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TERESINA – PI
2015
MARIA DALVA FONTENELE CERQUEIRA
TERESINA – PI
2015
MARIA DALVA FONTENELE CERQUEIRA
BANCA EXAMINADORA
________________________________________________
Prof.ª Drª. Cláudia Cristina da Silva Fontineles – UFPI
Orientadora
________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento – UFPI
Examinador interno
________________________________________________
Prof. Drª. Marta Gouveia de Oliveira Rovai – UNIFAL-MG
Examinador (a) externo
_______________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis de Sousa Nascimento – UFPI
Suplente
AGRADECIMENTOS
No momento em que chego ao final dessa jornada quero agradecer a todos aqueles
que ajudaram na concretização desse sonho. Sabemos que o ato de lembrar e esquecer estão
juntos, mas nesse momento o esquecimento será visto como uma falta grave, e, por isso,
desde já, peço desculpas se, por caso, eu tenha esquecido de agradecer nominalmente a todos
aqueles que contribuíram para que esse momento se concretizasse.
Em primeiro lugar, agradeço a Deus que guiou e iluminou os meus passos nessa
difícil, porém, prazerosa jornada que foi cursar o Mestrado em História do Brasil na
Universidade Federal do Piauí.
À professora Doutora, Cláudia Cristina da Silva Fontineles, expressão de
compromisso com a pesquisa histórica, para mim um dos maiores exemplos de seriedade,
ética, afetividade e generosidade. Obrigada por ter oferecido a disciplina de História Oral e
pelas enriquecedoras discussões realizadas em sala de aula, fruto das leituras propostas.
Conviver esses dois anos com seus ensinamentos despertaram uma releitura em meu olhar
sobre a pesquisa e a docência. Obrigada pela orientação competente e enriquecedora.
À professora, Marta Gouveia de Oliveira Rovai, que também tenho como exemplo
de compromisso e seriedade no tratamento à História Oral e seu uso na pesquisa histórica.
Obrigada pelos ensinamentos fornecidos como educadora e pesquisadora.
À minha mãe, Elenita Fontenele Cerqueira (in memorian), a meu pai, Aldi da Silva
Cerqueira e avó materna Teresinha Fontenele de Carvalho (in memorian), pelos exemplos
dados, mesmo sem escolaridade, me incentivaram a estudar e valorizar a vida. São, portanto,
meus maiores exemplos de força e superação.
Aos companheiros de trabalho do extinto Instituto Superior de Educação Antonino
Freire, Núcleo Operacional da Escola Normal Francisco Correia, em Parnaíba, da Unidade
Escola Chico Monção em Cocal-PI, da Universidade Estadual do Piauí - Campus Alexandre
Alves de Oliveira e da Faculdade Internacional do Delta, obrigada pelo carinho, a
compreensão e o apoio.
À Secretaria Municipal de Educação de Cocal e à Secretaria Estadual de Educação e
Cultura do Estado do Piauí obrigada pela liberação das atividades docentes para cursar o
Mestrado.
Aos companheiros da 10ª turma de Mestrado do curso de Pós-Graduação em História
do Brasil, Mônica, Mara, Paula, Laura, Danielle, Natália, Karlene, Talita, Bárbara, Amanda,
Ramsés, Bernardo, Maurício, Márcio, Fransuel, Marciano, Luis Felipe, Victor, especialmente
ao Jaislan Monteiro, um fraseador, com quem aprendi que para sermos irmãos não precisamos
nascer dos mesmos pais ou convivermos juntos desde a infância, pois os sentimentos como
amor, carinho e amizade também nos tornam irmãos.
Sou grata aos professores do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da
Universidade Federal do Piauí pelo aprendizado que me proporcionaram nas aulas e nas
conversas pelos corredores: Jonhy Santana, Edwar de Alencar Castelo Branco, Solimar
Oliveira Lima, Teresina Queiroz. Em especial aos professores, Francisco Alcides do
Nascimento e Francisco Nascimento, a quem reverencio e tenho como exemplo de
generosidade e compromisso com a pesquisa histórica. Agradeço pela importante orientação
durante o Exame de Qualificação que permitiram ampliar os horizontes da pesquisa.
Ao professor, Corcino Medeiros, obrigada pelo carinho e pelos exemplos dados com
sua história de vida. Com você aprendi que com dedicação e determinação conseguimos
vencer os obstáculos que surgem em nossa vida.
Ao professor Fernando Costa, obrigada pela correção ortográfica.
Ao amigo Roberto Kennedy, obrigada pelas palavras de incentivo, a amizade e o
apoio em Teresina.
Ao Willy Rodrigues pelas animadas aulas de inglês, pela tradução dos textos, o
carinho e amizade.
Ao fotógrafo parnaibano Helder Fontenele pelas fotografias digitalizadas e cedidas
para a realização deste trabalho e por ter me apresentado ao senhor Mário Meireles dono do
jornal Norte do Piauí, uma fonte valiosa na realização da pesquisa. Muito obrigada!!
Agradeço também ao senhor Nilo por abrir a porta da sala de aula mais cedo para
que eu pudesse me proteger do calor e do ardente sol do equador que anima Teresina. E não
poderia esquecer as secretárias do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil, dona
Eliete e Rairana Moita, sempre prestativas e acolhedoras.
Aos amigos Sérgio Luís, Jaqueline Feitosa, Shamália Gayl, Erasmo Amorim,
Edrivandro Barros, Roberto Fernandes, Fátima Carmino, Josenias Silva, Ozita, Elieide, Jean
Carlos, Fábio Leonardo, Cleto Sandys, obrigada pelo apoio e o carinho.
Aos amigos de Teresina, professor Rodolfo Pena, Vilma, Mariana, Maíra, dona
Conceição, Érica, pela amizade e a acolhida em suas casas.
Agradeço a todas as pessoas das instituições onde pesquisei com destaque para
Mário Meireles, dono do jornal Norte do Piauí, Reginaldo Pereira do Nascimento Júnior,
presidente do Instituto Histórico Geográfico e Genealógico de Parnaíba e Renato Bacellar da
Fundação Raul Furtado Bacellar em Parnaíba-PI.
Agradeço a Catia Furtado, bibliotecária da UFPI, Campus Parnaíba e da Faculdade
Internacional do Delta pelos livros emprestados e a amizade.
À valiosa ajuda de Helcio Mesquita, Orlando Filho, Zacarias Bento, Ruanna
Cardoso, Ana Christina, Andresson Frazão, Luiz Alves, Iralice Machado pelas fontes cedidas
e a indicação de seus parentes e amigos para serem colaboradores neste trabalho.
À família Machado Araújo, em especial dona Socorro minha sogra a quem amo e
respeito como mãe, a Neka, Mana, Ana Catarina, Kleber, Marcos, Marcus Vinícius, Ana
Luísa, Raphael. Obrigada pelo apoio e o carinho de todos vocês.
Aos meus tios-irmãos, Bernardo (Bezinho) e Demerval, pelos desafios e alegrias de
enfrentarmos juntas as dificuldades impostas pela vida.
À tia/irmã, Elvira Fontenele que, junto ao Eliésio Carvalho, são sinônimos de amor,
bondade e cuidado. Eu os amo e os admiro.
Aos meus irmãos Djacir e Djavan obrigada pela torcida, pelo apoio e pela amizade.
Às primas Erthana Mara, Thauana Mara que juntamente com Daniel e Magno são
símbolos de amizade e generosidade. Obrigada pela torcida e pela amizade.
Aos colaboradores desta pesquisa, Joaquim Costa (in memorian), Orlando Machado
Tôrres, Newton Pereira Costa, Luis Cardosos de Miranda, Miguel Marques Barros, Waldemar
Maciel de Lima, Vicente de Paula Araújo Silva, Raimundo Ribeiro Nascimento, Raimundo
Nonato Mesquita de Araújo e aos seus familiares que me receberam suas casas e, mais do que
isso, compartilharam comigo suas memórias. Foram tardes animadas, regadas com um bate
papo e um delicioso café com bolo após as entrevistas. Aprendi muito com todos vocês.
Ao Francisco Antonio Machado Araujo, meu marido a quem trato afetivamente
como Chiquinho, que sempre esteve ao meu lado. Fizemos juntos praticamente todas as
viagens de Parnaíba à Teresina e compartilhamos as dores e delícias de cursar o Mestrado
longe de casa. Obrigada pelo apoio, o carinho, o amor e a dedicação. Sem você, sem sua
companhia, eu não teria conseguido.
Ao meu amado filho, Otávio Augusto, peço desculpas pela ausência de quase dois
anos em sua vida. Obrigada por ter sido paciente comigo esses dois anos. Por me receber de
braços abertos e com um lindo sorriso no rosto. Eu te amo!
Quando um sonho arde como brasa no coração é
preciso vivenciá-lo na inteireza de sua poesia.
(Jaislan Monteiro)
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
O presente trabalho é resultado da pesquisa que teve como objetivo geral compreender o
processo de desativação da Estrada de Ferro Central do Piauí entre as décadas de 1960 a 1980.
Dessa forma, a pesquisa tem como objetivos específicos investigar como os parnaibanos
reagiram diante da desativação da Estrada de Ferro Central do Piauí; conhecer o cotidiano da
cidade e sua relação afetiva com o trem; analisar como a ferrovia é representada na memória
dos ferroviários. Para tanto, foram utilizados três fios condutores: apresentamos a cidade de
Parnaíba e sua relação afetiva com o trem; os descaminhos do transporte ferroviário no Piauí e
os caminhos rodoviários entre as décadas em estudo; as histórias e memórias dos ferroviários
que trabalhavam na ferrovia e conviveram com seus descaminhos e consequentemente com
sua desaparição. A delimitação espacial da pesquisa contempla a cidade de Parnaíba nas
décadas finais do século XX, por essa cidade ter sido sede administrativa da Estrada de Ferro
Central do Piauí. O estudo recorre à utilização dos conceitos desenvolvidos sobre memória e
cidade defendidos por teóricos como: Michel de Certeau (2003), Jacques Le Goff (2013),
Fernando Catroga (2001), Maurice Halbwachs (1990), Raquel Rolnik (1995), Sandra Jatahy
Pesavento (2001), Ana Fani Alessandri Carlos (2003); sobre o conceito de Modernidade
Marshall Berman (2007), Francisco Hardman (2005), Nicolau Sevcenko (1998, 2009),
Antônio Paulo de Moraes Rezende (1994, 2008), Cláudia Cristina da Silva Fontineles (2009,
2010). A pesquisa utilizou como suporte, fontes orais obtidas por meio de entrevista temática,
documentos oficiais, hemerográficas, livros escritos por memorialistas parnaibanos e
periódicos. Foram importantes para a compreensão e análise da metodologia da história oral
os estudos de Paul Thompson (2002), Verena Alberti (2008), Francisco Alcides do
Nascimento (2002). Os resultados da investigação indicam que a sociedade parnaibana se
manifestou, por meio de jornais locais, solicitando ajuda aos políticos piauienses para a
manutenção da Estrada de Ferro Central do Piauí, mas pouco foi feito diante da política
econômica adotada pelos governos militares no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980, que
priorizaram o rodoviarismo no país em detrimento do transporte ferroviário. Sua desativação
provocou sentimentos e ressentimentos entre os ferroviários que alimentam o desejo da
reativação do transporte ferroviário no Piauí.
Palavras-chave: História. Memória. Ferroviários. Parnaíba (PI).
ABSTRACT
This study is the result of a research that aimed to understand the process of deactivation of
Piaui Central Railroad between the decades 1960-1980. Thus, the specific objectives in the
research were to investigate how parnaibanos reacted to the deactivation of Central Railroad
of Piauí; know the life of the city and its affective relationship with the train; analyze how the
railway is represented in railroad employees' memory. Three conductors wires were used in
order to conclude this study: we present Parnaíba and its affective relation with the train; the
waywardness of rail transport in Piauí and road ways between the decades studied; the stories
and railroad employees' memories who worked on the railroad and lived with its
waywardness and consequently with its disappearance. The spatial delimitation of the
research includes Parnaíba in the final decades of the twentieth century, that city was the
administrative headquarters of Piaui Central Railroad. The study makes use of the developed
concepts of memory and city defended by theorists such as: Michel de Certeau (2003),
Jacques Le Goff (2013), Fernando Catroga (2001), Maurice Halbwachs (1990), Raquel
Rolnik (1995), Sandra Jatahy Pesavento (2001), Ana Fani Alessandri Carlos (2003); the
concept of Modernity Marshall Berman (2007), Francisco Hardman (2005), Nicholas
Sevcenko (1998, 2009), Antonio Paulo de Moraes Rezende (1994, 2008), Claudia Cristina da
Silva Fontineles (2009, 2010). The research used as support, oral sources obtained through
thematic interviews, official documents, hemerográficas, books written by parnaibanos
witnesses and periodicals. It was important for the understanding and analysis of oral history
methodology of Paul Thompson’s studies (2002), Vera Alberti (2008), Francisco Alcides do
Nascimento (2002). Research results indicate that parnaibana society manifested through
local newspapers, asking for help to piauienses politicians to maintain the Central Railroad of
Piauí, but little was done faced with the economic policy adopted by the military governments
in Brazil between the 1960s and 1980s, which prioritized road transport in the country instead
of rail transport. Its deactivation caused feelings and resentments between railroad employees
who wish for reactivation of rail transport in Piauí.
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
2 PARNAÍBA ENTRE TRENS E TRILHOS ...................................................................... 24
2.1 O trem pede passagem ..................................................................................................... 24
2.2 As seduções e os encantos chegam com o trem .............................................................. 35
2.3 Os caminhos de ferro no Piauí ........................................................................................ 47
3 PARNAÍBA E O TREM ..................................................................................................... 70
3.1 Os descompassos da cidade.............................................................................................. 70
3.2 Os (des)caminhos do trem................................................................................................ 81
3.3 O trem saindo dos trilhos ................................................................................................. 89
4 A MÁGIA E A DOR DE SER FERROVIÁRIO ............................................................ 108
4.1 Os trilhos do trabalho .................................................................................................... 108
4.2 “Nossa estrada de ferro era um amor..!!” .................................................................... 131
4.3 As trilhas da memória .................................................................................................... 143
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 156
FONTES E REFERÊNCIAS ............................................................................................... 159
13
1 INTRODUÇÃO
A incrível máquina que se refere Francisco Hardman é o trem, o mesmo também foi
passado para trás no Piauí. Sua chegada foi motivo de festa e euforia entre os parnaibanos,
que conviveu mais de sessenta anos com os trens e trilhos na sua paisagem. A ferrovia teve
seu período áureo entre as décadas de 1930 a 1940 e viveu na segunda metade do século XX
um longo processo de desmonte culminando com a desativação na década de 1980. No
decorrer desse processo as mudanças foram vividas por seus funcionários que a cada novo
administrador viam aumentar o medo e o temor do desemprego. O trem que um dia foi
festejado e desejado, virou memória, perdeu a corrida para o automóvel e o que restou foram
pedaços de trilhos, prédios abandonados, estações ressignificadas e muitos ferroviários, hoje
aposentados, contando suas memórias do seu tempo em Parnaíba.
Neste sentido, a presente pesquisa tem como objetivos compreender o processo de
desativação da Estrada de Ferro Central do Piauí entre as décadas de 1960 a 1980, investigar
como a sociedade parnaibana reagiu diante do desmonte da Estrada de Ferro Central do Piauí
entre as décadas de 1960 a 1980; conhecer o cotidiano da cidade e sua relação afetiva com o
trem; identificar como a ferrovia é representada na memória dos ferroviários. O recorte
temporal proposto tem início na década de 1960, quando a Estrada de Ferro Central do Piauí
entrou para o Programa de Desativação das ferrovias, apontadas como deficitárias, pelo
Governo Federal, e se estende até 1980, momento em que o transporte ferroviário foi
desativado no norte do estado. Os funcionários que tinham mais tempo de serviço foram
aposentados e os outros transferidos para o Maranhão. Mesmo tendo esse recorte temporal
definido em alguns momentos foi necessário recuar ou avançar no tempo cronológico para
entender aspectos relevantes para o entendimento da pesquisa.
1
HARDMAN, Francisco Foot. Trem-Fantasma: a ferrovia Madeira-Mamoré e a modernidade na selva. 2ª ed.
São Paulo: Companhia das letras, 2005, p. 51-52.
14
2
NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida. O trem de ferro no imaginário popular piauiense. Espaço e Tempo.
Teresina, v 1. n. 4, p.98, dez. 1996.
3
Oficialmente o nome da cidade é Cocal, mas a mesma é conhecida nacionalmente como Cocal da Estação em
virtude da estação ferroviária construída em 1923, a estação era local de parada do trem para o almoço antes de
chegar à Parnaíba. Para maiores informações sobre a cidade de Cocal. Cf. CERQUEIRA, Maria Dalva
Fontenele. Nos vagões da memória: a ferrovia e a cidade de Cocal (1923-1950). In: SANTOS, Raimundo
Nonato Lima dos. (Org.). As cidades de Clio: abordagens históricas sobre o urbano. Teresina: EDUFPI, 2014,
p.229-246.
4
CERQUEIRA, Maria Dalva Fontenele. O trem de ferro e o progresso no Piauí. In: NASCIMENTO, Francisco
de Assis Sousa, et al (org.). Fragmentos históricos: experiências de pesquisa no Piauí. Parnaíba-PI: Sieart, 2005,
p.215-221.
15
ser cuidadosamente formuladas [...]”5. Dessa forma, ao longo da pesquisa buscamos encontrar
respostas para as seguintes questões: Quais as condições históricas que colocaram a Estrada
de Ferro Central do Piauí no Programa de Desativação do Governo Federal? Como era a
relação entre a cidade de Parnaíba e a ferrovia? Como os parnaibanos reagiram ao saber que a
Estrada de Ferro Central do Piauí fazia parte do Programa de Desativação do Governo Federal
das estradas de ferro do Brasil? Qual foi a importância dessa ferrovia enquanto local de
trabalho? Como a ferrovia é representada na memória dos ferroviários? Quais os sentimentos
existentes entre os parnaibanos e o trem?
Com o intuito de responder as questões propostas, selecionamos um conjunto de
fontes compostas por jornais, crônicas, poesias, livros de memorialistas, almanaques e a fonte
oral. Dentre os periódicos parnaibanos destacamos: A Aljava, jornal que começou a ser
editado de 31 de janeiro de 1936 a 24 de dezembro de 1957 tendo à frente Benedito dos
Santos Lima, o Norte do Piauí, fundado em 1967 pelo parnaibano Mário Meireles, ainda em
circulação. A Folha do Litoral fundado pelo jornalista João Batista Ferreira da Silva em
1959, atualmente fora de circulação. O Bembém fundado em janeiro de 2008 em Parnaíba sob
a direção de Benjamim Santos. Outro impresso utilizado foi o Inovação, em circulação entre
as décadas de 1970 e 1980 e o Almanaque da Parnaíba.
Os periódicos teresinenses importantes nesse trabalho foram os: O Dia, Jornal da
Manhã, Jornal Estado do Piauí, Jornal do Piauí e o Almanaque do Cariri. Esses impressos
foram importantes, pois publicaram notícias que envolviam as ações do governo do estado e
federal no que diz respeito à ferrovia e à rodovia no Piauí. Foram muitas visitas de ministros,
deputados e demais parlamentares ao Piauí, além de inaugurações de trechos rodoviários e
informações sobre o tipo de estradas que estavam recebendo atenção, não apenas no Piauí,
mas em todo o Brasil.
A imprensa nos oferece um valioso testemunho histórico, onde os jornais se
constituem como uma fonte importante, todavia, “é preciso submeter a imprensa a um
interrogatório sistemático que é obrigação do nosso ofício”6. Sobre o uso dos jornais em
pesquisas acadêmicas nas últimas décadas do século XX, Tania Regina de Luca defende que,
“o estatuto da imprensa sofreu um deslocamento fundamental ainda na década de 1970: ao
5
NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina
(1937-1945). Teresina: Fundação Monsenhor Chaves, 2002, p.23.
6
BOTELHO, Denílson. Por uma história social da imprensa. In: NASCIMENTO, Francisco Alcides do;
SANTOS. Maria L.; MONTE. Regianny L. (Orgs.). Diluir Fronteiras: interface entre história e imprensa.
Teresina: EDUFPI, 2011, p.07.
16
lado da história da imprensa o próprio jornal tornou-se objeto da pesquisa histórica”7 sendo
utilizado por historiadores na construção de teses de doutorado e dissertações nas principais
universidades brasileiras.
Além da pesquisa em jornais, também utilizamos a História Oral como metodologia
na pesquisa. Ressaltamos que essa escolha não foi para preencher os vazios deixados por
outras fontes e sim pelo desejo de conhecer aspectos que somente as fontes orais têm o poder
de revelar. Por meio delas, podemos conhecer o cotidiano do trabalho, as alegrias, as tristezas,
dúvidas, medos e anseios que pairavam sobre os ferroviários piauienses com as mudanças
ocorridas na ferrovia entre as décadas de 1960 a 1980.
Adotamos a história oral porque é “uma metodologia de pesquisa e de constituição
de fontes para o estudo da história contemporânea [...]. Ela consiste na realização de
entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam acontecimentos e
conjunturas do passado e do presente”8. No que diz respeito à constituição das fontes orais
Paul Thompson defende que “toda fonte histórica derivada da percepção humana é subjetiva,
mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa subjetividade: descolar as camadas de
memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta” 9. No
entanto, nesse trabalho não buscamos a verdade oculta, mas a subjetividade e os significados
que as fontes orais nos permitem conhecer.
A fonte oral “é o material recolhido por um historiador para as necessidades de sua
pesquisa, em função de suas hipóteses e do tipo de informação que lhe parece necessário
possuir”10. No entanto, a história oral não é exclusividade dos historiadores. Fazem uso dessa
metodologia todos os campos do saber que buscam um “caminho interessante para se
conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a forma de
vidas e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade”11.
O trabalho com fonte oral propicia um contato entre pessoas, ou seja, as pessoas que
ao aceitarem participar da pesquisa passam à condição de colaborador12, sem essa colaboração
ou cooperação a pesquisa com esse tipo de fonte se torna inviável. Pela narrativa as pessoas
7
LUCA, Tania Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: BASSANEZI, Carla Pinsky (Org.).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 118.
8
ALBERTI, Verena. Histórias dentro da história. In: BASSANEZI, Carla Pinsky (Org.). Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2008, p. 155.
9
THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1992, p.197.
10
DANIELE, Voldman. Definições e usos. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína (org.). Usos e
abusos da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 2006, p. 36.
11
ALBERTI, op. cit., 2008, p. 164.
12
Colaboração é o nome dado ao conjunto das práticas que envolvem os dois lados, entrevistado e pesquisador,
desde o começo do trabalho com História Oral. Para mais informações obre o termo, Cf. MEIHY, José Carlos S.
B.; HOLANDA. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto, 2013, p.120.
17
expressam seus feitos e suas experiências vivenciadas com o grupo ao qual estiveram
envolvidas no trabalho, lazer e nas relações cotidianas. O historiador Francisco Alcides do
Nascimento alerta os pesquisadores sobre o uso dessa metodologia ao afirmar que a “história
oral não pode ser vista como uma panaceia, mas como um instrumento que permite a
construção de documentos, que levam para dentro da história, vozes ignoradas pelas fontes
tradicionais”13.
Ao escolher a história oral como metodologia de pesquisa o historiador sabe que vai
trabalhar com entrevistas. Paul Thompson alerta que a “melhor maneira de dar início ao
trabalho pode ser mediante entrevistas exploratórias, mapeando o campo e colhendo ideias e
informações”14. Assim, colhendo informações chegamos ao nosso primeiro colaborador,
ferroviário Joaquim Costa, que após sua entrevista fez indicações de amigos para serem
entrevistados.
O tipo de entrevista adotado foi a entrevista temática por ser “adequada para o caso
de temas que têm estatuto relativamente definido na trajetória de vida dos depoentes, como
um período determinado cronologicamente, uma função desempenhada ou o envolvimento e a
experiência em acontecimentos ou conjunturas específicos”15. As questões tratadas nas
entrevistas foram previamente definidas em um roteiro, cuja função é “auxiliar o entrevistador
no momento da entrevista, a localizar no tempo, e a situar, com relação ao tema investigado,
os assuntos tratados pelo entrevistado”16. De acordo com Paul Thompson “a maior parte das
perguntas deve ser elaborada cuidadosamente para evitar que sugiram uma resposta. Isto, por
si só, pode ser realmente uma arte”17. Não entendemos o roteiro como um questionário e sim
como uma orientação aberta e flexível.
Os entrevistados são ferroviários que trabalhavam na ferrovia entre as décadas de
1960 a 1980, pois eles vivenciaram o período pesquisado. Os escolhidos também atuaram em
diferentes funções dentro da empresa, entrevistamos homens que foram conservadores de
linha, maquinistas, mecânicos, pintores, jogadores de futebol e agentes da estação.
As perguntas feitas aos colaboradores, durante a entrevista, foram direcionadas para
suas trajetórias de vida enquanto trabalhadores ferroviários, dentro do recorte temporal
proposto. Para Thompson uma entrevista consiste em:
13
NASCIMENTO, Francisco Alcides do. História Oral. In: NASCIMENTO, Francisco Alcides do; VAINFAS,
Ronaldo. (Orgs.). História e historiografia. Recife: Bagaço, 2006, p. 140.
14
THOMPSON, op. cit., 1992, p.254.
15
ALBERTI, op. cit., 2008, p. 175.
16
Ibid., p.177.
17
THOMPSON, op. cit., 1992, p.262.
18
[...] uma relação social entre pessoas, com suas convenções próprias cuja
violação pode destruí-la. Fundamentalmente, espera-se que o entrevistador
demonstre interesse pelo informante, permitindo-lhe falar o que tem a dizer
sem interrupções constantes e que, se necessário, proporcione ao mesmo
tempo alguma orientação sobre o que discorrer. Por baixo disso tudo está
uma ideia de cooperação, confiança e respeito mútuo18.
18
Ibid., p. 271.
19
19
ROVAI, Marta. Osasco 1968: a greve no masculino e no feminino. Salvador: Pontocom, 2013, p.61-62.
20
Para maiores esclarecimentos sobre a noção de polifonia Cf. BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José
Luiz (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. 2ªed.1ªreimpr. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2003.
20
21
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffpter. São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1990.
22
CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano. 1. Artes do fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves, 9ª
ed. Petrópolis, RJ; Vozes, 2003, p.164.
23
CERTEAU, op. cit., 2003, p.162.
24
CERTEAU, op. cit, 2003, p.163-164.
21
25
ROVAI, op. cit., 2013, p. 62.
26
FONTINELES, Cláudia Cristina da Silva. O Recinto do Elogio e da Crítica: maneiras de durar de Alberto
Silva na memória e na história do Piauí. 2009. 374 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2009, p.34.
27
CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto, 2001, p.20.
28
CATROGA, op. cit., 2001, p.16.
29
MEIHY; HOLANDA, op. cit., 2013, p.28.
22
São essas recordações dos “tempos do trem” que formam a identidade individual e
coletiva desses homens: as viagens de férias que eram feitas na “Maria Fumaça” até a
Amarração; os apitos do trem avisando que era hora de partir; a festa da chegada do mesmo
na estação; a tapioca gostosa que vinha do Bom Princípio; o prédio da Guarita no bairro São
Francisco, entre tantas outras que guardam em suas memórias.
No primeiro capítulo, Parnaíba entre trens e trilhos, apresentamos as condições
que propiciaram a construção da Estrada de Ferro Central do Piauí e como sua chegada
mudou o espaço urbano, contribuindo para surgimento de novos bairros; conhecemos o
cotidiano dos parnaibanos com a ferrovia e o papel desempenhado pela estação ferroviária. O
trem foi o primeiro meio de transporte coletivo terrestre existente no Piauí. O trem no Piauí
não transportou somente pessoas e cargas, levou também muitos sonhos e desejos em seus
vagões. Parnaíba foi a primeira cidade piauiense a ver um trem desfilando em suas ruas a
“Maria Fumaça”, como ficou conhecido, sua chegada foi uma festa. Era a “modernidade”
chegando ao Piauí.
No segundo capítulo Parnaíba e o trem, analisamos os descompassos da cidade e os
descaminhos do trem entre as décadas de 1960 e 1980. Tratamos das diferentes formas em
que os projetos governamentais interferem na vida de uma comunidade. Nas décadas
analisadas o ideário de “progresso” e “modernização” ganha novos caminhos. São palavras
polifônicas que adquirem novos significados dependendo do contexto. Se no início de século
XX o progresso seria alcançado com a chegada do trem, na segunda metade do mesmo século
esse meio de transporte perdeu essa condição. As décadas estudadas evidenciam os dramas
vividos pelos parnaibanos diante dos acontecimentos envolvendo a Estrada de Ferro Central
do Piauí e as consequências do declínio econômico que passaram Parnaíba no mesmo
período. O desemprego, o aumento populacional e a perda da autonomia da ferrovia
preocuparam os parnaibanos que buscaram em seus representantes políticos apoio e uma
solução.
No terceiro capítulo, A magia e dor de ser ferroviário, identificamos por meio das
representações construídas pela memória dos ferroviários aposentados como a ferrovia foi
importante para suas vidas. E como foram envolvidos pelo processo do desmonte ferroviário
no Piauí. Por meio de suas recordações conhecemos seu cotidiano na beira da estrada e suas
relações de sociabilidades. O medo sentido diante da ameaça de perder o emprego e como
foram punidos pela desinformação e a censura. A crueldade da Ditadura Civil-Militar se deu
por vários meios, não só físico, mas ideológico e simbólico. Ouvimos suas histórias e
memórias de alegrias, tristezas e saudades. Foram muitos sentimentos e ressentimentos
23
vividos durante as décadas de 1960 a 1980 pelos homens que ajudaram a manter o trem nos
trilhos no Piauí. Uma ferrovia não é feita apenas por trilhos e dormentes, ela precisa de
pessoas que garantam sua existência. Vamos embarcar nesse trem?!
24
Os sentidos históricos e culturais do trajeto das ferrovias são um chamado para uma
viagem que busca entender a aparecimento e o desaparecimento das locomotivas. Neste
primeiro capítulo trataremos do aparecimento do trem em Parnaíba, apresentamos o nosso
entendimento de como essa máquina fruto do século XIX encantou e se entrelaçou à vida de
seus cidadãos.
30
HARDMAN, op. cit., 2005, p. 61.
31
Para maiores informações sobre esse fenômeno e as ações sócias propostas pelo governo, Cf. BORGES,
Geraldo Almeida; DOMINGOS NETO, Manuel. Seca seculorum: flagelo e mito na economia rural piauiense.
Teresina: Fundação CEPRO, 1987.
32
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2004.
25
33
“Trabalhadores flutuantes” termo usado pelas pesquisadoras Cecília de Almeida Nunes e Mafalda Baldoino de
Araújo para os migrantes nordestinos que se estabeleceram no Piauí no século XIX e no século XX. Ver:
ARAUJO, Maria Mafalda Badoino de; NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida. Memória e História:
pluralismo cultural na sociedade piauiense. In: NASCIMENTO, Francisco Alcides do; PINHEIRO, Áurea Paz
(Orgs.).Cidade, História e Memória. Teresina: EDUFPI, 2004, p. 175-190.
34
ARAUJO; NUNES, op. cit., 2004, p. 185.
35
Dr. MIGUEL Furtado Bacellar. Almanaque da Parnaíba, ano XV, p.81, 1938.
36
“Foi na gestão Bacellar que já com a denominação de E. F. Amarração-Campo Maior foi desligado da Rede de
Viação Cearense e subordinado diretamente à inspetoria Federal de Estradas, (24 de janeiro de 1920), passando
enfim a denominar-se E. F. Central do Piauí, em virtude da Portaria Ministerial de 28 de maio do mesmo ano”.
Cf. CORREIA, Benedito Jonas; LIMA, Benedito dos Santos (Orgs). O livro do centenário de Parnaíba: 1844 –
dezembro – 1944. Parnaíba: Gráfica Americana, 1944, p. 276.
26
engenheiro Miguel Furtado Bacellar que teve que lidar com dificuldades, como falta de
verbas, máquinas velhas, doenças e mortes entre os operários.
A construção da ponte de ferro sobre o rio Portinho tirou a vida de muitos homens
que, devido à insalubridade do local, eram afetados pelo impaludismo/malária. Para que as
obras tivessem continuidade e os operários não abandonassem a construção houve um
aumento no valor das diárias para os trabalhadores.
Vencida as primeiras dificuldades os trilhos continuaram seu trajeto, o trem “pedia
passagem” e a cidade precisou se organizar para receber a ferrovia com todo o aparato
material necessário para sua construção. A primeira providência foi escolher o local para
construção da estação central. O terreno escolhido correspondia a “uma área de 107.178
metros quadrados, desapropriada dos herdeiros de Joaquim Antônio dos Santos pela
importância de Rs 13. 748$763 (contos de réis), cujo recibo, datado de 27 de julho de
1917”38. Essa construção foi outro desafio para o engenheiro Miguel Furtado Bacellar, pois:
37
Dr. MIGUEL Furtado Bacellar. Almanaque da Parnaíba, ano XV, p.89, 1938.
38
BACELLAR, Renato Araribóia de Brito. Transporte Ferroviário no Piauí. Almanaque da Parnaíba, ano
LXXXII, nº 68, p, 178, 2006.
39
BACELLAR, op. cit., 2006, p, 178.
27
A estação central foi construída no final da Rua Grande, em um local afastado das
casas, coberto de mato, conhecido como Macacal40. Porém, ele dava acesso ao Porto Salgado,
dessa forma a “Maria Fumaça” passava dentro da cidade até o porto para o embarque e
desembarque de mercadorias, assim, a paisagem foi modificada em função dos trilhos e da
construção da estação. A partir de então, o local passou a atrair moradores, e aos poucos, foi
crescendo e se tornando um bairro – atualmente bairro de Fátima - lugar onde muitos
trabalhadores da ferrovia escolheram para morar por ficar próximo ao local de trabalho.
O lugar onde foi construída a sede administrativa da ferrovia em Parnaíba ficou
conhecido como Esplanada da Estação e passou a ser um lugar de atividades comerciais,
passeio e um marco divisor, até mesmo para a formação de novos bairros, como São
Francisco da Guarita, Campos e o Cantagalo, para os parnaibanos. A pesquisadora Lidia
Possas quando discute sobre a presença da ferrovia em São Paulo afirma que a “presença dos
trens e trilhos, cortando a cidade, alteraram substancialmente, o cenário urbano, [...].
Consolidaram-se os hábitos e costumes de viajar de a partir de um ponto estrategicamente
localizado e cuidadosamente elaborado: a estação ferroviária”41. Desta forma, a chegada da
ferrovia também alterou a paisagem e os hábitos dos parnaibanos.
A paisagem das cidades foi alterada com as construções ferroviárias, Cacilda
Teixeira ao tratar dessas construções, afirma que a estação “ultrapassou seu papel estritamente
utilitário, ligado ao transporte, e tornou-se espaço social de poderoso poder de atração por
significar o novo ligado ao sentido de desenvolvimento e porque as pessoas aí encontravam
um local adequado às aspirações mundanas, ou de lazer, além de uma visualidade nova”42, foi
o que aconteceu em Parnaíba, onde:
40
O bairro foi conhecido pelo nome de Macacal até a década de 1950 quando a cidade recebeu em 26 de outubro
de 1953 a Imagem de Nossa Senhora de Fátima, que vinda de Portugal foi recebida na Igreja localizada no
referido bairro. A partir desse acontecimento o Macacal passou a se chamar bairro de Fátima e o que nas décadas
seguintes foi oficializado pelos administradores locais. Para maiores informações sobre o bairro de Fátima. Cf.
PASSOS, Caio. Cada rua, sua história. IOCE: Parnaíba – Piauí, 1982.
41
POSSAS, Lidia Maria Vianna. Mulheres, trens e trilhos: modernidade no sertão paulista. Bauru. São Paulo:
EDUSC, 2001, p. 63.
42
COSTA, Cacilda Teixeira da. O Sonho e a Técnica: a arquitetura de ferro no Brasil. São Paulo: EDUSP,
2001, p. 113-116.
43
NUNES, Maria Cecília Silva de Almeida. A modernidade chega de trem ao Piauí: o trem de ferro no
imaginário popular piauiense. Almanaque da Parnaíba, nº61, p.170, 1994.
28
Era uma “festa” a hora da chegada e da partida. O trem mudou a noção de tempo
entre os parnaibanos, com horários fixos e controlados pelo relógio, fez com que as pessoas
passassem a ter a “hora do trem” como referência no cotidiano da cidade. A importância que o
trem exerceu na cidade ficou explícita quando o Carlos Pena Botto chegou em 1929 para
ocupar cargo de Capitão dos Portos e percebe que a hora local estava com um atraso de 45
minutos em relação ao que ele chamou de “hora média legal”.
Tentando corrigir essa situação, o Capitão enviou Oficio ao Intendente Municipal,
“pedindo a sua esclarecida atenção para o fato de ser a hora em Parnahyba inteiramente
arbitrária, regulada pelo bedel da igreja Matriz [...] Outros achavam que os relógios deviam
ser acertados pelo trem de Amarração, que partia exatamente às 7 horas da manhã...”44. Em
seu livro de memórias o Capitão Pena Botto informa que teve dificuldades para fazer com que
os órgãos reguladores da hora local acertassem seus relógios. Ele conta que além de mandar
ofício para o Intendente Municipal, também “fiz um ofício ao Diretor de uma das Repartições
Federais, a Estrada de Ferro Central do Piauhy. Neste ofício, extremamente cortês, mostrava o
quanto era improcedente e ilegal a hora arbitrária adotada em Parnahyba, e pedia ao Diretor
que fizesse vigorar na sua Repartição a hora conveniente”45.
A insistência do Capitão Pena Botto em fazer com que a Estrada de Ferro Central do
Piauí acertasse o relógio da estação de acordo com o que ele considerava “hora conveniente”
demostra a importância que tinha o trem e sua influência na hora da cidade, pois muitas
pessoas passarem a ter o horário da partida e da chegada do trem como uma referência para
suas atividades diárias.
Seguindo em direção a Piracuruca os trilhos continuavam seu trajeto pela cidade,
passando pela guarita que deu origem ao bairro São Francisco da Guarita. Segundo o escritor
parnaibano Caio Passos, “o florescimento e a origem do bairro vem da construção, em 1916,
da Estrada de Ferro Central do Piauí. Era a zona onde morava a maioria dos trabalhadores da
ferrovia, em preparo. Famílias foram se agrupando, casebres iam surgindo em suas ruas
estreitas e arenosas”46.
A guarita era um pequeno prédio pintado da cor amarelo, “onde era feito o desvio da
estrada de ferro Cocal ou Igaraçu e abrigava o guarda ferroviário encarregado da sinalização
dos trens”47. Os habitantes da cidade guardaram as lembranças das suas “práticas cotidianas”.
44
BOTTO, Carlos Pena. Meu exílio no Piauí. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1931, p. 74-75.
45
BOTTO, op. cit., 1931, p.81.
46
PASSOS, Op. cit., 1982, p.42-43.
47
VIEIRA, Lêda Rodrigues. Caminhos de Ferro: a ferrovia e a cidade de Parnaíba, 1916 -1960. 2010. 247 f.
Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2010, p. 124.
29
Do vai e vem do trem, dos lugares que existiam na cidade que faziam parte do transporte
ferroviário, “um pingo de algo”, os trilhos espalhados.
A cidade é uma realização humana e como tal transforma-se, muda sua paisagem de
acordo com os seus idealizadores. As mudanças alteram o cotidiano, a paisagem e as formas
de apropriação dos espaços. As idealizações são frutos de sonhos e desejos que se entrelaçam
e dão formas aos prédios públicos, as praças. Parnaíba em seu processo de transformação
urbana fez desaparecer o prédio da guarita que deu significado ao local. Caio Passos lamenta
o seu desaparecimento, “essa guarita estava em pé até a pouco tempo, mas como o progresso
é inimigo da tradição, destruíram os marcos históricos, lá se foi a casinha no bico da picareta”,
o escritor culpa o progresso pela derrubada do prédio.
Juntando os fragmentos guardados na história dos parnaibanos, passamos a pintar em
cores vivas os lugares que deram vida e cor ao trem em Parnaíba. As lembranças se
encontram espalhadas pela cidade, seja na memória dos habitantes ou retratadas em forma de
telas, nomes de bairro e ruas da cidade, registrando os caminhos do trem em Parnaíba. A
Guarita, por exemplo, não existe mais na sua forma material, apenas na memória e nos nomes
dos bairros, como o São Francisco da Guarita.
A ferrovia também inspirou pintores e escritores e foi retratada em telas como as que
foram pintadas pelo parnaibano Antônio Rodrigues Ribeiro, onde representou o cotidiano dos
parnaibanos na década de 1960 em tela colorida em que mostra o encontro da Avenida
Princesa Isabel com as ruas São Pedro, Oeiras e Caramuru. Mostra também à presença do
trem, da guarita, o curral de bois e alguns prédios que foram construídos ao seu redor, como
apresentamos na figura 1:
Figura 1: O trem passa na Guarita, Parnaíba, 1969.
Assim como na tela do artista, a cor amarela foi predominante na pintura dos prédios
da ferrovia no Piauí. Um aspecto a se destacar no quadro é a presença do trem e do caminhão.
O pintor mostrou que esse dois meios de transportes estavam convivendo em Parnaíba, mas a
figura da ferrovia parece ser central na pintura, demonstrando a sua importância na memória.
Nas proximidades do prédio surgiram casas comerciais, pequenos botecos, cortiços,
cabarés, bares, mercado, igrejas, o cinema – Cine Guarita - residências promovendo a
formação de um novo bairro na cidade. Depois dela, havia o ramal para a localidade Igaraçu,
que era conectado à linha principal pelo entroncamento feito na guarita.
Diariamente o trem tinha horário para o Igaraçu, povoado próximo da cidade, com
horários de partidas e chegadas pela manhã e pela tarde. No Igaraçu além das pessoas que
habitavam o local, tinha a fábrica do Comendador Cortez48 local que mantinha um grande
número de empregados, para onde o trem transportava os produtos como tucum, babaçu49.
As construções ferroviárias em Parnaíba se encerraram na década de 1950, quando
foram construídos armazéns, escritórios, almoxarifado, pátio de manobras e uma homenagem
o primeiro engenheiro Miguel Furtado Bacellar com seu busto feito pelos ferroviários e
colocado na Esplanada da Estação. Além dos prédios citados, foi construída a Vila Operária
Major Santa Cruz próximo da Guarita que recebeu esse nome em homenagem ao Major
Wilson Santa Cruz Caldas que foi diretor da Estrada de Ferro Central do Piauí em 1955 e
1958.
Saindo de Parnaíba, os trilhos continuaram seu trajeto passando por vários povoados,
dentre eles: Boa Vista, Marruás, Bom Princípio, Frecheiras, Cocal, Deserto, Videu entre
outros. Em alguns povoados e vilas foram construídas estações ou uma pequena plataforma,
caixa d`água e poço para abastecer a locomotiva. Sobre o povoado de Bom Princípio o
cronista do Almanaque da Parnaíba, afirmou que antes da chegada da ferrovia “era uma
antiga fazenda em abandono e hoje adiantado povoado que dia após dia prospera graças à
Estrada de Ferro, que é o fator positivo da civilização”50.
Por onde os trilhos passavam deixavam seu rastro de esperança, fazendo com que
muitos povoados parnaibanos prosperassem e se tornassem independente da cidade-mãe,
como “Cocal da Estação”, emancipado politicamente ainda em 1948 e cuja estação ferroviária
48
Para maiores informações obre o comendador Cortez e sua fábrica. Cf. DOMINGOS NETO, Manuel. O que
os netos dos vaqueiros me contaram: o domínio oligárquico no vale do Parnaíba. São Paulo: Ananablume, 2010.
49
A fábrica também produzia sabão, beneficiava arroz, madeira e outros produtos. Com isso trouxe trabalho ás
populações ribeirinhas pontilhadas ao longo do rio Parnaíba e que, assim, tinha a chance de vender seus
produtos como o coco babaçu e o tucum. Cf. Histórias que meu pai contava. O Bembém, Parnaíba, ano 03, nº34,
p.10, 21 de out. de 2010.
50
Dr. MIGUEL Furtado Bacellar. Almanaque da Parnaíba, ano XV, p.85, 1938.
31
construída no início do século passou a atrair pessoas para o povoado de Cocal que viam no
comércio uma fonte de sobrevivência.
51
MACHADO, Maria do Socorro Brito. Histórias ouvidas e vividas. Niterói, RJ: Muiraquitã, 2000, p.15.
52
HARDMAN, op. cit., 2005, p. 153.
53
CÂNDIDO, Tyrone Apollo Pontes. Trem da seca: sertanejos, retirantes e operários (1877-1880). Fortaleza:
Museu do Ceará/Secretária de Cultura do Estado do Ceará, 2005.
54
Barras de madeira usadas para sustentar os trilhos.
32
55
ÓTIMA Pensão. Almanaque da Parnaíba, p.346, 1941.
56
MELO, Juliana Lustosa. Nos caminhos da ferrovia: história e memória da Estrada de Ferro Central do Piauí na
cidade de Piracuruca (1920-1940). 2013. 66f. Monografia (Licenciatura em História) - Universidade Estadual do
Piauí, Parnaíba, 2013, p. 26-27.
33
novembro de 1923. A primeira página é um local nobre do jornal, onde as notícias mais
importantes são publicadas.
Não é nossa intenção fazer uma história linear da construção da Estrada de Ferro
Central do Piauí, no entanto, concordamos com Alessandro Portelli quando ele afirma que
“datar um evento não é simplesmente colocá-lo na sequencia linear, mas também decidir a
qual sequencia pertence”58. A partir dessa proposição defendemos que é importante colocar a
sequencia da construção da ferrovia e defendemos que sua construção se deu em três etapas: a
primeira etapa teve início em 1916 o primeiro trecho ligando Parnaíba à cidade de Piracuruca
em 1923. A segunda etapa de construção se deu na década de 1930, quando os trilhos
chegaram a Piripiri, também num período de seca, sendo inaugurado o trecho ferroviário em
fevereiro de 1937. A terceira e última etapa concluída na década de 1960 quando os trilhos
alcançaram Teresina.
Por onde os trilhos passaram provocaram mudanças na paisagem seja ela urbana ou
rural, e provocaram também alterações no cotidiano das pessoas. Na cidade de Piripiri:
57
DE AMARRAÇÃO a Piracuruca. O Piauhy. Teresina, ano 34, n. 708, p.01, 22 de nov. de 1923.
58
PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do tempo na história oral. In: KHOURY, Yara et
al (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’água, 2004, p.307.
59
FERREIRA, José de Arimatéia Isaias. Trilhando Novos Caminhos: A cidade de Piripiri e as mudanças
proporcionadas pela chegada da Ferrovia 1930-1950. 2010. 146 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil)
- Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2010, p.112.
34
A cidade das campinas e dos carnaubais, nos seus 350 anos de existência,
vae receber a trinta do findante, o primeiro comboio ferroviário, com o
prolongamento, até ali, da Estrada de Ferro Central do Piauí, partindo da
cidade litorânea piauiense de Luiz Correia.
Este o magnifico anuncio que dá ao povo piauiense, o ilustre Ten – Cel.
Lima Junior. Comandante do segundo BEC – responsável e pioneiro daquele
notável melhoramento em terras piauienses.
Agradecemos aqui o atencioso convite que S. Sia. Mandou a este vibrante
jornal, para assistirmos aquela grata ocorrência60.
60
TREM de Ferro em Campo Maior. Estado do Piauí, Teresina, ano XXXIII, nº303, p.01, 29 de dez. de 1960.
61
A PRIMEIRA viagem. O Dia, Teresina, ano 18, nº. 2.588, p.01, 06 de dez. 1968. (grifo nosso).
35
62
INAUGURADAS novas ferrovias e rodovias no Nordeste. Jornal do Piauí, Teresina, ano18, nº 1.994, p.03, 22
de jan. 1969.
63
LIMA, Raimundo de Sousa. Possibilidades. Almanaque da Parnaíba, p. 55, 1938.
36
64
CONVITE enviado ao Engenheiro Miguel Furtado Bacellar para a festa em sua homenagem. O convite se
encontra no Museu do trem do Piauí, antiga estação ferroviária da cidade de Parnaíba-Piauí.
65
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução: Wilma
Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006, p. 310.
66
HARDMAN, op. cit., 2005, p.34.
37
Nosso pai, que era magarefe, chegou certo dia mais cedo do mercado para
recomendar a mim e a meu irmão Antônio uma lavagem caprichada em seu
cavalo de sela. Queria também ração reforçada para um passeio à tarde, que
entendemos tratar-se de “parelhas” com outros cavalos.
[...]
Mas ao anoitecer nosso pai disse que não tinha havido parelhas com outros
animais, e sim com um cavalo de ferro. Diante do nosso espanto, explicou
que naquele dia uma locomotiva chegada para inaugurar o serviço da estrada
de ferro estava experimentando os trilhos, estendidos entre a estação e o
porto salgado, correndo furiosa de um lado para o outro, na Rua Grande.
Os cavaleiros que a princípio ficaram olhando o movimento de longe foram
aos poucos perdendo o medo do barulho esquisito do bicho de ferro, até se
aproximaram mais confiantes nos cavalos ainda inquietos.
O pai tinha sido vaqueiro na mocidade, e na descrição feita para nós ao redor
da mesa de jantar deu a entender que a tal locomotiva corria como que
desafiando parelhas.
Disse que alguns homens montados mais afoitos emparelharam carreira com
o cavalo de ferro, quando este corria de costa, porque parecia desequilibrado
e assim podia atrasar a marcha a qualquer instante. Mas logo veio o
desengano, porque os cavalos cansaram de tanto correr e no fim da teima
nunca alcançaram o demônio de ferro que apitava e soltava uma fumaça
preta de cegar a gente67.
67
LIMA, Raimundo de Souza. Vareiros do Parnaíba & outras histórias. Parnaíba. Fundação Cultural do Piauí,
1987, p. 49.
68
Dr. MIGUEL Furtado Bacellar. Almanaque da Parnaíba, ano XV, p.89, 1938.
69
HARDMAN, op. cit., 2005, p. 212.
70
Cf. BACELLAR, Renato Araribóia de Brito. Transporte Ferroviário no Piauí. Almanaque da Parnaíba, nº 68,
ano LXXXII, p.177, 2006.
38
realizada, mas para o espanto de todos os cavalos cansaram e o “demônio de ferro que apitava
e soltava uma fumaça preta” continuou a correr. Essa foi a primeira vez que os cavaleiros
viram que a máquina corria mais do que os cavalos. Os parnaibanos foram tomados pelo
fascínio e medo da máquina que começou a correr pelos trilhos na cidade.
Com o passar do tempo, a máquina foi ganhando espaço e continuou provocando
admiração, medo e fascínio como foi descrito pelo relato acima, era algo totalmente estranho
que até os animais estranhavam o uivo da máquina que cuspia uma fumaça de “cegar os
olhos” quando trafegava. Era o “monstro urbano”72 a máquina que começava a se apresentar
para os homens do início do século XX acostumados ao cavalo que eles tinham total domínio.
Na história da aparição das ferrovias não só os parnaibanos ficaram admirados com a
locomotiva correndo em suas ruas, os habitantes de Macondo, cidade fictícia de Gabriel
García Márquez do livro Cem anos de solidão, passaram pela mesma situação de espanto,
medo e comoção quando viram chegar a sua cidade a primeira locomotiva, por
desconhecerem a máquina ficaram alarmados com sua chegada.
No começo do outro inverno, porém, uma mulher que lavava roupa no rio na
hora de mais calor atravessou a rua principal dando gritos em um alarmante
estado de comoção.
- Vem vindo aí – conseguiu explicar – uma coisa espantosa, feito um fogão
arrastando uma cidade.
Naquele momento a população estremeceu com um uivo de ressonâncias
pavorosas e uma descomunal respiração ofegante. Nas semanas precedentes
tinham sido vistos bandos de homens que estendiam dormentes e trilhos,
mas ninguém prestou atenção porque se pensou que era um novo artificio
dos ciganos que voltavam com sua centenária e desprestigiada ladainha de
apitos e chocalhos apregoando as excelências de sabe-se lá que maldito
xarope dos gênios esfarrapados de Jerusalém. Mas quando todos se
restabeleceram do desconcerto dos apitos uivantes e dos gigantescos suspiros
ofegantes, os habitantes saíram às ruas e viram Aureliano Triste na
locomotiva, acenando com a mão, e viram, enfeitiçados, o trem adornado de
flores que chegava com oito meses de atraso73.
Macondo, poderia “trazer tantas incertezas e evidências, e tantas alegrias e desventuras, tantas
mudanças, calamidades e nostalgias [...]75.
O trem que encantou o mundo até o início do século XX foi o principal, para não
dizer o único meio de transporte coletivo terrestre existente no Brasil até a segunda metade do
século XX. Celebrado como símbolo de progresso e modernidade os parnaibanos o desejavam
para escoar seus produtos agrícolas, pois o Brasil durante a Primeira República era um país
que tinha sua economia pautada no modelo de agro-exportação. O café, algodão, açúcar, cera
de carnaúba eram produtos comercializados pelo Brasil com o restante do mundo.
De acordo com Maria Cecília Nunes76, no início de século XX o Brasil estava
vivendo a “era da modernidade”, tendo no telefone, telégrafo, navegação a vapor, a
industrialização e a ferrovia as condições concretas para viver o período de mudanças que
estavam acontecendo proporcionado por estes artefatos modernos. Nesse sentido a
pesquisadora Cláudia Fontineles afirma que “a modernidade e a modernização completam-se
mutuamente e tem nas cidades o palco privilegiado para sua manifestação e precisam de
elementos científicos, tecnológicos e da ideia de progresso para fortalecer seu discurso” 77. A
cidade de Parnaíba se veste de novidades na era da modernidade.
Nas primeiras décadas do século XX, a elite comercial exportadora parnaibana78
adotou o discurso da modernidade, a cidade era apresentada por sua elite como “moderna”
com ruas pavimentadas, energia elétrica, praças, bangalôs, telefone, navegação à vapor e a
ferrovia que começou a fazer parte do cotidiano da cidade. Dessa forma, a imagem do
progresso foi desenhada por um grupo de comerciantes exportadores de matérias-primas e
importadores de produtos industrializados.
75
MÁRQUES, op. cit., 2012, p. 260.
76
NUNES, op. cit., 1994, p. 168-171.
77
FONTINELES, Cláudia Cristina da Silva. Entre Heráclito e Parmênidas: a modernização de Teresina nas
décadas de 1960 e 1970. In: GOMES FRANCO, Roberto Kennedy; VASCONCELOS, José Gerado. (Orgs.).
Outras Histórias do Piauí. Fortaleza: UFC, 2007, p. 121.
78
“Elite comercial exportadora parnaibana” termo usado pelo pesquisador Antonio de Pádua de Carvalho Lopes
para caracterizar a elite parnaibana na primeira metade do século XX. Cf. LOPES, Antonio de Pádua Carvalho.
Luz, progresso e expansão intelectual: a elite comercial exportadora de Parnaíba e o lugar da educação no
desenvolvimento do Piauí. In: CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar; NASCIMENTO, Francisco Alcides do;
PINHEIRO, Áurea Paz. (Orgs.). Histórias: cultura, sociedade, cidades. Recife: Bagaço, 2005, p. 61-78.
40
79
SILVA, Josenias dos Santos. Parnaíba e o avesso da Belle Époque: cotidiano e pobreza (1930-1950). 2012.
120 f. Dissertação (mestrado em História) - Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2012, p.27.
80
NUNES, op. cit., 1994, p. 169.
81
Ibid., p. 169.
82
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Tradução: Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 2008,
p. 44.
83
Para Nicolau Sevcenko, “A palavra “moderno”, de recente fluência na linguagem cotidiana, e particular
através da presença crescente da publicidade, adquire conotações simbólicas que vão do exótico ao mágico,
passando pelo revolucionário. Assim como os talismãs são objetos-fetiche, assim também a palavra “moderno”
se torna algo como uma palavra-fetiche que, quando agregada ao objeto o introduz no universo de evocações e
reverberações prodigiosas, muito para além e para acima do cotidiano de homens e mulheres comuns. Nos
termos da nova tecnologia publicitária essa palavra se torna peça decisiva para captar e mobilizar as fantasias
excitadas e projeções ansiosas da metrópole fervilhante. Não há limite para seu uso e, embora na sua raiz ela
comporte um mero registro temporal, na semântica publicitária ela capitaliza as melhores energias da imaginação
e se traduz por si só, no mais sólido predicado ético em meio a vasta expectativa por uma vida melhor.”
SEVCENKO, Nicolau. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 1920. –
São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 227-228.
41
PROGRESSOS
84
O Almanaque da Parnaíba fundado e editado por Benedito dos Santos Lima, em 1924, além de registrar os
novos modelos e modas da elite local, as transformações urbanas, os principais produtos consumidos e os fatos
comezinhos do cotidiano, foi também um veículo modernizador que procurou instituir um padrão de gosto e
consumo a partir do culto à civilidade, ao progresso e aos bons costumes. Cf. SILVA, Josenias dos Santos.
Almanack da Parnahyba: Política, sociedade e cultura em revista. IN: SOUSA, Cleto Sandys Nascimento de;
LIMA, Frederico Osanan Amorim. (Orgs.). Parnaíba: A cidade que nos habita. Parnaíba: Sieart, 2013, p. 80-81.
85
BRANCO, Livio Castelo. Progressos. Almanack da Parnahyba, p. 20, 1927.
42
da mata corria velozmente sobre os trilhos”, para outras era “um monstro que engolia,
devorava as pessoas e animais”86. O barulho provocado pelo atrito com os trilhos, cortavam o
silêncio a que estavam acostumados provocando medo.
No mundo, o trem que foi mensageiro do progresso, também foi transporte do horror,
levando em seus vagões os judeus para os campos de concentração durante a Segunda Guerra
Mundial. São muitas histórias envolvendo o trem, ora como ator principal, ora como
coadjuvante, desde tramas amorosas, assassinatos e atropelamentos. Em Parnaíba, dois jovens
que morreram atropelados pelo trem na primeira metade do século XX ficaram conhecidos
como “almas milagrosas”. O acidente aconteceu “na estrada do Catanduvas, Luís
Correia/Parnaíba o trem matou dois irmãos cegos e surdos. As almas dos “Dois Irmãos”
passaram a fazer milagres”87. Ao lado dos trilhos foi construída uma capela para lembrar e
lugar onde aconteceu o acidente, uma prática comum no Piauí.
Depois do Catanduvas, foi construída a estação de Floriópolis e uma casa de turmas
que servia para os conservadores de linha que trabalhavam naquele trecho. No lugar se
formou o bairro que atualmente recebe o nome da estação, que depois de fechada na década
de 1970 ficou muito tempo abandonada e esquecida. Em 2011 foi tombada e reformada pela
Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional do Piauí,
atualmente é um dos pontos turísticos da cidade.
A ferrovia trouxe consigo não apenas o desejo do progresso, mas a oportunidade de
emprego para muitos piauienses, cearenses e maranhenses sem esperança, despertou desejos e
sonhos nos pais de família que tinham muitos filhos para alimentar. Homens e mulheres
usavam o trem para transportar produtos como: tapioca, frutas, verduras, pão, bolo, tucum,
animais e vendiam ao longo dos trilhos. Outros esperando a chegada do trem para vender seus
produtos na hora do embarque/desembarque.
óleo, querosene, lamparina, sabão, roupas, máquina para costura, para pagar no final do mês e
formaram um clube de futebol.
A ferrovia trouxe esperança para os parnaibanos, proporcionou emprego e renda. O
trem encurtou distâncias, levando e trazendo notícias que através de sistema de telégrafos as
notícias eram enviadas aos parentes e amigos. Como exemplo, citamos o telegrama enviado
em 12 de abril de 1961 por Orlando Torres ao seu sogro Joca Machado para comunicar o
nascimento do seu filho e como estava dona Matilde sua esposa. Era o trem levando a “boa
nova”, informando sobre nascimentos. A figura 2 mostra um telegrama contendo a seguinte
notícia: “Matilde deu luz um robusto garoto, hoje às 9,15 da manhã. Ambos passando bem.
Abraços. Orlando Tôrres”. Um veículo que conduzia pessoas, animais, frutas, informações e
por que não sonhos de muitos piauienses?
Em relação à Europa – e isso também serviu para o Brasil - Eric Hobsbawm afirma
que “a construção de grandes troncos ferroviários naturalmente ganhou a maior parte da
publicidade. Era, realmente, o maior conjunto de obras públicas existentes e um dos mais
sensacionais feitos da engenharia conhecido até então na história”89. Foram muitas obras
ferroviárias construídas em Parnaíba que resistem à ação do tempo.
89
HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital, 1848-1875. Tradução: Luciano Costa Neto. São Paulo: Paz e Terra,
2012, p. 97.
44
ponte de ferro sobre o rio Portinho”. Durante a travessia sobre a ponte aumentava a emoção e
o medo dos passageiros, o atrito com os trilhos e o ferro da ponte fazia aumentar o barulho,
ainda tinha a presença do rio e os maribondos que incomodavam a viagem naquela travessia.
A chegada era uma festa: a estação de Luís Correia ficava cheia de gente esperando
pelo trem, aumentando o alvoroço e o burburinho que tomavam de conta do lugar. As
lembranças guardam detalhes da vida cotidiana marcada pela existência do transporte
ferroviário entre as cidades. São as coisas pequenas do cotidiano como o apito do trem que
marcava a hora da partida, os alimentos que eram consumidos pelos habitantes (bolachas,
peixe, carne) e os maribondos que atacavam os passageiros na travessia pela ponte de ferro.
Suas lembranças formam os tempos em que a locomotiva circulava pela cidade e pelos
demais lugares, dinamizando a economia local e dos municípios vizinhos. A saudade também
tem morada garantida nos fragmentos da memória dos “tempos do trem”.
A parnaibana Maria Elita Araújo92 também registrou suas lembranças sobre essa
passagem temporal e mnemônica.
Era interessante, na época, a pequena máquina, morosamente arrastando sua
composição de vagões vazios, pela então Rua Grande, hoje Presidente
Vargas, até o Porto Salgado. Fazendo sua manobra e depois de receber sua
carga, voltar com seu barulho ensurdecedor, soltando fumaça levando para
outras cidades, no caso Cocal, Piracuruca, Campo Maior, Piripiri, os
produtos da terra.
Foi uma fase de desenvolvimento para o comércio local, e a população
sentia-se feliz por ver, também, os produtos da terra, como: algodão, cera de
carnaúba, serem levados a outras cidades, realizando assim, um intercâmbio
comercial.93.
92
Maria Elita Santos de Araújo. Escritora, cronista e poetisa. Professora nas áreas de Ciências Físicas e
Biológicas. Pertence ao Instituto Histórico Geográfico Genealógico de Parnaíba (IHGGP) e do Rotary Clube
Parnaíba Litoral, da Academia Parnaibana de Letras colaboradora da imprensa local e teresinense.
93
ARAÚJO, Maria Elita Santos de. Parnaíba: o espaço e o tempo. Parnaíba: Sieart, 2002, p.138-139.
94
Rubem da Páscoa Freitas. Jornalista e cronista parnaibano membro da Academia Parnaibana de Letras
(APAL), do Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba (IHGGP). Publicação na Revista do
Instituto Histórico, Geográfico e Genealógico de Parnaíba, jornais de circulação local, Almanaque da Parnaíba e
autor do livro Parnaíba tem memória (2007).
46
Usei muito esse meio de transporte para Luís Correia, no final da década de
1940, toda a década de 50 e parte da de 60.
Os parnaibanos, todos, usavam o trem para temporada de veraneio na praia,
que começava no final do mês de junho, ainda pegando os festejos de Bom
Jesus dos Navegantes, todo mês de junho até o princípio de agosto.
Os Luíscorreienses usavam o trem para assistir às aulas em Parnaíba às 06
horas da manhã, chegando aqui às sete horas. Ás 11 horas e 30 minutos o
trem passava para Luís Correia, de lá retornando às treze horas. Aos
domingos, dias de grande movimento, o trem passava o dia num vai e vêm
tremendo, levando, além dos vagões (carros cobertos e fechados), mais ou
menos uns dez, algumas gôndolas (carros abertos sem cobertura) que cabiam
centenas de pessoas. A demanda era grande.
Centenas de jovens preferiam as gôndolas, pela diferença de preço que era
grande e pela liberdade que tinham de, à luz do dia apreciar a natureza em
toda sua plenitude, como o céu, o sol, a vegetação, as pequenas dunas e o
Rio Portinho.
O trem parava na estação de Luiz Correia todo mundo descia e ia à praia de
Atalaia a pé, caminhando pela beira da praia, conversando animadamente.
Grupo de conhecidos, amigos, familiares, namorados, não de mãos dadas,
pois àquela época só dava as mãos depois de noivado, de comprometido.
Ninguém achava longe, ninguém reclamava do sol, do vento, da distância, de
nada. Jovens, adultos, casais até com crianças, gente idosa, gente de todas as
posições sociais. Era tudo uma beleza. “Éramos felizes e não sabíamos”95.
95
FREITAS, Rubem. Parnaíba tem memória. Parnaíba-PI: Gráfica e cópias, 2007, p.194-196.
47
O que mudou no Piauí para que o trem fosse abandonado pelos passageiros como
sugere o cronista? Que investimentos foram feitos pelo governo federal para o transporte
ferroviário no Brasil entre as décadas de 1960 a 1980? O cronista acusa os passageiros de
terem abandonado o trem, trocado por outros meios de transportes, no entanto, entre as
décadas de 1960 a 1980 o governo brasileiro passou a fazer maiores investimentos no setor
rodoviário com construção de rodovias em detrimento das ferrovias. Dessa forma, não foram
as pessoas que abandonaram o trem e sim o governo que deixou de investir no setor
ferroviário.
96
FOLHA do litoral, Parnaíba, ano I, p.01, 11 de maio de 1959. (Suplemento Especial).
97
Alberto Tavares Silva nasceu em Parnaíba, a 10 de novembro de 1918, filho de João Tavares de Carvalho e
Silva e Evangelina Rosa da Silva. Engenheiro elétrico e mecânico. Foi duas vezes Prefeito de Parnaíba, 1948 a
1951, assumindo o cargo novamente de 1955 a 1959. Diretor da Estrada de Ferro Central do Piauí entre os anos
de 1951 a 1953 e Diretor Superintendente da mesma ferrovia em 1961. Deputado Estadual, por duas vezes
Governador do Piauí e Senador da República. Faleceu em Brasília a 28 de setembro de 2009 durante o mandato
de Deputado Federal. Para maiores informações sobre Alberto Silva Cf. FONTINELES, Cláudia Cristina da
Silva. O Recinto do Elogio e da Crítica: maneiras de durar de Alberto Silva na memória e na história do Piauí.
2009. 374 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2009.
98
FREITAS, op. cit., 2007, p.197.
48
1950 o então engenheiro Alberto Silva, Diretor da Central do Piauí no período compreendido
entre os anos de 1951 a 1953, elaborou um projeto de reestruturação para a ferrovia, onde o
editor o almanaque afirma ter sido um “eficiente esforço na restauração completa da via
permanente, construindo pontes, pontilhões e bueiros, dando um grande impulso no serviço
de restauração da linha”99. Diante do exposto, como informa a fonte pesquisada a ferrovia
precisava de melhorias para não comprometer a “locomoção que é a alma e a vida de uma
estrada de ferro”. A falta de uma boa infraestrutura provocava a diminuição na arrecadação e
causava prejuízos. Dessa forma, as despesas eram bem maiores do que o que era arrecadado.
O parnaibano Alberto Silva, ciente da situação, estava preocupado em melhorar a
ferrovia e investiu na construção de armazéns nas estações, principalmente das cidades de
Parnaíba e Piripiri onde “as cargas eram armazenadas nas plataformas das duas estações,
sujeitas a riscos de deterioramento por chuvas e roubos em virtude do desabrigo em que
ficavam. Por isso, os embarcadores começaram a transportar suas cargas em caminhões” 100,
daí a preocupação externada pelo diretor em construir armazéns, pontes, melhorar oficinas.
O diretor também demostrou preocupação com os funcionários e apresentou entre as
propostas de melhorias a “criação de um restaurante popular no recinto das oficinas da
Estrada para oferecer refeição sadia e barata aos operários, além de grande vantagem que trará
a esses servidores, evitará as longas caminhadas para suas casas [...] mantendo-os mais
dispostos para o serviço”101. Analisamos a proposta de criação do restaurante popular como
inovadora para o período e também como uma estratégia para fazer com que os funcionários,
não precisarem se deslocar até suas casas na hora do almoço e pudessem fazer uma refeição
“sadia” ficando, assim, mais estimulados para o trabalho.
Outra ação do diretor que ficou marcada na memória dos ferroviários e ressaltada
pelo editor do Almanaque do Cariri foi a “restauração da Cooperativa dos ferroviários,
fechada a mais de dez anos”102. Nas entrevistas realizadas durante a pesquisa todos os
entrevistados mencionaram a importância da Cooperativa de Consumo Ferroviário da Central
do Piauí. O maquinista Waldemar Marciel Lima ao se referir à Cooperativa dos ferroviários
afirmou que “tinha de tudo que você queria. Tudo, tudo, tudo, tudo. Tinha lambreta, roupas,
alimentos, quando não tinham eles davam o crédito e nós comprávamos no comércio”103. Para
99
ESTRADA de Ferro Central do Piauí. Almanaque do Cariri, p.752, 1952.
100
Ibid., p. 754.
101
ESTRADA de Ferro Central do Piauí. Almanaque do Cariri, 1952, p. 755.
102
Ibid., p. 755.
103
LIMA, Waldemar Marciel de. Nasceu em Camocim-Ceará a 09 de setembro de 1928. Começou a trabalhar na
Estrada de Ferro Central do Piauí em 1951 como Foguista, foi aposentado na década de 1980 como Auxiliar de
Supervisor de Tração pela Rede Ferroviária Federal. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 19 de novembro de 2013.
49
ele, a atitude do diretor demostrava sua preocupação com a melhoria dos serviços oferecidos
pela ferrovia aos piauienses e aos ferroviários.
As tentativas do Alberto Silva em revitalizar a Central do Piauí, ultrapassaram as
construções de pontes, armazéns e incentivar os funcionários a trabalharem satisfeitos. Ele
também queria modernizar o trem, fazer com que ele ganhasse mais velocidade, para isso,
entrou em contato com o Diretor do Departamento Nacional de Estradas de Ferro, para
adquirir “dois possantes motores Diesel de fabricação suissa. Com estes espera o Engenheiro
Alberto Silva, por em atividade duas referidas automotrizes dentro de pouco tempo” 104, o
diretor estava empenhado em melhorar o tráfego e para isso não media esforços, com a
aquisição dos novos motores pretendia promover a “rápida comunicação com a Capital do
Estado, cujo percurso, atualmente feito em cerca de quinze e vinte horas, passará a ser feito
por essas máquinas, em combinação com um moderno serviço de Auto-Onibus, em 8, no
máximo, em 10 horas”105
As fontes analisadas mostram que Alberto Silva estava empenhado em restaurar a
Central do Piauí e não deixar o trem perder a corrida para o automóvel, que já estava
ganhando a preferência dos comerciantes que tinham começado a embarcar seus produtos em
caminhões e o engenheiro entendia que melhorando a estrada, dando mais velocidade ao trem,
este não iria ganhar o gosto popular em fazer suas viagens, agora de forma mais confortável
em auto-ônibus e mais rápida, com uma diferença de dez horas de duração.
Fazia parte dos planos do diretor conseguir uma “locomotiva a Diesel elétrica nova e
mais duas locomotivas de fabricação francesas e um motor para tratamento d’água, com
capacidade para 35 litros horários”106. Como podemos observar na leitura dessa informação os
esforços em melhorar a estrada passavam também pela melhoria das condições de trabalho
dos funcionários, isso fica claro quando a preocupação em conseguir o motor para tratamento
de água visava ao “abastecimento das locomotivas e fornecimento aos operários do precioso
líquido, isento de toda e qualquer impureza”. Além da preocupação com a água que os
funcionários iam beber também se preocupou em melhorar o Posto Médico com a “instalação
de um moderno aparelho de abreugrafia no Posto Médico da Estrada, para melhor combater a
tuberculose, que, como todos sabem, prolifera assustadoramente, em toda parte ceifando
vidas”, o diretor se preocupou também com o valor das passagens:
104
ESTRADA, op, cit., 1952, p.755
105
Ibid., p.755.
106
Ibid., p.756.
50
incalculáveis benefícios para todos, tendo em vista que a nossa tarifa era a
mais elevada do Norte e talvez uma das mais pesadas do Brasil, o que
contrariava os preceitos administrativos de que as estradas de ferro foram
feitas para facilitar e não para dificultar os transportes107.
A redução no valor da passagem foi uma das estratégias de Alberto Silva com a
finalidade de aumentar a renda da estrada que estava caindo como já foi exposto
anteriormente. O projeto de restruturação da ferrovia tinha ações ousadas para a época como,
restaurante popular e auto-ônibus, que não se concretizaram naquela década e em nenhuma
outra o desejo do engenheiro-diretor em transformar a Central do Piauí numa ferrovia
moderna.
No entanto, o projeto de restauração da ferrovia proposto por Alberto Silva não foi
concretizado na sua totalidade. Na década de 1960 era visível o abandono da ferrovia, com
um grande número de locomotivas paralisadas aguardando reparos, carros e troles fora de
tráfego, a estrada mal conservada, armazéns para cargas em péssimas condições. Era comum
o trem quebrar durante o percurso e os passageiros ficarem esperando o conserto, sobre esse e
outros problemas, a explicação dada pelo diretor Petrarca de Sá era de que “o problema da
Estrada de Ferro Central do Piauí não é isolado, pois que esta situação é de âmbito geral a
todas as estradas de nossos país”108.
Na tabela 1 podemos ver o resultado de um levantamento realizado pelos editores da
Revista Caravana que visitou Parnaíba em março de 1960, quando Petrarca de Sá Rocha
ocupou o cargo de Superintendência da estrada em 25 de julho de 1959 permanecendo até 09
de maio de 1961. Os editores da revista visitaram as instalações da Estrada de Ferro Central
do Piauí e estamparam com fotografias as informações sobre o estado de abandono em que se
encontrava a ferrovia e apontaram os problemas encontrados pelo Superintendente Petrarca de
Sá. Entre os funcionários tinham “duas categorias, funcionários públicos (437) e CLT (284).
Estes últimos não têm abono, nem salário família e muito menos adicional, com exceção,
apenas, do almoxarife, um médico, quatro oficiais administrativos, um escriturário, um
topógrafo e dois engenheiros”.
Além da situação dos funcionários, a reportagem também mostra como se
encontravam as locomotivas da Estrada de Ferro Central do Piauí. Como podemos observar,
das onze locomotivas existentes, apenas duas estavam em tráfego; as demais estavam paradas
no pátio da estação apresentando problemas na caldeira ou na fornalha.
107
Ibid., p.756.
108
A ESTRADA de Ferro Central do Piauí, sob a Direção do Engenheiro Petrarca Rocha de Sá, marcha para o
progresso. Caravana, ano XIII, março de 1960. Não paginado.
51
109
Cf. Caravana, ano XIII, 1960. Não paginado.
110
PAULA, Dilma Andrada Paula. O futuro traído pelo passado: a produção do esquecimento sobre as ferrovias
brasileiras. In: KHOURY, Yara et al (Org.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho d’água, 2004,
p. 65.
111
Petrarca da Rocha de Sá foi Diretor Superintendente de 29 de julho de 1959 a 09 de maio de 1961.
52
Dr. Salmon Lustosa, Juiz de direito da Comarca, Dr. Mirocles Veras, Dr.
Ormeu Monteiro, Chefe do Serviço Médico da Caixa dos ferroviários, Eng.
Alberto Silva, Deputado estadual Candido Oliveira e esposa, Eng. Antonio
dos Santos Rocha, José dos Santos Veras, Prof. João Ribeiro e esposa,
Fernando Ponte representando o gerente do Banco do Nordeste, Dr. David
Benevides Francisco de Sousa Brandão, Fonseca Mendes, Sued Frazão e
esposa, Renaud Frazão e esposa, Pedro Alelaf e família, Antonio Faria
representante da União dos Ferroviários em Parnaíba, Rubem Freitas,
Sebastião Rodrigues, Hélio Mourão, Raimundo Lima, Batista Leão, Chefe
do Serviços de Relações Públicas da E.F.C do Piauí e inúmeros outros cujos
nomes não foi possível registrar112.
A ocasião contou ainda com a participação do Frei Valentin convidado para realizar
uma missa que aconteceu na oficina. Após a realização da missa, foi a vez dos discursos
proferidos pelos senhores “Samuel Tupinambá, Chefe do Tráfego da E. F. Central do Piauí;
Batista Leão, Chefe do Serviço das Relações Públicas; Deputado estadual Cândido Oliveira,
engenheiro Alberto Silva e, por fim, o homenageado do dia Dr. Petrarca”.
A figura 3 retrata o pátio da estação central, o engenheiro Petrarca de Sá, Alberto
Silva trajando terno e gravata. Os ferroviários também participam da fotografia, dentre eles os
maquinistas que vestem suas fardas compostas de sapato, calça, camisa e uma gravata. Além
das autoridades podemos perceber a participação das mulheres e crianças nas comemorações.
Figura 3: Petrarca de Sá e os ferroviários. Parnaíba, 1961.
112
SOLENIDADE comemorando o 1º ano de administração do Eng. Petrarca Rocha de Sá à frente da E.F.C do
Piauí. Cf. Contemporânea, Fortaleza, ano XXI, nº 103, Set/Out. p. 27, 1960.
53
Além da reforma da oficina, foi criado o Departamento Jurídico que teve como
responsável Edison Cunha e a Assessoria de Relações Públicas cargo ocupado por Batista
Leão e um posto de abastecimento da Cooperativa. O posto funcionava ao lado das oficinas.
Todas as medidas tomadas pelo diretor visavam melhorar as condições de trabalho dos
ferroviários.
No entanto, a mesma notícia da comemoração do primeiro ano do diretor à frente da
ferrovia e suas realizações com a sociedade parnaibana e os ferroviários a Central do Piauí
também informa sobre as dificuldades enfrentadas pelas ferrovias brasileiras. Aponta ainda
para o aumento da produtividade as ferrovias que fazem parte da Rede Ferroviária Federal,
inclusive, a Central do Piauí.
Sabemos, por exemplo, que ano passado (1959) o DEFICIT crônico das
ferrovias nacionais, atingiu a casa dos 14 bilhões de cruzeiros: entretanto as
ferrovias que integraram aquela rede apresentaram um índice de aumento na
produtividade de tráfego de 21% em relação ao ano anterior, no transporte de
passageiros, houve um aumento de 9,9%, globalmente, sendo que capitais
cujos subúrbios são servidos por trens, esse aumento foi de 16,3%. Isto
denota à luz das cifras, um processo de recuperação.[...] Esses benefícios
resultados também se manifestam em nossa cidade, junto a nossa velha
E.F.C.P114.
113
SOLENIDADE comemorando o 1º ano de administração do Eng. Petrarca Rocha de Sá à frente da E.F.C do
Piauí. Cf. Contemporânea, Fortaleza, ano XXI, nº 103, p.29, Set/Out. 1960.
114
SINTESE das realizações do Eng. Petrarca Sá à frente da EFCP. Contemporânea, Fortaleza, ano XXI, nº 103,
p.30, Set/Out. de 1960.
54
115
Ibid., p.30.
116
REGO, op. cit., 2010, p. 175.
117
SEVCENKO, op. cit., 2009, p.74.
55
118
O NOVO som do século: a buzina estridente das engenhocas de roda. A era dos bacharéis. 1900/1910 (I).
Nosso Século: São Paulo: Editora Abril, p.86, 1985.
119
A estrutura editorial do Almanaque faz com que esse tipo de publicação constitua importante documento
histórico, por retratar o ambiente social específico de uma época que registra, como um mosaico, o interesse de
um público que assim adquire informações gerais, através de fatos memoráveis e de personagens públicos que
são sempre homenageados. São, assim, postas em relevo as linhas históricas percorridas pelo ano que passou, e
nelas o teor social que a marcou, e não, simplesmente um repertório de atualidades. (REGO, 2010, p.261).
120
REGO, op. cit., 2010, p. 255.
121
O termo moderno aparece, no baixo latim, com sentido de recente, sentido que se mantém na Idade Média,
enquanto o antigo significa aquilo que pertencia à Antiguidade, sem aquele conteúdo depreciativo que se usa
atualmente. Porém, já no século XVI, o moderno se opõe ao medieval, com a periodização da história em
Antiga, Média, Moderna. Ganha, então, mais claramente, o termo moderno o significado de novo, recente, de
algo que não tem ligações aparentes com o passado, criando uma efetiva oposição entre moderno e antigo, entre
o novo e o velho que iria marcar uma concepção de mundo instituída com o advento da sociedade capitalista,
alicerçada na ideia de progresso. As revoluções burguesas se fizeram, exaltando a ruptura com o antigo sistema,
anunciando um novo mundo, um novo homem livre das amarras medievais. Cf. REZENDE, Antonio Paulo.
(Des)encantos modernos: histórias da cidade de Recife na década de XX. Recife: FUNDARPE, 1997, p. 107-
108.
122
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das letras, 2011, p.24.
123
Sobre os Administradores de Parnaíba, Cf. SANTANA, Judith. Parnaíba. COMEPI, 1982, p. 77-86
56
de “Embelezamento da cidade”124 que foi iniciado pelo Ademar Neves e continuado por
Mirócles Veras. Dentre as alterações urbanas que foram adotadas na cidade uma chama a
atenção, que foi a calçamento feito na Rua Grande, como mostra a figura 4.
Figura 4: Locomotiva na Rua Grande, Parnaíba, 1933.
124
Sobre o processo de modernização que passou Parnaíba entre os anos 1931 a 1945 Cf. SILVA, Josenias dos
Santos. Parnaíba e o avesso da Belle Époque: cotidiano e pobreza (1930-1950). 2012. 120 f. Dissertação
(Mestrado em História do Brasil) - Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2012.
125
PAULA, op. cit., 2004, p. 53.
57
126
SILVA, op. cit., 2013, p.81.
58
127
TODOS guiam carros Ford. Almanaque da Parnaíba, p. 183, 1934.
128
LEFEBVRE, Henri. Introdução à Modernidade. Tradução de Jehovanira Chrysóstomo de Souza. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1969, p.216.
59
129
NOSSAS Carroçavéis. Almanaque da Parnaíba, p.147, 1939.
130
LEFEBVRE, op. cit., 1969, p.209.
131
Ibid., p.211.
60
trem era desejado pelos piauienses, fazia parte do seu imaginário há algum tempo. Ele foi
chegando devagarinho e quando chegou a rodovia já tinha ganho a corrida”.132
Sobre o espaço ocupado pelos automóveis no Brasil e a construção de rodovias a
partir da década de 1930, Dilma Paula afirma que:
Como podemos ver o termo “moderno” vai ganhando novos significados. Se entre o
final do século XIX e o início do XX as ferrovias eram signos do moderno, a partir da década
de 1930 o moderno já ganha um novo significado, o automóvel e as rodovias passaram a ser
vistos como propagadores do progresso e da modernidade no Brasil.
Concordando com Henri Lefebvre, Monica Velloso defende que o termo moderno
tem uma natureza ambígua, mutável e “transitório por natureza; é aquilo que existe no
presente. O moderno do ano passado seguramente não é o moderno desse ano. [...]. Isso nos
faz concluir que existem tantas modernidades e antiguidades quantos épocas e sociedades”134,
defende a pesquisadora.
Com a desativação, a história da estrada ficou guardada na memória dos parnaibanos
que viajavam, trabalhavam ou mesmo daqueles que ficavam na janela esperando o trem
passar, que sentiam medo e admiração. Essa memória alimentada pelos trilhos que resistem à
ação do tempo, pelas estações ferroviárias que continuam erguidas e até mesmo entre as
pessoas que não participaram desse momento, mas têm uma memória construída sobre a
época em que o Piauí tinha uma ferrovia, pela convivência com os ferroviários, ouvindo suas
histórias dos tempos do trem, e convive com o patrimônio ferroviário presente na cidade de
Parnaíba e nas demais cidades piauienses que foram servidas por esse meio de transporte.
132
NASCIMENTO, op. cit., 2002, p.188.
133
PAULA, op. cit., 2004, p.55.
134
VELLOSO, Monica Pimenta. História & Modernismo. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.11.
61
135
POLLAK, Michael. Memórias e identidade social. Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol.05, nº 10, p.02,
1992.
136
CALVINO, op. cit., 2008, p.14.
137
ROLNIK, op. cit., p. 15-16.
138
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. Revista Brasileira de
História. São Paulo vol. 27, nº 53, p.14. Junho. 2007.
139
Entendemos espaço segundo a definição de Michel de Certeau como sendo um lugar praticado. Ver
CERTEAU, Michael de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: RJ: Vozes, 2003, p. 202.
62
divertir, esperar a chegada ou ver a partida do trem. Além de todos esses espaços citados, tem
uma locomotiva - a 29 -, presente na Praça da Estação.
O trem, que por quase um século fez parte do cotidiano dos parnaibanos, foi
desativado e hoje a máquina de número 29 se encontra parada no “mundo móvel da estação, a
máquina, agora parada parece de repente monumental e quase incongruente por sua inércia de
ídolo mudo”140como símbolo de uma época que deixou saudades e muitas lembranças entre as
pessoas que “viam o trem como algo fantástico, maravilhoso, de grande utilidade, pois
transportava pessoas, animais, pedras, madeiras, cargas de cereais e frutas para outros locais
do Piauí e também algo do extrativismo vegetal para fora do Estado através de Parnaíba.
Segundo essas pessoas, deveria “está no céu quem criou a locomotiva”141.
Por ser visto como “fantástico e maravilhoso”, o trem marcou época na história e na
memória dos parnaibanos. Sua chegada facilitou o transporte das pessoas e das mercadorias.
Sobre a memória Michael Pollak afirma “que a memória deve ser entendida também como
um fenômeno coletivo e social, ou seja, como um fenômeno construído coletivamente e
submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes”142.
Até a década de 1920, foram construídas no Brasil muitas ferrovias à sombra dos
subsídios governamentais como foi o caso da Estrada de Ferro Central do Piauí, mas, a partir
da década de 1930, o Governo Federal passou a valorizar e investir nas rodovias, “essa
valorização do transporte rodoviário em detrimento do ferroviário ocorreu em nível nacional a
partir do governo Vargas, período em que o caminhão tornou-se representante máximo dos
transportes de carga”143 .
Nesse período a política do Governo Federal no que diz respeito ao desenvolvimento
econômico brasileiro “atingiu as infraestruturas dos transportes, através dos Planos de Viação,
especialmente rodoviários, com o Plano Rodoviário do Nordeste, de 1931, prevendo a
construção de várias rodovias”144. Durante esse período foram feitos vários planos entre eles:
Plano Rodoviário de Departamento Nacional de Estradas e Rodagem de 1937, Plano
Rodoviário Nacional de 1944. No final da década de 1930145 teve início no Brasil “um
140
CERTEAU, op. cit., 2003, p. 196-197.
141
NUNES, op. cit., 1996, p.98.
142
POLLAK, op. cit., 1992, p.201.
143
FONTINELES, op. cit., 2009, p. 153.
144
SILVERIO, Márcio Rogério. A Importância Geoeconômica das Estradas de Ferro no Brasil. 2003. 454f.
Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Estadual Paulista. Presidente Prudente, São Paulo 2003, p. 108.
145
No Brasil a opção rodoviária tem início na década de 1930, no governo do presidente Washington Luis, sua
consolidação se deu na década de 1950 no governo do Juscelino Kubistchek. Cf. MARCIEL JÚNIOR.
Requalificação de ativo público em obsolescência tecnológica: a ferrovia tronco centro de Pernambuco. Rio de
Janeiro 2012. 188fls. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) Fundação Getúlio Vargas, 2012.
63
São as seduções do moderno que fazem com que na década de 1920, Washington
Luís se manifestasse a favor do rodoviarismo, em detrimento do transporte ferroviário. As
empresas automobilísticas começam a se instalar no Brasil no início do século XX a investir
em propagandas estimulando o desejo das pessoas em possuir um carro. “Os produtores e
“criadores”, autênticos ou não, o sabem. Estimulados ou estimulantes, eles agem em
consequência. Sob esse ângulo, imprensa e jornalismo, empresários, publicitários, críticos”
formam um vasto aparelho de procriar o “moderno”, de capturá-lo mal nascido, de difundi-lo,
de consumi-lo”148. Para tanto, os automóveis não precisavam de ferrovias e sim de rodovias.
No Brasil, “a partir de 1926 foram elaborados os primeiros planos rodoviários e em
1927 foi criado o Fundo Especial para a Construção e Conservação de Estradas de
Rodagem”149. Eugênia Vargas Garcia chama atenção para as entidades brasileiras que
contribuíram para o automobilismo no país.
146
PAULA, Dilma Andrade de. 154 anos de ferrovias no Brasil: para onde caminha esse trem? Revista de
História, Goiânia, v. 13, n. 1, p. 45-69, jan./jun. 2008.
147
PAULA, Dilma Andrade de. Fim de Linha: a extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974.
2000. 356f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000, p. 67.
148
LEFEBVRE, op. cit., 1969, p.218.
149
PAULA, op. cit., 2000, p. 125.
64
Nesse período, o Piauí estava começando a construir sua ferrovia, ou seja, quando o
Brasil já estava entrando numa nova era de transportes. Quando concluída, o Piauí já tinha
aderido ao plano nacional e estava envolvido na construção das rodovias estaduais. O Piauí
teve seu Plano Rodoviário151 elaborado durante o governo de Chagas Rodrigues 152 (1959-
1962), que era um projeto daquilo que iria ser construído no estado no que diz respeito a
rodovias e ferrovias no quadriênio de 1960-1964. Para a elaboração do plano o governo partiu
do diagnóstico segundo o qual a falta de transporte terrestre era um dos principais problemas
que assolavam o Piauí, comprometendo as “condições mínimas para sua vida econômica,
política e cultural” e elegia a “rodovia como a via de transporte mais apta para promover o
progresso em geral de uma região e também de implantação mais rápida e econômica”153.
As fontes pesquisadas, dentre elas o Almanaque da Parnaíba, apontam que desde a
década de 1940 os problemas das falta de estradas no Piauí eram sentidos e continuavam
fazendo parte dos discursos dos piauienses. Na edição de 1949, foi publicada uma matéria
intitulada “O Piauí precisa de estradas”. Nessa ocasião os comerciantes defendiam que “a
solução do problema econômico do Estado do Piauí, repousa, em grande parte, na construção
de estradas. Se não houver estradas, não haverá progresso”154, ou seja, apresentavam as
estradas como vital para o progresso, assim como o sangue e vital para a vida de uma pessoa.
Eram taxativos em afirmar que: sem estradas, sem progresso. Afirmavam ainda que se tratava
de um “dilema com sentido universal” onde “ninguém pode contestá-lo”.
150
GARCIA, Eugênio Vargas. Estados Unidos e Grã- Bretanha no Brasil: transposição do poder no entreguerras.
Contexto Internacional. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, vol. 24, p.49, janeiro/junho de 2002.
151
PLANO Rodoviário para o Estado do Piauí. Teresina. Estado do Piauí, ano 23, n. 217, p.03, 14 de fev. de
1960.
152
Francisco das Chagas Caldas Rodriguês, nascido em Parnaíba, Estado do Piauí em 1922. Bacharel em Direito.
Deputado Federal (1951-1955), reelegendo-se (1955-1959). Nas eleições de 1958 elegeu-se simultaneamente em
Deputado Federal e Governador do Estado, optando pela chefia do Executivo Estadual. Assumiu o governo em
31-01-1959. Renunciou ao cargo de governador em 06-07-1962.
153
Ibid., p.03, 14 de fev. de 1960.
154
O PIAUÍ Precisa de Estradas. Almanaque da Parnaíba, p.255, 1949.
65
155
O PIAUÍ Precisa de Estradas. Almanaque da Parnaíba, p.255, 1949.
66
156
FONTINELES, op. cit., 2009, p.143.
157
PLANO, op. cit., p.03, 14 de fev. de 1960.
158
Ibid., p.03, 14 de fev. de 1960.
159
Ibid., p.03, 14 de fev. de 1960.
160
As expressões “século da locomotiva” e “século do automóvel” foram propostas pela historiadora Cláudia
Fontineles. Cf. FONTINELES, Cláudia Cristina da Silva. O Recinto do Elogio e da Crítica: maneiras de durar de
Alberto Silva na memória e na história do Piauí. 2009. 374 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2009, p. 142.
67
Sobre essa perspectiva da mudança de um novo projeto para o Brasil, com a euforia
do desenvolvimento e do progresso que toma conta do país e se manifesta através das ações
de seus governantes buscando com isso a “modernização” do estado. No entanto, “é
importante também notar que a própria ideia de modernidade em si provoca diferentes
interpretações, sendo usada em diferentes temporalidades e manifestações históricas, necessita
também ser situada no tempo”161. O tempo o qual estamos nos referindo é a segunda metade
do século XX, onde a ideia de modernização era diferente daquela defendida no início do
mesmo século, onde as condições históricas eram diferentes das vividas no período
pesquisado.
A partir da década de 1950, com a criação da Rede Ferroviária Federal S/A os
caminhos de ferro no Brasil começaram a entrar em franco declínio acelerado pelos projetos
dos presidentes militares que continuaram promovendo o rodoviarismo brasileiro. Na década
de 1960, com o projeto para a desativação de ramais e ferrovias sobre a alegação de
deficitário e tem início no Piauí uma luta pela manutenção da estrada de ferro e o desespero
de ferroviários mediante ao “fantasma” do desemprego a partir da década de 1960. “A
implementação do desmonte aconteceu com maior ênfase após 1964, com a ditadura militar,
quando as ferrovias já estavam muito desgastadas, com a fuga progressiva de passageiros e
demais usuários. Com a força do arbítrio quaisquer “vozes” discordantes eram sufocadas”.162.
Depois de um período de incerteza e insegurança vivido não apenas pelos
ferroviários piauienses, mas por todos que defendiam a permanência da Estrada de Ferro
Central do Piauí, em 11 de fevereiro de 1976, o jornal Folha do Litoral publicou notícia cujo
título é “Está Salva a nossa estrada de Ferro” e prossegue dizendo:
161
Ibid., p. 147.
162
PAULA, op. cit., 2004, p.55.
68
O título da reportagem era sugestivo, se algo precisa ser salvo é porque estava
passando por uma situação difícil, no caso da ferrovia, pelo título também fica claro o temor
entre os piauienses, em particular os parnaibanos, uma vez que grande parte dos trabalhadores
da estrada de ferro eram parnaibanos, foi em Parnaíba que tudo começou, onde foi inaugurado
o primeiro trecho da estrada, foram os comerciantes parnaibanos os grandes idealizadores do
transporte ferroviário no Piauí. Assim, a eminência da desativação da ferrovia era motivo de
preocupação para os parnaibanos, representava o fim de um sonho, isso sem contar que os
parnaibanos ainda alimentavam o desejo de ver construído o porto de Luís Correia e a
desativação distanciaria cada vez mais essa construção.
Durante a Ditadura Civil-Militar164, a visita do Ministro dos Transportes, Coronel
Mário Andreazza, ao Piauí fez com que seus habitantes acreditassem que sua ferrovia seria
“salva”, receberia as melhorias de que estava precisando para permanecer em atividade, no
entanto, o que o Ministro falou sobre as melhorias que seriam realizadas não se concretizou
como podemos perceber na notícia a seguir:
Quando dessa visita ficou acertado que iriamos receber novas locomotivas,
bem assim gôndolas e etc. Em resumo: a Estrada de Ferro Central do Piauí
seria reequipada para fazer o transporte dos produtos que seriam
embaraçados no porto que está sendo construído em Luís Correia. Acontece,
porém que, até o momento em que fazemos este registro não tomamos
conhecimento de que as providências de reaparelhamento da estrada tenham
sido iniciadas. Sabemos dos bons propósitos do Coronel Stanley Fortes
Baptista para com a ferrovia piauiense e, fazemos-lhe um apelo para que
acelere os trabalhos de recuperação de nossa via férrea. Apelamos também
aos parnaibanos Ministro Reis Veloso, chefe de Secretária do Planejamento
do Governo Federal, Engº Alberto Silva, presidente da EBTU, Deputado
Pinheiro Machado 3º Secretário da Câmara Federal e tantos outros
piauienses, para que entrem nesta luta em prol daquilo que muito significa
para o nosso desenvolvimento, principalmente para o setor econômico do
Estado, que é a recuperação da Estrada de Ferro Central do Piauí.165.
163
ESTÁ salva nossa Estrada de Ferro. Folha do Litoral, Parnaíba, ano 16, nº 1357, p.06, 21 de fev. de 1976.
164
Sobre a Ditadura Civil-Militar no Brasil, Cf. FERREIRA, Jorge. “O governo Goulart e o golpe civil-militar
de 1964”. In: DELGADO, Lucília e; ______. (Orgs). O Brasil Republicano: o tempo da experiência democrática
– da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. v.3.
165
FERROVIA. Folha do Litoral, Parnaíba, ano 16, nº 1382, p.01, quarta-feira 26 de maio de 1976.
69
166
LEÃO, Batista. Adeus central do Piauí. Almanaque da Parnaíba. 60ª ed. Parnaíba: COMEPI, p.78, 1985.
167
A RÁDIO Educadora entrevistou engenheiros da RFFSA. Folha do Litoral, Parnaíba, ano 16, nº 1382, p.04,
quarta-feira 13 de nov. de 1976.
70
3 PARNAÍBA E O TREM
A cidade é uma realização humana, um artefato, e como tal transforma-se, muda sua
paisagem de acordo com seus idealizadores. As mudanças alteram o cotidiano, a paisagem e
as formas de apropriação dos espaços. As idealizações são frutos de sonhos e desejos que se
entrelaçam e dão formas a construção de prédios públicos, praças, bairros, avenidas, códigos
de posturas que normatizam as condutas e regras na cidade. Tudo isso salta aos olhos de um
observador atento ao fazer uma leitura da cidade. Assim como um livro é possível ler a
cidade, pois:
Pela proposição a cidade ao ser apresentada como escrita pode ser lida e interpretada.
Para tanto, a cidade precisa ser vista como as letras do alfabeto que juntas ganham
significados e sentidos. Ao fazermos uma leitura sobre a cidade de Parnaíba identificamos que
durante a primeira metade do século XX ocupou a posição de principal centro econômico do
estado do Piauí. Essa posição proporcionou à elite parnaibana assimilarem os gostos e as
modas dos centros que mantinham contato adotando um modelo arquitetônico em voga na
Europa nas construções de suas casas, praças e demais logradouros públicos.
Toda essa pujança comercial e o momento vivido pela cidade com as construções de
casas, escolas, estações ferroviárias, reformas de praças, pavimentações de ruas e bairros no
na primeira metade do século XX, atraiu em grande número de pessoas das cidades vizinhas e
168
ROLNIK, Raquel. O que é cidade. São Paulo: Brasiliense, 1998, p.09.
71
até mesmo de outros estados em busca de trabalho e melhores condições de vida em Parnaíba.
Assim, a cidade-imã atraiu muitas pessoas fazendo com que sua população fosse uma das
maiores do estado na primeira metade do século XX.
No entanto, os anos que compreendem os anos 1960 a 1980 são apresentados pelos
historiadores169 como o período em que sofreu declínio na sua economia, onde a população
sofreu com o desemprego, provocada pelo fechamento de casas comerciais como a Casa
Inglesa, indústrias como a Moraes S.A e a Fábrica Cortez, bancos como o Banco da Parnaíba,
a desativação da Estrada de Ferro Central do Piauí. Além do fim dessas empresas, as
representações comerciais existentes em Parnaíba também mudaram de endereço deixando a
cidade.
Na década de 1980 o parnaibano Carlos Araken ao se referir à cidade em seu livro de
memórias, “Estórias de uma cidade muito amada”, onde faz um registro histórico dos locais e
costumes da sociedade parnaibana das décadas de 30 a 50, diz que: “parece mentira, porém,
nas décadas de 30, 40 e 50, Parnaíba era um ponto no mapa, com maior apelo que nossa
própria capital. Parnaíba era o centro comercial exportador e importador do Estado”170.
O pesquisador Iweltmam Mendes concordando com Carlos Araken afirma que:
“nesse mesmo espaço de tempo (1951-1970), Parnaíba conheceu glórias e tristezas,
progressos e derrotas econômicas”171, que acarretou problemas para a cidade, pois vai passar
por crescimento populacional e falta de estrutura para receber e conviver com os problemas
que se apresentavam. A população da cidade cresceu desordenadamente e faltou emprego,
moradia e condições adequadas de saneamento básico. A falta de estrutura, o crescimento
populacional e o desemprego se constituirá como um desafio que os governantes parnaibanos
terão que enfrentar durante as décadas finais do século XX.
Para Alcides Nascimento “pensar a cidade exige vê-la ou almejá-la como um espaço
dinâmico, como locus da criatividade e das contradições”172. Nesse momento pensamos nas
contradições vividas pela cidade de Parnaíba no século XX. Ao lançarmos nosso olhar para
169
REGO, Junia Motta Antonaccio Napoleão do. Dos Sertões aos Mares: história do comércio e dos
comerciantes de Parnaíba (1700-1950). 2010. 305 fls. Doutorado (História Social) - Universidade Federal
Fluminense, Rio de Janeiro, 2010. MASCARENHAS, Fabio Nadson Bezerra. Inovadores Parnaibanos: a
produção do jornal Inovação em Parnaíba de 1977 a 1982. 2009. 119 f. Dissertação (Mestrado em História do
Brasil) - Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2009; MORAES, Erasmo Carlos Amorim. Uma História das
Beiras e nas Beiras: Parnaíba, a cidade, o rio e a prostituição (1940-1960). Parnaíba: Sieart, 2013; MELO,
Neuza Brito de Arêa Leão. O Ecletismo Parnaíbano: hibridismo e tradução cultural na paisagem da cidade na
primeira metade do século XX. EDUFPI, Teresina, 2004.
170
ARAKEN, Carlos. Estórias de uma cidade muito amada. [s/d], p.36
171
MENDES, Iweltman. Associação Comercial de Parnaíba: lutas e conquistas. Teresina: EDUFPI, 1994, p. 54.
172
NASCIMENTO, op. cit., 2002, p. 135.
72
essa cidade no final do século XX nos vem à mente Clarisse173descrita por Kublai Khan como
uma cidade gloriosa, que tem uma história atribulada. Por diversas vezes decaiu e floresceu,
mantendo sempre a primeira Clarisse como inigualável modelo de todos os esplendores que
comparada ao atual estado da cidade não deixa de arrancar suspiros a cada giro das estrelas.
Assim como Clarisse, a cidade de Parnaíba entre os anos do recorte desta pesquisa,
estava passando por momentos de desmoronamento, no entanto, esse desmoronamento não
veio com deslizamento de terras e sim com as dificuldades econômicas que apontaremos a
seguir. Os habitantes de Parnaíba precisavam aprender a reaproveitar o que tinha do seu
“passado glorioso”. A cidade precisava entrar nos trilhos novamente para seguir adiante.
No caso dela, o grande desafio enfrentado por seus governantes foi encontrar um
novo caminho para o progresso e o desenvolvimento da cidade. O enfraquecimento comercial
da região foi decorrência do declínio das exportações e o fim do comércio mantido com países
europeus e com outros estados brasileiros. Muitas firmas e representações comerciais
fecharam seus estabelecimentos em Parnaíba entre as décadas de 1960 a 1980.
173
CALVINO, op. cit., 2008, p.98.
174
MENDES, op. cit., 1994, p. 54-55.
73
Assim, a cidade foi pouco a pouco perdendo sua condição de maior empório
comercial do estado. Posição esta, ocupada pela capital, Teresina, e cidades como Picos e
Floriano que com a política rodoviária e as mudanças econômicas e os projetos dos governos
militares também passam a ocupar lugares de destaque na economia piauiense. As
reclamações foram constantes entre os habitantes sobre suas perdas, tendo destaque para a
desativação da estrada de ferro;
Coisas estranhas acontecem em Parnaíba. O caso da Estrada de Ferro é o
mais recente desses casos enigmáticos. A população fica mais uma vez, sem
esclarecimentos, sem o mínimo de informação em relação a essa ocorrência
negativa para os parnaibanos.
Aqui, enquanto uns constroem outros procuram destruir. Como ficará
funcionando nosso porto de mar sem linha férrea, sem vagões para
transportar o carregamento dos navios.
Realmente no Piauí de tudo se vê. Um Estado subdesenvolvido onde as
lideranças políticas deveriam deixar a politicagem e olhar mais pela
economia, pelo sofrimento da população178.
177
MASCARENHAS, op. cit., 2009, p. 66.
178
COSTA, Reginaldo. Observe bem: brasileiro! Inovação, Parnaíba, ano I, nº 03, p.04, jan. 1978.
75
novas construções implicava a existência de um trabalho organizado, o que por sua vez
estabelecia a necessidade de alguma forma de normalização e regulação internas”179.
Em razão da atividade comercial e marítima, Parnaíba possuía e ainda possui
representatividade e importância econômica entre os municípios que compõem a região Norte
do Estado do Piauí, sendo uma das portas de entrada do estado, atraindo tanto piauienses
quanto maranhenses e cearenses. O desenvolvimento dos novos meios de comunicação,
telégrafo, telefone, os meios de transporte terrestre e marítimo, a imprensa, a aviação, o rádio,
o cinema e as reformas urbanas que aconteceram na cidade na primeira metade do século XX,
intensificaram esse papel de Parnaíba, ocupando lugar de destaque no Norte do Estado. Daí a
necessidade de reformas urbanas, para controlar toda essa massa humana que havia se
dirigido para Parnaíba e ampliar as prestações de serviços urbanos, uma vez que a demanda
era maior, pelo aumento de seus habitantes.
O Instituto de Planejamento e Administração Municipal – IPAM publicou um
“diagnóstico” do município de Parnaíba em 1979 onde mostrou em números o crescimento
populacional entres os anos de 1950 e 1979 e ficou da seguinte forma: (1950 - 49,369 hab.;
1960 - 62,719 hab.; 1970 - 87,864 hab.; 1978 -104,719 hab.)180 atraindo pessoas para seu
espaço urbano à procura de melhores condições de vida e oportunidades na cidade moderna
que tinha sua imagem associada no restante do Nordeste da uma cidade próspera e
acolhedora.
A pesquisadora Emília Rebêlo evidencia que devido ao grande fluxo migratório
ocorrido no Piauí, “a partir de 1970, a cidade de Parnaíba passou a figurar também entre as
urbes mais populosas do país”181. No mesmo período, a população urbana piauiense teve um
crescimento expressivo a partir de 1950, sendo que este crescimento foi mais acentuado no
Norte do Estado182 do Piauí. Para Juçara Wollf, a população urbana brasileira triplicou entre
os anos de 1940 a 1980. Sendo que entre as décadas de “1970 a 1980, a população urbana das
cidades com mais de 20 mil habitantes aumenta de 37.398. 842 para 60.745.403 habitantes,
ou seja, houve um aumento da ordem de 60%”.
O aumento populacional nas cidades brasileiras vai provocar “mudanças e a
ocupação desordenada do espaço citadino no Brasil. [...]. “A partir da década de 1970;
período em que muitas cidades brasileiras triplicaram de tamanho, bem como o número de
179
ROLNIK, op. cit., 2004, p.14.
180
PARNAÍBA: um município piauiense. Secretaria de Planejamento, Teresina, 1979.
181
REBÊLO, Emília Maria de C. Gonçalves. A urbanização no Piauí. Carta Cepro. Teresina v.18, nº 1, p.107,
Janeiro/Junho de 2000.
182
REBÊLO, op. cit., 2000, p. 107.
76
A pesquisadora Lippi Oliveira defende que “a cidade como espaço público, ou seja,
como lugar de comunicação de diferentes grupos sociais, apresenta mutações, já que esses
diferentes grupos sociais estão fazendo apropriações distintas desse espaço”185. Foi com essa
preocupação, disciplinar a ocupação do espaço urbano, que o prefeito parnaibano Lauro
Andrade Correia (1963-1966) colocou em prática o Código de Posturas do Munícipio de
Parnaíba, aprovado pela Lei Municipal nº 270, de 19 de outubro de 1963 como finalidade a
normatização da vida dos cidadãos e o reordenamento do espaço urbano.
O Código de Posturas do Município de Parnaíba foi criado pela Lei nº270, de 19 de
outubro de 1963, composto por 57 páginas editado pela Gráfica Americana de R. Ferraz &
Filho, localizada na Avenida Presidente Getúlio Vargas, 350. O documento apresentado à
sociedade parnaibana em 1963 é composto por uma introdução seguida por homenagens feitas
aos Intendentes e Prefeitos Municipais do Período Republicano (1893-1963) e à Câmara
Municipal de Parnaíba em seguida apresenta as Leis Municipais que regeram a cidade até
1963, apresenta a Lei n. 256, de 07 de setembro de 1963 que institui as Armas Municipais, e
dá outras providências, como o Brasão de Simplício Dias, como símbolo de Parnaíba, bem
como o tamanho, formato e as cores da Bandeira de cidade e os locais de obrigatoriedade de
uso e suas características.
No Brasil, o Código de Posturas Municipais foi um dos principais recursos adotados
pela administração pública no século XIX e continuou sendo usado mesmo no século XX. “O
conteúdo didático desse documento, assim como seu caráter normativo pode ser interpretado
183
WOLLF, Juçara Nair. Escritos sobre a cidade: “As mil portas” da modernização de Chapecó (1960/1970). In:
Dimensões do urbano: múltiplas facetas da cidade. NASCIMENTO, Dorgival do; BITENCOURT, João Batista.
(Orgs.). Chapecó: Argos, 2008, p.170.
184
REZENDE, Antonio Paulo. (Des)encantos modernos: história da cidade do Recife na década de XX. Recife:
FUNDARPE, 1997, p. 24
185
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cidade: história e desafios. (Org.). Rio de janeiro: Editora FGV, 2002, p.09.
77
como uma cartilha dos costumes na cidade, cuja função era orientar o processo civilizador”186.
Essa concepção de um instrumento capaz de guiar o espaço urbano e as formas de
socialização desses espaços remete diretamente ao estudo de Nobert Elias187 onde ele informa
sobre os manuais de etiqueta adotados nas cortes europeias.
O Código de Posturas do Município de Parnaíba era formado por sete títulos
compostos de nove capítulos que instituem as formas de viver e conviver na cidade,
procurando manter a ocupação ordenada do espaço urbano. Essas medidas são justificadas por
Lúcia Lippi Oliveira ao afirmar que
A largura mínima das ruas quer as abertas pela Prefeitura, quer as que o
forem por iniciativa particular, será: a) – de 30 metros, das ruas dominantes
ou avenidas, sendo de 50 metros a Avenida de São Sebastião; b) – de 15
metros, das ruas propriamente ditas; c) – de 22 metros, das ruas situadas no
bairro Nova Parnaíba. Parágrafo único – os prolongamentos das ruas atuais
186
MESQUITA, Otoni Moreira de. La Belle Vitrine: o mito do progresso na refundação da cidade de Manaus
(1980-1990). 2005. 439 f. Tese (Doutorado em História Social) - Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2005, p. 142.
187
ELIAS, Nobert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994, p. 54.
188
OLIVEIRA, Lúcia Lippi. Cidade: história e desafios. (Org.). Rio de janeiro: Editora FGV, 2002, p.10.
189
CÓDIGO de Posturas Municipal de Parnaíba, Parnaíba: Gráfica Americana, 1963, p. 12.
78
Essa preocupação nos faz perceber a cidade “como um artefato embelezado a partir
das imagens idealizadas por seus artistas. O espaço urbano se consolida como realização da
civilização e ganha o caráter de uma obra de arte, passando a significar o lugar da cultura”191.
A prefeitura também se preocupou com a ocupação dos terrenos e o formato dos bairros com
ruas retilíneas e largas para que a cidade não deixasse de ser “moderna”.
Dessa forma a prefeitura planejou o tamanho das ruas, lotes e quadras dando as
medidas para o alinhamento e nivelamento todas as futuras construções, pois a cidade estava
tendo um aumento populacional e precisava controlar e ordenar o formato dos novos bairros.
Os novos bairros que estavam surgindo eram planejados para garantir a funcionalidade da
cidade, com ruas largas e arborizadas, pois o Art. 64 definia a áreas que deveriam ser
destinadas a praças e jardins, na zona urbana, suburbana e rural. Os passeios públicos, ou seja,
as calçadas, também eram regulamentadas, onde o proprietário da casa era obrigado a custear
o meio fio e a construção da sua calçada, seguindo a largura e o nivelamento determinado pela
prefeitura, que determinava ainda o tipo de material que deveria ser usado no meio fio, dentre
eles pedra, concreto e argamassa. Porque para as calçadas o Art. 69 determinava que:
Nas zonas Central e Suburbana os passeios serão construídos, normalmente,
com o declive transversal de 2% e com qualquer dos seguintes materiais:
a) – ladrilho do tipo aprovado pela Prefeitura;
b) – lençol de cimento sobre base de concreto;
c) – lage de cantaria de fôrma regular;
d) – pedra portuguesa em duas cores193.
A prefeitura instituiu multas para o proprietário que não mantivesse seu passeio em
perfeito estado de conservação “de modo a não prejudicar a estética e o asseio da cidade e não
dificultar o trânsito público, sob pena de 10 a 50 % do salário mínimo”194. Era o poder
190
CÓDIGO, op. cit., 1963, p. 12.
191
MESQUITA, op. cit., 2005, p. 106.
192
CÓDIGO, op. cit., 1963, p. 12-13.
193
Ibid., p. 14.
194
Ibid., p. 15.
79
Era uma verdadeira mudança nos hábitos dos novos cidadãos parnaibanos. O
cotidiano da cidade é diferente do cotidiano de quem vive no campo. Esses hábitos trazidos
pelos novos moradores deveriam ser abolidos, as pessoas deveriam aprender boas maneiras e
higiene, passando a usar os locais adequados, como os banheiros, para fazer suas necessidades
fisiológicas e tomar banho, não jogar lixo na rua, não cuspir na rua, além de cuidar da estética
das ruas, não estender roupas, gaiolas com pássaros na porta das casas, tinham que adotar
novas posturas na cidade, não poderiam mais se comportar como se ainda vivessem na zona
rural.
Mudar o comportamento dos cidadãos não era tarefa fácil, as condutas expressas pelo
Código de Posturas adotado pelo Município que deveriam ser cumpridas não apenas pelos
ambulantes, mas por comerciantes, donos de casa comerciais e industriais, regendo os dias e
195
O termo civilização “refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da tecnologia, ao tipo de maneiras,
ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos, às ideias religiosas e aos costumes. Pode se referir ao tipo de
habitações ou a maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada pelo sistema
judiciário ou ao modo como são preparados os alimentos. Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma
história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. p. 23.
196
CÓDIGO, op. cit., 1963, p. 34-35.
80
horários que poderiam funcionar. Até mesmo os barbeiros da cidade tiveram o Art. 211 do
capítulo IV dedicado a eles, estabelecendo que: “os barbeiros e cabelereiros ficam obrigados,
quanto ao serviço: a) usar vestimentas de pano branco, sempre limpa; b) a ter utensílios
limpos e esterilizados diariamente; c) a substituir as toalhas e lavar as mãos depois de cada
operação”197.
Foi intensa a política sanitária adotada em Parnaíba nas décadas de 1960 e 1970, que
teve o Titulo III intitulado: Da política sanitária, composto por quatro capítulos do Código,
intitulados: Da Higiene, da Alimentação, do Comércio de Gêneros Alimentícios; Do
Comércio de carne, Miúdos e Peixes; Magarefes, Peixeiros, Leiteiros e Outros; Da limpeza
Pública. Do asseio dos Logradouros. Da Coleta do Lixo. A lei era rígida e intensa com os
alimentos que deveriam ser vendidos para a população. À Prefeitura coube o papel de
fiscalizar e garantir a qualidade dos produtos que seriam consumidos pelos parnaibanos, bem
como fixar o preço de alguns desses alimentos, bem como a forma de abate como a carne de
gado, por exemplo, que dava todas as normas de como, quando e onde deveria ser abatido o
gado para consumo.
O aumento do número de automóveis na cidade foi uma preocupação expressa pelo
poder público através do Código de Postura instituindo formas de viver e conviver na cidade
com esse meio de transporte, instituído no Título IV – Do Sossego e da Tranquilidade
Pública, que proibia as pessoas de gritar, atirar, buzinar, realizar corridas de automóveis ou
motocicletas, andar em público em completa nudez, tomar banho despido em lugares públicos
e nem chegar à porta de sua casa em trajes íntimos. Proibiu ainda a circulação pela cidade de
doentes mentais e de pedintes de esmolas que só podiam pedir esmolas nos dias estipulados
pela Prefeitura.
Art. 158 – Aquele que conservar sob sua guarda ou em sua casa, qualquer
louco, será obrigado a detê-lo com a necessária segurança e o devido
tratamento, e quando por falta de meios não possa assim contê-lo, dará parte
a Prefeitura para que providencie sobre a sua remoção para um hospital
oficial.
O Código de Posturas foi uma forma encontrada pelo poder público para conservar a
imagem da cidade moderna, obrigando as famílias a manterem dentro de casa os doentes
197
Ibid., p. 43.
198
Ibid., p. 33.
81
mentais, e definindo os dias para que as pessoas pedissem esmolas, quando chegasse um
visitante que não fosse no sábado ele não iria ver os mendigos da cidade, saindo com a
impressão que os parnaibanos não tinham nenhum problema ou sofriam o desemprego e todos
tinham as mesmas condições de vida.
No que diz respeito aos descaminhos ferroviários no Brasil, Vivi Fernandes defende
que “as estradas de ferro começaram a andar pra trás na década de 1960, quando as rodovias
ganharam o país. A imagem do progresso, que era relacionado aos trilhos, passou a ser
associada ao asfalto”199. Assim, a falta de investimento no setor ferroviário dentre outros
problemas enfrentados pelos piauienses foram os mesmos do restante do país, que teve início
com a política de erradicação dos ramais deficitários na década de 1960 e intensificada
durante a Ditadura Civil-Militar que se instalou no Brasil.
No Piauí, os problemas que envolveram a Estrada de Ferro Central do Piauí até sua
desativação foram notícia nos jornais de Teresina e Parnaíba, onde seus cronistas procuravam
os responsáveis pela Rede Ferroviária Federal no Piauí para pedir explicações sobre os
problemas enfrentados pelos passageiros do transporte ferroviário. Jornais teresinenses como
O Dia, Jornal da Manhã, Estado do Piauí publicaram matérias mostrando o estado em que se
encontravam os trens e como o serviço era oferecido para a população na eminência de sua
desativação, os anos finais da década de 1970 e início de 1980.
Depois que seus trilhos foram estendidos até Teresina na década de 1960, a ferrovia
piauiense mais uma vez perdeu sua autonomia e foi incorporada a Estrada de Ferro São Luís-
Teresina. Seus funcionários já recebiam ordens do Maranhão, o Estado que passou a dominar
o transporte ferroviário no Piauí. As notícias publicadas nos jornais piauienses sobre a estrada
de ferro já não apontavam como símbolo do progresso e promotora do desenvolvimento como
no início do século XX.
Nas décadas de 1970 e 1980 a rodovia já era apontada como a responsável pela
melhoria da economia. O jornal do Piauí em matéria publicada em 08 de abril de 1970
informava que “a programação que está sendo levada e efeito, paulatinamente, pelo
Departamento Nacional de Estradas de Rodagem tem por objetivo a realização de um elenco
de rodovias que produzirão imediatos resultados na economia do Piauí”200.
199
LIMA,Vivi Fernandes de. Trem Passageiro. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 5, nº 53, p.16-
19, fev. de 2010.
200
PIAUÍ - Portos e vias navegáveis. Jornal do Piauí, Teresina, ano XIX, nº 3034, p.03, 08 de abril de 1970.
82
201
LIBÓRIO, J. de Souza. O trem de ferro – sua história tem poesia. Estado do Piauí, Teresina, ano XLVI, nº
1.644, p.03, 03 de março de 1974.
83
como meta na sua plataforma de governo, as rodovias continuaram a ser a “menina dos olhos”
dos governos militares como o foram de governantes anteriores e as ferrovias continuaram em
segundo plano e depois fora do plano.
Em 05 de março de 1982 o jornal O Dia publicou uma matéria informando quando o
transporte ferroviário, no Piauí, voltaria a ter prioridade. Intitulada “Transporte prioritário”, o
jornal afirmava que “as ferrovias terão prioridade na política de transporte piauiense tão logo
sejam concluídas as obras do ancoradouro de porto de Luís Correia, que vai oferecer
condições de acesso a navios de grandes calados, animando a economia local”202. Aqui a
ferrovia ressurge atrelada à construção do porto de Luís Correia, onde “a ferrovia, com efeito,
busca uma melhoria oportuna para o funcionamento do porto, conforme exposição de técnicos
da Rede Ferroviária Federal que observam nela o indispensável para circulação de nossas
riquezas”.
Na mesma notícia, o cronista do jornal O Dia afirmou que a “deficiência de nosso
sistema ferroviário tem reduzido a circulação de mercadorias, especialmente gêneros
alimentícios”, informa também que “para o caboclo, a instabilidade do trem, frustra suas
esperanças comerciais que também não são compensadas pelo transporte rodoviário, hoje com
preços de fretes que impedem os deslocamentos dos produtos resultantes das safras
agrícolas”.
Com base nas fontes pesquisadas podemos apontar que os produtores rurais, os
homens da roça, assim como outros piauienses foram prejudicados, uma vez que dependiam
do trem para transportar seus produtos: arroz, feijão, milho, farinha, goma. O trem é lembrado
pelos piauienses como um transporte seguro e barato como já foi mencionado antes. No
entanto, esses pequenos produtores e os passageiros que usavam o trem de Parnaíba para
Teresina transportando seus produtos agrícolas não tinha representatividade para a Rede
Ferroviária Federal. Podemos perceber essa falta de importância quando o jornal informa que
o “transporte ferroviário de carga, no Piauí, se dirige especialmente para ferrovia que liga
Teresina a Fortaleza, aonde os vagões chegam a servir as populações que residem às margens
da estrada de ferro, circulando mercadorias principalmente das comunidades produtoras de
frutas”203. Já o trecho da ferrovia onde “os vagões que se dirigem de Teresina para Parnaíba e
vice-versa, constantemente estão vazios, primeiro porque faltou o que embarcar, e segundo
202
TRANSPORTE prioritário. O Dia, Teresina, ano XXXI, nº 7.789, p.02, 05 de março de 1982.
203
Ibid., p.02, 05 de março de 1982.
84
porque a deficiência do setor ferroviário não oferece margem de confiança para os que
necessitam do transporte via férrea”204.
Ao passo que afirma que os trens cargueiros que fazem o percurso entre Parnaíba e
Teresina sempre circulam vazios, aponta duas explicações: primeiro a falta de produtos para o
embarque, segundo a deficiência desse meio de transporte, que não oferece confiança ao
produtor para usar o trem. Podemos inferir o quanto a deficiência apontada pelos jornais da
época estavam afetando a credibilidade nesse meio de transporte. Mesmo existindo o que
transportar, os produtores, pela falta de credibilidade no trem, já optavam pelo caminhão.
Assim, o trecho Parnaíba-Teresina estava bastante prejudicado pela falta de investimentos no
setor ferroviário.
Isso fica claro quando no mesmo ano o mesmo jornal publica uma notícia
informando que a Rede Ferroviária Federal anunciava melhorias para a estrada de ferro. “Os
projetos de melhorias das estradas de ferro estão sendo elaborados em todo o País e o Piauí
será incluído nesse programa, segundo Marcos Antônio, salientando que os recursos para a
reforma virão do Ministério dos Transportes”205. Marcos Antônio era o engenheiro da Rede
Ferroviária Federal que ficava no Piauí. O curioso dessa notícia é que as melhorias não eram
para a estrada toda, “somente a estrada Teresina/São Luís está incluída no programa de
melhorias das estradas de ferro da RFFSA. Sobre a estrada Teresina/Parnaíba ele garantiu que
não existe nenhum projeto para ela”.
Assim, com a falta de investimentos para melhorar o trecho ferroviário que ligava o
litoral piauiense ao interior do Estado, os moradores da região ficavam sem opção, tendo que
usar o ônibus e o caminhão como meios de transporte para carga e passageiros, com
passagens caras e um serviço que também não oferecia a qualidade desejada. “A passagem
para Parnaíba num trem de segunda categoria, que é mais utilizado, custa 450 cruzeiros, ao
passo que o ônibus cobra 1.300 cruzeiros numa passagem”206. A diferença de valores era
exorbitante, o valor de uma passagem de ônibus dava para comprar duas passagens de trem e
sobrava dinheiro.
As reformas anunciadas pelo jornal não foram realizadas e a situação do transporte
ferroviário no Piauí, especialmente o trecho que ligava Parnaíba a Teresina a situação, só
piorava. Foram comuns as paralizações, atrasos, viagens desmarcadas, trens que quebravam
no meio do caminho deixando os passageiros aflitos pela espera de “socorro”, aflição sofrida
204
Ibid., p.02, 05 de março de 1982.
205
RFFSA anuncia melhoria para estrada de ferro. O Dia, Teresina, ano XVIII, nº 7111, p.09, 09 de nov. de
1979.
206
TRENS param e RFFSE não diz motivo. Jornal da Manhã, Teresina, ano III, nº 704, p.05, sexta-feira, 27 de
agosto de 1982.
85
pelos ferroviários pela eminência da desativação da estrada de ferro. Quando procurado pelos
jornalistas para dar explicações sobre os boatos que circulavam sobre a desativação Rede
Ferroviária Federal por meio de representantes no Piauí, estes negavam as informações.
207
RFFSA mantem suas linhas normalmente entre o Piauí e o Ceará. O Dia, Teresina, ano XXXI, nº 8.116, p.07,
22/23 de agosto de 1982.
208
Ibid., p.07, 22/23 de agosto de 1982.
209
COSTA, Joaquim, natural de Piripiri-PI, nasceu em 12 de janeiro de 1915. Começo a trabalhar na Estrada de
Ferro Central do Piauí em 20 de junho de 1947 como Conservador de Linha e foi aposentado em 30 de
novembro de 1972 pela Rede Ferroviária Federal como Agente Especial da Estação. Entrevista concedida a
Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, em 16 de novembro de 2013.
86
medo de perder o emprego”210. A perda do emprego era o motivo para o medo sentido pelos
funcionários da estrada.
Já outro funcionário da Rede Ferroviária Federal, chefe de oficinas Dorgival Mendes
Rodrigues tinha opinião contrária a do engenheiro e informou que “diariamente observa-se
muitas pessoas comprando passagens não só para aquelas cidades, mas para todas aquelas
onde há uma estação mantida pela Rede. As passagens são baratas, considerando-se os preços
cobrados por outros sistemas de transportes”211. Dorgival não negava que o valor da passagem
era barato comparado a outros meios de transportes, mas negava o fato de que houvesse
poucas pessoas que andavam de trem.
Conforme disse, para a capital alencarina sempre viajam mais pessoas e ele
estimou em 200, o número de passageiros que viajam pelo “Sonho Azul”,
que há três categorias distintas: vagões com ar condicionado que custam 1
mil 660; 1ª classe ao preço de 1 mil 160 e a de 2ª, com o passageiros
pagando apenas Cr$ 870.
O mixto que faz linha para Parnaíba, custa mais barato, havendo no mesmo
duas categorias: a de primeira que custa Cr$ 600 enquanto que paga-se pela
segunda Cr$ 450, e de acordo com Dorival, de segunda a sexta-feira,
aproximadamente 150 pessoas utilizam-se desse sistema de viajem212.
Pelo relato podemos perceber que o trem que fazia horário para Fortaleza oferecia
conforto aos seus passageiros como: ar condicionado, diferente do oferecido dos trens que
serviam os piauienses que quisessem viajar de Teresina para Parnaíba, por exemplo, que além
de não oferecerem o mesmo conforto tinham o serviço constantemente paralisado
prejudicando a região norte do estado. Segundo o cronista do Jornal da Manhã “além de
Parnaíba, os trens das linhas prejudicadas atendem aos municípios de Altos, Campo Maior,
Capitão de Campos, Piripiri, Piracuruca, Cocal, na mesma região, atendendo, sobretudo, às
famílias de baixa renda, que não tem condições de pagar passagens de ônibus”213.
A falta de investimento em melhorias para o trecho ferroviário que ligava Parnaíba-
Teresina era acompanhado pela diminuição na oferta de trens de cargas e de passageiros
chegando ao ponto de ter apenas um único trem percorrendo a linha.
O único trem que segundo decisão da diretoria da RFFSA, em São Luís, fará
a partir de agora linha para Parnaíba, voltou a funcionar ontem, partindo de
210
BARROS, Miguel Marques, natural de Bom Princípio-PI, nasceu em 20 de junho de 1936. Começou a
Trabalhar na Estrada de Ferro Central do Piauí em 09 de setembro de 1955 como pedreiro na construção da vila
operária e foi aposentado como Pintor na década de 1980 pela Rede Ferroviária Federal. Entrevista concedida a
Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 18 de novembro de 2013.
211
RFFSA mantem suas linhas normalmente entre o Piauí e o Ceará. O Dia, Teresina, ano XXXI, nº 8.116, p.07,
22/23 de agosto de 1982.
212
Ibid., p.07, 22/23 de agosto de 1982.
213
TRENS param e RFFSA não diz motivo. Jornal da Manhã, Teresina, ano III, nº 704, p.05, sexta-feira, 27 de
agosto de 1982.
87
A notícia informa que o trem “voltou a funcionar ontem” essa expressão demostra
claramente a interrupção do serviço, informa ainda sobre os passageiros dizendo que era
“reduzido o número de passageiros”, com tantas interrupções no serviço os passageiros
acabavam perdendo a confiança na empresa que não zelava pelos seus usuários. Como confiar
num transporte que estava constantemente mudando os dias e os horários de viagem. Os
passageiros não estavam abandonando o trem. No entanto, as condições oferecidas pela
empresa não eram das melhores.
Para o engenheiro Marco Antônio, o fato de a rodovia ser paralela à ferrovia fazia
com que as pessoas preferissem o ônibus como meio de transporte, não avaliando os
problemas apresentados pela empresa da qual ele era funcionário e o tratamento dado aos seus
clientes. Outra explicação era a quantidade de tempo que se levava numa viajem de trem em
relação ao ônibus, também “salientou Marco Antônio que o conforto é o mesmo nos dois
transportes, sendo que o trem causa um pouco mais de fadiga”.
As interrupções na oferta do transporte ferroviária para Parnaíba não foram
solucionadas e os jornais continuaram noticiando as interrupções que passaram a acontecer
com mais frequência. “A segunda interrupção no tráfego de trens de Teresina para Parnaíba e
vice-versa, começou ontem a menos de quinze dias da primeira, sem perspectivas claras de
normalização e também sem nenhuma explicação sobre os motivos da medida”215. De acordo
com o jornal, os funcionários, quando procurados, não sabiam dar as informações sobre o
problema.
214
TRENS param e RFFSA não diz motivo. Jornal da Manhã, Teresina, ano III, nº 704, p.05, sexta-feira, 27 de
agosto de 1982.
215
Ibid., p.05, sexta-feira, 27 de agosto de 1982.
88
O jornalista informa ainda que “na primeira paralisação de linha há poucos dias,
funcionários da Rede Ferroviária Federal- RFFSA, disseram que a causa do problema era
defeito registrado nas locomotivas, na interrupção iniciada ontem não foi dado nenhum
motivo e os servidores do setor de transporte”. O interessante é que os responsáveis pela
Rede Ferroviária Federal não admitiam que a falta de passageiros se desse em virtude dos
problemas apresentados setor ferroviário. Sempre invertiam a situação dizendo que os
problemas se davam pela falta de passageiros que trocaram o trem pelo ônibus.
Segundo a notícia, mesmo os funcionários que estavam na “estação ferroviária na sua
maioria, estão completamente desinformados sobre o assunto, assim como os passageiros da
região prejudicados, que receberam a notícia com desagrado”. Quando perguntado se a causa
da paralisação era a falta de passageiros, o funcionário afirmou que “o motivo da Rede sustar
as viagens para o litoral não deve ter sido causado por prejuízos econômicos, pois considera
normal o número de passageiros – entre 80 e 120 em cada viagem, tanto de ida quanto de
volta, além de muitas bagagens e cargas”.
As interrupções e paralisações na oferta dos serviços continuaram com mais
frequência, sem melhorias e investimentos até a desativação do trem de passageiros no Piauí,
no trecho entre Parnaíba/Teresina deixando seus passageiros e funcionários entristecidos e
ressentidos, o ressentimento guardado na memória em forma de lembrança. Essas lembranças
demostram a forma como a desativação foi sentida pelos funcionários da ferrovia.
Para o maquinista Waldemar Marciel de Lima que começou a trabalhar na ferrovia
quando era Estrada de Ferro Central do Piauí e viveu as mudanças que passou a estrada de
ferro até sua desativação, ora administrada pela Rede de Viação Cearense ora pela Estrada de
Ferro São Luís-Teresina, portanto, uma das “vozes autorizadas” para falar sobre a
desativação, para ele “a estrada acabou por falta de administração e por causa da política, aí
passaram pra Rede Ferroviária Federal e acabou-se tudo”216.
No que diz respeito à administração da Rede Ferroviária Federal, os entrevistados
avaliam de maneira negativa a administração do Maranhão.
216
LIMA, Waldemar Marciel. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
89
Com base nas fontes pesquisadas identificamos que a Central do Piauí e a cidade de
Parnaíba viveram juntas os dramas de uma época, a ferrovia teve seu período de apogeu entre
as décadas de 1930 a 1940, a cidade viveu seu momento de grande euforia econômica no
mesmo período. Paralelamente, no mesmo período, as duas começam a sofre suas crises
econômicas e financeiras. A partir da década de 1950 a Estrada de Ferro Central do Piauí
passou a fazer parte da Rede Ferroviária Federal S.A., enquanto isso, Parnaíba começou a
sentir os problemas provocados pela diminuição das taxas de exportação e da baixa de preço
dos produtos exportados pelos piauienses, somando – se ao assoreamento sofrido pelo rio
Parnaíba que dificultava o transporte fluvial e a falta de estradas.
No final da década de 1960, pela Resolução da Diretoria da RFFSA nº 151 – A/64 –
de 23. 07. 1964 a então estrada passou a ser um Distrito de Transportes do Piauí, subordinado
a Rede de Viação Cearense permanecendo nessa condição até 1968 218 quando foi incorporada
à Estrada de Ferro São Luís/Teresina. Todas essas mudanças provocavam uma enorme tensão
entre os parnaibanos, principalmente entre os ferroviários que temiam por seus empregos e
pelas mudanças que poderiam acontecer mediante a subordinação da estrada de ferro à Rede
de Viação Cearense.
217
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Nasceu em 30 de agosto de 1942 em Luís Correia- Piauí começou
a trabalhar na Estrada de Ferro Central do Piauí em 19 de novembro de 1962 como Conservador de Linha,
aposentado em 31 de dezembro de 1988 como Mecânico da Rede Ferroviária Federal em Teresina-Piauí.
Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, em 11 de setembro de 2014.
218
REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A. Estrada de Ferro São Luís-Teresina. Distrito de Transporte do Piauí.
São Luís: Serviço de Administração, [s/d].
90
Dadas as medidas adotadas pelo Governo Federal no que diz respeito ao transporte
ferroviário brasileiro, a desativação de ramais considerados deficitários, a insegurança e,
inevitavelmente, o medo de perder o emprego ou ser transferido para trabalhar em outro
Estado foram sensações básicas cotidianas e comuns aos piauienses. Os ferroviários assim
como os demais cidadãos piauienses compartilharam essas sensações, pois no início de 1960
o Piauí era um estado onde as estradas e rodagens eram carroçáveis e o transporte ferroviário
para algumas cidades do norte do Piauí representava o principal, senão o único meio de
transporte para cargas e passageiros.
219
ALVAREZ, J. Rey. O transporte ferroviário no Nordeste do Brasil. Recife, 1962, p. 08.
220
O grupo criado em 1956 para fazer revisão nas sugestões da CMBEU – Comissão Mista Brasil-Estados
Unidos, diagnosticava a situação das ferrovias, expondo um plano de construção das linhas prioritárias, de
reaparelhamento ferroviário e de extinção dos ramais antieconômicos. Cf. PAULA, Dilma Andrade de. Fim de
Linha: a extinção de ramais da Estrada de Ferro Leopoldina, 1955-1974. 2000. 356f. Tese (Doutorado em
História). 356 f. Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2000.
221
ALVAREZ, op. cit., 1962, p.15-16.
91
Com uma notícia intitulada “Central do Piauí – Problema Nosso” o cronista convida
os piauienses para uma campanha pela manutenção da estrada e aponta os problemas que sua
desativação acarretaria para o Estado.
222
CENTRAL do Piauí – O problema é nosso. Estado do Piauí, Teresina, ano XXXIII, nº 348, p.01, 15 de jun.
1961.
92
Avalia, ainda, que a desativação traria colapso econômico para o norte do Estado,
lembrando do sofrimento que traria para as pessoas, pois os ferroviários teriam que ser
transferidos para outros estados para manter seus empregos, uma vez que não teriam como
permanecer trabalhando na ferrovia piauiense e eram funcionários da Rede Ferroviária
Federal S.A. Após apresentar todos essas justificativas, o cronista convida a todos os
piauienses a se unirem por uma causa, que para ele teria que ser vista como “um problema de
todos” e não apenas do norte do Piauí, onde a ferrovia estava instalada.
Foi com entusiasmo que José de Castro Cunha do jornal Estado do Piauí publicou a
notícia sobre a manutenção da Estrada de Ferro Central do Piauí, em 06 de julho de 1961,
intitulada “Vencemos a Batalha”. O jornalista atribuiu a vitória “aos esforços conjuntos” da
imprensa falada e escrita, a atuação política do senador Mendonça Clark que se propôs a
defender a manutenção da ferrovia piauiense como representante do Estado.
223
CUNHA, José de Castro. Vencemos a Batalha. Estado do Piauí, Teresina, ano XXXIII, nº 354, p.02, 06 de
julho 1961.
93
224
CONTIDA a supressão da E. F. Central do Piauí. Estado do Piauí, Teresina, ano XXXIII, nº 353, p.01, 02
de julho de 1961.
225
LUMINOSAS perspectivas. Parnaíba. Estado do Piauí, Teresina, ano XXXIII, nº 358, p.01, 20 de julho de
1961. (grifo nosso).
94
226
ENTREVISTA Deputado Francisco das Chagas Caldas Rodrigues. Inovação, Parnaíba, ano I. nº 14, p.16,
Jan.1979.
95
A partir da década de 1960, a luta pela manutenção da ferrovia foi apenas um dos
dramas vividos pelos piauienses no que diz respeito ao transporte ferroviário. A Estrada de
Ferro Central do Piauí não foi desativada, mas continuou sendo considerada deficitária pelo
governo federal, pois era uma das ferrovias que fazia parte da Rede Ferroviária Federal S. A.
“empresa de economia mista, criada em 1957, vinculada ao Ministério de Viação e Obras
públicas (depois Ministério dos Transportes) e controlada pelo Governo Federal”228.
Pela Resolução da Diretoria da RFFSA nº 151 – A/64 – de 23 de março de 1964 a 31
de agosto de 1968 a Estrada de Ferro Central do Piauí perdeu sua autonomia enquanto
ferrovia e passou a ser Distrito de Transporte do Piauí subordinado a Rede de Viação
Cearense229. A estrada mesmo como distrito mantinha seu nome de Central do Piauí,
administrada pela Rede de Viação Cearense que regularmente enviava seus funcionários à
Parnaíba para supervisionar os trabalhos executados.
227
A. TITO Filho. Revista dos Fatos. O Dia, Teresina, ano XI, nº 889, p.07, 02 de nov. de 1961. (grifo nosso).
228
PAULA, op. cit., 2000, p. 204.
229
REDE FERROVIÁRIA FEDERAL S.A. Estrada de Ferro São Luís-Teresina. Distrito de Transporte do Piauí.
São Luís: Serviço de Administração, [199-].
96
Piauí e desta vez o parnaibano Francisco das Chagas Gomes Teles liderou os
trabalhos230
230
NOTÍCIAS Diversas. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 1, 05 de agosto de 1967.
231
SOPRO de Vitalidade. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 41, p.01, 03 de abril de 1968.
232
ALVAREZ, op. cit., 1962, p.101.
97
sempre ficou apenas na ameaça, mas se concretizou. Quando se recorda das mudanças que
aconteceram na estradada o ferroviário aposentado Miguel Marques Barros se lembra das
dificuldades que passou na empresa “minha vida na estrada foi difícil, morando em Parnaíba e
fui transferido para Teresina, a Maria aqui enfrentando com os nossos filhos”233. O senhor
Miguel foi um dos muitos ferroviários transferidos para Teresina que deixou a família em
Parnaíba.
Além do Senador José Candido Ferraz, o Deputado Federal Fausto Gaioso Castelo
Branco também fez discurso no Congresso Nacional pela autonomia da Estrada de Ferro
Central do Piauí, fato que foi notícia em Parnaíba.
233
BARROS, Miguel marques. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, em 18 de
novembro de 2013.
234
FAUSTO Gaioso. Castelo Branco defende no Congresso autonomia da Estrada de Ferro Central do Piauí.
Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 18, p.01, 02 de dez. de 1967.
235
CARTA aberta ao Dep. Fausto Castelo Branco. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 41, p.03, 12 de junho de
1968.
98
236
O GOVERNADOR e a Central do Piauí. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 36, p.01, 16 de março de 1968.
237
ESTRADA de Ferro Central do Piauí. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 56, p.01, 1968.
99
Ferroviária Federal pedindo que pela autonomia da Central do Piauí e procurando mostrar
para os diretores da Rede Ferroviária Federal os motivos pelos quais se manteria a ferrovia
piauiense, dentre eles expõe a preocupação em garantir o emprego dos colegas.
Iniciava mostrando um pouco da história da ferrovia e sua localização. Enfatiza ser
no litoral piauiense onde segundo ele estava sendo construído o porto. Mostra o estado em
que se encontra a estrada, com “instalações modernas para escritórios e oficinas”. Ressalta as
condições climáticas da cidade e a adaptação dos funcionários à cidade que contribuem para
uma melhor rentabilidade da estrada. Ressalta ainda que em Parnaíba as condições de vida são
melhores do que em Fortaleza, São Luís e Teresina, capitais nordestinas para onde os
funcionários poderiam ser transferidos. E continua:
O ferroviário se coloca como colaborador. Alguém que está querendo evitar gastos
desnecessários e transtornos para os ferroviários piauienses pela transferência para trabalhar
no Maranhão ou mesmo em Teresina. Sugere que a Central do Piauí tenha sua autonomia,
enquanto que as estradas do Ceará e do Maranhão façam parte da Rede Ferroviária Federal e
permaneçam subordinadas a Recife.
Para ele seria uma atitude social e humana manter a autonomia da ferrovia piauiense,
pois traria sossego para os ferroviários que estavam aflitos com as notícias da anexação da
ferrovia, que é classificada como “terrível perspectiva de serem mandados servir os em outra
região”, como São Luís ou Teresina.
238
ESTRADA de Ferro Central do Piauí. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 56, p.01, 02 de junho de 1968.
100
NP: Tem conhecimento Vossa Senhoria quando será feita a ligação com
Teresina e quantos quilômetros de linha ficarão?
A ligação para Teresina, esta prevista para o fim de fevereiro do corrente
ano, totalizando 365 km.
NP: Estando bastantemente preocupados os parnaibanos, poderia Vossa
Senhoria informar se tem fundamento que a antiga E. de F. Central do Piauí
após ligação com Teresina será fundida com a estrada de Ferro São
Luís/Teresina, transformando-se em Estrada de Ferro São Luís/Teresina/Luís
Correia?
A este respeito nenhum dado oficial disponho, entretanto, extra-oficial posso
acrescentar que existem 2 projetos em estudos, um na fusão das duas
ferrovias e passando a chefia para São Luís/Maranhão e um outro, ficando as
duas ferrovias subordinadas a RVC com sede em Fortaleza Ceará.
NP: Sendo assim Parnaíba ficará somente uma Estação de Passageiros?
Provavelmente, pois deixará de ser um Distrito de Operação.
NP: É verdade que andou em Parnaíba uma Comissão para a fusão das
ferrovias?
Esteve na última semana em Parnaíba o Dr. Wilson Oliveira, do DM órgão
subordinado a SGE, da RFFSA em companhia do Dr. Jardial Carvalho, em
serviço de inspeção às oficinas que a RFFSA tem no norte do Brasil – o
resultado dessa inspeção muito ajudará nas conclusões que terá de tomar a
diretoria da RFFSA.
NP: Sendo reconhecido por todos os parnaibanos os relevantes serviços que
Vossa Senhoria tem prestado a esta ferrovia, poderia informar-nos qual
plano encontrado por Vossa Senhoria para recuperação desta ferrovia?
239
FERRAZ FILHO, R. E. FERRO C. do Piauí – Notícia de última hora. Norte do Piauí, Parnaíba, ano II, nº 98,
p.01, 29 de out. de 1968.
101
A notícia da ligação das duas estradas foi manchete no jornal Norte do Piauí que
desejou ver rapidez na ligação do litoral com a Capital. Se a redenção da Central do Piauí e da
cidade de Parnaíba era a construção do Porto como anunciou o engenheiro da Rede
Ferroviária Federal, Manuel Alves da Silva, ambas não seriam salvas pela construção do
Porto.
A crise econômica vivida pelos parnaibanos no período pesquisado deixou a cidade
com muitos desempregados e pessoas famintas, pedindo esmolas pelas ruas. O desemprego
240
NP ENTREVISTA o Engenheiro Manoel Alves da Silva. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 25, p. 01, 20 de
janeiro de 1968.
241
LIGADOS os trilhos da Central do Piauí com a São Luís-Teresina, consequentemente feito a junção das duas
Estradas. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, n. 31, p.01, 24 de fev. de 1968.
102
Essas notícias ilustram bem como viviam as famílias que viviam nos bairros
afastados do centro da cidade entre as décadas de 1960 e 1970: desempregados, em casas de
palha com piso de areia e cozinhando seus alimentos em fogão improvisado. O número de
pedintes aumentava de tal modo que deixaram de usar apenas o sábado para pedir esmolas
como tinha sido determinado pelo Código de Postura do Munícipio244, e a quarta-feira passou
a ser um dia onde as pessoas também saiam às ruas e praças com a mesma finalidade.
A Praça Santo Antônio do Monte foi palco de uma cena cuja causa é o
desemprego, quando um homem desconhecido dava agonia de fome. O
desconhecido foi socorrido por um funcionário da CEM, que prestando
auxilio aquele desconhecido, coletou alguma importância entre os presentes,
após o que ofertou ao infeliz desconhecido. Hoje apareceu este piedoso
funcionário para socorrer aquele pobre homem e amanhã? Pois o dinheiro
coletado deu apenas para comprar um almoço245.
Para o jornalista era alarmante a situação provocada pelo desemprego aos habitantes
da cidade que era evidenciada pelos periódicos locais preocupados com o que essa situação
poderia provocar na cidade. Temiam a prática dos “mais escabrosos atos”, pelos desocupados.
Os cronistas procuravam alertar as autoridades sobre o problema que segundo ele, só crescia a
cada dia.
242
NETO, Madeira. De quem é a Culpa? Norte do Piauí, Parnaíba, ano II, nº 111, p.02, 20 de dez. de 1968.
243
DESEMPREGO em Parnaíba causa fome. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 50, p.04, 12 de maio de 1968.
244
Art. 159 – É proibido o exercício da mendicância, que só poderá ser feito aos sábados, enquanto não houver,
na cidade, um asilo de mendigos. Cf, Código de Posturas do Município de Parnaíba, 1963, p. 33.
245
PALCO da vida parnaibana. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 48, p.01, 05 de maio de 1968.
103
246
ANDRADE, Edyr. Crônica de Bolso. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 48, p.01, 05 de maio de 1968.
104
247
SUPERINTENDENCIA da R.V.C tranquiliza a Família Ferroviária Piauiense. Norte do Piauí, Parnaíba, ano
I, nº 43, p.01, 10 de abril de 1968.
248
Darcy Furtado Mavignier foi Chefe do Distrito Substituto pela portaria n.93-SP de 20 de abril de 1965, foi
responsável pelo Expediente pela portaria 75/SLT, de 14 de fevereiro de 1969.
249
A Companhia de Luz e Força de Parnaíba foi inaugurada em a 08 de dezembro de 1949. O funcionamento da
nova usina não dependeu somente, apenas, da montagem das máquinas: houve necessidade de reforma da rede
geral, instalação de novos transformadores e rede de alta tensão para melhor distribuição da corrente e outros
serviços de ordem técnica. “Para a constituição Cia. Luz e Força de Parnaíba não contribuiu apenas o poder
público municipal, mas todos aqueles que se fizeram acionistas com uma parcela de seus recurso”. Cf.
Companhia de Luz e Força de Parnaíba. A Aljava, Parnaíba, ano XIII, nº 28, p.02, 27 de out. de 1950.
105
[...]
A nossa cidade que no momento está lutando bravamente para trazer até nós
a energia de Paulo Afonso, serviço que depende de muito dinheiro,
mormente, com a mudança completa e radical de toda a sua rede elétrica,
aliás diga se de passagem, muito bem feita e estética, não entrou no campo
deste financiamento, parece que não é Piauí nem Nordeste.
Todavia, o que é importante para nosso desenvolvimento, no setor
energético, é aguardar para breve, logo que tenhamos o potencial elétrico de
Paulo Afonso, que o BNB venha, realmente, na disposição de financiar em
larga escala, o nosso futuro parque industrial.
Assim, Parnaíba tomará novo rumo, caminhando para frente, saindo da
estagnação em que vive, marcando uma fase na renovação, de progresso, de
desenvolvimento e bem estar social. Com Paulo Afonso precisamos
industrializar nossa cidade, aproveitar as riquezas espalhadas pelo nosso
município, dando trabalho a nossos operários, estes pobres homens que hoje
vivem como párias, sem dinheiro e sem conforto250.
250
PARNAÍBA, nem Piauí nem Nordeste? Norte do Piauí, Parnaíba, ano II, nº 106, p.01, 26 de nov. de 1968.
106
251
CORREIA, Francisco de Canindé. Distrito Industrial de Parnaíba. Inovação, Parnaíba, ano 1.n°5, p.04,
mar.1978.
252
CORREIA, Francisco de Canindé. Distrito Industrial em ritmo de tartaruga. Inovação, Parnaíba, ano 2, n°
24, p.11, nov.1979.
107
253
CORREIA, Francisco de Canindé. Distrito Industrial em ritmo de tartaruga. Inovação, Parnaíba, ano 2, n°
24, p. 11, nov.1979.
108
Com a chegada da ferrovia em Parnaíba, surge uma nova categoria de trabalho que
foi o ferroviário. Muitos homens tiveram na ferrovia uma oportunidade de aprender uma
profissão que lhes garantisse uma renda para alimentar a família, que em geral costumavam
ser numerosa na primeira metade do século XX. Como discutimos no primeiro capítulo do
trabalho, a empresa atraiu um grande número de pessoas para Parnaíba e alterou a paisagem
local. Além dos cearenses, chegaram maranhenses e pessoas das cidades vizinhas como
Piripiri, Piracuruca, Luís Correia, dentre outras, para trabalhar nas mais diferentes funções.
No que diz respeito à forma como estava dividida e era administrada a Central do
Piauí de acordo com informações obtidas no Almanaque da Parnaíba de 1939, a ferrovia tinha
o Diretor Engenheiro, o Chefe de Divisão. Internamente era dividida em Três Divisões: a 1 ª
254
LIMA, Waldemar Maciel de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba. 19 de
novembro de 2013.
109
Divisão formada pelo Escritório Central onde ficava o Secretaria, a Chefia de Construção, a
Tesouraria e o Almoxarifado; a 2ª Divisão - Trafego: O Escritório de Expediente e
Locomoção e o Mestre de Oficina e os Agentes. Estes eram responsáveis pelas estações
existentes ao longo da ferrovia; a 3ª Divisão era a chamada Via Permanente255.
Cada divisão tinha um determinado número de funcionários exercendo as mais
diversas funções. A ferrovia era uma empresa que necessitava de muitos funcionários para
existir. Encontramos entre eles: engenheiros, médicos, professoras, pintores, carpinteiros,
ferreiros, torneiros mecânicos, guarda-freios, agentes de estação, conservadores de linha,
foguista, maquinista, eletricista, carpinteiros, dentre outras.
Pela diversidade das atividades a serem exercidas, era grande o número de homens
que pela manhã coloriam de azul as ruas da cidade rumo ao trabalho. Os ferroviários eram
facilmente distinguidos dos demais profissionais por carregarem no corpo as marcas de seu
oficio. Estes usavam uma farda azul que era obrigatória e os demais instrumentos de trabalho
em direção à estação central, onde assinavam seu ponto e se dirigiam para seus locais de
serviços que poderiam ser na oficina, gráfica, posto médico, almoxarifado, escritório,
armazém. Todos com horários definidos para entrar e sair do trabalho.
Além dos que ficavam na cidade, tinha os conservadores de linha que saiam da
estação usando os troles para o trabalho ao longo da linha, como os que podemos observar na
próxima figura onde vemos seis conservadores de linha sobre um pequeno trole, todos
fardados e levando uma garrafa com água para beber durante o serviço. Embaixo do trole tem
uma panela de ferro preta pendurada que era usada por eles para fazer as refeições. Além da
panela tem uma espécie de balde onde levavam os alimentos. Esses objetos foram
mencionados pelos ferroviários ao narrarem seu cotidiano alimentar na beira da linha.
Nas mãos levavam um instrumento que era usado para mover o transporte pelos
trilhos até o seu destino. No Piauí eram chamados pelos colegas de “cassacos” 256. Eram eles
os responsáveis pela manutenção da linha sempre em perfeito estado para que o trem pudesse
fazer o seu percurso com segurança. Um serviço definido por quem realizou como um dos
“mais pesados” dentro da ferrovia. Mas quem eram os ferroviários que exerciam essa função e
como eles conseguiam um emprego na ferrovia? Como era seu cotidiano?
255
Para mais informações sobre as divisões feitas dentro da Estrada de Ferro Central do Piauí os nomes dos
funcionários desse período, Cf. Almanaque da Parnaíba, 1939, p.389-390.
256
Os conservadores de linha no Piauí eram chamados de cassacos. Esse nome é emprestado de uma espécie de
gambá, existente nos estados nordestinos. Encontrado geralmente em lugares do interior, quem conhece o bicho
“cassaco” sabe que ele é sujo e muito fedorento.
110
A resposta para essa pergunta nos foi dada pelos ferroviários aposentados: Luis
Cardoso de Miranda, Orlando Machado Tôrres, Raimundo Nonato Mesquita de Araújo que
começaram a trabalhar na ferrovia exercendo a função de conservadores de linha. No entanto,
o único que permaneceu na função até a aposentadoria foi o senhor Luis Cardoso de Miranda,
os demais em pouco tempo de serviço conseguiram mudar de local de trabalho, ficando na
oficina e na estação central.
O trabalho na ferrovia não era um trabalho fácil, requeria muito esforço e
determinação por parte dos homens para permanecerem firmes no emprego, mas mesmo
sendo um trabalho árduo para alguns, foi importante, pois na ferrovia muitos parnaibanos
aprenderam uma profissão e tiveram condições de criar e alimentar sua família que em muitos
111
casos era formada por um grande número de filhos. Atualmente, guardam na memória as
lembranças do cotidiano e das dificuldades enfrentadas no trabalho.
Sobre a função da memória, Ecléa Bosi defende que ela “não reconstrói o tempo, não
o anula tampouco. Ao fazer cair a barreira que separa o passado do presente, lança uma ponte
entre o mundo dos vivos e o dos mortos, ao qual retorna tudo o que deixou à luz do sol”257.
Partindo desse pressuposto foi que procuramos por meio nas memórias dos ferroviários,
conhecer como era o trabalho e o cotidiano ne construção e manutenção da ferrovia, conhecer
também as relações de trabalho, as formas de contratação e as mudanças que a incorporação
da Estrada de Ferro Central do Piauí à Rede de Viação Cearense e depois a Estrada de Ferro
São Luís-Teresina provocaram na vida dos trabalhadores; seus anseios, frustações, dores e
rancores.
Foi com o uso da história oral, ouvindo os ferroviários, hoje aposentados e vivendo
“com todas as limitações do seu corpo: dedos trêmulos, espinha torta, coração acelerado,
dentes falhos, urina solta, a cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as
lágrimas incoercíveis”258 que procuramos conhecer a trajetória do trabalho na estrada de ferro
e todas as dificuldades enfrentadas pelos homens que ajudaram a construir e manter
funcionando o transporte ferroviário no Piauí, quando a fome, o frio, o medo, a solidão, a
saudade de casa e dos filhos fizeram parte da vida cotidiano dessas pessoas.
Dada a constatação da relevância dos relatos orais para o desenvolvimento das
pesquisas históricas, Paul Thompson frisa que:
A história oral é uma história construída entorno de pessoas. Ela lança a vida
para dentro da própria história e isso alarga seu campo de ação. Admite
heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do
povo. [...] Traz a história para dentro da comunidade e extrai a história de
dentro da comunidade. Ajuda os menos privilegiados, e especialmente os
idosos, a conquistar dignidade e autoconfiança. Propicia o contato – e, pois,
a compreensão – entre classes sociais e entre gerações [...] Ela pode dar um
sentimento de pertencer a determinado lugar e a determinada época [...] a
história oral propõe um desfio aos mitos consagrados da história, ao juízo
autoritário inerente a sua tradição. E oferece os meios para uma
transformação radical do sentido social da história259.
257
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p.89.
258
BOSI, op. cit., 1994, p.39.
259
THOMPSON, op. cit., 1992, p. 44.
112
isso foi interpretado por eles, pois a cada prolongamento dado a ferrovia, os trilhos
transformavam não apenas o espaço físico, recortado pela reta por onde passava o trem, mas
também modificava os hábitos, costumes e o cotidiano dos trabalhadores da estrada. Que
tinham que conviver com deferentes personalidades, dando um novo ritmo ao trabalho e ao
cotidiano.
Entendemos que a memória é carregada por uma imensa carga afetiva, avaliada pelo
narrador como positiva ou não e assim, a rememoração realizada pelos entrevistados deve ser
entendida com ressalvas, pois compreendemos o ato de lembrar como uma construção de
sentidos e significados que não estão isentos de interferências e reelaborações do presente.
O movimento dos trens e das atividades na ferrovia parou nos trilhos, mas continuou
na memória dos ferroviários esperando ser tocada para despertar do seu repouso. Quando nos
aproximamos e perguntamos sobre seu trabalho na ferrovia, estamos tocando em suas
memórias, para buscar conhecer sua vida cotidiana na beira da estrada.
No entanto, para se desenvolver uma pesquisa no campo da história com base nas
memórias, precisamos entender esse conceito e as formas como a memória se articula,
permitindo o conhecimento acerca do objeto estudado. São pessoas recordando suas
experiências de vida e trabalho. Sendo assim, nas linhas que se seguem, procuramos adentrar
o cotidiano de alguns trabalhadores da estrada de ferro – conservadores de linha, pintores,
maquinistas, tipógrafos - procurando conhecer recortes não só da história desses
trabalhadores, mas também suas interpretações, suas expectativas e impressões. Suas
narrativas, dotadas de sentimentos vários, nesse sentido, também são fatos a serem analisados.
Para conhecermos a história dos homens que trabalhavam na construção e na
manutenção da estrada de ferro no Piauí, vamos buscamos nas memórias desses sujeitos o que
viveram pessoalmente, trocando os dormentes quando estes precisavam de reparos,
substituindo um trilho quando impedia a passagem do trem, alimentando a “Maria Fumaça”
com água, fogo e madeira, para que ela pudesse deslizar tranquilamente suas rodas sobre os
trilhos. Estas pessoas, muitas vezes consideradas anônimas ou entendidas como secundárias,
260
BOSI, op. cit., 1994, p.60.
113
atuando nos chamados “bastidores da história”, contribuíram apenas para que o espetáculo
promovido pela partida e a chegada do trem nas estações pudesse acontecer. Elas foram
protagonistas de suas histórias e, ao narrarem, refletem sobre o impacto de suas ações na
história coletiva.
Essas narrativas são viabilizadas pelas recordações, pois:
Dessa forma, precisamos ter claro que as recordações dos narradores, possibilitam
uma aproximação com o cotidiano, sem, contudo esquecer que não se trata de uma
representação exata dele. Trata-se de uma elaboração que eles fazem sobre suas experiências
e não um “retrato” do passado; são lembranças carregadas de subjetividades. Ao falarem de
suas memórias, enquanto trabalhadores da estrada de ferro, eles não falam apenas do
transporte ferroviário no Piauí, de como esse meio de transporte servia à população. Abordam
impressões, fazendo um emparelhamento das experiências de funcionamento, conservação da
estrada e do desenvolvimento tecnológico com o envelhecimento do próprio corpo. Assim,
revelam também suas dores e ressentimentos262 com as marcas da história em suas vivências.
O trabalho de construção e manutenção das ferrovias marcou o corpo, a experiência e
a memória dos homens que o realizaram. Suas narrativas revelam as impressões sobre o seu
cotidiano. Para Agnes Heller, “a vida cotidiana é a vida do homem todo. Todos a vivem, sem
nenhuma exceção, qualquer que seja seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico”263.
No caso dos trabalhadores da estrada de ferro, tornar-se ferroviário era uma atividade mais
física do que intelectual, uma vez que carregar dormentes, manusear a pá e a picareta, trocar
trilhos, pintar as máquinas e derreter o ferro não requeria naquele momento saber ler ou
escrever. No entanto, tudo isso afetava suas emoções, sua forma de ver o mundo, provocando
261
THOMSON, Alister. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias.
Projeto História, São Paulo, n. 15, p. 57, abril. 1997.
262
Para maiores informações esclarecimentos sobre o tremo ressentimento usado nesse trabalho, Cf.
BRESCIANI, Stela; NAXARA, Márcia. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível.
Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2001.
263
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. Tradução: Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. 8ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2008, p.31.
114
cansaço no corpo e na alma. “De todo modo, das condições específicas de produção dos caminhos
de ferro ressalta a exigência de contingentes numerosos de trabalhadores em espaços dos mais
insalubres. A história dos que fizeram esses caminhos é uma narrativa repleta de mortes, doenças,
fugas, motins frustrados e anônimos”264.
Na construção e manutenção das ferrovias, foram contratados temporariamente
centenas de trabalhadores – homens analfabetos ou semianalfabetos – que ao longo do tempo
exerceram diversas funções. Não podemos esquecer do pequeno número de empregados que
pertenciam ao chamado “alto escalão”, dentre eles engenheiros e diretores, que tinham
formação acadêmica, o que para os demais não era critério para garantir sua permanência
como empregados da estrada de ferro. Ler e escrever eram privilégio de poucos.
Ser ferroviário exigia a ação de ter amigos, parentes e, em muitos casos, apelar para
um político a fim de conseguir uma vaga. Depois, para continuar, era preciso ter força de
vontade para suportar a natureza do trabalho, que em muitas situações e dependendo da
função desempenhada, extrapolava o dia e entrava pela noite, ignorando o bom ou mal tempo.
Foi grande o número de pessoas envolvidas na construção das ferrovias e que guardam suas
histórias na memória. Segundo Francisco Hardman a história dos ferroviários é:
Mas depois de extinto no Piauí, o ofício na ferrovia ficou fortemente marcado nas
lembranças de homens e mulheres que o praticaram e que se lembram com orgulho e
entusiasmo do cotidiano com seus colegas de trabalho. Sobre o ato de lembrar Ecléa Bosi
defende que “na maior parte das vezes, lembra não é reviver, mas, refazer, reconstruir com
imagens e ideias de hoje as experiências do passado”266. Nesse sentido, as narrativas do
ferroviário Joaquim Costa são esclarecedoras quanto à forma adotada pela estrada de ferro
para contratação do pessoal e sobre seus efeitos emocionais:
Eu morava numa cidade por nome Piripiri e tinha um senhor que se dava
muito comigo, doutor Bandeira Monte. Um dia ele me perguntou se eu
queria trabalhar na Estrada de Ferro Central do Piauí e eu disse a ele que
para trabalhar na estrada dependia de pistolão e eu não tinha pistolão, então
não adiantava. Então, ele disse que era para eu ir falar com ele no dia
seguinte, eu fui, quando cheguei lá ele puxou uma carta de dentro da gaveta
264
HARDMAN, op. cit., 2005, p.152.
265
Ibid., 2005, p.150.
266
BOSI, op. cit., 1994, p.55.
115
A ferrovia, palco de sonhos e desejos, também foi responsável pela vinda de novos
moradores para Parnaíba. O narrador que era da cidade de Piripiri, guarda na memória as
condições em que ele foi contratado para ser ferroviário que são as mesmas expostas pelos
outros entrevistados, - sempre se dava por meio de um “pistolão”-. Não tinha concurso
público para ser ferroviário, a única prova que Joaquim Costa se recorda foi o que ele chamou
de teste das formigas”268.
As esposas, em alguns casos, atuaram como porta-vozes dos maridos, como por
exemplo, dona Luzanira Monteiro de Miranda ao ver o marido, Luis Cardoso de Miranda,
desempregado e seus oito filhos para alimentar, procurou a amiga Maria das Virgens, esposa
do inspetor da estrada, Júlio Vitalino, para arrumar uma vaga para seu esposo.
O ferroviário Luis Miranda assim como Joaquim Costa, não descendia de uma
“família de ferroviários” ou tinha amigos influentes que lhe concedesse o emprego, a amiga
na verdade era da esposa dele. Quando se recorda da vida na empresa, as lembranças do
ferroviário Luis Miranda são marcadas pelas dificuldades, principalmente nas turmas, como
conservador de linha no trecho entre Parnaíba e Teresina, função que desempenhou durante
toda sua vida de ferroviário.
Durante a entrevista suas palavras e seus silêncios são acompanhados pelos
movimentos do corpo, significando as lembranças, são gestos, lágrimas, sons e sentimentos e
ressentimentos que se misturam ao relato sobre suas experiências:
267
COSTA, Joaquim. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 16 de novembro de
2013.
268
Teste mencionado pelo Senhor Joaquim Costa quando foi se apresentar para o Diretor da Estrada de Ferro
Central do Piauí na cidade de Parnaíba.
116
sempre levava a família comigo, fui para Angelim que fica perto de Campo
Maior em 1965, para Altos em 1969, Parnaíba, passei um ano na Frecheiras
de lá fui para o Cocal da estação até 1972 quando eu voltei para Parnaíba.
Jogaram muita bola comigo! [...]. Na estrada de ferro eu passei muita fome,
no trabalho mesmo, no serviço eu comi de carne de macaco até a coruja. Nós
mesmo que fazia a comida, eu ou o Vitorino. Quando a coisa estava braba a
gente ganhava a mata e ia caçar para poder não morrer de fome269.
269
MIRANDA, Luiz Cardoso de. Nasceu em 14 de abril de 1936 em Parnaíba-PI, começou a trabalhar na
Estrada de Ferro Central do Piauí em novembro de 1962 como Conservador de Linha e foi aposentado pela Rede
Ferroviária Federal como Conservador de Linha em fevereiro de 1988. Entrevista concedida a Maria Dalva
Fontenele Cerqueira. Parnaíba, em 05 de fevereiro de 2014.
270
MIRANDA, Luiz Cardoso de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 05 de
fevereiro de 2014.
271
ARRUDA, Gilmar. Cidades e Sertões: entre a história e a memória. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2000, p.109.
117
na estrada de ferro, que tinha deles que com quatro anos de trabalho não
aguentava mais e saia, nesse tempo o ganho era pouco, uma mincharia e era
muita gente trabalhando, eu tinha um chapéu grande, quando era de noite eu
misturava farinha, açúcar e um azeitezinho e aquilo era minha janta, eu
comia dentro do chapéu. Mas aguentei, aguentei, aguentei até que a coisa
melhorou para mim, graças a Deus, mas me aposentei como cassaco272.
Quem arrumou o emprego para mim foi meu irmão. O nome dele era
Manuel Mesquita de Araújo, vulgo Baleco. Ele era da chefia e arrumou o
emprego para mim com o Diretor. Na época o Diretor era o Gerardo Cosme.
Mas minha primeira função foi a pior possível, comecei como trabalhador
braçal no período difícil era cavando piçarra nos aterros. E eu que tinha
passado mais de um ano sem fazer praticamente serviço pesado [...] Eu
comecei a trabalhar em Brasileira. Compareci aqui e me mandaram para
Brasileira, perto de Piripiri. Lá em morei numa barraca feita com palha de
palmeira. Lá nós éramos vinte e seis pessoas o feitor era Ananias Cardosos e
depois fomos entregue a uma pessoa que se empregou junto conosco como
apontador, o Raimundo Machado, já até morreu. A alimentação cada um
levava um saquinho, um pouquinho de arroz, um pouquinho de farinha, um
pedaço de toucinho. Nesse tempo era assim. Aí depois eu passei para uma
atividade chamada turma volante, que viaja de Luís Correia até Campo
Maior, anoitecia em Piripiri e amanhecia na Brasileira, amanhecia o dia na
Piracuruca, na Parnaíba era a recuperação da linha. Eu entrei em 1962 e
fiquei até 1963 nesse serviço. Sai dele por influência do meu irmão que
sempre buscou para mim um lugarzinho melhor e eu não dispensava. Depois
que eu sai dessa turma de via permanente, dos cassacos mesmo, eu fui para
um turma de obras como servente de pedreiro, recuperando o patrimônio.
Ajudei na construção do Clube dos Ferroviários porque foi feito mais pelos
ferroviários mesmo, nesse tempo a RFFSA custeou as despesas da
construção do Clube, foi um período em que os ferroviários estavam em
ascensão e eu ajudei na construção, as outras obras eram apenas recuperadas.
Era uma estação que estava suja e íamos limpar era no escritório, era serviço
272
COSTA, Joaquim. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 16 de novembro de
2013.
118
O relato do ferroviário, além de realçar a rotina difícil dos cassacos, expõe também
as diferenciações existentes entre os diferentes cargos dentro da empresa, dependendo dos
lugares e cargos em que atuavam os funcionários. Os conservadores de linha eram
organizados em turmas formados entre quinze a vinte homens sob o rígido controle de um
Feitor274, que era o responsável pela supervisão da turma. Eram distribuídas ao longo da linha
e executavam serviços como trocar trilhos e dormentes, manutenção e reconstrução de aterros,
capinar, roçar nas margens dos trilhos. Além do Feitor que os acompanhavam diariamente,
tinha o Mestre de Linha que, esporadicamente, passava pelos locais onde estavam as turmas.
Entre as décadas de 1960 a 1980 com a redução do número de funcionários, as
turmas foram gradativamente diminuindo e chegavam as ser formada por até cinco homens
como a que foi fotografa em Cocal na década de 1980:
273
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
274
Funcionário responsável pelas turmas formadas pelos conservadores de linha.
119
Um dia nós estávamos trabalhando, foi quando eu cai, o meu joelho estava
inchado, mas era pouco e eu ainda estava aguentando, quando chegou um
carro de linha com cinco engenheiros. Era uma mulher e quatro homens, aí
eu fiquei por ali assim e mandei meus companheiros saírem que eu ia falar
com eles, mandei os outros saírem de perto porque eu ia reclamar e se eles
colocassem para fora seria só eu. Eu não queria prejudicar meus
companheiros, porque a situação estava difícil. Aí o Doutor, era o maior
Doutor de São Luís que estava por ali e perguntou se estava tudo bem com a
gente. Eu disse a ele que estava bom para ele, que para nós não estava não,
ele perguntou o que estava acontecendo e eu respondi que estávamos
passando fome, disse que a gente passava de três dias sem comer e mostrei
as panelas sem nada, emborcadas e mesmo assim a gente não deixa de
trabalhar275.
O período narrado por eles trata da Ditadura Civil-Militar, marcado por forte
censura aos meios de comunicação e às manifestações públicas, quando as greves também
foram coibidas e por esse motivo os ferroviários tinham medo de se manifestar, mesmo que
fosse para pedir o envio de alimentos ao trecho onde as turmas se encontravam trabalhando.
Pela narrativa de Luis Miranda, também é possível perceber que eles – mesmo que
275
MIRANDA, Luiz Cardoso de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, em 05 de
fevereiro de 2014.
120
d’água aqui, tinha estação d’água em Bom Princípio, tinha estação d’água
em Cocal, tinha estação d’água em Piracuruca e tinha estação d’água no final
da linha em Piripiri276.
Ao se recordar das suas atividades, envolve o trem em sua narrativa que nomeia de
Maria Fumaça, lembra-se das estações existentes no Piauí. Suas lembranças são da época em
que o trem ia até a cidade de Piripiri e era alimentado por lenha e água. Na gráfica era
responsável por emitir os boletins de frequência e, segundo o ferroviário Raimundo
Nascimento, “tudo o que acontecia na repartição”.
A fotografia mostra o ambiente de trabalho descrito pelo ferroviário Raimundo
Nascimento, uma pequena sala onde ficavam as máquinas e o papel que era feito os boletins
de ocorrência da ferrovia.
A oficina foi outro local de trabalho marcante para os ferroviários. Ficava localizada
próxima da estação centra era um grande galpão com grandes portas que dava acesso ao local
e era o local que segundo os narradores tinha o maior número de operários.
276
NASCIMENTO, Raimundo Ribeiro. Nasceu em 29 de novembro de 1924 em Parnaíba-PI, começou a
trabalhar na Estrada de Ferro Central do Piauí em 04 de abril de 1948 como Artífice Gráfico e jogador de futebol
do Ferroviário Atlético Clube, aposentado pela Rede Ferroviária Federal em 02 de janeiro de 1970 como Artífice
Gráfico. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 08 de abril de 2014.
122
Os trabalhadores da oficina eram verdadeiros artesãos. Uma das atividades era fundir
ferro para dar forma a novos objetos necessários para manter o trem funcionando. A oficina
como o nome lembra ofício. Recebia jovens aprendizes, muitos rapazes entre treze e quinze
anos foram para as oficinas da estrada de ferro levados pelos pais ou pelo diretor Alberto
Silva, entre os anos de 1951 a 1953, para aprender a profissão de torneiro mecânico ou de
123
No trabalho tudo era controlado desde a chegada até a saída, tinha ponto
todo dia, sete horas e onze horas, uma hora e cinco horas era hora de assinar
o ponto na oficina. Na oficina tinha muita gente, uma média de cem pessoas,
para mais. Era muita gente, só a carpintaria tinha de trinta pessoas fazendo
carros de passageiros, reforma, conserto de vagões. Naquele tempo o vagão
trazia pedra de Bom Princípio que aqui não tinha, tirava lá na pedreira e
colocava na beira da linha e agente ia enchendo o trem. Muitas peças do
vagão eram feitas na oficina, tamanca de freio, qualquer peça que fosse
preciso fundir, fundia e fazia. Todo mundo aprendia uns com os outros,
desde o começo da estrada de ferro, foram entrando e foram saindo,
empregando outros e lá dentro as pessoas iam aprendendo uma arte, uma
profissão277.
Miguel Barros, assim como muitos outros ferroviários, ao longo de sua vida
profissional exerceu várias funções dentro da ferrovia. Em suas memórias guarda detalhes das
atividades exercidas e as dificuldades que enfrentou em cada uma delas.
Os parnaibanos Newton Pereira Costa e José de Jesus Araújo são exemplos de jovens
parnaibanos que começaram a trabalhar como aprendizes na oficina da Estrada de Ferro
Central do Piauí que funcionou até o início da década de 1980 quando os últimos ferroviários
foram transferidos para São Luís no Maranhão.
277
BARROS, Miguel Marques. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 18 de
novembro de 2013.
278
BARROS, Miguel Marques. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 18 de
novembro de 2013.
124
De acordo com o colaborador, Vicente Silva, seu irmão José de Jesus Araújo foi
aprendiz de torneiro mecânico, com apenas quinze anos. Na oficina ele recebeu as “primeiras
aulas”, primeiro observando os colegas e depois exercendo o trabalho. Observando a
fotografia tirada em 25 de outubro de 1964 podemos observar uma das atividades realizadas
279
No primeiro plano à esquerda da fotografia, está José de Jesus Araújo, irmão do senhor Vicente de Paula
Araújo Silva. O rapaz foi fotografado ajudando os colegas que estão fundindo ferro.
125
Ao ouvir e analisar as lembranças de Vicente Silva sobre seu irmão, nos reportamos
às observações de Catroga sobre a “memória herdada”, pois ele relatou um fato vivenciado
por seu pai ao falar sobre o silêncio do Diretor da Estrada de Ferro sobre a permanência de
José de Jesus como aprendiz, mas no silêncio ele consentiu a permanência do rapaz na
ferrovia. O colaborador, Vicente Silva, ao conviver com seu pai e ouvi-lo contar sobre o
acontecimento e a forma como o diretor agiu com relação a seu irmão, guardou as
recordações da família que estava envolvida com a ferrovia.
O fato das recordações do colaborador envolver sujeitos diferentes, como seu pai e
seu irmão em suas recordações, nos faz lembrar sobre o que afirma Catroga ao dizer que:
Newton Costa foi outro jovem parnaibano, aprendiz na arte de torneiro mecânico na
oficina, uma experiência tão significativa para sua vida que a destaca nas lembranças da
profissão. Quando narra sobre sua trajetória de vida na oficina da estrada de ferro, lembra
detalhes como o dia e o ano em que iniciou. Também demonstra gratidão por quem lhe deu a
oportunidade de aprender: “Eu entrei com treze anos de idade, fui pra lá no dia 02 de janeiro
de 1953, como aprendiz de mecânica, aí fui passando de degrau em degrau. Na primeira
gestão que eu me empreguei foi com o Alberto Silva, [...]”. Mais um ferroviário a destacar a
280
SILVA, Vicente de Paula Araújo. Nasceu em Parnaíba-PI em 28 de dezembro de 1943, foi contratado para
trabalhar na Estrada de Ferro Central do Piauí em 1964 e foi demitido no mesmo ano. Entrevista concedida a
Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 09 de abril de 2014.
281
CATROGA, Fernando. Os passos do homem como restolho do tempo: memória e fim da História. Coimbra:
Almedina, 2009, p.13-14.
126
interferência de Alberto Silva, destacando como este marca não só a memória da população
piauiense como governador do Estado, como destacam as pesquisas de Cláudia Fontineles,
mas também dos ferroviários como administrador que possibilitou a contratação de muitos.
Este, em especial, entrou como aprendiz e aprendeu o ofício de torneiro mecânico, mas se
aposentou como mestre mecânico.
É com orgulho que narra sobre sua profissão que, para ele, era uma das principais
atividades dentro da ferrovia. O narrador enaltece os profissionais que trabalhavam na
oficina. Entrou como aprendiz, uma oportunidade que lhe foi dada pelo Diretor Alberto Silva.
Aprendeu a função e com o tempo foi reclassificado, mudando de nível dentro da empresa. A
mudança de nível significava também aumento de salário para os ferroviários.
Então de tudo eu fazia, eles me levavam para os lugares e foi isso. Depois eu
fui reclassificado e fui para o nível nove, mecânico operador nível nove. Era
o mesmo torneiro, era só graduando, mas era o mesmo torneiro. Um torneiro
fazia tudo. Uma oficina como nós tínhamos na Estrada de Ferro, eu sei que
toda profissão é boa, mas as profissões mais principais é torneiro, é soldador,
é ferreiro, um eletricista, carpinteiro também282.
282
COSTA, Newton Pereira. Nasceu em Piripiri-PI em 24 de outubro de 1939, começou a trabalhar na Estrada
de Ferro Central do Piauí em como aprendiz de mecânico janeiro de 1953 aposentado na década de 1980 como
Mestre Mecânico pela Rede Ferroviária Federal. Entrevista concedida a pesquisadora Maria Dalva Fontenele
Cerqueira. Parnaíba, 19 de novembro de 2013.
127
Fui até Operário Padrão da RFFSA São Luís/Teresina. Recebi uma placa que
está muito bem guardada e eu não sei onde está. Passei uma semana em São
Luís frequentando hotel cinco estrelas, visitando a televisão, passei uma
tarde no Palácio do Governo visitando o Palácio todinho e quando foi às
dezoito horas e eu fui recebido pelo Senador que nesse tempo era o João
Castelo. Tudo isso é coisa que engrandece. Esse prêmio outras pessoas
também receberam, mas quando eu recebi foi apenas eu. Esse prêmio eu
recebi em 1981 e fiquei muito feliz, foi uma grande alegria que eu tive. Eu
fui chamado para São Luís ganhei um almoço em homenagem ao Operário
Padrão. O almoço foi lá na sede do Ferroviário em São Luís, a sede vírgula
porque, era só uma barraca284.
283
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
284
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014. (grifo nosso).
128
receber um salário, uma renda fixa mensal, sentiam-se seguros e amparados. Mesmo com as
dificuldades enfrentadas no cotidiano da ferrovia eles resistiam com a finalidade de preservar
o emprego, pensando muitas vezes nos muitos filhos que tinham para criar.
Orlando Tôrres, trabalhador rural, assim como seus parentes quando foi convidado
para trabalhar na ferrovia por um amigo da família que era político e amigo do Diretor
Alberto Silva.
Antes de entrar para a estrada eu era da roça mais meu pai e muitos irmãos.
Eu morava em Bom Princípio e ainda temos nossa terra lá. Eu trabalhava de
roça aí surgiu esse emprego para mim. Foi meu primeiro e único emprego de
toda a minha vida. Assim quando eu comecei a trabalhar na estrada eu fui
para o Cocal. Eu fui convidado por um amigo da gente, ele era metido a
político naquelas épocas de Alberto Silva. Uma coisa entrou na outra. Foi o
Valdivino que me convidou, a esposa dele é minha prima legítima e ele me
convidou. O Doutor Alberto na época era Diretor da estrada aqui, ele foi
tudo na vida aqui e por intermédio do Valdivino que era político naquela
época, eu arrumei o emprego. Eu comecei a trabalhar em Bom Princípio e
depois eu passei para Cocal, lá eu passei dois anos. Eu comecei a trabalhar
como Conservador de linha, trocando dormentes eu e uma turma de dez
pessoas fazendo aquele serviço todo. Eu passei dois anos em Cocal e depois
eu voltei para o Bom Princípio e de lá e vim para cá (Parnaíba) e ainda hoje
estou aqui. Eu fui transferido em 1959 foi no ano que eu casei e o Samuel
Santos me trouxe para Parnaíba.
A primeira função exercida por Waldemar Lima foi foguista, quando ele entrou
começou a trabalhar a ferrovia se chamava Estrada de Ferro Central do Piauí, portanto, esse
ferroviário, assim como os outros colaboradores deste trabalho, vivenciou as mudanças
administrativas ocorridas na estrada e também às mudanças estruturais que a estrada passou
no período em que o diretor parnaibano Alberto Silva tentou revitalizar a ferrovia, onde uma
delas foi a chegada da primeira a diesel a deslizar nos trilhos no Piauí – o ganso azul – como
era chamada pelos ferroviários parnaibanos. Essa máquina foi dirigida pelo maquinista
Waldemar Lima. Quando se recorda sobre sua função na ferrovia, ele diz:
Os primeiros trens a circularem no Piauí eram as chamadas “Maria Fumaça”, por ter
como combustível água e a lenha, expeliam um tufo de fumaça preta. Como a caldeira era
próximo do maquinista e do foguista que era o responsável por alimentar a máquina, esses
profissionais estavam expostos à fuligem que era expelida pela máquina, além do calor
excessivo que sentiam.
Quando os entrevistados narram suas histórias, a memória ganha significado e os
elementos identitários enchem os narradores de orgulho: “Tudo tinha que ser feito dentro do
horário, por exemplo, de Parnaíba até Bom Princípio nós tínhamos que fazer o percurso
dentro de uma hora e dez minutos, tinha que fazer o percurso dentro desse tempo, para não
atrasar, se atrasasse tinha que justificar o porquê do atraso”287.
A figura 11 apresenta um grupo de maquinistas na frente de um trem da Rede
Ferroviária Federal. Não existia curso para ser maquinista, ferreiro ou outra qualquer função a
ser exercida dentro da ferrovia. A única exceção era os engenheiros. Os homens começavam
a trabalhar e aprendiam o trabalho uns com os outros. Sobre as décadas de 1960 a 1970 os
ferroviários mencionaram uns testes que eram realizados pela empresa com aqueles que
285
LIMA, Waldemar Marciel de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
286
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
287
LIMA, Waldemar Marciel de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
130
tinham aprendido e pretendiam exercer a função. Não há registro de mulheres que tenham
exercido a função de maquinista na ferrovia no Piauí.
Ser maquinista era uma função que tinha que ter muita responsabilidade. O
tráfego não tinha hora era dia e noite, com chuva ou sem chuva, com sol ou
sem sol, tinha que está lá. Quando tinha muito percurso era que a gente tinha
uma folguinha pouca, mas se fosse preciso, a gente voltava a trabalhar na
mesma hora. Eu trabalhava vinte e quatro horas chegando e voltando. Eu
ficava aqui em Parnaíba e viajava para Luís Correia, Bom Princípio, Cocal,
Deserto, Piracuruca, Piripiri. Eu fui o maquinista que inaugurou o trecho de
Altos a Teresina, o trecho de Piripiri a Campo Maior, fiz tudo isso [...]. A
alimentação era por conta da pessoa. Na máquina a vapor tanto fazia o
foguista ou maquinista, pegava muita quentura, era muito quente. Na época
eu era novinho não sentia nada, estou sentindo hoje problema nos pulmões,
131
foi muita fumaça que eu respirei e quentura, bebia água quente, eu bebia no
tender, o lugar onde deposita água na locomotiva288.
É com orgulho que o ferroviário se recorda dos trechos ferroviários que inaugurou.
Ele foi um dos maquinistas que dirigiu a máquina a vapor e a diesel. Aumenta o tom da voz
quando narra sobre seu trabalho que, segundo ele, era “puxado”, mas que sentia orgulho em
realizar. Afinal de contas, era um sonho realizado: ser maquinista como seu pai e seu tio. No
entanto, não podemos deixar de perceber os perigos aos quais estavam expostos os
ferroviários e as doenças que essa função poderia provocar: a fumaça, a fuligem, os gases
tóxicos são elementos presentes ao cotidiano de um maquinista.
288
LIMA, Waldemar Marciel de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
289
Frase mencionada pelo senhor Luis Cardoso de Miranda durante entrevista concedida a Maria Dalva
Fontenele Cerqueira em sua residência em Parnaíba no dia 05 de fevereiro de 2014.
132
lhes fazem trocar emoções e expectativas, formando um grupo que, segundo Maurice
Halbwachs, mantém viva a memória coletiva.
A Estrada de Ferro Central do Piauí teve uma forte relação com a cidade de Parnaíba.
Junto com a ferrovia veio um aparato material formado por posto médico, escola, clube de
futebol, cooperativa. Todo esse patrimônio servia aos seus funcionários que tinham seus
momentos de lazer como festas, jogos. Os filhos e as esposas também eram beneficiados com
a existência da escola.
A escola para os filhos e esposas dos ferroviários chamava-se Escola Técnica de
Educação Familiar oferecia Ensino Primário, o que equivale hoje ao Ensino Fundamental. Na
década de 1960, quando a estrada passou à condição de Distrito de Operações do Piauí
administrado pela Rede de Viação Cearense, a escola continuou existindo como Centro de
Ensino Primário dos Ferroviários do Piauí. Na década de 1960, sob a administração do
Maranhão passou a se chamar Escola Engenheiro Valdivino Leão de Carvalho – Núcleo
social ferroviário Elzir Cabral.
A escola ficou na memória dos parnaibanos com o nome de Elzir Cabral e
funcionava perto da estação central, atualmente o prédio pertence à Prefeitura Municipal de
Parnaíba, onde funciona a Escola Municipal Alberto Silva, uma homenagem feita ao
engenheiro e político parnaibano pelas suas realizações dentro da Estrada de Ferro Central do
Piauí, em demonstração de como a sociedade parnaibana mantém revigorada a presença dos
sujeitos relacionados à pujança do setor ferroviário.
Ao falar da ferrovia, Raimundo Nascimento recorda-se da existência da escola e fala
da importância para sua família pelo ensino que receberam:
Meus filhos estudaram na escola dos ferroviários, o nome era Elzir Cabral,
era ali do lado da Estrada de Ferro. Eu sou pai de nove filhos, cinco homens
e quatro mulheres. Foi o Doutor Alberto Silva que fez esse colégio, não só
leitura como também corte, costura e bordado para as filhas dos ferroviários
aprenderem. Minha esposa não fez curso lá, mas minha filha a Fátima fez
cursos, hoje ela mora no Rio de Janeiro. Foi ótimo!!. No dia da inauguração
veio Secretário de Educação do Brasil, cortar a fita simbólica no colégio. Foi
muito animado!!!, As máquinas apitando, o pessoal soltando foguete (risos)
barril e mais barril de bebida290.
290
NASCIMENTO, Raimundo Ribeiro. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 06
de abril de 2014.
133
291
Sobre os médicos existentes em Parnaíba nesse período e os seus respectivos nomes Cf. Almanaque da
Parnaíba, 1933, p. 262.
134
ferroviário aposentado. Mas foi muito bom, mesmo. Tinha muita festa no
clube. O Doutor Alberto Silva foi um dos melhores diretores que a estrada já
teve, Deus dê um bom lugar para ele lá onde ele estiver. Foi muito
gostoso!!!292.
292
TÔRRES, Orlando Machado. Nasceu em Parnaíba-Piauí em 03 de abril de 1931 começou a trabalhar na
Estrada de Ferro Central do Piauí em 10 de janeiro de 1953 como Conservador de Linha e foi aposentado em
31de outubro de 1983 como Agente Especial de Estação. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele
Cerqueira. Parnaíba, 07 de junho de 2014.
293
Sobre a eleição realizada pelo Ferroviário Atlético Clube para escolha da presidência e dos demais cargos, Cf.
Folha do Litoral, Parnaíba, ano XVII, nº. 1384, p. 03, 02 de junho de 1976.
294
O atleta, José Araújo Machado, é um ferroviário, filho do senhor João Pergentino Machado que foi um dos
grandes incentivadores do Ferroviário Atlético Clube em Parnaíba, ocupando, inclusive o cargo de presidente do
clube.
135
Esse clube dos ferroviários, o Doutor Walterdes fez esse clube beneficiando
a própria família ferroviária, porque quando morria um ferroviário, a estrada
de ferro dava o caixão porque nessa época nós não tínhamos funerária aqui
na Parnaíba. Essas funerárias são novatas aqui na Parnaíba. Antes você era o
dono do defunto, você manda o marceneiro fazer o caixão. Então, o Doutor
Walterdes com os amigos dele fundou esse clube nesse sentido. Aconteceu
um caso muito interessante daí foi que o engenheiro Alberto Silva e outro
engenheiro de Fortaleza acelerou a formação do clube nesse sentido sobre o
funeral296.
Pelas memórias do narrador, o clube dos ferroviários foi organizado pelo médico da
ferrovia, Walterdes Sampaio juntamente com o engenheiro Alberto Silva e um engenheiro de
Fortaleza para ajudar os ferroviários nos momentos de dificuldades. A ideia de formar um
clube já existia entre os ferroviários, mas um acontecimento inesperado que o senhor
Raimundo Nascimento classificou como um “caso interessante” acelerou a formação do
clube. Quando perguntado o que foi o caso interessante, ele respondeu:
295
UNIÃO vence as eleições no Ferroviário. Folha do Litoral, Parnaíba, ano XVII, nº. 1384, p. 03, 02 de junho
de 1976.
296
NASCIMENTO, Raimundo Ribeiro. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 08
de abril de 2014.
136
filhas e minha esposa, eu sou viúvo, vai fazer agora cinco anos que fiquei
viúvo. E com isso o ferroviário foi crescendo297.
O que mais me recordo da ferrovia foi de muita bola que joguei pelo
ferroviário, fiz muitos amigos lá, quando eu fui jogar bola eles nem queriam
que eu jogasse eu era garoto e era magrinho, e tinha um primo que me dava a
chuteira dele do pé esquerdo para eu jogar. Depois eu mandei fazer uma
chuteira para mim, naquele tempo era muito jogador, hoje em dia ninguém
ver mais o povo jogar bola. Eu joguei em muitos lugares, onde era a Escola
Normal era campo, na frente da Santa Casa dia de domingo. [...] Nós
jogávamos porque gostávamos de jogar. O que nós ganhávamos era
assim, quando jogava ali no.... como era o nome, verdinho não,
naquele tempo era Internacional. Aí a renda ele dividia assim uma
mincharia para cada um298.
Como eles não tinham um estádio próprio, eles saia usando os espaços ociosos da cidade
para treinar. O narrador recorda-se dos lugares onde jogava com os amigos. Era uma verdadeira
paixão que eles tinham pelo futebol, jogavam apenas pelo prazer.
Raimundo Araújo também tem a mesma paixão por futebol que o ferroviário Newton Costa,
no entanto, ele não gosta de jogar futebol, apenas de assistir aos jogos. Mesmo sendo uma pessoa de
fala mansa e calma podemos perceber o brilho no olhar quando se recorda do clube que chegou a ser
presidente.
297
NASCIMENTO, Raimundo Ribeiro. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 08
de abril de 2014.
298
COSTA, Newton Pereira. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
299
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
138
Os filhos dos ferroviários também tinham muito amor pelo clube e preservavam as
taças que eram os símbolos das conquistas e vitórias dos ferroviários. Percebemos o amor e o
cuidado com o patrimônio quando o narrador fala da presença do seu filho, Helcio Mesquita,
brincando no clube e o esforço que fez para que a taça atingida por ele não chegasse ao chão.
Vicente Silva também guarda as lembranças das festas oferecidas pelo clube.
Segundo ele cantores famosos estiveram presentes no clube dos ferroviários, alegrando festas
e bailes de carnaval realizados para os ferroviários.
300
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
301
SILVA, Vicente de Paula Araújo. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 09 de
abril de 2014.
139
benefícios oferecidos pela associação. Um caixão, entradas para assistir aos jogos do
ferroviário e a participar das comemorações realizadas pelo clube.
O jornal parnaibano Norte do Piauí estampou como manchete intitulada “Ferroviário
Atlético Clube homenageou o Superintendente da R.V.C.” O Superintendente homenageado
Elzir de Alencar de Araripe Cabral foi homenageado pelo clube em 26 de junho de 1968. O
motivo da visita era fazer uma vistoria na ferrovia que já se encontrava subordinada a Rede de
Viação Cearense.
Sábado último, o Ferroviário Atlético Clube fez realizar em sua sede própria,
à Avenida São Sebastião, 1114, nesta cidade. Um coquetel em homenagem
ao Dr. Elzir de Alencar de Araripe Cabral, Superintendente da Rede de
Viação Cearense, [...] esteve supervisionando o Distrito de Operações do
Piauí, antiga Estrada de Ferro Central do Piauí. [...] No decorrer do coquetel
que contou com um crescido número de ferroviários e convidados
especiais302.
302
FERROVIÁRIO Atlético Clube homenageou o Superintendente da R.V.C. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº
63, p.01, 26 de junho de 1968.
303
SILVA, Vicente de Paula Araújo. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 09 de
abril de 2014.
140
O narrador chama a atenção para uma das qualidades do clube que segundo ele era a
organização. Guarda na memória aspectos do médico Walterdes Sampaio, que ficou marcado
como o “pai dos ferroviários” parnaibanos devido à dedicação e ao envolvimento com os
ferroviários. Seu nome ficou na memória da cidade, atualmente o Centro de Atenção
Psicossocial II – CAPS de Parnaíba - recebe o nome dele.
O Ferroviário Atlético Clube ainda vive na memória dos parnaibanos. O senhor
Vicente Lima que segundo ele faz parte de uma “família de ferroviários”, por ser filho,
sobrinho e irmão de ferroviários, teve uma rápida passagem no clube. Por se destacar em
Parnaíba como jogador de futebol e trabalhar na contabilidade da Casa Inglesa foi contratado
para fazer parte do Ferroviário Atlético Clube em 1964, no entanto, teve sua carreira
interrompida como jogador do Ferroviário, sendo demitido no mesmo ano:
304
SILVA, Vicente de Paula Araújo. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 09 de
abril de 2014.
141
A Rede Ferroviária Federal passou por mudanças. Uma delas no Piauí foi a redução
do número de funcionários da empresa. No Piauí, em 16 de abril 1964, a sede administrativa
da ferrovia foi ocupada pelo Capitão de Corveta e Capitão dos Portos do Piauí, Júlio Cezar de
Almeida Dutra, que assumiu a diretoria da estrada como interventor ficando no cargo até 06
de julho do mesmo ano.
Esse acontecimento foi testemunhado por Vicente Silva que estava na estação no dia
em que o Capitão dos Portos do Piauí chegou e tomou o cargo de Diretor Superintendente que
estava sendo ocupado pelo senhor Diniz Alberto da Mota Solheiro. Classificou como
arbitrário e humilhante a atitude dos militares que ocuparam a estrada de ferro. Guarda com
detalhes na memória o dia do acontecimento.
Conforme sua declaração, a cena que presenciou foi traumática: ver os colegas de
trabalho, entre eles seus parentes, o pai e o tio, sendo escoltados pelos policiais e marinheiros
para fora da oficina e do almoxarifado marcou sua memória. Segundo ele, todos foram
levados para o pátio onde ouviram o longo discurso do Capitão que, com o apoio das demais
forças militares da cidade, se autoproclamou Superintendente da Estrada de Ferro, afirmando
que todos lhe deviam respeito e obediência.
305
SILVA, Vicente de Paula Araújo. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 09 de
abril de 2014.
142
Outro ferroviário que teve sua vida profissional afetada diretamente com a
intervenção militar na ferrovia foi Raimundo Araújo que ao se recordar do acontecimento
conta que:
306
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014. (grifo nosso).
307
FONTINELES, op. cit., 2009, p. 71.
143
308
PAULA, op. cit., 2004, p. 57.
309
HARDMAN, op. cit., 2005, p.51.
144
Foi muito comentário triste, agora o povo alega que foram os engenheiros da
RFFSA que mataram a estrada aqui. Eu senti muita saudade no corpo.
Muitos anos existindo e depois se acabar foi muito triste. Eu não vou nem
mas lá! No tempo em que eu entrei para trabalhar na conferência era muito
passageiro, muito funcionário. No final diminuiu tudo, passageiro e
funcionário310.
Ainda hoje eu coloco água dos olhos quando eu vejo a minha 29 ali parada
na estação. Eu trabalhei naquela bichinha!!! Aquilo ali era meu amor!!!, Eu
trabalhei naquela máquina uns tempos, foi pouco tempo porque o inspetor
era perseguidor e me jogava para a linha, eu era como uma bola, quando eles
acabaram de fazer bola comigo. A primeira vez que entrei numa máquina e
coloquei ela para funcionar eu senti que a bicha me queria312.
Para Luís Miranda o trem tinha desejos e vontades. Ele próprio chegou a sentir que a
máquina lhe queria. Esse sentimento de desejo da máquina por ele aflorou quando ele fez um
teste para ser maquinista. É o trem vivo, que tem, assim como os homens sentimentos.
Os ferroviários, mesmo os que trabalhavam nas funções tidas como mais difíceis e
perigosas, têm verdadeiro fascínio pelo trem. Hoje, choram e lamentam sua “morte” como se
fosse um parente próximo. A saudade os impede de ir até o antigo a estação, ao escritório, ao
local onde funcionava a oficina. Aqueles que moram nas margens da ferrovia, observam os
trilhos onde viveram suas histórias, seus segredos e mistérios, produzem sentimentos e fazem
relembrar toda uma vida de trabalho. Ao referir-se a lugares semelhantes Hardman afirma que
neles:
Projetam-se as fantasmagorias nas calçadas das ruas, nos trilhos de ferro, nas
janelas dos vagões. Todos os sentidos que se produzem historicamente em
torno dos espectros – o popular-religioso, o psicanalítico, o da crítica
ideológica, o da filosofia política, o literário e cinematográfico, o das artes
plásticas e cênicas, o da arquitetura – podem reaparecer, agora juntos,
repostos e atualizados em diferentes configurações, nos espaços singulares
construídos com a sociabilidade moderna. Um único e decisivo fio perpassa
310
TÔRRES, Orlando Machado. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 07 de
junho de 2014.
311
HARDMAN, op. cit., 2005, p.52
312
MIRANDA, Luiz Cardoso de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, em 05 de
fevereiro de 2014. (grifo nosso).
145
O conjunto formado pelos prédios, trens e trilhos são as “ruínas prematuras” que se
encontram em Parnaíba. Esse ser inanimado, animado pelos ferroviários, que ganhou vida e a
capacidade de morrer e virar memória. Foi eternizado nas histórias e nas demais
manifestações culturais, por isso, se traduz em magia, sobrenaturalidade e saudade deixada
pela sua efêmera existência entre os parnaibanos.
A memorialista Maria Elita Araújo ao apresenta a cidade e suas conquistas na
primeira metade do século XX, afirma que “a via férrea foi se estendendo por lugares,
cidades, até completar o trecho Parnaíba-Teresina. [..] A estrada de ferro marcou época
quando os trens transportavam mercadorias variadas em direção as cidades interioranas” 315.
Ao discutir sobre o fim do transporte ferroviário e demonstrar seu descontentamento, ao
afirmar que “as coisas mudaram, a vida muda e para não fugir à regra nossa Maria Fumaça
cessou usas atividades por imposição do destino, e encontra-se hoje, exposta as intempéries
do tempo, sofrendo a oxidação, servindo de adorno, podemos considerar, na esplanada da
extinta estação ferroviária local”316e aponta o destino como a causa da desativação do
transporte ferroviário no Piauí, como se o trem fosse um ser destinado à vida e à morte.
A estação, a locomotiva, os trilhos despertam lembranças de alegria que se traduzem
em saudades naqueles que viveram e se serviram do trem. Essas lembranças estão
cristalizadas nos livros dos memorialistas para quem a locomotiva na estação “alegrava as
tardes de quarta e sexta-feira, chegando a esplanada da estação de Parnaíba com sua
composição repleta de frutas para vender, animais para o abate, beijus, farinha e goma e as
gostosas tapiocas de Marruás tão apreciadas por todos”317.
313
Ibid., p.59-60.
314
NUNES, op. cit., 1996, p.98.
315
ARAÚJO, op. cit., 2002, p. 130.
316
ARAÚJO, op. cit., 2002, p.138-139.
317
Ibid., p.138.
146
318
TÔRRES, Orlando Machado. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 07 de
junho de 2014.
319
CERTEAU, op. cit., 2003, p.189.
320
HARDMAN, op. cit., 2005, p. 51.
147
ninguém. Eu senti nesse dia!! Mas não deu para chora não, ainda hoje de vez
enquanto eu sonho com a estrada. Lá em Teresina eu tive uma vida intensa,
quase todo dia agente viajava para o interior. A Estrada de Ferro do
Maranhão era muito ordinária, quase todo dia um trem caía. Teve período de
eu passar doze dias sem vim em casa, quando chegamos a Timon recebemos
ordem para voltar para o Codó. E desse viajem nós passamos doze dias sem
vim em casa. O Hélcio era quem tomava de conta da casa321.
321
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
322
HALBWACHS, op. cit., 1990, p. 71.
323
ROVAI, op. cit., 2013.
324
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
148
na cidade para comprar fiado e pagar quando recebessem o salário no final do mês. O dia do
pagamento movimentava o comércio na cidade.
As memórias dos ferroviários são marcadas pela saudade, ressentimento, revolta e
uma forma própria e particular de sentir a desativação da estrada de ferro no Piauí. Em suas
memórias apontam a má administração e os desvios como elementos que provocaram a ruína
do transporte ferroviário:
Eu fiquei sabendo que a estrada não dava renda para cobrir as despesas. Na
época eu era graxeiro e vinha e sentava. Aí eu vi quando chegou o cobrador
e o fiscal. Aí tinha um velhinho.... Eu vi quando o velhinho tirou a passagem
que vinha presa no bolso e entregou, isso o cobrador e o fiscal. Aí eles
passaram, quando voltaram disseram: -“ meu velhinho mim dê a passagem”.
O velhinho chega amarelou, porque o velhinho o que ele tinha só era aquele
dinheirinho aí eu entrei logo na hora e disse: - Não senhor! O velhinho tinha
passagem eu vi quando ele entregou. Então eles ficaram com ódio de mim e
passaram. Outra vez quando eu vinha, uma senhora vinha com uma cesta de
ovos, aí ela chegou e o cobrador pediu o dinheiro da passagem a velhinha
tirou as moedas e não era o suficiente, então ele disse que não tinha
problema e que na primeira parada ela descia, ele ia com uma cesta de ovos
e ele disse: - E esse ovos pra quem é? Ela respondeu que estava levando para
uma filha que estava passando fome e ele só fez agarrar aqui a cesta de ovos
e disse: - Pois está pago! Como é que uma estrada dessa podia ir para
frente?!326
325
COSTA, Joaquim. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 16 de novembro de
2013.
326
COSTA, Joaquim. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 16 de novembro de
2013.
149
327
BARROS, Miguel Marques. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 18 de
novembro de 2013.
328
LIMA, Waldemar Marciel de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
150
também são mencionadas, onde a transferência da Estrada de Ferro Central do Piauí para a
Rede Ferroviária Federal é apresentada de forma negativa para o transporte ferroviário.
Nós éramos funcionários públicos federais e eles fizeram todo mundo optar
para CLT, eles mostravam as vantagens para que a gente fizesse a opção,
que eles davam os nossos direitos, como de fato eles deram uma
gratificação, agora, eles não manteram é que se a estrada fechasse, nós
voltaríamos para o governo e não voltamos, ficamos no INSS e o INSS não
paga como deveria pagar. Até a época que o presidente era o José Sarney
eles pagavam tudo direitinho, o INSS pagava o salário, eu, por exemplo, me
aposentei com oito salários e meio, hoje não recebo nem quatro331.
329
ARAÚJO, Raimundo Nonato Mesquita de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 11 de setembro de 2014.
330
COSTA, Joaquim. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 16 de novembro de
2013.
331
LIMA, Waldemar Marciel de. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
151
marca intensamente a memórias dos ferroviários. De acordo com Ednaldo Vieira essa
mudança aconteceu quando “o governo de Castelo Branco pôs fim à estabilidade no emprego,
existente no Brasil até 1966, mudando-a para Fundo de Garantia por Tempo de Serviço”332,
diante dessa modificação que aconteceu na Lei Trabalhista os funcionários tiveram que optar
pelo Fundo de Garantia, e quem fez a opção pelo FGTS ficou prejudicado. Todos os
entrevistados guardam mágoa e ressentimento do que essa mudança provocou em suas vidas.
Mesmo aqueles que não aderiram se solidarizam com os colegas. Para o ferroviário Joaquim
Costa eles foram “lesados”, forçados a aceitar a mudança e classifica como “crime” o que
fizeram com eles.
Estas lembranças marcam uma experiência coletiva vivida e compartilhada por todos
os ferroviários. Mesmo os que não optaram, se lembram do acontecimento e mantêm essa
lembrança viva e presente em suas vidas. No caso daqueles que optaram, as memórias
expressas sobre uma decisão do passado refletem diretamente em suas vidas no presente, pois
quando o fizeram, não avaliaram ou não sabiam o que essa decisão representaria no futuro.
Isso mostra que o grupo não era um politizado ou não tinha uma associação sindical que os
informasse sobre as leis trabalhistas e orientasse sobre as decisões a serem tomadas. Para
entender essa ausência de organização mais politizada, é preciso esclarecer que entre as
décadas de 1960 e 1980 o Brasil estava sob uma ditadura civil-militar. As greves eram
reprimidas e os militantes oposicionistas eram presos e torturados.
A historiadora Marta Rovai, no livro Osasco 1968: a greve no feminino e no
masculino discute a atuação de um grupo de operários-estudantes e católicos num movimento
grevista em Osasco, no estado de São Paulo, que terminou com uma forte repressão que se
abateu sobre toda a cidade e a família dos grevistas. Fato semelhante já havia acontecido em
Contagem, Minas Gerais, quando no mesmo ano, os trabalhadores da fábrica Manesmann
foram reprimidos após uma greve. O fato é que depois do golpe de 1964, todos os sindicatos
brasileiros sofreram intervenções, sendo muitos presidentes de organizações sindicais presos e
assassinados. Isso desmantelou a possibilidade de reivindicação dos setores trabalhistas, o que
não foi diferente em Parnaíba, sendo os ferroviários submetidos ao controle e à vigilância.
Entre os entrevistados, Newton Costa foi um dos poucos que não fez a “opção” e ao
se recorda do acontecimento diz ter sido hostilizado pelos chefes e por alguns colegas de
trabalho.
332
VIEIRA, Evaldo. Brasil: do golpe de 1964 à redemocratização. In: MOTA, Carlos Guilherme. (Org.).
Viagem incompleta. A experiência brasileira (1500-2000): a grande transação. 2ª ed. São Paulo: Editora
SENAC. São Paulo, 2000, p. 194.
152
Olhe! Tinha muita gente que às vezes têm raiva da gente porque ninguém
pratica aquilo que ele pratica. Mas, eu graças a Deus minha convivência lá
foi muito boa, todo mundo gostava de mim, tanto que teve uma época que
disseram em 1974 aí foram trocar os servidores público para CLT negócio
de opção. Aí eu pensei rapaz não vou não! Quando eu via assim no mural o
que era o servidor público e o que era da CLT. Nós éramos mais amparados.
CLT não vou dizer que era. O sujeito deixava de ganhar o salário família,
nós ganhávamos e eles não ganhavam, agora só tinha uma vantagem que eles
tinham que eles ganhavam décimo terceiro salário e nós não ganhávamos
nesse tempo. Mais eu não queria não! Era uma confusão danada. Eles
indenizaram um bocado de gente e ficou por aí jogado fora. Fizeram muita
perversidade depois que a Rede Ferroviária assumiu o negócio de
privatização essas coisas. [...] Dos torneiros só ficou eu e o Ozias, Nós
éramos doze torneiros, o resto todinho foi pra CLT tudinho a maior parte dos
servidores. Porque hoje em dia eu sei que o dinheiro é um pouco bom, mas
pra mim não! Em primeiro lugar é Deus e segundo a minha saúde. Nós
tínhamos uma gratificação de trezentos mil reis, então eles lá, rapaz era uma
coisa tão doida que tinha gente que não dormia preocupado com aquele
negócio, aquele medo de ser transferido e eu dizia: - Rapaz larga de besteira
antes do bicho chegar tu já está com medo. E era uma coisa horrível, eles
atacavam muito a gente davam pressão e aquele negócio todo para optar. Eu
graças a Deus toda vida eu fui uma pessoa mais calma e eu dizia: Rapaz, eu
tenho uns irmãos e eles diziam rapaz largue de besteira e não vá nisso não.
Eu também não queria porque tinha um lá que me perseguia, quando eles
perseguem uma pessoa. Indenizavam com uma mincharia aí o nego ficava e
precisava pagar a previdência aquele negócio todo. Teve deles que fez a
opção e pegou a indenização e gastou tudo, não se aproveitou de nada, só
numa noite numa festa gastou onze contos. Agora nós tínhamos um médico
lá que era nosso “pai” Walterdes. Não sei se você ouviu falar dele, que era
muito bom. Aí! Ele foi aposentado com um salário mínimo, para não ficar na
rua333.
Para Raimundo Nascimento, ferroviário que fez a opção sem ser orientado sobre a
importância da decisão que estava tomando, a “Rede Ferroviária fez essa maracutaia para
acabar isso aqui como acabou hoje só tem os trilhos aí. Ela usou essa malícia. Eu já digo
assim. Essa maracutaia de opção de uma coisa para outra”. As gargalhadas aumentam quando
ele diz que até o médico da ferrovia, Walterdes Sampaio fez a opção. Essa colocação parece
dialogar com aqueles discursos da elite parnaibana que via no desmantelamento das ferrovias
um desrespeito ao estado do Piauí e ao seu povo. A pressão sobre os trabalhadores também se
fazia sentir na crise que acompanhava a economia piauiense.
Ao falar sobre esse episódio, trinta anos depois do acontecido, avalia que tudo isso
foi uma forma que a Rede Ferroviária encontrou para acabar com o trem no Piauí. Portanto,
tem a clareza da relação entre sua experiência pessoal, a vivência coletiva e o contexto
histórico que marcou a economia e a política da metade do século XX, frutos de um mesmo
projeto de transformação desenvolvimentista e ditatorial.
333
COSTA, Newton Pereira. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 19 de
novembro de 2013.
153
Olhe!! Eu fui até prejudicado, nesse sentido. Você vai me escutar! Nesse
sentido, mas a Rede Ferroviária fez essa maracutaia para acabar isso aqui
como acabou. Hoje só tem os trilhos aí! Ela usou essa malícia! Eu já digo
assim!!!. Essa maracutaia de opção de uma coisa para outra. Nós éramos
federal. Ela fez essa maracutaia para botar o pessoal dela, lá com seus
deputados, os senadores. Com esta lei os ferroviários faziam opção de
federal pela CLT. Aí! Todo mundo caiu na arapuca!! Aí!! Todos os meses
saia gente. Até que acabaram com a Estrada de Ferro Central do Piauí,
Acabaram!!! A rede acabou porque a própria bancada federal do Piauí era
também muito manjada lá no Senado lá e aí acabaram com a estrada de
ferro. Dona Dalva, até o Doutor Walterdes caiu dentro da arapuca, dona
Dalva. Eles ofereceram as vantagens de federal para CLT. Sobre o
vencimento, aí!! O camarada se lavou!!!. Eu fui um. Isso aqui que eu estou
de baixo ainda foi um refresco da opção que a Rede me deu um dinheiro que
eu não sei que dinheiro foi esse, que eu fiz essa casa, eu morara na vila aqui
ao lado, na Vila Ferroviária334.
Chegou uma moça aqui por nome Teresa, Teresa Rego ela era formada em
administração de empresa, nós éramos subordinados a São Luís do
Maranhão de São Luís a Teresina. Ela veio com o diretor lá de São Luís o
nome dele era José de Ribamar Rego para a gente fazer a opção de uma
coisa para outra. Eu era Federal e mudamos para lei trabalhista. Nessa época
melhorou o nosso ordenado até salário família passam os a receber. Nessa
época o presidente da República já era o general Gaspar Dutra, ele também
fez parte da maracutai da Rede Ferroviária. Aí! Todo mundo optou!335
334
NASCIMENTO, Raimundo Nonato Ribeiro. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 08 de abril de 2014.
335
NASCIMENTO, Raimundo Nonato Ribeiro. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira.
Parnaíba, 08 de abril de 2014.
336
LIMA, op. cit., 2010, p.16-19.
154
337
MUSEU do Trem – Cultura e turismo. O Bembém, Parnaíba, ano 2, nº 21, p.07, 21 de setembro de 2009.
338
TÔRRES, Orlando Machado. Entrevista concedida a Maria Dalva Fontenele Cerqueira. Parnaíba, 07 de
junho de 2014.
155
entre os parnaibanos, pois fazia parte do cotidiano, “também foi associado ao calendário
religiosos” da cidade: “em Parnaíba, município litorâneo do Piauí, a composição chegava à
cidade em horários extras noturnos a fim de levar a população para a novena em homenagem
ao padroeiro. Era também o meio de chegar à praia”339.
Essa relação da cidade com o trem é traduzida em saudades dos tempos em que o
mesmo era o único meio de transporte usado para chegar até a praia. É tanto sentimento que
quando o escritor e dramaturgo parnaibano Benjamim Santos se recorda de suas viagens na
década de 40, diz que “até as coisas ruins eram boas na viagem de trem. Eu me lembro que
volta e meia entravam maribondos nos vagões. Era uma gritaria...E as vezes as faíscas do trem
queimavam as roupas dos passageiros. Para nós crianças tudo era divertimento”.
As histórias e memórias dos ferroviários e dos memorialistas conseguem mostrar a
importância que teve a ferrovia enquanto espaço de trabalho, lazer e afetividade na cidade de
Parnaíba. Os laços que se formaram em torno dela envolveram os colaboradores em redes de
amizades e compadrio. Sonhos, saudades e desejos são sentimentos que o tempo não
consegue pagar. O trem ainda apita na memória coletiva e instiga desejos por sua reativação.
Saudades de ferro e fumaça invadem os sentimentos.
339
LIMA, op. cit., 2010, p. 16-19.
156
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
aqueles que lhe dedicaram sua mais vital força de trabalho: os funcionários da ferrovia e seus
familiares. Os ferroviários parnaibanos guardam e contam suas histórias com amor, saudade e
ressentimento pela desativação. Os narradores carregam no corpo e na alma as marcas do
trabalho. É a dor num joelho que ainda incomoda, a perda do olfato pelo trabalho com as
tintas pintando e reformando os vagões, ou doenças pulmonares que podem ter sido
provocadas pelos anos na função de maquinista na “Maria Fumaça”.
Com a desativação na década de 1980, o trem passou definitivamente a ser presença
viva na memória dos parnaibanos, sobretudo entre aqueles que lhe dedicaram sua mais vital
força de trabalho: os funcionários da ferrovia e seus familiares. Os ferroviários parnaibanos
guardam e contam suas histórias com amor, saudade e ressentimento pela desativação. Os
narradores carregam no corpo e na alma as marcas do trabalho. É a dor num joelho que ainda
incomoda, a perda do olfato pelo trabalho com as tintas, reformando os vagões, ou doenças
pulmonares que podem ter sido provocadas pelos anos na função de maquinista na “Maria
Fumaça”.
Mas a ferrovia também é lembrada pelas alegrias que proporcionou, as diversões que
o clube disponibilizou, a educação que possibilitou aos familiares de seus trabalhadores, ou o
prestígio que outrora eles gozaram socialmente e pelo qual muitos ainda são reconhecidos e
fazem questão de serem lembrados socialmente, numa constante luta para resistir à passagem
do tempo.
159
FONTES E REFERÊNCIAS
1 FONTES
1.2 Periódicos
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160
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DESEMPREGO em Parnaíba causa fome. Norte do Piauí, Parnaíba, ano I, nº 50, p.04, 1968.
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Parnaíba, 09 de abril de 2014.
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