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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA

FRANCISCO JOSÉ LEANDRO ARAÚJO DE CASTRO

MEMÓRIAS E CULTURAS POLÍTICAS NO NORTE DO PIAUÍ DURANTE O


CONTEXTO DO GOLPE DE 1964

NITERÓI-RJ
2021
FRANCISCO JOSÉ LEANDRO ARAÚJO DE CASTRO

MEMÓRIAS E CULTURAS POLÍTICAS NO NORTE DO PIAUÍ DURANTE O


CONTEXTO DO GOLPE DE 1964

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Ferreira

NITERÓI-RJ
2021
FRANCISCO JOSÉ LEANDRO ARAÚJO DE CASTRO

MEMÓRIAS E CULTURAS POLÍTICAS NO NORTE DO PIAUÍ DURANTE O


CONTEXTO DO GOLPE DE 1964

Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação


em História da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em História.

Orientador: Prof. Dr. Jorge Ferreira

DATA DA AVALIAÇÃO: ____/_____/_____


CONCEITO:__________________________

BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Jorge Ferreira – UFF (Orientador)

_______________________________________________
Prof. Dr. Renato Soares Coutinho – UFF
_______________________________________________
Profa. Dra. Marylu Alves de Oliveira – UFPI
_______________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Santana – UFRJ
_______________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis de Sousa Nascimento – UFPI
_______________________________________________
Profa. Dra. Karla Carloni – UFF (Suplente)
_______________________________________________
Profa. Dra. Andrea Casa Nova Maia – UFRJ (Suplente)

NITERÓI- RJ
2021
AGRADECIMENTOS

15 de novembro de 2016. Feriado da República. Uma leve garoa caía naquela


manhã cinzenta em que desembarquei, pela primeira vez, no Rio de Janeiro. Sozinho, mochila
nas costas e um sonho na cabeça: fazer a seleção e conseguir aprovação no Doutorado em
História da UFF. Se estava sozinho fisicamente, cruzando o país, vindo do litoral do Piauí,
muitas foram as pessoas que torceram e acreditaram na minha aprovação. Muitos estavam
comigo nessa empreitada difícil, porém absolutamente transformadora. De lá pra cá muita coisa
mudou. Aquele jovem meio inconsequente, hoje é pai de um menino e carregará consigo um
honroso título de Doutor em uma das melhores universidades do Brasil!
Em especial, nesse processo de doutoramento, quero agradecer ao meu orientador,
prof. Dr. Jorge Ferreira. Mesmo sem me conhecer, aceitou me orientar e foi fundamental em
todo o meu percurso junto ao programa. As ligações com orientações, os e-mails, os relatórios
que todo o semestre enviava para a sua residência e que ele generosamente se prontificava a
entregar na universidade, demonstram que, além de um grande intelectual, que passei a admirar,
o prof. Jorge é extremamente comprometido com o programa de História da UFF, com a
pesquisa científica e com os seus muitos orientandos. Meu muito obrigado, professor! Agradeço
também ao grande Dr. Bruno Duarte Rei, pela disponibilidade em ajudar com o desafio de
entrega dos relatórios semestrais para a CBOL. Muito obrigado, Bruno!
Agradeço pela presença e análises pontuais no trabalho, durante o meu exame de
qualificação, aos professores, Dr. Renato Coutinho (UFF) e Dr. Marco Aurélio Santana (UFRJ).
Ao passo que agradeço pela disponibilidade de ambos em participar da minha defesa. Agradeço
à Capes pela bolsa de Doutorado, que muito ajudou a viabilizar esta pesquisa. Agradeço ao
Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal Fluminense, local onde
encontrei grandes referências intelectuais e pessoas extremamente generosas e republicanas.
Em especial, agradeço também à Secretaria do Programa de História, pois sempre foram
atenciosos, respondendo as minhas dúvidas quanto ao funcionamento do programa, com relação
aos créditos e tudo mais. Meu muito obrigado!
Agradeço às professoras da disciplina interna ao programa, em Niterói, Dra. Juniele
Rabelo de Almeida e Dra. Ismênia de Lima Martins, pelo carinho, compreensão e receptividade
com esse jovem que desce do Norte em longas horas de conexões nos aeroportos da vida. Foi
uma das melhores experiências de aprendizado que tive. Em especial, destaco a inteligência
jovial de Juniele, o carisma e humor arrebatador de Ismênia. Agradeço também ao professor Dr.
Luiz Alberto Grijó, da UFRGS, pelos ensinamentos na disciplina que cursei em domínio conexo,
em Teresina, pelo Dinter em História. Agradeço também ao prof. Dr. Jaison Castro, pela atenção
na minha inscrição nessa disciplina.
No Piauí, agradeço ao Prof. Dr. Francisco de Assis de Sousa Nascimento, meu
orientador durante o Mestrado e pessoa importante na empreitada do Doutorado. “Existem
coisas que não podem esperar, Leandro!”, ele me disse em certa ocasião. De lá pra cá isso foi
fazendo todo o sentido em minha formação. Conversei com Francisco sobre a seleção na UFF
e ele foi providencial, inclusive estabelecendo contatos para minha orientação no Doutorado.
Ainda lhe agradeço pela disponibilidade em participar da minha banca de Doutorado. Meu
muito obrigado, Francisco!
Agradeço ao querido amigo, grande intelectual parnaibano, Benjamim Lima dos
Santos, pelas longas e calorosas conversas em sua residência, ou no semanal Sababenj, no
burburinho do centro de PHB. Muito obrigado pelos livros, pelo acervo herdado – o “dossiê
Paris” – mas, sobretudo, pela sua fraterna amizade, que muito me deixa honrado. Além disso,
obrigado por me proporcionar contatos com alguns dos entrevistados da pesquisa. Você é
gigante, Benja. Merci, mon ami.
Agradeço ao professor Renato Araribóia Brito Bacellar, pela disponibilidade com o
seu acervo da Fundação Raul Furtado Bacellar, sediada no Bairro São José, em Parnaíba.
Agradeço ao Marcelo Machado, pelo acesso aos jornais de seu acervo familiar. Agradeço ao
amigo, professor Me. Josenias dos Santos Silva, pelos Almanaques e ajuda com muitos livros
de seu acervo particular. Em Teresina, agradeço ao pessoal do NUJOC pela digitalização dos
jornais piauienses. Agradeço ao sr. Reginaldo Junior, do IHGGP, em Parnaíba, pelo acesso ao
acervo da instituição.
Agradeço à querida professora Dra. Marylu Alves de Oliveira, por ter me
presenteado generosamente com as edições da Revista Caravana. Agradeço à Marylu, ainda,
pelas muitas indicações durante os encontros acadêmicos em que pudemos conversar sobre
minha pesquisa e, sobretudo, pela disponibilidade em participar da minha banca de Doutorado.
Agradeço pelas correções iniciais no trabalho, à amiga Alessandra Motta. Ainda sobre
correção/revisão/normatização, agradeço, em especial, à minha querida amiga prof. Me. Karla
Dayane Monteiro. Karla esteve ainda presente no meu exame de qualificação, em Niterói,
dando-me apoio emocional, junto de minha companheira, Simone. Meu muito obrigado!
Agradeço aos alunos, ex-alunos e amigos da UESPI, da FID, do CEAD/UFPI (em
Esperantina-PI), de Chaval-CE, da Escola Estadual Senador Chagas Rodrigues, em Parnaíba.
Aos muitos colegas professores que foram – e são – importantes nesse processo de construção
do saber. Na escola estadual Chagas Rodrigues agradeço em especial, pela paciência, às
queridas Marisa Ribeiro e Jaqueline Feitosa. Quando precisei me ausentar da sala de aula, para
cumprir os créditos do Doutorado no Rio de Janeiro, elas muito me ajudaram. Meu muito
obrigado!
Agradeço aos queridos amigos “viajantes”, que acompanharam todo o percurso
comigo em nosso grupo de whatsapp. Obrigado ao prof. Dr. Frederico Osanan Amorim Lima,
amigo de muitas aventuras e aprendizados desde ébrios tempos. Agradeço ao grande amigo,
Me. João Carlos Borges, pela parceria desde a Graduação e Mestrado em História. Agradeço
ao amigo prof. Me. Sérgio Luiz da Silva Mendes pela fraterna amizade e parceria; ao prof. Dr.
Cleto Sandys do Nascimento e a teacher Dra. Renata Cristina da Cunha, pelo carinho. Agradeço
às queridas Gabriela Costa (e o pequeno Emanuel Bento), Natália (e a pequena Lara). Em
especial, nos “viajantes”, agradeço ao querido prof. Dr. Idelmar Gomes Cavalcante Júnior.
Idelmar foi meu primeiro orientador, na Graduação em História, na UESPI, e foi quem primeiro
acreditou que eu “teria futuro” na área, me guiou no momento em que eu mais precisava “criar
juízo” e sempre foi um grande e fiel amigo. Sou e serei sempre grato a você, camarada!
Essa pesquisa se iniciou de uma conversa que tive com meu querido tio, Silvio
Roberto França de Barros. Em um momento de tristeza, com a partida de meu avô, Evilásio dos
Santos Barros, em dezembro de 2015. Tio Silvio me contou de sua prisão em 1964. A partir de
então mudei minhas leituras e pesquisas para a análise do golpe e o contexto dos anos 1960.
Agradeço imensamente por ter inspirado a ideia deste trabalho. Agradeço também à minha tia
Iara França de Barros, ao tio Gilberto França Barros, pelas entrevistas e dados para a pesquisa.
Em meio à escrita da tese perdi a minha avó Carmelita, em maio de 2020. Suas falas muito me
ajudaram a seguir em frente com o trabalho. Esse trabalho é dedicado à memória dos meus avós
paternos (Carmelita e Evilásio) que viram de perto o terror do Estado militarizado.
Agradeço, por fim, aos meus familiares. Dedico esse trabalho à memória de minha
avó materna (Albertina Castro) e da tia Dida (Raimunda Oliveira). Agradeço à dona Célia
Castro e seu Gonzaga Silva (meus pais) – por serem sempre o porto seguro – bem como
agradeço aos meus irmãos, Tiago Castro e Gonzaga Junior. Agradeço imensamente à minha
companheira, Simone Silva, pela compreensão, parceria e por acreditar no meu trabalho. Ainda
por aguentar me ouvir falar por horas e horas – mesmo em nossos momentos de lazer – sobre
golpe de 1964, ditadura, pesquisa, etc. Agradeço ainda a Simone pelo maior presente que
alguém poderia ganhar na vida, que é nosso filho, Heitor Castro Silva, que nasceu às 14:49 do
dia 24 de março de 2020. Heitor é amor que não cabe no peito. Heitor é esperança, alegria, em
tempos de (in)certezas e isolamento social.
“A quem, é o que pergunto, quem se interessaria hoje por tão
mesquinhos meandros de um tempo distante, e a resposta que
meu pai repete é uma absurda mescla de devaneio e lucidez: as
ditaduras podem voltar, você deveria saber. As ditaduras
podem voltar, eu sei, e sei que seus arbítrios, suas opressões,
seus sofrimentos, existem das mais diversas maneiras, nos
mais diversos regimes, mesmo quando uma horda de cidadãos
marcha às urnas bienalmente – é o que penso ao ouvi-lo, mas
me privo de dizer, para poupá-lo da brutalidade do mundo ou
por algum receio de que não me entenda”. (Julián Fuks, A
Resistência. 2015, p. 40)
RESUMO

Esta pesquisa analisa os desdobramentos do golpe de 1964 no espaço norte-piauiense. Para isso,
em um primeiro momento, evidencia a formação de uma agenda política trabalhista no final
dos anos de 1950 e início dos anos 1960 em Parnaíba (principal centro econômico do estado),
bem como lança luz ao processo de organização dos sindicatos e partidos políticos naquele
contexto. A configuração política dos grupos petebistas e o quadro de ampliação das pautas
reformistas são importantes para a compreensão da ampliação dos movimentos sociais nesse
estado, sobretudo durante o transcurso do governo João Goulart (1961-1964). Analiso, a partir
de então, o inquérito policial militar aberto após o golpe, em Parnaíba, contra trabalhadores,
lideranças sindicais e políticas, ligados ao PTB e ao PCB, com argumentos fortemente
anticomunistas, empregados ao mesmo tempo por grupos de oposição ao reformismo. Contra a
tentativa de apagamento histórico dessas medidas repressivas e da agenda trabalhista, procurei
elencar algumas memórias sobre as perseguições políticas e os diferentes usos políticos desse
passado em âmbito local. Para tanto, me utilizo das discussões conceituais da História política
renovada, em particular a perspectiva teórico-analítica da cultura política. Uma das questões
importantes que levanto, na segunda parte do trabalho, se refere às práticas de adesão,
acomodação e colaboração com as medidas autoritárias de parcelas da sociedade piauiense
naquele momento de ruptura institucional. Nesse sentido, analiso, por meio de jornais de
circulação local, algumas das iniciativas de apoio aos militares por parte das elites comerciais,
políticas e jurídicas do Piauí após o golpe. Objetivei evidenciar que variados grupos civis foram
contrários a quaisquer medidas que pudessem modificar as estruturas econômicas e sociais
nesse estado, sobretudo com relação à posse de terra. Estabeleceu-se, então, um ambiente
marcado por profundas críticas ao reformismo, ao passo que, após a derrubada do governo
Jango, parte dessas elites buscou, rapidamente, se conectar aos militares, bem como passou a
sustentar o novo regime em âmbito local.

Palavras-Chave: História. Golpe de 1964. Piauí. Cultura política.


ABSTRACT

This research analyzes the unfoldings of the 1964 coup d'etat in the north of the state of Piauí.
For this, at first, the formation of a political labor agenda in the late 1950s and early 1960s is
evidenced in Parnaíba (the main economic center of the state), as well as shedding light on the
process of organizing unions and political parties in that context. The political configuration of
groups of the PTB (Brazilian Labor Party) and the framework for broadening the reformist
agendas are important for understanding the expansion of social movements in that state,
especially during the course of the government of João Goulart (1961-1964). Based on that, I
analyze the military police inquiry opened after the coup in Parnaíba against workers, union
and political leaders, linked to the PTB and the PCB (Brazilian Communist Party), with strongly
anti-communist arguments used, at the same time, by groups opposed to reformism. Against the
attempt of historical erasure of these repressive measures and the labor agenda, I list some
memories about the political persecutions and the different political uses of this past in the local
perspective. For that, I use the conceptual discussions of renewed political history, in particular,
the theoretical-analytical perspective of political culture. One of the important issues raised, in
the second part of the work, refers to the practices of adherence, accommodation and
collaboration with the authoritarian measures by portions of the society of Piauí at that moment
of institutional rupture. In this sense, I analyze, through local newspapers, some of the initiatives
to support the military by the commercial, political and legal elites of Piauí after the coup. I
aimed to show that various civil groups were against any measures that could change the
economic and social structures in that state, especially regarding land tenure. Then, an
environment marked by deep criticism of reformism was established, whereas, after the
overthrow of the Jango government, part of these elites quickly sought to connect with the
military, as well as to support the new regime at the local level.

Keywords: History. 1964 coup d'etat. Piauí. Political culture.


LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – O Prefeito e o Presidente. Fonte: Jornal Gazeta do Piauí, ano VII, nº 364. Parnaíba-
PI, 30 de setembro 1961............................................................................................................ 86

Figura 2 – Campanha de 1958. ..................................................................................................89

Figura 3 – Conselho fiscal e Diretoria da Associação Profissional dos Camponeses de


Lavradores de Parnaíba ..........................................................................................................115

Figura 4 – Diploma da posse de Evilásio dos Santos Barros na função de Presidente da


Federação dos Trabalhadores na Indústria no Estado do Piauí, no biênio 1961-1963, assinado
pelo prefeito José Alexandre Caldas Rodrigues, do PTB. (15 de novembro de 1961) ..........196

Figura 5 – Carteira Profissional do Ministério do Trabalho e Previdência Social de Evilásio dos


Santos Barros...........................................................................................................................197

Figura 6 – Capa do Almanaque da Parnaíba. Ed. 1965...........................................................218

Figura 7 – Marcha da Família com Deus pela liberdade no Piauí.............................................262

Figura 8 – Centro Cívico em 1968...........................................................................................263


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ACP – Associação Comercial Parnaibana


AP – Ação Popular;
ARENA – Aliança Renovadora Nacional
ASA – Ação Social Arquidiocesana
ALEPI – Assembleia Legislativa do Piauí
CEPRO – Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí
CNV – Comissão Nacional da Verdade
CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas
CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria;
CPOS – Comissão Permanente das Organizações Sindicais
CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito
CGT – Comando Geral dos Trabalhadores
CONTEC – Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito
CTB – Central dos Trabalhadores Brasileiros
DOI-CODI – Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa
Interna
FECOMÉRCIO – Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo
FMP – Frente de Mobilização Popular
FMI – Fundo Monetário Internacional
FPN – Frente Parlamentar Nacionalista
FSD – Fórum Sindical de Debates
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática
IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
IPM – Inquérito Policial Militar
LSN – Lei de Segurança Nacional
MUT – Movimento de Unificação dos Trabalhadores.
PAC – Pacto de Ação Conjunta
PUA – Pacto de Unidade e Ação
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PDS – Partido Democrático Social
PSD – Partido Social Democrático
POLOP – Organização Revolucionária Marxista – Política Operária
POR-T – Partido Operário Revolucionário (Trotskista)
UDN – União Democrática Nacional
UNE – União Nacional dos Estudantes
URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
SAPS – Serviço de Alimentação da Previdência Social
SERSE – Serviço Social do Estado
SUDENE – Superintendência para o Desenvolvimento do Nordeste
STF – Supremo Tribunal Federal
SUPRA – Superintendência da Política Agrária
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14

CAPÍTULO I – ENTRE SINDICATOS E PARTIDOS: A FORMAÇÃO DO


TRABALHISMO EM PARNAÍBA NA DÉCADA DE 1950 .......... .....................................28

Disciplina, organização e trabalho: padrões e posturas para o “bom trabalhador” na


imprensa parnaibana..............................................................................................................34

O processo de formação política do trabalhismo parnaibano nos anos


1950……...…............................................................................................................................44

A ferro e fogo: as práticas eleitorais no final dos anos 1950 e o uso da violência nas
disputas entre os grupos político-partidários no
Piauí..........................................................................................................................................61

CAPÍTULO II – PETEBISMO, REFORMISMO RADICAL E REAÇÃO


ANTICOMUNISTA NO PIAUÍ NOS ANOS 1960............................................................ ...76

Lutam os trabalhadores piauienses: enfrentamento, organização sindical e reformismo


nos anos 1960 ........................................................................................................................ ..95

Contra o “comunismo ateu”: discursos anticomunistas no Piauí dos anos


1960.........................................................................................................................................126

CAPÍTULO III – DESDOBRAMENTOS DO GOLPE EM PARNAÍBA: UMA ANÁLISE


DAS PRÁTICAS REPRESSIVAS INSTAURADAS EM
1964.........................................................................................................................................144

Os fios da memória: perseguições, cassações políticas no Piauí e a tentativa de apagamento


histórico-social sobre a repressão.........................................................................................174
Evilásio dos Santos Barros: líder sindical do CNTI atingido pelo golpe.........................193

CAPÍTULO IV – CULTURA POLÍTICA E CONSERVADORISMO: O GOLPE DE


1964 NO PIAUÍ E AS PRÁTICAS COLABORACIONISTAS DAS ELITES POLÍTICAS,
JURÍDICAS E COMERCIAIS............................................................................................207

Entre o golpe e a ditadura: o mundo jurídico piauiense e o apoio à ruptura institucional


de 1964....................................................................................................................................222

Acomodação à "nova ordem": as elites políticas piauienses e o colaboracionismo com o


regime militar em 1964.........................................................................................................232

As Marchas da Família Com Deus pela Liberdade e as celebrações ao “civismo” no


Piauí........................................................................................................................................252
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................269

REFERÊNCIAS....................................................................................................................274
14

INTRODUÇÃO

O golpe civil-militar de 1964 – bem como seus desdobramentos – é tema


bastante evidente nestes dias que correm. Desde 2013/2014, sobretudo após as eleições que
confirmaram o 4º mandato consecutivo do Partido dos Trabalhadores no governo brasileiro,
os grupos mais conectados com as bandeiras das direitas, por meio de temas, tais como o
“combate à corrupção”, e críticos aos governos de centro-esquerda, dentro de uma
perspectiva seletiva e enviesada, trouxeram à tona visões negacionistas da ditadura, além de
clamarem, abertamente, por uma nova intervenção militar e pela derrubada do governo
Dilma Rousseff1. Como reação conservadora às centro-esquerdas no poder, organizaram-se,
então, uma série de atos “espontâneos”, com ampla cobertura midiática a estimular a adesão
social a tais eventos2.
Um novo golpe – jurídico, parlamentar e midiático – se consumou em 2016, por
meio de um impeachment marcado pelo clima de fortalecimento do antipetismo, com direito
a voto de um parlamentar homenageando um reconhecido torturador do período ditatorial
(Carlos Alberto Brilhante Ustra)3. Após as eleições presidenciais de 2018, quando se elegeu

1
As reações ao governo se tornaram evidentes ao longo do ano de 2013. A princípio, as manifestações daquele
ano, tinham pautas progressistas, como a luta contra o aumento das passagens de ônibus. Na esteira desses
movimentos, aos poucos, muito por conta do amplo apoio midiático, grupos com pautas mais à direita
começam a tomar as ruas do país.
2
Sobre esse aspecto, Luís Felipe Miguel destaca que, a “virulência da direita brasileira após a derrota eleitoral
de outubro de 2014, com sua disposição para virar a mesa a qualquer custo, foi uma surpresa. Em curto espaço
de tempo, a seletividade das instituições se expôs de forma aberta e os mecanismos discriminatórios, de
suspensão das garantias e enviesamento evidente da aplicação da lei, que sempre operaram em desfavor dos
grupos em posição subalterna, foram trazidos para o centro do sistema político”. MIGUEL, Luís Felipe. O
colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo,
Expressão Popular, 2019, p. 13.
3
Carlos Alberto Brilhante Ustra foi Coronel reformado que dirigiu por cerca de quatro anos o DOI-CODI de
São Paulo, um dos mais famosos centros de repressão do Exército. É reconhecido, pelo Estado brasileiro, como
torturador. Seu nome consta em várias denúncias de vítimas de tortura. Entre setembro de 1970 e janeiro de
1974, período em que foi chefe do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de
Defesa Interna, nome completo do DOI-CODI, Ustra tinha como missão, segundo ele mesmo definia,
“combater terroristas que queriam implantar o comunismo no Brasil”. Sob essa ideia, e nesse período, foi
responsável por 47 sequestros e homicídios (de acordo com o relatório Direito à Memória e à Verdade) e 502
desaparecimentos de políticos (segundo o levantamento do projeto Brasil Nunca Mais). O relatório final da
Comissão da Verdade, documento oficial do Estado brasileiro sobre o período, apontou 377 pessoas, entre eles
o coronel Ustra, como responsáveis diretas ou indiretas pela prática de tortura e assassinatos durante a ditadura
militar. BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Brasília, 2007. MORAES, Camila. Brilhante Ustra, ícone da
repressão da ditadura brasileira. El País Brasil, São Paulo, 15 out. 2015. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/15/politica/1444927700_138001.html. Acesso em: 04 jun. 2020.
15

o ex-deputado que fizera tal homenagem4, o candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro5,


os impasses e tensões referentes ao nosso passado recente se tornaram ainda mais evidentes.
O candidato eleito é um saudosista da ditadura e fez carreira política a partir do final dos
anos 1980, defendendo uma memória positiva dos anos de chumbo, amparado
eleitoralmente por grupos de policiais, militares de baixa patente e nos familiares dos
agentes ligados ao regime.
Pode-se dizer que este momento histórico que vivemos é, em grande medida,
fruto da incapacidade do Estado brasileiro de propor medidas punitivas para os agentes que
cometeram crimes contra a humanidade no período ditatorial 6 , de fazer uma justiça de
transição adequada, bem como propor o fortalecimento de uma cultura política democrática
que retire, inclusive, os entulhos autoritários ainda presentes no aparato jurídico do país7.
Este momento histórico é também consequência de nossa longa tradição conciliadora,
ancorada fortemente em tendências que privilegiam acordos, sobretudo entre as elites.
O tema desta tese está conectado diretamente aos interesses e disputas da
conjuntura atual. Não se prende, portanto, a um passado distante no espaço-tempo, ou tem

4
Na votação do impeachment, a partir da publicação do livro de Thaís Oyama, Bolsonaro dobra o papel e o
guarda no bolso do paletó. Escrevera: “Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência
das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro
de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo
Exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto
é sim”. Ver: OYAMA, Thaís. Tormenta: o governo Bolsonaro - crises, intrigas e segredos. Companhia das
letras: 2020. p. 11.
5
“Bolsonaro é ex-capitão do Exército e foi deputado federal por 28 anos. Integrando o conhecido ‘baixo clero’,
a periferia do Congresso, formada por deputados de partidos nanicos, sem influência ou projetos relevantes no
currículo e desprezado pelas lideranças parlamentares, que só lembram dele se precisam de quórum numa
votação”, de acordo Thaís Oyama. Ainda segundo Oyama, “mais do que um deputado do baixo clero, ele era
um representante daquilo que os jornalistas de Brasília apelidaram de cota folclórica do Congresso,
parlamentares que costumam despertar a atenção pelo histrionismo, pelos arroubos verbais no plenário e pelas
confusões em que se metem” (OYAMA, 2020, p.08-09).
6
Maria Celina D’Araújo, em artigo, propõe que “o sucesso dos militares como veto players na questão do
julgamento dos crimes contra a humanidade está relacionado ao tipo de relações civil-militares construída no
país”. Para a autora, “a impunidade tem a ver também com a cultura de direitos humanos existente numa
sociedade. No Brasil, os direitos humanos são um tema emergente e um valor em construção. Essa realidade,
combinada a uma tradição de autonomia militar, criou o pior cenário para a responsabilização individual dos
crimes praticados durante os governos de exceção, e até mesmo nas questões criminais sem cunho político”.
Ver: D’ARAÚJO, Maria Celina. O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no
Brasil. Revista Varia História, Belo Horizonte, vol.28, n. 48, p.573-597, jul./dez. 2012.
7
O governo Bolsonaro, em meados de 2020, encontrou, com bastante frequência, pretextos para ressuscitar a
Lei de Segurança Nacional. Um dos alvos foi o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, por
fazer declarações críticas a respeito dos militares nomeados no ministério da Saúde do governo Bolsonaro.
Sete dias antes, o jornalista Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, também foi alvo ao fazer texto crítico
ao presidente, texto considerado ofensivo. Em junho de 2020, o alvo foi o cartunista Aroeira, do Portal Brasil,
por produzir charge ironizando o fato de Bolsonaro ter estimulado seguidores a invadir hospitais de campanha,
responsáveis pelo tratamento do coronavírus, para filmar suas dependências. Ver: FRANCO, Bernardo Mello.
Entulho autoritário. O Globo, 19 jul. 2020. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-
franco/post/entulho-autoritario.html. Acesso em: 20 jul. 2020.
16

seus dilemas resolvidos. Parte-se do princípio, neste trabalho, de que existe fortemente
impregnada uma cultura política autoritária no Brasil, que emerge de tempos em tempos.
Ela se reflete, como se pode perceber, contrária a quaisquer bandeiras progressistas que
digam respeito a medidas de inclusão social, de propostas de reformas do Estado brasileiro,
de medidas de inserção das camadas populares; ou simplesmente de acesso à renda por parte
dos grupos menos favorecidos economicamente, que sejam propostas como uma política
pública de fortalecimento da cidadania. Esta tese, portanto, foi escrita a partir de nossas
demandas do presente e com um olhar atravessado pelo agora.
Neste prisma, esta tese analisa o golpe de 1964 e seus desdobramentos no estado
do Piauí, a partir das disputas entre diferentes culturas políticas no contexto da experiência
liberal democrática (1945-1964). Sobretudo, vai evidenciar o processo de ampliação do
trabalhismo e do anticomunismo em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 em Parnaíba
e na capital piauiense (Teresina). Parte-se da premissa de que a repressão aos trabalhadores,
lideranças políticas e sindicais piauienses, em 1964, nomeando-os de “subversivos” e/ou
“comunistas”, assume como uma das finalidades a busca por inviabilizar o processo de
alteração política e os desdobramentos que as lutas dos movimentos sociais poderiam causar
também nesse espaço.
Nesse sentido, analiso como se processaram, em âmbito local, as disputas em
torno do reformismo e, como reação, do anticomunismo, característicos de um contexto
marcado por fortes tensões e disputas políticas no quadro político nacional. Um dos pontos
centrais é a percepção de como se articularam, do ponto de vista social, os impactos do golpe
de 1964 no Piauí, tendo em vista que os maiores atingidos com medidas punitivas foram os
trabalhadores sindicalizados e os quadros do PTB, assim como os grupos ligados ao PCB
piauiense. Além disso, analiso ainda, quais foram as medidas repressivas adotadas no estado,
bem como o processo de adesão, acomodação 8 social e mesmo colaboracionismo com
relação ao golpe, em 1964, por parte das elites civis piauienses.
Essas práticas adesistas foram aqui analisadas por meio de matérias, boletins,
notas na imprensa piauiense e de atos prenhes de simbolismo, como as “Marchas da Família
com Deus pela Liberdade” também realizada nesse estado; bem como a construção de

8
Acomodação, diferente das práticas de adesão direta a um regime de força, ou mesmo o colaboracionismo
puro e simples, de acordo com Rodrigo Motta, refere-se a um tipo de prática que representa estratégia de lidar
com o Estado autoritário nos interstícios entre a resistência e a colaboração/adesão. Ver: MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. Ruptura e continuidade na ditadura brasileira: a influência da cultura política. In: MOTTA, Rodrigo
Patto Sá; ABREU, Luciano Aronne de (Orgs.). Autoritarismo e cultura política. Porto Alegre, FGV: Edipucrs,
2013. p. 25.
17

monumentos em referência ao “civismo” e ao “patriotismo” – marcas do regime – nesse


estado. Proponho analisar o golpe, mais especificamente os seus desdobramentos no Piauí,
a partir de seus sustentáculos no corpo social, por meio das declarações públicas de agentes
das elites políticas, econômicas e jurídicas piauienses. Esses atores não só se posicionaram
contra as pautas reformistas, em particular a reforma agrária, em alguns casos 9 , como
apoiaram efetivamente a intervenção militar que derrubou a experiência liberal-democrática
aberta em 1945, fazendo sustentação aos militares e aos atos de exceção durante os anos do
regime.
Contra a tentativa de apagamento histórico de uma cultura política em torno do
trabalhismo, sobretudo no norte-piauiense, das experiências sindicais e dos movimentos
sociais que ganharam corpo no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, tento evidenciar
um quadro político diverso, múltiplo, com seus limites e possibilidades, marcado por uma
pluralidade de atores e por disputas em torno da defesa de projetos de desenvolvimento
distintos para o país e para o estado. É no quadro das possibilidades abertas com a
experiência liberal democrática (1945-1964) que se constituiu, sobretudo na cidade de
Parnaíba, por suas condições econômicas de “empório comercial do estado”, a possibilidade
de um projeto político trabalhista, que dialogasse com os trabalhadores sindicalizados,
trazendo-os, a partir de então, para o cenário das disputas partidárias.
O evidente protagonismo dos trabalhadores, a amplificação das pautas
trabalhistas, bem como uma maior organização de sindicatos urbanos e rurais, alguns deles
ligados às federações e confederações da classe laboral, ao PTB e PCB, vão, aos poucos,
gerar discursos depreciativos por parte dos grupos mais conservadores, pois estes
certamente temiam a perda de seus privilégios econômicos e sociais 10. Passaram então a

9
Nesse quadro político piauiense existem algumas ambiguidades a destacar ao longo deste trabalho. A defesa
das pautas reformistas também foram marcas do governo do udenista Petrônio Portella (1963-1966), no
executivo estadual, como forma de angariar apoio junto ao governo João Goulart (1961-1964). O governador
Petrônio, no momento do golpe, decorridos seus primeiros sinais, saiu em “defesa da democracia” e do governo
Jango. No entanto, com o desenrolar dos acontecimentos no centro de poder, passou rapidamente para o lado
dos militares, logo após consolidado o golpe. Vou destacar esse aspecto controverso em tópico do último
capítulo desta tese.
10
Em alguns jornais, como O Norte, de circulação em Parnaíba, é possível averiguar que, desde os anos 1950,
durante o segundo governo Vargas, por meio da atuação de João Goulart no Ministério do Trabalho, as pautas
dos trabalhadores urbanos na cidade começaram a ganhar as ruas, de forma a buscar melhorias salariais, além
do atendimento de algumas questões básicas para a classe laboral. Dentro deste quadro, novas propostas
políticas vão ser buscadas, por meio dos sindicatos de trabalhadores, bem como do PTB, tendo como princípio
norteador a valorização salarial, o cumprimento da legislação trabalhista, além da própria necessidade de se
elegerem representantes da classe trabalhadora. Exemplo disso é matéria intitulada: Grande passeata do
trabalhador parnaibano em prol do salário mínimo. Consta na matéria que: “Os trabalhadores parnaibanos,
através de seus sindicatos, realizaram ordeira passeata em prol da aprovação da nova lei do salário mínimo.
Na tarde de domingo, saindo da sede do sindicato dos Estivadores do Piauí, os trabalhadores de Parnaíba, com
a cooperação do povo e dos sindicatos de classe, realizaram, dentro da mais perfeita e absoluta ordem, uma
18

operacionalizar uma narrativa opositora ao campo reformista, em torno da possível


implantação de uma “ditadura síndico-comunista” pelos apoiadores do governo João
Goulart. Esse foi um dos argumentos mais utilizados para reprimir e cercear os movimentos
dos trabalhadores e todas as iniciativas ligadas às pautas reformistas em ascensão no início
da década de 1960, bem como para fundamentar e legitimar socialmente os discursos
adesistas ao “novo regime”.
Para uma melhor compreensão do cenário político em que se inserem essas
transformações, como a entrada de grupos ligados aos sindicatos e de novas pautas
referentes à valorização do trabalhador, foi preciso analisar, de forma breve, o cenário
político e econômico da cidade de Parnaíba para situar essa pesquisa. Para os setores ligados
ao comércio local, o município era, ainda nos anos 1950/1960, o mais desenvolvido do
estado do Piauí em termos econômicos, superando em atividades produtivas a capital,
Teresina, como se pode perceber nas matérias dos jornais impressos.

Parnaíba é um município com uma população superior a 60.000 habitantes,


economicamente o maior município do Piauí. Segundo opinião
abalizada do conhecido economista brasileiro Pimentel Gomes. É
considerada como a mais progressista cidade do Norte e Nordeste
brasileiro, apresentando no seu aspecto geral, um surto de progresso
magnífico, principalmente de setores comerciais, industriais, sociais e
culturais11 (grifo meu)

Apesar do tom grandiloquente do trecho supracitado, é preciso problematizar o


jogo discursivo entre riqueza e pobreza no espaço norte-piauiense e os dados referentes ao
desenvolvimento da economia naquele quadro histórico. De um lado, as elites comerciais
parnaibanas ainda se vangloriavam de seu passado recente, de principal economia do estado
e celeiro das principais atividades de extração na primeira metade do século XX. A cidade
fora marcada pela presença de firmas comerciais e circulação de mercadorias importadas,
bem como pelos impactos modernizantes no seu espaço urbano12. Esses, possibilitados pela

passeata interrompida na Praça da Graça: onde se fizeram ouvir inúmeros oradores, finalizando na prefeitura
municipal, local onde falaram outros oradores. Usaram a palavra durante o transcorrer de toda essa
demonstração de civismo, prova irrefutável do regime democrata republicano em que vivemos, quase todos
os presidentes de sindicatos, representantes dos trabalhadores” [...] Grande passeata do trabalhador
parnaibano em prol do salário mínimo. O Norte. Parnaíba, 28 fev. 1954.
11
MELO, Machado. Problema do Leite em Parnaíba. Gazeta do Piauí. 11 jul. 1959.
12
Josenias dos Santos Silva destaca que, até meados do século XX, o intenso movimento nestes portos foi o
reflexo de uma economia aquecida, podendo se observar que, naquele contexto, os produtos piauienses
estavam na pauta de interesses dos grandes mercados consumidores nacionais e internacionais, principalmente
Europa e Estados Unidos. Destacaram-se como produtos de exportação a borracha da maniçoba, a cera de
carnaúba, o babaçu, couros em pelo, algodão, fumo, resinas, etc. Além de comprar, beneficiar e exportar estes
produtos, Parnaíba se destacou também por apresentar um grande contingente de firmas comerciais dos mais
variados ramos – como empresas de representação, miudezas, ferragens, armarinhos, etc. – o que, além de
19

ampliação das atividades ligadas à cera da carnaúba, ao óleo de babaçu e a outros produtos
vegetais. Por outro lado, por meio da imprensa local, percebia-se, de modo acentuado, uma
narrativa atravessada pela ideia de que o Piauí era excluído dos ideais desenvolvimentistas
do governo central13.
No que diz respeito aos principais produtos de exportação ligados ao
extrativismo vegetal, que trouxeram um certo dinamismo econômico para Parnaíba e
formaram uma pequena – porém orgulhosa – elite comercial na cidade, desde o início do
século, aponta Antônio José Medeiros, que:

A exportação da borracha da maniçoba se estende apenas até 1915. Maior


duração e maior impacto tiveram os ciclos concomitantes da carnaúba e
do babaçu. Em 1907, a cera de carnaúba já ocupava o segundo lugar na
ordem de importância dos produtos exportados. O babaçu começa a ser
exportado a partir de 1911. Os dois produtos alternarão a liderança nas
exportações piauienses por toda a primeira metade do século, e ainda nos
anos 1950-60 alimentarão disputas na definição de políticas econômicas14.

Contraditoriamente, enquanto se falava de prosperidade, de uma “cidade


progressista” como seria Parnaíba, as falas denunciadoras da pobreza e isolamento em que
se encontrava o estado piauiense ganhavam corpo, buscando cada vez mais investimentos
de recursos da União para o Piauí, o que se entendia como uma possível solução para a crise
econômica em que se encontrava o estado. Nos anos 1950/1960, no que diz respeito às
atividades de exportação do extrativismo, Parnaíba começou a sentir um efeito da
diminuição das exportações da cera da carnaúba, que havia impulsionado o comércio local.
Se na primeira metade do século, os grandes comerciantes parnaibanos falavam em
“progresso”, em “evolução”, em “grandes surtos de desenvolvimento econômico”, na

suprir sua demanda interna, a transformou num polo aquecido para o comércio regional. Ver: SILVA, Josenias
dos Santos. Almanack da Parnahyba: no tempo dos bons ventos fluviais. VI Simpósio Nacional de História
Cultural Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar. Universidade Federal do Piauí – UFPI. Teresina-PI, 2012.
Ver também: SILVA, Josenias dos Santos. Parnaíba e o avesso da Belle Époque: cotidiano e pobreza (1930-
1950). 2012. 120 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2012.
13
Em alguns casos, apontava-se a inabilidade do governo estadual, na segunda metade dos anos 1950 tocado
pelo pessedista, “Coronel” Gayoso (1955-1958), a incapacidade de resolução dessa crise econômica que
assolava o estado. Em texto no jornal parnaibano O Paladino, em 1956, destacava-se que: “A crise aumenta
dia a dia. A arrecadação estadual já não é mais suficiente para cobrir as despesas. O déficit é extraordinário.
Fala-se muito em compressão de despesas, medidas preventivas no sentido de defender o depauperado tesouro
estadual, mas tudo não passa de planos supérfluos, traçados em gabinetes secretos, por meia dúzia de homens,
que se dizem em matéria de finanças, mas que nada fazem, a não ser defender seus próprios interesses [...]”.
MARTINS, José. Esta é a verdade. Jornal O Paladino. Parnaíba-PI. 11 ago. 1956, p. 05.
14
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais e participação política. Teresina: Centro Piauiense de Ação
Cultural, 1996, p. 23.
20

segunda metade houve, cada vez mais visivelmente, a diminuição das arrecadações; e isso
se tornou um fator marcante nos discursos midiáticos e políticos piauienses15.
Naquele momento os efeitos da crise dos produtos do extrativismo vegetal
começaram a se tornar matéria dos mais diferentes jornais, mas também ensejaram a criação
de grupos de estudo, como do grupo dos intelectuais reunidos em torno da revista
Econômica Piauiense. Sob a direção do professor Raimundo Nonato Monteiro de Santana16,
o grupo tentou compreender as causas e os efeitos da crise pelos quais então passava a
arrecadação das receitas no Piauí. Propondo, ao mesmo tempo, alternativas viáveis para a
retomada econômica do estado em um cenário de expansão da economia a nível nacional,
de integração regional, sob a ótica desenvolvimentista17, mas de aprofundamento dos deficits
das receitas públicas do estado do Piauí. O que notoriamente se aprofunda no início dos anos
1960.
Foi nesse cenário de evidente crise econômica para o estado que se vislumbrou
um maior protagonismo político dos trabalhadores por meio de seus sindicatos e categorias
associativas. O momento foi marcado por um aprofundamento da agenda reformista no
âmbito nacional, a estimular a criação de medidas de modificação da ordem vigente.
Trabalhadores piauienses, por meio de seus mecanismos de representação de classe, foram

15
Naquele momento, como indica Medeiros, “a sociedade piauiense se deparava com uma grave crise
econômica, ocasionada pelo colapso da economia extrativa, que a Segunda Guerra trouxera” e ao mesmo
tempo começavam a pensar alternativas as mais distintas. Após o declínio da pecuária no final do século XIX,
o extrativismo dos produtos vegetais se mostrara como atividade econômica de grande importância, pelo
menos para as elites latifundiárias, tendo em vista que a cera de carnaúba e a borracha da maniçoba tinham
aceitação industrial no mercado internacional e garantiam o domínio econômico das oligarquias do sertão.
Com a crise das exportações, a pobreza se generalizava no Piauí dos anos 1950 e o extrativismo dava lugar ao
comércio local e à agricultura, atividades de subsistência que impunham um relativo isolamento espacial [...]
Ver: MEDEIROS, Antônio José. Op. Cit. 1996; QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. Economia piauiense:
da pecuária ao extrativismo. 3. ed. Teresina: EDUFPI, 2006.
16
Professor, bacharel em Direito e escritor. Diplomado também pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros
em Economia Política e Sociologia. Nasceu em Campo Maior, em 27 de fevereiro de 1926. Professor
catedrático da Universidade Federal do Piauí, lecionou também na Universidade de Brasília, na Escola
Superior de Guerra e no Colégio Interamericano de Defesa, em Washington (EUA). Foi prefeito de Campo
Maior, entre 1951 e 1955. Fundou e editou a Revista Econômica Piauiense. Fundou o Centro de Estudos
Piauienses (1957), Movimento de Renovação Cultural do Piauí (1960), o Fórum Cultural do Piauí e a Fundapi
- Fundação de Apoio Cultural do Piauí. Presidiu a Academia Piauiense de Letras (2000-2001), onde ocupa a
cadeira número 32. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, do Conselho Estadual de Cultura e
do Conselho Municipal de Cultura de Teresina. Bibliografia: O Desenvolvimento Econômico Nacional na
Teoria Econômica Geral (1959); Aspectos de uma Ideologia para o Desenvolvimento; Perspectiva Histórica
do Piauí; A Evolução Histórica da Economia do Piauí, 1965, Piauí: Formação – Desenvolvimento –
Perspectivas, 1995, e Apontamentos para a História Cultural do Piauí, 2003.
17
Esse é contexto de criação, no plano nacional, da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a
SUDENE, sob a direção de Celso Furtado. Enquanto o Brasil respirava euforicamente os ditos “anos de ouro”,
do Governo Juscelino Kubitschek, com amplos investimentos na abertura de estradas de rodagem, da abertura
da economia para o capital internacional e de forte industrialização, sobretudo da indústria automobilística, o
Piauí, começava a sofrer com a diminuição da viabilidade econômica dos produtos vegetais que exportava e,
até então, sustentava o otimismo de sua classe comercial.
21

adquirindo maior evidência e passaram a colocar na ordem do dia a valorização profissional,


assim como a necessidade de mudanças nas estruturas socioeconômicas desse estado,
antenados com as pautas progressistas que circulavam no país naquele momento.
Neste trabalho, do ponto de vista conceitual, me utilizo como fundamento
teórico-analítico da noção de cultura política. Esse conceito, de acordo com o historiador
Rodrigo Patto Sá Motta, se refere a um “conjunto de valores, tradições, práticas e
representações políticas partilhados por determinado grupo humano, que se expressa numa
identidade coletiva e fornece leituras comuns do passado, assim como fornece inspiração
para projetos políticos direcionados para o futuro”18.
O conceito supracitado, bem como as percepções que ele oferece, são
fundamentais para as análises aqui empreendidas. Sobretudo questões referentes à criação
de imaginários políticos, de representações sociais simplificadoras a respeito do comunismo,
além de ajudar a analisar as maneiras como se posicionaram os diferentes atores no quadro
piauiense nos anos 1950/1960. A cultura política autoritária de determinados setores da
sociedade brasileira é elemento de longa duração e ajuda a pensar nas dificuldades que temos
– até hoje – na concretização da democracia em um país marcado por sucessivos golpes e
intervenções antidemocráticas.
O trabalho, portanto, é produzido dentro das abordagens propostas no campo da
Nova História Política. Não mais aquela produzida em fins do século XIX, combatida pelos
Analles, mas uma História Política, também de inspiração francesa, que emergiu após os
anos 1970/198019. Nesse ponto, a ideia de cultura política, nos termos empregados por Serge
Berstein, se localiza na “encruzilhada da história cultural com a história política”. Esse tipo
de abordagem, ainda de acordo com Berstein, “tenta uma explicação dos comportamentos

18
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia.
In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Culturas políticas na História: novos estudos. 2ª ed. Belo Horizonte,
BH: Fino Traço, 2014. p. 21.
19
De acordo com Marieta de Moraes Ferreira, diferente dos anos 1950, quando os Annales estabeleceram um
predomínio da História social e econômica, “a dimensão política dos fatos sociais começou a ganhar novos
espaços, num processo chamado por Remond de ‘renascimento da história política’”, entre os anos 1970 e
1980. Entre os espaços de produção dessa nova História política estava a “Fondation Nationale de Sciences
Politiques e da Universidade de Paris X - Nanterre, que funcionaram como espaços de integração para
especialistas de origens e formações diversas”. Marieta Ferreira destaca as questões referentes ao contexto
histórico, como “as transformações sociais mais amplas, que propiciaram o retomo do prestígio ao campo do
político, e a própria dinâmica interna da pesquisa histórica”, como importantes. Além disso a autora destaca a
questão da interdisciplinaridade como elemento fundamental para essa mudança no campo da História. Ver:
FERREIRA, Marieta de Moraes. A nova "velha História": O retorno da história política. In: Estudos Históricos:
Historiografia, Rio de Janeiro, 1992.
22

políticos por uma fração do patrimônio cultural adquirido por um indivíduo durante sua
existência”20.
Assim, a ideia de cultura política é importante para pensar nas ações dos agentes
políticos não como meramente isolados, mas percebendo que suas práticas se processam,
em grande medida, nas tensões que marcam parcelas do corpo social em determinados
contextos. Essa noção diz respeito a “um fenômeno individual, interiorizado pelo homem e
um fenômeno coletivo, partilhado por grupos numerosos” 21. Nesses termos, como indica
Berstein, “a cultura política, como a própria cultura, se inscreve no quadro das normas e
dos valores que determinam a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu
passado e do seu futuro”22.
Quanto à divisão do trabalho, no primeiro capítulo analiso a inserção da
experiência trabalhista na cidade de Parnaíba, sobretudo quando ganhou maior evidência,
na segunda metade da década de 1950, no sentido de observar as particularidades dos
conflitos políticos nessa cidade. O capítulo possui três itens em seu desenvolvimento. No
primeiro, evidencio a formação de uma narrativa empreendida por uma imprensa ligada aos
trabalhistas norte-piauienses, em torno da necessidade de concretização dos ideais de
“disciplina, organização e racionalização” nas atividades desenvolvidas pelos trabalhadores
naquele momento. Essas narrativas, a meu ver, buscavam gerar uma espécie de pacto entre
as classes sociais e, de certa forma, dar um novo sentido às atividades laborais.
No segundo item desse primeiro capítulo, analiso a formação do trabalhismo
norte-piauiense com relação às disputas empreendidas contra o grupo político do então
prefeito de Parnaíba, Alberto Tavares Silva 23, da UDN. Esse agente era ligado aos interesses
dos grandes proprietários nos arredores da cidade de Parnaíba e foi beneficiário da política
dos militares após o golpe. Analiso ainda as pautas defendidas pelos petebistas, com relação
ao custo de vida, aos direitos trabalhistas, dentre outras, bem como procuro perceber como
elas foram importantes, em certo sentido, para trazer, para o âmbito das disputas eleitorais,

20
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, J.P.; SIRINELLI, J.F. (Dir.). Para uma História cultural.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p.359.
21
BERSTEIN, op. cit. p.360.
22
BERSTEIN, op. cit. p.360.
23
Alberto Tavares e Silva nasceu em Parnaíba (PI) em 1918, filho de João Carvalho de Tavares Silva e de
Evangelina Rose e Silva. Descendente de família de prestígio político no estado, elegeu-se prefeito de Parnaíba,
pela UDN, no pleito suplementar de 1947 e nas eleições de 1954. Ligado à UDN e aos grupos oligárquicos
locais, foi Prefeito de Parnaíba (1948-1950) (1955-1958). Deputado Estadual: 1950 (renunciou); Governador
nomeado do Piauí: (1971-1975) e eleito (1987-1991); Deputado Federal (1994-1997) e (2007-2009); Senador
da República (1979-1986) (1992-2006). Durante a ditadura filiou-se ao partido do governo, a Aliança
Renovadora Nacional (Arena), liderando no Piauí facção contrária à do ex-governador do estado, Petrônio
Portela (1963-1966).
23

parte da classe trabalhadora local. Além disso, procuro evidenciar como essas práticas e
narrativas políticas estavam conectadas às modificações patentes no quadro de reformulação
do PTB nacional.
Já no terceiro item, analiso o largo uso da força física, de meios extralegais
empreendidos por grupos partidários em Parnaíba, enquanto produto de uma cultura política
marcada pela violência, pelas perseguições a opositores, ameaças e uso seletivo da força
policial, que se faziam constantes. Isso, apesar de uma narrativa valorativa por parte de uma
imprensa ligada aos comerciantes parnaibanos, como o Almanaque da Parnaíba, em torno
de uma cidade “pacata e ordeira”. Nesse sentido, pude fazer análises mais detidas, por meio
das fontes, sobre os grupos políticos parnaibanos nos anos 1950, em jornais como: O
Paladino e Gazeta do Piauí, próximos aos trabalhistas. Esses foram analisados a pretexto
de perceber a emergência de um discurso em prol do trabalhismo e em oposição às práticas
políticas da UDN parnaibana. A intenção é analisar a formação do trabalhismo e o lugar que
ele ocupou na cidade de Parnaíba-PI nos anos 1950/1960, com a presença de populares em
aproximação com grupos empresariais, em um momento de ampliação das formas de
organização dos trabalhadores.
O segundo capítulo tem como recorte temporal os anos iniciais da década de
1960 até o golpe de 1964. Momento marcado por uma maior inserção do trabalhismo na
política piauiense, pois à frente do governo estadual, naquele momento, estava Francisco
das Chagas Caldas Rodrigues24, eleito governador do estado (1958-1962) e deputado federal
logo a seguir (1962-1966), sendo cassado pelos militares após o AI-5. Além do seu irmão,
José Alexandre Caldas Rodrigues25, prefeito eleito em Parnaíba (1958-1962) e deputado
estadual cassado pelo golpe (1962-1964). Ambos com larga presença nos sindicatos e com
uma prática política apoiada nas organizações de trabalhadores urbanos, assim como de
associações de trabalhadores rurais no Piauí. Nesse segundo capítulo, me detenho mais
especificamente nos reflexos do governo João Goulart no espaço piauiense, analisando a
ampliação das atividades ligadas aos sindicatos e às plataformas políticas inseridas pelo
governo Chagas Rodrigues e as pautas reformistas que ganhavam corpo naquele momento.

24
Advogado. Nascido em Parnaíba. Uma das figuras mais emblemáticas do PTB piauiense. Eleito deputado
federal pela UDN em 1950, migrou para o PTB sendo reeleito em 1954 e liderando a reformulação partidária
deste partido desde então, junto do Senador Matias Olímpio. Eleito governador do Piauí pelo PTB em 1958,
foi tachado de comunista, muitas vezes, por se aproximar das pautas nacionalistas e dos grupos denominados
ligas camponesas. Elegeu-se novamente Deputado Federal em 1962. Cassado pelo regime militar, após o AI-
5, em 1968.
25
Empresário, herdeiro da firma Poncion Rodrigues e Cia. Foi Prefeito de Parnaíba (1958-1962) e deputado
estadual cassado pelo golpe em 1964. Possuía fortes ligações com os sindicatos parnaibanos e, por isso, foi
indiciado pelo inquérito policial militar aberto em Parnaíba pela Guarnição Federal.
24

Além disso, analiso a emergência de discursos anticomunistas que circulavam no início dos
anos 1960, no Piauí, como reação conservadora ao trabalhismo e ao crescente protagonismo
dos movimentos sociais nesse estado.
Uso como fonte de pesquisa o jornal Folha do Litoral, tendo este, vínculos com
os grupos trabalhistas parnaibanos; outros jornais, tais como O Norte; A Tribuna; Correio
do Povo; além do jornal ligado aos trabalhistas, o já citado Gazeta do Piauí. Esses periódicos
são importantes para analisar as atividades ligadas ao PTB local e as atividades de
organizações de trabalhadores em torno das reformas de base, com a progressiva ampliação
da estrutura sindical no espaço piauiense. Além dessas fontes, utilizo a Revista Caravana,
publicação ligada ao PTB que circulou nos anos 1950 e 1960 no Piauí. Analiso também
alguns textos que começaram a circular em jornais de outros estados a partir dos anos 1950,
dando conta das disputas que envolviam os trabalhadores rurais contra os grandes
proprietários locais, tais como Novos Rumos, Voz Operária e Terra Livre, jornais ligados ao
PCB.
Os textos enviados por trabalhadores rurais do norte piauiense a esses jornais
são ricos de significados e levantam denúncias sobre as condições materiais as quais estes
estavam submetidos, além de enfatizar as lutas travadas pelos mesmos nos povoados ao
redor de Parnaíba. Utilizo também o jornal O Dia, de feição conservadora, em que se
agrupava uma forte oposição ao governo João Goulart no Piauí e ao reformismo, por quadros
locais, como o desembargador e jornalista Simplício de Sousa Mendes26. Esse agente era
ligado à UDN e publicava, em sua coluna no jornal, textos com profundas queixas à gestão
do governador Chagas Rodrigues (1959-1962), contra as reformas de base, o PTB e o PCB.
O desembargador Simplício Mendes, após o golpe, foi uma das vozes mais atuantes em
apoio aos militares e usava de seu poder para propor soluções repressivas contra o legislativo
e o judiciário.
No terceiro capítulo, trato mais detidamente sobre o golpe de 1964 na cidade de
Parnaíba. Analiso a principal fonte desta pesquisa, que é o Inquérito Policial Militar (IPM)
aberto no Piauí. Em particular, trato do inquérito de número 349, disponível na página do

26
Bacharel pela Faculdade de Direito de Recife (1908). Juiz de Direito em Piracuruca e Miguel Alves (PI) foi
presidente do Tribunal de Justiça do Piauí e um dos fundadores da faculdade de Direito do Piauí, tornando-se
professor catedrático de Teoria Geral do Estado. Membro do Tribunal Regional Eleitoral e presidente da
Academia Piauiense de Letras, o intelectual também assumiu a diretoria da Imprensa Oficial do Piauí,
tornando-se presidente do Conselho Estadual de Cultura e jornalista de grande atuação na imprensa local.
Como jurista publicou “O Homem, a sociedade, o direito”.
25

“Projeto Brasil: Nunca Mais Digital”, na internet27. Esse IPM dá conta do processo movido
contra trabalhadores sindicalizados e lideranças políticas trabalhistas e comunistas em
Parnaíba. Me utilizo de tal processo de acusação para perceber as particularidades da
repressão política nesse espaço. Analiso também as matérias jornalísticas que dão conta das
batidas policiais feitas logo após o golpe, com prisões de sindicalistas, cassação de
lideranças políticas do PTB piauiense, bem como da perseguição a líderes do PCB, feitas
pelo Jornal do Piauí, jornal O Dia, dentre outros. Esse capítulo é dividido em mais dois
itens.
Em um primeiro item analiso algumas disputas de memória com relação ao
golpe na cidade de Parnaíba. A intenção desse item é puxar os diferentes fios de memória
sobre o golpe de 1964 nesse espaço. Em minha pesquisa pude compreender que se buscou,
no âmbito local, produzir uma certa memória apaziguadora e simplificadora nos anos finais
do regime. Alguns agentes políticos tentaram, por meio de suas memórias, demonstrar que
na cidade de Parnaíba, por conta de seu “isolamento geográfico”, não se reproduziram
efeitos repressivos em 1964. Ao passo que essas memórias buscaram apagar historicamente
a repressão aos trabalhadores e as experiências de luta dos movimentos sociais nos anos
1950/1960, procuraram estabelecer uma visão muitas vezes celebratória, sobre os
desdobramentos locais do golpe e da ditadura que se seguiu.
Nesse ponto, busquei evidenciar as memórias dos familiares de perseguidos
pelos militares, em sobreposição às visões estabelecidas. Uso então como contraponto,
alguns livros de memória, como os escritos por José Nelson de Carvalho Pires (Conversando
com os meus netos; Porque Parnaíba cidade universitária? e Parnaíba que eu vi). José
Nelson foi vereador pela UDN, secretário municipal de Parnaíba e exerceu outras funções
públicas. Procurou evidenciar, em suas memórias, momentos de tensão nos eventos
posteriores ao golpe. Dou evidência também às memorias dos familiares de um líder sindical
perseguido, Evilásio dos Santos Barros, liderança do CNTI, preso e indiciado em 1964. A
intenção do item é perceber como se processaram as perseguições por parte dos militares

27
O projeto Brasil: Nunca Mais–BNM foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese
de São Paulo nos anos oitenta, sob a coordenação do Rev. Jaime Wright e de Dom Paulo Evaristo Arns. O
BNM teve três principais objetivos: evitar que os processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos
com o fim da ditadura militar, tal como ocorreu ao final do Estado Novo; obter e divulgar informações sobre
torturas praticadas pela repressão política; e estimular a educação em direitos humanos. O inquérito, aberto
em Parnaíba, está disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_04&PagFis=33830. Acesso em: 12 jun.
2020.
26

aos indiciados após o golpe, possibilitando a emergência de outras narrativas políticas, para
além das memórias conciliadoras dos grupos tradicionais.
Já no quarto capítulo – e último – analiso mais detidamente os processos de
adesão, acomodação e colaboracionismo de grupos políticos, comerciais e jurídicos
piauienses ao golpe de 1964. Procurei evidenciar os discursos dos comerciantes ligados ao
Almanaque da Parnaíba que, em edições feitas após o golpe, celebraram a “revolução
democrática de 1964”, com a capa da edição de 1965 desse anuário tecendo elogios à figura
do marechal Castello Branco. Além disso, produzi, nesse capítulo, três itens tratando sobre
como se processaram os apoios das elites civis piauienses aos militares após o golpe.
Em um item analiso as notas, na imprensa, de parcelas do judiciário local como
desembargadores que, por sua cultura política conservadora, deram claras demonstrações
de apreço ao autoritarismo e aos atos de exceção do regime. Em outro item analiso as
práticas de parcela da elite política piauiense com relação ao golpe e aos militares. O caso
em particular do então governador do estado, Petrônio Portella Nunes (1963-1966), é
tomado como exemplar de como parte de nossa elite política buscou se adaptar rapidamente
aos ditames dos militares, mesmo tendo – no caso de Portella – se conectado às pautas
reformistas e apoiado o governo Jango até o momento do golpe.
A intenção, nesses itens, também é perceber que existem grupos que se
beneficiaram com a prática de cassações e expurgos políticos no cenário local e se utilizaram
do clima de “caça às bruxas” no intuito de prejudicar seus opositores. O capítulo, dessa
forma, pretende analisar o imediato pós-golpe, por meio da imprensa piauiense. Os jornais
de viés mais conservador, como O Dia, O Estado do Piauí, Jornal do Piauí, trazem textos
elogiosos aos militares, escritos por nomes ligados à grande propriedade e ao comércio local
que procuraram estabelecer, em um primeiro momento, no processo de acirramento político,
um clima de medo com relação às “reformas” e ao governo Jango e, logo após o golpe, um
sentimento de otimismo com os novos “donos do poder”.
Um último item desse quarto capítulo analisa as proclamadas Marchas da
Família com Deus pela Liberdade em espaço piauiense. Em jornais como O Dia são
perceptíveis as tentativas de se criar um clima de legitimação social aos desdobramentos do
golpe no Piauí, estimulando a população a festejar a “vitória da democracia” por meio do
“ato cívico” de apoio às “gloriosas Forças Armadas”. Nesses textos que circularam nos
jornais piauienses, logo após o golpe, é possível perceber que houve forte oposição ao
reformismo do governo Jango no Piauí, bem como, posteriormente, amplo apoio civil à
ruptura institucional provocada pelos militares. Por meio desses textos, tento perceber as
27

formas de atuação dessa cultura política conservadora no Piauí, no momento do golpe de


1964 e sua aproximação com os militares, logo após se efetivar a derrubada do regime
democrático. Trago também, brevemente, uma análise sobre os monumentos construídos
para a celebração do “civismo” e do “patriotismo”, alguns dos signos mais notórios do
regime, logo após o golpe. É o caso do Centro Cívico Dr. Lauro de Andrade Correia, em
Parnaíba, inaugurado após a tomada de poder pelos militares.
28

CAPÍTULO I
ENTRE SINDICATOS E PARTIDOS: A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO
TRABALHISMO PARNAIBANO NA DÉCADA DE 1950

Neste primeiro capítulo, analiso a organização de uma agenda trabalhista na


cidade de Parnaíba na segunda metade da década de 1950, por meio da ampliação das suas
demandas políticas, a partir das práticas das lideranças sindicais e de quadros ligados ao
PTB. O trabalhismo petebista teve presença marcante em Parnaíba, sobretudo após 1954,
quando houve uma reformulação no quadro partidário petebista no Brasil e,
consequentemente, no Piauí. Essas formas de organização política, assim como os
movimentos sindicais gestados nos anos 1950/1960, passaram por um processo de
apagamento histórico por parte dos grupos tradicionais ao longo do tempo.
Situo o primeiro capítulo no quadro histórico da segunda metade da década de
1950, na intenção de perceber as condições históricas que permitiram a presença de práticas
políticas trabalhistas na cidade de Parnaíba. O final dos anos 1950 e o início da década
seguinte foram marcados pela ampliação dos mecanismos de representação dos interesses
dos trabalhadores, já experimentados durante o Estado Novo. Esses avançaram com a
experiência liberal democrática, inaugurada em 1945, buscando estabelecer uma progressiva
regulamentação entre capital e trabalho, por meio do Ministério do Trabalho e das
organizações sindicais, enquanto representações coletivas dos interesses dos trabalhadores
que também exigiam o cumprimento das regras estabelecidas na CLT (1943).
Esse período foi marcado nacionalmente, para alguns autores como Lucília de
Almeida Neves Delgado, por uma crença na “transformação do presente com o objetivo de
construção de um futuro alternativo ao próprio presente”28, e também por “um clima de
esperança caracterizado por uma marcante consciência da capacidade de intervenção
humana sobre a dinâmica da História”29. Além disso, ainda segundo a autora, se evidenciou,
nesse quadro, a emergência de alguns projetos políticos que se definiam pela busca por
“implementar um projeto de nação comprometido principalmente com o desenvolvimento
social”30.
Sobretudo na segunda metade dos anos 1950, temas como o nacionalismo, o
desenvolvimento econômico e social do país atraíam a atenção de largos setores da

28
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para
o Brasil (1945-1964). In: FERREIRA, Jorge (Org.). O Populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, p. 171.
29
Idem.
30
Idem.
29

sociedade brasileira. Questões como “a superação de nossos problemas sociais, do atraso


econômico e cultural”31 faziam parte da agenda política daquele momento histórico. Essas
pautas também se fizeram presentes na cidade de Parnaíba, norte do Piauí, levantadas pelo
grupo trabalhista local e são importantes para a compreensão do quadro de crise política
vivido às vésperas do golpe de 1964.
É importante destacar, no que diz respeito às questões referentes a projetos
políticos, que estes passam por transformações de ordem histórica, podendo ser percebidos
à luz das demandas de cada momento. Nesse sentido, o historiador Jorge Ferreira nos indica
questões pontuais a respeito de como diferentes grupos políticos formatam para si pautas
em contextos históricos distintos. O autor nos ajuda a perceber de que forma, nos anos
1950/1960, parte da sociedade brasileira constituiu visões de mundo e projetos de futuro, e
como esta colocou na ordem do dia as principais posturas reivindicativas para o Brasil
naquele momento, pois estes formaram:

Uma geração de homens e mulheres, partilhando ideias, crenças e


representações, acreditou no nacionalismo, na defesa da soberania
nacional, nas reformas das estruturas socioeconômicas do Brasil, na
ampliação dos direitos sociais dos trabalhadores do campo e da cidade,
entre outras demandas materiais e simbólicas, encontraria os meios
necessários para alcançar o real desenvolvimento do país e o efetivo bem-
estar da sociedade32.

As demandas mencionadas acima, fazem parte de um amplo repertório colocado


em discussão nos anos 1950 por parcelas da sociedade brasileira. Nesse ponto vale destacar
que existem projetos políticos diferentes e divergentes entre si, criados pelas sociedades e
suas divisões ao longo do tempo e que passam por processos de identificação entre
segmentos do corpo social. Esses projetos não devem ser tomados como naturais, estáveis
e/ou imutáveis, nem como existentes desde sempre, mas devem ser entendidos, isto sim,
enquanto produtos de determinada temporalidade, de um período específico de emergência
onde encontram representatividade e onde podem se identificar com os interesses de
parcelas da sociedade, com os seus anseios, enfim, com o horizonte de expectativas de
segmentos do corpo social.

31
RODRIGUES, Marly. A década de 1950: populismo e metas desenvolvimentistas no Brasil. 2ª ed. São Paulo:
Ed. Ática, 1994, p. 17. (Série Princípios).
32
FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 12.
30

Quanto à sociedade brasileira, o período da chamada experiência liberal


democrática, (1945-1964)33, que tem início com a queda do regime do Estado Novo, viu
ganhar forma uma série de dispositivos de participação e experiências políticas novas por
parte das classes trabalhadoras, fruto também, digo, do aprendizado político que tivera a
classe laboral, a partir da criação de ferramentas como a CLT. No momento em que, segundo
alguns autores, como Miriam Diehl Ruas, foi “marcado pela organização da vida partidária
com a estruturação e fortalecimento dos partidos políticos”.
Esse também foi um momento em que o “crescimento industrial trouxe consigo
o crescimento da classe operária, paralelamente o voto era estendido a uma maior parcela
da população” 34 . O PTB, naquele contexto de ampliação da participação política, foi o
partido nacional que mais se expandiu em termos eleitorais, saindo “de 22 deputados
federais em 1945, de 56 em 1954, 66 em 1958, saltando para 116 em 1962, época na qual
passou a disputar com o PSD a posição de maior partido nacional”35.
Neste primeiro capítulo, analiso o projeto político trabalhista que ganhou certa
evidência no norte piauiense, alçado à condição de “representante” das aspirações dos
segmentos populares, por meio da presença política de personagens ligados ao comércio
junto aos sindicatos laborais na cidade de Parnaíba. É importante analisar esse contexto de
fins dos anos 1950 e início da década subsequente, sobretudo os embates em torno de
projetos políticos divergentes que ganhavam força no cenário político nacional e se
desdobravam no âmbito local. Também foi no quadro histórico de fins dos anos 1950 que
os trabalhistas começaram a ganhar certo protagonismo eleitoral com maior evidência em
Parnaíba, por meio das bases oriundas das estruturas sindicais. Esse grupo tentava arrematar
parte das bancadas do legislativo municipal e estadual por meio de uma prática política que
buscava destoar da “tradição oligárquica” piauiense, se relacionando com as pautas dos
trabalhadores.
Destaco as articulações do grupo trabalhista dentro da estrutura partidária e
sindical do PTB, sobretudo em Parnaíba, por ser, nesse espaço, onde se evidenciou com
maior notoriedade a emergência de pautas ligadas aos movimentos sociais e ao reformismo
nesse estado. Além disso, foi nessa cidade, de acordo com Marylu Alves de Oliveira, que se

33
Para uma análise sobre o contexto chamado de “Experiência Liberal Democrática”, ver: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida. O Brasil Republicano III: o tempo da experiência democrática. Da
democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de janeiro: Editora Civilização brasileira, 2003.
34
RUAS, Miriam Diehl. A doutrina trabalhista no Brasil (1945-1964). Porto Alegre: Ed. Fabris, 1986, p. 15.
35
SOARES, Gláucio Ary Dillon. A formação dos partidos nacionais. In: Os partidos políticos no Brasil.
Cadernos da UNB, Brasília, vol. 01, p. 23. Apud RUAS, 1986, p. 17.
31

observou uma característica “singular na organização sindical dos trabalhadores no Piauí,


pois, “desde o início do século XX, os sindicatos compuseram parte importante do cenário
social parnaibano, em razão da zona portuária”36. Segundo a historiadora, a maior parte dos
sindicatos piauienses organizados nesse período estava localizada nas cidades de Teresina e
Parnaíba.
Por conta do comércio desenvolvido na região litorânea, no norte piauiense,
houve uma aproximação dos trabalhadores parnaibanos com outros de várias partes do país,
favorecendo a divulgação e circulação de ideias. Nas décadas de 1930, 1940 e 1950,
Parnaíba foi a cidade com o maior número de sindicatos organizados no estado do Piauí,
sobretudo após a aprovação da CLT (1943)37. De acordo com o Sociólogo piauiense Antônio
José Medeiros:

De 1941 e 1958, organizaram-se no Piauí, 91 sindicatos – 55 de


trabalhadores e 36 patronais. Sua distribuição geográfica também é
reveladora: Parnaíba – 26 de trabalhadores e 17 patronais; Teresina – 25
de trabalhadores e 10 patronais; Floriano – 2 de trabalhadores e 2 patronais;
Campo Maior – 1 de trabalhadores e 2 patronais; Piripiri – 2 patronais;
Luzilândia – 1 de trabalhadores; Oeiras, Picos e Piracuruca – 1 patronal,
cada. Em Parnaíba, sindicatos de trabalhadores e patronais giravam em
torno do PTB, em Teresina, até 1958, giravam mais em torno da UDN38.

As informações acima são importantes por nos indicarem uma quantidade maior
de sindicatos na cidade de Parnaíba, 26 sindicatos, com relação às demais cidades piauienses,
como também a aproximação partidária dos mesmos (PTB). Foi também, na segunda
metade da década de 1950, que alguns personagens ligados ao PTB no norte piauiense
começaram a se conectar a algumas das pautas que ganhavam corpo naquele contexto nos
debates nacionais. Exemplo disso foi Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, em seu
segundo mandato como deputado federal pelo PTB, e não mais ao antigo partido (UDN). O
parnaibano Chagas Rodrigues lançou-se, então, enquanto membro da Frente Nacionalista,
embrião da Frente Parlamentar Nacionalista, organização intrapartidária criada em 1956 no
Congresso Nacional. A Frente Parlamentar Nacionalista, como indica Lucília Delgado,
“representou no Congresso Nacional a opção nacionalista de um segmento expressivo e

36
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Da terra ao céu: culturas políticas e disputas entre o trabalhismo oficial e o
trabalhismo cristão no Piauí (1945-1964) /. 532 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro
de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, 2016, p. 139.
37
ASSUNÇÃO, Rosângela. A política trabalhista na Era Vargas e a construção da memória dos portuários
de Teresina (1930 – 1954). 2005. 117 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) – Universidade Federal
do Piauí, Teresina, 2005, p. 60.
38
MEDEIROS, Antônio José. Op. cit.1996, p.111.
32

muito combativo da sociedade civil que fazia das bandeiras nacionalistas e


desenvolvimentistas, expressão de um Brasil mais autônomo e soberano”39.
O projeto trabalhista na cidade de Parnaíba possuía também marcas ambíguas
que são perceptíveis ao se analisar, de forma problemática, as fontes disponíveis. Dentre
essas marcas, destaco um apelo personalista, pois esse foi um projeto político que, apesar
de buscar falar em nome das pautas dos trabalhadores, projetou discursivamente a imagem
de poucos personagens no cenário parnaibano, principalmente aqueles ligados aos grandes
comerciantes locais, como os irmãos Caldas Rodrigues. Também marcado pelas disputas
por cargos nas estruturas municipais e estaduais, além da própria presidência dos sindicatos
locais.
Ainda destaco uma ampliação, por meio da imprensa local ligada aos
trabalhistas, de uma série de textos que tentavam criar a ideia de uma ética para o trabalho,
como uma espécie de “dispositivo disciplinar” para os trabalhadores. Assim como a
perspectiva de um determinado pacto entre as classes trabalhadoras e empresariais, como
forma de manter a “harmonia” entre os grupos com interesses divergentes. Porém, essa
agenda trabalhista, ao mesmo tempo – e isso é importante – procurou capitalizar as
demandas de parte dos trabalhadores sindicalizados, trazendo-os para o palco das disputas
partidárias e propondo novas pautas políticas para um cenário local caracterizado por forte
presença de grupos tradicionais.
No contexto da segunda metade dos anos 1950, a UDN local possuía em seus
quadros a família Silva (Alberto Silva e João Silva Filho). O PTB parnaibano, por sua vez,
possuía uma forte presença da família Caldas Rodrigues (Francisco das Chagas Caldas
Rodrigues e José Alexandre Caldas Rodrigues). Quanto ao PSD, este era ligado ao Coronel
Epaminondas Castelo Branco 40 e Mirócles Campos Veras 41 ; este último, figura política
dominante no contexto do Estado Novo em Parnaíba.

39
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e
conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O tempo da
experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964 (O Brasil Republicano).
2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 149. Livro 3.
40
Epaminondas Castelo Branco nasceu em Buriti dos Lopes (PI) em 1882. Iniciou sua vida política em 1928
quando se elegeu deputado estadual à Assembleia Legislativa do Piauí. Em março de 1930, foi eleito deputado
federal, mas teve o mandato interrompido em outubro seguinte com a vitória da Revolução de 1930, que levou
Getúlio Vargas ao poder e extinguiu todos os órgãos legislativos do país. Voltou à política em 1947, quando
novamente se elegeu deputado estadual, na legenda do Partido Social Democrático (PSD). Colaborou nos
jornais A Ordem, O Dia e A Tribuna. Faleceu em Parnaíba (PI) no dia 6 de julho de 1969. Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirarepublica/CASTELO%20BRANCO,%20Epaminond
as.pdf. Acesso em: 13 out. 2018.
41
Mirócles Campos Veras nasceu em Parnaíba-PI, em 1890. Nomeado prefeito de 1934 a 1935 e depois, com
o golpe do Estado Novo, assume, também por nomeação, a prefeitura de Parnaíba, permanecendo de 1937 a
33

O contexto da segunda metade da década de 1950, em Parnaíba, foi marcado


por disputas políticas envolvendo a oposição dos petebistas à segunda gestão municipal de
Alberto Tavares Silva, ligado aos detentores de terra da região norte piauiense e à UDN. O
PTB piauiense sofreu uma reformulação partidária em 1954, por indicações do diretório
nacional e, a partir disso, com a entrada de grupos oriundos de outras siglas, como da própria
UDN, ampliou suas bases partidárias42. Por meio de pesquisa documental43, pude vislumbrar,
nos jornais ligados aos grupos políticos parnaibanos, que existiu na cidade de Parnaíba um
projeto político ligado aos trabalhistas tomando forma naquela década. Um dos pontos que
justifica este capítulo, é perceber que tal projeto trabalhista, junto da estrutura sindical
crescente na cidade, ao qual se vinculou, foi um dos principais alvos da repressão que se
evidenciou nos primeiros momentos após o golpe de 1964.
O projeto trabalhista, além da presença de trabalhadores urbanos, sindicalizados,
que se vinculavam ao PTB, também se encontrava ligado a setores empresariais na cidade
de Parnaíba. Criou dissidências, disputas internas, fez inimigos locais, travou combates em
torno de questões eleitorais e estabeleceu e/ou transplantou para o cenário parnaibano uma
série de preceitos daquilo que seria uma “noção adequada” de trabalho, em seu sentido
doutrinador e conceitual, assim como estabeleceu uma série de procedimentos referentes a
como o “trabalhador deveria se portar” frente ao cenário político.
Aquele também foi um momento de ampliação das atividades produtivas
industriais no Brasil, com os ideais desenvolvimentistas; mas, por outro lado, momento de
crise no custo de vida das classes populares e de diminuição das arrecadações na economia

1945. Com o fim do Estado Novo, concorreu no pleito de dezembro a uma cadeira na Assembleia Nacional
Constituinte na legenda do Partido Social Democrático (PSD), mas só obteve uma suplência. Em 1950,
concorreu na legenda do PSD, ficando como primeiro suplente de deputado federal. Assumiu o mandato na
ausência do deputado Sigefredo Pacheco nos períodos de abril a setembro de 1951, de agosto a dezembro de
1952, de junho a agosto de 1953 e de abril a agosto de 1954. Nos pleitos de outubro de 1954 e de 1958 voltou
a disputar uma cadeira na Câmara dos Deputados, obtendo, contudo, nas duas ocasiões, somente a suplência.
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/mirocles-campos-veras.
Acesso em: 13 out. 2018.
42
Foi nesse momento que o grupo ligado ao Senador Matias Olímpio e Chagas Rodrigues, migra da UDN
para o PTB. Com amparo de João Goulart, esse grupo assume a frente do PTB estadual, em detrimento do
grupo que havia fundado o partido, em 1946, tendo à frente o médico João Emílio Falcão Costa. Em Parnaíba,
houve, a partir de então, uma ampliação das bases partidárias e uma aproximação com os grupos sindicalizados
por parte dos petebistas, ocasionando uma disputa interna, mas também uma ampliação das narrativas
valorativas em torno do trabalho e das lideranças trabalhistas locais, como os irmãos Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues e José Alexandre Caldas Rodrigues.
43
No decorrer desta pesquisa, foi feito um levantamento empírico sobre os jornais de circulação local, nos
anos 1940, 1950 e 1960. Consegui uma grande quantidade de exemplares do jornal Gazeta do Piauí, ligado ao
grupo trabalhista. Além dos jornais O Paladino, Correio do Povo, Folha do Litoral, O Tempo. Este último
ligado à UDN. A grande maioria dos jornais era ligada aos trabalhistas, fazendo discursos elogiosos às figuras
do trabalhismo local, bem como críticas profundas aos udenistas, sobretudo a Alberto Silva e a Cândido
Oliveira.
34

local, por conta do déficit das exportações dos produtos oriundos do extrativismo vegetal
que foram, até aquele momento, o principal motor da economia piauiense.
Em Parnaíba, cidade com o maior número de trabalhadores organizados em
sindicatos no estado, o PTB foi fundado em 30 de novembro de 1946, tendo a presidência
do partido sido destinada ao médico João Orlando de Morais Correia 44. A sua composição
contava com um representante do Sindicato dos Estivadores, Tiago José da Silva 45 , que
participou como membro do conselho fiscal do diretório daquele município 46. O PTB, de
acordo com Marylu Oliveira, logo após a sua fundação em 1946, conseguiu se firmar de
forma mais intensa em duas cidades: Parnaíba, onde se tornou rapidamente forte entre os
trabalhadores sindicalizados, e Teresina, onde se instalou com menos entusiasmo, liderado
por João Emílio Falcão Costa47.
No entanto, o período de maior crescimento do PTB foi a segunda da metade da
década de 1950, com a forte presença à frente do partido de Chagas Rodrigues e do irmão
José Alexandre Caldas Rodrigues. Naquele momento, houve um contato maior dessas
lideranças com a estrutura sindical da cidade, o que possibilitou a candidatura de
trabalhadores a cargos políticos, mas, ao mesmo tempo, o sustento de candidaturas fora da
estrutura sindical, e o reforço de contatos mais evidentes com as lideranças nacionais do
PTB. A partir de então, indico algumas questões pontuais para uma melhor compreensão do
trabalhismo local, como os discursos em torno da valorização dos ideais de disciplina e,
posteriormente, a oposição ao udenismo local. Fecho o capítulo com um tópico sobre a
violência política que marca esse espaço nos anos 1950/1960.

Disciplina, organização e trabalho: padrões e posturas para o “bom trabalhador” na


imprensa parnaibana

Em Parnaíba, no processo de formação das práticas políticas trabalhistas, em


meados dos anos 1950, sobretudo na segunda metade dessa década, é possível perceber uma
certa narrativa sobre um perfil ideal e uma postura a ser assumida pela classe trabalhadora.
Essa ideia estava, então, em conformidade com as narrativas empreendidas pelo Estado e
perceptível, a partir dos anos 1930, nos grandes centros urbanos, como o Rio de Janeiro. A

44
Médico. Foi fundador do PTB em Parnaíba. Prefeito eleito pela legenda trabalhista em Parnaíba (1951-1954).
45
Líder do sindicato dos Estivadores de Parnaíba, nos anos 1950/1960. Estabeleceu contatos com a estrutura
sindical em diferentes pontos do país. Disputa algumas eleições amparado no pulsante sindicalismo parnaibano
e consegue se eleger deputado estadual pela legenda do PTB, nas eleições de 1958. Nessas eleições,
significativas para o trabalhismo parnaibano, se elegeram Francisco das Chagas Caldas Rodrigues (governador
do Piauí), bem como o seu irmão, José Alexandre Caldas Rodrigues, (prefeito de Parnaíba).
46
OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2016, p. 139.
47
OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2006, p. 149.
35

tentativa de disciplinar e buscar gradativamente a organização dos trabalhadores foi marcada


pela necessidade de empreender uma visão positiva com relação às atividades laborais,
enquanto necessárias para um desenvolvimento pessoal – do trabalhador – mas também da
coletividade, em uma sociedade com profundas heranças escravistas, em que o trabalho
manual foi constituído ao longo do tempo como algo negativo.
No Brasil, o processo de organização da classe trabalhadora se evidenciou já no
momento de transição do final do século XIX para o século XX, contexto marcado pela
transição do trabalho escravo para o trabalho livre e assalariado. No cenário piauiense, esse
momento foi caracterizado pelo início do ciclo do extrativismo vegetal, quando ocorreram
alterações nas atividades produtivas do estado, sobretudo nas cidades mais importantes à
época, Teresina e Parnaíba. Naquele quadro histórico surgiram algumas iniciativas, como as
unidades artesanais e industriais, que “ajudaram a diversificar a economia do estado e
atender algumas demandas do mercado local com a produção de itens manufaturados, como
tecidos, bebidas, alimentos, cigarros, calçados, móveis, embarcações, materiais gráficos e
de limpeza”48.
De acordo com José Maurício Santos, já durante a Primeira República, as
cidades de Teresina e Parnaíba, economicamente as mais expressivas do estado,
concentravam a maior parte das associações operárias. Eram cidades pequenas para os
padrões atuais, que não passavam de 20 mil habitantes, e, no entanto, concentravam algumas
atividades comerciais importantes que viram emergir um nascente proletariado urbano49.
Nesse sentido a cidade de Parnaíba, no momento de ampliação das atividades econômicas
marcadas pela exportação dos produtos vegetais, na primeira metade do século XX, com o
processo de integração nacional e internacional, viu, como contrapartida, o aumento do
número de trabalhadores e da modificação de sua estrutura urbana:

A cidade de Parnaíba em 1900 possuía uma população de 19.413 habitantes,


enquanto que em 1940 a população havia dobrado chegando a 42.062
habitantes, evidenciando o crescimento econômico e as oportunidades que
a cidade oferecia. Por ter sido durante muito tempo a cidade mais importante
economicamente do estado, a cidade foi a precursora de muitos avanços
modernizadores, como foi o caso da energia elétrica, o trem, o bonde, além
da instalação da primeira estação de rádio do Piauí, dentre outros50.

48
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. União, Força e Trabalho: trabalhadores, mutualismo e sindicatos no
Piauí (1900-1945) Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2015.
49
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. Op. cit. 2015, p. 23.
50
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. Op. cit. 2015, p. 62.
36

Como se pode notar, na primeira metade do século XX, Parnaíba se projetou na


condição de “celeiro” econômico do estado do Piauí, por conta da entrada de grandes firmas
comerciais nessa cidade. Consequentemente, como impacto dessa ampliação econômica, o
número de moradores dobrou naquele momento, como indica o trecho supracitado. Muitos
desses moradores migravam de regiões vizinhas para esse centro urbano, em busca de
trabalho, de oportunidades de melhoria de vida, de emprego nas atividades que despontavam
então no norte piauiense.
Já nos anos 1940 e 1950, ainda no rescaldo dessa ampliação econômica,
começaram também a circular algumas publicações que, mesmo não sendo escritas na
cidade, ganhavam as páginas dos jornais – sobretudo daqueles ligados aos setores
empresariais e trabalhistas –, no sentido de refletirem sobre as condições de trabalho e de
vida dos grupos populares. Nesse ponto, a ideia implícita nos textos era de que o “trabalho,
desvinculado da situação de pobreza, [seria] o ideal do homem na aquisição de riqueza e
cidadania”. Também se destacava aquilo que Ângela de Castro Gomes indica: a ideia de que
a aprovação e a implementação de direitos sociais estariam, “no cerne de uma ampla política
de revalorização do trabalho caracterizada como dimensão essencial de revalorização do
homem”51.
Difícil, neste aspecto, seria mensurar ou perceber o alcance que tais matérias
teriam na classe trabalhadora parnaibana, tendo em vista que grande parte dos trabalhadores
urbanos, como marítimos e estivadores, não deixaram impressos uma quantidade de
registros escritos que pudessem auxiliar na compreensão da recepção dessas pautas. A partir
disso se deve questionar: qual a efetividade prática desses textos? Como eles alcançavam (e
se alcançavam) a classe trabalhadora parnaibana? Qual a finalidade de se reproduzirem
textos sobre “disciplina” e “organização” do trabalho naquele momento histórico na cidade
de Parnaíba?
Nesse ponto, para auxiliar nessas reflexões, é preciso dialogar com algumas
produções historiográficas sobre o tema. Em A invenção do Trabalhismo52, obra importante
para a compreensão das narrativas políticas que se instituem para uma nova percepção sobre
a presença dos trabalhadores na arena política, Ângela de Castro Gomes destaca que essas
narrativas em torno de uma “positividade” com relação ao trabalho foram marcas já
perceptíveis na virada do século XIX para o XX, no momento em que “o tema do trabalho

51
GOMES, Ângela de Castro. Ideologia e trabalho no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (Org.).
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p.55.
52
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
37

e de trabalhadores livres e educados no ‘culto ao trabalho’ se impôs ao país” 53. Porém, nesse
primeiro momento, a “palavra” em torno do trabalho era atribuída aos próprios
trabalhadores para, a partir da Era Vargas, ser apropriada pelo Estado, por meio de todo um
aparato retórico. Nesse ponto, a autora indica que “a preocupação com o ócio e a desordem
era muito grande, e ‘educar’ um indivíduo pobre era principalmente criar nele o ‘hábito’ do
trabalho”.
Nesse sentido, conforme indica a autora, a ideia central “era obrigá-lo ao
trabalho via repressão e também via valorização do próprio trabalho como atividade
moralizadora e saneadora socialmente”54. Portanto, as narrativas voltadas para a valorização
do trabalho encontram grande sustentação na imprensa escrita em vários espaços do Brasil.
Em Parnaíba, parte da imprensa projetou uma série de textos e os colocou em circulação na
cidade, na segunda metade da década de 1950, objetivando a valorização do trabalho, em
um momento de ampliação das estruturas sindicais e da presença de lideranças trabalhistas
junto aos grupos de trabalhadores.
As narrativas verificadas nos jornais de circulação na cidade sobre a questão do
trabalho têm claros destinatários: os trabalhadores urbanos organizados em sindicatos de
classe. A ideia de “grandeza” do trabalho, de que este requer um exercício de meditação e
valorização constante, certamente serviria para buscar estabelecer certa coesão na classe
trabalhadora local e tornar possível uma postura objetiva e pacata dos mesmos frente a seus
postos de trabalho. Mesmo que fossem escritos, como se pode verificar, vindos de outras
esferas da sociedade, que não das classes populares. Em texto intitulado Trabalho e
Meditação, publicado em Gazeta do Piauí, o trabalho se torna objeto de grandeza do homem:

O trabalho deve ser objeto de meditação diária, constante e ininterrupta,


para chegarmos plenamente a compreender, sentir e querer sua grandeza.
Assim sempre procederam os grandes homens de pensamento e os grandes
homens de ação. [...] eu prego a grandeza do trabalho. A grandeza é um
ideal pedagógico acessível aos homens [...] o trabalho não é castigo e
maldição, nem pecado e sofrimento, nem cousa ou mercadoria. Tal noção
errada de sua natureza muito prejudicou à humanidade. Defendo a ideia de
grandeza do trabalho, porque ele é, ao mesmo tempo, um valor econômico,
jurídico, ético, estético, científico, filosófico e ainda religioso 55.

Há, portanto, em circulação na imprensa ligada aos trabalhistas, como é o caso


do jornal Gazeta do Piauí, todo um enunciado discursivo em torno do trabalho, dos ideais

53
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 2005, p. 26.
54
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 2005, p. 26.
55
TRABALHO E MEDITAÇÃO. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 de setembro de 1956.
38

referentes à “postura adequada” a ser empreendida pela classe laboral naquele momento.
Como se pode analisar pelo texto acima, o trabalho não se resumiria em simples tarefa de
execução diária de atividades simplórias, mecânicas e/ou rotineiras, para os articulistas do
jornal. Tratava-se, antes de tudo, de algo mais complexo e dinâmico a exigir do trabalhador
reflexão e “meditação diária, constante e ininterrupta”. Para a compreensão da “grandeza do
trabalho”, era preciso ter em mente que o trabalho serviria como elemento necessário para
a sociedade como um todo, e não apenas para o trabalhador. Como se pode verificar, era
preciso colocar em pauta uma valorização das atividades laborais para o “bom
funcionamento” da sociedade e para viabilizar um novo sentido à figura do trabalhador.
Não é possível medir o nível de aceitação prática de tal postura por parte dos
trabalhadores parnaibanos, mas aqui é possível relacionar essa perspectiva disciplinadora e
normativa como condizente com a lógica de organização e racionalização sindical por parte
dos grupos trabalhistas. Sendo composto, também, de um grande número de indivíduos da
classe patronal, o projeto trabalhista local propunha medidas de pactuação dos interesses
entre grupos, como mencionado, além de viabilizar a adesão de setores distintos das classes
sociais na sigla petebista que ganhava forma em Parnaíba na segunda metade da década de
1950.
Cada vez mais se falava em termos como “disciplina”, “organização” no sentido
de “elevar a condição do trabalhador” a novos patamares. Esses termos antes de serem meros
conceitos ligados à lógica do capital, são dotados de sentido e podem ser lidos como uma
ressonância das práticas materializadas no Brasil, após o advento do Estado Novo, da
necessidade de aprofundar a noção do trabalho como um dispositivo histórico capaz de
organizar a vida social. É justamente no regime do Estado Novo, como mencionado, que
“elabora-se toda a legislação que regulamenta o mercado de trabalho do país, bem como se
estrutura uma ideologia política de valorização do trabalho e de reabilitação do papel e do
lugar do trabalhador nacional”56. Replica-se esse tipo de receituário na imprensa parnaibana,
no entanto, na segunda metade dos anos 1950, com o intuito de levar em consideração para
os trabalhadores algumas funções, tais como “disciplina, organização”, em prol de uma
“grandeza do trabalho” como se pode perceber:

Mas a grandeza do trabalho implica iniciativa, disciplina, organização,


entusiasmo, fé, espiritualidade, sentido, significação e criação [...] A sua
decadência se traduz na rotina, anarquia, desagregação, desanimo,
cepticismo e materialismo; falta de vitalidade do espírito. O trabalho

56
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 51.
39

acompanha o ritmo da civilização. Uma civilização ascendente e


progressista, glorifica o esforço humano. Uma civilização decadente e
retrograda nega a atividade57.

Importante destacar a relação intrínseca que se estabelece textualmente entre


“trabalho” e “civilização” aqui. Esse enunciado acaba ligando as formas mais “evoluídas”
de “civilização” àquelas que valorizam o esforço e trabalho e, por outro lado, relaciona –
sem menor reflexão ou compreensão das condicionantes históricas e sociais – as civilizações
ditas “decadentes e retrógradas” àquelas onde se percebe a “desvalorização” do trabalho.
Por certo, os grupos trabalhistas enxergaram que seria necessário discutir o valor social do
trabalho em uma cidade como Parnaíba naquele momento. Os textos observados nos jornais
ligados aos trabalhistas, como é o caso do Gazeta do Piauí, apontam questões importantes,
como uma espécie de “ideal” a ser obtido pelos trabalhadores. Suponho, com essa análise,
que se pretendia, naquele momento, dar legitimidade às atividades inferiorizadas ao longo
do tempo, por se tratarem de formas de trabalho tidas como degradantes para o homem.
Agora era preciso inverter essa lógica de compreensão e relacionar o trabalho
com a noção de “civilização”, mas também – e isso fruto de toda uma pauta política herdada
da Era Vargas – da noção de cidadania vinculada ao trabalho. Era preciso entender o
trabalho “como um direito e um dever”, pois, “por meio do trabalho o operário seria elevado
à condição de cidadão, com as garantias das leis trabalhistas. Cidadania e trabalho, portanto,
tornaram-se expressões complementares”58. Neste sentido, é possível perceber esse tipo de
reflexão sobre aquilo que se nomeia como uma “verdadeira filosofia do trabalho”, no jornal
Gazeta do Piauí, em 1956:

Mas a verdadeira filosofia do trabalho, atentemos bem para essas


premissas básicas, somente pode se fundamentar numa filosofia da vida.
O trabalho é um elemento humano, e o humano é vital. Assim o trabalho
precisa respeitar a vida e esta, por sua vez, também considerá-lo, de vez
que a vida sem esforço não tem sentido e o trabalho pelo trabalho não
adquire significação59.

A partir do Estado Novo de Vargas, como mencionado, a questão do trabalho


passa a ocupar lugar privilegiado na pauta política do Estado brasileiro. A implementação
da legislação voltada ao trabalhador urbano começou a estabelecer os direitos amplamente

57
TRABALHO E MEDITAÇÃO. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 de setembro de 1956.
58
FERREIRA, Jorge. A cultura política dos trabalhadores no primeiro governo Vargas. Estudos históricos. Rio
de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990.
59
TRABALHO E FILOSOFIA. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 set. 1956.
40

defendidos pelos grupos sindicais durante a primeira república, bem como procurou trazer
os trabalhadores para a atuação nos sindicatos de categorias profissionais. Foi preciso
também estabelecer uma nova relação do Estado com os trabalhadores. Nesse sentido,
observei que a Legislação Trabalhista serviu “como elo entre Vargas e os trabalhadores, à
medida que há uma mudança nas relações cotidianas e de trabalho a partir de aprovação da
CLT”60, de acordo com Rosângela Assunção.
Nesse sentido, houve uma reformulação nas condições de trabalho, a partir de
Vargas, por exemplo, quando a Constituição de 1934 incorpora antigas reivindicações do
operariado urbano, tais como: “jornada de oito horas de trabalho, repouso semanal
remunerado, aposentadoria, proibição de trabalho a menores de 14 anos, indenização por
tempo de serviço, férias pagas, etc. Porém, subordinou os sindicatos ao Ministério do
Trabalho”61. Mas, ainda de acordo com Assunção, “ao tempo em que atendia às demandas
dos trabalhadores urbanos, o governo tratava de enquadrá-los no sindicalismo oficial e usar
sua força social emergente como contrapeso às forças mais tradicionais e conservadoras” 62.
Na imprensa ligada aos trabalhistas, o trabalho deveria ser “meio de vitalidade”, como se
percebe no texto:

Eis o que nunca é demais acentuar. O trabalho que constrange e contraria


a vida, torna-se condenado, porque pela sua própria natureza, tem que ser
vigoroso meio de expansão da vitalidade e não o processo de prejudicar a
própria existência. O trabalho quando bem orientado e compreendido,
enriquece a vida com os mais belos e expressivos valores. Quando isto não
acontece, presenciamos o que o nosso tempo, em feitos sugestivos já
demonstram 63.

Sobre essa questão é possível relacionar a ideia de positividade do trabalho com


todo um enunciado criado pelo Estado brasileiro. Nesse caso, há uma nítida relação entre
uma narrativa produzida nos anos 1940 e aquilo que se apresentou na cidade de Parnaíba
por meio da imprensa na década seguinte: a ideia que enfatizava a necessidade de uma nova
compreensão a respeito do trabalho, pois esse “precisava ser visto como um ato de criação
fundamentalmente humano; um ato de dignificação e espiritualização do homem, pelo qual
ele se integrava à sociedade em que vivia”64.

60
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 10.
61
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 18.
62
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 19.
63
TRABALHO E FILOSOFIA. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 set. 1956.
64
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 1999, p. 59.
41

No que diz respeito a um outro aspecto da política social voltada para os


trabalhadores, no sentido de adaptação dos mesmos ao trabalho, encontra-se, ainda nos anos
1940, a aplicação da política de medicina social na cidade de Parnaíba. José Maurício Santos,
por meio das atas da Associação Comercial Parnaibana (ACP), entidade representativa dos
comerciantes e industriais da cidade, destaca na documentação a proposta de construção de
refeitórios e ambulatórios para os trabalhadores parnaibanos naquela década.
Para o autor, a ACP, “representante da burguesia parnaibana foi convidada pelo
poder público a colaborar com iniciativas que visassem dotar a cidade de políticas de
preservação à saúde dos trabalhadores”65. No momento, ainda de acordo com o trabalho,
Parnaíba recebeu a visita do Dr. Miguel Martins (Delegado de Saúde Pública do estado do
Piauí), que observou uma série de problemas de saúde pública. E por esse motivo se reuniu
com a direção da ACP para apontar os problemas e buscar soluções junto aos comerciantes
e industriais da cidade.

Com o objetivo de discutir as questões relacionadas à saúde, foi realizada


uma assembleia na sede da ACP. Além da diretoria da entidade, estiveram
presentes: Miguel Martins, Delegado Regional de Saúde Pública do estado;
Mirócles Véras, prefeito de Parnaíba; Orlando Correia, médico do posto
de saúde da cidade. A reunião foi aberta pelo prefeito Mirócles Véras,
saudando a visita do representante do governo estadual, que estava
inspecionando a cidade e realizando um levantamento de vários problemas
na área da saúde pública; como construção de lactário na periferia da
cidade, indicação de compra de aparelho de Raio-X para o posto médico,
visita ao leprosário Carpina, dentre outras questões [...] Desnudando a
situação, ele apresenta uma cidade com sérios problemas sociais. O
primeiro foi a constatação de que a cidade tinha ‘cerca de 1.000 casas,
desse número somente 400, talvez, estivessem providas de fossas
biológicas’ tão indispensável, segundo ele, ‘pelos preceitos de higiene
doméstica [...] Seu discurso revela uma Parnaíba onde o esgoto corria a
céu aberto e os detritos humanos eram lançados nas ruas. Pela visita que
fez aos bairros da periferia, ele constatou que a maior fonte de proliferação
de doenças era ‘as escavações cheias de águas presas e estagnadas’ das
olarias espalhadas pela cidade. E conclui que o lugar mais crítico da cidade
era a ‘zona baixa da quarenta’, região onde se localizavam alguns
armazéns, próxima à região portuária66.

Houve, portanto, a partir da década de 1940, a busca por implantação de


preceitos da medicina social já em voga em vários espaços do país. Nesse quesito, o papel
da medicina social compreendia um “conjunto amplo de práticas que envolviam higiene,

65
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. op. cit. 2015, p 149.
66
Ata da Associação Comercial de Parnaíba. 28 de dezembro de 1944. p. 44. Ver: SANTOS, José Maurício
dos. Op. cit. 2015, p. 150.
42

sociologia, pedagogia e psicopatologia”67. De acordo com Ângela de Castro Gomes, isso era
concretizado pela “ação dos novos órgãos previdenciários, consistia explicitamente em
preservar, recuperar e aumentar e capacidade de produzir do trabalhador”. Ainda de acordo
com a autora, o Estado nacional, por meio dessas iniciativas, visava ampliar “o escopo de
seu intervencionismo para poder atingir as causas mais profundas da pobreza/doença,
promovendo a satisfação das necessidades básicas do homem: alimentação, habitação e
educação”68.
Nas matérias na imprensa ligada aos trabalhistas, circulou, naquele momento,
uma narrativa de valorização do trabalho como edificante de uma sociedade mais coerente
com os padrões do desenvolvimento nacional. Na segunda metade da década de 1950,
quando circulavam tais textos, era o momento em que se processava um investimento
nacional em um programa desenvolvimentista, o Plano de Metas do Governo JK, quando
então se falava na ampliação das atividades ligadas à industrialização, bem como na
descentralização das áreas de desenvolvimento econômico do país. Isso com investimentos
estrangeiros e uma série de medidas de implementação do capitalismo industrial no Brasil,
era preciso, então, estimular, na mentalidade coletiva, os ideais de “disciplina” e “honradez”
ligados às atividades laborais.
Por outro lado, e isso é importante mencionar, foi preciso assegurar medidas que
trouxessem alguma garantia aos trabalhadores, contra os possíveis arbítrios a que estariam
suscetíveis pelos empregadores no que diz respeito ao cumprimento de pagamento de
salários, condições de trabalho, jornadas e outras questões ligadas ao cotidiano da classe
trabalhadora. Naquele momento também houve aproximação, um contato dos trabalhadores
com estruturas de fiscalização do cumprimento das obrigações dos empregadores; nesse
caso, o Ministério do Trabalho. O órgão, teve presença marcante em uma cidade como
Parnaíba, onde o comércio, como mencionado, era diversificado e onde as atividades
laborais estavam cada vez mais representadas pelas estruturas sindicais.
Sobre essa questão, Ângela Gomes destaca que uma das marcas dessa herança
dos anos 1940, é justamente que o “ideal de justiça social ia sendo explicitado como um
ideal de ascensão social pelo trabalho, que tinha no Estado seu avalista e intermediário”. De
acordo com essa lógica, portanto, “o ato de trabalhar precisava ser associado a significantes

67
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 1999, p. 60.
68
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 1999, p. 59.
43

positivos que constituíam substantivamente a superação das condições objetivas vividas no


presente pelo trabalhador”69.
O jornal Gazeta do Piauí, no momento em que se instituía o debate sobre a
valorização do trabalho e o cumprimento do que preconizava a CLT, trouxe algumas
denúncias sobre desmandos ocorridos com relação à legislação trabalhista, como o não
cumprimento do pagamento de salários integrais; neste caso, às trabalhadoras do comércio
em Parnaíba. Com nota intitulada: Empregadores inescrupulosos exploram pobres moças
que trabalham, o jornal chamava atenção para uma prática corriqueira na cidade, o hábito
de alguns comerciantes burlarem as leis trabalhistas:

A exemplo do que vem acontecendo em outras cidades do Brasil, também


as comerciárias de Parnaíba estão sendo espoliadas nos seus direitos, de
vez que não estão recebendo integralmente os seus ordenados estipulados
no salário mínimo. Algumas delas recebendo apenas a insignificante
quantia de duzentos cruzeiros, o que representa uma verdadeira burla e
desrespeito às leis vigentes no paiz que instituem, para Parnaíba, o salário
mínimo de 900 cruzeiros. [...] chamamos a atenção dos senhores fiscais do
Ministério do Trabalho, no sentido de pôr termo a semelhante expediente,
punindo os infratores de tal prática70.

Naquele momento, também na cidade de Parnaíba, existiram formas de


representação dos interesses das classes em disputa e que a atuação do Ministério do
Trabalho se fez presente no sentido de se fiscalizarem tais práticas dos grupos empresariais,
de descumprimento e/ou burla da legislação. Em âmbito nacional, uma das estratégias de
atuação dos grupos trabalhistas foi justamente a defesa dos direitos adquiridos com a
Consolidação das Leis Trabalhistas (1943). Portanto, averiguei que, no espaço parnaibano,
os grupos ligados ao PTB também tomaram para si a política de valorização e cumprimento
da legislação em vigor. A matéria a seguir também foi veiculada nas páginas de Gazeta do
Piauí, em 1956 e é sintomática daquela quadra histórica.

MINISTÉRIO DO TRABALHO
POSTO DE FISCALIZAÇÃO EM PARNAÍBA
AVISO
De ordem do Sr. Delegado Regional do Trabalho nesse Estado, levo ao
conhecimento das Federações, Sindicatos de classe, Comércio, Indústria,
trabalhadores de diversas categorias profissionais e a quem interessar
possa, que a partir de 1º de agosto último, o Salário Mínimo atribuído para
Parnaíba, passou a vigorar na base de CR$ 1.500,00 (mil e quinhentos
cruzeiros). Assim sendo, recomendo aqueles que não pagaram seus

69
GOMES, Ângela de Castro, op. cit.1999, p. 58.
70
Burlando as leis do trabalho. Ver: Jornal Correio do Povo, ano 01, n. 01. Parnaíba, p. 03-04, 01 ago. 1956.
44

empregados na base citada, a pagarem as diferenças solicitadas, a fim de


evitar reclamações dos solicitados.
Posto de Fiscalização do Trabalho em Parnaíba, 17 de setembro de 1956.
Luiz Gonzaga de Menezes (Inspetoria do trabalho. Encarregado do
Posto)71.

Nesse cenário, é possível averiguar uma ampliação das matérias referentes à


necessidade de investigação em torno dos postos de trabalho, mas também de uma
fiscalização efetiva quanto ao pagamento do salário mínimo na cidade de Parnaíba. Nesse
ponto, as políticas de valorização salarial, de busca por melhorias nas formas de trabalho e
de poder de consumo para a classe trabalhadora, bem como do cumprimento da legislação,
tornaram-se, dentre outras, as principais bandeiras dos trabalhadores e trabalhistas também
no norte piauiense. Uso, como exemplo da valorização do salário mínimo por conta pressão
dos movimentos de trabalhadores sindicalizados, um estudo feito pelo Senado Federal. Este
aponta que durante o segundo Governo Vargas, “o movimento sindical conseguiu reajustes
mais frequentes, com índices bastante favoráveis, contando com o apoio do então Ministro
do Trabalho João Goulart”72.
Já no governo seguinte, do Presidente Juscelino Kubitschek, “o salário-mínimo
atingiu, em 1959, seu mais alto valor de compra, superando, segundo dados do Dieese, em
44% o poder aquisitivo de 1940”73, De acordo com o estudo em questão, é perceptível que,
durante esses três governos da História do Brasil – Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e
João Goulart –, setores mais conservadores da sociedade não os pouparam de duras e
acirradas críticas devido aos reajustes salariais concedidos, cobrando-lhes atitudes mais
“patrióticas” e justificando suas críticas em razão do aumento da inflação 74. Assim, um dos
principais pontos de embate daquele momento foi justamente a questão salarial. Defendidos
os ajustes salariais pelos trabalhadores sindicalizados e uma vez sendo atendidos em suas
demandas, os grupos conservadores, por outro lado, nomeavam de “impatrióticas” as
decisões dos governos acima mencionados, por atenderem às reivindicações das categorias
de trabalhadores por melhores condições de emprego e renda.

O processo de formação política do trabalhismo parnaibano nos anos 1950

71
AVISO. Ver: Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI. 26 set. 1956, p. 02.
72
PAIM, Paulo. Salário Mínimo uma história de luta. Senado Federal. BRASÍLIA – 2005.
73
Idem.
74
Idem.
45

No contexto político aberto pela experiência liberal democrática (1945-1965),


se evidenciavam no Brasil alguns sinais de uma maior identificação dos grupos sociais com
os partidos políticos, algo que vai ser interrompido pela truculência do golpe civil-militar
de 1964. Esse momento, segundo estudo de Antônio Lavareda, é indicativo de um
progressivo reconhecimento eleitoral de suas bases na sociedade pelas propostas políticas
dos partidos. É um momento ainda, podemos dizer, pouco estudado por nossa historiografia,
também no âmbito dos estudos piauienses75, porém importante no reconhecimento de uma
experiência histórica em que, se existia alguma tendência, essa se dava por uma maior
estabilização e consolidação daquele sistema partidário, e também “por ter sido o único em
cujo decorrer o país, já como sociedade de massa de expressiva dimensão, manteve durante
duas décadas um sistema partidário que, embora não chegando a ver sua completa
institucionalização, detinha o monopólio da representação e era de fato competitivo em
todos os níveis”76. Como também indica Miriam Ruas:

Aqui a expansão das atividades econômicas, causada pelo aumento das


exportações e pelo crescimento do consumo interno, acarretara o
crescimento da classe operária; crescimento este não só numérico, mas
também, à nível da sua importância política, já que seu voto, muitas vezes,
passara a ser decisivo nos resultados eleitorais. [...] Mas esse
desenvolvimento foi acompanhado também por desníveis sociais pela
penetração do capital estrangeiro. Este fator fez com que ganhassem
impulso as teses nacionalistas, em defesa da economia nacional e da
participação do Estado no processo de desenvolvimento, condenando a
política econômica que atrelava o país à economia norte-americana, como
forma de assegurar a independência da nação 77.

Essa experiência de ampliação da participação política, no entanto, foi


interpretada de maneira negativa por alguns autores, por meio da noção de populismo, que
nada mais é do que uma generalização, uma forma de reduzir e enquadrar a pluralidade de
sujeitos e experiências políticas daquele momento histórico. Como nos indica Jorge Ferreira,
“por conta da sua elasticidade, o termo populismo se esforça por dar conta de personagens
de diferentes tradições políticas sob as mesmas características” 78 . Por isso, a visão que

75
Aqui destaco os trabalhos de Marylu Alves de Oliveira, que contribuem para a escrita desta tese e que tomo
como referência para evidenciar as práticas políticas do trabalhismo piauiense. Como a tese: OLIVEIRA,
Marylu Alves de. Da terra ao céu: culturas políticas e disputas entre o trabalhismo oficial e o trabalhismo
cristão no Piauí (1945-1964) /. 532 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de
Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, 2016.
76
LAVAREDA, Antônio. A democracia nas urnas: o processo partidário-eleitoral brasileiro (1945-1964). Rio
de Janeiro: Iuperj/Revan, 1999.
77
RUAS, Miriam Diehl. A doutrina trabalhista no Brasil (1945-1964). Porto Alegre: Ed. Fabris, 1986, p. 23.
78
Sobre o debate em torno do conceito de populismo na cultura política brasileira, ver: FERREIRA, Jorge.
(Org.). O populismo e sua história: debate e critica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
46

durante certo tempo se constituiu sobre esse período é de uma massa de trabalhadores sem
consciência política efetiva, sendo guiada por meio do carisma e/ou da coerção de líderes
políticos, de maneira acrítica79.
É preciso questionar esse tipo de visão conservadora que só concebe a presença
dos grupos populares se cooptadas ou manipuladas, frente a uma liderança política imposta
de cima para baixo. Segundo interpretação de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes,
nesse momento “o Brasil estava construindo uma experiência de democracia representativa”.
Segundo os autores, “justamente porque se estava avançando e caminhando em direção à
ampliação de direitos de cidadania, a Terceira República foi interrompida pelo golpe de
1964”80.
Nesse contexto, em Parnaíba, o trabalhista José Alexandre Caldas Rodrigues foi
aquele que maior viabilidade teve frente às estruturas sindicais na cidade. O jogo de força e
as diatribes políticas dentro do PTB local vão ser tolhidos em benefício do nome do
empresário ligado ao comércio pela firma Poncion Rodrigues. Nesse sentido, jornais locais,
como Gazeta do Piauí e Correio do Povo, lançaram aberta campanha para o executivo
municipal, bem antes do término da gestão udenista (1958), em apoio ao nome do
empresário. Além disso, procuraram evidenciar a ampla base eleitoral construída em torno
do nome de José Alexandre, dentro dos sindicatos locais, ao ponto de lançarem declarações
como a que segue, em que indicam que “todos os sindicatos” locais, sem exceção, estariam
juntos, em apoio ao PTB e a esse candidato para as eleições municipais de 1958.

Em palestra com a nossa reportagem, além de outras declarações de ordem


política que nos prestou, afirmou categoricamente o Sr. José Alexandre
Caldas Rodrigues, presidente do P.T.B. local que seu partido conta com
apoio integral de todos os sindicatos existentes entre nós. Finalizando,
declarou ainda o Sr. José Alexandre: contamos com a maioria na Câmara
Municipal, assegurando assim o P.T.B o primeiro lugar como partido que
mantém a maioria do eleitorado em nossa terra81. (grifo meu)

Naquele momento histórico, as alianças políticas traçadas para as disputas


eleitorais no Brasil teriam que levar em conta o peso político que adquiriram as classes
trabalhadoras que compunham os inúmeros sindicatos de classe. Como herança da tradição
trabalhista e nacionalista de Vargas, os sindicatos compostos por representações

79
FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: Jorge Ferreira (org.). O
populismo e sua história. Debate e critica. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2001.
80
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Brasil, 1945-1964: uma democracia representativa em
consolidação. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 251-275, 2018, p. 254.
81
Contamos com todos os sindicatos. Ver: Jornal Correio do Povo. Ano 01. Nº 01. Parnaíba, 01 ago. 1956,
p. 01.
47

corporativistas tornaram-se então partícipes de peso nas disputas políticas. Em Parnaíba, a


configuração dos sindicatos e a figura do trabalhador urbano, por certo, também deveriam
ser levadas em conta no quadro eleitoral.
O projeto político constituído em torno do PTB, compôs alianças permeadas de
disputas internas e ambiguidades com os sindicatos, mas, por meio dessas é que foi possível
lançar nomes de alguns trabalhadores como marítimos, estivadores, para as disputas
partidárias, bem como para compor a legenda trabalhista, ao mesmo tempo fortalecer a
presença nos sindicatos das lideranças petebistas. Em depoimento prestado aos militares,
logo após as batidas policiais e o Inquérito Policial Militar, instaurado em 1964, o líder
político José Ceará 82 , vinculado ao PCB, faz uma crítica sobre a influência política
estabelecida dentro dos sindicatos pelos líderes do PTB, desde fins da década de 1950 até
início da década de 1960. Para ele:

O movimento sindical na cidade de Parnaíba tem muito mais importância


que na cidade de Teresina, considerando a existência de um porto marítimo
e fluvial, indústrias e a sede da Estrada de Ferro Central do Piauí; que
naquela cidade o movimento sindical recebe a influência política do ex-
deputado estadual José Alexandre Caldas Rodrigues, que se considerava
verdadeiro dono dos sindicatos, como provam os resultados eleitorais nos
mais diversos pleitos em que o cidadão acima tinha maioria de votos sobre
o próprio líder sindical Tiago José da Silva [...], o ex-deputado José
Alexandre exercia a sua liderança nos sindicatos através do empreguismo,
de propinas e promessas demagógicas [...], que o ex-deputado José
Alexandre e Tiago José da Silva, ambos pertencentes ao PTB, chegavam
até a divergências político eleitorais quando da procura de votos 83.

José Ceará, por conta de sua experiência frente aos grupos de trabalhadores no
estado do Piauí destacava, em um primeiro plano, algo que certamente se faz notório
observar: a preponderância da força e organização sindical em Parnaíba, em detrimento de
outros espaços piauienses, como a própria capital do estado, Teresina, por motivos tais como
a força econômica da cidade de Parnaíba. Em um segundo plano, chama a atenção o fato de
José Ceará mencionar que os sindicatos eram locais onde a presença das lideranças
trabalhistas se dava apenas por um meio de empreguismo e de propinas distribuídas pelos
trabalhistas como José Alexandre – meios típicos de estratégias de manipulação.

82
José Pereira de Sousa, conhecido como José Ceará, nasceu em Ipueiras, localizada no noroeste do Estado
do Ceará, em 19 de março de 1901. Foi pedreiro, estivador em Parnaíba, nos anos 1930, Secretário Geral do
PCB do Piauí. Ver: SOUSA, Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais. JOSÉ CEARÁ E O PCB: a trajetória de um
operário comunista no Piauí (1933-1964). Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Parnaíba-PI,
ano 1, n. 01, jul./dez. de 2015.
83
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Depoimento de José Ceará. Projeto Brasil Nunca Mais. Nº 349.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/400/349.html. Acesso em: 03 jun.2017.
48

Se a presença do PCB não se fez notar com grande penetração junto aos
sindicatos locais, por certo, a presença massiva das lideranças ligadas ao PTB causou
incômodo aos militantes pecebistas, como o próprio José Ceará. Não estou negando que esse
tipo de prática tenha se exercido junto aos sindicatos de classe em Parnaíba. Porém, percebe-
se que grande parte dos trabalhadores preferiram, naquela quadra histórica, as pautas
petebistas e as aproximações com os grupos do PTB local, e que, além disso, existiram
outros fatores que inviabilizaram os comunistas nas estruturas sindicais, como o forte
anticomunismo presente no espaço piauiense84, assim como em diferentes partes do país.
Naquele momento, a configuração do PTB parnaibano passou por disputas
externas envolvendo a UDN local, pois o partido encontrou espaço para críticas abertas ao
prefeito Alberto Silva, mas também por algumas disputas internas, envolvendo grupos
“alexandristas” e “ivanistas” que, na segunda metade dos anos 1950, vão inviabilizar outros
nomes que não o do próprio José Alexandre Caldas Rodrigues, a disputar o executivo
municipal.
Portanto, as disputas do petebismo parnaibano passavam pelo apelo ao
personalismo, relacionados aqui às figuras de José Alexandre Caldas Rodrigues e do irmão,
Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, alçados agora, por meio da imprensa ligada aos
trabalhistas, como os “grandes nomes” do trabalhismo parnaibano e principais lideranças
políticas do PTB norte-piauiense. Esses dois personagens, então, foram vistos, por meio da
imprensa, como aqueles que poderiam “falar em nome” da legenda trabalhista.

Ao que se comenta, o Sr. José Alexandre Caldas Rodrigues se mostra cada


vez mais abespinhado com o Vereador Ivan Martins, olhando-o, por isso,
sempre de esguelha. Verificando estar Ivan na firme determinação de ser
candidato a prefeito de nossa cidade, nas próximas eleições, José
Alexandre que também aspira candidatar-se, novamente, ao dito cargo,
estaria recomendando aos seus liderados o recrudescimento da campanha,
contra o líder trabalhista, que teve a hombridade de rebelar-se contra os
propósitos de absorção manifestados pelo presidente em exercício do PTB
local, que é José Alexandre85.

Por meio da imprensa, as disputas internas, dentro do PTB, se fizeram em torno


do nome para disputar a prefeitura de Parnaíba nas eleições de 1958. O grupo nomeado de
“alexandrista”, tendo à frente José Alexandre Caldas Rodrigues, foi o que conquistou maior
notoriedade nas disputas e tentativas de fracionamento dos trabalhistas locais, por conta da

84
Sobre o anticomunismo no Piauí, ver: OLIVEIRA, Marylu Alves de. A cruzada antivermelha: democracia,
Deus e terra contra a força comunista: representações, apropriações e práticas anticomunistas no Piauí da
década de 1960. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, 2008.
85
Política: Conversa de bastidores. Jornal O Paladino. Parnaíba-PI, p. 04, 14 jul. 1956.
49

estrutura econômica e partidária que o apoiava no âmbito estadual. Nesse caso é preciso
perceber que tal viabilidade se dava também pela importância política de seu irmão, o
deputado federal Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, que em 1954 migrou para o PTB.
Além do nome do senador petebista, Mathias Olímpio de Melo. Esse último e Chagas
Rodrigues foram, naquele momento, as maiores forças eleitorais petebistas no estado.

Enquanto o Sr. José Alexandre continua possível candidato à prefeitura,


seu companheiro de partido e líder do PTB na Câmara Municipal, deixa
perceber claramente que também é candidato. Segundo o nosso confrade
O Paladino, queixa-se continuamente o líder petebista, de estar sendo
massacrado dentro do partido. Daí tudo indica que o vereador Ivan, não
abrirá mão de sua candidatura, mesmo que seja preciso um rompimento
com o partido86.

Como se percebe, existiram embates, jogos de força, dentro do próprio partido


em torno da escolha do nome a disputar a eleição municipal de 1958. José Alexandre já
havia disputado o pleito anterior (1954), perdendo a eleição municipal para o rival, Alberto
Silva, da UDN87. A partir de então, José Alexandre encabeçou uma oposição acirrada, já
visando, provavelmente, ganhar força para o próximo pleito municipal. É importante, nesse
ponto, perceber que uma das práticas políticas naquele contexto, visando garantir uma
ampliação do eleitorado, foi a aproximação entre grupos ligados ao grande comércio e os
sindicatos na cidade.
Esse processo, por outro lado, trouxe, consequentemente, algumas
possibilidades de inserção de lideranças sindicais nas disputas políticas, tanto municipais
quanto estaduais. Cito como exemplo Custódio Amorim88, eleito em sucessivos pleitos no
Legislativo da cidade, nomeando-se de “vereador operário”. Também o secretário do
Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Construção e Mobiliário, eleito vereador pelo
PTB, João Roberto Araújo (1958). Dentre algumas outras lideranças sindicais que
conseguem galgar cargos no legislativo municipal e estadual, a partir dos anos 1950, ainda
cito Tiago José da Silva89, líder do Sindicato dos Estivadores de Parnaíba, que disputou
algumas eleições nos anos 1950, chegando a se eleger deputado estadual, pelo PTB, em

86
Jornal Correio do Povo, Parnaíba, p. 03, 04 ago. 1956.
87
Os dados do TSE dão conta de que nas eleições de 1954, os números ficaram nessa ordem: Alberto Tavares
da Silva UDN (6437 votos. Eleito). José Alexandre Caldas Rodrigues PTB (5391 votos. Não eleito.) VOTOS
NULOS – 594 - VOTOS BRANCOS – 411.
Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pi-resultado-eleicao-prefeito-vice-vereador-
por-municipio1954. Acesso em: 13 maio 2018.
88
Vereador pelo PTB nos anos 1950, líder sindical na cidade de Parnaíba, se nomeava como “vereador
operário”. Chegou a ser indiciado no Inquérito Policial Militar, em 1964.
89
Líder do Sindicato dos estivadores da cidade, foi indiciado pelo Inquérito Policial Militar em 1964.
50

1958, quando obteve, segundo dados do TSE, 3.258 votos90. Todos os citados acima foram
perseguidos após o golpe de 1964.
Algumas questões precisam ser aqui levantadas: como os grupos políticos mais
tradicionais perceberam essa entrada de setores da classe trabalhadora nas disputas político-
partidárias? Qual a relação que se pode estabelecer entre essa ampliação da participação
política das classes trabalhadoras – ao menos parte dela – e o sucessivo crescimento das
pautas anticomunistas no período anterior ao golpe? Algumas dessas questões serão
discutidas ao longo deste trabalho e são importantes para perceber as tensões envolvidas
naquele cenário histórico.
A atuação partidária do PTB em Parnaíba, na segunda metade da década de 1950,
como se pode perceber nos jornais em circulação na cidade, visava incluir pautas favoráveis
às classes populares, como auxílio médico para os setores necessitados de assistência
hospitalar. Buscaram levantar, por exemplo, fundos para a manutenção da Santa Casa de
Misericórdia 91 , hospital criado no início do século XX, que atendia grande parte da
população carente da cidade. Além de outras pautas, como um projeto de criação do vereador
Ivan Martins, propondo a isenção de imposto predial para moradores dos bairros populares
da cidade. Os moradores desses locais eram os mais castigados durante os invernos rigorosos,
além da dificuldade de sobrevivência em uma cidade fortemente dividida do ponto de vista
econômico e espacial.

O Vereador Ivan Martins, atualmente em gôzo de licença, apresentou à


Câmara Municipal, antes de licenciar-se, um projeto do mais alto alcance
social, porque visa a beneficiar um elevado número de pobres pais de
família. Êste projeto isenta, de imposto predial, durante o corrente ano de
1955, casas residenciais de palha, taipa de tijolo, ocupada pelos
respectivos proprietários nos bairros Corôa e Tucuns nesta cidade 92.

Os bairros supracitados são marcados pela forte presença da classe trabalhadora


parnaibana. São espaços de ruas estreitas e mal planejadas com pequenas casas apinhadas
umas sobre as outras. Esses bairros foram crescendo de forma desordenada, a partir do
entorno do cais do rio Igaraçu e próximos aos locais de trabalho dos moradores, como a

90
Dados do TSE. Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pi-resultado-eleicao-geral-
para-deputado-estadual-deputado-federal-governador-vice-governador-senador-suplente-de-senador-1958.
Acesso em: 05 fev. 2019.
91
Há, no jornal Gazeta do Piauí, um embate entre câmara dos vereadores e prefeitura, sobre um projeto do
vereador Ivan Martins, do PTB que buscava auxílio para o hospital Santa Casa de Misericórdia, vetado pelo
prefeito udenista Alberto Silva.
92 Novo projeto do Vereador Ivan Martins, isenta de imposto predial, no corrente exercício, casas residências
existentes no Bairro Corôa e Tucuns. Ver: Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba, ano 01, nº 19, 05 maio 1955, p.
01-02.
51

fábrica dos Moraes S/A, localizada no mencionado bairro da “Corôa”, hoje nomeado de
bairro Nossa Senhora do Carmo.
Nos anos 1950/1960, esses bairros eram os locais mais suscetíveis aos
transtornos provocados pelos constantes alagamentos no período chuvoso 93. De fato, são
recorrentes nos jornais parnaibanos, matérias que falam sobre uma grande quantidade de
desabrigados, retirados de suas casas pela força das águas, pelas inundações que, ano após
ano, se repetiam, sem uma solução por parte do poder público. Interessante observar ainda
que o vereador justifica o projeto de isenção de imposto argumentando que este vai ajudar
os moradores, pedindo parecer favorável junto à Câmara Municipal, pois este iria favorecer
os anseios daqueles “trabalhadores pobres, músicos, pedreiros, marceneiros, ferreiros,
carroceiros, estivadores, padeiros, serventes e demais trabalhadores humildes de Parnaíba” 94.
Na cidade de Parnaíba, na segunda metade da década de 1950, criou-se um
mecanismo de participação política dos setores empresariais e políticos, como os
mencionados herdeiros da firma Poncion Rodrigues, os irmãos José Alexandre Caldas
Rodrigues e Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, amparados por setores do sindicalismo
local. Esse projeto político, evidenciado por meio de um conjunto de propostas nacional-
desenvolvimentistas, pode ser percebido com bastante evidência nas fontes de pesquisa.
Importante destacar que nos anos 1950, sobretudo após 1954, há uma
reformulação nos quadros e nas práticas do trabalhismo brasileiro, por conta da chegada de
João Goulart à presidência do PTB, da sua atuação enquanto ministro do Trabalho, além das
consequentes reformulações do partido após a morte de Vargas. Jorge Ferreira indica que,
naquele momento, Jango recebia lideranças sindicais para conversações e agia como uma
espécie de intermediário entre os anseios dos trabalhadores e o governo 95 . Foi naquele
contexto também que os grupos conservadores, por meio da imprensa, lançaram visões
negativas sobre a figura de Jango, afirmando que este planejava controlar os principais
sindicatos do país, e que “seu objetivo geral será tomar o poder por meio de uma greve
geral”96.

93
A cidade de Parnaíba, em períodos chuvosos, assistia o flagelo das comunidades dos bairros populares da
“Corôa” e “Tucuns” que, por serem mais baixos e mais próximos do cais do rio, eram atingidos quando das
enchentes, causando prejuízos e perdas materiais aos moradores. As classes trabalhadoras de Parnaíba, em sua
maioria, residente nos bairros em questão, eram as mais suscetíveis às constantes inundações, pois ambos os
bairros possuíam, e ainda possuem, grande aglomeração humana e são, ao mesmo tempo, pouco amparados
pelo poder público.
94
Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 01-02, 1955.
95
FERREIRA, Jorge. O ministro que conversava: João Goulart no ministério do Trabalho. In: Ferreira, Jorge.
O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2005, p. 102.
96
Idem, p. 103.
52

Naquele mesmo momento, de acordo com Lucília de Almeida Delgado, o


reformismo começou a ganhar corpo no PTB nacional, convivendo ambiguamente com o
personalismo dentro da legenda. De acordo com a autora, o PTB avançou de uma proposta
inicial marcada pelo fisiologismo e personalismo para a defesa de um projeto de maior
consistência ideológica e de caráter fortemente reformista 97 . Vale destacar, que, ainda
segundo a autora, essas duas formas de atuação política do partido não são inconciliáveis,
pois continuaram convivendo ambiguamente dentro do PTB. Sendo assim, a atuação do
petebismo foi marcada também pela “história da convivência entre sequência e ruptura, a
história de relações ambíguas, de processos renovadores e ao mesmo tempo
conservadores”98.
No quadro político parnaibano, aquele momento foi de formação e valorização
de lideranças políticas para atuação em disputas políticas locais e estaduais. Os jornais
levantados estão prenhes de matérias elogiosas a esses personagens, alguns outrora ligados
a outras agremiações partidárias como a UDN, mas ligados, já na segunda metade dos anos
1950, ao trabalhismo petebista. No contexto local, destacou-se a figura do empresário José
Alexandre Caldas Rodrigues, que se elegeu prefeito de Parnaíba (1958-1962), pela legenda
trabalhista (PTB).
José Alexandre foi um dos cassados no golpe de 1964, em seu mandato posterior
de deputado estadual (1962-1964). Observei, por meio das matérias veiculadas na imprensa,
na segunda metade dos anos 1950, que este foi alçado à condição de “porta-voz” da classe
trabalhadora pelo grupo trabalhista, como pude perceber por meio do levantamento do
material desta pesquisa.

Com destino à capital da República, avionou quinta-feira última, o Sr. José


Alexandre Caldas Rodrigues, sócio da firma Poncion Rodrigues S.A e
presidente da comissão executiva local do Partido Trabalhista Brasileiro.
O ilustre viajante, além do conceito que desfruta no comércio de nossa
terra, é hoje uma das pessoas que gozam de maior prestígio no seio das
massas trabalhadoras, por isso estando categorizado para falar em nome
dos trabalhadores de Parnaíba.99 (grifo meu)

Pelas matérias dos jornais, como a supracitada, fica perceptível a crescente


manifestação do partido em torno de práticas personalistas e de possibilidades de inserção
de figuras empresariais à frente das questões referentes aos trabalhadores. O PTB, no quadro

97
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo. 1945-1964. São Paulo: Marco
Zero, 1989.
98
DELGADO, 1989, p. 291.
99
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI. 13 out. 1956, p. 01
53

nacional, teve, nesse sentido, como uma das suas características, a forte presença dos setores
empresariais nos cargos de direção do partido. Para Maria Celina D’Araújo, “se num
primeiro momento o partido ficou sob o comando formal dos trabalhadores, poucos meses
depois figuras expressivas do Ministério do Trabalho e outros tipos de militantes, inclusive
empresários, passaram a assumir explicitamente as funções de chefia”100. Nesse ponto, como
se pode aventar, essa foi também uma das marcas do trabalhismo em uma cidade como
Parnaíba, onde setores empresariais progressivamente tomaram a frente do quadro partidário
do PTB.
No que se refere ao processo de constituição do PTB parnaibano, na segunda
metade da década de 1950, a imprensa ligada ao partido buscou impulsionar o nome de José
Alexandre nesse quadro de reformulação partidária, com notas permeadas de títulos
valorativos e grandiloquentes, tais como o de “chefe supremo do trabalhismo parnaibano”101.
Bem como, ainda de acordo com a imprensa, este [José Alexandre] seria “pessoa demais
querida e relacionada nos meios sociais, comerciais e políticos de nossa terra” 102. Portanto,
a imprensa ligada aos trabalhistas serviu como meio de veiculação das práticas políticas e
de discursos enaltecedores aos nomes do PTB local, sobretudo com a intenção de ampliar a
receptividade de alguns políticos dessa legenda.
Um ponto precisa ser discutido aqui, no entanto. O trabalhismo local, a meu ver,
e as pautas levantadas pelo partido, não podem ser percebidos simplesmente como algo que
foi imposto de cima para baixo pelos grupos políticos e empresariais locais, no sentido de
angariarem votos dos trabalhadores urbanos. Existem estratégias de negociação e pontos em
disputa entre empresários e a classe trabalhadora. Não compreendo a figura do trabalhador
local enquanto meramente passivo às orientações dos grupos políticos/empresariais
parnaibanos, mas como sujeitos que perceberam as possibilidades abertas pela relação mais
direta com o Estado, com a legislação criada para atender os anseios da classe trabalhadora
e, em certo sentido, também com o projeto político trabalhista em evidência naquele
momento.
Esses pontos ficam mais evidentes quando as pautas que os trabalhadores
começaram a levantar diziam respeito mais propriamente às questões salariais, ao
cumprimento das obrigações trabalhistas, bem como – e isso é importante destacar – a

100
D’ARAUJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-1965. Rio de Janeiro: FGV, 1996,
p. 41.
101
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, ano 03, n. 227, p. 04, 01 maio 1957.
102
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 04, 1957.
54

quando esses trabalhadores, por meio das representações sindicais, almejaram a


possibilidade de lançarem seus próprios nomes nas disputas políticas locais. Nesse quesito,
como nos indica Ângela de Castro Gomes, os “trabalhadores foram sujeitos de sua história,
estando longe das figurações de passividade/inconsciência ou de rebeldia radical, mesmo
nas mais duras condições de violência” 103
. Além disso, ainda segundo a autora,
“particularmente desde os anos 1930, os trabalhadores passaram a lutar por, e a constituir,
uma ‘cultura de direitos’, entendida como de responsabilidade do Estado, dos patrões e dos
sindicatos”104. Essas questões são importantes, neste trabalho, para não cair em uma lógica
de compreensão simplista, que tira qualquer possibilidade de protagonismo da classe
trabalhadora enxergando nesse processo apenas estratégias de manipulação.
Um ponto a se destacar, nesta pesquisa, são as nuances que o trabalhismo assume
no cenário parnaibano, bem como a compreensão de que esse projeto político tentou forjar
uma cultura política de participação popular nos espaços políticos consagrados aos setores
dominantes. Nesse ponto, destaco o texto retirado do Gazeta do Piauí, jornal ligado aos
grupos trabalhistas locais, de propriedade do senador Mathias Olímpio de Melo que, dentre
outras questões, indicava os percalços que esse projeto enfrentaria para se consolidar no
Brasil e, consequentemente, na cidade de Parnaíba. O texto é fundamental no sentido da
compreensão dos impasses e das disputas envolvendo os trabalhistas, frente àqueles que se
posicionavam contrários às suas pautas, por considerá-las inapropriadas pela proximidade
com a classe trabalhadora, dentre outras razões.

Obstáculos de tôda sorte eram levantados, como se para impedir ou


confundir o direito de viver com decência de que ainda não tinha
consciência clara a grande maioria dos trabalhadores brasileiros. Muita
coisa era alegada, em detrimento do trabalhismo nascente que apontava o
caminho certo a seguir e os direitos que assistiam a todos aqueles que
dispendiam suas energias em prol duma causa em comum. Entre os
diversos óbices a serem removidos encontra-se o comunismo como
suposto objetivo visado pelo movimento reivindicador dos direitos dos
trabalhadores. Campanha acirrada foi movida por parte de grupos
contrários à emancipação social e econômica das classes laboristas, pôsto
que esse combate tivesse mais de efeito psicológico, porque na prática já
ficara provada a pouca eficiência da doutrina comunista entre os
brasileiros105.

103
GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate.
Revista Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 34, jul./dez. 2004, p. 182.
104
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. 2004, p. 182.
105
O Trabalhismo em marcha! Ver: Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 02, 07 jul. 1956.
55

Importante observar algumas questões: em um primeiro plano, a ideia de que,


para os articulistas, o trabalhismo seria a “forma mais adequada” de representação das
demandas dos grupos de trabalhadores naquele momento. O texto faz questão de enunciar
que o “trabalhismo nascente” seria o meio pelo qual os trabalhadores teriam acesso, em sua
grande maioria, à consciência de seus direitos, pois esse apontaria o “caminho certo” a ser
seguido pela classe trabalhadora. Em um segundo plano, importa observar ainda, a escolha
de um outro grupo político em disputa com o projeto trabalhista de aproximação com as
classes trabalhadoras: o comunismo.
Esse outro projeto – comunista – teria, para os autores, mais efeito psicológico,
pois a doutrina comunista não teria representatividade no meio político e social nesse espaço,
pois, de acordo com o texto, em Parnaíba “[deu-se] a mesma coisa. Encontrou-se o credo
vermelho bastante comprometido, em face da cisão existente entre stalinistas e o triunvirato
dominante de Moscou, a fim de que o movimento de renovação implantado por Vargas e
seguido por seus continuadores não tivesse a receptividade que hoje se reflete no seio das
grandes camadas de trabalhadores do país”106.
O trabalhismo petebista, de acordo com o texto do jornal Gazeta do Piauí,
passou pelas formas ligadas ao personalismo varguista, cerrando combate contra a
aproximação dos trabalhadores locais com o comunismo, no sentido de trazer a classe
trabalhadora para o PTB. Uma outra questão se evidencia: para o autor, a presença de figuras
de “representação social” foi um dos motivos que levaram a uma maior relevância do
trabalhismo na cidade. Em certo sentido, uma forma de buscar o fortalecimento de um
partido de orientação trabalhista, seria demonstrar que se encontravam em seus quadros
componentes das famílias tradicionais parnaibanas, empresários tidos como progressistas,
ligados aos ideais modernizadores e nacional-desenvolvimentistas, bem como lideranças
políticas oriundas de outros agrupamentos políticos que migraram para o PTB.

Mas homens de pensamento claro e de longo alcance tomaram a decisão


de liderar o movimento por todos os títulos dignos de elogios. Essa decisão
desassombrada tomada por alguns elementos de representação social ou
política amainou um pouco a fúria com que era combatido o trabalhismo
em nosso meio. Nasceu até mesmo daí o ensejo de um melhor exame sobre
a matéria. Disso decorrendo a adesão posterior de vários elementos até
então intensos à causa. Já a esta altura uma facção da ala patronal se
juntava ao movimento, mas dentro de sua própria esfera de ação,
unicamente pra colaborar com o homem que trabalha, que tem deveres a
cumprir e que precisa ver atendidas as suas reivindicações. Outros
igualmente simpatizaram com a causa, mas dela jamais se aproximaram,

106
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 02, 07 jul. 1956.
56

preferindo à distância, enquanto podem tirar proveito de sua ‘adesão’. Há


ainda a terceira facção, a que move campanha surda e envolvente contra o
trabalhismo, por isso mesmo a que deve ser vigiada com maior atenção! 107

O texto acima, do jornal Gazeta do Piauí, é ilustrativo das condições de


consolidação de uma cultura política trabalhista na cidade de Parnaíba, no sentido de
apontar as camadas da sociedade que vão, aos poucos, dando forma à legenda trabalhista
nesse espaço. No entanto, é preciso perceber as colocações também como uma tentativa de
forjar um sentimento coletivo e de buscar adesões à causa trabalhista na cidade, percebendo-
as também como uma tentativa demonstrar que, no âmbito daquele agrupamento, estariam
representados tanto os trabalhadores de vários setores, buscando melhorias salariais ou
simples cumprimento da legislação trabalhista, bem como a ala patronal parnaibana, ao
menos parte dela. Portanto, para os autores do texto, aquele era um projeto político que
serviria como amortecedor dos possíveis conflitos entre patrões e empregados, como
anteparo a outras formas de atuação mais radicais dos trabalhadores e também poderia se
caracterizar como canal de negociação/dispersão de combates entre as classes sociais.
O que mais se ressalta, no entanto, é a tentativa de ligar a consolidação do
trabalhismo local aos setores mais “bem localizados” na cidade. Por certo, o projeto
trabalhista deveria assumir uma proposta convergente, aliando pontos de negociação e
interesses distintos, no sentido de alcançar aquilo que era pensado dentro do projeto
nacional-desenvolvimentista 108 . Ou seja, um desenvolvimento econômico que pudesse
favorecer, não somente o empresariado local, mas também a classe trabalhadora. Pedro
Cezar Dutra Fonseca entende esse projeto, no Brasil, como um “fenômeno de maior
envergadura, dos poucos cujo alcance e desdobramentos acenavam para alternativa diferente
da forte concentração de renda e do autoritarismo impregnados na história latino-americana”.

107
Jornal Gazeta do Piauí, p. 02, 07 jul. 1956.
108
Esse projeto esteve em evidencia sobretudo a partir do segundo governo Vargas (1951-1954), mas foi
colocado em prática ainda nos anos 1930. Tem como norte, dentre outros aspectos, a definição de políticas
menos conjunturais ou de curto prazo. Além de propostas profundas e coerentes entre si nas mais diversas
áreas, muito além das variáveis estritamente econômicas, como educação, transportes, saúde, direitos sociais,
relação capital/trabalho e cultura, por exemplo. Além disso, buscava a superação do modelo agroexportador
através de medidas para materializar, como alternativa, a industrialização e a diversificação da produção
agrícola e da pauta de exportações. O fortalecimento das estatais e a defesa das riquezas naturais brasileiras.
Tinha-se o entendimento de que esta construção não adviria por forças espontâneas ou pelos mecanismos de
mercado; mas o Estado deveria ser o agente indutor de tais mudanças. Para mais informações sobre o projeto
nacional-desenvolvimentista, ver: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Nem ortodoxia nem populismo: o Segundo
Governo Vargas e a economia brasileira. Tempo [online]. 2010, vol.14, n. 28, p.19-58. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/tem/v14n28/a02v1428.pdf. Acesso em: 05 fev. 2019.
57

Para o autor, os enunciados desse projeto traziam consigo também a proposta, então expressa
no trabalhismo, de uma sociedade mais justa e equilibrada109.
No contexto da experiência liberal democrática (1945-1964), grupos de
trabalhadores urbanos no espaço norte-piauiense construíram para si alternativas
reivindicativas e formas de inserção no âmbito da política, bem como procuraram meios de
atendimento de seus direitos. Naquele contexto, muitos desses trabalhadores se sentiram
próximos a determinados líderes políticos por conta da sua atuação em defesa dos interesses
da classe trabalhadora. Nesse ponto, é possível vislumbrar, em periódicos de circulação local,
uma série de reclames da classe laboral direcionados às figuras do PTB nacional e ao
Ministério do Trabalho, no sentido de ver atendidas suas reivindicações. Exemplar, nesse
sentido, é um telegrama enviado por trabalhadores marítimos locais, para Fernando Ferrari,
João Goulart, bem como ao titular da pasta do Trabalho naquele momento, o ministro Nelson
Omegna110.

Tendo navegação Rio Parnaíba S.A sediada nesta cidade reincidido


contratos trabalho seus empregados sem, entretanto, cumprir obrigações
previstas na Legislação Trabalhista, referidos empregados e suas famílias
estão passando toda sorte privações. Sem trabalho e sem recursos qualquer
espécie, os mesmos se encontram em situação verdadeiramente
desesperadora. Entregues assim sua própria sorte marítimos deslocados e
lesados seus direitos fazem nosso intermédio veementemente apelo ilustre
patrício sentido trabalhar urgentemente defesa sua causa. Agradecemos
imediatas providências. Saudações111.

Como se pode aventar, a defesa dos direitos dos trabalhadores assumiu uma nova
feição na segunda metade da década de 1950, por meio da atuação do Ministério do Trabalho
e da postura assumida por figuras como João Goulart, enquanto esteve à frente do órgão.
Além disso, também pela atuação de lideranças trabalhistas no que diz respeito ao
cumprimento da legislação pertinente aos trabalhadores. Cabe ressaltar que os trabalhadores

109
FONSECA. Pedro Cezar Dutra. op. cit. 2010, p. 56-57
110
Nelson Backer Omegna foi deputado reeleito em outubro de 1954 na legenda do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Tornou-se vice-líder de seu partido na Câmara a partir de março de 1955, tendo sido autor
de diversos projetos de caráter trabalhista e de interesse nacional. Nessa legislatura, foi presidente da Comissão
do Imposto Sindical e da Comissão de Finanças e membro da Comissão de Orçamento da Câmara. Deixando
temporariamente a Câmara Federal, ocupou, durante o governo de Nereu Ramos (1955-1956), o cargo de
Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, de novembro de 1955, ao suceder Napoleão de Alencastro
Guimarães, até janeiro do ano seguinte, quando foi substituído por José Parsifal Barroso. De volta ao exercício
do mandato ainda em 1956, integrou-se à Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), então formada por deputados
do Partido Socialista Brasileiro (PSB), do PTB, da UDN e do Partido Social Democrático (PSD). Fonte:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/nelson-backer-omegna. Acesso em: 13 out.
2017.
111
Os marítimos do Piauí dirigem-se às federações nacionais dos marítimos, ao ministro do trabalho e a um
parlamentar; desesperadora sua situação – apelo veemente. O Paladino, 19 jan. 1956. Parnaíba-PI.
58

em questão assumem uma postura de reivindicação de seus direitos, por perceberem que
certamente seriam ouvidos e atendidos em suas causas.
Mesmo distantes dos grandes centros de decisão política, esses trabalhadores
parnaibanos poderiam manter canais de diálogo com figuras de relevo na política brasileira
daquele momento, pois confiavam em suas atuações e poderiam, por meio de suas
correspondências, lançarem suas queixas em busca de resolução para os impasses a que
estavam submetidos. Na mesma matéria do jornal O Paladino, órgão noticioso em que se
podem ver algumas das práticas políticas petebistas, o noticiante seguia enfatizando que foi
montada uma comissão para ir diretamente ao Rio de Janeiro resolver tal problema:

Segundo informou a nossa reportagem, o Sr. Tomaz da Silva Lima, um dos


mais denodados líderes da classe marítima, piauiense irá ao Rio de Janeiro
em princípios do mês de fevereiro, uma comissão integrada por vários
marítimos de nosso estado. Essa comissão – revelou-nos o Sr. Tomáz Lima
– procurará resolver a triste situação em que nos encontramos, mantendo
contato com diversas personalidades. Contamos, desde logo, com a valiosa
cooperação do ilustre Sr. João Goulart, que certamente, não permitirá que
a nossa classe permaneça nessa amarga situação de completo abandono,
situação da qual, aliás, já demos ciência ao nosso vice-presidente da
república112.

Como se pode perceber dos fragmentos do jornal citados, os trabalhadores não


podem ser lidos no contexto como passivos como muito se vinculou à sua imagem naquele
momento. Precisam sim, ser vistos como sujeitos ativos nos processos políticos ao qual
vivenciaram. Esses trabalhadores, de certa forma, se apropriaram da legislação trabalhista,
compreendendo os efeitos e benefícios que tal mecanismo poderia lhes trazer e assim
criaram meios para defesa de seus interesses enquanto classe.
O que é preciso destacar, segundo a proposta de Ângela de Castro Gomes, é que
essas práticas sociais dos trabalhadores evidenciam a existência de “um movimento operário
muito mais rico e complexo, que se relaciona com o empresariado, com os partidos políticos
e com setores da burocracia governamental além, é claro, da Justiça do Trabalho” 113 . É
preciso também mencionar a relação estabelecida por Goulart no Ministério do Trabalho,
que, por certo, impactou parte da classe trabalhadora piauiense. De acordo com Jorge
Ferreira, a atuação de Jango enquanto ministro chocou amplos setores da sociedade
brasileira. Afinal, um “homem nascido entre as elites sociais do país, rico empresário rural
e exercendo um cargo ministerial, recebia, em seu próprio gabinete, trabalhadores,

112
Jornal O Paladino, p. 03,1956.
113
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. 2004, p. 182
59

sindicalistas e pessoas comuns, além de se negar a acionar a máquina repressiva contra os


trabalhadores, nos momentos de crise”114.
Importante destacar também a figura que assume a liderança na luta pela causa
trabalhadora. O Sr. Tomaz da Silva Lima, presidente da Federação dos Trabalhadores de
Transportes Fluviais do Piauí, citado no jornal, foi um dos inúmeros trabalhadores e
lideranças sindicais autuados pelo Inquérito Policial Militar instaurado em Parnaíba após o
golpe de 1964. Foi candidato a vereador em Parnaíba, em 1958, pelo PTB. Foi também um
dos inúmeros trabalhadores taxados pelos militares e grupos conservadores, no IPM, como
“comunista”, pela proximidade que tinha com lideranças políticas do PCB, como José Ceará
e do PTB nacional, como o próprio Jango.
A partir da segunda metade dos anos 1950, uma das pautas mais importantes
colocadas em disputa em Parnaíba dizia respeito às condições de vida do trabalhador local,
tendo em vista os aumentos de impostos e práticas discricionárias apontadas pelos
trabalhistas como sendo provocadas pela gestão do prefeito Alberto Silva, da UDN. Os
pontos de oposição da bancada do PTB na Câmara Municipal se faziam em torno da revisão
no valor dos impostos implantados pelos grupos econômicos da cidade, chamados de
“grandalhões”. Ao mesmo tempo, os líderes petebistas, por meio da imprensa escrita, se
alçavam à condição de defensores das causas dos trabalhadores, contra tais medidas.

Já não é esta a primeira vez que ocupamos da tribuna de certos jornais da


terra, denunciando ao povo a maneira de agir de certo grupo econômico
de Parnaíba. OS CHAMADOS GRANDALHÕES. Justamente os que não
enxergam com bons olhos, as iniciativas de caráter popular, muitas vezes
partidas de uma agremiação de massa como é o PTB. [...] Essa gente a
quem nos referimos e a respeito de quem até hoje temos silenciado, é
justamente aquela que na gíria comum, acende uma vela a Deus e outra
para o Diabo. Não são nem carne nem peixe e são assombrados com os
governos como se estivessem praticando estrepolias nas suas atividades 115.

Em decorrência dessa forte oposição política à gestão do prefeito Alberto Silva


por parte dos trabalhistas, sobretudo por meio da imprensa ligada ao PTB local, a legenda
trabalhista pretendeu se lançar como uma organização partidária que, sendo ligado à massa
trabalhadora e falando sua linguagem, iria defender os interesses populares na cidade.

114
FERREIRA, Jorge. O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do Trabalho. In: FERREIRA,
Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 118-119.
115
A Lei municipal sobre impostos e o grupo econômico de Parnaíba. Gazeta do Piauí, n. 151, p. 01, 18 ago.
1956.
60

Chegando ao ponto de afirmar que suas lideranças falariam em nome da classe trabalhadora,
como mencionado em trecho anterior.

Vejamos, por exemplo, um caso recente. Forçados pela opressão


inesperada quase que um caso de vida ou morte, a câmara municipal votou
uma lei recentemente de caráter puramente inconstitucional, elevando suas
taxas, muitas delas quase a cem por cento. Como é sabido nossa
constituição não permite que majoremos impostos acima de 20% em cada
exercício, entretanto, o que fez o Sr. Prefeito foi justamente para dar uma
demonstração de que o grupo econômico a quem nos referimos é de uma
COVARDIA EXCESSIVA, e teme tomar atitudes contra o governo [...]
acontece é que os que não são poderosos, sofrem as consequências da falta
de atitude dessa gente, e que o PTB como mais responsável por ser um
partido de massa, em defesa dessa própria massa, fica a observar com
quem vive, com quem anda e talvez brevemente estará na obrigação moral
de ir à praça pública e mostrar ao povo, muito especialmente aos
trabalhadores, que Parnaíba vive presa às garras desse grupo econômico,
e que nossa liberdade depende da atitude que tomamos em defesa do
interesse coletivo116.

As bandeiras levantadas pelo grupo petebista contra a gestão de Alberto Silva


foram permeadas de questionamentos diante da dita inoperância da gestão do udenista. No
quadro histórico da segunda metade da década de 1950, os trabalhistas parnaibanos
encontraram a possibilidade de ganhar a simpatia do eleitorado local amparados em uma
oposição acirrada contra medidas antipopulares implantadas pelo governo municipal. Para
os trabalhistas, a marca do governo Alberto Silva seria a ínfima preocupação com os anseios
das camadas mais desfavorecidas da cidade, com aqueles que sofreriam com maior
profundidade os efeitos do aumento de impostos públicos e no valor dos produtos básicos
ao dia-a-dia da população, como a carne vendida no mercado municipal117. Além disso, a
perseguição aos servidores municipais denunciada pelos jornais foi um dos pontos
colocados em discussão pelo grupo ligado ao PTB, sobretudo pelo trabalhista José
Alexandre Caldas Rodrigues, no sentido de possibilitar uma maior visibilidade política e
buscar a efetivação da candidatura ao pleito que se avizinhava.
Na segunda metade dos anos 1950, se travava uma forte disputa política no
interior do cenário político parnaibano entre trabalhistas e udenistas em torno do executivo
municipal. Algumas das questões colocadas diziam respeito às perseguições sofridas por

116
A Lei municipal sobre impostos e o grupo econômico de Parnaíba. Jornal Gazeta do Piauí, n. 151, p. 01,
18 ago.1956.
117
Na imprensa trabalhista, existem inúmeros textos referentes ao desabastecimento de itens de consumo
básicos no mercado municipal, como a carne bovina, alimento básico na dieta da comunidade. Os trabalhistas
vão vincular o desabastecimento do produto à inoperância e incapacidade da gestão do Prefeito Alberto Silva
em manter as condições mínimas de bom funcionamento do mercado municipal.
61

funcionários da prefeitura que, por serem ligados ao PTB, sofreram represálias e


perseguições do grupo político do prefeito Alberto Silva, da UDN. Em muitos casos, essas
disputas acabavam se refletindo em cenas de violência e perseguições pessoais, em que se
empregavam meios violentos como um dos mecanismos de resolução dos impasses,
conforme irei tratar a partir de então em item específico.

A ferro e fogo: as práticas eleitorais no final dos anos 1950 e o uso da violência nas
disputas entre os grupos político-partidários no Piauí

Ao longo das leituras e análises empreendidas a partir das fontes, durante o


desenvolvimento desta pesquisa, sobretudo quanto aos jornais ligados aos trabalhistas, um
aspecto chama a atenção por tudo o que representa, bem como pela recorrência com que era
praticado na cidade de Parnaíba no contexto analisado: o uso da força física, ou seja, da
violência como forma de pressão política.
Pela própria característica partidária local, com forte localização dos grupos
políticos em torno de grupos familiares e onde, em diversas ocasiões, os interesses públicos
se confundiam com os interesses particulares, as questões muitas vezes se resolviam por
meios extralegais, por meio do uso excessivo de mecanismos de poder pessoal, bem como
por laços de amizade e compadrio, meios personalistas118. Percebi, nessas relações, algo
próximo daquilo que Mário Gryspan nomeia de patronagem, ou seja, um certo “vínculo
pessoal, vertical, entre indivíduos de status, poder e riqueza diferentes, uma relação
assimétrica que se expressa mesmo através de uma troca desequilibrada, com fluxos de
natureza distinta”119.
Os enunciados presentes em produções locais, tais como o Almanaque da
Parnaíba, dentre outras obras ligadas aos grupos comerciais e intelectuais parnaibanos, na
primeira metade do século XX, produziram uma quantidade significativa de textos em torno
dessa cidade enquanto um local “ordeiro” e “pacífico”120. Mas o que observei, por meio da

118
O personalismo, enquanto laço constitutivo da formação política brasileira, se caracteriza, de acordo com
Rodrigo Patto Sá Motta, pela “primazia dos laços pessoais em detrimento de relações impessoais”. De acordo
com essa perspectiva, por esses meios se “privilegiariam a fidelidade a laços de parentesco, de amizade, de
compadrio ou de patronagem à revelia de normas universais, mostrando baixa adesão a projetos políticos e a
instituições impessoais”. Por isso, ainda de acordo com Motta, “é mais frequente a identificação política com
pessoas do que com projetos coletivos”. Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Cultura política e ditadura: um debate
teórico e historiográfico. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 109 ‐ 137, jan./mar. 2018.
119
GRYNSZPAN, Mário. Os idiomas da patronagem: um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti. Revista
brasileira de ciências sociais, n. 14, p. 73-90, out. 1990.
120
Exemplo desta narrativa valorativa da cidade, enquanto progressista e culta, são as inúmeras produções
textuais e poéticas do Almanaque da Parnaíba, que circulam tecendo elogios à cidade e a seus moradores. Cito
como exemplo um texto de 1956, de título “amo-te, minha terra”, onde se lê: “Parnaíba, tu és um dos elos
62

imprensa escrita, é que, por outro lado, podemos evidenciar que, além dessa narrativa
harmônica, persistia, na prática, o emprego da força física como meio de resolução dos
impasses políticos.
Sobre a ampla utilização da violência nas disputas político-partidárias no espaço
piauiense, a historiadora Marylu Alves de Oliveira já observara essa questão, quando
apontou que é marca visível desse espaço o uso de práticas como “ameaças, perseguições,
prisões, incêndios criminosos e assassinatos”. Segundo a autora, esses gestos caracterizavam
muitas vezes as disputas locais entre os partidos no Piauí. Também de acordo com a autora,
“o exercício da chefia política era considerado reduto de poucos e, de forma geral, os que
dominavam esses meios tinham sob sua guarda a posse da terra, assim como também eram
detentores de um poder simbólico, que fazia com que boa parcela dos populares/eleitores os
tratassem com deferência”121.
Outro trabalho local que merece menção é a tese de Francisco Alcides do
Nascimento, que destaca, dentre outras questões, o processo de modernização autoritária
ocorrido em Teresina nos anos 1930/1940, no contexto do Estado Novo. O trabalho indica
que no mesmo momento de visíveis mudanças no espaço citadino teresinense, com as
reformas no seu traçado urbano, ocorreu uma série de atos violentos contra a população mais
carente na cidade, como incêndios em casas populares, com a finalidade de as retirarem dos
espaços urbanos centrais. Alguns desses atos eram atribuídos, por meio de denúncias, à
própria força policial estabelecida. Ainda se percebia “um número abusivo de torturas,
prisões, intimidações, sessões de pancadaria e o estabelecimento de um clima de terror por
parte das forças policiais, no mesmo processo histórico que marca a ‘modernização’ dessa
estrutura no Estado”122, segundo o autor.
Esse é um aspecto marcante da cultura política piauiense e resolvi abordá-lo
neste item para perceber como se processavam os jogos de poder, no que se refere ao
contexto político parnaibano, sobretudo na gestão do prefeito Alberto Tavares Silva. Ele
próprio era ligado aos grupos tradicionais de proprietários de terra na região norte-piauiense,
detentor de posses na zona rural de Parnaíba, mais especificamente na Ilha Grande de Santa
Izabel e, segundo relatos de trabalhadores, agia com violência nesse espaço de domínio.

principais deste vasto rincão piauiense, sendo um dos melhores exemplos da cultura oferecida ao nosso
Estado”. Aqui não iremos aprofundar a discussão, mas somente mencionar que o anuário Almanaque, dentre
outras produções, estabelecem uma narrativa valorativa na cidade. Ver: MACÊDO, Marinho de. Amo-te,
minha terra. Almanaque da Parnaíba, 1956, p. 121.
121
OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2016, p. 21.
122
NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina
(1937-1945). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2002.
63

Lançamos, portanto, alguns pontos de discussão: Quais os efeitos que tais práticas
ocasionaram nas contendas político-partidárias? É possível pensar a violência nesse meio
como resultado de uma cultura política autoritária no espaço piauiense? Essas, dentre outras
questões, orientam este item do trabalho.
Nos textos do Almanaque da Parnaíba, como dito, há pontos bastante elogiosos
da “tradição harmoniosa” de Parnaíba, enquanto uma cidade que seria “ordeira e de boa
índole”. Porém, também se tratava sobre alguns aspectos presentes no corpo social, como
os casos de assassinato por rivalidades pessoais e políticas. Importante frisar que quando os
escritores se referiam a essa questão, nas publicações do Almanaque, não se comentam os
casos locais de pistoleiros que agiam à margem da lei em benefício de determinados grupos
familiares e políticos, mas apenas em outros espaços, como se essas práticas não fossem
objeto de preocupação em Parnaíba.
No ano de 1956, a edição do Almanaque trouxe à baila a discussão em torno da
“pena de morte”. Escrito por Dr. Domingos Silva, o texto ligava a questões da “natureza”
de alguns homens, aquilo que, por diversas razões, estava fortemente ligado a uma cultura
política local de violência e desmandos, onde alguns indivíduos, por conta de sua posição
privilegiada, se arrogam no direito de usarem a força, pois entendiam – certamente – que
estavam acima da lei, por conta do seu poder econômico. O texto em questão destacava que:

O celeiro da morte vai se tornando, dia a dia, mais farto, com o número
cada vez mais impressionador das vítimas que lhes batem às portas para lá
empurradas pelo punho de ferro dos assassinos. Há espalhados, por assim
dizer, por todo brasil, piquetes de terríveis matadores. [...] Tiram a vida de
outrem por isto ou por aquilo e também por tradição. Individuas sub-
humanos ou tipos anômalos, irrompendo por toda parte, como um
cataclisma e conhecendo que o clima lhes é propício, agem como bem lhes
parece, exterminando vidas, estimulando-se entre si em aventuras[...]não
os intimidam o júri, as cadeias, as penitenciárias [...] por uma desgraçada
similitude se aparentam com as feras e não com os homens123.

No Piauí, em produções historiográficas, recentemente se tem abordado sobre o


caráter violento que marcou o processo de formação social desse espaço. Sobre essa questão,
o trabalho de Aelson Barros Dias, enfocando particularmente a região sul do estado, trata
desse traço sombrio presente na cultura piauiense, compreendendo como esse cenário se
formou enquanto “palco para a efetivação de um mundo constituído por homens habituados
a fazer justiça com as próprias mãos”. Assim como nas demais regiões do estado, o sul do

123
SILVA, Domingos. Capítulos de pequena tese sobre a pena de morte. Almanaque da Parnaíba, Ed. 1956,
p. 126.
64

Piauí foi constituindo a imagem de um “lugar no qual a violência praticada por forças
particulares engendrava e constituía uma das formas de manutenção ou aquisição de poder”.
É visível, portanto, de acordo com o autor, a “violência enquanto marca identitária do
processo de formação da sociedade piauiense” 124. Constituindo-se, a partir disso, “um mundo
também tenso, hostil e perigoso no qual os jogos de interesses e vontade de domínio
marcaram as experiências vividas”.
No jornal A Tribuna, do grupo pessedista parnaibano ligado ao Coronel
Epaminondas Castelo Branco, percebe-se uma forte crítica também aos grupos udenistas
estaduais, que estiveram à frente do governo Rocha Furtado 125 (1947-1951), primeiro
governo eleito após o Estado Novo, bem como dos partidários do udenismo local, ligados à
primeira gestão do Prefeito Alberto Silva. Verifiquei que o uso intensivo da violência e da
força, amparado pelo aparato policial, era um aspecto presente em todo o quadro histórico
da política local, desde os tempos de Estado Novo e até de momentos mais remotos,
passando também pela experiência liberal democrática (1945-1964).

A nossa cidade, durante o período nefasto da administração Rocha Furtado,


atravessou uma fase bem crítica no setor de segurança pública. A garantia
individual desapareceu para aqueles que não rezavam da mesma cartilha
da gente da ‘eterna vigilância’. Os espancamentos bárbaros, a palmatória,
o chicote, retalhavam as costas e mãos dos que caiam no desagrado e na
desgraça de soldados ferozes e na sanha perversa dos comissários e
investigadores desalmados e tudo com a aquiescência dos delegados, não
menos ferozes e cruéis[...] o assassinato, o furto, o roubo, era couza
frequente, de nada valendo as queixas e reclamações 126.

Uma das marcas levantadas pela oposição ao segundo governo Alberto Silva
(1955-1958), perceptível por meio das fontes impressas, foram as denúncias sobre o uso
intensivo de atos violentos por parte do gestor municipal e seus aliados contra os seus
adversários políticos. De acordo com as matérias, se processaram atos de arbítrio, como a
perseguição aos servidores municipais ligados à gestão antecedente, do petebista João

124
DIAS, Aelson Barros. Em nome do poder, da força e da honra: Banditismo e violência nos confins do sertão
sul piauiense. 2012. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História do Brasil,
Universidade Federal do Piauí, Teresina-PI, 2012.
125
José da Rocha Furtado foi eleito governador do Piauí em janeiro de 1947, na legenda da União Democrática
Nacional (UDN), derrotando o coronel Jacob Manuel Gayoso e Almendra, candidato do Partido Social
Democrático (PSD). Assumiu o governo piauiense em 28 de abril seguinte, sucedendo ao interventor interino
Valdir de Figueiredo Gonçalves, que, por sua vez, havia substituído em março o interventor federal Teodoro
Ferreira Sobral. Ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/furtado-jose-da-rocha.
Acesso em: 02 mar. 2017.
126
Jornal A Tribuna. Parnaíba-PI, ano 02, n. 84, p. 03, 19 abr. 1951.
65

Orlando de Moraes Correia (1950-1955), na prefeitura de Parnaíba, bem como demissões


em massa de professores e demais servidores públicos.
Além de ameaças aos jornalistas do Gazeta do Piauí e Correio do Povo,
próximos aos trabalhistas que, por meio de suas matérias, lançavam questionamentos aos
excessos cometidos pelos udenistas. O texto abaixo pode ser lido como algo corriqueiro no
cenário político da cidade de Parnaíba, marcado, naquele momento, por forte oposição de
udenistas e trabalhistas, bem como por algumas características presentes nas celeumas que
envolviam os grupos partidários locais – a violência física, as ameaças, até mesmo invasões
de jornais de oposição.

Mais uma imprudência dos Irmãos Silva


Parnaíba inteira não desconhece que os irmãos Silva chefiados pelo
vaidoso prefeito de nossa terra, tentaram agredir no seu escritório de
trabalho o nosso diretor comercial Sr. Bernardo Batista Leão, e o fizeram
com o chefe das oficinas do Gazeta do Piauí sr. João Batista Thomaz
invadindo a redação e levando este até a presença do nosso diretor
obrigando que dissesse quem havia escrito o artigo AS DIATRIBES DO
PREFEITO ALBERTO CRUZ DA SILVA PASSOS127.

No trecho supracitado há uma grave denúncia contra os “Irmãos Silva” (Alberto


Silva e João Silva), figuras dominantes na direção dos quadros da UDN parnaibana. No
momento em que se começava a disputar as eleições em 1958, por exemplo, os jornais
denunciavam que esse tipo de prática política acontecia com recorrência na cidade, pois, no
cotidiano, revelava-se uma grande quantidade de agressões, atentados em praça pública,
perseguições (as mais diversas) aos grupos políticos rivais, além o uso seletivo de forças
policiais para resolver questões político-partidárias.
Os jornais ligados aos grupos trabalhistas evidenciam que, naquele contexto de
organização partidária para as eleições do ano 1958, o clima de afronta e disputa, envolvia
os setores ligados à UDN, por meio das figuras do prefeito Alberto Silva e do deputado
Cândido Oliveira. Esses agentes, por meio do uso da força policial, segundo se denunciava,
mandavam vigiar as atividades políticas dos trabalhistas em comícios, que geralmente
ocorriam nos bairros populares da cidade de Parnaíba.

A Polícia vigiou o comício do P.T.B


Oito soldados armados rondaram as proximidades do comício no Bairro
Campos […] aconselhado certamente pelo Cândido Oliveira, o deputado
mais sem compostura que conhecemos, o delegado cabeleira enviou oito
soldados para o bairro de Campos, onde estava sendo realizado um
comício do Partido Trabalhista Brasileiro. Receosos, porém da reação do

127
Jornal Gazeta do Piauí. Parnaíba-PI, ano 01, n. 57, 14 set. 1955.
66

povo, os referidos soldados esconderam-se por traz de uma velha cerca,


onde permaneceram até o término do comício. Pode o cabeleira colocar
quantos soldados quiser nas proximidades dos nossos comícios. Soldados
não amedrontam o povo. Nem muito menos nós teremos receios destes
arreganhos policiais. [...] Um aviso: Tal atitude só serve para exaltar ainda
mais os ânimos já bastante exaltados com os últimos espancamentos
verificados em plena rua da cidade128.

Em cenários políticos de forte mobilização por conta dos pleitos eleitorais, essa
onda de violência tornava-se mais evidente na cidade. É possível apontar que, nesses
momentos de disputa partidária, os ânimos estavam mais exaltados. Os comícios aconteciam
em alguns pontos da cidade e, no caso do PTB, esses geralmente se realizavam nos bairros
mais periféricos. Portanto, a presença da força policial no sentido de intimidação aos
populares e petebistas era notória. Algo que se evidencia nos jornais, que se tornava comum
naquele momento, envolvendo as disputas político-partidárias, era o uso da força policial
em benefício de determinado grupo ou interesse político-partidário. Segundo denúncia do
articulista, ocorreram também “outros espancamentos verificados em plena rua da cidade”.
Em uma outra matéria feita no jornal Correio do Povo, pelo jornalista Luciano
Lacerda, esse mesmo – diretor do jornal – indicava que foi detido de forma arbitrária a
mando dos grupos udenistas locais, sem uma justificativa plausível, pela figura do chamado
“Doutor Osvaldo Cabeleira”, delegado da cidade. A prisão do jornalista se deu, de acordo
com a denúncia, simplesmente por escrever textos fazendo críticas ao grupo udenista e à
gestão municipal de Alberto Silva e de seus apoiadores, como o deputado Cândido Oliveira.
Inúmeras críticas eram levantadas, na imprensa ligada aos trabalhistas, à forma de atuação
do dito delegado (Osvaldo Cabeleira) que, segundo os textos na imprensa, agia à revelia da
lei, em nome dos grupos políticos da UDN.

Doutor Cabeleira
Doutor Cabeleira enviou uma carta para ser distribuída à imprensa,
alegando que não houve nada de anormal na manhã do dia 15. Apenas uma
prisão sem importância e nada mais. O culpado de tudo foram os
elementos agitadores que, aliados a políticos, tentaram perturbar a ordem
pública. O agitador, no caso, é este seu creado. O político é José Alexandre.
Grande inteligência a do Osvaldo Cabeleira. Durante três longos anos que
aqui resido, privando da amizade estreita dos Delegados Antônio
Gutemberg e João Valdivino, nunca a polícia queixou-se de qualquer
agitação de minha parte[...]129

128
A Polícia vigiou o comício do P.T.B. Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 77, 29 abr. 1958.
LACERDA, Luciano. Doutor Cabeleira. Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 94, p. 02, 29 nov.
129

1958.
67

Como se pode notar, os termos depreciativos lançados, tais como “agitadores”,


“perturbadores da ordem pública”, já eram utilizados pela força policial em meados dos anos
1950 na cidade. Esses termos também foram empregados para nomear os trabalhadores
reprimidos pelos militares no momento do golpe de 1964. Em Parnaíba, assim como em
diversas outras cidades do estado do Piauí, as práticas violentas, as perseguições, prisões
sem o devido fundamento jurídico, foram utilizadas como forma de reprimir adversários
políticos, de tentar silenciar ou simplesmente de amedrontar opositores. Aspectos bastante
recorrentes em matérias dos jornais que circulavam na segunda metade da década de 1950.
Todo esse clima de perseguição e reprimendas políticas, é possível deduzir,
cresceu nos anos 1960, com a progressiva ampliação das pautas dos trabalhadores
sindicalizados, das associações rurais e o consequente clima de radicalização política que
dividiu os grupos em defesa do nacionalismo reformista, contra os grupos liberais-
conservadores. O que vai resultar na repressão dos militares, em aliança com grupos
tradicionais do estado, no momento do golpe de 1964.
Dentre os inúmeros casos e denúncias de violências e crimes cometidos por
grupos partidários parnaibanos, um evento me chamou mais atenção pela repercussão e
pelas próprias condições em que foi cometido. Uma emboscada que resultou no assassinato
do trabalhista, Alcenor Candeira, que fora vereador, com forte atuação pelo PTB (1955 a
1959) em Parnaíba, assumindo, na gestão do petebista José Alexandre Caldas Rodrigues,
uma das secretarias municipais da cidade.
O crime em questão foi cometido pela família de um adversário político, o
professor Clodoveu Cavalcante, ligado à UDN, em plena praça pública, no principal espaço
de sociabilidade da cidade – a Praça da Graça –, em um dia de novena, em que grande parte
da cidade se locomovia para celebração dos cultos religiosos. Em livro biográfico, José
Nelson de Carvalho Pires, também secretário na gestão municipal de José Alexandre (PTB),
sugere que, dentre as causas do assassinato, estariam as implicações decorrentes da mudança
de gestão, com a vitória dos petebistas em Parnaíba e a obrigação da prestação de contas das
despesas da prefeitura municipal, para a gestão anterior.

Ao assumir o cargo [José Alexandre] escolheu Alcenor Candeira e José


Nelson de Carvalho Pires para secretário de educação do município. O Sr.
Clodoveu Cavalcante era funcionário da prefeitura, e seu filho Clodoveu
Filho, havia sido eleito vereador em outra chapa que combatia José
Alexandre. Ao assumir como secretário, Alcenor recebeu a tarefa de fazer
prestação de contas de valores destinados a compra de novos telefones
para a cidade, com Dr. Clodoveu. Iniciou-se um desentendimento entre os
dois, e Dr. Clodoveu era casado com uma senhora chamada Jamacy
68

Cavalcante, entre outros comentários havia o de que ela, Jamacy, havia


feito, com um revólver, um jornalista engolir um jornal130.

Um dos pontos colocados nas memórias de José Nelson, citada acima, que se
faz pertinente mencionar, é uma ampla divergência partidária que se referia às questões de
disputas políticas envolvendo cargos dentro da prefeitura de Parnaíba. Com a saída do grupo
petebista, na primeira gestão do PTB em Parnaíba, até 1955, o grupo udenista, ao chegar ao
poder (1955-1958), foi acusado pelos trabalhistas de lotearem a prefeitura com cargos para
os seus protegidos políticos e de, por outro lado, perseguir e demitir em massa funcionários
ligados ao grupo político adversário. A partir da derrota, nas eleições municipais em 1958,
do grupo udenista, ligado à família Silva, os petebistas estariam novamente com cargos e
verbas da prefeitura de Parnaíba à disposição, o que, por certo, também gerou uma série de
expulsões, agora de udenistas, como também praticara o ex-prefeito Alberto Silva.
No caso em questão, do assassinato do trabalhista Alcenor Candeira, há uma
disputa interna, como se pode depreender, na prefeitura, no que diz respeito às investigações
de licitações na compra de produtos para o município. Na condição de secretário de governo
da área de educação, mas também atuando na área de segurança do município, na gestão dos
petebistas, o professor José Nelson, em livro autobiográfico, narrou os eventos referentes ao
assassinato do secretário Alcenor Candeira, em 1959.

Nas proximidades da igreja MATRIZ, quando Alcenor Candeira,


acompanhado de uma de suas filhas, de apenas 11 anos de idade, recebeu
o primeiro tiro pelas costas, seguido de facadas e pauladas, pela família de
Jamacy e Clodoveu. Os desentendimentos entre Alcenor e Clodoveu
abalaram as duas famílias, visto que os encarregados de fomentar as
intrigas diariamente se encarregavam de encomendar novos atritos.
Sobretudo comentários que diziam que ela, Jamacy, iria matar Alcenor,
razão pela qual, ele, Alcenor, também passou a andar armado 131.

O caso em questão, pela brutalidade e por seus desdobramentos, atingiu


proporções enormes e gerou grande comoção, inclusive fora do estado, como pude perceber.
No conflito entre os grupos familiares, houve um homicídio em praça pública, do ex-
vereador e secretário municipal, Alcenor Candeira e ainda foi atingida com um tiro no
pescoço, a esposa do professor Clodoveu Cavalcante, a senhora Jamacy Gutierres
Cavalcante. No jornal Correio da Manhã, este de circulação nacional, já no início de 1960,

130
PIRES, José Nelson de Carvalho. Biografia: conversando com meus filhos para meus netos. Parnaíba-PI:
Sieart, 2010, p. 56.
131
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 56.
69

encontrei, em nota, a seguinte informação do estado de saúde de Jamacy, três meses após o
ocorrido.

HÁ TRÊS MESES COM UMA BALA ALOJADA NO PESCOÇO –


Fortaleza 3 – Tem causado grande repercussão neste estado, o caso de
Dona Jamacy Gutierres Cavalcante, que está hospitalizada no Hospital
Getúlio Vargas, em Teresina, em virtude de haver sido ferida a bala, no dia
11 de outubro do ano passado, quando do conflito que resultou na morte
de Alcenor Candeira, secretário da Prefeitura de Parnaíba. Foram autores
do homicídio, Clodoveu Cavalcante, esposo de Jamacy, e seus filhos
Clodoveu Cavalcante Filho e Veudacy. Jamacy está ainda com o projétil
alojado no pescoço, o qual só poderá ser extraído em Fortaleza. O juiz de
Direito de Parnaíba, determinou a vinda de Jamacy, mas o Secretário de
Polícia de Teresina não forneceu escolta solicitada 132.

Esse ponto em questão também será amplamente discutido durante a gestão do


governador Chagas Rodrigues (1959-1962), que alegou que ofereceu todas as condições
para atendimento hospitalar a Sra. Jamacy, mas que, no entanto, a família queria seu traslado
para Fortaleza, no Ceará. No que diz respeito ao quadro político-partidário parnaibano,
portanto, é possível evidenciar a utilização da força física, da violência, nas questões de
disputa eleitoral e na resolução de conflitos entre as gestões.
Na cidade em que seus intelectuais e comerciantes, ligados ao Almanaque da
Parnaíba, orgulhavam-se de bradar um discurso permeado de progressismo, de viver em
uma cidade pacata, calorosa e de gente ordeira e receptiva, entra no território da contradição,
tendo em vista os casos de violência e disputas políticas que são visíveis nos jornais. Dentre
esses casos, se pode constatar uma ampla projeção e crítica às formas de atuação violenta
do então prefeito Alberto Silva e do deputado Cândido Oliveira, ambos da UDN parnaibana,
algumas, inclusive atingindo os próprios correligionários udenistas, bem como os próprios
familiares do prefeito.

Sabemos perfeitamente que o Sr. Alberto Silva não estava alheio aos
acontecimentos verificados na manhã do dia 15. Ele mesmo, na residência
do Sr. Cândido Oliveira, havia declarado que era necessário dar ao povo
uma demonstração de força, através da ação da polícia. Ele sabia que no
dia seguinte seriam efetuadas prisões indistintamente, com o intuito de
amedrontar o povo, principalmente o eleitorado menos esclarecido da
cidade. Mas o senhor Cândido Oliveira que olha as coisas mais longe,
estendeu essas medidas de violência aos próprios correligionários do
prefeito, e no sentido de enfraquecê-lo, afastá-lo do páreo político. Tanto
assim que tendo sido agredido um sobrinho do Sr. Alberto Silva, que é por
sinal um moço de bem à prova de todos e bastante estimando na cidade o
sr. Cândido Oliveira, nenhuma providência tomou de início. Foi para a

132
Há três meses com uma bala alojada no pescoço. Jornal Correio da Manhã, p. 04, 04 fev. 1960.
70

Praça da Graça contar vantagens e fanfarronices, soltando gritos histéricos


de contentamento133.

No contexto em questão, ao analisar as matérias dos jornais de circulação na


cidade de Parnaíba, pude perceber que houve grande quantidade de denúncias referentes ao
uso de “capangas armados” dentro de fóruns eleitorais, no sentido de amedrontar o
eleitorado, bem como ameaçar alguns candidatos da oposição, na maior parte dos casos, de
partidários do PTB. Um dos candidatos que foram perseguidos naquele momento de forte
disputa eleitoral foi o vereador petebista Custódio Amorim, que se nomeara de “vereador
operário”.

Assassinos e desordeiros dentro do Fórum!


Atitudes deveras estranha do Juiz Salmon Lustosa Nogueira – ameaçada a
vida de dois cidadãos por um assassino profissional. Constitui verdadeira
afronta à sociedade a presença de capangas armados, em pleno recinto do
Fórum, com o intuito de amedrontar o eleitorado. Já, agora, sabemos
elementos do P.R. contrataram um assassino profissional para permanecer
no Fórum, afim de amedrontar o repórter deste jornal e o companheiro
Custódio Amorim, candidato a vereador pelo P.T.B. admira muito que o
juiz, Salmon Lustosa Nogueira, permita que tal aconteça dentro do Fórum,
uma vez que aqui mesmo destas colunas já tivemos oportunidade de
denunciar tal fato, diante da situação de insegurança 134.

O trecho retirado do jornal Correio do Povo evidencia que nem mesmo o


ambiente restrito de um Fórum Municipal estava incólume aos desmandos dos grupos
armados, que agiam à revelia da lei. Essa outra denúncia se efetiva novamente citando que
um dos mais visados pelos capangas era o vereador Custódio Amorim, bem como Luciano
Lacerda, diretor do jornal em questão. Houve, aqui, a necessidade de pedir auxílio federal
para garantir o bom funcionamento do pleito eleitoral, bem como da suposta perseguição ao
Sr. José Nelson, que estaria à frente da UDN, após intervenção do diretório estadual em
1958.

Tropa Federal em Parnaíba


O Tribunal Regional Eleitoral, resolveu requisitar força federal, para
garantir as oposições em Parnaíba, ameaçadas pela truculência do
Delegado Hudson do Prado. Todos os dias verificamos bárbaros
espancamentos na cidade por parte dos soldados do Tenente Hudson, que
chegou ao cúmulo de mandar prender a amplificadora volante do P.T.B.
juntamente com o seu locutor. Além de apreender todo o seu material de
propaganda eleitoral. Também não fazem muitos dias, e esse mesmo
delegado, que obedece a orientação do Sr. Cândido Oliveira, determinou
aos soldados, sob suas ordens, que prendessem, vivo ou morto, o Sr. José

133
Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 77, 29 abr. 1958.
134
Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 80, 24 jul. 1958.
71

Nelson de Carvalho Pires, presidente do diretório municipal da U.D.N. e


candidato a Assembleia Legislativa nas próximas eleições 135.

Naquele contexto, a própria nomeação dos delegados que atuariam na força


policial da cidade estava condicionada aos interesses políticos, pois o nome de quem deveria
cumprir tal função de segurança pública era indicação da prefeitura, o que ocasionava, na
maioria das vezes, uma relação de “troca de favores”. Interessante mencionar também que,
em alguns casos, não se levava em conta, nas violências físicas e perseguições denunciadas
na imprensa, os critérios de filiações partidárias. Segundo a denúncia acima, publicada no
jornal Correio do Povo, o então deputado Cândido Oliveira teria mandado prender alguém
de seu próprio partido, a UDN. Nesse caso, José Nelson de Carvalho Pires, provavelmente
por conta de sua aproximação com setores do PTB local, quando das coligações partidárias
no quadro das eleições de 1958.
Nas negociações ocasionadas pelas disputas nas eleições do ano de 1958, em
que se vincularam no Piauí as chamadas “oposições coligadas” (PTB e UDN) em oposição
ao grupo ligado à família Freitas, do PSD, já no poder no governo do estado por dois
mandatos consecutivos, o grupo udenista, ligado à família Silva, por conta de sua rivalidade
histórica com o PTB parnaibano, mas também por já tratarem de alianças prévias com
grupos pessedistas locais, desobedeceram àquilo que fora proposto pelo diretório estadual
do partido. Alberto Silva, então prefeito de Parnaíba, por meio de um gesto autoritário,
personificou as decisões do partido em benefício próprio e tomou suas próprias decisões no
que diz respeito ao quadro eleitoral que se avizinhava em outubro de 1958, rompendo com
as recomendações partidárias do âmbito estadual, que era cumprir a coligação PTB e UDN.
No livro de memória de José Nelson de Carvalho Pires, há a seguinte passagem sobre tal
postura do líder udenista na cidade.

Em agosto de 1958, Dr. Alberto Reuniu o diretório da U.D.N. na residência


do Dr. Edson Cunha, para comunicar que não iria cumprir o acordo feito,
em Teresina, no qual ficara deliberado uma coligação entre P.T.B. e U.D.N.
no sentido de eleger Demerval Lobão para o governo do estado e Marcos
Parente para senador, visto que ele, Alberto Silva, já havia assumido
compromisso no sentido de ajudar a eleger Mirócles Veras e Mendonça
Clark, de outra corrente política. Pedi a palavra e disse que entendia que o
compromisso assumido pelo diretório estadual, deveria ser cumprido, para
que não corrêssemos o risco de sermos punidos pelo diretório estadual,
tendo recebido a seguinte resposta: “QUEM NÃO ESTIVER DE
ACORDO COM O MEU PONTO DE VISTA, SE RETIRE DAQUI”, pois
necessito falar reservado com os demais companheiros. Sem qualquer
outro comentário me retirei e comuniquei o fato ao diretório estadual.

135
Tropa Federal em Parnaíba. Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 91, 01 de out. 1958.
72

Vários membros do diretório estadual da U.D.N., tentaram, aqui em


Parnaíba, uma solução pacífica para o cumprimento do acordo firmado
entre os dois partidos, mas Alberto já estava seriamente comprometido
com os adversários e afirmou que não cumpriria o acordo feito pelo
diretório estadual136.

As disputas locais entre UDN e PTB durante a gestão de Alberto Silva frente à
prefeitura de Parnaíba, por certo inviabilizaram qualquer tipo de aproximação entre o grupo
udenista, ligado à família Silva, ao PTB local, por sua vez ligado à família Caldas Rodrigues,
pelas rivalidades entre esses dois grupos. Se no âmbito estadual as negociações para as
eleições de 1958 avançaram, sobretudo envolvendo ex-udenistas, que se vincularam aos
quadros partidários trabalhistas após a reformulação do PTB em 1954, quando da chegada
do grupo político ligado ao Senador Mathias Olímpio, às hostes trabalhistas137, em Parnaíba
os ranços conflituosos entre os dois grupos ainda eram fator impeditivo para possíveis
acordos locais. Além do fato de que, em um cenário político desenhado para o ano de 1958,
as aproximações políticas entre os udenistas da família Silva e pessedistas eram mais sólidas
na cidade, fator que ocasionou uma ruptura nos quadros do diretório municipal da UDN,
com uma intervenção do diretório estadual e consequente retirada do nome de Alberto Silva
do partido, em prol do nome de José Nelson de Carvalho Pires no diretório udenista
parnaibano.
Intervenção esta que favoreceu a aliança udeno-trabalhista nas eleições daquele
ano (1958), pois, segundo livro de memória do próprio José Nelson, “foi feita então a
intervenção no diretório municipal da UDN de Parnaíba, tendo José Nelson como
interventor, afastando, portanto, Alberto Silva e João Silva do diretório municipal” 138 . A
partir de então a aliança que se desenhara para as eleições estaduais entre as “oposições
coligadas” puderam ter efetividade na cidade, ajudando a eleger Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues, como governador do estado, bem como seu irmão José Alexandre Caldas
Rodrigues, prefeito de Parnaíba, no ano de 1958.

136
PIRES, José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p, 35.
137
Importante aqui destacar os conflitos que ocasionaram a debandada de uma ala da UDN piauiense para o
PTB. Sobre essa questão, Marylu Oliveira destaca que: “aqueles políticos trabalhistas que se encontravam sob
o comando do partido durante o processo sucessório de 1958 haviam saído da UDN sob litígio público há
menos de quatro anos. Compondo os antigos quadros da UDN, o senador Mathias Olympio, o deputado federal
Chagas Rodrigues e o também deputado federal Demerval Lobão travaram publicamente um embate pelo
domínio partidário daquela sigla com o deputado federal José Cândido Ferraz e o ex-governador Eurípedes de
Aguiar. [...] O litígio entre o grupo chamado de matiista e o grupo liderado pelo deputado federal José Candido
Ferraz, que se debateram até promoverem uma ruptura no seio do partido, saindo vitorioso o grupo de Ferraz,
tornou-se a principal notícia dos jornais locais. Depois da derrota, a ala matiista foi para o PTB levando consigo
vários correligionários de todo o Estado. Pouco tempo depois, em 1958, estariam juntos ex-udenistas e
udenistas, sob o signo de petebistas e udenistas”. (OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2016, p. 168.)
138
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 51.
73

Após o arranjo, houve nova reformulação por conta de acidente139 que vitimou
dois dos candidatos ao governo do estado. “Com a morte de Demerval Lobão e Marcos
Parente, em consequência de acidente automobilístico, foram substituídos os candidatos, e
Chagas Rodrigues foi indicado, em substituição a Demerval Lobão, como candidato ao
governo do estado e Tibério Nunes para vice-governador”. Arregimentou-se então a chapa
das oposições coligadas, contando com os nomes de “Chagas pelo PTB e Tibério pela UDN,
e ainda José Alexandre para prefeito de Parnaíba, pelo PTB, apoiado pela UDN, dirigida por
José Nelson” 140 . Pelo acordo feito e cumprido em Parnaíba, José Nelson foi nomeado
secretário do departamento de educação e saúde da prefeitura, bem como responsável pela
secretaria de segurança, cabendo a ele, José Nelson, indicar Delegados de polícia e
servidores da mesma”141.
Mesmo antes de se iniciarem as campanhas para as eleições de 1958, os
possíveis arranjos políticos já estavam sendo discutidos em consonância com os interesses
de cada grupo político. A rivalidade local entre os petebistas e udenistas, foi um dos pontos
que tenderam a inviabilizar uma possível aliança entre os dois grupos, fortemente marcados
pela presença de um lado dos irmãos Rodrigues e de outro lado pela família Silva. Em 1957,
portanto um ano antes das eleições, a imprensa trabalhista começou a discutir os percalços
daquilo que se ventilava no quadro eleitoral: uma aliança, em âmbito estadual, entre PTB e
UDN, que traria consequências para o cenário eleitoral parnaibano, marcado por rivalidades
e disputas violentas, difíceis de superar.

Vivem os homens que ladeiam essa figura desprezada por deselegância


que tem desgovernado nossa terra, a proclamarem nos quatro cantos da
cidade, um suposto acordo a ser firmado entre a agremiação de Jango
Goulart (PTB) e o partido dos eternos vigilantes (UDN), em nosso
município. Não nos surpreendeu essa invencionice de primarismo dessa
gente que tanto desejo tem de uma aproximação com os trabalhistas, isso
porque vimos e acompanhamos a modalidade de politicar do Sr. Alberto
Silva. Eis o prefeito, na qualidade de comandante da tropa udenista local,
é capaz de tudo, mesmo em detrimento de sua moral, contanto que
satisfaça o seu diabólico plano político. No nosso compreendimento de
acompanhantes da política municipal, achamos mesmo inoportuno e
contraproducente, qualquer aproximação política com um homem que não
soube e nem saberá respeitar a dignidade de seus adversários políticos. Por

139
Trata-se de desastre automobilístico na BR-316 em Teresina, vitimando alguns nomes da chapa UDN-PTB,
que concorreriam as eleições de 1958, tais como: Demerval Lobão, Marcos Parente, José Ribamar Pacheco,
Rubem Perlingeiro e o motorista José Raimundo, além de trabalhadores (Cassacos). A tragédia rodoviária
ganhou repercussão em todos os jornais do Piauí, sendo amplamente utilizada nas eleições que aconteceram
logo após.
140
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 51.
141
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 51.
74

essa razão condenamos qualquer aproximação que tiverem os trabalhistas,


com um homem rancoroso dessa natureza 142.

A partir do texto escrito no Gazeta do Piauí, é possível notar que havia uma
forte rivalidade que impossibilitava qualquer aproximação política entre os grupos udenistas
e petebistas, devido àquilo que já ocorrera enquanto perseguição de funcionários públicos
pela gestão de Alberto Silva, bem como da própria acusação de agressões feitas a mando da
liderança udenista na cidade, contra as figuras ligadas ao quadro político trabalhista, como
é o caso do vereador Custódio Amorim, que por diversas vezes foi eleito pela legenda
trabalhista, para a Câmara Municipal. Esse vereador foi um dos indiciados no Inquérito
Policial Militar em 1964, por sua atuação no PTB local.

Lembramo-nos dos indecorosos lançamentos de impostos com rubricas


próprias para seus adversários políticos. Lembremo-nos das demissões em
massa de todos os trabalhistas que eram funcionários da prefeitura logo
após a sua ascensão ao poder, muitos deles estáveis, que como pais de
família sofreram as consequências do desemprego graças a odiosidade
desse homem que locupleta a cadeira prefeitural. [...] Lembramo-nos da
agressão que mandou fazer ao jornalista Luciano Lacerda. [...] Lembramo-
nos da agressão feita ao operário Custódio Amorim, em plena Praça da
Graça143.

Os acordos políticos feitos no âmbito estadual para a composição das ditas


“oposições coligadas”, que unificaram PTB e UDN contra os setores e as forças políticas do
PSD, vitoriosos nas duas últimas eleições (1950 e 1954), nas eleições de 1958, elegendo
para o governo do estado Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, não encontraram boa
receptividade no cenário político parnaibano, como mencionado, devido às adversidades
que se processaram na gestão de Alberto Silva. De acordo com os trabalhistas, tal mandato
foi marcado por uma profunda inoperância, fruto de uma maior projeção dos interesses
individuais da família Silva frente aos interesses coletivos da cidade, bem como outras
situações já comentadas.
Portanto, o clima de animosidade entre udenistas e trabalhistas, por certo,
impediu que a aliança feita pudesse ser efetivada também em Parnaíba, como ocorrera nas
eleições estaduais em 1958. Essa só foi concretizada quando da intervenção do executivo
estadual da UDN, retirando o partido das mãos da família Silva, para ser dirigido localmente
por alguém com simpatia pelos petebistas locais, neste caso, o professor José Nelson de
Carvalho Pires.

142
Comentários do momento. Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, ano 03, n. 233, p. 01, 01 jul. 1957.
143
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 01,1957.
75

Alberto Silva, parnaibano, engenheiro, que fora prefeito em Parnaíba pela UDN,
por duas vezes, no entanto, foi, já durante a ditadura civil-militar, um nome de confiança
dos militares, vindo a ser nomeado enquanto interventor estadual no Piauí (1970 a 1975),
pelo próprio general Médici. É preciso, portanto, analisar as complexas relações que se
estabelecem entre alguns grupos políticos piauienses, nos anos 1950, mas também no
momento do golpe de 1964 e com o avanço da ditadura, pois, em alguns casos, fica
perceptível que existiram práticas de adesão e acomodação de tais grupos com os militares
que foram fundamentais para a legitimação social do golpe e na compreensão de uma
determinada cultura política conservadora nesse estado.
A facilidade que tais grupos têm de compor governos autoritários, de se aliar a
projetos antipopulares, se bem analisadas, podem ajudar a explicitar algumas das
particularidades políticas piauienses. Tais análises podem permitir uma melhor compreensão
no que diz respeito à manutenção dos mandonismos locais e da sobrevivência de
determinados marcadores políticos, que permitiram, durante muito tempo, a preservação de
poucos grupos nos espaços de poder no estado do Piauí. No segundo capítulo dessa tese, irei
analisar o cenário político piauiense dos anos iniciais da década de 1960, por meio dos
movimentos sociais e as reações que provocaram no meio político.
76

CAPÍTULO II
PETEBISMO, REFORMISMO RADICAL E REAÇÃO ANTICOMUNISTA NO
PIAUÍ NOS ANOS 1960

Chagas Rodrigues e José Alexandre,


Estão vendo passar, festivamente,
O seu primeiro ano de governo.
Sob as bênçãos de Deus onipotente!
Recebidos – o Estado e o município,
Naquelas condições calamitosas.
É de pasmar como eles realizaram,
Em doze meses obras tão vultosas!
Também não há lugar para descanso,
Não só no decorrer do expediente,
Mas em casa, até alta madrugada,
Ei-los, a trabalhar, ativamente!
Se os recursos do Estado não permitem,
De pronto a execução de obras vitais,
Vai o Governador até o Rio,
Em busca de socorros federais!
Dê-se o mesmo no nosso município,
Se precisamos, como é natural,
Que o Estado nos ajude em qualquer coisa,
Vai o Prefeito em nossa Capital!
Por isso, são <caixeiros viajantes>
No conceito mordaz, (não sei de quem),
Mas, ó, benditos viajantes esses,
Que só viajam para o nosso bem!
E que esses dois irmãos – dois patriotas,
Tanto o governador quanto o prefeito,
Só tem um pensamento dentro d’alma,
Só tem um ideal dentro do peito,
Ideal persistente, inabalável,
Constante, resistente, varonil:
Servir à Parnaíba, ao Piauí,
Lutar pela grandeza do Brasil!144

O texto acima, que uso para iniciar este capítulo, é sintomático da configuração
de um momento em particular da história política piauiense. Com o intuito de criar um certo
clima de otimismo em torno das gestões petebistas – do governador Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues e de seu irmão, prefeito de Parnaíba, José Alexandre Caldas Rodrigues –
ambos eleitos no pleito de 1958, algumas das matérias dos veículos de comunicação da
imprensa parnaibana mudaram o tom empregado em seus periódicos. Se anteriormente, em
jornais como Gazeta do Piauí, predominavam textos de ataque à gestão municipal do
udenista Alberto Silva, em Parnaíba, e à gestão do governo estadual nas mãos do PSD, a
partir de 1959, com a chegada ao poder do PTB, a linha editorial empregada passou a ser de

144
NARCISO, Antônio. A primeira etapa. Gazeta do Piauí, p. 03, 31 jan. 1960.
77

valorização das figuras políticas petebistas, sobretudo dos irmãos Caldas Rodrigues, alçados
à condição de lideranças no estado, tanto no governo estadual, quanto na esfera municipal
em Parnaíba.
Naquele momento, a construção discursiva desses jornais buscava imprimir,
sobre os petebistas supracitados, a ideia de que viriam para trazer para o Piauí os signos da
modernização econômica, em um discurso claramente afinado com as pautas
desenvolvimentistas – fortes no estado – e também com certo pioneirismo no trato com
atividades assistencialistas e na busca por racionalizar a administração burocrática estatal,
inclusive com mudanças positivas nos planos salariais de determinados segmentos da
máquina pública. As pautas políticas do PTB no estado buscaram, desde então, retirar do
Piauí a pecha de “estado mais pobre da federação”, buscando inseri-lo dentro de um processo
de dinamização econômica com o quadro nacional, ao menos do ponto de vista das
iniciativas.
No final dos anos 1950 e início da década de 1960, as velhas queixas dos grupos
econômicos locais, como a construção e término da obra do Porto de Luís Correia 145 ,
longamente reclamado como uma possível solução para o escoamento da produção
extrativista, foram novamente ventiladas como urgentes e agora palpáveis pois, finalmente,
para os grupos locais, havia sido eleito um governador do estado oriundo da cidade de
Parnaíba. Nas fontes impressas às quais tive acesso durante esta pesquisa, fica notório o
quanto os jornais de circulação local foram utilizados nas celeumas político-partidárias
naquele quadrante histórico.
Se, por um lado, na cidade de Parnaíba parte da imprensa amplificava aquele
momento enquanto propício ao crescimento econômico da cidade, por outro lado, começou
a se perceber uma maior presença de sindicalistas nas disputas políticas. Além disso,
ganharam corpo novas formas de questionamento da estrutura político-econômica, em
consequência da ampliação das bandeiras do nacional-reformismo, do governo João Goulart.
O que, de certa forma, causou alvoroço em grupos mais conservadores, sobretudo no que se
refere às pautas da reforma agrária, que foram amplamente discutidas na imprensa piauiense,

145
A construção do Porto de Luiz Correia - cidade litorânea, distante pouco mais de 16 km de Parnaíba - é uma
antiga reivindicação das classes comerciais piauienses. Durante muito tempo, desde o século XIX, o porto foi
apontado como possível solução para o desenvolvimento econômico do estado. O Piauí assiste a diferentes
governos e grupos políticos no poder, mas nunca viu a solução para aquilo que se constituiu, no imaginário
local, como salvação para a produção econômica local. O longo dilema rendeu livro: MENDES, F. Iweltmam.
Porto de Luís Correia: histórico de um sonho. Parnaíba: SIEART, 2008.
78

como reflexo do clima de acirramento em torno dos projetos políticos que marcaram o país
no início dos anos 1960.
Do ponto de vista prático, durante a gestão do petebista Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues (1958-1962), houve amplo investimento, por meio de sua política
desenvolvimentista, na abertura de estradas de rodagens, por parte da iniciativa estadual,
bem como na busca de melhorias nos recursos energéticos locais, pois estes grupos estavam
afinados com a necessidade de integração do Piauí ao contexto econômico nacional. Além
disso, buscava-se a valorização do funcionalismo público estadual, a ampliação e reforma
de escolas estaduais, investindo em projetos de inclusão de grupos populares nos ambientes
educacionais. Um dos pontos também de destaque desse governo, como dito, foi certo
pioneirismo em tratar da assistência social, criando programas suplementares de alimentação
e auxílio aos grupos carentes e fornecendo aos grupos mais vulneráveis acesso à assistência
jurídica, para resolução de seus conflitos na justiça.
Trabalhos acadêmicos recentes, que tomam como recorte o governo de Chagas
Rodrigues, apontam que o gestor “impôs uma nova forma de administrar, dando grau de
racionalidade técnico-administrativa”. Indicando ainda que, durante sua gestão, “o Estado
interveio de forma a promover o desenvolvimento socioeconômico, criando empresas
estatais nos setores de energia elétrica, telefonia, água e esgotos, etc.”146. Além disso, os
trabalhos destacam que durante esse governo se almejou desenvolver uma “política mais
próxima dos grupos tidos como espoliados. Sua prática pretendeu uma gestão em sintonia
com os anseios e as reivindicações das classes ditas populares aviltadas e marginalizadas” 147.
Em certo sentido, o que mais me chama a atenção na gestão petebista é o apoio que o governo
do estado deu a alguns movimentos sociais, como os sindicatos rurais e urbanos, frente a um
cenário de progressiva ampliação da participação política desses grupos.
A partir dessas questões, cumpre perguntar: qual a particularidade local do
processo de ampliação das demandas dos trabalhadores no Piauí? Que lugar ocupou o
governo Chagas Rodrigues e José Alexandre no processo de radicalização política em início
dos anos 1960? Como isso se processou em uma cidade como Parnaíba, tida como mais
afeita e com maior influência dos trabalhistas? Esses, dentre outros pontos, buscarei

146
LIMA, Flávia de Sousa. Imprensa e discurso político: as disputas pelo poder no Governo de Chagas
Rodrigues (Piauí, 1959-1962). 2011. 160 f. Dissertação (Mestrado em História do Norte e do Nordeste do
Brasil) - Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Pernambuco, Recife, PE, 2011,
p. 147.
147
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. Nas franjas da História: singularidade e distinção na constituição da
Liga Camponesa de Matinhos na Terra dos Carnaubais Piauí. Tese (Doutorado em História). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, 2017, p. 181.
79

evidenciar, no sentido também de perceber como a narrativa anticomunista dos proprietários


locais e grupos mais conservadores será empregada contra os movimentos sociais e
fatalmente contra as lideranças do PTB, no processo de perseguição política às vésperas do
golpe de 1964.
Neste segundo capítulo, analiso o cenário político piauiense, em especial o
parnaibano, nos governos petebistas, em sintonia com os processos históricos que ocorreram
no Brasil nos anos iniciais da década de 1960, mais detidamente a ampliação das pautas
reformistas. Em contraposição a isso um forte sentimento anticomunista, como reação
conservadora à emergência de setores populares nos espaços de decisão, por força dos
sindicatos e confederações de trabalhadores que se posicionaram frente às propostas políticas,
como a reforma agrária, em um espaço marcado pela forte concentração fundiária e
predomínio dos grandes detentores de terra. Nessa quadra histórica de final dos anos 1950 e
início da década de 1960, o PTB, partido de forte inspiração getulista, rumou para uma
perspectiva de atuação partidária mais conectada com a transformação das estruturas
econômicas brasileiras por meio das chamadas reformas de base.
Para o Sociólogo piauiense Antônio José Medeiros, tinha, pois, Chagas
Rodrigues relações mais explícitas com determinada base social e uma maior abertura para
o reformismo que o PTB nacional vinha assumindo após a morte de Vargas, como
consequência da própria dinâmica da “democracia populista”, dos impasses da
industrialização brasileira e da maior mobilização social urbana148. O autor, apesar de usar o
termo populismo para caracterizar o governo Chagas Rodrigues, já amplamente questionado
em produções acadêmicas, nos indica um ponto interessante: a recepção que as pautas
reformistas vieram a ter no Piauí, por parte de setores do PTB no estado.
O então governador do estado, o parnaibano Francisco das Chagas Caldas
Rodrigues, buscou se vincular com o governo federal em busca de investimento para
solucionar alguns dos problemas mais urgentes que marcavam o Piauí. De acordo com o
jornal Gazeta do Piauí, a gestão de Chagas Rodrigues “criou a Assistência Judiciária
Gratuita aos pobres de Teresina e Parnaíba [...] elevou os vencimentos mínimos para
servidores do Estado [...] Este foi o primeiro governador a pagar salário-mínimo para os
trabalhadores do Departamento de Estradas e Rodagens [...] foi o primeiro governador do
atual período constitucional que, junto aos sindicatos, comemorou o 1º de maio e celebrou,
oficialmente, a data consagrada ao Piauí, 19 de outubro. [...] criou o Serviço Social do Estado,

148
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais e participação política. Teresina (PI): Cepac, 1996. p. 69.
80

o qual [vem] funcionando, em cooperação com o Serviço de Assistência aos Mendigos de


Teresina”149.
Alguns desses itens da gestão petebista merecem ser discutidos à luz do que
representavam no cenário político dos anos 1960. Quanto ao último item mencionado, com
referência ao auxílio aos pobres por meio de programas sociais, na revista Caravana,
publicação ligada ao petebismo local e nos discursos do então governador para a ALEPI, é
possível perceber que isso foi uma política empregada massivamente no sentido de reforçar
a necessidade de investimentos sociais no estado. Segundo o próprio governador Chagas
Rodrigues,

É o Piauí, a área mais atrasada, habitada por um povo cujas condições de


vida são as mais deploráveis. Não se tem notícia de outra área no país ou
no continente com renda global inferior e de renda per-capita tão baixa.
Nossas populações, mormente as do sul do Piauí, vivem em tal estado de
penúria e pauperismo, que seria difícil descrevê-lo. Em meio às grandes
propriedades latifundiárias, dormentes na improdutividade, vagueiam
essas populações, subnutridas e andrajosas, sem trabalho certo, doentes,
sem assistência médica e hospitalar, sem escolas e sem terras [...]
observando-se o nosso estado no quadro geral da federação brasileira, a
situação que nos depara é constritora e deprimente. O Piauí é o único estado
marítimo que ainda não dispõe, sequer, de um ancoradouro; nossa capital
(Teresina) é a única que não possui aeroporto com pista pavimentada; dois
terços do estado carecem de rodovias; Teresina ainda não está ligada por
pista pavimentada à principal cidade, situada na faixa litorânea, que é
Parnaíba, e é a única, em todo país, que não dispõe de serviço de esgoto150.

De acordo com o texto acima, a percepção do governador eleito com relação ao


Piauí, é que o estado necessitava com urgência dos investimentos em infraestrutura
condizentes com o que era investido em outras regiões do país, por meio de mecanismos
como a SUDENE. Também carecia, com certa urgência, de medidas de combate à pobreza
e às desigualdades sociais. Esses temas, que foram sensíveis em parte da atuação do PTB em
uma esfera nacional, foram vistos pelos opositores do trabalhismo piauiense como simples
engodo e/ou uma forma de manipulação política. Em inúmeras matérias jornalísticas, o
parnaibano Chagas Rodrigues reclamou sobre a exclusão a que os governos federais
anteriores submetiam o Piauí, com relação a obras de infraestrutura e de recursos.

149
Gazeta do Piauí, p. 04, 31 jan. 1960.
150
ESTADO DO PIAUÍ. Mensagem do Governador Francisco das Chagas Caldas Rodrigues à Assembleia
Legislativa, por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1960. Teresina, 1960. [Fonte: Caixa 11 envelope
104, I parte e 124ª parte II parte duplicata parte I] localizada no Arquivo público do Piauí, casa Anísio Brito.
Teresina, Piauí.
81

Enquanto isso, parte da mídia local, mais conectada com os discursos trabalhistas,
percebeu na figura do governador, bem como na atuação de sua esposa no setor de assistência
social, por meio de um certo apelo personalista, a capacidade de atuação mais incisiva nas
questões sociais, pois estes, com “coração generoso” e com ideias “altruístas”, amenizariam
o sofrimento dos mais necessitados piauienses.

Até bem pouco tempo não existia nenhum sistema de serviço social
organizado e executado pelos governos do Estado do Piauí. Foi preciso que
chegasse um governante como Chagas Rodrigues, cheio de ideias altruístas
para que o nosso povo pobre tivesse um pouco de comiseração e de atenção
por parte daqueles que lhe podiam minorar os sofrimentos. Foi assim
criado o ‘Serviço Social do Estado’ e a ‘Assistência Judiciária aos
necessitados’. Duas obras de sentido eminentemente humano, inspiradas
pelo coração generoso da primeira-dama do Estado, D. Maria do Carmo
Correia Caldas Rodrigues, cheia de abnegação pela causa dos pobres,
dando o máximo de seu tempo e de sua ajuda para a solução dos problemas
que afligem a família piauiense. D. Maria do Carmo instituiu em Teresina
a ‘Sôpa do pobre’151.

As iniciativas que diziam respeito ao auxílio social, de acordo com estudo


empreendido sobre a obra de D. Avelar Brandão Vilela, não foram iniciadas pelo governo
Chagas Rodrigues, mas, pela Igreja Católica, em finais dos anos 1950. Porém, o pioneirismo
de trazer essa pauta para a estrutura estatal, tornando-a parte das políticas públicas do
governo do estado só se efetivou, de fato, na gestão de Chagas Rodrigues. Segundo o
trabalho de Grimaldo Carneiro, existiu uma iniciativa da Igreja Católica, criada em 1956, a
Ação Social Arquidiocesana (ASA). Essa iniciativa, para o autor, era importante, pois foi
criada antes mesmo da instalação oficial do Serviço Social do Estado (SERSE) do Piauí, que
só foi fundado em 1959, pelo governador Francisco das Chagas Rodrigues (1959-1962).
Para o autor, a “ASA tinha como objetivo incentivar, manter e supervisionar os
serviços de assistência sociais realizadas nas paróquias. Para isso, foram construídos Centros
Sociais, que eram os locais onde se realizavam estas ações de assistência à população” 152. As
fontes consultadas evidenciam que a política de assistência aos “necessitados” no cenário
piauiense foi uma das principais pautas dos trabalhistas a partir de sua chegada ao governo.
Para Flávia Lima, o governo Chagas Rodrigues tinha algumas linhas de atuação bem
evidentes no final dos anos 1950 e início da década de 1960.

151
Gazeta do Piauí, p. 04, 31 jan. 1960.
152
CARNEIRO, Grimaldo Zachariadhes. Diálogo, modernização e conflito: uma biografia do cardeal Dom
Avelar Brandão Vilela. Tese (doutorado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Programa
de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. 2018, p. 70.
82

[...] A política econômica de Chagas Rodrigues estava firmada em quatro


metas: 1) Indústria de infraestrutura, abrangendo, no setor energia, as
soluções para o problema da oferta em Teresina, Floriano e demais cidades
piauienses; no setor transporte, priorizava a construção e pavimentação de
estradas de importância econômica para o estado; 2) agricultura e pecuária,
com o aumento da produtividade das lavouras existentes, com a introdução
de métodos agrícolas simples; 3) o aperfeiçoamento da indústria,
compreendendo a mecanização da produção de cera de carnaúba, o
aproveitamento integral do babaçu; a instalação do Frigorífico do Piauí
S.A., curtumes, usina de açúcar, têxtil, algodoeira, mineração e sal. 4) a
utilização do sistema do rio Parnaíba, para via de transporte, fonte de
energia e irrigação153.

Sobre o ponto de vista da recepção da sociedade a essas propostas, as questões


de ordem salarial foram as mais levantadas por diferentes grupos de trabalhadores piauienses.
Um dos temas mais evidentes foi a luta contra a carestia, contra a limitação dos salários e a
necessidade de sobrevivência da classe trabalhadora. Tendo em vista o cenário de crise
inflacionária herdada do governo JK, em início dos anos 1960, o custo de vida passou a ser
uma das pautas discutidas por movimentos sindicais e mesmo fora do espaço das
representações políticas, pois a população buscava, cada vez mais, encontrar meios de
amplificar suas demandas mais básicas, como a necessidade de alimentação digna. Em carta
aberta ao Presidente Jânio Quadros, eleito em aliança com grupos udenistas, um operário
chamado Francisco Souza, da cidade vizinha de Luiz Correia154, lançou uma profunda crítica
ao encarecimento dos produtos de primeira necessidade e como isso veio a afetar a
sobrevivência da classe trabalhadora no norte piauiense. A citação é importante pois traz um
interessante relato das formas pelas quais as classes populares foram atingidas em um
processo de encarecimento dos produtos básicos à sobrevivência.

Senhor Presidente
Hoje amanheci estupefato e decepcionado com o seu governo, pois ganho
um salário de fome e de miséria deixado pelo governo de JK. Ultimamente
com a carestia eu vinha tomando mal o café com minha família e hoje
piorou 100 por cento pois aumentou a condução, o pão, o leite, a gasolina
foi a única culpada, pois quando se pensava que o petróleo era nosso, ainda
continuava sendo do gringo americano [...] Veja bem quanto eu ganho na
indústria por dia: CR$ 133,30, fazendo toda espécie de serviço pesado e
veja como amanheceu hoje a carestia que vem fazendo a alta do dólar e da
portaria de morte nº 204. Pão a CR$ 35,00 o kilo e mesmo assim não tem
atualmente, está em falta a farinha de trigo no Piauí. Carne a CR$ 120,
peixe a CR$ 120,00, arroz a CR$ 35,00 o kilo, açúcar a CR$ 35,00, farinha
a CR$ 20,00; o célebre bacalhau da Semana Santa de CR$ 300,00 o kilo,
feijão de terceira a CR$ 30,00, frutas e verduras pela casa dos CR$ 80,00.

153
LIMA, Flávia de Sousa. Op. cit. 2011, p 73.
154
Luiz Correia é cidade litorânea, distante aproximadamente a 18 km de Parnaíba-PI.
83

[...] Veja a disparidade e a mortandade que o senhor continuará a fazer a


este povo que apesar disso não se revolta contra um governo que para
beneficiar o gringo americano estoura a Nação de carestia, com o dólar a
CR$ 275,00. Nós não comemos um dólar americano. Não usamos nem um
sequer e agora temos que pagar os roubos da COFAP, do IBGE e dos
ministérios de ladrões que existem no País. [...] Não podemos comer
cimento armado, nem sucata como o tal do porta aviões que o governo tem,
nós comemos é feijão, pão, farinha, arroz, peixe, carne e verduras. Em geral
também não comemos vassouras. Decepcionaste os milhões que votaram
em ti. Eu já esperava por isso, já que tua campanha foi financiada pelo
gringo e pelo capitalismo brasileiro, então votei nulo. Nós poderíamos ser
o primeiro produtor do mundo, de tudo, e no final não somos de nada.
(Francisco Souza, Luiz Correia – Piauí, Brasil. Pôrto fantasma que já
deveria ser de ouro.)155.

Em Luiz Correia, cidade litorânea próxima à Parnaíba, a condição de vida da


classe trabalhadora, naquele momento, certamente deveria ter uma perspectiva
desanimadora para a maior parte de sua população. Esse relato é simbólico, no sentido de
percebermos o quanto a sobrevivência naquele cenário de crise foi dificultada pelo aumento
no valor dos preços dos gêneros de primeira necessidade para a subsistência da população.
Itens comuns, de acordo com o texto, possuíam valores exorbitantes no mercado, o que
causava prejuízos aos mais necessitados. Importante mencionar também a carga simbólica
anti-imperialista que permeia a escrita do texto. Provavelmente, Francisco Souza, este
trabalhador que endereça a carta ao presidente da república, possuía algum tipo de formação
política em meio aos sindicatos de classe que ganharam corpo no final da década de 1950
também em cidades piauienses. O slogan criado pela candidatura de Jânio Quadros, “a
vassourinha”, é ridicularizado pelo autor da carta, como um elemento inútil, meramente
propagandístico. O mesmo ainda questionava sobre a prioridade dos investimentos desse
governo que, segundo ele, não estaria preocupado com a condição de vida dos trabalhadores,
mas em supostamente beneficiar o capital estrangeiro.
Quando esse trabalhador menciona a expressão “nós não comemos o dólar
americano”, reproduz uma narrativa muito utilizada pelos grupos de esquerda do Brasil, em
início dos anos 1960, ou seja, a crítica ao imperialismo e à intervenção dos norte-americanos
nos interesses econômicos brasileiros, que afetam diretamente o trabalhador, por meio de
uma política monetária ortodoxa, segundo os ditames de mecanismos internacionais como o
FMI. Segundo análises, nesse cenário, o que mais atormentava a classe trabalhadora era o
aumento do custo de vida: a inflação de 1961 foi de 33,29% e a de 1962 chegou a 49,4%,

SOUZA, Francisco. Carta aberta de um operário do Piauí a Jânio Quadros. Luiz Correia, 22 de março de
155

1961. Jornal Terra Livre, p. 03, maio 1961.


84

além da alta acelerada dos preços, o desabastecimento de mercadorias irritava e assustava a


população. De acordo com Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, são numerosas as
análises que consideram a crise econômica como um fator muito importante na
desestabilização do governo Goulart 156 , sucessor de Jânio Quadros, aqui criticado pelo
trabalhador na correspondência acima mencionada.
Dentro desse contexto, para Flávia de Souza Lima, em estudo sobre as charges
produzidas pela imprensa oposicionista ao governo Chagas Rodrigues, a gestão do
parnaibano também foi marcada pela necessidade de se lançarem planejamentos e estudos
sobre as estruturas piauienses, no sentido da otimização dos recursos e na percepção das
principais necessidades do estado naquele momento. Para a autora, “planejar foi uma das
prioridades do primeiro ano de governo, mas para que isso fosse possível era necessário
promover o desenvolvimento das pesquisas que informassem sobre a realidade
socioeconômica piauiense”157. Sobre essa questão, Flávia Lima indica ainda que “era preciso
apontar as prioridades. Os estudos indicaram que era importante construir novos sistemas de
abastecimento d'água para as cidades de Teresina e Parnaíba” 158.
Para Marylu Oliveira, o governo de Chagas Rodrigues tem seu diferencial no
trato que teve com as questões mais prementes de seu tempo, usando-as nos discursos
políticos, agora propagados de forma direta, por conta dos veículos como o rádio,
amplamente empregado pelo governador, em sua comunicação e “prestação de contas” com
os eleitores piauienses. Sobre esse aspecto, para a historiadora,

Chagas Rodrigues definiu um estilo de governo antes desconhecido no


Piauí, com mobilização popular e forte utilização da mídia. Apoiou a
instalação da Rádio clube e ali mantinha o programa semanal ‘falando com
o povo’ recebia sindicatos e associações no palácio do governo, instituiu
audiências populares aos sábados [...]; recebia a imprensa semanalmente e
concedia longas entrevistas coletivas transmitidas ao vivo pelo rádio,
quando retornava de viagens mais demoradas [...] chegou mesmo a
promover uma concentração popular, após seis meses de governo, para
‘prestar contas’ [...]; programações do governo eram organizadas em
promoção conjuntamente com sindicatos [...]. Sobretudo, o governo era
uma ‘fábrica de ideias, que na maioria das vezes, não passaram de ideias,
mas que alimentaram sonhos de um Piauí novo e melhor’159.

156
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim a um
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 144.
157
LIMA, Flávia de Sousa. op. cit. 2011, p. 66.
158
LIMA, Flávia de Sousa. op. cit. 2011, p. 66.
159
OLIVEIRA, Marylu Alves de. A Cruzada Antivermelha - Democracia, Deus e terra contra a força comunista:
representações, apropriações e práticas anticomunistas no Piauí da década de 1960. 2008. 274f. Dissertação
(Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina. 2008. p.80.
85

O governador Chagas Rodrigues, durante sua gestão, em início dos anos 1960,
se aproximou de nomes do PTB nacional, como Leonel Brizola, quando em 1961, o então
governador do Rio Grande do Sul se comprometeu a enviar ajuda técnica para a resolução
dos problemas econômicos do Piauí. Como mencionado no primeiro capítulo, alguns bairros
populares em Parnaíba eram constantemente invadidos pela força das águas em período
chuvoso, dificultando a vida da população desses locais. A partir do governo municipal de
José Alexandre e do irmão, Chagas Rodrigues, no governo estadual, as iniciativas em torno
de socorro aos flagelados pelas cheias adquiriram apelo junto ao governo federal e ao
governo de outros estados da federação.
Aferi, nessa pesquisa, uma relação de proximidade dos governos petebistas de
Leonel Brizola e Jango junto aos partidários piauienses. Sendo inclusive, essa proximidade,
um dos critérios de acusação lançados pelos militares contra lideranças políticas do PTB
piauiense em 1964160. Nesse aspecto, destaco a presença, em abril de 1960, de “uma comitiva
de médicos do Rio Grande do Sul”, em Parnaíba, enviada “pelo Governador Leonel Brizola,
da progressista terra gaúcha, a fim de prestar socorros aos nossos irmãos vitimados pelas
cheias do Rio Parnaíba e seus afluentes”161. O jornal Gazeta do Piauí, próximo aos petebistas,
destacou que “compõe-se a mesma de 02 médicos; de 02 enfermeiros; de 02 inspetores
sanitários e 04 doutorandos. Todos eles se acham empenhados no serviço de assistência
médica em nossa cidade, percorrendo toda zona alagada”162.
Naquele momento, parte da imprensa local, como o jornal Folha do Litoral,
amplificou os discursos em torno da necessidade de investimentos no estado, tido como o
“primo pobre” da federação, pois este estaria “figurando cronicamente entre os espoliados
em qualquer sistema econômico que o governo federal inaugura neste país”163. Os jornais
então se conectaram aos discursos recorrentes por parte dos grupos políticos que almejavam
investimentos nos setores econômicos locais. A imagem abaixo é sintomática desse processo
de aproximação de lideranças políticas petebistas locais com figuras do PTB nacional, como
João Goulart e Leonel Brizola. Na imagem, destaca-se o então prefeito, José Alexandre
Caldas Rodrigues, acompanhado de João Goulart, de passagem pela cidade de Parnaíba. Essa
aproximação entre lideranças políticas do PTB e sua sustentação sindical foi um dos motes

160
Em um dos casos de indiciados pelo Inquérito Policial Militar, em 1964, na cidade de Parnaíba, um vereador
municipal, Custódio Amorim, é arrolado ao processo de acusação como comunista, simplesmente por propor
homenagem a Brizola na câmara municipal, propondo o título de cidadania parnaibana para o líder trabalhista.
161
O Governador Leonel Brizola socorre o Piauí. Uma comitiva de médicos, sanitaristas e enfermeiros para
atender os doentes da zona alagada na cidade. Gazeta do Piauí, ano VI, n. 521, Parnaíba-PI, p. 01, 06 abr. 1960.
162
Gazeta do Piauí, ano VI, n. 521, Parnaíba-PI, p. 01, 06 abr. 1960.
163
Casa de Ferreiro. Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
86

mais empreendidos a fim de criminalizar as atividades dos trabalhadores após o golpe, como
será trabalhado no terceiro capítulo da tese.
Destacou-se, no processo aberto em 1964, a denúncia de envio de verbas federais
para a construção de sindicatos na cidade de Parnaíba, como o dos estivadores, bem como
outros investimentos monetários e as articulações políticas por parte do governo federal na
formação de novos sindicatos em Parnaíba, ligados ao PTB nacional. Essas questões foram
operacionalizadas por parte dos militares como um possível reflexo da “corrupção” e desvio
de recursos públicos, que, para eles, caracterizavam a atuação política dos trabalhistas,
marcada pela tutela de “sindicatos pelegos”.

Figura 1- O Prefeito e o Presidente

Fonte: Jornal Gazeta do Piauí, ano VII, n. 364. Parnaíba-PI, 30 de setembro de 1961.

Parte da imprensa local, em apoio ao governo, indicou a figura do parnaibano


Chagas Rodrigues como um político inovador, com um perfil que se distanciava dos
tradicionais nomes da política estadual, por se tratar de um “jovem culto e esclarecido, [é]
um homem inquieto desde os primeiros momentos, em que recebeu em completa desordem
a massa falida de uma administração inoperante e irresponsável”. Alguém, portanto, que
87

estaria desde os primeiros meses de seu governo interessado em “restaurar as combalidas


finanças estaduais”164.
Outro ponto destacado, por parte da imprensa, com relação ao governo do
petebista Chagas Rodrigues, foi o investimento no setor educacional, pois esse, de acordo
com o Folha do Litoral, mereceu “sua particular atenção”, pois no seu governo “foram
criados mais dois colégios e duas escolas normais, mantidos pelo estado, onde o ensino é
inteiramente gratuito”165. Indicavam ainda que, “o governador, [tem] inaugurado inúmeros
estabelecimentos de ensino primário e recuperado outros que se encontravam paralisados,
por se acharem em ruínas” 166 . No campo educacional, em matéria sobre seu governo
publicada no Almanaque da Parnaíba, já no ano de 1995, o ex-governador Chagas
Rodrigues fez um balanço de sua gestão e enfatizou, sobretudo, os investimentos no setor de
serviço social e educação. No texto, indica que

Foram equipados e inaugurados os primeiros pavilhões de artes industriais


do Piauí, três em Teresina e um em Parnaíba. As matrículas nas escolas
primárias mantidas pelo estado passaram de 42.553, em 1958, para 52.004,
em 1961. Em 1958, o estado que dispunha de 785 normalistas e de 56
regentes de ensino, em junho de 62 passou a ter, em seu corpo docente, 929
e 315, respectivamente. Encontramos uma Escola Normal Oficial, a de
Teresina. Oficializamos a Escola Normal de Parnaíba e a de Oeiras e
criamos a de Floriano. Foram igualmente oficializados o Colégio
Parnaibano e o Ginásio Picoense e criados um ginásio anexo à Escola
Normal de Parnaíba e outro, anexo à Escola Normal de Floriano, este logo
depois transformado em Colégio Estadual. Foram criadas as primeiras
escolas públicas de ensino superior, a de enfermagem e a de Serviço
Social, ambas em Teresina. O governo desencadeou a Campanha de
Educação de Adolescentes e Adultos em 64 cidades167.

Ainda sobre a questão de investimentos no setor educacional, em livro de


memórias do ex-secretário de educação José Nelson de Carvalho Pires (2009), intitulado Por
que Parnaíba cidade universitária?168 o autor indicou que durante a gestão do petebista José
Alexandre Caldas Rodrigues, a partir de 1959, houve aumento das iniciativas implicadas na
formação escolar na cidade de Parnaíba. Na obra em questão, o autor tentou inserir como
uma das diferenças com relação às gestões anteriores, uma melhora no tratamento
dispensado aos grupos de populares parnaibanos, desassistidos da educação de segundo grau,
que não teriam condições monetárias para a formação de seus filhos. A proposta da gestão

164
Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
165
Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
166
Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
167
RODRIGUES, Francisco das Chagas Caldas. Depoimento. Almanaque da Parnaíba, edição 1995, p. 109.
168
PIRES, José Nelson de Carvalho. Por que Parnaíba Cidade Universitária? Parnaíba: Sieart, 2009.
88

petebista teria sido ampliar as possibilidades de acesso a esse nível de ensino por meio de
bolsas concedidas já anteriormente, mas que agora deveriam ser colocadas à disposição dos
realmente pobres, sem nenhum interesse político envolvido. Segundo o autor,

Com a eleição de Chagas Rodrigues e de Tibério Nunes, para Governador


e Vice – bem como de José Alexandre para Prefeito de Parnaíba, fui
nomeado Secretário de Educação da Prefeitura de Parnaíba. Como não
existia na cidade um só estabelecimento de ensino gratuito com curso
ginasial, hoje 6ª, 7ª, 8º e 9º ano, para estudantes pobres, a prefeitura fazia
doações de bolsas de estudo para uma minoria privilegiada e quase sempre
a pedido de políticos apadrinhados, sem falar que os parcos recursos do
município sempre deixavam alguns jovens sem a oportunidade de
continuar seus estudos, caso não tivesse condições de ir para outras cidades
maiores. [...] Como Secretário de Educação do município, recebi a
orientação do então prefeito, José Alexandre, para que as bolsas de estudo
fossem preferencialmente distribuídas, entre os alunos mais pobres, razão
pela qual fazíamos uma triagem sem levarmos em consideração a situação
partidária da família dos interessados e sempre mantendo aqueles que já
possuíam tal privilégio169.

O livro de memória, lançado já em 2009, se insere em um momento em que


Parnaíba estava a receber o título simbólico de “cidade universitária”, em razão da ampliação
da oferta de cursos superiores170. Neste cenário de valorização da presença da universidade
na cidade, o ex-secretário de educação, Prof. José Nelson de Carvalho Pires, ligado a um
setor da UDN nos anos 1950, tentou se conectar como personagem de relevo no processo de
ampliação do setor educacional parnaibano desde os anos 1950/1960, quando foi secretário
municipal da pasta. Essas narrativas destacam que, de fato, houve uma maior preocupação,
por parte dos governos petebistas, com investimentos e abertura de novos prédios e reformas
de unidades escolares, muito na esteira do que começava a se pensar em termos nacionais.

169
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2009, p. 14-15.
170
Parnaíba hoje é tida como um polo universitário, devido à ampliação significativa dos cursos universitários
na Universidade Federal do Piauí, após o governo Luís Inácio Lula da Silva, por meio de programas como o
Reuni, que ampliou consideravelmente a estrutura universitária local. Desde os anos 1980 a universidade
possuía apenas 04 cursos, tendo atualmente em torno de 15 cursos de graduação e a contar com alguns
programas de pós-graduação.
89

Figura 2- Campanha de 1958

Fonte: Por que Parnaíba Cidade Universitária? (2009)

No que diz respeito ao tratamento dispensado ao setor educacional, o PTB,


durante o governo João Goulart, por meio do Ministro Darcy Ribeiro, publicou a
Enciclopédia da Professora Primária e da Biblioteca Básica Brasileira. Ainda na área
educacional, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação foi aprovada, o que era uma demanda
antiga e importante para o setor educacional, que ainda foi contemplado com mais verbas do
orçamento federal. De acordo com Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes, “esse novo
lugar da educação, como prioridade governamental, era uma novidade no Brasil, não tendo
existido nem mesmo no Plano de Metas de JK.”171.
Dentre os diálogos políticos empreendidos pelo governo Chagas Rodrigues
(1958-1962), um ponto importante foi o apoio recebido, direta ou indiretamente, por setores
ligados ao PCB local172. Esse fator foi utilizado pela imprensa de oposição, pelos grupos
conservadores e comerciais, ligados em grande parte aos udenistas e pessedistas, no sentido
de se lançarem acusações contra o governador. No processo instaurado pelos militares após
o golpe, é possível acessar, em um dos anexos, a correspondência de algumas figuras do

171
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 2014, p. 125.
172
Sobre a aproximação do PCB e PTB, Jorge Ferreira destaca que, “reconhecendo a popularidade do
trabalhismo entre os trabalhadores, os comunistas passaram a atuar em conjunto com setores do Partido
Trabalhista Brasileiro — PTB. No plano sindical, a aliança foi bastante fecunda. A partir de 1953 e até março
de 1964, comunistas e trabalhistas, juntos, hegemonizaram o movimento operário e sindical e marcaram, com
suas ideias, crenças e tradições, a cultura política popular brasileira, sobretudo no tocante ao estatismo”.
FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto. Op. Cit. 2004. p. 05.
90

PCB ao governador. Essas tratavam, em alguns pontos, do apoio das lideranças do partido a
Chagas Rodrigues antes de eleito e após as eleições de 1958, pois estariam ligados aos
compromissos democráticos que ambos os partidos compartilhavam. A carta foi utilizada
pelos militares como prova, para caracterizar o governo de Chagas Rodrigues como
“subversivo” e de forte “feição comunista”. A correspondência diz o seguinte:

Os comunistas do Piauí, fiéis aos compromissos democráticos e


progressistas, a legalidade dos direitos constitucionais, vem mui
respeitosamente, por intermédio desta mensagem, expor o seguinte: que
tendo em vista a palavra transmitida pessoalmente a V. Excia., antes de
assumir o governo, de que não ficariam somente no apoio eleitoral, mas
continuariam e continuarão, dando seu apoio condicional colaborando em
tudo que for no sentido do desenvolvimento econômico e social e que seja
assegurada melhor condição de vida ao povo e aos trabalhadores 173.

Importante destacar, do texto retirado do processo, que o apoio do PCB


piauiense seria condicional, pois estes apoiariam o governo Chagas Rodrigues, na medida
em que este defendesse as pautas mais progressistas, em prol da classe trabalhadora local. A
carta dos pecebistas piauienses ao governador ainda destacava que, “tratando-se do
desenvolvimento econômico do Estado, tem que se ver [...], o problema do amparo ao
desenvolvimento da lavoura e da pecuária, decididas práticas amparando os trabalhadores
rurais, creadores e pequenos proprietários, com ajuda técnica e financeira” 174 . Essas
indicações das lideranças comunistas foram feitas enquanto uma proposta de investimentos
para um melhor aproveitamento dos recursos naturais do estado; e também como uma
espécie de análise das “condições em que [será] feita a industrialização, o desenvolvimento
do comércio e transportes, ferroviário e rodoviário”. De acordo com as lideranças do PCB,
“todos estes ramos [se desenvolverão] na medida em que se desenvolver os meios de
produção, que com o aumento da mesma, [criará] as condições de aumento do meio
aquisitivo do povo”175.
Em outro aspecto, sob o ponto de vista das iniciativas dos grupos sindicalizados
no estado, no governo Chagas Rodrigues, destaco o I Congresso Sindical dos Trabalhadores
e Camponeses do Piauí, realizado em abril de 1961. Esse congresso ocorreu no auditório do
Colégio Estadual do Piauí, com a presença de grande assistência, dentre a qual se ressaltavam

173
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Carta dos comunistas piauienses a Chagas Rodrigues. Em: Projeto
Brasil Nunca Mais. Nº 185. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_02&pesq=&pesquisa=Pesquisar. Acesso
em: 08 jan. 2019
174
Idem.
175
Idem.
91

“os nomes do governador do estado, Sr. Chagas Rodrigues, do Arcebispo de Teresina, Dom
Avelar, do Padre Francisco Carvalho, assistente da JOC, Deusdedt Souza, presidente do
Sindicato dos Comerciários de Teresina e várias outras personalidades” 176. Entre as falas,
destaca-se a do próprio governador:

Dois terços do mundo – disse o governador Chagas Rodrigues – vivem


passando fome. Esta situação deve acabar e está nas mãos dos próprios
trabalhadores a sua solução. Se a Associação Comercial, por exemplo,
representa os comerciantes, além dos sindicatos por eles organizados,
porque os trabalhadores não têm o direito de organizar os seus sindicatos?
E não é só isso: Devem eleger para o parlamento os seus legítimos
representantes saídos do meio dos próprios trabalhadores, caso contrário,
os seus mais sagrados direitos serão postergados. Finalizando o governador
Chagas Rodrigues denunciou o imperialismo como o responsável pela
situação de insegurança em que vive o mundo, embora a humanidade lute
e trabalhe objetivando o progresso e a paz177.

No discurso do governador, há uma narrativa fortemente conectada com a ideia


de valorização dos sindicatos dos segmentos da classe trabalhadora, enquanto um
mecanismo que possibilitasse uma maior inserção política e participação dos sindicalizados
nas questões de seu interesse mais imediato, em contraponto às “associações de
comerciantes”. O evento em questão, realizado com apoio de Chagas Rodrigues, certamente
serviu para aguçar os ânimos dos grupos mais conservadores contra o governo do estado.
Demonstrava, assim, que Chagas Rodrigues estava em sintonia com o processo de
sindicalização e organização dos trabalhadores piauienses durante seu governo, instigando a
criarem formas de ampliação de seu poder de decisão.

Depois de um trabalho intenso, durante dois dias consecutivos, os


trabalhadores piauienses, demonstrando plena consciência dos problemas
estaduais e nacionais, aos quais se vincula a luta pelas liberdades
democráticas, aprovaram resoluções bastante importantes, tais como
medidas urgentes de reforma agrária, com a entrega aos camponeses das
terras de propriedade do Estado, devolutas e expropriadas aos
latifundiários que não a cultivam, e em zonas próximas aos grandes centros,
com meios de transportes e condições adequadas de higiene; assistência
médica e hospitalar, escolas e ferramentas agrícolas; extensão da legislação
trabalhista ao homem do campo; revogação do artigo 58 da Lei Eleitoral,
que ‘priva milhares de brasileiros de serem eleitos’; revogação da Instrução
204 da SUMOC; reinício das obras interrompidas pelo DNOCS;
construção da barragem do médio Parnaíba fator de grande importância na
industrialização do Estado; severa fiscalização trabalhista e posição firme
do governo na defesa do direito de autodeterminação dos povos; lanchas,

176
No seu primeiro Congresso Sindical Trabalhadores e Camponeses do Piauí afirmam sua unidade. Jornal
Novos Rumos, Rio de Janeiro, p. 02, 25 maio 1961.
177
Idem.
92

frigoríficos, escolas e outras facilidades para os pescadores; medidas


práticas para o barateamento do custo de vida, e revisão do salário-
mínimo178.

Em texto do jornal Novos Rumos, ligado ao PCB, os trabalhadores piauienses


que participaram do Congresso Sindical dos Trabalhadores e Camponeses abordaram os
temas que compunham o repertório das propostas políticas dos grupos de esquerda de então.
Com destaque, a luta por uma reforma agrária no estado que viabilizasse a produção
econômica local, com uma maior possibilidade de acesso à terra pelos trabalhadores rurais.
O texto em si é bastante enfático sobre as principais demandas em torno da valorização do
salário, além de outras bandeiras de luta, como a ampliação da participação política das
classes populares e extensão de direitos trabalhistas ao homem do campo.
Foi naquele momento de início da década de 1960 que, paralelamente à
construção da campanha pública pela legalização do partido, os comunistas piauienses
também promoviam uma reorganização interna. De acordo com informações retiradas do
trabalho de Ramsés Souza sobre as Ligas Camponesas no estado do Piauí, “em junho de
1960, foi realizada a Assembleia Municipal dos Comunistas de Parnaíba”. Por meio de
levantamentos de material para esta pesquisa, destaco que nessa cidade já havia uma atuação
dos comunistas desde os anos 1930. Contudo, a realização da referida Assembleia visou
reorganizar o Comitê Municipal do PCB nessa cidade.
Por conta das bandeiras levantadas pelo governo Chagas Rodrigues e a
mencionada aproximação com segmentos do PCB, houve, em contrapartida, uma forte
reação conservadora, alimentada, dentre outros personagens, pelo desembargador e
jornalista Simplício de Sousa Mendes 179 . Esse agente, em seus textos em jornais de
circulação no Piauí, como O Dia, onde assinava coluna chamada Televisão, lançou fortes
acusações de “subversão” a nomes como o de Chagas Rodrigues, sobretudo pelo apoio
prestado aos movimentos sociais em sua gestão no governo do estado, bem como pela
aproximação do líder político petebista com as lideranças sindicais do Piauí.

178
No seu primeiro Congresso Sindical Trabalhadores e Camponeses do Piauí afirmam sua unidade. Jornal
Novos Rumos, Rio de Janeiro, p. 02, 25 de maio 1961.
179
Simplício de Sousa Mendes nasceu em União, Piauí, em 1882 e faleceu em Teresina, capital do estado.
Bacharel pela Faculdade de Direito de Recife (1908). Juiz de Direito em Piracuruca e Miguel Alves (PI) foi
presidente do Tribunal de Justiça do Piauí e um dos fundadores da faculdade de Direito do Piauí, tornando-se
professor catedrático de Teoria Geral do Estado. Membro do Tribunal Regional Eleitoral e presidente da
Academia Piauiense de Letras, o intelectual também assumiu a diretoria da Imprensa Oficial do Piauí,
tornando-se presidente do Conselho Estadual de Cultura e jornalista de grande atuação na imprensa local. Como
jurista, publicou “O Homem, a sociedade, o direito”. (TITO FILHO, 1978; GONÇALVES, 2003; COELHO,
1991; CASTELO BRANCO, 1987)
93

De acordo com Marylu Oliveira, “o conservadorismo determinou a produção das


representações anticomunistas no Piauí de forma consistente antes de pleitos eleitorais e,
principalmente, antes do golpe civil-militar de 1964”180. No período de maior radicalização
política, os enunciados em torno da dita “comunização” do Piauí, foram amplificados, por
conta do temor dos grupos mais conservadores sobre as propostas reformistas e sobre a
aproximação de setores do PTB local com os movimentos sociais.
Quanto à caracterização do governo petebista pela imprensa de oposição, aos
poucos, a identificação de Chagas Rodrigues com Francisco Julião, Fidel Castro e até mesmo
Che Guevara, pelos jornais oposicionistas, construía a imagem desse personagem como um
“perigoso” e “ameaçador comunista”181. De acordo com trabalho de Ramsés Souza, no início
de março de 1962, durante uma viagem a Brasília, Chagas Rodrigues declarou ao jornal
carioca Última Hora que “[será] inevitável e imprevisível a revolução social se não forem
feitas de imediato as reformas de base reclamadas pelo povo”, acrescentando que “o país
reclama com urgência reformas de base, principalmente a eleitoral e a agrária”. Pouco mais
de um mês depois, em seu depoimento à CPI das Ligas Camponesas, Chagas afirmou que
era favorável à “reforma agrária radical”. Essas declarações do governador foram
amplamente empregadas pela imprensa de oposição, no sentido de, por meio do recurso do
pânico e do temor, relacionar o governo Chagas Rodrigues ao clima de “subversão da ordem”,
da “comunização” que se ampliava e de uma provável tomada de poder pelos comunistas.
Um dos pontos de maior destaque no processo eleitoral de 1962 foi o uso
sistemático e agressivo de discursos acusatórios contra Chagas Rodrigues. Nesse sentido, a
campanha anticomunista no estado foi sistematicamente trabalhada por periódicos locais,
tais como o Jornal do Piauí e a Folha da Manhã, que tomaram as posturas de apoio aos
movimentos sociais pelo governo como um dos seus principais pontos de ataque à primeira
gestão petebista no Piauí. Tudo isso com a intenção de desidratar as campanhas dos
trabalhistas piauienses e inviabilizá-los frente ao eleitorado local. Se o PTB havia chegado
ao poder por meio da aliança com setores da UDN, como visto no capítulo anterior, agora,
segundo Flávia Lima (2011), a aliança UDN-PTB, vitoriosa em 1958, que elegeu Chagas
Rodrigues governador, estava sem nenhuma possibilidade de negociação. De acordo com a
autora, as lideranças udenistas, políticos conservadores e latifundiários temiam o

OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2008, p. 110.


180
181
SOUZA, Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais. Tempo de Esperança: camponeses e comunistas na
constituição das Ligas Camponesas no Piauí entre as décadas de 1950 e 1960. 2015. 250 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, 2015, p. 113.
94

crescimento do PTB no território piauiense, inclusive na Assembleia Legislativa. Por isso,


“não queriam mais negócio” com Chagas Rodrigues, impossibilitando qualquer acordo para
as eleições de 1962182.
Essa quebra política é fundamental para entender a derrota do candidato apoiado
por Chagas Rodrigues nas eleições estaduais de 1962, Constantino Pereira, pois, a partir de
então, uma divisão do PTB ocasionou um “racha” no partido naquele ano. Nesse sentido,
ocorreu também uma divisão do trabalhismo estadual em duas distintas alas: uma chefiada
pelo governador Chagas Rodrigues e seu irmão, então prefeito de Parnaíba, José Alexandre
Caldas Rodrigues, com o apoio do Diretório Municipal de Teresina, à frente do qual se
encontrou o deputado Ribamar Castro Lima; a outra, formada pelos senadores Matias
Olímpio, Leônidas Melo, João Mendes e o deputado Clidenor de Freitas Santos 183.
Como mencionado, um dos principais pontos de divergência entre os grupos
políticos do PTB e da UDN foi o apoio que o governo Chagas Rodrigues deu aos setores
mobilizados em sindicatos de trabalhadores urbanos, além da aproximação com os
camponeses e suas associações rurais que começavam a ganhar evidencia no estado. Para os
grupos conservadores piauienses, a pauta da reforma agrária, que atiçou os ânimos no
cenário político dos anos 1960, defendida no estado por Chagas Rodrigues, não partia de um
sentimento de engajamento em prol da mudança nas condições de vida dos trabalhadores
rurais, por parte do líder trabalhista, mas seria um gesto de pura e simples “demagogia” do
governador petebista, em busca de manter-se no poder, segundo esses grupos, com o apoio
de “comunistas subversivos”.

Pura demagogia comunista. O fim delas, de certo, não é acudir as múltiplas


necessidades do roceiro, do trabalhador ruralista, dando-lhes escolas
suficientes para os filhos, alimentação adequada, facilitando-lhe o trabalho
útil e conveniente, - educação melhor e mais compreensiva, com
assistência médica, dentaria e higiênica, não. (...) Essas ligas – apelidadas
de camponesas - no Brasil, são uma imitação da revolução russa e do que,
no mesmo fim, vai se passando em Cuba e noutras paragens, - sob a
influência psicológica do dedo poder do materialismo soviético 184.

O trecho acima, retirado do jornal oposicionista Folha da Manhã, evidencia que


houve no Piauí certa operacionalização do clima de Guerra Fria, característico do início dos
anos 1960, com Cuba estabelecendo um regime socialista na América Central e o temor de
uma revolução socialista nas terras brasileiras. Nesse ponto, alguns dos jornalistas, como o

182
LIMA, Flávia de Souza. Op. cit. 2011, p. 129.
183
LIMA, Flávia de Souza. Op. cit. 2011, p. 126.
184
LIGAS camponesas. Folha da Manhã, Teresina, p. 04, 17 ago. 1960.
95

próprio Simplício Mendes, em sua maioria ligados aos interesses na manutenção dos
privilégios da posse de terras no estado, partem para a tentativa direta de, por meio da
imprensa local, conectar o processo de ampliação dos debates em torno das reformas,
colocadas em pauta no governo João Goulart, com a ideia genérica de “infiltração comunista”
no país. Para esses jornalistas, era preciso barrar qualquer tentativa de reforma nas estruturas
econômicas locais, pois essas seriam “intocáveis”, uma vez que as propriedades privadas
estariam resguardadas, inclusive pelo campo do Direito.
É preciso analisar esse contexto de crise política no Piauí à luz dos debates que
se lançavam no Brasil. Segundo Jorge Ferreira, “Jango tornou-se presidente da república sob
gravíssima crise militar, com as contas públicas descontroladas, tendo que administrar um
país endividado interna e externamente, além da delicada situação política” 185 . Para o
historiador, “desde 1958, a organização trabalhista, que até então já se apresentava como um
partido reformista e popular, assumiu o perfil de partido de esquerda”. A partir de então, o
PTB adotaria mais claramente uma linha de ação política e doutrinária. Dentro dessa
orientação, para lideranças trabalhistas como João Goulart, San Tiago Dantas e Fernando
Ferrari, “a posição fundamental do partido seria a de um instrumento de reforma, de mudança,
de superação da estrutura social brasileira” 186.
Esse aspecto certamente influenciou os discursos de lideranças políticas como
Chagas Rodrigues e seu irmão José Alexandre, que viram na progressiva ampliação do
eleitorado petebista, um filão ao qual pudessem se conectar com esse novo agente que
emergia: o trabalhador sindicalizado. Esse processo vai influenciar, também, as medidas de
organização dos trabalhadores piauienses. Nesse sentido, a partir de então, relaciono esse
processo político com as atividades dos trabalhadores no Piauí, frente a um quadro de
organização de sindicatos e a luta por melhorias de trabalho e renda.

Lutam os trabalhadores piauienses: enfrentamento, organização sindical e reformismo


nos anos 1960.

[...]
Para o camponês do sertão
De recursos tão precários
É a condição humilhante
De uma injustiça gritante
Dêsses latifundiários

185
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5ª edição, 2014, p.
266.
186
FERREIRA, Jorge. Op. cit. 2014, p. 223.
96

Pior que toda escassez


Da chuva que banha a serra
É a vida do camponês
Que trabalha e não tem terra
Vítima da exploração
Do truste do tubarão
Que fabrica fome e guerra
Pior que todo esse horror
Que assola o Nordeste inteiro
É a lei do jugo e terror
Mantida pelo usineiro
Cada vez mais bilionário
Às custas do operário
E do povo brasileiro
Senhores representantes
Do povo que não tem vez
Reparai nestes instantes
De injustiça e insensatez
A nossa constituição
Para o bem desta nação
Modificai nossas leis
Porque esta luta é sensata
E o povo quer sem talvez
Revogação imediata
Do Parágrafo 16
Do artigo 141
Que não olha o Bem comum
Desprezando o camponês!187

O trecho do poema acima, retirado da edição do jornal Terra Livre, de julho de


1963, narra de forma poética o sofrimento do homem do campo, trabalhador ainda
desprovido de direitos básicos como o salário mínimo ou os propalados direitos trabalhistas
a que muito se recorria no momento. Estavam esses trabalhadores, pois, consequentemente,
à mercê dos interesses dos grandes proprietários rurais nos rincões do nordeste brasileiro.
Nessa condição degradante, sob o sol abrasador daquelas paragens, muitos dos homens da
terra buscaram se organizar coletivamente a partir de sindicatos e associações rurais, por
meio de iniciativas do Partido Comunista, ou ainda, por intermédio de setores da Igreja
Católica, que buscava trazer para a sua influência os camponeses, minorando o acesso do
PCB ao campo.
Um dos pontos mais destacados nesse poema, recheado de crítica social, é o
questionamento de alguns entraves constitucionais que impediam a realização de reformas
nas estruturas de poder no meio rural. Uma das soluções para uma reforma agrária, que
pudesse dar melhores condições de vida para o homem do campo, seria a alteração da

187
DINIZ, Pompílio. Aos camponeses do Nordeste. Jornal Terra Livre. Ed. Julho de 1963, São Paulo, SP.
97

Constituição de 1946, que garantia direito de propriedade de terras improdutivas e devolutas


aos grandes proprietários rurais, detentores de forte poder de barganha junto às estruturas de
poder nos estados. De acordo com Ferreira e Gomes, essa tratava-se, na verdade, da mais
importante reivindicação das esquerdas e do movimento camponês: uma reforma agrária
sem indenização prévia em dinheiro188.
Esse aspecto da indenização em dinheiro, para os movimentos camponeses, não
seria o mais adequado, pois simplesmente estabelecia uma relação comercial de compra e
venda de terras, favorecendo os interesses dos grandes proprietários. O que deveria ser
discutido e efetivado, para os movimentos sociais, seria, antes de tudo, uma reforma agrária
que pudesse trazer justiça social ao campo. Menciono, nesse ponto, que as condições de vida
dos trabalhadores do campo ainda permaneciam bastante precárias, se comparadas, por
exemplo, aos direitos adquiridos pelos trabalhadores da indústria. Lembro que apenas no
Governo João Goulart foi aprovado pelo congresso o Estatuto do Trabalhador Rural, que
estendia aos trabalhadores do campo os mesmos direitos que os assalariados urbanos
usufruíam desde 1930, tais como: carteira de trabalho assinada, salário-mínimo, repouso
semanal, férias remuneradas, dentre outros189. Porém, em muitos espaços, como no interior
do Piauí, esses direitos não eram minimamente assegurados, prevalecendo o uso da força e
do poder arbitrário dos proprietários de terra.
Um dos embates mais visíveis desse período de início dos anos 1960, foi a pauta
da reforma agrária, inserida no programa de governo defendido pelo PTB de João Goulart,
que buscava a possibilidade de um desenvolvimento econômico com mais justiça e inclusão
social, sobretudo ao homem do campo, tolhido em seus direitos mais elementares, como a
posse de pequena propriedade onde pudesse produzir para sua própria subsistência. Naquele
momento, o debate sobre as reformas, dentre elas a agrária, se intensificava na medida em
que as tensões no campo se acirravam. Dessa forma, segundo indica Ramsés Souza, os
conflitos cotidianos em torno da terra eram informados e informavam as discussões
nacionais relativas à questão agrária no Brasil. A situação no Nordeste, de acordo com o
autor, constituída sistematicamente a partir dos signos da seca, miséria e calamidade, ocupou
um lugar central nesse debate, reforçando a necessidade urgente de medidas concretas para
pôr um termo nessa condição denunciada por políticos, intelectuais e técnicos, sob pena de
se instalar uma situação “perigosa” no país190.

188
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro, op. cit. 2014, p. 284.
189
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro, op. cit. 2014, p. 161-162.
190
SOUSA, Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais. Op. cit. 2015, p. 101.
98

O quadro político de início dos anos 1960 foi marcado nacionalmente pela
renúncia do Presidente Jânio Quadros e, após crise resolvida por meio da campanha da
legalidade, o início do Governo João Goulart, com poderes tolhidos por uma solução
parlamentarista, acordada para acalmar os ânimos golpistas. Nesse momento, no Piauí, de
acordo com Marylu Oliveira, “a partir de 1961 o quadro [começa] a se delinear de outra
maneira; os trabalhadores rurais organizados passaram a seguir em suas lutas e o governo
começou a investir em um discurso de representação das hostes trabalhadoras no Piauí” 191.
Foi o momento também de rompimento do acordo político entre UDN e PTB no estado, que
possibilitou a eleição de Chagas Rodrigues em 1958. As chamadas “oposições coligadas”,
não mais se sustentaram pela guinada mais progressista que assumiram alguns quadros
petebistas no Piauí, em defesa das reformas, o que incomodou setores conservadores dentro
do udenismo piauiense, inviabilizando um acordo intrapartidário já em 1961.
A partir de então, houve uma aproximação entre a UDN e setores do PSD, no
Piauí comandado pela família Freitas. Setores dessas duas agremiações partidárias forjaram
forte oposição ao petebismo piauiense, sobretudo por identificarem nas pautas desse partido
uma ameaça aos seus interesses mais imediatos, como a manutenção das grandes
propriedades. Lucia Hippólito destaca que o PSD teve como pontos centrais a “conciliação”
e “negociação”, observando que esse partido atuou no contexto da experiência liberal
democrática enquanto um “fiador da estabilidade política”192. O PSD no Piauí, por seu lado,
mesmo não sendo um partido homogêneo em sua composição, foi formado por proprietários
rurais e comerciantes. Esses tinham um certo predomínio na sigla e, ao perceberem o
aumento dos movimentos sociais e as tensões no campo, buscaram isolar politicamente os
quadros do PTB mais ligados ao reformismo.
Nesse ínterim, na cidade de Parnaíba, se reverberava na imprensa, com assombro
e perplexidade, as principais questões de ordem política do momento, como a luta pela posse
da terra. Em um espaço fortemente marcado pela penúria, como o Nordeste, as condições
climáticas serviram ainda pra acirrar mais os ânimos entre os trabalhadores, em processo de
organização, e os proprietários rurais. Em matéria do jornal parnaibano Folha do Litoral, no
final de 1961, o articulista disparava que “como se não bastasse o estado de fermentação
classista que [vem] tomando vulto e se alastrando por todo o Nordeste comburido, eis que

OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2016, p. 363.


191
192
HIPPOLITO, Lucia. De Raposas e Reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira (1945-64).
Ed. Paz e Terra, 1985.
99

[irrompe agora] uma seca desenfreada em terras da Bahia, causando assim mais uma retirada
forçada de nordestinos para terras do sul”193.
No texto em questão, o autor continuava reforçando o clima de medo que grande
parte da sociedade sentia naquele momento, pois, “juntam-se duas forças poderosas para
impelirem a modificação do sistema de vida do homem do nordeste: o imperativo da
evolução político-social e o eco da miséria regional, que nunca deixa de ser ouvido194. Para
o articulista, esses dois aspectos conjugados serviam para criar um clima nebuloso de
insegurança e a possibilidade, cada vez mais presente, de conflitos sociais irromperem,
devido ao quadro de seca, mas, sobretudo, pela organização de novas formas de
representação política no campo.
Textos como esse tiveram grande circulação no estado do Piauí, no contexto da
primeira metade dos anos 1960. Em um misto de medo e na busca por esclarecimentos sobre
o que representariam as ditas reformas que eram mencionadas então como bandeira
encampada pelo Presidente Jango e pelo PTB, parte da imprensa piauiense buscou se
posicionar no debate, fosse a favor ou em clara oposição política ao que entendiam como
uma possível ruptura política por parte do governo Goulart. Portanto, um dos problemas
mais evidentes naquele momento era o acirramento das lutas no campo. Sabe-se que, desde
o governo Juscelino, os trabalhadores em Pernambuco, por exemplo, organizaram-se em
ligas. De acordo com Jorge Ferreira, ao assumir o governo, João Goulart, “teve que lidar
com invasões de terra no Maranhão, na Paraíba, em Goiás, na Bahia, no Rio de Janeiro e no
Rio Grande do Sul. Com um mês da presidência de Jango, criou-se a Superintendência da
Política Agrária, a SUPRA”195.
Dentro daquele quadro político, no Nordeste, porém, segundo tese de Damião
Rocha, a vida parecia seguir os mesmos passos lentos de antes. Os contratos de trabalho
permaneciam verbais, sem qualquer segurança para o lavrador e sua família. A agricultura,
principal atividade econômica, e as relações sociais seguiam fundadas em princípios
tradicionais. Continuavam o camponês e toda sua parentela, como também toda sua
vizinhança, na miséria, na ignorância e dentro do mais completo abandono 196. Compondo-se
ainda em grande parte de acordos tácitos, tensas e fragilizadas, as relações entre proprietários

193
Sêca. Jornal Folha do Litoral, Parnaíba-PI, n. 47, ano 02, 16 dez. 1961.
194
Sêca. Jornal Folha do Litoral, Parnaíba-PI, n. 47, ano 02, 16 dez. 1961.
195
FERREIRA, Jorge. Op. cit. 2014, p. 269.
196
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. Nas franjas da História: singularidade e distinção na constituição
da Liga Camponesa de Matinhos na Terra dos Carnaubais. Tese (História) Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP 2017, p. 125.
100

e trabalhadores do campo começaram a ser questionadas por conta da emergência dos


sindicatos e associações de camponeses, inspiradas pela experiência das Ligas Camponesas
emergentes no estado de Pernambuco.
Dentre os temas que geraram maior preocupação na classe comercial e
proprietária piauiense estão as chamadas Ligas Camponesas. Entendidas por parcela desse
setor como um fenômeno “revolucionário” e “questionador da ordem econômica vigente”,
as Ligas sofreram contundentes críticas nos jornais piauienses. Por outro lado, em alguns
textos, os autores se posicionaram favoráveis a uma reforma negociada e por meio de debates,
em veículos de grande circulação, como o Almanaque da Parnaíba, porta-voz dos interesses
comerciais parnaibanos. Nas edições de início da década de 1960, por meio desse anuário, é
perceptível que, tanto as questões de interesse no investimento agrário no Brasil quanto os
movimentos que emergiam no campo, foram colocados em análise, trazendo para as elites
políticas locais o temor de levantes e sedições no mundo rural.
Na edição de 1962, o cônego Aluísio Costa Barreto, escreveu texto para o
Almanaque, criticando as Ligas organizadas no Nordeste, em um período de ampliação dos
movimentos sociais. Para o cônego, “assunto que [vem] seriamente preocupando a opinião
pública, nestes últimos tempos, são as ‘Ligas Camponesas’, já tão disseminadas e em franco
desenvolvimento aqui no Nordeste”197. A análise do texto mostra que o religioso colocava
em suspeição os reais motivos e interesses dos camponeses, ao questionar, “se reais e
sinceros fossem os seus intentos, nenhuma restrição teríamos a fazer. Mereciam encômios,
até mesmo palmas”198.
Ainda de acordo com o cônego, os camponeses subverteriam aquilo que
pregavam, pois, “encapuçadas como são, num falso misticismo, suas atitudes frontalmente,
discrepam do que alardeiam e proclamam. Entre o dizer e o agir está a divergência
flagrante”199. O líder religioso em questão, amplificava aquilo que largos setores, desde os
mais conservadores da Igreja Católica até proprietários, pensavam naquele momento; ou seja,
a irrupção de movimentos revolucionários que viriam a questionar a ordem vigente era um
mal a ser combatido, pois representariam práticas enganosas e interesseiras. O trecho a seguir
é exemplar de uma visão mais conservadora sobre as Ligas, empreendida na grande imprensa
parnaibana.

197
BARRETO, Cônego Aluísio Costa. Ligas Camponesas. Almanaque da Parnaíba, Edição de 1962, p. 127.
198
BARRETO, op. cit. 1962, p. 127
199
BARRETO, op. cit. 1962, p. 127.
101

No entanto, luta não significa só revolução com armas, nem emprego de


forças demolidoras. As causas justas, como as reivindicações dos
trabalhadores rurais, devem ser advogadas por meio justos, pacíficos, e não
por movimentos beligerantes que fecundam a desordem e degeneram em
baderna. Contudo, outra não tem sida a atitude das ligas camponesas. Onde
quer que se instalem, logo de começo, como característica peculiar, geram
a desordem, o tumulto, a arbitrariedade. Destacam-se sobremaneira, pela
agressão, pela força, pela rebeldia, no mais completo desrespeito à lei [...]
Tomar a propriedade pelo direito da força, dela expulsando seu legítimo
dono é extremismo inconteste200.

O texto do Cônego, publicado no Almanaque da Parnaíba, finaliza


simbolicamente com um alerta que depois será tomado de forma paranoica pelos grupos que
apoiaram o golpe de 1964: a “manutenção da democracia”, em nome de um “nacionalismo
patriótico e cristão”, contra os perigos externos de regimes considerados totalitários, como
o socialismo soviético. Segundo o cônego, “bem alerta e prevenida está a nação, para que no
seu solo não permita se desfraldem outras bandeiras, nem se instalem outros regimes, que
desdoirem seu passado, ou lhe desonrem o nome”201.
Por outro lado, existem alguns textos favoráveis às pautas reformistas que
marcaram o governo João Goulart em início da década de 1960, escritos também no
Almanaque. Na edição de 1963, em um tom mais otimista, de apoio ao processo de
ampliação da produção rural que poderia ser proporcionada com a concretização da reforma
agrária, J. Coriolano de Carvalho então se perguntava: reforma agrária ou subversão
social?202.

Encaremos o problema piauiense. As terras vieram de heranças, muitas das


quais do período colonial. Valor real, pouco os sabem. Mas faltam braços
e faltam técnicos. Faltam inseticidas, maquinários, sementes selecionadas,
silos e uma organização bancária eficiente. Falta o homem em condições
de vencer. As terras despertam o apetite das massas e as chamadas LIGAS
CAMPONESAS se movimentam e reclamam o amparo do governo federal.
[...] Para que servem os inúmeros latifúndios piauienses? Para que
continuamos a dizer que nossas terras são fracas e incapazes de
produzir?203.

Naquele momento, setores da Igreja Católica, em especial a atuação do


episcopado, tendo à frente a figura de D. Avelar, realizavam campanhas de organização e
atuação em programas sociais, rivalizando, inclusive com setores políticos, a dianteira na

200
BARRETO, op. cit. 1962, p. 127.
201
BARRETO, op. cit. 1962, p. 128.
202
CARVALHO. J. Coriolano de. Reforma agraria ou subversão social. Almanaque da Parnaíba, edição
1963. P. 69-72
203
CARVALHO, op. cit. 1963, p. 69-72
102

atuação à frente dos sindicatos rurais, causando certo temor por parte de determinados grupos
com relação à ampliação do poder e da influência da Igreja Católica nesse estado. Para
Grimaldo Carneiro, naquele momento, parte da instituição começou a “defender uma
reforma nas estruturas, uma maior mobilização dos trabalhadores e camponeses, e levantou
a bandeira da Reforma Agrária”. Assim, segundo o autor, “quando tudo isso, encontrou eco
no arcebispo de Teresina, os conflitos começariam a aparecer” 204 . Para J. Coriolano, no
entanto,

[...] As ligas camponesas são organizações dos fracos em defesa de direitos


consagrados nas modernas constituições dos povos civilizados. Se o Piauí
não se ajustar ao vertiginoso progresso da zona centro-sul do país, será
fatalmente tomado de assalto pelos grileiros e pelos que tem fome[...]
Encaremos a REFORMA AGRÁRIA como uma conquista da civilização e
empreguemos a inteligência na solução de nossos problemas básicos. Eu
seria um traidor do estado em que nasci se combatesse a REFORMA
AGRÁRIA como existe em muitos países. Piauiense, amigo, seja
inteligente e homem do seu tempo, antes que a subversão social destrua
tanta riqueza e tantas possibilidades de uma vida calma e feliz 205.

O texto acima, de J. Coriolano Carvalho, enfatizava a necessidade de fazer uma


reforma agrária planejada, negociada e administrada pelo poder público, como algo
vinculado à própria formação local atrasada com relação ao restante do país. Para ele, era
urgente pensar nesse tema e colocá-lo em prática antes que os “desamparados”, aqueles que
“têm fome” o façam, ou, por outro lado, ver o estado nas mãos dos grileiros. Por certo,
Carvalho não estava conectado aos interesses dos grandes proprietários locais que, ao menor
sinal da utilização de termos reformistas no Piauí, os combatiam com ardor, nomeando os
seus defensores de adeptos do “comunismo” e instigadores da “subversão social”.
Essas iniciativas reformistas, de fato, causaram espanto nos grupos de
proprietários no Brasil. A simples menção da pauta da reforma agrária, empreendida pelos
grupos de esquerda, causaria alvoroço e reações conservadoras as mais diversas. Destaca-se,
sobre esse processo de consolidação das atividades ligadas aos movimentos sociais do
campo que, para alguns analistas, de “1963 em diante as Ligas Camponesas estavam prestes
a se transformar numa organização política, mais consequente, mais formal, mais organizada,
com um programa que extrapolava a questão agrária”206. Esse fato alertou os proprietários e
grupos conservadores contrários a quaisquer mudanças estruturais no Brasil, sobretudo no

204
CARNEIRO, op. cit. 2018, p. 89.
205
CARVALHO, op. cit. 1963, p. 69-72
206
STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: história e natureza das Ligas Camponesas –
1954-1964. 2ª edição. Ed. Expressão Popular: São Paulo, 2012.
103

Nordeste. Vale lembrar que, no campo dos direitos sociais, efetivou-se, em 1962, durante o
governo João Goulart, o regulamento da sindicalização rural; muito embora tal direito já
fosse assegurado pelo Decreto 7.038, sancionado em 10 de novembro de 1944, ainda no
governo ditatorial de Vargas207.
No Piauí, durante a gestão do governador Chagas Rodrigues, (1958-1962), na
intenção de impedir a formação de minifúndios antieconômicos ou a manutenção de áreas
improdutivas, o petebista incentivava o processo de organização dos trabalhadores no campo.
Atiçando a ira dos grupos mais conservadores que enxergavam nesse apoio do governador
aos sindicatos rurais uma afronta aos interesses dos grandes proprietários e passaram assim
a taxá-lo de “comunista”, “insuflador da luta de classes no Piauí”, ou o “Juliãozinho do
Piauí”208, dentre outros termos mais afrontosos e depreciativos.
Naquele contexto, a imprensa piauiense não passou incólume aos debates
referentes às reformas de base, propostas pelas esquerdas e defendidas pelo governo João
Goulart, pois esse processo poderia implicar mudanças diretas no espaço local, marcado por
forte concentração fundiária e conflitos pela posse da terra. Na busca de se conectar com as
propostas reformistas, Chagas Rodrigues defendia uma política de redistribuição de terras
para o Piauí, de acordo com o uso social da mesma.

Referimo-nos à reforma agrária, para que o pobre homem do campo possa


usufruir um mínimo de conforto indispensável a uma existência condigna
e contribua decisivamente para o progresso de nossa agricultura. Com o
intuito de empreendê-la em bases condizentes com as nossas condições,
foi elaborado pelo governo um projeto de lei em que se dispõe sobre o
loteamento e venda das terras do Estado sem utilidade coletiva pelo
abandono em que se encontram ou pela ocupação indevida por parte dos
que delas não precisam209.

Segundo o trabalho de Doutorado de Damião Rocha, sobre as Ligas Camponesas


em Matinhos, no Piauí, consta um registro estatístico indicando que havia, já no segundo
semestre de 1963, duzentas e dezoito ligas espalhadas país afora. No Piauí, segundo o
trabalho, existiam quatro: ALTATE (Teresina), ALTACAM (Campo Maior), Associação
Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba e uma última Associação
Profissional dos Camponeses e Lavradores de Amarante; embora existissem pelo menos

207
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. Op. cit. 2017, p. 107.
208
Termo amplamente utilizado pelo Desembargador Simplício de Sousa Mendes, em sua coluna no Jornal O
Dia, para atribuir uma visão negativa e subversiva ao governador Chaga Rodrigues, ligando-o ao líder das
Ligas Camponesas, Francisco Julião.
209
ESTADO DO PIAUÍ. Mensagem do Governador, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, a Assembleia
Legislativa em 1962. Teresina, 1962: XVI. LIMA, 2011, op. Cit.
104

mais quatro ligas atuantes no estado ainda não reconhecidas210. Esse processo de formação
de Ligas e associações de trabalhadores do campo será um dos principais pontos de embate
entre os adeptos do reformismo no Piauí, como parcela do PTB e do PCB, frente aos grupos
conservadores.
O ponto de divergência se processava com os proprietários de terras no Piauí,
muitos deles ligados a grupos políticos dentro de partidos como a UDN e o PSD, como o
general Jacob Gayoso e Almendra. O general, por exemplo, veio a público, por meio do
jornal O Dia, no decorrer do ano de 1960, demonstrar que era preciso cautela no que diz
respeito à reforma agrária que então já se discutia. As narrativas empreendidas por esses
grupos atuaram no sentido de avaliar negativamente as pautas reformistas, pois estas se
conectariam a ideia de “despreparo” e “ignorância” dos trabalhadores do campo. De acordo
com essa concepção, esses trabalhadores não estariam “aptos” para o processo de
transformação que uma reforma na estrutura fundiária no Piauí poderia acarretar. Para o
general Gayoso, portanto,

A reforma agrária, aconselhada pelo bom senso, prudência e reflexão,


basear-se-á não em reivindicações esdrúxulas, mas na educação, no
aperfeiçoamento do homem, na libertação da sua profunda ignorância.
Antes da terra, que em tempo oportuno lhe será doada aqui ou alhures
preparar-se-á o cérebro movimentador do complexo agrícola, que é a
lavoura na órbita tropical. O homem deixará o nomadismo. Deixará de ser
a rudeza, a brutalidade, a incompreensão para se transformar no arquiteto
de nossa prosperidade, na coluna mestra do nosso desenvolvimento
econômico e técnica social. Antes da terra a escola, antes da
distribuição a técnica211. (grifo meu)

O escrito de alguém como o general Jacob Gayoso e Almendra, fundador da


Associação de Criadores do Piauí e fortemente ligado ao PSD, um dos partidos que mais
abrigava os grupos tradicionais, é sintomático de como grande parte dos proprietários locais
tomaram para si a dianteira do enfrentamento às Ligas Camponesas no Piauí. Por meio da
imprensa escrita, homens como o general supracitado, mas também o desembargador e
jornalista Simplício Mendes – ligado à UDN – argumentavam que uma reforma agrária que
viesse a distribuir a terra seria algo de extremamente negativo e danoso para o estado do
Piauí, pois, para eles, o homem do campo era incapaz de se emancipar do poderio dos
proprietários de terra. O trabalhador rural, segundo a visão corrente empregada por esses

210
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. op. cit. 2017, p. 130.
211
GAYOSO E ALMENDRA, Jacob Manoel. O LATIFÚNDIO e a pecuária. Jornal O Dia, Teresina, p.01, 03
abr. 1960.
105

grupos, seria um homem “rude”, “sem educação” e, portanto, incapaz de desenvolver alguma
atividade produtiva de grande valia por conta própria.
Esse argumento, apesar de muito comumente utilizado pelos proprietários,
acabava naturalizando uma visão negativa sobre os trabalhadores rurais, enxergando nesses
homens a total ausência de iniciativa individual ou coletiva. Além disso, de um certo
primitivismo, que além de os menosprezarem com relação aos citadinos, acabava por colocá-
los como um grupo social que precisaria sempre da tutela de outrem, neste caso dos
proprietários rurais do Piauí. Em certo sentido, aqui se pode identificar na fala de algumas
lideranças de oposição ao governo Chagas Rodrigues, algumas características do udenismo,
enquanto parte de uma cultura política conservadora no Brasil dos anos 1950 e 1960. Dentre
essas, destacam-se a “restrição à participação popular na política; o elitismo; o antigetulismo;
o liberalismo econômico; o antiestatismo; o moralismo; o bacharelismo e o
anticomunismo”212.
Por outro lado, por conta do forte clima de mobilização dos movimentos sociais
no Brasil, começava a emergir, naquele momento, uma série de iniciativas dos trabalhadores
rurais em torno da formação de suas associações. Na cidade de Parnaíba, foi criada uma
associação de lavradores no final do ano de 1961. Esta contou com o apoio de parcelas da
classe operária e dos estudantes parnaibanos. Esse tipo de associação de trabalhadores rurais,
seu vínculo com grupos de trabalhadores sindicalizados e de estudantes, bem como a
aproximação com lideranças políticas, foi visto por grupos de proprietários rurais e dos
comerciantes como uma espécie de “sinal vermelho”, como algo que precisava ser
combatido, em nome da “propriedade” e da dita “tradição cristã e democrática” brasileira.
No que diz respeito ao processo de ampliação das atividades sindicais na cidade
de Parnaíba, no início dos anos 1960, fica perceptível a impressão negativa que geraram por
parte de alguns grupos. No Inquérito Policial Militar aberto em Parnaíba no ano 1964, isso
é evidente por meio dos depoimentos de indivíduos que, arrolados como depoentes e/ou
testemunhas de acusação, viram nas atividades desses trabalhadores a emergência da
“subversão” e do “comunismo” nesse espaço. É preciso destacar que esses depoimentos não
podem ser tomados ao pé da letra, tampouco como dados naturais, pois foram tomados em
momentos posteriores ao golpe de 1964, bem como foram feitos sob o poder dos militares,
em instituições oficiais.

212
Sobre a UDN, ver: BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambiguidades do
liberalismo brasileiro (1945-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1981. Ver também: DULCI, Otávio. A UDN e o
anti-populismo no Brasil. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1986.
106

No entanto, esses depoimentos, cruzados com outras fontes, podem nos ajudar a
compreender melhor o processo de organização dos trabalhadores na cidade de Parnaíba e
arredores. Segundo depoimento retirado desse IPM, o funcionário público estadual Tasso de
Moraes Rego – um dos depoentes que prestou informações já em 1970 – destaca que
“aproximadamente entre 1961 e 1962, a política sindical na cidade de Parnaíba, tomou um
grande impulso em face da ascensão de João Goulart ao poder”213.
Segundo o mesmo depoimento, prestado no Tiro de Guerra de Parnaíba, o
funcionário destacou que, na cidade, o líder da classe sindical era o ex-Deputado estadual
José Alexandre Caldas Rodrigues (de mandato cassado). Para o depoente, “José Alexandre
[servia] de ligação entre o seu irmão, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues e o líder
comunista Rafael Martinelli na política de ‘bolchevização’ dos sindicatos, particularmente o
sindicato dos ferroviários”214. Aqui cabe destacar que, certamente, os discursos empreendidos,
tanto antes, quanto após golpe de 1964, pelos meios militares, pelos grupos conservadores,
também amplamente divulgados na imprensa local, foram tomados pelo depoente no sentido
de nomear as atividades sindicais na cidade em início dos anos 1960, como reflexo da
influência do “comunismo internacional” por essas paragens. O discurso de acusação, feito
pelo funcionário Tasso Rego, em muito se assemelha aos textos acusatórios escritos pelos
grupos tradicionais, em franca oposição ao governo Chagas Rodrigues e contra os
movimentos sociais que emergiram no final dos anos 1950 e ganharam força em início da
década seguinte em cidades com forte presença de sindicatos, como Parnaíba.
O que é perceptível, mesmo que por meio de um discurso acusatório, é que, de
fato, nos anos iniciais da década de 1960, o movimento sindical parnaibano começou a se
ampliar a partir das iniciativas e aproximações com o governo João Goulart e na esteira do
processo de crescimento da mobilização característica desse período, que se expressava em
congressos, greves, campanhas salariais e eleições sindicais.
Cito como exemplo desse processo ocorrido no Brasil, a criação do CGT215. Esse
órgão foi criado a partir da experiência de entidades horizontais, como o MUT 216 e CTB217, e
se consolida, a partir de então, como Comando Geral de Trabalhadores, em agosto de 1962218.

213
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Depoimento de Tasso de Moraes Rego. BRASIL NUNCA MAIS.
Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM nº 340, 1964. Disponível em: http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/.
Acesso em: set. 2018.
214
Idem
215
Comando Geral dos Trabalhadores.
216
Movimento de Unificação dos Trabalhadores.
217
Central dos Trabalhadores Brasileiros.
218
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Comando Geral dos Trabalhadores No Brasil (1961-1964). 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986.
107

Naquele momento, de acordo com a obra de Lucília de Almeida Delgado, as lutas sindicais
ampliaram-se, exigindo melhorias imediatas de salário e condições de vida, mas também
exigindo maior participação dos trabalhadores nas decisões políticas nacionais e a efetivação
imediata das reformas estruturais219.
Ainda de acordo com Lucília Delgado, os “setores onde o movimento sindical
tornou-se mais atuante foram: setor têxtil, setor de transportes (ferroviários, transportes
aéreos), bancários, petroleiros, metalúrgicos, portuários e estivadores”220. A autora indica que
foi exatamente entre esses setores que se formaram as principais lideranças nacionais do
movimento sindical, como “Oswaldo Pacheco (estivador), Sinval Bambirra (tecelão), Rafael
Martinelli (ferroviário), Clodsmidt Riani (hidrelétrico), Armando Ziller (bancário), Benedito
Cerqueira (metalúrgico) e Mello Bastos (aeroviário)”221.
Portanto, sobre o contexto em questão, um dos fatores que mais se notabilizaram
foi a progressiva ampliação da estrutura sindical em todo o país. Para Rodrigo Patto Sá Motta,
“uma das questões mais candentes no debate político da primeira metade dos anos 1960 foi,
sem dúvida, o movimento sindical”222. O autor indica que, durante aqueles anos o movimento
passou por um crescimento notável, perceptível em duas vertentes: o surgimento de
organizações sindicais de tipo horizontal e a intensificação da ocorrência de greves. De
acordo com Rodrigo Motta, as “organizações sindicais formadas naquele momento, como o
Pacto de Unidade e Ação (PUA) e o Comando-Geral dos Trabalhadores (CGT), decorriam
da tentativa dos líderes da esquerda de fugir à estrutura sindical corporativa, que previa a
existência de órgãos verticais como federações, de âmbito regional, e confederações, de
âmbito nacional” 223 . Ainda segundo o autor, nesse formato tradicional, “concebido para
restringir as reivindicações dos trabalhadores ao plano exclusivamente salarial, os sindicatos
representavam apenas as respectivas categorias e participavam de uma estrutura piramidal
que culminava numa confederação nacional224.
Nesse sentido, toda a estrutura sindical organizada pelos trabalhadores desde o
final da década de 1950 se tornou fator primordial no que diz respeito ao processo de
participação política que a classe trabalhadora teve em início dos anos 1960. Rodrigo Motta
indica que,

219
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. op. Cit. 1986, p. 26.
220
DELGADO, op. Cit. 1986, p 54
221
DELGADO, op. Cit. 1986, p. 54.
222
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
102.
223
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2006, p. 102.
224
Idem
108

Visando a criar entidades capazes de unir diferentes categorias e assim


dotar os trabalhadores de organizações fortes o suficiente para expressar
demandas salariais e políticas coletivas, alguns líderes sindicais
começaram a articular-se no final dos anos 1950. Daí surgiram a Comissão
Permanente das Organizações Sindicais (CPOS) e o PUA, e, mais adiante,
o Fórum Sindical de Debates (FSD) e o Pacto de Ação Conjunta (PAC). A
experiência positiva desses primeiros mecanismos intersindicais serviu de
estímulo à criação da entidade mais importante do gênero, o CGT, fundado
em 1962. Com pouco tempo de funcionamento o CGT adquiriu grande
notoriedade, tornando-se instrumento poderoso de pressão política. Suas
ações de maior impacto foram as greves gerais, na maioria motivadas por
demandas políticas. Como exemplo pode-se citar a greve de setembro de
1962, convocada para pressionar a favor da antecipação do plebiscito
acerca do parlamentarismo225.

De acordo com Rodrigo Motta, “a participação política das lideranças sindicais


horrorizava a sensibilidade conservadora, que considerava inaceitável e perigosa a
transformação dessas figuras em atores de prestígio”226. O Presidente João Goulart, nesse
ponto, constituiu uma forte aliança com os grupos sindicais no Brasil, desde momentos
importantes, como a campanha da legalidade, em 1961, e a votação do plebiscito, em 1963.
Fica claro, portanto, que “Jango tratou os líderes sindicais como interlocutores privilegiados
e o fato de recebê-los no palácio presidencial escandalizava a opinião conservadora” 227. Isso
pôde ser notado também no Piauí, espaço marcado politicamente por grupos tradicionais que,
no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, começaram a perceber com certa preocupação
a ampliação da participação de trabalhadores nos espaços de poder e na luta por direitos.
Naquele momento, as lideranças petebistas compreenderam como uma
característica do contexto um processo irresistível de “socialização” dos meios de produção,
que se formaria a partir de então, fruto da percepção que esse tema teria pelos novos
governos. O jornal Gazeta do Piauí apontava uma questão bastante sensível no início dos
anos 1960; um termo que certamente causava grande temor nos proprietários locais, a dita
“socialização”, mais especificamente da terra, em um espaço fortemente marcado pelo
predomínio rural e concentração fundiária.

Marchamos lentamente para a socialização. Nenhum governo no mundo


atual poderá manter-se no poder sem o atendimento às justas e sentidas
reivindicações das classes menos favorecidas pela fortuna. Socializa-se a
medicina e a justiça. Socializa-se a educação e agricultura. Os meios de
produção e todas as atividades essenciais e imprescindíveis à vida da
coletividade, como os transportes e a grande propriedade latifundiária. Os

225
Idem
226
Idem
227
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2006, p. 103.
109

ricos deixarão de ser mais ricos e os pobres menos pobres. É a reafirmação


da doutrina extraordinária da Igreja Católica consubstanciada nas
encíclicas papais. Atendendo a estas circunstâncias especiais e
momentâneas, o governador Chagas Rodrigues, com sua larga visão dos
problemas nacionais e estaduais, dentro dos princípios doutrinários de seu
partido – o PTB – e por força também de sua acentuada formação cristã –
descendente que é, como todo o Piauí sabe, de uma família
tradicionalmente católica, apostólica romana – acaba esse eminente
homem público de reafirmar tais princípios quando de sua última viagem
ao sul do Estado determinou que fossem distribuídas consideráveis porções
de terras devolutas aos agricultores e posseiros destas terras vítimas que
estavam sendo, da cobiça dos ricos e poderosos latifundiários daquela zona.
[…] não se conhece, em toda a história do Piauí, exemplo mais belo e
edificante, não só de amor ao próximo, como de ação governamental228.
(grifo meu)

O texto em questão é extremamente simbólico por colocar na ordem do dia o


tema dos conflitos em torno do uso e da propriedade da terra. É importante destacar que,
para os agentes ligados ao governo petebista, era necessário democratizar o acesso a direitos
sociais por parte dos setores populares piauienses, como “saúde, educação, justiça e
agricultura”, tidos como fundamentais para um melhor desenvolvimento da coletividade.
Um outro ponto que chama bastante atenção no texto é a ênfase dada ao caráter religioso do
governador Chagas Rodrigues. É perceptível, nesse enfoque à “tradição familiar católica”,
uma necessidade de se buscar minimizar a forte pecha de comunista que o governador
parnaibano foi ganhando de seus opositores, ao defender veementemente, no Piauí, as
reformas de base, sobretudo a agrária, se aproximando dos sindicatos e associações rurais.
A ideia de ligar esses atos de apoio ou aproximação com os movimentos sociais
ao comunismo por parte da oposição impulsionava, como contrapartida dos petebistas, o
forjamento de medidas para esclarecer a opinião pública sobre as questões que estavam
envolvidas nas discussões sobre a reforma agrária, extremamente debatida nos meios
políticos. Assim, eram colocadas em evidência no momento, inclusive por grupos religiosos,
que viam a possibilidade de uma modificação nas relações de trabalho no campo e o acesso
à terra, como um tema de fundamental importância para o Brasil.
Uma das iniciativas políticas propostas por Leonel Brizola, no início dos anos
1960, também encontrou certa receptividade nos meios sindicais piauienses: trata-se da
Frente de Mobilização Popular. Em matéria do jornal Terra Livre, foi publicada nota sobre a
formação da FMP no Piauí. Consta que houve reunião na Câmara dos Vereadores em
Teresina, contando com a presença de “representantes de todas as entidades estudantis,

228
Primeiro governo trabalhista do Piauí. Gazeta do Piauí, ano 6, n. 573, Parnaíba-PI, p. 01, 22 out, 1960.
110

operárias, populares e progressistas” da capital. Enfatiza-se, no texto, a ideia de que a frente,


então, estaria “traçando um arrojado programa para se lançar às ruas e aos camponeses,
levando sua palavra esclarecedora ao povo, mobilizando e organizando pela vitória do
movimento nacional pelas reformas de base”229. De acordo com o texto,

Foi estruturado nesta capital o Comitê estadual da Frente de Mobilização


Nacional pelas Reformas de base. O acontecimento, de invulgar
importância política, verificou-se com a presença de emissários da direção
nacional da FMP que, procedentes da Guanabara, aqui estiveram vários
dias, estabelecendo de início uma série de contatos, dos quais resultou
finalmente a fundação do comitê estadual da frente única nacionalista e
democrática230.

De acordo com Jorge Ferreira, em nível nacional, a FMP congregou a União


Nacional dos Estudantes (UNE); os operários urbanos com o Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), o
Pacto de Unidade e Ação (PUA) e a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Empresas
de Crédito (CONTEC); os subalternos das Forças Armadas, como sargentos, marinheiros e
fuzileiros navais, por meio de suas associações; setores mais radicais das Ligas Camponesas;
os grupos da esquerda revolucionária como a Ação Popular (AP), a Organização
Revolucionária Marxista – Política Operária (POLOP), o Partido Operário Revolucionário
(Trotskista) (POR-T) e os setores mais à esquerda do interior do PCB; bem como políticos
do Grupo Compacto do PTB e da Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), além dos nacional-
revolucionários brizolistas231.
Nesse sentido a Frente de Mobilização Popular, criada para unificar grande parte
das esquerdas brasileiras, sob a liderança de Leonel Brizola, era uma forma de pressionar o
governo Jango a romper com setores tidos como conservadores, como o PSD, contra aquilo
que consideravam ser uma atitude “conciliatória” e, portanto, negativa, por parte do
presidente Goulart. Ao mesmo tempo, a frente foi se lançando gradativamente em uma
estratégia de confronto cada vez mais radical, bem mais do que o próprio PCB, considerado,
pela FMP, moderado naquele momento.
Muitos dos envolvidos com a organização da FMP no Piauí foram indiciados,
acusados de “subversão”, nos processos instaurados após do golpe de 1964, em Teresina e

229
Jornal Terra Livre, Ed. Julho de 1963, p.04.
230
Instalado o Comitê Piauiense da Frente de Mobilização Popular. Em: Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963,
São Paulo.
231
FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de
História. Dossiê: Brasil, do ensaio ao golpe, 1954-1964. São Paulo: Associação Nacional de História, ANPUH,
n.47, 2004, p.181-212.
111

Parnaíba. Nesse sentido, a composição da Frente de Mobilização Popular no Piauí contava


com alguns nomes de destaque no meio dos movimentos sociais, como Honorato Martins,
José Esperidião Fernandes, Ribamar Lopes, Francisco Celso Leitão, Augusto Castro, Luís
Genésio de França e Carlos Augusto Cavalcante. Destacam-se ainda os nomes dos
Deputados Deusdedit Ribeiro e Temístocles Pereira, além do Vereador de Teresina, Jesualdo
Cavalcante de Barros e Paulo Rubens232. Na mesma edição do jornal Terra Livre, de julho de
1963, onde se veiculou matéria referente a criação da FMP no Piauí, também se pode
averiguar a emergência de organização de movimentos sociais no campo, em matéria com
título “Piauí já tem confederação Camponesa”. Na matéria em questão, lê-se:

Além de fundar a união dos camponeses do Piauí e de aprovar os seus


estatutos, o encontro elegeu a primeira diretoria da nova entidade, sendo
elevado à presidência o líder camponês José Esperidião Fernandes. Os
demais integrantes da diretoria são os Sr. Luiz José de Ribamar, Manoel
Vieira, Martinho Pereira de Abreu, Santídio Gomes Martins, Roberto
Ferreira da Costa, Honorato Gomes Martins, Raimundo José Ribamar,
Osório Lopes, Jacintho Carlos Altino e Chagas Rodrigues233.

Destaca-se, entre os escritos do jornal Terra Livre, a alusão positiva ao governo


Chagas Rodrigues (1959-1962) 234 , no que diz respeito ao apoio do já ex-governador ao
processo de organização dos trabalhadores rurais no Piauí. No texto, entre as moções
aprovadas pelo plenário, figurava uma de “congratulações com o ex-governador e atual
Deputado Federal, Sr. Chagas Rodrigues”, por haver colaborado, durante sua administração,
para que o movimento camponês piauiense pudesse iniciar uma nova etapa de suas lutas sem
precisar fazer frente à polícia em defesa de seus direitos”235.
É possível aventar, a partir disso, que, durante o governo Chagas Rodrigues,
houve o fortalecimento dos meios de organização dos trabalhadores rurais, também por conta

232
Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963, São Paulo, p. 04.
233
Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963, São Paulo, p. 04.
234
Sobre o apoio dos pecebistas às “oposições coligadas”, em 1958, Sousa e Santos destacam que “a eleição
de Chagas Rodrigues parece não ter sido o único motivo de comemoração dos comunistas piauienses, neste
pleito o jovem militante comunista Honorato Gomes Martins concorreu ao cargo de deputado estadual pela
legenda do PTB alcançando 911 votos no Estado, votação significativa que lhe concedeu a suplência na
Assembleia Legislativa”. Os autores destacam ainda que “os comunistas piauienses apresentaram três
candidaturas nas eleições de outubro de 1962 todas elas através da legenda do PTB em razão da clandestinidade
do PCB. Honorato Gomes Martins concorreu ao cargo de Deputado Estadual, já José Esperidião Fernandes e
José Rodrigues da Silva concorreram ao cargo de vereador. Os comunistas não lograriam êxito em suas
candidaturas, embora Honorato Gomes Martins tenha repetido o feito de quatro anos antes angariando votos
suficientes para conquistar a suplência na Assembleia Legislativa do Estado”. Ver: SOUSA, Ramsés Eduardo
Pinheiro de Morais e SANTOS. José Maurício Moreira dos. “Velhos camaradas”: contribuição inicial à história
do Partido Comunista Brasileiro no Piauí (1932- 1964). Anais eletrônicos do XII Encontro Nacional de História
Oral. Disponível em: http://www.encontro2014.historiaoral.org.br/site/anaiscomplementares. Acesso em: 20
jul. 2020.
235
Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963, São Paulo, p. 04.
112

do petebista não usar o aparato estatal na repressão aos movimentos sociais, como ocorria,
de fato, em outros estados da federação. No livro Movimentos sociais e participação política,
do sociólogo Antônio José Medeiros, é possível perceber que existiam no Piauí iniciativas
emergentes em defesa das reformas de base, como a mencionada Frente de Mobilização
Popular. Essa organização publicou, inclusive, um jornal com apenas uma edição, chamado
Frente Popular, já em 1964, às vésperas do golpe. De acordo com Medeiros,

Um aspecto novo na conjuntura estadual da época, foi a organização e


manifestação das forças políticas de esquerda, através da Frente de
Mobilização Popular, a partir de maio de 1963. A Frente torna-se um fórum
de debates sobre as reformas de base e, não sem conflitos internos, lidera
algumas manifestações de pressão ao Congresso, em favor das reformas de
base. Publicou um único número do jornal Frente Popular, já em 31 de
março de 1964. Os deputados estaduais Deusdedit Ribeiro e Themístocles
Sampaio e o vereador Jesualdo Cavalcanti, todos do PTB, além de Ribamar
Lopes do PCB, são suas principais lideranças 236.

No jornal Frente Popular, escrito em março de 1964 pelas lideranças do PTB e


do PCB no Piauí, destaca-se, sobretudo, o amplo apoio desses grupos às reformas de base,
defendidas enquanto plataforma política pelo governo Goulart. Enquanto grande parte da
imprensa piauiense investia seu arsenal bélico-discursivo contra as pautas reformistas e
contra o clima de acirramento, que para estes setores era sinal da progressiva “comunização”
que vigorava no país, por outro lado, as lideranças da FMP no Piauí sentiam a necessidade
de contra-argumentar. Fizeram isso a partir da criação de uma narrativa positiva sobre a
bandeira de luta das reformas de base que viriam – se consolidadas – modificar a estrutura
de distribuição de terras nesse estado, marcado pela ampla presença do latifúndio
improdutivo. No jornal da FMP, constava,

Sabemos que a partir do grande Comício da Guanabara em que o


Presidente João Goulart assinou aqueles históricos decretos, aguçou-se no
país inteiro a campanha de agitação golpista dos inimigos das Reformas.
Diante do gesto de coragem do Presidente da República, e da presença de
centenas de milhares de brasileiros, aplaudindo em praça pública os
grandes líderes populares, a reação entrou em pânico. [...] O Piauí, nesse
momento, é testemunha eloquente desse processo único e irreversível de
unidade e de luta, que estremece o Brasil de norte a sul. A nossa presença,
é bem a prova de que também vivemos a intensidade destas lutas decisivas
para o destino da Pátria. Pois daqui, donde o latifúndio erguera a sua praça
forte, lançamos corajosamente nossa palavra de ordem, que é de absoluto
apoio ao Presidente João Goulart e às Reformas por ele iniciadas. 237

236
MEDEIROS, Antônio José. op. cit. 1996, p. 83.
237
Nossa posição. Jornal Frente Popular, Teresina-PI, p. 08,1964.
113

Nesse mesmo quadro de enfrentamentos, é possível também, por meio da


imprensa ligada ao Partido Comunista, como o jornal Terra Livre, perceber que existiram
movimentos de organização de trabalhadores rurais ganhando forma nos povoados ao redor
de Parnaíba, por conta do quadro de penúria e exclusão, além da profunda violência a que
estes estavam submetidos. Em abril de 1963, os trabalhadores na zona rural de Parnaíba, na
comunidade de Ilha Grande de Santa Izabel, região do Delta do Parnaíba, por meio da
Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba, clamavam por justiça
em meio à expulsão de muitos deles dos seus locais de trabalho, pelos mesmos grupos
conservadores ligados à UDN local, como algumas famílias tradicionais, tais como os Silva,
Furtado e Freitas.

Parnaíba, Piauí (Do Correspondente) - Compreendendo que a luta contra a


perseguição dos latifundiários Silva, Furtado e Freitas, não pode ser feita
sem unidade e organização, os trabalhadores da terra da Ilha Grande de
Santa Izabel, se organizaram na “Associação Profissional dos Camponeses
e Lavradores de Parnaíba”. A fundação da entidade deve-se ao trabalho do
líder camponês Veridiano Mendes da Silva; tem sede no Labino e conta já
com mais de 500 sócios; funcionando debaixo de um velho cajueiro. Escola
para 50 alunos, sementes, medicamentos e ferramentas de várias
qualidades, são as primeiras conquistas da associação, que somadas à
pressão da unidade dos lavradores contra ação de despejos e dos
latifundiários grileiros, animam os lavradores da região a continuarem, na
firma luta iniciada contra fome, miséria, exploração, crimes e injustiças 238

De acordo com o texto retirado do jornal Terra Livre, a família do ex-prefeito de


Parnaíba, Alberto Silva, detentora de grandes lotes de terra na Ilha Grande de Santa Isabel,
de modo arbitrário, provocava a expulsão de inúmeras famílias de trabalhadores rurais da
região. Estes formaram, então, a Associação Profissional dos Camponeses e Lavradores de
Parnaíba em 1961, a fim de lutarem para ver atendidas suas queixas em torno do acesso a
uma terra onde pudessem produzir para sua própria subsistência. É notório perceber, naquele
momento de ampliação dos movimentos sociais, de organização dos trabalhadores na cidade
e no campo, alguns dos termos de que lançavam mão, com o fim de compreender a circulação
de ideias questionadoras por meio dos jornais como o já mencionado Terra Livre e o jornal
Voz Operária.
O termo “reforma agrária radical”, empregado pelos trabalhadores rurais norte-
piauienses, por certo era inspirado nos termos colocados em evidência pela FMP e pelos
demais grupos de esquerda que defendiam um tipo de reforma agrária para além daquela

238
Lutam organizados os camponeses do Piauí. Terra Livre, ano 14, n. 112. São Paulo, p. 03, abr. 1963.
114

pensada em comum acordo com os grupos pessedistas, por meios tradicionais, como por
negociação junto ao Congresso Nacional. Alguns desses textos também são prenhes de
sentido sobre a situação adversa de sobrevivência e dos modos de existir a que os
trabalhadores do campo eram submetidos nos arredores de Parnaíba.

TERRAS DA UNIÃO GRILADAS. Antes da invasão dos latifundiários


Silva, Furtado e Freitas, a Ilha Grande de Santa Izabel, entre outras, de
propriedade da União tinha uma boa produção de cereais e era como um
celeiro que abastecia Parnaíba. Os grileiros transformaram a terra em
pastagens, ocasionando a falta dos principais alimentos na região e
impondo condições absurdas aos trabalhadores e agregados, seus
moradores há muitos anos. Por ordem dos Silva, o advogado João Silva
levou a efeito a matança de porcos de todos os moradores da ilha e agora
se o lavrador quiser ter um animal, têm que mantê-lo num pequeno cercado,
caso contrário os grileiros mandam matá-los. [...] Como os camponeses são
maioria e os exploradores a pequena minoria, os homens que labutam na
terra entenderam que um dos remédios para acabar com a exploração
destes poucos é a luta organizada, e criaram uma associação e estão
dispostos a lutar por uma reforma agrária radical que dê terra aos que nela
trabalham.239

O processo de organização dos trabalhadores rurais é marca evidente dos anos


1950 e 1960 no Brasil, sobretudo na região Nordeste, profundamente marcada pelo
predomínio da grande propriedade e pelas relações de trabalho precárias e informais, bem
como pelo uso da violência. Por meio da circulação de publicações como os jornais
supracitados, é possível deduzir que parte desses trabalhadores começaram a compreender
que sua condição de vida, suas relações de trabalho marcadas pela desigualdade, pela
iminente expulsão da terra cultivada por eles e por humilhações constantes faziam parte de
um universo de experiências muito maior do que aquilo que viviam cotidianamente.
Por meio das leituras compartilhadas coletivamente por esses homens e mulheres
do campo, no povoado de Ilha Grande, sob a sombra de um pé de cajueiro, eles se reuniam
para organizar seus movimentos de reivindicação. Ali buscavam ver atendidas suas pautas
de melhorias nas condições de trabalho e ao mesmo tempo se conectavam às bandeiras de
luta pela reforma agrária, pela modificação nas relações entre proprietários e camponeses,
bem como visualizavam uma possibilidade de, por meio dessas organizações, se fazerem
ouvir pelos proprietários e, quem sabe, por meio do poder público, serem atendidos com a
formalização das relações de trabalho, dentre outros direitos historicamente negados.

239
Lutam organizados os camponeses do Piauí. Terra Livre, ano 14, n. 112, São Paulo, p. 03, abr. 1963.
115

Figura 03- Conselho fiscal e Diretoria da Associação Profissional dos Camponeses de Lavradores de
Parnaíba

Fonte: Jornal Terra Livre, São Paulo, abr. 1963.

No espaço norte-piauiense, desde a década de 1950, denúncias sobre as precárias


condições de existência, como as referentes à moradia da população e formas de trabalho,
começam a ganhar forma, tanto no espaço da cidade como no meio rural. Em algumas
edições dos jornais Terra Livre e Voz Operária, é possível identificar as queixas dos
trabalhadores quanto a perseguições dos grupos detentores de terra – esses também ligados
à família do ex-prefeito Alberto Silva – bem como a expulsão de camponeses de seus locais
de trabalho. Além disso, se percebem outras práticas arbitrárias ocorridas por meio de uso
da força, sobretudo nos arredores da cidade, onde, por exemplo, na Ilha Grande de Santa
Izabel, os lavradores se encontravam em condição de penúria, explorados por grupos
familiares locais. Tanto os trabalhadores urbanos, por meio de matérias na imprensa, quanto
os camponeses buscavam soluções para os seus impasses e deixaram impressas algumas de
suas pautas em poucas edições jornalísticas, como a que segue.

As palavras que este camponês dirigiu à redação daquele periódico foram


atravessadas por um forte sentimento de revolta por ter sido expulso por
latifundiários da terra onde morava. Vicente Mendes da Silva também
relatou que a partir de então, a vida de ‘fartura’ deu lugar a ‘toda espécie
de injustiças e explorações’, onde até mesmo o direito de criação era
116

negado aos camponeses, pois os latifundiários mandavam ‘matar a bala os


seus porcos’240.

Como se pode perceber, em textos escritos pelos próprios trabalhadores do


campo norte-piauiense, os desmandos observados por grupos tradicionais ocasionavam uma
condição de extrema pobreza material para estes, além de impossibilitarem o acesso à
legislação trabalhista, o que os deixavam dependentes dos grandes proprietários de terra. Um
outro relato dá conta da constante expulsão de trabalhadores rurais de seu local de trabalho.
Estes, por falta de mecanismos de defesa de seus interesses, como sindicatos e/ou
associações de trabalhadores, que vão emergir lentamente ao final dessa década, estariam
ainda em condições de maior dependência com relação aos grandes proprietários, pois
muitas vezes, impossibilitados da simples permanência na terra onde trabalhavam, sofriam
as agruras de sua condição de trabalho nesses povoados.

Trabalhava no cocal (Piauí) o camponês Antônio José da Silva. Sofrendo o


desgosto de ver suas plantações invadidas pelos bois do dono da terra. O
camponês mudou-se para Parnaíba, e se dirigiu ao latifundiário Raimundo
Carvalho para arranjar terra aonde trabalhasse na lagoa Dantas. O tatuíra
entregou a terra ao camponês e lhe disse que nem cobraria renda. Antônio
José plantou e beneficiou uma roça de três linha onde começaram a crescer
os pés de milho, feijão e mandioca. Assim o camponês esperava uma boa
colheita. No mês de março passado, José Antônio viu que o latifundiário
era um ladrão como outro qualquer. Com efeito o tatuíra expulsou o
camponês, recusou-se a comprar a sua produção apoderando-se da
mesma241.

A partir dos anos 1950, como se pode observar, houve tentativa de mobilização
dos trabalhadores rurais, no sentido de questionarem as relações de poder nas terras onde
trabalhavam. Um outro texto indica que os camponeses Veridiano Mendes da Silva,
Mansuete Mendes da Silva, Geraldo Fortunato de Araújo e Roberto Ferreira da Costa, entre
outros, foram despejados das terras que trabalhavam durante muitos anos, “em benefício de
exploradores sem entranhas, enquanto as autoridades fingem desconhecer os acontecimentos
porque também tem a sua parte na negociata”. Dentro dessa linha de atuação, os
trabalhadores do campo começaram a colocar em pauta, nos jornais, a sua condição de
penúria e exploração, bem como a impossibilidade de conseguirem minimamente plantar
seus produtos, pois ocorria, com certa frequência, serem expulsos, sem ao menos receber
qualquer forma de indenização ou compensação trabalhista; e, pelo que indicavam os

240
Roubados os rendeiros do Cipoal. Jornal Voz operária, Rio de Janeiro, p. 09, Ed. 24 maio 1952. Disponível
em:http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em: 09 set. 2018.
241
Camponês expulso da terra. Jornal Voz Operária. Rio de Janeiro, Ed. 31, p. 09, maio 1952. Disponível em:
http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em: 09 set. 2018.
117

trabalhadores, esses proprietários continuavam ameaçando de despejo outros moradores do


seu local de trabalho. Sintomática, no texto, é a percepção que estes trabalhadores passaram
a ter de sua condição e de como buscar solucionar seus impasses que, segundo eles, só teriam
algum resultado prático com a organização e a união de todos os trabalhadores rurais nos
sindicatos e associações.
Uma carta publicada pelo jornal Terra Livre, na seção Cartas da Roça, escrita
pelo líder dos trabalhadores rurais de Ilha Grande, Vicente Mendes da Silva, exemplifica
bem as condições materiais em que viviam esses homens do campo. O texto tem um título
bastante sugestivo, “existem homens que dormem, mas estão pra acordar” e busca chamar
atenção para a necessidade de organização da luta contra a exploração econômica pelos
proprietários.

Ilha Grande de Santa Isabel (Parnaíba-PI). Lendo TERRA LIVRE vi que a


vida difícil, os horrores de tantas misérias são gerais em todo o Brasil, pois
nós, trabalhadores da roça, sofremos toda espécie de injustiças e
explorações. O delta do Rio Parnaíba forma um aglomerado de ilhas, onde
antes os seus trabalhadores trabalhavam e viviam mais ou menos. Tudo
plantávamos, criávamos e tínhamos fartura: cana, arroz, milho, feijão, e
frutas de diversas espécies. Hoje nada mais existe. Vivemos numa negra
miséria, pois os latifundiários se apossaram das ditas ilhas, transformando-
as em pastagens para seus rebanhos de gados. Os latifundiários expulsaram
os lavradores com despejo arbitrários, sem pagar nenhuma indenização, e
continuam ameaçando de despejo outros moradores, que nem podem mais
ter qualquer criação, pois os desumanos mandam matar a bala os seus
porcos. Diante desta situação, eu mesmo tive de ir trabalhar na mata, num
lugar que nem água tem, sendo preciso cavar poços de 100 palmos de
fundura para tirar água, que é ‘saloba’. Há quatro anos que as chuvas tem
sido poucas, pouca é a lavoura e a água vai acabando. Para se ver o tanto
de miséria que há por aqui, vejamos o que eu assisti um dia quando ia
trabalhar. No caminho, encontrei seis criancinhas de 3 a 8 anos, levando
meio litro de feijão para cosinhar na casa da avó, pois sua mãe tinha ido na
cidade vender cajus e o pai estava viajando. Estas crianças só iriam comer
a tarde, quando a mãe voltasse com a farinha de mandioca que comprasse
com o dinheiro da venda dos cajus. Diante desta situação em que estamos
só mesmo com a organização e a união de todos os trabalhadores rurais nos
sindicatos e associações, para lutarem por suas reivindicações, poderemos
ter uma vida melhor. Como disse um lavrador da fazenda Jacutinga em
Terra Livre ‘Ainda há homens que dormem, mas estão para acordar’. Eu
digo: Os trabalhadores de Parnaíba no Piauí já estão acordando; eu
mesmo estou acordando, e acordaremos todos e marcharemos na luta pelo
nosso bem-estar, por pão, terra e liberdade242. (grifo meu)

Como se pode observar no texto acima, retirado do jornal Terra Livre, por meio
da narrativa do camponês residente na Ilha Grande de Santa Isabel, povoado ligado à cidade

242
SILVA, Vicente de Mendes da. Ainda há homens que dormem, mas estão para acordar. Terra Livre, São
Paulo, p. 02, dez. 1954. Seção Cartas da roça.
118

de Parnaíba, os trabalhadores rurais constituíam, aos poucos, um processo de associação


coletiva para lutarem contra a miséria e a exploração a que os grandes proprietários os
submetiam constantemente. A partir do acesso a esse tipo de fonte é possível vislumbrar a
condição econômica desfavorável que levava grande parte dos trabalhadores a buscarem
associações, bem como outras formas de representação, que pudessem trazer ao menos
soluções a curto prazo para eles. Essas formas de organização dos trabalhadores rurais
encontravam-se em processo de ampliação desde os anos 1950, sobretudo em povoados ao
redor da cidade, como no vizinho, conhecido por “Morros”. Nesse local, o movimento
camponês ainda conheceu um expressivo crescimento durante o ano de 1963, pois os
camponeses parnaibanos do local conhecido como Morros da Mariana criaram a
“Associação dos Agricultores Profissionais de Parnaíba” elegendo como seu primeiro
presidente o camponês Silvestre Feitosa da Silva243.
A narrativa do trabalhador, divulgada no jornal Terra Livre, é importante no
sentido de dar evidência aos modos de organização em associações e sindicatos rurais e às
razões que levaram os mesmos a tal processo. A impossibilidade de verem atendidas as
mínimas condições de trabalho e moradia, de alimentação decente para os filhos, além de
sofrerem uma série de perseguições por parte dos seus empregadores, fez com que esses
trabalhadores rurais buscassem outros meios de luta. Essas formas de organização coletiva,
que emergiram no quadro dos anos 1950 e 1960 no Brasil, foram lidas pelos proprietários e
grupos tradicionais, em vários lugares, como uma ameaça à posse da terra pelos
trabalhadores e como uma tentativa de minar a tradição de poder de mando exercido no
mundo rural, marcado fortemente pela violência física e simbólica e pelo predomínio de
relações de dependência e coerção social.
Em edição do jornal paulistano Terra Livre, de janeiro de 1963, é possível
encontrar um texto de agradecimento dos trabalhadores rurais, que se autonomeavam
“homens de mãos calosas”, em alusão ao trabalho manual na agricultura, para a edição desse
periódico paulista, em nome do diretor do jornal, o Sr. Sosthenes Jambo. No texto, fica
evidente, para mim, que a circulação de ideias sobre a reforma agrária, sobre as Ligas
Camponesas e sobre os direitos do homem do campo, por meio de publicações como o
referido jornal, foram fundamentais para despertar a consciência coletiva dos trabalhadores
rurais na cidade de Parnaíba. Não que esses fossem passivos diante dos ditames da ordem
vigente antes de tomarem contato com esses textos, ou que não sentissem o peso de viver

243
SOUZA, Ramsés, op. cit. 2015, p. 298.
119

em uma ordem profundamente desfavorável ao trabalhador. Mas após o acesso àquelas


publicações, puderam perceber com clareza que o momento em que viviam era de avanço
dos movimentos sociais que questionavam o latifúndio improdutivo, a concentração
fundiária, bem como buscavam superar as relações desiguais que marcavam o dia a dia dos
homens do campo. Essas informações, certamente, serviram para que, a partir das próprias
indicações dos editores do Terra Livre, alguns dos homens do campo buscassem formas de
organização coletiva em sindicatos rurais e associações de camponeses. O texto indicava
então que:

Trabalhadores rurais do Piauí agradecem ao Terra Livre.


Parnaíba, 18 de janeiro de 1963.
Senhor Diretor Sosthenes Jambo:
Cumprimos com satisfação o grato dever de comunicar ao jornal Terra
Livre, defensor dos homens de mãos calosas, a fundação da Associação
Profissional dos Camponeses e Lavradores de Parnaíba com a posse da
diretoria eleita para dirigir a entidade até o fim de 1964. Os 500 associados,
em assembleia geral agradecem a esse grande jornal TERRA LIVRE, que
tem esclarecido os camponeses de todo o Brasil para a luta organizada pela
reforma agrária radical e é graças a êle que pudemos fundar nossa
Associação para a luta pela libertação dos que labutam na terra. A
diretoria ficou assim constituída: Presidente – Roberto Ferreira da Costa;
Secretário Carlos Ferreira de Freitas; 2º tesoureiro Emiliano Viana do
Nascimento. CONSELHO FISCAL: Maria Raimunda Marques, Veridiano
Mendes da Silva, Porfírio José de Oliveira. SUPLENTES DO
CONSELHO FISCAL: José Arimatea da Costa, Francisco Ferreira da
Costa, Alice rodrigues da silva. Sendo somente isso, Sr. Diretor, fica aqui
mais uma vez os nossos agradecimentos dos homens
de mãos calosas de Parnaíba.244 (grifo meu)

Em um primeiro plano, o texto acima indica que, se houve uma maior tomada
de consciência coletiva, uma maior iniciativa por parte de alguns trabalhadores do campo,
nos povoados vizinhos à cidade de Parnaíba, isso deve-se muito à circulação de jornais como
o Terra Livre. Estes fizeram com que os trabalhadores, a partir de sua realidade de opressão
e exclusão de direitos básicos e condições dignas de trabalho e renda, repensassem o
ambiente em que estavam inseridos e percebessem, por meio dos textos lidos coletivamente
nas associações, que a prática de organização de espaços de luta e resistência contra os
desmandos e o autoritarismo dos proprietários de terra, se faziam em inúmeros outros
espaços do Brasil naquele momento.
Esses trabalhadores tomaram para si a bandeira das reformas de base, em
particular, de uma “reforma agrária radical”, termo amplamente utilizado por eles para, a

244
Jornal Terra Livre, São Paulo - SP, p. 05, mar. 1963.
120

partir de então, se identificarem enquanto classe ou grupo marcado por uma perspectiva de
construção de um futuro em comum, ao qual pudessem se conectar e fazerem suas
mobilizações políticas. Não à toa, quando das batidas policiais nos sindicatos e associações
de trabalhadores em Parnaíba, após o golpe, um dos itens que ganhou mais evidência nos
processos acusatórios foram os jornais que circulavam entre os trabalhadores, pois eram
tidos como provas da “infiltração comunista” nesses espaços.
As pautas e bandeiras de luta do nacional-reformismo, faziam parte de um amplo
repertório político que ganhou corpo, sobretudo, nos anos 1950 e se aprofundou no governo
João Goulart, no início dos anos 1960 245 . Essas pautas foram absorvidas pelos grupos
petebistas piauienses como uma forma de ampliar seu capital simbólico frente aos
movimentos sociais, em amplo processo de fortalecimento político, bem como para buscar
marcar território frente a outros grupos políticos mais conservadores. Ambiguamente, como
mencionado em alguns pontos deste trabalho, o PTB local, em alguns momentos, fez
alianças políticas com grupos tradicionais do PSD e UDN, para conseguirem galgar boas
votações em pleitos eleitorais e, sobretudo, pelo fato de que determinadas alianças
conjunturais e momentâneas, como aquelas em que ocasionalmente esteve o PTB, poderiam
garantir boa base eleitoral, definindo o resultado das eleições em disputa.
Nesse mesmo quadro de mobilizações em torno das pautas reformistas, enfatizo
os usos simbólicos de datas comemorativas como meio de fortalecimento dos movimentos
sociais e uma forma de ganhar visibilidade na imprensa. Com alusão às comemorações ao
dia do trabalho, em 1963, em Teresina, há, em matéria do jornal Terra Livre, um texto
bastante elucidativo sobre essa questão, com o título “Passeata operário-camponesa causou
sensação em Teresina”.

245
É importante mencionar, também, que o presidente João Goulart, em março de 1963, sancionou a Lei
4.214/1963, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), que estende para os assalariados do campo os direitos dos
trabalhadores urbanos: sindicalização, salário-mínimo, férias, repouso semanal remunerado, aviso prévio e
indenização. O estatuto também previa medidas de proteção especial à mulher e ao menor. É a primeira lei da
história brasileira a intervir efetivamente nas relações de trabalho no campo. O projeto fora apresentado ao
Congresso em 1956 pelo deputado gaúcho Fernando Ferrari, do Movimento Trabalhista Renovador (MTR),
mas só no governo de João Goulart tivera o apoio e as condições necessárias para sair do papel: um presidente
que o apoiava; um ministro do Trabalho (Almino Afonso) que trabalhou para viabilizá-lo; e movimentos sociais
no campo cada vez mais articulados, politizados e com capacidade de mobilização. Essas condições superaram
a oposição interna do Congresso, especialmente do PSD — partido com profunda ligação com os grandes
proprietários rurais — e da UDN, legenda urbana, mas conservadora. À criação do ETR logo se seguiria um
grande movimento de expulsão dos camponeses. Muitos proprietários rurais demitiriam em massa os
trabalhadores permanentes e passariam a contratar os “volantes”, empregados temporários sem direito aos
benefícios da lei. Ver: Trabalhador rural obtém seu estatuto. Memorial da Democracia. Disponível em:
http://memorialdademocracia.com.br/card/campones-ganha-protecao-de-
estatuto#:~:text=O%20presidente%20Jo%C3%A3o%20Goulart%20sanciona,remunerado%2C%20aviso%20
pr%C3%A9vio%20e%20indeniza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 17 jun. 2020.
121

Teresina, Piauí (De Ribamar Lopes, correspondente) Centenas de


camponeses participaram da passeata promovida pelos sindicatos operários
que percorreu as ruas desta capital no dia 1º de maio. Junto aos
trabalhadores da cidade, num ambiente de intensa vibração, os
trabalhadores do campo portavam inúmeras faixas com dizeres alusivos à
reforma agrária e às demais reformas de base, tendo o acontecimento
provocado intensa repercussão em todos os setores sociais em vista de suas
características particulares e das proporções que assumiu. As
comemorações de 1º de maio em questão ‘destacaram a necessidade de
uma reforma agrária radical e de uma nova política econômica financeira
que venha a abrir novos caminhos para os camponeses e o povo
brasileiro’246.

A participação dos pecebistas piauienses nas atividades de organização e


mobilização social, gerou uma série de intrigas e acusações por parte dos grupos tradicionais,
que passaram a temer a ampliação do partido, mesmo na ilegalidade, bem como uma maior
penetração de trabalhadores e lideranças sindicais nos quadros partidários locais. Dentro
desse processo de arregimentação dos trabalhadores urbanos e rurais, por parte do PCB,
houve uma aproximação com os trabalhistas, sobretudo em Parnaíba, cidade onde a presença
do PTB, como uma força atuante nas frentes sindicais, era evidente. Para Marylu Oliveira,
já entre os anos de 1961 e 1962, “alguns trabalhistas, em especial os que possuíam as redes
de apoio político no norte do estado, começaram um processo de aproximação com os
comunistas, que naquele momento estavam arregimentando os trabalhadores rurais”247.
Naquele momento, segundo Oliveira, na sede do Sindicato dos Estivadores,
Tiago José da Silva, que havia sido presidente o deputado do PTB, convocou trabalhadores
rurais da região de Parnaíba para uma palestra que seria realizada por um dos principais
representantes do partido comunista no estado, José Pereira de Sousa, conhecido como José
Ceará, e pelo ex-delegado do trabalho no Piauí, indicado pelo PTB ao cargo, Deusdedith
Mendes Ribeiro248. Esse processo de aproximação entre PTB e PCB, notório em inúmeros
outros eventos e momentos de mobilização social no Piauí, serviu como justificativa
persecutória, no momento em que se abateu a repressão política sobre as lideranças de ambos
os partidos. Conforme indicam Fernando Teixeira da Silva e Antônio Luigi Negro, o
fenômeno da aliança entre trabalhistas, nacionalistas e pecebistas “constituiu-se como base
na sensação de pertencimento, da classe trabalhadora, a um projeto nacional-

246
Passeata operário-camponesa causou sensação em Teresina. Jornal Terra Livre: Ed. XIV, São Paulo, jul.
1963.
247
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2016, p. 294.
248
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2016, p. 294.
122

desenvolvimentista”. Contra isso, segundo os autores “armou-se um golpe de Estado em


abril de 1964”249.
Em fins de 1963, no momento de profunda crise política e acirramento entre
esquerda e direita no Brasil, o próprio presidente quando esteve no Piauí buscou esclarecer
a opinião pública sobre o que representavam as reformas propostas. Falando ao povo
piauiense, João Goulart enfatizou o processo político aberto com as pautas reformistas e suas
finalidades, no sentido de esclarecer como estas iriam, se aprovadas, modificar as estruturas
econômicas brasileiras. No jornal Folha do Litoral se replicou texto falando sobre “a luta
que [vem] empreendendo o Presidente da República”, se referindo às bandeiras levantadas
no governo Jango, como “uma luta cristã, luta patriótica, luta democrática, a favor de nosso
país e dos mais sentidos anseios do povo brasileiro”. O texto destacava que o presidente
afirmou então que, “quando pregamos, Piauí, a necessidade de reformas de estrutura, é
porque estamos convencidos que as reformas é que [abrirão] novas perspectivas de paz da
família brasileira e de progresso e desenvolvimento para o nosso país”250. Em mensagem aos
piauienses, o Presidente João Goulart destacou, então, que:

Quando pregamos as reformas, estamos pregando a paz e a tranquilidade


para todos, porque não nos interessa, Piauí, a paz apenas para as minorias
privilegiadas. A paz que nos interessa é a paz que falta penetrar nos lares
dos trabalhadores brasileiros; é a paz que se obtém dentro da orientação
democrática e cristã do governo; a paz que se obtém pelo atendimento das
justas reivindicações do povo brasileiro 251.

O discurso do Presidente João Goulart, dirigido particularmente ao povo


piauiense, apontava a necessidade de se colocar em prática as reformas de base, as quais o
governo tomou como principais bandeiras de luta e como plataforma política. Enfatizo que
foi justamente naquele momento, no segundo semestre de 1963, que Goulart tomou a decisão
de fechar aliança com as esquerdas e, não casualmente, foi nesse momento que a articulação
de grupos golpistas cresceu; ao mesmo tempo em que tomava mais corpo o discurso
anticomunista na imprensa 252 . Para o presidente João Goulart, era preciso entender as
reformas como condição básica para a concretização de uma sociedade mais justa e

249
NEGRO, Antônio Luigi; SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores, sindicatos e política. In: DELGADO,
L.; FERREIRA, J. (Org.). O Brasil Republicano. v.3, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
250
Mensagem do Pres. João Goulart ao povo piauiense. Jornal Folha do Litoral, ano 3, n. 175. Parnaíba, p. 01,
25 dez. 1963.
251
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
252
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Brasil, 1945-1964: uma democracia representativa em
consolidação. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 251-275, 2018.
123

humanitária, em que os embates de forças antagônicas seriam amenizados, já que se


realizaria um novo tempo de paz e progresso social, pois:

Até mesmo, Piauí, para que possamos construir uma sociedade justa, uma
sociedade cristã, até mesmo para que possamos nos libertar dos
extremismos estranhos aos sentimentos cristãos do povo brasileiro, é
necessário que se abram novos horizontes para o nosso país. Não há de ser
negado ao povo que haveremos de prestigiar a democracia; não há de ser
pela violência e pela pressão que conseguiremos a paz e a tranquilidade tão
almejada pela família brasileira. O que se torna cada vez mais urgente e
mais indispensável é que as perspectivas sejam abertas através de uma
maior participação do povo nas riquezas deste país253.

Sobre as pautas reformistas em Parnaíba, é possível acessar um documento


anexado ao Inquérito Policial Militar de 1964, tratando sobre a necessidade de uma reforma
bancária eficiente que pudesse modificar as condições de financiamento e a política imposta
pelos bancos, no que diz respeito ao apoio ao trabalhador rural. Feito pelo Sindicato dos
Bancários e distribuído em reuniões sindicais em Parnaíba, o texto é ilustrativo de como se
posicionaram alguns dos sindicalistas nessas reuniões. No texto impresso e debatido, consta
que “o projeto de reforma bancária progressista, que os bancários elaboram e que conta com
o apoio de todos os trabalhadores, mesmo dos especializados em bancos, não interessa. O
que prevalece é a opinião dos banqueiros e dos que se beneficiam com os empréstimos
lucrativos dos bancos”254. Dentre as pautas reformistas, como a agrária, a educacional, a
pauta dos bancários foi também colocada em evidência nas discussões dos sindicatos
parnaibanos. Nesse sentido, o documento indicava que “o projeto dos bancários, até agora,
é o único que representa os interesses da economia nacional e do povo”255 e conclama assim
a “todos os trabalhadores e o povo em geral, para a luta por uma reforma bancária
progressista, verdadeiramente de base”256.
O sindicato dos bancários, por meio do documento, indicava que no Brasil
existia, no momento, uma política de investimentos do dinheiro público mal empregada, que
em nada favorecia os interesses populares. Fazendo uma diferença entre os “bons” e os
“maus” negócios, esse documento apontava que se mal investido o dinheiro, como estava
sendo, faltaria para “emprestar para o produtor agrícola produzir alimentos”, bem como

253
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
254
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Por que a reforma bancária interessa ao povo? BRASIL NUNCA
MAIS. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM n. 349, 1964. Disponível em:
http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/. Acesso em: 06 dez. 2019.
255
STM, BNM, n. 349, 1964.
256
STM, BNM, n. 349, 1964.
124

“construir moradias populares, pelo menos para os favelados”257. O boletim, produzido pela
Confederação dos Bancários, distribuído nas reuniões, dentre as lideranças sindicais, por
Raimundo Nonato de Brito, Presidente do Sindicato dos Bancários de Parnaíba, foi utilizado
como prova pelos militares no processo contra o mesmo, que também foi acusado de
distribuir um “boletim concitando os trabalhadores para o comício de 13 de março, na central
do Brasil, no Rio de Janeiro”258.
No boletim em questão, repassado pelas lideranças sindicais parnaibanas aos
trabalhadores, constava que: “[queremos], nesta oportunidade, advertir a todas as classes
trabalhadoras que não se deixem impressionar com a avalanche de críticas e inverdades que
continuarão a surgir com a assinatura do decreto da SUPRA, vindo de todos os lados, contra
a pessoa do Presidente João Goulart, visando derrubá-lo”. O documento prosseguia fazendo
alerta aos trabalhadores que “[deveriam] estar preparados para reagirem imediatamente”
contra as investidas dos grupos conservadores que se oporiam, de todas as formas, às
medidas que buscassem uma melhor condição de vida aos trabalhadores por meio de
reformas estruturais. Grande parte do apoio ao campo reformista se fez em reuniões
sindicais, em que se debatiam as condições econômicas do Brasil no momento e em que se
buscava refletir sobre os impasses e tensões oriundos da resistência às reformas de base.
Naquele mesmo momento de ebulição política, quando o governo federal falava
em desapropriação de terras ao longo das rodovias, em prol do uso social dessas, o sindicato
dos bancários lançou nota em que aplaudiu a desapropriação de um campo de futebol na
cidade de Parnaíba, de propriedade da Casa Inglesa, feita, segundo o documento, pela
Câmara dos Vereadores desse município.

Nas eleições escolhemos nossos representantes no governo, que vão de


vereadores ao supremo Presidente da República. Compete-lhes, portanto
que se traduza nos interesses da coletividade, por isso, os nossos
representantes na Câmara dos Vereadores, inspirados na Constituição
Federal dos Estados Unidos do Brasil, que em seu artigo 144 diz: ‘o direito
da propriedade está condicionado ao bem estar social’, aprovaram a lei de
desapropriação do CAMPO INTERNACIONAL, incorporando-o ao
patrimônio deste município, mandando soltas as vacas de James Frederick
Clarck S/A, (Casa Inglesa) que pastavam na única praça de esportes desta
cidade. O Sindicato dos bancários se solidariza com os Srs. Vereadores e
dirige uma moção de aplausos a este ato de autenticidade e representação
da vontade popular259.

257
STM, BNM, n. 349, 1964.
258
Boletim n. 64/3 19 de março de 1964. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM n. 349,
1964. Disponível em: http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/. Acesso em: 06 dez. 2019.
259
Boletim n. 64/3 19 de março de 1964.
125

Não foi possível averiguar, por meio de outras fontes, a repercussão de tal caso
na cidade de Parnaíba, mas, por certo, esse embate serviu para acirrar os ânimos dos grupos
conservadores sobre as desapropriações e sobre qualquer iniciativa política que buscasse
uma revisão das propriedades. Naquele momento também, no final de 1963, com o clima de
radicalização política ganhando os noticiários do Brasil, a imprensa, em Parnaíba,
acompanhava as possíveis tomadas de posição das lideranças políticas em um eventual golpe
de Estado. No jornal Folha do Litoral, consta “no Piauí, auguramos uma tomada de posição
leal e honesta do Governador, em busca de tranquilidade e bem-estar social dos habitantes
da terra mafrense, promovendo-lhes a esperançosa felicidade”260.
A mesma edição do jornal Folha do Litoral ressalta os temores de uma crise
política que se via arrastar sem uma resolução das partes envolvidas. Naquele momento, os
escritores do jornal parnaibano apontavam a necessidade da população de “união” e
“colaboração”, junto às autoridades locais. O jornal apontava que, na “terra de Simplício
Dias, sob os auspícios do esforçado Prefeito Lauro Correia 261 , conclamamos melhor
compreensão e maior colaboração, entre povo e autoridades, em todos os setores da
comunidade numa verdadeira introspecção e firme deliberação, em busca de nossa desejada
justiça social”262.
Em nota rápida, no mesmo jornal, um breve apelo aos leitores sobre princípios
básicos da democracia representativa que se viam ameaçados, utilizava do credo religioso
do cristianismo no sentido de agregar os populares em torno de alguns ideais a serem
mantidos, indicando que a imprensa brasileira visava “orientar opinião pública,
consolidando os princípios de fraternidade, liberdade, igualdade, sobre o alicerce dos
postulados do cristianismo”263. Como pude observar, desde o final de 1963, na cidade de
Parnaíba, se percebeu, com certo temor, uma possível ameaça à ordem constitucional. A
imprensa amplificava, de certa forma, os anseios de grupos de comerciantes, religiosos e
outros setores da sociedade, quanto à possibilidade de alteração da ordem vigente.
O clima de acirramento e de confronto no início de 1964, só ampliou esses
temores, fazendo com que grupos políticos mais conservadores, por meio de discursos

260
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba-PI, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
261
Lauro de Andrade Correia, do PTB parnaibano, foi sucessor na Prefeitura municipal, de José Alexandre
Caldas Rodrigues. Era ligado ao grupo empresarial Moraes S/A. Foi perseguido por alguns setores militares da
Capitania dos Portos, com sede em Parnaíba, no momento do golpe, mas manteve-se no cargo de Prefeito até
1966. Aderiu ao discurso desenvolvimentista dos militares após o golpe e estabeleceu uma gestão marcada por
um certo culto ao patriotismo e civismo, vindo a construir um Centro Cívico na cidade de Parnaíba.
262
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n .175, p. 01, 25 dez. 1963.
263
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
126

anticomunistas, pregassem uma medida de força contra a “subversão” da ordem legal, que,
segundo eles, era causada pelo governo João Goulart em “aproximação perigosa” com os
comunistas. Por último, nesse capítulo, farei uma breve reflexão sobre algumas dessas
posturas anticomunistas no Piauí, por meio da imprensa escrita, nos anos iniciais da década
de 1960. A intenção é compreender esse mecanismo como um fator, dentre outros, que
buscou legitimar o golpe de 1964 e que também serviu como uma espécie de elo entre os
diferentes grupos de oposição ao governo Jango.

Contra o “comunismo ateu”: discursos anticomunistas no Piauí dos anos 1960

Por fim, neste segundo capítulo, é preciso fazer uma breve análise do processo
de ampliação dos enunciados anticomunistas, por meio da imprensa escrita, no estado do
Piauí; sobretudo por ser marca evidente nesse cenário político de início dos anos 1960. Em
certo sentido, esse foi o argumento privilegiado para unificar setores militares, comerciais,
do campo do judiciário, dentre outros ligados à grande propriedade, para nomear as
atividades de organização dos movimentos sociais e criminalizá-los, utilizando-se das
narrativas em torno da ampliação da “ameaça comunista”. Rodrigo Patto Sá Motta, em
importante estudo sobre a longa tradição anticomunista no Brasil, destaca que, em 1964, a
“ameaça comunista” foi argumento político decisivo para justificar o golpe, bem como para
convencer a sociedade (ao menos parte dela) da necessidade de medidas repressivas contra
a esquerda264. Para o autor, esse aspecto é importante para compreender o sentimento de
reação, forjado em torno da ampliação dos movimentos sindicais e das pautas reformistas,
pelos grupos contrários ao governo Jango.
Nesse sentido, destaco que, segundo Rodrigo Motta “estamos falando de
representações mentais, ou seja, do processo de construção de ideias, signos ou imagens
através do qual os homens interpretam e conferem sentido à realidade”265. Ou seja, é possível
perceber como se construíram, naquele momento, determinadas visões negativas sobre as
esquerdas e suas demandas colocadas em discussão no início dos anos 1960, por meio dos
sinais emitidos por seus opositores. Para isso, nada mais viável do que analisar o papel da
imprensa escrita no cenário político piauiense no momento de crise entre projetos políticos
distintos para o Brasil.

264
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).
São Paulo: Perspectivas/FAPESP, 2002, p. 07.
265
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 11.
127

Esse aspecto foi decisivo no quadro político que levou a uma solução autoritária,
imposta por ampla articulação civil e militar em 1964, quando se percebeu que “setores
expressivos da sociedade se deixaram convencer pelas advertências e campanhas dos
anticomunistas (internos e externos), de que o país corria sério risco de ‘comunização’ sob
o governo de João Goulart; e que a única saída para evitar este cenário era retirar o Presidente
à força do poder”266.
Sublinho que, ambiguamente, nas publicações dos grupos trabalhistas, também
se produziam textos com teor anticomunista, ainda nos anos 1950 e não apenas nas
publicações dos grupos tradicionais mais posicionados à direita. Em certo sentido, para se
demarcar o território dos trabalhistas como sendo aqueles em que os trabalhadores deveriam
se apoiar na luta por seus direitos, desde final dos anos 1950, algumas publicações de apoio
ao PTB lançaram críticas genéricas ao comunismo soviético, bem como à figura de líderes
como Fidel Castro.
Na edição da revista Caravana, veículo de propaganda do governo Chagas
Rodrigues e do PTB, encontrei matéria intitulada: “No Brasil, o comunismo é uma
consequência dos contrastes sociais”. Na longa matéria, assinada por Karam Cury, indica-se
que “o comunismo tem sido considerado como um sistema ideológico de reorganização da
sociedade, em que os bens materiais passam a ser de uso comum, pela supressão da
propriedade privada”267. O autor, nesse ponto, destacava que “a infiltração comunista no
Brasil [vêm] agredindo nossas instituições e os comunistas estão certos de que só
arrombando as portas de nossa construção espiritual e moral conseguirão fazer vingar o seu
propósito”268.
A ideia central do texto era, em um primeiro aspecto, criticar as profundas
desigualdades estruturais do Brasil, percebendo que essas condições materiais é que
favoreciam uma maior penetração dos discursos comunistas no país. Para Cury, nesse quesito,
a “expressão é muito grande e a força principal reside na exploração dos contrastes da vida
brasileira”269. O autor prosseguia apontando que o “contraste entre o privilégio da burguesia
e o estabelecimento das classes” é fator que [tem] ocasionado uma maior presença do
comunismo em terras brasileiras, bem como o “contraste entre as construções suntuosas e

266
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 19.
267
CURY, Karam. No Brasil, o comunismo é uma consequência dos contrastes sociais. Revista Caravana,
ano 22, p. 05, set. 1958. Ed. Especial.
268
Idem.
269
Idem.
128

multiplicação das favelas”270. Por fim, o autor indicava que, “nós, os brasileiros, não devemos
dar tréguas aos comunistas. E só poderemos enfrentá-los com objetividade e eficiência
destruindo os contrastes de nossa vida social”271, pois “[acreditamos] que não há clima para
o comunismo no Brasil. Por muitas razões compreendemos que o comunismo é um grande
mal”272.
Como pude perceber nesse texto, não apenas os grupos mais conservadores de
comerciantes e proprietários abriram críticas superficiais ao que entendiam como
“comunismo”. O texto, presente em uma publicação ligada aos grupos trabalhistas no Piauí,
de certa forma, me coloca uma questão: até que ponto esse tipo de análise e narrativa serviu
também para legitimar um sentimento de reação ao comunismo como algo negativo e que
precisaria ser combatido? Por certo, as narrativas anticomunistas circularam e ganharam
impulso no espaço piauiense, sobretudo durante o governo João Goulart, ligado aos
movimentos sindicais desde os anos 1950 e principal referência do trabalhismo no Brasil.
O forte sentimento anticomunista pode ser percebido também por meio da
imprensa parnaibana de grande circulação, como o jornal Folha do Litoral. Esse jornal,
mesmo possuindo matérias favoráveis aos trabalhistas na cidade de Parnaíba, por outro lado,
de forma conservadora, lançava profundas críticas ao que considerava ser a “influência
soviética” no Brasil. Em meio a alguns textos divulgados, um me chamou bastante atenção,
pois buscava ativar determinados marcadores identitários nacionais, tomados como dados
naturais e determinantes, pois marcariam a “integração” brasileira, no sentido de buscar
negar, com bastante ênfase, uma simples modificação no campo da política comercial
brasileira em tempos de Guerra Fria.
No governo Jânio Quadros, em 1961, quando da busca por uma política externa
independente, portanto não alinhada apenas aos interesses norte-americanos, mas visando
ampliar as relações comerciais do país, parte da classe comercial parnaibana e setores mais
tradicionais perceberam que isso poderia causar uma possível “intervenção comunista” no
Brasil, pelo simples fato do reatamento diplomático com a URSS. O texto é notório de como
o medo de uma possível “infiltração comunista” no Brasil ganhou ares de defesa de certos
valores e padrões tidos como “natos” ao brasileiro. Afinal, nada mais usual para combater
um “inimigo” que vem de fora, com outra visão política e de organização da sociedade, do

270
Idem.
271
Idem.
272
Idem.
129

que lançar mão de certos símbolos nacionais que, para esses grupos, nos “dizem quem
somos”.

A crise, - sempre a crise e talvez por algum tempo ainda – político-


administrativa que vem agitando a nação em todos os seus quadrantes,
toma agora um novo aspecto. Referimo-nos ao recente reatamento de
relações diplomáticas entre o Brasil e o governo da União Soviética, que
indubitavelmente vem favorecer uma maior difusão ideológica no Brasil
pelos simpatizantes moscovitas aqui radicados. Isto, aliás, já ficou patente
quando das recentes declarações do Sr. Luiz Carlos Prestes, na Alemanha
oriental, e no Brasil, do deputado Julião, ‘protetor’ das Ligas
Camponesas273.

Acionando mecanismos de interpretação da realidade brasileira a partir de


dispositivos de uma tradição inventada274, baseados na ideia da integração em torno de nossa
“unidade nacional” e pela coerência entre os diferentes grupos e matizes que formaram a
nacionalidade, o texto buscava reforçar a ideia de que a simples abertura comercial do Brasil
para o mundo soviético pudesse solapar o “nosso” sentimento de pertencimento a uma nação
que – como a brasileira – teria que preservar seus valores tradicionais.

O que nos parece incoerência, falta de dignidade nacional, até, é essa balela
imoral de pretender-se ‘salvar’ a pátria pensando numa reação soprada por
doutrina exótica que nos vem de fora, cuja paternidade sempre esteve a
cargo do Sr. Carlos Prestes e outros, haja vista a sua declaração na semana
passada insinuando a <cubanização> do Brasil. Jacta-se a nacionalidade
em sua dramática e emocionante história de quatro séculos e meio, de tudo
ter feito, inclusive descido ao próprio sacrifício, para preservar a
integridade do solo pátrio e o que é mais, conservar intacta a tradição
religiosa que uniu até hoje as três raças diferentes que deram um só corpo
e um só pensamento cívico a este imenso país 275.

O texto seguia atualizando algumas noções que serviram ao longo do tempo para
criar uma certa identificação para o povo brasileiro, como a de um “caráter emotivo” que
nos marcaria e que em muito lembra as interpretações genéricas de brasilidade, em torno da
nossa “cordialidade” e “plasticidade”, comuns em textos de intérpretes do Brasil como os de
Gilberto Freyre276. O texto buscava ligar aquilo que vem de países comunistas, como a URSS,
como o “outro”, portanto diferente, que precisa ser evitado, impedido de entrar no país.
Interessante destacar como a simples condecoração do líder revolucionário Che Guevara,
pelo então presidente Jânio Quadros, causou grande mal-estar nos grupos mais

273
O Brasil para os brasileiros. Folha do Litoral, ano 2, n. 46, p. 01, 09 dez. 1961.
274
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
275
O Brasil para os brasileiros. Folha do Litoral, ano 2, n. 46, p. 01, 09 dez. 1961.
276
Ver: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. ed. 42. Rio de Janeiro: Record, 2001.
130

conservadores naquele momento277. Também cabe observar que crítica alguma se fazia sobre
a influência externa norte-americana no Brasil. Essa última sim, bastante presente em nossa
formação cultural em todo o século XX. Dentro desse ponto de vista, os autores defendiam
que:

[...] O brasileiro é extremamente emotivo, para sujeitar-se por muito tempo


a um regime dentro do qual não possa externar suas ideias libertárias
inatas. Daí a inutilidade de recorrer, num recurso desbriado, a sistemas
outros que não o que herdou dos seus antepassados. Isso de
confraternização universal debaixo de ferro e fogo disfarçadamente, ou até
mesmo de maneira ostensiva, não pode convencer ninguém do suposto
bom propósito de que vem possuída”278 [...] (grifo meu)

Como se pode perceber, os discursos anticomunistas em muito se utilizaram de


uma dada tradição inventada sobre o brasileiro, no intuito de forjar a ideia de que qualquer
aproximação com um país como a União Soviética, de regime político diferente, poderia
trazer efeitos negativos para o Brasil. Essa retórica que naturalizava uma noção específica
de brasilidade, bem como recorria a argumentos vinculados a uma determinada formação e
uma identidade local, foi bastante empregada para criar um sentimento de pertencimento que
pudesse fortalecer o apoio social à luta dos grupos conservadores.
Rodrigo Motta destaca que frente a esse processo de abertura do comércio com
outros países, no governo Jânio Quadros, “mobilizou-se o anticomunismo contra a nova
política externa, reagindo principalmente aos rumores de que a diplomacia brasileira se
encaminhava para o reatamento de relações com Moscou” 279 . O autor destaca ainda as
condições históricas que fizeram com que naquele momento se viabilizasse uma forte reação
dos grupos anticomunistas no Brasil.

No limiar da década de 1960, as bandeiras esquerdistas começaram a


empolgar novos contingentes sociais, para além de intelectuais e ativistas
sindicais, tradicionais fornecedores de quadros para os grupos radicais.
Militantes católicos leigos e grandes quantidades de líderes estudantis
fortaleceram o campo esquerdista, engrossando os movimentos favoráveis
a transformações sociais. Em larga medida, o crescimento do apelo das
propostas radicais se devia ao impacto da Revolução Cubana, que teve o
efeito de estimular a ação tanto de comunistas como de anticomunistas.
Porém, fatores internos como urbanização, industrialização e expansão da
rede de ensino também foram importantes, e não podem ser esquecidos.280

277
Jânio condecora Guevara. Jornal Folha de São Paulo. 20 ago. 1961.
278
O Brasil para os brasileiros. Folha do Litoral, ano 2, n. 46, p. 01, 09 dez. 1961.
279
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 289.
280
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 288.
131

Com a renúncia de Jânio Quadros e toda a crise política em torno da posse de


João Goulart, o sentimento de reação ao comunismo ganhou mais corpo e se aprofundou
com o clima de radicalização política vivenciado no momento. Como se apontou, no
contexto de ampliação das formas de mobilização dos trabalhadores no Piauí, o tema do
reformismo, sobretudo a reforma agrária, adquiriu grande notoriedade nos debates
empreendidos, principalmente pelos grupos mais conservadores.
De acordo com o trabalho de Marylu Oliveira, naquele momento, as
representações anticomunistas se veiculavam mais enfaticamente em torno da questão da
propriedade privada. Havia então grande receio dos proprietários de terra, com a ascensão e
organização dos sindicatos rurais em alguns espaços do Piauí como Campo Maior, Teresina
e Parnaíba. Nessa última cidade, sobretudo na região da Ilha Grande de Santa Izabel, o receio
era de que as medidas das associações de trabalhadores ganhassem corpo, vindo a ameaçar
o patrimônio e os privilégios das famílias de proprietários locais. Para Oliveira,

As representações anticomunistas que se constituíram em torno da vertente


propriedade privada, estavam em sua grande maioria relacionadas a duas
questões: a reforma agrária e a estatização de bens. Nos jornais locais a
reforma agrária teve maior destaque, segundo a nossa opinião, porque
refletia o contexto histórico pelo qual o país estava atravessando,
mergulhado nos debates das Reformas de Base, mas também pelas
particularidades piauienses, pois este Estado teve como principal
colonizador os grandes latifúndios281.

Ainda em início dos anos 1960, portanto, com o governo do estado dirigido pelo
trabalhista Chagas Rodrigues, alguns partidários da UDN e do PSD local vociferavam, em
seus jornais, sobre a ampliação das Ligas Camponesas no Piauí. Esses grupos tradicionais
culpavam, por meio de forte retórica anticomunista, o próprio governador de apoiar a
“subversão” e o fortalecimento do PCB no estado ao dar guarida em seu governo a medidas
propostas pelos comunistas, que buscavam, segundo eles, criar um clima de agitação e de
tomada de poder no espaço piauiense. Em fim de mandato e pleiteando vaga para o Senado,
Chagas Rodrigues viu recair sobre si a forte pecha de comunista, apoiador das “ligas”, do
“comunismo”; fatores que também foram operacionalizados pelos discursos de acusação das
forças militares, logo após o golpe de 1964. O desembargador Simplício Mendes destacava
naquele momento que:

Agora, já no fim do seu drama governamental, - tudo está fazendo, risonho


e malevolente, para agitar os meios ruralistas e ver correr o sangue
generoso e bom dos caboclos dos sertões piauienses, - fomentando, ele

281
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2008, p. 78.
132

próprio, a título de reforma agrária violenta a rebeldia e a invasão da


propriedade territorial. Pensará, por ventura, o Sr. Chagas Rodrigues que
as suas decantadas ligas camponesas, tipo Chico Julião e comunistas não
encontrarão repulsa armada e não terão reação e derramamento de sangue.
282

Em contrapartida ao crescimento das atividades sindicais e de organizações de


trabalhadores na zona rural, o discurso anticomunista no Piauí se tornou mais evidente.
Sobretudo às vésperas do golpe que se abateu sobre o governo João Goulart em abril de 1964,
o processo de radicalização política no Brasil ganhou destaque na imprensa local, como
reflexo de uma dita “revolução comunista” em curso. Em edição do jornal O Dia, publicada
em 02 de abril de 1964, com texto redigido certamente alguns dias antes da tomada de poder
pelos militares, o desembargador Simplício de Sousa Mendes tratou do “Comunismo e
Revolução” em franco ataque ao que chamava de “ameaça vermelha” que, para ele, crescia
de maneira vertiginosa em todo o Brasil e, consequentemente, também no Piauí.
O desembargador apontava, então, que o “comunismo [ameaça], para propagar-
se e submeter as nações ainda em formação ou em atraso evolutivo, usando todos os
processos enganadores e insidiosos”283. Simplício Mendes, em tom de alerta, indicava que
“a quinta coluna vermelha [está] por toda parte e age subterraneamente e é o olho de Moscou
– vigilante corruptor, coleante, traiçoeiro e sempre ativo”284. Para o desembargador, ligado a
UDN, o processo pelo qual passava, no momento, o Brasil era fruto da intervenção da
“tendenciosa diplomacia e as respectivas sucursais comunistas”, que, segundo indicava,
“[intromete-se] na vida dos outros países, produzindo agitações, perturbando a ordem e
procurando enfraquecer lhes as forças armadas e as condições de defesa”285.
Em texto recente, o historiador Rodrigo Patto Sá Motta indica algumas
precauções a respeito dos estudos que tratem do tema do anticomunismo no Brasil, sobretudo
no contexto que levou a crise política anterior ao golpe de 1964. Para Motta, o
anticomunismo “surgiu como resposta ao desafio real implicado na existência do projeto
comunista”286, ou seja, a presença do comunismo era real. Porém, ao mesmo tempo, “as
representações contra este divulgadas na sociedade contribuíram para ampliar a percepção

282
MENDES, Simplício. A paranoia evolui. Folha da Manhã, Teresina, p. 06, 23 mar. 1962.
283
MENDES, Simplício de Sousa. Comunismo e Revolução, Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 03, 02 mar. 1964.
284
MENDES, op. cit. 1964, p. 03
285
MENDES, op. cit. 1964, p. 03
286
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Comunismo e anticomunismo sob o olhar da polícia política, Locus: revista de
História, Juiz de Fora, v. 30, n.1, p. 17-27, 2018.
133

da presença do ‘perigo’, gerando, por vezes, uma relação desproporcional entre a força
efetiva dos revolucionários e o medo neles inspirado”287.
Fazendo um paralelo com as indicações do historiador supracitado e observando
o quadro político piauiense no início dos anos 1960, é que, de fato, depreende-se que existia
uma quantidade expressiva de pecebistas organizados em torno de sindicatos e que buscavam
se aproximar dos trabalhadores rurais, por meio de associações; bem como objetivavam
também ampliar seu espaço de atuação no Piauí. Mas, ao mesmo tempo, é preciso perceber
que esses ainda não eram uma força política capaz de angariar grandes apoios entre os
trabalhadores locais. Por outro lado, o projeto político do PTB, por meio do grupo liderado
por Chagas Rodrigues e pelo irmão, José Alexandre, em Parnaíba, evidenciava, antes do
golpe, uma ampliação de sua força política, pois se apoiava na estrutura sindical e
empresarial da cidade.
Portanto, é importante destacar que as forças opositoras ao trabalhismo, os
grupos tradicionais de proprietários rurais, de comerciantes, juristas, bem como os próprios
militares, forjaram uma visão superdimensionada do comunismo no espaço político
piauiense. Essa visão acabou por nomear todo o esforço de articulação política mais
conectada às pautas reformistas naquele momento como ameaça de subversão à ordem
pública, o que irei tratar no próximo capítulo. Assim, se os comunistas piauienses não
usufruíam de grande poder político, a narrativa anticomunista serviu no sentido de forjar
uma identidade coesa sobre aquilo que de fato era plural, ou seja, os movimentos sociais no
Piauí, que abrigavam um universo político para além do PCB e PTB.
Destaca-se nesse quadro uma circulação de discursos midiatizados em torno da
propalada “ameaça vermelha”, marcante em tempos de Guerra Fria e a consequente
penetração de entidades governamentais norte-americanas no Brasil, para tentar manter o
alinhamento geopolítico com os Estados Unidos. Esse foi um momento de ampliação de
narrativas em torno da valorização dos ideais “cristãos” da sociedade, bem como da dita
“tradição democrática” brasileira. Também da busca visível por imprimir sobre os
movimentos sociais que se organizavam a pecha de alinhados ao “comunismo internacional”.
Essas foram questões que se fizeram presentes no momento anterior à tomada de poder pelos
militares, com apoio de setores da sociedade civil. Todos esses aspectos foram fundamentais
para se viabilizar um clima de apreensão que buscasse legitimar socialmente uma solução
autoritária.

287
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2010, p. 20.
134

A interpretação que os grupos conservadores tiveram sobre os nacionalistas,


nesse sentido, inseria-se num contexto em que o sentimento anticomunista, estimulado pela
insegurança, transformou-se em um movimento sistematizado, em um momento de
turbulência política e de ampliação de posturas antidemocráticas. Nesse sentido, Michelle
Reis de Macedo observa que, sobretudo a partir de fins de 1963, o discurso anticomunista,
por meio do temor, se aproximou de grupos de centro e da direita moderada, bem como de
setores da classe média e da grande imprensa 288 . Ao passo que o governo Goulart tinha
dificuldades em negociar uma resolução para os problemas políticos e econômicos do Brasil,
pois era criticado e acuado pelos grupos de esquerda, como a FMP, a direita articulava
soluções golpistas; o que fez crescer forte sentimento de oposição a este governo e de
anticomunismo no Brasil.
Cabe observar também que, naquele momento, no Piauí, a presença norte-
americana foi perceptível, não apenas por meio de recursos para órgãos como o IBAD 289,
mas por meio de investimentos oriundos da Aliança para o Progresso. É possível evidenciar
essa presença, pois, ainda sob o governo de transição de Tibério Nunes, vice de Chagas
Rodrigues, antes mesmo do governo do sucessor, Petrônio Portella Nunes290, representantes
da Aliança para o Progresso visitaram o Piauí. De acordo com Antônio José Medeiros, um
primeiro convênio, executado no governo de Petrônio, beneficiou 32 cidades piauienses com
serviços de saúde. O autor indica que, logo após sua eleição, Petrônio, da UDN, foi
convidado a visitar oficialmente os Estados Unidos. Viagem essa que se efetiva em abril de
1963, tendo em vista a tendência às negociações com unidades federadas com órgãos
internacionais 291 . Como se pode vislumbrar, ao tempo em que crescia fortemente o
sentimento anticomunista, influenciado pela verborragia discursiva presente na imprensa
local, o governo Petrônio Portella, que atravessou a ruptura institucional de 1964, buscava
se aproximar politicamente dos Estados Unidos, como uma forma de buscar investimentos
para o estado.

288
MACEDO, Michelle Reis de. Em nome da democracia: direitas, esquerdas e a “guerra de Minas” na
imprensa carioca (fevereiro de 1964). O Rio de janeiro nos jornais: ideologias, culturas políticas e conflitos
sociais (1946-1964), Jorge Ferreira (Org.), Rio de Janeiro, 7 Letras, p. 187, 2011.
289
Instituto Brasileiro de Ação Democrática.
290
Petrônio Portela assumiu o governo piauiense em janeiro de 1963, no mesmo mês em que, referendado pelo
plebiscito do dia 6, que revogou o sistema parlamentarista instaurado em setembro de 1961, João Goulart
recuperou seus plenos poderes na presidência da República. Verbete CPDOC. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/petronio-portela-nunes. Acesso em: 03 out.
2017.
291
MEDEIROS, Antônio José. op. cit. 1996, p. 86.
135

O anticomunismo no Piauí também assumiu, como uma de suas formas, o amplo


uso de discursos religiosos, por parte de grupos de mulheres, como forma de manter a dita
“tradição católica piauiense” contra aquilo que denominaram como “comunismo ateu”.
Exemplo disso, é que em março de 1964, como forma de demonstrar apoio das mulheres
piauienses às direitas, foi publicado texto escrito por Cristina Leite, no jornal O Dia,
nomeado de “oração das mulheres democratas”. No texto, a autora enfatizava que “[nós],
mulheres cristãs e democratas que estamos prestes a sucumbir nos abismos infernais criados
pelo materialismo ateu; nós vos suplicamos: que livreis nossos filhos das trevas da cegueira
infligidas àqueles que vos reconhecem”292.
O texto, então, prosseguia fazendo apelos religiosos para que “Deus livrasse o
Piauí” daquilo que seria marca de regimes autoritários como o de Cuba. Em tom de apelo e
de oração, a escritora pedia a Deus “que [livreis] nossos filhos das torturas e brutalidades
das prisões e fuzilamentos”, bem como da “fome generalizada e sistemática”, além “da
perseguição religiosa e política” 293 , como se essas questões fossem marcas definitivas e
naturais de um determinado sistema político comunista.
De acordo com Janaína Martins Cordeiro, no início da década de 1960, por todo
o país, surgiram entidades cívicas femininas em defesa dos valores cristãos e em aberto
confronto contra o “comunismo”. As mulheres reunidas nesses grupos apresentavam-se
publicamente como mães, esposas e donas de casa e investiam-se de forte retórica
conservadora e anticomunista com o objetivo de “alertar a opinião pública para a pressão
que as famílias brasileiras estavam sofrendo e ao mesmo tempo revigorar princípios e ideais
sempre defendidos no Brasil cristão e democrático” 294. Exemplo dessa forma de atuação
feminina no Brasil, portanto, foi a CAMDE, a Campanha Mulher pela Democracia, que
buscava, por meio de orações e terços rezados publicamente, afastar a influência do “perigo
comunista” do Brasil.
Rodrigo Motta destaca, nesse sentido, que, nos anos imediatamente anteriores
ao golpe de 1964, “uma miríade de entidades anticomunistas se estruturou, compondo um
número difícil de precisar. Elas surgiram às dezenas, na maioria dos casos, experiências
efêmeras e que deixaram poucas marcas”295. Assim, essas organizações anticomunistas, em

292
LEITE, Cristina. Oração das mulheres democratas, Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 05, 24 mar. 1964.
293
Idem.
294
CORDEIRO, Janaína Martins. Do golpe de 1964 ao “milagre brasileiro”: a campanha da mulher pela
democracia (CAMDE). Ação política e imaginário coletivo, Iberoamericana Social: revista-red de estudios
sociales, número especial ,vol. 1, 2016, p. 08.
295
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 293.
136

atividade no período, contribuíram na formação do ambiente de radicalização e polarização


ideológica, preparando o terreno para a reação conservadora de 1964296. Ainda para Motta,
as organizações de mulheres conferiram um apelo especial à mobilização conservadora, pois
fortaleceram a impressão de que a sociedade como um todo estava se levantando contra o
comunismo.
A força simbólica dessa presença feminina era grande, com as mulheres
representando a figura materna, o lar e a dona de casa, em resumo, a família 297. Em suma,
essas questões também foram amplamente operacionalizadas no Piauí, em tempos de
profunda radicalização política, pois os signos da “família”, dos valores da “tradição cristã”
e da “democracia ocidental” foram operacionalizados para confrontar o mencionado
“materialismo comunista e ateu” que, segundo a visão dos grupos conservadores, ameaçava
solapar com a sociedade brasileira.
No entanto, não se deve tomar a Igreja Católica, a qual recorriam esses grupos,
enquanto instituição homogênea nos anos 1960. No mesmo momento de operacionalização
discursiva dos signos cristãos sob um ponto de vista político, em nome dos ideais
conservadores de manutenção das estruturas sociais e econômicas, viu-se emergir, além
desses ideais, outras formas de atuação política por lideranças religiosas. Cabe ressaltar que
algumas delas eram profundamente antenadas com as pautas reformistas que ganhavam
adeptos em setores da sociedade, ou então em defesa de soluções mais abertamente
revolucionárias.
Um caso exemplar de uma postura em defesa de medidas mais radicais é a do
conhecido Padre Alípio. O Padre, que esteve em Parnaíba falando sobre as reformas de base
e todo o quadro político brasileiro dos anos 1960, foi visto, pela mídia parnaibana, como o
jornal Folha do Litoral, enquanto um exemplar de que, por parte de alguns setores de dentro
da Igreja Católica, defendiam-se, então, pautas tidas como “subversivas”.

Padre Alípio, conhecido revolucionário, já preso por ordem do Gal. Costa


e Silva, devido pregação ideológica, falando ao povo piauiense, 2ª feira
última, pela Rádio Pioneira, criticou acerbamente o Dr. João Goulart e o 4º
Exército – diz, o Jornal do Comércio em sua edição de quinta-feira - por
oprimirem os camponeses de Pernambuco, Maranhão, Paraná, S. Paulo,
Goiás, Mato Grosso, etc. Acrescenta, na sua palestra, já estar cansado de
pregar revolução pacífica, mas que não vê possibilidades, porque os
homens que representam as massas não querem acabar com os privilégios
dos latifundiários e capitalistas298.

296
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 294.
297
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 298.
298
Flashes da capital. Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 104, p. 01, 1963.
137

Nesse clima de acirramento político, um dos pontos mais perceptíveis foi a


progressiva radicalização tanto à esquerda quanto à direita do espectro político brasileiro.
De acordo com Jorge Ferreira, em meados de 1962 e 1963, os grupos de direita e de esquerda
radicalizavam ainda mais suas posições. O movimento conspiratório da direita tomou novo
fôlego com as atividades do IBAD e IPES299. Em um campo oposto, além do sindicalismo,
em franca ascendência, também assustou os conservadores o avanço das Ligas
Camponesas300. Nesse clima de confronto, um evento em particular é tomado como marco
da ofensiva das esquerdas em nome da “subversão social”: o comício da Central do Brasil.
No jornal piauiense O Dia, publicado logo após a realização do comício, é ilustrativo o receio
que esse evento causou para os grupos tradicionais no Piauí e para a imprensa local.

Passou a sexta-feira, dia 13, o chamado “Comício das Reformas”, foi


realizado sem perturbação da ordem, com a garantia das forças armadas do
País. O Sr. Presidente da República, que antes havia assinado o decreto de
desapropriações elaborado sob os auspícios da SUPRA, encerrou o
comício preconizando as reformas de base, dentre as quais destacou a
agrária, que só considera possível com a reforma da constituição. Não
desejamos analisar aqui o aspecto político do que foi feito a 13 do corrente,
mas queremos salientar as consequências práticas que poderão advir da
pregação subversiva de alguns oradores, inclusive o Deputado Leonel
Brizola, e da repercussão que terá a assinatura do decreto. Entendemos que
cabe a imprensa papel preponderante de esclarecimento em torno do
assunto, porque, sem esse esclarecimento, muita coisa imprevisível poderá
acontecer. A esta hora certos agregados estão absolutamente convictos de
que podem, agora mais do que nunca, lançar mão da propriedade alheia,
ficando com a parte que escolher e convier. Não será assim, evidentemente,
mas o caboclo pensa que é, e há por aí afora muito espírito mau, capaz de
aconselhar o rumo errado, para que a confusão se torne generalizada 301.

Em um primeiro aspecto, o texto ressalta a ideia de que a imprensa é que seria a


“porta-voz”, portanto, era autorizada a esclarecer os limites e as implicações políticas das
medidas decretadas no comício da Central do Brasil, pelo governo Jango. Outro aspecto que
se ressalta no texto é o temor que parte dos proprietários rurais sentia com o anúncio de tais
medidas e os reflexos que poderiam trazer para as suas posições de domínio, pois, ao que
tudo indica, esse grupo de proprietários rurais percebiam que poderia ser aberta uma
temporada de questionamentos da ordem vigente, o que causaria conflitos violentos pela
posse da terra.

299
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais.
300
FERREIRA, Jorge. Op. cit. 2014. p. 353.
301
Papel da imprensa. Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 08, 15 mar. 1964.
138

Buscando se colocar à frente dos acontecimentos políticos, o jornal O Dia


destacava que, dali em diante, deveria ser evitado que os trabalhadores buscassem formas de
apropriação das posses fundiárias no estado. O texto ainda destacava a oratória inflamada do
deputado Leonel Brizola que, por meio de seus discursos, como o da Central do Brasil, se
mostrava como um elemento político capaz de desencadear uma forte onda de
enfrentamentos sociais no Brasil302.
Por meio do jornal O Dia, após a realização do comício da Central do Brasil, no
Rio de Janeiro, o desembargador Simplício Mendes apontou que esse ato seria típico de um
governo que pregava “a revolução e a subversão” do quadro político brasileiro. Para ele, “o
grande comício preparado e levado a efeito por S. Exa., o Presidente da República, foi como
que uma plataforma para o lançamento oficial da ideia, até agora ainda um tanto velada, do
regresso do povo brasileiro ao passado domínio plenamente pessoal e personalista do Estado
Nacional de Vargas”303.
Sob o ponto de vista social, é possível perceber claramente o caráter conservador
desses escritos, por exemplo, quando o desembargador Simplício Mendes se posicionava
contrariamente ao processo de participação das camadas populares na política, característica
do quadro histórico aberto com a queda do Estado Novo em 1945. Como ele indicava, no
mesmo texto sobre o comício da Central, daí teria advindo sobretudo a “agressividade ao
Congresso Nacional, com a exaltação ao sindicalismo, ao analfabetismo eletivo, numa
república em que a representação política [seja] substituída pelos trabalhadores e
camponeses”304.
Para Simplício Mendes, “tanto o que se refere à locação de prédios urbanos,
como o de desapropriação agrária e o concernente à nacionalização das empresas particulares
de refinação de petróleo, [têm] todos, um cunho revolucionário, manifestamente subversivo
da vigente ordem política e social da república”305. O desembargador e jornalista piauiense
enfatizou o caráter de “subversão social” do comício da Central do Brasil, por conta da forte
presença de camadas populares, pois, segundo ele: “no comício governamental havia de tudo

302
Deve-se destacar, por outro lado, que o político gaúcho, então ocupando uma vaga na Câmara dos Deputados,
se tornou um dos principais expoentes do lema “reformas na lei ou na marra”. Para Rodrigo Motta, a pregação
radical de Brizola, levada a cabo em âmbito nacional, deu origem a inúmeras crises. Dentre esses setores mais
à esquerda, Brizola estaria dentre os mais radicais que “não estavam dispostos a aceitar as oscilações de Goulart
e pretendiam tomar iniciativas visando forçar definições mais claras”. Não aceitavam, em determinados
momentos importantes, “pactos com os conservadores e almejavam a adoção de transformações sociais rápidas
e radicais”. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2002, Op. cit. p. 312-313)
303
MENDES, Simplício de Sousa. Decretos-Leis?. Jornal O Dia, Teresina-PI, p.03, 17 mar. 1964.
304
MENDES, Simplício de Sousa. Idem.
305
MENDES, Simplício de Sousa. Op. cit. 1964, p.03.
139

– massa popular transportada oficialmente à custa da Nação, sem faltarem os aproveitadores


comunistas, – ideologia infiltrada e se infiltrando em posições estratégicas da república” 306.
Simplício Mendes, nesse texto emblemático, em oposição ao comício que
causou grande alvoroço nas fileiras das elites políticas no Piauí, encerrava indicando um
clima de divisão social causado pela intenção do governo federal em mexer com a
propriedade privada no país, rompendo com o “caráter democrático” e impondo a bandeira
da “revolução comunista”. Indicava então o desembargador que “nuvens pesadas se
condensam e pressagiam acontecimentos que [poderão conduzir] o país a lutas civis, cujos
efeitos, quaisquer que sejam, só [poderão] ocasionar graves danos morais e materiais ao povo
– à ordem institucional da Nação Brasileira”307.
Por certo, a interpretação decorrente da visão de mundo do desembargador
Simplício Mendes, homem ligado a grupos políticos poderosos no Piauí, foi compartilhada
por amplos setores das classes médias locais, bem como certamente também por populares
que, por meio da tradição católica presente no estado, aguçadas sensivelmente pela
circulação de ideias conservadoras contrárias ao reformismo, temiam qualquer sinal de
penetração do “dito comunismo ateu”.
Nas edições do jornal O Dia, periódico frontalmente oposto às pautas reformistas
e conhecido pela posição reativa às medidas populares do governo Jango, me chamou
atenção a circulação, nos momentos anteriores ao golpe de 1964, de notórios políticos
anticomunistas em terras piauienses buscando angariar apoio contra Jango. Em um período
em que os grupos conservadores procuraram formas de desestabilização do governo Goulart,
percebe-se a publicação de textos sobre a “ameaça” a que estavam suscetíveis os brasileiros
e a necessidade de uma tomada de posição favorável à “democracia” e aos “valores cristãos”.
Exemplo disso é a presença do então deputado federal, João de Medeiros
Calmom308, que, visitando Teresina em 20 de março de 1964, fez palestra no Clube dos
Diários. Na palestra em questão, falando para as classes produtoras do Piauí, o deputado
afirmou que tal encontro marcaria um julgamento, cujo veredicto seria um compromisso

306
MENDES, Simplício de Sousa. Op. cit. 1964, p.03.
307
MENDES, Simplício de Sousa. Op. cit. 1964, p.03.
308
Eleito deputado federal pelo Espírito Santo na legenda do Partido Social Democrático (PSD), em 1962,
quando também se elegeu presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT),
entidade que congregava todas as empresas de radiodifusão e de televisão no Brasil. Em outubro de 1963,
lançou a ideia, logo a seguir concretizada, da Rede da Democracia, cadeia formada por mais de cem emissoras
de todos os estados do Brasil, que passou a transmitir diariamente programas políticos de ataque ao governo
Goulart, acusando-o de pôr em risco o regime democrático. Nesse ano integrou o conselho administrativo da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/joao-de-medeiros-calmon. Acessado em: 02 jan. 2019.
140

reafirmado em nome deste e das classes produtoras locais, pois ambos seriam “fiéis à
tradição de liberdade do Piauí e do Brasil”309.
Segundo o discurso do deputado, publicado integralmente nas páginas do jornal
O Dia, o mesmo se colocava naquele momento já como candidato nas eleições de 1965 e
como um legítimo “defensor da democracia”; alguém que faria, “modesta, mas firme e
resoluta pregação em favor desta pátria massacrada e traída pelos traficantes de um falso
nacionalismo reformista que nada tem de nacionalista e muito menos de reformador” 310. Tais
discursos empreendidos apontam que existia em andamento um processo de incentivo à
tomada de posição contra o governo Goulart também pelas “classes produtoras” locais.
No texto, Calmom indicava ainda que: “o dia de amanhã será um novo dia.
Temos a razão do regozijo, em meio às incertezas e às inquietações, porque vemos agora o
povo levantar-se e reagir. Porque vemos as classes produtoras resolutamente ocupando a sua
posição de combate, através dos firmes pronunciamentos que mobilizam a consciência
nacional”311. Portanto, a simples presença de um notório político engajado na luta contra o
governo Jango pode indicar que, de certa forma, tais iniciativas foram bem recebidas pelos
grupos comerciais no estado do Piauí.
O discurso do deputado foi enfático quanto a necessidade da derrubada do
governo Jango, pois, segundo Calmom, o presidente estaria favorecendo o clima de
instabilidade política e econômica, por meio de greves e ampliação dos movimentos
sindicais, para, a partir disso, implantar, como consequência, uma “ditadura comunista” no
Brasil. Contra isso, João Calmom impunha um grito de “Basta!” aos – segundo ele –
“insensatos manipuladores das crises que estrangulam a economia do país e agita nas ruas a
desordem organizada para a meta do desespero coletivo, ponte de fácil acesso ao caos da
revolução vermelha”312.
Para Rodrigo Motta, a opinião “anticomunista enxergava os acontecimentos
através das lentes da ideologia, que não deixavam margem para dúvida: o surto grevista seria
parte da conspiração revolucionária dos comunistas”. Dentro dessa lógica de interpretação,
“o fato dos militantes do PCB possuírem sólidas posições na direção do movimento sindical
era considerado suficiente para corroborar as teses conspirativas”313.

309
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr.1964.
310
Jornal O Dia, op. cit. 1964.
311
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr. 1964.
312
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr.1964.
313
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 314.
141

O deputado Calmom então, assim como diferentes agentes que se utilizaram das
páginas dos jornais como trincheira política contra o governo Goulart, indicou o exemplo
das donas de casa, que saíram de suas residências com terço em mãos para influenciar a
tomada de atitude contra Jango. Segundo ele, para “também enfrentar com destemor a
insurreição bolchevista com que se pretende solapar a segurança dos alicerces em que
repousa o futuro da família cristã brasileira”314. João Calmom ainda indicava uma espécie de
contrapartida ao programa das reformas de base a ser levantado pelos “democratas”, quando
destaca que “à pregação das sangrentas reformas importadas de Moscou, de Pequim ou de
Havana, responderemos com a pregação das reformas cristãs e democráticas, consentâneas
com a índole e as tradições do nosso povo”315.
O longo texto, publicado integralmente em edição do jornal O Dia, destacando
o discurso do deputado João Calmom para as classes produtoras do Piauí, diz muito sobre as
posições assumidas por determinados setores da sociedade piauiense no momento de maior
tensão do governo Jango. No momento, portanto, de ampliação das pautas reformistas, a
partir de final de 1963, e com o temor de que isso viesse a modificar as estruturas de poder
no Brasil e consequentemente no Piauí. Naquele contexto, segundo trabalho importante
sobre o anticomunismo no Brasil, “das palavras, o deputado e empresário das comunicações
passou à ação”, pois:

No final de outubro Calmon articulou, junto com outros grandes grupos


jornalísticos, a constituição da ‘Rede da Democracia’. Atuando em rede os
grupos Globo, Diários Associados e Jornal do Brasil, controladores de
alguns dos maiores veículos de comunicação do país (jornais, rádio e TV),
encetaram uma poderosa ofensiva de propaganda anticomunista.
Diariamente, a grande imprensa passou a bombardear a população com
matérias que lançavam mão das representações anticomunistas,
intensificando campanha que setores direitistas já vinham desenvolvendo
há algum tempo316.

Nas matérias publicadas pela imprensa local e no cruzamento com trabalhos


produzidos sobre o tema do anticomunismo, no Piauí, a partir de suas “classes produtoras”
e de algumas figuras ligadas à grande propriedade, também se refletiram as tomadas de
posição contra o governo João Goulart e contra as medidas propostas pelas bandeiras
reformistas, como a reforma agrária. Sobre esse aspecto, o anticomunismo e as narrativas
operacionalizadas em torno do temor de mudanças estruturais, serviram de argamassa para

314
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr. 1964.
315
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr.1964.
316
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit.2002, p. 318.
142

consolidar apoio social ao golpe de 1964. Essa sensação de medo manipulada pela ampliação
dos discursos anticomunistas, o clima de radicalização política e a sensação de insegurança,
foram, dentre outros fatores, grande estímulo para que muitas pessoas passassem a aceitar e
a ver com bons olhos intervenções autoritárias, como de fato se processou em 1964.
Por fim, menciono um trecho do livro Travessias, de José Pereira da Silva,
recentemente publicado no jornal O Bembém317, periódico cultural que circula em Parnaíba,
em que ficam evidentes as percepções do autor quando esteve em visita durante as férias na
cidade de Parnaíba, em 1963. O trecho intitula-se, no jornal, Parnaíba às vésperas do golpe
de 1964. De acordo como o texto, “o movimento sindical de Parnaíba, o diretório dos
estudantes e alguns setores progressistas se mobilizaram pela campanha do
presidencialismo” 318 . Como pude retirar do texto, em alguns setores na vida política
parnaibana naquele momento, a mobilização política se fez evidente, sobretudo nos setores
ligados ao sindicalismo, mas também em grupos de estudantes secundaristas que, por terem
se mobilizado em torno das pautas do presidencialismo e posteriormente do reformismo,
tiveram suas atividades reprimidas pela força do golpe em 1964.
O texto ainda confere atenção especial à presença em Parnaíba do padre
português Alípio Freitas, ligado ao Partido Comunista, que “a convite dos sindicalistas
mobilizou toda a cidade”319. O autor, José da Silva, ainda demonstrou preocupação quando
da consumação do golpe em 1964, pois seu nome constava no registro das pessoas que
participaram das conferências ministradas pelo padre Alípio em Parnaíba, o que poderia vir
a lhe causar problemas com as forças repressivas. O texto ainda é importante por levantar
algumas questões pontuais como a recepção, em Parnaíba, dos temas mais candentes da
política nacional daquele contexto, tais como a votação da emenda pelo retorno ao
presidencialismo e o entusiasmo que se sentia, segundo o autor, pelas pautas progressistas
do governo João Goulart nessa cidade.
Segundo José da Silva, “o momento vivenciado em Parnaíba, em 1963, ocorria
em meio a uma grande movimentação política, pois coincidia com a volta ao
presidencialismo no país”320. Seria possível então indicar que o clima de mobilização política
em Parnaíba, percebido pelo autor às vésperas do golpe civil-militar, foi um dos fatores que

317
Jornal cultural, de propriedade do escritor e dramaturgo Benjamim Santos. Circula em Parnaíba e região,
com periodicidade mensal, desde o ano de 2008.
318
SILVA, José Pereira da. Travessias. Editora Thesaurus, Brasília, 2018. Citado em: Parnaíba às vésperas do
golpe de 1964. Jornal O Bembém, Parnaíba-PI, n. 136, p. 07, abr. 2019.
319
SILVA, José Pereira da. Op. cit. 2019, p. 07.
320
SILVA, José Pereira da. Op. cit. 2019, p. 07.
143

ocasionou a abertura de Inquérito Policial Militar nessa cidade? Essas, dentre outras questões,
fazem parte do próximo capítulo.
144

CAPÍTULO III
DESDOBRAMENTOS DO GOLPE EM PARNAÍBA: UMA ANÁLISE DAS
PRÁTICAS REPRESSIVAS INSTAURADAS EM 1964

Em agosto de 2019, em visita a Parnaíba-PI, para a comemoração do aniversário


da cidade e para inaugurar uma escola cívico-militar com seu nome321, o então presidente da
República, Jair Bolsonaro322 – um notório saudosista da ditadura – falando para grupos de
apoiadores na cidade, em tom agressivo e ameaçador, disparou: “vamos acabar com a
corrupção e o comunismo no Brasil!”323. Ora, quem seriam então os ditos “comunistas” e
“corruptos” a quem ele se referia no discurso? A narrativa persecutória e simplificadora, a
meu ver, se conecta a uma arraigada cultura política autoritária, que tem uma longa tradição
no Brasil e se aproxima dos discursos de acusação levantados por grupos civis e militares de
direita, para perseguir opositores e legitimar o golpe em 1964.
Essa narrativa é parte de uma dada sensibilidade conservadora, amparada no
anticomunismo – em parte vinculado ao antipetismo recentemente324 – e na ideia recorrente
de que é preciso criminalizar os grupos políticos progressistas para retirá-los do poder, o
que, em certos aspectos, dadas as diferenças conjunturais, muito se assemelha ao contexto
do golpe que derrubou João Goulart. O golpe civil-militar de 1964 tornou-se, no atual cenário
de crise política e institucional, após a volta das pautas e grupos de direita às ruas325, um tema

321
Trata-se de prédio público, montado nos anos 1920, reformado pelo sistema Fecomércio. O presidente do
sistema Fecomércio, o advogado Valdeci Cavalcante, em claro ato de oportunismo político, propõe homenagear
o presidente Bolsonaro com o nome dessa escola, que teria os moldes cívico-militares propostos pelo governo
federal. Iniciou-se, então, um embate na justiça local para a retirada do nome do presidente. Até o momento,
não houve a instalação do nome de Bolsonaro no prédio. (PITOMBO. João Pedro. Bolsonaro viaja ao Piauí
para inaugurar escola com seu nome e homenagear militar. Folha de São Paulo, 13 ago. 2019. Disponível em:
www.folha.uol.com.br. Acesso em: 18 dez. 2019.)
322
Foi eleito presidente em 2018, surfando na onda do antipetismo, se colocou como um “outsider” da política
brasileira e como opção contra a estrutura partidária vigente. Foi o principal beneficiário do antipetismo e do
clima de antipolítica propagado pela operação Lava Jato e pela grande imprensa brasileira. Fez carreira no
baixo clero da Câmara Federal (28 anos como deputado) amparado no voto dos militares e dos seus familiares,
no Rio de Janeiro. Contrário à Comissão da Verdade. Saudosista da ditadura. Usou de seu espaço na campanha
para propagar alguns negacionismos históricos. Ganhou maior evidência nacional na votação do impeachment
de Dilma Rousseff, quando homenageou, na sessão, o torturador, reconhecido pelo Estado, Cel. Carlos Alberto
Brilhante Ustra.
323
No Piauí, Bolsonaro quebra protocolo e diz que vai acabar o "Co-Co". Jornal Cidade Verde, Teresina, 14
ago. 2019. Disponível em: www.cidadeverde.com. Acesso em: 18 fev. 2019.
324
Para as aproximações entre anticomunismo e antipetismo, ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá Motta.
Anticomunismo antipetismo e o giro direitista no Brasil. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; MOTTA, Rodrigo
Patto Sá; BOISARD, Stéphane (org.) Pensar as direitas na América Latina. São Paulo: Alameda, 2019.
325
Com o fim da ditadura (1964-1985), não se via mais grupos de direita em atuação tão abertamente. Com a
crise aberta recentemente e a materialização das oposições ao PT, muitos grupos se sentiram à vontade para
defender as bandeiras há muito aparentemente silenciadas, como um certo legado dos militares no que diz
respeito ao combate à corrupção e aos grupos de esquerda.
145

bastante evidente, por conta das disputas que denotam as visões de mundo de largas parcelas
da sociedade brasileira e do conservadorismo de determinados agentes de poder.
No ano de 2018, em evento referente aos 30 anos da constituição de 1988, o
ministro do Supremo Tribunal Federal, José Dias Toffoli, declarou que, pessoalmente, se
refere à tomada de poder pelos militares como “movimento de 1964”326. Segundo o então
presidente do Supremo, “esquerda e direita conservadora tiveram a conveniência de não
assumir seus erros”. Como se pode perceber, tal narrativa é uma simplificação e denota um
certo uso político do passado recente. Como destacam Edson Teles e Vladimir Safatle, no
livro O que resta da ditadura, esse regime de força vai, aos poucos, “não sendo mais
chamado pelo seu nome, ou sendo chamado apenas entre aspas, como se nunca houvesse
realmente existido”327.
Outro agente que causou polêmica falando sobre o golpe de 1964 foi o então
presidente Michel Temer. Esse último, por meio de outro golpe (agora jurídico/parlamentar).
Com ampla sustentação da grande imprensa brasileira, chegou à presidência em 2016,
ajudando na retirada do cargo da mandatária de quem era vice328. Segundo ele, em encontro
com empresários e políticos, na sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo
(Fecomércio), em São Paulo, existia no país, em 1964, uma “vontade popular por
centralização”.
Então, ainda de acordo com Temer, os militares seguiram “apenas a vontade
popular”. Em seguida, afirmou que houve um “desejo de centralização”. Segundo essa
interpretação, “a ideia do povo era de que deveria haver uma concentração do poder, como
houve nesse período todo”329. Temer ignorou, então, em sua declaração, questões importantes
sobre o contexto do golpe, também para fazer uso político desse passado. Por exemplo, não
levou em consideração que o governo Jango possuía bons índices de popularidade, bem
como não mencionou que a pauta das reformas de base, principal bandeira do PTB naquele
momento, era avaliada positivamente pela opinião pública brasileira 330.

326
PESSOA, Gabriela Sá. Toffoli diz que hoje prefere chamar golpe militar de 'movimento de 1964, São Paulo,
01 out. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 13 dez. 2019.
327
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org). Apresentação. O que resta da ditadura: a exceção brasileira.
São Paulo, SP: Boitempo, (2010).
328
Ver: MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G. (Org.) Historiadores pela democracia:
o golpe de 2016 e a força do passado. São Paulo. Alameda, 2016. Ver também: JINKINS, Ivana; DORIA, Kim;
CLETO, Murilo (Org.) Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São
Paulo: Boitempo, 2016.
329
‘Não houve golpe em 1964’: Temer volta a dizer que povo quer 'poder central' no Brasil. Disponível em:
br.sputniknews.com/brasil. Acesso em: 10 dez. 2019.
330
Rodrigo Motta estuda as pesquisas de opinião a respeito desse momento histórico, por meio de dados
retirados de pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) no contexto
146

Como parte do processo de crise institucional e política aberta no cenário


recente, visões negacionistas, conservadoras, de celebração ou saudosistas da ditadura, por
parte de grupos de direita, têm buscado dar evidência a outras interpretações daquele
contexto, atuando nas batalhas de memória sobre o período, com fortes apelos e usos
políticos do nosso passado. No contexto em que se ventilam estímulos para comemorações
do golpe, inclusive por membros de dentro do governo federal 331 , no qual parcelas da
sociedade se sentem à vontade para ir às ruas pedir intervenção militar332, ou mesmo para
organizarem manifestações, com apoio presidencial, pedindo o fechamento do STF e do
Congresso Nacional, em clara iniciativa antidemocrática, algumas iniciativas são tomadas
no sentido de combater esse tipo de prática autoritária de saudação à ditadura.
O governador do estado do Piauí, Wellington Dias, do PT, em setembro de 2019,
sancionou uma lei proibindo “comemoração ou exaltação ao golpe militar de 1964 em
repartições públicas do estado”333. A lei em questão cassa também todas as homenagens
concedidas a “torturadores ou pessoas que constem no relatório final da Comissão Nacional
da Verdade”334. O tema do golpe e da ditadura civil-militar se encontra em forte evidência
no atual cenário político, provocando embates e disputas de memória em diferentes estados
brasileiros, bem como alimentando tensões sobre o nosso passado. Em algumas escolas

do golpe de 1964. O historiador destaca que, segundo os dados, Jango era bem visto por segmentos sociais
expressivos e gozava de boa popularidade. O autor destaca ainda algumas ambiguidades a respeito do golpe,
quando indica que “uma proporção elevada de cidadãos deu suporte ao golpe e aos expurgos políticos;
entretanto, o estabelecimento de uma ditadura, sob tutela militar, não atraiu o mesmo entusiasmo”. Ver:
MOTTA, O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Op cit. 2014, p. 04.
331
MAZUI, Guilherme. Bolsonaro determinou que Defesa faça as 'comemorações devidas' do golpe de 64, diz
porta-voz. G1, Brasília, 25 mar. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica. Acesso em: 15 dez. 2019.
Nesse caso, é interessante também mencionar que o presidente do STF, Dias Toffoli, em maio de 2020,
suspendeu decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) que determinou ao Ministério da
Defesa retirar de seu site uma publicação de 31 de março em defesa do golpe militar de 1964. Segundo Toffoli,
a medida do TRF-5 censurava a livre expressão de ministro de Estado. Apontou, então, que: “cuida-se, assim,
de ato inserido na rotina militar e praticado por quem detêm competência para tanto, escolhidos que foram pelo
Chefe do Poder Executivo, para desempenhar as elevadas funções que ora ocupam”, escreveu Toffoli. É
perceptível que o ministro tratou, nesse caso, as comemorações de um golpe de Estado, que instaurou uma
ditadura violenta, responsável por crimes contra os direitos humanos, como uma simples manifestação,
legitimada pela liberdade de expressão, que deve ser assegurada ao ministério da Defesa. Esse posicionamento
denota, a meu ver, a profunda incapacidade de agentes do Estado brasileiro, em especial do judiciário, desde a
abertura política, de lidar com as questões das perpetrações de crimes contra a humanidade, cometidos durante
o período ditatorial no Brasil (1964-1985). Ver: Jornal O Globo, Brasília, 05 maio 2020. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/brasil/toffoli-libera-publicacao-do-ministerio-da-defesa-em-homenagem-ao-golpe-
militar-de-1964-24411312. Acesso em: 14 jun. 2020.
332
RODRIGUES, Renan. Grupos pedem intervenção militar e monarquia durante desfile de Sete de Setembro
no Centro. Globo, Rio de janeiro, 07 set. 2017. Disponível em: www.globo.com/rio. Acesso em: 12 dez. 2019.
333
OLIVEIRA, Junior. Wellington Dias sanciona lei que proíbe comemoração ao golpe de 1964 no Piauí.
Cidade Verde, Teresina-PI, 17 set. 2019. Disponível em: www.cidadesemfoco.com. Acesso em: 13 dez. 2019.
334
Idem.
147

públicas piauienses, nomeadas anteriormente com nomes de militares, o resultado da lei já


se fez evidente335.
É preciso, portanto, compreender que os impasses referentes àquela quadra
histórica não estão, em definitivo, resolvidos. Percebe-se, pois, que o golpe e a ditadura
fazem parte de uma memória que ainda passa por profundos embates, tendo em vista a
própria particularidade crítica do presente. Esse evento é, portanto, marca de um passado em
disputa, uma vez que ainda é um tema aberto a múltiplas divergências. Sobre esse ponto, os
historiadores Ângela de Castro e Jorge Ferreira, em livro sobre o golpe de 1964, nos indicam
que “seus graves desdobramentos estão ainda bem longe de serem inteiramente sanados”.
Para os autores supracitados, o golpe civil-militar de 1964 é um bom exemplo
de um acontecimento que demarca um “passado sensível”, portanto, um passado que “ainda
não passou”. Por isso, exige-se “que o Estado e a sociedade o enfrentem corajosamente, em
nome de um futuro, que não tema o conhecimento desse passado e que em seu nome abra
arquivos e permita o acesso a informações existentes, mas não disponibilizadas ao público
de pesquisadores e cidadãos do país”336.
Em âmbito local, como pude perceber ao longo desta pesquisa, um evento como
o golpe de 1964 é ainda pouco estudado nas atividades de pós-graduação em História no
Piauí 337 . É preciso mencionar que o tema, até então, não havia sido estudado, por
historiadores locais, em nenhum trabalho produzido em programa de Doutorado. Um dos
primeiros textos feitos na academia, por componentes de um grupo marxista, ao buscar dar
evidência ao golpe, acabou, de certa forma, caindo na própria lógica de acusação dos
militares. Ao tomar como natural os discursos de acusação dos IPM’s, os autores entenderam
os indiciados no processo como sendo de fato “comunistas”, portanto, sem a devida
preocupação quanto ao questionamento das narrativas anticomunistas empreendidas por

335
Esse é o caso do “Centro Estadual de Tempo Integral Presidente Castelo Branco, que homenageava um
torturador da Ditadura Militar no Brasil, no município de Piracuruca, teve o nome alterado para CETI Inês
Maria de Sousa Rocha”. Ver: SAMPAIO, Paula. Escola que homenageava torturador ganha nome de ex-
professora do Piauí. Portal OitoMeia, 10 fev. 2020. Disponível em: www.oitomeia.com.br. Acesso em: 10 fev.
2019.
336
FERREIRA; GOMES, op. cit. 2014, p. 19.
337
No Programa de História do Brasil da UFPI, PPHGB, sediado em Teresina, até mesmo pela divisão das
linhas entre “História, Cultura e Arte” e “Trabalho, Cidade e Memória”, há uma predominância de pesquisas
que até se localizam no recorte temporal do período ditatorial no estado, mas com temas como movimentos
juvenis, culturais ou o processo de organização do espaço urbano no Piauí durante o regime. São temas bastante
importantes para a produção historiográfica local. Mas, ainda não houve a produção de alguma dissertação ou
tese especificamente tratando sobre o golpe de 1964 no Piauí, pelo que pude averiguar. Encontrei artigo
bastante pontual referente ao tema do golpe, com discussões importantes sobre o anticomunismo e o golpe de
1964. Trata-se de: OLIVEIRA, Marylu Alves de. Esteja preso, comunista: breves considerações sobre as
práticas anticomunistas no pós-golpe civil-militar de 1964 no Piauí. Revista Crítica Histórica, ano 5, n. 10,
dez. 2014.
148

grupos conservadores piauienses e pelos militares em sua leitura fortemente genérica e


superdimensionada da ideia de comunismo338.
Um trabalho recente de Mestrado em Educação, orientado dentro dessa mesma
perspectiva, também acabou reproduzindo essa visão maniqueísta sobre o golpe 339 .
Interpretando ainda tal evento, centralmente, como embate de uma classe econômica sobre
outra, sem perceber as diferentes gradações da sociedade, a multiplicidade de grupos e suas
ambiguidades, inclusive de civis que apoiaram o golpe e ajudaram a sustentar a ditadura,
bem como as diferentes atuações sociais no momento de sua deflagração340. Em suma, sem
a devida compreensão de que a adesão social a determinada plataforma política não se faz
apenas por uma perspectiva racional, ou de classe, entendida dentro de uma visão restrita.
Mas se faz – também – além das questões materiais, por meio das tradições, da estrutura
religiosa, dos valores, do imaginário, das representações sociais, dentre outros aspectos
igualmente importantes.
De início, um dos desdobramentos do golpe de 1964 para o estado do Piauí foi
o cerceamento das atividades dos movimentos sociais que ganharam força no final dos anos
1950 e início dos anos 1960. Como visto nos capítulos anteriores, se constituía, também
nesse espaço, um processo de organização dos movimentos sociais em torno das reformas
de base que unificou, já nos anos 1960, pelo menos provisoriamente, trabalhistas e
pecebistas, com apoio das organizações dos sindicatos urbanos e organizações rurais. Essas
organizações foram as primeiras a sentir a mão pesada do Estado militarizado, por meio da

338
Trata-se do artigo: FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. Um espectro ronda Parnaíba, “terra livre das
atividades subversivas de comunização do Brasil” (1960-1980), Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez.
2014. Disponível em: http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos. Acesso em 03.11.2018
339
Trata-se de: RICARDO, Elisangela Maria. Entre Indícios e Vestígios dos Tempos da Ditadura Civil Militar
em Parnaíba-PI. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Humanidades da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira-UNILAB. Redenção-CE, 2018.
340
O trecho a seguir, da dissertação, ilustra bem a intepretação a que nos referimos: “Era nítido que a sociedade
estava dividida em classes, entre proletários e burgueses, pobres e ricos, isso implicava uma ideologia
totalmente oposta. Enquanto a classe dirigente tendo os militares a seu favor, lutavam para ampliar sua
aquisição econômica, e continuar no poder. A classe operária estava amparada apenas em sua resistência
subversiva” (RICARDO, op. cit. 2018, p. 37). É preciso, a meu ver, buscar uma análise mais complexa sobre
o golpe de 1964. No Piauí, como em outros estados do país, determinados setores das camadas populares
aderiram ao discurso conservador dos militares e das elites econômicas, principalmente por meio da
operacionalização do medo do “comunismo ateu”, fortemente empregado no meio midiático contra o governo
Jango. Como explicar a ampla adesão social nas chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade?
Eram “burgueses” todos os presentes no evento de apoio às Forças Armadas, quando ocorreu, já após o golpe,
no Piauí? Além do mais, parcela da elite política local também foi perseguida por se vincular ao reformismo e
por posições contrárias ao golpe. Nesse ponto, é exemplar o caso dos irmãos Chagas Rodrigues e José
Alexandre Caldas Rodrigues. Filhos de um grande comerciante parnaibano, com grande poder político e
econômico em Parnaíba. Por conta de suas posturas em defesa das bandeiras das reformas, do trabalhismo e
pela aproximação com sindicatos urbanos e rurais, foram punidos com cassações de mandatos legislativos.
José Alexandre, enquanto deputado estadual, já em 1964, e Chagas Rodrigues, como deputado federal, em
1968.
149

“repressão direta, intervenção legal e judiciária, controle administrativo”, pois a nova ordem
golpista “extinguiu ou passou a controlar rigidamente as entidades sindicais, comunitárias
ou políticas que serviam de canais de participação de diferentes setores sociais na vida
político-social”341, de acordo com Antônio José Medeiros.
Quanto à política repressiva adotada em Parnaíba, logo após o golpe, um
Inquérito Policial Militar foi aberto pelo comandante da Guarnição Federal em Teresina, o
coronel Francisco Mascarenhas Façanha, e pelo capitão de infantaria Gladstone Weyne
Rodrigues, tendo o capitão de infantaria Clidenor de Moura Lima, sido encarregado pelo
IPM. O argumento utilizado, bastante frágil e genérico, era o de que “elementos ligados a
ideologias extremistas [estavam] praticando atos de subversão e agitação contra a ordem
social e política”, nessa cidade342. Mas, quais eram os temores dos militares e grupos civis
quanto à organização da classe trabalhadora local que justificasse tal medida? Percebe-se,
de imediato, que estavam atentos a quaisquer sinais de que pudesse ocorrer o fechamento de
canais de acesso à Estrada de Ferro Central do Piauí343 , ou uma greve geral em órgãos
importantes da cidade, como forma de demonstração de apoio ao governo João Goulart pela
classe trabalhadora norte-piauiense. Bem como temiam a circulação de armas de fogo nos
meios sindicais locais.
Os primeiros momentos após disparado o golpe civil-militar, de acordo com as
fontes de pesquisa, são de esparsas tentativas de apoio ao governo João Goulart no norte
piauiense por parte da classe trabalhadora e, como consequência, de medidas para contê-las,
por parte dos militares. As notícias que chegavam pelo rádio, a cada momento, eram um
tanto quanto desanimadoras para os sindicalizados e entusiastas do governo Jango. Para
parcelas dos trabalhadores e lideranças petebistas, era preciso se mobilizar por meio de atos

341
MEDEIROS, Antônio José. Op. cit. 1996, p. 116
342
Padrós destaca que a DSN associou diretamente o “subversivo”, portador de tensões e “contaminado” por
ideias e influências “estranhas” (externas), ao comunismo, sendo este tratado de forma tão vulgar e imprecisa
que abrangeu toda e qualquer forma de manifestação de descontentamento diante da ordem vigente. Ver:
PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-
americanas. In: Carlos Fico et al. (Orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e
perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
343
A historiadora Lêda Rodrigues destaca que “o transporte ferroviário foi de grande relevância no cenário
social e econômico de Parnaíba, cidade situada a 365 km da capital Teresina e a 18 km de Luís Correia e do
mar. O primeiro trecho ligando Portinho a Cacimbão na região norte do Piauí foi inaugurado em 1916, sendo
outros trechos inaugurados entre os anos de 1920 a 1937, atingindo cidades e povoados como Amarração (atual
Luís Correia), Bom Princípio, Frecheiras, Cocal, Deserto, Piracuruca e Piripiri. Em Parnaíba, o trem de ferro,
durante sessenta anos, de 1922 a 1982, fez parte do cotidiano do povo parnaibano, acompanhou o crescimento
da cidade e marcou profundamente a população, que usufruiu seus serviços aos domingos em direção à praia,
à festa de Bom Jesus dos Navegantes, às férias em Amarração, ao transporte de alimentos de outras localidades
vizinhas, a exemplo de Frecheiras e Cocal”. Ver: VIEIRA, Lêda Rodrigues. Cidade ferroviária: história e
memória da ferrovia piauiense na cidade de Parnaíba, 1916 a 1930. Ver: Anais do XXV SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, Fortaleza, 2009.
150

grevistas em apoio ao regime democrático, pela legalidade, contra o golpe desencadeado


pelos militares com amplo apoio de civis, que tomava forma. Para esses trabalhadores
parnaibanos, também era preciso se manifestar contra as prisões arbitrárias ocorridas e das
quais eles tiveram informação, por boletins de circulação nos meios sindicais, como a de
Raphael Martinelli344, líder nacional dos ferroviários.
Como esboço de uma reação da classe trabalhadora local, organizou-se, na sede
do sindicato dos estivadores, a Assembleia Geral dos Sindicatos em Parnaíba, na tentativa
de organizar uma greve geral que pudesse parar a cidade. Além de uma passeata que seria
realizada no dia 02 de abril, pelas ruas da cidade, como sinal de apoio a Jango e ao programa
das reformas de base. A partir dessas iniciativas de organização dos trabalhadores, em
contrapartida, se iniciaram batidas policiais nos escritórios, sedes de sindicatos laborais em
Parnaíba, bem como se efetuaram prisões arbitrárias dos considerados “subversivos”. No
mesmo momento, os militares saíram em busca de boletins, livros, jornais, revistas ou
qualquer outro material considerado de infiltração ou “propaganda comunista”, para servir
de prova criminal contra as lideranças sindicais. Fizeram ainda buscas, verdadeiras devassas,
como forma de intimidação, no calar da noite, nas residências desses trabalhadores que, em
sua maior parte, residiam nos bairros populares da Corôa e Tucuns.
Esses gestos autoritários, a meu ver, tinham o intento de silenciar e/ou frustrar
qualquer tipo de reação dos trabalhadores que se identificassem com as pautas reformistas
e, ainda, reprimir possíveis atos que evidenciassem oposição ao golpe em andamento. Todo
esse cenário faz parte do clima de repressão, de “caça às bruxas” e, segundo depoimentos de
familiares, de um verdadeiro clima de terror, estabelecido desde as primeiras horas após as
movimentações dos militares da Guarnição Federal do Exército e da Capitania dos Portos, o
que se denominou de “operação limpeza”.
O clima de mobilização política analisado no segundo capítulo desta tese, com a
ampliação em torno da defesa das reformas de base e do governo João Goulart, o medo da
“ameaça vermelha”, da implantação do “comunismo ateu”, que viria a derrubar os pilares da
dita “civilização cristã ocidental”, foram fortemente operacionalizados também no espaço

344
Raphael Martinelli nasceu em 1924 em São Paulo, foi militante político desde os 16 anos. Faleceu em
fevereiro de 2019. Começou a trabalhar aos 12 anos e ingressou na ferrovia SPR em 25 de maio de 1941, onde
ficou até 1964, quando foi cassado por 10 anos pela ditadura militar. Amigo do presidente João Goulart,
militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), ajudou a organizar o PUA (Pacto de Unidade e Ação) e o
CGT (Comando Geral dos Trabalhadores). Foi um dos sindicalistas mais importantes do Brasil até 1964 e, após
o golpe, participou na luta armada da Ação Libertadora Nacional (ALN). Perseguido e torturado pela ditadura,
foi preso político de 1970 a 1973. É um dos fundadores do PT. Ver: COSTA, Soraia Oliveira; DIETRICH, Ana
Maria. Entrevista Raphael Martinelli, Contemporâneos: Revista de Arte e Humanidades, n. 13, nov./mar. 2016.
151

piauiense, como visto, pelo menos desde meados dos anos 1961-1962 e, sobretudo, após a
ofensiva do reformismo radical no final de 1963 e início de 1964345, que também encontrou
certa reprodução no espaço piauiense.
Esses argumentos anticomunistas foram também empreendidos após a
concretização do golpe, como um meio de angariar apoio e legitimação social ao movimento
golpista. Por outro lado, parcela da sociedade piauiense, sobretudo setores da classe
comercial, do judiciário, proprietários de terra, dentre outros, enxergaram, naquele momento
de ampliação da participação política e protagonismo da classe trabalhadora, que se fazia
urgente alguma medida mais enérgica, uma intervenção radical no quadro político que viesse
a favorecer a manutenção das estruturas socioeconômicas locais e inviabilizar o processo
reformista então proposto.
Como forma de deter as manifestações de apoio ao governo João Goulart, após
o golpe, empreenderam-se algumas práticas repressivas346, sobretudo nos sindicatos locais e,
a partir disso, colocadas em andamento as chamadas “operações limpeza” 347 . Essas
atividades foram sendo publicadas na imprensa local por meio de boletins da Guarnição
Federal do Piauí, com sede em Teresina. As prisões dos líderes sindicais foram
caracterizadas nos jornais, em um primeiro momento, como uma forma de “livrar” a

345
Para Daniel Aarão Reis Filho, é possível perceber uma formação política reformista radical no final de 1963
e, sobretudo, no início de 1964. De acordo com o historiador, “principalmente se consideradas as alas mais
radicais do Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, do PCB/ Partido Comunista Brasileiro, da Frente Parlamentar
Nacionalista e da Frente de Mobilização Popular, miniparlamento alternativo constituído pelas forças populares
mais decididas, dentre outros grupos das esquerdas daquele momento”. O reformismo radical estabeleceu,
como se pode perceber, uma estratégia de confronto para a concretização de suas bandeiras, como a reforma
agrária. Para Reis Filho, “nos primeiros meses de 1964, configurava-se uma clara ofensiva política reformista-
revolucionária dos movimentos mais radicalizados. Crescia a descrença na possibilidade de que as reformas
pudessem ser conquistadas nas margens legais”. (Ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as
reconstruções da memória. op. cit., 2004, p. 35-36). Jorge Ferreira, por seu lado, indica que “as estratégias dos
partidos e movimentos de esquerda, como a política de confronto com os conservadores e as mobilizações
pelas “reformas na lei ou na marra”, entre outras escolhas marcadas pelo radicalismo e pela confiança excessiva,
embora sem bases reais, de suas forças, desaparecem, surgindo, na segunda metade dos anos 60, versões que
omitiram as suas atuações políticas no governo Jango e que, no mesmo movimento, as transformaram em
vítimas”. (FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto. op. cit. p. 184.)
346
Rodrigo Motta destaca que, em 1964, as operações de repressão tiveram como protagonistas principais as
forças policiais (civis e militares), mas também algumas unidades das Forças Armadas, que fizeram seu
“batismo de fogo” em atividades a que se dedicariam com afinco nos anos seguintes. Em certos lugares, os
agentes públicos contaram também com o auxílio de militantes de grupos de extrema direita (Comando de
Caça aos Comunistas – CCC, integralistas), alguns dos quais montaram sua própria estrutura de coleta de
informações durante o governo Goulart. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar:
cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 21.)
347
De acordo com Rodrigo Motta, “a expressão ‘operação limpeza’ foi utilizada por agentes do Estado e seus
apoiadores para expressar a determinação de afastar do cenário público os adversários recém-derrotados –
comunistas, socialistas, trabalhistas e nacionalistas de esquerda, entre outros.”. Essa metáfora da limpeza
implicava também punição para os corruptos, mas, inicialmente, o alvo efetivo eram os inimigos políticos. Só
quando estes começaram a escassear, e também quando ficou claro que a ameaça revolucionária fora
superdimensionada, as ações repressivas voltaram-se com mais intensidade contra a “corrupção”. (MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. Op. Cit. 2014, p. 21)
152

sociedade piauiense do perigo da “infiltração comunista”, que ameaçava a tranquilidade e


ordem daquela “progressiva urbe”; e, em segundo momento, como uma necessidade de
retirar elementos “corruptos” de cargos e funções de órgãos públicos importantes dessa
cidade e do estado.
O Inquérito Policial Militar, aberto logo após o golpe de 1964, indiciando
políticos e lideranças sindicais na cidade de Parnaíba, apontava que os grupos golpistas
estavam “certos de que o regime democrático-representativo que ainda hoje [desfrutamos],
graças à admirável demonstração de civismo, de patriotismo e decisão das gloriosas Forças
Armadas do Brasil, seria, dentro em breve, substituído por uma ditadura síndico-
comunista”348. Mas, afinal, quem eram os trabalhadores perseguidos e indiciados? Qual a
finalidade de abertura de um IPM em uma cidade como Parnaíba? Quais os critérios de
acusação utilizados para instaurá-lo? Qual a relação estabelecida entre os grupos
conservadores e os militares no processo de repressão política em 1964?
Após o golpe, a partir da abertura do IPM, em Parnaíba, foram autuados por
crime contra a segurança nacional: o ex-deputado estadual e líder do Sindicato dos
Estivadores de Parnaíba, Tiago José da Silva349; o líder do Sindicato dos Marítimos, Tomás
da Silva Lima 350 ; o líder ferroviário, Antônio Farias Ferreira 351 ; o líder sindicalista dos
foguistas, Manoel Pereira Neto352; os vereadores municipais, pelo PTB, João Roberto de

348
Autuação. Processo crime contra o estado e ordem política e social. Ministério Público Piauiense. Brasil
Nunca Mais Digit@l, BNM_349, p. 8. Inquérito Policial Militar, Processo n. 4, 1964. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso: 20 mar. 2019.
349
Foi indiciado por uma suposta ligação com o CGT nacional, por meio de Raphael Martinelli. Fundando um
sindicato em Parnaíba com a mesma sigla (CGT). Pesou sobre ele a acusação de ter convocado a Assembleia
Geral dos sindicatos, na sede dos estivadores, para organizar passeata em apoio a Goulart. Tendo ainda assistido
ao comício da SUPRA, em 13 de março, no Rio de Janeiro. Ainda o fato de ter recebido da presidência da
república um empréstimo, para a construção da sede dos estivadores, sendo atendido com a quantia de
Cr$ 3.000.000,00 (três milhões de cruzeiros), que foram recebidos parceladamente.
350
Presidente da Federação dos Transportes Fluviais do Piauí. As acusações dão conta de que fez várias viagens
ao Rio de Janeiro para tratar de assuntos de interesses de sua classe, junto à Federação dos Marítimos Fluviais.
Também foi acusado de ter assistido as “reuniões convidativas” do “Padre Alípio”, para tratar das “Reformas”;
e de frequentar outras reuniões com o notório líder comunista José Ceará e de distribuir ainda jornais, como
Novos Rumos, vindo a conhecer pessoalmente o redator-chefe, Orestes Timbaúba.
351
Presidente da União dos Ferroviários do Piauí. A acusação indica que ele compareceu ao congresso dos
Trabalhadores Ferroviários do Brasil, realizado em Recife. Tendo participado também de reunião dos sindicatos
para decidir quanto à realização de uma passeata de solidariedade a João Goulart em Parnaíba. O inquérito
aponta ainda que ele teria sido preso e fichado pela Polícia do Ceará, acusado de comunista, em 1935.
352
Presidente do Sindicato dos Foguistas. A acusação indica que, na sede desse sindicato, foi encontrado farto
material de propaganda comunista. Indicando ainda que teria participado das reuniões com o Padre Alípio, em
que se debatia a reforma agrária. Tendo ainda defendido, nestas reuniões, a necessidade de uma revolução nos
moldes da cubana. A acusação indicava, também, que ele se solidarizou com a passeata em apoio a Goulart.
153

Araújo 353 e Custódio Amorim 354 ; o vice-presidente da União dos Ferroviários do Piauí,
Bernardo Luiz Caldas Veras355; o ferroviário, José Caldas de Carvalho356; o líder do Sindicato
dos Bancários em Parnaíba, Raimundo Nonato de Brito 357 ; Antônio Bezerra da Silva 358 ;
advogado da Estrada de Ferro, Israel Brodher359; o estudante secundarista, Ademir Alves de
Melo 360 ; o superintendente da Estrada de Ferro Central do Piauí, Luiz Alberto da Mota
Solheiros361; José Reinaldo dos Santos Baldez362; o funcionário dos Correios S/A, Francisco
das Chagas Frota de Medeiros 363 ; o líder piauiense da Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria, Evilásio dos Santos Barros364; o comerciário, José Aranha365; o

353
Vereador Municipal pelo PTB. Secretário do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Construção e
Mobiliário de Parnaíba, onde teria sido encontrado material dito “subversivo”. Teria feito, junto com Evilásio
dos Santos Barros, viagens a Guanabara. Tomou parte de reuniões das Ligas Camponesas nas comunidades
Labino e Ilha Grande. Teria participado da Assembleia para deliberação sobre as passeatas em apoio a Goulart
e em solidariedade aos ferroviários presos na Guanabara.
354
A acusação contra o vereador do PTB foi apenas a de apresentar, na Câmara Municipal, um projeto
concedendo título de cidadania a Leonel Brizola, por considerá-lo amigo do povo parnaibano.
355
Vice-presidente da União dos Ferroviários do Piauí. Era ligado ao Superintendente, Alberto Solheiros,
indicado pelo ex-prefeito, José Alexandre Caldas Rodrigues, do PTB. Participou da Assembleia Geral dos
Sindicatos, para deliberar sobre passeata em apoio a Goulart. Teria protestado contra a deposição de Goulart e
contra a prisão de Raphael Martinelli.
356
Segundo a acusação, seria ligado diretamente ao Partido Comunista Brasileiro, tendo cooperado com a
campanha de propaganda, distribuindo, na Estrada de Ferro e em outros lugares, os jornais Brasil Urgente e
Novos Rumos. Ainda segundo a acusação, como suplente de fiscal da União dos Ferroviários do Piauí, debatia
os temas de reivindicação da classe e recomendava greves.
357
Presidente do Sindicato dos Bancários de Parnaíba. Segundo a acusação, imprimia o mimeógrafo do IAPB,
de “cunho subversivo”. Teriam sido encontradas, em sua posse, “publicações de natureza esquerdista”,
inclusive panfleto convidando o povo a comparecer no comício da SUPRA, na Guanabara. Teria ficado
incumbido de conseguir alto-falante móvel para a passeata em apoio a Goulart, na Assembleia Geral dos
Sindicatos.
358
Seria, de acordo com a acusação, distribuidor de jornais subversivos, como o jornal Novos Rumos, em
Parnaíba. Tinha estreitas ligações de amizade com o conhecido comunista José Ceará, que hospedava em sua
residência. Teria hospedado em sua residência, também, Orestes Timbaúba, membro do PCB e redator do jornal
referido.
359
Segundo a acusação, procurou e obteve ligações muito estreitas com certos funcionários da Estrada de Ferro,
incitando-os, várias vezes, a movimentos grevistas. Participou da Assembleia Gral dos sindicatos locais para
deliberar sobre a passeata em solidariedade a Goulart. Apresentou ainda um manifesto concitando o povo a
dela participar.
360
Era ex-presidente da União dos Estudantes Secundários de Parnaíba (UESP). Segundo o inquérito policial
militar, recebia formação política de Israel Brodher.
361
Superintendente da Estrada de Ferro Central do Piauí. De acordo com a acusação, recebia instruções de
Raphael Martinelli, por intermédio do CGT. Tendo participado de congresso em Recife, em que se defendiam
temas de “caráter subversivo”. Ainda de acordo com a acusação, teria permitido a “deflagração de greve a ser
levada a cabo na Estrada de Ferro local, em solidariedade a Goulart”.
362
Presidente da União Nacional dos Servidores Públicos Civis do Brasil, Secção Piauí. De acordo com a
acusação, tomou parte da organização das Ligas Camponesas lideradas por Veridiano Mendes da Silva, então
falecido. Preparou a documentação da Federação dos Camponeses de Teresina, sob a orientação de José Ceará.
Tendo rompido com o PTB, passou a trabalhar para a Organização Regional Interamericana de Trabajadores.
363
Segundo a acusação no IPM, discutia constantemente, em sua repartição, a lei de remessa de lucros, sendo
também partidário das reformas.
364
Vou abordar as experiências e as memórias sobre o golpe de 1964, a partir das entrevistas de familiares de
Evilásio dos Santos Barros, em um item específico deste capítulo.
365
Segundo o IPM, o comerciário era “irmão do comunista e agitador João Aranha, atualmente desaparecido e
presumivelmente residindo em Santos, litoral paulista. Distribuía jornais de cunho esquerdista, tais como
Novos Rumos, na Estrada de Ferro Central do Piauí. Em seu poder foi encontrado livro comunista”.
154

ex-prefeito e então deputado estadual, pelo PTB, José Alexandre Caldas Rodrigues366; dentre
outros. Somando mais de 30 indiciados, apenas na cidade de Parnaíba367, nesse inquérito em
particular a que estou me referindo.
Em um primeiro plano, deve-se destacar que os militares, ao se utilizarem dos
discursos anticomunistas característicos dos grupos conservadores, mas também presentes
na formação militar na Escola Superior de Guerra (ESG), buscaram, por meio de atos
repressivos, retirar do cenário político as lideranças que se conectassem com os movimentos
sociais naquele momento, com maior evidência, aqueles ligados ao campo de defesa das
pautas reformistas e que se aproximassem do trabalhismo do governo Jango. Ou seja, além
dos próprios pecebistas, os trabalhadores sindicalizados e ligados ao PTB foram vistos, pelas
forças do golpe, como uma ameaça. Isso se deu por meio do discurso acusatório empreendido
pelas forças civis-militares, com uma retórica atravessada por uma visão de mundo
maniqueísta, marcada pela paranoia persecutória da Guerra Fria, de um mundo divido em
dois polos antagônicos em disputa aberta. Para eles: “democracia cristã-ocidental” versus
“ditadura síndico-comunista”.
Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, no levantamento empírico para o
trabalho, tive acesso aos arquivos digitalizados do site Brasil Nunca Mais. Um em particular
é utilizado na pesquisa: o processo de número 349, que trata do Inquérito Policial Militar
(IPM), instaurado na cidade de Parnaíba, nos primeiros dias de abril, logo após a efetivação
do golpe civil-militar de 1964. De imediato, o interesse nesse documento se deu por seus
discursos de acusação, que afirmavam veementemente uma possível “instalação em breve
no Brasil de uma ditadura síndico comunista à maneira de Cuba e de outros países de igual
regime político”368. Segundo os acusadores, com a participação de “vários representantes de
sindicatos classistas e políticos da progressiva urbe de Parnaíba articulados com os
respectivos representantes classistas da Guanabara”369. A lógica da acusação denunciava a
proximidade dos trabalhadores locais com o governo central e insistia na ideia de que

366
Segundo o IPM, José Alexandre era “Comerciante, Deputado estadual, atualmente de mandato cassado pela
Assembleia Legislativa. Mantinha íntima ligação com os sindicatos locais, ligações políticas, mantidas desde
cerca de 20 anos. Pertence ao PTB. Convidado pelos líderes sindicais, esteve na Assembleia Geral dos
Sindicatos. Presidiu a mesa da referida reunião, tendo discursado sobre a situação do momento e hipotecado
solidariedade naquele instante aos trabalhadores, recomendando calma.
367
Na capital, Teresina, foi aberto inquérito policial militar, mas apenas em 1968, após o AI-5, para apurar a
atuação da Ação Popular, a AP, naquela cidade. Ver: ROCHA, Olivia Candeia Lima. Ação Popular: a
experiência política de militantes de Teresina-PI e a produção de subjetividade revolucionária na década de
1960. Tese (Doutorado em História) Universidade Estadual de Campinas, 2019.
368
Autuação. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM n. 349, 1964. Disponível em:
http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/. Acesso em: set. 2018.
369
Idem.
155

tramava-se, então, uma tomada de poder, pois, segundo o IPM, esses trabalhadores e
lideranças sindicais estariam contando com “apoio, prestígio e intimidade do presidente João
Goulart e, instalariam, para sempre no Brasil, um governo totalitário e impiedoso como na
Rússia370.
O inquérito policial apresenta uma forte tentativa de descredibilizar e
criminalizar as formas de atuação dos trabalhadores mencionados nos capítulos anteriores,
com termos tais como “pelegos” e “arruaceiros” do “C.G.T. do PUA, da UNE e de outras
entidades subversivas”371. No discurso de acusação, a ideia defendida era a de que essas
organizações “se espalharam em todo o país, com o intuito de preparar uma possível tomada
de poder pelos comunistas” 372 . Essas estariam, ainda segundo o IPM, “sediadas na
Guanabara, porém, com articulações em todos os estados da federação, inclusive nesta
cidade”373. Para os militares, era “através dos vários sindicatos e estes, por intermédio dos
seus presidentes” que se desenvolviam as “mais nefastas atividades de subversão da ordem”
causando, com isso, o que entendiam como um “período inquietador”374.
São notórias no inquérito, como aspecto central a dar sustentação aos
argumentos de acusação, as narrativas anticomunistas que ganharam força naquele
momento, por conta de eventos como a revolução cubana, em 1959, e a aproximação da ilha
com o mundo soviético, no início dos anos 1960, dentre outras insurgências populares que
marcaram aquela quadra histórica mundial. Além disso, com a chegada à presidência da
República do principal herdeiro do getulismo (João Goulart), após a renúncia de Jânio
Quadros, e uma frustrada tentativa de golpe pelos ministros militares em 1961, derrotada
pela campanha da legalidade de Leonel Brizola, despertaram-se velhos pesadelos dos grupos
conservadores no Brasil375. Sobretudo, quando em estados com forte poder de mando de
grupos tradicionais, com um histórico de restrita participação popular nas disputas políticas,
como o Piauí, se esboçou um certo protagonismo de setores da classe trabalhadora, por meio
dos sindicatos e de lideranças trabalhistas, desde fins dos anos 1950, o que motivou reações
conservadoras por parte de setores das elites locais.

370
Autuação. op. cit.
371
Idem.
372
Idem.
373
Idem.
374
Idem.
375
Importante ressaltar a ideia de “ditadura síndico-comunista”, presente no IPM, para acusar os trabalhadores.
Esse tipo de leitura dos grupos conservadores contra Jango e a estrutura sindical que o apoiava era resquício
ainda dos anos 1950, do governo Vargas, quando João Goulart foi ministro do trabalho.
156

Para Rodrigo Motta, as “representações anticomunistas hegemônicas entre os


vitoriosos de 1964 distorciam bastante os objetivos dos comunistas e, sobretudo, sua real
capacidade de influenciar os acontecimentos” 376
. É patente, portanto, um
superdimensionamento do poder que teriam os comunistas naquele momento e, além de
tudo, uma generalização que seguia uma lógica essencialista e levava a identificar diferentes
espectros políticos mais progressistas (nacionalistas, reformistas, trabalhistas, socialistas)
como meramente “comunistas perigosos” a serviço de países estrangeiros como a Rússia
Soviética e/ou Cuba377. Essas falas acusatórias se valiam de certo discurso da estereotipia,
que teve, naquele momento, a finalidade de enquadrar a pluralidade das esquerdas em algo
monolítico, para facilitar a adesão social às medidas repressivas dos militares e, ao mesmo
tempo, legitimá-las frente à opinião pública.
Importante destacar, nesse processo de repressão política que emergiu com o
golpe de 1964, o papel central da Doutrina de Segurança Nacional. Criada no contexto da
Guerra Fria, essa, em essência, consubstanciava-se no “enquadramento da sociedade nas
exigências de uma guerra interna, física e psicológica, de característica antissubversiva
contra o inimigo comum”378. Essa doutrina se processou, na prática, enquanto formas de
“ações repressivas visando a preservar a ordem pública e impedir ações subversivas”379 .
Encontrava-se presente na Doutrina de Segurança Nacional, que justificou a política
repressiva no golpe de 1964, em todo o país, a noção de “inimigo interno”.
De acordo com Nilson Borges, a principal razão da figura do inimigo interno é
manter a coesão e o espírito de corpo do grupo que mantém o poder. Por outro lado, a
“existência do inimigo interno e a necessidade da existência de uma guerra permanente”,
servem também para manter um “estado permanente de crise, que mesmo sobre uma base
fictícia é muito efetivo do ponto de vista policial e jurídico” 380. Para o autor, um aspecto
também importante é que “o estado de crise permite impor restrições do ponto de vista das
liberdades e dos direitos individuais e criar procedimentos arbitrários”; facilitando, assim,
“o controle policial, o uso discricionário das forças repressivas”381.

376
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit., 2014, p. 20.
377
Em grande medida esse aspecto simplificador do comunismo foi um argumento empregado por todo o
período ditatorial, permanecendo ainda por muito tempo presente no imaginário político nacional.
378
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura - regime militar e movimentos sociais
em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 29.
379
BORGES, Nilson. op. cit., 2003, p. 30.
380
Idem.
381
Idem.
157

Nilson Borges destaca ainda que, “no contexto da guerra fria e da luta
antissubversiva, que servem de pano de fundo à Doutrina, o mito da guerra é um tratamento
permanente e fundamental que é fortemente sentido pelos militares e passado para a
sociedade”382. Nesse sentido, de acordo com o autor, o “mito da guerra e a ideia de um
inimigo interno, permitem, portanto, ao Estado instaurar sua política repressiva, acionando
os aparelhos de segurança e informação (repressivos) para exercerem seu papel
‘moralizador’, desmobilizando, com isso, a população”383.
Essa questão é importante, pois ajuda a pensar em como as narrativas
empreendidas pelos militares, no momento do golpe em 1964, puderam ter viabilidade em
diferentes espaços do território nacional, por meio dessa justificativa repressiva da
“segurança interna”. Ao justificar a ideia de que se faziam urgentes medidas de
enfrentamento a um inimigo difuso, porém presente entre a população residente em um
mesmo território, buscava-se legitimar e autorizar as medidas punitivas contra os grupos de
opositores políticos, sobretudo aqueles concentrados à esquerda.
No cenário político de início dos anos 1960, o crescimento da legenda
trabalhista, a aproximação conjuntural com o PCB 384 , bem como a ampliação das
representações de trabalhadores piauienses, deu margem a novas formas de luta pelo
atendimento das demandas das classes trabalhadoras; o que gerou um sentimento de
desconfiança nos grupos mais conservadores, como mencionado no capítulo anterior. A
partir dos desdobramentos do golpe de 1964 em âmbito local, concretizou-se um dos
principais objetivos da chamada “operação limpeza”: o de fazer batidas nos sindicatos,
associações de classe, residências dos líderes sindicais, bem como “dar uma solução”, por
meio da força, no que diz respeito à presença de trabalhadores organizados nesse espaço
desde os anos 1950. Nesse sentido, no IPM consta que:

A quase totalidade dos réus deste processo é constituída de dirigentes


sindicais do Estado do Piauí – estivadores, ferroviários, bancários,
servidores públicos, trabalhadores rurais, da construção civil, dos
transportes fluviais, etc. Alguns são acusados de promoverem greve,

382
Idem.
383
BORGES, Nilson, op. cit., 2003, p. 29.
384
Sobre a relação entre PCB e PTB, durante o governo João Goulart (1961-1964), Jorge Ferreira destaca que
“os comunistas tiveram diferentes posturas nesse período: na fase parlamentarista de governo, o partido
demonstrou distanciamento crítico com relação ao presidente da República. A seguir, durante todo o ano de
1963, o PCB foi opositor de Goulart, recusando a estratégia presidencial de aliar o PTB ao PSD para alcançar
maioria no Congresso Nacional. Por fim, de fins de 1963 até o golpe militar no ano seguinte, os comunistas
tornaram-se aliados do presidente. A mudança foi motivada pela decisão de Goulart de romper com o PSD e
governar com o apoio político das esquerdas”. Ver: FERREIRA, Jorge. O Partido Comunista Brasileiro e o
governo João Goulart. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 66, p. 113-134, 2013.
158

apoiarem a SUPRA, fundarem sindicatos e Ligas Camponesas, terem


vínculos com as centrais sindicais da Europa, estarem ligados ao CGT,
serem brizolistas, etc.385

Como fica visível no trecho do IPM, houve, no momento do golpe de 1964, por
parte dos acusadores, uma tentativa de criminalizar as experiências de organização dos
trabalhadores que ganharam força no contexto da experiência liberal democrática (1945-
1964). A percepção, por parte dos acusadores, era de que, cada vez mais, aqueles grupos que
tomavam para si a iniciativa de se organizarem politicamente, de reivindicar melhorias
salariais, bem como tratarem das pautas reformistas em evidência naquele momento,
poderiam causar uma iminente situação de ruptura política.
Outro ponto evidente é a busca por ampliar o leque de atividades e vínculos
políticos, bem como de funções a serem reprimidas no momento do golpe, pois
representariam uma ameaça ao status quo, pelo simples fato de organizarem manifestações
em apoio à reforma agrária ou greves. Ainda com relação às diferentes categorias reprimidas
no momento do golpe, no espaço piauiense, é possível acessar, em matérias de jornais como
O Estado do Piauí, que a própria ideia de organização sindical em si, foi vista como prática
suspeita. Portanto, essa atividade seria passível de punição, com prisão ou indiciamento nos
inquéritos abertos pelas forças militares.

As batidas em sindicatos considerados suspeitos foram efetuadas nos


seguintes sindicatos: Sindicato dos Estivadores no Estado do Piauí;
Federação dos trabalhadores em Transportes Fluviais no Estado do Piauí;
Sindicato dos Foguistas Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos
Operários e Carpinteiros Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos
Empregados em Estabelecimentos Bancários de Parnaíba; Federação dos
Trabalhadores nas Indústrias do Estado do Piauí; Sindicato dos
Contramestres, Marinheiros, Moços e arrumadores Fluviais no Estado do
Piauí; Sindicato dos oficiais de Máquinas, Motoristas e Condutores em
Transporte Fluviais no Estado do Piauí; Sindicato dos Trabalhadores em
Oficinas Mecânicas de Parnaíba; Sindicato dos Trabalhadores na Indústria
de Preparação de Óleo Vegetal e Animal de Parnaíba; Sindicato das
Indústrias de Construção e do Mobiliário do Estado do Piauí; Sindicato dos
Contabilista do Estado do Piauí386.

A “operação limpeza”, realizada pelos militares no Piauí, após o golpe,


promoveu a perseguição de lideranças sindicais rurais e urbanas, do movimento estudantil,
de políticos petebistas e comunistas no Estado387, sobretudo em Parnaíba, Teresina e Campo

385
Autuação. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 13 set. 2018.
386
Jornal O Estado do Piauí, Teresina, 02 jul. 1964.
387
No jornal O Estado do Piauí, destacou-se uma lista dos principais movimentos e organizações mais visados
pelos militares no momento do golpe: 01) Elementos verdadeiramente comunistas; 02) Elementos
159

Maior. Nessas cidades, se percebia uma maior movimentação em torno das pautas
reformistas, em busca de melhorias salariais e/ou da luta pela terra, como mencionado no
segundo capítulo.
Nesse aspecto, ao nomear discursivamente todas as lideranças desses
movimentos sociais como “comunistas”, “agitadores” ou “subversivos”, os militares tiveram
a justificativa necessária para enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional (LSN) 388 . As
prisões dos militantes do movimento sindical e das Ligas Camponesas no espaço piauiense,
por exemplo, foram justificadas por um argumento que fora cuidadosamente construído há
muito tempo: a “ameaça comunista”389.
Sob a ótica repressiva, a Estrada de Ferro Central do Piauí – EFCP, com um
grande número de trabalhadores sindicalizados e sob a direção de um aliado dos petebistas,
o superintendente Luiz Alberto Motta Solheiros, de imediato, foi alvo da ação dos militares
dos agrupamentos locais. Na batida realizada nas oficinas e escritórios da instituição, os
homens da Guarnição Federal realizaram buscas por documentos ou quaisquer indícios que
ligassem os trabalhadores ao “comunismo”. Além disso, buscaram evitar, de qualquer modo,
que esses trabalhadores efetivassem passeatas e atos grevistas em apoio ao presidente João
Goulart; ou mesmo que fechassem, em sinal de protesto, a Estrada de Ferro.
O processo aberto em Parnaíba partiu do princípio de que todos os indiciados
foram denunciados pela justiça militar, com o argumento de que “os acusados infringiram
os artigos 10 e 11 da lei 1.802, de 1953”390. Os inquéritos policiais abertos em todos os
estados brasileiros após o golpe, apesar de não documentarem as fartas atividades de punição
e arbitrariedades cometidas por agentes do Estado contra civis, considerados vagamente
suspeitos de “subversão”, são, para o historiador, fontes documentais importantes. Esses
IPMs podem, dentre outros aspectos, nos ajudar a compreender os mecanismos empregados
para censurar os movimentos sociais e para reprimir opositores ao golpe. São também meios
para se analisar a cultura política dos grupos civis e militares envolvidos diretamente na
perseguição aos líderes sindicais e políticos em contexto de ruptura institucional.

simpatizantes; 03) Elementos que fomentaram a luta de classes; 04) Elementos que fomentaram a mudança do
regime vigente; 05) Ação subversiva no Piauí; 06) Frente de Mobilização Popular; 07) Movimento camponês;
08) Associações de bairros; 09) Associações classistas; 10) União Piauiense dos Estudantes Secundários; 11)
Organização dos Grupos dos Onze. Fonte: Jornal O Estado do Piauí, Teresina, p. 03, 09 jul. 1964.
388
Art. 10. Filiar-se ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou clandestinamente, mas sempre de
maneira inequívoca, a qualquer das entidades reconstituídas ou em funcionamento na forma do artigo anterior.
Pena: - reclusão de 1 a 4 anos. Art. 11. Fazer publicamente propaganda: a) de processos violentos para a
subversão da ordem política ou social; […] Pena: reclusão de 1 a 3 anos. § 1º A pena será agravada de um terço
quando a propaganda for feita em quartel, repartição, fábrica ou oficina (BRASIL, LEI 1.802,1953, s/p).
389
SOUZA, Ramsés. Op. cit. 2015, p 254.
390
Autuação. Op. cit.
160

Nesse ponto, os IPMs foram instrumentos previstos no Código de Justiça Militar,


constituindo-se como um processo sumário no qual indiciados em alguma “atividade ilícita”
são ouvidos. Segundo Maria Helena Moreira Alves, os IPMs “configuravam-se como o
primeiro núcleo de um aparelho repressivo em germinação e o início de um grupo de pressão
de oficiais linha-dura dentro do Estado de Segurança Nacional” 391 . Nesse sentido, não é
factível uma abordagem historiográfica que compreenda a fase de 1964-1968 como
“branda”, pois, de acordo com a documentação disponível, inúmeras lideranças sociais
foram processadas, houve prisões, perseguições e punição política em diferentes estados da
federação, também em cidades de pequeno e médio porte, onde se considerassem suspeitas
as atividades sindicais e políticas.
De acordo com a tese de Ângela Silva, “desde abril de 1964 o Superior Tribunal
Militar passou a deliberar sobre casos de prisões de civis e militares detidos para
investigações e averiguações de cunho político”. Para a autora, “tal situação era observada
devido à existência de um arcabouço legislativo ambíguo, que dava margem a diversas
interpretações, e que deveria ser responsável por determinar a função e o funcionamento do
Poder Judiciário em relação ao julgamento de tais crimes”392. A autora destaca ainda que,
“nos primeiros dias de abril de 1964, o Comando Supremo da Revolução (CSR) iniciou
movimento punitivo que atingiu diversos setores da sociedade brasileira. Tal conjunto de
medidas, que começou na esfera governamental do Executivo, encontrou, posteriormente,
na Justiça Militar, um dos principais espaços por meio dos quais a repressão política seria
institucionalizada”393.
Já no Piauí dos anos 1960, Maria do Amparo Alves de Carvalho 394 , em
dissertação sobre a atuação da igreja nesse estado, indica que, naquele momento, o
“movimento de sindicalização rural e o Movimento de Educação de Base importunaram a
elite agrária piauiense e, logo depois que os militares tomaram o poder em 1964, esses
movimentos foram colocados sob suspeita de estarem promovendo a subversão do povo e
favorecendo o movimento comunista no país”395. Esse aspecto mencionado é importante para

391
ALVES, Maria Helena M. Estado e oposição no Brasil (1964-84). Petrópolis: Vozes,1985, p. 57.
392
SILVA, Angela Moreira Domingues da. Ditadura e Justiça Militar no Brasil: a atuação do Superior Tribunal
Militar (1964-1980). Tese de Doutorado, PPGHPBC, CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2011, p. 34-35.
393
SILVA, Angela Moreira Domingues da. op. cit. 2011, p. 35
394
CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. História e Repressão: fragmentos de uma memória oculta em
meio às tensões entre a Igreja Católica e o regime militar em Teresina. 2006. 229 f. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Centro de Ciências Humanas de Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina,
2006.
395
CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. op. cit. 2006, p. 13.
161

compreender que houve forte mobilização de grupos conservadores contra as demandas dos
movimentos sociais no contexto do golpe.
A autora defende ainda a ideia de que aconteciam mudanças importantes no
estado do Piauí, pois, segundo indica, havia “uma maior conscientização e organização das
classes sociais desejosas de participação política e social durante o período histórico que teve
o seu curso interrompido por uma crescente repressão dos militares aos grupos sociais
organizados e que reivindicavam mudanças na sociedade” 396 . Esse processo repressivo,
desencadeado pelo novo regime político implantado em 1964, buscou promover medidas no
sentido de isolar politicamente todos aqueles que, de acordo com o pensamento dos militares
e civis ligados às direitas, eram “comunistas” ou disseminavam tais ideias no meio do povo,
conforme indica Maria Carvalho.
Em todo Brasil, a grande quantidade de lideranças políticas, sindicais e
trabalhadores urbanos e rurais detidos para averiguação, nos primeiros momentos após o
golpe, evidencia a relação estabelecida pelos militares nesse então novo modelo de
intervenção política no Brasil397. De acordo com o trabalho de Rodrigo Motta, com base nos
dados colhidos pela embaixada e alguns consulados, pode-se estimar entre 20 e 30 mil o
número de pessoas detidas no momento do golpe. A maioria dos presos logo foi solta, após
breve interrogatório, e parte deles ficou livre de qualquer investigação, enquanto outros
tantos foram liberados com instruções de aguardar inquéritos e eventuais processos
judiciais398. Naquele momento, ainda de acordo com Motta, “os lugares de detenção eram
delegacias, penitenciárias e quartéis, mas houve casos de navios transformados em prisão
temporária, indício da falta de espaço para acolher os detidos da primeira onda repressiva”399.
Na capital piauiense, logo após o golpe, em 02 de abril, texto do jornal O Dia
indicava: “a cidade ontem amanheceu tumultuada com as notícias veiculadas através do
rádio, de toda parte. Nota-se geral expectativa e preocupação mesmo a respeito dos
acontecimentos futuros”400. Ainda de acordo com esse jornal, parte das classes desejosas de
uma intervenção militar manifestou surpresa pela rapidez com que a mesma ocorreu, pois,
segundo a matéria, “há muito se [vem] esperando a deflagração de movimento armado, face
às manifestações das cúpulas no Sul, devido aos motins de adeptos comunistas. Não

396
Idem.
397
Até então já haviam ocorrido algumas intervenções militares no Brasil. Em 1945, para depor Vargas.
Tentativas de golpe em 1954, 1955, 1961. Mas nenhuma com a ampla dimensão constatada em 1964.
398
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2014, p. 22.
399
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2014, p. 26.
400
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 07, 02 abr. 1964.
162

acreditávamos, porém, que isso pudesse acontecer tão rapidamente quanto parece
irromper”401. O jornal em questão viu com bastante entusiasmo a intervenção militar em
1964, vindo a fazer ampla divulgação das Marchas da Família nesse estado, bem como
passou por um processo de adesão ao regime.
Como pude averiguar no levantamento das fontes deste trabalho, grande parte
dos articulistas e da imprensa piauiense, fortemente ligados a grupos conservadores,
demonstrou profunda confiança nas soluções de força empregadas naquele momento pelos
militares contra o governo Jango. Esses grupos da imprensa local bradavam: “[somos]
democratas e acreditamos nas nossas Forças Armadas, a salvaguarda dos nossos postulados”.
Fechavam ainda a matéria em questão apelando para a sensibilidade religiosa e a retórica
liberal, quando destacavam: “Com Deus pela liberdade, haveremos de vencer”402.
Um aspecto importante a se ressaltar, analisando as fontes de pesquisa, é a
tentativa de, naquele momento, forjar um sentimento de aversão social aos indiciados,
criminalizando os movimentos sociais, por meio de uma verdadeira batalha pela opinião
pública piauiense. Essa medida foi colocada em prática pelos militares responsáveis pelo
IPM no Piauí, bem como pelos muitos civis envolvidos no processo de legitimação do golpe.
Exemplo disso é o grande número de matérias em jornais de circulação diária, ou semanal,
que tratavam das prisões e faziam balanços das medidas repressivas aplicadas pelos
militares, os chamados “boletins informativos”. No jornal O Estado do Piauí, em matéria
publicada já em julho de 1964, foi informado à sociedade piauiense que averiguações
precisavam ser conduzidas na cidade de Parnaíba, pois, de acordo com a Guarnição Federal,
sediada em Teresina, na cidade litorânea, “o processo de subversão era evidente”.

Após ter sido feito o estudo da situação, levantadas todas as possibilidades


de ação dos elementos suspeitos e feito coleta de informações, o
Comandante da Guarnição Federal de Teresina resolveu determinar a
abertura de um Inquérito Policial Militar para apurar o fato de que
elementos ligados à ideologia comunista vinham praticando na cidade de
Parnaíba, Estado do Piauí, atos que atentavam a Segurança Nacional.
Foram realizadas várias prisões por intermédio dos oficiais do Exército de
Teresina e Fortaleza/CE e da Polícia Militar do estado do Piauí em toda a
cidade, especialmente de líderes Sindicais, tidos como envolvidos com
atividades de agitação ou indiretamente ligados a essas atividades. Essas
detenções tiveram como objetivo elucidar a ação subversiva e apurar a
responsabilidade de cada detido403.

401
Idem.
402
Idem.
403
Jornal O Estado do Piauí, p. 03, 02 jul. 1964.
163

Em documento precatório produzido pelos militares responsáveis pela apuração


em Parnaíba, é possível evidenciar a avaliação política negativa que esses faziam com
relação ao governo João Goulart404. Estavam imbuídos então pela ideia de combate a um
inimigo interno que, para eles, estava oficialmente dentro das fileiras governamentais e
iriam, não fosse a intervenção armada, instalar um novo regime no país. Indicava o
documento que “verificou-se no país de 1961 a 1964, um processo crescente de subversão
da ordem sociopolítica, em conformidade com a doutrina comunista” 405.
Para isso, ainda segundo o documento, os líderes da “subversão procuravam
assenhorar-se das funções governamentais, o que [conseguiram] com o governo do Sr. João
Goulart, que se apoiava nas classes sindicais”406. Como se percebe na leitura do inquérito, há
um forte sentimento anticomunista a guiar os passos das forças repressivas e a caracterizar
a atuação do grupo petebista. A cultura política das forças repressivas era, sobretudo,
permeada pelos valores anticomunistas, enxergando as práticas políticas progressistas
daquele momento enquanto uma espécie de ameaça ao “mundo ocidental”
(cristão/capitalista).
Importante destacar a própria visão de mundo de parcela dos setores militares,
sobretudo da alta cúpula das Forças Armadas, frontalmente contrários a qualquer atividade
política vinculada às classes populares que se localizassem mais à esquerda do espectro
político. A biografia do Marechal Castello Branco, nesse quesito, nos indica uma questão
interessante, quando traz o relato do profundo incômodo e mal-estar de Castello, então
comandante do IV Exército, sediado no Recife-PE, quando se viu obrigado a comparecer na
cerimônia de posse do governador eleito naquele estado, Miguel Arraes407, em 1963. Diga-

404
Também nos telegramas anexados ao Inquérito Policial Militar, constam, enviadas pelo Superintendente da
Estrada de Ferro Central do Piauí, Sr. Alberto Mota Solheiros, mensagens de apoio ao Presidente João Goulart,
ao líder ferroviário Raphael Martinelli, indicando apoio dos ferroviários parnaibanos ao governo, contra as
iniciativas golpistas dos militares. No telegrama enviado por Alberto Solheiros ao Presidente Jango, consta:
“[…] A administração e ferroviários da central do Piauí, em face da situação aflitiva de nosso país, vem por
meu intermédio enviar solidariedade ao ilustre chefe da nação pela justa causa em prol da legalidade,
assegurando os direitos dos brasileiros. Saudações”404. Já no telegrama a Martinelli, “[…] enviamos ao grande
líder da classe nosso apoio legalidade e garantia poderes constituídos face situação periclitante nosso país
[…]”404.
405
Precatório IPM. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349,
1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 13 set. 2018.
406
Precatório IPM. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349,
1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 13 set. 2018.
407
Na biografia Castello: a marcha para a ditadura, do escritor Lira Neto, o trecho a seguir. “Ao comparecer,
contra a vontade, à cerimônia de posse de Arraes, Castello quedaria indignado diante do discurso do novo
governador, de tom esquerdista. Castello julgou que Arraes estava acendendo fósforo em paiol de pólvora. A
solenidade seria marcada pela participação maciça de populares, que se apinharam nas galerias da Assembleia
Legislativa e lotaram os corredores do Palácio das Princesas. O trânsito em volta dos dois prédios parou. A
multidão, eufórica, tomou conta das ruas do Recife. Até mesmo os convidados de honra tiveram que se
164

se, tal incômodo se dava pela presença e apoio das camadas populares àquele governador
então eleito em Pernambuco 408 , como fica perceptível. Sobre esse ponto, também no
inquérito policial, o elitismo político de parcela das forças armadas se mostra visível, quando
usavam como argumento para a derrubada do governo Jango o protagonismo de líderes
sindicais, em detrimento de ministros de Estado, durante a gestão do petebista, como se pode
perceber no trecho abaixo.

Surgiram então nessas classes líderes atuantes, tanto por idealismo, quanto
por oportunismo político, que gozaram do apoio incondicional do Sr. João
Goulart, se superpondo aos próprios ministros de Estado, como no caso do
líder ferroviário Raphael Martinelli – Presidente da Federação dos
Ferroviários do Brasil com relação ao Sr. Expedito Machado, então
Ministro da Aviação; Osvaldo Pacheco – Presidente do Sindicato dos
Marítimos; Dante Pelacani Clodsmith Riani, que tinham mais força
política do que o Ministro do Trabalho409.

O forte sentimento de oposição ao governo Jango e ao trabalhismo se evidencia


em todo o inquérito policial, denotando o posicionamento dos militares contra os projetos
trabalhistas, as reformas de base e a elevação das pautas progressistas, no início dos anos
1960. A ideia presente no IPM era de que as “apregoadas ‘reformas de base’ serviam apenas
para a anarquia e a desordem”410. Essas pautas, segundo indicavam, “não tinham a menor
significação, pois visavam apenas a tomada de poder em definitivo” 411. Segundo a acusação,
no IPM, essas lideranças mais “perigosas” ao status quo, “graças ao seu prestígio
dominavam os sindicatos, muitas vezes compostos de elementos democratas na sua maioria,
mas que não tinham oportunidade ou coragem de reagir contra aqueles líderes a serviço de
ideologia alienígena”412. É notória, na acusação, a ideia de que se articulavam movimentos
em torno da tomada de poder nos meios sindicais, pois, argumentavam que, “à custa da força
que os presidentes das federações classistas gozavam junto às autoridades, [iniciaram] esses

acotovelar em meio à massa humana, disputando um melhor lugar”. Ver: NETO, Lira. Castello: a marcha para
a ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 207-208.
408
Ainda na biografia de Castello, lê-se: “Para os partidários de Arraes, aquela foi uma festa cívica sem igual
na história republicana nordestina. Para Castello, contudo, apenas uma demonstração explícita de populismo e
demagogia. Pior do que as falas inflamadas dos oradores foi para ele o fato de ter se sentido desrespeitado com
o empurra-empurra da festiva multidão. Ao final, irado, ao entrar no Aero Willys que o esperava na porta do
palácio, queixou-se a Mergulhão, o motorista, dos amarrotados que lhe haviam sido deixados na venerável
farda verde-oliva”. (NETO, Lira. Op. cit, p. 208.)
409
Precatório. op. cit.
410
Idem.
411
Idem.
412
Idem.
165

presidentes, um trabalho de domínio junto aos operários, para isso utilizando todos os meios
que a ideologia marxista emprega”413.
Um aspecto que se faz pertinente mencionar é uma certa preocupação dos
militares com relação à posição estratégica de Parnaíba, por ser, ainda, o principal centro
econômico do estado. Além disso, por se encontrar ali a sede da Estrada de Ferro Central do
Piauí e, portanto, com uma quantidade significativa de trabalhadores ferroviários, muitos
deles também ligados aos sindicatos da categoria e em processo de organização política. No
IPM, se destaca essa questão quando as forças militares indicavam que:

Como parte do plano de subversão e de acordo com as instruções


existentes, determinadas pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT),
no dia 1º de abril de 1964, após a eclosão do movimento revolucionário de
31 de março, houve na cidade de Parnaíba greve política na Estrada de
Ferro Central do Piauí e manifestação de agitação nos sindicatos na sede
do Sindicato dos estivadores, congregando neste todos os elementos
esquerdistas e filo-comunistas414.

No documento precatório, anexado ao Inquérito Policial Militar, no trecho


abaixo, o temor dos responsáveis pelas medidas repressivas, com relação a quantidade maior
de sindicatos na cidade, fato mencionado no primeiro capítulo e, portanto, uma maior
possibilidade, na visão dos militares, de alguma forma de resistência ao golpe, ou mesmo de
possíveis iniciativas em defesa do governo João Goulart.

Em face dessa situação reinante nas esferas governamentais a cidade de


Parnaíba, sede da Estrada de Ferro Central do Piauí, possuindo a maior
parte dos sindicatos de classe do estado do Piauí não podia fugir da ação
progressiva de líderes comunistas já referidos. Assim vários presidentes de
sindicatos, chefes de repartições e associações aceitaram a situação de
então a política frente de subversão para usufruir as vantagens
decorrentes415.

Pela análise detalhada do IPM, verifiquei que houve a busca por detectar, nos
meios de organização dos trabalhadores, algum material que pudesse incriminá-los. No IPM
consta que “foi apurado no presente inquérito a atividade de elementos com tendências
comunistas no sindicato dos trabalhadores da indústria, onde foram encontrados grande
número de livros e revistas de caráter subversivo”416. Ainda, além de material apreendido
com os industriários na cidade, em sede própria, também se buscou material na sede da

413
Idem.
414
Idem.
415
Idem.
416
Sentença. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 02 set. 2018.
166

Estrada de Ferro. Também no IPM, o discurso de acusação apontava que “entre os


ferroviários da Estrada de Ferro Central do Piauí existia publicação e venda de publicações
de caráter extremista, tendo alguns elementos, dessa estrada, participado do Congresso
Ferroviário de Recife que se transformou em congresso de propaganda comunista”417.
O inquérito apontava a “presença de um ex-deputado, procurando tirar proveitos
eleitorais da situação reinante”. Nesse caso, o inquérito se referia ao petebista José Alexandre
Caldas Rodrigues. Este, segundo o IPM, chegou “mesmo a empregar, na prefeitura, um dos
indiciados, para que o mesmo fizesse sua propaganda política”. Ainda o IPM indicava que a
Estrada de Ferro faria parte do “esquema” montado por José Alexandre para angariar votos,
pois, segundo a acusação, o próprio diretor da Estrada de Ferro, Alberto Solheiros, fora
nomeado pelo líder petebista com finalidades políticas418. As acusações em questão indicam
fortemente a intenção de atribuir aos petebistas a pecha de “corruptos”.
Outro ponto bastante evidente nos depoimentos colhidos no IPM, que denotava
certa preocupação dos militares, era a possibilidade de acesso a armamentos por parte dos
trabalhadores e lideranças políticas parnaibanas, sobretudo do meio rural. É possível supor
que, nesse caso, pesou o fato de que, poucos dias antes de aberto tal inquérito, no Congresso
Nacional, o deputado federal Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas, afirmava ter
“sessenta mil homens armados” no Nordeste brasileiro para reagir ao golpe419. Nesse quesito,
durante depoimento de José Alexandre Caldas Rodrigues, perguntado sobre o que sabia a
respeito da concentração de armas na cidade de Parnaíba ou arredores, o deputado disse, no
interrogatório, que “desconhecia completamente a existência dessas”.
José Alexandre, ao mesmo tempo, afirmou possuir arma de uso exclusivo das
Forças Armadas, que lhe fora oferecida. Interessante frisar que, no caso em questão, o ex-
prefeito pelo PTB e então deputado estadual cassado, fez questão de se dizer “membro do
Rotary Club, presidente do Aeroclube, da Liga Parnaibana de Futebol, presidente do

417
Idem.
418
Idem.
419
Jorge Ferreira e Ângela de Castro destacam que, no momento do golpe, quando Jango deixava Brasília para
tentar articular alguma medida de reação e o congresso utilizava o argumento da “fuga do presidente”, o
deputado Francisco Julião foi um dos poucos parlamentares que, na tribuna, defendeu Goulart. Os autores
destacam que essa defesa é interessante, pois, até aquele momento, o líder das Ligas Camponesas do Nordeste
se referia a Jango usando termos como “latifundiário” ou “lacaio do latifúndio” [...] Os autores destacam ainda
que, naquele momento, “Julião ameaçou enfrentar os golpistas mobilizando sessenta mil homens armados das
ligas camponesas. Segundo ele cinco mil desses homens estariam perto de Brasília. Como se soube depois, não
havia nenhum camponês armado. Porém, a ameaça de que milícias rurais armadas poderiam invadir Brasília
jogou mais combustível na fogueira da oposição”. Ver: FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. op. cit.
2014, p. 362.
167

Sindicato dos Representantes comerciais do Estado do Piauí, órgão patronal”420. O primeiro


mencionado – Rotary – por meio de seus representantes, demonstrou claro apoio ao golpe,
divulgando nota em jornais, como destaco no último capítulo desta tese.
O ex-deputado, diferente da maioria dos indiciados no IPM, até mesmo por seus
vínculos familiares e sociais, tinha ampla presença em órgãos comerciais da cidade e do
estado. Por certo se fizera valer desse poder econômico e simbólico frente aos inquiridores
militares. Em depoimento prestado declarou que, “como político não instalou, nem teve
conhecimento de nenhuma Liga Camponesa; do Comando dos Onze; de Greves; de quebra-
quebras. Apesar de sua ligação com os sindicatos da cidade, nenhuma vinculação diz ter com
o CGT e com os comunistas”421. Como pude perceber, esse líder petebista, em depoimento
prestado, procurou se desvincular do processo de organização dos trabalhadores em
sindicatos na cidade com a intenção de “amenizar” sua situação frente aos militares.
Interessante observar no inquérito, que houve conflito entre a acusação feita e o
juiz responsável pelo recebimento e julgamento da ação. Em despacho após o recebimento
da acusação, já em agosto de 1965, o juiz Luís Lopes Sobrinho 422 , contesta muitos dos
enunciados e toma decisões em desfavor da denúncia oferecida contra os indiciados. Com
relação ao secundarista Ademir Alves de Melo 423, por exemplo, o juiz entendeu tratar-se de
um “menor de 19 anos, jovem inexperiente que não diferencia ideias subversivas e, tratando-
se de um menor deveria ter sido acompanhado no inquérito pela pessoa de um curador, o
que não se fez, acarretando a nulidade do processo contra o menor”424. O que ainda deixava
alguma brecha de defesa para os denunciados era o julgamento pela justiça comum dessas
acusações. Já com a decretação, pelo regime militar, do Ato Institucional n° 2 (AI-2), em
outubro de 1965, todos os civis e militares acusados de infringirem a Lei de Segurança

420
DEPOIMENTO. José Alexandre Caldas Rodrigues. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital.
Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em:
07 set. 2018.
421
DEPOIMENTO. José Alexandre Caldas Rodrigues. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital.
Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em:
03 set. 2018.
422
BARBOSA, Licínio. O primeiro magistrado de Bom Jesus do Gurgueia. DM.JOR.BR, 04 de abril de 2015.
Disponível em: https://www.dm.com.br/opiniao. Acesso em: 10 fev.2019.
423
Ademir Alves de Melo, estudante secundarista, na ocasião com apenas dezenove anos de idade, o mais
jovem entre os indiciados. Anos depois (1969), e por causa da perseguição sofrida, deixou o país. Se formou
em economia pela Universidade de Chile, UCHILE (1973), iniciou Mestrado em Economia na Escuela Latino-
americana de Pós Graduação em Economia, mas interrompeu em 1973. No entanto, obteve o título de doutor
em Ciências Econômicas e Políticas pela Universität Bremen (Alemanha) em 1979 e dois pós-doutorados, um
na Ecole Superieure des Affaires de Grenoble (1987) e o outro no Instituto de Economia da Fundação Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais (1991). É professor doutor, aposentado pela Universidade Federal da Paraíba.
(Fonte: RICARDO, Elisângela M. Op. cit.)
424
Sentença. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 02 set. 2018.
168

Nacional passaram a ser processados pela Justiça Castrense, pelo Superior Tribunal Militar,
o que tornou mais factível as medidas repressivas do Estado militarizado.
Essas medidas eram parte do processo de concentração de poder pelos militares,
presentes desde que tomaram o poder. Nesse ponto, logo após o golpe, no dia 09 de abril de
1964, após a aprovação pelo Congresso de uma lei que regulamentava a eleição indireta para
presidente da República, o Comando Militar, com intuito de institucionalizar a “revolução”,
decreta o primeiro de muitos outros Atos Institucionais, depois intitulado de AI-1425. O ato426
estabeleceu, dentre outras medidas autoritárias, a cassação dos direitos políticos de qualquer
cidadão por 10 anos, e de mandatos legislativos de todos os níveis, o que atingiu sobretudo
lideranças do PTB.
A justificativa jurídica dos militares era oferecida na ideia de que a “revolução”
se legitimava “por si mesma”. Além disso, os comandantes militares fundamentaram que
representavam o povo e em seu nome exerciam esse poder constituinte na “vontade do
povo”, conforme preâmbulo do Ato Institucional 427. No primeiro Ato Institucional, ficou
clara a tentativa de reduzir o Congresso Nacional ao poder discricionário do poder
Executivo428. Para manter certa aparência de legalidade e moderação, os militares usaram

425
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm. Acesso em: 13 fev. 2019.
426
Ato Institucional número 01 estabeleceu a forma de eleição para o próximo Presidente da República,
modificou o sistema de emendas à Constituição, e de aprovação de projetos de lei de iniciativa do Presidente
da República, suspendeu as garantias constitucionais ou legais da vitaliciedade e da estabilidade, estabeleceu
investigação sumária de servidores públicos que tivessem atentado contra a segurança do País, o regime
democrático e a probidade da administração pública, podendo estes ser demitidos, dispensados, postos em
disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, mediante atos do Comando Supremo
da Revolução até a posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em
se tratando de servidores estaduais, por decreto do governo do Estado. Ver: TORRES, Mateus Gamba. Política,
discurso e ditadura: O Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos recursos ordinários criminais (1964-
1970). Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre 2014, p. 31.
427
No preâmbulo do AI-1 lê-se que: a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este
se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder
Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o
governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente
ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua
vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,
representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. Ver: BRASIL.
Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm.
Acesso em: 20 dez. 2019.
428
“Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos,
igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente
Ato Institucional. [...] Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso.
Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as
revoluções, a sua legitimação”. (BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Op. Cit.)
169

como argumento a manutenção da constituição de 1946429, insinuando que fariam apenas


algumas pequenas mudanças.
Um dos aspectos mais evidentes na tomada de poder pelos militares, é que, logo
após o golpe de 1964, aqueles que se arrogavam enquanto “revolucionários”, inclusive os
meramente de ocasião, aproveitaram o momento de “caça às bruxas” para retirar de cena os
seus adversários políticos, por meio de denúncias, ou por outros meios. Um ponto ligado à
essa questão, que merece destaque, foi a perseguição política de alguns prefeitos da região
norte-piauiense, alguns deputados e vereadores que, sendo ou não vinculados ao PTB, até
mesmo de outros partidos, se tornaram “indesejáveis” por forças civis e militares desses
locais, ou, simplesmente, caíram dedurados por seus opositores, que buscavam se beneficiar
politicamente com suas cassações, se aproximando das forças repressivas.
Caso exemplar foi o do prefeito de Buriti dos Lopes, cidade localizada a
aproximadamente 35 km de distância de Parnaíba. Em matéria publicada no jornal Correio
da Manhã, do Rio de Janeiro, acessei informação sobre o desaparecimento de recursos dessa
prefeitura logo após a cassação do mandato do prefeito Francisco Vale. Segundo a matéria,
esse gestor “ficou sem os milhões” das verbas públicas430 que teria em caixa no momento em
que foi derrubado. A matéria indicava que:

O Prefeito Francisco Vale, da cidade de Buriti dos Lopes, cujo mandato foi
cassado recentemente, voltou ao cargo através de mandato de segurança,
concedido pelo juiz da comarca, com execução garantida pela força
policial. Ao entregar a prefeitura ao cassadores de seu mandato, o prefeito
deixou nos cofres a importância de CR$ 3 Milhões e ao reassumir o posto,
oito dias depois, encontrou somente CR$ 25 mil, sem que os usurpadores
apresentassem qualquer comprovante de aplicação do numerário. 431

Outra cidade norte-piauiense onde observaram-se medidas de perseguição


política naquele momento foi a cidade de Luís Correia. No cenário posterior ao golpe, o
então capitão dos Portos atuou com ações repressivas também nesse município litorâneo,

429
“Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a
Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e
tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não
só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas”. (BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9
abril 1964. Op. Cit.)
430
Em 1961, o município recebia uma verba de 05 milhões do então presidente Jânio Quadros, conforme nota
do Correio da Manhã: “O presidente da república, através do despacho ao ministro da Fazenda, autorizou a
concessão de auxílios no total de 5 milhões de cruzeiros à Prefeitura Municipal de Buriti dos Lopes, no estado
do Piauí. Essa verba, que foi solicitada pelo prefeito daquela cidade, destinar-se-á à construção de três escolas
primarias e ao mobiliário indispensável, bem como reforma e reaparelhamento do centro de saúde da prefeitura
local. Cinco Milhões.” Ver: Jornal Correio da Manhã, p. 04, 08 jul. 1961.
431
Ver: Jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, p. 07, 20 de maio 1964.
170

acossando o prefeito daquela cidade – Osvaldo Sales Santos – bem como um vereador
municipal, de nome Raimundo Sousa. A cidade de Luís Correia é separada de Parnaíba
aproximadamente a uma distância de 15 quilômetros. No caso em particular dessa cidade, o
artifício empregado pelos setores militares era, assim como ocorrido em outros espaços,
denúncias de corrupção no município. Sobre o prefeito Osvaldo Sales, uma matéria recente
de jornal informava que:

Com a instalação da ditadura, em março de 1964, ele (Osvaldo) cuidava


dos problemas de Luís Correia e dos seus pequenos negócios no povoado
Lagoa do Camelo, quando foi surpreendido, na sua pequena e distante
propriedade, pela chegada de um jeep da Marinha, ali representada pelo
temido capitão Jansen Neto.[...] Levado para a cidade de Parnaíba, ficou
sabendo que o procurador da Prefeitura de Luís Correia, Raimundo Sousa,
vereador e presidente da Câmara, era acusado de ter ficado com um
percentual de 10% da verba destinada ao município.[...] Separado do local
da operação bancária por uma distância de 70 quilômetros, numa época em
que não existia sistema de telefonia na região e era péssima a situação da
estrada entre o povoado Lagoa do Camelo e a sede do município, de nada
adiantaram os esforços de Sales Santos no sentido de demonstrar sua
inocência. [...] O comandante da Capitania dos Portos em Parnaíba
mostrou serviço aos seus superiores, determinando reunião da Câmara em
que foram cassados, em junho de 1964, o vereador e o prefeito de Luís
Correia432.

No Inquérito Policial Militar aberto em Parnaíba, consta um documento


designando, em caráter especial, o Bel. Antônio José da Cruz Filho, 1º promotor público da
capital, para promover a “ação penal, que no caso couber, contra Osvaldo Sales Santos e
Raimundo Nonato de Andrade Sousa, ex-prefeito e ex-vereador, respectivamente, do
município de Luís Correia”. A indicação é do procurador geral de justiça, o parnaibano
Darcy Fontenelle de Araújo 433 , que possuía fortes vínculos político-partidários na região
norte-piauiense, pois já havia sido, inclusive, deputado estadual nos anos 1950. A denúncia,
como pude investigar, com base no IPM, fora “instaurada pela Guarnição Federal deste
estado sobre irregularidades administrativas na aplicação de dinheiro público, devendo

432
FORTES, José. Ditadura cassa prefeito, por Deoclécio Dantas (Do livro: Marcas da Ditadura). Jornal Meio
Norte, 26 jun. 2014. Disponível em: http://www.meionorte.com/blogs/josefortes. Acesso em: 12 dez. 2019. Ver
livro: DANTAS, Deoclécio. Marcas da Ditadura no Piauí. (2008), págs. 59/60.
433
O mesmo era parnaibano e com fortes vínculos com grupos políticos locais. Era bacharel em Direito na
tradicional Faculdade de Direito de Recife. Exerceu os cargos de promotor público em Parnaíba e foi também
Procurador-geral do Estado do Piauí. Além desses cargos, também ocupou o posto de Secretário de Estado nas
administrações do major José Vitorino Correia (1946) e de Alberto Silva (1970-75). Neste último, foi o executor
do Ato Institucional nº 5, no Piauí, nomeado pelo Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici. Foi
também professor catedrático de Direito Comercial da Universidade Federal do Piauí
171

passar o seu cargo ao substituto legal todas às vezes que se ausentar para fins dessa
portaria”434.
Ao final, transcorrido todo o processo, já no ano de 1972, os trabalhadores
acusados no IPM aberto na cidade de Parnaíba, foram absolvidos pelo Superior Tribunal
Militar, por conta da fragilidade nas acusações e pela percepção de que tal processo refletia
as animosidades, rivalidades e intrigas políticas na cidade e na região norte do Piauí. Como
pude observar, o inquérito aberto, além do forte caráter anticomunista que lhe foi aspecto
chave, era também marcado pelas muitas disputas políticas dessa cidade, na busca por
espaços de poder e indicações para cargos no âmbito da Estrada de Ferro Central do Piauí e
de outras repartições e órgãos públicos.
Mais do que propriamente amparado em questões jurídicas de fato, o IPM aberto
era também produto das tensões acumuladas pelos grupos contrários ao processo de
ampliação do poder político dos trabalhistas e da relação estabelecida com membros ligados
ao PCB. Portanto, como se observa no processo, faltava o embasamento técnico e jurídico
às acusações. Isso fica bastante evidente quando, já no contexto do fechamento de tal
inquérito, tendo em vista que negou-se “provimento ao apelo do MP, face a evidente
ausência de provas enfatizada na sentença, quanto aos fatos atribuídos aos acusados” 435. No
trecho abaixo da apelação, isso fica evidente.

O presente processo refere-se a acontecimentos que teriam ocorrido em


1963 e 1964, em Parnaíba, Estado do Piauí. Teve início na Justiça Comum,
com denúncia oferecida pelo Dr. Promotor da Comarca, perante o Dr. Juiz
de Direito, dando os denunciados como incursos nos arts. 9º, 10 e 11, da
Lei 1802. O dr. Juiz de Direito rejeitou, em parte, a denúncia, excluindo 13
acusados, dentre as dezenas que nela encontravam incluídos. Com o
advento do Ato Institucional nº 2, os crimes contra a segurança do Estado,
passaram à competência da Justiça Militar, tendo sido o processo remetido
à auditoria da 10ª CJM, havendo a Promotoria Militar ratificado a
denúncia. Recusou-se, entretanto, o dr. Auditor, a aceitar a ratificação, de
uma denúncia aceita em parte. Houve, então, recurso para este tribunal, que
determinou o recebimento da mesma. No decorrer do processo foram
excluídos do processo, por falta de justa causa, ou por inépcia da denúncia,
nada menos de 19 dos acusados, dos quais 2 pelo Egrégio Supremo
Tribunal Federal. [...] dos 5 acusados restantes, apenas foi interrogado Luiz
Alberto da Motta Solheiros, que atribuiu as acusações a interesses
contrariados.436

434
ARAÚJO, Darcy Fontenelle. Portaria nº 16/65. Estado do Piauí. Procuradoria Geral da Justiça. Teresina, 18
de julho de 1965. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
435
Apelação nº 39 (1972). 491.Superior Tribunal Militar. Estado do Ceará. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
436
Idem.
172

Nesse sentido, também no ano de 1972, os ministros do Superior Tribunal


Militar acordaram que:

A peça vestibular do presente processo elaborada tendo por base inquérito


procedido logo após a vitória da Revolução de 31 de Março de 1964,
apresentava todos os vícios contidos no inquérito. Ainda estava
efervescente a queda dos ocupantes dos cargos de chefia da Estrada de
Ferro Central do Piauí e a consequente luta pela ocupação destes cargos.
Eivado o inquérito de politicagens, perseguições e amedrontamentos,
veio a denúncia como uma peça exemplar de exaltação à Revolução,
às gloriosas Forças Armadas e ao regime democrático-representativo,
porém pobre de substância jurídico-penal. A acusação chega ao ponto
de incluir os três últimos denunciados porque “foram acusados por
Francisco das Chagas Frota de Medeiros, como partidários de reformas”.
Inclui um Mário de Tal sem dar qualquer qualificação. A pobreza da
denúncia refletiu-se na exclusão de dezessete (17) dos acusados pela via
sumaríssima de habeas-corpus, tendo os cinco (05) restantes permanecido
por não terem se socorrido a tempo do remédio heroico[...]437 (grifo meu)

Como se percebe na documentação do IPM, a própria justiça militar, por meio


do STM, em 1972, acabou por reconhecer as inúmeras fragilidades do processo de acusação
contra as lideranças sindicais e políticas parnaibanas aberto logo após o golpe. Isso se
evidencia nos questionamentos jurídicos levantados em contraposição aos fundamentos da
acusação contra os trabalhadores parnaibanos. O inquérito representou, a meu ver, uma
demonstração de poder, por parte das forças militares instaladas na cidade, de perseguir e
punir determinadas lideranças sindicais, sobretudo aquelas ligadas aos trabalhistas no estado
do Piauí, bem como foi o reflexo do autoritarismo que marcou esse momento de ruptura
institucional.
Por fim, indico que, ao ler e analisar as páginas do IPM, não é possível afirmar
que o processo aberto pela Guarnição Federal, sediada em Teresina, foi de fato iniciado por
conta da amplitude e força do movimento comunista no norte-piauiense, como asseguravam
os discursos dos militares. O processo em si é feito, a meu ver, em primeiro plano, contra as
lideranças trabalhistas e seus apoiadores, pelo gradativo protagonismo político que
assumiam no início dos anos 1960. Foi aberto, portanto, contra a estrutura sindical e a
proliferação de candidaturas ligadas aos sindicatos de classe apoiados pelo PTB e PCB e os
receios decorrentes de tal atuação.
A intenção do IPM, nesse sentido, era coibir a atuação dos movimentos sociais
emergentes no Piauí desde a segunda metade da década de 1950, por meio da sua
caracterização enquanto atividades “subversivas”. Em um segundo plano, também é

437
Idem.
173

importante mencionar a possibilidade de se utilizar desse aparato repressivo como força de


manutenção das condições do cenário político local. Nesse ponto, a presença de lideranças
contrárias ao trabalhismo, ou que assumem oposição ao projeto político petebista, buscavam
garantir benesses – como, por exemplo, o acesso aos recursos da Estrada de Ferro – por meio
da perseguição de seus opositores.
O processo é anticomunista, sobretudo no método. Utiliza-se do caráter
simbólico e fortemente superficial que era atribuído ao comunismo naquele momento, para
buscar justificar a perseguição política orquestrada contra os opositores dos grupos
tradicionais (detentores de terra, elites jurídicas, políticas e comerciais.). Não estou
afirmando que não existiam comunistas nessa cidade do litoral do Piauí. Eles existiam, de
fato, em 1964 e até mesmo anteriormente, como os remanescentes dos movimentos dos anos
1930 em Parnaíba438, que foram também indiciados no IPM. Mas, a força política com uma
maior evidência e representatividade junto aos sindicatos, portanto, com mais projeção e por
isso mesmo a que levantou maior número de inimigos, era o petebismo de Jango,
representado localmente pelas lideranças sindicais e pelos irmãos Caldas Rodrigues (José
Alexandre e Chagas Rodrigues).
O IPM, portanto, é projetado, por meio da artimanha aterrorizante do medo do
outro, com a finalidade evidente de tirar poder político e econômico das lideranças
trabalhistas, bem como inviabilizar seu prestígio e força no âmbito local. Por isso,
projetaram-se os marcos denunciadores aos indiciados: a participação no comício da Central
do Brasil; as cartas, correspondências e notas enviadas em apoio ao governo João Goulart e
para Brizola; as tentativas de greves, paralisações também em claro apoio ao presidente

438
Importante destacar a centralidade, no estado do Piauí, da cidade Parnaíba, no que diz respeito à formação
de grupos ligados aos movimentos sociais e também ao PCB. Desde os anos 1930, parte das elites e imprensa
parnaibana temia a presença do PCB, organizado principalmente na cidade de Parnaíba e mesmo atuando na
clandestinidade após 1947. Como se pôde retirar de matérias jornalísticas, os discursos anticomunistas,
calcados em superdimensionamentos e na tentativa de criminalização das esquerdas, vêm de período anterior
aos anos 1960, conforme matéria intitulada “Notícias de Parnaíba”. A matéria do jornal piauiense “O Tempo”
do ano de 1935 afirmava que, naquele ano, a cidade de Parnaíba foi sacudida por agitações operárias e
ressaltava a presença do advogado Aldy Mentor como a liderança do movimento, indicando que: “desde sábado
correm nesta cidade notícias de ter havido agitações de fundo comunista e mesmo assalto ao BB e de deposição
dos poderes locaes. O facto da remessa de tropa não auctorizava a versão de uma simples greve pacífica(...)
Ademais tudo pode acontecer em Parnaíba, no terreno da questão social, desde que alli vem sendo mantida
uma situação de constante intraquilidade, resultante da forma agressiva de syndicalização que foi implantada
por elementos perniciosos(...)subversivo(...) provocadores(...). De positivo(...) uma greve de trabalhadores do
Porto(...) do apoio dos syndicatos operários(...) um dos agitadores o conhecido bacharel Aldir Mentor que se
considera chefe do operariado da cidade nortista(...) realizou manifestação na praça da graça aos gritos morra
a burguesia, morra o capitalismo, viva a Rússia comunista e proletária, abaixo o integralismo. E tudo isso nas
barbas da polícia! Os comunistas fizeram um reboliço dos diabos. Urge que as autoridades locaes e do Estado
tomem medidas acauteladoras da segurança pública(...) A situação é de insegurança”. Ver: NASCIMENTO,
Ana Maria Bezerra do. Trabalhadores e trabalhadoras no fio da história das práticas e projetos da educativos
no Piauí (1856-1937). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2008.
174

deposto; o forte apoio político às reformas de base; a Assembleia dos trabalhadores em


Parnaíba, em apoio ao governo Jango.
Como pude perceber, as bandeiras levantadas pelo governo trabalhista e a
aceitação de seus postulados por parcela da classe trabalhadora piauiense, sobretudo
parnaibana, foi motivo suficiente para implantação das medidas repressivas, para o
indiciamento e perseguição de setores das classes trabalhadoras locais e nomes ligados ao
PTB. No entanto, mesmo com um quadro histórico complexo como esse, com o passar do
tempo, muitas das memórias locais buscaram o apagamento histórico tanto do trabalhismo
petebista parnaibano como das práticas punitivas ocorridas contra esse e outros grupos após
o golpe. Esses aspectos referentes às construções de memórias apaziguadoras e os
silenciamentos a respeito dos desdobramentos de 1964 no âmbito local, buscarei evidenciar
a partir do próximo item.

Os fios da memória: perseguições políticas no Piauí e a tentativa de apagamento


histórico-social sobre a repressão.

Memória de um tempo onde lutar


Por seu direito
É um defeito que mata
São tantas lutas inglórias
São histórias que a história
Qualquer dia contará
De obscuros personagens
As passagens, as coragens
São sementes espalhadas nesse chão
De Juvenais e de Raimundos
Tantos Júlios de Santana
Uma crença num enorme coração
Dos humilhados e ofendidos
Explorados e oprimidos
Que tentaram encontrar a solução
São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas
Memória de um tempo onde lutar por seu direito
É um defeito que mata
E tantos são os homens por debaixo das manchetes
São braços esquecidos que fizeram os heróis
São forças, são suores que levantam as vedetes
Do teatro de revistas, que é o país de todos nós
São vozes que negaram liberdade concedida
Pois ela é bem mais sangue
Ela é bem mais vida
São vidas que alimentam nosso fogo da esperança
O grito da batalha
Quem espera, nunca alcança
Ê ê, quando o Sol nascer
É que eu quero ver quem se lembrará
Ê ê, quando amanhecer
É que eu quero ver quem recordará
175

Ê ê, não quero esquecer


Essa legião que se entregou por um novo dia
Ê eu quero é cantar essa mão tão calejada
Que nos deu tanta alegria
E vamos à luta.439

Nesse item em particular analiso as disputas de memória com relação ao golpe


de 1964 na cidade de Parnaíba. A intenção é evidenciar como alguns grupos projetaram, ao
longo do tempo, suas interpretações a respeito desse evento. É tentar puxar alguns fios de
memória, a partir de diferentes grupos sociais, bem como suas variações entre lembrança e
esquecimento. Como pude perceber, alguns dos nomes da política local, por sua aproximação
com agentes ligados à ditadura, buscaram caracterizar um certo distanciamento geográfico
da cidade como fator que impossibilitou a presença tanto dos movimentos sociais, marcados
pelas pautas reformistas – vistas ao longo dos capítulos anteriores – quanto das práticas
repressivas adotadas após o golpe.
Alguns outros agentes, por seu lado, buscaram evidenciar que a cidade de
Parnaíba e o Piauí, teriam sido privilegiados durante o golpe e o transcurso do período
ditatorial. Portanto, suas memórias sobre aquele momento são positivas, dotadas até mesmo
de um certo saudosismo e de um uso simplificado do passado. Por outro lado, os grupos de
trabalhadores atingidos pelo golpe e seus familiares constituíram uma espécie de memória
subterrânea. Pouco rememoram os acontecimentos vividos naqueles meados de abril de
1964, quando não mesmo procuraram o apagamento, o interdito, o silenciar dos sofrimentos
em suas vidas. De encontro a isso, ao longo do tempo, esses últimos pouco encontraram
canais de comunicação para reverberar os vividos naquele momento. Este item, portanto,
tenta colocar em evidência algumas dessas memórias dos trabalhadores parnaibanos, a partir
da família de lideranças sindicais atingidos pelo golpe com prisão e indiciamento em IPM.
Alguns agentes, por meio de determinados usos políticos do passado, insistiram
em apontar que Parnaíba não viveu nenhum reflexo direto do golpe, pois a cidade, naquele
momento, não teria tamanha importância política e econômica que justificasse medidas
repressivas em seu espaço. Por outro lado, muitos dos perseguidos pelo golpe guardaram, ao
longo do tempo, sigilo quanto às suas prisões, indiciamentos e interrogatórios. Nos jornais
publicados na cidade, nem mesmo durante o processo de abertura política nos anos 1980,
nada se questionou sobre as perseguições aos acusados de “subversão” em 1964 nessa cidade,
como pude evidenciar. Prevaleceu o silêncio sobre aquele momento.

439
JUNIOR, Gonzaga. Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória (A legião dos esquecidos). A viagem
de Gonzagão e Gonzaguinha. Gonzaguinha e Luiz Gonzaga CD EMI/Odeon, (1994).
176

Esse capítulo em particular, apesar de falar de um tema pouco recorrente na


cidade, pretende lançar luz sobre as memórias de trabalhadores sindicalizados e lideranças
políticas, acossados pela repressão militar da Guarnição Federal, com sede em Teresina, e
pela Capitania dos Portos, sediada em Parnaíba. Bem como pretende contribuir com um tema
importante nesse atual cenário de ressurgimento de medidas policialescas por parte de
agentes estatais e em que se ventilam usos políticos do arcabouço jurídico herdado da
ditadura.
É preciso entender, de imediato, que as memórias são sempre seletivas, parciais,
localizáveis no tempo e espaço, pois são também, diga-se, produtos de embates políticos e
identitários. Tendo em vista que “a faculdade de rememorar guarda mais proximidades com
o presente do que se pode supor. Relembrar o passado é instaurá-lo num terreno de disputas
entre determinadas versões”440. Nesse sentido, é preciso entender que algumas questões a
respeito do golpe, dos anos vividos no passado, do período da ditadura, passam por
adaptações com o avançar de outros contextos e experiências temporais. Vão sendo
ressignificados, remodelados, por conta dos interesses do próprio presente e da noção que se
quer atribuir àquele passado.
Um evento de marca significativa, como o golpe de 1964, ainda hoje passa por
profundas disputas de memória441. Sobretudo por conta das turbulências políticas vividas no
Brasil, com o ressurgimento de pautas de extrema-direita, ou mesmo da evidência de grupos
defensores de uma intervenção militar autoritária. Além disso, é preciso mencionar, não se
fez como na Argentina, Uruguai ou Chile442, onde houve punição aos militares responsáveis
por crimes contra a humanidade após o processo de abertura política. Em nosso caso, a
abertura, foi amparada em práticas de conciliação de interesses das elites políticas e militares,
empurrando para debaixo do tapete as graves violações de direitos humanos cometidos
durante os anos do regime.
Um aspecto referente à consolidação de uma dada memória sobre os regimes
ditatoriais que marcaram os anos 1960-1980 no Cone Sul é uma tentativa de forjar narrativas

440
PEREIRA, Aline Andrade. O silêncio dos inocentes: construções memorialísticas de Israel Klabin e Rubem
Fonseca sobre um passado que insiste em não morrer. IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta
Viz (Org). História e memória das ditaduras do século XX, v.1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
441
Vale ressaltar a produção recente de documentários com forte carga negacionista sobre o golpe e a ditadura
brasileira, produzidos por grupos de extrema-direita no Brasil atual, como 1964: Brasil entre armas e livros.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t=211s. Acesso em: 03 fev. 2020.
Destaca-se também, nesse momento, uma forte mobilização de uma memória positiva sobre o regime militar
por parte de agentes da direita no Brasil atualmente.
442
Para uma análise sobre as diferenças a respeito das medidas adotadas com o fim das ditaduras no Brasil,
Chile e Argentina, ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e
Uruguai. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015.
177

idealizadas, míticas, ao mesmo tempo simplificadoras e harmoniosas, para uma melhor


aceitação social de determinados aspectos do passado e no sentido de se evitarem embates
futuros. Nesse sentido, a construção de narrativas míticas sobre os regimes ditatoriais pelas
sociedades que o atravessam, para ocultar certos aspectos do passado recente, ao mesmo
tempo em que busca facilitar a inserção de novo sistema político dos ex-partidários da
ditadura, legitimando o novo poder, evita um debate aprofundado sobre a questão das
responsabilidades 443 . E essa é uma questão importante, pois é necessário compreender a
presença e efetiva legitimação de grupos de civis no processo de tomada de poder em 1964,
bem como na consolidação da ditadura. Sem esses grupos a dar apoio aos atos autoritários,
por certo, os regimes de exceção, como a última ditadura, não se sustentariam por tanto
tempo.
Essas memórias são forjadas também a partir de um determinado lugar que se
ocupa no corpo social. As memórias dos grupos conservadores parnaibanos sobre aquele
contexto são distintas das dos trabalhadores e de seus familiares. Após o golpe, os últimos
se viram indiciados, respondendo a inquéritos policiais militares, com problemas na justiça,
sem direitos políticos e, em alguns casos, detidos. Essas memórias também vão se
modificando ao longo do tempo, sobretudo com a abertura política e com indícios de que,
pelo menos nas batalhas de memória, no Brasil, os militares foram derrotados 444. Sobre o
aspecto da memória a partir de sua construção ao longo do tempo, Pollak indica que “pensar
na memória como atividade inserida no presente é instaurá-la em uma dialética entre
lembrança e esquecimento. Os esquecimentos e silêncios, propositais ou não, dizem muito
sobre o grupo do qual se deseja pertencer”445.
Especificamente com relação à construção de visões sobre o contexto do golpe
e da ditadura nessa cidade piauiense, na edição de 2004 do Almanaque da Parnaíba,
Fernando Ferraz, membro da Academia Parnaibana de Letras, destaca um aspecto que se faz
presente nas memórias de grande parte da sociedade parnaibana: a ideia de que a repressão
e as perseguições políticas não ocorreram nesse espaço. Além disso, o autor destacava que
fatores como a distância dos grandes centros urbanos possibilitava a essa cidade passar

443
GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditaduras em face de seu passado
na Europa e na América Latina. IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta Viz (Org). História e
memória das ditaduras do século XX, v.1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.p. 39-56, p. 46-47.
444
Sobre as disputas de memória a respeito do golpe e a visão dos militares sobre a ideia de derrota nas batalhas
de memória, ver: D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ari Dillon; CASTRO, Celso (Org.). Visões
do golpe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
445
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989.
178

distante dos principais eventos nacionais, como se eles não tivessem ressonância no norte
piauiense.
Ao mesmo tempo, determinados grupos parnaibanos mantiveram algum tipo de
memória positiva sobre os anos do regime militar. Esse é o caso do articulista, que escreve
texto intitulado De que sentimos saudade? publicado na edição comemorativa de 80 anos do
Almanaque, já no ano de 2004446. Esse era um momento, diga-se, em que grande parte das
instituições acadêmicas começavam a debater os efeitos do golpe de 1964 e o tema adquiriu
maior visibilidade, ao contrário das efemérides anteriores, quando pouca atenção foi dada
sobre o golpe e pouco se falou sobre as questões referentes à ruptura institucional447. Ferraz
narrou então que,

Enquanto as grandes cidades brasileiras protagonizavam cenas de


repressão aos que resistiram ao arbítrio da ditatura militar de 1964, minha
cidade natal especulava quem seria a vítima da próxima edição do jornal
apócrifo, mimeografado, “O Linguinha”. Protegido pela redoma do
isolamento geográfico do resto do país, deslumbrados pelas novelas da TV
Tupi e pelo programa do Flávio Cavalcante, a população da minha cidade,
orgulhosa da vitória da seleção canarinha no México, em 1970, embarcou
com orgulho no chamado “milagre econômico” brasileiro, ovacionando
nas ruas e avenidas o general Emílio Garrastazu Médici, que, em visita
oficial à cidade, recebeu homenagem dos parnaibanos, com o nome de uma
praça, conhecida como “Praça da Lagoinha”, e até de um grêmio 448.

É interessante observar algo que permeia algumas das memórias de escritores,


intelectuais, jornalistas e homens ligados às famílias tradicionais parnaibanas sobre o golpe
e a ditadura: a ideia de isolamento geográfico e de que, nessa cidade, não se realizaram

446
Benito Bisso Schmidt destaca que, no ano de 2004, o aniversário dos 40 anos do golpe que deu início à
ditadura civil-militar no Brasil motivou a irrupção no espaço público de diversos discursos de memória
conflitantes relativos àquele acontecimento, com destaque para o discurso governamental, o dos comandantes
militares e o das vítimas e seus familiares. Cada um destes discursos procurou estabelecer a forma correta de
lembrar (e de esquecer) o golpe, atribuindo-lhe significados variados e situando-o de formas diferenciadas na
história brasileira. SCHMIDT, Benito Bisso. Cicatriz aberta ou página virada? Lembrar e esquecer o golpe de
1964 quarenta anos depois. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.127-156, dez. 2007. Sobre as disputas de
memórias, ver também: CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. Revista
Brasileira de História - Brasil, 1954-1964. São Paulo, ANPUH – Marco Zero, v.14, n.27, 1994; ver também:
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares. Varia História, UFMG, n. 28, dez. 2002.
447
Sobre esse aspecto, no ano de 2004, Carlos Fico, em artigo, destacava que: “[Tem] sido notável, neste ano,
o interesse despertado pelos eventos de toda sorte que vão marcando a data, diferentemente de dez anos atrás,
quando seminários acadêmicos sobre os trinta anos do golpe de 64 tiveram de ser cancelados ou contaram com
baixa frequência de público. Milhares de pessoas, na maioria jovens, têm comparecido a debates em todo o
Brasil. A imprensa acompanha com interesse atividades acadêmicas regra geral ignoradas. Várias publicações
voltadas para o tema têm sido lançadas”. Ver: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura
militar. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 24, n. 47, p. 29–60, julho 2004, Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n47/a03v2447.pdf. Acesso em: 20 fev. 2020.
448
FERRAZ, Fernando. De que sentimos saudade? Almanaque da Parnaíba. Edição comemorativa 80 anos.
N. 67. 2004, p. 15-16.
179

punições, prisões, como as noticiadas em grandes centros, como Rio de Janeiro, São Paulo
ou mesmo Recife. Pelo contrário. A partir do relato observado no texto acima, há uma
percepção apaziguadora, tranquila sobre o golpe e até mesmo celebratória dos anos de
“milagre econômico”. As memórias presentes no texto do escritor Fernando Ferraz, em
muito se conectam com uma percepção do período ditatorial, não como anos de chumbo,
mas como anos de ouro. Pois, como se pode supor, alguns de seus familiares, ou amigos
próximos, se regozijaram durante tal contexto, por conta das benesses proporcionadas pelo
dito “milagre”, já nos anos 1970, e pelo clima de euforia propagado.
Talvez, Ferraz retenha nas suas memórias o contexto em que, a despeito das
denúncias de tortura por agentes de Estado, se realizavam festas, celebrações e homenagens
aos generais da ditadura, como a recepção mencionada, no início dos anos 1970, de
Garrastazu Médici, nessa cidade 449 . Sobre esse aspecto, Janaína Cordeiro destaca que,
“habitualmente identificado pela memória coletiva como anos de chumbo, este período
significou também e para expressivos segmentos da sociedade, anos de ouro, marcado por
grande euforia desenvolvimentista, por expectativas de ascensão social e pelo entusiasmado
sentimento de construção do futuro, do Brasil potência450. Importante destacar que grande
parte da sociedade piauiense, sobretudo setores tradicionais, apoiou o golpe, bem como a
ditadura que se estabeleceu pós-1964. Até mesmo em seus momentos mais sombrios, pode-
se dizer, por conta da percepção do desenvolvimento econômico e do consenso em torno da
propagação dos ideais de progresso e das obras propagandeadas pelos agentes do regime.
É importante observar que se produziram memórias positivas sobre o contexto
do golpe e da ditadura, a partir também das relações políticas estabelecidas ao longo do
tempo com os militares. Setores tradicionais, partidários da antiga UDN, que depois
migraram para a ARENA e, com a abertura, se acomodaram no PDS, viam com certo desdém
o processo de modificação política, com a “saída de cena” dos presidentes ditadores e a
iminente entrega do poder aos civis. Em edição de 1981 do jornal parnaibano A ação, ligado

449
A visão do escritor Fernando Ferraz em muito se assemelha com a de outros escritores, jornalistas e
intelectuais da cidade de Parnaíba. Exemplo disso é a obra escrita no início dos anos 1980 pelo jornalista Caio
Passos, chamada Cada rua - sua história. Nela se narra, por exemplo, com bastante entusiasmo, a visita do
general Médici para inaugurar a referida praça com seu nome. Passos escreve que “o general Médici foi, sem
dúvida um dos maiores presidentes que o Brasil já teve”, tendo ainda, de acordo com o autor, “um trabalho
altamente humano e patriótico”. O autor indica então que “esta praça, que tem seu nome, foi inaugurada
pessoalmente pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, quando deu à Parnaíba insigne honra de sua visita,
em 02 de abril de 1973, inaugurando também, nessa ocasião, o trecho da BR-343 – Luiz Correia – Piripiri”.
Ver: PASSOS, Caio. Cada rua - sua história. Parnaíba-PI: 1982, p. 86.
450
CORDEIRO, Janaina. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do sesquicentenário da
Independência entre consenso e consentimento. (Tese de doutorado) Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 06.
180

a grupos políticos do PDS, como a família Moraes Souza 451, que emerge politicamente nos
anos finais da ditadura apoiando o regime, também consegui mapear um texto falando
positivamente sobre a chamada “revolução de 1964” e defendendo o legado dos militares
durante o período ditatorial como algo positivo. O autor do texto, de nome Raimundo Silva,
é um típico defensor do legado econômico da ditadura civil-militar, como se observa:

31 de março de 1964 foi um dia de expectativa nas primeiras horas e de


tranquila vitória e confiança quando o dia já ia chegando ao fim. À meia
noite do dia 31 a vitória da democracia já estava assegurada. O Brasil
iniciava assim uma nova fase de sua história. O governo Castelo Branco
logo se volta para a tarefa de reconstrução econômica do país.
Modificaram-se as normas reguladoras das atividades bancárias tributárias
e fiscais [...] Em seguida foram editados numerosos atos institucionais
cassando mandatos eletivos e direitos políticos. Foi também votada e
promulgada a constituição de 1967, quinta da República [...] A grande
preocupação do Governo neste ano consiste em reduzir a inflação e iniciar
uma ofensiva ainda mais forte no sentido solucionar de vez os problemas
e as disparidades regionais principalmente no Nordeste e Amazônia com
grandes programas de integração já anunciados [...]Neste momento, todos
temos a obrigação de juntar nossas forças à do governo para ajudá-lo na
execução dos grandes objetivos, sob pena de comprometermos o que já foi
feito[...] Hoje o Brasil é reconhecido não apenas pelo alto desempenho de
sua economia, mas também é consultado no momento das grandes
decisões452. (grifo meu)

Como se pode analisar no texto, publicado no jornal em alusão aos 17 anos do


golpe, o jornalista, já no período marcado pela abertura, ainda lançava apelos aos
parnaibanos no sentido de apoio ao regime ditatorial. É preciso, nesse aspecto, buscar
analisar as complexas relações estabelecidas entre a sociedade brasileira e o regime
instaurado em 1964. Bem como os silêncios a respeito de sua atuação na derrubada do
governo democrático de João Goulart, durante as articulações golpistas e ao longo da
trajetória do regime. Muitos civis, tais como Raimundo Silva, dentre outros membros das
famílias tradicionais parnaibanas, viram como positiva a agenda econômica dos anos
ditatoriais. Pouco se importaram com as denúncias que se faziam sobre torturas, prisões
arbitrárias ou outras medidas de exceção.

451
A família Moraes Souza, entrou na política durante o regime, se vinculando ao partido do governo, a
ARENA. Há ligações recentes de membros da família com alguns dos nomes oriundos da ditadura, como uma
homenagem ao general João Baptista Figueiredo, proposta pela gestão municipal de Francisco de Assis Moraes
Souza, em 2019. Entre os nomes da família com maior projeção política estão o ex-deputado estadual, por 05
mandatos, presidente da Federação das Indústrias, Antônio José de Moraes Souza (1937-2011) e seu irmão,
Francisco de Assis de Moraes Souza (1942). Este segundo já foi senador, governador (cassado) e prefeito de
Parnaíba por dois mandatos (1989-1992) (2017-2020) e fora reeleito em 2020, com votação expressiva, na
cidade de Parnaíba.
452
SILVA, Raimundo. Informativo. Jornal A Ação, Parnaíba-PI, n. 82, 29 mar. 1981.
181

No contexto da abertura, nessa cidade, ocorreram tentativas de apagamento


histórico, bem como procurou-se colocar à margem das “memórias oficiais” as organizações
dos trabalhadores, os contatos de sindicalistas parnaibanos com figuras como o presidente
João Goulart e Brizola, as atividades trabalhistas e a tentativa de organizar uma ramificação
das Ligas Camponesas em localidades próximas à Parnaíba. Me refiro a falas como a de uma
figura de evidência na sociedade e política local, ex-prefeito, médico atuante na cidade, o Dr.
Cândido de Almeida Athayde453. Em entrevista realizada no ano de 1984 junto à Fundação
CEPRO454, localizada no levantamento do material para esta pesquisa, quando foi perguntado
ao médico a respeito de como a cidade vivenciou o momento do golpe em 1964, ele
respondeu:

Àquela época todo mundo estava motivado pelas ideias que apareciam lá
no Rio de Janeiro, mas não refletia aqui. No nosso meio, não tinha
repercussão nenhuma aquele governo e aquelas ideias que o Jango andou
deixando que aqueles soldados e aqueles sargentos, aqueles cabos,
fizessem aquele movimento. Aquilo foi que assombrou os proprietários, os
industriais no sul. Não chegou até nós!455 (grifo meu.)

Sempre utilizando os termos “aquele(s)”, “aquela(s)”, para demonstrar certo


distanciamento com os eventos, o argumento empregado pelo médico em muito coincide
com as narrativas apaziguadoras recorrentes nas páginas de algumas publicações locais que
buscavam redimensionar os eventos ocorridos 20 anos antes. Ao apontar que “essas ideias
não chegaram até nós”, o médico indicava que, em Parnaíba, não se sentiu o reflexo das
organizações sindicalistas, dos subalternos das forças armadas, tampouco as pautas
trabalhistas foram perceptíveis nessa cidade. Muito menos a reação dos grupos tradicionais,
por meio da imprensa, em apoio ao golpe, teria ocorrido. Para o médico, Parnaíba passou
incólume aos efeitos do golpe civil-militar de 1964, pois a cidade seria “indiferente” aos
eventos políticos do centro-sul, pois, para Athayde, existia um “problema interessante”,
segundo ele afirmava, “o parnaibano [é] muito introvertido”456.
É preciso mencionar, no entanto, que naquele momento de abertura política, de
onde se situa a fala do médico, com as manifestações em torno das eleições diretas, algumas

453
Cândido de Almeida Athayde nasceu em 19 de setembro 1904, em Tutóia, no estado do Maranhão e faleceu
em 1998 em Parnaíba (PI). Médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1929. Diretor da
Santa Casa da Misericórdia em Parnaíba. Prefeito da Parnaíba (1945-1946). Membro da Academia Parnaibana
de Letras.
454
Trata-se da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí – CEPRO. Localizada em Teresina,
que possui acervo de entrevistas gravadas com personagens do quadro político piauiense.
455
ATHAYDE, Cândido de Almeida. Entrevista concedida ao Núcleo de História Oral da Fundação Centro de
Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí - CEPRO. Em 17 de janeiro de 1984, p. 05.
456
ATHAYDE, Cândido de Almeida. Op. cit. 1984, p. 05
182

das narrativas empreendidas sobre o golpe de 1964 e a ditadura civil-militar, buscaram


redimir a presença de setores da sociedade no processo de apoio ao golpe e de sustentação
da ditadura que se manteve no poder por mais de 20 anos. No plano político, nos anos 1980,
percebe-se que “negociava-se a transição para a democracia sob a tutela dos militares, cujo
discurso sustentava-se no argumento de terem salvado o país do comunismo”457. Ao mesmo
tempo, a sociedade e os veículos de comunicação buscaram apagar o seu papel no processo
de construção e adesão ao golpe e à ditadura instaurada no país. Ambos os setores, diga-se,
foram construindo uma “arquitetura simplificada”, em que coubesse apenas a ideia de que a
sociedade teria “uma longa vocação democrática”458.
Esse tipo de memória sobre o golpe, a meu ver, teve uma função conservadora,
reproduzindo uma visão interesseira e simplificadora sobre o passado recente. É necessário,
portanto, puxar outros fios de memórias sobre o golpe no Piauí. Perceber as memórias dos
atingidos pelo autoritarismo. Aqueles que, em um contexto de ampliação das formas de
organização sindicalistas, influenciadas pela possibilidade de reformas nas estruturas
produtivas no Brasil, ousaram se mobilizar e dar corpo às suas demandas políticas.
Marceneiros, pintores, estivadores, operários, trabalhadores das mais diversas atividades
urbanas, bem como das comunidades rurais que circundam Parnaíba, pagaram um alto preço
por propor formas de representação coletiva em que pudessem lutar por uma melhor
distribuição de renda e melhores formas de trabalho. O preço foi a repressão que se abateu
sobre esses trabalhadores sindicalizados e seus familiares como desdobramento do golpe de
1964.
É preciso estar atento às disputas e redimensionamentos da memória sobre um
evento como o golpe de 1964 e suas reconfigurações em uma cidade como Parnaíba, no
norte piauiense, tendo em vista que, conforme indica Beatriz Sarlo, o “campo da memória é
um campo de conflitos”459. Nesse sentido, a autora aponta ainda que “o passado é sempre
conflituoso”. Esse passado vive “espreitando o presente como a lembrança que irrompe no
momento em que menos se espera ou a nuvem insidiosa que ronda o fato que não se quer ou
não se pode lembrar”460. Sarlo indica uma questão importante para o trabalho, quando destaca
que “o retorno do passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um

457
JOFFILY, Mariana. Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas. Tempo
e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 204 ‐ 251, jan./mar. 2018.
458
Sobre a construção das memórias referentes à ditadura brasileira ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura
militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
459
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar.
São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 20.
460
SARLO, Beatriz. Op. cit., 2007, p. 09.
183

advento, uma captura do presente”461. Portanto, é fundamental observar o momento de onde


se produzem as memórias e os diferentes usos políticos de tal passado.
Sobre as diferenciações necessárias entre o fazer historiográfico e as artimanhas
das capturas de sentido sobre o passado, Rodrigo Motta indica que “Memória e História são
formas distintas de representação do passado”. O historiador alerta que a distinção está no
fato da “História operar com procedimentos científicos, um método, a crítica das fontes e a
busca de evidências as mais amplas e diversificadas”. Nesse ponto, ele indica que o
historiador deve desconfiar das suas fontes, “inquiri-las em busca da verdade. Se o objetivo
e a ambição da historiografia é a verdade, a Memória, por seu turno, tem como compromisso
maior a fidelidade ao passado de que oferece testemunho”462.
No Piauí, já nos anos 2000, talvez por conta da chegada ao poder de um partido
mais fortemente ligado às lutas das classes trabalhadoras desde o final da ditadura 463, no
governo federal e estadual464, produziram-se alguns livros de memória tratando, mesmo que
indiretamente, dos anos do golpe e do regime, escritos por atores que sofreram algum tipo
de perseguição política no estado naquele momento. Dentre eles, um trouxe forte tom de
denúncia aos desdobramentos e medidas repressivas adotadas no Piauí após o golpe. O livro
intitulado Tempos de contar o que vi e sofri nos idos de 1964, do então vereador pelo PTB
(1962-1964) e estudante de Direito na capital piauiense, Jesualdo Cavalcanti de Barros 465,

461
SARLO, Beatriz. Op. cit., 2007, p. 09.
462
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “História, memória e as disputas pela representação do passado recente”.
Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 9, n.1, p. 56-70, jan./jun., 2013.
463
Caroline Silveira Bauer destaca que “a partir dos anos 2000, houve uma mudança qualitativa no panorama
internacional de elaboração de políticas de memória, fortalecendo os discursos sobre os direitos humanos no
Cone Sul, uma nova conjuntura política inaugurada com a sucessão de governos progressistas, somada à
mobilização de setores da sociedade civil, possibilitou uma alteração na cultura da impunidade fomentada
desde o término dos regimes ditatoriais”. A autora cita, então, o exemplo do Chile, que em 2003 estabeleceu
uma nova comissão da verdade, conhecida como “comissão Valech”, dentre mudanças ocorridas na Argentina
e debates sobre a abertura de arquivos da repressão e sobre a Lei de Anistia, no Brasil. Ver: BAUER, Caroline
Silveira. Como será o Passado?: História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco
editorial, 2017, p. 32-33.
464
O início dos anos 2000, mais especificamente o ano de 2002, coincide com a eleição do líder sindical, Luiz
Inácio Lula da Silva para a presidência da República e, do governo do estado do Piauí, do primeiro mandato
de José Wellington Barroso de Araújo Dias, oriundo do sindicato dos bancários desse estado. Ambos filiados
ao Partido dos Trabalhadores.
465
Jesualdo Cavalcanti Barros nasceu em Corrente (PI) em 1940. Iniciou a carreira política em outubro de
1962, quando se elegeu vereador em Teresina na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Tomou posse
na Câmara Municipal em janeiro de 1963 e, logo após a vitória do movimento político-militar que depôs o
presidente João Goulart (1961-1964), teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos
com base no Ato Institucional nº 1, editado em 9 de abril de 1964. Em 1966, formou-se pela Faculdade de
Direito do Piauí. Em 1975, foi nomeado subsecretário da Indústria e do Comércio do estado, no governo de
Dirceu Arcoverde (1975-1978). Nesse período, foi também primeiro-secretário da diretoria do Conselho
Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (PI) (1976-1978). No pleito de novembro de 1978, filiado à
Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação ao regime militar, elegeu-se deputado estadual,
assumindo o cargo em fevereiro do ano seguinte. Com a extinção do bipartidarismo em novembro de 1979, e
a consequente reorganização partidária, ingressou no Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Arena, e
184

narra o tratamento a que ele foi submetido logo após sua prisão, em 1964, seu processo de
cassação, marcado por acusações frágeis e por meio de argumentos anticomunistas. Apesar
de sofrer medidas repressivas e ter sido cassado, após reaver seus direitos políticos, já nos
anos 1970, Jesualdo aderiu aos quadros da ARENA piauiense, partido de sustentação do
regime.
Em 1964, na cidade de Teresina, o clima de perseguição teve como alvos
principais algumas lideranças do sindicalismo, movimento estudantil, das Ligas
Camponesas, do PCB e do PTB. Em seu livro de memória, Jesualdo Cavalcanti destacou o
clima envolvido na prisão e tentativa de sua execração pública, ao se ver obrigado, pelos
militares, a desfilar em carro aberto pelas ruas da capital piauiense:

Nessa mesma tarde [04 de abril de 1964] encaminharam-se para a Dops,


onde pernoitei. [...]. À tarde do dia 05, protagonizaria o primeiro espetáculo
de truculência da nova ordem: seria levado para o 25º Batalhão de
Caçadores na carroceria de um caminhão aberto, sob forte escolta militar,
armada de fuzis e metralhadoras. O caminhão, ao atravessar a diagonal da
Praça Pedro II, diminuiu a marcha, de modo que as pessoas que formavam
longas filas para o cinema das 15 horas pudessem contemplar a cena. E
havia muita gente, pois era domingo466.

No relato memorialístico acima, Jesualdo destacou que uma das lógicas de poder
mais empregadas pelos militares da Guarnição Federal do Piauí, sediada em Teresina, era a
busca pela exibição pública daqueles indivíduos então considerados “subversivos” pelas
forças da repressão. Entende-se, nesse ponto, que todos aqueles que fossem ligados aos
movimentos sociais ou tivessem atuação política no âmbito das esquerdas no Piauí, poderiam
ser passíveis de punição e aos desmandos das forças militares em atuação no estado. Essa
produção de uma memória do sofrimento e da exposição, dos impactos repressivos, em
muito se desassemelha daquelas mencionadas anteriormente, que buscaram enfatizar um
clima de tranquilidade nesse estado, pelo distanciamento dos grandes centros urbanos.
Jesualdo ainda destacou no livro que:

nessa legenda se reelegeu em novembro de 1982. Licenciou-se em março do ano seguinte para ocupar a
Secretaria Estadual de Cultura, Desportos e Turismo, no governo de Hugo Napoleão (1983-1986) e, ao mesmo
tempo, a presidência da Fundação Cultural do Piauí. Em novembro de 1986, elegeu-se deputado federal
constituinte, já na legenda do Partido da Frente Liberal (PFL). Em 1990, foi eleito deputado estadual no Piauí
na legenda do PFL. Assumiu, em 1991, a presidência regional do PFL. Em 1994, renunciou ao mandato e
tomou posse como conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, que presidiu de 1995 a 1998. Em março de
2002, aposentou-se, passando a dedicar-se a pesquisas sobre a história do Piauí e ao movimento pela criação
do estado do Gurguéia. Em 2005, tornou-se presidente do Centro de Estudos e Debates do Gurguéia (Cedeg).
CAVALCANTI, Jesualdo. Verbete FGV-CPDOC. Disponível em:
http://fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jesualdo-cavalcanti-barros. Acesso em: 21 jul. 2020.
466
BARROS, Jesualdo Cavalcanti. Tempo de contar (o que vi e vivi nos idos de 1964). Teresina: Gráfica do
Povo, 2006. p.187.
185

Mas não me livrei da pressão psicológica e das ameaças que faziam


(soldados? capitães?), gritando do lado de fora: - ‘hoje à noite nós vamos
ajustar nossas contas. E será no rio Poti!’. [...] Não demoraria a juntar-me
aos demais presos. Não obstante o crescente número de estudantes,
trabalhadores e intelectuais que se amontoavam nos quartéis do 25º BC e
do 2º BEC, o capitão não se dava por satisfeito e dizia: ‘-Hoje são vocês,
logo virão Petrônio e dom Avelar!’467.

A memória do então estudante de Direito e vereador, Jesualdo Cavalcanti, sobre


o momento do golpe, é importante para perceber algumas questões. Um dos pontos é a
percepção a respeito das torturas psicológicas que ocorriam nos locais onde os considerados
subversivos eram aprisionados. Outra questão é a ideia que alguns militares viam como
possível a prisão do então governador Petrônio Portella e do arcebispo de Teresina, Dom
Avelar. Petrônio, como irei tratar no próximo capítulo, defendia o programa das reformas e
o governo João Goulart, até consumado o golpe, quando, no dia 02 de abril, passou a apoiar
os militares. O segundo, por sua forte atuação junto aos sindicatos rurais e na política
piauiense, também chegou a ser nomeado de “comunista” pelas ordens militares desse estado
e era visto com desconfiança pelos mesmos.
Segundo relatos observados no livro de memória, publicado também já no final
da primeira década dos anos 2000 por José Nelson de Carvalho Pires, chamado Biografia:
conversando com meus filhos para meus netos, existem alguns registros sobre os
acontecimentos vivenciados em Parnaíba após o golpe e nos anos iniciais do regime militar.
Alguns desses relatos apontam a figura do então capitão dos portos, Manuel Jansen Ferreira
Neto, como alguém responsável por atos de violência e abuso de poder. Esses atos foram
praticados contra indivíduos nomeados como “comunistas”, simplesmente pelo fato de
serem opositores aos grupos tradicionais que se beneficiaram com a onda conservadora
aberta pelo golpe. Alguns dos perseguidos, eram também vinculados a partidos como a UDN,
como era o caso do professor José Nelson, citado no capítulo anterior, porém, de um setor
udenista que mantinha certa aproximação com os petebistas. O relato dessas memórias é
importante, pois oferece uma outra visão sobre o momento do golpe e ainda possibilita
acessar as práticas repressivas empregadas pelos militares em Parnaíba. Esses agentes
utilizaram-se da força física e de seu poder para atemorizar lideranças políticas progressistas,
assim como lideranças sindicais nessa cidade.

Como Vereador, mas servindo na secretaria geral, ao receber ordem de


prisão, na praia de Luiz Correia, dada pessoalmente pelo Capitão dos

467
BARROS, Jesualdo Cavalcanti. Op. cit. 2006. p.188.
186

Portos, capitão de corveta Manuel Jansen Ferreira Neto, acompanhado de


soldados da capitania, usando práticas de luta aprendidas na escola de
educação física, no rio de Janeiro, não conseguiram me prender, tomei meu
jipe e, com outros companheiros de luta, nos refugiamos na residência de
José Luiz da Silva, mas como já aguardava as consequências, dias depois
tive que engolir um 38 (trinta e oito) empurrado na garanta que perdi
pedaço de um dente. Mas o companheiro José Luiz da Silva, ao levantar a
camisa, mostrou-me parte de seu corpo ferido com charuto, aplicado pelo
capitão dos portos468.

Nas memórias do ex-secretário de governo, José Nelson, destaca-se uma


quantidade de atos arbitrários cometidos pelo capitão dos portos na cidade de Parnaíba e em
regiões vizinhas. Há que se indagar que, se houve de fato medidas violentas contra agentes
públicos, como José Nelson 469 , que já havia sido vereador eleito, secretário de governo
municipal, portanto, pessoa de atuação e projeção no meio político-administrativo local, o
que se pode sugerir que tenha ocorrido contra os grupos de lideranças sindicais? Nas
memórias publicadas por José Nelson, se evidencia a aproximação do capitão dos portos –
Manuel Jansen Ferreira Neto – com membros do quadro político local e a rápida mudança
de postura do militar, quando recebeu os primeiros sinais de concretização da tomada de
poder pelos militares.

Nos primeiros dias da chamada revolução de 1964, no dia 31 de março, as


notícias pelo rádio e jornais comentaram sobre o deslocamento de tropas,
anunciando a revolução. Havia um perfeito entrosamento entre a prefeitura
e a capitania dos portos, razão pela qual estivemos ouvindo o noticiário na
residência do Prefeito Lauro Correia, eu, Lauro e o capitão dos portos. Um
pouco antes da meia-noite, ele, o capitão dos portos, levantou-se e disse:
‘Não se preocupem, antes do dia amanhecer, o general Ladário,
comandante do Exército do Rio Grande do Sul, abafará esse movimento’.
Como aconteceu exatamente o contrário o referido capitão dos portos
ocupou logo ao amanhecer a estrada de Ferro Central do Piauí, efetuando
várias prisões, passando a ditar normas em tudo. A cidade, pacata, foi
mergulhada em regime de terror, prisões, chamados para interrogatórios470.

Em certo aspecto, o que mais chama a atenção no relato de José Nelson é a rápida
mudança de postura por parte do capitão Manuel Jansen, logo depois de consumado o

468
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 10.
469
O Professor José Nelson, que foi pertencente antes do golpe aos quadros da UDN, migra para o PTB, logo
após o golpe, ao que tudo indica, por conta da cassação de José Alexandre Caldas Rodrigues. Ajudou a fundar
na cidade o MDB, após o AI-2, vindo a disputar eleição municipal em 1966, contra o candidato da família
Silva, que formou nessa cidade a ARENA, o candidato em questão, de acordo com José Nelson, era
“considerado eleito, pois candidato da ditadura, Dr. João Silva, [tendo eu] perdido a eleição” . José Nelson, é
preciso mencionar, foi alguém que consegue se manter em cargos de poder, apesar mesmo da ditadura. Por
certo, também por suas relações sociais e familiares a lhe garantir sustentação. PIRES. José Nelson de Carvalho.
Op. cit. 2010, p. 10.
470
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 64-65.
187

processo de ruptura em 1964. Teria recebido ordens expressas para partir para a “caça às
bruxas” na cidade litorânea? O que de fato se percebe é que essa cidade atraiu a atenção de
determinados grupos militares, em um primeiro plano, por conta de sua projeção econômica
no estado. Por ser localizada em Parnaíba, a sede da Estrada de Ferro Central do Piauí, local
que, diga-se, foi rapidamente invadido e cerceado pela Capitania dos Portos e onde os
militares temiam a organização de levantes e greves.
As memórias de José Nelson me permitiram acessar uma outra sensibilidade
sobre aquele período. Enquanto alguns nomes como o médico Cândido Athayde, citado
anteriormente, dentre outros parnaibanos, buscaram minimizar o peso das medidas
repressivas, a organização dos trabalhadores e mesmo a atuação política nessa cidade, José
Nelson, por seu lado, buscou destacar, em seu livro de memórias, um momento permeado
pelo clima de medo. O professor registrou, nesse sentido, um cenário marcado pelo temor
das violências físicas e simbólicas, pela repressão e por posturas autoritárias de membros
das forças de segurança nessa cidade. Como se pode retirar dessa produção memorialística,
houve também pressão para que ocorressem cassações de membros do PTB no legislativo
municipal, como o vereador Custódio Amorim (também indiciado pelos militares no IPM).

Alguns dias depois o prefeito Lauro Correia solicitou meu comparecimento


em sua sala. Ao seu lado o capitão dos portos. Nos cumprimentamos e ele,
capitão, me disse o seguinte: ‘Queria que você se desligasse da secretaria
e fosse assumir seu lugar de vereador para iniciarmos cassar alguns
vereadores e o primeiro será o negro Custódio Amorim, porque anda
falando demais’. Ao me recusar e responder que não me serviria para tal
finalidade, tivemos um entendimento que não agradou a ele, capitão. Notei
que eu havia plantando uma semente de vingança471.

Um aspecto comum em algumas obras de memória escritas sobre o momento, é


uma forma de pressão das forças armadas locais contra grupos políticos “não afinados” com
os militares. Na câmara dos vereadores, como se pode perceber na citação acima, mas
também na Assembleia Legislativa do Piauí (ALEPI), como irei tratar mais à frente,
perseguições políticas foram adotadas e contaram, em certa medida, com o apoio ou a
complacência de lideranças políticas dessas casas.
De acordo com livro Marcas da Ditadura no Piauí, do jornalista piauiense
Deoclécio Dantas, o processo de cassação de nomes do PTB, como do então deputado
estadual José Alexandre Caldas Rodrigues, em maio de 1964, “não abateu a disposição do

471
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 64-65.
188

PTB para resistir aos golpes da ditadura”472. De acordo com Dantas, os nomes do partido,
mesmo após o golpe e o clima de perseguição política, buscaram meios de atuação partidária
nesse estado. De acordo ainda com o jornalista, uma comitiva “vinda de Teresina com alguns
nomes ligados ao PTB, como o deputado federal João Mendes, deputados estaduais
Nogueira Filho e Pedro Borges, além dos advogados Reginaldo Furtado e Ocílio Lago Júnior
foi a Parnaíba em meados de setembro de 1965, para um encontro com correligionários da
região” 473 . Portanto, como se pode evidenciar, pouco antes do AI-2, que pôs fim ao
pluripartidarismo no Brasil, o grupo mencionado tentava organizar formas de reação ao
processo de cassação de mandatos e se articular politicamente em torno da legenda petebista
para as eleições de 1966.
Na obra do jornalista Deoclécio Dantas, também se destaca a percepção que o
grupo petebista teve em relação à postura dos militares à frente da Capitania dos Portos no
norte do estado. De acordo com Dantas, os líderes do PTB, que então se dirigiram a Parnaíba,
“todos oriundos de famílias tradicionais do Piauí, porém, ‘não afinados com o golpe’ e nem
por isso engajados no projeto voltado para a ‘comunização’ do país, não imaginavam que
enfrentariam hostilidades impostas ao grupo pelo capitão dos portos”474. Ainda de acordo
com o relato do livro, “enquanto colocavam suas bagagens no hotel central, foram eles
informados que na portaria, aos berros, o capitão de corveta chamando-os de comunistas e
corruptos, ameaçava-os com ordem de prisão, provocações essas repetidas no turno da tarde,
o frente ao bar do gago, no centro de Parnaíba.”475.
Sobre esse mesmo episódio, foram produzidos alguns textos, publicados também
em livro de memória. No livro Biografia, escrito pelo ex-secretário de governo, José Nelson
de Carvalho Pires, se evidencia a visão desse agente público sobre o ocorrido. De acordo
com José Nelson,

Naquela época, quando alguém era escalado para ser preso ou responder
interrogatório, era acusado de comunista. O veículo dirigido pelo próprio
capitão dos portos, que ao descer rumou em minha direção e disse: ‘Esteja
preso, comunista!’ Eu estava naquele momento conversando com o
Coronel Pedro Borges e ele, o Coronel tomou a frente e se apresentou da
seguinte forma: ‘Coronel Pedro Borges!’, tendo sido chamado de ‘Coronel
de merda’, tendo aplicado um forte soco na testa e, com isso, o capitão caiu
e, ao levantar, avançou rumo ao coronel Pedro Borges. Eu sabia me
defender e cabia a mim não permitir que Pedro Borges fosse atingido e
respondi, com todas as energias que tinha, sobre o capitão, visto que seus

472
DANTAS, Deoclécio. Marcas da ditadura no Piauí. 2008, p. 15.
473
DANTAS, Deoclécio. Op. Cit. 2008, p. 15-16.
474
Idem.
475
Idem.
189

soldados não tiveram menor reação. Travou-se uma verdadeira batalha e o


capitão ficou num estado que não conseguia se levantar e só não apanhou
mais, foi por solicitação de sua esposa, pedindo para não matar seu
marido476.

O relato do professor José Nelson destaca que os atos de violência e confrontos


físicos se tornaram evidentes na cidade, nos momentos posteriores ao golpe, quando os
quadros políticos do PTB buscavam organizar formas de atuação partidária no estado. Os
atos de violência atingiram fortemente trabalhadores urbanos e rurais, líderes sindicais,
estudantes, também lideranças políticas do PCB e PTB piauiense. Os últimos, no entanto,
sobretudo os oriundos do meio empresarial, por seus laços pessoais e familiares, podiam
recorrer a autoridades do mundo jurídico e/ou mesmo militar em seu auxílio.
Troca de palavrões e insultos em vias públicas e até mesmo em locais de lazer
da cidade e regiões vizinhas foram relatados pelo professor José Nelson e em texto
memorialístico do jornalista parnaibano Rubem Freitas 477 . Esses conflitos, bem como as
agressões provocadas por membros da Capitania dos Portos, sediada em Parnaíba, eram
permeados de discursos anticomunistas como argumento central para tentar “enquadrar” os
remanescentes do PTB no estado, bem como para prejudicá-los politicamente.
De acordo com Deoclécio Dantas, a ampla repercussão dada ao caso em rádios
de Teresina e Parnaíba, ainda “somadas às pressões por revanche da UDN de Parnaíba,
enfureceram o capitão dos Portos, que logo cuidou de montar um esquema para prender um
maior número de ‘comunistas’, forçando a fuga de alguns deles e naturais reações de

476
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 64-65.
477
Rubem Freitas, membro da Academia Parnaibana de Letras, na edição do Almanaque da Parnaíba de 1999,
escrevendo sobre o episódio supracitado, narrou que: “Não vi o começo da história. Vi, no dia seguinte, a
represália, a confusão, a briga, os socos e pontapés, as consequências. Corria o ano de 1965. Princípios de
setembro. [...] Estava aqui (Parnaíba) o alto comando do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) no Piauí:
Deputado Federal João Mendes Olímpio de Melo, Deputado Estadual Manoel Nogueira Filho, Coronel Pedro
Borges e o advogado Ocílio Lago Filho. Reuniram-se na noite de sábado, no Parnaíba Palace Hotel, com
petebistas parnaibanos, para traçarem novos rumos para o partido, já com vistas às eleições do ano seguinte –
1966. Terminada a reunião, eles desceram e ficaram, alguns minutos, à porta do Hotel, conversando e pensando
onde jantar. Dizem que o capitão dos Portos passou por ali, mais de uma vez, em seu jeep, insultando-os e
dizendo: ‘aí só tem comunistas’. [...] Isso aconteceu na noite de sábado. Domingo de manhã a praia era a pedida
dos visitantes. E para lá se dirigiram também Lauro Correia, José Nelson de Carvalho Pires, entre outros.
Ficamos na beira da praia. [...] A certo momento, chega o capitão Jansen. Vinha no jeep com a esposa. Não era
ali o seu caminho. Parecia ter passado de propósito. Parou bem perto do grupo olhando com ares sarcásticos.
O coronel Pedro Borges, dirigiu-se a ele e disse: ‘olhe, eu não gostei da sua insinuação ontem, chamando-nos
de comunistas. Nós não somos comunistas, somos petebistas’. Capitão Jansen disse: ‘vocês são comunistas’.
O coronel Pedro disse: ‘eu nunca seria comunista. Sou comandante da Polícia Militar do Estado e Coronel do
Exército’. Manuel Jansen retrucou: ‘Você é um coronel de merda’. O coronel Pedro aplicou um soco no rosto.
Jansen caiu. A turma de Teresina “voou” em cima dele, como que querendo estraçalhá-lo. Socos, mais socos,
pontapés superviolentos. Foi um ‘negócio’ sério. Os de Parnaíba, atônitos, tentaram contê-los, em vão. [...] O
capitão Manuel Jansen mandou sua guarnição prender os parnaibanos. Os teresinenses, não. Eram coronel,
deputados, advogado. Sobre o episódio ver: (FREITAS, Rubem. Capitão, corra. Almanaque da Parnaíba. Ed.
nº 66, Parnaíba-PI, 1999, p. 199-204.)
190

outros”478. Enquanto isso, ainda de acordo com o livro de Dantas, “o prefeito Lauro Correia
e o vereador Elias Ximenes do Prado estavam entre os que reagiram, sendo que o último
chegou a ser preso, mas foi logo libertado por conta de habeas corpus, impetrado pelo
advogado Reginaldo Furtado e concedido pelo juiz Luiz Lopes Sobrinho”479.
No livro Marcas da ditadura no Piauí, se destaca que, “em favor de Lauro
Correia intercedeu o desembargador Salmon Lustosa, enquanto o enfurecido capitão da
Marinha pedia ao Distrito Naval, com sede em Belém, o envio ao litoral piauiense de um
avião catalina e uma corveta, lotados de soldados”480. O livro, bem como outras fontes de
pesquisa, permite identificar que alguns líderes políticos piauienses, vinculados ao PTB,
estiveram na mira dos quadros militares locais. No entanto, como se tratavam de agentes
com cargos políticos, em alguns casos empresários e membros de famílias parnaibanas
tradicionais, conseguiam escapar à sanha persecutória do capitão dos portos acionando seus
laços de sociabilidade481.
Os relatos presentes nos livros de memória supracitados destacam uma postura
permeada de autoritarismo por parte do então capitão de corveta – Manuel Jansen – que,
sentindo-se legitimado pelo clima de perseguição aos opositores políticos do golpe, passou
para a “caça” aos petebistas piauienses, argumentando serem todos “comunistas”. Esse tipo
de reação, foi perceptível mesmo em espaços onde os militares tinham determinadas
aproximações e preferências políticas, em detrimento de outros quadros partidários.
O que se evidencia por meio dessas memórias, é uma postura repressiva
personalista, que levava muitas vezes em consideração algumas particularidades locais. Mas,
como mote principal, nos discursos persecutórios, sempre a nomeação dos opositores
políticos enquanto “comunistas” ou “corruptos”. Nenhum dos acossados pelo capitão dos
portos no conflito mencionado era de fato membro ou ligado ao PCB, mas, nesse caso,
remanescentes políticos do PTB, em uma tentativa de reorganização partidária da legenda,

478
DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 18-19.
479
Idem.
480
Idem.
481
Deoclécio Dantas destaca ainda que, em Teresina, sede da Guarnição Federal, do governo do estado e do
poder judiciário estadual, “Lauro Correia, o advogado Reginaldo Furtado e os deputados João Mendes, Pedro
Borges e Nogueira Filho pediram providências contra o autor dos abusos ocorridos na Praia de Atalaia”. De
acordo com esse jornalista, o prefeito de Parnaíba, Lauro Correia, “chegou a relatar os fatos ao governador
Petrônio Portella, ao presidente do Tribunal de Justiça, Edgar Nogueira, e ao comandante da Guarnição Federal,
Mascarenhas Façanha”. Todos estes, porém, apoiavam então o regime e, portanto, qualquer medida adotada
pelos militares. A partir disso, ainda segundo Dantas, o governador do Piauí (Petrônio Portella) e o presidente
do tribunal (Edgar Nogueira) – “cada qual com passo acertado com a ‘redentora’ – fingiram interesse na
rigorosa apuração dos fatos, enquanto Façanha, claro, nem disfarçava condenação aos métodos do oficial da
Marinha”. DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 18-19.
191

buscando atuar nas brechas do sistema repressivo imposto pelas medidas autoritárias dos
militares.
O aspecto que se evidencia então, é que os militares tinham suas preferências e
oposições políticas bem definidas. Muitos deles foram se aproximando de setores político-
partidários e, por outro lado, alguns nomes das elites políticas viam nessa aproximação uma
forma de se assegurarem no poder, ao mesmo tempo que colocavam na linha de tiro seus
opositores. Assim como no vizinho estado do Ceará, no cenário piauiense, também em meio
a esse contexto, “as principais lideranças políticas conservadoras aproveitavam para
expandirem os jogos de poder, para se legitimarem como porta-vozes da ‘revolução’ e assim
barganhar prestígio,”482 como destaca José Rabelo Filho.
Esses pontos elencados também são importantes para questionar uma certa
memória a respeito do primeiro governo militar enquanto moderado. Nesse sentido, Heloísa
Starling destaca que o governo Castello Branco “foi o prelúdio de uma completa mudança
no sistema político, sustentada, desde o início, por um formato abertamente ditatorial – vale
dizer, por um governo que não é limitado constitucionalmente”. Assim, a autora indica que,
ao contrário do que se costuma projetar sobre os primeiros anos após o golpe, o governo
Castello não tinha nada de moderado, pois “serviu para institucionalizar as soluções
discricionárias que limitaram de modo drástico as competências dos demais poderes e lançou
as bases do sistema de repressão que garantiram longevidade à ditadura” 483.
O ponto importante na análise dessas memórias é evidenciar uma outra
percepção sobre o momento do golpe de 1964 em Parnaíba. Apesar das memórias
tradicionais reproduzirem uma visão tranquilizadora a respeito do momento, há a percepção
de formas distintas de violência praticadas nessa cidade pelas forças militares com apoio de
civis. No regime ditatorial, desde o início, também em centros urbanos diversos, os grupos
de dentro da caserna sentiram-se à vontade para sair às ruas e atuar contra líderes políticos
trabalhistas, movimentos sociais, mas também contra lideranças sindicais.
Com relação a esse último grupo de perseguidos políticos, consegui acesso a um
caso em especial. O caso se refere a um dos trabalhadores perseguidos na cidade de Parnaíba
no contexto do golpe de 1964, indiciado pelo inquérito policial. Pude encontrar e entrevistar

482
RABELO FILHO, José Valdenir. A “Princesinha do Norte” em tempos de autoritarismo: legitimidade,
consenso e consentimento (Sobral-CE / 1964-1979). Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2014, p. 90.
483
STARLING, Heloisa. Prefácio. NETO, Lira. Castello: a marcha para a ditadura. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019, p. 18.
192

familiares deste trabalhador, que tinha o nome de Francisco das Chagas Frota de Medeiros484
e era conhecido nessa cidade como Maninho Medeiros. Durante o levantamento das
entrevistas para essa pesquisa, pude entrar em contato com Sebastião Paulo Frota de
Medeiros, irmão do trabalhador arrolado no inquérito por suspeita de subversão.
Sebastião Paulo destacou, em entrevista, que o irmão “veio do Rio de Janeiro,
para trabalhar em Parnaíba nos Correios e Telégrafos”. De acordo com Sebastião, o seu
irmão, Francisco das Chagas, “era muito esclarecido, discutia as reformas de base, a lei da
remessa de lucros, inclusão social, e outras coisas que não significavam qualquer atentado
ao sistema, mas que a elite política da época se baseava nisso e qualquer pessoa que
reclamasse era recriminado, como comunista, subversivo”485.
Sebastião ainda me narrou que Francisco das Chagas, “conheceu aqui alguns
nomes do PTB”. Segundo ele, “o PTB era um partido que por mais que tivesse seus erros,
se interessava pelas questões populares, questões sociais. Eles formavam uma espécie de
lideranças locais”. Sebastião destacou ainda, em entrevista, um aspecto muito comum como
desdobramento dos processos abertos contra lideranças sindicais, que era a impossibilidade
de indiciados assumirem cargos e algumas funções públicas, ou concursos, em alguns casos.
Segundo o entrevistado, seu irmão “ficou impedido de deixar a cidade, de assumir concurso
do Banco do Brasil ao qual havia sido aprovado”. Sobre o momento da chegada dos militares
em sua residência, Sebastião me narrou que:

Houve um grande desrespeito por parte dos militares. Quando eles


chegaram na casa dos meus pais. Eles pularam o muro que era pequeno e
batendo com o cabo do fuzil dizendo que era do exército. Eles chegaram
de madrugada, bem cedo. Meu pai quem atendeu. Eu dormia no outro
quarto e depois ele só me disse: olha, levaram o Maninho! Acho que passou
detido uns 08 dias no Arsenal do Tiro de Guerra. Na capitania, que era o
pessoal de maior patente, eram obrigados a irem lá assinar documento
somente pra constar que estavam na cidade (Em Parnaíba) 486.

Em texto no Almanaque da Parnaíba, já em 2017, o poeta parnaibano Alcenor


Candeira Filho, relata uma passagem que viveu já nos anos 1970, no Rio de Janeiro, quando
era estudante de Direito e convivia com o amigo Francisco das Chagas (Maninho Medeiros).
Ele indicou, no Almanaque, que se envolvera em uma confusão com amigos no bairro do

484
Francisco das Chagas Frota de Medeiros, em 1964, tinha a idade de 23 anos. Foi acusado pelo crime de
subversão da ordem política e social e de ter ideologias comunistas. Foi acusado de discutir, em seu ambiente
de trabalho, o DCT, sobre as reformas de base.
485
MEDEIROS, Sebastião Paulo Frota. Entrevista concedida a Francisco José Leandro Araújo de Castro em
20 de dezembro de 2017.
486
Idem.
193

Flamengo, no Rio de Janeiro, também frequentado pelo amigo indiciado e foram levados
para Delegacia. Porém, conseguiram avisar “Maninho” para evitar que não fosse junto com
os demais e assim evitar complicações com a polícia, tendo em vista ter sido indiciado no
IPM aberto na cidade de Parnaíba em 1964 e, por conta disso, ter possibilidade de maiores
problemas. Alcenor indicou então que:

Maninho saiu de Parnaíba nos anos 1960, para morar no Rio de Janeiro,
deixando na cidade natal e no curriculum a fama de “comunista”.
Envolvido em inquérito policial militar instaurado em Parnaíba em 1964,
foi preso e impedido de tomar posse como funcionário do Banco do Brasil
após aprovação em concurso, sob a acusação de ser subversivo. Anos
depois, conseguiu assumir o tão sonhado emprego. Os órgãos repressores
chegaram à conclusão de que Maninho era apenas um cidadão decente que
defendia a dignidade humana487.

As memórias e reminiscências de quem esteve próximo, convivendo com um


atingido pelo golpe, denunciado, indiciado por um inquérito policial, permite compreender
que, apesar de muitos dos processados terem sido anistiados com o decorrer do processo, a
marca, ou a “fama” de comunista e/ou subversivo, os perseguiu ao longo do tempo, enquanto
durou o regime, por conta das estruturas de vigilância do Estado militarizado. Até mesmo
em uma outra cidade, como o Rio de Janeiro, existia a preocupação em não ter qualquer
problema com as forças policiais, por conta do indiciamento que ocorrera na cidade de
Parnaíba, em 1964, no caso de Francisco das Chagas Medeiros.
É importante evidenciar essas memórias subterrâneas para tensionar as visões
simplistas e/ou saudosistas sobre a ditadura nessa cidade. A ideia de que a cidade passou ao
largo das medidas repressivas ou que não se reproduziram perseguições no âmbito local
precisa ser questionada, como visto. Existem memórias diversas, também nessa cidade,
sobre o contexto em que os militares assaltaram o poder no país. A partir dessas breves
indicações sobre alguns dos aspectos e das disputas de memórias políticas em Parnaíba,
passo então para a análise das memórias dos familiares de um outro líder sindical perseguido
nessa cidade, no momento do golpe de 1964.

Evilásio dos Santos Barros: líder sindical do CNTI atingido pelo golpe

A partir desse item vou evidenciar as memórias dos familiares de um outro


trabalhador indiciado no Inquérito Policial Militar, aberto em Parnaíba em 1964, Evilásio

487
CANDEIRA FILHO, Alcenor. Prisão de parnaibanos no Rio. Almanaque da Parnaíba, 70ª edição. Parnaíba-
PI, 2017, p. 16.
194

dos Santos Barros. Nascido no pequeno povoado Coroa de São Remijo, município de Buriti
dos Lopes, distante pouco mais de 40 km de Parnaíba, Evilásio migrou para a cidade de
Parnaíba em meados de 1945, quando o mundo assistia ao final da Segunda Guerra e
iniciava-se, no Brasil, a experiência liberal democrática, com o fim do regime do Estado
Novo. Mudou-se para buscar emprego e oportunidade de melhores condições de vida na
cidade e com a intenção de dar sustento a si e constituir família. Viera também em busca de
uma função estável, vindo a conseguir, logo em seguida, por indicação de um cunhado, junto
à firma Moraes S/A, do Sr. José de Moraes Correia488.
A firma Moraes S/A marcou época na cidade por meio da exportação dos
produtos do extrativismo vegetal como a cera da carnaúba. Evilásio, que viera em busca de
alguma função na cidade, estabeleceu fortes laços com essa empresa, vindo a trabalhar nela
por mais de 40 anos, portanto até o ano de 1986, dez anos após sua aposentadoria (1976)
quando completados trinta anos de serviços prestados na mesma. De início, segundo
entrevistas realizadas com os seus filhos, ao chegar na cidade de Parnaíba, trabalhou no
“chão da fábrica”, com serviços braçais dentro da referida empresa. Também, como pude
evidenciar nas histórias de vida de Evilásio, o trabalhador estabeleceu fortes laços com o
bairro em que residiu por mais de 40 anos, o popular bairro São José, que mencionei no
primeiro capítulo. O mesmo bairro onde residia grande parte dos trabalhadores indiciados
pelo Inquérito Policial Militar, em 1964.
Sobre esse processo de mudança de Evilásio de uma pequena comunidade –
Coroa de São Remijo, povoado de Buriti dos Lopes – para Parnaíba, no norte do estado, seus
filhos, Iara França de Barros, Gilberto França de Barros e Silvio Roberto França de Barros,
em entrevista a mim concedida narraram que:

Quando chegou em Parnaíba, em 1945, vindo da Coroa de São Remijo,


trabalhava em rodízio de horário dentro do Moraes. Semana em um horário,
outra semana em outro horário. Trabalhava de noite e tudo mais. Por que
na fábrica era assim, não parava, funcionava 24 horas. No Moraes era no
chão de fábrica mesmo. Depois ele foi subindo, ganhando espaço, aí ele
passou a trabalhar só de dia, e era ele que chefiava as turmas, acompanha

488
A fábrica Moraes S/A, ou simplesmente fábrica do “Moraes”, marcou época na cidade de Parnaíba, durante
grande parte no século XX. A empresa primeiramente trabalhou com a indústria de algodão, mas o destaque
econômico veio principalmente com a exploração e produção de óleos vegetais, da cera de carnaúba, na
primeira metade do século. Esses produtos eram comercializados tanto no Brasil como no exterior pela empresa.
A indústria Moraes S/A veio a criar alguns projetos inovadores utilizando matéria-prima da carnaubeira e uma
delas foi a produção de celulose que, produzida através da palha da carnaúba, teria qualidade superior a
produzida por outras matérias-primas, valorizando ainda mais a carnaubeira. Ver: Indústria Moraes S/A. Jornal
da Parnaíba, 01 jul. 2014. Disponível em: http://www.jornaldaparnaiba.com/2014/07/industria-moraes-sa.html.
Acesso em 21 jul. 2020. Ver também: Piauí industrializa celulose da carnaúba. Almanaque da Parnaíba, ano
1976, p. 51-53.
195

função na fábrica do Moraes. Mas a princípio, quando ele chegou aqui, foi
mesmo pro serviço braçal, serviço pesado 489.

Evilásio, de acordo com informações dos filhos, foi, aos poucos, ganhando
destaque nas funções que exercia dentro da fábrica Moraes e mesmo junto aos colegas de
profissão, até ir galgando melhores postos de trabalho. Além disso foi ao mesmo tempo se
vinculando a formas de representação da sua categoria de trabalho, até atingir função de
presidente daquele sindicato que representava sua função. Em fins dos anos 1950 e início
dos anos 1960, Evilásio já se constituía como uma forte liderança sindical, estando então à
frente da representação piauiense da Federação dos Trabalhadores da Indústria, vinculado
nacionalmente ao CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria), por onde
buscava organizar os trabalhadores locais e por onde realizava atividades em outros estados.
Evilásio, nesse sentido, é um exemplo de trabalhador ligado a uma atividade
laboral urbana, nesse caso o trabalho industrial, que vislumbrou, nos idos de final da década
de 1950 e início da década posterior, junto de seus pares, a possibilidade de, por meio de
uma progressiva organização sindical e de um debate profundo a respeito das desigualdades
sociais que assolavam a formação do nosso modelo econômico, transformar o mundo em
sua volta.
Os ventos das reformas de base, como mencionei até aqui, sopraram com
bastante vigor na costa litorânea piauiense, no início dos anos 1960, durante o governo João
Goulart, do PTB. De repente, os trabalhadores urbanos começaram a debater em seus
sindicatos as pautas reformistas, a valorização do salário mínimo, os direitos trabalhistas
adquiridos recentemente com a CLT, bem como a possibilidade de um processo de
desenvolvimento econômico, social e político mais justo, com uma sociedade mais fraterna
e igualitária, em que os mesmos pudessem se ver representados diretamente por meio de
suas próprias associações de classe.

489
BARROS, Iara França de. Entrevista. Concedida a Francisco José Leandro Araújo de Castro. 04 de junho
de 2020.
196

Figura 4- Diploma da posse de Evilásio dos Santos Barros na função de Presidente da Federação dos
Trabalhadores na Indústria no Estado do Piauí, no biênio 1961-1963, assinado pelo prefeito José Alexandre
Caldas Rodrigues, do PTB. (15 de novembro de 1961)

Fonte: Acervo particular da família de Evilásio dos Santos Barros.

Homem de seu tempo, Evilásio participou ativamente de inúmeras formações no


antigo estado da Guanabara, onde frequentou reuniões com lideranças nacionais da
Confederação a que pertencia. Essa sua circulação nos meios trabalhistas de maior projeção
no país o habilitou a falar muitas vezes em nome da classe a que se vinculava, a Federação
dos Trabalhadores da Indústria. Consequentemente, essa mesma projeção sindical que
Evilásio adquiriu ao longo do tempo, vai ser fator determinante para, logo nos primeiros dias
após o golpe civil-militar de 1964, que retirou um presidente eleito democraticamente do
poder, ser indiciado em um Inquérito Policial Militar, junto a muitos outros trabalhadores,
lideranças sindicais e políticas parnaibanas e teresinenses.
No Inquérito Policial Militar aberto em Parnaíba, que analisei no item anterior,
consta, na acusação que, Evilásio “viajava constantemente para a Guanabara, todas as vezes
que era convocado pela Confederação Geral dos Trabalhadores, onde recebia instruções para
fazer greves”. Bem como indicava o IPM, em tom denunciador, que esse trabalhador
“participou da Assembleia Geral local para deliberar sobre a passeata de solidariedade a
197

Goulart”490, que fora proposta como forma de demonstrar apoio às reformas de base. Tendo
ainda recebido instruções para organizar, na cidade de Parnaíba, o “Comando Municipal dos
Trabalhadores”, junto do líder dos estivadores, Tiago José da Silva, de acordo com
depoimento desse último.

Figura 5- Carteira Profissional do Ministério do Trabalho e Previdência Social de Evilásio dos Santos
Barros.

Fonte: Acervo particular da família de Evilásio dos Santos Barros.

De acordo com sua esposa, Carmelita França Barros e seus filhos, que tive
oportunidade de entrevistar, os eventos ocorridos em meados de abril de 1964, logo após a
tomada de poder pelos militares, foram de impacto bastante traumático para suas memórias.
A sra. Carmelita contou e seu depoimento foi repassado aos filhos, como guardiões de suas
memórias, que enquanto o marido se encontrava em viagem para Fortaleza, para velório e
sepultamento de um familiar, ela recebeu, no calar da noite, a visita de militares em sua
residência; estes estavam em busca do sr. Evilásio, poucos dias após o golpe de 1964. A sua
filha, Iara França, então me narrou as memórias desse momento de forte tensão
compartilhadas por sua mãe:

490
Autuação. Ministério Público Piauiense. op, cit. p. 06.
198

A mamãe disse que ouviu bater na porta, de madrugada, gritando ‘Evilásio,


Evilásio!’ Ela então pensou que era até assim algum marginal. Ela ficou
se tremendo toda, não respondeu nada, não abriu nada. Ficou calada! Era
três da madrugada, eles batendo com força na porta e ela lá dentro, calada.
Então ela foi e se levantou, aí a Maria das Graças (uma moça que morava
lá em casa) veio, ficou com ela ali, caladinha, por sorte nenhum de nós,
que estávamos dormindo, acordou. Todo mundo bem pequeno, né... Então
ela disse que passou assim uns 20 minutos, mais ou menos, então ela
escutou batendo na casa do Seu Antônio, que era o vizinho de lado. Ela
ouviu aquela conversa. Batendo lá na porta e o homem conversando. E
depois acalmou. Então ela disse que foi pra cozinha, porque a parede dava
assim para a parede da casa do Seu Antônio. Não eram forradas as casas,
nem nada. Ela foi e chamou: ‘Seu Antônio, Seu Antônio, o que é que tá
acontecendo?’ Aí o seu Antônio respondeu: ‘Dona Carmelita é a polícia!
Eles estão atrás do Seu Evilásio. E eles vão voltar. É melhor a senhora
abrir’. Então ela foi e sentou-se, tentou se acalmar, tirou a camisola, se
vestiu, ficou sentada na cadeira se tremendo, chorando... Foi quando eles
chegaram de novo. Dessa outra vez já foi com violência... Já chegaram
gritando: ‘abre, abre, porque senão a gente vai arrombar a porta!’ Aí ela foi
lá e abriu. Eram uns quatro homens. ‘Tudo armado!’ Eram homens do
Exército!491

É possível, por meio do relato observado, perceber o medo, as sensações de


pânico e as fortes emoções que esse momento causou à esposa de Evilásio, a sra. Carmelita
Barros. Dona de casa, responsável pelos cuidados maternos, além de um pequeno comércio
que montara em sua residência junto ao marido, sentiu, nos meados de abril de 1964, os
tentáculos do regime de exceção atingindo o seu lar. Tolhidos em lugar sagrado para as
famílias, a casa em que habitavam junto aos filhos, tiveram a inconveniente e violenta
presença das forças policiais enquanto dormiam. O relato da filha segue apontando que:

Mamãe disse que eles já entraram: ‘Cadê seu Evilásio, cadê seu Evilásio!??’
Aí mamãe disse que ele não estava.
Mesmo assim eles entraram, reviraram a casa toda. O quarto que a gente
estava dormindo. Abriram um guarda-roupa, com as gavetinhas bem
pequenas, eles tiraram as gavetas e jogavam tudo, tudo no chão,
espalharam tudo! E dizendo: ‘Cadê seu Evilásio?’ Procurando por ele...
Mexeram tudo. Tudo na casa. E disseram pra ela: ‘Olhe, nós vamos te levar,
pra tu aprender a respeitar polícia, não ficar enganando a gente. Ficar
escondendo ele!’ Ela falando: ‘Ele está pra Fortaleza. Não está na cidade!’
Aí eles foram pra cozinha. Depois no quintal. Ela disse que no quintal
estava cheio d’água. Aí ela disse para eles: ‘Olhe, tá cheio d’água aí!’ Eles
fizeram foi responder ela com grosseria e entraram. Ela disse que a água
ficou no joelho deles. E eles andando no quintal. Procurando o papai.
Quando chegaram lá fora, aí eles falaram: ‘Olhe, você não quer dar conta
dele, você vai no lugar dele. Nós vamos lhe levar!’ Então saíram
caminhando até a porta com ela. Quando chegaram lá na porta eles falaram:
‘Olhe, não vamos lhe levar porque você é mulher! Mas é pra você aprender

491
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020, p. 03.
199

a respeitar a polícia!’ Aí saíram. Aí ela disse que ficou sentada, chorando


muito. Arriscada até perder o filho. Ela estava grávida. E eles ficaram pelas
esquinas. Esperando pra ver se encontravam o papai. 492

A esposa de Evilásio, Carmelita França de Barros, então grávida de poucos


meses, também com crianças pequenas em casa, recebeu a visita de militares truculentos,
ávidos por demostrar poder aos seus superiores, nas chamadas “operações limpeza”, que
ocorreram após o golpe em diferentes partes do país. No Piauí, essas foram lideradas pela
Guarnição Federal, sediada em Teresina e contou com apoio das forças militares da Capitania
dos Portos e da Polícia Militar. Não se levava em consideração, como as memórias
demonstram o temor que poderiam causar a essas famílias, sobretudo às crianças pequenas,
a chegada, em suas residências, de homens armados, arrogantes, a serviço de um sistema
antidemocrático que então se estabelecia no país.
Eram, portanto, cenas atípicas naquele pequeno universo familiar, cenas que
rompiam com a ordem do cotidiano. Porém, cenas bastante comuns em regimes de exceção,
as que foram vivenciadas nesses bairros populares da cidade de Parnaíba. A visível pressão
psicológica, as tentativas de criminalizar as lideranças sindicais de projeção no interior do
quadro político recente, as prisões sem justificativa plausível, foram formas empregadas
pelas forças repressivas contra os trabalhadores parnaibanos nos primeiros dias após
consumado o golpe em 1964.
A filha do casal Evilásio e Carmelita narrou que, ao retornar à cidade, o seu pai,
com o auxílio do advogado da empresa em que trabalhava há quase 10 anos, o Dr. Flavio
Antônio Caracas, foi se apresentar de forma voluntária aos militares e, mesmo assim, ficou
detido, na delegacia da cidade, junto a presos comuns, como mencionado pela filha em
entrevista, por um período superior a uma semana. Iara França contou que:

Depois que chegou em Parnaíba, vindo de Fortaleza, ele foi pra casa do
meu avô – o papai França. Foi lá que ele passou a noite, lógico que não
dormiu. Quando foi de manhã o Dr. Flavio, que era do Moraes, pegou ele
lá na casa e levou pra se apresentar na delegacia. Lá ele já ficou preso. Na
delegacia mesmo. No ‘arsenal’ como chamava. Ele ficou preso junto com
bandidos! Ele ficou preso e eles toda hora iam lá. Diziam que era pra ele
confessar os crimes senão iam levar ele para uma penitenciária longe daqui,
para um presidio de segurança máxima. Todo tempo nesse negócio de
ameaça, mais psicológica. Então ele foi e pediu pra mamãe que não queria
que nenhum dos filhos fossem lá. Então a mamãe pagava um rapaz para ir
deixar uma rede e ia deixar almoço e jantar pra ele. Ele passou preso lá
mais de uma semana. Aí a Rosário [filha de Evilásio] disse que no dia que
ele chegou, disse que o Dr. Flávio também foi buscar, ele entrou em casa

492
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020, p. 04.
200

chorando muito. Muito magro. Perdeu muito peso. Todo barbudo. Ele tinha
então 41 anos493.

O que pude evidenciar, em um primeiro plano, é que as formas de atuação dos


militares nessa cidade, sobretudo em relação aos trabalhadores de modestas funções e, contra
as lideranças sindicais, foram marcadas pela tentativa de impor um clima de terror,
amedrontando-os no seu mais íntimo cotidiano. As batidas policiais, feitas em momento
inoportuno, de madrugada, sem um devido acompanhamento de uma justificativa ou
mandado judicial, apenas para causar intimidação aos familiares, foram empregadas como
forma de demarcar uma experiência de medo. A meu ver, buscavam demonstrar, por meio
do uso da força, que as atividades sindicais de tais trabalhadores iriam ser observadas bem
de perto, assim como deveriam, a partir de então, passar pelo crivo das forças militares do
estado.
Ficaram traumas nessas famílias atingidas pelo golpe de 1964. Memórias
traumáticas, quase que subterrâneas aos discursos dos grupos tradicionais 494 . Guardadas,
ficaram como que em suspenso, ao longo dos anos495. Essas experiências foram vistas, de
início, como algo que deveria ser esquecido, silenciado, apagado. Como falar abertamente
de algo que marca negativamente no fundo da honra de um trabalhador? Como expor aos
demais conterrâneos e familiares algo que mexe, que ativa uma sensibilidade marcada pelo
medo, pela punição, pela sua exposição e de seus familiares? Como mencionei anteriormente,
muitos dos atingidos pelos desdobramentos do golpe em Parnaíba também criaram medidas
de silenciamento, de apagar todo o sofrimento a que foram submetidos. Não foi diferente
com o trabalhador Evilásio, líder sindical do CNTI no Piauí. Aqui também é importante

493
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020,
494
Percebi, na cidade de Parnaíba, um silêncio deliberado sobre o momento do golpe de 1964. Durante toda a
graduação em História não havia tido contato com depoimentos de perseguidos pelas forças repressivas na
cidade em que resido. Nesse ponto, entendo que houve uma tentativa mesmo de apagamento dessas memórias,
dos procedimentos adotados, das práticas repressivas, diferentes formas de enquadrar a memória a respeito
daquele momento. Nesse sentido, o historiador Enrique Padrós destaca que, “inegavelmente, as ditaduras do
Cone Sul, com as suas conhecidas motivações repressivas de controle, de censura e de enquadramento de
memórias e de consciências, fomentaram um ‘esquecimento organizado’, o que se consolidou com o
encaminhamento de leis de anistia ou similares, que tentaram impor esse esquecimento institucional da
violência executada dentro da dinâmica estatal. Ver: PADRÓS, Enrique Serra. História do Tempo Presente,
Ditaduras de Segurança Nacional e Arquivos Repressivos. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 1, n.
1, p. 30 – 45, jan. / jun. 2009.
495
Sobre este aspecto, Pollak destaca, falando sobre as disputas de memória a respeito do stalinismo, que “este
exemplo mostra também a sobrevivência, durante dezenas de anos, de lembranças traumatizantes, lembranças
que esperam o momento propício para serem expressas. A despeito da importante doutrinação ideológica, essas
lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não
através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao
mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades,
esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.” (POLLAK, 1989, p. 05.)
201

destacar o potencial que essas memórias, quase que subterrâneas, têm para emergir em outros
contextos políticos e sociais. Quando encontram condições propícias de escuta e/ou
divulgação, como foi, de certa forma, o contexto da segunda década dos anos 2000 no Brasil.
Evilásio, em certo sentido, como uma espécie de reação psíquica aos sofrimentos
submetidos, conforme pude perceber, ativou medidas diversas. Além do silêncio individual
sobre tais eventos, desenvolvera, ao longo do tempo, uma reação defensiva a certas
atividades que demonstrassem alegria, ou um uso do corpo de forma mais livre, como uma
simples dança. Passou a relacionar, talvez, o ato de dançar em festividades familiares e a
liberdade referente a tal atividade a uma forma de demonstração de leveza a que ele não mais
teria como desenvolver, mesmo que entre os seus filhos. O corpo, nesse sentido, também
fala. O corpo de Evilásio, após a experiência do terror, não o permitia mais esse simples ato.
Os familiares destacaram ainda que ele não queria que se falasse do assunto, mesmo depois
de tanto tempo.

Ele não gostava de falar desse assunto! A gente pouco sabe, porque
primeiro era um assunto desconhecido para nós. Um tabu. Aí ele fez, nessa
época, ele fez uma jura, uma promessa, a gente só veio saber no aniversário
de 15 anos da Daniela [filha mais nova], que nunca mais na vida dele ele
ia dançar! Ele disse que da decepção pelo fato ter ocorrido tudo isso com
ele. Gerou uma espécie de trauma, então ele disse, depois disso, que
‘Nunca mais na minha vida eu vou dançar!’ Aí quando foi nos 15 anos da
Daniela a gente insistiu, insistiu... Aí ele disse: ‘Minhas filhas, não
insistam.’ Desde 1964 fez uma jura na minha vida de nunca mais dançar.496

Após o falecimento de Evilásio, em dezembro de 2015, o tema passou a ser,


mesmo que de forma sutil, um pouco mencionado em conversas familiares. Sua esposa,
então viúva, Carmelita, em alguns momentos demonstrava uma certa necessidade de falar
sobre o tema. Talvez para não deixar que essas memórias ficassem esquecidas com o tempo.
Nesse sentido, podemos lembrar Pollak, quando destaca que, “no momento em que as
testemunhas oculares sabem que vão desaparecer em breve, elas querem inscrever suas
lembranças contra o esquecimento” 497 . Evilásio, por seu lado, não sentiu, em vida,
necessidade de falar sobre tal momento de dor. Preferia silenciar. Segundo levantamento que
fiz com os familiares, Evilásio foi um dos parnaibanos a receber indenização em dinheiro do
Estado brasileiro, por conta das perseguições sofridas no momento do golpe de 1964 498 .

496
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020, p. 02.
497
POLLAK, 1989, p. 07.
498
Maria Paula Araújo destaca, nesse sentido, a diferença no tratamento entre países recém-saídos de regimes
de exceção. Para a historiadora, a Argentina e África do Sul têm se constituído como dois paradigmas
diferenciados, dois modelos distintos de justiça de transição. Na Argentina, os grupos e militantes de diretos
202

Publicada no Diário Oficial da União, a medida de reparação do Estado consta como obtida
na data de 19 de outubro de 2011, após a conclusão de seu processo pela Comissão de Anistia,
amparada na Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002.
Conforme indica Luís Alberto Romero, “a memória é a parte central da
consciência que um ator – indivíduo, grupo, a sociedade toda – tem do seu passado.
Relaciona-se diretamente com sua identidade, ou melhor, com suas subjetividades: a
pergunta sobre de onde viemos e para onde queremos ir configura isso que, desde cada
subjetividade, chamamos de presente”499. O autor argentino destaca ainda que a memória é
uma atividade livre. Portanto, essa “é feita de lembranças, esquecimentos, distorções,
reflexos, subterfúgios, realces, esmaecimentos e mil operações mais” 500.
Evilásio, segundo levantamento feito nessa pesquisa, assim como os demais
processados em Parnaíba, ficou impossibilitado de concorrer a cargos eletivos, ou seja, de
se candidatar a qualquer eleição durante os anos do regime. Perdera a cidadania política.
Segundo documento disponibilizado pela família, datado de 1976, Evilásio procurou reaver
seus direitos políticos juntos aos órgãos competentes na esfera jurídica. No documento em
questão, indica-se que, Evilásio, por meio de advogados, havia impetrado habeas corpus
junto ao Superior Tribunal Militar, tendo em vista que, mesmo já não fazendo parte do IPM,
ocorria que nos “assentamentos no DOPS, constavam anotações relacionadas com aquele
fato, o que [tem] impedido o requerente de exercer certas atividades, inclusive de ser
candidato a cargo eletivo” 501 . O documento ainda solicitava à justiça militar “mandar
proceder ao cancelamento de qualquer antecedente criminal acaso existente, restituindo-se,
assim, ao peticionário, o seu estado anterior e possibilitando-se lhe o exercício pleno de sua
cidadania, como de direito requer”502.
No diário oficial da União, no mês de outubro de 2011, é possível acessar ao
resultado do processo aberto pelos familiares de Evilásio solicitando reparação econômica
para o mesmo:

humanos no país têm dado ênfase na questão da justiça – procurando responsabilizar e punir os agentes do
Estado responsáveis pelos crimes e violações cometidos durante a ditadura. A África do Sul tem dado ênfase à
memória, à denúncia e revelação dos fatos com o objetivo de promover uma reconciliação nacional. O Brasil
tem dado ênfase à questão da reparação. Araújo destaca ainda que “em todos esses processos, no entanto, o
testemunho é um elemento vital.” Ver: ARAUJO. Maria Paula. Uma história oral da anistia: memória,
testemunho e superação. In: MONTENEGRO, A.; RODEGHERO, C.; ARAUJO, M. P. (Org.). Marcas da
memória: história oral da anistia no Brasil. Recife: Ed. UFPE, 2012.
499
ROMERO, Luís Alberto. A memória, o historiador e o cidadão. A memória do proceso argentino e os
problemas da democracia. Revista Topoi, v. 8, n. 15, p. 09-23, jul./dez. 2007.
500
Idem.
501
Habeas Corpus. Evilásio dos Santos Barros. Teresina-PI, 18 de julho de 1976.
502
Idem.
203

O Ministro de Estado da Justiça, no uso de suas atribuições legais, com


fulcro do artigo 10 da lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, publicada
no Diário Oficial de 14 de novembro de 2002 e considerando o resultado
do julgamento proferido pela Comissão de Anistia, na 5ª sessão realizada
no dia 17 de agosto de 2011, no Requerimento de Anistia nº 2007.01.58985,
resolve: Nº 2.348 - Declarar Evilásio dos Santos Barros, anistiado político,
conceder reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação
única, no valor de R$ 100.000,00 (cem mil reais) nos termos do artigo 1º,
incisos I e II [...]503

Evilásio teve direito então, já no ano de 2011, a uma política de reparação


econômica. Recebera cem mil reais, por ter sido perseguido por agentes do Estado brasileiro
em 1964, na cidade de Parnaíba504, bem como por ter seus direitos políticos suspensos desde
então. A família destaca, em entrevista, que o mesmo se posicionou contrário, de início,
quanto ao processo que lhe daria tal reparação pecuniária. Segundo os familiares, ele
demonstrava que não queria “remexer nesse passado distante”. Evilásio, de acordo com
entrevista concedida pelos filhos, “não queria tocar no assunto”. Por certo, ainda por aquele
momento, mesmo distante no tempo, ativar em sua memória o sofrimento a que fora
submetido.
A família soube do caso de um senhor que, residente em Brasília nos anos 1960,
estava em meio a um processo buscando indenização do Estado e, a partir disso, seus filhos
buscaram convencer Evilásio de que ele tinha, de fato, direito àquela reparação505 e à anistia
política. Afinal, como muitos outros trabalhadores no Brasil, Evilásio fora preso, processado

503
UNIÃO, Diário Oficial da. Seção 1, nº 201, quarta-feira, 19 de outubro de 2011, p. 56.
504
A lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, em sua Seção I, a respeito do caráter indenizatório, destaca
que: Da Reparação Econômica em Prestação Única Art. 4o A reparação econômica em prestação única
consistirá no pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição e será devida aos anistiados políticos
que não puderem comprovar vínculos com a atividade laboral. § 1o Para o cálculo do pagamento mencionado
no caput deste artigo, considera-se como um ano o período inferior a doze meses. § 2o Em nenhuma hipótese
o valor da reparação econômica em prestação única será superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais). Presidência
da República
Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10559.htm. Acesso em 02 jul. 2020.
505
Uma matéria do jornal Globo, em 2014, destacava que: “Criada com intenção de reparar as vítimas da
ditadura, a Comissão de Anistia aprovou 40.300 pedidos com indenizações que chegam a R$ 3,4 bilhões. Entre
2001 e 2013, 63% dos requerimentos receberam o aval da comissão e 37% foram rejeitados. Os maiores valores
foram aprovados nos primeiros anos de funcionamento da comissão. Entre 2002 e 2006, as indenizações
retroativas chegaram a R$ 2,4 bilhões, o equivalente a 70% do total desse tipo de reparação aprovada pela
comissão desde sua instalação. Por categoria, os militares são os recordistas em requerer condição de anistiado
político: até agora, já são 11.836 solicitações. Os trabalhadores e integrantes de movimentos sindicais aparecem
na sequência, com 8.694 pedidos.” Ver: O custo da reparação: indenizações aprovadas na Comissão de Anistia
chegam a R$ 3,4 bilhões. Jornal O Globo, 31 mar. 2014. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/o-
custo-da-reparacao-indenizacoes-aprovadas-na-comissao-de-anistia chegam-r-34-bilhoes-12037526. Acesso
em: 02 jul. 2020.
204

e perseguido pelas forças repressivas do Estado brasileiro, em um momento de exceção506 e


ainda perdeu os seus direitos políticos, não podendo ter qualquer atuação partidária.
Evilásio pouco mencionava o assunto. Buscou apagá-lo das memórias familiares.
Mexer com isso lhe traria recordações que não eram positivas. A família conta que, apesar
da ligação com sindicato da categoria, não se filiara a partido político nenhum. Os filhos
destacam ainda que ele demonstrou empolgação quando da eleição, em 2010, da primeira
mulher para a presidência da República no Brasil. Foi até Brasília para acompanhar a posse
de Dilma Rousseff no cargo, no início de 2011. A primeira vez que demostrou interesse em
presenciar um ato de tal porte, segundo indicam os filhos. Por certo, Evilásio percebera todo
o simbolismo que aquele momento marcava na história do país. Uma militante de esquerda,
presa e torturada pelo regime de exceção, atingia o mais alto cargo da República. Tempos
alvissareiros se abriam. E de fato, foi durante esse governo que se constituiu, por exemplo,
uma Comissão Nacional da Verdade que buscou apurar os crimes cometidos durante a
ditadura.
Entre o lembrar e o esquecer, Evilásio preferiu a segunda opção. Não por sentir
que cometera algo de errado, que fizera por merecer tal situação, mas, pelo contrário, por ter
passado pelo constrangimento de uma prisão injusta e de ter a sua casa invadida, no calar da
noite, por militares truculentos. Por saber ainda que alguns dos seus filhos passaram por
constrangimentos, como brincadeiras com crianças de seu convívio, sobre o fato do pai “ser
comunista”, ou de ter “sido preso”; memórias que lhe causaram sofrimento, conforme
relatado em entrevista com os filhos. Nesse ponto, como indica Maria Paula Araújo, “a
memória não obedece apenas à razão porque ela também está relacionada, por um lado, a

506
Art. 1o O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos: I - Declaração da condição de
anistiado político; II - reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação
mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições
estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
III - contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento
de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo
exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias;
IV - conclusão do curso, em escola pública, ou, na falta, com prioridade para bolsa de estudo, a partir do período
letivo interrompido, para o punido na condição de estudante, em escola pública, ou registro do respectivo
diploma para os que concluíram curso em instituições de ensino no exterior, mesmo que este não tenha
correspondente no Brasil, exigindo-se para isso o diploma ou certificado de conclusão do curso em instituição
de reconhecido prestígio internacional; e
V - reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade
profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em serviço público e em
atividades essenciais de interesse da segurança nacional por motivo político.
Parágrafo único. Aqueles que foram afastados em processos administrativos, instalados com base na
legislação de exceção, sem direito ao contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e
fundamentos da decisão, serão reintegrados em seus cargos. Ver: Presidência da República
Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10559.htm. Acesso em 02 jul. 2020.
205

tradições herdadas, que fazem parte de nossas identidades e que não respondem a nosso
controle, e, por outro, a sentimentos profundos, como amor, ódio, humilhação, dor e
ressentimento, que surgem independentemente de nossas vontades”507.
Como pude evidenciar, Evilásio atuou fortemente em algumas atividades de
auxílio aos trabalhadores, ajudando na construção do Clube do Trabalhador, por meio de
suas atividades junto ao sindicato da categoria. Era vinculado também ao Círculo Operário
São José. Católico, devoto e praticante, era assíduo nas missas de domingo na igreja de São
José, construída no bairro homônimo, onde também desenvolvia algumas obras de auxílio
para os populares. É possível ver nos jornais que circulavam em Parnaíba seu nome
associado às comissões de auxílio aos desabrigados que se organizavam frequentemente,
quando a cidade passava pelo período de chuvas prolongadas, com alagamentos nos bairros
populares, principalmente os outrora chamados “Corôa” e “Tucuns”. Mesmo vendo a força
da água chegar em sua própria residência, na rua Barão do Rio Branco, onde morou com sua
família até os anos 1990, Evilásio saía também em auxílio do próximo.
Aqui se pode relacionar as percepções dos entrevistados nesta pesquisa com
aquilo que Pollak nomeou de “memória por tabela”. Essa definição seria aquela vivenciada
pelos familiares e amigos de perseguidos, ou considerados “desaparecidos” políticos, e que
também sofreram torturas – senão físicas, emocionais – guardaram traumas e sentiram os
tentáculos do regime violento, na torpe invasão do íntimo de suas residências, na
desestruturação da vida cotidiana e, em muitos casos, no desaparecimento forçado de seus
entes queridos508. Evidenciar as memórias dos atingidos pelo golpe e pela ditadura, nesse
sentido, de acordo com a historiadora Marta Rovai, nada mais é do que a “busca de romper
com o silenciamento imposto pela repressão do Estado e pela história oficializada do
vencedor que encerra em espaços íntimos, as lembranças e dores mais traumáticas; pela
violência de quem calou; pela indiferença de quem não vivenciou” 509.
Por fim, para encerrar esse capítulo, devo indicar que Evilásio e Carmelita
Barros eram meus avós paternos. O meu avô faleceu em dezembro de 2015 e, a partir de sua
morte, iniciei essa pesquisa fazendo levantamento da documentação, como o Inquérito
Policial Militar citado anteriormente. A minha avó, Carmelita, faleceu em maio 2020 e

507
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento & SANTOS, Myrian Sepúlveda. “História, memória e esquecimento:
implicações políticas”. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 79, p. 95-111, 2007.
508
ROVAI. Marta Gouveia de Oliveira. A “memória herdada”: as comissões da verdade e os “escrachos”
promovidos pela juventude em países da América Latina, como Argentina, Chile e Brasil. Revista Eletrônica
da ANPHLAC, n. 18, p. 223-250, jan./jul. 2015.
509
ROVAI, 2015, p. 237.
206

demonstrava interesse em que essas memórias pudessem ganhar evidência. Como uma
forma de dar relevância a atuação sindical de Evilásio dos Santos Barros, escrevi, junto dos
meus tios, um histórico de sua atuação no sindicato, bem como em outros espaços da cidade.
A partir disso, conseguimos aprovar a Lei municipal nº 4.481/2019, que determinou a
alteração do logradouro público de “rua municipal” para “rua municipal Evilásio dos Santos
Barros”, próximo onde a família residiu por mais de 40 anos, no popular bairro São José.
Além disso, no mesmo processo, a Câmara Municipal, por meio da Lei nº 3.425/2019, lhe
concedeu o título de cidadão parnaibano. Evilásio, como mencionado, nasceu na Corôa de
São Remijo e migrou para a cidade de Parnaíba em 1945. Ganhou, em sua memória, essas
importantes homenagens póstumas.
207

CAPÍTULO IV
CULTURA POLÍTICA E CONSERVADORISMO: O GOLPE DE 1964 NO PIAUÍ E
AS PRÁTICAS COLABORACIONISTAS DAS ELITES POLÍTICAS, JURÍDICAS
E COMERCIAIS

Neste capítulo analiso o quadro político do pós-golpe de 1964 e seus reflexos no


estado do Piauí a partir da imprensa local. Alguns dos veículos da mídia impressa, como o
jornal O Dia, o Jornal do Piauí e o Estado do Piauí, veicularam textos com profundas
críticas ao governo João Goulart, contra as reformas de base – sobretudo a agrária –
enxergando nas propostas reformistas uma bandeira de luta “radical”, “revolucionária” e
conectada aos ideais dos regimes comunistas e, como desdobramento, apoiaram o golpe
civil-militar, por meio de notas e colunas publicadas em suas edições por diferentes agentes.
Pude perceber, durante o levantamento das fontes, que, no quadro histórico em
questão, parte da imprensa piauiense, sobretudo periódicos ligados às elites locais,
estabeleceu em suas páginas uma espécie de “trincheira” contra as reformas do governo
Jango e, posteriormente, em defesa dos ideais da “revolução de março”. Com isso,
pretendiam evidenciar, de forma assertiva e reducionista, a emergência dos movimentos
sociais como ameaças ao sistema democrático. Com a ruptura política então efetuada, em
1964, se tornaram entusiastas da “nova ordem”, por meio de uma prática colaboracionista
com os novos “donos do poder”.
Com a ampliação de movimentos de trabalhadores rurais e urbanos no início dos
anos 1960, parcela dos setores políticos e comerciais no Piauí tomou para si a produção de
um discurso em torno da necessidade de manutenção das características do quadro
socioeconômico local. Figuras como o desembargador Simplício de Sousa Mendes, ligado
aos grandes proprietários de terra no estado, utilizavam de sua projeção nos canais midiáticos
para lançar discursos de acusação contra lideranças trabalhistas piauienses e nacionais, bem
como se utilizaram desses mesmos meios para saudar a dita “revolução democrática” e
“patriótica” de março de 1964. Vou, portanto, analisar, por meio desses jornais, uma dada
cultura política conservadora no Piauí, nos anos 1960, tendo como mote suas visões em
comum do passado, projetos convergentes com os discursos de acusação dos militares, bem
como as percepções sobre aquele momento.
Parte da historiografia do campo da política recentemente tem buscado perceber
os processos de ruptura política, como golpes de Estado, regimes de exceção, a exemplo da
última ditadura brasileira (1964-1985), para além de uma visão simplista, que vislumbrava
208

tais tomadas de poder e regimes como desprovidas de sustentação e adesão social. Como se
essas práticas autoritárias se resumissem a quadros ou grupos de militares – exclusivamente
– que, por meio da força das armas, derrubassem presidentes eleitos democraticamente e
assumissem, a partir de então, o poder com atos arbitrários e sem apoio e legitimidade da
sociedade civil.
Tal leitura, no entanto, não condiz com uma abordagem mais complexa desses
fenômenos. Para alguns historiadores vinculados a uma interpretação mais abrangente desses
processos, é preciso superar esse tipo de interpretação, no sentido mesmo de repensar nossa
própria cultura política autoritária, pois, como indica Rodrigo Patto Sá Motta, falando sobre
o golpe de 1964 e da posterior implantação da ditadura civil-militar brasileira, “a verdadeira
superação do autoritarismo demanda perceber que o problema não se resumiu a uma casta
de malvados que tomaram o poder e impuseram violências à sociedade”510.
Nessa perspectiva, Rodrigo Motta nos indica um ponto bastante pertinente para
esse trabalho, a possibilidade de entender que “o Estado autoritário encontrou o apoio e o
beneplácito de muitas pessoas, além de ter contado com a indiferença de outras tantas” 511.
Essas reflexões do historiador são importantes, pois possibilitam pensar a participação civil
em um evento como o golpe de 1964 e a ditadura, também sob outras abordagens, levando
em consideração que “as relações da ditadura com os meios [sociais] foram permeadas
também por jogos de acomodação e adesão que transbordam a tipologia binária “resistência
× colaboração”512.
Nesse sentido, proponho analisar como determinados setores da sociedade
piauiense não só apoiou o golpe, mas também se tornou fundamental em seu processo de
legitimação, aderindo ao autoritarismo dos militares por interesses mais imediatos e/ou por
simples identificação. Portanto, pretendo lançar luz sobre as práticas de adesão, acomodação
ou mesmo colaboracionismo de tais grupos que, por meio de textos, boletins, matérias de
jornais ou notas de saudação aos militares, foram cruciais na sustentação do golpe. Ainda de
acordo com Rodrigo Motta,

O apoio social à ditadura é assunto candente na historiografia atual que,


em parte, tem se inspirado em estudos sobre os estados fascistas europeus
e o contexto da ocupação nazista. Nessa direção, têm sido questionadas
representações simplistas sobre a ditadura recente que exageram a
polarização entre resistentes e colaboradores, como se os dois polos
resumissem as opções dos atores da época. Um dos problemas das

510
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. op. cit, 2014, p. 32.
511
Idem.
512
Idem.
209

representações simplificadoras é a tendência a colocar na sombra o apoio


de segmentos sociais expressivos ao regime ditatorial, que aderiram de
modo espontâneo, sem necessidade de coação 513.

O capítulo pretende, a partir das indicações acima, analisar alguns dos processos
de adesão social que se efetivaram após os desdobramentos do golpe de 1964 no Piauí, por
meio da análise de fontes impressas. Isto é, vou analisar como parcela da sociedade
piauiense, em particular alguns comerciantes, jornalistas, intelectuais e bacharéis,
compreenderam a chegada ao poder dos militares e como buscaram se conectar à “nova
ordem”. Tendo em vista que todo sistema político, por mais autoritário que seja, encontra
respaldo em setores do corpo social, tomo como norte a necessidade de vislumbrar algumas
das práticas da sociedade piauiense no momento em que, golpeado um governo eleito
democraticamente, sob forte argumento anticomunista, sucumbiu o sistema democrático
brasileiro e se iniciou uma experiência autoritária que duraria mais de 20 anos.
Importante mencionar a ampla adesão de civis ao golpe em 1964. Do ponto de
vista social, Daniel Aarão Reis nos indica pontualmente a coalização de interesses que
levaram os militares ao poder no Brasil, pois “a vitória do golpe fora produto de uma ampla
e heterogênea frente social e política”. Sob este ponto de vista, de acordo com o historiador,
uniram-se “o grande, o médio e o pequeno capital. O capital nacional e o capital
internacional. Bancos, indústrias e comércio. Federações industriais e agrícolas. A maioria
do parlamento e do judiciário. A Igreja e a classe média”514.
No processo de desestabilização política do governo Goulart, bem como no
cenário posterior de tomada de poder pelos militares, pude encontrar no levantamento de
fontes para essa pesquisa, algumas referências em páginas de jornais de grande circulação
no Piauí, como O Dia, que me permitiram evidenciar uma ampla rede de apoiadores e
entusiastas do golpe e da ditadura nesse estado. Alguns deles, ligados a grupos políticos
tradicionais, ao mundo jurídico e ao comércio, se posicionaram contra qualquer medida
reformista proposta pelo governo Jango no início dos anos 1960, que pudesse vir a alterar as
relações sociais e econômicas naquele cenário.
Nesse sentido, no processo de legitimação do golpe, um nome oriundo do meio
empresarial piauiense que publicou textos em jornais nomeando as pautas reformistas como

513
MOTTA, 2014, p.13.
514
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. Ed. Brasiliense: São
Paulo, 1990, p. 57
210

uma “ameaça” ao sistema democrático brasileiro, foi Jesus Elias Tajra515. Esse empresário
faz parte de uma família de imigrantes sírio-libaneses que se estabeleceu na capital do Piauí
– Teresina – no início do século XX516. No entanto, veio adquirir grande poder econômico,
sobretudo ao longo da ditadura (1964-1985), estabelecendo-se no ramo das
telecomunicações (com concessões públicas de TV), do comércio, mas também atuando no
ramo da venda de eletrodomésticos, de bens de luxo e de automóveis no Piauí. Seu grupo
econômico ficou mais conhecido localmente por “grupo JET”, ou “JELTA”, siglas com as
iniciais de seu nome.
Um texto escrito por Jesus Elias Tajra, originalmente produzido para uma
palestra divulgada na cidade de Teresina, publicada nos veículos de comunicação logo nos
primeiros dias após o golpe de 1964, pode ser pensado aqui como uma tomada de posição
por parte do empresário. Primeiro, no que diz respeito ao governo anterior – de forte
oposição – e, segundo, com relação ao novo governo dos militares, de franco apoio. No texto,
por meio da utilização de uma retórica beligerante, que em muito faz alusão a “batalhas”, ou
“cruzada moral”, o empresário descreve a si mesmo como alguém que se posicionou, desde
a “época de estudante”, como um “combatente” na “luta” contra o “perigo” que representava
a “ameaça comunista” para o Brasil e, consequentemente, para a sociedade piauiense.
O texto intitulado O comunismo e sua atuação no Brasil, tem como nota inicial
a ênfase de que fora divulgada como “palestra pronunciada dia 08 de abril de 1964, através
de cadeia formada por emissoras de Teresina”, portanto, com ampla circulação nos canais
de comunicação da capital piauiense. Nesse texto, o empresário indicava que:

Como reafirmação da minha participação no combate ao comunismo


desde há muito definida, ainda mesmo quando exercia liderança da classe
universitária no Piauí, é com o máximo prazer que me dirijo ao povo
piauiense com essa palestra sobre o comunismo e sua atuação para a
tomada de poder no Brasil. Faço questão de ressaltar que essa minha
posição anticomunista implicava necessariamente a luta pelo

515
Formou-se em Direito e Contabilidade. Funcionário público federal no Ministério da Fazenda. Empresário
que instituiu uma série de empresas do Grupo Jelta. Foi jornalista, dirigindo a Rádio Pioneira e o extinto Jornal
da Manhã. Em 1986, inaugurou a TV Pioneira, retransmissora da Rede Bandeirantes de Televisão, emissora
que em 1998 passou a se chamar TV Cidade Verde e passou a retransmitir a programação do Sistema Brasileiro
de Televisão. Foi filiado ao PDC em 1962 e eleito em 1966 deputado estadual pela ARENA. Nos anos seguintes
foi eleito primeiro suplente do senador Helvídio Nunes em 1970, segundo suplente do senador Dirceu
Arcoverde em 1978 e primeiro suplente do senador Alberto Silva, após a morte de Arcoverde em 1979. Com
o retorno ao pluripartidarismo no ano seguinte, filiou-se ao PDS.
516
Tajra, Caddah, Said, Cury, Hidd e Sady são algumas das famílias de imigrantes que vieram para o Piauí.
Para Marta Tajra, “a história dos descentes sírio-libaneses do Estado do Piauí se consolida e se mistura com a
própria história da cidade de Teresina”. O comércio local foi forjado à base do trabalho de todas essas pessoas
que adentraram o território piauiense, mais especificamente Teresina, Floriano e Parnaíba. Ver: TAJRA, Marta.
Gente de longe: O mahjar (imigração) de sírios para o Piauí. In: ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno de;
EUGÊNIO, João Kennedy (Org.). Gente de Longe: história e memórias. Teresina: Halley, 2006.
211

aperfeiçoamento de nossa democracia, visando estruturá-la entre nós, com


base na verdade, na justiça, no amor e na liberdade, de que aliás, já nos
falou o Papa João XVIII, em sua encíclica Paz na Terra. Com a experiência
dos meus tempos de estudante universitário, atuando no plano nacional
dentro da UNE e em decorrência das leituras sobre as técnicas de
infiltração e expansão do comunismo internacional, com mais decisão e
firmeza procurei alertar a opinião pública, fazendo coro a outras vozes
esparsas para o perigo cada vez mais intenso do comunismo no Brasil517.
(grifo meu)

Uma leitura mais atenta do processo de desestabilização e das fortes oposições


ao governo Jango, bem como da legitimação social ao golpe de 1964 e da ditadura, a partir
de seus reflexos no Piauí, deve levar em conta o peso e a presença que grupos econômicos,
tais como o “Grupo Jelta”, teve no apoio às medidas autoritárias e na ampla divulgação dos
discursos anticomunistas nas terras mafrenses. Não se pode afirmar, por falta de material
empírico adequado, que o empresário Jesus Elias Tajra se articulou diretamente com alguma
atividade repressiva ou algo mais direto em colaboração com as forças militares da
Guarnição Federal em Teresina. Porém, é possível perceber, a partir dos textos escritos e
divulgados por ele mesmo, uma forte ligação entre o empresário e os grupos beneficiários
do regime518, por meio das narrativas anticomunistas, que serviram como uma espécie de
argamassa a conectar setores insatisfeitos com a ampliação dos movimentos sociais no início
dos anos 1960 aos militares que efetuaram o golpe. No trecho abaixo, o empresário apontava
que buscou mobilizar a opinião pública piauiense contra aquilo que considerava ser a
“presença comunista”, disfarçada nas bandeiras de reivindicação dos grupos nacionalistas.

Mas a intensidade da propaganda comunista, disfarçada em bandeiras de


reivindicações populares e nacionalistas neutralizavam qualquer esforço
no sentido de mobilizar e sensibilizar essa opinião pública, e,
especialmente, os democratas, contra aquela perigosa ação, subordinada a
interesses da União Soviética, que pretendia colonizar o Brasil, através dos
quinta colunas nacionais, os vendilhões da pátria. Não poucas vezes ouvi
de pessoas sensatas e esclarecidas que não havia comunistas no Brasil, mas
apenas insatisfeitos. Não poucas vezes ouvia afirmações segundo as quais
aqueles que falsamente agitavam bandeiras de reivindicação, queriam

517
TAJRA, Jesus Elias. O comunismo e sua atuação no Brasil. Jornal O Dia, p. 01-02, 11 abr. 1964.
518
O empresário Jesus Elias Tajra, por meio de seu grupo empresarial, ainda foi um dos maiores beneficiados
com a política econômica implantada no início dos anos 1970, nos tempos do dito “milagre”, das “obras
faraônicas”, quando da gestão estadual do engenheiro Alberto Tavares Silva, nomeado diretamente pelo general
Médici para governar o Piauí de 1970 a 1975. Na biografia de Alberto Silva, escrita pelo jornalista Tomaz
Teixeira, consta que: “Alberto fez, em sua chegada em Teresina, uma grande amizade com o empresário Jesus
Elias Tajra, homem forte da Associação Comercial Piauiense, que não se negava a narrar que foi o primeiro
governador que reuniu os empresários para pedir apoio de estoque, pois iria comprar tudo que fosse necessário
para as grandes obras que pretendia fazer, no mercado local. José Elias era muito grato pela força que o governo
de Alberto Silva trouxe para os piauienses, pelo grande volume de obras realizadas (construídas), sendo tudo
adquirido – comprado – no comercio local”. Ver: TEIXEIRA, Francisco Tomaz. Alberto Silva: o mito e o
político. O que vi, ouvi e aprendi. (Depoimentos). Teresina-PI, 2010, p. 56.
212

apenas o bem do povo e por eles lutavam. Tudo isso representava


simplesmente a repetição de surrados 519.

Uma análise mais ampla do processo que levou determinados grupos a apoiarem
uma solução autoritária deve levar em consideração que setores da sociedade brasileira
possuíam – e ainda possuem – uma cultura política permeada de autoritarismo e, portanto,
achou natural que se tomassem medidas de força para resolver os impasses que marcaram o
Brasil no início dos anos 1960. Nesse tipo de análise, como nos indicam Denise Rollemberg
e Samantha Quadrat, na obra A construção social dos regimes autoritários, é fundamental
entender que as soluções de força, “legitimadas pelo apoio de significativas parcelas da
sociedade, sobretudo pelas camadas populares, sirva não para justificá-las, mas para
compreendê-las”. Nesse ponto, o importante é ir além das leituras tradicionais e ver como se
sustenta “a percepção do autoritarismo como traço de união do passado e do presente, das
presenças que sobrevivem às rupturas, que acompanham as mudanças” 520 . É pontual,
portanto, refletir sobre a sustentação social que um regime autoritário tem em diversos
momentos, pois, também no caso brasileiro, ainda de acordo com as autoras, “o autoritarismo
foi desejado e alguns ditadores foram [são] queridos e percebidos como salvadores da pátria
por pessoas e/ou segmentos da sociedade de todas as idades e origens sociais” 521.
Como mencionado, as classes empresariais foram fundamentais no processo de
legitimação e sustentação social do regime militar no Brasil. É preciso compreender que
diferentes grupos atuaram em defesa do aprofundamento do novo regime. Nesse caso,
obviamente uma ditadura de mais de duas décadas não poderia ter se sustentado sem o apoio
de parcelas importantes da sociedade brasileira, além dos próprios militares 522. Portanto, a
ditadura não foi um fenômeno exclusivamente militar, embora as Forças Armadas tenham
assumido posição frontal naquele regime523. No caso piauiense, as ditas classes produtoras
proporcionaram uma ampla quantidade de eventos em torno da celebração da tomada de
poder pelos militares, como durante a visita do General Castello Branco ao Piauí, já em 1965,
conforme texto abaixo de José Tajra.

A cidade de Teresina, como de resto todo o Estado do Piauí, vive, não


apenas a honra assinalada de hospedar Vossa Excelência, o Primeiro
Mandatário da Nação, mas sobretudo a honra a alegria incontida de receber

519
TAJRA, op. cit. 1964, P. 01-02
520
ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (org.) A construção social dos regimes autoritários:
Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.24.
521
ROLLEMBERG; QUADRAT, 2011, p.24.
522
MELO, Demian Bezerra de. “Civis que colaboraram com a ditadura”. In: Relatório da Comissão Nacional
da Verdade. Vol. II. Brasília: CNV, 2014, p. 303-328.
523
MELO, Op. Cit. 2014.
213

a visita do nordestino que é Vossa Excelência, sensível, portanto, a todos


os problemas que afligem esta região brasileira, que somente à custa de
ingentes sacrifícios e da patriótica ação dos seus homens públicos, tem
podido subsistir e desenvolver-se524.

As práticas adesistas e colaboracionistas do empresário José Elias Tajra podem


ser entendidas, de certa forma, como exemplar daquilo que destaco neste trabalho: o fato de
que muitos civis foram fundamentais no processo de sustentação do quadro político e
econômico da ditadura. As narrativas então empreendidas gravitavam em torno da busca
pela efetivação de obras de grande porte, como a barragem de Boa Esperança, já proposta
nos governos anteriores, mas até então não concluída, bem como pela busca de investimentos
estruturais para o Piauí, que pudessem favorecer os empreendimentos comerciais das elites
econômicas locais. Porém, reproduziam fortemente os discursos, comuns naquele momento,
de que os militares trariam o desejado desenvolvimento econômico amparando-se na “luta
contra a corrupção” e à “subversão”, como no texto abaixo de Jesus Tajra.

E Vossa Excelência pisa o solo piauiense, exatamente num dos seus


momentos histórico de maior significação, qual seja o desvio do Rio
Parnaíba, que assinala a primeira etapa concluída da Barragem de Boa
Esperança, em dúvida, a mais alta e mais vivida aspiração do povo
piauiense, que compreende que essa obra admirável é que vai impulsionar
definitivamente o nosso progresso e promover a redenção econômica desta
antes esquecida região brasileira525. A presença de Vossa Excelência entre
nós, tem para as classes produtoras outra significação: ela representa a
certeza de que o Brasil conseguiu o seu destino histórico de Nação
democrática e, hoje, através de um Governo que luta incessantemente para
recuperar a sua economia debilitada por uma inflação esmagadora, sanear
a sua administração numa ação pertinaz contra a corrupção, e, afinal,
livrar o país da subversão provocada pelos maus brasileiros a soldo de
ideias e de governos estrangeiros, o Brasil marcha para a concretização do
binômio regenerador: inspirado nas ideias da Revolução de 31 de março,
uma democracia de oportunidades e de um desenvolvimento com
estabilidade526. (grifo meu)

Parte dos grandes comerciantes piauienses enxergaram, na tomada de poder


pelos militares em 1964, uma oportunidade de ampliar seus investimentos econômicos e, ao
mesmo tempo, buscar no Estado autoritário um meio de financiamento para seus negócios.
Ao defenderem a ideia de “democracia de oportunidades” e de um “desenvolvimento com
estabilidade”, como Jesus Tajra mencionava, em visita ao Marechal Castello Branco, o que
se buscava de fato era estabelecer localmente um projeto político calcado na diminuição do

524
TAJRA, José Elias. As classes produtoras de Teresina saúdam o Presidente da república. Revista Caravana,
p. 17, jul. 1965.
525
TAJRA, 1965, p. 17.
526
TAJRA,1965, p. 17.
214

poder de atuação dos movimentos sindicais e, ao mesmo tempo, conectado com a Doutrina
de Segurança Nacional, ligando-se com a premissa da “segurança e desenvolvimento” . A
intenção então presente era pensar a ampliação do poder do Estado em investir em obras
estruturais no Piauí, que pudessem impulsionar as atividades desses grupos empresariais,
porém sem o apoio e/ou estímulo aos movimentos sociais.
No que diz respeito ao processo de construção social do golpe e da ditadura, logo
nos primeiros dias de abril de 1964, circulou pela imprensa piauiense uma nota assinada
pelas Associações Empresariais do Brasil intitulada Classes produtoras adotam decisão, em
claro posicionamento adesista. A nota veio, naquele momento, demonstrar o entusiasmo de
diferentes ramos empresariais brasileiros ao projeto político-econômico da modernização
autoritária que ganharia terreno então e, por meio da reprodução na imprensa local,
demonstrar que esses marcos definidores deveriam ser seguidos nesse espaço.

As entidades das classes produtoras, reunidas em Assembleia Nacional,


após examinarem a presente conjuntura revolucionária resolveram: 01-
manifestar seu aplauso e solidariedade às Forças Armadas e aos governos
estaduais, que interpretando os anseios e angústias do povo brasileiro,
insurgiram-se contra os desmandos do governo federal e a comunização do
país, implantando clima de tranquilidade, indispensável ao
desenvolvimento econômico e ao bem-estar social. 02 – Apoiar os
propósitos do alto comando revolucionário no sentido de erradicar o
comunismo da vida do país e eliminar o perigo de sua rearticulação. 03 -
Salientar a imperiosa necessidade de estender o saneamento aos demais
setores da vida brasileira, consoante aos princípios da moral, combatendo
em particular a corruptos, corruptores e negocistas, assegurada a
colaboração das classes produtoras nesse sentido527.

É perceptível no texto, divulgado na imprensa local, a ideia de que as chamadas


classes produtoras, invariavelmente, buscaram se posicionar em colaboração aos ditames
políticos dos militares. A ideia latente de que os militares, com a “revolução”, viriam para
estabelecer um “clima de ordem” e o estabelecimento de medidas que buscassem a
eliminação de dissidências, oposições, ou até mesmo a perseguição aos movimentos sociais,
em muito deixa transparecer que parcelas do empresariado nacional sentiram-se confiantes
com tal modelo político. Essas almejavam então um cenário sem questionamentos ao sistema
de exploração de mão-de-obra, um horizonte sem lutas ou campanhas por melhorias nas
condições de vida para a classe trabalhadora ou por aumentos salariais, como verificou-se,
nos anos anteriores ao golpe. Amplas camadas do empresariado piauiense, assim como o de
projeção nacional, souberam se adaptar muito bem ao autoritarismo que marcou o regime de

527
Classes produtoras adotam decisão. Jornal O Dia, p. 06, 12 abr. 1964.
215

exceção implantado em 1964, por ter interesses intrínsecos a esse modelo político-
econômico.
Outro setor de relevo na sociedade piauiense que celebrou o golpe, enviando
ofício à Guarnição Federal em alusão à tomada de poder pelos militares, foi o Rotary Club528.
Composto principalmente pelas famílias tradicionais do estado, trazendo a defesa de alguns
serviços de “caridade” aos “mais necessitados”, esses setores temiam a possibilidade de
modificação das estruturas sociais e perda de privilégios simbólicos e efetivos que poderia
ocorrer, caso concretizadas as reformas de base defendidas pelas esquerdas. Preferiam ver
mantido o status quo, mesmo que por meio de um golpe autoritário e antidemocrático, pode-
se dizer, e assim continuar com suas “campanhas” e “benfeitorias”, especialmente se
tivessem bastante evidência midiática, do que ver as classes populares assumindo
protagonismo político e ganhando poder de decisão, como estavam fazendo durante o
governo Jango. No jornal O Dia, de 17 de abril de 1964, foram publicados alguns ofícios de
apoio aos militares, como o que segue, do presidente do Rotary Club de Teresina:

No momento em que o povo piauiense rende merecido tributo glorioso ao


Exército Brasileiro pelo motivo de reconstrução de nossa pátria, ordem
democrática e cristã, o Rotary Club de Teresina deseja expressar a Vossa
Excelência e toda valorosa guarnição federal nossos mais vivos aplausos
pela patriótica, firme e serena atuação, sob chefia de Vossa Excelência.
Saudações atenciosas. Raimundo Mendes de Carvalho, presidente do
Rotary Club de Teresina529.

No espaço midiático piauiense – e isso é fundamental neste trabalho – parte da


grande imprensa justificou a intervenção militar ocorrida em 1964 enquanto algo, naquele
momento, fundamental para a “salvaguarda da democracia”. Com argumentos simplórios e
permeados de uma visão maniqueísta da política brasileira e mundial, os jornalistas d’O Dia
indicavam que uma onda inflacionária poderia facilitar a tomada de poder pelos comunistas
brasileiros, ligados à influência de Moscou. Interessante observar a recorrência de termos
relacionados ao aspecto religioso, como a ideia de um “plano diabólico”, traçado, segundo
os articulistas, pelos comunistas, para subverter a “ordem democrática brasileira”.

O Brasil não esteve em guerra, nem mesmo derramou o sangue dos seus
filhos, por ocasião da recente revolução legalista que irrompeu, promovida
pelas Forças Armadas para preservação do regime democrático. Há muito

528
Também é possível ver, no jornal carioca Correio da Manhã, dias após o golpe, a seguinte nota: “O General
Olympio Mourão Filho deverá receber hoje um ofício do Rotary Club de Juiz de Fora, congratulando-se com
o general por sua atitude de destemor em defesa da democracia, enviando-se idêntico ofício ao governador
Magalhães Pinto”. Rotary Club. Ver: Jornal Correio da Manhã, p. 02, 05 abr. 1964.
529
Jornal O Dia, p. 06, 17 abr. 1964.
216

tempo, porém, vimos sentindo árduas consequências de um país em luta,


desorganizado e sofrido pelas garras gigantescas de um plano diabólico e
infeliz que nos tiraria completamente a felicidade. Queremos nos referir a
premeditada onda inflacionária, à influência dos agentes de Moscou, China
e Cuba, em todas as nossas instituições administrativas com o objetivo de
alcançar o auge do desespero, minando-as de males ou tentáculos
comunistas, para influenciar os elementos sadios e perverter a ordem 530.

Em seguida, se apelava para o “sacrifício” do povo brasileiro em torno da


superação dos problemas econômicos que, segundo os autores, foram causados por uma
certa irresponsabilidade financeira do governo Jango e pela presença de lideranças
comunistas naquela gestão. Cumpre ressaltar a ideia de que a “revolução”, tal qual esses
grupos defendiam, trazia em si o caráter de eliminação dos adversários, aqui entendidos
como “abutres”, que estariam contaminando o mundo político e econômico brasileiro.
Portanto, se estava justificando uma intervenção militar violenta, mas que teria como
resultado, para eles, uma espécie de “salvação econômica”.

O encanamento de empresas de vulto já era ameaçado à boca solta. Tudo


conforme o previsto no esquema da revolução vermelha. Mas retomamos
as rédeas do corcel da providência e vamos reencaminhar as cousas no
caminho certo, afastando os obstáculos, enxotado os abutres e desinfetando
a fedentina por eles deixada. Será um trabalho de certo modo demorado,
contudo necessário, inevitável, cujos promissores resultados dependerão
da colaboração do povo. Como primeira medida o País carecerá de
sacrifício de cada um para restabelecimento de nossa economia e finanças.
A compreensão geral deverá superpor-se aos interesses subalternos, pois aí
é onde está precisamente o antídoto do comunismo 531.

Um ponto importante a se destacar, especificamente sobre o golpe, foi a


divulgação que seus desdobramentos tiveram nos veículos de comunicação no Piauí. As
batidas policiais em sindicatos, as prisões arbitrárias efetuadas na calada da noite, o clima
de perseguição e censura, as “operações limpeza”, tudo isso era cotidianamente informado
à sociedade por meio de boletins produzidos pela Guarnição Federal do Exército em Teresina.
Estaria a sociedade piauiense ávida por ver “perigosos comunistas” presos e sedenta pela
punição dos ditos subversivos? O que justificaria a ampla circulação desses textos na
imprensa escrita, se não a necessidade de que essa sociedade pudesse se inteirar de tais
punições? Além da intenção de angariar a simpatia da opinião pública, esses boletins
ilustram o quanto se estabeleceu uma relação obscura, cinzenta e complexa com relação às
práticas persecutórias e seus sustentáculos sociais, também no meio piauiense.

530
Jornal O Dia, p. 07, 1964.
531
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia. 17 abr. 1964.
217

Em Parnaíba, cidade litorânea com uma maior presença de sindicatos de


trabalhadores urbanos mobilizados no estado, como enfatizei nos primeiros capítulos,
chegou-se ao ponto de se estabelecer uma “comissão de orientação para as atividades
estudantis”, composta por notórios professores da cidade; ao mesmo tempo em que, por meio
do aparato midiático, se prestava conta das prisões e punições aplicadas nessa cidade, como
se pode perceber no trecho abaixo.

[...] Após as inúmeras prisões efetuadas em Parnaíba, o Cap. Gladstone


procurou esclarecer à opinião pública que era seu dever patriótico, que em
consequência da revolução pacífica levada a efeito no Brasil, as Forças
Armadas tomaram a si a tarefa de limpar o País da intoxicação do
comunismo, a fim de possibilitarem o sossego e a tranquilidade da família
brasileira. Esclareceu ele que: ‘tivemos que efetuar grande número de
prisões em Parnaíba, do mesmo modo que está ocorrendo em todo o Brasil,
bem como as diversas batidas realizadas nos Sindicatos de Classe, seus
dirigentes tiveram de ser detidos para que possam esclarecer sua
participação ou não no movimento de comunização do País’. Finaliza,
dizendo que: ‘qualquer cidadão poderá colaborar com nossa missão, e que
durante sua estada em Parnaíba criou uma comissão de orientação das
atividades estudantis, cuja composição é a seguinte: Monsenhor Antônio
Sampaio, professor Alexandre Alves e Joaquim Custódio, sendo homens
ilustres no seio da sociedade, ajudariam a explicar as finalidades da
revolução de 31 de março de 1964’. Por fim, sua missão em Parnaíba
manifestou seu “inteiro apoio com o destacamento Federal à Marcha da
Família, com Deus, pela Liberdade”532.

No que diz respeito ao apoio e sustentação de um discurso valorativo sobre o


golpe de 1964, ainda nessa cidade, a imprensa ligada aos comerciantes locais também se
posicionou por meio do Almanaque da Parnaíba, na edição lançada no ano de 1965,
produzida no ano anterior. O anuário trouxe na capa a figura do marechal Castello Branco,
eleito indiretamente como presidente da República logo após o golpe. O primeiro presidente
militar era cearense, mas também possuía vínculos familiares com o estado do Piauí, o que
foi visto como fator positivo aos olhos dos grupos econômicos locais. O Almanaque servia
como instrumento de divulgação das principais casas comerciais da cidade de Parnaíba e do
estado, além de trazer em suas edições os balanços da economia local, textos de literatura e
poemas. Nessa edição, no entanto, o destaque ficou por conta da necessidade dos escritores
de se ligarem aos novos “donos do poder”, numa prática aberta de adesismo aos golpistas da
ocasião, como se pode evidenciar na imagem abaixo.

532
Jornal O Estado do Piauí, Teresina-PI, 02 jul. 1964.
218

Figura 06- Capa do Almanaque da Parnaíba. Ed. 1965

Fonte: Almanaque da Parnaíba, edição de 1965.

Nessa publicação, portanto, é possível ler que os comerciantes parnaibanos,


perceberam o golpe de 1964 como algo positivo, assim como procedeu a maior parte da
mídia brasileira. Os escritores propagaram a ideia de que o golpe viria para sanar uma
situação de anormalidade institucional, bem como para “restaurar a democracia” no Brasil.
Segundo os articulistas do Almanaque, Castello Branco “[é] piauiense de coração,
intimamente ligado à nossa terra pelas memórias do muito que viveram e aturam em Campo
Maior, seus avós”533. Destacavam-se, então, os laços de parentesco que ligavam o militar
com os grupos oligárquicos piauienses, mais especificamente da região centro-norte do
estado, onde os Castello Branco tinham raízes há séculos534. Os editores do Almanaque, tendo
à frente o comerciante Ranulpho Torres Raposo535, lançaram diversos termos elogiosos e

533
Almanaque da Parnaíba, 1965, p. 46.
534
De acordo com a biografia Castello, escrita por Lira Neto, o pai de Humberto de Alencar Castello Branco,
era da oitava geração iniciada por Francisco da Cunha e Silva Castello Branco. Francisco, por volta de 1693,
após um naufrágio, embrenhou-se pelos sertões do Piauí, expulsando e degolando índios, fez pequena fortuna
como proprietário de terras e pecuarista na freguesia piauiense de Santo Antônio do Surubim de Campo Maior.
Entre os nomes dessa dinastia, dos muitos homens de farda, destacou-se o temido tenente-coronel João do
Rego Castello Branco, que no século XVIII havia sido apelidado de “João, o sanguinário”, pela fama de
impiedoso matador de tupis-guaranis. (NETO, Lira. Op. cit. p. 39-40)
535
Ranulpho Torres Raposo foi jornalista, comerciante, representava, em Parnaíba, firmas estrangeiras como a
Ford. Proprietário e editor do Almanaque da Parnaíba que passou a publicar anualmente a partir de 1941.
219

grandiloquentes ao marechal, pois, segundo os articulistas, Castello seria exemplar da


“honestidade” e “arrojo” típico das Forças Armadas brasileiras.
Os escritores destacam Castello Branco pelo seu “heroísmo”, “bravura”, como
“continuador da tradição de Duque de Caxias”, pela “inteligência”, “probidade” e por
demonstrar dentro da corporação uma “carreira de relevo”. Os escritores também lançaram
apostas esperançosas de que “o governo do Marechal [será] um dos melhores de nossa
história” e afirmavam que “o Piauí [já] tem dívida de gratidão para com o Marechal, pelo
apreço que tem demostrado à nossa terra”, bem como pelo seu propósito de “levar adiante a
obra de realização da grande obra da barragem e usina de Boa Esperança” 536. O texto de
abertura, permeado de discursos valorativos ao marechal Castello Branco, prosseguia
apontando que:

Eleito presidente da república, depois de ter sido um dos homens axiais da


Revolução de Abril, que deteve o Brasil no último lance de uma queda
mortal em um destino de tirania e servidão, vem causando surpresa até
mesmo aos que mais o conheciam, pois logo se revelou um estadista com
todas as magnas virtudes e capacidades de alto descortino, seguro domínio
da arte de governar, operosidade, serenidade e equilíbrio 537. (grifo meu)

No momento em que se estabelecia o governo militar, parte dos comerciantes


em Parnaíba buscou evidenciar, para a opinião pública local, o fato de que a “revolução”
viria para resguardar a democracia brasileira dos destinos de “tirania e servidão”, que teria
esse país, em caso de tomada de poder pelos “comunistas”. No trecho acima, do Almanaque
da Parnaíba, o golpe de 1964, mesmo com claras demonstrações de truculência e
perseguição aos opositores políticos desde os primeiros momentos, foi entendido como o
mais sincero exemplar de “verdadeira brasilidade e civismo”.
Ranulpho Torres Raposo e os demais escritores do Almanaque compartilhavam
de um horizonte de expectativa positivo, uma visão de futuro em comum para o Brasil, sob
o domínio dos militares, quando vislumbraram uma “pátria engrandecida e glorificada”, a
ser construída sob os auspícios do poder militar. Qual a razão para tamanho apoio da classe
comercial parnaibana ao regime de força imposto em 1964? Estariam os empresários locais
buscando angariar a simpatia dos militares por medo, ou simplesmente se reconheciam
naquele regime, por meio de uma cultura política autoritária em comum? São pontos

Presidente da Associação Comercial de Parnaíba (ACP), cargo que ocupou de 1951 até 1971. Ver: Almanaque
da Parnaíba, 60ª edição, ano 1985.
536
Almanaque da Parnaíba, 1965, p. 03-04.
537
Idem.
220

difíceis de responder. O certo é que muitos desses comerciantes buscaram estabelecer


relações com os militares de forma espontânea, por iniciativa própria e de forma
exageradamente enaltecedora, conforme se pode evidenciar nos textos.

[...] É com justo desvanecimento que abrimos essa 42ª edição, sobretudo
por sua coincidência com um excepcional momento da vida brasileira.
Dedicamo-la, pois, a 5ª nossa república. Pela elevação de propósitos que a
motivou: restabelecer a ordem e assegurar o progresso pelo império da
lei, que entre nós adquiriu sentido nacional, a todos impondo deveres e
assegurando direitos [...] ainda em fase de promoção, a revolução de 1964
impôs-se critérios de verdadeira brasilidade e civismo e nós esperamos
cantar-lhe a vitória plena, quando mais uma vez circularmos, em 1966,
felizes de ver que a imprensa brasileira, não apenas nós, orgulha-se da
pátria que ajudou a reconstruir, engrandecida e glorificada 538. (grifo meu)

É preciso evidenciar, nesse sentido, que o golpe de 1964, assim como a ditadura,
de acordo com a interpretação de Daniel Aarão Reis Filho, “foi um processo de construção
histórico-social, não um acidente de percurso” 539 . Portanto, é fundamental para uma
compreensão mais complexa e apurada de tal evento, que as responsabilidades e a íntima
relação que tiveram alguns grupos econômicos no processo de sustentação do regime, por
conta de seu próprio autoritarismo, ou pela busca por benefícios políticos, sejam examinadas.
No processo de concentração de poder por parte do executivo, dominado por
militares, que marcou o quadro político brasileiro após o golpe de 1964, um setor piauiense
que buscou se acomodar à nova ordem foi o dos grandes jornais locais. Parte da imprensa
piauiense não só buscou dar ares de legitimidade aos atos institucionais e demais medidas
jurídicas antidemocráticas, como buscou evidenciar uma pretensa melhora no
funcionamento do federalismo brasileiro, por meio de tais atos. Ao mesmo tempo foi
fundamental no sentido de divulgar as medidas dos militares como algo positivo no combate
ao “comunismo” e à “corrupção”.
É preciso entender, nesse sentido, o lugar que ocupa a imprensa nesse processo
de progressivo crescimento do autoritarismo jurídico-militar. Para além do papel de
resistente ao processo de fechamento institucional, de vítima de censura ou perseguição
política por parte do Estado militarizado, parte da imprensa costumou ser, mais do que
conivente, cúmplice do arbítrio instaurado, contribuindo assim para a construção social desse

538
Almanaque da Parnaíba, 1965, p. 03-04.
539
REIS FILHO, op. cit. 2004, p. 50.
221

regime de força540. Nesse caso, em Parnaíba e em Teresina, é possível averiguar que parte
desse setor, mesmo percebendo os arroubos autoritários dos militares a partir do golpe em
1964 e das medidas jurídicas de exceção implementadas, buscou formas de representar os
atos de exceção enquanto medidas de consolidação da democracia, ou sinais do
fortalecimento das instituições.
No entanto, com o processo de redefiniçao das memórias sobre os
acontecimentos dos anos 1960, essa mesma imprensa procurou se eximir das
responsabilidades que teve em sustentar e legitimar socialmente o regime ditatorial. Como
se pode perceber ao longo desse trabalho, alguns jornais piauienses, como O Dia, fizeram
ampla e firme oposição às reformas de base e ao governo Jango, bem como apoiaram
fortemente o golpe e a ditadura que se seguiu. Porém, em texto sobre a história do jornal,
escrito recentemente, procurou-se estabelecer uma outra narrativa, reposicionando a
memória sobre o momento, negando o apoio do jornal ao golpe e à ditadura. Nesse texto
retrospectivo, os editores tentaram qualificar a atuação d’O Dia, durante o regime, enquanto
resistente aos “caprichos” de poder dos militares. O texto apontava então que:

O coronel e empresário Octávio Miranda adquire O DIA no início dos anos


60: numa atitude pioneira coloca O DIA nas ruas, em 1º de fevereiro de
primeiro jornal diário do Piauí, causando estupefação numa população que
sequer sonhava em ter um jornal que lhe mantivesse informado
diariamente todas as investidas dos militares, quando do período ditatorial,
Octávio Miranda conseguiu informar sem se submeter aos caprichos do
poder que se instalou no país em 1964541.

Como se percebe, já nos anos 2000, quando fez um breve retrospecto de sua
atividade jornalística no estado do Piauí, o grupo O Dia procurou fazer uma espécie de
revisão da memória. Nessa operação, negou-se todo o seu colaboracionismo com o golpe e
com a ditadura, como se esse jornal tivesse, num lance de ousadia, escapado das investidas
dos militares no poder. Não se mencionou, então, as chamadas públicas desse jornal para a
participação na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que trato no último item desse
capítulo. Não se mencionou que, por meio desse jornal, as oposições ao governo Jango
tiveram penetração social e visibilidade. Não se mencionou, também, as colunas dos homens
do judiciário piauiense, cobrando mais punições aos ditos subversivos após o golpe, como
irei tratar a partir de então no próximo item.

540
Sobre as práticas de adesão e mesmo o colaboracionismo de parcela da imprensa brasileira durante a
ditadura, ver: KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à constituição de 1988.
São Paulo. Boitempo. FAPESP, 2004.
541
Sobre o Jornal O Dia, ver: https://www.portalodia.com/expediente. Acesso em: 13 dez. 2019.
222

Entre o golpe e a ditadura: o mundo jurídico piauiense e o apoio à ruptura institucional


de 1964

Com a ampliação de movimentos de trabalhadores rurais e urbanos no início dos


anos 1960, determinados setores do campo da justiça piauiense tomaram para si a produção
de um discurso em torno da necessidade de manutenção do quadro socioeconômico local,
em um cenário de forte acirramento político. No Poder Judiciário do estado, figuras como o
desembargador Simplício de Sousa Mendes, e outros ligados aos grandes proprietários de
terra, se utilizaram do seu espaço em jornais para lançar discursos de acusação contra
lideranças trabalhistas. Também fizeram uso dos mesmos canais para saudar a “revolução
democrática” de 1964, que veio, segundo suas interpretações, salvar o Brasil da “ameaça
vermelha”. Além disso, fizeram largo uso desses espaços midiáticos em busca da
legitimação das medidas autoritárias do governo Castello Branco – os primeiros Atos
Institucionais – bem como para cobrar uma maior radicalização na punição aos opositores
do regime, no âmbito do Legislativo e do Judiciário.
A formação social do campo jurídico piauiense, como pude perceber, possuía
forte tendência conservadora e isso ficou evidente no momento da ruptura institucional
ocorrida em 1964. Isso se explica, em certo ponto, pelo fato de maior parte desses bacharéis
ser oriunda dos setores/famílias tradicionais da sociedade piauiense, por suas visões de
mundo forjadas dentro desses núcleos sociais e sua posição de distinção social, além de
outros aspectos. Esses foram elementos importantes que fizeram com que parte desses
agentes, no Piauí, celebrasse o golpe em detrimento do regime democrático aberto em 1945.
Importante destacar, em relação a órgãos como a OAB542, por exemplo, conforme
indica Denise Rollemberg, que a “unanimidade existiu no momento do golpe”. Segundo a
historiadora, a Ordem fez boletins e notas saudando “os homens responsáveis desta terra”
que, segundo palavras dos próprios advogados, “erradicavam o mal das conjuras comuno-
sindicalistas, proclamando que a sobrevivência da Nação Brasileira se processou sob a égide

542
Destaco que órgãos como a OAB, em 1964, apoiaram abertamente o golpe. No entanto, ao longo do tempo,
sobretudo já nos anos 1970, com a iminente abertura política, mudou de posição, tendo em vista que “saiu do
clássico anticomunismo da época, com todos os jargões e lugares-comuns conhecidos, para o enfrentamento
do regime”, conforme indica Denise Rollemberg. No entanto, com o processo de abertura a partir de 1974 e,
sobretudo a partir de 1979, “a OAB, ao lado da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aparecem como pilares da chamada resistência democrática, na luta
contra a ditadura militar”. Esses pontos mencionados são importantes para compreender como as posturas de
agentes públicos, órgãos ou entidades podem sofrer reposicionamentos, a partir dos interesses observados em
cada momento. E, acima de tudo, para perceber que a ambivalência marcou a atuação de diferentes setores da
sociedade com relação ao regime de 1964. Ver: ROLLEMBERG, Denise. Memória, Opinião e Cultura Política.
A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974). REIS FILHO Daniel Aarão; ROLLAND,
Denis. (Orgs.) Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 04.
223

intocável do Estado do Direito”543.


No Piauí, a partir do levantamento de matérias de jornais publicados nos
momentos posteriores ao golpe, como O Dia, é possível acessar notas produzidas por
membros do Poder Judiciário local, desembargadores e procuradores estaduais, como a que
segue:

Do presidente do Tribunal de Justiça do Piauí


Devidos fins tenho a grande honra de comunicar Vossa Excelência que
mediante proposta de Des. Vicente Ribeiro Gonçalves et concordância da
Procuradoria Geral da Justiça, este Egrégio Tribunal, sessão plenária da
última quinta-feira, mandou inserir em ata de seus trabalhos um voto de
solidariedade e confiança nas Forças Armadas Brasileiras, por motivos
acontecimentos militares no País, nos quais as Forças Armadas revelaram
mais uma vez seu grande patriotismo e entranhado amor a Pátria 544.

No jornal O Dia, a partir do levantamento de algumas edições, é possível


perceber uma ampla quantidade de notas lançadas por instituições, órgãos, bem como por
autoridades políticas, comerciais e jurídicas, que, no intuito de se posicionar em apoio ao
golpe buscaram angariar a simpatia dos grupos militares, reconhecendo tal evento como uma
espécie de “solução redentora” para o país. Esse tipo de declaração, em adesão aos militares,
foi bastante comum nos jornais piauienses nos idos de abril de 1964. Elas demonstram, a
meu ver, como parte do mundo jurídico piauiense também se colocou, sem nenhuma forma
de pressão, coação ou mesmo ameaça, a justificar uma ruptura política que se mostrou
autoritária desde o início, mas que, em favor de interesses dos setores tradicionais,
proporcionou a manutenção de antigos privilégios sociais e econômicos em todo o país. No
caso piauiense, também houve moção de aplausos às Forças Armadas por parte de membros
do TRE local, como mostra a nota a seguir.

TRE: Moção de aplausos às Fôrças Armadas


Em sessão de ontem do Tribunal Eleitoral, o Des. Manoel Felício Pinto
solidarizou-se com o Des. Edgard Nogueira, Juiz Paulo Freitas e o
Procurador da República, Dr. Valdemar Ramos Leal, pelos
pronunciamentos que fizeram através da imprensa falada de Teresina,
sobre o atual momento político nacional. Requereu também, o Des. Felício
Pinto, moção de aplausos às Forças Armadas e aos poderes constituídos
pela atuação salvadora e eficiente em defesa do regime democrático, sendo
a moção aprovada por unanimidade545.

O desembargador Edgard Nogueira, citado acima, por conta de sua proximidade

543
ROLLEMBERG, 2008, p. 03.
544
Jornal O Dia, 17 abr.1964, p. 06.
545
Jornal O Dia, p. 04, 11 abr. 1964.
224

com o governador do Piauí, Petrônio Portella, no momento do golpe, tentou dissuadi-lo de


lançar nota em apoio a Jango546, além de sustentar e defender os militares no âmbito local.
Quando ficou evidente a quebra da institucionalidade democrática, com a consequente
montagem gradual de aparato jurídico capaz de dar suporte ao conjunto de violações aos
direitos humanos, grande parte do Judiciário, por sua cultura política identificada com as
direitas, não esboçou qualquer forma de contestação ao gesto autoritário praticado. Um
aspecto importante a se mencionar é a ampla presença de juízes, promotores e outros
membros do judiciário fazendo uma sustentação narrativa do golpe, numa clara
demonstração de colaboracionismo a um evidente rompimento com a ordem constitucional.
Nesse quesito, a recente obra do jornalista Felipe Recondo, Tanques e Togas: o
STF e a ditadura militar, traz um relato importante sobre o papel do STF no contexto do
golpe de 1964. O autor indica, por exemplo, que o presidente do Supremo naquele momento
– Álvaro Moutinho Ribeiro da Costa547 – esteve presente na sessão do dia 2 de abril de 1964,
quando “Ranieri Mazzilli foi empossado presidente da República, amparado pelo
movimento dos militares e na presença dos presidentes do Senado e do Supremo”, mesmo
com o presidente Jango ainda em território nacional548. Os três poderes, juntos, portanto,
“decretaram o fim do governo João Goulart e o início de uma nova fase na República”. Felipe
Recondo destaca ainda que, “quando o Congresso elegeu Castelo Branco presidente da
República, Ribeiro da Costa afiançou seu apoio pessoal e, como porta-voz do Supremo, o
suporte institucional”. A partir disso, “a eleição indireta do novo presidente, com o aval
tácito do Supremo, consolidou formalmente a nova ordem constitucional” 549 . De acordo
ainda com Recondo, o ministro Ribeiro da Costa “não negava sua simpatia pela intervenção
dos militares”, mas manifestava o contrário, tendo em vista que o mesmo “franqueou
publicamente seu apoio e, naquele exato momento, ali estava para emprestar a força de seu
cargo à consumação institucional do golpe de 1964”550.
Cabe observar que, para alguns autores que tratam do período e da relação dos
militares com a justiça, houve um certo processo de legitimação por parte de setores do
judiciário aos arroubos autoritários das forças armadas então no poder. Anthony Pereira, por
exemplo, sustenta que, ao contrário dos demais países da América Latina, como Argentina

546
TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella: uma biografia. Teresina-PI: Ed. do autor, 2012, p. 205.
547
Para o perfil de Ribeiro da Costa, ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/alvaro-moutinho-ribeiro-da-costa. Acesso em: 03 jan. 2020.
548
RECONDO, Felipe. Tanques e togas: o STF e a ditadura militar. Ed. Companhia das letras, 2018, p. 20.
549
RECONDO, 2018, p 24.
550
RECONDO, 2018, p. 20.
225

e Chile, no Brasil havia entrosamento entre as forças militares e o Poder Judiciário, tendo o
autoritarismo, por isso mesmo, utilizado a estrutura jurídica existente antes do golpe para
legitimar os seus atos, com modificações ao longo do tempo. Para o autor, “onde havia uma
nítida separação entre as forças armadas e o Judiciário, e a cooperação era limitada, a
repressão tomou uma forma intermediária entre esses dois polos”551.
Após o golpe, apesar do colaboracionismo de setores do Judiciário, algum
espaço de atuação judicial ainda existia por parte de membros do STF, seja impetrando
habeas corpus a favor de determinadas lideranças políticas, seja simplesmente atuando em
defesa da constituição em casos de claro abuso de poder por parte do regime. Nesses
momentos de tensão, existiram setores de dentro do próprio campo jurídico que defendiam
uma espécie de “saneamento revolucionário” desse poder, contra as “garantias
constitucionais”. Ou seja, defendiam cercear determinados juízes, promotores e até mesmo
ministros do STF, que não se coadunassem com o poder discricionário e punitivo do regime
imposto em 1964.
No caso piauiense, novamente destaco a figura do desembargador e jornalista
Simplício de Sousa Mendes. Em sua coluna diária – intitulada Televisão – no periódico O
Dia, já no ano de 1965, após o AI-2, ele se colocou em franco apoio às atividades
persecutórias dos militares contra o Poder Judiciário, ao apontar que “ninguém poderá
contestar que a magistratura, em geral, necessita de saneamento revolucionário, de maneira
a acobertar o povo dessa espécie de entidade mórbida que, acobertada com as garantias
constitucionais, polui o regime, pelo público descumprimento dos deveres funcionais” 552. O
“saneamento revolucionário” pretendido pelo magistrado piauiense, como se pode perceber,
era nada mais do que a punição de membros do Judiciário que contrariassem decisões dos
militares. Vale ressaltar que, naquele momento, como uma forma de ter decisões mais
favoráveis ao regime, os militares ampliaram o número de ministros do Supremo de 11 para
16, por meio do AI-2.
O desembargador, munido de seu poder efetivo no cargo do Poder Judiciário no
Piauí, além de ser um formador de opinião nesse estado, pelo amplo poder que detinha nos
meios de comunicação e de produção cultural, defendia que “se o poder legislativo passou,
em parte, - pelo crivo do reajustamento moral, - não se concebe que o legalismo
revolucionário haja poupado o mais importante pela sensibilidade da missão: o poder

551
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 286.
552
MENDES, 04.11.1965, p. 03
226

judiciário” 553
. Ele, como outros agentes do mundo jurídico, por meio de seus
posicionamentos colaboracionistas, demonstra que, em um regime de exceção, autoritário e
antidemocrático, podem existir inúmeras formas de adesismo. Uma dessas formas, como se
percebe, é a busca por exigir medidas mais severas por parte do Estado militarizado, mesmo
que contra seus próprios pares do campo da justiça.
Como se percebe, dentro do Poder Judiciário piauiense, existiram membros e
grupos que buscaram se conectar, de forma radical, aos ditames repressivos, com a lógica de
poder do Estado de exceção aberto em 1964. Mendes indicava ainda que, “dos três órgãos
em que se separa o poder público do Estado, – o importante na estrutura do regime – é sem
dúvida, o judiciário”554. Para o desembargador, “[é] o judiciário, que [tem] a soberania de
conter, refrear, reprimir os excessos e deslizes dos demais poderes da república”555. Por certo,
Simplício Mendes já havia entendido que o regime precisou e iria ainda precisar do poder
dos “homens das leis”, tais como os juristas Francisco Campos 556 e Carlos Medeiros 557 ,

553
MENDES, 04.11.1965, p. 03
554
MENDES, 04.11.1965, p. 03.
555
MENDES, 04 nov.1965, p. 03.
556
Francisco Luís da Silva Campos nasceu em Dores do Indaiá (MG), em 1891. Advogado e jurista, formou-
se pela Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte, em 1914. Em 1919, iniciou sua carreira política
elegendo-se deputado estadual em Minas Gerais na legenda do Partido Republicano Mineiro (PRM). Ministro
da Educação e Saúde no governo Vargas (1930-1932). Nos anos 1930, consolidou-se como um dos mais
importantes ideólogos da direita no Brasil, aprofundando suas convicções antiliberais e passando a defender
explicitamente a ditadura como o regime político mais apropriado à sociedade de massas, que então se
configurava no país. Nesse sentido, tornou-se um dos elementos centrais, junto com Vargas e a cúpula das
Forças Armadas, dos preparativos que levariam à ditadura do Estado Novo, instalada por um golpe de estado
decretado em novembro de 1937. Nomeado ministro da Justiça dias antes do golpe, foi, então, encarregado por
Vargas de elaborar a nova Constituição do país, marcada por características corporativistas e pela proeminência
do poder central sobre os estados e do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário. No decorrer do ano
de 1944, passou a defender a redemocratização do país e negou o caráter fascista da Constituição de 1937,
ainda em vigência. No ano seguinte, participou das articulações empreendidas nos meios políticos e militares
que levaram ao afastamento de Vargas e ao fim do Estado Novo. Nos anos 50, afastado dos cargos públicos,
passou a defender posições econômicas liberais e agraristas. Em 1964, participou das conspirações contra o
governo do presidente João Goulart. Após a implantação do regime militar, voltou a colaborar na montagem
de um arcabouço institucional autoritário para o país, participando da elaboração dos dois primeiros Atos
Institucionais baixados pelo novo regime (AI-1 e AI-2) e enviando sugestões para a elaboração da Constituição
de 1967. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/francisco_campos.
Acesso em: 06 jan. 2020.
557
Carlos Medeiros Silva nasceu em Juiz de Fora (MG) no dia 19 de junho de 1907. Formou-se em direito no
Rio de Janeiro em 1929. Após o golpe do Estado Novo, foi incumbido de interpretar a nova Carta
Constitucional — de autoria de Francisco Campos e cujo texto original datilografara no tempo que fora chefe
de gabinete — na parte referente à acumulação de cargos. Foi consultor geral da República e após o suicídio
de Getúlio Vargas e a posse do vice-presidente João Café Filho, deixou o cargo. Em 1960, integrou a Comissão
da Reforma Administrativa, exonerando-se do cargo de procurador-geral da República em 03 de dezembro do
corrente ano, em protesto contra o presidente da República Juscelino Kubitschek, que deixara de nomeá-lo para
uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Após o golpe de 1964, a junta militar, autora das
primeiras transformações políticas introduzidas pelo novo regime, incumbiu Carlos Medeiros da elaboração de
um ato que as formalizasse. Isso deu origem à edição do Ato Institucional nº 1 (AI-1), de 9 de abril desse ano,
que permitiu punições extralegais de adversários do movimento, determinou a eleição indireta do presidente
da República e transferiu para o Executivo importantes atribuições do Poder Legislativo. Em conformidade
com esse ato, foi empossado no dia 15 de abril, na presidência da República, o marechal Humberto Castelo
227

autores do primeiro AI, aqueles que montaram a estrutura legal do golpe, no sentido de criar
todo um arcabouço jurídico que legitimasse a concentração de poder nas mãos dos militares,
ao mesmo tempo em que criava medidas de excepcionalidade para perseguir opositores
políticos em todo o país.
Para alguns homens do campo jurídico piauiense, como Simplício Mendes, era
urgente e necessário fazer um aprofundamento das cassações no poder legislativo e levar
concomitantemente essas medidas também ao Poder Judiciário, pois este, se “depurado de
forma correta”558, pode-se supor, seria fundamental na sustentação da nova ordem vigente.
Apontava ele que:

Não se compreende que a profilaxia dos corrompidos e subversivos dos


incapazes, dos que embaraçam os movimentos recuperadores e necessários
da Revolução Brasileira, seja assim incompleta no legislativo e, de modo
evidente, negada no judiciário, que para muito bem nos expressarmos, - é
a válvula de segurança dos direitos, da constituição, do regime e das leis
da república559.

No momento em que se observava no país uma clara demonstração de força do


poder militar, cassando mandatos, buscando diminuir o poder de atuação do poder legislativo
federal e nos estados, além das instâncias jurídicas no país, o desembargador Simplício
Mendes usou de seu poder de comunicação no Piauí para pedir um maior aprofundamento
nos atos punitivos. Estaria ele, ainda assim, insatisfeito com as medidas de exceção do
regime? Por certo, figuras como a do desembargador viram, naquele momento, que era
preciso aprofundar as punições. A dita “obra saneadora” do governo militar foi muito bem
vista por esses agentes públicos, mas, a partir de suas interpretações, precisava ser mais
radicalizada560.

Branco, eleito no dia 11 pelo congresso. Nomeado pelo marechal Castelo Branco em 27 de outubro de 1965
Ministro do STF, numa das vagas abertas pelo AI-2, editado naquele mesmo dia, Carlos Medeiros tomou posse
no cargo em 25 de novembro. Ainda em 1965, deixou a chefia de redação da Revista Forense. Em 18 de julho
de 1966, deixou o STF e no dia seguinte tomou posse no Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Medeiros
foi o principal autor do anteprojeto da nova Constituição, que vinha sendo elaborado desde abril de 1966.
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx. Acesso em: 06 jan. 2020.
558
Vale destacar que, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil demonstrou apoio aos militares no limiar
da intervenção em 1964 sendo, portanto, elemento fundamental no processo de legitimação social da ditadura.
Algumas críticas da OAB contra o regime foram levantadas não para pedir respostas aos militares sobre os
casos de advogados presos sem o devido respeito às suas prerrogativas advocatícias, mas, sobretudo, para
extremar a posição de direita da Ordem antes do AI-2, de acordo com Denise Rollemberg. As críticas feitas
naquele momento pela OAB apontavam os “limites da revolução para completar sua obra: pôr fim à subversão
e à corrupção”. Assim como ficou evidente nas publicações do desembargador piauiense supracitado, “a não
radicalização das duas bandeiras que mobilizara as direitas – e a OAB – era motivo de frustação.” Ver:
ROLLEMBERG, op. cit. 2008, p. 08.
559
MENDES, 04.11.1965, p. 03
560
Importante observar, porém, que alguns advogados piauienses foram contrários ao golpe e perseguidos por
isso. No Piauí, o presidente da secção da OAB, Celso de Barros, que também era deputado estadual, teve seu
228

Para muitos dos grupos conservadores de dentro do mundo jurídico brasileiro,


era o momento oportuno para perseguir juízes e outros magistrados que, sendo opositores de
suas visões de mundo, poderiam entrar no rol dos suspeitos de “corrupção” ou “subversão”,
de acordo com suas visões. Simplício Mendes, dessa forma, defendeu que “a revolução e o
Ato n° 02, ainda têm por fazer fundamental obra saneadora, - para que tenhamos algo que se
aproxime de uma democracia apresentável ao mundo civilizado”561.
Com o fim do multipartidarismo, no quadro aberto pelo AI-2, quando os
militares estabeleceram o bipartidarismo, novamente Simplício Mendes, no Piauí, utilizou-
se de sua coluna n’ O Dia, no sentido de justificar tal ato. O desembargador via como
inconveniente o quadro de atuação política aberto em 1945, quando era possível perceber
que se estabelecia certa identificação da sociedade com os partidos políticos – sobretudo
PTB, UDN e PSD. Nessa experiência liberal-democrática (1945-1964), ganhava forma a
participação de setores outrora excluídos do campo da política: os trabalhadores urbanos e
rurais, por meio de sindicatos e associações de classe.
Por certo, para agentes como Simplício Mendes, o notório protagonismo da
classe trabalhadora, percebida no cenário anterior ao golpe e a possibilidade de ampliação
da cidadania política para as classes populares serviram de motivo mais do que palpável para
se anular a estrutura partidária, então vigente. O argumento empregado em sua coluna para
justificar tal autoritarismo dos militares foi o de que em países mais desenvolvidos
politicamente existiam apenas dois partidos disputando eleições.

Já é sabido que o Ato Institucional extinguiu todos os partidos existentes


na república. A medida teve por fundamento, em grande parte, abolir o
pluripartidarismo, para que se evite a inconveniência proveniente da
divisão política em múltiplas e pequenas formações partidárias. Era preciso
evitar o sistema de alianças, de coalizões, de partidos de pouca repercussão
na opinião pública, deformando e dificultando a ação construtiva da
democracia. A democracia é, de certo, o regime de partidos, - e, não resta
dúvida regime liberal de correntes diversificadas de opinião. Mas nos
países melhor politizados que o nosso, em regra, ataram apenas dois
partidos que se revezam no poder conforme a flutuação das correntes de
opinião pública562.

Interessante observar nos textos publicados no jornal O Dia, nos anos de 1964 e
1965, consumado o golpe e com o crescimento de medidas de exceção por parte do regime,

mandato cassado por fazer declarações contrarias aos militares na tribuna da Assembleia Legislativa. Ver:
DANTAS, Deoclécio, op. cit. 2008.
561
MENDES, 04.11.1965, p. 03.
562
Idem.
229

que, em sua coluna diária, o desembargador se posicionava de forma positiva em celebração


aos gestos autoritários vindos da estrutura do Estado militarizado. Ao mesmo tempo, como
fica evidente, em determinadas situações era mais radical que os próprios militares, exigindo
punições mais duras, mais efetivas, em nome de uma certa ideia de “saneamento” do poder
público. Simplício Mendes defendia medidas mais enérgicas também contra o Congresso
Nacional, mesmo em um momento em que, após o Ato Institucional nº 02, diversas
cassações políticas já tinham sido efetuadas. Tendo em vista que, para ele, “esse Congresso
que [aí está], em maioria, é o mesmo Congresso de João Goulart e de Leonel Brizola e a
maioria não [mudará] de mentalidade jamais, somente por se extinguirem as siglas das
agremiações partidárias que pertence”563. Para Simplício Mendes:

Os novos partidos [mudarão] de nome, mas a disposição será idêntica em


toda essa representação originada na fraude, nas falsificações, das práticas
corruptoras desonestas e subversivas, desses governantes que
desagradaram a república e motivaram a revolução do povo e das armas
nacionais, - dos que velam as instituições da República, - aspirando a
elevação democrática da nacionalidade, no concerto das nações livres do
mundo.564.

É notória a tentativa de legitimar as medidas autoritárias por parte de setores do


Judiciário piauiense, mesmo em uma nova conjuntura, após efetivado o golpe, em que se
estabeleceu no país uma situação de exceção, de ruptura institucional antidemocrática. Já
com relação ao Supremo, Simplício Mendes apontou que as decisões dos ministros do STF
que não se conectassem com o espírito punitivo dos militares representavam nada mais do
que sua total incompatibilidade com a “ordem” e o poder a que estes pertenciam. Os
ministros do Supremo, para o desembargador, deviam, portanto, se adaptar ou simplesmente
sentir o peso das “medidas saneadoras” dos militares. Para ele:

Muitos dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, são doutrinária e


praticamente incompatibilizados com as próprias instituições que tem
poder dever defender e assegurar. E, assim, desde o habeas corpus ao ex-
governador Mauro Borges, todas as decisões contrariamente ao espírito
revolucionário. E não estávamos e não estamos em regime que se propõe,
apoiado nas armas nacionais e pela opinião construtiva da nacionalidade
brasileira a instituir uma democracia melhor e mais sadia – de mentalidade
mais selecionada, com a entrega aos mais aptos e mais cívicos – dos
destinos da Nação, que desejamos e queremos engrandecida, no seio de
todas as potencias livres do mundo?565

563
MENDES, 05.11.1965, p. 03.
564
Idem
565
Idem
230

O STF, não se pode deixar de evidenciar, era visto com desconfiança pelo
governo militar tendo em vista que todos os seus membros haviam sido nomeados pelos
presidentes anteriores e poderiam não estar exatamente imbuídos dos objetivos
revolucionários trazidos pelos militares566. Mateus Gamba Torres destaca que o colegiado foi
mantido após o golpe com a mesma composição de onze ministros, como determinado na
Constituição de 1946, porém as alterações não tardaram a chegar ao Supremo.
Provavelmente ajudou, de início, o fato de que, como mencionado, o Presidente do STF, deu
todo o apoio ao golpe, além do fato de nenhum dos Ministros ter se pronunciado contrário a
esse. Não houve “nem ao menos uma crítica ao golpe, nem dos Ministros nomeados por João
Goulart”567.
Um ponto importante a mencionar nas relações do STF com os militares é que
essas foram marcadas por ambivalências, pois ocorreram alguns embates entre os poderes
em alguns momentos, sobretudo com relação aos habeas corpus concedidos pelo STF aos
acusados de “subversão”, como no caso do governador Mauro Borges, citado acima por
Simplício Mendes. Nesse caso em especial, em novembro de 1964, o ministro do STF
Gonçalves de Oliveira “concedeu, monocraticamente, a primeira liminar em habeas corpus
da história do tribunal” no momento em que as “tropas do Exército marchavam para Goiás
para destituir o governador do estado, acusado pelos militares de orquestrar um plano de
subversão”568.
Esses e outros momentos de tensão foram sentidos entre o poder discricionário
dos militares e o Supremo, pois, de acordo com Recondo, “a roupagem de legalidade que os
militares quiseram vestir no golpe, provocou dificuldades, incompreensões e atritos entre o
governo e o STF”. Em pouco tempo, pode-se dizer, “o apoio explícito de Ribeiro da Costa
ao golpe daria lugar aos primeiros conflitos com o governo e com os militares”569. Os homens
do judiciário piauiense, como Simplício Mendes, no entanto, entenderam que não poderia
caber recursos a habeas corpus aos acusados de subversão, mesmo que a acusação se
mostrasse frágil, como no caso de Mauro Borges570.

566
TORRES, 2014, p. 29.
567
TORRES, 2014, p. 29.
568
RECONDO, 2018, p 49.
569
RECONDO, 2018, p 24.
570
O governador de Goiás, Mauro Borges, ao se posicionar contra a tentativa de golpe dos ministros militares
contra Jango, em 1961, por meio do “Manifesto à nação”, aderindo à Campanha da Legalidade de Brizola,
tornou-se visado pelas forças armadas, mesmo tendo apoiado o golpe contra João Goulart, em 1964, por ter
rompido com o PTB e em apoio a Castello Branco. Por isso a tentativa dos militares de derrubá-lo após o golpe.
231

O AI-2, destaco, alterou de forma direta o funcionamento do Poder Judiciário,


tendo em vista que mudou a composição do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16
ministros, no sentido de facilitar as decisões em favor do regime. Além disso, transferiu para
a competência da Justiça Militar os processos e julgamentos de crimes previstos na Lei de
Segurança Nacional de 1953. Ainda passou o julgamento de governadores e de secretários
de estado para o Superior Tribunal Militar (STM). O AI-2, como lembra Mateus Gamba
Torres, “tirou da justiça comum a atribuição de julgar os civis, para que fossem julgados por
Juízes ou Ministros dos Tribunais Militares, e aumentou o número de Ministros do Supremo,
de nomeação direta pelo Presidente da República”571. Essas medidas foram fundamentais no
sentido de aprofundar o estado de exceção, bem como para impulsionar as punições contra
os opositores do regime.
Simplício Mendes, assim como outros agentes do Judiciário piauiense, apesar da
formação na área do Direito, demonstrou pouco apreço pelo Estado democrático, em 1964.
Apoiaram um golpe autoritário, assim como sustentaram-no com fortes argumentos diante
da opinião pública do estado, por meio de colunas e notas de jornais. O anticomunismo como
uma cultura política conservadora, que conectou o mundo dos juízes e desembargadores ao
dos militares, tornou possíveis análises jurídicas dotadas de um viés político persecutório,
típico do período da Guerra Fria. É importante destacar que as análises desses agentes
públicos, homens que fizeram parte do corpo do Poder Judiciário local, possuíam muito mais
uma motivação política como pano de fundo do que justificativa jurídica legal, como se
deveria esperar.
Por fim, deve-se dizer que evidenciar a participação de grupos civis na
sustentação efetiva e simbólica do regime militar – em hipótese alguma – serve para retirar
a responsabilidade das Forças Armadas na intervenção e na organização do aparato
repressivo montado durante a ditadura. Tampouco serve para relativizar ou suavizar a
violência, perseguições, cassações e as inúmeras práticas punitivas observadas desde os
primeiros momentos de tal regime. Esse tipo de análise, ao buscar tornar complexa a
ditadura, observando também a contribuição de setores da sociedade, ajuda a pensar, a partir
de um ponto de vista mais amplo, a montagem do(s) regime(s) de exceção.
Nesse item em particular procurei vislumbrar brevemente parte do Judiciário
piauiense conectado com a lógica punitiva de uma cultura política de direita. Esses agentes
públicos, munidos de seu poder, acabaram por cobrar medidas mais enérgicas dos militares

571
TORRES, 2014, p.15-16.
232

no período posterior ao golpe, assim como fizera a própria OAB naquele momento. Esse
tipo de análise, a meu ver, permite compreender o posicionamento ambíguo de membros de
um poder que deveria velar por atuações amparadas na legalidade constitucional. No entanto,
por força de seu conservadorismo e de seus interesses na manutenção do status econômico
e social, acabaram por se posicionar de um lado claro da trincheira política: o lado do poder
discricionário do golpe militar.
Ainda é necessária uma ampliação das pesquisas no campo da História sobre o
golpe e a ditadura em um espaço como o Piauí. Tenho percebido, nessa pesquisa, que é
evidente a adesão de parte expressiva das elites políticas, jurídicas e comerciais desse estado
na legitimação do golpe e na manutenção do poder dos militares. Em alguns casos, no
entanto, as memórias locais celebram nomes que fizeram carreira política amparados na
ditadura como verdadeiros democratas. É o caso do governador do Piauí no momento do
golpe: Petrônio Portella. Esse agente político é visto sempre, em livros de memória e
matérias jornalísticas no Piauí, como o “arquiteto da abertura”, como alguém que “projetou
a redemocratização” no Brasil e como alguém que seria o primeiro presidente civil, após a
ditadura, não fosse sua morte prematura. Porém, costuma-se, em geral, silenciar sobre o
processo de adesão desse agente ao golpe, logo nos primeiros momentos da tomada de poder
pelos militares, em um ato marcado por ambiguidades, pois apoiara, até então, as pautas
reformistas de Jango.
Assim como o udenista Petrônio Portella, muitos outros membros das elites
(políticas, econômicas, jurídicas) piauienses aderiram ao poder militar após o golpe. É
preciso, portanto, analisar com mais profundidade tal contexto, no sentido de compreender
que modelo de sociedade e de política gestamos, mesmo com a abertura política, pois muitos
desses atores ainda continuam no poder estadual, por meio de seus herdeiros diretos.

Acomodação à “nova ordem”: as elites políticas piauienses e o colaboracionismo com


o regime militar em 1964

Neste item, pretendo evidenciar alguns aspectos presentes no processo político


ocorrido com o golpe de 1964 e na consolidação da ditadura no Piauí: as práticas de adesão,
acomodação e até mesmo o colaboracionismo político de alguns nomes das elites políticas
locais ao regime. Mesmo algumas lideranças ligadas ao governo Goulart, buscaram se
reposicionar em apoio à “nova ordem” naquele momento. A adaptação política,
relativamente rápida e estratégica desses agentes, buscando a manutenção de seus cargos, de
posições de poder e prestígio pessoal em meio às turbulências ocorridas com a queda do
233

regime democrático e implantação de um outro, com forte feições autoritárias desde o início,
demonstra uma profunda capacidade de negociação/conciliação e uma certa cultura política
acomodatícia por parte de determinados grupos políticos piauienses.
Em outros casos, é possível mesmo evidenciar, a identificação de lideranças que
se projetaram politicamente por meio de um discurso com claro viés liberal-democrático,
mas que, contraditoriamente, mantiveram fortes vínculos com o autoritarismo dos militares.
Isso mesmo quando ficou notória a truculência do poder no regime, como nos Atos
Institucionais implantados para reduzir as oposições políticas por meio do arbítrio e de
perseguições. Em suma, evidencio as estratégias dúbias de alguns dos agentes políticos que
aderiram ao poder dos militares, buscando perceber quais foram os interesses envolvidos
nesses reposicionamentos, bem como repensar o lugar que ocupam na memória política
local.
Em especial, vou analisar, nesse tópico, o exemplo de algumas lideranças
políticas com projeção no cenário político da experiência liberal democrática (1945-1964)
que ganham força e projeção aderindo à ditadura (1964-1985); e que, além disso, ainda se
acomodaram politicamente com o fim do regime militar. Um deles, que darei maior
evidência, é o do governador do Piauí no momento do golpe, o advogado Petrônio Portella
Nunes572. Esse agente, com a consolidação do regime vai gradativamente ganhando prestígio
político e renome nacional, como um braço civil a apoiar os atos autoritários do regime.
Petrônio foi deputado estadual (1954-1958), prefeito de Teresina (1958-1962) e governador
do Piauí (1963-1966), sempre pela UDN. Se elegeu senador em 1966, pela ARENA, quando
começou sua rápida ascensão no cenário nacional.
Petrônio chegou a ser nomeado ministro nos governos Geisel e Figueiredo,
presidente do Senado por duas vezes (1971-1972) (1977-1979) e nome de relevo como
articulador político dos militares. Nas memórias políticas locais, no entanto, é representado
sempre pela ótica do “líder”, ou o “arquiteto da abertura”, ou mesmo intitulado de “o
piauiense do século XX”. Dentro dessa ótica, seria alguém de importância no processo de
abertura política do país, um verdadeiro “democrata”, pois teria lutado com todas as forças
pela redemocratização do país. Negando-se mesmo, por meio dessas memórias celebratórias
e pacificadoras, seu passado de ampla colaboração e sustentação do regime ao qual se filiou

572
Para um perfil da trajetória de Petrônio Portella, ver verbete: CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. In:
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb. Acesso em: 12
nov. 2019; ver também: TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, 2010. Ver ainda: Petrônio Portella (Depoimentos). Revista Política. Fundação Milton
Campos, Edição especial, nov.1980.
234

politicamente.
Algumas outras figuras políticas também são interessantes para a análise das
práticas de adesão e acomodação políticas no Piauí. Entre eles, o então prefeito da cidade de
Parnaíba no momento do golpe, Lauro de Andrade Correia (1963-1966), eleito pelo PTB,
como sucessor do líder trabalhista José Alexandre Caldas Rodrigues, apoiado pela estrutura
sindical dessa cidade, que se mantém no cargo do executivo municipal e se aproxima das
pautas dos militares após o golpe. Também o ex-prefeito de Parnaíba, líder da UDN local,
Alberto Tavares Silva, atuou em adesão ao regime. Por meio da aproximação com os
militares e por seus vínculos familiares, esse último foi nomeado pelo general Médici, como
governador do Piauí (1970-1975), além de ser parte dos grupos que buscaram se conectar a
ordem política aberta em 1964. Darei maior evidencia aqui, no entanto, ao primeiro caso
(Petrônio Portella) não somente por sua atuação extrapolar o cenário local, mas por conta de
suas estratégias ambíguas frente ao quadro político no momento do golpe.
Analisar as trajetórias de alguns agentes políticos locais e sua aproximação com
os militares, o seu aberto apoio ao golpe, ajuda a refletir sobre as ambiguidades e
contradições que estes assumem em determinados momentos. Analisar os apoios políticos
que teve a ditadura ao longo de toda a sua manutenção é importante, tendo em vista que,
como indica Daniel Aarão Reis Filho, com o passar do tempo e, sobretudo por conta das
redefinições das memórias com a abertura política, “obscureceu-se a participação dos civis
na construção do regime, esvaziando-se de quebra o estudo e a compreensão das complexas
relações que sempre vigoraram entre o poder ditatorial e a sociedade”573. Portanto, se faz
pontual perceber como os civis foram peça fundamental na manutenção de um regime
marcado pela profunda repressão política.
Apesar do predomínio de visões apaziguadoras no Piauí, é fundamental
complexificar a análise sobre o que representou o golpe e a ditadura nesse estado,
percebendo seus sustentáculos locais, seus gestos adesistas, sua retórica permeada de
ambiguidades, as múltiplas ambivalências nas formas de atuação, as conciliações e mesmo
como os principais nomes políticos que sustentaram os militares, ou seus familiares, foram
também vistos como lideranças políticas democráticas no processo de abertura política do
limiar dos anos 1980, mantendo-se ainda no poder com o fim do regime e início da nova

573
REIS FILHO, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista. In:
REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.) A ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
235

república574.
Não se trata de negar violências, tampouco o predomínio do poder repressivo
vindo dos militares, muito menos defender teses negacionistas; mas de evidenciar que, se os
militares se mantiveram por mais de 20 anos no poder no Brasil, dentre outros aspectos, foi
por conta de expressivo apoio social e pelo fato de que muitos civis, com seus interesses
políticos e econômicos, ajudaram a sustentar um regime político marcado por autoritarismo
e repressão. Além disso, é importante perceber que figuras como Petrônio Portella, dentre
outras no Piauí, se adaptaram muito bem aos diferentes contextos políticos, sendo esses
momentos democráticos ou não. Também mantendo-se em posições de poder, atuando por
meio de negociações, usando das artimanhas e da teatralidade do poder, falando em
“fortalecimento das instituições democráticas” ao mesmo tempo em que apoiavam medidas
de exceção.
O udenista Petrônio Portella, de defensor das reformas de base até os derradeiros
momentos do governo Jango, faz uma rápida conversão política, depois de consumado o
golpe, passando então a defender a “revolução” dos militares e assim, se constituir, a partir
da consolidação da ditadura, em um nome de peso no cenário da política nacional. De acordo
com Vera Calicchio, tão logo soube da eclosão do movimento político-militar de 31 de
março de 1964, Petrônio leu em rádio575 e fez publicar nos jornais locais uma mensagem
defendendo o mandato de João Goulart e o seu próprio mandato de governador. O episódio,
como é possível observar, quase lhe custou o cargo e deixou por algum tempo sequelas em
sua vida política576.
Logo após o golpe, vislumbrando talvez uma carreira política – como de fato o
fez – meteórica e, diga-se, permeada de momentos em que não evitou transigir com o
autoritarismo e truculência dos militares, na mais clara manifestação adesista e
colaboracionista, Petrônio buscou se conectar aos novos “donos do poder”, ao mesmo tempo
negando a defesa que fez ao governo João Goulart, à legalidade e ao reformismo 577. Nesse

574
Interessante observar a longa permanência política nas esferas de poder, de nomes políticos ligados à família
Portella. Atualmente uma sobrinha Petrônio Portella (Iracema Portella) exerce cargo de deputada federal. Além
dela, seu marido (Ciro Nogueira), exerce cargo de senador da república. Além desses nomes, é notória a
presença da família na memória política local com nomes como Lucídio Portella e Natan Portella.
575
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
576
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
577
Vale ressaltar que, como resultado de sua rápida adesão ao novo regime, após a mudança de posicionamento,
Petrônio consegue galgar novos espaços de poder e ganha bastante força política junto aos militares após 1964,
adquirindo a confiança destes, mantendo-se no poder por todo o regime e, como consequência, já se projetava
como alguém que, não fosse a morte repentina, em 1980, no processo de abertura, segundo analistas, faria parte
dos mais altos círculos de poder da nova república. Portanto, também considero importante o estudo de algumas
dessas trajetórias, no sentido mesmo de perceber nossos limites de participação democrática, além dos próprios
236

quadro de rompimento institucional com o golpe de 1964, pode-se aventar que a tradição
conciliadora, comum às classes políticas conservadoras ao longo da história do Brasil
republicano, foi, ali, reafirmada. Conciliar as diversas agendas e os diferenciados matizes
ideológicos foi um dos desafios. A flexibilidade para a acomodação nos campos de poder,
de modo a facilitar a configuração do novo cenário, então, se fez habitual578.
Práticas comuns nesse quadro de alteração política produzido pelo golpe foram
as estratégias de conciliação com os novos donos do poder, bem como os reposicionamentos
de determinados agentes que, outrora conectados até mesmo a grupos em defesa das
reformas de base, não hesitam em transitar sorrateiramente para o lado dos militares, mesmo
com todas as características autoritárias que o regime demonstrou desde seu nascedouro.
Portanto é preciso mencionar que a conciliação e a acomodação fazem parte do repertório
de estratégias à disposição dos que disputam os jogos de poder no Brasil – ou seja, elas
integram a cultura política do país – e, como há larga tradição e vários exemplos bem-
sucedidos, muitos líderes são incentivados a escolher tal caminho, na esperança de construir
projetos políticos estáveis”579.
Nesse ponto, a atuação de um líder político como Petrônio Portella é exemplar,
no sentido de compreender, em certo ponto, como os laços estabelecidos localmente com
militares foram importantes para sua manutenção, bem como para perceber como alguns
agentes aderiram ao golpe então em andamento, no sentido de salvarem seus mandatos, mas
também projetando, fazendo cálculos políticos, traçando um horizonte de expectativa junto
aos centros de poder580. Portella, nesse ponto, se constituiu em um dos principais nomes da
Arena – Aliança Renovadora Nacional, partido que sustentou o regime ditatorial. Presidente
do Senado Federal, presidente e líder do partido governamental, ministro da Justiça. Portella
foi, em especial, um dos mais destacados articuladores políticos do regime” 581 . Daniel

limites da nossa redemocratização, constituída, pode-se dizer, nos moldes e interesses dos grupos que
cresceram politicamente sob o poder repressivo das botas dos militares.
578
RABELO FILHO, José Valderir. As Classes Políticas Cearenses e a Ditadura de 31 de março De 1964: entre
Consensos e Consentimentos. Revista Historiar, vol. 05, n. 09, ano 2013.2, p. 75-99.
579
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização
autoritária. Editora Zahar, 2014, p. 19
580
A biografia de Petrônio, escrita pelo jornalista Zózimo Tavares, indica que “em seus últimos dias, dedicava-
se ao trabalho de obter o maior número possível de adesões para o novo partido governista, o PDS (Partido
Democrático Social), sucessor da ARENA”. Indica Tavares que o então ministro Petrônio defendia o argumento
de que “o presidente Figueiredo necessitava de um amplo apoio partidário para consumar sua obra de
redemocratização do país” (TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 42.). Zózimo defende a ideia de que “na verdade,
desde que despontou no cenário nacional, Petrônio sempre fez por merecer a confiança dos militares e o
respeito da oposição” (TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 70).
581
BAHIENSE, Daniel de Albuquerque. Petrônio Portella e o Projeto Educacional da Arena: notas sobre a
ação política de um soldado civil. Anais da XI Jornada de Estudos Históricos professor Manuel Salgado.
PPGHIS/UFRJ. VOL 2. Rio de Janeiro, 2016, p. 01.
237

Bahiense destaca que “o pensamento político de Portella era muito afinado com os grupos
dominantes das Forças Armadas – especialmente castelista –, que viam no senador, o
soldado político civil ideal para defendê-los no Congresso Nacional”582.
Petrônio Portella, em seu mandato de governador do Piauí583 (1963-1966), como
mencionado, por conta da conjuntura política de início dos anos 1960 e em busca de maior
prestígio junto ao governo federal, se aproximou das pautas reformistas, em detrimento do
udenismo mais radical, pois, era mais aliado da corrente udenista conhecida como “bossa-
nova” e anti-lacerdista por tradição; ele incluiu-se entre os governadores reformistas eleitos
em 1962584, de acordo com Vera Calicchio.
Nesse ponto, ao se referir a um tema bastante delicado no final de 1963, sobre
alterações na constituição para a efetivação das reformas de base, em especial a agrária, se
mostrava um legítimo defensor do reformismo. Em texto para o jornal udenista, Folha da
Manhã, ainda em maio de 1963, Petrônio indicou: “eu apoio as teses reformistas, inclusive
aceitando a emenda constitucional”. Ainda indicava que “aleguei que a constituição tinha
sido emendada em outras oportunidades e não seria agora, num problema de extrema
gravidade para os interesses nacionais, como o da reforma agrária, que ela deixaria de ser” 585.
Sua gestão no governo do estado do Piauí, em momento bastante turbulento do
ponto de vista político, foi marcada pela continuação de medidas desenvolvidas por seu
antecessor, o parnaibano Chagas Rodrigues. Consolidou o Banco do Estado do Piauí, a
Secretaria de Planejamento, a Agespisa (Águas e Esgotos do Piauí S/A), a Cepisa (Centrais
Elétricas do Piauí), além de construir os primeiros conjuntos habitacionais do estado 586 .
Nesse sentido procurou se aproximar de João Goulart, bem como tentou implantar o Projeto
Paulo Freire no Piauí, com apoio do governo federal. Isso ao mesmo tempo em que se reunia
com o presidente norte-americano, no salão oval, em visita àquele país, captando recursos
da Aliança para o Progresso para o estado.
Um evento marcante que ocorreu no seu governo foi uma tensa greve da Polícia
Militar, nomeada de “revolta da PM”, em Teresina, onde chegaram a tomar o quartel policial
naquela cidade. A sublevação dos oficiais da PM no Piauí, pela busca por reajustes salariais,
naquele momento, aproximou Petrônio do Exército; em particular, do general Castello

582
BAHIENSE, 2016, p. 01
583
Petrônio Portela assumiu o governo piauiense em janeiro de 1963, no mesmo mês em que, referendado pelo
plebiscito do dia 6, que revogou o sistema parlamentarista instaurado em setembro de 1961, João Goulart
recuperou seus plenos poderes na presidência da República. CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
584
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
585
Jornal Folha da Manhã, 08 maio 1963.
586
TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella: uma biografia. Teresina-PI: Ed. do autor, 2012, p. 199.
238

Branco 587 . Com a recusa do governador em atender ao pedido dos policiais, de forma
irredutível, a solução encontrada, então, em agosto de 1963, quando ocorreu o episódio, foi
a solicitação de força federal. Primeiro ao ministro da Guerra (Jair Dantas Ribeiro) e, a
seguir, ao ministro da justiça (Abelardo Jurema). Decorridas 24 horas dessa solicitação, o
quartel da PM em Teresina foi cercado por forças do Exército e, a partir de então, foi dada
por encerrada a dita “revolta da PM”588. O governador Petrônio leu o episódio como uma
tentativa dos grupos opositores ao seu governo de politizar as forças policiais locais, por
meio da PM.
Já quando estourou o golpe, Petrônio, em um primeiro momento, já no dia 31 de
março, assumiu a bandeira de defesa da legalidade, lançando manifesto em rádio local,
falando aos líderes sindicais, como demonstra matéria publicada no jornal Folha de São
Paulo, periódico que deu apoio ao golpe. O então governador do Piauí, Petrônio Portella,
enfatizou que permaneceria ao lado do presidente João Goulart, inclusive, segundo o texto,
quase que desafiando o representante da Guarnição Federal em Teresina. Com o título de
“Governador do Piauí com JG para o que der e vier”, o jornal indicava que:

Ao receber líderes sindicais hoje, em palácio, o governador Petrônio


Portella declarou-se solidário com presidente Goulart, para o que der e vier.
Em nota distribuída hoje, o governador diz: ‘no momento em que o Piauí
ingressa ‘na cadeia da legalidade’, ergo minha voz para expressar uma
mensagem de paz, em meio à luta pregada por alguns, em prejuízo da
ordem democrática, que temos o dever de preservar. Nesta hora em que o
regime do país está em crise e dividem-se as forças armadas a minha
palavra é de apelo à paz, à concórdia e à preservação da liberdade
democrática. Os ideais devem ser debatidos em praça pública por todos os
cidadãos, sem os apelos dos que, em desespero, pretendem defender, pelas
armas, interesses inconfessáveis’. O governador piauiense, comunicou ao
cel. Francisco Mascarenhas, comandante da guarnição federal em
Teresina, sua disposição de permanecer ao lado do presidente Goulart.
[...]Não quero saber qual é a posição dos senhores, quero dar a minha:
de defesa da legalidade, e ela só se faz íntegra mantendo o mandato do

587
Nesse momento, Castello Branco era comandante da IV região do Exército, sediada em Recife, que era
responsável por toda a região Nordeste.
588
Em um depoimento do então senador em segundo mandato, Petrônio Portella tenta evidenciar que o gesto
da PM, no seu mandato de governador no Piauí, teria ligações com grupos de oposição ao seu governo. Ele
narra que “No começo de 1963, a polícia militar, através de seus comandados, foi à minha presença pedir
aumento, o que foi terminantemente negado por mim, com o fundamento justificado de que não era possível
aumentar os vencimentos deles quando não havia recursos para aumentar o de todo funcionalismo. [...] Isso
misturado com a política partidária, criou uma situação de sublevação no estado e ameaçadora à própria
segurança pessoal do governador. As ameaças se multiplicaram, o quartel da PM se transformou em parque de
comícios da oposição. A Associação Comercial mandou uma comissão ao meu gabinete oferecendo apoio para
aumentar os impostos e dar o aumento da PM. A minha resposta foi não. Absolutamente não. O problema era
de resguardar autoridade. E a polícia não teria privilégios. A coisa tomou um aspecto belicoso tal, que fui
obrigado a solicitar força federal ao ministro da Guerra e depois ao ministro da Justiça para garantir o governo
ameaçado”. Ver: NERY, Sebastião. Pais e padrastos da pátria. Recife-PE: Ed. Guararapes, 1980, p. 27.
239

Presidente da República... De maneira que julgo injuriosa a pergunta dos


senhores porque nunca fui homem de oportunismo. [...] A minha ideia hoje
expressada é a ideia de hoje, e será a de sempre na defesa intransigente do
povo, contra privilégios abusivos e caducos e que hão definitivamente de
ser destruídos pela vontade soberana do povo brasileiro 589. (grifo meu)

No entanto, a postura acima por parte do governador, de defesa intransigente da


legalidade, de pretensa defesa dos interesses do povo, talvez só tenha razão de ser entendida
frente ao público receptor naquele momento, ou seja, as lideranças sindicais e políticas
piauienses ao qual se endereçava o pronunciamento. Algumas produções locais, como a
biografia escrita pelo jornalista Zózimo Tavares, acabam atribuindo a manutenção de seu
cargo a um “golpe de sorte”. Tendo em vista que “o governador [gravou] um
pronunciamento pela legalidade e contra a deposição do presidente”. A partir disso, “com a
consolidação do regime militar, sua cabeça esteve a prêmio na fase de cassação dos mandatos
dos contrarrevolucionários”. Porém, “salvou seu mandato, o que não aconteceu com Miguel
Arraes e outras lideranças que formavam com o presidente deposto”590.
Ora, terá sido mesmo um “golpe de sorte”, como aponta o biógrafo do ex-
governador, ou os laços pessoais e familiares e as posições ambíguas assumidas então por
Petrônio salvaram seu mandato? Alguns indícios apontam que Petrônio Portella, apesar de
fazer pronunciamento em defesa de Jango, não teria se comprometido de fato com o
presidente, ao que tudo indica, por um cálculo político e estratégico feito naquele momento.
O que analiso, de imediato, é que, se por um lado Petrônio acenou com
pronunciamentos em apoio ao governo João Goulart, por outro lado, negou-se a apoiar a
iniciativa do governador de Pernambuco, Miguel Arraes591, em carta-manifesto em defesa da
legalidade, encaminhada aos governadores do Nordeste592. Apesar de localmente dizer que
havia feito contato com o governador pernambucano. É possível compreender a postura do
governador piauiense como permeada de ambiguidades, de ambivalências, no momento em

589
Jornal Folha de São Paulo, 02 abr. 1964.
590
TAVARES, Op. cit. 2012.
591
Quando foi presidente do Congresso, pela segunda vez, Petrônio deu um depoimento sobre esse fato. Conta
que recebeu, no dia 1º de abril de 1964, um emissário que, segundo ele: “[me] levou um manifesto do
governador Miguel Arraes, endereçado a todos os governadores do nordeste, que eu me recusei a assinar. Na
oportunidade, disse, na presença de membros do meu governo, que não gostaria de assinar um manifesto
daquele, exatamente por conhecer as posições anteriormente assumidas pelo governador de Pernambuco”. No
depoimento, Petrônio ainda afirma que “não obstante as declarações, nunca tive qualquer contato com o
governador Miguel Arraes, apesar de minhas andanças pelo Recife, como membro do conselho da SUDENE e
nunca fui a palácio, nem por aquele governador fui visitado”. Ver: NERY, Sebastião. Pais e padrastos da pátria.
Recife-PE: Ed. Guararapes, 1980.
592
Miguel Arraes escreveu e enviou um manifesto aos demais governadores da região Nordeste. No documento,
ele pedia que todos resistissem à quebra de legalidade e que apoiassem o presidente deposto João Goulart. O
apelo não encontrou ressonância.
240

que estoura o golpe. Preferiu se manter na espreita, mesmo depois de lançar manifestos
simbólicos em apoio a Jango, do qual seu governo foi beneficiário. Talvez esse gesto fosse
então uma tentativa de manter acesa a áurea de progressista em terras piauienses ou mesmo
esperar o desenrolar dos acontecimentos mantendo abertas para si as possíveis soluções
daquele momento.
Um outro ponto controverso de Petrônio também foi a posição assumida quando
da realização do comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Segundo indica sua
biografia, o vice-governador João Clímaco de Almeida, o Joqueira, teria indicado a Petrônio
que não comparecesse ao comício das reformas. Consta na produção biográfica que,
“insistentemente convocado a se fazer presente à concentração popular, Petrônio estava
decido a comparecer”593. Porém, “o governador atendeu ao apelo de seu vice e não pôs os
pés na gigantesca concentração”. Zózimo Tavares indica ainda que “a ausência de Petrônio
no comício viria a se juntar, depois, aos motivos que ajudaram a salvar seu mandato de
governador”594.
O biógrafo Zózimo Tavares, destaca que, “na manhã de 31 de março de 64, as
rádios anunciavam o início do movimento armado que sacudiria o país”. Naquele momento,
mais precisamente no dia 1º de abril, “Petrônio surpreendeu com a declaração de que iria
publicar nota de apoio à legalidade constitucional. Resistia aos apelos de amigos,
correligionários e familiares”. Mas, segundo sua biografia, “ele relutava em adotar uma
postura pusilânime diante de fatos políticos e institucionais tão graves”. Então, Petrônio
“tratou de se manifestar logo, comprometendo o próprio futuro e o da família”. O biógrafo
do então governador, em tom laudatório e superdimensionado, indica que “sua formação
jurídica e sua consciência falavam mais alto. Fez a nota oficial”595. A nota em questão é a
que segue abaixo.

DISSE PETRÔNIO – ‘No momento em que a Nação se encontra a braços


com ameaças de sedição; no instante em que do Sul do País chegam
notícias inquietantes, demonstrativas da possibilidade de vir o nosso país a
ser engolfado pela subversão ameaçadora das instituições democráticas,
cumpro o inarredável dever de levar ao conhecimento dos piauienses que
o Governo do Piauí permanece hoje, como ontem, no firme propósito de
defender, sem medir sacrifícios e indo às últimas consequências, a ordem
democrática, os poderes constituídos, em suma o império da Constituição.
Confio em que o povo colaborará com o Poder Público na preservação da
ordem constitucional’
Teresina, 31 de março de 1964

593
TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella: uma biografia. Teresina-PI: ed. do autor, 2012, p. 211.
594
TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 211.
595
TAVARES, Zózimo. op. cit. 205.
241

Governador Petrônio Portella.596

Já no dia 1º de abril, Petrônio Portella lançou a seguinte nota oficial, que foi lida
em jornais de circulação local, ainda com forte viés legalista, em defesa da constituição e,
consequentemente, do mandato do presidente João Goulart, ameaçado então pela “ação
revolucionária”.

Nota oficial
No momento de incertezas em que já vemos esclarecidos os objetivos do
movimento de rebelião em vários estados da federação, dirijo-me ao povo,
no cumprimento de um dever, para esclarecer, uma vez mais, minha
posição de defesa do mandato do Presidente da República, Sr. João
Goulart e de protestos contra a ação revolucionaria dos que ontem
faziam intocável a constituição e hoje não vacilam em desrespeitá-la.
Palácio do governo do Estado do Piauí
Teresina, 1° de abril de 1964
Petrônio Portella Nunes
Governador do Estado do Piauí597. (grifo meu)

Outra nota, mais enfática, no entanto, ganhou maior evidência nos bastidores do
poder piauiense e nacional, sendo empregada posteriormente pelos adversários políticos de
Petrônio, no sentido de tentar lhe prejudicar frente aos militares, após consolidada a ditadura
e tendo o mesmo se alçado a braço civil do regime598. Na verdade, trata-se de um discurso
feito quase que de improviso, por meio do rádio, no dia 1º de abril, ao qual Petrônio se
mostrava ainda fortemente em defesa da legalidade, até mesmo propondo resistência junto
ao governador de Pernambuco, Miguel Arraes e, ao mesmo tempo, mostrando-se ao lado
dos trabalhadores piauienses, no sentido de unir forças contra o golpe. Sua fala no rádio local
destacava que:

A minha ideia hoje expressada é a ideia de hoje, e será a de sempre na


defesa intransigente do povo, contra privilégios abusivos e caducos e que
hão definitivamente de ser destruídos pela vontade soberana do povo
brasileiro (palmas!) agora mesmo vou dirigir minha mensagem especial ao
governador Miguel Arraes (palmas!) em que levo também à Sua

596
TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 207.
597
NUNES, Petrônio Portella. Nota oficial. 1 de abril, de 1964. Palácio do Governo. Gabinete do governador.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
598
Um texto em homenagem a Petrônio Portella, escrito na revista Política, no ano de sua morte (1980),
exemplifica bem essa polêmica que acompanhou Petrônio para o resto de sua vida política. Em texto do ex-
senador Ruy Santos, ele destaca que “o senador piauiense, embora integrasse a bancada que prestigiava a
revolução de março, era acusado, injustamente, de ter conspirado em favor da permanência de Jango. Dizia-se
que chegara, para isso, a entrar em contato com Miguel Arraes”. Ruy Santos ainda sai em defesa de Petrônio,
argumentando que não poderia saber do que se passava nos centros de poder. Segundo ele, “Nunca levei a sério
a acusação que, no meio revolucionário, se fazia ao senador piauiense. Petrônio governava seu estado, quando
dos preparativos para eclodir da revolução de março. Isolado do mundo, não sabia o que se verificava nas
alturas da nação”. SANTOS, Ruy. Petrônio Portella (Depoimentos). Revista Política, Fundação Milton Campos,
Edição especial, p 09, nov. 1980.
242

Excelência a palavra oficial dos trabalhadores do Piauí e lhes pediria até


que a uma hora me trouxessem este documento assinado por todos os
representantes dessas entidades porque isso servirá para ser difundido por
todo o Brasil e é a única forma que nós temos, de que nós dispomos, para,
na medida de nossas possibilidades, dar o concurso de nossa presença e o
calor de nosso entusiasmo cívico na defesa da legalidade ameaçada
(palmas!) 599 Quero, nesta oportunidade, então, pedir-lhes que me façam
encaminhar ainda agora para que eu transmita ao governador Miguel
Arraes a mensagem dos trabalhadores do Piauí e, através dele, ao Senhor
Presidente da República (palmas!).

A sua fala no rádio 600 destacou a possibilidade de se organizarem, no Piauí,


núcleos de resistência ao golpe, em defesa da legalidade. Aqui se pode sugerir, por meio do
discurso do governador, que existia uma quantidade expressiva de trabalhadores rurais e
urbanos interessados em organizar formas de resistência no Piauí. Esse fato teria sido o
principal elemento que levou o então governador Petrônio a acenar com a possibilidade de
formar núcleos de resistência local? É uma questão problemática que se coloca a um primeiro
olhar. Mas o fato inusitado e contraditório é que, com intervalo de apenas um dia, (do dia 01
ao dia 02 de abril), Petrônio decide por uma mudança de orientação radical, por meio das
notas enviadas, e passa então para o outro lado da trincheira política, quando percebeu a
concretização do golpe.
Como se sabe, o golpe conseguiu fortes adesões dentro do exército e se
consumou entre o dia 01 e 02 de abril de 1964601. Diante dessas novas condições no cenário
político nacional, outras projeções precisavam ser feitas pelo governador. A partir disso, já
em outra nota, divulgada ao público piauiense, no dia 02 de abril, o governador Petrônio

599
Jornal do Piauí, 16 jun. 1964. Ver: TAVARES, Zózimo. Op. cit. 208-209.
600
“Quero, neste momento, deixar bem clara a minha posição que não tenho medo... de ris... de risco e nem de
perigos e mais fazendo-lhes umas ponderações: 1° - Nós não temos forças de reação material. Este é o primeiro
dos nossos problemas. Nós temos, sim, de deixar bem claro mesmo nosso entusiasmo, mas é de convir que a
força que vamos dizer o mandado dos ilegalistas e dos golpistas possam inclusive atentar contra a liberdade de
opinião dos trabalhadores. Eu lhes peço, neste momento, que se mantenham calmos, não façam manifestações
que possam construir motivo para intervenção federal no Estado, porque eu, no momento, só tenho uma coisa
a meu favor, é a força moral que será integralmente respeitada enquanto eu tiver vida (muito bem!). Mas não
disponho de força material para uma ação, isto mesmo, já comuniquei oficialmente ao governador Miguel
Arraes. Quero, então, dar-lhes este esclarecimento, porque já tive avisos de proibição de passeatas de
manifestações e se estas passeatas nos forem proveitosas no sentido de nós pudéssemos com ela obstacular a
marcha da reação com o perigo da própria vida eu me colocaria em primeiro plano, em primeiro lugar, para ao
lado de vocês lutar pela legalidade (palmas!) (Petrônio) mas não vejo no momento condições maiores para isto
e qualquer fato que os senhores queiram qualquer pessoa que queira tomar, peço que entre permanentemente
em contato com o governo, que eu lhe direi inclusive do... dos perigos que possam correr, porque eu não tenho
a quem servir, senão ao povo (Muito bem!). Ver: Jornal do Piauí, 16 jun. 1964. Ver: TAVARES, Zózimo. Op.
cit. 208-209.
601
Ver: DREIFUSS, R. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes,
1981; FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014; GASPARI,
Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.
243

Portella se reposicionou politicamente, agora em claro apoio ao novo presidente da


República, Ranieri Mazzili, e iniciou ali sua guinada em busca da manutenção do cargo de
governador e de seu futuro político.

No momento em que o país emerge de uma grave crise político-militar,


cabe dirigir-me ao povo para esclarecer que reina calma e tranquilidade em
todo território piauiense. Guardados os prédios públicos federais e
estaduais, das policia Civil e Militar e contado com a colaboração da
Guarnição Federal, nada se verificou de anormal. Obtivemos integralmente
a ordem pública neste estado. O povo soube atender ao nosso apelo e
contribuiu, de forma decisiva, para que tudo corresse normalmente.
Comunico ao povo piauiense que perante o Congresso Nacional, desde as
primeiras horas de hoje, assumiu a presidência da república o Deputado
PASCHOAL RANIERI MAZILLI. Após decisão do poder competente –
o Congresso Nacional – cumpro o dever, na qualidade de governador
constitucional de um dos estados da federação, de expressar os meus
votos602.

Ainda como governador ou, futuramente como senador, Petrônio Portella logo
procurou se aproximar do primeiro presidente da ditadura e da estrutura militar que
governava o país. Acusado de “revolucionário de última hora” e de “adesista”, por seus
opositores piauienses603, chegou, no entanto, ao fim do seu mandato no governo do Piauí em
clima de excelentes relações com o presidente Castello Branco, que inclusive o prestigiou,
dando-lhe o direito de indicar o futuro vice-governador604. Petrônio ganhou confiança do
governo militar de uma forma rápida, fazendo parte, inclusive, de todas as cerimônias do
novo governo, pois estivera presente já na posse de Castelo Branco, ainda em abril de 1964,
conforme indicam as edições dos jornais locais.
Na edição do dia 17 de abril d’O Dia, consta que, ao desembarcar em Teresina,

602
NUNES, Petrônio Portella. Nota oficial. 2 de abril, de 1964. Palácio do Governo. Gabinete do governador.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
603
Alguns desses embates entre Petrônio e os opositores locais, podem ser vistos, por exemplo, no jornal O
Estado do Piauí que apoiou abertamente o golpe, tendo destacado nota intitulada: Governador cabeçudo. Nela
é possível ler que “Quando rebentou a revolução de 31 de março, o governador do Piauí, para demonstrar
gratidão a Goulart, pensando que a revolução fracassaria, passou um telegrama de solidariedade ao ex-
presidente e até em termos enérgicos e decisivos. Dizem que deputados, magistrados e pessoas da família
pediram-lhe, insistentemente que não enviasse tal telegrama, mas o governador é cabeçudo, e o telegrama foi
despachado. Quando o Dr. Petrônio quer alguma coisa, quer porque quer, não há ninguém que o demova. Só
não foi teimoso no apoio político e administrativo que dava ao ex-presidente João Goulart. Deixou a teimosia
de lado e passou de armas e bagagens para o lado da Revolução. Quando se trata, portanto, de interesse dele e
da conveniência e vaidades que tem em permanecer no governo, esquece-se que é birrento, obstinado e então
se transforma psicologicamente, desmancha-se em mesuras e salamaleques aos vencedores, como soube tão
bem fazer diante do Marechal Castello Branco. A pertinácia do Dr. Petrônio é para experimentar se tem
prestígio junto ao governo de uma revolução, contra a qual quis até pegar em armas, quis até resistir, caso
pudesse, segundo declarações suas”. Governador cabeçudo. Jornal O Estado do Piauí, 05 jul. 1964.
604
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb. Acesso em: 03 nov. 2019; TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella. Brasília:
Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010.
244

após a posse de Castello, Petrônio indicou aos jornalistas da Rádio Difusora seu profundo
entusiasmo com a nova ordem, pois manifestou sua “ilimitada confiança nos destinos do
Brasil, agora tendo na mais alta magistratura do país, o presidente Castello Branco”.
Afirmando aos jornalistas ter participado, em Brasília, de “todas as solenidades que
assinalaram a posse do novo dirigente da nação, e pôde testemunhar o entusiasmo com que
o povo aplaudia o Marechal Castello Branco, em cuja firmeza, serenidade e patriotismo,
probidade e sinceridade de propósitos confia”605.
Ao mesmo tempo, Petrônio indicou que apoiava o poder militar, pois, ainda de
acordo com a entrevista para os jornais e rádios locais, ele “reafirmou, também, o [seu]
apreço pelas Forças Armadas, destacando o papel que, no Piauí, vêm executado neste
momento histórico, sob o comando sereno e firme do Cel. Francisco Mascarenhas Façanha,
cuja personalidade exaltou”606.
Um trecho de uma entrevista realizada já com a abertura política é interessante
para relacionar algumas questões sobre a rápida adesão de Petrônio no momento do golpe.
Perguntado sobre quais teriam sido as causas para a permanência de Petrônio Portella no
governo do estado, após o golpe, o ex-deputado pelo PTB, Clidenor de Freitas Santos, que
apoiou a candidatura de Petrônio ao governo do Piauí em 1962, organizando uma dissidência
petebista naquele momento, indicou, em depoimento para a fundação CEPRO, já no ano de
1987, que:

Primeiro porque o comandante da guarnição era amigo dele e não o acusou.


Porque todos os comandantes de guarnições de outros estados prenderam
os governadores. Foi assim em Pernambuco, foi assim com Seixas Dória.
Ele não, o Façanha tinha muito respeito com ele e em seguida ele teve
contato com o... tinha a cúpula da UDN e o amparava, como é o caso do
Magalhães Pinto, governador de Minas, e em seguida ele conseguiu se
aproximar do Mal. Castello Branco e consolidou a posição dele. Era um
homem do Piauí, Castello Branco daqui, o Gayoso, amigo do Castello, era
deputado nesse tempo. Fez muitos contatos em defesa do Petrônio, que o
Petrônio não estava comprometido com o Jango, nem nada, daí o Petrônio
conseguiu. Depois com a habilidade tradicional dele... 607

Como se pode inferir das memórias do ex-deputado petebista, Clidenor de


Freitas Santos, o processo de adaptação política após o golpe pode ser pensado também por
meio de outras estratégias. Impossível não atentar para a ideia de prováveis laços de Petrônio

605
Governador Petrônio Portella chegou há pouco. Jornal O Dia, n. 1218, Teresina-PI, p.01, 17 abr. 1964.
606
Idem.
607
SANTOS, Clidenor de Freitas. Depoimento. Núcleo de História Oral. Fundação CEPRO. Centro de
Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí. 15 jan. 1987.
245

com o comandante da Guarnição Federal em Teresina (Francisco Mascarenhas Façanha) e


com nomes políticos que o ligaram pessoalmente ao general Castello Branco (este com
vínculos familiares no Piauí e Ceará, como apontado no primeiro item). Essa questão é
importante no sentido de perceber que em alguns casos, as perseguições, cassações, não
foram a regra adotada, mas, ao contrário, se reproduziram práticas conciliatórias, de simples
acomodação política.
Ou seja, no caso piauiense, por parte de determinados setores da elite política,
os seus reposicionamentos, adaptações, acenos adesistas, além da própria aproximação
(social-familiar) com membros do poder, foram elementos importantes para preservação de
seus cargos. Assim, é importante perceber o momento do golpe, como indica Rodrigo Motta,
dentro de um “processo histórico denso, entrecortado, abrupto, marcado por peculiaridades
regionais, que só pode ganhar inteligibilidade com o olhar distanciado no tempo e sensível
aos conflitos, debates e indecisões que o permearam”608. Além disso, deve-se destacar que a
nossa tradição conciliadora “inspirou muitos agentes sociais a lançar mão de contatos
familiares e pessoais para contornar as medidas repressivas” 609, o que se pode observar no
cenário político local.
É necessário mencionar ainda que os diferentes grupos políticos piauienses que
se acomodaram ao novo regime se utilizaram das propostas de modernização conservadora
característica daquele momento histórico para justificar tal adesão. Nesse ponto, é preciso
compreender, como indica Daniel Aarão Reis, que os militares brasileiros e seus aliados
civis lograram deslanchar um processo de modernização que implicou mudanças
importantes na infraestrutura do país, com repercussões principalmente na economia, nas
comunicações, no aparato tecnológico e científico, na indústria cultural, entre outros. No
entanto, tal projeto modernizador teve como par inseparável a conservação e a consolidação
dos pilares tradicionais da ordem social, cuja base é a exclusão de parte das classes
subordinadas e a incorporação subalterna dos segmentos populares mais afortunados 610. No
Piauí, a bandeira da modernização foi levantada pelos grupos adesistas, agora em defesa da
barragem de Boa Esperança, que, segundo eles, por meio do investimento do Estado
militarizado, traria o “progresso econômico” ao povo piauiense.
Um outro aspecto importante a se destacar é que muitos dos grupos que se

608
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar, Op. Cit. p. 15.
609
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Op. Cit. p. 10.
610
REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). A ditadura que mudou
o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 05.
246

posicionaram a favor da intervenção militar não tinham necessariamente posicionamentos


políticos antirreformistas. Ou seja, eles não se colocavam em um ponto diametralmente
oposto à necessidade de reformas específicas que levassem a um desenvolvimento e/ou
modernização da economia brasileira, mas, acima de tudo, das propostas de reformas tocadas
pelas esquerdas.
Rodrigo Motta destaca que o golpe de 1964 “não foi um movimento
essencialmente antirreformista, mas sobretudo anticomunista”. O historiador aponta que
“parte dos apoiadores do golpe era favorável a reformas, desde que afastado qualquer perigo
de radicalização e fortalecimento de lideranças revolucionárias” 611 . Isso pode ajudar a
esclarecer o posicionamento ambíguo de quadros políticos, como o então governador do
Piauí, Petrônio Portella. Esse agente, em inúmeros textos, se mostrou favorável às reformas
de base, à ideia de modernização das estruturas produtivas brasileiras, mas, como visto
acima, facilmente se conectou aos militares, após a tomada de poder612.
Se o governo João Goulart defendia um modelo de desenvolvimento a partir de
reformas estruturais, com uma progressiva ampliação da democracia e da participação das
camadas populares nos espaços de decisão, com os militares no poder e a sustentação das
elites econômicas, o modelo político foi outro. Nesse ponto, de acordo com Marcelo Ridenti,
observa-se que “desde 1964 foi se constituindo um projeto de modernização da sociedade
brasileira a partir de medidas econômicas e políticas do Estado autoritário, associadas à
iniciativa privada, o que se convencionou chamar de modernização conservadora” 613.
Assim, ainda de acordo com Ridenti, os governos militares promoveram o
desenvolvimento, embora à custa do cerceamento das liberdades democráticas e com grande
concentração de riquezas, não pelo viés do capitalismo de massas, sonhado por Celso

611
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. op. cit. (2014) p. 06
612
Rodrigo Motta já apontou as ambiguidades presentes na ditadura implantada em 1964. Para ele a noção de
modernização conservadora pode servir como síntese dos paradoxos e contradições do regime militar que
alternava modernização econômica, mas com profundo autoritarismo e repressão aos movimentos sociais e
mecanismos de exclusão de participação social. Para o historiador, o desejo modernizador implicava
“desenvolvimento econômico e tecnológico e, portanto, aumento dos contatos com o exterior e da mobilidade
das pessoas, além de expansão industrial e mecanização agrícola”. Com isso, levava-se ao aumento da
urbanização e do operariado fabril, gerando potenciais tensões e instabilidade nas relações sociais e de trabalho.
Já o impulso conservador estava ligado à “vontade de preservar a ordem social e os valores tradicionais, o que
insuflava o combate às utopias revolucionárias e outras formas de subversão e ‘desvio’, aí incluídos
questionamentos à moral e aos comportamentos convencionais”. Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá.
Modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política. In: REIS FILHO,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos
do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 30.
613
RIDENTI, Marcelo. As oposições à ditadura: resistência e integração. In: REIS FILHO, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de
1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 22.
247

Furtado e outros nacional-desenvolvimentistas antes do golpe. Ao contrário do que


inicialmente pensaram seus adversários, a ditadura impôs um projeto de modernização da
sociedade que ficou evidenciado a partir de 1970 com o chamado ‘milagre brasileiro’ na
economia”614.
Também é importante mencionar, como indica Rodrigo Motta, nem tudo que
representava a ordem anterior, da experiência liberal democrática, foi destruído, mas ganhou
outros contornos distintos, aspectos mais conservadores, pois “os militares apropriaram-se
de algumas ideias lançadas por progressistas e os reformistas, mas as adaptaram e sobretudo
as aplicaram de maneira autocrática e elitista” 615 . Um desses aspectos é a perspectiva
desenvolvimentista que caracterizou grande parte da experiência política brasileira dos anos
1950/1960 e que foi um elemento fundamental para legitimar os discursos adesistas de
agentes políticos ao regime autoritário.
Em discurso de recepção a Castello Branco, em visita ao Piauí, já em julho de
1965, o então governador Petrônio Portella buscou, em um primeiro plano, se desconectar
de qualquer vínculo que tivera anteriormente com os apoiadores do governo Goulart. Não
seria de bom tom, pode-se supor, demonstrar que teria dedicado apoio àqueles então
perseguidos pelos militares. Ao mesmo tempo, o governador, já galgando maior espaço
dentro da nova conjuntura política aberta pelo golpe, buscou se posicionar na esteira dos
projetos em torno do “progresso do Piauí”, em conexão com as narrativas políticas
empregadas pelos militares.
Esses projetos se efetivariam, segundo essa visão, por meio dos amplos
investimentos em infraestrutura, como estradas de rodagem, energia, agricultura, que eram
propalados então como mecanismos de inserção regional. Porém com uma percepção pouco
afeita aos interesses dos trabalhadores, que ganhavam notoriedade anteriormente, por meio
das pautas reformistas do PTB, mas que sequer são mencionados nas falas dos generais do
regime.

E quando a revolução de 31 de março, institucionalizou seus objetivos e o


congresso entregou a Nação as mãos firmes de V. Exa. o governador do
Piauí não variou e nem mudou. Continuou seu trabalho que jamais
apelou para subversão nem transigiu com os corruptores. Nossos
propósitos estavam e estão definidos. [...] preparar técnicos, estruturar os
organismos estatais, melhorar os padrões do funcionalismo para que a
administração se aperfeiçoe e o Piauí se mobilize com o objetivo de

614
RIDENTI, Marcelo. op. cit., 2014, p. 22.
615
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. op. cit. (2014) p. 08.
248

aproveitar a energia de Boa Esperança616. (grifo meu)

Aqui se percebe a clara tentativa de redimensionamento político de Petrônio


Portella. Ele então tentava demonstrar que desde sempre estivera conectado à lógica dos
militares e, ainda, não teria feito nenhuma mudança política no momento do golpe, pois não
teria apoiado Goulart617.
Um slogan que bem denota as intenções do governo piauiense em relação aos
ditames dos militares, pode ser percebido na Revista Caravana. Essa revista que,
anteriormente era responsável por divulgar obras e investimentos dos trabalhistas, após o
golpe, aderiu à modernização autoritária dos militares. Na edição de julho de 1965, quando
fez a cobertura da visita de Castelo Branco ao Piauí, há o seguinte título “Piauí de hoje:
ordem e trabalho em todos os municípios” 618 . A ideia de “ordem” aqui vinculada ao
“trabalho” denota a perspectiva de fechamento dos canais de mobilização e organização
coletiva dos trabalhadores a partir do golpe.
Em texto publicado na revista Caravana, narrou-se a visita, em 1965, do
Marechal Castello Branco ao Piauí. Destaca-se que, “tão logo pousou no aeroporto de
Teresina o viscount que trazia o presidente da República, Humberto de Alencar Castello
Branco e sua comitiva o povo gritava, desde o aeroporto até o centro da cidade: ‘Viva o
Brasil! Viva o Presidente Castello Branco! Viva o governador Petrônio Portella! Viva o
Piauí!’”619. A revista Caravana, antiga divulgadora dos feitos e dos nomes petebistas, agora
publicava, em forte tom laudatório, a visita ao Piauí do primeiro presidente militar após o
golpe.
A revista então divulgou que “os foguetes, explodindo ao alto, pareciam ecoar a

616
Governador Petrônio comanda a marcha do progresso no Piauí. Revista Caravana, p. 02, jul. 1965.
617
Interessante observar alguns dos argumentos que foram empregados com relação à mudança de
posicionamento político de Petrônio Portella em 1964, por aliados políticos. O ex-ministro, Jarbas Passarinho,
em texto para a Folha de São Paulo, destacou que Petrônio fora traído por “problemas de comunicação” no
momento do golpe. No texto, Passarinho destacou então, que [...] “As comunicações, à época, eram
precaríssimas. À noite de 31 de março, o que se conseguira ouvir em Teresina -e com dificuldade- fora a Rádio
Nacional, repetindo constantemente a notícia de que os golpistas estavam sendo presos. Embora eleito pela
UDN, Petrônio Portella recebera do presidente João Goulart atenção especial, traduzida em ajuda vultosa para
a realização da modernização do Estado, sem exigir-lhe nenhum compromisso político, o que fazia do
governador oposicionista um devedor de gratidão. Sem novas notícias a respeito, pois nenhum meio de
comunicação funcionava, Petrônio sentiu-se na obrigação de retribuir o gesto de João Goulart. Improvisou
cerimônia pública e assumiu o compromisso de colocar o Piauí ao lado da legalidade. Jornal de sua orientação
publicou-lhe o discurso, no dia seguinte, 2 de abril. Arraes já fora preso e destituído. Jango, de breve estada em
Porto Alegre, rumara para o Uruguai. Petrônio fora traído pela falta de informação. E isso declarou aos
novos donos do poder.” (grifo meu) PASSARINHO, Jarbas. Historietas piauienses. Folclore Político. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 19 out. 2002. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1910200214.htm. Acesso em: 12 jun. 2020.
618
Revista Caravana, jul. 1965, p. 13.
619
Revista Caravana, jul. 1965. p. 05.
249

alegria desse povo humilde: ‘Viva’!” Na recepção do Mal. Castello Branco, ainda segundo
a revista, no “aeroporto uma Cia. do 25º BC formou em homenagem ao supremo magistrado
na Nação”. Nesse momento, “a banda de música daquela corporação executou, como em
nenhuma outra ocasião, o Hino Nacional”. A revista divulgava ainda que “o governador,
Petrônio Portella Nunes, recebeu S. Exa. E rumaram em direção a fila de autoridades que
foram levar cumprimentos ao Marechal Castello Branco”620.
Como demonstração de sua relação de confiança com militares, Portella “foi
incumbido pelo próprio Castello Branco de formar a Arena no Piauí”621. Já em junho de 1968,
com o falecimento de Paulo Sarasate, Petrônio aceitou o convite de Daniel Krieger para
assumir a vice-liderança do governo, abrindo assim o precedente de acumular as vice-
lideranças do governo e da Arena 622 . Em pesquisa recente, Daniel Bahiense destaca que
Petrônio foi conquistando a confiança das principais lideranças arenistas no Senado,
especialmente os senadores Krieger e Müller, conseguindo então superar as primeiras
desconfianças do novo bloco de poder com relação ao seu nome. Assim, ele chegaria à 2ª
Convenção Nacional da Arena, de junho de 1968, como vice-líder do partido e vice-líder do
governo na Câmara Alta, convidado e avalizado pelos senadores Müller e Krieger623.
Um outro ponto importante a destacar é a adesão de muitos quadros políticos do
legislativo piauiense à lógica persecutória dos militares. Alguns, por certo, buscando
favorecimento, ou simplesmente visando retirar seus opositores de cargos eletivos, por meio
das cassações de mandatos que se tornaram frequentes na Assembleia e Câmaras de
vereadores, como percebi nessa pesquisa. O então estudante de Direito e vereador eleito em
1962, pelo PTB, Jesualdo Cavalcante de Barros624, foi perseguido pelos militares, preso e, a
seguir, cassado na Câmara Municipal de Teresina, com forte anuência dos próprios colegas
da casa, que se submeteram aos ditames da Guarnição Federal do Piauí.
Seu depoimento é ilustrativo de como alguns grupos ou indivíduos, por
interesses imediatos ou buscando se beneficiar politicamente com a nova ordem,
estabeleceram todo um sistema de delações, reproduzindo e legitimando o jogo persecutório
dos militares.

620
Revista Caravana, p. 05, jul. 1965.
621
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit.
622
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit.
623
BAHIENSE, 2016, p. 05.
624
Aluno do terceiro ano da Faculdade de Direito, mas impedido de assistir às aulas desde abril, obteve
autorização para, escoltado por soldados, realizar as provas que deixara de fazer. Colocado em liberdade em
30 de maio, voltou a ser preso diversas vezes, coincidindo com a presença, em Teresina, de autoridades do
primeiro escalão da República. Ver: DANTAS, Deoclécio. Marcas da ditadura no Piauí. Teresina-PI, 2008, p.
10.
250

Ao lado de pessoas sinceras e ideologicamente identificadas com o novo


regime, não eram poucos os que, marcados por um passado um tanto
quanto nebuloso, tentavam limpar a própria folha corrida apelando para a
deduragem ou mesmo fazendo o possível para mostrar as caras, em fingida
contrição, nas novenas da paróquia de São João da Vila Operária, cujos
padres, estrangeiros todos, esmeravam-se em promover cerrada pregação
anticomunista625.

No jornal O Dia é possível acessar matérias que evidenciavam os arranjos


políticos e as práticas de adesão de deputados, senadores, prefeitos e mesmo vereadores
quanto à perseguição de possíveis opositores ao regime. No processo de sustentação aos
militares, a perseguição dos considerados “subversivos” ou “comunistas”, simplesmente por
serem ligados às classes trabalhadoras, foram argumentos utilizados por aqueles que votaram
nas cassações, alguns destes até mesmo do próprio PTB. Por exemplo, quando por “oito
votos contra um a Câmara Municipal de Teresina cassou o mandato do vereador Jesualdo
Cavalcante de Barros, que [está] preso sob a acusação de ser comunista atuante junto as
classes estudantil e operária, além de estar comprometido com o movimento de caráter
subversivo, visando à queda do regime”626.
Na edição do jornal O Dia, destacou-se ainda os nomes dos vereadores que
votaram a favor da cassação do mandato de Jesualdo627, mesmo estando evidente, naquele
momento, que tanto a prisão, quanto o processo de cassação do vereador do PTB na Câmara
Municipal, eram oriundas de clara perseguição política por parte dos militares. Os
vereadores assim, atuaram legitimando o autoritarismo contido nessa ação, colaborando
diretamente com a “nova ordem” autoritária.
Porque razões tais tipos de atitudes colaboracionistas foram bastante comuns em
espaços de poder como as Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, no Brasil no
momento do golpe? Por certo, na maioria dos casos, a necessidade de muitos agentes
políticos de salvar o próprio mandato, aderindo aos ditames dos militares é um dos fatores
que explica tais atitudes. Por outro lado, também se pode apontar um certo incômodo que
deveria causar um vereador como Jesualdo Cavalcanti, do PTB. Forjado no movimento
estudantil da capital, um jovem estudante de Direito, ativo na defesa dos movimentos sociais
e das reformas de base, era distante dos quadros políticos fisiológicos que marcavam tais

625
BARROS, 2006, p.195.
626
Jornal O Dia, ano 14, n. 1216, Teresina-PI, p. 01, 12 abr. 1964.
627
Votaram pela cassação os vereadores Otávio Joaquim Braga, Abizail Leôncio de Souza, João Rodrigues de
Azevedo Filho, Álvaro Monteiro da Cunha, Álvaro Lebre, Raimundo Vieira e Silva, Joel da Cunha Mendes e
José da Costa e Silva; e contra o vereador Paulo Rubens Fontenele. Ver: Jornal O Dia, ano 14, n. 1216, Teresina-
PI, p. 01, 12 abr. 1964.
251

espaços de poder. Muitos dos vereadores que votaram pela cassação de Jesualdo viram,
provavelmente, um momento mais do que oportuno para retirar-lhe o mandato, utilizando-
se contraditoriamente de um discurso em nome da defesa da “ordem democrática”, em
sintonia com os interesses dos militares.
No legislativo estadual, outra demonstração de servilismo e adaptação política
foi visível na Assembleia Legislativa do Piauí. Logo após a consolidação do golpe, o clima
de caça às bruxas atingiu também aquela casa. Em sessão do dia 08 de maio, logo após o
golpe, em 1964, pelo vice-governador João Clímaco de Almeida, conhecido Joqueira, foram
lidos ofícios assinados pelo comandante da Guarnição Federal de Teresina, Francisco
Mascarenhas Façanha. De acordo com o jornalista Deoclécio Dantas, o primeiro ofício,
informava que: “atendendo à solicitação de V. Exa., informo que os deputados estaduais e
suplentes abaixo relacionados, se encontram enquadrados no art. 10 do Ato institucional. Os
deputados em questão eram: Deusdedit Mendes Ribeiro 628, Themístocles Sampaio e José
Alexandre Caldas Rodrigues”629. Além deles, foram cassados os suplentes Honorato Gomes
Martins, Antônio Ubiratan de Carvalho e José Francisco Paes Landim. O segundo ofício
enviado também enquadrava o deputado estadual Celso de Barros Coelho630 no artigo 10 do
Ato Institucional631.
Tendo em vista a adequação daquela casa aos ditames das Forças Armadas, o
presidente da Assembleia decide por reorganizar o sistema de votação, dando prioridade à
votação das cassações dos mandatos dos deputados enquadrados pela forma militar. Pois,
“enviados à Comissão de Constituição de Justiça, os dois ofícios foram apreciados em
regime de urgência, sendo importante destacar que a presidência da Assembleia, também em
regime de urgência, já havia adaptado o seu Regimento Interno ao Ato Institucional”632.
“Naquela época, eram 42 os deputados estaduais, sendo que um – Deusdedit Mendes Ribeiro
– estava preso, e cinco, embora comunicados do objeto daquela sessão não
compareceram”633.

628
Era fortemente ligado ao PCB e aos movimentos sindicais urbanos em Teresina e às Ligas Camponesas em
Campo Maior. Ficou preso por mais de 70 dias entre o quartel do 25º BC e a penitenciaria de Teresina.
629
José Alexandre, como visto no primeiro capítulo, irmão do ex-governador Chagas Rodrigues, então
deputado federal. Era ligado aos sindicatos na cidade de Parnaíba, tendo sido eleito prefeito da cidade com
apoio da estrutura sindical e após isso, eleito deputado estadual.
630
De acordo com Dantas, o deputado teria irritado os militares em sessão anterior na Assembleia Legislativa,
ao defender postulados da democracia e, mesmo pressionado, não recuou naquilo que havia dito. Além de
deputado, Celso também era presidente do conselho local da OAB.
631
DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 13.
632
DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 13.
633
Os ausentes foram os deputados Aloísio Costa, Álvaro Melo, Benjamim Lustosa, Waldemar Macedo e Pedro
Borges. (DANTAS, Deoclécio. Op. cit, 2008, p. 13.)
252

Destaca o jornalista Deoclécio Dantas que, “num ambiente de total e


indisfarçável constrangimento, sem um único voto contra as cassações, disseram sim trinta
e dois deputados”. Na mesma sessão, sem chance de defesa, foram cassados os suplentes
“Honorato Gomes Martins, Antônio Ubiratan de Carvalho e José Francisco Paes Landim”.
Celso, Themístocles, José Alexandre e Deusdedit Ribeiro perderam seus mandatos
confortados, apenas, pela solidariedade dos deputados ausentes àquela sessão, enfatizou
Dantas. No dia 11 do mesmo mês, os suplentes José Gil Barbosa, Joaquim Gomes Calado e
Milton Costa assumiram três das quatro vagas decorrentes das cassações634.
A partir dessas questões inerentes ao quadro político piauiense no momento do
golpe, passo para análise das práticas de adesão ao golpe militar por parte de civis, por meio
de eventos permeados de simbolismo e de ampla participação social. Destaco a divulgação
e presença de diferentes grupos nas Marchas da Família com Deus pela Liberdade, também
ocorridas após o golpe em cidades piauienses, mas também medidas de adesão ao
militarismo por meio da construção de monumentos em torno da defesa dos signos do
regime, tais como o “civismo” e “patriotismo”.

As Marchas da Família Com Deus pela Liberdade e as celebrações ao “civismo” no


Piauí (1964)

Tarde de terça-feira, 14 de abril de 1964, a capital piauiense se movimenta para


celebrar a “marcha da vitória”, contra a “ameaça” que, “por muito pouco não assaltou o
Brasil”, não fosse a “justa intervenção dos patrióticos militares”. Tal manifestação, para seus
organizadores, se caracterizaria pela “empolgante e expressiva manifestação de natural amor
à democracia”635. Para o desembargador Simplício Mendes, já mencionado nos capítulos
anteriores, um notório defensor das bandeiras do anticomunismo no Piauí, a reprodução no
Piauí das Marchas da Família com Deus pela Liberdade tinha claro apelo contrário ao
“materialismo soviético”, que era uma “ameaça real”, porém combatida com “força” e
“coragem” naquele momento pelos “democratas brasileiros”636. Nas palavras de Mendes,
aquela seria uma clara “demonstração de fervor sentimental pelo inalienável patrimônio das
tradições religiosas, políticas e morais”637, que, para ele, eram uma marca definitiva do país,
pois “comporiam a bases sociais da unidade do Brasil, indissolúvel e liberal” 638.

634
DANTAS, Deoclécio, op. cit. 2008, p. 13
635
MENDES, Simplício de Sousa. A alma cívica do povo vibrou espontânea. Televisão. Jornal O Dia, p 03,
17 abr. 1964.
636
Idem.
637
Idem.
638
Idem.
253

Naquela tarde, em Teresina, segundo o desembargador, “as avenidas Frei


Serafim e Getúlio Vargas – das imediações do rio Poti até a praça Rio Branco, noutro
extremo da Capital Piauiense, teve o espaço completamente lotado pela compacta multidão,
vibrando e cantando hinos de louvor, de entusiasmo, de glorificação às instituições liberais
da República”639. As narrativas publicadas no jornal O Dia, na coluna de Simplício Mendes,
procuraram dar a esse evento um sentimento de grandiosidade e de heroísmo, pois, segundo
o desembargador, a Marcha ocorrera em um “cenário magnífico, numa tarde de sol e de luz
– sol da liberdade; luz, reflexo da providência divina, iluminando e dirigindo o Brasil, nos
seus destinos eternos pelo civismo e pela consciência democrática das suas gerações” 640.
De acordo com Simplício Mendes, o evento abriu “grandioso e empolgante
cenário” na capital piauiense. Momento que então, para o articulista, “descortinou-se em
ordem lenta de respeito ao pavilhão nacional, às cores da nacionalidade, de fervoroso culto
à democracia, contra o comunismo escravizador” 641 . Na mesma edição desse diário
piauiense, agora na coluna flagrantes sociais, escritas por mulheres, senhoras das famílias
tradicionais desse estado, a respeito da Marcha, narrou-se que:

Era grande a agitação da terça-feira à tarde na preparação da Marcha da


Família com Deus pela Liberdade. Foi, porém, compensador o trabalho
realizado, ante o deslumbrante e apoteótico movimento que assistimos.
Nem se poderia esperar que assim não fosse, ciosos que somos dos nossos
sentimentos democráticos. [...] Representantes de todas as camadas sociais
participaram da passeata que partiu do Cruzeiro, na avenida Frei Serafim e
encerrou-se na Praça Rio Branco. Autoridades militares e civis. Industriais
e comerciantes; industriários e comerciários, profissionais liberais,
operários, jornalistas, senhores, senhoras e senhorinhas, pôvo em geral,
unissônamente cantando hinos de louvor à consolidação da nossa liberdade
e às nossas Forças Armadas pelo papel brilhante e heroico prestado pelo
restabelecimento da ordem. [...] o potencial humano presente àquele
espetáculo cívico era inestimável, provando à sociedade a mentira, do
desejo popular de bolchevização do país642.

Como se pode evidenciar nos trechos acima, o entusiasmo e a euforia foram


marcas definitivas da organização da Marcha da Família em Teresina, capital do Piauí. As
colunas dos jornais pesquisados ao mesmo tempo em que defenderam, divulgaram e
estimularam a adesão a essa “passeata cívica” na capital piauiense, ilustraram as páginas dos
diários com imagens, textos celebratórios, buscando evidenciar a ampla participação de
diferentes setores da sociedade piauiense naquele acontecimento. Desde os industriários,

639
Idem.
640
Idem.
641
Idem.
642
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
254

comerciantes e proprietários rurais, setores da igreja católica com fortes interesses na


derrubada do governo Jango e na tomada de poder pelos militares, até mesmo, ainda segundo
coluna do jornal O Dia, membros de representações estudantis e das classes populares. O
texto segue enfatizando que:

Um dos temas adotados pelos comunistas na sua doutrinação extremista é


o de que o burguês amordaça o proletário, sugando-lhe todas as energias
para distanciar cada vez mais, as camadas sociais [...] naquela encantadora
manifestação de solidariedade, a maior representação foi a do povo.
Rejubilamo-nos com os resultados. O cortejo fêz-se sob admirável
organização voluntária e ao longo de sua passagem as ruas estavam
repletas. Saudações eram ouvidas a cada momento, sendo de destacar-se
aquela que a Igreja Batista dirigiu em homenagem às três armas e à
Democracia, no momento exato em que as autoridades defrontavam-se
com seu templo. Flores eram atiradas de residências em profusão num
autêntico apoio ao movimento que se tornará histórico no Brasil. Já não é
a primeira vez que somos ameaçados pela sanha diabólica e sanguinária de
certos brasileiros desfibrados, que despidos de sentimentos patrióticos
traiam a Pátria e seus irmãos. Não os poupemos, agora que temos a volta a
nossa segurança643.

De acordo com a interpretação da autora do texto, foi massiva a presença da


sociedade piauiense na tarde em que se realizou a Marcha na capital. O texto demonstrava
ainda que era necessário também apontar, a partir de então, quem seriam, no espaço local,
aqueles suspeitos de “trair o país”, abrindo a possibilidade de delações e “deduragens” as
mais diversas nesse estado. Quando a missivista recomendava que “não os [poupemos]”,
acabava por repercutir toda uma lógica persecutória que foi comum nos idos de abril de
1964, que era o ato de apontar, para a força repressiva, os supostos subversivos ou
comunistas piauienses entre o meio social, no sentido de que esses pudessem sentir o peso
das práticas repressivas.
No Piauí, como em diferentes estados da federação, as Marchas da Família com
Deus pela Liberdade aconteceram como uma espécie de “desfile vitorioso” das direitas e dos
diferentes grupos conservadores locais, pois ocorreu em Teresina, somente no dia 14 de abril,
bem como em Parnaíba e Miguel Alves somente no início do mês de maio de 1964. Com o
processo punitivo em andamento, com os militares já estabelecidos no poder, após o primeiro
Ato Institucional, as cassações de mandatos de parlamentares, batidas policiais em
sindicatos, processos abertos contra civis suspeitos de subversão, tudo amplamente
divulgado, as Marchas foram uma demonstração de apoio civil também à truculência do
método de ação dos militares. Ao mesmo tempo, como se pode evidenciar, com parte das

643
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
255

lideranças trabalhistas, dos sindicatos urbanos e rurais e os pequenos grupos de comunistas


piauienses já aprisionados, parcelas da população local foram às ruas em saudação ao
regime, para endossá-lo. Em matéria na coluna do jornal O Dia, nomeada Para a mulher:
dizendo o que penso, a escritora de nome Ana Paula, destacou suas impressões sobre o evento:

Penso que, apesar do que já foi dito por muitos, nunca é demais exaltar o
maravilhoso espetáculo que Teresina inteira assistiu dia 14, à tarde, quando
foi realizada a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Para mim,
que passei a infância no Sul do país, voltando a residir no Piauí em 1944,
confesso que nunca vi tanta gente junta, atendendo a um convite que,
pensando bem, não era propriamente de pessoas ou de entidades. O
movimento nasceu e se expandiu de tal modo que ninguém pôde ficar em
casa. Todos saíram às ruas para participar da MARCHA. Foi uma coisa ao
mesmo tempo bela e comovente. Por aí, isto é, por essa demonstração de
civismo de nossa gente e, sobretudo da mulher piauiense, que prestigiou
de maneira entusiástica, a homenagem do povo ao regime democrático e
às nossas gloriosas Fôrças Armadas, fiquei sabendo que, embora sejamos
muito pacatos, não deixaríamos jamais de atender ao chamamento da
Pátria, para defende-la. Graças a Deus644.

Naquele momento, como mencionado no segundo capítulo, a presença das


mulheres piauienses, principalmente aquelas oriundas das famílias tradicionais no estado,
foi bastante evidente na organização e realização da Marcha. Essas mulheres, por sua
presença simbólica como “mães”, “esposas”, “donas de casa”, responsáveis por “gerir o
ambiente familiar”, pela organização de eventos com forte carga religiosa, mas também
pelos terços rezados contra o “comunismo ateu”, foram fundamentais no processo de
legitimação e adesão social ao novo regime. Umas dessas mulheres, oriunda de família
tradicional no Piauí, que se destacou na Marcha foi Iracema Portella Nunes, esposa do então
governador do estado, Petrônio Portella Nunes. Ela era filha do ex-governador (1951-1955)
e líder do PSD piauiense, o comerciante Pedro Freitas, conhecido como Dedé Freitas. O
jornal O Dia apontou, na edição de 17 de abril de 1964, que:

Coube à primeira dama do estado, Dona Iracema Portella Nunes, fazer a


entrega de uma “corbeille” de flores naturais ao Comandante da Guarnição
Federal, Coronel Francisco Mascarenhas Façanha, como homenagem da
mulher piauiense às Forças Armadas do Brasil, que se encontravam
representadas, na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, por oficiais
do Exército, da Armada, da Polícia Militar do Estado e pelo destacamento
da FAB em Teresina645.

Essas manifestações simbólicas, a meu ver, marcam de forma mais evidente a

644
PAULA, Ana. Para a mulher: dizendo o que penso. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
645
Elas e Elas. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
256

presença dos grupos civis no processo de adesão ao golpe de 1964, ao mesmo tempo esses
foram eventos bastante divulgados na imprensa piauiense. A reprodução das chamadas
Marchas da Família com Deus pela Liberdade, podem servir, a meu ver, como uma das
formas mais visíveis de demonstração de que diferentes setores da sociedade piauiense
apoiaram as medidas adotadas pelos militares da Guarnição Federal do Piauí, por mais
truculentas que fossem essas ações.
A primeira dessas marchas, organizada por grupos religiosos e de mulheres,
ocorreu em São Paulo, às vésperas do golpe, em 19 de março de 1964, como reação ao
comício da Central do Brasil, ocorrido no dia 13 de março. Após a ruptura institucional
iniciada em 31 de março, tal evento foi reproduzido em várias outras cidades brasileiras,
como uma espécie de sinal de apoio social aos militares que vieram, segundo esses grupos,
para resguardar a “ordem democrática”, contra o “comunismo”, contra a “corrupção” e a
“subversão”, ao mesmo tempo, que vieram no sentido de manter a unidade da “família
brasileira”646.
Em algumas edições do jornal piauiense O Dia, às vésperas da realização da
Marcha no Piauí, foram emitidas inúmeras notas conclamando a sociedade piauiense a se
fazer presente naquele “grande ato cívico”. Segundo os organizadores e divulgadores, no
sentido de agregar diferentes setores ao evento, as marchas seriam em “defesa da
democracia”, que esteve, em suas interpretações, “seriamente ameaçada” durante o governo
João Goulart. Ao mesmo tempo, a realização das marchas seria um gesto de “aplauso às
gloriosas Forças Armadas”, como se pode evidenciar nesses trechos abaixo:

Motorista!
Dê sua contribuição para a MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS PELA
LIBERDADE. Transporte gratuitamente as pessoas pobres, nos subúrbios,
na terça-feira à tarde, a fim de que todos possam tomar parte no movimento.
Com Deus, pela liberdade, em defesa da democracia 647.

Comerciante!
É indispensável e necessária sua colaboração à MARCHA DA FAMÍLIA
COM DEUS PELA LIBERDADE. Na terça à tarde, espera-se que o

646
Interessante observar a manutenção dessa memória positiva sobre o golpe de 1964 nos dias atuais dentro e
fora dos quartéis. Quando os grupos de generais atualmente à frente do Estado brasileiro, dão declarações
reproduzindo a ideia de que o golpe teria sido dado como forma de “salvar a democracia” e/ou restabelecer a
ordem no país. Exemplo disso são as recentes declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, na data em
que se lembra os 56 anos do golpe de 1964. Mourão afirmou, em 31 de março de 2020, que as Forças Armadas
assumiram o poder para enfrentar a subversão e fizeram as reformas que “desenvolveram o Brasil”. Segundo
o general, “há 56 anos as Forças Armadas intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão
e corrupção que abalavam as instituições”. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/mourao-
celebra-56-anos-do-golpe-de-64-esquerda-sobe-hashtag-ditaduranuncamais/. Acesso em: 01 abr. 2020.
647
Jornal O Dia, p. 05, 12 abr. 1964.
257

comércio cerre suas portas às 15 horas, para que empregadores e


empregados possam estar presentes à Marcha. Espera-se também que cada
comerciante de tecidos contribua com uma faixa para o desfile contendo
“slogan” alusivo ao perigo comunista e de aplauso às nossas forças
armadas.648

Senhor Diretor de Colégio!


A Marcha da Família com Deus pela liberdade será uma parada cívica
contra o comunismo e de apoio e aplauso às Forças Armadas.
Dê sua valiosa contribuição para o êxito da Marcha, fazendo com que todos
os alunos do seu estabelecimento compareçam, terça-feira próxima, ao
memorável acontecimento.649

O trecho supracitado sugere que o processo de adesão ao golpe de 1964 foi


amplo, abrangendo também, pode-se dizer, não somente setores ligados diretamente ao
grande comércio, ao mundo jurídico ou ao empresariado local. Por conta dos discursos
anticomunistas que impulsionaram o golpe, os eventos de celebração, tais como as Marchas,
atraíram uma quantidade diversa de grupos da sociedade, pois contaram com uma
participação bastante heterogênea650. Alguns grupos de mulheres piauienses estimularam, por
meio de apelos à “tradição cristã brasileira” e, ao mesmo tempo, de “manutenção da ordem”,
a tomada de iniciativa de populares, em prol do apoio às Forças Armadas.
As notas e textos levantados, publicados na imprensa piauiense, deixam
perceptível que as narrativas dos diversos grupos apoiadores do golpe de 1964 buscaram
afirmar os “valores democráticos” e “liberais” que estariam ameaçados pelos “comunistas”,
ao mesmo tempo em que fizeram ampla defesa da “autoridade” e da “pátria”, como
elementos a serem defendidos. Exaltava-se, diga-se, de forma assertiva e repetitiva, a
“família”, a “tradição” e a “ordem”.
Na tentativa de agregar empregadores e empregados, moradores de áreas nobres
e dos subúrbios mais afastados, além da dona de casa e do motorista, do comerciante e de
seus clientes, dentre outros, as notas de apelo à participação nas Marchas no Piauí quiseram
evidenciar que a maior parte da sociedade estaria favorável aos militares. Nesse sentido,
como indica Janaína Cordeiro, podemos pensar que “as marchas passaram à História como
as mais significativas expressões do apoio da sociedade civil à intervenção militar”, portanto,

648
Jornal O Dia, p. 05, 12 abr. 1964.
649
Jornal O Dia, p. 04, 12 abr. 1964.
650
Daniel Aarão Reis Filho destaca que “Milhões marcharam. Quinhentas mil pessoas em São Paulo, antes do
golpe, em 19 de março de 1964. Um milhão no Rio de Janeiro, em 2 de abril, na então chamada Marcha da
Vitória. Depois, mais dezenas e dezenas de milhares. Marcharam as gentes até setembro de 1964. Não houve
cidade grande que não tivesse a sua marcha, sem contar muitas cidades médias e pequenas.” REIS FILHO,
Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 45, p. 171-186,
jan./jun. 2010.
258

elas são fundamentais no processo de estabelecimento do “novo regime político” em todo o


Brasil. Sobretudo, ainda de acordo com a autora, porque nelas estiveram presentes “os mais
diversos tipos de entidades civis, as quais primeiramente se mobilizaram para pedir uma
intervenção militar e, em seguida, para comemorar o sucesso desta”651.
Na dissertação de Elisângela Ricardo, o depoimento do então jovem estudante
de 19 anos, Ademir Alves de Melo, preso em Parnaíba após o golpe, nos deixa empreender
um pouco do sentimento de perplexidade por parte de alguns dos indiciados, ao perceberem,
já em meados de maio de 1964, a realização da Marcha na cidade litorânea. Segundo o
trabalho, dias depois de ser liberado pelos militares, “Melo ficou confinado na residência de
sua avó, local que presenciou a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, relata que
nunca viu um aglomerado tão grande de pessoas rezando pelo ‘bem do Brasil’, como
observou na marcha”652. As fontes dessa pesquisa evidenciam que, nas principais cidades
piauienses (Teresina e Parnaíba), a realização das Marchas contou com amplo apoio e adesão
de diferentes classes e grupos piauienses653.
É preciso refletir que, certamente, muitos dos apoiadores do golpe – sobretudo
os que estiveram no processo de organização das Marchas – que foram às ruas e/ou
conclamaram a população a se fazer presente, deveriam se identificar profundamente com o
regime de força que se estabeleceu no país em 1964. Esses grupos piauienses, pode-se dizer,
também compartilhavam de uma certa cultura política conservadora, antidemocrática e de
direita. Alguns outros participantes, por certo, não estavam em condições de identificar com
maior clareza quais eram as principais motivações envolvidas em tal evento, mas, assim
mesmo, buscaram celebrar as manifestações simbólicas que respaldavam o regime de força
instituído no Brasil.
Muitos participantes, por certo, vislumbraram nas marchas um simples evento
comemorativo sem uma maior profundidade, pode-se supor. Outros, contudo, sabiam
exatamente que se tratava de um momento de buscar endossar socialmente um novo regime
político, visivelmente permeado de perseguições, cassações a parlamentares e punições mais
duras aos trabalhadores sindicalizados no campo e a nas cidades, ou mesmo àqueles que

651
CORDEIRO, Janaína Martins. Op. cit. 2008, p.21
652
RICARDO, Elisângela M. Op cit. p. 111.
653
Marylu Oliveira destaca que, “apesar de não ter sido organizada pela Igreja Católica no Piauí, teve
expressivo caráter religioso, inclusive no sentido de aglutinar um maior número de indivíduos no combate ao
comunismo ateu”. Ver: OLIVEIRA, Marylu Alves de. A cruzada antivermelha: democracia, Deus e terra
contra a força comunista: representações, apropriações e práticas anticomunistas no Piauí da década de 1960.
Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, 2008, p. 136.
259

simplesmente fossem enquadrados como comunistas, pelo simples fato de se conectarem ao


trabalhismo ou de serem opostos ao golpe de Estado.
Denise Rollemberg e Samantha Quadrat, em obra importante para a
compreensão dos regimes autoritários, destacam que, “a resistência e a memória da
resistência sempre identificaram as ditaduras à tirania”. Por outro lado, é fundamental
perceber que, em determinados contextos, segundo as autoras, os regimes de força “foram
reivindicados até mesmo como salvadores da própria democracia, dos valores nacionais e
sociais, como único caminho, o fio condutor da transformação radical da sociedade” 654. As
autoras destacam ainda um ponto importante, que compartilho neste trabalho, que é a
percepção de que, “em diferentes circunstâncias, a democracia é que foi rejeitada”655. Esse é
um aspecto importante para a leitura de um evento como o golpe de 1964 e seus
desdobramentos em diferentes espaços do país.
Proponho então, na esteira aberta pelas historiadoras, que este trabalho também
se conecte a uma historiografia que busca romper com visões simplórias e maniqueístas. Que
busque ainda romper “com as noções de opressão/oprimidos, coerção-todo-poderosa,
propaganda-manipuladora-sedutora, Estado versus sociedade”. Que se distancie, conforme
essa indicação, “de uma história do Bem contra o Mal, a aliviar a humanidade das suas
supostas desumanidades, mas que a condena ao desconhecimento de si mesma” 656. Em suma,
se faz pertinente compreender que diferentes setores da sociedade desejaram o autoritarismo,
celebraram um regime de força, pois compreendiam nele uma solução para os impasses pelos
quais atravessava o país no limiar dos anos 1960 e mesmo, em paralelo, em tempos mais
recentes657.
Já de acordo com trabalho de Aline Pressot, sobre as marchas, destaca-se que,
“especialmente em decorrência do sucesso da passeata do Rio de Janeiro, essas adquiriram,
em pouco tempo, abrangência nacional e o estatuto de um autêntico movimento em apoio ao

654
QUADRAT, Denise; ROLLEMBERG, Samantha Viz (org.). Apresentação. In: A construção social dos
regimes autoritários: Europa, vol. 1. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 15.
655
Idem.
656
Idem.
657
Aqui é importante mencionar também a formação de uma cultura política conservadora no Brasil como um
aspecto de longa duração. Por certo, a eleição de um candidato de extrema-direita, em 2018, sufragado por
mais de 57 milhões de brasileiros, é evento histórico marcante dos tempos atuais e precisa ser compreendido
de maneira mais complexa. Demonstra, de certa forma, que parcelas significativas dessa sociedade, não
enxerga como um problema efetivo um candidato que defende uma visão positiva sobre a ditadura, sobre tortura,
etc.
260

golpe civil-militar, posto que boa parte delas ocorreu posteriormente ao 31 de março”658.
Nesse sentido, é importante demarcar que muitos daqueles personagens que participaram da
reprodução das Marchas no Piauí, entendiam se tratar de uma forma de celebração, de um
culto a uma intervenção militar conservadora, punitiva, truculenta e antidemocrática.
Sobretudo quando da realização na cidade de Parnaíba, já no início do mês de maio, portanto,
dois meses após a ruptura institucional.
Importante também observar o amplo papel que teve a mídia impressa naquele
momento. Tanto no que diz respeito à divulgação do evento, buscando angariar a simpatia
da opinião pública para a Marcha, quanto na ampla cobertura feita após a realização. Nesse
sentido, como nos indica Rosangela de Pereira Assunção sobre o papel da imprensa,
“podemos imputar grande parcela de responsabilidade no processo de recepção, repetição,
transformação e circulação de imagens sobre o comunismo e comunistas que, em última
instância, pode ter contribuído para a consolidação na sociedade de uma postura política de
consenso contrária ao comunismo”659.
Naquele momento, quando se marcou a concretização da tomada de poder pelos
militares, até mesmo grupos de estudantes, diretórios estaduais de secundaristas, grupos de
estudantes universitários, bem como de funcionários púbicos, dentre outros, incorporaram-
se à Marcha piauiense, como pude perceber nessa pesquisa. Na edição do dia 14 de abril de
1964, o jornal O Dia destacou que:

A UEE (União Estadual de Estudantes) e os diretórios acadêmicos das três


Faculdades de Teresina hipotecaram integral solidariedade ao movimento
e, por nosso intermédio, convidam todos os universitários a se fazerem
presentes na MARCHA. A Escola Antonino Freire [...] O Instituto Batista
Afonso Mafrense [...] A Secretaria de Estado do Governo dirigiu convite a
todos os chefes de repartições, autarquias e serviços públicos, bem como a
todo o funcionalismo estadual para tomarem parte na MARCHA.
Recomendou, por outro lado, o encerramento do expediente nas repartições
que funcionam à tarde, a partir das 15 horas, para que todos possam
participar do movimento660.

No contexto das Marchas, pelo menos para as classes médias locais, era possível

658
PRESSOT, Aline. Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe
de 1964. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes
autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX Brasil e América Latina, v.2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 83.
659
ASSUNÇÃO, Rosângela Pereira de Abreu. Imagens da subversão: polícia política, imprensa e imaginário
anticomunista. Em: MOTTA, Rodrigo Sá (Org.) Culturas políticas na História: novos estudos. 2ª ed. Belo
Horizonte, BH: Fino Traço, 2014. p. 208.
660
Marcha da Família empolga teresinense. Em: Jornal O DIA. Teresina, ano. XIV n. 1216. p. 1-4,14 de abril
1964.
261

acompanhar pela ampla cobertura midiática, o processo de concentração de poder por parte
dos militares, quando, por exemplo, se estabeleceu, em 09 de abril, o primeiro Ato
Institucional. O primeiro AI buscava conceder ao comando revolucionário as prerrogativas
de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e
deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem “atentado”
contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. O
AI-1, como forma de assegurar a manutenção dos militares à frente do poder, determinava
em seu artigo 2º que dentro de dois dias seriam realizadas eleições indiretas para a
presidência e vice-presidência da República. O mandato presidencial se estenderia até 31 de
janeiro de 1966, data em que expiraria a vigência do próprio ato661.
Aline Pressot destaca que os grupos conservadores, já durante alguns anos,
denunciavam a iminência do “perigo comunista” no país, percebendo a necessidade de
intensificar sua campanha de oposição ao governo e de arregimentação da opinião pública662.
A autora destaca que, enquanto Jango selava o compromisso definitivo com as reformas,
assinando seus principais decretos, muitas famílias da zona sul do Rio de Janeiro respondiam
a uma convocação de se acender uma vela pelo afastamento do país das aspirações
comunizantes; mulheres de São Paulo se reuniram e rezaram o terço na Sé663. Em São Paulo,
na primeira Marcha, “cerca de 500 mil pessoas congestionariam as ruas da capital paulista
em manifestação pública pela derrubada do presidente”664. Seria também, de acordo com
Pressot, uma forma de dizer às Forças Armadas que era chegado o momento de se intervir
na política, o que, segundo seus organizadores, representaria um anseio do povo665.

661
No dia 10 de abril, a junta militar divulgou a primeira lista dos atingidos pelo AI-1, composta de 102 nomes.
Foram cassados os mandatos de 41 deputados federais e suspensos os direitos políticos de várias personalidades
de destaque na vida nacional, entre as quais João Goulart, o ex-presidente Jânio Quadros, o secretário-geral do
proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), Luís Carlos Prestes. A extensa lista incluía ainda 29 líderes
sindicais, alguns deles bastante conhecidos, como o presidente do então extinto Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), Clodsmith Riani, além de Hércules Correia, Dante Pellacani, Osvaldo Pacheco e Roberto
Morena. 122 oficiais foram também expulsos das forças armadas. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/atos-institucionais. Acesso em: 02 fev. 2020.
662
PRESSOT, Aline. op. cit. 2010, p. 75.
663
PRESSOT, 2010, p. 76.
664
PRESSOT, 2010, p. 77.
665
PRESSOT, 2010, p. 77.
262

Figura 07- Marcha da Família com Deus pela liberdade no Piauí.

Fonte: Jornal O Dia, 15 abril de 1964.

Um aspecto importante é perceber que, também no espaço piauiense, se


processou toda uma gama de discursos positivos em torno da “revolução redentora”.
Consumado o golpe, os seus apoiadores locais procuraram logo enquadrar a memória e assim
o fizeram ao longo da ditadura, negando todo o caráter excludente do golpe, sua violência
intrínseca e o fato de ter buscado eliminar adversários políticos, para evidenciarem a ideia
de crescimento, estabilidade econômica e modernização que os militares propalavam. Por
certo, alguns empresários, comerciantes, juristas, como alguns mencionados neste texto,
desejaram um regime político autoritário que pudesse cercear as formas de organização das
classes trabalhadoras, os sindicatos rurais e urbanos, o movimento trabalhista que ganhou
relevo no início dos anos 1960, em nome da tentativa de justificar o desenvolvimento
econômico e em nome da preservação da “ordem”.
Pude observar que, além das propaladas Marchas da Família com Deus pela
Liberdade, organizadas também em cidades piauienses, já depois de consumado o golpe, em
Parnaíba se edificou, em seu plano citadino, um monumento público exclusivo para as
celebrações em torno do “patriotismo”, do “civismo”, bem como de uma pretensa formação
de uma identidade local, amparada por uma visão da grandiloquente da sua história. Trata-
se do Centro Cívico Prefeito Dr. Lauro Correia. Erguido na praça Santo Antônio, no centro
de Parnaíba, por esse mesmo prefeito, eleito pelo PTB (1963-1966)666 . Mais do que um

666
Um aspecto interessante que despertou minha atenção durante o andamento da pesquisa foi, sem dúvida, a
manutenção do então prefeito, Lauro Correia, no cargo executivo municipal. Mesmo sendo do principal partido
atingido pelo golpe, o PTB, Lauro consegue se manter à frente do executivo municipal. Ao que me parece,
principalmente por ser oriundo de uma família tradicional da cidade de Parnaíba, os Moraes Correia. Por
263

simples gesto de saudação aos signos identitários do novo regime, como forma de angariar
a simpatia dos militares, a construção de tal monumento, a meu ver, representava uma
tentava de relacionar o contexto de mudança que se vivia a uma dada história política
tradicional da cidade.
Nesse sentido, em obra escrita pelo jornalista parnaibano Caio Passos, publicada
já durante o contexto de abertura política, em 1982, é possível analisar as intenções
envolvidas na construção desse espaço cívico no centro da cidade.

O Centro Cívico, que é o altar da Pátria, a Catedral do Civismo, foi


idealizado pelo então Prefeito Municipal, Dr. Lauro de Andrade Correia,
em 1963, e projetado pelo Engenheiro Arquiteto parnaibano Dr. Regis de
Athayde Couto. No gênero, foi obra pioneira em todo o território nacional,
na época de sua construção. Destina-se às realizações de festividades
cívicas, especialmente nas grandes datas: 14 de agosto – Dia da Parnaíba,
7 de setembro – Dia da Pátria – 19 de outubro – Dia do Piauí. É local
destinado para desfiles militares e estudantis, em respeito às autoridades e
em continência à Bandeira Nacional. Nesse panteon histórico, foi
comemorado, pela primeira vez, a 14 de agosto de 1964, o Dia da
Parnaíba, ao transcurso do centésimo vigésimo aniversário da cidade e
também, pela primeira vez, hasteada a Bandeira do Município nos céus da
terra simpliciana. O Centro Cívico, que está localizado na Praça de Santo
Antônio, é um logradouro público, aprazível e belo, que se destaca pelo
seu grandioso conjunto arquitetônico, e foi inaugurado no dia 7 de
setembro de 1966667. (grifo meu)

O então prefeito, Lauro Correia, oriundo das elites civis de Parnaíba – família
Moraes Correia, da fábrica Moraes S/A – apesar de passar por momentos de tensão após o
golpe, quando militares da Capitania dos Portos sediada nessa cidade o pressionaram, ao que
tudo aponta, buscou se aproximar das bandeiras levantadas pelo novo regime, sobretudo no
que diz respeito aos valores simbólicos do civismo e patriotismo, caros aos militares668 .
Como pude perceber, logo após o golpe, em 1964, projetou-se, nessa cidade, uma série de

possuir vínculos pessoais com grupos poderosos no judiciário local, bem como ainda, por não representar uma
ala reformista do PTB, mas uma ala do empresariado que ganhou espaço dentro do partido, como mencionado
no primeiro capítulo deste trabalho. Consegui realizar uma entrevista com o ex-prefeito, em 2016, porém com
pouco sucesso no esclarecimento desses fatos mencionados. Lauro Correia, então com 92 anos, desviava o
assunto cada vez que eu tentava alguma investida sobre os eventos referentes ao golpe de 1964 em Parnaíba.
Preferiu falar mais sobre questões ligadas ao desenvolvimento econômico da cidade e das perspectivas
industriais da mesma. Assim como preferiu destacar os feitos de sua gestão. (CORREIA, Lauro de Andrade.
Entrevista concedida a Francisco José Leandro Araújo de Castro. Em 08 de julho de 2016.)
667
PASSOS, Caio. Nossa capa. Cada rua, sua história. Parnaíba-PI, 1982, p. 04.
668
Na construção do centro cívico, a parte principal é o Panteon, onde se encontra as Pirâmides, o Prisma e a
Pira. As Pirâmides representam a História de Parnaíba; o Prisma, retangular, cuja altura mede 10 metros sobre
o nível do calçamento, representa o futuro da cidade e o civismo. Em frente ao Monumento ficam três mastros
para o hasteamento das Bandeiras do Brasil, Piauí e Parnaíba, nas solenidades Cívicas. Ver: Praça Santo
Antônio: Centro Cívico Prefeito Lauro Correia, Parnaíba, PI. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=449063&view=detalhes. Acesso em: 17 jul. 2020.
264

festividades, desfiles cívicos, comemorações de datas simbólicas, como o 14 de agosto,


aniversário da cidade. Tudo muito conectado ao simbolismo em torno dos valores exaltados
pelo novo regime político.

Figura 08 - Centro Cívico em 1968

Fonte: IBGE - Acervo dos municípios brasileiros

Lauro Correia, em certo sentido, buscou conectar o momento de seu governo


com uma dada história linear da cidade 669 . Buscava, então, se filiar com as elites
escravocratas do século XIX, como se fossem uma espécie de “pais fundadores” de Parnaíba.
Em especial, destacou-se a figura de Simplício Dias da Silva 670 , que, no contexto dos

669
Lauro Correia, em sua gestão, procurou estabelecer algumas questões de ordem simbólica para a cidade,
oficializar a celebração de datas e símbolos municipais. Nesse sentido, em livro cedido pelo próprio Lauro
Correia, com seus principais destaques durante seu mandato, aponta, que, em 1964, dentre essas questões
estavam a “instituição do dia da Parnaíba, a 14 de agosto, em virtude de haver sido sancionada a 14 de agosto
de 1844 a lei provincial nº 166 que elevou à categoria de cidade a então vila de São João da Parnaíba”. [...]
Oficialização do “Hino da Parnaíba”, de autoria do prefeito Ademar Neves e letra do poeta R. Petit” [...]
Institucionalização das Armas Municipais, correspondentes aos brasões de Simplício Dias da Silva, figura
exponencial da história parnaibana, no seu primeiro século”. Consta, ainda, a “oficialização da bandeira da
Parnaíba, escolhida por concurso”. Ainda a “Comemoração festiva e condigna, durante três dias, pela primeira
vez, do ‘Dia da Parnaíba’, observando um bem elaborado programa de festividades cívicas, religiosas,
esportivas e sociais”. CORREIA, Lauro. História administrativa de Parnaíba (subsídios) 1963-1966.
Parnaíba-PI, 1967.
670
Simplício Dias da Silva era filho do português Domingos Dias da Silva, que se estabeleceu na região no
século XVIII, explorando carne de charque. Próspero comerciante e escravocrata, Simplício nasceu em 1773 e
faleceu em 1829. Talvez Simplício Dias seja a figura mais controversa da história parnaibana. Sobretudo a
partir da segunda metade do século XX, em momento de crise e decadência econômica dessa cidade, as elites
parnaibanas começaram a amplificar um certo culto e idealização da figura de Simplício como “herói cívico”
da cidade, pela sua “bravura” nas lutas pela independência do Brasil. Talvez, toda essa narrativa mítica dessas
elites locais tenha o sentido de tentar projetar para si mesma a ideia de grandeza e progresso.
265

conflitos pela independência do Brasil, teria tido grande relevância em enfrentar as tropas
portuguesas, em “sinal de coragem e bravura”, típicos do “povo parnaibano”671. Simplício
seria então uma espécie de “herói cívico” da cidade a ser saudado, a partir de então, por todos
os citadinos. Em concurso aberto por Lei municipal, de nº 284, de 10 de março de 1964, o
prefeito Lauro Correia conclamava intelectuais da terra para escreverem aquilo que entendia
como uma “gloriosa história da cidade” 672 . Segundo ele, essa seria “expressiva e de
significado nacional”673.
Sob os auspícios do autoritarismo do regime militar, diferentes formas de
sustentação política encontraram respaldo também em medidas aparentemente incolores,
mas com amplo poder de persuasão e introjeção no imaginário político. Os usos políticos da
ideia de “grandeza da pátria”, de uma percepção identitária a ligar eventos do passado ao
presente, projetando uma linha em torno de mitos, heróis, emblemas, são mecanismos
importantes para justificar novos regimes políticos, mesmo que com viés antidemocrático674.
Um espaço como um Centro Cívico, a reunir munícipes nas principais festividades em torno
de uma ideia específica de nação, pode ser pensado também como uma forma de angariar a

671
Nas placas indicativas no Centro Cívico, destacam-se algumas daquelas que seriam as principais campanhas
defendidas pela sociedade Parnaíba desde o século XIX, como uma espécie de linha demarcatória das
“principais causas cívicas” de seus “filhos ilustres”. Dentre elas, destacam-se: a II Campanha da República
Confederação do Equador (1824), o sesquicentenário da cidade de Parnaíba (1844-1994) e a VIII Campanha
da integridade territorial do município (1962-1965). No momento da escrita desta tese, ocorreu um fato
inusitado envolvendo o Centro Cívico. O então prefeito de Parnaíba, Francisco de Assis de Moraes Souza
(2016-2020), do DEM, oriundo de família tradicional e apoiador do presidente Jair Bolsonaro, inaugurou, em
um dos pilares do Centro Cívico, uma placa com os seguintes dizeres: “Visitou Parnaíba, nessa data, o líder
ungido por Deus, Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil, que livrou o Brasil do
comunismo e da corrupção”. A placa foi pichada por populares na mesma data em que foi inaugurada, sendo
então retirada do Centro Cívico para reforma e depois recolocada. Ver: CARVALHO, Arimatea. Homenagem
a Bolsonaro em Parnaíba é vandalizada e Mão Santa vai apurar. Meio Norte digital. Disponível em:
https://www.meionorte.com/blogs/primeiramao/homenagem-a-bolsonaro-em-parnaiba-e-vandalizada-e-mao-
santa-vai-apurar-345881. Acesso em: 16 ago. 2020.
672
De acordo com o próprio ex-prefeito, Lauro Correia, “os historiadores não apareceram e a lei municipal não
atingiu seu objetivo”. A partir disso, então, ainda de acordo com Correia, falando em terceira pessoa, “quando
da construção do Centro Cívico, o então prefeito escreveu um livro singular, em folhas de mármore, e o editou
no Altar da Pátria, na Catedral do Civismo, em faces de prismas triangulares, que evocam o passado da terra”.
Lauro Correia indicou então que “realmente, as Campanhas Cívicas, com as datas e os nomes de seus heroicos
participantes, se constituem em admirável síntese da história da cidade de Simplício Dias”. Ver: CORREIA,
Lauro. Prefácio. Em: PASSOS, Caio. Nossa capa. Cada rua, sua história. Parnaíba-PI, 1982, p. 05.
673
CORREIA, Lauro. 1982, p. 05.
674
Nesse ponto, é importante lembrar o trabalho pioneiro do historiador José Murilo de Carvalho, sobre a
construção simbólica de emblemas políticos no Brasil republicano. Ele destaca que “heróis são símbolos
poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por
isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos. Não há regime que não promova o culto a seus heróis e não possua seu panteão cívico”. Ver:
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 55.
266

simpatia de diferentes setores da sociedade e ligá-las à ideia da defesa da “ordem”,


comumente empregadas durante o regime militar e posteriormente675.
Como indica Rodrigo Motta, com relação à ditadura brasileira, “tratava-se de
regime político em cujos discursos se afirmavam, ao mesmo tempo, os valores democráticos
e liberais, a defesa da autoridade e da pátria ‘una e indivisa’ e a exaltação da família e da
ordem social tradicional”. Ainda de acordo com o historiador, para fins de compreensão da
utilização desses mecanismos simbólicos, é possível mencionar que, “exatamente por
carecer de construto ideológico abrangente, o regime militar não elaborou projeto cultural
original, salvo a reafirmação do patriotismo tradicional que se manifestou no reforço das
comemorações de datas cívicas e de heróis” 676. Esses aspectos são importantes, no sentido de
entender quais as finalidades políticas envolvidas nas construções de espaços e monumentos
de celebrações cívicas durante os anos do regime, como fora o Centro Cívico, em Parnaíba,
mas também o monumento “Heróis do Jenipapo”, em Campo Maior, já nos anos 1970 677.
Setores ligados ao grande comércio e às elites políticas parnaibanas, nesse
sentido, procuraram, também por meio do uso simbólico de determinados signos, se adaptar,
colocando em cena práticas sutis de acomodação política ao novo momento em que se vivia.
Será meramente ocasional que, no caso de Lauro Correia, mesmo sendo do PTB, tenha
conseguido permanecer no cargo? Será que, apenas por ser ligado às famílias tradicionais da
cidade, o gestor tenha atravessado os primeiros anos do regime militar no poder? Ao que me

675
Nesse ponto, Tatyane Maia destaca que “o civismo, ao incorporar o otimismo, organizou o aparato
discursivo e ideológico nacionalista-conservador em torno do projeto autoritário dos governos militares. O
civismo, neste caso, sobrepõe-se à cidadania moderna por desconsiderar a legitimidade dos interesses políticos
conflitantes existentes na sociedade; por limitar a capacidade de organização política coletiva; por aviltar a
liberdade de expressão e os direitos individuais em nome de supostos valores nacionais superiores”. A partir
das indicações da autora, compreende-se que, no período da ditadura, “as ideias-força de tradição, brasilidade,
mestiçagem, país continental, pluralidade cultural, associadas à leitura desenvolvimentista de um futuro
glorioso, capitalista e ocidental produzida pelo discurso otimista, foram incorporadas ao discurso cívico”. Para
isso ver: MAIA, Tatyana de Amaral. Civismo e cidadania num regime de exceção: as políticas de formação do
cidadão na ditadura civil-militar (1964 - 1985). Revista Tempo e Argumento, v. 5, n. 10, jul./dez. 2013.
676
Rodrigo Motta ainda aponta que, “a propósito, chama atenção a incapacidade da ditadura de tornar o dia 31
de março uma data cívica popular, comemorada fora dos quartéis, apesar de algumas tentativas fracassadas
nessa direção”. Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e
a influência da cultura política. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Op. cit.
677
Interessante observar que essas práticas também foram perceptíveis em outras cidades piauienses, já nos
1970. Por exemplo, na cidade de Campo Maior, no centro-norte do Piauí, foi construído o monumento “Heróis
do Jenipapo”, inaugurado em 06 de novembro de 1973. As elites campo-maiorenses reivindicam então a
construção de um monumento em defesa do “civismo” e do “patriotismo” homenageando aqueles que lutaram
pela independência do Brasil. O governo Alberto Silva (nomeado por Médici) projetou o monumento na cidade,
no contexto nacional das comemorações no período em que a independência do Brasil completava 150 anos.
Para Maristela Rodrigues, “Alberto Silva direcionou as atenções das comemorações das festas e desfiles do 7
de setembro, dia da Independência do Brasil, para as lutas piauienses, mais especificamente, a Batalha do
Jenipapo”. Ver: RODRIGUES, Maristella Muniz. Entre comemorações cívicas e lutas pela construção da
memória: a política cultural do governo Alberto Silva. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) –
Universidade Federal do Piauí, 2018.
267

parece, reside aí também um exemplo de emprego de medidas de acomodação e de


conciliação. Essas, como mencionado, são marcas de nossa cultura política, bastante comuns,
também nos anos do regime militar, sobretudo por parte de grupos com posição social
privilegiada.
Como pude evidenciar e o que estou demonstrando ao longo deste trabalho é que
as memórias apaziguadoras que procuraram silenciar as medidas repressivas, adotadas
também no Piauí, em certo sentido, buscaram esconder a relativa facilidade com que grupos
políticos locais se adaptaram ao regime militar. As elites econômicas, assim como grupos do
mundo jurídico e intelectual, como visto, por meio de medidas conciliadoras, procuraram se
acomodar aos ditames do novo regime e, ao longo do tempo, buscaram evidenciar uma certa
percepção tranquilizadora e mesmo saudosista do período ditatorial. Nesse ponto, se
diferenciam de uma certa memória comum em outros espaços que procurou inserir a
sociedade meramente como “vítima” dos atos repressivos das forças militares. Como se
largos setores da sociedade não tivessem aderido ao regime.
Vale destacar que o historiador italiano Bruno Groppo, no que diz respeito a
algumas sociedades europeias do pós-guerra, mas também dos países que atravessaram as
experiências das ditaduras no Cone Sul, indica que “entre os mitos nos quais uma sociedade
tende a se refugiar no dia seguinte a uma ditadura, aquele de vítima inocente é um dos mais
comuns” 678 . Para o autor, esse mito consiste em “apresentar a sociedade como um todo
exclusivamente como uma vítima impotente de eventos e de forças sobre as quais ela não
tinha nenhum controle e, portanto, pelos quais ela não tem nenhuma responsabilidade” 679.
Nesse sentido, o mais adequado seria questionar sobre a responsabilidade que determinados
setores dessa sociedade teriam no processo de repressão política, apoio, adesão ou simples
acomodação que compõem o leque de posicionamentos nem sempre estanques, mas
ambivalentes, contraditórios, por vezes.
Ainda de acordo com as questões levantadas por Groppo, “o mito da sociedade
inocente responde à necessidade tanto psicológica quanto política e é um elemento
constitutivo fundamental das políticas da memória ou do esquecimento empregadas após
uma ditadura para fazer aceitar certa interpretação do passado”680. Nesse tipo de interpretação,
destaca o autor, o mito da sociedade inocente está frequentemente associado, mas nem

678
GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditaduras em face de seu passado
na Europa e na América Latina. IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta Viz (Org). História e
memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 39-56.
679
GROPPO, op. cit. 2015, p. 42.
680
GROPPO, op. cit. 2015, p. 42.
268

sempre, e não necessariamente – a outro mito: aquele da sociedade unanimemente, ou quase


unanimemente, resistente em face da ditadura681. Por fim, o historiador destaca que, no caso
de um passado ditatorial, a resistência à memória vem sobretudo do fato de que uma ditadura
implica sempre certo grau de adesão ou de aceitação de parte da população. Ele indica que
“as ditaduras são, por definição, sistemas de dominação baseados na força e na violência,
mas elas não se mantêm apenas por esses meios: também têm uma base social e se
beneficiam do apoio, ou pelo menos da aceitação, de uma parte mais ou menos importante
da população”682. Considero, portanto, essas questões importantes para uma análise mais
ampla do fenômeno dos regimes autoritários, como a última ditadura (1964-1985), bem
como para a compreensão dos seus desdobramentos em diferentes espaços do país.

681
GROPPO, op. cit. 2015, p. 42.
682
GROPPO, op. cit. 2015, p. 45.
269

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta tese, analisei o golpe de 1964, a partir dos seus desdobramentos no quadro
político norte-piauiense. Em particular, fiz um levantamento das medidas repressivas
adotadas nesse estado contra lideranças sindicais e políticas ligadas ao PTB, ao PCB e aos
movimentos sociais, após a ruptura institucional. A agenda política reformista, fortemente
ligada ao trabalhismo petebista, conquistou uma quantidade significativa de adeptos no final
dos anos 1950 e início dos anos 1960 no Piauí, sobretudo em Parnaíba, região norte do estado.
No contexto, foi possível averiguar a emergência de lideranças sindicais, oriundas das
classes populares, disputando eleições pelo PTB e conquistando cargos eletivos no
legislativo municipal e estadual. Além disso, essas forças sindicais lançavam-se como
agentes políticos a serem levados em consideração nas disputas político-partidárias.
Evidenciei, em um primeiro plano, o lugar que ocupou o trabalhismo piauiense
nas disputas político-partidárias, no contexto da experiência liberal democrática (1945-1964).
Analisando as disputas de poder, na cidade de Parnaíba, vislumbrei, então, um quadro
político marcado por tensões entre os grupos udenistas e trabalhistas. Tensões essas que, em
determinadas situações, descambavam para atos extralegais de uso da violência. A agenda
política trabalhista era, de início, mais vinculada à defesa de uma postura específica para o
trabalhador e, ao mesmo tempo, de exigência com relação ao cumprimento dos direitos
adquiridos recentemente para os mesmos. A partir do governo João Goulart, no início dos
anos 1960, as pautas políticas dos movimentos sociais piauienses passaram a ter uma
presença maior das bandeiras das reformas de base. Naquele momento, com uma maior
organização dos trabalhadores urbanos e rurais, evidentes desde os anos 1950, foi perceptível
uma maior projeção das atividades dos movimentos sociais e, como contrapartida, formas
de reação conservadora ao que se entendia como “subversão” e/ou “ameaça vermelha”.
Com o processo de radicalização política evidente no Brasil no início dos anos
1960, grande parte dos movimentos sociais reproduziu algumas das pautas do reformismo
trabalhista no Piauí. O tema da reforma agrária, naquele momento, ganhou certo destaque
no meio político local, tensionando reações por parte das elites agrárias e comerciais, em um
estado marcado por forte concentração fundiária. Parcela das elites locais, então, lançou mão
de argumentos anticomunistas, arraigados no imaginário político nacional, para deslegitimar
politicamente a atuação do governo Goulart e de seus apoiadores no quadro político
piauiense. Com a gradativa virada rumo à esquerda do governo Jango, em fins de 1963 e
início de 1964, as críticas ao reformismo se aprofundaram nos veículos de comunicação
270

nesse estado e, sobretudo, a utilização de narrativas simplistas e genéricas sobre a presença


do “comunismo”, dentro do governo Goulart.
Na cidade de Parnaíba, no norte do Piauí, principal centro econômico do estado,
bem como na capital – Teresina – houve um evidente processo de organização de
trabalhadores urbanos e rurais em sindicatos e associações de trabalhadores, principalmente
a partir da segunda metade dos anos 1950. Foi na cidade litorânea, Parnaíba, portanto, por
sediar a Estrada de Ferro Central do Piauí, por um certo dinamismo comercial e pelo
protagonismo de sua classe trabalhadora, em que ganhou maior evidência a construção de
sindicatos laborais e sua aproximação com o trabalhismo petebista. Nessa cidade, como pude
perceber, se processaram as medidas repressivas mais enérgicas, por parte das forças
militares, após o golpe. Abriu-se, então, na cidade de Parnaíba, após a ruptura institucional,
um Inquérito Policial Militar, indiciando mais de 30 líderes sindicais, além de membros do
PTB e PCB, acusados de subversão. O inquérito foi marcado pela fragilidade nas acusações
contra os trabalhadores e líderes petebistas. Além disso, o IPM materializava as disputas
políticas por cargos e utilização de recursos das instituições, como a mencionada Estrada de
Ferro, por parte de diferentes grupos desse estado.
O governo executivo estadual do parnaibano Chagas Rodrigues (1959-1962) e
de seu irmão (José Alexandre Caldas Rodrigues), no mesmo momento, na prefeitura de
Parnaíba, estimulou a organização de sindicatos, bem como procurou formas de se vincular
politicamente, em suas ações partidárias, com as categorias de trabalhadores urbanos e rurais.
As oposições ao nacionalismo reformista nesse estado, por meio do emprego de forte
narrativa anticomunista, articularam críticas às pautas levantadas pelas esquerdas e pelos
movimentos sociais, então em processo de crescente protagonismo político. Esses grupos
conservadores formularam críticas aos governos petebistas, bem como buscaram, após o
golpe, se articular politicamente com os grupos militares locais, em gestos adesistas e
colaboracionistas. Sustentaram o regime, se identificando com o seu modelo político
econômico, com as medidas de cerceamento da atuação sindical e com o autoritarismo da
ditadura.
Com a concretização da tomada de poder pelos militares, parte das elites
políticas locais se articulou com os novos “donos do poder”. Um caso simbólico que
destaquei neste trabalho, foi o do então governador do Piauí, Petrônio Portella Nunes, da
UDN. Apesar de defender o governo João Goulart e de se mostrar favorável ao programa
das reformas de base, o udenista não hesitou em transitar para a defesa e sustentação das
forças golpistas, depois de consumado o golpe em 1964, constituindo-se, durante o regime,
271

como força política de projeção nacional, amparado pelo poder dos militares. Petrônio, a
meu ver, constitui um caso exemplar de como parcelas das elites políticas piauienses
buscaram, após o golpe de 1964, conciliar, aderir, se adaptar ao novo regime. Em uma prática
comum na cultura política nacional, essas elites – políticas, jurídicas e econômicas –
lançaram mão da tradição conciliadora, para se manterem no poder; no caso de Petrônio
Portella, também para projetar-se nacionalmente.
O trabalho, nesse sentido, procurou estabelecer uma leitura complexa sobre os
desdobramentos do golpe de 1964 no Piauí. A partir de uma fundamentação teórica e
bibliográfica que enfatiza a construção social de regimes autoritários e a produção de
memórias políticas, observei as nuances do golpe nesse espaço e a produção de sentidos
sobre o mesmo. Procurei, sobretudo, entender as práticas adotadas pelos agentes políticos
no Piauí, não por meio de uma visão binária e simplista, comum em abordagens tradicionais.
Mas evidenciei a presença de diferentes grupos civis piauienses no processo de reação
anticomunista ao governo João Goulart, bem como no que se refere à legitimação social do
golpe e da ditadura nesse estado. Mesmo grupos que apoiavam as bandeiras reformistas, ou
que eram ligados politicamente ao PTB, aderiram ao novo regime, após o golpe. Evitei,
assim, leituras e abordagens maniqueístas sobre tal contexto nesse estado. Compreendendo
também que, de certa forma, os processos de conciliação e acomodação, marcas da cultura
política brasileira, também poderiam ser observados no Piauí, em 1964.
Este trabalho, portanto, foi além das versões tradicionais sobre o contexto do
golpe de 1964 e das memórias apaziguadoras produzidas no espaço piauiense. Tentou
compreender, antes de tudo, as ambivalências presentes nas relações estabelecidas, por essa
sociedade, com o regime militar. Não me coube fazer julgamentos, mas lançar inquietações,
impertinências sobre memórias consagradas, bem como sobre esse quadro histórico ainda
pouco estudado no âmbito da historiografia local.
Percebi que, principalmente em Parnaíba, se forjou ao longo do tempo, por parte
de intelectuais, de agentes e lideranças políticas locais, uma memória que tentou projetar a
ideia de que a cidade, por conta de seu isolamento geográfico, teria passado distante dos
eventos ocorridos em 1964. Que nessa cidade não teria ocorrido organização sindical,
tampouco medidas repressivas naquele momento. E, além disso, que essa cidade teria
vivenciado um momento de prosperidade e tranquilidade nos anos após o golpe. Tais
narrativas, em um primeiro plano, tentaram silenciar as formas de organização dos
trabalhadores, nos anos 1950 e 1960. Procuraram silenciar, por outro lado, as diferentes
formas de sustentação que tal regime adquiriu no estado do Piauí, por parte de suas elites.
272

Bem como evidenciaram, de certa forma, como diferentes setores dessa sociedade
vivenciaram os anos do regime como beneficiárias de suas políticas econômicas.
Apropriei-me, ao longo do texto, mesmo que em alguns momentos sem
referências mais diretas, da noção teórico-conceitual da cultura política. Esse conceito em
particular foi importante, pois me permitiu observar as práticas políticas dos diferentes
grupos que atuaram no estado do Piauí, por meio de suas ambivalências. Penso aqui, nesse
conceito, enquanto um elemento essencial, no sentido de compreender as diferentes visões,
projetos, agendas, legendas partidárias que indivíduos, ou grupos de indivíduos, abraçam em
determinados contextos. Essa noção também me serviu para evidenciar as posturas,
posicionamentos, por vezes ambíguos, que determinados agentes políticos adotam e/ou
adotaram, em momentos de ruptura institucional. Permitiu-me, ainda, compreender que há
diferentes permanências, heranças, a respeito do anticomunismo e do conservadorismo
político, a imprimir sentidos sobre as práticas políticas no Piauí, no Brasil.
Foi pertinente esclarecer que é preciso fugir das generalizações, pois sempre,
mesmo em regimes de exceção, não existiam somente duas atitudes possíveis, (colaborar ou
resistir). Mesmo entre a classe empresarial ou no campo jurídico piauiense, por exemplo,
poderia ser possível encontrar aqueles que não se posicionaram favoráveis aos militares, ou
simplesmente se omitiram, preferindo silenciar. Assim como, no que se refere aos grupos de
trabalhadores e populares, é possível sugerir que houve apoio ao golpe por determinados
setores mais conservadores desses segmentos. Portanto, não se pode resumir a leitura de tal
evento dentro de visões simplistas. Para refletir sobre essa infinidade de posturas e posições
políticas, a produção intelectual de Pierre Laborie, hoje amplamente empregada por
historiadores do campo da política, enfatiza que, para muito além daqueles que eram
“colaboradores ou resistentes”, os indivíduos podem transitar pela camada que o autor chama
de “zona cinzenta”683. Ou seja, os espaços nos quais, na medida do possível, muitas pessoas
buscaram simplesmente dar seguimento às suas vidas, à parte das demandas por um
posicionamento político claro.
É preciso compreender a ditadura para além dos grandes centros urbanos, seus
desdobramentos, seus grupos de apoio e sustentação, também em médias e pequenas cidades.
É preciso, também, compreender que a ditadura vai muito além de um grupo de militares
que, por meio do uso da força, de medidas repressivas, apropria-se do poder, sem o
consentimento da população. Esta tese procurou compreender um ambiente muito mais

683
LABORIE, 2003.
273

complexo do que esse. Vislumbrei que os reflexos do golpe no Piauí, assim como em outros
espaços, foram, também, marcados pela capacidade das elites locais de adaptação aos signos
do novo regime. E, ainda, marcado por práticas de colaboração e de acomodação. Assim,
além de representar ruptura, o golpe pode ser pensado também enquanto continuidade.
Principalmente se observarmos o quadro de agentes civis que se mantém aferrados aos
espaços de poder nesse estado. Além disso, evidenciei o simbolismo presente em eventos
como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada nos meses posteriores ao
golpe, em Teresina e Parnaíba, demonstrando o entusiasmo de parcelas dessa sociedade à
intervenção militar. Assim como a construção de um espaço específico, o Centro Cívico Dr.
Lauro de Andrade Correia, em Parnaíba, para a celebração do “civismo” e “patriotismo”.
Esses últimos, diga-se, signos bastante utilizados pelos militares para legitimarem-se
socialmente.
Espero, por fim, que esse trabalho possa levantar discussões, insights para outros
temas e abordagens dentro do campo da História Política no Piauí e em outros estados.
Espero que esta tese, de repente, possa auxiliar, e quem sabe incentivar, outras pesquisas no
campo da História, sobre as especificidades que a ditadura adquiriu em estados ainda
marcados pela presença de famílias beneficiárias das políticas implantadas pelos militares
no poder, bem como por uma memória positiva sobre esses mesmos grupos apoiadores do
regime ditatorial. Espero que a tese contribua com futuras pesquisas, que essas possam
aprofundar a análise dos diferentes agentes e grupos que, identificando-se com o
autoritarismo dos militares, sustentaram a política econômica desse regime de exceção no
âmbito local, mas também em outros estados e cidades do Brasil.
274

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BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM nº 185, 1964. Disponível em:
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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE: Documentos, disponível em: www.cnv.gov.br.

Entrevistas:

ATHAYDE, Cândido de Almeida. Entrevista concedida ao Núcleo de História Oral da


Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí - CEPRO. Em 17 de janeiro
de 1984.

BARROS, Gilberto França de. Entrevista concedida à Francisco José Leandro Araújo de
Castro. Em 04/06/2020.
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BARROS, Iara França de. Entrevista concedida à Francisco José Leandro Araújo de Castro.
Em 04/06/2020.

BARROS, Silvio Roberto França de. Entrevista concedida à Francisco José Leandro Araújo
de Castro. Em 04/06/2020.

CORREIA, Lauro de Andrade. Entrevista concedida à Francisco José Leandro Araújo de


Castro. Em 08/07/2016.

MEDEIROS, Sebastião Paulo Frota. Entrevista concedida à Francisco José Leandro Araújo
de Castro. Em 20/02/2017.

SANTOS, Clidenor de Freitas. Entrevista concedida ao Núcleo de História Oral da Fundação


Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí - CEPRO. Em 15 de janeiro de 1987.

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