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R E V I S T A

TABULEIRO DE V. 16
N. 01
LETRAS PPGEL

ISSN 2176-5782

jan.
jun.
2022
Revista Tabuleiro de Letras, Salvador, v. 16, n. 01, p. 1-209, jan./jun. 2022
ISSN 2176-5782

Universidade do Estado da Bahia – UNEB


Rua Silveira Martins, 2555- Cabula – 41150-000 – Salvador – Bahia – Brasil
Fone: +55 71 3117- 2200
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens – PPGEL

ReitorA: Adriana Marmori Lima


Vice-ReitorA: Dayse Lago de Miranda
Cilza Carla Bignotto – UFOP
PRÓ-REITORA DE PESQUISA Denise Zoghbi – UFBA
Tânia Hetkowski Diógenes Cândido de Lima – UESB
Elmo Santos – UFBA
COORDENAÇÃO DO PROGRAMA
Nerivaldo Alves Araújo Enivalda Nunes Freitas Souza – UFU
Valquíria Claudete Machado Helson Flávio da S. Sobrinho – UFAL
Isabel Lousada (UNL)
EDITORES
Janaína Weissheimer – UFRN
Aline Silva Gomes
Ricardo Oliveira de Freitas Josane Moreira de Oliveira – UEFS
José Henrique Santos – UNEB
EDITORES CIENTÍFICOS Kênia Maria de Almeida – UFU
Elizabeth Lima
Lígia Negri – UFPR
Thiago Prado
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra – UFMG
COMISSÃO EDITORIAL Maria Jose Bocorny Finatto – UFRGS
Celina Márcia Abbade Mairim Linck Piva – FRUG
Gilberto Sobral
Nancy Rita Ferreira Vieira – UFBA
Márcia Rios
Nelly Medeiros de Carvalho – UFPE
Sayonara Amaral de Oliveira
Regina Kohlrausch – PUCRS
PARECERISTAS Ad Hoc Rejane Vecchia – USP
Adeítalo Manoel Pinho – UEFS Renata Maria de Souza Nascimento – UNEB
Rodrigo Oliveira Fonseca – UFSB Ricardo Postal – UFPE
Rita de Cássia R. de Queiroz – UEFS
Tanya Saunders – University of Florida – UF, EUA

CONSELHO CONSULTIVO Diagramação: Lino Greenhalgh


Alana de Oliveira F. El Fahl – UEFS
Foto da Capa: Título: Frente de Contato com os índios
Alba Valéria Silva – UFBA isolados Korubo. Vale do Javari, 1996.
Célia Regina da Silva – UFSB Autor: Ricardo Beliel.

Homepage: https://www.revistas.uneb.br/index.php/tabuleirodeletras/index
E-mail: tabuleirodeletras@gmail.com

Catalogação na fonte – Biblioteca Prof. Edivaldo Machado Boaventura / UNEB

Revista Tabuleiro de Letras / Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens


– PPGEL-UNEB. v. 16 n. 1 (jun. 2022) – Salvador: UNEB; 2022.
Semestral
ISSN 2176-5782
1. Letras; Literatura; Linguística – Periódicos I. Universidade do Estado da Bahia. –
Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens.
CDD-800
CDU-821.134.3

Os textos publicados na Revista Tabuleiro de Letras são de exclusiva responsabilidade de seus


autores e não refletem necessariamente a opinião da Comissão Editorial e do Conselho Científico.
Sumário
6 Editorial
7 Apresentação

DOSSIÊ TEMÁTICO
9 Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak
gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!
Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu
23 A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no
mundo
Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima
34 Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá
Bárbara Soeiro
45 A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação
Francisco Bezerra dos Santos
59 O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre
narrativas e as interações entre humanos e mais-que-humanos nas
redes sociais
Michelly Silva Machado

artigos
73 Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência
didática na perspectiva da pedagogia culturalmente sensível
Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade
Souza
94 Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das
pessoas negras no Brasil contemporâneo
Jaqueline dos Santos Cunha
105 Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o
imperfeito” de Carla Luma
Isabelle Maria Soares
116 Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral
Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa
127 Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a
retomada anafórica de terceira pessoa
Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira
146 Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua
Inglesa
Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

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167 Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda
Hilst e Guimarães Rosa
Vitor Hugo Luís Geraldo
181 O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian
Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina Colasanti
Cinthia Freitas de Souza

resenhas
198 La enfermedad como heterotopía. Un lugar de aceptación de la culpa y
el fracaso en la novela Sistema nervioso (2018) de la escritora chilena
Lina Meruane
Mireya Alejandra Ramos Jiménez
203 Desexplicações e lampejos de Francisco Bento da Silva sobre o Acre
Tayson Ribeiro Teles

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Editorial
Em linhas gerais, o número promove um
encontro de ideias elaboradas por discen-
tes, professores/as e pesquisadores/as com
Prezados/as Leitores/as. o propósito de contribuir para o avanço no
campo das Letras.
Chega à vossas mãos mais um número da Re- Agradecemos, mais uma vez, à Pró-Rei-
vista Tabuleiro de Letras. O primeiro do ano toria de Pós-Graduação – PPG, da Universi-
de 2022. Momento em que se anuncia o “fim dade do Estado da Bahia – UNEB, e à Coor-
do estado de emergência sanitária no Brasil” denação do Programa de Pós-Graduação em
por causa da Covid-19, implementado em fe- Estudo de Linguagens – PPGEL, pelos esfor-
vereiro de 2020. Apesar de a decisão marcar ços que vem dedicando à Revista, no sentido
o término das medidas impostas no início do de preservar a continuidade da publicação.
surto da doença, a disseminação mundial do Aproveitamos para saudar a nova edi-
coronavírus ainda não cessou. Hoje vivemos tora da Revista, Profa. Dra. Aline Silva Go-
um cenário epidemiológico favorável, com mes, e agradecemos, imensamente, ao Prof.
quedas nos casos de óbitos e com um núme- Dr. Ricardo de Oliveira Freitas, que durante
ro significativo de pessoas vacinadas. Mesmo anos conduziu a editoria de forma brilhante
diante desse novo panorama, acreditamos e de maneira incansável, e que, hoje, ocupa o
que é fundamental que cada um de nós siga importante papel de compartilhar a editoria
mantendo as medidas de prevenção. e seus afazeres com a referida professora, a
Este número da Revista reúne textos fim de assegurar que, no próximo número, a
produzidos em diversas partes do Brasil professora possa assumir sozinha essa fun-
e também no exterior. Para sua produção, ção. Nesse sentido, importante é ressaltar a
contamos principalmente com a colabora- excelência do desempenho da nova editora,
ção de mestrandos/as, mestres/as, douto- professora Aline, para a materialização des-
randos/as e doutores/as pesquisadores/as se número.
vinculados/as a diferentes instituições de Como de praxe, agradecemos, também,
ensino e pesquisa do nosso país e no exte- a todos/as avaliadores/as pareceristas pelo
rior. É importante ressaltar que esta publi- acolhimento às nossas solicitações, pela dis-
cação científica vem atraindo cada vez mais ponibilidade de tempo e pelo inestimável la-
a atenção de autores e leitores estrangeiros. bor. Vossa participação é indispensável para
Tal fato nos regozija, pois comprova o alcan- a construção de uma publicação científica
ce de impacto da Revista. de qualidade. Sem vocês, essa empreitada
O número é composto por oito artigos e não seria possível.
duas resenhas que versam sobre diversos Para finalizar, esperamos que vocês, lei-
temas de interesse da área de linguagens, tores/as, se permitam ser conduzidos e en-
como crenças e atitudes linguísticas de pro- riquecidos com as reflexões compartilhadas
fessores de português e emoções e tecnolo- em cada texto.
gias digitais no processo de ensino e apren- Boa leitura!
dizagem de inglês. A Revista traz, ainda, es-
tudos literários de diferentes matizes e uma Aline Silva Gomes
proposta de sequencia didática na perspec- Ricardo Oliveira de Freitas
tiva da pedagogia culturalmente sensível. Editores

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Elizabeth Gonzaga de Lima; Randra Kevelyn Barbosa Barros

Apresentação
Vozes da Floresta: literaturas e cultu-
ras indígenas
Os povos indígenas ainda sofrem com uma dos pela cultura branca ocidental em dire-
visão colonial e estereotipada construída ção às essas múltiplas culturas, para que se
historicamente acerca de suas culturas e possa entender o pleno direito à escrita, à
cristalizada no imaginário brasileiro. Da- mídia e às artes. Assim, esses grupos pode-
niel Munduruku, em Banquete dos deuses, rão estabelecer uma estratégia decolonial,
afirma que “aprendemos nos livros que o ao construírem literaturas, mídias e artes
índio vive em função do colonizador e é tra- indígenas marcadas pela autonomia e pro-
tado sempre no passado, não lhe restando tagonismo, indicando que não se mantêm
nenhum papel relevante na sociedade con- estáticos no tempo e podem desempenhar
temporânea” (MUNDURUKU, 1999, p.24). o papel fundamental de diversificar as po-
Esse olhar ocidentalizado de parte da so- tencialidades desses campos na contempo-
ciedade, fruto do pensamento colonial, ex- raneidade. Em vista dessas perspectivas, a
pressa uma compreensão objetificada so- Revista Tabuleiro de Letras, consideran-
bre os povos indígenas, não os enxergando do a importância da visibilização dos estu-
em sua subjetividade, cultura e capacidade dos e das pesquisas sobre as culturas dos
de transformação. Nas comunidades, a re- povos originários e, de os indígenas promo-
construção e a renovação das culturas e verem sua autoexpressão, disponibiliza aos
das identidades indígenas ocorrem a partir leitores e às leitoras, neste número, o dos-
de estratégias utilizadas para potencializar siê  Vozes da Floresta: literaturas e culturas
suas falas, fazendo-as adquirir um alcance indígenas trazendo investigações acerca de
mais amplo entre os não indígenas. Deve-se produções literárias, artísticas e de conteú-
levar em consideração que a comunicação dos nas plataformas digitais. No artigo “Os
tem sido um ato vital para os povos originá- Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ,
rios, ao perpassar diversas de suas práticas Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado,
cotidianas, desde o contato com os encan- o Curupira vai te pegar!”, Antônio Rogério
tados, passando pela criação de grafismos dos Santos, Ananda Machado e Valtenir Soa-
em cestarias, em pinturas corporais, o uso res de Abreu analisam, inventariam denomi-
de plumagens, dentre outras manifestações. nações, capacidades de ação, de interpreta-
Nesse sentido, as mutações comunicacio- ção e de comparação entre obras de autoria
nais contemporâneas impactam a autoex- indígena Apurinã, Tenentehara, Kambeba,
pressão e autorrepresentação indígena, que Huni Kuĩ, Maraguá e Ticuna, acerca de seres
busca na tecnologia da escrita, nas mídias e encantados indígenas, ressaltando o poder
nas diferentes linguagens novos circuitos de regulador do Curupira como ser protetor da
disseminação de suas vozes. É necessário, floresta e da vida, buscando assim decoloni-
pois, elaborar outras imagens sobre esses zar os estudos de literatura e desconstruir
povos, questionando a visão etnocêntrica, estereótipos construídos; em “A poética de
os estereótipos e os apagamentos perpetra- Auritha Tabajara: autoficção em Coração

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Apresentação

na aldeia, pés no mundo”, Paulo Marcelino por um locutor Kayapó, Okreãjti Metukti-
dos Santos e Elizabeth Gonzaga de Lima re. O propósito de compartilhar um dossiê
examinam os processos autoficcionais ela- crítico, diverso, reunindo múltiplos olhares
borados por Auritha Tabajara, cordelista, acerca de diferentes etnias indígenas é pos-
mulher Tabajara, nordestina, LGBTQIA+, em sibilitar que cada leitor escute as vozes da
Coração na Aldeia, pés no Mundo, buscando floresta e compreenda o diálogo que os in-
demonstrar de que maneira a escritora se dígenas por meio da escrita, da mídia e da
transforma em personagem e em objeto de arte estabelece com a contemporaneidade,
um discurso construído por um eu textual, a fim de sobreviver à necropolítica que vem
biográfico e ficcional a partir do cordel; no sendo perpetrada no Brasil. Alguns fatos re-
texto “Cordilheira de amora II: Detritos de centes têm evidenciado a violência sofrida
infância Guarani-Kaiowá”, Bárbara Soeiro por essas comunidades e por ativistas que
discute “Cordilheira de amora II”, curta-me- defendem a vida indígena e a preservação
tragem documental produzido pela cineasta das florestas. Entre abril e maio de 2022, a
Jamille Fortunato (2015), gravado na aldeia situação do garimpo ilegal nas terras Yano-
Amambai, no Mato Grosso do Sul, que acom- mami se agravou. Algumas pessoas desapa-
panha a garotinha Guarani Kaiowá Cariane receram – o que provocou a criação da cam-
Martins, se debruçando sobre o saber in- panha virtual “#OndeEstãoOsYanomami” –,
fantil simultaneamente associado ao saber lideranças foram ameaçadas e o processo de
indígena, ambos saberes tidos como “meno- genocídio desse povo foi intensificado. E o
res” frente a um sistema-mundo moderno mês de junho de 2022 atesta a barbárie, a
que privilegia o conhecimento europeu; no opressão a que as populações indígenas de
artigo, “A literatura indígena dos Maraguá: norte a sul do país vêm sendo submetidas,
da produção à publicação”, Francisco Bezer- em especial, os povos isolados do Vale do
ra dos Santos apresenta considerações que Javari, na Amazônia, quando no último dia
abrangem o processo de produção de nar- 05, dois defensores da garantia dos direitos
rativas oriundas da oralidade e dos saberes dessas etnias foram cruelmente assassina-
ancestrais, a publicação e o mapeamento da dos, o indigenista Bruno Pereira e o jornalis-
produção literária dos Maraguá, etnia que se ta Dom Philips. Diante desse contexto, mais
configura na atualidade como a maior pro- do que nunca, as vozes da floresta precisam
dutora de literatura indígena no Estado do ser alçadas e ouvidas, pois resistir continua
Amazonas, com cinco escritores em atuação; sendo o modo de vida nestes cinco séculos!
em “O pensamento das moscas e o Júpiter
para os kayapó: refletindo sobre narrativas
e as interações entre humanos e mais-que Elizabeth Gonzaga de Lima
-humanos nas redes sociais”, Michelly Silva Randra Kevelyn Barbosa Barros
Machado analisa, por meio da etnografia Organizadoras
digital, duas narrativas pertencentes ao uni-
verso textual dos Kayapó, que versam sobre
as interações entre humanos e mais-que-hu-
manos, publicadas na plataforma Facebook

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Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni


Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam:
cuidado, o Curupira vai te pegar!
Antônio Rogério dos Santos (UFAC)*
https://orcid.org/0000-0002-5225-4948

Ananda Machado (UFRR)**


https://orcid.org/0000-0002-3363-2587

Valtenir Soares de Abreu (UFRR)***


https://orcid.org/0000-0003-0670-0932

Resumo:
Os/as Curupiras vão te pegar neste texto busca divulgar as múltiplas possi-
bilidades de narrar e de existir. A análise pretende contribuir para decoloni-
zar os estudos de literatura e desconstruir estereótipos atribuídos aos seres
encantados indígenas. Há enfoque ecológico, a partir das ideias de Krenak
(2019), na direção de ressaltar o poder regulador do Curupira como ser pro-
tetor da floresta e da vida. O estudo faz um inventário das denominações,
capacidades de ação, de interpretação e de comparação entre obras de au-
toria indígena Apurinã, Tenentehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá e Ticuna.
Essas versões foram ouvidas pelos autores, por companheiros de pesquisa,
conhecidas através de entrevistas ou de livros publicados por autores in-
dígenas. Os textos de autoria não indígena mencionados aparecem apenas
como contraponto, na direção de evidenciar algumas das diferentes formas
de apropriação e transformação dessas literaturas.
Palavras-chave: Curupira; Literaturas Indígenas; Ecologia.

Abstract:
The Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Kaxinawá, Maraguá,
Tikuna and Krenak shout: watch out, Curupira will get
you!

* Mestrando em Artes Cênicas (PPGA-UFAC). Professor pela Secretaria de Estado de Educação e Qualidade
do Ensino do Amazonas. SEDUC-AM. http://lattes.cnpq.br/5386378923127107. E-mail: antoniorogeriodos-
santos1972@gmail.com
** Doutora em História Social pela UFRJ. Professora do Curso Gestão Territorial Indígena no Instituto Insiki-
ran- UFRR, com ênfase em Patrimônio Indígena. http://lattes.cnpq.br/1012133793187374. E-mail: machado.
ananda@gmail.com
*** Doutor em Linguística Aplicada pelo Programa Interdisciplinar de Linguística Aplicada da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Servidor efetivo da Universidade Federal de Roraima, no cargo de Téc-
nico em Assuntos educacionais. http://lattes.cnpq.br/4380204341268070. E-mail: valtenir.abreu@ufrr.br

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Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!

Curupiras will catch you in this text that seeks to disclose these multiple pos-
sibilities of narrating and existing. It is an analysis that intends to decolonize
literature studies and contribute to the deconstruction of stereotypes at-
tributed to indigenous enchanted beings. There is an ecological focus, based
on the ideas of Krenak (2019), in the direction of highlighting the regulatory
power of the Curupira as a protector of the forest and life. He would invent
denominations, capacities of action, of interpretation and of comparison
between works of indigenous authorship Apurinã, Tenentehara, Kambeba,
Huni Kuĩ, Maraguá and Ticuna. These versions were heard by the authors, by
fellow researchers, known through interviews or books published by indig-
enous authors. The texts by non-indigenous authors mentioned appear only
as a counterpoint, in the direction of highlighting some of the different forms
of appropriation and transformation of these literatures.
Keywords: Curupira; Indigenous Literatures; Ecology.

Introdução
O principal objetivo deste texto é descorti- As façanhas do Curupira em terras brasi-
nar a figura do Curupira, figura encantada leiras estão descritas no Dicionário do folclo-
bastante presente no contexto das narrati- re brasileiro, onde Câmara Cascudo relata o
vas indígenas brasileiras. Para muitos povos aparecimento do Curupira e cita referências
indígenas, o Curupira regula as caças e de- como José de Anchieta, que faz uma descri-
fende as matas, mas em alguns casos é visto ção surpreendente:
de fora das comunidades de forma pejora- É coisa sabida e pela boca de todos corre que
tiva e estereotipada. Buscamos ultrapassar há certos demônios e que os brasis chamam
visões de folclore que reduzam idiossin- Curupira, que acometem aos índios muitas
crasias étnicas e, com os indígenas e com o vezes no mato, dão-lhe de açoites, machu-
Curupira, contribuir na proteção da floresta. cam-nos e matam-nos. São testemunhas dis-
to os nossos irmãos, que viram algumas ve-
Para Julie Dorrico (2020), o território in-
zes os mortos por eles. Por isso, costumam
dígena: os índios deixar em certo caminho, que por
é nossa casa, e os exploradores dos recur- ásperas brenhas vai ter ao interior das ter-
sos da natureza querem destruí-la. A visão ras, no cume da mais alta montanha, quando
moderna pôs os encantados como traiçoei- por cá passam, penas de aves, abanadores,
ros, maldosos, assassinos. As narrativas in- flechas e outras coisas semelhantes, como
dígenas apresentam outra perspectiva, da uma espécie de oblação, rogando fervorosa-
relação orgânica do humano com a nature- mente aos curupiras que não lhes façam mal
za, contrária ao consumismo desenfreado, (ANCHIETA apud CASCUDO, 1954, p.332).
contrária a tudo que destrói sem pensar no A demonização do Curupira é algo que
amanhã (DORRICO, 2020, p. 20).
contrasta com as perspectivas indígenas, à
Essa visão da escritora indígena Macuxi medida que não se estabelece uma ruptura
aponta na direção que desejamos pensar o abrupta com a forma de viver e pensar do
Curupira, mas infelizmente a imposição da modelo eurocentrado. No decorrer dessa
matriz colonizadora que surgiu com a in- pesquisa, ouvimos lideranças indígenas que
vasão portuguesa se estende até os dias de corroboram no sentido de uma formação
hoje. intelectual e sensível. Para quem tem inte-

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Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

resse em encontrar com esse personagem, Curupira, sabendo que era mentira, propôs
vamos apresentá-lo neste artigo. um trato. – Ô Zé, você quer virar um caçador
O texto inicia por uma narrativa Apurinã dos bons. Daqueles que pega, anta, veado e
queixada num só dia? Mais que depressa o
de Boca do Acre – Amazonas, seguindo para
Zé falou: - quero sim, já pensando nas mal-
um diálogo entre um Curupira Tenentehara dades que podia fazer, e melhor ainda com
das aldeias Areal e Jeju, no Pará, com o boi permissão, do zelador da mata. O Curupira
Garantido de Parintins – Amazonas. Depois, disse, então: – tá arranjado, só que tem um
visitamos uma versão da comunidade Nova porém, você tem que me dar a sua filha mais
Olinda, Terra indígena do povo Huni Kuĩ nova em casamento. Aí o Zé das Chagas fi-
(Kaxinawá), no Acre. Na sequência, o tex- cou intrigado, mas sabia que não podia dizer
não pro bicho. Quando chegou em casa, fa-
to surpreende com uma Curupira feminina
lou para filha mais velha que tinha arranja-
Kambeba e é concluído com um Curupiri-
do um casamento pra ela. E pensou com ele:
nha Maraguá. vou enganar o Curupira, a mais nova eu não
entrego. No dia seguinte, o Curupira foi lá
Um Apurinã e o Curupira/ na casa do Zé e, antes de entrar, se transfor-
Caboclinho Da Mata mou num homem bem bonito, num desses
homens de pele preta que dá gosto de ver,
Lá pelas bandas do rio Purus, numa região alto, forte, cabelo bem aprumado, e braço
chamada Terra Firme, em Boca do Acre, um de remador, um espetáculo de homem. Diz o
Apurinã disse: “cuidado ao pisar na mata, Zé que ficou encantado com a formosura do
pois o Curupira, também conhecido como moço, que não se parecia nada com aquele
Caboclinho da Mata, anda muito bravo com bicho cabeludo, que mais parecia um maca-
co anão, que ele viu na floresta. O Curupira,
o homem branco”. Como mal nenhum fazía-
chegando foi logo dizendo: – Ô de casa, e a
mos, por que temer Curupira? Continuamos moça quando viu aquele homem, também
a ouvir1: não pensou duas vezes em se entregar a ele.
[...] o Zé das Chagas, que morava sozinho Encurtando a conversa, o Curupira levou a
com as três filhas, lá pras bandas das terras moça para casa, sabendo que tinha levado a
firmes (planalto), tinha fama de valente, en- mais velha. Lá chegando, pediu para ela ar-
trava na mata, e atirava nas caça, só pra vê os mar o fogo que ele ia caçar, então ela fez tudo
bicho caí. Um dia o Curupira farejou o rastro direitinho para impressionar o marido, ficou
dele, e decidiu se vingar, chegou bem perto cheirosa e pôs a panela pra ferver. Depois de
do Zé e falou: -Cê me conhece, Zé das Cha- um tempo, volta o Curupira só com a faca na
gas? O Zé vendo aquela coisa lhe chamando mão, olha para moça e diz: – o cheiro tá bom!
pelo nome, ficou da cor do leite da casta- E num só golpe, pôs a dama na panela. Passa-
nha, igualzinho o leite da seringa. Pensando do um tempo, o Curupira voltou à casa do Zé,
que era uma assombração, foi logo dizendo e se queixou que a mulher fugiu ou se per-
que não. – Não precisa ter medo, Zé, eu sou deu na mata, e exigiu a filha do meio. E lá se
o Curupira, protetor dessa mata. Você caça foi a filha do meio no mesmo ritual. Passado
muito? E o Zé disse que não. – Só pra co- mais um tempo, o Curupira insatisfeito, vol-
mer mesmo, quando a macaxeira tá fraca. O tou à casa do Zé das Chagas, exigindo a filha
mais nova, a última que faltava. O Zé relutou,
1 A metodologia da pesquisa que resultou neste mas não tinha o que fazer, antes tivesse ido
artigo mescla entrevistas realizadas presencial-
embora. E lá se foi a filha mais nova do Zé
mente com lideranças indígenas, revisões biblio-
gráficas e colaborações de outros pesquisadores. com aquele que parecia um homem bonito.
Outras entrevistas, como a do diretor de arte do Chegando à casa do Curupira, a moça come-
Boi Garantido, foram realizadas remotamente. çou a fazer um monte de pergunta a respeito

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Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!

do sumiço das irmãs. Como o Curupira não surpreendemos, primeiro pelo conteúdo da
queria levantar desconfiança, disse logo à narrativa, e depois pela interpretação criati-
moça: – tô com muita fome, e você deve estar va, livre e espontânea daquele narrador.
também, vou caçar alguma coisa para gente
A narrativa revela uma consciência eco-
comer e logo volto, enquanto isso você arma
o fogo e põe a panela pra ferver. Deu um bei- lógica do ser, a necessidade da preservação
jo daqueles que a moça nunca tinha recebi- da vida e dos biomas terrestres. Mas como
do, e lá se foi ele. Mas a mais nova era muito falar disso se o Curupira na história con-
desconfiada, arrumou tudo rápido e se pôs a tada acima levou consigo duas vidas? Em
procurar as vestes e vestígios das irmãs pela contraponto perguntamos: mas e as vidas
casa, foi então que um macaco guariba cha- das caças subtraídas pelo Zé das Chagas
mou a atenção da moça e ela se pôs a perse-
não entram nessa conta? Consideramos que
gui-lo, e no meio da perseguição, ela trope-
çou num monte de ossos e junto a eles, os
a natureza e o homem fazem parte desses
pertences das irmãs. Viu que não tinha pega- conflitos. Se essa história houvesse ocorri-
da nenhuma de bicho, então pensou consi- do na cidade, a punição do Zé talvez aconte-
go, não foram devoradas por nenhuma fera, cesse em tribunal, com o Curupira na forma
os ossos tão bem limpinhos, do jeito que só de um belo negro, imbuído do martelo e da
se cozinha uma paca. A moça estremeceu e toga, fazendo uso de suas atribuições, pena-
percebeu que corria perigo, e que o matador
lizando as tantas vidas arrancadas do meio
só podia ser aquele que sabia armar o fogo,
da floresta pelo puro desejo de matar.
no caso, o homem que ela tinha aceito como
marido. Voltou para casa nova, e armou uma E, para partir do Amazonas em direção
tocaia, quando o homem chegou procurando ao Pará, revisitamos Câmara Cascudo quan-
por ela, ela o golpeou na cabeça e o jogou na do este compendiou mo­dificações somáti-
panela. Mas Curupira não morre, fica desa- cas do Curupira paraense:
parecido por sete anos e depois volta. Foi o
Tem quatro palmos de altura em Santarém;
tempo pro Zé e a filha dele sumirem dali. Um
é calvo, com o corpo cabeludo, no rio Negro;
compadre disse que de passagem o Zé pro-
sem orifícios para as secreções, no Pará;
meteu nunca mais fazer mal algum à floresta
com dentes azuis ou verdes e orelhudo, no
ou a qualquer coisa que viva na mata, e que
rio Solimões, sempre com os pés voltados
todo dia reza pro Curupira não mais encon-
para trás e de prodigiosa força física, engana
trar ele e a filha.
caçadores e via­jantes, fazendo-os perder o
Essa narrativa foi contada após Waykury rumo cer­to, transviando-os dentro da flores-
Apurinã empunhar um pedaço de madeira ta, com assobios e sinais falsos (CASCUDO,
– na verdade, um galho que lhe serviu de 1954, p.332).
cajado. Ele nos chamou para uma clareira Assim, após conhecer essa diversidade
na beira da mata e lá, mergulhado em sua de formas e cores do Curupira, menciona-
verdade, contou essa história. Igual a ela, remos, a seguir, o Tembé/Tenetehara, res-
encontramos muitas outras narradas por saltando a potência dos diálogos entre os
povos da floresta e de seus arredores. povos indígenas e as grandes festas popu-
Chamou-nos a atenção a forma como ele lares como a do boi de Parintins. Podemos
se empoderou pelo uso da palavra na cla- dizer, portanto, que tais eventos constituem,
reira que lhe serviu de palco para sua ence- em grande medida, momentos rituais, que
nação. Em momento nenhum pedimos que oportunizam experiências de contato com a
ele representasse a história. Por isso, nos transcendência.

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Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

Uma versão Tembé/Tenetehara No ano de 2019 o Curupira volta para a


arena do Boi Garantido com novos atribu-
do Curupira no Boi de Parintins tos extraídos das culturas indígenas, mais
No ano de 2019, o Curupira ocupou os pal- precisamente do povo Tembé/Tenetehara,
cos do festival do Boi de Parintins, no Ama- onde, segundo pesquisa e toada do Adriano
zonas. Nessa narrativa, o encantado assumiu Aguiar para o Garantido, o Curupira é um
o protagonismo da cena e se dividiu em sete ser que se transforma em um gigante e se
espíritos. De acordo com a história contada, divide em outros sete espíritos para defen-
o Curupira é um ser que vive nas florestas. der a natureza. No artigo Histórias Tembé:
Alan Rodrigues, diretor de Artes, pesquisa- sobre narrativas e autoidentificação, Mônica
dor e editor da revista do Boi Garantido de Vieira (2016) explana:
Parintins falou: Ouvi narrativas sobre o Curupira em minha
A partir do início das competições nos anos ida a campo para as aldeias Areal e Jeju, no
1965 e 1966 é que se começa levar para a are- município de Santa Maria do Pará, o que
na elementos do imaginário que é contado de confirma que de 1996 (ano de publicação do
pai para filho, de avô para neto, aí vem o Bi- diário de Galvão) a 2013 (ano da minha ida
cho Folharal, vem o Curupira, a Iara, o Boto, a campo), o Curupira continua presente nas
que são chamados encantados. O processo histórias dos indígenas Tembé/Teneteha-
inicial do festival, ele é feito muito com base ra, assim como outras narrativas. (VIEIRA,
nesse imaginário, muito, com base na vivên- 2016, p. 101)
cia das pessoas que estavam lá, elas traziam o
Em sua tese, Vieira reafirma a presença
que fazia parte do seu cotidiano, daquilo que
do Curupira no território Tembé/ Teneteha-
elas conheciam (RODRIGUES, 2020).
ra, o que também faz Alan Rodrigues, quan-
Se o festival de Parintins se tornou gran- do defende e reconhece o valor da reinci-
dioso e hoje ocupa lugar de destaque na mí- dência do Curupira aos palcos do Garantido:
dia, não foi sempre assim; ele não começou
Ele volta de novo, com uma outra roupagem,
com o aporte da indústria cultural e nem
ele volta como Sete espíritos, numa toada do
financiado por grandes corporações. Nota- Adriano Aguiar, em que ele continua sendo o
mos na fala do Alan que o processo inicial Curupira, há uma compreensão que esse en-
era feito com base no conhecimento popu- cantado é conhecido por diversas etnias, di-
lar, nas histórias contadas de pai para filho versos povos e em cada povo ele recebe um
e de avó para neto. E em toada do Júnior de nome diferente, e tem uma função diferente,
Souza, o Curupira ganha cara nova na arena. ele é diferente, e aí você vai ter esse dos 7 es-
píritos, onde ele vai ter uma configuração di-
Quando você tem o Curupira nos primeiros
ferente, mas ainda sendo apresentado como
anos do festival, ele não era colocado na are-
o defensor da floresta. (RODRIGUES, 2020)
na como um defensor da floresta, era colo-
cado como um encantado, uma visagem que A existência do Curupira “dos 7 espíri-
você tinha que ter medo, ele sequestrava as tos” amplia ainda mais a visão que até então
pessoas, levava para o meio da floresta né, conhecíamos sobre ele. Assim, é ele um sím-
mantinha elas presas, lá você botava tabaco
bolo de resistência, cabendo ressaltar que o
e cachaça para agradar a ele. Então ele não
tinha essa conotação de defensor, ele vai sair
objetivo de Anchieta era negar, deslegitimar
ressignificado na arena, no garantido, nesse e apagar as crenças indígenas através da ca-
ano, como um defensor da Floresta. (RODRI- tequização. Cada vez mais, artistas, escrito-
GUES, 2020) res, professores indígenas e pesquisadores

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 09-22, jan./jun. 2022 13


Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!

o definem nas perspectivas próprias: espíritos promovem a abertura da primei-


CURUPIRA é o dono da mata e mora nas sa- ra noite de apresentações na arena naquele
popemas da sumaumeira. Ele gosta de silên- ano de 2019, sendo o encantado represen-
cio e está sempre andando para cima e para tado como ícone de resistência para além de
baixo na floresta. Quando cansa, senta-se so- um defensor da natureza. A força e expres-
bre um jabuti, que lhe serve de banco. Dizem sividade dessa figura simbolicamente rele-
os velhos que ele tem os cabelos compridos,
vante para praticamente todas as culturas
corpo peludo, olhos pretos e pés virados.
Existem vários tipos de Curupira: o pai da
indígenas passa a encantar também o bum-
sumaumeira, o dono do jabuti, o dono dos bódromo, conforme podemos constatar na
outros animais, o Curupira macho e o Curu- fala de Alan Rodrigues:
pira fêmea. O Curupira faz medo aos caçado- O Curupira na primeira noite, ele vem no
res batendo nas raízes das árvores. Ele atrai contexto da Resistência, vem dizer, que an-
e encanta as pessoas. Quando o Curupira tes da chegada dos colonizadores, aqui já
ataca, o único jeito de matá-lo é batendo no existe um mundo. O aqui já existia, física e
seu corpo com um pedaço de pau podre. Mas simbolicamente. Já existia um imaginário, já
antes de morrer ele sempre diz: “Se um dia existiam os indígenas com uma cosmogonia
eu me acabar, fica outro no meu lugar guar- uma cosmovisão e o Curupira faz parte dela,
dando tudo o que é meu”. (Professores Ticu- então é um momento onde você traz o Curu-
na, in MONTE; FREIRE, 2007, p.31)
pira como um símbolo, porque ele vem até
De modo poético, os professores/escri- os dias hoje, desde antes da colonização ele
tores indígenas compartilham seus conhe- chega até os dias de hoje, nesse Imaginário
cimentos e especificidades falando de uma onde ele resistiu, né, assim, encantado ele
persiste, ele já existia antes da chegada do
Curupira fêmea. Assim como fazem com
colonizador e ele existiu depois, e se man-
as figuras de Exus e Pombagiras, acontece tém, apresenta resistência simbólica, essa
com essa entidade de defesa da natureza resistência de toda essa cultura indígena.
que vive nas narrativas dos povos indígenas (RODRIGUES, 2020)
e que recebe vários nomes de acordo com
É indubitável que cada pedaço de flores-
sua região: Curupira, Caipora, Caboclinho
ta tem um protetor da mata e, junto dele,
da Mata, mas é sempre o mesmo, como diz o
seus mistérios. E essa cosmovisão, que ins-
povo Tembé Tenetehara: Karuwaras ou sim-
pirou o Garantido, parece seguir na direção
plesmente Curupira.
que aponta Ailton Krenak: “não é uma visão
Portanto, o caçador no espaço do mato lida total, ela é uma visão aberta” (2019, p. 63).
com karuwaras que comandam os animais.
O intelectual indígena defende fortemente a
A relação entre os Tembé e tais seres é pro-
porcionada mediante os necessários para
necessidade de “admitir a existência de inu-
o contato existentes entre não-humanos e meráveis mundos.” (KRENAK, 2019, p. 63).
pajé, ambos similares, porém não idênticos. Em Ideias para adiar o fim do mundo
Segundo Antonio Tembé, “Se uma caça cor- (2019), Ailton Krenak questiona como, ao
rer na tua frente é só imitar o Curupira, ela longo de dois mil ou três mil anos, nós cons-
para na hora. Aí tu vai e atira nela” (COELHO, truímos essa ideia de humanidade e, dentro
2014, p. 118)
dessa, a aceitação de que existe uma raça
Os Tembé Tenetehara também foram branca, evoluída e iluminada, que tem a mis-
fonte de inspiração do Boi Garantido, onde, são de levar a luz e o esclarecimento a uma
para afirmar a existência do Curupira, sete humanidade obscurecida, convocando to-

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Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

dos a seguir o caminho “civilizatório”. Porém Há ainda outros diálogos com o Curupira,
o que não vem esclarecido na oferta desse histórias que envolvem essa figura do mun-
pacote é o porquê do uso da violência e da do dos encantados que vem preenchendo
força como justificativa do que se chama de o imaginário popular e ganhando vida nas
progresso. Nesse sentido, cabe o questiona- histórias em quadrinhos e até mesmo nas
mento de Krenak (2019) no que se refere às séries de TV.
dinâmicas por trás dos discursos da “huma- A seguir, temos um exemplo de como
nização” dos índios pelos brancos. Maurício de Souza retrata um dos encanta-
Como justificar que somos uma humanidade dos que faz parte das cosmogonias indíge-
se mais de 70% estão totalmente alienados nas. Ele chega a respeitar algumas das ca-
do mínimo exercício de ser? A modernização racterísticas do Curupira que os professores
jogou essa gente do campo e da floresta para Ticuna descreveram acima.
viver em favelas e em periferias, para virar
mão de obra em centros urbanos. Essas pes-
soas foram arrancadas de seus coletivos, Figura 1 - História em quadrinhos
de seus lugares de origem, e jogadas nesse
liquidificador chamado humanidade. (KRE-
NAK, 2019, p. 13)
Referindo-se à perspectiva das pessoas
que insistem em manter um pensamento
eurocentrado, Krenak (2019, p. 18) afir-
ma que, “não toleram esse tipo de cosmos”,
esse mundo criativo desenvolvido ao longo
de séculos pelos povos indígenas, e não vis-
lumbram a constelação de seres contidos
nas matas. E nesses ambientes com mais
concreto do que verde, que muitos indíge-
nas são praticamente obrigados a ir, o local
de sobrevivência deles e do Curupira vem
sendo a arte e a literatura.

As pessoas podem viver com o espírito da


floresta, viver com a floresta, estar na flores-
ta. Não estou falando do filme Avatar, mas da
vida de vinte e tantas mil pessoas — e co-
nheço algumas delas — que habitam o terri-
tório Yanomami, na fronteira do Brasil com a Fonte: Disponível em https://arquivosturmadamo-
Venezuela. Esse território está sendo assola- nica.blogspot.com/2019/01/chico-bento-n-53-edi-
do pelo garimpo, ameaçado pela mineração, tora-globo.html acesso em 15/03/2021.
pelas mesmas corporações perversas que já
mencionei e que não toleram esse tipo de
Na sequência dessa história, o Curupi-
cosmos, o tipo de capacidade imaginativa e
de existência que um povo originário como ra joga um encantamento no Papa-Capim,
os Yanomami é capaz de produzir. (KRENAK, personagem que representa os indígenas
2019, p.18). de modo estereotipado, e, de acordo com a

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Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!

situação, o indiozinho vai se transformando de (FIOROTTI, 2022), ideia de acordo com


em um animal diferente, sentindo na pele a qual é possível ser gente, macaco e onça
o mesmo que os animais. Ele vira uma ave concomitantemente. Souza parece ter se
grande que não pode voar. E imediatamente inspirado nessas metamorfoses indígenas
aparecem dois indígenas que se põem a ca- que são estudadas como perspectivismo
çá-lo, quando uma flecha quase acerta Papa- ameríndio e ganham cada vez mais espaço
Capim. Ele encanta-se em um tatu, e por aí nos estudos de literaturas e artes indígenas.
o indígena vai trocando de corpos, até que Essas possibilidades de existências múlti-
se transforma em macaco e ouve a conversa plas, de trânsito entre espécies com ações
de dois homens brancos tramando captu- tipicamente humanas por parte de animais,
rar vários animais da floresta para servir de incluem nos textos indígenas formas espe-
fonte de renda. cíficas de ser e estar no mundo. Assim, para
No corpo do macaco, tenta avisar aos eles os animais são gente e se vêm como
animais da floresta, mas ninguém o enten- pessoas, porque para os indígenas as pes-
de. Vai então ao socorro de seus amigos na soas também podem ser animais (VIVEIROS
comunidade, onde se metamorfoseia em DE CASTRO, 2018).
uma onça e acaba afugentando a todos. É Recentemente, no ano de 2021, a Netflix
nesse momento que tem a ideia de ir ao (empresa que atua como provedora global
encontro dos caçadores mal-intenciona- de filmes e séries de televisão via streaming)
dos e, naquela forma de onça, expulsa-os produziu a série Cidade Invisível, com vários
da floresta. O Curupira, vendo a benfeito- encantados, entre eles o Boto, o Saci e a Iara,
ria do indígena, retira dele o encantamen- dando grande destaque à figura do Curupira
to. Papa-Capim volta para sua aldeia e a que, vivendo disfarçado na cidade, tenta es-
mãe dele fala que tem perdiz assada, co- conder o seu verdadeiro eu, mas provocado
zido de tatu e sopa de tartaruga para o al- pela “morte” de seu amigo, retorna à flores-
moço, que são os mesmos animais que ele ta e reassume seu papel.
tinha vivido na transformação. Ele recusa Não obstante a maneira como esses per-
o almoço, dizendo que prefere um purê de sonagens são representados pelos veículos
mandioca2. e produções midiáticas, não se pode negar
A história contada por Mauricio de Sou- a contribuição dos mesmos no sentido de,
za no HQ número 53 da Editora Globo, na- senão provocar, ao menos contribuir com o
quele ano de 1989, evidencia para as crian- debate sobre a questão das diferenças entre
ças e outros leitores o espírito ecológico do as narrativas de indígenas e não indígenas.
Curupira e seu compromisso com a defesa Como pesquisadores/as, somos, a todo ins-
da natureza e da vida. Mesmo que a publi- tante, impulsionados/as a pensar maneiras
cação apresente a figura indígena de modo de desconstruir discursos e imagens cons-
estereotipado, consegue sensibilizar para a truídas pela ótica colonialista que, aos olhos
questão. dos invasores, são justificativas mais que
A HQ trabalha ainda a multipessoalida- plausíveis para os atos de violência come-
tidos, no curso da história, contra os povos
2 Essa questão de não querer mais comer carne originários. Na sequência, uma cena retira-
reaparece em narrativa de Yamã, incluída na última
parte deste artigo. da da série acima mencionada.

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Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

Figura 2 – O Curupira na Série Cidade Invisível povo Huni Kuĩ. Nela, o senhor Antônio fala
do mistério que vem dos seus antepassados3
Nossos tataravôs já falavam [...] desse espí-
rito que vem da floresta [...] é como um va-
queiro dos animais da floresta [...] quando
ele quer, ele se apresenta como uma pessoa
[...] estragando a caça que era para se ali-
mentar [...] é um espírito que vive na terra,
um protetor da floresta [...] mata bem qua-
tro veados num dia [...] o Curupira defende
a natureza, a floresta [...] desde criança ouvi
Fonte: https://sobresagas.com.br/cidade-invisivel- os mais velhos falarem [...] nada é sem vida
conheca-os-mitos-e-lendas-que-inspiraram-a-serie [...] ajudar a curar, a tratar, de acordo com as
histórias [...] estava fazendo cigarro para fu-
Nas andanças pela floresta, encontramos mar e o Caboquinho apareceu para ele [...]
pessoas no Acre e no sul do Amazonas que, não teve coragem de falar, mas ele viu [...]
quando a pessoa era estragador da caça [...]
dentro de seus cosmos, suas dimensões de
chegou montado no veado [...]. (ALBUQUER-
vida, juram ter tido contato com um Curu- QUE, 2020).
pira, também conhecido como Caboclinho
da Mata, e boa parcela da população do Acre Percebemos, na fala do entrevistado aci-
já presenciou ou conhece alguém que teve ma, uma clara distinção entre caça predató-
proximidade com este ser encantado, viven- ria e de subsistência, sendo que os sujeitos
te das matas brasileiras, cuja existência re- que não respeitam tal diferença sofrem os
monta a histórias indígenas desde antes da castigos impostos pelos encantados da flo-
chegada dos portugueses. resta. Há, portanto, uma relação de afeto, cui-
Essas narrativas fortalecem os vínculos dado e, consequentemente, pertencimento à
com a terra e a consciência da relação entre terra, que precisa ser protegida, ao contrário
ser humano e floresta. O escritor e profes- do que ocorre quando os invasores não indí-
genas se apropriam desses territórios.
sor brasileiro Daniel Munduruku, ao tratar
Ailton Krenak defende a ligação com a
dessa conexão, menciona: “nos diz a crença
terra e com a ancestralidade: “se as pessoas
que quem acha que conhece a floresta e não
não tiverem vínculos profundos com sua
cuida dela é orgulhoso e pode topar com al-
memória ancestral, com as referências que
gum encantado” (MUNDURUKU, 2014, p. 9).
dão sustentação a uma identidade, vão fi-
O Curupira Huni Kuĩ defende a car loucas neste mundo maluco” (KRENAK,
2019, p. 14).
natureza e a floresta Entrevistamos um morador das margens
No município de Feijó, estado do Acre, o pes- do rio “Sapatini”, expressão dada pelos mo-
quisador indígena Huni Kuĩ e artista plásti- radores de Boca do Acre – AM, Lábrea – AM
co Dasu Kaxinawá, agiu como facilitador e e arredores. Fazemos essa ressalva porque
interlocutor entre os pesquisadores desse nos mapas o rio é nomeado como “Sapetini”,
trabalho e o povo de sua etnia e, em colabo- mas os navegadores o chamam de “Sapati-
ração com esta pesquisa, gravou um áudio ni”. A pessoa que nos concedeu a entrevista,
com o Senhor Antônio José de Albuquerque, 3 Entrevista disponível em https://youtu.
da Aldeia Nova Olinda, Terra Kaxinawá, do be/32LY7BITkW0

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morador da região, nos contou, apreensivo, a rede em um barreiro para ficar à espreita,
que não se deve falar em Curupira/Cabo- algo o derrubou; ele afirma que era o Cabo-
clinho da Mata e, ao perguntarmos o por- clinho da Mata e que ele quase morre. Ques-
quê, ele respondeu apenas com um sorriso: tionamos como ele sabia que era o encanta-
“porque não, senão ele pega a gente”. Ainda do, ao que ele respondeu que essa entidade
insistimos: mas só por falar nele, ele pega a vive pelos barreiros e assombra os caçado-
gente? Respondeu ele dessa vez: “só se xin- res que são viciados em caçar5.
gar mesmo, daí ele pega o cabra e desce peia A relação dos ribeirinhos e dos povos in-
nele, com cipó, a pessoa apanha, mas não vê dígenas com a caça é de subsistência, com
nada, só o reboliço dele”. Com um pouco de raízes na ancestralidade, respeitando todos
insistência ele deixou gravar a nossa con- os seres da natureza sem se considerarem
versa e concordou em contar uma história superiores a eles. Nesse contexto, portanto,
que acontecera com o irmão. a função do Curupira seria de promover o
Dividimos essa referência em duas par- equilíbrio, punindo aqueles que violam es-
tes: na primeira, ele relata sobre a existên- sas regras. A seguir, apresentamos a pers-
cia de um Caboclinho da Mata, de quem se pectiva Kambeba sobre o tema.
ouve falar desde pequeno até adulto e no dia
-a-dia. Segundo o morador Antônio José da Os Kambeba e a Curupira
Silva, conhecido como Cabeça, o Caboclinho De acordo com a literatura dos povos Kambe-
da Mata bate na pessoa que fala mal dele ba, o Curupira é uma entidade presente desde a
e coloca debaixo da raiz das árvores aque- infância, nas histórias contadas e em suas brin-
les caçadores que são viciados na caça4. O cadeiras. A seguir, trazemos a letra de um canto,
vício em caçar parece relacionar-se à ideia seguida da partitura (Figura 3); trata-se de uma
de caça esportiva, irresponsável, por quem brincadeira que é uma forma de educar para
mata sem regrar quantidade e desconecta- vida, para o rito, dançando em roda na presen-
do da floresta e de quem vive nela, como o ça dos pais e parentes, os pequenos Omáguas
Caboclinho da Mata/Curupira. (povo das águas) exibem sua dança, e suas pin-
Na segunda parte, Cabeça narra uma his- turas de corpos, para as lentes da poeta e am-
tória de família na qual seu irmão passava bientalista Marcia Kambeba, que os apresenta
a noite na mata caçando e quando ele atou através de vídeo o rito Zana Makatipa:

Letra em Kambeba Pronúncia Tradução


Zana Makatipa, Kurupira (2x) Zana macatipa, Curupira (2x) Tuxaua, cadê a Curupira?
Usutá iawaxama kurupira Ussutá iuaxima, Curupira (2x) Vou chamar a Curupira
Zana Makatipa, Kurupira (2x) Zana macatipa, Curupira (2x) Tuxaua, cadê a Curupira?
Iuka sane kurupira Iuca sane, Curupira (2x) Lá vem a Curupira!
Zana Makatipa, Kurupira (2x) Zana macatipa, Curupira (2x) Tuxaua, cadê a Curupira?
Awi iawaxama kurupira Auí iuaxama, Curupira (2x) Já chegou a Curupira!
Iapã nakurata paiwaru Iapã nacurata paiuaru, Vamos tomar paiarú Curupira
Kurupira Curupira (4x) Vamos dançar, Curupira!
Iapã iapuraxi kurupira Iapã iapuraxi, Curupira (4x) Vamos dar voltas, Curupira!

4 Entrevista disponível em https://youtu.be/p_i2oxLGtS4


5 Entrevista disponível em https://youtu.be/i6t01YeGeRs

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Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

Letra em Kambeba Pronúncia Tradução


Iapã pinani kurupira Iapã apinani, Curupira (4x) Vamos embora, Curupira!
Iapã iriwa kurupira Iapã iriua, Curupira (4x) Vamos dar adeus a Curupira!
Iapã terina kurupira Iapã aterina, Curupira (4x)

Figura 3 – Canto da Floresta – Zana Makatipa

Fonte: https://www.cantosdafloresta.com.br/audios/zana-makatipa-kurupira/

Para o povo Kambeba, o Curupira ou a fenômenos da natureza, avisando a Zana


Curupira é um ser sagrado, que protege a (ou tuxaua) – a única pessoa que pode ver
aldeia das tempestades. Ele/ela avisa quan- e conversar com a entidade – dos perigos
do vai cair um temporal por meio de batidas que rondam a aldeia. Com seu calcanhar, ela
no tronco das sapopemas6. Desde cedo as bate no tronco da árvore de sapopema, avi-
crianças Kambeba aprendem os ritos, dan- sando que vem temporal e, na aldeia, todos
çando em roda e inserindo os mais jovens ficam atentos ao seu sinal. Este é um ritual
no ritual da Curupira. que se dá através de canto e dança e chama-
Para os Omágua/Kambeba, a Curupira se Zana Makatipa Kurupira (Tuxaua cadê a
protege a comunidade dos perigos e dos Curupira).

Figura 4 – Ritual Zana Makatipa Kurupira

Fonte: (SILVA, 2012, p.155. Música: https://youtu.be/LQ5Pz5pC08U)

6 De acordo com o Dicionário Michaelis da Língua Ao chamar de “a Curupira”, os Kambeba


Portuguesa (versão online), trata-se de uma Ár- incluem a questão de gênero, sendo a se-
vore de porte médio (Aspidosperma excelsum),
gunda vez, depois do texto Ticuna, citado
da família das apocináceas, de madeira de boa
qualidade, nativa da Amazônia e das Guianas, de anteriormente aqui, que encontramos refe-
folhas ovaladas e flores em glomérulos; bucutá. rência a uma Curupira, esse ser encantado,

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Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!

no feminino, um equivalente com sentido p. 10). E a intuição da criança conseguiu an-


muito próximo ao que essa noção passou a tecipar o fato de a chegada da família trazer
ter no ocidente, com o nome vinculado a um desmatamento e queimada.
ser unicamente masculino. Tuim, menino recém-chegado ali, tem
Outras culturas, como a Macuxi, têm sentimentos parecidos ao de Kurukawa, o
também a Makunaîmî (Macunaíma) mulher. Curupirinha. Ambos são crianças e acabam
Muitas vezes, ocorre que, para nomes aos se encontrando: “subitamente, Tuim, que vi-
quais atribuímos o artigo definido “o”, de- nha correndo, apareceu, dando de cara com
terminando, assim, o gênero masculino, os o Kurupyra. Bool! Deram um encontrão e os
povos indígenas fazem outro uso, geralmen- dois caíram sentados” (YAMÃ, 2008, p. 11).
te sem a utilização do artigo, ou seja, podem E a criança fala:
estar se referindo tanto a “ele” quanto a - Meu Deus, um Kurupyra! – Tuim gritou as-
“ela”. sustado. Amedrontado, o menino pulou den-
Do mesmo modo, a questão etária é pen- tro de uma moita ao lado do caminho. Ao vê
sada de modo bem diferente, sem excluir as -lo, Kurukawa arregalou os olhos e também
crianças de atividades, podendo ser o Curu- pulou dentro de outra, em frente à que Tuim
estava escondido. Os dois ficaram lá bem
pira também uma criança, tal como aparece
quietinhos (YAMÃ, 2008, p. 20).
a seguir, no livro de autoria Maraguá.
A relação entre as crianças espelha mun-
O Menino Kurupyra Maraguá dos diferentes e que raramente se enten-
No livro As Pegadas do Kurupyra (2008), dem, ficando cada um no seu canto a repro-
narrativa que se passa em Nova Olinda do duzir seu modus vivendi. Na maior parte
Norte, Amazonas, próximo ao rio Abacaxis, das vezes, quem invade e explora os terri-
também conhecido no passado como Guari- tórios dos encantados é o não indígena. Eles
namã, com suas belas praias e águas cristali- começam a dialogar e o indígena lembrou
nas (YAMÃ, 2008), o autor considera: que deixou sua caça na caverna de Kuruka-
wa, “perto de uma grande sapopema, nome
os humanos nunca haviam posto os pés nes-
se paraíso e Kurukawa não os conhecia. Ele dado às grandes e achatadas raízes de árvo-
os viu pela primeira vez, quando uma famí- res” (YAMÃ, 2008, p. 9). E Kurupyra falou:
lia chegou à praia. Eles traziam toda a baga- - Ahahahá! Que engraçado. Você caçou um
gem, pareciam estar de mudança. Kurukawa inãbu e trouxe para minha caverna? Agora
ficou atento, procurando entender aquela com certeza ele está cantando lá fora! [...]
cena. [...] Desembarcaram da canoa e foram - Minha caverna tem o poder de curar e re-
em direção a terra e logo o homem come- viver os animais. É aqui que eu cuido deles.
çou a construir a casa, com a palha retirada Sempre que encontro algum animal ferido
da mata. No lugar desmatado ateou fogo ao eu o trago pra cá. - Você está me dizendo que
terreno, que era próximo ao rio, e fez logo [...] vou ter que caçá-lo novamente? - Isso
um roçado. Tudo isso apavorou Kurukawa mesmo! [...] - Nós, os Kurupyras, temos em
(YAMÃ, 2008, p. 9). nossa casa a poçaga milagrosa da cura que
O menino Kurupyra, que vivia sozinho na não é encontrada em nenhum outro lugar
(YAMÃ, 2008, p. 25).
mata, com medo intuiu: “[...] já sei que vou
ter muito trabalho. [...] Agora era descansar, Com o amigo Kurupyra, Tuim aprende
para depois voltar e vigiar a floresta, prote- a não mais comer carne: “meu amigo me
gendo-a daqueles estranhos” (YAMÃ, 2008, disse que comer carne não é a melhor coi-

20 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 09-22, jan./jun. 2022


Antônio Rogério dos Santos; Ananda Machado; Valtenir Soares de Abreu

sa. E matar animais indefesos é pior ainda. Huni Kuĩ) [17/10/2020]. Entrevista Currupira
Eu não quero ser um menino mau” (YAMÃ, Kaxinawá filmada por Evanildo Kaxinawa. Dis-
ponível em: https://youtu.be/32LY7BITkW0.
2008, p. 28). Acesso em: 11 abr. 2022.
No desenrolar da narrativa, a amizade
vai aumentando entre os dois meninos e o APURINÃ, Waykury. (morador da aldeia Kami-
cuã) [05/02/2021]. Entrevista o Curupira/
autor volta a falar da existência do Kuru- Caboclinho Da Mata, Terra Firme por Antonio
pyra: “uma das entidades mais respeitadas Rogério dos Santos.
pelo homem, especialmente na Amazônia,
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Fol-
onde ainda vivem” (YAMÃ, 2008, p. 37). clore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ed. Ediouro,
1954.
Considerações Finais
COELHO, José Rondinelle Lima. Cosmologia Te-
Concluímos esta escrita, mas seguiremos netehara Tembé: (re)pensando narrativas,
pesquisando e compartilhando este encan- ritos e alteridade no Alto Rio Guamá – PA. Uni-
versidade Federal do Amazonas – UFAM - Museu
tamento pela (o) Curupira, que amplia pos- Amazônico Programa de Pós-Graduação em An-
sibilidades de trocas culturais, linguísticas e tropologia Social Manaus – Amazonas, 2014.
aponta para mundos possíveis.
DORRICO, Julie. Posfácio. In: NÚÑEZ,
Pensamos que o fato de conhecer e divul- Geni. Djatchy Djatere: o saci guarani.
gar essas vozes é uma forma de decolonizar Ilustrações de Wanessa Ribeiro e Joyce Ara’i Fir-
o pensamento e vislumbrar a continuidade miano. Brasil: Zió Zines, 2020.
da floresta em pé e da vida neste planeta tão FIOROTTI, Sonyellen Ferseck. Makunaimö
ameaçado pela falta de sensibilidade e des- pantonü – a história de Makunaima ou “meu
truição que nos assola. companheiro, essa história é muito triste”
in TETTAMANZY, Ana Lúcia Liberato; SANTOS,
Os Curupiras, desde longa data, fazem
Cristina Mielczarski dos; MEDEIROS, Vera Lúcia
parte das histórias dos povos originários e Cardoso (orgs.). Letras e Vozes dos Lugares.
cada um recebe um nome que varia de uma Porto Alegre: Zouk, 2022.
região para outra. Seus aspectos também KAMBEBA, Marcia Wayna. O lugar do Saber,
apresentam essa variante, porém estavam São Leopoldo-RS: Ed. Casaleira, 2020.
presentes no passado e continuam a existir
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do
entre nós. Portanto, essas narrativas não se mundo. São Paulo: Ed Companhia das letras,
perderam com o tempo, e o Curupira ainda 2019.
está presente e vive nas matas, fazendo par-
______. A vida não é útil. São Paulo: Editora
te das culturas de muitos povos. Companhia das Letras, 2020.
Por isso, às pessoas que desrespeitam a
MONTE, Nieta; FREIRE, José Ribamar Bessa. Te
natureza, que são viciadas em caça ou de- mandei um Passarinho. Brasília: Ministério da
sacreditam na possibilidade da existência Educação, 2007.
de vários mundos, sugerimos que possam
MUNDURUKU, Daniel. Foi vovó que disse. 2. ed.
visitar essas literaturas, dialogar com inte- Ilustrações de Graça Lima. Porto Alegre: Edel-
lectuais indígenas e, junto com eles, buscar bra, 2014.
“ideias para adiar o fim do mundo”. Ou então, RODRIGUES, Alan (Professor da Universidade
caro leitor, cuidado, o Curupira pode te pegar! Federal do Amazonas) [15/06/2020]. Entrevis-
ta o Curupira 7 espíritos realizada pelo goo-
Referências glemeet por Antonio Rogério dos Santos.
ALBUQUERQUE, Antônio José de (liderança SILVA, Antônio José da (morador de Lábra-AM).

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 09-22, jan./jun. 2022 21


Os Apurinã, Tenetehara, Kambeba, Huni Kuĩ, Maraguá, Ticuna e Krenak gritam: cuidado, o Curupira vai te pegar!

[7/09/2021] Entrevista Vício na caça parte VIEIRA, Mônica do Corral. Histórias Tembé:
1 –Entrevistado por Antonio Rogério dos San- sobre narrativas e autoidentificação. Tese
tos às margens do rio Sapatini, disponível em (doutorado) na Universidade Federal do Pará,
https://youtu.be/p_i2oxLGtS4. Acesso em: 07 Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Pro-
dez. 2021. grama de Pós-Graduação em Antropologia, Be-
lém, 2016.
______. Vício na caça, parte 2 - Entrevistado por
Antonio Rogério dos Santos às margens do rio VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. Metafísicas
Sapatini, disponível em https://youtu.be/i6t- canibais: elementos para uma antropologia pós
01YeGeRs. Acesso em: 08 fev. 2022. -estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 2018.
SILVA, Márcia Vieira da. Reterritorialização e YAMÃ, Yaguarê. As Pegadas do Kurupyra. Ilus-
identidade do povo Amágua- Kambeba na al- trações de Uziel Guaynê Oliveira. São Paulo:
deia Tururucari-Uk. UFAM, Manaus, 2012. Mercuryo Jovem, 2008.

Recebido em: 09/05/2022


Aprovado em: 28/05/20220

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

22 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 09-22, jan./jun. 2022


Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

A poética de Auritha Tabajara: autoficção


em Coração na aldeia, pés no mundo
Paulo Marcelino dos Santos (UNEB)*
https://orcid.org/0000-0003-3702-7189

Elizabeth Gonzaga de Lima (UNEB)**


https://orcid.org/0000-0002-3877-3776

Resumo:
Auritha Tabajara, cordelista, mulher Tabajara, nordestina, LGBTQIA+, ela-
bora uma escrita com tons biográficos em Coração na Aldeia, Pés no Mundo
(2018). Essa escritura põe em xeque a questão autoral: no jogo entre duas
vozes narrativas, no imbricamento entre a voz Tabajara e a voz individual,
na narrativa da trajetória e das lutas da Auritha personagem. Tal apreensão
de Coração na Aldeia, Pés no Mundo (2018) é feita com base no conceito de
autoficção (DOUBROVSKY, 2014; COLONNA, 2014) que contrapõe a noção
de sujeito autossuficiente logocêntrico. A autoficção é utilizada para com-
preender como Auritha se transforma em personagem e em objeto de um
discurso, como constrói um eu textual, biográfico e ficcional, a partir do cor-
del. A proposta deste trabalho é analisar os processos autoficcionais elabo-
rados na perspectiva dessa mulher Tabajara. Portanto, a poética de Auritha
Tabajara destaca seu nome próprio e sua integração com a nação Tabajara,
em uma moldura constituída por aspectos estilísticos, performativos, ficcio-
nais e ancestrais.
Palavras-chave: Auritha Tabajara; Coração na aldeia, pés no mundo; Auto-
ficção.

Abstract:
The poetics of Auritha Tabajara: autofiction in Coração
na aldeia, pés no mundo
Auritha Tabajara, cordelist, Tabajara woman, northeast, LGBTQIA+, elabo-
rates on writing with biographical tones in Coração na Aldeia, Pés no Mundo
(2018). This writing calls into question the authorial question: in the game
between two narrative voices, in the overlap between the Tabajara voice and

* Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, da Universidade do Estado da


Bahia (PPGEL/UNEB), sob orientação da Professora Doutora Elizabeth Gonzaga de Lima. Lattes: <http://
lattes.cnpq.br/0893034040233991>. E-mail: oluaps2@gmail.com
** Doutora em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É docente
Titular da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), atuando na Graduação em Letras Vernáculas (DCH1)
e como professora permanente no Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens (PPGEL). Lat-
tes: <http://lattes.cnpq.br/1592267430900741>. E-mail: profbethliteratura@gmail.com

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022 23


A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no mundo

the individual voice, in the narrative of the trajectory and struggles of the
character Auritha. Such apprehension of Coração na Aldeia, Pés no Mundo
(2018) is based on the concept of autofiction (DOUBROVSKY, 2014; COLO-
NA, 2014) which opposes the notion of a logocentric self-sufficient subject.
Autofiction is used to understand how Auritha becomes a character and
object of discourse, and how she builds herself into a textual, biographical,
and fictional self, based on cordel. The purpose of this work is to analyze
the autofictional processes elaborated from the perspective of this Tabajara
woman. Therefore, Auritha Tabajara’s poetics highlights her proper name
and her integration with the Tabajara nation, in a configuration of stylistic,
performative, fictional, and ancestral aspects.
Keywords: Auritha Tabajara; Coração na aldeia, pés no mundo; Autofiction.

Introdução
Que faço com a minha cara de índia? questão que envolve a constituição subjeti-
E meus cabelos va em narrativas a partir da literatura escri-
E minhas rugas ta por uma autora contemporânea, Francis-
E minha história ca Aurilene Gomes, que adota o nome étni-
E meus segredos? co Auritha Tabajara, uma mulher indígena,
(POTIGUARA, 2018, p. 32).
nordestina e LGBTQIA+1, cordelista, a qual,
O que fazemos/faremos com nossas iden- através de sua escrita, lida com as questões
tidades, com nossa sensibilidade, com nossa de autoria e de subjetivação, construindo a
subjetividade em jogo conflituoso entre o si mesma de forma autônoma, sensível e re-
dito, o não dito, o inefável e recalcado, entre sistente em uma mescla entre o (auto)bio-
o individual, o coletivo e a ausência em um gráfico, o poético, o ficcional e o ancestral.
contexto contemporâneo de crítica ao su- No livro Coração na Aldeia, Pés no Mundo
jeito? A estrofe do poema “Brasil”, de Eliane (2018), Auritha Tabajara escreve a sua auto-
Potiguara, apresentada na epígrafe, começa ficção, configurando novas possibilidades de
com elementos supostamente objetivos e escrita e de leitura com a apropriação, trans-
possíveis de compreender apenas ao olhar: formação e subversão cultural e literária das
cara de índia, cabelos e rugas, complementa- teorias ocidentais das escritas de si, das nar-
dos por vocábulos relacionados à linguagem, rativas centradas no eu, para contar outras
a narrativa, àquilo que nós contamos para histórias e escrever outras literaturas. Essa
outrem: história e segredos... Sem esquecer escritora narra a sua vida, de forma literária
os estereótipos e preconceitos destacados e histórica, ancestral e inovadora, comuni-
na estrofe e no poema, aí estão caracteri- cando a um só tempo os saberes ancestrais
zados importantes aspectos relacionados à de seu povo e sua trajetória entre a cidade e a
construção do si mesmo, permeados pelos 1 LGBTQIA+: sigla relacionada aos movimentos so-
discursos entre verdades, ficções e lacunas. ciais relacionados à diversidade de orientações
Longe de nós assumirmos a tarefa ingló- sexuais e identidades de gênero, significando,
respectivamente: lésbicas, gays, bissexuais, trans-
ria de responder, propondo o desenlace da
gênero, queer, intersexo, assexual e uma abertura
questão apresentada no início. Nossa estra- à não normatividade com a inserção de outras
tégia segue na tentativa de compreender a identidades de gênero e orientações sexuais.

24 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022


Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima

aldeia, sem se perder no caminho, mas estan- cussão sobre a subjetividade das pessoas
do sempre em movimento com os pés conec- indígenas imbricadas com seu povo, em um
tados à Terra, em qualquer lugar aonde vá. contexto de pressão rumo à individualidade
Assim palmilha o seu próprio caminho, cons- em uma perspectiva ocidental.
truído ao caminhar e com o coração conecta- O coração refaz a conexão com o passa-
do à aldeia, à ancestralidade, à memória. do-presente ancestral, com a aldeia, ao mes-
O livro Coração na Aldeia, Pés no Mundo mo tempo em que representa também uma
(2018)2 é constituído por poemas em forma- consciência não designada pela racionalida-
to de cordel, escritos por Auritha Tabajara, e de cartesiana. Auritha Tabajara nos ensina
por xilogravuras, assinadas por Regina Dro- que o percurso se faz caminhando e que se
zina. O enredo do cordel narra a história de refaz, na medida em que se transforma ao
Auritha, uma mulher indígena, nordestina e ser narrado. A escritora reconstitui a sua
LGBTQIA+, desde a sua infância com o povo jornada em versos, transmuta seus passos
Tabajara e na relação com sua avó, passando em narrativa de si mesma, em autoficção,
pelas suas dificuldades e aprendizados ao para não esquecer o caminho de volta e para
migrar para a cidade, até a sua vida adulta. construir um percurso de cura para si e para
No livro, é narrado um processo de cresci- o mundo. Essa metamorfose da experiência
mento pessoal e superação: dos conflitos no vivida pela autora em texto escrito, em poe-
casamento, da luta pela guarda das filhas, ma, em cordel é a inquietação que direciona
a nossa investigação, tendo como aspecto
da resistência às discriminações raciais, de
basilar para a discussão o conceito de au-
gênero, de classe e de orientação sexual e
toficção (DOUBROVSKY, 2014; COLONNA,
da valorização da ancestralidade. A autora
2014; KLINGER, 2006).
indígena sintetiza a sua compreensão sobre
As pesquisas e propostas de análises
o seu fazer literário: “a literatura manifesta
literárias relacionadas à autoria historica-
em mim uma dupla atuação: autoexpressão
mente são complexas e, por vezes, polêmi-
e resistência” (TABAJARA, 2018)3.
cas. O percurso da investigação abrange
Os pés da personagem-narradora-autora
desde a ausência do autor, em textos sem
traçam um percurso ultrapassando frontei-
sua assinatura ou sem seu reconhecimento,
ras entre o biográfico e o imaginário, entre
aos quais a posse estava em mãos do editor
o individual e o coletivo, entre a aldeia e a
(BRAGANÇA, 2006), passando pela imposi-
cidade, tendo o mundo inteiro como limite. ção dele como pai, autoridade e verdade so-
Essa relação fronteiriça perpassa aspectos bre o texto, contraposta pela propagação de
como a significação diferenciada com a ter- sua morte e desembocando em abordagens
ritorialidade e com as fronteiras nacionais que “ressuscitam” ou retomam o autor, seja
estabelecidas por diversos povos indígenas, através do ponto de vista identitário, seja
como reconhecido pela Convenção nº 169 na focalização de aspectos biográficos, das
da OIT4, de 1989 (KRENAK, 2013), e a dis- escritas de si, nas quais pode ser incluída a
autoficção (KLINGER, 2006).
2 O livro foi publicado pela U’KA Editorial, um pro-
jeto conduzido por Daniel Munduruku, que bus-
ca publicar obras de escritores indígenas, produ- Autoficção em Coração na aldeia,
zidas de forma autônoma. pés no mundo
3 Citação retirada da contracapa do livro Coração
na Aldeia, Pés no Mundo (2018). Os estudiosos da literatura que se propõem
4 OIT: Organização Internacional do Trabalho. a utilizar o conceito de autoficção reconhe-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022 25


A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no mundo

cem que é uma ideia inacabada, em constru- causa. Toda autobiografia, qualquer que seja
ção ou imprecisa, ou ainda compreendem sua “sinceridade”, seu desejo de “veracida-
que essa situação permite múltiplas abor- de”, comporta sua parte de ficção. A retros-
pecção tem lá seus engodos (DOUBROVSKY,
dagens a partir de seu arcabouço:
2014, p. 121-122).
A própria imprecisão da palavra [autoficção]
é útil, pois possibilita que certos escritores, O pesquisador Serge Doubrovsky (2014)
como Catherine Cusset, Philippe Vilain ou cunhou o termo autoficção, demonstrando
Camille Laurens, presentes nesse colóquio, como lembrar é construir uma narrativa
entendam a dita autoficção em sentidos que de modo algum será igual àquilo que
bem diferentes daquele que lhe atribuo. A foi vivido e como a narração se adapta às
palheta da autoficção é variada e é isso que necessidades do/a narrador/a, inclusive se
constitui sua riqueza (DOUBROVSKY, 2014,
adequando aos interlocutores, ou aos leito-
p. 113).
res. Assim, a escrita entre autoexpressão e
Mesmo nesse contexto de diversidade resistência, de Auritha Tabajara, em Coração
de apreensões, é possível reconhecer que na Aldeia, Pés no Mundo (2018) se inicia com
a autoficção se inscreve como alternativa esse mesmo entrelaçamento. A personagem
para reflexão sobre a subjetividade autoral do cordel é apresentada como princesa em
e sobre a (im)possibilidade da escrita em um duplo movimento de autovalorização e
representar a realidade. Assim, se constitui de diálogo com as pessoas bombardeadas
uma retomada da figura do autor, não mais pelo imaginário ocidental. Mesmo que a
como autoridade sobre seu texto, não como realidade de reinados como na Europa es-
o sujeito cognoscente autossustentável do teja distante do modo dos povos indígenas,
cogito cartesiano, mas como alguém criva- a voz narrativa constitui um diálogo com
do, repleto de furos, de lacunas, de vieses e aqueles que conhecem os contos de fadas e
de inconsciências. princesas, sejam adultos ou crianças, para
O sujeito autoral retorna assemelhado ao quebrar o paradigma de inferiorização das
real lacaniano como falta, como aquilo que é integrantes dos povos autóctones e de ou-
inefável, indizível e impossível de simbolizar tros excluídos dessas narrativas, como os/
(KINGLER, 2006). Portanto, a autoria, parti- as nordestinos/as, sertanejos/as.
cularmente nos textos biográficos, pode ser Nessa interação entre escrever sobre si
visualizada como um intercâmbio rasurado mesma, refazendo a sua jornada, se reinven-
entre a experiência e a interpretação, cheio tando, se inspirando na Mãe Natureza, a voz
de vazios preenchidos por recursos de retó- narrativa não pretende realizar um soliló-
rica, de imaginação e de ficcionalização. A quio; ao contrário, ela se propõe a ensinar
memória aparece permeada por falsas me- ao leitor, ao mesmo tempo em que se des-
mórias, a consciência vazada por aquilo que creve e aprende sobre si:
está inconsciente, o relato não pode ser pari Peço aqui, Mãe Natureza,
passu aquilo que foi vivenciado: Que me dê inspiração
Nenhuma memória é completa ou fiável. As Pra versar essa história
lembranças são histórias que contamos a nós com tamanha emoção
mesmos, nas quais se misturam, sabemos Da princesa do Nordeste,
bem disso hoje, falsas lembranças, lembran- Nascida lá no sertão.
ças encobridoras, lembranças truncadas ou Quando se fala em princesa
remanejadas segundo as necessidades da É de reino encantado,

26 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022


Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima

Nunca, jamais, do Nordeste Essa discussão, contrapondo o eu isolado,


Ou do Ceará, o estado. ou mostrando que o indivíduo não é tão in-
Mas mudar de opinião diviso assim, põe em questão os estudos oci-
Será bom aprendizado (TABAJARA, 2018, p.
dentalizados relacionados à constituição do
6).
eu com raízes na negação do ser preconiza-
Outro aspecto que demonstra como a da pelo cristianismo medieval. Em contraste,
escrita de si empreendida por Auritha Ta- mesmo na escrita de autores e autoras indí-
bajara não é construída em um isolamento genas, a coletividade e a ancestralidade apa-
está na forma como ela se vincula a deter- recem em grande destaque, às vezes muito
minados grupos caracterizadores de sua maior que a individualidade, mas sem que
identidade. Os povos indígenas, a nação Ta- haja uma perda dessa subjetividade. A socie-
bajara, podem ser destacados na invocação dade ocidentalizada deita suas raízes no in-
à Mãe Natureza, na forma como os amerín- dividualismo, na centralidade do eu, porém,
dios se veem integrados ao cosmo, irmana- se esta se tornasse central nas culturas indí-
dos aos outros seres a partir da maternida- genas, seria uma mudança extrema de para-
de da Terra. Ela se identifica também com digma e representaria o apagamento de uma
os nordestinos, os sertanejos, os cearenses, característica basilar para a identidade dos
as meninas e as mulheres apartadas da povos indígenas e de seus membros.
possibilidade de serem “princesas”, de te- Desse modo, a autoficção escrita por
rem uma vida digna e valorizada no lugar Auritha Tabajara não permite que haja es-
onde vivem. quecimento de que sua formação individual
Esse apelo à identidade étnica, ou mais está atrelada à ancestralidade, às histórias
especificamente regional, e à coletividade é que ouvia de sua avó, aos instrumentos mu-
identificado por Diana Kingler (2006) como sicais e músicas conectadas com a tradição,
característico na história da literatura lati- à conversa com os espíritos ancestrais, ao
no-americana. Nessa região, nos séculos XIX sonho como forma de conexão cósmica, aos
e XX, as escritas de si têm muitos exemplos conhecimentos das ervas da medicina tradi-
focados na coletividade, seja em perspecti- cional:
vas conservadoras de valorização da lingua-
Aprendeu a ler na rima.
gem, da família e em oposição à diversidade Tudo queria rimar:
de identidades, seja em movimentos de van- As brincadeiras e histórias
guarda, de resistência e contestação dos po- Que ouvia a vovó contar.
deres instituídos, inclusive das ditaduras es- Com tambor e maracá,
palhadas pelo continente (KLINGER, 2006). De música foi gostar.
Esse processo remete também à propaga- Conversava com espíritos,
ção de autorias mais diversas, como as es- Mas ninguém acreditava.
critas protagonizadas por indígenas, tanto Conseguiu fazer remédio
em produções feitas por diversos membros Com as ervas que sonhava;
de um povo, até mesmo por conjuntos de Cedinho, no outro dia;
professores nas aldeias (ALMEIDA, 2009), As recolhia e plantava (TABAJARA, 2018, p.
10).
quanto em colaboração com antropólogos
(KLINGER, 2006) e também em textos escri- No entanto, cabe refletir como esse
tos por apenas uma pessoa. aprendizado e o relato sobre ele ocorreram

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022 27


A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no mundo

a partir da poetização, a partir das rimas, Uma menina saudável,


em narrativas recontadas de forma lúdica, Com o nome a definir,
unindo “brincadeiras e histórias” (TABAJA- Vovó a chamou Auritha,
Mas, quando foi traduzir
RA, 2018, p. 10), em uma visão cosmológi-
Um ancestral lhe contou
ca peculiar aos povos autóctones, já que ela “Aryrei” está a vir.
“conversava com os espíritos” (TABAJARA,
Mas, para se registrar,
2018, p. 10), e em conhecimentos mediados
Seguiu a modernidade
pelos sonhos, em uma conexão cósmica, ou Com o nome de Francisca,
com elementos “inconscientes”. Sendo as- Pois, para a sociedade,
sim, o cordel vai mostrando como a trajetó- Fêmea tem nome de santa
ria de aprendizado, de vida e escrita da cor- Padroeira da cidade (TABAJARA, 2018, p.
delista aparece, revelando que essa trilha 09).
é formada por muitos recursos artísticos e Essas estrofes dão o conhecimento de
memorialísticos, não aprisionados por uma que a protagonista e a autora têm o mes-
exigência de objetividade. Desse modo, o mo nome e de como ela se transforma em
enredo pode ser contado versando, em um personagem nesse cordel autoficcional. Se a
jogo entre contar o que aconteceu e esco- “menina saudável” (TABAJARA, 2018, p. 09)
lher as melhores rimas. se depara com uma multiplicidade de de-
A escrita de Auritha, além da afirmação nominações, a mulher resgata essas cenas
de sua identidade como mulher indígena, para ressignificá-las, para mudar o registro
nordestina e LGBTQIA+, constitui um per- – se não o do cartório, o da narrativa –, ao
curso tanto para inscrição de seu nome pró- assumir a sua própria escrita, a sua versão
prio em sua vida quanto na inserção dele poética dos fatos.
em sua produção autoral. Essa necessidade Essa “modernidade” (TABAJARA, 2018,
de luta pela nomeação remonta ao processo p. 09) apresentada pela voz narrativa pode
de desenraizamento iniciado séculos atrás, ser relacionada ao projeto do Estado brasi-
quando o governo brasileiro proibiu a utili- leiro de apagamento étnico-cultural, tendo
zação de nomes indígenas no registro civil, inclusive na religião cristã uma ferramenta
com o intuito de obter apoio social, expli- dessa opressão. A adoção do nome Auritha é
citando assim uma política de apagamento inteligível e traduzível na comunidade para
cultural e de pressão por integração (MUN- “Aryrei” (TABAJARA, 2018, p. 09), sendo
DURUKU, 2012). ao mesmo tempo singular, para o reconhe-
Nesse contexto, o livro apresenta várias cimento dessa escritora na construção de
formas de nomear essa autora, narradora e sua individualidade, e plural, no que tange
personagem. O copyright do texto pertence à inserção do povo Tabajara. Isso não deixa
a Francisca Aurilene Gomes com Auritha dúvidas sobre a conexão da jornada pessoal
Tabajara, o mesmo utilizado na ficha cata- com a memória ancestral, ao tecer no texto
lográfica e durante a maior parte do livro, as conexões que a alcunha imposta poderia
entre parênteses, e Aryrei, na tradução rela- barrar. Portanto, o designativo Francisca é
tada por um ancestral. Nesse sentido, parte representativo de estratégias de opressão,
dessa questão é explicitada no texto poético já que remete a elementos como a pressão
ao apresentar a circunstância dessas desig- social, a padroeira, a santa, a religião católi-
nações: ca, a imposição de crença, a moral e condu-

28 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022


Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima

ta, inclusive sob o signo do pecado e precon- e madura que declara: vou “refazer minha
ceitos relacionados aos modos de vida que história” (TABAJARA, 2018, p. 32), da jovem
fogem a essa norma. imatura, em um percurso de descoberta e
A autora, a narradora e a personagem re- de busca de autonomia.
cebem o mesmo nome e se mesclam poden- O Dossiê de registro Literatura de Cordel
do remeter a uma biografia simplesmente. (BRASIL, 2018) apresenta algumas carac-
No entanto, as estratégias utilizadas por terísticas dessa produção literária as quais
Auritha em Coração na Aldeia, Pés no Mundo são úteis para se compreender essa produ-
(2018) jogam de forma bastante conscien- ção autoficcional de Auritha Tabajara. A lite-
te com essa relação autora-narradora-per- ratura de cordel é descrita como relaciona-
sonagem. Nesse sentido, a priori, tem-se o da a diversas tradições orais constituintes
estabelecimento de duas vozes narrativas: da identidade brasileira: “as culturas afri-
uma em terceira pessoa do singular, no pas- cana, indígena e europeia e árabe” (BRASIL,
sado e em estrofes em sextilha; a outra está 2018, p. 16), sendo que essa produção lite-
em primeira pessoa do singular e com a mé- rária é designada por três características es-
trica em septilha: senciais: “métrica, rima e oração” (BRASIL,
A noção plástica de autoficção, em sua acep- 2018, p. 16), ou seja, pela versificação, con-
ção mais corrente e mais vaga, marca talvez tagem de sílabas com uniformidade entre
uma evolução significativa da escrita de si, os sons finais das palavras e o desenvolvi-
através da qual o procedimento autobio- mento ou enredo com lógica, começo, meio
gráfico se transforma em operação de geo- e fim. Outras características da literatura de
metria variável, cuja exatidão e precisão cordel relacionadas à metrificação são o uso
não são mais virtudes teologais (COLONNA, da sextilha, forma mais utilizada pelos cor-
2014, p. 46).
delistas na contemporaneidade, e a septilha,
A narração em terceira pessoa é feita a derivada daquela com o acréscimo de mais
partir do nascimento e infância, passando um verso.
pela saída da aldeia, pela jornada em algu- Esse diferencial de versificação é signifi-
mas cidades, onde foi submetida a assédios cativo para o enredo em Coração na Aldeia,
sexuais e trabalhos subalternizados, de idas Pés no Mundo (2018), com a narração em ter-
e vindas à aldeia; pelo sufocamento quanto ceira pessoa, isto é, quando a narradora ain-
a sua orientação sexual, pela maternidade e da não está identificada com a autora-per-
sendo concluída com a denúncia de supos- sonagem Auritha, a versificação é feita em
to abandono das filhas, feita pelo pai delas sextilha. Essa é a metrificação mais comum
e pela vivência de uma depressão. Nessa no cordel da atualidade, cuja utilização pode
parte da narrativa do cordel, há certa estra- ser lida também como um meio para dife-
tégia de distanciamento entre a narradora, renciar os momentos narrativos no texto. Já
a personagem e a autora, como se elas não na utilização da septilha, no momento em
fossem a mesma pessoa. Esse método, de al- que a própria Auritha se torna a narrado-
gum modo, caracteriza o distanciamento en- ra do texto, cabe a seguinte interpretação:
tre aquela que escreve no presente e aquela da mesma forma que a estrofe cresce, ga-
que vivenciou determinadas experiências. nhando mais um verso, a cordelista também
Aparentemente, se configura uma necessi- cresce, torna-se mais madura. Esse segundo
dade de diferenciar a escritora autônoma trecho da narrativa relata o desfecho da dis-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022 29


A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no mundo

puta judicial pela guarda das filhas e de sua subjetividade atrelada à poetização e à pos-
relação com elas, suas ações para recons- sibilidade de utilizar a oração, o desenvolvi-
truir a sua história intensificando o contato mento característico do cordel como possi-
com sua ancestralidade, com a aldeia e com bilidade para narrar, poetizar e refazer a sua
outros parentes indígenas, além da luta con- própria vida.
tra a discriminação. É possível observar nas No Dossiê de registro Literatura de Cor-
estrofes a seguir a marcação da passagem del (2018), quando da reflexão sobre o poe-
de uma voz narrativa para a outra: ta-repórter, é apresentado exemplo de como
Na Casa de conhecidos, “o cordel concilia a tradução e a invenção do
Cuidava de disfarçar. vivido, o real e a ficção.” (BRASIL, 2018, p.
Muitas noites mal dormidas, 159). Para compreender melhor de que for-
Não parava de chorar. ma Auritha faz essa junção poeticamente,
Sempre de rosto inchado pode ser elucidativa a definição dada por
Na hora de levantar.
Vincent Colonna (2014) a uma das tipolo-
Nesse momento, leitor, gias da escrita autoficcional como autofic-
Ficarei no meu cantinho, ção biográfica:
Deixando a própria Auritha
Seguir firme em seu caminho O escritor continua sendo o herói de sua
E, de forma cativante, história, o pivô em torno do qual a matéria
Contar tudo com carinho: (TABAJARA, 2018, narrativa se ordena, mas fabula sua existên-
p. 31). cia a partir de dados reais, permanece mais
próximo da verossimilhança e atribui a seu
Agora, eu tenho em mente, texto uma verdade ao menos subjetiva ou
Um desafio a enfrentar: até mais que isso (COLONNA, 2014, p. 44).
Refazer minha história,
Sem desistir de lutar. A construção narrativa em Coração na Al-
Tantas noites eu chorei, deia, Pés no Mundo (2014) pode ser apreen-
Quanta tristeza passei… dida a partir dessa definição, a da autora
Não dá nem pra imaginar! (TABAJARA, 2018, tendo por base a sua vida, mas não escre-
p. 32).
vendo um diário, ou um livro de memórias
Se Auritha Tabajara “Aprendeu a ler sobre ela. A escolha é por uma forma poéti-
na rima./ Tudo queria rimar” (TABAJARA, ca na qual pode “florear” a sua história, não
2018, p. 10), a própria experiência de apren- escondendo as suas mazelas, e sim transfor-
dizagem na infância está relacionada a essa mando-as em poema, sem abandonar a ve-
literatura, mesmo que ela descubra, apenas rossimilhança. Por esses motivos, a escrita
posteriormente, que aquilo que ela ouvia, lia de Auritha Tabajara pode ser pensada na
e passou a escrever era literatura de cordel. intersecção entre performance, biografia,
Em entrevista (TESTA; FERREIRA, 2021), identidade e ancestralidade. Por esse pon-
Auritha relata que foi alfabetizada e estudou to de vista, pode ser dito que é estabelecida
em casa até os nove anos de idade, em uma uma relação entre o leitor e uma autora im-
infância feliz, livre na mata, marcada pela plícita criada em meio às rimas, de Auritha,
oralidade e por uma alfabetização feita por às xilogravuras, de Drozina, e à descoberta
meio de rimas. Nesse sentido, a intimidade no ato da leitura, ao se relacionar com uma
da autora com essa forma literária também performance da escritora e não com sua
se revelou como aspecto construtor de sua pessoa.

30 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022


Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima

Mesmo partindo desse pressuposto da início o magistério indígena no Ceará, ela fez
performance, o apego à verossimilhança relatórios sobre as aulas em forma de cordel,
fica evidenciado no texto de Auritha em tre- os quais foram editados e publicados pela
chos com o seu relato da publicação de seus Secretaria de Educação do Ceará (SEDUC),
cordéis no livro Magistério Indígena em Ver- compondo o livro Magistério Indígena em
sos e Poesia (2007): Versos e Poesia (2007), hoje adotado como
Fez magistério indígena livro didático no território cearense. O rela-
Com muita dedicação. to da publicação desse livro e de seu engaja-
Escrevia bem cordel, mento no ensino aparecem na estrofe acima,
Pesquisou com atenção no verso “Fez magistério indígena” (TABAJA-
E o governo aprovou, RA, 2018, p. 27), em Coração na Aldeia, Pés
A sua publicação. no Mundo (2018). Assim, a autora assume a
Na sua comunidade, tarefa de ressignificar a escola para si e para
Dispõe-se a alfabetizar os outros, pois, quando ingressou na escola
As crianças e os adultos, regular, sofreu bullying e discriminação pra-
Para assim minimizar ticados pelos não-indígenas:
Os limites que impediam
O seu povo de lutar (TABAJARA, 2018, p. 27). Admirada por todos;
Para muitos, diferente.
A trajetória de Auritha Tabajara revela o Na escola, aos sete anos,
seu desejo da mudança de paradigmas para Taxada de rabo quente,
a educação, ela escreve também com essa Feiosa, bucho quebrado...
preocupação. Se em Coração na Aldeia, Pés Porém muito inteligente (TABAJARA, 2018,
no Mundo (2018) está em destaque a cons- p. 10).
trução de si mesma, tal ação parece se con- A um só tempo em que em Coração na
cretizar na relação com a transformação do Aldeia, Pés no Mundo (2018) se estabelece
outro, seja na inserção na escola indígena, o destaque ao aspecto estético, criativo, do
seja no ensino dos não indígenas, seja no uso de recursos poéticos, nesse texto a au-
combate às diversas formas de discrimina- tora apresenta confissões que extrapolam
ção. A aproximação com pessoas não escola- seu texto, indo para a aldeia e para o mundo.
rizadas, para integrá-las na comunicação ou Ambos os elementos, aldeia e mundo, são o
em processo de ensino da leitura, parte do outro com quem o coração e os pés, repre-
reconhecimento da escrita como ferramen- sentativos da subjetividade e da jornada au-
ta de luta. Coração na Aldeia, Pés no Mundo tora, querem se relacionar. Portanto, duas
(2018), apesar de não ser um folheto pen- ações que funcionam como constituintes do
durado em um varal, se apropria das dinâ- eu também preconizam formas de intervir
micas do cordel, como um texto mais aces- com e para além do cordel. A primeira é a
sível: pela não utilização de palavras rebus- prática educativa caracterizada pelo ensino
cadas, mas se valendo da musicalidade e da na escola da aldeia e por mudar a concepção
visualidade para envolver, acolher e ensinar, daqueles que desconhecem ou estão fecha-
mesmo que essas características não sejam dos para uma narrativa diversa. A segunda
exclusivas desse gênero literário. é se voltar para a cura, de si mesma, ao dar
Auritha relatou em entrevista (TESTA; sentido à sua trajetória a partir da escrita, e
FERREIRA. 2021), que em 2003, quando teve dos outros, tanto com o uso de ervas medici-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022 31


A poética de Auritha Tabajara: autoficção em Coração na aldeia, pés no mundo

nais quanto com a própria narrativa de seu plantas em sonhos, colheita, plantio e mezi-
crescimento pessoal: nha é descrita como algo distinto e sagrado:
A menina foi crescendo, Foi a primeira netinha
Aprendeu a caminhar. Da vovó boa parteira
Com nove meses de vida Contadora de história;
Tudo sabia falar. Também grande mezinheira
Dizia: “Quando eu crescer, Na região, respeitada
Quero aprender a curar” (TABAJARA, 2018, Por ser sábia conselheira. (TABAJARA, 2018,
p. 10). p. 8).
Certamente, a escrita de Auritha é uma As palavras de Auritha são de insubmis-
ação política pautada pela necessidade de são ao jugo do racismo, da homofobia, do
sobrevivência e resistência individual e co- machismo, do patriarcado, da misoginia, da
letiva. O posicionamento da escrita de um imposição dos saberes ocidentais. O livro se
texto literário e biográfico, autoficcional, se encerra com uma dedicatória para seu povo
apresenta em um contexto de diálogo e con- e para as pessoas que sofrem com o precon-
traposição de outras narrativas, de constitui- ceito. Então se reconhece em sua escrita um
ção de novos olhares. Assim, a proposição de bastião para essa luta pela sobrevivência e
cura apresentada não é apenas da dimensão por um Brasil mais equitativo, ao mesmo
física, mas das subjetividades e das relações, tempo em que se desenha um itinerário de
construção da identidade, a partir da poeti-
reconhecendo que “Feliz eu serei um dia/ Se
zação de memórias e da autoficção.
o preconceito acabar” (TABAJARA, 2018, p.
40). Em certo sentido é uma esperança de Conclusão
felicidade utópica, porém esse desejo pes-
As pesquisas nas áreas da Literatura e da
soal clama por resistência: “Se você é como
Antropologia no Brasil têm privilegiado a
eu,/ Sofre ou antes sofreu,/ Não desista de
interpretação das narrativas elaboradas por
lutar” (TABAJARA, 2018, p. 40) e por irman-
autoras e autores indígenas, a partir do povo,
dade: “Agradeço a Tupã,/ Por me guardar e da nação e da coletividade. Nesse contexto, a
inspirar./ Ao meu povo Tabajara,/ Pela vida escrita de Auritha Tabajara em Coração na
me ensinar” (TABAJARA, 2018, p. 40). Essa Aldeia, Pés no Mundo (2018) adiciona outros
vida aprendida com seu povo Tabajara se elementos para essa discussão, ao colocar
assemelha a de outras nações indígenas na em evidência a subjetividade de uma mu-
valorização da harmonia com o cosmo, com lher indígena. Não se trata de uma adesão ao
os homens e mulheres e com os outros seres. modelo de individualismo e à construção do
Essa integração com o universo a partir sujeito ocidental, mas de uma guinada para
dos saberes ancestrais fica evidenciada na o surgimento de nomes, de expoentes repre-
relação com a Mãe Natureza e no exemplo sentativos de uma ruptura com padrões de
de sua Mãe-avó como parteira, conselheira produção estética e de sua interpretação. A
e mezinheira (uma conhecedora das ervas autoficção escrita por Auritha destaca o seu
e de seus usos curativos). Auritha segue os nome próprio, constitui uma narrativa in-
passos da avó no conhecimento das plantas, trospectiva e, em ato contínuo, rasura esse
em um contato mediado por uma relação es- conceito em um jogo de vozes narrativas, im-
piritual, pela conexão com os espíritos e com bricadas com uma perspectiva de resistência
sonhos premonitórios. A conexão com as e re-existência de seu povo.

32 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022


Paulo Marcelino dos Santos; Elizabeth Gonzaga de Lima

Certamente, a interpretação de Coração COLONNA, V. Tipologia da autoficção. In: NORO-


na Aldeia, Pés no Mundo (2018), com base na NHA, J. M. G. (Org.). Ensaios sobre a autofic-
ção. Tradução Jovita Maria Gerheim Noronha
autoficção, não deve reduzir o texto a um so- e Maria Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte:
lilóquio, já que a subjetividade é construída Editora UFMG, 2014. p. 39-66.
em relação consigo mesma, com o mundo e
DOUBROVSKY, J. S. O último eu. In: NORONHA,
com os outros. O destaque que as pesquisas J. M. G. (Org.). Ensaios sobre a autoficção. Tra-
apontam para a coletividade e para o povo dução Jovita Maria Gerheim Noronha e Maria
em relação às pessoas indígenas não é sem Inês Coimbra Guedes. Belo Horizonte: Editora
sentido, por ser esse um aspecto distintivo UFMG, 2014. p. 111-125.
dos autóctones das Américas. No entanto, é KLINGER, Diana. Escritas de si e escritas do
necessária a abertura a outras abordagens outro: Autoficção e etnografia na literatura la-
tino-americana contemporânea. Tese de Douto-
que complementam esse viés. rado em Letras. Literatura Comparada. Rio de
Isso posto, a leitura de Coração na Aldeia, Janeiro: UERJ, 2006. Disponível em: <https://
Pés no Mundo (2018), sob o prisma da auto- www.bdtd.uerj.br:8443/handle/1/6168>.
ficção, de modo nenhum se configura na pre- Acesso em: 10 abr. 2022.
tensão de apagamento da identidade indíge- KRENAK, Ailton. Sobre índios & fronteiras: co-
na relacionada a um povo, mas serve para mentários e reflexões. In: LEETRA Indígena.
pensar em outras possibilidades e questionar Vol. 2, n. 2, 2013 - São Carlos: SP: Universidade
Federal de São Carlos, Laboratório de Lingua-
a supressão da subjetividade e do nome pró- gens LEETRA. Disponível em: <http://www.
prio de autoras e autores ameríndios. Essas leetra.ufscar.br/libraries/view?id=8488564>.
discussões se inserem em contextos como a Acesso em: 21 jul. 2019.
questão (em aberto) do que é Literatura, em MUNDURUKU, Daniel. O caráter educativo do
um contexto no qual o ficcional se mescla movimento indígena brasileiro. São Paulo:
com a experiência, e do conceito de autoria, a Paulinas, 2012.
partir do descentramento do sujeito, do ques- POTIGUARA, Eliane. Metade cara, metade
tionamento de sua objetividade e unicidade. máscara. Lorena: DM, 2018.
TABAJARA, Auritha. Coração na aldeia, pés no
Referências mundo. Lorena, SP: UK’A Editorial, 2018.
ALMEIDA, Maria Inês de. A escola na aldeia. In:
TESTA, Eliane Cristina; FERREIRA, Soraima
ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: ex-
Moreira Alves. Coração na aldeia, pés no mun-
periência literária em terra indígena. Belo Hori-
do: entrevista com Auritha Tabajara. Revista
zonte: Editora UFMG, 2009.
Letras Raras. Campina Grande, v. 10, n. 3, p.
BRAGANÇA, A. Sobre o editor: notas para sua 279-283, set. 2021. Disponível em: <http://re-
história. Em Questão, [S. l.], v. 11, n. 2, p. 219– vistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/RLR/article/
237, 2006. Disponível em: https://seer.ufrgs. viewFile/2159/1624#:~:text=%C3%89%20
br/index.php/EmQuestao/article/view/119. professora%20de%20Literatura%20Por-
Acesso em: 02 abr. 2022. tuguesa,%2FUFNT%2C%20C%C3%A2m-
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2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.
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tivo(1).pdf Acesso em: 02 abr. 2022. Aprovado em: 23/05/2022

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Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 23-33, jan./jun. 2022 33


Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Cordilheira de amora II: Detritos de


infância Guarani-Kaiowá
Bárbara Soeiro (UFBA)*
https://orcid.org/0000-0001-9545-6534

Resumo:
Cordilheira de amora II é um documentário/curta-metragem produzido pela
cineasta Jamille Fortunato, no ano de 2015. Gravado na aldeia Amambai, no
Mato Grosso do Sul, o curta acompanha a garotinha Guarani Kaiowá Cariane
Martins, de nove anos de idade. Em meio às ruínas de tijolos, barro seco, ma-
deira velha e eletrodomésticos abandonados, Cariane cria a sua realidade
imaginária. A partir de objetos descartáveis — detritos da existência adulta
— faz do seu quintal um experimento do mundo. Tomando como ponto de
partida a narrativa e a voz da criança, interessa-nos neste artigo debruçar-
mo-nos sobre o saber infantil simultaneamente associado ao saber indígena,
ambos saberes tidos como “menores” frente a um sistema-mundo moderno
que privilegia o conhecimento europeu — e, evidentemente, o conhecimen-
to adulto —, alçando-o ao falso patamar de conhecimento universal, preten-
samente capaz de abarcar toda a história e subjetividade dos povos. A fan-
tasia aparece aqui não mais como antítese da objetividade, racionalidade,
exatidão; surge, antes, como vetor potencial do que chamamos uma “poéti-
ca infantil-indígena”, combativa, em sua própria singularidade, na resposta
contra as amarras de uma “colonização da imaginação”.
Palavras-chave: Cordilheira de amora II; Guarani Kaiowá; Poética infantil
-indígena

Abstract:
Mulberry Range II: Detritus of childhood Guarani-
Kaiowá
Cordilheira de amora II [Mulberry Range II] is a documentary/short film
produced by filmmaker Jamille Fortunato, in the year 2015. Recorded in Al-
deia Amambai [Amambai village], in Mato Grosso do Sul, the short follows
the nine-year-old Guarani Kaiowá girl Cariane Martins. Amidst the ruins of
bricks, dry clay, old wood, and abandoned appliances, Cariane creates her
imaginary reality. From disposable objects — the detritus of adult exis-
tence — she turns her backyard into an experiment on the world. Taking
as a starting point the narrative and the voice of the child, our interest in

* Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia (PPGLIT-
CULT – UFBA). Email: barbarasoeiro05@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4759365498143873.

34 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022


Bárbara Soeiro

this article is to focus on children’s knowledge simultaneously associated


with indigenous knowledge, both of which are considered “minor” in the
face of a modern world-system that privileges European knowledge – and,
of course, adult knowledge –, raising it to the false level of universal knowl-
edge, supposedly able to encompass the entire history and subjectivity of
peoples. The fantasy appears here no longer as the antithesis of objectivity,
rationality, accuracy; rather, it appears as a potential vector of what we call a
“child-indigenous poetics”, combative, in its own singularity, in the response
against the chains of a “colonization of imagination”.
Keywords: Mulberry Range II; Guarani Kaiowá; Child-Indigenous Poetics.

Introdução: a cordilheira de
Cariane
Ñande mitãramo, opa rupi ñande jaiko.1 cumentário no Mostra Audiovisual de Dou-
Provérbio Guarani Kaiowá rados, o destaque de melhor curta no Júri
Esta cordilheira de amora é delícia. Popular no Fest Cine América do Sul e o de
Cariane Martins melhor documentário em curta-metragem
Aldeia Amambai – Mato Grosso do Sul, no É Tudo Verdade – Festival Internacional
fronteira do Brasil com o Paraguai; territó- de Documentários, sendo exibido e aclama-
rio pertencente aos povos indígenas Guarani do em circuitos de arte e festivais de cinema
-Kaiowá e Guarani-Ñandeva. Em cena, acom- por todo o país, como o Festival Internacio-
panhamos a garotinha Cariane Martins, de nal de Curtas de São Paulo e o Fest Cine Amé-
nove anos de idade, junto ao seu primo mais rica do Sul. 
novo, Clebison Martins. Os dois brincam com Filmado sem muitos recursos, com uma
folhas de bananeiras: para ela, as folhas ser- câmera de celular, o filme nos convida a se-
vem de guarda-chuva; para ele, servem de guir os passos de Cariane, ela quem, sem
chapéu. Alardeiam o quintal e assopram o qualquer interrupção ou aparente indução
pedaço do caule partido da planta, emitindo da equipe de filmagem — não há qualquer
um sonante de uivo: — “Aú-aú-aú-ú-ú”.  indício de um roteiro prévio a ser seguido
Assim, inicia-se o documentário e curta- —, conta-nos sobre o seu cotidiano imagi-
metragem de aproximadamente 12 minutos nário em meio a tijolos, barro seco, madei-
de duração, dirigido e montado pela cineas- ra velha e eletrodomésticos abandonados.
ta baiana Jamille Fortunato no ano de 2015. Menos como quem nos explica, e mais como
Cordilheira de Amora II recebeu, no ano se- quem nos quer contar histórias, Cariane
guinte ao da data de lançamento, diversos narra a trajetória de mudança vivenciada
prêmios2, como o 1º Lugar na Categoria Do- por ela e seus pais, ao migrarem da anti-
ga região onde moravam para esta, a qual,
1 “Quando somos crianças, vivemos por toda parte”. agora, precisam instalar-se precariamente.
2 Cordilheira de Amora II foi finalista do Grande Insatisfeita com a sua nova morada e im-
Prêmio de Cinema Brasileiro, disputando, com
mais seis filmes, na categoria de melhor curta- possibilitada de voltar à antiga — uma vez
metragem documentário. que, segundo a mãe, a casa de antes “já tem

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022 35


Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá

outros donos” —, ela se decide por um ousa- clandestino — aquilo que transcorre fora do
do projeto, o de montar a sua “casa própria”. olhar e da vigilância do adulto-responsável
Em suas palavras: —, mas, também, pelo movimento ativo de
(Cariane)3: Quando eu me mudei pra cá, não fundação de um espaço outro, um espaço de
tinha luz, não tinha televisão, não tinha nada. e para a infância, com o seu ordenamento e
A Franciele uma vez deitou e disse:  as suas regras de funcionamento próprios.
— Mamãe, quero ir de novo na nossa casa A rotina que Cariane estabelece e com-
velha! partilha com o seu primo Clebison, com a
— Agora tem dono, outro. Franciele e com os “seus amigos invisíveis”5
é uma espécie de reescrita anárquica do
O papai comprou, a mamãe mesmo comprou
tijolo pra fazer a casa e eu peguei a metade. dia a dia adulto. Nela, fazem café “de men-
Ele não viu que eu peguei a metade. E quan- tirinha” e tomam quantas vezes quiserem,
do eu peguei, ele disse:  servidos em copos de barro; chegam tarde,
— Nossa, leva de novo tudo lá, hein? dormem, acordam e dormem novamente
em dias que passam e se repetem quase in-
— Eu não vou levar de novo.
distintamente durante uma única tarde; na
Daí eu: O que que eu vou fazer com o tijolo? “biblioteca” da casa, contanto que tranque a
Aqui não tem nada…  porta inexistente, Clebison pode deitar-se à
— Já sei! — eu disse — Vou fazer a minha vontade, disposto a ler as revistinhas Avon e
casa própria! os encartes de produtos do supermercado:
A sua “casa própria”, conforme descobri- (Cariane): Quer café?
mos em seguida, é composta de materiais (Clebison): Não.
que, à primeira vista, não teriam mais vida (Cariane): Tá bom. Eu vou fazer café só pra
ou utilidade prática. São utensílios mortos, mim!
restos de uma existência adulta, os quais
(Clebison): Eu vou na biblioteca.
passam por um processo de transforma-
(Cariane): Hum, tá bom. Não esquece de
ção e reinvenção, com base em uma lógica
trancar, hein.
particular: a lógica da criação infantil. Ora,
eis neste gesto a força da transgressão das Dá-se assim a brincadeira e, em meio
crianças. Cariane ter pego escondido os ti- a ela, o pretexto para a filmagem do cur-
jolos do pai e não devolvê-los4 revela-se ta-metragem/documentário. Nos minutos
enquanto ato (em si) subversivo não ape- finais, Cariane nos leva às imediações da
nas pelo potencial daquilo que é recôndito, mata local, afastando-nos da sede do quin-
tal de seus pais; segundo ela, trata-se ali
3 Trechos como este e os demais foram transcritos
de sua “Cordilheira de Amora”. A vegetação
a partir do documentário, respeito a variação lin-
guística usada por Cariane Martins e seu primo. O — esparsa e do tipo chaco —, é pouco ve-
travessão, por vezes, marca a alternância de falas
entre Cariane e seu pai, Cariane e seus amigos, 5 Durante o curta-metragem, Cariane remete a
etc. Alternância esta que se dá no monólogo mes- outros nomes próprios de amigos que suposta-
mo da menina. Optou-se por marcar o enuncia- mente participam de suas brincadeiras e inven-
dor a partir da indicação entre parêntese. ções; temos, por exemplo, a referência a uma
4 Destaca-se aqui, também como traço subver- garota chamada Katiusse, ao final do vídeo. Não
sivo, a teimosia da menina. Mesmo quando in- sabemos se essas pessoas existem de fato, ou
querida por adultos, mantém-se resoluta em não — para o universo da fabulação, na verdade,
suas decisões. isso pouco ou nada importa.

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Bárbara Soeiro

rossímil às condições de cultivo da amora que é toda de amora. Se chama Cordilheira


— fruta preferencialmente de clima ameno. de Amora. Porque é tudo invisível! A câmera
Este fato, contudo, em nada impossibilita é invisível… Katiusse tá filmando assim e eu:
a imaginação da menina, afinal: “é tudo in- — Ah, isso daí é muito mau. Tem que pensar
visível!”. A ideia de fazer um filme intitula- mais criativa! 
do “Cordilheira de Amora II”6 surge, neste — Tá bom.
ponto, como vontade de dar sequência a um O final do filme é que a mau que vencia. Que
primeiro filme, gravado anteriormente por estava pensando que estava vencendo. Daí a
Cariane e pela sua amiga Katiusse: Katiusse desceu e pegou uma árvore e bateu
na cabeça. E desmaiou. Daí a Cordilheira de
(Cariane): Quando eu estava indo na escola,
Amora, nós chegamos aí. Que é lá. (Aponta).
meu amigo disse:
Então nós chegamos e eu disse:
— Por que você fala tanto sozinha?
— ESSA CORDILHEIRA DE AMORA É DELÍ-
— Porque eu imagino, meu amigo. CIA!
— Que tal nós fazermos um filme invisível? — E agora nós pensamos em fazer dois, dois
É. Muito bom, hein? Vamos na nossa flores- filmes. Agora nós pensamos em fazer Cordi-
ta? Que é uma cordilheira assim invisível, lheira de Amora II.
Figura 1 - Sala de estar

(Cordilheira de Amora II, Jamille Fortunato, 2015). Disponível em: http://por-


tacurtas.org.br/filme/?name=cordilheira_de_amora_ii

Figura 2: Mesa de cabeceira, porta retrato

(Cordilheira de Amora II, Jamille Fortunato, 2015). Disponível em: http://por-


tacurtas.org.br/filme/?name=cordilheira_de_amora_ii

6 Este primeiro filme, evidentemente, é, ele tam-


bém, parte da brincadeira. Filme “de mentiri-
nha”, inventado espontameante pela menina.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022 37


Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá

Figura 3: Objetos diversos

(Cordilheira de Amora II, Jamille Fortunato, 2015). Disponível em: http://por-


tacurtas.org.br/filme/?name=cordilheira_de_amora_ii

Dos detritos benjaminianos ças sem deixarmos que a nossa atividade,


com tudo aquilo que são os seus requisitos e
O exercício (ou brincadeira) de reelabora- instrumentos próprios, encontre o caminho
ção infantil dos detritos do mundo adulto que leva a elas, e só esse (BENJAMIN, 2013,
foi percebido, no início do século XX, pelo p. 16, grifo meu).
filósofo alemão Walter Benjamin nas suas O pequeno mundo dentro do grande, so-
rememorações ensaísticas de infância. Num bre o qual nos fala Benjamin pode ser vis-
dos primeiros e breves excertos, de Rua de to — século e milhas de distância — no ex-
Mão Única: Infância Berlinense 1900, Esta- perimento de mundo fundado por Cariane
leiro7, Benjamin descreve a atividade das Martins, em seu quintal. Quando transforma
crianças em meio aos escombros ou mate- uma caixa de sabão em pó Ypê8 numa tele-
riais de construção: visão, ou quando enxerga num galinheiro
As crianças gostam muito particularmen- vazio um ônibus, ou ainda quanto recupera
te de procurar aqueles lugares de trabalho um forno velho para servir de mesinha de
onde visivelmente se manipulam coisas. computador, a menina propõe relações no-
Sentem-se irresistivelmente atraídas pe- vas e incoerentes, a partir de objetos des-
los desperdícios que ficam do trabalho da
cartáveis, resíduos esquecidos, postos de
construção, da jardinagem ou das tarefas
domésticas, da costura ou da marcenaria. lado. Estas composições, no entanto, não
Nesses desperdícios reconhecem o rosto são notadas. Passam geralmente desper-
que o mundo das coisas volta para elas, pre- cebidas aos olhos dos mais velhos — para
cisamente e apenas para elas. Com eles, não quem, tudo o mais não passa de restos, isto
imitam as obras dos adultos, antes criam é, se resume a lixo:
novas e súbitas relações entre materiais de
tipos muito diversos, por meio daquilo que,
brincando, com eles constroem. Com isso, as 8 Uma análise de como as marcas, logotipos e
crianças criam elas mesmas o seu mundo de signos do capitalismo se inserem no “pequeno
mundo” imaginário de Cariane pode ser vista no
coisas, um pequeno mundo dentro do gran-
artigo de Gregório Albuquerque sobre o curta-
de. Não se devem perder de vista as regras metragem. In.: ALBUQUERQUE, Gregório Galvão
desse pequeno mundo das coisas quando se de. Cordilheira de amoras II e o extracampo ima-
pretende criar especificamente para crian- ginário social no exercício da fotografia do invi-
sível. Avanca Cinema Journal. Avanca, Portugal,
7 Canteiro de obras, em outras traduções. p. 610-617, outubro de 2021.

38 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022


Bárbara Soeiro

(Cariane): Ah, então eu não te mostrei uma infância, e, levando em conta também, a fra-
coisa! gilidade da própria posição histórica de Wal-
Meu papai e minha mamãe não sabem que ter Benjamin — um judeu e intelectual de
eu brinco ali. esquerda que, já sem nenhum recurso, pre-
Vem comigo! Tem duas coisas. Aqui… Aqui cisou recorrer ao suicídio em meio à perse-
eu brinco como guição nazifascista —, devemos ter em conta
ônibus… que se trata ainda de um autor de base his-
tórica e geográfica determinada, a quem, é
E é aqui mesmo que a mamãe disse assim:
claro, pôde ter permitido escapar algo frente
— Nossa, sua loja é um lixo! a vivências tão distantes e distintas das suas.
[...] Ademais, é impossível ler qualquer ex-
Mamãe jogou o guarda-roupa fora. periência infantil apartando-a totalmente
de sua realidade sócio histórica, pois, é em
Eu peguei, peguei e eu tirei toda a parafusa.
meio à sua comunidade — dentro de uma
— Agora aqui é meu! — eu disse e trouxe subjetividade marcada com um imaginário
tudo para aqui.
específico — que a criança irá crescer e se
Daí a mamãe disse: desenvolver. Fato este que o próprio Benja-
— Isso aqui é lixo.  min nos alerta, inclusive, ao nos dizer que
— Não. Isso é brinquedo. elas, as crianças:
Não constituem nenhuma comunidade iso-
As crianças, entretanto, são incansáveis
lada, mas antes fazem parte do povo e da
e determinadas em seus construtos, posto
classe a que pertencem. Da mesma forma,
que possuem predisposição para o ínfimo, os seus brinquedos não dão testemunho de
isto é, sabem recolher do mais modesto ma- uma vida autônoma e segregada, mas são
terial o germe para uma inesperada profu- um diálogo de sinais entre a criança e o povo
são de elaborações: (BENJAMIN, 2017, p. 94).
Nada é mais adequado à criança do que irma- Os gestos de Cariane são, deste modo,
nar em suas construções os materiais mais também os gestos de uma infância Guarani
heterogêneos — pedras, plastina, madeira, -Kaiowá; o que, em nosso percalço epistêmi-
papel. Por outro lado, ninguém é mais casto co, implica a necessidade de nos direcionar-
em relação aos materiais do que as crianças:
mos à cosmologia de sua cultura local. Por
um simples pedacinho de madeira, uma pi-
cosmologia entendemos aqui, a visão cole-
nha ou uma pedrinha reúnem na solidez, no
monolitismo de sua matéria, uma exuberân- tiva de si e do mundo — e de si no mundo
cia das mais diferentes figuras (BENJAMIN, — resultante do mosaico de representações
2017, p. 92). e produções culturais expressas através das
mais diversas manifestações e linguagens.
Se os fragmentos e observações acima
Posto isso, pensaremos o saber infantil arti-
tão acertadamente captam o estado poético
culado ao saber Guarani-Kaiowá a partir da
da brincadeira infantil, não podemos perder
voz ativa da criança indígena. 
de vista, contudo, o seu lugar de enuncia-
ção, isto é, a posição epistêmica contígua à Guinada decolonial: o saber
alternativa teórica em questão. Sem deixar
de considerar toda a importância do legado indígena e o saber infantil
benjaminiano destinado à reflexão sobre a Pensar a partir de uma guinada decolonial

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022 39


Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá

significa renunciar ao mito de que os sabe- sultados são, no entanto, o mesmo: a evasão
res do norte são os únicos saberes possíveis. do reconhecimento dos outros como seres
Tal mito se constitui com base em uma visão humanos totalmente completos (MALDO-
NARO-TORRES, 2008, p. 79).
etnocêntrica herdada do colonialismo des-
de a sua estrutura “mais clássica” — aquela O que Walter Mignolo, em seu Os esplen-
ancorada em esferas jurídico-políticas e ad- dores e misérias da ciência: colonialidade,
ministrativas do Estado, uma vez que novas geopolítica do conhecimento e pluriversali-
e engenhosas formas de colonialismo vão se dade epistêmica (2003) chama de “geopolí-
instituindo, independentemente do desapa- tica do conhecimento” aponta, justamente,
recimento direto desses setores. Nas pala- para a subordinação dos saberes no mun-
vras de Maldonado Torres: do moderno, dado, dentre outros fatores, a
A colonialidade sobrevive ao colonialismo. hierarquia das línguas — nem precisamos
É mantida viva [...] nos livros, nos critérios nos perguntar qual o lugar destinado às lín-
de desempenho acadêmico, nos padrões guas da família Guarani, por exemplo, estas
culturais, no senso comum, na autoimagem quais, tantas vezes e ainda hoje, sequer são
dos povos, nas aspirações de si mesmo, e em reconhecidas como línguas nacionais, mes-
tantos outros aspectos da nossa experiência mo em trabalhos linguísticos de autores
moderna. De certa forma, como sujeitos mo-
respeitáveis9. Neste sentido, ele nos diz que
dernos respiramos a colonialidade a toda a
hora e todos os dias (MALDONARO TORRES, “o conceito moderno de conhecimento e de
2007, p. 243). ciência foi concebido e usado para descartar
conhecimentos e formas de saber inscritas
Se, agora, o apartheid dos povos aparen-
ta ser dissimulado em sua expressão mais 9 Em Preconceito Linguístico: o que é, como se faz,
Marcos Bagno destaca como o primeiro dos mi-
cotidiana, declara-se, em contrapartida,
tos criados acerca do português brasileiro, o de
explicitamente através do racismo epistê- sua suposta “unidade”. A ideia de que o portu-
mico. A dominação e subjugação de povos guês brasileiro apresenta uma “unidade sur-
sobre outro dá-se, portanto, não apenas no preendente” é posta pelo autor como um dos
mais graves preconceitos arraigados em nossa
nível econômico, de “classe”, mas, também, cultura. Tal ideia, é difundida mesmo por inte-
nos domínios culturais e intelectuais: ao se lectuais como Darcy Ribeiro, que, no seu impor-
considerar determinadas produções conhe- tante estudo sobre o povo brasileiro, escreve: “É
de assinalar que, apesar de feitos pela fusão de
cimentos científicos ao passo que, por ou- matrizes tão diferenciadas, os brasileiros são,
tro lado, outros saberes — sabemos quais hoje, um dos povos mais homogêneos linguísti-
— são relegados ao âmbito da fantasia, do ca e culturalmente e também um dos mais inte-
grados socialmente da Terra. Falam uma mesma
domínio do excêntrico ou ingênuo. O racis- língua, sem dialetos” [Folha de S. Paulo, 5/2/95].
mo epistêmico, deste modo, ao deslegitimar Para combatê-lo, não devemos esquecer que a
o local de seriedade da produção intelectual língua portuguesa falada no Brasil possui um al-
tíssimo grau de diversidade e variabilidade. No
de culturas específicas põe em questão a hu-
mais, ainda hoje, calcula-se, além do português e
manidade de tais grupos sociais: da língua brasileira de sinais, tidas como oficiais,
Como todas as formas de racismo, o racismo mais de 200 línguas faladas, por brasileiros e
imigrantes, no nosso extenso território nacional.
epistêmico está relacionado com a política e
Cf. BAGNO, M. Mito n° 1: “A língua portuguesa no
a sociabilidade. O racismo epistêmico des- Brasil apresenta uma unidade surpreendente”.
considera a capacidade epistêmica de certos In.: BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que
grupos de pessoas. Ele pode estar baseado é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
na metafísica ou na ontologia, mas seus re- p. 15-19.

40 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022


Bárbara Soeiro

em línguas vernáculas não ocidentais e co- pensá-los, de modo estratégico e articulado,


loniais” (MIGNOLO, 2004, p. 670).  para além das armadilhas de matrizes colo-
O sistema-mundo moderno consolida-se, niais do poder? 
no Brasil, desde a invasão dos portugueses a Os estudos históricos, sociológicos e li-
uma terra já povoada e abastada em rique- terários da infância que preponderam nas
zas — não apenas naturais, como habitual- universidades e instituições científicas são,
mente se enfatiza — e, na América de modo ainda hoje, majoritariamente voltados a um
geral, desde a chegada de Cristóvão Colom- modelo de historização da criança europeia,
bo ao “Novo Mundo”. São cerca de quinhen- derivado de um período da história ociden-
tos anos, portanto, de uma atroz hegemonia tal, o medievo, que a nós brasileiros, indíge-
europeia sobre o nosso imaginário. A colo- nas ou não-indígenas, não nos satisfaz uni-
nização da nossa imaginação10, entretanto, camente. Neste mesmo momento, contudo,
não é suficiente para exterminar um conhe- pesquisadores vêm se esforçando para a
cimento que é ascendente, e que escapa por demarcação e propagação de uma produção
inusitadas vias, sobretudo nos espaços de de conhecimento centrada nas experiências
memória das comunidades tradicionais. de outros povos, epistemologicamente mar-
A “supremacia epistêmica” do mundo ginalizados, como por exemplo os povos in-
Ocidental e europeu faz parte de um proje- dígenas Guarani Kaiowá, no Brasil. 
to de esforço de dominação da história pelo Crê-se que, daí, despontem simultanea-
ponto de vista dos colonizadores durante a mente registros e narrativas de outras pos-
modernidade. Mignolo prossegue, dizendo- sibilidades de vivência àquele período etá-
nos que: rio denominado infância. Estes estudos re-
Uma das razões para só ver metade da his- querem, porém, a convicção de que a ideia
tória é que esta sempre foi contada do pon- de objetividade, tal como a concebemos na
to de vista da modernidade. A colonialidade tradição científica, não se sustenta enquan-
era o espaço sem voz (sem ciência, sem pen- to verdade universal diante de uma teoria
samento, sem filosofia) que a modernidade em que se põe como problema o “lugar de
tinha, e ainda tem, de conquistar, de domi-
enunciação”. Em casos como o nosso, isso
nar (MIGNOLO, 2004, p. 676).
implica a urgência de se falar junto ou com a
Se entendermos, por conseguinte, o ra- criança indígena, e não da ou sobre ela.
cismo epistêmico enquanto vetor do siste-
ma-mundo moderno, como podemos ler as Considerações finais: espaço e
crianças e, mais especificamente, as crian- tempo indígenas, espaço e tempo
ças indígenas enquanto sujeitos que produ-
zem cultura e saber — um saber não adulto- da criança
cêntrico, não ocidental? Sendo ambos os sa- Ver nos espaços o que todo mundo viu, mas
beres — o saber infantil e o saber indígena pensando o que ninguém pensou.
— considerados “menores”, como podemos
Muniz Sodré
10 A expressão “colonização da imaginação”, ou “co- Pode-se dizer de nós (brancos, não índios),
lonização do imaginário” remete às discussões então, o que o narrador diz dos maus caça-
empreendidas por Serge Gruzinski, em seu A co-
lonização do imaginário: Sociedades indígenas e
dores [..], aqueles que costumam guardar
ocidentalização no México espanhol. Séculos XVI para si as presas que matam (e por isso os
-XVIII (2003). animais se furtam a eles) — que “apesar de

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022 41


Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá

terem os olhos abertos, não enxergam nada”. (Cariane): Aqui eu, nós estamos imaginando
Eduardo Viveiros de Castro  Chapeuzinho
Vermelho e aqui é Três porquinhos. 
“Ñande mitãramo, opa rupi ñande jaiko”,
um antigo provérbio Guarani, diz-nos sobre Aqui diz: Cuidado lobo mau, lobo mau, lobo
mau... 
a plasticidade do ser-criança, em tradução:
“quando somos crianças vivemos por to- Ah, aqui está o lobo mau chegando... Sentiu...
das as partes”. Longe de pretendermos aqui o porquinho...
exaurir toda a significação destas palavras, E esta é a receita de comida que estamos fa-
podemos lê-las, todavia, pensando a respei- zendo... Aqui o bolo... 
to das temporalidades e espacialidades sin- Eu disse: vamos fazer isso? Daí nós vamos
gulares à criança indígena no exercício de na cozinha e fazemos.
sua brincadeira e fabulação.   Usando a imaginação, as crianças conse-
A brincadeira infantil opera, logicamen- guem ultrapassar barreiras intransponíveis
te, numa dimensão temporal e de espacia- à lógica logocêntrica que nos foi imposta
lidade outra: algo como um intervalo des- como verdadeira e que insistimos em assu-
contínuo entre o passado daquilo que nos mir, quando desejamos crescer para, enfim,
cerca — a memória contida em cada objeto tornamo-nos adultos, homens e mulheres
de cultura; o passado de cada homem e mu- “grandes”, seres enfim completos, acabados.
lher, menino e menina — e o futuro daquilo Deste modo, pode-se dizer que a lógica in-
que nos vigia — a Esperança dos mundos, fantil opera-se na dimensão do fantasioso,
guardada por Ñanderu, o “nosso pai divino”. somente se entendermos a Fantasia não no
A brincadeira é, assim sendo, um eterno es- sentido a que é comumente associada — ao
tar no mundo: a presentificação dos tempos descabido e ao devaneio insensato, à antíte-
antepassados e porvindouros, e a afluência se daquilo que é racional, verificável. Antes,
dos espaços remotos e contíguos. Eis o que devemos entendê-la como um agenciamen-
chamamos aqui, ao menos provisoriamente, to, uma ação poética sobre a realidade: um
de uma poética infantil-indígena. saber singular à infância, que todavia pode-
 Quando monta uma escadinha de tijo- mos resguardar conosco vida adentro. 
los — cinco tijolos debaixo de três tijolos A brincadeira, então, pode ser lida en-
debaixo de único tijolo (o topo da escada) quanto episteme, uma vez que não se trata
—, a menina Cariane não precisa, necessa- de mero escapismo, mas da fundação de um
riamente, chegar a algum lugar ao subir ou universo próprio da e para a infância. Quan-
ao descê-la. Do mesmo modo, ao deitar-se do Cariane Martins constrói a sua “casa pró-
sobre a tábua de madeira (a sua cama), fin- pria” usando de materiais antes descartados
gindo estar dormindo, o menino Clebison pelos seus pais (a madeira, o barro seco, as
não precisa saber se é noite ou se é dia. Li- caixas de papelão, os restos de construção),
gar e desligar a televisão de caixa de sabão a menina não está fugindo da sua realidade,
em pó é mais importante do que assisti-la mas fazendo, justamente, o contrário: está
e, para ser contada, a história do Lobo não ligando-se amorosamente ao que a rodeia
precisa realmente estar escrita nas páginas — no espaço em que se encontra e no tem-
das revistinhas e dos encartes que eles têm po presente —, num gesto inventivo, próxi-
disponíveis em sua “biblioteca”: mo ao intempestivo nietzschiano, “ou seja,

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Bárbara Soeiro

contra o tempo, e com isso, no tempo e, es- Fortunato. Mato Grosso do Sul: Espaço Imagi-
peremos, em favor de um tempo vindouro”. nário, Tenda dos Milagres, 2015. 12 minutos.
Disponível em: http://portacurtas.org.br/fil-
A fantasia, por fim, aparece aqui não mais
me/?name=cordilheira_de_amora_ii. Acesso
como o limbo do exótico para o qual os sa- em: julho de 2019.
beres não-ocidentais são subjugados, antes,
GRUZINSKI, S. A colonização do imaginário.
surge como potência combativa contra as Sociedades indígenas e ocidentalização no
amarras de uma colonização da imaginação. México espanhol. Séculos XVI-XVIII. Tradu-
O tempo e o espaço das brincadeiras da me- ção de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Com-
nininha Guarani-Kaiowá são, assim, alheios panhia das Letras, 2003.
à lógica ocidental e totalizante, esta qual MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do
prediz, ao funcionamento do todo, uma se- ser e a geopolítica do conhecimento. Moderni-
quência linear, exaustiva, enclausurante.  dade, império e colonialidade. Tradução de Inês
Martins Ferreira. Revista Crítica de Ciências
Transpondo Muniz Sodré do contexto Sociais. Coimbra, v. 1, n. 80, p. 71-114, março
em que se situa, os terreiros de candomblé, de 2008.
para o cenário de Cariane, e, relacionando
MALDONADO-TORRES, Nelson. On the colonia-
-os ainda à fala de Viveiro de Castros, em seu lity of being: Contributions to the development
prefácio à Queda do Céu, de David Kopenawa of a concept. Cultural Studies, v. 21, p. 240-270,
e Bruce Albert: é preciso termos olhos para março de 2007. 
ver. Assim fazem as crianças há muito tem- MIGNOLO, W. Os esplendores e as misérias da
po, dentro das matas, inteiramente livres no ‘ciência’: Colonialidade, geopolítica do conheci-
modo em que concebem e experimentam mento e pluri-versalidade epistémica. In.: Boa-
a natureza, o Todo e o particular. Aprenda- ventura de Sousa Santos (org.), Conhecimento
prudente para uma vida decente: um discur-
mos, pois, junto e com elas. so sobre as ciências revisitado. 2 ed. São Pau-
lo: Cortez, 2004. p. 667-710.
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ALBUQUERQUE, Gregório Galvão de. Cordilhei- sentações das crianças Kaiowá-Guarani:
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Brasil apresenta uma unidade surpreendente”.
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In.: BAGNO, M. Preconceito linguístico: o que
- 144, maio de 2017.
é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2007.
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BENJAMIN, W. História cultural do brinquedo.
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brinquedo e a educação. Tradução de Marcus
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de mão única, infância berlinense: 1900. Ed.
e trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica SILVA, A. L. de A.; MACEDO, A. V. L. da S.; NUNES,
Editora, 2013. p. 16. A. (Org.) Crianças indígenas: ensaios antro-
pológicos. São Paulo: Global/MARI/FAPESP,
CORDILHEIRA de amora II. Direção: Jamille 2002.  

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 34-44, jan./jun. 2022 43


Cordilheira de amora II: Detritos de infância Guarani-Kaiowá

SCHIMTZ, O. I. Documentários antropológi- VIVEIROS DE CASTRO, E. B. O recado da mata.


cos indígenas: três exemplos para pensar- In.: KOPENAWA, D. & ALBERT, B., A queda do
mos culturas as infantis. 2019. Monografia céu: palavras de um xamã yanomami. São
(Licenciatura em Pedagogia) – Faculdade de Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Educação – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2019.
Recebido em: 09/05/2022
SODRÉ, Muniz A. C. Pensar nagô. Rio de Janei-
ro: Vozes, 2017. Aprovado em: 30/05/2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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Francisco Bezerra dos Santos

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

A literatura indígena dos Maraguá:


da produção à publicação
Francisco Bezerra dos Santos (UFPR)*
https://orcid.org/0000-0002-2983-5410

Resumo:
Este trabalho apresenta considerações sobre a produção literária dos Mara-
guá. Essa etnia se configura na atualidade como a maior produtora de lite-
ratura indígena do Estado do Amazonas, com cinco escritores em atuação.
Nossas considerações abrangem o processo de produção dessas narrati-
vas, oriundas da oralidade e dos saberes ancestrais, e a publicação dessas
obras. Nosso estudo apresenta ainda um mapeamento das obras publicadas
por essa etnia e discussões sobre os incentivos e os desafios enfrentados,
que vão desde o não reconhecimento dessa literatura pelo campo literário,
até questões concernentes à situação histórico-social desses escritores. O
referencial teórico foi constituído, sobretudo, pelas concepções de Souza
(2003), Almeida e Queiroz (2004), Santos (2020) e outros estudiosos que
compreendem essa literatura como um espaço fecundo para se pensar as
questões de representatividade na contemporaneidade.
Palavras-chave: Literatura indígena; Maraguá; Ancestralidade.

Abstract:
The indigenous literature of the Maraguá: from
production to publication
This paper presents considerations about the literary production of the
Maraguá. This ethnic group is currently configured as the largest produc-
er of indigenous literature in the state of Amazonas, with five active writ-
ers. Our considerations cover the production process of these narratives,
which come from orality and ancestral knowledge, and the publication of
these works. Our study also presents a mapping of the works published by
this ethnic group and discussions about the incentives and challenges faced,
ranging from the non-recognition of this literature by the literary field, to
issues concerning the historical and social situation of these writers. The
theoretical reference was constituted, above all, by the conceptions of Souza
(2003), Almeida and Queiroz (2004), Santos (2020) and other scholars who
understand this literature as a fertile space to think about the issues of rep-
resentativity in contemporary times.
Keywords: Indigenous Literature; Maraguá; Ancestry.

* Doutorando em Letras – Estudos Literários, pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e Mestre em
Letras e Artes pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. E-mail: francisco.santos362@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5006822830827676.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022 45


A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

Considerações iniciais dedicadas a leitores em formação. Os auto-


res entendem que as novas gerações preci-
A produção de livros já é uma realidade para
sam ter contato com a diversidade cultural
muitos povos indígenas no Brasil. Todo esse
indígena brasileira, e isso pode ser feito por
processo de registro das narrativas que an-
meio do livro.
tes faziam parte unicamente do âmbito oral,
Diante disso, neste trabalho, é nosso ob-
é parte do interesse de autoridades étnicas
jetivo discutir o processo de produção e pu-
e intelectuais/escritores que enxergam esse
blicação das obras dos escritores Maraguá.
material como uma forma de diálogo com a
Nossas discussões buscam elucidar ainda as
sociedade hegemônica.
características dessa literatura emergente,
O primeiro passo que contribuiu gran-
assim como as condições histórico-sociais
demente para alavancar essa produção foi
desse grupo de escritores. Para efeito de
a conquista de uma educação diferenciada
sistematização, o trabalho ficou organiza-
que priorizasse a manutenção de seus idio-
do da seguinte maneira: incialmente apre-
mas originários e suas identidades. Mas é
sentamos os aspectos gerais dos Maraguá,
preciso lembrar, que isso foi conquistado
e de forma cronológica situamos a entrada
há pouquíssimo tempo, mais precisamente
de cada escritor no mercado literário, bem
em 1988, com a nova versão da Constitui-
como realizamos o levantamento dos títu-
ção Brasileira, que contou com a partici-
los publicados pelos escritores da referida
pação de indígenas na sua elaboração. Do
etnia. E não menos importante, trouxemos
mesmo modo, outras conquistas também
considerações sobre o apoio e os impasses
reforçaram os direitos educacionais das co-
vivenciados por esses escritores para a pu-
munidades tradicionais. Nesse contexto, os
blicação de suas obras, assim como a busca
professores indígenas começam a registrar
por espaço e autoafirmação por meio das
os mitos, os rituais, os cânticos e outras ma-
publicações.
nifestações artísticas para uso pedagógico,
mas que se expande para além da escola e Os Maraguá e a produção de
da aldeia a partir de projetos para legitimar
essa literatura.
literatura
Os escritores da etnia Maraguá iniciaram Antes de adentrarmos propriamente nas
suas publicações a partir do ano 2000 com discussões sobre a produção literária Mara-
o protagonismo de Yaguarê Yamã, conside- guá, a fim de compreendermos melhor esse
rado como um dos incentivadores dos novos contexto, convém conhecermos a etnia que
escritores do povo. Hoje, a etnia conta com dá base a esse grupo de autores. Para tanto,
cinco escritores em atividade, que além da algumas obras dos próprios escritores fo-
literatura atuam ministrando palestras, le- ram úteis, uma vez que nelas é possível re-
cionando e militando na causa indígena. tirar muitas informações para se entender o
A literatura produzida por esse grupo panorama atual dessa etnia.
prioriza a recriação dos mitos originários da Os Maraguá estão situados hoje na re-
etnia, os símbolos coletivos presentes nas gião do rio Abacaxis, nas proximidades dos
ilustrações, entre outras informações para municípios Nova Olinda do Norte e Borba,
a compreensão da organização social desse no Amazonas. Esse território é denominado
grupo. Suas obras são em grande maioria de Maraguapajy, o país dos Maraguá, com

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Francisco Bezerra dos Santos

uma área de aproximadamente 700 mil hec- nia Sateré-Mawé, isso é comprovado com
tares. Esse grupo étnico é de origem Aruak, a prática do ritual da tucandeira, Waiperiá.
com forte influência Tupi. Seus integrantes Todavia, os Maraguá buscam através de
falam a língua Maraguá, um idioma misto de ações resgatar a cultura ancestral por meio
Nheengatu e Aruak, e sua cultura se baseia de práticas como o ritual Wakaripé reaviva-
na antiga cultura tapajônica. do pela etnia.
A nação Maraguá se distribui em qua- A arte de contar histórias é aprimorada
tro aldeias, todas situadas às margens do desde cedo entre os indivíduos dessa etnia.
rio Abacaxis. Sua população nessa área é O Morõgetáçara (contador de histórias) é
de pouco mais de 350 pessoas. A divisão do uma personalidade querida e requisitada
grupo é feita por clãs, mais precisamente nas rodas de conversas, de trabalhos co-
em seis principais: Piraguáguá, Çucuyeguá, munitários e festejos. Suas histórias de as-
Pirakêguá, Tawatoguá, Aripunaguá, Tawa- sombrações são temas sempre presentes
toguá e Yaguareteguá, cada um deles re- nas obras produzidas pelos escritores dessa
presentado por um animal, porém, a nação etnia.
como um todo tem como símbolo o Guarun- Nesse compasso, entende-se que uma
guá, o peixe-boi. das formas de manutenção e propagação das
A história da etnia Maraguá foi descrita histórias desse grupo é através da oralidade.
no livro Maraguápéyára (2014), organizado Na mão dos escritores Maraguá, a oralidade
por Yaguarê Yamã, Elias Yaguakãg, Roní Wa- torna-se um dos elementos constituintes de
siry Guará e Uziel Guaynê. A obra é dividida suas literaturas. É por meio desses contado-
em oito capítulos com os seguintes temas: a res de histórias, que os escritores reescre-
origem da etnia, a cultura da caça e da pes- vem os seus mitos. Portanto, nesse processo
ca, cultura e sociedade, a cultura material, a tradutório, devemos compreender a orali-
cultura agrícola, a cultura do sagrado, a cul- dade não como a ausência da escrita, assim
tura das histórias de assombração e cultura como a escrita não é um fenômeno que se
infantil. sobrepõe à oralidade.
Na referida obra, é possível compreender Os aspectos políticos da etnia também
que a manutenção da etnia é marcada por devem ser enfatizados. Os Maraguá organi-
manifestações que reforçam os laços em co- zam-se em torno de duas associações: a As-
munidade. Tais manifestações são caracteri- sociação do Povo Indígena Maraguá (ASPIN)
zadas por mudanças nas etapas de vida dos e a Associação de Mulheres Indígenas Mara-
indígenas Maraguá em sociedade, como por guá (AMIMA). O objetivo de se organizarem
exemplo, os ritos de passagem ainda hoje em associações é fortalecer a luta pela de-
praticados pela etnia, a saber: o Wakaripé, marcação de seu território.
ritual para tornar o indígena do sexo mascu- Entre os Maraguá, o ato de produzir lite-
lino adulto, o Gualipãg, ritual para tornar-se ratura ainda é uma prática muito nova, as-
caçador, guerreiro-chefe, Waiperiá, ritual da sim como para muitas populações indígenas
tucandeira e Piãg’agiré, o ritual da menina brasileiras, que há pouco tempo tem investi-
moça. do no registro de suas histórias. É mais pre-
Conforme consta na obra supracitada, os cisamente nos anos 2000 que Yaguarê Yamã
Maraguá têm estreita relação com heranças lança Mapinguary, o dono dos ossos: contos
culturais advenientes do convívio com a et- indígenas de assombração, publicado pela

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A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

editora Mercuryo Jovem. O referido autor protagonismo de indígenas que entram em


lança-se no mercado editorial com o apoio cena neste campo. Nós, indígenas, temos nas
de outros líderes como Daniel Munduruku, mãos a oportunidade de contribuir na revi-
são da história [...].
Eliane Potiguara, Kaká Werá Jecupé, e ou-
tros que se organizam em associações para Está claro que os povos indígenas brasilei-
promover a literatura indígena brasileira. ros estão vivos, ativos e reativos, por mais
que a história oficial e a literatura nacional
Na atualidade, o povo conta com cinco
tenham silenciado essa condição. A incipien-
escritores em atuação, um grande avanço te literatura indígena escrita é a prova cabal
quantitativo, uma vez que a etnia é a maior de que estamos em movimento e resistimos
produtora de obras e com o maior número historicamente às adversidades: temos mui-
de escritores no Amazonas. Diante disso, é tas histórias pra contar (BRITO, s/d, s/p,
preciso lembrar que a literatura indígena no apud GUESSE, 2014, p. 61).
Brasil passa a ser percebida por intermédio Entre os Maraguá, o protagonismo de Ya-
de ativistas indígenas e não indígenas. Na guarê Yamã é crucial para o surgimento de
visão de Souza (2003), esses escritos são a novos escritores da etnia. Além de escritor,
representação de uma coletividade desen- é também artista plástico, tendo ilustrado
volvida nos cursos de formação de profes- algumas de suas obras. Yamã morou em São
sores indígenas que têm como foco não ape- Paulo, período em que se dedicou à sua for-
nas formar professores, mas também ela- mação superior na área de Geografia. Nes-
borar metodologias, programas e materiais se período também ministrava palestras na
didáticos diferenciados. É a partir disso que área ambiental e de temáticas indígenas.
as comunidades indígenas no Brasil tentam Atualmente mora na aldeia Yaguawajar,
se apropriar de suas vozes narradoras, e onde atua no movimento indígena como lí-
começam a colocar no papel suas tradições der do povo Maraguá. Presentemente pos-
em língua portuguesa, abandonando desse sui mais de vinte obras publicadas, alguns
modo, a transcrição e a narração pelo olhar de seus livros fazem parte de programas fe-
do outro. derais como o Programa Nacional Biblioteca
É um movimento intencionalmente pro- da Escola (PNBE).
duzido por lideranças, intelectuais e profes- Para compor suas narrativas, o autor se
sores indígenas, com assessoria dos “bran- vale dos símbolos e histórias passadas de
cos”, que têm claramente se posicionado sua etnia, bem como de lembranças de sua
a favor da emancipação desses povos. Sua infância na aldeia em que a figura do pai
pertinência para os estudos literários con- como grande contador de histórias serve de
siste, sobretudo, em seu produto principal, inspiração para suas criações. Em entrevista
o livro indígena. Essa constatação faz admi- para o Museu da Pessoa, o escritor dar deta-
tir a autoria coletiva e assumir um conceito lhes de sua entrada no meio literário:
mais pragmático de literatura (ALMEIDA;
Foi em São Paulo que eu conheci um amigo
QUEIROZ, 2014). Nas palavras do escritor
que eu gosto tanto, que é o Daniel Manduru-
indígena Kayapó, Edson Brito: ku, um indígena que estava iniciando a car-
As editoras e os leitores brasileiros estão re- reira de escritor por intermédio de outras
descobrindo o Brasil, ou pelo menos estão pessoas. E aí como abriram caminho para
descobrindo histórias, gestos e ações pouco ele, ele também quis abrir caminho para
conhecidas na literatura nacional, graças ao mim. E foi assim, com as nossas conversas,

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Francisco Bezerra dos Santos

que me ajudou no meu primeiro livro, Pura- aldeia de nascimento, onde é professor do


tig: o remo sagrado, um livro infantojuvenil. 1º ao 5º Ano e ensina a língua Maraguá para
Desde então, agradeço muito a ele e foi as- os mais jovens da aldeia (YAGUAKÃG, 2010).
sim que eu comecei a andar nesse caminho.
Em 2011, surge a primeira escritora indí-
É muito boa a oportunidade de contar às
pessoas da cidade como é nosso lugar, onde
gena da etnia, Lia Minápoty, com a obra Com
as pessoas da cidade não tem muita ideia, a noite veio o sono, publicado pela editora
tem muito preconceito, falta de informação LeYa. Nascida na aldeia Yãbetue’y, na área
de saber como que é, e é por isso mesmo indígena Maraguapagy, no rio Abacaxis, é
que eu faço isso com prazer, de escrever e de uma jovem liderança, que luta em prol das
mostrar (YAMÃ, 2008, s/p). mulheres Maraguá, atuante e palestrante da
Numa ordem cronológica, é só em 2007 causa indígena. Grande parte de suas obras
que um segundo escritor dessa etnia lança- são escritas para crianças. Em seu livro Lua
se no mercado de livros. Trata-se de Roní menina e menino onça (2014), em que apre-
Wasiry Guará, com a obra O caso da cobra senta personagens fantásticos, ao apresen-
que foi pega pelos pés. Além da atividade de tar sua obra, a autora fala da importância
escritor, é também professor, artesão e de- dos contos indígenas para os pequenos lei-
senvolve trabalhos na área de preservação tores:
ambiental, manejo florestal e técnicas agrí- Considero os contos de raízes indígenas
colas na cidade de Boa Vista do Ramos – AM, como finas gotas de orvalho caindo da péta-
onde reside atualmente. Como um dos inte- la de uma flor. Imagino que essas gotas se-
lectuais indígenas dessa etnia, Guará realiza jam doces e, quando nossas almas as inge-
rem, alimentam-se de uma nobreza incrível
palestras em todo o país sobre a cultura in-
e nos transporta a um mundo lindo e fantás-
dígena, na tentativa de conscientizar sobre a tico, onde a palavra cria corpo e ganha alma.
importância do respeito aos povos originá- Ali, todos temos poderes e somos levados a
rios. O autor representa em suas narrativas ingressar na natureza.
o imaginário de sua etnia ao fazer uso dos Meninos e meninas do meu povo trazem
mitos, atrelando conhecimentos ancestrais consigo esse mesmo pensamento. E nas noi-
e reflexões sobre os povos indígenas e meio tes enluaradas adquirem esse conhecimen-
ambiente. to, ao ouvir lindos contos, narrados por sá-
Na sequência, em 2010, Elias Yaguakãg bios contadores de histórias.
lança Aventuras do menino Kawã, pela edi- A sabedoria proveniente dos contos indíge-
tora FTD. Yaguakãg nasceu na aldeia Yãbe- nas é sem igual. E a eles, quando crianças,
tué´y, área indígena do rio Abacaxis. É es- nos apegamos (MINÁPOTY, 2014, p. 3).
pecialista em grafismos indígenas, assim Minápoty representa junto com outras
como artesão e escultor. Atua na causa indí- escritoras indígenas das diversas etnias bra-
gena ministrando palestras sobre temática sileiras, as vozes femininas nesse universo
ambiental. Grande propagador da cultura ainda desconhecido que é a literatura indíge-
Maraguá, vê na escrita uma forma de perpe- na. Além de escrever para crianças e jovens,
tuação para as novas gerações dos conheci- trabalha com coleções de plantas e borbo-
mentos de sua etnia. O objetivo central de letas. Atualmente mora na Aldeia Yaguawa-
sua escrita e dos trabalhos como ilustrador jarm, onde leciona para os anos iniciais.
é levar a cultura de seu povo para o leitor O quinto escritor da etnia é Uziel Guay-
não indígena. Atualmente, mora na mesma nê, nascido na aldeia Yãbetueý, em Nova

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A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

Olinda do Norte – AM. Além de escritor, é contadores de histórias. É por meio do do-
ilustrador e enfermeiro. Atualmente dá pa- mínio da escrita, que passam a contar suas
lestras sobre a temática indígena e trabalha versões, apresentam seus mitos, seus sím-
na área da saúde do seu povo. Seu primeiro bolos e suas estruturas sociais.
livro publicado em coautoria com Elias Ya-
guakãg, Roní Wasiry Guará e Yaguarê Yamã O mapeamento das obras
é Maraguápéyára: história do povo Mara-
guá (2014), lançado pela editora Valer. Pelo
Maraguá
vasto conhecimento dos símbolos e mitos Com o intuito de divulgar a produção dos
de sua etnia, ilustrou os livros Wirapurus e Maraguá, assim como fornecer mais infor-
Muirakitãs (2009), As pegadas do Kurupyra mação sobre a produção literária dessa et-
(2009) e Historinhas marupiaras (2011), de nia, realizamos o levantamento das obras
autoria de Yaguarê Yamã. dos cinco escritores apresentados. Busca-
Os autores apresentados produzem li- mos em blogs, teses, dissertações, sites de
teratura em nome de uma coletividade, editoras e nas redes sociais dos autores.
são sujeitos porta-vozes, que fazem de sua Suas obras são dedicadas em grande maio-
escrita um instrumento de propagação de ria ao público infantojuvenil, as temáticas
suas visões de mundo. O objeto livro para são variadas envolvendo o universo mítico
esses escritores é um lugar de reconstrução indígena.
da memória e manutenção das histórias de Na tabela que segue, os livros estão or-
sua etnia. Seus livros são produzidos a par- ganizados por ordem alfabética a partir do
tir dos saberes tradicionais repassados pelo primeiro nome do autor. No que pertence ao
ato de narrar. São saberes coletivos em que conjunto de obras de um único autor, estas
os informantes são os anciões, os velhos estão elencadas por ano de publicação.

Tabela 1: Produção dos autores indígenas Maraguá


AUTOR TÍTULO EDITORA E ANO
Elias Yaguakãg Aventuras do menino Kawã FTD, 2010.
Elias Yaguakãg Historinhas marupiaras Mercuryo Jovem, 2011.
Elias Yaguakãg Tykuã e a origem da anunciação Rovelle, 2013.
Lia Minápoty Com a noite veio o sono LeYa, 2011.
Lia Minápoty e Yaguarê
A árvore de carne e outros contos Tordesilhas, 2011.
Yamã
Lia Minápoty Tainãly: uma menina Maraguá Positivo, 2014.
Lia Minápoty   Lua menina e menino onça Editorial RHJ, 2016.
Lia Minápoty e Elias
Yara é vida Kazuá, 2018.
Yaguakãg
Roní Wasiry Guará O caso da cobra que foi pega pelos pés Imperial, 2007.
Roní Wasiry Guará Olho d’água: o caminho dos sonhos Autêntica, 2012.
Roní Wasiry Guará Mondagará: traição dos encantados Formato, 2011.
Çaíçú´indé: o primeiro grande amor do
Roní Wasiry Guará Valer, 2011.
mundo

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Francisco Bezerra dos Santos

Roní Wasiry Guará Árvore da vida LeYa, 2014.


Uziel Guaynê, Elias
Yaguakãg, Roní Wasiry Maraguápéyára: história do povo
Valer, 2014.
Guará, Yaguarê Yamã Maraguá
(Orgs.)
Mapinguary, o dono dos ossos: Contos
Yaguarê Yamã Mercuryo Jovem, 2000
indígenas de assombração
Yaguarê Yamã Puratig: o remo sagrado Peirópolis, 2001.
Yaguarê Yamã O caçador de histórias Martins Fontes, 2004.
Urutópiag: a religião dos pajés e dos
Yaguarê Yamã Ibrasa, 2005.
espíritos da selva
Sehaypóri: o livro sagrado do povo
Yaguarê Yamã Petrópolis, 2007.
Sateré-Mawé
Yaguarê Yamã Kurumi guaré no coração da Amazônia FTD, 2007.
Murũgawa: mitos, contos e fábulas do
Yaguarê Yamã Martins Fontes, 2007.
povo Maraguá
Yaguarê Yamã Wuirapurus e muirakitãs Larousse jovem, 2009.
O trotem do rio kãwéra e outros contos Editora Imperial Novo
Yaguarê Yamã
fantásticos Milênio, 2010.
A origem do beija-flor – guanãby muru-
Yaguarê Yamã Peirópolis, 2012.
gáwa
Yaguarê Yamã Um curumim uma canoa Zit, 2012.
Yaguarê Yamã Falando tupi Pallas, 2012.
Yaguarê Yamã Contos da floresta Peirópolis, 2012.
Yaguarê Yamã Formigueiro de myrakawera Biruta, 2013.
Yaguarê Yamã Pequenas guerreiras FTD, 2013.
Yaguarê Yamã Yaguarãboia: a mulher-onça LeYa, 2013.
Yaguarê Yamã Japii e jakami uma história de amaizade LeYa, 2014.
Yaguarê Yamã Morõgetá witã: oito contos mágicos Positivo, 2014.

Yaguarê Yamã Olhos do Jaguar Jujuba, 2014.

Yaguarê Yamã Meu pai ag’wã Editorial, 2017.


Kawrê Guairy Bo: nossas lembranças es-
Yaguarê Yamã Cazuá, 2018.
peciais

A todos indígenas e aliados: Reflexões so-


Yaguarê Yamã Cintra, 2019.
bre o movimento indígena atual

Yaguarê Yamã Guayarê: o menino da aldeia do rio Biruta, 2019.


Kawrê Guiry´Bo: nossas lembranças es-
Yaguarê Yamã Kazuá, 2019.
peciais
Doze brincadeiras indígenas e africanas:
Yaguarê Yamã da etnia Maraguá e de povos do Sudão Melhoramentos, 2022.
do Sul
Fonte: Do autor.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022 51


A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

A tabela acima vista pelo prisma quanti- (PNBE). Lia Minápoty com a obra Com a noi-
tativo pode parecer pequena. Mas é preciso te veio o sono (2011) e Yaguarê Yamã com
ressaltar que só há pouco tempo a escrita Yaguarãboia: a mulher-onça (2013) fazem
alfabética adentrou as aldeias, e se tornou parte do repertório de obras escolhidas por
um direito básico dos povos indígenas. Por esse programa em 2014. O que em termos
fim, existem grandes possibilidades de que de representação traz visibilidade para suas
alguns títulos tenham ficado de fora da ta- produções e para a temática indígena, na
bela. Não obstante, acreditamos que fazer tentativa de desnaturalizar velhas práticas
esse levantamento contribuirá para futuras educacionais que folclorizam a imagem do
pesquisas, e para mostrar o quanto as etnias indígena.
indígenas, em particular, os Maraguá, estão Além do Programa Nacional Biblioteca
investindo na produção de seus textos. da Escola (PNBE), há também os concursos
“Tamoios” e “Curumim”, ambos apoiados
A publicação: entre o mercado e pela Fundação Nacional do Livro Infantil e
os impasses Juvenil (FNLIJ). O primeiro, criado em 2004,
é direcionado a autores indígenas ou a quem
De modo geral, existe hoje uma grande pro-
possua filiação indígena, sua realização
cura das editoras por textos indígenas. Es-
tem fortalecido a cultura indígena no país.
ses textos estão cada vez mais incorporados
Roní Wasiry Guará com a obra Olho d’água:
nas metodologias de ensino de culturas in-
o caminho dos sonhos (2012) venceu a 8ª
dígenas nas escolas. Nessa conjuntura, de-
edição do concurso. O segundo, criado em
vemos pensar o que fez surgir esse interesse
2003, é direcionado para profissionais que
e quem está por trás dessas publicações?
trabalham com a promoção de obras literá-
De forma a responder essas questões,
rias de autoria indígena.
ousamos dizer que o interesse pela publi-
Sobre os referidos concursos, a escri-
cação dessas obras surge em conjunto com
tora e pesquisadora indígena Julie Dorrico
leis, planos e programas de alfabetização
(2019, s/p), nos diz que:
que pedem a inserção da temática indígena
nas escolas. A título de exemplos, temos a O contraponto está na atuação dos próprios
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na- escritores que promovem concursos literá-
rios, como o Curumim, que premia profes-
cional – Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
sores da educação básica que trabalha com
1996; a Lei nº 11.645, de 10 de março de
literatura indígena na sala de aula, e o Ta-
2008 e o Plano Nacional da Educação (PNE moio, que busca novos escritores indígenas
– decênio 2011-2020). Essas conquistas para somar ao movimento. Ambos, Curu-
para os grupos indígenas são frutos de lutas mim e Tamoio, são realizados desde o ano
intermediada por ativistas indígenas e não de 2004 sob direção de Daniel Munduruku,
indígenas, assim como ONGs e associações com apoio da Fundação Nacional do Livro
de escritores indígenas. Infantil e Juvenil (FNLIJ) (DORRICO, 2019,
s/p).
Nesse contexto, os escritores Maraguá,
assim como outros grupos, têm se benefi- O mérito de incentivos às publicações
ciado com essas conquistas. Eles estão pre- dos escritores indígenas, de modo geral, es-
senciando suas obras serem escolhidas para tende-se também à ONG “Opção Brasil”, que
compor programas educacionais, como o desenvolve trabalhos sobre a cultura indíge-
Programa Nacional Biblioteca da Escola na e já promoveu parcerias para a publica-

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Francisco Bezerra dos Santos

ção de obras; à Associação DIROÁ, criada em sábios e guardiões de saberes e repassados


junho de 2013 para o fortalecimento do mo- aos seus pela oralidade [...]. A arte de escre-
vimento de escritores e artistas indígenas ver tem contribuído para que nas aldeias
os povos catalogassem narrativas contadas
no Brasil e ao Instituto UKA, que promove
pelos mais velhos e que, depois de serem
encontros para debater o papel dos escrito- transformadas em livro, as crianças na sala
res na contemporaneidade (SANTOS, 2020). de aula conseguissem se imaginar nesse uni-
Os incentivos citados acima e possivel- verso pela escuta e leitura dessas narrativas.
mente outros que deixamos de citar estão Ela nos dá possibilidades para que, fora da
dando visibilidade aos escritores indígenas aldeia, alunos e pessoas possam se aprofun-
e reforçando parcerias para a promoção dar em determinado assunto ou mesmo sa-
ber como cada povo vive, resiste e defende
dessa literatura. De modo mais particular,
seu território (KAMBEBA, 2018, p. 40).
é a partir de todo esse cenário que a etnia
Maraguá cresce em números de obras e es- É preciso agregar nos estudos de lite-
critores, mas é preciso discutir também as ratura essas novas formas emergentes.
dificuldades e desafios impostos pelo mer- Mesmo com o posicionamento favorável
cado e pelo campo literário. de grandes críticos como é caso de Anto-
Entre o grande número de desafios que nio Candido (2006), que entende por li-
os escritores indígenas enfrentam, um deles teratura, obras e atitudes que exprimam
está relacionado com as regras que regem o certas relações dos homens entre si, e que
campo literário, resistentes ainda em consi- tomadas em conjunto, simulem uma so-
derar as narrativas indígenas como matéria cialização dos seus impulsos íntimos. As
literária. A luta desses sujeitos é contra as literaturas de minorias ainda caminham
regras hegemônicas, porque para eles o sig- na invisibilidade, como assegura a escrito-
nificado de literatura vai além do que está ra indígena Márcia Kambeba: “muitos in-
escrito em manuais de literatura. Para a es- dígenas escrevem, mas poucos são os que
critora indígena Márcia Kambeba (2018), conseguem fazer essa literatura circular,
há uma procura em conhecer a educação chegar nas grandes editoras e livrarias. A
que vem das universidades para fazer des- maioria desses escritos fica apenas no pa-
se conhecimento uma ferramenta não só de pel e os escritores na invisibilidade de sua
registro, mas também de informação. E diz obra” (KAMBEBA, 2018, p. 42).
ainda, que os escritores A literatura indígena, seja a dos Maraguá
Compreendem que é preciso escrever para ou das outras etnias brasileiras, se enqua-
estabelecer possibilidades de pensamento dram perfeitamente na visão de Candido
reflexivo, percebem a literatura como um (2006), posto que todo o sistema que com-
instrumento de crítica e de compreensão de põe essas narrativas faz parte de um proces-
uma cultura que é receptiva e a utilizam para so de comunicação pertencentes a determi-
dar visibilidade à sua luta e resistência.
nados grupos, além disso, os escritores têm
Na literatura indígena, a escrita assim como consciência de sua produção e do sentido
o canto, tem peso ancestral. Diferencia-se
que rege seu fazer poético. Portanto, é ne-
de outras literaturas por carregar um povo,
cessário a revisão de regras e conceitos que
história de vida, identidade, espiritualidade.
Essa palavra está impregnada de simbolo- imprimem rótulos e fazem com que essas
gias e referências coletadas durante anos de literaturas figurem em prateleira de temas
convivência com os mais velhos, tidos como folclóricos.

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A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

Ainda sobre o tema dos desafios, é preci- Até dez anos atrás não se pensava que o ín-
so olharmos para a situação histórico-social dio podia escrever livro, no entanto, hoje
desses escritores. Esse é um tema não me- isso é uma demanda, existem editoras que
procuram autores indígenas. Elas estão
nos importante que se bem observado impli-
aproveitando o momento econômico e o
ca diretamente em termos quantitativos na momento ideológico, que é o de colocar a
produção e no surgimento de novos nomes. temática indígena na escola. E quem é que
Entre os Maraguá, diante dos aspectos bi- pode falar disso? Existe uma compreensão
bliográficos dos escritores apresentados, foi das editoras de que é importante alimentar
possível perceber que todos possuem uma o mercado com literatura escrita pelos indí-
segunda profissão como forma de se autos- genas (MUNDURUKU, 2010, p. 12).
sustentar. Pierre Bourdieu (1996), já havia O interesse das editoras pela publica-
notado esse fato no contexto da França. Para ção das obras indígenas se limita às regiões
o estudioso, a “profissão” de escritor ou de mencionadas. Essa assertiva é confirmada
artista é uma das menos codificadas que pelo levantamento das obras Maraguá (Ta-
existem; uma das menos capazes também bela 01). No Amazonas, Estado dos referi-
de definir (e de alimentar) completamente dos escritores, apenas a editora Valer tem
aqueles que dela se valem e que, com muita investido na publicação de obras indígenas.
frequência, só podem assumir a função que Um exemplo é o projeto da coleção “Nheen-
consideram como principal com a condição gatu – narrativas indígenas”, que contribuiu
de ter uma profissão secundária da qual ti- com o registro de inúmeras obras de comu-
ram seu rendimento básico. nidades tradicionais. Quanto aos incentivos
Entre os escritores Maraguá, a profissão advindos do Governo do Estado do Amazo-
de professor e artista plástico é numero- nas, a etnia Maraguá não tem recebido, haja
sa, o que justifica a discussão acima. Nes- vista que o Estado só tem financiado obras
se sentido, é preciso dizer que o mercado de caráter pedagógico, como é o caso do
editorial não oferece segurança financeira Programa de Educação Escolar Indígena –
para esses indivíduos se dedicarem unica- Pirayawara, com projetos de ações, dentre
mente ao ofício de escritor. O que pode de- os quais o Projeto de Formação de Profes-
sestimular a classe e impedir o surgimento sores Indígenas e Produção e Editoração de
de novos escritores. Além da questão da Material Didático-Pedagógico. Por isso, es-
remuneração, esses escritores ainda lutam ses escritores dependem da ação de edito-
contra a falta de estímulos das editoras co- ras de outros Estados.
merciais do próprio Estado. A maioria de Esses sujeitos produtores de literatura
suas obras são publicadas pelas editoras procuram outras formas para publicizar e
comerciais do sul e sudeste do país, que de- divulgar suas obras. Um exemplo, são as re-
monstram grande interesse nos autores in- des sociais, que tem servido para a divulga-
dígenas. Assim, entende-se que o trabalho ção do pensamento indígena. Sobre as possi-
dessas editoras tem sido importante para a bilidades de publicação, Dalcastagnè (2012)
divulgação da literatura Maraguá e de ou- afirma que nos últimos anos, houve uma am-
tras etnias. Daniel Munduruku, escritor re- pliação de espaços de publicação, seja nas
conhecido pela sua extensa produção, fala grandes editoras comerciais, pequenas ca-
sobre esse recente interesse das editoras sas editoriais, em edições pagas, sites, blogs
pelas obras indígenas: etc. Os escritores indígenas estão ocupando

54 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022


Francisco Bezerra dos Santos

muitos desses espaços, mas são poucos os zá-la a favor da gente indígena. Técnica não
que conseguem fazer essa literatura circu- é negação do que se é. Ao contrário, é afir-
lar, chegar às grandes editoras e livrarias. mação de competência. É demonstração de
capacidade de transformar a memória em
No cerne dessa questão, assume especial re-
identidade, pois ela reafirma o ser na medi-
levância o pensamento de Márcia Kambeba da em que precisa adentrar no universo mí-
(2018), sobre o número ainda pequeno de tico para dar-se a conhecer ao outro.
escritores, que tem feito da literatura indíge-
O papel da literatura indígena é, portanto,
na uma luta de resistência circulante, aden- ser portadora da boa notícia do (re)encon-
trando editoras e universidades. É preciso tro. Ela não destrói a memória na medida em
encontrar formas de promover novos escri- que a reforça e acrescenta ao repertório tra-
tores para que seus trabalhos cheguem aos dicional outros acontecimentos e fatos que
espaços educacionais. Fazer essa literatura atualizam o pensar ancestral.
circular, é permitir que seus autores falem Munduruku (2011) sintetiza na citação
de suas realidades, suas cosmologias e de acima, o que está acontecendo na atualida-
um universo ainda desconhecido. de, os escritores estão aprendendo outras
formas de reivindicar, ou seja, enxergam na
Literatura como reivindicação de literatura uma forma de reversão da ima-
espaço e autoafirmação gem de sujeitos representados e se colocam
Como já discutido, a produção literária dos como protagonistas de suas histórias. Na
Maraguá é, em sua maior quantidade, volta- visão de Almeida e Queiroz (2004), essa
da para um público leitor não indígena em prática de produção de livros indígenas, nas
formação. Esse endereçamento é uma forma últimas décadas no Brasil, tem adquirido,
de dialogar com as novas gerações sobre a com a conjugação de vários elementos, tal
importância da cultura indígena em um país visibilidade, que chega a iluminar o passado
multicultural como o nosso. Desse modo, é e o futuro dos usos da linguagem, no meio
a partir de uma literatura produzida com a em que ela acontece.
intenção de mostrar outros mundos, que os Não se trata de uma invenção qualquer. Tra-
Maraguá e outros grupos étnicos estão rei- ta-se de uma deliberação política. Os escri-
tores indígenas o fazem de um território
vindicando espaço, fortalecendo suas iden-
imaginário, em que as coisas se renomeiam,
tidades e registrando para a posteridade. no exercício da ocupação do solo simbólico.
Esses escritores escrevem para se reafir- A escritura é coletiva porque é inscrição do
marem, para mostrar que a cultura indíge- que é comum, ou de um consenso em torno
na existe e resiste a muitas formas de apa- do “quem somos”. É política porque reorde-
gamentos. Querem falar com legitimidade, na a coletividade, valendo-se das palavras
mostrar outras formas de discurso. Nas pa- pelos seus representantes (ALMEIDA; QUEI-
ROZ, 2004, p. 197).
lavras de Daniel Munduruku (2011, s/p):
É preciso interpretar. É preciso conhecer. É As narrativas indígenas, mais precisa-
preciso se tornar conhecido. É preciso escre- mente a dos Maraguá, apresentam estéticas
ver – mesmo com tintas do sangue – a histó- diferentes – novas imagens, novas palavras,
ria que foi tantas vezes negada. outras percepções de mundo, impedidas se-
A escrita é uma técnica. É preciso dominar cularmente de serem expostas. Hoje, esses
essa técnica com perfeição para poder utili- escritores aproveitam o espaço da literatu-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022 55


A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

ra para apresentar suas poéticas e dialogar Considerações finais


com sociedade sobre os saberes indígenas.
A produção literária dos Maraguá, como vi-
Nesse momento em que esse novo formato
de literatura começa a ganhar espaço, é pre- mos, ainda é recente, mas promissora. Seus
ciso, como diz Dalcastagnè (2012), refletir escritores escrevem para divulgar e manter
sobre nossos critérios de valoração, enten- a cultura do seu grupo étnico viva. Atual-
der de onde eles vêm, por que se mantém de mente com cinco escritores, a etnia é a maior
pé, a que e a quem servem. Conforme ain- produtora de obras indígenas no Amazonas.
da a estudiosa, ignorar o surgimento dessas Além de produzir literatura, são líderes au-
novas vozes é reforçar o papel da literatura torizados que militam em prol da causa in-
como instrumento de distinção e hierarqui- dígena no Brasil. E fazem isso de forma in-
zação social, deixando de lado suas poten- teligente quando constituem organizações
cialidades como discurso desestabilizador e e associações para fortalecer a busca pelos
contraditório. direitos básicos da etnia.
A entrada desses escritores no cenário Dentre as muitas problemáticas envol-
literário e a reivindicação de espaço não vendo o escritor indígena, a situação his-
se trata apenas da possibilidade de falar tórico-social desses sujeitos deve ser sem-
em nome de si e de uma coletividade – ca- pre discutida, haja vista que a partir dos
racterística contemplada pela liberdade de aspectos biográficos expostos ao longo
expressão, mas refere-se a possibilidade de deste trabalho, percebe-se ainda a neces-
falar com autoridade, ou seja, o que está em sidade de apoio que permita a dedicação
voga para esses escritores é o reconheci- desses sujeitos à produção de novas obras.
mento social de que o discurso tem valor e, Muitos precisam se desdobrar em outras
portanto, merece ser ouvido (DALCASTAG- atividades para suprir sua necessidade
NÈ, 2012). econômica. Uma problemática que acome-
Na visão de Graúna (2013), a produção te escritores indígenas e não indígenas em
desses escritores remete à auto-história de nosso país.
resistência, à luta pelo reconhecimento dos Com obras reconhecidas por progra-
direitos e dos valores indígenas, à esperança mas federais, os autores Maraguá estão se
de um mundo possível, com respeito às dife- tornando conhecidos nos espaços institu-
renças. Para a estudiosa, o reconhecimento cionalizados do saber. O que em termos de
desses aspectos perpassa pela contribuição representatividade pode fortalecer a causa
de escritores e artistas que se empenham indígena e romper estereótipos que ainda
em transmitir e “traduzir” com apurada sen- persistem sobre as populações indígenas.
sibilidade a poética de tradição oral dos po- Na composição das narrativas Maraguá,
vos indígenas no Brasil. Portanto, entende- os autores se valem das histórias míticas
mos que o conhecimento das configurações seculares, dos símbolos coletivos repre-
literárias das obras indígenas, bem como de sentados nos grafismos que ilustram os li-
autores e obras representativas dos Mara- vros, entre outros elementos que remetem
guá, Potiguara, Munduruku, Sateré-Mawé, à ancestralidade. Nesse sentido, essas nar-
Ticuna etc., ampliam a visão de mundo dos rativas, mesmo que assinadas de maneira
leitores diversos e contribui para a expan- individual, mantém estreita relação com
são das fronteiras da literatura brasileira. os saberes coletivos da etnia. Os escritores

56 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022


Francisco Bezerra dos Santos

apenas emprestam seus nomes, são os por- GRAÚNA, G. Contrapontos da Literatura Indí-
ta-vozes de seus clãs. gena contemporânea no Brasil. Belo Horizon-
te: Mazza Edições, 2013.
A partir do levantamento feito das obras
produzidas pelos Maraguá, é possível com- GUARÁ, R. W. Çaíçú’indé: o primeiro grande
amor do mundo. Manaus: Editora Valer, 2011.
preender que as editoras comerciais que
estão publicando essas obras estão localiza- GUESSE, É. B. Shenipabu Miyui: literatura e
das nas regiões Sul e Sudeste. Nessa conjun- mito. Tese (Doutorado em Estudos Literários)
– Faculdade de Ciências e Letras, Universidade
tura, mesmo com os incentivos recebidos de Estadual Paulista, São Paulo, 2014.
concursos, ONGs e programas federais, ain-
KAMBEBA, M. W. Literatura indígena: da ora-
da é preciso políticas de incentivos e divul-
lidade à memória escrita. In: DORRICO, J. et al.
gação para que essa literatura figure ainda (Orgs.). Literatura indígena brasileira con-
mais nos espaços educacionais e alcance um temporânea: criação, crítica e recepção. Porto
número maior de leitores. Alegre: Editora Fi, 2018. p. 39-44.
Enfim, com base nas considerações so- MINÁPOTY, L. Lua menina e menino onça.
bre os escritores Maraguá é possível pensar Ilustrações de Suryara Bernardi. Belo Horizon-
te, RHJ editora, 2014.
a situação de quem escreve literatura indí-
gena no Brasil. Os desafios são muitos para MUNDURUKU, D. Entrevista. Entrevistadora:
os povos indígenas que sempre estiveram à Roma Gonçalves Lemos. Rio de Janeiro: Peda-
gogia em foco, 19 nov. 2010.
margem, mas aos poucos estão assumindo
seus lugares de fala e a literatura tem sido MUNDURUKU, D. Escrita indígena: registro, ora-
lidade e literatura. 2011. Disponível em: https://
um instrumento legítimo para isso.
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Acesso em: 15 de fev. 2022. 2007.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022 57


A literatura indígena dos Maraguá: da produção à publicação

YAMÃ, Y.; YAGUAKÃG, E.; GUAYNÊ, U.; GUARÁ, R. Recebido em: 09/05/2022
W. Maraguápéyára: história do povo Maraguá. Aprovado em: 24/05/2022
Manaus: Valer, 2014.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

58 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 45-58, jan./jun. 2022


Michelly Silva Machado

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

O pensamento das moscas e o Júpiter


para os kayapó: refletindo sobre
narrativas e as interações entre humanos
e mais-que-humanos nas redes sociais
Michelly Silva Machado (UFPA-MPEG)*
https://orcid.org/0000-0002-1607-4368

Resumo:
Pensando sobre os meios de comunicação indígena nas plataformas sociais
(Facebook), neste artigo estudo duas narrativas que versam sobre as intera-
ções entre humanos e mais- que-humanos em dois textos publicados por um
locutor Kayapó, Okreãjti Metuktire1. O primeiro post, O pensamento das mos-
cas, é apresentado em forma de diálogo e o segundo, O Júpiter para os Kaia-
po, narra uma mitologia contada por antepassados Kayapó. Essa pesquisa
faz parte de uma etnografia digital em que estudo os universos textuais Ka-
yapó produzidos por falantes bilíngues (Mebêngôkre-Português) nas redes
sociais. O que me chama à atenção nessas postagens são as formas como
as interações entre as multiespécies têm alcançado às plataformas virtuais
através de mediadores/lideranças indígenas, que usam seus perfis públicos
para falar sobre as histórias de seu povo, combinando suas narrativas às
ações políticas indígenas a partir de diferentes sujeites discursivos.
Palavras-chave: Narrativas Kayapó; Multiespécies; Interações; Redes so-
ciais.

Abstract:
The thought of flies and the Jupiter for the Kayapó:
reflecting on narratives and interactions between
humans and more-than-humans in cyberspace
Thinking about the indigenous media on social platforms (Facebook), in
this article I study two narratives that deal with the interactions between
humans and more-than-humans in two Kayapó texts, Okreãjti Metuktire.
The first post, The thought of flies, is presented in the form of dialogue and
the second, Jupiter for the Kaiapó, narrates a mythology told by Kayapó an-

* Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Bolsista CAPES. Mestranda em
Diversidade Sociocultural pelo Museu Emílio Goeldi (MPEG). Mestre em Linguagens e Saberes na Amazô-
nia (UFPA). Lattes: http://lattes.cnpq.br/2150009973641188. E-mail: mih.machado02@gmail.com
1 Agradeço ao escritor Okreãjti Metuktire por compartilhar e permitir as análises de seus textos disponí-
veis no Facebook, o que possibilitou a realização deste estudo.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022 59


O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre narrativas e as interações entre humanos e mais-que-
humanos nas redes sociais

cestors. This research is part of a digital ethnography in which I study the


Kayapó textual universes produced by bilingual speakers (Mebêngôkre-Por-
tuguese) in social platforms. What catches my attention in these posts are
the ways in which interactions between multispecies have reached virtual
platforms through Kayapó mediators/leaderships, who use their public pro-
files to talk about the stories of their people, combining their narratives with
indigenous political actions from different discursive subjects.
Keywords: Kayapó Narratives; Multispecies; Interactions; Social media.

Introdução
No campo de estudos da enunciação exis- sibilidades de interfaces entre a antropolo-
tem várias formas de conceber a linguagem: gia linguística e a etnologia indígena. Sendo
como expressão do pensamento, como ins- assim, considero a interação ou o encontro
trumento de comunicação e como forma entre as multiespécies um campo amplo de
ou processo de interação (CUNHA, 2007). experiências possíveis a partir das ações e
O conceito mais contemporâneo dedica-se a autonomia dos diferentes sujeites (huma-
à linguagem como uma atividade de inter nos e não-humanos) que executam ações
(ação), cujos participantes se comportam conforme as suas necessidades adaptativas,
conforme as ações e intenções dos mesmos de sobrevivência e de recriação.
no ato comunicativo. Apesar de esse ser um Nas análises sobre as produções discur-
campo amplo de análises, normalmente, sivas e/ou narrativas Kayapó trato de uma
seus estudos concentram-se nas manifesta- antropologia linguística para além do huma-
ções da linguagem verbal e não verbal hu- no, a partir de histórias não-ocidentais que
mana. descrevem, de certa forma, interações e en-
Neste trabalho, utilizo a concepção da contros entre os seres que habitam o mun-
linguagem enquanto inter(ação), ampliando do. Apesar de minha ênfase recair sobre as
seus debates para entender as experiências/ agências dos povos originários, reconheço
interações do ser humano e dos mais-que que estas ações não são únicas ou exclusivas
-humanos (não humanos) em suas diversas da espécie humana3, mas das multiespécies
formas de se relacionar com o mundo. Tomo (LIMA, 1999; TSING, 2018).
como ponto de análise as narrativas indíge- O conceito de agência linguística, aqui
nas, em especial Kayapó2, conforme as pos- apresentado, foi inspirado na obra Agency
in Language do antropólogo linguista Ales-
2 Os Kayapó são povos originários da região do
Cerrado, passaram por longas diásporas, estabe- sandro Duranti. Para o autor (2004, p.452),
lecendo-se nos estados do Mato Grosso e Pará. “a agência é encenada e representada na (e
Conforme Salanova (2001, p.1) Mebêngôkre é o
nome da língua falada por duas nações do cen- Iriri, na AI Kararaó. Os Xikrin habitam duas re-
tro-norte do Brasil, os Xikrin e os Kayapó. O ter- giões descontínuas no Pará: a AI Cateté, situada
mo Mebêngôkre pertence a estas duas nações. em torno ao rio homônimo, afluente do Itacaiú-
Estão localizados em uma grande área que se nas, que por sua vez tem sua foz no Araguaia, e a
estende do norte do Mato Grosso (AI KapôtjJa- AI Bacajá (VILLAS-BÔAS, 2019).
rina), à região sul do Pará (AI Baú: Mekranotire, 3 Para a autora uma perspectiva dedicada apenas
AI Mekranoti, AI Kayapó e AI Badjonkôre), desde à experiência humana corre o risco de perder
os afluentes do Rio Fresco (afluente do Xingu) ao de vista a própria interferência de outros seres
leste, até os afluentes do Rio Curuá. A oeste, há na própria socialidade humana (TSING, 2018, p.
alguns Kayapó que vivem no baixo curso do Rio 233-235).

60 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022


Michelly Silva Machado

através) da linguagem”, ela constitui tam- mar Prado), um ser encantado que se trans-
bém a propriedade daquelas entidades que forma em sucuri. O enredo apresenta a con-
têm algum grau de “controle sobre seu pró- tinuidade de narrativas com a presença de
prio comportamento, cujas ações no mun- várias vozes que fogem às histórias ociden-
do afetam outras entidades e cujas ações tais, marcando um passado histórico cons-
são objeto de avaliação” (DURANTI, 2004, truído por narrativas indígenas e de povos
p.454). Partindo desse princípio, diferentes de matriz africana.
seres podem agir através da linguagem ou No cenário amazônico, por exemplo, di-
mediados pela mesma. ferentes narrativas contam situações de en-
Para exemplificar essas agências consi- contros entre humanos e mais-que-huma-
dero os encontros, desejados ou não, entre nos, em alguns casos, esses seres se fundem
ontologias que se conectam no ato comuni- em um mesmo corpo, seja no ambiente da
cativo, reporto-me aos saberes tradicionais floresta ou no centro urbano. Sendo assim,
e as fontes orais que têm sido vias comunica- lugares, paisagens sagradas, seres encanta-
ção e de registro das experiências, transfor- dos, horário sagrado dos rios, animais que
mações e interações entre as multiespécies protegem as cidades, bem como plantas
nas sociedades ao longo do tempo. Sobre a que curam, cuja aparência e coloração de-
questão do tempo, é importante ressaltar senham a enfermidade para que servem, as
que os sentidos são construídos e desloca- plantas encantadas que protegem as casas,
dos historicamente através da linguagem, se transformam em indígena, como o Tajá
Orlandi (2011) baseada nos estudos de Mi- (Caladium bicolor), todos são patrimônios
chel Pêcheux, destaca: biosocioculturais que fazem parte da his-
Elementos da sequência textual [...] podem tória, saberes e memórias dos diferentes
ser importados (meta- forizados) de uma coletivos étnicos, do caboclo, ribeirinho ou
sequência pertencente a uma outra forma- camponês, demonstrando as diferentes lin-
ção discursiva [...] as referências discursivas guagens entre os antepassados e as enti-
podem se construir e se deslocar historica- dades sencientes (montanhas, água e terra
mente. (ORLANDI, 2011, p.158).
— aquilo que chamamos de “natureza”) (DE
Sobre o deslocar de referências discur- LA CADENA, 2018, p.1).
sivas historicamente, citarei o caso de uma São experiências simbólicas que ocorrem
novela com grande representatividade para nos entrecruzamentos de diversas histórias
o público em diferentes tempos, Pantanal. A em diferentes regiões do Brasil, em menor
mesma foi exibida na TV Manchete em 1990 ou maior grau. Todavia, o que ocorre hoje, é
e atualmente tem o seu remake apresenta- que essas interações, comunicações e justa-
do pela TV Globo. A interface entre a nove- posições, sobretudo as contadas nas narrati-
la e a temática aqui discutida concentra-se vas indígenas estão cada vez mais presentes
na relação entre humanos e não-humanos. nas conexões no ciberespaço, enfatizando a
No caso do remake em 2022, vemos histó- importância dessas linguagens, encontros e
rias de amor atreladas a uma determinada saberes para sobrevivência e reafirmação de
“consciência ecológica” amparada na biodi- todas as espécies. Nesse sentido, de forma a
versidade do Pantanal. Como personagens, ampliar debates sobre as interações entre
ressalto a Maria Marruá (Juliana Paes) que as multiespécies no espaço digital e os fe-
se transforma em onça e o Velho do Rio (Os- nômenos resultantes dessas manifestações,

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O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre narrativas e as interações entre humanos e mais-que-
humanos nas redes sociais

viso observar como um locutor Kayapó têm florestas. Essa temática profícua volta-se
se articulado e usado as plataformas sociais na desconstrução e superação de antigas
(Facebook), combinando as narrativas an- dissensões entre as múltiplas linguagens
cestrais, que falam de “eus” e “outros”4, às ligadas aos saberes tradicionais e ao conhe-
ações indígenas no contexto conflituoso e cimento hegemônico-universal, que duran-
negacionista da sociedade brasileira. te anos silenciou e objetificou as ações dos
Para isso, uso como fonte de análise duas povos originários e dos diferentes sujeites
produções textuais publicadas por Okreãjti (não-humanos), colocando-os nos papéis
Metuktire, conhecido como Patxon, em suas temáticos de objeto ou pacientes da ação do
redes sociais. A história de vida de nosso lo- homem.
cutor foi descrita no site raoni.com: A chamada virada ontológica nas ciên-
Eu sou indígena da etnia kaiapó, sou jovem e cias humanas tem despertado nos pesqui-
tenho sonho de ser advogado, ser promotor. sadores e nos diferentes agentes estudos
Também tenho sonho de ser contador. Ou que “descortinam o mundo de outros orga-
outro profissional qualquer, desde que seja nismos”, de acordo com Anna Tsing (2019).
importante para mim e para meu povo. Pois Algo que até então, tinha sido sufocado pe-
esses sonhos meus de ser profissional não é
las insensibilidades do conhecimento uni-
para um serviço no meio urbano ou mesmo
para eu ser autônomo, assim como o fazem
versal-ocidental-homogeneizador. Os estu-
esses profissionais da cidade. Tenho sonho dos atuais passaram a se preocupar sobre
de ser esse profissional, mas para ajudar como os povos originários, coletivos étnicos
meu povo indígena, tenho sonho de ser esse e as multiespécies se conectam5 para sua so-
profissional para estar junto com meu povo. brevivência, resistência e recriação, partin-
Defender a causa indígena diante dessa gen- do da ideia de que “o mundo é habitado por
te interesseira que utilizam as ferramentas
diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,
políticas para aumentar os seus lucros e o
humanas e não humanas, que o apreendem
valor de seus patrimônios. Este é meu inte-
resse. Este sim é meu objetivo, a minha mis- segundo pontos de vista distintos” (VIVEI-
são. (METUKTIRE, 2012). ROS DE CASTRO, 2002, p. 347).
Okreãjti Metuktire é uma liderança que O mito e os sujeites que povoam
assim como o seu avô, o cacique Raoni Me-
tuktire, luta pela floresta amazônica. Di- as mitologias ameríndias
ferentes ações fazem parte das histórias Se quisermos saber algo sobre interação,
desses defensores das florestas e das cultu- encontro ou justaposição de histórias “pre-
ras originárias, em especial Kayapó. Neste cisamos saber sobre os mundos sociais que
artigo, minha atenção está voltada para as outras espécies ajudam a construir” (TSING,
diferentes produções textuais de Patxon, 2019, p.128). É fato que os humanos são
narrativas que desvelam as multivozes das linguísticos, porém não podemos descartar
uma série de outros elementos manifesta-
4 A ocorrência de “eus” e “outros” marcam a po-
lifonia de vozes ou as formas de referenciar os dos pelas multiespécies, sinais que podem
interactantes de um texto (oral ou escrito) de ser traduzidos de várias formas quando
forma marcada ou não (AUTHIER-REVUZ, 1990).
O conceito de heterogeneidade discursiva pode 5 Entidades dotadas de propriedades específicas
ajudar a desvelar as marcações dos diferentes que as tornem aptas ou não ao estabelecimen-
sujeitos que se relacionam simbolicamente pela to de determinadas conexões (DESCOLA, 2015,
linguagem ou multilinguagens no mundo. p.04).

62 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022


Michelly Silva Machado

prestamos atenção a eles. A esse respeito jetivo. Meio cujo fim, justamente a mitologia
tomamos como exemplo o mito e os sujeites se propõe a contar”. Segundo o autor, para
que povoam as mitologias indígenas para os povos ameríndios a natureza e a cultura
verificar os “eus” e os “outros” que marcam são parte de um mesmo campo sociocósmi-
os encontros e os (des)encontros no mundo. co (LÉVI-STRAUSS, 1964 apud VIVEIROS DE
Segundo Lévi-Strauss (2008, p.75), o CASTRO, 2002, p.369).
mito pode ser tratado como modo de comu- São justamente nos mitos, nas narrativas,
nicação, pois ele “se manifesta como meta- nos léxicos e nas manifestações que pode-
linguagem: faz pleno uso do discurso, mas mos encontrar o que os povos originários e
situando as oposições significantes que lhes seus locutores “outros” se propõem a contar.
são próprias num grau maior de comple- Não obstante, é importante ponderar que
xidade que o solicitado pela língua”. Ainda nem todas as espécies, por exemplo, costu-
com o autor, é importante lembrar que os mam aparecer nessas literaturas, havendo
interlocutores dos mitos nem sempre são uma certa “hierarquização” entre as espé-
parceiros uns dos outros no interior de um cies/entidades que se interacionam com os
mesmo sistema de comunicação. humanos nos mitos, ritos ou narrativas.
As multilinguagens, portanto, excedem Viveiros de Castro (1996, p.118) em
as comunicações de um mesmo código lin- suas conceituações sobre o perspectivismo
guístico e o processo de pronominalização ameríndio, ao citar Vilaça (1992) e Arhem
ou referência dos “outros” (sujeites) pode (1993) pontua que: “via de regra, todos os
ser marcado de várias formas e entendi- animais (além de englobar outros seres); a
mentos no texto (mito, rito, narrativa, conto, ênfase parece ser naquelas espécies que de-
entre outros). Portanto, cada locutor mar- sempenham um papel simbólico e prático
cará de alguma forma as vozes “outras” que de destaque, como os grandes predadores,
ocorrem nas interações, pois o discurso de rivais dos humanos, e as presas principais
um pode vir a habitar o discurso do outro dos humanos”. Podemos citar a onça, a co-
e vice e versa, na chamada heterogeneidade bra e o jacaré, como espécies que aparecem
discursiva (AUTHIER-REVUZ, 1990). em grande parte nas narrativas ameríndias.
No contexto das interações entre huma- Na própria novela citada, o Pantanal, ve-
nos e não humanos, Philippe Descola (2015, mos a presença da cobra e da sucuri, dois
p. 08) destaca o tratamento peculiar com predadores e desejo de caça, que indepen-
que os povos originários se dedicam aos dente do povo, sejam eles de línguas da fa-
animais: “os animais são, entretanto, consi- mília Jê ou Tupí, aparecem constantemente
derados pessoas com quem os humanos po- nas mitologias, festas, homenagens, rituais,
dem, e devem, interagir de acordo com re- nas estéticas corporais, nos grafismos e nas
gras sociais”. Em estudos pretéritos sobre o diferentes representações simbólicas dos
mito e os personagens que povoam as mito- povos.
logias ameríndias, Lévi-Strauss (1964, p.19 Retomando o que nos diz Descola (2015),
apud VIVEIROS DE CASTRO 2002, p.355- os humanos podem e devem interagir com os
369) assinala que “o mito fala de um estado animais. Contudo, nem sempre todas as in-
do ser onde os corpos e os nomes, as almas e terações ou encontros são bem vindos, pois
as ações, o eu e o outro se interpenetravam, cada agente possui “pontos de vista distin-
mergulhados em um mesmo meio pré-sub- tos” quando diferentes ontologias se encon-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022 63


O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre narrativas e as interações entre humanos e mais-que-
humanos nas redes sociais

tram (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.347). Retomando os debates sobre as narrati-


Nem sempre existe uma relação amigável vas ameríndias, é importante considerar as
ou diretamente relacional entre as multies- ideias de Viveiros de Castro, (1996):
pécies, ao contrário do emblema máximo da Uma teoria indígena segundo a qual o modo
onça e da cobra, destacamos um animal, a como os humanos vêem os animais e ou-
mosca, com um papel temático complexo ou tras subjetividades que povoam o universo
quase inexistente nas narrativas indígenas. — deuses, espíritos, mortos, habitantes de
outros níveis cósmicos, fenômenos meteo-
Os pensamentos das moscas rológicos, vegetais, às vezes mesmo objetos
e artefatos, é profundamente diferente do
Figura 01 – Os pensamentos das moscas modo como esses seres os vêem e se vêem.
(VIVEIROS DE CASTRO, 1996, p.117).
Em relação às moscas, observamos pre-
viamente que a relação entre humanos e
não-humanos baseada na troca e na recipro-
cidade, não ocorre com todas as espécies,
sendo privilegiados aqueles que desem-
penham um papel simbólico de destaque,
como os grandes predadores e rivais dos
humanos ou algumas entidades sencientes.
No contexto das moscas, ao que nos pare-
ce, as relações e interações ocorrem para
requerer o seu afastamento, daí a técnica
Fonte: Metuktire (via Facebook), 2021.
do saco plástico transparente com água, ca-
bendo o estudo de outras narrativas e mitos
O uso de sacos plásticos transparen-
para experienciar o seu papel nos encontros
tes com água têm sido uma prática comum
pragmáticos entre as multiespécies.
utilizada em diferentes regiões e contextos
De acordo com Pardini (2020, p. 2), “as
para repelir a mosca doméstica, essa prática
sociedades conferem aos animais e às plan-
está relacionada à incidência de luz em to-
tas, via de regra, os caracteres subjetivos
das as direções no saco plástico. Mas, o que
da pessoa humana: consciência de si, mo-
nos chama atenção são as reflexões sobre o
tivações, afetos, capacidade comunicativa e
comportamento da mosca e o fato delas pen-
sociabilidade e, com eles, estabelecem re-
sarem ou não. A esse respeito, o autor não
lações de pessoa para pessoa”. No caso das
nos dá uma resposta concreta se as moscas
narrativas, não é atribuído o caráter subje-
pensam, usando apenas um emoticon de
tivo da mosca ao ser Kayapó. Vejamos uma
risos para finalizar o texto. Entretanto, se narrativa na perspectiva do Kubẽ (não indí-
consideramos outras narrativas publicadas gena) sobre a mosca.
pelo mesmo autor e também mitos Kayapó
Mosca na sopa de Raul Seixas
perpetuados por fontes orais veremos que
Eu sou a mosca
são atribuídos a outros não- humanos de Que perturba o seu sono
categorias semânticas diferentes, a capaci- Eu sou a mosca
dade do pensar, tais como: estrelas, sol, lua, No seu quarto a zumbizar
tatu, onça, peixes e plantas. [...]

64 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022


Michelly Silva Machado

E não adianta central no modo de ocupar “as ruínas” e


Vir me dedetizar “habitar lugares desmantelados”, como no
Pois nem o DDT incômodo e na crítica à ditadura militar no
Pode assim me exterminar
Brasil. Nesse caso, não podemos dizer que
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar existe uma comunicação direta entre as par-
tes, pois tanto o Raulzito como a mosca pos-
Com um propósito contextual, Raul Sei- suem trajetórias e temporalidades distintas
xas (Raulzito) se concentra no entrecruza- que se harmonizam em uma sintonização
mento de histórias enfatizando o papel de particular, na música e na poesia marginal
um inseto indesejável. O referido animal da década de setenta (HOLLIVER, 2020).
permeia as vozes das inquietações/insa- Aproveito o contexto da mosca para tra-
tisfações contra a ditadura militar no dis- çar um paralelo com alguns conceitos de
co Krig-há, Bandolo de 1973. No contexto Anna Tsing (2019), relaciono o papel das
da poesia marginal da década de setenta, a moscas com o ensaio bibliográfico viver nas
música mosca na sopa surge com um prota- ruínas: paisagens multiespécies no antropo-
gonismo anti-heroico ou predador, e repre- ceno, em que os mais- que-humanos lutam
senta tanto o narrador como qualquer outro nos “destroços e regeneração, extinção e
(humano ou não-humano) que não se ade- sobrevivência, poluição e adaptação, demo-
quava ao contexto social da época. lição e reconstrução” (2019, p. 162). Aqui,
A música fala da mosca que perturba, podemos dizer, que incluímos alguns agen-
tira o sono e causa danos pela sua presença, tes “menores” que nos permite vislumbrar
por isso ao longo do tempo diferentes civili- outros mundos e multilinguagens possíveis
zações têm criado estratégias para manter (2019, p. 217).
o animal distante dos alimentos, dos espa- A mosca doméstica, Musca domestica L.,
ços sociais e eventualmente das narrativas, é uma espécie cosmopolita. Sua dispersão e
a não ser em casos temáticos de morte, caos, distribuição pelo mundo foram favorecidas
conflitos, guerras ou nos encontros pragmá- por ter a capacidade de se adaptar às trans-
ticos, como as narradas por Okreãjti Metu- formações do ambiente natural e proliferar
ktire. tanto no meio urbano quanto no meio rural.
Por outro lado, o zumbizar da mosca ga- Nas cidades, infestam residências e locais
nha novos sentidos quando é atribuído às de trabalho, causando incômodos e danos
inquietações da ditadura militar e aparece à população (GRÜTZMACHER & NAKANO,
em discursos outros. Como ressalta Authie- 1997). Essas características da mosca tal-
r-Revuz (1990) o sujeito é uma figura des- vez justifiquem a sua ausência nos mitos e
centrada e suas palavras são ditas a partir rituais ameríndios.
de outras palavras ou discursos já ouvidos. Não conecto diretamente o papel das
Portanto, o dizer de um sujeito é atravessa- moscas ao conceito de “antropologia da
do sempre pelo discurso de outrem. No caso destruição” ou “da morte” apenas pelo fato
da música, vemos o zumbizar do “outro” no desse inseto se adaptar e lidar com mudan-
discurso de “um”. ças climáticas, devastação, ruínas e paisa-
Extraindo do “trágico das extinções” que gens (HOLLIVER, 2020). Em relação ao post
se proliferam pela biosfera (TSING, 2019), sobre Os pensamentos das moscas, observo
podemos verificar nas moscas um papel o entrecruzamento de vozes para dissertar

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022 65


O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre narrativas e as interações entre humanos e mais-que-
humanos nas redes sociais

sobre os incômodos das moscas e a capaci- Assim, como em outras histórias, os ele-
dade de consciência expressa no zumbizar mentos do universo aparecem nas relações
ou nas formas de ludibriar as armadilhas de diretas entre humanos e não-humanos.
afastamento com o uso do saco plástico. Da história da estrela podemos identifi-
Seguindo a tentativa de observar como car alguns referentes Kayapó, como: o choro
humanos e não humanos podem interagir, tradicional, a celebração de uma amizade
destacamos a narrativa de Tàkàk, publicada especial, a festa de Tàkàk; a música da es-
por Okreãjti Metuktire. trela Majyryti; e o ritual de nomeação Tàkàk,
através do acréscimo de outros nomes ou
O Júpiter para os Kayapó sufixos (que apresente outras caracterís-
Figura 02 – O Júpiter para os Kaiapó ticas do indivíduo nomeado) à base lexical
Tàkàk. São histórias herdadas que agora es-
tão sendo contadas no Facebook.
Assim, tanto o conjunto de códigos de
uma língua, bem como as multilinguagens
expressam a história, as crenças e a cosmo-
logia de diferentes pontos de vista, além de
ser instrumento de defesa, de posições éti-
cas, de manifestações contracoloniais, ações
e resistências. Apesar do glotocídio vivido
pelos povos originários no Brasil, esses po-
vos não assistiram ou ficaram estáticos ao
processo de colonização europeu, diferen-
tes atitudes linguísticas foram e ainda são
tomadas para a manutenção e sobrevivência
das suas línguas e culturas, como as publica-
Fonte: Metuktire (via Facebook), 2020. ções de narrativas Kayapó.

O texto publicado, além de possibilitar Interações entre as multiespécies


visibilidade ao entendimento de mundo e os fenômenos resultantes
Kayapó, também demarca seus posiciona-
dessas manifestações nas redes
mentos perante os kubẽ (não indígenas). É
importante mencionar que as expressões sociais
Kayapó têm saído do campo da oralidade e O modo como Okreãjti Metuktire tem usado
alcançado as redes sociais como manifesta- as plataformas sociais para suas interações
ções “identitárias ou étnicas”, tornando-se e manifestações discursivas, torna os espa-
um elemento ou gatilho para a asseguração ços virtuais como o Facebook lugares de lu-
de direitos básicos, tais como autonomia e tas, agências e resistências, além de também
respeito. permitir ao leitor atento perceber outras
Na publicação de Okreãjti Metuktire vozes e sujeites nos discursos. Essa aborda-
(2020), podemos observar uma narrativa gem “parte da produção de novos espaços
que desvela o ponto de vista Kayapó sobre sociais e de novas experiências subjetivas”
um dos elementos do sistema solar: Júpiter. que derivam da existência de um ciberes-

66 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022


Michelly Silva Machado

paço social (FREITAS, 2018, p.02). Um cam- comunicação feita pelos indígenas para os
po rico de possibilidades analíticas por ser indígenas a partir de suas próprias práticas
composto de múltiplos e diversos espaços e conceitos culturais, daí a sua importância
de onde emergem polifonias. (TUPINAMBÁ, 2016).
Okreãjti é um escritor indígena, da orali- Os conteúdos da Rádio Yandê e as produ-
dade ao Facebook, apresenta um estilo pes- ções de Okreãjti Metuktire têm em comum
soal de comunicar os saberes de seu povo o uso do ciberespaço como vias comunica-
aos leitores, usa relatos autobiográficos des- tivas e expressivas para promover o forta-
critos ortograficamente em português e Me- lecimento, reconhecimento, visibilidade e
bêngôkre para contar histórias, esclarecer respeito aos povos originários. Além disso,
informações sobre o modo de pensar Kaya- as ferramentas digitais alternativas e seus
pó, divulgar eventos, falar sobre os anciões diferentes recursos linguísticos são usadas
das aldeias, da sua língua indígena, das mú- para romper com estereótipos vinculados
sicas Kayapó, como do Forró NB, entre ou- pelas mídias oficiais.
tros assuntos pertinentes a participação e à A imersão nas plataformas sociais por
garantia dos direitos indígenas. meio da etnografia digital e da leitura de
As expressões das agências indígenas nos produções textuais de alguns locutores indí-
dias atuais ocorrem em diferentes campos e genas permite desvelar a presença de outras
áreas, apesar dessas manifestações parece- vozes (humanas e não humanas). Nesse sen-
rem algo novo, o protagonismo indígena se tido, os textos além de materialização do pen-
constituiu ao longo de diferentes processos samento, marcam as diferentes vozes, dada a
sociais nos quais os grupos estão inseridos. sua polissemia, em um movimento dialógico
No caso dos meios de comunicação indígena, com o meio físico e os espaços da floresta,
temos diferentes exemplos de mobilizações da aldeia ou do céu, como foi observado em
marcados para superar homogeneizações Tàkàk. Portanto, o caráter interacional da
comunicacionais e colonizadoras. linguagem e da constante auto-organização
A Rádio Yandê6, por exemplo, é a primei- cultural e linguística garante a existência e
ra web rádio indígena do Brasil, inspirada resistência dos povos originários no enca-
em pensadores, como Ailton Krenak e fun- minhamento das políticas culturais dos indí-
dada por intelectuais indígenas. Foi cons- genas e para os indígenas em conformação a
truída teoricamente nos conceitos de et- cada momento de sua existência (CARNEIRO
nomídia e etnomídia indígena. Conforme a DA CUNHA; CESARINO, 2014).
jornalista Renata Tupinambá (2016), “etno- De tal modo, as narrativas e interações
mídia é uma ferramenta de empoderamento entre as espécies no ciberespaço ocorrem
cultural e étnico, por meio da convergência pela mediação de escritores/autores indí-
de várias mídias [...], podendo ser executa- genas, que ao mesmo tempo, atuam na de-
da por diferentes identidades étnicas e cul- fesa dos direitos indígenas e trazem para os
turais”. Já a etnomídia indígena consiste na debates virtuais as formas como humanos e
6 A Rádio foi criada em 2013 por Anápuáka Tupi-
não humanos se relacionam com o mundo,
nambá, Renata Tupinambá e Denilson Baniwa mesmo em tempos históricos pretéritos.
com o intuito de valorizar a cultura, arte, músi- Essas formas de narrar e se posicionar
ca, educação, língua, filosofia e história indígena
(TUPINAMBÁ, 2016. Rádio Yandê - Disponível
nos reporta às reflexões de Davi Kopena-
em: <https://radioyande.com/>. wa, no livro A queda do céu: palavras de um

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022 67


O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre narrativas e as interações entre humanos e mais-que-
humanos nas redes sociais

xamã Yanomami, o pensador ativista políti- Para além da “política étnica”, os mo-
co yanomami com a coautoria de um fran- vimentos indígenas atuais propõem uma
cês, disserta para os não indígenas e deixa prática política diferente e plural, pois têm
o seu recardo sobre a destruição do plane- evocado entidades sencientes, tais como:
ta. Nos capítulos que compõem o livro, Davi montanhas, água, floresta, estrelas e terra,
Kopenawa descreve a cultura ancestral, a si- elementos da “natureza”, para o interior da
tuação atual do seu povo, a origem mítica, a arena política. São modos de ver o mundo
dinâmica invisível do mundo, as monstruo- que certamente interferem na interpretação
sidades da civilização ocidental e as previ- do presente e no antever (ou mesmo pres-
sões futuras para a humanidade a partir do crever) o futuro (OLIVEIRA, 2016, p.10),
ponto de vista indígena e da incapacida- como veremos nas análises a seguir.
de do “homem máquina” de compreender A esse propósito também destacamos
a floresta e a “natureza mítica das coisas” que além da arena política, os não huma-
(KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.12-13). nos estão presentes nas diferentes produ-
Nessas produções os autores trazem ções textuais indígenas, como as de Davi
para as zonas textuais seus conhecimentos Kopenawa, Ailton Krenak, Mokuká Kayapó
de mundo, a fim de resistir e conscientizar
e Okreãjti Metuktire. Sobre o acesso à jus-
o “branco” da destruição das florestas e con-
tiça de povos indígenas na América, Ailton
sequentemente do planeta. São abordagens
Krenak (2019), em Ideias para adiar o fim
que resistem “à total dissolução pelo liquidi-
do mundo, desvela o olhar de um escritor,
ficador modernizante ocidental” e se defen-
ambientalista e liderança indígena que teve
de das ações e discursos de um progresso
seu território de origem profundamente
marcado na destruição dos saberes, das flo-
afetado pela atividade de extração de mi-
restas e dos coletivos étnicos (KOPENAWA;
nérios. Em suas disposições conceituais,
ALBERT, 2015, p.15).
o autor chama atenção para o rompimen-
Para melhor ilustrar esses fenômenos
to da distinção entre terra e humanidade,
consideramos o caso de eventos políticos re-
centes na América Latina, como no Peru, no pois para ele “tudo é natureza. O cosmos é
Equador e na Bolívia, estudados por Marisol natureza”, vejamos:
De La Cadena (2019, p.01), em que a política Tem uma montanha rochosa na região onde
praticada pelos povos indígenas para fazer o rio Doce foi atingido pela lama da mi-
neração. A aldeia Krenak fica na margem
prevalecer seus direitos culturais tem sido
esquerda do rio, na direita tem uma serra.
classificada como “política étnica”.
Aprendi que aquela serra tem nome, Taku-
Segundo De La Cadena (2019, p.01), para krak e personalidade. De manhã cedo, de lá
o movimento indígena popular a noção de do terreiro da aldeia, as pessoas olham para
indigeneidade está relacionada a uma for- ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é me-
mação histórica que excede a noção usual lhor ficar quieto. Quando ela está com uma
de política tais como conhecemos, pois, seus cara do tipo “não estou para conversa hoje”,
princípios fundamentam-se na cosmopolíti- as pessoas já ficam atentas. Quando ela ama-
nhece esplêndida, bonita, com nuvens cla-
ca de diferentes grupos, ressaltando a im-
ras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeita-
portância da natureza para a sobrevivência da, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar,
das espécies, em diferentes lutas, como, por pescar, pode fazer o que quiser”. (KRENAK,
exemplo, posições antimineração. 2019, p.10).

68 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022


Michelly Silva Machado

A serra narrada por Krenak tem cara, ex- expressões que a partir de seus autores vêm
pressa se o dia vai ser bom ou ruim, apre- adaptando as mais variadas adversidades,
sentando uma linguagem específica para formas e ferramentas de interação para ma-
aqueles que conseguem entender. Observo nutenção dos repertórios biosocioculturais,
os textos/narrativas dos mediadores indí- saberes e posicionamentos étnicos.
genas como um complexo de diferentes vo- Como ressalta Davi Kopenawa:
zes e ações discursivas no tempo e no espa- Na floresta, a ecologia somos nós, os huma-
ço (físico ou virtual). nos. Mas são também, tanto quanto nós, os
Como tal, os textos têm sido registros xapiri, os animais, as árvores, os rios, os pei-
históricos das mudanças e adaptações de xes, o céu, a chuva, o vento e o sol! É tudo
um povo, como os Kayapó. As narrativas que veio à existência na floresta, longe dos
provêm da necessidade de produção, ar- brancos; tudo o que ainda não tem cerca. As
mazenamento, expressão, transmissão e palavras da ecologia são nossas antigas pa-
lavras, as que Omama [o demiurgo yanoma-
reelaboração dos conhecimentos sobre os
mi] deu a nossos ancestrais. Os xapiri defen-
sujeites e o meio físico. Neste contexto, não dem a floresta desde que ela existe. Semper
só os Kayapó como os diferentes locutores do nunca lado de nossos ancestrais, por isso
indígenas têm acompanhado as profundas a devastaram. Ela continua bem viva, não é?
mudanças, fenômenos geopolíticos e a reor- brancos, que antigamente ignoravam essas
ganização sociais, tornando as publicações coisas, estão intimamente a entender as coi-
nas redes sociais lugares de manifestações, sas.  […] Somos habitantes da floresta.  Nas-
resistências e lutas contra as mazelas da cemos no centro da ecologia e lá crescemos.
colonialidade, sobretudo no Brasil, que se (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.16).
constituiu historicamente pelo glotocídio Dessa forma, acredito que as manifesta-
dos povos originários e afrodescendentes. ções indígenas não somente contam as suas
histórias, mas revelam trajetórias outras,
Considerações finais servindo a aqueles que lhe transformam
As interações entre as multiespécies nar- em ação, em agência, força e resistência.
radas por Okreãjti Metuktire no Facebook, Por isso, reiteramos a urgência da socieda-
sobretudo em O Júpiter para os Kaiapo, de conhecer, entender e respeitar o que os
acionam experiências salvaguardadas por povos originários têm a nos dizer, pois suas
seu povo, o que permite ao leitor relembrar narrativas e conhecimentos são resultado
histórias contadas por seus avoengos (avós, de anos da interação entre esses povos e os
bisavós e tetravós) através de acionadores mais-que-humanos. São conhecimentos so-
de memória que reverberam as ontologias bre as diferentes formas e organizações so-
dos antepassados e de não humanos nos di- ciais, com a participação ativa de diferentes
ferentes espaços (físicos e virtuais). sujeites, tais como: sol, lua, estrelas, onça,
Por isso, ressalto que as narrativas e ex- cobras, serras e rios.
pressões indígenas são formas de registrar
e contar as histórias e interações entre um Referências
povo e outros seres. Nesse contexto, tanto O ÅRHEM, K. “Ecosofía Makuna”. In: F. Correa (org.),
La Selva Humanizada: Ecología Alternativa en
pensamento da mosca como O Júpiter para os
el Trópico Húmedo Colombiano. Bogotá: Ins-
Kaiapo desvelam o papel da linguagem como tituto Colombiano de Antropología/Fondo FEN
episteme de fala e ato cosmolinguístico, são Colombia/Fondo Editorial CEREC, 1993.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022 69


O pensamento das moscas e o Júpiter para os kayapó: refletindo sobre narrativas e as interações entre humanos e mais-que-
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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 59-71, jan./jun. 2022 71


artigos
Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Da entrevista oral à entrevista escrita:


uma proposta de sequência didática na
perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível
Gabriele Cristine Carvalho (IFMG)*
https://orcid.org/0000-0002-9871-2895

José Manoel Siqueira da Silva (UFS – IFMG)**


https://orcid.org/0000-0002-5928-3450

Victor Renê Andrade Souza (UFS – IFMG)***


https://orcid.org/0000-0003-0392-2839

Resumo:
Um dos desafios do ensino de português como língua materna é o de arti-
cular as práticas de linguagem preconizadas nos documentos oficiais (lei-
tura, produção de texto, oralidade e análise linguística/semiótica) de modo
contextualizado e significativo para o aluno. Neste texto, apresentamos uma
proposta de sequência didática baseada nos pressupostos teórico-metodo-
lógicos de Dolz, Noverraz e Shneuwly (2004), na perspectiva da pedagogia
culturalmente sensível (ERICKSON, 1987; BORTONI-RICARDO, 2003) e nas
orientações da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017). Propomos
uma sequência didática relacionada aos impactos da pandemia de Covid-19
no mundo do trabalho à medida em que são desenvolvidas habilidades rela-
tivas ao componente curricular Língua Portuguesa, especificamente a rela-
ção entre oralidade e escrita, a partir da retextualização de entrevistas orais
para a modalidade escrita. Apresentamos, detalhadamente, a sequência di-
dática e analisamos sua aplicação em uma turma de 7° ano do Ensino Funda-
mental da rede municipal de Água Branca, no interior do estado de Alagoas,

* Doutora em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do gru-
po de estudos Enunciar e do Laboratório Integrado de Práticas Educativas (LAPES). Professora efetiva
de Língua Portuguesa e Língua Espanhola no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG – Campus Santa
Luzia). E-mail: gabriele.carvalho@ifmg.edu.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3877291725993042.
** Doutorando em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL) da Universidade
Federal de Sergipe (UFS). Pós-graduando em Docência com ênfase na Educação Básica pelo Instituto Fe-
deral de Minas Gerais (IFMG – Campus Arcos). E-mail: manoelsqr@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/4016928659776581.
*** Mestre em Estudos Linguísticos pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de
Sergipe (PPGL/UFS). Pós-graduando em Docência com ênfase na Educação Básica pelo Instituto Fede-
ral de Minas Gerais (IFMG – Campus Arcos). E-mail: victor.andrade573@gmail.com. Lattes: http://lattes.
cnpq.br/6402436577817417.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 73


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

durante a pandemia de Covid-19. A partir disso, evidenciamos a produtivi-


dade da proposta e apontamos para a possibilidade de replicação em outros
contextos educacionais.
Palavras-chave: Sequência didática; Oralidade; Escrita; BNCC; Pedagogia
culturalmente sensível.

Abstract:
From the oral interview to the written interview:
a proposal for a didactic sequence from the
perspective of culturally sensitive pedagogy
One of the challenges of teaching Portuguese as a mother tongue is to artic-
ulate the language practices recommended in official documents (reading,
text production, orality, and linguistic/semiotic analysis) in a contextualized
and meaningful way for the student. In this paper, we present a proposal for
a didactic sequence based on the theoretical-methodological assumptions
of Dolz, Noverraz and Shneuwly (2004), in the perspective of culturally sen-
sitive pedagogy (ERICKSON, 1987; BORTONI-RICARDO, 2003) and on the
guidelines of the Base Nacional Comum Curricular (National Common Cur-
ricular Base) (BRAZIL, 2017). We propose a didactic sequence related to the
impacts of the Covid-19 pandemic on the world of work as skills related to
the Portuguese curricular component are developed, specifically the rela-
tionship between orality and writing, from the retextualization of oral inter-
views to the written modality. We present, in detail, the didactic sequence
and analyze its application in a 7th grade of an elementary school class of the
municipal network of Água Branca, in the countryside of the state of Alagoas,
during the Covid-19 pandemic. We highlight the productivity of the proposal
and point to the possibility of replication in other educational contexts.
Keywords: Didactic sequence; Orality; Writing; BNCC; Culturally sensitive
pedagogy.

1 Introdução
Articular, de modo contextualizado e signi- tratégias para o desenvolvimento de suas
ficativo para o aluno, as práticas de lingua- práticas pedagógicas em sala de aula.
gem (leitura, produção de texto, oralidade Diante desse cenário, como professores
e análise linguística/semiótica), preconi- de Língua Portuguesa, sentimos a necessi-
zadas nos documentos oficiais, é um dos dade de intensificar práticas que gerassem
desafios do ensino de português como lín- mais engajamento dos estudantes. Neste ar-
gua materna. Essa questão se potencializou tigo, apresentamos uma sequência didática
ainda mais devido ao contexto de ensino para o desenvolvimento do gênero entrevis-
remoto emergencial/ensino híbrido impos- ta, baseada nos pressupostos teórico-me-
to pela pandemia de Covid-19, no qual o todológicos de Dolz, Noverraz e Shneuwly
professor se viu distante dos alunos e, por (2004), na perspectiva da pedagogia cultu-
conseguinte, precisou mobilizar novas es- ralmente sensível (ERICKSON, 1987; BOR-

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Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

TONI-RICARDO, 2003) e nas orientações da tividade de produtos educacionais, como


Base Nacional Comum Curricular (BNCC) as sequências didáticas, e a importância do
(BRASIL, 2017). Propomos uma sequência compartilhamento dessas propostas peda-
didática relacionada aos impactos da pan- gógicas; e iii) tratamos dos postulados teó-
demia de Covid-19 no mundo do trabalho, ricos relacionados às sequências didáticas
especificamente no contexto da comunida- e à perspectiva da pedagogia culturalmente
de escolar, à medida em que são desenvol- sensível. Em seguida, apresentamos os re-
vidos conteúdos do componente curricular sultados da execução da sequência didáti-
de Língua Portuguesa, especificamente a ca, descrevendo e analisando seu processo
relação entre oralidade e escrita ­– frente a de implementação em sala de aula. Por fim,
existência de ações pedagógicas que privile- apresentamos nossas considerações finais.
giam a escrita em detrimento da oralidade
(MARCUSCHI, 1999; FURST, 2014; NEGREI-
2 Práticas de oralidade e escrita e
ROS; VILAS BOAS, 2017), a partir da retex- campos de atuação
tualização (MARCUSCHI, 2010) de entrevis- O Ensino Fundamental é visto como o perío-
tas orais para a modalidade escrita. do no qual o estudante começa a compreen-
A proposta foi aplicada em uma turma der e exercer a sua cidadania frente ao mun-
de 7° ano do Ensino Fundamental da rede do no qual está inserido, posicionando-se de
municipal de Água Branca, no interior do maneira crítica em relação aos elementos
estado de Alagoas, durante a crise sanitária que o circundam (BRASIL, 1996). Trata-se,
que se instalou devido ao SARS-CoV-2. Nes- então, de um período no qual os estudantes
te texto, descrevemos a sequência didática passam por um processo de criação de sua
criada e analisamos sua aplicação, de modo identidade. Com isso, é preciso assegurar
a evidenciar a produtividade da proposta e que esses sujeitos desenvolvam na escola
a possibilitar sua replicação em outros con- um conjunto de valores e habilidades (lin-
textos educacionais. Neste texto, descreve- guísticas e sociais) que possam ser mobili-
mos a sequência didática criada e analisa- zados em sua atuação cidadã.
mos sua aplicação, de modo não somente a Desde a promulgação dos Parâmetros
evidenciar a eficácia de produtos educacio- Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL,
nais como o proposto, mas também de pos- 1998), o ensino de Língua Portuguesa tem
sibilitar sua replicação em outros contextos como foco o desenvolvimento das capacida-
educacionais, o que poderá possibilitar um des linguísticas dos alunos, com ênfase nos
aprimoramento da prática de professores usos sociais da linguagem. Através do de-
da educação básica (AZEVEDO; FREITAG, senvolvimento das práticas de leitura, pro-
2020). dução de texto, oralidade e análise linguís-
As três primeiras seções deste texto cor- tica/semiótica, espera-se que o/a estudante
respondem aos nossos fundamentos teóri- possa perceber como a língua se relaciona
co-metodológicos, nas quais i) discutimos com a sociedade e como pode mobilizá-la
aspectos relacionados ao ensino de língua em função das diferentes demandas sociais.
portuguesa, principalmente as relações en- Mais recentemente, a BNCC, promulgada
tre oralidade e escrita, associando com os em 2017, enfatiza que, ao ensino do compo-
diferentes campos de atuação da vida so- nente Língua Portuguesa, cabe “proporcio-
cial do estudante; ii) destacamos a produ- nar aos estudantes experiências que contri-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 75


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

buam para a ampliação dos letramentos, de dade e de escrita. No entanto, dentro desse
forma a possibilitar a participação significa- continuum, não há limites rígidos, de modo
tiva e crítica” (BRASIL, 2017, p. 67-68). Para que não podemos conceber, por exemplo, a
atingir esse objetivo, o ensino deve ser guia- fala como informal e a escrita como formal,
do por eixos de integração, que correspon- tendo em vista que existem gêneros orais
dem justamente às práticas de linguagem: formais, altamente monitorados, e, por ou-
oralidade, leitura/escuta, produção textual e tro lado, gêneros escritos informais.
análise linguística/semiótica. O componen- Essa complexidade pode ser percebida
te metalinguístico, nesse sentido, deve ser no ato de retextualizar proposto por Mar-
mobilizado em função das práticas linguísti- cuschi (2010). Para o autor, o processo de
cas, não como um fim em si mesmo. Práticas retextualização envolve uma série de ope-
antes tomadas como secundárias, como a rações complexas realizadas durante a
oralidade (MARCUSCHI, 1999; FURST, 2014; passagem de um texto de uma modalidade
NEGREIROS; BOAS, 2017), assumem maior à outra, como da fala para a escrita, como
destaque, tornando-se elementos integran- propomos aqui. Entretanto, o processo não
tes do ensino de Língua Portuguesa, não é simples, automático. Retextualizar não
mais permanecendo à margem. significa simplesmente transcrever o que
Para Marcuschi (2010), oralidade e es- foi dito oralmente. É preciso considerar as
crita não devem ser compreendidas como especificidades entre os gêneros orais e
práticas linguísticas opostas. As diferenças escritos envolvidos dentro do continuum
existentes entre as duas modalidades tra- oralidade-letramento. As operações de re-
zem à tona “a necessidade de estudar as textualização consideram aspectos relativos
questões relacionadas à oralidade como um tanto à forma e à substância, quanto ao con-
ponto de partida para entender o funciona- teúdo e à expressão. Quanto ao processo de
mento da escrita” (MARCUSCHI; DIONISIO, aprendizagem de língua, ele pode ser pro-
2007, p. 14), porque diferentes práticas so- dutivo não apenas por permitir o trabalho
ciais exigem diferentes usos linguísticos. com o gênero, mas por ampliar a compreen-
O aluno, quando chega à escola, já possui são de como se estruturam as modalidades
conhecimento de sua própria língua, uma da língua dentro do continuum, em que cada
vez que é falante dela.1 Conscientizar os modalidade tem suas especificidades e es-
alunos acerca dos aspectos que compõem a tão associadas a usos sociais da linguagem
língua em suas múltiplas manifestações im- específicos. Compete à escola esclarecer aos
plica fazê-los reconhecer que a oralidade e a alunos que cada modalidade da língua se re-
escrita não são opostas: “as diferenças entre laciona com diferentes campos de atuação.
a fala e a escrita se dão dentro do continuum Sobre os campos de atuação, a BNCC
tipológico das práticas sociais de produção orienta que o trabalho com as práticas de
textual e não na relação dicotômica de dois linguagem seja desenvolvido de modo con-
polos opostos” (MARCUSCHI, 2010, p. 37). textualizado: “essas práticas derivam de si-
Bortoni-Ricardo (2005) propõe um con- tuações da vida social e, ao mesmo tempo,
tinuum oralidade-letramento, constituído precisam ser situadas em contextos signifi-
nos extremos por práticas sociais de orali- cativos para os estudantes” (BRASIL, 2017,
1 Utilizamos conhecimento aqui no sentido de co- p. 84). As práticas de linguagem são, então,
nhecimento implícito ou competência linguística. organizadas em torno de campos de atua-

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Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

ção: campo da vida cotidiana (somente anos do contato com gêneros textuais de diversos
iniciais), campo artístico-literário, campo campos de atuação. Os gêneros jornalísticos
das práticas de estudo e pesquisa, campo e os publicitários são privilegiados, com
jornalístico-midiático e campo de atuação foco em estratégias linguístico-discursivas
na vida pública, sendo que esses dois últi- e semióticas voltadas para a argumentação
mos aparecem fundidos nos anos iniciais do e a persuasão. Todo esse processo é organi-
Ensino Fundamental, como campo da vida zado em práticas de linguagem, objetos de
pública. Esses campos de atuação estão or- conhecimento e habilidades, com especifi-
ganizados de modo a permitir um ensino cações para cada nível da etapa.
contextualizado, com progressão sistemáti- Para o 6° e 7° anos do Ensino Fundamen-
ca das práticas e foram selecionados tal, destaca-se o campo jornalístico-midiáti-
por se entender que eles contemplam di- co, a partir do qual se pretende
mensões formativas importantes de uso da propiciar experiências que permitam desen-
linguagem na escola e fora dela e criam con- volver nos adolescentes e jovens a sensibi-
dições para uma formação para a atuação lidade para que se interessem pelos fatos
em atividades do dia a dia, no espaço fami- que acontecem na sua comunidade, na sua
liar e escolar, uma formação que contempla cidade e no mundo e afetam as vidas das
a produção do conhecimento e a pesquisa; pessoas, incorporem em suas vidas a prá-
o exercício da cidadania, que envolve, por tica de escuta, leitura e produção de textos
exemplo, a condição de se inteirar dos fatos pertencentes a gêneros da esfera jornalística
do mundo e opinar sobre eles, de poder pro- em diferentes fontes, veículos e mídias, e de-
por pautas de discussão e soluções de pro- senvolvam autonomia e pensamento crítico
blemas, como forma de vislumbrar formas para se situar em relação a interesses e po-
de atuação na vida pública; uma formação sicionamentos diversos e possam produzir
estética, vinculada à experiência de leitura e textos noticiosos e opinativos e participar de
escrita do texto literário e à compreensão e discussões e debates de forma ética e respei-
produção de textos artísticos multissemióti- tosa (BRASIL, 2017, p. 140, grifos nossos).
cos (BRASIL, 2017, p. 84).
Os gêneros do campo jornalístico-midiáti-
E a esses campos de atuação estão asso- co estão presentes no cotidiano do estudante.
ciados gêneros, práticas, atividades e pro- É por meio desses gêneros que os indivíduos
cedimentos. O documento esclarece, no en- podem observar a exposição de posiciona-
tanto, que não há uma rigidez nessa seleção. mentos e fatos pelo uso que se faz da língua.
São sugeridos gêneros para cada campo de Nesse contexto, as práticas de linguagem de-
atuação, mas isso não significa obrigatorie- vem ser trabalhadas de modo a desenvolver
dade, há flexibilidade. nos estudantes habilidades linguísticas que
No que diz respeito ao Ensino Funda- lhes permitam compreender sentidos em cir-
mental, o que envolve os Anos Iniciais e os culação e agir socialmente por meio da mobi-
Anos Finais, o documento preconiza compe- lização de recursos linguísticos.
tências específicas para o ensino de língua Em que pesem as orientações contidas
portuguesa que devem ser desenvolvidas, no documento normativo da BNCC, é um de-
de modo progressivo e sistemático. Nos safio implementá-las em sala de aula, tendo
Anos Finais do Ensino Fundamental, espe- em vista a relação indissociável entre os ei-
cificamente, preconiza-se um aprofunda- xos integrativos e o papel relegado aos co-
mento da formação do educando, a partir nhecimentos metalinguísticos; o que impli-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 77


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

ca uma quebra de paradigmas relacionados um problema para o desenvolvimento de


ao ensino tradicional de Língua Portuguesa. um produto que possa atender às necessi-
dades delimitadas inicialmente” (AZEVEDO;
3 A produtividade dos produtos FREITAG, 2020, p. 36). O produto é resulta-
educacionais do da tomada de decisões iniciais para que
haja um resultado satisfatório para o que foi
Uma maneira de prospectar práticas peda-
proposto. Desse modo, o
gógicas alinhadas ao que é preconizado em
documentos normativos é mediante o com- produto educacional é um objeto de apren-
dizagem desenvolvido a partir de pesquisa
partilhamento de práticas pedagógicas su-
científica (o ciclo acadêmico) para a resolu-
jeitas à avaliação da comunidade científica ção de um problema (o ciclo da ação) com
e replicáveis em outros contextos educacio- contribuições para o aprimoramento da prá-
nais. Existem muitas formas de intervir pe- tica profissional de professores da Educação
dagogicamente e de socializar boas práticas Básica (AZEVEDO; FREITAG, 2020, p. 36).
(AZEVEDO; FREITAG, 2020). O desenvolvi- Se nosso foco, em sala de aula, é desen-
mento e o compartilhamento de materiais volver habilidade X nos alunos, é necessário
didáticos e produtos educacionais é uma que, a priori, partamos do problema existen-
ação que contribui para o aprimoramento te. Tomamos como exemplo a relação entre
das aulas de língua portuguesa, permitindo oralidade e escrita. Se queremos que nossos
a replicação de práticas cientificamente va- alunos tenham consciência dos aspectos
lidadas e reproduzíveis em outros contextos constitutivos da oralidade e que observem
educacionais. quais aspectos da oralidade (não) passam
O trabalho desenvolvido no bojo dos para a escrita, é necessário que busquemos,
mestrados profissionais em Letras (FREI- inicialmente, identificar quais os problemas
TAG, 2017) e dos cursos de especialização existentes nessa relação: há transposição de
latu sensu, como a Especialização em Do- traços orais para a escrita? Há desconheci-
cência do Instituto Federal de Minas Gerais mento dos diferentes contextos de utilização
Campus Arcos,2 são exemplares disso. Esses das diferentes modalidades? Metodologica-
cursos têm contribuído para a formação mente, como trabalhar essa transposição?
continuada de professores pesquisadores Uma maneira de estruturar práticas pe-
e os resultados dessas investigações têm dagógicas, e compartilhá-las, é mediante
sido convertidos em produtos educacionais a elaboração de sequências didáticas. De-
(cadernos pedagógicos, módulos didáticos fendemos, neste artigo, que a elaboração
etc.) que possibilitam a replicação por ou- de uma sequência didática na perspectiva
tros professores em outras realidades. da pedagogia culturalmente sensível é uma
O desenvolvimento desses produtos en- forma eficaz de estruturar práticas peda-
volve uma série de questões: “no ciclo da gógicas que poderão ser compartilhadas e,
pesquisa-ação, partimos da identificação de posteriormente, replicadas.

2 O acervo de produtos pedagógicos desenvolvi- 4 As sequências didáticas e a


dos no escopo do curso é disponibilizado gra-
tuitamente para que outros professores e outras pedagogia culturalmente sensível
escolas possam reutilizar estas práticas inova-
doras: https://sites.google.com/ifmg.edu.br/ Conforme Dolz, Noverraz e Schneuwly
pgd/p%C3%A1gina-inicial?authuser=0 . (2004, p. 84), “uma ‘sequência didática’ é

78 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022


Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

um conjunto de atividades escolares organi- gógicas impostas pelo contexto pandêmico3


zadas, de maneira sistemática, em torno de e atua em diálogo com a pedagogia cultural-
um gênero textual oral ou escrito”. Assim, o mente sensível.
objetivo da sequência didática é permitir a Pensando nas questões que levam ao
aquisição de um gênero e, por conseguinte, sucesso ou ao fracasso escolar, Erickson
o domínio de habilidades linguísticas e tex- (1987) apresenta uma proposta pedagógica
tuais contextualizadas. Os autores ressaltam que considera as diferenças culturais inte-
a necessidade de se ensinar os gêneros que racionais entre professor e aluno como fun-
os alunos não dominam, bem como os gêne- damentais para o sucesso escolar. O autor
ros da esfera pública, como os jornalísticos. mostra, com base nas pesquisas realizadas
Como procedimento metodológico, Dolz, por antropólogos orientados pela sociolin-
Noverraz e Schneuwly (2004) propõem guística, que a diferença nos estilos cultu-
uma estrutura que deve servir de base para rais de comunicação tem um importante pa-
o desenvolvimento das sequências, que en- pel na aprendizagem escolar dos estudantes
volve a apresentação da situação, a partir oriundos das minorias (por exemplo, étni-
de: (i) uma explicação detalhada da tarefa cas, econômicas e linguísticas). O autor ex-
que os alunos deverão desenvolver; (ii) uma plica que, embora muitas vezes professores
produção inicial, que funcionará como uma e alunos façam parte da mesma comunidade
avaliação diagnóstica; (iii) módulos, consti- de fala (speech communities), têm diferentes
tuídos de atividades que permitirão instru- redes de fala (speech networks) – apresen-
mentalizar os alunos a dominar o gênero; tando, por exemplo, diferenças na maneira
e (iv) uma produção final, a qual permitirá de apresentar ironia, sinceridade, afetivida-
aos discentes colocar em prática os conhe- de, desinteresses etc. –, podendo levar a mal
-entendidos e, posteriormente, ao desinte-
cimentos linguísticos e textuais adquiridos.
resse escolar ou baixo rendimento. Propõe,
A modularidade é o princípio mais im-
então, uma pedagogia culturalmente sensí-
portante dessa teoria, permitindo a aqui-
vel (a culturally responsive pedagogy), que
sição de toda a complexidade da produção
de um gênero mediante atividades diversifi- é um tipo especial de esforço realizado pela
cadas, que explorem diferentes nuances do escola, que pode reduzir as dificuldades de
comunicação entre professores e alunos,
texto, permitindo ao aluno “a possibilidade
promovendo a confiança e prevenindo a gê-
de ter acesso, por diferentes vias, às no- nese de conflitos que se movem rapidamen-
ções e aos instrumentos, aumentando, des- te para além dos mal-entendidos intercul-
se modo, suas chances de sucesso” (DOLZ; turais, evoluindo para confrontos amargos
NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 89). Os nesse intercâmbio de identidades negati-
autores ainda destacam que esse método vas entre alguns alunos e seus professores
(ERICKSON, 1987, p. 355, tradução nossa).4
permite a aprendizagem de uma linguagem
técnica sobre os gêneros trabalhados. 3 Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) afirmam que
A sequência que apresentaremos se ba- as sequências “não devem ser consideradas um
manual a ser seguido passo a passo” (p. 107).
seia nesse modelo, já que tem como objetivo Cabe ao professor realizar escolhas com base no
central o desenvolvimento do gênero en- conhecimento já adquirido pelos alunos, visan-
trevista (nas suas diferentes modalidades), do alcançar objetivos reais relacionados às suas
possibilidades.
mas foi adaptada às necessidades da turma 4 No original: “is one kind of special effort by the
e do professor regente e às condições peda- school that can reduce miscommunication by

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 79


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

Bortoni-Ricardo (2003) aplica os princí- aproveitar as experiências e vivências que as


pios da pedagogia culturalmente sensível à crianças trazem consigo, repetindo padrões
Sociolinguística Interacional. Como proposta interacionais que lhes são familiares; de-
senvolver estratégias que façam a distinção
metodológica dessa abordagem para a sala
entre eventos de oralidade e de letramento;
de aula, Bortoni-Ricardo (2003) defende que implementar estratégias de envolvimento,
as estratégias interativas devem ocorrer por permitindo que a criança fale, ratificando-a
meio de “andaimes”, visto que estes são um como falante legítimo, respeitando-lhe as
recurso pedagógico importante nos eventos peculiaridades, acolhendo-lhe as sugestões
de letramento5. O scaffolding ou andaime é e tópicos, incentivando-a a manifestar-se,
fornecendo-lhe modelos de estilos moni-
um tipo de interação que ocorre quando um
torados da língua e mostrando-lhe como e
membro é mais competente do que o outro quando usar esses estilos. Enfim, a escola
na interação, auxiliando-o a adquirir certas tem de aceitar a diversidade e torná-la fun-
habilidades, o que, na sala de aula, associa- cional (BORTONI-RICARDO, 2003, p. 134).
mos, principalmente, à relação professor Como se poderá ver, na próxima seção,
-aluno (BORTONI-RICARDO, 2003).6 No caso essas concepções teórico-metodológicas fo-
do ensino de língua portuguesa, os andaimes ram consideradas para o desenvolvimento
possibilitariam a aquisição dos estilos mais e aplicação da sequência didática proposta,
monitorados da língua, isto é, quando ocorre pois a temática (pandemia), o gênero tex-
um grau maior de planejamento ou de aten- tual (entrevista) e os textos modelares que
ção na produção oral ou escrita. a compõem (entrevistas com personalida-
A autora cita, como formas de aplicação des jovens que fazem parte do universo dos
da pedagogia culturalmente sensível, alunos) foram selecionados cuidadosamen-
te com o objetivo de valorizar as vivências e
teachers and students, foster trust, and pre-
vent the genesis of conflict that moves rapidly
as experiências dos alunos, tornando o am-
beyond intercultural misunderstanding to bitter biente escolar acolhedor para a promoção
struggles of negative identity exchange between da aprendizagem. Além disso, em todos os
some students and their teachers” (ERICKSON,
momentos da execução dessa proposta o co-
1987, p. 355).
5 Vários autores, como Kleiman (2005) e Soares nhecimento prévio dos estudantes (linguís-
(1998), diferenciam alfabetização de letramento. tico, textual e sociocultural) foi acionado, ra-
Para as autoras, a alfabetização é a aquisição da
tificando-o como falante legítimo. Portanto,
“tecnologia” do ler e do escrever, já o letramen-
to inclui as práticas sociais de usos da leitura e desenvolver uma sequência didática sobre
da escrita. Nessa concepção, um indivíduo pode retextualização com base em uma pedago-
ser analfabeto, mas ter um grau de letramento, já gia culturalmente sensível permite articular
que está inexoravelmente inserido em uma cul-
tura letrada como a nossa. Kleiman (2005) defi- as práticas de linguagem de modo signifi-
ne os eventos de letramento como “a ocasião em cativo e contextualizado. Os resultados da
que a fala se organiza ao redor de textos escritos aplicação do nosso produto educacional são
e livros envolvendo a sua compreensão. Segue as
regras de usos da escrita da instituição em que apresentados a seguir.
acontece. Está relacionada ao conceito de evento
de fala, que é governado por regras e obedece às 5 Uma proposta de sequência
restrições impostas pela instituição” (p. 23).
6 Como se vê, há uma clara relação com a teoria didática
da “zona de desenvolvimento proximal” de Vy-
gotsky, que é citado por Bortoni-Ricardo (2003) A sequência didática proposta consiste
e por Erickson (1987). em um conjunto de cinco aulas voltadas

80 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022


Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

ao trabalho do gênero entrevista7, ressal- uma sequência didática que parte de uma
tando aspectos da oralidade e da escrita temática social latente nos alunos, a pan-
da Língua Portuguesa, partindo do reco- demia de Covid-19,8 para o desenvolvi-
nhecimento dos elementos constitutivos mento de habilidades linguísticas.9 O cro-
da modalidade oral da língua à retextuali- nograma das aulas pode ser observado na
zação para um gênero escrito. Sugerimos Figura 1:

Figura 1 – Cronograma da sequência didática proposta.

Fonte: Elaboração própria.

A primeira aula teve como objetivo apre- entrevista escrita – produção final, e a quar-
sentar aos alunos a proposta, iniciar a dis- ta, à sensibilização acerca dos aspectos mul-
cussão acerca do gênero entrevista oral e timodais do gênero. A última aula da sequên-
instrumentalizá-los para a realização de en- cia foi destinada à revisão dos textos a partir
trevistas com pessoas da comunidade que da avaliação do professor e à socialização
continuaram trabalhando durante a pan- dos resultados com a comunidade escolar.
demia de SARS-CoV-2. Na segunda aula, a Todas as atividades estão descritas no
proposta foi discutir aspectos constitutivos Quadro 1, com indicação das habilidades
da oralidade, através da transcrição das pró- mobilizadas conforme a BNCC, de modo que
prias entrevistas realizadas pelos alunos. A possam ser replicadas em outros contextos
terceira aula foi direcionada à discussão da educacionais. Um conjunto de slides foi de-

7 A escolha do gênero deu-se devido às atividades 8 Ressalvamos que a seleção da temática a ser tra-
desenvolvidas durante as Olimpíadas de Língua balhada deve ser adaptável a cada contexto edu-
Portuguesa no 7º ano, pois uma das oficinas pro- cacional, de modo que a questão norteadora das
punha a realização de uma entrevista oral com atividades dialogue com o meio social da comu-
algum habitante do lugar onde os estudantes nidade escolar (ERICKSON, 1987).
viviam, de modo que os alunos já tinham, em 9 Apesar de destacarmos os aspectos linguísticos,
algum grau, conhecimento sobre o gênero. As- apontamos para o potencial interdisciplinar da
sim, consideramos produtivo expandir esse co- proposta, que pode mobilizar outras áreas do
nhecimento. Além disso, cabe destacar que esse conhecimento, como a Matemática, ao tratar, por
gênero integra o campo de atuação jornalístico- exemplo, quantitativamente os dados das entre-
midiático proposto pela BNCC (2017). vistas.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 81


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

senvolvido para mediar todos os encontros.10

Quadro 1 – Esquema geral da sequência didática.

Aula 1: Entrevista oral

Objetivo: Apresentar aos alunos a proposta, iniciar a discussão acerca do gênero entrev-
ista oral e instrumentalizá-los para a realização de entrevistas com pessoas da comuni-
dade que continuaram trabalhando durante a pandemia de Covid-19.

Habilidades (BNCC): (EF69LP10), (EF69LP13).

Atividades Propostas
1) Apresentar à turma a sequência didática a ser desenvolvida em sala.
2) Sensibilizar os alunos acerca da proposta de documentar a rotina dos trabalhadores
durante a pandemia de Covid-19 por meio de entrevista oral e escrita, reforçando a im-
portância deles como agentes transformadores da comunidade.
3) Discutir com os alunos o passo a passo para a realização de uma entrevista, apre-
sentando instruções de como realizá-la (roteiro, seleção do entrevistado, comportamento
do entrevistador, ambiente de realização da entrevista, posicionamento do gravador –
celular etc.), partindo dos conhecimentos prévios dos alunos acerca do gênero e do papel
do entrevistador, além de ilustrar a situação com uma entrevista exemplar (um vídeo).
É recomendável que o roteiro de entrevistas seja construído colaborativamente, ou seja,
alunos e professores, durante a aula, devem elaborar, juntos, as perguntas-base a serem
feitas ao entrevistado. O professor deve mediar essa construção e anotar as questões que
surgirem, limitando o número de questões para que a entrevista não se estenda.
4) Solicitar, como tarefa para aula seguinte, a realização de uma entrevista com um con-
hecido que tenha, de algum modo, mantido sua rotina de trabalho durante a pandemia de
Covid-19. Preferencialmente, recomenda-se que os alunos já consigam definir seus po-
tenciais entrevistados em sala e que utilizem o celular para gravar a entrevista. Deve-se
esclarecer que os alunos devem compartilhar os áudios de suas entrevistas no grupo do
WhatsApp da turma, de modo que todos tenham acesso às gravações.11

10 Com vistas a viabilizar a replicação dessa sequência, disponibilizamos todo o material em um repositório
permanente, disponível em: https://drive.google.com/file/d/136jZf4BwsY7ntsZyGpRnoW5QjmdRKC-
zH/view?usp=sharing .
11 Por conta da pandemia, os alunos não puderam se reunir em grupo. A socialização por meio do grupo de
WhatsApp foi a forma mais eficiente que encontramos para o acesso aos avanços dos alunos.

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Aula 2: Transcrevendo a fala: aspectos constitutivos da oralidade

Objetivo: Discutir aspectos constitutivos da oralidade, através da transcrição das próprias


entrevistas realizadas pelos alunos.

Habilidades (BNCC): (EF69LP19), (EF69LP12).

Atividades Propostas

1) Solicitar que os alunos levem para a aula o áudio proveniente da gravação da entrevista.

2) Iniciar a aula, discutindo com os alunos acerca da experiência de realizar entrevistas


orais, realizando estas perguntas: Como foi realizar a tarefa? Quais foram as maiores difi-
culdades? Gostaram da experiência?

3) Explicitar o próximo passo da sequência de aulas: realizar a transcrição da entrevista


oral.

4) Refletir com os alunos acerca dos aspectos constitutivos da oralidade. O que os alunos
percebem como comum na linguagem falada? Percebem diferenças entre a fala e a escri-
ta? Quanto à formalidade, há diferença entre um texto formal escrito e um oral? Existem
vícios de linguagem?

5) Após a discussão, direcionar a aula para a reflexão acerca dos aspectos constitutivos da
oralidade (repetições, presença de fenômenos fonológicos variáveis, de pausas preenchi-
das, de marcadores discursivos etc.), a partir das entrevistas realizadas pelos alunos,
esclarecendo que, apesar desse reconhecimento, existem situações comunicativas que
requerem maior monitoramento. Sugere-se uma escuta compartilhada de alguma das en-
trevistas gravadas.

6) Fornecer, na sequência, os encaminhamentos para o processo de transcrição ortográfi-


ca da entrevista, ou seja, os alunos devem transcrever em casa o material auditivo exata-
mente como foi dito pelo(a) entrevistado(a), seguindo as normas estabelecidas em sala. O
objetivo da transcrição é fazer os alunos compreenderem o modo com a fala se estrutura
nas situações comunicativas.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 83


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

Aula 3: Da entrevista oral à entrevista escrita

Objetivo: Discutir os aspectos do gênero entrevista escrita.

Habilidades (BNCC): (EF69LP10), (EF69LP06), (EF69LP07), (EF69LP16), (EF69LP17).

Atividades Propostas

1) Solicitar que os alunos levem a transcrição da entrevista oral.

2) Iniciar a aula investigando como foi esse processo de transpor a oralidade para a escri-
ta, respeitando as marcas constitutivas da modalidade oral.

3) Convidar os alunos, uma vez realizada essa sondagem inicial, para, finalmente, trans-
formar a entrevista oral em texto escrito, no formato de uma entrevista escrita, esclare-
cendo o próximo passo da sequência de aulas.

4) Ler em voz alta com os alunos uma entrevista escrita modelar, de modo que os alunos
conheçam as especificidades do gênero que terão de produzir. Ao longo da leitura, suge-
re-se direcionar a atenção dos alunos para os elementos e as especificidades do gênero
entrevista: a presença de um título, da autoria, de uma breve introdução, da fotografia
da pessoa entrevistada e da estrutura da entrevista propriamente dita (pergunta – re-
sposta).

5) Instar os alunos, após as discussões, a transformar a transcrição em uma entrevista


escrita, considerando principalmente a passagem do oral para o escrito.

6) Solicitar que os alunos compartilhem com a turma a primeira versão do texto via grupo
de WhatsApp para que todos possam acessar e ler o que está sendo desenvolvido pelos
colegas.

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Aula 4: Nem só de palavras se faz um texto

Objetivo: Instrumentalizar os alunos para a confecção de fotografias para ilustrar as en-


trevistas, já que é comum ao gênero a presença de uma ilustração, como visto na aula
precedente.

Habilidades (BNCC): (EF69LP08).

Atividades Propostas
1) Iniciar a aula sensibilizando os alunos acerca dos aspectos multimodais dos textos,12
com enfoque na presença de elementos visuais na constituição dos sentidos do texto.
2) Realizar, coletivamente, uma discussão sobre o papel das imagens na composição das
entrevistas (que, geralmente, é a fotografia do entrevistado).
3) Conduzir, após essa introdução, uma breve oficina de fotografia, de modo a instrumen-
talizar os alunos para a tarefa de produzir uma fotografia com seu aparelho celular para
ilustrar o texto. Aspectos técnicos, éticos devem ser abordados e a experiência dos alunos
com a prática fotográfica deve ser considerada.
4) Solicitar, como tarefa para a aula seguinte, o envio de uma fotografia que ilustre a
entrevista.

Aula 5: Hora de revisar e socializar

Objetivo: Discutir os aspectos que devem ser revisados pelos estudantes. O professor
deve ter avaliado as produções textuais quanto à adequação à modalidade escrita da lín-
gua e às especificidades do gênero.

Habilidades (BNCC): (EF69LP08).

Atividades Propostas
1) Abordar as principais questões percebidas e instruir os alunos quanto à necessidade e
importância do processo de revisão.
2) Unir, após isso, texto escrito e fotografia e socializar o texto com a comunidade escolar,
através das redes sociais da escola ou afixando as produções textuais nas instalações da
unidade escolar.
Fonte: Elaboração própria.

12 Embora um texto impresso possa explorar a escolha de modulações dentro de uma mesma semiose, como
tipos de letra, uso de cores, diagramação etc. (RIBEIRO, 2016), normalmente, um texto é considerado
multimodal, quando diferentes linguagens, modos e/ou semioses – elementos visuais, sonoros, espaciais
etc. – estão combinados, gerando novas significações. Para mais informações, sugerimos a leitura de Rojo
e Moura (2012) e do Grupo Nova Londres (2021), os quais tratam dos multiletramentos, que têm, como
um de seus eixos de trabalho, o tratamento da multimodalidade.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 85


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

Na seção a seguir, analisamos a imple- pusemo-nos a trabalhar com o gênero entre-


mentação da sequência didática proposta vista, cuja existência, certamente, já era de
em uma turma de 7° ano do Ensino Funda- conhecimento dos estudantes. Iniciamos a
mental da rede municipal de Água Branca, aula perguntando aos alunos se eles sabiam
no interior do estado de Alagoas. No ano o que era uma entrevista oral, como era feita
em que esta sequência didática foi aplicada e a sua finalidade, visto que o mapeamento
(2021), o mundo encontrava-se em meio à é fundamental para termos direcionamento
pandemia da Covid-19. A sequência foi de- de como prosseguir. A maioria dos estudan-
senvolvida no segundo semestre do ano, en- tes já sabia o que era a entrevista oral, mas
tre os meses de agosto e setembro, pelo pro- tinha um conhecimento limitado sobre sua
fessor regente, um dos autores deste artigo. organização ou sobre como era feita, res-
As aulas já se encontravam na modalidade tringindo-se, principalmente, às entrevistas
presencial, seguindo um sistema de rotati- em vídeo amplamente divulgadas nas mí-
vidade, isto é, as turmas eram divididas em dias sociais.
dois grupos (A e B), com aulas em dias alter- Após o mapeamento, passamos à apre-
nados. Portanto, as aulas eram sempre repe- sentação de nossa proposta, antecipando
tidas, no mínimo, duas vezes, de modo que o que seria trabalhado em todas as aulas,
os alunos de ambos os grupos recebessem o o nosso percurso (cf. Figura 1), o qual foi
mesmo conteúdo. Embora assistindo a au- baseado em Dolz, Noverraz e Schneuwly
las em dias diferentes, os alunos de ambos (2004).
os grupos se comportaram de forma seme- A descrição do gênero entrevista oral
lhante quanto às propostas, conforme será veio em seguida. Primeiro, apresentamos
apresentado na seção seguinte. um vídeo de uma entrevista oral com a gi-
nasta brasileira Rebeca Andrade, momentos
6 Análise da execução da após sua vitória nas Olimpíadas de 202013.
sequência didática Solicitamos aos alunos que observassem
como a entrevista estava sendo conduzida,
No decorrer desta seção, as aulas que com-
atentando-se aos aspectos constitutivos do
põem a sequência didática são descritas e
gênero. Essa etapa foi importante para que
analisadas individualmente, visando apre-
os alunos refletissem sobre a condução de
sentar detalhadamente as atividades de-
uma entrevista. Em seguida à apresentação
senvolvidas em sala de aula, permitindo
do vídeo, explicitamos a estrutura do gêne-
que o professor-leitor possa traçar suas re-
ro entrevista oral, relevando ser um diálogo
flexões e buscar a melhor maneira de adap-
entre duas pessoas (entrevistador e entre-
tar/replicar esta sequência ao seu contexto
vistado) e que seu objetivo é, geralmente,
escolar.
13 Selecionar um(a) entrevistado(a) que esteja
6.1 Aula 1: entrevista oral relacionado ao universo dos alunos é uma es-
Nenhuma aula parte do zero. Para a cons- tratégia interativa (BORTONI-RICARDO, 2003)
fundamental para aproximar a proposta da
trução do conhecimento em sala, entende- realidade dos estudantes. A entrevista utiliza-
mos que os alunos possuem conhecimento da nesta sequência didática está disponível em:
prévio que deve ser mobilizado, conforme https://www.uol.com.br/esporte/olimpiadas/
videos/2021/08/03/rebeca-andrade-muitas
sugerem Bortoni-Ricardo (2003) e Erickson -pessoas-falaram-que-eu-nao-chegaria-em-lu-
(1987). Em nossa sequência didática, pro- gar-nenhum.htm.

86 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022


Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

extrair informações sobre determinado as- precisaram fazer essa operação) e, após
sunto. a instalação, prosseguimos para uma
A última parte dessa aula foi centrada testagem dos procedimentos para gra-
vação (botões de comando, formato de
nas instruções para a realização de uma en-
saída do áudio – .WAV – etc.);
trevista oral, que foi dividida em etapas:
III. Seleção dos entrevistados: os entrevista-
I. Roteiro: uma entrevista não parte do
dos tinham que ser pessoas cujo traba-
nada. É preciso que, previamente, sejam
lho não foi interrompido na pandemia,
organizadas perguntas que irão guiá-la.
com enfoque naqueles que compunham
O roteiro foi construído conjuntamente
sua comunidade ou círculo social/fami-
em sala de aula. Seguindo as orientações
liar, aproximando a tarefa da realidade
propostas por Bortoni-Ricardo (2003) e
sociocultural da comunidade escolar. Os
por Erickson (1987), os alunos socializa-
alunos foram instruídos a seguir os pro-
ram e discutiram suas ideias de pergun-
tocolos de segurança (distanciamento
tas, para que pudéssemos decidir se a
social, uso de máscara e evitar contato
pergunta integraria ou não o roteiro. Ao
físico);
final, 12 perguntas foram selecionadas
para compor o roteiro: IV. Seleção do local para a entrevista: orien-
tamos a procura por lugares mais silen-
a. Qual o seu nome?
ciosos, de modo que o áudio tivesse o
b. Qual a sua idade? mínimo de interferência possível, já que
c. Onde você mora? lugares com forte barulho interferem no
resultado.
d. Qual a sua profissão?
Ressaltamos que o aluno deveria evitar
e. Você continuou trabalhando du-
falar mais do que os entrevistados, não os
rante a pandemia?
interrompendo, demonstramos a forma
f. Como você está se sentindo du- como deveriam abordar as pessoas para
rante esse tempo de pandemia?
participar da entrevista (explicando o traba-
g. O que você faz em seu trabalho? lho que estava sendo feito e pedindo autori-
h. Você se sente seguro(a) traba- zação para gravação e divulgação do áudio)
lhando na pandemia? e simulamos rodadas de entrevistas, nas
i. Qual a sensação de trabalhar quais os alunos ora eram os entrevistado-
nesse ambiente? res, ora os entrevistados, a fim de treinarem
j. Como você lida com as pessoas e se familiarizarem com o procedimento de
que não seguem o protocolo? realização da coleta.
k. Qual a sua opinião sobre a Co- A tarefa dos alunos era a de realizar a en-
vid-19? trevista e enviar a gravação para o grupo de
WhatsApp da turma, antes da aula seguinte,
l. Você acha que a pandemia inter-
feriu em seu trabalho? Como? como forma de socialização da atividade
cumprida.
II. Equipamento de gravação: a maioria dos
alunos dispunha de aparelhos celulares.
6.2 Aula 2: transcrevendo a fala –
Por meio deles, fizemos a coleta de áu-
dio das entrevistas. Os alunos, em sala de
aspectos constitutivos da oralidade
aula, foram instruídos a baixar um apli- O início da segunda aula foi marcado
cativo de gravação específico (os que já pela discussão sobre como foi “atuar como
tinham, nativos em seus celulares, não repórter” por um dia. Alguns dos alunos

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 87


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

reportaram dificuldades na localização de »» Truncamentos;


informantes, devido morarem em comuni- »» Repetições;
dades rurais com poucos habitantes, com- »» Autocorreções;
posta, majoritariamente, por trabalhadores »» Pausas (preenchidas e não preenchidas);
do campo. Mesmo diante das dificuldades,
»» Marcadores conversacionais (né, então,
todos os alunos realizaram a entrevista e
aí, viu, sabe, olha, entendeu, tipo, etc.);
entregaram o áudio.
»» Fenômenos variáveis (pexe, caxa, as casa,
Um segundo mapeamento foi feito para
vou ni Maceió, dodjo...).
observar se os alunos tinham consciência da
existência de diferenças entre a língua fala- O enfoque em aspectos da oralidade é fa-
da e a língua escrita. Esse espaço foi funda- tor primordial quando queremos observar
mental para a promoção de discussões rela- as diferenças entre língua escrita e língua
tivas à adequação e ao desenvolvimento da falada (MARCUSCHI; DIONISIO, 2007). Nes-
sensibilidade sociolinguística dos alunos. se momento, explicamos que diferentes am-
Adentramos, então, na discussão sobre bientes exigem diferentes comportamentos
a constituição da oralidade. Relevamos per- linguísticos, a depender do grau de forma-
guntas como: falamos da mesma forma que lidade, visando, principalmente, à mobiliza-
escrevemos? Se não, quais aspectos diferen- ção de diferentes formas da linguagem para
ciam a fala da escrita? Ressaltamos que, na se expressar e partilhar informações em di-
fala cotidiana produzida em contextos infor- ferentes contextos (BRASIL, 2017).
mais, os interlocutores partilham o mesmo Considerando essas diferenças, propuse-
momento, o mesmo contexto e não há ne- mos a transcrição do áudio coletado. Trans-
cessidade de planejamento (simplesmente crever significa transpor para a escrita um
falamos), havendo a possibilidade de inter- texto oral, respeitando o que foi dito e como
rupção para esclarecer dúvidas, discordar, foi dito (PAIVA, 2003). Demonstramos, em
concordar, além de a entonação da voz ser sala de aula, um exemplo de transcrição pa-
um aspecto que constitui a significação da reado com seu áudio (o áudio previamente
comunicação. Frente a essa reflexão, exibi- apresentado) de forma que os alunos perce-
mos um áudio de fala espontânea14 e fize- bessem o texto transcrito como represen-
mos um questionamento sobre o que havia tação do falado15. Os equipamentos para a
naquele áudio que usualmente não havia transcrição foram os próprios aparelhos
em textos escritos. A partir do áudio, discu- smartphones, fones de ouvido, papel e ca-
timos sobre as marcas constitutivas da ora- neta. Algumas normas de transcrição foram
lidade, considerando: estabelecidas (Figura 2).
Os alunos foram instruídos a: i) usar as
»» Itens lexicais característicos do registro
informal;
normas do acordo ortográfico vigente; ii)
marcar a pausa preenchida com: ah, eh, uh;
»» Redundâncias;
iii) não iniciar as frases com letra maiúscula;
14 O áudio foi retirado do banco de Falares Sergipa- iv) indicar de quem é a fala (entrevistador x
nos (FREITAG, 2013), que contém dados de fala entrevistado).
espontânea de estudantes da Universidade Fede-
ral de Sergipe (UFS). Recomendamos que os pro- 15 Desconsideramos, contudo, aspectos fonéticos
fessores-leitores conheçam e explorem em sala para a transcrição, a não ser aqueles resultantes
de aula os bancos de dados linguísticos já consti- de redução, como em pra, num cê, tava etc, com
tuídos no Brasil e disponíveis à comunidade. exceção da monotongação.

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Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

Figura 2 – Normas de transcrição adotadas.

Fonte: Elaborada pelos autores com base nas normas de transcrição adotadas pelo banco de dados Falares
Sergipanos (FREITAG, 2013).

Encerramos a segunda aula, encami- Todos os alunos receberam uma cópia da


nhando os alunos para a realização da trans- entrevista. Após a leitura, discutimos acer-
crição e posterior envio no grupo da turma. ca das características do gênero. Os alunos
observaram, principalmente, a organização
6.3 Aula 3: da entrevista oral à en- estrutural: título, subtítulo, data de realiza-
trevista escrita
ção, informação de quem realizou, foto, in-
Na terceira aula, os alunos entregaram
trodução etc. Os apontamentos dos alunos
a transcrição. Iniciamos dialogando com os
refletiram a aquisição de algumas das carac-
alunos sobre a experiência de transcrever
terísticas do gênero. Em seguida, passamos
um áudio. Alguns, que fizeram entrevistas
para uma reflexão sobre quais seriam as di-
longas, relataram dificuldades na transcri-
ferenças entre uma entrevista oral realizada
ção, devido à maior demanda de tempo e es-
por eles e a escrita lida em sala. A discussão
forço. Aqueles que fizeram entrevistas curtas
anterior ajudou nesse processo.
não apresentaram tais problemas. De modo
Frente a isso, discutimos as característi-
geral, a atividade de transcrição serviu de
cas do gênero, considerando o seu uso para
base para os estudantes observarem como a
meios jornalísticos, como o feito por Oliver
nossa fala é constituída e quais aspectos são
Whang. Demos maior enfoque ao ato de
similares àqueles de sua própria fala.
adequação do texto oral às características
Como transformar um texto oral em um
do texto escrito, tendo em vista que uma
texto escrito? Esse foi o foco desta aula, des-
entrevista geralmente é gravada oralmente
tinada à transformação da transcrição em
e posteriormente redigida. Nesse proces-
um modelo comumente vinculado ao meio
so, características da oralidade que foram
jornalístico: o gênero entrevista escrita.
discutidas na aula anterior, como pausas
Para situar os alunos no gênero, apresen-
preenchidas, hesitações, truncamentos e
tamos uma entrevista escrita com a ativista
marcadores discursivos deveriam ser supri-
Greta Thunberg, feita por Oliver Whang para
midos. Foi fundamental discutir essas carac-
a revista National Greographic em 202016.
terísticas uma vez que os alunos não tinham
16 A entrevista pode ser obtida na íntegra por meio consciência dessas especificidades, o que os
do site da revista National Greographic. Disponí- levou a refletir sobre esses aspectos em suas
vel em: https://www.nationalgeographicbrasil. próprias produções.
com/ciencia/2020/11/entrevista-exclusiva-
greta-thunberg-crise-clima-mudancas-climati- Aos alunos, então, foi encaminhada a ta-
cas-meio-ambiente . Acesso em: 29 out. 2021. refa de transformar a entrevista oral trans-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 89


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

crita que tinham em mãos em uma entrevis- Para tanto, desenvolvemos uma oficina
ta escrita. O texto teria que ser enviado no de fotografia, visando que os alunos fossem
grupo da turma, como forma de socializa- os próprios fotógrafos de suas imagens, ins-
ção, além de ser entregue em sala na aula 4, truindo, principalmente, que o enfoque da
descrita a seguir. Os alunos compartilharam foto é o entrevistado (atentando-se para o
suas produções e puderam, colaborativa- fundo, a iluminação etc.). A foto deveria ser
mente, observar as estratégias textuais uti- simples, apenas representando a pessoa. Os
lizadas pelos colegas. alunos foram orientados a pedir permissão
à pessoa. Em caso de negativa, o aluno foi
6.4 Aula 4: nem só de palavras se faz instruído a perguntar ao entrevistado se po-
um texto
deria ceder uma foto existente ou se o aluno
Nesta aula, os alunos entregaram a pri-
poderia tirar uma foto do seu local de tra-
meira versão da entrevista escrita. Nes-
balho.
te momento, avaliamos o texto, de modo a
A tarefa dos alunos era, além de rever o
observar se estava estruturado conforme
texto com base nos apontamentos do profes-
a organização do gênero, além de observar
sor, obter uma imagem que representasse a
aspectos gramaticais, com vistas a tentar re-
pessoa da entrevista e inserir essa foto na
duzir o uso de traços descontínuos na escri-
entrevista escrita (em uma versão impres-
ta do aluno (no título, no subtítulo, na intro-
sa). Os alunos também tiveram que enviar a
dução e também na entrevista em si). Essa
foto no grupo da turma.
etapa age como um tipo de mentoria: o alu-
no entrega um produto e o professor apon- 6.5 Aula 5: hora de revisar e sociali-
ta possíveis melhorias/adequações, fun- zar
cionando como os andaimes propostos por Esta aula foi destinada à entrega da ver-
Bortoni-Ricardo (2003) e Erickson (1987). são final da entrevista escrita, com as corre-
Após essa mentoria, iniciamos nos- ções realizadas e com a inserção da fotogra-
sa aula, argumentando que um texto não fia. Nem todos os entrevistados autorizaram
é composto apenas por palavras escritas. a realização da foto, optando pelo envio de
Nesta parte, seguimos para a discussão so- uma foto já existente ou, em caso de negati-
bre multimodalidade, que considera, para va a essa estratégia, foi necessário recorrer
a comunicação, aspectos linguísticos, como à foto do local de trabalho do indivíduo.
a escrita e a oralidade, aspectos visuais, Os trabalhos entregues pelos alunos fo-
como imagens e fotografias, e aspectos ges- ram socializados em sala de aula. Cada um
tuais, como expressões faciais, por exemplo. deles apresentou a pessoa entrevistada, fa-
Nosso enfoque, entretanto, recaiu sobre os lando sobre sua profissão e destacando os
aspectos visuais: utilizando imagens para principais pontos abordados na fala do en-
a composição da entrevista, mais precisa- trevistado e, por fim, solicitamos que dis-
mente, a imagem da pessoa entrevistada ou corresse brevemente sobre os principais
do local onde a pessoa trabalha. Utilizamos, aprendizados decorrentes da sequência di-
neste momento, uma entrevista escrita que dática. Esse ponto serviu como ferramenta
possuía uma fotografia da pessoa entrevis- para que o aluno expressasse os pontos po-
tada (no caso, a cantora Iza)17.
com.br/cultura/iza-as-coisas-incriveis-da-nos-
17 A entrevista pode ser obtida na íntegra no site da sa-cultura-vieram-da-periferia/. Acesso em: 29
revista Abril. Disponível em: https://veja.abril. out. 2021.

90 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022


Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

sitivos e negativos do percurso, além de aju- lar à observada em meios jornalísticos. O li-
dar no desenvolvimento de um mapa men- vreto foi divulgado para toda a comunidade
tal sobre o gênero selecionado. escolar.
Após a socialização dos trabalhos, pas-
samos para a socialização de opiniões sobre Considerações finais
a sequência desenvolvida em sala, de modo O desenvolvimento da sequência didáti-
a termos um feedback em relação aos pon- ca aqui proposta objetivou desenvolver a
tos positivos e negativos do que foi feito. De aprendizagem do gênero entrevista por
modo geral, os alunos pontuarem que gos- meio de módulos que abrangeram habilida-
taram bastante das aulas, principalmente des linguísticas e textuais (leitura, produ-
porque fugiu da fórmula que vinha sendo ção de texto, oralidade e análise linguística/
aplicada em sala de aula: assunto, texto, lei- semiótica), visando ao reconhecimento das
tura, atividade. A apresentação de um novo diferenças entre a oralidade e a escrita, a
modelo desencadeou “mais vontade” de partir de um tema socialmente latente nos
participar da aula. Por outro lado, o trabalho alunos do 7º ano do Ensino Fundamental da
de campo, em certo grau, não foi um consen- rede municipal de Água Branca, no interior
so quanto a ser algo positivo. Muitos alunos do estado de Alagoas, a pandemia de Co-
relataram dificuldade em localizar e, em vid-19.
seguida, abordar alguém para desenvolver Essa atividade, que está alinhada ao pre-
uma entrevista (muitos alegaram timidez). conizado na BNCC, também se baseou na
Ajustes podem ser feitos, principalmente pedagogia culturalmente sensível (BORTO-
quando considerado o acesso dos alunos a NI-RICARDO, 2003; ERICKSON, 1987), bus-
aparelhos telefônicos, visto que nem todos cando utilizar estratégias interativas que se
possuem. Uma sugestão para a resolução aproximassem do mundo dos estudantes,
desse problema seria o trabalho em equipe, mediante a escolha da temática (a pande-
que permite a troca de ideias e de experiên- mia), do gênero (já trabalhado na Olimpíada
cias e promove a cooperação. de Língua Portuguesa), dos exemplos apre-
O professor regente, de forma comple- sentados (entrevistas com personalidades
mentar, gostou da ideia de sair da fórmula mais jovens que fazem parte da experiên-
padrão. A forma diferente de abordar orali- cia dos alunos), da escolha dos entrevista-
dade, escrita e, acima de tudo, variação lin- dos (pessoas próximas aos estudantes) e
guística abriu novos horizontes para o modo de uma escuta ativa das considerações dos
como guiar a aula de Língua Portuguesa e alunos. Além disso, os módulos da sequên-
como abordar assuntos que, nem sempre, cia didática permitiram uma pedagogia por
são fáceis de serem tratados, principalmen- andaimes, conforme se recomenda na teo-
te ao ficarmos presos em livros didáticos. ria, por meio dos quais os membros mais
As produções finais feitas pelos alunos competentes, ora o professor ora um aluno,
foram todas digitalizadas pelo professor auxiliava os demais a adquirir as habilida-
e transformadas em um livreto jornalísti- des visadas.
co digital, através da plataforma Canva18. O Assim, o trabalho com aspectos da rea-
produto final contém todas as entrevistas lidade linguística e social do aluno possibi-
diagramadas e formatadas de maneira simi- litou um processo de ensino-aprendizagem
18 Disponível em: https://www.canva.com/pt_br/. mais significativo, no sentido de que as refle-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 91


Da entrevista oral à entrevista escrita: uma proposta de sequência didática na perspectiva da pedagogia culturalmente
sensível

xões partiram dos usos linguísticos efetivos terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental:
e emergiram do seio da comunidade escolar. língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
Isso foi perceptível através i) do engajamen- DOLZ, J.; NOVERRAZ, M.; SCHNEUWLY, B. Se-
to dos alunos na execução das atividades quências didáticas para o oral e a escrita: apre-
propostas, ii) do feedback que recebemos sentação de um procedimento. In: SCHNEUWLY,
B.; DOLZ, J.; e colaboradores. Gêneros orais e
deles, e iii) do produto final, que refletiu a escritos na escola. Organização de R. H. R Rojo.
apropriação do gênero trabalhado e a aqui- Campinas: Mercado de Letras, 2004. p.95-128.
sição de habilidades linguísticas e textuais
ERICKSON, Frederick. Transformation and
decorrentes do processo de retextualização. school success: The politics and culture of
Esperamos que o compartilhamento de educational achievement. Anthropology
nossa proposta possa alcançar professo- & education quarterly, v. 18, n. 4, p. 335-
res-leitores que a implementem em outros 356, 1987. DOI: https://doi.org/10.1525/
aeq.1987.18.4.04x0023w. Disponível em: ht-
contextos educacionais, tendo em vista a
tps://anthrosource.onlinelibrary.wiley.com/
possibilidade de adaptação das atividades doi/abs/10.1525/aeq.1987.18.4.04x0023w.
às especificidades tanto do ensino presen- Acesso em 27 jan. 2022.
cial quanto do ensino híbrido emergencial,
FREITAG, Raquel Meister Ko. Banco de dados
como foi o nosso caso. falares sergipanos. Working Papers em Lin-
guística, Florianópolis, v. 13, n. 2, p. 156-164,
Referências abr./jul., 2013. DOI: https://doi.org/10.5007/
AZEVEDO, Isabel Cristina Michelan de; FREI- 1984-8420.2013v14n2p156. Disponível em:
TAG, Raquel Meister Ko. Registros de Práticas https://periodicos.ufsc.br/index.php/wor-
Pedagógicas: o potencial do caderno pedagó- kingpapers/article/view/1984-8420.2013v-
gico e do módulo didático. 1. ed. Campinas, SP: 14n2p156. Acesso em: 27 jan. 2022.
Pontes Editores, 2020. FREITAG, Raquel Meister Ko. A mudança linguís-
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Processos in- tica, a gramática e a escola. Revista PerCursos,
terativos em sala de aula e a pedagogia cultu- Florianópolis, v. 18, n. 37, p. 63-91, maio/ago.,
ralmente sensível. Polifonia, Cuiabá, v. 7, n. 07, 2017. DOI: https://doi.org/10.5965/1984724
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ficos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/ periodicos.udesc.br/index.php/percursos/arti-
view/1141/905 . Acesso em: 27 jan. 2022. cle/view/1984724618372017063. Acesso em:
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92 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022


Gabriele Cristine Carvalho; José Manoel Siqueira da Silva; Victor Renê Andrade Souza

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mento? Não basta ensinar a ler e a escrever? crita – atividades de retextualização. 10. ed.
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MARCUSCHI, Luiz Antônio; DIONISIO, Angela
Recebido em: 15/02/2022
Paiva. Fala e escrita. Belo Horizonte: Autêntica,
Aprovado em: 10/05/2022
2007.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 73-93, jan./jun. 2022 93


Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das pessoas negras no Brasil contemporâneo

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Encruzilhada: uma história em quadrinhos


sobre as vivências das pessoas negras no
Brasil contemporâneo
Jaqueline dos Santos Cunha (UFG – Catalão)*
https://orcid.org/0000-0002-7167-1616

Resumo:
As produções artísticas de testemunho e de teor testemunhal ganharam no-
toriedade na segunda metade do século XX como uma forma de refletir sobre
as experiências traumáticas oriundas desse período. Nesse sentido, preten-
de-se analisar, neste artigo, a produção quadrinística Encruzilhada (2011,
2016), de Marcelo D’Salete, como um produto artístico de teor testemunhal
que tratou das experiências que atravessam a vida de pessoas negras que vi-
vem na periferia. Por ser produzida a partir de experiências que são comuns
a uma coletividade, o quadrinho também pode ser compreendido como um
quadrinho-denúncia capaz de reelaborar, como testemunho, a realidade de
violência e de racismo que ameaça a vida de mulheres negras e de homens
negros no Brasil contemporâneo.
Palavras-chave: Encruzilhada; Testimonio; Histórias em quadrinhos; Ra-
cismo.

Abstract:
Encruzilhada: a comic book about the experiences of
black people in contemporary Brazil
The artistic productions of testimony and testimonial content gained noto-
riety in the second half of the 20th century as a way of reflecting on the
traumatic experiences arising from that period. In this sense, it is intended
to analyze, in this article, the comic book production Encruzilhada (2011,
2016), by Marcelo D’Salete, as an artistic product of testimonial content that
dealt with the experiences that cross the lives of black people living on the
outskirts. As it is produced from experiences that are common to a commu-
nity, the comic book can also be understood as a comic book of denunciation
capable of reworking, as a testimony, the reality of violence and racism that
threatens the lives of black women and men in contemporary Brazil.
Keywords: Encruzilhada; Testimony; Comic book; Racism.

* Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Mestra em Estudos da Linguagem pela Univer-
sidade Federal de Goiás (UFG-Catalão). Lattes: http://lattes.cnpq.br/0729971382929136. E-mail: jqln.
cunha@gmail.com.

94 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022


Jaqueline dos Santos Cunha

Introdução mente para a literatura hispano-americana.


Esse novo “ramo” teria emergido a partir do
As produções artísticas de testemunho e de
testemunho mediado de Rigoberta Menchú
teor testemunhal ganharam notoriedade na
na década de 1980 com o intuito de compar-
segunda metade do século XX (SELIGMANN-
tilhar a história de opressão mediante as ex-
SILVA, 2002) como uma forma de refletir
periências dos próprios oprimidos. Assim,
sobre as experiências traumáticas oriundas
no novo “ramo”,
das adversidades que surgiram no período
[d]esenha-se o testemunho com traços for-
que Hobsbawn (1995) chamou de a “era dos
tes de compromisso político: o letrado teria
extremos”, no século XX. Nesse campo da re- a função de recolher a voz do subalterno, do
flexão, estão vinculadas grandes obras ar- marginalizado, para viabilizar uma crítica
tísticas que trataram, primordialmente, da e um contraponto à “história oficial”, isto é,
Shoah1 e que ajudaram a constituir a verten- à versão hegemônica da História. O letrado
te testemunhal alemã, Zeugnis. Obras como – editor/organizador do texto – é solidário
É isto um homem? (1947), de Primo Levi, O e deve reproduzir fielmente o discurso do
outro; este se legitima por ser representati-
diário de Anne Frank (1947), de Anne Frank,
vo de uma classe, uma comunidade ou um
a escultura The Holocaust (1984), de George
segmento social amplo e oprimido. (MARCO,
Segal, na Lincoln Park – California, Estados 2004, p. 46).
Unidos da América (EUA), são alguns dos
produtos artísticos que se preocuparam em No Brasil, as produções de cunho teste-
refletir sobre a extrema violência vivida pe- munhal ou de teor testemunhal2 que se de-
los judeus na Alemanha nazista. dicaram à escrita de resistência fizeram-no,
Uma segunda vertente das produções li- principalmente, a partir (da voz) dos gru-
terárias de testemunho ou de teor testemu- pos racializados e/ou marginalizados. Nes-
nhal, denominada testimonio, desenvolveu- se sentido, as manifestações artísticas (de
se a partir dos anos de 1960. Os produtos teor) testemunhal desempenham a função
artísticos de testimonio desdobram-se para de uma contranarrativa. Isso quer dizer que
registrar, interpretar e compreender a vio- elas são produtos artísticos produzidos me-
lência das ditaduras e das guerras ocorridas diante a perspectiva da minoria, ao contrá-
na América Latina durante o século XX. Nes- rio do que acontece com as produções artís-
se contexto, destacamos Hasta no verte Jesús ticas da corrente principal que reverberam
mío (1969), de Elena Poniatowska, Nunca a voz dos privilegiados.
estuve sola (1988), de Nidia Díaz, e As meni- Com relação às abordagens testemu-
nas, da brasileira Lygia Fagundes Telles. nhais que promovem a (re)elaboração da
Das produções artísticas de testemunho resistência de grupos racializados no Brasil,
ou de teor testemunhal da vertente testimo- destacamos os trabalhos de Carolina Ma-
nio nasceu, de acordo com Marco (2004), um ria de Jesus, Quarto de despejo (1960), e de
outro ramo de literatura testemunhal que Kaka Werá Jecupé, Oré Awé Roiru’a Ma: to-
faz fronteira com os estudos culturais e se das as vezes que dissemos adeus (1994). Es-
volta, em um primeiro momento, exclusiva- ses trabalhos tocam, respectivamente, nas
implicações das marcas da violência histó-
1 Shoah é o termo preferencialmente utilizado no
lugar de holocausto para referir-se ao genocídio 2 Márcio Seligmann-Silva (2013), em História, Me-
de cerca de seis milhões de judeus durante a Se- mória, literatura: o testemunho na era das catás-
gunda Guerra Mundial. trofes, trata da noção de teor testemunhal.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022 95


Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das pessoas negras no Brasil contemporâneo

rica que são consequências do período da No contexto de países falantes da língua


escravidão e das alterações sociais que in- inglesa, costuma-se atribuir ao quadrinho
terferiram nos costumes e na própria quali- Um contrato com Deus (1978), de Will Eisner
dade de vida da comunidade indígena. Isso (1917-2005), como um dos primeiros exem-
quer dizer que tratam do testemunho dos plares de uma graphic novel. Outras popula-
excluídos sociocultural e economicamente. res produções quadrinísticas que são comu-
No campo das histórias em quadrinhos, mente encaixadas sob a chancela da graphic
as produções de teor testemunhal também novel são Watchmen (1986-1987), de Alan
se revelaram profícuas. Neste trabalho, pro- Moore, Fun Home (2006), de Alison Bechdel,
curamos demonstrar como a narrativa gráfi- Daytripper (2010), dos irmãos brasileiros
ca brasileira Encruzilhada (2011, 2016), de Fábio Moon e Gabriel Bá, e Minha coisa favo-
Marcelo D’Salete, que retrata experiências rita é monstro (2017), de Emil Ferris.
que atravessa(ra)m a vida de muitas das No Brasil, as histórias em quadrinhos
pessoas negras que vivem na periferia, pode “sérias” começaram a ser publicadas princi-
ser lida tanto como uma história em quadri- palmente a partir dos anos 2000. Das mais
nhos de teor testemunhal quanto uma fonte populares até o momento destacamos San-
de conhecimento das vivências das pessoas gue Bom (2003), de Patati, Solano Lopez e
negras brasileiras. Allan Alex, Copacabana (2009), de Lobo e
Odyr, Tungstênio (2014), de Marcelo Quin-
Considerações sobre as tanilha, Carolina (2016), biografia da es-
histórias em quadrinhos de teor critora Carolina de Jesus, dos quadrinistas
Sirlene Barbosa e João Pinheiro e, mais re-
testemunhal centemente, Beco do Rosário (2020), de Ana
No final da década de 1970 e início da dé- Luiza Koehler. Todas essas produções, de
cada de 1980, o termo graphic novel3 surgiu modo geral, podem ser encaixadas no termo
com maior profusão no mercado editorial graphic novel.
em uma tentativa de legitimação das histó- No que toca à ideia de uma narrativa grá-
rias em quadrinhos – que eram concebidas fica testemunhal no cenário internacional, o
como expressões artísticas menores, infe- pioneirismo pode ser atribuído a Art Spie-
riores, infantis e descartáveis. A mudança gelman, com sua produção Maus4 (1980 e
na forma de divulgar os quadrinhos, ampa- 1991), que faz uma rememoração da Shoah
rada no termo graphic novel, tinha, também, a partir das experiências e das memórias
como objetivo alcançar o público adulto e dos pais e, posteriormente, com À sombra
conquistar espaço nas livrarias. Para tanto, das torres ausentes (2004), que trata sobre
as graphic novels, em linhas gerais, assumi- as consequências do dia 11 de setembro
ram um formato mais bem acabado, com para os Estados Unidos. Marjane Satrapi,
papel de melhor qualidade e temas consi- com Persepólis (2000-2003), ao revisitar a
derados “mais sérios” (CATES, 2020; SABIN, sua infância e adolescência também retoma
1993).
4 Maus foi publicado originalmente na revista un-
derground Raw (1980-1991). Foi somente em
3 Ciente da problemática envolvendo o termo 1986 que o autor compilou, no formato livro, o
graphic novel, optamos por utilizar no restante primeiro volume que ficou intitulado Maus – A
do texto as nomenclaturas “história em quadri- história de um sobrevivente: meu pai sangra his-
nhos” ou “narrativa gráfica”. tória.

96 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022


Jaqueline dos Santos Cunha

as experiências conflituosas da “Revolução de Noite Luz (2008), Encruzilhada (2011,


Iraniana”, Joe Sacco, com Palestina (1996), 2016), Cumbe (2014) e Angola Janga (2017),
por exemplo, trata das suas experiências é também professor de artes visuais na Es-
em Jerusalém, na Cisjordânia e na Faixa de cola de Aplicação da Faculdade de Educação
Gaza durante os anos 1991 e 1992, e, mais da USP e desenvolve pesquisas sobre arte,
recentemente, Symphonie Carcérale (2019), história afro-brasileira, educação e quadri-
de Romain Dutter, que desenvolve sua nar- nhos. Os trabalhos de D’Salete até agora
rativa gráfica de teor testemunhal a partir publicados refletem seu compromisso com
da realidade dos encarcerados do Centro a arte e com a pesquisa. Com Encruzilhada
Penitenciário de Fresnes, na França. (2011, 2016), não foi diferente.
Na paisagem quadrinística brasileira, as A produção quadrinística Encruzilha-
produções que merecem destaque por seu da é resultado de uma elaboração artística
caráter contranarrativo são, até então, as consciente em que o quadrinista procurou
que se dedicaram a revisitar as experiên- realizar uma articulação estética e política
cias históricas dos negros escravizados e de que põe em discussão o país racista em que
seus descendentes. Os principais nomes são vivemos (GOMES, 2019). O referido quadri-
Maurício Pestana, com Revolta dos Búzios: nho, segundo afirma D’Salete (2011), levou
uma história de igualdade no Brasil (2007) três anos para ficar pronto e é inspirado nas
e Revolta da Chibata (2018), e Marcelo experiências que perpassa(ra)m a vida de
D’Salete, com Cumbe (2014) e Angola Janga grande parcela das pessoas negras que vi-
(2017). Entre aquelas que apresentam evi- vem no Brasil, o que inclui as experiências
dente teor testemunhal, destacamos Noite de amigos e as dele próprio.
Luz (2008) e Encruzilhada (2011, 2016)5, As seis narrativas gráficas curtas, em for-
ambas de Marcelo D’Salete, que problemati- ma de contos, que fazem parte de Encruzi-
zam as condições das pessoas negras que vi- lhada (2016) são produtos quadrinísticos
vem na periferia de São Paulo. É sobre essa ficcionais e semificcionais ambientados na
última que o presente trabalho se debruça cidade de São Paulo que, de maneira bem
na seção que segue. articulada, contam o outro lado da história
de um coletivo: o dos negros. Nada do que
Encruzilhada: testemunho e ficção é narrado no quadrinho soa como novidade
do fato – especialmente para a comunidade raciali-
Marcelo de Salete Souza (1979), D’Salete6, zada –, pois já fomos “acostumados” a ler e/
é licenciado em Artes Plásticas pela Escola ou ouvir relatos semelhantes e a encará-los
de Comunicações e Artes da Universidade como “esperado” quando aplicados aos ne-
de São Paulo – ECA-USP (2006), mestre em gros que são tratados, no Brasil, como o Ou-
Estética e História da Arte (2009 – Museu de tro, a escória dos não racializados.
Arte Contemporânea – MAC da USP), autor Por conta disso, Encruzilhada é um pro-
duto artístico que é, ao mesmo tempo, um
5 Encruzilhada foi publicado pela primeira vez em
2011 contendo cinco contos pela editora Leya. Na retrato de uma realidade vivida e ficcional e
publicação de 2016, publicado pela editora Vene- é, também, como poderá ser observado, da-
ta, foi acrescido ao quadrinho o conto “Risca”. queles tipos de quadrinhos que funcionam
6 Mais sobre o autor ver http://lattes.cnpq.
br/0674340247380756 e http://www.dsalete.
como fonte para conhecer nossa própria
art.br/ realidade. No entanto, Encruzilhada tam-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022 97


Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das pessoas negras no Brasil contemporâneo

bém surpreende de muitas outras maneiras: dos; no entanto, a tônica é a violência física
a narrativa, inquestionavelmente, é uma de- seletiva.
las. O recurso narrativo de D’Salete coloca A história de abertura de Encruzilhada é
por terra a antiga ideia pejorativa de que ler intitulada “Sonhos”. Nesse conto, os prota-
histórias em quadrinhos é fácil. gonistas são dois jovens moradores de rua,
Assim, em Encruzilhada não há a pre- Bia e Lino, que estão precariamente “aloja-
sença de recordatórios e, embora haja diá- dos” em um prédio em construção. Na cena
logos, o quadrinista prefere que a narrativa de introdução à história, Lino percebe que a
seja conduzida principalmente por meio jovem, provavelmente sua irmã, está febril
das imagens. Dessa forma, o autor procu- e decide sair à procura de algo que possa
ra articular histórias paralelas (de um gru- proporcionar a ela algum conforto. Nos qua-
po racializado e outro não racializado) que dros que seguem, é apresentado o diálogo
são contadas pouco a pouco de maneira de dois vigilantes brancos. Aparentemente,
fragmentada e intercalada de modo que as um deles é recém-contratado e queixa-se
narrativas se cruzam, produzindo uma ver- das regras do trabalho: “não pode tirar o
dadeira “encruzilhada quadrinística”. O au- chapéu. Não pode ficar sentado”. Ao que o
tor ainda lança mão de recursos tais como outro responde resignado: “esse trampo é
flashback, flashforward e recortes inespera- assim mesmo” (D’SALETE, 2016, p. 12). Nes-
dos que fazem com que a relação com o tem- sa mesma cena, o nome de Mike, outro vigi-
po também pareça mais complexa. lante, é mencionado. Mike, também branco,
No que toca à estética da ilustração, o que seria o tipo de vigilante que “não dá moleza
mais nos chamou atenção no quadrinho é o pra vagau” (D’SALETE, 2016, p. 12). A cena
seu traço em preto e branco que, como de- subsequente a esse diálogo mostra a casa de
finiu Marcelo Yuka na mensagem que cons- Mike. Nela, a mãe prepara o jantar enquanto
ta na capa do quadrinho, “é sujo e poético”. o filho assiste à TV ansioso pela chegada do
Essa “sujidade” faz alusão ao ambiente “car- pai que levaria um presente para ele naque-
regado” da favela, onde a luz do sol parece le dia – possivelmente aquele era o dia do
sempre faltar (WROBEL, 2019). Isso acaba aniversário do garoto.
adicionando um aspecto mais melancólico No próximo recorte, o foco é Lino, que
às narrativas. pega uma jaqueta que havia sido, ao que a
cena indica, esquecida em um café. Mike o
Encruzilhada em pormenores observa e comunica aos outros dois vigilan-
Encruzilhada é composto por seis contos: tes mostrados anteriormente a presença de
“Sonhos”, “93079482”, “Corrente”, “Bro- um “delinquente”. Podemos ter certeza de
ther”, “Encruzilhada” e “Risco”. Todos eles que Mike faz referência a Lino em virtude
dão destaque às experiências de pessoas do reflexo do jovem com a jaqueta nos seus
negras que são, de alguma maneira, marca- óculos. No caminho de volta para o abrigo
das pela violência física, emocional, cultu- temporário, Lino é interceptado pelos dois
ral e/ou econômica. Para o desenvolvimen- vigilantes que pedem a jaqueta. A fragilida-
to deste trabalho, optamos por discutir de e a vulnerabilidade de Lino diante dos vi-
apenas três dos seis contos. A encruzilha- gilantes são reforçadas, como bem observou
da de várias formas de violências também Wrobel (2017, 2019), tanto pelo ângulo em
pode ser encontrada nos contos escolhi- que o garoto é focado, quanto pelas cenas

98 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022


Jaqueline dos Santos Cunha

que enfocam os pés dos vigilantes pisando tiças sociais. Mike não tem poder aquisitivo
com suas botas robustas nos pés e nas mãos para sequer comprar um presente que con-
desprotegidos do jovem. O mesmo acontece sidera “decente” para o filho e seu desapon-
quando Lino está acuado em um canto, sen- tamento é percebido desde o momento em
tado abraçando os joelhos, de olhos fecha- que a loja de brinquedo é refletida pelas len-
dos, enquanto é vigiado pelos dois vigilan- tes de seus óculos e nas sequências em que
tes que estão à espera de Mike (Figura 1), coloca uma das mãos sobre o rosto e dois
aquele que “não dá moleza pra vagau”. quadros depois conversa ao telefone com a
esposa de olhos cerrados enquanto aperta
Figura 1 – A chegada de Mike na outra mão o minúsculo aviãozinho que
conseguiu comprar para o filho. Ou, ainda,
quando, sentado do lado de fora da loja, com
os ombros levemente caídos e braços rela-
xados, olha desolado para o brinquedo em
sua mão, evidenciando seus sentimentos de
frustração e de impotência (Figura 2).

Figura 2 – Mike na loja de brinquedos

Fonte: Imagem extraída de D’Salete (2016, p. 19).

A chegada de Mike coincide com a apa-


rição de um avião nos céus que chama sua
atenção. A cena é entrecortada pelo des-
pertar de Bia que sonhava que Lino estava
sendo levado em um avião. Nesse momento,
acostumados com as notícias jornalísticas e
com a truculência policial, podemos imagi- Fonte: Imagem extraída de D’Salete (2016, p. 27).
nar como desfecho a morte ou pelo menos o
espancamento de Lino. No entanto, quando Com maestria, D’Salete, em um conto de
a narrativa retoma o local onde Lino esta- 18 páginas, mostra o quanto pode ser tênue
va sendo mantido, o leitor é surpreendido a linha que separa os dilemas de um mora-
ao vê-lo abrir os olhos e deparar-se apenas dor de rua negro dos de muitos vigilantes
com a jaqueta no chão. Mike, por sua vez, e policiais militares brasileiros. Ao consta-
comunica-se com os outros dois vigilantes tarmos e mencionarmos essa tenuidade,
informando que a área estava tranquila. não negligenciamos a realidade de violência
Desta vez, Lino tem a sorte de voltar a estatal, mas chamamos atenção para uma
reencontrar-se com Bia. Mike, por sua vez, realidade que, muitas vezes, é mais nuan-
experimenta os dissabores de pertencer a çada do que podemos imaginar. Contudo,
uma classe de trabalhadores mal remunera- apontamos que não podemos ignorar que
dos, e muitas vezes mal preparados, pouco mesmo quando a classe social parece “apro-
instruídos e marcados também pelas injus- ximar” as realidades das pessoas negras às

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022 99


Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das pessoas negras no Brasil contemporâneo

das brancas, a cor da pele cumpre o papel de sa, não é bem-vista quando o consumidor é
hierarquizá-las e marcar o lugar de inferio- uma pessoa negra (Figura 3).
ridade, de outridade desse primeiro grupo. Na sequência da narrativa, há uma di-
“Encruzilhada”, conto que dá nome à his- gressão que apresenta um casal branco, Tati
tória em quadrinhos, é o quinto conto que e Bil. Bil, como será evidenciado mais tarde,
foi produzido a partir de um episódio de é o ladrão, ou pelo menos um deles, que ain-
violência brutal e de preconceito racial em da não havia sido identificado, mas estava
uma das filiais da rede Carrefour em Osasco, sendo procurado pela polícia. De volta ao es-
na Grande São Paulo, em agosto de 20097. tacionamento do Carrefour, Janu é abordado
Trata-se, nesse sentido, de uma produção por dois vigilantes e conduzido ao “quarti-
semificcional, pois partiu de um fato expe- nho” para ser brutalmente interrogado. Após
rimentado por um funcionário da USP que uma sessão de espancamento, os seguranças
estava entrando no seu Ecosport, parado percebem o equívoco e decidem “desovar” o
no estacionamento do Carrefour, enquan- indivíduo ainda com sinais de vida. Nesse in-
to aguardava sua esposa fazer as compras tervalo, o carro já havia sido furtado por Bil,
(CHINEN, 2019, p. 281). que não havia percebido a presença de um
No início do conto já se apresenta parte bebê no banco de trás do veículo Ford.
do desfecho da história, com funcionários Em outro flashback (Figura 3), vemos
da limpeza pública encontrando algo no ba- Janu no dia em que comprou o carro e, em
nheiro que os deixa chocados: “Que merda seguida, no hospital sendo questionado pela
é essa?!?!” (D’SALETE, 2016, p. 92). A partir esposa: “Cadê o bebê? Cadê o bebê?” (D’Sa-
daí, vemos um casal negro, Janu e Lia, diri- lete, 2016, p. 112). No quadro seguinte, Tati,
gindo-se a uma filial do hipermercado Car- companheira de Bil, ao perceber que o com-
refour e, após um acordo com a esposa, de- panheiro não tomaria providências em re-
cide-se que o marido, Janu, a aguardaria no lação ao retorno do bebê à família, decidiu
estacionamento enquanto ela faria as com- deixá-lo no banheiro público para que pu-
pras de mercado. O vigilante observa pe- desse ser encontrado. Logo depois, no des-
las câmeras e, considerando a cor negra de fecho, Bil foi assassinado pelos receptores
Janu, conclui que ele é um ladrão que estava do automóvel e seu corpo foi abandonado
“sondando” o Ford estacionado nas depen- junto à arma usada pelos seus assassinos.
dências do hipermercado. O carro, um dos
símbolos de realização na sociedade con- Figura 3 – Janu compra um Ford
temporânea, pertencia ao casal de negros.
Contudo, aparentemente, as possibilidades
de consumo e de fruição, mesmo se tratan-
do de uma sociedade capitalista como a nos-
7 Caso tenha interesse em ler notícias sobre o
caso, sugerimos a reportagem “Cliente negro
diz que foi confundido com ladrão e agredi-
do em hipermercado”. Disponível em: http://
g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL-
1272840-5605,00-CLIENTE+NEGRO+DIZ+-
QUE+FOI+CONFUNDIDO+COM+LADRAO+E+A-
GREDIDO+EM+HIPERMERCADO.html. Acesso
em: 20 out. 2021. Fonte: Imagem extraída de D’Salete (2016, p. 112).

100 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022


Jaqueline dos Santos Cunha

Nesse conto semificcional, fica evidente nados à elite brasileira. Esse episódio le-
que uma das marcas da herança escravocra- vou as marcas a estudar estratégias para
ta é a forja e a manutenção de estereótipos tentarem se desvincular dos rolezinhos
que ajuda(ra)m a marcar os lugares e as po- para, assim, manter seu público original.
sições sociais que os negros são autoriza- Uma das estratégias dos proprietários dos
dos a ocupar. Uma das formas de manuten- estabelecimentos foi conseguir na justiça
ção de estereótipos são, como bem colocou uma liminar que proibia a realização dos
Adilson Moreira (2019, p. 43), as produções rolezinhos, barrando a entrada de jovens
culturais, pois elas, em sua grande maioria, com características “particulares” nos sho-
refletem a ideia de que se brancos podem ppings. Esse separatismo foi apenas mais
desempenhar qualquer função, frequentar uma forma de sedimentar a barreira entre
qualquer lugar e consumir quaisquer pro- o “Nós” da elite branca e racista e o “Eles”
dutos, elas também constroem, no imaginá- periféricos e racializados.
rio social, que os negros só podem chegar “Risco” é o sexto e último conto da histó-
até determinado ponto. Isso porque ria em quadrinhos, o qual trata da história
[...] a presença de negros em posições de de Doca, um jovem “flanelinha” negro que,
poder e prestígio [e poderíamos incluir po- por sua cor e por sua função, é, corriquei-
sições de consumo também] causa reações ramente, alvo de violência e da truculência
racistas imediatas, já que contraria a ideia da polícia. Nesse conto, são dois episódios
de que brancos sempre devem estar em uma de truculência policial. Logo na introdução,
posição social privilegiada. O avanço de pes-
o jovem é apresentado “cuidando” dos car-
soas negras opera como uma ameaça subje-
tiva a muitas pessoas brancas [...]. (MOREI-
ros estacionados. A gorjeta que recebe é,
RA, 2019, p. 43). no caso do conto, o que garante o sustento
do personagem. Nas cenas que seguem à
Para um exemplo prático, basta nos re-
apresentação de Doca, é exibido o diálogo
cordarmos dos rolezinhos8 de 2014 quan-
virtual entre dois jovens brancos de classe
do jovens da periferia dos grandes centros,
média que se preparam para sair. Na cena,
encantados com a possibilidade de consu-
o leitor já é informado de que o carro que
mo e de ostentação, iam aos shoppings aos
o jovem branco dirige foi, acidentalmente,
fins de semana para se dedicarem, entre
riscado por ele mesmo, mas, ao que tudo in-
outras coisas, à compra de produtos con-
dica, ele já sabe como vai se livrar da bronca
siderados de luxo e, normalmente, desti-
dos pais. Na cena que segue, é apresentado
8 Em 2014, surgiu uma espécie de “movimento” o primeiro ato de violência policial. Três jo-
que ficou amplamente conhecido como “role- vens, entre eles Doca, estão conversando.
zinho”. Tratava-se de grupos de adolescentes
Um dos garotos fuma um cigarro. Ao serem
pobres da periferia que se reuniam para irem
juntos aos shopping centers para namorar, se abordados por policiais, o jovem que fuma-
divertirem e consumirem. Esse episódio gerou va joga o cigarro no chão. Documentos dos
uma série de debates sobre a segregação racial
jovens são solicitados, mas apenas o jovem
e social. Para mais informações, sugerimos a lei-
tura do texto Rolezinhos: marcas, consumo e se- negro é agredido pelos policiais.
gregação no Brasil, de Rosana Pinheiro-Machado A segunda abordagem policial também
e Lucia Mury Scalco. Disponível em: http://each. é principiada por violência seletiva. Um dos
uspnet.usp.br/revistaec/?q=revista/1/rolezi-
nhos-marcas-consumo-e-segrega%C3%A7%- jovens de classe média que dirigia o carro
C3%A3o-no-brasil. Acesso em: 20 out. 2021. dos pais decide acusar Doca de ser o res-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022 101


Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das pessoas negras no Brasil contemporâneo

ponsável pelo risco no carro e o agride fisi- tratamento diferenciado da abordagem po-
camente. Os mesmos policiais que aborda- licial, que é mostrado no quadrinho, não é
ram Doca anteriormente voltam a aparecer. produto ficcional, pois o tratamento dire-
Enquanto um dos policiais libera os jovens cionado aos moradores de periferias, que
de classe média, o outro agride Doca. A par- são em sua grande maioria negros e pobres,
tir do momento em que o jovem questiona o é diferente do tratamento voltado aos mo-
policial dizendo “você não pode fazer isso!” radores de bairros nobres, como os Jardins
(D’SALETE, 2016, p. 143), são apresentados (ADORNO, 2017), por exemplo.
dois prováveis destinos para o jovem. No A narrativa gráfica de D’Salete, nesse
primeiro, o jovem é morto e torna-se man- sentido, mostra que as experiências de vio-
chete de jornal, visto que uma jornalista lência simbólica e de violência física perpe-
fotográfica estava, de longe, fotografando a tradas contra os negros são institucionaliza-
cena (Figura 4) e, no segundo, o jovem tem das e estruturais. Isso significa dizer que o
a vida poupada, pois havia muitas testemu- racismo está impregnado na cultura de tal
nhas. Nesse desdobramento, vemos o jovem forma que não são apenas as instituições
voltar para a namorada e o editor do jornal repressoras que cometem violência contra
desapontado solicita à/ao assistente que “li- os racializados, mas a sociedade como um
gue para outro fotógrafo” (D’SALETE, 2016, todo. Dito de outro modo:
p. 151). O conto deixa evidente que a espe- O racismo [que] estabelecerá a linha divisó-
tacularização da violência é também mais ria entre superiores e inferiores, entre bons
uma forma de violência contra os negros. e maus, entre os grupos que merecem viver
e os que merecem morrer, entre os que te-
Figura 4 – Espetacularização da violência rão a vida prolongada e os que serão deixa-
dos para a morte, entre os que devem per-
manecer vivos e os que serão mortos. E que
se entenda que a morte aqui não é apenas
a retirada da vida, mas também é entendida
como a exposição ao risco da morte, a morte
política, a expulsão e a rejeição. (ALMEIDA,
2019, p. 71).
Assim, em Encruzilhada é destacada a
valorização social, mesmo que sutil, e atra-
vessada por questões de classe, da “bran-
Fonte: Imagem extraída de Marcelo D’Salete (2016,
quitude” e a consequente inferiorização da
p. 142). negritude (HOOKS, 2019). Para deixar isso
evidente, D’Salete lançou mão do que aqui
Doca, por conta de toda sua vulnerabi- chamamos de contraste reflexivo como ex-
lidade, é alvo tanto de violência simbólica pediente narrativo para destacar os tipos
quanto de violência física que é perpetrada de violências vivenciadas pelos negros. Com
pela elite branca. Ele é ainda, fundamental- contraste reflexivo queremos dizer que o
mente, alvo da violência policial que mata quadrinista dialogou, ao longo das narrati-
para eliminar os “perigos” da vida dos bran- vas, com a relação entre “privilégio branco”
cos privilegiados (ALMEIDA, 2019). Esse e desfavorecimento dos negros.

102 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022


Jaqueline dos Santos Cunha

Considerações finais em nosso trabalho apontam para a impor-


tância das histórias em quadrinhos como
A partir do diálogo com a produção de Selig-
artefatos culturais capazes de testemunhar
mann-Silva (2013), entendemos o conceito
criticamente aspectos da realidade brasi-
de teor testemunhal como um traço narra-
leira. Atentarmo-nos para essa modalidade
tivo que pode ser encontrado em qualquer
artística, para seu lugar nas dinâmicas cul-
tipo de produção cultural. Neste trabalho,
turais e mesmo políticas de nosso tempo,
percebemo-lo em Encruzilhada como um
parece-nos fundamental para a compreen-
esforço criativo que possibilitou alinhar o
são de nuances artísticas contemporâneas
compromisso ético e estético ao retratar as
que conseguem traduzir dilemas contempo-
experiências de grupos racializados brasi-
râneos.
leiros.
Para tanto, Encruzilhada, de Marcelo Referências
D’Salete, lança mão de uma abordagem pau-
ADORNO, Luís. Abordagem nos Jardins tem de
tada na experiência individual e coletiva ser diferente da periferia, diz novo comandante
de pessoas negras, sem explorar os clichês da Rota. UOL Notícias, 24 ago. 2017. Disponí-
raciais (CHINEN, 2019). Assim como em vel em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/
outros quadrinhos de sua autoria, a obra ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-
jardins-e-na-periferia-tem-de-ser-diferente-di-
rompe com as representações depreciativas z-novo-comandante-da-rota.htm. Acesso em:
da pessoa negra que os quadrinhos brasi- 20 out. 2021.
leiros9, assim como o cinema, a televisão e
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural.
a literatura, ajudaram a naturalizar. O autor São Paulo: Pólen, 2019.
consegue esse efeito principalmente porque
CATES, Isaac. The graphic novel. In: BEATY, Bart;
não coloca as personagens negras na posi-
HATFIELD, Charles. Comics studies: a guide-
ção de vítimas passivas e privadas do enten- book. New Jersey: Rutgers University Press,
dimento a respeito de suas realidades. Ao 2020. p. 82-94.
contrário, todas elas, cada uma à sua manei-
CHIEN, Nobuyoshi. O negro nos quadrinhos
ra, resistem às formas de opressão e violên- do Brasil. São Paulo: Peirópolis, 2019.
cia e dão testemunho das atrocidades que
D’SALETE, Marcelo. Encruzilhada. São Paulo:
atravessam suas experiências de vida. Veneta, 2016.
Os contos quadrinísticos que analisamos
D’SALETE, Marcelo. Entrevista com Marcelo
9 Como exemplo de história em quadrinhos que D’Salete. Conteúdo Saraiva. 2011. 1 vídeo (6
ajudou a sedimentar os estereótipos relaciona- min. 1 seg.). Publicado pelo canal Saraiva. Dis-
dos às pessoas negras, destacamos o almanaque ponível em: https://www.youtube.com/wat-
O Tico-tico, que, ao longo da sua existência, intro- ch?v=NG16AGDVRuo. Acesso em: 20 mar. 2021.
duziu, na narrativa, entre outras, as personagens
Sebastiana e Benedicto, filhos da cozinheira da LIMA GOMES, Ivan. Imaginando uma outra
família, no fascículo de n. 40 (1906), e a perso- história da resistência negra: entrevista com
nagem Giby, criada da personagem principal, Marcelo D’Salete. Artcultura, [S. l.], v. 21, n. 39, p.
Juquinha, no fascículo de n. 106 (1907). Os qua- 117–124, 2019. DOI: https://doi.org/10.14393/
drinhos podem ser lidos na integra em: http:// artc-v21-n39-2019-52030. Acesso em: 20 out.
hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/tico-ti- 2021.
co/153079. Para inteirar-se da representação
dos negros nas histórias em quadrinhos brasilei- HOBSBAWN, Erick. Era dos estremos: o breve
ras, recomendamos o trabalho O negro nos qua- século XX 1914-1991. Tradução de Marcos San-
drinhos do Brasil, de Nobu Chinen (2019). tarrista. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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Encruzilhada: uma história em quadrinhos sobre as vivências das pessoas negras no Brasil contemporâneo

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Acesso em: out. 2021.
Recebido em: 01/11/2022
Aprovado em: 30/01/2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

104 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 94-104, jan./jun. 2022


Isabelle Maria Soares

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Texto, memória e subjetividade: uma


leitura de “aperfeiçoando o imperfeito”
de Carla Luma
Isabelle Maria Soares (UFPR)*
https://orcid.org/0000-0003-0003-0798

Resumo:
“Aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma, conto escolhido como objeto
de estudo do presente artigo, é um texto literário situado no espaço virtual.
Publicado no blog Escritoras Suicidas, o conto instigou a seguinte propos-
ta: uma leitura pela ótica de alguns conceitos acerca do texto (BARTHES,
2004; KRISTEVA, 2012; CARVALHAL, 1992; SAMOYAULT, 2008), da memória
(NORA, 1993; BERGSON, 1999; HALBWACHS, 2015; POLLAK, 1989, 1992) e
da subjetividade (GIDDENS, 1991; HALL, 2015; SANTOS, 2002; CASTORIA-
DIS, 1999). A abordagem do aporte teórico é colocada em prática a partir da
nossa análise do conto de Luma. Percebemos, assim, que o texto literário es-
tudado dialoga com outros textos por meio de uma pluralidade de memórias
e da subjetividade fragmentada da voz que narra.
Palavras-chave: Texto. Memória. Subjetividade. Carla Luma.

Abstract:
Text, memory and subjectivity: a reading of
“aperfeiçoando o imperfeito” by Carla Luma
“Aperfeiçoando o imperfeito” by Carla Luma, the short story which was se-
lected as the object of study of this paper, is a literary text placed in vir-
tual space. Published in the blog “Escritoras Suicidas”, the short story in-
stigated the following purpose: a reading by the view of some concepts on
text (BARTHES, 2004; KRISTEVA, 2012; CARVALHAL, 1992; SAMOYAULT,
2008), memory (NORA, 1993; BERGSON, 1999; HALBWACHS, 2015; POL-
LAK, 1989, 1992) and subjectivity (GIDDENS, 1991; HALL, 2015; SANTOS,
2002; CASTORIADIS, 1999). The approach of the theoretical contribution is
comprehended from our analysis of the Luma short story. Thus, we realize
that the literary text in study dialogues with other texts through a plurality
of memories and the fragmented subjectivity of the narrating voice.
Keywords: Text. Memory. Subjectivity. Carla Luma.

* Mestre em Letras - Interfaces entre Língua e Literatura pela Universidade Estadual do Centro-oeste (UNI-
CENTRO-PR). Atualmente é doutoranda em Letras - Estudos Literários pela Universidade Federal do Para-
ná (UFPR). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/6604231475566070. E-mail: isamariares@gmail.com

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022 105


Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma

Considerações iniciais inseri-lo neste artigo, contribuindo, assim,


para a ampliação da nossa leitura que virá
Na era digital, o fazer literário vai além da
em sequência:
tinta e do papel, ou ainda, muito além do
texto impresso. Como afirma Nincia Borges Aperfeiçoando o imperfeito3
Teixeira, “o ato de narrar não está restrito
Fui ao Vaticano e não vi o papa anjos nem a
ao livro, mas diz respeito à necessidade de
Capela Sistina. Na África do Sul preferia ver
sonhar” (2014, p. 6). Nesse sentido, pensar
o Nelsinho, mas tive que me contentar com
o contemporâneo significa pensar e investi-
Kaká, Robinho e outros anjinhos cheios de
gar todas as formas de expressão, inclusive,
poses e de pouca inspiração. Aturei com o
as formas disponíveis no meio digital. Nes-
meu característico zen-cinismo as descul-
se sentido, a Literatura não se depara com
pas de Dunga e de Jorginho, assim como ex-
o seu fim, ela se transforma. Se, como asse-
tensíssimas horas de jabulanis voando sem
vera Leyla Perrone-Moisés (2016), o século
rumo e de vuvuzelas soando como trom-
XXI é para a Literatura marcado por muta-
betas do juízo final. Quase volto surda. Faz
ções, ler e escrever passam a ganhar novas
mal não. Não sou aquela que se desmancha
configurações.
em lágrimas e tristeza pela pátria de chutei-
Tendo isso em vista, este artigo, como o
ras. Saí no lucro: faturei uma boa grana do
próprio título antecipa, objetiva fazer uma
industrial paulistano que me levou para in-
leitura acerca do trabalho da memória e da
terpretar o papel de esposa, comi bem, bebi
subjetividade no texto “Aperfeiçoando o im-
melhor, só não trepei bem porque o cara é
perfeito”, de Carla Luma1. Podemos definir
de muitas tentativas e de raros êxitos. Fiquei
o conto selecionado como objeto de estu-
quase tão invicta quanto a defesa da seleção
do como uma escrita literária no contexto
suíça, que estabeleceu na copa o inútil re-
contemporâneo, visto que é publicado no
corde de ficar mil e não sei quantos minutos
espaço digital. Um conto muito curto, mas
sem tomar gol. Conheci lugares lindos e ou-
carregado de vozes e pluralidades, “Aper-
tros bem miseráveis, mas confesso que em
feiçoando o imperfeito” é veiculado ao blog
alguns momentos, principalmente quando
literário Escritoras Suicidas2. Haja vista que
os cabeças de bagre do meio campo da ama-
se trata de um miniconto que foi publicado
relinha erravam passes laterais, eu sentia
em espaço virtual, tomamos liberdade de
saudades da minha infância e me recordava
1 Carla Luma se apresenta como natural de Jaca- vividamente de Afonsinho, aquele que me-
rezinho/PR, nascida em 1969. Ainda, diz que “é
manicure e vendedora de cosméticos. Autora do receu uma canção de Gilberto Gil, “meio-de-
livro de memória precoce As mãos me falam, os campo”.
falos me calam, totalmente escrito em alfabe- Pra falar a verdade, eu não havia nascido
to ideográfico, pretende candidatar-se a uma
cadeira na Academia Brasileira de Letras para no tempo que ele jogou, mas papai, torcedor
aproximar-se dos seus ídolos: Ariano Suassuna e do Botafogo, narrava apaixonadamente as
João Ubaldo Ribeiro” (Texto retirado de: http:// atuações de Afonsinho e conhecíamos todos
www.escritorassuicidas.com.br/carla_luma.
htm#.WQd3fkcWzIU, Acesso em: 02 mar. 2018).
os episódios da sua carreira, desde quando
Entretanto, tudo indica que Carla Luma é um foi revelado em 1962 pelo XV de Jaú, a sua
pseudônimo que preserva a real identidade da
autoria. 3 Disponível em: http://www.escritorassuicidas.
2 http://www.escritorassuicidas.com.br/ Acesso com.br/edicao41_1.htm#.WpgHludG1PZ Acesso
em: 05 mai. 2021 em: 05 mai. 2021

106 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022


Isabelle Maria Soares

estréia no fogão em 1965, sagrando-se bi- criação, para ser compreendido, tem sem-
campeão carioca, bicampeão da Taça Gua- pre um fundo de realidade, pois se consubs-
nabara, campeão da Taça Brasil e do Tor- tancia no/pelo mundo” (BORGES-TEIXEIRA,
neio Rio-SP. No início dos anos 70, auge da 2018, p. 64). Por meio de intertextualidades,
ditadura militar, Afonsinho foi “afastado” do a voz que narra “Aperfeiçoando o imperfei-
time e impedido até de treinar porque usava to” evoca memórias que se inserem na sua
barbas à Che Guevara, porque era politiza- construção enquanto sujeito da pós-moder-
do, porque era culto, porque estudava medi- nidade.
cina, porque não aceitava ser tratado como
mercadoria. Rebelando-se contra a “Lei do
Aperfeiçoando as imperfeições
Passe” que fazia do jogador de futebol escra- do texto
vo dos empresários e clubes, que tinham o Nossa análise se debruça sobre um texto
poder absurdo de impedir o livre exercício da escritora virtual Carla Luma. Isso signi-
profissional, Afonsinho travou uma batalha fica que não nos interessa, aqui, esmiuçar
jurídica e política, obtendo a propriedade a sua obra, disponível em grande parte na
de seu próprio passe, ou seja, o passe livre. webpage Escritoras suicidas. O seu minicon-
Obviamente que o cartel formado pelos in- to “Aperfeiçoando o imperfeito”, especifi-
teresses contrariados barrou-lhe a entrada camente, possibilitou um olhar acerca dos
nos grandes clubes. Tudo isso papai nos desdobramentos intertextuais de um texto.
contava com orgulho, como se se tratasse de Roland Barthes (2004), ao contrastar
um filho e quando papai morreu tocou-me obra e texto, especifica que o que se conhe-
como parte da herança um poster com a foto cia tradicionalmente por obra, sofreu sérias
de Afonsinho e um compacto de vinil com transformações, assinalando que isso de-
Elis Regina cantando a música de Gil. veu-se principalmente ao caráter interdis-
ciplinar que tem caracterizado o desenvol-
(Carla Luma) vimento da academia e da pesquisa. Desse
modo, Barthes explica que a obra é palpá-
Como mencionado, a paranaense Carla vel: ela é o objeto que é segurado nas mãos,
Luma publica seus textos literários em um enquanto que o texto se mantém de forma
blog, um espaço virtual que manifesta “um abstrata por meio da linguagem. Nesse sen-
deslocamento e reconfiguração dos modos tido, o texto é plural, abrangente e parado-
de escrita” (BORGES-TEIXEIRA, 2018, p. 66). xal, feito de “citações sem aspas” (BARTHES,
Além disso, o blog é um espaço para experi- 2004, p. 71). Em outras palavras, o texto é
mentações, haja vista que “convida o usuá- pura intertextualidade, ou seja, ele conversa
rio à criação de páginas e de textos variados, com textos distintos, os quais diferem entre
à interação com outros” (BORGES-TEIXEI- si em sua forma, tempo e espaço.
RAS, 2018, p. 69). A primeira a discutir profundamente
Objetivamos fazer uma leitura de “Aper- acerca do termo “intertextualidade” foi Julia
feiçoando o imperfeito” pela ótica dos estu- Kristeva (2012), que revendo as propostas
dos sobre texto, memória e subjetividade, sobre a evolução literária de Iuri Tynianov
uma vez que é um texto literário que “circu- e o dialogismo de Mikhail Bakhtin, afirmou
la socialmente, convocando sujeitos à inter- que “todo texto se constrói como um mosai-
pretação e, apesar de pertencer à ordem da co de citações, todo texto é absorção e trans-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022 107


Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma

formação de textos” (2012, p. 142). Diante Consoante a esses conceitos, no conto de


disso, o que antes era visto como uma “rela- Carla Luma que analisamos, percebemos já
ção de dependência”, ou seja, uma dívida que no título “Aperfeiçoando o imperfeito” que
um texto possuía com seu antecessor, “passa há uma proposta dialógica com a música
a ser compreendido como um procedimento “Meio de Campo” de Gilberto Gil, a qual tam-
natural e contínuo de reescrita dos textos” bém foi interpretada por Elis Regina, artista
(CARVALHAL, 1992, p. 51). A compreensão que é também mencionada ao final do con-
de um texto literário passa a conduzir, como to. A frase composta no título é um dos ver-
complementa Carvalhal, a análise de proce- sos da canção.
dimentos que caracterizam as relações com Prezado amigo Afonsinho
outros textos. Entretanto, não basta simples- eu continuo aqui mesmo
mente identificar tais relações, mas analisá aperfeiçoando o imperfeito
-las “em profundidade, chegando às inter- dando um tempo, dando um jeito
pretações dos motivos” (CARVALHAL, 1992, desprezando a perfeição
que a perfeição é uma meta
p. 51). Em outras palavras:
defendida pelo goleiro
Quais as razões que levaram o autor do texto que joga na seleção
mais recente a reler textos anteriores? Se o e eu não sou Pelé nem nada
autor decidiu reescrevê-los, copiá-los, enfim, se muito for, eu sou Tostão
relançá-los no seu tempo, que novo sentido fazer um gol nessa partida não é fácil, meu
lhes atribui com esse deslocamento? (CAR- irmão4 (grifo nosso)
VALHAL, 1992, p. 52)
As manifestações intertextuais mantidas
Essa questão da motivação condiz com a entre o conto de Luma com a composição
perspectiva de Linda Hutcheon, que conce- de Gilberto Gil – que, aos conformes de Bar-
be a intertextualidade como “uma manifes- thes, também é texto - podem ser claramen-
tação formal de um desejo de reduzir a dis- te compreendidas através de códigos explí-
tância entre o passado e o presente do leitor citos e implícitos presentes em todo o conto.
e também um desejo de reescrever o passa- Como Barthes define, o texto deixa-se ser in-
do dentro de um novo contexto” (1991, p. terpretado graças ao seu caráter simbólico.
157). Ou seja, a intertextualidade expressa Assim, importa mencionar que “o texto não
a memória, tendo em vista que materializa a é coexistência de sentidos, mas passagem,
conexão entre passado e presente. Inclusive, travessia; não pode, pois, depender de uma
Tiphaine Samoyault (2008), que também se interpretação, ainda que liberal, mas de uma
preocupou em delinear os pressupostos da explosão, de uma disseminação” (BARTHES,
intertextualidade, define essa prática como 2004, p. 70). Essa afirmação salienta a im-
a memória da literatura. A intertextualidade portância do papel do leitor: em outras pa-
é, nas palavras da autora, “o resultado téc- lavras, pode-se dizer que não há texto sem
nico, objetivo, do trabalho constante, sutil e, o leitor e ele conversa com a pluralidade de
às vezes, aleatório, da memória da escritu- sentidos que propõe o texto “Aperfeiçoando
ra” (SAMOYAULT, 2008, p. 68). Nesse senti- o imperfeito”.
do, a literatura é transmissão, pois “acarreta Barthes também disserta acerca do pa-
a retomada, a adaptação de um mesmo as-
4 Disponível em: https://www.letras.com.br/gil-
sunto a um público diferente (SAMOYAULT, berto-gil/meio-de-campo Acesso em: 05 mai.
2008, p. 75). 2021

108 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022


Isabelle Maria Soares

pel do autor ao afirmar que “a obra é toma- palavras e objetos mais icônicos do evento:
da num processo de filiação”, já o texto “lê-se a “jabulani” e as “vuvuzelas”. Em sequên-
sem a inscrição do Pai” (2004, p. 71) visto cia, a voz que narra menciona as “desculpas
que “a restituição do intertexto vem abolir de Dunga e Jorginho”, retomando o fato de
paradoxalmente a herança” (2004, p. 72). que o Brasil perdeu um jogo decisivo sendo
Ou seja, enquanto a obra pode ser entendi- desclassificado das finais da Copa de 2010.
da como um conjunto caracteristicamente Podemos notar, portanto, que as referências
marcado por traços do autor, o texto é carac- futebolísticas que aparecem no miniconto
teristicamente marcado pela intertextuali- focam no contexto brasileiro.
dade, pelo diálogo com outros textos, como Ao lermos o trecho “não sou aquela que
já referido anteriormente. se desmancha em lágrimas e tristeza pela
No miniconto em análise, notamos que a pátria de chuteiras”, certificamos que quem
narradora do texto começa por dizer que foi narra possui uma voz feminina. Também é
ao Vaticano, mas que, não viu nada do que notável nesse enunciado, um tom de críti-
há de mais característico daquele lugar: o ca à pátria brasileira, o que se confirma na
papa, anjos e a Capela Sistina. Em um pri- sequência do texto. Enquanto o povo brasi-
meiro momento, tal afirmação parece não leiro se preocupa com a situação esportiva
ter ligação com o restante do texto. Por isso, do Brasil na Copa do Mundo (“pátria de chu-
é necessário partir para a interpretação do teiras”), a pátria brasileira encara inúmeros
simbólico, uma vez que para Barthes “o tex- problemas sociais, como a prostituição, que
to é radicalmente simbólico: uma obra que também está evidenciada no discurso da
se concebe, percebe e recebe a natureza in- voz feminina que denuncia que, ao invés de
tegralmente simbólica é um texto” (2004, p. chorar pelo futebol brasileiro, vendeu-se a
69). Percebemos que, na verdade, quem nar- um paulistano, fazendo uma boa grana ao
ra não foi realmente ao Vaticano, mas sim a “interpretar o papel de esposa”.
África do Sul, onde não viu Nelson Mandela, O caráter feminino inerente à voz de
ou “Nelsinho”, como aparece no texto, um quem narra o texto demonstra, conforme
ícone do país mencionado. A ideia da pre- Borges-Teixeira, que os contos de Carla
sença simbólica das figuras que remetem ao Luma manifestam predominantemente “as
Vaticano é aqui reafirmada. Compreende- inquietações femininas em busca por uma
mos, portanto, a menção feita ao Vaticano: identidade própria” (2018, p. 70). Isso sig-
foi a um lugar e não viu lá aquilo que há de nifica que seus textos buscam “romper com
mais sagrado; foi a África do Sul e não viu a as funções atribuídas à mulher ao longo
figura considerada uma das mais importan- do tempo e revelando a sua necessidade
te deste país. Contudo, viu Kaká, Robinho e em buscar autonomia e espaço dentro des-
outros jogadores de futebol, ou na voz que se mundo até então descrito pelo homem”
narra, “outros anjinhos cheios de poses e de (BORGES-TEIXEIRA, 2018, p. 70). Com-
pouca inspiração”. preende-se, portanto, que:
É claro o diálogo que o texto faz com a
A narrativa de Luma instaura o efeito de sen-
temática do futebol, visto que essas primei- tido de contestação de valores, deslocando
ras referências remetem à Copa do Mundo os sentidos cristalizados acerca da mulher
FIFA de 2010, a qual foi sediada na África do não só dentro da ordem social e política dis-
Sul. Isso fica evidente ao interpretarmos as criminatória, mas, também, e, sobretudo, no

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022 109


Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma

interior de uma ordem simbólica, em que a produção de memórias ao espaço artísti-


a própria linguagem é um instrumento de co, funcionam, também, como dimensões
opressão. Como foi insistentemente subli- mnemônicas.
nhado por Roland Barthes, a língua encar-
Ao defender que o mundo moderno está
rega-se de marcar a diferença sexual e so-
cial, mantendo, por um lado, separados os presenciando a aceleração da história, que
gêneros feminino e masculino, pelo outro “a resulta no sentimento de um passado mor-
servidão e o poder” (Barthes, 2004, p. 15) to, Pierre Nora (1993) conceitua os “luga-
(BORGES-TEIXEIRA, 2018, p. 70). res de memória”, os quais surgem a partir
Nesse sentido, há uma pluralidade de do momento em que a memória se torna
vozes em “Aperfeiçoando o Imperfeito” o resultado de uma organização voluntá-
que evidencia a relação da linguagem com ria, intencional e ao mesmo tempo seletiva.
a questão do poder dentro do texto. A voz Nesse sentido, os lugares de memória não
são espontâneos pois nascem a partir de
feminina, por exemplo, ao revelar uma so-
sentimentos que buscam a necessidade de
ciedade distraída e eufórica com a esfe-
acumular vestígios. Esses lugares seriam
ra futebolística que omite e/ou ignora os
criados, portanto, com o intuito de preser-
problemas sociais vigentes denota como
var memórias. Nas palavras do autor, “os lu-
a linguagem é um dispositivo de poder. Ao
gares de memória nascem e vivem do senti-
mesmo tempo, a narradora reivindica seu
mento que não há memória espontânea, que
espaço no texto com o fim de investigar, por
é preciso criar arquivos” (NORA, 1993, p. 6).
meio de denúncias, juntamente com seus
Nesse sentido, a literatura pode ser con-
leitores, esse papel da linguagem na socie-
siderada também um lugar de memória.
dade em que se insere. De acordo com esse
Assim como o texto literário, os lugares de
itinerário, o conto estabelece relações com
memória seriam restos testemunhais que
o contexto histórico ditatorial brasileiro das
pretendem não somente acender o passado
décadas de 60 e 70, resgatado pela memória
no presente, mas, principalmente, transfor-
de outrem, por meio da intertextualidade
má-lo a cada momento. Esse é o papel da li-
com ícones da época, tanto no âmbito do fu-
teratura enquanto lugar de memória: trans-
tebol, quanto no âmbito cultural: Afonsinho,
formar o passado, ressignificar o presente,
Gilberto Gil e Elis Regina.
despertar memórias. Além disso, um lugar
de memória só existe quando “a imaginação
Literatura: lugar de memória o investe de uma aura simbólica” (1993, p.
Como vimos, no miniconto de Luma, há 21). Ou seja, para uma obra literária, como
um intertexto claro com a música “Meio de qualquer outro espaço, ser um lugar de me-
Campo”, de Gilberto Gil. A narradora destaca mória “é preciso ter vontade de memória”
que essa música é uma homenagem a Afon- (NORA, 1993, p. 22). Essa “vontade de me-
sinho, ilustre jogador de futebol brasileiro, mória” é perceptível na voz que narra “Aper-
o qual foi também um grande defensor da feiçoando o imperfeito”, que, por meio de
liberdade. Podemos enquadrar essa canção mecanismos intertextuais e simbólicos, faz
de Gilberto Gil, assim como o miniconto de surgir memórias plurais e fragmentadas do
Carla Luma, como um “lugar de memória”, contexto brasileiro.
visto que as dimensões do ficcional, do real, A memória a Afonsinho e Gilberto Gil, no
do imaginário e do vivido, quando vinculam final do primeiro parágrafo, foi desencadea-

110 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022


Isabelle Maria Soares

da pelo momento e ambiente futebolístico ças seja um trabalho do sujeito. Em “Aperfei-


em que a narradora se encontrava presente. çoando o imperfeito”, por exemplo, o grupo
Os erros de passes laterais cometidos pelos de referência que despertou a memória da
jogadores em campo – referidos como “ca- narradora foi a sociedade futebolística em
beças de bagre” - despertam lembranças e campo, ao passo que ela teve uma lembran-
saudosismo na narradora: “quando os cabe- ça individual acerca da sua infância.
ças de bagre do meio campo da amarelinha Michael Pollak (1992) também disser-
erravam passes laterais, eu sentia saudades ta acerca da “memória coletiva”, comple-
da minha infância e me recordava vivida- mentando que a memória é constituída
mente de Afonsinho, aquele que mereceu por acontecimentos, por pessoas ou per-
uma canção de Gilberto Gil”. Com base em sonagens, e por lugares. Haveria os acon-
Henri Bergson (1999), compreendemos que tecimentos vivenciados pessoalmente pelo
tal memória foi despertada pela “percep- indivíduo como também, aqueles que não
ção”, em um processo no qual a memória faz foram experiências particulares dele, mas
seleções, posto que a função principal do de um grupo pelo qual pertence, instituin-
corpo humano não é armazenar lembran- do, assim, a “memória herdada”: uma me-
ças, mas sim, fazer o trabalho de escolher e mória transmitida de geração para geração.
organizar as lembranças que são reavivadas Seguindo esse ponto de vista, entendemos
pelos nossos sentidos e experiências. que a memória que a narradora tem do joga-
Nessa mesma perspectiva, Maurice Hal- dor Afonsinho é, na verdade, uma memória
bwachs define que a lembrança reconsti- herdada de seu pai: “Pra falar a verdade, eu
tui o passado a partir “de dados tomados não havia nascido no tempo que ele jogou,
de empréstimo ao presente e preparados mas papai, torcedor do Botafogo, narrava
por outras reconstruções feitas em épocas apaixonadamente as atuações de Afonsinho
anteriores e de onde a imagem de outrora e conhecíamos todos os episódios da sua
já saiu bastante alterada” (2015, p. 91). Ou carreira”. Mesmo que ela não tenha partici-
seja, a lembrança é como uma imagem, que pado do acontecimento no espaço-tempo da
constantemente sofre mutações, resultan- ditadura militar – contexto em que fez par-
do, conjuntamente, na transformação do te a figura de Afonsinho -, ela contribui na
indivíduo que rememora. Essas imagens construção mnemônica coletiva desse fato
-lembranças seriam frutos do que Halbwa- por meio de seu discurso no texto.
chs chama de “memória coletiva”. O autor Ainda, podemos pensar os conceitos de
evidencia a relação de memória e socieda- Pollak no que diz respeito às memórias sub-
de ao conceber que a memória individual é terrâneas, ou seja, aquilo que se refere a uma
dependente da memória coletiva, visto que memória dos excluídos, dos marginalizados
“para evocar seu próprio passado, em ge- e das minorias, que se constroem a partir de
ral a pessoa precisa recorrer às lembranças uma transmissão oral de sua história “que,
de outras, e se transporta a pontos de refe- como parte integrante das culturas minoritá-
rência que existem fora de si, determinados rias e dominadas, se opõem à “Memória ofi-
pela sociedade” (HALBWACHS, 2015, p. 72). cial”, no caso a memória nacional” (POLLAK,
A memória é, nesse sentido, construída por 1989, p. 4). A escrita de Luma, ao resgatar a
meio de um grupo de referência, mesmo memória da penumbra que pairava sobre a
que o ato de ativar e processar as lembran- época da ditadura no Brasil, com o exemplo

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022 111


Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma

do jogador Afonsinho e a questão do passe li- Outro revolucionário foi Nelson Mande-
vre, traz à tona uma memória silenciada, uma la, que resistiu ao regime do apartheid, que
memória não oficial, que ia contra os padrões determinava o poder a minoria branca que
vigentes da época. Luma aborda essa temá- vivia na África do Sul. Ambos, Nelson Man-
tica com um texto de frases fragmentárias, dela e o brasileiro Afonsinho, são citados
com flashes de memória, aproximando-se da pela voz feminina que narra com o fim de
linguagem oral, fato que para Pollak, tornava afirmar um sentimento de resistência que
a história subterrânea acessível. ela sentiu individualmente naquele momen-
A narradora traz uma memória de Afon- to de Copa do Mundo, mas também, um sen-
sinho enquanto figura verdadeiramente timento que pode ser sentido na coletivida-
merecedora de prestígio, uma autêntica ins- de, por muitos brasileiros. Por meio dos in-
piração para os brasileiros. Isso contrasta tertextos do miniconto, a narradora coloca
com uma das frases iniciais em que diz “mas em pauta a importância em relembrarmos
tive que me contentar com Kaká, Robinho e a nossa própria história e mantermos vivas
outros anjinhos cheios de poses e de pouca as memórias de luta e resistência do nosso
inspiração” e dialoga com a menção feita a passado, ao mesmo tempo que dialoga com
Nelson Mandela. Afonsinho foi jogador de questões sociais do tempo presente.
futebol em uma época em que havia muita
exploração pelos empresários envolvidos Subjetividade plural
com o meio futebolístico, onde exigia-se a A questão da subjetividade se insere no
“boa aparência” dos jogadores adequada ao miniconto de Luma pelo modo em que se
poder hegemônico. Contudo, o ex-jogador pode pensar a escrita na pós-modernidade,
demonstrou ser um exemplo de resistên- visto que o foco dos autores diante dessa
cia, e, graças a ele, desde 2001, os jogadores sociedade que se constrói e se apresen-
profissionais não são mais explorados pelos ta como globalizada são, pois, artimanhas
seus clubes pela “lei do Passe”5. para a construção de novas identidades,
5 “Afonsinho chegou ao Botafogo em 1966, após em contextos multiculturais e híbridos. Ou
ser revelado pelo XV de Jaú. Desde que chegou, seja, é justamente a especificidade da es-
a postura forte pela liberdade individual inco-
modava. Os tempos eram de repressão em um crita pós-moderna que desvela uma nova
país que vivia em plena ditadura. E o ambiente compreensão da subjetividade que, por
do Botafogo, cheio de militares no comando, foi um lado, não pode mais ser vista a manei-
ficando cada vez mais pesado. Até que o craque
perdeu espaço. Ao se reapresentar em 1970, foi
ra moderna, absoluta e simplicista, e por
barrado pelo então técnico Zagallo.Insatisfeito outro, traz à tona múltiplos vieses e rejeita
com a situação, Afonsinho pediu para ser nego- hierarquias como passado e presente, rele-
ciado. Só que, nos 1970, as coisas não eram tão
vante e irrelevante. Segundo as perspecti-
fáceis. Na época, os vínculos esportivos de um
atleta não estavam ligados ao contrato, mas eram vas de Anthony Giddens (1991) e também
perenes. Isso significa que um jogador, mesmo de Stuart Hall (2015), enquanto há sujeitos
sem contrato, só poderia jogar em outro clube tão voltados para si, há também aqueles
se a agremiação anterior permitisse. Era a Lei do
Passe.” Reportagem: Bernardo Gentile e Vander- que se deparam com uma subjetividade
lei Lima. Disponível em: https://www.uol.com. fragmentada, descentralizada e deslocada.
br/esporte/reportagens-especiais/afonsinho-li- Essa fragmentação do sujeito é uma con-
ga-jejum-apos-copa-de-1970-da-selecao-com-a-
ditadura-comissoes-tecnicas-tinham-interven- sequência do processo de globalização do
cao/ Acesso em: 05 mai. 2020 mundo contemporâneo.

112 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022


Isabelle Maria Soares

Ana Cláudia Viegas afirma que “a criação própria voz que narra no texto usa essa fi-
de diferentes identidades, característica das guras “icônicas” com o fim de questionar e
páginas virtuais, extrapola seu suporte téc- refletir sobre essa era de incertezas na qual
nico, apontando um traço da subjetividade vivemos.
contemporânea: plural, ambígua, ficcionali- De acordo com Cornelius Castoriadis,
zada” (2008, p. 71). Esse fato se materializa “o sujeito é essencialmente aquele que
na escrita de Luma, a qual traz à tona remi- faz perguntas e que se questiona” (1999,
niscências da ditadura militar, além de refle- p. 35). Desse modo, a narradora está a in-
xões dialógicas acerca de âmbitos diversos, dagar se realmente somos obrigados a in-
como o futebol e a música, fazendo com que terpretar papéis para que consigamos nos
esse texto possa adquirir sentido tanto para adequar às exigências do meio em que vi-
um ávido torcedor quanto para aquele que vemos, ou se podemos lutar, resistir, mu-
com saudosismo escuta as músicas das dé- dar de cena, assim como fizeram Mandela
cadas de 1960 à 1980. e Afonsinho. Assim, a subjetividade pode
Essa subjetividade múltipla e descen- ser entendida como “a capacidade de re-
tralizada está claramente presente na per- ceber o sentido, de fazer algo com ele e de
sonagem que narra através da fragmenta- produzir sentido, dar sentido, fazer com
ção de ideias difundidas no texto em aná- que cada vez seja um sentido novo” (CAS-
lise. Lembremos do momento em que a TORIADIS, 1999, p. 35).
narradora conta que “interpretou o papel É interessante a menção feita a herança
de esposa” para um “industrial paulista”. A do disco de vinil de Elis Regina, que canta a
personagem mostra como o seu ser subje- música de Gilberto Gil, ao final do minicon-
tivo é “plural” ao nos mostrar que encena to. Nesse momento, ao citar a artista femi-
papéis, uma forma de mascarar o seu “eu” nina, a narradora demonstra a vontade de
para poder sobreviver em sociedade. Como significar e valorizar o papel das mulheres
mencionado anteriormente, esse momento nesse processo de luta de classes, já que fo-
em contraste com o futebol e com a prosti- ram por muito tempo submetidas ao poder
tuição, pode ser entendido como uma crí- hegemônico e que, assim como Mandela e
tica a atenção dos brasileiros que está vol- Afonsinho, sentem a necessidade de resis-
tada mais ao futebol do que aos problemas tir com o fim de transformar o cenário con-
sociais. Esse é um exemplo dos reflexos da temporâneo. A literatura é um instrumento
globalização. que faz existir os mais diversos mundos, e,
De acordo com Boaventura de Souza portanto, “nada melhor do que o campo do
Santos, a globalização é “um vasto e inten- literário para entender como as mulheres
so campo de conflitos entre grupos sociais, contemporâneas se relacionam com sua
Estados e interesses hegemônicos, por um subjetividade e qual a influência disso na
lado, e grupos sociais, Estados e interesses constituição de identidades” (BORGES-TEI-
subalternos, por outro” (2002, p. 85). Essa XEIRA, 2014, p. 10).
ideia é implicitamente transmitida pelo tex- O fato do conto de Luma congregar uma
to em análise por meio das referências que miríade de cenas, impressões, sentimentos
já foram aqui analisadas. Nelson Mandela e desejos revela um sujeito mulher, reifica-
e Afonsinho recordam essa luta de classes, da e costurada que perdeu o corrimão da
entre o poder hegemônico e as minorias. A realidade e se sente impossibilitada de criar

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022 113


Texto, memória e subjetividade: uma leitura de “aperfeiçoando o imperfeito” de Carla Luma

uma representação única e centrada de si ciberespaço: Blogue e escritas de si. Prolíngua,


mesma, e, por isso, é detentora de uma sub- v. 13, n. 1, p. 63-74, 2018. Disponível em:
https://doi.org/10.22478/ufpb.1983-
jetividade múltipla e esfacelada. Na pós-mo-
9979.2018v13n1.42346 Acesso em: 05 mai.
dernidade não há apenas uma subjetivida- 2021
de, que se constrói a partir de um único dis-
CARVALHAL, T. F. Literatura Comparada. 2. ed.
curso. É preciso pensar em “subjetividades”, São Paulo: Ática, 1992.
tanto sincrônicas quanto anacrônicas, cons-
truídas a partir de um hibridismo cultural CASTORIADIS, C. Para si e subjetividade. In: PE-
NA-VEJA, A.; NASCIMENTO, E. P. (Org). O pensar
e que, ao resgatarem memórias de outrem, complexo. Edgar Morin e a crise da modernida-
compactuam com determinado sentimento de. Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
de dada época.
GIDDENS, A. As consequências da moderni-
dade. Trad. Raul Fiker. São Paulo, UNESP, 1991.
Uma consideração final
HALBWACHS, M. A memória coletiva. 2.ed.
Nossa leitura demonstrou que “Aperfeiçoan- Trad. Beatriz Sidou. São Paulo: Centauro, 2015.
do o imperfeito” é um texto em que a memó-
HALL, S. A identidade cultural na pós-moder-
ria é constantemente resgatada por meio da nidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. Rio de Ja-
intertextualidade, sendo esta uma caracte- neiro: Lamparina, 2015.
rística dos escritos pós-modernos, os quais
HUTCHEON, L. Poética do pós-modernismo:
mantém relações com outros textos, tanto história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio
com os antigos quanto com os contemporâ- de Janeiro: Imago, 1991.
neos e até mesmo com textos que ainda se- KRISTEVA, J. Introdução à Semanálise. Trad.
rão escritos, seguindo uma lógica que pres- Lucia Helena França Ferraz. São Paulo: Perspec-
supõe os apontamentos de Barthes (2004), tiva, 2012.
Kristeva (2012) e Samoyault (2008), que NORA, P. Entre memória e história – a proble-
denotam que um texto é feito de escrituras e mática dos lugares. Projeto História, n. 10, p.
vozes múltiplas, ou seja, é plural e não pode 7-28, 1993. Disponível em: https://revistas.pu-
csp.br/index.php/revph/article/view/12101
depender apenas de uma interpretação, Acesso em: 05 mai. 2021
mas de múltiplas subjetividades que trazem
memórias ressignificadas. POLLAK, M. Memórias, esquecimento, silêncio.
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114 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022


Isabelle Maria Soares

SANTOS, B. S. A globalização e as Ciências So- tura, internet e “a invenção de si”. Caderno de


ciais. São Paulo: Cortez, 2002. Letras da UFF, n. 32, p. 61-72, 2008.
VIEGAS, A. C. Escritas Contemporâneas: Litera-
Recebido em: 01/04/2022
Aprovado em: 25/05/2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 105-115, jan./jun. 2022 115


Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Veredas epistêmicas e metodológicas da


poesia oral
Luciano Santos Xavier (UFBA)*
https://orcid.org/0000-0001-6919-7065

Denise Dias de Carvalho Sousa (UNEB)**


https://orcid.org/0000-0003-4524-5995

Resumo:
No seio da Literatura, a poesia oral, ou as poéticas da oralidade como um
todo, abarcam metodologias de análise que se diferem daquelas da Crítica
e Teoria Literárias conservadoras e tradicionalistas, uma vez que seu amplo
suporte teórico e conceitual relaciona o escopo literário com muitos outros
campos epistêmicos, como o do teatro, da música, da antropologia, da socio-
logia, da etnologia, entre outros. Em vista disso, este trabalho aspira discutir
alguns pontos teóricos no que concerne à poesia oral e sua genealogia nas
culturas populares, incursionando em suas interfaces metodológicas e epis-
temológicas. Para tanto, nos pautamos em uma revisão de literatura de tex-
tos e pesquisas de autores como: Zumthor (1993), Fernandes (2007), Culler
(1999), Santos (1994), Burke (1989), entre outros.1
Palavras-chave: Poesia oral; Epistemologias; Metodologias; Revisão de li-
teratura.

Abstract:
Epistemic and methodological edits of oral poetry
In the heart of Literature, oral poetry, or the poetics of orality as a whole,
encompass methodologies of analysis that differ from those of conservative
and traditionalist Literary Criticism and Theory, since its broad theoretical
and conceptual support relates the literary scope with many other epistemic
fields, such as theater, music, anthropology, sociology, ethnology, among oth-

* Mestrando em Literatura e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), graduado em Letras,
Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Integrante do Grupo
de Pesquisa Linguagens, Estudos Culturais e Formação do Leitor (LEFOR). Lattes: http://lattes.cnpq.
br/9898725859278461. E-mail: lu.ciano2011@live.com.
** Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).
Docente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB – DCH IV) na graduação e no Programa de Pós-Gra-
duação em Educação e Diversidade (PPED). Líder do Grupo de Pesquisa Linguagens, Estudos Culturais e
Formação do Leitor (LEFOR). Lattes: http://lattes.cnpq.br/4506569196582211. E-mail: dsousa@uneb.br.
1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
da Bahia (FAPESB).

116 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022


Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa

ers. Therefore, this work aims to discuss some theoretical points regarding
oral poetry and its genealogy in popular cultures, incurring its methodolog-
ical and epistemological interfaces. For this, we based ourselves on a litera-
ture review of texts and research by authors such as: Zumthor (1993), Fer-
nandes (2007), Culler (1999), Santos (1994), Burke (1989), among others.
Keywords: Oral poetry; Epistemologies; Methodologies; Literature review.

Introdução
Apreender o conceito de poesia oral implica percepções corporais e sonoras (portanto,
desvinculá-lo das acepções e metodologias performáticas) ignoradas pela Teoria Lite-
de análise da literatura canônica/tradicio- rária tradicionalista.
nal, uma vez que a poesia oral tenciona uma Nesse sentido, este trabalho aspira dis-
abordagem em que o poético é construído cutir alguns pontos teóricos no que concer-
para além do verbal, mas elaborado e reela- ne à poesia oral e sua genealogia nas cultu-
borado nas percepções sonoras, corporais, ras populares, incursionando em suas inter-
visuais e circunstanciais, instituindo assim faces metodológicas e epistemológicas. Para
a performance, a qual ponderaremos mais tanto, nos pautamos em uma revisão de
enfaticamente nas seções seguintes. literatura de textos e pesquisas de autores
Mesmo diante das muitas acepções e ca- como: Zumthor (1993), Fernandes (2007),
racterizações – tal qual a conceituação de Culler (1999), Santos (1994), Burke (1989),
literatura –, é importante assinalar a poesia entre outros.
oral não tem um conceito preciso, tendo em
vista as diversas abordagens e tensionamen- Nos fios teóricos da poesia oral:
tos sobre ela. Embora tenha-se perspectivas (re)visitando conceitos
e definições muito próximas, a poesia oral
Ao falar que a poesia oral necessita de meto-
não é exatamente delimitada, considerando
dologias de estudo diferentes da poesia dos
o amplo meio conceitual e epistemológico, estudos canônicos, nos pautamos na afir-
no qual a ela se encontra inserida e consti- mação de que ela é situada num âmbito hic
tuída (FERNANDES, 2007). et nunc, isto é, a poesia oral acontece numa
Como revela Zumthor (1993), o estudo circunstância performática estabelecida no
da poesia oral é cruzado por um amplo meio momento, no aqui e agora. Nessa perspecti-
epistemológico, no qual a poética – articula- va, Frederico Fernandes (2007, p. 36) apon-
da com a filologia, etnologia, a iconografia, a ta que a:
história da música e do teatro, dentre outras
Poesia oral, em estado latente, isto é, próxi-
áreas pertinentes – corrobora a apreensão e
ma a se manifestar, compreende transfor-
percepção da poesia, em que a sonoridade, a mações e associações, ordenamento e caos,
corporeidade e o discurso poético intercru- corpo e voz, continuidade e inacabamento.
zam-se na condução de uma sensibilidade Por isso, enquanto texto oral (e fonte para a
diferenciada da poesia. Dessa maneira, de- pesquisa), a poesia oral diz respeito ao que
vemos ponderar uma metodologia de aná- “se faz”, e não ao que “foi feito”.
lise desse fazer poético oral diferenciada da Assim sendo, o estudo da poesia oral é
poesia escrita, no sentido de abarcar essas considerado sob a mesma ótica circunstan-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022 117


Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral

cial a qual a própria é condicionada. Como nadas “culturas populares”, bem como o seu
o próprio autor destaca, não estudamos o percurso nos Estudos Culturais, de modo a
que “foi feito”, mas o que “se faz”, o proces- refletir os embates enfrentados nas relações
so de construção de sentidos do fazer poé- de poder com as culturas privilegiadas so-
tico num dado momento performático. Ao cialmente.
contrário da poesia escrita, já registrada e
fixada verbalmente, a poesia oral apresen- Poesia oral e culturas populares:
ta um aspecto movente que institui nela discussões emergentes nos
um ato constante de (re)criar e (re)signifi-
Estudos Culturais
car, sujeito às condições de produção. Essas
condições de produção situam-se na pró- Pensar a literatura – e enfaticamente a li-
pria performance, esta que “aparece como teratura popular/oral – como produção
uma ação oral-auditiva complexa, pela qual cultural nos remete à reflexão sobre o pró-
uma mensagem poética é simultaneamente prio termo cultura, esse que já foi (e ainda
transmitida e percebida aqui e agora. Locu- é) atravessado por múltiplas definições e
tor, destinatário(s), circunstâncias acham- concepções, as quais muitas delas enges-
se fisicamente confrontados, indiscutíveis” sam-na, e outras coadunam com a dinamici-
(ZUMTHOR, 1993, p. 222). dade e maleabilidade intrínseca às práticas
É possível percebermos a complexa rede culturais. Sob essa perspectiva, definir pre-
teórico-metodológica em que o estudo poe- cisamente cultura é uma tarefa árdua e pra-
sia oral é situado. Os sujeitos envolvidos na ticamente impossível, se levarmos em conta
construção dos sentidos da poética da ora- o processo movente no qual ela se constrói e
lidade (intérprete e destinatário/receptor) reconstrói, visto cada tempo, espaço, sujei-
são responsáveis por uma performance que tos, sentidos e símbolos imbricados na sua
configura a própria obra poética. Segun- sociedade/comunidade produtora.
do Zumthor (1993, p. 220), a obra poética José Luiz dos Santos, em O que é cultu-
é aquilo que “é poeticamente comunicado, ra (1994), apresenta duas concepções para
aqui e agora – texto, sonoridades, ritmos, conceituá-la, uma que a debate sob uma óti-
elementos visuais; o termo compreende à ca mais geral e a outra específica aos modos
totalidade dos fatores da performance”. Nes- de produção. Para o autor:
sa perspectiva, tomemos aqui “obra poética” A primeira dessas concepções preocupa-se
como a totalidade da performance, ou seja, com todos os aspectos de uma realidade so-
o resultado da articulação entre corpo, voz, cial. Assim, cultura diz respeito a tudo aqui-
lo que caracteriza a existência social de um
discurso e elementos circunstanciais.
povo ou nação, ou então de grupos no inte-
Diante desses apontamentos, fica evi- rior de uma sociedade. (A segunda é que)
dente que a poesia oral é pensada numa [...] quando falamos em cultura estamos nos
interrelação entre corpo e voz, emergindo referindo mais especificamente ao conheci-
assim a performance, em que o intérprete mento, às ideias e crenças, assim como às
desvela uma poética que é sensorial e ao maneiras como eles existem na vida social.
mesmo tempo reveladora de uma memória (SANTOS, 1994, p. 24-25).
coletiva, a qual ele próprio comunga. Embora Santos introduza essas duas
Adensaremos, na subseção posterior, a acepções, é perceptível que a segunda está
poesia oral e suas relações com as denomi- intimamente inserida na primeira, já que

118 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022


Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa

essa considera a totalidade existencial de se referir à produção do povo. A respeito


uma sociedade. O que não podemos perder dessa questão plural e diversa que entorna
de vista em nenhuma delas é que, mesmo a cultura das camadas populares, Edil Silva
sendo uma construção/representação da Costa (2016, p. 21) nos lembra que se faz
existência de uma realidade social ou ma- necessário entendê-la “como um estrato da
neiras específicas de existir-se no mundo, a cultura brasileira em suas relações com os
cultura se estabelece nos fios da movência outros estratos mais sujeitos à rapidez das
dos sujeitos e da sociedade, está em cons- transformações das sociedades modernas e
tante movimento e passível aos processos à velocidade contemporânea”.
de recriação dessas existências. Destarte, é importante definirmos mais
Um outro aspecto importante de assina- densamente o que entendemos como cul-
larmos sobre a cultura diz respeito às rela- tura popular, a fim de evitar imprecisões
ções de poder que a entornam, de modo a conceituais ou certas contradições. Ao com-
legitimar as culturas socialmente aceitas, preender a cultura como um sistema de
sendo as culturas clássicas e elitizadas, ao significados e formas simbólicas criados
passo que as culturas das camadas popula- pela humanidade (BURKE, 1989), deve ser
res são descentradas às margens da socie- sinalizada também a diversidade de formas
dade. Assim, percebemos como a cultura e expressões as quais ela está envolta. Nes-
denominada “popular” foi destituída da im- se sentido, o lugar social do sujeito cultural
portância que ela tem, sendo, portanto, di- (seja de classe, etnia, gênero, etc.) também é
minuída pela elite dominante. um fator preponderante e que foi utilizado
O teórico Stuart Hall (2003) aponta que o como fator de legitimação do juízo de valor
lugar da cultura popular sempre foi de resis- no que concerne à cultura.
tência. Na ótica do autor, “a cultura popular Para Peter Burke (1989, p. 12), “o termo
é um dos locais onde a luta a favor ou contra ‘cultura popular’ dá uma falsa impressão de
a cultura dos poderosos é engajada: é tam- homogeneidade e que seria melhor usá-lo
bém o prêmio a ser conquistado ou perdi- no plural, ou substituí-lo por uma expres-
do nessa luta. É a arena do consentimento e são como ‘a cultura das classes populares’”.
da resistência” (HALL, 2003, p. 263). Dessa Portanto, ao utilizarmos a noção de “cultu-
forma, mesmo com todos esses embates nas ra popular”, levamos em conta seu aspec-
relações de poder, a cultura popular nunca to plural, reconhecendo a diversidade das
se desvencilhou das suas formas mais ge- culturas populares e anulando o estigma o
nuínas de produção de cultura, de existên- qual foi determinado a essas pelas classes
cia e de representação. dominantes.
Portanto, as simbologias, identidades, Dessa maneira, a cultura popular deve
representações são intrínsecas a toda e ser apreendida pela sua polissemia de ele-
qualquer manifestação cultural, em espe- mentos que compõem as vivências dos po-
cial nas denominadas “culturas populares”, vos tradicionais; não basta defini-la somen-
sendo expressas de diversas formas (XA- te pelas vias da dicotomia “popular” versus
VIER, 2018). Atribuímos o plural à cultura “erudito”, posto que acabamos a reduzindo
popular, por entender a sua polifonia, a sua como produção menor, se comparada a uma
multiplicidade criativa e existencial; “cultu- cultura canônica e elitizada. Na perspecti-
ras populares” é a maneira mais eficaz para va explicitada por Zumthor (1993, p. 29), o

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022 119


Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral

“[...] ‘popular’ (caso queira usar esse adjeti- em que a cultura de um grupo, e inicialmen-
vo) não designa ainda o que se opõe às ‘ciên- te das classes populares, funciona como con-
cias’, à lettrure [sic]; refere-se ao que depen- testação da ordem social ou, contrariamente,
como modo de adesão às relações de poder.
de de um horizonte comum a todos – sobre
o qual se destacam algumas construções Nessa perspectiva, os Estudos Culturais
abstratas, próprias a uma ínfima minoria de direcionam as pesquisas acadêmicas sobre
intelectuais”. De tal modo, a cultura popular os grupos e movimentos populares, consi-
é muito mais que um ponto dicotômico às derando esse aspecto descentralizador do
culturas privilegiadas, ela está situada num conhecimento tido como “erudito” (XAVIER,
âmbito de produção de saberes, vivências e 2018). Desse modo, destacamos a potência
existências de povos, que foram marginali- dessa corrente de estudos, imbricado em
zados por não atenderem aos padrões so- descentralizar a produção do saber no âm-
ciais das elites. bito acadêmico.
Em consonância com as discussões levan- Refletir sobre o surgimento dos Estudos
tadas acima, Nerivaldo Alves Araújo (2015, Culturais requer compreender as implica-
p. 24) aponta que “[...] as manifestações cul- ções iniciais que tais perspectivas tiveram
turais de povos frequentemente marginali- com a Literatura. Jonathan Culler (1999, p.
zados pela cultura dos grupos dominantes 52) afirma que “os estudos culturais surgi-
de visão eurocêntrica estão assumindo um ram como a aplicação de técnicas de análise
papel considerável ante o novo repensar da literária a outros materiais culturais. Tra-
cultura nacional”. Nesse contexto, para com- tam os artefatos culturais como ‘textos’ a
preender essa dimensão do popular trazida ser lidos e não como objetos que estão ali
para os estudos acadêmicos, é preciso res- simplesmente para serem contados”. Sendo
saltar o papel imprescindível dos Estudos assim, os Estudos Culturais na Literatura
Culturais, considerando seus esforços em não se centram somente em temáticas da
trazer esses “heróis e heroínas populares”, cultura a serem analisadas na obra literária,
para o centro dos estudos universitários, mas também novas abordagens de leitura
isto é, para o lugar de protagonismo que lhe do texto literário.
é de direto. É nesse sentido que os Estudos Culturais
Os Cultural Studies, ou Estudos Culturais se debruçam sobre as produções poéticas
surgem a partir de 1960, como uma forma da oralidade, já que um dos seus fundamen-
contra-hegemônica e interdisciplinar de in- tos é trazer à tona as produções literárias
vestigação das culturas ligadas às camadas marginalizadas. As literaturas escritas já
populares, de modo a questionar as hierar- usufruíam (como ainda usufruem) de privi-
quias acadêmicas preestabelecidas na cons- légios nos estudos literários; o fato é que nos
trução do conhecimento. Para Mattelart e estudos a literatura oral começa a emergir
Neveu (2004, p. 13-14), os Estudos Cultu- com mais força e potência nas Academias.
rais visam: A poesia oral em si emerge nesse seio
dos saberes e fazeres da cultura popular e
Considerar a cultura em sentido amplo, an-
tropológico, de passar de uma reflexão cen- da literatura oral, confluindo na articulação
trada sobre o vínculo cultura-nação para de um discurso verbal oral, atravessado por
uma abordagem da cultura dos grupos so- sonoridades e performances que configu-
ciais, [...] a questão central é compreender ram a obra poética.

120 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022


Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa

Um aspecto importante de se destacar ideia da escritura e do julgamento de valor,


é o conceito de poética oral, que transcen- mas sim de compreender como determina-
de o de “poesia oral”, no sentido de abarcar da produção literária/poética é significada
o poético para além da noção de “poesia” e realizada. Nesse contexto, a poesia oral
como gênero literário, e por tensionar toda emerge para designar outros elementos
uma complexidade de saberes, fazeres, nar- poéticos que configuram a obra como um
rativas e discursos das comunidades orais. todo, o gesto, o corpo, as performances, to-
Isso, porque: dos esses aspectos emergem como signi-
[...] a constituição de nossos objetos (por ficantes de uma poética. Ainda nessa linha
exemplo, manifestações populares, textuali- de raciocínio, Frederico Fernandes (2007, p.
dades verbais e não verbais e performances) 27-28) evidencia que “os estudos culturais
e de nossos aportes teóricos e metodológi- não tratam apenas da cultura oral, mas a
cos (entre eles, entrevistas, testemunhos e poesia passa a ser privilegiada nessa abor-
registros audiovisuais) extrapola o âmbito
dagem, em razão do questionamento do câ-
das Letras e da Linguística (COSTA; ARAÚJO;
FERNADES, 2018, p. 8).
none, da ênfase em textos da cultura popu-
lar que incorporam outras linguagens além
A literatura, então, por si só não dá conta da verbal, como a música e a dança”.
de abarcar toda a complexidade das poéti- Considerando essas questões suscitadas
cas orais. É necessário o intercruzamento pelos Estudos Culturais, a literatura oral
com outros estudos e áreas do conhecimen- é repensada como modo de produção e se
to, como a música antropologia, etnomusi- desvincula do estigma gerado pelas acep-
cologia, teatro, dentre outros que concebam ções canônicas. Dessa forma, tal qual a li-
o jogo cênico-poético-musical que se institui teratura oral como um todo, “a poesia oral
nas poéticas orais (DÖRING, 2018), como é [...] emancipa-se, pois se livra dos prefixos
o caso do estudo sobre a poética do samba ‘para’ e ‘sub’ que caracterizavam, para pro-
de roda, e outros. jetar-se com o mesmo valor que a poesia es-
Assim, no âmbito da oralidade, os Estu- crita sempre gozou nos estudos literários”
dos Culturais desempenham um papel de (FERNANDES, 2007, p. 33). Sob esse prisma,
suma importância, uma vez que, não só cen- é perceptível o importante papel desempe-
tralizam a produção cultural oral nos deba- nhado pelos Estudos Culturais na descen-
tes universitários, mas a corroboram como tralização das formas de construção do sa-
produção de sentido de uma existência hu- ber, em que a arte popular assume um papel
mana que, por tanto tempo, foi deslegiti- de protagonismo nos estudos hegemônicos,
mada. As produções literárias da oralidade descortinando assim as suas próprias for-
que o cânone marginalizou, considerando mas de conceber o mundo e de existir.
as relações de força e de poder, ganham evi-
dência não só pelo fato de ser “texto oral”, A letra e o poder vocal:
mas por descortinar uma poética que põe espaços da movência poética e
em debate as questões humanas, o lugar no
mundo dos sujeitos produtores de cultura. performática
Sob essa perspectiva, percebemos a am- É importante não perdermos de vista que,
pliação dos instrumentos de análise literá- embora a oralidade esteja num campo de
ria, que não mais se centram no cânone, na manifestação e contexto de construção

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022 121


Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral

distintos da escrita, ambas não se anulam, tes. Enquanto a poesia escrita se instaura na
tampouco uma exclui a outra. Para Zumthor fixação das letras e palavras (o que não se
(1993, p. 98), “conforme os lugares, as pes- pode dizer dos sentidos), a poesia oral des-
soas implicadas, o texto depende às vezes fruta da movência, da maleabilidade criativa
de uma oralidade que funciona em zona de da performance e de sentidos, em que o cor-
escritura, às vezes [...] de uma escritura que po gesticula sentidos e a voz emana poesias.
funciona em oralidade”. É cabível discorrer algumas questões
Essa afirmação do autor demonstra a acerca da voz e do seu imprescindível pa-
estreita relação entre escritura e oralidade; pel na configuração poética da obra. Para
esta precede àquela, mas não a anula, pos- Zumthor (2010, p. 10), a voz constitui uma
to que as duas comungam de um mesmo “imagem primordial e criadora, ao mesmo
precedente: a linguagem. O que as difere é tempo, energia e configuração de traços
a forma de transmissão, transcendência e que predeterminam, ativam, estruturam em
articulação; o que também implica sujeitos, cada um de nós as experiências primeiras,
culturas e relações de poder também dis- os sentimentos e pensamentos”. Do pon-
tintas. Não podemos deixar de assinalar os to de vista do autor, é observado que a voz
privilégios obtidos pela escrita no seio da emana não somente o ato de criação poéti-
sociedade ocidental (como já vimos ante- ca, mas um aspecto ontológico, cuja existên-
riormente), ao passo que as tradições orais cia do ser que a evoca revela a presença de
ocupam na maioria das vezes um lugar se- outras vozes passadas, um jogo existencial
cundário e folclórico. do sujeito intérprete, expresso a cada mani-
O fato é que nos estudos da poesia oral, festação vocal.
a oralidade é o espaço do constante mani- Ainda da perspectiva do autor, “[...] a voz
festar da poética, dos jogos de sentidos pro- é uma coisa: descrevem-se suas qualidades
duzidos e articulados pelo intérprete, no materiais, o tom, o timbre, o alcance, a altu-
momento da performance. Ainda no que se ra, o registro... e a cada uma delas o costume
refere à oralidade na poesia, Frederico Fer- liga um valor simbólico” (ZUMTHOR, 2010,
nandes nos lembra que: p. 9, grifo do autor). A voz, nesse sentido, é
[...] o próprio adjetivo ‘oral’ aplicado à poe- caracterizada pelo aspecto fisiológico, em
sia é resultado do modo como se concebe que o timbre, o tom e demais variações con-
e se produz literatura na atualidade e, por tribuem com a diversidade e a movência da
isso, ele visa diferenciar uma manifestação poética. Além disso, o fator simbólico da
poética da literatura, ou melhor, de uma
voz é apontando pelo autor para salientar
poesia pensada e manifestada numa cultura
escrita. Esta diferença encontra suas bases o fenômeno existencial e ontológico dela
no modo de produção, de veiculação e de co- na poesia oral, ordenado por uma por uma
mercialização, mas a poesia oral e a escrita vocalidade. Entendemos por “vocalidade” a
encontram-se num mesmo eixo comum que presença da voz, o próprio uso e articulação
é o próprio significado da poesia (FERNAN- dela, na tessitura de sua sonoridade e sig-
DES, 2007, p. 25). nificação, uma vez que, segundo Zumthor
Nessa linha de raciocínio, depreendemos (1993, p. 21), a “vocalidade é a historicidade
que oralidade na poesia demarca modos de de uma voz: seu uso. Uma longa tradição de
produção distintos da escrita, o que corro- pensamento, é verdade, considera e valoriza
bora outras distinções também preexisten- a voz como portadora da linguagem, já que

122 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022


Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa

na voz e pela voz se articulam as sonorida- do na poética. Assim, tomemos a acepção de


des significantes”. discurso poético numa perspectiva textual e
Nesse contexto da voz e da vocalidade, enunciativa, estabelecida nos jogos de senti-
cabe-nos refletir sobre o dito e o cantado na do e significação, sujeita à ideologia. Tome-
poesia oral. A esse respeito, Paul Zumthor mos aqui o termo texto não somente como
(2010, p. 199) afirma que: um aglomerado de palavras, mas como um
Dita, a linguagem se submete à voz; cantada, construto verbal ou não verbal, imagético
ela exalta sua potência, mas, por isso mes- ou audiovisual dotado de sentido. Entende-
mo, glorifica a palavra... mesmo ao preço de mos texto, no âmbito da poesia oral, a partir
algum obscurecimento do sentido, de uma da premissa verbal, mas também sonora e
certa opacificação do discurso: exaltada me- performática, visto que a articulação da voz,
nos como linguagem que como afirmação de
das cadências rítmicas e dos gestos instau-
potência.
ram uma expressão e sentidos, nos quais a
Em vista dessas acepções, percebemos sonoridade, poeticidade e performance são
que tanto o dito quanto o cantado fazem tecidas criativamente.
parte de uma sinestesia em que a voz é o ele- Ainda no que tange o discurso poético,
mento fundador. O dito é um acontecimento Paul Zumthor (2010, p. 139, grifo do autor)
da linguagem na voz; o cantado um descor- assinala que “[...] só percebendo – e anali-
tinar da sua potencialidade. O autor proble- sando – a obra oral em sua existência discur-
matiza as questões do sentido no canto, que siva poderemos apreender sua existência
deve ponderado em sua execução, para as- textual e, também, sua realidade sintática”.
sim não se perder de vista o discurso nele No entanto, na poesia oral, não se deve to-
construído e expresso. mar o discurso poético somente pela via da
Portanto, as poéticas da oralidade po- textualização ou enunciação, uma vez que “a
dem se manifestar no dizer e no cantar. estrutura poética, em regime de oralidade,
No que tange aos pressupostos da nossa opera menos com a ajuda de procedimentos
pesquisa, o canto é o elemento primordial de gramaticalização (como o faz, de manei-
de expressão da poesia oral. Desse modo, ra quase exclusiva, a poesia escrita) do que
destacamos a relevância do canto na con- por meio de uma dramatização do discurso”
figuração da poética, uma vez que ele não (ZUMTHOR, 2010, p. 84).
só manifesta do discurso poético presente, Nessa perspectiva, concebemos o dis-
mas desvela a potência da voz. O canto é um curso poético como a expressão textual,
acontecimento emblemático e simbólico da enunciativa e também semântica da poesia
voz, manifestar da energia e da própria pre- oral, mas não devemos nos deter nos as-
sença vocal; ainda, “o canto é signo: ele diz pectos exclusivamente linguísticos ou gra-
a verdadeira natureza da voz, presente em maticais, já que outras questões da poética
todos os seus efeitos; significa seu acordo também acentuam uma discursividade. O
com a harmonia das esferas celestes” (ZUM- corpo em performance, por exemplo, tam-
THOR, 1993, p. 184). bém é discursivo, também influi no discur-
Ao atentarmo-nos para as questões re- so poético; isto é, o gestual e o visual acen-
lativas ao acontecimento enunciativo da tuam os sentidos e a ideologia comungada
poesia oral, seja ele no dizer ou no cantar, ou expressa pelo(s) sujeito(s) intérprete(s)
devemos levar em conta o discurso inseri- da poética.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022 123


Veredas epistêmicas e metodológicas da poesia oral

É importante destacarmos que, quando O lugar da performance na poesia


tencionamos a discussão acerca dos sen-
tidos na poesia oral, não é pretencioso da oral
nossa parte fixar a sua construção no texto Não basta somente discutir as questões rít-
poético, visto que, na poesia oral os sentidos micas ou sonoras da/na poesia oral, é pre-
são maleáveis, moventes, como o próprio ciso ponderar também o lugar do corpo na
texto poético oral também o é. expressão poesia, isto é, na configuração da
Por esse ângulo, a noção de movência obra poética. O corpo, na poesia oral, repre-
é de acentuada relevância na poesia oral, senta a transcendência dos sentidos, a exis-
posto que, tal qual os sentidos, o texto poé- tência de um intérprete que, por meio do vi-
tico oral (poema) é sujeito às modificações sual/gestual, revela ao público uma poética
típicas das culturas da oralidade. Zumthor ancestral no limiar do momento, do aqui e
chama de movência “a instabilidade radi- agora.
cal do poema [oral]” (ZUMTHOR, 2010, p. O corpo, [...] através das práticas performá-
283), ou seja, enquanto a poesia escrita é ticas como danças, gestos e vozes, também
fixa – não sujeitada às mudanças textuais se vale do posicionamento político, numa
ocorridas no ato de transmissão –, a poesia espécie de política do corpo, pois, nesse âm-
oral é movente, cadenciada por prováveis bito de representações, não é neutro, mas se
encontra carregado de intenções, valores e
alterações na sua difusão, que acontece
significações que ele deixa transparecer ou
impreterivelmente pelas vias da oralidade. exprimir (ARAÚJO, 2015, p. 100).
Para exemplificar essa ideia da movência,
tomemos o caso das cantigas populares O corpo na poética é também um ato po-
que comumente sofrem algumas altera- lítico, como aponta o autor, ele não é neutro,
ções, ocasionadas de lugar para lugar, de mas carregado de símbolos, valores e signifi-
pessoa para pessoa. Isso ocorre porque a cações que se materializam na performance.
oralidade abarca essas mudanças, que po- Daí a justificativa nos estudos da poesia oral
dem afetar o sentido, mas que a imagem de o analista não se ater somente às ques-
arquetípica do texto sempre permanece, tões verbais ou sonoras, mas também aos
mesmo com as mutações. aspectos visuais que ampliam o horizonte
Assim, o texto poético oral é movente, semântico e estrutural do texto poético.
e institui construções e sentidos diversifi- Nesse sentido, a noção de performance
cados, condicionados aos sujeitos e às cir- se insere para pensarmos os múltiplos sen-
cunstâncias, pois a poesia oral é circunstan- tidos que transitam na poesia oral, numa
cial, como já afirmamos anteriormente. Ao totalidade que é sonora e gestual; portan-
contrário da escrita, a oralidade traz essas to performática. Para Zumthor (2010), a
marcas inerentemente, considerando que, poesia oral não pode ser desvinculada da
“no seio de uma sociedade saturada de es- noção de performance, pois, nessa, as ges-
crito, a poesia oral [...] tende – porque oral tualidades e corporeidades se manifestam
– a escapar da lei e não se curva a fórmulas, de modo questionar os limites semânticos e
senão as mais flexíveis: daí sua movência” estruturais da poesia.
(ZUMTHOR, 2010, p. 285); essa que é assi- Ainda sobre a performance, Zumthor
nalada no texto, no espaço, na memória e na ressalta o fato de os movimentos do corpo
performance. estarem integrados e associados à poética.

124 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022


Luciano Santos Xavier; Denise Dias de Carvalho Sousa

Para o autor, “empiricamente constata-se Sendo assim, a articulação do corpo e da


[...] a admirável permanência da associação voz, isto é, a forma com que ambos se combi-
entre o gesto e o enunciado: um modelo ges- nam permite o intérprete totalizar a estética
tual faz parte da ‘competência’ do intérprete e o sentido obra poética, bem como propicia
e se projeta na performance” (ZUMTHOR, ao público a apreensão da poética de manei-
2010, p. 217). Dessa maneira, a noção de ra plena e significante. Nessa perspectiva, o
performance trazida pelo autor está envol- lugar da performance na poesia oral é de
ta numa articulação de corpo e voz para a total importância para compreendermos o
manifestação integral da obra poética, que horizonte poético descortinado na sua ex-
é simultaneamente transmitida e percebida. pressão.
O conceito de performance também im-
plica a necessidade de destacarmos o jogo Considerações finais
teatral produzido pelo intérprete e percebi- Como visto, a literatura é entendida a partir
do pelo público ouvinte/expectador. Assim, de um amplo leque, sendo ela multifaceta-
apreendemos a acepção da teatralidade, que da e contextualizada às diversas culturas,
se apresenta na performance, de modo ela- não havendo um único seio hegemônico de
borado e reelaborado, conforme as condições produção ou mesmo de circulação. A poesia
previstas no ato performático, que ressalta- oral, como face de um amplo jogo das poéti-
mos ser circunstancial. Assim, “[...] a teatra- cas da oralidade, tensiona múltiplas formas
lidade não tem manifestações físicas obriga- do fazer literário, em que o corpo e a voz
tórias. Ela não tem propriedades qualitativas amalgamam-se em performances que res-
que permitiriam demarcá-la de vez. Ela não soam na obra poética, ampliando sentidos e
é um dado empírico, ela é uma colocação em relações estéticas.
cena do sujeito, em relação ao mundo e a seu As poéticas da oralidade, e a poesia oral
imaginário” (FÉRAL apud ZUMTHOR, 2014, como tal, são forjadas no seio das tradições
p. 44, grifo do autor). A teatralidade depreen- e culturas populares, oriundas de gestuali-
de, assim, o sujeito em cena, em performan- dades, toques e sonoridades por logo tempo
ce. O intérprete assume também o papel de ignoradas pelos estudos e olhar da crítica
ator para instituir na performance os senti- literária incisiva e tradicionalista.
dos que seu corpo emana. Portanto, as discussões e tensionamen-
Outros aspectos também merecem des- tos trazidos sobre a elaboração, manifesta-
taque, ao se falar sobre a performance. A ção e circulação da poesia oral se mostram
indumentária, os instrumentos e acessó- muito relevantes, no que diz respeito ao
rios utilizados pelo intérprete/ator também amplo campo da literatura, uma vez que
contribuem para a construção da obra poé- perceber a poética em torno instrumentos
tica. Acerca dessa questão, Zumthor (1993, teórico-metodológicos que agucem tal sen-
p. 249) nos lembra que, “[...] a indumentária sibilidade e percepção.
(se é que ela existe), o instrumento de mú-
sica ou o acessório tem em tal gênero uma Referências
importância funcional que não adquirem ARAÚJO, N. A. Na cadência das águas do Velho
Chico: poética oral do samba de roda ribeiri-
em outra parte”, considerando que esses
nho. 220 f. Il. 2015. Tese (Doutorado) – Instituto
elementos instituem uma totalidade estéti- de Letras, Universidade Federal da Bahia. Salva-
ca, semântica e simbólica na poética. dor, 2015.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022 125


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126 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 116-126, jan./jun. 2022


Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Crenças e atitudes linguísticas de


professores do Ensino Médio sobre a
retomada anafórica de terceira pessoa
Claudia Norete Novais Luz (UNEB)*
https://orcid.org/0000-0002-4817-8751

Sandra Carneiro de Oliveira (UFBA)**


https://orcid.org/0000-0001-9827-2298

Resumo:
Este trabalho objetivou verificar crenças e atitudes linguísticas de professo-
res de língua portuguesa do Ensino Médio de uma escola pública de Salva-
dor, Bahia, Brasil, no tocante às convenções linguísticas institucionalizadas,
de modo a compreender a valorização ou a rejeição das variedades da língua
em uso e refletir sobre o ensino de língua portuguesa materna. A pesquisa
norteou-se na abordagem teórica da Sociolinguística (WEINREICH; LABOV;
HERZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]; GÓMEZ MOLINA, 1998; MORE-
NO FERNÁNDEZ, 2008), optando pela análise qualitativa e descritiva, a partir
de testes de crenças e atitudes de abordagem direta. Esses testes revelaram
crenças dos professores na superioridade da norma padrão e na dualidade
certo/ errado, negando a variabilidade própria das línguas. Percebeu-se que
as crenças sobre a língua portuguesa guiam as atitudes dos professores que,
ao avaliar textos de alunos, os consideram insuficientes e cheios de erros
por não atingirem um ideal de língua. Os docentes também demonstraram
conhecimento da diversidade linguística, de gêneros textuais e da tipologia
dissertativo-argumentativa. Observou-se que enquanto o ensino tradicional
tem metodologia clara, considerar a diversidade linguística exige metodo-
logias diversas, o que depende da formação de professores pesquisadores
autônomos, que ressignificam seu fazer docente na indissociabilidade da
teoria e da prática pedagógica.
Palavras-chave: Crenças e atitudes linguísticas; Retomada anafórica do
objeto direto de terceira pessoa; Variação linguística; Professores. Sociolin-
guística.

* Doutoranda em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professora da Se-
cretaria de Educação do Estado da Bahia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7788173410265540. E-mail: clau-
dia.norete@gmail.com.
** Doutora em Língua e Cultura pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Universidade
Federal da Bahia. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0097807333024989. E-mail: belasandra@gmail.com.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022 127


Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

Abstract:
Language beliefs and attitudes of high school
teachers on anaphoric recovery of third-person
This work verified language beliefs and attitudes of high school Portuguese
teachers from a public school in Salvador, Bahia, Brazil, concerning the in-
stitutionalized linguistic conventions, in order to understand the valoriza-
tion or rejection of the varieties of the language in use and to reflect on the
teaching of Portuguese as the mother tongue. The research was conducted
by the theoretical approach of Sociolinguistics (WEINREICH; LABOV; HER-
ZOG, 2006 [1968]; LABOV, 2008 [1972]; GÓMEZ MOLINA, 1998; MORENO
FERNÁNDEZ, 2008), opting for qualitative and descriptive analysis, based
on direct approach linguistic beliefs and attitude tests. These tests revealed
teachers’ beliefs in the superiority of the standard norm and in the right/
wrong duality, denying the variability inherent to languages. It is noticeable
that the beliefs about the Portuguese language guide the attitudes of teach-
ers who, when evaluating students’ texts, consider them insufficient and full
of errors for not reaching an ideal of language. The teachers also demon-
strated knowledge of linguistic diversity, textual genres and the argumen-
tative essay typology. It was observed that while traditional teaching has a
clear methodology, considering linguistic diversity requires diverse meth-
odologies, which depends on the training of autonomous research teachers,
who give new meanings to their teaching in the inseparability of theory and
pedagogical practice.
Keywords: Language beliefs and attitudes; Anaphoric third person direct
object; Linguistic variation; Teachers; Sociolinguistics.

Introdução
A Sociolinguística considera que as lín- pecto intra-linguístico e no eixo diatópico,
guas são heterogêneas, possuem natureza diastrático, diafásico e diacrônico, dentre
variável e a sua estrutura está associada outros.
ao uso. Uma comunidade de fala não apre- Nos últimos tempos, os resultados de
senta comportamento linguístico idêntico diversos trabalhos centrados na teoria va-
e, no seio da comunidade, um mesmo indi- riacionista, tais como o de Duarte (1986),
víduo alterna entre uma forma e outra, de Malvar (1992), vêm assinalando que a dis-
acordo com a situação em que se encontre tância entre a norma padrão prescrita pela
(LABOV, 2008 [1972]). A heterogeneidade Gramática Tradicional e o português falado
nos usos linguísticos é a preocupação cen- no Brasil tem se tornado cada vez mais sig-
tral da Sociolinguística. Essa teoria tem, nificativa. Um exemplo que esclarece essa
pois, como objeto de estudo a diversidade discrepância entre o que se dita, se pres-
linguística e o uso da língua no contexto creve, se normatiza e o que efetivamente
social, procurando o entendimento dos acontece no português falado do Brasil é o
mecanismos de variação e mudança no as- processo de mudança que vem sofrendo o

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Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira

clítico acusativo de terceira pessoa em ter- nativa do pronome em função acusativa), SNs
ras de aquém mar. anafóricos (forma plena do SN correferente
Rossi e Casagrande (2018) atestam a com outro SN previamente mencionado) ou
por uma categoria vazia (objeto nulo).
extinção do clítico acusativo de terceira
pessoa, fenômeno que se deve às mudan- Assim, tem-se quatro estratégias de uso
ças ocorridas no paradigma pronominal do do referido fenômeno linguístico variável
português brasileiro. Ao analisar a aquisi- (como já observado por DUARTE, 1989;
ção da língua materna, verificam, com da- LUZ, 2009a; 2009b; ALMEIDA e ALMEIDA,
dos de Casagrande (2007 e 2010), que as 2012 e outros), a saber: o pronome acusa-
crianças brasileiras não adquirem mais o tivo (Eu o vi), o pronome lexical (Eu vi ele),
clítico nem mesmo ao final dos nove anos o sintagma nominal anafórico (Eu vi Carlos)
de estudos e que “durante o processo de e o objeto nulo (Eu vi Ø), não somente no
aprendizagem, a escola apresenta dificul- português falado, como também no escrito.
dades de fazer com que os alunos utilizem Neste trabalho, pautado na abordagem
o clítico acusativo de terceira pessoa, espe- teórica da Sociolinguística (WEINREICH;
cialmente em contextos orais.” (p. 60). Para LABOV; HERZOG, 2006 [1968]; LABOV,
os autores, “algo que não faz parte do input 2008 [1972], GÓMEZ MOLINA, 1998; MO-
da criança em aquisição se torna de difícil RENO FERNÁNDEZ, 2008), verificam-se as
aprendizagem” (p. 47), o que requer um crenças e as atitudes linguísticas de profes-
olhar mais cuidadoso e sensível do profes- sores de língua portuguesa do Ensino Médio
sor para com estes fenômenos linguísticos de uma escola pública de Salvador, Bahia,
em sala de aula, devendo promover “um es- Brasil, no tocante às convenções linguísti-
tudo gramatical que leve em consideração cas institucionalizadas, de modo a alicerçar
o sujeito, o espaço linguístico em que está a discussão da valorização ou da rejeição
inserido, e oportunizar momentos de refle- às variedades da língua em uso, bem como
xões sobre a linguagem, em sala de aula.” refletir sobre o ensino de língua portugue-
(ROSSI; CASAGRANDE, 2018, p. 50). sa materna. Os docentes dessa escola res-
Investigar as crenças e atitudes linguís- ponderam a cinco perguntas: uma sobre a
ticas dos professores de língua portuguesa língua portuguesa e quatro sobre o fenôme-
quanto à retomada anafórica do objeto di- no da retomada anafórica do objeto direto
reto de terceira pessoa se justifica por se de terceira pessoa. As primeiras perguntas
tratar de um fenômeno linguístico alvo de buscaram desvelar crenças, e a última, cren-
controle da tradição escolar, que prevê uma ças e atitudes linguísticas.
única forma, enquanto ocorrerem outras va- A fim de cumprir o proposto neste es-
riantes entre os usuários da língua. Um ensi- tudo, o trabalho está delineado da seguinte
no plural precisa contemplar a diversidade. maneira: além desta seção introdutória, des-
Como explicado por Duarte (1989, p. 19), tacam-se na seção “Sociolinguística e o ensi-
no” alguns aspectos concernentes ao caráter
Na realização do objeto direto correferente
mutável da língua, à variação e ao ensino;
com um SN mencionado no discurso (dora-
vante objeto direto anafórico), o português na seção “Crenças e atitudes linguísticas”
falado no Brasil tende, com frequência cada apresentam-se as áreas que abraçam esses
vez maior, a substituir o clítico acusativo de estudos e o que pensam alguns autores com
3ª pessoa pelo pronome lexical (forma nomi- relação aos conceitos, finalizando com a im-

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Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

portância desses estudos; em “Metodologia cepção abstrata e homogênea de língua, rei-


da pesquisa”, descrevem-se os passos segui- vindicando que o ensino/aprendizagem de
dos para a realização da pesquisa; os resul- Língua Portuguesa considere a diversidade
tados obtidos foram analisados e comenta- linguística do português brasileiro e não se
dos nas seções “Teste de crenças” e “Teste centre apenas na gramática tradicional. A
de atitudes” e, na seção “Considerações Fi- realidade sociolinguística brasileira preci-
nais”, encerram-se as discussões levantadas sa ser claramente reconhecida no ambiente
acerca das crenças e atitudes linguísticas de escolar, para que seja viável desenvolver um
professores participantes da pesquisa. estudo reflexivo no que diz respeito à língua
materna, possibilitando aos sujeitos envol-
Sociolinguística e ensino vidos no contexto educacional lidar com a
Ao estudar e analisar qualquer comunidade variedade de normas que se praticam nos
linguística, a observação mais imediata é a usos desse ambiente. Coan e Freitag (2011)
existência da diversidade ou da variação e ressaltam que a variação linguística é um tó-
da mudança. Esse caráter mutável da língua pico relevante a ser apreciado no ensino da
é visto no Português do Brasil (PB), no qual Língua Portuguesa, com o objetivo de
notam-se distintas maneiras de falar, isto é, ampliar o domínio ativo dos discursos nas
diferentes variedades do português que não diversas situações sociais por meio de situa-
devem ser julgadas erradas ou inferiores, ções que envolvam gêneros, léxico, juízos de
mas apreciadas como diferentes possibili- valor (socioideológicos), variação linguís-
tica, monitoração e contexto de produção
dades do PB.
(enunciador, interlocutor, finalidade, lugar
Bortoni-Ricardo (2005) dedicou-se a as- e momento de produção). (COAN; FREITAG,
sociar a Sociolinguística ao ensino de língua 2011, p. 182).
materna (Sociolinguística educacional). Na
Um dos afazeres da escola é prestigiar
visão da referida autora, a escola tem um
a multiplicidade linguística e contestar o
papel importante no tocante às diferenças
preconceito linguístico, acatando que a lín-
linguísticas. É preciso que as escolas não
gua é uma atividade social e valorizando as
marginalizem as especificidades linguísti-
formas variantes. O preconceito linguístico
ca-culturais levadas pelos discentes, pois a
pode ser definido como atitudes segrega-
maior persuasão dos estudos sociolinguísti-
tivas em que a língua é utilizada como ins-
cos para a educação está norteada no prin-
cípio de que as variedades que fazem parte trumento de soberania e de restrição social.
da ecologia linguística de uma comunidade: Faraco o caracteriza como “um conjunto de
preceitos artificiais tomados como régua
sejam línguas distintas ou dialetos de uma
impiedosa com a qual se desclassificam as
ou mais de uma língua, são funcionalmente
comparáveis e essencialmente equivalentes. pessoas, lançando sobre elas o estigma ex-
Nenhuma língua ou variedade é inerente- cludente da ignorância linguística” (FARA-
mente inferior, e, portanto, seus falantes não CO, 2015, p. 23). Tal discriminação é reflexo
podem ser considerados linguisticamente da segregação socioeconômica que existe
ou culturalmente deficientes. (BORTONI-RI- desde a formação da sociedade no Brasil co-
CARDO, 2005, p. 151).
lônia de Portugal até os dias atuais. De acor-
A Sociolinguística se distancia dos mo- do com Faraco, “a língua continua sendo
delos de ensino que defendem uma con- forte elemento de discriminação social, seja

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Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira

no próprio contexto escolar, seja em outros duação e Pesquisa em Letras e Linguística).


contextos sociais, como no acesso ao empre- Dentre muitos outros, os trabalhos citados
go e a serviços público em geral” (FARACO, colocam o ensino no centro das discussões,
2015, p. 8). com apresentação de propostas para a edu-
No que diz respeito ao não desapareci- cação básica, funcionando como ponte entre
mento dos preconceitos linguísticos, Bor- os estudos descritivos e proposições peda-
toni-Ricardo (2005, p. 151) assinala que a gógicas.
sociolinguística também “forneceu munição
teórica para combatê-los, bem como para Crenças e atitudes linguísticas
que os sistemas escolares começassem a se Existem várias áreas do conhecimento que
preocupar com a adequação de seus méto- abrangem a temática das crenças para res-
dos às peculiaridades linguísticas e cultu- paldar os seus trabalhos: Filosofia, História,
rais dos alunos que não provinham das ca- Teologia, Educação, Linguística, Sociolin-
madas dominantes da sociedade.” guística e Sociologia. O interesse pelo estudo
No ambiente escolar, o trabalho restrito das crenças e atitudes linguísticas está cres-
à variedade padrão reforça o preconceito cendo, no Brasil, e, naturalmente, não existe
linguístico, a ideia errônea que português é uma definição única para cada conceito.
difícil e contribui para o fracasso escolar. Em A pesquisa de Labov (2008 [1972]), rea-
oposição, considerar a variação linguística lizada em 1963, sobre mudança fonética
com o valor social atribuído às formas va-
no inglês de Martha’s Vineyard, em Massa-
riantes, leva o professor a acolher uma con-
chusetts, EUA, já demonstrava a importân-
cepção de língua real, viva, atentando para
cia das crenças e atitudes linguísticas. A
as questões de adequação da língua ao gêne-
preferência dos nativos pela variedade não
ro, aos atores envolvidos e às necessidades
padrão (os ditongos au e ay) era uma for-
da interação. Para isso, o ensino se baseia na
ma inconsciente de afirmar sua identidade,
observação atenta aos elementos constitu-
diferenciando-se do padrão linguístico dos
tivos da língua, seus sentidos, necessidade
turistas que “invadiam” a ilha no verão. O
de monitoramento, variáveis em função do
uso do padrão, por sua vez, revelou a não
nível de formalidade, considerando os con-
identificação com as tradições e a vontade
tínuos de urbanização, oralidade-letramen-
de deixar a ilha.
to e de monitoração estilística, com vistas ao
Para Barcelos (2007), o conceito de cren-
desenvolvimento da competência comuni-
ças é muito antigo, ou seja, desde quando
cativa do aluno (BORTONI-RICARDO, 2004).
o homem começou a pensar, ele passou a
Na mesma direção, Bagno (2007; 2009)
acreditar em algo. O referido autor define
discute a sistematização da variação e da
mudança linguística com exemplos diver- crença como:
sos, de modo que orienta seu ensino na edu- forma de pensamento, construções da reali-
cação básica. Em estudo recente, Ricardo, dade, maneira de ver e perceber o mundo,
co-construídas em nossas experiências re-
Baronas e Vieira (2021) elencam contribui-
sultantes de um processo interativo de in-
ções dos estudos sociolinguísticos para a terpretação e (re)significação. Crenças são
área educacional ao longo de 35 anos do GT sociais (mas também individuais), dinâmi-
(Grupo de Trabalho) de Sociolinguística da cas, contextuais e paradoxais. (BARCELOS,
ANPOLL (Associação Nacional de Pós-Gra- 2007, p. 113).

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Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

Há algum tempo, disciplinas como a So- Segundo Loureiro-Rodriguez, Boggess e


ciologia e a Psicologia estão se debruçan- Goldsmith (2012, p. 1), a definição mais uti-
do nos estudos do efeito das atitudes sobre lizada para atitude linguística (apesar de ex-
a realidade social. As áreas, contudo, que cessivamente simples) é a que foi formulada
abraçam os estudos pautados nas atitudes por Fishbein; Ajzen (1975): “predisposição
linguísticas são, principalmente, a Psicolo- do indivíduo para agir favoravelmente ou
gia Social, a Sociolinguística, a Sociologia desfavoravelmente a dado objeto”.
da Linguagem e a Etnografia da Comuni- A preferência e o uso de uma forma
cação, tendo como precursora do tema linguística estão intimamente associados
a Psicologia Social. Na visão de Lambert ao grau de consciência social que os indi-
e Lambert (1972), o estudo das atitudes víduos têm do fenômeno linguístico. As
tornou-se uma preocupação relevante dos crenças e as atitudes linguísticas que os
psicólogos sociais, no decorrer dos anos, indivíduos têm diante de uma determina-
pois se trata de um complexo fenômeno da variedade linguística podem estimular
psicológico que se reveste de um tremendo ou não seu uso. Para Moreno Fernández
significado social. Atitude seria uma forma (2008, p. 177), “a atitude linguística é uma
organizada de pensar, de reagir em relação manifestação da atitude social dos indiví-
a pessoas, grupos e questões sociais, que duos, distinguida por centrar-se e referir-
afeta julgamentos e percepções sobre os se especificamente tanto à língua como ao
outros. uso que dela se faz em sociedade”. Ou seja,
Conforme Gómez Molina (1998), as ati- falar de língua significa pautar também nas
tudes possuem três tipos de componentes, variedades linguísticas.
igualmente importantes: cognitivos (cren- As atitudes de valoração ou de desprezo
ças e estereótipos), afetivo (avaliações, va- às variedades linguísticas sofrem influência
loração) e de comportamento (conduta). De de grupos de maior prestígio social, tendo
modo semelhante e complementar, Pickens em vista que prestígio e status estão asso-
(2006, p. 44), diz que “Uma atitude inclui ciados à aprovação do indivíduo na socie-
três componentes: afeto (sentimento), cog- dade, tendo como base o poder aquisitivo,
nição (um pensamento ou crença) e com- a posição social, dentre diversos outros fa-
portamento (uma ação)”. Segundo o autor, tores (AGUILERA, 2008). Meyerhoff (2006)
embora as crenças e as atitudes sejam com- considera que a atitude sobre a língua como
ponentes internos, é possível perceber a uma percepção ou valoração que se atribui a
atitude da pessoa pelo comportamento. As determinada comunidade linguística, a uma
atitudes são provenientes do aprendizado língua ou aspecto específico da língua. Em
e das experiências, influenciam decisões, síntese, trata-se de crenças sobre a lingua-
guiam comportamento e podem ser medi- gem e seu uso. As atitudes sobre os falantes
das e alteradas; seriam formadas ao longo se referem ao modo de falar – como para ex-
da vida no processo de socialização do in- pressar atitudes sobre os outros, pelo modo
divíduo e incluiriam formação de valores como avaliam o estilo de conversação.
e crenças durante a infância, influenciados Este trabalho se apoia em Gómez Molina
não só pela família, religião e cultura, mas (1998) e Pickens (2006), pois entende-se
também por fatores socioeconômicos (PIC- que as atitudes se diferenciam das crenças
KENS, 2006). (embora a crença seja uma das três partes

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da atitude) por conter uma intenção explíci- lizadas, de modo a entender como se dá a
ta de comportamento ou uma ação. avaliação das variedades da língua em uso.
Por sua vez, estudar as crenças e as atitu- A retomada anafórica do objeto direto de
des linguísticas dos falantes é uma maneira terceira pessoa é utilizada na dimensão ava-
bem significativa de entender o funciona- liativa, pois tem como propósito observar
mento da língua, uma vez que a língua tam- a partir do referido fenômeno linguístico
bém está sujeita à valoração, negativa ou variável, nos testes de atitudes linguísticas,
positiva, o que pode interferir no processo as reações tanto positivas como negativas
de variação e de mudança (WEINREICH; LA- dos professores. Aqui crenças linguísticas
BOV; HERZOG, 2006 [1968]). são compreendidas como uma disposição
A investigação de crenças e atitudes no valorativa dos falantes sobre os fenômenos
ensino de Língua Portuguesa tende a con- linguísticos. Nas crenças, os professores re-
tribuir para o desenvolvimento de um tra- velam conceitos, o que pensam; já nas atitu-
balho reflexivo, conforme aponta Barcelos des, verifica-se o que eles dizem que fazem,
(2007). Adotando essa concepção, criam-se as ações (CARNEIRO, 2014).
espaços e oportunidades para que docen- Os testes de atitudes são elaborados
tes e discentes tenham a possibilidade de por meio de duas abordagens diferentes: a
questionar as suas próprias crenças, per- abordagem direta e a técnica do diferencial
mitindo-lhes revisitar conceitos, atitudes e semântico (OSGOOD; SUCI; TANNENBAUM,
comportamentos frente ao caráter variável 1957). Adotou-se a abordagem direta, e
da língua. Dessa forma, os protagonistas do para tal foram confeccionadas 05 perguntas
processo terão condições de romper com abertas e escritas sobre a língua e sobre o
as crenças e as atitudes antigas que reve- objeto selecionado para a avaliação. De pos-
renciam as formas que correspondem a um se dos testes, os docentes concordaram em
padrão idealizado de língua, que, por mui- participar por meio de um termo de consen-
tas vezes, leva a escola a endossar um ensi- timento livre e esclarecido, contendo objeti-
no prescritivo, isto é, um ensino que não dá vos da pesquisa e o compromisso do pesqui-
espaço para que os alunos meditem sobre sador da não revelação de suas identidades.
os fenômenos linguísticos e sobre o funcio- As questões abertas permitem aos infor-
namento da língua. O estudo das crenças e mantes emitirem as respostas que julgam
atitudes linguísticas dos professores se faz mais adequadas, e nas respostas tem-se a
relevante por sinalizar o que pensam sobre revelação de crenças e atitudes linguísticas.
a língua portuguesa e suas variedades e por- Os testes de crenças e atitudes foram elabo-
que o modo como ensinam a língua tem con- rados e enviados por meio da ferramenta
sequências diretas no desempenho escolar Formulário Google aos professores da esco-
dos discentes. la pública investigada. Nove professores de
língua portuguesa consultados previamente
Metodologia da pesquisa receberam o teste, sendo que apenas um de-
Neste estudo piloto, investigam-se as cren- les justificou a impossibilidade de partici-
ças e as atitudes linguísticas de oito profes- par no momento.
sores de língua portuguesa do Ensino Médio A investigação teve dois tipos de ques-
de uma escola pública de Salvador, no tocan- tões: uma sobre aspectos amplos da língua
te às convenções linguísticas instituciona- e quatro perguntas específicas do objeto de

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Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

pesquisa, a retomada anafórica de terceira As questões 2, 3, 4 teve como finalidade,


pessoa. A primeira, de caráter mais geral, identificar crenças linguísticas. Já a ques-
objetivou fazer um levantamento de crenças tão 5, crenças e atitudes linguísticas, com
dos professores sobre questões de língua. relação aos quatro trechos citados. Foram
QUESTÃO 01: O que, na sua opinião, é ne- escolhidos fragmentos de textos disserta-
cessário para utilizar adequadamente a lín- tivo-argumentativos escritos, a partir das
gua portuguesa? leituras feitas para confecção deste artigo,
Após a primeira questão, um enunciado por percebermos que há poucas pesquisas
apresentava quatro trechos de redações - pautadas em crenças e atitudes linguísti-
(1) fragmento conforme a norma padrão cas que abarquem a modalidade escrita da
(com emprego do clítico acusativo) e três língua.
formas variantes com (2) sintagma nominal Para saber quais as atitudes dos profes-
anafórico, (03) objeto nulo e (04) pronome sores perante a língua portuguesa e o fenô-
lexical - seguidos de quatro questões, para meno variável estudado, as perguntas utili-
investigar as crenças e a última, as crenças e zadas neste estudo foram elaboradas com
atitudes linguísticas. base em Ghessi e Berlinck (2020). Desta
Os referidos fragmentos (a seguir) fo- forma, foi pedido aos professores que res-
ram extraídos de redações elaboradas por pondessem às seguintes perguntas sobre os
internautas que desenvolveram a proposta fragmentos:
apresentada pelo UOL para o mês de março QUESTÃO 02: É possível identificar se os
de 2020, tendo como tema “Qualificação e o trechos são escritos por pessoas diferentes?
futuro do emprego” (OLIVIERI, 2020). Justifique.

(01) [...] Boa parte das mudanças, [...] deve- QUESTÃO 03: É possível ver diferenças en-
ram-se à criação das primeiras máquinas, tre os quatro trechos? Aponte algumas.
que substituíram milhares de trabalha- QUESTÃO 04: Um texto/fragmento é me-
dores, fazendo-os ficar sem empregos ou a lhor que o outro? Justifique.
trabalharem de forma insalubre e mal remu-
nerada. QUESTÃO 05: Se produzido por seus alunos,
qual avaliação cada fragmento acima rece-
(02) [...] Não é necessário uma análise pro-
beria (de 0 a 5)? Explique.
funda para perceber o alto grau de impor-
tância que o avanço da tecnologia gerou no Segundo Barbosa e Ghessi (2019), de-
mundo, mas também é inegável que se criou preendem-se reações tanto positivas quan-
um desconforto para aqueles que não com-
to negativas em testes de atitudes linguísti-
preendem esse avanço tecnológico e, [...]
precisam sobreviver. cas que utilizam textos escritos. Foram rea-
lizadas a análise qualitativa para tratamento
(03) [...] O indivíduo que se encontra nessa
dos dados e a discussão das respostas dos
situação busca fazer o que pode, no intuito
de se tornar qualificado, para que o mercado professores sobre as questões abordadas, as
de trabalho Ø valorize. quais apresentam-se a seguir. Trata-se, por-
tanto, de uma pesquisa descritiva. Em con-
(04) [...] Ministério do Trabalho, em parce-
ria com as empresas, deve fazer atualizações formidade com o que diz Gil (2002, p. 42),
nos cursos já existentes de seus trabalha- inclui-se neste grupo “as pesquisas que têm
dores com o intuito de manter eles atualiza- por objetivo levantar as opiniões, atitudes e
dos na utilização de novas tecnologias. crenças de uma população”.

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Teste de crenças nos textos oral e escrito, respeitando as di-


versidades linguísticas nas situações socio-
Primeiramente, apontam-se as crenças lin- comunicativas. (PROF08CO)
guísticas coletadas pela participação dos
A maioria acredita que “utilizar adequa-
professores de língua portuguesa, como
damente a língua portuguesa” é dominar as
resposta à questão 01: O que, na sua opinião,
variedades de prestígio. Para (01) “conhecer
é necessário para utilizar adequadamente a
todas as formas de se expressar, utilizando
língua portuguesa? Tal pergunta foi feita aos
-as de acordo com a norma padrão”, (02) se
professores com o objetivo de aferir as suas
“ater à norma culta”, (03) “aposto muito no
crenças sobre a língua, a variedade padrão e
uso padrão da língua”, (04) “observar suas
as variedades não padrão. A seguir estão as
regras gramaticais”, (06) “conhecer as nor-
respostas:
mas gramaticais da língua” e (08) “saber uti-
(01) O estudo constante, com a devida obser- lizar e adequar a gramática”. Nessas respos-
vação das particularidades sociais, o incenti-
tas, observa-se a crença de que para saber
vo à leitura e a prática da língua, seja escrita
ou falada. Principalmente, dando a oportu- a língua portuguesa é necessário estudar e
nidade de o estudante conhecer todas as for- dominar a norma padrão, desconsiderando
mas de se expressar, utilizando-as de acordo que ensina-se para nativos e deixando de
com a norma padrão, quando quiser ou for fora os saberes dos alunos sobre a língua
necessário, nos ambientes a que forem cha- materna. Apenas duas respostas fogem des-
mados a falar ou escrever. (PROF01S) se padrão (05) e (07). Pelas respostas indi-
(02) Utilizar adequadamente a língua é se viduais, não é possível saber se os conceitos
ater à norma culta. Para tanto, o indivíduo de norma padrão e norma culta são inde-
precisa se apropriar dos variados “modos de vidamente tomados como sinônimos, visto
fala”, se instrumentalizar para comunicar-se
que cada respondente menciona apenas um
bem seja na forma culta ou mais informal.
(PROF02CL) dos termos.
Os professores também consideram di-
(03) Sempre fui gramaticista, por isso apos-
to muito no uso padrão da língua. Porém
versidade linguística, diferentes situações
adequar-se às diferentes variações é o que comunicativas, níveis de formalidade, vi-
nos coloca mais atuante no processo comu- vência de práticas de letramento (leitura e
nicativo e eficaz na codificação e decodifica- produção textual), oralidade e escrita, ao
ção da mensagem. (PROF03RO) lado de ter conhecimento e saber as normas
(04) É necessário estudar a língua portu- e regras prescritas pelas gramáticas.
guesa, observar suas regras gramaticais e As respostas mostram professores ex-
praticar. A leitura é também essencial para a tremamente marcados pelo ensino de lín-
prática. (PROF04M) gua portuguesa voltado para a normati-
(05) Se comunicar de forma eficiente. (PRO- zação. Tal crença ampara a prática de um
F05A) ensino de língua portuguesa voltado para o
(06) Para utilizar adequadamente a língua estudo da gramática normativa, o que pouco
portuguesa é necessário conhecer as nor- auxilia o discente a exercitar uma reflexão
mas gramaticais da língua. (PROF06I) sobre a língua e suas estruturas. Essa crença
(07) Conhecer a língua oral e escrita. (PRO- é justificada pela defesa de muitos teóricos
F07AM) num passado recente de que a disciplina de
(08) Saber utilizar e adequar a gramática língua portuguesa materna visa ensinar a

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Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

variedade padrão. Para Possenti (1996, p. (09) Ao fazer o uso dos pronomes, não pare-
17, grifos do autor), “o objetivo da escola é cem ser a mesma pessoa. (PROF01S)
ensinar o português padrão, ou, talvez mais (10) Sim e não. Isso porque dois fragmentos
exatamente, o de criar condições para que (01 e 03) apresentam-se como introdução e
ele seja aprendido.” os dois restantes como parte da conclusão.
Portanto, o ensino de Língua Portugue- Assim sendo, torna-se possível que uma in-
sa deve ter como meta uma concepção que trodução e uma conclusão sejam do mesmo
texto. Contudo não tem como se ter certeza
apadrinhe o aperfeiçoamento da língua ma-
disso. Como o tema é o mesmo podem ser
terna, do sujeito e do contexto, deixando de partes de textos de autores diferentes. (PRO-
privilegiar somente o repasse de regras da F02CL)
gramática tradicional. É possível partir da
(11) Sim. Devido à aplicação dos pronomes.
gramática normativa, mas não se limitando
Ora corretamente ora não. (PROF03RO)
a ela, considerando que refletir sobre a lín-
gua precisa ser um exercício constante, seja (12) São escritos por pessoas diferentes,
no processo de leitura, de produção textual pois cada pessoa tem sua maneira própria
de escrever sobre o mesmo assunto. (PRO-
ou de análise linguística em si, por meio de
F04M)
variados gêneros textuais.
Segundo Faraco (2008), cabe à escola e (13) Sim, pois é perceptível a mudança no
ao professor a construção de uma pedago- discurso de cada trecho apresentado. (PRO-
F05A)
gia da variação linguística que não esconda
a realidade linguística do Brasil, nem faça (14) Sim, em função dos trechos apresenta-
piada pautada nos fenômenos variáveis da rem domínios diferentes da modalidade es-
língua, que se desenvolva uma pedagogia crita formal da língua portuguesa. (PROF06I)
(15) Diria que a escrita, quanto a utilização
que mostre aos alunos a variação linguís-
da norma padrão, difere. (PROF07AM)
tica, visando combater os preconceitos lin-
guísticos, as exclusões sociais e culturais ba- (16) Não. pois os fragmentos parecem ser
seadas na distinção linguística. continuação dos argumentos. (PROF08CO)
Quanto à questão 02: É possível identi- Desfazendo a ideia do estilo único, La-
ficar se os trechos são escritos por pessoas bov (2008 [1972]) sinaliza que os falantes
diferentes? Justifique., os professores si- de qualquer língua têm a sua disposição um
nalizam: a) nas respostas (09), (11), (12), campo amplo de alternâncias estilísticas.
(13), (14) e (15) a menção a duas varieda- Quando os alunos adentram à escola já
des linguísticas e o fazem pela observação dominam sua língua materna, porém ne-
de detalhes (uso dos pronomes, diferentes cessitam ampliar seus recursos comunicati-
modos de escrever sobre o mesmo assunto, vos para acatar às convenções sociais. Não
mudança no discurso, diferentes domínios existe uma língua “certa” a ser ensinada,
da modalidade escrita formal, diferenças mas, sim, formas linguísticas mais adequa-
quanto à utilização da norma padrão); b) das ou menos adequadas a certos gêneros
a não identificação de diferentes autorias ou situações comunicativas, considerando,
nos trechos analisados (10) e (16); c) a inclusive, a avaliação social; formas linguís-
crença na ideia de dualidade, de certo e er- ticas são avaliadas de diferentes maneiras
rado na colocação pronominal, negando a (crenças e atitudes são formas implícitas e
variabilidade (11). explícitas de avaliação social).

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No que diz respeito à questão 03: É pos- cos, há o melhor (mantê-los) ou o pior jei-
sível ver diferenças entre os quatro trechos? to de escrever (manter eles); conceberam
Aponte algumas, a seguir, verificam-se as a crença de que a língua é homogênea, o
respostas: que nos remete à existência de uma “escri-
(17) No parágrafo 02, há repetições de ter- ta correta”, que são ensinadas na escola e
mos; o parágrafo 04, uso dos pronomes. explicadas nas gramáticas. O mito da lín-
(PROF01S) gua única é reforçado na reafirmação de
(18) Sim. Como mencionado antes, dois um só modo de escrever. Parece haver uma
apresentam conteúdo relacionado à introdu- crença maior: a de que no tipo dissertati-
ção e dois à conclusão. O 01 é o que demons- vo-argumentativo só cabe a norma padrão.
tra melhor empenho do autor, enquanto que De modo interligado, uma crença reforça
o 03 demonstra pouca maturidade no trato outra: os alunos que escrevem conforme
do tema. A elaboração do 03 e 04 demonstra
a norma padrão escrevem bem, vão obter
menor clareza, porém a ideia apresentada
no 04 é melhor. (PROF02CL)
boas notas na escola e na redação no Exa-
me Nacional do Ensino Médio (ENEM), o
(19) Sim. Cito, por exemplo, o 04. Ele não
que contribui para conseguirem mais fa-
aplica corretamente a aplicação do prono-
me. O correto seria mantê-los. (PROF03RO) cilmente uma vaga em uma universidade.
Mas escrever bem não se limita a domi-
(20) Problemas na construção das orações e
nar a variedade padrão ou uma variedade
na organização das ideias. (PROF04M)
culta da língua. A avaliação centrada na
(21) Sim, o uso de argumentos de diferentes identificação de erros corre o risco de se
perspectivas. (PROF05A)
limitar a encontrar defeitos no texto, em
(22) Sim, são abordagens diferentes em detrimento de critérios mais importantes
torno do mesmo tema e destrezas distin-
e abrangentes. São várias as diferenças en-
tas em relação ao vocabulário e às normas
tre os trechos apontadas como negativas
gramaticais da língua. Por exemplo, no
trecho 01 identifico uma abordagem refe- pela maioria dos respondentes.
rente ao desenvolvimento do tema e já no Observa-se ainda que alguns professores
trecho 04 percebo uma argumentação so- lembraram critérios mais amplos quando
bre a conclusão da redação. No trecho 03 o mencionaram: ideias apresentadas, clareza
autor parece ter pouco conhecimento dos (18), argumentos (21), abordagens diferen-
mecanismos linguísticos necessários para tes, vocabulário (22) e ao identificar intro-
a construção da argumentação e já no tre-
dução (18), desenvolvimento (22) e conclu-
cho 04 o escritor tem um domínio maior.
(PROF06I) são (18). Além disso, apesar de terem ape-
nas trechos de redações à disposição, suas
(23) Na utilização dos pronomes e redun-
análises contemplam, em parte, as compe-
dância. (PROF07AM)
tências que são avaliadas nas redações do
(24) Não. pois apesar dos erros gramaticais,
ENEM. 1Competência 1: (18), [evitar] re-
procuram utilizar a linguagem culta. (PRO-
petições de termos; Competência 2: (19)
F08CO)
temática; Competência 3: (18), (20), (22)
As respostas (17), (18), (19), (20) e
(24) apontam uma atitude negativa em re- 1 É interessante lembrar que as redações produzi-
das para o Uol são exatamente treinamento para
lação à variação linguística, evidenciando o ENEM e são avaliadas segundo os critérios do
que acreditam que, em termos linguísti- quadro 1.

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Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

abordagem e argumentação; Competência tos; Competência 5: (18) conclusão e ideia


4: (17) termos e pronomes, (21) argumen- apresentada.

Quadro 1 - Como a redação será avaliada?


Competência 1: Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da língua portuguesa.
Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de
Competência 2: conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto
dissertativo-argumentativo em prosa.
Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e
Competência 3:
argumentos em defesa de um ponto de vista.
Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a
Competência 4:
construção da argumentação.
Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado que respeite os
Competência 5:
direitos humanos.
Fonte: Brasil (2020, p. 8)

A seguir estão as respostas dadas para a Apesar da clareza das ideias e da adequa-
pergunta 04: Um texto/fragmento é melhor ção ao tema proposto em todos os fragmen-
que o outro? Justifique. tos a serem analisados, aspectos da língua
(25) Sim. Há erros que são óbvios. (PROF01S) receberam avaliações como certo/errado,
melhor/pior, mais claro/menos claro, mais/
(26) Sim, pois em alguns (01 e 04) se com-
menos ricos, bem desenvolvidos/desacordo
preende melhor a ideia do que nos outros
dois, além do melhor uso palavras e utilização
com o tema.
correta de termos gramaticais. (PROF02CL) Nos excertos (26), (27), (30) e (31) ain-
da percebe-se a atribuição de certo (norma
(27) Sim. É possível verificar a aplicação cor-
padrão, que na visão dos respondentes, está
reta do pronome e também a retomada cor-
acompanhada de outras qualidades) e er-
reta dele NO TEXTO 01. (PROF03RO)
rado (o não padrão, visto juntamente como
(28) Sim, porque existe um entendimento defeitos), e, com isso, atribuição de valor de
mais claro das ideias. (PROF04M) superioridade de um fragmento em relação
(29) Não é que são melhores ou piores vem ao outro, que se diferenciam explicitamen-
de construções e opiniões diferentes. (PRO- te quanto ao uso de diferentes variantes da
F05A) realização da retomada anafórica de objeto
(30) Sim. Alguns trechos são mais ricos em direto. A realização com o clítico apresentou
sentido de argumentação, construções fra- melhor avaliação (fazendo-os). A aceitação
sais e vocabulário e outros são menos. Esse ou a rejeição de diferentes variantes e va-
contraste fica evidente entre o trecho 01 e riedades no contexto escolar teve destaque
04. (PROF06I) em Cyranka (2007), quando ressalta que as
(31) No aspecto gramatical, percebe-se a pesquisas que apontam a rejeição, a desva-
utilização da norma padrão. (PROF07AM) lorização da escola no que diz respeito ao
dialeto do aluno e vice-versa devem ser vis-
(32) Sim. Em alguns fragmentos as ideias
foram bem desenvolvidas e em outros não, tas sob a ótica do problema da avaliação lin-
além de não estar totalmente de acordo com guística. Além dessa questão do valor social
o tema proposto. (PROF08CO) atribuído às variantes, a autora cita a cren-

138 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022


Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira

ça recorrente na superioridade da escrita contraponto, quando os docentes pautam o


em relação à fala. Essa crença, infelizmente, seu fazer pedagógico por uma abordagem
pode gerar consequências negativas para os linguística que verse sobre as variedades
alunos que falam e escrevem em variedades que sofrem estigmas equivocados, terão
não padrão, que é a atitude de ver e avaliar práticas que coadunam com um ensino que
o texto desses sujeitos como inferior e me- perpassa pela ótica da variação, acolhendo
nos elaborado, sem considerar outros as- outras variantes e considerando que todas
pectos, como domínio do gênero, contexto têm espaço no contexto escolar.
comunicativo, conhecimentos, intertextuali-
dade, progressão e coerência (KOCH; ELIAS, Teste de atitudes
2009). No que diz respeito à questão 05, que ave-
Nota-se que a avaliação linguística nor- riguou crenças e atitudes linguísticas dos
teia o processo de ensino e aprendizagem professores pesquisados: Se produzido por
dos professores, quando eles visam apenas seus alunos, qual avaliação cada fragmen-
ao padrão, que toma como base a escrita to acima receberia (de 0 a 5)? Explique. Se-
de autores consagrados. Com essa atitude, guem as notas e as justificativas dadas nas
tendem a estigmatizar as variedades que respostas retiradas do Google Formulários.
circulam dentro da escola, demonstrando Para melhor visualização, organizou-se uma
uma prática educativa preconceituosa. No tabela a seguir.

Tabela 1 - Respostas da questão 5


Sintagma
nominal
Pronome
anafórico
lexical
Clítico acusativo
(02) [...] Não é
Objeto nulo (04) [...]
(01) [...] Boa necessário uma
Ministério do
parte das análise profunda
(03) [...] O Trabalho, em
mudanças, para perceber
indivíduo que parceria com
[...] deveram- o alto grau de
se encontra as empresas,
se à criação importância
nessa situação deve fazer
das primeiras que o avanço
busca fazer atualizações Média por
Fragmento máquinas, que da tecnologia
o que pode, nos cursos professor
substituíram gerou no mundo,
no intuito já existentes
milhares de mas também
de se tornar de seus
trabalhadores, é inegável que
qualificado, para trabalhadores
fazendo-os ficar se criou um
que o mercado com o intuito
sem empregos ou desconforto para
de trabalho Ø de manter eles
a trabalharem de aqueles que não
valorize. atualizados
forma insalubre e compreendem
na utilização
mal remunerada. esse avanço
de novas
tecnológico e,
tecnologias.
[...] precisam
sobreviver.
3
2,5
(33) 3 4 devido ao 12,5/20 =
Ocorre a repetição
PROF01S Confuso. Boa estrutura. emprego errado (62%)
de termos.
do pronome

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022 139


Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

3,5
2
Bom fragmento, 3
Confuso. Sabe-se
pois remete 2 Ideia boa, mas
o que ele quer
ao início da Ideia muito erros estruturais 10,5/20 =
(34) dizer, mas o uso
questão e abre singela. Sem e de colocação (52%)
PROF02CL incorreto de
possiblidades muita clareza e interferem na
algumas palavras
de reflexão no convicção. clareza.
prejudicam o
desenvolvimento.
sentido.
Boa coesão.
4
Emprega o 2
(35) pronome 4 4 Emprego 14/20 =
PROF03RO corretamente, Texto coeso. Texto coeso. indevido do (70%)
mas a ideia é pronome.
confusa.

O primeiro,
(36)2 pois precisa de
– – – –
PROF04M uma melhor
reestruturação.
[NÃO DEU NOTA]
2
2
2 pois o
pela articulação
4 pela [in] argumento
do assunto,
pela construção capacidade de embora
(37) ainda que não 10/20 =
dos argumentos desenvolver consistente,
PROF05A concorde com (50%)
e pelo nível da o argumento poderia
a maneira que
escrita. de modo [in] estar melhor
foi construído o
consistente3. trabalhado.
argumento.

2
2 4 2
pois o
pois demonstrou pois além de pois elaborou
demonstrou
pouco domínio demonstrar proposta de
pouco domínio
da modalidade bom domínio intervenção
da modalidade
escrita formal da modalidade para o problema
escrita formal
da língua escrita formal da abordado, fez
da língua
(38) portuguesa língua portuguesa isso de modo 10/20 =
portuguesa
PROF06I e pouco e considerável a demonstrar (50%)
e pouco
conhecimento conhecimento relativo domínio
conhecimento
dos mecanismos dos mecanismos da modalidade
dos mecanismos
linguísticos linguísticos escrita formal
linguísticos
necessários para necessários para da língua
necessários para
a construção da a construção da portuguesa.
a construção da
argumentação. argumentação.
argumentação.

2 A resposta do PROF04M não foi computada pela não atribuição de nota.


3 Certamente a pressa em responder ou a falta de leitura para revisão da própria escrita ocasionou os
erros. Pela nota entende-se que o sentido é o que está posto com as inserções: Nota 2 de 5, pela incapaci-
dade de desenvolver o argumento de modo consistente.

140 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022


Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira

3
Se uma das
competências a
serem avaliadas
15/20 =
(39) fosse a utilização
4 4 4 (75%)
PROF07AM da norma
padrão da língua
o 4 teria 3 e os
demais 4.

2
uma vez que
fala sobre
2,5
atualização
pois apesar dos
2,5 de cursos já
erros gramaticais
pois também existentes e
discorreu 4 11/20 =
(40) só atendeu a não se refere a
sobre o futuro por abordar o (55%)
PROF08CO um item do novos cursos
do emprego, tema na íntegra.
tema: o avanço e não aborda
no entanto,
tecnológico. o futuro do
não falou da
emprego, além
qualificação.
da colocação
pronominal
errada.
Média por 21/7 = 3,00 23/7 = 3,28 22/7 = 3,14 17/7 = 2,43
fragmento (60%) (65%) (63%) (49%)
Fonte: elaboração própria.

No geral, nenhum professor atribuiu b. Em (03) há o fato de o objeto nulo ser


nota máxima (5) a qualquer dos fragmen- a estratégia mais utilizada no lugar do
tos, sendo 4 (80%) a maior nota. O teste em clítico acusativo (ROSSI; CASAGRANDE,
2018);
questão serviu para conhecer como os pro-
fessores agem supondo que os fragmentos c. A avaliação negativa do clítico acusativo
de redações são de seus alunos, e analisar, (01) deveu-se, provavelmente, aos cor-
tes que suprimiram as informações refe-
portanto, as atitudes linguísticas. Na média
rentes às mudanças e máquinas mencio-
das notas atribuídas por questão, a melhor nadas e não especificadas, o que foi lido
avaliação foi do fragmento (02), com sintag- pelos professores como confuso, não
ma nominal anafórico (65%), seguido do coeso, falta de domínio dos mecanismos
(03) objeto nulo (63%). O (01) clítico acusa- linguísticos etc., ao invés de considerar
tivo (60%) ficou em terceiro lugar e o (04) as supressões na seleção da amostra e
pronome lexical recebeu a pior avaliação os destaques (negrito) para o fenômeno
pesquisado;
(49%). Algumas possíveis explicações:
d. O pronome pessoal do caso reto em fun-
a. Em (02) a informação está contextuali- ção de objeto direto (04) é a variante que
zada e as supressões não fizeram falta mais sofre estigma social e, portanto, é
para o entendimento. Além disso, não avaliada de forma negativa pelos profes-
houve repetição do mesmo termo em “o sores; foi a que recebeu maior avaliação
avanço da tecnologia” / “esse avanço tec- negativa, com críticas explícitas da maio-
nológico melhor”; ria à colocação do pronome lexical. Além

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022 141


Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

disso, os professores apontaram outras dita que saber a língua é dominar a gramá-
questões estruturais, não identificando tica tradicional.
o fragmento como da norma padrão ou Percebeu-se ainda que alguns professo-
formal.
res estiveram atentos a critérios mais am-
Os professores que atribuíram as maio- plos na avaliação textual, quando mencio-
res notas na média das questões (75%), naram ideias apresentadas, clareza, argu-
(70%) e (62%) foram os que avaliaram os mentos, abordagens diferentes, vocabulário
fragmentos com base em critérios objeti- e ao identificar introdução, desenvolvimen-
vos, enquanto os que atribuíram as piores to do tema e conclusão. Observou-se ainda
notas na média apresentaram mais justifi- que suas análises contemplam, em parte, as
cativas, geralmente subjetivas, não apon- competências que são avaliadas nas reda-
tadas e não identificáveis nos textos, tais ções do ENEM, não se limitando ao domí-
como: “confuso”, “ideia confusa”, “precisa nio da modalidade escrita formal (que pode
de uma melhor reestruturação”, [discor- ser identificada como a variedade culta ou
dância da] “maneira que foi construído o como a norma padrão). No entanto, no tes-
argumento”, “demonstrou pouco domínio te de atitudes, quando solicitados a atribuir
da modalidade escrita formal da língua uma nota para cada trecho de redação, fica
portuguesa e pouco conhecimento dos evidente a busca por um padrão de língua
mecanismos linguísticos necessários para idealizada e inalcançável. Os professores
a construção da argumentação” e “apesar mencionam muitos problemas nos textos e
dos erros gramaticais discorreu sobre o fu- atribuem notas baixas a todos os fragmen-
turo do emprego, no entanto, não falou da tos, com argumentos incompreensíveis, so-
qualificação”. Esses foram apenas os supos- bretudo os que deram as menores notas.
tos erros apontados para o fragmento (01), Por sua vez, os professores que atribuíram
contendo o clítico acusativo. melhores notas também foram os que apre-
Na tabela 01, a lógica da avaliação reve- sentaram critérios objetivos.
la atitude de reduzir a produção textual dos Sabe-se, no entanto, que os resultados
alunos (mesmo em situações que o profes- não espelham a realidade do município, pois
sor só apresenta elogios), tendo como parâ- trata-se de uma amostra limitada de infor-
metro a crença num padrão linguístico arti- mantes. Mas nota-se também que a amostra
ficial e inalcançável. Infelizmente, quando o revelou perfis importantes de professores
assunto é avaliação do texto do aluno, há ge- de língua portuguesa na contemporaneida-
ralmente alguns professores que supervalo- de que, assim como as línguas, são variáveis,
rizam os erros em detrimento dos acertos. heterogêneos e multifacetados. Se há uma
E com essa crença enraizada, está sempre maioria que ainda privilegia as variedades
pronto a reduzir notas e a diminuir a produ- de prestígio, há também uma crescente
ção do estudante. abertura para a diversidade linguística, o
que representa os feitos da ciência da lin-
Considerações finais guagem, a linguística (na formação univer-
Os resultados obtidos nesta pesquisa asse- sitária, na formação docente e nas escolas).
veram a crença dos professores na legiti- No teste de atitudes verificou-se que
mação das normas de prestígio, visto que muitos professores demonstraram atitudes
uma boa parcela dos docentes ainda acre- negativas em relação à variação linguística,

142 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022


Claudia Norete Novais Luz; Sandra Carneiro de Oliveira

não admitem divergências da norma padrão seu material didático, pesquisa e ressigni-
nos textos dissertativos-argumentativos, fica o fazer docente, considerando a indis-
reafirmando a crença na língua homogênea sociabilidade da teoria e da prática peda-
e na dicotomia do certo/errado. Consequen- gógica. Por mais que o ensino já tenha sido
temente, percebe-se que as crenças sobre a transformado pelos estudos linguísticos, a
língua portuguesa atuam diretamente nas junção linguística e pedagógica ainda é um
atitudes dos professores no momento de campo em desenvolvimento, que carece de
avaliar os textos dos seus alunos. Sendo as- linguagem e metodologias próprias.
sim, destaca-se a necessidade de se ter, no
ensino de língua portuguesa, uma pedago- Referências
gia da variação linguística que seja demo- AGUILERA, Vanderci de Andrade. Crenças e ati-
crática e que não aceite nenhum tipo de dis- tudes linguísticas: quem fala a língua brasileira?
In: Roncarati, Cláudia; Abraçado, Jussara. (Org.).
criminação. O ensino da língua portuguesa Português brasileiro II: contato linguístico,
que considere a diversidade linguística e heterogeneidade e história. 1. ed. Niterói: Edito-
sua interseção com questões sociais, histó- ra Federal Fluminense, 2008.
ricas e culturais. É preciso ainda refletir que ALMEIDA, Jaqueline Macedo; ALMEIDA, Norma
pela língua perpassam relações de poder, Lucia F. de. O objeto direto anafórico no dialeto
tanto na comparação entre línguas como culto de Feira de Santana. In: XVI Seminário de
Iniciação Científica da UEFS: Sustentabilidade,
entre variedades de uma mesma língua. No
economia verde e erradicação da pobreza. Feira
último caso, lembrando o que diz Botassini de Santana. Anais…, de 16 a 19 de outubro de
(2015, p. 105): “Em toda sociedade, as di- 2012. v. 1. p. 88-91.
ferenças de ‘poder’ existentes entre grupos BAGNO, M. Nada na língua é por acaso: por
sociais distintos podem ser percebidas na uma pedagogia da variação linguística. São Pau-
variação linguística e nas atitudes para com lo: Parábola Editorial, 2007.
essas variações”. BAGNO, M. Não é errado falar assim! Em defe-
É necessário ainda, como disse Hooks sa do português brasileiro. São Paulo: Parábola,
(2008), tomar posse da língua portuguesa, 2009.
imprimindo-lhe nossas características, para BARBOSA, J. B.; GHESSI, R. R. Atitudes linguísti-
utilizar “a língua como um lugar onde nós cas e o ensino de língua portuguesa: uma refle-
fazemos de nós mesmos sujeitos” (HOOKS, xão sociolinguística. Tabuleiro de Letras, v. 13,
p. 69-91, 2019.
2008, p. 858). Embora se destaque a visão
de língua única, os professores responden- BARCELOS, Ana Maria Ferreira. Reflexões acer-
tes também são conhecedores da pluralida- ca da mudança de crenças sobre ensino e apren-
dizagem de línguas. Revista Brasileira de Lin-
de linguística, da variabilidade da língua em guística Aplicada, Belo Horizonte - UFMG, v. 7,
diferentes contextos e gêneros textuais. Se n. 2, 2007, p. 109-138.
por um lado o ensino tradicional tem uma
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em
metodologia clara para os professores, rea- língua materna: a sociolinguística na sala de
lizar um trabalho que abarque a diversidade aula. São Paulo: Parábola, 2004.
linguística ainda depende de uma formação BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na
universitária que dê conta dessa demanda, escola, e agora? Sociolinguística e educação.
o que reverbera na construção de metodo- São Paulo: Parábola, 2005.
logias de ensino que dependem de um pro- BOTASSINI, Jacqueline Ortelan Maia. A impor-
fessor cada vez mais autônomo, que elabora tância dos estudos de crenças e atitudes para a

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022 143


Crenças e atitudes linguísticas de professores do Ensino Médio sobre a retomada anafórica de terceira pessoa

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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 127-145, jan./jun. 2022 145


Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Emoções e tecnologias digitais no ensino-


aprendizagem de Língua Inglesa
Rodrigo Camargo Aragão(UESC)*
https://orcid.org/0000-0002-6493-1627

Keila Carlos Ferreira(PPGL/UESC)**


https://orcid.org/0000-0002-6826-8025

Resumo:
O objetivo deste artigo é avaliar as possíveis contribuições de estudos so-
bre emoções e tecnologias digitais para o ensino/aprendizagem de inglês
no contexto do ensino remoto e ensino híbrido. Buscamos elaborar um es-
tudo teórico que possa subsidiar futuras pesquisas empíricas. Para tanto,
realizamos uma revisão da literatura acerca da relação entre emoções, tec-
nologias digitais, e o ensino da Língua Inglesa com atenção ao contexto bra-
sileiro e com o recorte temporal de 2017-2021. Com isso, propõe-se trazer
convergências possíveis entre os estudos revisados e práticas de ensino/
aprendizagem pautadas em demandas contemporâneas. Os resultados in-
dicam que os recursos presentes nos estudos revisados podem fortalecer
o ensino/aprendizagem de inglês em diversos aspectos consonantes com
uma prática atualizada de ensino/aprendizagem em contexto pandêmico e
pós-pandêmico.
Palavras-chave: Emoções; Tecnologias digitais, Pandemia; Ensino/aprendi-
zagem de inglês.

Abstract:
Emotions and digital technologies in English language
teaching-learning
The article aims to evaluate the possible contributions of studies about emo-
tions and digital technologies for teaching/learning English in the context of
remote teaching and hybrid teaching. We seek to develop a theoretical study
that can support future research. For that, we carried out a literature review
on the relationship between emotions, digital technologies, and English lan-
guage teaching with attention to the Brazilian context and the 2017-2021
time frame. Thus, it is proposed to bring possible convergences between
the reviewed studies and teaching/learning practices based on contempo-

* Doutor em Linguística pela UFMG com estágio na Universidade de Sevilha. Professor do Programa de Pós-
graduação e Licenciatura em Letras da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC). E-mail: aragaorc@
gmail.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/1643952376890753
** Mestranda em Letras: Linguagens e Representações (PPGL/UESC). E-mail: keilakeuferreira@gmail.com.
Currículo Lattes:  http://lattes.cnpq.br/4692580513214437

146 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 146-166, jan./jun. 2022


Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

rary demands. The results indicated that the resources present in the re-
viewed studies can strengthen the teaching/learning of English in several
aspects, in line with an updated teaching/learning practice in a pandemic
and post-pandemic context.
Keywords: Emotions; Digital technologies, Pandemic; Teaching /Learning
English.

Introdução
Após dois anos de pandemia e isolamen- texto foi concluída, já somavam 664.18 pes-
to social causado pelo vírus SARS-CoV-2, o soas que perderam suas vidas no Brasil em
Brasil se vê diante dos impactos causados decorrência do vírus, segundo informações
por essa situação de crise que tem resultado do site da Organização Mundial de Saúde.
em “reflexos sociais, econômicos e na saú- Seguimos, então, com esperança dos resul-
de física e mental das populações, especial- tados de ampla vacinação da população e
mente as mais vulneráveis” (CRUZ ET. AL, lutando contra esse inimigo invisível, o qual
p.1 2020). Nesse aspecto, as disparidades vem afligindo a população.
têm aumentado entre as minorias, que têm No campo da educação, o cenário não é
sofrido ainda mais com a pandemia e todas diferente. Como salienta Leitão et. al (2020),
suas consequências. não devemos esquecer que a pandemia trou-
Nesse ínterim, o avanço do vírus – e ago- xe também novos desafios para a educação e
ra as suas mais novas variantes1 – tem apro- exacerbou os já existentes. Com a continui-
fundado as sensações de incerteza, medo e dade das aulas, ainda de maneira remota, os
angústia. Brooks et. al, em um estudo sobre professores têm buscado novos meios de en-
os efeitos psicológicos do isolamento social sinar e aprender. As tecnologias têm ocupa-
no Brasil durante a pandemia, demonstrou do ainda mais o seu espaço diante desses no-
que evidências recentes sugerem que pes- vos tempos; as metodologias e estratégias de
soas mantidas em isolamento e quarentena ensino não presenciais têm sido exploradas
experimentam níveis significativos de an- com o objetivo de sobreviver a esse tempo de
siedade, raiva, confusão e estresse (BROOKS crise e se adaptar ao que tem sido chamado
ET AL, 2020). Essas emoções têm ganhado de novo normal (OLIVEIRA et al, 2020). Ou-
força, devido ao descaso com a saúde pro- trossim, a expressão home office foi adiciona-
movido pelos representantes do povo, que a da ao vocabulário de brasileiros e brasileiras.
cada dia vem demonstrando falta de respei- As videoaulas têm feito parte da rotina dos
to pela vida dos brasileiros. Até 02 de maio professores e todos se veem na “necessidade
de 2022, quando a redação do presente de se reinventar” (DA SILVA, 2020).
1 Dentre elas: Alfa, Beta, Gama, Delta e a mais re- No que tange o ensino de Língua Inglesa
cente, a variante Ômicron. Segundo o site das (doravante LI), os professores se veem dian-
Nações Unidas, na primeira semana de janeiro te de outro desafio: ensinar línguas através
de 2022 o mundo registrou o maior número de
novos casos de Covid-19 desde que a pandemia da internet. Nesse aspecto, o ensino de LI
começou, há dois anos, e que as baixas taxas de mediado pelas tecnologias digitais é um
vacinação em alguns países criaram condições tema que têm sido alvo de pesquisa na Lin-
perfeitas para o surgimento de novas variantes.
Disponível em https://news.un.org/. Acesso em guística Aplicada (PAIVA, 2001, 2005; COS-
10/01/2022. TA, 2020). Esses estudos têm levantado per-

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Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

tinentes indagações acerca do seu uso e con- 5 anos, que compreende os anos de 2017-
tribuições para o ensino de línguas. Todavia, 2021, apresentando autores que vem discu-
o uso das tecnologias digitais para ensinar tindo este tema na academia.
línguas tem se expandido especialmente Como critério de inclusão e exclusão, fo-
nas aulas online em suas modalidades sín- ram selecionados estudos contemporâneos
crona, assíncrona e híbrida. A utilização que abordem a inter-relação entre emo-
de plataformas de ensino efetivas voltadas ções e tecnologias digitais no ensino de LI,
para esse tempo de pandemia tem se carac- que de igual modo se debruçam na LA. Para
terizado como o maior desafio desta classe tanto, foi feito um levantamento de artigos
de profissionais (DA SILVA, 2020; ARAGÃO, publicados em revistas através do Google
2017; 2020; ARAGÃO E DIAS, 2015 ) e pes- acadêmico que atendessem aos critérios já
quisas sobre a falta de letramento digital e especificados. Assim, a partir do levanta-
de políticas públicas de ensino de línguas mento inicial, foi desenvolvido um trabalho
tem provocado discussões acaloradas (ARA- de revisão e seleção. Os estudos escolhidos
GÃO, 2009; 2019). para compor essa revisão de literatura apre-
No entanto, se por um lado a educação sentam resultados que podem auxiliar no
tem procurado se adequar aos novos con- entendimento da relação do fenômeno da
textos desenhados pela pandemia, por ou- emoção com a tecnologia na vida de docen-
tro, a busca pelo domínio de tecnologias tes no contexto de ensino-aprendizagem de
digitais, bem como o uso de plataformas LI na pandemia. Da mesma forma, espera-
e ferramentas, tem revelado professores mos que a partir do levantamento de estu-
experimentando os mais diversos senti- dos aqui proposto possam surgir novas dis-
mentos e emoções. O sucesso da aula está cussões que subsidiem pesquisas empíricas
andando de mãos dadas com o medo, a in- que abordem sobre emoções na era digital,
segurança e as incertezas proporcionadas a qual necessita de atenção nos dias atuais.
por esse momento atípico. As descobertas Ainda nesse contexto, é importante sa-
e alegrias também surgem ao alcançar re- lientar que, embora tímido, o papel das emo-
sultados positivos e satisfatórios nas aulas e ções no ensino-aprendizagem de línguas
no professorar, contudo o processo tem sido tem se expandido na LA em trabalhos inter-
por vezes doloroso e cansativo (LEITÃO ET. nacionais (ZEMBYLAS, 2003; 2005) e nacio-
AL, 2020). nais (ARAGÃO, 2007; 2009; 2019; BARCE-
Sobre esse aspecto, pensemos no pro- LOS, 2013; 2015 e OLIVEIRA, 2019); no en-
fessor como um profissional, que diante de tanto, em um cenário de pandemia mundial,
uma pandemia, vem lidando com emoções vemos a urgência de nos aprofundar nessa
geradas por novas demandas de ensino por temática, a fim de buscar compreender o pa-
meio de ferramentas digitais. Nesse senti- pel das emoções no ensino/aprendizagem
do, considerando a necessidade de discu- de inglês com tecnologias digitais.
tir as emoções de professores de inglês no
contexto brasileiro (DE OLIVEIRA, 2021) e Por que discutir emoções no
de pandemia, trazemos neste artigo um ma-
campo da Linguística Aplicada?
peamento de estudos sobre emoções e tec-
nologia no Brasil e no campo da Linguística Temos dito (e repetido) que o professor é a
Aplicada (Doravante LA), em um período de pessoa. E que a pessoa é o professor. Que é

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

impossível separar as dimensões pessoais e consiste em uma tarefa desafiadora (BAR-


profissionais. Que ensinamos aquilo que so- CELOS; ARAGÃO, 2018), visto que as emo-
mos e que, naquilo que somos, se encontra ções são também abordadas não somente
muito daquilo que ensinamos. Que importa,
na Linguística, como também na Psicologia,
por isso, que os professores se preparem
para um trabalho sobre si próprios, para um
Biologia, Filosofia, Sociologia e Educação; e
trabalho de autorreflexão e de autoanálise devido a seu caráter interdisciplinar faz com
(NÓVOA, 2004, p. 04). o que o termo possua incontáveis definições
(OLIVEIRA, 2019).
Com as palavras de Nóvoa (2004), ini-
Ainda assim, como já salientado no corpo
ciamos nossa discussão sobre essa temá-
deste texto, vemos que no campo da LA as
tica. Discutir emoções de professores pro-
emoções têm sido pouco exploradas. Ribei-
põe, como aponta o autor, um olhar para
ro (2012) acrescenta que a ausência de um
o professor que vai além das suas práticas
referencial teórico pode ser uma das razões
pedagógicas, mas que, de fato, o posiciona
que limita o aprofundamento dos estudos
como o sujeito que está além da docência.
sobre emoções em LA no Brasil. Por outro
Abordar emoções de professores ainda é
lado, Aragão (2011), baseando-se em Pa-
um tema complexo a ser discutido, tendo
vlenko (2013), nos revela uma “virada afe-
em vista que no campo da educação e na
tiva” voltada para os estudos das emoções
área de estudos linguísticos as emoções de
no campo da LA que podem, dessa forma,
professores são frequentemente ignoradas
ampliar pesquisas sobre o tema:
e marginalizadas (ZEMBYLAS, 2005; ARA-
GÃO, 2007, 2011, 2019; BARCELOS, 2013) Embora as emoções ainda permaneçam
pouco pesquisadas na linguística aplicada,
e vistas como tópico feminilizado e suave
há o reconhecimento do que tem sido cha-
(LANAS E ZEMBYLAS, 2015, HOOKS, 2010; mado de “virada afetiva” (PAVLENKO, 2013,
REZENDE, 2020). No entanto, se as emoções p. 19), cujo interesse tem impactado e alar-
fazem parte da formação de professores e gado o espectro da pesquisa sobre o papel
estão intrinsicamente ligadas à sua identi- das emoções no ensino/ aprendizagem de
dade docente e suas práticas pedagógicas, uma língua (BARCELOS, 2015 apud ARA-
por que não falar de emoções? GÃO, 2011, p.87)
Para Aragão (2017), as emoções “são Corroborando com as palavras de Ara-
disposições corporais dinâmicas que em- gão, compreendemos que pesquisas que
basam os domínios de ações, pensamentos abordam as emoções de professores de
e relações possíveis em determinado mo- línguas no campo da LA devem ocupar seu
mento” (ARAGÃO, 2017, p.87 apud ARAGÃO, espaço também na academia, uma vez que
2011). Barcelos (2015) trata emoções como lidamos com formação de professores que
construções dinâmicas que fazem parte de precisam, para além de compreender suas
uma rede complexa que influenciam nossas emoções, buscar produzir novos entendi-
ações e realçam nossas percepções. Nesse mentos acerca do seu fazer pedagógico, não
sentido, as emoções podem ser entendidas dissociando do processo de ser e sentir.
como parte do ser professor, e que as mes- Nesse sentido, Moita Lopes (2009) apon-
mas estão diretamente relacionadas com ta que é necessário compreender como a LA
sua prática identitária e que atravessam e se constitui atualmente e pensar em outras
se fazem presentes na sala de aula e no fa- formas de produzir conhecimentos que este-
zer pedagógico; todavia, conceituá-la ainda jam ligados à prática social, a fim de prover

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Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

novos modos de compreender nosso futuro. aspectos em relação ao aluno e não em re-
Ainda conforme argumentam Kleiman e De lação ao professor (OLIVEIRA, 2019). Con-
Grande (2015), a LA deve “ouvir as vozes tudo, conforme citam os autores acima, os
silenciadas e visar objetivos transformado- pesquisadores possuem um compromisso
res e intervencionistas que tenham impacto ético e político de ouvir as vozes desse gru-
no mundo social” (KLEIMAN e DE GRANDE po à margem, e que se torna cada vez mais
2015, p. 19). Dessa forma, torna-se possível urgente desenvolver pesquisas em LA que
legitimar na pesquisa os saberes promovi- incluam o professor, tendo em vista que os
dos por esses grupos, levando em considera- professores pertencem hoje a grupos peri-
ção o caráter indisciplinar, transdisciplinar e féricos no Brasil (KLEIMAN, DE GRANDE,
crítico2 que a LA se constitui, que atravessa 2015; MOITA LOPES, 2015).
fronteiras, se transforma e tem interesse em À vista disso, voltamos nossos olhares
lidar com problemas sociais do uso da lin- para o que Nóvoa (2004) enfatiza no início
guagem. Muniz (2016), ao discutir o fazer deste tópico e buscamos, dessa forma, res-
científico na academia, nos traz a necessida- ponder a provocação que trazemos como
de de pensar uma Linguística crítica3 pós-co- pano de fundo: É mais que urgente falar so-
lonial, isto é, capaz de produzir saberes que bre emoções de professores nesse período
problematizem temas fora da alçada domi- de pandemia. Mais que urgente desenvolver
nante. A autora aponta que as “sensações de pesquisas no campo da LA que escutem as
incômodo e de deslocamento estão cada vez vozes dos professores e legitimem seus sa-
mais presentes, inclusive nas nossas pesqui- beres, especialmente nesse momento de
sas” (MUNIZ, p. 776, 2016) e que já é chega- emoções “à flor da pele”, para assim com-
da a hora de pensar e agir em favor da vali- preender, de fato, que é através de nossas
dação desses conhecimentos: emoções que podemos “dizer quem nós
Dessa forma, faz todo sentido se questionar somos, quem queremos ser ou o que quere-
e questionar o lugar não só de uma produção mos aprender” (ARAGÃO, p.58, 2017).
acadêmica que investigue e tenha como rele-
vante tudo o que fica de fora do paradigma Novos olhares acerca das
dominante, bem como os sujeitos pesquisa-
dores que pretendem investigar justamen-
emoções de professores e
te esse “resto” de temas sociais. (MUNIZ, p. tecnologia frente à pandemia
774, 2016)
A tecnologia, aqui, tem um papel importan-
Nesse contexto, pesquisar sobre o papel te. É através dela que o ensino remoto tem
das emoções em professores de LI se torna conectado professores e alunos. Apesar de
uma tarefa ainda mais desafiadora, uma vez discussões na academia acerca de quem tem
que, além de poucas pesquisas que abordam acesso a essas novas tecnologias serem re-
esse tema, os estudos voltados para o tópi- levantes para este trabalho, pretendemos
co das emoções tendem a privilegiar tais neste texto abordar a sua contribuição para
2 Em Moita Lopes (2009); Celani (1992); Paiva o ensino de línguas na modalidade online e
(2009) e Rajagopalan (1997). de que forma os professores de LI têm lidado
3 Segundo a autora, ao citar Mey (2001) menciona com suas emoções partindo dessa nova reali-
que a palavra ‘crítica’ é frequentemente designa-
da para determinar uma postura reflexiva e in- dade. Todavia, é válido salientar que, embora
dagadora em relação aos fenômenos da vida. nem todos possam gozar dos privilégios das

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

novas maneiras de ensinar e aprender por pontua que “é possível perceber que, em
meio do uso das tecnologias digitais, os pro- ambientes digitais, as pessoas costumam se
fessores, em sua maioria, vem buscando se expressar de uma maneira diferente do que
reinventar, a fim de continuar exercendo seu elas normalmente fariam se estivessem face
trabalho em meio à crise e prosseguir com as a face”.
atividades escolares (CORDEIRO, 2020). Contudo, a internet tem ofertado novas
A tecnologia, nesse contexto, assume um ferramentas que têm auxiliado professores
papel de visibilidade, pois nos leva a segun- nesse contexto de pandemia e, conforme ex-
da indagação deste texto: de que forma a planado por Cordeiro (2020), esse momen-
tecnologia está afetando os professores de to tem permitido aos professores vivenciar
LI e implicando em suas emoções durante a diferentes formas de ensinar e aprender
pandemia? e novas possibilidades de uso mediado da
Abordar sobre emoções e tecnologias tecnologia que podem contribuir e abarcar
no ensino de LI, em meio a uma pandemia novas perspectivas para o ensino de LI em
mundial, nos parece um longo e desafiador um contexto de pós-pandemia. Afinal, as es-
caminho na qual estamos pesquisando e tratégias educativas utilizadas neste contex-
sendo objetos de estudo. Nesse atual con- to já têm sido levadas para a sala de aula na
texto, tecnologia e emoções se encontram e modalidade presencial (DA SILVA, DA SILVA
estão diretamente ligadas à construção do NETO, DOS SANTOS, 2020).
ser e sentir professor. Ainda diante desse panorama, plata-
Pesquisas realizadas com professores e formas desenvolvidas pelo Google, como
estudantes de inglês demonstram o quan- Gmail4, Google meet5, google forms6, Google
to as nossas emoções interferem no desen- drive7, Google classroom8 e demais redes so-
volvimento das nossas habilidades orais e, 4 Gmail é um serviço gratuito de correio eletrônico
consequentemente, no desenvolvimento do criado pela Google com mais de 425 milhões de
usuários em todo o mundo.
idioma. De acordo com Sibilia (2012), con- 5 Google Meet é um serviço de comunicação por
forme citado por Aragão (2017, p. 84), “as vídeo desenvolvido pelo Google. É um dos dois
redes atravessam constantemente as pare- serviços que substituem a versão anterior do
Google Hangouts, o outro é o Google Chat.
des e as tecnologias móveis têm impacto no 6 O Google Forms é um serviço que tem por obje-
nosso jeito de ser, agir, conhecer e sentir”. tivo facilitar a criação de formulários e questio-
Chegamos, então, em um momento de nários diversos. Disponível gratuitamente para
todos que possuírem uma conta Google, o servi-
pandemia na qual os professores se viram ço pode ser acessado em diversas plataformas,
obrigados a se adaptar a essa nova reali- como web, desktop e celular. Ele é útil para to-
dade de ensino mediada pelo computador dos aqueles que queiram fazer um formulário de
pesquisa ou de coleta de opiniões.
e enfrentar os inúmeros desafios que esta
7 Google Drive é um serviço de armazenamento e
modalidade nos permite, desde a falta de sincronização de arquivos. Abriga o Google Docs,
letramento digital bem como a necessidade um leque de aplicações de produtividade, que
oferece a edição de documentos, folhas de cálcu-
de metodologias efetivas para ensinar in-
lo e apresentações.
glês. Se na escola, enquanto aula presencial, 8 Google Classroom é um sistema de gerenciamen-
o ensino da LI já se configura em desafios, na to de conteúdo para escolas que procuram sim-
modalidade remota esse desafio vem acom- plificar a criação, a distribuição e a avaliação de
trabalhos. Devido a pandemia, sofreu um grande
panhado de um mix de emoções enfrenta- aumento em seu download e utilização após ser
dos pelos professores. Aragão (2017, p.89) divulgado o decreto do MEC anunciando a para-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 146-166, jan./jun. 2022 151


Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

ciais (Whatsapp, Instagram, Facebook) são os temas aqui abordados, de modo a con-
exploradas em suas nuances por essa classe templar o atual momento que os professo-
de profissionais que buscam levar o conhe- res de línguas estão vivenciando no Brasil e
cimento mesmo mediante à tamanha difi- no mundo. Os resumos trazidos por nós, no
culdade. Já em se tratando do ensino de lín- mapeamento desses estudos, apontam no-
guas, plataformas já disponíveis na internet, vos caminhos para compreender e explorar
além das citadas aqui, e outras como Duolin- o universo de emoções e sua relação com a
go9, Lyrics Training10, Chatclass11 e Youtube, tecnologia.
têm auxiliado os professores de LI. Como já salientado por Barcelos e Ara-
Dentre essas ferramentas, o Whatsapp gão (2018), a relação entre tecnologias e
tem sido um recurso muito utilizado por emoções é pouco explorada, e poucas pes-
professores e alunos devido à sua praticida- quisas no País focam o papel das emoções
de e dinamicidade. O aplicativo de mensa- no desenvolvimento de habilidades orais
gens instantâneas permite o envio de fotos, com uso de tecnologias digitais. Todavia,
vídeos e arquivos, além de chamadas e liga- no cenário atual que estamos vivenciando,
ções gratuitas – desde que o usuário possua pesquisas que estejam voltadas para o uso
acesso à internet – e a criação de grupos, o das tecnologias digitas e emoções são fun-
que vem permitindo a comunicação e cone- damentais para compreender e refletir so-
xão de alunos e professores nesse momento bre a necessidade de produção de estudos
remoto. Essa ferramenta, já bastante utiliza- na academia que permitam contrastar com
da antes mesmo da pandemia, tem assisti- as emoções e o uso de tecnologia digital na
do esses profissionais e tem imbricado em pandemia, tendo em vista que os professo-
suas emoções. Contudo, poucas pesquisas res de línguas se encontram – ainda – to-
na área da LA trazem a relação entre o uso talmente submersos a essa realidade. Para
dessa ferramenta e emoções de professores. além, estes profissionais se viram obrigados
Á vista disso, entendemos a necessidade a dominar as tecnologias e suas variadas
de revisitar estudos que investigam emo- ferramentas e plataformas para ensino de
ções de professores e tecnologias digitais, a línguas sem ou com pouco apoio em estu-
fim de sugerir novas pesquisas envolvendo dos que investiguem suas emoções e que
lisação das aulas presenciais. investiguem, de igual modo, como a tecno-
9 Duolingo é uma plataforma de ensino de idiomas logia tem sido utilizada para desenvolver
que compreende um site, aplicativos para diver-
habilidades orais em inglês. O resultado: de
sas plataformas e também um exame de profi-
ciência digital. um lado, temos profissionais que percebem
10 O Lyrics Training é uma plataforma online para suas emoções sendo afetadas devido ao en-
aprimorar o listening através de atividades com
sino de línguas mediado pela tecnologia; e
música.
11 A ChatClass é uma Edtech fundada em Nova York, de outro, a carência de estudos que investi-
que visa democratizar o ensino de inglês utili- guem suas emoções e apontem novos cami-
zando inteligência artificial. A plataforma utiliza
nhos para o ensino de LI mediado por novas
ferramentas presentes no dia a dia dos brasilei-
ros, como o Whatsapp. Recentemente, o Chat- tecnologias.
Class foi a ferramenta escolhida para a realização Assim, por entender a urgência de nos
da Olimpíada de Inglês no Brasil, que mobilizou aprofundar em tais estudos, apresentamos
mais de 100 mil alunos dos ensinos Fundamen-
tal 2 e Médio em escolas públicas e particulares algumas pesquisas produzidas por autores
brasileiras que inter-relacionam as emoções, o ensino

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

de línguas e as tecnologias digitais. Den- buscamos utilizar os seguintes descritores:


tre eles, destacam-se os estudos de Aragão artigos disponíveis no google acadêmico e
(2017); Aragão, Paiva, Gomes Junior (2017), em revistas acadêmicas que contemplem o
Barcelos e Aragão (2018); Gomes Junior tema e o período apresentado neste texto;
e Puccini (2019), Terra (2019), Trevisol e autores que trabalham com emoções de
(2019) e Nunes (2020). Os estudos cita- professores e tecnologia na LA. Após sele-
dos trazem importantes discussões acerca ção e posterior revisão, trazemos as consi-
do uso das tecnologias digitais no ensino derações de cada pesquisa, bem como um
-aprendizagem de LI e sua relação com as resumo da revisão de literatura utilizada ao
emoções. Para além, os estudos seleciona- final deste trabalho.
dos buscam analisar as emoções de seus Daremos início com o estudo de Ara-
participantes em atividades que envolvem gão (2017) que aborda sobre emoções de
o ensino de línguas e as novas tecnologias. professores e suas interações orais ao falar
Desse modo, considerando as contribuições inglês pelo Whatsapp. O artigo traz resul-
das pesquisas aqui elencadas, é que se de- tados parciais de uma pesquisa acerca das
bruça a seção que segue. emoções que, segundo o autor, faz parte de
um projeto maior que objetiva avaliar as
Estudos sobre emoções de experiências de estudantes e professores
professores e tecnologia digital ao desenvolver suas atividades orais por
meio da tecnologia digital de comunica-
no Brasil ção multimídia (ARAGÃO, 2017). Para tan-
Na tentativa de compreender melhor a re- to, Aragão (2017) desenvolveu um estudo
lação entre emoções de professores e tec- qualitativo de base experiencial, “ou seja,
nologias digitais e como as emoções tem se pesquisa que enfoca a experiência daque-
intensificado no atual contexto, é necessário les que vivenciam o fenômeno do ensino/
revisitar estudos anteriores produzidos por aprendizagem” (ARAGÃO, 2017, p.84), que
pesquisadores que investigam o fluir das permitiu analisar e compreender como os
emoções no ambiente digital. professores de inglês se sentem ao utilizar
Iniciaremos esse mapeamento trazendo esse recurso de áudio para falar inglês. O
uma breve revisão de literatura apresenta- autor ainda aborda sobre as tecnologias di-
da pelos autores que seguem pesquisando gitais no ensino-aprendizagem de LI e dis-
sobre a temática proposta neste texto. Apre- cute os dados da pesquisa destacando as
sentamos pesquisas que sugerem resulta- emoções de segurança, confiança, medo e
dos de uma investigação sobre o uso de tec- ansiedade.
nologias digitais que refletem na percepção Nessa perspectiva, o artigo de Aragão
de emoções, traçando um recorte temporal (2017) nos convida a refletir acerca das
e de ordem cronológica nos anos de 2017- nossas emoções enquanto professores de
2021. Tal período proposto se aproxima de LI, reconhecê-las através do desenvolvi-
pesquisas contemporâneas na LA que apon- mento de habilidades orais e instigar novas
tam para as novas tecnologias e se aproxima produções que incluam o professor e o en-
do atual cenário pandêmico, uma vez que tendimento de suas emoções no campo da
poucos estudos que abordam tecnologia e LA. Assim, o autor traz uma reflexão acerca
pandemia foram encontrados. Para tanto, da relação entre emoções e a linguagem,

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Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

para, dessa forma, situar o papel de ambas de distinguir elementos na linguagem – e o


em sua pesquisa. Segundo o autor: linguajar – a atividade de agir mutuamente
e coordenar ações na linguagem. (ARAGÃO,
Como são fenômenos biológicos, as emoções
2017, p.88).
estão relacionadas aos movimentos. É com
elas que agimos de maneira expansiva na A partir dessa relação entre emoções –
alegria e na confiança, e no bloqueio ou na linguagem – ação, pontuada pelo autor, en-
restrição na inibição e no medo. Entretanto, tendemos como a pesquisa de Aragão busca
na linguagem, ao observarmos nossa pró- compreender de que modo as emoções de
pria ação, ou aquela de outra(s) pessoa(s),
professores podem impactar também na
podemos refletir e dar sentido ao que ob-
servamos, e assim falar da emoção como habilidade oral de se comunicar em inglês
um sentimento (ARAGÃO, 2011). Portanto, através de uma ferramenta virtual – o What-
os sentimentos são descrições na lingua- sapp. Nesse sentido, Aragão nos direciona
gem das emoções vividas pelos seres vivos. para uma abordagem que, embora pouco
(ARAGÃO, 2017, p. 87) investigada, reflete na formação do profes-
Corroborando com o autor, entendemos sor e o ensino-aprendizagem de línguas e
a relação entre a linguagem, emoções e sen- que se materializa, aqui, neste esboço, pois
timentos, não podendo distanciar-se um do seu trabalho nos apresenta um olhar apro-
outro, uma vez que “os sentimentos são nos- fundado sobre as nossas emoções e como
sas percepções psíquicas na linguagem da- elas estão imbricadas no nosso cotidiano.
quilo que vivemos como emoções que em- Para além, a pesquisa de Aragão (2017) nos
basam nossas ações cotidianas” (ARAGÃO, leva a refletir sobre como as ferramentas
2017, p. 88). virtuais e toda a sua tecnologia podem nos
Aragão argumenta que, ao tratar emo- auxiliar a reconhecer o fluir de nossas emo-
ções como sentimentos, as conectamos e ções. Assim, o autor traz uma breve revisão
relacionamos com as experiências positivas de estudos que se propuseram a analisar as
e negativas que temos no dia a dia. A lingua- experiências de estudantes com tecnologias
gem, por sua vez, relaciona-se com as limi- assíncronas de áudio e suas inter-relações
tações ou facilidades no ato de comunicar, com as emoções, e nos apresenta resultados
que está ligado diretamente com a maneira de pesquisadores que analisaram as variá-
de como lidamos com algo no cotidiano. En- veis afetivas dos estudantes ao falar inglês
tende-se, então, que as nossas emoções im- com tecnologias assíncronas baseando-se
plicam diretamente na nossa prática e, con- nos estudos de Huang (2008); Pop, Tomu-
sequentemente, no nosso linguajar, pois: letiu e David (2011); Sun (2011) e Poza
Há momentos em que certas ações são pos- (2011).
síveis ou mais potencializadas que outras, a Os resultados da pesquisa de Aragão
depender da emoção envolvida. Ao mudar (2017) sugerem o reconhecimento de emo-
de emoção, mudamos de ação, bem como ções positivas e negativas que envolvem o
ao mudarmos de ação tendemos a mudar grupo pesquisado. O estudo nos auxilia a
nossa emoção de maneira interdependen-
compreender como as emoções dos parti-
te (ARAGÃO, 2011). Seguimos permanen-
temente nesse fluir, que Maturana (1998)
cipantes são afetadas ao utilizar essa ferra-
denomina de emocionar. Sob esse enquadre menta tecnológica. As emoções retratadas
conceitual, emoções relacionam-se com as pelos professores através de narrativas ex-
ações, incluindo aqui o conhecer – atividade postas pelos pesquisados são: segurança e

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

confiança, medo e ansiedade, insegurança e A pesquisa revela que os participantes


tristeza. obtiveram uma avaliação positiva da disci-
A análise deste estudo nos permite per- plina associada a sentimentos de segurança,
ceber a forma como o autor nos apresenta confiança, conforto e tranquilidade ao falar
o domínio dessas emoções e nos chama a inglês mediado por tecnologias digitais. Os
atenção para o reconhecimento e compreen- resultados apontam que “a experiência com
são das mesmas, se atentando ao fato de es- tecnologias digitais parece ter feito com que
sas emoções também serem desencadeadas os alunos reconhecessem outras formas de
através de uma ferramenta digital. aprender e acreditassem mais em suas habi-
Nesse aspecto, reforçamos as contri- lidades” (ARAGÃO, PAIVA, GOMES JUNIOR,
buições da pesquisa realizada por Aragão 2017, p. 565). Os autores reforçam que, a
(2017) para o andamento deste ensaio, uma partir da popularização das tecnologias di-
vez que é necessário discutir sobre como a gitais, os pesquisadores permitem voltar-se
tecnologia tem afetado as emoções de pro- para as novas possibilidades que essas fer-
fessores nesse momento de pandemia. Para ramentas podem produzir, investigando, as-
além, outra contribuição que o artigo traz sim, o efeito da comunicação mediada por
para esta pesquisa – e poderá ser pensada computador na ansiedade e emoções dos
como ferramenta de apoio futuramente – se aprendizes de uma segunda língua. Ainda,
dá ao fato de, ainda em seu artigo, o autor a pesquisa indica que houve ganhos signi-
suscitar o uso dessa tecnologia para a criação ficativos em habilidades não relacionadas
de redes que auxiliem os professores a lida- à aquisição da língua, como organização,
rem com sentimentos de “isolamento, soli- confiança e segurança; e demonstra como
dão, desemparo, insegurança, desinteresse e o trabalho, a partir do uso das ferramentas
frustração vividos no cotidiano da profissão digitais, contribui para a aprendizagem des-
e comumente relatados em pesquisas sobre ses alunos e afeta positivamente seu desem-
formação continuada de professores” (ARA- penho.
GÃO, 2017, p.106). Neste momento de pan- A análise dos dados, desse modo, “cor-
demia, nunca antes se tornou tão necessário roborou com os resultados de estudos ante-
uma rede que fornecesse apoio a esta classe riores que mostraram a influência positiva
de profissionais que está vivendo dias inten- da mediação tecnológica na aprendizagem
sos de angústia, incertezas e reinvenção. de segunda língua ao promover a confiança
Ainda nesta esteira, apresentamos o se- dos alunos e reduzir a ansiedade relacio-
gundo estudo que aborda emoções no de- nada à comunicação oral” (ARAGÃO, 2011;
senvolvimento de habilidades orais com ARAGÃO; PAIVA; GOMES JUNIOR, 2017;
tecnologias digitais. O estudo produzido POP; TOMULETIU; YANGUAS, 2011;). De
por Aragão, Paiva, Gomes Junior (2017) igual modo, as atividades assíncronas me-
nos apresenta uma análise das experiências diadas por ferramentas tecnológicas foram
emocionais sobre o uso de tecnologias digi- percebidas de maneira positiva pelos parti-
tais móveis para a aprendizagem de línguas cipantes e podem ajudar a mitigar a insegu-
estrangeiras e desenvolvimentos das habili- rança e a ansiedade no ambiente presencial.
dades orais em inglês. Para tanto, os autores Em contraste com este último, a pesquisa
investigaram estudantes de letras da UFMG, demonstra aumento dos níveis de ansieda-
por meio de uma disciplina online. de e de insegurança na atividade presen-

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Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

cial. Diante disso, os autores apontam que contextualizada” (GOMES JUNIOR E PUCCI-
“a presença do outro na interação face a NI, 2019, p. 2)
face afetou negativamente os participantes, Em suma, através do que foi apontado
demonstrando que a forma como os pares por Gomes Junior e Puccini, percebe-se a
interagem, seja síncrona ou assíncrona, é inevitabilidade de estudos que possibilitem
um aspecto determinante nas emoções dos a continuidade de investigações acerca das
aprendizes”. Para além, Aragão, Paiva, Go- emoções e tecnologias, e que inter-relacio-
mes Junior (2017) ao sugerir que os resul- nem tais temas, para que possibilite ao edu-
tados diferem dos resultados das pesquisas cador compreender suas próprias emoções
realizadas em ambientes formais de ensino, em relação ao ensino (BARCELOS, ARAGÃO,
concluem que o estudo das ferramentas di- 2018). Da mesma forma, foi observada a
gitais para a aprendizagem e desenvolvi- necessidade de apresentar estratégias que
mento de habilidades orais de LI pode cor- corroboram para o desenvolvimento das ha-
roborar para emoções positivas em expe- bilidades orais em inglês e promovam, seja
riência de aprendizagem. em ambiente virtual e/ou presencial, opor-
O próximo estudo a ser apresentado foi tunidades para reconhecer o poder trans-
produzido por Gomes Junior e Puccini em formador das emoções.
2019. Estes, por sua vez, desenvolveram um Neste sentido, os estudos apresentados
estudo semelhante ao citado acima, no qual até aqui reforçam a urgência de pesquisas
nos apresentam um panorama da produção que contemplem a inter-relação entre emo-
acadêmica sobre o uso de tecnologias digi- ções e tecnologias digitais no ensino de lín-
tais para a aprendizagem e desenvolvimen- guas. Através do mapeamento proposto nes-
to de habilidades orais em inglês. te trabalho, se torna possível refletir acerca
Gomes Junior e Puccini (2019) coleta- deste tema no campo da LA. Assim, refor-
ram e categorizaram trabalhos de 2013 a çamos as contribuições e discussões que as
2017, com o auxílio da ferramenta Google pesquisas aqui elencadas podem provocar e
Acadêmico. Assim, os autores concluíram subsidiar futuras pesquisas empíricas que
que a partir do mapeamento e análise des- considerem esta abordagem.
ses estudos foi possível perceber que o uso Ainda em 2019, outro estudo foi pro-
das tecnologias digitais contribui para a duzido com a autoria de Gomes Junior e
aprendizagem de línguas. Todavia, os auto- Gutierrez, que envolve tecnologias digi-
res apontam a emergência de novos estudos tais e emoções. Este próximo investiga as
e estratégias de aprendizagem em contexto affordances12 de ferramentas digitais para
digital móvel, que considerem a possibili- o ensino de línguas. O estudo também foi
dade de impactos linguísticos, emocionais, produzido com estudantes da UFMG, para
cognitivos, sociais e locais neste campo de o desenvolvimento de habilidades orais em
atuação. inglês. Para tanto, os autores conduziram
Embora escassas, os autores indicam que uma pesquisa partindo da criação de um
os resultados das pesquisas elencadas mos- curso de extensão online, através do uso
traram diversas contribuições pedagógicas.
Contudo, também foi verificado “a necessi- 12 Baseado em Gibson (1986), o termo é utilizado
em razão do que um ambiente possa oferecer,
dade de expansão de seus horizontes com considerando seus aspectos positivos e/ou ne-
vistas a uma abordagem mais integrada e gativos.

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

da plataforma Moodle, oferecido pelo Cen- VA, GOMES JUNIOR, 2017; ARAGÃO, 2017)
tro de Extensão da Faculdade de Letras da são decorrentes em aprendizes de uma lín-
UFMG (CENEX/FALE). Os dados coletados gua estrangeira e que o uso das tecnologias
objetivavam identificar as percepções e o digitais tem apresentado resultados posi-
papel que as tecnologias digitais e as affor- tivos no desenvolvimento de habilidades
dances desempenham no desenvolvimento orais. Ainda, Aragão (2017) Paiva; Gomes
de uma língua estrangeira. Junior (2017); Gomes Junior et.al., (2018) e
Ao identificar as emoções, os autores con- Paiva (2018) salientam que muitos apren-
cluem que os resultados sugerem “uma per- dizes se sentem inseguros na prática oral
cepção positiva, autônoma e construtivista da LI.
dos aprendizes diante do desenvolvimento No estudo das affordances produzido
de habilidades por meio de tecnologias digi- por Gomes Junior e Gutierrez (2019), ain-
tais” (GOMES JUNIOR E GUTIERREZ, 2019, da é possível verificar que os resultados
p. 105). Para além, foi possível identificar a do curso demonstram que os participantes
redução de emoções negativas que refletem superaram o medo de falar a língua-alvo
na aprendizagem de inglês. Durante o estu- e aprenderam a criar atividades dinâmi-
do, os autores utilizaram como ferramentas cas. Para os autores, a affordance percebi-
digitais: Voki, Vocaroo, Fotobabble, PodBean da reforça os resultados já apresentados
e UTellStory. Segundo Gomes Junior e Gu- por Aragão (2017), Aragão, Paiva e Gomes
tierrez (2019), a análise do uso dessas fer- Junior (2017), Gomes Junior et al. (2018)
ramentas permitiu perceber as seguintes e Paiva (2018), ao concluir que “o uso de
affordances: “possibilidade de ampliar o tecnologias digitais para o desenvolvi-
vocabulário, de praticar a pronúncia e per- mento de habilidades orais parece reduzir
der o medo”. Ademais, também se percebeu emoções negativas como medo, ansiedade
melhorias na autonomia dos participantes, e desconforto” (GOMES JUNIOR e GUTIER-
uma vez que os mesmos tiveram a oportu- REZ, 2019, p. 18). Nesse estudo, também
nidade de avaliar seu próprio desempenho foram constatadas percepções positivas,
no decorrer do curso de extensão e apren- autônoma e construtivista dos aprendizes
deram a lidar com situações inesperadas. diante do desenvolvimento de habilidades
Outro aspecto na pesquisa de Gomes Junior por meio de tecnologias digitais, contras-
e Gutierrez (2019), que é importante desta- tando com os resultados dos estudos an-
car, aponta como as interações e motivações teriormente citados. Ademais, foi possível
dos estudantes corroboram para a constru- perceber melhora dos aspectos linguísti-
ção de uma aprendizagem eficaz no ambien- cos, sociais e emocionais nos estudantes e
te virtual. a redução de emoções negativas, abrindo
Assim, reiteramos que o mapeamento espaço para melhorias que envolvem as
aqui apresentado revela como as emoções emoções e as tecnologias digitais, que os
de professores e aprendizes de LI refletem autores jugam como elementos importan-
de maneira positiva ou negativa no am- tes propiciados pelas tecnologias digitais
biente virtual em atividades que envolvem no desenvolvimento de habilidades orais
interação. Pesquisas como as que trazemos em inglês.
nesse esboço, revelam que os fatores de an- Neste contexto, outro estudo que traz
siedade, insegurança, medo (ARAGÃO, PAI- aprofundamento sobre o uso de tecnologias

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 146-166, jan./jun. 2022 157


Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

digitais para o desenvolvimento de habili- Também em 2019, Trevisol buscou in-


dades orais em inglês é o de Terra (2019). vestigar a produção oral e percepção de
A autora propõe investigar a percepção dos aprendizes de L2 com o uso de histórias di-
estudantes sobre o desenvolvimento de ha- gitais. Para tanto, a autora utilizou a abor-
bilidades orais em uma disciplina de inglês dagem qualitativa e análise das narrativas
para fins acadêmicos. Terra (2019) busca orais em L2 dos licenciandos de um curso
identificar como as atividades tecnologica- de Letras-inglês na universidade pública da
mente mediadas contribuem para o desen- Bahia. A pesquisadora aponta que utilizar
volvimento dessas habilidades. histórias digitais como ferramenta para o
Para tanto, Terra (2019) desenvolveu desenvolvimento de habilidades orais em LI
um estudo com onze alunos da disciplina, pode contribuir positivamente no aprendi-
em que os mesmos participaram de duas zado destes estudantes, além de fomentar
atividades voltadas para o desenvolvimento o uso autêntico da língua e desencadear
das habilidades orais, sendo elas uma apre- episódios de conscientização e percepção
sentação oral tradicional e uma atividade por meio das tarefas produzidas. Trevisol
mediada por computador que requeria do (2019) ainda reitera que demais estudos
estudante a produção de um video-pitch. As sobre o uso das histórias digitais têm refor-
atividades tiveram por objetivo identificar çado os efeitos positivos na produção oral
estratégias de aprendizagem utilizadas, bem (LEE, 2014). Sua pesquisa demonstrou que
como os ganhos obtidos e as percepções so- os participantes perceberam que utilizar
bre o feedback dos colegas e sentimentos essa ferramenta para fins pedagógicos pode
relacionados à prática de comunicação oral. beneficiar a inclusão das tecnologias digi-
Terra (2019, p. 8) concluiu, partindo do tais na sala de aula, sendo importante enfa-
resultado das análises, que a atividade me- tizar neste esboço.
diada por computador “propiciou o uso de Já no ano de 2020, Nunes nos apresen-
estratégias de aprendizagem mais diversas, ta resultados de uma pesquisa qualitativa
com ganhos semelhantes à atividade pre- com 72 alunos do ensino médio da cidade
sencial tradicional, porém com menor nível de Barbacena- MG. O estudo buscou avaliar
de ansiedade”. Neste sentido, o estudo de ferramentas tecnológicas e o desenvolvi-
Terra (2019, p. 8) tornou-se interessante mento da comunicação oral em inglês por
para este mapeamento, uma vez que os re- meio de atividades on-line. Para tanto, Nu-
sultados indicam que “as ferramentas tec- nes (2020) utilizou softwares de conversa-
nológicas apresentam benefícios comple- ção por voz e vídeo, aplicativos (Bingo Live,
mentares às práticas tradicionais voltadas Amino, Yalla e Whatsapp) e jogos on-line. O
para desenvolvimento de habilidades orais” estudo aponta efeitos positivos nos partici-
e proporciona uma experiência mais positi- pantes e a possibilidade de uma aprendiza-
va em relação a aprendizagem do aluno. Da gem significativa, contextualizada e diver-
mesma, os resultados do estudo de Terra tida. Para além, foram percebidas o estímu-
conversam com os demais estudos aqui ci- lo de novas visões de mundo, mudanças de
tados, no sentido de compreender as emo- crenças e atitudes, quebra de estereótipos
ções dos participantes e demonstrar ganhos e combate a preconceitos partindo da inte-
positivos na abordagem com tecnologias di- ração com as ferramentas digitais aponta-
gitais. das pela autora.

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

Diante dos estudos aqui apresentados, cialmente nesse contexto pandêmico. Para
é importante salientar que, embora os soft- além deste esboço, pensemos nos profissio-
wares não tenham sido criados com objeti- nais por trás das telas, e o quanto suas emo-
vos pedagógicos, quando utilizado para fins ções têm embasado suas ações; e de que
educacionais, seu uso tem se demonstrado forma a inter-relação entre emoções, tec-
satisfatório, conforme apontado por alguns nologia e desenvolvimento das habilidades
pesquisadores (MARTINS; GOUVEIA, 2019, orais tem corroborado para o entendimento
PACZKOWSKI; PASSOS, 2019, SANTOS; SAN- da dimensão desse campo de estudo.
TOS NETA; MARTINS, 2019). Fica evidente a urgência de estudos que
Destaca-se ainda a identificação de tra- investiguem emoções e tecnologia, bem
balhos com produção de textos orais com como pesquisas que apontem novas pers-
tecnologias digitais (UCHÔA, 2014, SOUZA, pectivas para o estudo das emoções de alu-
2014, LEMOS, 2017), treinamento da pro- nos e professores de LI considerando o pa-
núncia com aplicativos (ALMEIDA, 2015; norama pré e pós-pandemia.
MARTINS, 2015), produção de textos escri-
tos em quadrinhos digitais (SILVA, 2013), Conclusão
e produção colaborativa de textos online À vista dos estudos apresentados ao longo
(LEANDRO, 2014). Outra área de estudos deste texto, percebemos a necessidade de
com indicação de tendências inovadoras são produzir pesquisas que discutem emoções
as pesquisas-ações com smartphones como de professores e tecnologias digitais que
em Costa (2013) e Lemos (2017). fortaleçam o ensino/aprendizagem de in-
Temos, ainda, uma gama de estudos que glês mediada pela tecnologia e contribua
nos mostram como o uso de tecnologias di- para uma melhor compreensão das emoções
gitais no ensino de inglês tende a aumentar nesse contexto da pandemia da COVID-19.
a interatividade na língua em uso concomi- No entanto, o andamento de pesquisas fu-
tantemente com o aumento da motivação de turas que inter-relacionem as emoções e as
estudantes no engajamento em tarefas co- tecnologias digitais não seria possível sem
municativas (ALMEIDA, 2015; COSTA, 2013; antes revisitar estudos de autores que têm
LEMOS, 2017; PEREIRA, 2016; PEIXOTO, se ocupado de investigar tais temas. Com o
2015; SILVA, 2013; SOARES, 2013; SOUZA, intuito de avaliar as contribuições dessas
2014). Estudos focados na produção oral pesquisas para essa área, apresentamos um
em inglês aliadas a diversas estratégias de recorte temporal de 2017-2021, trazendo
desenvolvimento de habilidades orais com estudos dos seguintes pesquisadores: Ara-
tecnologias digitais móveis tendem a im- gão (2017); Aragão, Paiva, Gomes Junior
pactar positivamente e fortalecer projetos (2017); Gomes Junior e Puccini (2019);
de formação inicial e continuada de profes- Gomes Junior e Gutierrez (2019; de Terra
sores de inglês (ARAGÃO, 2017; ARAGÃO, (2019; Nunes (2020).
PAIVA, GOMES JUNIOR, 2017). A partir das discussões apresentadas
Assim, diante das pesquisas apresenta- pelos autores é que se debruça este texto e
das nesta seção, entendemos a relevância de impulsiona a investigar, mais a fundo, a re-
trazer estudos que apontem a relação entre lação entre emoções e tecnologias digitais.
emoções e tecnologias digitais que corrobo- Alguns fatores foram colocados em pauta:
rem para a compreensão deste tema, espe- o papel das emoções dos professores de LI,

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 146-166, jan./jun. 2022 159


Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

o papel da tecnologia no entendimento das contexto é urgente, pois a pandemia, inicia-


emoções, o desenvolvimento de habilidades da em março de 2020, ainda não acabou.
orais com uso de ferramentas digitais, pes- Até o presente momento, essas emoções
quisas sobre emoções na LA, e o reinventar ainda não foram pesquisadas na academia
do professor em tempos de pandemia. e compreendidas. As reflexões citadas até
Nesse sentido, corroboramos com as pa- aqui nos revelam a necessidade de prosse-
lavras de Da Silva, Da Silva Neto e Dos San- guir com tais estudos em favor de investigar
tos (2020, p. 4), ao compreender que existe o papel das emoções no ensino/aprendiza-
a necessidade de realizar reflexões apro- gem de inglês mediado pela tecnologia que
fundadas acerca dos impactos da pande- contemplem, também, o contexto pandêmi-
mia para que subsidiem os caminhos que a co e pós-pandêmico.
educação poderá trilhar em decorrência do Ainda no campo da LA, esperamos que
isolamento social, e que “investigar a edu- as abordagens trazidas através dessa inves-
cação a distância em tempos de COVID-19 tigação possam alcançar àqueles que estão
no cenário brasileiro torna-se, então, uma na academia e no campo de formação de
emergência, considerando as incertezas que professores, e implique em novas práticas
o atual contexto trouxe”. que incentivem pesquisas relacionadas às
Sendo assim, reforçando o que aborda- emoções de professores, para, dessa forma,
mos ao longo deste texto, esperamos que a poder investir em ações que auxiliem e es-
revisão de literatura aqui apresentada ofe- cutem as vozes desses profissionais nesse
reça subsídios para futuras pesquisas em- novo contexto de ensino.
píricas. Novamente, reiteramos que falar A seguir, apresentamos um resumo da
sobre emoções de professores de LI no atual revisão de literatura citada no texto.

Autor Pergunta/Objetivo Metodologia Resultado

Como os professores se
Os resultados indicam que parte
sentem ao usar o recurso Qualitativa
dos participantes se sentiram mais
de áudio para falar inglês com uso de
confiantes e mais dispostos a se
no WhatsApp? O fato de questionário,
Aragão, comunicar no WhatsApp do que em
as mensagens de áudio entrevista e
2017. contextos face a face. Por outro lado,
serem feitas via WhatsApp representações
outro grupo se sentiu mais inseguro para
deixou-os mais à vontade visuais das
falar inglês com os recursos de gravação
do que em um encontro emoções.
de áudio.
presencial?

Avaliar como as
tecnologias digitais Qualitativa, Os resultados indicam uma avaliação
podem auxiliar no observação das positiva da disciplina associada a
Aragão,
desenvolvimento de interações dos sentimentos de segurança, confiança e
Paiva,
habilidades orais durante estudantes no conforto dos aprendizes ao
Gomes
a aprendizagem de inglês ambiente online, falar inglês mediados por tecnologias
Junior,
como língua adicional ao questionários digitais. Foram também relatadas
2017.
contribuírem para e entrevistas emoções de tranquilidade e de prazer
diminuir emoções semiestruturadas. por alguns participantes.
negativas.

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

Com o auxílio
Foi observado que a produção científica
Apresentar um panorama da ferramenta
não se encontra em estágios iniciais
da produção acadêmica “Google
e apresenta abordagens amplas e
sobre o uso de tecnologias Acadêmico”,
diversos aportes teóricos. Sobre o
Gomes digitais móveis para foram coletados
desenvolvimento de habilidades orais
Junior e a aprendizagem de trabalhos de
em inglês os resultados das pesquisas
Puccini, línguas estrangeiras e 2013 a 2017 e
mostram diversas contribuições
2019 adicionais, em especial, agrupados em
pedagógicas, entretanto foi verificado
para o desenvolvimento categorias de
a necessidade de expansão de seus
de habilidades orais em acordo com seus
horizontes com vistas a uma abordagem
inglês. objetivos e gêneros
mais integrada e contextualizada.
acadêmicos.

Desenvolvimento
de curso de Nesta pesquisa, algumas das affordances
extensão online percebidas pelos estudantes foram:
na plataforma possibilidade de ampliar o vocabulário,
Moodle. O curso de praticar a pronúncia e perder o
Investigar as affordances teve duração medo. Vale ressaltar que também
Gomes de ferramentas digitais de 6 semanas houve limitações tais como dificuldades
Junior e para o desenvolvimento e foi oferecido técnicas em relação ao uso de
Gutierrez, de habilidades orais em no segundo determinadas ferramentas. Ademais,
2019 Língua Inglesa. semestre de 2017 houve um crescimento de autonomia
a 30 estudantes dos participantes, enfatizando como as
de diversos cursos interações e motivações dos estudantes
da Universidade foram fundamentais na construção de
Federal de Minas aprendizagem no ambiente virtual
Geras

Investigar a percepção
dos estudantes sobre
Esses resultados sugerem que as
o desenvolvimento de
Questionários, ferramentas tecnológicas apresentam
habilidades orais em
entrevistas benefícios complementares às
uma disciplina de inglês
semiestruturadas práticas tradicionais voltadas para
Terra, para fins acadêmicos,
e relatórios desenvolvimento de habilidades orais,
2019 buscando identificar
reflexivos propiciando uma experiência mais
como as atividades
produzidos pelos positiva em que a aprendizagem, e não o
tecnologicamente
participantes gerenciamento de emoções negativas, é o
mediadas contribuem
foco do aluno.
para o desenvolvimento
dessas habilidades.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 146-166, jan./jun. 2022 161


Emoções e tecnologias digitais no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa

Nesta pesquisa, os resultados sugerem


que a oportunidade de ensaiar a
produção dos aprendizes por meio de
Buscou investigar o
algumas tarefas desencadeou episódios
impacto de um ciclo de
de conscientização, percepção de
tarefas com histórias
lacunas e de foco na forma. Além disso,
digitais na produção oral
os aprendizes perceberam as tarefas
de aprendizes de L2; os
Qualitativa como instigantes e desafiadoras, pela
processos
por meio de oportunidade de tomada de decisão e
pelos quais os aprendizes
questionários, desenvolvimento tanto de língua quanto
Trevisol, se engajam ao desenvolver
observação oral e de habilidades digitais, em geral. Deste
2019 cada uma das tarefas do
narrativas, além modo, entende-se que histórias digitais
ciclo; suas percepções
da produção de podem ser uma ferramenta vantajosa ao
sobre a criação da história
histórias digitais. desenvolvimento da (fala na) L2, uma vez
digital com relação à
que fomentam o uso autêntico da língua,
tecnologia, aprendizagem
dentre outras questões, por meio de
e (futuro) ensino da L2,
tecnologia digital. Logo, a adaptação de
dentre
tais tarefas multimodais ao aprendizado
outras questões
pode ser um caminho produtivo na
tentativa de se aliar tecnologias com
TBLT em espaços pedagógicos de L2.

Os resultados mostraram que os


softwares de interlocução por voz
e vídeo, o WhatsApp e os jogos on-
line promovem o desenvolvimento
Abordagem da comunicação oral em inglês,
qualitativa, com o representando ambientes propiciadores
método estudo de de interação natural síncrona e
caso e contou com assíncrona entre falantes reais da LI.
72 participantes, Ademais, os resultados evidenciaram que
Identificar, testar e
alunos do ensino os recursos tecnológicos estimularam
avaliar ferramentas
médio da Escola novas visões de mundo, mudanças de
tecnológicas e verificar
Preparatória de crenças e atitudes, desconstrução do
suas contribuições para
Cadetes do Ar próprio “eu”, quebra de estereótipos,
o desenvolvimento
(EPCAr). combate a preconceitos e respeito e
da comunicação oral
Os dados foram tolerância às diversidades. Também
em inglês por meio
Nunes, gerados entre foi demonstrado que as plataformas
de atividades on-line,
2020 fevereiro e digitais/móveis se configuram redes
realizadas dentro e fora
dezembro de de interações dinâmicas de saberes
do contexto escolar,
2019 mediante distribuídos que proporcionaram
que propiciassem
registros em agência da aprendizagem, em que
interlocuções
notas de campo, cada discente contribuiu para o todo
significativas com
questionários, ao compartilhar experiências entre
oportunidades de
entrevistas, colegas e estrangeiros, podendo
negociação de significados
conversas gerenciar, ensinar, criticar, auxiliar, co-
informais, construindo conhecimento por meio
fotografias e de ações colaborativas. Além disso, os
observação resultados revelaram que a metodologia
participante. mediada pelas tecnologias foi vista
pelos educandos como lazer, e não como
estudo, o que lhes motivou a participar
das atividades, facilitando a aquisição
linguística.

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Rodrigo Camargo Aragão; Keila Carlos Ferreira

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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

166 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 146-166, jan./jun. 2022


Vitor Hugo Luís Geraldo

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Nomear é chamar à existência:


a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda
Hilst e Guimarães Rosa
Vitor Hugo Luís Geraldo (UFU)*
https://orcid.org/0000-0003-4598-1095

“sabendo que o nome


se ao homem sustem
torna-o refém
também o consome.”
(Waldo Motta)

Resumo:
Em 1987 o escritor e crítico literário Oscar D’Ambrosio publica no então jor-
nal Estado de São Paulo uma matéria intitulada: “Guimarães Rosa encontra
seu duplo: Hilda Hilst.” Partindo desta identificação literária e ancorando-
se em entrevistas concedidas pela autora, em que reconhecia não só a pro-
ximidade poética de suas obras, como o apreço e a influência sofrida pelo
escritor, este trabalho se dedicará a investigar um traço comum a estes au-
tores, o obsessivo processo de nomeação de Deus e do Diabo. Fazendo de
Deus uma de suas investigações não só literárias, como também filosóficas
e cotidiana, Hilda Hilst colocou em prosa, e poesia, sua excruciante dúvida
quanto à existência divina. Na outra margem, encontramos Guimarães Rosa
que, em Grande Sertão: Veredas, tece uma personagem questionante, impas-
sível diante da (im)possível existência do Diabo. Riobaldo, em seu périplo,
concebe uma vasta cartografia onomástica e pictórica daquele que tanto diz
evitar. Traço comum nos autores, investigaremos essa evidente necessidade
de nomeação, buscando o sentido latente deste privilégio adâmico.
Palavras-chave: Hilda Hilst; Guimarães Rosa; nomeação; Deus; Diabo.

Abstract:
NAMING IS A CALL TO RESISTANCE: THE NAMING OF
GOD AND THE DEVIL IN HILDA HILST AND GUIMARÃES
ROSA’S WORKS
In 1987, the writer and literature critic Oscar D’Ambrósio publishes in the

* Mestrando em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia, Membro do Grupo de Pes-
quisa POEIMA – Grupo de Pesquisa Poéticas do Imaginário. Editor da Revista Téssera. Bolsista da CAPES.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9445282234952092. E-mail: vitor_vhlg@hotmail.com.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 167-180, jan./jun. 2022 167


Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

newspaper Estado de São Paulo an article named: “Guimarães Rosa encon-


tra seu duplo: Hilda Hilst.” Starting from this literary identification and find-
ing support in interviews given by the author, where she recognized not only
the poetic proximity of their works, but also his influence on her, and her
fondness for him, this work aims to investigate a common feature of both
authors, the obsessive process of naming God and the Devil. Making God
one of her investigations not only in literature, but also in philosophy and
everyday life, Hilst put into prose, and poetry, her excruciating doubt about
divine existence. On the other bank, we find Guimarães Rosa who, in Grande
Sertão: Veredas, weaves a questioning character, unmoved in the face of
doubt about the Devil’s existence. Riobaldo, in his journey, conceived a vast
onomastic and pictorial cartography of the one he so often says to avoid. A
common feature in the authors, we will investigate the pressing need for
naming, investigating the latent meaning of this almost Adamic process.
Keywords: Hilda Hilst; Guimarães Rosa; naming; God; Devil.

Guimarães Rosa encontra seu


duplo: Hilda Hilst
Quando Hilda Hilst, escritora cujo crítico dentre os principais círculos literários da
literário Anatol Rosenfeld afirmou ter ob- época. “Na verdade, falou-se tanto do autor
tido êxito nos três gêneros literários (apud e do livro, que a impressão que se tem é a de
PÉCORA, 2010, p. 41), estreou na década de que todos – escritores, críticos, jornalistas,
50, com a publicação de Presságio, livro de intelectuais e periódicos – queriam marcar
poesias; João Guimarães Rosa, então laurea- presença no debate.” (LIMA, 2006, p. 316).
do com o 1º Prêmio de Poesia da Academia Conquanto o autor de Grande Sertão: Ve-
Brasileira de Letras, já congraçava das vê- redas já grassasse de certo renome na litera-
nias da crítica literária com a publicação de tura nacional, concomitante a sua trajetória,
Sagarana em 1946. embora mais nova, despontava Hilda Hilst,
De repente, chega-nos o volume, e é uma estrela aldebarã – nas palavras de Drum-
grande obra que amplia o território cultural mond1. Hilda, até a década de 70, se volta
de uma literatura, que lhe acrescenta algu- exclusivamente a poesia, lançando cerca de
ma coisa de novo e insubstituível, ao mesmo 12 livros cuja verve poética perfilava uma
tempo que um nome de escritor, até ontem autora séria, fiel à essência da palavra, ao
ignorado do público, penetra ruidosamente
regozijo do texto, aos temas essencialmen-
na vida literária para ocupar desde logo um
dos seus primeiros lugares. O livro é “Saga- te humanos como o desejo, a morte, e a lin-
rana” e o escritor é o sr. J. Guimarães Rosa. guagem. Movida por sentimentos de engaja-
(LINS, 1946, n/p) mento político em 1967 produziu uma série
de oito peças teatrais que a consagraram
O ensaio do então crítico literário Álva-
como grande autora do gênero. Todavia, é a
ro Lins, publicado no Correio da Manhã, so-
partir da década de 70, com o lançamento
mou-se a muitas outras resenhas e reporta-
gens atinentes à obra e ao autor, de modo 1 Carlos Drummond de Andrade escreveu um poe-
que o nome de Guimarães Rosa grassava ma à autora, comparando-a a estrela aldebarã.

168 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 167-180, jan./jun. 2022


Vitor Hugo Luís Geraldo

de Fluxo-Floema, que a escritora também se A senhora D indaga-se se todas as coisas do


dedicará à prosa, dando início a uma profí- mundo necessitariam de um duplo para não
cua produção experimental. acabarem no fosso do esquecimento. Por
isso, corta dois peixes de papel por vez para
Embora Guimarães Rosa tenha falecido
colocar em seu aquário.
em 1967, quando então a autora contava
com apenas 37 anos, pouco se falou a res- Do mesmo modo, qualquer estudo das in-
fluências roseanas em nossa literatura
peito das influências que o escritor exercera
exige um paralelo com a obra de Hilda
sobre ela. Alguns críticos viriam a enxergar Hilst. O maior prosador brasileiro enfim en-
na obra hilstiana uma continuação da inven- contra seu duplo. (D’AMBROSIO, 1987, s/p,
tividade poética e linguística características grifo nosso)
do autor de Campo Geral. Léo Gilson Ribeiro,
Na matéria em questão, D’Ambrósio se
crítico literário e amigo da poeta, chegou a propõe a fazer uma apresentação dos livros
dizer: “não é exagero nem ousadia afirmar, da autora, pormenorizando os principais
e provar que, depois que Guimarães Rosa acontecimentos de cada obra, ao passo que,
morreu, a mais extrema, a mais audaz, a no fim de sua apresentação, recapitulando a
mais decisiva explosão literária da prosa no frase de Léo Gilson Ribeiro, lança mão de um
Brasil se deu com Hilda Hilst.” (DINIZ, 2018, aspecto literário presente no livro A Obscena
p. 111). senhora D, para justificar o necessário entre-
Thomas Colchie, crítico norte-ameri- laçamento da obra desses dois escritores.
cano, notando certo atravessamento que Tais afirmações estão além da mera cor-
a obra roseana exercia sobre a escritora, dialidade. Hilda construiu uma obra séria,
também escreveu: “o potencial e o impacto inventiva, legando à prosa uma cadência
de suas palavras não têm nada semelhante, rítmica única, engendrada num estilo pode-
fora a experiência única de Guimarães Rosa, roso cujas palavras repercutem profanató-
no domínio da língua portuguesa. Ela é, tal- rias, ritualísticas, afetas à comunhão mítica
vez, mais universal do que Guimarães” (DI- do homem com o mais agudo de si mesmo.
NIZ, 2018, p. 47). Assim como Rosa, era necessário dizer o
Ainda que busquemos dentre a fortuna mundo, dizer o homem, a morte, o desejo,
crítica da autora trabalhos comparativos o incognoscível, todavia era preciso subver-
que se debrucem sobre a influência exerci- ter o gênero, transgredir a sintaxe, degredar
da por Guimarães Rosa, notaremos que há as palavras a fim de repatriá-las como pois
um silêncio acerca desta correspondência, “somente renovando a língua é que se pode
evidenciando talvez o olvido a tantos suges- renovar o mundo” (COUTINHO, 1991, p. 88).
tivos vaticínios ofertados por críticos literá- Nesse sentido, convém indagar, por que
rios como Oscar D’Ambrósio que, em maté- dois autores tão afetos, objetos de diversos
ria publicada em 1987, no então jornal Esta- estudos e donos de riquíssima fortuna críti-
do de São Paulo, sob o título Guimarães Rosa ca, nunca foram estudados em conjunto?
encontra seu duplo: Hilda Hilst, escreveu: Alcir Pécora, em introdução feita no livro
O crítico Leo Gilson Ribeiro afirma que, após Fortuna Crítica de Hilda Hilst, de Cristiano
a morte de Guimarães Rosa, Hilda Hilst é “a Diniz (2018a), tece consideráveis observa-
mais extrema, a mais audaz, mais decisiva ções em relação a todos os estudos que vêm
explosão literária da prosa no Brasil”. sendo feitos a partir da obra da autora, prin-
Diria mais. cipalmente no tocante às comparações “que

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 167-180, jan./jun. 2022 169


Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

são feitas de sua obra com a de outros auto- influência, exercidos por sua obra.
res e artistas.” (PÉCORA, 2018, p. 14). N - Você sempre lembra da emoção que lhe
Pécora observa que os trabalhos compa- causou a primeira leitura de Campo geral.
rativos à obra da autora encontram lugar de Você chegou a dividir essa emoção com o
destaque em sua fortuna crítica. Adélia Pra- Rosa?​
do, Clarice Lispector, Silvia Plath, Lya Luft e HH - Eu cheguei a ligar para ele, tamanho
Samuel Beckett são alguns dos nomes que foi o impacto que a saga de Miguelim me
ocupam a maior parte destas pesquisas. O causou. E ele, do outro lado do telefone: “O
estudioso evidencia ainda que: menino aqui é genial”. Ele era muito vaidoso,
sabia de sua importância. E quando li Gran-
[...] essas comparações parecem ser larga- de sertão..., perguntei a ele quem o iria tra-
mente reforçadas pela discussão de gênero. duzir. Parece que quem o traduziu nos Esta-
Apenas Beckett não é mulher entre as prin- dos Unidos não foi muito feliz, mas na Itália
cipais comparações, e curiosamente ele é o a tradução ficou bonita. Aliás, quem verteu o
único autor da lista imediatamente perti- Rosa para o italiano foi Maryvonne Lapouge,
nente ao trabalho mais nuclear de Hilda, até a mesma que está agora traduzindo o meu li-
porque citado muitas vezes por ela própria vro Contos d’escárnio - textos grotescos para
como uma de suas referências principais. o francês, e que deve sair até o ano que vem
As outras estão ali mais porque interessam pela Gallimard. (DINIZ, 2018, p. 153)
à discussão das questões da mulher e do fe-
minino na literatura etc., não porque digam Nesta entrevista concedida pela autora à
respeito a questões internas ou específicas revista Nicolau, Hilda além de expor a forte
de sua obra. (PÉCORA, 2018, p. 15). comoção que a obra de Rosa lhe provocou,
nos revela uma aparente relação de proxi-
Assim, superada esta questão concer-
midade com o autor. Muito além do apre-
nente às pesquisas comparativas que inten-
ço elogioso à obra, a autora comungava da
tam, com frequência, perscrutar a obra da
referenciação que a crítica lhe atribuía en-
autora correlacionando-a ao feminino e ao
quanto duplo de Guimarães:
gênero, o crítico nos expõe outros nomes
presentes neste minucioso levantamento N - Já que Guimarães Rosa é seu duplo, o que
bibliográfico: você mais aprecia na escritura dele?

[...] surgem nomes como Gregório de Matos, HH - Eu gosto da intensidade da linguagem


Jean Genet, Sophia Andresen, Marina Cola- que ele revela e dos conflitos que propõe. Ele
santi, Caio Fernando Abreu, Bakhtin, Hele- desnudou várias vezes a esfinge e nos ensi-
na Parente Cunha, Marie Darrieussecq, Ana nou o sagrado amor à voltagem da palavra.
Cristina César, Frida Kahlo, Kiki Smith, Zeca (DINIZ, 2018, p. 153)
Baleiro, Glauco Mattoso, Olga Savary e Dan- Isto posto, é possível identificarmos
te. (PÉCORA, 2018, p. 15) o atravessamento exercido pelo escritor
Apura-se, portanto, que a obra hilstiana sobre a autora de Sobre Tua Grande Face
tenha sido “[...] comparada com nada menos (1986). O ensinamento do “sagrado amor
do que 75 autores diferentes [...]” (PÉCORA, à voltagem da palavra” (DINIZ, 2018, p.
2018, p. 16), dentre os quais – embora tan- 153), tão caro ao projeto literário roseano,
tas tenham sido as sugestões da crítica – o configura-se também como projeto literá-
nome de Guimarães Rosa figure como ine- rio hilstiano: sua obra denota a incessante
xistente, apesar das entrevistas concedidas busca pelo sagrado coração das palavras
pela autora em que expressa o impacto, e a nomeadoras, pelo escrutínio da mais pes-

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soal e mística aventura humana. Hilda ou bre as questões místico-religiosas, interes-


Guimarães? Os dois. se esse evidenciado em seus textos. Hilda,
Ante as limitações cartográficas que o em obras como Poemas Malditos, gozosos
presente gênero textual requer, uma postu- e devotos (1984) e Sobre a tua grande face
ra nos é exigida ao justapormos a obra des- (1986), subverte nossa ortodoxa concepção
tes dois autores: eleger um traço que corro- de Deus, descrevendo-o como quem des-
bore à afirmação de D’Ambrosio: Guimarães crevesse um homem “É Deus. / Um sedu-
Rosa encontrara seu duplo: Hilda Hilst. tor nato” (HILST, 2017, p. 410) cujas carnes
anseiam tatear este mundo de perecíveis
“Que há num simples nome?” carnes e fugazes prazeres: “Dizer que vou
O que há num simples nome? A partir desta te conhecer a fundo / Sem as bênçãos da
indagação, retirada da tragédia shakespea- carne, no depois, / Me parece a mim magra
riana, Romeu e Julieta (1530), somos impul- promessa [...] tu sabes da delícia da carne”
sionados a questionamentos semelhantes (HILST, 2017, p. 415)
acerca da essência do nome, afinal: o que há Em Guimarães Rosa seu interesse pelas
num simples nome? É Julieta quem refleti- questões místico-religiosas se evidencia,
rá a respeito da natureza aprisionadora do principalmente, em seu romance Grande
nome, concluindo que, se porventura, tives- Sertão: Veredas (1956), onde nos depara-
se Romeu outro nome “Continuaria sempre mos com questões inerentes às crenças
a ser perfeito / Com outro nome.” (SHA- humanas, transcendentes e universais. Em
KESPEARE, 2011, p. 45) pois, aquele que é entrevista a Pedro Bloch (1989), o roman-
nomeado não está encerrado no nome, mas cista expõe sua religiosidade: “Sempre fui
liberto para ser outro. místico. Tudo tem causa. A religião não está
Diante desta breve passagem somos na bondade. Bondade é acessório, com-
transportados às portas da reflexão acerca preende?”. (p. 46)
da essência do nome, levados a refletir se A comunhão místico-religiosa partilhada
se nos despojássemos dele conservaríamos pelos autores centra-se principalmente na
ainda a natureza que lhe entendem ineren- necessidade de nomeação das duas princi-
te? Poderia ele engendrar toda a essência pais figuras da doutrina judaico-cristã: Deus
daquilo que nomeia? O que haveria então e o Diabo. Se em Hilda Hilst percebemos
no ato de nomear que o consagraria como uma intimidade profanatória com um Deus
definitivo? multifacetado, em Guimarães Rosa eviden-
A breve passagem mencionada da tragé- cia-se a constante presença da figura de um
dia shakespeariana justamente nos conduz Diabo cuja alegoria de nomes desfila diante
a esta reflexão em torno do vínculo que se dos nossos olhos como uma primorosa ne-
concede à essência com o nome: a essência cessidade de negar aquilo em que deposita
não comporta nome definitivo, tampouco demasiada crença.
reduz-se a ele, logo renomear altera de fato Deus e o Diabo figuram como temas cen-
o status onomástico, porém não atinge a es- trais nas produções desses escritores, sen-
sência. do-lhes dispensado o mesmo tratamento
Nomeação e renomeação são procedi- dessacralizador, subversivo e reverencial.
mentos comuns nas obras de Hilda Hilst e De todo modo, a aproximação que fazemos
Guimarães Rosa; ambos se debruçavam so- entre esses autores se aloja justamente no

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Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

modus operandi da nomeação e renomea- nomear representa designar alguma coisa e


ção, empregado com estas duas figuras cen- isso significaria dispor informações acerca
trais da cultura ocidental. da coisa designada, logo ao nomearmos es-
Não se pode olvidar que na tradição re- taríamos distinguindo aquilo que estamos
ligiosa judaico-cristã a importância conce- empregando o nome, o que nos levaria ao
dida à palavra fundadora e nomeadora está entendimento de que nomear representa
ancorada na concepção de que Deus, ante- um ato de identidade e classificação, promo-
cessor de tudo e todos, foi a palavra primei- vendo a identificação.
ra, o Verbum, à deriva no ausente espaço- Nesse sentido o filósofo relacionará o
tempo – in principio erat verbum et verbum nome a um instrumento, fazendo-o com o
erat apud deum et deus erat verbum –, e por intuito de evidenciar que devemos nos de-
meio da palavra, ou seja, por meio de si “[...] bruçar não sobre o nome em si, mas sobre as
ele falou, e tudo se fez; Ele ordenou, e tudo essências das coisas nomeadas: “Portanto, o
passou a existir”. (BÍBLIA, Sl, 33, 9) nome é um tipo de instrumento informativo
Essa relevância dada não só a palavra, e distintivo da existência assim como a car-
como aos nomes, pode ser notada em di- da do tecido”. (PLATÃO, 2020, p. 30) Desta
versas passagens das sagradas escrituras: maneira, o filósofo relaciona o nome com
Abrão é renomeado por Deus como Abraão a carda, revelando que o emprego daquele
(Bíblia, Gn, 17:5), Jacó é rebatizado de Israel visa a informação, todavia não possui tal ca-
(Bíblia, Gn, 32:28). No entanto, será no epi- pacidade, uma vez que, assim como cardei-
sódio do homem possuído por um espírito ra, é mero instrumento.
imundo que perceberemos que a necessida- Tendo isso em vista, ao passo que o nome
de de nomeação não só se traduz como um se trata de mero instrumento e não determi-
chamado à existência, mas também desem- na algo, devemos nos debruçar sobre a es-
penha um importante mecanismo de con- sência, visto que esta é que revela o ser, não
trole: “Pois Jesus lhe tinha dito: ‘Saia deste sendo o nome capaz de revelá-lo, posto que é
homem, espírito imundo! ‘Então Jesus lhe possível compreender que um mesmo nome
perguntou: ‘Qual é o seu nome?’ ‘Meu nome nomeia diferentes objetos e pessoas, contu-
é Legião’, respondeu ele, ‘porque somos mui- do ambos se diferenciam entre si, provando
tos’.” (BÍBLIA, Mc, 5, 8-9), ou seja, era preciso que além de mero instrumento não está vin-
saber o nome para através dele conhecer-se culado à essência daquilo que nomeia.
o interlocutor e impor-lhe a expulsão. Nessa esteira, nossos autores operam
Nossos dois autores analisados empre- uma função nomeadora em oposição à con-
gam em suas obras um obsessivo processo cepção filosófica platônica e com o mesmo
de nomeação, que não só se traduzirá como emprego bíblico, cujos nomes dos persona-
componente de investigação e tentativa de gens guardam relação direta ou com seu pa-
acesso às essências de Deus e do Diabo, pel dentro da narrativa ou com sua persona-
como também constituirá uma postura lidade, pois utilizam uma alegoria de nomes
controle da influência do medo exercido para acessar e traduzir a essência dos dois
por eles. principais mitos do cristianismo, levando-
Platão (2020) em seu livro Crátilo ou so- nos a perceber que a atitude nomeadora dos
bre a correção dos nomes, discorrerá acerca escritores se ancora sobre o anseio da cog-
da materialidade do nome. Para o filósofo, noscibilidade dessas duas deidades.

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“De tanto te pensar, sem nome, inteira sem jamais ouvir o nome verdadeiro
de Deus. E talvez fosse melhor assim, pois o
me veio a ilusão” significado do nome é tão obscuro quanto a
O nome Divino não deve ser pronunciado, pronúncia.”. (BLOOM, 2006, p. 152)
muito embora o façamos à exaustão, con- A preocupação em torno da pronun-
trariando preceito mandamental inscrito ciação do nome divino, atualmente, já não
em Êxodo (20:7): “Não tomarás o nome do nos soa como um gesto ameaçador, uma
Senhor, teu Deus, em vão, porque o Senhor vez que a regra mandamental “Não tomará
não terá por inocente o que tomar o seu o nome do SENHOR teu Deus, em vão [...]”
nome em vão” (Bíblia, 2015, p. 87) assim (BÍBLIA, Êx, 20, 7) parece não só ter sido
nos adverte o mandamento informando que esquecida como também desaguado no
o nome divino não deve ser empregado le- distanciamento do homem moderno para
vianamente, pois não se trata de um nome com o Divino.
qualquer. Mas, esta preocupação quanto à repre-
Harold Bloom (2006) comentando a res- sentação e possibilidade de nomeação de
peito do nome de Javé, menciona que a for- Deus, remonta já dos tempos de Pseudo-
ma como se pronunciava o nome do próprio Dionísio Areopagita, tendo sido um dos pri-
Deus na bíblia hebraica, YHWY, se perdeu meiros a tratar deste problema. Sua obra, Os
diante da tradição oral, que guardou para si nomes Divinos, nos remeterá a uma reflexão
a pronúncia correta do nome sagrado, sendo sobre a experiência da linguagem diante da
o atual Yahweh, “[...] apenas uma conjectura noção mística que circunda Deus. Assim,
[...]”. (p. 151) Vislumbra-se que a tradição como um ser finito e limitado, como o ho-
religiosa, no despontar de sua origem, cui- mem, acessará o entendimento divino uma
dava para que o nome divino fosse empre- vez que esse se faz infinito e ilimitado?
gado em ocasiões especialíssimas, uma vez
Como queda dicho, nadie debe atreverse
que não se tratava de um nome qualquer a hablar o pensar algo de esta supraesen-
[...] depois que Alexandre, O Grande, con- cial y secreta Divinidad fuera de lo que nos
quista a Palestina, em 333 antes da Era Co- han manifestado divinamente las Sagra-
mum, o emprego do Nome Divino passa por das Escrituras. Pues como, efectivamente,
mudanças. Após a volta da Babilônia, ocorri- Dios mismo nos ha manifestado de forma
da no século V antes da Era Comum, o nome extraordinaria en las Escrituras sobre si
já era considerado mágico, e não podia ser mismo, ninguna criatura puede llegar a co-
pronunciado. Deus era chamado, então, de nocerle y contemplarle tal como es, ya que
Elohim (ser ou seres divinos), ou Adonai Él lo trasciende todo supraesencialmente.
(meu senhor) (BLOOM, 2006, p. 151, parên- (AREOPAGITA, 2007, p. 6)
teses do autor)
Para o influente autor da mística cristã
Contudo, foi com a chegada dos gregos, ocidental o homem não deve atrever-se a fa-
que se referiam a Deus como Theos, que os lar, ou conjecturar, sobre a magnitude divina
judeus, sofrendo influências diretas, passa- de Deus, a não ser que as faça dentro daqui-
ram a se referir a ele como Kyrios “[...] pala- lo que as próprias sagradas escrituras con-
vra grega que significa Adonai, ou Senhor”. ceberam, pois nenhuma criatura chegará a
(BLOOM, 2006, p. 151) Assim, conforme conhecê-lo e contemplá-lo intimamente. O
menciona o grande crítico americano, à Areopagita, perscrutando todos os nomes
época de Jesus “era possível viver uma vida divinos legados pelos teólogos a Deus, con-

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Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

ceberá que a única forma de se falar Dele é literária, e de uma aguçada preocupação
através do silêncio. mística-transcendente, não se distanciou
De fato, para Pseudo-Dionísio, Deus é ine- daquilo que podemos chamar de “oportu-
fável, e o único modo de falar dele adequa- nidade adâmica”, concedida por Deus ao
damente é o silêncio. Quando alguém fala, é homem quando lhe autorizou nomear Sua
para ocultar os mistérios divinos daqueles criação, e a empregou ao arrepio da própria
que não podem alcançá-los (Epístola IX, 1, noção de respeitabilidade religiosa. Hilda
452) (AREOPAGITA apud ECO, 2018, p. 396)
Hilst não quer nomear a criação, mas quer
Contudo, Eco (2018) analisando o com- nomear o Criador. Essa busca insondável do
portamento de Dionísio, dirá que esta ati- Deus por meio dos nomes será uma de suas
tude será continuamente contestada pelo obsessões não só literária:
comportamento oposto, ou seja, o Areopa- Eu queria demais me aproximar da ideia de
gita busca incessantemente traduzir aquele um Deus, de um Deus que tenha sido execu-
que julga intraduzível, dizer aquele que se tor de tudo, entende? Desse mundo que é
diz indizível, entender aquele que entende tão notavelmente paradoxal e cruel. E essa
ser ininteligível: mania eu não tirei nunca da minha vida até
hoje. Quer dizer, de existir uma potenciali-
Este comportamento mistérico é, no entan-
dade qualquer, que você nomeia de algum
to, continuamente contestado pelo compor-
nome e eu nomeio Deus de vários nomes:
tamento oposto, a persuasão teofânica de
Cara Escura, Sorvete Almiscarado, O Obscu-
que, sendo Deus a causa de todas as coisas,
ro, O Sem Nome. É uma vontade de, de re-
todos os nomes lhe caberão, no sentido de
pente, estabelecer um intercâmbio com essa
que todo efeito remete à causa (dei nomini
divini I,7), de modo que a deus são atribuí- força muito grande [...] (DINIZ, 2018, p. 86)
das formas e figuras de homem, de fogo, de Observemos que a autora intenta uma
âmbar, e dele são louvadas as orelhas, os aproximação com Deus, e essa aproxima-
olhos, os cabelos, o rosto, as mãos, os om-
ção subverte certa respeitabilidade que
bros [...] (ECO, 2018, p. 397)
sempre fora exigida quando da pronuncia-
Muito embora vislumbremos que tenha ção do nome divino. Nomes como “Cara Es-
havido uma preocupação quanto a salva- cura”, “Sorvete Almiscarado”, “O Obscuro”,
guarda do nome divino, e até mesmo quanto são empregados visando subverter a noção
à possibilidade de compreensão humana da ininteligível dada ao divino, destronando-o
substância deste nome, o homem enquanto e reaproximando-o do homem por meio da
ser dotado de linguagem – linguagem essa carnavalização.
que lhe fora outorgada por Deus a fim de Bakhtin (1987) conceberá que o des-
que continuasse sua criação, pois tendo Ele tronamento causado por meio da carnava-
formado todos os animais do campo e todas lização vem acompanhado de injúrias bem
as aves “ [...] trouxe-os ao homem, para ver como se caracteriza como um rebaixamento.
como ele lhes chamaria, e o nome que o ho- O rebaixamento é enfim o princípio artístico
mem desse a todos os seres viventes, esse essencial do realismo grotesco: todas as coi-
seria o nome deles” (BÍBLIA, Gn, 2, 19-20) sas sagradas e elevadas aí são reinterpreta-
– a emprega intuindo acessar a essência das das no plano material e corpora [...] é o céu
coisas, por isso diz e nomeia. que desce à terra não o inverso [...]
A obra hilstiana responde a essa afirma- Esses rebaixamentos, não têm um caráter
ção. A autora, dotada de uma inventividade relativo ou moral abstrato, são pelo contrá-

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rio, topográficos, concertos e perceptíveis traditória, ambígua e obscura. (COELHO,


[...] (BAKHTIN, 1987, p. 325) 2010, p. 112)
Nesta perspectiva é possível observar- Sendo assim, é possível notarmos que
mos que a autora emprega alguns nomes a autora mantém um diálogo muito íntimo
que caracterizam uma intimidade inveros- com essa deidade, remetendo-nos à con-
símil com Deus, nomeando-o despudora- ceituação de Bakhtin (1987), quando este
damente de maneiras um quanto heréticas vê nesses processos de rebaixamento um
como: “Aquele outro”, “Aquele”, ou “Grande princípio essencial de reinterpretação das
Obscuro”, o “Cão de Pedra”, o “Sem Nome”, coisas sagradas. Nomes como “Máscara do
o “Inteiro Caracol”, o “Inteiro Desejado”, o Nojo”, “cão de Pedra”, “Grande-Olho”, “Cara
“Grande Olho”, o “Cara Cavada”, o “Grande Cavada”, “Tríplice-Acrobata” e “o GRANDE
Corpo Rajado”, o “Mudo-Sempre”, “Grande PERSEGUIDO” tendem à carnavalização, im-
Perseguido”, o “Sumidouro”, o “Máscara do pingindo à figura divina conotações depre-
Nojo”, o “Semeador”, o “Homem-luz”. ciativas e muito afetas à rotineira existência
Esta premente necessidade não só nos humana, desalojando-a do posto hierár-
explicita uma autora capaz de erigir ima- quico que comumente lhe é atribuído, para
gens substanciais, como também alguém inseri-la na cotidiana banalidade por meio
que empreende uma incessante busca de de palavras-valises cuja intenção, mais que
compreensão daquele “Inteiro Almejado”. referencial e aproximativa, expõe também o
A nomeação empregada pela autora, que forte apelo escarnecedor.
intenta uma apreensão da íntima natureza Não obstante percebamos que a pos-
do Deus, também evidencia uma excessiva tura da autora tenda ao destronamento da
necessidade de controle pois, – se para ela deidade, é possível notar que apesar de em-
nomear figura como aproximar-se da essên- pregar-lhe nomes muitas vezes carnavaliza-
cia divina a fim de desvendar-lhe a íntima dos, este rebaixamento se direciona à apro-
substância – diante desta reconfortante sen- ximação inteligível da supra essência divi-
sação intui-se capaz de engendrá-lo em car- na, convocando-a ao campo da assimilável
tografias cujas fronteiras são desenhadas compreensão humana, seja pela reverência
por sua linguagem nomeante. do medo ou pela irreverência do riso. Hilda
A partir da obra Kadosh (1973)¸ Coelho não vê em cada um dos nomes que emprega
(2010) faz um analítico levantamento dessa uma essência diferente daquela que a tradi-
cartografia de nomes dados pela escritora a ção religiosa legou à imago Dei, pelo contrá-
Deus: rio, sua postura cambiante se debruça sobre
uma única substância, assentando o argu-
Hilst o classifica como “Grande Obscuro,
Máscara do Nojo, cão de Pedra”, “Grande mento platônico quanto a instrumentaliza-
-Olho”, “Cara Cavada”, “Tríplice-Acrobata”, ção do nome e sua não vinculação à essência
“OUTRO”, “A Coisa que NUNCA EXISTIU”, daquilo que nomeia.
“o todo leitoso, que grande gozo”, “MU-
DO-SEMPRE, SEM-NOME”, “o grande Su- “Do demo? Não gloso”
midouro” ou “o GRANDE PERSEGUIDO”. É
Enquanto Hilda Hilst destrona Deus, trazen-
interessante observar que cada uma dessas
palavras destacadas encerra características do-o à vulgar cotidianidade do mundo, mos-
muito significativas que revelam a persona- trando-nos uma intimidade coloquial, João
lidade deste ser celestial, uma deidade con- Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas

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Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

(1956), partindo daquilo que escolhemos Se já nas primeiras linhas Riobaldo conta
chamar como “oportunidade adâmica” con- a estória do nascimento de um Diabo multi-
cedida aos homens, opera o mesmo meca- facetado, com corpo de bezerro, cara de ca-
nismo que a autora. chorro e riso de gente, logo em seguida con-
Rosa, em sua magna opus, concebe um tradirá a si próprio dizendo: “Do demo? Não
romance dialógico, dando voz a Riobaldo, gloso. Senhor pergunte aos moradores. Em
personagem principal que rememorará seu falso receio, desfalam no nome dele – dizem
passado de forma não linear, incorporando só: Que-Diga. Vote! não... Quem muito se evi-
à narrativa diversos relatos cuja cronologia ta, se convive.” (ROSA, 2001, p. 24). Riobal-
não obedece ao fidedigno avanço dos fatos, do diz não glosar do Diabo, todavia censu-
havendo saltos e regressões, uma vez que ra aqueles que não o fazem afirmando que
Riobaldo depõe ter dificuldade de pôr em evitar é conviver. Repreendendo esses que
ordem as ideias. não o dizem afirma que não dizer é evitar e
Grande Sertão: Veredas (1956) traz no evitar é conviver em demasia. Logo, ele que
bojo de si uma infinita possibilidade de diz não dizê-lo com ele convive demasiada-
horizontes capazes de serem explorados. mente.
Consciente da grandiosa empreitada literá- Esta obstinada autocensura quanto à
ria que havia operado, Guimarães Rosa, não empregabilidade do nome do Diabo foi mui-
por acaso, ao final de seu romance inscreve to bem pinçada por Guimarães Rosa das
um denotativo símbolo do infinito, mostran- tradições populares. Cousté (1996) mencio-
do-nos que, superada a travessia daquelas nará que “[...] em muitas tradições popula-
veredas, se faz preciso regressar ao início e res procura-se não nomeá-lo diretamente,
empreender nova jornada. como uma maneira de evitar uma invoca-
Apesar da pluralidade de horizontes ção.” (p. 249). Assim, evitando de invocá-lo,
capazes de serem explorados, o instigante a tradição popular sedimentou o costume de
processo de nomeação do Diabo – empreen- referir-se a ele indiretamente: “o maligno, o
dido durante toda a narrativa por Riobaldo! inimigo, o tentador, o maldito, o homem de
– será aquele ao qual nos deteremos, como negro, o homem vermelho, o príncipe das
fizemos anteriormente. trevas etc.” (COUSTÉ, 1996, p. 249). Essa
Embora Riobaldo ao longo do romance cristalização se dá não por expressa adver-
intente, através de fatigantes reiterações, tência advinda das sagradas escrituras, vez
provar que “o Arrenegado” (ROSA, 2001, p. que nada mencionam quanto à proibição de
55)não existe, sua postura ambígua diante falar-se diretamente sobre ele. A Bíblia Sa-
da existência do “Capiroto” (ROSA, 2001, p. grada não admoesta aquele que emprega
64) é perceptível já nas primeiras páginas do seu nome, tampouco censura aquele que o
livro: faz, a única expressa advertência que temos
Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro quanto a pronúncia de um nome está em
branco, erroso, os olhos de nem ser – se viu Êxodo 20:7: “Não tomarás em vão o nome
– ; e com máscara de cachorro. Me disseram; do Senhor, o teu Deus [...]. (BIBLIA, Êx, 20,
eu não quis avistar. Mesmo que, por defei-
7), e esse nome é o nome de Deus.
to como nasceu, arrebitado de beiços, esse
figuraça rindo feito pessoa. Cara de gente, A postura ambígua e fatigante de Rio-
cara de cão: determinaram – era o demo. baldo, como bem rubricou Dora Ferreira da
(ROSA, 2001, p. 24) Silva (1957) em artigo intitulado O Demo-

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níaco em Grande Sertão: Veredas, atraves- -Ruim”, “o Mafarro”, “o Pé-Preto”, “o Canho”, “o


sará as páginas do romance e acompanhará Dubá-Dubá”, “o Rapaz”, “o Tristonho”, “o Não-
Riobaldo durante seu périplo pelo sertão: sei-que-diga”, “O-que-nunca-se-ri”, “o Sem-
Apesar da afirmação tantas vezes repetida Gracejos”, “o diá”, “o Outro” (ROSA, 2001, pp.
nas páginas de “Grande Sertão: Veredas” de 55-56); “o Crespo”, “capiroto”, (ROSA, 2001,
que o diabo não existe, sua presença se de- p. 64); “demônio rabudo”(ROSA, 2001, p.
senha numa conjetura obstinada e se perfaz 82); “o Sempre-Sério”, “o Pai da Mentira”, “o
em todo o livro como uma negatividade po- Morcegão”, “o Xú”, “o Dado”, “o Danado”, “Ele”
sitiva que conduz secretamente a ação. [...]
(ROSA, 2001, pp. 436-437); “Lúcifer”, “Sata-
A preocupação do demoníaco persegue Rio-
baldo como uma enorme “coceira do espíri-
nás”, “Diabo”, “Hermógenes”. (ROSA, 2001,
to” (SILVA, 1957, p. 29) p. 439); “o Dos-Fins”, “o Austero”, “o Severo-
Mor”, “Aporrô” (ROSA, 2001, p 440); “Bar-
O percurso narrativo engendrado por
zabú” (ROSA, 2001, p. 446), “Das-Trevas”
ele, e o percurso perpetrado por suas an-
(ROSA, 2001, 446), “Drão” (ROSA, 2001, p.
danças naquele sertão, se aferram às his- 448), “demonhão” (ROSA, 2001, p. 448).
tórias ligadas à possível existência, ou não, Essa vitrine onomástica corrobora nosso
daquele Diabo que tanto evita, quanto fala. argumento quanto a necessidade de Riobal-
Riobaldo, às vezes, rejeita a figura de um do de corporificar sua concepção de Diabo,
diabo autônomo, de per si, afirmando que empregando-lhe nomes a fim de conceber-
“o diabo vige dentro do homem, os crespos lhe uma identidade e, necessariamente,
do homem – ou é homem arruinado, ou o individualizá-lo. A atitude nomeadora em-
homem dos avessos. Solto, por si, é que não preendida pela personagem pode ser lida
tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo”. principalmente quando recordamos sua fala
(ROSA, 2001, p. 26) “Do demo, não gloso” (ROSA, 2001, p. 24),
Muito embora fatigante se faça essa bus- como uma postura contraditória, todavia
ca intentada para confirmar a não-existên- não é. Este artifício criado por Rosa visa a
cia dele: “[...] o senhor acredita, acha fio de materialização da figura mítica: nomeando
verdade nessa parlanda, de que com o de- -a, embora vários sejam os nomes, Riobaldo
mônio se pode tratar pacto?” (ROSA, 2001, a traz para o encalço da linguagem humana,
p. 40), será por meio da atitude nomeadora em que ao homem foi conferido o subse-
que Riobaldo corporificará sua crença a fim quente papel de nomeador.
de prová-la inexistente. Concedendo-lhe nomes, dirimidas estão
Lima (2015), em trabalho primoroso, algumas dúvidas e distâncias, florescendo
concebe um levantamento minucioso acer- certo avizinhamento capaz de transmitir
ca dos nomes que serão atribuídos por Rio- controle e segurança, sentimentos esses
baldo à figura central do mal, sendo eles: ansiados por Riobaldo. Trazendo o Diabo
“demo” (ROSA, 2001, p. 24), “capeta” (ROSA, para o mundo da sua linguagem, Riobaldo
2001, p. 24), “miúdo satanazim”, “Cujo”, “de- toma em suas mãos a vantajosa posição de
mônio”, “ (ROSA, pp. 24-29); “tinhoso” (ROSA, controlar uma possível arbitrariedade dos
2001, p. 40); “Tal”, “o Arrenegado”, “O Cão”, eventos, sendo capaz de responder se teria
“o Cramulhão”, “o Indivíduo”, “o Galhardo”, “o ele, lá a meia-léguas das Veredas-mortas,
Pé-de-Pato”, “o Sujo”, “ o Homem”, “o Tisna- firmado pacto com aquele que tantas deno-
do”, “o Coxô”, “o Temba”, “o Azarape”, “o Coisa minações confere.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 167-180, jan./jun. 2022 177


Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

Conquanto diversos sejam os epítetos –, talvez este seja um dos pontos, ou melhor,
outorgados por Riobaldo à figura mítica do dos fragmentos, que nos é possível vislum-
mal, somos levados a perceber que, por trás brar essa influência.
desta intenção nomeadora há, para além da A obsessão pela compreensão das duas
intenção de acesso à intimidade do ser, uma das principais figuras míticas da tradição
desmedida vontade de poder conter a arbi- judaico-cristã é aferível diante da vitrine
trariedade do caos que a vida não só pode de nomes empregados àquelas duas en-
representar, como representa já nas pri- tidades. Hilda destroniza Deus, rebaixa-o
meiras páginas de Grande Sertão: Veredas como quem empreendesse o mesmo gesto
(1956), quando os fatos nos são apresenta- divino da expulsão do paraíso, sublocando
dos, inobservado a razão cronológica. -o no mundo da linguagem humana, onde a
A variedade de nomes empregados por “oportunidade adâmica” a fez senhora: “É
Rosa buscando aceder a mesma essência, neste mundo que te quero sentir / É o único
nos põe em acordo com a filosofia platôni- que sei. O que me resta. / Dizer que vou te
ca, pois é visando uma excessiva necessida- conhecer a fundo [...]” (HILST, 2017, p. 414)
de de assimilação, buscada através de cada Mas a concepção de Deus para a autora
nome tomado aqui como mero instrumento muitas vezes assemelha-se à noção de Dia-
facilitador, que o autor, em detrimento de bo roseana pois, assim como pensa Riobaldo
Deus, empreenderá sua jornada às instân- de que “[...] o diabo vige dentro do homem,
cias da figura do mal, pois certo é que “O que os crespos do homem [...]” (ROSA, 2001, p.
não é Deus, é estado do demônio. Deus exis- 26), Hilda também não concebe um Deus
te mesmo quando não há, mas o demônio emancipado da figura humana:
não precisa de existir para haver” (ROSA, Hoje te canto e depois no pó que hei de ser
2001, p. 74), embora não se prescinda de
Te cantarei de novo. E tantas vidas terei
sua existência para que haja o que quer que
seja, pois Deus há mesmo quando não há, lá Quantas me darás para o meu outra vez
está ele, ou aqui, existindo a contendo. amanhecer
Tentando te buscar. Porque vives de mim,
“Todos os nomes eles vão Sem Nome,

alterando. É em senhas” Sutilíssimo amado, relincho do infinito, e


vivo
Como se compusessem um mosaico, Hilda
Porque sei de ti a tua fome, tua noite de fer-
e Guimarães fazem dos nomes fragmentos
rugem
de ladrilho: são peças que vão sendo in-
Teu pasto que é o meu verso orvalhado de
corporadas ao todo de uma obra visando a
tintas
construção de uma identidade. Cada nome-
fragmento incorporado a obra corresponde E de um verde negro teu casco e os areais
a um ângulo diferente por onde se pode ob- Onde me pisas fundo. Hoje te canto
servar e ter acesso à essência. E depois emudeço se te alcanço. E juntos
Se é possível aproximar estes dois gran-
Vamos tingir o espaço. De luzes. De sangue.
des escritores experimentalistas da literatu-
De escarlate.
ra brasileira – e há farto material que ateste
a influência que Rosa exercia sobre a autora! (HILST, 2017, p. 432)

178 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 167-180, jan./jun. 2022


Vitor Hugo Luís Geraldo

Deus está encerrado dentro da lingua- a poeta é necessário buscá-lo, pois se não o
gem da poeta que, infatigavelmente, se põe faz fica afastada “[...] de uns fios de conheci-
em seu encalço, mesmo que consagrada à mento”. (HILST, 2017, p. 417)
morte; acaso outras vezes venha a ser con- Diante da necessidade de empregar con-
sagrada à vida, continuará buscando-o, por trole sobre a arbitrariedade do mundo, Hilda
que ele vige dentro dela, ele é a busca em- e Guimarães Rosa tomam em suas mãos um
preendia por sua linguagem, mas também poder evocatório, intentando por meio dele
seu sustentáculo: “Teu pasto que é meu ver- empregar controle sobre o caos dos eventos
so orvalhado de tintas [...]” (HILST, 2017, p. inatingíveis pela limitada compreensão hu-
432). Todavia seu comportamento contradi- mana. Fazem da nomeação um artifício não
tório ante a existência divina é tão oscilante só de conhecimento, mas também de con-
quanto aquele conferido por Guimarães a trole e poderio ao romperem com o senso
Riobaldo. Ao passo que afirma a existência comum no que refere às concepções de bem
mítica do Deus em si mesma, vê-se sozinha e de mal.
se o reduz à atividade pensante: Mas, o que haveria num simples nome?
Estou sozinha se penso que tu existes. Nomear está para além de empreender pa-
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizi- lavras, é instaurar uma aproximação com
nhança. aquilo que se evoca através do nome e, no
E igualmente sozinha se tu não existes. encalço de Heidegger, “[...] as coisas nomea-
De que me adiantam
das são evocadas em seu fazer-se coisa”
Poemas ou narrativas buscando
(HEIDEGGER, 2003, p. 17). Quando Hilda e
Aquilo, que se não é, não existe Rosa empregam diversos nomes a Deus e
Ou se existe, então se esconde
ao Diabo, estão convocando “[...] para uma
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas
proximidade a vigência do que antes não ha-
Naquelas não evidências via sido convocado” (HEIDEGGER, 2003, p.
Da matemática pura? É preciso conhecer
16). Se nomear importa estreitar distâncias
Com precisão para amar? Não te conheço.
convalidando proximidades, logo o proces-
Só sei que desmereço se não sangro.
so nomeador é uma convocação ao cumpri-
Só sei que fico afastada
mento de uma existência, de um estar-se no
De uns fios de conhecimento, se não tento.
mundo, um fazer-se no mundo.
(HILST, 2017, p. 417)
O “privilégio adâmico”, concessão di-
Perseguidora da materialidade divina, vina ao homem, concedeu-lhe a primazia
das provas daquilo que “[...] se não é, não da nomeação; ele não cria os seres, mas os
existe / Ou se existe, então se esconde / Em nomeia, ou seja, os convoca, e convocar é
sumidouros e cimos, nomenclaturas [...]” trazer à proximidade do mundo inteligível.
(HILST, 2017, p. 417), é ansiando pela com- Nossos dois autores convocam seus mitos
provação da existência de Deus, pelo acesso empregando-lhes nomes, chama-os ansian-
à substância do seu ser, que a própria autora do aplacar a caótica arbitrariedade daquilo
será a criadora de diversas nomenclaturas que ao homem não foi dada a inteira com-
que intentarão evidenciá-lo, pois se escon- preensão; nomeia-os reiteradas vezes bus-
de, ainda que não saiba se o faz nas palavras cando, infatigavelmente, a exata medida, a
ou “Naquelas não evidências / Da matemá- exata apreensão daquilo que os assola, mas
tica pura?”. (HILST, 2017, p. 417). Mas para há sempre a morte, aprendida incompreen-

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Nomear é chamar à existência: a nomeação de Deus e do Diabo em Hilda Hilst e Guimarães Rosa

são, “[...] desfazendo / as vontades primei- 1996.


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Recebido em: 10/03/2022


Aprovado em: 01/05/2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

180 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 167-180, jan./jun. 2022


Cinthia Freitas de Souza

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

O silenciamento das mulheres em “A


Pequena Sereia”, de Hans Christian
Andersen e “Uma voz entre os arbustos”,
de Marina Colasanti
Cinthia Freitas de Souza (UNIMONTES)*
https://orcid.org/0000-0001-6610-9568

Resumo:
Este artigo objetiva analisar o silenciamento feminino representado no conto
de fadas tradicional “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen, publi-
cado inicialmente em 1837, em comparação com o conto de fadas moderno
“Uma voz entre os arbustos”, de Marina Colasanti, publicado pela primeira
vez em 1992. Neles, é possível estudar como a sociedade patriarcal mantém
as mulheres no espaço privado, enquanto aos homens pertence o espaço pú-
blico. Assim, limitadas à esfera doméstica por muito tempo, as mulheres não
podiam se expressar, discursar ou escrever publicamente, uma vez que es-
sas eram consideradas atividades masculinas. Nesse contexto, o silêncio das
mulheres era uma forma de mantê-las submissas aos homens. Desse modo,
comparamos esses dois contos de fadas a fim de identificar os sentidos do
silêncio das protagonistas produzidos em momentos históricos diferentes:
romantismo e contemporaneidade. Para isso, adotamos conceitos da teoria
feminista de gênero, conforme autoras como Mary Del Priore (2020), Chi-
mamanda Ngozi Adichie (2015), Adriana Piscitelli (2009), Heleieth Saffioti
(2004); a ideia de poder segundo Michel Foucault (2011), e conceitos sobre
os contos de fadas de acordo com Luís da Câmara Cascudo (2012), Mariza
Mendes (2000), Nelly Novaes Coelho (1991), entre outros.
Palavras-chave: Patriarcado; Mulheres; Silenciamento; Contos de fadas.

Abstract:
The silencing of women in “The little Mermaid”, by
Hans Christian Andersen and “A voice among the
bushes”, by Marina Colasanti
This paper aims to analyze the silencing of women presented in the tradi-
cional fairy tale “The little mermaid”, by Hans Christian Andersen, published

* Mestra em Letras/Estudos Literários pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES).


Graduada em Letras/Português pela mesma instituição. Atualmente é professora efetiva de Literatura
e Língua Portuguesa na rede estadual de ensino em Minas Gerais. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.
br/1240588567416876. E-mail: ccinthiafs@gmail.com.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022 181


O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

originally in 1837 in compared to the modern fairy tale “Uma voz entre os
arbustos”, by Marina Colasanti, published for the first time in 1992. From
the tales, it is possible to study how patriarchal society retains the women
in private sphere, while the public space belongs to men. For this reason,
limited to domestic sphere for so long, women were not allowed to express
themselves, discuss nor write openly, since such activities were considered
typically for men. Therefore, the silence of women was a way to keep them
obediente to men. Thereby, we compare these two tales in order to identify
the meaning of silence of the main female characters in different time pe-
riods: romanticism and contemporaneity. For this purpose, we adopt con-
cepts from feminist theory, as reported by authors such as May Del Priore
(2020), Chimamanda Ngozi Adichie (2015), Adriana Piscitelli (2009), Helei-
eth Saffioti (2004); the idea of power as stated by Michel Foucault (2011)
and conceptions on fairy tales according to Luís da Câmara Cascudo (2012),
Mariza Mendes, Nelly Novaes Coelho (1991), among others.
Keywords: Patriarchy; Women; Silencing; Fairy tales.

Considerações iniciais
A produção científica, acadêmica ou mesmo de fadas moderno chamado “Uma voz entre
artística produzida por homens comumente os arbustos”, de Marina Colasanti. A finali-
se destaca em relação aos materiais produ- dade dessa investigação é perceber como a
zidos por mulheres ainda hoje, uma vez que época da produção desses textos interferiu
o silenciamento delas perdurou por muitas na representação literária de suas persona-
gerações. Se pensarmos, por exemplo, em gens, que ora reforçam modelos comporta-
uma lista com os principais nomes da nossa mentais, ora rejeitam esses paradigmas.
literatura brasileira, quantos são escritores Para isso, o estudo desses dois contos
e quantas são escritoras? é feito a partir de conceitos da teoria femi-
Limitadas ao espaço doméstico por mui- nista de gênero, segundo Mary Del Priore
to tempo, não havia interesse das socieda- (2020), Chimamanda Ngozi Adichie (2015),
des na educação formal das mulheres, o que Adriana Piscitelli (2009), Heleieth Saffioti
interferia certamente na sua habilidade de (2004); da concepção de poder, consoante
falar, de maneira mais crítica e assertiva, so- Michel Foucault (2011); pelos conceitos so-
bre assuntos mais complexos, como políti- bre contos de fadas de acordo com Luís da
ca, economia ou artes. Por esse motivo, as Camara Cascudo (2012), Marina Colasanti
mulheres eram frequentemente tachadas (2004), Mariza Mendes (2000), Nelly No-
de “tagarelas”, “fúteis” e “fofoqueiras”, por vaes Coelho (1991), entre outros.
produzirem discursos considerados vazios,
desconexos ou irrelevantes. O poder no patriarcado
Nesse contexto, objetivamos analisar, Sendo o feminismo uma atividade política,
neste artigo, como o silenciamento das mu- de produção de teorias mediante análises,
lheres foi representado no conto de fadas partimos principalmente da vertente do fe-
tradicional “A Pequena Sereia”, de Hans Ch- minismo radical, que não deve ser, contu-
ristian Andersen, em paralelo com o conto do, entendido pejorativamente como “ex-

182 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022


Cinthia Freitas de Souza

tremismo”. A corrente recebe esse nome pos, isto é, o patriarcado presente na Roma
“[...] por acreditar que a raiz das opressões Antiga não é o mesmo patriarcado do Brasil
sofridas pelas mulheres está nos papéis Império.
sociais atribuídos ao gênero (REIF, 2019, Conforme aponta Friedrich Engels
on-line)”, ou seja, entendemos que o conví- (1891/2021), é importante lembrar que,
vio entre homens e mulheres foi polarizado entre os povos primitivos, a divisão de tra-
pelo poder nas mãos deles a partir do pa- balho e os papéis sociais não eram tão de-
triarcado, sendo essa polarização o radical, finidos assim, ou seja, até a fase superior
isto é, a base da coerção feminina. Sobre o da barbárie, as mulheres eram mais livres
poder, Michel Foucault (2011) afirma que e não necessariamente estavam subordina-
ele é imanente às relações em que existem das aos homens da sua tribo ou não eram
desigualdade e desequilíbrio, o que inclui consideradas inferiores a eles.
questões econômicas, de conhecimento, ét- Ainda segundo o autor, o surgimento da
nicas ou sexuais. agricultura, da criação de instrumentos e
Quanto ao patriarcado, Mary Del Priore o aumento da escravidão alterou o regime
(2020) afirma que essa organização está vigente que seguia a descendência familiar
presente em quase todas as culturas do pelo lado materno (direito materno) para
mundo, a qual “[...] se define como sistema prevalecer então a descendência paterna
em que os homens têm a tarefa de alimen- (direito paterno). Para que isso aconteces-
tar e proteger a família, assumindo todas as se, foi preciso mudar, consequentemente, as
funções fora de casa. Às mulheres cabem a relações de matrimônio. Se antes eram por
organização do lar e a educação dos filhos” grupos, agora seriam monogâmicos. Só as-
(DEL PRIORE, 2020, p. 10). Considerando sim seria possível ter certeza da paternida-
esse conceito, a autora explica que a par- de dos filhos, os quais seriam herdeiros dos
tir dos anos 1970, com a segunda onda do meios de produção que os homens da tribo
feminismo, essa concepção passou a impli- fabricavam.
car também a ideia de “opressão das mu- Nesse sentido, “o desmoronamento do
lheres pelos homens” (DEL PRIORE, 2020, direito materno foi a grande derrota his-
p. 10). tórica do sexo feminino em todo o mundo.
Seguindo essa perspectiva, consoan- O homem apoderou-se da direção da casa;
te Adriana Piscitelli (2009), o patriarcado a mulher viu-se degradada, convertida em
se refere, portanto, a um sistema em que a servidora [...]” (ENGELS, 1891/2021, p. 69).
diferença sexual é usada para estabelecer Nessa perspectiva, Engels (1891/2021)
a “subordinação” da mulher pelo homem. afirma que o primeiro antagonismo de clas-
Corroborando essa ideia, para Heleieth Sa- ses ocorreu entre mulheres e homens a par-
ffioti (2004), o patriarcado é uma forma de tir da monogamia.
expressão do poder político, que se consti- Percebemos, assim, que a instauração do
tui como regime de “dominação e explora- patriarcado a partir do casamento monogâ-
ção” das mulheres pelos homens. mico alterou fatalmente a importância que
A autora ressalta, contudo, que o patriar- as mulheres tinham na sociedade, as quais
cado é um fenômeno em transformação, o passaram a ser consideradas apenas pela
que significa que essa organização política sua capacidade de gerar os herdeiros dos
sofreu/sofre alterações ao longo dos tem- homens. Veremos, a seguir, como a litera-

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O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

tura foi importante para que as mulheres espaço público. Desse modo, grande parte
expressassem sua voz e desequilibrasse o das mulheres não cultivavam a oratória,
domínio masculino no patriarcado. os códigos culturais e, consequentemen-
te, tinham medo de falar em público: “[...]
Vozes silenciadas perfeitamente compreensível depois de
Para que a fala das mulheres fosse “levada a séculos de respeitoso quase silêncio, ou da
sério”, muitas escritoras no século XIX usa- completa abdicação do ato de se expressar
ram pseudônimos masculinos. Entre elas publicamente com a própria voz, palavras e
estão Mary Ann Evans (1819-1880), que ideias” (FREITAS, 2002, p. 118, grifo da au-
adotou o nome de George Eliot; as irmãs tora). Por conseguinte, falar em público era
Charlotte (1816-1855), Emily (1818-1848) uma atividade considerada exclusivamente
e Anne Brönte (1820-1849), eram, respecti- masculina. Por um longo período, se uma
vamente, os irmãos Currel, Elis e Acton Bell; mulher falasse em público, isso seria visto
e Aurore Dupin (1804-1876), que assinava como invasão do espaço masculino.
como George Sand. Além disso, as atenienses, na Grécia Anti-
No século XX, Nelle Haper Lee (1926- ga, tinham um aposento separado do restan-
2016) decidiu usar seu segundo nome, pois te da casa, o gineceu, de acordo com Engels
soava mais masculino, e Alice Bredley Shel- (1891/2021) e Blanc (2014). Se chegasse
don (1915-1987) adotou o nome James Tip- alguma visita, elas deviam se retirar para
tree Jr. Em 1998, Joanne Kethleen Rowling esse quarto. Os homens, por sua vez, saíam
(1965-) foi aconselhada pela editora que bem cedo de casa e podiam se dedicar aos
publicaria seu famoso livro Harry Potter a esportes, às conversas no ginásio, ao culto
assinar apenas suas iniciais. das artes e às reuniões políticas livremente,
Nesse contexto, Howard Bloch (1995) ar- já elas saíam apenas durante festejos reli-
gumenta que a escrita das mulheres foi por giosos ou acompanhadas de uma escrava, o
muito tempo inferiorizada. O autor aponta, que indica que muitas mulheres das classes
por exemplo, que o psiquiatra italiano Ce- mais altas viviam quase enclausuradas no
sare Lombroso (1835-1909) sugeriu que espaço doméstico em certos lugares. Nesse
as mulheres escrevessem apenas cartas, ou sentido, Engels (1891/2021) afirma que “as
seja, “[...] este é outro modo de dizer que a donzelas [atenienses] aprendiam a fiar, te-
escrita das mulheres é menos séria, mais su- cer e coser e, quando muito, a ler e a escre-
perficial, ou ligada àquilo que é considerado ver. Eram praticamente cativas e só lidavam
a superfície da escrita – ornamento, estilo, com outras mulheres (ENGELS, 1891/2021,
retórica que agrada sem alcançar a verdade” p.77, grifo nosso).
(BLOCH, 1995, p. 77). Desse modo, na famosa pólis grega, nem
Nesse contexto, se a mulher se sentia à todos os habitantes eram considerados “ci-
vontade para expressar-se no lar (espaço dadãos”, uma vez que nem todos tinham
privado), o mesmo não acontecia no es- participação política. Nesse sentido, “[...]
paço público, no qual os homens tinham consistia, antes, dos seus cidadãos: os guer-
mais liberdade. Segundo Zilda de Oliveira reiros que defendiam a pólis. Escravos, mu-
Freitas (2002), o homem reservou o am- lheres e artesão estrangeiros, chamados de
biente doméstico para que a mulher fosse méticos, não podiam ser cidadãos” (BLANC,
a “rainha do lar”, enquanto ele reinava no 2014, p. 11, grifo nosso).

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Cinthia Freitas de Souza

No Brasil do século XIX, segundo Mary os constantes maus-tratos sofridos por ela,
Del Priore (2020), havia receio da hegemo- seus filhos e companheiras na fazenda do
nia masculina de que a leitura e a escrita capitão Antonio Vieira de Couto. Também
fossem usadas “erroneamente” pelas mu- questionava o fato de ter sido separada de
lheres, por isso a educação ofertada às bra- seu marido, sendo esse fato inédito naquele
sileiras era muito precária, embora outros período. Sua carta foi encontrada em 1979
países já criticassem o ensino superficial e no Arquivo Público do Piauí pelo historia-
defasado aqui. Mesmo assim, a autora res- dor Luiz Mott.
salta que as mulheres já tinham o hábito de A crença de que as mulheres deviam se
ler livros de oração, tratados morais e ro- limitar ao espaço doméstico não se restrin-
mances franceses; estes últimos eram, con- ge, porém, ao período antigo. Mesmo na
tudo, condenados pelos padres, que consi- contemporaneidade existem culturas que
deravam sua leitura pecado. O fato é que ainda pregam essa ideia. Lembremos que
os romances proporcionavam às mulheres Malala Yousafzai, jovem paquistanesa, foi
a fuga das regras sociais limitantes às quais baleada aos 15 anos por tentar garantir seu
estavam submetidas pelo patriarcado colo- direito ao estudo no Vale do Swat, o qual ha-
nial. Durante a leitura, não havia controle da via sido dominado por um grupo extremis-
sua imaginação, o que representava a elas ta religioso chamado Talibã que, no final de
um momento de liberdade. 2008, anunciou que todas as escolas femini-
Assim, a leitura colocava em risco o do- nas seriam fechadas. Nessa época, o Talibã
mínio masculino. Quanto mais conhecimen- já havia bombardeado e destruído cerca de
to as mulheres adquiriam, menos submissas 400 escolas de acordo com Malala Yousafzai
se tornavam. Foi o que aconteceu com Lucia- (2013).
na de Abreu (1847-1880). Brasileira aban- O líder do Talibã, Fazlullah, criou uma rá-
donada em Porto Alegre, tornou-se profes- dio, a Mulá FM, e durante seu programa, de-
sora e uma bem-sucedida proprietária de fendia que as mulheres não deviam estudar,
escola particular. Consoante Mary Del Prio- pois sua função era cuidar do espaço do-
re (2020), foi a primeira mulher a discursar méstico: “As mulheres devem cumprir suas
em público no país, na Tribuna da Sociedade responsabilidades dentro de suas casas. So-
Partenon Literário, em 1872, a fim de defen- mente em casos de extrema necessidade elas
der o direito das mulheres à emancipação. podem sair, cobertas com o véu” (YOUSAF-
Falou com vigor sobre a lamentável condi- ZAI, 2013, p. 125, grifo nosso).
ção das mulheres na sociedade e defendeu O fato é que Malala, ainda na infância,
o direito delas à instrução superior e à li- percebeu que sua educação era muito im-
berdade de exercer qualquer profissão. Se a portante e, apoiada e incentivada por seu
fala feminina podia ser hesitante em público pai, não se submeteu ao silêncio imposto
pela falta de prática, isso não aconteceu com pelo Talibã. Ela passou então a dar entrevis-
Luciana de Abreu. tas na televisão paquistanesa: “Quanto mais
Outro exemplo de resistência foi a escra- entrevistas eu dava, mais forte me sentia e
va Esperança Garcia (1751-?) que viveu na mais apoio recebia. Tinha apenas onze anos
capitania do Piauí e em 1770, segundo Mary e parecia mais velha, e a mídia gostava de
Del Priori (2020), fez uma reclamação ofi- ouvir uma menina” (YOUSAFZAI, 2013, p.
cial por escrito ao governador denunciando 151). Posteriormente, passou a escrever um

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022 185


O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

blog, denunciando a opressão que havia no Vale ressaltar, ainda de acordo com o
Swat, principalmente para as mulheres. Na filósofo que, embora o poder aconteça em
verdade, ela contava para um correspon- relações desiguais, essas relações são, por
dente da BBC em Peshawar o que acontecia, outro lado, sempre “móveis”, o que reforça
e ele postava sua fala no blog. Para sua segu- a ideia de que as mulheres sempre resisti-
rança, também adotou um pseudônimo, Gul ram às estratégias masculinas de controle,
Makai. uma vez que, para o autor, onde existe po-
Percebemos então que, por mais que os der, existe resistência, sendo esta inerente
homens tenham desenvolvido estratégias àquele. O discurso (oral ou escrito) torna-
a fim de manter o poder para si, as mulhe- se, portanto, elemento ambíguo de poder,
res nunca foram totalmente resignadas. Ou- visto que tanto pode reforçar os modelos
sando falar e escrever publicamente, elas em vigor quanto desequilibrá-los.
rejeitavam o modelo patriarcal vigente e De acordo com Zilda de Oliveira Freitas
tomavam para si o controle. Segundo o Fou- (2002), a literatura, produto de discurso,
cault (2011), o poder provém de todos os permitiu que as mulheres se libertassem
lugares e, portanto, está em toda parte, “[...] tanto por meio da leitura dela quando pela
não é uma instituição nem uma estrutura, escrita. Era, pois, um refúgio, um registro do
não é uma certa potência de que alguns se- inconformismo às leis que lhes proibiam o
jam dotados: é o nome dado a uma situação acesso à criação artística. Dessa forma, a li-
estratégica complexa numa sociedade de- teratura era para elas “[...] um território libe-
terminada” (FOUCAULT, 2011, p. 103, grifo rado, clandestino. Saída secreta da clausura
nosso). O que explica o fato de que o poder da linguagem e de um pensamento mascu-
não pertence aos homens, porque a ideia de lino que as pensava e descrevia in absentia”
“pertencimento” estaria associada ao deter- (FREITAS, 2002, p. 119).
minismo biológico como se os homens ti- Nesse contexto, a literatura foi funda-
vessem “nascido” com o poder dentro deles. mental para que as mulheres rompessem
Por outro lado, o poder tampouco pertence com a subordinação ao patriarca da família,
às mulheres, como se fosse algo que elas de- e a escrita e a leitura literária passaram a ser
vessem “recuperar”. Se pensássemos assim, ferramentas de subversão. Para Marina Co-
estaríamos voltando ao determinismo tam- lasanti (2004),
bém. a função da literatura não está no reforço
Como bem explicado por Foucault das instituições, nem na reprodução dos pa-
(2011), o poder se consegue estrategica- drões morais vigentes. A literatura se vivifica
mente. Assim, quando os homens proibi- e encontra sua função justamente na crítica,
ram, por exemplo, que as mulheres lessem, na desconstrução simbólica, na constante
procura de aprimoramento e crescimento
escrevessem ou falassem em público, retira-
social (COLASANTI, 2004, p. 63).
ram delas engenhosamente a possibilidade
de registraram também sua participação Percebemos então que, para a escritora,
na sociedade como produtoras de cultura. a literatura proporciona a transformação do
Sendo a História conhecida basicamente do status quo, pois altera os papéis sociais dos
ponto de vista deles por séculos, as partes sujeitos, modificando a estrutura da socie-
em que as mulheres apareceriam eram es- dade. A literatura aparece então como ins-
trategicamente suprimidas. trumento de reação delas contra o domínio

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Cinthia Freitas de Souza

masculino e como tentativa de serem reco- lantes, como o gato, o pato e o rato, sem que,
nhecidas como produtoras de cultura tam- entretanto, saibamos seus nomes, porque o
bém. As mulheres encontraram, na arte da que importa ali é o papel que representam,
escrita, o refúgio necessário para recupera- constituindo-se como categoria social.
rem a força que precisavam para rebelar-se, Embora usados comumente como sinô-
inicialmente pela leitura e em seguida pela nimos, contos de fadas e contos maravilho-
escrita, ou seja, pela emissão de sua voz. sos não são exatamente iguais de acordo
Chimamanda Ngozi Adichie (2015) afir- com Nelly Novaes Coelho (1991). Para a es-
ma que ainda existem, na sociedade, muitos tudiosa, os contos de fadas são histórias que
estereótipos negativos sobre as mulheres surgiram entre o povo celta na versão de
e sobre as mulheres feministas principal- poema, cujo tema principal era o amor. Sen-
mente, o que limita sua participação socio- do assim, a problemática deles é de cunho
cultural, porém a autora defende que “a cul- “existencial”, de autorrealização e amadure-
tura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cimento da personagem central, principal-
cultura. Se uma humanidade inteira de mu- mente por meio da união homem-mulher no
lheres não faz parte da nossa cultura, então desfecho. O ponto de partida na narrativa é
temos que mudar nossa cultura” (ADICHIE, com frequência um encanto, uma metamor-
2015, p. 48). Nesse sentido, a literatura, en-
fose, uma aventura ou uma partida do lar.
tendida como discurso, pode proporcionar
Os contos maravilhosos, por outro lado,
a reflexão sobre o status quo e impulsionar
teriam surgido no Oriente. No século VI, ain-
essa mudança. A seguir, trataremos especi-
da segundo a autora, circulava uma famosa
ficamente do gênero literário conto de fa-
coletânea desses contos na Índia, chamada
das necessário ao desenvolvimento deste
Calila e Dimna. A problemática nessas nar-
artigo.
rativas é “social” e está ligada, portanto, à
Concepções sobre os contos de autorrealização no âmbito socioeconômico,
isto é, pela conquista de bens, poder, rique-
fadas zas e, consequentemente, mudança na con-
Para Luís da Câmara Cascudo (2012), os dição social. O ponto de partida é geralmen-
contos de encantamento caracterizam-se te a miséria ou a necessidade física de so-
pelo “[...] elemento sobrenatural, o encanta- brevivência. Os contos maravilhosos podem
mento, dons, amuletos, varinha de condão, representar ainda a polarização entre o bem
virtudes acima da medida humana e natu- e o mal.
ral” (CASCUDO, 2012, p. 308). Nesse senti- Aceitando-se a distinção feita pela estu-
do, contos de fadas, contos maravilhosos ou diosa, seriam contos de fadas “A Cinderela”;
contos de encantamento referem-se àque- “Branca de Neve”; “A bela adormecida”; “O
las histórias marcadas pelo maravilhoso e patinho feio”; “A Pequena Sereia”; “A Bela e
pela fantasia sem causar estranhamento em a Fera”; “Pele de asno”; “A rainha das neves”
quem as lê. Os personagens são tradicio- e “Rapunzel”. Entre os contos maravilhosos,
nalmente “tipos”, pois representam funções destacamos “João e o pé de feijão”; “O gato
sociais e, por isso, muitos não têm nome. de botas”; “João e Maria”; “A pequena vende-
Assim, é comum encontrarmos o rei, a prin- dora de fósforos”; “O pequeno polegar”; “Ali
cesa, o príncipe, a camponesa, o lenhador, a Babá e os 40 ladrões” e “A história de Aladin
fada madrinha, além de alguns animais fa- e a lâmpada maravilhosa”.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022 187


O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

Com relação ao nome “conto de fadas”, Ela também tira lentamente sua roupa
vale ressaltar que a presença da fada não é, na frente dele, como se estivesse num strip-
contudo, obrigatória e que, quando ela apa- tease. Ao final, ela é devorada por ele, assim
rece, não é principal. Para Marina Colasan- como na primeira versão escrita por Char-
ti (2004), as fadas têm uma função muito les Perrault em que a garota também mor-
importante para os leitores, visto que elas re. Com a preocupação em não traumatizar
são “[...] mediadoras entre dois mundos in- as crianças e produzir-lhes alívio, esse final
dispensáveis ao equilíbrio do ser humano, o foi substituído pelos irmãos Grimm com a
da realidade e o do imaginário. São nossas inserção de um caçador, que mata o lobo e
interlocutoras com o silêncio” (COLASANTI, salva tanto a menina quanto a avó.
2004, p. 222). Ainda segundo Darnton (1986), inicial-
Já dentro da narrativa, Nelly Novaes Coe- mente “Cinderela” se torna empregada,
lho (1991) explica que a fada aparece para porque fugia do pai, que queria se casar
ajudar a personagem principal em uma si- com ela, o que hoje é considerando inces-
tuação-limite, pois não seria possível re- to e moralmente pavoroso. O incesto ainda
correr a nenhuma solução natural. É difícil aparece em “Pele de asno”, a qual também
precisar a origem das fadas, mas a estudiosa precisa fugir do castelo para não ser obriga-
afirma que as primeiras referências a elas da a se casar com seu pai, entretanto essa
aparecem nas novelas de cavalaria durante história não é tão disseminada quanto Cin-
a Idade Média, compondo o folclore céltico derela (que teve o incesto suprimido). Outra
-bretão. história que também caiu no esquecimento
Essas histórias, que circulavam entre os é “Barba azul”, na qual o marido costumava
adultos, foram adaptadas posteriormente degolar suas esposas e manter seus cadáve-
para atender as crianças quando se come- res trancados num aposento à chave (hoje
çou a construir a ideia de infância no século feminicídio).
XVIII, uma vez que, antes desse período, não Existe um conto chamado “Sol, Lua e Tá-
havia a preocupação que existe hoje com o lia” que teria dado origem à famosa “Bela
que elas viam ou ouviam, e tampouco se re- adormecida”. Nele, Tália é uma jovem prin-
conhecia a “infância” como uma fase espe- cesa que também cai em sono profundo ao
cial da vida. Assim, quando essas narrativas se espetar com uma farpa. Ela é deixada
surgiram, não havia público específico e elas desacordada no bosque e lá aparece um rei
circulavam, com muito interesse, entre os que se deita com ela, porque a achou mui-
adultos. to bonita. Nove meses depois, ela dá à luz,
Para atingir o público infantil, essas nar- ainda inconsciente, um casal de gêmeos
rativas foram cada vez mais reduzidas e sua- (Sol e Lua). Essa versão é também pouco
vizadas para atender à ideia de inocência conhecida, uma vez que o ato do rei carac-
que se formava acerca das crianças, na so- terizaria estupro. Assim, as versões que
ciedade burguesa que ascendia. Assim, em conhecemos hoje são bem mais leves que
uma das primeiras versões conhecidas de as primeiras versões que eram contadas
“Chapeuzinho Vermelho”, segundo Robert aos pequenos.
Darnton (1986), a menina, sem saber, come Marina Colasanti sempre defendeu, em
o corpo da avó e bebe seu sangue oferecidos entrevistas e livros, que seus contos de fa-
pelo lobo como se fossem um “lanche”. das não são “histórias para criancinhas”,

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Cinthia Freitas de Souza

num sentido pejorativo, pois ela percebia nessa criação, estimulando as personagens,
certo “desapontamento e desinteresse” assim, ora a manterem o patriarcado, ora a
do interlocutor (principalmente se fosse rejeitarem os modelos vigentes.
homem) quando ela contava que escrevia A protagonista da história de Hans Chris-
esse gênero textual. Assim, a autora fazia tian Andersen é uma jovem sereia que canta
questão de sempre lembrar aos leitores e dança com perfeição. Seu canto representa
que os contos de encantamento não eram aqui sua forma de expressão. Sendo o can-
destinados às crianças quando surgiram, to das sereias considerado atraente, vemos
visto que outrora havia muita crueldade que sua voz é principalmente associada à
neles também. sedução feminina, que tinha força apenas
Em entrevista, a escritora explica que nos limites do mar. Aqui ele não representa
ela se interessa em escrever contos de fadas fuga nem liberdade, uma vez que não leva
porque essa narrativa “[...] trata dos senti- a sereia a lugares distantes nem desconhe-
mentos mais antigos dos seres humanos: o cidos. Na verdade, a sereia não podia deixá
amor, o medo da morte, o medo da vida, o -lo. Tanto ela quanto suas irmãs não podiam
ódio, a inveja, o eterno desejo de crescimen- cruzar seus limites, exceto por um instante:
to, essa coisa que o ser humano tem de abrir “Quando vocês fizerem quinze anos,” dis-
as asas da alma e voar” (COLASANTI, 1997, se-lhes a avó, “vamos deixá-las subir até a
p. 127). Isso significa que essas histórias são superfície e se sentar nos rochedos ao luar,
válidas por tratarem de sentimentos ineren- vendo passar os grandes navios” (ANDER-
tes às pessoas, independentemente do tem- SEN, 2010, p. 213), o que indica que, para
po em que vivem. a protagonista, o mar representa o espaço
Sendo assim, contos de encantamento doméstico, não o público.
são histórias construídas a partir de acon- Finalmente ao completar seus quinze
tecimentos mágicos. Embora o contexto anos, a protagonista nada até a superfície
das estórias remeta à Idade Média, tratam e vê um belo príncipe que comemora seu
de questões próprias do ser humano, como aniversário num navio. Por causa de um
o amor, o medo, a inveja, o perdão, a mor- acidente, o jovem cai nas águas, mas é logo
te... Passaram a ser destinados às crianças salvo pela sereia, que o leva a uma praia, es-
a partir da construção da ideia de infância condendo-se em seguida no mar antes que
no século XVIII, sendo adaptadas a partir de ele pudesse vê-la. Ao acordar, o monarca vê
então a esse público. A seguir procederemos uma menina próxima a ele e pensa que a ga-
à comparação entre um conto de fadas tra- rota o havia salvado.
dicional e um moderno sob a perspectiva da Encantada pelo príncipe, a sereia deci-
teoria apresentada até aqui. de ir à terra firme para encontrá-lo, ou seja,
deixar o mar, seu espaço privado. Para isso,
O canto inaudível da sereia recorre à bruxa do mar (um elemento má-
Objetivamos comparar o conto “A Pequena gico) e pede-lhe que lhe dê pernas como as
Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma dos humanos. A bruxa é considerada a fada
voz entre os arbustos, de Marina Colasanti, má e representa, portanto, o mal, o que sig-
com foco na representação do silenciamen- nifica que o resultado de sua mágica geraria
to feminino em cada narrativa e identificar consequências negativas à protagonista. A
como o contexto de produção interferiu bruxa então lhe diz:

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O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

Que idiota você é! Mas sua vontade vai ser do casamento, o encanto das pernas seria
atendida e vai lhe trazer desventura, minha quebrado, e ela poderia voltar para o mar.
linda princesa. Você quer se livrar da sua Para isso, entrega-lhe uma faca.
cauda de peixe e ter no lugar dela um par de
A sereia hesita bastante e de repente
tocos para andar como um ser humano, de
modo que o jovem príncipe se apaixone por joga a faca no mar, mas a água “[...] ficou ver-
você e lhe dê uma alma imortal (ANDERSEN, melha no lugar em que caiu, e algo parecido
2010, p. 231). com gotas de sangue ressumou dela. Com
um último olhar para o príncipe e seus olhos
Assim, além de a jovem sereia sentir,
anuviados pela morte, ela saltou do navio
enquanto caminhasse, que estaria pisan-
no mar e sentiu seu corpo se dissolver em
do em faca afiada, para ficar com o prínci-
espuma” (ANDERSEN, 2010, p. 244). Como
pe, ela teria de abrir mão de sua voz. Desse
vermos, ao contrário do desfecho feliz que
modo, não poderia nunca mais se expressar
se consagrou nessa história da união entre
(cantar/falar) e a condição para poder par-
a sereia e o príncipe, a versão de Andersen
ticipar do “mundo dos homens” era perma-
necer em absoluto silêncio. Inicialmente a tem um final surpreendente, pois a protago-
sereia hesitou: nista morre, vira espuma do mar, e o prínci-
pe se casa com outra pessoa.
“Mas se me tira a minha voz, disse a Pequena
Essa fatalidade é mais comum nos con-
Sereia, “o que me sobrará?”
tos desse escritor, visto que, diferentemente
“Sua linda figura”, disse a bruxa, “seus movi- de Perrault e dos irmãos Grimm, que com-
mentos graciosos e seus olhos expressivos.
pilaram as histórias com certo humor e “fi-
Com eles pode encantar facilmente um cora-
ção humano... Bem onde está sua coragem? nal feliz”, predomina nele uma atmosfera
Estique sua linguinha e deixe--me cortá-la melancólica e, segundo Nelly Novaes Coelho
fora como meu pagamento” (ANDERSEN, (1991), suas narrativas representam sua vi-
2010, p. 233). são de mundo como um “vale de lágrimas”
Observe que, ao cortar a língua fisica- (COELHO, 1991, p. 77). Não é recorrente,
mente da princesa, a bruxa representa tam- portanto, em sua escrita, o ludismo ou a le-
bém a sociedade que domestica as mulheres veza. “Os momentos de humor e descontra-
para se casarem e serem obedientes. Ser bo- ção, em Andersen, são poucos. Predomina,
nita seria suficiente para conseguir o casa- em geral, um ar de tristeza ou dor” (COE-
mento; sua aparência é o que importa, seu LHO, 1991, p. 77).
pensamento não. Quando vai morar no cas- Vale lembrar que Hans Christian Ander-
telo do príncipe, já com pernas e sem voz, son era um escritor dinamarquês que publi-
a sereia lamenta não poder cantar para ele: cou vários volumes de Contos (com narrati-
“Oh, se pelo menos ele soubesse que abri vas destinadas às crianças) a partir de 1835
mão de minha voz para sempre estar com e continuou escrevendo até 1872, quando
ele” (ANDERSEN, 2010, p. 236). se machucou gravemente ao cair da cama e
Pouco tempo depois, o jovem príncipe faleceu em 1875. Foi influenciado pela tra-
acredita que uma princesa de outro reino gicidade romântica, característica que po-
era a menina que o salvara no mar e decide demos perceber no conto analisado aqui.
se casar com ela, mas isso levaria a protago- Vale reforçar que o príncipe não se casa
nista à morte. Para se salvar, a bruxa avisa à com a sereiazinha, pois ele pensa que sua
sereia que se ela matasse o príncipe antes salvadora é outra menina e isso só acontece

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Cinthia Freitas de Souza

porque a protagonista não pôde lhe contar pendia das boas ações dos humanos para se
quem era. O silenciamento da protagonis- tornar, de fato, livre. Sua morte foi mais um
ta foi, portanto, o causador de sua morte. É aprisionamento. Nesse sentido, de acordo
exatamente o silêncio imposto às mulheres com Mariza Mendes (2000), os contos tra-
que as leva ao sofrimento e com frequência dicionais não estimulavam a subversão; os
à morte. Lembremos dos inúmeros casos exemplares, na verdade, ensinavam o con-
de violência doméstica que muitas esposas formismo necessário para a manutenção da
ainda sofrem sendo o próprio companheiro ordem social que se instaurava.
o agressor. A magia, as fadas e o sobrenatural apare-
O conto de Andersen é a representação ciam, por conseguinte, nas narrativas para
de uma mulher resignada. A sereia permitiu acalentar os leitores e alimentar seus so-
que a bruxa (a sociedade patriarcal) a silen- nhos. Para a autora, “a magia é o sonho que
ciasse e, ao ter a possibilidade de subverter ajuda a suportar pacientemente os reveses
esse estado, permaneceu calada, o que a da vida. Essa é a lição transmitida pelas fa-
leva à morte. Esse conto, ao mesmo tempo das” (MENDES, 2000, p. 58). Assim, produ-
em que desconstrói a ideia de realização to de seu tempo, Andersen era influenciado
amorosa feliz, também conota a impossibili- pelos modelos da época e produziu uma li-
dade de se romper com o status quo. teratura visando, em parte, à manutenção
Em “A Pequena Sereia”, a morte da prota- da sociedade em que vivia.
gonista não representa, portanto, sua liber-
tação, pois seu corpo fica preso na atmosfera A noiva que desistiu de ser
como se fosse parte do ar e ficaria lá por sé- boneca
culos como punição por deixar o mar. Como a Influenciada pela segunda onda do feminis-
sereia não conseguira a alma imortal que tan- mo no século XX a partir de 1960, os contos
to queria por meio do amor do príncipe (que de fadas produzidos por Marina Colasanti
não se casou com ela), as outras entidades foram marcadamente inspirados pelas teo-
do ar explicam: “com trezentos anos de boas rias que surgiam, embora a autora tenha
ações, você também pode conquistar uma dito abertamente que não seguia especifica-
alma imortal” (ANDERSEN, 2010, p. 245). mente nenhuma corrente. Em 1968, a escri-
O conto reforça ainda o caráter morali- tora, ilustradora, jornalista e ensaísta publi-
zante e didático que essas histórias passa- cou seu primeiro livro Eu sozinha e continua
ram a ter quando foram adaptadas para as escrevendo ainda hoje.
crianças, pois uma das companheiras eté- Raros são os escritores que, a partir do
reas da sereia explica-lhe que se as crianças Modernismo, se aventuram a criar contos de
se comportarem bem, o tempo de sua reclu- encantamento. A maioria escreveu paródias
são diminui: “[...] para cada dia que encon- das histórias tradicionais, uma vez que es-
tramos uma boa criança, que faz mamãe e sas narrativas passaram a ser muito critica-
papai felizes e merece o amor deles, Deus das por reforçarem funções sociais do regi-
abrevia nosso tempo de sofrimento [...] e as- me patriarcal de outrora. Certamente que o
sim um ano é subtraído dos trezentos” (AN- momento de produção é determinante para
DERSEN, 2010, p. 246). quem escreve, assim os contos tradicionais
Nesse sentido, a personagem principal apresentam os modelos sociais da época em
não tinha controle sobre si, uma vez que de- que surgiram.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022 191


O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

No entanto, Marina Colasanti voltou-se deixou-a sozinha, indo beber com o cochei-
para a produção original de contos de fa- ro” (COLASANTI, 2009, p. 43). Vejamos que
das, sem depreciá-los como acontecia nes- o permanente silêncio da moça não causa
se período. Vale ressaltar que, segundo Ana estranheza nos homens que consideram
Maria Machado (2010), esses contos apare- esse comportamento positivo e louvável.
ciam cada vez mais reduzidos e limitados ou O silêncio representava, pois, obediência
“totalmente pasteurizados”, retirando-se, e submissão, sendo, portanto, uma qualida-
frequentemente, a simbologia neles que se de valorizada socialmente, visto que uma
volta para os anseios humanos; processo mulher que falasse com frequência era ta-
que começara a acontecer para atender ao chada de tagarela e fútil, como mencionan-
público infantil. Ainda de acordo com a es- do anteriormente.
critora, o gênero “[...] era acusado dos mais Porém, certo dia – numa nova tentativa
diversos males: elitismo, sexismo, violên- de levar a boneca ao castelo – a filha do esta-
cia, moralismo, maniqueísmo” (MACHADO, lajadeiro, percebendo que se tratava de uma
2010, p. 21). boneca, troca sua roupa pela dela e assume
Desse modo, vale ressaltar que os con- o lugar da noiva do rei, que ao vê-la pensa
tos de fadas modernos de Marina Colasanti que ali “estava a mais bela das jovens. A mais
são atualizados e não previsíveis. A mor- delicada. A mais silenciosa. Ali estava a es-
te, por exemplo, é algo bem recorrente nas posa que tanto buscara” (COLASANTI, 2009,
suas narrativas feéricas numa tentativa de p. 45). Observe que a aparência da mulher
ressignificar seu conteúdo, constantemente é muito valorizada e os adjetivos que o rei
simbolizando libertação da protagonista ao lhe atribui reforçam que ele procurava uma
contrário do que vimos com a sereiazinha. esposa resignada e obediente e bonita.
No seu conto “Uma voz entre os arbus- Toda a corte estava encantada com a fu-
tos”, presente no livro Entre a espada e a rosa, tura rainha: “Lenta e gentil nos gestos, só
publicado originalmente em 1992, um gru- abria a boca de vez em quando para sorrir,
po de saltimbancos substitui uma de suas sem pronunciar uma única palavra. No mais,
atrizes por uma bela boneca, que chama a maneava a cabeça, cobria os lábios com os
atenção de muitos, inclusive de nobres cava- dedos, parecendo apenas um pouco mais
leiros que passavam durante o espetáculo. viva que a boneca” (COLASANTI, 2009, p.
Eles contam ao rei sobre “[...] aquela moça 47), o que evidencia novamente a valoriza-
de rara beleza e doce silêncio” (COLASANTI, ção da sociedade pela mulher que não fala,
2009, p. 43), o qual logo deseja que ela seja não questiona sua condição, nem os mode-
sua noiva. Assim, ordena que a busquem e a los sociais vigentes.
levem para seu castelo. Os saltimbancos, ao Para Wanessa Zanon Souza (2009), “a
receberem o comunicado real e com medo domesticação masculina faz-se presente de
de contarem a verdade, entregam a boneca forma que as mulheres se veem condiciona-
muito bem arrumada. das a seguirem o padrão comportamental
Durante a viagem, o pajem para numa es- a que foram submetidas durante toda sua
talagem, porque está com sede e pergunta à vida” (SOUZA, 2009, p. 16). Nesse contexto,
bela jovem se ela queria algo: “Mas não rece- a domesticação é um fator estrategicamente
bendo resposta, atribuiu o silêncio ao mais instigado nas mulheres, cuja finalidade é fa-
puro recato e, achando melhor não insistir, zer com que sejam dependentes e obedien-

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Cinthia Freitas de Souza

tes para que a dominação masculina possa produzindo tão assertivos discursos e por
prevalecer. Assim, a noiva era o resultado do quem havia se apaixonado. Sabendo que ela
modelo de domesticação feminina. não seria silenciada pelo marido, pois ele
Como vimos antes, o discurso é uma for- ficara interessado por tudo o que ela teria
ma de poder, quem o exerce melhor, man- para lhe dizer, “[...] sob os vivas do povo os
tém o controle consigo. Enquanto as mulhe- noivos saíram sorridentes, liderando o cor-
res permaneciam em silêncio, o discurso era tejo” (COLASANTI, 2009, p. 49), ou seja, os
visto como uma habilidade dos homens. No dois se casam.
conto, ao perceber que sua noiva não tenta- Percebemos que a narrativa apresenta
va se apropriar do discurso, ela se torna a um “final feliz” mais comum aos contos de
rainha perfeita, pois o comando do rei nun- fadas. Contudo, isso só aconteceu, porque
ca seria ameaçado por ela. a jovem sabia que não seria condenada ao
A jovem passa a se preocupar, porém, silenciamento nessa união. O conto revela
com o futuro de eterno silêncio que teria também que Marina Colasanti não reprova a
a partir do casamento. Ela começa então a relação entre homem e mulher, como acon-
falar sozinha ou com as flores do jardim. O teceu em algumas correntes do feminismo,
rei um dia ouve aquela conversa, aquela voz que os colocam como eternos adversários.
entre os arbustos. No início, gostava apenas No início dos movimentos feministas,
do som da voz dessa mulher que ele não sa- havia grande rejeição aos homens, e mui-
bia quem era, pois não conseguia vê-la, mas tas defendiam que a autonomia feminina só
logo “[...] começou a reparar nas palavras, aconteceria com a inversão dos papéis, ou
surpreendendo-se com a beleza e acerto da- seja, com a opressão deles pelas mulheres,
queles discursos que pareciam brotar por pensamento que Marina Colasanti não de-
entre as árvores” (COLASANTI, 2009, p. 47) fende. Para ela, é possível sim haver igualda-
e de repente pareceu-lhe enfadonho o silên- de de direitos e deveres entre ambos os se-
cio de sua noiva. xos e que podem coexistir harmonicamente.
A filha do estalajadeiro, sem saber que Assim, quando a autora afirma que homens
era ouvida pelo rei, sente-se cada vez mais e mulheres são diferentes, isso não significa
angustiada, sem supor que seu noivo já não que um seja melhor que o outro, embora o
apreciava mais silêncio mordaz dela e tam- sistema patriarcal tenha enaltecido carac-
bém já não se sentia feliz. No dia do casa- terísticas consideradas socialmente como
mento, os dois ficam hesitantes, pensando tipicamente masculinas e menosprezado as
no longo silêncio que os esperava. A jovem, peculiaridades tidas como femininas.
certa de que não era a vida que queria ter, Nesse sentido, tanto mulheres quanto
decide então falar, contar que não aguenta- homens são produtores de cultura, no en-
va perder sua voz, que não poderia mais fin- tanto, como dito anteriormente, os mate-
gir e que precisava ser ouvida. riais produzidos por elas foram constante-
Assim, a moça abre mão de ser a rainha, mente ignorados. Marina Colasanti (2004)
de ter o casamento que muitas desejariam salienta, acerca dos contos de fadas, que
em favor de sua voz, de não ser condenada eles foram criados e repetidos tanto por ho-
ao silêncio eterno. O que ela não esperava, mens quanto por mulheres, contudo, como
porém, é que o rei lhe reconhecesse a voz, a escrita foi privilégio masculino por muito
a mesma voz da moça que falava no jardim tempo, apenas eles foram reconhecidos pela

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022 193


O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

história literária como os seus grandes au- assim a ser respeitados por nobres burgue-
tores. Desse modo, “os homens tornaram-se ses como histórias cheias de ensinamento e
donos dos contos assim como eram donos preceitos morais” (MENDES, 2000, p. 48).
das mulheres. A elas deixaram apenas o pa- Essas mulheres ficaram conhecidas
pel de repetidoras, uma vez que repetir é como “preciosas” e teriam desenvolvido
função mantenedora” (COLASANTI, 2004, p. essa atividade literária durante o barroco
239). francês ativamente, embora fossem ridicu-
Por isso, quando falamos de contos de larizadas por alguns homens da época. O
fadas, pensamos primeiramente em Charles fato de não as conhecermos melhor, é por-
Perrault, nos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm que infelizmente elas não conseguiam ir
e Hans Christian Andersen, porém as mu- além dos salões franceses, numa época em
lheres foram parte importantíssima no pro- que muitas não podiam sequer frequentar
cesso de registro desses contos oriundos da escolas e academias. Aquelas que quisessem
tradição oral. aprender a ler e escrever teriam de fazê-lo
O livro Histórias ou narrativas do tem- em casa.
po passado com moralidades, publicado em Perrault era frequentador desses salões
1697 por Perrault, tornou-se famoso sob literários e foi nesse ambiente que se teria
o novo título Contos da Mamãe Gansa. De inspirado. Muitos dos contos apresentados
acordo com Robert Darnton (1986), Per- pelas mulheres que o autor conheceu nesses
rault recolheu os contos do seu livro a partir ambientes foram posteriormente publica-
da tradição oral do povo francês e “princi- dos sem que elas fossem reconhecidas como
palmente da babá de seu filho” (DARNTON, suas autoras. Como percebemos, o discurso
1986, 24). Nessa perspectiva, o uso de “gan- das mulheres foi engenhosamente abafado
sa” e não de “ganso” induz que as narrativas pelo discurso masculino.
de encantamento fossem histórias tradicio- Em “Uma voz entre os arbustos”, perce-
nalmente contadas por mulheres, além do bemos então que Marina Colasanti rejeita
fato de o escritor recorrer a uma mulher (a a ideia de que a mulher deve se resignar a
babá) para compô-las. ter um marido que não a valorize e respeite.
Por sua vez, os irmãos Grimm, para es- Todavia, a união entre os personagens, no
creverem seu livro Contos de fadas para final da história, indica que homens e mu-
crianças e adultos, publicado inicialmente lheres não precisam ser eternos inimigos e
entre 1812 e 1822 recorreram, segundo Jan que pode haver equilíbrio na relação entre
Ziolkowski (1992), a duas informantes ale- ambos.
mãs Johanna Isabella e Marie Hassenpflug,
vizinhas dos folcloristas, as quais também Considerações finais
conheciam as versões de Perrault. A sociedade patriarcal define funções e com-
Já Mariza Mendes (2000) afirma que, portamentos específicos para mulheres e
quando Perrault publicou seu livro de con- homens. De acordo com a teoria feminista de
tos de fadas, já havia na França um grande gêneros apresentada neste artigo, esse siste-
interesse por esse tipo de histórias graças ma permite que homens sejam superiores às
às mulheres: “Elas [...] se encarregaram de mulheres. Enquanto eles eram majoritaria-
garantir em seus salões literários um espa- mente produtores de cultura – com destaque
ço para os ‘contos da velha’, que começaram aqui para a literatura –, uma vez que podiam

194 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022


Cinthia Freitas de Souza

ir e vir livremente entre o espaço público e o sejam menos citadas que eles. Para romper-
privado, as mulheres foram constantemente mos com essa condição, devemos, portanto,
limitadas à esfera doméstica. mudar nossa cultura para que a população
Muitas mulheres tiveram sua voz silen- reconheça o valor dos materiais produzi-
ciada, porque era uma estratégia masculi- dos pelas mulheres. Para que isso aconteça,
na para manter o poder sobre as mulheres. precisamos, então “[...] criar nossas filhas de
Certamente, havia várias manifestações de uma maneira diferente. Também precisa-
resistência entre elas, por meio inicialmente mos criar nossos filhos de uma maneira di-
da leitura e da produção literária. A literatu- ferente” (ADICHIE, 2015, p. 28, grifo nosso).
ra, assim como todo discurso, é ambivalente,
uma vez que pode tanto validar modelos e Referências
comportamentos sociais, quanto rejeitá-los ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos
e enfraquecê-los. feministas. Tradução de Chritina Baum. São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.
Ao compararmos os contos “A Pequena
Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma ANDERSEN, Hans Christian. A pequena sereia.
voz entre os arbustos”, verificamos que, In: CONTOS de fadas de Perrault, Grimm, An-
dersen & outros. Ana Maria Machado (Apre-
influenciados pelo contexto de produção, sentação). Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio
o conto de Andersen simboliza o silencia- de Janeiro: Zahar, 2010. p. 209-246.
mento da protagonista como algo necessá-
BLANC, Cláudio. Guia da mitologia grega. São
rio para atingir seu objetivo, isto é, casar-se Paulo: Online, 2014. p. 5-24.
com o príncipe. Seu silenciamento parado-
BLOCH, R. Howard. Misoginia medieval e a in-
xalmente impede que ela seja bem-sucedi-
venção do amor romântico ocidental. Tradu-
da, pois, como não pôde contar ao príncipe ção de Cláudia Moraes. Rio de Janeiro: Editora
que o havia salvado no mar, ele se casou com 34, 1995.
outra princesa, fazendo com que a pequena CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no
sereia se sacrificasse. Sua morte não repre- Brasil. São Paulo: Global, 2012. p. 308-310.
senta, porém, sua libertação, visto que esta-
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. 2. ed.
va condenada a ser uma entidade etérea por São Paulo: Ática, 1991.
300 anos.
COLASANTI, Marina. Longe como meu querer.
Por outro lado, no conto de Marina Cola-
São Paulo: Ática, 1997. Entrevista concedida à
santi, observamos que o casamento deixou Editora Ática.
de ser o objetivo da jovem quando ela per-
COLASANTI, Marina. Aos sofistas, a culpa. In:
cebeu que estaria fadada ao silenciamento COLASANTI, Marina. Fragatas para terras dis-
eterno, caso se casasse com o rei. Entretan- tantes. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 57-64.
to, como a escritora não perpetua a relação
COLASANTI, Marina. Entre a espada e a rosa.
de opressão dos homens contra as mulhe- São Paulo: Melhoramentos, 2009. p. 42-49.
res, ao ficcionalizar que ambos poderiam
DARNTON, Robert. O grande massacre dos
conviver em harmonia, o conto termina com
gatos e outros episódios da história cultural
a união dos jovens, porque o rei reconhece o francesa. Tradução de Sonia Coutinho. Rio de
valor do discurso produzido por sua noiva. Janeiro: Graal, 1986.
Desse modo, hoje as mulheres não preci- DEL PRIORE, Mary. Sobrevivente e guerreiras:
sam mais se esconder atrás de pseudônimos uma breve história da mulher no Brasil de 1500
masculinos para serem lidas, embora ainda a 2000. São Paulo: Planeta, 2020.

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022 195


O silenciamento das mulheres em “A Pequena Sereia”, de Hans Christian Andersen e “Uma voz entre os arbustos”, de Marina
Colasanti

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Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

196 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 181-196, jan./jun. 2022


reSENHas
La enfermedad como heterotopía. Un lugar de aceptación de la culpa y el fracaso en la novela Sistema nervioso (2018) de la
escritora chilena Lina Meruane

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

La enfermedad como heterotopía. Un


lugar de aceptación de la culpa y el
fracaso en la novela Sistema nervioso
(2018) de la escritora chilena Lina
Meruane
Mireya Alejandra Ramos Jiménez (Universidad de Concepción)*
https://orcid.org/ 0000-0003-2783-864X

Hospital es la vida en que cada enfermo está poseído por


el deseo de cambiar de cama. Este querría padecer junto a
la estufa y aquél cree que se curaría frente a la ventana.
Charles Baudelaire.

A la luz de las problemáticas fundamentales tagonista; acaparando toda su atención res-


planteadas por los estudios literarios en La- pecto a las preocupaciones vitales que giran
tinoamérica, caracterizadas por la búsque- en torno a su trabajo como profesora y a la
da de las identidades, el reconocimiento de falta de tiempo requerido para terminar su
las diversidades y el sentido de pertenencia; tesis doctoral inconclusa. De tal forma que el
es posible dar cuenta de algunas narrativas sentimiento de culpa y de fracaso de Ella, la
contemporáneas vinculadas a literatura y protagonista, va desencadenando una inte-
pensamiento utópico, literatura y violen- resante reflexión sobre cómo los trastornos
cia y escrituras del yo, especialmente en las y enfermedades de uno u otro integrante del
voces de mujeres, seres anomales o sujetos grupo familiar inciden de manera sistémica
marginales en cuyos espacios diegéticos se en sus devenires.
configura la violencia, el abuso, lo sórdido o Es así como los recuerdos de la infan-
la enfermedad. cia, de la vida familiar, su actual trabajo, la
Tal es el caso de la novela Sistema ner- vida en pareja y sus proyecciones de futuro
vioso (2018), de la escritora chilena Lina se perciben y se explican a través de ciertas
Meruane (1970), donde se establece la pre- enfermedades como el cáncer, los tumores,
sencia de la enfermedad como una mani- las fracturas o las úlceras, que también son
festación heterotópica de la realidad, que parte del álbum de fotos familiar que cada
conecta la vida presente y pasada de la pro- cierto tiempo se hojea, como lo hace la pro-

* Profesora de Castellano desde el año 1993, titulada de la Universidad del Bío Bío (Chile). Magister en
Educación de la Universidad de Concepción (Chile) y Magister en Gestión Educacional de la Universidad
San Sebastián (Chile). Actualmente cursa el doctorado en Literatura Latinoamericana de la Universidad
de Concepción (Chile). E-mail: mireramos@udec.cl

198 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 198-202, jan./jun. 2022


Mireya Alejandra Ramos Jiménez

tagonista, para recordar y constatar cuán si- meteórico de colon de su tío. Los cánceres
milares pueden ser entre sí los integrantes metastásicos de páncreas y de hígado de las
de una familia, no solo por rasgos físicos o tías. El cáncer de pecho que le extirparon a
por los lazos afectivos adoptados, sino tam- la madre. (MERUANE, p. 67).
bién por enfermedades que se transmiten Es así como comienza a recorrer este ál-
por herencia o se adquieren por costumbre. bum de imágenes familiares, recogiendo los
A partir de esta novela es posible anali- pedazos de una vida que quedó en el país del
zar la enfermedad como una forma de habla pasado donde aún vive su familia y a la que
del cuerpo desde su propio y legítimo lugar se siente atada por la genética y los afectos,
de enunciación; ficcionando sobre sí mismo como las piezas de un engranaje al que per-
como entidad biológica independiente, pero tenece, en las buenas y en las malas, y es la
en interdependencia con la voluntad de un clave necesaria para disipar la incertidum-
yo que en esta novela acepta que el cuer- bre de sus afecciones físicas y emocionales
po revele su propia razón y explicación de y, por cierto, el lugar más apropiado para
aquello que no funciona dentro del sistema concebir una heterotopía donde el cuerpo
familiar de la protagonista y los demás inte- manda por sobre las culpas y el fracaso.
grantes de su familia; su pareja, su padre, su Cada capítulo de la novela es una anam-
madrastra, su hermano mayor y una pareja nesis literaria sobre la vida y enfermedad
de mellizos, medio hermanos menores. de Ella y los integrantes de la familia, pero
Ella, la protagonista, agobiada por la falta sin detenerse en la semántica clínica de sus
de tiempo y el exceso de trabajo como pro- causas y efectos, tampoco en el estigma de
fesora de ciencias planetarias en diferentes una tragedia; sino más bien en la posibilidad
escuelas, manifiesta su deseo de ser salvada de un evento que ciertamente puede ocu-
por alguna enfermedad que le permita obte- rrir, así como suceden los nacimientos, los
ner una licencia médica de un par de meses cumpleaños o los funerales, en una familia
para dedicarse de lleno a escribir su tesis de como ésta donde además ambos padres son
doctorado sobre agujeros negros en el uni- médicos. Eso es lo interesante en la escritu-
verso. ra de Meruane, convivir con la enfermedad
En la búsqueda y auscultación de su y abrir paso al lenguaje para deletrearla tal
cuerpo, hombro, brazo, cuello, cabeza, en cual, con sus dinámicas propias, incluso con
cierta forma atrae la presencia de extraños humor, y otorgarle un cierto poder de enun-
síntomas de una posible enfermedad, que la ciación que desde luego, en Sistema nervioso
lleva a la consulta de distintos especialistas (2018), va más allá de padecer una enferme-
y a la toma de muchos exámenes de labo- dad y morir con ella, tal como lo retratara el
ratorio para poder dar con un diagnóstico propio Bolaño en uno de sus ensayos sobre
acertado que la deje conforme a ella y a su Enfermedad y poesía:
padre, un médico general, que permanente- Mallarmé quiere volver a empezar, aun a sa-
mente está cuestionando los resultados de biendas que el viaje y los viajeros están con-
esos exámenes y las opiniones médicas de denados. Es decir, para el poeta de Igitur, no
sólo nuestros actos están enfermos sino que
sus colegas. Todo a través de llamadas tele-
también lo está el lenguaje. Pero mientras
fónicas que mantiene con su hija a larga dis- buscamos el antídoto o la medicina para cu-
tancia. En su memoria reviven el cáncer de rarnos, lo nuevo, aquello que sólo se puede
garganta de su abuelo materno y el cáncer encontrar en lo ignoto, hay que seguir tran-

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 198-202, jan./jun. 2022 199


La enfermedad como heterotopía. Un lugar de aceptación de la culpa y el fracaso en la novela Sistema nervioso (2018) de la
escritora chilena Lina Meruane

sitando por el sexo, los libros y los viajes, porque los avances de la microbiología y el
aun a sabiendas de que nos llevan al abismo, uso de tecnologías le han cambiado la fiso-
que es, casualmente, el único sitio donde nomía monstruosa a las enfermedades:
uno puede encontrar el antídoto.” (BOLAÑO,
2003, p. 156). Basta ver una enfermedad cualquiera como
un misterio, y temerla intensamente, para
Meruane sigue una ruta similar a través que se vuelva moralmente, si no literalmen-
de sus personajes que colindan con la enfer- te, contagiosa. Así, sorprende el número de
medad, especialmente Ella, una viajera ha- enfermos de cáncer cuyos amigos y parien-
cia lo ignoto, a otros planetas inhabitados, tes los evitan, […] como si el cáncer, fuera
a estrellas muertas, a agujeros negros, que una enfermedad infecciosa. (SONTAG, 1980,
p. 2).
la llevan siempre más allá, hasta perderse y
tener que aceptar el fracaso de una investi- Eso lo saben muy bien los personajes de
gación nunca terminada. Pero aun así, conti- Meruane, quienes contrariamente a ese tipo
nuar viajando, incluso para acompañar a su de ocultamiento y temor, dejan ver sus enfer-
padre en las postrimerías de una enferme- medades, en la naturalidad de sus expresio-
dad terminal, que es parte de la heterotopía nes y en la cotidianeidad de sus vidas, hasta
de ambos, “Trato hecho dice el Padre viendo con un cierto grado de humor. “Este niño
saltar chispas alrededor de la hija, la hija to- tiene piduyes, decía la Madre antes de decir,
cada por la luz, además, dice, me lo debes, después, cuando empezara a romperse, que
me haces falta en ese viaje, tú eres la experta tenía huesos de loza. Su hijo de porcelana,
en el más allá.” (MERUANE, p. 277). lo llamaba la Madre a escondidas del Padre.
Desde la perspectiva de la filósofa y en- Su hijo trizado.” (p. 198), entregando ciertas
sayista Susan Sontag, el miedo a las enfer- pistas sobre cómo se deja fluir al lenguaje
medades, intratables e incomprendidas, del cuerpo, sin entrar en contradicción con
como la tuberculosis, el cáncer y posterior- la voluntad ni tampoco dejarse abatir por el
mente el sida; que tuvieron que afrontar las lado inhóspito de la enfermedad, que cier-
sociedades industrializadas, incluso desde tamente lo es, pero acá es construido como
mucho antes, ha justificado el uso de las un lugar heterotópico de sana convivencia
metáforas para interpretarlas como las que entre cuerpo, vida y enfermedad.
roban vida o representan la degradación La protagonista es una especie de enlace
del cuerpo, que es consumido por síntomas roto dentro de un sistema familiar que narra
como la tos sangrante, los efluvios pestilen- en primera persona los distintos episodios
tes o el aspecto indigno de tumores que es familiares, que le dan pulso a su propia exis-
necesario ocultar bajo ciertas metáforas, tencia y van mostrando de alguna manera
que además son una forma de control, “Las la falla que comienza a languidecer sus fun-
metáforas patológicas siempre han servido ciones individuales dentro del contexto de
para reforzar los cargos que se le hacen a la un sistema en el que orbitan Ella y sus inte-
sociedad por su corrupción o injusticia […] grantes. Atados entre sí por la fuerza de los
y para expresar una insatisfacción por la so- afectos y las tensiones que cortocircuitan la
ciedad como tal” (SONTAG, 1980, p. 35). armonía de sus relaciones; lo que en pala-
Meruane, al igual que Sontag, coinciden bras de Andrea Kottow significa:
en que ese terror infundido hasta ahora es […] explorar la idea de cortocircuito, dado
totalmente pasado de moda, especialmente que pareciera ser que en la novela de Merua-

200 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 198-202, jan./jun. 2022


Mireya Alejandra Ramos Jiménez

ne el peligro inminente que pende sobre la de cuerpos auténticamente vivientes en esa


narradora es el del colapso. Cuando la con- otra realidad, que tiene un lenguaje propio
ducción de señales eléctricas supera las posi- sin eufemismos, y donde el dolor es ubicuo,
bilidades de procesamiento, el cortocircuito
la sordera es un grito, el cáncer, tarde o tem-
amenaza con advenir. (KOTTOW, 2019, p. 7).
prano es sentencia de muerte, o la fragili-
Fallas de los cuerpos orbitantes que con- dad ósea es ruptura inminente de huesos.
forme van apareciendo pasan a formar parte En ese otro lugar que se yuxtapone al deseo
de la radiografía familiar de enfermedades y del alma, de vivir en perfección, el cuerpo es
disposiciones genéticas que también dispo- cuerpo, un lugar incompatible con la utopía
nen al cuerpo de la protagonista y se difumi- que lo condena a no existir. Desde luego, los
nan bajo las formas de la culpa y el fracaso personajes de Sistema nervioso (2018) cal-
por ejemplo, al no rendir en la investigación
zan con esa idea imperfecta de existir, pero
de su tesis de postgrado, por mentir a su pa-
en cuerpos vivientes y llenos de órganos,
reja y familia acerca del financiamiento de
que no hay utopía que los pueda borrar:
sus estudios en el país extranjero, por exce-
Mi cuerpo es el lugar irremediable al que
so de trabajo como profesora, por fallarle a
estoy condenado. Después de todo, creo que
su padre y haber agotado todos los recursos
es contra él y como para borrarlo por lo que
económicos en esos estudios de doctorado se hicieron nacer todas esas utopías. El pres-
que nunca terminó, y también por la muerte tigio de la utopía, la belleza, la maravilla de
de su madre cuando Ella nació. la utopía, ¿a qué se deben? La utopía es un
Fue en el bar de siempre donde sus compa- lugar fuera de todos los lugares, pero es un
ñeras le comunicaron que corría el rumor lugar donde tendré un cuerpo sin cuerpo.
sobre Ella. Que era una infiltrada en el campo (FOUCAULT, 2010, p. 8)
de la física. Que les estaba mintiendo cuando Lina Meruane, en su trilogía de las en-
les decía que había perdido todo el trabajo fermedades, Sangre en el ojo (2012), Fruta
de los últimos años, que esa computadora
podrida (2015) y particularmente en esta
carísima se le había llenado de un virus […],
seguían dándole error 404 por favor reinicie. última, Sistema nervioso (2017), nos permi-
[…] no eran más que excusas torpes, se reían te ver la calidad y el estilo anamnésico que
a carcajadas de Ella […] llevaban meses ha- desarrolla en la escritura, a partir de una
blando a sus espaldas y escuchándolas de- visión de conjunto sobre las enfermedades
cirle ahora, en persona, de frente, con franca de sus personajes, logra que el lector escu-
condescendencia, que su único error era ha-
che la voz delirante de los cuerpos de cada
ber creído que Ella tenía algún talento para
las ciencias duras. (MERUANE, p. 130). uno. Porque son ellos quienes muestran sus
heridas supurantes, sus huesos quebrados,
A medida que Ella corporaliza la culpa y el grito de la sordera o la embriaguez de la
el fracaso, porque sus manos no escriben,
quimioterapia.
comienza un adormecimiento de algunas
Desde esa perspectiva es posible esta-
partes del cuerpo1 que instalan el malestar
blecer que la enfermedad es el lugar donde
de la enfermedad en el espacio heterotópico
los cuerpos alcanzan, por decirlo de alguna
1 […] pero entre Ella y su síntoma se instala otra manera, la mayor plenitud de la existen-
cosa: un leve adormecimiento que comienza en cia, nunca un cuerpo está más corporizado
el hombro y se extiende por el brazo hacia el
codo hasta alcanzar el dorso de la mano derecha, y consciente de su materialidad que en la
los dedos donde todo comenzó. (p. 23). enfermedad misma, por lo que hablar de la

Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 198-202, jan./jun. 2022 201


La enfermedad como heterotopía. Un lugar de aceptación de la culpa y el fracaso en la novela Sistema nervioso (2018) de la
escritora chilena Lina Meruane

enfermedad como una heterotopía en este la falla que está dentro de ella, pero también
análisis tiene sentido. dentro del sistema familiar.
Sistema nervioso en ningún caso es una
narración de síntomas o de consecuencias Referencias
de una enfermedad que determine la volun- BOLAÑO, R. El gaucho insufrible. Barcelona:
tad de sus personajes, si bien las padecen, Editorial Anagrama. 2003.
ninguno sucumbe a ante ellas por injuriosas FOUCAULT, M. El cuerpo utópico. Las hete-
que sean. Tampoco se tornan en el elemento rotopías. Buenos Aires: Nueva visión. 2010.
desencadenante de cada relato, más bien es-
KOTTOW, A. Cuerpo, materialidad y muerte
tán allí todo el tiempo, acompañando a sus en Sangre en el ojo y Sistema nervioso de Lina
dueños, definiendo sus devenires, revelan- Meruane. Universidad Adolfo Ibáñez. Orillas:
do su ser. Dicho de otra forma, cada sujeto revista d’ispanistica, ISSN-e2280-4390. 8,
es su propia enfermedad. 5-18. 2019.
En tanto al cuerpo le sea permitido re- MERUANE, L. Sistema nervioso. Santiago de
velar los misterios de su corporalidad, dis- Chile: Penguin Random House. 2018.
minuye su rebelión contra el yo, así como
SONTAG, Susan. La enfermedad y sus metáfo-
el sentimiento de culpa y fracaso, que final- ras. El sida y sus metáforas. Editorial Debolsi-
mente logra disipar al detectar el punto de llo. Santiago: Random House. 2008.

Recebido em: 22/03/2022


Aprovado em: 04/06/2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

202 Revista Tabuleiro de Letras, v. 16, n. 01, p. 198-202, jan./jun. 2022


Tayson Ribeiro Teles

DOI: https://dx.doi.org/10.35499/tl.v16i1

Desexplicações e lampejos de Francisco


Bento da Silva sobre o Acre
Tayson Ribeiro Teles (IFAC)*
https://orcid.org/0000-0003-1309-8708

[...] somos marcados pelos lugares e pe- porque são em grande quantidade. Ater-me
los tempos em suas múltiplas dimensões e -ei à essência da obra de Silva, ao tema por
sentidos denotativos e conotativos que nos ela tratado.
envolvem. Ou dizendo metaforicamente, os
Silva inicia dizendo que explicamos e
lampejos dos vaga-lumes nos iluminam e
nos obscurecem nas nossas trajetórias in- “desexplicamos” o tempo inteiro. “Desex-
dividuais e coletivas no ambiente-mundo e plicar” é explicar algo já sabido por alguém
também, em particular, através das narra- a esse alguém, porém explicando de outra
tivas historiográficas produzidas no tempo maneira, acredita o autor. Inspirado em
(SILVA, 2020, p. 12). Durval Muniz de Albuquerque Júnior, Silva
O objetivo deste escrito é resenhar a obra assevera ser preciso desformar e desnatura-
“Acre, formas de olhar e de narrar: natureza lizar o mundo. É essa a perspectiva de sua
e história nas ausências” (2020), de Fran- “desexplicação”. Em seu livro, o autor, com
cisco Bento da Silva. O autor é professor da leitura fácil e ao mesmo tempo elevada den-
Universidade Federal do Acre (UFAC), nos sidade teórica, nos “desexplica” fragmentos
cursos de Graduação em História, Mestrado da história do estado brasileiro do Acre.
em Ensino de História e Mestrado e Douto- Os fenômenos vitais negam a existência de
rado em Letras: Linguagem e identidade. O disciplinas separadas e estanques e negam,
livro possui quatro capítulos e a obra é pro- ainda, que o ser humano não tenha relação
veniente de sua pesquisa de Pós-doutorado direta com o seu (meio) ambiente. Nessa di-
no Programa de Pós-graduação em História reção, por certo, “a fantasia, o desejo, o dis-
da Universidade Federal do Rio de Janeiro curso e a ideologia do humano civilizado se-
(UFRJ), concluída em 2020. No livro, Silva parado da natureza é um mito incessante e
analisa muitas obras literárias sobre a re- ainda permanente em grupos hegemônicos
gião do Acre, escritas nos séculos XIX e XX, da chamada tradição ocidental iluminista”
bem como muitos autores e muitas perso- (SILVA, 2020, p. 12).
nagens. Analisa poemas, charges e imagens Nesse sentido, “desdizer e desexplicar, re-
(fotografias) publicadas em jornais brasilei- mar contra as narrativas hegemônicas que
ros no/do referido período. Não me aterei a foram sendo tecidas e cristalizadas como as
citar tais trabalhos, autores e personagens únicas e verdadeiras no mundo gestado pela

* Doutorando em Letras: Linguagem e Identidade (Linguagens e Formação Docente) pela Universidade


Federal do Acre – UFAC (2020-2024). Professor do Magistério Federal, Carreira EBTT, no Instituto Fe-
deral do Acre – IFAC, na área de Economia e Gestão de Finanças e Comércio. Lattes: http://lattes.cnpq.
br/3272508883742018. E-mail: tayson.teles@ifac.edu.br.

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Desexplicações e lampejos de Francisco Bento da Silva sobre o Acre

vaga iluminista ortodoxa torna-se tarefa geográfico da brasilidade litorânea, pois se


hercúlea [...], mas é possível” (SILVA, 2020, caracterizam pela imanência da floresta tro-
p. 13). Inspirado em Walter Benjamin, Sil- pical sombria, [...] doenças mortíferas e co-
va nos diz que não conseguimos recuperar letividades anárquicas em suas formações”
totalmente o passado, nos sendo permitido (SILVA, 2020, p. 15). No início da coloniza-
apenas “lançar um lampejo para iluminar ção do Acre pelos “pioneiros” estrangeiros
fugazmente o outrora” (SILVA, 2020, p. 16). ao ambiente, apesar de haver várias etnias
Silva perspicazmente nos propõe “des- de povos indígenas na região, “todos foram
dizeres” e “lampejos” sobre as relações en- invisibilizados como não dotados de direi-
tre o homem (humanidade) e a natureza tos e de protagonismo na lógica da socieda-
na Amazônia acreana de tempos atrás. O de superior e do Estado nacional dos civili-
pesquisador enaltece que o passado é ina- zados” (SILVA, 2020, p. 18).
preensível, porque “o Acre visitado e palmi- Quando o Acre passa a ser “brasileiro”,
lhado por Euclides da Cunha e tantos outros transformado em Território Federal:
na mesma época era outro Acre que não o Logo vão se construindo discursos sobre o
de agora e dos sujeitos que o habitam atual- que eram e como eram o Acre e suas gentes;
mente” (SILVA, 2020, p. 28). As águas dos o espaço geográfico é normalizado como
rios são outras, de outras chuvas. As terras sendo de imensidão incomensurável; a na-
foram reordenadas pelas erosões. Nada está tureza é sentenciada como vazia, misteriosa
e que provocava —, na descrição de muitos
de igual modo ao que era naquele momento.
—, a sensação de solidão; e, por fim um es-
Resta-nos, então, analisar narrativas e dis- paço visto como sendo habitado por pessoas
cursos erigidos em tal passado. bárbaras ou pouco civilizadas (SILVA, 2020,
Para o autor, “há em relação à Amazônia p. 18).
brasileira, e ao Acre em particular, a cons-
As narrativas sobre o Acre são histórias
trução duradoura de uma estética do vazio
de homens que davam de cara com um Acre
que se expressa em várias dimensões e por
vazio de tudo e que exaltavam a si próprios
diversas vozes” (SILVA, 2020, p. 13) e isso
como engendradores do “desenvolvimento”
precisa ser solapado. Há inúmeras narrati-
e do “progresso” na selva bruta. Silva con-
vas afirmando, por exemplo, que no:
ta que “na virada do século XIX para o XX,
Acre territorial das décadas iniciais do sécu- o olhar de grande parcela dos homens me-
lo XX não tem crianças, não tem mulheres, tropolitanos do país [...] estava marcado e
não tem civilização, não tem progresso, não
influenciado pela ideia generalizante de que
tem signos do moderno, não tem gente pre-
parada para a burocracia estatal, não tem sa- a Amazônia era uma terra ignota, distante,
lubridade, não tem indústria, não tem proje- inóspita e inadequada à presença do huma-
tos duradouros, não tem sociedade, etc. Em no civilizado” (SILVA, 2020, p. 20). Nos es-
resumo, tudo falta. Ou seja, as narrativas das critos sobre a região, a Amazônia é, às vezes,
ausências seria aquilo que definiria o Acre descrita como uma dádiva, pela factibilida-
através do que estou nomeando aqui de ca- de de extração de riquezas naturais, outras
ricatura (SILVA, 2020, p. 13).
vezes é vislumbrada como um lugar peno-
Esse “apagamento” da história pretérita so, de castigo, um “inferno verde”, como nos
do Acre, tornando-o praticamente morto, disse Alberto Rangel (2001).
vazio de processos vitais ocorre, porque Por toda essa carga discursiva sobre a
“o Acre e a Amazônia são tornados o outro Amazônia acreana, Silva nos diz entender que:

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Tayson Ribeiro Teles

[...] o Acre como espaço social, geográfico uma distância que é estética, de (des)gosto,
e político é uma invenção, tal qual a Ama- de (des)semelhança e de afeição ou rejeição.
zônia. Constitui-se em uma comunidade [...] parte das vozes letradas [..] se posiciona
imaginada, re-imaginada, narrada e re-nar-
[...] como sujeitos diferentes, incomodados
rada por múltiplas vozes durante a primei-
ra metade do século XX. Em muito, essas
e descentrados dos demais que vivem como
operações ocorreram de fora para dentro eles no mesmo espaço [...] acreano” (SILVA,
em relação ao Acre e a Amazônia, mas tam- 2020, p. 27).
bém operou no sentido inverso e teve como Neste capítulo, Silva nos mostra que a
centro irradiador as vozes locais que irão selva é vista como inculta. A riqueza natu-
reverberar suas construções discursivas ral tem direcionamento exógeno e não serve
em jornais, relatórios, livros e fotografias para o local (na visão do colonizador). “Há
(SILVA, 2020, p. 22).
natureza demais e sociedade de menos”
Sobre as imagens do Acre do passado (SILVA, 2020, p. 27). Há uma queda pela de-
(fotos, por exemplo) consigna o autor: “[...] nominação de deserto, porque a selva pa-
olhamos para elas sempre com o olhar do rece não ter tempo, parece ser estagnada.
presente, algo que terá continuidade de- Nessa perspectiva, narrativas historiográfi-
pois de nós com quem em outros contex- cas daquele momento monumentalizavam
tos porventura queira [/quiser] re-iniciar os documentos oficiais. Sobre identidades,
a jornada inacabada da ‘remontagem’ his- frisa o autor: “[...] indígenas, brancas, ca-
toriográfica no contínuo movimento de ex- boclas, sertanejas, nordestinas, brasileiras,
plicar e desexplicar” (SILVA, 2020, p. 22). A turcas, sírias, peruanas, bolivianas, etc. [...]
própria imagem da capa do livro de Silva o senso comum apresenta essas identida-
nos proporciona uma profunda reflexão so- des como sendo essencializadas e perenes”
bre o papel dos indígenas no/do Acre pre- (SILVA, 2020, p. 31). Sobre os bolivianos, Sil-
térito. A imagem nos explica e “desexplica” va enuncia que na lide Acre-Bolívia, para a
o contexto indígena daquela época. Afinal, maioria das narrativas brasileiras apenas os
nas narrativas sobre a Amazônia, os “indí- interesses brasileiros eram legítimos, váli-
genas [...] são invisibilizados nessas narra- dos e aceitáveis. Nada se fala sobre os que-
tivas e apresentados como destituídos de reres bolivianos.
direitos e de subjetividades, animalizados Ademais, “o Acre é então o outro geográ-
ou humanizados como inferiores ao ho- fico, o outro cultural, o espaço das ausên-
mem branco” (SILVA, 2020, p. 24). cias que estão sempre em maior destaque
Falo agora sobre o Capítulo I do livro, do que as permanências geradas pelo fazer
chamado “O Acre como deserto conquis- humano” (SILVA, 2020, p. 36). Por parte dos
tado: amansar e civilizar como missão”. escritores que viajaram pelo Acre e quise-
Neste capítulo inicial são narradas ausên- ram o descrever em seus textos, havia uma
cias sobre o Acre (e “a Amazônia”) que são incalculável preocupação “em descrever o
relacionadas a estereótipos como o de “va- real e o verdadeiro das relações humanas e
zio”, de “imensidão”, de “lugar não civiliza- históricas ali existentes de forma objetiva,
do” e de “lugar à margem da história”. O Acre mesmo quando se tratam de textos ficcio-
é visto como “longe” nas literaturas entre nais” (SILVA, 2020, p. 40). O conjunto desses
1904 e 1962, mas essa distância é também estereótipos sobre a Amazônia e o Acre, os
uma distância estética. Silva nos fala que “há vendo (apenas) como “vazios”, “desertos”

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Desexplicações e lampejos de Francisco Bento da Silva sobre o Acre

etc., Silva nos diz que é o que José Pimenta notícias e fotografias sobre o/do Acre, so-
(2015) chama de “Amazonismo” e Gerson bre/de festas no Acre, dizendo “o melhor
Albuquerque (2016) nomina de “Amazonia- estabelecimento local”, em relação a ima-
lismo”. gens de casas de festas simples, de madei-
Silva aborda os discursos envoltos na ra, em Xapuri, por exemplo. Havia muito
categoria “cearense”, representante de um preconceito, deboche e ironia em face do
dos povos que colonizaram o “terrível” Acre. Acre, narra o autor. “O Acre torna-se se o
“O bandeirante paulista é apontado como antípoda do Rio de Janeiro em matéria ar-
aquele que desbrava terras salubres, bem si- quitetônica e em relação aos padrões de
tuadas topograficamente [...]. A saga tardia bom gosto, refinamento e cosmopolitismo”
do sertanejo cearense é superior porque foi (SILVA, 2020, p. 54).
realizada em uma ‘zona tórrida’, região ‘in- Discorro agora brevemente sobre o Capí-
fecta’” (SILVA, 2020, p. 46). Sobre os cearen- tulo II, chamado “Bichos, florestas e doen-
ses que “conquistaram” o Acre, Silva, citan- ças: o outro mundo selvagem”. Neste capí-
do Durval Muniz de Albuquerque Júnior, diz tulo as ausências sobre o Acre se referem a
que as: questões higiênicas, de alimentação, de (in)
[...] narrativas sobre os intrépidos, corajosos salubridade, de clima e de costumes. Silva
e heroicos nordestinos foram uma forma das clarifica que “viajantes, exploradores, natu-
elites nordestinas se contraporem a uma ralistas, religiosos, militares e outros tantos
narrativa historiográfica emanada [...] desde
teceram desde muito tempo os mais varia-
o século XIX, em que predominou a tese da
dos discursos e sentenças sobre o lugar que
conquista do território nacional como obra
do bandeirante português/paulista. A cha- visitavam ou do qual recebiam informações
mada conquista do Acre é então a oportuni- por meio de terceiros” (SILVA, 2020, p. 58).
dade dessa narrativa regionalista do Norte/ As sentenças e discursos são tantos que,
Nordeste emergir, algo que em grande me- por exemplo, a ideia de “eldorado” é el do-
dida foi realizado por intelectuais cearenses, rado, ou seja, o ouro. Os colonizadores que-
estado de onde provinha boa parte desses
riam encontrar ouro na Amazônia a todo
migrantes (SILVA, 2020, p. 46).
custo. Para muitos estrangeiros, se as pes-
Sobre os governantes estrangeiros do/ soas do Acre fossem “civilizadas” o clima da
no Acre Federal, Silva diz: região, a quentura, por exemplo, melhoraria.
Devemos ter em mente que na ótica desses “A relação de causa e efeito seria então auto-
governantes, as cidades amazônicas vão mática: gente civilizada, clima em harmonia
se constituindo para gentes e pessoas que com os humanos” (SILVA, 2020, p. 62). Para
deveriam incorporar os “usos e costumes
muitos colonizadores/viajantes, as florestas
corretos” instituídos por decretos no meio
amazônicas eram inesgotáveis/imensas: “O
citadino. Por isso deveria haver a separação
clara das práticas do mundo rural/florestal, adjetivo imenso era, para muitos cronistas,
daquelas das cidades governadas por essas um termo incapaz de descrever o que seria
autoridades que eram geralmente militares - objetiva e subjetivamente - a rede flores-
com formação em engenharia e medicina tal amazônica que se torna uma das meto-
(SILVA, 2020, p. 49). nímias mais usuais para alegorizar a região
Nessa direção, no século XIX, alguns jor- até os dias de hoje” (SILVA, 2020, p. 63).
nais, notadamente do Rio de Janeiro – ca- Contraditoriamente, Silva nos lembra
pital brasileira daquela época, publicavam que a região narrada como de valor inferior

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Tayson Ribeiro Teles

e de completos “vazios” é ao mesmo tempo Eram vistas como semi-civilizadas. Silva


tida como um “eldorado” e fonte de solução narra que, para alguns autores, caboclo é o
para várias necessidades dos colonizadores indígena mestiçado, que fala português, que
“civilizados”. Sobre a alimentação, o pesqui- está deslocado cultural e socialmente. As
sador nos diz que a unidade básica do serin- mulheres indígenas eram vistas do ponto de
gal era o barracão, onde todos os seringuei- vista de disponibilidade sexual.
ros deveriam comprar seus mantimentos, Vestia-se indígenas crianças como “crian-
sendo geralmente vedado o plantio agrícola. ças modernas”, com calças e meias longas.
Sobre a saúde, o Acre Federal era “terra de Fotos dessas “catequizações” eram noti-
morticínios, de doenças e de doentes. Não ciadas no Rio de Janeiro. “Além das marcas
era lugar para gente sadia viver sem atribu- da identidade brasileira, a desejada e fugaz
lações” (SILVA, 2020, p. 78). busca de uma sempre incompleta identidade
Frente às doenças do/no Acre Federal, acreana pressupôs a negação de quaisquer
o que era desejado não era mais criar uma traços indígenas como elementos valorati-
“neoeuropa”, mas trazer o Brasil e a “brasi- vos em sua formação genealógica e cultural”
lidade” para o Acre que estava à margem da (SILVA, 2020, p. 108). Silva frisa que os mun-
história brasileira. No Acre desse período, dos indígenas “acreanos” se transformaram
“humanos são frequentemente desumani- por completo, cultural e socialmente, com a
zados porque não teriam ainda saído da chegada do colonizador, sendo tal transfor-
barbaria e não atingiram a civilidade plena, mação drástica e vinculada à instauração de
a natureza é antropomorfizada com carac- valores e modos de vidas externos ao local.
terísticas humanizantes porque o ‘conquis- No “Acre” do final do século XIX e início do
tador’ ainda não penetrou, domou” (SILVA, XX, “havia presenças significativas de indí-
2020, p. 84). genas que se tornam um incomodo proble-
Teço agora breves comentários sobre o ma a ser resolvido através dos genocídios,
Capítulo III, chamado de “Indígenas e ca- dos apresamentos e incorporações deles
boclos no caminho da conquista e da co- ao processo colonial interno que vai sendo
lonização”. Neste capítulo o autor discute aprofundado” (SILVA, 2020, p. 112).
os preconceitos travados in faciem dos po- Erijo agora curtos comentários sobre
vos indígenas do Acre, sempre vistos pelo o Capítulo IV, chamado “As disputas pelo
colonizador como despossuídos de “civili- Acre: narrativas do risível e do heroico”.
dade” igual à do “branco”. “As ausências do Este capítulo serviu de base para o pesqui-
território se referem à falta de estrutura fí- sador discutir questões várias relacionadas
sica, das paisagens, do arcabouço mental e as buscas, por parte de alguns, por uma (in)
dos produtos do mundo europeu aos quais existente “identidade acreana” identida-
os colonizadores estavam acostumados” de tal forjada precipuamente com foco nos
(SILVA, 2020, p. 86) e, nesse foco, indígenas “eventos de luta contra bolivianos e perua-
eram vistos como incapazes de gerar civili- nos pela incorporação do Acre ao Brasil”
zação e nacionalidade. (SILVA, 2020, p. 147). Sobre a “questão do
Questionava-se a humanidade dos indí- Acre”, nos jornais nacionais, Silva diz que “ti-
genas, os vendo como crianças. Criticava-se vemos publicados artigos sérios, patrióticos
a ausência de ambição do caboclo amazô- e alicerçados em bases jurídicas, [mas] tive-
nico. Mulheres indígenas eram violentadas. mos também artigos e charges em tons satí-

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Desexplicações e lampejos de Francisco Bento da Silva sobre o Acre

ricos que transitaram no campo da ironia e luta do Acre para se tornar brasileiro “car-
da galhofa” (SILVA, 2020, p. 114). regam o olhar no elemento patriótico e de
Silva dicciona que a América e Amazônia defesa dos sempre indigitados interesses
são nomes femininos, porque há uma fetichi- do Brasil, do Acre e dos brasileiros do Acre.
zação de ver esses lugares como mulheres. Isso ocorre mesmo que internamente seus
São regiões “simbolicamente desvirginadas próceres tivessem divergências pessoais”
e conquistadas pelo homem branco, cristão (SILVA, 2020, p. 142).
e europeu” (SILVA, 2020, p. 115). Consoante Sobre o Acre, tem-se que há:
o autor, o Acre primeiramente é visto como [...] um conjunto de ausências que lhe são
um “estorvo” para a nação brasileira. É vis- narradas, outorgadas, sentidas, determina-
to como um lugar longe, “vazio” e “povoado das, visualizadas e inventadas. Temos um
por selvagens indígenas e migrantes tumul- Acre que é em grande medida mostrado
tuários” (SILVA, 2020, p. 121). como um não-lugar, seja como sociedade ou
parte de alguma nação (Brasil, Peru e Bo-
Sobre o Acre, diz Silva:
lívia) até os anos iniciais do século XX. Um
Domesticar o território e suas gentes deveria território visto como desterritorializado
ser obra estatal que precisava ali se estabe- porque não teria marcas humanas na lógica
lecer e regular o lugar e suas gentes através do progresso e das nacionalidades que lhes
dos poderes militar, fiscal, judiciário e exe- disputavam. Outra ausência narrada com
cutivo. E, ao longo do tempo, irem sendo mi- frequência é a do pioneiro/colonizador que
norados os decantados atrasos e ausências lhe “conquista” tardiamente, portanto ela
culturais e materiais, centradas no descom- logo é preenchida pelas narrativas vencedo-
passo histórico, da incipiente infraestrutura, ras dos brasileiros do Acre. Sua incorpora-
do distanciamento político e pátrio dos seus ção ao Brasil em 1903 gerou, após esta data,
nacionais que ali viviam. O que é estorvo novas disputas genealógicas, heroificantes e
político, cultural e geográfico, compensava consequentemente de reelaborações de ou-
pela possibilidade presente de riqueza que tros discursos em torno das ausências ou su-
oferecia e de remissão futura que estaria peração delas. Por definição, temos um Acre
fadada a ocorrer por mão dos operosos he- diverso e repetidamente inventado (SILVA,
róis, colonizadores e administradores (SILVA, 2020, p. 144).
2020, p. 131).
Para concluir sua obra, o autor diz que
Sobre o Movimento Autonomista, Silva no livro teve o “intuito de desexplicar, des-
escreve que, embora tenha algum senso de construir e remontar, em uma narrativa de
“justiça”, basicamente as demandas dos “au- fundo historiográfico, algumas questões
tonomistas” foram sempre ligadas a inte- quase sempre apresentadas como obvias”
resses das elites econômicas locais daquele (SILVA, 2020, p. 146). É nessa perspectiva
momento que desejavam mais autonomia e que relevo o livro de Silva como um elemen-
um lugar de protagonismo na política da re- to com força incisiva para nos fazer refletir
gião. Conforme o autor, foram criadas várias sobre a história do Acre a partir de outros
narrativas e construídos vários heróis sobre olhares, olhares que tentam “desexplicar”
a “Revolução Acreana”. Assim, o Acre passou o que sempre fomos “programados” para
a “ter uma história”. “O Acre não estava mais enxergar como “o verdadeiro”, como “a ver-
à margem da história. A sentença euclidiana dadeira história do Acre”. Ainda hoje há
havia sido superada” (SILVA, 2020, p. 139). preconceitos geográficos e sociais contra o
Nesse contexto, todas as narrativas sobre a Acre, muitos provindos de próprios brasilei-

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Tayson Ribeiro Teles

ros e, nesse prisma, em relação ao Acre, em Referências


nossas ações diárias, às vezes sem vermos/
RANGEL, Alberto. Inferno verde: cenas e cená-
percebermos, todos nós, “acreanos”, margi- rios do Amazonas. 5 ed. Manaus: Valer/Governo
nalizamos alguns grupos sociais e étnicos do Estado do Amazonas, 2001.
desse lugar, simplesmente porque fomos as- SILVA, Francisco Bento da. Acre, formas de
sim ensinados pelos colonizadores do pas- olhar e de narrar: natureza e história nas au-
sado. Silva nos faz refletir profundamente sências. Rio Branco: Nepan, 2020, 157p.
sobre isso. Sobre ser premente torcermos
nossos olhares sobre o Acre e suas gentes. Recebido em: 15/03/2022
Aprovado em: 10/05/2022

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

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