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NITERÓI-RJ
2021
FRANCISCO JOSÉ LEANDRO ARAÚJO DE CASTRO
NITERÓI-RJ
2021
FRANCISCO JOSÉ LEANDRO ARAÚJO DE CASTRO
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Jorge Ferreira – UFF (Orientador)
_______________________________________________
Prof. Dr. Renato Soares Coutinho – UFF
_______________________________________________
Profa. Dra. Marylu Alves de Oliveira – UFPI
_______________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Santana – UFRJ
_______________________________________________
Prof. Dr. Francisco de Assis de Sousa Nascimento – UFPI
_______________________________________________
Profa. Dra. Karla Carloni – UFF (Suplente)
_______________________________________________
Profa. Dra. Andrea Casa Nova Maia – UFRJ (Suplente)
NITERÓI- RJ
2021
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa analisa os desdobramentos do golpe de 1964 no espaço norte-piauiense. Para isso,
em um primeiro momento, evidencia a formação de uma agenda política trabalhista no final
dos anos de 1950 e início dos anos 1960 em Parnaíba (principal centro econômico do estado),
bem como lança luz ao processo de organização dos sindicatos e partidos políticos naquele
contexto. A configuração política dos grupos petebistas e o quadro de ampliação das pautas
reformistas são importantes para a compreensão da ampliação dos movimentos sociais nesse
estado, sobretudo durante o transcurso do governo João Goulart (1961-1964). Analiso, a partir
de então, o inquérito policial militar aberto após o golpe, em Parnaíba, contra trabalhadores,
lideranças sindicais e políticas, ligados ao PTB e ao PCB, com argumentos fortemente
anticomunistas, empregados ao mesmo tempo por grupos de oposição ao reformismo. Contra a
tentativa de apagamento histórico dessas medidas repressivas e da agenda trabalhista, procurei
elencar algumas memórias sobre as perseguições políticas e os diferentes usos políticos desse
passado em âmbito local. Para tanto, me utilizo das discussões conceituais da História política
renovada, em particular a perspectiva teórico-analítica da cultura política. Uma das questões
importantes que levanto, na segunda parte do trabalho, se refere às práticas de adesão,
acomodação e colaboração com as medidas autoritárias de parcelas da sociedade piauiense
naquele momento de ruptura institucional. Nesse sentido, analiso, por meio de jornais de
circulação local, algumas das iniciativas de apoio aos militares por parte das elites comerciais,
políticas e jurídicas do Piauí após o golpe. Objetivei evidenciar que variados grupos civis foram
contrários a quaisquer medidas que pudessem modificar as estruturas econômicas e sociais
nesse estado, sobretudo com relação à posse de terra. Estabeleceu-se, então, um ambiente
marcado por profundas críticas ao reformismo, ao passo que, após a derrubada do governo
Jango, parte dessas elites buscou, rapidamente, se conectar aos militares, bem como passou a
sustentar o novo regime em âmbito local.
This research analyzes the unfoldings of the 1964 coup d'etat in the north of the state of Piauí.
For this, at first, the formation of a political labor agenda in the late 1950s and early 1960s is
evidenced in Parnaíba (the main economic center of the state), as well as shedding light on the
process of organizing unions and political parties in that context. The political configuration of
groups of the PTB (Brazilian Labor Party) and the framework for broadening the reformist
agendas are important for understanding the expansion of social movements in that state,
especially during the course of the government of João Goulart (1961-1964). Based on that, I
analyze the military police inquiry opened after the coup in Parnaíba against workers, union
and political leaders, linked to the PTB and the PCB (Brazilian Communist Party), with strongly
anti-communist arguments used, at the same time, by groups opposed to reformism. Against the
attempt of historical erasure of these repressive measures and the labor agenda, I list some
memories about the political persecutions and the different political uses of this past in the local
perspective. For that, I use the conceptual discussions of renewed political history, in particular,
the theoretical-analytical perspective of political culture. One of the important issues raised, in
the second part of the work, refers to the practices of adherence, accommodation and
collaboration with the authoritarian measures by portions of the society of Piauí at that moment
of institutional rupture. In this sense, I analyze, through local newspapers, some of the initiatives
to support the military by the commercial, political and legal elites of Piauí after the coup. I
aimed to show that various civil groups were against any measures that could change the
economic and social structures in that state, especially regarding land tenure. Then, an
environment marked by deep criticism of reformism was established, whereas, after the
overthrow of the Jango government, part of these elites quickly sought to connect with the
military, as well as to support the new regime at the local level.
Figura 1 – O Prefeito e o Presidente. Fonte: Jornal Gazeta do Piauí, ano VII, nº 364. Parnaíba-
PI, 30 de setembro 1961............................................................................................................ 86
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................14
A ferro e fogo: as práticas eleitorais no final dos anos 1950 e o uso da violência nas
disputas entre os grupos político-partidários no
Piauí..........................................................................................................................................61
REFERÊNCIAS....................................................................................................................274
14
INTRODUÇÃO
1
As reações ao governo se tornaram evidentes ao longo do ano de 2013. A princípio, as manifestações daquele
ano, tinham pautas progressistas, como a luta contra o aumento das passagens de ônibus. Na esteira desses
movimentos, aos poucos, muito por conta do amplo apoio midiático, grupos com pautas mais à direita
começam a tomar as ruas do país.
2
Sobre esse aspecto, Luís Felipe Miguel destaca que, a “virulência da direita brasileira após a derrota eleitoral
de outubro de 2014, com sua disposição para virar a mesa a qualquer custo, foi uma surpresa. Em curto espaço
de tempo, a seletividade das instituições se expôs de forma aberta e os mecanismos discriminatórios, de
suspensão das garantias e enviesamento evidente da aplicação da lei, que sempre operaram em desfavor dos
grupos em posição subalterna, foram trazidos para o centro do sistema político”. MIGUEL, Luís Felipe. O
colapso da democracia no Brasil: da constituição ao golpe de 2016. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo,
Expressão Popular, 2019, p. 13.
3
Carlos Alberto Brilhante Ustra foi Coronel reformado que dirigiu por cerca de quatro anos o DOI-CODI de
São Paulo, um dos mais famosos centros de repressão do Exército. É reconhecido, pelo Estado brasileiro, como
torturador. Seu nome consta em várias denúncias de vítimas de tortura. Entre setembro de 1970 e janeiro de
1974, período em que foi chefe do Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de
Defesa Interna, nome completo do DOI-CODI, Ustra tinha como missão, segundo ele mesmo definia,
“combater terroristas que queriam implantar o comunismo no Brasil”. Sob essa ideia, e nesse período, foi
responsável por 47 sequestros e homicídios (de acordo com o relatório Direito à Memória e à Verdade) e 502
desaparecimentos de políticos (segundo o levantamento do projeto Brasil Nunca Mais). O relatório final da
Comissão da Verdade, documento oficial do Estado brasileiro sobre o período, apontou 377 pessoas, entre eles
o coronel Ustra, como responsáveis diretas ou indiretas pela prática de tortura e assassinatos durante a ditadura
militar. BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos. Direito à verdade e à memória: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Brasília, 2007. MORAES, Camila. Brilhante Ustra, ícone da
repressão da ditadura brasileira. El País Brasil, São Paulo, 15 out. 2015. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2015/10/15/politica/1444927700_138001.html. Acesso em: 04 jun. 2020.
15
4
Na votação do impeachment, a partir da publicação do livro de Thaís Oyama, Bolsonaro dobra o papel e o
guarda no bolso do paletó. Escrevera: “Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência
das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve, contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro
de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo
Exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto
é sim”. Ver: OYAMA, Thaís. Tormenta: o governo Bolsonaro - crises, intrigas e segredos. Companhia das
letras: 2020. p. 11.
5
“Bolsonaro é ex-capitão do Exército e foi deputado federal por 28 anos. Integrando o conhecido ‘baixo clero’,
a periferia do Congresso, formada por deputados de partidos nanicos, sem influência ou projetos relevantes no
currículo e desprezado pelas lideranças parlamentares, que só lembram dele se precisam de quórum numa
votação”, de acordo Thaís Oyama. Ainda segundo Oyama, “mais do que um deputado do baixo clero, ele era
um representante daquilo que os jornalistas de Brasília apelidaram de cota folclórica do Congresso,
parlamentares que costumam despertar a atenção pelo histrionismo, pelos arroubos verbais no plenário e pelas
confusões em que se metem” (OYAMA, 2020, p.08-09).
6
Maria Celina D’Araújo, em artigo, propõe que “o sucesso dos militares como veto players na questão do
julgamento dos crimes contra a humanidade está relacionado ao tipo de relações civil-militares construída no
país”. Para a autora, “a impunidade tem a ver também com a cultura de direitos humanos existente numa
sociedade. No Brasil, os direitos humanos são um tema emergente e um valor em construção. Essa realidade,
combinada a uma tradição de autonomia militar, criou o pior cenário para a responsabilização individual dos
crimes praticados durante os governos de exceção, e até mesmo nas questões criminais sem cunho político”.
Ver: D’ARAÚJO, Maria Celina. O estável poder de veto Forças Armadas sobre o tema da anistia política no
Brasil. Revista Varia História, Belo Horizonte, vol.28, n. 48, p.573-597, jul./dez. 2012.
7
O governo Bolsonaro, em meados de 2020, encontrou, com bastante frequência, pretextos para ressuscitar a
Lei de Segurança Nacional. Um dos alvos foi o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, por
fazer declarações críticas a respeito dos militares nomeados no ministério da Saúde do governo Bolsonaro.
Sete dias antes, o jornalista Hélio Schwartsman, da Folha de São Paulo, também foi alvo ao fazer texto crítico
ao presidente, texto considerado ofensivo. Em junho de 2020, o alvo foi o cartunista Aroeira, do Portal Brasil,
por produzir charge ironizando o fato de Bolsonaro ter estimulado seguidores a invadir hospitais de campanha,
responsáveis pelo tratamento do coronavírus, para filmar suas dependências. Ver: FRANCO, Bernardo Mello.
Entulho autoritário. O Globo, 19 jul. 2020. Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-
franco/post/entulho-autoritario.html. Acesso em: 20 jul. 2020.
16
seus dilemas resolvidos. Parte-se do princípio, neste trabalho, de que existe fortemente
impregnada uma cultura política autoritária no Brasil, que emerge de tempos em tempos.
Ela se reflete, como se pode perceber, contrária a quaisquer bandeiras progressistas que
digam respeito a medidas de inclusão social, de propostas de reformas do Estado brasileiro,
de medidas de inserção das camadas populares; ou simplesmente de acesso à renda por parte
dos grupos menos favorecidos economicamente, que sejam propostas como uma política
pública de fortalecimento da cidadania. Esta tese, portanto, foi escrita a partir de nossas
demandas do presente e com um olhar atravessado pelo agora.
Neste prisma, esta tese analisa o golpe de 1964 e seus desdobramentos no estado
do Piauí, a partir das disputas entre diferentes culturas políticas no contexto da experiência
liberal democrática (1945-1964). Sobretudo, vai evidenciar o processo de ampliação do
trabalhismo e do anticomunismo em fins dos anos 1950 e início dos anos 1960 em Parnaíba
e na capital piauiense (Teresina). Parte-se da premissa de que a repressão aos trabalhadores,
lideranças políticas e sindicais piauienses, em 1964, nomeando-os de “subversivos” e/ou
“comunistas”, assume como uma das finalidades a busca por inviabilizar o processo de
alteração política e os desdobramentos que as lutas dos movimentos sociais poderiam causar
também nesse espaço.
Nesse sentido, analiso como se processaram, em âmbito local, as disputas em
torno do reformismo e, como reação, do anticomunismo, característicos de um contexto
marcado por fortes tensões e disputas políticas no quadro político nacional. Um dos pontos
centrais é a percepção de como se articularam, do ponto de vista social, os impactos do golpe
de 1964 no Piauí, tendo em vista que os maiores atingidos com medidas punitivas foram os
trabalhadores sindicalizados e os quadros do PTB, assim como os grupos ligados ao PCB
piauiense. Além disso, analiso ainda, quais foram as medidas repressivas adotadas no estado,
bem como o processo de adesão, acomodação 8 social e mesmo colaboracionismo com
relação ao golpe, em 1964, por parte das elites civis piauienses.
Essas práticas adesistas foram aqui analisadas por meio de matérias, boletins,
notas na imprensa piauiense e de atos prenhes de simbolismo, como as “Marchas da Família
com Deus pela Liberdade” também realizada nesse estado; bem como a construção de
8
Acomodação, diferente das práticas de adesão direta a um regime de força, ou mesmo o colaboracionismo
puro e simples, de acordo com Rodrigo Motta, refere-se a um tipo de prática que representa estratégia de lidar
com o Estado autoritário nos interstícios entre a resistência e a colaboração/adesão. Ver: MOTTA, Rodrigo
Patto Sá. Ruptura e continuidade na ditadura brasileira: a influência da cultura política. In: MOTTA, Rodrigo
Patto Sá; ABREU, Luciano Aronne de (Orgs.). Autoritarismo e cultura política. Porto Alegre, FGV: Edipucrs,
2013. p. 25.
17
9
Nesse quadro político piauiense existem algumas ambiguidades a destacar ao longo deste trabalho. A defesa
das pautas reformistas também foram marcas do governo do udenista Petrônio Portella (1963-1966), no
executivo estadual, como forma de angariar apoio junto ao governo João Goulart (1961-1964). O governador
Petrônio, no momento do golpe, decorridos seus primeiros sinais, saiu em “defesa da democracia” e do governo
Jango. No entanto, com o desenrolar dos acontecimentos no centro de poder, passou rapidamente para o lado
dos militares, logo após consolidado o golpe. Vou destacar esse aspecto controverso em tópico do último
capítulo desta tese.
10
Em alguns jornais, como O Norte, de circulação em Parnaíba, é possível averiguar que, desde os anos 1950,
durante o segundo governo Vargas, por meio da atuação de João Goulart no Ministério do Trabalho, as pautas
dos trabalhadores urbanos na cidade começaram a ganhar as ruas, de forma a buscar melhorias salariais, além
do atendimento de algumas questões básicas para a classe laboral. Dentro deste quadro, novas propostas
políticas vão ser buscadas, por meio dos sindicatos de trabalhadores, bem como do PTB, tendo como princípio
norteador a valorização salarial, o cumprimento da legislação trabalhista, além da própria necessidade de se
elegerem representantes da classe trabalhadora. Exemplo disso é matéria intitulada: Grande passeata do
trabalhador parnaibano em prol do salário mínimo. Consta na matéria que: “Os trabalhadores parnaibanos,
através de seus sindicatos, realizaram ordeira passeata em prol da aprovação da nova lei do salário mínimo.
Na tarde de domingo, saindo da sede do sindicato dos Estivadores do Piauí, os trabalhadores de Parnaíba, com
a cooperação do povo e dos sindicatos de classe, realizaram, dentro da mais perfeita e absoluta ordem, uma
18
passeata interrompida na Praça da Graça: onde se fizeram ouvir inúmeros oradores, finalizando na prefeitura
municipal, local onde falaram outros oradores. Usaram a palavra durante o transcorrer de toda essa
demonstração de civismo, prova irrefutável do regime democrata republicano em que vivemos, quase todos
os presidentes de sindicatos, representantes dos trabalhadores” [...] Grande passeata do trabalhador
parnaibano em prol do salário mínimo. O Norte. Parnaíba, 28 fev. 1954.
11
MELO, Machado. Problema do Leite em Parnaíba. Gazeta do Piauí. 11 jul. 1959.
12
Josenias dos Santos Silva destaca que, até meados do século XX, o intenso movimento nestes portos foi o
reflexo de uma economia aquecida, podendo se observar que, naquele contexto, os produtos piauienses
estavam na pauta de interesses dos grandes mercados consumidores nacionais e internacionais, principalmente
Europa e Estados Unidos. Destacaram-se como produtos de exportação a borracha da maniçoba, a cera de
carnaúba, o babaçu, couros em pelo, algodão, fumo, resinas, etc. Além de comprar, beneficiar e exportar estes
produtos, Parnaíba se destacou também por apresentar um grande contingente de firmas comerciais dos mais
variados ramos – como empresas de representação, miudezas, ferragens, armarinhos, etc. – o que, além de
19
ampliação das atividades ligadas à cera da carnaúba, ao óleo de babaçu e a outros produtos
vegetais. Por outro lado, por meio da imprensa local, percebia-se, de modo acentuado, uma
narrativa atravessada pela ideia de que o Piauí era excluído dos ideais desenvolvimentistas
do governo central13.
No que diz respeito aos principais produtos de exportação ligados ao
extrativismo vegetal, que trouxeram um certo dinamismo econômico para Parnaíba e
formaram uma pequena – porém orgulhosa – elite comercial na cidade, desde o início do
século, aponta Antônio José Medeiros, que:
suprir sua demanda interna, a transformou num polo aquecido para o comércio regional. Ver: SILVA, Josenias
dos Santos. Almanack da Parnahyba: no tempo dos bons ventos fluviais. VI Simpósio Nacional de História
Cultural Escritas da História: Ver – Sentir – Narrar. Universidade Federal do Piauí – UFPI. Teresina-PI, 2012.
Ver também: SILVA, Josenias dos Santos. Parnaíba e o avesso da Belle Époque: cotidiano e pobreza (1930-
1950). 2012. 120 f. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) - Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2012.
13
Em alguns casos, apontava-se a inabilidade do governo estadual, na segunda metade dos anos 1950 tocado
pelo pessedista, “Coronel” Gayoso (1955-1958), a incapacidade de resolução dessa crise econômica que
assolava o estado. Em texto no jornal parnaibano O Paladino, em 1956, destacava-se que: “A crise aumenta
dia a dia. A arrecadação estadual já não é mais suficiente para cobrir as despesas. O déficit é extraordinário.
Fala-se muito em compressão de despesas, medidas preventivas no sentido de defender o depauperado tesouro
estadual, mas tudo não passa de planos supérfluos, traçados em gabinetes secretos, por meia dúzia de homens,
que se dizem em matéria de finanças, mas que nada fazem, a não ser defender seus próprios interesses [...]”.
MARTINS, José. Esta é a verdade. Jornal O Paladino. Parnaíba-PI. 11 ago. 1956, p. 05.
14
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais e participação política. Teresina: Centro Piauiense de Ação
Cultural, 1996, p. 23.
20
segunda metade houve, cada vez mais visivelmente, a diminuição das arrecadações; e isso
se tornou um fator marcante nos discursos midiáticos e políticos piauienses15.
Naquele momento os efeitos da crise dos produtos do extrativismo vegetal
começaram a se tornar matéria dos mais diferentes jornais, mas também ensejaram a criação
de grupos de estudo, como do grupo dos intelectuais reunidos em torno da revista
Econômica Piauiense. Sob a direção do professor Raimundo Nonato Monteiro de Santana16,
o grupo tentou compreender as causas e os efeitos da crise pelos quais então passava a
arrecadação das receitas no Piauí. Propondo, ao mesmo tempo, alternativas viáveis para a
retomada econômica do estado em um cenário de expansão da economia a nível nacional,
de integração regional, sob a ótica desenvolvimentista17, mas de aprofundamento dos deficits
das receitas públicas do estado do Piauí. O que notoriamente se aprofunda no início dos anos
1960.
Foi nesse cenário de evidente crise econômica para o estado que se vislumbrou
um maior protagonismo político dos trabalhadores por meio de seus sindicatos e categorias
associativas. O momento foi marcado por um aprofundamento da agenda reformista no
âmbito nacional, a estimular a criação de medidas de modificação da ordem vigente.
Trabalhadores piauienses, por meio de seus mecanismos de representação de classe, foram
15
Naquele momento, como indica Medeiros, “a sociedade piauiense se deparava com uma grave crise
econômica, ocasionada pelo colapso da economia extrativa, que a Segunda Guerra trouxera” e ao mesmo
tempo começavam a pensar alternativas as mais distintas. Após o declínio da pecuária no final do século XIX,
o extrativismo dos produtos vegetais se mostrara como atividade econômica de grande importância, pelo
menos para as elites latifundiárias, tendo em vista que a cera de carnaúba e a borracha da maniçoba tinham
aceitação industrial no mercado internacional e garantiam o domínio econômico das oligarquias do sertão.
Com a crise das exportações, a pobreza se generalizava no Piauí dos anos 1950 e o extrativismo dava lugar ao
comércio local e à agricultura, atividades de subsistência que impunham um relativo isolamento espacial [...]
Ver: MEDEIROS, Antônio José. Op. Cit. 1996; QUEIROZ, Teresinha de Jesus Mesquita. Economia piauiense:
da pecuária ao extrativismo. 3. ed. Teresina: EDUFPI, 2006.
16
Professor, bacharel em Direito e escritor. Diplomado também pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros
em Economia Política e Sociologia. Nasceu em Campo Maior, em 27 de fevereiro de 1926. Professor
catedrático da Universidade Federal do Piauí, lecionou também na Universidade de Brasília, na Escola
Superior de Guerra e no Colégio Interamericano de Defesa, em Washington (EUA). Foi prefeito de Campo
Maior, entre 1951 e 1955. Fundou e editou a Revista Econômica Piauiense. Fundou o Centro de Estudos
Piauienses (1957), Movimento de Renovação Cultural do Piauí (1960), o Fórum Cultural do Piauí e a Fundapi
- Fundação de Apoio Cultural do Piauí. Presidiu a Academia Piauiense de Letras (2000-2001), onde ocupa a
cadeira número 32. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Piauí, do Conselho Estadual de Cultura e
do Conselho Municipal de Cultura de Teresina. Bibliografia: O Desenvolvimento Econômico Nacional na
Teoria Econômica Geral (1959); Aspectos de uma Ideologia para o Desenvolvimento; Perspectiva Histórica
do Piauí; A Evolução Histórica da Economia do Piauí, 1965, Piauí: Formação – Desenvolvimento –
Perspectivas, 1995, e Apontamentos para a História Cultural do Piauí, 2003.
17
Esse é contexto de criação, no plano nacional, da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, a
SUDENE, sob a direção de Celso Furtado. Enquanto o Brasil respirava euforicamente os ditos “anos de ouro”,
do Governo Juscelino Kubitschek, com amplos investimentos na abertura de estradas de rodagem, da abertura
da economia para o capital internacional e de forte industrialização, sobretudo da indústria automobilística, o
Piauí, começava a sofrer com a diminuição da viabilidade econômica dos produtos vegetais que exportava e,
até então, sustentava o otimismo de sua classe comercial.
21
18
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Desafios e possibilidades na apropriação de cultura política pela historiografia.
In: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). Culturas políticas na História: novos estudos. 2ª ed. Belo Horizonte,
BH: Fino Traço, 2014. p. 21.
19
De acordo com Marieta de Moraes Ferreira, diferente dos anos 1950, quando os Annales estabeleceram um
predomínio da História social e econômica, “a dimensão política dos fatos sociais começou a ganhar novos
espaços, num processo chamado por Remond de ‘renascimento da história política’”, entre os anos 1970 e
1980. Entre os espaços de produção dessa nova História política estava a “Fondation Nationale de Sciences
Politiques e da Universidade de Paris X - Nanterre, que funcionaram como espaços de integração para
especialistas de origens e formações diversas”. Marieta Ferreira destaca as questões referentes ao contexto
histórico, como “as transformações sociais mais amplas, que propiciaram o retomo do prestígio ao campo do
político, e a própria dinâmica interna da pesquisa histórica”, como importantes. Além disso a autora destaca a
questão da interdisciplinaridade como elemento fundamental para essa mudança no campo da História. Ver:
FERREIRA, Marieta de Moraes. A nova "velha História": O retorno da história política. In: Estudos Históricos:
Historiografia, Rio de Janeiro, 1992.
22
políticos por uma fração do patrimônio cultural adquirido por um indivíduo durante sua
existência”20.
Assim, a ideia de cultura política é importante para pensar nas ações dos agentes
políticos não como meramente isolados, mas percebendo que suas práticas se processam,
em grande medida, nas tensões que marcam parcelas do corpo social em determinados
contextos. Essa noção diz respeito a “um fenômeno individual, interiorizado pelo homem e
um fenômeno coletivo, partilhado por grupos numerosos” 21. Nesses termos, como indica
Berstein, “a cultura política, como a própria cultura, se inscreve no quadro das normas e
dos valores que determinam a representação que uma sociedade faz de si mesma, do seu
passado e do seu futuro”22.
Quanto à divisão do trabalho, no primeiro capítulo analiso a inserção da
experiência trabalhista na cidade de Parnaíba, sobretudo quando ganhou maior evidência,
na segunda metade da década de 1950, no sentido de observar as particularidades dos
conflitos políticos nessa cidade. O capítulo possui três itens em seu desenvolvimento. No
primeiro, evidencio a formação de uma narrativa empreendida por uma imprensa ligada aos
trabalhistas norte-piauienses, em torno da necessidade de concretização dos ideais de
“disciplina, organização e racionalização” nas atividades desenvolvidas pelos trabalhadores
naquele momento. Essas narrativas, a meu ver, buscavam gerar uma espécie de pacto entre
as classes sociais e, de certa forma, dar um novo sentido às atividades laborais.
No segundo item desse primeiro capítulo, analiso a formação do trabalhismo
norte-piauiense com relação às disputas empreendidas contra o grupo político do então
prefeito de Parnaíba, Alberto Tavares Silva 23, da UDN. Esse agente era ligado aos interesses
dos grandes proprietários nos arredores da cidade de Parnaíba e foi beneficiário da política
dos militares após o golpe. Analiso ainda as pautas defendidas pelos petebistas, com relação
ao custo de vida, aos direitos trabalhistas, dentre outras, bem como procuro perceber como
elas foram importantes, em certo sentido, para trazer, para o âmbito das disputas eleitorais,
20
BERSTEIN, Serge. A cultura política. In: RIOUX, J.P.; SIRINELLI, J.F. (Dir.). Para uma História cultural.
Lisboa: Editorial Estampa, 1998, p.359.
21
BERSTEIN, op. cit. p.360.
22
BERSTEIN, op. cit. p.360.
23
Alberto Tavares e Silva nasceu em Parnaíba (PI) em 1918, filho de João Carvalho de Tavares Silva e de
Evangelina Rose e Silva. Descendente de família de prestígio político no estado, elegeu-se prefeito de Parnaíba,
pela UDN, no pleito suplementar de 1947 e nas eleições de 1954. Ligado à UDN e aos grupos oligárquicos
locais, foi Prefeito de Parnaíba (1948-1950) (1955-1958). Deputado Estadual: 1950 (renunciou); Governador
nomeado do Piauí: (1971-1975) e eleito (1987-1991); Deputado Federal (1994-1997) e (2007-2009); Senador
da República (1979-1986) (1992-2006). Durante a ditadura filiou-se ao partido do governo, a Aliança
Renovadora Nacional (Arena), liderando no Piauí facção contrária à do ex-governador do estado, Petrônio
Portela (1963-1966).
23
parte da classe trabalhadora local. Além disso, procuro evidenciar como essas práticas e
narrativas políticas estavam conectadas às modificações patentes no quadro de reformulação
do PTB nacional.
Já no terceiro item, analiso o largo uso da força física, de meios extralegais
empreendidos por grupos partidários em Parnaíba, enquanto produto de uma cultura política
marcada pela violência, pelas perseguições a opositores, ameaças e uso seletivo da força
policial, que se faziam constantes. Isso, apesar de uma narrativa valorativa por parte de uma
imprensa ligada aos comerciantes parnaibanos, como o Almanaque da Parnaíba, em torno
de uma cidade “pacata e ordeira”. Nesse sentido, pude fazer análises mais detidas, por meio
das fontes, sobre os grupos políticos parnaibanos nos anos 1950, em jornais como: O
Paladino e Gazeta do Piauí, próximos aos trabalhistas. Esses foram analisados a pretexto
de perceber a emergência de um discurso em prol do trabalhismo e em oposição às práticas
políticas da UDN parnaibana. A intenção é analisar a formação do trabalhismo e o lugar que
ele ocupou na cidade de Parnaíba-PI nos anos 1950/1960, com a presença de populares em
aproximação com grupos empresariais, em um momento de ampliação das formas de
organização dos trabalhadores.
O segundo capítulo tem como recorte temporal os anos iniciais da década de
1960 até o golpe de 1964. Momento marcado por uma maior inserção do trabalhismo na
política piauiense, pois à frente do governo estadual, naquele momento, estava Francisco
das Chagas Caldas Rodrigues24, eleito governador do estado (1958-1962) e deputado federal
logo a seguir (1962-1966), sendo cassado pelos militares após o AI-5. Além do seu irmão,
José Alexandre Caldas Rodrigues25, prefeito eleito em Parnaíba (1958-1962) e deputado
estadual cassado pelo golpe (1962-1964). Ambos com larga presença nos sindicatos e com
uma prática política apoiada nas organizações de trabalhadores urbanos, assim como de
associações de trabalhadores rurais no Piauí. Nesse segundo capítulo, me detenho mais
especificamente nos reflexos do governo João Goulart no espaço piauiense, analisando a
ampliação das atividades ligadas aos sindicatos e às plataformas políticas inseridas pelo
governo Chagas Rodrigues e as pautas reformistas que ganhavam corpo naquele momento.
24
Advogado. Nascido em Parnaíba. Uma das figuras mais emblemáticas do PTB piauiense. Eleito deputado
federal pela UDN em 1950, migrou para o PTB sendo reeleito em 1954 e liderando a reformulação partidária
deste partido desde então, junto do Senador Matias Olímpio. Eleito governador do Piauí pelo PTB em 1958,
foi tachado de comunista, muitas vezes, por se aproximar das pautas nacionalistas e dos grupos denominados
ligas camponesas. Elegeu-se novamente Deputado Federal em 1962. Cassado pelo regime militar, após o AI-
5, em 1968.
25
Empresário, herdeiro da firma Poncion Rodrigues e Cia. Foi Prefeito de Parnaíba (1958-1962) e deputado
estadual cassado pelo golpe em 1964. Possuía fortes ligações com os sindicatos parnaibanos e, por isso, foi
indiciado pelo inquérito policial militar aberto em Parnaíba pela Guarnição Federal.
24
Além disso, analiso a emergência de discursos anticomunistas que circulavam no início dos
anos 1960, no Piauí, como reação conservadora ao trabalhismo e ao crescente protagonismo
dos movimentos sociais nesse estado.
Uso como fonte de pesquisa o jornal Folha do Litoral, tendo este, vínculos com
os grupos trabalhistas parnaibanos; outros jornais, tais como O Norte; A Tribuna; Correio
do Povo; além do jornal ligado aos trabalhistas, o já citado Gazeta do Piauí. Esses periódicos
são importantes para analisar as atividades ligadas ao PTB local e as atividades de
organizações de trabalhadores em torno das reformas de base, com a progressiva ampliação
da estrutura sindical no espaço piauiense. Além dessas fontes, utilizo a Revista Caravana,
publicação ligada ao PTB que circulou nos anos 1950 e 1960 no Piauí. Analiso também
alguns textos que começaram a circular em jornais de outros estados a partir dos anos 1950,
dando conta das disputas que envolviam os trabalhadores rurais contra os grandes
proprietários locais, tais como Novos Rumos, Voz Operária e Terra Livre, jornais ligados ao
PCB.
Os textos enviados por trabalhadores rurais do norte piauiense a esses jornais
são ricos de significados e levantam denúncias sobre as condições materiais as quais estes
estavam submetidos, além de enfatizar as lutas travadas pelos mesmos nos povoados ao
redor de Parnaíba. Utilizo também o jornal O Dia, de feição conservadora, em que se
agrupava uma forte oposição ao governo João Goulart no Piauí e ao reformismo, por quadros
locais, como o desembargador e jornalista Simplício de Sousa Mendes26. Esse agente era
ligado à UDN e publicava, em sua coluna no jornal, textos com profundas queixas à gestão
do governador Chagas Rodrigues (1959-1962), contra as reformas de base, o PTB e o PCB.
O desembargador Simplício Mendes, após o golpe, foi uma das vozes mais atuantes em
apoio aos militares e usava de seu poder para propor soluções repressivas contra o legislativo
e o judiciário.
No terceiro capítulo, trato mais detidamente sobre o golpe de 1964 na cidade de
Parnaíba. Analiso a principal fonte desta pesquisa, que é o Inquérito Policial Militar (IPM)
aberto no Piauí. Em particular, trato do inquérito de número 349, disponível na página do
26
Bacharel pela Faculdade de Direito de Recife (1908). Juiz de Direito em Piracuruca e Miguel Alves (PI) foi
presidente do Tribunal de Justiça do Piauí e um dos fundadores da faculdade de Direito do Piauí, tornando-se
professor catedrático de Teoria Geral do Estado. Membro do Tribunal Regional Eleitoral e presidente da
Academia Piauiense de Letras, o intelectual também assumiu a diretoria da Imprensa Oficial do Piauí,
tornando-se presidente do Conselho Estadual de Cultura e jornalista de grande atuação na imprensa local.
Como jurista publicou “O Homem, a sociedade, o direito”.
25
“Projeto Brasil: Nunca Mais Digital”, na internet27. Esse IPM dá conta do processo movido
contra trabalhadores sindicalizados e lideranças políticas trabalhistas e comunistas em
Parnaíba. Me utilizo de tal processo de acusação para perceber as particularidades da
repressão política nesse espaço. Analiso também as matérias jornalísticas que dão conta das
batidas policiais feitas logo após o golpe, com prisões de sindicalistas, cassação de
lideranças políticas do PTB piauiense, bem como da perseguição a líderes do PCB, feitas
pelo Jornal do Piauí, jornal O Dia, dentre outros. Esse capítulo é dividido em mais dois
itens.
Em um primeiro item analiso algumas disputas de memória com relação ao
golpe na cidade de Parnaíba. A intenção desse item é puxar os diferentes fios de memória
sobre o golpe de 1964 nesse espaço. Em minha pesquisa pude compreender que se buscou,
no âmbito local, produzir uma certa memória apaziguadora e simplificadora nos anos finais
do regime. Alguns agentes políticos tentaram, por meio de suas memórias, demonstrar que
na cidade de Parnaíba, por conta de seu “isolamento geográfico”, não se reproduziram
efeitos repressivos em 1964. Ao passo que essas memórias buscaram apagar historicamente
a repressão aos trabalhadores e as experiências de luta dos movimentos sociais nos anos
1950/1960, procuraram estabelecer uma visão muitas vezes celebratória, sobre os
desdobramentos locais do golpe e da ditadura que se seguiu.
Nesse ponto, busquei evidenciar as memórias dos familiares de perseguidos
pelos militares, em sobreposição às visões estabelecidas. Uso então como contraponto,
alguns livros de memória, como os escritos por José Nelson de Carvalho Pires (Conversando
com os meus netos; Porque Parnaíba cidade universitária? e Parnaíba que eu vi). José
Nelson foi vereador pela UDN, secretário municipal de Parnaíba e exerceu outras funções
públicas. Procurou evidenciar, em suas memórias, momentos de tensão nos eventos
posteriores ao golpe. Dou evidência também às memorias dos familiares de um líder sindical
perseguido, Evilásio dos Santos Barros, liderança do CNTI, preso e indiciado em 1964. A
intenção do item é perceber como se processaram as perseguições por parte dos militares
27
O projeto Brasil: Nunca Mais–BNM foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese
de São Paulo nos anos oitenta, sob a coordenação do Rev. Jaime Wright e de Dom Paulo Evaristo Arns. O
BNM teve três principais objetivos: evitar que os processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos
com o fim da ditadura militar, tal como ocorreu ao final do Estado Novo; obter e divulgar informações sobre
torturas praticadas pela repressão política; e estimular a educação em direitos humanos. O inquérito, aberto
em Parnaíba, está disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=BIB_04&PagFis=33830. Acesso em: 12 jun.
2020.
26
aos indiciados após o golpe, possibilitando a emergência de outras narrativas políticas, para
além das memórias conciliadoras dos grupos tradicionais.
Já no quarto capítulo – e último – analiso mais detidamente os processos de
adesão, acomodação e colaboracionismo de grupos políticos, comerciais e jurídicos
piauienses ao golpe de 1964. Procurei evidenciar os discursos dos comerciantes ligados ao
Almanaque da Parnaíba que, em edições feitas após o golpe, celebraram a “revolução
democrática de 1964”, com a capa da edição de 1965 desse anuário tecendo elogios à figura
do marechal Castello Branco. Além disso, produzi, nesse capítulo, três itens tratando sobre
como se processaram os apoios das elites civis piauienses aos militares após o golpe.
Em um item analiso as notas, na imprensa, de parcelas do judiciário local como
desembargadores que, por sua cultura política conservadora, deram claras demonstrações
de apreço ao autoritarismo e aos atos de exceção do regime. Em outro item analiso as
práticas de parcela da elite política piauiense com relação ao golpe e aos militares. O caso
em particular do então governador do estado, Petrônio Portella Nunes (1963-1966), é
tomado como exemplar de como parte de nossa elite política buscou se adaptar rapidamente
aos ditames dos militares, mesmo tendo – no caso de Portella – se conectado às pautas
reformistas e apoiado o governo Jango até o momento do golpe.
A intenção, nesses itens, também é perceber que existem grupos que se
beneficiaram com a prática de cassações e expurgos políticos no cenário local e se utilizaram
do clima de “caça às bruxas” no intuito de prejudicar seus opositores. O capítulo, dessa
forma, pretende analisar o imediato pós-golpe, por meio da imprensa piauiense. Os jornais
de viés mais conservador, como O Dia, O Estado do Piauí, Jornal do Piauí, trazem textos
elogiosos aos militares, escritos por nomes ligados à grande propriedade e ao comércio local
que procuraram estabelecer, em um primeiro momento, no processo de acirramento político,
um clima de medo com relação às “reformas” e ao governo Jango e, logo após o golpe, um
sentimento de otimismo com os novos “donos do poder”.
Um último item desse quarto capítulo analisa as proclamadas Marchas da
Família com Deus pela Liberdade em espaço piauiense. Em jornais como O Dia são
perceptíveis as tentativas de se criar um clima de legitimação social aos desdobramentos do
golpe no Piauí, estimulando a população a festejar a “vitória da democracia” por meio do
“ato cívico” de apoio às “gloriosas Forças Armadas”. Nesses textos que circularam nos
jornais piauienses, logo após o golpe, é possível perceber que houve forte oposição ao
reformismo do governo Jango no Piauí, bem como, posteriormente, amplo apoio civil à
ruptura institucional provocada pelos militares. Por meio desses textos, tento perceber as
27
CAPÍTULO I
ENTRE SINDICATOS E PARTIDOS: A FORMAÇÃO HISTÓRICA DO
TRABALHISMO PARNAIBANO NA DÉCADA DE 1950
28
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para
o Brasil (1945-1964). In: FERREIRA, Jorge (Org.). O Populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001, p. 171.
29
Idem.
30
Idem.
29
31
RODRIGUES, Marly. A década de 1950: populismo e metas desenvolvimentistas no Brasil. 2ª ed. São Paulo:
Ed. Ática, 1994, p. 17. (Série Princípios).
32
FERREIRA, Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 12.
30
33
Para uma análise sobre o contexto chamado de “Experiência Liberal Democrática”, ver: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília de Almeida. O Brasil Republicano III: o tempo da experiência democrática. Da
democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964. Rio de janeiro: Editora Civilização brasileira, 2003.
34
RUAS, Miriam Diehl. A doutrina trabalhista no Brasil (1945-1964). Porto Alegre: Ed. Fabris, 1986, p. 15.
35
SOARES, Gláucio Ary Dillon. A formação dos partidos nacionais. In: Os partidos políticos no Brasil.
Cadernos da UNB, Brasília, vol. 01, p. 23. Apud RUAS, 1986, p. 17.
31
As informações acima são importantes por nos indicarem uma quantidade maior
de sindicatos na cidade de Parnaíba, 26 sindicatos, com relação às demais cidades piauienses,
como também a aproximação partidária dos mesmos (PTB). Foi também, na segunda
metade da década de 1950, que alguns personagens ligados ao PTB no norte piauiense
começaram a se conectar a algumas das pautas que ganhavam corpo naquele contexto nos
debates nacionais. Exemplo disso foi Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, em seu
segundo mandato como deputado federal pelo PTB, e não mais ao antigo partido (UDN). O
parnaibano Chagas Rodrigues lançou-se, então, enquanto membro da Frente Nacionalista,
embrião da Frente Parlamentar Nacionalista, organização intrapartidária criada em 1956 no
Congresso Nacional. A Frente Parlamentar Nacionalista, como indica Lucília Delgado,
“representou no Congresso Nacional a opção nacionalista de um segmento expressivo e
36
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Da terra ao céu: culturas políticas e disputas entre o trabalhismo oficial e o
trabalhismo cristão no Piauí (1945-1964) /. 532 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro
de Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, 2016, p. 139.
37
ASSUNÇÃO, Rosângela. A política trabalhista na Era Vargas e a construção da memória dos portuários
de Teresina (1930 – 1954). 2005. 117 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) – Universidade Federal
do Piauí, Teresina, 2005, p. 60.
38
MEDEIROS, Antônio José. Op. cit.1996, p.111.
32
39
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. Partidos políticos e frentes parlamentares: projetos, desafios e
conflitos na democracia. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de Almeida Neves (Org.). O tempo da
experiência democrática: da democratização de 1945 ao golpe civil-militar de 1964 (O Brasil Republicano).
2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 149. Livro 3.
40
Epaminondas Castelo Branco nasceu em Buriti dos Lopes (PI) em 1882. Iniciou sua vida política em 1928
quando se elegeu deputado estadual à Assembleia Legislativa do Piauí. Em março de 1930, foi eleito deputado
federal, mas teve o mandato interrompido em outubro seguinte com a vitória da Revolução de 1930, que levou
Getúlio Vargas ao poder e extinguiu todos os órgãos legislativos do país. Voltou à política em 1947, quando
novamente se elegeu deputado estadual, na legenda do Partido Social Democrático (PSD). Colaborou nos
jornais A Ordem, O Dia e A Tribuna. Faleceu em Parnaíba (PI) no dia 6 de julho de 1969. Disponível em:
https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeirarepublica/CASTELO%20BRANCO,%20Epaminond
as.pdf. Acesso em: 13 out. 2018.
41
Mirócles Campos Veras nasceu em Parnaíba-PI, em 1890. Nomeado prefeito de 1934 a 1935 e depois, com
o golpe do Estado Novo, assume, também por nomeação, a prefeitura de Parnaíba, permanecendo de 1937 a
33
1945. Com o fim do Estado Novo, concorreu no pleito de dezembro a uma cadeira na Assembleia Nacional
Constituinte na legenda do Partido Social Democrático (PSD), mas só obteve uma suplência. Em 1950,
concorreu na legenda do PSD, ficando como primeiro suplente de deputado federal. Assumiu o mandato na
ausência do deputado Sigefredo Pacheco nos períodos de abril a setembro de 1951, de agosto a dezembro de
1952, de junho a agosto de 1953 e de abril a agosto de 1954. Nos pleitos de outubro de 1954 e de 1958 voltou
a disputar uma cadeira na Câmara dos Deputados, obtendo, contudo, nas duas ocasiões, somente a suplência.
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/mirocles-campos-veras.
Acesso em: 13 out. 2018.
42
Foi nesse momento que o grupo ligado ao Senador Matias Olímpio e Chagas Rodrigues, migra da UDN
para o PTB. Com amparo de João Goulart, esse grupo assume a frente do PTB estadual, em detrimento do
grupo que havia fundado o partido, em 1946, tendo à frente o médico João Emílio Falcão Costa. Em Parnaíba,
houve, a partir de então, uma ampliação das bases partidárias e uma aproximação com os grupos sindicalizados
por parte dos petebistas, ocasionando uma disputa interna, mas também uma ampliação das narrativas
valorativas em torno do trabalho e das lideranças trabalhistas locais, como os irmãos Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues e José Alexandre Caldas Rodrigues.
43
No decorrer desta pesquisa, foi feito um levantamento empírico sobre os jornais de circulação local, nos
anos 1940, 1950 e 1960. Consegui uma grande quantidade de exemplares do jornal Gazeta do Piauí, ligado ao
grupo trabalhista. Além dos jornais O Paladino, Correio do Povo, Folha do Litoral, O Tempo. Este último
ligado à UDN. A grande maioria dos jornais era ligada aos trabalhistas, fazendo discursos elogiosos às figuras
do trabalhismo local, bem como críticas profundas aos udenistas, sobretudo a Alberto Silva e a Cândido
Oliveira.
34
local, por conta do déficit das exportações dos produtos oriundos do extrativismo vegetal
que foram, até aquele momento, o principal motor da economia piauiense.
Em Parnaíba, cidade com o maior número de trabalhadores organizados em
sindicatos no estado, o PTB foi fundado em 30 de novembro de 1946, tendo a presidência
do partido sido destinada ao médico João Orlando de Morais Correia 44. A sua composição
contava com um representante do Sindicato dos Estivadores, Tiago José da Silva 45 , que
participou como membro do conselho fiscal do diretório daquele município 46. O PTB, de
acordo com Marylu Oliveira, logo após a sua fundação em 1946, conseguiu se firmar de
forma mais intensa em duas cidades: Parnaíba, onde se tornou rapidamente forte entre os
trabalhadores sindicalizados, e Teresina, onde se instalou com menos entusiasmo, liderado
por João Emílio Falcão Costa47.
No entanto, o período de maior crescimento do PTB foi a segunda da metade da
década de 1950, com a forte presença à frente do partido de Chagas Rodrigues e do irmão
José Alexandre Caldas Rodrigues. Naquele momento, houve um contato maior dessas
lideranças com a estrutura sindical da cidade, o que possibilitou a candidatura de
trabalhadores a cargos políticos, mas, ao mesmo tempo, o sustento de candidaturas fora da
estrutura sindical, e o reforço de contatos mais evidentes com as lideranças nacionais do
PTB. A partir de então, indico algumas questões pontuais para uma melhor compreensão do
trabalhismo local, como os discursos em torno da valorização dos ideais de disciplina e,
posteriormente, a oposição ao udenismo local. Fecho o capítulo com um tópico sobre a
violência política que marca esse espaço nos anos 1950/1960.
44
Médico. Foi fundador do PTB em Parnaíba. Prefeito eleito pela legenda trabalhista em Parnaíba (1951-1954).
45
Líder do sindicato dos Estivadores de Parnaíba, nos anos 1950/1960. Estabeleceu contatos com a estrutura
sindical em diferentes pontos do país. Disputa algumas eleições amparado no pulsante sindicalismo parnaibano
e consegue se eleger deputado estadual pela legenda do PTB, nas eleições de 1958. Nessas eleições,
significativas para o trabalhismo parnaibano, se elegeram Francisco das Chagas Caldas Rodrigues (governador
do Piauí), bem como o seu irmão, José Alexandre Caldas Rodrigues, (prefeito de Parnaíba).
46
OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2016, p. 139.
47
OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2006, p. 149.
35
48
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. União, Força e Trabalho: trabalhadores, mutualismo e sindicatos no
Piauí (1900-1945) Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina,
2015.
49
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. Op. cit. 2015, p. 23.
50
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. Op. cit. 2015, p. 62.
36
51
GOMES, Ângela de Castro. Ideologia e trabalho no Estado Novo. In: PANDOLFI, Dulce (Org.).
Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, p.55.
52
GOMES, Ângela de Castro. A invenção do trabalhismo. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
37
e de trabalhadores livres e educados no ‘culto ao trabalho’ se impôs ao país” 53. Porém, nesse
primeiro momento, a “palavra” em torno do trabalho era atribuída aos próprios
trabalhadores para, a partir da Era Vargas, ser apropriada pelo Estado, por meio de todo um
aparato retórico. Nesse ponto, a autora indica que “a preocupação com o ócio e a desordem
era muito grande, e ‘educar’ um indivíduo pobre era principalmente criar nele o ‘hábito’ do
trabalho”.
Nesse sentido, conforme indica a autora, a ideia central “era obrigá-lo ao
trabalho via repressão e também via valorização do próprio trabalho como atividade
moralizadora e saneadora socialmente”54. Portanto, as narrativas voltadas para a valorização
do trabalho encontram grande sustentação na imprensa escrita em vários espaços do Brasil.
Em Parnaíba, parte da imprensa projetou uma série de textos e os colocou em circulação na
cidade, na segunda metade da década de 1950, objetivando a valorização do trabalho, em
um momento de ampliação das estruturas sindicais e da presença de lideranças trabalhistas
junto aos grupos de trabalhadores.
As narrativas verificadas nos jornais de circulação na cidade sobre a questão do
trabalho têm claros destinatários: os trabalhadores urbanos organizados em sindicatos de
classe. A ideia de “grandeza” do trabalho, de que este requer um exercício de meditação e
valorização constante, certamente serviria para buscar estabelecer certa coesão na classe
trabalhadora local e tornar possível uma postura objetiva e pacata dos mesmos frente a seus
postos de trabalho. Mesmo que fossem escritos, como se pode verificar, vindos de outras
esferas da sociedade, que não das classes populares. Em texto intitulado Trabalho e
Meditação, publicado em Gazeta do Piauí, o trabalho se torna objeto de grandeza do homem:
53
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 2005, p. 26.
54
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 2005, p. 26.
55
TRABALHO E MEDITAÇÃO. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 de setembro de 1956.
38
referentes à “postura adequada” a ser empreendida pela classe laboral naquele momento.
Como se pode analisar pelo texto acima, o trabalho não se resumiria em simples tarefa de
execução diária de atividades simplórias, mecânicas e/ou rotineiras, para os articulistas do
jornal. Tratava-se, antes de tudo, de algo mais complexo e dinâmico a exigir do trabalhador
reflexão e “meditação diária, constante e ininterrupta”. Para a compreensão da “grandeza do
trabalho”, era preciso ter em mente que o trabalho serviria como elemento necessário para
a sociedade como um todo, e não apenas para o trabalhador. Como se pode verificar, era
preciso colocar em pauta uma valorização das atividades laborais para o “bom
funcionamento” da sociedade e para viabilizar um novo sentido à figura do trabalhador.
Não é possível medir o nível de aceitação prática de tal postura por parte dos
trabalhadores parnaibanos, mas aqui é possível relacionar essa perspectiva disciplinadora e
normativa como condizente com a lógica de organização e racionalização sindical por parte
dos grupos trabalhistas. Sendo composto, também, de um grande número de indivíduos da
classe patronal, o projeto trabalhista local propunha medidas de pactuação dos interesses
entre grupos, como mencionado, além de viabilizar a adesão de setores distintos das classes
sociais na sigla petebista que ganhava forma em Parnaíba na segunda metade da década de
1950.
Cada vez mais se falava em termos como “disciplina”, “organização” no sentido
de “elevar a condição do trabalhador” a novos patamares. Esses termos antes de serem meros
conceitos ligados à lógica do capital, são dotados de sentido e podem ser lidos como uma
ressonância das práticas materializadas no Brasil, após o advento do Estado Novo, da
necessidade de aprofundar a noção do trabalho como um dispositivo histórico capaz de
organizar a vida social. É justamente no regime do Estado Novo, como mencionado, que
“elabora-se toda a legislação que regulamenta o mercado de trabalho do país, bem como se
estrutura uma ideologia política de valorização do trabalho e de reabilitação do papel e do
lugar do trabalhador nacional”56. Replica-se esse tipo de receituário na imprensa parnaibana,
no entanto, na segunda metade dos anos 1950, com o intuito de levar em consideração para
os trabalhadores algumas funções, tais como “disciplina, organização”, em prol de uma
“grandeza do trabalho” como se pode perceber:
56
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 51.
39
57
TRABALHO E MEDITAÇÃO. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 de setembro de 1956.
58
FERREIRA, Jorge. A cultura política dos trabalhadores no primeiro governo Vargas. Estudos históricos. Rio
de Janeiro, vol. 3, n. 6, 1990.
59
TRABALHO E FILOSOFIA. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 set. 1956.
40
defendidos pelos grupos sindicais durante a primeira república, bem como procurou trazer
os trabalhadores para a atuação nos sindicatos de categorias profissionais. Foi preciso
também estabelecer uma nova relação do Estado com os trabalhadores. Nesse sentido,
observei que a Legislação Trabalhista serviu “como elo entre Vargas e os trabalhadores, à
medida que há uma mudança nas relações cotidianas e de trabalho a partir de aprovação da
CLT”60, de acordo com Rosângela Assunção.
Nesse sentido, houve uma reformulação nas condições de trabalho, a partir de
Vargas, por exemplo, quando a Constituição de 1934 incorpora antigas reivindicações do
operariado urbano, tais como: “jornada de oito horas de trabalho, repouso semanal
remunerado, aposentadoria, proibição de trabalho a menores de 14 anos, indenização por
tempo de serviço, férias pagas, etc. Porém, subordinou os sindicatos ao Ministério do
Trabalho”61. Mas, ainda de acordo com Assunção, “ao tempo em que atendia às demandas
dos trabalhadores urbanos, o governo tratava de enquadrá-los no sindicalismo oficial e usar
sua força social emergente como contrapeso às forças mais tradicionais e conservadoras” 62.
Na imprensa ligada aos trabalhistas, o trabalho deveria ser “meio de vitalidade”, como se
percebe no texto:
60
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 10.
61
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 18.
62
ASSUNÇÃO, Rosângela. op. cit. 2005, p. 19.
63
TRABALHO E FILOSOFIA. Escreveu Prof. Humberto Grande da A.B.N. para a Gazeta do Piauí. Gazeta
do Piauí, Parnaíba-PI. 26 set. 1956.
64
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 1999, p. 59.
41
65
SANTOS, José Mauricio Moreira dos. op. cit. 2015, p 149.
66
Ata da Associação Comercial de Parnaíba. 28 de dezembro de 1944. p. 44. Ver: SANTOS, José Maurício
dos. Op. cit. 2015, p. 150.
42
sociologia, pedagogia e psicopatologia”67. De acordo com Ângela de Castro Gomes, isso era
concretizado pela “ação dos novos órgãos previdenciários, consistia explicitamente em
preservar, recuperar e aumentar e capacidade de produzir do trabalhador”. Ainda de acordo
com a autora, o Estado nacional, por meio dessas iniciativas, visava ampliar “o escopo de
seu intervencionismo para poder atingir as causas mais profundas da pobreza/doença,
promovendo a satisfação das necessidades básicas do homem: alimentação, habitação e
educação”68.
Nas matérias na imprensa ligada aos trabalhistas, circulou, naquele momento,
uma narrativa de valorização do trabalho como edificante de uma sociedade mais coerente
com os padrões do desenvolvimento nacional. Na segunda metade da década de 1950,
quando circulavam tais textos, era o momento em que se processava um investimento
nacional em um programa desenvolvimentista, o Plano de Metas do Governo JK, quando
então se falava na ampliação das atividades ligadas à industrialização, bem como na
descentralização das áreas de desenvolvimento econômico do país. Isso com investimentos
estrangeiros e uma série de medidas de implementação do capitalismo industrial no Brasil,
era preciso, então, estimular, na mentalidade coletiva, os ideais de “disciplina” e “honradez”
ligados às atividades laborais.
Por outro lado, e isso é importante mencionar, foi preciso assegurar medidas que
trouxessem alguma garantia aos trabalhadores, contra os possíveis arbítrios a que estariam
suscetíveis pelos empregadores no que diz respeito ao cumprimento de pagamento de
salários, condições de trabalho, jornadas e outras questões ligadas ao cotidiano da classe
trabalhadora. Naquele momento também houve aproximação, um contato dos trabalhadores
com estruturas de fiscalização do cumprimento das obrigações dos empregadores; nesse
caso, o Ministério do Trabalho. O órgão, teve presença marcante em uma cidade como
Parnaíba, onde o comércio, como mencionado, era diversificado e onde as atividades
laborais estavam cada vez mais representadas pelas estruturas sindicais.
Sobre essa questão, Ângela Gomes destaca que uma das marcas dessa herança
dos anos 1940, é justamente que o “ideal de justiça social ia sendo explicitado como um
ideal de ascensão social pelo trabalho, que tinha no Estado seu avalista e intermediário”. De
acordo com essa lógica, portanto, “o ato de trabalhar precisava ser associado a significantes
67
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 1999, p. 60.
68
GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 1999, p. 59.
43
MINISTÉRIO DO TRABALHO
POSTO DE FISCALIZAÇÃO EM PARNAÍBA
AVISO
De ordem do Sr. Delegado Regional do Trabalho nesse Estado, levo ao
conhecimento das Federações, Sindicatos de classe, Comércio, Indústria,
trabalhadores de diversas categorias profissionais e a quem interessar
possa, que a partir de 1º de agosto último, o Salário Mínimo atribuído para
Parnaíba, passou a vigorar na base de CR$ 1.500,00 (mil e quinhentos
cruzeiros). Assim sendo, recomendo aqueles que não pagaram seus
69
GOMES, Ângela de Castro, op. cit.1999, p. 58.
70
Burlando as leis do trabalho. Ver: Jornal Correio do Povo, ano 01, n. 01. Parnaíba, p. 03-04, 01 ago. 1956.
44
71
AVISO. Ver: Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI. 26 set. 1956, p. 02.
72
PAIM, Paulo. Salário Mínimo uma história de luta. Senado Federal. BRASÍLIA – 2005.
73
Idem.
74
Idem.
45
75
Aqui destaco os trabalhos de Marylu Alves de Oliveira, que contribuem para a escrita desta tese e que tomo
como referência para evidenciar as práticas políticas do trabalhismo piauiense. Como a tese: OLIVEIRA,
Marylu Alves de. Da terra ao céu: culturas políticas e disputas entre o trabalhismo oficial e o trabalhismo
cristão no Piauí (1945-1964) /. 532 f. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de
Humanidades, Programa de Pós-Graduação em História, Fortaleza, 2016.
76
LAVAREDA, Antônio. A democracia nas urnas: o processo partidário-eleitoral brasileiro (1945-1964). Rio
de Janeiro: Iuperj/Revan, 1999.
77
RUAS, Miriam Diehl. A doutrina trabalhista no Brasil (1945-1964). Porto Alegre: Ed. Fabris, 1986, p. 23.
78
Sobre o debate em torno do conceito de populismo na cultura política brasileira, ver: FERREIRA, Jorge.
(Org.). O populismo e sua história: debate e critica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
46
durante certo tempo se constituiu sobre esse período é de uma massa de trabalhadores sem
consciência política efetiva, sendo guiada por meio do carisma e/ou da coerção de líderes
políticos, de maneira acrítica79.
É preciso questionar esse tipo de visão conservadora que só concebe a presença
dos grupos populares se cooptadas ou manipuladas, frente a uma liderança política imposta
de cima para baixo. Segundo interpretação de Jorge Ferreira e Ângela de Castro Gomes,
nesse momento “o Brasil estava construindo uma experiência de democracia representativa”.
Segundo os autores, “justamente porque se estava avançando e caminhando em direção à
ampliação de direitos de cidadania, a Terceira República foi interrompida pelo golpe de
1964”80.
Nesse contexto, em Parnaíba, o trabalhista José Alexandre Caldas Rodrigues foi
aquele que maior viabilidade teve frente às estruturas sindicais na cidade. O jogo de força e
as diatribes políticas dentro do PTB local vão ser tolhidos em benefício do nome do
empresário ligado ao comércio pela firma Poncion Rodrigues. Nesse sentido, jornais locais,
como Gazeta do Piauí e Correio do Povo, lançaram aberta campanha para o executivo
municipal, bem antes do término da gestão udenista (1958), em apoio ao nome do
empresário. Além disso, procuraram evidenciar a ampla base eleitoral construída em torno
do nome de José Alexandre, dentro dos sindicatos locais, ao ponto de lançarem declarações
como a que segue, em que indicam que “todos os sindicatos” locais, sem exceção, estariam
juntos, em apoio ao PTB e a esse candidato para as eleições municipais de 1958.
79
FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: Jorge Ferreira (org.). O
populismo e sua história. Debate e critica. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2001.
80
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Brasil, 1945-1964: uma democracia representativa em
consolidação. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 251-275, 2018, p. 254.
81
Contamos com todos os sindicatos. Ver: Jornal Correio do Povo. Ano 01. Nº 01. Parnaíba, 01 ago. 1956,
p. 01.
47
José Ceará, por conta de sua experiência frente aos grupos de trabalhadores no
estado do Piauí destacava, em um primeiro plano, algo que certamente se faz notório
observar: a preponderância da força e organização sindical em Parnaíba, em detrimento de
outros espaços piauienses, como a própria capital do estado, Teresina, por motivos tais como
a força econômica da cidade de Parnaíba. Em um segundo plano, chama a atenção o fato de
José Ceará mencionar que os sindicatos eram locais onde a presença das lideranças
trabalhistas se dava apenas por um meio de empreguismo e de propinas distribuídas pelos
trabalhistas como José Alexandre – meios típicos de estratégias de manipulação.
82
José Pereira de Sousa, conhecido como José Ceará, nasceu em Ipueiras, localizada no noroeste do Estado
do Ceará, em 19 de março de 1901. Foi pedreiro, estivador em Parnaíba, nos anos 1930, Secretário Geral do
PCB do Piauí. Ver: SOUSA, Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais. JOSÉ CEARÁ E O PCB: a trajetória de um
operário comunista no Piauí (1933-1964). Revista Piauiense de História Social e do Trabalho. Parnaíba-PI,
ano 1, n. 01, jul./dez. de 2015.
83
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Depoimento de José Ceará. Projeto Brasil Nunca Mais. Nº 349.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/sumarios/400/349.html. Acesso em: 03 jun.2017.
48
Se a presença do PCB não se fez notar com grande penetração junto aos
sindicatos locais, por certo, a presença massiva das lideranças ligadas ao PTB causou
incômodo aos militantes pecebistas, como o próprio José Ceará. Não estou negando que esse
tipo de prática tenha se exercido junto aos sindicatos de classe em Parnaíba. Porém, percebe-
se que grande parte dos trabalhadores preferiram, naquela quadra histórica, as pautas
petebistas e as aproximações com os grupos do PTB local, e que, além disso, existiram
outros fatores que inviabilizaram os comunistas nas estruturas sindicais, como o forte
anticomunismo presente no espaço piauiense84, assim como em diferentes partes do país.
Naquele momento, a configuração do PTB parnaibano passou por disputas
externas envolvendo a UDN local, pois o partido encontrou espaço para críticas abertas ao
prefeito Alberto Silva, mas também por algumas disputas internas, envolvendo grupos
“alexandristas” e “ivanistas” que, na segunda metade dos anos 1950, vão inviabilizar outros
nomes que não o do próprio José Alexandre Caldas Rodrigues, a disputar o executivo
municipal.
Portanto, as disputas do petebismo parnaibano passavam pelo apelo ao
personalismo, relacionados aqui às figuras de José Alexandre Caldas Rodrigues e do irmão,
Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, alçados agora, por meio da imprensa ligada aos
trabalhistas, como os “grandes nomes” do trabalhismo parnaibano e principais lideranças
políticas do PTB norte-piauiense. Esses dois personagens, então, foram vistos, por meio da
imprensa, como aqueles que poderiam “falar em nome” da legenda trabalhista.
84
Sobre o anticomunismo no Piauí, ver: OLIVEIRA, Marylu Alves de. A cruzada antivermelha: democracia,
Deus e terra contra a força comunista: representações, apropriações e práticas anticomunistas no Piauí da
década de 1960. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, 2008.
85
Política: Conversa de bastidores. Jornal O Paladino. Parnaíba-PI, p. 04, 14 jul. 1956.
49
estrutura econômica e partidária que o apoiava no âmbito estadual. Nesse caso é preciso
perceber que tal viabilidade se dava também pela importância política de seu irmão, o
deputado federal Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, que em 1954 migrou para o PTB.
Além do nome do senador petebista, Mathias Olímpio de Melo. Esse último e Chagas
Rodrigues foram, naquele momento, as maiores forças eleitorais petebistas no estado.
86
Jornal Correio do Povo, Parnaíba, p. 03, 04 ago. 1956.
87
Os dados do TSE dão conta de que nas eleições de 1954, os números ficaram nessa ordem: Alberto Tavares
da Silva UDN (6437 votos. Eleito). José Alexandre Caldas Rodrigues PTB (5391 votos. Não eleito.) VOTOS
NULOS – 594 - VOTOS BRANCOS – 411.
Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pi-resultado-eleicao-prefeito-vice-vereador-
por-municipio1954. Acesso em: 13 maio 2018.
88
Vereador pelo PTB nos anos 1950, líder sindical na cidade de Parnaíba, se nomeava como “vereador
operário”. Chegou a ser indiciado no Inquérito Policial Militar, em 1964.
89
Líder do Sindicato dos estivadores da cidade, foi indiciado pelo Inquérito Policial Militar em 1964.
50
1958, quando obteve, segundo dados do TSE, 3.258 votos90. Todos os citados acima foram
perseguidos após o golpe de 1964.
Algumas questões precisam ser aqui levantadas: como os grupos políticos mais
tradicionais perceberam essa entrada de setores da classe trabalhadora nas disputas político-
partidárias? Qual a relação que se pode estabelecer entre essa ampliação da participação
política das classes trabalhadoras – ao menos parte dela – e o sucessivo crescimento das
pautas anticomunistas no período anterior ao golpe? Algumas dessas questões serão
discutidas ao longo deste trabalho e são importantes para perceber as tensões envolvidas
naquele cenário histórico.
A atuação partidária do PTB em Parnaíba, na segunda metade da década de 1950,
como se pode perceber nos jornais em circulação na cidade, visava incluir pautas favoráveis
às classes populares, como auxílio médico para os setores necessitados de assistência
hospitalar. Buscaram levantar, por exemplo, fundos para a manutenção da Santa Casa de
Misericórdia 91 , hospital criado no início do século XX, que atendia grande parte da
população carente da cidade. Além de outras pautas, como um projeto de criação do vereador
Ivan Martins, propondo a isenção de imposto predial para moradores dos bairros populares
da cidade. Os moradores desses locais eram os mais castigados durante os invernos rigorosos,
além da dificuldade de sobrevivência em uma cidade fortemente dividida do ponto de vista
econômico e espacial.
90
Dados do TSE. Disponível em: http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-pi-resultado-eleicao-geral-
para-deputado-estadual-deputado-federal-governador-vice-governador-senador-suplente-de-senador-1958.
Acesso em: 05 fev. 2019.
91
Há, no jornal Gazeta do Piauí, um embate entre câmara dos vereadores e prefeitura, sobre um projeto do
vereador Ivan Martins, do PTB que buscava auxílio para o hospital Santa Casa de Misericórdia, vetado pelo
prefeito udenista Alberto Silva.
92 Novo projeto do Vereador Ivan Martins, isenta de imposto predial, no corrente exercício, casas residências
existentes no Bairro Corôa e Tucuns. Ver: Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba, ano 01, nº 19, 05 maio 1955, p.
01-02.
51
fábrica dos Moraes S/A, localizada no mencionado bairro da “Corôa”, hoje nomeado de
bairro Nossa Senhora do Carmo.
Nos anos 1950/1960, esses bairros eram os locais mais suscetíveis aos
transtornos provocados pelos constantes alagamentos no período chuvoso 93. De fato, são
recorrentes nos jornais parnaibanos, matérias que falam sobre uma grande quantidade de
desabrigados, retirados de suas casas pela força das águas, pelas inundações que, ano após
ano, se repetiam, sem uma solução por parte do poder público. Interessante observar ainda
que o vereador justifica o projeto de isenção de imposto argumentando que este vai ajudar
os moradores, pedindo parecer favorável junto à Câmara Municipal, pois este iria favorecer
os anseios daqueles “trabalhadores pobres, músicos, pedreiros, marceneiros, ferreiros,
carroceiros, estivadores, padeiros, serventes e demais trabalhadores humildes de Parnaíba” 94.
Na cidade de Parnaíba, na segunda metade da década de 1950, criou-se um
mecanismo de participação política dos setores empresariais e políticos, como os
mencionados herdeiros da firma Poncion Rodrigues, os irmãos José Alexandre Caldas
Rodrigues e Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, amparados por setores do sindicalismo
local. Esse projeto político, evidenciado por meio de um conjunto de propostas nacional-
desenvolvimentistas, pode ser percebido com bastante evidência nas fontes de pesquisa.
Importante destacar que nos anos 1950, sobretudo após 1954, há uma
reformulação nos quadros e nas práticas do trabalhismo brasileiro, por conta da chegada de
João Goulart à presidência do PTB, da sua atuação enquanto ministro do Trabalho, além das
consequentes reformulações do partido após a morte de Vargas. Jorge Ferreira indica que,
naquele momento, Jango recebia lideranças sindicais para conversações e agia como uma
espécie de intermediário entre os anseios dos trabalhadores e o governo 95 . Foi naquele
contexto também que os grupos conservadores, por meio da imprensa, lançaram visões
negativas sobre a figura de Jango, afirmando que este planejava controlar os principais
sindicatos do país, e que “seu objetivo geral será tomar o poder por meio de uma greve
geral”96.
93
A cidade de Parnaíba, em períodos chuvosos, assistia o flagelo das comunidades dos bairros populares da
“Corôa” e “Tucuns” que, por serem mais baixos e mais próximos do cais do rio, eram atingidos quando das
enchentes, causando prejuízos e perdas materiais aos moradores. As classes trabalhadoras de Parnaíba, em sua
maioria, residente nos bairros em questão, eram as mais suscetíveis às constantes inundações, pois ambos os
bairros possuíam, e ainda possuem, grande aglomeração humana e são, ao mesmo tempo, pouco amparados
pelo poder público.
94
Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 01-02, 1955.
95
FERREIRA, Jorge. O ministro que conversava: João Goulart no ministério do Trabalho. In: Ferreira, Jorge.
O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular 1945-1964. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2005, p. 102.
96
Idem, p. 103.
52
97
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. PTB: do getulismo ao reformismo. 1945-1964. São Paulo: Marco
Zero, 1989.
98
DELGADO, 1989, p. 291.
99
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI. 13 out. 1956, p. 01
53
nacional, teve, nesse sentido, como uma das suas características, a forte presença dos setores
empresariais nos cargos de direção do partido. Para Maria Celina D’Araújo, “se num
primeiro momento o partido ficou sob o comando formal dos trabalhadores, poucos meses
depois figuras expressivas do Ministério do Trabalho e outros tipos de militantes, inclusive
empresários, passaram a assumir explicitamente as funções de chefia”100. Nesse ponto, como
se pode aventar, essa foi também uma das marcas do trabalhismo em uma cidade como
Parnaíba, onde setores empresariais progressivamente tomaram a frente do quadro partidário
do PTB.
No que se refere ao processo de constituição do PTB parnaibano, na segunda
metade da década de 1950, a imprensa ligada ao partido buscou impulsionar o nome de José
Alexandre nesse quadro de reformulação partidária, com notas permeadas de títulos
valorativos e grandiloquentes, tais como o de “chefe supremo do trabalhismo parnaibano”101.
Bem como, ainda de acordo com a imprensa, este [José Alexandre] seria “pessoa demais
querida e relacionada nos meios sociais, comerciais e políticos de nossa terra” 102. Portanto,
a imprensa ligada aos trabalhistas serviu como meio de veiculação das práticas políticas e
de discursos enaltecedores aos nomes do PTB local, sobretudo com a intenção de ampliar a
receptividade de alguns políticos dessa legenda.
Um ponto precisa ser discutido aqui, no entanto. O trabalhismo local, a meu ver,
e as pautas levantadas pelo partido, não podem ser percebidos simplesmente como algo que
foi imposto de cima para baixo pelos grupos políticos e empresariais locais, no sentido de
angariarem votos dos trabalhadores urbanos. Existem estratégias de negociação e pontos em
disputa entre empresários e a classe trabalhadora. Não compreendo a figura do trabalhador
local enquanto meramente passivo às orientações dos grupos políticos/empresariais
parnaibanos, mas como sujeitos que perceberam as possibilidades abertas pela relação mais
direta com o Estado, com a legislação criada para atender os anseios da classe trabalhadora
e, em certo sentido, também com o projeto político trabalhista em evidência naquele
momento.
Esses pontos ficam mais evidentes quando as pautas que os trabalhadores
começaram a levantar diziam respeito mais propriamente às questões salariais, ao
cumprimento das obrigações trabalhistas, bem como – e isso é importante destacar – a
100
D’ARAUJO, Maria Celina. Sindicatos, carisma e poder: o PTB de 1945-1965. Rio de Janeiro: FGV, 1996,
p. 41.
101
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, ano 03, n. 227, p. 04, 01 maio 1957.
102
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 04, 1957.
54
103
GOMES, Ângela de Castro. Questão social e historiografia no Brasil do pós-1980: notas para um debate.
Revista Estudos históricos, Rio de Janeiro, n. 34, jul./dez. 2004, p. 182.
104
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. 2004, p. 182.
105
O Trabalhismo em marcha! Ver: Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 02, 07 jul. 1956.
55
106
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 02, 07 jul. 1956.
56
107
Jornal Gazeta do Piauí, p. 02, 07 jul. 1956.
108
Esse projeto esteve em evidencia sobretudo a partir do segundo governo Vargas (1951-1954), mas foi
colocado em prática ainda nos anos 1930. Tem como norte, dentre outros aspectos, a definição de políticas
menos conjunturais ou de curto prazo. Além de propostas profundas e coerentes entre si nas mais diversas
áreas, muito além das variáveis estritamente econômicas, como educação, transportes, saúde, direitos sociais,
relação capital/trabalho e cultura, por exemplo. Além disso, buscava a superação do modelo agroexportador
através de medidas para materializar, como alternativa, a industrialização e a diversificação da produção
agrícola e da pauta de exportações. O fortalecimento das estatais e a defesa das riquezas naturais brasileiras.
Tinha-se o entendimento de que esta construção não adviria por forças espontâneas ou pelos mecanismos de
mercado; mas o Estado deveria ser o agente indutor de tais mudanças. Para mais informações sobre o projeto
nacional-desenvolvimentista, ver: FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Nem ortodoxia nem populismo: o Segundo
Governo Vargas e a economia brasileira. Tempo [online]. 2010, vol.14, n. 28, p.19-58. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/tem/v14n28/a02v1428.pdf. Acesso em: 05 fev. 2019.
57
Para o autor, os enunciados desse projeto traziam consigo também a proposta, então expressa
no trabalhismo, de uma sociedade mais justa e equilibrada109.
No contexto da experiência liberal democrática (1945-1964), grupos de
trabalhadores urbanos no espaço norte-piauiense construíram para si alternativas
reivindicativas e formas de inserção no âmbito da política, bem como procuraram meios de
atendimento de seus direitos. Naquele contexto, muitos desses trabalhadores se sentiram
próximos a determinados líderes políticos por conta da sua atuação em defesa dos interesses
da classe trabalhadora. Nesse ponto, é possível vislumbrar, em periódicos de circulação local,
uma série de reclames da classe laboral direcionados às figuras do PTB nacional e ao
Ministério do Trabalho, no sentido de ver atendidas suas reivindicações. Exemplar, nesse
sentido, é um telegrama enviado por trabalhadores marítimos locais, para Fernando Ferrari,
João Goulart, bem como ao titular da pasta do Trabalho naquele momento, o ministro Nelson
Omegna110.
Como se pode aventar, a defesa dos direitos dos trabalhadores assumiu uma nova
feição na segunda metade da década de 1950, por meio da atuação do Ministério do Trabalho
e da postura assumida por figuras como João Goulart, enquanto esteve à frente do órgão.
Além disso, também pela atuação de lideranças trabalhistas no que diz respeito ao
cumprimento da legislação pertinente aos trabalhadores. Cabe ressaltar que os trabalhadores
109
FONSECA. Pedro Cezar Dutra. op. cit. 2010, p. 56-57
110
Nelson Backer Omegna foi deputado reeleito em outubro de 1954 na legenda do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Tornou-se vice-líder de seu partido na Câmara a partir de março de 1955, tendo sido autor
de diversos projetos de caráter trabalhista e de interesse nacional. Nessa legislatura, foi presidente da Comissão
do Imposto Sindical e da Comissão de Finanças e membro da Comissão de Orçamento da Câmara. Deixando
temporariamente a Câmara Federal, ocupou, durante o governo de Nereu Ramos (1955-1956), o cargo de
Ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, de novembro de 1955, ao suceder Napoleão de Alencastro
Guimarães, até janeiro do ano seguinte, quando foi substituído por José Parsifal Barroso. De volta ao exercício
do mandato ainda em 1956, integrou-se à Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), então formada por deputados
do Partido Socialista Brasileiro (PSB), do PTB, da UDN e do Partido Social Democrático (PSD). Fonte:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/nelson-backer-omegna. Acesso em: 13 out.
2017.
111
Os marítimos do Piauí dirigem-se às federações nacionais dos marítimos, ao ministro do trabalho e a um
parlamentar; desesperadora sua situação – apelo veemente. O Paladino, 19 jan. 1956. Parnaíba-PI.
58
em questão assumem uma postura de reivindicação de seus direitos, por perceberem que
certamente seriam ouvidos e atendidos em suas causas.
Mesmo distantes dos grandes centros de decisão política, esses trabalhadores
parnaibanos poderiam manter canais de diálogo com figuras de relevo na política brasileira
daquele momento, pois confiavam em suas atuações e poderiam, por meio de suas
correspondências, lançarem suas queixas em busca de resolução para os impasses a que
estavam submetidos. Na mesma matéria do jornal O Paladino, órgão noticioso em que se
podem ver algumas das práticas políticas petebistas, o noticiante seguia enfatizando que foi
montada uma comissão para ir diretamente ao Rio de Janeiro resolver tal problema:
112
Jornal O Paladino, p. 03,1956.
113
GOMES, Ângela de Castro. Op. cit. 2004, p. 182
59
114
FERREIRA, Jorge. O ministro que conversava: João Goulart no Ministério do Trabalho. In: FERREIRA,
Jorge. O imaginário trabalhista: getulismo, PTB e cultura política popular (1945-1964). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 118-119.
115
A Lei municipal sobre impostos e o grupo econômico de Parnaíba. Gazeta do Piauí, n. 151, p. 01, 18 ago.
1956.
60
Chegando ao ponto de afirmar que suas lideranças falariam em nome da classe trabalhadora,
como mencionado em trecho anterior.
116
A Lei municipal sobre impostos e o grupo econômico de Parnaíba. Jornal Gazeta do Piauí, n. 151, p. 01,
18 ago.1956.
117
Na imprensa trabalhista, existem inúmeros textos referentes ao desabastecimento de itens de consumo
básicos no mercado municipal, como a carne bovina, alimento básico na dieta da comunidade. Os trabalhistas
vão vincular o desabastecimento do produto à inoperância e incapacidade da gestão do Prefeito Alberto Silva
em manter as condições mínimas de bom funcionamento do mercado municipal.
61
A ferro e fogo: as práticas eleitorais no final dos anos 1950 e o uso da violência nas
disputas entre os grupos político-partidários no Piauí
118
O personalismo, enquanto laço constitutivo da formação política brasileira, se caracteriza, de acordo com
Rodrigo Patto Sá Motta, pela “primazia dos laços pessoais em detrimento de relações impessoais”. De acordo
com essa perspectiva, por esses meios se “privilegiariam a fidelidade a laços de parentesco, de amizade, de
compadrio ou de patronagem à revelia de normas universais, mostrando baixa adesão a projetos políticos e a
instituições impessoais”. Por isso, ainda de acordo com Motta, “é mais frequente a identificação política com
pessoas do que com projetos coletivos”. Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Cultura política e ditadura: um debate
teórico e historiográfico. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 109 ‐ 137, jan./mar. 2018.
119
GRYNSZPAN, Mário. Os idiomas da patronagem: um estudo da trajetória de Tenório Cavalcanti. Revista
brasileira de ciências sociais, n. 14, p. 73-90, out. 1990.
120
Exemplo desta narrativa valorativa da cidade, enquanto progressista e culta, são as inúmeras produções
textuais e poéticas do Almanaque da Parnaíba, que circulam tecendo elogios à cidade e a seus moradores. Cito
como exemplo um texto de 1956, de título “amo-te, minha terra”, onde se lê: “Parnaíba, tu és um dos elos
62
imprensa escrita, é que, por outro lado, podemos evidenciar que, além dessa narrativa
harmônica, persistia, na prática, o emprego da força física como meio de resolução dos
impasses políticos.
Sobre a ampla utilização da violência nas disputas político-partidárias no espaço
piauiense, a historiadora Marylu Alves de Oliveira já observara essa questão, quando
apontou que é marca visível desse espaço o uso de práticas como “ameaças, perseguições,
prisões, incêndios criminosos e assassinatos”. Segundo a autora, esses gestos caracterizavam
muitas vezes as disputas locais entre os partidos no Piauí. Também de acordo com a autora,
“o exercício da chefia política era considerado reduto de poucos e, de forma geral, os que
dominavam esses meios tinham sob sua guarda a posse da terra, assim como também eram
detentores de um poder simbólico, que fazia com que boa parcela dos populares/eleitores os
tratassem com deferência”121.
Outro trabalho local que merece menção é a tese de Francisco Alcides do
Nascimento, que destaca, dentre outras questões, o processo de modernização autoritária
ocorrido em Teresina nos anos 1930/1940, no contexto do Estado Novo. O trabalho indica
que no mesmo momento de visíveis mudanças no espaço citadino teresinense, com as
reformas no seu traçado urbano, ocorreu uma série de atos violentos contra a população mais
carente na cidade, como incêndios em casas populares, com a finalidade de as retirarem dos
espaços urbanos centrais. Alguns desses atos eram atribuídos, por meio de denúncias, à
própria força policial estabelecida. Ainda se percebia “um número abusivo de torturas,
prisões, intimidações, sessões de pancadaria e o estabelecimento de um clima de terror por
parte das forças policiais, no mesmo processo histórico que marca a ‘modernização’ dessa
estrutura no Estado”122, segundo o autor.
Esse é um aspecto marcante da cultura política piauiense e resolvi abordá-lo
neste item para perceber como se processavam os jogos de poder, no que se refere ao
contexto político parnaibano, sobretudo na gestão do prefeito Alberto Tavares Silva. Ele
próprio era ligado aos grupos tradicionais de proprietários de terra na região norte-piauiense,
detentor de posses na zona rural de Parnaíba, mais especificamente na Ilha Grande de Santa
Izabel e, segundo relatos de trabalhadores, agia com violência nesse espaço de domínio.
principais deste vasto rincão piauiense, sendo um dos melhores exemplos da cultura oferecida ao nosso
Estado”. Aqui não iremos aprofundar a discussão, mas somente mencionar que o anuário Almanaque, dentre
outras produções, estabelecem uma narrativa valorativa na cidade. Ver: MACÊDO, Marinho de. Amo-te,
minha terra. Almanaque da Parnaíba, 1956, p. 121.
121
OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2016, p. 21.
122
NASCIMENTO, Francisco Alcides do. A Cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina
(1937-1945). Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2002.
63
Lançamos, portanto, alguns pontos de discussão: Quais os efeitos que tais práticas
ocasionaram nas contendas político-partidárias? É possível pensar a violência nesse meio
como resultado de uma cultura política autoritária no espaço piauiense? Essas, dentre outras
questões, orientam este item do trabalho.
Nos textos do Almanaque da Parnaíba, como dito, há pontos bastante elogiosos
da “tradição harmoniosa” de Parnaíba, enquanto uma cidade que seria “ordeira e de boa
índole”. Porém, também se tratava sobre alguns aspectos presentes no corpo social, como
os casos de assassinato por rivalidades pessoais e políticas. Importante frisar que quando os
escritores se referiam a essa questão, nas publicações do Almanaque, não se comentam os
casos locais de pistoleiros que agiam à margem da lei em benefício de determinados grupos
familiares e políticos, mas apenas em outros espaços, como se essas práticas não fossem
objeto de preocupação em Parnaíba.
No ano de 1956, a edição do Almanaque trouxe à baila a discussão em torno da
“pena de morte”. Escrito por Dr. Domingos Silva, o texto ligava a questões da “natureza”
de alguns homens, aquilo que, por diversas razões, estava fortemente ligado a uma cultura
política local de violência e desmandos, onde alguns indivíduos, por conta de sua posição
privilegiada, se arrogam no direito de usarem a força, pois entendiam – certamente – que
estavam acima da lei, por conta do seu poder econômico. O texto em questão destacava que:
O celeiro da morte vai se tornando, dia a dia, mais farto, com o número
cada vez mais impressionador das vítimas que lhes batem às portas para lá
empurradas pelo punho de ferro dos assassinos. Há espalhados, por assim
dizer, por todo brasil, piquetes de terríveis matadores. [...] Tiram a vida de
outrem por isto ou por aquilo e também por tradição. Individuas sub-
humanos ou tipos anômalos, irrompendo por toda parte, como um
cataclisma e conhecendo que o clima lhes é propício, agem como bem lhes
parece, exterminando vidas, estimulando-se entre si em aventuras[...]não
os intimidam o júri, as cadeias, as penitenciárias [...] por uma desgraçada
similitude se aparentam com as feras e não com os homens123.
123
SILVA, Domingos. Capítulos de pequena tese sobre a pena de morte. Almanaque da Parnaíba, Ed. 1956,
p. 126.
64
Piauí foi constituindo a imagem de um “lugar no qual a violência praticada por forças
particulares engendrava e constituía uma das formas de manutenção ou aquisição de poder”.
É visível, portanto, de acordo com o autor, a “violência enquanto marca identitária do
processo de formação da sociedade piauiense” 124. Constituindo-se, a partir disso, “um mundo
também tenso, hostil e perigoso no qual os jogos de interesses e vontade de domínio
marcaram as experiências vividas”.
No jornal A Tribuna, do grupo pessedista parnaibano ligado ao Coronel
Epaminondas Castelo Branco, percebe-se uma forte crítica também aos grupos udenistas
estaduais, que estiveram à frente do governo Rocha Furtado 125 (1947-1951), primeiro
governo eleito após o Estado Novo, bem como dos partidários do udenismo local, ligados à
primeira gestão do Prefeito Alberto Silva. Verifiquei que o uso intensivo da violência e da
força, amparado pelo aparato policial, era um aspecto presente em todo o quadro histórico
da política local, desde os tempos de Estado Novo e até de momentos mais remotos,
passando também pela experiência liberal democrática (1945-1964).
Uma das marcas levantadas pela oposição ao segundo governo Alberto Silva
(1955-1958), perceptível por meio das fontes impressas, foram as denúncias sobre o uso
intensivo de atos violentos por parte do gestor municipal e seus aliados contra os seus
adversários políticos. De acordo com as matérias, se processaram atos de arbítrio, como a
perseguição aos servidores municipais ligados à gestão antecedente, do petebista João
124
DIAS, Aelson Barros. Em nome do poder, da força e da honra: Banditismo e violência nos confins do sertão
sul piauiense. 2012. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História do Brasil,
Universidade Federal do Piauí, Teresina-PI, 2012.
125
José da Rocha Furtado foi eleito governador do Piauí em janeiro de 1947, na legenda da União Democrática
Nacional (UDN), derrotando o coronel Jacob Manuel Gayoso e Almendra, candidato do Partido Social
Democrático (PSD). Assumiu o governo piauiense em 28 de abril seguinte, sucedendo ao interventor interino
Valdir de Figueiredo Gonçalves, que, por sua vez, havia substituído em março o interventor federal Teodoro
Ferreira Sobral. Ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/furtado-jose-da-rocha.
Acesso em: 02 mar. 2017.
126
Jornal A Tribuna. Parnaíba-PI, ano 02, n. 84, p. 03, 19 abr. 1951.
65
127
Jornal Gazeta do Piauí. Parnaíba-PI, ano 01, n. 57, 14 set. 1955.
66
Em cenários políticos de forte mobilização por conta dos pleitos eleitorais, essa
onda de violência tornava-se mais evidente na cidade. É possível apontar que, nesses
momentos de disputa partidária, os ânimos estavam mais exaltados. Os comícios aconteciam
em alguns pontos da cidade e, no caso do PTB, esses geralmente se realizavam nos bairros
mais periféricos. Portanto, a presença da força policial no sentido de intimidação aos
populares e petebistas era notória. Algo que se evidencia nos jornais, que se tornava comum
naquele momento, envolvendo as disputas político-partidárias, era o uso da força policial
em benefício de determinado grupo ou interesse político-partidário. Segundo denúncia do
articulista, ocorreram também “outros espancamentos verificados em plena rua da cidade”.
Em uma outra matéria feita no jornal Correio do Povo, pelo jornalista Luciano
Lacerda, esse mesmo – diretor do jornal – indicava que foi detido de forma arbitrária a
mando dos grupos udenistas locais, sem uma justificativa plausível, pela figura do chamado
“Doutor Osvaldo Cabeleira”, delegado da cidade. A prisão do jornalista se deu, de acordo
com a denúncia, simplesmente por escrever textos fazendo críticas ao grupo udenista e à
gestão municipal de Alberto Silva e de seus apoiadores, como o deputado Cândido Oliveira.
Inúmeras críticas eram levantadas, na imprensa ligada aos trabalhistas, à forma de atuação
do dito delegado (Osvaldo Cabeleira) que, segundo os textos na imprensa, agia à revelia da
lei, em nome dos grupos políticos da UDN.
Doutor Cabeleira
Doutor Cabeleira enviou uma carta para ser distribuída à imprensa,
alegando que não houve nada de anormal na manhã do dia 15. Apenas uma
prisão sem importância e nada mais. O culpado de tudo foram os
elementos agitadores que, aliados a políticos, tentaram perturbar a ordem
pública. O agitador, no caso, é este seu creado. O político é José Alexandre.
Grande inteligência a do Osvaldo Cabeleira. Durante três longos anos que
aqui resido, privando da amizade estreita dos Delegados Antônio
Gutemberg e João Valdivino, nunca a polícia queixou-se de qualquer
agitação de minha parte[...]129
128
A Polícia vigiou o comício do P.T.B. Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 77, 29 abr. 1958.
LACERDA, Luciano. Doutor Cabeleira. Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 94, p. 02, 29 nov.
129
1958.
67
Um dos pontos colocados nas memórias de José Nelson, citada acima, que se
faz pertinente mencionar, é uma ampla divergência partidária que se referia às questões de
disputas políticas envolvendo cargos dentro da prefeitura de Parnaíba. Com a saída do grupo
petebista, na primeira gestão do PTB em Parnaíba, até 1955, o grupo udenista, ao chegar ao
poder (1955-1958), foi acusado pelos trabalhistas de lotearem a prefeitura com cargos para
os seus protegidos políticos e de, por outro lado, perseguir e demitir em massa funcionários
ligados ao grupo político adversário. A partir da derrota, nas eleições municipais em 1958,
do grupo udenista, ligado à família Silva, os petebistas estariam novamente com cargos e
verbas da prefeitura de Parnaíba à disposição, o que, por certo, também gerou uma série de
expulsões, agora de udenistas, como também praticara o ex-prefeito Alberto Silva.
No caso em questão, do assassinato do trabalhista Alcenor Candeira, há uma
disputa interna, como se pode depreender, na prefeitura, no que diz respeito às investigações
de licitações na compra de produtos para o município. Na condição de secretário de governo
da área de educação, mas também atuando na área de segurança do município, na gestão dos
petebistas, o professor José Nelson, em livro autobiográfico, narrou os eventos referentes ao
assassinato do secretário Alcenor Candeira, em 1959.
130
PIRES, José Nelson de Carvalho. Biografia: conversando com meus filhos para meus netos. Parnaíba-PI:
Sieart, 2010, p. 56.
131
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 56.
69
encontrei, em nota, a seguinte informação do estado de saúde de Jamacy, três meses após o
ocorrido.
Sabemos perfeitamente que o Sr. Alberto Silva não estava alheio aos
acontecimentos verificados na manhã do dia 15. Ele mesmo, na residência
do Sr. Cândido Oliveira, havia declarado que era necessário dar ao povo
uma demonstração de força, através da ação da polícia. Ele sabia que no
dia seguinte seriam efetuadas prisões indistintamente, com o intuito de
amedrontar o povo, principalmente o eleitorado menos esclarecido da
cidade. Mas o senhor Cândido Oliveira que olha as coisas mais longe,
estendeu essas medidas de violência aos próprios correligionários do
prefeito, e no sentido de enfraquecê-lo, afastá-lo do páreo político. Tanto
assim que tendo sido agredido um sobrinho do Sr. Alberto Silva, que é por
sinal um moço de bem à prova de todos e bastante estimando na cidade o
sr. Cândido Oliveira, nenhuma providência tomou de início. Foi para a
132
Há três meses com uma bala alojada no pescoço. Jornal Correio da Manhã, p. 04, 04 fev. 1960.
70
133
Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 77, 29 abr. 1958.
134
Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 80, 24 jul. 1958.
71
135
Tropa Federal em Parnaíba. Jornal Correio do Povo. Parnaíba-PI, ano 03, n. 91, 01 de out. 1958.
72
As disputas locais entre UDN e PTB durante a gestão de Alberto Silva frente à
prefeitura de Parnaíba, por certo inviabilizaram qualquer tipo de aproximação entre o grupo
udenista, ligado à família Silva, ao PTB local, por sua vez ligado à família Caldas Rodrigues,
pelas rivalidades entre esses dois grupos. Se no âmbito estadual as negociações para as
eleições de 1958 avançaram, sobretudo envolvendo ex-udenistas, que se vincularam aos
quadros partidários trabalhistas após a reformulação do PTB em 1954, quando da chegada
do grupo político ligado ao Senador Mathias Olímpio, às hostes trabalhistas137, em Parnaíba
os ranços conflituosos entre os dois grupos ainda eram fator impeditivo para possíveis
acordos locais. Além do fato de que, em um cenário político desenhado para o ano de 1958,
as aproximações políticas entre os udenistas da família Silva e pessedistas eram mais sólidas
na cidade, fator que ocasionou uma ruptura nos quadros do diretório municipal da UDN,
com uma intervenção do diretório estadual e consequente retirada do nome de Alberto Silva
do partido, em prol do nome de José Nelson de Carvalho Pires no diretório udenista
parnaibano.
Intervenção esta que favoreceu a aliança udeno-trabalhista nas eleições daquele
ano (1958), pois, segundo livro de memória do próprio José Nelson, “foi feita então a
intervenção no diretório municipal da UDN de Parnaíba, tendo José Nelson como
interventor, afastando, portanto, Alberto Silva e João Silva do diretório municipal” 138 . A
partir de então a aliança que se desenhara para as eleições estaduais entre as “oposições
coligadas” puderam ter efetividade na cidade, ajudando a eleger Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues, como governador do estado, bem como seu irmão José Alexandre Caldas
Rodrigues, prefeito de Parnaíba, no ano de 1958.
136
PIRES, José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p, 35.
137
Importante aqui destacar os conflitos que ocasionaram a debandada de uma ala da UDN piauiense para o
PTB. Sobre essa questão, Marylu Oliveira destaca que: “aqueles políticos trabalhistas que se encontravam sob
o comando do partido durante o processo sucessório de 1958 haviam saído da UDN sob litígio público há
menos de quatro anos. Compondo os antigos quadros da UDN, o senador Mathias Olympio, o deputado federal
Chagas Rodrigues e o também deputado federal Demerval Lobão travaram publicamente um embate pelo
domínio partidário daquela sigla com o deputado federal José Cândido Ferraz e o ex-governador Eurípedes de
Aguiar. [...] O litígio entre o grupo chamado de matiista e o grupo liderado pelo deputado federal José Candido
Ferraz, que se debateram até promoverem uma ruptura no seio do partido, saindo vitorioso o grupo de Ferraz,
tornou-se a principal notícia dos jornais locais. Depois da derrota, a ala matiista foi para o PTB levando consigo
vários correligionários de todo o Estado. Pouco tempo depois, em 1958, estariam juntos ex-udenistas e
udenistas, sob o signo de petebistas e udenistas”. (OLIVEIRA, Marylu Alves de. op. cit. 2016, p. 168.)
138
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 51.
73
Após o arranjo, houve nova reformulação por conta de acidente139 que vitimou
dois dos candidatos ao governo do estado. “Com a morte de Demerval Lobão e Marcos
Parente, em consequência de acidente automobilístico, foram substituídos os candidatos, e
Chagas Rodrigues foi indicado, em substituição a Demerval Lobão, como candidato ao
governo do estado e Tibério Nunes para vice-governador”. Arregimentou-se então a chapa
das oposições coligadas, contando com os nomes de “Chagas pelo PTB e Tibério pela UDN,
e ainda José Alexandre para prefeito de Parnaíba, pelo PTB, apoiado pela UDN, dirigida por
José Nelson” 140 . Pelo acordo feito e cumprido em Parnaíba, José Nelson foi nomeado
secretário do departamento de educação e saúde da prefeitura, bem como responsável pela
secretaria de segurança, cabendo a ele, José Nelson, indicar Delegados de polícia e
servidores da mesma”141.
Mesmo antes de se iniciarem as campanhas para as eleições de 1958, os
possíveis arranjos políticos já estavam sendo discutidos em consonância com os interesses
de cada grupo político. A rivalidade local entre os petebistas e udenistas, foi um dos pontos
que tenderam a inviabilizar uma possível aliança entre os dois grupos, fortemente marcados
pela presença de um lado dos irmãos Rodrigues e de outro lado pela família Silva. Em 1957,
portanto um ano antes das eleições, a imprensa trabalhista começou a discutir os percalços
daquilo que se ventilava no quadro eleitoral: uma aliança, em âmbito estadual, entre PTB e
UDN, que traria consequências para o cenário eleitoral parnaibano, marcado por rivalidades
e disputas violentas, difíceis de superar.
139
Trata-se de desastre automobilístico na BR-316 em Teresina, vitimando alguns nomes da chapa UDN-PTB,
que concorreriam as eleições de 1958, tais como: Demerval Lobão, Marcos Parente, José Ribamar Pacheco,
Rubem Perlingeiro e o motorista José Raimundo, além de trabalhadores (Cassacos). A tragédia rodoviária
ganhou repercussão em todos os jornais do Piauí, sendo amplamente utilizada nas eleições que aconteceram
logo após.
140
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 51.
141
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2010, p. 51.
74
A partir do texto escrito no Gazeta do Piauí, é possível notar que havia uma
forte rivalidade que impossibilitava qualquer aproximação política entre os grupos udenistas
e petebistas, devido àquilo que já ocorrera enquanto perseguição de funcionários públicos
pela gestão de Alberto Silva, bem como da própria acusação de agressões feitas a mando da
liderança udenista na cidade, contra as figuras ligadas ao quadro político trabalhista, como
é o caso do vereador Custódio Amorim, que por diversas vezes foi eleito pela legenda
trabalhista, para a Câmara Municipal. Esse vereador foi um dos indiciados no Inquérito
Policial Militar em 1964, por sua atuação no PTB local.
142
Comentários do momento. Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, ano 03, n. 233, p. 01, 01 jul. 1957.
143
Jornal Gazeta do Piauí, Parnaíba-PI, p. 01,1957.
75
Alberto Silva, parnaibano, engenheiro, que fora prefeito em Parnaíba pela UDN,
por duas vezes, no entanto, foi, já durante a ditadura civil-militar, um nome de confiança
dos militares, vindo a ser nomeado enquanto interventor estadual no Piauí (1970 a 1975),
pelo próprio general Médici. É preciso, portanto, analisar as complexas relações que se
estabelecem entre alguns grupos políticos piauienses, nos anos 1950, mas também no
momento do golpe de 1964 e com o avanço da ditadura, pois, em alguns casos, fica
perceptível que existiram práticas de adesão e acomodação de tais grupos com os militares
que foram fundamentais para a legitimação social do golpe e na compreensão de uma
determinada cultura política conservadora nesse estado.
A facilidade que tais grupos têm de compor governos autoritários, de se aliar a
projetos antipopulares, se bem analisadas, podem ajudar a explicitar algumas das
particularidades políticas piauienses. Tais análises podem permitir uma melhor compreensão
no que diz respeito à manutenção dos mandonismos locais e da sobrevivência de
determinados marcadores políticos, que permitiram, durante muito tempo, a preservação de
poucos grupos nos espaços de poder no estado do Piauí. No segundo capítulo dessa tese, irei
analisar o cenário político piauiense dos anos iniciais da década de 1960, por meio dos
movimentos sociais e as reações que provocaram no meio político.
76
CAPÍTULO II
PETEBISMO, REFORMISMO RADICAL E REAÇÃO ANTICOMUNISTA NO
PIAUÍ NOS ANOS 1960
O texto acima, que uso para iniciar este capítulo, é sintomático da configuração
de um momento em particular da história política piauiense. Com o intuito de criar um certo
clima de otimismo em torno das gestões petebistas – do governador Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues e de seu irmão, prefeito de Parnaíba, José Alexandre Caldas Rodrigues –
ambos eleitos no pleito de 1958, algumas das matérias dos veículos de comunicação da
imprensa parnaibana mudaram o tom empregado em seus periódicos. Se anteriormente, em
jornais como Gazeta do Piauí, predominavam textos de ataque à gestão municipal do
udenista Alberto Silva, em Parnaíba, e à gestão do governo estadual nas mãos do PSD, a
partir de 1959, com a chegada ao poder do PTB, a linha editorial empregada passou a ser de
144
NARCISO, Antônio. A primeira etapa. Gazeta do Piauí, p. 03, 31 jan. 1960.
77
valorização das figuras políticas petebistas, sobretudo dos irmãos Caldas Rodrigues, alçados
à condição de lideranças no estado, tanto no governo estadual, quanto na esfera municipal
em Parnaíba.
Naquele momento, a construção discursiva desses jornais buscava imprimir,
sobre os petebistas supracitados, a ideia de que viriam para trazer para o Piauí os signos da
modernização econômica, em um discurso claramente afinado com as pautas
desenvolvimentistas – fortes no estado – e também com certo pioneirismo no trato com
atividades assistencialistas e na busca por racionalizar a administração burocrática estatal,
inclusive com mudanças positivas nos planos salariais de determinados segmentos da
máquina pública. As pautas políticas do PTB no estado buscaram, desde então, retirar do
Piauí a pecha de “estado mais pobre da federação”, buscando inseri-lo dentro de um processo
de dinamização econômica com o quadro nacional, ao menos do ponto de vista das
iniciativas.
No final dos anos 1950 e início da década de 1960, as velhas queixas dos grupos
econômicos locais, como a construção e término da obra do Porto de Luís Correia 145 ,
longamente reclamado como uma possível solução para o escoamento da produção
extrativista, foram novamente ventiladas como urgentes e agora palpáveis pois, finalmente,
para os grupos locais, havia sido eleito um governador do estado oriundo da cidade de
Parnaíba. Nas fontes impressas às quais tive acesso durante esta pesquisa, fica notório o
quanto os jornais de circulação local foram utilizados nas celeumas político-partidárias
naquele quadrante histórico.
Se, por um lado, na cidade de Parnaíba parte da imprensa amplificava aquele
momento enquanto propício ao crescimento econômico da cidade, por outro lado, começou
a se perceber uma maior presença de sindicalistas nas disputas políticas. Além disso,
ganharam corpo novas formas de questionamento da estrutura político-econômica, em
consequência da ampliação das bandeiras do nacional-reformismo, do governo João Goulart.
O que, de certa forma, causou alvoroço em grupos mais conservadores, sobretudo no que se
refere às pautas da reforma agrária, que foram amplamente discutidas na imprensa piauiense,
145
A construção do Porto de Luiz Correia - cidade litorânea, distante pouco mais de 16 km de Parnaíba - é uma
antiga reivindicação das classes comerciais piauienses. Durante muito tempo, desde o século XIX, o porto foi
apontado como possível solução para o desenvolvimento econômico do estado. O Piauí assiste a diferentes
governos e grupos políticos no poder, mas nunca viu a solução para aquilo que se constituiu, no imaginário
local, como salvação para a produção econômica local. O longo dilema rendeu livro: MENDES, F. Iweltmam.
Porto de Luís Correia: histórico de um sonho. Parnaíba: SIEART, 2008.
78
como reflexo do clima de acirramento em torno dos projetos políticos que marcaram o país
no início dos anos 1960.
Do ponto de vista prático, durante a gestão do petebista Francisco das Chagas
Caldas Rodrigues (1958-1962), houve amplo investimento, por meio de sua política
desenvolvimentista, na abertura de estradas de rodagens, por parte da iniciativa estadual,
bem como na busca de melhorias nos recursos energéticos locais, pois estes grupos estavam
afinados com a necessidade de integração do Piauí ao contexto econômico nacional. Além
disso, buscava-se a valorização do funcionalismo público estadual, a ampliação e reforma
de escolas estaduais, investindo em projetos de inclusão de grupos populares nos ambientes
educacionais. Um dos pontos também de destaque desse governo, como dito, foi certo
pioneirismo em tratar da assistência social, criando programas suplementares de alimentação
e auxílio aos grupos carentes e fornecendo aos grupos mais vulneráveis acesso à assistência
jurídica, para resolução de seus conflitos na justiça.
Trabalhos acadêmicos recentes, que tomam como recorte o governo de Chagas
Rodrigues, apontam que o gestor “impôs uma nova forma de administrar, dando grau de
racionalidade técnico-administrativa”. Indicando ainda que, durante sua gestão, “o Estado
interveio de forma a promover o desenvolvimento socioeconômico, criando empresas
estatais nos setores de energia elétrica, telefonia, água e esgotos, etc.”146. Além disso, os
trabalhos destacam que durante esse governo se almejou desenvolver uma “política mais
próxima dos grupos tidos como espoliados. Sua prática pretendeu uma gestão em sintonia
com os anseios e as reivindicações das classes ditas populares aviltadas e marginalizadas” 147.
Em certo sentido, o que mais me chama a atenção na gestão petebista é o apoio que o governo
do estado deu a alguns movimentos sociais, como os sindicatos rurais e urbanos, frente a um
cenário de progressiva ampliação da participação política desses grupos.
A partir dessas questões, cumpre perguntar: qual a particularidade local do
processo de ampliação das demandas dos trabalhadores no Piauí? Que lugar ocupou o
governo Chagas Rodrigues e José Alexandre no processo de radicalização política em início
dos anos 1960? Como isso se processou em uma cidade como Parnaíba, tida como mais
afeita e com maior influência dos trabalhistas? Esses, dentre outros pontos, buscarei
146
LIMA, Flávia de Sousa. Imprensa e discurso político: as disputas pelo poder no Governo de Chagas
Rodrigues (Piauí, 1959-1962). 2011. 160 f. Dissertação (Mestrado em História do Norte e do Nordeste do
Brasil) - Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Pernambuco, Recife, PE, 2011,
p. 147.
147
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. Nas franjas da História: singularidade e distinção na constituição da
Liga Camponesa de Matinhos na Terra dos Carnaubais Piauí. Tese (Doutorado em História). Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, 2017, p. 181.
79
148
MEDEIROS, Antônio José. Movimentos Sociais e participação política. Teresina (PI): Cepac, 1996. p. 69.
80
149
Gazeta do Piauí, p. 04, 31 jan. 1960.
150
ESTADO DO PIAUÍ. Mensagem do Governador Francisco das Chagas Caldas Rodrigues à Assembleia
Legislativa, por ocasião da abertura da sessão legislativa de 1960. Teresina, 1960. [Fonte: Caixa 11 envelope
104, I parte e 124ª parte II parte duplicata parte I] localizada no Arquivo público do Piauí, casa Anísio Brito.
Teresina, Piauí.
81
Enquanto isso, parte da mídia local, mais conectada com os discursos trabalhistas,
percebeu na figura do governador, bem como na atuação de sua esposa no setor de assistência
social, por meio de um certo apelo personalista, a capacidade de atuação mais incisiva nas
questões sociais, pois estes, com “coração generoso” e com ideias “altruístas”, amenizariam
o sofrimento dos mais necessitados piauienses.
Até bem pouco tempo não existia nenhum sistema de serviço social
organizado e executado pelos governos do Estado do Piauí. Foi preciso que
chegasse um governante como Chagas Rodrigues, cheio de ideias altruístas
para que o nosso povo pobre tivesse um pouco de comiseração e de atenção
por parte daqueles que lhe podiam minorar os sofrimentos. Foi assim
criado o ‘Serviço Social do Estado’ e a ‘Assistência Judiciária aos
necessitados’. Duas obras de sentido eminentemente humano, inspiradas
pelo coração generoso da primeira-dama do Estado, D. Maria do Carmo
Correia Caldas Rodrigues, cheia de abnegação pela causa dos pobres,
dando o máximo de seu tempo e de sua ajuda para a solução dos problemas
que afligem a família piauiense. D. Maria do Carmo instituiu em Teresina
a ‘Sôpa do pobre’151.
151
Gazeta do Piauí, p. 04, 31 jan. 1960.
152
CARNEIRO, Grimaldo Zachariadhes. Diálogo, modernização e conflito: uma biografia do cardeal Dom
Avelar Brandão Vilela. Tese (doutorado) – Escola de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Programa
de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais. 2018, p. 70.
82
Senhor Presidente
Hoje amanheci estupefato e decepcionado com o seu governo, pois ganho
um salário de fome e de miséria deixado pelo governo de JK. Ultimamente
com a carestia eu vinha tomando mal o café com minha família e hoje
piorou 100 por cento pois aumentou a condução, o pão, o leite, a gasolina
foi a única culpada, pois quando se pensava que o petróleo era nosso, ainda
continuava sendo do gringo americano [...] Veja bem quanto eu ganho na
indústria por dia: CR$ 133,30, fazendo toda espécie de serviço pesado e
veja como amanheceu hoje a carestia que vem fazendo a alta do dólar e da
portaria de morte nº 204. Pão a CR$ 35,00 o kilo e mesmo assim não tem
atualmente, está em falta a farinha de trigo no Piauí. Carne a CR$ 120,
peixe a CR$ 120,00, arroz a CR$ 35,00 o kilo, açúcar a CR$ 35,00, farinha
a CR$ 20,00; o célebre bacalhau da Semana Santa de CR$ 300,00 o kilo,
feijão de terceira a CR$ 30,00, frutas e verduras pela casa dos CR$ 80,00.
153
LIMA, Flávia de Sousa. Op. cit. 2011, p 73.
154
Luiz Correia é cidade litorânea, distante aproximadamente a 18 km de Parnaíba-PI.
83
SOUZA, Francisco. Carta aberta de um operário do Piauí a Jânio Quadros. Luiz Correia, 22 de março de
155
156
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim a um
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014, p. 144.
157
LIMA, Flávia de Sousa. op. cit. 2011, p. 66.
158
LIMA, Flávia de Sousa. op. cit. 2011, p. 66.
159
OLIVEIRA, Marylu Alves de. A Cruzada Antivermelha - Democracia, Deus e terra contra a força comunista:
representações, apropriações e práticas anticomunistas no Piauí da década de 1960. 2008. 274f. Dissertação
(Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, Teresina. 2008. p.80.
85
O governador Chagas Rodrigues, durante sua gestão, em início dos anos 1960,
se aproximou de nomes do PTB nacional, como Leonel Brizola, quando em 1961, o então
governador do Rio Grande do Sul se comprometeu a enviar ajuda técnica para a resolução
dos problemas econômicos do Piauí. Como mencionado no primeiro capítulo, alguns bairros
populares em Parnaíba eram constantemente invadidos pela força das águas em período
chuvoso, dificultando a vida da população desses locais. A partir do governo municipal de
José Alexandre e do irmão, Chagas Rodrigues, no governo estadual, as iniciativas em torno
de socorro aos flagelados pelas cheias adquiriram apelo junto ao governo federal e ao
governo de outros estados da federação.
Aferi, nessa pesquisa, uma relação de proximidade dos governos petebistas de
Leonel Brizola e Jango junto aos partidários piauienses. Sendo inclusive, essa proximidade,
um dos critérios de acusação lançados pelos militares contra lideranças políticas do PTB
piauiense em 1964160. Nesse aspecto, destaco a presença, em abril de 1960, de “uma comitiva
de médicos do Rio Grande do Sul”, em Parnaíba, enviada “pelo Governador Leonel Brizola,
da progressista terra gaúcha, a fim de prestar socorros aos nossos irmãos vitimados pelas
cheias do Rio Parnaíba e seus afluentes”161. O jornal Gazeta do Piauí, próximo aos petebistas,
destacou que “compõe-se a mesma de 02 médicos; de 02 enfermeiros; de 02 inspetores
sanitários e 04 doutorandos. Todos eles se acham empenhados no serviço de assistência
médica em nossa cidade, percorrendo toda zona alagada”162.
Naquele momento, parte da imprensa local, como o jornal Folha do Litoral,
amplificou os discursos em torno da necessidade de investimentos no estado, tido como o
“primo pobre” da federação, pois este estaria “figurando cronicamente entre os espoliados
em qualquer sistema econômico que o governo federal inaugura neste país”163. Os jornais
então se conectaram aos discursos recorrentes por parte dos grupos políticos que almejavam
investimentos nos setores econômicos locais. A imagem abaixo é sintomática desse processo
de aproximação de lideranças políticas petebistas locais com figuras do PTB nacional, como
João Goulart e Leonel Brizola. Na imagem, destaca-se o então prefeito, José Alexandre
Caldas Rodrigues, acompanhado de João Goulart, de passagem pela cidade de Parnaíba. Essa
aproximação entre lideranças políticas do PTB e sua sustentação sindical foi um dos motes
160
Em um dos casos de indiciados pelo Inquérito Policial Militar, em 1964, na cidade de Parnaíba, um vereador
municipal, Custódio Amorim, é arrolado ao processo de acusação como comunista, simplesmente por propor
homenagem a Brizola na câmara municipal, propondo o título de cidadania parnaibana para o líder trabalhista.
161
O Governador Leonel Brizola socorre o Piauí. Uma comitiva de médicos, sanitaristas e enfermeiros para
atender os doentes da zona alagada na cidade. Gazeta do Piauí, ano VI, n. 521, Parnaíba-PI, p. 01, 06 abr. 1960.
162
Gazeta do Piauí, ano VI, n. 521, Parnaíba-PI, p. 01, 06 abr. 1960.
163
Casa de Ferreiro. Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
86
mais empreendidos a fim de criminalizar as atividades dos trabalhadores após o golpe, como
será trabalhado no terceiro capítulo da tese.
Destacou-se, no processo aberto em 1964, a denúncia de envio de verbas federais
para a construção de sindicatos na cidade de Parnaíba, como o dos estivadores, bem como
outros investimentos monetários e as articulações políticas por parte do governo federal na
formação de novos sindicatos em Parnaíba, ligados ao PTB nacional. Essas questões foram
operacionalizadas por parte dos militares como um possível reflexo da “corrupção” e desvio
de recursos públicos, que, para eles, caracterizavam a atuação política dos trabalhistas,
marcada pela tutela de “sindicatos pelegos”.
Fonte: Jornal Gazeta do Piauí, ano VII, n. 364. Parnaíba-PI, 30 de setembro de 1961.
164
Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
165
Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
166
Jornal Folha do Litoral. Parnaíba-PI, ano II, n. 16, p. 01, 29 abr. 1961.
167
RODRIGUES, Francisco das Chagas Caldas. Depoimento. Almanaque da Parnaíba, edição 1995, p. 109.
168
PIRES, José Nelson de Carvalho. Por que Parnaíba Cidade Universitária? Parnaíba: Sieart, 2009.
88
petebista teria sido ampliar as possibilidades de acesso a esse nível de ensino por meio de
bolsas concedidas já anteriormente, mas que agora deveriam ser colocadas à disposição dos
realmente pobres, sem nenhum interesse político envolvido. Segundo o autor,
169
PIRES, José Nelson de Carvalho. op. cit. 2009, p. 14-15.
170
Parnaíba hoje é tida como um polo universitário, devido à ampliação significativa dos cursos universitários
na Universidade Federal do Piauí, após o governo Luís Inácio Lula da Silva, por meio de programas como o
Reuni, que ampliou consideravelmente a estrutura universitária local. Desde os anos 1980 a universidade
possuía apenas 04 cursos, tendo atualmente em torno de 15 cursos de graduação e a contar com alguns
programas de pós-graduação.
89
171
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. op. cit. 2014, p. 125.
172
Sobre a aproximação do PCB e PTB, Jorge Ferreira destaca que, “reconhecendo a popularidade do
trabalhismo entre os trabalhadores, os comunistas passaram a atuar em conjunto com setores do Partido
Trabalhista Brasileiro — PTB. No plano sindical, a aliança foi bastante fecunda. A partir de 1953 e até março
de 1964, comunistas e trabalhistas, juntos, hegemonizaram o movimento operário e sindical e marcaram, com
suas ideias, crenças e tradições, a cultura política popular brasileira, sobretudo no tocante ao estatismo”.
FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto. Op. Cit. 2004. p. 05.
90
PCB ao governador. Essas tratavam, em alguns pontos, do apoio das lideranças do partido a
Chagas Rodrigues antes de eleito e após as eleições de 1958, pois estariam ligados aos
compromissos democráticos que ambos os partidos compartilhavam. A carta foi utilizada
pelos militares como prova, para caracterizar o governo de Chagas Rodrigues como
“subversivo” e de forte “feição comunista”. A correspondência diz o seguinte:
173
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Carta dos comunistas piauienses a Chagas Rodrigues. Em: Projeto
Brasil Nunca Mais. Nº 185. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br/DocReader/docreader.aspx?bib=BIB_02&pesq=&pesquisa=Pesquisar. Acesso
em: 08 jan. 2019
174
Idem.
175
Idem.
91
“os nomes do governador do estado, Sr. Chagas Rodrigues, do Arcebispo de Teresina, Dom
Avelar, do Padre Francisco Carvalho, assistente da JOC, Deusdedt Souza, presidente do
Sindicato dos Comerciários de Teresina e várias outras personalidades” 176. Entre as falas,
destaca-se a do próprio governador:
176
No seu primeiro Congresso Sindical Trabalhadores e Camponeses do Piauí afirmam sua unidade. Jornal
Novos Rumos, Rio de Janeiro, p. 02, 25 maio 1961.
177
Idem.
92
178
No seu primeiro Congresso Sindical Trabalhadores e Camponeses do Piauí afirmam sua unidade. Jornal
Novos Rumos, Rio de Janeiro, p. 02, 25 de maio 1961.
179
Simplício de Sousa Mendes nasceu em União, Piauí, em 1882 e faleceu em Teresina, capital do estado.
Bacharel pela Faculdade de Direito de Recife (1908). Juiz de Direito em Piracuruca e Miguel Alves (PI) foi
presidente do Tribunal de Justiça do Piauí e um dos fundadores da faculdade de Direito do Piauí, tornando-se
professor catedrático de Teoria Geral do Estado. Membro do Tribunal Regional Eleitoral e presidente da
Academia Piauiense de Letras, o intelectual também assumiu a diretoria da Imprensa Oficial do Piauí,
tornando-se presidente do Conselho Estadual de Cultura e jornalista de grande atuação na imprensa local. Como
jurista, publicou “O Homem, a sociedade, o direito”. (TITO FILHO, 1978; GONÇALVES, 2003; COELHO,
1991; CASTELO BRANCO, 1987)
93
182
LIMA, Flávia de Souza. Op. cit. 2011, p. 129.
183
LIMA, Flávia de Souza. Op. cit. 2011, p. 126.
184
LIGAS camponesas. Folha da Manhã, Teresina, p. 04, 17 ago. 1960.
95
próprio Simplício Mendes, em sua maioria ligados aos interesses na manutenção dos
privilégios da posse de terras no estado, partem para a tentativa direta de, por meio da
imprensa local, conectar o processo de ampliação dos debates em torno das reformas,
colocadas em pauta no governo João Goulart, com a ideia genérica de “infiltração comunista”
no país. Para esses jornalistas, era preciso barrar qualquer tentativa de reforma nas estruturas
econômicas locais, pois essas seriam “intocáveis”, uma vez que as propriedades privadas
estariam resguardadas, inclusive pelo campo do Direito.
É preciso analisar esse contexto de crise política no Piauí à luz dos debates que
se lançavam no Brasil. Segundo Jorge Ferreira, “Jango tornou-se presidente da república sob
gravíssima crise militar, com as contas públicas descontroladas, tendo que administrar um
país endividado interna e externamente, além da delicada situação política” 185 . Para o
historiador, “desde 1958, a organização trabalhista, que até então já se apresentava como um
partido reformista e popular, assumiu o perfil de partido de esquerda”. A partir de então, o
PTB adotaria mais claramente uma linha de ação política e doutrinária. Dentro dessa
orientação, para lideranças trabalhistas como João Goulart, San Tiago Dantas e Fernando
Ferrari, “a posição fundamental do partido seria a de um instrumento de reforma, de mudança,
de superação da estrutura social brasileira” 186.
Esse aspecto certamente influenciou os discursos de lideranças políticas como
Chagas Rodrigues e seu irmão José Alexandre, que viram na progressiva ampliação do
eleitorado petebista, um filão ao qual pudessem se conectar com esse novo agente que
emergia: o trabalhador sindicalizado. Esse processo vai influenciar, também, as medidas de
organização dos trabalhadores piauienses. Nesse sentido, a partir de então, relaciono esse
processo político com as atividades dos trabalhadores no Piauí, frente a um quadro de
organização de sindicatos e a luta por melhorias de trabalho e renda.
[...]
Para o camponês do sertão
De recursos tão precários
É a condição humilhante
De uma injustiça gritante
Dêsses latifundiários
185
FERREIRA, Jorge. João Goulart: uma biografia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 5ª edição, 2014, p.
266.
186
FERREIRA, Jorge. Op. cit. 2014, p. 223.
96
187
DINIZ, Pompílio. Aos camponeses do Nordeste. Jornal Terra Livre. Ed. Julho de 1963, São Paulo, SP.
97
188
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro, op. cit. 2014, p. 284.
189
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro, op. cit. 2014, p. 161-162.
190
SOUSA, Ramsés Eduardo Pinheiro de Morais. Op. cit. 2015, p. 101.
98
O quadro político de início dos anos 1960 foi marcado nacionalmente pela
renúncia do Presidente Jânio Quadros e, após crise resolvida por meio da campanha da
legalidade, o início do Governo João Goulart, com poderes tolhidos por uma solução
parlamentarista, acordada para acalmar os ânimos golpistas. Nesse momento, no Piauí, de
acordo com Marylu Oliveira, “a partir de 1961 o quadro [começa] a se delinear de outra
maneira; os trabalhadores rurais organizados passaram a seguir em suas lutas e o governo
começou a investir em um discurso de representação das hostes trabalhadoras no Piauí” 191.
Foi o momento também de rompimento do acordo político entre UDN e PTB no estado, que
possibilitou a eleição de Chagas Rodrigues em 1958. As chamadas “oposições coligadas”,
não mais se sustentaram pela guinada mais progressista que assumiram alguns quadros
petebistas no Piauí, em defesa das reformas, o que incomodou setores conservadores dentro
do udenismo piauiense, inviabilizando um acordo intrapartidário já em 1961.
A partir de então, houve uma aproximação entre a UDN e setores do PSD, no
Piauí comandado pela família Freitas. Setores dessas duas agremiações partidárias forjaram
forte oposição ao petebismo piauiense, sobretudo por identificarem nas pautas desse partido
uma ameaça aos seus interesses mais imediatos, como a manutenção das grandes
propriedades. Lucia Hippólito destaca que o PSD teve como pontos centrais a “conciliação”
e “negociação”, observando que esse partido atuou no contexto da experiência liberal
democrática enquanto um “fiador da estabilidade política”192. O PSD no Piauí, por seu lado,
mesmo não sendo um partido homogêneo em sua composição, foi formado por proprietários
rurais e comerciantes. Esses tinham um certo predomínio na sigla e, ao perceberem o
aumento dos movimentos sociais e as tensões no campo, buscaram isolar politicamente os
quadros do PTB mais ligados ao reformismo.
Nesse ínterim, na cidade de Parnaíba, se reverberava na imprensa, com assombro
e perplexidade, as principais questões de ordem política do momento, como a luta pela posse
da terra. Em um espaço fortemente marcado pela penúria, como o Nordeste, as condições
climáticas serviram ainda pra acirrar mais os ânimos entre os trabalhadores, em processo de
organização, e os proprietários rurais. Em matéria do jornal parnaibano Folha do Litoral, no
final de 1961, o articulista disparava que “como se não bastasse o estado de fermentação
classista que [vem] tomando vulto e se alastrando por todo o Nordeste comburido, eis que
[irrompe agora] uma seca desenfreada em terras da Bahia, causando assim mais uma retirada
forçada de nordestinos para terras do sul”193.
No texto em questão, o autor continuava reforçando o clima de medo que grande
parte da sociedade sentia naquele momento, pois, “juntam-se duas forças poderosas para
impelirem a modificação do sistema de vida do homem do nordeste: o imperativo da
evolução político-social e o eco da miséria regional, que nunca deixa de ser ouvido194. Para
o articulista, esses dois aspectos conjugados serviam para criar um clima nebuloso de
insegurança e a possibilidade, cada vez mais presente, de conflitos sociais irromperem,
devido ao quadro de seca, mas, sobretudo, pela organização de novas formas de
representação política no campo.
Textos como esse tiveram grande circulação no estado do Piauí, no contexto da
primeira metade dos anos 1960. Em um misto de medo e na busca por esclarecimentos sobre
o que representariam as ditas reformas que eram mencionadas então como bandeira
encampada pelo Presidente Jango e pelo PTB, parte da imprensa piauiense buscou se
posicionar no debate, fosse a favor ou em clara oposição política ao que entendiam como
uma possível ruptura política por parte do governo Goulart. Portanto, um dos problemas
mais evidentes naquele momento era o acirramento das lutas no campo. Sabe-se que, desde
o governo Juscelino, os trabalhadores em Pernambuco, por exemplo, organizaram-se em
ligas. De acordo com Jorge Ferreira, ao assumir o governo, João Goulart, “teve que lidar
com invasões de terra no Maranhão, na Paraíba, em Goiás, na Bahia, no Rio de Janeiro e no
Rio Grande do Sul. Com um mês da presidência de Jango, criou-se a Superintendência da
Política Agrária, a SUPRA”195.
Dentro daquele quadro político, no Nordeste, porém, segundo tese de Damião
Rocha, a vida parecia seguir os mesmos passos lentos de antes. Os contratos de trabalho
permaneciam verbais, sem qualquer segurança para o lavrador e sua família. A agricultura,
principal atividade econômica, e as relações sociais seguiam fundadas em princípios
tradicionais. Continuavam o camponês e toda sua parentela, como também toda sua
vizinhança, na miséria, na ignorância e dentro do mais completo abandono 196. Compondo-se
ainda em grande parte de acordos tácitos, tensas e fragilizadas, as relações entre proprietários
193
Sêca. Jornal Folha do Litoral, Parnaíba-PI, n. 47, ano 02, 16 dez. 1961.
194
Sêca. Jornal Folha do Litoral, Parnaíba-PI, n. 47, ano 02, 16 dez. 1961.
195
FERREIRA, Jorge. Op. cit. 2014, p. 269.
196
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. Nas franjas da História: singularidade e distinção na constituição
da Liga Camponesa de Matinhos na Terra dos Carnaubais. Tese (História) Programa de Pós-Graduação em
História da Faculdade de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP 2017, p. 125.
100
197
BARRETO, Cônego Aluísio Costa. Ligas Camponesas. Almanaque da Parnaíba, Edição de 1962, p. 127.
198
BARRETO, op. cit. 1962, p. 127
199
BARRETO, op. cit. 1962, p. 127.
101
200
BARRETO, op. cit. 1962, p. 127.
201
BARRETO, op. cit. 1962, p. 128.
202
CARVALHO. J. Coriolano de. Reforma agraria ou subversão social. Almanaque da Parnaíba, edição
1963. P. 69-72
203
CARVALHO, op. cit. 1963, p. 69-72
102
atuação à frente dos sindicatos rurais, causando certo temor por parte de determinados grupos
com relação à ampliação do poder e da influência da Igreja Católica nesse estado. Para
Grimaldo Carneiro, naquele momento, parte da instituição começou a “defender uma
reforma nas estruturas, uma maior mobilização dos trabalhadores e camponeses, e levantou
a bandeira da Reforma Agrária”. Assim, segundo o autor, “quando tudo isso, encontrou eco
no arcebispo de Teresina, os conflitos começariam a aparecer” 204 . Para J. Coriolano, no
entanto,
204
CARNEIRO, op. cit. 2018, p. 89.
205
CARVALHO, op. cit. 1963, p. 69-72
206
STÉDILE, João Pedro (Org.). A questão agrária no Brasil: história e natureza das Ligas Camponesas –
1954-1964. 2ª edição. Ed. Expressão Popular: São Paulo, 2012.
103
Nordeste. Vale lembrar que, no campo dos direitos sociais, efetivou-se, em 1962, durante o
governo João Goulart, o regulamento da sindicalização rural; muito embora tal direito já
fosse assegurado pelo Decreto 7.038, sancionado em 10 de novembro de 1944, ainda no
governo ditatorial de Vargas207.
No Piauí, durante a gestão do governador Chagas Rodrigues, (1958-1962), na
intenção de impedir a formação de minifúndios antieconômicos ou a manutenção de áreas
improdutivas, o petebista incentivava o processo de organização dos trabalhadores no campo.
Atiçando a ira dos grupos mais conservadores que enxergavam nesse apoio do governador
aos sindicatos rurais uma afronta aos interesses dos grandes proprietários e passaram assim
a taxá-lo de “comunista”, “insuflador da luta de classes no Piauí”, ou o “Juliãozinho do
Piauí”208, dentre outros termos mais afrontosos e depreciativos.
Naquele contexto, a imprensa piauiense não passou incólume aos debates
referentes às reformas de base, propostas pelas esquerdas e defendidas pelo governo João
Goulart, pois esse processo poderia implicar mudanças diretas no espaço local, marcado por
forte concentração fundiária e conflitos pela posse da terra. Na busca de se conectar com as
propostas reformistas, Chagas Rodrigues defendia uma política de redistribuição de terras
para o Piauí, de acordo com o uso social da mesma.
207
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. Op. cit. 2017, p. 107.
208
Termo amplamente utilizado pelo Desembargador Simplício de Sousa Mendes, em sua coluna no Jornal O
Dia, para atribuir uma visão negativa e subversiva ao governador Chaga Rodrigues, ligando-o ao líder das
Ligas Camponesas, Francisco Julião.
209
ESTADO DO PIAUÍ. Mensagem do Governador, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues, a Assembleia
Legislativa em 1962. Teresina, 1962: XVI. LIMA, 2011, op. Cit.
104
mais quatro ligas atuantes no estado ainda não reconhecidas210. Esse processo de formação
de Ligas e associações de trabalhadores do campo será um dos principais pontos de embate
entre os adeptos do reformismo no Piauí, como parcela do PTB e do PCB, frente aos grupos
conservadores.
O ponto de divergência se processava com os proprietários de terras no Piauí,
muitos deles ligados a grupos políticos dentro de partidos como a UDN e o PSD, como o
general Jacob Gayoso e Almendra. O general, por exemplo, veio a público, por meio do
jornal O Dia, no decorrer do ano de 1960, demonstrar que era preciso cautela no que diz
respeito à reforma agrária que então já se discutia. As narrativas empreendidas por esses
grupos atuaram no sentido de avaliar negativamente as pautas reformistas, pois estas se
conectariam a ideia de “despreparo” e “ignorância” dos trabalhadores do campo. De acordo
com essa concepção, esses trabalhadores não estariam “aptos” para o processo de
transformação que uma reforma na estrutura fundiária no Piauí poderia acarretar. Para o
general Gayoso, portanto,
210
ROCHA, Damião Cosme de Carvalho. op. cit. 2017, p. 130.
211
GAYOSO E ALMENDRA, Jacob Manoel. O LATIFÚNDIO e a pecuária. Jornal O Dia, Teresina, p.01, 03
abr. 1960.
105
grupos, seria um homem “rude”, “sem educação” e, portanto, incapaz de desenvolver alguma
atividade produtiva de grande valia por conta própria.
Esse argumento, apesar de muito comumente utilizado pelos proprietários,
acabava naturalizando uma visão negativa sobre os trabalhadores rurais, enxergando nesses
homens a total ausência de iniciativa individual ou coletiva. Além disso, de um certo
primitivismo, que além de os menosprezarem com relação aos citadinos, acabava por colocá-
los como um grupo social que precisaria sempre da tutela de outrem, neste caso dos
proprietários rurais do Piauí. Em certo sentido, aqui se pode identificar na fala de algumas
lideranças de oposição ao governo Chagas Rodrigues, algumas características do udenismo,
enquanto parte de uma cultura política conservadora no Brasil dos anos 1950 e 1960. Dentre
essas, destacam-se a “restrição à participação popular na política; o elitismo; o antigetulismo;
o liberalismo econômico; o antiestatismo; o moralismo; o bacharelismo e o
anticomunismo”212.
Por outro lado, por conta do forte clima de mobilização dos movimentos sociais
no Brasil, começava a emergir, naquele momento, uma série de iniciativas dos trabalhadores
rurais em torno da formação de suas associações. Na cidade de Parnaíba, foi criada uma
associação de lavradores no final do ano de 1961. Esta contou com o apoio de parcelas da
classe operária e dos estudantes parnaibanos. Esse tipo de associação de trabalhadores rurais,
seu vínculo com grupos de trabalhadores sindicalizados e de estudantes, bem como a
aproximação com lideranças políticas, foi visto por grupos de proprietários rurais e dos
comerciantes como uma espécie de “sinal vermelho”, como algo que precisava ser
combatido, em nome da “propriedade” e da dita “tradição cristã e democrática” brasileira.
No que diz respeito ao processo de ampliação das atividades sindicais na cidade
de Parnaíba, no início dos anos 1960, fica perceptível a impressão negativa que geraram por
parte de alguns grupos. No Inquérito Policial Militar aberto em Parnaíba no ano 1964, isso
é evidente por meio dos depoimentos de indivíduos que, arrolados como depoentes e/ou
testemunhas de acusação, viram nas atividades desses trabalhadores a emergência da
“subversão” e do “comunismo” nesse espaço. É preciso destacar que esses depoimentos não
podem ser tomados ao pé da letra, tampouco como dados naturais, pois foram tomados em
momentos posteriores ao golpe de 1964, bem como foram feitos sob o poder dos militares,
em instituições oficiais.
212
Sobre a UDN, ver: BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A UDN e o udenismo: ambiguidades do
liberalismo brasileiro (1945-1964). São Paulo: Paz e Terra, 1981. Ver também: DULCI, Otávio. A UDN e o
anti-populismo no Brasil. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 1986.
106
No entanto, esses depoimentos, cruzados com outras fontes, podem nos ajudar a
compreender melhor o processo de organização dos trabalhadores na cidade de Parnaíba e
arredores. Segundo depoimento retirado desse IPM, o funcionário público estadual Tasso de
Moraes Rego – um dos depoentes que prestou informações já em 1970 – destaca que
“aproximadamente entre 1961 e 1962, a política sindical na cidade de Parnaíba, tomou um
grande impulso em face da ascensão de João Goulart ao poder”213.
Segundo o mesmo depoimento, prestado no Tiro de Guerra de Parnaíba, o
funcionário destacou que, na cidade, o líder da classe sindical era o ex-Deputado estadual
José Alexandre Caldas Rodrigues (de mandato cassado). Para o depoente, “José Alexandre
[servia] de ligação entre o seu irmão, Francisco das Chagas Caldas Rodrigues e o líder
comunista Rafael Martinelli na política de ‘bolchevização’ dos sindicatos, particularmente o
sindicato dos ferroviários”214. Aqui cabe destacar que, certamente, os discursos empreendidos,
tanto antes, quanto após golpe de 1964, pelos meios militares, pelos grupos conservadores,
também amplamente divulgados na imprensa local, foram tomados pelo depoente no sentido
de nomear as atividades sindicais na cidade em início dos anos 1960, como reflexo da
influência do “comunismo internacional” por essas paragens. O discurso de acusação, feito
pelo funcionário Tasso Rego, em muito se assemelha aos textos acusatórios escritos pelos
grupos tradicionais, em franca oposição ao governo Chagas Rodrigues e contra os
movimentos sociais que emergiram no final dos anos 1950 e ganharam força em início da
década seguinte em cidades com forte presença de sindicatos, como Parnaíba.
O que é perceptível, mesmo que por meio de um discurso acusatório, é que, de
fato, nos anos iniciais da década de 1960, o movimento sindical parnaibano começou a se
ampliar a partir das iniciativas e aproximações com o governo João Goulart e na esteira do
processo de crescimento da mobilização característica desse período, que se expressava em
congressos, greves, campanhas salariais e eleições sindicais.
Cito como exemplo desse processo ocorrido no Brasil, a criação do CGT215. Esse
órgão foi criado a partir da experiência de entidades horizontais, como o MUT 216 e CTB217, e
se consolida, a partir de então, como Comando Geral de Trabalhadores, em agosto de 1962218.
213
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Depoimento de Tasso de Moraes Rego. BRASIL NUNCA MAIS.
Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM nº 340, 1964. Disponível em: http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/.
Acesso em: set. 2018.
214
Idem
215
Comando Geral dos Trabalhadores.
216
Movimento de Unificação dos Trabalhadores.
217
Central dos Trabalhadores Brasileiros.
218
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Comando Geral dos Trabalhadores No Brasil (1961-1964). 2. ed.
Petrópolis: Vozes, 1986.
107
Naquele momento, de acordo com a obra de Lucília de Almeida Delgado, as lutas sindicais
ampliaram-se, exigindo melhorias imediatas de salário e condições de vida, mas também
exigindo maior participação dos trabalhadores nas decisões políticas nacionais e a efetivação
imediata das reformas estruturais219.
Ainda de acordo com Lucília Delgado, os “setores onde o movimento sindical
tornou-se mais atuante foram: setor têxtil, setor de transportes (ferroviários, transportes
aéreos), bancários, petroleiros, metalúrgicos, portuários e estivadores”220. A autora indica que
foi exatamente entre esses setores que se formaram as principais lideranças nacionais do
movimento sindical, como “Oswaldo Pacheco (estivador), Sinval Bambirra (tecelão), Rafael
Martinelli (ferroviário), Clodsmidt Riani (hidrelétrico), Armando Ziller (bancário), Benedito
Cerqueira (metalúrgico) e Mello Bastos (aeroviário)”221.
Portanto, sobre o contexto em questão, um dos fatores que mais se notabilizaram
foi a progressiva ampliação da estrutura sindical em todo o país. Para Rodrigo Patto Sá Motta,
“uma das questões mais candentes no debate político da primeira metade dos anos 1960 foi,
sem dúvida, o movimento sindical”222. O autor indica que, durante aqueles anos o movimento
passou por um crescimento notável, perceptível em duas vertentes: o surgimento de
organizações sindicais de tipo horizontal e a intensificação da ocorrência de greves. De
acordo com Rodrigo Motta, as “organizações sindicais formadas naquele momento, como o
Pacto de Unidade e Ação (PUA) e o Comando-Geral dos Trabalhadores (CGT), decorriam
da tentativa dos líderes da esquerda de fugir à estrutura sindical corporativa, que previa a
existência de órgãos verticais como federações, de âmbito regional, e confederações, de
âmbito nacional” 223 . Ainda segundo o autor, nesse formato tradicional, “concebido para
restringir as reivindicações dos trabalhadores ao plano exclusivamente salarial, os sindicatos
representavam apenas as respectivas categorias e participavam de uma estrutura piramidal
que culminava numa confederação nacional224.
Nesse sentido, toda a estrutura sindical organizada pelos trabalhadores desde o
final da década de 1950 se tornou fator primordial no que diz respeito ao processo de
participação política que a classe trabalhadora teve em início dos anos 1960. Rodrigo Motta
indica que,
219
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. op. Cit. 1986, p. 26.
220
DELGADO, op. Cit. 1986, p 54
221
DELGADO, op. Cit. 1986, p. 54.
222
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p.
102.
223
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2006, p. 102.
224
Idem
108
225
Idem
226
Idem
227
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2006, p. 103.
109
228
Primeiro governo trabalhista do Piauí. Gazeta do Piauí, ano 6, n. 573, Parnaíba-PI, p. 01, 22 out, 1960.
110
229
Jornal Terra Livre, Ed. Julho de 1963, p.04.
230
Instalado o Comitê Piauiense da Frente de Mobilização Popular. Em: Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963,
São Paulo.
231
FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto: a Frente de Mobilização Popular. Revista Brasileira de
História. Dossiê: Brasil, do ensaio ao golpe, 1954-1964. São Paulo: Associação Nacional de História, ANPUH,
n.47, 2004, p.181-212.
111
232
Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963, São Paulo, p. 04.
233
Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963, São Paulo, p. 04.
234
Sobre o apoio dos pecebistas às “oposições coligadas”, em 1958, Sousa e Santos destacam que “a eleição
de Chagas Rodrigues parece não ter sido o único motivo de comemoração dos comunistas piauienses, neste
pleito o jovem militante comunista Honorato Gomes Martins concorreu ao cargo de deputado estadual pela
legenda do PTB alcançando 911 votos no Estado, votação significativa que lhe concedeu a suplência na
Assembleia Legislativa”. Os autores destacam ainda que “os comunistas piauienses apresentaram três
candidaturas nas eleições de outubro de 1962 todas elas através da legenda do PTB em razão da clandestinidade
do PCB. Honorato Gomes Martins concorreu ao cargo de Deputado Estadual, já José Esperidião Fernandes e
José Rodrigues da Silva concorreram ao cargo de vereador. Os comunistas não lograriam êxito em suas
candidaturas, embora Honorato Gomes Martins tenha repetido o feito de quatro anos antes angariando votos
suficientes para conquistar a suplência na Assembleia Legislativa do Estado”. Ver: SOUSA, Ramsés Eduardo
Pinheiro de Morais e SANTOS. José Maurício Moreira dos. “Velhos camaradas”: contribuição inicial à história
do Partido Comunista Brasileiro no Piauí (1932- 1964). Anais eletrônicos do XII Encontro Nacional de História
Oral. Disponível em: http://www.encontro2014.historiaoral.org.br/site/anaiscomplementares. Acesso em: 20
jul. 2020.
235
Jornal Terra Livre, ed. Julho de 1963, São Paulo, p. 04.
112
do petebista não usar o aparato estatal na repressão aos movimentos sociais, como ocorria,
de fato, em outros estados da federação. No livro Movimentos sociais e participação política,
do sociólogo Antônio José Medeiros, é possível perceber que existiam no Piauí iniciativas
emergentes em defesa das reformas de base, como a mencionada Frente de Mobilização
Popular. Essa organização publicou, inclusive, um jornal com apenas uma edição, chamado
Frente Popular, já em 1964, às vésperas do golpe. De acordo com Medeiros,
236
MEDEIROS, Antônio José. op. cit. 1996, p. 83.
237
Nossa posição. Jornal Frente Popular, Teresina-PI, p. 08,1964.
113
238
Lutam organizados os camponeses do Piauí. Terra Livre, ano 14, n. 112. São Paulo, p. 03, abr. 1963.
114
pensada em comum acordo com os grupos pessedistas, por meios tradicionais, como por
negociação junto ao Congresso Nacional. Alguns desses textos também são prenhes de
sentido sobre a situação adversa de sobrevivência e dos modos de existir a que os
trabalhadores do campo eram submetidos nos arredores de Parnaíba.
239
Lutam organizados os camponeses do Piauí. Terra Livre, ano 14, n. 112, São Paulo, p. 03, abr. 1963.
115
Figura 03- Conselho fiscal e Diretoria da Associação Profissional dos Camponeses de Lavradores de
Parnaíba
A partir dos anos 1950, como se pode observar, houve tentativa de mobilização
dos trabalhadores rurais, no sentido de questionarem as relações de poder nas terras onde
trabalhavam. Um outro texto indica que os camponeses Veridiano Mendes da Silva,
Mansuete Mendes da Silva, Geraldo Fortunato de Araújo e Roberto Ferreira da Costa, entre
outros, foram despejados das terras que trabalhavam durante muitos anos, “em benefício de
exploradores sem entranhas, enquanto as autoridades fingem desconhecer os acontecimentos
porque também tem a sua parte na negociata”. Dentro dessa linha de atuação, os
trabalhadores do campo começaram a colocar em pauta, nos jornais, a sua condição de
penúria e exploração, bem como a impossibilidade de conseguirem minimamente plantar
seus produtos, pois ocorria, com certa frequência, serem expulsos, sem ao menos receber
qualquer forma de indenização ou compensação trabalhista; e, pelo que indicavam os
240
Roubados os rendeiros do Cipoal. Jornal Voz operária, Rio de Janeiro, p. 09, Ed. 24 maio 1952. Disponível
em:http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em: 09 set. 2018.
241
Camponês expulso da terra. Jornal Voz Operária. Rio de Janeiro, Ed. 31, p. 09, maio 1952. Disponível em:
http://memoria.bn.br/hdb/uf.aspx. Acesso em: 09 set. 2018.
117
Como se pode observar no texto acima, retirado do jornal Terra Livre, por meio
da narrativa do camponês residente na Ilha Grande de Santa Isabel, povoado ligado à cidade
242
SILVA, Vicente de Mendes da. Ainda há homens que dormem, mas estão para acordar. Terra Livre, São
Paulo, p. 02, dez. 1954. Seção Cartas da roça.
118
243
SOUZA, Ramsés, op. cit. 2015, p. 298.
119
Em um primeiro plano, o texto acima indica que, se houve uma maior tomada
de consciência coletiva, uma maior iniciativa por parte de alguns trabalhadores do campo,
nos povoados vizinhos à cidade de Parnaíba, isso deve-se muito à circulação de jornais como
o Terra Livre. Estes fizeram com que os trabalhadores, a partir de sua realidade de opressão
e exclusão de direitos básicos e condições dignas de trabalho e renda, repensassem o
ambiente em que estavam inseridos e percebessem, por meio dos textos lidos coletivamente
nas associações, que a prática de organização de espaços de luta e resistência contra os
desmandos e o autoritarismo dos proprietários de terra, se faziam em inúmeros outros
espaços do Brasil naquele momento.
Esses trabalhadores tomaram para si a bandeira das reformas de base, em
particular, de uma “reforma agrária radical”, termo amplamente utilizado por eles para, a
244
Jornal Terra Livre, São Paulo - SP, p. 05, mar. 1963.
120
partir de então, se identificarem enquanto classe ou grupo marcado por uma perspectiva de
construção de um futuro em comum, ao qual pudessem se conectar e fazerem suas
mobilizações políticas. Não à toa, quando das batidas policiais nos sindicatos e associações
de trabalhadores em Parnaíba, após o golpe, um dos itens que ganhou mais evidência nos
processos acusatórios foram os jornais que circulavam entre os trabalhadores, pois eram
tidos como provas da “infiltração comunista” nesses espaços.
As pautas e bandeiras de luta do nacional-reformismo, faziam parte de um amplo
repertório político que ganhou corpo, sobretudo, nos anos 1950 e se aprofundou no governo
João Goulart, no início dos anos 1960 245 . Essas pautas foram absorvidas pelos grupos
petebistas piauienses como uma forma de ampliar seu capital simbólico frente aos
movimentos sociais, em amplo processo de fortalecimento político, bem como para buscar
marcar território frente a outros grupos políticos mais conservadores. Ambiguamente, como
mencionado em alguns pontos deste trabalho, o PTB local, em alguns momentos, fez
alianças políticas com grupos tradicionais do PSD e UDN, para conseguirem galgar boas
votações em pleitos eleitorais e, sobretudo, pelo fato de que determinadas alianças
conjunturais e momentâneas, como aquelas em que ocasionalmente esteve o PTB, poderiam
garantir boa base eleitoral, definindo o resultado das eleições em disputa.
Nesse mesmo quadro de mobilizações em torno das pautas reformistas, enfatizo
os usos simbólicos de datas comemorativas como meio de fortalecimento dos movimentos
sociais e uma forma de ganhar visibilidade na imprensa. Com alusão às comemorações ao
dia do trabalho, em 1963, em Teresina, há, em matéria do jornal Terra Livre, um texto
bastante elucidativo sobre essa questão, com o título “Passeata operário-camponesa causou
sensação em Teresina”.
245
É importante mencionar, também, que o presidente João Goulart, em março de 1963, sancionou a Lei
4.214/1963, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR), que estende para os assalariados do campo os direitos dos
trabalhadores urbanos: sindicalização, salário-mínimo, férias, repouso semanal remunerado, aviso prévio e
indenização. O estatuto também previa medidas de proteção especial à mulher e ao menor. É a primeira lei da
história brasileira a intervir efetivamente nas relações de trabalho no campo. O projeto fora apresentado ao
Congresso em 1956 pelo deputado gaúcho Fernando Ferrari, do Movimento Trabalhista Renovador (MTR),
mas só no governo de João Goulart tivera o apoio e as condições necessárias para sair do papel: um presidente
que o apoiava; um ministro do Trabalho (Almino Afonso) que trabalhou para viabilizá-lo; e movimentos sociais
no campo cada vez mais articulados, politizados e com capacidade de mobilização. Essas condições superaram
a oposição interna do Congresso, especialmente do PSD — partido com profunda ligação com os grandes
proprietários rurais — e da UDN, legenda urbana, mas conservadora. À criação do ETR logo se seguiria um
grande movimento de expulsão dos camponeses. Muitos proprietários rurais demitiriam em massa os
trabalhadores permanentes e passariam a contratar os “volantes”, empregados temporários sem direito aos
benefícios da lei. Ver: Trabalhador rural obtém seu estatuto. Memorial da Democracia. Disponível em:
http://memorialdademocracia.com.br/card/campones-ganha-protecao-de-
estatuto#:~:text=O%20presidente%20Jo%C3%A3o%20Goulart%20sanciona,remunerado%2C%20aviso%20
pr%C3%A9vio%20e%20indeniza%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 17 jun. 2020.
121
246
Passeata operário-camponesa causou sensação em Teresina. Jornal Terra Livre: Ed. XIV, São Paulo, jul.
1963.
247
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2016, p. 294.
248
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2016, p. 294.
122
249
NEGRO, Antônio Luigi; SILVA, Fernando Teixeira da. Trabalhadores, sindicatos e política. In: DELGADO,
L.; FERREIRA, J. (Org.). O Brasil Republicano. v.3, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
250
Mensagem do Pres. João Goulart ao povo piauiense. Jornal Folha do Litoral, ano 3, n. 175. Parnaíba, p. 01,
25 dez. 1963.
251
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
252
FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. Brasil, 1945-1964: uma democracia representativa em
consolidação. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 2, p. 251-275, 2018.
123
Até mesmo, Piauí, para que possamos construir uma sociedade justa, uma
sociedade cristã, até mesmo para que possamos nos libertar dos
extremismos estranhos aos sentimentos cristãos do povo brasileiro, é
necessário que se abram novos horizontes para o nosso país. Não há de ser
negado ao povo que haveremos de prestigiar a democracia; não há de ser
pela violência e pela pressão que conseguiremos a paz e a tranquilidade tão
almejada pela família brasileira. O que se torna cada vez mais urgente e
mais indispensável é que as perspectivas sejam abertas através de uma
maior participação do povo nas riquezas deste país253.
253
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
254
SUPERIOR TRIBUNAL MILITAR. Por que a reforma bancária interessa ao povo? BRASIL NUNCA
MAIS. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM n. 349, 1964. Disponível em:
http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/. Acesso em: 06 dez. 2019.
255
STM, BNM, n. 349, 1964.
256
STM, BNM, n. 349, 1964.
124
“construir moradias populares, pelo menos para os favelados”257. O boletim, produzido pela
Confederação dos Bancários, distribuído nas reuniões, dentre as lideranças sindicais, por
Raimundo Nonato de Brito, Presidente do Sindicato dos Bancários de Parnaíba, foi utilizado
como prova pelos militares no processo contra o mesmo, que também foi acusado de
distribuir um “boletim concitando os trabalhadores para o comício de 13 de março, na central
do Brasil, no Rio de Janeiro”258.
No boletim em questão, repassado pelas lideranças sindicais parnaibanas aos
trabalhadores, constava que: “[queremos], nesta oportunidade, advertir a todas as classes
trabalhadoras que não se deixem impressionar com a avalanche de críticas e inverdades que
continuarão a surgir com a assinatura do decreto da SUPRA, vindo de todos os lados, contra
a pessoa do Presidente João Goulart, visando derrubá-lo”. O documento prosseguia fazendo
alerta aos trabalhadores que “[deveriam] estar preparados para reagirem imediatamente”
contra as investidas dos grupos conservadores que se oporiam, de todas as formas, às
medidas que buscassem uma melhor condição de vida aos trabalhadores por meio de
reformas estruturais. Grande parte do apoio ao campo reformista se fez em reuniões
sindicais, em que se debatiam as condições econômicas do Brasil no momento e em que se
buscava refletir sobre os impasses e tensões oriundos da resistência às reformas de base.
Naquele mesmo momento de ebulição política, quando o governo federal falava
em desapropriação de terras ao longo das rodovias, em prol do uso social dessas, o sindicato
dos bancários lançou nota em que aplaudiu a desapropriação de um campo de futebol na
cidade de Parnaíba, de propriedade da Casa Inglesa, feita, segundo o documento, pela
Câmara dos Vereadores desse município.
257
STM, BNM, n. 349, 1964.
258
Boletim n. 64/3 19 de março de 1964. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM n. 349,
1964. Disponível em: http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/. Acesso em: 06 dez. 2019.
259
Boletim n. 64/3 19 de março de 1964.
125
Não foi possível averiguar, por meio de outras fontes, a repercussão de tal caso
na cidade de Parnaíba, mas, por certo, esse embate serviu para acirrar os ânimos dos grupos
conservadores sobre as desapropriações e sobre qualquer iniciativa política que buscasse
uma revisão das propriedades. Naquele momento também, no final de 1963, com o clima de
radicalização política ganhando os noticiários do Brasil, a imprensa, em Parnaíba,
acompanhava as possíveis tomadas de posição das lideranças políticas em um eventual golpe
de Estado. No jornal Folha do Litoral, consta “no Piauí, auguramos uma tomada de posição
leal e honesta do Governador, em busca de tranquilidade e bem-estar social dos habitantes
da terra mafrense, promovendo-lhes a esperançosa felicidade”260.
A mesma edição do jornal Folha do Litoral ressalta os temores de uma crise
política que se via arrastar sem uma resolução das partes envolvidas. Naquele momento, os
escritores do jornal parnaibano apontavam a necessidade da população de “união” e
“colaboração”, junto às autoridades locais. O jornal apontava que, na “terra de Simplício
Dias, sob os auspícios do esforçado Prefeito Lauro Correia 261 , conclamamos melhor
compreensão e maior colaboração, entre povo e autoridades, em todos os setores da
comunidade numa verdadeira introspecção e firme deliberação, em busca de nossa desejada
justiça social”262.
Em nota rápida, no mesmo jornal, um breve apelo aos leitores sobre princípios
básicos da democracia representativa que se viam ameaçados, utilizava do credo religioso
do cristianismo no sentido de agregar os populares em torno de alguns ideais a serem
mantidos, indicando que a imprensa brasileira visava “orientar opinião pública,
consolidando os princípios de fraternidade, liberdade, igualdade, sobre o alicerce dos
postulados do cristianismo”263. Como pude observar, desde o final de 1963, na cidade de
Parnaíba, se percebeu, com certo temor, uma possível ameaça à ordem constitucional. A
imprensa amplificava, de certa forma, os anseios de grupos de comerciantes, religiosos e
outros setores da sociedade, quanto à possibilidade de alteração da ordem vigente.
O clima de acirramento e de confronto no início de 1964, só ampliou esses
temores, fazendo com que grupos políticos mais conservadores, por meio de discursos
260
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba-PI, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
261
Lauro de Andrade Correia, do PTB parnaibano, foi sucessor na Prefeitura municipal, de José Alexandre
Caldas Rodrigues. Era ligado ao grupo empresarial Moraes S/A. Foi perseguido por alguns setores militares da
Capitania dos Portos, com sede em Parnaíba, no momento do golpe, mas manteve-se no cargo de Prefeito até
1966. Aderiu ao discurso desenvolvimentista dos militares após o golpe e estabeleceu uma gestão marcada por
um certo culto ao patriotismo e civismo, vindo a construir um Centro Cívico na cidade de Parnaíba.
262
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n .175, p. 01, 25 dez. 1963.
263
Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 175, p. 01, 25 dez. 1963.
126
anticomunistas, pregassem uma medida de força contra a “subversão” da ordem legal, que,
segundo eles, era causada pelo governo João Goulart em “aproximação perigosa” com os
comunistas. Por último, nesse capítulo, farei uma breve reflexão sobre algumas dessas
posturas anticomunistas no Piauí, por meio da imprensa escrita, nos anos iniciais da década
de 1960. A intenção é compreender esse mecanismo como um fator, dentre outros, que
buscou legitimar o golpe de 1964 e que também serviu como uma espécie de elo entre os
diferentes grupos de oposição ao governo Jango.
Por fim, neste segundo capítulo, é preciso fazer uma breve análise do processo
de ampliação dos enunciados anticomunistas, por meio da imprensa escrita, no estado do
Piauí; sobretudo por ser marca evidente nesse cenário político de início dos anos 1960. Em
certo sentido, esse foi o argumento privilegiado para unificar setores militares, comerciais,
do campo do judiciário, dentre outros ligados à grande propriedade, para nomear as
atividades de organização dos movimentos sociais e criminalizá-los, utilizando-se das
narrativas em torno da ampliação da “ameaça comunista”. Rodrigo Patto Sá Motta, em
importante estudo sobre a longa tradição anticomunista no Brasil, destaca que, em 1964, a
“ameaça comunista” foi argumento político decisivo para justificar o golpe, bem como para
convencer a sociedade (ao menos parte dela) da necessidade de medidas repressivas contra
a esquerda264. Para o autor, esse aspecto é importante para compreender o sentimento de
reação, forjado em torno da ampliação dos movimentos sindicais e das pautas reformistas,
pelos grupos contrários ao governo Jango.
Nesse sentido, destaco que, segundo Rodrigo Motta “estamos falando de
representações mentais, ou seja, do processo de construção de ideias, signos ou imagens
através do qual os homens interpretam e conferem sentido à realidade”265. Ou seja, é possível
perceber como se construíram, naquele momento, determinadas visões negativas sobre as
esquerdas e suas demandas colocadas em discussão no início dos anos 1960, por meio dos
sinais emitidos por seus opositores. Para isso, nada mais viável do que analisar o papel da
imprensa escrita no cenário político piauiense no momento de crise entre projetos políticos
distintos para o Brasil.
264
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964).
São Paulo: Perspectivas/FAPESP, 2002, p. 07.
265
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 11.
127
Esse aspecto foi decisivo no quadro político que levou a uma solução autoritária,
imposta por ampla articulação civil e militar em 1964, quando se percebeu que “setores
expressivos da sociedade se deixaram convencer pelas advertências e campanhas dos
anticomunistas (internos e externos), de que o país corria sério risco de ‘comunização’ sob
o governo de João Goulart; e que a única saída para evitar este cenário era retirar o Presidente
à força do poder”266.
Sublinho que, ambiguamente, nas publicações dos grupos trabalhistas, também
se produziam textos com teor anticomunista, ainda nos anos 1950 e não apenas nas
publicações dos grupos tradicionais mais posicionados à direita. Em certo sentido, para se
demarcar o território dos trabalhistas como sendo aqueles em que os trabalhadores deveriam
se apoiar na luta por seus direitos, desde final dos anos 1950, algumas publicações de apoio
ao PTB lançaram críticas genéricas ao comunismo soviético, bem como à figura de líderes
como Fidel Castro.
Na edição da revista Caravana, veículo de propaganda do governo Chagas
Rodrigues e do PTB, encontrei matéria intitulada: “No Brasil, o comunismo é uma
consequência dos contrastes sociais”. Na longa matéria, assinada por Karam Cury, indica-se
que “o comunismo tem sido considerado como um sistema ideológico de reorganização da
sociedade, em que os bens materiais passam a ser de uso comum, pela supressão da
propriedade privada”267. O autor, nesse ponto, destacava que “a infiltração comunista no
Brasil [vêm] agredindo nossas instituições e os comunistas estão certos de que só
arrombando as portas de nossa construção espiritual e moral conseguirão fazer vingar o seu
propósito”268.
A ideia central do texto era, em um primeiro aspecto, criticar as profundas
desigualdades estruturais do Brasil, percebendo que essas condições materiais é que
favoreciam uma maior penetração dos discursos comunistas no país. Para Cury, nesse quesito,
a “expressão é muito grande e a força principal reside na exploração dos contrastes da vida
brasileira”269. O autor prosseguia apontando que o “contraste entre o privilégio da burguesia
e o estabelecimento das classes” é fator que [tem] ocasionado uma maior presença do
comunismo em terras brasileiras, bem como o “contraste entre as construções suntuosas e
266
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 19.
267
CURY, Karam. No Brasil, o comunismo é uma consequência dos contrastes sociais. Revista Caravana,
ano 22, p. 05, set. 1958. Ed. Especial.
268
Idem.
269
Idem.
128
multiplicação das favelas”270. Por fim, o autor indicava que, “nós, os brasileiros, não devemos
dar tréguas aos comunistas. E só poderemos enfrentá-los com objetividade e eficiência
destruindo os contrastes de nossa vida social”271, pois “[acreditamos] que não há clima para
o comunismo no Brasil. Por muitas razões compreendemos que o comunismo é um grande
mal”272.
Como pude perceber nesse texto, não apenas os grupos mais conservadores de
comerciantes e proprietários abriram críticas superficiais ao que entendiam como
“comunismo”. O texto, presente em uma publicação ligada aos grupos trabalhistas no Piauí,
de certa forma, me coloca uma questão: até que ponto esse tipo de análise e narrativa serviu
também para legitimar um sentimento de reação ao comunismo como algo negativo e que
precisaria ser combatido? Por certo, as narrativas anticomunistas circularam e ganharam
impulso no espaço piauiense, sobretudo durante o governo João Goulart, ligado aos
movimentos sindicais desde os anos 1950 e principal referência do trabalhismo no Brasil.
O forte sentimento anticomunista pode ser percebido também por meio da
imprensa parnaibana de grande circulação, como o jornal Folha do Litoral. Esse jornal,
mesmo possuindo matérias favoráveis aos trabalhistas na cidade de Parnaíba, por outro lado,
de forma conservadora, lançava profundas críticas ao que considerava ser a “influência
soviética” no Brasil. Em meio a alguns textos divulgados, um me chamou bastante atenção,
pois buscava ativar determinados marcadores identitários nacionais, tomados como dados
naturais e determinantes, pois marcariam a “integração” brasileira, no sentido de buscar
negar, com bastante ênfase, uma simples modificação no campo da política comercial
brasileira em tempos de Guerra Fria.
No governo Jânio Quadros, em 1961, quando da busca por uma política externa
independente, portanto não alinhada apenas aos interesses norte-americanos, mas visando
ampliar as relações comerciais do país, parte da classe comercial parnaibana e setores mais
tradicionais perceberam que isso poderia causar uma possível “intervenção comunista” no
Brasil, pelo simples fato do reatamento diplomático com a URSS. O texto é notório de como
o medo de uma possível “infiltração comunista” no Brasil ganhou ares de defesa de certos
valores e padrões tidos como “natos” ao brasileiro. Afinal, nada mais usual para combater
um “inimigo” que vem de fora, com outra visão política e de organização da sociedade, do
270
Idem.
271
Idem.
272
Idem.
129
que lançar mão de certos símbolos nacionais que, para esses grupos, nos “dizem quem
somos”.
O que nos parece incoerência, falta de dignidade nacional, até, é essa balela
imoral de pretender-se ‘salvar’ a pátria pensando numa reação soprada por
doutrina exótica que nos vem de fora, cuja paternidade sempre esteve a
cargo do Sr. Carlos Prestes e outros, haja vista a sua declaração na semana
passada insinuando a <cubanização> do Brasil. Jacta-se a nacionalidade
em sua dramática e emocionante história de quatro séculos e meio, de tudo
ter feito, inclusive descido ao próprio sacrifício, para preservar a
integridade do solo pátrio e o que é mais, conservar intacta a tradição
religiosa que uniu até hoje as três raças diferentes que deram um só corpo
e um só pensamento cívico a este imenso país 275.
O texto seguia atualizando algumas noções que serviram ao longo do tempo para
criar uma certa identificação para o povo brasileiro, como a de um “caráter emotivo” que
nos marcaria e que em muito lembra as interpretações genéricas de brasilidade, em torno da
nossa “cordialidade” e “plasticidade”, comuns em textos de intérpretes do Brasil como os de
Gilberto Freyre276. O texto buscava ligar aquilo que vem de países comunistas, como a URSS,
como o “outro”, portanto diferente, que precisa ser evitado, impedido de entrar no país.
Interessante destacar como a simples condecoração do líder revolucionário Che Guevara,
pelo então presidente Jânio Quadros, causou grande mal-estar nos grupos mais
273
O Brasil para os brasileiros. Folha do Litoral, ano 2, n. 46, p. 01, 09 dez. 1961.
274
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
275
O Brasil para os brasileiros. Folha do Litoral, ano 2, n. 46, p. 01, 09 dez. 1961.
276
Ver: FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. ed. 42. Rio de Janeiro: Record, 2001.
130
conservadores naquele momento277. Também cabe observar que crítica alguma se fazia sobre
a influência externa norte-americana no Brasil. Essa última sim, bastante presente em nossa
formação cultural em todo o século XX. Dentro desse ponto de vista, os autores defendiam
que:
277
Jânio condecora Guevara. Jornal Folha de São Paulo. 20 ago. 1961.
278
O Brasil para os brasileiros. Folha do Litoral, ano 2, n. 46, p. 01, 09 dez. 1961.
279
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 289.
280
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 288.
131
Ainda em início dos anos 1960, portanto, com o governo do estado dirigido pelo
trabalhista Chagas Rodrigues, alguns partidários da UDN e do PSD local vociferavam, em
seus jornais, sobre a ampliação das Ligas Camponesas no Piauí. Esses grupos tradicionais
culpavam, por meio de forte retórica anticomunista, o próprio governador de apoiar a
“subversão” e o fortalecimento do PCB no estado ao dar guarida em seu governo a medidas
propostas pelos comunistas, que buscavam, segundo eles, criar um clima de agitação e de
tomada de poder no espaço piauiense. Em fim de mandato e pleiteando vaga para o Senado,
Chagas Rodrigues viu recair sobre si a forte pecha de comunista, apoiador das “ligas”, do
“comunismo”; fatores que também foram operacionalizados pelos discursos de acusação das
forças militares, logo após o golpe de 1964. O desembargador Simplício Mendes destacava
naquele momento que:
281
OLIVEIRA, Marylu Alves de. Op. cit. 2008, p. 78.
132
282
MENDES, Simplício. A paranoia evolui. Folha da Manhã, Teresina, p. 06, 23 mar. 1962.
283
MENDES, Simplício de Sousa. Comunismo e Revolução, Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 03, 02 mar. 1964.
284
MENDES, op. cit. 1964, p. 03
285
MENDES, op. cit. 1964, p. 03
286
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Comunismo e anticomunismo sob o olhar da polícia política, Locus: revista de
História, Juiz de Fora, v. 30, n.1, p. 17-27, 2018.
133
da presença do ‘perigo’, gerando, por vezes, uma relação desproporcional entre a força
efetiva dos revolucionários e o medo neles inspirado”287.
Fazendo um paralelo com as indicações do historiador supracitado e observando
o quadro político piauiense no início dos anos 1960, é que, de fato, depreende-se que existia
uma quantidade expressiva de pecebistas organizados em torno de sindicatos e que buscavam
se aproximar dos trabalhadores rurais, por meio de associações; bem como objetivavam
também ampliar seu espaço de atuação no Piauí. Mas, ao mesmo tempo, é preciso perceber
que esses ainda não eram uma força política capaz de angariar grandes apoios entre os
trabalhadores locais. Por outro lado, o projeto político do PTB, por meio do grupo liderado
por Chagas Rodrigues e pelo irmão, José Alexandre, em Parnaíba, evidenciava, antes do
golpe, uma ampliação de sua força política, pois se apoiava na estrutura sindical e
empresarial da cidade.
Portanto, é importante destacar que as forças opositoras ao trabalhismo, os
grupos tradicionais de proprietários rurais, de comerciantes, juristas, bem como os próprios
militares, forjaram uma visão superdimensionada do comunismo no espaço político
piauiense. Essa visão acabou por nomear todo o esforço de articulação política mais
conectada às pautas reformistas naquele momento como ameaça de subversão à ordem
pública, o que irei tratar no próximo capítulo. Assim, se os comunistas piauienses não
usufruíam de grande poder político, a narrativa anticomunista serviu no sentido de forjar
uma identidade coesa sobre aquilo que de fato era plural, ou seja, os movimentos sociais no
Piauí, que abrigavam um universo político para além do PCB e PTB.
Destaca-se nesse quadro uma circulação de discursos midiatizados em torno da
propalada “ameaça vermelha”, marcante em tempos de Guerra Fria e a consequente
penetração de entidades governamentais norte-americanas no Brasil, para tentar manter o
alinhamento geopolítico com os Estados Unidos. Esse foi um momento de ampliação de
narrativas em torno da valorização dos ideais “cristãos” da sociedade, bem como da dita
“tradição democrática” brasileira. Também da busca visível por imprimir sobre os
movimentos sociais que se organizavam a pecha de alinhados ao “comunismo internacional”.
Essas foram questões que se fizeram presentes no momento anterior à tomada de poder pelos
militares, com apoio de setores da sociedade civil. Todos esses aspectos foram fundamentais
para se viabilizar um clima de apreensão que buscasse legitimar socialmente uma solução
autoritária.
287
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2010, p. 20.
134
288
MACEDO, Michelle Reis de. Em nome da democracia: direitas, esquerdas e a “guerra de Minas” na
imprensa carioca (fevereiro de 1964). O Rio de janeiro nos jornais: ideologias, culturas políticas e conflitos
sociais (1946-1964), Jorge Ferreira (Org.), Rio de Janeiro, 7 Letras, p. 187, 2011.
289
Instituto Brasileiro de Ação Democrática.
290
Petrônio Portela assumiu o governo piauiense em janeiro de 1963, no mesmo mês em que, referendado pelo
plebiscito do dia 6, que revogou o sistema parlamentarista instaurado em setembro de 1961, João Goulart
recuperou seus plenos poderes na presidência da República. Verbete CPDOC. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/petronio-portela-nunes. Acesso em: 03 out.
2017.
291
MEDEIROS, Antônio José. op. cit. 1996, p. 86.
135
292
LEITE, Cristina. Oração das mulheres democratas, Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 05, 24 mar. 1964.
293
Idem.
294
CORDEIRO, Janaína Martins. Do golpe de 1964 ao “milagre brasileiro”: a campanha da mulher pela
democracia (CAMDE). Ação política e imaginário coletivo, Iberoamericana Social: revista-red de estudios
sociales, número especial ,vol. 1, 2016, p. 08.
295
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 293.
136
296
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 294.
297
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit. 2002, p. 298.
298
Flashes da capital. Jornal Folha do Litoral, Parnaíba, ano 3, n. 104, p. 01, 1963.
137
299
Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais.
300
FERREIRA, Jorge. Op. cit. 2014. p. 353.
301
Papel da imprensa. Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 08, 15 mar. 1964.
138
302
Deve-se destacar, por outro lado, que o político gaúcho, então ocupando uma vaga na Câmara dos Deputados,
se tornou um dos principais expoentes do lema “reformas na lei ou na marra”. Para Rodrigo Motta, a pregação
radical de Brizola, levada a cabo em âmbito nacional, deu origem a inúmeras crises. Dentre esses setores mais
à esquerda, Brizola estaria dentre os mais radicais que “não estavam dispostos a aceitar as oscilações de Goulart
e pretendiam tomar iniciativas visando forçar definições mais claras”. Não aceitavam, em determinados
momentos importantes, “pactos com os conservadores e almejavam a adoção de transformações sociais rápidas
e radicais”. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. 2002, Op. cit. p. 312-313)
303
MENDES, Simplício de Sousa. Decretos-Leis?. Jornal O Dia, Teresina-PI, p.03, 17 mar. 1964.
304
MENDES, Simplício de Sousa. Idem.
305
MENDES, Simplício de Sousa. Op. cit. 1964, p.03.
139
306
MENDES, Simplício de Sousa. Op. cit. 1964, p.03.
307
MENDES, Simplício de Sousa. Op. cit. 1964, p.03.
308
Eleito deputado federal pelo Espírito Santo na legenda do Partido Social Democrático (PSD), em 1962,
quando também se elegeu presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT),
entidade que congregava todas as empresas de radiodifusão e de televisão no Brasil. Em outubro de 1963,
lançou a ideia, logo a seguir concretizada, da Rede da Democracia, cadeia formada por mais de cem emissoras
de todos os estados do Brasil, que passou a transmitir diariamente programas políticos de ataque ao governo
Goulart, acusando-o de pôr em risco o regime democrático. Nesse ano integrou o conselho administrativo da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/joao-de-medeiros-calmon. Acessado em: 02 jan. 2019.
140
reafirmado em nome deste e das classes produtoras locais, pois ambos seriam “fiéis à
tradição de liberdade do Piauí e do Brasil”309.
Segundo o discurso do deputado, publicado integralmente nas páginas do jornal
O Dia, o mesmo se colocava naquele momento já como candidato nas eleições de 1965 e
como um legítimo “defensor da democracia”; alguém que faria, “modesta, mas firme e
resoluta pregação em favor desta pátria massacrada e traída pelos traficantes de um falso
nacionalismo reformista que nada tem de nacionalista e muito menos de reformador” 310. Tais
discursos empreendidos apontam que existia em andamento um processo de incentivo à
tomada de posição contra o governo Goulart também pelas “classes produtoras” locais.
No texto, Calmom indicava ainda que: “o dia de amanhã será um novo dia.
Temos a razão do regozijo, em meio às incertezas e às inquietações, porque vemos agora o
povo levantar-se e reagir. Porque vemos as classes produtoras resolutamente ocupando a sua
posição de combate, através dos firmes pronunciamentos que mobilizam a consciência
nacional”311. Portanto, a simples presença de um notório político engajado na luta contra o
governo Jango pode indicar que, de certa forma, tais iniciativas foram bem recebidas pelos
grupos comerciais no estado do Piauí.
O discurso do deputado foi enfático quanto a necessidade da derrubada do
governo Jango, pois, segundo Calmom, o presidente estaria favorecendo o clima de
instabilidade política e econômica, por meio de greves e ampliação dos movimentos
sindicais, para, a partir disso, implantar, como consequência, uma “ditadura comunista” no
Brasil. Contra isso, João Calmom impunha um grito de “Basta!” aos – segundo ele –
“insensatos manipuladores das crises que estrangulam a economia do país e agita nas ruas a
desordem organizada para a meta do desespero coletivo, ponte de fácil acesso ao caos da
revolução vermelha”312.
Para Rodrigo Motta, a opinião “anticomunista enxergava os acontecimentos
através das lentes da ideologia, que não deixavam margem para dúvida: o surto grevista seria
parte da conspiração revolucionária dos comunistas”. Dentro dessa lógica de interpretação,
“o fato dos militantes do PCB possuírem sólidas posições na direção do movimento sindical
era considerado suficiente para corroborar as teses conspirativas”313.
309
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr.1964.
310
Jornal O Dia, op. cit. 1964.
311
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr. 1964.
312
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr.1964.
313
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2002, p. 314.
141
O deputado Calmom então, assim como diferentes agentes que se utilizaram das
páginas dos jornais como trincheira política contra o governo Goulart, indicou o exemplo
das donas de casa, que saíram de suas residências com terço em mãos para influenciar a
tomada de atitude contra Jango. Segundo ele, para “também enfrentar com destemor a
insurreição bolchevista com que se pretende solapar a segurança dos alicerces em que
repousa o futuro da família cristã brasileira”314. João Calmom ainda indicava uma espécie de
contrapartida ao programa das reformas de base a ser levantado pelos “democratas”, quando
destaca que “à pregação das sangrentas reformas importadas de Moscou, de Pequim ou de
Havana, responderemos com a pregação das reformas cristãs e democráticas, consentâneas
com a índole e as tradições do nosso povo”315.
O longo texto, publicado integralmente em edição do jornal O Dia, destacando
o discurso do deputado João Calmom para as classes produtoras do Piauí, diz muito sobre as
posições assumidas por determinados setores da sociedade piauiense no momento de maior
tensão do governo Jango. No momento, portanto, de ampliação das pautas reformistas, a
partir de final de 1963, e com o temor de que isso viesse a modificar as estruturas de poder
no Brasil e consequentemente no Piauí. Naquele contexto, segundo trabalho importante
sobre o anticomunismo no Brasil, “das palavras, o deputado e empresário das comunicações
passou à ação”, pois:
314
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr. 1964.
315
A palavra de João Calmom. Jornal O DIA, Teresina-PI, p. 02-04-06, 02 abr.1964.
316
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Op. cit.2002, p. 318.
142
consolidar apoio social ao golpe de 1964. Essa sensação de medo manipulada pela ampliação
dos discursos anticomunistas, o clima de radicalização política e a sensação de insegurança,
foram, dentre outros fatores, grande estímulo para que muitas pessoas passassem a aceitar e
a ver com bons olhos intervenções autoritárias, como de fato se processou em 1964.
Por fim, menciono um trecho do livro Travessias, de José Pereira da Silva,
recentemente publicado no jornal O Bembém317, periódico cultural que circula em Parnaíba,
em que ficam evidentes as percepções do autor quando esteve em visita durante as férias na
cidade de Parnaíba, em 1963. O trecho intitula-se, no jornal, Parnaíba às vésperas do golpe
de 1964. De acordo como o texto, “o movimento sindical de Parnaíba, o diretório dos
estudantes e alguns setores progressistas se mobilizaram pela campanha do
presidencialismo” 318 . Como pude retirar do texto, em alguns setores na vida política
parnaibana naquele momento, a mobilização política se fez evidente, sobretudo nos setores
ligados ao sindicalismo, mas também em grupos de estudantes secundaristas que, por terem
se mobilizado em torno das pautas do presidencialismo e posteriormente do reformismo,
tiveram suas atividades reprimidas pela força do golpe em 1964.
O texto ainda confere atenção especial à presença em Parnaíba do padre
português Alípio Freitas, ligado ao Partido Comunista, que “a convite dos sindicalistas
mobilizou toda a cidade”319. O autor, José da Silva, ainda demonstrou preocupação quando
da consumação do golpe em 1964, pois seu nome constava no registro das pessoas que
participaram das conferências ministradas pelo padre Alípio em Parnaíba, o que poderia vir
a lhe causar problemas com as forças repressivas. O texto ainda é importante por levantar
algumas questões pontuais como a recepção, em Parnaíba, dos temas mais candentes da
política nacional daquele contexto, tais como a votação da emenda pelo retorno ao
presidencialismo e o entusiasmo que se sentia, segundo o autor, pelas pautas progressistas
do governo João Goulart nessa cidade.
Segundo José da Silva, “o momento vivenciado em Parnaíba, em 1963, ocorria
em meio a uma grande movimentação política, pois coincidia com a volta ao
presidencialismo no país”320. Seria possível então indicar que o clima de mobilização política
em Parnaíba, percebido pelo autor às vésperas do golpe civil-militar, foi um dos fatores que
317
Jornal cultural, de propriedade do escritor e dramaturgo Benjamim Santos. Circula em Parnaíba e região,
com periodicidade mensal, desde o ano de 2008.
318
SILVA, José Pereira da. Travessias. Editora Thesaurus, Brasília, 2018. Citado em: Parnaíba às vésperas do
golpe de 1964. Jornal O Bembém, Parnaíba-PI, n. 136, p. 07, abr. 2019.
319
SILVA, José Pereira da. Op. cit. 2019, p. 07.
320
SILVA, José Pereira da. Op. cit. 2019, p. 07.
143
ocasionou a abertura de Inquérito Policial Militar nessa cidade? Essas, dentre outras questões,
fazem parte do próximo capítulo.
144
CAPÍTULO III
DESDOBRAMENTOS DO GOLPE EM PARNAÍBA: UMA ANÁLISE DAS
PRÁTICAS REPRESSIVAS INSTAURADAS EM 1964
321
Trata-se de prédio público, montado nos anos 1920, reformado pelo sistema Fecomércio. O presidente do
sistema Fecomércio, o advogado Valdeci Cavalcante, em claro ato de oportunismo político, propõe homenagear
o presidente Bolsonaro com o nome dessa escola, que teria os moldes cívico-militares propostos pelo governo
federal. Iniciou-se, então, um embate na justiça local para a retirada do nome do presidente. Até o momento,
não houve a instalação do nome de Bolsonaro no prédio. (PITOMBO. João Pedro. Bolsonaro viaja ao Piauí
para inaugurar escola com seu nome e homenagear militar. Folha de São Paulo, 13 ago. 2019. Disponível em:
www.folha.uol.com.br. Acesso em: 18 dez. 2019.)
322
Foi eleito presidente em 2018, surfando na onda do antipetismo, se colocou como um “outsider” da política
brasileira e como opção contra a estrutura partidária vigente. Foi o principal beneficiário do antipetismo e do
clima de antipolítica propagado pela operação Lava Jato e pela grande imprensa brasileira. Fez carreira no
baixo clero da Câmara Federal (28 anos como deputado) amparado no voto dos militares e dos seus familiares,
no Rio de Janeiro. Contrário à Comissão da Verdade. Saudosista da ditadura. Usou de seu espaço na campanha
para propagar alguns negacionismos históricos. Ganhou maior evidência nacional na votação do impeachment
de Dilma Rousseff, quando homenageou, na sessão, o torturador, reconhecido pelo Estado, Cel. Carlos Alberto
Brilhante Ustra.
323
No Piauí, Bolsonaro quebra protocolo e diz que vai acabar o "Co-Co". Jornal Cidade Verde, Teresina, 14
ago. 2019. Disponível em: www.cidadeverde.com. Acesso em: 18 fev. 2019.
324
Para as aproximações entre anticomunismo e antipetismo, ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá Motta.
Anticomunismo antipetismo e o giro direitista no Brasil. In: BOHOSLAVSKY, Ernesto; MOTTA, Rodrigo
Patto Sá; BOISARD, Stéphane (org.) Pensar as direitas na América Latina. São Paulo: Alameda, 2019.
325
Com o fim da ditadura (1964-1985), não se via mais grupos de direita em atuação tão abertamente. Com a
crise aberta recentemente e a materialização das oposições ao PT, muitos grupos se sentiram à vontade para
defender as bandeiras há muito aparentemente silenciadas, como um certo legado dos militares no que diz
respeito ao combate à corrupção e aos grupos de esquerda.
145
bastante evidente, por conta das disputas que denotam as visões de mundo de largas parcelas
da sociedade brasileira e do conservadorismo de determinados agentes de poder.
No ano de 2018, em evento referente aos 30 anos da constituição de 1988, o
ministro do Supremo Tribunal Federal, José Dias Toffoli, declarou que, pessoalmente, se
refere à tomada de poder pelos militares como “movimento de 1964”326. Segundo o então
presidente do Supremo, “esquerda e direita conservadora tiveram a conveniência de não
assumir seus erros”. Como se pode perceber, tal narrativa é uma simplificação e denota um
certo uso político do passado recente. Como destacam Edson Teles e Vladimir Safatle, no
livro O que resta da ditadura, esse regime de força vai, aos poucos, “não sendo mais
chamado pelo seu nome, ou sendo chamado apenas entre aspas, como se nunca houvesse
realmente existido”327.
Outro agente que causou polêmica falando sobre o golpe de 1964 foi o então
presidente Michel Temer. Esse último, por meio de outro golpe (agora jurídico/parlamentar).
Com ampla sustentação da grande imprensa brasileira, chegou à presidência em 2016,
ajudando na retirada do cargo da mandatária de quem era vice328. Segundo ele, em encontro
com empresários e políticos, na sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo
(Fecomércio), em São Paulo, existia no país, em 1964, uma “vontade popular por
centralização”.
Então, ainda de acordo com Temer, os militares seguiram “apenas a vontade
popular”. Em seguida, afirmou que houve um “desejo de centralização”. Segundo essa
interpretação, “a ideia do povo era de que deveria haver uma concentração do poder, como
houve nesse período todo”329. Temer ignorou, então, em sua declaração, questões importantes
sobre o contexto do golpe, também para fazer uso político desse passado. Por exemplo, não
levou em consideração que o governo Jango possuía bons índices de popularidade, bem
como não mencionou que a pauta das reformas de base, principal bandeira do PTB naquele
momento, era avaliada positivamente pela opinião pública brasileira 330.
326
PESSOA, Gabriela Sá. Toffoli diz que hoje prefere chamar golpe militar de 'movimento de 1964, São Paulo,
01 out. 2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br. Acesso em: 13 dez. 2019.
327
TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org). Apresentação. O que resta da ditadura: a exceção brasileira.
São Paulo, SP: Boitempo, (2010).
328
Ver: MATTOS, Hebe; BESSONE, Tânia; MAMIGONIAN, Beatriz G. (Org.) Historiadores pela democracia:
o golpe de 2016 e a força do passado. São Paulo. Alameda, 2016. Ver também: JINKINS, Ivana; DORIA, Kim;
CLETO, Murilo (Org.) Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil. São
Paulo: Boitempo, 2016.
329
‘Não houve golpe em 1964’: Temer volta a dizer que povo quer 'poder central' no Brasil. Disponível em:
br.sputniknews.com/brasil. Acesso em: 10 dez. 2019.
330
Rodrigo Motta estuda as pesquisas de opinião a respeito desse momento histórico, por meio de dados
retirados de pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (IBOPE) no contexto
146
do golpe de 1964. O historiador destaca que, segundo os dados, Jango era bem visto por segmentos sociais
expressivos e gozava de boa popularidade. O autor destaca ainda algumas ambiguidades a respeito do golpe,
quando indica que “uma proporção elevada de cidadãos deu suporte ao golpe e aos expurgos políticos;
entretanto, o estabelecimento de uma ditadura, sob tutela militar, não atraiu o mesmo entusiasmo”. Ver:
MOTTA, O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. Op cit. 2014, p. 04.
331
MAZUI, Guilherme. Bolsonaro determinou que Defesa faça as 'comemorações devidas' do golpe de 64, diz
porta-voz. G1, Brasília, 25 mar. 2019. Disponível em: https://g1.globo.com/politica. Acesso em: 15 dez. 2019.
Nesse caso, é interessante também mencionar que o presidente do STF, Dias Toffoli, em maio de 2020,
suspendeu decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5) que determinou ao Ministério da
Defesa retirar de seu site uma publicação de 31 de março em defesa do golpe militar de 1964. Segundo Toffoli,
a medida do TRF-5 censurava a livre expressão de ministro de Estado. Apontou, então, que: “cuida-se, assim,
de ato inserido na rotina militar e praticado por quem detêm competência para tanto, escolhidos que foram pelo
Chefe do Poder Executivo, para desempenhar as elevadas funções que ora ocupam”, escreveu Toffoli. É
perceptível que o ministro tratou, nesse caso, as comemorações de um golpe de Estado, que instaurou uma
ditadura violenta, responsável por crimes contra os direitos humanos, como uma simples manifestação,
legitimada pela liberdade de expressão, que deve ser assegurada ao ministério da Defesa. Esse posicionamento
denota, a meu ver, a profunda incapacidade de agentes do Estado brasileiro, em especial do judiciário, desde a
abertura política, de lidar com as questões das perpetrações de crimes contra a humanidade, cometidos durante
o período ditatorial no Brasil (1964-1985). Ver: Jornal O Globo, Brasília, 05 maio 2020. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/brasil/toffoli-libera-publicacao-do-ministerio-da-defesa-em-homenagem-ao-golpe-
militar-de-1964-24411312. Acesso em: 14 jun. 2020.
332
RODRIGUES, Renan. Grupos pedem intervenção militar e monarquia durante desfile de Sete de Setembro
no Centro. Globo, Rio de janeiro, 07 set. 2017. Disponível em: www.globo.com/rio. Acesso em: 12 dez. 2019.
333
OLIVEIRA, Junior. Wellington Dias sanciona lei que proíbe comemoração ao golpe de 1964 no Piauí.
Cidade Verde, Teresina-PI, 17 set. 2019. Disponível em: www.cidadesemfoco.com. Acesso em: 13 dez. 2019.
334
Idem.
147
335
Esse é o caso do “Centro Estadual de Tempo Integral Presidente Castelo Branco, que homenageava um
torturador da Ditadura Militar no Brasil, no município de Piracuruca, teve o nome alterado para CETI Inês
Maria de Sousa Rocha”. Ver: SAMPAIO, Paula. Escola que homenageava torturador ganha nome de ex-
professora do Piauí. Portal OitoMeia, 10 fev. 2020. Disponível em: www.oitomeia.com.br. Acesso em: 10 fev.
2019.
336
FERREIRA; GOMES, op. cit. 2014, p. 19.
337
No Programa de História do Brasil da UFPI, PPHGB, sediado em Teresina, até mesmo pela divisão das
linhas entre “História, Cultura e Arte” e “Trabalho, Cidade e Memória”, há uma predominância de pesquisas
que até se localizam no recorte temporal do período ditatorial no estado, mas com temas como movimentos
juvenis, culturais ou o processo de organização do espaço urbano no Piauí durante o regime. São temas bastante
importantes para a produção historiográfica local. Mas, ainda não houve a produção de alguma dissertação ou
tese especificamente tratando sobre o golpe de 1964 no Piauí, pelo que pude averiguar. Encontrei artigo
bastante pontual referente ao tema do golpe, com discussões importantes sobre o anticomunismo e o golpe de
1964. Trata-se de: OLIVEIRA, Marylu Alves de. Esteja preso, comunista: breves considerações sobre as
práticas anticomunistas no pós-golpe civil-militar de 1964 no Piauí. Revista Crítica Histórica, ano 5, n. 10,
dez. 2014.
148
338
Trata-se do artigo: FRANCO, Roberto Kennedy Gomes. Um espectro ronda Parnaíba, “terra livre das
atividades subversivas de comunização do Brasil” (1960-1980), Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez.
2014. Disponível em: http://seer3.fapa.com.br/index.php/arquivos. Acesso em 03.11.2018
339
Trata-se de: RICARDO, Elisangela Maria. Entre Indícios e Vestígios dos Tempos da Ditadura Civil Militar
em Parnaíba-PI. (Dissertação de Mestrado) Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Humanidades da
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira-UNILAB. Redenção-CE, 2018.
340
O trecho a seguir, da dissertação, ilustra bem a intepretação a que nos referimos: “Era nítido que a sociedade
estava dividida em classes, entre proletários e burgueses, pobres e ricos, isso implicava uma ideologia
totalmente oposta. Enquanto a classe dirigente tendo os militares a seu favor, lutavam para ampliar sua
aquisição econômica, e continuar no poder. A classe operária estava amparada apenas em sua resistência
subversiva” (RICARDO, op. cit. 2018, p. 37). É preciso, a meu ver, buscar uma análise mais complexa sobre
o golpe de 1964. No Piauí, como em outros estados do país, determinados setores das camadas populares
aderiram ao discurso conservador dos militares e das elites econômicas, principalmente por meio da
operacionalização do medo do “comunismo ateu”, fortemente empregado no meio midiático contra o governo
Jango. Como explicar a ampla adesão social nas chamadas Marchas da Família com Deus pela Liberdade?
Eram “burgueses” todos os presentes no evento de apoio às Forças Armadas, quando ocorreu, já após o golpe,
no Piauí? Além do mais, parcela da elite política local também foi perseguida por se vincular ao reformismo e
por posições contrárias ao golpe. Nesse ponto, é exemplar o caso dos irmãos Chagas Rodrigues e José
Alexandre Caldas Rodrigues. Filhos de um grande comerciante parnaibano, com grande poder político e
econômico em Parnaíba. Por conta de suas posturas em defesa das bandeiras das reformas, do trabalhismo e
pela aproximação com sindicatos urbanos e rurais, foram punidos com cassações de mandatos legislativos.
José Alexandre, enquanto deputado estadual, já em 1964, e Chagas Rodrigues, como deputado federal, em
1968.
149
“repressão direta, intervenção legal e judiciária, controle administrativo”, pois a nova ordem
golpista “extinguiu ou passou a controlar rigidamente as entidades sindicais, comunitárias
ou políticas que serviam de canais de participação de diferentes setores sociais na vida
político-social”341, de acordo com Antônio José Medeiros.
Quanto à política repressiva adotada em Parnaíba, logo após o golpe, um
Inquérito Policial Militar foi aberto pelo comandante da Guarnição Federal em Teresina, o
coronel Francisco Mascarenhas Façanha, e pelo capitão de infantaria Gladstone Weyne
Rodrigues, tendo o capitão de infantaria Clidenor de Moura Lima, sido encarregado pelo
IPM. O argumento utilizado, bastante frágil e genérico, era o de que “elementos ligados a
ideologias extremistas [estavam] praticando atos de subversão e agitação contra a ordem
social e política”, nessa cidade342. Mas, quais eram os temores dos militares e grupos civis
quanto à organização da classe trabalhadora local que justificasse tal medida? Percebe-se,
de imediato, que estavam atentos a quaisquer sinais de que pudesse ocorrer o fechamento de
canais de acesso à Estrada de Ferro Central do Piauí343 , ou uma greve geral em órgãos
importantes da cidade, como forma de demonstração de apoio ao governo João Goulart pela
classe trabalhadora norte-piauiense. Bem como temiam a circulação de armas de fogo nos
meios sindicais locais.
Os primeiros momentos após disparado o golpe civil-militar, de acordo com as
fontes de pesquisa, são de esparsas tentativas de apoio ao governo João Goulart no norte
piauiense por parte da classe trabalhadora e, como consequência, de medidas para contê-las,
por parte dos militares. As notícias que chegavam pelo rádio, a cada momento, eram um
tanto quanto desanimadoras para os sindicalizados e entusiastas do governo Jango. Para
parcelas dos trabalhadores e lideranças petebistas, era preciso se mobilizar por meio de atos
341
MEDEIROS, Antônio José. Op. cit. 1996, p. 116
342
Padrós destaca que a DSN associou diretamente o “subversivo”, portador de tensões e “contaminado” por
ideias e influências “estranhas” (externas), ao comunismo, sendo este tratado de forma tão vulgar e imprecisa
que abrangeu toda e qualquer forma de manifestação de descontentamento diante da ordem vigente. Ver:
PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: segurança nacional e terror de Estado nas ditaduras latino-
americanas. In: Carlos Fico et al. (Orgs.). Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e
perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008.
343
A historiadora Lêda Rodrigues destaca que “o transporte ferroviário foi de grande relevância no cenário
social e econômico de Parnaíba, cidade situada a 365 km da capital Teresina e a 18 km de Luís Correia e do
mar. O primeiro trecho ligando Portinho a Cacimbão na região norte do Piauí foi inaugurado em 1916, sendo
outros trechos inaugurados entre os anos de 1920 a 1937, atingindo cidades e povoados como Amarração (atual
Luís Correia), Bom Princípio, Frecheiras, Cocal, Deserto, Piracuruca e Piripiri. Em Parnaíba, o trem de ferro,
durante sessenta anos, de 1922 a 1982, fez parte do cotidiano do povo parnaibano, acompanhou o crescimento
da cidade e marcou profundamente a população, que usufruiu seus serviços aos domingos em direção à praia,
à festa de Bom Jesus dos Navegantes, às férias em Amarração, ao transporte de alimentos de outras localidades
vizinhas, a exemplo de Frecheiras e Cocal”. Ver: VIEIRA, Lêda Rodrigues. Cidade ferroviária: história e
memória da ferrovia piauiense na cidade de Parnaíba, 1916 a 1930. Ver: Anais do XXV SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, Fortaleza, 2009.
150
344
Raphael Martinelli nasceu em 1924 em São Paulo, foi militante político desde os 16 anos. Faleceu em
fevereiro de 2019. Começou a trabalhar aos 12 anos e ingressou na ferrovia SPR em 25 de maio de 1941, onde
ficou até 1964, quando foi cassado por 10 anos pela ditadura militar. Amigo do presidente João Goulart,
militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), ajudou a organizar o PUA (Pacto de Unidade e Ação) e o
CGT (Comando Geral dos Trabalhadores). Foi um dos sindicalistas mais importantes do Brasil até 1964 e, após
o golpe, participou na luta armada da Ação Libertadora Nacional (ALN). Perseguido e torturado pela ditadura,
foi preso político de 1970 a 1973. É um dos fundadores do PT. Ver: COSTA, Soraia Oliveira; DIETRICH, Ana
Maria. Entrevista Raphael Martinelli, Contemporâneos: Revista de Arte e Humanidades, n. 13, nov./mar. 2016.
151
piauiense, como visto, pelo menos desde meados dos anos 1961-1962 e, sobretudo, após a
ofensiva do reformismo radical no final de 1963 e início de 1964345, que também encontrou
certa reprodução no espaço piauiense.
Esses argumentos anticomunistas foram também empreendidos após a
concretização do golpe, como um meio de angariar apoio e legitimação social ao movimento
golpista. Por outro lado, parcela da sociedade piauiense, sobretudo setores da classe
comercial, do judiciário, proprietários de terra, dentre outros, enxergaram, naquele momento
de ampliação da participação política e protagonismo da classe trabalhadora, que se fazia
urgente alguma medida mais enérgica, uma intervenção radical no quadro político que viesse
a favorecer a manutenção das estruturas socioeconômicas locais e inviabilizar o processo
reformista então proposto.
Como forma de deter as manifestações de apoio ao governo João Goulart, após
o golpe, empreenderam-se algumas práticas repressivas346, sobretudo nos sindicatos locais e,
a partir disso, colocadas em andamento as chamadas “operações limpeza” 347 . Essas
atividades foram sendo publicadas na imprensa local por meio de boletins da Guarnição
Federal do Piauí, com sede em Teresina. As prisões dos líderes sindicais foram
caracterizadas nos jornais, em um primeiro momento, como uma forma de “livrar” a
345
Para Daniel Aarão Reis Filho, é possível perceber uma formação política reformista radical no final de 1963
e, sobretudo, no início de 1964. De acordo com o historiador, “principalmente se consideradas as alas mais
radicais do Partido Trabalhista Brasileiro, PTB, do PCB/ Partido Comunista Brasileiro, da Frente Parlamentar
Nacionalista e da Frente de Mobilização Popular, miniparlamento alternativo constituído pelas forças populares
mais decididas, dentre outros grupos das esquerdas daquele momento”. O reformismo radical estabeleceu,
como se pode perceber, uma estratégia de confronto para a concretização de suas bandeiras, como a reforma
agrária. Para Reis Filho, “nos primeiros meses de 1964, configurava-se uma clara ofensiva política reformista-
revolucionária dos movimentos mais radicalizados. Crescia a descrença na possibilidade de que as reformas
pudessem ser conquistadas nas margens legais”. (Ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as
reconstruções da memória. op. cit., 2004, p. 35-36). Jorge Ferreira, por seu lado, indica que “as estratégias dos
partidos e movimentos de esquerda, como a política de confronto com os conservadores e as mobilizações
pelas “reformas na lei ou na marra”, entre outras escolhas marcadas pelo radicalismo e pela confiança excessiva,
embora sem bases reais, de suas forças, desaparecem, surgindo, na segunda metade dos anos 60, versões que
omitiram as suas atuações políticas no governo Jango e que, no mesmo movimento, as transformaram em
vítimas”. (FERREIRA, Jorge. A estratégia do confronto. op. cit. p. 184.)
346
Rodrigo Motta destaca que, em 1964, as operações de repressão tiveram como protagonistas principais as
forças policiais (civis e militares), mas também algumas unidades das Forças Armadas, que fizeram seu
“batismo de fogo” em atividades a que se dedicariam com afinco nos anos seguintes. Em certos lugares, os
agentes públicos contaram também com o auxílio de militantes de grupos de extrema direita (Comando de
Caça aos Comunistas – CCC, integralistas), alguns dos quais montaram sua própria estrutura de coleta de
informações durante o governo Goulart. (MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar:
cultura política brasileira e modernização autoritária. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 21.)
347
De acordo com Rodrigo Motta, “a expressão ‘operação limpeza’ foi utilizada por agentes do Estado e seus
apoiadores para expressar a determinação de afastar do cenário público os adversários recém-derrotados –
comunistas, socialistas, trabalhistas e nacionalistas de esquerda, entre outros.”. Essa metáfora da limpeza
implicava também punição para os corruptos, mas, inicialmente, o alvo efetivo eram os inimigos políticos. Só
quando estes começaram a escassear, e também quando ficou claro que a ameaça revolucionária fora
superdimensionada, as ações repressivas voltaram-se com mais intensidade contra a “corrupção”. (MOTTA,
Rodrigo Patto Sá. Op. Cit. 2014, p. 21)
152
348
Autuação. Processo crime contra o estado e ordem política e social. Ministério Público Piauiense. Brasil
Nunca Mais Digit@l, BNM_349, p. 8. Inquérito Policial Militar, Processo n. 4, 1964. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso: 20 mar. 2019.
349
Foi indiciado por uma suposta ligação com o CGT nacional, por meio de Raphael Martinelli. Fundando um
sindicato em Parnaíba com a mesma sigla (CGT). Pesou sobre ele a acusação de ter convocado a Assembleia
Geral dos sindicatos, na sede dos estivadores, para organizar passeata em apoio a Goulart. Tendo ainda assistido
ao comício da SUPRA, em 13 de março, no Rio de Janeiro. Ainda o fato de ter recebido da presidência da
república um empréstimo, para a construção da sede dos estivadores, sendo atendido com a quantia de
Cr$ 3.000.000,00 (três milhões de cruzeiros), que foram recebidos parceladamente.
350
Presidente da Federação dos Transportes Fluviais do Piauí. As acusações dão conta de que fez várias viagens
ao Rio de Janeiro para tratar de assuntos de interesses de sua classe, junto à Federação dos Marítimos Fluviais.
Também foi acusado de ter assistido as “reuniões convidativas” do “Padre Alípio”, para tratar das “Reformas”;
e de frequentar outras reuniões com o notório líder comunista José Ceará e de distribuir ainda jornais, como
Novos Rumos, vindo a conhecer pessoalmente o redator-chefe, Orestes Timbaúba.
351
Presidente da União dos Ferroviários do Piauí. A acusação indica que ele compareceu ao congresso dos
Trabalhadores Ferroviários do Brasil, realizado em Recife. Tendo participado também de reunião dos sindicatos
para decidir quanto à realização de uma passeata de solidariedade a João Goulart em Parnaíba. O inquérito
aponta ainda que ele teria sido preso e fichado pela Polícia do Ceará, acusado de comunista, em 1935.
352
Presidente do Sindicato dos Foguistas. A acusação indica que, na sede desse sindicato, foi encontrado farto
material de propaganda comunista. Indicando ainda que teria participado das reuniões com o Padre Alípio, em
que se debatia a reforma agrária. Tendo ainda defendido, nestas reuniões, a necessidade de uma revolução nos
moldes da cubana. A acusação indicava, também, que ele se solidarizou com a passeata em apoio a Goulart.
153
Araújo 353 e Custódio Amorim 354 ; o vice-presidente da União dos Ferroviários do Piauí,
Bernardo Luiz Caldas Veras355; o ferroviário, José Caldas de Carvalho356; o líder do Sindicato
dos Bancários em Parnaíba, Raimundo Nonato de Brito 357 ; Antônio Bezerra da Silva 358 ;
advogado da Estrada de Ferro, Israel Brodher359; o estudante secundarista, Ademir Alves de
Melo 360 ; o superintendente da Estrada de Ferro Central do Piauí, Luiz Alberto da Mota
Solheiros361; José Reinaldo dos Santos Baldez362; o funcionário dos Correios S/A, Francisco
das Chagas Frota de Medeiros 363 ; o líder piauiense da Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria, Evilásio dos Santos Barros364; o comerciário, José Aranha365; o
353
Vereador Municipal pelo PTB. Secretário do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Construção e
Mobiliário de Parnaíba, onde teria sido encontrado material dito “subversivo”. Teria feito, junto com Evilásio
dos Santos Barros, viagens a Guanabara. Tomou parte de reuniões das Ligas Camponesas nas comunidades
Labino e Ilha Grande. Teria participado da Assembleia para deliberação sobre as passeatas em apoio a Goulart
e em solidariedade aos ferroviários presos na Guanabara.
354
A acusação contra o vereador do PTB foi apenas a de apresentar, na Câmara Municipal, um projeto
concedendo título de cidadania a Leonel Brizola, por considerá-lo amigo do povo parnaibano.
355
Vice-presidente da União dos Ferroviários do Piauí. Era ligado ao Superintendente, Alberto Solheiros,
indicado pelo ex-prefeito, José Alexandre Caldas Rodrigues, do PTB. Participou da Assembleia Geral dos
Sindicatos, para deliberar sobre passeata em apoio a Goulart. Teria protestado contra a deposição de Goulart e
contra a prisão de Raphael Martinelli.
356
Segundo a acusação, seria ligado diretamente ao Partido Comunista Brasileiro, tendo cooperado com a
campanha de propaganda, distribuindo, na Estrada de Ferro e em outros lugares, os jornais Brasil Urgente e
Novos Rumos. Ainda segundo a acusação, como suplente de fiscal da União dos Ferroviários do Piauí, debatia
os temas de reivindicação da classe e recomendava greves.
357
Presidente do Sindicato dos Bancários de Parnaíba. Segundo a acusação, imprimia o mimeógrafo do IAPB,
de “cunho subversivo”. Teriam sido encontradas, em sua posse, “publicações de natureza esquerdista”,
inclusive panfleto convidando o povo a comparecer no comício da SUPRA, na Guanabara. Teria ficado
incumbido de conseguir alto-falante móvel para a passeata em apoio a Goulart, na Assembleia Geral dos
Sindicatos.
358
Seria, de acordo com a acusação, distribuidor de jornais subversivos, como o jornal Novos Rumos, em
Parnaíba. Tinha estreitas ligações de amizade com o conhecido comunista José Ceará, que hospedava em sua
residência. Teria hospedado em sua residência, também, Orestes Timbaúba, membro do PCB e redator do jornal
referido.
359
Segundo a acusação, procurou e obteve ligações muito estreitas com certos funcionários da Estrada de Ferro,
incitando-os, várias vezes, a movimentos grevistas. Participou da Assembleia Gral dos sindicatos locais para
deliberar sobre a passeata em solidariedade a Goulart. Apresentou ainda um manifesto concitando o povo a
dela participar.
360
Era ex-presidente da União dos Estudantes Secundários de Parnaíba (UESP). Segundo o inquérito policial
militar, recebia formação política de Israel Brodher.
361
Superintendente da Estrada de Ferro Central do Piauí. De acordo com a acusação, recebia instruções de
Raphael Martinelli, por intermédio do CGT. Tendo participado de congresso em Recife, em que se defendiam
temas de “caráter subversivo”. Ainda de acordo com a acusação, teria permitido a “deflagração de greve a ser
levada a cabo na Estrada de Ferro local, em solidariedade a Goulart”.
362
Presidente da União Nacional dos Servidores Públicos Civis do Brasil, Secção Piauí. De acordo com a
acusação, tomou parte da organização das Ligas Camponesas lideradas por Veridiano Mendes da Silva, então
falecido. Preparou a documentação da Federação dos Camponeses de Teresina, sob a orientação de José Ceará.
Tendo rompido com o PTB, passou a trabalhar para a Organização Regional Interamericana de Trabajadores.
363
Segundo a acusação no IPM, discutia constantemente, em sua repartição, a lei de remessa de lucros, sendo
também partidário das reformas.
364
Vou abordar as experiências e as memórias sobre o golpe de 1964, a partir das entrevistas de familiares de
Evilásio dos Santos Barros, em um item específico deste capítulo.
365
Segundo o IPM, o comerciário era “irmão do comunista e agitador João Aranha, atualmente desaparecido e
presumivelmente residindo em Santos, litoral paulista. Distribuía jornais de cunho esquerdista, tais como
Novos Rumos, na Estrada de Ferro Central do Piauí. Em seu poder foi encontrado livro comunista”.
154
ex-prefeito e então deputado estadual, pelo PTB, José Alexandre Caldas Rodrigues366; dentre
outros. Somando mais de 30 indiciados, apenas na cidade de Parnaíba367, nesse inquérito em
particular a que estou me referindo.
Em um primeiro plano, deve-se destacar que os militares, ao se utilizarem dos
discursos anticomunistas característicos dos grupos conservadores, mas também presentes
na formação militar na Escola Superior de Guerra (ESG), buscaram, por meio de atos
repressivos, retirar do cenário político as lideranças que se conectassem com os movimentos
sociais naquele momento, com maior evidência, aqueles ligados ao campo de defesa das
pautas reformistas e que se aproximassem do trabalhismo do governo Jango. Ou seja, além
dos próprios pecebistas, os trabalhadores sindicalizados e ligados ao PTB foram vistos, pelas
forças do golpe, como uma ameaça. Isso se deu por meio do discurso acusatório empreendido
pelas forças civis-militares, com uma retórica atravessada por uma visão de mundo
maniqueísta, marcada pela paranoia persecutória da Guerra Fria, de um mundo divido em
dois polos antagônicos em disputa aberta. Para eles: “democracia cristã-ocidental” versus
“ditadura síndico-comunista”.
Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, no levantamento empírico para o
trabalho, tive acesso aos arquivos digitalizados do site Brasil Nunca Mais. Um em particular
é utilizado na pesquisa: o processo de número 349, que trata do Inquérito Policial Militar
(IPM), instaurado na cidade de Parnaíba, nos primeiros dias de abril, logo após a efetivação
do golpe civil-militar de 1964. De imediato, o interesse nesse documento se deu por seus
discursos de acusação, que afirmavam veementemente uma possível “instalação em breve
no Brasil de uma ditadura síndico comunista à maneira de Cuba e de outros países de igual
regime político”368. Segundo os acusadores, com a participação de “vários representantes de
sindicatos classistas e políticos da progressiva urbe de Parnaíba articulados com os
respectivos representantes classistas da Guanabara”369. A lógica da acusação denunciava a
proximidade dos trabalhadores locais com o governo central e insistia na ideia de que
366
Segundo o IPM, José Alexandre era “Comerciante, Deputado estadual, atualmente de mandato cassado pela
Assembleia Legislativa. Mantinha íntima ligação com os sindicatos locais, ligações políticas, mantidas desde
cerca de 20 anos. Pertence ao PTB. Convidado pelos líderes sindicais, esteve na Assembleia Geral dos
Sindicatos. Presidiu a mesa da referida reunião, tendo discursado sobre a situação do momento e hipotecado
solidariedade naquele instante aos trabalhadores, recomendando calma.
367
Na capital, Teresina, foi aberto inquérito policial militar, mas apenas em 1968, após o AI-5, para apurar a
atuação da Ação Popular, a AP, naquela cidade. Ver: ROCHA, Olivia Candeia Lima. Ação Popular: a
experiência política de militantes de Teresina-PI e a produção de subjetividade revolucionária na década de
1960. Tese (Doutorado em História) Universidade Estadual de Campinas, 2019.
368
Autuação. Brasil Nunca Mais Digit@l. BNM n. 349, 1964. Disponível em:
http://www.prr3.mpf.gov.br/bnmdigital/. Acesso em: set. 2018.
369
Idem.
155
tramava-se, então, uma tomada de poder, pois, segundo o IPM, esses trabalhadores e
lideranças sindicais estariam contando com “apoio, prestígio e intimidade do presidente João
Goulart e, instalariam, para sempre no Brasil, um governo totalitário e impiedoso como na
Rússia370.
O inquérito policial apresenta uma forte tentativa de descredibilizar e
criminalizar as formas de atuação dos trabalhadores mencionados nos capítulos anteriores,
com termos tais como “pelegos” e “arruaceiros” do “C.G.T. do PUA, da UNE e de outras
entidades subversivas”371. No discurso de acusação, a ideia defendida era a de que essas
organizações “se espalharam em todo o país, com o intuito de preparar uma possível tomada
de poder pelos comunistas” 372 . Essas estariam, ainda segundo o IPM, “sediadas na
Guanabara, porém, com articulações em todos os estados da federação, inclusive nesta
cidade”373. Para os militares, era “através dos vários sindicatos e estes, por intermédio dos
seus presidentes” que se desenvolviam as “mais nefastas atividades de subversão da ordem”
causando, com isso, o que entendiam como um “período inquietador”374.
São notórias no inquérito, como aspecto central a dar sustentação aos
argumentos de acusação, as narrativas anticomunistas que ganharam força naquele
momento, por conta de eventos como a revolução cubana, em 1959, e a aproximação da ilha
com o mundo soviético, no início dos anos 1960, dentre outras insurgências populares que
marcaram aquela quadra histórica mundial. Além disso, com a chegada à presidência da
República do principal herdeiro do getulismo (João Goulart), após a renúncia de Jânio
Quadros, e uma frustrada tentativa de golpe pelos ministros militares em 1961, derrotada
pela campanha da legalidade de Leonel Brizola, despertaram-se velhos pesadelos dos grupos
conservadores no Brasil375. Sobretudo, quando em estados com forte poder de mando de
grupos tradicionais, com um histórico de restrita participação popular nas disputas políticas,
como o Piauí, se esboçou um certo protagonismo de setores da classe trabalhadora, por meio
dos sindicatos e de lideranças trabalhistas, desde fins dos anos 1950, o que motivou reações
conservadoras por parte de setores das elites locais.
370
Autuação. op. cit.
371
Idem.
372
Idem.
373
Idem.
374
Idem.
375
Importante ressaltar a ideia de “ditadura síndico-comunista”, presente no IPM, para acusar os trabalhadores.
Esse tipo de leitura dos grupos conservadores contra Jango e a estrutura sindical que o apoiava era resquício
ainda dos anos 1950, do governo Vargas, quando João Goulart foi ministro do trabalho.
156
376
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit., 2014, p. 20.
377
Em grande medida esse aspecto simplificador do comunismo foi um argumento empregado por todo o
período ditatorial, permanecendo ainda por muito tempo presente no imaginário político nacional.
378
BORGES, Nilson. A doutrina de Segurança Nacional e os governos militares. In: FERREIRA, Jorge;
DELGADO, Lucília (org.). O Brasil Republicano: o tempo da ditadura - regime militar e movimentos sociais
em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 29.
379
BORGES, Nilson. op. cit., 2003, p. 30.
380
Idem.
381
Idem.
157
Nilson Borges destaca ainda que, “no contexto da guerra fria e da luta
antissubversiva, que servem de pano de fundo à Doutrina, o mito da guerra é um tratamento
permanente e fundamental que é fortemente sentido pelos militares e passado para a
sociedade”382. Nesse sentido, de acordo com o autor, o “mito da guerra e a ideia de um
inimigo interno, permitem, portanto, ao Estado instaurar sua política repressiva, acionando
os aparelhos de segurança e informação (repressivos) para exercerem seu papel
‘moralizador’, desmobilizando, com isso, a população”383.
Essa questão é importante, pois ajuda a pensar em como as narrativas
empreendidas pelos militares, no momento do golpe em 1964, puderam ter viabilidade em
diferentes espaços do território nacional, por meio dessa justificativa repressiva da
“segurança interna”. Ao justificar a ideia de que se faziam urgentes medidas de
enfrentamento a um inimigo difuso, porém presente entre a população residente em um
mesmo território, buscava-se legitimar e autorizar as medidas punitivas contra os grupos de
opositores políticos, sobretudo aqueles concentrados à esquerda.
No cenário político de início dos anos 1960, o crescimento da legenda
trabalhista, a aproximação conjuntural com o PCB 384 , bem como a ampliação das
representações de trabalhadores piauienses, deu margem a novas formas de luta pelo
atendimento das demandas das classes trabalhadoras; o que gerou um sentimento de
desconfiança nos grupos mais conservadores, como mencionado no capítulo anterior. A
partir dos desdobramentos do golpe de 1964 em âmbito local, concretizou-se um dos
principais objetivos da chamada “operação limpeza”: o de fazer batidas nos sindicatos,
associações de classe, residências dos líderes sindicais, bem como “dar uma solução”, por
meio da força, no que diz respeito à presença de trabalhadores organizados nesse espaço
desde os anos 1950. Nesse sentido, no IPM consta que:
382
Idem.
383
BORGES, Nilson, op. cit., 2003, p. 29.
384
Sobre a relação entre PCB e PTB, durante o governo João Goulart (1961-1964), Jorge Ferreira destaca que
“os comunistas tiveram diferentes posturas nesse período: na fase parlamentarista de governo, o partido
demonstrou distanciamento crítico com relação ao presidente da República. A seguir, durante todo o ano de
1963, o PCB foi opositor de Goulart, recusando a estratégia presidencial de aliar o PTB ao PSD para alcançar
maioria no Congresso Nacional. Por fim, de fins de 1963 até o golpe militar no ano seguinte, os comunistas
tornaram-se aliados do presidente. A mudança foi motivada pela decisão de Goulart de romper com o PSD e
governar com o apoio político das esquerdas”. Ver: FERREIRA, Jorge. O Partido Comunista Brasileiro e o
governo João Goulart. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 33, n. 66, p. 113-134, 2013.
158
Como fica visível no trecho do IPM, houve, no momento do golpe de 1964, por
parte dos acusadores, uma tentativa de criminalizar as experiências de organização dos
trabalhadores que ganharam força no contexto da experiência liberal democrática (1945-
1964). A percepção, por parte dos acusadores, era de que, cada vez mais, aqueles grupos que
tomavam para si a iniciativa de se organizarem politicamente, de reivindicar melhorias
salariais, bem como tratarem das pautas reformistas em evidência naquele momento,
poderiam causar uma iminente situação de ruptura política.
Outro ponto evidente é a busca por ampliar o leque de atividades e vínculos
políticos, bem como de funções a serem reprimidas no momento do golpe, pois
representariam uma ameaça ao status quo, pelo simples fato de organizarem manifestações
em apoio à reforma agrária ou greves. Ainda com relação às diferentes categorias reprimidas
no momento do golpe, no espaço piauiense, é possível acessar, em matérias de jornais como
O Estado do Piauí, que a própria ideia de organização sindical em si, foi vista como prática
suspeita. Portanto, essa atividade seria passível de punição, com prisão ou indiciamento nos
inquéritos abertos pelas forças militares.
385
Autuação. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 13 set. 2018.
386
Jornal O Estado do Piauí, Teresina, 02 jul. 1964.
387
No jornal O Estado do Piauí, destacou-se uma lista dos principais movimentos e organizações mais visados
pelos militares no momento do golpe: 01) Elementos verdadeiramente comunistas; 02) Elementos
159
Maior. Nessas cidades, se percebia uma maior movimentação em torno das pautas
reformistas, em busca de melhorias salariais e/ou da luta pela terra, como mencionado no
segundo capítulo.
Nesse aspecto, ao nomear discursivamente todas as lideranças desses
movimentos sociais como “comunistas”, “agitadores” ou “subversivos”, os militares tiveram
a justificativa necessária para enquadrá-los na Lei de Segurança Nacional (LSN) 388 . As
prisões dos militantes do movimento sindical e das Ligas Camponesas no espaço piauiense,
por exemplo, foram justificadas por um argumento que fora cuidadosamente construído há
muito tempo: a “ameaça comunista”389.
Sob a ótica repressiva, a Estrada de Ferro Central do Piauí – EFCP, com um
grande número de trabalhadores sindicalizados e sob a direção de um aliado dos petebistas,
o superintendente Luiz Alberto Motta Solheiros, de imediato, foi alvo da ação dos militares
dos agrupamentos locais. Na batida realizada nas oficinas e escritórios da instituição, os
homens da Guarnição Federal realizaram buscas por documentos ou quaisquer indícios que
ligassem os trabalhadores ao “comunismo”. Além disso, buscaram evitar, de qualquer modo,
que esses trabalhadores efetivassem passeatas e atos grevistas em apoio ao presidente João
Goulart; ou mesmo que fechassem, em sinal de protesto, a Estrada de Ferro.
O processo aberto em Parnaíba partiu do princípio de que todos os indiciados
foram denunciados pela justiça militar, com o argumento de que “os acusados infringiram
os artigos 10 e 11 da lei 1.802, de 1953”390. Os inquéritos policiais abertos em todos os
estados brasileiros após o golpe, apesar de não documentarem as fartas atividades de punição
e arbitrariedades cometidas por agentes do Estado contra civis, considerados vagamente
suspeitos de “subversão”, são, para o historiador, fontes documentais importantes. Esses
IPMs podem, dentre outros aspectos, nos ajudar a compreender os mecanismos empregados
para censurar os movimentos sociais e para reprimir opositores ao golpe. São também meios
para se analisar a cultura política dos grupos civis e militares envolvidos diretamente na
perseguição aos líderes sindicais e políticos em contexto de ruptura institucional.
simpatizantes; 03) Elementos que fomentaram a luta de classes; 04) Elementos que fomentaram a mudança do
regime vigente; 05) Ação subversiva no Piauí; 06) Frente de Mobilização Popular; 07) Movimento camponês;
08) Associações de bairros; 09) Associações classistas; 10) União Piauiense dos Estudantes Secundários; 11)
Organização dos Grupos dos Onze. Fonte: Jornal O Estado do Piauí, Teresina, p. 03, 09 jul. 1964.
388
Art. 10. Filiar-se ou ajudar com serviços ou donativos, ostensiva ou clandestinamente, mas sempre de
maneira inequívoca, a qualquer das entidades reconstituídas ou em funcionamento na forma do artigo anterior.
Pena: - reclusão de 1 a 4 anos. Art. 11. Fazer publicamente propaganda: a) de processos violentos para a
subversão da ordem política ou social; […] Pena: reclusão de 1 a 3 anos. § 1º A pena será agravada de um terço
quando a propaganda for feita em quartel, repartição, fábrica ou oficina (BRASIL, LEI 1.802,1953, s/p).
389
SOUZA, Ramsés. Op. cit. 2015, p 254.
390
Autuação. Op. cit.
160
391
ALVES, Maria Helena M. Estado e oposição no Brasil (1964-84). Petrópolis: Vozes,1985, p. 57.
392
SILVA, Angela Moreira Domingues da. Ditadura e Justiça Militar no Brasil: a atuação do Superior Tribunal
Militar (1964-1980). Tese de Doutorado, PPGHPBC, CPDOC/FGV, Rio de Janeiro, 2011, p. 34-35.
393
SILVA, Angela Moreira Domingues da. op. cit. 2011, p. 35
394
CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. História e Repressão: fragmentos de uma memória oculta em
meio às tensões entre a Igreja Católica e o regime militar em Teresina. 2006. 229 f. Dissertação (Mestrado em
História do Brasil) – Centro de Ciências Humanas de Letras da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina,
2006.
395
CARVALHO, Maria do Amparo Alves de. op. cit. 2006, p. 13.
161
compreender que houve forte mobilização de grupos conservadores contra as demandas dos
movimentos sociais no contexto do golpe.
A autora defende ainda a ideia de que aconteciam mudanças importantes no
estado do Piauí, pois, segundo indica, havia “uma maior conscientização e organização das
classes sociais desejosas de participação política e social durante o período histórico que teve
o seu curso interrompido por uma crescente repressão dos militares aos grupos sociais
organizados e que reivindicavam mudanças na sociedade” 396 . Esse processo repressivo,
desencadeado pelo novo regime político implantado em 1964, buscou promover medidas no
sentido de isolar politicamente todos aqueles que, de acordo com o pensamento dos militares
e civis ligados às direitas, eram “comunistas” ou disseminavam tais ideias no meio do povo,
conforme indica Maria Carvalho.
Em todo Brasil, a grande quantidade de lideranças políticas, sindicais e
trabalhadores urbanos e rurais detidos para averiguação, nos primeiros momentos após o
golpe, evidencia a relação estabelecida pelos militares nesse então novo modelo de
intervenção política no Brasil397. De acordo com o trabalho de Rodrigo Motta, com base nos
dados colhidos pela embaixada e alguns consulados, pode-se estimar entre 20 e 30 mil o
número de pessoas detidas no momento do golpe. A maioria dos presos logo foi solta, após
breve interrogatório, e parte deles ficou livre de qualquer investigação, enquanto outros
tantos foram liberados com instruções de aguardar inquéritos e eventuais processos
judiciais398. Naquele momento, ainda de acordo com Motta, “os lugares de detenção eram
delegacias, penitenciárias e quartéis, mas houve casos de navios transformados em prisão
temporária, indício da falta de espaço para acolher os detidos da primeira onda repressiva”399.
Na capital piauiense, logo após o golpe, em 02 de abril, texto do jornal O Dia
indicava: “a cidade ontem amanheceu tumultuada com as notícias veiculadas através do
rádio, de toda parte. Nota-se geral expectativa e preocupação mesmo a respeito dos
acontecimentos futuros”400. Ainda de acordo com esse jornal, parte das classes desejosas de
uma intervenção militar manifestou surpresa pela rapidez com que a mesma ocorreu, pois,
segundo a matéria, “há muito se [vem] esperando a deflagração de movimento armado, face
às manifestações das cúpulas no Sul, devido aos motins de adeptos comunistas. Não
396
Idem.
397
Até então já haviam ocorrido algumas intervenções militares no Brasil. Em 1945, para depor Vargas.
Tentativas de golpe em 1954, 1955, 1961. Mas nenhuma com a ampla dimensão constatada em 1964.
398
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2014, p. 22.
399
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. op. cit. 2014, p. 26.
400
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia, Teresina-PI, p. 07, 02 abr. 1964.
162
acreditávamos, porém, que isso pudesse acontecer tão rapidamente quanto parece
irromper”401. O jornal em questão viu com bastante entusiasmo a intervenção militar em
1964, vindo a fazer ampla divulgação das Marchas da Família nesse estado, bem como
passou por um processo de adesão ao regime.
Como pude averiguar no levantamento das fontes deste trabalho, grande parte
dos articulistas e da imprensa piauiense, fortemente ligados a grupos conservadores,
demonstrou profunda confiança nas soluções de força empregadas naquele momento pelos
militares contra o governo Jango. Esses grupos da imprensa local bradavam: “[somos]
democratas e acreditamos nas nossas Forças Armadas, a salvaguarda dos nossos postulados”.
Fechavam ainda a matéria em questão apelando para a sensibilidade religiosa e a retórica
liberal, quando destacavam: “Com Deus pela liberdade, haveremos de vencer”402.
Um aspecto importante a se ressaltar, analisando as fontes de pesquisa, é a
tentativa de, naquele momento, forjar um sentimento de aversão social aos indiciados,
criminalizando os movimentos sociais, por meio de uma verdadeira batalha pela opinião
pública piauiense. Essa medida foi colocada em prática pelos militares responsáveis pelo
IPM no Piauí, bem como pelos muitos civis envolvidos no processo de legitimação do golpe.
Exemplo disso é o grande número de matérias em jornais de circulação diária, ou semanal,
que tratavam das prisões e faziam balanços das medidas repressivas aplicadas pelos
militares, os chamados “boletins informativos”. No jornal O Estado do Piauí, em matéria
publicada já em julho de 1964, foi informado à sociedade piauiense que averiguações
precisavam ser conduzidas na cidade de Parnaíba, pois, de acordo com a Guarnição Federal,
sediada em Teresina, na cidade litorânea, “o processo de subversão era evidente”.
401
Idem.
402
Idem.
403
Jornal O Estado do Piauí, p. 03, 02 jul. 1964.
163
404
Também nos telegramas anexados ao Inquérito Policial Militar, constam, enviadas pelo Superintendente da
Estrada de Ferro Central do Piauí, Sr. Alberto Mota Solheiros, mensagens de apoio ao Presidente João Goulart,
ao líder ferroviário Raphael Martinelli, indicando apoio dos ferroviários parnaibanos ao governo, contra as
iniciativas golpistas dos militares. No telegrama enviado por Alberto Solheiros ao Presidente Jango, consta:
“[…] A administração e ferroviários da central do Piauí, em face da situação aflitiva de nosso país, vem por
meu intermédio enviar solidariedade ao ilustre chefe da nação pela justa causa em prol da legalidade,
assegurando os direitos dos brasileiros. Saudações”404. Já no telegrama a Martinelli, “[…] enviamos ao grande
líder da classe nosso apoio legalidade e garantia poderes constituídos face situação periclitante nosso país
[…]”404.
405
Precatório IPM. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349,
1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 13 set. 2018.
406
Precatório IPM. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349,
1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 13 set. 2018.
407
Na biografia Castello: a marcha para a ditadura, do escritor Lira Neto, o trecho a seguir. “Ao comparecer,
contra a vontade, à cerimônia de posse de Arraes, Castello quedaria indignado diante do discurso do novo
governador, de tom esquerdista. Castello julgou que Arraes estava acendendo fósforo em paiol de pólvora. A
solenidade seria marcada pela participação maciça de populares, que se apinharam nas galerias da Assembleia
Legislativa e lotaram os corredores do Palácio das Princesas. O trânsito em volta dos dois prédios parou. A
multidão, eufórica, tomou conta das ruas do Recife. Até mesmo os convidados de honra tiveram que se
164
se, tal incômodo se dava pela presença e apoio das camadas populares àquele governador
então eleito em Pernambuco 408 , como fica perceptível. Sobre esse ponto, também no
inquérito policial, o elitismo político de parcela das forças armadas se mostra visível, quando
usavam como argumento para a derrubada do governo Jango o protagonismo de líderes
sindicais, em detrimento de ministros de Estado, durante a gestão do petebista, como se pode
perceber no trecho abaixo.
Surgiram então nessas classes líderes atuantes, tanto por idealismo, quanto
por oportunismo político, que gozaram do apoio incondicional do Sr. João
Goulart, se superpondo aos próprios ministros de Estado, como no caso do
líder ferroviário Raphael Martinelli – Presidente da Federação dos
Ferroviários do Brasil com relação ao Sr. Expedito Machado, então
Ministro da Aviação; Osvaldo Pacheco – Presidente do Sindicato dos
Marítimos; Dante Pelacani Clodsmith Riani, que tinham mais força
política do que o Ministro do Trabalho409.
acotovelar em meio à massa humana, disputando um melhor lugar”. Ver: NETO, Lira. Castello: a marcha para
a ditadura. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 207-208.
408
Ainda na biografia de Castello, lê-se: “Para os partidários de Arraes, aquela foi uma festa cívica sem igual
na história republicana nordestina. Para Castello, contudo, apenas uma demonstração explícita de populismo e
demagogia. Pior do que as falas inflamadas dos oradores foi para ele o fato de ter se sentido desrespeitado com
o empurra-empurra da festiva multidão. Ao final, irado, ao entrar no Aero Willys que o esperava na porta do
palácio, queixou-se a Mergulhão, o motorista, dos amarrotados que lhe haviam sido deixados na venerável
farda verde-oliva”. (NETO, Lira. Op. cit, p. 208.)
409
Precatório. op. cit.
410
Idem.
411
Idem.
412
Idem.
165
presidentes, um trabalho de domínio junto aos operários, para isso utilizando todos os meios
que a ideologia marxista emprega”413.
Um aspecto que se faz pertinente mencionar é uma certa preocupação dos
militares com relação à posição estratégica de Parnaíba, por ser, ainda, o principal centro
econômico do estado. Além disso, por se encontrar ali a sede da Estrada de Ferro Central do
Piauí e, portanto, com uma quantidade significativa de trabalhadores ferroviários, muitos
deles também ligados aos sindicatos da categoria e em processo de organização política. No
IPM, se destaca essa questão quando as forças militares indicavam que:
Pela análise detalhada do IPM, verifiquei que houve a busca por detectar, nos
meios de organização dos trabalhadores, algum material que pudesse incriminá-los. No IPM
consta que “foi apurado no presente inquérito a atividade de elementos com tendências
comunistas no sindicato dos trabalhadores da indústria, onde foram encontrados grande
número de livros e revistas de caráter subversivo”416. Ainda, além de material apreendido
com os industriários na cidade, em sede própria, também se buscou material na sede da
413
Idem.
414
Idem.
415
Idem.
416
Sentença. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 02 set. 2018.
166
417
Idem.
418
Idem.
419
Jorge Ferreira e Ângela de Castro destacam que, no momento do golpe, quando Jango deixava Brasília para
tentar articular alguma medida de reação e o congresso utilizava o argumento da “fuga do presidente”, o
deputado Francisco Julião foi um dos poucos parlamentares que, na tribuna, defendeu Goulart. Os autores
destacam que essa defesa é interessante, pois, até aquele momento, o líder das Ligas Camponesas do Nordeste
se referia a Jango usando termos como “latifundiário” ou “lacaio do latifúndio” [...] Os autores destacam ainda
que, naquele momento, “Julião ameaçou enfrentar os golpistas mobilizando sessenta mil homens armados das
ligas camponesas. Segundo ele cinco mil desses homens estariam perto de Brasília. Como se soube depois, não
havia nenhum camponês armado. Porém, a ameaça de que milícias rurais armadas poderiam invadir Brasília
jogou mais combustível na fogueira da oposição”. Ver: FERREIRA, Jorge; GOMES, Ângela de Castro. op. cit.
2014, p. 362.
167
420
DEPOIMENTO. José Alexandre Caldas Rodrigues. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital.
Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em:
07 set. 2018.
421
DEPOIMENTO. José Alexandre Caldas Rodrigues. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital.
Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em:
03 set. 2018.
422
BARBOSA, Licínio. O primeiro magistrado de Bom Jesus do Gurgueia. DM.JOR.BR, 04 de abril de 2015.
Disponível em: https://www.dm.com.br/opiniao. Acesso em: 10 fev.2019.
423
Ademir Alves de Melo, estudante secundarista, na ocasião com apenas dezenove anos de idade, o mais
jovem entre os indiciados. Anos depois (1969), e por causa da perseguição sofrida, deixou o país. Se formou
em economia pela Universidade de Chile, UCHILE (1973), iniciou Mestrado em Economia na Escuela Latino-
americana de Pós Graduação em Economia, mas interrompeu em 1973. No entanto, obteve o título de doutor
em Ciências Econômicas e Políticas pela Universität Bremen (Alemanha) em 1979 e dois pós-doutorados, um
na Ecole Superieure des Affaires de Grenoble (1987) e o outro no Instituto de Economia da Fundação Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais (1991). É professor doutor, aposentado pela Universidade Federal da Paraíba.
(Fonte: RICARDO, Elisângela M. Op. cit.)
424
Sentença. BRASIL NUNCA MAIS. Brasil Nunca Mais Digital. Inquérito policial militar. BNM_ 349, 1964.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br/pt-br//. Acesso em: 02 set. 2018.
168
Nacional passaram a ser processados pela Justiça Castrense, pelo Superior Tribunal Militar,
o que tornou mais factível as medidas repressivas do Estado militarizado.
Essas medidas eram parte do processo de concentração de poder pelos militares,
presentes desde que tomaram o poder. Nesse ponto, logo após o golpe, no dia 09 de abril de
1964, após a aprovação pelo Congresso de uma lei que regulamentava a eleição indireta para
presidente da República, o Comando Militar, com intuito de institucionalizar a “revolução”,
decreta o primeiro de muitos outros Atos Institucionais, depois intitulado de AI-1425. O ato426
estabeleceu, dentre outras medidas autoritárias, a cassação dos direitos políticos de qualquer
cidadão por 10 anos, e de mandatos legislativos de todos os níveis, o que atingiu sobretudo
lideranças do PTB.
A justificativa jurídica dos militares era oferecida na ideia de que a “revolução”
se legitimava “por si mesma”. Além disso, os comandantes militares fundamentaram que
representavam o povo e em seu nome exerciam esse poder constituinte na “vontade do
povo”, conforme preâmbulo do Ato Institucional 427. No primeiro Ato Institucional, ficou
clara a tentativa de reduzir o Congresso Nacional ao poder discricionário do poder
Executivo428. Para manter certa aparência de legalidade e moderação, os militares usaram
425
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm. Acesso em: 13 fev. 2019.
426
Ato Institucional número 01 estabeleceu a forma de eleição para o próximo Presidente da República,
modificou o sistema de emendas à Constituição, e de aprovação de projetos de lei de iniciativa do Presidente
da República, suspendeu as garantias constitucionais ou legais da vitaliciedade e da estabilidade, estabeleceu
investigação sumária de servidores públicos que tivessem atentado contra a segurança do País, o regime
democrático e a probidade da administração pública, podendo estes ser demitidos, dispensados, postos em
disponibilidade, aposentados, transferidos para a reserva ou reformados, mediante atos do Comando Supremo
da Revolução até a posse do Presidente da República e, depois da sua posse, por decreto presidencial ou, em
se tratando de servidores estaduais, por decreto do governo do Estado. Ver: TORRES, Mateus Gamba. Política,
discurso e ditadura: O Supremo Tribunal Federal nos julgamentos dos recursos ordinários criminais (1964-
1970). Tese (Doutorado) Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Porto Alegre 2014, p. 31.
427
No preâmbulo do AI-1 lê-se que: a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este
se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder
Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma. Ela destitui o
governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente
ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior à sua
vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e ao apoio inequívoco da Nação,
representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular. Ver: BRASIL.
Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-01-64.htm.
Acesso em: 20 dez. 2019.
428
“Para reduzir ainda mais os plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos,
igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constantes do presente
Ato Institucional. [...] Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso.
Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as
revoluções, a sua legitimação”. (BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 abril 1964. Op. Cit.)
169
O Prefeito Francisco Vale, da cidade de Buriti dos Lopes, cujo mandato foi
cassado recentemente, voltou ao cargo através de mandato de segurança,
concedido pelo juiz da comarca, com execução garantida pela força
policial. Ao entregar a prefeitura ao cassadores de seu mandato, o prefeito
deixou nos cofres a importância de CR$ 3 Milhões e ao reassumir o posto,
oito dias depois, encontrou somente CR$ 25 mil, sem que os usurpadores
apresentassem qualquer comprovante de aplicação do numerário. 431
429
“Para demonstrar que não pretendemos radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a
Constituição de 1946, limitando-nos a modificá-la, apenas, na parte relativa aos poderes do Presidente da
República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a ordem econômica e financeira e
tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não
só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas”. (BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9
abril 1964. Op. Cit.)
430
Em 1961, o município recebia uma verba de 05 milhões do então presidente Jânio Quadros, conforme nota
do Correio da Manhã: “O presidente da república, através do despacho ao ministro da Fazenda, autorizou a
concessão de auxílios no total de 5 milhões de cruzeiros à Prefeitura Municipal de Buriti dos Lopes, no estado
do Piauí. Essa verba, que foi solicitada pelo prefeito daquela cidade, destinar-se-á à construção de três escolas
primarias e ao mobiliário indispensável, bem como reforma e reaparelhamento do centro de saúde da prefeitura
local. Cinco Milhões.” Ver: Jornal Correio da Manhã, p. 04, 08 jul. 1961.
431
Ver: Jornal Correio da manhã, Rio de Janeiro, p. 07, 20 de maio 1964.
170
acossando o prefeito daquela cidade – Osvaldo Sales Santos – bem como um vereador
municipal, de nome Raimundo Sousa. A cidade de Luís Correia é separada de Parnaíba
aproximadamente a uma distância de 15 quilômetros. No caso em particular dessa cidade, o
artifício empregado pelos setores militares era, assim como ocorrido em outros espaços,
denúncias de corrupção no município. Sobre o prefeito Osvaldo Sales, uma matéria recente
de jornal informava que:
432
FORTES, José. Ditadura cassa prefeito, por Deoclécio Dantas (Do livro: Marcas da Ditadura). Jornal Meio
Norte, 26 jun. 2014. Disponível em: http://www.meionorte.com/blogs/josefortes. Acesso em: 12 dez. 2019. Ver
livro: DANTAS, Deoclécio. Marcas da Ditadura no Piauí. (2008), págs. 59/60.
433
O mesmo era parnaibano e com fortes vínculos com grupos políticos locais. Era bacharel em Direito na
tradicional Faculdade de Direito de Recife. Exerceu os cargos de promotor público em Parnaíba e foi também
Procurador-geral do Estado do Piauí. Além desses cargos, também ocupou o posto de Secretário de Estado nas
administrações do major José Vitorino Correia (1946) e de Alberto Silva (1970-75). Neste último, foi o executor
do Ato Institucional nº 5, no Piauí, nomeado pelo Presidente da República, Emílio Garrastazu Médici. Foi
também professor catedrático de Direito Comercial da Universidade Federal do Piauí
171
passar o seu cargo ao substituto legal todas às vezes que se ausentar para fins dessa
portaria”434.
Ao final, transcorrido todo o processo, já no ano de 1972, os trabalhadores
acusados no IPM aberto na cidade de Parnaíba, foram absolvidos pelo Superior Tribunal
Militar, por conta da fragilidade nas acusações e pela percepção de que tal processo refletia
as animosidades, rivalidades e intrigas políticas na cidade e na região norte do Piauí. Como
pude observar, o inquérito aberto, além do forte caráter anticomunista que lhe foi aspecto
chave, era também marcado pelas muitas disputas políticas dessa cidade, na busca por
espaços de poder e indicações para cargos no âmbito da Estrada de Ferro Central do Piauí e
de outras repartições e órgãos públicos.
Mais do que propriamente amparado em questões jurídicas de fato, o IPM aberto
era também produto das tensões acumuladas pelos grupos contrários ao processo de
ampliação do poder político dos trabalhistas e da relação estabelecida com membros ligados
ao PCB. Portanto, como se observa no processo, faltava o embasamento técnico e jurídico
às acusações. Isso fica bastante evidente quando, já no contexto do fechamento de tal
inquérito, tendo em vista que negou-se “provimento ao apelo do MP, face a evidente
ausência de provas enfatizada na sentença, quanto aos fatos atribuídos aos acusados” 435. No
trecho abaixo da apelação, isso fica evidente.
434
ARAÚJO, Darcy Fontenelle. Portaria nº 16/65. Estado do Piauí. Procuradoria Geral da Justiça. Teresina, 18
de julho de 1965. Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
435
Apelação nº 39 (1972). 491.Superior Tribunal Militar. Estado do Ceará. Disponível em:
http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
436
Idem.
172
437
Idem.
173
438
Importante destacar a centralidade, no estado do Piauí, da cidade Parnaíba, no que diz respeito à formação
de grupos ligados aos movimentos sociais e também ao PCB. Desde os anos 1930, parte das elites e imprensa
parnaibana temia a presença do PCB, organizado principalmente na cidade de Parnaíba e mesmo atuando na
clandestinidade após 1947. Como se pôde retirar de matérias jornalísticas, os discursos anticomunistas,
calcados em superdimensionamentos e na tentativa de criminalização das esquerdas, vêm de período anterior
aos anos 1960, conforme matéria intitulada “Notícias de Parnaíba”. A matéria do jornal piauiense “O Tempo”
do ano de 1935 afirmava que, naquele ano, a cidade de Parnaíba foi sacudida por agitações operárias e
ressaltava a presença do advogado Aldy Mentor como a liderança do movimento, indicando que: “desde sábado
correm nesta cidade notícias de ter havido agitações de fundo comunista e mesmo assalto ao BB e de deposição
dos poderes locaes. O facto da remessa de tropa não auctorizava a versão de uma simples greve pacífica(...)
Ademais tudo pode acontecer em Parnaíba, no terreno da questão social, desde que alli vem sendo mantida
uma situação de constante intraquilidade, resultante da forma agressiva de syndicalização que foi implantada
por elementos perniciosos(...)subversivo(...) provocadores(...). De positivo(...) uma greve de trabalhadores do
Porto(...) do apoio dos syndicatos operários(...) um dos agitadores o conhecido bacharel Aldir Mentor que se
considera chefe do operariado da cidade nortista(...) realizou manifestação na praça da graça aos gritos morra
a burguesia, morra o capitalismo, viva a Rússia comunista e proletária, abaixo o integralismo. E tudo isso nas
barbas da polícia! Os comunistas fizeram um reboliço dos diabos. Urge que as autoridades locaes e do Estado
tomem medidas acauteladoras da segurança pública(...) A situação é de insegurança”. Ver: NASCIMENTO,
Ana Maria Bezerra do. Trabalhadores e trabalhadoras no fio da história das práticas e projetos da educativos
no Piauí (1856-1937). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2008.
174
439
JUNIOR, Gonzaga. Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória (A legião dos esquecidos). A viagem
de Gonzagão e Gonzaguinha. Gonzaguinha e Luiz Gonzaga CD EMI/Odeon, (1994).
176
440
PEREIRA, Aline Andrade. O silêncio dos inocentes: construções memorialísticas de Israel Klabin e Rubem
Fonseca sobre um passado que insiste em não morrer. IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta
Viz (Org). História e memória das ditaduras do século XX, v.1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.
441
Vale ressaltar a produção recente de documentários com forte carga negacionista sobre o golpe e a ditadura
brasileira, produzidos por grupos de extrema-direita no Brasil atual, como 1964: Brasil entre armas e livros.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=yTenWQHRPIg&t=211s. Acesso em: 03 fev. 2020.
Destaca-se também, nesse momento, uma forte mobilização de uma memória positiva sobre o regime militar
por parte de agentes da direita no Brasil atualmente.
442
Para uma análise sobre as diferenças a respeito das medidas adotadas com o fim das ditaduras no Brasil,
Chile e Argentina, ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá (org.). Ditaduras militares: Brasil, Argentina, Chile e
Uruguai. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2015.
177
443
GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditaduras em face de seu passado
na Europa e na América Latina. IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta Viz (Org). História e
memória das ditaduras do século XX, v.1. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015.p. 39-56, p. 46-47.
444
Sobre as disputas de memória a respeito do golpe e a visão dos militares sobre a ideia de derrota nas batalhas
de memória, ver: D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Gláucio Ari Dillon; CASTRO, Celso (Org.). Visões
do golpe. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
445
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989.
178
distante dos principais eventos nacionais, como se eles não tivessem ressonância no norte
piauiense.
Ao mesmo tempo, determinados grupos parnaibanos mantiveram algum tipo de
memória positiva sobre os anos do regime militar. Esse é o caso do articulista, que escreve
texto intitulado De que sentimos saudade? publicado na edição comemorativa de 80 anos do
Almanaque, já no ano de 2004446. Esse era um momento, diga-se, em que grande parte das
instituições acadêmicas começavam a debater os efeitos do golpe de 1964 e o tema adquiriu
maior visibilidade, ao contrário das efemérides anteriores, quando pouca atenção foi dada
sobre o golpe e pouco se falou sobre as questões referentes à ruptura institucional447. Ferraz
narrou então que,
446
Benito Bisso Schmidt destaca que, no ano de 2004, o aniversário dos 40 anos do golpe que deu início à
ditadura civil-militar no Brasil motivou a irrupção no espaço público de diversos discursos de memória
conflitantes relativos àquele acontecimento, com destaque para o discurso governamental, o dos comandantes
militares e o das vítimas e seus familiares. Cada um destes discursos procurou estabelecer a forma correta de
lembrar (e de esquecer) o golpe, atribuindo-lhe significados variados e situando-o de formas diferenciadas na
história brasileira. SCHMIDT, Benito Bisso. Cicatriz aberta ou página virada? Lembrar e esquecer o golpe de
1964 quarenta anos depois. Anos 90, Porto Alegre, v.14, n.26, p.127-156, dez. 2007. Sobre as disputas de
memórias, ver também: CARDOSO, Lucileide Costa. Construindo a memória do regime de 64. Revista
Brasileira de História - Brasil, 1954-1964. São Paulo, ANPUH – Marco Zero, v.14, n.27, 1994; ver também:
MARTINS FILHO, João Roberto. A guerra de memória. A ditadura militar nos depoimentos de militantes e
militares. Varia História, UFMG, n. 28, dez. 2002.
447
Sobre esse aspecto, no ano de 2004, Carlos Fico, em artigo, destacava que: “[Tem] sido notável, neste ano,
o interesse despertado pelos eventos de toda sorte que vão marcando a data, diferentemente de dez anos atrás,
quando seminários acadêmicos sobre os trinta anos do golpe de 64 tiveram de ser cancelados ou contaram com
baixa frequência de público. Milhares de pessoas, na maioria jovens, têm comparecido a debates em todo o
Brasil. A imprensa acompanha com interesse atividades acadêmicas regra geral ignoradas. Várias publicações
voltadas para o tema têm sido lançadas”. Ver: FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura
militar. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 24, n. 47, p. 29–60, julho 2004, Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/rbh/v24n47/a03v2447.pdf. Acesso em: 20 fev. 2020.
448
FERRAZ, Fernando. De que sentimos saudade? Almanaque da Parnaíba. Edição comemorativa 80 anos.
N. 67. 2004, p. 15-16.
179
punições, prisões, como as noticiadas em grandes centros, como Rio de Janeiro, São Paulo
ou mesmo Recife. Pelo contrário. A partir do relato observado no texto acima, há uma
percepção apaziguadora, tranquila sobre o golpe e até mesmo celebratória dos anos de
“milagre econômico”. As memórias presentes no texto do escritor Fernando Ferraz, em
muito se conectam com uma percepção do período ditatorial, não como anos de chumbo,
mas como anos de ouro. Pois, como se pode supor, alguns de seus familiares, ou amigos
próximos, se regozijaram durante tal contexto, por conta das benesses proporcionadas pelo
dito “milagre”, já nos anos 1970, e pelo clima de euforia propagado.
Talvez, Ferraz retenha nas suas memórias o contexto em que, a despeito das
denúncias de tortura por agentes de Estado, se realizavam festas, celebrações e homenagens
aos generais da ditadura, como a recepção mencionada, no início dos anos 1970, de
Garrastazu Médici, nessa cidade 449 . Sobre esse aspecto, Janaína Cordeiro destaca que,
“habitualmente identificado pela memória coletiva como anos de chumbo, este período
significou também e para expressivos segmentos da sociedade, anos de ouro, marcado por
grande euforia desenvolvimentista, por expectativas de ascensão social e pelo entusiasmado
sentimento de construção do futuro, do Brasil potência450. Importante destacar que grande
parte da sociedade piauiense, sobretudo setores tradicionais, apoiou o golpe, bem como a
ditadura que se estabeleceu pós-1964. Até mesmo em seus momentos mais sombrios, pode-
se dizer, por conta da percepção do desenvolvimento econômico e do consenso em torno da
propagação dos ideais de progresso e das obras propagandeadas pelos agentes do regime.
É importante observar que se produziram memórias positivas sobre o contexto
do golpe e da ditadura, a partir também das relações políticas estabelecidas ao longo do
tempo com os militares. Setores tradicionais, partidários da antiga UDN, que depois
migraram para a ARENA e, com a abertura, se acomodaram no PDS, viam com certo desdém
o processo de modificação política, com a “saída de cena” dos presidentes ditadores e a
iminente entrega do poder aos civis. Em edição de 1981 do jornal parnaibano A ação, ligado
449
A visão do escritor Fernando Ferraz em muito se assemelha com a de outros escritores, jornalistas e
intelectuais da cidade de Parnaíba. Exemplo disso é a obra escrita no início dos anos 1980 pelo jornalista Caio
Passos, chamada Cada rua - sua história. Nela se narra, por exemplo, com bastante entusiasmo, a visita do
general Médici para inaugurar a referida praça com seu nome. Passos escreve que “o general Médici foi, sem
dúvida um dos maiores presidentes que o Brasil já teve”, tendo ainda, de acordo com o autor, “um trabalho
altamente humano e patriótico”. O autor indica então que “esta praça, que tem seu nome, foi inaugurada
pessoalmente pelo presidente Emílio Garrastazu Médici, quando deu à Parnaíba insigne honra de sua visita,
em 02 de abril de 1973, inaugurando também, nessa ocasião, o trecho da BR-343 – Luiz Correia – Piripiri”.
Ver: PASSOS, Caio. Cada rua - sua história. Parnaíba-PI: 1982, p. 86.
450
CORDEIRO, Janaina. Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do sesquicentenário da
Independência entre consenso e consentimento. (Tese de doutorado) Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2012, p. 06.
180
a grupos políticos do PDS, como a família Moraes Souza 451, que emerge politicamente nos
anos finais da ditadura apoiando o regime, também consegui mapear um texto falando
positivamente sobre a chamada “revolução de 1964” e defendendo o legado dos militares
durante o período ditatorial como algo positivo. O autor do texto, de nome Raimundo Silva,
é um típico defensor do legado econômico da ditadura civil-militar, como se observa:
451
A família Moraes Souza, entrou na política durante o regime, se vinculando ao partido do governo, a
ARENA. Há ligações recentes de membros da família com alguns dos nomes oriundos da ditadura, como uma
homenagem ao general João Baptista Figueiredo, proposta pela gestão municipal de Francisco de Assis Moraes
Souza, em 2019. Entre os nomes da família com maior projeção política estão o ex-deputado estadual, por 05
mandatos, presidente da Federação das Indústrias, Antônio José de Moraes Souza (1937-2011) e seu irmão,
Francisco de Assis de Moraes Souza (1942). Este segundo já foi senador, governador (cassado) e prefeito de
Parnaíba por dois mandatos (1989-1992) (2017-2020) e fora reeleito em 2020, com votação expressiva, na
cidade de Parnaíba.
452
SILVA, Raimundo. Informativo. Jornal A Ação, Parnaíba-PI, n. 82, 29 mar. 1981.
181
Àquela época todo mundo estava motivado pelas ideias que apareciam lá
no Rio de Janeiro, mas não refletia aqui. No nosso meio, não tinha
repercussão nenhuma aquele governo e aquelas ideias que o Jango andou
deixando que aqueles soldados e aqueles sargentos, aqueles cabos,
fizessem aquele movimento. Aquilo foi que assombrou os proprietários, os
industriais no sul. Não chegou até nós!455 (grifo meu.)
453
Cândido de Almeida Athayde nasceu em 19 de setembro 1904, em Tutóia, no estado do Maranhão e faleceu
em 1998 em Parnaíba (PI). Médico formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1929. Diretor da
Santa Casa da Misericórdia em Parnaíba. Prefeito da Parnaíba (1945-1946). Membro da Academia Parnaibana
de Letras.
454
Trata-se da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí – CEPRO. Localizada em Teresina,
que possui acervo de entrevistas gravadas com personagens do quadro político piauiense.
455
ATHAYDE, Cândido de Almeida. Entrevista concedida ao Núcleo de História Oral da Fundação Centro de
Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí - CEPRO. Em 17 de janeiro de 1984, p. 05.
456
ATHAYDE, Cândido de Almeida. Op. cit. 1984, p. 05
182
457
JOFFILY, Mariana. Aniversários do golpe de 1964: debates historiográficos, implicações políticas. Tempo
e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 23, p. 204 ‐ 251, jan./mar. 2018.
458
Sobre a construção das memórias referentes à ditadura brasileira ver: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura
militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
459
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução Rosa Freire d’Aguiar.
São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007, p. 20.
460
SARLO, Beatriz. Op. cit., 2007, p. 09.
183
461
SARLO, Beatriz. Op. cit., 2007, p. 09.
462
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “História, memória e as disputas pela representação do passado recente”.
Patrimônio e Memória. São Paulo, Unesp, v. 9, n.1, p. 56-70, jan./jun., 2013.
463
Caroline Silveira Bauer destaca que “a partir dos anos 2000, houve uma mudança qualitativa no panorama
internacional de elaboração de políticas de memória, fortalecendo os discursos sobre os direitos humanos no
Cone Sul, uma nova conjuntura política inaugurada com a sucessão de governos progressistas, somada à
mobilização de setores da sociedade civil, possibilitou uma alteração na cultura da impunidade fomentada
desde o término dos regimes ditatoriais”. A autora cita, então, o exemplo do Chile, que em 2003 estabeleceu
uma nova comissão da verdade, conhecida como “comissão Valech”, dentre mudanças ocorridas na Argentina
e debates sobre a abertura de arquivos da repressão e sobre a Lei de Anistia, no Brasil. Ver: BAUER, Caroline
Silveira. Como será o Passado?: História, Historiadores e a Comissão Nacional da Verdade. Jundiaí: Paco
editorial, 2017, p. 32-33.
464
O início dos anos 2000, mais especificamente o ano de 2002, coincide com a eleição do líder sindical, Luiz
Inácio Lula da Silva para a presidência da República e, do governo do estado do Piauí, do primeiro mandato
de José Wellington Barroso de Araújo Dias, oriundo do sindicato dos bancários desse estado. Ambos filiados
ao Partido dos Trabalhadores.
465
Jesualdo Cavalcanti Barros nasceu em Corrente (PI) em 1940. Iniciou a carreira política em outubro de
1962, quando se elegeu vereador em Teresina na legenda do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Tomou posse
na Câmara Municipal em janeiro de 1963 e, logo após a vitória do movimento político-militar que depôs o
presidente João Goulart (1961-1964), teve o mandato cassado e os direitos políticos suspensos por dez anos
com base no Ato Institucional nº 1, editado em 9 de abril de 1964. Em 1966, formou-se pela Faculdade de
Direito do Piauí. Em 1975, foi nomeado subsecretário da Indústria e do Comércio do estado, no governo de
Dirceu Arcoverde (1975-1978). Nesse período, foi também primeiro-secretário da diretoria do Conselho
Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (PI) (1976-1978). No pleito de novembro de 1978, filiado à
Aliança Renovadora Nacional (Arena), partido de sustentação ao regime militar, elegeu-se deputado estadual,
assumindo o cargo em fevereiro do ano seguinte. Com a extinção do bipartidarismo em novembro de 1979, e
a consequente reorganização partidária, ingressou no Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Arena, e
184
narra o tratamento a que ele foi submetido logo após sua prisão, em 1964, seu processo de
cassação, marcado por acusações frágeis e por meio de argumentos anticomunistas. Apesar
de sofrer medidas repressivas e ter sido cassado, após reaver seus direitos políticos, já nos
anos 1970, Jesualdo aderiu aos quadros da ARENA piauiense, partido de sustentação do
regime.
Em 1964, na cidade de Teresina, o clima de perseguição teve como alvos
principais algumas lideranças do sindicalismo, movimento estudantil, das Ligas
Camponesas, do PCB e do PTB. Em seu livro de memória, Jesualdo Cavalcanti destacou o
clima envolvido na prisão e tentativa de sua execração pública, ao se ver obrigado, pelos
militares, a desfilar em carro aberto pelas ruas da capital piauiense:
No relato memorialístico acima, Jesualdo destacou que uma das lógicas de poder
mais empregadas pelos militares da Guarnição Federal do Piauí, sediada em Teresina, era a
busca pela exibição pública daqueles indivíduos então considerados “subversivos” pelas
forças da repressão. Entende-se, nesse ponto, que todos aqueles que fossem ligados aos
movimentos sociais ou tivessem atuação política no âmbito das esquerdas no Piauí, poderiam
ser passíveis de punição e aos desmandos das forças militares em atuação no estado. Essa
produção de uma memória do sofrimento e da exposição, dos impactos repressivos, em
muito se desassemelha daquelas mencionadas anteriormente, que buscaram enfatizar um
clima de tranquilidade nesse estado, pelo distanciamento dos grandes centros urbanos.
Jesualdo ainda destacou no livro que:
nessa legenda se reelegeu em novembro de 1982. Licenciou-se em março do ano seguinte para ocupar a
Secretaria Estadual de Cultura, Desportos e Turismo, no governo de Hugo Napoleão (1983-1986) e, ao mesmo
tempo, a presidência da Fundação Cultural do Piauí. Em novembro de 1986, elegeu-se deputado federal
constituinte, já na legenda do Partido da Frente Liberal (PFL). Em 1990, foi eleito deputado estadual no Piauí
na legenda do PFL. Assumiu, em 1991, a presidência regional do PFL. Em 1994, renunciou ao mandato e
tomou posse como conselheiro do Tribunal de Contas do Estado, que presidiu de 1995 a 1998. Em março de
2002, aposentou-se, passando a dedicar-se a pesquisas sobre a história do Piauí e ao movimento pela criação
do estado do Gurguéia. Em 2005, tornou-se presidente do Centro de Estudos e Debates do Gurguéia (Cedeg).
CAVALCANTI, Jesualdo. Verbete FGV-CPDOC. Disponível em:
http://fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/jesualdo-cavalcanti-barros. Acesso em: 21 jul. 2020.
466
BARROS, Jesualdo Cavalcanti. Tempo de contar (o que vi e vivi nos idos de 1964). Teresina: Gráfica do
Povo, 2006. p.187.
185
467
BARROS, Jesualdo Cavalcanti. Op. cit. 2006. p.188.
186
Em certo aspecto, o que mais chama a atenção no relato de José Nelson é a rápida
mudança de postura por parte do capitão Manuel Jansen, logo depois de consumado o
468
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 10.
469
O Professor José Nelson, que foi pertencente antes do golpe aos quadros da UDN, migra para o PTB, logo
após o golpe, ao que tudo indica, por conta da cassação de José Alexandre Caldas Rodrigues. Ajudou a fundar
na cidade o MDB, após o AI-2, vindo a disputar eleição municipal em 1966, contra o candidato da família
Silva, que formou nessa cidade a ARENA, o candidato em questão, de acordo com José Nelson, era
“considerado eleito, pois candidato da ditadura, Dr. João Silva, [tendo eu] perdido a eleição” . José Nelson, é
preciso mencionar, foi alguém que consegue se manter em cargos de poder, apesar mesmo da ditadura. Por
certo, também por suas relações sociais e familiares a lhe garantir sustentação. PIRES. José Nelson de Carvalho.
Op. cit. 2010, p. 10.
470
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 64-65.
187
processo de ruptura em 1964. Teria recebido ordens expressas para partir para a “caça às
bruxas” na cidade litorânea? O que de fato se percebe é que essa cidade atraiu a atenção de
determinados grupos militares, em um primeiro plano, por conta de sua projeção econômica
no estado. Por ser localizada em Parnaíba, a sede da Estrada de Ferro Central do Piauí, local
que, diga-se, foi rapidamente invadido e cerceado pela Capitania dos Portos e onde os
militares temiam a organização de levantes e greves.
As memórias de José Nelson me permitiram acessar uma outra sensibilidade
sobre aquele período. Enquanto alguns nomes como o médico Cândido Athayde, citado
anteriormente, dentre outros parnaibanos, buscaram minimizar o peso das medidas
repressivas, a organização dos trabalhadores e mesmo a atuação política nessa cidade, José
Nelson, por seu lado, buscou destacar, em seu livro de memórias, um momento permeado
pelo clima de medo. O professor registrou, nesse sentido, um cenário marcado pelo temor
das violências físicas e simbólicas, pela repressão e por posturas autoritárias de membros
das forças de segurança nessa cidade. Como se pode retirar dessa produção memorialística,
houve também pressão para que ocorressem cassações de membros do PTB no legislativo
municipal, como o vereador Custódio Amorim (também indiciado pelos militares no IPM).
471
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 64-65.
188
PTB para resistir aos golpes da ditadura”472. De acordo com Dantas, os nomes do partido,
mesmo após o golpe e o clima de perseguição política, buscaram meios de atuação partidária
nesse estado. De acordo ainda com o jornalista, uma comitiva “vinda de Teresina com alguns
nomes ligados ao PTB, como o deputado federal João Mendes, deputados estaduais
Nogueira Filho e Pedro Borges, além dos advogados Reginaldo Furtado e Ocílio Lago Júnior
foi a Parnaíba em meados de setembro de 1965, para um encontro com correligionários da
região” 473 . Portanto, como se pode evidenciar, pouco antes do AI-2, que pôs fim ao
pluripartidarismo no Brasil, o grupo mencionado tentava organizar formas de reação ao
processo de cassação de mandatos e se articular politicamente em torno da legenda petebista
para as eleições de 1966.
Na obra do jornalista Deoclécio Dantas, também se destaca a percepção que o
grupo petebista teve em relação à postura dos militares à frente da Capitania dos Portos no
norte do estado. De acordo com Dantas, os líderes do PTB, que então se dirigiram a Parnaíba,
“todos oriundos de famílias tradicionais do Piauí, porém, ‘não afinados com o golpe’ e nem
por isso engajados no projeto voltado para a ‘comunização’ do país, não imaginavam que
enfrentariam hostilidades impostas ao grupo pelo capitão dos portos”474. Ainda de acordo
com o relato do livro, “enquanto colocavam suas bagagens no hotel central, foram eles
informados que na portaria, aos berros, o capitão de corveta chamando-os de comunistas e
corruptos, ameaçava-os com ordem de prisão, provocações essas repetidas no turno da tarde,
o frente ao bar do gago, no centro de Parnaíba.”475.
Sobre esse mesmo episódio, foram produzidos alguns textos, publicados também
em livro de memória. No livro Biografia, escrito pelo ex-secretário de governo, José Nelson
de Carvalho Pires, se evidencia a visão desse agente público sobre o ocorrido. De acordo
com José Nelson,
Naquela época, quando alguém era escalado para ser preso ou responder
interrogatório, era acusado de comunista. O veículo dirigido pelo próprio
capitão dos portos, que ao descer rumou em minha direção e disse: ‘Esteja
preso, comunista!’ Eu estava naquele momento conversando com o
Coronel Pedro Borges e ele, o Coronel tomou a frente e se apresentou da
seguinte forma: ‘Coronel Pedro Borges!’, tendo sido chamado de ‘Coronel
de merda’, tendo aplicado um forte soco na testa e, com isso, o capitão caiu
e, ao levantar, avançou rumo ao coronel Pedro Borges. Eu sabia me
defender e cabia a mim não permitir que Pedro Borges fosse atingido e
respondi, com todas as energias que tinha, sobre o capitão, visto que seus
472
DANTAS, Deoclécio. Marcas da ditadura no Piauí. 2008, p. 15.
473
DANTAS, Deoclécio. Op. Cit. 2008, p. 15-16.
474
Idem.
475
Idem.
189
476
PIRES. José Nelson de Carvalho. Op. cit. 2010, p. 64-65.
477
Rubem Freitas, membro da Academia Parnaibana de Letras, na edição do Almanaque da Parnaíba de 1999,
escrevendo sobre o episódio supracitado, narrou que: “Não vi o começo da história. Vi, no dia seguinte, a
represália, a confusão, a briga, os socos e pontapés, as consequências. Corria o ano de 1965. Princípios de
setembro. [...] Estava aqui (Parnaíba) o alto comando do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro) no Piauí:
Deputado Federal João Mendes Olímpio de Melo, Deputado Estadual Manoel Nogueira Filho, Coronel Pedro
Borges e o advogado Ocílio Lago Filho. Reuniram-se na noite de sábado, no Parnaíba Palace Hotel, com
petebistas parnaibanos, para traçarem novos rumos para o partido, já com vistas às eleições do ano seguinte –
1966. Terminada a reunião, eles desceram e ficaram, alguns minutos, à porta do Hotel, conversando e pensando
onde jantar. Dizem que o capitão dos Portos passou por ali, mais de uma vez, em seu jeep, insultando-os e
dizendo: ‘aí só tem comunistas’. [...] Isso aconteceu na noite de sábado. Domingo de manhã a praia era a pedida
dos visitantes. E para lá se dirigiram também Lauro Correia, José Nelson de Carvalho Pires, entre outros.
Ficamos na beira da praia. [...] A certo momento, chega o capitão Jansen. Vinha no jeep com a esposa. Não era
ali o seu caminho. Parecia ter passado de propósito. Parou bem perto do grupo olhando com ares sarcásticos.
O coronel Pedro Borges, dirigiu-se a ele e disse: ‘olhe, eu não gostei da sua insinuação ontem, chamando-nos
de comunistas. Nós não somos comunistas, somos petebistas’. Capitão Jansen disse: ‘vocês são comunistas’.
O coronel Pedro disse: ‘eu nunca seria comunista. Sou comandante da Polícia Militar do Estado e Coronel do
Exército’. Manuel Jansen retrucou: ‘Você é um coronel de merda’. O coronel Pedro aplicou um soco no rosto.
Jansen caiu. A turma de Teresina “voou” em cima dele, como que querendo estraçalhá-lo. Socos, mais socos,
pontapés superviolentos. Foi um ‘negócio’ sério. Os de Parnaíba, atônitos, tentaram contê-los, em vão. [...] O
capitão Manuel Jansen mandou sua guarnição prender os parnaibanos. Os teresinenses, não. Eram coronel,
deputados, advogado. Sobre o episódio ver: (FREITAS, Rubem. Capitão, corra. Almanaque da Parnaíba. Ed.
nº 66, Parnaíba-PI, 1999, p. 199-204.)
190
outros”478. Enquanto isso, ainda de acordo com o livro de Dantas, “o prefeito Lauro Correia
e o vereador Elias Ximenes do Prado estavam entre os que reagiram, sendo que o último
chegou a ser preso, mas foi logo libertado por conta de habeas corpus, impetrado pelo
advogado Reginaldo Furtado e concedido pelo juiz Luiz Lopes Sobrinho”479.
No livro Marcas da ditadura no Piauí, se destaca que, “em favor de Lauro
Correia intercedeu o desembargador Salmon Lustosa, enquanto o enfurecido capitão da
Marinha pedia ao Distrito Naval, com sede em Belém, o envio ao litoral piauiense de um
avião catalina e uma corveta, lotados de soldados”480. O livro, bem como outras fontes de
pesquisa, permite identificar que alguns líderes políticos piauienses, vinculados ao PTB,
estiveram na mira dos quadros militares locais. No entanto, como se tratavam de agentes
com cargos políticos, em alguns casos empresários e membros de famílias parnaibanas
tradicionais, conseguiam escapar à sanha persecutória do capitão dos portos acionando seus
laços de sociabilidade481.
Os relatos presentes nos livros de memória supracitados destacam uma postura
permeada de autoritarismo por parte do então capitão de corveta – Manuel Jansen – que,
sentindo-se legitimado pelo clima de perseguição aos opositores políticos do golpe, passou
para a “caça” aos petebistas piauienses, argumentando serem todos “comunistas”. Esse tipo
de reação, foi perceptível mesmo em espaços onde os militares tinham determinadas
aproximações e preferências políticas, em detrimento de outros quadros partidários.
O que se evidencia por meio dessas memórias, é uma postura repressiva
personalista, que levava muitas vezes em consideração algumas particularidades locais. Mas,
como mote principal, nos discursos persecutórios, sempre a nomeação dos opositores
políticos enquanto “comunistas” ou “corruptos”. Nenhum dos acossados pelo capitão dos
portos no conflito mencionado era de fato membro ou ligado ao PCB, mas, nesse caso,
remanescentes políticos do PTB, em uma tentativa de reorganização partidária da legenda,
478
DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 18-19.
479
Idem.
480
Idem.
481
Deoclécio Dantas destaca ainda que, em Teresina, sede da Guarnição Federal, do governo do estado e do
poder judiciário estadual, “Lauro Correia, o advogado Reginaldo Furtado e os deputados João Mendes, Pedro
Borges e Nogueira Filho pediram providências contra o autor dos abusos ocorridos na Praia de Atalaia”. De
acordo com esse jornalista, o prefeito de Parnaíba, Lauro Correia, “chegou a relatar os fatos ao governador
Petrônio Portella, ao presidente do Tribunal de Justiça, Edgar Nogueira, e ao comandante da Guarnição Federal,
Mascarenhas Façanha”. Todos estes, porém, apoiavam então o regime e, portanto, qualquer medida adotada
pelos militares. A partir disso, ainda segundo Dantas, o governador do Piauí (Petrônio Portella) e o presidente
do tribunal (Edgar Nogueira) – “cada qual com passo acertado com a ‘redentora’ – fingiram interesse na
rigorosa apuração dos fatos, enquanto Façanha, claro, nem disfarçava condenação aos métodos do oficial da
Marinha”. DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 18-19.
191
buscando atuar nas brechas do sistema repressivo imposto pelas medidas autoritárias dos
militares.
O aspecto que se evidencia então, é que os militares tinham suas preferências e
oposições políticas bem definidas. Muitos deles foram se aproximando de setores político-
partidários e, por outro lado, alguns nomes das elites políticas viam nessa aproximação uma
forma de se assegurarem no poder, ao mesmo tempo que colocavam na linha de tiro seus
opositores. Assim como no vizinho estado do Ceará, no cenário piauiense, também em meio
a esse contexto, “as principais lideranças políticas conservadoras aproveitavam para
expandirem os jogos de poder, para se legitimarem como porta-vozes da ‘revolução’ e assim
barganhar prestígio,”482 como destaca José Rabelo Filho.
Esses pontos elencados também são importantes para questionar uma certa
memória a respeito do primeiro governo militar enquanto moderado. Nesse sentido, Heloísa
Starling destaca que o governo Castello Branco “foi o prelúdio de uma completa mudança
no sistema político, sustentada, desde o início, por um formato abertamente ditatorial – vale
dizer, por um governo que não é limitado constitucionalmente”. Assim, a autora indica que,
ao contrário do que se costuma projetar sobre os primeiros anos após o golpe, o governo
Castello não tinha nada de moderado, pois “serviu para institucionalizar as soluções
discricionárias que limitaram de modo drástico as competências dos demais poderes e lançou
as bases do sistema de repressão que garantiram longevidade à ditadura” 483.
O ponto importante na análise dessas memórias é evidenciar uma outra
percepção sobre o momento do golpe de 1964 em Parnaíba. Apesar das memórias
tradicionais reproduzirem uma visão tranquilizadora a respeito do momento, há a percepção
de formas distintas de violência praticadas nessa cidade pelas forças militares com apoio de
civis. No regime ditatorial, desde o início, também em centros urbanos diversos, os grupos
de dentro da caserna sentiram-se à vontade para sair às ruas e atuar contra líderes políticos
trabalhistas, movimentos sociais, mas também contra lideranças sindicais.
Com relação a esse último grupo de perseguidos políticos, consegui acesso a um
caso em especial. O caso se refere a um dos trabalhadores perseguidos na cidade de Parnaíba
no contexto do golpe de 1964, indiciado pelo inquérito policial. Pude encontrar e entrevistar
482
RABELO FILHO, José Valdenir. A “Princesinha do Norte” em tempos de autoritarismo: legitimidade,
consenso e consentimento (Sobral-CE / 1964-1979). Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História, 2014, p. 90.
483
STARLING, Heloisa. Prefácio. NETO, Lira. Castello: a marcha para a ditadura. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019, p. 18.
192
familiares deste trabalhador, que tinha o nome de Francisco das Chagas Frota de Medeiros484
e era conhecido nessa cidade como Maninho Medeiros. Durante o levantamento das
entrevistas para essa pesquisa, pude entrar em contato com Sebastião Paulo Frota de
Medeiros, irmão do trabalhador arrolado no inquérito por suspeita de subversão.
Sebastião Paulo destacou, em entrevista, que o irmão “veio do Rio de Janeiro,
para trabalhar em Parnaíba nos Correios e Telégrafos”. De acordo com Sebastião, o seu
irmão, Francisco das Chagas, “era muito esclarecido, discutia as reformas de base, a lei da
remessa de lucros, inclusão social, e outras coisas que não significavam qualquer atentado
ao sistema, mas que a elite política da época se baseava nisso e qualquer pessoa que
reclamasse era recriminado, como comunista, subversivo”485.
Sebastião ainda me narrou que Francisco das Chagas, “conheceu aqui alguns
nomes do PTB”. Segundo ele, “o PTB era um partido que por mais que tivesse seus erros,
se interessava pelas questões populares, questões sociais. Eles formavam uma espécie de
lideranças locais”. Sebastião destacou ainda, em entrevista, um aspecto muito comum como
desdobramento dos processos abertos contra lideranças sindicais, que era a impossibilidade
de indiciados assumirem cargos e algumas funções públicas, ou concursos, em alguns casos.
Segundo o entrevistado, seu irmão “ficou impedido de deixar a cidade, de assumir concurso
do Banco do Brasil ao qual havia sido aprovado”. Sobre o momento da chegada dos militares
em sua residência, Sebastião me narrou que:
484
Francisco das Chagas Frota de Medeiros, em 1964, tinha a idade de 23 anos. Foi acusado pelo crime de
subversão da ordem política e social e de ter ideologias comunistas. Foi acusado de discutir, em seu ambiente
de trabalho, o DCT, sobre as reformas de base.
485
MEDEIROS, Sebastião Paulo Frota. Entrevista concedida a Francisco José Leandro Araújo de Castro em
20 de dezembro de 2017.
486
Idem.
193
Flamengo, no Rio de Janeiro, também frequentado pelo amigo indiciado e foram levados
para Delegacia. Porém, conseguiram avisar “Maninho” para evitar que não fosse junto com
os demais e assim evitar complicações com a polícia, tendo em vista ter sido indiciado no
IPM aberto na cidade de Parnaíba em 1964 e, por conta disso, ter possibilidade de maiores
problemas. Alcenor indicou então que:
Maninho saiu de Parnaíba nos anos 1960, para morar no Rio de Janeiro,
deixando na cidade natal e no curriculum a fama de “comunista”.
Envolvido em inquérito policial militar instaurado em Parnaíba em 1964,
foi preso e impedido de tomar posse como funcionário do Banco do Brasil
após aprovação em concurso, sob a acusação de ser subversivo. Anos
depois, conseguiu assumir o tão sonhado emprego. Os órgãos repressores
chegaram à conclusão de que Maninho era apenas um cidadão decente que
defendia a dignidade humana487.
Evilásio dos Santos Barros: líder sindical do CNTI atingido pelo golpe
487
CANDEIRA FILHO, Alcenor. Prisão de parnaibanos no Rio. Almanaque da Parnaíba, 70ª edição. Parnaíba-
PI, 2017, p. 16.
194
dos Santos Barros. Nascido no pequeno povoado Coroa de São Remijo, município de Buriti
dos Lopes, distante pouco mais de 40 km de Parnaíba, Evilásio migrou para a cidade de
Parnaíba em meados de 1945, quando o mundo assistia ao final da Segunda Guerra e
iniciava-se, no Brasil, a experiência liberal democrática, com o fim do regime do Estado
Novo. Mudou-se para buscar emprego e oportunidade de melhores condições de vida na
cidade e com a intenção de dar sustento a si e constituir família. Viera também em busca de
uma função estável, vindo a conseguir, logo em seguida, por indicação de um cunhado, junto
à firma Moraes S/A, do Sr. José de Moraes Correia488.
A firma Moraes S/A marcou época na cidade por meio da exportação dos
produtos do extrativismo vegetal como a cera da carnaúba. Evilásio, que viera em busca de
alguma função na cidade, estabeleceu fortes laços com essa empresa, vindo a trabalhar nela
por mais de 40 anos, portanto até o ano de 1986, dez anos após sua aposentadoria (1976)
quando completados trinta anos de serviços prestados na mesma. De início, segundo
entrevistas realizadas com os seus filhos, ao chegar na cidade de Parnaíba, trabalhou no
“chão da fábrica”, com serviços braçais dentro da referida empresa. Também, como pude
evidenciar nas histórias de vida de Evilásio, o trabalhador estabeleceu fortes laços com o
bairro em que residiu por mais de 40 anos, o popular bairro São José, que mencionei no
primeiro capítulo. O mesmo bairro onde residia grande parte dos trabalhadores indiciados
pelo Inquérito Policial Militar, em 1964.
Sobre esse processo de mudança de Evilásio de uma pequena comunidade –
Coroa de São Remijo, povoado de Buriti dos Lopes – para Parnaíba, no norte do estado, seus
filhos, Iara França de Barros, Gilberto França de Barros e Silvio Roberto França de Barros,
em entrevista a mim concedida narraram que:
488
A fábrica Moraes S/A, ou simplesmente fábrica do “Moraes”, marcou época na cidade de Parnaíba, durante
grande parte no século XX. A empresa primeiramente trabalhou com a indústria de algodão, mas o destaque
econômico veio principalmente com a exploração e produção de óleos vegetais, da cera de carnaúba, na
primeira metade do século. Esses produtos eram comercializados tanto no Brasil como no exterior pela empresa.
A indústria Moraes S/A veio a criar alguns projetos inovadores utilizando matéria-prima da carnaubeira e uma
delas foi a produção de celulose que, produzida através da palha da carnaúba, teria qualidade superior a
produzida por outras matérias-primas, valorizando ainda mais a carnaubeira. Ver: Indústria Moraes S/A. Jornal
da Parnaíba, 01 jul. 2014. Disponível em: http://www.jornaldaparnaiba.com/2014/07/industria-moraes-sa.html.
Acesso em 21 jul. 2020. Ver também: Piauí industrializa celulose da carnaúba. Almanaque da Parnaíba, ano
1976, p. 51-53.
195
função na fábrica do Moraes. Mas a princípio, quando ele chegou aqui, foi
mesmo pro serviço braçal, serviço pesado 489.
Evilásio, de acordo com informações dos filhos, foi, aos poucos, ganhando
destaque nas funções que exercia dentro da fábrica Moraes e mesmo junto aos colegas de
profissão, até ir galgando melhores postos de trabalho. Além disso foi ao mesmo tempo se
vinculando a formas de representação da sua categoria de trabalho, até atingir função de
presidente daquele sindicato que representava sua função. Em fins dos anos 1950 e início
dos anos 1960, Evilásio já se constituía como uma forte liderança sindical, estando então à
frente da representação piauiense da Federação dos Trabalhadores da Indústria, vinculado
nacionalmente ao CNTI (Confederação Nacional dos Trabalhadores da Indústria), por onde
buscava organizar os trabalhadores locais e por onde realizava atividades em outros estados.
Evilásio, nesse sentido, é um exemplo de trabalhador ligado a uma atividade
laboral urbana, nesse caso o trabalho industrial, que vislumbrou, nos idos de final da década
de 1950 e início da década posterior, junto de seus pares, a possibilidade de, por meio de
uma progressiva organização sindical e de um debate profundo a respeito das desigualdades
sociais que assolavam a formação do nosso modelo econômico, transformar o mundo em
sua volta.
Os ventos das reformas de base, como mencionei até aqui, sopraram com
bastante vigor na costa litorânea piauiense, no início dos anos 1960, durante o governo João
Goulart, do PTB. De repente, os trabalhadores urbanos começaram a debater em seus
sindicatos as pautas reformistas, a valorização do salário mínimo, os direitos trabalhistas
adquiridos recentemente com a CLT, bem como a possibilidade de um processo de
desenvolvimento econômico, social e político mais justo, com uma sociedade mais fraterna
e igualitária, em que os mesmos pudessem se ver representados diretamente por meio de
suas próprias associações de classe.
489
BARROS, Iara França de. Entrevista. Concedida a Francisco José Leandro Araújo de Castro. 04 de junho
de 2020.
196
Figura 4- Diploma da posse de Evilásio dos Santos Barros na função de Presidente da Federação dos
Trabalhadores na Indústria no Estado do Piauí, no biênio 1961-1963, assinado pelo prefeito José Alexandre
Caldas Rodrigues, do PTB. (15 de novembro de 1961)
Goulart”490, que fora proposta como forma de demonstrar apoio às reformas de base. Tendo
ainda recebido instruções para organizar, na cidade de Parnaíba, o “Comando Municipal dos
Trabalhadores”, junto do líder dos estivadores, Tiago José da Silva, de acordo com
depoimento desse último.
Figura 5- Carteira Profissional do Ministério do Trabalho e Previdência Social de Evilásio dos Santos
Barros.
De acordo com sua esposa, Carmelita França Barros e seus filhos, que tive
oportunidade de entrevistar, os eventos ocorridos em meados de abril de 1964, logo após a
tomada de poder pelos militares, foram de impacto bastante traumático para suas memórias.
A sra. Carmelita contou e seu depoimento foi repassado aos filhos, como guardiões de suas
memórias, que enquanto o marido se encontrava em viagem para Fortaleza, para velório e
sepultamento de um familiar, ela recebeu, no calar da noite, a visita de militares em sua
residência; estes estavam em busca do sr. Evilásio, poucos dias após o golpe de 1964. A sua
filha, Iara França, então me narrou as memórias desse momento de forte tensão
compartilhadas por sua mãe:
490
Autuação. Ministério Público Piauiense. op, cit. p. 06.
198
Mamãe disse que eles já entraram: ‘Cadê seu Evilásio, cadê seu Evilásio!??’
Aí mamãe disse que ele não estava.
Mesmo assim eles entraram, reviraram a casa toda. O quarto que a gente
estava dormindo. Abriram um guarda-roupa, com as gavetinhas bem
pequenas, eles tiraram as gavetas e jogavam tudo, tudo no chão,
espalharam tudo! E dizendo: ‘Cadê seu Evilásio?’ Procurando por ele...
Mexeram tudo. Tudo na casa. E disseram pra ela: ‘Olhe, nós vamos te levar,
pra tu aprender a respeitar polícia, não ficar enganando a gente. Ficar
escondendo ele!’ Ela falando: ‘Ele está pra Fortaleza. Não está na cidade!’
Aí eles foram pra cozinha. Depois no quintal. Ela disse que no quintal
estava cheio d’água. Aí ela disse para eles: ‘Olhe, tá cheio d’água aí!’ Eles
fizeram foi responder ela com grosseria e entraram. Ela disse que a água
ficou no joelho deles. E eles andando no quintal. Procurando o papai.
Quando chegaram lá fora, aí eles falaram: ‘Olhe, você não quer dar conta
dele, você vai no lugar dele. Nós vamos lhe levar!’ Então saíram
caminhando até a porta com ela. Quando chegaram lá na porta eles falaram:
‘Olhe, não vamos lhe levar porque você é mulher! Mas é pra você aprender
491
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020, p. 03.
199
Depois que chegou em Parnaíba, vindo de Fortaleza, ele foi pra casa do
meu avô – o papai França. Foi lá que ele passou a noite, lógico que não
dormiu. Quando foi de manhã o Dr. Flavio, que era do Moraes, pegou ele
lá na casa e levou pra se apresentar na delegacia. Lá ele já ficou preso. Na
delegacia mesmo. No ‘arsenal’ como chamava. Ele ficou preso junto com
bandidos! Ele ficou preso e eles toda hora iam lá. Diziam que era pra ele
confessar os crimes senão iam levar ele para uma penitenciária longe daqui,
para um presidio de segurança máxima. Todo tempo nesse negócio de
ameaça, mais psicológica. Então ele foi e pediu pra mamãe que não queria
que nenhum dos filhos fossem lá. Então a mamãe pagava um rapaz para ir
deixar uma rede e ia deixar almoço e jantar pra ele. Ele passou preso lá
mais de uma semana. Aí a Rosário [filha de Evilásio] disse que no dia que
ele chegou, disse que o Dr. Flávio também foi buscar, ele entrou em casa
492
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020, p. 04.
200
chorando muito. Muito magro. Perdeu muito peso. Todo barbudo. Ele tinha
então 41 anos493.
493
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020,
494
Percebi, na cidade de Parnaíba, um silêncio deliberado sobre o momento do golpe de 1964. Durante toda a
graduação em História não havia tido contato com depoimentos de perseguidos pelas forças repressivas na
cidade em que resido. Nesse ponto, entendo que houve uma tentativa mesmo de apagamento dessas memórias,
dos procedimentos adotados, das práticas repressivas, diferentes formas de enquadrar a memória a respeito
daquele momento. Nesse sentido, o historiador Enrique Padrós destaca que, “inegavelmente, as ditaduras do
Cone Sul, com as suas conhecidas motivações repressivas de controle, de censura e de enquadramento de
memórias e de consciências, fomentaram um ‘esquecimento organizado’, o que se consolidou com o
encaminhamento de leis de anistia ou similares, que tentaram impor esse esquecimento institucional da
violência executada dentro da dinâmica estatal. Ver: PADRÓS, Enrique Serra. História do Tempo Presente,
Ditaduras de Segurança Nacional e Arquivos Repressivos. Revista Tempo e Argumento. Florianópolis, v. 1, n.
1, p. 30 – 45, jan. / jun. 2009.
495
Sobre este aspecto, Pollak destaca, falando sobre as disputas de memória a respeito do stalinismo, que “este
exemplo mostra também a sobrevivência, durante dezenas de anos, de lembranças traumatizantes, lembranças
que esperam o momento propício para serem expressas. A despeito da importante doutrinação ideológica, essas
lembranças durante tanto tempo confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra oralmente, e não
através de publicações, permanecem vivas. O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao
mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades,
esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.” (POLLAK, 1989, p. 05.)
201
destacar o potencial que essas memórias, quase que subterrâneas, têm para emergir em outros
contextos políticos e sociais. Quando encontram condições propícias de escuta e/ou
divulgação, como foi, de certa forma, o contexto da segunda década dos anos 2000 no Brasil.
Evilásio, em certo sentido, como uma espécie de reação psíquica aos sofrimentos
submetidos, conforme pude perceber, ativou medidas diversas. Além do silêncio individual
sobre tais eventos, desenvolvera, ao longo do tempo, uma reação defensiva a certas
atividades que demonstrassem alegria, ou um uso do corpo de forma mais livre, como uma
simples dança. Passou a relacionar, talvez, o ato de dançar em festividades familiares e a
liberdade referente a tal atividade a uma forma de demonstração de leveza a que ele não mais
teria como desenvolver, mesmo que entre os seus filhos. O corpo, nesse sentido, também
fala. O corpo de Evilásio, após a experiência do terror, não o permitia mais esse simples ato.
Os familiares destacaram ainda que ele não queria que se falasse do assunto, mesmo depois
de tanto tempo.
Ele não gostava de falar desse assunto! A gente pouco sabe, porque
primeiro era um assunto desconhecido para nós. Um tabu. Aí ele fez, nessa
época, ele fez uma jura, uma promessa, a gente só veio saber no aniversário
de 15 anos da Daniela [filha mais nova], que nunca mais na vida dele ele
ia dançar! Ele disse que da decepção pelo fato ter ocorrido tudo isso com
ele. Gerou uma espécie de trauma, então ele disse, depois disso, que
‘Nunca mais na minha vida eu vou dançar!’ Aí quando foi nos 15 anos da
Daniela a gente insistiu, insistiu... Aí ele disse: ‘Minhas filhas, não
insistam.’ Desde 1964 fez uma jura na minha vida de nunca mais dançar.496
496
BARROS, Iara França de. op. cit. 2020, p. 02.
497
POLLAK, 1989, p. 07.
498
Maria Paula Araújo destaca, nesse sentido, a diferença no tratamento entre países recém-saídos de regimes
de exceção. Para a historiadora, a Argentina e África do Sul têm se constituído como dois paradigmas
diferenciados, dois modelos distintos de justiça de transição. Na Argentina, os grupos e militantes de diretos
202
Publicada no Diário Oficial da União, a medida de reparação do Estado consta como obtida
na data de 19 de outubro de 2011, após a conclusão de seu processo pela Comissão de Anistia,
amparada na Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002.
Conforme indica Luís Alberto Romero, “a memória é a parte central da
consciência que um ator – indivíduo, grupo, a sociedade toda – tem do seu passado.
Relaciona-se diretamente com sua identidade, ou melhor, com suas subjetividades: a
pergunta sobre de onde viemos e para onde queremos ir configura isso que, desde cada
subjetividade, chamamos de presente”499. O autor argentino destaca ainda que a memória é
uma atividade livre. Portanto, essa “é feita de lembranças, esquecimentos, distorções,
reflexos, subterfúgios, realces, esmaecimentos e mil operações mais” 500.
Evilásio, segundo levantamento feito nessa pesquisa, assim como os demais
processados em Parnaíba, ficou impossibilitado de concorrer a cargos eletivos, ou seja, de
se candidatar a qualquer eleição durante os anos do regime. Perdera a cidadania política.
Segundo documento disponibilizado pela família, datado de 1976, Evilásio procurou reaver
seus direitos políticos juntos aos órgãos competentes na esfera jurídica. No documento em
questão, indica-se que, Evilásio, por meio de advogados, havia impetrado habeas corpus
junto ao Superior Tribunal Militar, tendo em vista que, mesmo já não fazendo parte do IPM,
ocorria que nos “assentamentos no DOPS, constavam anotações relacionadas com aquele
fato, o que [tem] impedido o requerente de exercer certas atividades, inclusive de ser
candidato a cargo eletivo” 501 . O documento ainda solicitava à justiça militar “mandar
proceder ao cancelamento de qualquer antecedente criminal acaso existente, restituindo-se,
assim, ao peticionário, o seu estado anterior e possibilitando-se lhe o exercício pleno de sua
cidadania, como de direito requer”502.
No diário oficial da União, no mês de outubro de 2011, é possível acessar ao
resultado do processo aberto pelos familiares de Evilásio solicitando reparação econômica
para o mesmo:
humanos no país têm dado ênfase na questão da justiça – procurando responsabilizar e punir os agentes do
Estado responsáveis pelos crimes e violações cometidos durante a ditadura. A África do Sul tem dado ênfase à
memória, à denúncia e revelação dos fatos com o objetivo de promover uma reconciliação nacional. O Brasil
tem dado ênfase à questão da reparação. Araújo destaca ainda que “em todos esses processos, no entanto, o
testemunho é um elemento vital.” Ver: ARAUJO. Maria Paula. Uma história oral da anistia: memória,
testemunho e superação. In: MONTENEGRO, A.; RODEGHERO, C.; ARAUJO, M. P. (Org.). Marcas da
memória: história oral da anistia no Brasil. Recife: Ed. UFPE, 2012.
499
ROMERO, Luís Alberto. A memória, o historiador e o cidadão. A memória do proceso argentino e os
problemas da democracia. Revista Topoi, v. 8, n. 15, p. 09-23, jul./dez. 2007.
500
Idem.
501
Habeas Corpus. Evilásio dos Santos Barros. Teresina-PI, 18 de julho de 1976.
502
Idem.
203
503
UNIÃO, Diário Oficial da. Seção 1, nº 201, quarta-feira, 19 de outubro de 2011, p. 56.
504
A lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, em sua Seção I, a respeito do caráter indenizatório, destaca
que: Da Reparação Econômica em Prestação Única Art. 4o A reparação econômica em prestação única
consistirá no pagamento de trinta salários mínimos por ano de punição e será devida aos anistiados políticos
que não puderem comprovar vínculos com a atividade laboral. § 1o Para o cálculo do pagamento mencionado
no caput deste artigo, considera-se como um ano o período inferior a doze meses. § 2o Em nenhuma hipótese
o valor da reparação econômica em prestação única será superior a R$ 100.000,00 (cem mil reais). Presidência
da República
Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10559.htm. Acesso em 02 jul. 2020.
505
Uma matéria do jornal Globo, em 2014, destacava que: “Criada com intenção de reparar as vítimas da
ditadura, a Comissão de Anistia aprovou 40.300 pedidos com indenizações que chegam a R$ 3,4 bilhões. Entre
2001 e 2013, 63% dos requerimentos receberam o aval da comissão e 37% foram rejeitados. Os maiores valores
foram aprovados nos primeiros anos de funcionamento da comissão. Entre 2002 e 2006, as indenizações
retroativas chegaram a R$ 2,4 bilhões, o equivalente a 70% do total desse tipo de reparação aprovada pela
comissão desde sua instalação. Por categoria, os militares são os recordistas em requerer condição de anistiado
político: até agora, já são 11.836 solicitações. Os trabalhadores e integrantes de movimentos sindicais aparecem
na sequência, com 8.694 pedidos.” Ver: O custo da reparação: indenizações aprovadas na Comissão de Anistia
chegam a R$ 3,4 bilhões. Jornal O Globo, 31 mar. 2014. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/o-
custo-da-reparacao-indenizacoes-aprovadas-na-comissao-de-anistia chegam-r-34-bilhoes-12037526. Acesso
em: 02 jul. 2020.
204
506
Art. 1o O Regime do Anistiado Político compreende os seguintes direitos: I - Declaração da condição de
anistiado político; II - reparação econômica, de caráter indenizatório, em prestação única ou em prestação
mensal, permanente e continuada, asseguradas a readmissão ou a promoção na inatividade, nas condições
estabelecidas no caput e nos §§ 1o e 5o do art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias;
III - contagem, para todos os efeitos, do tempo em que o anistiado político esteve compelido ao afastamento
de suas atividades profissionais, em virtude de punição ou de fundada ameaça de punição, por motivo
exclusivamente político, vedada a exigência de recolhimento de quaisquer contribuições previdenciárias;
IV - conclusão do curso, em escola pública, ou, na falta, com prioridade para bolsa de estudo, a partir do período
letivo interrompido, para o punido na condição de estudante, em escola pública, ou registro do respectivo
diploma para os que concluíram curso em instituições de ensino no exterior, mesmo que este não tenha
correspondente no Brasil, exigindo-se para isso o diploma ou certificado de conclusão do curso em instituição
de reconhecido prestígio internacional; e
V - reintegração dos servidores públicos civis e dos empregados públicos punidos, por interrupção de atividade
profissional em decorrência de decisão dos trabalhadores, por adesão à greve em serviço público e em
atividades essenciais de interesse da segurança nacional por motivo político.
Parágrafo único. Aqueles que foram afastados em processos administrativos, instalados com base na
legislação de exceção, sem direito ao contraditório e à própria defesa, e impedidos de conhecer os motivos e
fundamentos da decisão, serão reintegrados em seus cargos. Ver: Presidência da República
Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei Nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10559.htm. Acesso em 02 jul. 2020.
205
tradições herdadas, que fazem parte de nossas identidades e que não respondem a nosso
controle, e, por outro, a sentimentos profundos, como amor, ódio, humilhação, dor e
ressentimento, que surgem independentemente de nossas vontades”507.
Como pude evidenciar, Evilásio atuou fortemente em algumas atividades de
auxílio aos trabalhadores, ajudando na construção do Clube do Trabalhador, por meio de
suas atividades junto ao sindicato da categoria. Era vinculado também ao Círculo Operário
São José. Católico, devoto e praticante, era assíduo nas missas de domingo na igreja de São
José, construída no bairro homônimo, onde também desenvolvia algumas obras de auxílio
para os populares. É possível ver nos jornais que circulavam em Parnaíba seu nome
associado às comissões de auxílio aos desabrigados que se organizavam frequentemente,
quando a cidade passava pelo período de chuvas prolongadas, com alagamentos nos bairros
populares, principalmente os outrora chamados “Corôa” e “Tucuns”. Mesmo vendo a força
da água chegar em sua própria residência, na rua Barão do Rio Branco, onde morou com sua
família até os anos 1990, Evilásio saía também em auxílio do próximo.
Aqui se pode relacionar as percepções dos entrevistados nesta pesquisa com
aquilo que Pollak nomeou de “memória por tabela”. Essa definição seria aquela vivenciada
pelos familiares e amigos de perseguidos, ou considerados “desaparecidos” políticos, e que
também sofreram torturas – senão físicas, emocionais – guardaram traumas e sentiram os
tentáculos do regime violento, na torpe invasão do íntimo de suas residências, na
desestruturação da vida cotidiana e, em muitos casos, no desaparecimento forçado de seus
entes queridos508. Evidenciar as memórias dos atingidos pelo golpe e pela ditadura, nesse
sentido, de acordo com a historiadora Marta Rovai, nada mais é do que a “busca de romper
com o silenciamento imposto pela repressão do Estado e pela história oficializada do
vencedor que encerra em espaços íntimos, as lembranças e dores mais traumáticas; pela
violência de quem calou; pela indiferença de quem não vivenciou” 509.
Por fim, para encerrar esse capítulo, devo indicar que Evilásio e Carmelita
Barros eram meus avós paternos. O meu avô faleceu em dezembro de 2015 e, a partir de sua
morte, iniciei essa pesquisa fazendo levantamento da documentação, como o Inquérito
Policial Militar citado anteriormente. A minha avó, Carmelita, faleceu em maio 2020 e
507
ARAÚJO, Maria Paula Nascimento & SANTOS, Myrian Sepúlveda. “História, memória e esquecimento:
implicações políticas”. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 79, p. 95-111, 2007.
508
ROVAI. Marta Gouveia de Oliveira. A “memória herdada”: as comissões da verdade e os “escrachos”
promovidos pela juventude em países da América Latina, como Argentina, Chile e Brasil. Revista Eletrônica
da ANPHLAC, n. 18, p. 223-250, jan./jul. 2015.
509
ROVAI, 2015, p. 237.
206
demonstrava interesse em que essas memórias pudessem ganhar evidência. Como uma
forma de dar relevância a atuação sindical de Evilásio dos Santos Barros, escrevi, junto dos
meus tios, um histórico de sua atuação no sindicato, bem como em outros espaços da cidade.
A partir disso, conseguimos aprovar a Lei municipal nº 4.481/2019, que determinou a
alteração do logradouro público de “rua municipal” para “rua municipal Evilásio dos Santos
Barros”, próximo onde a família residiu por mais de 40 anos, no popular bairro São José.
Além disso, no mesmo processo, a Câmara Municipal, por meio da Lei nº 3.425/2019, lhe
concedeu o título de cidadão parnaibano. Evilásio, como mencionado, nasceu na Corôa de
São Remijo e migrou para a cidade de Parnaíba em 1945. Ganhou, em sua memória, essas
importantes homenagens póstumas.
207
CAPÍTULO IV
CULTURA POLÍTICA E CONSERVADORISMO: O GOLPE DE 1964 NO PIAUÍ E
AS PRÁTICAS COLABORACIONISTAS DAS ELITES POLÍTICAS, JURÍDICAS
E COMERCIAIS
tais tomadas de poder e regimes como desprovidas de sustentação e adesão social. Como se
essas práticas autoritárias se resumissem a quadros ou grupos de militares – exclusivamente
– que, por meio da força das armas, derrubassem presidentes eleitos democraticamente e
assumissem, a partir de então, o poder com atos arbitrários e sem apoio e legitimidade da
sociedade civil.
Tal leitura, no entanto, não condiz com uma abordagem mais complexa desses
fenômenos. Para alguns historiadores vinculados a uma interpretação mais abrangente desses
processos, é preciso superar esse tipo de interpretação, no sentido mesmo de repensar nossa
própria cultura política autoritária, pois, como indica Rodrigo Patto Sá Motta, falando sobre
o golpe de 1964 e da posterior implantação da ditadura civil-militar brasileira, “a verdadeira
superação do autoritarismo demanda perceber que o problema não se resumiu a uma casta
de malvados que tomaram o poder e impuseram violências à sociedade”510.
Nessa perspectiva, Rodrigo Motta nos indica um ponto bastante pertinente para
esse trabalho, a possibilidade de entender que “o Estado autoritário encontrou o apoio e o
beneplácito de muitas pessoas, além de ter contado com a indiferença de outras tantas” 511.
Essas reflexões do historiador são importantes, pois possibilitam pensar a participação civil
em um evento como o golpe de 1964 e a ditadura, também sob outras abordagens, levando
em consideração que “as relações da ditadura com os meios [sociais] foram permeadas
também por jogos de acomodação e adesão que transbordam a tipologia binária “resistência
× colaboração”512.
Nesse sentido, proponho analisar como determinados setores da sociedade
piauiense não só apoiou o golpe, mas também se tornou fundamental em seu processo de
legitimação, aderindo ao autoritarismo dos militares por interesses mais imediatos e/ou por
simples identificação. Portanto, pretendo lançar luz sobre as práticas de adesão, acomodação
ou mesmo colaboracionismo de tais grupos que, por meio de textos, boletins, matérias de
jornais ou notas de saudação aos militares, foram cruciais na sustentação do golpe. Ainda de
acordo com Rodrigo Motta,
510
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe de 1964 e a ditadura nas pesquisas de opinião. op. cit, 2014, p. 32.
511
Idem.
512
Idem.
209
O capítulo pretende, a partir das indicações acima, analisar alguns dos processos
de adesão social que se efetivaram após os desdobramentos do golpe de 1964 no Piauí, por
meio da análise de fontes impressas. Isto é, vou analisar como parcela da sociedade
piauiense, em particular alguns comerciantes, jornalistas, intelectuais e bacharéis,
compreenderam a chegada ao poder dos militares e como buscaram se conectar à “nova
ordem”. Tendo em vista que todo sistema político, por mais autoritário que seja, encontra
respaldo em setores do corpo social, tomo como norte a necessidade de vislumbrar algumas
das práticas da sociedade piauiense no momento em que, golpeado um governo eleito
democraticamente, sob forte argumento anticomunista, sucumbiu o sistema democrático
brasileiro e se iniciou uma experiência autoritária que duraria mais de 20 anos.
Importante mencionar a ampla adesão de civis ao golpe em 1964. Do ponto de
vista social, Daniel Aarão Reis nos indica pontualmente a coalização de interesses que
levaram os militares ao poder no Brasil, pois “a vitória do golpe fora produto de uma ampla
e heterogênea frente social e política”. Sob este ponto de vista, de acordo com o historiador,
uniram-se “o grande, o médio e o pequeno capital. O capital nacional e o capital
internacional. Bancos, indústrias e comércio. Federações industriais e agrícolas. A maioria
do parlamento e do judiciário. A Igreja e a classe média”514.
No processo de desestabilização política do governo Goulart, bem como no
cenário posterior de tomada de poder pelos militares, pude encontrar no levantamento de
fontes para essa pesquisa, algumas referências em páginas de jornais de grande circulação
no Piauí, como O Dia, que me permitiram evidenciar uma ampla rede de apoiadores e
entusiastas do golpe e da ditadura nesse estado. Alguns deles, ligados a grupos políticos
tradicionais, ao mundo jurídico e ao comércio, se posicionaram contra qualquer medida
reformista proposta pelo governo Jango no início dos anos 1960, que pudesse vir a alterar as
relações sociais e econômicas naquele cenário.
Nesse sentido, no processo de legitimação do golpe, um nome oriundo do meio
empresarial piauiense que publicou textos em jornais nomeando as pautas reformistas como
513
MOTTA, 2014, p.13.
514
REIS FILHO, Daniel Aarão. A revolução faltou ao encontro: os comunistas no Brasil. Ed. Brasiliense: São
Paulo, 1990, p. 57
210
uma “ameaça” ao sistema democrático brasileiro, foi Jesus Elias Tajra515. Esse empresário
faz parte de uma família de imigrantes sírio-libaneses que se estabeleceu na capital do Piauí
– Teresina – no início do século XX516. No entanto, veio adquirir grande poder econômico,
sobretudo ao longo da ditadura (1964-1985), estabelecendo-se no ramo das
telecomunicações (com concessões públicas de TV), do comércio, mas também atuando no
ramo da venda de eletrodomésticos, de bens de luxo e de automóveis no Piauí. Seu grupo
econômico ficou mais conhecido localmente por “grupo JET”, ou “JELTA”, siglas com as
iniciais de seu nome.
Um texto escrito por Jesus Elias Tajra, originalmente produzido para uma
palestra divulgada na cidade de Teresina, publicada nos veículos de comunicação logo nos
primeiros dias após o golpe de 1964, pode ser pensado aqui como uma tomada de posição
por parte do empresário. Primeiro, no que diz respeito ao governo anterior – de forte
oposição – e, segundo, com relação ao novo governo dos militares, de franco apoio. No texto,
por meio da utilização de uma retórica beligerante, que em muito faz alusão a “batalhas”, ou
“cruzada moral”, o empresário descreve a si mesmo como alguém que se posicionou, desde
a “época de estudante”, como um “combatente” na “luta” contra o “perigo” que representava
a “ameaça comunista” para o Brasil e, consequentemente, para a sociedade piauiense.
O texto intitulado O comunismo e sua atuação no Brasil, tem como nota inicial
a ênfase de que fora divulgada como “palestra pronunciada dia 08 de abril de 1964, através
de cadeia formada por emissoras de Teresina”, portanto, com ampla circulação nos canais
de comunicação da capital piauiense. Nesse texto, o empresário indicava que:
515
Formou-se em Direito e Contabilidade. Funcionário público federal no Ministério da Fazenda. Empresário
que instituiu uma série de empresas do Grupo Jelta. Foi jornalista, dirigindo a Rádio Pioneira e o extinto Jornal
da Manhã. Em 1986, inaugurou a TV Pioneira, retransmissora da Rede Bandeirantes de Televisão, emissora
que em 1998 passou a se chamar TV Cidade Verde e passou a retransmitir a programação do Sistema Brasileiro
de Televisão. Foi filiado ao PDC em 1962 e eleito em 1966 deputado estadual pela ARENA. Nos anos seguintes
foi eleito primeiro suplente do senador Helvídio Nunes em 1970, segundo suplente do senador Dirceu
Arcoverde em 1978 e primeiro suplente do senador Alberto Silva, após a morte de Arcoverde em 1979. Com
o retorno ao pluripartidarismo no ano seguinte, filiou-se ao PDS.
516
Tajra, Caddah, Said, Cury, Hidd e Sady são algumas das famílias de imigrantes que vieram para o Piauí.
Para Marta Tajra, “a história dos descentes sírio-libaneses do Estado do Piauí se consolida e se mistura com a
própria história da cidade de Teresina”. O comércio local foi forjado à base do trabalho de todas essas pessoas
que adentraram o território piauiense, mais especificamente Teresina, Floriano e Parnaíba. Ver: TAJRA, Marta.
Gente de longe: O mahjar (imigração) de sírios para o Piauí. In: ARAÚJO, Maria Mafalda Baldoíno de;
EUGÊNIO, João Kennedy (Org.). Gente de Longe: história e memórias. Teresina: Halley, 2006.
211
517
TAJRA, Jesus Elias. O comunismo e sua atuação no Brasil. Jornal O Dia, p. 01-02, 11 abr. 1964.
518
O empresário Jesus Elias Tajra, por meio de seu grupo empresarial, ainda foi um dos maiores beneficiados
com a política econômica implantada no início dos anos 1970, nos tempos do dito “milagre”, das “obras
faraônicas”, quando da gestão estadual do engenheiro Alberto Tavares Silva, nomeado diretamente pelo general
Médici para governar o Piauí de 1970 a 1975. Na biografia de Alberto Silva, escrita pelo jornalista Tomaz
Teixeira, consta que: “Alberto fez, em sua chegada em Teresina, uma grande amizade com o empresário Jesus
Elias Tajra, homem forte da Associação Comercial Piauiense, que não se negava a narrar que foi o primeiro
governador que reuniu os empresários para pedir apoio de estoque, pois iria comprar tudo que fosse necessário
para as grandes obras que pretendia fazer, no mercado local. José Elias era muito grato pela força que o governo
de Alberto Silva trouxe para os piauienses, pelo grande volume de obras realizadas (construídas), sendo tudo
adquirido – comprado – no comercio local”. Ver: TEIXEIRA, Francisco Tomaz. Alberto Silva: o mito e o
político. O que vi, ouvi e aprendi. (Depoimentos). Teresina-PI, 2010, p. 56.
212
Uma análise mais ampla do processo que levou determinados grupos a apoiarem
uma solução autoritária deve levar em consideração que setores da sociedade brasileira
possuíam – e ainda possuem – uma cultura política permeada de autoritarismo e, portanto,
achou natural que se tomassem medidas de força para resolver os impasses que marcaram o
Brasil no início dos anos 1960. Nesse tipo de análise, como nos indicam Denise Rollemberg
e Samantha Quadrat, na obra A construção social dos regimes autoritários, é fundamental
entender que as soluções de força, “legitimadas pelo apoio de significativas parcelas da
sociedade, sobretudo pelas camadas populares, sirva não para justificá-las, mas para
compreendê-las”. Nesse ponto, o importante é ir além das leituras tradicionais e ver como se
sustenta “a percepção do autoritarismo como traço de união do passado e do presente, das
presenças que sobrevivem às rupturas, que acompanham as mudanças” 520 . É pontual,
portanto, refletir sobre a sustentação social que um regime autoritário tem em diversos
momentos, pois, também no caso brasileiro, ainda de acordo com as autoras, “o autoritarismo
foi desejado e alguns ditadores foram [são] queridos e percebidos como salvadores da pátria
por pessoas e/ou segmentos da sociedade de todas as idades e origens sociais” 521.
Como mencionado, as classes empresariais foram fundamentais no processo de
legitimação e sustentação social do regime militar no Brasil. É preciso compreender que
diferentes grupos atuaram em defesa do aprofundamento do novo regime. Nesse caso,
obviamente uma ditadura de mais de duas décadas não poderia ter se sustentado sem o apoio
de parcelas importantes da sociedade brasileira, além dos próprios militares 522. Portanto, a
ditadura não foi um fenômeno exclusivamente militar, embora as Forças Armadas tenham
assumido posição frontal naquele regime523. No caso piauiense, as ditas classes produtoras
proporcionaram uma ampla quantidade de eventos em torno da celebração da tomada de
poder pelos militares, como durante a visita do General Castello Branco ao Piauí, já em 1965,
conforme texto abaixo de José Tajra.
519
TAJRA, op. cit. 1964, P. 01-02
520
ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (org.) A construção social dos regimes autoritários:
Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p.24.
521
ROLLEMBERG; QUADRAT, 2011, p.24.
522
MELO, Demian Bezerra de. “Civis que colaboraram com a ditadura”. In: Relatório da Comissão Nacional
da Verdade. Vol. II. Brasília: CNV, 2014, p. 303-328.
523
MELO, Op. Cit. 2014.
213
524
TAJRA, José Elias. As classes produtoras de Teresina saúdam o Presidente da república. Revista Caravana,
p. 17, jul. 1965.
525
TAJRA, 1965, p. 17.
526
TAJRA,1965, p. 17.
214
poder de atuação dos movimentos sindicais e, ao mesmo tempo, conectado com a Doutrina
de Segurança Nacional, ligando-se com a premissa da “segurança e desenvolvimento” . A
intenção então presente era pensar a ampliação do poder do Estado em investir em obras
estruturais no Piauí, que pudessem impulsionar as atividades desses grupos empresariais,
porém sem o apoio e/ou estímulo aos movimentos sociais.
No que diz respeito ao processo de construção social do golpe e da ditadura, logo
nos primeiros dias de abril de 1964, circulou pela imprensa piauiense uma nota assinada
pelas Associações Empresariais do Brasil intitulada Classes produtoras adotam decisão, em
claro posicionamento adesista. A nota veio, naquele momento, demonstrar o entusiasmo de
diferentes ramos empresariais brasileiros ao projeto político-econômico da modernização
autoritária que ganharia terreno então e, por meio da reprodução na imprensa local,
demonstrar que esses marcos definidores deveriam ser seguidos nesse espaço.
527
Classes produtoras adotam decisão. Jornal O Dia, p. 06, 12 abr. 1964.
215
exceção implantado em 1964, por ter interesses intrínsecos a esse modelo político-
econômico.
Outro setor de relevo na sociedade piauiense que celebrou o golpe, enviando
ofício à Guarnição Federal em alusão à tomada de poder pelos militares, foi o Rotary Club528.
Composto principalmente pelas famílias tradicionais do estado, trazendo a defesa de alguns
serviços de “caridade” aos “mais necessitados”, esses setores temiam a possibilidade de
modificação das estruturas sociais e perda de privilégios simbólicos e efetivos que poderia
ocorrer, caso concretizadas as reformas de base defendidas pelas esquerdas. Preferiam ver
mantido o status quo, mesmo que por meio de um golpe autoritário e antidemocrático, pode-
se dizer, e assim continuar com suas “campanhas” e “benfeitorias”, especialmente se
tivessem bastante evidência midiática, do que ver as classes populares assumindo
protagonismo político e ganhando poder de decisão, como estavam fazendo durante o
governo Jango. No jornal O Dia, de 17 de abril de 1964, foram publicados alguns ofícios de
apoio aos militares, como o que segue, do presidente do Rotary Club de Teresina:
O Brasil não esteve em guerra, nem mesmo derramou o sangue dos seus
filhos, por ocasião da recente revolução legalista que irrompeu, promovida
pelas Forças Armadas para preservação do regime democrático. Há muito
528
Também é possível ver, no jornal carioca Correio da Manhã, dias após o golpe, a seguinte nota: “O General
Olympio Mourão Filho deverá receber hoje um ofício do Rotary Club de Juiz de Fora, congratulando-se com
o general por sua atitude de destemor em defesa da democracia, enviando-se idêntico ofício ao governador
Magalhães Pinto”. Rotary Club. Ver: Jornal Correio da Manhã, p. 02, 05 abr. 1964.
529
Jornal O Dia, p. 06, 17 abr. 1964.
216
530
Jornal O Dia, p. 07, 1964.
531
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia. 17 abr. 1964.
217
532
Jornal O Estado do Piauí, Teresina-PI, 02 jul. 1964.
218
533
Almanaque da Parnaíba, 1965, p. 46.
534
De acordo com a biografia Castello, escrita por Lira Neto, o pai de Humberto de Alencar Castello Branco,
era da oitava geração iniciada por Francisco da Cunha e Silva Castello Branco. Francisco, por volta de 1693,
após um naufrágio, embrenhou-se pelos sertões do Piauí, expulsando e degolando índios, fez pequena fortuna
como proprietário de terras e pecuarista na freguesia piauiense de Santo Antônio do Surubim de Campo Maior.
Entre os nomes dessa dinastia, dos muitos homens de farda, destacou-se o temido tenente-coronel João do
Rego Castello Branco, que no século XVIII havia sido apelidado de “João, o sanguinário”, pela fama de
impiedoso matador de tupis-guaranis. (NETO, Lira. Op. cit. p. 39-40)
535
Ranulpho Torres Raposo foi jornalista, comerciante, representava, em Parnaíba, firmas estrangeiras como a
Ford. Proprietário e editor do Almanaque da Parnaíba que passou a publicar anualmente a partir de 1941.
219
Presidente da Associação Comercial de Parnaíba (ACP), cargo que ocupou de 1951 até 1971. Ver: Almanaque
da Parnaíba, 60ª edição, ano 1985.
536
Almanaque da Parnaíba, 1965, p. 03-04.
537
Idem.
220
[...] É com justo desvanecimento que abrimos essa 42ª edição, sobretudo
por sua coincidência com um excepcional momento da vida brasileira.
Dedicamo-la, pois, a 5ª nossa república. Pela elevação de propósitos que a
motivou: restabelecer a ordem e assegurar o progresso pelo império da
lei, que entre nós adquiriu sentido nacional, a todos impondo deveres e
assegurando direitos [...] ainda em fase de promoção, a revolução de 1964
impôs-se critérios de verdadeira brasilidade e civismo e nós esperamos
cantar-lhe a vitória plena, quando mais uma vez circularmos, em 1966,
felizes de ver que a imprensa brasileira, não apenas nós, orgulha-se da
pátria que ajudou a reconstruir, engrandecida e glorificada 538. (grifo meu)
É preciso evidenciar, nesse sentido, que o golpe de 1964, assim como a ditadura,
de acordo com a interpretação de Daniel Aarão Reis Filho, “foi um processo de construção
histórico-social, não um acidente de percurso” 539 . Portanto, é fundamental para uma
compreensão mais complexa e apurada de tal evento, que as responsabilidades e a íntima
relação que tiveram alguns grupos econômicos no processo de sustentação do regime, por
conta de seu próprio autoritarismo, ou pela busca por benefícios políticos, sejam examinadas.
No processo de concentração de poder por parte do executivo, dominado por
militares, que marcou o quadro político brasileiro após o golpe de 1964, um setor piauiense
que buscou se acomodar à nova ordem foi o dos grandes jornais locais. Parte da imprensa
piauiense não só buscou dar ares de legitimidade aos atos institucionais e demais medidas
jurídicas antidemocráticas, como buscou evidenciar uma pretensa melhora no
funcionamento do federalismo brasileiro, por meio de tais atos. Ao mesmo tempo foi
fundamental no sentido de divulgar as medidas dos militares como algo positivo no combate
ao “comunismo” e à “corrupção”.
É preciso entender, nesse sentido, o lugar que ocupa a imprensa nesse processo
de progressivo crescimento do autoritarismo jurídico-militar. Para além do papel de
resistente ao processo de fechamento institucional, de vítima de censura ou perseguição
política por parte do Estado militarizado, parte da imprensa costumou ser, mais do que
conivente, cúmplice do arbítrio instaurado, contribuindo assim para a construção social desse
538
Almanaque da Parnaíba, 1965, p. 03-04.
539
REIS FILHO, op. cit. 2004, p. 50.
221
regime de força540. Nesse caso, em Parnaíba e em Teresina, é possível averiguar que parte
desse setor, mesmo percebendo os arroubos autoritários dos militares a partir do golpe em
1964 e das medidas jurídicas de exceção implementadas, buscou formas de representar os
atos de exceção enquanto medidas de consolidação da democracia, ou sinais do
fortalecimento das instituições.
No entanto, com o processo de redefiniçao das memórias sobre os
acontecimentos dos anos 1960, essa mesma imprensa procurou se eximir das
responsabilidades que teve em sustentar e legitimar socialmente o regime ditatorial. Como
se pode perceber ao longo desse trabalho, alguns jornais piauienses, como O Dia, fizeram
ampla e firme oposição às reformas de base e ao governo Jango, bem como apoiaram
fortemente o golpe e a ditadura que se seguiu. Porém, em texto sobre a história do jornal,
escrito recentemente, procurou-se estabelecer uma outra narrativa, reposicionando a
memória sobre o momento, negando o apoio do jornal ao golpe e à ditadura. Nesse texto
retrospectivo, os editores tentaram qualificar a atuação d’O Dia, durante o regime, enquanto
resistente aos “caprichos” de poder dos militares. O texto apontava então que:
Como se percebe, já nos anos 2000, quando fez um breve retrospecto de sua
atividade jornalística no estado do Piauí, o grupo O Dia procurou fazer uma espécie de
revisão da memória. Nessa operação, negou-se todo o seu colaboracionismo com o golpe e
com a ditadura, como se esse jornal tivesse, num lance de ousadia, escapado das investidas
dos militares no poder. Não se mencionou, então, as chamadas públicas desse jornal para a
participação na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que trato no último item desse
capítulo. Não se mencionou que, por meio desse jornal, as oposições ao governo Jango
tiveram penetração social e visibilidade. Não se mencionou, também, as colunas dos homens
do judiciário piauiense, cobrando mais punições aos ditos subversivos após o golpe, como
irei tratar a partir de então no próximo item.
540
Sobre as práticas de adesão e mesmo o colaboracionismo de parcela da imprensa brasileira durante a
ditadura, ver: KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à constituição de 1988.
São Paulo. Boitempo. FAPESP, 2004.
541
Sobre o Jornal O Dia, ver: https://www.portalodia.com/expediente. Acesso em: 13 dez. 2019.
222
542
Destaco que órgãos como a OAB, em 1964, apoiaram abertamente o golpe. No entanto, ao longo do tempo,
sobretudo já nos anos 1970, com a iminente abertura política, mudou de posição, tendo em vista que “saiu do
clássico anticomunismo da época, com todos os jargões e lugares-comuns conhecidos, para o enfrentamento
do regime”, conforme indica Denise Rollemberg. No entanto, com o processo de abertura a partir de 1974 e,
sobretudo a partir de 1979, “a OAB, ao lado da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aparecem como pilares da chamada resistência democrática, na luta
contra a ditadura militar”. Esses pontos mencionados são importantes para compreender como as posturas de
agentes públicos, órgãos ou entidades podem sofrer reposicionamentos, a partir dos interesses observados em
cada momento. E, acima de tudo, para perceber que a ambivalência marcou a atuação de diferentes setores da
sociedade com relação ao regime de 1964. Ver: ROLLEMBERG, Denise. Memória, Opinião e Cultura Política.
A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura (1964-1974). REIS FILHO Daniel Aarão; ROLLAND,
Denis. (Orgs.) Modernidades Alternativas. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getúlio Vargas, 2008, p. 04.
223
543
ROLLEMBERG, 2008, p. 03.
544
Jornal O Dia, 17 abr.1964, p. 06.
545
Jornal O Dia, p. 04, 11 abr. 1964.
224
546
TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella: uma biografia. Teresina-PI: Ed. do autor, 2012, p. 205.
547
Para o perfil de Ribeiro da Costa, ver: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-
biografico/alvaro-moutinho-ribeiro-da-costa. Acesso em: 03 jan. 2020.
548
RECONDO, Felipe. Tanques e togas: o STF e a ditadura militar. Ed. Companhia das letras, 2018, p. 20.
549
RECONDO, 2018, p 24.
550
RECONDO, 2018, p. 20.
225
e Chile, no Brasil havia entrosamento entre as forças militares e o Poder Judiciário, tendo o
autoritarismo, por isso mesmo, utilizado a estrutura jurídica existente antes do golpe para
legitimar os seus atos, com modificações ao longo do tempo. Para o autor, “onde havia uma
nítida separação entre as forças armadas e o Judiciário, e a cooperação era limitada, a
repressão tomou uma forma intermediária entre esses dois polos”551.
Após o golpe, apesar do colaboracionismo de setores do Judiciário, algum
espaço de atuação judicial ainda existia por parte de membros do STF, seja impetrando
habeas corpus a favor de determinadas lideranças políticas, seja simplesmente atuando em
defesa da constituição em casos de claro abuso de poder por parte do regime. Nesses
momentos de tensão, existiram setores de dentro do próprio campo jurídico que defendiam
uma espécie de “saneamento revolucionário” desse poder, contra as “garantias
constitucionais”. Ou seja, defendiam cercear determinados juízes, promotores e até mesmo
ministros do STF, que não se coadunassem com o poder discricionário e punitivo do regime
imposto em 1964.
No caso piauiense, novamente destaco a figura do desembargador e jornalista
Simplício de Sousa Mendes. Em sua coluna diária – intitulada Televisão – no periódico O
Dia, já no ano de 1965, após o AI-2, ele se colocou em franco apoio às atividades
persecutórias dos militares contra o Poder Judiciário, ao apontar que “ninguém poderá
contestar que a magistratura, em geral, necessita de saneamento revolucionário, de maneira
a acobertar o povo dessa espécie de entidade mórbida que, acobertada com as garantias
constitucionais, polui o regime, pelo público descumprimento dos deveres funcionais” 552. O
“saneamento revolucionário” pretendido pelo magistrado piauiense, como se pode perceber,
era nada mais do que a punição de membros do Judiciário que contrariassem decisões dos
militares. Vale ressaltar que, naquele momento, como uma forma de ter decisões mais
favoráveis ao regime, os militares ampliaram o número de ministros do Supremo de 11 para
16, por meio do AI-2.
O desembargador, munido de seu poder efetivo no cargo do Poder Judiciário no
Piauí, além de ser um formador de opinião nesse estado, pelo amplo poder que detinha nos
meios de comunicação e de produção cultural, defendia que “se o poder legislativo passou,
em parte, - pelo crivo do reajustamento moral, - não se concebe que o legalismo
revolucionário haja poupado o mais importante pela sensibilidade da missão: o poder
551
PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na
Argentina. Trad. Patrícia de Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2010, p. 286.
552
MENDES, 04.11.1965, p. 03
226
judiciário” 553
. Ele, como outros agentes do mundo jurídico, por meio de seus
posicionamentos colaboracionistas, demonstra que, em um regime de exceção, autoritário e
antidemocrático, podem existir inúmeras formas de adesismo. Uma dessas formas, como se
percebe, é a busca por exigir medidas mais severas por parte do Estado militarizado, mesmo
que contra seus próprios pares do campo da justiça.
Como se percebe, dentro do Poder Judiciário piauiense, existiram membros e
grupos que buscaram se conectar, de forma radical, aos ditames repressivos, com a lógica de
poder do Estado de exceção aberto em 1964. Mendes indicava ainda que, “dos três órgãos
em que se separa o poder público do Estado, – o importante na estrutura do regime – é sem
dúvida, o judiciário”554. Para o desembargador, “[é] o judiciário, que [tem] a soberania de
conter, refrear, reprimir os excessos e deslizes dos demais poderes da república”555. Por certo,
Simplício Mendes já havia entendido que o regime precisou e iria ainda precisar do poder
dos “homens das leis”, tais como os juristas Francisco Campos 556 e Carlos Medeiros 557 ,
553
MENDES, 04.11.1965, p. 03
554
MENDES, 04.11.1965, p. 03.
555
MENDES, 04 nov.1965, p. 03.
556
Francisco Luís da Silva Campos nasceu em Dores do Indaiá (MG), em 1891. Advogado e jurista, formou-
se pela Faculdade Livre de Direito de Belo Horizonte, em 1914. Em 1919, iniciou sua carreira política
elegendo-se deputado estadual em Minas Gerais na legenda do Partido Republicano Mineiro (PRM). Ministro
da Educação e Saúde no governo Vargas (1930-1932). Nos anos 1930, consolidou-se como um dos mais
importantes ideólogos da direita no Brasil, aprofundando suas convicções antiliberais e passando a defender
explicitamente a ditadura como o regime político mais apropriado à sociedade de massas, que então se
configurava no país. Nesse sentido, tornou-se um dos elementos centrais, junto com Vargas e a cúpula das
Forças Armadas, dos preparativos que levariam à ditadura do Estado Novo, instalada por um golpe de estado
decretado em novembro de 1937. Nomeado ministro da Justiça dias antes do golpe, foi, então, encarregado por
Vargas de elaborar a nova Constituição do país, marcada por características corporativistas e pela proeminência
do poder central sobre os estados e do Poder Executivo sobre o Legislativo e o Judiciário. No decorrer do ano
de 1944, passou a defender a redemocratização do país e negou o caráter fascista da Constituição de 1937,
ainda em vigência. No ano seguinte, participou das articulações empreendidas nos meios políticos e militares
que levaram ao afastamento de Vargas e ao fim do Estado Novo. Nos anos 50, afastado dos cargos públicos,
passou a defender posições econômicas liberais e agraristas. Em 1964, participou das conspirações contra o
governo do presidente João Goulart. Após a implantação do regime militar, voltou a colaborar na montagem
de um arcabouço institucional autoritário para o país, participando da elaboração dos dois primeiros Atos
Institucionais baixados pelo novo regime (AI-1 e AI-2) e enviando sugestões para a elaboração da Constituição
de 1967. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/francisco_campos.
Acesso em: 06 jan. 2020.
557
Carlos Medeiros Silva nasceu em Juiz de Fora (MG) no dia 19 de junho de 1907. Formou-se em direito no
Rio de Janeiro em 1929. Após o golpe do Estado Novo, foi incumbido de interpretar a nova Carta
Constitucional — de autoria de Francisco Campos e cujo texto original datilografara no tempo que fora chefe
de gabinete — na parte referente à acumulação de cargos. Foi consultor geral da República e após o suicídio
de Getúlio Vargas e a posse do vice-presidente João Café Filho, deixou o cargo. Em 1960, integrou a Comissão
da Reforma Administrativa, exonerando-se do cargo de procurador-geral da República em 03 de dezembro do
corrente ano, em protesto contra o presidente da República Juscelino Kubitschek, que deixara de nomeá-lo para
uma vaga de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Após o golpe de 1964, a junta militar, autora das
primeiras transformações políticas introduzidas pelo novo regime, incumbiu Carlos Medeiros da elaboração de
um ato que as formalizasse. Isso deu origem à edição do Ato Institucional nº 1 (AI-1), de 9 de abril desse ano,
que permitiu punições extralegais de adversários do movimento, determinou a eleição indireta do presidente
da República e transferiu para o Executivo importantes atribuições do Poder Legislativo. Em conformidade
com esse ato, foi empossado no dia 15 de abril, na presidência da República, o marechal Humberto Castelo
227
autores do primeiro AI, aqueles que montaram a estrutura legal do golpe, no sentido de criar
todo um arcabouço jurídico que legitimasse a concentração de poder nas mãos dos militares,
ao mesmo tempo em que criava medidas de excepcionalidade para perseguir opositores
políticos em todo o país.
Para alguns homens do campo jurídico piauiense, como Simplício Mendes, era
urgente e necessário fazer um aprofundamento das cassações no poder legislativo e levar
concomitantemente essas medidas também ao Poder Judiciário, pois este, se “depurado de
forma correta”558, pode-se supor, seria fundamental na sustentação da nova ordem vigente.
Apontava ele que:
Branco, eleito no dia 11 pelo congresso. Nomeado pelo marechal Castelo Branco em 27 de outubro de 1965
Ministro do STF, numa das vagas abertas pelo AI-2, editado naquele mesmo dia, Carlos Medeiros tomou posse
no cargo em 25 de novembro. Ainda em 1965, deixou a chefia de redação da Revista Forense. Em 18 de julho
de 1966, deixou o STF e no dia seguinte tomou posse no Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Medeiros
foi o principal autor do anteprojeto da nova Constituição, que vinha sendo elaborado desde abril de 1966.
Disponível em: http://www.fgv.br/cpdoc/busca/Busca/BuscaConsultar.aspx. Acesso em: 06 jan. 2020.
558
Vale destacar que, por exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil demonstrou apoio aos militares no limiar
da intervenção em 1964 sendo, portanto, elemento fundamental no processo de legitimação social da ditadura.
Algumas críticas da OAB contra o regime foram levantadas não para pedir respostas aos militares sobre os
casos de advogados presos sem o devido respeito às suas prerrogativas advocatícias, mas, sobretudo, para
extremar a posição de direita da Ordem antes do AI-2, de acordo com Denise Rollemberg. As críticas feitas
naquele momento pela OAB apontavam os “limites da revolução para completar sua obra: pôr fim à subversão
e à corrupção”. Assim como ficou evidente nas publicações do desembargador piauiense supracitado, “a não
radicalização das duas bandeiras que mobilizara as direitas – e a OAB – era motivo de frustação.” Ver:
ROLLEMBERG, op. cit. 2008, p. 08.
559
MENDES, 04.11.1965, p. 03
560
Importante observar, porém, que alguns advogados piauienses foram contrários ao golpe e perseguidos por
isso. No Piauí, o presidente da secção da OAB, Celso de Barros, que também era deputado estadual, teve seu
228
Interessante observar nos textos publicados no jornal O Dia, nos anos de 1964 e
1965, consumado o golpe e com o crescimento de medidas de exceção por parte do regime,
mandato cassado por fazer declarações contrarias aos militares na tribuna da Assembleia Legislativa. Ver:
DANTAS, Deoclécio, op. cit. 2008.
561
MENDES, 04.11.1965, p. 03.
562
Idem.
229
563
MENDES, 05.11.1965, p. 03.
564
Idem
565
Idem
230
O STF, não se pode deixar de evidenciar, era visto com desconfiança pelo
governo militar tendo em vista que todos os seus membros haviam sido nomeados pelos
presidentes anteriores e poderiam não estar exatamente imbuídos dos objetivos
revolucionários trazidos pelos militares566. Mateus Gamba Torres destaca que o colegiado foi
mantido após o golpe com a mesma composição de onze ministros, como determinado na
Constituição de 1946, porém as alterações não tardaram a chegar ao Supremo.
Provavelmente ajudou, de início, o fato de que, como mencionado, o Presidente do STF, deu
todo o apoio ao golpe, além do fato de nenhum dos Ministros ter se pronunciado contrário a
esse. Não houve “nem ao menos uma crítica ao golpe, nem dos Ministros nomeados por João
Goulart”567.
Um ponto importante a mencionar nas relações do STF com os militares é que
essas foram marcadas por ambivalências, pois ocorreram alguns embates entre os poderes
em alguns momentos, sobretudo com relação aos habeas corpus concedidos pelo STF aos
acusados de “subversão”, como no caso do governador Mauro Borges, citado acima por
Simplício Mendes. Nesse caso em especial, em novembro de 1964, o ministro do STF
Gonçalves de Oliveira “concedeu, monocraticamente, a primeira liminar em habeas corpus
da história do tribunal” no momento em que as “tropas do Exército marchavam para Goiás
para destituir o governador do estado, acusado pelos militares de orquestrar um plano de
subversão”568.
Esses e outros momentos de tensão foram sentidos entre o poder discricionário
dos militares e o Supremo, pois, de acordo com Recondo, “a roupagem de legalidade que os
militares quiseram vestir no golpe, provocou dificuldades, incompreensões e atritos entre o
governo e o STF”. Em pouco tempo, pode-se dizer, “o apoio explícito de Ribeiro da Costa
ao golpe daria lugar aos primeiros conflitos com o governo e com os militares”569. Os homens
do judiciário piauiense, como Simplício Mendes, no entanto, entenderam que não poderia
caber recursos a habeas corpus aos acusados de subversão, mesmo que a acusação se
mostrasse frágil, como no caso de Mauro Borges570.
566
TORRES, 2014, p. 29.
567
TORRES, 2014, p. 29.
568
RECONDO, 2018, p 49.
569
RECONDO, 2018, p 24.
570
O governador de Goiás, Mauro Borges, ao se posicionar contra a tentativa de golpe dos ministros militares
contra Jango, em 1961, por meio do “Manifesto à nação”, aderindo à Campanha da Legalidade de Brizola,
tornou-se visado pelas forças armadas, mesmo tendo apoiado o golpe contra João Goulart, em 1964, por ter
rompido com o PTB e em apoio a Castello Branco. Por isso a tentativa dos militares de derrubá-lo após o golpe.
231
571
TORRES, 2014, p.15-16.
232
no período posterior ao golpe, assim como fizera a própria OAB naquele momento. Esse
tipo de análise, a meu ver, permite compreender o posicionamento ambíguo de membros de
um poder que deveria velar por atuações amparadas na legalidade constitucional. No entanto,
por força de seu conservadorismo e de seus interesses na manutenção do status econômico
e social, acabaram por se posicionar de um lado claro da trincheira política: o lado do poder
discricionário do golpe militar.
Ainda é necessária uma ampliação das pesquisas no campo da História sobre o
golpe e a ditadura em um espaço como o Piauí. Tenho percebido, nessa pesquisa, que é
evidente a adesão de parte expressiva das elites políticas, jurídicas e comerciais desse estado
na legitimação do golpe e na manutenção do poder dos militares. Em alguns casos, no
entanto, as memórias locais celebram nomes que fizeram carreira política amparados na
ditadura como verdadeiros democratas. É o caso do governador do Piauí no momento do
golpe: Petrônio Portella. Esse agente político é visto sempre, em livros de memória e
matérias jornalísticas no Piauí, como o “arquiteto da abertura”, como alguém que “projetou
a redemocratização” no Brasil e como alguém que seria o primeiro presidente civil, após a
ditadura, não fosse sua morte prematura. Porém, costuma-se, em geral, silenciar sobre o
processo de adesão desse agente ao golpe, logo nos primeiros momentos da tomada de poder
pelos militares, em um ato marcado por ambiguidades, pois apoiara, até então, as pautas
reformistas de Jango.
Assim como o udenista Petrônio Portella, muitos outros membros das elites
(políticas, econômicas, jurídicas) piauienses aderiram ao poder militar após o golpe. É
preciso, portanto, analisar com mais profundidade tal contexto, no sentido de compreender
que modelo de sociedade e de política gestamos, mesmo com a abertura política, pois muitos
desses atores ainda continuam no poder estadual, por meio de seus herdeiros diretos.
regime democrático e implantação de um outro, com forte feições autoritárias desde o início,
demonstra uma profunda capacidade de negociação/conciliação e uma certa cultura política
acomodatícia por parte de determinados grupos políticos piauienses.
Em outros casos, é possível mesmo evidenciar, a identificação de lideranças que
se projetaram politicamente por meio de um discurso com claro viés liberal-democrático,
mas que, contraditoriamente, mantiveram fortes vínculos com o autoritarismo dos militares.
Isso mesmo quando ficou notória a truculência do poder no regime, como nos Atos
Institucionais implantados para reduzir as oposições políticas por meio do arbítrio e de
perseguições. Em suma, evidencio as estratégias dúbias de alguns dos agentes políticos que
aderiram ao poder dos militares, buscando perceber quais foram os interesses envolvidos
nesses reposicionamentos, bem como repensar o lugar que ocupam na memória política
local.
Em especial, vou analisar, nesse tópico, o exemplo de algumas lideranças
políticas com projeção no cenário político da experiência liberal democrática (1945-1964)
que ganham força e projeção aderindo à ditadura (1964-1985); e que, além disso, ainda se
acomodaram politicamente com o fim do regime militar. Um deles, que darei maior
evidência, é o do governador do Piauí no momento do golpe, o advogado Petrônio Portella
Nunes572. Esse agente, com a consolidação do regime vai gradativamente ganhando prestígio
político e renome nacional, como um braço civil a apoiar os atos autoritários do regime.
Petrônio foi deputado estadual (1954-1958), prefeito de Teresina (1958-1962) e governador
do Piauí (1963-1966), sempre pela UDN. Se elegeu senador em 1966, pela ARENA, quando
começou sua rápida ascensão no cenário nacional.
Petrônio chegou a ser nomeado ministro nos governos Geisel e Figueiredo,
presidente do Senado por duas vezes (1971-1972) (1977-1979) e nome de relevo como
articulador político dos militares. Nas memórias políticas locais, no entanto, é representado
sempre pela ótica do “líder”, ou o “arquiteto da abertura”, ou mesmo intitulado de “o
piauiense do século XX”. Dentro dessa ótica, seria alguém de importância no processo de
abertura política do país, um verdadeiro “democrata”, pois teria lutado com todas as forças
pela redemocratização do país. Negando-se mesmo, por meio dessas memórias celebratórias
e pacificadoras, seu passado de ampla colaboração e sustentação do regime ao qual se filiou
572
Para um perfil da trajetória de Petrônio Portella, ver verbete: CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. In:
Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb. Acesso em: 12
nov. 2019; ver também: TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de
Edições Técnicas, 2010. Ver ainda: Petrônio Portella (Depoimentos). Revista Política. Fundação Milton
Campos, Edição especial, nov.1980.
234
politicamente.
Algumas outras figuras políticas também são interessantes para a análise das
práticas de adesão e acomodação políticas no Piauí. Entre eles, o então prefeito da cidade de
Parnaíba no momento do golpe, Lauro de Andrade Correia (1963-1966), eleito pelo PTB,
como sucessor do líder trabalhista José Alexandre Caldas Rodrigues, apoiado pela estrutura
sindical dessa cidade, que se mantém no cargo do executivo municipal e se aproxima das
pautas dos militares após o golpe. Também o ex-prefeito de Parnaíba, líder da UDN local,
Alberto Tavares Silva, atuou em adesão ao regime. Por meio da aproximação com os
militares e por seus vínculos familiares, esse último foi nomeado pelo general Médici, como
governador do Piauí (1970-1975), além de ser parte dos grupos que buscaram se conectar a
ordem política aberta em 1964. Darei maior evidencia aqui, no entanto, ao primeiro caso
(Petrônio Portella) não somente por sua atuação extrapolar o cenário local, mas por conta de
suas estratégias ambíguas frente ao quadro político no momento do golpe.
Analisar as trajetórias de alguns agentes políticos locais e sua aproximação com
os militares, o seu aberto apoio ao golpe, ajuda a refletir sobre as ambiguidades e
contradições que estes assumem em determinados momentos. Analisar os apoios políticos
que teve a ditadura ao longo de toda a sua manutenção é importante, tendo em vista que,
como indica Daniel Aarão Reis Filho, com o passar do tempo e, sobretudo por conta das
redefinições das memórias com a abertura política, “obscureceu-se a participação dos civis
na construção do regime, esvaziando-se de quebra o estudo e a compreensão das complexas
relações que sempre vigoraram entre o poder ditatorial e a sociedade”573. Portanto, se faz
pontual perceber como os civis foram peça fundamental na manutenção de um regime
marcado pela profunda repressão política.
Apesar do predomínio de visões apaziguadoras no Piauí, é fundamental
complexificar a análise sobre o que representou o golpe e a ditadura nesse estado,
percebendo seus sustentáculos locais, seus gestos adesistas, sua retórica permeada de
ambiguidades, as múltiplas ambivalências nas formas de atuação, as conciliações e mesmo
como os principais nomes políticos que sustentaram os militares, ou seus familiares, foram
também vistos como lideranças políticas democráticas no processo de abertura política do
limiar dos anos 1980, mantendo-se ainda no poder com o fim do regime e início da nova
573
REIS FILHO, Daniel Aarão. A ditadura faz cinquenta anos: história e cultura política nacional-estatista. In:
REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.) A ditadura que mudou o
Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
235
república574.
Não se trata de negar violências, tampouco o predomínio do poder repressivo
vindo dos militares, muito menos defender teses negacionistas; mas de evidenciar que, se os
militares se mantiveram por mais de 20 anos no poder no Brasil, dentre outros aspectos, foi
por conta de expressivo apoio social e pelo fato de que muitos civis, com seus interesses
políticos e econômicos, ajudaram a sustentar um regime político marcado por autoritarismo
e repressão. Além disso, é importante perceber que figuras como Petrônio Portella, dentre
outras no Piauí, se adaptaram muito bem aos diferentes contextos políticos, sendo esses
momentos democráticos ou não. Também mantendo-se em posições de poder, atuando por
meio de negociações, usando das artimanhas e da teatralidade do poder, falando em
“fortalecimento das instituições democráticas” ao mesmo tempo em que apoiavam medidas
de exceção.
O udenista Petrônio Portella, de defensor das reformas de base até os derradeiros
momentos do governo Jango, faz uma rápida conversão política, depois de consumado o
golpe, passando então a defender a “revolução” dos militares e assim, se constituir, a partir
da consolidação da ditadura, em um nome de peso no cenário da política nacional. De acordo
com Vera Calicchio, tão logo soube da eclosão do movimento político-militar de 31 de
março de 1964, Petrônio leu em rádio575 e fez publicar nos jornais locais uma mensagem
defendendo o mandato de João Goulart e o seu próprio mandato de governador. O episódio,
como é possível observar, quase lhe custou o cargo e deixou por algum tempo sequelas em
sua vida política576.
Logo após o golpe, vislumbrando talvez uma carreira política – como de fato o
fez – meteórica e, diga-se, permeada de momentos em que não evitou transigir com o
autoritarismo e truculência dos militares, na mais clara manifestação adesista e
colaboracionista, Petrônio buscou se conectar aos novos “donos do poder”, ao mesmo tempo
negando a defesa que fez ao governo João Goulart, à legalidade e ao reformismo 577. Nesse
574
Interessante observar a longa permanência política nas esferas de poder, de nomes políticos ligados à família
Portella. Atualmente uma sobrinha Petrônio Portella (Iracema Portella) exerce cargo de deputada federal. Além
dela, seu marido (Ciro Nogueira), exerce cargo de senador da república. Além desses nomes, é notória a
presença da família na memória política local com nomes como Lucídio Portella e Natan Portella.
575
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
576
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
577
Vale ressaltar que, como resultado de sua rápida adesão ao novo regime, após a mudança de posicionamento,
Petrônio consegue galgar novos espaços de poder e ganha bastante força política junto aos militares após 1964,
adquirindo a confiança destes, mantendo-se no poder por todo o regime e, como consequência, já se projetava
como alguém que, não fosse a morte repentina, em 1980, no processo de abertura, segundo analistas, faria parte
dos mais altos círculos de poder da nova república. Portanto, também considero importante o estudo de algumas
dessas trajetórias, no sentido mesmo de perceber nossos limites de participação democrática, além dos próprios
236
quadro de rompimento institucional com o golpe de 1964, pode-se aventar que a tradição
conciliadora, comum às classes políticas conservadoras ao longo da história do Brasil
republicano, foi, ali, reafirmada. Conciliar as diversas agendas e os diferenciados matizes
ideológicos foi um dos desafios. A flexibilidade para a acomodação nos campos de poder,
de modo a facilitar a configuração do novo cenário, então, se fez habitual578.
Práticas comuns nesse quadro de alteração política produzido pelo golpe foram
as estratégias de conciliação com os novos donos do poder, bem como os reposicionamentos
de determinados agentes que, outrora conectados até mesmo a grupos em defesa das
reformas de base, não hesitam em transitar sorrateiramente para o lado dos militares, mesmo
com todas as características autoritárias que o regime demonstrou desde seu nascedouro.
Portanto é preciso mencionar que a conciliação e a acomodação fazem parte do repertório
de estratégias à disposição dos que disputam os jogos de poder no Brasil – ou seja, elas
integram a cultura política do país – e, como há larga tradição e vários exemplos bem-
sucedidos, muitos líderes são incentivados a escolher tal caminho, na esperança de construir
projetos políticos estáveis”579.
Nesse ponto, a atuação de um líder político como Petrônio Portella é exemplar,
no sentido de compreender, em certo ponto, como os laços estabelecidos localmente com
militares foram importantes para sua manutenção, bem como para perceber como alguns
agentes aderiram ao golpe então em andamento, no sentido de salvarem seus mandatos, mas
também projetando, fazendo cálculos políticos, traçando um horizonte de expectativa junto
aos centros de poder580. Portella, nesse ponto, se constituiu em um dos principais nomes da
Arena – Aliança Renovadora Nacional, partido que sustentou o regime ditatorial. Presidente
do Senado Federal, presidente e líder do partido governamental, ministro da Justiça. Portella
foi, em especial, um dos mais destacados articuladores políticos do regime” 581 . Daniel
limites da nossa redemocratização, constituída, pode-se dizer, nos moldes e interesses dos grupos que
cresceram politicamente sob o poder repressivo das botas dos militares.
578
RABELO FILHO, José Valderir. As Classes Políticas Cearenses e a Ditadura de 31 de março De 1964: entre
Consensos e Consentimentos. Revista Historiar, vol. 05, n. 09, ano 2013.2, p. 75-99.
579
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar: cultura política brasileira e modernização
autoritária. Editora Zahar, 2014, p. 19
580
A biografia de Petrônio, escrita pelo jornalista Zózimo Tavares, indica que “em seus últimos dias, dedicava-
se ao trabalho de obter o maior número possível de adesões para o novo partido governista, o PDS (Partido
Democrático Social), sucessor da ARENA”. Indica Tavares que o então ministro Petrônio defendia o argumento
de que “o presidente Figueiredo necessitava de um amplo apoio partidário para consumar sua obra de
redemocratização do país” (TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 42.). Zózimo defende a ideia de que “na verdade,
desde que despontou no cenário nacional, Petrônio sempre fez por merecer a confiança dos militares e o
respeito da oposição” (TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 70).
581
BAHIENSE, Daniel de Albuquerque. Petrônio Portella e o Projeto Educacional da Arena: notas sobre a
ação política de um soldado civil. Anais da XI Jornada de Estudos Históricos professor Manuel Salgado.
PPGHIS/UFRJ. VOL 2. Rio de Janeiro, 2016, p. 01.
237
Bahiense destaca que “o pensamento político de Portella era muito afinado com os grupos
dominantes das Forças Armadas – especialmente castelista –, que viam no senador, o
soldado político civil ideal para defendê-los no Congresso Nacional”582.
Petrônio Portella, em seu mandato de governador do Piauí583 (1963-1966), como
mencionado, por conta da conjuntura política de início dos anos 1960 e em busca de maior
prestígio junto ao governo federal, se aproximou das pautas reformistas, em detrimento do
udenismo mais radical, pois, era mais aliado da corrente udenista conhecida como “bossa-
nova” e anti-lacerdista por tradição; ele incluiu-se entre os governadores reformistas eleitos
em 1962584, de acordo com Vera Calicchio.
Nesse ponto, ao se referir a um tema bastante delicado no final de 1963, sobre
alterações na constituição para a efetivação das reformas de base, em especial a agrária, se
mostrava um legítimo defensor do reformismo. Em texto para o jornal udenista, Folha da
Manhã, ainda em maio de 1963, Petrônio indicou: “eu apoio as teses reformistas, inclusive
aceitando a emenda constitucional”. Ainda indicava que “aleguei que a constituição tinha
sido emendada em outras oportunidades e não seria agora, num problema de extrema
gravidade para os interesses nacionais, como o da reforma agrária, que ela deixaria de ser” 585.
Sua gestão no governo do estado do Piauí, em momento bastante turbulento do
ponto de vista político, foi marcada pela continuação de medidas desenvolvidas por seu
antecessor, o parnaibano Chagas Rodrigues. Consolidou o Banco do Estado do Piauí, a
Secretaria de Planejamento, a Agespisa (Águas e Esgotos do Piauí S/A), a Cepisa (Centrais
Elétricas do Piauí), além de construir os primeiros conjuntos habitacionais do estado 586 .
Nesse sentido procurou se aproximar de João Goulart, bem como tentou implantar o Projeto
Paulo Freire no Piauí, com apoio do governo federal. Isso ao mesmo tempo em que se reunia
com o presidente norte-americano, no salão oval, em visita àquele país, captando recursos
da Aliança para o Progresso para o estado.
Um evento marcante que ocorreu no seu governo foi uma tensa greve da Polícia
Militar, nomeada de “revolta da PM”, em Teresina, onde chegaram a tomar o quartel policial
naquela cidade. A sublevação dos oficiais da PM no Piauí, pela busca por reajustes salariais,
naquele momento, aproximou Petrônio do Exército; em particular, do general Castello
582
BAHIENSE, 2016, p. 01
583
Petrônio Portela assumiu o governo piauiense em janeiro de 1963, no mesmo mês em que, referendado pelo
plebiscito do dia 6, que revogou o sistema parlamentarista instaurado em setembro de 1961, João Goulart
recuperou seus plenos poderes na presidência da República. CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
584
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit
585
Jornal Folha da Manhã, 08 maio 1963.
586
TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella: uma biografia. Teresina-PI: Ed. do autor, 2012, p. 199.
238
Branco 587 . Com a recusa do governador em atender ao pedido dos policiais, de forma
irredutível, a solução encontrada, então, em agosto de 1963, quando ocorreu o episódio, foi
a solicitação de força federal. Primeiro ao ministro da Guerra (Jair Dantas Ribeiro) e, a
seguir, ao ministro da justiça (Abelardo Jurema). Decorridas 24 horas dessa solicitação, o
quartel da PM em Teresina foi cercado por forças do Exército e, a partir de então, foi dada
por encerrada a dita “revolta da PM”588. O governador Petrônio leu o episódio como uma
tentativa dos grupos opositores ao seu governo de politizar as forças policiais locais, por
meio da PM.
Já quando estourou o golpe, Petrônio, em um primeiro momento, já no dia 31 de
março, assumiu a bandeira de defesa da legalidade, lançando manifesto em rádio local,
falando aos líderes sindicais, como demonstra matéria publicada no jornal Folha de São
Paulo, periódico que deu apoio ao golpe. O então governador do Piauí, Petrônio Portella,
enfatizou que permaneceria ao lado do presidente João Goulart, inclusive, segundo o texto,
quase que desafiando o representante da Guarnição Federal em Teresina. Com o título de
“Governador do Piauí com JG para o que der e vier”, o jornal indicava que:
587
Nesse momento, Castello Branco era comandante da IV região do Exército, sediada em Recife, que era
responsável por toda a região Nordeste.
588
Em um depoimento do então senador em segundo mandato, Petrônio Portella tenta evidenciar que o gesto
da PM, no seu mandato de governador no Piauí, teria ligações com grupos de oposição ao seu governo. Ele
narra que “No começo de 1963, a polícia militar, através de seus comandados, foi à minha presença pedir
aumento, o que foi terminantemente negado por mim, com o fundamento justificado de que não era possível
aumentar os vencimentos deles quando não havia recursos para aumentar o de todo funcionalismo. [...] Isso
misturado com a política partidária, criou uma situação de sublevação no estado e ameaçadora à própria
segurança pessoal do governador. As ameaças se multiplicaram, o quartel da PM se transformou em parque de
comícios da oposição. A Associação Comercial mandou uma comissão ao meu gabinete oferecendo apoio para
aumentar os impostos e dar o aumento da PM. A minha resposta foi não. Absolutamente não. O problema era
de resguardar autoridade. E a polícia não teria privilégios. A coisa tomou um aspecto belicoso tal, que fui
obrigado a solicitar força federal ao ministro da Guerra e depois ao ministro da Justiça para garantir o governo
ameaçado”. Ver: NERY, Sebastião. Pais e padrastos da pátria. Recife-PE: Ed. Guararapes, 1980, p. 27.
239
589
Jornal Folha de São Paulo, 02 abr. 1964.
590
TAVARES, Op. cit. 2012.
591
Quando foi presidente do Congresso, pela segunda vez, Petrônio deu um depoimento sobre esse fato. Conta
que recebeu, no dia 1º de abril de 1964, um emissário que, segundo ele: “[me] levou um manifesto do
governador Miguel Arraes, endereçado a todos os governadores do nordeste, que eu me recusei a assinar. Na
oportunidade, disse, na presença de membros do meu governo, que não gostaria de assinar um manifesto
daquele, exatamente por conhecer as posições anteriormente assumidas pelo governador de Pernambuco”. No
depoimento, Petrônio ainda afirma que “não obstante as declarações, nunca tive qualquer contato com o
governador Miguel Arraes, apesar de minhas andanças pelo Recife, como membro do conselho da SUDENE e
nunca fui a palácio, nem por aquele governador fui visitado”. Ver: NERY, Sebastião. Pais e padrastos da pátria.
Recife-PE: Ed. Guararapes, 1980.
592
Miguel Arraes escreveu e enviou um manifesto aos demais governadores da região Nordeste. No documento,
ele pedia que todos resistissem à quebra de legalidade e que apoiassem o presidente deposto João Goulart. O
apelo não encontrou ressonância.
240
que estoura o golpe. Preferiu se manter na espreita, mesmo depois de lançar manifestos
simbólicos em apoio a Jango, do qual seu governo foi beneficiário. Talvez esse gesto fosse
então uma tentativa de manter acesa a áurea de progressista em terras piauienses ou mesmo
esperar o desenrolar dos acontecimentos mantendo abertas para si as possíveis soluções
daquele momento.
Um outro ponto controverso de Petrônio também foi a posição assumida quando
da realização do comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964. Segundo indica sua
biografia, o vice-governador João Clímaco de Almeida, o Joqueira, teria indicado a Petrônio
que não comparecesse ao comício das reformas. Consta na produção biográfica que,
“insistentemente convocado a se fazer presente à concentração popular, Petrônio estava
decido a comparecer”593. Porém, “o governador atendeu ao apelo de seu vice e não pôs os
pés na gigantesca concentração”. Zózimo Tavares indica ainda que “a ausência de Petrônio
no comício viria a se juntar, depois, aos motivos que ajudaram a salvar seu mandato de
governador”594.
O biógrafo Zózimo Tavares, destaca que, “na manhã de 31 de março de 64, as
rádios anunciavam o início do movimento armado que sacudiria o país”. Naquele momento,
mais precisamente no dia 1º de abril, “Petrônio surpreendeu com a declaração de que iria
publicar nota de apoio à legalidade constitucional. Resistia aos apelos de amigos,
correligionários e familiares”. Mas, segundo sua biografia, “ele relutava em adotar uma
postura pusilânime diante de fatos políticos e institucionais tão graves”. Então, Petrônio
“tratou de se manifestar logo, comprometendo o próprio futuro e o da família”. O biógrafo
do então governador, em tom laudatório e superdimensionado, indica que “sua formação
jurídica e sua consciência falavam mais alto. Fez a nota oficial”595. A nota em questão é a
que segue abaixo.
593
TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella: uma biografia. Teresina-PI: ed. do autor, 2012, p. 211.
594
TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 211.
595
TAVARES, Zózimo. op. cit. 205.
241
Já no dia 1º de abril, Petrônio Portella lançou a seguinte nota oficial, que foi lida
em jornais de circulação local, ainda com forte viés legalista, em defesa da constituição e,
consequentemente, do mandato do presidente João Goulart, ameaçado então pela “ação
revolucionária”.
Nota oficial
No momento de incertezas em que já vemos esclarecidos os objetivos do
movimento de rebelião em vários estados da federação, dirijo-me ao povo,
no cumprimento de um dever, para esclarecer, uma vez mais, minha
posição de defesa do mandato do Presidente da República, Sr. João
Goulart e de protestos contra a ação revolucionaria dos que ontem
faziam intocável a constituição e hoje não vacilam em desrespeitá-la.
Palácio do governo do Estado do Piauí
Teresina, 1° de abril de 1964
Petrônio Portella Nunes
Governador do Estado do Piauí597. (grifo meu)
Outra nota, mais enfática, no entanto, ganhou maior evidência nos bastidores do
poder piauiense e nacional, sendo empregada posteriormente pelos adversários políticos de
Petrônio, no sentido de tentar lhe prejudicar frente aos militares, após consolidada a ditadura
e tendo o mesmo se alçado a braço civil do regime598. Na verdade, trata-se de um discurso
feito quase que de improviso, por meio do rádio, no dia 1º de abril, ao qual Petrônio se
mostrava ainda fortemente em defesa da legalidade, até mesmo propondo resistência junto
ao governador de Pernambuco, Miguel Arraes e, ao mesmo tempo, mostrando-se ao lado
dos trabalhadores piauienses, no sentido de unir forças contra o golpe. Sua fala no rádio local
destacava que:
596
TAVARES, Zózimo, op. cit. p. 207.
597
NUNES, Petrônio Portella. Nota oficial. 1 de abril, de 1964. Palácio do Governo. Gabinete do governador.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
598
Um texto em homenagem a Petrônio Portella, escrito na revista Política, no ano de sua morte (1980),
exemplifica bem essa polêmica que acompanhou Petrônio para o resto de sua vida política. Em texto do ex-
senador Ruy Santos, ele destaca que “o senador piauiense, embora integrasse a bancada que prestigiava a
revolução de março, era acusado, injustamente, de ter conspirado em favor da permanência de Jango. Dizia-se
que chegara, para isso, a entrar em contato com Miguel Arraes”. Ruy Santos ainda sai em defesa de Petrônio,
argumentando que não poderia saber do que se passava nos centros de poder. Segundo ele, “Nunca levei a sério
a acusação que, no meio revolucionário, se fazia ao senador piauiense. Petrônio governava seu estado, quando
dos preparativos para eclodir da revolução de março. Isolado do mundo, não sabia o que se verificava nas
alturas da nação”. SANTOS, Ruy. Petrônio Portella (Depoimentos). Revista Política, Fundação Milton Campos,
Edição especial, p 09, nov. 1980.
242
599
Jornal do Piauí, 16 jun. 1964. Ver: TAVARES, Zózimo. Op. cit. 208-209.
600
“Quero, neste momento, deixar bem clara a minha posição que não tenho medo... de ris... de risco e nem de
perigos e mais fazendo-lhes umas ponderações: 1° - Nós não temos forças de reação material. Este é o primeiro
dos nossos problemas. Nós temos, sim, de deixar bem claro mesmo nosso entusiasmo, mas é de convir que a
força que vamos dizer o mandado dos ilegalistas e dos golpistas possam inclusive atentar contra a liberdade de
opinião dos trabalhadores. Eu lhes peço, neste momento, que se mantenham calmos, não façam manifestações
que possam construir motivo para intervenção federal no Estado, porque eu, no momento, só tenho uma coisa
a meu favor, é a força moral que será integralmente respeitada enquanto eu tiver vida (muito bem!). Mas não
disponho de força material para uma ação, isto mesmo, já comuniquei oficialmente ao governador Miguel
Arraes. Quero, então, dar-lhes este esclarecimento, porque já tive avisos de proibição de passeatas de
manifestações e se estas passeatas nos forem proveitosas no sentido de nós pudéssemos com ela obstacular a
marcha da reação com o perigo da própria vida eu me colocaria em primeiro plano, em primeiro lugar, para ao
lado de vocês lutar pela legalidade (palmas!) (Petrônio) mas não vejo no momento condições maiores para isto
e qualquer fato que os senhores queiram qualquer pessoa que queira tomar, peço que entre permanentemente
em contato com o governo, que eu lhe direi inclusive do... dos perigos que possam correr, porque eu não tenho
a quem servir, senão ao povo (Muito bem!). Ver: Jornal do Piauí, 16 jun. 1964. Ver: TAVARES, Zózimo. Op.
cit. 208-209.
601
Ver: DREIFUSS, R. 1964: a conquista do Estado. Ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes,
1981; FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente, pôs fim ao
regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014; GASPARI,
Elio. A ditadura envergonhada. São Paulo: Companhia da Letras, 2002.
243
Ainda como governador ou, futuramente como senador, Petrônio Portella logo
procurou se aproximar do primeiro presidente da ditadura e da estrutura militar que
governava o país. Acusado de “revolucionário de última hora” e de “adesista”, por seus
opositores piauienses603, chegou, no entanto, ao fim do seu mandato no governo do Piauí em
clima de excelentes relações com o presidente Castello Branco, que inclusive o prestigiou,
dando-lhe o direito de indicar o futuro vice-governador604. Petrônio ganhou confiança do
governo militar de uma forma rápida, fazendo parte, inclusive, de todas as cerimônias do
novo governo, pois estivera presente já na posse de Castelo Branco, ainda em abril de 1964,
conforme indicam as edições dos jornais locais.
Na edição do dia 17 de abril d’O Dia, consta que, ao desembarcar em Teresina,
602
NUNES, Petrônio Portella. Nota oficial. 2 de abril, de 1964. Palácio do Governo. Gabinete do governador.
Disponível em: http://bnmdigital.mpf.mp.br. Acesso em: 24 nov. 2019.
603
Alguns desses embates entre Petrônio e os opositores locais, podem ser vistos, por exemplo, no jornal O
Estado do Piauí que apoiou abertamente o golpe, tendo destacado nota intitulada: Governador cabeçudo. Nela
é possível ler que “Quando rebentou a revolução de 31 de março, o governador do Piauí, para demonstrar
gratidão a Goulart, pensando que a revolução fracassaria, passou um telegrama de solidariedade ao ex-
presidente e até em termos enérgicos e decisivos. Dizem que deputados, magistrados e pessoas da família
pediram-lhe, insistentemente que não enviasse tal telegrama, mas o governador é cabeçudo, e o telegrama foi
despachado. Quando o Dr. Petrônio quer alguma coisa, quer porque quer, não há ninguém que o demova. Só
não foi teimoso no apoio político e administrativo que dava ao ex-presidente João Goulart. Deixou a teimosia
de lado e passou de armas e bagagens para o lado da Revolução. Quando se trata, portanto, de interesse dele e
da conveniência e vaidades que tem em permanecer no governo, esquece-se que é birrento, obstinado e então
se transforma psicologicamente, desmancha-se em mesuras e salamaleques aos vencedores, como soube tão
bem fazer diante do Marechal Castello Branco. A pertinácia do Dr. Petrônio é para experimentar se tem
prestígio junto ao governo de uma revolução, contra a qual quis até pegar em armas, quis até resistir, caso
pudesse, segundo declarações suas”. Governador cabeçudo. Jornal O Estado do Piauí, 05 jul. 1964.
604
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. In: Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/acervo/dhbb. Acesso em: 03 nov. 2019; TAVARES, Zózimo. Petrônio Portella. Brasília:
Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2010.
244
após a posse de Castello, Petrônio indicou aos jornalistas da Rádio Difusora seu profundo
entusiasmo com a nova ordem, pois manifestou sua “ilimitada confiança nos destinos do
Brasil, agora tendo na mais alta magistratura do país, o presidente Castello Branco”.
Afirmando aos jornalistas ter participado, em Brasília, de “todas as solenidades que
assinalaram a posse do novo dirigente da nação, e pôde testemunhar o entusiasmo com que
o povo aplaudia o Marechal Castello Branco, em cuja firmeza, serenidade e patriotismo,
probidade e sinceridade de propósitos confia”605.
Ao mesmo tempo, Petrônio indicou que apoiava o poder militar, pois, ainda de
acordo com a entrevista para os jornais e rádios locais, ele “reafirmou, também, o [seu]
apreço pelas Forças Armadas, destacando o papel que, no Piauí, vêm executado neste
momento histórico, sob o comando sereno e firme do Cel. Francisco Mascarenhas Façanha,
cuja personalidade exaltou”606.
Um trecho de uma entrevista realizada já com a abertura política é interessante
para relacionar algumas questões sobre a rápida adesão de Petrônio no momento do golpe.
Perguntado sobre quais teriam sido as causas para a permanência de Petrônio Portella no
governo do estado, após o golpe, o ex-deputado pelo PTB, Clidenor de Freitas Santos, que
apoiou a candidatura de Petrônio ao governo do Piauí em 1962, organizando uma dissidência
petebista naquele momento, indicou, em depoimento para a fundação CEPRO, já no ano de
1987, que:
605
Governador Petrônio Portella chegou há pouco. Jornal O Dia, n. 1218, Teresina-PI, p.01, 17 abr. 1964.
606
Idem.
607
SANTOS, Clidenor de Freitas. Depoimento. Núcleo de História Oral. Fundação CEPRO. Centro de
Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí. 15 jan. 1987.
245
608
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar, Op. Cit. p. 15.
609
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. Op. Cit. p. 10.
610
REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). A ditadura que mudou
o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 05.
246
611
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. op. cit. (2014) p. 06
612
Rodrigo Motta já apontou as ambiguidades presentes na ditadura implantada em 1964. Para ele a noção de
modernização conservadora pode servir como síntese dos paradoxos e contradições do regime militar que
alternava modernização econômica, mas com profundo autoritarismo e repressão aos movimentos sociais e
mecanismos de exclusão de participação social. Para o historiador, o desejo modernizador implicava
“desenvolvimento econômico e tecnológico e, portanto, aumento dos contatos com o exterior e da mobilidade
das pessoas, além de expansão industrial e mecanização agrícola”. Com isso, levava-se ao aumento da
urbanização e do operariado fabril, gerando potenciais tensões e instabilidade nas relações sociais e de trabalho.
Já o impulso conservador estava ligado à “vontade de preservar a ordem social e os valores tradicionais, o que
insuflava o combate às utopias revolucionárias e outras formas de subversão e ‘desvio’, aí incluídos
questionamentos à moral e aos comportamentos convencionais”. Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá.
Modernização autoritário-conservadora nas universidades e a influência da cultura política. In: REIS FILHO,
Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos
do golpe de 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 30.
613
RIDENTI, Marcelo. As oposições à ditadura: resistência e integração. In: REIS FILHO, Daniel Aarão;
RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá (Org.). A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de
1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 22.
247
614
RIDENTI, Marcelo. op. cit., 2014, p. 22.
615
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. As universidades e o regime militar. op. cit. (2014) p. 08.
248
616
Governador Petrônio comanda a marcha do progresso no Piauí. Revista Caravana, p. 02, jul. 1965.
617
Interessante observar alguns dos argumentos que foram empregados com relação à mudança de
posicionamento político de Petrônio Portella em 1964, por aliados políticos. O ex-ministro, Jarbas Passarinho,
em texto para a Folha de São Paulo, destacou que Petrônio fora traído por “problemas de comunicação” no
momento do golpe. No texto, Passarinho destacou então, que [...] “As comunicações, à época, eram
precaríssimas. À noite de 31 de março, o que se conseguira ouvir em Teresina -e com dificuldade- fora a Rádio
Nacional, repetindo constantemente a notícia de que os golpistas estavam sendo presos. Embora eleito pela
UDN, Petrônio Portella recebera do presidente João Goulart atenção especial, traduzida em ajuda vultosa para
a realização da modernização do Estado, sem exigir-lhe nenhum compromisso político, o que fazia do
governador oposicionista um devedor de gratidão. Sem novas notícias a respeito, pois nenhum meio de
comunicação funcionava, Petrônio sentiu-se na obrigação de retribuir o gesto de João Goulart. Improvisou
cerimônia pública e assumiu o compromisso de colocar o Piauí ao lado da legalidade. Jornal de sua orientação
publicou-lhe o discurso, no dia seguinte, 2 de abril. Arraes já fora preso e destituído. Jango, de breve estada em
Porto Alegre, rumara para o Uruguai. Petrônio fora traído pela falta de informação. E isso declarou aos
novos donos do poder.” (grifo meu) PASSARINHO, Jarbas. Historietas piauienses. Folclore Político. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 19 out. 2002. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1910200214.htm. Acesso em: 12 jun. 2020.
618
Revista Caravana, jul. 1965, p. 13.
619
Revista Caravana, jul. 1965. p. 05.
249
alegria desse povo humilde: ‘Viva’!” Na recepção do Mal. Castello Branco, ainda segundo
a revista, no “aeroporto uma Cia. do 25º BC formou em homenagem ao supremo magistrado
na Nação”. Nesse momento, “a banda de música daquela corporação executou, como em
nenhuma outra ocasião, o Hino Nacional”. A revista divulgava ainda que “o governador,
Petrônio Portella Nunes, recebeu S. Exa. E rumaram em direção a fila de autoridades que
foram levar cumprimentos ao Marechal Castello Branco”620.
Como demonstração de sua relação de confiança com militares, Portella “foi
incumbido pelo próprio Castello Branco de formar a Arena no Piauí”621. Já em junho de 1968,
com o falecimento de Paulo Sarasate, Petrônio aceitou o convite de Daniel Krieger para
assumir a vice-liderança do governo, abrindo assim o precedente de acumular as vice-
lideranças do governo e da Arena 622 . Em pesquisa recente, Daniel Bahiense destaca que
Petrônio foi conquistando a confiança das principais lideranças arenistas no Senado,
especialmente os senadores Krieger e Müller, conseguindo então superar as primeiras
desconfianças do novo bloco de poder com relação ao seu nome. Assim, ele chegaria à 2ª
Convenção Nacional da Arena, de junho de 1968, como vice-líder do partido e vice-líder do
governo na Câmara Alta, convidado e avalizado pelos senadores Müller e Krieger623.
Um outro ponto importante a destacar é a adesão de muitos quadros políticos do
legislativo piauiense à lógica persecutória dos militares. Alguns, por certo, buscando
favorecimento, ou simplesmente visando retirar seus opositores de cargos eletivos, por meio
das cassações de mandatos que se tornaram frequentes na Assembleia e Câmaras de
vereadores, como percebi nessa pesquisa. O então estudante de Direito e vereador eleito em
1962, pelo PTB, Jesualdo Cavalcante de Barros624, foi perseguido pelos militares, preso e, a
seguir, cassado na Câmara Municipal de Teresina, com forte anuência dos próprios colegas
da casa, que se submeteram aos ditames da Guarnição Federal do Piauí.
Seu depoimento é ilustrativo de como alguns grupos ou indivíduos, por
interesses imediatos ou buscando se beneficiar politicamente com a nova ordem,
estabeleceram todo um sistema de delações, reproduzindo e legitimando o jogo persecutório
dos militares.
620
Revista Caravana, p. 05, jul. 1965.
621
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit.
622
CALICCHIO, Vera. Petrônio Portella. Op. cit.
623
BAHIENSE, 2016, p. 05.
624
Aluno do terceiro ano da Faculdade de Direito, mas impedido de assistir às aulas desde abril, obteve
autorização para, escoltado por soldados, realizar as provas que deixara de fazer. Colocado em liberdade em
30 de maio, voltou a ser preso diversas vezes, coincidindo com a presença, em Teresina, de autoridades do
primeiro escalão da República. Ver: DANTAS, Deoclécio. Marcas da ditadura no Piauí. Teresina-PI, 2008, p.
10.
250
625
BARROS, 2006, p.195.
626
Jornal O Dia, ano 14, n. 1216, Teresina-PI, p. 01, 12 abr. 1964.
627
Votaram pela cassação os vereadores Otávio Joaquim Braga, Abizail Leôncio de Souza, João Rodrigues de
Azevedo Filho, Álvaro Monteiro da Cunha, Álvaro Lebre, Raimundo Vieira e Silva, Joel da Cunha Mendes e
José da Costa e Silva; e contra o vereador Paulo Rubens Fontenele. Ver: Jornal O Dia, ano 14, n. 1216, Teresina-
PI, p. 01, 12 abr. 1964.
251
espaços de poder. Muitos dos vereadores que votaram pela cassação de Jesualdo viram,
provavelmente, um momento mais do que oportuno para retirar-lhe o mandato, utilizando-
se contraditoriamente de um discurso em nome da defesa da “ordem democrática”, em
sintonia com os interesses dos militares.
No legislativo estadual, outra demonstração de servilismo e adaptação política
foi visível na Assembleia Legislativa do Piauí. Logo após a consolidação do golpe, o clima
de caça às bruxas atingiu também aquela casa. Em sessão do dia 08 de maio, logo após o
golpe, em 1964, pelo vice-governador João Clímaco de Almeida, conhecido Joqueira, foram
lidos ofícios assinados pelo comandante da Guarnição Federal de Teresina, Francisco
Mascarenhas Façanha. De acordo com o jornalista Deoclécio Dantas, o primeiro ofício,
informava que: “atendendo à solicitação de V. Exa., informo que os deputados estaduais e
suplentes abaixo relacionados, se encontram enquadrados no art. 10 do Ato institucional. Os
deputados em questão eram: Deusdedit Mendes Ribeiro 628, Themístocles Sampaio e José
Alexandre Caldas Rodrigues”629. Além deles, foram cassados os suplentes Honorato Gomes
Martins, Antônio Ubiratan de Carvalho e José Francisco Paes Landim. O segundo ofício
enviado também enquadrava o deputado estadual Celso de Barros Coelho630 no artigo 10 do
Ato Institucional631.
Tendo em vista a adequação daquela casa aos ditames das Forças Armadas, o
presidente da Assembleia decide por reorganizar o sistema de votação, dando prioridade à
votação das cassações dos mandatos dos deputados enquadrados pela forma militar. Pois,
“enviados à Comissão de Constituição de Justiça, os dois ofícios foram apreciados em
regime de urgência, sendo importante destacar que a presidência da Assembleia, também em
regime de urgência, já havia adaptado o seu Regimento Interno ao Ato Institucional”632.
“Naquela época, eram 42 os deputados estaduais, sendo que um – Deusdedit Mendes Ribeiro
– estava preso, e cinco, embora comunicados do objeto daquela sessão não
compareceram”633.
628
Era fortemente ligado ao PCB e aos movimentos sindicais urbanos em Teresina e às Ligas Camponesas em
Campo Maior. Ficou preso por mais de 70 dias entre o quartel do 25º BC e a penitenciaria de Teresina.
629
José Alexandre, como visto no primeiro capítulo, irmão do ex-governador Chagas Rodrigues, então
deputado federal. Era ligado aos sindicatos na cidade de Parnaíba, tendo sido eleito prefeito da cidade com
apoio da estrutura sindical e após isso, eleito deputado estadual.
630
De acordo com Dantas, o deputado teria irritado os militares em sessão anterior na Assembleia Legislativa,
ao defender postulados da democracia e, mesmo pressionado, não recuou naquilo que havia dito. Além de
deputado, Celso também era presidente do conselho local da OAB.
631
DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 13.
632
DANTAS, Deoclécio. Op. cit. 2008, p. 13.
633
Os ausentes foram os deputados Aloísio Costa, Álvaro Melo, Benjamim Lustosa, Waldemar Macedo e Pedro
Borges. (DANTAS, Deoclécio. Op. cit, 2008, p. 13.)
252
634
DANTAS, Deoclécio, op. cit. 2008, p. 13
635
MENDES, Simplício de Sousa. A alma cívica do povo vibrou espontânea. Televisão. Jornal O Dia, p 03,
17 abr. 1964.
636
Idem.
637
Idem.
638
Idem.
253
639
Idem.
640
Idem.
641
Idem.
642
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
254
643
Flagrantes e notícias sociais. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
255
Penso que, apesar do que já foi dito por muitos, nunca é demais exaltar o
maravilhoso espetáculo que Teresina inteira assistiu dia 14, à tarde, quando
foi realizada a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Para mim,
que passei a infância no Sul do país, voltando a residir no Piauí em 1944,
confesso que nunca vi tanta gente junta, atendendo a um convite que,
pensando bem, não era propriamente de pessoas ou de entidades. O
movimento nasceu e se expandiu de tal modo que ninguém pôde ficar em
casa. Todos saíram às ruas para participar da MARCHA. Foi uma coisa ao
mesmo tempo bela e comovente. Por aí, isto é, por essa demonstração de
civismo de nossa gente e, sobretudo da mulher piauiense, que prestigiou
de maneira entusiástica, a homenagem do povo ao regime democrático e
às nossas gloriosas Fôrças Armadas, fiquei sabendo que, embora sejamos
muito pacatos, não deixaríamos jamais de atender ao chamamento da
Pátria, para defende-la. Graças a Deus644.
644
PAULA, Ana. Para a mulher: dizendo o que penso. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
645
Elas e Elas. Jornal O Dia, p. 07, 17 abr. 1964.
256
presença dos grupos civis no processo de adesão ao golpe de 1964, ao mesmo tempo esses
foram eventos bastante divulgados na imprensa piauiense. A reprodução das chamadas
Marchas da Família com Deus pela Liberdade, podem servir, a meu ver, como uma das
formas mais visíveis de demonstração de que diferentes setores da sociedade piauiense
apoiaram as medidas adotadas pelos militares da Guarnição Federal do Piauí, por mais
truculentas que fossem essas ações.
A primeira dessas marchas, organizada por grupos religiosos e de mulheres,
ocorreu em São Paulo, às vésperas do golpe, em 19 de março de 1964, como reação ao
comício da Central do Brasil, ocorrido no dia 13 de março. Após a ruptura institucional
iniciada em 31 de março, tal evento foi reproduzido em várias outras cidades brasileiras,
como uma espécie de sinal de apoio social aos militares que vieram, segundo esses grupos,
para resguardar a “ordem democrática”, contra o “comunismo”, contra a “corrupção” e a
“subversão”, ao mesmo tempo, que vieram no sentido de manter a unidade da “família
brasileira”646.
Em algumas edições do jornal piauiense O Dia, às vésperas da realização da
Marcha no Piauí, foram emitidas inúmeras notas conclamando a sociedade piauiense a se
fazer presente naquele “grande ato cívico”. Segundo os organizadores e divulgadores, no
sentido de agregar diferentes setores ao evento, as marchas seriam em “defesa da
democracia”, que esteve, em suas interpretações, “seriamente ameaçada” durante o governo
João Goulart. Ao mesmo tempo, a realização das marchas seria um gesto de “aplauso às
gloriosas Forças Armadas”, como se pode evidenciar nesses trechos abaixo:
Motorista!
Dê sua contribuição para a MARCHA DA FAMÍLIA COM DEUS PELA
LIBERDADE. Transporte gratuitamente as pessoas pobres, nos subúrbios,
na terça-feira à tarde, a fim de que todos possam tomar parte no movimento.
Com Deus, pela liberdade, em defesa da democracia 647.
Comerciante!
É indispensável e necessária sua colaboração à MARCHA DA FAMÍLIA
COM DEUS PELA LIBERDADE. Na terça à tarde, espera-se que o
646
Interessante observar a manutenção dessa memória positiva sobre o golpe de 1964 nos dias atuais dentro e
fora dos quartéis. Quando os grupos de generais atualmente à frente do Estado brasileiro, dão declarações
reproduzindo a ideia de que o golpe teria sido dado como forma de “salvar a democracia” e/ou restabelecer a
ordem no país. Exemplo disso são as recentes declarações do vice-presidente Hamilton Mourão, na data em
que se lembra os 56 anos do golpe de 1964. Mourão afirmou, em 31 de março de 2020, que as Forças Armadas
assumiram o poder para enfrentar a subversão e fizeram as reformas que “desenvolveram o Brasil”. Segundo
o general, “há 56 anos as Forças Armadas intervieram na política nacional para enfrentar a desordem, subversão
e corrupção que abalavam as instituições”. Disponível em: https://www.poder360.com.br/midia/mourao-
celebra-56-anos-do-golpe-de-64-esquerda-sobe-hashtag-ditaduranuncamais/. Acesso em: 01 abr. 2020.
647
Jornal O Dia, p. 05, 12 abr. 1964.
257
648
Jornal O Dia, p. 05, 12 abr. 1964.
649
Jornal O Dia, p. 04, 12 abr. 1964.
650
Daniel Aarão Reis Filho destaca que “Milhões marcharam. Quinhentas mil pessoas em São Paulo, antes do
golpe, em 19 de março de 1964. Um milhão no Rio de Janeiro, em 2 de abril, na então chamada Marcha da
Vitória. Depois, mais dezenas e dezenas de milhares. Marcharam as gentes até setembro de 1964. Não houve
cidade grande que não tivesse a sua marcha, sem contar muitas cidades médias e pequenas.” REIS FILHO,
Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 23, n. 45, p. 171-186,
jan./jun. 2010.
258
651
CORDEIRO, Janaína Martins. Op. cit. 2008, p.21
652
RICARDO, Elisângela M. Op cit. p. 111.
653
Marylu Oliveira destaca que, “apesar de não ter sido organizada pela Igreja Católica no Piauí, teve
expressivo caráter religioso, inclusive no sentido de aglutinar um maior número de indivíduos no combate ao
comunismo ateu”. Ver: OLIVEIRA, Marylu Alves de. A cruzada antivermelha: democracia, Deus e terra
contra a força comunista: representações, apropriações e práticas anticomunistas no Piauí da década de 1960.
Dissertação (Mestrado em História do Brasil) – Universidade Federal do Piauí, 2008, p. 136.
259
654
QUADRAT, Denise; ROLLEMBERG, Samantha Viz (org.). Apresentação. In: A construção social dos
regimes autoritários: Europa, vol. 1. Legitimidade, consenso e consentimento no século XX. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 15.
655
Idem.
656
Idem.
657
Aqui é importante mencionar também a formação de uma cultura política conservadora no Brasil como um
aspecto de longa duração. Por certo, a eleição de um candidato de extrema-direita, em 2018, sufragado por
mais de 57 milhões de brasileiros, é evento histórico marcante dos tempos atuais e precisa ser compreendido
de maneira mais complexa. Demonstra, de certa forma, que parcelas significativas dessa sociedade, não
enxerga como um problema efetivo um candidato que defende uma visão positiva sobre a ditadura, sobre tortura,
etc.
260
golpe civil-militar, posto que boa parte delas ocorreu posteriormente ao 31 de março”658.
Nesse sentido, é importante demarcar que muitos daqueles personagens que participaram da
reprodução das Marchas no Piauí, entendiam se tratar de uma forma de celebração, de um
culto a uma intervenção militar conservadora, punitiva, truculenta e antidemocrática.
Sobretudo quando da realização na cidade de Parnaíba, já no início do mês de maio, portanto,
dois meses após a ruptura institucional.
Importante também observar o amplo papel que teve a mídia impressa naquele
momento. Tanto no que diz respeito à divulgação do evento, buscando angariar a simpatia
da opinião pública para a Marcha, quanto na ampla cobertura feita após a realização. Nesse
sentido, como nos indica Rosangela de Pereira Assunção sobre o papel da imprensa,
“podemos imputar grande parcela de responsabilidade no processo de recepção, repetição,
transformação e circulação de imagens sobre o comunismo e comunistas que, em última
instância, pode ter contribuído para a consolidação na sociedade de uma postura política de
consenso contrária ao comunismo”659.
Naquele momento, quando se marcou a concretização da tomada de poder pelos
militares, até mesmo grupos de estudantes, diretórios estaduais de secundaristas, grupos de
estudantes universitários, bem como de funcionários púbicos, dentre outros, incorporaram-
se à Marcha piauiense, como pude perceber nessa pesquisa. Na edição do dia 14 de abril de
1964, o jornal O Dia destacou que:
No contexto das Marchas, pelo menos para as classes médias locais, era possível
658
PRESSOT, Aline. Celebrando a “Revolução”: as Marchas da Família com Deus pela Liberdade e o Golpe
de 1964. In: ROLLEMBERG, Denise; QUADRAT, Samantha Viz (Org.). A construção social dos regimes
autoritários: legitimidade, consenso e consentimento no século XX Brasil e América Latina, v.2. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2010, p. 83.
659
ASSUNÇÃO, Rosângela Pereira de Abreu. Imagens da subversão: polícia política, imprensa e imaginário
anticomunista. Em: MOTTA, Rodrigo Sá (Org.) Culturas políticas na História: novos estudos. 2ª ed. Belo
Horizonte, BH: Fino Traço, 2014. p. 208.
660
Marcha da Família empolga teresinense. Em: Jornal O DIA. Teresina, ano. XIV n. 1216. p. 1-4,14 de abril
1964.
261
acompanhar pela ampla cobertura midiática, o processo de concentração de poder por parte
dos militares, quando, por exemplo, se estabeleceu, em 09 de abril, o primeiro Ato
Institucional. O primeiro AI buscava conceder ao comando revolucionário as prerrogativas
de cassar mandatos legislativos, suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos e
deliberar sobre a demissão, a disponibilidade ou a aposentadoria dos que tivessem “atentado”
contra a segurança do país, o regime democrático e a probidade da administração pública. O
AI-1, como forma de assegurar a manutenção dos militares à frente do poder, determinava
em seu artigo 2º que dentro de dois dias seriam realizadas eleições indiretas para a
presidência e vice-presidência da República. O mandato presidencial se estenderia até 31 de
janeiro de 1966, data em que expiraria a vigência do próprio ato661.
Aline Pressot destaca que os grupos conservadores, já durante alguns anos,
denunciavam a iminência do “perigo comunista” no país, percebendo a necessidade de
intensificar sua campanha de oposição ao governo e de arregimentação da opinião pública662.
A autora destaca que, enquanto Jango selava o compromisso definitivo com as reformas,
assinando seus principais decretos, muitas famílias da zona sul do Rio de Janeiro respondiam
a uma convocação de se acender uma vela pelo afastamento do país das aspirações
comunizantes; mulheres de São Paulo se reuniram e rezaram o terço na Sé663. Em São Paulo,
na primeira Marcha, “cerca de 500 mil pessoas congestionariam as ruas da capital paulista
em manifestação pública pela derrubada do presidente”664. Seria também, de acordo com
Pressot, uma forma de dizer às Forças Armadas que era chegado o momento de se intervir
na política, o que, segundo seus organizadores, representaria um anseio do povo665.
661
No dia 10 de abril, a junta militar divulgou a primeira lista dos atingidos pelo AI-1, composta de 102 nomes.
Foram cassados os mandatos de 41 deputados federais e suspensos os direitos políticos de várias personalidades
de destaque na vida nacional, entre as quais João Goulart, o ex-presidente Jânio Quadros, o secretário-geral do
proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB), Luís Carlos Prestes. A extensa lista incluía ainda 29 líderes
sindicais, alguns deles bastante conhecidos, como o presidente do então extinto Comando Geral dos
Trabalhadores (CGT), Clodsmith Riani, além de Hércules Correia, Dante Pellacani, Osvaldo Pacheco e Roberto
Morena. 122 oficiais foram também expulsos das forças armadas. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/atos-institucionais. Acesso em: 02 fev. 2020.
662
PRESSOT, Aline. op. cit. 2010, p. 75.
663
PRESSOT, 2010, p. 76.
664
PRESSOT, 2010, p. 77.
665
PRESSOT, 2010, p. 77.
262
666
Um aspecto interessante que despertou minha atenção durante o andamento da pesquisa foi, sem dúvida, a
manutenção do então prefeito, Lauro Correia, no cargo executivo municipal. Mesmo sendo do principal partido
atingido pelo golpe, o PTB, Lauro consegue se manter à frente do executivo municipal. Ao que me parece,
principalmente por ser oriundo de uma família tradicional da cidade de Parnaíba, os Moraes Correia. Por
263
simples gesto de saudação aos signos identitários do novo regime, como forma de angariar
a simpatia dos militares, a construção de tal monumento, a meu ver, representava uma
tentava de relacionar o contexto de mudança que se vivia a uma dada história política
tradicional da cidade.
Nesse sentido, em obra escrita pelo jornalista parnaibano Caio Passos, publicada
já durante o contexto de abertura política, em 1982, é possível analisar as intenções
envolvidas na construção desse espaço cívico no centro da cidade.
O então prefeito, Lauro Correia, oriundo das elites civis de Parnaíba – família
Moraes Correia, da fábrica Moraes S/A – apesar de passar por momentos de tensão após o
golpe, quando militares da Capitania dos Portos sediada nessa cidade o pressionaram, ao que
tudo aponta, buscou se aproximar das bandeiras levantadas pelo novo regime, sobretudo no
que diz respeito aos valores simbólicos do civismo e patriotismo, caros aos militares668 .
Como pude perceber, logo após o golpe, em 1964, projetou-se, nessa cidade, uma série de
possuir vínculos pessoais com grupos poderosos no judiciário local, bem como ainda, por não representar uma
ala reformista do PTB, mas uma ala do empresariado que ganhou espaço dentro do partido, como mencionado
no primeiro capítulo deste trabalho. Consegui realizar uma entrevista com o ex-prefeito, em 2016, porém com
pouco sucesso no esclarecimento desses fatos mencionados. Lauro Correia, então com 92 anos, desviava o
assunto cada vez que eu tentava alguma investida sobre os eventos referentes ao golpe de 1964 em Parnaíba.
Preferiu falar mais sobre questões ligadas ao desenvolvimento econômico da cidade e das perspectivas
industriais da mesma. Assim como preferiu destacar os feitos de sua gestão. (CORREIA, Lauro de Andrade.
Entrevista concedida a Francisco José Leandro Araújo de Castro. Em 08 de julho de 2016.)
667
PASSOS, Caio. Nossa capa. Cada rua, sua história. Parnaíba-PI, 1982, p. 04.
668
Na construção do centro cívico, a parte principal é o Panteon, onde se encontra as Pirâmides, o Prisma e a
Pira. As Pirâmides representam a História de Parnaíba; o Prisma, retangular, cuja altura mede 10 metros sobre
o nível do calçamento, representa o futuro da cidade e o civismo. Em frente ao Monumento ficam três mastros
para o hasteamento das Bandeiras do Brasil, Piauí e Parnaíba, nas solenidades Cívicas. Ver: Praça Santo
Antônio: Centro Cívico Prefeito Lauro Correia, Parnaíba, PI. Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/biblioteca-catalogo.html?id=449063&view=detalhes. Acesso em: 17 jul. 2020.
264
669
Lauro Correia, em sua gestão, procurou estabelecer algumas questões de ordem simbólica para a cidade,
oficializar a celebração de datas e símbolos municipais. Nesse sentido, em livro cedido pelo próprio Lauro
Correia, com seus principais destaques durante seu mandato, aponta, que, em 1964, dentre essas questões
estavam a “instituição do dia da Parnaíba, a 14 de agosto, em virtude de haver sido sancionada a 14 de agosto
de 1844 a lei provincial nº 166 que elevou à categoria de cidade a então vila de São João da Parnaíba”. [...]
Oficialização do “Hino da Parnaíba”, de autoria do prefeito Ademar Neves e letra do poeta R. Petit” [...]
Institucionalização das Armas Municipais, correspondentes aos brasões de Simplício Dias da Silva, figura
exponencial da história parnaibana, no seu primeiro século”. Consta, ainda, a “oficialização da bandeira da
Parnaíba, escolhida por concurso”. Ainda a “Comemoração festiva e condigna, durante três dias, pela primeira
vez, do ‘Dia da Parnaíba’, observando um bem elaborado programa de festividades cívicas, religiosas,
esportivas e sociais”. CORREIA, Lauro. História administrativa de Parnaíba (subsídios) 1963-1966.
Parnaíba-PI, 1967.
670
Simplício Dias da Silva era filho do português Domingos Dias da Silva, que se estabeleceu na região no
século XVIII, explorando carne de charque. Próspero comerciante e escravocrata, Simplício nasceu em 1773 e
faleceu em 1829. Talvez Simplício Dias seja a figura mais controversa da história parnaibana. Sobretudo a
partir da segunda metade do século XX, em momento de crise e decadência econômica dessa cidade, as elites
parnaibanas começaram a amplificar um certo culto e idealização da figura de Simplício como “herói cívico”
da cidade, pela sua “bravura” nas lutas pela independência do Brasil. Talvez, toda essa narrativa mítica dessas
elites locais tenha o sentido de tentar projetar para si mesma a ideia de grandeza e progresso.
265
conflitos pela independência do Brasil, teria tido grande relevância em enfrentar as tropas
portuguesas, em “sinal de coragem e bravura”, típicos do “povo parnaibano”671. Simplício
seria então uma espécie de “herói cívico” da cidade a ser saudado, a partir de então, por todos
os citadinos. Em concurso aberto por Lei municipal, de nº 284, de 10 de março de 1964, o
prefeito Lauro Correia conclamava intelectuais da terra para escreverem aquilo que entendia
como uma “gloriosa história da cidade” 672 . Segundo ele, essa seria “expressiva e de
significado nacional”673.
Sob os auspícios do autoritarismo do regime militar, diferentes formas de
sustentação política encontraram respaldo também em medidas aparentemente incolores,
mas com amplo poder de persuasão e introjeção no imaginário político. Os usos políticos da
ideia de “grandeza da pátria”, de uma percepção identitária a ligar eventos do passado ao
presente, projetando uma linha em torno de mitos, heróis, emblemas, são mecanismos
importantes para justificar novos regimes políticos, mesmo que com viés antidemocrático674.
Um espaço como um Centro Cívico, a reunir munícipes nas principais festividades em torno
de uma ideia específica de nação, pode ser pensado também como uma forma de angariar a
671
Nas placas indicativas no Centro Cívico, destacam-se algumas daquelas que seriam as principais campanhas
defendidas pela sociedade Parnaíba desde o século XIX, como uma espécie de linha demarcatória das
“principais causas cívicas” de seus “filhos ilustres”. Dentre elas, destacam-se: a II Campanha da República
Confederação do Equador (1824), o sesquicentenário da cidade de Parnaíba (1844-1994) e a VIII Campanha
da integridade territorial do município (1962-1965). No momento da escrita desta tese, ocorreu um fato
inusitado envolvendo o Centro Cívico. O então prefeito de Parnaíba, Francisco de Assis de Moraes Souza
(2016-2020), do DEM, oriundo de família tradicional e apoiador do presidente Jair Bolsonaro, inaugurou, em
um dos pilares do Centro Cívico, uma placa com os seguintes dizeres: “Visitou Parnaíba, nessa data, o líder
ungido por Deus, Jair Messias Bolsonaro, presidente da República Federativa do Brasil, que livrou o Brasil do
comunismo e da corrupção”. A placa foi pichada por populares na mesma data em que foi inaugurada, sendo
então retirada do Centro Cívico para reforma e depois recolocada. Ver: CARVALHO, Arimatea. Homenagem
a Bolsonaro em Parnaíba é vandalizada e Mão Santa vai apurar. Meio Norte digital. Disponível em:
https://www.meionorte.com/blogs/primeiramao/homenagem-a-bolsonaro-em-parnaiba-e-vandalizada-e-mao-
santa-vai-apurar-345881. Acesso em: 16 ago. 2020.
672
De acordo com o próprio ex-prefeito, Lauro Correia, “os historiadores não apareceram e a lei municipal não
atingiu seu objetivo”. A partir disso, então, ainda de acordo com Correia, falando em terceira pessoa, “quando
da construção do Centro Cívico, o então prefeito escreveu um livro singular, em folhas de mármore, e o editou
no Altar da Pátria, na Catedral do Civismo, em faces de prismas triangulares, que evocam o passado da terra”.
Lauro Correia indicou então que “realmente, as Campanhas Cívicas, com as datas e os nomes de seus heroicos
participantes, se constituem em admirável síntese da história da cidade de Simplício Dias”. Ver: CORREIA,
Lauro. Prefácio. Em: PASSOS, Caio. Nossa capa. Cada rua, sua história. Parnaíba-PI, 1982, p. 05.
673
CORREIA, Lauro. 1982, p. 05.
674
Nesse ponto, é importante lembrar o trabalho pioneiro do historiador José Murilo de Carvalho, sobre a
construção simbólica de emblemas políticos no Brasil republicano. Ele destaca que “heróis são símbolos
poderosos, encarnações de ideias e aspirações, pontos de referência, fulcros de identificação coletiva. São, por
isso, instrumentos eficazes para atingir a cabeça e o coração dos cidadãos a serviço da legitimação de regimes
políticos. Não há regime que não promova o culto a seus heróis e não possua seu panteão cívico”. Ver:
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1990, p. 55.
266
675
Nesse ponto, Tatyane Maia destaca que “o civismo, ao incorporar o otimismo, organizou o aparato
discursivo e ideológico nacionalista-conservador em torno do projeto autoritário dos governos militares. O
civismo, neste caso, sobrepõe-se à cidadania moderna por desconsiderar a legitimidade dos interesses políticos
conflitantes existentes na sociedade; por limitar a capacidade de organização política coletiva; por aviltar a
liberdade de expressão e os direitos individuais em nome de supostos valores nacionais superiores”. A partir
das indicações da autora, compreende-se que, no período da ditadura, “as ideias-força de tradição, brasilidade,
mestiçagem, país continental, pluralidade cultural, associadas à leitura desenvolvimentista de um futuro
glorioso, capitalista e ocidental produzida pelo discurso otimista, foram incorporadas ao discurso cívico”. Para
isso ver: MAIA, Tatyana de Amaral. Civismo e cidadania num regime de exceção: as políticas de formação do
cidadão na ditadura civil-militar (1964 - 1985). Revista Tempo e Argumento, v. 5, n. 10, jul./dez. 2013.
676
Rodrigo Motta ainda aponta que, “a propósito, chama atenção a incapacidade da ditadura de tornar o dia 31
de março uma data cívica popular, comemorada fora dos quartéis, apesar de algumas tentativas fracassadas
nessa direção”. Ver: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A modernização autoritário-conservadora nas universidades e
a influência da cultura política. A ditadura que mudou o Brasil: 50 anos do golpe de 1964. Op. cit.
677
Interessante observar que essas práticas também foram perceptíveis em outras cidades piauienses, já nos
1970. Por exemplo, na cidade de Campo Maior, no centro-norte do Piauí, foi construído o monumento “Heróis
do Jenipapo”, inaugurado em 06 de novembro de 1973. As elites campo-maiorenses reivindicam então a
construção de um monumento em defesa do “civismo” e do “patriotismo” homenageando aqueles que lutaram
pela independência do Brasil. O governo Alberto Silva (nomeado por Médici) projetou o monumento na cidade,
no contexto nacional das comemorações no período em que a independência do Brasil completava 150 anos.
Para Maristela Rodrigues, “Alberto Silva direcionou as atenções das comemorações das festas e desfiles do 7
de setembro, dia da Independência do Brasil, para as lutas piauienses, mais especificamente, a Batalha do
Jenipapo”. Ver: RODRIGUES, Maristella Muniz. Entre comemorações cívicas e lutas pela construção da
memória: a política cultural do governo Alberto Silva. Dissertação (Mestrado em História do Brasil) –
Universidade Federal do Piauí, 2018.
267
678
GROPPO, Bruno. O mito da sociedade como vítima: as sociedades pós-ditaduras em face de seu passado
na Europa e na América Latina. IN: ROLLEMBERG, Denise e QUADRAT, Samanta Viz (Org). História e
memória das ditaduras do século XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015, p. 39-56.
679
GROPPO, op. cit. 2015, p. 42.
680
GROPPO, op. cit. 2015, p. 42.
268
681
GROPPO, op. cit. 2015, p. 42.
682
GROPPO, op. cit. 2015, p. 45.
269
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta tese, analisei o golpe de 1964, a partir dos seus desdobramentos no quadro
político norte-piauiense. Em particular, fiz um levantamento das medidas repressivas
adotadas nesse estado contra lideranças sindicais e políticas ligadas ao PTB, ao PCB e aos
movimentos sociais, após a ruptura institucional. A agenda política reformista, fortemente
ligada ao trabalhismo petebista, conquistou uma quantidade significativa de adeptos no final
dos anos 1950 e início dos anos 1960 no Piauí, sobretudo em Parnaíba, região norte do estado.
No contexto, foi possível averiguar a emergência de lideranças sindicais, oriundas das
classes populares, disputando eleições pelo PTB e conquistando cargos eletivos no
legislativo municipal e estadual. Além disso, essas forças sindicais lançavam-se como
agentes políticos a serem levados em consideração nas disputas político-partidárias.
Evidenciei, em um primeiro plano, o lugar que ocupou o trabalhismo piauiense
nas disputas político-partidárias, no contexto da experiência liberal democrática (1945-1964).
Analisando as disputas de poder, na cidade de Parnaíba, vislumbrei, então, um quadro
político marcado por tensões entre os grupos udenistas e trabalhistas. Tensões essas que, em
determinadas situações, descambavam para atos extralegais de uso da violência. A agenda
política trabalhista era, de início, mais vinculada à defesa de uma postura específica para o
trabalhador e, ao mesmo tempo, de exigência com relação ao cumprimento dos direitos
adquiridos recentemente para os mesmos. A partir do governo João Goulart, no início dos
anos 1960, as pautas políticas dos movimentos sociais piauienses passaram a ter uma
presença maior das bandeiras das reformas de base. Naquele momento, com uma maior
organização dos trabalhadores urbanos e rurais, evidentes desde os anos 1950, foi perceptível
uma maior projeção das atividades dos movimentos sociais e, como contrapartida, formas
de reação conservadora ao que se entendia como “subversão” e/ou “ameaça vermelha”.
Com o processo de radicalização política evidente no Brasil no início dos anos
1960, grande parte dos movimentos sociais reproduziu algumas das pautas do reformismo
trabalhista no Piauí. O tema da reforma agrária, naquele momento, ganhou certo destaque
no meio político local, tensionando reações por parte das elites agrárias e comerciais, em um
estado marcado por forte concentração fundiária. Parcela das elites locais, então, lançou mão
de argumentos anticomunistas, arraigados no imaginário político nacional, para deslegitimar
politicamente a atuação do governo Goulart e de seus apoiadores no quadro político
piauiense. Com a gradativa virada rumo à esquerda do governo Jango, em fins de 1963 e
início de 1964, as críticas ao reformismo se aprofundaram nos veículos de comunicação
270
como força política de projeção nacional, amparado pelo poder dos militares. Petrônio, a
meu ver, constitui um caso exemplar de como parcelas das elites políticas piauienses
buscaram, após o golpe de 1964, conciliar, aderir, se adaptar ao novo regime. Em uma prática
comum na cultura política nacional, essas elites – políticas, jurídicas e econômicas –
lançaram mão da tradição conciliadora, para se manterem no poder; no caso de Petrônio
Portella, também para projetar-se nacionalmente.
O trabalho, nesse sentido, procurou estabelecer uma leitura complexa sobre os
desdobramentos do golpe de 1964 no Piauí. A partir de uma fundamentação teórica e
bibliográfica que enfatiza a construção social de regimes autoritários e a produção de
memórias políticas, observei as nuances do golpe nesse espaço e a produção de sentidos
sobre o mesmo. Procurei, sobretudo, entender as práticas adotadas pelos agentes políticos
no Piauí, não por meio de uma visão binária e simplista, comum em abordagens tradicionais.
Mas evidenciei a presença de diferentes grupos civis piauienses no processo de reação
anticomunista ao governo João Goulart, bem como no que se refere à legitimação social do
golpe e da ditadura nesse estado. Mesmo grupos que apoiavam as bandeiras reformistas, ou
que eram ligados politicamente ao PTB, aderiram ao novo regime, após o golpe. Evitei,
assim, leituras e abordagens maniqueístas sobre tal contexto nesse estado. Compreendendo
também que, de certa forma, os processos de conciliação e acomodação, marcas da cultura
política brasileira, também poderiam ser observados no Piauí, em 1964.
Este trabalho, portanto, foi além das versões tradicionais sobre o contexto do
golpe de 1964 e das memórias apaziguadoras produzidas no espaço piauiense. Tentou
compreender, antes de tudo, as ambivalências presentes nas relações estabelecidas, por essa
sociedade, com o regime militar. Não me coube fazer julgamentos, mas lançar inquietações,
impertinências sobre memórias consagradas, bem como sobre esse quadro histórico ainda
pouco estudado no âmbito da historiografia local.
Percebi que, principalmente em Parnaíba, se forjou ao longo do tempo, por parte
de intelectuais, de agentes e lideranças políticas locais, uma memória que tentou projetar a
ideia de que a cidade, por conta de seu isolamento geográfico, teria passado distante dos
eventos ocorridos em 1964. Que nessa cidade não teria ocorrido organização sindical,
tampouco medidas repressivas naquele momento. E, além disso, que essa cidade teria
vivenciado um momento de prosperidade e tranquilidade nos anos após o golpe. Tais
narrativas, em um primeiro plano, tentaram silenciar as formas de organização dos
trabalhadores, nos anos 1950 e 1960. Procuraram silenciar, por outro lado, as diferentes
formas de sustentação que tal regime adquiriu no estado do Piauí, por parte de suas elites.
272
Bem como evidenciaram, de certa forma, como diferentes setores dessa sociedade
vivenciaram os anos do regime como beneficiárias de suas políticas econômicas.
Apropriei-me, ao longo do texto, mesmo que em alguns momentos sem
referências mais diretas, da noção teórico-conceitual da cultura política. Esse conceito em
particular foi importante, pois me permitiu observar as práticas políticas dos diferentes
grupos que atuaram no estado do Piauí, por meio de suas ambivalências. Penso aqui, nesse
conceito, enquanto um elemento essencial, no sentido de compreender as diferentes visões,
projetos, agendas, legendas partidárias que indivíduos, ou grupos de indivíduos, abraçam em
determinados contextos. Essa noção também me serviu para evidenciar as posturas,
posicionamentos, por vezes ambíguos, que determinados agentes políticos adotam e/ou
adotaram, em momentos de ruptura institucional. Permitiu-me, ainda, compreender que há
diferentes permanências, heranças, a respeito do anticomunismo e do conservadorismo
político, a imprimir sentidos sobre as práticas políticas no Piauí, no Brasil.
Foi pertinente esclarecer que é preciso fugir das generalizações, pois sempre,
mesmo em regimes de exceção, não existiam somente duas atitudes possíveis, (colaborar ou
resistir). Mesmo entre a classe empresarial ou no campo jurídico piauiense, por exemplo,
poderia ser possível encontrar aqueles que não se posicionaram favoráveis aos militares, ou
simplesmente se omitiram, preferindo silenciar. Assim como, no que se refere aos grupos de
trabalhadores e populares, é possível sugerir que houve apoio ao golpe por determinados
setores mais conservadores desses segmentos. Portanto, não se pode resumir a leitura de tal
evento dentro de visões simplistas. Para refletir sobre essa infinidade de posturas e posições
políticas, a produção intelectual de Pierre Laborie, hoje amplamente empregada por
historiadores do campo da política, enfatiza que, para muito além daqueles que eram
“colaboradores ou resistentes”, os indivíduos podem transitar pela camada que o autor chama
de “zona cinzenta”683. Ou seja, os espaços nos quais, na medida do possível, muitas pessoas
buscaram simplesmente dar seguimento às suas vidas, à parte das demandas por um
posicionamento político claro.
É preciso compreender a ditadura para além dos grandes centros urbanos, seus
desdobramentos, seus grupos de apoio e sustentação, também em médias e pequenas cidades.
É preciso, também, compreender que a ditadura vai muito além de um grupo de militares
que, por meio do uso da força, de medidas repressivas, apropria-se do poder, sem o
consentimento da população. Esta tese procurou compreender um ambiente muito mais
683
LABORIE, 2003.
273
complexo do que esse. Vislumbrei que os reflexos do golpe no Piauí, assim como em outros
espaços, foram, também, marcados pela capacidade das elites locais de adaptação aos signos
do novo regime. E, ainda, marcado por práticas de colaboração e de acomodação. Assim,
além de representar ruptura, o golpe pode ser pensado também enquanto continuidade.
Principalmente se observarmos o quadro de agentes civis que se mantém aferrados aos
espaços de poder nesse estado. Além disso, evidenciei o simbolismo presente em eventos
como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada nos meses posteriores ao
golpe, em Teresina e Parnaíba, demonstrando o entusiasmo de parcelas dessa sociedade à
intervenção militar. Assim como a construção de um espaço específico, o Centro Cívico Dr.
Lauro de Andrade Correia, em Parnaíba, para a celebração do “civismo” e “patriotismo”.
Esses últimos, diga-se, signos bastante utilizados pelos militares para legitimarem-se
socialmente.
Espero, por fim, que esse trabalho possa levantar discussões, insights para outros
temas e abordagens dentro do campo da História Política no Piauí e em outros estados.
Espero que esta tese, de repente, possa auxiliar, e quem sabe incentivar, outras pesquisas no
campo da História, sobre as especificidades que a ditadura adquiriu em estados ainda
marcados pela presença de famílias beneficiárias das políticas implantadas pelos militares
no poder, bem como por uma memória positiva sobre esses mesmos grupos apoiadores do
regime ditatorial. Espero que a tese contribua com futuras pesquisas, que essas possam
aprofundar a análise dos diferentes agentes e grupos que, identificando-se com o
autoritarismo dos militares, sustentaram a política econômica desse regime de exceção no
âmbito local, mas também em outros estados e cidades do Brasil.
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