá-la de seu contexto mais amplo seria um abuso de nosso tempo36.
As discussões nos circuitos intelectuais não repercutiam igualmente entre os
marinheiros que se engajavam nas caravelas do século XV. Quando a expedição de
Gonçalo Velho atingiu os Açores no início dos anos 1430, ele e seus homens imaginavam
estar adentrando uma zona em que “a água do mar ferve como em uma caldeira e que os
marinheiros são sugados, juntamente com os navios, por um grande precipício e jogados
no inferno”37, ainda que a latitude ali fosse muito próxima da de Portugal. Não por acaso,
o Cabo Bojador, mais ao sul e próximo ao paralelo 25º, também era conhecido como
Cabo do Medo. A linha do equador só seria ultrapassadana década de 147038.

35
Cf. BAUAB, Fabrício P. A experiência da América e o declínio da Geografia medieval, p. 4, disponível
em www4.fct.unesp.br/Tomás/.../artigo%20Fabricio_Bauab.doc.
36
Apoio-me em correspondência pessoal com Fabiano Fernandes, a quem agradeço. Este parágrafo
expressa as palavras desse medievalista, em mensagem por e-mail de 30 de março de 2011, obviamente sob
minha responsabilidade. Ver também SOBECKI, Sebastian I. The Sea and Medieval English Literature.
Cambridge: D. S. Brewer, 2008 e, para o caso português: KRUS, Luis. "O imaginárioportuguês e os medos
do mar". In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do homem e do mundo. São Paulo: Cia. das Letras;
Brasília: MinC, 1998, p. 95-105.
37
MEDEIROS, Guilherme de Souza. Arte da navegação e conquista europeia do Nordeste do Brasil
(Capitanias de Pernambuco e Itamaracá nos séculos XVI e XVII). Recife: UFPE, 2001 (Dissert. Mestr.
História), p. 34. Ver também DREYER-EIMBCKE, Oswald. O descobrimento da terra: história ehistórias
da aventura cartográfica. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1992, p. 85 e HUTTER, Lucy Maffei.
Navegação nos séculos XVII e XVIII. Rumo: Brasil. São Paulo: Edusp, 2005, p. 55.
38
A data precisa e o nome do navegador não são unânimes entre os estudiosos. Ver, entre outros, PEREIRA,
Moacir Soares, “Capitães, naus e caravelas da armada de Cabral”. Revista da Universidade deCoimbra, 27:
1979, p. 38, para quem o primeiro a cruzar a linha teria sido Alvaro Fernandes, em 1471;

30
Para além do círculo de intelectuais, a inexistência do abismo equatorial foi
constatada pelos marinheiros a partir das navegações ultramarinas, pioneiramente as
portuguesas, e o contato com terras até então desconhecidas dos europeus repercutiu de
diferentes maneiras em todo o continente. As viagens de Cristóvão Colombo, corajoso
como Ícaro no entender do literato jesuíta seiscentista Daniello Bartoli, abriram aos
europeus a chance de conhecer e explorar o Novo Mundo, repleto de minerais e
especiarias. Risco e novidade tornavam-se valores positivos, “apropriados, de fato, a uma
sociedade cada vez mais amplamente fundada no comércio. Estava surgindo uma nova
cultura, baseada na afirmação de novos valores sociais”39. O tema ressoava em toda a
Espanha do Século de Ouro e, ainda que os habitantes do litoral fossem os mais
impactados, todos conheciam alguém que havia ido às Índias e eram capazes de imaginar
os perigos intrínsecos da travessia:

“A experiência destes indivíduos [marinheiros e oficiais] foi plasmada


em alguns textos que, afinal, não são outra coisa senão artefatos
culturais de homens que, não podendo romper de todo com um
mundo que deixavam para trás, porém armados de uma coragem e
uma determinação incomensuráveis, criaram a possibilidade de
domesticar o mar e convertê-lo em uma imensa rota de negócios”40.

As viagens espanholas de Colombo foram inaugurais em vários sentidos, mas


não pela travessia do equador, porque a rota percorrida não o exigia41. A chegada de
Colombo à América e as novidades trazidas por esse episódio vieram na esteira das viagens
lusas ocorridas ao longo do século XV, que transformaram definitivamente o
conhecimento sobre o formato da Terra. Ao lidar com os relatos de homens do mar que
foram ao Oriente entre fins do século XV e meados do século XVI, José CarlosVilardaga
vislumbrou, de forma arguta, o “espaço de enormes possibilidades” representado pela
brecha entre o fantasioso e impreciso imaginário dos demais europeus e a suposta
objetividade das descrições portuguesas – espaço esse “no qual as expectativas,

John Horace Parry que afirma ter sido Lopo Gonçalves o primeiro a cruzar a linha, em 1473, cf. The Age
of Reconnaissance: Discovery, Exploration, and Settlement, 1450 to 1650. Berkeley: University of
California Press, 1963, p. 149; para Rafael Bernal, o equador foi cruzado em 1482 por Diego Cão, cf. El
gran océano, op. cit., p. 97.
39
Cf. GINZBURG, Carlo. “O alto e o baixo: o tema do conhecimento proibido nos séculos XVI e XVII”.
In: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia. das Letras, 1989, p. 111.
40
DAVIS, Elizabeth. “Travesías peligrosas: escritos marítimos en España durante la época imperial, 1492-
1650”. Actas del VII Congreso de la AISO: 31-41, 2006, p. 31 e 41.
41
Como notou Adalberto da Prússia em meados do século XIX, o primeiro espanhol a cruzar o equador foi
Vicente Pinzón, sete anos após a primeira viagem de Colombo. PRÚSSIA, Adalberto da. Brasil: Amazonas-
Xingu. Brasília: Senado Federal, 2002 (1ª ed.: Berlim: Hofbuchdruckerei, 1847), p. 32-33.

31
ansiedades e projeções foram efetivamente vividas e narradas”42. Pedro Louzada Fonseca
caminha em direção similar, ao constatar a presença de elementos da tradição medieval
nos modelos narrativos e, ao mesmo tempo, uma “quase secura da fantasia” nas crônicas
portuguesas quinhentistas. Recuperando o exemplo do Esmeraldode Situ Orbis, escrito
provavelmente entre 1505 e 1508, ele observa que, para Duarte Pacheco Pereira, “a
experiência (e não as elucubrações imaginosas e figurativas) era a madre das coisas, que
não enganava e tirava da dúvida”. Algo semelhante ao que Vilargada mencionou sobre os
relatos portugueses no Índico Fonseca vê também nas crônicas sobre a experiência colonial
na América, “policiando a exuberância e o prodigioso dos seres nela encontrados com uma
relativa contenção de inventio, encarando a possibilidade do maravilhoso e do miraculoso
como expressão no mínimo voltada para o pragmático”. Ainda que autores do porte de
Gândavo e Fernão Cardim possam ser enquadrados como “cultores de monstros e
monstrengos”, as precocesexperiências lusas no mar os acostumaram à alteridade antes de
outros navegadores europeus. Isso não significaria, entretanto, uma “incapacidade inata da
imaginaçãolusitana”43.
Podem ser incluídos nessa discussão os efeitos da também conhecida política de
sigilo adotada pelas coroas ibéricas. Fantasiosos ou realistas, tributários de certa tradição
medieval ou cultivadores da experiência, os marinheiros portugueses e espanhóis eram alvo
de um controle com a finalidade de impedir a circulação dos conhecimentos empíricos por
eles produzidos. Todavia, essa política não foi plenamenteexitosa: os segredos espalhavam-
se, entre outras razões, pelas escolhas que os homens do mar faziam – como trocar de
patrão e servir a outros mercadores, em um tempo em que a nacionalidade não era garantia
de fidelidade ou fixação em limites territoriais, muito menos oceânicos. Prestando serviços
em embarcações de outras bandeiras, por exemplo, esses homens espalhavam oralmente
42
VILARDAGA, Lastros de viagem: expectativas, projeções e descobertas portuguesas no Índico (1498-
1554). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2010, p. 22. O autor vê a continuidade desse processo no mundo
luso, observando que, “(...) após a viagem de Vasco da Gama, o que se viu ao longo do século XVI foi os
portugueses investindo, como nunca, na apropriação e transformação de uma antiga expectativa fantástica
em uma realidade acessível, mesmo que, talvez, ela só fosse alcançada pela força das armas e conquista dos
espaços que na realidade já eram ocupados”. Idem, Ibidem, p. 65.
43
FONSECA, Pedro Carlos Louzada. Bestiário e discurso do gênero no descobrimento da América e na
colonização do Brasil. Bauru: Edusc; Goiânia: Ed. da UFG, 2011, p. 136 a 142. A visão também aparece
no texto de Daniel Vecchio, para quem Duarte Pacheco “revela-se um devoto do conhecimento proveniente
da experiência. Esta devoção devia-se, sobretudo as manifestações de falsas descrições que as‘fábulas’ das
antigas autoridades que o viajante português desconsiderava como verdade empírica. Com o
desenvolvimento desses contrastes é que, aos poucos, tornou-se comum no século XVI registrar um
sentimento de superioridade dos navegantes em relação aos humanistas que preservavam o conhecimento
dos antigos sem os questionar”. “Literatura portuguesa de viagens: pensar, viajar e escrever no século XVI”.
Cadernos de História, 5 (2): dez.2010, p. 107.

32
seus conhecimentos, além de carregarem consigo informações manuscritas em cadernos
que, desde o último quartel do séculoXV, “corriam de mão em mão e se multiplicaram
em cópias”, começaram a ser impressos no início do século seguinte e eram conhecidos,
em Portugal, como livros de marinharia, dos quais restaram pouquíssimos exemplares44.
Os livros ibéricos de náutica incluíam informações sobre fenômenos como a variação
magnética e das marés, os eclipses e as regras de orientação pelo Cruzeiro do Sul45.
Diante desse quadro, é plausível que a possibilidade física de travessia do equador,
depois de enfrentados os percalços da calmaria, fosse pauta das conversas dos marinheiros
entre si. Mesmo que não tenham inventado ou praticado precocemente um rito de
passagem no equinócio, os portugueses podem ter disseminado as informações que,
apropriadas por marinheiros de outras partes da Europa menos sujeitas à repressão
católica, censória ou inquisitorial, criou o mote para o aparecimento da cerimônia de
batismo na travessia da linha. Quando instituições como a Royal Navy a partir do século
XVIII se empenharam em suprimir as blasfêmias e a irreligiosidade dos marinheiros,
era tarde demais para impedir a surgimento do ritual, mas a intervenção pode ter feito
declinar a importância da cerimônia46, juntamente com a introdução dos motores a vapor,
diminuindo os riscos enfrentados nas calmarias.
O enfrentamento do risco e da novidade que caracterizou o início da era moderna
pode estar na origem da comemoração equatorial. O risco incluía um fato de ordem natural
que facultava a realização do ritual. Hoje, meteorologistas explicam a calmaria nessa zona
em função dos padrões de circulação atmosféricos:

“O ar aquecido da zona equatorial ascende e se dirige para os polos.


Porém,à latitude aproximada de 30º (Norte ou Sul), uma parte desse
ar já esfriou o suficiente para descer à terra e retornar ao Equador,
formando as chamadas células de Hadley com ventos conhecidos
como alíseos. O restante da massa oriunda do Equador continua
avançando rumo a latitudes mais altas, porém, mais ou menos à 60º
(N ou S), choca-se com o ar frio oriundo dos pólos, elevando-se e
retornando a latitudes mais baixas – formando assim (...) os chamados
ventos contra alíseos. O ar polar, por sua vez, tendo absorvido o calor
da Terra e de outras massas de ar mais aquecidas, também se eleva e
volta aos pólos, formando as células de circulação polar. Nas latitudes
próximas aos trópicos formam-se regiões de calmarias; o mesmo
acontece em regiões próximas ao Equador, zona de calmaria chamada
doldrums”47.

44
ALBUQUERQUE, Luís M. de O livro de marinharia de André Pires. Lisboa: Junta de Investigação do
Ultramar, 1963, p. 15-16.
45
DAVIS, “Travesías peligrosas”, op. cit., p. 36.
46
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 167.

33
Talvez não seja preciso digerir toda a complexidade da explicação meteorológica.
Os marinheiros entre os séculos XV e século XIX não a conheciam em minúcias, mas o
que importa reter é que, em razão do sistema de ventos, cria-se uma calmaria no equador
que fazia com que a ultrapassagem da linha em navios à vela se tornasse um dos raros
momentos de relaxamento a bordo, no qual era possível deixar de lado o trabalho
sistemático e coordenado. No equador, as calmarias eram mais frequentes que em outros
lugares. Mesmo transtornando a viagem e causando medo nos marinheiros quando se
prolongava em demasia, a calmaria permitia diminuir o ritmo de trabalho e criava uma rara
possibilidade de festa a bordo48.
Há décadas, os historiadores tentam explicar o viés empírico e pouco afeito ao
maravilhoso por parte dos navegadores portugueses. O debate foi pontuado recentemente
por Vilargada, que aponta três causas para isso:

“uma caracterização generalista do Renascimento que ressalta seu


sentido racionalizante; uma especificidade portuguesa pautada no
‘empirismo’ resultante do consistente desenvolvimento da náutica e
dos procedimentos matemáticos em Portugal e, por fim, um gradual
aprendizado português quanto à forma de se lidar com as novas
paisagens e culturas derivadas de sua ‘experiência africana’,
desenvolvida ao longo do século XV na costa ocidental da África”49.

Os marinheiros ibéricos, sujeitos hipotéticos da elaboração do ritual, não deixaram


sinal de que o tenham feito. Em seu estudo sobre a vida cotidiana dostripulantes das frotas
das Índias no século XVI, Pablo Emilio Bueno não verificou a ocorrência frequente de
47
NEVES, Eurico G. de C. et al, Introdução do estudo de energia eólica. Pelotas: UFPEL, 2009, p. 5. Sobre
o sistema de ventos no Atlântico, ver RUSSEL-WOOD, A. J. R. “Ports of Colonial Brazil”. In: KNIGHT,
Franklin W. Atlantic Port Cities: Economy, Culture, and Society in the Atlantic World (1650- 1850).
Knoxville: University of Tennessee Press, 1991, p. 198; ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos
viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, passim; LANE, Kris.
“Iberia and the Atlantic Word”. In: FRANCIS, J. Michael (ed.). Iberia and the Americas: Culture, Politics,
and History, v. 1: Introductory Essays. Santa Bárbara: ABC-Clio, 2006, p. 4; FERNANDÉZ- ARMESTO,
Felipe. “A expansão portuguesa num contexto global”. In: BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo
Ramada (dir.). A expansão marítima portuguesa, 1400-1800. Lisboa: Ed. 70, 2010, p. 505 e seguintes.
48
RODRIGUES, De costa a costa, p. 214-215.
49
VILARDAGA, Lastros de viagem, op. cit., p. 18, remetendo à discussão historiográfica que inclui, entre
outros, Joaquim de Carvalho (Estudos sobre a cultura portuguesa do século XVI, 1949), Luís Albuquerque
(Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses, séculos XV e XVI, 1987), Joaquim Barradas de
Carvalho (As fontes de Duarte Pacheco Pereira no "Esmeraldo de Situ Orbis", 1967), Vitorino Magalhães
Godinho (Mito e mercadoria, 1990) e Luís Filipe Barreto (Descobrimentos e Renascimento, 1983). Sérgio
Buarque de Holanda abre seu Visão do Paraíso, de 1958, com essa discussão (3ª ed., São Paulo: Cia. Ed.
Nacional; Sec. Est. Cultura, 1977, p. 1).

34
festas a bordo – o equador, neste caso, não era atravessado pelas frotas espanholas,
concentradas no Atlântico norte50. A mesma ausência pode ser encontrada nas análises de
Amaral Lapa e de Paulo Miceli sobre a Carreira da Índia portuguesa51. Luís Felipe Barreto
foi um dos poucos, senão o único, a identificar a prática do ritual nessa rota, afirmando que

“a (...) viagem gera o seu ciclo de festas, em especial a comemoração


da passagem do equador, em que os viajantes têm de fazer uma
pequena oferta à tripulação. Os que não dão ou não podem dar são,
divertidamente, julgados e, presos a uma corda, mergulhados por três
vezes no mar”52.

Se os conhecimentos que esses marinheiros construíram e divulgaram na época das


navegações foram de suma importância, nem por isso parecem ter sido eles os primeiros a
encenarem a cerimônia da passagem da linha. As fontes com as quais lidei desmentem meu
ponto de partida de anos atrás, e é salutar que pesquisas empíricas maisapuradas impactem
e alterem o rumo do trabalho dos historiadores.

Morfologia do ritual

Para entender o ritual, colhi evidências capazes de permitir descrições de suas


formas. A busca cobriu o período do início do século XVI a meados do século XX,
compulsando muitas obras que não mencionavam o rito de passagem – um silêncio
significativo. “Qualquer historiador com blocos cheios de anotações pode compilar sua
própria lista”, escreveu Thompson53, e a minha inclui 54 menções e descrições em
livros ou roteiros de viagens escritos ou publicados no interior desse recorte temporal.
Mencionar apenas a quantidade de relatos da amostragem não é suficiente para
afirmar a operacionalidade da lista. Esse número de viajantes cobre cinco séculos, ainda
que não de forma proporcional (5 para o século XVI, o mesmo número para o XVII, 6
para o XVIII, 34 para o XIX e 3 para o XX). Inclui relatos de falantes de diferentes línguas
(inglês, francês, alemão, português, castelhano e italiano), de origens sociais e ocupacionais
(navegadores, cientistas, militares, diplomatas, comerciantes, artistas,

50
BUENO, Pablo Emilio Pérez-Mallaína, Los hombres del océano. Sevilha: Servicio de Publicaciones de
la Diputación de Sevilla, 1992, em especial p. 137-196.
51
LAPA, A Bahia e a carreira da Índia, op. cit.; MICELI, Paulo. O ponto onde estamos: viagens e viajantes
na história da expansão e da conquista (Portugal, séculos XV e XVI). 2ª ed., Campinas: Ed. da Unicamp,
1997, p. 135-166.
52
BARRETO, Luís Felipe. Os navios dos descobrimentos. Lisboa: Correios de Portugal, 1991, p. 54.
HUTTER, ao exemplificar a prática do ritual, não mencionou nenhum relato em embarcações portuguesas,
cf. Navegação nos séculos XVII e XVIII, p. 211-212.
53
THOMPSON, E. P. “Rough music”, p. 389.

35
aventureiros, escritores e turistas) e fés variadas. Neste último caso, não foi possível
recuperar a informação sobre a profissão de fé de todos os autores, mas a variedade destes
não vai além de católicos e reformados.

Século XVI

De acordo com Carie Hersch e Simon Bronner, a cerimônia de travessia do


equador foi documentada pela primeira vez no relato dos franceses Jean e Raoul
Parmentier, durante uma viagem a Sumatra, precisamente em 11 de maio de 1529. A
bordo desse navio francês celebrou-se uma missa solene, cantaram-se hinos e houve uma
festa alusiva aos peixes durante a noite54. As evidências dos estudiosos certamente incluem
textos que não inseri em minha lista: o mais recuado dentre os autores de origem francesa
que li é Binot Paulmier de Gonneville, que cruzou a linha do equador em 12 de setembro
de 1503, 81 dias depois de sair de Honfleur com destino às Índias Orientais. Gonneville
nada mencionou sobre rituais a bordo, assinalando apenas que, ao cruzarem a linha, teriam
visto uma fauna marítima que ele tentou aproximar de animais conhecidos de seu público
leitor – um procedimento padrão dos viajantes europeus em terras (e águas) estrangeiras:

“peixes-voadores em bandos como fariam em França os estorninhos,


comasas como as dos morcegos, e de tamanho próximo ao do arenque
branco.Além disso viam-se peixes-galos, golfinhos e outros peixes, que
os marinheiros pescavam para fazer caldeiradas”55.

Textos anteriores de navegantes ibéricos ou a serviço dos reis católicos não


mencionaram qualquer ritual na passagem da linha. Exemplo disso é o Roteiro da viagem
de Vasco da Gama56, de fins do século XV, quando já não mais se tinha a expectativa do
encontro com uma “antropomorfia monstruosa” ou a “inabitabilidade da Zona Tórrida,
elementos decisivos de um imaginário e conhecimento sobre o Oriente e África

54
HERSH, Carie Little. “Crossing the Line: Sex, Power, Justice, and the U.S. Navy at the Equator”. Duke
Journal of Gender. Law and Policy, 9(277): 2002, p. 280; BRONNER, Crossing the Line, op. cit., p. 33.
55
“Relação da viagem do capitão de Gonneville às novas terras das Índias – relação autêntica”. In:
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Vinte luas: viagem de Paulmier de Gonneville ao Brasil, 1503-1505. São
Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 19.
56
MARQUES, José (intr.). Roteiro da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia. Porto: Faculdade de
Letras, 1999.

36
advindos da Idade Média”, embora “outros mitos e perspectivas fantásticas” tenham
permeado a primeira viagem lusa à Índia57.
Relatos do início do século seguinte são lacônicos sobre os eventos na linha. O
diário de Pigafetta, por exemplo, limita-se a registrar que “depois de passar a linha
equinocial, ao aproximarmo-nos do Polo Antártico, perdemos de vista a Estrela Polar”58,
enquanto o piloto anônimo português seu contemporâneo afirma apenas que “na zona que
se estende do trópico à linha (do Equador), não há nunca tempestade, porque,
habitualmente, entre os trópicos não se fazem sentir as tormentas”, ainda que fosse hábito
entre “nós, pilotos portugueses” registrar a viagem “dia a dia, o caminho que fazemos, o
vento (que encontramos) e a declinação do Sol em graus”59.
Menção semelhante e ligeira vamos encontrar no relato do aventureiro alemão
Hans Staden que, após uma estadia em Lisboa em meados do século XVI, empregou-se
em um navio português para fazer uma viagem ao Brasil com a intenção de “capturar naus
francesas que negociassem com os selvagens (...)”60. Ao atingir o equador, ele notou apenas
que

“o clima ficou muito quente, pois o sol, ao meio dia, batia diretamente
sobre nossas cabeças. Por alguns dias não houve vento algum.
Frequentemente se formavam, à noite, fortes temporais com chuva e
vento. Tão depressa como surgiam e despencavam as tempestades
desapareciam, e era preciso ter muita atenção para não sermos
surpreendidos por elas com as velas içadas. Um temporal abateu-se
sobre nós por alguns dias e tivemos medo de passar fome caso ele
continuasse. Rezávamos a Deus por vento favorável”61.

O calor, a falta de ventos e as súbitas mudanças climáticas na região seriam


registrados quase que invariavelmente pelos navegadores antes e depois de Staden. Em
data muito próxima deste, o piloto francês Nicolas Barré queixava-se do calor logo depois
de ultrapassar o Trópico de Câncer – calor pestilento que fez apodrecer a água disponível
para o consumo da expedição de Nicolas Durand de Villegagnon. Na zona tórrida, a
bonança durou seis semanas, intercaladas por “ventos impetuosos e furiosos” e “chuvas

57
VILARDAGA, Lastros de viagem, p. 22.
58
PIGAFETTA, Antônio. A primeira viagem ao redor do mundo. Porto Alegre: L&PM, 1986, p. 56-57.
59
"Navegação de Lisboa à ilha de São Tomé, situada sob a linha do Equador, escrita por um piloto
português e dirigida ao magnífico conde Rimondo della Torre, gentil-homem veronês, e traduzida da
língua portuguesa para a italiana". In: CALDEIRA, Arlindo Manoel (int., trad. e notas). Viagens de um
piloto português do século XVI à costa de África e a São Tomé. Lisboa: CNPCDP, 2000, p. 100 (1520. 1ª
ed.: Primo Volume Delle Navigationi Et Viaggi Nel Qual Si Contiene La Descrittione Dell'Africa, Et del
paese del Prete Ianni, com varii viaggi... 1550).
60
STADEN, Hans. A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de homens (1548-
1555) (1ª ed.: Marburg: Andres Colben, 1557). Rio de Janeiro: Dantes, 1998, p. 19.
61
Idem, Ibidem, p. 22.

37
fétidas”. A ajuda do Senhor se deu na forma de vento sudoeste na altura da Guiné, que os
guiou: “Passamos o dito centro do mundo no décimo dia de outubro [de 1555] perto das
ilhas de São Tomé, que estão abaixo do equador, perto da terra de Manicongo (...)”62.
Esses dados da natureza no curso das viagens bem sucedidas produzia a certeza
da interferência da divindade cristã. Podiam, também, estar no centro da tradição do
batismo da linha, de substrato pagão. Mas o que os relatos dos homens que cruzaram o
equador na era das navegações nos permitem afirmar é que a cerimônia de batismo
ainda não havia se disseminado igualmente entre os marinheiros europeus.
O silêncio do huguenote Barré sobre a ocorrência de um ritual de passagem do
equador não é da mesma natureza do de Staden. As cartas de 1555 que ele escreveu à
família não se referiam à sua primeira viagem trans-hemisférica, pois ele estivera nas
costas da América do Sul três anos antes63. Cruzando a linha pela segunda vez, Barré pode
ter julgado desinteressante relatar uma cerimônia que, afinal, ele já conhecia e havia
descrito de viva voz (ou em registros escritos que não nos chegaram) aos seus familiares
e amigos na ocasião precedente.
A afirmação de certezas quanto à data de origem e a disseminação do ritual de
passagem do equador é temerária, sobretudo se consultamos outros relatos
contemporâneos, também mudos quanto à sua ocorrência. É o caso do franciscano francês
André Thévet. No relato desse cosmógrafo do rei francês, Carie Hersh também nada
encontrou. Ele escreveu longas observações no exato momento em que cruzava a linha
imaginária, acerca do percurso aparente do Sol; da partição do planeta, do dia e da noite
em duas metades iguais na região do Círculo Equinocial e do paralelismo dessa linha em
relação aos trópicos. Para desmentir os antigos, que “acreditavam que esta região ou zona
situada entre os trópicos fosse inabitável, devido ao seu excessivo calor”, ele recorreu à
frequência com que o equinócio vinha sendo atravessado “em consequência das
navegações” e ao povoamento europeu naquelas latitudes férteis e abundantes. Na
percepção dele, o calor na linha era da mesma intensidade que o do verão europeu. A
água do mar, por sua vez, era “mais doce e agradável ao paladar do

62
BARRÉ, Nicolas. “Cartas por N. D. de Villegagnon e textos correlatos por Nicolas Barré & Jean Crispin”
(1ª ed.: Paris: Martin Le Leune, 1557). In: MOREIRA NETO, Carlos de Araujo (coord.). Coleção
Franceses no Brasil: séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Batel, 2009,
v. I, parte II, p. 114.
63
MOREIRA NETO, Coleção franceses no Brasil: séculos XVI e XVII, v. I, p. 122.

38
que a de quaisquer outras partes, onde as águas são muito salobras. Muita gente, no entanto,
afirma justamente o contrário (...)”64.
Ao analisar a obra de Thévet, Ronald Raminelli notou que o esforço descritivo
vinculava-se à sua crença de que “os fatos e a fiel observação das diversas terras e nações”
aumentavam a perfeição humana65. Outros analistas, bem como o próprio título da obra –
Les singularités de la France Antartique – enfatizam a descrição doscostumes da terra
carioca e o interesse do autor pela história natural66. Nessa altura do relato, ele ainda não
colocara os olhos sobre a Guanabara e seus habitantes, e o interessecosmográfico parecia
ocupar todos os seus sentidos. Isso pode tê-lo distraído, feito deixar de perceber qualquer
relevância em um ritual praticado a bordo, ainda mais se a cerimônia tivesse características
vulgares e distantes de seu espírito ao mesmo tempo religioso e científico.
Este exercício de explicação do silêncio das fontes tem uma intenção. A referência
aos escritos de Thévet e Barré, mesmo que eles não mencionem ou descrevam o batismo
do equador, é fruto de uma certa perplexidade com o silêncio de ambos, provocada pela
existência de um relato mais ou menos detalhado de um outro autor, contemporâneo e
compartilhador da vivência na travessia do Atlântico e nafundação da França Antártica.
Com isso, introduzo no debate a primeira referência que encontrei à cerimônia equatorial,
escrita por Jean de Léry:

“Nesse dia 4 de fevereiro [de 1556] que passamos pela cintura do


mundo praticaram os marinheiros as cerimônias habituais a tão difícil
e perigosa passagem. Consistem elas, para os que nunca transpuseram
o Equador, em serem amarrados com cordas e mergulhados no mar
ou terem o rosto tisnado com trapos passados nos fundos das
caldeiras. Mas o paciente pode resgatar-se, como eu o fiz, pagando-
lhes vinho”67.

64
THÉVET, André. As singularidades da França Antártica (1ª ed.: Paris: Les Heritieurs de Maurice de la
Porte, 1558), Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978, p. 67-68.
65
RAMINELLI, Ronald José. “Escritos, imagens e artefatos: ou a viagem de Thévet à França Antártica”.
História, 27 (1): 2008, p. 196.
66
Nas palavras de José Honório Rodrigues, “Les singularités de la France Antartique de Thévet é história
mais natural que civil, mais singular que geral. É inteiramente consagrada aos costumes e particularidades
dos indígenas e às singularidades da flora e da fauna. A história da colônia francesa, sua instituição, é quase
inteiramente relegada a um papel secundário (...)”. História da história do Brasil, 1ª parte: a historiografia
colonial. 2ª ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1979, p. 40. Ver também SCHWARCZ,Lilia Moritz. O
sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas franceses na corte de
d. João. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 33 e CATTOZZI, Viviane Roberta Wolf. André Thevet, um
cosmógrafo-viajante no Brasil. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2008 (Dissert. Mestr. História), p. 13.
67
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil (1ª ed.: Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil.
Rochelle: Antoine Chuppin, 1578). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1961, p. 58. A descrição
de Léry também foi citada por BRONNER, Crossing the Line, op. cit., p. 33.

39
O relato do calvinista Léry sobre a cerimônia é relevante por muitos motivos.
Inicialmente, por ser o mais remoto que encontrei. Em seguida, e isto é mais significativo,
porque a descrição feita por ele torna ainda mais intrigante o silêncio dos autores
contemporâneos, sobretudo por mencionar que as cerimônias eram “habituais” e,
portanto, tinham já certa antiguidade, disseminação e sabor cotidiano. A seguir, porque
sabemos que Léry conhecia ao menos o relato de um de seus contemporâneos –o de
Thévet, seu oponente religioso, eventualmente seu concorrente na disputa pelo interesse
dos leitores sobre as curiosidades do Novo Mundo68 e de quem ele desdenhava da
interpretação acerca dos eventos ocorridos na França Antártica69, gabando-se de fazer
afirmações por ter presenciado os fatos e não por ter ouvido dizer. Outro dado de
relevância é que a descrição feita por este jovem pastor calvinista e sapateiro de apenas vinte
e dois anos de idade quando embarcou na esquadra de Villegagnon70 é que ela pode ajudar
a identificar as origens do ritual e datá-lo. Quanto à morfologia, Léry apresenta alguns
elementos que continuariam a ser mencionados nos relatos posteriores: certa dose de
violência, o mergulho ou batismo na água, a raspagem simbólica da barba (neste caso com
panos quentes, em outros relatos com navalhas improvisadas) e a negociação para esquivar-
se da brincadeira envolvendo um pagamento em vinho ou outra bebida alcoólica. Por fim,
comparando este relato aos posteriores, o analista pode verificar a dinâmica do processo
de transformação no ritual, sobretudo se buscar a presença de Netuno e outras entidades
pagãs que, aqui, estão ausentes.
É preciso ir além das descrições originais e lidar com as transformações e
permanências nos relatos, tendo em vista que, ao longo do século XX, ainda era comum
receber certificados de companhias marítimas ou aéreas quando se atravessava a linha pela
primeira vez, como fizeram Jayme Adour da Câmara ao descrever o ritual por volta

68
A primeira edição da obra de Thévet, em 1558, esgotou-se rapidamente e logo foi reeditada na Antuérpia.
“Segundo [Paul] Gaffarel, os inúmeros erros desta impressão sugerem um editor apressado pela
impaciência do público, que devorava então todas as narrativas de viagem acerca do Novo Mundo (...)”, cf.
SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico: demonologia e colonização - séculos XVI/XVIII. São Paulo:
Cia. das Letras, 1993, p. 77.
69
“(...) Léry foi o primeiro a imputar a [André] Thévet faltas graves e erros grosseiros, iniciando assim, a
campanha contra a credibilidade do testemunho histórico deste”, cf. RODRIGUES, História da história
do Brasil, op. cit., p. 41. Ver também CUNHA, Manoela Carneiro da. “Imagens de índios do Brasil: o
século XVI”. Estudos Avançados, 4 (10): dez.1990, p. 42 e AUGRAS, Monique. “Imaginária França
Antártica”. Estudos Históricos, 4 (7): 1991, p. 24.
70
Cf. SCHWARCZ, O sol do Brasil, op. cit., p. 34 e RODRIGUES, História da história do Brasil, op. cit.,
p. 41.

40
de 1925 como “festejos quase intermináveis e maçantes”71 e Aurora e Edmar Morel em
26 de março de 1950, certificados pela Panair72.

Netuno abre os caminhos e impulsiona as embarcações com bons ventos, representado em certificados
emitidos por empresas alemãs de transporte marítimo quando da travessia do equador, em 1934 e 1955, aum
passageiro com destino ao Brasil. Coleção Hermann Tatsch.

71
CÂMARA, Oropa, França e Bahia, p. 32.
72
Cf. MOREL, Marco (apres.). “Inventário analítico dos documentos do Arquivo Edmar Morel”. Anais
da Biblioteca Nacional, 116: 1996, p. 242.

41
Século XVII

Para entender o que houve entre o relato mais remoto e o mais recente, é preciso
acompanhar o processo. Pela ordem, a descrição seguinte que encontrei é a do capuchinho
francês Claude d’Abbeville, a caminho do Maranhão, onde permaneceriapor cerca de
quatro meses73. O Regente, o Charlotte e o Sant’Anna, embarcações que compunham a
frota onde d’Abbeville vinha como passageiro, cruzaram o “espinhaço domundo” em 13
de junho de 1612, “lá pelas duas horas da tarde”74. Ele sabia dasdificuldades da
travessia devido à ausência de ventos por meio da experiência narrada por outros marujos.
Creio que essa experiência lhe tenha chegado na forma oral, já que ele afirmou que “conta-
se [não que leu em algum livro] que uma certa personagem, tendo-se demorado de cinco
a seis meses, se viu obrigada a retroceder sem poder passar a linha”75. A expedição cruzou
a linha “com felicidade, sem calmarias”, mas com temposuficiente para encenar o ritual:

“Os que ainda não as tinham passado cumpriram a lei irrevogável que
exige seja o novato molhado com um balde de água do mar; ou que
seja mergulhado três vezes de cabeça para baixo dentro de um barril
cheio dessa água, operações após as quais recebe a senha que o
preserva no futuro de iguais processos mediante a promessa de nunca
dizê-la a outros que não tenham passado a linha e sofrido essa
cerimônia marítima de particular solidariedade”76.

Cinquenta e seis anos separam os relatos dos franceses Léry e d’Abbeville, cujas
semelhanças são notáveis. O primeiro já chamara a atenção para a cerimônia como algo
habitual, o que na descrição do segundo era uma “lei irrevogável”. Ambas as expressões
denotam a antiguidade do ritual, e aqui devemos reconhecer que isso talvez ocorresse ao
menos entre marinheiros francófonos. O uso da água do mar trazida em um balde não
aparecera em Léry, e a menção a essa forma de batismo no trecho de d’Abbeville denota
uma cerimônia um pouco menos violenta do que lemos em seu antecessor – embora ele
mencione também a modalidade “mergulho”, não diretamente no mar, mas em um barril
no convés, por três vezes e de ponta cabeça, o que parece pouco cômodo para quem era

73
D’ABBEVILLE, Claude. História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão (1ª ed.: Paris:
Imprimerie de François Huby, 1614). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975. Sobre a
permanência de D’Abbeville no Maranhão, ver, entre outros, PALLAZZO, Carmen Lícia. Entre mitos,
utopias e razão: os olhares franceses sobre o Brasil (séculos XVI ao XVIII). Porto Alegre: EDIPUCRS,
2002, p. 97.
74
D’ABBEVILLE, História da missão, op. cit., p. 35.
75
Idem, Ibidem, p. 46.
76
Idem, Ibidem.

42
batizado. D’Abbeville introduziu a menção à senha que os batizados deveriam repetir
no futuro para não serem submetidos ao ritual em outra travessia da linha, e viu a
solidariedade ser construída entre os marítimos que participavam da cerimônia.
Diferentemente do relato quinhentista de Léry, ele não observou a raspagem da barba dos
batizados, quem sabe porque simplesmente não reparou nisso ou porque considerou o
dado irrelevante. Apesar do tempo que separa um relato do outro, a morfologia do ritual
não configura nenhuma ruptura significativa. As diferenças podem ser atribuídas às
peculiaridades dos narradores, mas do que a uma transformação efetiva das práticas
ritualísticas.
Os relatos seguintes remetem a tradições diversas. Os irmãos espanhóis Nodal
ultrapassaram o equador em fins de 1618 sem sequer mencionar a linha, muito menos
qualquer cerimônia a bordo77. O silêncio vai de encontro com a hipótese de que, entre
os ibéricos, a tradição comemorativa da travessia não existia ou não era do interesse de
oficiais, como eram estes homens com longas folhas de serviços prestados aos reis da
Espanha. A hipótese, é claro, não desconsidera a existência de narrativas sobre o mar feitas
por espanhóis de ocupações variadas que “deixaram um legado escrito de suas experiências
com o mar (reais e imaginadas)”78.
Ainda na primeira metade do século XVII, as referências com as quais lidei
remetem à experiência holandesa no Atlântico, na época da ocupação de Pernambuco.
São três relatos seiscentistas de homens que trabalharam para a Companhia das Índias
Ocidentais. O primeiro é o diário do soldado Ambrósio Richshoffer, que saiu de sua
Estrasburgo natal em direção a Amsterdã em fins de 1628 para se alistar e tomar parte das
expedições que invadiram Pernambuco em 1630 e as ilhas do Caribe sob domínio
espanhol em 163279. O segundo caso são os escritos de Joan Nieuhof, revisados e
apresentados a Maurício de Nassau e Guilherme Piso antes da publicação. De origem
abastada, Nieuhof atuou como agente comercial da Companhia em Pernambuco entre

77
NODAL, Gonzalo Garcia de & Bartholomé Garcia de. Relacion del viage, que por orden de su Majestad,
y acuerdo de el real Consejo de Indias, hicieron los capitanes Bartholome Garcia de Nodal y Gonzalo de
Nodal, hermanos, naturales de Pontevedra, al descubrimiento del estrecho nuevo de San Vicente, que hoy
es nombrado Maire, y Reconocimiento del de Magallanes (1ª ed.: Madri, 1621). 2ª ed., Cadiz: Don Manoel
Espinosa de los Monteros, Impressor de la Real Marina, 1766, p. 4 e 6.
78
“Poetas, exploradores, cronistas, generais de armada e cosmógrafos, todos tiveram suas próprias
estratégias para imaginar e construir o mar”. DAVIS, “Travesías peligrosas”, op. cit., p. 32.
79
CARVALHO, Alfredo de [tradutor da obra]. “Notícia bibliográfica”. In: RICHSHOFFER, Ambrósio.
Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais (1629-1632). 2ª ed., São Paulo: Ibrasa; Brasília,
INL, 1978, p. 17; NASCIMENTO, Rômulo Luiz Xavier do. O desconforto da governabilidade: aspectos
da administração no Brasil holandês (1630-1644). Rio de Janeiro: UFF, 2008 (Tese. Dout. História), p. 26.

43
1640 (então com 22 anos de idade) e 1649, graças aos seus conhecimentos de português.
Fez carreira na Companhia holandesa e, em 1672, a serviço dela, foi enviado a Magadascar,
onde desapareceu, talvez como “vítima da crueldade dos naturais do país”80. Por fim, há
o diário de Caspar Schmalkalden, aventureiro de quem pouco sesabe antes de seu
ingresso como mercenário na Companhia em 1642, talvez empurrado pelos parcos
recursos da família grande na qual ele nasceu, na Turíngia. Sob contrato, ele trabalhou anos
no Brasil holandês e no Oriente81.
Todos os três falavam alemão e registraram a passagem pelo equador de alguma
forma. Richshoffer escreveu que, em 24 de janeiro de 1630, com bom vento e “com o
auxílio de Deus passamos a Linha Equinocial”, sem qualquer menção ritualística; disse
apenas haver cachalotes nadando em torno do navio82. Nieuhof cruzou a linha em 5 de
dezembro de 1640 “pelas 11 horas” e, partir dali, “já não tínhamos mais motivo para
nos queixar de frio. É tal a calmaria que reina nessas paragens que os navios perdem tempo
considerável em atravessá-la”. Além do calor, queixou-se da escassez de água potável na
região83.
Schmalkalden também mencionou a travessia:

“(...) no dia 6 de dezembro [de 1642], passamos pela Linha


Equinocial (...). Neste dia dois soldados foram obrigados a se
jogar da grande prancha ao mar, cada um deles três vezes, em
virtude de terem cometido furto. Após isso, cada um [recebeu]
cem vergastadas nas nádegas com uma grossa corda(...)”84.

Os três relatos, feitos por homens provenientes do interior dos Estados alemães,
são coerentes no sentido de que silenciam sobre um ritual novo para homens recém
engajados em travessias marítimas transatlânticas. Talvez o silêncio deles se devesse ao
sucesso da proibição instituída em 1614 pela Companhia Holandesa das Índias Orientais
de realização do ritual, “provavelmente por causa dos ferimentos infligidos aos
marinheiros”, explica um estudioso, notando ainda que a Companhia prometia bebidas e

80
RODRIGUES, José Honório. “Introdução”. In: Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil. São
Paulo: Martins, 1942, p. IX-X; CASTELO BRANCO, Patrícia Martins. O universo imaginário dos
holandeses no Brasil seiscentista: um estudo da narrativa do viajante Joan Nieuhof. Assis: FCL/UNESP,
2004 (Dissert. Mestr. em História), p. 4.
81
FERRÃO, Cristina e SOARES, José Paulo Monteiro. “Nota dos editores”; TEIXEIRA, Dante Martins.
“O ‘Diário de viagem’ de Caspar Schmalkalden ao Novo Mundo (1642-1645)”. In: Brasil holandês, v. I:
a viagem de Caspar Schmalkalden de Amsterdã para Pernambuco no Brasil. Rio de Janeiro: Indez, 1998,
p. 2-14.
82
RICHSHOFFER, Diário de um soldado, p. 53.
83
NIEUHOF, Memorável viagem, p. 6-7.
84
FERRÃO e SOARES, Brasil holandês, v. I: a viagem de Caspar Schmalkalden de Amsterdã para
Pernambuco no Brasil, p. 32.

44
rações dobradas para as tripulações que abandonassem o ritual, sinal de que proibição
escrita não fora eficaz suficiente85.
Mas Schmalkalden fez uma referência, confusa e indireta, a algo que parece ser um
ritual. Nos relatos anteriores, ser atirado ao mar (não uma, mas três vezes, mesma
quantidade observada por d’Abbeville) era uma forma de batismo na travessia doequador,
e Schmalkalden pode não ter compreendido algo que lhe era estranho, confundindo um
rito com uma punição por furto. A coincidência da aplicação de uma punição violenta
justamente na passagem da linha pode ter sido uma apropriação do ritual pelos oficiais da
expedição – uma recarnavalização, com o objetivo de reforçar a hierarquia na qual eles
ocupavam o topo e mostrar aos soldados que havia uma disciplina estrita a ser seguida a
bordo. De todo modo, os três assinalaram a passagemda linha como algo digno de menção
em suas experiências: mesmo que a referência pareça destituída de importância, o equador
é citado, e não qualquer outro paralelo do percurso entre a Europa e a América do Sul.

Século XVIII

Para o século XVIII, selecionei seis relatos. Esse século e o início do seguinte,na
visão de Louisa Pittman, demarcam a consolidação do período de domínio dos marespelos
navios britânicos, cujas tradições se espalharam também entre os estadunidenses e foram
definitivamente incorporadas à vida cotidiana de bordo, deixando vestígios adequados à
verificação desse folclore86. Dentre os autores que selecionei, há umfrancófono (Frézier) e
quatro anglófonos (Phillip, Barrow, Anderson e Holmes). O sexto autor é o espanhol
Vargas Ponce, cuja menção limita-se ao dia, horário e local em que cortou a linha: “Em 9
[de novembro de 1785] às 10 da noite se cortou a linha pelos 19° de longitude oeste de
Cádiz (...)”87.
Amedée-François Frézier, filho de refugiados escoceses, estudou astronomia e
geometria na Itália e na França, trabalhando como engenheiro militar. Em 1711,
encarregado de espionar os cobiçados portos das colônias espanholas na costa pacífica

85
BRONNER, Crossing the Line, op. cit., p. 7. Ainda de acordo com o autor, os suecos teriam feito oferta
semelhante aos seus marinheiros em 1667. O autor cita outras menções ao ritual do equador entre
marinheiros holandeses de fins do século XVI e do século XVII, cf. p. 34-35.
86
PITTMAN, “Appeasing Neptune”, p. 199.
87
VARGAS PONCE, José. Relacion del último viage al Estrecho de Magallanes de la fragata de S. M.
Santa Maria de la Cabeza en los años de 1785 y 1786. Madrid: Viuda de Ibarra, Hijos y Compañia, 1788,
v. I, p. 12.

45
da América do Sul, passou duas vezes por portos brasileiros: em 1712, quando tocou em
Santa Catarina, e dois anos mais tarde, na volta à França, passando por Salvador88.
Ao cruzar a linha, em 6 de março de 1712, “não deixamos de fazer a louca
cerimônia do batismo da linha, costume difundido em todas as nações”:

“Amarram-se os catecúmenos pelos punhos nas cordas esticadas do


aparelho da frente até atrás sobre a coberta dos oficiais e sobre a ponte
dos marinheiros e, depois de muitas guloseimas e mascaradas, eles são
desatados para serem conduzidos, um após o outro, ao pé do mastro
maior, onde, sobre uma carta, se lhes faz prestar juramento de que
farão a outros o que se faz a eles, seguindo os estatutos da navegação;
logo pagam para não serem molhados, porém sempre inutilmente, já
que nem sequer os capitães são de todo perdoados”89.

Tido por um autor de prosa objetiva, dedicado à observação científica, seu texto
ganhava certa graça “nas poucas ocasiões em que descreve seu estado de ânimo, ou quando
informa sobre costumes, acontecimentos ou personagens (...)”90, como na narrativa dos
acontecimentos na passagem do equador. Frézier notou que a distração foi permitida pela
calma dos ventos, que impedia o avanço da embarcação rumo ao hemisfério sul91. O
universalismo de seu relato é exagerado, já que entre outras “nações” – alemães,
portugueses e espanhóis, por exemplo – não havia, até aqui,evidências claras da prática da
“louca cerimônia”. A violência, ela também um elemento ritualístico, aparece aqui
igualmente, bem como o juramento no qual se recebia a senha para evitar novas submissões
no futuro, e o pagamento para escapar da prática – que o autor não diz se era em dinheiro92
ou em bebida alcoólica. Seja como for, o pagamento era possível, ainda que por vezes
inócuo àqueles que desejavam evitar serem batizados.
A propósito do livro de Frézier, Ângela Domingues observou o papel de imagens
e textos na transmissão de conhecimentos não cristalizados. Domingues refere- se à
cartografia e ao fato de que esse autor contribuiu para o aperfeiçoamento e correção dos

88
WEINBERG, Gregorio. “Prólogo”. In: FREZIER, Amadeo. Relación del viaje por el Mar del Sur.
Caracas: Bibl. Ayacucho, 1982, p. XIX; FRANÇA, Jean Marcel Carvalho & RAMINELLI, Ronald.
Andanças pelo Brasil colonial: catálogo comentado (1503-1808). São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 119. De
acordo com HUTTER, nas primeiras décadas do século XVIII os franceses ainda não dispunham de
cartas próprias de navegação de longo curso, utilizando-se das holandesas, cf. Navegação nos séculos XVII
e XVIII, p. 57.
89
FRÉZIER, Relación del viaje por el Mar del Sur, op. cit., p. 27.
90
WEINBERG, “Prólogo”, op. cit., p. XXV.
91
FRÉZIER, Relación del viaje por el Mar del Sur, op. cit., p. 28.
92
HUTTER afirma que “o dinheiro arrecadado no batismo, quem partilhava, em geral, eram os pilotos e
mestres dos navios”. Navegação nos séculos XVII e XVIII, p. 212.

46
mapas ingleses e franceses da América do Sul93 – os mapas portugueses ele provavelmente
desconhecia, em função do relativo êxito da política de sigilo da Coroa lusa. Podemos
pensar que esses conhecimentos não cristalizados incluíam, também, as descrições de
ocorrências a bordo, tais como a passagem pela linha equinocial que, se Frézier não corrige,
por não se tratar de objeto científico, ao menos ajuda a transmitir, na medida em que sabia
que sua obra seria editada e lida.
Os quatro relatos setecentistas restantes são de autoria de ingleses e concentram- se
nos últimos anos daquele século: Arthur Phillip (Londres, 1738-1814), governador deNova
Gales do Sul entre outubro de 1786 e dezembro de 179294; John Barrow (1764- 1848),
secretário do primeiro embaixador britânico na China, segundo secretário do Almirantado
e um dos fundadores da Royal Geographical Society95; Aeneas Anderson eSamuel Holmes,
autores de outros relatos sobre a mesma embaixada na qual Barrow trabalhou, em fins do
século XVIII.
O relato de Phillip é lacônico sobre os acontecimentos na travessia da linha
envolvendo uma frota de seis embarcações, em 13 de agosto de 1788. O escorbuto fazia
numerosas vítimas na frota, não obstante as constantes defumações e a distribuição de
vinho e cerveja aos homens96, o que concentrou a atenção de todos e talvez tenha impedido
a realização do batismo. Afinal, submeter uma tripulação acometida por um mal tamanho
ao ritual festivo e violento de travessia do equador seria inusitado e mesmo cruel.
Na altura do equador, o navio que levava Barrow não foi acometido pelo escorbuto,
até porque tinha se abastecido em Cabo Verde com “as melhores laranjas que eu já provei”,
além de tamarindos, “cidras igualmente boas; goiabas, figos, bananas, cocos e ananases ou
maçãs cremosas, tudo muito bom e abundante”, raízes e legumes97.

93
DOMINGUES, Ângela. “O Brasil nos relatos de viajantes ingleses do século XVIII: produção de
discursos sobre o Novo Mundo”. Revista Brasileira de História, 28(55): jan./jun.2008, p. 144.
94
Cf. FLETCHER, B. H. “Phillip, Arthur (1738–1814)”. In: Australian Dictionary of Biography (v. 2,
1967). Disponível em http://adb.anu.edu.au/biography/phillip-arthur-2549.
95
Cf. CUTMORE, Jonathan Burke. “Sir John Barow’s contribuitions to the Quarterly Review (1809-24)”.
Notes and Queries, 41 (3): set.1994, p. 326. Barrow também publicaria Travels in China (1804), Travels in
Southern Africa (1806) e The Eventful History of the Mutiny and Piratical Seizure of H. M. S. Bounty
(1831).
96
PHILLIP, Arthur. Voyage du governeur Phillip a Botany Bay, avec une description de l’établissement
des colonies du port Jackson et de l’ile Norfolk. Paris: Chez Buisson, 1791, p. 254 (tradução francesa de
The Voyage of Governor Phillip to Botany Bay, editada pela primeira vez em Londres em 1789).
97
BARROW, John. A Voyage to Cochinchina in the years 1792 and 1793, containing a general view of the
valuable productions and the political important of this flourishing kingdom, and also of such European
settlements as were visited on the voyage. Londres: T. Cadell & W. Davies, 1806, p. 69.

47
A ausência de tripulantes escorbúticos não foi motivo suficiente para a encenação
do rito de passagem do equador, pois Barrow limitou-se a registrar as condições climáticas
da travessia:

“Tivemos a sorte de passar a Linha sem experimentar as calmarias


desconcertantes ou as tempestades que ocorrem com tanta freqüência
nesta parte do globo, e no dia 29 do mês acima mencionado chegamos
à vista desse ponto da costa da América do Sul que é chamado de Cabo
Frio (...)”98.

Os franceses olhavam com interesse a ação britânica na China: é o que se pode


inferir da tradução para o francês do livro de Phillip e de dois dos três relatos ingleses sobre
a embaixada do início da década de 1790 – o de Anderson e o de Holmes. Anderson
esteve no Rio de Janeiro entre 1 e 17 de dezembro de 1792, a caminho do Oriente, e
descreveu rapidamente a travessia do equador, ocorrida em 18 de novembro daquele ano,
dizendo que a equipagem ficou muito excitada com as cerimônias burlescas e ridículas99.
Adjetivos semelhantes foram usados por Holmes para descrever o ritual quando da
travessia da linha em 7 de novembro do mesmo ano. Em sua visão, tratava-se de um
“costume bizarro”100.
O enraizamento da cerimônia de passagem do equador entre navegadores
anglófonos, vivamente reivindicado por alguns estudiosos101, não encontra aporte nestes
relatos setecentistas. É evidente que os relatos não representam uma amostragem
expressiva e que seus autores tinham mais interesse em descrever as terras, os costumes e
o potencial econômico dos lugares por onde passavam ao longo de viagens quase de
circunavegação. Podem indicar também que os oficiais letrados desdenhavam das
ocorrências envolvendo marinheiros comuns, a julgar pelos qualificativos que usaram em
suas descrições. Não se pode perder de vista, também, que ao longo do século XVIII
98
Idem, Ibidem, p. 74. Outros autores mencionaram as dificuldades da navegação na altura de Cabo Verde,
como MATOS, Raimundo José da Cunha. Compêndio histórico das possessões portuguesas na África. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 1963, p. 72.
99
ANDERSON, Aeneas. Relation de l’ambassade du Lord Macartney a la Chine dans les années 1792,
1793 et 1794. Paris: Denné le Jeune, 1804, p. 26 (tradução francesa de A narrative of the British embassy
to China in the years 1792, 1793, and 1794, editada em Londres em 1795).
100
HOLMES, Samuel. Voyage en Chine et en Tartarie, a la suite de l’Ambassade de Lord Macartney. Paris:
Delance et Lessueur, 1805 (tradução para o francês de The journal of Mr. Samuel Holmes, serjeant-major
of the xith light dragoons, during his attendance, as one of the guard on lord Macartney's embassy to China
and Tartary 1792-93. Londres: W. Bulmer, 1798).
101
HERSH, “Crossing the Linew”, op. cit., p. 281, BRONNER, Crossing the Line, op. cit., p. 7; PITTMAN,
“Appeasing Neptune”, p. 199. Na Wikipedia, o verbete Line-crossing cerimony, acessado em 12 de maio
de 2012, afirma textualmente: “The ceremony of Crossing the Line is an initiation rite inthe Royal
Navy, U. S., Navy Coast Guard, U. S. Marine Corps, and other navies that commemorates a sailor's first
crossing of the Equator” [A cerimônia de travessia da linha é um rito de iniciação na Royal Navy, na Guarda
Costeira e no Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos e outras marinhas que comemora a primeira
travessia do equador de um marinheiro]. Destaque no original.

48
o trabalho no mar foi inteiramente padronizado, inclusive na Royal Navy, com a introdução
de categorias profissionais, responsabilidades e hierarquias em uma escala correspondente
de salários102.

Século XIX e anglofonia

A fixação do ritual em meio aos anglófonos parece ter se dado no século XIX.
Aqui, a profusão de descrições formais leva a crer que o ritual não só teria se disseminado,
como também atraído a atenção de ingleses e estadunidenses de diferentes inserções sociais
e ocupacionais. Indica também a configuração dos anglófonos como “um grupo distinto
que se fortalecia na sua identidade protestante, alfabetizada e idiomática, para compensar
as dificuldades da distância e da vida marítima”103.
Dos 35 relatos sobre o batismo do equador que coletei para esse século, 15 são
oriundo de falantes da língua inglesa, 10 de alemães, 8 de francófonos e dois brasileiros.
Vou tratar deles em blocos linguísticos.
James Tuckey é o primeiro autor selecionado, tendo passado pelo Rio de Janeiro
a caminho da Oceania e atravessado a linha em meados de 1803. Ele observou a visita
usual de Netuno, sua mulher Anfitrite e seu filho. Disse ser uma cerimônia ridícula: as
pessoas mais feias do navio foram escolhidas para representar Netuno e Anfitrite (esta
última, por ter um nome de pronúncia difícil, era mais conhecida como Senhora Netuno).
Suas faces foram pintadas da forma mais ridícula e suas cabeças guarnecidas com esfregões
bem engraxados e cheios de pó: a barba de Netuno era feita do mesmo material, enquanto
um par de galhos ou um gancho de bote lhe servia de tridente. Alguns marinheiros
serviram de Tritões. Depois de perguntar a respeito do destino do navio, saudando seus
velhos conhecidos e dando ao capitão presentes como um cachorro ou um gato, a
cerimônia continuou: Netuno faz a barba dos homens com uma peça de ferro rústica e
jogou água salgada sobre eles104.
Pouco mais de dois anos depois, foi a vez do comandante inglês George Keith
visitar o Rio de Janeiro, a caminho das colônias britânicas no sul da África.
Inexoravelmente para quem cumpria esse trajeto, ele cruzou a linha – no caso, em 31 de

102
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 83-84.
103
Cf. JEHA, Silvana C. A galera heterogênea: naturalidade, trajetória e cultura dos recrutas e
marinheiros da Armada Nacional e Imperial do Brasil, c.1822-c.1845. Rio de Janeiro: PUCRJ, 2011, p.
92.
104
TUCKEY, James H. An Account of a Voyage to Establish a Colony at Port Philip in Bass's Strait, on
the South Coast of New South Wales, in his Majesty's Ship Calcutta, in the Years 1802-3-4. Londres:
Longman, Hurst, Rees, and Orme, 1805, p. 35-38.

49
outubro de 1805. Netuno e Anfitrite apareceram maquiados grosseiramente na cerimônia
grotesca, realizada segundo um “antigo costume”105.
Dois viajantes ingleses vieram ao Rio de Janeiro no mesmo ano em que a Corte
portuguesa transmigrou-se para a cidade, tornada capital dos domínios lusos: John Mawe
(1764-1829), conhecedor de minerais que acumularia quinze anos de viagens marítimas
em sua vida106, e John Luccock, comerciante que, com breves interrupções, permaneceria
no Brasil por dez anos, até 1818107.
Mawe não registrou qualquer episódio digno de nota, mas talvez essa não fosse sua
primeira travessia do equador, a julgar pela sua experiência marítima. Ele apenas disse
estarem todos a bordo “entediados e exaustos por calmarias contínuas, sob um sola pino”,
até que a brisa os libertou e permitiu que o navio atravessasse na longitude de 23º oeste,
emendando com a seguinte informação: “penetramos na foz da Prata, entrada que
percebemos muito antes de ver terra, pela cor lamacenta da água e pelo voo de inúmeros
pássaros marinhos”108. A falta de qualquer menção a acontecimentos noimenso trecho entre
o equador e o Prata é sinal de sua excitação nula com a viagem e reforça a hipótese de que
ele já conhecia, e portanto não lhe interessava especialmente nessa ocasião, o costume do
batismo.
Com Luccock não foi muito diferente. Ele fez o percurso marítimo entre a
Inglaterra e o Brasil mais de uma vez no período em que se estabeleceu no Rio de Janeiro
e afirmava que “o Atlântico já tem sido examinado tão a fundo e descrito com tanta
correção, que muito pouco sobeja que observar, para cá da linha”, o que denota sua
condição de conhecedor do mar e a disseminação social de informes sobre anavegação nas
ilhas britânicas. O navio que o transportava passou o equador em 20 de março em 1816
(portanto, não era a primeira vez que ele o fazia), cumprindo as escalas de costume. Após
passar por Cabo Verde, disse Luccock, “todo marinheiro, que se destina ao Sul, se sente
ansioso por atravessar a linha”; todavia, o motivo da ansiedade alegado por ele não era o
ritual, mas sim as dificuldades com os ventos, que tornavam

105
KEITH, George Mouat. A voyage to South America and the Cape of Good Hope. Londres: Richard
Phillips, 1810, p. 14.
106
Cf. LESSA, Clado Ribeiro de. “Introdução”. In: MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1978, p. 16.
107
Cf. ABREU, Márcia. “Circulação de livros entre Europa e América”. Polifonia, 14: 161-174, 2007, p.
162.
108
MAWE, Viagens ao interior do Brasil, op. cit., p. 25 (1ª ed.: Travels in the Interior of Brazil,
particularly in the Gold and Diamond Districts. Londres: Longman, 1812).

50
difícil a abordagem de Fernando de Noronha e do Cabo de Santo Agostinho, em
Pernambuco109.
John M’Leod cumpriu percurso semelhante ao de Luccock e cruzou a linha alguns
dias antes deste, em 4 de março de 1816. Presenciou, na oportunidade, um homem da
tripulação vestido de Netuno fazendo o interrogatório usual e anunciando que, até a manhã
seguinte, inspecionaria pessoalmente os estranhos que agora adentravam seus domínios.
De fato, ao raiar do dia 4, o mesmo homem ressurgiu com seu tridente e outras insígnias,
mas desta vez travestido de Anfitrite110. O médico e naturalista Clarke Abel, exatamente na
mesma data, registrou a “homenagem usual” a Netuno111.
Uma das descrições mais românticas e detalhadas da travessia do equador está
na obra de Maria Graham (1785-1842). Ela, que já atravessara o Atlântico e o Índico em
1808, acompanhando o pai em uma viagem, casou-se em seguida com o oficial da marinha
britânica Thomas Graham e, em 1812, escreveu seu primeiro livro de viagens, sobre o
tempo vivido na Índia112. Fragilizada pela tuberculose que afinal a levaria à morte e leitora
de Lord Byron113, Graham veio ao Brasil em 1821 acompanhando seu marido e se tornaria
próxima da realeza tropical. A bordo da fragata de guerra Doris, ela acompanhou os
preparativos do “festival dos homens do mar pela passagem da linha”. Embora alegasse
não saber a origem precisa do costume, afirmava que “os árabes o observam com
cerimônias não muito diferentes das usadas pelos nossos marinheiros”, e é certo que ela já
havia experimentado a navegação no Índico, talvez tendo contato com os hábitos dos
tripulantes muçulmanos. Povo de astrônomos, os árabes também faziam

109
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil (1ª ed.: Notes on Rio de
Janeiro, and the Southern Parts of Brazil; Taken During a Residence of Ten Years in That Country, From
1808 to 1818. Londres: Samuel Leigh, 1820). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1975, p.1, 2 e
8.
110
M’LEOD, John. Narrative of a Voyage, in his Majesty Late Ship Alceste, to the Yellow Sea, Along the
Coast of Corea, and Through its Numerous Hither to Undiscovered Islands, to the Islands of Lewchew;
With an Account of her Shipwreck in the Straits of Gaspar. Londres: John Murray, 1817, p. 3-5.
111
ABEL, Clarke. Narrative of a Journey in the Interior of China, and of a Voyage to and from that Country,
in the Years 1816 and 1817; Containing an Account of the Most Interesting Transactions ofLord
Amherst's Embassy to the Court of Pekin, and Observations on the Countries Wich it Visited. Londres:
Longman, Hurst, Green, Rees, Orme and Brown, 1818, p. 7.
112
Cf. ZUBARAN, Maria Angélica. “O olhar de uma inglesa-viajante sobre o Brasil Oitocentista: o diário
de viagem de Maria Graham (1821-1824)”. Métis: história & cultura, 3(5): jan./jun. 2004, p. 259;
FESTINO, Cielo Griselda. “Maria Graham no Chile. O olho do Império”. Cuadernos Interculturales, 4(7):
9-21, 2006, p. 10.
113
Poeta que expressara “com conhecimento e com amor, o espetáculo do luar numa fragata em plena
marcha”, cf. GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo,
Edusp, 1990, p. 110.

51
o rito de passagem e Graham deduziu que, na origem, isso tivesse “alguma relação coma
agora esquecida devoção deles aos corpos celestes”:

“Tal como nós, eles põem fogo em alguma matéria combustível, ou


outra, e deixam-na flutuar, mas acrescentam alguma comida como se
tivesse havido outrora um sacrifício acompanhando o festival. Tal, pelo
menos, ao que me foi assegurado por diversos cavalheiros, bons
conhecedores dos comerciantes árabes no mar do Oriente, é o
costume entre eles”114.

Esta referência tardia ao rito de passagem entre os árabes no início do século


XIX nos devolve aos séculos XV e XVI e pode iluminar a explicação para a ausência da
comemoração equatorial entre os portugueses da época das navegações para o Oriente.
Dispostos a conquistar novas terras, motivados pelo espírito cruzadístico e pela
possibilidade de enriquecer no comércio transoceânico115, os portugueses tudo faziam
para se distinguir dos muçulmanos. Como Graham no século XIX, eles podem ter
notado desde o século XV que os marujos islâmicos do Índico realizavam um rito na
passagem da linha naquele oceano, o que talvez os tenha levado a desistir de fazê-lo em
suas próprias embarcações no Atlântico, se é que alguma vez o fizeram. Além de pagão,na
versão que incluía Netuno, o rito podia ser também perigosamente infiel, na visãodos
campeões do catolicismo a bordo de naus a serviço de suas majestades fidelíssimas. No
Dóris, tudo começou com a leitura de uma carta enviada ao comandante, agradecendo a
permissão antecipada para que o festival acontecesse. Graham antevia odeclínio do ritual
pelo fato de que alguns capitães preferiam distribuir dinheiro aosmarinheiros “a
permitir este dia de desordem”, mas até aquele momento a diversãocorria à larga,
remetendo a autora do relato à moda shakespeareana116. A carta foi
transcrita em seu Diário:

“Os filhos de Netuno, do navio de Sua Majestade Doris, comandado


pelo capitão T.[homas] G.[raham], afirmam a V. S. os seus mais
sinceros agradecimentos pelo seu gentil consentimento em garantir-
lhes o favor que lhes foi outorgado desde tempos imemoriais, ao cruzar
o equinócio nos domínio de nosso pai Netuno, quando, esperamos, a
distribuição dos papéis abaixo merecerá a aprovação de V. S. tal como
figura na margem (...).
Temos assim fornecido a Vossa Senhoria uma relação completa
quanto possível de nossas fracas possibilidades.

114
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil, p. 121-122.
115
Sobre o tema, cf. Luis Filipe Tomás, “D. Manoel, a Índia e o Brasil”. Revista de História, 161: 13-57,
2009.
116
Neste ponto da narrativa, Graham cita uma fala de Henrique IV: Se todos os dias fossem de folga,/ Os
divertimentos se tornariam tão tediosos quanto o trabalho. GRAHAM, Diário, p. 120.

52
Creia, honrado capitão, que lhe desejamos toda a felicidade que a vida
pode fornecer, incluindo nesses votos sua digna Senhora;
subscrevemo-nos, etc. etc. etc.
Filhos da Bretanha”117.

É difícil conceber uma manifestação mais estrita de educação britânica e de


obediência à hierarquia, neste caso tendo em mente que se tratava de uma fragata de guerra.
Assinando como Filhos da [Grã-]Bretanha, esses marujos engajados na armada de guerra
reivindicaram para si uma identidade nacional, e não um internacionalismo dado pela
profissão marítima ou pela filiação ao deus do mar.
Além do pedido, a carta listava os remetentes, o que nos permite conhecer a
composição precisa do séquito de Netuno: além do próprio, assinavam os tripulantes e
suas funções em nome de Anfitrite, de Tritão, do Cavalo de Tritão, do xerife-mor, do
subxerife, do barbeiro e seus ajudantes, do mordomo mor, dos nove assistentes, do
cocheiro, do sota, do lacaio, do pintor, do servidor dos vinhos, de Satã, do advogado e
de oito cavalos marinhos (sendo estes últimos os únicos cujos nomes e funções não foram
designados)118. Em data próxima, M’Leod e outros narradores já mencionavam a presença
de Anfitrite, mas a equipagem mais numerosa do Doris não exigiu que um mesmo
indivíduo assumisse os papéis masculino e feminino. Neste caso, havia gente suficiente na
tripulação para garantir a entrada em cena de todas as personagens ao mesmo tempo.
A hierarquia do séquito obedecia à ordem decrescente, como decrescente
deveriam ser os cargos dos homens que cumpriam funções no ritual: a lista começa pelo
quartel-mestre, segue com o responsável pelo castelo de proa, e prossegue com ocapitão
do cesto da gávea grande, o ajudante de artilheiro, o capitão do cesto do traquete e os
guardiões. Os títulos funcionais são visivelmente inventados para criar uma pompa
carnavalesca, transformando marinheiros comuns em oficiais de alguma coisa. Curioso que
apenas um deles – C. Brisbane, que encarnaria o Cavalo de Tritão, um posto baixíssimo
do séquito e que desempenha uma função braçal – fosse apontado pela cor: era um homem
negro.
Thomas Graham, marido e fonte de Maria Graham na construção da narrativa,
respondeu formalmente ao pedido. Em 5 de setembro de 1821, ele acusou o recebimento
da carta e deu permissão para o festival. A Saturnália, outra palavra usada por Maria para
denominar o acontecimento, só teve lugar em 18 de setembro. Há aqui
117
Idem, Ibidem.
118
Idem, Ibidem, p. 120 e 121.

53
outra variação em relação às descrições anteriores: um pedido prévio de anuência para a
realização da cerimônia. Neste caso, o pedido foi feito muitos dias antes e, mais adiante,
veremos que outros relatos informam que tais pedidos costumavam ser feitos apenas na
véspera. A encenação começou no crepúsculo e envolveu a armação de um bote que,
alinhado ao navio, trazia Netuno exigindo a presença do capitão no tombadilho para
responder às questões lançadas pelo deus do mar119. Ouvidas as respostas, Tritão subia a
bordo, montado em um cavalo marinho e trazendo uma lista de todos os que seriam
batizados no dia seguinte, pela manhã120. Ninguém, portanto, foi pego de surpresa.
Tritão era o primeiro a retornar ao nascer do dia para dar prosseguimento ao
festival, seguido dos demais membros do séquito, “vestidos de estopa e de esfregões, mas
com os braços e ombros de fora, recobertos de tinta”. Netuno vinha de tridente e coroa,
com Anfitrite ao seu lado e o filho aos pés, sobre um carro puxado pelos oito cavalos
marinhos e secundado pelos juristas, barbeiro, ajudantes e pintores121. A diversão prosseguia
regada a aguardente, mas o relato não menciona a presença de comida ou combustível,
como Graham asseverara que os árabes e “nós” fazíamos no festival. Quem não quisesse
ter sua barba raspada deveria pagar uma taxa ao “pai aquoso” que fiscalizava o salão de
barbeiro improvisado no convés enquanto “todo o resto das pessoas do navio, oficiais ou
não, começou a batizar-se mutuamente e sem piedade”, excetuadas as mulheres que se
esconderam na cabine da narradora. Maria Graham notou que a ordem não era
completamente invertida na ocasião, já que todos os homens necessários à vigilância da
embarcação continuaram em seus postos durante a Saturnália. A pontualidade
característica dos britânicos era confirmada pelo encerramento do ritual na exata hora
combinada: às onze e meia “tudo cessou”122.
Anos depois, o britânico Peter Scarlett viajava a caminho da costa pacífica da
América Central, com escala no Rio de Janeiro entre meados de setembro e o início de
outubro de 1834. Ao passar pelo equador, alegou nunca ter conhecido a origem da
cerimônia ali realizada, mas acreditava que ela fosse universalmente adotada por todas

119
“- Qual é este navio? - Doris - Quem comanda? - Capitão T. G. - De onde vem? - De Whitehall - Para
onde vai? - Para um cruzeiro de navio de guerra”. GRAHAM, Diário, p. 122.
120
Idem, Ibidem, p. 122.
121
Seminus para os padrões da época, os corpos dos marinheiros impressionaram Maria Graham, que nunca
tinha visto “mármore mais belo do que algumas costas e ombros então expostos”. Idem, Ibidem, p. 123.
122
“Ao meio dia todo o mundo estava a postos, os tombadilhos secos e o navio restituído à boa ordem do
costume. Todos os nossos oficiais de carreira jantaram conosco e envaidecemo-nos de ter terminado o dia
tão alegremente como o havíamos começado”. Idem, Ibidem, p. 123.

54
as nações e avaliou que ela abria uma brecha para ressentimentos pessoais ou antipatia
entre os homens123.
Em 1836, o escocês George Gardner mostrava-se conhecedor das descrições de
travessia do Atlântico, ao ponto de achar que nada mais cabia dizer diante do que já se
sabia, suponho que por intermédio de outros narradores viajantes: havia “igual porção de
bonanças e ventanias, de céus rebrilhantes e esbraseados ocasos, tubarões e baleias, peixes
voadores e esteiras fosforescentes”. Da viagem desde Glasgow até Cabo Frio, não disse
nada além de que era “tediosa, mas não desagradável”, e na volta, “rápida e muito
agradável”124. Se houve ritual, Gardner não se interessou em descrevê-lo. Já o inglês Thomas
Ewbank (1792-1870), que desde os 27 anos viveu nos Estados Unidosaté falecer, veio ao
Brasil em 1845/1846 às próprias custas, a fim de visitar um irmão que residia no Rio de
Janeiro125. Ele também nada mencionou de extraordinário ao atravessar a linha a bordo do
Mazeppa, navio que carregava algodão para a Europa . 126

Não era uma regra que todos os que cruzassem a linha mais de uma vez deixassem
de se interessar pelo ritual. Thomas Hinchliff (1825-1882) é um exemplo disso. Em sua
primeira travessia, em 1863, a cerimônia não ocorreu, e a explicação dada por ele é
sintomática das mudanças em curso na vida marítima: “Nestes dias degenerados, quando
tantas crenças antigas estão rudemente abaladas, o Deus dosMares recebeu a sua parcela
de negligência; e a Royal Mail Company, depois de considerar Netuno um incômodo,
aboliu-o inteiramente”127. Hinchliff parecia ser um britânico cioso das tradições, mas talvez
esta não fosse tão antiga assim entre seus conterrâneos e o incômodo dos dirigentes da
empresa postal podia se dever à perda de sentido do ritual, tendo em vista a introdução

123
SCARLETT, Peter Campbell. South America and the Pacific; comprising a journey across the Pampas
and the Andes, from Buenos Ayres to Valparaiso, Lima, and Panamá. Londres: Henry Colburn, 1838, p.
25-28.
124
GARDNER, George. Viagem ao interior do Brasil, principalmente nas províncias do Norte e nos
distritos do ouro e do diamante durante os anos de 1836-1841 (1ª ed.: Travels in the interior of Brazil,
principally through the Northern provinces, and the gold and diamond districts, during the years 1836-
1841. Londres: Reeve, Brothers, 1846). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1975, p. 19 e 250,
respectivamente.
125
Cf. PAULINO, Carla Viviane. O “Império do atraso”: etnologia, política e religião nas impressões
sobre o Brasil elaboradas pelo viajante norte-americano Thomas Ewbank (1846-1856). São Paulo:
FFLHC/USP, 2010 (Dissert. Mestr. História), p. 14 e 26.
126
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil, ou diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras,
com um apêndice contendo ilustrações das artes sul americanas antigas. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1976, p. 21, 35, 39 e 327 (1ª ed.: Life in Brazil; or, A Journal of a Visit to the Land of the
Cocoa and the Palm, with an Appendix, Containing Illustrations of Ancient South American Arts. Nova
York: Harper & Brothers, 1856).
127
HINCHLIFF, Thomas Woodbine. South American Sketches: or A Visit to Rio Janeiro, the Organ
Mountains, La Plata and the Paraná. Londres: Longmans, Green, Longman, Roberts & Green, 1863, p.
10.

55
do vapor e a superação da calmaria equatorial com a maquinaria agora em ação nos mares.
Parar para festejar era uma prática de outros tempos e outras condições de navegação.
Tempos e condições em que um marinheiro era treinado para fixar a maquinaria do navio,
aplicar os princípios da navegação, conhecer a aparelhagem e o velame, pilotar, dar nós e
emendar as cordas, ler sinuosidades, intempéries, correntes e o humor de seus
comandantes128.
Dez anos depois desse relato, o mesmo Hinchliff cruzou novamente a linha e
parecia ser outro homem, menos cioso da tradição e mais conectado aos tempos modernos
do vapor. Ele não menciona qualquer ritual, mas a narrativa de 1873 deixa entrever a
mudança operada nele: “quatro dias depois que cruzamos a linha do Equador [nas
proximidades de Fernando de Noronha] (...) uma brisa fresca vinda do leste cobria com
espuma o profundo mar violeta. Nessa ocasião, nada poderia ser menos aplicável à faixa
equatorial do que o habitual ‘marasmo’ dos marinheiros”129. Ter ventos ou não, agora não
fazia mais qualquer diferença; o calor era enfrentado por um tempo mais curto e o
“marasmo” que permitia o relaxamento a bordo devido à falta de tarefas durante a calmaria
perdera a razão de ser. Temos aqui evidências de que a exploração do trabalho dos
marujos ampliou-se com a introdução do vapor.
Do outro lado do Atlântico, outros anglófonos tambem vivenciaram aexperiência
da travessia do equador em conjunturas diferentes ao longo do século XIX. Henry
Brackenridge, o primeiro que selecionei, partiu de Norfolk nos primeiros dias de
dezembro de 1817, chegando ao Rio de Janeiro quase dois meses depois em um navio a
vela130. Aparentemente, não ocorreu nenhuma cerimônia na passagem do equador,tendo
Brackenridge anotado apenas as decisões de segurança na rota, que forçava os navios
vindos do hemisfério norte com destino à costa atlântica da América do Sul a se
aproximarem muito da África em busca de ventos fortes e que projetassem o navio na
direção certa:

“Naufrágios terríveis tem acontecido em consequência de cruzar a


linha [doequador] muito para o oeste, sendo assim conduzidos à
costa [da África]

128
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 85.
129
HINCHLIFF, T. W. Over the seas and far away: being a narrative of wanderings round the world.
Londres: Longmans, Green and Co., 1876, p. 4.
130
SAFIER, Neil. “A chegada da corte portuguesa na ótica norte-americana”. Revista USP, 79:
set./nov.2008, p. 52. Henry Marie Brackenridge (1786-1871) foi o secretário da missão enviada pelo
governo dos Estados Unidos à América do Sul para avaliar se deveriam ser reconhecidas as repúblicas
recém-independentes de Buenos Aires e do Chile, cf. LONG, James Weldon. Revolutionay Republics:
U.S. National Narratives and the Independence of Latin America, 1810-1846. Baton Rouge: Louisiana
State University, 2011, p. 12.

56
(...). Os navegadores, no entanto, não são unânimes quanto ao ponto
exato em que o equador deve ser cruzado, pois também uma
abordagem muito próxima da costa africana deve igualmente ser
evitada”131.

Se na armada estadunidense não se aproveitavam as calmarias equatoriais para a


realização da festa, os marinheiros eram ainda mais espoliados – já que seus salários, como
informou Brackenridge, “eram extremamente baixos nesse momento”132.
Em 1831, quem cruzou o equador vindo dos Estados Unidos foi Jeremiah
Reynolds, mas ele também não encontrou Netuno ou Anfitrite e sentiu a falta de ambos.
O autor acreditava que esse costume antigo vinha do tempo em que os marinheiros eram
recrutados à força e serviam como servos involuntários. Era uma maneira de expressar a
animosidade a bordo, ainda que ele não observasse essa característica no Potomac (o navio
que o transportava), alegando que, agora, os marinheiros eram profissionais133.
Em meados do século XIX, em meio à corrida do ouro no lado oeste da América
do Norte, mais estadunidenses utilizaram os oceanos para chegarem até as almejadas minas
californianas. Esse trânsito ampliado fez do Rio de Janeiro e de Buenos Aires escalas
importantes para navios que, vindos da costa atlântica dos Estados Unidos, se dirigiam ao
Pacífico, até a inauguração das ferrovias transcontinentais e do Canal do Panamá nos
primeiros anos do século XX. Nesse percurso, a travessia do equador em dois oceanos era
inevitável, e Ezequiel Barra foi um dos que melhor descreveu, com textos e imagens, o
ritual ali ocorrido – neste caso, em meados do século XIX134. Barra mencionou quase todos
os elementos formais da narrativa da passagem da linha construídos nas décadas anteriores:
a visita de Netuno e seu séquito paramentado, a permissão solicitada ao capitão para
realizar a cerimônia, a raspagem da barba dos marinheiros, o interrogatório sobre a
presença de marujos não batizados, a colocação de uma barrica com água salgada no
convés, a violência acompanhada da bebedeira dos homens, a punição ao grumete que
entregava as ações dos marinheiros aos oficiais e a desmontagem da cenografia após
algumas horas de diversão a bordo.

131
BRACKENRIDGE, Henry Marie. Voyage to South America, Performed by Order of the American
Government in the Years 1817 and 1818, in the Frigate Congress. Londres: T. and J. Allman, 1820, v. I,
p. 82.
132
Idem, Ibidem, I, p. 80.
133
REYNOLDS, Jeremiah N. Voyage of the United States Frigate Potomac, under the Command of
Commodore John Downes, during the Circumnavigation of the Globe, in the Years 1831, 1832, 1833, and
1834. Nova York: Harper & Brothers, 1835, p. 29 e 31.
134
BARRA, Ezequiel. A Tale of Two Oceans; A New Story by an Old Californian. An Account of a Voyage
from Philadelphia to San Francisco around Cape Horn, Years 1849-50, Calling at Rio de Janeiro, Brazil,
and at Juan Fernandez, in the South Pacific. San Francisco: Press of Eastmen & Co, 1893, p. 65-71.

57
Os passageiros e o grumete assustados revelam a impressão do autor. Esses ocupantes ocasionais e os
novatos na profissão eram os únicos a desconhecerem o que ocorria na cerimônia da passagem da linha.
Netuno a bordo do navio, imagem reproduzida de BARRA, Ezequiel. A Tale of Two Oceans. San
Francisco: Press of Eastmen & Co, 1893, p. 67.

Tradicionalmente, o cerimonial embutia uma dose de violência. Se há indícios


de que ilustres viajantes europeus e estadunidenses sentiam-se maltratados, com os negros
da tripulação a violência apresenta-se menos documentada, mas isso não deve levar à
conclusão de que ela fosse menor. Uma menção incomum pode ser vista no relato do
intelectual e mais tarde senador estadunidense Samuel Greene Arnold em 1847: “Tivemos
poucas brincadeiras e as diversões costumeiras. Meteram dentro d’água com bastante
crueldade a um negrinho passageiro de proa, brincadeira que ele não compreendeu e que
não lhe cabia, pois que já havia cruzado a linha ao ir à Europa”135.
A lista de cidadãos dos Estados Unidos encerra-se com dois relatos. Um é o
lacônico William Stuart Auchincloss (1842-1928), filho de um comerciante de secos e
molhados de Nova York, que veio ao Brasil na década de 1870, contratado por uma
empresa de material ferroviário e mais tarde se tornaria membro da Academia deCiências
Naturais da Filadélfia e do Instituto Politécnico Brasileiro136. O outro é o animado (embora
covalescente) turista Charles Carr Atchison (1863-1942), que deSouthampton seguiu para
Lisboa e de lá para vários portos da América do Sul137.
Comerciante orgulhoso de sua pequena Wilmington, em Delaware, Auchincloss
publicou ali sua obra ao retornar da viagem ao Brasil, em 1874, e também seria o guia

135
ARNOLD, Samuel Greene. Viaje por América del Sur 1847-1848. Buenos Aires: Emecé, 1951, p. 56.
Ver também RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 188.
136
Special Collections Department [University of Delaware] – William S. Auchincloss (1862-1892).
Disponível em http://www.lib.udel.edu/ud/spec/findaids/auchin.htm#bio, acesso em 24 jan.2012.
137
TJARKS, Alicia V. “Brazil: Travel and Description, 1800-1899: A Selected Bibliography”. Revista de
Historia de América, 83: 209-247, jan./jun.1977.

58
de turismo do imperador brasileiro Pedro II quando da visita deste àquela cidade, dois
anos depois. Ao que tudo indica, sair da pequena localidade onde vivia era um transtorno
à sua personalidade, e ele se queixava da monotonia da vida cotidiana a bordo:

“não é surpreendente encontrar aqueles que são expostos à sua


influência tentando aliviar o tédio por causa das poucas novidades e
incidentes. Bem, oque mais se esperar daquele que sai de Nova York
com a certeza sombria degastar vinte e sete dias em sua jornada!”138.

Tamanha pasmaceira não foi quebrada com qualquer festival a bordo. Ao


atravessar a linha, ele notou apenas estar entrando na foz do Rio Amazonas e nas
proximidades do Pará139.
Atchinson teve comportamento diverso. Embora também considerasse maçante a
viagem marítima, ele sabia da existência do ritual e apontou seu franco declínio no tempo
em que cruzou o equador, em fins do ano de 1890:

“(...) Estamos cruzando a linha neste exato momento (enquanto oito


sinos estão soando), tanto quanto se pode verificar. As velhas práticas
de passar alcatrão etc., que ocorreram por muito tempo em
embarcações à vela e eram bem vindas, sem dúvida, para acabar com
tédio dos deprimidos, não encontram lugar nesses vapores de vinte
nós. Truques inofensivo que sobrevivem por si, descendentes
insignificantes daquelas grandes pilhérias. Alguém pode ganhar um
respingo inesperado de água, outro levar uma‘torta de maçã’ e
assim por diante, mas nada mais que isso. Mesmo um fio de cabelo
amarrado a um telescópio, que levou uma jovem senhora certa veza
pensar que tinha ‘visto o equador’, não faz mais vítimas nestes dias
(...)”140.

O narrador era um homem irônico. Se o tom inicial da citação é pouco para afirmar
isso, a imagem que ele incluiu em sua publicação exatamente neste trecho não deixa dúvida.
Mas não é a ironia o ponto que mais me interessa aqui, e sim o conhecimento que o autor
revelava possuir acerca do ritual e de seus detalhes cênicos. Entediados e deprimidos (como
Auchincloss) não teriam chance de se divertir emnavios a vapor, e Atchinson acreditava
que essa era uma das funções da cerimônia de passagem do equador, devido às calmarias
enfrentadas no tempo da navegação a vela.
138
AUCHINCLOSS, William Stuart. Ninety Days in the Tropics or Letters from Brazil. Wilmington: s/e,
1874, p. 7.
139
Idem, Ibidem, p. 11.
140
ATCHINSON, Charles Carr. A winter cruise in summer seas. "How I found" health. Diary of a two
months’ voyage in the Royal Mail Steam Packet Company’s S.S. Clyde, from Southampton, through the
Brazils, to Buenos Aires and back, for £100. Londres: Sampson Low, Marston Company, 1891, p. 88-89.

59
Se algo restava, era como sobrevivência, mas neste caso, ninguém foi batizado com água
ou enfrentou uma cena de pastelão.

A linha imaginária ganhou contornos de realidade na visão de uma mulher a bordo que a confundira o
equador com um fio de cabelo. O homem ao seu lado tem um olhar impassível, e a legenda informa: “Vendo
o equador. ‘É como a foto dele no mapa”. ATCHINSON, A winter cruise in summer seas, op. cit., p. 89.

Século XIX e relatos de alemães

O primeiro relato oitocentista da travessia da linha escrito por um alemão veio da


pena de Maximiliano de Wied-Neuwied (1782-1867), aristocrata que participara de guerras
no início do século XIX – como a independência dos Estados Unidos em 1813- 1814 e a
tomada de Paris neste último ano pelas forças antinapoleônicas – e, depois, dedicou-se aos
preparativos de sua viagem ao Brasil, valendo-se das medidas joaninasde abertura dos
portos141. Apesar da importância de sua expedição, a primeira tradução em língua
portuguesa só veio à luz em 1940 e, ainda assim, ela “assemelha-se mais a

141
LÖSCHNER, Renate e KIRSCHSTEIN-GAMBER, Birgit. “O legado do Príncipe Maximiliano de
Wied-Neuwied na Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GmbH“. In: GMBH, Robert Bosch. Viagem ao
Brasil do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied. Petrópolis: Kapa Editorial, 2001, p. 12. “Oitavo filho
de um dos mais velhos troncos da nobiliarquia renana, sua biografia nos leva a crer que ele não esperava
herdar a coroa dos domínios de sua dinastia. Fugindo aos exemplos dos seus irmãos, em vez de se dedicar
à carreira das armas ou à administração das propriedades familiares, inclinou-se para o estudo das ciências
naturais. Considerava o barão de Humboldt seu grande mestre”. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal.
“Memórias partilhadas: os relatos dos viajantes oitocentistas e a ideia de ‘civilização do cacau’. História,
Ciências, Saúde: Manguinhos, 8 (suplemento), 1059-70, 2001, p. 1063.

60
uma interpretação do diário de Maximiliano, sem levar em consideração sua data de
produção, do que uma tradução ‘fiel’ e aproximada do original”142.
Partindo de Londres a bordo do Janus em 15 de maio de 1815, Wied-Neuwied
transpôs a linha em 22 de junho, com as “cerimônias habituais”143. A tradução brasileiranão
informa muito mais além disso mas, entre os esboços e desenhos feitos por ele 144,
encontramos uma imagem do ritual encenado pelos marinheiros. Ali foram representadas
figuras que, embora só apareçam nos relatos escritos a partir do início do século XIX,
foram cristalizadas na memória do rito de passagem do equador. São elas Netuno e
Anfitrite (a primeira menção que encontrei a ele foi a de Tuckey, em 1803) em sua
carruagem puxada por cavalos marinhos (Maria Graham se referiria a eles em1821),
tendo à frente seu filho Tritão abrindo o caminho – tudo consoante com a mitologia antiga,
na qual o filho fiel acalmava as águas do mar para a passagem dos paiscom a música que
tirava das conchas. A presença de músicos na cena devia-se a essa função apaziguadora,
bem como se coadunava com a tradição musical dos mareantes, embora os tambores
empunhados pelos assistentes que antecedem Tritão, no desenho de Neuwied, devessem
ser um luxo das expedições científica ou militares e provavelmente não eram usuais em
navios mercantes.

142
Cf. COSTA, Christina Rostworowski da. O Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied e sua Viagem ao
Brasil (1815-1817). São Paulo: FFLCH/USP, 2008. (Dissert. Mestr. História), p. 16. Ver também HORCH,
Rosemarie Erika. “Notas bibliográficas sobre a obra do Príncipe Maximiliano de Wied- Neuwied”.
Oceanos: 24: out./dez.1995, p. 105. A primeira edição em alemão foi publicada em Frankfurt por Heinrich
Ludwig Brönner entre 1820-1821 (2 v.). Ainda em alemão, houve uma “edição resumida para a juventude”
em 1820 (Leipzig: Gottfried Basse) e outra em Viena (Kaulfuss und Kramer, 1825- 1826, 3 v.). Traduções
foram feitas para o inglês (incompletas, em Londres, no ano de 1820), o francês (Paris: Arthus Bertrande,
1821 (sob os auspícios do próprio príncipe), em italiano (Milão: Tip. De Giambattista Sonzogno, 1821-
1823 e Nápoles: Nuovo Gabinetto Letterario, 1832) e em holandês (W. van Boekeren, 1822-1823).
143
MAXIMILIANO, Príncipe de Wied Neuwied. Viagem ao Brasil (1820). São Paulo: Cia. Ed. Nacional,
1940, p. 19 e 24.
144
Além de Wied-Neuwied, seu companheiro Friedrich Sellow também esboçou desenhos na viagem, cf.
LÖSCHNER e KIRSCHSTEIN-GAMBER “O legado...”, op. cit., p. 9.

61
Netuno e seu séquito, no desenho de Wied-Neuwied. Fonte: LÖSCHNER e KIRSCHSTEIN-
GAMBER“O legado...”, op. cit., p. 66.

Pouco tempo depois, os naturalistas Johan Baptiste von Spix (1781-1826) e Carl
Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) embarcaram em 10 de abril de 1817 em Trieste,
então sob domínio austríaco, patrocinados pela corte bávara e em companhia da futura
imperatriz Leopoldina, com destino ao Rio de Janeiro145.
Pelos cálculos, eles cruzariam a linha inter-hemisférica em 29 de junho, marcando
o acontecimento com missa solene e o rufar de tambores na visita do “próprio Netuno
alcatroado e seus companheiros extravagantes” que, todavia, “não conseguiram alvoroçar
o navio com os batismos aliás costumados (...)”146. As duas ou três linhas destinadas ao ritual
por Spix e Martius demonstram a pouca comoção que sentiram, fruto talvez daquilo que
Manuel Salgado Guimarães observou sobre estes viajantes, de quem “não se espera apenas
um conjunto de impressões ‘romanceadas’ mas um relato circunstanciado, a partir de um
método de trabalho, base para a constituição de um sabersobre as sociedades humanas de
forma geral”147. Ainda que secos, os dois naturalistas bávaros notaram formalidades
relevantes, entre elas a antiguidade do batismo contida na palavra “costumados” e o fato

145
SPIX, Johan Baptiste von Spix & MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil (1817-
1820). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981, v. I, p. 31 (1ª ed.: Reise in Brasilien. Munique:
M. Lindauer, 1823-1831). “Contemplando o gosto e o interesse dos leitores, a Viagem pelo Brasil desfruta,
ao que parece, de uma boa recepção entre os leitores e de razoável êxito de vendas. Pois, alémde instruir
e entreter (...), a obra dialoga com as temáticas românticas do escapismo urbano, da volta à natureza e do
interesse pelo ‘exótico’, contribuindo para que a literatura de viagem continuasse um gênero muito
apreciado na Alemanha do início do século XIX”. LISBOA, Karen Macknow. A Nova Atlântida de Spix e
Martius: natureza e civilização na Viagem pelo Brasil (1817-1820). São Paulo: Hucitec/FAPESP, 1997, p.
47.
146
SPIX e MARTIUS, Viagem pelo Brasil, op. cit. I, p. 42.
147
GUIMARAES, Manoel Luiz Salgado. “História e natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil
para construir a nação”. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 7(2): out.2000.

62
de um rito oficial (a missa) não concorrer ou fazer desaparecer o outro, pagão, sob o
comando de Netuno.
Netuno não foi presença unânime em todos os relatos de alemães. Além de Wied-
Neuwied, Spix e Martius, ele foi mencionado por Karl Burmeister (1807-1892), zoólogo e
fundador Museu Público de Buenos Aires148 que atravessou a linha em 10 de novembro de
1850, e Johann EManuel Pohl (1782-1834), naturalista integrante damissão austríaca ao
Brasil entre 1817 e 1821, onde se juntaria a Spix e Martius149, não sem antes cruzar o
equador em outubro de 1817.
Burmeister refere-se ao ritual como um “feriado a bordo” e considerou que sua
origem encontrava-se nas “grosserias com que os artesãos costumavam receber seus novos
colegas de ofício ou os hábitos, hoje caídos no olvido, das Universidades ao receberem os
calouros”. No navio, quem recebia os calouros era Netuno, que subia do mar pela proa
“metido em amplas vestes brancas”, com longas fitas de madeira no lugar do cabelo,
portando coroa e tridente150. Dois tritões faziam as vezes de corte e ocerimonial incluía as
perguntas ao capitão acerca do motivo da viagem e dos que ainda não eram batizados,
seguidas de “uma alocução aos novatos, falando-lhes do seu futuro como súditos do deus
do mar”. Sujos com fuligem dissolvida em aguardente, os novatos tinham suas barbas
raspadas com uma faca cega e depois eram batizados com baldes d’água. Burmeister pagou
em dinheiro por sua dispensa da “grotesca festa”. Para além de suas impressões pessoais e
do preconceito de classe, o autor foi capaz de perceber o caráter popular do batismo:

“(...) os marujos não compreendem que outros sejam poupados aos


rituais bárbaros por que a seu tempo passaram. Vê-se, ainda nesse fato,
que o desejo de vingança é profundamente enraizado no homem e
que ninguém se esquiva à satisfação de ser o primeiro a desforrar-se
das injustiças sofridas, aplicando-as a outrem”151.

148
Cf. SALGADO, Leonardo e FLORI, Pedro Navarro. “Hermann Burmeister y su historia de Lacreación”.
Episteme, 13: 109-127, jul./dez. 2001, p. 110.
149
Cf. MACHADO, Telma Lopes. “Patrimônio, história e gastronomia”. Ciência e Cultura, 63 (3),
jul.2011. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-
67252011000300018&lng=en&nrm=iso e VOLKMER, José Albano et al. Retratos de cooperação
científica e cultural: 40 anos do Instituto Cultural Brasileiro-Alemão. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p.
41.
150
BURMEISTER, Karl Hermann Conrad. Viagem ao Brasil, através das províncias do Rio de Janeiro e
Minas Gerais, visando especialmente a história natural dos distritos auridiamantíferos. São Paulo:Martins,
1952, p. 27 (1ª ed.: Reise nach Brasilien, durch die Provinsen Von Rio de Janeiro und Minas Geraes, mit
desonderer Rücksicht auf die Naturgeschichte der Gold und Diamantedistrickte. Berlim:Drud und
Berlag, 1853).
151
BURMEISTER, Viagem ao Brasil, op. cit., p. 28.

63
A violência como traço da cultura de classe dos marinheiros foi um dado repetido
por diferentes narradores intelectuais. Mas Burmeister exagerou ao considerar que os
homens já batizados compensavam a injustiça que haviam sofrido submetendoos novatos
ao batismo, agindo por vingança. Integrar-se, na visão dos marinheiros, requeria uma dose
de sacrifício que eles estavam dispostos a pagar e que não era compensada só no batismo
seguinte, mas na irmandade construída no cotidiano do trabalho.
Pohl mostrou-se mais transigente em relação ao que presenciou, emocionando-se
com o festejo inusitado (“Jamais em minha vida se me oferecera tão estranho espetáculo,
tão colorida função!”) tanto por razões científicas simbólicas – ao conhecero ponto exato
do equilíbrio entre o céu e a terra – como pela cerimônia da passagem propriamente dita.
À meia-noite, em meio a uma “estranha algazarra”, Netuno veio à frente de um “louco
préstito” de mascarados e seu embaixador pediu licença ao comandante para ler um texto
anunciando que, na tarde seguinte, usaria “seus antigos direitos” de assumir a direção do
navio, cobrar tributo de todos os cruzavam a linha que pela primeira vez, ameaçando o
navio com “grande desgraça” se não fosse atendido. No dia combinado, cadeiras foram
espalhadas pelo convés sob uma cobertura de lona e ali também se puseram duas tinas,
uma com água e outra com alcatrão. Netuno voltou para iniciar o festejo, acompanhado de
sua mulher e entronizado em um carro puxado por quatro marinheiros com máscaras de
cavalos (certamente os cavalos-marinhos mencionados em outros relatos), seguido de
quatro homens “envoltos em peles, de braços e pernas desnudados, e com barretes de pele
na cabeça e machados debaixo do braço”. Um detalhe do manto de Netuno chama a
atenção: nele estavam representadas “bandeiras de todas as nações”, indicando o caráter
pretensamente supranacional do ritual e da vida marítima.
Expulsando os marinheiros do timão, o próprio deus do mar assumiu a direção,
enquanto um diabo descia do mastro do meio para atiçar os marinheiros que tinham o
rosto untado com alcatrão, para depois serem barbeados com uma navalha de madeira e,
por fim, serem atirados na água:

“Em pouco tempo tudo degenerava em indizível barulho, em que


havia cenas de revoltante selvageria. A farsa durou três horas,
concluindo-se quando subitamente todas as velas foram içadas e de
todas as gáveas se despejou tamanha quantidade de água, que ficou
encharcado tudo que se achava no castelo com exceção do senhor
grande Embaixador, que havia sido colocado sob a mencionada
coberta. Fora dos marinheiros, foi o tributopago por 127 pessoas,
rendendo uma bela soma, que dividiram entre si osdirigentes de
todo o espetáculo”152.

64
Johanes von Leithold (1771- 1826), vindo de Hamburgo e atravessando a linha em
1819, não mencionou o ritual, assim como Friedrich von Rango (1794-1861), Carl Seidler
e Ernst Ebel também não o fizeram.
Leithold e Rango, dois aventureiros prussianos em busca de riquezas no Brasil153,
foram econômicos nas descrições. O primeiro notou o costume do pagamento do tributo
e o alcance do ritual, “do qual não escapam o próprio capitão, o piloto ou os membros da
tripulação que a não tenham atravessado”154. O segundo, com pressa de chegar, notou
apenas que a linha havia sido ultrapassada e os ventos impeliam o navio em direção do
Trópico de Capricórnio155.
Deixando para trás pátria e carreira sonolentas e tentando a sorte no Novo Mundo
ao embarcar em Hamburgo, o soldado Seidler via o mar e um navio pela primeira vez na
viagem que fez ao Brasil156, experiência a partir da qual ele publicaria um livro que os críticos
reputam estar entre os mais queixosos e cheios de animosidade contra o Império e seus
habitantes escritos no século XIX157. Mas ao cruzar a linha, essas impressões ainda não
haviam se formado, e Seidler mostrou-se animado com o ritual que presenciou, em 8 de
fevereiro de 1825. A bordo, ele e outros três passageiros eram novatos, e todos foram
avisados por marinheiros “fabulosamente travestidos”,

152
POHL, Johann Baptist EManoel. Viagem no interior do Brasil empreendida nos anos de 1817 a 1821
(1ª ed.: Reisen im innern von Brasilien, auf allerhöchsten befehl seir majestat des Kaisers von Österreich,
Franz des Ersten, in den jahren 1817-1821. Viena: s/e, 1832. 2 v.). Rio de Janeiro: MEC-INL, 1951. As
citações foram extraídas das p. 46-48.
153
SELA, Eneida Maria Mercadante. “A África carioca em lentes europeias: corpos, sinais e expressões”.
Revista Brasileira de História, 26 (52): dez.2006, p. 202.
154
LEITHOLD, Johanes Gottfried Theodor von. “Minha excursão ao Brasil ou viagem de Berlim ao Rio
de Janeiro e volta, acompanhada de minuciosa descrição dessa capital, da vida na corte e dos seus
habitantes, bem como de alguns conselhos para os que buscam melhorar sua sorte no Brasil”. In: O Rio
de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1966, p. 7 (1ª ed.: Meine
Ausflucht nach Brasilien oder Reise von Berlin nach Rio de Janeiro. Berlim: Maureriben Bundbandlung,
1820).
155
RANGO, Friedrich Ludwig von. “Diário de minha viagem até o Rio de Janeiro no Brasil e volta nos
anos de 1818 e 1820”. In: O Rio de Janeiro visto por dois prussianos, op. cit., p. 161 (1ª ed.: Tagebuch
meiner Reise nach Rio de Janeiro in Brasilien, und zurück in den Jahren 1819 und 1820 in Briefen. Leipzig:
Baumberger Buchandlung, 1821).
156
SEIDLER, Carl Friedrich Gustav. Dez anos no Brasil: eleições sob Dom Pedro I, dissolução do
Legislativo, que redundou no destino das tropas estrangeiras e das colônias alemãs no Brasil. Brasília:
Senado Federal, 2003, p. 34 (1ª ed.: Zehn Jahre in Brasilien, 1835. Während der Regierung Don Pedro’s
und nach dessen Enttronung – Mit besonderer Hinsicht auf das Schicksal der Ausländischen Truppen und
der deutschen Colonisten. 2 v. Hamburgo; Leipizig: Druk und Verlag von Gottfried Basse, 1835, 2 v.).
157
Cf. ERTZOGUE, Marina Haizenreder. “O estrangeiro’: enredos imaginados sobre a solidão em Carl
Schlichthorst, Carl Seidler e François Biard”. Nuevo Mundo/Mundos Nuevos, Debates: 2008. Disponível
em http://nuevomundo.revues.org/31893?lang=en e COHEN, Ilka Stern. “Thomas Davatz revisitado:
reflexões sobre a imigração germânica no século XIX”. Revista de História, 144: jul. 2001, p. 202.

65
“anabatistas mascarados”, de que seriam batizados, obrigação da qual se livraram pagando
“algumas piastras espanholas”. Mesmo embarcando pela primeira vez, Seidler conhecia a
festa do mar, a “páscoa de uma esperança”. Muita água em baldes era espalhada,
respingando em todos no convés, ao ponto dos próprios novatos entrarem na brincadeira
e também molharem os demais, cantando os versos que ele transcreveu em seu relato:
“‘Muito gracejo, com risos de estouro! / Soubessem-no as gerações vindouras!” A refeição
que se seguiu ao festejo foi mais bem servida do que de costumee, tudo somado, levou o
autor a afirmar:

“Semelhante dia recorda-se por longo tempo, depois de dissipada a


consequente dor de cabeça; pois ele quebra a monotonia da viagem
marítima, fica marcado como folhinha vermelha no calendário da
nossa peregrinação terrena (...). Mas o homem do mar teme o
Equador tantoquanto o ama; pois costuma deparar aí com duradoura
calmaria. Também nós aqui ficamos parados quatro dias, sem a mais
leve brisa, sem a mínima onda (...)”158.

O navio em que Ebel cruzou o equador, em data próxima à de Seidler, tinha uma
equipagem de novatos, pois apenas dois deles já haviam feito a travessia. A festa foi grande,
embora Netuno tenha tido pouco trabalho. Para livrar-se do batismo, Ebel entregou
algumas garrafas de conhaque e logo se arrependeu, “já que a alegria festiva setransformou
numa algazarra que só a custo pode ser apaziguada”. O autor escrevia isso com o objetivo
de alertar seus leitores para que estes não incorressem no mesmo erro, pois a gente do mar
não tinha noção de medida, em sua narrativa com ares superiores159.

Século XIX e francofonia

A presença de viajantes franceses na América do Sul no século XIX se intensificou


após a normalização das relações entre os Estados europeus pós-Congresso de Viena. A
missão artística é um bom exemplo disso e, como membro destacado dela,o parisiense
Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Debret qualificou sua viagem de histórica e pitoresca160,
e esse último adjetivo pode ser colado à sua experiência desde antes da chegada ao Brasil,
a julgar pela descrição do ritual de travessia da linha. Trata- se do

158
SEIDLER, Dez anos no Brasil, citações entre as p. 40 e 41.
159
EBEL, Ernst. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1972, p. 7. Ver
também RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 216.
160
O duplo qualificativo tornou-se objeto da investigação de Valéria Lima, preocupada em caracterizar o
pertencimento da obra ao gênero “literatura de viagem” e a refletir sobre o sentido do termo historique
desde o título do livro de Debret. Ver LIMA, Valéria. J-B. Debret, historiador e pintor: a Viagem Pitoresca
e Histórica ao Brasil (1816-1839). Campinas: Ed. da Unicamp, 2007, p. 129.

66
relato mais alentado dentre os viajantes franceses do século XIX, referindo-se aum
momento em que os marinheiros divertiram os passageiros, vindos em estado de apatia
pouco natural, sobretudo por se tratar de um navio repleto de artistas161.
A alegria do ritual marcou a narrativa dos franceses. Além de Debret, exaltado com
a travessia e com os fenômenos atmosféricos que supunha encontrar aí, o polêmico Jean-
Baptiste Douville162 também creditou ao batismo, em 1833, “alguns momentos de bom
humor para aqueles que cumpriam sua jornada como marinheiros”163. O jovem pintor
Eduard Manet, nas cartas que enviou aos parentes quando veio estudar no navio-escola
francês que chegou ao Rio de Janeiro em 1848, descreveu o ritual de travessia do equador
com uma alegria própria da descoberta do mundo aos dezessete anos164.
A presidência de Netuno no ritual foi percebida e registrada por vários dos viajantes
franceses. Debret, Charles Ribeyrolles (1858) e Francis de Castelnau (1843)165o chamavam,
alternativamente, de Senhor Trópico, bom homem Trópico e Pai Trópico,
respectivamente, enquanto Jules Itier (1844) usou a denominação Pai Linha.
Conhecedor da existência da cerimônia por meio de outros textos, Castelnau
preferiu copiar o diário de um companheiro a descrever por si mesmo os eventos da
travessia do equador. Primeiro, houve uma chuva de feijões166 e água salgada, lançados da
gávea. Depois, um “vulto negro” desceu do mastro grande e pediu ao comandante a lista
dos neófitos, dizendo-se mensageiro do pai Trópico, que viria no dia seguinte167.

161
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil (1ª ed.: Voyage pittoresque et historique
au Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1834-1839). 6ª ed., São Paulo: Martins; Brasília: INL, 1975, t. I, v. I,
p. 113.
162
Acusado de falsificação pelo conteúdo de seu livro Voyage au Congo em um artigo de Jean Theodore
Lacordaire na Revue des Deux Mondes de novembro de 1832: “Lacordaire disse que Douville nunca havia
estado na África e afirmou que no momento em que o viajante disse estar em Golungo Alto (março de 1828)
ele na verdade fazia comércio na América do Sul”, cf. VERGER, Pierre. “Jean-BaptisteDouville, naturaliste
calomnié ou imposteur démasqué?”. Afro-Ásia, 12: 1976, p. 97.
163
DOUVILLE, Jean-Baptiste. Trente mois de ma vie, quinze mois avant et quinze mois après mon
voyage au Congo, ou ma justification des infamies débitées contre moi, suivie de détails noveaux et curieux
surles moeurs et les usages des habitans du Brésil et de Buenos-Ayres, etd'une description de la colonie
Patagonia. Paris: L'Auteur, 1833, p. 41.
164
MANET, Edouard. Viagem ao Rio: cartas da juventude, 1848-1849. 2ª ed., Rio de Janeiro: José
Olympio, 2008, p. 64-65. Ver também BENTO, Antônio. Manet no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, s/d e
RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 216.
165
Francis de Castelnau, chamado Francis de La Parte, Conde de Castelnau, era filho de família francesa,
nascido ocasionalmente em Londres em 1812. Ocupou o cargo de cônsul da França na Bahia em 1843 e
faleceu em Melbourne, Austrália, onde também era cônsul, cf. TAUNAY, Affonso de E. No Brasil de 1840.
São Paulo: s/e, s/d, p. 43-44.
166
Itier menciona grãos de bico, uma variação que, no entanto, não quer dizer outra coisa senão indicar o
desejo de que não faltasse comida a bordo. ITIER, Jules. Journal d'un voyage en Chine en 1843, 1844,
1845, 1846. Paris: Dauvin et Fontaine, 1848, v. 1, p. 40.
167
CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América do Sul. São Paulo: Cia. Ed. Nacional,
1949, v. I, p. 19-20.

67
O barulho e outros efeitos teatrais chamaram a atenção de todos: o cortejo, o uso
de barbas falsas por Netuno e seu séquito, o carro onde vinha o divino casal marítimo
(“simples tábua montada sobre rodas”), a grande navalha de madeira, a disposição do
cortejo no convés e a chamada dos “catecúmenos” que, sabedores de que batismo entre
cristãos não se faz sem água, preveniam-se usando roupas de tecidos leves e secagem
rápida168. A violência para com os grumetes que vinham “nus, pintados de preto e
encadeados, aos quais um marinheiro aplica vigorosas chicotadas” impressionou
Castelnau169. Em outros relatos, como o de Le Vayer (1844), os grumetes eram
representantes do diabo170.
Como já afirmei, a descrição mais alongada do início do século XIX é a de Debret,
e ele é quem informa sobre a persistência de certos elementos no ritual: o pagamento em
dinheiro como possibilidade de livrar-se do batismo, “divertida e tanto mais lucrativa
quanto éramos mais numerosos”; os preparativos da festa nos dias anteriores; a permissão
que o embaixador de Netuno (ou o próprio) devia pedir ao comandante do navio para a
realização do ritual, a presença dos elementos cênicos e da barbearia no convés e o
interrogatório dos calouros, neste caso feito pelo “pelo gordo senhor Trópico, (...) cuja
fórmula invariável e concisa era o seguinte: nome? idade? nacionalidade? profissão? já
passou a linha?” . 171

Passado o festejo, o navio sofria os efeitos da bebedeira dos tripulantes responsáveis


por sua condução. Douville e Castelnau observaram que a festa era regada a vinho e
ponche, criando uma confusão que misturava oficiais, marinheiros e passageiros172. A
bebedeira, aliás, foi o único aspecto notado pelo pintor Biard em sua travessia, em 1858:
“Apenas uma cota para se beber champanha: fez-se à saúde do comandante com muitos
hip... hip... hurrahs! (...)”173.
Os franceses Itier (1844) e Ribeyrolles (1858) foram dos raros narradores a
especularem sobre as origens do ritual. O Pai Linha de Itier descia do mastro principal por
um cabo – o que denota alguma experiência no controle do aparelho do navio e certa
antiguidade na lida, para não enroscar-se no casaco grande, vermelho e drapeado

168
DEBRET, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, t. I, v. I, p. 114.
169
CASTELNAU, Expedição às regiões centrais da América do Sul, p. 20.
170
FERRIÈRE LE VAYER, Théophile de. Une amabassade française en Chine. Journal de voyage.
Paris, D'Amyot: 1854, p. 30-32.
171
DEBRET, Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, t. I, v. I, p. 113-114.
172
DOUVILLE, Trente mois de ma vie, op. cit., p. 41; CASTELNAU, Expedição às regiões centrais da
América do Sul, op. cit., v. I, p. 21.
173
BIARD, Auguste François. Dois anos no Brasil (1ª ed.: Deux anées au Brésil. Paris: Hachette, 1862).
Brasília: Senado Federal, 2004, p. 24.

68
que vestia. No convés, sua corte o esperava e ele tentava impedir que o diabo pulasse sobre
seu carro. O papel do diabo nestes relatos oitocentistas é sugestivo: o que ele representaria?
Os ventos ou a falta deles? As tempestades? O mau tempo, enfim? O enfrentamento dos
elementos da natureza sempre fora um dado da vida dos mareantes, mas a presença tardia
do diabo, em uma data na qual o vapor era um aliado contra as adversidades climáticas,
permite outras sugestões. Alegoricamente, o diabo tardio poderia simbolizar a disciplina
de bordo e o poder dos oficiais, que vinha recrudescendocada vez mais? O diabo seria
simbolizado pelos grumetes em razão da inexperiência destes e das consequências que isso
podia ter no trabalho a bordo? Nenhuma hipótese deve ser descartada. Quanto ao ritual
em si, Itier aponta:

“As suas origens remontam, sem dúvida, aos primeiros tempos


da descoberta da América meridional, quando a passagem da
linha era tão temida pelos navegadores, por causa da calmaria
que prevalece nestas partes e causava uma fome terrível nos
navios”174.

Ribeyrolles, que viajou em um vapor, sabia que as novas máquinas propulsoras das
embarcações tinham possibilitado a supressão das escalas na Madeira e nas Canárias, e
indagava se o batismo da linha teria o mesmo destino. “Felizmente, muito felizmente
porém, está abolida a bordo dos vapores essa cena grotesca do bom homem Trópico”. Ele
temia que, como passageiro, fosse obrigado a compartilhar das “alegrias bestiais” e
“bacanais” de marinheiros bêbados. Esse jornalista republicano, deportado após a eleição
de Napoleão (o III) em 1851175, acreditava na existência do “espírito dos séculos históricos”
que havia quatro mil anos conquistava o desconhecido “sobre a escura treva de três pobres
continentes, ilha por ilha, floresta por floresta”. A “festa sagrada do batismo, essas núpcias
da terra conquistada, e entregue toda ao homem indagador e vencedor”, eram celebradas
com bebedeiras e mitologias grotescas, quando “podia e devia ser uma bela legenda
científica, uma iniciação, um verdadeiro sacramento”. Era preciso civilizar o ritual, mas isso
não seria possível com marinheiros embrutecidos e sem a chance de usufruírem de uma
“educação vivaz” que a camada social dominadora não permitia que fosse oferecida
porque isso a “assusta e apavora”.

174
ITIER, Journal d'un voyage en Chine, op. cit., v. 1, p. 39-40.
175
SANTOS, Cláudia Regina Andrade dos. “Charles Ribeyrolles ou a Viagem Política”. Revista do
Mestrado em História [USS]: 3: 2000, p. 164.

69
Resto de barbarias e saturnais sobrevivente de tempos menos civilizados e convenienteà
burguesia, o batismo do equador continuaria a existir176.
As mesmas questões de ordem política ou tecnológica não se colocavam a outros
narradores da travessia do equador.

Brasileiros do século XIX


Fosse pelo sentido da viagem (sul-norte), pela relativa ausência de letramento entre
os marinheiros ou por desinteresse dos oficiais, os relatos de cerimônias natravessia do
equador na Marinha brasileira são raros. Dois deles foram assinalados aqui, ambos da
segunda metade do século XIX.
O primeiro foi escrito por Eloy Sabino Pessoa, tenente da Armada em viagem à
Europa a bordo da corveta Imperial Marinheiro entre 1857 e 1858. Nesse relato, foram
repostos elementos comuns da tradição expressada por outros narradores, como a visita na
véspera do “rei Turno” pedindo permissão para realizar a festa, a montagem da roupa do
deus do mar, o uso do cavalo (humano) como meio de transporte e a cobrança de donativos
– neste caso coletado pelo diabo. Pessoa reconhecia o chiste, um traço da cultura popular,
nos nomes das divindades usados pelos marinheiros: o rei Turno – uma clara referência à
jornada de trabalho na Armada – era Netuno; Anfritite era Artrite e Euterpe foi rebatizada
Estrepes. A suspensão da hierarquia durante o ritual era um processo controlado pelos
oficiais, que participavam da festa no dia seguinte:

“Os grumetes, também conhecidos como ‘peões do mar’, que


nunca atravessaram a linha, são lavados, barbeados e empoados.
Para os marítimosde longo curso esse é um ritual de passagem
importante, uma espécie de batismo das águas profundas.
Depois de uma hora de brincadeira,semelhante ao entrudo,
no entender do tenente, o comandante ‘volta aosério, com
um mágico aceno apeou Netuno e a todos os seus das
imaginárias grandezas, alistando-os de novo entre os bravos
marinheiros da sua corveta’. Tudo volta à ordem e ‘cada qual se
contenta com sua verdadeira categoria a bordo”177.

Em 1895, Adolfo Caminha publicou o romance O bom crioulo, cujo personagem


título era o meigo Amaro, um escravo fugido que se alistara na Armada brasileira como

176
RIBEYROLLES, Charles. Brazil Pittoresco: história, descripções, viagens, instituições, colonisação.
São Paulo: Martins, 1941, p. 13-14.
177
JEHA, A galera heterogênea, op. cit., p. 190.

70
grumete e tornara-se um homem livre178. Caminha teve ao menos uma experiência marítima
de longo curso e a oportunidade de conhecer homens como Amaro ao partir do Rio de
Janeiro a bordo do navio de guerra Almirante Barroso em fevereiro de 1890 comdestino
aos Estados Unidos, onde passaria alguns meses. A experiência foi relatada em um livro de
viagem179.
O Almirante Barroso era um navio de propulsão mista, a vela e a vapor, e a primeira
era sempre adotada quando o vento permitia. Na passagem do equador, em 2de março
de 1890, reinava uma “calmaria podre” e um forte calor aguçado pelo sol a pino e pelas
fornalhas que ardiam no porão, mas minimizado por um toldo improvisado no convés e
“banhos salgados de ducha (...) recebidos com especialíssimo agrado”. Aparentemente,
nenhuma cerimônia fora realizada nesse navio da Armada, capitaneado pelo Comandante
Saldanha e em meio ao qual reinavam o asseio, a ordem, a destreza ea atividade. Caminha
não estabelece uma relação de causa e efeito, mas à descrição dessa ordem interna se
seguem referências aos castigos corporais, nas páginas seguintes180.
Porém, em sua rápida menção à passagem da linha, no sentido sul-norte, Caminha
descreveu dois itens comuns às descrições anteriores em que o ritual era realizado: a
cobertura provisória do convés e a água lançada sobre marinheiros e passageiros.
Formalmente, ele não abordou um ritual, mas seu texto pode apontar para uma das funções
do batismo com água feito para integrar marinheiros novatos e, ao fim, atingindo todos os
que se encontravam em meio à festa.
O uso da água, vale lembrar, só podia se dar ali devido ao forte calor da zona
equatorial, já que em latitudes mais altas traria risco à saúde dos mareantes. Mesmo neste
navio misto, o uso do vapor para apressar a travessia da linha na calmaria não impediu
outro uso, mais antigo e enraizado na cultura marítima, de batizar os marinheiros com água
do mar, fosse para diminuir o calor que sentiam ou, de modo não excludente, para integrá-
los de forma dissimulada em um navio cuja disciplina era mantida por meio de castigos
corporais – outra tradição da cultura marítima, esta sim praticada sem disfarce pelos oficiais
das armadas de muitas nações ocidentais até o século XX.

178
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. “Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra”. Estudos
Afro-Asiáticos, 38: dez.2000. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-546X2000000200005.
179
CAMINHA, Adolfo. No país dos ianques. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia Cearense
de Letras, 1979, p. 8-14.
180
CAMINHA, No país dos ianques, op. cit., p. 8, 15 e seguintes.

71
Creio que as rápidas palavras de Caminha evidenciam os últimos suspiros do ritual
entre os marinheiros atlânticos e que, a partir daí, o batismo lhes escaparia como parte de
uma iniciação à vida comunitária de bordo, adquirindo outros significados.

Século XX

Com o fim da dependência dos ventos para cruzar os mares, o ritual de batismo na
travessia do equador foi preservado em navios e aeronaves até hoje. Basta umarápida
pesquisa nos programas de busca na internet para encontrarmos vasto material fotográfico
da travessia da linha ao longo do século XX, desde certificados impressos com a estampa
de Netuno, passando por aquelas imagens feitas por fotógrafos profissionais a bordo de
cruzeiros turísticos até fotos amadoras, registradas pelos próprios turistas, geralmente em
grupos, com suas câmeras digitais.
Com a introdução do vapor e, mais tarde, dos transatlânticos na navegação, a
calmaria foi vencida e a situação propiciadora do ritual original deixou de existir, superada
pela potência das máquinas. As escalas, no começo do século XX, tinham menos a função
de abastecimento alimentar e mais de carregar carvão e evitar que os navios tivessem seus
porões carregados em excesso desde o porto de origem. Alcock, vindo à América do Sul
por volta de 1906, mencionou uma parada em Cabo Verde com esse intuito, e a previsão
era alcançar Pernambuco em menos de quatro dias a partir dali. O autor aguardava a
presença de Netuno, expectativa que afinal foi frustrada, conforme ele explicou:

“(...) o muito aguardado Netuno, acompanhado por alguns de seus


satélites, viria a bordo para manter sua cerimônia costumeira e batizar
aqueles que nunca haviam cruzado a linha. Houve grande excitação
mas, infelizmente, estávamos fadados ao desapontamento. Um dos
passageiros disse que era devido ao fato de que tivemos muitas
mulheres bonitas a bordo, e as sereias lá embaixo eram muito
ciumentas para permitir que o Rei do Mar viesse a bordo, e ele
possivelmente iria preferir a paz das eras do que um prazer
momentâneo. Certamente, deveríamos dar as boas vindas a ele, e havia
um grande número de homens à procura de colares para a ocasião e
que deixaram de se barbear por um tempo a fim de conhecer melhor
o entusiasmo da navalha usada nos ritos cerimoniais (...). Então, é
claro,haveria o grande banho, pois Netuno insiste em uma imersão
completa; mas ele não veio, e o leitor bem poder imaginar a razão,
como o escritor. Ele certamente visitara o Oropesa [navio em que
ele viajava] em sua viagemanterior (...). Se perdemos Netuno, ao
menos vimos peixes voadores emabundância (...)”181.

72
Recorrendo mais uma vez a Adour da Câmara, ele não demonstrou qualquer
excitação na travessia da linha ou com a aparição de Netuno e seu séquito a bordo182.
Quando, nos anos 1920, Câmara cruzou a linha em sentido inverso ao dos viajantes
europeus e estadunidenses, nenhum tripulante ou passageiro era mais lançado ao mar
em meio à violência característica de tempos passados; naquela altura, o que ocorria eram
“banhos da criançada na piscina da popa”, uma “farsa desinteressante, sem espírito, e sem
a menor imaginação criadora. Ufa!”183. Se faltava imaginação no ritual, ele já mudara
completamente de significado. Netuno, agora, vinha a bordo para divertir as crianças de
famílias abastadas que viajavam na companhia de seus pais.
Seu contemporâneo e também escritor modernista Alcântara Machado fez a
travessia, no sentido sul-norte, mais de uma vez. Numa delas, em 1929, reuniu-se aos
Bastos no transatlântico que levava todos à Europa, sendo Portugal o destino anual da
família. O pai da família viajava com uma “máquina de fazer café muito aperfeiçoada e
comemorando a passagem do Equador ofereceu ‘uma xícara da nossa bebida nacional à
colônia argentina”184. Nada de lançar água do mar ou submeter a qualquer violência gente
vestida de linho branco185.
Em meados do século XX, temos o relato de Albert Camus, que cruzou o
Atlântico duas vezes: a primeira, indo para os Estados Unidos em 1946; a segunda, vindo
à América do Sul, em 1949, quando já ganhara a fama de intelectual controvertido e, neste
momento, bastante depressivo186. Desejoso de ficar em seu camarote escrevendo e
observando na escuridão profunda das águas do mar um contraditório “chamamento à vida
e convite à morte”, ele cruzou o equador na manhã de 10 de julho. A cerimônia da
linha fora suspensa, “por falta de passageiros, [e] substituímos esses ritos por algumas
brincadeiras na piscina. E depois um momento
181
ALCOCK, Frederick. Trade and travel in South America. 2ª ed., Londres: George Philip Son, 1907, p.
90 e 92.
182
CÂMARA, Oropa, França e Bahia, p. 20-21.
183
CÂMARA, Oropa, França e Bahia, p. 28.
184
MACHADO, Pathé-Baby e prosa turística, op. cit., p. 188.
185
Sobre o relato europeu de Alcântara Machado, ver LIMA, Glaucia Ribeiro de. Filmar o mundo, projetar
São Paulo: crônicas de viagem de António de Alcântara Machado, 1925-1935. São Paulo: PUCSP, 2001.
Para outros relatos de viajantes brasileiros em direção ao hemisfério norte na primeira metade do século
XX, ver PIMENTEL, Thais Velloso Cougo. De viagens e de narrativas: viajantes brasileiros no além-mar
(1913-1957). São Paulo: FFLCH/USP, 1998 (Tese Dout.).
186
MODERNELL, Renato. “Narrativas de viagem e jornalismo literário”. Todas as Letras J, 9(1): 2007, p.
107.

73
com os emigrantes, que tocam acórdão e cantam na proa da embarcação, voltados para o
mar deserto (...). Dia calmo. A não ser pelo grande jantar com champanha pela passagem
do equador”187.

Percepção das transformações no ritual

Alguns sinais integrativos foram apresentados aqui, sobretudo a água como


instrumento do batismo e sua clara analogia com o batismo cristão. Integrador quando
praticado em meio aos marinheiros, o ritual também era excludente. Mencionei as raras
referências aos tripulantes negros no batismo do equador, e nenhuma delas foi lisonjeira.
A bordo dos navios negreiros, por sua vez, não se tem notícia da prática do batismo,
embora tenham sido milhares as viagens feitas entre Angola e o Caribe, por exemplo, sem
que tenhamos qualquer notícia de cerimônia de batismo dessa natureza. Claro está que a
integração era para membros da comunidade marítima, mas o ritual sempre abrangeu
passageiros ocasionais, desde o relato de Jean de Léry, em 1556, e chegou ao auge
justamente na primeira metade do século XIX, coincidindo com o ápice do tráfico de
africanos para a América. Ainda que desde 1807 esse comércio fosse proibido ao norte do
equador, ele manteve-se como um vivo contrabando188.
A cultura marítima tem sido caracterizada por estudiosos como solidária, libertária,
igualitária e internacionalista, mas a questão é que ela também tinha fortes clivagens raciais
e nacionais. Há sinais inegáveis disso no tráfico de africanos e nas práticas de um
“proletariado marítimo” que tratava os africanos como simples cargas humanas, além de
empregar poucos marinheiros negros livres em navios transatlânticos189, bem como na
branquitude e no patriotismo de uma parte dos marinheiros anglófonos, que tentaram se
diferenciar dos marinheiros não brancos e criar para si uma imagem de homens mais
honrados190.
Via de regra, os estudiosos apontam a prevalência do aspecto rebelde e libertador
do ritual de passagem do equador191. Mas a questão precisa ser esmiuçada e essa

187
CAMUS, Albert. Diário de viagem. Rio de Janeiro: Record, 1978, p. 59-60 e 69-70, respectivamente.
(1ª ed.: Jornaux de Voyage. Paris: Gallimard, 1978).
188
Para os tratados restritivos ao tráfico de escravos e o contrabando no século XIX, ver, entre outros,
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências no final do tráfico de africanos para
o Brasil (1800-1850). Campinas: Ed. da Unicamp, 2000.
189
BIALUSCHEWSKI, Arne. “Black People under the Black Flag: Piracy and the Slave Trade on the West
Coast of Africa, 1718–1723”. Slavery and Abolition, 29(4): dez.2008, p. 469.
190
LAND, Isaac. “Sinful Propensities Piracy, Sodomy and Empire in the Rethoric of Naval Reform, 1770-
1870”, apud JEHA, A galera heterogênea, op. cit, p. 138.
191
Ver, por exemplo, BARREIRO, “A formação da força de trabalho marítima no Brasil”, op. cit., p. 197.

74
prevalência deve ser checada, com o acompanhamento de suas transformações em uma
temporalidade mais longa. Tendo a considerar que o ritual tinha um caráter mais identitário
e integrador da comunidade marítima do que rebelde e libertador.
A ocorrência no Atlântico era predominante. Embora autores como Rediker
afirmem que o ritual era praticado por marujos de todas as nacionalidades, as evidências de
sua prática no Índico e no Pacífico são escassas. A informação de Maria Graham sobre a
prática ritualística entre os árabes é um aporte solitário a esse tipo de interpretação. A
extensão do ritual a “todas as nacionalidades” é a generalização clara de um traço
identitário europeu para todas as partes do mundo, o que soa enganoso. Mesmo no recorte
das nacionalidades europeias, nem todas praticavam o ritual e, quando o faziam, não era
da mesma forma. Se o batismo aparece desde as primeiras referências ao ritual no século
XVI, a presença de Netuno é posterior, surgindo apenas no século XVIII. Isso posto, não
resta dúvida de que se tratava de um ritual de origem europeia, legado aos americanos mas
não a outros espaços ou sujeitos coloniais epraticado no Atlântico majoritariamente nas
viagens do norte para o sul.
Alguns dos viajantes apresentaram hipóteses para explicar a origem do ritual,
decerto inspirados nos estudos do folclore, apenas apontando possibilidades ou repetindo
o que tinham ouvido dizer. A informação de Maria Graham remete à semelhança da
prática entre árabes e europeus, aqueles no Índico, estes no Atlântico, e aos motivos
religiosos contidos no ritual. Nos dois casos, tratava-se de sobrevivências de
temporalidades anteriores às religiões professadas na época, ou seja, pré-corânicas e pré-
cristãs. A comida e o fogo entre os árabes apontavam para os antigos costumes de adoração
aos elementos da natureza, com oferenda de sacrifícios, mas entre os europeus não se
menciona o fogo (e sim a água) no ritual, e a comida parece cumprir outrafunção.
Scarlett não conhecia a origem do ritual, mas apostava em sua universalidade e na
violência da festa como geradora de ressentimentos. Ele não chega a estruturar uma
explicação, mas o aporte de Reynolds sugere uma conexão entre a violência original da
cerimônia e a época em que marujos eram sequestrados em tabernas e beiras de cais ou
condenados pelas autoridades de terra a trabalhar nos navios. O ritual, em sua visão, pode
ter surgido em meio a esse processo e expressaria as diferenças sociais e aresistência dos
homens do mar ao trabalho forçado e ao desterro renascidos no iníciodos tempos
modernos. Burmeister, por sua vez, traçava uma analogia entre o batismo do equador e as
festas grosseiras das corporações de ofício e das universidades medievais, todos eles ritos

75
de iniciação de calouros em uma nova fase da vida e em meio a uma nova comunidade.
Os franceses Itier e Ribeyrolles apontavam em outra direção, identificando as origens do
ritual às navegações, à descoberta de novos caminhos e novas terras pelos europeus, bem
como aos temidos perigos da calmaria e da fome enfrentados nas longas rotas marítimas.
O ritual seria, assim, uma espécie de comemoração pelos avanços civilizatórios, a entrega
simbólica dos conquistados aos vencedores.
O inventário das explicações permite que as comparemos. A suposta
universalidade da prática não exclui sua origem mais reduzida em termos “nacionais” ea
posterior expansão na cultura marítima atlântica. Como já disse, eu também considereia
hipótese de que os marinheiros ibéricos tenham sido os criadores da cerimônia em
suas navegações para além do equador nos séculos XV e XVI, e que a festa provinha da
constatação de que a linha não representava os perigos para os quais os antigosalertavam.
Se foi assim, embora não tenhamos evidências consistentes da práticaritualística a bordo
das naus lusas nas costas africanas ou a caminho da América e doOriente, eles não
introduziram Netuno na festa, já que este só apareceu no século XVIII.
Vários viajantes mencionaram a oferta de comida e bebida fartas na cerimônia
desde seu início, no século XVI. Trata-se de um aspecto relevante, por assinalar a
importância do episódio em uma vivência marcada pelo racionamento e, no limite, pela
fome e por doenças decorrentes da má nutrição192. A ocasião especial era o oposto do
cotidiano: neste, há uma economia cuidadosa de tudo que se refere à subsistência; naquela,
há desperdício e excesso. Nesse sentido, a travessia do equador era um rito de inversão: ao
contrário da rotina de falta de água e comida, na calmaria equatorial os marinheiros podiam
comer e beber à vontade durante algumas horas, alterando sua rotina de escassez. Havia
roupas e enfeites especiais para os rituais, indicando a quebra do cotidiano, e isso pode ser
observado a partir do século XVIII na indumentária exagerada de Netuno e sua corte e na
decoração do convés para a encenação da abordagem do deus do mar.
O mundo de ponta cabeça, a inversão dada pela passagem do norte para o sul do
Atlântico, incluía a sexualidade de mais de uma maneira. A raspagem da barba, um sinal
de masculinidade, indica a prioridade dos homens no trabalho marítimo. Indica também
maturidade, já que os mais jovens são imberbes e não podiam presidir cerimônias nem

192
Abordo esse aspecto da vida marítima no capítulo 2.

76
realizar trabalhos que requeriam força muscular e destreza advinda da experiência. De
outro lado, a presença de Anfitrite, representada por um homem travestido, invertia os
papéis masculino/feminino na cerimônia. Nenhum dos informantes explicou de que forma
se escolhiam Netuno e Anfitrite dentre os marinheiros já iniciados. É plausível que o papel
de Netuno recaísse sobre um marinheiro mais velho, mais ágil ou que tivesse atravessado
a linha mais vezes. A escolha de Anfitrite podia ser apenas uma diversão, mas o travestir-
se de mulher introduz a possibilidade de que entre os marinheiros as práticas homossexuais
não fossem estranhas nem severamente reprimidas. O único papel feminino da encenação
era desempenhado por um homem. A presença de um homem travestido de mulher e
dos próprios cavalos marinhos são elementos que remetem à sexualidade embutida na
configuração do cortejo e em todo o ritual do batismo do equador, sobretudo a partir da
inclusão do deus do mar como personagem de bordo. Hansen, por exemplo, menciona
os numerosos encontros eróticos de Netuno/Poseidon na mitologia clássica, sendo alguns
deles com temas equinos193.
Mas a principal inversão para a qual o festejo da passagem do equador apontava era
a do poder hierarquizado. Essa característica não parece estar presente na origem do ritual,
mas foi incorporada a ele na medida em que os marinheiros organizavam suas práticas de
resistência à autoridade dos comandantes. Para além da humilhação a que se submetiam
os novatos, era uma expressão de questionamento simbólico à autoridade dos oficiais,
ainda que se negociasse a ocorrência da cerimônia com esses mesmos mandatários de
bordo. A negociação e a ocorrência da cerimônia podem ser vinculadas àquilo que Rediker
chamou de “subcultura” ou “cultura de oposição” no interior da cultura marítima: o
conflito de classe nos assuntos de poder, autoridade, trabalho e disciplina, com atitudes,
valores e práticas distintos. A cultura marítima, de acordo com ele, era fraturada entre os
aspectos corporativos, que provinham do embate com a natureza, e a subcultura de classe
que emergia das relações de produção básicas na navegação194.
Se era rebelde e libertador, o ritual também continha elementos conformistas,
compensadores e mantenedores da ordem. Vários estudiosos já notaram a prática da
inversão de status nos rituais populares europeus, e em todos eles, tratava-se de uma

193
HANSEN, Classical Mythology, op. cit., p. 267.
194
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 154-155. Ver também BARREIRO,
“A formação da força de trabalho marítima no Brasil”, op. cit., p. 192.

77
inversão periódica: após o aguçamento do sentido de pertencimento a uma comunidade
e depois de questionar a autoridade dos oficiais, seguia-se o restabelecimento da ordeme
a reafirmação da hierarquia como princípio195. No ritual de travessia da linha, o princípio
era reafirmado desde a véspera, quando o embaixador de Netuno ou a própria divindade
pedia permissão ao comandante para realizar o batismo dos neófitos. A transformação
morfológica representada pela introdução do deus do mar no ritual surgiuacompanhada
desse pedido formal.
A julgar pelos relatos dos viajantes, Netuno era sempre um marinheiro, nunca
um oficial. Os oficiais participavam da brincadeira ou esquivavam-se dela, mas nunca eram
fantasiados de deus do mar, travestidos de esposa ou incorporados ao séquito da divindade.
Somente marinheiros cumpriam esses papéis. Se isso reforçava os laços comunitários dos
marinheiros em oposição aos oficiais, reforçava também o princípio hierárquico: Netuno
era um deus e tinha proeminência sobre os demais; seu séquito era hierarquizado e a
própria forma dele se apresentar confirmava isso. Portanto, se havia uma rebeldia
questionadora da ordem, o ritual repunha outra hierarquia: a de Netuno.
A negociação prévia e a permissão dada pelo comandante foram dados
incorporados ao ritual. Esses dados vão de encontro à sugestão de Burke de que as “classes
altas” permitiam a inversão dos papéis sociais em certas oportunidades como se tivessem
consciência de que isso era uma válvula de escape para os conflitos latentes numa sociedade
desigual. Caso os subordinados não tivessem meios de compensar seus ressentimentos e
frustrações, a própria sobrevivência de classe e a hierarquia estariam ameaçadas196.
Por fim, chamo a atenção para a incidência de menções ao ritual no decorrer do
tempo. Entre os séculos XV e XVIII, as descrições da cerimônia de travessia do equador
são em número reduzido. Mas elas ampliam-se substancialmente na primeira metade do
século XIX, declinando na segunda metade do mesmo século e no seguinte. Quais as
explicações para isso?
É possível que, no início, houvesse motivos estimulantes para a invenção do ritual,
como a comemoração pelo fato das tripulações não morrerem, desaparecerem ou
derreterem sob o sol junto com os navios. Mas, uma vez desfeito os mistérios em torno da
linha, por que os relatos se adensam e a identidade entre os homens do mar se articula
(entre outras coisas) em torno do ritual?

195
BURKE, Cultura popular na Idade Moderna, op. cit, p. 225.
196
Idem, Ibidem, p. 225-226.

78
No século XIX, com a introdução da maquinaria e a possibilidade de dispensa de
trabalhadores que seriam trocados pelos novos inventos, com a perda de funções dos
homens devido à substituição pelas máquinas, creio que o mote original do ritual tenha se
perdido, mas, simultaneamente, tinham sido criados novos motivos para reforçar a
irmandade e a solidariedade entre os marujos, dadas pelo próprio desenvolvimento técnico
e por novas formas de dominação. Agindo no âmbito de uma economia moral, esses
homens davam importância às redes que eles eram capazes de criar, sobretudopara se
oporem à hierarquia e ao domínio dos oficiais, inclusive porque estes últimos não
perderam seus postos de trabalho e suas carreiras com a introdução das novidades técnicas.
Um costume em comum, compartilhado por marinheiros e oficiais no passado, podia ter
se tornado uma expressão da luta de classes a bordo entre fins do século XVIIIe início do
XIX.
O adensamento e a ampliação numérica dos relatos era um sinal dos tempos no
século XIX. Mais gente passou a viajar pelos mares, estimulada pelas independências na
América e pela ampliação da economia global na era contemporânea. Mais livros foram
consumidos pelos europeus e estadunidenses, público alvo das narrativas de viagens, do
que no passado, agora sem as amarras da censura oficial, da inquisição católica ou da razão
dos Estados metropolitanos europeus em esconderem as riquezas de seus domínios
coloniais. Podia ser que a ampliação dos relatos se devesse apenas a isso. Mas esses
estímulos à produção e ao consumo dos livros era, também, um sinal do crescimento do
mercado editorial e do interesse pelas obras como itens de consumo no interior do
desenvolvimento capitalista. Esse mesmo desenvolvimento, cujo desfecho não era
previsível naquele início de século, incluía o surgimento ou o reforço dos laços dos
“trabalhadores da economia atlântica”, dentre os quais estavam plebeus esbulhados,
delinquentes deportados, serviçais contratados, extremistas religiosos, piratas, operários
urbanos, soldados, marinheiros e escravos africanos, para retomar a metáfora das cabeças
da hidra de Lerna por Rediker e Linebaugh197.
O “desenvolvimento capitalista” não é utilizado aqui como expressão demiúrgica.
Ele não era inexorável nem tinha vencedores ou perdedores pré-definidos; estes foram se
configurando no decorrer do processo, violento, do qual um ritual comoo da passagem
do equador é uma evidência. A hidra tinha, aqui, mais uma de suas cabeças. Os próprios
trabalhadores marítimos foram essenciais para o êxito do comércio internacional, ao

197
LINEBAUGH, Peter & REDIKER, Marcus. A hidra de muitas cabeças: marinheiros, plebeus e a
história oculta do Atlântico revolucionário. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 123.

79
criarem muito do valor das mercadorias por eles transportadas de um mercado a outro198.
No final do século XVIII, os trabalhadores que iniciavam sua organização
inventaram uma analogia entre a hidra e os governantes tiranos e entre eles próprios e o
Hércules mitológico. Símbolos, portanto, são sempre passíveis de ressignificações: é
relevante que, nas lutas sociais desde fins daquele século, Hércules e a Hidra, assim como
Netuno e Anfitrite, símbolos oriundos da Antiguidade clássica, tenham sidoretomados. O
combate eficaz ao radicalismo na década de 1790 teria resultado na criação do racismo
como conceito biológico e da classe como categoria política e econômica definida apenas
no interior de fronteiras nacionais.
Para Linebaugh e Rediker, em cujas obras me inspiro para escrever estas
considerações, a história do capitalismo em formação não é apenas a história da economia
política e da concentração da riqueza nas mãos de uma classe social. Ela é também a história
da economia moral, da resistência ao processo de exclusão e de submissão ao trabalho
compulsório levado a cabo por grupos sociais não conformistas, ainda que nem sempre
articulados entre si. No caso dos marinheiros e de sua inserção nessa história, tratavam-se
de homens recrutados à força para o mercado de trabalho ou que mascateavam suas
habilidades nas cidades portuárias, indo de navio em navio indagando qual era a rota, o
pagamento e a comida e tornando-se aprendizes quando ainda não possuíam o
conhecimento necessário199.
Para combater as novas cabeças da hidra, representadas pela introdução do vapor e
pela proeminência opressiva dos oficiais, os marinheiros comuns podem ter reforçado sua
identidade, eles que eram oriundos das mais diversas ocupações ou das categoriasde
vadios e escravizados existentes nas margens do Atlântico200. Da perspectiva dos oficiais, a
nova cabeça da hidra a ser extirpada era exatamente o reforço da irmandade que o rito de
passagem do equador, agora transformado, representava. Quanto aos marinheiros, eles
incorporaram novos símbolos ao ritual e expressaram seu descontentamento com a forma
pela qual eram tratados, invertendo a ordem e negociando condições, mesmo que o
resultado fosse o retorno da hierarquia e a submissão à autoridade após a festa. A vitória
do “desenvolvimento capitalista” unívoco, em meados do século XIX, ainda não sorria
para nenhum dos lados.

198
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 74 e 77; BARREIRO, “A formação
da força de trabalho marítima no Brasil”, op. cit., p. 190.
199
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit., p. 81-82. Para o recrutamento na
Armada imperial do Brasil, ver JEHA, A galera heterogênea, op. cit., p. 33, 102 e seguintes.
200
LINEBAUGH e REDIKER, A hidra de muitas cabeças, op. cit., p. 29.

80
A disputa manteve seu vigor até a segunda metade do século XIX, quando a nova
tecnologia dos motores de propulsão a vapor se impôs de forma irreversível e os
marinheiros da irmandade da vela foram derrotados e substituídos por outros homens,
com outras visões de mundo e de quem se requeria outras habilidades no trabalho. Desde
então, e adentrando pelo século XX, passageiros de transatlânticos em cabines e conveses
elegantes e, mais tarde, em aeronaves, tornaram-se a plateia de um ritual cujo significado já
não era mais o original do século XVI nem o transformado de fins do século XVIII e início
do XIX. Agora, encenava-se a cerimônia para um novo público, que era ele também
participante. Atravessar o equador e ser batizado a bordo tornou-se, então, uma diversão
burguesa. O ritual transformou-se historicamente, não pela agência do vapor, mas pelo fato
de que as alterações nas relações de produção tinham sido experimentadas na vida social e
cultural. A repercussão disso foi sentida nos valores, ações, escolhas e crenças humanas201.
Entre o final do século XIX e a primeira metade do XX, os navios ganharam
motores a vapor (uma invenção humana) e os marinheiros já não eram os mesmos dos
séculos precedentes. Nesse período, mudaram as pessoas que realizavam o ritual de
travessia do equador, como mudou o próprio significado do ritual. Os praticantes passaram
a ser, em sua maioria, passageiros sem maiores interações com os trabalhadores do mar, e
o sentido da aliança com Netuno e sua corte estava mais voltados à diversão do que à
proteção ou à integração na comunidade marítima reivindicada pelos marinheiros da época
dos navios à vela. Corroborando Marc Bloch em Apologia da História, Thompson nos
lembra que, “para grande desespero dos historiadores, os homens não mudam seu
vocabulário toda vez que mudam seus costumes’ – e isso é verdadeiro também para o
vocabulário dos rituais”202. Portanto, cabe ao historiador estar sempre atento.

201
THOMPSON, “Folklore, Anthropology and Social History”, op. cit., p. 266.
202
Idem, Ibidem, p. 255.

81
CAPÍTULO 2
203
SAÚDE ALIMENTAR NO ATLÂNTICO, SÉCULOS XVI AO XVIII

“O sepulcro era tão grande, tão amplo e fundo que, ainda mesmo do nosso mais alto cesto do mastro, não
o poderíamos abarcar com a vista” 204.

I. A crônica colonial e a literatura produzida pelos viajantes que estiveram no Brasil


entre os séculos XVI e XIX foram e continuam a ser utilizados sistematicamente como
fontes para a construção do conhecimento histórico relativo às mais diversas temáticas. De
fato, tais textos prestam-se a inúmeras leituras e possibilidades de reflexão, constituem um

imenso manancial de informações e são objetos de críticas em múltiplas abordagens205.


Há, todavia, uma possibilidade quase inexplorada encerrada nessas fontes e sobre a qual a
historiografia pouco tem se detido. Todos esses autores atravessaram o oceano como parte
inescapável de sua experiência, mas narrativas produzidas por eles acerca do deslocamento
marítimo não mereceram a mesma atenção que as descrições da vida em terra firme
americana.
Adentrar esse universo é um caminho possível para avançar na concepção do
“Atlântico como espaço histórico”. Para Dale Tomich, autor da formulação, o
entendimento da história atlântica como processo integral requer a compreensão do
oceano como região econômica do mundo moderno e unificadora das áreas que formam
esse espaço humano206. Outras abordagens da história atlântica são praticadas, como aquela
mais comum e focada nos impérios europeus, nas nacionalidades ou nos espaços
continentais da América, África e Europa207.

203
Versão bastante resumida deste texto foi apresentada nas VIII Jornadas de Historia Moderna y
Contemporánea, na Facultad de Filosofía y Letras da Universidad de Buenos Aires, em 2012.
Posteriormente, foi publicado na Revista de História, 168: jan./jun.2013, p. 325-350.
204
RICHSHOFFER, Ambrósio. Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais (1629-1632).
2ª ed., São Paulo: Ibrasa; Brasília, INL, 1978, p. 34.
205
Dentre outros autores que se debruçaram sobre os relatos de viagens em termos metodológicos e
exploratórios de suas potencialidades, ver FRANCO, Stella Maris Scatena. “Relatos de viagem: reflexões
sobre seu uso como fonte documental” e JUNQUEIRA, Mary Anne. “Elementos para uma discussão
metodológica dos relatos de viagem como fonte para o historiador”. In: JUNQUEIRA, Mary A. e
FRANCO, Stella M. S. (orgs.). Cadernos de Seminários de Pesquisa, v. II. São Paulo: Humanitas, 2011,
pp. 62-86; VILARDAGA, José Carlos. Lastros de viagem: expectativas, projeções e descobertas
portuguesas no Índico (1498-1554). São Paulo: Annablume; FAPESP, 2010; COSTA, Wilma Peres.
“Narrativas de viagem no Brasil do século XIX: formação do Estado e trajetória intelectual”. In: RIDENTI,
Marcelo; BASTOS, Elide Rugai e ROLLAND, Denis. Intelectuais e Estado. Belo Horizonte Ed. da UFMG,
2006, p. 31-49; RAMINELLI, Ronald. Viagens e inventários: tipologia para o período colonial. História:
Questões e Debates, Curitiba: vol. 32, jan./jun.2000, p. 27-46; SUSSEKIND, Flora. O Brasil não é longe
daqui: o narrador, a viagem. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
206
TOMICH, Dale. “O Atlântico como espaço histórico”. Estudos Afro-Asiáticos, 26(2): 221-240, 2004.
Ver também THOMPSON, Estevam C. “O Atlântico Sul para além da miragem de um espaço homogêneo
(séculos XV-XIX)”. Temporalidades, 4(2): ago./dez.2012, p. 80-82.
207
Ver, por exemplo, GREENE, Jack P.; MORGAN, Philip D. Atlantic History: A Critical Appraisal. Nova
York: Oxford University Press, 2009.

82
Estudos sob esse viés vêm sendo alvo de críticas e debates, por vezes de modo
paradoxal. Russel-Wood, por exemplo, apontou com agudeza:

“As histórias de pendor nacionalista, juntamente com uma


historiografia fragmentada – maritimamente, geograficamente ou
cronologicamente – dos impérios ultramarinos europeus distraíram as
atenções do princípio básico de que os Estados europeus partilharam
objetivos relativamente aoestabelecimento de colonatos ultramarinos,
e do fato de que as diferenças entre estes objetivos residem mais
frequentemente no pormenor do que na substância (...)”208.

Essas considerações do historiador britânico podem ser lidas como um


chamamento à prática de uma história atlântica renovada, não obstante o fato de que seu
autor também assina o capítulo sobre o “atlântico português” na parte intitulada “Novos
Mundos Atlânticos”, contraponto dos “Velhos Mundos e o Atlântico” na coletânea
organizada por Greene e Morgan em 2009.
David Armitage sistematizou, em meados dos anos 2000, críticas substanciais àmaneira
como a história atlântica vinha sendo produzida. O autor relacionou alguns dosnovos
desafios colocados aos historiadores dispostos a enfrentar a problemática, e podemos
enumerar alguns deles. Essa abordagem lida com questões que transcendem asáreas de
investigação tradicionais, como as que se ocupam dos Estados-nações? Como contribuir
para a elaboração de uma história que, no momento de sua máxima expansão, abarca
quatro continentes ao longo de cinco séculos? A história atlântica não seria uma forma
mais aceitável de estudar a historia de impérios marítimos como o espanhol, oportuguês,
o francês, o britânico ou o holandês? Em poucas palavras, “o que faz da história
atlântica uma nova forma de aproximar-se de problemas reais, e não simplesmente
uma desculpa para a superficialidade ou uma defesa do imperialismo?”209 Sob qualquer
abordagem, verifica-se na historiografia sobre o Atlântico um privilégio das experiências
de homens das paragens do norte do oceano. Peter Woodreconhece isso, ao identificar
uma fronteira invisível criada pelos estudiosos da história atlântica nos Estados
Unidos,para os quais o Atlântico sul é uma região estrangeira210.

208
RUSSEL-WOOD, Anthony John R. "Padrões de colonização no império português, 1400-1800". In:
BETHENCOURT, Francisco e CURTO, Diogo Ramada Curto (dir.) A expansão marítima portuguesa,
1400-1800, Lisboa: Ed. 70, 2010, p. 200.
209
ARMITAGE, David. "Tres conceptos de historia atlântica". Revista de Occidente. Madri: vol. 281,
out.2004, p. 9.
210
WOOD, Peter. “From Atlantic History to a Continental Approach”. In: GREENE, Jack; MORGAN,
Philip, op. cit., p. 280.

83
Ainda que em perspectiva diversa, uma história atlântica como sinônimo de
história do Atlântico norte também está presente nas obras de Marcus Rediker e Peter
Linebaugh. Esses historiadores fizeram confluir a historiografia inglesa com a dosEstados
Unidos no mundo marítimo atlântico na Idade Moderna ao lidarem com temáticas
variadas: o processo de trabalho no mar, a formação do mercado de trabalhoassalariado
marítimo, a linguagem e a cultura, o espírito de amotinamento dosmarinheiros, a
pirataria como ameaça à acumulação capitalista, as péssimas condiçõesde trabalho, a
democracia eletiva e internacionalista e o ideal de liberdade nos navios 211. Sugestivas,
sobretudo pela inserção no campo da História Social, estas últimas análises do trânsito
marítimo no Atlântico norte por vezes parecem acrescentar maisuma divisão – a
hemisférica – às tradicionais divisões nacionais, coloniais oucontinentais. Tal afirmação
leva em conta, principalmente, o ideal de liberdade e oempenho de marinheiros
ingleses e estadunidenses em combater a tirania dos oficiais.
Desconfio que tal visão, instigante, ainda imponha limites a uma concepção ampliada da
história atlântica.

II. Pretendo ensaiar alguns passos para superar essas divisões, estimulando, aomesmo
tempo, o andamento de novas pesquisas. Para isso, retomo textos da crônica colonial e
diários de viajantes com o objetivo de destacar um aspecto da vida e do trabalho no mar,
enfocando tripulações e passageiros diante de um dos riscos manifestados de forma
recorrente nessas fontes, entre os séculos XVI e XVIII. Refiro- me à preservação da saúde,
sobretudo frente à dificuldade de abastecer as embarcações com provisões alimentares
adequadas e capazes de resistir ao tempo longo e aos climas antagônicos das viagens inter-
hemisféricas, muitas vezes estendidas para além do planejado em função de condições que
nem sempre cabiam nos cálculos.
Ao estudar os relatos de naufrágios seiscentistas reunidos na História Trágico-
Marítima , Paulo Miceli mencionou os perigos mais receados pelos mareantes: ficar sem
212

vento, incendiar-se, sofrer infiltração de água, chocar-se contra os baixios, encontrar-se com
inimigos e sofrer os efeitos da imperícia dos pilotos213. Conectada a esses riscos e

211
LINEBAUGH, Peter. “Todas as montanhas atlânticas estremeceram”. Revista Brasileira de História,
6: 7-46, set.1983; LINEBAUGH, & REDIKER, A hidra de muitas cabeças, op. cit.; REDIKER, Between
the Devil and the Deep Blue Sea, op. cit.; REDIKER, Villains of All Nations: Atlantic Pirates in the Golden
Age. Boston: Beacon Press, 2004.
212
PERES, Damião (ed.). História Trágico-Marítima. 6 v. Porto: Portucalense, 1942.
213
MICELI, Paulo. O ponto onde estamos: viagens e viajantes na história da expansão e da conquista
(Portugal, séculos XV e XVI). 2ª ed., Campinas: Ed. da Unicamp, 1997, p. 110.

84
temores, aparece a questão do abastecimento alimentar e das doenças decorrentes da má
ou pouca alimentação. Mesmo quando a viagem de longo curso era bem planejada, não se
podia prever quanto tempo duraria a falta de ventos, em especial na zona equatorial. De
forma similar, em uma embarcação bem fornida, os alimentosnão necessariamente eram
oferecidos de forma indistinta a todos os embarcados, tanto devido às divisões hierárquicas
a bordo – expressadas também nas dietas diferenciadas de oficiais e marinheiros comuns
– como pela ação dos inimigos ou piratas que poderiam saquear o navio e ainda deixá-lo à
deriva.
Nos navios em que Hans Staden e Jean de Léry atravessaram o Atlântico, os
tripulantes aproveitaram as oportunidades de saquear inimigos. Poderíamos imaginar que,
para o militar Staden, o saque a embarcações em alto mar fosse menos impressionante,
como ocorreu em 1547 na altura do Cabo Ghir, nas proximidades de Agadir, no Marrocos,
onde a nau por ele tripulada encontrou “muitos pescadores castelhanos, que nos relataram
a presença de naus nas proximidades da cidade”. Uma delas, propriedade de comerciantes
espanhóis, foi perseguida e capturada, tendo a tripulação conseguido escapar em um bote.
O despojo em açúcar, amêndoas, tâmaras, peles de cabra e goma arábica foi levado à Ilha
da Madeira, de onde o navio retomou seu curso original, em direção ao Brasil214.
Oriundo de outra vivência, o jovem sapateiro e pastor calvinista Léry também
relatou o saque de embarcações como praxe quando as circunstâncias assim o permitiam,
apesar das admoestações que pudessem enfrentar da parte dos menos acostumados à vida
no mar, como no caso do jovem religioso. No relato dele, o alvo foram “dois navios
mercantes ingleses de regresso da Espanha”, abordados pelos marinheiros do Grand
Roberge, parte da flotilha de três embarcações em que Léry deixara a Normandia em fins
de 1556. Pilharam os dois navios e “por pouco os não saquearam”:

“(...) uma vez que a ocasião se apresenta, que assim se pratica no mar
como na terra, pois quem tem armas e é mais forte domina e dita leis
aos mais fracos. Em verdade alegam os marinheiros, ao fazer com que
os navios mercantes arriem velas, que lhes cabe o direito de ser
supridos de víveres mediante pagamento, por se acharem deles
necessitados em vista [de] andarem muito tempo sem tomar porto.
Mas ainda sem essas intenções se conseguem pôr o pé a bordo dos
navios alheios não é para impedir que soçobrem que os descarregam
de tudo o que lhes parece bom e proveitoso.
214
STADEN, Hans (1ª ed.: 1557). A verdadeira história dos selvagens, nus e ferozes devoradores de
homens (1548-1555). Rio de Janeiro: Dantes, 1998, p. 21-22.

85
E se porventura alguém os adverte, como de fato fizemos, por assim
saquearem indiferentemente amigos e inimigos, respondem como
estribilho comum aos nossos soldados: que isso é de guerra e de praxe
e anda bem quem assim o pratica (...)”215.

Evidências indicam que navios de guerra ou de passageiros levavam provisões mais


substanciais e suas viagens eram objeto de um planejamento mais eficaz do que o geral das
embarcações mercantes. Uma das razões para isso era a otimização do espaço: em uma
embarcação mercante, qualquer área disponível servia para o acondicionamento de
mercadorias, bagagens ou privilégios dos oficiais, inclusive gado vivo.
Viagens científicas e/ou com razões de Estado podiam contar com embarcaçõese
aparelhos mais robustos e mantimentos mais fartos. Bons exemplos foram a
circunavegação de Alejandro Malaspina (1789 a 1794, que escreveu cartas ao médicoda
Armada espanhola para se informar sobre qual seria o melhor antiescorbútico e as outras
formas de prevenção da doença)216 ou aquela liderada pelos irmãos Bartholomé e Gonzalo
de Nodal no início do século XVII, armada com a intenção de encontrar – no âmbito do
conhecimento marítimo espanhol – outra passagem do Atlântico ao Pacífico além do já
conhecido Estreito de Magalhães. Concluída em Lisboa em fins de 1618 a construção das
duas caravelas de oitenta toneladas que cruzariam o oceano – a Nuestra Señora de Atocha
e a Nuestra Señora del Buen Suceso –, ambas zarparam de Sanlúcar de Barrameda em
meados do ano seguinte com farta munições, grande número de soldados e “com bastante
mantimento para dez meses”217.
A informação dos Nodal sobre os mantimentos soa inverossímil. Era improvável,
dadas as condições de conservação disponíveis naquela altura, que provisões alimentares
durassem tanto tempo. Nesta, como em quase todas as viagens marítimas de longo curso,
houve escalas de reabastecimento – ou, como no caso desta expedição, para conserto das
naus no Rio de Janeiro e consequente reforço da despensa. Como afirmou Miceli, mesmo
quando nenhum incidente ocorria, “a comida mal bastava para as necessidades

215
LÉRY, Jean de. Viagem à terra do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1961, p. 45-
46 (1ª ed.: 1578).
216
MALASPINA, Alejandro e BUSTAMANTE Y GUERRA, José. Viaje político científico alrededor del
mundo por las corbetas Descubierta y Atrevida al mando de los capitanes de navío (…) desde 1789 a 1794.
2ª ed., Madrid, Viuda e Hijos de Abienzo, 1885, p. 10-19.
217
NODAL, Bartholomé & Gonzalo Garcia de. Relacion del viage, que por orden de su Majestad, y acuerdo
de el real Consejo de Indias, hicieron los capitanes (...), hermanos, naturales de Pontevedra, al
descubrimiento del estrecho nuevo de San Vicente, que hoy es nombrado Maire, y Reconocimiento del de
Magallanes. 2ª ed., Cadiz: Don Manoel Espinosa de los Monteros, 1766, p. s/nº.

86
dos embarcados”218. No Portugal do século XVI, a função de aprovisionamento de comida
para as naus era atribuída aos Armazéns Reais. Miceli abordou a corrupção e as
dificuldades que a ação desse órgão criaram para o bom desempenho das expedições e,
muitas vezes, para a sobrevivência dos seus membros. Eram os funcionários dos Armazéns
os responsáveis pelo cálculo dos montantes necessários à ração diária de cerca de 400
gramas para cada tripulante, à base de biscoitos, arroz, peixe e carne secos ou salgados.
O Estado português manteve o órgão responsável pelo abastecimento de navios ao
longo do tempo, ainda que com variações terminológicas. Entre fins do século XVIII e o
início do século XIX, embora com uma armada sensivelmente reduzida em relação ao que
fora em outras épocas, Lisboa era um ponto de abastecimento importante para frotas
coloniais e estrangeiras, aprovisionadas pelo Armazém da Repartição dos Mantimentos da
Marinha e pelos Armazéns Reais de Guiné e Índia219, onde se podia conseguir arroz, azeite,
peixes, aguardente, biscoitos, galinhas, legumes, carnes emconserva e frescas e lenha para
as cozinhas dos embarcadiços – todos eles insumos comprados de produtores com quem
o Armazém mantinha contratos de fornecimento220.Os biscoitos ordinários eram a base da
alimentação maruja de diferentes nacionalidades e em distintas temporalidades; no caso
português, um funcionário real calculava um consumo da ordem de 4.200 quintais por ano
“pouco mais ou menos” (algo em torno de 250 toneladas) para o abastecimentos dos navios
que partiam de Lisboa em direção às diferentes partes dos domínios lusos221.
A corrupção referida nos armazéns reais como um problema para o abastecimento
alimentar dos marítimos no século XVI continuava na origem de queixas dos oficiais
obrigados a comprar ali suas provisões. Em meados de 1793, o escrivão do Armazém dos
Mantimentos, Sebastião José de Farias, informava seus superiores sobre o caso
protagonizado pelo capitão Daniel Thompson e dois funcionários da repartição. O capitão
questionava porque os pedidos de mantimentos para seu bergantim vinham

218
MICELI, Paulo, op. cit, p. 137. Ver também FRADA, João. “A alimentação a bordo das naus na época
moderna”. In: SOARES, Virgílio Meira et al. A Universidade e os descobrimentos. Lisboa: CNPCDP;
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993, pp. 229-235.
219
Nesse período, dependentes da Secretaria de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, assim como
"o despacho dos passaportes dos navios que saiam do porto de Lisboa e das ordens relacionadas aos navios
que chegavam (...)". MARTINS, Ana Canas Delgado. Governação e arquivos: D. João VI no Brasil.
Lisboa: IAN/TT, 2007, p. 5.
220
Ver, por exemplo, “Relação das despesas diárias que pelo Armazém da Repartição dos Mantimentos
se fez no mês de agosto [de 1788]” AHM, Caixa 110, Pasta 6: Comedorias, gêneros e rações (s/d e 1759-
1811), doc. 102, 26 set.1788.
221
Ibid., doc. 165, 21 out.1789, assinado por Januário Antônio Lopes da Silva.

87
sendo sucessivas vezes postergados, afirmando “que ele bem sabia o motivo, que era por
querer servir primeiro os seus afilhados, porque eles eram mais doces e que o punham a
ele sempre em último lugar”. Francisco Xavier de Assis, filho do comprador do Armazém,
negava: “ele não tinha afilhados, e que as embarcações se não podiam preparar todas no
mesmo dia”. Assis foi secundado pelo fiel do Armazém, Antônio de Lima Monteiro, com
o argumento de que “a seu tempo se lhe daria o seu mantimento, que lhe não havia de ficar
nada em terra”. Thompson insistia em estar sendo enganado e“atirou uma cutilada por
cima da mesa” em Monteiro: “a isto se seguiria maior desordem, se as pessoas que estavam
no mesmo armazém não acomodassem logo o dito Thompson”222.

III. Boas e fartas provisões na partida não significavam que a saúde dos homens do mar
estivesse garantida ao longo de toda a viagem. Doenças nutricionais, como adisenteria e,
sobretudo, o escorbuto, fizeram verdadeiras razias nas equipagens ao longo dos séculos,
até que os doutores europeus se dessem conta de que a causa deste último mal era uma
carência alimentar – de vitamina C, no caso. Mas a própria existência das vitaminas e de
suas propriedades só viriam a ser descobertas nos primeiros anos do século XX223.
Evidentemente, não pretendo soar anacrônico. Vou recorrer, logo adiante, a relatos de
experiências de homens não eruditos sobre o consumo de frutas cítricas como modo de
prevenir o escorbuto, embora tais homens desconhecessem igualmenteas vitaminas e suas
virtudes. Saberes curativos, afinal, também se manifestam fora dos tratados e ambientes
médicos.
Escalas de abastecimento para prevenção ou cura de doenças como o escorbuto
acabaram se tornando uma necessidade nas viagens transoceânicas. Os relatos sobre isso
foram inúmeros e iniciaram-se nos Quinhentos, com ênfase na novidade representada
pelos vegetais desconhecidos dos europeus naquele período. Pigafetta foi um dos que
mencionaram os abacaxis de que se valeram abundantemente os navegadores – no caso
dele, no litoral de Pernambuco em 1520. Ele, como outros, ensaiaria a descrição de uma
fruta estranha valendo-se de referenciais familiares aos seus leitores: o abacaxi, em sua
aproximação, era “uma espécie de fruto parecido com a pinha, porém que é

222
Ofícios de Sebastião José de Farias a Fernando L. G. Lobo e deste a Martinho de Mello e Castro (Lisboa,
6 jun.1793). AHM, Caixa 110, Pasta 6: Comedorias, gêneros e rações (s/d e 1759-1811), docs. 237 e 238.
223
Cf. CARPENTER, Kenneth J. The History of Scurvy & Vitamin C. Cambridge; Nova York; Melburne:
University of Cambridge Press, 1988, p. 173-174.

88
extremamente doce e de gosto esquisito”224. Essa descrição poderia ser entendida como
uma de suas “rápidas observações de valor objetivo” em uma obra repleta de “material
legendário e fabuloso”225, pois a necessidade dos marujos em conseguir algo comestível
– não venenoso, portanto – em terra estranha talvez não devesse ser objeto de uma
descrição fabulosa e sim privilegiar o caráter funcional, ainda que o universo mental dos
homens do início do século XVI estivesse permeado pelo maravilhoso. Sérgio Buarque de
Holanda atentou para o “gosto pelo maravilhoso”, referindo-se aos doutores quinhentistas
que suspeitavam que “para curas miraculosas, se impõem terapêuticas raras e exóticas”,
visão que extrapolava a categoria dos curadores e que se fazia sentir também entre a dos
navegadores:

“O espetáculo de uma paisagem diferente, em um mundo


diferente, onde o próprio regime das estações não obedece ao
almanaque, deveria sugerir aos espíritos curiosos um prodigioso
laboratório de símplices (...). Assim é que, na mandioca, vinham
buscar o honesto pão de trigo, no pinhão da araucária, a castanha
europeia; no abati, o milho, milho alvo do reino; na própria
carnede tamanduá, a de vaca (...); na jabuticaba, a uva ferral ou a
ginja... Mas, às vezes, interrompia-se o cortejo das visões
familiares. E então era preciso acreditar no milagre, promessa de
outros milagres”226.

A literatura histórica recuperou descrições de escorbuto entre embarcadiçosdesde


pelo menos fins do século XV. Holanda mencionou casos da doença entre a equipagem
de Vasco da Gama e o consumo de frutas cítricas como meio de cura na escala de
Moçambique e na chegada à Índia. Com a esquadra de Cabral não foi diferente: ao
aportarem na Índia, os marinheiros buscaram avidamente limões e laranjas, bem como
carne fresca de aves227.
Em trabalho anterior, tratei mais longamente da questão do escorbuto entre os
homens do mar, particularmente no tráfico de africanos228. Ao enfatizar a antiguidade das
descrições da doença – em 1498 com Vasco da Gama, em 1500 na esquadracabralina, em
1536 na expedição de Jacques Cartier em busca da tão almejada passagem noroeste,

224
PIGAFETTA, Antônio. A primeira viagem ao redor do mundo (1ª ed.: 1525). 2ª ed., Porto Alegre:
L&PM, 1986, p. 57.
225
FONSECA, Pedro. “Primeiros encontros com a antropofagia ameríndia: de Colombo a Pigafetta”.
Revista Iberoamericana, 61 (170-171): jan./jun.1995, p. 71.
226
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e fronteiras. 2ª ed., Rio de Janeiro: José Olympio, 1975, p.
94-95.
227
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização
do Brasil. 3ª ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional; Secretaria de Estado da Cultura, 1977, p. 255-257.
228
RODRIGUES, De costa a costa, em especial no capítulo 8 (Saúde e artes de curar), que em parte retomo
aqui.

89
em 1593 pela pena de Richard Hawkins229, em 1599 pelo relato de Oliver van Noort230,
apenas para ficar em alguns exemplos mais antigos –, quero reforçar a discrepância entre
os conhecimentos empíricos dos marinheiros e o dos oficiais marítimos e doutores
médicos, estes últimos relutantes em aceitar essa experiênciacomo base para a construção
de conhecimentos.
Certos capitães ingleses do tráfico de escravos entre a África e o Caribe encaravam
como sobrenatural a recuperação dos doentes de escorbuto pelo consumo de frutas
cítricas. Richard Sheridan alude alguns desses capitães, que se recusavam a fazer uma
parada de refresco na Jamaica a fim de garantir a sobrevivência de um lote de africanos
escorbúticos. Na opinião deles, os cirurgiões que exigiam esse refresco revigorante tinham
maquinações com o demônio, o que explicava a cura231. Nas ilhas caribenhas era possível
curar enfermos com frutas tropicais vitaminadas, mas o que os senhores de escravos locais
pleiteavam junto à Coroa inglesa era uma racionalidade alimentícia que, em ao menos um
caso, tornou-se o mote de uma viagem afinal fracassada. Em 1788, devido a um famoso
motim, o navio inglês Bounty acabou não cumprindo sua missão de ir ao Taiti apanhar
mudas de fruta-pão para levá-las às Índias Ocidentais, a fim de compor uma alimentação
barata para os escravos, atendendo a uma demanda de senhores absenteísta que viviam em
Londres. William Dampier, no final doséculo XVII, e James Cook, na década de 1770, já
haviam relatado as qualidades dessa fruta calórica, mas não podiam supor que ela também
fosse uma importante fonte de vitamina C e não relacionavam suas propriedades com a
prevenção ou cura do escorbuto. Na viagem do Bounty, não se tratava de aumentar os
conhecimentos, como fizeram “todas as viagens anteriores aos mares do Sul”, mas sim
“tirar algum benefício prático das descobertas que já havim sido feitas, e nenhum foi
considerado mais provável para realizar esse benefício que a fruta-pão”. Cozida, ela

“torna-se suave, não como uma batata cozida; não tão farinácea como
uma batata de boa qualidade, mas mais do que as do tipo médias.
Grande parte deste fruto é colhido antes de amadurecer, e emprega-se
um processo para fazê-la passar pelos dois estados de fermentação, a
sacarina e a acética, no último dos quais é moldado em bolas,
chamadas mahie. Os nativos raramente fazem uma refeição sem

229
CARPENTER, Keneth, op. cit., p. 16-23; NIXON, J. A. “The East India Company and the Control of
Scurvy”. Proceedings of the Royal Society of Medicine, 31(3): jan.1938, p. 195.
230
Em cuja expedição vários doentes de escorbuto foram levados à ilha de Santa Clara, no Brasil. Alguns
morreram e outros consumiram “umas ameixas ácidas, que nos ajudaram muito”, cf. ALVAREZ, Pablo
(ed.). Chile a la vista. Santiago: Dibam, 1999, p. 43.
231
SHERIDAN, Richard B. Doctors and slaves: a medical and demographic history of slavery in the British
West Indies, 1680-1834. Nova York, 1985, p. 114.

90
esta pasta azeda. A água salgada é o molho universal, sem a qual não
se faz nenhuma refeição [em geral, comia- se a fruta com peixe] (...)”232.

Na obra de um médico francês traduzida em Portugal em fins do século XVIII pelo


cirurgião da Armada lusa Bernardo José de Carvalho233, o escorbuto era relacionado às
longas permanências no oceano, mas suas causas eram incertas. Havia quem defendesse
que a causa residia no fato dos marinheiros fumarem ou mascarem tabaco, perdendo, com
isso, grande quantidade de saliva, “humor tão necessário para fazer uma boa digestão”234.
Quase na mesma data, John Barrow mencionou o caso de cinco europeus que trabalharam
em uma ilha do Índico por cinco meses, durante os quais viveram na “apreensão constante
do escorbuto fazer sua aparição, pela falta de alguns vegetais para corrigir os humores que
supostamente uma dieta oleosa e repleta depeixes causaria”235. O “bispo-nababo-diplomata
e guerreiro” António José de Noronha, goês de nascimento mas experimentado nas
viagens transoceânicas no terceiro quartel do século XVIII, queixava-se da restrição
alimentar depois de meses em um navio da Carreira da Índia, deixando os homens a bordo
“expostos a comer carne salgada e algumas laranjas do Brasil [que] restavam, mas já secas
sem muito sumo, [que] sempre seriam em ordem a cortar-se o escorbuto (...)”.236
Essas evidências ganham relevo pela ausência de diálogo com as experiências dos
marinheiros registradas nas fontes dos séculos anteriores. O narrador da viagem de Vasco
da Gama, por exemplo, atribuía a cura à misericórdia divina, e não ao sumo dos limões
moçambicanos, sobre o que Holanda argutamente observou: “a circunstância de desejarem
os enfermos aquelas frutas, e a observação de que ‘não [a] aproveitaram’

232
BARROW, John. The Eventful History of the Mutiny and Piratical Seizure of H. M. S. Bounty: Its Cause
and Consequences. Londres: John Murray, 1831, p. 22 e 18. Ver também ALEXANDERT, Caroline. O
motim no Bounty: a história trágica de um confronto em alto-mar. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
233
Sobre quem Innocencio Francisco da Silva afirma ignorar “quaisquer outras particularidades de sua
pessoa”, cf. Dicionário bibliográfico português, t. VIII, p. 395. Lisboa: Imprensa Nacional, 1867.
234
MAURAN, G. Aviso à gente do mar sobre a sua saúde, obra necessária aos cirurgiões de navios e em
geral a todos os marinheiros que andam embarcados em navios, aonde não há cirurgiões. Lisboa: Tip.
de João Antônio da Silva, 1794, p. 79.
235
BARROW, John. A Voyage to Cochinchina in the Years 1792 and 1793, Containing a General View of
the Valuable Productions and the Political Important of this Flourishing Kingdom, and also of such
European Settlements as Were Visited on the Voyage. Londres: T. Cadell & W. Davies, 1806, p. 156.
236
NORONHA, António José de. "Diário dos sucessos da viagem que fez do Reino de Portugal para [a]
cidade [de] Goa, Dom (...), Bispo de Halicarnasso, principiada aos 21 de abril de 1773". In: RADULET,
Carmen M. (ed. e int.). Obras completas de D. António José de Noronha, v. 2. Lisboa: Fundação Oriente,
1995, p. 49, anotação em 24 de outubro de 1773. Os qualificativos foram mencionados a partir da Introdução
à obra, p. XXXII, na qual ressalta-se o conhecimento ao mesmo tempo ocidental e oriental do autor do
Diário.

91
dessa vez [em Melinde, costa oriental da África], são indícios de que já seria conhecido dos
marinheiros o valor antiescorbútico das laranjas”237, fosse em razão da experiência da
viagem de ida na costa de Moçambique ou da troca de informações com outros pilotos no
Índico:

“Nos séculos seguintes, o vínculo entre a ocorrência do escorbuto e as


propriedades curativas das frutas cítricas jamais foi esquecido, ao
menos no universo da medicina popular. Há notícias de que os
portugueses eventualmente abasteceram suas boticas na África com
‘xarope de sumo de limões’, empregado ‘contra a corrupção dos
humores e demais enfermidades em que se necessita moderar o
rápido movimento dos espíritos, sangue, linfas e humores’. O
emprego genérico desse medicamento não parece indicar seu uso
como antiescorbútico, enquanto outros componentes das boticas
coloniais eram mencionados como tal: ‘isso demonstra que a medicina
oficial não tinha esse remédio na devida conta’, embora os marinheiros
reconhecessem seu valor. Isso talvez explique sua existência entre os
medicamentos disponíveis numa colônia à qual só se chegava depois
de uma longa e difícil viagem marítima”238.

A prevenção do escorbuto não era questão de medicamento, mas sim de


alimentação adequada. Frente à hierarquia que se manifestava, dentre outras coisas, nas
diferenças alimentares da mesa dos oficiais em comparação com a dos marinheiros ou
soldados comuns, não era surpreendente que os últimos fossem mais acometidos pelo
escorbuto do que os primeiros. Nesse sentido – e isso importa sobremaneira ao historiador
– a doença era produzida socialmente.
Um documento entregue a Martinho de Melo e Castro pelo contador dos
Armazéns de Guiné, Índia e Armadas na década de 1790 explicita as dietas diferenciadas
a bordo conforme os graus de oficialato. À mesa dos oficiais deveriam sentar-se cadetes, o
cirurgião-mor, o auditor, o capitão, o comandante e capelão do navio. Comissários e
escrivães sentavam-se à parte, em uma mesa intermediária. Outrosoficiais menos graduados
também não se sentavam à mesa dos maiores, embora a comida deles devesse ser a mesma
– desde que o oficial de maior patente assim o determinasse ou eles tivessem dificuldade
em cozinhar (ou seja, encontrar um lugar no convés onde pudessem acender o fogo e
preparar sua própria refeição). Tudo isso valia para a Armada, repleta de interdições nos
moldes hierárquicos criados em terra e dali levados ao mar239. Mas em embarcações

237
HOLANDA, Visão do Paraíso, p. 255-256; MARQUES, José (intr.). Roteiro da primeira viagem de
Vasco da Gama à Índia. Porto: Faculdade de Letras, 1999, p. 116.
238
RODRIGUES, Jaime, op. cit., p. 261. Os trechos entre aspas na citação são de LIMA, Américo Pires de.
“Como se tratavam os portugueses em Moçambique, no primeiro quartel do século XVII”. Porto, Separata
dos Anais da Faculdade de Farmácia do Porto, v. III, 1941, p. 11-12.

92
mercantes também havia diferenças notáveis:

“Nos mais navios de transporte, pertence aos capitães municiarem a


sua equipagem, fazendo-se a cozinha da mesma separada da da tropa,
por ser diferente o mantimento com que são municiados, mas sempre
se deve praticar a fatura do mesmo mantimento para a dita equipagem
no mesmo fogão”240.

A prática ortodoxa do catolicismo também trazia interdições às dietas dos


embarcados: além da divisão entre oficiais e tripulantes comuns, havia os dias de carnee
os dias de peixe (Quaresma e outros dias santificados). O mesmo documento citado acima
informa como deveriam ser as mesas da oficialidade e da equipagem e das tropas. Quanto
aos primeiros:

“para os dias de carne - constará a mesa ao jantar de cinco pratos, a


saber: sopa, cozido, arroz e dois pratos e meio de guisado e assado, e
a sobremesa de frutas (verde e seca) e queijo. A ceia de galinha ou pato
com arroz e carneiro ou vitela guisada, com fruta, amêndoas e queijo.
Para os dias de peixe - bacalhau ou pescada com batatas, sopa de massa
e arroz e manteiga, ovos e um quinto prato da eleição do cozinheiro,
ou legumes. A ceia, peixe frito e ervas.
Será a mesa dos ditos oficiais municiada ao jantar e ceia de pão fresco
e vinho.
Todos os dias pela manhã se aprontará na mesa destinada para a
oficialidadechá, café ou chocolate, bolachas e manteiga”.

Quanto à tropa e à equipagem,

“para os dias de carne – constará a ração do jantar de legume, mas nos


dias em que se lhe der favas, se aumentará a quantidade do azeite,
proporcionando ao que se poupa na ceia, a qual deverá ser sempre
seis onças de arroz, meio arrátel de vaca salgada com toucinho,
proporcionado para o tempero.
Para os dias de peixe – legumes para o jantar, e para a ceia bacalhau e
arroz”241.

Legumes e frutas frescas eram capazes de prevenir o escorbuto, caso dietas como
as acima descritas fossem efetivamente aplicadas em larga escala. Mas tê-los frescos a bordo
era praticamente impossível no curso de uma longa viagem sem escalas. Note-se, ainda, a
ausência de frutas nas refeições dos marinheiros comuns. A alimentação a

239
Contidos, entre outros textos legais, no Regimento Provisional para o serviço e disciplina dasesquadras
e navios da Armada Real. Lisboa: Off. de Antônio Rodrigues Galvardo, 1796.
240
“Observações para os navios da Coroa, transporte e fretados”. AHM, Caixa 110, Pasta 6: Comedorias,
gêneros e rações (s/d e 1759-1811), docs. 249 e 250 (17 de setembro de 1793).
241
Ibid.

93
bordo, como observou Miceli em relação ao século XVI242, dependia da qualidade e
quantidade dos gêneros embarcados, da condição social, da conservação dos gêneros e da
duração das viagens. Se acrescentarmos as paradas de abastecimento no percurso como
condição da alimentação adequada, podemos observar que até o século XVIII essas
condições pouco haviam sido alteradas. Mas a incorporação de vegetais da América ao
consumo alimentar das equipagens trouxera novidades. As frutas cítricassão exemplo
disso, e a farinha de mandioca também, esta última principalmente em razão de sua
durabilidade. Tratarei dela adiante.
As diferenças na dieta de oficiais e homens comuns da equipagem, em navios
militares ou mercantes, era uma regra com consequências funestas para os comuns. Sinal
disso é a profusão de mortos por escorbuto contida no relato do soldado Ambrósio
Richshoffer, que partiu para Amsterdã em fins de 1628 a fim de tomar parte na expedição
da Companhia das Índias Ocidentais que atacaria Pernambuco. O soldado mencionou a
decisão dos capitães da frota em parar nas Canárias em 6 de agosto de 1629, “por se
acharem nos navios muitos tripulantes doentes e atacados de escorbuto, que é uma moléstia
maligna da qual morreram muitos (...)”243. Meses depois, ainda sem ter chegado ao seu
destino final, os oficiais ordenaram que se voltasse àquelas ilhas em busca de frutas frescas,
mandando distribuir três limões e uma laranja a cada soldado embarcado no final de
outubro daquele ano244. No Diário, sucedem-se as referências à morte de marinheiros, mas
raríssimas foram as de oficiais. Foi o caso de Peter Petersen, que faleceu repentinamente
de escorbuto, “conquanto no mais estivesse completamente são”. Sem deter saberes
médicos acadêmicos (ou melhor, por isso mesmo), Richshoffer atribuía a força da moléstia
à má qualidade da comida a bordo:

Esta ruim moléstia grassou, principalmente no nosso navio, com tal


intensidade que a poucos poupou. Foi causa disto estarem os nossos
víveres todos corrompidos, principalmente o biscoito (ou pão cozido
duas vezes) que tendo estado expostos ao ar, quando descarregamos o
navio em São Vicente [Cabo Verde], encheu-se de vermes, pequenos
besouros, e perdeu não só o sabor como a força nutritiva (...)”245.

A escala feita em Cabo Verde para calafetar um casco que fazia muita água fora
devastadora para a conservação dos alimentos e da saúde dos homens, na opinião do

242
MICELI, Paulo, op. cit, p. 140.
243
RICHSHOFFER, Ambrósio. Diário de um soldado da Companhia das Índias Ocidentais (1629-1632).
2ª ed., São Paulo: Ibrasa; Brasília, INL, 1978, p. 33.
244
Ibid., p. 42.
245
Ibid., p. 52.

94
soldado: “Nosso biscoito (...), com o ar que apanhou, encheu-se de pequenos vermes e
besouros vermelhos, conquanto antes fosse tão duro como o vidro e bastante saboroso”246.
Nos sete dias que se seguiram à partida de São Vicente, em 23 de janeiro de 1630,
morreram mais de duzentos homens e 1.200 estavam doentes num universo de
7.280 homens embarcados, entre marinheiros e soldados247.
O que a condição social, a disciplina de soldado e o fervor religioso de Richshoffer
talvez não lhe permitissem afirmar era que, além de péssima, a alimentação dos soldados
era pouca, e que a causa das doenças residia aí. Deus, na opinião dele, enviara claramente
seu castigo no episódio da morte do tambor Gerhard Joris em 27 de dezembro de 1629.
A cena foi narrada de forma dantesca:

“pouco antes de morrer [o homem] estava coberto de piolhos, que


quase o devoraram. Apesar de o meterem, inteiramente nu, dentro de
uma tina d’água do mar, esfregarem-lhe fora a bicharia com uma
vassoura e vestirem-lhe uma camisa limpa, logo encheu-se outra vez
deles, e não só inçou extraordinariamente como ficou cego. Nisto
percebemos claramente o castigo Divino, porque o mesmo tambor,
desde a sua mocidade, levousempre vida desregrada, maltratou seus
pais e, segundo afirmaram alguns, até os espancou”248.

Mas os oficiais também tinham sua parcela de culpa, embora o Diário sequer sugira
isso. Com a provável intenção de evitar deserções, as rações dos tripulantes nos primeiros
dias da viagem foram mais fartas. Mas, já em alto mar, a distribuição de víveres limitava-se
a “4 ½ libras de biscoito, ½ libra de manteiga [esta acabaria em 30de dezembro] e um
pouco de vinagre” por semana249. Para comer, os homens reuniam- se em grupos de oito
em torno de um fardo no convés, “sem termos toalhas e muito menos guardanapos”,
veleidades da mesa europeia que o autor do Diário não mencionaria mais daí por diante:

“Tínhamos por semana dois dias de carne e um de toucinho para o


jantar, junto com um prato redondo de favas, ½ libra para cada um;
isto era aos domingos, terças e quintas-feiras. Nos demais

246
Ibid., p. 43.
247
Ibid., p. 53 e 49, respectivamente.
248
Ibid., p. 50.
249
Ibid., p. 29. “Essa descrição, muito embora bastante parcial, contradiz a anterior de Simon Schama [O
desconforto da riqueza: a cultura holandesa na época do ouro. São Paulo, Cia. das Letras, 1992, p. 179],
que ressaltou a boa dieta em alto mar dos marinheiros que serviam aos Países Baixos. O fato é que
normalmente a alimentação transatlântica poderia ser complementada pela pesca durante a viagem”, cf.
NASCIMENTO, O desconforto da governabilidade, op. cit., p. 160. Sobre a pesca em alto mar como
provedora de complemento alimentar, ver o relato de Ricardo Fleckno (A Relation of Ten Years Travells
in Europe, Asia, Affrique, and America, c. 1655) em TAUNAY, Affonso de E. Visitantes do Brasil colonial:
séculos XVI-XVIII. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1933, p. 47.

95
dias davam-nos um prato de aveia mondada, ou cevada ou ervilhas, e
algumas vezes bacalhau, porém, detudo tão pouco que dois homens
com bom apetite teriam devorado as raçõesdos oito”.

A dieta era complementada por quatro queijos flamengos grandes, entregues a cada
um e “administrados” individualmente ao longo da viagem. No mais, a água servida era
pouca e fétida250. Nessas condições, entende-se bastante bem que Richshoffer sentisse falta
da ultima refeição feita na Holanda menos de dois mesesantes: pão, queijo, manteiga,
arenque fresco e cerveja, arrematados por um bom vinho francês trazido a bordo por alguns
compatriotas seus251.
Se em missões militares, o compromisso dos capitães com a saúde de seus
comandados se realizava em condições alimentares tão precárias, pode-se imaginar que
prisioneiros a bordo enfrentariam situações ainda mais adversas. La Flotte mencionou o
caso de dez soldados franceses “a quem a pobreza e o medo de uma longa prisão havia
levado a tomar partido da equipagem inglesa” na Guerra dos Sete Anos e que foram
recuperados pelo navio francês Saint Luc. Todavia, antes de conseguirem voltar à sua terra
natal, “o escorbuto levou dois terços deles”252.

IV. Fontes das preciosas vitaminas preventivas do escorbuto, os nutrientes das frutas e
legumes frescos faziam falta a bordo. Mas os marinheiros também sentiam os efeitos das
reduzidas calorias de suas rações. Para sanar isso, a farinha de mandioca americana traria
uma contribuição. Desde muito cedo os conquistadores e colonizadores atentaram para o
saber indígena no preparo desse alimento substancioso.
Um dos primeiros a mencionar esse saber indígena e as propriedades alimentícias
da mandioca foi Nicolas Barré, em 1555. Menção confusa, que misturou vegetal em espiga
(milho) com raiz (mandioca), sólido com líquido: “A terra [Guanabara] só produz milho,
que chamamos em nossa terra de trigo sarraceno, do qual eles [os indígenas] fazem vinho
com uma raiz que chamam Mandi’oc (...). Dela fazem farinha mole, que é tão boa quanto
pão (...)”253.

250
RICHSHOFFER, Ambrósio, op. cit., p. 29.
251
Ibid., p. 26.
252
LA FLOTTE, M. de. Essais historiques sur l’Inde precedes d’um journal de voyages et d’une description
Géographique de la Côte de Coromandel. Paris: Herissant, 1759, p. 77
253
“Cartas por N. D. de Villegagnon e textos correlatos por Nicolas Barré & Jean Crispin”. In: MOREIRA
NETO, Carlos de Araujo (coord.). Coleção Franceses no Brasil: séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro:
Fundação Darcy Ribeiro; Batel, 2009, v. I, parte II (Cartas de Nicolas Barré), p. 116. A primeira edição de
Copie de quelques letres sur la navigation du Chevalier de Villegaignon en Terres de

96
Logo em seguida, em 1556, foi Léry o autor de uma descrição mais alongada sobre
o preparo dessa farinha. Tarefa de mulheres indígenas, que a preparavam de modos
diferentes para atender a diferentes finalidades: uma mais dura e resistente ao tempo,
utilizada pelos homens nas expedições guerreiras; outra mais tenra e destinada ao
consumo imediato, que Léry comparou ao “miolo de pão branco ainda quente”, sendo
provavelmente nele que Holanda pensou ao se referir àqueles que vinham buscar o
honesto pão de trigo na mandioca. Léry não conheceu a araucária, mas comparou a raiz
do aipim à “castanha assada no borralho”254, enquanto Gândavo fez algo semelhante ao
afirmar que os bolos elaborados com farinha dessa raiz se “parecem no sabor que excedem
a pão fresco deste Reino”255.
A durabilidade da mandioca também chamou a atenção de Gândavo. Com algum
exagero, ele acreditava que os moradores de São Vicente mantinham a raiz no solo
conservada por vinte ou e trinta anos, descrevendo logo em seguida o método de
produção da “farinha de pau” dos dois tipos mencionados por Léry: de guerra e fresca256.
Mandioca, arroz e “outras infinidades de coisas salutíferas e de muito nutrimento
para a natureza humana” existentes no Brasil animavam o edenizante Brandônio no
Diálogo das grandezas do Brasil da virada dos séculos XVI e XVII, em formato de conversa
mantida com o curioso e pouco conhecedor das coisas da terra Alviano257. Brandônio
voltou ao assunto ao afirmar que a mandioca era o mantimento mais importante dos
brancos, índios e escravos da Guiné que viviam no Brasil, sendo chamado de farinha de
pau pelos portugueses. A curiosidade do reinol Alviano nos faz saber que a edenização de
seu interlocutor e as menções de autores como Léry e Gândavo eram objeto de uma leitura
um pouco diferente em Portugal: ali, “quando querem vituperar o Brasil, a principal coisa
que lhe opõem de mau é dizerem que nele se come farinha de pau”. Insistente,
Brandônio retrucava que a tal farinha era

l'Amérique, oultre l’AEquinocial, iusque soubz le tropique de Capricorne: cotênant sommairement les
fortunes encoures en ce voyage, avec les meurs & façons de vivre des sauvages du pais, enouyées par un
des gens duvictseigeur foi publicada em Paris por Martin Le Leune em 1557.
254
LÉRY, Jean de, op. cit., p. 103 e 104, respectivamente.
255
GÂNDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: Edusp, 1980, p. 13 (1ª ed.: Lisboa: Of. de Antônio Gonsalves, 1576).
256
Ibid., p. 13.
257
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes [atribuído a]. Diálogos das grandezas do Brasil. Salvador: Progresso,
1956, p. 16. Sobre a visão edenizante de Brandônio, ver SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de
Santa Cruz. São Paulo: Cia. das Letras, 1986, p. 40-41.

97
merecedora do segundo lugar dentre os mantimentos do mundo, logo depois do trigo,
ensinando, na sequência, o método de seu preparo258.
Barléus foi outro que, no século XVII, atentou para a importância da farinha de
mandioca no abastecimento alimentar das conquistas holandesas. Embora ele tenha
afirmado que essa farinha era comida dos indígenas, dos naturais ou dos roceiros menos
abastados (enquanto os mais ricos comiam o trigo importado da Europa), notou também
que “a soldadesca diminui já por baixa, já por morte” devido ao fornecimento insuficiente
de farinha259. Na falta dela, havia “açúcar, em lugar de pirão”, no dizer de Gonsalves de
Mello, para atestar a disseminação do consumo da mandioca que, em épocas de carestia,
era substituída pelo açúcar para evitar a fome. Se nos fiarmos no que outras evidências
indicam, o consumo da farinha de mandioca era alargado nos territórios holandeses da
América – como o mesmo historiador notou a respeito das renovadas obrigações legais
para que os senhores fizessem plantar mandioca nas épocasdo ano em que os cativos não
estavam envolvidos na colheita da cana260.
As informações dos cronistas se repetiam, e muito provavelmente circulavam entre
os colonos a partir de contatos diretos com os indígenas. Também é plausível que Léry
fosse a matriz dos demais, na medida em que sua Histoire “contou com sucesso notável e
imediato: cinco edições a partir de 1578 e ao menos outras dez, em francês e latim, até
1611 (...)”261. Porém, não temos uma medida precisa que informe como foi a circulação de
sua obra ou da de Gândavo pelo território da colônia. Quando aos sucessores, suas obras
nem foram impressas imediatamente após a escrita. Frei Vicente do Salvador, por exemplo,
tratou das distinções entre os tipos de farinha de mandioca e também a comparou à farinha
de trigo – seguiu, enfim, o mesmo itinerário descritivo de seus antecessores262. Todavia, sua
obra, embora escrita na Bahia em 1627, somente seria publicada no final do século XIX.
O Diálogo das grandezas do Brasil, composto em

258
BRANDÃO, Ambrósio F., op. cit., p. 86.
259
BARLEU, Gaspar. História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil e noutras
partes sob o governo do ilustríssimo João Maurício, conde de Nassau etc., ora Governador de Wesel,
Tenente-General de Cavalaria das Províncias-Unidas sob o Príncipe de Orange. (1ª ed.: Amsterdã:
Ioannes Blaeu, 1647). Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do Ministério da Educação, 1940, p. 23, 73 e 46- 47,
respectivamente.
260
MELLO, José Antônio Gonçalves de. Tempo dos flamengos. 3ª ed., Recife: FUNDAJ, Ed.
Massangana; Brasília, INL, 1987, p. 154-156.
261
SCHWARCZ, Lilia Moritz, O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas
franceses na corte de d. João. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, p. 34.
262
SALVADOR, Frei Vicente do. História do Brasil, 1500-1627. 7ª ed., Belo Horizonte: Itatiaia; São
Paulo: EDUSP, 1982, p. 11.

98
1618, de acordo com Capistrano de Abreu, somente teria uma edição integral nas
páginas da Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano entre 1883 e 1887.
Todos esses testemunhos reforçam a manutenção de um costume indígena
apropriado pelos colonos em terra. Sérgio Buarque de Holanda reforça isso, ao
argumentar que a farinha de mandioca não desalojou o milho na preferência dos paulistas
do século XVIII263.
Da constatação, pelos colonos, da existência de uma técnica de processamento do
vegetal ao seu uso utilitário como alimento pouco perecível e, portanto, adequado às longas
viagens – marítimas, inclusive – foi um passo. Nos séculos da colonização lusa, as frotas
que seguiam para o Reino se ressentiam quando escasseava a “farinha de guerra”,
certamente a mesma que os indígenas usavam em suas guerras desde muito tempo, como
se queixou o capitão Bernardo Ramires Esquivel em 1796, ao denunciar a

“falta e careza de víveres em que esta terra [Bahia] se acha (...). O


governador diz que deu agora todas as providências para prover os
navios de mantimentos e de tudo mais que precisarem, mas ao
presente não há farinha de guerra, não há carne, não há legumes, não
há arroz (...)”264.

No tráfico de africanos, a farinha de mandioca seria a responsável pela preservação


de muitas vidas de escravos e tripulantes. Não por acaso, as capitanias economicamente
mais importantes da colônia escravista manteriam vastas roças de mandioca em seus
territórios. O destino do produto, entre outros, era ser consumido nas embarcações
negreiras, já que era difícil consegui-la mesmo com a transmigração da planta para partes
da África. Autores como Alberto da Costa e Silva e Luiz Filipe de Alencastro são
convincentes quanto a isso. Para Silva, não foi apenas a planta (armazenada na terra ou sob
a forma de farinha) que atravessou o Atlântico da América para a África, mas também o
modo de confeccionar a farinha, feita até hoje pelos métodos criados pelos índios da
América do Sul265. Alencastro, por sua vez, atribui o sucesso dessa transferência alimentar
à ausência de pragas naturais da mandioca na África, cuja agricultura se expandiu do sul do
Saara ao sul de Moçambique e Angola, “sendo a mais importante fonte primária de caloria
da dieta dos africanos” assim como

263
“Mais de um viajante da primeira metade do século passado [XIX] ainda se refere à aversão constante
que tinham os velhos paulistas pela farinha de mandioca, considerada menos nutritiva, embora de mais fácil
digestão, do que a de milho”, embora os moradores das províncias do norte achassem o contrário.Cf.
Caminhos e fronteiras, p. 224.
264
AHM, Caixa 329, Pasta 7: Esquadras do Brasil (1776-1825), doc. 329. Bahia, a bordo da nau Príncipe
Real, 15 de fevereiro de 1796.
265
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: a África antes dos portugueses. 3ª ed., Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2006, p. 30 e 36.

99
era “o alimento básico de escravos, soldados, mareantes, barqueiros fluviais e todos os
outros intervenientes no sistema do Atlântico Sul” desde fins do século XVI:

“A penetração dos produtos americanos na dieta dos escravos, em


particular a farinha de mandioca, reduziu os custos de frete para os
portos do Brasil e de África e contribuiu para a adaptação dos africanos
à escravatura luso- brasileira.
Os produtos sul-americanos transplantados para África também
reforçaram os produtos agrícolas locais e promoveram o aumento das
incursões dos negreiros e caçadores de escravos. O acrescento do
milho e da farinha de mandioca à dieta das tropas jagas possibilitou
que estes grupos de caçadoresalargassem as suas áreas de captura. A
mandioca e o milho também foram cultivados por jesuítas e colonos
nas plantações de Angola, no segundo quartel do século XVII”266.

A correspondência dos governadores de Angola pedindo que os navios viessem do


Brasil carregados de farinha de mandioca e outros víveres para o torna viagem reforçam a
relevância do produto nas conexões imperiais lusas e, naquilo que mais interessa aqui, na
saúde alimentar dos mareantes. Também o confirmam as repetidas menções à presença
dessa farinha nos estoques alimentares dos navios negreiros apreendidos no Atlântico pelos
cruzeiros repressivos dos ingleses até meados do século XIX e a menção à farinha como
sinônimo de comida nos cânticos de negros carregadores, africanos em sua maioria, na
Salvador do mesmo período267.

Considerações finais

As questões referentes à dieta alimentar a bordo, abordadas em uma temporalidade


dilatada como a que recortei aqui, possibilita um diálogo importante com as temáticas da
história marítima. A utilização dos relatos de homens engajados nos trabalhos do mar a
partir de distintas inserções e origens – marinheiros, oficiais, militares e cientistas, falantes
de diferentes idiomas europeus – pode ajudar a encarar um dos principais desafios da
chamada história atlântica, ou seja, o foco excessivamente concentrado nos limites
imperiais, nacionais ou linguísticos.
Neste capítulo, a partir de uma discussão da problemática, propus um estudo das
formas de difusão (letradas, mas não só) do conhecimento dos trabalhadores do mar, para
usar o título de um dos romances de Victor Hugo. Esse conhecimento circulou no

266
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. “A rede econômica do mundo atlântico português”. In:
BETHENCOURT, Francisco; CURTO, Diogo Ramada (dir.). A expansão marítima portuguesa, 1400-
1800. Lisboa: Edições 70, 2010, p. 117-118 e 125, respectivamente.
267
REIS, João José. "A greve negra de 1857 na Bahia". Revista USP, 18, 1993, p. 12.

100
Atlântico e em outros mares ao longo dos séculos e, no recorte aqui proposto, vinculava-
se também às formas de preservação da saúde por meio da alimentação adequada. A
intenção quase nunca alcançada era, sobretudo, evitar que esses homens fossem
acometidos por doenças nutricionais, particularmente o escorbuto, e mantê-los vivos e
aptos ao trabalho nas circunstâncias quase sempre adversas da navegação de longa distância.
A persistência da doença até o século XIX indica que a prevenção escapava à lógica da
armação dos navios ou que simplesmente não obteve respostas no âmbito do
conhecimento médico europeu até esse período.
Inúmeros exemplos de trânsitos alimentares intercontinentais e de doenças
advindas da (má) nutrição podem ser dados e devem ser explorados. A temática tem
sido alvo do interesse dos historiadores desde pelo menos a década de 1970 e da edição
do estudo clássico de Alfred Crosby268, que frutificou em bibliografias produzidas em
diferentes línguas e sobre produtos variados, do tomate ao tabaco, do arroz às aguardentes,
sem esquecer do milho. A opção, aqui, foi focar em um único produto, a mandioca, e há
bons motivos para isso.
Primeiramente, porque o uso da mandioca como alimento humano precede a
viagem de Colombo ao Novo Mundo, e esta constatação merece um olhar histórico
acurado. Em seguida, porque a apropriação do saber indígena sobre a manipulação
desse alimento foi um ganho imenso para os colonizadores europeus. De um lado, porque
garantiu nutrientes preciosos em suas viagens de longa distância à América, África e Ásia.
De outro, porque a farinha de mandioca se mostraria um viabilizador do tráfico de escravos
entre a África e a América, uma vez que conquistou o gosto e espaço na dieta de
marinheiros e escravos em ambos os lados do Atlântico e na travessia desse oceano, como
tão bem demonstrou Luiz Filipe de Alencastro269. Por fim, pelo fato de que o uso da farinha
de mandioca na dieta de bordo incorporou os indígenas da América aos circuitos
comerciais e dos saberes em trânsito pelo Atlântico, ainda que poucos deles compusessem
as equipagens de longa distância.
Muito mais ainda precisa ser feito para que possamos conhecer bem a
complexidade da história da alimentação no Atlântico entre os séculos XVI e XIX. Este
capítulo pretendeu contribuir e, ao mesmo tempo, estimular o gosto pelo tema do
268
CROSBY Jr., Alfred W. The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492.
Westport. Greenwood, 1972. Para um inventário do trânsito alimentar transatlântico ver, entre outros,
CARNEY, Judith e MARÍN, Rosa Acevedo Marín. Plantas de la diáspora africana en la botánica americana
de la fase colonial. Memoria & Sociedad, n. 15, p. 8-23, nov.2003.
269
Além do texto já mencionado, ver ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O trato dos viventes: formação do
Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

101
consumo dos elementos incorporados às dietas marítimas, vindos de diferentes partes do
mundo, bem como para as formas da circulação oral e escrita de conhecimentos eruditose
populares sobre as propriedades dos alimentos, atravessando as barreiras linguísticas, as
políticas estatais de abastecimento das embarcações e os eventuais enganos ou
desconhecimentos dos cientistas de outros tempos acerca das doenças que afligiram os
homens do mar por tanto tempo.

102
CAPÍTULO 3

ESCRAVOS, SENHORES E VIDA MARÍTIMA, SÉCULOS XVIII


E XIX270

“Ocorre (...) que não sendo os escravos coisas, como oiro, prata e outras
inanimadas, não estão como elas sujeitas a só receberem em qualquer ocasião e
em quaisquer circunstâncias o impulso que seu dono lhes queira dar (...)”271.

A experiência marítima dos africanos na África

Al-Umari, autor árabe do século XIV, escreveu um relato dando conta do


malogrado projeto de um sultão do Mali de atravessar o Atlântico. Em peregrinação a
Meca, Mansa Musa – sucessor do soberano em questão – passou uma temporada no Egito
e saciou a curiosidade do emir governante do Cairo sobre o poderoso império africano
ocidental. Contou que o rei que o antecedera acreditava ser possível cruzar o oceano e,
para isso, providenciou a armação de duzentas embarcações e instruiu o comandante da
frota: “Não regresse senão depois de ter alcançado a outra margem do oceano ou caso se
esgotem as provisões e a água”. Muito tempo se passou até que uma única embarcação
voltou ao litoral do império malinês, que naquela altura incorporara Gana e chegava à beira
mar. Seu capitão explicou que haviam navegado “até que surgiu no meio do oceano um
rio com uma corrente poderosa” no qual todos, exceto o narrador, entraram e
desapareceram. Inconformado, o sultão preparou dois mil navios com homens, água e

270
Reúno aqui dois textos que publiquei separadamente: “Escravos, senhores e vida marítima no Atlântico:
Portugal, África e América portuguesa, c.1760-c.1825”. Almanack, 5: 2013, 145-177 e “Marinheiros forros
e escravos em Portugal e na América portuguesa (c.1760-c.1825)”. Revista deHistória Comparada, 7(1):
2013, 9-35. Esses textos e a versão agora apresentada ampliam e retomam escritos anteriores. Ver, de minha
autoria, “Cruzar oceanos em busca da liberdade: escravos e marinheiros-escravos no Atlântico”. In:
CHAVES, Cláudia Maria das Graças e SILVEIRA, Marco Antônio (orgs.). Território, conflito e
identidade. Belo Horizonte; Brasília: Argumentum; CAPES, 2007,
p. 49-61; “Para uma história da experiência africana no mundo do trabalho atlântico (séculos XVIII e XIX)”.
In: SANTOS, Flávio Gonçalves dos (org.). Portos e cidades: movimentos portuários, Atlântico e diáspora
africana. Ilhéus: Ed. da UESC, 2011, p. 217-233; “Africanos como tripulantes no Atlântico, séculos XVIII
e XIX: historiografia e novas evidências”. In: PAIVA, Eduardo França e SANTOS, Vanicléia Silva (orgs.).
África e Brasil no mundo moderno. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: PPGH-UFMG, 2012, p. 207-
220 e “Mariners-slavers and slave ships in Atlantic, 18th and 19th centuries: the perspective of captives and
the slaveholders logic”. Africana Studia, 18 (1): 2012, 205-222. Versões bastante simplificadas deste texto
foram apresentadas no The Eleventh International Congress of the Brazilian Studies Association na
University of Illinois em Champaign (EUA) em setembro de 2012 e em uma conferência no Centro de
Estudos Africanos da Universidade do Porto (Portugal) em dezembrode 2013.
271
“Sobre a pretensão de alguns emigrados do Brasil dirigida a obstarem a liberdade dos seus escravos.
Sobre a liberdade dos escravos que emigraram do Brasil em companhia de seus donos”. ANTT,
Desembargo do Paço (Corte, Estremadura e Ilhas), Maço 2145, doc. 91, despacho do juiz João de Carvalho
Martins da Silva Ferrão em 3 de junho de 1825.

103
provisões e os fez partir sob seu próprio comando. “Foi a última vez que o vimos, e foi
assim que me tornei rei”272, teria dito Musa ao emir egípcio.
Esse breve relato pode ser lido por diferentes vieses. Primeiramente, é uma
evidência do poder político e da força econômica do império do Mali naquela época,
expressos no desejo do sultão em atravessar o mar como sinal de glória, envidando para
isso todos os esforços – ainda que os tamanhos das frotas pareçam bastante exagerados.
Após notar isso, alguém pode esboçar um sorriso anacrônico, considerando que um
reino africano jamais conseguiria levar a cabo uma empreitada dessa monta. Mas a
verossimilhança da menção à corrente poderosa como um rio caudaloso no meio do
oceano indica o acúmulo de alguma experiência na navegação marítima de longa distância.
Sabemos que o Atlântico possui correntes que afetam o rumo dos navios à vela e que nele
também deságua um rio caudaloso (o Amazonas), cuja corrente se faz sentir muitos
quilômetros além da foz. O relato de Mansa Musa também nos diz algo sobre sua ambição
e sobre a forma como ele chegou ao poder após o desaparecimentode seu antecessor no
mar, o que talvez fosse motivo suficiente para que não se levasse adiante o projeto de
travessia do Atlântico, se é que ele de fato foi posto em práticapelos soberanos malineses
no auge de seu poder imperial.
Se razões humanas e físicas ajudam a explicar o desinteresse das populações
costeiras africanas pelas expedições marítimas273, também é certo que os deslocamentos
marítimos integravam, em alguma medida, as identidades e habilidades dos africanos que
viviam no litoral desde um passado bastante remoto.
Ao tratar das frotas de comércio na África, Jan Vansina apontou sinais de
experiência na navegação marítima entre povos do continente. Um deles é a dispersão
da estatuária de madeira policromada ao longo do golfo da Guiné, do território dos Yorubá
até Loango, indicando a “ampla difusão dessas técnicas transmitidas de lugarem lugar
por via marítima”. Vansina não supôs que essa dispersão resultasse de trocas comerciais
feitas por via terrestre, provavelmente por encontrar distinções estilísticas importantes na
estatuária, embora elaboradas a partir da mesma técnica e materiais. Ele argumenta ainda
que a experiência dos africanos no Atlântico é referendada pelo fato de que, quando da
chegada dos portugueses, pescadores povoavam toda a costa atlântica subsaariana. Ao

272
AL-UMARI, “Itinerário dos olhares sobre os reinos das metrópoles”. Reproduzido em SILVA, Alberto
da Costa e (org. e notas). Imagens da África, da Antiguidade ao século XIX. São Paulo: Cia. das Letras,
2012, p. 48.
273
DIARRA, S. “Geografia histórica: aspectos físicos”. In: KI‑ZERBO, Joseph. História geral da África,
v. I: Metodologia e pré-história da África. 2ª ed. Brasília: UNESCO, 2010, p. 351.

104
longo do litoral atlântico africano, do Senegal a Angola, asembarcações de pesca eram
feitas pelos povos costeiros usando técnicas em comum274.

Três portugueses representados em latão, Benin,


séculos XVI/XVII. Na maneira de construir
categorias entre os habitantes dessa parte da África
Ocidental, as coisas poderiam vir da terra, do ar ou
do mar. Os portugueses vinham do mar, assim como
as grandes embarcações à vela e os peixes.
Reproduzido de Arte da África: obras-primas do
Museu Etnológico de Berlim. CCBB, 2004, p. 113.

Outro sinal indicado por Vansina é a presença ancestral dos bubi em Fernando Pó
– uma migração que requeria habilidades marítimas, já que a ilha, atualmentechamada de
Bioko, situa-se a uns cinquenta quilômetros da costa. A fixação dos bubi ali pode ser
anterior ao ano 1000 (na hipótese de Jan Vansina) e talvez tenha se dado entre3 mil e 5
mil anos antes dos primeiros navegadores portugueses terem chegado àquelas paragens (na
hipótese do missionário católico espanhol Antônio Aymemí). Pressionadospelos povos do
interior do continente, é certo que eles já haviam emigrado quando os portugueses
chegaram a Fernando Pó, em 1470275. Mesmo tendo alguma experiência marítima, os bubi
não se empregaram como marinheiros nem auxiliaram traficantes europeus, como os

274
VANSINA, Jan. “A África equatorial e Angola: as migrações e o surgimento dos primeiros Estados”.
In: NIANE, Djubril Tamsir (ed.). História geral da África, v. IV: África do século XII ao XVI. 2ª ed.,
Brasília: UNESCO, 2010. p. 635-636; VENANCIO, Renato Pinto. Cativos do Reino: a circulação dos
escravos entre Portugal e Brasil, séculos 18 e 19. São Paulo: Alameda; Belo Horizonte, FAPEMIG,
2012, p. 148.
275
AYMEMÍ, Antônio, Los Bubis en Fernando Poo. Madri: Galo Saez, 1942, cap. 1. Ver também
THOMAS, Hugh. The Slave Trade: The History of Atlantic Slave Trade (1440-1870). Londres: Picador,
1997, p. 73; VANSINA, op. cit.; SUNDIATA, I. K. “A Note on an Abortive Slave Trade: Fernando Po,
1778-1781”. Bulletin de l'Institut Fondamental d'Afrique Noire, serie B, 35(4): 1973, p. 794; MATOS,
Compêndio histórico das possessões portuguesas na África, op. cit., p. 212; THOMPSON, Estevam, “O
Atlântico Sul para além da miragem de um espaço homogêneo”, op. cit., p. 91-92.

105
espanhóis que ocuparam a ilha no século XVIII e nela projetaram uma grande base do
tráfico de escravos para a América. O projeto malogrou pordiversas razões, entre elas a
guerra anglo-espanhola de 1778, a concorrência de traficantes de outras paragens e a
relutância dos que ali viviam em estabelecer comércio com estrangeiros. O mercador
holandês Willem Bosman descreveu os ilhéus em fins da década de 1680 como gente
selvagem e cruel276, uma opinião compartilhada pelos outros europeus que ali tentaram se
estabelecer. Ibrahim Sundiata explicou que o contato dos espanhóis com os bubi foi
limitado e pouco amistoso:

“a estrutura da sociedade bubi não era propícia ao comércio.


Não existia ali uma reserva de escravos capaz de serem vendidos
a estrangeiros para exportação, nem havia uma autoridade
política capaz de fazer voltar os recursos da ilha para o comércio
com os europeus. A demanda por produtos de fora também não
era grande (...). Os bubi resistiram fechando os contatos
comerciais com estranhos até os primeiros anos do século XX
(...)”277.

A ausência de envolvimento de povos costeiros com a navegação de longo curso


não foi regra imutável e ocorreu em outras paragens e em outros tempos. Os kru da Libéria,
Gana e Costa do Marfim atuais, por exemplo, tiveram historicamente uma atitude
ambivalente. Embora se recusassem a vender escravos, forneciam suprimentos aos
traficantes e ofereciam trabalhadores especializados aos comerciantes europeus para ajudá-
los a vencer correntes, recifes e pedras278. O relato de Theodore Canot em meadosdo século
XIX dá uma ideia não só das habilidades marítimas desse povo como tambémda percepção
política deles diante do jogo das potências ocidentais envolvidas no tráficode escravos e de
como esse mesmo jogo potencializou o papel desempenhado pelos kru na viabilização dos
negócios negreiros na África Ocidental. Depois de descrever as características geográficas
da área onde instalou seu barracão – uma praia exposta à fúria das ondas atlânticas – Canot
afirma que qualquer desembarque ali seria inviável senão fossem os destros kroomen e
suas canoas escavadas a partir do tronco de umaárvore com extremidades em forma de
cunha, que rompiam as ondas. Esses barqueiros especializados mantinham o domínio
sobre o comércio e o transporte praiano ao longo

276
BOSMAN, Willem. A New and Accurate Description of the Coast of Guinea. Londres: J. Knapton, A.
Fell, R. Smith, D. Midwinter, W. Hawns, W. David, G. Strahan, B. Lintgtt, J. Round and J. Wale, 1705,
p. 399.
277
SUNDIATA, “A Note on an Abortive Slave Trade”, op. cit., p. 803-804. Retomo aqui o que aventei
em RODRIGUES, Jaime. “A rede miúda do tráfico: os pumbeiros e o comércio de escravos em Angola no
final do século XVIII”. Historia & Perspectivas, 23: 2000, 67-83 e De costa a costa, op. cit., p. 97.
278
McGOWAN, Winston. “African Resistance to the Atlantic Slave Trade in West Africa”. Slavery &
Abolition, 11(1): maio 1990, p. 9; RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 188.

106
de pelo menos 700 milhas no litoral da África Ocidental, onde barcos europeus ou yankees
não podiam atracar em razão das fortes ondas. Sem a habilidade e ousadia dos kru não
havia como conseguir escravos naquela região, especialmente depois que os cruzadores
britânicos, franceses e norte-americanos dificultaram o tráfico em todos os cantos da costa
oeste e obrigaram os traficantes a esperar em ancoradouros em mar aberto279.
Os homens desse povo, designado como kroomen pelos ingleses a partir do século
XVIII, eram elogiados como hábeis navegadores, desenvolvendo o kru pidgin english,
língua de marinheiros e migrantes das colônias britânicas na África Ocidental que ainda
sobrevive de forma limitada280. Desde muito antes disso, os portugueses valiam-se dos
conhecimentos deles sobre navegação, empregando-os nas viagens transoceânicas.
Trabalhando em navios europeus, os kru foram dar em várias partes das costas africanas e
americanas, sobretudo as caribenhas, onde marinheiros guitarristas desse povo atuaram na
conformação de novas musicalidades. Junto com marinheiros europeus, os africanos
engajados na navegação formaram, de acordo com Julius Scott, um “segmento visível no
submundo caribenho” de fins do século XVIII, cuja conduta era difícil de regulamentar e
motivava queixas constantes dos administradores coloniais ingleses e franceses281. Em
meados do século XIX, homens kru viviam na babel linguística e étnica que era Serra Leoa,
exibindo suas tatuagens faciais e suas habilidades como marinheiros e canoeiros,
“portanto peça importante no transporte de cativos das praias da costa e dos rios

279
MAYER, Brantz. Captain Canot, or Twenty Years of an African Slaver (1ª ed.: Nova York: D. Appleton
& Co.; Londres, Little Britain, 1854). Project Gutenberg's, 2007. Disponível em
http://www.gutenberg.org/files/23034/23034-h/23034-h.htm, p. 345-346.
280
Cf. BROOKS, George E. The Kru Mariner in the Nineteenth Century: An Historical Compendium.
Newark: Liberian Studies Association in America, 1972; MARTIN, Jane. “Krumen ‘Down the Coast’:
Liberian Migrants on the West African Coast in the 19th and Early 20th Centuries”. The International
Journal of African Studies, 18(3): 1985, p. 401-423; BREITBORDE, Lawrence B. “City, Countryside and
Kru Ethnicity”. Africa: 61(2): 1991 186-201; SCHMIDT, Cynthia E. “Kru mariners and migrants of the
West African coast”. In: STONE, Ruth M. (ed.). Garland encyclopedia of world music, v. 10: World’s
Music: general perspectives and reference tools. Nova York/Londres: Routledge, 2002, p. 370-382;
SANTOS, Elaine Ribeiro S. dos Santos. “Nas engrenagens do tráfico: grupos canoeiros e sua atuação nos
portos do Golfo do Benin”. Anais do XIX Encontro Regional de História da ANPUH (Poder, violência e
exclusão), 8 a 12 de setembro de 2008, p. 11-12 (CD-Rom).
281
SCOTT, Julius Sherrard. The Common Wind: Afro-American Currents in the Age of the Haitian
Revolution. Londres; Nova York: Verso, 2018, p. 60-63. Ver também BURNS, James. “The West is Cold’:
Experiences of Ghanaian Performers in England and the United States”. In: OKPEWHO, Isidore e
NZAGWU, Nkiru (eds.). The New African Diaspora. Bloomington: Indiana University Press, 2009;
PIZARRO, Errol L. Montes. “Influencias musicales alrededor de la diáspora africana: más allá de la
metáfora de raíz”. Cuadernos de Investigación del Instituto de Investigaciones Interdisciplinarias de la
Universidad de Puerto Rico en Cayey, nº 4: p. 5 e 38-39, 2010.

107
interiores para os navios negreiros”282. Além deles,os fante da atual Gana também eram
reconhecidos por sua experiência marítima e engajamento em navios negreiros ingleses283.
O fenômeno não se restringiu à África Ocidental. De forma similar, os cabinda
eram empregados pelos portugueses nos navios de cabotagem ou como “hábeis remadores
(...) contratados para fazer o transporte entre o porto e o navio” na Angolados séculos
XVIII e XIX284. Como eles, os bijagós da Guiné, tidos por bons marinheiros e de índole
belicosa na descrição de um antropólogo luso da primeira metade do século XX285. De
modo geral, os portugueses empregaram africanos de diversas origens nas tarefas da
marinhagem, uma vez treinados para desempenhá-las. Atendendo a uma solicitação de
envio de marinheiros experientes feita pelo governador de Benguela, o de Angola acabou
mandando, em 1794,

“alguns marinheiros escravos que os mestres considerem já capazes do


trabalho; pois que assim utilizando-se os direitos que devem pagar
favorecesse o comércio e arremediasse a falta de homens para a dita
ocupação, isto contudo se não pode prometer com excesso, mas com
cálculoprudente, segundo o número da sua tripulação, e é o mesmo
que aqui pratico(...)”286.

Um ofício de 1798 – enviado por Miguel Antônio de Melo, conde de Murça e


então governador em Luanda, ao secretário da Marinha e Domínios Ultramarinos,Rodrigo
de Souza Coutinho – permite sondar matrizes africanas na especialização dos muxiluanda
no trabalho marítimo287. Melo sabia que, no século XVII, gente dessa etnia havia sido
punida pelos portugueses por seu apoio à invasão holandesa em Angola – política que não
foi exclusiva da colonização lusa na África, se nos lembrarmos da belicosidade punitiva
contra os indígenas no sertão do Nordeste da América portuguesa no mesmo período,

282
REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos e CARVALHO, Marcus J. M. de. O alufá Rufino: tráfico,
escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822-c. 1853). São Paulo: Cia das Letras, 2010, p. 221-223.
283
REDIKER, Marcus. O navio negreiro: uma história humana. São Paulo: Cia. das Letras, 2011, p. 237.
284
RODRIGUES, De costa a costa, p. 188; PÉLISSIER, René. História das campanhas de Angola:
resistência e revoltas (1845-1941), v. 1. Lisboa: Imprensa Universitária; Estampa, 1986, p. 54. O trecho
entre aspas é de REIS, GOMES e CARVALHO, O alufá Rufino, op. cit., p. 123.
285
SIMÕES, Landerset. Babel Negra: etnografia, arte e cultura dos indígenas da Guiné. Porto: Of. Graf.
d’O Comércio do Porto, c. 1935, p. 146.
286
CANDIDO, Mariana P. “Different Slave Journeys: Enslaved African Seamen on Board of Portuguese
Ships, c. 1760-1820s”. Slavery & Abolition, 31(3): 2010, p. 399; AHU, Angola, Códice 1630, fl. 76-77,
14 de fevereiro de 1794.
287
AHU, Angola, caixa 88, doc. 68, 26 de abril de 1798.

108
também acusados de secundar os holandeses288. O castigo dosmuxiluandas não se fez
pela forma de genocídio ou escravização mercantil, mas consistia em obrigá-los ao trabalho,
tal como fizeram anteriormente os soberanos do Congo, ao se utilizar das habilidades desse
povo como pescadores.
Os muxiluandas vendiam peixes frescos e secos nos mercados de Luanda. Foi
assim, em barcos de pequeno porte, que eles aprenderam as lidas no mar e desenvolveram
técnicas de processamento do alimento. A piscosidade das ilhas onde eles viviam levou à
desvalorização do produto e, em vez de receberem os 1.200 réis mensais pagos em média
pelo pescado vendido, muitos se empregaram como marinheiros em troca de salários de
trinta mil réis, fora a ração diária. Os salários não sediferenciavam dos que eram pagos aos
marujos dos navios negreiros até as primeiras décadas do século XIX, ou seja, algo entre
vinte mil e trinta e cinco mil réis289.
Nas palavras de Melo, o resultado do engajamento desses homens como
marinheiros “tem sido despovoarem os muxiluandas as ilhas, abandonarem as pescarias,
serem elas hoje tão escassas que muitas vezes não há peixe”. O governador acreditava que,
com algum incentivo da Coroa, os africanos abandonariam a navegação de longa distância
e voltariam à pesca tradicional290. Ele não atentou para a experiência no mar como um
atributo valorizado pelos capitães portugueses ao empregarem esses marujos. As
habilidades marítimas tornavam cobiçados esses trabalhadores para manejar navios eguiar
oficiais europeus pelas águas africanas, como fez o capitão de artilharia Antônio Máximo
de Souza e Magalhães, que em Luanda “tomou um preto prático daquela costa” para guiá-
lo em uma expedição de reconhecimento em Quitungo, Ambriz, foz do Zaire, Cabinda,
Molembo e Loango291. Talvez o mesmo ocorresse com os habitantes do entorno de
Mossâmedes, onde os portugueses estabeleceram uma agricultura comerciala partir de
meados do século XIX e usaram a mão de obra local na pesca, com homens tripulando
barcos e mulheres no trato dos peixes292.
Outros indivíduos e grupos também detinham habilidades navegadoras. Umdesses
homens cujo nome ficou registrado é João Garrido, escravo da Guiné que, em meados do
século XV, foi levado para Portugal e voltou à África várias vezes a bordo de navios
288
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do sertão nordeste do
Brasil (1650-1720). São Paulo: Hucitec; FAPESP; Edusp, 2002, p. 57 e ss.
289
Ver RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 166 e ss.
290
AHU, Angola, caixa 88, doc. 68.
291
AHU, Angola, caixa 62 (1779), doc. 72 (junho de 1779); caixa 62, doc. 73 e livro 6º de Angola, fls. 26
e ss.
292
Cf. LOVEJOY, P. E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002, p. 342.

109
portugueses na qualidade de intérprete, acabando alforriado. Já entre osgrupos, podem ser
citados os cabo-verdianos que, desde o século XVI, dedicavam-se ao comércio na Guiné e
eram chamados de lançados ou tangomaus pelos portugueses, utilizados como pontas de
lança no aprendizado das línguas e na criação de oportunidades de comunicação na África
Ocidental e sendo mencionados nasOrdenações Filipinas, ao se tratar dos direitos de seus
herdeiros quando falecessem no continente africano293. Em Cabo Verde e Gâmbia, entre
os lançados, os ingleses também conseguiam pilotos para manobrar seus navios no
comércio africano. Já os vili de Loango eram reconhecidos como homens hábeis na
fabricação e no manejo de barcos pesqueiros e de transporte na costa, tendo criado uma
rede comercial que antecedia o domínio europeu no século XVI294. Muitos nativos da África
Central, de acordo com John Thornton, utilizavam embarcações que, se não iam em
viagens de longo curso, eram apropriadas para a navegação nas águas costeiras e estuários
da região onde os portugueses, com seus navios de maior porte, não se aventuravam sem
grandes riscos em meados do século XV:

“Os nativos não tardaram a demonstrar que até eram capazes de


derrotar os portugueses na água, e ainda mais em terra. Por vezes,
conseguiram sair vitoriosos nos próprios navios e, com uma série de
vitórias militares enavais, entre 1445 e 1452, obrigaram os portugueses
a repensar a sua aproximação à África. Assim, em 1456, a coroa
incumbiu Diogo Gomes, um nobre da casa real, de negociar um
acordo de paz com as várias potências da costa africana e garantir o
desenvolvimento de um comércio seguro e pacífico”295.

Além dos efeitos sobre o comércio, a língua, a arte, a produção econômica, a


distribuição de alimentos e a cultura em geral, a criação de tais redes comerciais
pressupunha o saber fazer de homens habilidosos no manejo de embarcações. Para
cumprir suas funções, eles tinham que conhecer a profundidade das águas, o sistema de
ventos, marés, chuvas e outros fatores climáticos que interferiam na navegação de

293
CURTO, Diogo Ramada. “A cultura imperial e colonial portuguesa”. In: BETHENCOURT, Francisco;
CURTO, Diogo R. (dir.). A expansão marítima portuguesa, 1400-1800. Lisboa: Ed. 70, 2010,
p. 329 e 331; LAW, Robin & MANN, Kristin. “West Africa in the Atlantic Community: The Case of the
Slave Coast”. The William and Mary Quarterly, 56 (2): abr.1999, p. 334; Ordenações Filipinas, Livro I,
título XVI: Do juiz dos feitos da Misericórdia e Hospital de Todos os Santos de Lisboa, apud LARA,
Legislação sobre escravos africanos na América Portuguesa, op. cit., p. 85 (CD-Rom).
294
LINEBAUGH, & REDIKER, A hidra de muitas cabeças, op. cit., p. 141-143; SILVA, A faina, a festa
e o rito, op. cit., p. 61-65; THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico,
1400-1800. Rio de Janeiro: Campus, 2004, p. 259.
295
THORNTON, John K. “Os portugueses em África”. In: BETHENCOURT e CURTO, A expansão
marítima portuguesa, op. cit., p. 148.

110
cabotagem – ainda que lhes escapassem as adversidades da travessia da linha do equador,
velha conhecida dos navegadores ibéricos em trânsito entre a península e o além mar. As
lidas marítimas, mesmo que não fossem de longo curso ou em grandes navios, faziam parte
da experiência de diferentes povos do continente africano, em meio a um processo que
sofreu transformações ao longo do tempo. Na diáspora, essa experiência teria
continuidade, uma vez que inúmeros africanos foram engajados no trabalho marítimo,
valeram-se do mar para fugir, encararam o tráfico interprovincial ou foram levados por seus
senhores em direção às novas frentes de expansão colonial na América. Trânsito e
coexistência, não necessariamente amigáveis, marcaram aexperiência dos povos que viviam
às margens do Atlântico, em deslocamentos marítimos e terrestres. A legislação portuguesa
sobre o tráfico e a escravidão no Reino na segunda metade do século XVIII introduziria
novos parâmetros e possibilidades a essa experiência.

Historiografia, legislação portuguesa e mobilidade dos cativos

O engajamento de escravos como marinheiros dialogava com tradições africanasde


pesca, comércio, divisão sexual de tarefas e circulação espacial. Forjadores e integrantes
das práticas atlânticas, africanos e seus descendentes vivenciaram as transformações nessas
mesmas práticas e buscaram formas de conseguir autonomia ou liberdade, particularmente
quando eram escravos, para as quais a mobilidade espacialera um dado relevante. Leis
editadas em Portugal a partir da segunda metade do século XVIII interferiram nesse
processo.
Refiro-me, sobretudo, a três textos legais: o Alvará com força de Lei de 19 de
setembro de 1761, que restringiu o tráfico de escravos para Portugal; a Lei de 16 de janeiro
de 1773, referente à libertação dos cativos no Reino, e o Aviso de 22 defevereiro
de 1776, que permitiu o ingresso de escravos no Reino como marinheiros, desde que
formalmente matriculados. Nenhuma delas questionou a escravidão dos africanos no Brasil
ou na África296.

296
Os textos das leis estão reproduzidos em LARA, Legislação sobre escravos africanos na América
Portuguesa, op. cit., p. 345-346, p. 359-360 e p. 361-362, respectivamente. “No que diz respeito à
escravidão dos africanos e seus descendentes no Brasil e ao tráfico com as regiões da África Ocidental e
Central não chegou a haver questionamento algum por parte da Coroa”, cf. LARA, “O direito e as leis
escravistas na América portuguesa”, Ibidem, p. 32. Ver também NOVAIS, Fernando A. e FALCON,
Francisco C. “A extinção da escravatura africana em Portugal no quadro da política pombalina”. In:
NOVAIS, Fernando A. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac Naify, 2005
(1ª ed.: 1973).

111
Essa legislação mereceu a atenção de alguns historiadores focados no período
pombalino297. De acordo com Arlindo Caldeira, o caráter abolicionista dessa legislação
tornou-se uma discussão clássica na historiografia, partindo da indagação sobre se as
medidas pombalinas teriam resultado do “pragmatismo econômico ou da influência prática
da ideia de liberdade contida nas teorias iluministas”298. A interpretação mais comum,
calcada talvez em relatos de viajantes setecentistas em Portugal, é a que diz que as leis
pombalinas destinavam-se a “garantir a fixação de mão de obra escrava no além- mar, onde
era necessária”, tendo “repercussões bem mais positivas pois contribuiu para frear práticas
esclavagistas, pondo termo à importação de negros” no Reino e mantendo ali os “costumes
de outras Cortes polidas”, numa referência ao alvará de 1761. O objetivo da lei era manter
os escravos africanos trabalhando nas lavouras e minas do ultramar, onde eles eram
efetivamente necessários, e não permitir que viessem a servir como domésticos nas cidades
e quintas portuguesas, tirando “os lugares dos moços de servir”299. Todavia, a restrição ao
ingresso de novos escravos no Reino não era assunto debatido na opinião pública lusa da
época300.
Russel-Wood não viu razões humanitárias a estimular tal legislação, cujo objetivo
era deter o fluxo constante de escravos e criados negros para Portugal e mantê- los no
ultramar, notando ainda que o alvará não se aplicava aos cativos que estivessem em Portugal
naquela data, emancipados de modo gradual apenas a partir de 1773. Inspirada por essa
análise, Silvia Lara atentou para a diferenciação entre os termos “negro” e preto”,
observando que o alvará utilizou “preto” como sinônimo de escravo, o que em geral passa
sem menção nas análises da lei301. Em função de pressões e interpretações convenientes aos
senhores, a cor precisou ser melhor definida. Muitos senhores burlavam o alvará de 1761,
advogando que a liberdade estava prevista para pretos e pretas, mas não se proibia o

297
Referindo-se às obras de Francisco Falcon e Kenneth Maxwell, Tomás E. Barnezi afirma que ambos
entenderam a questão do trabalho escravo como marginal frente às outras medidas pombalinas. Ver
Projetos, leis e letrados: uma reflexão sobre as reformas no regime da escravidão no Império colonial
português na segunda metade do século XVIII. Campinas: IFCH/UNICAMP, 2000, p. 9 (Trabalho de
Conclusão de Curso).
298
CALDEIRA, Arlindo Manoel. Escravos e traficantes no império português: o comércio negreiro
português no Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013, p. 229 e 231.
299
RAMOS, Luís A. de Oliveira. “Pombal e o esclavagismo”. História: Revista da Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, 1ª série, v. 2: 169-178, 1971, pp. 170-171. Na opinião do viajante sueco Carl Israel
Rudgers, de passagem por Lisboa em 1798, o objetivo dessa lei era fazer com que os escravos negros não
saíssem dos Brasil, cf. SANTOS, Piedade Braga; RODRIGUES, Teresa e NOGUEIRA, Margarida Sá.
Lisboa setecentista vista por estrangeiros. Lisboa: Livros Horizonte, 1992, p. 47.
300
CALDEIRA, Escravos e traficantes no império português, op. cit., p. 230.
301
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2005, p. 74; LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na
América portuguesa. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 135 e 284.

112
ingresso de mestiços, mulatos e mulatas como escravos no Reino. Assim, em 1767, os
senhores ficaram cientes de que, independentemente da cor, a lei referia-se a todo e
qualquer cativo302.
Na análise de Silva e Grinberg, a carreira diplomática de Pombal em diferentes
cortes europeias e o conhecimento daí obtido acerca de legislações semelhantes faz crer
que o ministro de D. José I tinha consciência de que a ideia de “solo livre” perpassava o
continente, embora não necessariamente ele a advogasse. De acordo com as autoras, o
decreto não se destinava a garantir a liberdade dos escravos desembarcados no reino nem
dos que já viviam ali. A intenção, ao invés de atrair cativos para um “solo livre”, era impedir
que eles pisassem nesse solo:

“O que se pretendia era a ameaçar os proprietários e traficantes


de escravos, dissuadindo-os de trazer novos escravos para o
reino, para seu próprio usoou para vendê-los. Se eles fizessem
isso, esses escravos seriam livres. Por esta razão, o decreto do rei
explicitamente não alterou a condição legal dos escravos já que
lá residiam e não servia como pretexto para outros escravos
virem e buscarem a liberdade no reino (...)”303.

Para proprietários e criados lusos, os resultados podem ter sido a fixação dos
escravos no além mar e a garantia de uma reserva de mercado de trabalho aos reinóis (e
galegos) livres. Mas há quem tenha encontrado razões mais fortes, de Estado, para a edição
das medidas pombalinas contrárias à escravidão em Portugal e sua concentração em certas
partes do ultramar. Kenneth Maxwell é um dos autores que, ao analisar a época de Pombal
sob a ótica da “corporificação do Iluminismo”, inseriu a abolição da escravatura no Reino,
em 1773, no incremento da atividade legislativa, junto de medidas como o financiamento
do sistema educacional, a reforma da Universidade de Coimbra, a restrição dos poderes
do Santo Ofício e a modernização do Exército. Nuno Monteiro soma-se a esta visão, ao
constatar que o ministério pombalino elaborou leis em uma profusão sem precedentes,
para “mudar as coisas em conformidade com o que se fazia nas cortes da Europa (...)”304.

302
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade’. Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-
1774)”. Revista de História, 144: 2001, p. 109.
303
SILVA, Cristina Nogueira da Silva e GRINBERG, Keila. “Soil Free from Slaves: Slave Law in Late
Eighteenth- and Early Nineteenth-Century Portugal”. Slavery & Abolition, 32(3): set.2011, p. 431 e 432.
304
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal, paradoxo do Iluminismo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1996, p. 18-19; MONTEIRO, Nuno Gonçalo. D. José na sombra de Portugal. Cais de Mem Martins:
Círculo de Leitores; Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2008, p.
210. Monteiro destacou, como pontos centrais dessa profusão legisladora, o comércio, as finanças, o
fomento das artes fabris e providências diversas nos domínios coloniais. Idem, Ibidem, p. 210-226. Sobre
o caráter mais geral das reformas na administração do Reino promovidas na segunda metade do século

113
Ao que parece, a consciência política da época entre as elites portuguesas era a da
enorme defasagem de seu país em relação aos centros europeus que se encontravam na
“vanguarda do desenvolvimento econômico”305. As leis de 1761 e 1773, ao iniciaremum
processo de abolição gradual na metrópole, teriam sido “determinadas quer pelo ambiente
internacional adverso a esse modelo de relações de exploração, (...) quer por objetivos
práticos de sua [do rei e do ministro] política”306.
No tocante à questão econômica, Francisco Falcon avaliou as medidas pombalinas
sobre a escravidão em Portugal de um modo amplo, cabível também para outros centros
imperiais, decerto tendo em mente a clássica questão da incompatibilidade entre escravidão
e desenvolvimento capitalista:

“os escravos contribuem para o desestímulo às atividades


manufatureiras, pois não consomem e ao mesmo tempo, mantêm
reduzida a oferta de empregos e assim contribuem para a existência de
maior número de desempregados, ociosos que também não possuem
poder aquisitivo”307.

O primeiro ato, em 1761, proibiu o transporte de “pretos e pretas” escravos para


Portugal. Aqueles que queriam manter ali a introdução de escravos passaram a burlar a lei:
como a proibição se referia, primeira e mais enfaticamente, à cor e não à condição social,
começaram a trazer escravos mestiços, mulatos e mulatas, até que houve a alteração em
1767. A legislação escravista prosseguiu e, inserida no “conjunto dapolítica industrialista do
mercantilismo pombalino, a libertação da escravatura foi levada a efeito em Portugal de
forma gradual, mas persistente”. Em 1773, encaminhou- se a “extinção total da escravatura,
naturalmente com a costumeira moderação”: como não entravam mais cativos, os senhores
passaram a reproduzi-los, sendo esse alvará “uma espécie de ‘lei do Ventre Livre”308. Se o
alvará de 1761 dificultou a navegação entre o Brasil e Portugal, a resolução veio por meio
de outros textos legais: o Aviso de 22 de fevereiro de 1776, o de 10 de Março de 1800 e o
Alvará de 10 de março de 1802, que autorizaram a vinda de escravos negros apenas

XVIII, ver CARVALHO, Marieta Pinheiro de e MUNTEAL Fº, Oswaldo. "Entre D. José I e D. Maria I:
Estado, burocracia e intelectuais no setecentos português". In: LUZ, Guilherme Amaral et al (orgs.). Ordem
crítica: A América portuguesa nas "fronteiras" do século XVIII. Belo Horizonte: Fino Traço,2013, p.
13-32.
305
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 3ª ed.,
São Paulo: Hucitec, 1985, p. 133.
306
FONSECA, Jorge. “As leis pombalinas sobre a escravidão e as suas repercussões em Portugal”.
Africana Studia, 14: 2010, 29 e 35.
307
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina: política econômica e monarquia ilustrada. São
Paulo: Ática, 1982, p. 399.
308
NOVAIS e FALCON, “A extinção da escravatura africana em Portugal”, p. 94-99.

114
quando devidamente matriculados nos navios309.
Na linha das razões de Estado, Monteiro viu na lógica de funcionamento das
companhias monopolistas do comércio colonial o entendimento das restrições ao tráfico
para Portugal, culminando no alvará de 1773, pelo qual foram declarados livres os
filhos de escravas nascidos no país a partir de então, só permanecendo no cativeiro aqueles
cujas mães e avós tivessem sido escravas310.
Ao se debruçarem sobre estas questões, via de regra os historiadores tomaram
como fundamento o artigo pioneiro de Novais e Falcon. Luiz Geraldo Silva também
teve nele um ponto de partida, ao buscar os sentidos mais gerais da legislação portuguesa
sobre a escravidão, mostrando que o alvará de 1761 não pretendia promover a deserção
de escravos dos domínios ultramarinos ou estimular neles o desejo deliberdade:

“antes, determinou-se, com certo grau de liberalidade, que ‘os


Pretos, e Pretas livres, que vierem para estes Reinos viver,
negociar, ou servir, usandoda plena liberdade, que para isso lhes
compete, tragam indispensavelmente Guias das respectivas
Câmaras dos lugares donde saíram”311.

Ao fazer um balanço da historiografia portuguesa, José Tengarrinha notou que a


época moderna foi aquela menos beneficiada pelas condições políticas e culturais pós-
Revolução dos Cravos. A principal razão seria o privilégio dado a estudos sobre esse
período durante o Estado Novo, quando se pretendia destacar “o papel de Portugal na
História mundial e legitimar sua política colonial pela ação civilizadora e proselitista”312.
Essa observação, se correta, ajuda a entender o debate relativamente limitado sobre a época
pombalina, ainda mais restrito no que se refere à escravidão nas conquistas durante esse
período – como notaram João Pedro Marques e ValentimAlexandre, historiadores que
polemizaram, em meados da década de 1990, acerca dofim tráfico português oitocentista313.

309
Idem, Ibidem, p. 102; SILVA, “Esperança de liberdade”, op. cit., p. 109-110.
310
MONTEIRO, D. José na sombra de Portugal, p. 226; Ver também FONSECA, “As leis pombalinas”,
op. cit., p. 29 e NOVAIS e FALCON, op. cit., p. 399.
311
SILVA, “Esperança de liberdade”, op. cit., p. 109.
312
TENGARRINHA, José. “La historiografía portuguesa en los últimos veinte años”. Ayer, 26: 1997, p.
21-25. Ver também XAVIER, Ângela Barreto. “Tendências na historiografia da expansão portuguesa:
reflexões sobre os destinos da história social”. Penélope, 22: 2000, p. 141.
313
Ambos notaram a pequena quantidade de trabalhos sobre o tema e o legado negativo do Estado Novo
português para os estudos de História Moderna. Ver MARQUES, João Pedro. “Uma revisão crítica das
teorias sobre a abolição do tráfico de escravos português” e ALEXANDRE, Valentim. “Projecto colonial
e abolicionismo”. Penélope: 14: 1994, p. 95 e 119. O debate prosseguiu em MARQUES, João Pedro.

115
Para a visão dos senhores e as ações dos homens de Estado nos assuntos escravistas,
temos interpretações abalizadas e que dão ênfase à inspiração ilustrada. Luiz Geraldo Silva
propõe uma leitura que, sem se desfazer disso, procura superar a ideia de Iluminismo
como conceito ou modelo explicativo fechado e amplia o leque do problema, “marcado
pela difusão do processo civilizador, pela dinâmica do status de insider e outsider na
Europa dos séculos XVI ao XVIII, bem como pela disseminaçãoda noção de pacto
social no mundo atlântico” na segunda metade do século XVIII, sobo influxo das obras
de Norbert Elias314.
Tendo em vista as implicações das leis setecentistas e as mutantes conjunturas
políticas do início do século XIX no mundo atlântico, creio ser preciso sondar o papel
desempenhado pelos escravos do Reino e da América portuguesa nesse processo. A
legislação apresentava ambiguidades conceituais que levavam anos para serem
solucionadas, modificando-se conforme os jogos de pressões sobre a Coroa. Os escravos
não ficaram indiferentes às ambiguidades nem estiveram ausentes dos jogos políticos. O
que os diferenciava dos demais grupos sociais era o conhecimento particular do conteúdo
das leis, a ação conectada a redes envolvendo outros agentes e o entendimento particular
das “razões de Estado” quando se tratava de agir em benefício da própria liberdade.
Recuperar a (re)construção da liberdade no ideário de africanos desenraizados,
transformados em escravos e objetos de transações comerciais, é um trabalho árduo. Mas
a análise de algumas tentativas de se conseguir a liberdade pode nos ajudar a ampliar o
painel das estratégias de luta elaboradas pelos escravos entre a segunda metade do século
XVIII e a primeira do século XIX, centradas na vida marítima. Trata- se de um período
no qual a legislação em vigor e, de modo mais amplo, o ambiente social da América
portuguesa e do Brasil imperial não permitiam vislumbrar a conquista da liberdade de
forma coletiva. Nem por isso deixou-se de tentar tal conquistade diferentes formas.
A princípio, a evasão pelo mar pode parecer uma estratégia pouco racional de fuga
ou de dissolução da dominação senhorial. Para evitar qualquer analogia que não pretendo
cultivar, esclareço que não se trata de inventar uma suposta “brecha marítima”. Há
evidências de que a evasão pelo mar foi tentada especialmente por escravos com
“Avaliar as provas: resposta a Valentim Alexandre” e ALEXANDRE, Valentim ALEXANDRE, Valentim,
“Crimes and misunderstandings’. Réplica a João Pedro Marques”. Penélope: 15:1995, p. 143- 155 e 157-
170, respectivamente.
314
SILVA, “Esperança de liberdade”, op. cit., p. 115-116.

116
alguma experiência de trabalho marítimo e que podiam empregar-se junto a outros
senhores, mediante a comprovação de suas habilidades em lidar com os aparelhos
navais e, sobretudo, alegando serem homens livres.
Uma vez engajados em embarcações que faziam escala ou terminavam o percurso
em Portugal, escravos dos domínios coloniais pisavam em uma terra onde a escravidão
sofria embaraços legais. Embora a lei de 1761 proibisse carregar escravos negros vindos da
América, África e Ásia para os portos do reino, ela não proibia explicitamente o
engajamento de marinheiros escravos em navios mercantes que ali tivessem de passar, por
necessidade ou escala prevista. A situação tornou-se ainda mais confusa para os senhores e
mais promissora para os escravos do ultramar a partir do momento em que a escravidão
foi parcialmente abolida em Portugal em 1773. Houve outros textos legais, como a
permissão datada de 1776 para que escravos de oficiais da marinha ou de comerciantes
pudessem permanecer no reino mediante a posse de um “diploma” especial. Essa
legislação garantia aos senhores o usufruto dos serviços de marinheiros escravos engajados
nas equipagens de longo curso – demonstrando ser esta uma prática relativamente comum.
Temos evidências de que os escravos marinheiros efetivamente pleiteavam suas
liberdades a partir do conhecimento e da interpretação do conteúdo dessas leis315. Nos itens
a seguir, persigo os vestígios das atividades deles nessa direção.

Marinheiros escravos e forros nos domínios lusos

As profissões marítimas no tempo da navegação à vela foram relativamente variadas.


Marinheiros negros, africanos ou nascidos nos domínios portugueses, escravizados ou
forros, engajaram-se em embarcações na época colonial e após a independência do Brasil.
Por vezes vamos encontrá-los em lugares e situações aparentemente incomuns316.

No contexto das guerras de independência na América ibérica, os lados em combate recrutaram


escravos e negros livres em suas fileiras, incluindo muitos
315
NOVAIS e FALCON, “A extinção da escravatura africana em Portugal”, p. 100-102, foram dos
primeiros a chamar a atenção para isso. Mais recentemente, ver SILVA e GRINBERG, “Soil Free from
Slaves”, op. cit., p. 431-446.
316
Sobre as ações de liberdade instauradas no Brasil e em Portugal após 1822, ver SILVA e GRINBERG,
“Soil Free from Slaves”, op. cit., p. 436-437.

117
marinheiros para a Armada, no caso do Império do Brasil317. Na cabotagem, a participação
deles era antiga, duradoura e ativa, da colônia ao Império. Na baía de Todos os Santos,
homens negros eram presença constante ao longo de todo o século XVIII, e o estudo de
Carlos da Silva Jr. trouxe dados relevantes acerca da composição demográfica dos
trabalhadores do mar naquela região. Se no último quartel do século XVIII estimava-se em
426 os cativos que faziam o transporte entre as vilas do Recôncavo Baiano, na primeira
metade daquela centúria era possível identificá-los maisprecisamente:

“Os africanos (...) controlavam as profissões marítimas


(marinheiro, pescador, mariscador, mergulhador, barqueiro,
vigia de xaréus), pois 83,9% (26) dos marítimos nasceram
naÁfrica, enquanto os crioulos respondiampor apenas 16,1%
(5). Grande número destes trabalhava no transporte marítimo
entre Salvador e o Recôncavo, carregando mercadorias e
alimentos entre os rios que ligavam sua hinterland à Bahia de
Todos os Santos. Durante o último quartel do século XVIII,
estimou-se que 426marinheiros cativos estivessem empregados
no transporte marítimo em apenas quatro vilas do Recôncavo
(São Francisco, Santo Amaro, Cachoeirae Maragogipe)”318.

Os dados censitários disponíveis para a primeira metade do século XVIII são


bastante esclarecedores da presença dos marinheiros negros também na navegação de
longo curso. O mesmo historiador recuperou registros desses trabalhadores na atividade
baleeira e no tráfico transatlântico de escravos, sobretudo em Angola, Benguela, Mina e
Guiné, além da cabotagem na América portuguesa, totalizando 392 cativos de profissão
marítima, para os quais “a atividade em alto mar podia também ser uma oportunidade para
a liberdade”:

“Vale destacar ainda que esses escravos trabalhavam lado a lado


dos libertos, embora esses últimos sejam minoria. De acordo
com o censo,apenas 51 ‘marinheiros pretos forros’ exerciam
esse ofício em 1775. Casoas conclusões desse documento sejam
válidas para a primeira metade do século XVIII, como acredito
que sejam, então a marinhagem [na Bahia] era atividade de gente
preta, exercida principalmente por escravos”319.

317
ALADRÉN, Gabriel. “Experiências de liberdade em tempos de guerra: escravos e libertos nas Guerras
Cisplatinas (1811-1828)”. Estudos Históricos, 22 (44): jul./dez. 2009, p. 442; JEHA, Silvana, A galera
heterogênea, op. cit., p. 165 e ss.
318
SILVA JR., Carlos Francisco do. Identidades afro-atlânticas: Salvador, século XVIII (1700-1750).
Salvador: UFBA, 2011, p. 85 (Dissert. Mestr. História).
319
SILVA JR., Identidades afro-atlânticas, p. 87 e 86, respectivamente. Para dados sobre marinheiros
escravos em Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro no século XIX, ver SILVA, A faina, a festa e o rito, op.
cit., p. 181-182; LAPA, José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Cia. Ed.
Nacional; Edusp, 1968, p. 112-115.

118
Em época posterior à legislação pombalina, um baiano proeminente e morador na
capital portuguesa notou o crescimento do número de marinheiros naturais do Recôncavo
na navegação do Reino:

“os pretos também se tem multiplicado nesse mecanismo pelo


benefício da lei que permite a sua vinda a este reino, sendo
marinheiros. De que se segue que muitos patrões e outros oficiais dos
navios têm comprado escravos que navegam em sua companhia e
enchem com este suplemento o vazio que necessariamente devia
produzir a depopulação deste Reino (...). Os quais marinheiros todos,
assim do oceano como da costa do Brasil, eu divido em três classes:
uma de brancos, outra de mulatos pretos, e outra finalmente de índios
(...)”320.

Marinheiros africanos ou negros nascidos em outras conquistas portuguesas


também se moviam no espaço e ocupavam postos na navegação de cabotagem e de
longa distância a partir da Guanabara. Os dados sistematizados por Nielson Bezerra
para os anos entre 1829 e 1832 indicam uma forte presença de africanos de nascimento
entre os mestres das embarcações naquela baia, totalizando mais de ¾ do total, amaioria
dos quais com idades entre vinte e quarenta anos, e dos quais se requeria habilidades tais
como “liderança, conhecimentos técnicos de navegação, ambiência comos portos urbanos,
bom manejo da língua portuguesa”321.
Mesmo sem dispor de censos tão detalhados para todas as áreas, na colônia e no
século XIX, não é um risco demasiado afirmar que em todo lugar onde a escravidão
predominou como forma de exploração do trabalho, os marinheiros cativos
desempenharam tarefas no mar e retiraram dessa experiência elementos para negociar com
seus senhores. Lembremos que a lista de exigências do tratado de paz escrito pelos escravos
levantados no engenho Santana por volta de 1789 incluía rede, tarrafa, canoas, uma lancha
de pescaria e “uma barca grande para quando foi para Bahia nós metermos

320
BN/DM, 28-28-12: Ofício de Antônio Ferreira de Andrade a Martinho de Mello e Castro sobre a
necessidade urgente de promover a construção naval e a navegação no Brasil. Lisboa, 9 nov.1799. “Coronel
Antônio Ferreira de Andrade [era] professo na Ordem de Cristo, membro de uma ‘das mais bem abonadas
famílias e [dono] de importantes propriedades de engenho de açúcar”, cf. VALIM, Patrícia. “José Pires de
Carvalho e Albuquerque, Secretário de Estado e Governo do Brasil: poder, elites e contestação na Bahia de
1798”. Anais da IV Conferência Internacional de História Econômica & VI Encontro de Pós-Graduação
em História Econômica. São Paulo: FFLCH e FEA/USP, out.2012. Disponível em
http://www.cihe.fflch.usp.br/sites/cihe.fflch.usp.br/files/Patricia%20Valim.pdf. Schwartz contou 2.148
embarcações circulando pelo porto de Salvador em 1775 e a presença de cerca de 4.000 marinheiros
navegando pela baia de Todos os Santos, para além dos pescadores e barqueiros do comércio local. Ver
Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Cia. das
Letras,1988, p. 79.
321
BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identidades africanas e conexões atlânticas do
Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Niterói: UFF, 2010 (Tese Dout.), p. 124-125 e 132-133.

119
as nossas cargas para não pagarmos fretes” – ou seja, eles pretendiam dirigir sozinhos o
barco de Ilhéus até Salvador, sabedores da dificuldade de manejar a embarcação com
menos de cinco homens, sendo “quatro varas, e um para o leme”. E, é claro, precisavam
de roupa adequada para enfrentar o sol durante a viagem de mais de 400 quilômetros, pois
“os marinheiros que andam de lancha além de camisa de baeta que lhes dá, hão de ter
gibão de baeta, e todo o vestuário necessário”322. Marinheiros negros, escravizados ou livres,
estiveram presentes também em áreas de colonização mais recente, como no Vale do
Taquari e em outras partes do Rio Grande do Sul das primeiras décadas do século XIX,
transportando mantimentos e erva mate323, ou em Paranaguá na segunda metade do mesmo
século324 – apenas para mencionar alguns lugares para os quais existem estudos
monográficos. Eles estavam até mesmo onde suas habilidades não eram requisitadas –
como na Fábrica de Ferro de Ipanema, no interior de São Paulo, onde africanos livres com
passagem pelo trabalho no Arsenal de Marinha da Bahia trabalharam e ali foram
considerados “marinheiros [e, como tal], exigentes e mal acostumados”325.
A percepção da importância numérica dos homens negros no trabalho marítimo
não escapou aos viajantes que circularam pelo Brasil. Numa avaliação impressionista,de
que “só se encontram nos navios brasileiros negros e homens de cor, na maioria escravos”,
o príncipe Adalberto da Prússia, chegado ao Rio de Janeiro nos primeiros dias de setembro
de 1842, constatava que as populosas cidades do litoral não forneciam marinheiros
suficientes para tripularem as frotas mercantes e de guerra. O historiador José Carlos
Barreiro aventou a hipótese de que a população brasileira preferisse, em sua maioria, se
apropriar dos abundantes recursos naturais a fim de prover sua sobrevivência, só aderindo
ao trabalho marítimo quando submetida a um recrutamento violento

322
“Tratado proposto a Manoel da Silva Ferreira pelos seus escravos durante o tempo em que se
conservaram levantados (c. 1789)”. In: REIS, João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a
resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Cia. das Letras, 1988, p. 123-124.
323
AHLERT, Lucildo e GEDOZ, Sirlei T. “Povoamento e desenvolvimento econômico na região do Vale
do Taquari, Rio Grande do Sul (1822 a 1930)”. Anais das Segundas Jornadas de Historia Económica.
Montevideo: jul.1999, p. 6; BERUTE, Gabriel Santos. Dos escravos que partem para os portos do sul:
características do tráfico negreiro do Rio Grande de São Pedro do Sul, c.1790-c.1825. Porto Alegre:
UFRGS, 2006, p. 101 e ss. (Dissert. Mestr).
324
LEANDRO, José Augusto. “Cultura marítima: marinheiros da baía de Paranaguá, Sul do Brasil, século
XIX”. Revista Internacional de Folkcomunicação, 5(10): 2007.
325
Ver Capítulo 6.

120
praticado pelo Estado326. É possível que sim, mas também deve se ponderar outras
circunstâncias.
O fato de se apossar de recursos naturais, tais como a terra, era motivo de conflitos
com aqueles que os detinham, legal ou ilegalmente, no mundo colonial e no Império.
Homens livres e pobres na América portuguesa tinham no trabalho marítimo uma das
poucas possibilidades de remuneração salarial em meio a uma sociedadeescravista como a
colonial, o que não significa que tenham exercido essa opção ou mesmo que a demanda
por tripulantes fosse capaz de empregar todos os que estivessem disponíveis.
Comparativamente, sabemos que um país como Portugal não dispunha dos mesmos
recursos naturais existentes em seus domínios americanos nem de uma população densa.
Ainda assim, ali sempre houve gente disponível para o trabalhomarítimo e para tripular os
navios mercantes do país327 – cujas equipagens não apresentavam os traços de
internacionalismo verificados em embarcações sob outras bandeiras do Atlântico norte.
Pouco se sabe acerca das formas de recrutamento de trabalhadores livres epobres
para as funções de embarcadiços no Brasil dos séculos XVIII e XIX. Autores como
Rediker observam o mesmo fenômeno em outras partes do Atlântico, ao afirmar que
“marujos livres de descendência africana entravam no serviço dos navios, cujas viagens se
iniciavam em portos europeus e americanos, principalmente porque tinham relativamente
poucas oportunidades de emprego, e o ofício de marinheiro era um dos mais certos e
acessíveis”328.
No caso dos navios negreiros, parece ter havido especialização e estímulo,levando
os tripulantes a se engajarem por períodos longos nas embarcações que cumpriam essas
rotas. Segundo Clarence-Smith, as equipagens e os salários eram cerca de duas vezes
maiores nas rotas negreiras do que nas demais, o que significava um atrativo tanto para
homens livres e pobres como para senhores que locavam seus cativos nessa atividade ou
326
PRÚSSIA, Adalberto da. Brasil: Amazonas-Xingu, op. cit., p. 88; BARREIRO, José Carlos. “A
formação da força de trabalho marítima no Brasil: cultura e cotidiano, tradição e resistência (1808- 1850)”.
Tempo, 15 (29): jul./dez.2010, p. 193.
327
Isso não deve levar à dedução de que, em Portugal, os homens teriam a propensão inata de se tornarem
marinheiros. Uma crítica à historiografia sobre o recrutamento de marinheiros portugueses pode ser vista
em BOXER, Charles R. O Império Colonial Português (1415–1825). São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p.
68-69; SILVA, Luiz Geraldo. “Vicissitudes de um império oceânico: o recrutamento das gentes do mar na
América portuguesa (séculos XVII e XVIII)”. Navigator, 3(5): 33-49, jun.2007 e MOREIRA, Luiz
Guilherme Scaldaferri. Navegar, lutar, pedir e... receber: o perfil e as concorrências dos capitães das
fortalezas de Santa Cruz e de São João nas consultas ao Conselho Ultramarino, na segunda metade do
XVII, no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. (Dissert. Mest), p. 128.
328
REDIKER, O navio negreiro, p. 237-238. Para o recrutamento na America portuguesa, ver LAPA, A
Bahia e a carreira da Índia, op. cit., p. 217.

121
ainda para escravos em fuga. Evidentemente, a regra valia também para os capitães e outros
oficiais, em geral homens mais velhos e que haviam adquirido experiência em anos de
trabalho no mar, especializando-se no comércio de escravos329.
O comércio de escravos requeria habilidades próprias, voltadas àsespecificidades
da negociação, das línguas e do lidar com a “mercadoria” transportada. Como afirmei em
outra oportunidade, em muitas embarcações negreiras havia cativosna tripulação, o que
denota uma especialização também entre os trabalhadores escravos330. Além do que, navios
mercantes tinham em suas tripulações não apenas escravos em fuga, mas também escravos
especializados nas profissões marítimas, alugados por seus senhores aos donos das
embarcações – tanoeiros, cozinheiros e“línguas”, entre outros.
Os “línguas” africanos, em particular, cumpriam papéis cruciais para o bom
andamento dos negócios negreiros, no desempenho de funções que dificilmente poderiam
ser cumprido homens de qualquer outra origem. Por exemplo, eles traduziam ou
mediavam as negociações entre os oficiais do navio e os fornecedores de escravos na costa
atlântica da África. Na área banto, sobretudo em Angola, mesmo que não fossem fluentes
em todos os idiomas, compartilhavam o substrato linguístico comum e facilitavam a
conversação. A bordo dos navios negreiros já carregados e em direção à América, eles
viviam a experiência radical de atravessar o Atlântico e lidar com os africanos presos no
porão, eventualmente traduzindo os murmúrios de revoltas aos seus superiores ou
solidarizando-se com os encarcerados e mantendo-se calados. Difícilsaber ao certo ou
estabelecer uma norma de comportamento rígida.
A hipótese, aqui, é que africanos escravizados puderam encontrar oportunidades
inusitadas de fuga, autonomia e liberdade, propalando uma experiência profissional por
vezes inexistente e engajando-se como grumetes para ganhar o mundo pela via marítima,
quem sabe conseguindo passar a exercer funções de marinheiros ou desertar em algum
porto distante, quando a ocasião e a conveniência se apresentassem.
A aplicação das exigências legais portuguesas de matrícula dos tripulantes possibilita
um conhecimento mais preciso do perfil dos homens engajados na navegaçãoentre o Reino
e seus domínios a partir da segunda metade do século XVIII. Registros da presença de
homens negros trabalhando em embarcações portuguesas nesse período são

329
CLARENCE-SMITH, Gervase. O terceiro império português (1825-1975). Lisboa: Teorema, 1990, p.
51; PALMER, Colin A. Human Cargoes: The British Slave Trade to Spanish America (1700-1739).
Urbana/Chicago/Londres, University of Illinois Press, 1981, p. 46-47.
330
RODRIGUES, De costa a costa, p. 160.

122
relativamente reduzidos, mas não inexistentes. Em um artigo desbravador, Mariana
Candido contabilizou 365 solicitações de navios portugueses saindo de Lisboa com destino
a portos atlânticos africanos e americanos sob dominação lusa entre 1767 e1832. Dentre
eles, 97 levavam escravos como marinheiros regularmente matriculados nas listas das
equipagens. Pelas contas da autora, eram 230 escravos em um universo de
8.441 tripulantes na marinha mercante para o período recortado, o que representa menos
de 3% do total – contra cerca de 17% de escravos em navios do tráfico transatlântico de
escravos para o Brasil entre 1812 e 1863331. Candido aventa hipóteses para entendermos
esse número aparentemente tão reduzido:

“Havia menos escravos e negros libertos em Portugal do que no Brasil,


o que pode explicar o menor número de escravos empregados como
tripulação dos navios que saiam de portos portugueses. Embora o
número seja pequenoem comparação com a tripulação total, estes 230
indivíduos desafiam-nos a reconsiderar a travessia e analisar a
escravidão de uma perspectiva diferente”332.

Portugal seria, naquela altura, uma sociedade com escravos que, diferentemente da
sociedade escravista forjada na América portuguesa ao longo de séculos, mantinha os
aparatos da dominação sobre os cativos, mas não dependia deles para a produção 333.
Residual no território do Reino, talvez a situação fosse diferente na capital, a julgar pela
quantidade de cativos ali desembarcados na primeira metade do século XVIII e vindos da
América portuguesa334. Negros e mestiços chamavam a atenção de viajantes de passagem
por Lisboa; escravos faziam os serviços mais pesados e desprezados, de crimes por
encomenda a isca para touros. Seus senhores “vendiam-nos com a maior das facilidades e
tinham o direito de lhes bater ou de os castigar como entendiam. Porém, em geral eles
eram tratados como os outros criados ‘e algumas vezes até lhes concedem

331
Discuti esse percentual e as razões para sua existência no tráfico transatlântico de escravo em
RODRIGUES, De costa a costa, op. cit., p. 186-187. Ver também REIS, GOMES e CARVALHO, O alufá
Rufino, op. cit., p. 140.
332
CANDIDO, “Different Slave Journeys”, p. 399. A autora ressalta o percentual diminuto quando
comparado aos dados apresentados por mim e por Herbert Klein para navios negreiros entre 1795 e a
primeira metade do século XIX (de 14 a 24%).
333
Nos termos de BERLIN, Ira, Gerações de cativeiro: uma história da escravidão nos Estados Unidos.
Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 41.
334
Cf. PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português (uma contribuição aos
estudos da economia atlântica no século XVIII). 2ª ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1979, p. 137-184;
LAHON, Didier. O negro no coração do Império: uma memória a resgatar. Lisboa: Casa do Brasil;
Ministério da Educação, 1999, p. 90. Devo estas indicações a Renato Pinto Venâncio.

123
a liberdade’, em especial depois de velhos e inúteis”335. O inglês William Beckford
comentou um hábito cortesão no tempo de D. Maria I que não se mostrava estranho aos
portugueses, havia séculos envolvidos com o tráfico e a escravização de africanos:

“atualmente é de bom tom (...) andar-se rodeado de pretinhos


africanos, quanto mais hediondos melhor, e vesti-los o melhor que se
possa. A soberana dá o exemplo. A família real anda à compita a ver
quem é que faz mais mimos e carícias à D. Rosa, a favorita da Rainha,
preta, beiçuda e de nariz esborrachado”336.

Em meados do século XVIII, os escravos representavam algo em torno de 5% da


população lisboeta, o equivalente a 9 ou 10 mil homens e mulheres – o que, se não
configurava a base do sistema econômico, também não era um número desprezível. A
presença negra na cidade não se alterou nos anos 1820, a julgar por descrições do mundo
do trabalho luso após o regresso da Corte, quando a escravidão já fora abolida em
Portugal. Abundantes nos palácios reais e nas casas nobres, a criadagem negra também era
comum nos meios burgueses337.
Mas talvez não seja muito exato comparar a exploração do trabalho escravo em
Portugal e no Brasil. Efetivamente, havia menos escravos e libertos no Reino do que
nos domínios americanos, em termos absolutos e relativos. Todavia, o trânsito e os
resultados que poderiam vir daí, sobretudo para os escravos marinheiros, merece um
olhar acurado. Vamos, então, sondar essa experiência e as possibilidades abertas por ela.
Nos registros da Junta do Comércio, órgão criado em 1755, encontram-se matrículas
de dezenas de equipagens que passavam por portos brasileiros, onde oscapitães e
donos de navios dispunham de um número muito maior de marujos cativos,se assim
quisessem. Em escalas africanas e sul americanas, marujos negros poderiam
ser incorporados às tripulações de navios zarpados dos portos reinóis.
Analisando os casos dos oriundos de Benguela, Candido identificou marinheiros
escravizados naquela localidade trabalhando em embarcações saídas de Lisboa e destinadas
a portos africanos e do Brasil. Bom exemplo é o Nossa Senhora dos Prazeres, que partiu
em novembro de 1789 de Lisboa em direção a Benguela com 27

335
TOURS, François de. “Itinerário em Portugal (1699)”, In: CHAVES, Castelo-Branco. Portugal nos
séculos XVII e XVIII: quatro testemunhos. Lisboa: Lisóptima, 1990, p. 63; SANTOS, RODRIGUES e
NOGUEIRA, Lisboa setecentista, p. 46-48 e 84.
336
SANTOS, RODRIGUES e NOGUEIRA, Lisboa setecentista, p. 50. Ver também LARA, Fragmentos
setecentistas, p. 232.
337
VENANCIO, Cativos do Reino, op. cit., p. 89; SÁ, Victor de. Lisboa no liberalismo. Lisboa: Livros
Horizonte, 1992, p. 9.

124
tripulantes, sendo um deles negro livre do Rio de Janeiro, e outros quatro negrosescravos,
“três dos quais provinham de Benguela: Inácio Maia, Pedro Maia e Manuel Miguel Maia,
que pertenciam ao dono do navio”338.
Boa parte dos marinheiros negros aparece assim, simplesmente arrolada na lista
de tripulantes. A maneira pela qual essas listas foram confeccionadas merece alguns
comentários. De início, é preciso notar que os primeiros registros portugueses a
mencionar os tripulantes nominalmente apareceram na década de 1760, na esteira da
legislação que tentou restringir a circulação de pessoas e proibiu o tráfico de escravos
para o Reino em 1761. Na folha de abertura do livro referente ao ano de 1767, o
escrevente afirmava cumprir um aviso de Sua Majestade à Junta do Comércio em
conformidade com as leis “que proíbem a passagem das gentes ao Brasil”. Ele passa,
então, a fazer matrículas individuais dos membros das equipagens, identificados por
nome, filiação, cargo a bordo, naturalidade, idade, há quanto tempo vinhamembarcados,
eventualmente pelo lugar onde moravam e pelos sinais físicos (estatura,cicatrizes, cor
do cabelo, grosso ou magro de corpo, cor da pele e dos olhos etc.)339. Aslistas cumpriam,
entre outras coisas, a determinação de impedir a entrada de novos escravos,
regulamentando a propriedade dos cativos matriculados nos navios mercantes.
Antes de observar uma amostragem retirada desse conjunto, tomemos alguns casos
aleatórios. O São José Rei de Portugal, navio que saiu de Lisboa com destino a
Pernambuco em 3 de julho de 1767, levava 51 tripulantes, entre oficiais e marinheiros
comuns. Neste navio, um dos tripulantes era o capelão João Coelho de Couto, natural do
Porto, de 38 anos, que embarcava pela primeira vez e foi descrito como um homem de
“estatura mais que ordinária, magro, trigueiro, olhos grandes e pardos, e sem defeito”340.Os
registros da Junta do Comércio dão a conhecer muitos dados sobre os homens brancos da
tripulação, já que reiteradamente podemos ler que gente graduada como o cirurgião
Antônio de Souza Ferreira, vindo no Santa Ana e São Francisco Xavier em 1771, era
natural do bispado de Lamego, tinha 42 anos de idade, embarcava havia 18 anos e era de
“estatura quase ordinária, rosto redondo carnoso, olhos pardos, barba presa e crespa,
cabelos pretos com alguns brancos”341. Já o capitão do São Pedro de Rates e

338
CANDIDO, Mariana Pinho. Fronteras de esclavización: esclavitud, comercio e identidad en Benguela
(1780-1850). México: El Colegio de México, 2011, p. 220.
339
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fls. 1-1v.
340
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fl. 30.
341
“Relação dos oficiais e mais pessoas da equipagem do navio Santa Ana e São Francisco Xavier que faz
viagem para Lisboa” (Pará, 1 de março de 1771). ANTT/JC, Relações de equipagens de navios e
passageiros, Maço 1, Caixa 3, fl. 30.

125
Santa Quitéria, José Pereira de Miranda, tinha 43 anos em 1776, data em que contava
30 anos de trabalho no mar e era de “estatura pouco mais que ordinária, cheio de corpo,
rosto comprido, moreno, olhos pardos, sobrancelhas grossas, bastante barba e usa de
cabeleira”342.
Dados dessa natureza, seriados, permitem numerosos cruzamentos. Por eles,
podemos saber de onde provinham os mareantes portugueses a partir de meados do século
XVIII, bem como suas idades nos diferentes graus da hierarquia de bordo, suas funções e
a aparência física deles. Assim fazendo, estaremos cumprindo uma agenda que a
historiografia tem deixado de lado. Como comentou Russel-Wood, os historiadores tem o
dever de buscar indivíduos, grupos e setores sociais que fundamentaram o império
português, retirando os homens comuns do esquecimento coletivo e do anonimato e
avaliando “a contribuição dessas pessoas para a sociedade dos impérios e dar-lhes o
crédito que há tanto lhes é devido”. Algo semelhante ao aventado por Gervase Clarence-
Smith acerca do comércio negreiro, mas que podemos ampliar para toda a marinha
mercante lusa, ao afirmar que “os marinheiros portugueses foram talvez o principal
contributo dado pela Metrópole ao tráfico de escravos”343.
Ocorre que esses mesmos registros de tripulações são muito menos detalhados
quando se trata de marinheiros escravizados ou forros, eles também construtores do
império por meio de seu trabalho a bordo. Nos mesmos navios em que os oficiais brancos
foram descritos detalhadamente, obtemos dados mais grosseiros de forros e escravos no
ato da matrícula. José Gonçalves Rosa, preto forro cozinheiro no São José Rei de Portugal,
era natural da Costa da Mina, tinha mais de 40 anos, embarcava havia mais de 20, assinou
em cruz e dele não se fez nenhuma descrição344. De Alexandre Ferreira, servente no Santa
Ana e São Francisco Xavier, sabemos apenas que era um “preto escravo” de Antônio de
Souza Ferreira (o cirurgião descrito acima), natural de Moçambique, que “mostra ter 30
anos” e embarcava havia dois anos345. Os exemplos poderiam ser arrolados à exaustão:
Antônio Soares, “homem preto natural da Paraíba, forro, de idade de vinte anos,
embarca a três e meio”, era grumete no Senhora da

342
“Relação da equipagem da galera S. Pedro de Rates e Santa Quitéria que segue viagem para Lisboa
vinda do Porto”. (Rio de Janeiro, 30 de abril de 1776). ANTT/JC, Relações de equipagens de navios e
passageiros, Maço 2, Caixa 7.
343
RUSSEL-WOOD, Escravos e libertos no Brasil colonial, op. cit., p. 44; CLARENCE-SMITH, O
terceiro império português, 1990, p. 51.
344
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fl. 30.
345
“Relação dos oficiais e mais pessoas da equipagem do navio Santa Ana e São Francisco Xavier que faz
viagem para Lisboa” (Pará, 1 mar.1771). ANTT/JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço
1, Caixa 3, fl. 31.

126
Conceição, São José e São João Baptista em viagem de Lisboa a Pernambuco em 1767.
Seu tempo como grumete ou moço poderia se estender bastante até alcançar o posto de
marinheiro, continuando por muitos anos a ser considerado um homem de pouca prática
nos serviços de bordo, subindo às gáveas e fazendo outros trabalhos, podendo ser de moço
de botica, dos cabos, de governo, do leme, das luzes (responsáveis pela limpeza e
conservação das lanternas, faróis e outras luzes de bordo), do paiol, de vassoura (ou
limpeza, também chamados de pajens), de convés ou de gávea346.
Na mesma viagem também trabalhou o cozinheiro Pedro Pereira, “homem preto”
natural de Cabo Verde, que fora escravo de Antônio Pereira Soares “de quem apresentou
carta de alforria” assinada dois anos antes. Desde então vivia embarcado, tendo na ocasião
mais de cinquenta anos de idade. O preto forro Manuel da Cruz de Jesus, cozinheiro mina,
embarcava havia 12 anos quando foi matriculado no N. S. da Ínsula, Santo Antônio e
Almas em 1775, seguindo viagem do Rio de Janeiro paraLisboa. Igualmente sem
indicação de sinais veio matriculado no Santíssimo Sacramento e N. S. da Lapa João
Antônio Correa, pardo forro natural de Lisboa, com 21 anos de idade e embarcado havia
4 anos347.
Em 1767, o preto Manuel Ramos vinha como calafate do Santa Rosa e Senhor
do Bonfim. Sua função podia ser exercida a bordo ou em terra, nos estaleiros e ribeiras,
e exigia habilidades para tapar qualquer abertura que permitisse a infiltração de água
marinha, o que fazia utilizando ferramentas próprias para inserir estopa, breu ou sebo nas
frestas. Junto com os carpinteiros, os calafates compunham o grau de mestrança, o mais
elevado dentre os marinheiros348. Ramos era cativo de Joaquim Ramos de Azevedo,
homem que não estava embarcado no navio em questão. Sua matrícula, como a de outros
homens negros, informa que ele “mostra ter” vinte e cinco anos”349, deixando em aberto
uma questão: qual o significado de “mostra”? É o mesmo que
346
Conforme as definições contidas em CAMPOS, Maurício da Costa. Vocabulário marujo. Rio de Janeiro:
Of. de Silva Porto, 1823, p. 62 e 76; LEITÃO, Humberto & LOPES, José Vicente. Dicionário dalinguagem
de marinha antiga e atual. Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1963, p. 278- 279;
FREITAS, Novo dicionário, p. 209; ESPARTEIRO, Antônio Marques. Dicionário ilustrado de marinharia.
2ª ed., Lisboa: Clássica, 1943, p. 110; AMORIM, João Pedro d’. Dicionário da Marinha. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1841, p. 177.
347
“1767 - Livro das Matrículas dos Marinheiros”. ANTT/JC, livro 2, fls. 8 e 9v, respectivamente; “Relação
da equipagem da corveta N. S. da Ínsula, Santo Antônio e Almas que segue viagem para a cidade de Lisboa”
(Rio de Janeiro, 21 de março de 1775). ANTT/JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço
2, Caixa 8; “Relação da equipagem do navio Santíssimo Sacramento e N. S. da Lapa que segue viagem para
os portos de Cabo Verde, Bissau e Maranhão” (Maranhão, 10 de novembro de 1776). ANTT/JC, Relações
de equipagens de navios e passageiros, Maço 2, Caixa 8.
348
CAMPOS, Vocabulário, p. 30 e 71; AMORIM, Dicionário, p. 76; ESPARTEIRO, Dicionário, p. 45-
46; LEITÃO, & LOPES, Dicionário, p. 275.
349
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fl. 28.

127
aparenta, sem dúvida, mas Manuel não falava, não fazia sinais nem conseguia secomunicar
por outros meios? É difícil acreditar que ele não dominasse a língua portuguesa, pois
embarcava havia treze anos, oito dos quais nesse mesmo navio que, desta feita, seguia de
Lisboa a Angola.
Se observarmos apressadamente esses registros pouco minuciosos quando tratam
dos marinheiros negros, a ausência dos mesmos sinais identificadores inscritos quando se
descreviam os marinheiros brancos pode ser entendida como um traço da cultura dos
europeus. Mas é difícil crer que um português comum do século XVIII não conseguisse
descrever um homem de cor negra, considerando a convivência cotidiana dada pela
presença deles no Reino, pelas constantes viagens à África e pela escravidão nosdomínios
coloniais. Em tempos muito mais recuados, o padre Francisco Álvares, que teria se avistado
com o legendário Preste João em uma embaixada lusa à Abissínia na década de 1520, fora
capaz de fazer dele uma descrição detalhada e, curiosamente, usando as mesmas categorias
que a matrícula dos marinheiros registraria no século XVIII:

Na idade, cor e estatura é de homem mancebo não muito preto, seria


de corcastanha ou de maçã baionesa, não muito parda e em sua cor
bem gentil homem, mediano de corpo. Diziam ser de idade de 23
anos, ele assim o parece. Tem o rosto redondo, grandes olhos, o nariz
alto no meio e começa de lhe nascer barba (...)350.

Se o registro dos marinheiros se fazia apenas pela observação do escrevente da Junta


do Comércio, a dificuldade em descrever um homem negro poderia ser explicada tal como
foi, décadas depois, por um jovem militar alemão empregado nas tropas de Pedro I, no
Brasil, que afirmava serem os negros como os carneiros: “não têm fisionomias próprias, a
diferença de feições é tão pequena entre eles que isso só não basta para distingui-los uns
dos outros. Parecem-se tanto que é fácil confundi-los”351. A explicação é insatisfatória, além
de obviamente racista. Schylichthorst, o narrador em questão, convivendo ou não com
pessoas de cores diferentes da dele, tinha má vontade com tudo que ultrapassasse os limites
de sua terra natal. Mas outros viajantes estrangeiros, com passagens pela Lisboa setecentista,
haviam sido capazes de distinguir Rosa, a preta favorita de D. Maria I, como “beiçuda
e de nariz esborrachado”, como
350
ÁLVARES, Francisco. Verdadeira informação das terras do Preste João das Índias (1ª ed.: 1540),
reproduzido em SILVA, Alberto da Costa e, op. cit., p. 129.
351
SCHYLICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1826): uma vez e nunca mais.
Contribuições de um diário para a história atual, os costumes e especialmente a situação da tropa
estrangeira na capital do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 145-146.

128
vimos anteriormente. Ao longo do século XIX, os anúncios de fuga de escravos
costumavam ser bem mais detalhados, o que indica que os brancos eram capazes de
descrever os negros, sobretudo quando se tratavam dos seus escravos negros352.
A ausência de discriminação dos traços físicos nas matrículas de equipagens soa
como o cumprimento da vontade dos senhores de escravos. Estes, querendoeventualmente
substituir um cativo por outro nas matrículas, não desejariam ver os traços físicos mais
característicos de seus escravos arrolados em um documento oficial, pois isso poderia
dificultar a entrada de outros em viagens futuras desde as restrições impostas pela lei de
1761. Mas esta explicação é parcial e não dá conta de tudo, pois negros forros também
não tiveram os dados referentes à descrição física preenchidos nas matrículas de
marinheiros.

Marinheiros forros

A cor, aliada à condição social, limitava a descrição física. Tanto os forros como os
escravizados arrolados nas listas raramente tiveram suas peculiaridades físicas descritas nos
documentos de matrícula de equipagens. Vejamos, primeiramente, o que esses registros
informam sobre os forros. Minha amostragem inclui 62 homens nessa condição: 17 pardos,
42 pretos e os 3 restantes sem alusão à cor.
Os pardos quase nunca tiveram registrados seus estados civis ou os nomes de seus
pais. Para apenas um deles há esta última informação – um português de Viana chamado
Manuel de Sena Viana, 22 anos em 1767 e quatro de embarque353. Dozedesses pardos
forros cumpriam a função de serventes a bordo, enquanto outros cinco não tiveram suas
ocupações discriminadas. Cinco dentre eles eram portugueses (de Lisboa, Porto,
Calhandriz e Viana), um de Cabo Verde e três da América portuguesa (dois do Grão-Pará
e um de São João del Rei, capitania de Minas Gerais); oito não tiveram seus locais de
nascimento registrados. Sete homens foram descritos fisicamente, enquanto para os
demais não houve preenchimento desse dado. Os cabelos frisadoseram a característica
que mais chamava a atenção dos escrivães, seguida da cor trigueirae dos olhos pardos como
suas peles. As estaturas eram variadas (de ordinária para mais ou para menos). Tratava-se
de homens na faixa dos 20 anos, exceto por dois de 39 anos
352
Luiz Geraldo Silva abre seu belo capítulo “Cativeiro a bordo” tratando justamente da descrição de
Anselmo, um escravo marinheiro fugido no porto do Recife. Ver A faina, a festa e o rito, op. cit., p. 155-
156. No tocante aos anúncios de jornal e ao domínio da língua portuguesa como fator de distinção na
visão senhorial, ver LIMA, Ivana Stolze. “A língua de branco no Rio de Janeiro”. Revista do Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro, n. 9: 2015, p. 63-76.
353
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fl. 52v, navio São Luís.

129
(Julião Peixoto, de Calhandriz, e Francisco M. Pobo ou Polo, o mineiro) e um de 17 anos
nascido no Porto. Dois deles eram minimamente alfabetizados, já que assinaram suas
matrículas: o já citado Manuel de Sena Viana e Francisco Antônio (24 anos em 1767,
paraense). Quatro dentre esses homens eram marinheiros inexperientes: três de primeira
viagem (José Dionísio, 20 anos, Vicente Ferreira e Custodio de Souza, ambos de 23) e um
que embarcava pela segunda vez – Antônio Thomas dos Santos, de 17anos. Os demais
tinham entre três e dez anos de vida no mar, o que não lhes valeu para subir na hierarquia,
já que nenhum deles passou do grau de servente, como vimos acima354.
Em outras marinhas, a possibilidade de ascensão profissional também era restrita e
chamava a atenção dos passageiros. Edouard Manet narrou que no navio que o trouxe da
França ao Brasil havia um camareiro negro entre os 26 tripulantes. Nesse posto, o homem
encarregava-se da disciplina dos grumetes e aprendizes, “os quais são tratados a socos e
pontapés; o que (...) os torna extremamente obedientes. O camareiro, que, como já te disse,
é negro (...) não os poupa de umas boas surras quando saem da linha”. Nos navios
portugueses, a cor da pele, confundida com a condição social, impedia negros de se
tornarem gente de habita, rufo e volta na habita, antiga gíria maruja para designar pessoa
de alta categoria355.
Como primeiro exercício, podemos contrapor os dados destes forros pardos aos
dos negros na mesma condição. Dos 42 pretos forros da amostra, nenhum teve registrado
seu estado civil e apenas um teve assinalado os nomes do pai e da mãe – o baiano Santos
Xavier, de 18 anos e marinheiro de primeira viagem356 – sinal de queseus pais eram
formalmente casados ou viviam em concubinato. Cinco deles vinham como cozinheiros,
outros cinco eram “moços”, vinte e três eram serventes e nove não tiveram a função a bordo
registrada. Neste caso, como no dos pardos forros, a ausência de menção à ocupação não
sugere que esses homens fossem mais graduados do que serventes. Seguramente, eram
marinheiros comuns, assim como os que mereceram o registro de serventes. Os pretos
forros haviam nascido sobretudo na África: sete eram deAngola, um de Benguela, outro
de Bissau, sete de Cabo Verde, um do Congo e nove da
354
As informações sobre os pardos forros, salvo por indicação em contrário, foram retiradas de diversos
documentos contidos em ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768) e Maço 1,
caixas 2, 5, 6, 7 e 8.
355
MANET, Viagem ao Rio, op. cit., p. 18 e 22; LEITÃO & LOPES, Dicionário, p. 3. Para uma discussão
sobre cor e condição social na América portuguesa do século XVIII, ver LARA, Fragmentos setecentistas,
p. 131 e ss.
356
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fl. 8, 1 de maio de 1767, navio
N. S. da Piedade das Chagas.

130
Costa da Mina. Nove outros eram naturais da América portuguesa (um da Bahia, dois
da Paraíba, dois de Pernambuco, três do Rio de Janeiro e um de Santos, São Paulo),
enquanto três eram nascidos no Reino (dois em Lisboa e um no bispado de Braga), sendo
que para quatro homens não há informação acerca da naturalidade. Quando aos traços
físicos, sabemos algo apenas sobre João Roiz, de 20 anos de idade e seis de vivência
marítima: de “estatura menos de ordinária, rosto comprido, nariz longo, cabelo preto
frisado”. Para os 41 restantes, não se fez menção a sinais físicos de espéciealguma,
exceto a cor da pele.
Entre os pretos forros, o grau de conhecimento da escrita não era diferente do
dos pardos forros. O paraibano Antônio Soares, de 20 anos de idade e 3,5 anos de
experiência no mar, ao ler os dados de sua matrícula, “tudo jurou e assinou”. O angolano
de 24 anos Cristóvão da Silva, Manuel da Luz dos Anjos (natural de Bissau) e o
caboverdiano Francisco Lopes, os dois últimos de 18 anos e todos embarcados emuma
viagem de Lisboa a Bissau em 1767, também assinaram seus registros357. Os demais forros
assinaram em cruz ou o espaço foi simplesmente deixado sem preenchimento.
As idades dos embarcados nesta categoria se mostraram bem mais variadas,
remetendo a possibilidades que os registros permitem apenas especular. O preto forro mais
jovem que encontrei foi o servente Brás Lopes, caboverdiano de quatorze anos quefez sua
primeira viagem como marujo navegando do Rio de Janeiro a Lisboa em1776358. O mais
velho foi o servente paraibano Francisco Pedro, de incríveis 81 anos, sessenta deles
engajado em embarcações sem conseguir qualquer ascensão profissional359. Não pude saber
desde quando ele era forro, mas Francisco provavelmente viveu grande parte de sua vida
como escravo. E escravos não costumavam mudar de função a bordo, exceto indo de
moços a serventes, marinheiros ou, quando muito, cozinheiros em navios mercantes.
Alguns foram mencionados em relatos de viajantes. Um deles foi descrito com certo temor
por Thomas Ewbank ao rumar para o Rio de Janeiro em 1845 num vapor tripulado por
onze homens: “negro, enorme, vestindo um pontudo gorro vermelho, camisa da mesma
cor agourenta, com as mangas enroladas acima do cotovelo, pernas nuas e ua faca na mão,
357
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768), fl. 43v (3 de julho de 1767, navio
N. S. da Conceição, São José e São João Baptista) e Livro 2 das Matrículas dos Marinheiros(1767),
7 de junho de 1767, corveta São Pedro Gonçalves, fl. 8, respectivamente.
358
“Relação da equipagem da galera N. S. de Nazaré e Santo Antônio que segue viagem para Lisboa”.
ANTT/JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço 1, Caixa 7, 3 de junho de 1776.
359
“Relação dos oficiais, e mais equipagem da nau Princesa do Brasil, que segue viagem para a cidade de
Lisboa” (Rio de Janeiro, 29 de novembro de 1776). ANTT/JC, Relações de equipagens de navios e
passageiros, Maço 1, Caixa 8.

131
o cozinheiro bem poderia assustar outros corações além dos das galinhas”360. O pastor Hill, a
bordo de umnavio de guerra inglês que capturou um negreiro no Canal de Moçambique em
1843, narrou o despreparo de Cato, “nosso cozinheiro mulato, atarefado, naquela luz
imperfeita, entre panelas e chaleiras, fazendo um fogo na cozinha para preparar nosso café da
manhã”361. O exemplo do cozinheiro forro Rufino demonstra a continuidade de uma condição
subalterna nas equipagens mesmo quando se superava a escravidão, ainda que ele fosse, além
de tripulante, um dos sócios minoritários na carga da Ermelinda, navio capturado pelos
ingleses e tripulado por ele em 1841362.
As médias etárias dos forros são apresentadas a seguir363.

TABELA 1 – IDADES DOS FORROS EM NAVIOS LUSOS


FAIXA ETÁRIAS Nº DE FAIXA ETÁRIAS Nº DE
PRETOS PRETOS
FORROS FORROS
REGISTRADO REGISTRADO
S S
14 anos ou menos 1 De 36 a 40 anos 3
De 15 a 19 anos 5 De 41 a 45 anos 3
De 20 a 25 anos 10 De 46 a 50 anos 2
De 26 a 30 anos 7 De 55 a 60 anos 1
De 31 a 35 anos 3 Mais de 60 anos 1

Para outros seis homens, as idades não foram informadas. Com os dados de que
dispomos, a faixa etária dos 20 aos 30 anos, tal como entre os pardos forros, era a que
reunia o maior número de homens, representando quase a metade dos registros. O
trabalho no mar, efetivamente, era exercido por homens jovens e fortes o bastante para
suportar cargas, longas horas de serviço diário e um tempo dilatado de suas vidas a bordo
em condições muitas vezes insalubres, com imensas variações climáticas e pouco alimento
e água disponíveis364.
De idades variáveis, esses homens também acumulavam tempos diferentes na vida
marítima. Três deles eram de primeira viagem, três de segunda, um já tinha feito três
viagens e outro embarcara mais de vinte vezes, embora não saibamos em quanto

360
EWBANK, Vida no Brasil, op. cit., p. 24.
361
HILL, Pascoe Grenfell. Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro. Rio de Janeiro: José Olympio,
2006, p. 89.
362
REIS, GOMES e CARVALHO, O alufá Rufino, op. cit., p. 170.
363
As informações sobre os forros, nesta e nas próximas tabelas e ao longo do texto, salvo indicação
contrária, foram retiradas de diversos documentos contidos em Relações de equipagens de navios e
passageiros, ANTT/JC, Livros 1 e 2; Maço 1, Caixas 1, 2, 3, 5, 6, 7 e 8, cobrindo o período de 1767 a 1776.
364
Para uma reflexão mais alongada acerca da saúde dos homens do mar, ver o Capítulo 2.

132
tempo. Os demais acumulavam de um a 60 anos de experiência. As fontes da tabela a
seguir são as mesmas da Tabela 1.

TABELA 2 – PRETOS FORROS E TEMPO DE ENGAJAMENTO EM NAVIOS


MERCANTES
EXPERIÊNCIA Nº DE PRETOS
MARÍTIMA FORROS
REGISTRADOS
1 a 5 anos 13
6 a 10 anos 10
11 a 15 anos 4
16 a 20 anos 3
Mais de 20 anos 2

Esses dados indicam que a vida útil dos trabalhadores marítimos nos graus mais
baixos, sempre ocupados por forros (e por escravos, como veremos adiante), situava-se em
torno de 10 anos. Quase 3/4 dos pretos forros tinha esse tempo de experiência de trabalho
no mar, e poucos conseguiam suportar a faina por mais tempo – o que torna ainda mais
incrível a história do velho Francisco Pedro, mencionada anteriormente.
Dentro do que as evidências permitem, finalizo este item problematizando algumas
afirmações de Márcio de Sousa Soares, que por sua vez retoma escritos de Orlando
Patterson, Claude Meillasoux e Rafael Marquese. Sousa, apoiado na discussão acerca da
“incorporação liminar” dos escravos, nota que as sociedades escravistas, ao mesmo tempo
em que se utilizavam dos cativos, os mantinham fora dela. Desenraizados, os escravos
africanos só podiam superar a “incorporação liminar” por meio da manumissão, “isto é,
após a aquisição de um novo status: forro ou liberto”365. Ainda que as situações descritas
neste capítulo não possam ser definidas como partes de uma sociedade escravista, a
existência de cativos a bordo e de homens forros como membros das tripulações marítimas
eram ocorrências comuns. Todavia, no âmbito da navegação de longa distância no
Atlântico, a aquisição do status de forro não significava a incorporação plena àquela
comunidade. Para ser incorporado à comunidade e à cultura profissional marítima, não
importava se o indivíduo era escravo ou forro – isto é, ambos tinham seu lugar. Ao tornar-
se forro, um homem negro, fosse africano ou nascido em alguma outra parte dos domínios
lusos, inclusive o Reino, não mudava de lugar na hierarquia nem vislumbrava uma
perspectiva de ascensão sócio profissional. A cor e a condição social pregressa limitavam
seu acesso a postos mais elevados na hierarquia de bordo. A inda que me soe incômoda

365
SOARES, Márcio de Souza. “A promessa da alforria e os alicerces da escravidão na América
portuguesa”. In: GUEDES, Roberto (org.). Dinâmica imperial no Antigo Regime Português: escravidão,
governos, fronteiras, poderes, legados, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Mauad X, 2011, p. 37.

133
a analogia entre processosbiológicos e históricos, a ideia de Meillasoux, citada por Sousa, vai
na direção do defendo: a metáfora do crescimento vegetal aplicada à liberdade (“nascer e
amadurecer juntos”) não se aplica ao “estranho”. O escravo, no caso o estranho, é o que “não
se desenvolveu no meio social em que se encontra, que não cresceu dentro dos laços das
relações sociais e econômicas que situam um homem em relação a todos os outros”366. Engajar-
se no trabalho marítimo na condição de escravo e depois alcançar a liberdade pela via da
alforria não trazia automaticamente o benefício ou a possibilidade da ascensão profissional.
No entanto, essa não era a única vantagem possível para um marinheiro forro.
Havia outras, como a troca de patrão ou de embarcação por outro(a) que lhe dispensasse
melhor salário, tratamento e alimentação, além de diminuir ou diluir o estigma da
escravidão pregressa e possibilitar mobilidade espacial e autonomia pessoal, inclusive para
deixar esse trabalho para traz e mudar de atividade – enfim, desejos humanos comuns e
pelos quais vale a pena lutar. Sousa não vê a alforria como resistência ou conquista do
cativo, mas como parte da estratégia senhorial de controle e legitimação da escravidão367.
Creio, porém, que um modo de ver não elimina o outro e que, isolada e unívoca, a visão
da alforria de um modo (conquista) ou de outro (concessão) perde muito de sua força
explicativa. Se o mundo do trabalho marítimo não permitia aosforros a incorporação
plena e a ascensão profissional, e isso se devesse apenas a uma estratégia senhorial, o liberto
poderia simplesmente usufruir de sua liberdade em outro lugar e em outras tarefas onde
suas habilidades fossem reconhecidas.

Marinheiros escravos

De acordo com Mariana P. Candido, as matrículas de equipagens de navios lusos


entre as últimas décadas do século XVIII e as primeiras do XIX listam 230 escravizados
em um universo de 8.441 tripulantes. Colhi dados que compõem uma amostra de 102
deles, com a intenção de analisar o perfil desse contingente368.
A julgar pela amostragem, não interessava aos escreventes a informação sobre o
estado civil dos escravizados. Apenas o português Antônio Franco, casado com Ana

366
MEILLASOUX, Antropologia da escravidão, apud SOARES, op. cit., p. 37.
367
SOARES, op. cit., p. 37-38.
368
As informações sobre os escravos citadas a seguir foram retiradas de diversos documentos contidos em
Relações de equipagens de navios e passageiros, ANTT/JC, Livros 1 e 2; Maço 1, Caixas 1, 2, 3, 5, 6, 7 e
8, cobrindo o período de 1767 a 1776.

134
Franca, teve esse dado preenchido. Os mais de cem escravos restantes, que não tiveramo
campo sobre o estado civil preenchido, deveriam seguir a regra comum entre pessoas nessa
condição social: eram solteiros aos olhos da Igreja, mas nada os impedia de ter
companheiras em terra nos locais para onde eventualmente retornavam, entre umaviagem
marítima e outra. No registro dos escravos em Portugal do século XVIII, a filiação aparecia
quando era sabida: simples, “no caso de pai desconhecido, o que é frequente, e dupla, para
os casais abençoados pela Igreja ou vivendo em concubinato, o que é mais frequente, pois
os donos, de maneira geral, não olhavam com benevolênciaos casamentos de escravos e
tentavam embargá-los”369. Nenhum escravo mereceu esse registro nas matrículas de
equipagens.
A bordo, os escravos cumpriam funções braçais em postos hierarquicamente
baixos, tal como ocorria com os forros. Eram calafates (um caso), cozinheiros ouajudantes
destes (3), serventes (45), mancebos (9) ou grumetes (4), independentemente de suas idades
e experiência no trabalho.
Considerando os locais de nascimento, a escravidão marítima era alimentada
continuamente pelo tráfico africano, como a tabela a seguir indica. Ainda que esse
comércio tenha sido proibido em Portugal em 1761, nos circuitos da navegação com
passagens pelo Reino a presença africana continuava ostensiva.

TABELA 3 – NATURALIDADE DOS ESCRAVOS EMBARCADOS EM NAVIOS LUSOS


LOCAL DE Nº DE TRIPULANTES LOCAL DE Nº DE TRIPULANTES
NASCIMENTO ESCRAVOS NASCIMENTO ESCRAVOS
África 43 Portugal 8
Angola 19 Lisboa 5
Benguela 2 Setúbal 2
Congo 1 Viana 1
Cabo Verde 7 Caparica 1
Costa da Mina 9
Guiné 1
Moçambique 4
Ásia América Portuguesa
Índia 1 Bahia 1
Não consta: 49

À exceção de João Ferreira, “alto e refeito do corpo”, preto que não sabemos onde
nascera e que havia vinte anos trabalhava no mar no “exercício de mancebo”370,

369
LAHON, O negro no coração do Império, op. cit., p. 47.
370
ANTT/JC, Livro 1, Matrículas de equipagens de navios (1767-1768) , fl. 26 (3 de julho de 1767, navio
São José Rei de Portugal).

135
todos os demais escravos não mereceram descrição física nas matrículas das equipagensdos
navios.
Com frequência ainda menor do que a constatada entre os forros, os escravos
assinavam seus nomes. Em geral, o campo da assinatura não está preenchido ou a notação
informa de que o escravo “assina em cruz”. A única exceção é reveladora do ânimo dos
escreventes para com a matrícula dos cativos: o pardo Antônio Rodrigues de Faria, de vinte
e quatro anos, escravo do capitão do Santa Rosa e Senhor do Bonfim na rota Lisboa-
Luanda, assinou seu nome. Seguindo sua rotina e o costume, o escrevente anotou que ele
assinou em cruz, mas a assinatura logo abaixo desmente essa inscrição371.
Que importância teria o letramento dos escravizados e dos forros? Alguns
historiadores têm lidado com a circulação desses homens pelos domínios lusos e a
forma pela qual eles podiam espalhar rumores e notícias indesejáveis para os senhores, tais
como as leis sobre a escravidão editadas em Portugal na época pombalina, conforme
destacou Venancio. Na Paraíba, ao reprimir uma revolta em 1773, as autoridades
descobriram que negros livres e com algum grau de letramento e com ocupaçõesmanuais
formaram um grupo para debater, entre outros assuntos, as leis promulgadas naqueles
anos372. O letramento entre escravizados e forros nos domínios lusos era sabidamente
pequena, mas os poucos que detinham essa habilidade, se assim o desejassem, tiveram
chances de potencializar seu papel de linha de transmissão de informações que não
convinham à ordem escravista, sobretudo na condição de marinheiros. Os autores de
Cidades negras destacaram a forma pela qual os portos marítimos foram articulados
culturalmente pela experiência dos marujos: “Navios, conveses e portos constituíram
espaços improvisados de comunicações, gestações de culturas étnicas, criação de linguagem
e percepções políticas originais”. A partir de baías, rios e lagoas das cidades negras, muitos
escravos se engajavam em atividades atlânticas, indo parar em lugares distantes. Os
autores atentaram ainda para o fato de que, nos anúncios de fugas publicados em jornais

371
ANTT/JC, Livro 2 das Matrículas dos Marinheiros (1767), fl. 31v, 3 de junho de 1767. Grafo
“escrevente” ao invés de “escrivão” tendo em mente a distinção apontada entre esses cargos por António
Gregório de Freitas, para quem escrivão era o “oficial de fazenda encarregado da receita e despesa dos
navios de guerra”, enquanto o escrevente trabalhava nos navios mercantes “debaixo da direção da
sobrecarga”. Entre suas funções estava a de “ter um livro diário (...) no qual deve registrar os aprestos,
aparelhos e vitualhas do navio; as fazendas que se carregam e descarregam, os nomes dos passageiros, os
fretes, e direitos por eles devidos, o rol da equipagem com as respectivas soldadas, os nomes dos que
morrem nas viagens, as compras feitas para o navio, e geralmente quanto respeita à despesas da viagem
(...)". FREITAS, Antônio Gregório de. Novo dicionário de marinha de guerra e mercante. Lisboa: Imprensa
Silviana, 1855, p. 181.
372
VENANCIO, Cativos do Reino, p. 11, 169; SILVA, “Esperança de liberdade”, op. cit., p. 136.

136
durante a primeira metade do século XIX, era comum os senhores alertarem os oficiais “para
não receber escravos fugitivos como marinheiros ou embarcados, mas a reiteração desses
apelos indica que os mestres dos navios não eram muito sensíveis a esses reclamos”373. Na
capital portuguesa, lugares como o Bairro Alto, a Madragoa (bairro também conhecido como
Mocambo), a Alfama e a Mouraria da primeira metade do século XIX eram espaços diferentes
da cidade convencional. Ali, havia gírias próprias e era de noite que mais se notavam as
fronteiras entre a boêmia e a sociedade respeitável. Prostitutas, fadistas, marialvas, toureiros,
boleeiros, vagabundos e marinheiros tinham os seus mundos característicos; mantinham uma
convivência aberta entre si; independentemente das origens sociais de cada um”374. Em bairros
à margem do Tejo não era diferente:

Quem passa à tardinha pelo Cais do Sodré, vê do lado do poente,


aos pésdo quarteirão oposto ao do Hotel Central, dúzias de homens
ali aglomerados, ali conversando, e reconhecê-los-á logo por gente do
mar: capitães mercantes, e pilotos, e mestres, e barqueiros, e
marinheiros, tudo alise junta diariamente, a falar e a ver o Tejo, e a
estudar a aparência meteorológica da barra, e a encontrar amigos, e a
saber notícias comerciais, e a entender-se com os negociantes; em
suma, a labutar no seu ofício. Pois bem: quem aí passar, lembre-se de
que há séculos assim é, mais por aqui, mais por ali; reunião aquela
essencialmente masculina, e onde nunca aparece o elemento
feminino375.

Muito provavelmente os marinheiros traziam para locais como esses as notícias dos
domínios ultramarinos e as faziam circular nos meios populares, valendo-se da linguagem
escrita ou da oralidade.
Se os forros eram pardos ou pretos, com os escravos o quesito cor não era mais
variado. Dos 102 homens da amostra, 84 tiveram a cor de suas peles assinaladas – os
demais dezoito podiam ser de qualquer item da gradação pouco variada que encontramos
nas matrículas de tripulantes das últimas décadas do século XVIII. Um mulato foi inscrito:
o servente Paulo da Silva, de 28 anos e naturalidade não especificada. Dos quatro pardos,
sabemos que um era lisboeta e sobre os demais não temos a informação do local do
nascimento. Considerada a naturalidade, os 79 marinheiros escravos pretos da amostra

373
FARIAS, Juliana Barreto; GOMES, Flávio dos Santos; SOARES, Carlos Eugênio L.; ARAÚJO, Carlos
Eduardo M. de. Cidades negras: africanos, crioulos e espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX.
2ª ed., São Paulo: Alameda, 2008, p. 47.
374
SÁ, Victor de. Lisboa no liberalismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1992, p. 10.
375
CASTILHO, Julio de. A Ribeiro de Lisboa: descripção histórica da margem do Tejo. Lisboa: Imprensa
Nacional, 1893, p. 522-523.

137
eram predominantemente africanos, sendoapenas 7 portugueses e um soteropolitano.
Tabulando-se as informações sobre as idades desses homens, temos o quadro
sistematizado na tabela que se segue.

TABELA 4 – IDADES DOS ESCRAVOS EM NAVIOS LUSOS


FAIXA ETÁRIAS Nº DE FAIXA ETÁRIAS Nº DE
ESCRAVOS ESCRAVOS
REGISTRADOS REGISTRADOS
14 anos ou menos 4 De 36 a 40 anos 5
De 15 a 19 anos 10 De 41 a 45 anos -
De 20 a 25 anos 29 De 46 a 50 anos 2
De 26 a 30 anos 22 De 55 a 60 anos 1
De 31 a 35 anos 4 Mais de 60 anos -

Assim como ocorria com os forros, os escravos engajados no trabalho marítimo


eram jovens, com forte concentração na faixa até os trinta anos de idade (cerca de 84% dos
escravos e 64% dos forros). Quanto ao tempo de embarque, que denotava a experiência
marítima, este se mostrou mais equilibrado.

TABELA 5 – ESCRAVOS E TEMPO DE ENGAJAMENTO EM NAVIOS MERCANTES


EXPERIÊNCIA Nº DE ESCRAVOS
MARÍTIMA REGISTRADOS
Primeira viagem 11
1 a 5 anos 26
6 a 10 anos 18
11 a 15 anos 9
16 a 20 anos 5
Mais de 20 anos 4

Os dados sobre os escravos demonstram uma divisão equitativa, meio a meio, de


homens experientes e outros com experiência de trabalho marítimo de até cinco anos
(muitos dos quais marinheiros de primeira viagem). Alguns casos, não computados na
tabela, em vez de indicar tempo de engajamento, remetem à quantidade de viagens
feitas pelos marujos com expressões do tipo “três viagens neste navio”, “embarca para
Lisboa a primeira vez, e tem navegado para a colônia” e “já embarcou três vezes para a
Bahia”. Embora denotem experiência, as expressões impossibilitam uma estimativa do
tempo de embarque desses trabalhadores, ainda que servissem para a avaliação dos
responsáveis por engajar esses homens no trabalho.

138
Cativos marinheiros por vontade do senhor
Exercendo funções de marinheiros, alguns africanos escravizados encontraram
no mar oportunidades inusitadas de liberdade ainda antes dos Oitocentos e da longa
discussão acerca da “questão servil” no Brasil. Como vimos, africanos ou negros de diversas
origens não eram neófitos na navegação. Mas isso não explica os possíveis sentidos do
engajamento de homens escravizados em navios mercantes transoceânicos.
Primeiramente, é preciso distinguir algumas categorias, pelas possibilidades de
análise que elas oferecem. Havia os que eram engajados por seus senhores (ausentes das
embarcações) para viverem do ganho como marinheiros, em uma sociedade em que o
aluguel de escravos era comum. Também se encontravam os que eram escravos de
senhores vindos a bordo. Por fim, e mais difíceis de serem rastreados, havia aqueles
engajados voluntariamente e em processo de fuga sob diversas alegações. Evidentemente,
os que se inserem nos primeiros casos também poderiam construir a possibilidade da fuga,
por deserção em algum porto ou vivendo o resto de suas vidas como marinheiros em
diferentes embarcações.
As matrículas de equipagens oferecem pistas sobre a presença dos senhores nos
navios. Na amostragem de 102 marinheiros cativos, vinte e quatro foram nomeados
simplesmente como tal – cativos ou escravos. Outros trinta e oito foram registrados como
pertencentes a pessoas que não iam a bordo, sendo escravos de ganho ou de aluguel postos
a serviço de outrem por seus senhores. Como bem observou Russell- Wood, “não havia
ocupação que não contasse com seus negros de ganho, de navegadores e marinheiros a
cocheiros, pajens e uma variedade infinita de especializações e semi especializações”. Mas
a questão é que, no mar, sob vigilância, em isolamento e espaço limitado, o pecúlio que os
marinheiros escravos pudessem juntar era mais facilmente apropriado pelo senhor. Os
escravos de ganho marítimos enfrentavam outras dificuldades, como obter acesso ao
mercado de trabalho com relativa autonomia para barganhar o valor de seus serviços. Isso
pelo menos em algumas das profissões, como tanoeiro e calafate, que tinham “menos
oportunidade de trabalho que especialidades mais procuradas, como as de sapateiro,
carpinteiro, pedreiro ou ferreiro”376. Havia ainda o fato de que os pagamentos em geral não
eram feitos ao próprio trabalhador, confinado no navio e dependente das solidariedades
que construísseali para juntar um pecúlio longe das vistas senhoriais.

376
RUSSELL-WOOD, Escravos e libertos no Brasil colonial, op. cit., p. 63-64. Sobre os escravos de ganho
nas barcaças e embarcações de cabotagem a partir do porto do Recife, ver MILFONT, Magna Lícia Barros.
Caminhos das águas: o transporte fluvial no Recife, 1835-1860. Recife: UFPE, 2003. (Dissert. Mestr. em
Urbanismo), texto sem numeração de páginas.

139
Alguns homens da amostra eram cativos dos donos do navio ou apenas citados
como “escravos do navio”. Nestes casos não eram negros de ganho, e totalizam oito
homens. Os quarenta restantes pertenciam a algum membro da tripulação, mas não
sabemos se lhes cabia salário ou soldada pelos serviços prestados aos donos do navio
(ou seja, se eram alugados) ou se serviam apenas aos seus senhores no mar. A presença
deles pode ser entendida como fruto da vontade dos senhores, mas isso não quer dizer que
a opção desagradasse aos próprios cativos. Vejamos o que é possível saber deles, traçando
breves perfis.

Escravos marinheiros e seus senhores: perfis e trajetórias

Que tipo de senhor trazia escravos consigo? Ao longo da série que trabalhei, os
capitães eram os oficiais que, na maioria das vezes, tinham o privilégio de embarcar cativos,
que os serviam pessoalmente ou auxiliavam nas fainas coletivas. Dos quarenta escravos
pertencentes a membros das tripulações, trinta e um o eram de capitães.Contramestre,
piloto, sota-piloto, cirurgião, capelão e mestre carpinteiro eram as outras categorias de
oficiais com renda ou privilégios que os tornavam capazes de manter cativos a bordo. Até
a promulgação das leis pombalinas sobre o tráfico e a escravidão no Reino, os
funcionários coloniais, os capitães de navios e oficiais podiam receberparte de seus
salários em escravos, muitos dos quais teriam sido levados a Portugal e ali vendidos. O
padre Joaquim José Pinto, da galera N. S. do Rosário Paquete Feliz, tinha com o capitão
um acordo desse tipo: podia levar seis escravos e o que mais quisesse em seu camarote na
viagem até Benguela. Sabemos do acordo devido ao desentendimento que ambos tiveram,
o que valeu ao capelão ser despedido e levar “muitos murros no rosto e com tanta violência
que lhe fez sair pela boca e narizes grande quantidade de sangue e isso sem contar as injúrias
e palavras infames”377. Riscos inerentes à condição de padre-traficante.
A experiência de ser escravo marítimo de senhor a bordo incluía uma vigilância
constante. Pertencer aos homens mais bem postos na hierarquia profissional marítima
indica algumas possibilidades, nem todas facilitadoras da vida a bordo. Os oficiais
costumavam ser os alvos prediletos do escárnio dos marinheiros comuns, e pertencer a

377
ANTT, Feitos Findos - Juízo da Índia e Mina, letra Y, Maço 47, nº 3, Caixa 47. Todas as indicações a
processos desse fundo que cito neste texto me chegaram por intermédio de Mariana Candido, a quem
agradeço. LAHON, O negro no coração do Império, op. cit., p. 36, menciona o pagamento em escravos
como uma possibilidade também para marinheiros. Nas listas de matrículas de equipagens, não encontrei
nenhum caso de escravo pertencente a marinheiros comuns.

140
algum dos homens mais graduados podia tornar o escravo o elo mais fraco na corrente das
vinganças que os marujos cometessem. Exemplo disso aparece no relato de Samuel Greene
Arnold sobre o tratamento dispensado a um “negrinho passageiro de proa” quando seu
navio atravessou a linha do equador em 1847. O negrinho foi metido dentro d’água “com
bastante crueldade”378. Como a experiência anterior não lhe valeu para se safar da agressão,
podemos estar diante de um caso em que os demais marinheiros, não podendo atingir o
capitão, usaram de violência contra um escravo e/ou subordinado do capitão sob a forma
de uma retaliação cotidiana endossada pela cultura marítima.
Brigas corporais envolvendo marinheiros sempre foram comuns, tanto entre eles
como quando estavam ancorados e se metiam com a gente da terra. Mas aquelas
envolvendo marinheiros escravos e livres, se deixavam os primeiros em desvantagem, por
vezes podiam tomar outras proporções e ter outros desfechos. Não sabemos o motivo pelo
qual houve “um levantamento feito pelos pretos marinheiros e mais escravos da tripulação
contra o contramestre da mesma e um marinheiro branco, únicos que se achavam a bordo”
da galera Feliz Eugênia em Benguela no dia 15 de abril de 1812. Atacados, feridos e
amarrados, os marinheiros brancos não puderam impedir que seus colegas negros e
escravizados fugissem em um bote, levando consigo “vários pretos e pretas novos” até uma
praia ao norte da cidade. Os escravos do porão acabaram recuperados pela ação dos
moradores, mas não havia sinal dos marinheiros fugitivos379.
Em outras situações, o senhor dos escravos se intrometia ou era chamado a intervir.
Senhores que não vinham a bordo e não compartilhavam dessa cultura de violência,
sobretudo quando ela se voltava contra uma propriedade sua, podiam retaliar os
marinheiros livres que a praticavam: foi o que fez o desembargador Manuel Moreira de
Azevedo, ao invadir o Armazém do Lazareto dos africanos novos no Rio de Janeiro em
1816 para surrar um marinheiro que dera um bofetão em um seu escravo durante a
travessia do Atlântico. A história foi contada pelo Provedor Mor da Saúde e embora a
narrativa seja confusa, deixa entrever que o escravo esbofeteado era ladino e marinheiro
alugado por seu senhor pois, mesmo embriagado na ocasião, o homem foi capaz de se
lembrar do entrevero e “foi ele mesmo contar a seu senhor o sucedido com a cor que lhe

378
Ver Capítulo 1.
379
AHU, Angola, Caixa 125 (1812), doc. 5. Ofício de Antônio Rabelo de Andrade Vasconcelos a José de
Oliveira Barbosa, governador de Angola. São Felipe de Benguela, 17 de abril de 1812. O documento foi
analisado também por CANDIDO, “Different Slave Journeys”, p. 398.

141
pareceu”380. Quando não era o senhor, era a polícia: certa feita, o intendente da polícia do
Rio de Janeiro, Paulo Fernandes Viana, mandou o juiz do crime da freguesia deSanta
Rita abrir devassa “pela morte feita no preto Domingos a bordo do bergantim Vulcano,
vindo de Cabinda”. O réu era o marinheiro Manuel, tripulante de outro bergantim também
vindo de Angola, e acabou preso no Rio381.
Tendo cativos a bordo, a vigilância dos oficiais deveria ser dupla. Senhorial, quando
exercida sobre seu escravo, e atenta à propriedade escrava diante do tratamento que oficiais
ou marinheiros livres dispensassem ao cativo. Ter como proprietário um homem graduado
da equipagem poderia trazer o benefício de mais e melhor comida, água e horas de
descanso, a depender da índole do senhor. Mas isso também tornava o escravo alvo da ira
ou da chacota de marinheiros livres desejosos de atingir um capitão ou um contramestre
excessivamente rigoroso no trato com seus comandados.
Vir sem senhor a bordo era uma situação que também encerrava ambiguidades. A
vigilância senhorial direta, eventualmente compensada com melhor tratamento alimentar
e na atribuição de tarefas, era substituída pelo olhar controlador dos oficiais responsáveis
pela manutenção da disciplina e eficácia do trabalho. Esses oficiais poderiam ser mais duros
com trabalhadores escravos que, afinal, não lhes pertenciam e pelos quais tinham
responsabilidade limitada. Pagando pelo trabalho deles a outros senhores, os oficiais ou
donos dos navios extraíam o máximo de trabalho dos cativos embarcados. Mas o caminho
para a construção de solidariedades a bordo ou para a deserção talvez fosse melhor
pavimentado quando esse escravo estivesse longe das vistas de seu senhor e sob a vigilância
de senhores provisórios e sempre ocupados com seus afazeres cotidianos.
Seguramente, alguns dos cativos sem senhor a bordo eram escravos de ganho ou
alugados, pois pertenciam a mulheres e estas nunca andavam embarcadas, a não ser como
passageiras. O lisboeta Eugenio Antônio era um desses, pertencente a Bernarda Maria,
provavelmente uma senhora de algumas posses que teve seu nome inscrito na matrícula
juntamente ao de seu falecido marido, Álvaro Pereira. Também com sinal distintivo, de
“dona”, aparece Luiza Gercy, a senhora do moçambicano Salvador dos

380
AN, IS 4 1 - Ministério do Reino e Império. Provedoria de Saúde. Ofícios e Documentos Diversos (1809-
1817), ofício de Manoel Vieira da Silva ao marquês de Aguiar. Rio de Janeiro, 9 de março de 1816.
381
AN, Códice 323 - Correspondência da Polícia da Corte com várias autoridades, v. 2 (1810), fl. 6-6v, 3
de dezembro de 1810.

142
Santos382. Referidas apenas pelos nomes aparecem Rosa Clara Angélica, Ana Maria
(moradora de Lisboa) e Ana Marinha, proprietárias do marinheiro de primeira viagem
João Manuel (sem naturalidade declarada) e dos angolanos Pedro e Pedro José,
respectivamente383. A julgar por seus nomes, que não incluem nenhum sobrenome de
família, não seria estranho se essas mulheres, agora senhoras, tivessem sido escravas e
tenham passado a gozar da condição de forras.
Pouco se sabe acerca das atividades dos senhores, exceto pelo caso de José dos
Santos, pertencente a Manuel Pinto, soldado que mantinha seu cativo no ganho a bordo
de embarcações que zarpavam de Lisboa (neste caso com destino a Pernambuco),enquanto
o próprio senhor trabalhava em terra firme na guarda de Sua Majestade384. Mais afamado e
rico era Elias Antônio Lopes, traficante que cedeu uma propriedade para a instalação do
palácio real quando da vinda dos Bragança ao Rio de Janeiro em 1808. Ao falecer, em
outubro de 1815, ele deixou entre seus bens vários navios e algunsescravos ligados a eles.
Suas avaliações informam algo sobre o valor desses homens: os sete escravos marinheiros
do Paquete Infante foram avaliados em 759$200 – o equivalente a 832 sacos de farinhas
ou 169 barris de carne seca, itens também incluídos entre os pertences do navio. Lopes
possuía ainda sete escravos marinheiros no Diligente, avaliados em 836$000 e
representando 12% do valor total desse bergantim, e outros cinco que valiam o
correspondente a 9% do valor do São João Americano385. Ponderando as avaliações, e sem
sabermos nada sobre a idade, experiência ou as habilidades desses homens, temos que
cada escravo marinheiro valia, na época, algo emtorno de 111$578. A conta pode variar, e
as estimativas de valor de escravos marinheiros em comparação com outras especializações
requerem estudos mais aprofundados. Situações como a dos escravos marinheiros
apreendidos quando eram tripulantes de navios negreiros trazem outros dados, embora
382
“Relação dos oficiais e mais pessoas da equipagem da galera denominada N. S. da ConceiçãoDiamante
qualificada na Secretaria da Junta do Comércio destes reinos e seus domínios declarando fazer viagem para
o porto dessa cidade [Lisboa]”. Relações de equipagens de navios e passageiros (São Luís, 19 de julho de
1773). ANTT/JC, Maço 1, Caixa 6, 1767 – Matrículas das Equipagens dos Navios, navio
N. S. da Luz e São José (Lisboa, 3 de julho de 1767); ANTT/JC, Livro 2 das Matrículas dos Marinheiros
(1767), fls. 70-84, respectivamente.
383
“Relação da equipagem do navio N. S. da Madre de Deus e Santo Antônio que segue viagem para Lisboa
e veio do Porto”. Relações de equipagens de navios e passageiros (Porto, 15 de abril de 1776). ANTT/JC,
Maço 1, Caixa 7; “Relação das pessoas de que se compõem a equipagem do navio N. S. do Carmo e Senhor
da Cana Verde que vai para a cidade de Lisboa”. Relações de equipagens de navios e passageiros (Rio de
Janeiro, 24 de novembro de 1767). ANTT/JC, Maço 1, Caixa 1; “Relação daequipagem do navio São José
Princeza Real que segue viagem para Lisboa”. Relações de equipagens de navios e passageiros (Rio de
Janeiro, 12 de junho de 1769). ANTT/JC, Maço 1, Caixa 1.
384
Livro 2 das Matrículas dos Marinheiros (1767), fl. 42, navio N. S. da Glória, Santa Clara e Santo Antônio
(Lisboa, 5 de julho de 1767).
385
AN, Códice 789 - Inventário dos bens da casa do finado Conselheiro Elias Antônio Lopes, fl. 33, 68v e
71.

143
potencialmente inflacionados por seus donos ao requererem indenizações. Exemplo disso
aparece no pedido de indenização feito por Antônio Esteves dos Santos, proprietário da
sumaca Flor do Porto que, tendo perdido onze cativos marinheiros libertados pelos
ingleses quando da apreensão do navio na costa africana em 1812, avaliou cada um em
200$000. A Junta do Comércio acatou e aumentou ligeiramente a avaliação, ao pagar
2.263$725 aos proprietários dos marinheiros escravos – um preço aparentemente baixo se
comparado aos 140$000 que ele dizia valer cada um dos africanos embarcados em Onim
no porão do mesmo navio e igualmente perdidos na apreensão. Valor idêntico receberam
os donos do Feliz Americano, apresado em janeiro de 1812 em Porto Novo pelos ingleses
com doze tripulantes escravos a bordo386. Luiz Geraldo Silva mencionou que os jornais
recifenses de 1846 ofereciam escravo “sem vício nem achaques, e robusto” por 200$000,
ao passo que os senhores dos escravos marinheiros Manuel e José, fugidos em abril daquele
ano, ofereciam 150$000 de recompensa a quem os capturasse: “isso parece indicar que
eram muito importantes para a tripulação de seu navio”387.
Mathias, um escravizado de origem benguela e que aparentava 12 anos, embarcou
pela primeira vez em 1776. Provavelmente fora traficado para o Rio de Janeiro e seus
conhecimentos da língua portuguesa ainda eram incipientes, sobretudo quando sabemos
que ele era marinheiro de primeira viagem na rota Rio de Janeiro- Lisboa, sendo o único
cativo em meio a uma tripulação de 22 homens. Seu senhor, Antônio José Marques, era o
dono do navio em que ele vinha engajado e o barco era ativo havia alguns anos, já que
temos notícia de sua ancoragem no porto de Lisboa em 25 de maio de 1772, regressando
da Bahia388.
A condição de escravo, quase sempre reservada aos africanos, teve em José do
Rosário uma exceção notável, que a matrícula não explica. Este homem de 20 anos nascera
na Índia, o que talvez explique a ausência do registro da cor no campo cabível. Ele era
também o único escravo de Miguel Rodrigues Colaço, o dono do navio, na viagem feita
em janeiro de 1771 entre o Rio de Janeiro e Lisboa. Os oito anos de experiência

386
AN, Junta do Comércio, Caixa 445, Pacote 2 - Navios aprisionados pelos ingleses: pedidos de
indenização.
387
SILVA, A faina, a festa e o rito, op. cit., p. 189.
388
“Relação dos oficiais e mais pessoas da equipagem da corveta N. S. da Piedade e São Boaventura que
se destina a seguir viagem para Lisboa”. Relações de equipagens de navios e passageiros (19 de outubro
de 1776). ANTT/JC, Maço 1, Caixa 8; Catálogo de documentos manuscritos avulsos referentes à visita do
ouro existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Lisboa, AHU, s/d, p. 5, doc. 8.

144
marítima que Rosário acumulava nessa altura tinham sido integralmente cumpridos sob
cativeiro389.
Carlos Silva Jr. levantou outros dados sobre escravos que trabalhavam junto com
seus senhores nas embarcações, como o mina Antônio, pertencente ao capitão Jacinto
Gomes – senhor que tinha ao menos mais um cativo, Martinho, que ia como “marinheiro
na sumaca do defunto José da Silva” em troca de uma soldada de setenta mil réis. De
origem mina também eram Francisco e Joaquim, pertencentes ao capitão José Pereira da
Cruz e marinheiros embarcados em uma galera na rota Salvador-Costada Mina:

Francisco, aliás, protagonizaria um caso de fuga atlântica, quando


resolveu evadir-se assim que a galera Nossa Senhora do Rosário e
Santo Antônio aportou em São Tomé. Infelizmente, a liberdade durou
pouco, pelo menos dessa vez: Francisco foi encontrado e trazido para
a Bahia pelo capitão Manuel Antônio Matheus, em 1751390.

Histórias curtas como essas são o que os registros de matrículas de tripulações


permitem deslindar. Todavia, há casos em que as fontes informam algo mais sobre as vidas
de marinheiros negros e escravos e suas relações com homens de outra condição, incluídos
aí os senhores. Esse é o tema do próximo tópico.

Trabalho e cativeiro, autonomia e liberdade

As ações impetradas por escravizados ou seus representantes legais com vistas à


obtenção da liberdade tinham encaminhamentos diversos, conforme as bases que
sustentassem a causa e os tribunais que sobre elas tinham jurisdição. Quanto se alegava os
termos das leis de 1761 e de 1776, as ações eram apreciadas pelo soberano, que pediao
parecer da Junta do Comércio, de autoridades da Auditoria da Marinha ou encaminhava
o processo à justiça comum. Conseguir seus intentos era a expectativa dos escravizados,
mas é claro que ela não se cumpria sempre e não prescindia de grandes esforços
argumentativos e de uma rede de relações influentes.

389
“Lista dos oficiais e mais pessoas da equipagem do navio Santíssimo Sacramento e Nosso Senhor do
Paraíso, que se acha próximo a seguir viagem para a cidade de Lisboa” (Rio de Janeiro, 28 de janeiro de
1771). Relações de equipagens de navios e passageiros, ANTT/JC, Maço 1, Caixa 3. Sobre a escravização
de canarins nos domínios portugueses, ver VENANCIO, Cativos do Reino, op. cit., p. 25-26 e SOUZA,
Laura de Mello e. Desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. 2ª ed., Rio de Janeiro:
Graal, 1986, p. 150.
390
SILVA JR., Identidades afro-atlânticas, op. cit., p. 87.

145
A justiça foi um lugar privilegiado para o debate em torno da liberdade dos cativos.
Entre o último quartel do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX, correram
diversas ações de liberdade nos tribunais sediados em Lisboa, iniciadas com base na
legislação pombalina. Discuto algumas delas a seguir.
José Antônio Pereira, capitão da corveta N. S. dos Prazeres, chegara a Lisboa em
1777 vindo de Angola, com escala em Pernambuco e trazendo dez escravos na equipagem:
o pardo carpinteiro Miguel e “os mais pretos” divididos entre calafates, carpinteiros e
serventes, todos propriedades de Antônio de Sousa Portela, dono da corveta e que, na
ocasião, estava em Angola. Assim que chegaram à Corte, “cuidaram logo em demandar o
suplicante pelo Juízo da Correição do Cível (...), pedindo a liberdade com o fundamento
da Lei do ano de 1761, que proíbe transportar escravos do Brasil para este Reino para
comércio”. Na verdade, Pereira queixou-se de que “um lhe fugiu de bordo e intentou
em nome de todos causa de liberdade”, sinal de que oconhecimento sobre as leis
vinha desde antes da chegada a Lisboa e que a articulação dodesejo de liberdade forjou-se
coletivamente, durante a travessia do Atlântico.
Os senhores também conheciam os termos legais: Pereira invocou o aviso de 1776
e conseguiu que o desembargador José Joaquim de Magalhães e Lenções mandasse os
escravos conservarem-se “no cativeiro e serviço da corveta” e expedisse mandado de prisão
contra um dos escravizados que, sem paciência com os trâmites da justiça, havia fugido. Os
outros nove mantinham-se a bordo, mas “não querem seguir viagem, e teme o suplicante
que se amotinem, não havendo ordem superior que os faça obedientes”. Insatisfeitos, os
cativos ainda recorreram à Intendência da Polícia, que indeferiu seu pedido ao saber da
decisão judicial. Impressiona, neste caso, que mesmo depois do julgamento em primeira
instância no Cível, os escravos mantivessem sua mobilidade por Lisboa, indo ter com o
Intendente e confirmando a percepção do capitão de que eles não eram, de fato,
obedientes. Ocorre que um recurso caiu nas mãos de outro juiz, o desembargador
Alexandre José Ferreira Castelo, que emitiu sentença favorável aos escravizados, “julgando-
os livres e isentos do cativeiro com a única razão do favor da liberdade e não se mostrarem
as idades dos ditos na certidão da suamatrícula que o suplicante apresentou”. A situação
criou um impasse nos negócios da corveta, pois ela encontrava-se pronta para seguir viagem
a Angola, mas não podia ir sem “sem a dita gente da sua equipagem que são os escravos”.
Os conselheiros do rei foram acionados para apreciar o caso, diante da vigência recente do
Aviso de 1776. O último juiz a se pronunciar cumprira à risca este último aviso: ele garantia
a manutenção da escravização de marinheiros devidamente matriculados, e o fato é que a
matrícula do grupo de Miguel não cumprira a regra de declarar as idades dos cativos e
quem era(m) seu(s) senhor(es). Na sentença do desembargador Castelo, eles “estavam nos
termos de gozarem a liberdade na forma da dita lei”. Os conselheiros discordavam, por
146
considerar que o senhor não podia arcar com o ônus das omissões na matrícula, pois ele
não era o responsável pela escritura do registro. Entenderam ainda que a decisão final cabia
ao rei391.
O conhecimento e, mais do que isso, a interpretação do direito, eram pressupostos, e o
grupo de marinheiros escravizados vindos de Angola e de Pernambucopara Lisboa tentou
se valer das leis para se livrarem de seu senhor. Não sabemos se eles tiveram acesso ao
conteúdo das leis no porto africano de embarque ou na escala americana, de todo modo
acessaram esse conhecimento pelos mecanismos da cultura marítima. Pelo requerimento
do capitão e pela sentença final, podemos conhecer algo mais sobre eles: os homens haviam
sido “tomados” para o serviço da corveta, embora ambos – escravizados e corveta –
pertencessem ao mesmo dono. Em seguida, o fato de que o grupo, formado por “Miguel
Pinto, Gaspar Mendes e outros homens pretos”, não obteve a liberdade, já que a vinda
deles ao Reino foi considerada conforme a lei, ou seja, eles haviam sido matriculados em
1778 como “ajudantes da mareação”. O grupo também não apresentou outros documentos
exigidos pelos conselheiros da Junta do Comércio, como a certidão do desembarque
assinada pelo oficial da alfândega de onde partiu, exigência contida no alvará de 1761 para
se pleitear a liberdade. Também era preciso dar ao senhor dos escravos o direito de se
expressar no processo. Mas essa ausência de expressão não impediu a iniciativa dos
escravizados que, conhecedores dos detalhes da lei, sabiam que a inexistência do nome de
seu senhor na matrícula era uma irregularidade que podia lhes valer a chance de entrar na
justiça, embora esse não fosse um detalhe definidor dos rumos do processo. No caso, os
conselheiros optaram por preservar o direito senhorial e alegaram que a irregularidade não
era de tal monta que devesse ser punida com a perda da propriedade. Afinal, tanto o
capitão Pereira como os próprios cativos declinaram o nome do senhor no decorrer do
processo: o grupo pertencia a Antônio de Souza Portela, morador em Angola, pessoa a
quem os autores da ação viam raras vezes por viverem embarcados. Além de serem
mantidos no cativeiro, Miguel e seus companheiros tiveram de arcar com os custos do
processo392.

391
AHU, Angola, Caixa 61 (1776-1778), doc. 1, contendo requerimento de José Antônio Pereira a D. Maria
I, 1778; ofício a Martinho de Mello e Castro, 1778 e parecer assinado pelos conselheirosMarcelino Xavier
da Fonseca Pinto, Manoel Nicolau Esteves Negrão e José Luiz França, 30 de abril de 1778.

147
Quatro escravos serventes impetraram uma ação assim que aportaram em Lisboa,
no início de agosto de 1780. Eles vinham da Bahia a bordo do Santíssimo Sacramento e
N. S. da Arrábida, capitaneado por Ignácio Xavier Lisboa. Diferentemente do que ocorria
usualmente quando do registro da matrícula dos tripulantes forros ou escravos, no processo
foram inscritos os sinais físicos dessesquatro marujos escravos – o que reforça a hipótese
da lógica senhorial presidindo o preenchimento desse documento. Quanto se tratava de
matriculá-los, era mais adequado omitir os sinais físicos, possibilitando a troca de um
escravo por outro ao arrepio da lei. Quando os senhores eram acionados na justiça, a lógica
era invertida: era preciso saber com certeza quem eram os escravos demandantes e
inviabilizar que outros usufruíssem da liberdade, caso ela fosse conseguida, por meio de
uma confusão das fisionomias. Neste caso, os escravos eram Antônio do Espírito Santo,
soteropolitano com cerca de vinte e oito anos, “alto, cara comprida, nariz chato, olhos
grandes, beiços grossos, com bastante barba”; Pedro Gonçalves, natural da Costa da Mina,
“que mostrou ter 46 anos, corpo mediano (...), nariz chato, olhos grandes, beiços de
algodão, com ambas asorelhas furadas, salpicado de sinais pela cara [talvez marcas de
varíola], e com carimbo com a marca do rei no peito”; Amaro Gonçalves, também da Mina,
cerca de trinta e oitoanos, “corpo alto, cara comprida, nariz chato, olhos grandes, beiços
grossos e salpicado de sinais nas fontes e com carimbo no peito direito com marca do rei;
e Sebastião Gonçalves, da Mina, por volta de 36 anos, “corpo alto, cara comprida, nariz
chato, beiços grossos e carimbo do rei”. Seu senhor, Teodósio Gonçalves, tentava impedir
a reivindicação de liberdade feita com base no alvará de 1761, contrapondo-lhe o aviso de
1776. A rainha pediu o exame do caso na Junta do Comércio “a respeito de serem os ditos
pretos conservados na escravidão ou reputados livres”393.

392
LIMA, Priscila de. “Documento”. Outros Tempos, 8 (11): 2011, p. 319. A autora transcreveu e comentou
o documento: “Certidão (cópia) declarando a sentença da ação de proclamação da liberdade de alguns
homens pretos que chegaram a Portugal, embarcados no porto de Pernambuco muitos anos depois da lei de
1761 e do aviso de 1776. Lisboa, 11 de abril de 1778. AHU, Pernambuco. Caixa 129, documento
9.759”, disponível em
http://www.outrostempos.uema.br/site/images/vol_8_num_11_2011_NEW/certidao_declarando_2.pdf.
393
Termo de manifesto assinado por Francisco Ferreira do Vale, escrivão da provedoria da Alfândega
Grande, 16 de novembro de 1780; ofício de Martinho de Melo e Castro a João Henrique de Souza, 2 de
dezembro de 1780. ANTT/JC, Avisos, Decretos e requerimentos sobre o comércio de escravos, maço 62,
caixa 204. Agradeço a Mariana Candido por me oferecer suas anotações sobre este processo.

148
O provedor e os deputados da Junta do Comércio receberam os depoimentos por
escrito de alguns passageiros do navio, alegando que o capitão trazia a bordo os quatro
homens e “uma preta que o está servindo da porta adentro”. Na Bahia, de acordo com os
depoentes, Amaro e Sebastião carregavam seu senhor em cadeirinhas e ajudavam no
serviço doméstico, Antônio servia como lacaio e alfaiate, enquanto Pedro já fizera uma
viagem à Costa da Mina. Exceto Pedro, os demais serviam apenas seu senhor no navio e
“puxavam por algum cabo do mesmo convés do navio, mas que não serviam para atrapar,
ferrar, largar ou cozer pano e menos iam ao leme”394.
Todos, portanto, tinham pouca ou nenhuma experiência na navegação e parece
claro que este senhor, ao se estabelecer em Lisboa, queria levar consigo os homens (e uma
mulher) dos quais estava acostumado a se servir na Bahia escravista. Com isso, burlava as
leis que, naquela altura, só permitiam o ingresso de escravizados mareantes em trânsito.
Teodósio, é claro, negava que fosse assim e dizia que sua intenção era manter os homens
como serventes e que em breve voltariam todos no mesmo navio paraa Bahia. O cirurgião,
o capitão e o contramestre do navio confirmaram a intenção do senhor395.
Mais de três décadas depois, a procura pela liberdade na justiça portuguesa
permanecia, embora a conjuntura legal e política viesse se transformando ao longo do
tempo. O baiano Zeferino José de Freitas chegou a Lisboa em dezembro de 1816 trazendo
consigo Félix de Freitas, “que tem sido apresentado por livre e forro”. Ao que tudo indica,
Zeferino tinha ajudado Félix a entrar em Portugal, talvez fugido, e a única forma de fazê-lo
era trazendo o homem como marinheiro em uma embarcação. Como este último adoecera
e tinha uma conta a pagar no Hospital Real de São José, o baiano pleiteava que “se lhe
passe sua carta ou sentença de liberdade a fim de ficar (...) desonerado de toda e qualquer
responsabilidade que lhe possa sobrevir a respeito ao mesmo preto”. Félix tinha trinta e
seis anos, era solteiro, nascido e batizado em Salvador, sabia os nomes de seus pais
(Pedro Jose e de Josefa Maria da Conceição,nessa altura já falecidos), dizia ser forro e
de profissão marítima, embora alegasse ter vindo de Havana como passageiro no
bergantim Patrocínio trajando apenas “japona de beitão [baetão] escuro e calça azuis tudo

394
Instrumentos de Justificação de Francisco Jose Lopes ao provedor e deputados da Junta do Comércio,
Lisboa, 9 de dezembro de 1780. Idem, ANTT/JC, maço 62, caixa 204.
395
Autos de Justificação para qualificar navios do comercio de escravos. Idem, ANTT/JC, maço 62, caixa
204.

149
velho”396. Se era forro como alegava, ele não tinha documento que comprovasse sua
condição, daí o pedido de emissão de uma carta de liberdade que lhe permitisse ficar no
Reino ou ir para onde quisesse, e que também livrasse Zeferino da acusação de furto ou
de acobertar sua fuga.
Alguns senhores pareciam desavisados acerca do conteúdo das leis portuguesas ou
então contavam com sua ascendência, boa sorte e boas relações para ingressar no Reino
com escravos quando isso já não era mais permitido havia décadas. Só assim se explica a
intenção de Teodoro Antônio Gomes ao trazer do Rio de Janeiro, “a título de um escravo”,
o “homem preto” mineiro de Sabará Anselmo José da Cruz a bordo do navio São Thiago
Maior, sem matrícula de marinheiro. O escrivão da Alfândega Grande do Açúcar de
Lisboa, diante das alegações, simplesmente emitiu certidão de liberdade a Anselmo, de
vinte anos de idade “pouco mais ou menos, de estatura ordinária, muito sóbrio, cumprido
beiços grossos, nariz chato”. E Anselmo não foi o único: Antônio Jorge, que fora escravo
de Miguel Inácio Machado no Rio de Janeiro, chegara a Lisboa com seu senhor e conhecia
a conformidade da lei, pedindo “vocalmente sem que lhe entregassem o tácito
consentimento da sua liberdade”. Diante da recusa de Miguel, Antônio Jorge abandonou
a oralidade e pediu formalmente sua carta de alforria “para livremente poder transitar por
onde bem lhe parecer”, em 7 de agosto de 1822397.
Além de justiça, a polícia de Lisboa era outra instituição onde podiam começar
intentos de liberdade. Manuel e José eram dois marujos que se encontravam em Lisboa
em 1781. Vieram servindo em um navio zarpado da América e, no mesmo ano, se
tornaram propriedades de João de Azevedo e Mota, que teve a ideia de matriculá-los como
marinheiros na mesma embarcação onde eles haviam chegado à capital portuguesa, que
seguiria dali rumo ao Grão-Pará. As ações subsequentes tiveram a participação decisiva de
Diogo Ignácio de Pina Manique, controverso intendente da polícia lisboeta setecentista.
Rudgers expressou uma opinião severa sobre o intendente, “o qual (...) considera que o
seu cargo consiste primordialmente em prender gente, com ou sem culpa formada. Assim,
a sua consciência fica tranquila, porque, entre tantos, um ou outro ladrão sempre foi
punido”. O intendente também ganhou fama por acreditar que todo francês era

396
Autos cíveis de petição e despacho para carta de alforria em que é autor Zeferino José de Freitas, natural
da Baía (Brasil), 1817. ANTT, Feitos Findos - Juízo da Índia e Mina, maço 4, nº 5, caixa 128.
397
Requerimento e certidão de liberdade de Anselmo Jose da Cruz, 13 de novembro de 1818. Autos cíveis
de requerimento e despacho para julgar por sentença a liberdade de Anselmo José da Cruz. ANTT, Feitos
Findos - Juízo da Índia e Mina, maço 8, nº 5, caixa 132; Ação Civil de embargo a primeira a Antônio Jorge,
homem preto, e réu Miguel Inacio Machado. ANTT, Feitos Findos - Juízo da Índia e Mina, maço 18, nº 12,
caixa 142.

150
jacobino, o que torna mais compreensível um informe assinado porele dando conta de que
a tripulação de um navio francês embargado em Lisboa em 1792 andava pelas ruas de
Belém cantando canções de “viva a liberdade e morram os aristocratas”, um deles tocando
uma suspeitíssima gaita398.
Pina Manique tornou o caso de Manuel e José algo duplamente revelador: de um
lado, da postura policial de desconfiança generalizada em relação os súditos do rei; de
outro, da habilidade escrava em se valer da polícia para conseguir benefícios, inclusivea
liberdade. Por vezes, o intento era possível. Outra questão, que não dependia da ação
policial, era a percepção dos cativos de que os momentos de troca de senhor eram cruciais
para o desmilinguir da situação escrava, posto que os dois cativos em cena pertenciam a
Mota havia apenas seis meses.
O intendente suspendeu a matrícula após ser informado que os escravos não
eram batizados nem “instruídos nos mistérios da Nossa Santa Fé”. Os informantes, para
que não reste dúvida, eram os próprios Manuel e José, que denunciaram seu senhor à
polícia, decerto conhecedores do teor das leis portuguesas e da crença do intendente da
polícia de que a escravidão só era legítima se, em troca, os escravos fossem instruídosno
catolicismo. Para Manique, o senhor estava sujeito à perda do domínio sobre seus cativos
por tentar burlar essa norma, ao planejar enviá-los para fora do Reino e, ainda por cima,
na condição de pagãos – o que, aliás, Azevedo Mota já fizera com outros escravos. O texto
legal de 1776 foi lançado contra Mota, acusado de

iludir a lei que em benefício da navegação permitiu os escravos que


viessem na tripulação dos navios, pois que assinando termos de
conservas aos suplicantes [os escravos] no mesmo navio em cuja
mareação tinham vindo, vendeu a este e tratava de os vender também
a eles (...). Pelo que me pareceu que os suplicantes estão nos termos
de se lhe permitir a liberdade que imploram por terem a seu favor as
Leis deste Reino que os protegem (...)399.

398
SANTOS, RODRIGUES e NOGUEIRA, Lisboa setecentista, op. cit., p. 50; ofício de 25 de setembro
de 1781, do Intendente de Polícia a Marquês Mordomo Mor. ANTT/IGP, livro 3, “Contas para as
Secretarias, desde o 1º de outubro de 1787 até 15 de janeiro de 1793”, 9 de novembro de 1792, fl. 281. Na
busca de evidências nos livros da Intendência da Polícia, vali-me das preciosas indicações contida em
FONSECA, “As leis pombalinas”, op. cit., p. 30-35. Para uma auto avaliação dos serviços de Manique à
Corte, ver a carta enviada por ele ao Mordomo Mor em junho de 1799, reproduzida em RAMOS, Luís de
Oliveira. D. Maria I. Cais de Mem Martins: Círculo de Leitores; Centro de Estudos dos Povos e Culturas
de Expressão Portuguesa, 2010, p. 293-198.
399
Ofício de 25 de setembro de 1781, do Intendente de Polícia a Martinho de Mello e Castro. ANTT/IGP,
livro 1 - “Contas para a Secretaria, desde 15 de junho de 1780 até 11 de agosto de 1783”, fls. 191-191v.

151
Manuel e José não foram os únicos cativos pelos quais Manique se bateu em nome
da fé católica. Houve ainda o caso de oito pretos vindos de Macau e de outro escravo vindo
da Bahia. Comecemos por este último, também de nome José e que possivelmente
conhecia a fama de carola do intendente e o caso de seu xará, ocorrido em 1781.
José enviou um requerimento à polícia em 1784, “em o qual pretende a liberdade,
alegando para isso o estar ainda pagão”. Manique deu crédito à versão do suplicante,
que servia havia cerca de dois anos em um navio capitaneado por Eugenio Pedro entre a
Bahia e o Reino. Mesmo sabendo que o rei cedera aos interesses da navegação, vetando as
pretensões de liberdade e permitindo o embarque de marinheiros escravos desde 1776, o
intendente conferiu carta de liberdade a José. Em seguida, o mandou ao Real Colégio dos
Catecúmenos “a fim de se instruir nos mistérios de nossa santa fé, para depois ser batizado”.
Criado em 1579, no Bairro Alto, o Colégio400 fora reconstruído após o terremoto de 1755.
Ao mesmo tempo em que catequizava, a escola também ensinava aos seus estudantes a arte
de calafetar navios, o que deixa entrever que o escravo não fora enviado para lá
aleatoriamente. O intendente julgava poder interferirna relação de domínio escravista e
também aperfeiçoar as habilidades de um homem que, afinal, não era neófito nas lidas do
mar. Ou, quem sabe, valer-se de José para instruir outros jovens que poderiam ser
aproveitados nas funções marítimas.
Todavia, o Colégio não quis receber o catecúmeno em potencial. Pior para seu
senhor, já que Manique o obrigou a pagar “um destes mestres das escolas públicas para
ensinar ao suplicante os primeiros elementos da nossa religião e suprir assim o que havia
de aprender”, ao custo de 480 réis por mês. Todavia, o marinheiro José nãoparecia
muito interessado em se inteirar dos mistérios da fé católica: fugiu antes do batismo e sem
o papel que garantiria sua liberdade formal. Disfarçando seu fracasso, o intendente da
polícia comunicou o caso à rainha em tom de denúncia contra o Colégio, que
sistematicamente recusava abrigar os pagãos chegados a Lisboa, alegando que a maioria
deles não conhecia a língua portuguesa401.

400
A Casa ou Colégio dos Catecúmenos “fora fundada como corolário de uma situação solene: a decisão
de conversão ao catolicismo de um conjunto de muçulmanos marroquinos que se tinham acolhido em
Portugal (...)”, cf. TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva. “Diásporas para o Reino e Império. Judeus
conversos e sua mobilidade: aproximações a um tema”. In: DORÉ, Andréa e SANTOS, Antônio C. de
Almeida. Temas setecentistas: governos e populações no império português. Curitiba: UFPR/SCHLA;
Fund. Araucária, 2009, p. 372.
401
Ofício de 29 de abril de 1784, do Intendente de Polícia ao [4º] Conde de Vila Verde, Pedro José de
Noronha Camões de Albuquerque Moniz e Sousa, à época responsável pelo Real Erário. ANTT/IGP,
livro 2 - “Contas para as Secretarias, desde 13 de agosto de 1783 até 29 de setembro de 1787”, fls. 63-64.

152
Quanto aos oito marinheiros escravos vindos desde Macau, conhecemos apenas o
nome de um deles – Lourenço da Silva – e o da embarcação – Santa Cruz. O então
secretário de Negócios Estrangeiros e da Guerra, Ayres de Sá e Melo, pedia informações
sobre o andamento do caso desses homens, que haviam requerido suas liberdades
utilizando-se da lei de 19 de setembro de 1761 e “por lhe assistir também outra resolução
de S. M. que favorece aqueles que se acham pagãos, estado em que os suplicantes se acham,
segundo dizem”. A queixa de Lourenço e seus companheiros devia-se ao fato de que eles
haviam sido vendidos.
O intendente respondeu remetendo ao aviso de 22 de fevereiro de 1776, que
restringiu a lei supra citada, e afirmou:

entrei na dúvida que pudesse a minha decisão ser conforme por


depender de indagações do foro e recorri ao meio de mandar requerer
na Casa da Índia, visto o navio ter vindo da Ásia, e por este princípio
dado entrada naquela casa, aonde os suplicantes logo foram com os
seus requerimentos402.

O provedor daquele órgão indeferiu os requerimentos e “os mandou usar dos


meios ordinários que o negócio dependia de maior indagação no juízo contencioso”. O
intendente não estava em condição de deliberar acerca desta matéria, “em que se trata
da liberdade de uns miseráveis, e dos interesses em que pode ficar leso o senhor dos
mesmos escravos”403. No entendimento de Pina Manique, o caso deveria seguir à apreciação
da rainha. O intendente tinha seus limites e suas artimanhas, e em várias ocasiões ele os
utilizou em favor dos cativos. Estes, por sua vez, também se valiam de artimanhas – no
caso, o recurso à polícia que, por vezes, impunha limites ao mando senhorial.
Mas nem sempre o desfecho era assim. Alguns negros manobraram o navio de
Antônio Ferreira de Mesquita, que corria a costa portuguesa em 1783 e teve toda sua
tripulação branca morta na altura de Lisboa devido à ocorrência de uma epidemia a bordo.
No dizer do intendente da policia, tratava-se de negros (provavelmente escravizados)
“ignorantes destas costas e barra deste rio”, ignorância que demandou a vinda de trinta
marinheiros buscados em terra para trazerem o navio rio adentro404. É

402
Ofício de 22 de fevereiro de 1786, do Intendente de Polícia a Ayres de Sá e Mello. ANTT/IGP, livro 2,
fl. 222.
403
Idem, Ibidem, fl. 222v.
404
Ofício de 8 de agosto de 1783, do Intendente de Polícia a Martinho de Mello e Castro. ANTT/ IGP,
livro 1, fl. 687.

153
preciso notar que a ignorância alegada por Pina Manique não era sinônimo de
desconhecimento no manejo do navio, aparentemente de grande porte, já que requeria
tantos homens para manobrá-lo. Pode-se observar que a questão não era de falta de
habilidade profissional: afinal, os negros operaram a embarcação até ali, e creio mesmo
que estavam aptos a trazê-la em segurança desde a foz do Tejo até o porto de Lisboa oua
levá-la para onde quisessem, e que o medo do intendente era justamente devido a esta
última possibilidade. Daí que um contingente de trinta marujos levados da terra a bordo
do navio não era exatamente uma necessidade operacional, mas sim policial e senhorial.
Tantos homens assim indicam um contingente preparado inclusive para tomar o navio à
força, caso os “negros ignorantes” quisessem executar algum plano de fuga.
A polícia lisboeta também podia estar atenta à escravização ilegal de homens negros,
sobretudo estrangeiros. Um navio francês naufragado no Tejo em 1791 tevedois de
seus marinheiros negros furtados, depois que eles foram a uma mercearia emSão Roque
e ali se embriagaram ao ponto de perderem os sentidos. Seus nomes eram Anastácio
Marçal e João Batista, ambos naturais da Ilha do Príncipe. Depois da bebedeira na
mercearia, os dois foram, de noite e “surreticiamente”, embarcados em um navio de
propriedade de Pedro Nolasco, acordando já em alto mar rumo a Belém do Pará, onde
seriam vendidos como escravos. O roubo foi reconhecido como uma violência contra os
“miseráveis” e ambos ficaram sob a proteção de Domingos José Frazão405, no Pará.
Manique mandou prender o dono da mercearia e revelou a intenção de não soltá-lo,
aplicando a ele um castigo exemplar “para que outros não pratiquem esta casta de
violências”. Pedia, outrossim, que o governador do Grão-Pará mandasse osmarinheiros
negros de volta à Corte, pois tinha o propósito de “indenizá-los dos jornais (...) desde o dia
em que os meteram a bordo neste porto até o dia em que chegaram aele, e arbitrar-lhes
mais a título de ajuda de custo, coisa com que os mesmos escravos possam ser satisfeitos
da injustiça e dano que lhes causaram (...)”406. Fernando Novais e Francisco Falcon, dos
primeiros historiadores a repararem no caso, informam que, “com relativa presteza,

405
Provavelmente o mesmo homem que cumpria a função de capitão de ligeiros em 1803 para, três anos
mais tarde, tornar-se tenente de milícias no Pará e mestre de campo do Rio Negro, cf. SANJAD, Nelson
Rodrigues. Nos Jardins de São José: uma história do Jardim Botânico do Grão Pará, 1796-1873.
Campinas: IG/UNICAMP, 2001 (Dissert. Mestr.), p. 71 e Supplemento à Gazeta de Lisboa, nº 13, 4 de abril
de 1806, disponível em
http://books.google.com.br/books?id=1WFVAAAAYAAJ&pg=PT178&lpg=PT178&dq=%22Domingos
+Jos%C3%A9+Fraz%C3%A3o%22+par%C3%A1&source=bl&ots=11SA6lfYKM&sig=cdhdLBHYJBf
Z5gfn3-prY_MKiF8&hl=pt-BR&sa=X&ei=KP7RUKelDIeg9QSDvYG4AQ&ved=0CC8Q6AEwAA.
406
Ofício de 26 de fevereiro de 1791, do Intendente de Polícia a Martinho de Mello e Castro. ANTT/IGP,
livro 3, fls. 164-165.

154
juntando cópia do ofício, dirigiu-se o ministro ao governador do Pará, determinando
aquelas providências”. Didier Lahon, que também comentou a questão dos dois
marinheiros da Ilha do Príncipe, afirma que Nolasco, um dos envolvidos neste crime, era
sócio na galera S. Macário e Minerva em 1791, navio que por anos estivera envolvido no
tráfico de escravos entre Bissau, o Pará e o Maranhão407.
Furtos envolvendo propriedade escrava nem sempre eram efetivamente furtos e
podiam resultar em liberdade, ao menos provisória. É o que vemos no caso de dois cativos
pertencentes a Tomás José Borges de Brito, senhor desejoso de levá-los para trabalhar em
suas terras no Pará e que requereu providências para recuperá-los quando ambos foram
“roubados”, em 1800. Brito queixara-se na intendência e, ao investigar o “roubo”, o
corregedor do crime do Bairro Alto encontrou os dois escravos em sua jurisdição,
devolvendo-os ao seu senhor. Não seria absurdo supor que o caso não era de roubo, mas
sim de evasão408.
É possível que, nesta altura, algum leitor suspeite de minha capacidade de exercer a
crítica, devido às linhas que escrevi sobre a ação de um intendente de polícia setecentista.
Para que não fique a impressão de que simpatizo incondicionalmente com Manique, alerto
que só é assim quanto a algumas posturas dele envolvendo os escravizados. Digo algumas,
pois o intendente não era um abolicionista extemporâneo, sendo mais adequado concordar
com Didier Lahon e considerá-lo como o políticopragmático que, em meados de 1801,
diante da possibilidade de uma nova guerra contra os espanhóis e as ameaças que estes
(galegos, sobretudo) sofriam de serem expulsos de Portugal, insiste que talvez haja “a
necessidade (...) de lançar mão dos pretos, vista a falta de população” para tocar as
atividades produtivas no Reino409. Dom João, nessa altura príncipe, não aceitou a sugestão
de reintroduzir a escravidão.
O habilidoso Manique equilibrou-se entre o consulado pombalino, período em que
não ocupou cargos de monta – embora gozasse da confiança do marquês – e o reinado de
D. Maria I e a regência de D. João, época em que assumiu a Intendência de Polícia

407
AHU, códice 588, fls. 52-53, apud NOVAIS, Fernando A. e FALCON, Francisco C. “A extinção da
escravatura africana em Portugal no quadro da política pombalina”, p. 101. (1ª ed.: 1973); LAHON, Didier.
“Eles vão, eles vêm. Escravos e libertos negros entre Lisboa e o Grão-Pará e Maranhão (séc. XVII-XIX)”.
Revista Estudos Amazônicos, 6(1): 2011, p. 89; SILVA e GRINBERG, “Soil Free from Slaves”, op. cit., p.
435.
408
Ofício de 3 de fevereiro de 1800, do Intendente de Polícia a D. Rodrigo de Souza Coutinho. ANTT/IGP,
livro 6 - “Contas para as Secretarias, desde 24 de setembro de 1799 até 24 de junho de 1802”, fl. 48.
409
LAHON, O negro no coração do Império, op. cit., p. 90 e 92. Agradeço a Renato Venâncio por ter
chamado minha atenção para este aspecto da atuação de Manique.

155
da Corte (em 1780) e outros cargos, como o de desembargador da Casa da Suplicação,
contador da Fazenda, superintendente dos contrabandos e descaminhos, fiscal da junta da
administração da Companhia de Paraíba e Pernambuco e diretor geral das alfândegas. Foi
por sua ação neste último cargo que acabou exonerado do governo, ao tentar coibir o
contrabando praticado pelos franceses em Portugal e colocar o príncipe regente em
situação delicada no contexto das guerras napoleônicas. Manique perdeu seus postos em
março de 1803, por ordem de D. João410.
Vejamos um caso em que, ao invés de defender cativos, o intendente pugnou pela
instituição escravista, revelando ambiguidade e, ao mesmo tempo, interferindo nasquestões
do mercado de trabalho e da política migratória, como fizera em outras ocasiões. Refiro-
me ao requerimento de Agostinho J. Moller, que pediu permissão para mandar um mulato
ao Maranhão, onde dizia ter terras. O intendente vetara a saída de escravos do Reino,
alegando quatro motivos: para que os senhores não praticassem violências com esses
“miseráveis”; evitar a emigração e a consequente falta de braços para a agricultura no Reino;
garantir o cultivo das vinhas do Alto Douro, para onde vinham todos os anos dois mil
galegos, na falta de quem era preciso encontrar gente para trabalhar ali – negros
escravizados, por exemplo; e, por fim, “por ter Lisboa necessidade de gente que substitua
também os galegos que servem de ribeirinhos e das cousas das ruas de Lisboa”411. “Pretos,
pretas e galegos havia-os por todo o lado” na Lisboa no século XVIII e do início do século
XIX412.
Mas era nos mares que os marinheiros escravizados viviam a maior parte de suas
experiências, fosse no trabalho, no cativeiro ou na luta por autonomia ou liberdade. Nesse
ambiente, o lidar com os senhores também tinha suas especificidades. De modo geral, um
escravo de ganho gerava lucros aos proprietários: Russel Wood afirma que,
410
PEREIRA, Esteves e RODRIGUES, Guilherme. “Pina Manique (Diogo Inácio da)”. In: Portugal:
Dicionário histórico, corográfico, heráldico, biográfico, bibliográfico, numismático e artístico. Lisboa:
João Romano Torres Editor, 1904-1915. Edição eletrônica: Manoel Amaral, 2000-2010, Disponível em
http://www.arqnet.pt/dicionario/pinamanique.html.
411
(...) e de pretos para servirem de limpeza do desnecessário das casas, por não ter a maior parte de Lisboa,
à exceção da Cidade Nova, latrinas, porque a uns anos a esta parte não vem já de Galiza o número de gente
que concorria a este Reino”. Ofício de 28 de fevereiro de 1797, do Intendente de Polícia a D. Rodrigo de
Souza Coutinho. ANTT/IGP, livro 5, fls. 108-108v. Faltando galegos, o intendente não sabia como
substituí-los.
412
Galegos não só estavam por toda parte como faziam os mesmos serviços que os negros, embora só os
primeiros tivessem fama de robustez, sobriedade, fidelidade e economia, “de quem nunca se ouve falar
como culpados de crime ou roubos”, usufruindo da continuidade fronteiriça, étnica e linguística com os
portugueses: “A presença de serviçais galegos tornou-se de tal forma indispensável que, quando em 1801
se pretendeu expulsá-los por causa da guerra, o Intendente Geral da Polícia objetou que, desse modo, não
haveria quem servisse as cidades de Lisboa e do Porto, sendo a ideia abandonada (...)” SANTOS,
RODRIGUES e NOGUEIRA, Lisboa setecentista, op. cit., p. 46-47. Ver também LAHON, O negro no
coração do Império, op. cit., p. 90-94.

156
nos primeiros tempos do Peru colonial, “um senhor que alugasse um escravo especializado
podia recuperar a despesa inicial em apenas 17 meses”, e na América portuguesa não era
diferente. O mesmo autor aponta as vantagens para os senhores que maximizavam a
exploração do trabalho de seus cativos pondo-os no ganho, muitasvezes sem ter que
pagar as licenças exigidas dos trabalhadores livres, ou então para superar suas próprias
dificuldades financeiras, fazendo arranjos que os liberavam das obrigações para com o
abrigo, a alimentação e o vestuário de seus escravos413. A inventariar as profissões dos
escravos na Benguela dos séculos XVIII e XIX, Mariana Candido mencionou, entre outras
categorias, pescadores, estivadores e marinheiros dentre aqueles escravos que traziam
prestígio aos senhores que os possuíam, em razãode seu trabalho especializado:

Empregar aos cativos nos navios provavelmente era lucrativo tanto


para eles como para seus donos, que inclusive em algumas ocasiões os
capacitavam para a atividade. Assim foi o caso de Antônio de Carvalho,
um comerciante de Benguela que empregou João, um de seus jovens
escravos, com o capitão José da Silva Teixeira por volta de 1800 (...).
Na maioria dos casos os escravos pertenciam ao dono da embarcação
ou ao capitão, porém alguns dos senhores empregavam seus escravos
nos navios para gerar rendas para eles mesmos414.

Os senhores ampliavam seu prestígio, tiravam lucros do aluguel de seus cativos com
habilidades marítimas e, em alguns casos, deles dependiam para o bom andamento de seus
negócios. Para reforçar a hipótese, recorro a um caso de 1779, envolvendo um grupo de
escravos pertencentes a um negociante estabelecido no Rio de Janeiro. Os cativos seguiram
no N. S. do Rosário, Santo Antônio e Almas para Lisboa e de lá iriam aBenguela. Manuel
Gomes Cardoso, o proprietário, chegou a Lisboa em outro navio e se surpreendeu quando
soube que seus cativos tinham recebido “conselhos e sugestões de alguns pretos libertos
desta cidade” para “descativar-se”. Os escravos pediram a liberdade na justiça portuguesa,
alegando que seu senhor era cruel. Cardoso tinhaparticular interesse neles, por serem
“necessários e indispensáveis no uso da navegaçãoe comércio de Benguela e de toda a
costa de África, por lhes servirem de língua [intérpretes] aos pretos boçais que se costumam
extrair daqueles domínios”. O caso foi a despacho de d. Maria I, enquanto um parecerista
afirmou que a alegação de maus-tratos era falsa:

413
RUSSEL-WOOD, Escravos e libertos no Brasil colonial, p. 63-43. Ver também LAHON, O negro no
coração do Império, p. 52-53.
414
CANDIDO, Fronteras de esclavización, op. cit., p. 220.

157
enquanto esta embarcação navegava do Rio de Janeiro para Benguela,
eram contentes de seu cativeiro e tratados como o são todos os negros
marinheiros que andam em semelhantes viagens. Porém, vindo a
Lisboa, influídos por outros pretos, e vendo o melhor tratamento que
aqui têm, entraram a desobedecer o capitão.

No interrogatório, talvez já percebendo o destino que se lhes desenhava, os cativos


argumentaram que não queriam mais ser escravos no Brasil, mas somente em Portugal,
temendo a vingança do capitão. A sentença os devolveu ao seu senhor, mas o juiz observou
que a resistência deles impunha dificuldades à manutenção da relação de domínio: “é certo
que sem coação se não reduzirão ao que deve ser”415.

Efeitos da pirataria

Além do prestígio que angariavam para seus senhores, os marinheirosescravizados


estavam sujeitos a variadas situações que não controlavam, mas que eventualmente podiam
reverter em seu favor. Enfrentamentos com piratas eram exemplos disso, e a ação desses
homens no Atlântico mostrou-se diversa no tempo e no espaço. Refletindo sobre os fatores
de ineficiência da produção e sobre o aumento da produtividade dos marinheiros, Rediker
e Linebaugh afirmaram que a pirataria fora largamente eliminada em 1726416. Todavia, nas
costas africanas, sul americanas e ibéricas temos sinais da vitalidade dela muito tempo
depois do primeiro quartel do século XVIII, o que levou os escravos marinheiros
embarcados em navios lusófonos a lidarem com piratas em seu cotidiano.
Pedro Caetano, Roque, José Ferreira, João, Miguel, Joaquim, José e José de
Cambonda formavam o grupo de cativos tripulantes vinha a bordo da galera Minerva, que
foi tomada em 1799 por piratas franceses do navio L’Eclair surtos em Benguela e
recuperada pelo dono do navio e dos escravos devido à ação destes últimos. Elesmataram
uns, feriram outros, prenderam os piratas que puderam e dirigiram a galera até o Ambriz,
onde encontraram navios ingleses. O juiz de fora de Luanda premiou os cativos africanos
com “declarações de alforria” e a intenção dele era fazer mais: pagar 1/5 do valor do navio
e seus pertences aos escravos após a venda da embarcação em hasta pública, só desistindo
disso quando o governador de Angola defendeu o proprietário de arcar com o prejuízo.
Por interveniência de Miguel Antônio de Melo, foi promulgada uma carta régia em 2 de
415
AHU, Avulsos do Rio de Janeiro, Caixa 120, doc. 27.
416
REDIKER, Between the Devil and the Deep Blue Sea, p. 74; LINEBAUGH & REDIKER, A hidra de
muitas cabeças, op. cit., p. 185.

158
abril de 1800 revendo a sentença que premiava os escravos com a liberdade e pagamento
em dinheiro. Os senhores já tinham premiado “a briosa ação por eles praticada conferindo-
lhes graciosamente liberdade”. O rei reiterou que se lhes concedesse a “isenção do
cativeiro, ordenando-vos que façais satisfazer por conta da minha Real Fazenda e aos
senhores deles os seus justos valores, e que os ajudeis a fazer algum estabelecimento
permanente em que virão”417.
Neste caso, a conquista da liberdade foi inesperada. Ocorre que o encontro com
piratas levava muitas vezes a resultados diferentes: um deles era o roubo dos escravos, como
aconteceu com o bergantim negreiro Nossa Senhora da Conceição. Ao aportar em
Salvador, seu mestre contou que, vindo de Angola, tinha sido assaltado pelo corsário
francês Santa Clarice de Nantes “que lhe roubou as fazendas, algum dinheiro e
mantimentos, levando-lhe dezessete escravos novos, além de seis marinheiros, também
escravos” e, de quebra, sequestrando o capelão carmelita descalço. Os encontros também
podiam resultar em fuga e adesão dos escravizados à pirataria418.
Nos termos da reduzida historiografia sobre o tema, as ações dos piratas frente à gente
escravizada eram ambivalentes. Bialuschewski afirma que, na concepção dos piratas, os
africanos eram peões, trabalhadores e objetos de desejo; consideravam os escravos como
“algo sem valor, produtos descartáveis, e trataram-nos como tal. A história da pirataria na
costa oeste da África é uma crônica de estupro e assassinato com as vítimas mais vulneráveis
no Mundo Atlântico” e muitos navios negreiros que eram alvos dos ataques mantinham
suas cargas humanas encarceradas ou engajavam alguns deles à tripulação pirata419. Todavia,
nos tempos idílicos da pirataria, entre fins do século XVII e início do XVIII, Daniel Defoe
narrou o caso muito diverso do capitão francês Charles Johnson, que aderiu à pirataria,
adotou o nome de Mission e, numa de suas viagens, ao atacar um negreiro holandês, fez
um longo discurso em prol da liberdade e convenceu os marinheiros a “aceitar os africanos
como camaradas – o que acabam por fazer”420.

417
AHU, Angola, caixa 93A, 1799, doc. 22; Carta Régia de 2 de abril de 1800. Palácio de Queluz, do
Príncipe para D. Miguel Antônio de Mello, trasladada em Luanda em 11 de abril de 1801. AHU, Angola,
caixa 100, doc. 10. Este último documento aparece citado em CANDIDO, “Different Slave Journeys”, p.
398.
418
Carta do governador e capitão general da Bahia, Fernando José de Portugal, 8 de dezembro de 1798.
BN/DM, 22-2-49 - "Cartas do Brasil ao governador de Angola D. Miguel Antônio de Mello (1797- 1800)";
VENANCIO, Cativos do Reino, p. 152 e ss.
419
BIALUSCHEWSKI, Arne. “Black People under the Black Flag: Piracy and the Slave Trade on the West
Coast of Africa, 1718–1723”. Slavery & Abolition, 29(4): dez.2008, p. 469; KINKOR, Kenneth J. "Black
Men under the Black Flag". In: PENNEL, C. R. (org.). Bandits at Sea: A Pirates Reader. Nova York: New
York University, 2001, p. 198.

159
Sem estender demais o assunto, creio ser relevante mencionar a visão de Kenneth
Kinkor sobre a representação ficcional dos piratas voltadas a um públicobranco de classe
média, nas quais o estereótipo racial é reafirmado pela própria exclusão dos homens de
ascendência africana na pirataria. Nas estimativas do autor, os negros representariam algo
entre 25 e 30% do contingente pirata entre 1715 e 1726, ao mesmo tempo em que as
representações literárias (ou cinematográficas) os eliminam nos enredos e roteiros e
costumam caracterizá-los como “criaturas particularmentedemoníacas no interior de uma
categoria especialmente hedionda de crime”. Mas, como o próprio Kinkor admite, não é
fácil entender a participação negra na pirataria, ainda mais considerando-se a natureza
secreta da atividade e ação desarticulada desse grupo no interior da cultura pirata421.

Burlas e conflitos

As tentativas de burlar as leis que restringiam a escravidão no Reino foram inúmeras


entre o último quartel do século XVIII e as primeiras décadas do século XIX. O
governador de Angola Antônio de Lencastre, por exemplo, conhecia muito bem os termos
dos avisos e cartas régias sobre o assunto, mas esperava valer-se de sua pureza, posição
social e do bom relacionamento que mantinha na Corte para burlar suas obrigações. Ao
deixar o governo de Luanda, em 1778, pediu “patrocínio” para uma questão que afligia sua
família na África às vésperas do retorno à Europa. O fato é que ele e seus familiares haviam
“criado amor” por crianças angolanas: um amor volumoso, que sua mulher devotava a três
molecas, sua filha a duas e Lencastre a três moleques desde que estes eram pequenininhos,
e “pretendem levá-las consigo quando for ocasião de nos retirarmos para essa Corte”.
Aparentemente tocantes, os sentimentos não eram incondicionais: Lencastre sabia que as
leis de seu país tornariam esses escravos em forros assim que pisassem no Reino, mas
pretendia manter a propriedade e

alcançar da Rainha N. S. a graça para as poder levar como cativas,


unicamente para o nosso serviço, porque o intuito da liberdade que
lhes é concedida pela mesma lei as faz viver nesse Reino com
pouco temor e respeito no caso de irem como forras, tendo a certeza
de que podem mudarde amo quando lhes parece”.

420
WILSON, Peter Lamborn. Utopias piratas: mouros, hereges e renegados. São Paulo: Conrad, 2001, p.
176. Para um estudo mais alongado, ver REDIKER, Villains of All Nations, op. cit.
421
KINKOR, "Black Men under the Black Flag", op. cit., p. 195-200. Agradeço a Renato Venâncio por
me sugerir a leitura desse texto.

160
Ele argumentava protegê-las com seu amor para não vê-las se perderem “em poder
de quem as não conserve no estado em que se acham”. Se não pudesse levar as pequenas
crianças cativas consigo, “será melhor deixá-las no seu próprio país, onde ao menos não
veremos com os nossos olhos a desgraça em que infinitos caem pelasliberdades que
seus senhores lhes confiam”422. Lencastre tinha a pretensão de interpretaro significado da
liberdade como desgraça e, ao negá-la às crianças, agia como salvador, por resgatá-las da
barbárie na África. O discurso da escravidão como resgate do paganismo era velho no
pensamento ocidental, mas é óbvio que Lencastre não estava defendendo uma tradição, e
sim seus próprios interesses. O governador não era modesto, e pretendia incorporar ao
seu patrimônio oito crianças que ainda renderiam muito no trabalho ilegal que viriam a
exercer no Reino como escravas ensinadas “para o serviço da minha copa”423. Na África,
fidalgos portugueses sentiam falta daquilo que tinham na Europa. Quando regressavam à
Europa, careciam das delícias proporcionadaspor escravos e pelas riquezas das colônias.
Devemos ter isso em conta ao pensar na pertinência do uso da expressão “Antigo Regime”
e em tudo o que ela carrega quando aplicada aos domínios coloniais e à análise das
trajetórias de funcionários da Coroa.
Aparentemente, Lencastre não conseguiu seu intento – ao menos a Corte não lhe
enviou resposta. Outros senhores, sobretudo no contexto pós-independência do Brasil,
também tentaram introduzir escravos no Reino, desta feita como marinheiros. Muitos
podem ter conseguido, mas outros tantos enfrentaram problemas. De modo similar, muitos
homens negros conhecedores das leis restritivas ao tráfico e à escravidão também tentaram
se utilizar de seus conhecimentos, embora nem sempre com sucesso. Os casos a seguir são
reveladores disso.
Algumas autoridades portuárias souberam identificar a estratégia de marinheiros
escravos em se apresentarem como homens livres e tomaram providências para impedi- la.
Em 1801, o juiz da Alfândega em Luanda determinou que os capitães não embarcassem
ninguém “sem ouvir primeiramente os senhorios dos navios em quetiverem vindo (...), para
prevenir fraudes de que resultam litígios inoportunos”424.

422
AHU, Angola, caixa 61 (1776-1778), doc. 107-2, ofício de Antônio de Lencastre a Martinho de Mello
e Castro. Luanda, 12 de maio de 1778.
423
AHU, Angola, caixa 61 (1776-1778), doc. 107-3, ofício de Antônio de Lencastre a Martinho de Mello
e Castro. Luanda, 6 de agosto de 1778.
424
AHU, Angola, caixa 100 (1801), doc. 16, portaria de 22 de abril de 1801.

161
Também não era impossível que escravos ladinos se fizessem passar por boçais
para tentar conseguir a liberdade depois da lei que proibiu o tráfico transatlântico para o
Brasil em 1831. Alguns senhores queixaram-se disso aos juízes da Comissão Mista Anglo-
Brasileira do Rio de Janeiro, como Helena Rosa de Jesus, alegada dona do benguela
Joaquim, “o qual por ser de profissão marítima, o tem alugado a alguns mestres de
embarcação para diferentes viagens, o que fez ultimamente ao mestre do brigue Brilhante,
que deste porto seguiu para a Costa da África”. Entregue ao juiz de órfãos como africano
boçal capturado a bordo, Joaquim não se esforçou em demonstrar seus conhecimentos de
português diante de nenhuma autoridade no Rio de Janeiro, ondeo brigue foi apreendido
em 1838. Se fosse mesmo ladino, como as testemunhas ouvidas a pedido de sua senhora
afirmaram que ele era, Joaquim poderia conhecer os termos da lei de 1831, que proibira
o tráfico de escravos da África para o Brasil e libertara (ao menos é isso o que se lê no texto
legal) os africanos contrabandeados. Ser boçal era um dos principais indícios que definia a
condição de recém desembarcado e, portanto, merecedor da liberdade. A estratégia não
deu bons resultados e Joaquim foi devolvido a Helena de Jesus. Um companheiro dele na
mesma viagem, José Rebeca, tentou obter a liberdade de outra forma. Afirmando sua
condição de escravo de profissão marítima, enviou pedido ao juiz de órfãos afirmando que
só se empregara no navio contrabandista por ordem de seu senhor, a quem era obrigado a
obedecer “sem que lhe fosse permitido recusar no embarque, e mesmo entrar na análise
da negociação a que se dirigia o brigue”. Seu senhor falecera entre a partida e a apreensão
do Brilhante – motivo pelo qual Rebeca acreditava estar apto a gozar sua liberdade425.
A fiscalização para tentar inibir as fugas de escravos pelo mar intensificou-se no
Brasil de meados do século XIX. Em 1856, o Ministério da Marinha alertava para as
“questões desagradáveis” decorrentes da aceitação de escravos como tripulantes, quando
eles desertavam em países onde não havia escravidão426. Os motivos que levaram a
providências desse tipo vinham de longe, e se baseavam em uma experiência escrava de
longa duração no trânsito pelo Atlântico.

425
AHI, lata 4, maço 3, pasta 1. Analisei os casos desses dois escravos em De costa a costa, pp. 160-161.
426
Arquivo Público do Estado da Bahia, Avisos do Ministério da Marinha, Maço 934, 31 jan.1956, apud
CHAVES, Cleide de Lima. “A economia baiana e platina no século XIX: a integração regional”. Anais do
I Encontro Estadual de História ANPUH-BA (História, cidades e sertões), 2002. Disponível em
http://www.uesb.br/anpuhba/artigos/anpuh_I/cleide_lima_chaves.pdf. Neste caso, a referência era ao
Uruguai que, em função de acordo assinado com o Império em 12 de outubro de 1851, devolvia escravos
fugidos. Ver GRINBERG, Keila e CAÉ, Rachel da Silveira. “Escravidão, fronteira e relações
diplomáticas Brasil-Uruguai, 1840-1860”. Africana Studia, 14: 2010, p. 280-281.

162
Mas essa medalha tinha um reverso: em Portugal, diversos forros ou escravos
usuários do mar como rota e da marinhagem como meio de fuga acabaram reconduzidos
à escravidão. Eles eram recrutados como parte da marinhagem da Armada lusa, já que
grande parte dos homens que compunham o segmento militar dos trabalhadores marítimos
(os demais eram a infantaria e a artilharia) eram buscados em meio ao pessoal da marinha
mercante “ou arrebanhada nas rusgas, os chamados ‘voluntários da corda (...)”427. A maioria
dos escravos dizia pertencer a senhores cujos nomes não sabiam declinar, num sinal
evidente de que estavam tentando encobrir suas condiçõesde forros ou fugitivos para
escapar da sanha recrutadora da Marinha portuguesa. O pretoJosé Onofre até disse quem
era seu senhor e este confirmou sua condição, mas ambos não puderam comprová-la com
documentos, o que fez um oficial da Armada lusa recrutá-lo em 1817. O mina Antônio
Domingues, de trinta anos de idade, vagava pelas ruas quando foi abordado pela polícia e,
sem apresentar o título de escravo nem conseguir dizer o nome de seu senhor, acabou
preso nas galés e mandado como marinheiro na nau São Sebastião428.
Com João Batista não foi diferente: preso em 7 de dezembro de 1817, ele não
conseguiu provar ser escravo, como dizia, e foi remetido à fragata Pérola429. Essa fragata
teria uma longa história de recepção de escravos fugitivos ou “roubados”, como alegariam
seus senhores. Outro caso envolvendo esse navio iniciara-se no mesmo anode 1817,
quando Antônio Cerqueira de Carvalho, cônsul de Portugal em Gibraltar, fez uma
representação “reclamando seis pretos, que se acham a bordo da fragata Pérola como
escravos que dizia eram do seu constituinte João Alves da Silva Porto e que tinham sido
tomados pelo corsário Heroína na galera Viscondessa do Rio Seco, a cuja guarnição
pertenciam”. O Secretário dos Negócios da Marinha fazia notar, em ofício de 2 de
outubro de 1822, que assim que os escravos fossem encontrados, seriam devolvidos ao
seu dono. A Heroína tomou os escravos do Viscondessa do Rio Seco “os quais no tempo
em que estava a referida corveta [Heroína] fazendo obra nesta Bahia, fugiram dela para

427
CRUZ JR., A. O mundo marítimo português na segunda metade do século XVIII (ensaio). Lisboa:
Edições Culturais da Marinha, 2002. p. 70. O mesmo autor afirma que "o grosso do pessoal militar, neles
incluindo os artilheiros, provinham do Exército. A marinhagem era arrebanhada nos bairros populares e
servia com caráter temporário. A este estado caótico do pessoal escapavam os pilotos e alguns outros
profissionais, como os escrivães". Oficiais da Armada também eram recrutados entre profissionais da
marinha mercante destacados em ações marítimas. Ibidem, p. 62-63.
428
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 441, ofício de Manoel Lopes de
Figueiredo ao rei, 14 de abril de 1817; doc. 457, ofício de Manoel Lopes de Figueiredo ao rei. Lisboa, 24
de maio de 1817.
429
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 567.

163
a Espanha, aonde os prenderam e conduziram à cadeia de Algeciras juntamente com
outros marinheiros brancos portugueses”, conforme ofício do mesmo cônsul de 29 de
julho de 1822. O governo português passou a fazer instâncias junto ao governo espanhol
para ter os prisioneiros de volta, mas a correspondência até o final desse ano não era
conclusiva sobre o caso430. Os conselheiros do rei defendiam que os escravos fugidos da
Heroina deviam ser restituídos ao seu senhor, mas era preciso encontrar as provas
necessárias para executar a devolução. As dúvidas foram expressas em uma anotação
rascunhada e anexa a um dossiê da Armada sobre o caso:

Como se há de, porém, verificar esta restituição? Nestes papéis apenas


aparece uma reclamação do Cerqueira de Gibraltar, que é conhecido,
não apresentando título algum em que a abone. Restaria [ileg.] de que
comprovasse o que alegou, mas então mesmo não devem os pretos
ser postos em depósito? Conservados [?] porém à custa de quem?431.

O assunto era complexo e “suscita uma questão que em consciência o digo não sei
como se decidirá”. Aos conselheiros parecia que o proprietário tinha perdido o direito aos
escravos, e que a situação destes era digna de uma ação em prol da liberdade,pois os cativos
tinham fugido do corsário e voltariam às suas algemas no Rio de Janeiro, “onde poderão
ser vendidos e seguirem todo o [ileg.] destino da escravidão? Lembra-mede uma célebre
causa que quase pelos mesmos princípios já se agitou em Lisboa que afinal se decidiu a
favor dos desgraçados, mas em tempo que já não lhes aproveitaram”. O comandante da
fragata foi acusado de cometer uma falta grave ao recrutar esses homens sem investigar a
condição deles e não ter dado parte da existência dos escravos quando trouxe a corveta
Heroína para Lisboa. Somente em dezembro de 1822, a Secretaria de Estado dos Negócios
da Marinha mandou o chefe da esquadra e general daArmada desembarcar da fragata seis
escravos pertencentes a João Alves da Silva Porto, roubados do navio Viscondessa do Rio
Seco pela corveta Heroína, bem como pagar ao procurador do senhor os soldos a que eles
tinham direito na Pérola432. A passagem desses homens por três embarcações no período
de um ano é um sinal claro de que se tratava de escravos com experiência no mundo do
trabalho marítimo, mesmo que não saibamos as funções cumpridas por eles.

430
ANTT, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Correspondência recebida do governo, dos ministérios e
de outras instituições. Correspondência do Ministério da Marinha, caixa 1 (1821-1826), nº de ordem 379.
431
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 529, s/d.
432
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 528 B, Lisboa, 19 de agosto de 1822;
doc. 527, Lisboa, 21 de agosto de 1822, assinado por Manoel Lopes de Figueiredo; doc. 1286, ofício de
Ignácio da Costa Quintella, Lisboa, 20 de dezembro de 1822.

164
O recrutamento forçado para obter homens capazes de executar os trabalhos a
bordo das naus de guerra não feria apenas as pretensões de forros ou cativos fugidos. As
prisões ilegais, às vezes feitas com a anuência dos escravos em fuga, motivavam reclamações
por parte dos senhores que queriam reaver suas propriedades semoventes. Algumas vezes
esses senhores alcançavam seus intentos, como Estevão José Alves, que requereu e obteve
a posse de seu escravo Agostinho, recrutado como praça da fragata Amazona. Domingos
de Barros, grumete no bergantim Aurora, deu baixa para serrestituído ao seu senhor,
Antônio Daniel Baptista de Barros. O mesmo ocorreu com João Evangelista, “praça na
marinhagem a bordo da cabrea” [um tipo de guindaste da Armada] restituído à sua senhora,
Maria Joaquina. José Joaquim Pinto Cascaes, mestre do brigue Marquês de Cascaes, obteve
a restituição de seu escravo João Antônio, “que se acha refugiado a bordo da nau São
Sebastião” e também servira no brigue de guerra Audaz. José da Silva Amora, capitão do
navio Imperador Alexandre, pediu a restituição do escravo de ganho Simão, pertencente a
um senhor maranhense chamado Miguel Tavares, que tinha vindo de Pernambuco e se
evadido “sem licença” (sic). João Eleutério da Rocha, capitão da fragata Graduado
requereu que o escravo José da Rocha,recrutado como grumete na nau Vasco, “obtivesse
a sua liberdade”. Antônio Guedes, negociante de Lisboa e consignatário da embarcação
Conde da Palma, pedia a devolução do escravo José, empregado na guarnição do mesmo
navio. Mesmo senhores que eram experimentados homens do mar, como João Jacinto de
Souza, comandante da galera Eugênia, viam seus escravos evadirem-se, como fez Antônio,
recrutado para o serviço da nau São Sebastião433.
Estes documentos utilizam palavras reveladoras de significados diversos. O escravo
João Antônio achava-se “refugiado” em uma nau da Armada, e o fato de que encontrara
refúgio revela que seu recrutamento fora para ele um ganho diante dasituação de escravidão
a que o senhor o submetia. O benefício também se estendia à Marinha de Guerra, sempre
em busca de homens para as lidas marítimas. Quanto a José da Rocha, seu senhor pedia
sua “liberdade”, não entendida como alforria, mas sim comopermissão para dar baixa da
Armada, já que seu recrutamento fora ilegal por ter se dado sem a anuência do proprietário.

433
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 664: do rei para Pedro de Mendonça e
Moura, Lisboa, 1 de novembro de 1817; doc. 27, s/d; doc. 206, 3 de março de 1818; doc. 449, 22 de
agosto de 1821; doc. 207, 21 de novembro de 1821; doc. 364, 22 de junho de 1819; doc. 1075, 22 de
junho de 1819; doc. 1080, 5 de agosto de 1822.

165
Nos primeiros anos após a independência do Brasil, a situação dos marinheiros
escravos ganhou ainda mais complexidade, e os acontecimentos envolvendo muitos deles
reforçam a hipótese de que, no vocabulário político dos cativos, independência e liberdade
eram termos conectados e sua sinonímia podia ser construída434.
Entre a proclamação da separação política (1822) e o tratado de reconhecimento
da independência (1825), a opção de muitos súditos portugueses estabelecidos no Brasil
foi partir, sobretudo diante de conflitos que tinham como alvo a comunidade lusa435. O
retorno de parte desses súditos ao Reino foi feito às pressas, muitas vezes desfazendo-sede
propriedades a preços abaixo do valor de mercado. Escravos entravam no rol dessas
propriedades436, mas eles viram nessa situação possibilidades inusitadas de construção da
própria liberdade, fosse pela fuga pura e simples, fosse pela denúncia de seussenhores
quando estes, ao arrepio da lei, quiseram levá-los a Portugal junto com o dinheiro em que
haviam convertido seus outros bens. Juntava-se a esses os casos de escravos pertencentes a
senhores brasileiros que, desde 1822, não estavam mais sujeitos às restrições legais da
escravidão quando levavam seus marujos cativos tripulandonavios que faziam escalas em
portos portugueses.
Em 1824, o Conde de Subserra, então Ministro do Reino, mandou que o pardo
José Manuel “deixe estar aonde se acha à disposição da pessoa a quem pertence, e no caso
de haver já desembarcado o faça novamente conduzir para bordo da dita embarcação”. O
escravo já se empregara em uma sumaca que partiria para a Ilha do Faial e por pouco não
obteve sucesso em sua tentativa de fuga437. D. Miguel, nessa altura infante regente, emitiu
várias ordens de devolução de escravos aos seus senhores brasileiros. Mandou, por
exemplo, desembarcar da nau São Sebastião, onde se achava com praça, o escravo Manuel,
de 25 anos e pertencente a um senhor baiano. O cativo fora matriculado no bergantim
Miranda, que de Salvador iria ao Rio de Janeiro, com escala em Lisboa, onde Manuel
resolveu tentar um novo destino, evadindo-se. Manuel Simões, súdito brasileiro e capitão
do bergantim da mesma bandeira com o provocativo nome de Triunfo Americano,
também requereu a soltura e entrega de seu escravoAdriano, que se achava “preso para
o serviço da Esquadra portuguesa”. O mesmo fez Vicente Ferreira da Silva: pediu que

434
Sobre a analogia semântica entre independência e liberdade, tanto na ação escrava quanto na dos
parlamentares da Assembleia Constituinte do Império, ver Capítulo 4.
435
Sobre o assunto, ver entre outros RIBEIRO, Gladys Sabina, “Inimigos mascarados com o título de
cidadãos’: a vigilância e o controle sobre os portugueses no Rio de Janeiro do Primeiro Reinado”. Acervo,
10(2): 85-98, jul./dez.1997.
436
VENANCIO, Cativos do Reino, p. 212 e ss.
437
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 597, 18 de abril de 1824.

166
mandassem soltar seu escravo Manuel, que servia na fragata Princesa Real, “por ser de
propriedade estrangeira” – no caso, de um súdito brasileiro438.
O conhecimento que os escravos tinham sobre as leis, desde pelo menos a de 1761,
manifestou-se também diante do constrangimento diplomático que a fuga delesem solo
luso podia causar diante das autoridades do Império do Brasil na defesa dos interesses de
seus súditos. Os cativos não se importaram com esse constrangimento, e continuaram
tentando suas fugas sempre que possível. André, escravo nascido na Ilha do Príncipe e
pertencente a José da Silva Dias, encontrava-se em Lisboa em meados de 1823 e
aproveitou-se da ausência de seu senhor, em viagem de negócios à Inglaterra, para oferecer-
se como marujo e membro da tropa no navio São Gualter e, assim, ganhar o mundo.
Negociantes da Bahia e de Lisboa, parte do círculo de amizades de seu senhor,
apresentaram declarações de que André pertencia a José e que não podia gozar da
liberdade sendo um fugitivo do ultramar – algo que, nessa altura, já era uma situação menos
definida, na medida em que o “ultramar” negociava sua independência. Até novembro de
1825, André não havia retornado e nem a sentença havia sido passada439. José foi outro
desses escravos que não se constrangeram diante dos eventuais embaraçosdiplomáticos que
suas ações podiam provocar. Ele viera na charrua Vênus na “qualidade de escravo” do
comandante primeiro tenente da Armada Real, José da Costa Coito. Chegando a Lisboa,
foi posto em custódia na cadeia em razão da dúvida a respeito de sua condição. A
irmandade do Rosário lisboeta, aliada contumaz de escravos que reivindicavam sua
liberdade, tomou a defesa de sua causa440. O administrador da Alfândega tinha dúvidas
sobre como agir:

O Alvará de 10 de março de 1800 em declaração ao de 19 de setembro


de 1761 só permitiu os pretos escravos ao serviço dos navios de
comércio, e tendo se demorado o preto em questão na qualidade de
escravo até o dito dia16 do corrente mês, não posso combinar como
se lhe assentasse embarcação de guerra à praça que consta dos
documentos que também junto, e me foram remetidos pelo mesmo
438
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 1047, 17 de abril de1828, doc. 708, 3
de fevereiro de 1829; doc. 712, 4 de fevereiro de 1829.
439
“Autos cíveis de petição e despacho para justificação que requer José da Silva Dias, negociante da praça
da Baía (Brasil) e dono do escravo André, natural da ilha do Príncipe”, 1825. ANTT, Feitos Findos
- Juízo da Índia e Mina, Letra J, maço 49, nº 13, caixa 49.
440
Para um acompanhamento mais detido da ação das irmandades portuguesas, ver REGINALDO,
Lucilene. “África em Portugal’: devoções, irmandades e escravidão no Reino de Portugal, século XVIII”.
História, 28(1) [Franca]: 2009, p. 289-319. Luiz Geraldo Silva menciona a defesa promovida pelas
irmandades do Rosário em favor dos escravos (marinheiros, entre outros) desde o século XVI, cf. A faina,
a festa e o rito, op. cit., p. 66. Ver também PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das
consciências: a escravatura na época moderna. Lisboa: Colibri, 1995, p. 53-54.

167
comandante, parecendo-me neste objeto ter havidoprejuízo e infração do citado Alvará, pelo
que levo tudo ao conhecimento de V. M. que mandará o que for servido441 .
De fato, José viera matriculado na equipagem da charrua, como exigia a lei de 1776.
Porém, o conteúdo da lei deixou de valer para embarcações brasileiras a partir da
independência, e o cativo parecia estar usando isso a seu favor, com o apoio dos irmãos do
Rosário dos Pretos. Pela matrícula, podemos saber algo mais sobre esse homem: ele era
natural de Moçambique, chegara a Lisboa em fevereiro de 1824 e embarcara como
segundo marinheiro voluntário, tendo seus soldos sido pagos até fins de agosto de 1823
– informações discordantes da alegação do comandante Coito de que José era seu escravo.
A questão da propriedade começa a se esclarecer a partir da intervenção de um oficial da
Fazenda: na verdade, José não pertencia a Coito, mas sim a José Machado Pinto, almoxarife
do Arsenal Real da Marinha na Bahia no momento em que estourara a guerra de
independência naquela capitania. Frente ao conflito, Pinto veio com a sua família para
Lisboa e, por essa razão, achava-se isento de cumprir o Alvará com forçade lei de 19 de
setembro de 1761, trazendo consigo seus oito escravos, “cinco pretinhase três pretos”,
entre eles José. Como o administrador da Alfândega recusou-se a passar certidão “para
serem tido por libertos e forros”, o caso deveria ir à apreciação real, que poderia expedir
“as ordens convenientes para que pelas justiças a quem competir se não passem as
sobreditas certidões”442.
O envolvimento de irmandades portuguesas com as questões de liberdade vinha de
muitos anos. Em 1783, por exemplo, o procurador da Irmandade de São Benedito
requerera que fosse tirada de bordo uma “escrava preta por nome Fabiana que seu senhor,
o desembargador João Henriques da Maya, contra os privilégios concedidos à sua
Irmandade, de donde a dita escrava era irmã, queria vender para o Maranhão”. O
intendente da polícia a mandou trazer para terra e a colocou em depósito na Casa Pia do
Castelo de São Jorge “por julgar não trazia outro motivo para estar à venda mais que a
vontade do seu senhor (...) enquanto se decidia o pleito que corre sobre a liberdade dela”443.

441
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 211, Lisboa, 23 de fevereiro de 1824.
442
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), docs. 213 e 214, 21 de fevereiro de 1824;,
doc. 215, de Joaquim Antônio Xavier Annes da Costa a Manoel Marinho Falcão de Castro, 20 de fevereiro
de 1824.
443
ANTT/IGP, livro 1, Contas para a Secretaria, desde 15 de junho de 1780 até 11 de agosto de 1783, 11
de agosto de 1783, registro de um ofício do intendente para o Visconde de Vila Nova da Cerveira, fl. 689-
689v. Um sumário da ação de liberdade informa que a escrava se “desonestava” na casa do seu senhor com
um criado de libré de outra casa, “o que obrigara o seu senhor a mandá-la para a sua Quinta do

168
O antigo envolvimento das irmandades portuguesas com as ações de liberdade dos
escravos aportados em Lisboa embolou-se com as questões do reconhecimento da
independência do Brasil na década de 1820. As últimas capitanias a aderirem ao Império,
como o Maranhão, também foram aquelas de onde partiram mais tardiamente portugueses
retornados ao Reino. O tenente coronel Joaquim José da Costa Portugal era um desses
homens, que ainda se sentia morador do Reino Unido em pleno ano de 1825, quando
finalmente emigrou levando os escravos Luciano Gondo e Carolina Crioula, pornão poder
deixá-los para trás em sua partida abrupta de São Luís:

Acontece que o primeiro o dito Luciano, induzido por Jose Gonçalves


Barbosa, lhe fugiu do seu domínio e proximadamente fez citar o
suplicante a requerimento dos pretos da irmandade da N. S. do
Rosário, com pretextos privados e inteiramente falsos, para que o dito
escravo fique forro.

O mencionado Barbosa não apareceu mais ao longo do processo e, assim, ficamos


sem saber quais eram seus interesses na questão. Em todo caso, o militar português portava
uma certidão pela qual gozava de anistia por ter emigrado do Brasil, podendo trazer dali
suas propriedades, incluindo seus escravos444. O valor desse documento não intimidou
Luciano, que pediu ajuda aos irmãos do Rosário e perdeu-se das vistas do seu antigo senhor
nas ruas de Lisboa.
O Real Colégio dos Catecúmenos, mencionado anteriormente, teria um longo trato
com escravos que, trazidos de forma irregular para o Reino, seriam alvo da atuação das
irmandades religiosas na defesa dos direitos dos cativos. Um dos casos mais rumorosos foi
o do cabinda José Manuel, de 24 ou 25 anos, que deu entrada à noite no porto de Lisboa,
pois seu senhor não quis matriculá-lo como mandava a lei. Os responsáveis pelo
cumprimento das normais legais sentiam dificuldade em aplicá-las no contexto pós-
independência, como fez José Manuel Fernandes ao constatar que haviaum indulto dado
aos retornados do Brasil e que o senhor desse escravo encontrava-se noFaial. Cumprir o
indulto era abrir confronto com as irmandades, neste caso os mesários da Real Irmandade
de Nossa Senhora do Rosário da Igreja do Salvador de Lisboa. De acordo com esses
homens, José Manuel tinha embarcado na Bahia na sumaca Santo

Telhal em Sintra, afim de que, mudando de ares, talvez melhorasse até que ultimamente parindo viera ele
senhor no conhecimento da aleivosia que se lhe tinha cometido”. Diante do fato, concluiu-se não competir
à Irmandade “o privilégio a que recorre, por se não achar a escrava nos dois precisos casos em que ele se
concede, sobre o que se acha causa pendente”. Idem, Ibidem, fls. 690-691.
444
“Autos cíveis de requerimento para embargo em que é requerente Joaquim José da Costa Portugal e réu
Luciano, homem preto; Autos Cíveis de Requerimento para embarque no preso Luciano, homem preto
escravo do Tenente Coronel Joaquim Jose da Costa Portugal”, 1825. ANTT, Feitos Findos - Juízo da Índia
e Mina, Maço 2, nº 1, Caixa 126.

169
Antônio e dali chegou ao Porto na companhia de José Manuel Fernandes, seu senhor. No
documento enviado pela irmandade, o etnônimo do escravo passou a ser mina, maso que
importava para efeito de liberdade era a alegação de que ele não tinha sido batizado. Seu
senhor e homônimo o entregou aos cuidados de um sócio em Lisboa enquanto viajava aos
Açores. O que os mesários pleiteavam eram “as declaraçõesnecessárias, para o fim de se
lhe passar a pretendida certidão de liberdade na forma que está determinado no citado
Alvará com força de lei [de 1761]” 445.
José Manuel, o escravo, manifestou-se por meio de seu procurador, nomeado pela
Irmandade do Rosário. Ele afirmou que seu senhor verdadeiro falecera durante a viagem
desde a Bahia e que só por isso ele e seus companheiros passaram à posse de José Manuel
Fernandes, que furtivamente os fizera entrar em Portugal. O cativo diziater “sinceros
desejos de viver e abraçar o grêmio da Igreja”, por isso recorria ao rei para conseguir
ingressar no Colégio dos Catecúmenos “para aí ser catequizado e depois ser admitido ao
batismo”. José Manuel conseguiu seu intento e foi internado no Colégio, mas seu senhor
entendia que o real objetivo dele era livrar-se da escravidão e o fez retirar dali, não sabemos
por quais métodos, levando-o para a sumaca Santo Antônio, onde o mantinha amarrado
ao mastro de proa “como se [o] suplicante [fizesse] algum ato criminoso, quando este
crime, se há, é o dele suplicante [o senhor] em vista dos Régios Alvarás de 19 de setembro
de 1761 e de 10 de março de 1800 e precedentes”. Osmembros do Rosário queriam que
José fosse liberado do cativeiro por meio de carta de liberdade para “seguir a Lei de Jesus
Cristo”, ao passo que seu senhor o queria no paganismo, quando deveria se interessar pela
transformação dele em verdadeiro cristão. Em abril de 1824, o reitor Timóteo dos Reis
recebeu ordens da Secretaria da Justiçapara entregar o preto José, também conhecido
como Policarpo, à Auditoria Geral da Marinha, onde perdemos seu rastro446.
Talvez o destino de José Manuel, de nome e origem controversos, tenha sido o
mesmo de outros, como Pedro e Jacinto Antônio, chegados a Portugal como escravos de
militares que serviam nas naus de guerra lusas envolvidas na guerra em curso no Brasil. O
oficial da Alfândega pedia a presença deles “para efeito de se expedir a sua certidão

445
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), docs. s/nº. Lisboa, 27 de março de 1824.
446
Timotheo Martins dos Reis, o reitor do Colégio, contou como o escravo foi tirado do navio no qual
chegara a Lisboa e relacionou as peças de seu enxoval, retirado de bordo a duras penas. AHM, caixa 311,
pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. s/nº, 8 de abril de 1824. O escravo tinha para usar a bordo 6
camisas, 6 coletes, 7 calções, 3 jalecos, 2 lenços de assuar, 1 guardanapo, uma caixa de navalhas de barbear,
um espelho, dois chapéus e uma japona. Não tinha calçado algum. Ver ainda doc. 601, pedido de mercê do
procurador Feliciano José Pimenta da Nóbrega, e docs. 598, 599 e 600, 18 de abril de 1824.

170
de liberdade na forma da lei” em 1825447. Como dado mais geral, ficava a recomendação
de vigilância sobre os emigrados do Brasil que, “com manifesta contravenção da Lei e
novíssima Real Resolução de Sua Majestade, pretendem enviar para fora do Reino os
pretos ou pretas que tem retido em seu poder na condição d’escravos”. Os comandantes
dos navios de guerra deviam cuidar para que nenhum homem negro fosse recrutado “sem
a devida certidão de liberdade expedida pela Alfândega Grande”448. A nova legislação
impedia a retirada dos escravos ilegais do Reino e mantinha a proibição mais antiga de
entrada de escravos vindos do Brasil, mesmo não sendo mais este um domínio português.
A polícia se incumbiu de listar os casos de escravos apreendidos quando seus senhores
tentaram introduzi-los ilegalmente,na forma que sistematizo a seguir.

TABELA 6 - “RELAÇÃO DOS ESCRAVOS VINDOS DO BRASIL QUE TEM SIDO MANDADOS
PRENDER POR ESTA INTENDÊNCIA GERAL DE POLÍCIA DA CORTE [LISBOA] E REINO
449
DESDE SETEMBRO DE 1821 ATÉ 8 DE JANEIRO DE 1825”
DATAS DA NOMES DOS ESCRAVOS DOCUMENTOS POR QUE SE PASSARAM
ORDEM DE [TOTALIZAM 55] AS ORDENS DE PRISÃO
PRISÃO
5 set.1821 Francisco Registro de Bento Antônio de Andrade
3 jan.1822 Manuel Idem de Gaudino José da Gama Souza
10 abr.1822 Domingos Angola Dito de Joaquim Carlos da Silva
10 abr.1822 Joaquim Crioilo de Dito de Joaquim Carlos da Silva
Montevideo
10 abr.1822 Jorge Cambinda Dito de Joaquim Carlos da Silva
12 maio1822 Manuel Luiz Dito de Amaro José de Faria
30 jul.1822 Francisco Dito de Joaquim Albino Gonçalves. Perfeito
7 ago.1822 José Dito de Gregório José Ribeiro
18 set.1822 Dois escravos Dito de João Pedro da Cunha
28 nov.1822 Antônio Calabar Dito de Basílio Gonçalves. Ferreira
12 dez.1822 Valentim Dito de Paulo José Branco
23 mar.1824 João Dito de Fernando de Souza Machado
23 mar.1824 Manuel Dito de Manuel José dos Santos
15 maio 1824 Antônio, natural d’Ussa Dito de Francisco Antônio Sanches
11 jun.1824 Jacinto dito [natural d’Ussa] Dito de Manuel José dos Santos
15 jun.1824 Punciano, Crioilo Dito de Manuel Joaquim do Rego Barreto
26 jun.1824 José, natural de Minas Dito de Antônio Gonçalves. Guimarães
14 jul.1824 Antônio Dito de Domingos Francisco dos Santos
14 jul.1824 Caetano Dito de Domingos Francisco dos Santos
14 jul.1824 Francisco Dito de Domingos Francisco dos Santos
14 jul.1824 Patrício Dito de Domingos Francisco dos Santos
14 jul.1824 Antônio Dito de Domingos Francisco dos Santos
14 jul.1824 Tomé Dito de Domingos Francisco dos Santos
29 jul.1824 Joaquim de Moçambique Requerimento de Joaquim José Ribeiro

447
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), docs. 217 (17 de agosto de 1825) e 219 (24
de dezembro de 1825), ofícios de José Xavier Moreira da Silva ao marquês de Vianna.
448
AHM, caixa 311, pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847), doc. 218, 25 de agosto de 1825, ofício de
José Xavier Moreira da Silva ao marquês de Vianna.
449
ANTT/IGP, livro 22, fls. 130-130v.

171
3 ago.1824 José, de Benguela Dito de José de Sá
3 ago.1824 Mariano, da Costa da Mina Dito de José de Sá
4 ago.1824 Maria Rita Dito de D. Maria Rosa da Conceição Serva
4 ago.1824 Francisco de Paula Dito de João Ferreira Froes
4 ago.1824 José Dito de João Ferreira Froes
27 ago.1824 Francisco d’Aossa Dito de Tomás Guedes Pinto Vaz
1 set.1824 João Baptista Dito do Coronel João Pereira Valença
7 set.1824 Tristão de Moçambique Dito de Joaquim Antônio Ribeiro
7 set.1824 Germano Dito de Mathias Joaquim de Brito
1 out.1824 José de Pontes Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
1 out.1824 Pantaleão Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
1 out.1824 Hilário Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
1 out.1824 Casemiro Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
1 out.1824 Dionizio Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
1 out.1824 Braz Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
1 out.1824 Manuel Dito do Comendador Antônio Vaz de Carvalho
9 out.1824 Manuel de Moçambique Dito de Antônio Pedro de Alcântara Pereira
23 out.1824 Joaquim Dito de Serafim José Francisco
23 out.1824 Maria Dito de Serafim José Francisco
23 out.1824 Joana Dito de Serafim José Francisco
4 nov.1824 José Antônio Dito de Gregório José Ribeiro
8 nov.1824 Julião Cafus Dito de Rodrigo Luiz Salgado
17 nov.1824 Justino Dito de Custodio José Lopes
15 dez.1824 Francisco das Chagas Dito de Jacinto José Pinheiro
15 dez.1824 Antônio Dito de Manuel do Valle Porto
15 dez.1824 Delfina Dito de Manuel do Valle Porto
16 dez.1824 João Dito de Antônio José Ribeiro
8 jan.1825 José Dito do Capitão Tenente José Pinto da Mota
8 jan.1825 Antônio Dito do Capitão Tenente José Pinto da Mota
8 jan.1825 Henrique Dito do Capitão Tenente José Pinto da Mota
RELAÇÃO [2]450
DATAS NOMES DOS DOCUMENTOS POR QUE SE PASSARAM AS
DAS ESCRAVOS ORDENS DE PRISÃO
ORDENS
DE
PRISÃO
1 jun.1822 Domingos José Representação verbal de José Julião, despenseiro da
galera Nova Aurora
17 jun.1822 Joaquim Vieira Dito do Capitão de Mar e Guerra José Maria Vieira
17 jun.1822 Francisco Dito do Capitão de Mar e Guerra José Maria Vieira
20 jul.1822 Joaquim dos Santos Dito do Capitão do navio Conde d’Arcos

Os senhores questionavam as alforrias e denunciavam as fugas de seus escravos,


pedindo ordens de captura “sempre solicitadas com o pretexto de fuga dos escravos,
somente por fim o entregarem-se a seus senhores para os reenviarem ao Brasil”. Alguns
escravos – ex-escravos, no caso – ainda se encontravam na cadeia do Limoeiro, “onde são
sustentados à custa de seus donos”. Em 1822, haviam sido presos alguns escravos cujos
senhores os reclamaram verbalmente (Relação 2), argumentando que eles estavam
matriculados nos navios que os conduziram a Portugal. O intendente da polícia aproveitou
a oportunidade para manifestar sua opinião sobre o Alvará de 1761:

450
ANTT/IGP, livro 22, fl.131.
172
“acho que sendo o mencionado Alvará de 19 de setembro de 1761
uma providente lei, que muito se ajusta com a equidade e proteção
que merece a liberdade natural a que aspiram todos os humanos, é
sobremaneira repugnante e irregular que por um simples aviso se
suspenda ou dispense uma lei. E neste sentido me parece deve
substituir o mesmo Alvará em todo o seu vigor, e que em atenção
somente das forçadas circunstâncias dos suplicantes se lhes conceda o
prazo de um até dois meses para neste intervalo reenviarem ao Brasil
os seus escravos, na certeza de que terminadoo mesmo prazo perderão
quaisquer direito que sobre os ditos escravospretendam ter, por isso
que então ao citado Alvará (...) se deverá dar plena execução”451.

A opinião do intendente não era isolada, a julgar por outros casos que correram na
justiça portuguesa. O proprietário de José e Tomás, vindos a Lisboa a bordo do Porcopina
sem matrícula como marinheiros do navio, pedia que eles não recebessem cartas de
alforria, pois a ausência da matrícula fora um erro causado pelo “grande barulho que
houvera no embarque” em Pernambuco. O “grande barulho” não era apenas celeuma de
marujos, mas tinha a ver com a pressa de deixar a capitania devido aos distúrbios anti
lusitanos que, entre outros alvos, atingira este senhor de terras e escravos. Ele deixou o
Brasil por não “tolerar os governos revolucionários daquela capitania e o choque de
partidos”, tendo um olho ferido “na desgraçada época” de 1817. A justiça, porém, indeferiu
seu pedido e recusou-se a indenizá-lo com os fundos destinados à redenção dos cativos,
alegando que eles não se destinavam a forros – condição que José e Tomás já usufruíam
desde que pisaram no Reino, na avaliação dos juízes452.
Vários senhores reforçaram o pedido para que as certidões de liberdade com
base na lei de 1761 não fossem passadas. A todos, o procurador da Coroa respondeu do
mesmo modo:

“a lei não permitia a escravidão aos escravos que vem dos portos da
América e, enquanto não fosse revogada, ninguém podia a ela subtrair-
se, nem os suplicantes a título ou pretexto de triste [e] miserável
condição de emigrados, que não era mais miserável que a condição de
escravos”453.

A única possibilidade de trazer escravos era matriculando-os nas equipagens, coisa


que apenas um senhor fizera no caso do Porcopina. Como o caso não era único,os juízes
mencionavam a insistência dos emigrados em trazer escravos do Brasil e

451
ANTT/IGP, livro 22, fl. 129-129v, 8 de março de 1825, ofício do Intendente a D. Miguel Antônio de
Melo - Fazenda.
452
Despacho, 24 de novembro de 1823. “Sobre a pretensão de alguns emigrados...”. ANTT, Desembargo
do Paço (Corte, Estremadura e Ilhas), maço 2.145, doc. 91.
453
Despacho, 6 de junho de 1824. Idem, Ibidem.

173
conservá-los nessa condição em Portugal ao arrepio da lei. Os argumentos de 1761
voltavam à ordem do dia na década de 1820: Portugal protegia a causa da liberdade dos
escravos “conforme ao costume das outras nações polidas (...). As outras nações não os têm
[escravos] e em Portugal também os não há desde o citado Alvará de 19 desetembro
de 1761” (sic). A contumácia dos senhores emigrados do Brasil levaria à edição de dois
avisos em 4 de dezembro de 1824, reforçando a proibição de introduzir escravos nos portos
portugueses.
Os juízes do Desembargo do Paço, onde o processo de José e Tomás era apreciado,
entendiam que as dificuldades dos senhores na antiga colônia era reais, mas também
observaram que isso não os obrigava a trazer consigo seus escravos e não era justo que “o
infortúnio de uns reproduzisse infortúnio dos outros”. Recomendaram, assim, que se
dessem três meses para que os emigrados do Brasil levassem seus cativosa qualquer porto
do ultramar onde a escravidão fosse permitida, findos os quais eles seriam considerados
libertos se permanecessem no Reino. A medida era provisória, valendo apenas enquanto
durassem as “perturbações e abalos políticos em que a hidra revolucionária nutrida com
antissociais princípios demagógicos precipitou o Brasil”, obrigando os portugueses a
emigrar. Colonos ativos contra o domínio luso do comércio varejista colonial e na luta pela
emancipação política da América portuguesa entravam, assim, para o inventário das muitas
cabeças da hidra atlântica454, na visão de quem ainda detinha o poder ou tinha apenas
veleidades recolonizadoras.
João de Carvalho Martins da Silva Ferrão, cujo despacho serve de epígrafe a este
capítulo, avaliou de forma original a situação daqueles anos. Ele entendia que os senhores
emigravam diante da anarquia política e do quadro de perseguição que sofriam no Brasil,
vindo buscar refúgio em Portugal “levados de sentimentos de fidelidade”. Mas
compreendia que os escravos também eram capazes de uma avaliação política das
ocorrências: senhores e escravos conheciam as leis sobre a liberdade e, se os primeiros
vinham procurar abrigo em seu soberano, os escravos faziam o mesmo: “pareceria pouco
ajustado à razão e à justiça que em troca de sua fidelidade recebesse novascadeias
ou permanecesse nas antigas para voltar a esse mesmo país de que fugira”. Decidir contra
os escravos podia trazer graves consequências a Portugal e ao Brasil,pois outros cativos
que se achassem aptos a migrar com seus senhores entenderiam que nada viriam a ganhar

454
LINEBAUGH & REDIKER, op. cit., p. 343-344.

174
com isso e resolvessem denunciá-los ou simplesmente fugir, “acrescentando maior aflição
ao aflito”455.
Um ofício de D. Miguel Antônio de Mello (o mesmo que governara Angola em
fins do século XVIII e continuava ativo na política reinol) endereçado a Fernando Luís
Pereira de Souza Barradas indica que, entre 1823 e 1825, muitas ações de liberdade
dormitaram nas gavetas da burocracia lusa. A Secretaria dos Negócios da Fazenda emitira
ordens contrárias à liberdade dos escravos vindos do Brasil. Diante dos reclamos das
irmandades, a questão merecia outro encaminhamento. Mello pediu aos juízes do
Desembargo do Paço que fossem considerados dois tempos. No futuro, o rei expediria
cartas de alforria aos cativos que as requeressem; “quanto ao pretérito, que se restituam aos
escravos as cartas de alforria que se lhes expediram e depois foram cassadas456.
Décadas depois, as histórias liberdade de José Majojo e Francisco Moçambique
revelam que as possibilidades de escravos marinheiros continuavam múltiplas.
Apreendidos pelos ingleses a bordo do negreiro onde serviam como marinheiros em 1840,
eles “haviam se habituado a ver-se como livres, a receber pagamento e proteção da
Inglaterra e a serem tratados como súditos britânicos, portanto não eram mais escravos (...).
Aos olhos abolicionistas do comandante [do navio apreensor], a prolongada residência
destes negros a bordo do Crescent, o tratamento que têm experimentado e sua relação
contínua com pessoas livres fez nascer neles o desejo natural pela liberdade”. Junto com
outros africanos livres, eles foram libertados e enviados para Trinidad457.
Alguns juízes (os britânicos, em particular) da Comissão Mista carioca pareciam
dispostos a criar problemas àqueles senhores que empregavam escravos como
trabalhadores marítimos. Em alguns casos, mesmo depois de libertada toda a tripulação
branca de um negreiro apreendido, os juízes mantinham presos os negros ladinos – como
os três que faziam parte da equipagem do Feliz, apreendido no Rio de Janeiro logo após
o Natal de 1838458, ou o escravo Gorge, propriedade do mestre da escuna Emília459. Os
oficiais de navios ingleses que patrulhavam as costas em busca de

455
“Sobre a pretensão de alguns emigrados do Brasil dirigida a obstarem a liberdade dos seus escravos (...)”
Idem, Ibidem, despacho do juiz João de Carvalho Martins da Silva Ferrão datado de 3 de junho de 1825.
456
Idem, Ibidem, ofício de 20 de junho de 1825.
457
MAMIGONIAN, Beatriz G. “José Majojo e Francisco Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas:
notas sobre a reconstituição de trajetórias da era da abolição”. Topoi, 11(20): jan./jun.2010, pp. 82-83.
458
AHI, lata 15, maço 4, pasta 1.
459
Sobre o caso deste escravo marinheiro, ver HAWTHORNE, Walter. “Gorge: An African Seamen and
his Flights from “Freedom’ back to ‘Slavery’ in the Early Nineteenth Century”. Slavery and Abolition:

175
contrabando de escravos também estiveram envolvidos em outros casos semelhantes, como
o do angola André, que “se foi alistar por marinheiro, a título de forro” na barca portuguesa
Maria Carlota. Em 1845, seu senhor, Antônio José Gomes Moreira, escreveu vários
requerimentos ao imperador brasileiro, alegando direito de propriedade sobre o escravo e
queixando-se da solene ignorância com que os oficiais ingleses que haviam apreendido a
Maria Carlota tratavam seus pedidos de devolução do escravo. O problema era que os
tripulantes dessa barca contrabandista de escravos haviam sido presos, tendo a maioria
deles conseguido sua liberação, exceto “dois ou três pretos”, sendo André um deles. Esses
escravos eram mantidos na presiganga estacionada na Baía de Guanabara, servindo aos
britânicos sem que seus senhores fossem remunerados por isso. Moreira pedia uma
indenização de 20 mil réis por mês pelo trabalho de André desde a apreensão do navio
(em setembro de 1839) ou o pagamento de seu valor integral pelo governo imperial –
como já obtivera Antônio Gonçalves da Luz, senhor de outro escravo preso na mesma
situação. Além desses dois, a equipagem da barcacontava com o escravo Jacob, também
aprisionado na presiganga sem que seu proprietário – o pernambucano Vicente Tomás dos
Santos – pudesse reavê-lo460. Não sabemos se Jacob e o escravo não nomeado de Antônio
da Luz usaram do mesmo artifício de se fazer passar por forros para serem incorporados à
tripulação do negreiro Maria Carlota. O simples fato de seus senhores não mencionarem
a estratégia não significa que os escravos não tenham se valido dela. Além deles, dezenas
de outros escravos marinheiros, empregados na cabotagem ou na navegação de longo
curso, encontraram o caminho da liberdade, muitas vezes por meio de fugas nas quais
podiam utilizar suas habilidades de navegadores461.

Considerações finais

A escravização era um processo repleto de fases e de idas e vindas. Na visão


senhorial, o resultado parecia muito claro: transformar africanos e seus descendentes em
cativos e bens. Mas para os escravizados, africanos ou nascidos em qualquer parte, não era
só isso, e o processo comportava a luta pela liberdade antes e depois de se tornarem
propriedades. Emblemas disso foram os escravos marinheiros ou aqueles que se fizeram

31(3): 2010, 411-428. Não encontrei esse marinheiro na lista dos que foram presos pelos ingleses quando
da apreensão da escuna em 1821, cf. AHI, Processos da Comissão Mista Anglo Brasileira, Lata 13, Maços
1, 1A e 1B (1821).
460
AHI, lata 20, maço 3.
461
SILVA, A faina, a festa e o rito, op. cit., p. 156; REIS, GOMES e CARVALHO, O alufá Rufino, op.
cit., p. 79-81, 99.

176
passar por experimentados homens do mar sem o ser de fato. Suas fugas, sua habilidade
profissional, o trânsito deles por lugares desconhecidos e sua capacidade de convencer
oficiais de navios a empregá-los os punham em contato com outros homens cuja tradição
era a da constante busca da liberdade. Nessa busca, eles superaram aquilo que igualava o
navio à fábrica e à prisão: o confinamento para fins de exploração dotrabalho462. O
intento senhorial, todavia, foi incapaz de impedir a organização desses homens ou de evitar
suas fugas e deserções.
No contexto da escravidão ou no pós-Abolição, a mobilidade espacial cumpria um
papel relevante na invenção da liberdade e de autonomias, e o mar – as águas em geral –
não era desperdiçado como rota de fuga pelos escravos463.
Se o ideal de liberdade era nevrálgico na cultura marítima, como querem Rediker
e Linebaugh, nele estavam incluídas as estratégias de liberdade e autonomia de escravos
que se evadiam pelas águas. Talvez existisse uma rede de comunicação solidária no tráfico
negreiro entre marujos livres e escravos, considerando que parte expressiva das tripulações
negreiras era composta por africanos. A rede podia incluir pescadores e canoeiros464.
Engajados no trabalho marítimo em busca de autonomia ou liberdade, os
escravizados corriam riscos. No navio, podia ser construída uma vida comunitária longedo
rótulo da escravidão. Nele, podia ocorrer a troca de senhor e a chance de desempenhar
tarefas que exigiam habilidade profissional. A muitos escravos marinheiros deviam
apetecer as inversões de hierarquia a bordo quando atravessavam o equador e viam oficiais
virarem grumetes e estes tornarem-se os mandantes na embarcação.
Stuart Schwartz notou que Espanha e Portugal sediavam impérios cujos níveisde
mobilidade, movimento e migração “apresentavam raras oportunidades para o movimento
individual, e, com tal mobilidade física, oportunidades para mobilidade social e para o
afrouxamento dos constrangimentos da lei e da moral”. O olhar do historiador estava
focado no clero e nos soldados, na (in)tolerância religiosa e napossibilidade de escapar
pela mobilidade. Esses homens movimentavam-se nos vastos espaços com certo
462
LINEBAUGH & REDIKER, A hidra de muitas cabeças, op. cit., p. 71.
463
Ver FARIAS, GOMES, SOARES e ARAÚJO, Cidades negras, op. cit., p. 45-50. Ao estudar escravos
canoeiros de ganho no Recife oitocentista, Marcus Carvalho afirmou: “É curioso notar a presença desses
escravos com tanta mobilidade assim. É quase uma situação limite em termos de liberdade de movimento”,
na qual o controle era difícil, a julgar pelos inúmeros anúncios de escravos canoeiros fugidos, cf. “Os
caminhos do rio: negros canoeiros no Recife na primeira metade do século XIX”. Afro- Ásia, 19/20: 1997,
p. 91.
464
RODRIGUES, De costa a costa, pp. 186-187; SILVA, A faina, a festa e o rito, op. cit., p. 190.

177
desembaraço, beneficiando-se da “inabilidade do Estado ou da Igreja em regular seus
comportamentos, expressar ideias dissidentes ou impopulares, contestar as fundações
básicas da autoridade ou exercer e expressar um senso de independência intelectual”465.
Nessa linha de raciocínio, podemos acrescentar que aos marinheiros escravos essas
possibilidades também foram conquistadas por meio de uma leitura acurada da legislação
reguladora do tráfico e da escravidão portugueses e do estabelecimento de uma rede de
solidariedades que incluía – não incondicionalmente e nem sempre eficaz – forros,
autoridades policiais, juízes e membros de irmandades religiosas na busca por autonomia
e liberdade.
A evasão marítima nem sempre garantia a liberdade, mas ampliava o grau de
autonomia dos marinheiros-escravos ou de escravizados que, mesmo não sendo
marinheiros, punham-se a serviço de capitães e encaravam uma vida nova. O Atlântico
podia ser o lugar do aprendizado da escravidão e também o da reinvenção da liberdade.
Vislumbro uma relação entre a travessia e a construção da liberdade/autonomia – ainda
que, no mais das vezes, atravessar o Atlântico significasse o contrário disso, ou seja, o
desenraizamento e a escravização dos cerca de 9,5 milhões de africanos traficados entre os
séculos XV e XIX, para ficarmos nas contas de Philip Curtin466. A estratégia escrava de
alegar conhecimento náutico para se tornar embarcadiço era conhecida dos capitães, que
pouco se importavam em saber se os voluntários eram livres ou não.
Nas últimas décadas, os historiadores trouxeram à luz inúmeras especificidades
regionais e temporais da escravidão. A escravidão moderna, além das especificidades locais,
também variou ao longo do processo pelo qual o africano tornava-se objeto de transações
comerciais – um processo que podemos chamar de escravização, remetendo a uma relação
social dinâmica cujo resultado não foi o mesmo para todos os que nela estiveram
envolvidos. A escravização compunha-se de diferentes fases, e aqui interessam
particularmente aquelas fases nas quais os africanos mudavam de senhor em curtos
intervalos de tempo – envolvendo, portanto, domínios por vários senhores transitórios. Em
cada uma dessas fases, escravos e senhores adotavam atitudes e estratégias condizentes com
a situação em que se encontravam.

465
SCHWARTZ, Stuart. “Vidas entre impérios: movimento e liberdade de consciência no mundo luso-
hispânico”. In: FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Sons, formas, cores e movimentos na modernidade
atlântica: Europa, Américas e África. São Paulo: Annablume; Belo Horizonte: FAPEMIG; PPGH-UFMG,
2008, p. 419.
466
CURTIN, Philip D., The Atlantic Slave Trade: A Census. Madison: Wisconsin University Press, 1969,
p. 168.

178
Como outros historiadores, acredito que o “povo da diáspora africana lutou contra
a escravidão americana e a degradação, desumanização e destruição deliberadade nome,
linhagem, cultura e país”467. A luta não resultou sempre em derrotas e vitórias inequívocas
e, de todo modo, o processo merece investigação antes que saibamos onde ele iria
desembocar. Investigar o processo é o dever e a delícia do historiador. As histórias reunidas
aqui indicam que os escravos perderam muito no processo que os tornou cativos, mas não
deixaram de lutar nem se conformaram à perpetuidade de sua condição. Não todos eles, e
nem sempre, é claro. Cuidaram de suas existências como lhes foi possível, e estabeleceram
redes de comunicação e solidariedade por meio das quais conseguiram, às vezes,
transformar a mobilidade das viagens marítimas em liberdade ou trocar de senhor e
conseguir alguma vantagem468. Quando os entendemos como sujeitos históricos, cujas ações
expressaram possibilidades e limites no embate com seus oponentes no tempo e no espaço
onde viveram, compreendemos que essas foram conquistas imensas.

467
LINEBAUGH & REDIKER, A hidra de muitas cabeças, op. cit., p. 348.
468
Autores como Álvaro Nascimento e Jorge Prata apontaram isso ao tratar, por exemplo, de escravos que
punham em xeque o controle senhorial ao se engajarem na Armada no século XIX. Ver NASCIMENTO,
Álvaro Pereira do. “Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra”. Estudos Afro-Asiáticos, 38:
dez.2000; SOUSA, Jorge Prata de. Escravidão ou morte: os escravos brasileiros na Guerra do Paraguai.
Rio de Janeiro, Mauad, 1996.

179
CAPÍTULO 4

LIBERDADE, HUMANIDADE E PROPRIEDADE:OS ESCRAVOS E A


469
ASSEMBLEIA CONSTITUINTE DE 1823

Os debates travados na Assembleia Constituinte reunida no Rio de Janeiro no ano


de 1823 já foram vistos como terreno de ausências. A mais visível delas seria a ausência de
discussões sobre a escravidão no Brasil, certamente a característica mais evidente da
organização social do país470. De fato, as referências à escravidão foram poucas quando
comparadas a outras temáticas, e encontram-se diluídas nos anais da Assembleia em meio
às questões da institucionalização dos poderes e da organização administrativa e política
que se encaminharam na Constituinte.
Entretanto, no transcorrer dos trabalhos da Assembleia Constituinte imperial,
podemos encontrar algumas referências à pretendida liberdade dos escravos471. Alguns
deles chegaram a manifestar diretamente à Assembleia seu desejo de se tornarem livres
como o coroamento de processos anteriores ao início do funcionamento do Poder
Legislativo no Império. Foi assim com a escrava Maria Joaquina, “solicitando sua liberdade
segundo ação impetrada contra Felizarda Querubina da Silva, sua proprietária,visto já haver
esta recebido outra escrava em troca, conforme combinado, e depois vendido a suplicante
ao Sr. Domingos Alves Loureiro”. Sobre esta solicitação, não há qualquer alusão durante
as sessões da Assembleia. Os documentos relativos a ela encontram-se no Arquivo da
Câmara dos Deputados472.
O caso sobre o qual temos documentação mais extensa e que mais mobilizou a
atenção dos parlamentares é o do grupo de escravos encabeçado por Inácio Rodrigues, que
será observado aqui mais detidamente.

469
A primeira versão foi publicada na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 39: 1995, p. 159-167.
470
A quase inexistência de debates sobre a escravidão na Constituinte foi apontada por RODRIGUES, José
Honório, A Assembleia Constituinte de 1823. Petrópolis: Vozes, 1974, p. 189. Mais recentemente, ver
BEZERRA NETO, José Maia. "A segunda independência: emancipadores, abolicionistas e as
emancipações do Brasil". Almanack, 2, 2º semestre de 2011, p. 94; ESCOSTEGUY Fº, João Carlos. Tráfico
de escravos e direção saquarema no Senado do Império do Brasil. Niterói: UFF, 2010 (Dissert. Mest.), p.
74.
471
Lex Heerma van Voss estabelece uma linhagem peticionista dos trabalhadores, incluindo os casos de
escravos no Brasil que reivindicaram suas liberdades aos poderes públicos. Ver Petitions in Social
History. Nova York; Melbourne: University of Cambridge Press, 2001, p. 1-2 e 19.
472
Inventário analítico do arquivo da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil,
1823: descrição do acervo e sinopse de tramitação (a partir daqui citado apenas como Inventário). Brasília:
Câmara dos Deputados, 1987, p. 161 e 384. Os documentos pelos quais Maria Joaquina solicitou "a bem do
seu direito" que lhe fosse dada certidão com "o teor do libelo que a suplicante propôs à sua senhora Felizarda
Querubina", o despacho do escrivão da Ouvidoria da Comarca do Rio de Janeiro Manoel Fernandes Coelho,
bem como os anexos correspondentes, encontram-se no CDI, Etiq. 11.

180
Inácio Rodrigues e os outros suplicantes, ao que tudo indica trabalhadores escravos
urbanos na Corte, eram propriedade de Águeda Caetana, e com ela se envolveram numa
longa contenda para tentar obter sua liberdade. Haviam sido vencidos no Tribunal da
Suplicação e imediatamente solicitaram a revisão do processo, alegando sofrerem uma
perseguição movida por sua senhora. O requerimento enviado por eles à Assembleia
Constituinte tinha como objetivo conseguir uma ordem que lhes garantisse poderem tratar
livremente de suas vidas e de sua causa, sem ter que ficar à mercê de Águeda, que estava
vendendo alguns dos litigantes para o interior com o objetivo de desvirtuar o sentido
coletivo da ação.
O caso destes escravos foi uma exceção à regra do silêncio da Constituinte no que
se referia à liberdade ou, mais amplamente, às relações entre senhores e cativos. Alguns
ofícios referentes a essas relações foram enviados por senhores de escravos, e também não
mereceram discussão no plenário. Foi o que ocorreu com a correspondência de Francisco
Xavier Pires Campos, de Oeiras, Piauí, solicitando que fosse responsabilizado o juiz dos
contrabandos de sua cidade por perdas e danos decorrentes da apreensão de um escravo
seu e pelas despesas relativas ao período em que o mesmo esteve recolhido à cadeia473. Na
mesma linha, temos a petição de Pantaleão Moreira Mosso, testamenteiro de Antônio
Inácio Brandão, solicitando, em agosto de 1823, que fosse suprimida a anulação do
testamento ditado a ele pela falta da assinatura de uma testemunha, afim de que se efetivasse
a liberdade conferida pelo testador a três escravos de sua propriedade, em Minas Gerais.
Novamente, o silêncio imperou nos anais da Constituinte, embora tenha havido um
despacho do Paço Imperial ao Legislativo que indicava a continuidade do processo na
justiça474.
O deputado Antônio Ferreira França, médico e representante da província da
Bahia, foi o primeiro a intervir na discussão sobre o requerimento de Inácio Rodrigues e
seu grupo475, recorrendo a uma antiga carta régia portuguesa de 1710 que estabelecia ser
função dos procuradores da Fazenda e Coroa “defenderem e solicitarem não só as causas
da coroa e fazenda, mas também a dos escravos sobre seus cativeiros”. França afirmou
ainda que a deliberação dos tempos coloniais tornara-se letra morta devido à

473
Cf. Inventário, p. 160 e 382.
474
Ver Inventário, p. 135 e 326, e CDI, despacho de 4 de setembro de 1823, assinado pelo Ministro da
Justiça Caetano Pinto de Miranda Montenegro e endereçado a João Severiano Maciel da Costa.
475
Inventário, p. 128, 129, 313 e 314.

181
displicência desses funcionários e “porque não interessava a ninguém senão a esses
miseráveis”476.
O texto legal ao qual Ferreira França se referia era, muito provavelmente, a
Carta Régia de 5 de novembro de 1710, dirigida ao então governador da capitania do
Rio de Janeiro, Francisco de Castro Morais. A ordem fora expedida a partir da
representação do bispo local

“sobre a vexação que padecem os escravos dela com o rigor do castigo


que lhes dão seus senhores, sem piedade nem temor de Deus,
obrigando-os com o medo deste a meterem-se pelo sertão por não
terem posses nem possibilidade para requererem perante o seu juiz
privativo a mudança de cativeiro, sendo isto causa de se lhes faltar com
a Justiça, o que necessitava de remédio, encarregando-se ao
procurador da Coroa e Fazenda dessa capitania o sê-lo também dos
ditos escravos das suas causas, acrescentando- se um solicitador dos da
Fazenda Real a quem se encarreguem as dosmesmos escravos dando-
se a um e outro seu ordenado suficiente (...)”477.

A Comissão de Legislação e Justiça elaborou um parecer sobre o caso, discutido


em duas ocasiões. A primeira, em 19 de junho de 1823 “e adiado até que se apresente a
lei citada pelo Ilustre Deputado, o Sr. França”; a segunda, em 23 de junho, quando foi
reenviado à Comissão “para apresentar um projeto, à vista das diversas oposições que
ofereceu a discussão”478. O texto do parecer segue abaixo:

A Comissão da Legislação tendo em vista o requerimento de Ignacio


Rodrigues e outros, que vencidos por Agueda Caetana no Tribunal da
Suplicação em uma causa movida sobre a sua liberdade, tendo
conseguido revista; mas não a tem podido seguir por falta de meio, e
por se verem perseguidos pela dita Agueda Caetana, que procura
apreendê-los e já tem vendido alguns dos colitigantes; e requerem por
isso uma ordem para que possam livremente tratar da sua vida até que
se decida legalmente a questão da sua liberdade; é de parecer que não
pertence à Assembleia odeferimento479.

476
AAC, Tomo II, p. 143 e 108, respectivamente. O cargo de juiz dos feitos da Coroa e Fazenda foi
criado no Brasil em 1609, juntamente com a Relação da Bahia, cf. MELLO, Alfredo Pinto Vieira de. O
poder judiciário do Brasil (1532-1871). “Anais do I Congresso de História Nacional”. RIHGB, v. 121, 1916,
p. 103.
477
Para o texto completo, ver LARA, Silvia Hunold. Legislação sobre escravos africanos na América
Portuguesa. Madrid: Tavera/Digibis, 2000, p. 237 (CD-Rom). George Reid Andrews refere-se à carta régia
e à fala do parlamentar em Afrolatinoamérica, 1800-2000. Madri: Iberoamericana, 2007, p. 69.
478
CDI, Etiq. 313.
479
CDI, Etiq. 313, Parecer nº 19 da Comissão de Legislação e Justiça, de 17 de junho de 1823, sobre a
continuação da revista em causa de liberdade de escravos.

182
Antônio Rodrigues Veloso de Oliveira, Jose Antônio da Silva Maya, Jose Antônio
Rodrigues de Carvalho, Nuno Eugenio de Lócio e Seilbiz e José Teixeira da Fonseca
Vasconcellos, os membros da referida Comissão, foram os introdutores da versão segundo
a qual os escravos não conseguiam dar andamento ao seu processo porque não tinham
dinheiro para pagar as custas.
No reconhecimento do judiciário como instância para a resolução de demandas de
escravos, Ferreira França e outros deputados pareciam ver naquele poder o lugar possível
para a consecução da liberdade. Talvez não estivessem fazendo mais do que reconhecer
um direito costumeiro adquirido pelos escravos através dos séculos480, ao mesmo tempo em
que se eximiam de debater um assunto espinhoso e sobre o qual não havia consenso
naquela ocasião.
Escravos, senhores e parlamentares, envolvidos em uma questão na mesmaarena
e ao mesmo tempo, colocam para o historiador da escravidão uma situaçãoreveladora.
Vejamos o que temos até aqui sobre cada um destes sujeitos.
Vários parlamentares manifestaram-se na sessão de 19 de junho de 1823 arespeito
do caso. Os qualificativos que usaram obviamente aplicavam-se aos cativos de forma geral:
“miseráveis”, “desgraçados”, “infelizes”, “órfãos, pródigos, mentecaptos”e “desvalidos”481.
Em que pese sua condição “miserável” e “desgraçada”, os escravos pareciam estar
tentando reverter a situação a seu favor, talvez até mesmo lançando mão da visão que se
tinha sobre eles. Já haviam tentado outros meios: foram à justiça em primeira instância e
depois recorreram ao expediente da revisão processual em instância superior. Ao mesmo
tempo em que aguardavam uma decisão da justiça, resolveram abrir outra frente, enviando
requerimento a um poder novo no âmbito político institucional em umasociedade até então
sem tradição de formas eletivas de representação para além dos poderes locais. Essa
novidade, embutida na outra originalidade em plena construção queera o Estado nacional,
atendia pelo pomposo nome de Assembleia Nacional Constituinte e Legislativa do
Império do Brasil, e poderia ter significados diversos conforme o lugar social de quem
entrava em contato com suas funções e funcionamentoainda em processo de definição.

480
Sobre este assunto, ver CUNHA, Manoela Carneiro da, “Sobre os silêncios da lei”. In: Antropologia
do Brasil: mito-história-etnicidade. São Paulo: Brasiliense; Edusp, 1986.
481
AAC, II, p. 107 a 109.

183
O que seria, na visão desses escravos, a tal novidade chamada Assembleia
Constituinte? Impossível saber ao certo. No entanto, não importa se ela tinha atribuições
diferentes num país que acabava de proclamar sua independência.
Estabelecer uma analogia entre independência e liberdade não é um erro no
plano semântico, muito menos no político. Gladys Sabina Ribeiro apontou, com pertinácia,
que a Ilustração portuguesa ofereceu as bases para a discussão das ideias de construção do
império luso-brasileiro, observando o papel ocupado pela liberdade nesse debate. Tratava-
se do

“grande tema de discussão no espaço público, no início do século XIX,


sobretudo com as medidas tomadas por D. João VI a partir do
estabelecimento da Corte no Brasil. Remetida à sociedade,
subordinava a igualdade somente àqueles que eram pares e que
tinham, na igualdade diante da lei, um dos fatores que poderiam
justificá-la, que garantiam a vida e a propriedade”482.

Ocorre que a liberdade também era um conceito disputado por outros sujeitos não
tão dependentes das luzes do século, como Gladys Ribeiro e outros autores também
notaram: “a discussão sobre a liberdade já extrapolara o âmbito dos parlamentos e chegara
às ruas, aos escravos, aos forros, aos pobres brancos e despossuídos”483. Como ressaltou
Keila Grinberg, tanto nos Estados Unidos como no Brasil pós-Independência, os escravos
viram seus planos de liberdade frustrados pelo recrudescimento do tráfico transatlântico
ou pelo reflorescimento da agricultura de exportação. Ainda assim, “as circunstâncias
materiais e políticas ajudam a responder tanto pela criação de expectativas por parte dos
escravos quanto pela ocorrência efetiva de ações de liberdade”, sobretudo a partir de fins
do século XVIII484.
A analogia entre independência e liberdade, do ponto de vista dos senhores, trazia
sinais de perigo, especialmente se os escravos fossem africanos recém-chegados. Uma
observação da inglesa Maria Graham chama a atenção para este ponto. Ao mencionar as
lutas entre portugueses e “brasileiros” no Recôncavo, ela escreveu em seu diário em 28 de
setembro de 1821: “(...) “Eles [os brasileiros] puseram armas nas mãos

482
RIBEIRO, Gladys Sabina. “O desejo da liberdade e a participação de homens livres pobres e ‘de cor’
na independência do Brasil”. Cadernos do Cedes, 22 (58): dez.2002, p. 24.
483
Idem, Ibidem, p. 29-30.
484
GRINBERG, Keila. "Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos". Estudos Históricos,
27, 2001, p. 72-73.

184
dos novos negros, enquanto as lembranças da pátria, do navio negreiro e do mercado de
escravos, lhes estão frescas na memória”485.
Pelos estudos do historiador João José Reis, sabemos que muitos escravos baianos
não esperaram a permissão de seus senhores para se juntar às forças quelutavam contra os
portugueses no Recôncavo em 1822 e 1823. Outra forma de não esperar passivamente os
acontecimentos nos foi informada pela senhora Maria Bárbara Garcez Pinto, que escrevia
da Bahia para o marido em Portugal em abril de 1823:

A crioulada da Cachoeira fez requerimentos para serem livres'. Em


outras palavras, os escravos negros nascidos no Brasil (crioulos)
ousavam pedir, organizadamente, a liberdade! Segundo a mesma
fonte, eles contavam inclusive com a simpatia de pessoas livres, talvez
até brancos, que encaminhavam suas petições às Cortes de Lisboa486.

Reis levantou outros aspectos interessantes da participação de negros e pardos,


escravos ou livres, na independência da Bahia. Um dos episódios da luta refere-se ao
pedido de Labatut ao Conselho Interino de governo e às câmaras municipais do Recôncavo
para que os proprietários libertassem alguns escravos, afim de que estes servissem nas
forças que lutavam contra os portugueses naquela província. Reis acrescenta:

Os vereadores negaram, argumentando que havia homens livres de


sobra para serem recrutados e que, de qualquer forma, consideravam
um risco armar ex escravos. Afinal, que garantia teriam eles de que o
recém adquirido poder de fogo dos libertos não seria colocado a
serviço dos parceiros ainda cativos?487

Os deputados constituintes podiam atender ou não ao pedido encaminhado por


Inácio Rodrigues e seus companheiros. A questão era tentar. Se a resposta fosse positiva,
ganhavam os escravos que tiveram a ousadia de pedir a correção de um caso em que eles
acharam-se injustiçados. Se recebessem uma negativa, a justiça continuaria a cuidar do caso
como vinha fazendo até aquele momento. Os escravos de Águeda Caetana parecem ter
percebido que tinham pouco ou nada a perder dirigindo seus apelos ao novo poder
instituído.

485
GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990,
p. 137.
486
REIS, João José. "O jogo duro do Dois de Julho: o 'partido negro' na independência da Bahia". In: REIS,
João José & SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. SãoPaulo:
Cia. das Letras, 1989, p. 92.
487
Idem, Ibidem, p. 90.

185
Águeda Caetana provavelmente não era tola também. Talvez fosse até mesmo mais
perspicaz do que sua contemporânea Maria Bárbara Garcez Pinto, a senhora baiana
mencionada acima. Maria Bárbara deixou bem claro o que pensava a respeito dos escravos
que encaminhavam petições para as Cortes de Lisboa: “Estão tolos, mas a chicote tratam-
se!”488. Águeda adotou outra estratégia: mesmo vencendo em primeira instância a demanda
em que seus escravos a haviam metido, sabia que o resultado não era definitivo. Ciente ou
não da iniciativa dos cativos em escrever para a Assembleia Constituinte, resolveu se
precaver vendendo-os para o interior. Como a historiografia da escravidão tem
demonstrado, os escravos urbanos relutavam em ser vendidos para fora da Corte. A vida
nas fazendas do interior era considerada mais dura, a disciplina era mais rígida e as relações
pessoais advindas da autonomia tendiam a ser mais controladas489.
Uma boa maneira de dissuadir as pretensões do grupo e fazer a causa coletiva
perder o sentido era dispersar os escravos, vendendo-os aos poucos para diferentes
localidades. Águeda pode ter pensado ainda que, uma vez que haviam ingressado contra
ela na justiça, esses escravos não teriam mais o mesmo ânimo para o trabalho. Seu domínio
fora questionado por escravos que queriam a liberdade e ela pode ter preferido desfazer-
se deles e adquirir outros menos ladinos.
E a Assembleia Constituinte? Era esse o fórum para onde deveriam ser
encaminhadas as questões individuais de liberdade? Ela poderia deliberar sobre demandas
particulares entre senhores e escravos? Como afirmou Manuela Carneiro da Cunha, a
concessão da liberdade individual – a alforria – era uma prerrogativa senhorial, e a
intromissão dos legisladores nesse ponto da relação entre senhores e escravos poderia
causar confrontos com os que detinham o direito de propriedade. Restavam para os
legisladores, como campo de reforma na escravidão, as questões do tráfico e da libertação
do ventre490.
Se os deputados tivessem simplesmente ignorado o requerimento de Inácio
Rodrigues e seus companheiros, poderíamos dizer que a Constituinte não era um fórum

488
REIS, "O jogo duro do Dois de Julho", p. 93.
489
Vários autores que estudaram a escravidão urbana no século XIX ressaltaram aspectos da maior
autonomia resultante do trabalho nas cidades, aos quais os escravos certamente se apegavam. Ver, entre
outros, MATTOSO, Katia de Queirós. Família e sociedade na Bahia do século XIX. São Paulo: Corrupio;
Brasília: INL, 1988; ALGRANTI, Leila M. O feitor ausente: estudos sobre a escravidão urbana no Rio
de Janeiro (1808-1822). Petrópolis: Vozes, 1988; CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: umahistória
das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Cia. das Letras, 1990.
490
CUNHA, Manoela Carneiro da. Negros, estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São
Paulo: Brasiliense, 1985, p. 17-61.

186
adequado para esses casos. No entanto, os parlamentares constituintes ocuparam-se do
caso durante três sessões. E não se tratava da vontade de um parlamentar mais
compadecido com a situação desses escravos; vários deputados falaram sobre o caso e até
mesmo a possibilidade de elaborar uma lei mais geral foi levantada.
A Constituinte, que a rigor deveria estabelecer as diretrizes legais para o país
independente, teve suas crises de competência. O requerimento dos escravos de Águeda
Caetana entrou em discussão a partir do momento em que a Comissão de Legislação emitiu
um parecer onde julgava que não pertencia à casa o deferimento de tal pedido491. A
Comissão justificou-se pelo parecer, alegando que os suplicantes haviam conseguido a
revisão do processo e não tinham dinheiro para pagar as custas; como “a Assembleia não
faz esmolas”, a Comissão de Legislação optou então pelo indeferimento.
Ferreira França, ao mesmo tempo em que demonstrava saber qual era a
competência da Constituinte, não descartava a possibilidade de analisar a questão dos
escravos. Procurou reverter o parecer da Comissão invertendo os próprios argumentos
apresentados:

Para fazer leis novas, e zelar a observância das leis velhas, é que nós
aqui nos ajuntamos. Que importa que um miserável suposto escravo
de um injusto senhor tenha notório direito de ser declarado livre, se
não tem dinheiro para o primeiro requerimento que há de fazer, e se
a sua pessoa estáà disposição do mesmo injusto senhor com quem há
de litigar?492.

Se Portugal, país despótico do qual acabávamos de nos livrar, tinha elaborado um


dispositivo legal que abria a possibilidade de se iniciarem ações de liberdade com proteção
oficial (a carta régia de 1710), porque o Brasil, com “um sistema de governo liberal, cuja
principal empresa parece ser reivindicar os foros esquecidos da mesma justiça,
contrapondo sua eficácia aos arbítrios do poder”, não se colocaria ao lado de tão justa
pretensão?493. A analogia semântica entre independência e liberdade, permeada pela noção
de justiça, agora era feita pelo deputado Ferreira França, ainda que as palavras não fossem
explicitamente mencionadas.

491
AAC, II, p. 107. O parecer foi assinado pelos membros da Comissão, presidida por Antônio Velozo
Rodrigues de Oliveira. Em 23 de junho, quando o tema voltou à discussão, o presidente da Assembleia
afirmou que "apresentaria ao congresso uma memória em que trabalha com assiduidade e como a matéria
pedia". AAC, II, p. 144. O presidente era José Bonifácio de Andrada e Silva. Tratava-se, certamente, da
futura Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a
escravatura, publicada em Paris em 1825, e que não foi apresentada à Constituinte brasileira em função
do fechamento desta por Pedro I, em 12 de novembro de 1823.
492
AAC, II, p. 108.
493
AAC, II, p. 143.

187
Uma solução para o caso dos escravos foi apresentada pelo deputado Teixeira de
Gouveia, de Minas Gerais: pedir o processo ao judiciário para examinar possíveis
irregularidades no seu transcorrer, e solicitar a revisão. Carneiro de Campos, seu colega
pela província do Rio de Janeiro, concordou com a proposta, achando que assim “não
vamos meter a mão no poder judiciário”. Foi nesse momento que o deputado Costa Aguiar
levantou a proposta de que “se faça uma lei que regule tais negócios, e que ponha ao abrigo
da justiça os desvalidos e miseráveis”494.
Na sessão seguinte, de 23 de junho, Ferreira França voltou à carga: trouxe o texto
da citada carta régia de 1710 protetora das causas da liberdade e pediu que o caso fosse
remetido ao governo, para que os recursos necessários à revisão do processo fossem
obtidos. A reação na Assembleia não tardou: Teixeira de Gouveia alegou haver outros
direitos envolvidos na questão. Os escravos não poderiam ficar em liberdade enquanto
durasse a revisão processual, porque “além da infração da lei, é uma verdadeira violação
de uma das garantias concedidas aos cidadãos, qual a inviolabilidade do direito de
propriedade. E seremos nós (...) a primeiros a dar tão terrível exemplo!” .495

Não devemos esquecer que fora o próprio Teixeira de Gouveia quem propusera
pedir o processo ao judiciário e solicitar a revisão se houvesse irregularidades. Mas talvez
seja a hora de dizer também que isso era menos do que Inácio Rodrigues e seus
companheiros já haviam conseguido: com irregularidades ou não, eles já tinham garantido
o direito de fazer a causa subir para segunda instância. O que não tinham era dinheiro para
as custas, e o que pareciam querer era uma abrangência maior para sua causa através do
requerimento à Assembleia Constituinte.
Teixeira de Gouveia alegou ainda que “os cidadãos devem descansar seguros à
sombra da lei”, o que era bastante coerente com a concepção de que o direito de cidadania
coincidia com o de propriedade, algo que ele não queria negar a Águeda Caetana e a
nenhum outro senhor.
O mesmo deputado que apresentara a “solução” de remeter o caso desses escravos
para o judiciário recusava-se a discutir o problema na Constituinte. Concordou com o
parecer inicial da Comissão de Legislação e foi além dele, ao adiantar o conceito de
cidadania que a Assembleia ainda não debatera, já que a discussão sobre o capítulo
referente à cidadania só aconteceria em setembro daquele ano.

494
AAC, II, p. 109.
495
AAC, II, p. 143. Destaques meus.

188
Essas posturas do deputado Teixeira de Gouveia são absolutamente compatíveis.
Remeter a resolução para o judiciário era enviar o caso para uma arena que iria julgá-la no
interior das leis já estabelecidas. Qualquer outra atitude, como o prosseguimento da
discussão na Constituinte, poderia acarretar mudanças nas leis. Era justamente isso que
Teixeira de Gouveia parecia não querer.
O deputado só admitia que um princípio geral como o direito de propriedade
pudesse ser violado quando houvesse “evidente necessidade de salvar a pátria”, o que
efetivamente não estava em questão. Note-se que o direito à liberdade não era um princípio
geral consensualmente aceito naquele momento. Costa Aguiar ainda tentou recolocar a
assunto em outros termos, o que de qualquer maneira era desfavorável para os escravos.
Segundo ele, a carta régia resgatada por Ferreira França “talvez bem poucas vezes, ou
mesmo nenhuma, tenha sido posta em prática, pois que os escravos são, por via de regra,
quase sempre suplantados por seus senhores”496.
A Comissão de Legislação emitiu outro parecer em 28 de junho, no qual alegava
estar “procurando conciliar o favor da liberdade, a causa da humanidade, com os direitos
de propriedade” , no qual reconheceu o direito à revisão do processo. No entanto, durante
497

o período que durasse a ação, os escravos ficariam “ou em depósito [na Santa Casa de
Misericórdia] ou em poder da pretendida senhora, obrigando-se esta por termo a não os
seviciar, e não dispor deles, e a conceder-lhes os dias de estilo para tratarem de sua causa”498.
O novo parecer significava um avanço em relação ao primeiro, o que certamente
se deveu à celeuma criada na Assembleia. Inácio Rodrigues e seus companheiros chegaram
bem longe com o simples requerimento que enviaram aos deputados. Mas ainda não
haviam chegado ao fim da questão naquele espaço.
Os parlamentares se apegaram às contradições do novo parecer. As opções dadas
por ele – ou em depósito ou sob a guarda de Águeda Caetana – eram muito diferentes na
prática. O direito de propriedade foi novamente invocado: se a opção fosse pelo depósito
na Santa Casa, então o produto do trabalho desses escravos pertenceria à senhora.
Quanto aos escravos, “são mui dignos de piedade, a sua causa é mui sagrada;
mas cumpre que se não violem por isso os direitos de cada um”. Esse foi Andrada

496
AAC, II, p. 144.
497
AAC, II, p. 191, destaque meu; CDI, Etiq. 313.
498
AAC, II, p. 191.

189
Machado, deputado por São Paulo, defensor empedernido dos direitos de cada um.
Machado não parecia ver nos escravos seres com direitos, menos ainda se seu pretendido
direito – a liberdade – fosse conflitante com o direito – instituído e mais tarde
referendado – de propriedade no interior da sociedade escravista brasileira do século XIX.
Por fim, o segundo parecer da Comissão de Legislação foi aprovado pela
Assembleia Constituinte, que enviou ofício ao ministro da Justiça para que este se
empenhasse em “defender o mais precioso dos direitos do homem”499. O ofício éintrigante
e misterioso: a qual direito se referia? O direito de Inácio Rodrigues e seus companheiros
à liberdade, ou o direito de propriedade que Águeda Caetana tinha sobre seus escravos até
que a justiça se pronunciasse?
O fim da questão veio com a resposta mandada pelo imperador, em 14 de julho de
1823. Ele enviara “ordens ao Chanceler da Casa da Suplicação (...) para que os suplicantes
fossem postos em poder da suplicada até o final da sentença”500, com a recomendação de
que ela não dispusesse deles, não os seviciasse e lhes concedesse tempo para cuidar de sua
causa, sob o zelo da Santa Casa. Se a Assembleia hesitou, não definindo com clareza qual
era “o mais precioso dos direitos do homem”, Pedro I e seu ministro não vacilaram: era a
propriedade, até prova em contrário.
Curiosamente, a resposta do imperador chegou em um 14 de julho, data da queda
da Bastilha, dia da “liberdade, igualdade e fraternidade” invocadas pelos ideais da
Revolução Francesa. Os deputados à Assembleia Constituinte brasileira já haviam deixado
claro que o debate em torno da questão dos escravos se dava em termos da “liberdade,
humanidade e propriedade”, o que pode ser lido como uma paráfrase. PedroI foi mais
categórico e não usou o bordão original, nem a paráfrase: a questão era garantir a
manutenção da propriedade.
Por esta fonte, não podemos saber qual foi o veredito final na causa entre os
escravos e Águeda Caetana. Temos, porém, alguns elementos instigantes para discutir as
concepções de propriedade e cidadania criadas no Império brasileiro com base nesse
direito dos senhores. A discussão sobre o grau de cidadania a ser concedido aos libertos
ganhou corpo durante o mês de setembro na Assembleia Constituinte, introduzindo nos

499
AAC, II, p. 198.
500
AAC, III, p. 82; CDI, Etiq. 313.

190
debates parlamentares a questão do medo senhorial em relação às ações escravas – a
haitianização. A análise dessas discussões, entretanto, não terá lugar aqui501.

501
Analisei essas questões em RODRIGUES, O infame comércio.

191
CAPÍTULO 5

ÍNDIOS E AFRICANOS: DO “POUCO OU NENHUM FRUTO” DO


502
TRABALHO À CRIAÇÃO DE “UMA CLASSE TRABALHADORA”

I. Ao criar o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, seus sócio-


fundadores objetivavam a construção de um conhecimento sobre a “história nacional” que
subsidiasse os projetos para o futuro da nação. Estes homens pretendiam criar um órgão
dedicado à edificação de um conhecimento instrumental para o podermonárquico, que
bancava grande parte do orçamento do Instituto e a ele forneciaquadros intelectuais, já que
a maioria dos sócios fundadores fez carreira na burocracia imperial, particularmente na
magistratura e nas forças armadas503.
Esse objetivo aparecia no relatório escrito em 1840 pelo cônego Januário da Cunha
Barbosa, o primeiro secretário geral da instituição. Nele, Barbosa afirmava queas tarefas
precípuas e legitimadoras do Instituto eram escrever a história do Brasil e desvendar o
“nosso verdadeiro caráter nacional”. Para ele e seus pares, o IHGB seria a “luz a retirar a
história brasileira de seu escuro caos”504.
Para realizar esses propósitos e direcionar as atividades no Instituto, instituiu-se
como prática a discussão de um mesmo tema por vários sócios. A primeira dessas
discussões, realizada em 1838, deu-se em torno de uma proposta de Januário Barbosa:
“Determinar as verdadeiras épocas da história do Brasil e se esta se deve dividir em antiga
ou moderna, ou quais devem ser as suas divisões”505. A esta preocupação fundante, o IHGB
acrescentou diversos outros temas, dentre os quais um mereceu destaque maior: a
constituição do “povo” brasileiro e a contribuição de cada “raça” para alcançar esse objetivo.
Analisando os temas dos artigos publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, Manuel Guimarães constatou que 75%deles referiam-se a três problemáticas
fundamentais: a questão indígena, as viagens e explorações científicas e a história regional.
Na questão indígena, que ocupava o maior espaço na publicação oficial do Instituto,
destacava-se o aproveitamento de sua força de trabalho, com referências frequentes à

502
Originalmente publicado em História Social, 2: 1995, p. 9-24.
503
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado, "Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional". Estudos Históricos, 1: 5-27, 1988.
504
RIHGB, 2(8): 557-558, out./dez.1840, apud Guimarães, "Nação e civilização nos trópicos", p. 13.
505
RIHGB, 1(1), 2ª ed., 1856, p. 57, apud RODRIGUES, José Honório. Teoria da história do Brasil, 5ª
ed., São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1978, p. 125.

192
escravidão negra, “comparando-se os resultados advindos da utilização desses dois tipos de
mão de obra”506.
O primeiro debate sobre a questão da mão de obra ocorreu em 4 de fevereiro de
1839, quando o Instituto propôs aos seus sócios a discussão do seguinte tema: “Se a
introdução de africanos no Brasil serve de embaraçar a civilização dos índios, cujo trabalho
lhes foi dispensado pelo trabalho dos escravos. Neste caso, qual é o prejuízo da lavoura
brasileira entregue exclusivamente a escravos?”507. O tema foi desenvolvido porJanuário da
Cunha Barbosa, secretário-geral do Instituto.
Barbosa era sacerdote secular e teve participação ativa no processo da
independência brasileira, em 1822. Além das atividades eclesiásticas e políticas, foi
bibliotecário da Biblioteca Pública Fluminense e organizou uma antologia poética, o
Parnazo brasileiro. Na política institucional, exerceu o cargo de deputado à Assembleia
Geral508. O texto escrito por Januário Barbosa sobre o tema da civilização dos índios é o
objeto central da análise neste capítulo.

II. De início, duas observações podem ser feitas quanto ao suposto prejuízo causado
pelos africanos à civilização dos índios. Primeiramente, a preocupação com a introdução
dos africanos escravizados no Brasil em pleno ano de 1839 deveria, a rigor, mencionar a
existência da lei que proibia o tráfico transatlântico desde 1831. Esse “esquecimento” indica
a inconveniência em debater o problema naquele momento,sobretudo em uma instituição
tão fortemente vinculada ao poder imperial. Em segundo lugar, a preocupação com a
causa que “embaraça a civilização dos nossos indígenas”

506
GUIMARÃES, "Nação e civilização nos trópicos", p. 20.
507
Revista Trimensal de História e Geografia, 1(3): p. 145-152, 1839. Esta foi a primeira denominação
da RIHGB.
508
Parnazo brasileiro, ou coleção dos melhores poetas do Brasil, tomo 1. Rio de Janeiro: Tip. Nacional,
1829, cf. MORAES, Rubens Borba de. Bibliografia brasileira do período colonial. São Paulo: Instituto de
Estudos Brasileiros, 1969, p. 56-58. Ver também silva, Inocêncio Francisco da, Dicionário bibliográfico
português. Lisboa: Imp. Nacional, 1858-1923, v. 3, p. 254. Além de Barbosa (Rio de Janeiro, julho de
1790/fevereiro de 1846), José Silvestre Rebelo também participou da discussão, publicada na RIHGB:
"Novo trabalho do Sócio, o Sr. ". RIHGB, 1(3): 1839. Rebelo, negociante na
Corte e comendador da Ordem da Rosa, nasceu em Portugal na segunda metade do século XVIII e
faleceu no Rio de Janeiro em agosto de 1844. Foi o negociador do reconhecimento da independência
pelos Estados Unidos e compôs o núcleo que fundou o Instituto – ao lado de homens como Januário
Barbosa, Raimundo José da Cunha Matos, Domingos José Gonçalves de Magalhães, Francisco Sales Torres
Homem e Manoel de Araújo Porto Alegre –, sendo sócio ainda da Sociedade Auxiliadora da Indústria
Nacional. Desenvolveu também a proposta do Instituto sobre a "verdadeira" periodização da história do
Brasil e escreveu outras obras versando sobre assuntos ligados à produção agrícola, cf. COSTA, Emília
Viotti da, Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966. Ver ainda BLAKE, Augusto V.
A. Sacramento, Dicionário bibliográfico brasileiro. Rio de Janeiro: Tip. Nacional, 1883/1902, v. 5, p. 204-
205.

193
poderia ter significados diversos. De início, ela revela uma apreensão com a quantidade de
trabalhadores. Por outro lado, a abordagem pelo viés da “civilização dos nossos indígenas”
revela uma preocupação com fontes alternativas de mão de obra: a civilização que se
propunha era um subterfúgio para evitar que fosse explicitado o objetivo de disciplinar os
índios para o trabalho, num período em que se começava a pensar seriamente na
substituição do trabalhador africano. Outro significado que pode ser atribuído a essa
preocupação é o interesse político na definição de uma periodização da história do Brasil
e na definição do que seria, afinal, a nacionalidade brasileira.
Explico melhor. No momento em que o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
instituiu como prática a discussão coletiva de temas previamente selecionados, escolheu
como objeto da primeira discussão a periodização da “nossa” história. Um dos
debatedores, Raimundo José da Cunha Mattos509, propunha uma divisão em três “épocas”,
a saber: “a primeira, relativa aos aborígenes ou autóctones, a segunda compreendendo a
era do descobrimento pelos portugueses e a administração colonial, e a terceira abrangendo
todos os acontecimentos nacionais desde aIndependência”510.
Tal proposta, ligeiramente modificada, foi publicada mais tarde na RIHGB, em
1863. Mesmo não tendo vencido o concurso, a proposta de Cunha Mattos parece ter tido
boa aceitação dentre as diversas sugestões feitas na ocasião, de fins da década de 1830 até
meados da de 1840, pelas quais proliferaram tentativas de definir com marcos precisos a
periodização da história do Brasil. Venceu a proposta de Karl Friedrich Philipp von
Martius511.
O texto de Januário Barbosa sobre a civilização dos indígenas pode ser entendido
como uma tentativa de estabelecer o nexo entre a primeira e a terceira“épocas” da “nossa”
história, conforme a proposta de Cunha Mattos. O indígena, personagem central da
509
Raimundo José da Cunha Mattos (Faro, 2 de novembro de 1776/RJ, 23 de fevereiro de 1839) fez carreira
militar no exército e na administração colonial portuguesa, tendo vivido na África entre1800 e 1819, quando
instalou-se no Brasil. Foi deputado à Assembleia Geral Legislativa do Império. Outros dados
biobibliográficos podem ser encontrados na "Nota preliminar" de José Honório Rodrigues à obrade
Cunha Mattos, Compêndio histórico das possessões de Portugal na África. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1963, p. 7-21.
510
RODRIGUES, Teoria da história do Brasil, p. 125-126.
511
Von Martius definiu as "linhas mestras de um projeto historiográfico capaz de garantir uma identidade-
especificidade à Nação em processo de construção. Esta identidade estaria assegurada, no seu entender, se
o historiador fosse capaz de mostrar a missão específica reservada ao Brasil enquanto Nação: realizar a ideia
da mescla das três raças, lançando os alicerces para a construção do nosso mito da democracia racial".
Guimarães, "Nação e civilização nos trópicos", p. 16. O texto de von Martius foi publicado em janeiro de
1845: "Como se deve escrever a História do Brasil". RIGHB, 6(24): 381-403, e sua materialização, ainda
que com ligeiras alterações, deu-se por meio da obra de Francisco Adolpho Varnhagen, História do Brasil.

194
primeira época, seria reabilitado na terceira, contemporânea ao autor, e lançado no meio
da cena, sendo necessária sua civilização para atender à necessidade nacional de fontes para
o abastecimento de mão de obra.
A valorização do “autóctone” em 1839 pelos debatedores do IHGB pode ser
entendida no bojo do processo de consolidação da nacionalidade, que tinha no índio um
de seus alicerces. Não eram apenas os membros do IHGB a participar desse processo;
parte da literatura de ficção romântica512 contribuiu enormemente para a valorização do
indígena, sendo inaugurada no Brasil, aliás, por Gonçalves de Magalhães, sócio- fundador
do Instituto.
O enunciado do tema resguarda certo conflito com o início do texto de Barbosa. O
indígena teve sua civilização embaraçada desde que foi dispensado do trabalho(produtivo),
com o início da importação de africanos. Portanto, o pressuposto que funda o enunciado
é que o trabalho civiliza o bárbaro, mas o texto de Barbosa não faz crer queisto tenha sido
uma regra válida também para o negro.
Para resolver este conflito, é importante detalhar a maneira pela qual Barbosa
trabalha os conceitos de civilização e liberdade. A liberdade é vista “como um dos melhores
instrumentos da civilização dos povos”513. Sendo assim, um bom caminhopara superar
os embaraços à civilização dos índios seria torná-los homens livres.
Mas Barbosa sabia que o índio era livre, ao menos legalmente, já que fezreferência
à lei de 8 de maio de 1758, que aboliu a escravidão indígena no Brasil514. Tanto é assim que
ele afirma terem os índios sido dispensado do trabalho em função da vinda dos africanos.
O autor acreditava que a liberdade era um dos instrumentos da civilização, e
mencionou os demais. Civilizar os índios significava retirá-los do nomadismo,
transformando-os em agricultores; convertê-los ao cristianismo e “criar neles certas
necessidades, que os obrigassem a pequenos trabalhos, com que houvessem os objetos
então necessários”515. Enfim, a civilização culminaria na criação ou na interiorizaçãodas
regras do trabalho disciplinado para suprir as necessidades de subsistência e no

512
Digo "parte" da literatura romântica tendo em vista que, se José de Alencar tinha no indígena a principal
referência principal para a construção do romance indianista brasileiro, seu rival Alfredo Taunay tentou
afirmar o sertanejo como "o representante mais autêntico da nação brasileira em formação". COSTA,
“Narrativas de viagem no Brasil do século XIX", op. cit., p. 45.
513
BARBOSA, Januário da Cunha, "Se a introdução de africanos no Brasil serve de embaraçar acivilização
dos índios, cujo trabalho lhes foi dispensado pelo trabalho dos escravos. Neste caso, qual é o prejuízo da
lavoura brasileira entregue exclusivamente a escravos?" RIHGB, 1(3): 145, 1839.
514
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 149.
515
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 150.

195
reforço do sentimento de vida comunitária, evidentemente entendendo a comunidade
como algo similar às cidades ou fazendas dos brancos, e não às formas de organização
indígenas. Civilizar os índios seria o mesmo que transformá-los em homens o mais parecido
possível com o branco, que enuncia o conceito de civilização, minimizando as diferenças.
No texto de Barbosa, é possível definir as personagens a partir da inserção de cada
uma delas na civilização. Esta residia apenas na cultura europeia, porque era o europeu
quem a trazia ao índio, e era o negro quem a obstava. Ser civilizado queria dizer, ao mesmo
tempo, ser conhecedor e adepto da doutrina cristã e ser disciplinado para o trabalho
produtivo, exercido em liberdade.
O índio era o centro das atenções: era a vítima, aquele de quem se retirara a
possibilidade de civilizar-se porque em seu lugar fora posto a trabalhar o africano, que era
desqualificado. Os “bárbaros africanos”, as “bestas de carga”, os “míseros africanos”516 eram
escravizados, e como a escravidão não era um bom instrumento de civilização, os africanos
continuaram bárbaros graças à atuação dos “desalmados portugueses” que, dominados pela
cobiça, não se preocuparam com a civilização de índios nem de africanos. É curioso
perceber que a culpa recaia sobre os portugueses, porque os brasileiros, mesmo que
envolvidos com a escravidão no instante em que Barbosa debatia com seus pares, seriam
os responsáveis pela redenção dos índios.
Barbosa raciocina sempre em termos de substituição do índio pelo africano, e
nunca de convivência. O índio era escravizado no princípio; o negro o substituiu a partirde
determinado momento, e o índio refluiu para as matas. Trata-se de uma substituição física
absoluta para todos os lugares e em todo o período posterior à abolição daescravidão
indígena. Assim, manifestava-se pela primeira vez sua concepção homogeneizante do
tempo.
Para reverter o suposto refluxo indígena, o autor propunha que o índio,
devidamente civilizado, pudesse dispensar o africano (época contemporânea, ou dos
acontecimentos nacionais de Cunha Mattos). Mais uma vez, seu raciocínio excluía um pelo
outro, sem que pela narrativa possamos saber as causas: “cessaram assim osportugueses de
penetrar os sertões em busca de índios para escravizar; e voltaram-se [após 1758] ao tráfico
dos míseros africanos, que empregaram em seus trabalhos com igual barbaridade”517.

516
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 147-148.
517
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 149.

196
Evidentemente, a “História” à qual Barbosa se referia e de onde retirou exemplos
de escravidão não explicava essa exclusão. O objetivo era fazer do índio um ser civilizado,
mas como explicar o sumiço dos africanos? Por que e como dispensá-los? Devido ao
seu potencial quase nulo para civilizar-se, ao contrário do índio, valorizado em suas
possibilidades de trilhar o caminho da civilização? Há, nessas formulações uma visão
contraposta de índios e africanos, que não poderiam ser colocados ao mesmo tempo e no
mesmo lugar a cumprir o papel de trabalhadores disciplinados.
Barbosa menciona os exemplos da escravidão de José do Egito, da Grécia e de
Roma clássicas: a História foi reduzida por ele a uma experiência única – posto que se
repete – e linear, na qual a percepção do tempo era a mesma para todo o passado. Toda
a experiência da escravidão era uniformizada e definida pelo conflito entre a cobiça – que
tornava os homens criminosos por reduzirem outros homens à condição de mercadoria –
e a liberdade: “o único sentimento nobre, que resta a um desgraçadocativo é o da sua
perdida liberdade”518.
Vejamos até onde este raciocínio levou o autor. Sua crença em relação ao lugar
onde residia a civilização definia o (e era definida pelo) lugar da barbárie. Assim, o bárbaro
(indígena ou africano) só reagia às tentativas de conquista ou à escravidão quando elas eram
feitas com crueldade. Isto pressupunha que, se a crueldade e acivilização podiam coabitar,
a resistência, ao contrário, era um atributo da barbárie. Os escravos “em Roma e outras
Nações”, tratados cruelmente por aqueles que os privaram da liberdade, tiveram o estímulo
para resistir, atirando-se a “terríveis empresas”519. Da mesma maneira agiam os índios: “Os
maiores excessos de crueldades a que os índios se entregavam, eram represálias pelas
crueldades que sofriam”520, tanto na conquista como nas missões jesuíticas. Atirar-se,
entregar-se: a resistência era movida pela passionalidade, não pela razão que rege o
civilizado, daí ser atributo da barbárie.
O bárbaro agia ou resistia em função de um estímulo vindo do civilizado: a
crueldade. Assim, o objetivo de Barbosa era iniciar um processo de civilização dos índios
que os tornasse apegados à sociedade, criando neles “certas necessidades” que não fossem
percebidas como violência, já que seriam implantadas em passos vagarososo suficiente
para não gerarem resistência.

518
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 145.
519
Idem, Ibidem.
520
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 146.

197
Ao operar seu projeto gradual de civilização dos indígenas, Barbosa procurou
diferenciá-lo da experiência das missões jesuíticas. Recorrendo ao depoimento do padre
Antônio Vieira em sua passagem pelo Maranhão, Barbosa criticava a “insaciável cobiça e
impiedade” dos moradores, dos governantes e principalmente dos eclesiásticos daquela
capitania. Vieira denunciava o despovoamento das aldeias, que deu lugar à escravidão
indígena, com a conivência dos religiosos.
A crítica de Barbosa pode ser encarada como uma discordância em relação à
autonomia, embora não ao método, das missões, autonomia destruída pelo “grande
Ministro Pombal” quando este expulsou os jesuítas e libertou os índios do jugo da
escravidão. A ideia de trazer os índios para um convívio civilizado, integrando-os à
sociedade pelo trabalho produtivo, contrapunha-se à separação autônoma e enquistada
deles no território, algo que naquele momento de construção da nação parecia inadequado
para Barbosa e seus pares.
Mas Vieira também não passou incólume pela pena de Barbosa. Seu “zelo”
protetor da liberdade indígena provocou um impasse, já que propôs e viu aceita a proposta
de introduzir escravos africanos no Maranhão para liberar os índios das tarefas da “lavoura
e outras fábricas”. Este era o ponto central pelo qual Barbosa se batia: coma vinda do
africano, esqueceu-se do índio, tanto como força de trabalho como da sua civilização.
Barbosa afirmava que Vieira defendia a introdução de escravos negros porque tinha
“esquecido de que a escravidão obsta a civilização dos indígenas” 521. Com isso, o autor
novamente expressou sua concepção homogeneizante do tempo: o que ele, homem do
século XIX, julgava ser um obstáculo, era remetido sem maiores problemas para o século
XVII, como se se tratasse de um “esquecimento”. O argumento linearizante de Barbosa
atendia aos seus propósitos políticos na ocasião: ele pretendia inverter a formulação de
Vieira, ao colocar os índios no centro de um projeto de aproveitamento de mão de obra.
Para obter êxito, precisava convencer seus interlocutores de que essa proposta era fundada
na possibilidade de civilizá-los e integrá-los. Ao mesmo tempo, precisava deixar patente a
impossibilidade de que o mesmo pudesse acontecer com os africanos, porque sua insolúvel
barbárie fora acentuada pela escravização no Brasil e porque o tráfico de africanos, afinal,
estava proibido havia oito anos.

521
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 147.

198
Vieira foi transformado no grande arauto da mensagem de Barbosa. Por ser “um
homem tão circunspecto, e tão versado nas cousas do Brasil”522, tornou-se a personagem
através da qual Barbosa falava, fragmentando as passagens originais do religioso seiscentista.
Lançando mão desse procedimento metodológico, o secretário- geral do Instituto pode
condenar os maus tratos da colonização e da conquista dosíndios, e pode também
expor seu conceito de civilização dos índios baseado no convencimento. A denúncia dos
maus tratos que os paulistas infligiam aos índios,independentemente de sua veracidade, era
um argumento político de segunda mão em Vieira, já que sua fonte de informação foram
“as pessoas muito práticas d'aquela terra, emuito fidedignas”523.
Na fala de Barbosa, o argumento era tão político quanto na de Vieira, embora de
terceira mão. Seu objetivo era destacar a necessidade de civilizar os índios, igualando-osnos
costumes e tornando-os menos “sobrecarregados como azémolas”. Os índios deveriam
voltar-se para o trabalho e retirar dele benefícios que ajudassem a superar seu estado
primitivo de civilização.
Os fragmentos do discurso de Vieira transformaram-se em provas, e não
testemunhos datados. A passagem do discurso de Vieira para as falas de Barbosa não têm
outra mediação senão o abrir e fechar de aspas. Muitas vezes, ficamos quase sem saber se
era Barbosa o apêndice de Vieira, quando completava as falas deste último, ou se Vieira
era o mote das falas de Barbosa, que reelaborava seu conteúdo, apropriando-sedo que
julgava adequado e introduzindo o que Vieira poderia ter dito. O cônego Barbosa realizou
uma simbiose com seu colega eclesiástico distante no tempo, mas trazido para a dimensão
contemporânea em função de suas palavras tão oportunas parao debate entre os membros
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Vieira condenou o massacre executado pelos paulistas nas reduções paraguaias;
Barbosa acrescentou que isso ocorreu porque os bandeirantes desprezavam as leis
promulgadas desde o século XVI em favor da liberdade indígena. Habilmente recuperadas
em um método que envolvia fragmentação e apropriação, as falas de Vieira e Barbosa
casavam-se sem qualquer discrepância. Da mesma maneira, Barbosa – baseado no
testemunho insuspeito do “circunspecto” Vieira – afirmava que os índios fugiam da
catequese por medo da escravidão, concluindo que “a escravidão foi um forte

522
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 148.
523
Idem, Ibidem.

199
embaraço à civilização dos índios”524. Se a própria submissão dos índios à escravidão
embaraçou sua civilização, o fim das missões e a introdução dos africanos acabou
definitivamente com todas as chances.
Note-se que Barbosa defendia a benignidade das missões, “porém estas afrouxaram
com a expulsão dos jesuítas”525. Poderíamos entender essa afirmação como elogio aos
jesuítas, mas temos, linhas antes dela, o informe da admiração pelo “grande Ministro
Pombal”, o mesmo que expulsou os padres da Companhia de Jesus. Istoevidencia
que, se a experiência das missões servia ao propósito da civilização indígena,a presença
jesuítica traria prejuízos, ao propor um projeto autonomista. Sem integrarem-se ao Estado,
as missões deixariam também o índio fora da sociedade, entendida como mercado de
trabalho e, consequentemente, da nação brasileira do século XIX. Se istonão ocorreu,
foi graças ao “grande Ministro Pombal”, cuja figura pode ser vista, neste contexto, como a
do protetor da liberdade indígena, o responsável pela unidade territorial da colônia sem
“cancros” autônomos e o visionário que impôs a superação de um projeto que, afinal, não
servia mais aos objetivos da expansão territorial na colônia.
Contudo, havia outro “cancro” a incomodar Barbosa: “o fatal cancro da
escravatura” africana, que não poderia ser extirpado de maneira tão simples quanto a
autonomia jesuítica e nem por meio de qualquer lei. Quanto a este cancro, Barbosa não
podia mais recorrer às palavras de Vieira e nem às atitudes de Pombal, ambos reconhecidos
como promotores da escravidão africana. É hora do segundo ato, com a conveniente
mudança do cenário e das personagens, onde se opera uma mudança de vozes
privilegiadas: saem Vieira e Pombal sem maiores despedidas, e entra em cena o não menos
autorizado Manuel da Nóbrega.
A partir da metade do texto de Barbosa, Nóbrega torna-se o instrumento da
denúncia, ao queixar-se do tráfico de africanos e da “mistura de negros e negras na nova
povoação [Bahia]”, dizendo que “assim se inoculava o fatal cancro da escravatura, fonte de
imoralidade e de ruína”526. Nada mais adequado para os propósitos de Barbosa; nada,
porém, mais equivocado quanto ao conteúdo das cartas queixosas de Nóbrega.
A expressão “cancro da escravatura”, típica do século XIX, nunca foi usada por
Nóbrega. Em nenhuma de suas cartas ao Provincial da Companhia de Jesus em Portugal
ele usou esse termo, e os “negros e negras” a que se referiu não eram africanos, mas sim

524
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 149.
525
Idem, Ibidem.
526
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 150.

200
índios, usualmente denominados negros nos séculos XVI e XVII. Barbosa fez uma leitura
muito particular da segunda carta de Nóbrega ao padre Simão Rodrigues, onde afirmava
que na Bahia desembarcavam escravos tomados de assalto em outros territórios. Segundo
ele, os portugueses fingiam estar em paz com os “negros” (índios) e acabavam por enganá-
los, enchendo seus navios e transportando-os para a Bahia, onde eram vendidos como
escravos527.
Barbosa procurou argumentos para consolidar seu objetivo central: provar o quanto
a presença do negro foi prejudicial a um projeto amplo de civilização do índio e até mesmo
um fator de barbarização do branco. O índio assustava-se com a transmissão de doenças
que o negro introduzia; o negro era menos apto ao trabalho, e só podia ser empregado
como força bruta ou “máquina”.
O índio, por sua vez, não era visto como avesso ao trabalho. Eram fatores alheios
a sua vontade, como a escravidão africana, por exemplo, que impediam o uso de sua mão
de obra. Tratava-se de estabelecer um meio de trazê-lo à civilização:

se forem bem tratados cumprindo-se fielmente as convenções, que


comeles se fizerem; se forem docemente chamados a um comércio
vantajoso e a uma comunicação civilizadora, teremos, se não nos que
hoje existem habituados à sua vida nômade, ao menos em seus filhos
e em seus netos, uma classe trabalhadora, que nos dispense a dos
africanos528.

A exploração do trabalho de um ser civilizado pressupunha um contrato ou um


pacto, no qual ambas as partes saíssem ganhando. Para tanto, era preciso existir antes a
liberdade. Pelo parecer de Barbosa, no entanto, a liberdade não se coadunava com o
africano. A exclusão de um pelo outro era o grande problema, mas ao mesmo tempo era
a única solução. Barbosa queria dispensar o africano, recolocando no espaço do trabalho
produtivo o índio, e com isso fazendo dele um ser civilizado, o que seria seu pagamento.
A liberdade de que os índios se serviram no passado, com as inúmeras leis que os
protegeram, “tornou-se de pouco ou nenhum fruto”, tanto pela “falta de catequese” como
“de um sistema bem concertado de civilização”529.

527
Ver LEITE, Serafim, Cartas dos primeiros jesuítas do Brasil, I, São Paulo: Comissão do IV Centenário,
1954, p. 121 (carta de 8 de agosto de 1549). O uso das cartas de Nóbrega por Barbosa iniciou a trajetória
de um erro reproduzido mais de cem anos depois por Taunay, citando o texto da Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Ver Subsídios para a história do tráfico africano no Brasil. São Paulo:
IMESP, 1941, p. 33. Mais de quarenta anos depois, Luciano Raposo reproduziu o argumento de Barbosa,
porém citando Taunay, em Marcas de escravos, Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1988, p. 4.
528
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 151. Destaque meu.
529
Idem, Ibidem. O destaque é meu.

201
Esta passagem tem conteúdos interessantes. Imaginar que a liberdade “tornou-se
de pouco ou nenhum fruto” só poderia ser uma observação de quem esperava um
retorno em excedente de produção quando havia força de trabalho aplicada. O trabalho
sem resultado material além da própria subsistência, sem “nenhum fruto” excedente, não
interessava à sociedade projetada por Barbosa e seus companheiros de debate. Ao mesmo
tempo, o autor desvinculava a catequese da civilização. O instrumento mais adequado, ou
melhor, a essência da civilização no século XIX, não seria a catequese oua liberdade: seria
o trabalho, não para si, mas para os fazendeiros. Portanto, não se tratava de qualquer
trabalho, mas do trabalho produtivo e sob vigilância.
Civilizar os indígenas era o argumento chave para justificar o uso da mão de obra
deles. Era na tecla do trabalho produtivo que Barbosa tocava a todo instante, e não no
conhecimento da doutrina cristã ou na liberdade. Era, portanto, a necessidade de um povo,
“uma classe trabalhadora”, que o afligia, de uma classe apta para desenvolver a produção e
possuidora de uma aptidão técnica que permitisse, segundo ele, a superação do “atraso” a
que a economia invariavelmente se destinava quando ficava a cargo de escravos. O
depoimento do “economista inglês” – não mencionado, mas que evidentemente é Adam
Smith – servia como discurso comprobatório. Como a história se repete, lá e cá a redenção
se deu e se daria pelo trabalho produtivo disciplinado de homens livres. A diferença entre
Smith e Barbosa, neste caso, é que o segundo não reconhecia a necessidade de se pagar
salários à “classe trabalhadora”.
Além de tudo, a responsabilidade e o custo – portanto, a racionalidade – do
trabalho livre faziam dele um sistema superior à escravidão. Não se gastava na compra da
força de trabalho e não se corria o risco de perder o capital investido com a morte do
trabalhador530. É curioso que Barbosa não percebesse que tal racionalidade era parte do
universo dos fazendeiros numa prática que ele mesmo apontou: o uso que se fazia dos
indígenas para a derrubada das matas531, trabalho visto como de alto risco, onde se evitava
colocar escravos africanos devido ao custo mais elevado de sua aquisição.
Ao constatarmos que Barbosa não fez nenhuma menção quanto ao pagamento de
salário aos índios que pretendia ver “civilizados”, e que o prêmio pelo trabalho seria a
própria civilização, não é difícil ver em sua proposta uma forma de coação ao trabalho.
Sem crueldade, pelo convencimento e pelo benefício de adquirir o status de civilizado,o
índio trabalharia nas fazendas, sem ser comprado (não seria propriedade, mercadoria

530
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 152.
531
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 151.

202
ou “máquina” como o africano), portanto sem dispêndio de capital, descaracterizando
assim a escravidão por suprimir a relação de compra e venda.
Com a valorização das aptidões dos índios, vistos como superiores aos negros,
Barbosa tentava convencer os senhores que, em 1839, após a proibição do tráfico, ainda
não pareciam dispostos a abrir mão de seus escravos africanos.
Sutilmente, ele argumentava com a maior racionalidade do trabalho livre, mas
excluía dele o africano por motivos que iam além das aptidões. Se a escravidão dos negros
impedia a civilização dos índios e o progresso dos brancos e da produção, tudo isto reunido
resultava em danos desgraçadamente conhecidos. A exclusão dos negros pretendida pelo
autor é um indício de que os danos poderiam incluir algo mais do que o retardamento do
avanço técnico. Colocava-se a dúvida ao leitor, recorrendo-se à sua experiência: “só a cobiça
poderá negar resultados que a inteligência, ainda a menos perspicaz, percebe e calcula”532.
Em fins da década de 1830, Barbosa e seus companheiros não tinham esquecido
os acontecimentos do Haiti e revoltas como a dos malês em 1835 na Bahia. Além disso,
ouvintes e leitores de suas ideias eram convidados a refletir cotidianamente sobre o desejo
de liberdade manifestado pelos escravos africanos e crioulos nas diferentes vilas, cidades e
províncias do Império. Era em razão dessas reflexões que Barbosa, certamenteum homem
de inteligência perspicaz, escrevia seu texto. A proposta de civilizar os índios de forma
suave, para colocá-los no lugar dos africanos no mercado de trabalho servia, entre outras
finalidades, como estratégia para estancar a “onda negra”, e pareceu bastante adequada
para aquele momento.

532
BARBOSA, "Se a introdução...”, p. 152.

203
CAPÍTULO 6
FERRO, TRABALHO E CONFLITO: OS AFRICANOS LIVRES NA
FÁBRICA DE IPANEMA533

A letra da lei

Em sete de novembro de 1831, entrava em vigor a primeira proibição do comércio


transatlântico de africanos para o Brasil. Normalmente, esse dispositivo legalé lembrado
como letra morta que, ao invés de cumprir seu objetivo de inibir o tráfico, estimulou um
imenso contrabando de escravos. Foi assim, sem ser exatamente assim.Há outro aspecto
da lei menos lembrado: o que definiu que “todos os escravos que entrarem no território
ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”, exceto os que viessem matriculados como
marinheiros em embarcações de países onde a escravidão era permitida e os fugitivos de
território ou embarcação estrangeira, que seriam devolvidos aos seus senhores534. Criavam-
se, assim, os termos legais que deram aos escravos contrabandeados a partir de 1831 o
estatuto de “africanos livres”. A criação desse estatuto, que atendia às demandas de parte
da elite política e dos senhores de escravos, era o arranjo possível para uma situação em
que o tráfico fora legalmente proibido e a visão sobre os africanos na sociedade brasileira
era bastante desfavorável535. A lei previa a reexportação para a África dos escravos
introduzidos depois de 1831; até que isto ocorresse, o governo deveria encontrar meios
para amanutenção dos africanos contrabandeados, respeitando sua condição legal como
homens livres, mas que na prática estavam obrigados à prestação compulsória de serviços.
No entanto, não se podia prever em 1831 o descumprimento desses dispositivos
nos anos subsequentes. Criou-se, assim, um paradoxo: a constituição de um grupo social
por meio de um dispositivo legal e cuja existência pode ter amplificado as demandas
dos escravos, no momento em que estes se faziam passar por africanos livres para
conseguirem o reconhecimento formal de sua liberdade536.

533
Publicado pela primeira vez, com o mesmo título, em História Social, 4/5: 1997-1998, p. 29-42.
534
Lei de 7 de novembro de 1831, art. 1° e seus parágrafos 1º e 2º. Disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-
publicacaooriginal-88704-pl.html.
535
Tratei do assunto mais extensamente em RODRIGUES, O infame comércio, cap. 1.
536
A historiografia brasileira sobre a escravidão tem atentado para isso e os estudos sobre essa temática
ganharam corpo nos últimos anos. Ver, entre muitos outros, XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da
liberdade: libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Campinas: Área de Publicações -
CMU/Unicamp, 1996; COTA, Luiz Gustavo Santos. O sagrado direito da liberdade: escravidão, liberdade
e abolicionismo em Ouro Preto e Mariana (1871 a 1888). Juiz de Fora: ICH/UFJF, 2007.

204
Pela lei de 1831 e por seus regulamentos posteriores, podemos definir a situação
legal desses africanos e indagar às fontes quais foram as experiências vividas por eles na
condição ambígua de homens livres obrigados à prestação de serviços a um senhor ou
ao governo. O que deveria ser um mero estatuto legal transitório originou um grupo social,
que só pode ser definido enquanto tal através de suas relações com os outros grupos, quais
sejam: escravos, senhores, homens livres e autoridades administrativas emsuas relações de
trabalho e interação social.
O objetivo deste capítulo é duplo. De um lado, pretendo mapear a transformação
do estatuto legal desses homens e mulheres apreendidos como contrabando e tornados
livres; de outro, buscar evidências, através do estudo do caso da Fábrica de Ferro de
Ipanema, a respeito de como se dava a experiência de integração desses mesmos homens
e mulheres ao mercado de trabalho do Império brasileiro na primeira metade do século
XIX, profundamente marcado pela escravidão e por sua ideologia.
Regulamentos posteriores à lei de 1831 abriram a possibilidade de os escravos se
fazerem passar por africanos livres. Os juízes de paz eram obrigados “em qualquer tempo
em que o preto requerer”, a certificar-se das circunstâncias em que a entrada no Brasil fora
feita, “obrigando o senhor a desfazer as dúvidas”, ou seja, colocando o ônus da prova sobre
os eventuais acusados – neste caso, senhores de escravos arrematantes daforça de trabalho
dos africanos livres537.
Anos após a promulgação da lei, o dispositivo que previa a reexportação de
africanos para seu continente de origem caíra em descrédito sem nunca ter sido cumprido.
Era necessário, então, dar um destino aos africanos apreendidos. Atendendo aum pedido
do presidente da província da Bahia, o Ministério da Justiça determinou em agosto de 1834
que eles fossem empregados nas obras públicas da província, “não podendo ainda ser
exatamente cumprida a lei de 7 de novembro de 1831”538. Inaugurava-se, assim, uma prática
que levou muitos africanos livres ao trabalho em obras e empresas públicas na Corte e nas
províncias, como veremos no caso de São Paulo.
Para coibir abusos, a mesma resolução proibiu a arrematação dos africanos livresa
particulares. Porém, a decisão foi revista em tempo recorde, certamente diante da pressão
de senhores de escravos: em outubro de 1834, o Ministério determinou a arrematação dos
537
Decreto s/nº de 12 de abril de 1832, art. 10º, disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-37370-12-abril-1832-563951-
publicacaooriginal-88005-pe.html.
538
Ato nº 289 do Ministério da Justiça, 27 de agosto de 1834.

205
africanos que estavam na Casa de Correção da Corte. Dos arrematantes se requeria
“reconhecida probidade e inteireza”, além da exigência de arrematar mulheres e crianças,
comunicar ao juiz de paz o falecimento dos africanos e informaraos mesmos que eles
eram livres e trabalhariam mediante um salário, que seria entregue ao curador dos africanos
e depositado no juízo da arrematação, para custear a reexportação. Além disso, “os
arrematantes se sujeitarão a entregar os ditos africanos logo que a Assembleia Geral
decidir sobre a sua sorte”539. Dias depois, o mesmoMinistério referendou os termos do
ato anterior e acrescentou que, na arrematação, “o juiz fará entregar ao africano uma
pequena lata, que lhe penderá ao pescoço uma carta declaratória de que é livre, (...) indo
na mesma carta inscritos os sinais, nome, sexo e idade presumível do africano”540.
Novo regulamento a respeito dos africanos livres viria em 1847. O Ministério da
Justiça determinou ser desnecessário formar-se processo para determinar se os africanos
apreendidos tinham direito à liberdade, “bastando para título e prova o simples ato da
apreensão”541. Provavelmente, estabelecera-se como prática a formação de processos
individualizados para se provar que os africanos eram de fato homens livres e, no
transcorrer da ação, deixava-se suspensa a condição deles, enquanto trabalhavam como
escravos.
Em 1850, o tráfico de escravos foi novamente proibido. O destino dos africanos
apreendidos nos navios contrabandistas foi redefinido pelo regulamento da nova lei: até
que fossem reexportados – desta vez por atribuição e conta do governo imperial –
trabalhariam “debaixo da tutela do governo, não sendo em caso algum concedidos os seus
serviços a particulares”542. O fato era que o governo tinha um controle muito reduzido sobre
os africanos que desembarcavam contrabandeados no país. Mesmo aqueles apreendidos e
colocados sob a custódia das autoridades policiais tornaram-se objetos de uma ampla rede
de corrupção interessada nessa fatia preciosa de força de trabalho, numa conjuntura de
escassez ou prevenção da escassez devido ao corte na fonte de abastecimento da mão de
obra. É o que transparece nas palavras do deputado Alvares Machado, ao discutir a
necessidade de urgência na votação do projeto de Felizberto Caldeira Brant Pontes de
539
Ato nº 346 do Ministério da Justiça, em 13 de outubro de 1834.
540
O Ato nº 367 Ministério da Justiça, 28 de outubro de 1834. Para uma lista dos arrematantes particulares
de africanos livres, ver MAMIGONIAN, Beatriz G. To Be a Liberated African in Brazil: Labour and
Citizenship in the Ninetheenth Century. Waterloo: University of Waterloo, 2002 (Tese de Dout.), p. 306-
314.
541
Ato 88 do Ministério da Justiça, 29 de maio de 1847.
542
Lei nº 581, de 4 de setembro de 1850, disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1824-
1899/lei-581-4-setembro-1850-559820-publicacaooriginal-82230-pl.html.

206
Oliveira Horta (o marquês de Barbacena), sobre a segunda proibição do tráfico negreiro,
em 1840. O deputado trouxe à tona um caso curioso e revelador dessa prática de
corrupção, envolvendo de forma um tanto patética obrigadeiro Rafael Tobias de Aguiar,
que quando ocupara a presidência da província de São Paulo, tentara fazer cumprir a lei
de 1831, mas só conseguiu angariar inimizades:

(...) alguns africanos mesmos (sic) que aquele ilustre e digno paulista
mandou recolher à prisão, no dia seguinte, fazendo-se uma vistoria
sobre eles, de africanos boçais que eram, apresentarem-se ladinos!
Milagre maior ainda houve, que foi a mudança de sexo: porque
entrando entre esses africanos algumas raparigas, no dia seguinte
todos eram homens! (risadas).E ainda mais milagre de saúde, porque
um tinha entrado com fratura no braço, e no dia seguinte não se achou
algum com fratura543.

Além do furto puro e simples, havia ainda outros tipos de fraude, como aquela em
que muitos senhores matriculavam africanos livres no lugar de escravos seus que morriam,
afirmando que os verdadeiros defuntos eram os africanos livres arrematados para
prestarem serviços em suas propriedades. Com isso, eximiam-se do pagamento do salário
destes e ainda compensavam o prejuízo causado pela morte de um escravo ao colocar em
seu lugar outro africano, quiçá jovem e com muitos anos de trabalho pela frente, a julgar
pela idade da maioria dos que foram introduzidos pelo tráfico ilegal pós- 1831.
Entretanto, a proibição contida na lei Eusébio de Queiroz (como ficou conhecida a
segunda proibição do tráfico, em 1850) relativa à arrematação de africanos livres também
teve vida curta. Em 1853, voltou-se a permitir a entrega deles a particulares; os africanos,
depois de prestarem serviços por 14 anos, deveriam ser emancipados “quando o requeiram;
com a obrigação porém de residirem no lugar que for pelo governo designado, e de
tomarem ocupação ou serviços mediante um salário”544.
Esta última regulamentação sobre a vida dos africanos livres estava sintonizada com
as perspectivas senhoriais sobre a emancipação dos escravos na América545. O trabalho
assalariado sob as ordens de um patrão era o destino desejado pela elite política

543
Anais da Câmara dos Deputados, 23 de maio de 1840, I, p. 437.
544
Decreto 1303, de 28 de dezembro de 1853, disponível em
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-1303-28-dezembro-1853-559276-
publicacaooriginal-81405-pe.html.
545
Sobre a discussão em torno da vida dos libertos e as concepções de liberdade após a emancipação, ver
FONNER, Eric. Nada além da liberdade: a emancipação e seu legado. Rio de Janeiro, Paz e Terra; Brasília,
CNPq, 1988, passim, e FONNER, Eric, “O significado da liberdade". Revista Brasileira de História, 16: 9-
36, 1988.

207
para os africanos livres ou libertos e em geral para toda a população livre e pobre, visando
à formação de mercados de mão de obra nacionais e coloniais. Esta concepção de
liberdade não era compartilhada por todos aqueles para quem ela havia sido pensada.No
estudo de caso que se segue, reuni alguns elementos para afirmar que a liberdade tinha
outros significados e que os africanos tiveram atitudes que demonstravam claramente sua
disposição em cuidar de suas próprias vidas com maior autonomia. Essa autonomia não
era, de modo algum, compatível com o trabalho assalariado ou com a fixação no lugar
determinado por algum senhor, mesmo sendo ele o governo imperial.

O caso de Ipanema

Em 1872, Charlez Pradez calculou em 10.719 o número de africanos livres


existentes no país. Destes, 2.447 receberam emancipação nos termos do decreto nº 3.310,
de 1864, e 3.856 foram dados por mortos, embora o mais provável é que seus arrendatários
os tenham matriculado no lugar de escravos que faleciam. Não havia notícia sobre os 4.416
restantes546.
Estes números dão uma pálida ideia da quantidade de africanos livres existentes no
momento da emancipação do grupo. Porém, ainda estão por ser estudados a quantidade e
os mecanismos de distribuição deles pelas províncias do Império. Para o caso de São Paulo,
os estudos de Jorge Prata de Sousa, Afonso Florence, Enidelce Bertin e outros fizeram
avançar o conhecimento acerca do grupo, tanto pela pesquisa acerca do arrendamento a
particulares como dos locais onde os africanos livres trabalharam a serviço do governo
provincial547.
A regulamentação desse trabalho nas províncias também não está esclarecida em
detalhes. São conhecidos apenas dois regulamentos na província de São Paulo – o de 31
de dezembro de 1851 e o de 5 de maio de 1852 – sobre as atribuições dos administradores
e feitores dos africanos livres empregados nas obras da estrada de Cubatão. O
administrador encarregava-se de dirigir e vigiar os africanos, auxiliado por um feitor para
cada turma de quinze trabalhadores. As atribuições do administrador incluíam a

546
PRADEZ, Charles. Nouvelles études sur le Brésil. Paris: E. Thorin, 1872, p. 135. Disponível em
http://archive.org/stream/nouvellestudess00chargoog#page/n146/mode/2up.
547
Ver SOUSA, Jorge L. Prata. Africano livre ficando livre: trabalho, cotidiano e luta. São Paulo:
FFLCH/USP, 1999 (Tese Dout. História); FLORENCE, Afonso Bandeira. Entre o cativeiro e a
emancipação: a liberdade dos africanos livres no Brasil (1818-1864). Salvador: UFBA, 2002; BERTIN,
Enidelce. Os meias-caras: africanos livres em São Paulo no século XIX. Salto: Schoba, 2013, em especial
p. 49 e seguintes; MAMIGONIAN, op. cit., p. 107 e ss. Para o Rio de Janeiro, ver MOREIRA, Aline.
Liberdade tutelada: os africanos livres e as relações de trabalho na Fábrica de Pólvora da Estrela, Serra
da Estrela/RJ (c.1831- c.1870). Campínas: IFCH/UNICAMP, 2005 (Dissert. Mest. História).

208
revista diária, o provimento da alimentação e tratamento necessário, a aplicação do “castigo
moderado” e a comunicação das fugas à polícia.
Porém, enquanto inexistia regulamentação das atribuições dos administradores e
feitores e enquanto não foi fixado o tempo de serviço dos africanos livres – o que só ocorreu
em 1853 – as relações de trabalho foram permeadas por tensões e estratégias cotidianas.
Claro, depois da regulamentação, não desapareceram tensões nem estratégias. É nesse
sentido que adquire importância o estudo de caso da Fábrica de Ferro de Ipanema no
período que antecede à regulamentação, por recuperar um fragmento do mundo do
trabalho brasileiro da primeira metade do século XIX, com os vários segmentos que o
compunham: escravos, brancos e negros livres, sentenciados e capatazes.
Criada em 1811, nas proximidades da atual Sorocaba, a fábrica começou a
receber africanos livres quando era dirigida pelo major João Bloem, em 1834548. Desde
então, o número de trabalhadores aumentou, e entre eles o de africanos livres. Em 1837,
trabalhavam ali 121 escravos (68 homens, 24 mulheres e 29 “crioulos”) e 48 africanos
livres (30 homens e 18 mulheres). Excetuados 12 escravos e um africano fugidos, a
fábrica contava com 169 trabalhadores. Quatro anos depois, o número de escravos havia
diminuído, mas fora amplamente compensado pelos africanos livres e presossentenciados:
45 livres (incluindo os diretores de Ipanema), 9 guardas municipais, 88escravos, 33
crioulos, 42 presos e 104 africanos livres, além de 5 “crias das africanas”viviam na fábrica,
totalizando 312 trabalhadores (excetuados os guardas e as “crias”)549.Na administração de
Bloem, aumentaram o número de trabalhadores e os problemas de disciplina. Em
1839, o administrador queixava-se ao presidente da província das dificuldades que
enfrentava para conseguir “boa moralidade” entre os trabalhadores, que “vivem
presentemente nesta como animais, e não como cristãos”,solicitando o envio de um
sacerdote que ocupasse com missas e sermões os domingos dos trabalhadores, que teriam

548
O alemão João Bloem prestara serviços durante a Guerra de Independência no Pará, tornando-se
depois oficial do Exército brasileiro. Entre agosto de 1837 e dezembro de 1838, visitou mais de 60
siderúrgicas na Europa para conhecer seus processos produtivos, trazendo na volta 277 trabalhadores, 56
dos quais para Ipanema. Sobre esse assunto, ver FREIRE, Ezequiel, "Sorocaba". In: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, 51, 1954, p. 195 e AZEVEDO, Astor França. "A Fábrica de Ferro do
Ipanema e o município de Tatuí". Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 57: 1959,
p. 145-146. Bloem assumiu a direção da Fábrica em 1835, de acordo com AMARAL, Antônio Barreto do,
Dicionário de História de São Paulo. São Paulo, Governo do Estado, 1980, p. 187.
549
Os dados baseiam-se na lista encaminhada por Bloem ao presidente da província em 1 de maio de
1837 e no "Mapa dos Empregados, Artistas, Escravos, Africanos e Presos que Existem na Fábrica de Ferro
de S. João do Ipanema" de 9 de agosto de 1841. APESP, Latas 5214,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema
(1835-1839) e 5215,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1840-1848), respectivamente.

209
“mais respeito a um sacerdote, do que a vinte diretores”550. Mesmo que a preocupação de
Bloem com a cristianização dostrabalhadores fosse sincera, esse não era o único motivo
pelo qual ele pedia a vinda de um padre. Certamente, a indisciplina era o problema que
ele desejava inibir com a presença do sacerdote.
Bloem continuou a enfrentar problemas disciplinares, especialmente com os
africanos livres, até as vésperas de sua saída da direção da fábrica, em 5 de novembro de
1842, acusado de envolvimento na revolta liberal de São Paulo551. Em março de 1840, o
administrador acusou o recebimento de quatro escravos da nação e duas africanas, “uma
prenhe e outra criança e quatro africanos (entre eles um cego, que agora fico com cinco
cegos)”. As queixas prosseguiam, referindo-se à inadequação da força de trabalho às
exigências do serviço: “É de lastimar que só haja gente inútil para mandar-se para este
estabelecimento; o que se necessita são 160 ou 200 homens capazes de pegar em machado
para os cortes de madeira e outros serviços”552. Certamente, o corte de madeira destinava-
se ao suprimento dos fornos da metalurgia. Mas que “outros serviços” os africanos
executavam na fábrica?
Escravos e africanos livres inseriam-se no processo produtivo direto. As listas
nominais dos trabalhadores demonstram, por exemplo, que Francisco, angola, “trabalha
nas fundições dos fornos altos”; Braz, benguela, era ferreiro, e que outros trabalhavam
como carreiros, carpinteiros, torneiros, pedreiros e moldadores553. Das forjas de Ipanema
saíam “moendas para cana, serras, moinhos, despolpadores de café, ventiladores, eixos e
rodas para vagões, ferramentas para lavoura, pregos, munições de guerra, castiçais, bustos,
baixos-relevos, e peças avulsas encomendadas pelos fregueses”554.
Fujões contumazes, os africanos livres que a fábrica recebia desanimavam Bloem
cada vez mais: “(...) eles são relaxados, mostram sempre uma cara feia, e parece que

550
APESP, Lata 5214,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1835-1839), ofício de 27 de setembro de 1839.
551
Os estudos sobre a Fábrica assinalam a saída de Bloem como o início de um período de decadência
que prosseguiu até 1860, quando o governo imperial determinou seu fechamento e a construção de uma
nova fábrica em Mato Grosso, enviando para lá os equipamentos, técnicos e escravos, "ficando no Ipanema
alguns velhos inválidos, indo o resto para a Colônia do Itaperuna". O abandono durou até 1865, quando a
Guerra do Paraguai inviabilizou o funcionamento da fábrica em Mato Grosso e Ipanema foi reativada. Ver
FREIRE, "Sorocaba", op. cit., p. 195.
552
APESP, Lata 5215,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1840-1848), ofício de 8 de março de 1840.
553
"Relação nominal dos Africanos livres, maiores e menores, extraída do Livro de Matrícula dos
mesmos, organizada em julho de 1849, declarando os que atualmente existem nesta Fábrica, os que
tiveram destinos, e os que faleceram". APESP, Lata 5216,4 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1849-1879).
554
AZEVEDO, "A Fábrica de Ferro do Ipanema e o município de Tatuí", op. cit., p.150.

210
são seduzidos por algum mal-intencionado, pois há entre eles alguns de cinco a oito fugidas,
e não servem correções”555.
Apesar das constantes reclamações a respeito da mão de obra que recebiam, os
diretores da fábrica sempre solicitavam ao governo o envio de mais africanos livres. Ao
suceder Bloem, Antônio Manuel de Melo afirmava em 1843 que eram necessários “ao
menos cem deles, que tenham a robustez conveniente, mas qualquer número destes acima
de quarenta já virá dar notável aumento ao produto do ferro, por cortar grande parte da
dificuldade com que até agora tenho lutado”. Ipanema contava então com 91 africanos
livres (além de quatro fugidos), 120 escravos (além de 24 fugidos) e 28 presos556.
Os levantamentos sobre a mão de obra na Fábrica de Ipanema demonstram que o
ápice no número de trabalhadores de todas as condições ocorreu em fins de 1846,
momento em que os africanos livres compunham o principal contingente. Nesse ano, a
mão de obra (excluídos os presos) estava assim dividida:
AFRICANOS ESCRAVOS
LIVRES
Homens 196 71
Mulheres 23 59
Crianças 21 36
Total 240 166
“Soma de pretos de todas as condições: 406”
FONTE: “Resumo estatístico dos africanos livres e escravos consignados à Repartição da Nacional Fábrica
de Ferro de S. João do Ipanema designados com as casualidades nas respectivas relações” (9 de dezembro
de 1846). APESP, Lata 5215,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1840-1848).

Em 1846, Ipanema contava com o maior número de trabalhadores desde sua


fundação, mas o problema mais grave de indisciplina ocorreu três anos depois. Um grupo
de africanos livres da fábrica, acreditando que sua condição de trabalho era irregular,
passou a reivindicar a liberdade.
O diretor Ricardo Gomes Jardim foi enganado por alguns africanos, que solicitaram
licença para irem a Sorocaba, “sob pretexto de comprarem palha parachapéus” naquela
cidade. Na verdade, o objetivo deles era encaminhar um requerimento escrito de próprio
punho ao juiz de órfãos local, onde deixavam clara sua pretensão de serem livres, apesar
do texto truncado. O raro documento escrito pelos africanos vai transcrito a seguir.

555
APESP, Lata 5215,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1840-1848), ofício de 28 de fevereiro de 1842. 556
Ofícios de 7 de novembro de 1843, do diretor da Fábrica para Joaquim José Luiz de Souza, presidenteda
província; "Relação mensal dos Africanos, e escravos existentes na Fábrica de Ferro" (25 de outubrode
1843); "Relação mensal dos presos sentenciados que trabalham na Fábrica de Ferro de Ipanema" (1 de
outubro de 1843), em APESP, Lata 5215,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1840-1848).

211
Diferentemente do que fiz com os demais documentos de época,mantive a grafia
original:

Illmo Exmo V. Sa. EmDiz os Fricanos q. vierro na provincia da cidade


da bahia foi tomado no engenho cabrito por ordem de S. N. para
servir 10 annos como ja 10 annosja passou temos mais servindo de 16
annos no arsinal da marinha, entendente Jose Carvalho e testemunho
ao mesmo ele sahio no arsinal da marinha da provincia da cidade da
bahia veio feito ao espetor para o arsinal da marinha do rio de janeiro
por isto vos suppte. [ileg.] V. Sa. em [ileg.] emquanto foi ao governo
mendou emsibora 30 pessoa em sua terra nos fiquemos por ordem do
governo pa. servir 10 annos como ja no lugar de servir 10 annos ja
servimos de 16 annos por isto requerou ao Snr. Dr. Martins presidente
da provincia da cidade da bahia informação que deo ao Snr. Dr.
Martins presidente da provincia da cidade da bahia mandou logo preso
rio de janeiro nos não chegariamos de sataras em terra ser nos chega a
ser satara ser em terra no rio de janeiro então nos requeria a V. S. Em.
portanto seja bem atendido ao q aos suppte. requerei.
V. Em. há e a por bem atende no que pede.a V. Em.
M.C.557.

A presença dos africanos portando um requerimento nestes termos assustou ojuiz


de órfãos Vicente Eufrásio da Silva e Abreu, da comarca de Sorocaba. Imediatamente, ele
os mandou de volta à fábrica, recomendando que se entendessem com o diretor. A seguir,
escreveu a Ricardo Gomes Jardim um relato pormenorizado do episódio, informando do
perigo que a situação representava.
Os africanos afirmavam terem sido contratados para trabalhar dez anos e já
trabalhavam havia dezesseis anos. “Continuavam a servir como escravos, quando são livres,
e que não estavam dispostos a se conservarem assim”, disse o juiz, reproduzindoa conversa
que manteve com os africanos558. Como vimos, não havia ainda definição legal do prazo
pelo qual os africanos livres deveriam prestar serviços. Somente em 1853 estipulou-se em
14 anos o tempo da prestação de serviços, findos os quais os africanos deveriam ser
emancipados “quando o requeiram”.
Evidentemente, os africanos não estavam reivindicando antecipadamente a
aplicação da lei; estavam cobrando o que lhes fora prometido na Bahia, onde já haviam
trabalhado no Arsenal da Marinha. Aparentemente, a transferência do diretor daquela

557
APESP, Lata 5216,4 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1849-1879).
558
APESP, Lata 5216,4 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1849-1879), ofício de 16 de março de 1849.

212
instituição para o Rio de Janeiro fez o acordo verbal entre eles cair por terra, como se pode
deduzir pelo requerimento dos africanos.
Para o juiz de órfãos, o diretor da fábrica e, posteriormente, o presidente da
província, não havia dúvidas: a situação era grave ou, como disse o juiz, perturbava a ordem
e a subordinação “que deve reinar entre semelhante gente, considerando como absoluta
necessidade a retirada dos tais pretos daí dessa fábrica”.
Ricardo Gomes Jardim tomou suas providências para que isso acontecesse.Alegou
ao presidente da província que, por terem trabalhado durante muitos anos na Bahia, os
africanos em questão não se adaptavam ao trabalho fabril, “por serem quase todos
marinheiros, exigentes e mal acostumados”.
Se os considerava exigentes e mal acostumados, “além de pouco úteis”, por que
Jardim não procurara livrar-se deles antes? Porque, ao que parece, a partir daquele
momento aqueles africanos tornaram-se não apenas maus trabalhadores, mas também
“perigosíssimos” e alguns dentre os mais influentes do grupo deveriam ser afastados “para
evitar-se a tempo funestas consequências, fáceis de prever, em vista do que já se tem
passado, e da circunstância de haverem no estabelecimento muitos outros africanos com
mais de dez anos de serviço”559.
O medo da revolta dos africanos foi expresso pelo diretor da fábrica e pelo juiz.
Este afirmou que em virtude do “estado em que eles se acham, que com muita facilidade
prognosticam uma insurreição, espero que V. Sa., tomando na devida consideração este
negócio, dará as providências que lhe competem”560.
Depois de comunicar ao presidente da província do que vinha acontecendo na
fábrica, Jardim pediu afastamento por quatro semanas alegando problemas de saúde, não
regressando a Ipanema mesmo depois de terminada a licença. O novo diretor, João Pedro
de Lima Gutierrez, assumiu em 2 de abril, mesmo dia em que o presidente da província
determinou o envio para a capital dos “africanos livres que forem maisperigosos”561.

559
APESP, Lata 5216,4 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1849-1879), ofício de 21 de março de 1849.
Embora não esteja presente neste caso, a irregularidade no trabalho dos africanos livres criaria problemas
em 1860, quando, por intervenção do ministro inglês no Brasil, apurou-se que cerca de 200 deles
trabalhavam na fábrica há mais de 14 anos, contrariando o decreto de 1853, que estabeleceu esse prazo. O
episódio foi mencionado por QUEIROZ, Suely Robles Reis de, Escravidão negra em São Paulo. Rio de
Janeiro, José Olympio, 1977, p. 70.
560
APESP, Lata 5216,4 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1849-1879), ofício de 16 de março de 1849.
561
APESP, Lata 5216,4 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1849-1879), ofícios de 7 de abril e 9 de maio de
1849.

213
Sete deles foram levados para São Paulo, com uma escolta fornecida pelo delegado
de Sorocaba, composta ainda pelo feitor da fábrica, João Rodrigues de Oliveira, e um
soldado do destacamento de Ipanema. Além dos que redigiram o requerimento de
liberdade, é possível que a direção de Ipanema quisesse se livrar de outros africanos
“perigosíssimos”, enviando Félix, Damião, Agostinho, João, Luiz,Silvério e Desidério para
a cadeia da Capital, onde perdemos seu rastro562.
Este estudo encerra-se em fins da década de 1840, com o propósito já declarado de
verificar a mediação das relações de trabalho envolvendo os africanos livres antes da
definição do tempo de trabalho a ser cumprido até a emancipação. Entretanto, a série
documental e a bibliografia relativamente vasta disponível sobre a Fábrica de Ferro de
Ipanema, bem como a pesquisa sobre outros lugares onde os africanos livres tenham
prestado serviços até 1864, permitiriam aprofundar os temas levantados aqui: disciplina,
concepções de liberdade, processo de trabalho e relações sociais. Especificamente sobre a
Fábrica de Ipanema, alguns estudos tem sido realizados nos últimos tempos, fazendo com
que a ampla documentação existente venha sendo explorada563.

562
A partir da pesquisa de MAMIGONIAN, op. cit., p. 210 e seguintes e MAMIGONIAN, Beatriz G.
“Do que ‘o preto mina’ é capaz: etnia e resistência entre africanos livres”. Afro-Ásia, 24: 2000, p. 74 e
seguintes, esse rastro foi recuperado.
563
Além dos estudos mencionados já mencionados nas notas anteriores, remeto a FLORENCE, Afonso B.
“Resistência escrava em São Paulo: a luta dos escravos da Fábrica de Ferro São João de Ipanema (1828-
1842)”. Afro-Ásia, 18: 1996, p. 7-32; SAMPAIO NETO, Luiz Ferraz de & SAMPAIO JR., Luiz Ferraz
de. “A Fábrica de Ferro de São João de Ypanema e o atendimento médico praticado no século XIX”. Revista
da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba, 5(2): 2003, p. 51-53; DANIELI NETO, Mario. Escravidão
e indústria: um estudo sobre a Fábrica de Ferro São João de Ipanema - Sorocaba (SP), 1765-1895.
Campinas, UNICAMP, 2006 (Tese Dout.); ZEQUINI, Anicleide. Arqueologia de uma Fábrica de Ferro:
morro de Araçoiaba, séculos XVI-XVIII. São Paulo: USP, 2006 (Tese Dout.); SANTOS, Nilton Pereira dos.
A Fábrica de Ferro São João de Ipanema: economia e política nas últimas décadas do Segundo Reinado
(1860-1889). São Paulo, FEAUSP, 2009 (Dissert. Mest.); MENON, Og Natal. Ipanema: história do
trabalho e do cotidiano. Sorocaba: Crearte, 2010; SOUZA, Maysa Espíndola. Africanos livres (só) no papel:
o Estado imperial, os registros individuais e as fronteiras da escravidão e da liberdade no século XIX.
Florianópólis: CFCH/UFSC, 2011 (Rel. de IC); RIBEIRO, Mariana Alice Pereira Schatzer. “Senzala e
indústria: as fugas de escravos da Real Fábrica de Ferro Ipanema, Sorocaba- SP (1835-1838)”. Histórica:
Revista Eletrônica do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nº 46, fev. 2011, p. 1-9, RIBEIRO,
Mariana Alice Pereira Schatzer. “Os africanos livres na Real Fábrica de FerroSão João do Ipanema:
funções, origens étnicas e rotina de trabalho (1840-1850)". Sankofa, 6(12): 6-38, dez.2013.

214
CAPÍTULO 7
COMÉRCIO DE AFRICANOS, DOENÇAS E CURA564

“(...) a multidão de escravos de Guiné, Mina e Angola, que continuamente entram neste porto, e
dele se distribuem para engenhos, serviço das casas, e por negócio para as Minas do Rio de
Janeiro, como nas embarcações que as trazem raríssimas vezes chegam sem achaques daquelas
terras verbi gratia escorbutos: id est mal de Luanda, cachexia, sarnas, morféas, diarréias,
disenterias, hidropesias, oftalmias e muitas outras semelhantes, etc”565.

“Pode-se debater indefinidamente se a escravidão deixou ou não marcas profundas no


comportamento dos brasileiros, tornando-nos ou não racistas – mais ou menos cordiais, vá lá. Mas
ninguém será capaz de negar, nem mesmo torturando estatísticas, que um de seus legados se
encontra na saúde pública: moléstias importadas da África em navios negreiros, hoje doenças
566

esquecidas de miseráveis” .

I. Quanto a Aids surgiu no cenário epidemiológico internacional, entre fins da década


de 1970 e início da década de 1980, as primeiras interpretações para a origem da doença
baseavam-se em uma antiga e bastante enraizada matriz de pensamento. A explicação
científica, que recebeu a contribuição poderosa de todas as mídias, informava que o
primeiro ser humano contaminado fora um africano(a) que mantivera relações sexuais com
macacos(as). Não foi por mero acaso que a doença recebeudesignações populares tais
como “peste negra” e, posteriormente, “peste gay” ou “doença dos 5 Hs” – a saber,
homossexuais, hemofílicos, haitianos, heroinômanos e hookers (prostitutas, em inglês).
Afinal, estamos falando de informações atravessadas por fortes preconceitos – neste caso,
racial, sexual e comportamental. Da África, a doença capaz de exterminar a humanidade
teria migrado para o Haiti – país sobre o qualpesa uma imagem de “franquia africana no
Caribe”. Desde o perigoso Haiti, a Aids dilatou-se até as costas dos Estados Unidos pela
imigração ilegal de caribenhos miseráveis para, dali, ganhar o mundo pelas rotas legais da
aviação comercial e da marinha mercante567.

564
Publicado em História & Perspectivas, 25: p. 15-34, 2012, com o título "Reflexões sobre tráfico de
africanos, doenças e relações raciais".
565
SANTOS, Manoel. “Narração histórica das calamidades de Pernambuco, sucedidas desde o ano de 1700
até o de 1715”, apud CAMPOS, Ernesto de Sousa. “Considerações sobre a ocorrência de varíola e vacina
nos séculos XVI, XVII e XVIII sob a luz de documentação coeva”. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, 231, 1956, p. 144.
566
LEITE, Marcelo. “Males da escravidão”. Folha de S. Paulo, caderno Ciência, 11 nov.2007, Disponível
em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1111200704.htm.
567
Estas observações inspiraram-se no artigo de SANTOS, Mario Vitor. “Cientistas com a macaca”. Revista
da Folha, 3(155), p. 86. Ver também NASCIMENTO, Dilene R. do. “Enfrentando o estigma da Aids”. In:
NASCIMENTO, Dilene R. do & CARVALHO, Diana M. de (orgs.). Uma história brasileira das doenças.
Brasília: Paralelo 15, 2004, p. 328-329, e FARMER, Paul. “Mandando doença: feitiçaria, política e
mudanças nos conceitos da Aids no Haiti rural”. In: HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego

215
Africanos, migrações transatlânticas e doenças: estamos caminhando num terreno
histórico familiar. A ideia de que africanos e símios pudessem gozar de umavida sexual
interativa e livre não parece ter chocado a opinião pública mundial – e não estou me
referindo apenas aos cientistas em seus laboratórios. Se foi possível à mídia ocidental
transmitir e ajudar a construir a ideia de que, na África, humanos e animais podem ser
parceiros sexuais, é porque há no ideário racial do Ocidente o vislumbre de que esta é uma
possibilidade concreta. Também não parece que os meios de comunicação tenham tirado
da Aids nenhuma lição importante acerca de racismo;alguns anos mais tarde, a cobertura
sobre o surto de ebola em Washington e na Itália em 1989 repetiu argumentos
discriminatórios semelhantes contra os africanos e sobre as formas de contágio – embora
a doença já tivesse ocorrido como surto na Alemanha da década de 1970. Novos casos de
ebola, ocorridos em 2014 na África Ocidental, na Europa e na América do Norte,
mereceriam um estudo, sobretudo pela profusão de manifestações claramente racistas nas
redes sociais. Pouca autocrítica se fez e poucas providências concretas foram tomadas em
relação aos desequilíbrios ecológicos como possível motivo da entrada em contato dos
seres humanos com os causadores dasmoléstias.
O fato de os causadores do ebola e da Aids serem vírus “nativos” da África também
não provocou espanto. Isso porque, ao longo de séculos, tem sido comum atribuir aos
africanos a responsabilidade pela introdução de fatalidades epidêmicas ou endêmicas no
Ocidente. Na América como um todo, essa ideia têm sido recorrente. Hoje, ebola e Aids
são males atribuídos aos africanos, mas há uma longa lista de precedentes históricos.
Os relatos dos viajantes que estiveram no Brasil oitocentista estão repletos de
referências às condições ambientais e à proliferação de doenças, ainda que nem semprea
descrição do espaço permitisse afirmar a existência da insalubridade com a certeza que
autores do século seguinte defenderiam. O caso de Goiás no século XIX, por exemplo, foi
relatado por John Pohl, que constatou a virulência com que a “febre pútrida” ao norte da
província dizimava os plantéis de escravos568. No Rio de Janeiro, visitado mais

(orgs.). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio
de Janeiro: Fiocruz, 2004, pp. 535-567. Para uma análise da questão do estigma da AIDS sobregrupos
de homossexuais masculinos na década de 1980, ver SCARDINO, Yuri. Transformações de um
preconceito: HIV/AIDS na grande imprensa e o estigma da homossexualidade (1983-1987). Guarulhos:
EFLCH/UNIFESP, 2010 (Monografia de Graduação).
568
MAGALHAES, Sônia Maria de. “O cenário nosológico de Goiás no século XIX”. Varia História, 21
(34): jul. 2005. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-

216
frequentemente pelos viajantes estrangeiros, eram comuns as menções ao desfile de
escravos recém desembarcados nus e doentes no espaço do Valongo. Também não era
incomum vê-los perambulando pelo Rio de Janeiro em condições semelhantes, mesmo já
sendo propriedades de outros senhores569. Essas condições por vezes foram tomadas pelos
contemporâneos como questões de saúde pública.
Em 11 de agosto de 1843, a norte-americana Mary Robinson Hunter anotou em
seu diário o pânico vivido na Corte em função da grande mortandade provocada por um
surto de escarlatina. Hunter vivia na cidade desde 1834, nela permanecendo até 1848, e
considerava surpreendente que até então não tivesse havido mais problemas dessanatureza,
já que nas ruas da cidade fervilhava uma população de todas as cores – fator propício para
a geração de doenças e contaminações, a julgar pelas observações dela. Curiosamente, ela
e seu marido – o diplomata William Hunter – provinham de famílias de traficantes de
escravos do nordeste dos Estados Unidos570.
A profusão de pessoas de todas as cores pelas ruas não é propriamente uma
responsabilização dos africanos pelas doenças que vitimavam tantos indivíduos no Rio de
Janeiro daquele período. Mas há evidências mais claras, e em muitos casos afirmações
categóricas, de que os africanos trouxeram para o Brasil doenças desconhecidas até que o
tráfico fosse implementado. Exemplos disso são as afirmações, feitas por Octávio de
Freitas pouco mais de um século depois, acerca da imagem do Brasil como lugar de

87752005000200011&lng=pt&nrm=iso, acesso em 17 dez.2010. Febre pútrida ou el bicho era o nome com


que se designava o maculo ou dilatação do ânus, “doença especial dos negros, sobretudo no reino de Angola
e na província de Moçambique”, como descreveu Jean-François Xavier Sigaud em meados do século XIX,
cf. Do clima e das doenças do Brasil, ou estatística médica deste Império. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz,
2009 (1ª ed.: Paris: Fortin, Masson & Cia., 1844). Para Thedoro Langgaard, tratava-se do tifo, cf.
Dicionário de medicina doméstica e popular, tomo II. Rio de Janeiro: Eduardo & Henrique Laemmert,
1865, p. 242. Em muitos portos negreiros, como em Cartagena de Índias, a inspeção de saúde nos navios
buscava as febres “pestilenciais” ou “pútridas” a bordo, além de casos de varíola, sarampo ou febre amarela.
Ver CHANDLER, David L. "Health Conditions in the Slave Trade of Colonial New Granada". In: TOPLIN,
Robert Brent (ed.). Slavery and Race Relations in Latin America. Westport: Greenwood Press, 1974, p. 53.
569
Cf. KARASH, Mary C. Slave Life in Rio de Janeiro (1808-1850). Princeton: Princeton University Press,
1987, pp. 92-104 e 125-145; HONORATO, Cláudio de Paula. “Controle sanitário dos negros novos no
Valongo (Rio de Janeiro, 1758-1831). In: PORTO, Ângela (org.). Doenças e escravidão: sistemas de saúde
e práticas terapêuticas. Simpósio temático do XII Encontro Regional de História – ANPUH/RH,
2006. Disponível em
http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Claudio%20de%20Paula%20Honorato.pdf,
acesso em 17 dez.2010; PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor da terra: o cemitério dos pretos
novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond; IPHAN, 2007.
570
CHERPAK Evelyn M. (ed.). “Reminiscences of Brazilian Life, 1834-1848: selections from the Diary of
Mary Robinson Hunter”. The Americas, 49(1), jul.1992, p. 75; BARBOSA, Rosana. Immigration and
Xenophobia: Portuguese Immigrants in Early 19th Century Rio de Janeiro. Laham: Univesity Press of
America, 2009, p. 100; HORNE, Gerald. O sul mais distante: os Estados Unidos, o Brasil e o tráfico de
escravos africanos. São Paulo: Cia. das Letras, 2010, pp. 32 e 117-121.

217
uma “salubridade admirável”, tendo os africanos vindo contaminaruma terra
“salubérrima” com suas doenças peculiares571.

II. Em agosto de 1904, o entomologista Emílio Goeldi apresentou uma conferência


no Congresso Internacional de Zoologia reunido em Berna, na Suíça. Nessa conferência,
ele contrariou a versão corrente entre os epidemiologistas da época, que situavam nas
Antilhas a pátria do mosquito transmissor da febre amarela. As ilhas caribenhas e a cidade
de Nova Orleans, onde os casos se multiplicavam, não tinham, para ele, aprimazia
do berço. Este, segundo Goeldi, encontrava-se na África:

Ao contrário da opinião até agora assaz divulgada, que supõe a pátria


da Stegomya fasciata ser a região antilhana, ligando o seu primeiro
aparecimento com a viagem da descoberta de Colombo, eu não hesito
(...) em estabelecer esta outra de que a pátria, proveniência e centro de
dispersão desta perigosa espécie de mosquito deve ser procurada na
África572.

A chegada do mosquito ao continente americano, de acordo com Goeldi, se dera


pelo tráfico de africanos, responsável também por “não poucos outros transmissores que
hoje no Brasil se costumam atribuir ao inventário aparentemente indígena de moléstias”573.
Surgida na América portuguesa em 1685 como surto, a febre amarela aparentemente fez
suas primeiras vítimas seguindo o percurso de uma embarcação que, saída de São Tomé,
fez escala em São Domingos e dali dirigiu-se a Pernambuco, tendo feito centenas de vítimas
no Recife e em Olinda574.
Contudo, o que Goeldi julgou ser uma descoberta original já fora anunciado no
relatório sobre a saúde pública da Corte em 1854, elaborado por Francisco de Paula
Cândido. Nesse relatório, o médico era claro ao afirmar que a febre amarela provinha

571
As expressões entre aspas foram retiradas do capítulo “Bons ares; maus colonos”, da obra de FREITAS,
Octávio de. Doenças africanas no Brasil. São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1935, pp. 11-20.
572
GOELDI, Emílio. Os mosquitos no Pará. Pará: C. Wiegandt, 1905, p. 147. Nessa época, diferentemente
dos meados do século XIX, a transmissão da febre amarela pelo mosquito Stegomya fasciata
(modernamente denominado Aedes aegip) já não era questionada nos meios científicos, como reafirmaram
os membros do V Congresso Brasileiro de Medicina e Cirurgia, reunido no Rio de Janeiroem 1903. Ver
TEIXEIRA, Luiz Antônio. “Da transmissão hídrica a culicidiana: a febre amarela na Sociedade de Medicina
e Cirurgia de São Paulo”. Revista Brasileira de História, 21 (41): 2001, 217-242.
573
GOELDI, Os mosquitos no Pará, op. cit., p. 148.
574
Cf. GURGEL, Cristina. Doenças e curas: o Brasil nos primeiros séculos. São Paulo: Contexto, 2010,
pp. 161-162.

218
das costas da África; dois anos depois, Cândido reiterava suas afirmações, agora se
referindo à cólera:

“Sempre os navios, ou homens e suas bagagens, servindo para


transportar as epidemias, sempre os portos de mar as vítimas prediletas
da febre amarela. Exemplo de casa. Da costa d'África à Bahia, daí, e
da África diretamente, ao Rio de Janeiro, a Pernambuco, ao Pará, ao
norte; ao sul até Santos e Santa Catarina; (...)”575.

Sidney Chalhoub observou que o comércio de africanos era visto entre


parlamentares e médicos da década de 1850 (especialmente entre os opositores do
tráfico) como responsável pela introdução da febre amarela, embora algumasautoridades
de saúde pública na Corte fossem mais céticas quanto a isso (os que não se opunham tanto
assim ao tráfico)576. A julgar pelo estudo de Kaori Kodama, a conexão entre o tráfico
negreiro e a disseminação da febre amarela vinha de algumas décadas antes da extinção
legal desse comércio no Brasil. O caso de Barcelona, atingida fortemente pela doença em
forma epidêmica nos meados de 1821, fora analisado, entre outros, pelo médico francês
Mathieu François Maxime Audouard, para quem os navios negreiros eram os responsáveis
pela propagação da doença. Para ele, “(...) os miasmas que causavam a doença eram
produzidos não no ambiente das cidades e portos, mas nosporões dos navios que teriam
tido envolvimento com o tráfico negreiro, através da madeira impregnada com as excreções
corporais dos cativos”577.
Embora contrário à escravidão, Audouard compartilhava a ideia da existência de
diferenças raciais entre negros e brancos, “e por isso, os primeiros também seriam capazes
de produzir doenças específicas que poderiam se transmitir de forma letal sobre o
organismo dos últimos”578. Suas concepções sobre a propagação da febre amarela
repercutiram no Brasil de fins da década de 1840 e dos primeiros anos da década seguinte.
Os editores do jornal O Philantropo, militantes pelo fim do tráfico negreiro, encarregaram-
se de estabelecer uma relação estreita entre o tráfico negreiro e a epidemia de febre
575
CANDIDO, Francisco de Paula. Relatório acerca da saúde pública compreendendo: 1) a história
sucinta do cholera-morbus; 2) a discussão das providências sanitárias que convêm adotar-se. Rio de
Janeiro: Tip. Nacional, 1856, pp. 60 e 57-58, respectivamente. Sobre este médico e os debates em torno das
formas de contágio da febre amarela e as medidas para enfrentá-la no âmbito das políticas de saúde pública,
ver CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. São Paulo: Cia. das
Letras, 1996.
576
CHALHOUB, Cidade febril, op. cit., pp. 66 e ss.
577
KODAMA, Kaori. “O doutor Audouard em Barcelona (1821) e a repercussão de sua tese sobre a febre
amarela no Brasil”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 11(4): dez. 2008.
578
Idem, Ibidem.

219
amarela que então grassava na capital do Império. Na edição de 29 desetembro de 1850,
era publicado naquele periódico um texto de autoria de Audouard:

Segundo o doutor francês, a febre amarela não era derivada de um


clima particular, embora ela pudesse ser potencializada pelo calor. Ao
identificar os navios negreiros como o lugar de origem da doença, a
questão do médico vinha ao encontro dos problemas debatidos
amplamente em 1850, e certamente ajudaria como um argumento a
mais a pressionar o término do tráfico579.

A febre amarela e, mais lateralmente, o cólera580, não foram os únicos casos em que
o tráfico foi considerado o difusor das doenças. Também parece haver um consenso entre
os historiadores da medicina em torno da afirmação de que determinadas moléstias
inexistiam na América antes da conquista europeia, sendo a lepra um dos casos mais
recorrentes581. Em Cuba, por exemplo, a doença foi vista como própria dos africanos.
Miguel Gonzalez-Prendes supôs que a lepra teria chegado à ilha no início do século XVII,
a bordo dos navios negreiros que contrabandeavam escravos a partir de grandes focos de
lepra situados nas costas da África e, assim, se esquivavam da inspeção de saúde nos portos
fiscalizados582.
Identificada a inexistência da lepra na América, alguns autores empenharam-se em
buscar as origens dela na África, como fez José Lourenço Magalhães ao afirmar que “les
historiens de cette maladie la décrevent comme étant répandue dans toute l'Áfrique,qui est,
pour cette raison, considerée comme son berceau”583. Sendo a África o berço da lepra, a
dedução natural era que a tivesse sido introduzida no Brasil pelo tráfico, ainda que o autor
preferisse atribuir a responsabilidade por tal afirmação a Raimundo Nina Rodrigues584.

III. Depois de encerrado legalmente e uma vez findo em sua forma clandestina, o
comércio de escravos ainda era tema discutido entre os acadêmicos da medicina que

579
Idem, Ibidem. Ver também CHALHOUB, Cidade febril, op. cit, p. 73 e BENCHIMOL, Jaime. “Febre
amarela e a instituição da Microbiologia no Brasil”. In: HOCHMAN & ARMUS, Cuidar, controlar, curar,
op. cit., pp. 57-97.
580
Sobre o cólera e as discussões médicas em torno de sua difusão, ver BELTRÃO, Jane Felipe. Cólera:
o flagelo da Belém do Grã-Pará. Belém: Ed. da UFPA; Goeldi Editoração, 2004.
581
MAURANO, Flavio. História da lepra em São Paulo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1939, p. 7.
582
GONZALEZ-PRENDES, Miguel Angel. Consideraciones acerca de la lepra. Havana: Min. de Salud
Publica, 1965, p. 9 a 11.
583
“Os historiadores desta doença a descrevem como sendo difundida por toda a África, que é, por esta
razão, considerada como seu berço”. MAGALHÃES, José Lourenço. Étude sur la lèpre du Brésil. Rio de
Janeiro: Tip. de Pereira Braga & Cia., 1900, p. 112.
584
“A lepra no Estado da Bahia”. Gazeta Médica da Bahia, fev.1891, de acordo com MAGALHÃES,
Étude sur la lèpre, op. cit., p. 112.

220
atribuíam à África a origem de muitos dos males que acometiam os brasileiros. Em 1867,
José Francisco da Silva Lima, influente médico que então militava no Hospital de Caridade
de Salvador, acreditava ter descoberto uma nova doença: o ainhum, vocábulo nagô, que
ele soube pela boca de “alguns pretos mais inteligentes” querer dizer serrar.O ainhum
atacava os dedos mínimos dos pés que, com a degeneração provocada pela moléstia,
acabavam sendo “estrangulados” e caíam, como que serrados. Até onde Lima sabia, as
causas eram desconhecidas e provavelmente se deviam “a alguma peculiaridade orgânica
da raça etiópica”, raramente atingindo os mestiços. A conclusãoa que este médico chegara
era que a enfermidade ocorria por deficiência nutricional585. No ano seguinte, o médico-
chefe da marinha britânica Collas desmentia essa versão, depois de ler a tradução do artigo
de Lima nos Archives de médicine navale. De acordo com Collas, o ainhum não era
“peculiar à raça negra”, pois quando estivera a serviço na Índia, ele identificou a doença
entre os tamis (tamoul), “indivíduos da raça ariana cruzada”586.
Do que foi dito até aqui sobre febre amarela, cólera, lepra, ainhum e outras
moléstias, três pontos ganham relevo. Primeiramente, o fato de que algumas doenças
tinham em sua origem uma carência alimentar e, portanto, não eram contagiosas. Em
segundo lugar, que as moléstias que afetavam exclusivamente os africanos e seus
descendentes na América tiveram poucos avanços profiláticos e terapêuticos. Por fim, que
em razão dessas moléstias afetarem um grupo socialmente delimitado e submetido, elas
provocaram pouca discussão intelectual entre os médicos brasileiros dos séculos XIX e
início do XX. Nas poucas vezes em que essas doenças suscitaram debates, se tratava de
discussões muito menos significativas do ponto de vista biológico e muito menos politizadas
no meio médico. Quando se empenharam em afirmar que as doenças mais graves sofridas
pela população do país eram heranças africanas, aí sim praticavam uma assumida
politização da medicina.

585
LIMA, J. F. da Silva. “Estudo sobre o ainhum”. Gazeta Médica da Bahia, 1(13): 146-151, 10 jan.1867.
José Francisco da Silva Lima (Vilarinho, Portugal, 15 jan.1826/Salvador, 1910), um dos fundadores desse
importante periódico médico, era formado na Faculdade de Medicina da Bahia em 1851, conforme
GIFFONI, O. Carneiro. Dicionário bio-bibliográfico brasileiro de escritores médicos (1500-1899). São
Paulo: Nobel, 1972, p. 159 e JACOBINA, Ronaldo Ribeiro; CHAVES, Leandra; BARROS, Rodolfo. “A
‘Escola Tropicalista” e a Faculdade de Medicina da Bahia”. Gazeta Médica da Bahia, 78 (2):86-93, 2008.
586
COLLAS, A. “Nota sobre a moléstia descrita com o nome de ainhum, observada nos índios”. Gazeta
Médica da Bahia, 2(37): 151-155, 15 jan.1868. Ver também SHEPPARD, Dalila de Sousa. “A literatura
médica brasileira sobre a peste branca: 1870-1940” História, Ciências, Saúde: Manguinhos, 8(1): mar./jun.
2001.

221
As décadas finais do século XIX e as primeiras do século XX foram um desses
momentos merecedores de reflexão no interior do campo médico acerca da disseminação
das doenças pelo território brasileiro. Belisário Penna (1868-1939), por exemplo,
procurava motivos de “ordem social e política” para explicar “o incremento ea extensão
das endemias no Brasil” nesse período. A abolição da escravidão, em 1888, entrava no rol
desses motivos. Naquela data, os negros teriam sido “abandonados e relegados a coisa
abaixo dos animais” e, dentre as consequências desse abandono, estavam as doenças que
“espalharam-se por toda parte” na medida em que a população negra também se espalhava
pelo território no pós-abolição. O processo foi assim resumido por Penna:

(...) [os ex-escravos] contraíram doenças de que se não trataram,


constituíram-se em focos delas, poluíram as terras e as águas,
infectaram mosquitos e barbeiros e contaminaram toda a população,
vingando-se assim, inconscientemente dos brancos, que os
escravizaram por quase três séculos (...). Foi sobretudo a partirda
data em que demos ao negro a liberdade de adoecer sem se tratar; de
se alcoolizar, sem corretivo; de conviver com o barbeiro e os
mosquitos, sem sombra de assistência; de levar vida de judeu errante,
a poluir por toda parte a terra e as águas, à vontade, que as doenças se
intensificaram, se alastraram e se tornaram endêmicas . 587

Ainda que reconhecesse que a liberdade se fizera sem qualquer assistência ou


acesso dos ex-escravos aos serviços públicos e à cidadania, as afirmações de Pena ecoavam
a culpa atribuída aos negros por outros doutores brancos que estudaram as doenças trazidas
da África por meio do tráfico transatlântico. Se não tratavam de definir a origem das
moléstias, as palavras desse destacado médico sanitarista continuavam a identificar o
suposto mal social causado pelos negros, mesmo que provocado de forma inconsciente por
eles. “Nem a raça nem o clima” influíam na disseminação das endemias pelo território,
mas fatores sociais e econômicos nos quais a presença da população negra era reforçada
de forma negativa, como uma vingança pela longaescravização sofrida no Brasil. Mantinha-
se em pauta, portanto, o elo entre a existência de negros entre a população e as doenças
(em forma endêmica ou epidêmica). Ainda que determinantes naturais como raça e clima

587
PENNA, Belisário Augusto de Oliveira. “Campanha sanitária contra a ancylostomose”, ArquivoCentral
da Faculdade de Saúde Pública/USP, Pasta CCEx 1921/0001 (I Curso de Higiene Rural para Médicos),
pp. 6-7, texto datilografado. O destaque é meu. A citação, conforme o texto menciona, foi retirada de um
artigo publicado por Penna na Revista do Brasil de agosto de 1818 (sic, devendo tratar-se de 1918). O texto
foi escrito em meio à atividade de seu autor na direção do Serviço de Profilaxia Rural (assumida em 1918)
e como do diretor de saneamento rural do Departamento Nacional de Saúde (cargo que
ocupou em 1920 e 1922), cf.
<http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_belisariopena.htm>.

222
fossem negados, sua análise emprestava argumentos de uma discussão impregnada de
racismo.

IV. Abordar o tema da doença por meio das falas eruditas produzidas sobre ela, como
fizemos até aqui, não abrange um leque amplo de possibilidades. De fato, deixade lado
a percepção do doente – neste caso, o africano – sobre seu próprio estado. Este aspecto –
que evidentemente não é um mero detalhe – é sugerido pela diferenciação do termo
“doença” em outros idiomas. Enquanto o francês dispõe de apenas um vocábulo –maladie
– para designar doença, a língua inglesa conta com três palavras que remetem asignificados
diversos. Primeiramente, disease – ou a doença como o conhecimento biomédico
objetivamente a define, fundamentado nos sintomas físicos do doente e que relega a um
plano secundário aspectos subjetivos, existenciais e sociais da doença. Depois, illness – ou
a doença a partir da subjetividade do doente, incluindo tradições médicas populares e
abordagens eruditas tais como a homeopatia e a psicanálise. Finalmente, sickness – uma
condição menos grave e mais incerta que illness, “tal comoo enjôo em viagens marítimas,
a opressão no coração e, de maneira mais geral, o mal- estar”588.
O antropólogo francês François Laplantine, após notar essa distinção linguística do
vocábulo em inglês, procurou demonstrar sua insuficiência como modelo de análise, em
função do dualismo primário de oposições tais como sujeito/sociedade, doença-
objeto/doença-sujeito, popular/erudito, empírico/simbólico, objetividade/subjetividade.
Insuficiente ou não, essa distinção tríplice recorrente na bibliografia médico- antropológica
sobre as doenças nos países de língua inglesa ainda se ressente de uma presença mais
incisiva nos estudos historiográficos brasileiros. Nos estudos sobre medicina e
epidemiologia no Brasil, a experiência do doente acerca de seu próprio estado e as
manifestações de sua subjetividade são presenças menos comuns. Essa percepção ganha
força quando comparada à abordagem das doenças como parte do campo do
conhecimento médico, das instituições de assistência e isolamento, dos grandes vultos da
medicina, das práticas terapêuticas eruditas, das políticas públicas eda legislação. Nas
palavras de Silveira e Nascimento,

Considerar a saúde e a doença como realidades orgânicas


independentes tanto doespaço e do tempo, quanto das características
dos indivíduos e dos grupos atingidos por uma doença, é restringi-las

588
LAPLANTINE, François. Antropologia da doença. São Paulo: Martins Fontes, 1991, pp. 15-16.

223
à leitura exclusiva do saber médico e nãopercebê-las como realidades
que têm dimensões sociais589.

Vimos aqui alguns médicos manifestando suas opiniões – mais do que seu
conhecimento objetivo – sobre as doenças que supostamente teriam vindo junto com os
africanos para o Brasil. O conhecimento que alguns médicos do início do século XX
revelaram sobre a origem de febres ou outras doenças, tais como a lepra ou a varíola, parece
ter sido produto muito mais de uma leitura particular da crônica colonial, da literatura dos
viajantes e da historiografia, do que de uma objetividade de conhecimento empírico tal
como o termo disease denota em língua inglesa. Não poderia ser diferente, se
considerarmos, como Laplantine, que “não há nenhuma razão para se dotar a medicina (e,
por consequência, a noção de disease) de um status de extraterritorialidade social, cultural
e histórica”590.
Os autores sobre os quais nos debruçamos criaram algumas das bases para as
discussões raciais que ganharam corpo no Brasil do século XX. Bom exemplo são os
escritos de Gilberto Freyre que, apesar de paradigmáticos, suscitaram interpretações
discordantes. Em Casa grande e senzala, de 1933, Freyre elaborou uma interpretação da
história do Brasil baseada no paternalismo senhorial e na benignidade da escravidão. De
outro lado, e no que se refere à discussão proposta aqui, seu contemporâneo e conterrâneo
Octávio de Freitas relativizou essa benignidade utilizando-se da culpa que atribuía aos
africanos pela introdução de inúmeras moléstias, em Doenças africanas no Brasil, livro
editado em 1935. A miscigenação, de certa forma, era o alvo que o médico Freitas
pretendia atingir: os males que o tráfico introduziu não deveriam ser espalhados ainda mais
pela mistura que se instituía no “paraíso racial” brasileiro.
Certamente, Freitas não foi o precursor da ideia de que a mistura das raças criava
uma situação de perigo nosológico. Antes dele, intelectuais como Raimundo Nina
Rodrigues apontavam os perigos da miscigenação591. Apenas para citar apenas um caso
ainda anterior às propostas do médico baiano, a Academia Imperial de Medicina lançava,
em 1868, um programa de questões para o ano seguinte. A primeira delas era saber se “o
cruzamento das raças acarreta e produz a degradação intelectual e moral do

589
SILVEIRA, Anny J. T. da & NASCIMENTO, Dilene R. do. “A doença revelando a história: uma
historiografia das doenças”. In: NASCIMENTO & CARVALHO (orgs.), Uma história, op. cit., p. 29.
590
LAPLANTINE, Antropologia , op. cit., p. 16.
591
Cf. SCHWARCZ, Lilia M. “Espetáculo da miscigenação”. Estudos Avançados, 8(20): 137-152, 1994.

224
produto híbrido resultante”. Como prêmio, a Academia se propunha a distribuir medalhas
de ouro para os autores dos melhores trabalhos592.
Porém, o contexto da produção do livro de Freitas exigia outras armas para o
enfrentamento da questão racial. Embora o objetivo não fosse a obtenção da láurea
dourada de alguma academia científica, ele e outros autores menos incisivos lançaram sobre
os africanos o estigma da culpa pela introdução das doenças, mesmo que objetivamente
não pudessem comprovar a responsabilidade valendo-se do instrumental historiográfico
que utilizaram na escrita de seus textos. Como argutamente afirmou Diana de Carvalho,

“Seu preconceito é tão óbvio e sua argumentação tão precária que hoje
ninguém o refere para fundamentar análises da situação de saúde dos
africanos no Brasil. No entanto, sua tese, compartilhada por muitos
autores seus contemporâneos, de que a maioria das doenças
infecciosas que se observam no território brasileiro a partir dos 1500
‘migra’ da África, sendo a tuberculose uma das poucas exceções,
parece resistir ao tempo”593.

Naquele contexto, talvez não fosse necessária a objetividade científica do discurso


biomédico sobre doenças, moléstias ou enfermidades (também o português é pródigo em
sinônimos para o termo). Utilizando-se de argumentos opinativos – portanto, da
subjetividade –, puderam criar um cenário onde o africano tornou-se culpado por aportar
no litoral brasileiro como vítima e objeto de transação do tráfico. Sea proposta era atacar a
miscigenação, não poderia ser diferente e o discurso médico não seria o lugar onde se
expressaria certa dose de compadecimento para com a situação dosescravos.

V. Quero tecer ainda algumas considerações a respeito do desafio que é a recuperação


da doença como experiência dos africanos desembarcados no Brasil. Será este um objetivo
alcançável? Os historiadores da saúde, da medicina e da escravidão no Brasil ainda hoje
têm dificuldade em enfrentar o tema, o que se pode atribuir, em parte,à aridez das fontes.
Mas penso que ainda é preciso proceder a uma busca mais intensiva para saber se se trata
de um obstáculo instransponível594.

592
Gazeta Médica da Bahia, 3(49): 10, 15 ago.1868.
593
CARVALHO, Diana Maul de. “Doenças dos escravizados, doenças africanas?”. In: Usos do passado:
Anais do XII Encontro Regional de História/ANPUH-RJ, 2006. Disponível em
http://www.rj.anpuh.org/resources/rj/Anais/2006/conferencias/Diana%20Maul%20de%20Carvalho.pdf.
594
Para um balanço da historiografia acerca do tema da saúde dos escravos no século XIX, cf. os estudos
de PORTO, Ângela. “O sistema de saúde do escravo no Brasil do século XIX: doenças, instituições e

225
Penso existir um amplo campo de análise a respeito das percepções de doença/cura
entre as diferentes culturas africanas importadas pelo tráfico de escravos e sobre suas
repercussões nos saberes/fazeres curativos/religiosos no Brasil e na África.
Desde meados do século XX, quando foi criada a Organização Mundial da Saúde
(OMS), a definição de saúde como objeto da intervenção dos poderes públicos não é
apenas a ausência de doenças, mas o bem-estar do corpo, mental e social595. Se atentarmos
para o conceito de saúde compartilhado por muitas culturas africanas, veremos que o
Ocidente precisou evoluir muito até alcançá-lo: nas culturas da África Ocidental e Centro-
Ocidental, saúde envolve a fertilidade das mulheres, a caça produtiva, as boas colheitas, as
chuvas regulares, o bom entendimento na comunidade onde se vive, a força contra os
feiticeiros e a boa relação com os antepassados. Ou seja, um conceito muito mais permeado
pela vida social do que pela doença nos limites do corpo. A saúde é entendida como
equilíbrio e a doença como condição social transitóriade desequilíbrio, para o que cabe a
ação dos sacerdotes – já que religião e cura não são saberes distintos na quase totalidade
dessas culturas.
Religião, magia e cura confundem-se nos saberes/fazeres curativos e é legítimo usar
as forças naturais e sobrenaturais para intervir – evidentemente, sem desrespeitar as
divindades.
A saúde como bem-estar corporal, social e mental, na concepção de milhões de
africanos, inclui, também, uma prática que o Ocidente vem incorporando apenas
recentemente: o conforto familiar. Em muitas partes da África, o indivíduo não vive seu
mal sozinho, mas sim com sua família. Os profissionais de instituições hospitalares
ocidentais apenas recentemente vêm se dando conta da importância da presença de um
familiar no acompanhamento e na evolução para a cura de internados por longos períodos,
sobretudo crianças.
Exemplos de epidemias de varíola (no Brasil e no mundo) poderiam ser utilizados
para tratar dos conhecimentos profiláticos e terapêuticos de povos de diferentes culturas
africanas. As reflexões de Mary Karash e Sidney Chalhoub acerca da estrutura demográfica

práticas terapêuticas”. História, Ciências, Saúde: Manguinhos, 13(4): dez.2006, disponível em


http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702006000400013&lng=pt&nrm=iso, e
“Fontes e debates em torno da saúde do escravo no Brasil do século XIX”. Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, 11(4), dez.2008, disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-47142008000500002&lng=pt&nrm=iso.
595
Para a definição de saúde pela OMS como "situação de perfeito bem-estar físico, mental e social" do
indivíduo e uma crítica ao conceito, ver, entre outros, SEGRE, Marco e FERRAZ, Flávio Carvalho. “O
conceito de saúde”. Revista de Saúde Pública, 31(5): out.1997, disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89101997000600016&lng=en&nrm=iso.

226
e das epidemias de varíola no Rio de Janeiro dos séculos XIX e XX poderiam ser
retomadas aqui no sentido de ajudar a compreender como as resistências populares
(especialmente entre a população afrodescendente) à medicina branca e acadêmica tinham
fortes razões de ser. No início do século XX, além de ser historicamente pouco eficiente,
essa medicina era invasiva e pouco respeitosa. Erainvasiva e pouco respeitosa não apenas
com relação aos indivíduos, mas também em uma dimensão social, pois muitas culturas
africanas entendiam doença e cura como um binômio que se realizava em função da
vontade suas divindades, a partir da ruptura de certas normas ou interdições rituais por
parte da comunidade ou de algum de seus membros.
Por isso, quando a vacina contra a varíola tornou-se obrigatória em 1904, apenaso
poder público e a elite branca que publicava trabalhos escritos na imprensa e nas academias
médicas não se deram conta de que a resistência, que chamamos de Revolta da Vacina, era
algo mais do que simples ignorância. Era, talvez, a expressão de uma concepção africana
de doença/cura.
Mais recentemente, nas últimas campanhas de vacinação antivariólica ocorridas na
África, ocorreram episódios semelhantes de recusa às práticas médicas acadêmicas
ocidentais. Na década de 1950, equipes de vacinadores da OMS foram enviadas à Nigéria
(terra dos iorubá) para debelar a varíola que persistia em certas regiões do país. Muitas
dessas equipes foram atacadas ou então ocorreram fugas em massa da população para
escapar delas. Um dos erros básicos talvez tenha sido fazer a polícia acompanhar essas
equipes. Depois de constatar os primeiros resultados desastrosos da campanha de
erradicação da varíola pela imunização obrigatória feita com equipes estranhas às
comunidades, a OMS suspendeu os trabalhos e resolveu entender o que estava
acontecendo.
Ao conhecer melhor as concepções de doença e cura entre os iorubá e ibos, os
dirigentes da entidade compreenderam que não se podia quebrar o fluxo da doença, tido
como de origem sobrenatural e punitivo, dom de Sapata/Xaponã596 – mais conhecido como
Obaluaiê ou Omulu nas religiões afro-brasileiras. Os técnicos da OMS entenderam que o
melhor caminho era a negociação. Trouxeram, então, para o diálogo, os chamados
“curandeiros” e os convenceram da importância da vacinação. Reconheceram, portanto, a
figura e o saber tradicional dos tradicionais praticantes

596
Cf. LÉPINE, Claude. Os dois reis do Danxome: varíola e monarquia na África Ocidental (1650-
1800). Marília: UNESP; São Paulo: FAPESP, 2000.

227
nigerianos da cura e passou também a usar o termo tradipraticante para definir os
responsáveis pela recuperação da saúde em uma comunidade597.
A varíola foi erradicada no mundo na década de 1960, sendo os últimos casos
registrados na Somália em 1968. Desde então, a África vem sendo assolada por outras
epidemias, sendo a de Aids a mais preocupante em função do número de contaminados
pelo HIV em países como Angola, Moçambique, Botsuana e África do Sul, entre muitos
outros. É africana a maioria das presumíveis 70 milhões de vítimas mortais da doença até
2022, nos termos de um relatório do programa das ONU para a luta contra a AIDS,
continente onde, mantidas as condições atuais de prevenção, haverá 43 milhões de novos
casos até 2025598. As lições retiradas das campanhas de vacinação contra a varíola podem
ser levadas em conta na definição de estratégias de negociação entre tradipraticantes e
poderes locais para a aceitação de métodos de prevenção contra a doença. Caso contrário,
o que se pode prever é a dizimação de populações inteiras naquele continente, antes
mesmo que alguns de seus hábitos possam se transformar para preservar o conjunto da
população599.

597
Cf. APPELBOOM, Thierry et al., A arte de curar em África: entre a tradição e a modernidade. Bruxelas,
Museé de la Medicine; Budapeste, Semmelwis Orvostörténete Muzeum; Lisboa, Sociedade de Geografia
de Lisboa; Maputo, Associação para o Desenvolvimento de Nampula, 2005.
598
UNAIDS. AIDS in Africa: Three scenarios to 2025. Genebra: UNAIDS, 2005, p. 22. Disponível em
http://data.unaids.org/Publications/IRC-pub07/jc1058-aidsinafrica_en.pdf, acesso em 12 dez.2010. Ver
também OLUTAYO, Akinpelu Olanrewaju; OLUTAYO, Molatokunbo Abiola Oluwaseun e
OMOBOWALE, Ayokunle Olumuyiwa. “TINA', Aids, and the underdevelopment problem in Africa.
Revista de Economia Política, 28(2): jun.2008, disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31572008000200004&lng=pt&nrm=iso.
599
Um exemplo pode ser visto na situação das mulheres de certas regiões moçambicanas nas quais o
papel das mulheres na geração de filhos do sexo masculino e feminino ou na promoção de doenças as coloca
em vulnerabilidade social, sobretudo no contexto da epidemia de Aids. Ver PASSADOR, Luiz Henrique.
“Tradition’, person, gender, and STD/HIV/AIDS in southern Mozambique”. Cadernos de Saúde Pública,
25(3): mar.2009.

228
FONTES

FONTES MANUSCRITAS
Arquivo Central da Faculdade de Saúde Pública/USP, São Paulo:
• PENNA, Belisário Augusto de Oliveira. “Campanha sanitária contra a
ancylostomose”. Pasta CCEx 1921/0001 (I Curso de Higiene Rural para
Médicos).

Arquivo Histórico do Itamaraty (AHI), Processos da Comissão Mista Anglo Brasileira,


Rio de Janeiro:
• Lata 4, Maço 3, Pasta 1.
• Lata13, Maços 1, 1A e 1B .
• Lata 15, Maço 4, Pasta 1.
• Lata 20, Maço 3.

Arquivo Histórico da Marinha (AHM), Lisboa:


• Caixa 110, Pasta 6 - Comedorias, gêneros e rações (s/d e 1759-1811).
• Caixa 311, Pasta 1 - Escravatura (s/d e 1794-1847).
• Caixa 329, Pasta 7 - Esquadras do Brasil (1776-1825).

Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Lisboa:


• Angola, Caixa 61 (1776-1778).
• Angola, Caixa 62 (1779).
• Angola, Caixa 88 (1798).
• Angola, Caixa 93A (1799).
• Angola, Caixa 100 (1801).
• Angola, Caixa 125 (1812).
• Angola, Códice 1630 (1794).
• Avulsos do Rio de Janeiro, Caixa 120.

Arquivo Nacional (AN), Rio de Janeiro:


• Códice 323 - Correspondência da Polícia da Corte com várias autoridades, v. 2
(1810).
• Códice 789 - Inventário dos bens da casa do finado Conselheiro Elias Antônio
Lopes.

229
• Maço IS 4 1 - Ministério do Reino e Império. Provedoria de Saúde. Ofícios e
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• JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço 1, Caixa 7 (1776).
• JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço 1, Caixa 8 (1775-
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• JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço 2, Caixa 7 .
• JC, Relações de equipagens de navios e passageiros, Maço 2, Caixa 8.

Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP), São Paulo:


• Latas 5214,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1835-1839).
• Lata 5215,3 - Fábrica de Ferro do Ipanema (1840-1848).
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