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Artemis de Araujo Soares
Gisele Giandoni Wolkoff
Bruno de Oliveira Rodrigues
Erika da Silva Ramos
Ana Lucia Cavalcante dos Santos
Organizadores

Uma Amazônia transversal:


Cultura, Corpo, Educação e
Políticas Públicas

Obra financiada/incentivada pela

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Comitê Científico Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Aldair Oliveira de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (USP/EcA - São paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Roberta Ferreira Coelho de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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Artemis de Araujo Soares
Gisele Giandoni Wolkoff
Bruno de Oliveira Rodrigues
Erika da Silva Ramos
Ana Lucia Cavalcante dos Santos
Organizadores

Uma Amazônia transversal:


Cultura, Corpo, Educação e
Políticas Públicas

Embu das Artes / SP


2023

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz - Université de Versailles
Antônio Cattani - UFRGS
Alfredo Bosi - USP
Arminda Mourão Botelho - Ufam
Spartacus Astolfi - Ufam
Boaventura Sousa Santos - Universidade de Coimbra
Bernard Emery - Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira - UFC
Conceição Almeira - UFRN
Edgard de Assis Carvalho - PUC/SP
Gabriel Conh - USP
Gerusa Ferreira - PUC/SP
José Vicente Tavares - UFRGS
José Paulo Netto - UFRJ
Paulo Emílio - FGV/RJ
Élide Rugai Bastos - Unicamp
Renan Freitas Pinto - Ufam
Renato Ortiz - Unicamp
Rosa Ester Rossini - USP
Renato Tribuzy - Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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O Artista Inconfessável

Fazer o que seja é inútil.


Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificilmente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.

João Cabral de Melo Neto.


In A Educação pela pedra e depois, 1997.

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© by Alexa Cultural

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Klanger
Revisão Técnica
Artemis de Araujo Soares
Revisão da língua portuguesa
Marisa De Lucca
Edição e diagramação
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

F363 - SOARES, A. A. C838 - WOLKOFF, G.G. R345 - RODRIGUES, B. O.


C377 - RAMOS, E. S. C377 - CAVALCANTE DOS SANTOS, A. L.

Uma Amazônia transversal: Cultura, Corpo, Educação e Políticas Públi-


cas. Artemis de Araujo Soares, Gisele Giandoni Wolkoff, Bruno de Oli-
veira Rodrigues, Erika da Silva Ramos e Ana Lucia Cavalcante dos Santos
(orgs.). Alexa Cultural: São Paulo, SP; EDUA: Manaus,AM, 2023.

14x21cm - 278 páginas


ISBN - 978-85-5467-293-5

1. Sociologia - 2. Antropologia- 3. Cultura - 4. Educação - 5.Políticas


Públicas - 6. Amazônia - I. Índice - II Bibliografia

CDD - 301

Índices para catálogo sistemático:


Cultura
Educação
Políticas Públicas
Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610
É terminantemente proibida a reprodução parcial ou integral do conteúdo desta obra sem a
prévia autorização da autora e/ou editora.
Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do Amazonas
Rua Henrique Franchini, 256 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos,
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM
alexa@alexacultural.com.br Campus Universitário Senador Arthur Virgilio
alexacultural@terra.com.br Filho, Centro de Convivência – Setor Norte
www.alexacultural.com.br Fone: (92) 3305-4291 e 3305-4290
www.alexaloja.com E-mail: ufam.editora@gmail.com
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APRESENTAÇÃO

A Transculturalidade é um elemento transversal produzido


historicamente pela cultura e pela sociedade presente nas relações
entre os diversos grupos sociais. Sua finalidade, enquanto elemento
constitutivo do método de ensino, é capacitar o aluno para ver o
mundo na sua multidimensionalidade, é proporcionar o entendi-
mento do elemento comum a toda e qualquer cultura e que está
em qualquer trama interpessoal e relacional que constitui o cotidiano
social.
Não seria possível realizar esse entendimento sem um olhar
Transdisciplinar que possibilita reconhecer as diferenças e integrá-
-las em unidades que não se anulam, mas que ativam o seu potencial
criativo e útal da conexão entre diferentes agentes e entre seus respec-
tivos sujeitos (PADILHA, p.16).
Ser Transdisciplinar é antes de tudo ser transcultural, pois
vivenciar e refletir os diversos saberes são valorizar as diferentes
culturas; é realizar o exercício de conceber o todo sem perder as
particularidades e unir aquilo que está separado. É preciso aprender
a conhecer, a respeitar, a questionar, a analisar, sintetizar e princi-
palmenteproblematizar identificandoseu contexto para o exercício de
uma inteligência responsável.
A prática do questionamento permite ao aluno conceber sua
identidade cultural e enxergar tudo o que não pertence a ela, dá a
possibilidade de compreender que existem outras maneiras desaber,
depensar, de refletir e de ser. Uma mente que não questiona é uma
inteligência que só sabe separar e ver a complexidade do mundo em
fragmentos desconjuntados, fracionando os problemas e as diversi-
dades culturais.
Sendo assim, todo esse movimento e exercício buscam a
compreensão da condição humana, trata-se então de reconhecer-se
e entender a porção contraditória, a complementaridade, a sabedo-
ria presente no ser humano sapiens demens (MORIN, 2002), que
por meio das relações sociais que são regidas pelos fatores culturais
redimensionam o homem como homem e desta forma também
seus valores éticos que perpetuam pela sociedade.

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Este livro é resultado da sistematização de relatórios de pes-
quisas, de teses e dissertações do PPGSCA, de egressos e colabo-
radores da Universidade Federal do Amazonas, que dentre essas
pesquisas tem por objetivo compreender a transculturalidade na
formação do Pensamento Social Amazônico conforme é detalhado
no Capítulo I.
O capítulo II aborda as dificuldades da migração, indígenas
urbanos e o modo de vida Warao em sua antiga comunidade, além
da pesquisa de campo com entrevistas semiestruturadas realizadas
com cinco mulheres Warao que vivem em Manaus.
O capítulo III apresenta sobre a atividade da Ginástica para
todos a partir da aproximação do programa com o Grupo de Estudos
e Pesquisa em Ginástica.
O capítulo IV se propõe a desvelar o histórico da ginástica
para todos por meio das memórias e traços históricos dos profissio-
nais que atuaram no âmbito da ginástica em Manaus, antes mesmo
de ter a sua consolidação e nomenclatura estabelecida, utilizando a
cultura amazônica como pano de fundo em suas coreografias.
O capítulo V descreve sobre a colaboração do diálogo para
compreender a situação atual da educação envolvendo tanto o ensi-
no na língua Koripako quanto na língua nacional e como poderia se
efetivar a educação bilíngue para obter um bom resultado na apren-
dizagem sem desvalorizar a língua materna.
O capítulo VI visa divulgar os elementos culturais e políticos
no processo de luta para legalização do Quilombo de Itacoatiara-
-AM, destacando os processos históricos registrados, o artigo pro-
blematiza os processos de exclusão/inclusão pelos quais quilombolas
do Lago da Serpa foram submetidos.
No capítulo VII traz a importância de oferecer um trabalho
terapêutico por meio do diálogo entre a Dança e a Psicanálise, em
que se busca o reencontro com o ritmo do próprio corpo, o reconhe-
cimento de si, assim como a inclusão social dessas pessoas.
Já o capítulo VIII aborda a experiência de uma jovem uni-
versitária que apresenta baixa autoestima em relação ao seu corpo e
sexualidade.
O capítulo IX traz a importância de discutir o contexto histó-
rico relacionado a incorporação das TDICs no cenário educacional

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amazonense no âmbito da Seduc-Am, pontuando quais os seus pro-
jetos formativos mais recentes direcionados aos seus professores e
como essas ações têm chegado nesse público.
No capítulo X temos uma abordagem sobre o entendimento
da educação emancipadora a partir dos estudos e reflexões de Theo-
dor Adorno, identificando as principais críticas que o pensador ale-
mão faz à indústria cultural, à semiformação e à educação autoritária
que impedem a formação de sujeitos autônomos e críticos.
No capítulo XI os autores nos brindam com nada menos que
um tema instigante e pouco discutido. Abordam que o reconhe-
cimento de um Amazonas com identidades negras também se dá
por meio da luta dos remanescentes que resistem pela manutenção
das tradições afro-brasileiras e o respeito às terras de seus ancestrais,
territórios de relações interétnicas. As trajetórias de negros tanto no
período da escravatura como nos tempos do Pós-abolição mostram
que em distintos espaços do território amazonense a presença negra
contribuiu de diferentes formas para a história, cultura e identidade
das populações locais.
No capítulo XII é discutida e identificada as políticas de so-
ciabilidade dos espaços da cidade de Manaus, focalizando a memó-
ria afetiva e social do saneamento, desvelando a memória das águas
como patrimônio material e imaterial da cidade de Manaus, na valo-
rização da história incluindo as edificações num conjunto arquitetô-
nico de real valor sociocultural.
O capitulo XIII discute política quilombola e seu tratamento pelo
Estado brasileiro, apresentando uma reflexão sobre o contexto e dese-
nho do exercício desta política, principalmente pelo viés do orçamento
público e do impacto do Programa Titula Brasil na política quilombola
no Brasil
A presente coletânea vai nos apresentar um conjunto plural e
interdisciplinar de estudos, o que é marca da proposta do Programa
de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura, que é o ponto e gênese
dessa empreitada acadêmica, que levou a consolidação de uma obra
particularmente inédita e criativa de pensar a relação entre cultura,
sociedade, educação, corpo e políticas públicas, além de outros ele-
mentos que se fazem atravessar nos textos.
Por derradeiro vale agradecer a FAPÈAM pela oportunidade
de financiamento da presente obra e ao Programa de Pós-Graduação

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em Sociedade e Cultura da Amazônia, que através de projeto de pu-
blicação POSGRAD, disponibilizou edital para o fomento de obras
interdisciplinares como a que aqui apresentamos ao leitor.

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SUMÁRIO

Apresentação
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1. A Transculturalidade e o Pensamento Social Amazônico


Paula Mirana de Sousa Ramos e Tereza de Sousa Ramos
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2. Resistir para existir: as dificuldades e superações no modo de


viver da mulher da etnia indígena venezuelana Warao em Manaus
Rosa Patrícia Viana Pinto Farias e Artemis de Araújo Soares
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3. Ginástica para Todos no Amazonas: contribuição do Programa


de dança, atividades circenses e ginástica
Lionela da Silva Corrêa e Michele Viviene Carbinatto
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4. Releitura da cultura amazônica: traços da ginástica para todos –


GPT em Manaus a partir de 1970
Meriane Teixeira de Matos e Artemis de Araújo Soares
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5. A Educação Bilíngue: a realidade de ensino na língua indígena e


português nas escolas indígenas do povo Koripako
Esly Camico
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6. Quilombo de Itacoatiara: memória e luta


Heloisa Helena Corrêa da Silva e Cynthia Maria Bindá Leite
- 97 -

7. Dança, psicologia e autismo: quando um projeto de extensão dá certo!


Érika da Silva Ramos, Rosangela Miranda Aufiero, Ana Carolina Peixoto Mou-
rão, Rebeka Cristina Gomes Vieira, Natasha Rodrigues Cavalcante
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8. O corpo em cena na clínica psicológica: análise socioantropológica
de um caso a partir de um atendimento no
Espaço de Atendimento Psicossocial (EPSICO).
André Luiz Machado das Neves, Erica, Vidal Rotondano, Érika da Silva Ramos,
Gizelly de Carvalho Martins, Munique Therense, Socorro de Fátima Moraes Nina
- 133 -

9. As escolas do Amazonas e a integração das tecnologias digitais:


das ações e dos desafios para a formação.
Amanda Ramos Mustafa
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10. O referencial curricular amazonense do Ensino Médio à luz da


educação emancipadora
Pedro Rodolfo Fernandes da Silva, Gabriele Vaz da Costa
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11. “Um pingo de café num jarro de leite”


Negros e relações étnico-raciais no Amazonas.
Jésssica Dayse e Matos Gomes; Renilda Aparecida Costa
- 187 -

12. Patrimônio material e imaterial:


Os lugares de memória do Saneamento.
Ghislaine Raposo Bacelar; Artemis de Araújo Soares
- 209 -

13. E a titulaçao dos quilombolas como fica?


O orçamento quilombola e “necropotência” do “Programa Titula Brasil”
Bruno de Oliveira Rodrigues
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Sobre os(as) autores(as)


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A Transculturalidade e o Pensamento Social
Amazônico

Paula Mirana de Sousa Ramos1


Tereza de Sousa Ramos2

Resumo
Ao fazer um inventário da gênese do Pensamento Social Amazônico, encon-
tra-se diversos matizes ideológicos, sociológicos e filosóficos sobre uma ideia
de Amazônia. Desde os relatos dos primeiros viajantes, passando por ensaístas,
escritores, entre outros, os primeiros intérpretes do pensamento social auxilia-
ram na construção de uma identidade cultural da região. Esta pesquisa tem por
objetivo compreender a transculturalidade na formação do Pensamento Social
Amazônico. Através de um levantamento bibliográfico verificou-se um extenso
número de produções que se dedicam a compreender a formação deste pensa-
mento social e as conexões entre as ideias locais e globais.
Palavras-chave: Pensamento Social, Transculturalidade, Amazônia.

Introdução

O debate sobre a Amazônia e o modo pelo qual a região foi


sendo inscrita ao longo do tempo na tradição do pensamento oci-
dental e brasileiro ganham importância, principalmente quando nos
debruçamos sobre os primeiros interpretes da região.
Tais relatos, crônicas, ensaios entre outros, nos ajudam a com-
preender a forma como se cristalizaram categorias sobre a Amazô-
nia, inseridas no contexto de transformações sociais, econômicas,
políticas e culturais que ocorriam no Brasil e no mundo.
Neste sentido, a identificação da cultura amazônica tornou-se
um elemento em comum na obra dos primeiros interpretes da região.
Ao compreender a cultura de forma multicafetada dentro do inventá-
rio do pensamento social amazônico, nos debruçamos com diferentes
olhares sobre a construção da identidade cultural da Amazônia.
Este trabalho se divide em duas sessões, a primeira intitulada O
Pensamento Social na Amazônia, buscou-se apresentar a importância
de inventariar os primeiros interpretes da região e a importância de
1 Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM). É pesquisadora sênior do Labora-
tório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal- LEGAL. Email: pmsr20@yahoo.com.br
2 Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM). É professora da Faculdade do Ama-
zonas de Ensino, Pesquisa e Inovação (FAMEPI). Email: tsr22t@yahoo.com.br

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suas produções para a formação do pensamento social brasileiro.
Na segunda sessão intitulada Trasnculturalidade e o Pensa-
mento Social Amazônico, buscou compreender o papel destes traba-
lhos dentro de uma abordagem transcultural, compreendendo que
as primeiras ideias sobre a Amazônia eram fortemente marcadas
pelo olhar de fora, sem muitas vezes levar em consideração a cultura
dos povos originários e suas experiências milenares.

O Pensamento Social na Amazônia


Ao se fazer uma reflexão sobre a região Amazônica é possível,
também, produzir uma compreensão sobre os posicionamentos po-
líticos e os caminhos assumidos pela intervenção política, tomados
por uma intelligentsia durante uma determinada época.
Neste sentido, além da importância de focar a atenção para
o posicionamento social e político desses intelectuais, é mister
compreender os matizes ideológicos e sociológicos que nortearam
as obras e seus posicionamentos, onde não só os autores, mas suas
ideias são importantes para uma compreensão do Pensamento So-
cial Amazônico. A partir de uma análise da história das ideias e do
itinerário intelectual desses autores, é possível recuperar suas rela-
ções mais amplas com os pensadores da região e do país.
Segundo Élide Rugai Bastos (2007), a história das ideias ser-
ve como uma importante ferramenta para a compreensão adequada
do entendimento de uma obra. A análise da institucionalização, das
relações entre produtores intelectuais, a legitimação do campo, são
ferramentas indispensáveis para quem se dedica a fazer uma análise
sobre a formação do Pensamento Social na Amazônia. Todavia, fazer
uma análise a partir da relação das ideias que norteiam possibilita
uma compreensão mais ampla sobre esse processo.
Ao limitar o estudo de uma obra a sua relação com o contex-
to religioso, político e econômico, ou analisar uma obra a partir da
própria autonomia desta obra é possível encontrar limitações nessas
duas metodologias, que comprometem sua amplitude para a forma-
ção do pensamento social.
A partir das restrições apresentadas em relação as duas meto-
dologias, buscando superar seus limites, passa a uma proposta
que busca abordar a história intelectual de um modo simultanea-

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mente intertextualista e contextualista. Mostra que existem inú-
meras coisas importantes a serem computadas, além do próprio
texto para que de fato se alcance sua compreensão. Esse enten-
dimento compreende as motivações das ideias, sua referência
imediata ou mediata, e o modo pelo qual os autores aceitam ou
rejeitam outras argumentações (BASTOS, 2007, p. 3).

Nos anos de 1930, a ideia central que norteava as obras dos


autores brasileiros era o papel da elite pensante no processo de mu-
dança social, esse ideário ligado ao pensamento político do Estado
Novo, quando caberia às elites a função de reconstrução nacional,
pois cumpririam a tarefa de solucionar uma dicotomia entre o Brasil
real e o Brasil legal, pois detinham, acima de tudo, um saber social-
mente valorizado, visto que os intelectuais brasileiros da década de
1930 reivindicavam uma ciência do social; esta era, sem dúvida, uma
estratégia para se fazer ouvir pelos detentores do poder na medida
em que só acreditavam em uma administração fundamentada na
ciência dos homens e da natureza.
Assim o conhecimento das condições reais do Brasil evitaria o
uso de “diagnósticos pré-estabelecidos”, ideias “vindas de fora”, pois
essas ideias importadas falseariam a realidade, daí a necessidade de
retorno às raízes. Neste contexto, os intelectuais seriam os únicos
capazes de perceber de modo direto as aspirações do povo brasileiro
(BASTOS, 2007).
Para Élide Rugai Bastos (2007), o pensamento social se consti-
tui como força social que, ao lado de outras forças, atua na definição
dos caminhos dos grupos sociais. Ou seja, as ideias se constituem em
fator, expressão e reflexo do destino de uma sociedade. Desta forma,
surge a necessidade de indagar sobre o efeito político do pensamen-
to dos diferentes pensadores do Brasil no momento proposto e sua
repercussão a médio e longo prazo, na medida que o mesmo seja
instrumentalizado institucionalmente e acabe por se constituir em
elemento importante da cultura política do país.
Para se refletir sobre as ideias de um autor é necessário resti-
tuí-las ao seu tempo, reconstituindo o contexto intelectual, político
e social no qual se insere. Deste modo, torna-se também importante
indagar como essas ideias se inserem no quadro mais amplo da refle-
xão sobre o pensamento social brasileiro e, para o situarmos, mesmo
como um autor menor, nesta constelação de pensadores do Brasil

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torna-se necessário recorrermos a um inventário destas produções.
Um dos pontos centrais na tradição do pensamento social
brasileiro é apontado por Bastos (2007), como a especificidade da re-
flexão intelectual em um país atrasado. Por este motivo, a questão da
articulação entre os elementos tradicionais e modernos e os impas-
ses, encaminhamentos e a busca de soluções para o atraso nacional,
serem os temas recorrentes no pensamento nacional são apontados
nesses autores como problemática central de suas interpretações so-
bre a cultura e a sociedade que se desenvolveu na região Norte do
país.
A partir da década de 1950, os diagnósticos ajudaram nas mu-
danças em curso. O Brasil deste período vivenciava o processo do
desenvolvimento econômico fundamentado na lógica global, o que
muito estimulou os intelectuais brasileiros a refletirem sobre a nação.
Por isso, a temática mais comum entre os pensadores sociais deste
período esteve relacionada à questão dos impasses, encaminhamen-
tos e buscas de soluções para o chamado atraso nacional.
Assim, a necessidade de se estudar a gênese do pensamento
social no Brasil e na Amazônia, por meio de uma releitura das obras
e discursos de autores deste período, se dá no sentido de se obter o
esclarecimento do próprio pensamento social atual. Torna-se impor-
tante, portanto, resgatar as discussões em torno da compreensão dos
processos e das estruturas que articularam a região amazônica com
o restante do Brasil e com o mundo. Segundo Ernesto Renan Freitas
Pinto (2007), para tal propósito era necessário apreender o Pensa-
mento Social em suas diferentes formas, tanto as sistematizadas pe-
las Ciências Sociais como nas inquietações intelectuais de homens
públicos, ensaístas, cronistas, políticos, entre outros.
Embora haja diferentes posições entre os intelectuais, um as-
pecto comum em relação à intelectualidade brasileira está relacio-
nado à questão dos impasses, busca de soluções para o chamado
atraso nacional e às desigualdades que marcam sua heterogeneidade
espacial e sociocultural. Deste modo, a articulação entre elementos
tradicionais e modernos, símbolos do progresso ou do retrocesso da
sociedade brasileira, são temas recorrentes no pensamento de vários
estudiosos da nação (BASTOS, 2007).
Neste contexto, Ernesto Renan Freitas Pinto (2008) destaca

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que a Amazônia tem aparecido como território de excelência deste
universo de “contrastes e confrontos”, pois sempre esteve no interior
dos principais movimentos pela implantação do projeto de Estado-
-Nação. No entanto, sua inserção também foi marcada pela insatis-
fação incompleta e tangencial devido às peculiaridades desta região,
o que despertou o interesse de um grande número de autores que
contribuíram para a formação de um pensamento sobre o homem
amazônico e a sua relação com a natureza, dando, assim, as bases
para a formação de um pensamento social na Amazônia, que estuda
os modos como os homens enfrentaram os problemas, os desafios e
as questões que moldaram as instituições, as representações, a cultu-
ra, os valores e o modo de vida peculiar na Amazônia.
Ao longo dos anos, a Amazônia acumulou um considerável
acervo de conhecimentos sobre a relação homem e natureza na re-
gião. No entanto, o conhecimento adquirido ainda é fragmentado e
incompleto. Neste sentido, a reconstrução deste pensamento social
torna-se tarefa relevante, pois vai além de compreender os movi-
mentos de seleção, elaboração e interpretação de dados e dos objetos
que se transformaram nas diferentes representações do universo so-
cial da Amazônia, mas também restabelece a possibilidade de uma
“história das ideias” e de uma sociologia dos intelectuais.
Neste cenário, a retomada do pensamento surge como uma
forma de recuperarmos uma interpretação histórica, social e eco-
lógica da região, a qual lança a Amazônia em suas bases culturais,
econômicas, sociais e políticas.
Ao se inventariar os autores e as ideias que contribuíram para
a formação do Pensamento Social da Amazônia que são anteceden-
tes aos estudos das pós-graduações em Ciências Sociais, deve-se
fazer um resgate dos relatos e narrativas que privilegiam as visões,
interpretações e até a preocupação sobre a região que se liga de ma-
neira integrada a vida natural e social.

As pesquisas acerca de ideias precursoras e seus mecanismos


de difusão permitem apreender dimensões explicativas e com-
preensivas da natureza e das sociedades amazônicas no ambien-
te acadêmico em inúmeros aspectos. Um deles é a capacidade
com a qual os grupos de pesquisa podem ser capazes de se re-
produzir em novos grupos do pensamento social brasileiro onde
as particularidades regionais do Brasil estão inseridas. Outro diz

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respeito à busca da especificidade sobre abordagens precursoras
da Amazônia, com nexo sobre a história das ideias em campos
disciplinares presentes. E ainda aspecto não menos importante,
é aquele que organiza a ação da pesquisa propriamente dita, me
função de recortes temáticos prescritos pelas e para as grandes
áreas do conhecimento da pesquisa científica ordenados pelas
agências de fomento (FREITAS PINTO, 2007, p. 28).

O processo de resgate pode ser entendido como uma recupe-


ração da infância desse pensamento social no Brasil, que serve para
esclarecer as realidades contemporâneas. Esse levantamento auxilia,
também, na identificação das ideias de várias áreas do conhecimen-
to, possibilitando a redefinição do contexto explicativo em suas mais
diversas formas de manifestações na vida social: as instituições de
sobrevivência, suas relações internas e externas, as manifestações da
inteligência, e as imagens do poder.
Neste sentido, é possível relacionar a formação do pensamen-
to social aos autores que privilegiam a literatura, auxiliando no revi-
goramento das abordagens intersubjetivas da teoria sociológica, que
criam e recriam relações entre as estruturas do pensamento e a ação
de indivíduos e coletividades por meio da análise e críticas da in-
tertextualidade e uma significação da psicologia dos fatos culturais.
Esses estudos sobre as releituras auxiliariam ao admitir-se que
essas narrativas, frente à relação com a intelectualidade pré-moder-
nista, aproximam a relação da literatura e da sociedade sob a ótica
dos fatores explicativos e compreensivos de estratégias identitárias,
ou seja, a partir desta perspectiva é possível estudar esses autores
como verdadeiros interpretes da região amazônica.
Segundo Miceli (1999), no entanto, o risco de ancorar uma
análise pautada apenas no itinerário das ideias, pode limitar a inter-
pretação uma vez que o leitor não tem acesso às fontes primárias a
respeito do próprio autor, a posição da obra na conjuntura intelec-
tual e política na qual as ideias foram tomando corpo, das condições
de sua recepção nos círculos da intelectualidade e da política.
Todavia, é necessário fazer um trabalho de relação entre a
obra e o contexto social do autor, tampouco deve ser esquecido o
tratamento específico da elaboração de uma obra literária. Segundo
Freitas Pinto a obra deve ser analisada:

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Texto, vírgula, autor, suas referências sociais e intelectuais, gru-
pos de pertinência de classe e status tem grande importância
analítica quando o sentido que lhe é conferido é integrado ao
todo da obra em sua coerência interna, sem desprezo ao impacto
sobre os leitores (2007, p. 30).

Essas interpretações vêm crescendo e tornando-se considera-


velmente mais complexas nos últimos anos, misturadas aos intensos
processos de mudanças no cenário nacional e a própria pluralidade
do pensamento brasileiro em vários sentidos e direções. O pensa-
mento social no Brasil já atingiu um amadurecimento intelectual
significativo, pois já mapeou, parte dos mais importantes debates
sociológicos do século XX. E também vem desenvolvendo um esfor-
ço no sentido de examinar de forma mais sistemática o pensamento
social do século XIX.
Em torno destas interpretações há a presença constante dos
seus intelectuais, marcando a vida política e cultural brasileira e sen-
do examinados por meio de suas trajetórias individuais, tradições
intelectuais e “linhagens” ou filiações teóricas. Para Freitas (2007), a
busca e a releitura dessas interpretações se assentam na responsabili-
dade de responder aos desafios postos à sociedade e a estes intérpre-
tes, constituindo as conexões decisivas entre as esferas internas do
pensamento sociológico e seu modo de intervenção na organização
e desenvolvimento da sociedade e da política brasileira.
A interpretação dessas reflexões pelo pensamento social tor-
na-se relevante, pois com relação à participação das ideias destes
intelectuais na formação da política de desenvolvimento nacional e
na participação na política externa. Gildo Marçal Brandão afirma,
em Linhagens do Pensamento Político Brasileiro (2007), que para
se fazer a construção de uma história do Pensamento Político faz-
-se necessário ao mesmo tempo desenvolver uma análise política,
a qual não se cumpre sem o exame de sua inscrição social. Ou seja,
pensar a política nacional implica pensar o pensar a política, devido
esta ser uma intervenção nos processos sociais, voltada para buscar
dar-lhe uma direção, na medida em que lhes dá um sentido e uma
significação.
Neste sentido, o autor continua afirmando que as ideias a se-
rem redescritas e combinadas em modelos, conjuntos conceituais ou

- 21 -
paradigmas, aparecem graças ao condão de seu enfoque, encarnadas
em processos históricos, materializando os programas que elas con-
cebem e cultivam para cativar e dirigir os programas cuja direção
elas postulam e disputam. Nesse processo, surgem em muitos auto-
res, e em várias obras relevantes pressupostos e análises imbricados,
que se sobrepõem e entrecortam-se em perspectivas e projetos de
ação, compondo constelações bastantes menos dicotômicas e extre-
madas, permitindo a presença de metamorfoses e hibridismos e a
conjugação de continuidades e rupturas.
No processo de releitura destas interpretações do Brasil en-
contra-se, portanto, uma vasta gama de posições que se completam,
se opõe, dialogam e entram em confronto trazendo riqueza ao deba-
te e a reflexão das ideias sobre o país. Sob este aspecto, há também
a oportunidade de identificar o conhecimento sobre as composições
regionais e locais em que o pensamento se anuncia e se diferencia,
é neste cenário onde situa-se o pensamento brasileiro sobre a Ama-
zônia.
Renan Freitas Pinto afirma em sua obra Viagem das Ideias
(2008), que o pensamento social tem se debatido constantemente
com a questão regional, ou seja, com a questão das diferenças e desi-
gualdades que marcam sua heterogeneidade espacial e sociocultural.
E nesse panorama, a Amazônia tem aparecido como o território por
excelência deste universo de “contrastes e confrontos”, isso porque tal
região sempre esteve presente no interior dos principais movimentos
e processos conformadores do projeto de Estado-Nação, como o mo-
vimento pela independência política, o abolicionismo, a integração
de nossas fronteiras ao mercado mundial, a modernidade, a integra-
ção nacional, o movimento modernista entre outros.
Os pensadores que contribuíram para a formação de um
pensamento social sobre a Amazônia podem ser identificados nas
diversas matrizes do pensamento filosófico e social. Estes são tanto
autores de âmbito universal quanto autores locais que se propuseram
a estudar a região e a relação entre o homem, a natureza amazônica
e a própria relação entre a região e o país. Para Pinto (2008), a com-
preensão desse pensamento é a chave não apenas para se perceber
como se processou o padrão de desenvolvimento em desvantagem
no Brasil, ou seja, como se produziu e como continua se produzindo
o subdesenvolvimento não apenas econômico, mas sobretudo o atra-

- 22 -
so cultural relativo, que atravessa o espaço configurado como região
amazônica. Desta forma, vê-se que a presença do pensamento regio-
nal fortalece o sentido real da existência de um pensamento nacio-
nal, pois reafirma as conexões entre a nação e suas regiões culturais.
No estudo do pensamento brasileiro sobre a Amazônia é pos-
sível desenvolver uma análise histórica das ideias e do itinerário
intelectual dos autores e ainda recuperar suas relações mais amplas
com o pensamento do país. Para Marilene Correa da Silva Freitas
(2007), no pensamento social sobre a Amazônia as tradições são re-
presentadas pela importância que autores e suas ideias repercutem
nas sociedades amazônicas, na formação de novos intelectuais e na
necessidade de se investigar sobre o poder emanado dessas interpre-
tações na ação política de indivíduos e grupos em seus processos de
auto reconhecimento nacional e regional.
Portanto, o ato de reconstruir o pensamento desses autores
que interpretaram a Amazônia e o Brasil é, para Freitas (2007), re-
cuperar a infância do pensamento nacional, pois, o ato de ampliar as
percepções originais desses registros e identificar uma relação de fi-
liação no campo das ciências sociais dá sentido a um processo de re-
cuperação e de iniciação ao artesanato de tradições intelectuais que
deram vigência às exigências de explicação da sociedade brasileira e
da história de sua capacidade de analisar-se a si própria.
Sob este contexto, vale ressaltar que a sistematização desses
estudos sobre os intérpretes do Brasil, ou seja, o desenvolvimento do
Pensamento Social brasileiro, vem acompanhando a própria insti-
tucionalização das ciências sociais no país, por isso é muito recente.
Começou com o surgimento da disciplina de Pensamento Social nas
áreas de ciências sociais e na história. Sendo em princípio um es-
forço isolado de pesquisadores se rotinizando somente a partir da
formação do grupo do Pensamento social da Anpocs nos anos de
1980. Como disciplina reforçou-se na sociologia e na ciência política
e agora começa a se espraiar para as Relações Internacionais.
Os temas abordados pelos intérpretes do Brasil, sejam por
meio de suas obras ou trajetórias que revelam os processos e as con-
dições não democráticas do país e as inquietações por modernizá-lo
e assim superar a condição periférica, são analisados por meio da
avaliação dos alcances, limites e efeitos dos debates que insere a re-
flexão brasileira no cenário internacional.

- 23 -
A Transculturalidade e o Pensamento Social

A perspectiva unidimensional da cultura não possibilita uma


dimensão mais ampla e profunda sobre as práticas culturais, todavia
muitos estudos sobre a cultura partem dessa visão. No entanto, um
olhar sobre a cultura a partir de um olhar multifacetado contribui
para no ajuda a compreender de forma mais ampla em seus vários
aspectos, a formação do pensamento social na Amazônia feita por
diferentes atores nos revela esse processo seja pelo olhar dos cronis-
tas sobre a flora e fauna da região seja por um poeta e suas visões de
mundo refletidas em sua obra.
Partido da ideia de Taylor (1871, p.31) que cultura é “aque-
le todo complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a
moral, o direito, os costumes, e qualquer outro hábito e capacidade
adquirida do homem”. Faz-se necessário compreender toda a diver-
sidade e a forma de compreendê-la na produção dos primeiros in-
terpretes do pensamento social amazônico. A partir da compreensão
da: multiculturalidade, transculturalidade e interculturalidade.
A multiculturalidade refere-se um conjunto de culturas em
contato, mas sem se misturar, ou seja, as várias culturas são postas
no mesmo patamar. As diferenças ficam estanques e separadas em
cada cultura, possibilitando pensar no que os antropólogos chamam
a lógica do Um, que só tem uma verdade a seguir e uma forma de
pensar o mundo (WEISSMANN, 2018).
A transculturalidade refere-se as pesquisas realizadas em di-
ferentes culturas sobre um mesmo tema, no sentido de identificar as
semelhanças e diferenças da questão pesquisada em relação a cada
cultura. Os estudos transculturais também apresentam a transdici-
plinaridade como uma forma de compreender a complexidade das
diferentes representações culturais.
A interculturalidade deve ser pensada fora da lógica do Um
e nos situar na lógica multívoca, a qual pressupõe multiplicidade e
devir, onde não podem ser feitas totalizações. Essa multiplicidade
acarreta sempre diferença e se conforma dentro da heterogeneidade
e suas combinações imprevisíveis (WEISSMANN, 2018).

- 24 -
a interculturalidade remete à confrontação e entrelaçamen-
tos, porque se trata de grupos entrando em relacionamento e
intercâmbio, entre os quais a diferença estabelece relações de
negociação, conflito e empréstimo recíproco, respeitando as
disparidades. Esse movimento se deve à desestabilização das
ordens nacionais e étnicas geradas pela nova interdependência
que a globalização suscita. As fronteiras ideológicas e culturais
se desvanecem e incrementam a junção de culturas com um de-
senho particular. Nas conexões, presta-se atenção às misturas e
aos mal-entendidos que circulam nos grupos, para tentar com-
preender como cada grupo se apropria e reinterpreta os produtos
simbólicos alheios. A interculturalidade nos permite tornar mais
complexas as situações, dentre as quais as teorias da diferença
têm que se articular com as concepções da interculturalidade,
entendendo interação como desigual, conexão/desconexão, in-
clusão/exclusão (WEISSMANN, 2018. p. 27).

Os estudos sobre os fundadores do pensamento social na


Amazônia nos ajudam a lançar as bases culturais, econômicas, so-
ciais e políticas sobre a região, na medida em que contribuíram para
a formação da identidade cultural da Amazônia. Neste sentido, pers-
pectiva transcultural auxilia no processo de situar esses estudos uma
vez que as primeiras ideias sobre a Amazônia eram fortemente mar-
cadas pelo olhar de fora, sem muitas vezes levar em consideração a
cultura dos povos originários e suas experiências milenares.

Conclusão

A cultura amazônica é marcada pela diversidade e a complexi-


dade, com diferentes condições de vida locais, de saberes, de valores,
de práticas sociais, bem como de uma variedade de sujeitos: campo-
neses (ribeirinhos, pescadores, índios, remanescentes de quilombos,
assentados, atingidos por barragens, entre outros) e citadinos (popu-
lações urbanas e periféricas das cidades da Amazônia) de diferentes
matrizes étnicas e religiosas, com diversos valores e modos de vida,
em interação com a biodiversidade dos ecossistemas aquáticos e ter-
restres da Amazônia.
Neste complexo sistema, os primeiros interpretes da Amazô-
nia imprimem um olhar que ajuda a compreender o imbricado sis-
tema que se constituem entre essa estreita relação entre o homem e

- 25 -
o seu meio natural ao mesmo tempo que inserem a região dentro da
lógica de desenvolvimento do capitalismo global.
Referências

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BRANDÃO, G. M. Linhagens do pensamento político brasileiro.
HUCITEC. São Paulo. 2007.
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WEISSMANN, Lizette. Multiculturalidade, Transculturalidade, In-
terculturalidade. In: Revista Construção PsicoPedagógica, n. 26. V.
27. 2018.

- 26 -
RESISTIR PARA EXISTIR:
As dificuldades e superações no modo de viver da
mulher da etnia indígena venezuelana Warao em
Manaus

Rosa Patrícia Viana Pinto Farias3


Artemis de Araújo Soares4

Resumo:
Este artigo versa sobre as mudanças ocorridas nas condições de vida da mulher
da etnia indígena venezuelana Warao - oriunda da região do delta do rio Ori-
noco, no nordeste venezuelano - em seus processos de migração interna (na
Venezuela) e externo (no Brasil), de modo específico em Manaus, Amazonas,
região Norte do Brasil. Em solo manauara, essa etnia vive em duas realidades:
nos abrigos mantidos pelo poder público ou fora destes, de forma autônoma,
nos bairros periféricos da capital amazonense (sendo este último grupo o foco
do presente artigo). A metodologia constituiu-se de revisão bibliográfica sobre
migração, indígenas urbanos e o modo de vida Warao em sua antiga comuni-
dade, além da pesquisa de campo com entrevistas semiestruturadas realizadas
com cinco mulheres Warao que vivem em Manaus. Observou-se que a adapta-
ção foi necessária para a sobrevivência do grupo e para a continuação da cultura
material e imaterial dessa etnia.
Palavras-chave: Indígenas; Migração; Mulher; Warao; Manaus.

Introdução
A etnia indígena Warao habita tradicionalmente o delta do rio
Orinoco, no nordeste da Venezuela e ocupa uma área extensa que se
estende, além da foz deste rio, pelo nordeste do estado de Monagas,
sudeste de Sucre, nordeste de Bolívar e região sudeste do estado do
Delta Amacuro, cruzando a sudeste os limites com a República da
Guiana (GARCÍA-CASTRO, 2000).
O Delta é uma região onde se misturam águas salgada e doce,
possuindo um ecossistema rico e produtivo para o povo que vivia
da caça, da pesca e coleta de produtos da floresta. O termo Warao
3 Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. Pro-
fessora da rede pública estadual de Manaus. E-mail: rosa.patricia.farias@gmail.com
4 Doutora em Ciências do Desporto – Universidade do Porto, Portugal. Professora Titular da
Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
E-mail: artemissoares@gmail.com

- 27 -
traduz-se como “povo do barco”, após a conexão íntima ao longo da
vida dos Warao com a água. São pescadores e coletores, tornando-se
também horticultores há pouco mais de 70 anos, cujas comunidades
palafitas e atividades de subsistência se situam tradicionalmente nas
zonas ribeirinhas (fluvial/marítimas) e úmidas, tais como os pânta-
nos, os mangues e as partes inundadas do Delta (ibidem).
Na década de 1960, suas terras sofreram intervenções gover-
namentais que os obrigaram a abandonar seu território. Inicialmen-
te, saíram de seu isolamento e tentaram ganhar a vida nos centros
urbanos da Venezuela, como Caracas, Tucupita, Barrancas e La Hor-
queta. (IBIDEM). Outros fatores contribuíram para o abandono total
de suas terras rumo aos centros urbanos - fome, doenças, instalação
de empresas de caráter exploratório, desemprego (ACNUR, 2021).
A crise política, econômica e social agravada pelos governos
de Hugo Chávez (de 1999 a 2013) e Nicolás Maduro (2013 até hoje),
motivou a saída em massa de cidadãos, incluindo centenas de Wa-
rao. A proximidade geográfica e a relativa facilidade em cruzar a
fronteira com o país vizinho impulsionou milhares de venezuelanos
a tentar a sorte em terras brasileiras. O primeiro estado a receber
uma grande quantidade de membros dessa etnia foi Roraima (estado
brasileiro que faz fronteira com a Venezuela), em 2014. Após algum
tempo, muitos desses indivíduos decidiram continuar sua peregrina-
ção até Manaus, chegando à capital amazonense em grande quanti-
dade a partir de dezembro de 2016 (BRASIL, 2017).
Uma vez em solo manauara, esses indivíduos habitaram o en-
torno da rodoviária municipal (na zona Centro-Oeste) por onde che-
gavam e em seguida, passaram a viver embaixo do Viaduto de Flores,
em frente à rodoviária. Após alguns meses, os poderes públicos os
realocaram em abrigos, nos quais muitos indivíduos permanecem
até os dias atuais. Porém, há um grande número de Warao vivendo
fora desses abrigos, de forma autônoma, principalmente em bairros
periféricos de Manaus. O papel da mulher, imersa em um processo
migratório covarde, brutal e indesejado, foi desafiador e fundamen-
tal para a sobrevivência material e imaterial de sua cultura.

- 28 -
Desenvolvimento

A mulher Warao na comunidade Deltana


Lafée e Wilbert (2001) destacam a importância da mulher
Warao em sua comunidade ao constatar que a mulher é o eixo cen-
tral ao redor do qual gira a sociedade Warao. E de fato, nos âmbitos
cosmológico, religioso e cotidiano as mulheres recebem atenção e
respeito formidáveis. De acordo com sua cosmovisão, atribui-se à
mulher a criação do mundo físico, o gênero masculino, o bosque e a
fauna. Pode-se afirmar que a mulher Warao possui uma vida e inú-
meros papeis no decorrer de sua existência: a menina Warao começa
sua trajetória de vida pelas mãos de outras mulheres da comunidade,
rodeada por rituais e encantamentos que invocam poderes sobrena-
turais que facilitam o parto. 
Nos primeiros meses de vida, a menina é observada e cuidada
por sua mãe, de quem recebe segurança física e emocional. Sua ge-
nitora se ocupará em ser sua fonte de proteção, alimentação e cuida-
dos. Aos sete meses já pode desfrutar do carinho e dos braços de suas
avós, tias e primas. Nessa idade, é apresentada a alguns alimentos
típicos da culinária Warao: ocumo chino5 e alguns tipos de peixe
(LAFÉE; WILBERT, 2001).
Ainda na infância, as brincadeiras parecem imitar o que acon-
tece ao seu redor: a menina brinca de “casinha”, com instrumentos
em miniatura que reproduzem os utensílios usados por sua mãe em
seu cotidiano: fogões, panelas, redes, comidas, artesanato; os meni-
nos também participam da brincadeira, fazendo o papel de pai de fa-
mília e imitando o ato de pescar e capturar peixes. Outra brincadeira
bastante apreciada nessa idade é jogar-se no rio a partir da platafor-
ma/doca onde as canoas ficam amarradas. Também fazem competi-
ções de natação e brincam de pega-pega na água. Brincam de pular
corda e de bola (IBIDEM, p. 98).
A partir dos 11, 12 anos, as meninas se afastam dos meninos e
deixam de brincar com eles por serem “muito rudes”. A partir dessa
idade, as brincadeiras ganham um tom de competição para saber
5 O ocumo chino é uma planta tropical que se desenvolve, preferivelmente, em zonas
pantanosas e debaixo da água; o que torna possível seu cultivo no estado Delta Amacuro,
principalmente, na cidade de Antônio Dias, pois suas áreas são excessivamente úmidas (Ver
VILÓRIA E CÓRDOVA, 2008, p. 98-99).

- 29 -
quem é mais rápido e habilidoso: “o menino ao construir uma canoa
ou a menina ao confeccionar uma rede” (IBIDEM, p. 100). Nessa
fase da vida, a menina Warao aprende, geralmente de seus avós, so-
bre o respeito à natureza, as crenças e os mitos fundadores de sua
comunidade, narradas geralmente à noite pelos sábios.
Na fase adulta, Lafée-Wilbert e Wilbert (2008) apontam que,
embora a aquisição de alimentos seja de iniciativa e esforço mas-
culino, as mulheres também participavam ativamente na extração
e colheita de certos alimentos, incluindo a pesca e a caça de roedo-
res: “a preparação de alimentos sobre brasas ou nos assados estava
principalmente nas mãos das mulheres e, o mais importante, elas
estavam a cargo da redistribuição de alimentos” (p. 48). Além des-
sas atividades, “as mulheres também podiam optar pela arte de tecer
redes, trançar cestas, a fitoterapia ou o xamanismo” (LAFÉE; WIL-
BERT, 2001, p. 49).
Ao chegar à velhice, a mulher Warao já experimentou a maio-
ria dos sentimentos possíveis de um ser humano: a alegria da infân-
cia; a curiosidade da adolescência; o comprometimento em dividir a
vida íntima com outra pessoa na vida adulta; a responsabilidade de
ser mãe, ao mesmo tempo em que experimenta “a triste realidade de
presenciar a morte de 47% de seus filhos antes que cheguem à ado-
lescência” (LAFÉE; WILBERT, 2001, p. 251); a felicidade em ver seus
filhos adultos casando e lhe dando netos.

A mulher Warao enquanto indígena urbano

A história tem demonstrado a repetição de um padrão na re-


lação entre indígenas e não indígenas: estes últimos têm - desde os
primeiros contatos, em diversos lugares e épocas - invadido, coloni-
zado e explorado terras indígenas. Tais encontros, invariavelmente,
seguiram a mesma ordem: primeiro contato, aliança, guerra, escravi-
dão e extermínio parcial ou total de coletivos indígenas. Outra con-
sequência desse encontro foi a expropriação dos territórios desses
grupos. 
Araújo (2006) defende que a inserção dos indígenas nos cen-
tros urbanos é um fenômeno resultante de processos de expulsão,
que leva grupos inteiros, ou partes deles, a migrarem, inicialmente,
das terras tradicionais para as cidades próximas, deslocando-se pos-
- 30 -
teriormente para cidades maiores ou centros urbanos que se consti-
tuem em polos históricos de atração de migração. Souza (2017) de-
fende que os indígenas na cidade se encontram na singular posição
de estar fora do seu lugar de origem, onde desenvolveram todo um
referencial para situar-se no mundo e de estar em um novo lugar
“[...] no qual são impulsionados a rever suas referências para se si-
tuar. De um lado, a origem do interior; de outro, a inserção na cida-
de, confronto este que não está livre de manifestação de conflitos”
(SOUZA, 2017, p. 55).
Para Luciano (2006, p. 18), a partir do contato, as culturas dos
povos indígenas sofreram grandes modificações, “uma vez que den-
tro das etnias se operaram importantes processos de mudança so-
ciocultural, enfraquecendo sobremaneira as matrizes cosmológicas
e míticas em torno das quais girava toda a dinâmica da vida tradi-
cional”.
De acordo com Acnur (2021), a partir da década de 1960, com
a crescente intervenção do governo venezuelano, os Warao tiveram
suas terras invadidas e seu cotidiano alterado. Com o meio ambiente
em que viviam destruído, essa etnia se viu obrigada a buscar novas
formas de sobrevivência, entrando, de forma compulsória, em um
processo migratório covarde, humilhante e de esfacelamento cultu-
ral. No caminho percorrido, houve perdas materiais, sociais, econô-
micas e culturais, além da urgência em se adaptar a novos lugares,
pessoas e culturas (LAFÉE-WILBERT; WILBERT, 2008).
Dessa forma, ainda em solo venezuelano, na nova configu-
ração familiar submetida ao mecanismo econômico da sociedade
criolla6, se seguiu a perda do poder administrativo que as mulheres
possuíam sobre a distribuição de recursos, já que passaram a de-
pender dos homens para o sustento familiar. “Enquanto o sistema
capitalista está baseado na prosperidade do indivíduo, a economia
tradicional Warao baseia-se na reciprocidade de bens e serviços e
no bem-estar da família estendida” (LAFÉE-WILBERT; WILBERT,
2008, p. 155).
Rosa (2020) destaca que os Warao são descritos - na história,
na antropologia e na  arqueologia - como um grupo étnico com ca-
racterísticas sedentárias que, devido às diferentes intervenções em
seu território de origem, iniciou ciclos migratórios para os centros
6 Na Venezuela, criollo é toda pessoa que não seja indígena. Porém, em alguns momentos os
Warao também empregam o termo para se referirem a qualquer indivíduo não pertencente à
etnia, seja brasileiro ou de outra nacionalidade.

- 31 -
urbanos, primeiro no entorno do delta e, posteriormente, chegando
até Caracas, capital do país: “Trata-se, portanto, de um processo de
mudança social e cultural decorrente de relações de poder e de dinâ-
micas políticas e territoriais” (p. 74).
Vivendo em uma nova realidade - a de indígenas urbanos ain-
da na Venezuela - as mulheres converteram a habilidade que pos-
suíam em coletar e distribuir alimentos em uma nova atividade ur-
bana: a “coleta de dinheiro”. Elas associam o processo e a habilidade
envolvida na prática de “pedir dinheiro” com as estratégias de que se
valiam enquanto viviam entre os igarapés do baixo delta para colher
seus alimentos (LAFÉE-WILBERT; WILBERT, 2008).
Esse êxodo temporal que as mulheres Warao praticam em
busca de recursos econômicos é um processo regular e totalmente
dirigido por elas, uma vez que aprenderam em sua sociedade que sua
missão é o funcionamento e a articulação do grupo em um contexto
cultural heterogêneo sem uma fusão cultural com a cultura nacional.
Ao migrar para essas cidades, a mulher desenvolveu habilidades que
permitem obter, a curto prazo, os recursos econômicos que busca
(IBIDEM). 
São as mulheres que decidem o momento conveniente para
realizar a saída, escolhem a data da viagem e como viverão (ela, seu
esposo e filhos) durante esse período, bem como o tempo que durará
a estadia. Além disso, são as mulheres que dão as instruções para os
arranjos da partida, decidindo quais pessoas da família participa-
rão e quem ficará cuidando dos bens familiares no lugar de origem:
“Quando não temos dinheiro, já sabemos que temos que ir atrás.
Falamos entre a família e sabemos quem vai. Falo com a mamãe e
já está feito. Ela fala com suas irmãs e está feito. Então, falamos com
os homens e já se faz” A. R. Barrancas (IBIDEM, p. 103, tradução
nossa).
É a mulher Warao quem determina o novo local de migração
dos grupos em trânsito. Segundo Silva e Torelly (2018), as mulheres
Warao têm desempenhado papel fundamental como agentes sociais
da promoção do fluxo migratório, assumindo funções econômicas
para sustentar os coletivos. São elas que costumam fazer o desloca-
mento inicial antes dos demais das suas famílias, arrecadando fun-
dos por meio da venda de artesanato e, primordialmente, da chama-
da coleta de dinheiro:
- 32 -
Este deslocamento coletivo de mulheres, geralmente, tem sido
realizado com o acompanhamento de alguns homens Warao da
família extensa ou do grupo, que se sobressaem enquanto lide-
ranças ao longo do fluxo migratório e viajam na companhia de
grupos numerosos de mulheres. Foi assim de Boa Vista para
Manaus e também de Manaus para Santarém e Belém. É comum
maridos, pais e irmãos ficarem marcando posição enquanto suas
mulheres, irmãs e filhas desbravam novas oportunidades e fon-
tes de renda (SILVA; TORELLY, 2018, p. 9).

Uma das primeiras impressões das mulheres que faziam es-


ses deslocamentos foi o sentimento de humanidade e a disposição
em ajudar por parte da população criolla. Não demorou para que
as mulheres Warao notassem que existiam outras motivações para
sensibilizar as pessoas das cidades: as crianças.  Ao viver um certo
período nas cidades de Roraima, centenas de Warao decidiram par-
tir. De acordo com Rosa (2020), dentre as razões alegadas para dei-
xarem Boa Vista, destaca-se: o desestímulo às doações de dinheiro
aos indígenas; as condições de abrigo, principalmente em virtude
dos conflitos com venezuelanos não indígenas e da alimentação in-
suficiente e pouco diversificada; dificuldade em conseguir trabalho
e concorrência para a venda de artesanato devido ao alto número de
indígenas na cidade.
No caso Warao, é a mulher quem determina o novo local de
migração dos grupos em trânsito. Segundo Silva e Torelly (2018), as
mulheres Warao têm desempenhado papel fundamental como agen-
tes sociais da promoção do fluxo migratório, assumindo funções
econômicas para sustentar os coletivos. São elas que costumam fazer
o deslocamento inicial antes dos demais das suas famílias, arreca-
dando fundos por meio da venda de artesanato e, primordialmente,
da chamada coleta de dinheiro.
Após determinado período, muitos Warao decidiram conti-
nuar sua peregrinação rumo a outras grandes cidades brasileiras,
escolhendo Manaus, onde chegaram em grandes números a partir
de dezembro de 2016, “através de Pacaraima - município de Roraima
fronteiriço à Venezuela - e Boa Vista, capital do estado. Muitos cru-
zam a fronteira a pé” (RIBEIRO, 2021, p. 32). 
Portanto, no caso Warao, suas comunidades presentes hoje em
Manaus passaram por um duplo processo migratório aldeias-centros

- 33 -
urbanos desde que saíram do estado do Delta Amacuro, na Vene-
zuela: primeiro quando saíram de suas terras e migraram em direção
aos centros urbanos da Venezuela; e depois quando migraram para
os centros urbanos brasileiros - Pacaraima e Boa Vista (no estado de
Roraima) e Manaus (no estado do Amazonas). Portanto, seu caso
configura a necessidade de uma dupla adaptação.

A mulher warao em Manaus


A cidade de Manaus foi fundada pelos portugueses em 24 de
outubro de 1669 e já teve outros nomes, como forte de São José do
Rio Negro e Vila da Barra. O nome atual “começou a se formar em
1856, ano em que a cidade recebeu a denominação de Manaós, uma
homenagem aos Manaós, grupo indígena da região conhecido pela
coragem e valentia” (GOMES, 2018). Seu passado está diretamente
ligado ao ciclo da borracha, ocorrido no final do século XIX e início
do século XX e à industrialização, sobretudo representada pela cria-
ção de um polo industrial - a Zona Franca de Manaus - em 1967. 
A Manaus do século XXI é a maior cidade em população do
estado do Amazonas e da Região Norte do Brasil. De acordo com
dados do IBGE (2020), a capital amazonense possui uma população
de 2.219,580 habitantes. Esse censo indica que a grande maioria da
população manauara vive na área urbana da cidade, enquanto cerca
de 0,5% habita a zona rural. Atualmente, está dividida entre as zo-
nas Norte, Leste, Sul, Centro-Sul, Oeste, Centro-Oeste, Norte e a Ru-
ral. A capital amazonense tem uma área de mais de 11 milhões de
metros quadrados e está dividida em 63 bairros (IMPLURB, 2021).  
Manaus possui uma longa história de povos nacionais e in-
ternacionais que migraram para suas terras: desde os pioneiros es-
panhois e portugueses, passando por judeus, árabes, japoneses e,
mais recentemente, haitianos e venezuelanos (BENCHIMOL, 2009;
SILVA, 2015). Essa cidade no meio da floresta amazônica, de clima
quente e úmido, atualmente é o lar de centenas de Warao: “Assim,
Manaus aparece na representação dos imigrantes, positivamente,
oferecendo-lhes uma ampla rede de serviços, dentre elas de saúde e
educação (RIBEIRO, 2021, p. 34).
Segundo o Ministério Público Federal (Brasil, 2017, p. 11),
“o deslocamento dos indígenas da etnia Warao para Manaus come-

- 34 -
çou de maneira mais evidente em dezembro de 2016”. Ainda de acor-
do com o MPF, entre os dias 14 e 16 de fevereiro de 2017, a então
Secretaria Municipal da Mulher, Assistência Social e Direitos Hu-
manos (SEMMASDH) realizou um primeiro recenseamento e ma-
peamento dos Warao, identificando 117 indígenas na cidade, sendo
que 35 estavam acampados na rodoviária, 43 estavam hospedados
em duas casas geminadas no bairro Educandos, na Zona Sul, e 39 se
encontravam em casas e hotéis no centro da cidade. Desse total, fo-
ram contabilizados 62 adultos, 48 crianças, 4 adolescentes e 3 idosos.
Entretanto, grande parte desses indivíduos manteve o hábito
de se estabelecer no próprio local por onde chegavam - no caso, o
Terminal Rodoviário de Manaus, no bairro de Flores, na Zona Cen-
tro-Oeste da cidade. Sem dinheiro e moradia, passaram a dormir
em pedaços de papelão e pedir dinheiro para sobreviver. Suas casas
eram improvisadas com lonas, plásticos e papelão.  Ao passar pelo
local, era comum ver pessoas cozinhando, descansando ou dando
banho nas crianças em bacias improvisadas. Alguns saíam para ven-
der produtos nos semáforos do entorno do terminal rodoviário en-
quanto outros organizavam seus artesanatos em mesas improvisadas
(chapéus, redes, vasos e bijuterias) para vendê-los aos transeuntes.
Após alguns meses, com a contínua chegada de pessoas e a falta de
espaço, alguns desses indivíduos passaram a viver embaixo do viadu-
to de Flores, que está localizado em frente ao Terminal Rodoviário.
Também como forma de conseguir dinheiro enquanto ainda
estavam abrigados na Rodoviária, as mulheres e adolescentes faziam
artesanato e os vendiam. “Os itens Warao que geralmente são tra-
zidos para o Brasil são compostos por chapéus, colares de seda de
buriti, miçangas, cestarias e redes de dormir, muitos destes tradicio-
nalmente produzidos” (TARRAGÓ, 2020, p. 129-130).
Além da redirecionamento de indivíduos dessa etnia para
abrigos adaptados em pontos espalhados por Manaus, em 2020, com
a chegada da pandemia, foram criados dois abrigos, localizados no
bairro Tarumã-Açu, na zona Oeste de Manaus, para não expor os
refugiados, a fim de evitar aglomerações e prevenir o contágio pelo
novo coronavírus - Covid-19 (AMAZONAS ATUAL, 4 de abril de
2020)7. Deve-se destacar que nem todos os Warao estão vivendo nes-
7 Índios venezuelanos são transferidos de abrigo em Manaus para evitar aglomeração. Dia a dia.
Amazonas Atual. Disponível em: <https://amazonasatual.com.br/indios-venezuelanos-sao-trans-
feridos-de-abrigo-em-manaus-para-evitar-aglomeracao/. Acesso em: 13 de outubro de 2021.

- 35 -
ses abrigos, seja (na concepção deles) por falta de espaço nos mes-
mos ou por preferirem uma vida sem regras e com mais autonomia.
Esse grupo que tenta viver de forma autônoma, em casas alu-
gadas nos bairros periféricos de Manaus, constituem nosso grupo
focal. Durante a pesquisa de campo, tivemos oportunidade de ouvir,
das protagonistas, questões relacionadas ao seu papel em sua antiga
comunidade, bem como as mudanças ocorridas no transcorrer de
seu processo migratório, além de sua atual condição de vida em Ma-
naus, nos aspectos socioeconômico e cultural. Esse foi o resultado de
nossas incursões em campo.
Ao relatar a vida em sua antiga comunidade - nos caños do rio
Orinoco - a mulher Warao fala, de forma recorrente, dos rios que a
rodeava, da natureza, da prática da agricultura, da família numerosa
e da cooperação entre seus irmãos, pais e demais familiares na aqui-
sição e preparo da caça, pesca e outros alimentos complementares.
As mulheres frisam a importância de seu trabalho na comunidade,
seja como filha, esposa, irmã, mãe (às vezes ainda na tenra idade).

Quando era pequena, eu ficava muito com minha avó, que me


ensinava a colher as frutas, como o açaí. Desde quando tinha 6
anos. Quando ela saía para colher frutos, eu me arrumava junto
com ela, e íamos à montanha.  Quando chegava lá em cima,
cortava as plantas, e colhia as frutas. Meus irmãos iam também.
Colocávamos em cestos que ficavam pesados e trazíamos para a
aldeia (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).

A alimentação era algo de suma importância, destacando-se


o onipresente buriti (ojidu), o ocumo chino e o arroz. Esse aspecto
cultural é resumido por Nonate (2021, p. 23): “A construção da iden-
tidade dos Warao vincula-se à noção de ‘corpo forte’ Os Warao as-
sociam a fortificação do corpo à ingestão de alimentos ‘naturais’, isto
é, que se encontram disponíveis em seus espaços socioambientais”.
A infância, marcada pela companhia dos irmãos, era alternada por
momentos  descontraídos (brincar no rio, apostar corrida de canoas,
jogar petecas com frutos pequenos e com bolas improvisadas) e mo-
mentos de aprendizado, seja na companhia das mães e/ou avós ou
com os padres capuchinhos. 
Inclusive, a presença dos padres garantiu dois aspectos de suas
vidas: 1) o estudo (todas as entrevistadas relataram que estudaram,

- 36 -
ainda que pouco. Seus estudos foram interrompidos por motivos
como: gravidez precoce ou para ajudar a mãe a cuidar dos outros
irmãos que a mãe tinha). Um caso que causou surpresa foi o fato de
uma das entrevistadas ser licenciada em Educação; 2) a catequese:
muitas das entrevistadas se dizem cristãs, sendo inclusive batizadas,
elas e seus filhos. Os relatos da adolescência mostram a união entre
familiares, quando saíam para dançar ou festejar uma grande colhei-
ta, o que rendia de três a cinco dias de festa, com comida, bebida,
cantos e danças. A presença feminina - mãe e avó - é marcante na
vida dessas mulheres, que lhes repassaram conhecimentos práticos
voltados às questões do cotidiano.

Aprendi a pescar, cozinhar, semear o conuco. Aos oito anos,


já sabia fazer artesanato. Aprendi a cultivar e cuidar de ocu-
mo chino, cana, piña, macaxeira. E também plantas medicinais
(Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).
Minha mãe me ensinou a fazer redes. Eu via ela fazendo, e
aprendi com ela. Minha mãe me ensinou remédios Warao: uma
folha de limão, uma folha de goiaba, cozinhava e tomava para
certa doença (Mulher Warao 4. Entrevista, 2022).
Aprendi muito, pois eu era a companheira dela. Eu sempre es-
tava com ela. Por ser a filha mais velha, estava sempre com
ela. Quando ela saía, eu que ficava com minhas irmãs pequenas.
Aprendi os afazeres domésticos, além do artesanato e da utiliza-
ção de plantas medicinais. Quando queria saber alguma coisa e
mamãe não estava, eu ia na palafita da minha avó, que ficava em
frente, e perguntava dela (Mulher Warao 3. Entrevista, 2022).

Um fato marcante na vida de toda adolescente Warao é a me-


narca e esse fato revela-se contraditório: as mulheres com mais idade
relatam a prática do isolamento no período menstrual com um certo
contentamento. Já as mais novas revelam que se insurgiram contra
tal costume, ao mesmo tempo em que afirmam que se tivessem um
lugar apropriado, fariam o mesmo com suas filhas, pois faz parte da
tradição de seu povo. Elas acreditam que o fato de terem saído de sua
comunidade natal tem enfraquecido essa prática. 

Não foi construída uma casa somente para mim. Fui colocada
em um lugar isolado, até acabar o período menstrual. Eu não
podia tomar banho no rio. Meus irmãos pegavam água no bal-
de e traziam. Minha mãe me disse que eu não podia pegar em

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nenhuma colher, copo, garfo. Os objetos de casa deviam ser se-
parados só pra mim. O sangue da menstruação que cai no rio
pode atrair animais, inclusive cobras. Como não havia sanitário,
o sangue era colocado em uma bolsa, amarrado e jogado em um
lugar distante, nunca no rio (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).
Quando chegou minha vez, já não havia esse costume. Minha
mãe me disse que antes era assim. Casinha - isolamento. Minhas
filhas não vão passar por isso. Não tem mais esse costume (Mu-
lher Warao 6. Entrevista, 2022).

Ao se juntarem a um companheiro, “o esposo”, passaram a aju-


dar na manutenção da casa e no cuidado dos filhos. As que ainda
estavam nas comunidades natais, ficavam próximas ou na mesma
casa que seus pais e todos se ajudavam. As que se mudaram para a ci-
dade relatam casos de esposos violentos, que exageravam na bebida
alcoólica e as abandonavam com filhos, sem estudo e sem dinheiro,
uma vez que eles eram os mantenedores do lar. A opção era retornar
às antigas comunidades e pedir ajuda aos pais.
Sobre as festas, são recorrentes as narrativas sobre comemo-
rações em razão da farta colheita de  buriti, ocumo chino e arroz.
Nessas comemorações, as mulheres se vestem de forma especial, se
enfeitam e dançam e cantam por dias:

Meu avô colhia muito moriche. Tinha todo o processo de pre-


paro, que podia levar até oito dias. Quando voltava, chamavam
todos da aldeia para tirar a carne do moriche (goma), e outros
materiais para fazer outras comidas. Minha avó dava dicas de
como preparar esses alimentos, para não passar do ponto. To-
das as mulheres, sentadas, faziam esse processo. Quando tinha
muita pesca, fazia para todos os familiares comer, ao som de
música:  cantávamos, dançávamos. Na hora de comer, ninguém
falava. Se falasse enquanto comia, um espírito adoeceria essa
pessoa (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).
Existem as Festas Tradicionais dos povos indígenas, chamadas
“Fiestas patronales”, é uma festa da comunidade. Tem comida,
dança como o “boi”; bebida (guarapo forte, feito de mandioca,
chamado de Tarubá). Essas festas duram três, quatro, cinco dias,
enquanto há comida e bebida. Os homens cuidam das mulheres,
se elas bebem, para que não caiam ou outro homem a pegue. No
dia dos pais, são as mulheres que cuidam dos homens (Mulher
Warao 3. Entrevista, 2022).

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Quanto ao falecimento de um membro Warao, as mulheres
relatam que, nas comunidades, há um rito a ser cumprido: o morto é
colocado em uma urna de madeira, juntamente com seus pertences.
Há cantos, orações e um fato curioso: o defunto não pode ser dei-
xado sozinho durante todo o velório, Há sempre alguém próximo.

Nós preparamos o corpo e é feito uma urna para colocar o mor-


to e seus pertences.  Se os familiares moram distante, o corpo
é preparado em alguma UBS para dar tempo de aguentar até
a chegada da família. Há choro e cantos. É uma despedida. O
defunto não pode ficar sozinho: haverá sempre uma pessoa ao
lado do caixão (Mulher Warao 3. Entrevista, 2022).

Ferreira (1996, p. 22) afirma que “quando as condições con-


cretas de vida e o futuro da coletividade se acham ameaçados, a par-
tida dos indivíduos representa ou realiza um desejo coletivo. O lugar
de realização assinalado ao indivíduo pelo imaginário coletivo apon-
ta para o ‘fora daqui’ como espaço de construção do devir”. Dessa
forma, as motivações que contribuíram para a saída desses indiví-
duos de sua comunidade natal são bem pontuais: destruição do meio
ambiente, fome e ausência de serviços de educação, saúde e emprego.
Portanto, as cidades se tornaram mais atrativas para essa etnia.

Meu neto de 8 anos ficou doente e, como não havia médicos nos
caños, levamos a um hospital na cidade de Tucupita. Acredita-
mos que ele recebeu a dose errada do remédio e por isso, fale-
ceu. Também não tinha mais o que comer, o que vestir (Mulher
Warao 1. Entrevista, 2022).
Vim porque não tinha roupa, não havia ajuda, nem comida. Mi-
nha filha estudava e não tinha roupa, nada (Mulher Warao 4.
Entrevista, 2022).

O trajeto percorrido pelos membros dessa etnia é facilmente


encontrado nos estudos de Silva e Torelly (2018); Botelho, Ramos e
Tarragó (2017) e está pautado nas relações familiares e de amigos,
a migração em redes (SOARES, 2002; TRUZZI, 2008). As mulheres
afirmam que outros membros da família que partiram antes costu-
mam informar acerca de novos lugares propícios à presença deles.
Em suas narrativas, as mulheres relatam que vendiam seus artesana-
tos a fim de obter o dinheiro para a compra das passagens de ônibus

- 39 -
até a cidade de Pacaraima (Roraima). Quando não tinha dinheiro,
pediam carona ou percorriam trechos menores a pé. Às vezes, os
familiares ajudam na compra das passagens.

Vim com minha irmã em 2016 ou 2017. Vendemos redes que


confeccionamos e compramos passagem até Pacaraima. Depois
pegamos carona. Meu pai ficou em Pacaraima porque não con-
seguimos dinheiro para comprar a passagem dele (Mulher Wa-
rao 2. Entrevista, 2022).
Ouvíamos histórias sobre Manaus, que tinha fábricas e empre-
gos. Víamos na internet também. Chegamos em Manaus de ôni-
bus, em 2018. Saímos de Tucupita para San Félix, depois para
Santa Maria de Uairén até Pacaraima. Depois de um tempo, se-
guimos para Manaus: eu, minha irmã, meu marido, meu filho e
meu pai Quando chegamos em Manaus, ficamos na rodoviária
por duas semanas. Eu, meu marido e meu filho dormimos em
uma barraca. A comida era sempre doada: nos davam marmita,
pizza, coisa boa. Para tomar banho, essas coisas, era horrível.
Meu filho tinha nove anos e foi péssimo: ele via coisas ruins. Eu
vendia artesanato e meu marido conseguiu um emprego fazendo
diárias como pedreiro. Após algum tempo, fomos levados, de
ônibus, para um abrigo, no bairro Alfredo Nascimento (Mulher
Warao 3. Entrevista, 2022).

A expectativa de superar a fome e outras necessidades em solo


manauara parece encontrar resistências até hoje. A mulher Warao e
seus familiares enfrentam dificuldades relacionadas à falta de mo-
radia e de trabalho, além da manutenção de seus costumes. Quanto
à moradia, nossas pesquisas detectaram a predominância de casas
alugadas, casas de passagem ou casas cedidas como locais de mora-
dia, muitas vezes impróprias para o grande número de pessoas que
nelas vivem.
A força de seu braço, antes utilizada para plantar, colher, pes-
car e curar, hoje é destinada a cuidar dos netos, pedir esmolas e con-
feccionar artesanato, quando há matéria-prima.
Hoje fico em casa, ajudo a minha filha com os netos. Lavo, co-
zinho, limpo a casa. Quando não temos o que comer, saímos ba-
tendo nas portas das casas, pedindo esmolas ou comida (Mulher
Warao 1. Entrevista, 2022).

Algo recorrente nas falas dessas mulheres é a inquietação de


não ter um emprego que as sustente. Elas frisam que, mesmo em sua

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comunidade natal, não esperavam que o marido providenciasse o
sustento: elas pescavam, faziam artesanatos e iam às cidades vender
seus produtos e assim, compravam o necessário para casa. Uma das
mulheres entrevistadas me mostrou as poucas peças artesanais de
que ainda dispunha: pequenos cestos que são feitos em um dia, os
quais ela vende pelo valor de R$ 25,00. A tradição de fazer artesanato
ela herdou de sua avó, conhecimento que hoje se revela muito útil,
já que é a única fonte de renda de que dispõe. Contou, ainda, que
passou esses saberes às filhas e às netas. 

No momento não estou trabalhando. Quando consigo palha de


buriti, faço artesanato e vendo. Assim consigo meu dinheiro.
No momento, estou sem dinheiro para comprar palha de buriti
(Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).

Seu perfil de indígena, imigrante e mulher dificultou sua in-


serção no mercado de trabalho manauara. A mulher Warao 1 refor-
çou que sempre gostou de trabalhar para ter suas coisas e que não
gosta de depender de outras pessoas. Ela lamenta que às vezes, ainda
hoje, precisa levar os netos para pedir esmolas de porta em porta. 

Tenho muita vergonha de ter que pedir esmolas. Gostaria de ter


um trabalho. Não tenho fibra de buriti para fazer meus artesa-
natos. Antigamente as pessoas ajudavam mais. Agora, quando
pedimos, algumas pessoas nos chamam de preguiçosas, que de-
vemos ir trabalhar e não ficar pedindo. Não gosto de fazer isso.
É muito humilhante (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).

Outra mulher afirma que seu esposo trabalha de maneira in-


formal, mas o dinheiro não é suficiente para o pagamento do aluguel
e as demais despesas. Então, investiu em um carrinho de venda de
churrasco, mas a falta de dinheiro para investir no novo negócio pre-
judicou a iniciativa.
Estávamos fazendo churrasco, mas como não tem dinheiro
para comprar o material, é um pouco difícil. Em Boa Vista era mais
fácil, eu fazia curso de enfermagem. Agora, depois de duas gravidez,
tem que comprar fralda, comida, leite, mingau… (Mulher Warao 2.
Entrevista, 2022).
As narrativas das entrevistadas confirmam os estudos de Ri-
beiro (2021, p. 37): 

- 41 -
Os Warao têm enfrentado uma situação difícil quando o que-
sito é emprego, uma vez que eles esbarram na dificuldade do
entendimento da língua portuguesa, na falta de escolaridade e
de documentos. A configuração cultural dos Warao, não é aceita
pelos manauaras, o que os torna imigrantes não desejáveis. 

Quando o assunto são os serviços públicos manauaras, as mu-


lheres relatam obstáculos de atendimento nesses serviços, principal-
mente devido à dificuldade de compreensão linguística. 

Quando procuramos o serviço médico, às vezes o atendimento


é difícil por causa da língua. Os atendentes não entendem o que
falamos. Muitas vezes desistimos do atendimento e voltamos
pra casa (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).
Prefiro ir aos Serviços de Pronto Atendimento (SPA´s). Quan-
do fui às Unidades Básicas de Saúde (UBS) não fui atendida.
Porque eles falam e eu não compreendo; e eu falo e eles não
entendem, então perdem a paciência. As pessoas que trabalham
nos SPA´s são menos estressadas. (Mulher Warao 3. Entrevista,
2022).

Em relação às crianças, a maioria está estudando pela primei-


ra vez desde que chegaram ao Brasil. Dois fatores chamaram atenção
nesse aspecto: 1) A falta de vontade em ajudar por parte das pessoas
responsáveis pelas matrículas, segundo as entrevistadas; 2) O não
nivelamento das crianças para ingressarem na série corresponden-
te à que cursavam na Venezuela. Muitas tiveram que recomeçar do
primeiro ano do ensino fundamental quando já estavam em séries
equivalentes às suas idades:

Meus filhos estão estudando, mas está um pouco difícil. A pro-


fessora briga muito com eles; ela grita muito com eles. São
maltratados. Às vezes o atendimento é dificultado por causa da
língua. Somos venezuelanos. Meu filho não tem farda; o mandei
com uma blusa amarela, igual à farda e não estão deixando ele
entrar na escola. Não temos dinheiro para comprar. Só consegui
colocá-los na escola porque uma pessoa que conhecia pessoas
influentes nos ajudou (Mulher Warao 2. Entrevista, 2022).
Meu filho está estudando. Ele tem 12 anos e está no 4º ano. Aqui
no Brasil atrasaram muito ele. Em Roraima ele teve que voltar
para o 1º ano; aqui em Manaus também. Eu pedi para fazerem
um teste de nivelamento com ele, mas não fizeram (Mulher Wa-
rao 3. Entrevista, 2022).

- 42 -
No âmbito cultural, as mulheres são unânimes em afirmar que
não perdem  oportunidade de praticar sua cultura nos moldes do
que faziam em sua antiga comunidade: “Quando tem eventos, nós
fazemos comida Warao, dançamos e se temos roupas, nos arruma-
mos” (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022). 
A situação na qual se encontram os membros desta etnia foi
bem definida por Ribeiro (2021, p. 38):

Não tem sido nada fácil para esses imigrantes que buscam o
modus vivendi ordenador de Manaus. A falta de comunicação,
a falta de inserção no mercado de trabalho, a ida ao hospital, o
calor e a cultura diferentes têm sido desafios para eles. A rei-
vindicação dessa população tem sido latente no espaço urbano.
Eles têm apontado para a falta de ajuda do governo, falta de ma-
terial para fazer artesanato, crianças com problemas de saúde,
sarampo e tuberculose.

A afirmação de García-Castro (2018, n.p) complementa a si-


tuação de adaptação ao novo local de moradia e aos recursos para
sobrevivência:

Os indígenas, como minoria em desvantagem perante o mundo


moderno, recorrem hoje aos mesmos mecanismos que no pas-
sado lhes proporcionavam soluções, ainda que o conhecimento
da natureza delta aqui já não é necessário e deve ser substituído
pelo do meio urbano moderno. Consequentemente, a sua adap-
tação dentro do mesmo implica adquirir novas práticas, tanto
ou mais especializadas que no meio natural, para conseguir so-
breviver.

Uma das entrevistadas comentou que, sempre que há oportu-


nidade de praticar a cultura Warao, elas o fazem com alegria. Mas,
infelizmente, nem todas as pessoas reconhecem, apoiam ou valori-
zam momentos culturais como este, como o ocorrido com uma das
entrevistadas:

Quando tem oportunidade, como no Dia do Refugiado, nos re-


unimos, dançamos, comemos e mostramos nossa cultura. Inclu-
sive, mostrei o convite sobre essa festividade no meu emprego,
avisei que iria participar. Quando recebi o contracheque desco-
bri que peguei falta e que este dia foi descontado (Mulher Warao
3. Entrevista, 2022).

- 43 -
Quando perguntadas se a cultura Warao está se perdendo em
solo manauara, as entrevistadas reconhecem a dificuldade de manter
e repassar às gerações mais jovens desde os costumes mais simples
(como a língua) até as crenças, ensinamentos e os significados das
festividades.

Eu danço com eles. Eu canto com eles. A língua Warao está


mais difícil de manter (Mulher Warao 2. Entrevista, 2022).
Meus netos compreendem um pouco quando falo Warao, mas
não sabem falar (Mulher Warao 1. Entrevista, 2022).
Aqui no Brasil, ainda não consegui praticar minha cultura: nem
danças, nem comida… (Mulher Warao 5. Entrevista, 2022).

Talvez a dificuldade em continuar com as tradições Warao te-


nha sido melhor definida pela mulher Warao 3, que resumiu:

A língua - A cultura está se perdendo. Aqui em Manaus está se


perdendo. As crianças que nascem aqui não falam Warao. Esta-
mos em um país onde mais do que tudo, a língua é portuguesa,
temos que aprender. Por que, como vai se defender na escola se
não sabe falar o português? São três línguas, pois nossa língua
materna é o Warao, em seguida temos que aprender o espanhol e
agora o português. Às vezes eu e minha irmã conversamos mais
em espanhol. Quando não queremos que outra pessoa entenda,
então falamos em Warao. Meu filho não fala warao e compreen-
de um pouco. Fala bem o espanhol e o português. Não encontro
tempo para ensinar Warao pra ele. Quando saio para trabalhar,
ele está dormindo; às vezes chego do trabalho e ele já está dor-
mindo. 
O artesanato - Só o que atrapalha são os materiais, que não há.
Menarca - A cultura está se perdendo. Se estivéssemos na Ve-
nezuela, esse costume continuaria. Se perdeu um pouco porque
aqui não há lugar para fazer a casinha. Vivemos em lugares
alugados, em abrigos, não tem privacidade; não tem um quarto
que seja só da família. Minha filha não passou por isso (Mulher
Warao 3. Entrevista, 2022).

Quanto às crenças, todas as entrevistadas citaram a presença


da Igreja Católica nas regiões próximas aos caños e às cidades, em
especial, dos monges capuchinhos, responsáveis pelo ensino e pela
conversão ao catolicismo.

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Fomos criados na Igreja católica: tivemos batismo, comunhão e
catequese (Mulher Warao 2. Entrevista, 2022).
Eu creio em Deus, fui criada e batizada na Igreja Católica; meus
filhos foram batizados pelos padres capuchinhos. Tenho uma
filha de 21 anos que hoje é evangélica (Mulher Warao 3. Entre-
vista, 2022).

Quando questionadas acerca da possibilidade de retornar para


sua antiga comunidade, as resposta trazem um misto de saudade e
desesperança quanto ao futuro de sua nação:

Sinto falta da minha casa, dos meus parentes, de um lugar digno


para viver. Sinto saudade dos rios, de pegar camarão com as
mãos, das brincadeiras, de jogar bola (Mulher Warao 1. Entre-
vista, 2022).
Sinto falta de praticar minha cultura: caçar e comer caranguejo;
tomar suco de açaí, de buriti. Muitos saíam para colher buriti,
ocumo chino. Eram muitas pessoas, iam de canoa. Está se per-
dendo, não é mais igual (Mulher Warao 2. Entrevista, 2022).
Não pretendo voltar para a Venezuela porque não vai se con-
sertar. Se um dia melhorar, já estaremos mortos. Um governo
comunista nunca vai abandonar o poder (Mulher Warao 3. En-
trevista, 2022).
Às vezes penso em voltar; às vezes, não. Porque a situação em
que está a Venezuela, não sei como... não sei se vai mudar, por
isso (Mulher Warao 4. Entrevista, 2022).

Quanto às mudanças ocorridas em seu processo migratório,


nossas pesquisas apontaram que a mulher lutou e continua lutando
de diversas formas desde que deixou seu lar: 1) sobrevivência: ela
enfrentou situações inerentes ao processo migratório e impensáveis
para quem nunca viveu tal situação: deixou o único mundo que co-
nhecia até então, migrou para um país de fala, cultura e costumes
diferentes do seu;  enfrentou a fome, o frio, o descaso, o desprezo,
o preconceito, a dor da distância dos parentes e a dor da perda de
tantos outros; 2) ajuda econômica: ela, juntamente com seus fami-
liares, decidiu avançar, vendeu seus poucos pertences, confeccionou
belíssimos artesanatos, além de ter a iniciativa de pedir dinheiro nas
ruas para ajudar no sustento da família; e 3) continuidade cultural:
ela exerce o papel de guardiã dos aspectos de sua cultura - repassan-
do a língua, os ensinamentos e os costumes aos filhos e netos que a

- 45 -
rodeiam em seu cotidiano (aspecto aprendido nas pesquisas e con-
firmado durante o trabalho de campo). 
Ao abordar  a vida da mulher Warao na capital amazonen-
se, acreditamos que o verbo que melhor ilustra sua situação seja o
ADAPTAR-SE. De acordo com Aurélio (2011), “adaptar-se” é sinô-
nimo de “tornar-se apto; adequar-se; acostumar-se às circunstân-
cias”. De fato, um dos grandes desafios para essa etnia é equilibrar a
necessidade de preservar sua cultura e  se adaptar às mudanças no
local onde se encontra. E é isso que essa mulher vem fazendo: ela
tenta adaptar-se ao Brasil e tudo de novo que ele representa; tenta
acostumar-se ao clima, tenta aceitar o papelão como cama; tenta su-
perar a falta de uma moradia decente, de um trabalho remunerado e
de serviços públicos; tenta compreender e conviver com o desprezo
dos locais por sua gente, sua cor de pele e sua língua; tenta equilibrar
seu antigo modo de viver com os novos desafios impostos cotidiana-
mente à sua “nova” vida.
Ter contato direto com essas mulheres reforçou nosso conhe-
cimento acerca da continuidade de problemas já conhecidos sobre
esses indivíduos (muitas vezes expostos em estudos anteriores) e
escancarou outros, aqueles que só tomamos conhecimento quando
sentamos por um longo tempo e ganhamos a confiança das entrevis-
tadas: histórias de romance, de rebeldia, de sofrimento, de luta, de
superação e de saudade. 

Considerações finais

Mudar de país ou região é uma característica que intrínseca


ao ser humano desde os tempos mais remotos. O impacto das mi-
grações nos locais de origem e destino tem sido objeto de estudo de
várias áreas do conhecimento, devido à sua complexidade e mag-
nitude. O ato de migrar não está restrito apenas às chamadas “co-
munidades nacionais”. As catástrofes de ordem humana, social ou
natural atingem igualmente os povos aborígenes de todos os lugares
do mundo, em diversas épocas da história.
Foi assim com os Warao, um povo que tradicionalmente habi-
ta o delta do rio Orinoco, no nordeste da Venezuela. Desde a década
de 1960, quando suas terras sofreram intervenções governamentais

- 46 -
que os obrigaram a abandonar seu lar, membros dessa etnia indígena
iniciaram um êxodo, saindo de seu isolamento próximo ao delta do
rio Orinoco e habitando inicialmente nos grandes centros urbanos
da Venezuela, passando, com os anos, a emigrar para outros países
vizinhos, como o Brasil, sobretudo nos estados da Região Norte.
Passados quase seis anos desde que chegaram a Manaus, ainda
é comum, ao passar pelas cercanias do Terminal Rodoviário muni-
cipal, notar a presença expressiva de imigrantes venezuelanos, tanto
indígenas como não indígenas. Mesmo com a criação/reforma de
locais para recepcionar e dar uma vida minimamente melhor a essas
pessoas, não é difícil encontrar famílias Warao que não conseguiram
vagas nesses locais. 
O processo migratório no qual esteve involuntariamente in-
serida transformou a vida da mulher Warao. Seu perfil de indígena
e imigrante dificultou sua inserção na nova sociedade escolhida. O
fato de ainda falar majoritariamente sua língua materna aliada à di-
ficuldade de aprender espanhol e português, acabou contribuindo
para seu isolamento e até exclusão de vários setores da sociedade:
trabalho, saúde, estudo e convívio social.  
Além disso, pode-se considerar que a mulher Warao, assim
como sua etnia, sofreu rupturas quanto ao seu antigo modo de vi-
ver: deixou seu território e o restante de sua família que continua
vivendo no delta do Orinoco e mudou seu modo de viver, em seus
aspectos socioculturais e econômicos. O ser humano adapta-se para
sobreviver. Da mesma forma, essa mulher teve que se adaptar a lo-
cais, pessoas e situações completamente novas durante seu processo
migratório da Venezuela até Manaus, o que não a fez perder a prática
da língua, o respeito entre os seus e a missão de perpetuar a cultura
material e imaterial de seu povo às novas gerações, mesmo que se
encontrem a milhares de quilômetros do local onde nasceram.
Tais posturas podem também ser tomadas como forma de
resistência: essa mulher resiste diariamente a fim de preservar sua
cultura: ela fala sua língua materna na maior parte do dia; ensina
as crianças enquanto está pedindo esmolas ou confeccionando ar-
tesanato; canta suas canções para que as futuras gerações não se es-
queçam de suas raízes; enterra seus mortos à “moda venezuelana”;
ensina sobre plantas medicinais e aconselha as mais novas acerca de
casamento e vida adulta.

- 47 -
Enquanto pratica tais ações, está resistindo não apenas para
existir, mas para viver e repassar às novas gerações tudo que apren-
deu no delta do Orinoco, rodeada pela natureza, pela família e pe-
los amigos. Hoje, longe de sua antiga comunidade, a mulher Warao
não deseja muito: ela quer ser vista, respeitada, ouvida. Ela quer uma
casa para chamar de sua, um emprego para se manter e ter orgulho
de dizer: “Sou mulher, sou indígena, sou venezuelana, sou imigrante.
Respeite minha vida, minha cultura, minha luta e minha história”. 

Referências

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- 50 -
GINÁSTICA PARA TODOS NO AMAZONAS:
contribuição do Programa de dança, atividades
circenses e ginástica

Lionela da Silva Corrêa8


Michele Viviene Carbinatto9

Resumo
A Ginástica para Todos (GPT) é compreendida como uma manifestação da
cultura corporal que agrupa as diversas interpretações da ginástica com outras
formas de expressão corporal de maneira livre e criativa. Com um alto valor
educacional, devido aos seus aspectos sociais, recreativos e de saúde, esta práti-
ca permite a participação de qualquer pessoa, independente de cor, nível social,
idade, sexo, condição física ou técnica (FIG, 2009). No Amazonas a prática é
relativamente nova e entrou como atividade do Programa de dança, ativida-
des circenses e ginástica (PRODAGIN) a partir da aproximação do programa
com o Grupo de Estudos e Pesquisa em Ginástica da USP (GYMNUSP). Em
2018, alunos da graduação e pós-graduação do PRODAGIN realizaram uma
visita acadêmica na EEFE/USP a fim de conhecerem os trabalhos realizados
pelo GYMNUSP. Diferentes oficinas e reuniões foram sistematizadas para troca
de experiências e conhecimento. Após o encontro, o grupo de alunos voltou
à UFAM com a incumbência de implantar a prática de GPT como uma das
atividades do PRODAGIN. O grupo se fortaleceu e em 2019 foi o primeiro do
Amazonas a participar do Festival Gym Brasil – evento Nacional de Ginástica
para Todos promovido pela Confederação Brasileira de Ginástica (CBG), e des-
de e então tem marcado presença em eventos científicos, esportivos e culturais,
em âmbito nacional e internacional.
Palavras-Chaves: Ginástica; Ginástica para Todos; Amazonas.

Começar uma prática onde poucos a conhecem pode ser de-


safiador. Segundo Corrêa, Cabo Verde e Carbinatto (2022), a GPT
parece incipiente na Região Norte do Brasil. Por meio de uma re-
visão sistemática, os autores identificaram relatos de experiência e
pesquisas sobre a prática na região, buscando por trabalhos publi-
cados no período de 2000 a 2020 nas seguintes bases de dados, Bi-
blioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), Anais do Fórum
Internacional de GPT e em 20 revistas brasileiras que tinham escopo
Educação Física e Esporte. Apenas sete trabalhos foram encontra-
8 Professora Doutora da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da Universidade Federal
do Amazonas.
9 Professora Doutora da Escola de Educação Física e Esporte - EEFE da Universidade de São
Paulo - USP

- 51 -
dos, publicados a partir do ano de 2016, seis do estado do Pará e um
do Amazonas.
No Amazonas, apesar da riqueza dos festivais folclóricos, e es-
tes serem repletos de movimentos gímnicos, em que os componentes
dos seus grupos vivem experiências que se aproximam da Ginástica
Para Todos, a prática não é conhecida — pelo menos não de maneira
formalizada, ou registrada junto à Federação Amazonense de Ginás-
tica (FAG).
E apesar de existirem iniciativas para difundir a Ginástica
Para Todos em todo território nacional, muitas vezes fica a cargo dos
grupos já existentes. Nos últimos anos, o incentivo ocorre dentro das
universidades, de maneira que a GPT é impulsionada para dentro
do meio acadêmico (SILVA; ZYLBERBERG, 2016). Podemos citar
como grupos oriundos das Universidades o Grupo Ginástico Uni-
camp (GGU), Grupo Gymnusp da USP, o GGD da UFVJM, Gym-
narteiros da Universidade Federal do Ceará, GEGINBA da Universi-
dade Federal da Bahia (UFBA), dentre outros.
Assim, talvez o primeiro grupo do Amazonas oficializado seja
o do programa de dança, atividades circenses e ginástica – PRODA-
GIN, federado pelo clube ArtGym, que participou como o primeiro
grupo amazonense do Festival Gym Brasil 2019 e do Festival de Gala
da FAG, Amazongyn.
O Gym Brasil é o festival nacional de Ginástica para Todos
organizado pela Confederação Brasileira de Ginástica desde a déca-
da de 1980, cujo objetivo é difundir a prática da ginástica, favorecer
as relações interpessoais entre integrantes de um mesmo grupo e
entre diferentes grupos, e realizar avaliações pedagógicas e sem pó-
dios (CARBINATTO; BENTO-SOARES; BORTOLETO, 2016). E o
Amazongyn é o festival organizado pela FAG que visa congregar os
praticantes de diferentes modalidades gímnicas e apresentar o resul-
tado do trabalho do realizado pela FAG no decorrer do ano.
O Gym Brasil ainda não conseguiu contemplar todas as re-
giões do Brasil quanto a representatividade. Na edição de 2013, por
exemplo, participaram apenas grupos da Região Sul, Sudeste e Nor-
deste (CARBINATTO; BENTO-SOARES; BORTOLETO, 2016). Em
2017, edição realizada pela primeira vez na Região Centro-oeste, em
Campo Grande (MS), participaram grupos do Nordeste — do Rio

- 52 -
Grande do Norte e Ceará; Centro-oeste — de Mato Grosso do Sul;
Sudeste — de São Paulo, e Sul — do Paraná. Em 2018, participaram
grupos apenas de São Paulo — Região Sudeste — e Mato Grosso —
Região Centro-oeste (CBG, 2018).
Em se tratando da World Gymnaestrada, a maioria dos gru-
pos brasileiros que já participaram desse festival ao longo dos anos é
oriunda da Região Sudeste do Brasil. Mais especificamente dos esta-
dos de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, locais onde a GPT
tem tido maior expressão e desenvolvimento (PAOLIELLO, 2014).
Apenas em 2019 houve a participação, inédita, de um grupo
do Amazonas (Região Norte) no Gym Brasil. Em relação aos locais
que já sediaram o evento, ainda não houve nenhuma edição na Re-
gião Norte. No entanto, iniciativas junto a Federação Amazonense
de Ginástica (FAG) estão sendo fomentadas, e um desses incentivos
aconteceu na viabilização do grupo do Programa de Dança, Ativida-
des Circenses e Ginástica (PRODAGIN) participar do Gym Brasil.
O PRODAGIN é um programa de extensão da Faculdade
de Educação Física e Fisioterapia (FEFF) da Universidade Federal
do Amazonas (UFAM) que tem por missão proporcionar o desen-
volvimento das potencialidades motoras e expressivas de crianças,
adolescentes, adultos, idosos e pessoas com deficiência por meio da
prática da dança, ginástica e atividades circenses, e cultivar o saber
científico na área por meio do ensino, da pesquisa e da extensão,
contribuindo para a formação de profissional com qualidade. Com
isso, colabora com o compromisso da UFAM.
O PRODAGIN foi institucionalizado como programa de ex-
tensão pela UFAM em fevereiro de 2016. Atualmente, o programa
possui aproximadamente 400 alunos matriculados divididos em tur-
mas de diferentes práticas de dança, ginástica e atividades circenses.
A GPT entrou como atividade do PRODAGIN a partir da aproxima-
ção do programa com o Grupo de Estudos e Pesquisa em Ginástica
da USP – GYMNUSP. Em 2018, alunos da graduação e pós-gradua-
ção do PRODAGIN realizaram uma visita acadêmica na Escola de
Educação Física e Esporte da Universidade de São Paulo – EEFE/
USP, a fim de conhecerem os trabalhos realizados pelo GYMNUSP.
Diferentes oficinas e reuniões foram sistematizadas para troca de ex-
periências e conhecimento.

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Em um desses momentos do intercâmbio a integrante do
GYMNYSP, Pâmela Pires, ministrou um minicurso teórico/prático
de GPT em que apresentou as concepções da prática e as ginásticas
que a englobam (ginástica artística, rítmica, acrobática, trampolim,
aeróbica). A parte prática do curso foi realizada sempre com caráter
lúdico, dividida em aquecimento, as funções da pessoa base, inter-
mediário e volante, e construção de figuras individuais, duplas, trios
e conjunto (CABO VERDE; NASCIMENTO, 2020).
Após o encontro, o grupo de alunos voltou à UFAM com a in-
cumbência de implantar a prática de GPT como uma das atividades
do PRODAGIN que seguiram algumas etapas: 1. Realização de uma
oficina de GPT com os monitores do PRODAGIN; 2. Participação de
integrantes no Fórum Internacional de Ginástica Para Todos (2018);
3. Divulgação à comunidade acadêmica e externa da UFAM sobre o
projeto de GPT.
Esse processo coincidiu com as premissas da Confederação
Brasileira de Ginástica (CBG) para o ciclo (2017-2020) que dentre
suas metas visava contemplar outras regiões do Brasil além de Sul e
Sudeste no Festival Gym Brasil — não só como sede do evento, mas
também na participação de grupos. E, um dos desafios referia-se à
Região Norte (CBG, 2017).
Após a realização das oficinas em Manaus, deu-se início a um
grupo de GPT no PRODAGIN formado apenas pelos monitores e
professores do programa. A ideia era que o grupo experienciasse e
entendesse mais da prática para, então, abrir para comunidade ex-
terna. Assim, em 2019, no período de inscrição do PRODAGIN, que
acontece entre o mês de fevereiro de cada ano, abriu-se vagas para as
turmas de GPT infantil e adultos.
Como no Amazonas a prática é relativamente nova (ainda que
já houvesse outras iniciativas fomentadas pela FAG) e pouco difun-
dida no Estado, no site do programa, pelo qual as pessoas realizam
suas inscrições on-line, foi descrito uma nota explicando sobre essa
atividade, para aqueles que não conheciam pudessem saber do que
se tratava (e, assim, talvez, se interessar) e para que não houvesse
confusão com outras atividades (como por exemplo ginástica de aca-
demia ou mesmo atividade voltada apenas para o público de pessoas
com deficiência).

- 54 -
Mesmo assim, no primeiro dia de aula ainda havia pessoas
que se inscreveram buscando outro tipo de atividade. Dessa forma, o
primeiro encontro foi importante para pontuar a proposta aos inte-
ressados e realizar atividades de socialização. As aulas subsequentes
seguiram a vivência de elementos das modalidades de ginástica rít-
mica, ginástica artística, ginástica acrobática, dança, exploração de
materiais alternativos e composição coreográfica.
O grupo adulto se fortaleceu e em 2019 foi o primeiro do
Amazonas a participar do Festival Gym Brasil com a coreografia
“Um Canto de Esperança”, tema identidade amazônica. Neste mes-
mo evento foi pré-credenciado para representar o país no World
Gym for Life 2021 (Portugal), do qual não aconteceu devido a pande-
mia ocasionada pela COVID-19 não estar controlada.
A partir de então, o grupo de GPT tem se mantido ativo (de
forma remota nos anos de 2020 e 2021), participando de eventos
regionais, nacionais e internacionais, nas quais podemos destacar: a
participação do grupo adulto no festival de gala da FAG em dezem-
bro de 2019; em 2020 os dois grupos (infantil e adultos) participaram
do Festival on-line do GYMNUSP com as coreografias “Amazonas:
identidade cabocla” e “Operação curupira: o guardião da floresta” e o
grupo adulto participou do Festival de Ginástica on-line do México.
Em 2021 o grupo adulto participou do VIII Festival de Ginástica e
Artes Corporais da FCA - Versão on-line com a coreografia “S.O.S
Amazonas de fé”, do Festival do IX Congresso brasileiro de Ginástica
para Todos (on-line), e do II Festival UFBA de Ginástica - Festival
on-line de Ginástica para todos, em ambos com a coreografia “Ca-
noeiro”.
Em 2022 o grupo de GPT do PRODAGIN participou do X
Fórum Internacional de Ginástica para Todos – FIGPT, com as co-
reografias “Canoeiro” reorganizada para o modo presencial e “um
canto de esperança” ¾ a mesma apresentada no Gym Brasil em 2019
¾ , na qual incrementaram uma homenagem ao indigenista Bruno
Pereira e o Jornalista o inglês Dom Phillips que morreram na luta
pela Amazônia. Com a toada tema do boi Caprichoso 2022 “Ama-
zônia nossa luta em poesia: Manifesto do Povo Floresta”, o grupo
ergueu seus punhos e bateram seus pés em resistência à destruição
da floresta, dos povos originários e em solidariedade a todos aqueles
que perderam suas vidas nessa luta.

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Figura. 1 QRCod Amazônia, nossa luta em poesia

Punhos erguidos aqui


De braços dados até o fim
Liberdade é arte que triunfa e voa
Valentes, guerreiros, tutores
Guardiões azulados, protetores
Cingidos de poesia
O nosso canto ecoa, ecoa

Fonte: Amazônia nossa luta em poesia - Manifesto do Povo Floresta -


toada do Boi Caprichoso 202210

Figura 2. Coreografias “Canoeiro” e “Um canto de esperança”no X FIGPT

Fonte: Acervo do X FIGPT e acervo pessoal

Até o momento os grupos elaboraram e apresentaram duas


coreografias presenciais e quatro de forma remota, sempre enalte-
cendo a cultura amazônica e suas identidades, sem deixar de mostrar
sua criticidade frente aos diferentes acontecimentos na região. A se-
guir as sinopses de cada produção:
10 AGUIAR, Adriano e colaboradores. Amazônia nossa luta em poesia - Manifesto do Povo
Floresta — Toada do Boi Caprichoso 2022. Disponível em: < https://youtu.be/bidqF9mvj6U
> Acesso em: 24 de out. de 2022

- 56 -
“Um canto de esperança”11 – coreografia presencial – 2019 e
2022– retrata a cultura indígena, seus mistérios, seus encantos, e a
luta desses povos pela sobrevivência. A coreografia exalta que a vida
dos povos da floresta era em harmonia com a natureza até a chegada
do invasor. Destruidores, desbotaram o verde de nossas florestas nesses
mais de 500 anos de exploração. Mas, a resistência pulsa nos corações
amazônidas. E de punhos erguidos, unindo a forças, como um toré em
um grande dabacurí, bradam em um canto de esperança, resistindo.

Figura 3. Coreografia “um canto de esperança” apresentada no X FIGPT

Fonte: Acervo X FIGPT

“Amazonas”: identidade cabocla12 – coreografia remota – 2020


– retrata as riquezas da Amazônia iniciando com os movimentos de
braços, que expressa o rio que banha a imensidão da floresta. Nessa
região, cheia de encantos, contos e lendas estão presentes nas me-
mórias de seus habitantes, e na coreografia, a Yara, o Boto, a Ma-
tinta, entre outras lendas. Tais lendas, contadas pelos antepassados,
há sempre a história de luta e bravura do caboclo amazonense. Essa
identidade amazônica do caboclo está enraizada em cada amazonen-
se, e essa coreografia retrata isso. São apresentados ao mundo, por
meio da coreografia, o rio, a mata, as lendas, o caboclo amazonen-
11 GRUPO DE GPT ADULTO PRODAGIN. Um canto de esperança. Composição do Progra-
ma de dança, atividades circenses e ginástica - PRODAGIN. Disponível em: < https://youtu.
be/6-ByKroluAE > Acesso em: 02 de fev. de 2022> Acesso em: 02 de fev. de 2022
12 GRUPO DE GPT ADULTO PRODAGIN. Amazonas: identidade cabocla. Composição do
Programa de dança, atividades circenses e ginástica - PRODAGIN. Disponível em: <https://
youtu.be/6-ByKroluAE> Acesso em: 02 de fev. de 2022

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se em movimentos gímnicos, mostrando a união e democracia de um
grupo de Ginástica Para Todos em tempos de pandemia. Viva o cabo-
clo da Amazônia! Viva a Amazônia! Viva o Brasil.

Figura 4. Coreografia “Amazonas: identidade cabocla”

Fonte: Print canal youtube do PRODAGIN

“Operação Curupira”: O Guardião da Floresta13 – coreogra-


fia remota – 2020 - Apresenta notícias do ano da composição sobre
a Amazônia, que vinha travando uma luta histórica contra o fogo.
Cientificamente, sabe-se que existe uma estreita relação entre os im-
pactos ambientais e o surgimento das doenças e qualquer alteração
que acontece no meio ambiente atinge diretamente os humanos. A
poluição atmosférica causada pelo desmatamento desencadeia proble-
mas respiratórios vitais, os vírus se propagam de forma acelerada e por
não encontrar o seu hospedeiro natural (animais) ele passa a se abrigar
no organismo humano.
Enquanto o mundo está enfrentando uma guerra com um or-
ganismo invisível aos olhos humanos, homens maus tomados pela ga-
nância estão agindo de forma silenciosa e por meio de um elemento
natural que foi criado para o nosso bem, mas quando usado para o
mal destrói todo e qualquer organismo vivo a sua frente. A Amazônia
13 GRUPO DE GPT INFANTIL PRODAGIN. Operação Curupira: O Guardião da Floresta.
Composição do Programa de dança, atividades circenses e ginástica - PRODAGIN. Disponível
em: < https://youtu.be/RTMDqhMIKYM> Acesso em: 02 de fev. de 2022

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está indefesa, até mesmo os lendários guardiões são ameaçados, pois
a ganância humana tornou-se tão grande que os homens não temem
mais os segredos espirituais da floresta.
Na região norte uma lenda vem sendo contada desde os nossos
antepassados. Os anciões afirmam que já o viram ou pelo menos o ou-
viram, conhecido como gritador, anhangá, jurupari e principalmente
Curupira. É um pequeno jovem de cabelos vermelhos e pés investidos,
curioso e brincalhão, através de gritos, assobios, sons de animais sel-
vagens em fúria e causando ilusões assombrosas no seu inimigo ele
protege as nossas florestas principalmente de caçadores, madeireiros e
pessoas que destroem a floresta de forma predatória.
Figura 5. Coreografia “Operação Curupira: o guardião da floresta”

Fonte: Print canal youtube do PRODAGIN

“S.O.S Amazonas de Fé”14 – coreografia remota – 2021 – retra-


ta o colapso provocado pela falta de oxigênio para pacientes internados
com COVID-19 no Amazonas. O estado sofreu com a falta de oxigênio
e muitas vidas se perderam. Por isso, nesta coreografia clamamos “que-
ro respirar, Amazônia”. É um grito que sai da garganta daqueles que
foram e sempre estarão impactados com um dos maiores genocídios
ocorridos durante a pandemia. Mas, com a fé por dias melhores, fé que
muito representa a nossa região amazônica, celebraremos dias melho-
res, pois “todo mundo tem o seu momento de celebrar a fé”. Fé em que
a saúde se restabelecerá e a ciência se fortificará!
14 GRUPO DE GPT ADULTO PRODAGIN. S.O.S. Amazonas de Fé. Composição do
Programa de dança, atividades circenses e ginástica - PRODAGIN. Disponível em: < https://
youtu.be/wqtE-wyJ76Y> Acesso em: 02 de fev. de 2022

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Figura 6. Coreografia “S.O.S Amazonas de fé”

Fonte: Print canal youtube do PRODAGIN

Canoeiro15 – coreografia remota – 2021 - utiliza um dos clás-


sicos amazonenses a “saga de um canoeiro” na voz de Arlindo Jr. (in
memoriam) que por muitos anos entoou toadas que retrataram as fi-
guras típicas regionais amazônicas. E é a figura do canoeiro, aquele
que utiliza a canoa, que retratamos neste trabalho. Iniciamos com o
poema de Robério Braga que retrata a vida “do homem, a natureza,
a esperança e mão de Deus”. E, em movimentos contemporâneos, em
círculo, mostrando nossa união, damos luz ao caboclo remador. Em
pequenos grupos, com base em movimentos gímnicos, fazemos alusão
aos movimentos do rio, o subir na canoa, o remar e muitos outros ele-
mentos característicos da vida do caboclo canoeiro.
Figura 7. Coreografia “Canoeiro” on-line

Fonte: Acervo pessoal


15 GRUPO DE GPT ADULTO PRODAGIN. Canoeiro. Composição do Programa de
dança, atividades circenses e ginástica - PRODAGIN. Disponível em: <https://youtu.be/
Gbf74qVDYA8> Acesso em: 02 de fev. de 2022

- 60 -
Assim, a criação do grupo de GPT do PRODAGIN e a partici-
pação nos eventos de Ginástica para Todos alavancaram o interesse
de integrantes no trato com a prática e intensificaram o trabalho para
consolidar o grupo como o pioneiro na Região Norte do país.

Referências

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Ayla Taynã da Silva. Concepção de um grupo de GPT no Amazo-
nas. In: CORRÊA, Lionela da Silva; CABO VERDE, Evandro Jor-
ge Souza Ribeiro. PRODAGIN: história e produções acadêmicas.
Curitiba: Editora Bagai, 2021, pp. 127-142.
CARBINATTO, Michele Viviene; BENTO-SOARES, Daniela; BOR-
TOLETO, Marco Antonio Coelho. GYM BRASIL - Festival Nacional
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CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE GINÁSTICA - CBG. As-
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2017.
CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE GINÁSTICA – CBG. Fes-
tival Gym Brasil encerra temporada 2018 da ginástica para todos.
Imprensa, publicado em 07/12/2018. Disponível em: <https://www.
cbginastica.com.br/noticia/1236/festival-gym-brasil-encerra-tem-
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CORRÊA, Lionela da Silva; CABO VERDE, Evandro Jorge Souza
Ribeiro; CARBINATTO, Michele Viviene. A ginástica para todos
no Norte do Brasil: uma revisão sistemática. Revista Corpocon-
ciência, v. 26, n. 2, p. 16-32, 2022.
PAOLIELLO, Elizabeth. A ginástica geral na América do Sul. In:
Fórum Internacional de Ginástica Geral, 7, 2014, Campinas. Anais
do VII Fórum Internacional de Ginástica Geral. Campinas: UNI-
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SILVA, Tailan Ewerk Dantas da; ZYLBERBERG, Tatiana Passos. Pos-
sibilidades de inserção da cultura popular da região norte do brasil em
Coreografias de ginástica para todos. Conexões, v. 14, n. 4, p. 47-75,
2016.

- 61 -
- 62 -
RELEITURA DA CULTURA AMAZÔNICA:
traços da ginástica para todos – GPT em Manaus
a partir de 1970

Meriane Teixeira de Matos16


Artemis de Araújo Soares17

Resumo
A ginástica traça um percurso histórico conforme o contexto da sociedade na
qual se encontra e ao longo dessa jornada vai se ramificando e provocando o
surgimento de diferentes tipos. Neste trabalho nosso olhar está voltado para
a Ginástica Para Todos-GPT. O objetivo desse estudo foi desvelar o histórico
da ginástica para todos por meio das memórias e traços históricos dos profis-
sionais que atuaram no âmbito da ginástica em Manaus, antes mesmo de ter a
sua consolidação e nomenclatura estabelecida, utilizando a cultura amazôni-
ca como pano de fundo em suas coreografias. Como metodologia utilizamos
a pesquisa descritiva sócio-histórica, e como ferramenta para coleta de dados
utilizamos as entrevistas semiestruturadas, assim sendo, o método de investi-
gação foi a história oral, e para análise recorremos a Bardin com foco na sua
análise de conteúdo. A cultura Amazônica estava impregnada nos trabalhos
desenvolvidos pelos profissionais pioneiros que se esmeraram para fortalecer a
ginástica em nossa região através de suas atuações seja como colaborador direto
na criação da Federação de Ginástica do Amazonas, como presidente da FAG
ou de outras instituições que desenvolviam trabalhos voltados para esse cam-
po de atuação. Da mesma forma colaboraram nesse fortalecimento os alunos
que presenciaram as diversas manifestações dessa modalidade ou profissionais
que por meio de parcerias com o Governo do Estado tinham como objetivo a
participação de todos para levar a cultura da nossa região em suas coreografias
usadas nos desfiles cívicos ou em outras oportunidades dentro ou fora do am-
biente escolar.
Palavras-chave: Ginástica Para Todos; Cultura; Amazônia; Manaus.

Introdução
Ao longo dos tempos a ginástica tem sido uma prática utiliza-
da com objetivos variados através de diferentes manifestações. Aqui
vamos falar da Ginástica Para Todos - GPT, colocando em relevância
a relação entre a cultura amazônica e os movimentos gímnicos pre-
16 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/
UFAM). Professora do Ensino Fundamental das Séries Iniciais pela Secretaria Municipal de Edu-
cação (SEMED) - Prefeitura Municipal de Manaus. E-mail: merianematos11@gmail.com
17 Professora titular da FEFF-UFAM, doutorado na Universidade de Paris (Paris-Descartes)
e na Universidade de Renne - Doutorado em Ciências do Desporto na Universidade do Porto.
E-mail: artemissoares@gmail.com

- 63 -
sentes por meio da construção de coreografias com temáticas ama-
zônicas.
Segundo a Confederação Brasileira de Ginástica - CBG (2021),
a GPT é uma modalidade bastante abrangente. Está fundamentada
nas atividades de ginásticas, isto é, as ações gímnicas, as quais devem
estar presentes, porém integrando vários tipos de manifestações e
elementos da cultura corporal, tais como danças, expressões folcló-
ricas, jogos, dentre outras, expressões através de atividades livres e
criativas.
Para entender como essa prática esteve presente em nossa re-
gião é necessário buscar as narrativas com personagens que foram
importantes para o avanço da modalidade, portanto, ouvir e escrever
esses fatos, o que vai nos possibilitar entender esse processo, bem
como revelar a participação e a colaboração dessas personalidades
que foram primordiais para que a ginásticaalcançasse maiores pata-
mares no Amazonas (CORRÊA; NUNES; SOARES, 2020).
Como objetivo geral buscamos desvelar do histórico da ginás-
tica para todos em Manaus, por meio das memórias e traços his-
tóricos dos profissionais que atuaram no âmbito da ginástica nessa
cidade, antes mesmo de ter a sua consolidação e nomenclatura es-
tabelecida, utilizando a cultura Amazônia como pano de fundo em
suas coreografias.
Essa pesquisa caracteriza-se como pesquisa sócio-histórica, que
segundo Liberali (2008), abrange eventos já ocorridos, com foco nas
pessoas, organizações e instituições. Pautamos nosso trabalho na abor-
dagem qualitativa tendo como ferramenta para coleta de dados as entre-
vistas, assim sendo, como método de investigação, a história oral.
Os participantes da pesquisa foram personagens atuantes no
contexto da ginástica de grande área, sendo estes, cinco mulheres
(Jeanne Abreu, Patrícia Machado Vaz, Kathya Lopes, Hyldelcy Frei-
re) e 2 homens (Thales Verçosa e Afonso Nina), com menção es-
pecial à professora Dra. Artemis Soares, citada por quase todos os
participantes, por sua contribuição marcante e honrosa na área da
ginástica. Todos os participantes exerceram diferentes papeis: ex-
-presidentes de clubes, ex-técnicas, ex-ginastas ou professores.
Utilizamos a entrevista semiestruturada, que é bastante utili-
zada por permitir a delimitação do volume de informação para di-

- 64 -
recionamento mais aprofundado do tema, podendo-se realizar uma
intervenção a fim de alcançar os objetivos podendo-se até permitir
uma interrogação (BONI e QUARESMA, 2005).
Desta forma, com as entrevistas realizadas, utilizamos a aná-
lise de conteúdo que, segundo Bardin (2016) se organiza em torno
de três polos cronológicos: pré-análise, exploração do material e tra-
tamento dos resultados.

Cultura e cultura Amazônica

A cultura amazônica que tem suas raízes na miscigenação que


concentra a mistura de indígenas, africanos e europeus. Nosso foco
é a cultura indígena, com sua ancestralidade em meio as suas práti-
cas corporais como a pesca, caça, danças, festas, o cuidado com seu
corpo, conhecimentos da floresta e além das trocas de saberes passa-
dos de geração em geração (RODRIGUES, 2022).
Cada sociedade tem o seu conceito sobre cultura, portan-
do torna-se ampla a sua definição. Para Alfred Kroeber, Clyde
Kluckhohh e Malinowski encontramos pelo menos 167 definições
de cultura. Assim, Clyde Kluckhohh conceitua como um padrão de
definições que são tranmitidos ao longo da história, através de sim-
bolos, onde o ser humano se comunica, perpetua e se desenvolve por
meio do conhecimento e atividades cotidianas (MARTINI, 2007).
Assim, Geertz (2008) apud Kluckhohn (1949):

Kluckhohn conseguiu definir a cultura como: (1) “o modo de


vida global de um povo”; (2) “o legado social que o indiví-
duo adquire do seu grupo”; (3) “uma forma de pensar, sentir
e acreditar”; (4) “uma abstração do comportamento”; (5)”uma
teoria, elaborada pelo antropólogo, sobre a forma pela qual um
grupo de pessoas se comporta realmente”; (6) “um celeiro de
aprendizagem em comum “; (7) “um conjunto de orientações
padronizadas para os problemas recorrentes”; (8) “comporta-
mento aprendido”; (9) “um mecanismo para a regulamentação
normativa do comportamento”; (10) “um conjunto de técnicas
para se ajustar tanto ao ambiente externo como em relação aos
outros homens”; (11) “um precipitado da história”, e voltando-
-se, talvez em desespero, para as comparações, como um mapa,
como uma peneira e como uma matriz (KLUCKHOHN, 1949
apud GEERTZ, 2008).

- 65 -
De acordo com Morin (2007) a cultura é um conjunto de prá-
ticas e hábitos, savoir-faire18 , mitos, crença, estratégias, normas, sa-
beres, interditos, repassados entre as gerações, criando e recriando a
complexidade social. Afinal, cada povo possui a sua cultura, permi-
tindo a cada sociedade a sua própria significação.
As práticas e costumes vão moldado cada povo, comunidade,
sendo o próprio social a cultura em si, a forma de comportamen-
to individuais ou em grupos, a reunião dos saberes plurais, sob a
perspectiva das produções artísticas, religiosas, artesanais, ritualísti-
cas entre outras. Os costumes e peculiaridades variam conforme os
grupos sociais.
Segundo Laplantine (2003) trata-se da reunião dos saberes
singulares e plurais, fazeres e comportamentos individual que cons-
titui um grupo humano ou sociedade estabelecida, porque a trans-
missão do processo de aprendizagem ocorre em meio ao contato
com o grupo em que está inserido. O que nos evidencia é que cada
ser é contribuinte direto ou indireto na construção da cultura através
das trocas existentes, pois são eles que facilitam a sua disseminação.
A cultura amazônica se construiu através da produção dos
valores indígenas e portugueses por meio do contato entre a nature-
za, indo da tradição à modernidade, por meio de uma ação dinâmica
onde a cultura situa o homem na história regional, nacional e univer-
sal (RIBEIRO, 2015).
Esse mesmo autor evidencia que a miscigenação entre grupos
da região e dos povos formam a identidade Amazônica abrigando as
diferentes trocas de tradição e costumes enriquecendo a nossa cultu-
ra. Em contato com os ambientes sociais e naturais surge a singulari-
dade desses povos e grupos amazônicos, bem como a diversidade de
expressões e a dificuldade de aceitação das suas metáforas do imagi-
nário das tradições.
As marcas da cultura estão representadas na corporeidade
através da materialização dos ritos, mitos, pinturas corporais, gra-
fismo, máscaras, danças, cuja função torna-se social e identifica os
grupos, expressões essas que vão além do mundo físico, é simbólico
e aproximam do mundo espiritual.
Conforme Peirano (2003) os ritos são importantes para resol-
ver conflitos e reproduzir as relações sociais e bons para transmitir
18 Saber fazer

- 66 -
valores e conhecimentos, pelo fato de vivermos em sociedade, o que
fazemos tem um elemento comunicativo implícito. O corpo expres-
sa os significados da sociedade na qual está inserido, sendo o suporte
da herança sociocultural do seu povo. Para Mauss (2017) o corpo
“instrumento primeiro” que relaciona tudo ao que o homem pensa,
deseja, utiliza, manuseia depende dessa articulação com o seu corpo.
Para Alencar e Buitrago (2020) pensar o corpo no contexto
indígena é preciso refletir quanto a complexidade das ligações cos-
mológicas, tradicionais, ancestrais e interculturais na criação ética e
identitária dos diferentes povos.
Podemos constatar essa ligação centrada no ritual da Worecü
do povo Tikuna, onde o corpo índio amazônico moldado na com-
plexidade da construção de um processo constante em prol da fa-
bricação com intervenção do corpo e a ligação com o mundo real e
imaginário.
Os rituais indígenas assim como suas atividades diárias são
plenos de gestos e movimentos que hoje estão plenamente utilizados
nas mais diversas manifestações culturais amazônicas: o auto dos
bois bumbás de Parintins, a dança da ciranda, as tribos dos festivais
locais. Além da destreza do arco e flecha, outros tinham habilidades
na canoagem e expertise na caça e pesca devido a sua capacidade cor-
pórea que lhes habilitam para tais competências, as quais se fazem
presentes nas práticas corporais.
Pensar em práticas corporais é trazer à memória a construção
da ginástica que tem em seus movimentos identificados na luta pela
sobrevivência. Mas aqui não nos propomos a fazer essa ligação cul-
tural com a ginástica em si, mas com a Ginástica Para Todos - GPT,
modalidade que se baseia em 4’Fs: Fun (Diversão), Friendship (Fa-
zer amigos), Fitness (Aptidão Física) e o Fundamentals (Fundamen-
tos. Em sua prática o uso de material poderá ser oficial ou alternativo,
ou sem aparelhos, utilizando a dança, o teatro, e o circo entre outros
(FIG, 2021).
A GPT como atividade gímnica, construída por exercícios cor-
porais de forma individual egrupal, enriquece-se ao absorver muitos
dos movimentos corporais dos povos indígenas na elaboração de
suas coreografias. É possível contar várias histórias e ritos daque-
les povos utilizando-se de corridas, passos, saltos, movimentos de

- 67 -
transporte do outro, movimento de colaboração entre duplas e trios,
batidas rítmicas com pés, com pés e mãos e batidas no próprio corpo
produzindoe explorando a diversidade de sons que o corpo oferece.
A encenação mimética é utilizada durante a apresentação
das figuras de destaque a exemplo dos tuxauas, pajés, das entidades
sobrenaturais representadas pelas alegorias gigantes e exóticas que
surpreendem prendendo a atenção de quantos assistem pelo impacto
causado noimaginário popular. Dessa forma a GPT trata de materia-
lizar a representação subjetiva da cultura amazônicaonde os encanta-
dos manifestam a ancestralidade através de diferentes personagens,
cada umcontando a sua história, evidenciando dessa forma o encon-
tro entre natureza e cultura.

A representação da cultura amazônica nas coreografias de


GPT a partir de 1970

A Amazônia é descrita por diversos pesquisadores, biológos,


antropólogos, filósofos entre outros como “Selva de Pedra”, “Pulmão
do mundo”, “De beleza sem igual” e tantas outras definições. A cul-
tura amazônica genuína, por suas águas, flora, fauna que se liga ao
cosmo e na ancestralidade mitos e ritos da floresta, por isso precisa-
mos dar a saber a devida importância para a floresta, pois dela eles
extraem a sua sobrevivência.
Os mitos e ritos através da releitura no diálogo entre eles, os
indígenas com os seres sobrenaturais os ditos “encantados”, e que esta
relaçãobem sucedida ameniza os possíveis desequilíbrios entre a na-
tureza e eles, onde suas relações humanas e sociais estejam mantidas
em equilíbrio como o nascimento, o casamento e a sua morte.
A vivência com a natureza deixa-os mais próximos dos seres
sobrenaturais que se apresentam durante a execução de seus rituais,
pois os povos da floresta acreditam que as comunicações com estes
seres sobrenaturais podem amenizar problemas entre eles como com
a comunidade de forma geral.
Como a cultura amazônica pode se transfigurar, sair da ora-
lidade, do papel, do imaginário amazônico, como a literatura ama-
zônica, que por suas potencialidades pode ser usada no campo da
educação corporal, localizando na Ginástica para Todos o viés in-

- 68 -
terpretativo desse conhecimento, que vai além do dançar artístico
apreciativo e se transforma em um espetáculo de diversidade e trans-
culturalidade quando é utilizado em uma apresentação tendo o cor-
po diverso como principal elemento.
Podemos constantar esse fato nos relatos de profissionais que
estiveram atuando na década de 70, e que tinham como intuito or-
garnizar uma prática onde a participação de todos era o principal
foco.
Assim, a ginástica começa a ganhar novas possibilidades a
partir da criação da Federação Amazonense de Ginástica (FAG), que
surge em meio a uma conversa de amigos e profissionais que alme-
javam o crescimento dessa modalidade em nossa região, conforme
podemos constatar nos relatos do professor Thalles Verçosa.

Eu fui o primeiro presidente, e nós fizermos a federação em


razão do trabalho da professora Artemis que na época era trei-
nadora das equipes de GRD que representavam o Amazonas e
também no Instituto de Educação no Amazonas (IEA), onde ela
era professora.

Com a criação da Federação esse campo de atuação começa a


se tornar notório, afinal com um orgão competente para as tratativas
direcionadas a esse setor, fez com que a ginástica crescesse tecni-
camente e abrisse oportunidades para as ginastas locais, a exemplo
as passagens para as competições fora do Estado, assim também, a
capacitção de profissionais qualificados para desempenhar melhor
as suas funções.
Outro pessoa que fez parte dessa construção histórica, foi o
professor Afonso Nina que em sua juventude, quando aluno viven-
ciou as praticas gímnicas por meio da ginástica artísticas e eventos
ocorridos nas dependências do Colégio Militar e enquanto profes-
sor/profissional, que foi um dos presidentes e paralelamente a isso
secretario do realizaram trabalhos com traços da GPT. Confrome
exposto pelo professor Afonso Nina:

Concomitante eu fui secretário da secretaria de esporte e presi-


dente da federação de ginástica, eu tive a oportunidade de fazer
essa ginástica de demonstração quando eu estive na subsecre-
taria do desporto, então entre 1991-1994 março a dezembro
(Afonso Nina).

- 69 -
Com o relato do professor Nina evidenciamos que a prática de
ginástica de carater demonstrativo já ocorria na nossa região, porém
ainda sem essa caracterização de GPT, mas com os atributos que ela
possui.
Foi no Instituto de Educação do Amazonas – IEA, que a prá-
tica de ginástica tomou impulso. Inicialmente Professora Waldecí-
ria Melo desenvolveu a prática da ginástica de demonstração, tendo
envolvido grande numero de estudantes para coregrafias de grande
porte para apresentação até em estádios. Posteriormente, vem a pro-
fessora Artemis Soares, criando grandes possibilidades da prática de
ginástica naquele ambiente escolar. Deu início a os treinamentos de
uma equipe de ginastas e se utilizavada chamada Ginástica Moderna,
realizando coreaografias em eventos festivos e cívicos. A professora
Jeane Abreu era uma dessas alunas que compunha essa equipe.
Por volta do ano 1972 mais precisamente, eu fazia parte da equi-
pe do Instituto de Educação do Amazonas, eu estava no meu se-
gundo ano, atualmente é o ensino médio, eu já contava com 15
anos para 16 e a professora Artemis era a minha professora de
Educação Física, assim algumas alunas da professora Artemis
que já se destacavam, participavam do desfile de 7 de Setembro
carregando letra da escola, faziam aquelas coisas apresentadas
que ela conduzia e eu fazia parte desse grupo, onde tudo que ela
chamava: desfilar no sete de setembro no grupo de baliza, levan-
do letrinha na frente do nome, as coisas que ela criava na época
(JEANE ABREU).

Esses trabalhos foram construídos pautados na representativi-


dade da cultura amazônica. Com objetivos diversos os profissionais
utilizavam os ritos e mitos nas suas atuações conforme as temáticas
desenvolvidas, e para os eventos que precisavam de um número ex-
pressivo de crianças, o que podemos notar é a parceria entre o Gover-
no do Amazonase as escolas atuantes.

Esse último ano foi o trabalho dos 500 anos da nossa Inde-
pendência, mas a gente trabalhou vários temas, relacionado ao
Meio Ambiente, Homenagem a Bandeira do Estado, não consigo
lembrar muitos, nos jogos escolares começamos com 100 alu-
nos e na semana da pátria foram mais de 2 mil crianças. Os
alunos das escolas municipais vivenciaram bastante isso, pois
teve uma época que as escolas privadas, federais e estaduais
participavam e foi diminuindo até que ficou somente as escolas

- 70 -
municipais (Hildecy Freire)” / A partir daí culminou que o di-
retor da nossa escola foi secretário de estado e ele convidou para
que nós fizéssemos um desfile no 7 de setembro, com a banda
da polícia militar, utilizando os lençóis formando a bandeira do
nosso Estado, do Brasil e o encontro das águas, fazendo isso em
movimento. Eu saí da escola e a minha colega que permaneceu,
foi convidada para muitos eventos, como abertura de jogos e
sempre nessa linha de multidão. Então nós iniciamos esse tra-
balho em 87,88,99, 90 e 91 (Kathya Lopes) / E eu lembro que
no encerramento de disciplina, eu creio que do Kemel, um aluno
nosso Leonardo, fez uma apresentação junto a equipe dele muito
bacana, eles fizeram a parte acrobática e depois uns alunos fi-
caram em cima de um cavalo abrindo uma camisa e ele veio e
saltou do trampolim e vestiu a camisa no ar, entrando e fazendo
o movimento adiante. A Ginástica acrobática para mim e ati-
vidade mais fácil de realizar na escola e com mais impacto na
comunidade escolar, sem material, você trabalha um estrelinha,
uma parada de mão, um aviãozinho, um salto, um giro ao redor
do corpo, todos esses movimentos se forem de maneira sincrô-
nica, ai você bota os adereços no cara, na testa no punho, chama
atenção e atende um monte de menino que não tem habilidade
com bola e chama a atenção da comunidade, bem organizado,
como se fosse as Team lideres, que antigamente chamávamos de
Macro ginastica (AFONSO NINA).

A parceria do Governo do Amazonas aconteceu porque este


visualizou na apresentação da equipe de Ginástica durante o desfile
cívico, um atrativo de chamamento das famílias das crianças ejovens
que se apresentariam e da apreciação da sociedade fortalecendo a
ideia do Governo para incrementar, inovando o desfile cívico.

Figura 1. Figura Geométrica utilizada no desfile cívico

Fonte: Acervo Pessoal Patrícia Vaz

- 71 -
Nessa imagem percebemos o uso das figuras geométricas uti-
lizadas pelas professoras como uma estratégia para trabalhar com
muitos alunos, utilizando-se exercícios simples e que era possível a
participação de todos de forma proveitosa. Essa é uma das carac-
terísticas da GPT que opta não pela exclusão, mas pela inclusão de
todos os envolvidos dos grupos
Esta ação fez os alunos participarem cada vez mais desta ativi-
dade oferecida pela escola e que motivados, aumentaram o número
de participantes adeptos a este evento anual. E nos relatos de Kathya
Lopes constatamos que esta parceria aconteceu através das relações
de amizade existentes, como também por simpatia a esta modalida-
de esportiva por parte de representantes do governo.

A partir daí culminou que o diretor da nossa escola foi Secretá-


rio de Estado e ele convidou para que nós fizéssemos um desfile
no 7 de setembro, com a banda da polícia militar, utilizando
os lençóis formando a bandeira do nosso Estado, do Brasil e
o encontro das águas, fazendo isso em movimento. Eu saí da
escola e a minha colega que permaneceu, foi convidada para
muitos eventos, como abertura de jogos e sempre nessa linha de
multidão. Então nós iniciamos esse trabalho em 87,88,99, 90 e
91 (KATHYA LOPES)

Na narrativa da entrevistada, interpretamos que ao utilizar os


lençóis para representar a bandeira e o encontro das águas, nos leva
a crer que a criatividade da professora ao usar objetos do cotidiano
passou pelo fato de trazerem um simbolismo por sua maleabilidade,
sinuosidade e pela capacidadede modelagem.
Neste sentido os lençóis, assim como as águas, nos remetem
à simbólica do nosso rico imaginário amazônico, e que esta atitude
se configurou como modelo para se fazer as futuras apresentações. A
verdade é que ela nos conta que mesmo que tenha mudado de lugar de
trabalho, as outras professoras que ficaram continuaram incremen-
tando as apresentações a partir desta iniciativa, de uso de objetos que
simulam a natureza.
Além dessa formação ser uma característica da GPT, ela nos
remete aos movimentos realizados em tribos indígenas, onde a roda
é um dos principais elementos dentro dos rituais e danças. Os jovens
submetidos ao ritual devem efetuar movimentos corporais específi-

- 72 -
cos com os pés, as mãos e o corpo como um todo, e às vezes recebem
auxílio de um membro mais velho condutor do ritual e de alguns dos
demais participantes. Um acessório sonoro como um chocalho é co-
locado nos tornozelos do jovem iniciante, feito de cascas de castanha
ou maracá, os quais são fixados ao corpo do rapaz pouco abaixo do
joelho direito.
O ritual se realiza quando cantam e dançam com o jovem ini-
ciante acompanhado por um mais velho, e nas mãos as luvas conten-
do as formigas. Assim que as formigas começam a morder, o jovem
começa a desferir golpes com a sola do pé direito no chão.

Figura 2. Em festividade um grupo de jovens indígenas em


execução do ritual

Foto: Marina Souza/Agência Brasil

A imagem fotográfica nos mostra os jovens rapazes acompa-


nhados com um indígena mais experiente que lhes apoiam os braços
à altura do cotovelo para que este não fraqueje com as dores causa-
das pelas ferroadas das formigas e acabe por apoiar as mãos
A dança é realizada em círculo e é composta de um único pas-
so que é repetido simultaneamente por todos, onde somente tem fi-
nalização após o jovem iniciante completar o círculo no centro da al-
deia. Os passos para a frente, para trás e para o lado são movimentos
coletivos que podem ir para a direita e para a esquerda, dependendo
do que for determinado pelo comandante. Além disso, a dança re-
presenta um coletivo unido e preparado. Segundo Sandy Yusuru, “Os
rituais acontecem nas aldeias nos meses de abril e novembro, são os me-
sesque mais acontecem as festas para o ritual”.

- 73 -
A ginástica com a temática regionalizada apropria-se da cons-
ciência coletiva e desperta o interesse pelas nossas riquezas amazô-
nicas, como o caso da floresta que é notóriaa sua importância para o
mundo, como ocorreu com a utilização da música Lamento de Raça,
que traz uma mensagem dos danos causados à floresta e as conse-
quências sofridas por todos, pessoas,fauna e flora.

Figura 12. Painel humano

Fonte: Acervo Pessoal Patrícia Vaz

Esta imagem demonstra a criatividade da professora ao explo-


rar outro espaço e imaginar previamente como ficaria a composição
da palavra floresta que fora disposta na arquibancada, surpreenden-
do as pessoas dando um brilho e incrementando a apresentação no
formato de espetáculo. Sobre os movimentos Patricia Vaz no diz:

Através dos símbolos do nosso estado para homenagear, teve


um que a gente falou sobre a floresta, não começamos na pista, a
gente escolheu uma arquibancada que era bem de frente, utiliza-
mos a música dos raízes caboclas, fizemos adereços de material
barato: canoa, adereços, as queimadas, arcos desenhando a flo-
resta. Sempre utilizamos movimentos da ginástica, movimentos
de abrir e fechar os braços, elevações, agachar, subir, levantar,
movimentos que podem aparecer (PATRÍCIA VAZ).

Esse contato em meio à natureza nos retrata a questão das raí-


zes indígenas, que fazem parte da nossa história e que enriquecem a
nossa cultura. Afinal a cultura amazônica se constitui através das tra-
dições e da troca entre gerações, e assim podemos confirmar nossa
- 74 -
riqueza cultural promovendo a transculturalidade para as atividades
da GPT.
As temáticas utilizadas na GPT eram colocadas, pelo que po-
demos observar nos depoimentos dos entrevistados, para acompa-
nhar o calendário escolar e as datas comemorativas anuais. Segundo
Kathya Lopes na época do Natal fica evidente que faziam atividades
que já tinham um traço da GPT, mas que ainda não eram assimiladas
como tal:

Na noite de natal a estrela com a lanterna e teve um ano que


fizemos com as crianças na quadra e as algumas crianças com
painel na arquibancada, eu acho que em 89 ou 90. O que eu pos-
so dizer é que sim, que a gente já fazia GPT lá atrás sem pensar
nessa nomenclatura. (KATHYA LOPES)

Evidenciamos na afirmação da entrevista com a Professora


Kathya Lopes quando ela diz que o seu fazer inicialmente quanto a
GPT, foi sem intenção, pois não elaborou nenhuma coreografia que
precisasse da participação de todos.

Na verdade, eu nunca usei isso como GPT, hoje eu penso que


fiz isso, na época 87, 88 e 99 em uma escola particular, a nossa
intenção era “Todas as crianças tinham que participar”. Sendo as
formações mais utilizadas do que o próprio movimento em si,
pois era difícil todos fazerem certo. A ideia era a participação
de todos utilizando os movimentos, as contagens eram feitas por
nós professores. Essa foi a nossa experiência que poderia cha-
mar de GPT onde todos pudessem participar e não apenas os
melhores, eram todos, com bastante movimentos e implementos
(KATHYA LOPES).

A experiência vivida aqui relatada pela professora Kathya nos


leva a imaginar que a GPT foicriada para satisfazer uma inquietação
da professora, qual seja, ver todos os alunos participando igualmen-
te, sem exclusão dos menos habilidosos, mas proporcionando e per-
mitindo a participação de todo o grupo.

Essa foi a nossa primeira experiência e foi bem interessante pois


todas as crianças das turmas participaram e nesse ano tivemos
até inclusão, pois um aluno com deficiência física, devido a pa-

- 75 -
ralisia cerebral, ele andava com dificuldade e uma sugestão de
um aluno foi “correr pra cima em vez de pra frente”, então eles
conseguiram correr devagar e pra cima conforme o som da ba-
tida e a criança conseguiu participar e eu lembro que a mãe ao
final veio falar com a gente, pois ela viu o seu filho ali,cada mãe
conseguia enxergar o seu filho ali (KATHYA LOPES).

Desta forma entendemos que a GPT foi prenunciada para ser


uma atividade elaborada e desenvolvida inicialmente dentro de um
fazer empírico, para realizar um desejo de ver todos executando
movimentos que equalizassem a dificuldade da execução coletiva
da modalidade, mas que futuramente, como vimos, tornou-se o que
atualmente chamamos de GPT.
Considerações finais

As memórias da ginástica em Manaus estão sempre vincula-


das às datas históricas importantes para nosso Estado, mas princi-
palmente por estarem em consonância com a nossa cultura quando
foram fundamentadas em nossas lendas, mitos e ritos Amazônicos.
O trabalho desenvolvido pelos personagens que aqui nos nar-
raram sobre as suas trajetórias, utilizaram-se de uma Educação Fí-
sica plural, já desenvolviam através da Ginástica Geral os atributos
ideias para o que hoje conhecemos como GPT, através das temáticas
utilizadas, voltadas para a cultura local, a exemplo a conexão entre
o ambiente, os movimentos e as expressões corporais extraídas das
histórias contadas nas lendas.
Trazer para o desfile nossas histórias, nossas lendas através de
personagens míticos contagiava a plateia, e sobretudo comunicava
uma informação histórica a todos que assistiam. E tudo realizado
com movimentos coreografados com sabedoria e comprometimento
com nossa história. Esses movimentos não eram outra coisa senão a
ginástica praticada por todos. É, portanto, uma das origens da GPT
que se confirma em nosso Estado.

Referências

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- 78 -
A EDUCAÇÃO BILÍNGUE:
a realidade de ensino na língua indígena e portu-
guês nas escolas indígenas do povo Koripako

Esly Camico Mandu19

Resumo
Este artigo propõe compreender a situação atual da educação envolvendo tan-
to o ensino na língua Koripako quanto na língua nacional e como poderia se
efetivar a educação bilíngue para obter um bom resultado na aprendizagem
sem desvalorizar a língua materna. Lembrando que a educação bilíngue para os
povos indígenas está garantida na legislação brasileira, mas que na sua prática
tem encontrado dificuldades por parte da comunidade educativa de como levar
esse modelo de educação a alcançar um bom resultado de aprendizagem dos
estudantes indígenas. O objetivo deste artigo visa colaborar no diálogo que nos
leve a superamos os desafios próprios de uma educação nesse contexto.
Palavras-chave: Educação bilíngue; língua Koripako; língua portuguesa.

Introdução
A utilização das duas línguas na escola sempre existiu ques-
tionamentos por parte de algumas pessoas da aldeia, na questão do
uso dessas línguas no processo de aprendizagem. Até hoje não existe
uma política linguística claramente definida; muitas das vezes não
se sabe qual das línguas deve ser mais utilizada ou menos utilizada
dentro da sala de aula, no processo de aprendizagem. Mesmo que
uma criança, em nosso contexto, nos primeiros anos, só fale a língua
materna. Em outro momento, um professor pode complicar a vida
escolar dessa criança e demais estudantes, ao iniciar ensinando essa
criança numa língua que ela não consegue dominar, nem mesmo
compreender. Talvez a maior implicação nesse contexto esteja no
fato da criança não conseguir um bom desempenho na aprendiza-
gem da leitura e da escrita. E é justamente nesse momento que essas
crianças necessitam de um acompanhamento diferenciado. Mas isso
nem sempre acontece, segundo descrito por (NETO, 2014).
Na verdade, como hoje temos as duas línguas utilizadas na sala
de aula se fazem necessário discutir a relação de como vamos traba-
lhar, para que as crianças possam ser verdadeiramente conhecedoras,
19 Indígena da etnia Koripako, professor de ensino fundamental e médio. Mestrando em
Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA/UFAM)

- 79 -
na parte da oralidade e escrita, tanto de sua língua materna como tam-
bém na oralidade e escrita na segunda língua, no caso o português.
A minha preocupação sobre essa problemática surgiu no ano
de 2014, quando foi contratado pela primeira vez como professor
indígena pela SEDUC/AM o mesmo ano que também ingressei no
curso da Licenciatura Indígena Politicas Educacionais e Desenvolvi-
mento Sustentável do IFCHS-UFAM. Nesse ano teve uma reunião
de avaliação das atividades pedagógicas junto com a participação da
comunidade educativa. Nessa reunião alguns pais e mães dos estu-
dantes reivindicaram aos professores, as suas preferências, ou seja, a
preferencia e desejo dos pais são de que a língua portuguesa seja o
idioma predominante de ensino, enquanto a língua materna (língua
Koripako) poderia ser usada apenas como o veículo para facilitar a
aprendizagem dos estudantes indígenas.
Na realidade, voltando bem atrás, esse anelo dos pais dos alu-
nos, que seus filhos se desenvolvam mais na língua nacional, sem
priorizar a língua materna, foi o que levou os missionários no passa-
do, a não mais ensinarem na língua materna, porque o próprio povo
reivindicava o conhecimento do português. Conforme atesta muitos
dos que conviveram com o estudo anterior só na língua materna,
como foi introduzido inicialmente com os nossos avós.
Esses questionamentos, sobre a situação de qual língua deve-
ria ser utilizada ou predominante em sala de aula, ressurgiu quando
os próprios falantes da comunidade começaram a atuar como pro-
fessores. Nessa ocasião como estudante indígena, comecei a perceber
que esse desentendimento sobre a questão do uso tanto da língua
materna, quanto da língua nacional, precisava ser estudado, discuti-
do e compreendido para poder orientar o corpo docente, bem como
a comunidade em geral, e assim criar novas estratégias de como levar
as duas línguas de uma forma que viesse a garantir um bom resul-
tado, tanto para os estudantes, como também, para o povo em geral
Koripako das comunidades. Na verdade, como hoje temos as duas
línguas utilizadas na escola são necessárias que haja uma discussão,
para que as crianças possam ser verdadeiramente conhecedoras das
duas línguas.
Temos conosco um grande desafio, por um lado, temos o
grupo de pesquisadores de fora, que apresentam estudos na parte
linguística, afirmando que a língua materna precisa ser preservada
- 80 -
para não que não seja perdida futuramente. E afirmam também que
os grupos minoritários com o envolvimento maior com a sociedade
envolvente, “sofrem a concorrência” ou “a pressão” de outras línguas,
muitas vezes, mais poderosas (D’Angelis, 2008, p. 14). Por outro lado,
temos os anseios do povo, que veem muitas outras etnias que “avan-
çaram” desde cedo no domínio da língua nacional, e alcançaram
maiores oportunidades para fazerem suas reivindicações, e busca de
melhorias para suas comunidades e portas abertas de continuidade
de estudos para os seus filhos em cursos mais avançados.
Os dados aqui apresentados foram resultados do meu Traba-
lho de Conclusão do Curso/TCC do curso da Licenciatura Indígena
Politicas Educacionais e Desenvolvimento Sustentável/UFAM-Tur-
ma Baniwa (2014-2018). E que foi desenvolvido por meio da me-
todologia de aprendizagem via pesquisa tendo como plano de tra-
balho: consulta bibliográfica entrevista com idosos conhecedores,
lideranças indígenas, professores, gestor, pais, assessores pedagógi-
cos, pedagogas, secretário de educação e a observação direta na es-
cola, comunidade, nas reuniões sobre educação, na avaliação até por
meio das palestras realizadas por mim como estudante pesquisador.

Etnografia dos Koripako do Alto Rio Içana


O povo Koripako e um dos 23 etnias indígenas existentes no
Alto rio Negro, pertence ao grupo indígena da família linguística
Aruak, junto com o povo Baniwa, Baré, Werekena, Tariana, Apurinã
e demais grupos indígenas do Brasil e de outros países. Está presente
no noroeste da Amazônia brasileira, no interior do município São
Gabriel da cachoeira no Estado do Amazonas, na terra indígena do
Alto Rio Negro, especificamente no Alto Rio Içana, Colômbia nos
rios Guainia, Atauápo, rio Inirida, Guaviare e na Venezuela no rio
Negro, Cassiquiare, Orinoco e Atauápo. Mitologicamente, esse povo
originou-se na região do rio Içana do lado brasileiro, especificamen-
te, em Apuí, alto rio Ayari, afluente esquerda do rio Içana e dessa re-
gião que teria se espalhado para todas as outras regiões e rios acima
mencionados.
Atualmente, na região do Alto Rio Içana, temos quatorze co-
munidades e quatro sítios da etnia Koripako, com uma população
de 1268 pessoas; entre essas comunidades, temos São Joaquim, que

- 81 -
desse grupo é a comunidade que possui a maior população, formada
de 59 famílias com um total de 281 pessoas (segundo os dados PGTA
2016). A comunidade é considerada popularmente ponto estratégico
nesse trecho do Alto Rio Içana, porque geograficamente fica na parte
central entre as comunidades vizinhas de rio abaixo e de rio acima,
também por ter nela o Polo Base do DSEI, 3º Pelotão Especial de
Fronteira - PEF, pista de pouso e mais as duas escolas citadas acima.

Chegada da educação escolar formal para o povo Koripako

A educação escolar formal para povo Koripako começa sua


trajetória no final da década de 40, segundo a pesquisa bibliográfica.
Com a chegada do protestantismo; e se instalou no Alto Rio Negro,
principalmente na área dos Baniwa e Koripako do rio Içana. Segun-
do Wright (1981), em 1976 havia três Missões protestantes no Rio
Içana, isto é, três postos de atuação da MNTB. Sendo, porém, a mis-
sionária protestante pioneira, a norte-americana Sofia Müller, ligada
inicialmente a New Tribes Mission (Missão Novas Tribos).
Com esse movimento religioso na região e conversão ao pro-
testantismo, quase que por completo entre os Koripako, influenciado
pela missionária já referida acima, foi o momento mais significativo
para o povo, Wright (2005, p. 205) e Bezerra (1996-2007) relatam
que, na região do Alto Rio Içana, ela chegou por volta do ano de 1949
no meio de povo Koripako.
Dessa forma, o povo Koripako de cultura tradicionalmente
oral passa a ser influenciado pela cultura letrada através da evangeli-
zação e ao mesmo tempo da alfabetização. Onde a missionária Sofia
Müller utilizou uma metodologia de aprendizagem adequada para
as pessoas naquele tempo, e utilizou tão somente a língua Koripako.
Nesse período de 1949 até 1960 a maioria das pessoas apren-
deu a ler e escrever, ao mesmo tempo foi o grande encontro trazendo
uma nova configuração e um maior estreitamento com a cultura dos
não indígenas, isso foi muito marcante para o povo Koripako até os
dias de hoje.
Como o movimento religioso era forte na região do Rio Içana,
no alto Içana especificamente, na comunidade São Joaquim chegou e
fixaram os missionários da Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)

- 82 -
com objetivo dar continuidade ao trabalho de alfabetização da So-
fia Muller e ao mesmo tempo dar continuidade a evangelização já
iniciada na região. Foram eles que iniciaram a primeira escola em
São Joaquim, porém registrada na SEDUC apenas na década de 80
(BEZERRA, 2015, p. 20)
Chegaram os missionários Ernesto Pinaicobo e João Batista
Mendes e depois outros missionários como missionária Adauta, e
outros pastores, entre eles, Ourípio e Elci de Paula, Marcelo e Rute
Silva e Eli e Silvana Péres (MNTB, 2005). Os Koripako frequenta-
ram essa escola sendo pelos os primeiros missionários alfabetizados.
Nesse período os missionários utilizaram mais a língua portuguesa
como língua de ensino para alfabetização, agora havia chegado um
período, onde o povo reivindicava um maior conhecimento do por-
tuguês e não da língua materna.
Após essas iniciativas, em 1983, a Secretaria de Educação do
município de São Gabriel da Cachoeira passou a assumir a responsa-
bilidade com a educação e solicitou aos missionários que atuavam no
Içana a promoverem cursos de capacitação de professores, na época
chamados de monitores; assim, vários cursos organizados pela mis-
sionária Adauta Eger foram dados para que os próprios indígenas
Koripako e Baniwa pudessem oficialmente assumir a responsabilida-
de de alfabetização nas escolas do 1º ao 4º ano do ensino fundamen-
tal (WEIGEL, 2003; D/MNTB, 2005).
Com essa autorização da secretaria, alguns Koripako tiveram
formação com os missionários para serem futuros professores, com
objetivo de atender melhor aos estudantes e também assumir a res-
ponsabilidade de alfabetização em suas comunidades. Através dessa
trajetória da escolarização iniciado com os missionários, até chegar
aos dias de hoje, o povo Koripako está cada vez mais possuindo a sua
autonomia, protagonismo por si mesmo de como levar a educação,
junto com a comunidade educativa. Assim fortalecendo a política de
educação escolar indígena do povo Koripako em suas comunidades.

Atual cenário da prática de educação bilíngue nas duas es-


colas Koripako
Atualmente nas duas escolas indígenas inseridas na comuni-
dade onde a maioria dos professores são indígenas falantes da língua

- 83 -
dos estudantes que é o Koripako, como vimos que a educação bilín-
gue possui certas modelos, dessa forma podemos analisar e compa-
rar que as nossas escolas não possuem o PPPI, realmente ainda não
existe um modelo específico onde às duas línguas possuem o tempo
determinado para serem utilizados na escola, por isso na interpre-
tação dos professores que atuam na escola referem que estão traba-
lhando com bilíngue simultâneo, ou seja, onde as duas línguas são
utilizados ao mesmo tempo como língua de instrução durante todo
o processo de aprendizagem começando desde a educação infantil
da escola municipal até na fase do ensino médio na escola estadual.
A justificativa para isso do uso de duas línguas ao mesmo tem-
po como língua de instrução nas escolas, devido que exista instala-
ção de pelotão de fronteira do exercito na comunidade, onde todos
os anos sempre têm os estudantes falantes da língua nacional que é
o português, que são os filhos dos militares geralmente permanecem
na comunidade dois anos, os seus filhos permanecem estudando
nestas escolas, por isso os professores optam a trabalhar com as duas
línguas seguidas da outra. Por isso a comunidade vive influenciada
pela língua portuguesa aos poucos nos seus dia a dia. Isso é a forma
de uso das línguas dentro de uma sala de aula na escola indígena
porque é assim que a política da comunidade local sobre o uso de
línguas na escola, mas como sabemos que essa forma não é adequada
para as crianças devido que aos poucos irá dificultar a aprendizagem
das crianças segundo a linguística devido que não dominam a língua
portuguesa.
Enquanto falando sobre o ambiente escolar a língua falada
entre os estudantes acontecem sempre na língua materna, nos in-
tervalos e até mesmo dentro da sala de aula, devido que na escola
a maioria é todos falantes da mesma língua e minorias são falantes
de língua portuguesa. De acordo com a observação dos professores
dizem hoje as crianças da comunidade já conseguem entender algu-
mas palavras da língua portuguesa com essa prática utilizada pelos
professores na sala de aula, mas com as experiências dos professores
observam que dificulta na leitura e escrita para as crianças é na lín-
gua portuguesa quanto na língua materna.
De acordo com o professor alfabetizador utiliza a língua ma-
terna para as crianças novatas que estão entrando pela primeira vez
na escola, como por exemplo: dar bom dia em língua materna e de-

- 84 -
pois em seguida o professor traduz ou interpreta na língua portu-
guesa por isso estão utilizando simultaneamente as duas línguas. Isso
também acontece devido a exigências dos pais ou responsáveis das
crianças.
Mas, alguns professores propõem que seria melhor utilizasse
somente uma língua que as crianças dominam como a língua ma-
terna Koripako, principalmente na fase de alfabetização como: Pré
I-II e até primeiro ano de estudo e após essa fase poderia começar
introduziria uma pequena porção da língua portuguesa como lín-
gua auxiliar. Na experiência de alguns professores de que as crianças
quando o professor utiliza duas línguas ao mesmo tempo está difi-
cultando aprendizagem dos estudantes, devido isso primeiro seria
a língua materna e depois a segunda língua para as crianças que já
estão no segundo ano assim por diante utilizando as duas línguas
juntas. Mas assim é necessária a discussão com pais, professores das
escolas.

Os desafios educação bilíngue nas escolas Koripako

Na questão da comunidade os pais e mães dos estudantes pos-


suem uma ideologia diferente, pensam que facilita de que um pro-
fessor usa diretamente a língua portuguesa para a criança como a
língua de instrução, ou seja, a língua de ensino dentro da sala de aula.
Muitas das vezes alguns pais dos estudantes se pensam que seria bem
ter professores que são falantes da língua portuguesa, que são no
caso os nãos indígenas que poderiam dar aula para as crianças assim
poderiam aprender a falar bem a língua portuguesa. Mas as pessoas
que falam essas ideias se referem ideia própria, não pensando sobre a
questão e não sabe de como é o processo de aprendizagem.
Esses são alguns desafios de não conseguirmos demostrar
para os pais, de que sempre eles dizem que os brancos são os conhe-
cedores e consideram que tudo o conhecimento é proveniente dos
brancos, é isso que falta esclarecer para a comunidade de todo co-
nhecimento pode ser estudado e compreendido por qualquer pessoa
que tem interesse de saber essa pessoa poderá ter o conhecimento a
respeito de língua portuguesa e indígena. Também a outro desafio
na questão de materiais didáticos, falta de materiais específicos di-

- 85 -
ferenciados na língua indígena da comunidade, se tivesse materiais
na língua poderia facilitar a aprendizagem dos estudantes dentro das
escolas.
Enquanto os professores o desafio de trabalhar com a educa-
ção bilíngue, que alguns ficam com dificuldade de falar a língua por-
tuguesa. Porque são os professores são as maiorias falantes da língua
Koripako, dessa forma a língua portuguesa é somente como segunda
língua, por isso não é expresso bem quando um professor tenta tra-
balhar com a língua portuguesa.
No ponto de vista de alguns estudantes, como os professores
são a maioria falante da língua materna um estudantes fica com di-
ficuldade de manter contato com o professor no momento que um
professor da aula na língua portuguesa, assim os estudantes tem ver-
gonha de falar em português com professor que é próprio falante da
sua língua materna. A outra coisa que os estudantes sentem difícil
devido que usam as duas línguas simultaneamente língua materna
e portuguesa ao mesmo tempo, segundo eles seria melhor que cada
língua tivesse o tempo especifico para ser falado.
Falta de materiais escolares na língua materna, porque todos os
materiais que chegam nas escolas estão todos escritos na língua por-
tuguesa. Isso é um dos desafios da educação bilíngue por isso para os
professores dificulta o trabalho na questão de ensino aprendizagem
devido que a não possuem materiais da escolar, com essa problemática
a escola estadual no ano de 2018 possui planejamento onde tem obje-
tivo de produzir materiais na língua materna para que pudesse servir
como material de alfabetização para educação infantil. Isso é a questão
de desafio nos materiais pedagógico para alfabetização.
Desafio que a gente preocupa mais nas crianças que não falam
a língua materna, somente no caso a língua portuguesa, enquanto as
crianças falantes da língua materna, ou seja, a nossa língua os mes-
mos pais dizem que devem ensinar na língua portuguesa por isso
essa é uma questão que a comunidade deve pensar mais profunda-
mente porque temos que pensar na questão de valorização da nossa
própria língua.
Apesar de nos indígenas já temos os nossos direitos conquis-
tados e garantidos pela Constituição Brasileira de 1988, onde temos
o direito de aprender a língua portuguesa e também utilizar e estu-

- 86 -
dar na nossa própria língua materna no processo de aprendizagem
dentro das escolas. Isso que acontece com algumas pessoas sobre
essa questão desse ensino porque a comunidade tem a ideia sobre a
língua portuguesa possui maior prestigio, enquanto a nossa língua
indígena serve somente na comunidade e não vai valer em meio da
sociedade envolvente, isso é a concepção de algumas pessoas sobre a
situação de ensino na língua materna na escola.
Para os alguns pais dos estudantes que falam que a língua ma-
terna pode ser menos falada, a ideia deles sobre a nossa língua que
não vai poder ser usada afora da comunidade, no caso na cidade
nunca uma pessoa vai falar na sua língua materna com uma pessoa
não indígena. Onde eles falam que a nossa língua já sabemos e não
precisamos mais aprender na escola que é necessário aprender so-
mente a segunda língua assim é uma língua muito importante para
os nossos filhos.
Assim deve ter reunião permanente na comunidade onde os
professores poderiam conscientizar a comunidade que na nossa pró-
pria língua tem a facilidade de ensinar as crianças do que tentar tra-
balhar com a língua que eles não dominam no caso a segunda língua.
O mais importante de todo que nós professores devemos concretizar,
trabalhar com as duas línguas e cada língua deve ter seus tempos deter-
minados e sempre começando alfabetizar primeiro na língua materna
por isso é importante produzir materiais didáticos assim demostrar o
resultado de aprendizagem dos estudantes aos pais dos estudantes que
não acreditam que somente através da nossa língua poderá facilitar e
melhorar a aprendizagem nas nossas escolas, assim poderia mudar o
modo de pensamento de alguns pais dos estudantes.

Avaliação da comunidade sobre a prática de educação


bilíngue

Desde a implantação das escolas na comunidade, a nossa pró-


pria língua começou a ser percebida como uma língua que não tem
muito valor para a sociedade, devido a influência da cultura não in-
dígena. Assim os nossos pais antigamente e até hoje também dizem
que a nossa língua não precisa ser usada na escola devido ao fato
de já sabermos falar nossa língua materna, segundo eles se ficarmos

- 87 -
estudando a nossa língua com isso não iremos para frente em nossos
estudos. Essa é a ideia da maioria das pessoas da nossa comunidade;
dando maior importância a língua portuguesa com meio de articu-
lação em busca dos seus direitos, e recursos para melhoria da nossa
comunidade. Através dessa ideia de um maior desejo de assimilação
da língua portuguesa, os professores observam que é um pouco difí-
cil de entender como se poderia trabalhar na escola, para poder ter
um bom resultado.
Outra realidade percebida, é que a comunidade com esse de-
sejo de que seus filhos falem mais e mais em português no ambiente
escolar, para poderem se expressar bem diante dos não indígenas,
analisam que os estudantes que vão para escola, terminam, seja por
timidez ou por outras razões, não conseguindo se expressar bem
com as pessoas que só falam português, que chegam na comunidade,
ou quando vão para cidade; terminando os pais, mesmo sem mui-
ta escolaridade, tendo que estar sempre dialogando com as pessoas
brancas que chegam na comunidade, embora esperavam que fossem
seus filhos que estão estudando que deveriam fazer isso.
Através desse curso de licenciatura indígena tive a oportu-
nidade de conscientizar a população da comunidade nos assuntos
como a educação bilíngue, alfabetização e política linguística são
uma das temáticas que precisam ser esclarecidas para a comunidade
educativa. Devido a isso, na comunidade surgiu vários questiona-
mentos e dificuldades no que diz respeito a entender como deveria
funcionar a educação bilíngue dentro de uma escola indígena.
Assim as lideranças da comunidade local conseguiram refletir
e avaliar de acordo com a sua observação sobre o uso das duas lín-
guas. A seguir os discursos de dois líderes da comunidade;

Pelo que vejo a educação é muito importante para nós, ainda


agora que estou conseguindo observar de como a educação está
mudando, pelo que vejo a educação através de duas línguas está
valorizando nós como povo indígena, por isso hoje em dia não
podemos mais falar para os professores ensinar as crianças so-
mente na língua portuguesa, mas antigamente quando a gente
não sabia que a escola é um lugar para fortalecer a nossa língua,
nós pensávamos que a língua portuguesa era mais importante
do que a nossa língua, mas agora já estamos sabendo de que
a nossa ideia é contrária, dessa forma hoje os estudantes pre-
cisam aprender a escrever e ler na nossa língua como também

- 88 -
a língua portuguesa, devido que futuramente nós precisaremos
os dois conhecimentos: o nosso e o conhecimento dos brancos,
assim facilitará a vida de cada estudante. (INÁCIO FELIPE
MARIANO, 2º líder da comunidade)

Como podemos perceber que nesse discurso se refere à edu-


cação por meio de duas línguas estão valendo para nós, isso pode
analisar que a pessoa conseguiu entender que a nossa língua é muito
importante quanto o português, mas antigamente ele não sabia que a
escola era o lugar onde valorizava a língua materna que tinha a ideia
contraria da educação escolar indígena.

Pelo que vejo na nossa comunidade quando eu trabalhava como


professor, a preferência e preocupação dos pais que os filhos se-
jam ensinados através de língua portuguesa dentro das escolas.
Mas pela minha observação isso não é bom ensinar somente na
língua portuguesa, é preciso que também as crianças saibam a
nossa língua materna e utilizar como língua de ensino dentro da
nossa escola, seria melhor que as crianças aprendessem primei-
ro a escrever e ler na língua materna, depois da aprendizagem
da nossa língua, poderia começar aprender a língua portuguesa,
mas pelo que fazemos é contrário, a gente quer que nosso filho
aprenda primeiro a língua portuguesa e depois que ele aprende a
nossa língua. Pela minha análise, os estudantes da comunidade
quando chega no 6º ano ou 9º ano, por exemplo, ainda apre-
sentam a dificuldade de ler e escrever na nossa própria língua
materna, segundo a orientação que recebemos primeiro deveria
ensinar na língua materna. Por isso hoje a nossa língua é muito
importante usar na sala de aula ao longo do processo de ensino,
para que podemos manter e valorizar a nossa própria língua.
(CORNÉLIO MARIO, 1º líder da comunidade)

Nesse segundo discurso seria melhor começar trabalhar com


estudantes somente na língua materna porque é a língua que as crian-
ças dominam e falam na comunidade e depois que seria a introdução
na língua portuguesa. Nesses discursos ainda apresentam duas ideias
distintas, mas realmente para que poder melhorar o ensino a alfa-
betização seria ainda na língua materna. Assim poderia valorizar a
nossa língua dentro da escola, e facilitaria o ensino e aprendizagem
principalmente na alfabetização.
Com esses discursos podemos entender que somente algumas
pessoas conseguem entender e valorizam a língua materna na escola.

- 89 -
Isso é uma forma de ver a avaliação da comunidade sobre a prática
pedagógica das escolas, que a educação hoje está indo muito devagar
a aprendizagem dos estudantes alguns conseguem aprender e outros
com dificuldade.
Ideias a serem desenvolvidas quanto à educação bilíngue
Há algumas ideias quanto a educação bilíngue, sendo algumas
delas as seguintes:
• Uma visão sobre as línguas como fruto e herança de gera-
ções anteriores, mas estão sempre em eterna construção, ree-
laboração, criação e desenvolvimento. (RCENEI, p. 22; BRA-
SIL, 1988));
• Pensar quanto a educação bilíngue sendo um direito;
• Pensar quanto a mesma, que ela pode contribuir no fortale-
cimento e valorização da identidade cultural;
• Pensar quanto a mesma, que a língua materna sendo a pri-
meira língua de instrução, facilitará na transição da criança
que está saindo de casa e está indo para outro ambiente, a es-
cola, normalmente distinta de sua realidade em casa;
• Ter planejamento linguístico definido pelos membros da co-
munidade escolar. Assim cada língua tem um tempo específi-
co a ser desenvolvido na escola;
• Ter uma ideologia voltada na valorização da língua materna,
mas que espera aquisição da segunda língua.
Essas são algumas ideias ou princípios que sendo discutidos e
colocados num diálogo aberto poderá realmente contribuir para que
uma escola se torne uma escola indígena bilíngue pensando e refle-
tindo quanto ao fato que nós indígena somos diferentes em nossa
forma de passar e receber conhecimento e principalmente na língua
materna, isso é a nossa riqueza, e parte de nossa identidade que precisa
ser preservada como sociedade indígena. (RCENEI, p. 22; BRASIL,
1988).

Perspectiva para uma boa educação bilíngue Koripako


Em reunião que eu realizei junto com os professores das es-
colas da comunidade a maioria eles falaram que desde quando co-

- 90 -
meçaram a trabalhar na escola vieram trabalhando de acordo com a
proposta das comunidades e assim os professores tentaram de tra-
balhar em duas línguas ao mesmo tempo, de acordo com um dos
professores o Quirino Garcia Sanches deu a proposta que realmente
não dá para trabalhar usando as duas línguas ao mesmo tempo, por-
que se nos estamos trabalhando assim para a criança vai ficar muito
pesado e vai demorar muito para aprender a ler e escrever. Mas se
a gente trabalhar somente a uma língua facilitaria a aprendizagem
para a criança que está estudando porque é na língua que ela domi-
na. Porque um professor usar uma língua que a criança não domina
isso seria contrário, como a criança poderia aprender outra língua de
outra cultura. (DISCUSSÃO ENTRE PROFESSORES)
Bilinguismo não é bom em educação infantil porque a criança
pode até apropriar da língua materna, mas a língua escrita materna
que é função da escola ensinar a criança não se apropria disso com
facilidade, então tem que ser ensinada apropriar na língua materna
escrita. (JOSINEY DOS SANTOS - PEDAGOGO)
Na entrevista realizado com professor Renato Athias foi fala-
do que a Educação bilíngue tem ser alfabetizado primeiro na língua
materna que é língua Koripako é onde se faz alfabetização é única
vez que vai se fizer alfabetização, não se faz alfabetização em portu-
guês não tem sentido fazer observação em língua portuguesa.
Na conversa que tive com professor Renato Athias ele falou
que na fase de alfabetização deve ser realizado primeiro na língua
materna falado pela comunidade, nesse sentido eu analiso que real-
mente para que poder melhorar a aprendizagem realmente somente
poderia usar a língua Koripako para poder alfabetizar as crianças.
De acordo com entrevistado a liderança indígena senhor Bo-
nifácio se refere que é necessário que a comunidade seja conscienti-
zada na questão de valorização da língua materna que a nossa língua
deveria ser a primeira língua para ser usado na primeira parte do
ensino fundamental. Assim nesse sentido é preciso que haja diálogo
constante e permanente com a comunidade educativa, para que eles
podem ter a conscientização sobre a vantagem desse ensino prin-
cipalmente na faze inicial como alfabetização assim como também
em outras fases de ensino como fundamental e médio isso pode
demonstrar a valorização mantendo a nossa língua forte na parte
da oralidade e escrita em duas línguas Koripako e português. Que

- 91 -
é necessário ajudar que a comunidade saiba que a língua indígena é
muito importante para valorização e fortalecimento da identidade
de um povo.

Consideração final

Na aldeia indígena Koripako por parte de algumas pessoas, há


uma ideologia de que somente na língua portuguesa poderia facili-
tar a aprendizagem dos estudantes, tendo em vista, para esses, que
apenas o conhecimento da língua nacional é que abrirão as portas
do desenvolvimento para o nosso povo. E enquanto para uma escola
indígena, segundo a política educacional vigente, isso deve estar ba-
seado no projeto que reflita a decisão de cada comunidade educativa.
Com isso, há uma necessidade de dialogar, com a comunidade edu-
cativa orientando-a e levando-a também a refletir o porquê a língua
indígena deve ser usada em todo processo de aprendizagem, bem,
como, refletindo o anseio do povo, esclarecer que, sem dúvida a se-
gunda língua é também muito importante para os estudantes, para
que possam comunicar com outras pessoas que não são falantes da
língua materna, bem como tenham o domínio da língua nacional,
com a qual possam lutar por seus direito e ideais.
Percebe-se também, que um agravante, ou melhor, dizer, um
grande desafio para o melhor desenvolvimento da educação bilín-
gue está ligado ao escasso material desenvolvido, na nossa própria
língua, de materiais adequados para esse fim. E é justamente nesses
primeiros anos que os estudantes, ao se depararem com tantas coisas
novas, precisam, muitas vezes, ter que lidar com o conhecimento da
grafia, as vezes na segunda língua, que é a que, como criança, ainda
não domina. E lidar de início com o uso de duas línguas no proces-
so inicial de aprendizagem dentro de uma escola indígena, é outro
desafio enorme para os estudantes que são, predominantemente, fa-
lantes apenas da língua materna.
Entendendo esses desafios e realidades dentro da educação
bilíngue nas duas escolas indígena Koripako da comunidade São
Joaquim, que refletem também a realidade nas demais comunidades
do Alto Rio Içana, os caminhos que teremos que trilhar para buscar
uma educação adequada e de qualidade no contexto que essas esco-

- 92 -
las estão inseridas não é fácil. Mas continuando a promover constan-
tes diálogos sobre o assunto, e compartilhando essa reflexão com as
equipes de professores e juntamente com pais dos estudantes, sem
dúvida, poderemos pensar em equipe e elaborar junto um projeto
político pedagógico indígena de acordo com realidade da comunida-
de e buscando esclarecer tudo que envolve a nossa identidade como
povo Koripako, de reconhecer a importância da nossa língua de es-
tar presente na escola de maneira formal, para que a fortalecemos e
valorizemos.
E que possamos daqui pra frente, desenvolver materiais didá-
ticos em nossa própria língua, cientes de que isso, embora não seja
toda a solução, poderá contribuir com boa parte daquilo que tem
faltado para o melhor desempenho da educação bilíngue entre os
Koripako. E contribuir também como um meio de preservação da
língua dos nossos antepassados.

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- 95 -
- 96 -
QUILOMBO DE ITACOATIARA-AM:
memória e luta

Cynthia Maria Bindá Leite20


Heloísa Helena Corrêa da Silva21

Resumo
O artigo apresentado para compor Coletânea do Programa de Pós Graduação
Mestrado Sociedade e Cultura da Amazônia (PPGSCA), com financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa – FAPEAM, objetiva difundir os elementos
culturais e políticos no processo de luta para legalização do Quilombo de Ita-
coatiara-AM, identificados durante pesquisa para subsidiar fonte deste artigo,
que destaca os processos históricos registrados, o artigo problematiza os pro-
cessos de exclusão/inclusão pelos quais s quilombolas do Lago da Serpa foram
submetidos. Para construção deste artigo a coautora utilizou-se da abordagem
qualitativa por meio da técnica da pesquisa bibliográfica e análise documental,
tendo como peça a tese: QUILOMBO DE ITACOATIARA-AM: UM ESTUDO
DE CASO NA ESCOLA ENGENHEIRO CASSIANO SECUNDO, mantendo
a análise no campo da pesquisa social, a partir dos teóricos Pierre Bourdieu
e Norbert Elias e a análise de pesquisadores da temática sobre a presença ne-
gra na Amazônia, a saber: Alfredo Wagner Berno de Almeida e Rosa Elizabeth
Acevedo Marin, dentre outros. Os resultados mostraram que houve exclusão
social em todos os momentos da história dos quilombos, e mais recentemente,
antes e depois da constituição de 1988, e que, para participação ativa do cidadão
quilombola quanto mais divulgação dos registros históricos e das lutas em prol
do Quilombo, em pauta, melhor para o fortalecimento dos quilombolas que
entrelaçaram suas lutas com as políticas públicas, em especial, com a política
pública de educação, através da única escola existente no local.
Palavras-chave: Quilombolas. Inclusão/Exclusão. Habitus. Currículo Quilom-
bola

Introdução
O Quilombo da Comunidade Sagrado Coração de Jesus, lago
de Serpa, Itacoatiara/Am, localizado a 258 km de Manaus/AM, na
estrada AM 010 km 08 será nominado neste artigo apenas de Qui-
lombo de Itacoatiara (AM), sendo importante o processo de divul-
gação do mesmo que foi escolhido por razões postas pela autora do
trabalho que se constituiu fonte principal para elaboração deste ar-
20 Pedagoga da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas (SEDUC). Doutora em So-
ciedade e Cultura na Amazônia. (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas.
21 Professora Titular da Universidade do Amazonas no Departamento de Serviço Social
(DSS). Doutora em Serviço Social pela PUC-São Paulo e Professora do Programa de Pós
Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA).

- 97 -
tigo. Em primeiro lugar por ser o local onde está localizada a escola
quilombola que era acompanhada pela autora. Segundo lugar por
representar a residência de noventa e cinco (95) famílias de remanes-
cente de quilombos autodeclaradas e que ainda lutam pelo respeito
e cumprimento de todos os seus direitos fundamentais adquiridos
legalmente. Em terceiro lugar porque a autora acompanhou o histó-
rico de luta da comunidade por meio da SEDUC/AM. Em quarto lu-
gar pelo município de Itacoatiara ser o local de residência de alguns
familiares da autora. O artigo é dividido em dois tópicos, a saber:
1. HISTÓRIA E MEMÓRIA DO QUILOMBO DE ITACOATIARA
(AM).2. INCLUSÃO/EXCLUSÃO SOCIAL: o entrelaçamento Qui-
lombo X Educação no combate às desigualdades sociais e por fim, A
guisa de conclusão.

Fotos do Quilombo Lago da Serpa de Itacoatiara. CMBL.2022

- 98 -
História e memória do Quilombo de Itacoatiara (AM).

No transcorrer da existência do Quilombo, em pauta, cons-


tatamos diversos nomes, como Quilombo da Velha Serpa, em Ita-
coatiara, Quilombo Comunidade Sagrado Coração de Jesus, Lago de
Serpa/Itacoatiara-Am. Para fins deste artigo adotamos o nome de
Quilombo de Itacoatiara (AM), por encontrar-se mais próximo do
contexto histórico da “chegada” de africanos no local.
Sobre isto, a memória histórica registra que como resultado da
exigência imposta ao Barão de Mauá, a Província do Amazonas re-
cebe duas colônias, uma denominada Mauá e outra denominada de
Itacoatiara, uma nas Lages, distante nove (9) milhas a jusante de Ma-
naus, e a segunda na vila de Serpa” conforme afirma Claudemilson
Nonato Santos de Oliveira (2007) onde tem como base o relatório do
1º vice-presidente da província do Amazonas.
De acordo com Oliveira (2007) mostra o aludido relatório do
1.º vice-presidente da Província do Amazonas, Manoel Gomes Cor-
rêa de Miranda, de 1857 em, em linhas gerais, a configuração espa-
cial e a infraestrutura da Colônia Industrial Itacoatiara, relatadas a
este pelo seu diretor, o francês Le Gendre Decluy. As construções
eram de nove casas, três telheiros, uma estrebaria, uma serraria, uma
olaria e um estaleiro. Mantinham terreno anexo para agricultura ex-
tensiva, criação de animais, cuja mão de obra era representada por
trabalhadores colonos em número de oitenta, sendo vinte e três chi-
neses, vinte e um portugueses e trinta e quatro africanos livres
Os africanos foram resgatados no navio que traficava escra-
vos em 1857 (meados do século XIX) e foram trazidos da “Inglater-
ra, Espanha, Portugal e Países Baixos” (MAMIGONIAN, 2017, p.33-
34). Os trinta e quatro escravos livres, da “colônia agroindustrial de
Itacoatiara”, que se refere Oliveira (2007, p.46), deram início ao qui-
lombo da Comunidade Sagrado Coração de Jesus, Lago de Serpa,
Itacoatiara (Diário Oficial da União n. 239, de 10 de dezembro de
2014).
O Quilombo de Itacoatiara (AM) pode ser caracterizado den-
tro do quadro dos Quilombos do século XXI com foco nos emba-
tes para a garantia dos direitos fundamentais, como a construção de
escola quilombola dentro do Quilombo e a luta por uma educação

- 99 -
que contemple sua cultura, ancestralidade, formas de sobrevivência
e valor histórico.
As lutas são travadas em todos os ângulos e principalmente no
plano político. Como exemplo, alguns vereadores e representantes
públicos resolveram negar a existência do Quilombo em Itacoatia-
ra. Neste momento de luta, as reflexões sobre a construção do habi-
tus social em Pierre Bourdieu (BOURIEU, 1996, 2004) serviram de
sustentáculo para a resistência quilombola. E ainda, a percepção de
interdependência funcional (ELIAS, 1995; 2001), possibilitou que o
passado dos quilombos fosse retomado com referência histórica nos
processos sociais contemporâneo do Quilombo de Itacoatiara.
Na tecitura metodológica percebemos a importância da me-
mória na reconstrução da história do Quilombo, revelado pelos mais
antigos nas narrativas sobre costumes, hábitos, tradições e história,
que fortalecem as lutas dos quilombolas. As narrativas memorialistas
representam a forma de transmissão para os descendentes quilom-
bolas. Isto permitiu que estabelecessemos o recorte temporal abran-
gendo o período pré e pós Constituição de 1988 (quilombo antigo e
contemporâneo) e constatar os processos de inclusão/exclusão.
.
Inclusão/exclusão social: o entrelaçamento Quilombo X
Educação no combate às desigualdades sociais.
Abolir a escravatura não deu aos escravos o direito a inclu-
são por meio de uma integração de fato na sociedade; entrando em
cena a relação capital-trabalho, o que representa uma passagem do
escravismo sem lei para o modelo discreto de escravidão, dessa vez
por meio de um salário muito abaixo das condições e montante de
trabalho executado pelo ex- escravo. De acordo com Silvio Almeida
“a ausência do cumprimento dos direitos humanos e sociais básicos,
domina todo o histórico dos quilombos”. A compreensão do territó-
rio quilombola como local de pertencimento se relacionará com a
cultura e identidade (ALMEIDA, 2004). Os fundamentos da Consti-
tuição de 1988 emergirão com conceito de comunidades quilombo-
las, predominando nos debates nas instâncias: seja federal, estadual,
municipal, concomitante a este período cronológico emerge na aca-
demia francesa o conceito de Exclusão/Inclusão, ganhando espaço
também na sociedade brasileira.

- 100 -
A discussão sobre exclusão/inclusão social dos remanescentes
de quilombo na sociedade é de grande importância não só no Brasil,
mas no mundo. Inclusão perversa é o termo que Sawaia (1999, p.14)
nomeará algumas propostas e planos de inclusão social, por repre-
sentarem facetas implícitas de ações que tem como objetivo incluir
os indivíduos em algum campo da sociedade seja de direitos objeti-
vos ou subjetivos, mas que resultam na exclusão social do indivíduo.
As propostas de inclusão que passaram a dominar as platafor-
mas de plano e projetos de acordo com Sawaia (op.cit) são perversas
porque apesar de estarem na lei para cumprimento, não são cum-
pridas na prática ou tais direitos são excluídos na prática, ainda que
exista no papel, o que clamará por luta para obtenção do que já foi
decretado.
A representação do habitus de uma sociedade estará repre-
sentada numa região ou país onde há grandes diferenças de rendas e
condições de sobrevivência, como é o caso do Brasil. Nesse aspecto,
a má distribuição de renda e a ausência de investimento econômico
que envolve a área social, saúde e educação, geram as disparidades
econômicas e desigualdades sociais, o que ocorre com relação aos
quilombos na contemporaneidade.
Os conceitos de habitus/figuração (Elias) e habitus/campo
(Bourdieu) possibilitarão novas ferramentas de análise na luta pelos
direitos adquiridos pelos quilombolas, constitucionalmente.
Habitus, na abordagem sociológica de Bourdieu (2002) e Elias
(1995), possui algumas semelhanças pelo fato de os dois teóricos
buscarem um desvencilhamento, ainda de forma discreta, da socio-
logia clássica. Bourdieu envereda por uma visão voltada em grande
parte para o materialismo, o que valorizará a condição do homem
como ícone principal para a formação do habitus. Elias valorizará a
construção do homem/sociedade/homem, numa relação de interde-
pendência como fator de formação da existência humana.
Bourdieu (2002), graças a experiência de guerra na Argélia,
quando estava a serviço militar, na França, prestou relevante traba-
lho a sociedade ao pesquisar a questão do habitus social. Contudo,
para Bourdieu (2012), não há como compreender o conceito de
habitus desvencilhado de campo. Para o autor, o campo poderá ser
espaço tanto dos dominantes quanto dos dominados, onde acirra-

- 101 -
rão a luta pela obtenção do capital, reconhecimento humano, dentre
outros. Para o autor, campo e habitus estão interligados. Contudo o
habitus estaria assim representado

(...) sistema de disposições duráveis e intransponíveis que, ex-


prime, sob a forma de preferências sistemáticas, as necessidades
objetivas das quais ele é produto. (…) constituído num tipo de-
terminado de condições materiais de existência, esse sistema de
esquemas geradores, inseparavelmente éticos ou estéticos, ex-
prime segundo a sua lógica própria a necessidade dessas condi-
ções em sistemas de preferencias cujas oposições reproduzem,
sob uma forma transfigurada e muitas vezes irreconhecível, as
diferenças ligadas à posição na estrutura da distribuição dos ins-
trumentos de apropriação, transmutadas, assim em distinções
simbólicas. (BOURDIEU, 1976, p.110).

Para o autor, habitus está entrelaçado e representado pelo capi-


tal social, cultural e econômico. Ainda para Bourdieu (2012), apesar
do habitus ser representado individualmente, sua construção ocorre
no processo social e representa os bens adquiridos simbolicamen-
te, assim como o gosto pela dança, artes em geral, músicas, dentre
outros. Nesse aspecto, indivíduo e sociedade estão estruturalmente
ligados, sofrem influências diretas e se moldam de forma histórica.
Para Heller (1998), o risco consiste na hora de aplicar as regras
ou leis, pela possibilidade de haver distorções como privilégios ou
preferências e o problema central nesse contexto, é a não coerência
da forma como foi construído o habitus social. Tal incoerência de-
corre do fato de como herdou-se tal hábito e/ou a forma de domina-
ção exercida sobre os dominados.
Para Elias (1995) a solução para o dilema seria o estudo da
formação de tal habitus. O autor acrescenta ainda em suas obras:
a Sociedade da Corte (ELIAS, 2001) e a Sociedade dos Indivíduos
(ELIAS,1995) que o habitus dos europeus influenciou (desrespeito-
samente na maioria das vezes) os indivíduos considerados por eles,
subalternos. Elias (1993), em sua obra o Processo Civilizador, aponta
ainda que o modo imperialista europeu era imposto a todos que es-
tivessem em grau de subalternidade, o que gerou o habitus dos não
europeus.
A definição de Campo utilizada por Bourdieu (2012) e con-
figuração ou figuração social defendido por Elias (2003) são seme-

- 102 -
lhantes em algumas nuances. As relações de poder estarão no es-
paço campo em Bourdieu, onde pode vir a ser o campo científico,
religioso, político, econômico, dentre outros, a partir desses campos
emerge o habitus. Para Elias (1995) a figuração social, local de emer-
são das relações sociais, ocorre por meio da família, no trabalho, na
escola, o que influenciará na formação do habitus. Contudo, para
Elias, o indivíduo assim como sofre mutações do meio, gera influên-
cias direta ou indireta na sociedade em que vive.
Norbert Elias vinha de família economicamente favorecida,
teve o privilégio de servir na Alemanha durante a primeira guerra
mundial. Pierre Bourdieu, procedente de raízes menos favorecida,
por meio do esporte consegue chegar à academia. Serviu o exército
de forma exemplar, sendo ícone referencial para a França. Para Silva
& Cerri (2013), mesmo procedentes de caminhos diferentes, ambos
os teóricos são referências mundialmente, na área sociológica, com
estudos que se harmonizam quanto ao habitus social.
Norbert Elias (1887-1990) e Pierre Bourdieu (1930-2002),
mesmo com histórias de vidas diferentes, contribuíram de forma
significativa para a formação do conceito sociológico de habitus.
Assim, por meio desses pressupostos, concebe-se o não isolamento
do indivíduo de tal processo. Os resquícios deixados pela escravi-
dão (habitus) e a ausência de políticas públicas que absorvesse os
cidadãos negros após a escravidão (campo, figuração), perpetuou a
exclusão social do negro na sociedade que por sua vez, é consciente
da exclusão social quando gera as leis para um grupo seleto e outro
para as minorias.
Na atualidade, um dos agravantes da desigualdade social é a
questão etnia e raça que representam termos complexos carregados
de ideologia dominante (MUNANGA, 2020), portanto, há que se ter
cuidado ao utilizar os termos inclusão e exclusão social, pois a espe-
cificidade dependerá de muitos aspectos e em especial, do momento
histórico e social, vivido por cada sociedade, sendo comum a confu-
são em seu uso e conforme aponta o autor, principalmente quando
se refere aos interesses ideológicos.
Encontramos em Paulo Freire (1981, 1992, 2006, 2011) den-
tre outros, reflexões que nos possibilitam entender a complexidade
que envolve o assunto e a emergência de tal aprofundamento. Con-
tudo, não ousamos esgotar o tema neste artigo, contudo, instigamos

- 103 -
a reflexão sobre as implicações ao analisar a dialética inclusão/exclu-
são. De acordo com Bourdieu (2002), o sistema de opressão substi-
tuído semanticamente por exclusão significa violência instalada, de
forma quase imperceptível na vida de alguns indivíduos. Fato esse
instigado pela mídia que defende políticas públicas voltadas para
melhoria da qualidade de vida dos indivíduos sem a demonstração
do quadro real pelo qual passa a sociedade.
A heterodoxia22 seria uma das soluções para a libertação da
sociedade, o que representaria o grito de emancipação contra todo
processo “opressor de violência simbólica” (BOURDIEU, 1996, p.
269-270), uma forma de evitar que a sociedade aceite em menor pro-
porção, sua própria exclusão e internalize costumes e crenças opres-
soras provindas da classe detentora do poder.
Sposati (1998) afirma que a compreensão do termo exclusão
social avançará no campo das questões éticas e culturais ao compa-
rar-se com a pobreza. Nesse aspecto, o indivíduo pobre será aquele
que sofre o estado de privação total ou parcial de seus direitos en-
quanto cidadão, o que o deixará a margem da sociedade (podendo
retornar ao superar tal nível de pobreza), enquanto isso as classes
minoritárias, sofrem além da exclusão, o preconceito, discriminação,
dentre outros e a consequente fragilização dos vínculos sociais.
Para José de Souza Martins (1997) e Paulo Freire (1992), não
há outro caminho pelo qual o homem poderá se emancipar a não
ser por meio das lutas sociais, no entanto, Martins (1997) valoriza-
rá a contradição por afirmar a não existência da exclusão e sim, as
verdadeiras vítimas dos processos excludentes que ocorrem dentro
da sociedade e não externa a ela e Freire (1992) enfatizará que os
excluídos serão aqueles que não se conscientizaram da sua condição
e que estão no estado de passividade, apenas conformando-se com
os direitos que conseguem conquistar. Não entenderam que se trata
de um horizonte bem mais amplo e real.
As reinvindicações e protestos frente as injustiças sociais po-
deria representar uma forma de emancipação (FREIRE, 2006). Ain-
da conforme o autor, o equívoco ou utilização de forma errônea da
dialética exclusão/Inclusão impedirá o bom rumo das discussões so-
bre o lado positivo e negativo dos projetos para inclusão social das
22 Forma de oposição a qualquer norma, padrão ou dogmas estabelecidos por um grupo ou
individualmente (HOLANDA,1989)

- 104 -
classes consideradas minoritárias. Freire (1992) reascende a espe-
rança no apogeu do oprimido, pertencentes ao grupo dos humilha-
dos, marginalizados e como consequência, excluídos, distribuídos
em várias identidades: o trabalhador injustiçado, o homem do cam-
po explorado, o negro marginalizado, o quilombola invisibilizado, o
índio desvalorizado, o mestiço discriminado, a mulher maltratada, o
deficiente físico tido por incapaz. Homens e mulheres, cujas políticas
públicas os deixaram aquém de seus direitos legalmente conquista-
dos.
Ao tomarmos os Quilombos contemporâneos como referên-
cia, percebemos que o Quilombo de Itacoatiara (AM) sofre das ma-
zelas do descaso daqueles que preferem manter-se na neutralidade
ainda que saibam da existência de documentos que respaldam his-
toricamente a existência da presença negra na região que têm raízes
nas primeiras famílias que vieram da África, conforme consta no tra-
balho de Oliveira (2007).

Amazonas: Fala dirigida à Assembleia Legislativa Provincial do Amazonas

Fonte: Typ. Universal Laemmert, 1858, p. 41- 42.

- 105 -
CYRA LUCIANA FERNANDES, Relação das famílias, chegadas na
Vila de Serpa e logo a seguir as que povoaram o
Lago de Serpa/Itacoatiara/Am -CIRA,1981.

Fonte: OLIVEIRA (2021)

- 106 -
Fragmentos cerâmicos enterrado no roçado de D. Tereza Clarindo. Fonte:
INCRA-2017- ACERVO CÚRIA PRELATÏCIA DE ITACOATIARA.
Caixas documentais referentes aos anos de exercício do Padre Manoel
Florêncio da Costa. Prelazia de Itacoatiara: ACPI, 1903, 1904, 1905.
Itacoatiara: Cúria Prelatícia, 1905.

Localização do Quilombo de Itacoatiara/AM. Fonte Google Maps, 2002

Os levantamentos etnográficos continuam, com estudos so-


bre “parentesco” como as imagens incluídas acima. O Quilombo de
Itacoatiara (AM) iniciou com os trinta e quatro escravos livres, mo-
radores da “colônia agroindustrial de Itacoatiara”, conforme aponta
este mesmo pesquisador (OLIVEIRA 2007, p.46), neste trabalho o
autor faz referência ao Diário Oficial da União n. 239, de 10 de de-
zembro de 2014. No quilombo de Itacoatiara, todas as lutas em prol
de seus direitos persistem de forma profunda, como por exemplo, o
direito à escola no próprio território quilombola e com Projeto Pe-
dagógico próprio, e por outras políticas públicas.
A organização do ensino quilombola representa um grande
desafio, especialmente, no cumprimento do que preconiza as Dire-

- 107 -
trizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola
sem excluir a história do Quilombo e a valorização de um passado
que apesar de muito sofrimento, representou apogeu para o Brasil
(MACÊDO, 2015). As lutas e desafios que são enfrentadas pelos qui-
lombos no Brasil foram identificados no Quilombo de Itacoatiara
(AM) Itacoatiara que após inúmeras reuniões com Ministério Pú-
blico, petições junto ao MEC (OLIVEIRA, 2007) que contou com a
parceria da Prefeitura Municipal de Itacoatiara, a Escola Municipal
Engenheiro Casseano Secundo foi inauurada dentro da comunidade
quilombola, conforme orienta a Lei.
Sobre o Projeto Pedagógico, principalmente àquelas em terri-
tório quilombola sabemos que a exigência fundamental para o cum-
primento e a execução do currículo é o respeito à especificidade ét-
nica e cultural de cada comunidade (ARRUTI, 2017), o que perpassa
pela formação de seu quadro docente, materiais didáticos dentre ou-
tros e isso deverá convergir no Projeto Pedagógico da escola deverá
estar ligado ao histórico e seu espaço territorial.
Neste contexto, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
educação escolar quilombola, orientou os sistemas de ensino no sen-
tido de valorizar a história dos quilombos em todos os seus aspectos,
conforme afirma Nilma Gomes (GOMES, 2012), contudo, a autora
acrescenta que são orientações gerais, sem especificar a educação
dentro das comunidades quilombolas. Estende-se unicamente aos
estabelecimentos que receberam os remanescentes de quilombos.
De forma geral, as Diretrizes para a educação escolar quilom-
bola, garantem a base legal para compor todas as etapas da aprendi-
zagem da educação infantil ao ensino médio e todas as modalidades
de ensino (GOMES, 2012). De acordo com a autora, a articulação
para o cumprimento dessas etapas é de responsabilidade dos entes
federais, estaduais e municipais.
Com essas informações o artigo registra que foram realizadas
reuniões com os quilombolas para implantação de Projeto Pedagó-
gico. Sobre isto se constatou a ocorrência de perguntas de partici-
pantes tais como: o que ganho com isso? Para que serve currículo
quilombola? Foram importantes para o debate sobre cultura quilom-
bola, e também para assegurar a participação dentro dos parâmetros
democráticos.

- 108 -
A escola quilombola, em pauta, é a única em território quilom-
bola existente no Baixo Amazonas. Tem como mantenedora, a Prefei-
tura Municipal de Itacoatiara, Estado do Amazonas, que buscar cum-
prir com obrigações legais, dentre elas a disponibilidade de professores
conforme legislação Municipal, Estadual e Federal vigente.
Sem condições físicas e educacionais adequadas, os objetivos
pedagógicos da escola quilombola do Quilombo de Itacoatiara (AM)
são prejudicados, salvo pelo espaço informal de educação que ocor-
re por meio de atividades dentro do Quilombo, o que corresponde
a utilização das ações pedagógicas ligadas as riquezas do lago, da
floresta e do trabalho de fabricação de carvão e farinha, atividades
realizadas na quadra de areia, terreno pertencente a um membro do
quilombo.

A guisa de conclusão

Buscamos concluir este artigo que objetivou difundir a his-


tória de luta a partir da memória de quilombolas, destacando a im-
portância do entrelaçamento entre o Quilombo de Itacoatiara (AM),
assim denominado para fins deste artigo. Destacamos que a proposta
pedagógica mencionada está ancorada sob três vertentes, o histórico
de inclusão/exclusão do negro.
Para desvendar a problemática levantada fizemos uso da téc-
nica da pesquisa bibliográfica e documental que compuseram o qua-
dro de revisão, envolvendo dados históricos e de vida dos quilom-
bolas, que nos possibilitou compreender melhor os porquês do não
cumprimento do artigo 68 da Constituição vigente, relacionando-o
ao fato de que que a sociedade brasileira, especialmente, admite essa
“normalidade racista”, que está presente nos setores jurídico, religio-
so, econômico, educacional, saúde.

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DANÇA, PSICOLOGIA E AUTISMO:
quando um projeto de extensão dá certo!

Érika da Silva Ramos 23


Rosangela Miranda Aufiero 24
Ana Carolina Peixoto Mourão25
Rebeka Cristina Gomes Vieira26
Natasha Rodrigues Cavalcante 27

Resumo
A crescente escassez de serviços que enlacem áreas como a saúde, a educação
e a arte no atendimento a crianças autistas e a demanda por atendimentos fize-
ram com que, enquanto profissionais dessas áreas, nos sentíssemos convocadas
a pensar formas de inclusão social por meio da arte, principalmente envolven-
do o corpo, o movimento e o ritmo. Esse movimento reflexivo resultou no es-
tabelecimento de uma parceria entre a Universidade do Estado do Amazonas
(UEA), via curso de Dança, com o setor de Psicologia da Policlínica Codajás,
por meio de um projeto de extensão intitulado “Dança, Psicologia e Autismo:
uma tríade que dá certo!”. Esse projeto é destinado a crianças e pré-adolescentes
com suspeita de Transtornos do Espectro Autista – TEA e Deficiência Intelec-
tual – DI e objetiva oferecer um trabalho terapêutico por meio do diálogo entre
a Dança e a Psicanálise, em que se busca o reencontro com o ritmo do próprio
corpo, o reconhecimento de si, assim como a inclusão social dessas pessoas. As
atividades são desenvolvidas semanalmente em duas frentes: o trabalho com
as crianças e pré-adolescentes e a escuta e acolhimento com os responsáveis, o
que tem possibilitado resultados significativos como uma melhoria no padrão
relacional com todos os atores envolvidos: pais, crianças e equipe do projeto.
Palavras-chave: dança; psicologia; autismo; extensão; universidade.

Conhecendo um projeto de extensão singular

A iniciativa para a criação do projeto se deu quando duas pro-


fissionais, sendo uma docente do Curso de Dança da Universidade
23 Doutora em Sociedade e Cultura da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM), Professora do Curso de Dança da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).
24 Psicóloga de orientação psicanalítica. Especialista em Psicopedagogia (ULBRA), Especia-
lista em Saúde Mental (FIOCRUZ), Especialista em Medicina e Psicanálise de bebês (Fbuni-
em conclusão).
25 Psicóloga (Universidade Federal do Amazonas - UFAM), Especialista em Saúde mental e
atenção psicossocial (Universidade Estácio de Sá).
26 Pedagoga (FAMETRO), Especialista em Psicopedagogia e Educação Especial (Instituto
Líbano).
27 Bacharel em fisioterapia (UNINORTE), Licenciada em Dança (UEA), Professora de Arte
na SEDUC.

- 117 -
do Estado do Amazonas (UEA), que ministra o componente curri-
cular “Educação Inclusiva na Dança”, e outra uma psicóloga lotada
na Policlínica Codajás, que oferta atendimento a uma demanda in-
fantil, com hipótese diagnóstica de Transtorno do Espectro Autista
(TEA), encontraram-se em meio as suas inquietações laborais acerca
do atendimento oferecido a esse público na rede de saúde na cidade
de Manaus. Assim, ambas passaram a buscar recursos que pudessem
humanizar esses atendimentos e ao mesmo tempo otimizar o desen-
volvimento das pessoas com comportamento/desenvolvimento tido
como patológico, que por muitos anos, tem sido frequentemente
alvo de situações estigmatizantes em nossa sociedade.
Sabemos que o desenvolvimento humano saudável é um de-
sejo de todos quando se refere ao público infantil, afinal as famílias
quando aguardam um bebê desejam que ele venha saudável. Por esse
motivo, o progresso evolutivo das crianças é objeto de estudo de vá-
rias áreas do conhecimento, sobretudo quando se trata de indivíduos
que apresentam alguma dificuldade na evolução biopsicossocial, en-
tre eles os que fazem parte das necessidades educacionais especiais.
Nesse aspecto, as ações do projeto foram pautadas na parce-
ria entre as duas áreas de conhecimento, Artes e Ciências Humanas/
Saúde, ou seja, a Dança e a Psicologia e suas possibilidades de inter-
venções em casos de crianças diagnosticadas ou com suspeitas de
Transtornos do Espectro Autista (TEA).
Por que um projeto de extensão englobaria uma temática com-
plexa e ousada? Vários desconfortos nos direcionam às tentativas de res-
postas:
Primeiramente por acreditarmos que o termo “TEA” soa
abruptamente temido quando é desconhecido e não é permitida a
oportunidade de serem vistos os sujeitos que estão por trás desse
rótulo patológico.
Depois, por sabermos que na cidade de Manaus são escassos
os profissionais de Dança e de Psicologia que se habilitaram para
ofertar um serviço verdadeiramente inclusivo e que essa área neces-
sita de demasiada exploração.
Igualmente porque o TEA implica em muitas limitações no
desenvolvimento integral das pessoas, porém algumas práticas de
autodescoberta, criativas e sensíveis como a Dança podem ser um
canal para evoluções de todos os seus praticantes.

- 118 -
Outra razão é por entender que é possível ter êxito em par-
cerias entre organizações estatais de diversificadas áreas do conhe-
cimento quando elas têm em comum, primeiramente, a qualidade
de vida do público atendido ao invés de uma concorrência adoecida
setorial.
Por fim, por termos motivações pessoais que nos fazem re-
conhecer que ainda é preciso desmistificar os preconceitos de que
pessoas com necessidades educacionais especiais são “perturbações”,
“casos intratáveis”, “incapazes de”, “coitadinhas” e “disformes” para
conseguirem êxitos convencionais nas atividades sociais sejam elas
escolares, religiosas, culturais, artísticas, esportivas ou laborais.
Em um olhar preliminar sobre os argumentos elencados, acre-
ditamos que a interligação da Dança com ciências como a Psicologia
pode possibilitar uma junção produtiva pelo fato de envolver co-
nhecimentos de métodos terapêuticos do movimento corporal, bem
como sobre o desenvolvimento psíquico. Por sua vez, a Psicanálise,
vertente presente neste projeto, vem se debruçando sobre os aspec-
tos do desenvolvimento infantil tendo o corpo e sua relação com o
mundo como imprescindível para a construção da saúde integral do
sujeito.
Isso posto, passaremos a descrever o projeto, que teve início
em março de 2022. Vale ressaltar que, assim que começou, o foco era
diretamente o público infantil, e, que o perfil do projeto era total-
mente experimental.
À medida que o trabalho avançava, as fundadoras observaram
que havia uma demanda para a escuta dos pais enquanto seus pe-
quenos estavam em aula, para que esses adultos tivessem um espaço
de fala. Surgiram, então, as “Rodas de Conversa” direcionados por
psicólogas. Posteriormente, iniciamos as “Oficinas de Alongamen-
to”, conduzidas por uma fisioterapeuta ou acadêmicos de Dança. As-
sim, o objetivo geral foi ampliado para o que é hoje: aplicar oficinas
de Dança ao público infantil com ou sem diagnóstico de TEA, bem
como oficinas de alongamentos e rodas de conversa aos responsáveis
pelas mesmas, promovendo tanto a discussão dessa arte enquanto
vertente terapêutica, quanto a aquisição de competências aos alunos
da universidade através da experiência teórico-prática e o possível
progresso na saúde biopsicossocial dos atendidos. 

- 119 -
Os (as) participantes, em sua maioria, são crianças na faixa
etária de 6 a 12 anos. Os critérios para estes participarem do proje-
to resume-se em: estar na escola, ser encaminhado pela Policlínica
Codajás, apresentar alguma desorganização psicomotora, cognitiva,
comunicacional ou de habilidades sociais, que comprometam o de-
sempenho escolar e a relação com o meio. Outro critério adotado é
que os responsáveis pelas crianças confirmem o compromisso e assi-
duidade deles e dos filhos durante o projeto por meio da assinatura
de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Na sequência, sentimos que poderíamos estender o projeto
para crianças que não eram somente encaminhadas pela Policlínica.
A partir disso, abrimos mais uma turma e optamos por usar também
a sala de dança da universidade (UEA).
As aulas para as crianças têm a arte da Dança como ênfase
central e ocorre semanalmente, com duração de uma hora. O tra-
balho é complementado com atividades psicomotoras e o conteúdo
das aulas é planejado pela equipe conforme as especificidades das
turmas.
Com relação aos resultados obtidos, eles são discutidos e ana-
lisados em grupos de estudos, para avaliação contínua das ações do
projeto e possíveis ajustes. No âmbito teórico são realizados encon-
tros de orientação acadêmica sobre temas como: Dança e seu caráter
terapêutico para uma melhor compreensão da aplicabilidade dessa
arte com o intuito de surtir efeitos funcionais na área da saúde; o
desenvolvimento humano à luz da teoria psicanalítica, focando a
terceira infância, já que é correspondente às idades das crianças en-
volvidas no trabalho; o TEA e as necessidades educacionais especiais
apresentadas pelas crianças assim diagnosticadas ou investigadas.
Para os adultos, as atividades são ofertadas em alternância en-
tre Roda de conversa e Oficina de Alongamento. Vale ressaltar que
tanto as atividades para as crianças quanto para os adultos são nor-
teadas por uma perspectiva multidisciplinar.
A organização citada só ocorre porque somos uma equipe que
assumiu a mesma linguagem. Inicialmente, a equipe era composta
apenas pelas duas proponentes e uma acadêmica de dança (voluntá-
ria), e hoje contamos com o voluntariado de mais duas psicólogas,
uma fisioterapeuta e uma pedagoga e dezesseis estudantes do curso

- 120 -
de Dança, que fazemos questão de citar nominalmente, pois abraça-
ram a causa com seriedade e dedicação: Ana Beatriz Braga Pereira;
Cleiton Lopes de Oliveira; Cleydson Cacau Garcia; Gabrielle Teixei-
ra de Barros; Ewelyn Guedes de Souza; Kamilla Gabriele de Oliveira
Fernandes; Karyne Peres Marques; Luciana Soprano Correa; Milena
Raquel dos Reis Serique; Rodrigo Silva de Oliveira; Solange de Souza
Sá; Ester Gabriele Santos de Lima; Lidiane Barreto Lopes; Lívia Na-
tividade Cruz; Luiza da Rocha Pinto; Otávio Victor de Souza Carva-
lho. Decerto outros nomes estão por vir, haja vista a proporção que
o projeto tem tomado.

O autismo entre a dança e a psicanálise

Para melhor descrever a relação entre o autismo e a dança,


optamos primeiramente, por explicitar sucintamente o que é o TEA.
Cabe informar que com a publicação mais recente do Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders - DSM-5 (APA, 2013), houve
mudanças na nosografia dos transtornos mentais. O que era clas-
sificado como Transtorno global do desenvolvimento, passou a ser
nomeado Transtorno do Espectro Autista (TEA).
A classificação desse transtorno se dá em níveis: leve, mode-
rado e severo, para distinguir as diferentes formas de manifestações,
assim como outros transtornos associados como linguagem, cogniti-
vo, e psicomotor, tornando o TEA plural. Assim, falamos em Autis-
mos, pois cada um é singular.
Para Almeida e Neves (2020), a linha do diagnóstico de TEA
proposta pelo DSM-V fez com que outros transtornos fossem englo-
bados pela atual nosografia. Ao citarem Klin (2006), essas autoras
alertam que o aumento nas taxas de prevalência não significa um
aumento da incidência. Entretanto, para elas, há uma crença de que
o aumento da incidência seja responsável pelo surgimento da ideia
errônea acerca de uma “epidemia de autismo”, noção que sequer se
sustenta empiricamente, uma vez que os poucos estudos sobre in-
cidência não foram adequados para testar a hipótese da epidemia.
O entendimento do conceito de “espectro” para as autoras é
ampliado de forma imprecisa sobre os critérios de inclusão levando
mais crianças a serem envolvidas, “[...] o que traz a necessidade de

- 121 -
problematizar esse aumento de diagnósticos, inclusive para a própria
prática clínica do psicólogo que se deparará com uma demanda que
abrange diversas possibilidades sintomáticas” (ALMEIDA e NEVES,
2020, p. 5).
Para Jeruzalinsk, (2015) os referidos manuais internacionais
trouxeram um apagamento de vários quadros de transtornos mentais
ficando todos sob um único guarda-chuva, Transtorno do Espectro
Autista/ TEA, como por exemplo a psicose. Diante da complexida-
de do próprio quadro de autismo e sem uma causa única, torna-se
necessário o envolvimento com outras áreas da intersetorialidade
como a Educação, a Assistência social, a Saúde mental e o Judiciário,
entre outros.
Para melhor assessorar os trabalhadores no campo da saúde,
o Ministério da Saúde elaborou duas cartilhas para a identificação e
acompanhamento de TEA: Diretrizes de Atenção à Reabilitação da
Pessoa com Transtornos do Espectro do Autismo – TEA (2014) e a
Linha de Cuidado para a Atenção às Pessoas com Transtornos do Es-
pectro do Autismo e suas famílias na rede de atenção psicossocial do
sistema único de saúde (2015). Assim como a caderneta da criança
estabelece os sinais de vigilância para atraso no desenvolvimento in-
fantil, já estão presentes os sinais de risco de Autismo a serem averi-
guados durante a consulta pediátrica. Entretanto, até o momento ob-
servamos poucas cadernetas de saúde com as observações médicas.
Atualmente, as pessoas com Transtornos do Espectro Autista
- TEA, associado às Pessoas com Deficiência (PcD´s,), vêm adqui-
rindo ao longo dos anos, direitos sociais assegurados em políticas em
Saúde e Educação, o que tem tornado os pais mais ativos na busca de
seus direitos. Como especialistas, além da disseminação e garantia
dos direitos alcançados por essa clientela TEA, acreditamos que é
preciso promover espaços de inclusão que envolvam saúde e educa-
ção, que consigam dialogar e ofertar em conjunto com Pessoas com
Deficiência (PcD´s).
A Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, institui a Lei Brasilei-
ra de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com
Deficiência), que tem sido um respaldo para garantias de melhores
condições de vida de pessoas que há anos esperam respeito e assis-
tência em suas necessidades especiais, dentre as quais as que tem o
diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA).
- 122 -
Essa e outras legislações reforçam importantes conquistas: a
detecção e intervenção precoce, a oferta de modelos de tratamentos,
a garantia da inclusão escolar, a possibilidade de profissionalização,
entre outros. Todavia, há muito o que fazer para que os direitos se-
jam de fato assegurados, principalmente na oferta de serviços que
não sejam escolares e nem de tratamento, mas que possam perpassar
essas condições e construir espaços de inclusão.
A relevância da criação de Espaços de inclusão em saúde e
educação, que consigam dialogar e assistir em conjunto às PcD´s, é
indiscutível e decerto desejável. Todavia, os percebemos raros, pos-
sivelmente por muitas questões burocráticas (estatais, municipais,
setoriais, logísticas, entre outras). Defendemos nesse trabalho que
quando os setores da saúde e da educação conseguem convergir em
consenso e parceria, muito êxito pode ser alcançado junto ao pú-
blico, e que a qualidade pode ser muito mais rica quando sai dos
segmentados “setores” e caminha associado a outras áreas do conhe-
cimento e campos de ação, a citarmos: a arte, mais especificamente a
vertente terapêutica dela.
É o que nos informa Teixeira-Machado (2015, p. 206): “A dan-
ça pode ser um aliado da terapia, estimulando a integração da sen-
sação, da percepção e, assim, predispor a ação. Atividades coorde-
nadas são de fundamental importância para o progresso do aparato
neuromotor”.
De acordo com Santos (2018), a dança é uma atividade que
pode promover a comunicação não-verbal, a coordenação motora,
a expressão emocional e a socialização, características que são fre-
quentemente prejudicadas em crianças com TEA. Além disso, a dan-
ça pode ser uma forma lúdica de aprendizagem, capaz de engajar e
motivar essas crianças.
Segundo Ribeiro e Teixeira (2009), a prática da dança pode es-
timular a capacidade da atenção seletiva e a memória operacional, o
que é especialmente importante, visto que crianças com Transtorno
do Espectro Autista apresentam dificuldades nessas áreas. Importan-
te ressaltar que a prática da dança contribui para o desenvolvimento
da propriocepção e da interocepção, permitindo que a criança tenha
maior consciência do próprio corpo e das suas sensações internas.
Outro aspecto relevante é a possibilidade de adaptação da
dança às necessidades individuais de cada criança, permitindo que

- 123 -
elas participem ativamente do processo de aprendizagem. Conforme
destaca Santos (2018), a utilização de estratégias pedagógicas espe-
cíficas para crianças com TEA na dança pode ser uma forma eficaz
de melhorar a interação social, a autoestima e a autoexpressão dessas
crianças.
Por esses e mais estudos, bem como nossa experiência nas au-
las práticas, podemos inferir que a Dança aplicada ao público com
necessidade educativa especial possui propriedades para estimular
todas as funções cognoscentes e psicomotoras, tanto em amplitu-
de micro quanto macro, coadunando com esperados progressos na
qualidade de vida dos seus praticantes. Por meio de vivências cor-
porais presentes nessa arte, tais como: alongamento, compreensão
de células coreográficas, exercícios respiratórios, experimentos de
improvisação, dinâmicas psicomotoras, exploração do espaço e das
ações básicas dos fatores do movimento humano, como ainda a re-
flexão do conteúdo dançado, memorização de sequências rítmicas e
afins, ela é uma atividade excelente para maturação da aprendizagem
humana. Além disto, trabalha a sensibilidade estética, leitura e inter-
pretação da realidade, e habilidades sociais entre seus praticantes,
uma vez que pode ser realizada de modo individual e grupal.
Munidas também pelos imprescindíveis informes da Psicolo-
gia, sabemos que desde as primeiras observações sobre o recém-nas-
cido, da aprendizagem até a capacidade de relacionamento com o
outro, o corpo é palco de vivência, seja por experiências simples ou
mais complexas. Do mesmo modo, quando o desenvolvimento não
vai bem é no corpo que sinais serão manifestados por meio de seus
sentidos, comunicação, locomoção, aprendizagem, autonomia etc.
Isso tudo é muito bem elucidado por investigações em Psicologia
sobre o desenvolvimento e a psiquê humana.
Por sua vez, a Psicanálise vem se debruçando sobre os aspec-
tos do desenvolvimento infantil, tendo o corpo como processo de
conhecimento de si e conhecimento do outro e sua relação com o
mundo. Desde as primeiras observações sobre o recém-nascido, da
aprendizagem até a capacidade de relacionamento com o outro, o
corpo é palco dessas vivências. Do mesmo modo, quando o desen-
volvimento não vai bem é no corpo que irá se manifestar por meio
de seus sentidos, fala, psicomotricidade, aprendizagem, autonomia
etc.

- 124 -
Assim, o corpo está na centralidade do sujeito. É o campo da
subjetividade, da relação com outro, do se colocar no mundo. Mas
também, é onde se manifestam as fragilidades e deficiências de cada
um. É o que acontece com a clientela atendida por suas manifesta-
ções no campo da relação com o outro, por exemplo, apresentando
déficits na comunicação, na interação social e muitas vezes mani-
festando padrões de comportamentos repetitivos e estereotipados,
podendo expressar um repertório restrito de interesses e atividades e
evitando a relação com o outro.
A Psicanálise tem grande contribuição sobre o estudo e pes-
quisa do Transtorno do Espectro Autista – TEA. Na literatura encon-
tramos uma vasta experiência entre Psicanálise e Arte, a destacar o
trabalho de Vitor Guerra (2017, p.1).

Para mim isto é muito importante porque demonstraria como é


necessário que nós, psicanalistas, estejamos atentos e abertos
aos processos de criação artística, não apenas como aspecto es-
tético, mas para poder incursionar a partir de outra perspectiva,
tanto nos processos de subjetivação como nas formas de sofri-
mento que o paciente pode trazer [...].

Como dissemos, o corpo é o palco pelo qual sujeito lida com


o entorno Lida com a realidade externa por meio das demandas do
outro e com a realidade interna, a partir da capacidade emocional
de enfrentar o ambiente. Para isso, é necessário um trabalho psíquico
intenso envolvendo o outro cuidador desde os primeiros dias de vida
do sujeito. O trabalho lúdico-corporal permite esse trânsito entre o
externo e interno, e como cada um a partir de seus recursos viverá
esse processo, no encontro com o outro.
Assim como o corpo, o ritmo é tema central na relação entre
o sujeito e seu semelhante. Bentata (2022) informa que o ritmo é
transdisciplinar. Portanto, não é possível pensar em um único con-
ceito. O ritmo que estamos apontando nessas linhas não diz respeito
a uma habilidade artística, mas há algo que está presente desde a
vida intrauterina: o feto lida com sons proveniente do estômago, do
intestino, as batidas do coração da mãe, vozes dos pais, entre outros,
como se fosse uma sinfonia. Alguns desses sons serão reencontrados
na vida extrauterina. Para Bentata (2021, p. 68) “O ritmo é um dos
fatores fundamentais que nos retira do caos e que nos protege contra

- 125 -
as rupturas”, então torna-se imprescindível para o bebê reencontrá-lo
ao nascer, daí a importância do manhês materno. Em outro momento
esclarece “... a questão do ritmo transcende a questão da voz e sua pul-
são. Porque o ritmo certamente estrutura a voz, mas também o olhar e
o corpo na sua gestualidade, na dança...” Bentata (2021, p. 69).
Em suma, para além do suporte teórico que respalda nossa
ação, os resultados alcançados, até o momento, testificam mais ainda
nossa percepção de que a parceria entre Psicanálise e Dança é fun-
cional para intervenções terapêuticas e o desenvolvimento de pessoas
com necessidades educacionais especiais, em especial as com TEA.

Um olhar sobre o trabalho com os responsáveis: mãe, nós


vemos você

O trabalho com os responsáveis28, como já pontuamos, come-


çou a partir da percepção da necessidade de envolvê-los, cada vez
mais, no tratamento de seus filhos, frente à importância que a famí-
lia, de maneira especial a mãe, tem para o desenvolvimento infantil.
O grupo é composto em sua maioria por mulheres que têm
mais de um filho, com nível basilar de escolaridade e renda socioe-
conômica baixa. Os encontros acontecem semanalmente no mesmo
horário em que as crianças e pré-adolescentes estão na dança. As
atividades duram em média uma hora e têm representado um espa-
ço reflexivo sobre suas vivências cotidianas por meio da técnica de
escuta ativa (MENDES; PARAVIDINI, 2007), com vistas ao empo-
deramento das participantes, seja em relação aos cuidados com seus
filhos ou outras situações que envolvam a garantia de direitos.
São muitos os pesquisadores que enfatizam o papel preponde-
rante da família na vida das crianças. O nascimento de um filho mar-
ca uma nova fase na dinâmica familiar, primordialmente, na vida
das mulheres, posto que, embora a literatura especializada assinale
modificações na forma de viver a paternidade (CAMPOS, 2012),
muitas mulheres ainda assumem a responsabilidade pelos cuidados
dos filhos. Situação presente no contexto das famílias atendidas pelo
projeto, razão pela colocaremos em foco a relação mãe e filho e seus
desdobramentos na vida dos dois.
28 O termo responsável foi aqui adotado pelo fato do grupo ser composto, pontualmente, por
alguns poucos pais e uma avó, mas neste trabalho nos centraremos no trabalho com as mães.

- 126 -
A importância dos laços que se estabelecem nessa relação é
muito significativa para ambos. No âmbito do desenvolvimento da
criança, os primeiros cuidados e a constituição desses laços são pon-
tos destacados por muitos autores, dentre os quais ressaltamos Do-
nald Winnicott.
Para esse psicanalista, o bebê ao nascer não é uma unidade
em si mesmo. Esse momento é marcado por uma indiferenciação
somatopsíquica. O percurso para sua integração psíquica passa pela
adaptação do ambiente, representado sobretudo pela mãe, às suas
necessidades. Esse movimento materno adequado é nomeado como
suficientemente bom, sendo o representativo da preocupação ma-
terna primária, ou seja, uma preocupação revertida em cuidados e
aconchego (WINNICOTT, 1975; 1990).
Esses cuidados, entretanto, não precisam ser perfeitos, sem
falhas e não devem representar a totalidade da vida dessa mulher,
como se sua vida se resumisse à maternidade.
Acerca dessas questões que envolvem o feminino, cabe desta-
car o que propõe Maria Rita Kehl, cujo argumento centra-se na não
existência de uma natureza feminina. Para essa psicanalista, é preci-
so atentar para os discursos produzidos nos séculos XVIII e XIX que
buscam “promover uma perfeita adequação entre as mulheres e o
conjunto de atributos, funções, predicados e restrições denominado
feminilidade” (KEHL, 2008, p. 47-48), pois eles ainda estão presentes
em muitos contextos.
É por meio desses discursos que se propaga a ideia de que as
mulheres formariam um conjunto definido a partir de sua natureza,
uma espécie de ‘natureza feminina’, voltada para o lar e, sobretudo,
para a maternidade (MOURÃO, 2021, p. 135).
Essas são questões que norteiam nossas atividades. Um dos
objetivos do trabalho com as mães é fazer com que elas, ao serem
vistas e ouvidas, encontrem um lugar em que possam se reconhecer
como mulheres e não somente como mães, ponto identificado como
uma necessidade premente de intervenção. Temos observado em
suas falas a prevalência de questões relativas à solidão do cuidado,
posto que elas assumem a responsabilidade com os cuidados diários,
ficando também à frente do processo de tratamento (medicações,
consultas e exames), enquanto os pais trabalham.

- 127 -
Assim, percebemos uma dificuldade dessas mulheres em se
perceberem para além da maternidade. Essa é uma temática recor-
rente e em um encontro foi posta mais diretamente por meio da per-
gunta: O que é ser mãe? A partir desse questionamento, uma das
mães falou sobre a renúncia para cuidar do filho e essa fala ressoou
em muitas outras, por meio de expressões como ser muito presente
na vida dos filhos e estar inteiramente disponível para eles. Tais falas
parecem favorecer um processo identificatório entre elas e se desdo-
bram em comentários sobre seus comportamentos e de seus filhos.
Referem que ao ouvir outras mães com problemas semelhantes aos
seus, sentem-se confortadas. Isso as ajuda a melhorar, pois se sentem
apoiadas - “deram um amparo para nós”.
À medida que o trabalho avança, o grupo vai se configurando
como um lugar de fala e de escuta mútua, o que inicialmente não era
possível em face da necessidade de falar de si, de seus problemas, de
desabafar – “aqui eu consigo desabafar”. Também temos percebido
uma postura mais ativa dessas mães e uma maior abertura para pen-
sar as circunstâncias que envolvem seu cotidiano e de seus filhos.
Seus relatos apontam tratar-se de mulheres que não costuma-
vam falar de si, ainda não têm uma rotina de autocuidado e vivem
sobrecarregadas em função dos cuidados com os filhos e as tarefas
domésticas. Tal situação reforça a necessidade de um olhar atento da
equipe para essas questões como forma de garantir que o grupo pos-
sa continuar oportunizando a essas mulheres, tal qual um ambiente
suficientemente bom, a possibilidade de serem ouvidas, acolhidas e
cuidadas de acordo com suas necessidades.

Algumas considerações

Como o título deste capítulo ressalta, a tríade “Dança, Psico-


logia e Autismo” pode dar muito certo, e isso requer planejamento,
organização e sensibilidade por parte dos proponentes, e assiduidade
e entrega daqueles que são atendidos.
De um modo geral explicitamos durante todo o relato os be-
nefícios da dança ao público com TEA; a importância de assistência
psicológica aos progenitores(as) desse contexto e; o êxito alcançável
em ações interdisciplinares. Contudo, além desses descritores, para

- 128 -
fecharmos as reflexões aqui propostas, evidenciamos o quanto é ne-
cessária a existência projetos de extensão universitária.
A universidade pública, por meio de atividades extensionistas,
toca uma parte da população que nem sempre é vista e/ou alcançada,
e, que por vezes desconhece essa função universitária, principalmen-
te aquela massa que por muitos anos tem dificuldade em ser verda-
deiramente incluída, ou seja, pessoas com necessidades educacionais
especiais em suas diversas peculiaridades.
Em muitos casos, a comunidade “externa” aos muros do ensi-
no superior, e que tem condição atípica no desenvolvimento humano
salutar, é a que mais carece do produto cientifico/artístico produzido
no seio acadêmico, e a prevalência de projetos de essência terapêuti-
ca, decerto colabora em demasia para assistência desse público, uma
vez que as redes de saúde municipais e estaduais estão/são sobrecar-
regadas com a alta demanda da lista de espera, para atendimentos
clínicos especializados, seja para avaliação ou reabilitação.
Por isso, frisamos que os investimentos (recursos humanos
e materiais/imateriais) oriundos de setores competentes, da esfera
universitária e gestões parceiras, são imprescindíveis para que os
projetos possam sair do papel e torne-se exequíveis, como também,
é inteiramente desejável o compromisso dos projetos de extensão,
para que sejam reais e desocupem os cargos de fabulação.
Com o resultante do que temos visto na ação do nosso projeto,
testificamos que os objetivos são alcançáveis, que vidas são trans-
formadas, que todos lucram em aprendizagem e progresso, mas que
também não podemos romantizar a realidade trabalhosa ante a cau-
sa da inclusão e que ainda há muito o que ser feito. Enquanto isso,
esperamos vida longa, visibilidade e funcionalidade de nossas ações,
e, que não haja sensacionalismo e sim investimento.
A universidade, a extensão, a interdisciplinaridade (ciências e ar-
tes) em prol do TEA e qualquer outra necessidade especial podem dar
muito certo!.. (Se receberem incentivo e validarem-se enquanto corpo).

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1990.

- 131 -
- 132 -
O CORPO EM CENA NA CLÍNICA
PSICOLÓGICA:
análise socioantropológica de um caso a partir de
um atendimento no espaço de atendimento psi-
cossocial (EPSICO)
André Luiz Machado das Neves29
Erica Vidal Rotondano30
Érika da Silva Ramos31
Gizelly de Carvalho Martins32
Munique Therense33
Socorro de Fátima Moraes Nina34
Resumo
O capítulo em questão aborda a experiência de uma jovem universitária que
apresenta baixa autoestima em relação ao seu corpo e sexualidade. A partir da
perspectiva da antropologia do corpo, o texto explora como as experiências
sociais e culturais moldam a percepção e o valor atribuído ao corpo. O caso em
análise parte de uma jovem que relatou sentir-se inadequada e pouco atraen-
te após ser deixada por um rapaz de sua turma, que passou a namorar com
sua melhor amiga. Essa experiência de rejeição afetou profundamente a sua
autoestima e a forma como ela se via em relação ao seu próprio corpo. A análise
socioantropológica buscou compreender como a cultura e a sociedade em que
essa jovem está inserida contribuem para a sua experiência corporal e sexual.
Ao final do texto, se destaca a importância de se compreender as experiências
corporais e sexuais a partir de uma perspectiva cultural e social, buscando com-
preender como as normas e valores sociais moldam as percepções e vivências
individuais. Além disso, é destacada a importância de incentivar uma cultura
de aceitação e respeito às diferenças e promover o empoderamento das pessoas
em relação a seus corpos e sexualidades.
29 Doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Socia (IMS) da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva da Universidade do Estado do Amazonas.;
30 Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Socia (IMS) da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Colegiado de Pedagogia da Universidade
do Estado do Amazonas (UEA);
31 Doutora em Sociedade e Cultura da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Professora do Curso de Dança da UEA.
32 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santos (UFES).
33 Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Socia (IMS) da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde
Coletiva da Universidade do Estado do Amazonas;
34 Doutora em Sociedade e Cultura da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Docente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade do
Estado do Amazonas;

- 133 -
Palavras-chave: Corpo, Sexualidade, Feminino, Psicologia, Antropologia do
Corpo

Abrindo a cena e situando o corpo

Ao adentrar o espaço de atendimento psicossocial, a jovem


universitária se depara com um ambiente acolhedor e tranquilo. As
paredes são pintadas em tons pastéis e há poltronas confortáveis
dispostas ao redor da sala. O ar-condicionado ameniza o calor ca-
racterístico da cidade e a iluminação suave torna o ambiente mais
acolhedor.
Ao ser convidada a entrar no consultório a jovem se senta em
uma das poltronas e começa a desabafar sobre seus problemas de au-
toestima. Ela relata que se sente insegura com sua aparência física e
que isso afetou sua sexualidade após ter sido ‘trocada por uma colega
de turma” pelo rapaz com quem “ficava”. Ela se sente inadequada e
não consegue se libertar desses pensamentos negativos, o que está
afetando profundamente sua vida.
Ao ouvir a história da jovem, o psicólogo compreende que a
questão vai além de um simples problema de autoestima. Ele nota
que o corpo é o grande protagonista dessa história.
A partir dessa análise, o psicólogo consegue ajudar a jovem a
compreender que seus problemas de autoestima não são apenas um
problema individual, mas estão ligados a questões culturais e sociais
mais amplas. Ele a assiste quanto a uma nova relação com seu corpo,
mais saudável e ressignificada, e a entender que sua sexualidade não
está condicionada à opinião dos outros.

***
A cena que abre esse capítulo orienta os temas que desenham
o escopo deste texto. É sobre corpo e sexualidade que empreende-
mos um esforço analítico para compreender um caso de atendimen-
to psicológico no Espaço de Atendimento Psicossocial (EPSICO),
que realiza atendimento psicológico em uma universidade pública
de Manaus, Amazonas (NEVES et al, 2019).
Situamos, portanto, o corpo e a sexualidade como temas cen-
trais para análise. O corpo é uma das principais fontes de significa-

- 134 -
do e experiência humana, mas também é moldado culturalmente.
O esforço desse capítulo é empreender à análise social de como as
normas culturais e sociais influenciam a forma como as pessoas ex-
perimentam e percebem seus corpos. Este texto discutirá o caso de
uma jovem universitária e sua baixa autoestima em relação ao corpo
e à sexualidade, utilizando conceitos e referências da antropologia
do corpo.
Por sua vez, a antropologia do corpo, nos iluminou a buscar
compreender como diferentes culturas e sociedades constroem e va-
lorizam o corpo de seus membros. Como aduz Le Breton:

[...] Através do corpo, o homem apropria-se da substância de


sua vida traduzindo-a para os outros, servindo-se dos sistemas
simbólicos que compartilha com membros da comunidade...”
(2007, p.7).

Em concordância, a partir da observação e análise desse caso


concreto, foi possível perceber como as experiências individuais e
as representações coletivas do corpo se entrelaçam e se influenciam
mutuamente.
A relação entre corpo, sexualidade e autoestima é um tema
de grande interesse para as ciências humanas e sociais, uma vez que
está diretamente relacionado às normas sociais e culturais que regem
a sexualidade em diferentes contextos. Em particular, a autoestima
relacionada ao corpo e à sexualidade pode ser influenciada por fa-
tores como a mídia, a cultura popular, a religião e as relações inter-
pessoais.
Para os jovens universitários, em particular, a autoestima rela-
cionada ao corpo e à sexualidade pode ter um impacto significativo
em sua vida social e emocional. Segundo um estudo realizado por
Lutz et al. (2019), a insatisfação com o corpo pode levar a comporta-
mentos de risco, como o uso de álcool e drogas, e pode afetar negati-
vamente a saúde mental e física dos jovens.
Além disso, a sexualidade também desempenha um papel im-
portante na autoestima dos jovens universitários. A experiência se-
xual pode afetar a autoestima de forma positiva ou negativa, depen-
dendo do contexto em que ocorre e das normas sociais que regem a
sexualidade.

- 135 -
No caso da jovem universitária que estudamos, podemos per-
ceber como sua baixa autoestima em relação ao corpo e à sexuali-
dade está relacionada a uma série de fatores culturais e sociais que
condicionam a construção do corpo feminino como objeto de julga-
mento e controle. Como destaca Shilling (2003), a construção social
do corpo envolve não apenas aspectos biológicos e fisiológicos, mas
também discursos, práticas e valores que permeiam a vida social.
Nesse sentido, é importante considerar também as experiên-
cias subjetivas da jovem em relação ao próprio corpo, que podem
ser influenciadas tanto por fatores externos quanto internos. Como
afirma Csordas (1994), o corpo é uma dimensão fundamental da
experiência humana, que envolve tanto aspectos biológicos quanto
culturais, emocionais e simbólicos.
Ao analisar o caso da jovem universitária, podemos perceber
como suas experiências corporais e sexuais são permeadas por esses
fatores culturais e subjetivos, que contribuem para a construção de
uma baixa autoestima e de uma sensação de inadequação em relação
ao corpo. Como destaca Butler (1990), a construção da identidade
de gênero e sexualidade envolve processos de performatividade, em
que os indivíduos são constantemente confrontados com normas e
padrões sociais que condicionam sua experiência e sua expressão
corporal.
Assim, ao analisar o caso da jovem universitária, podemos
perceber como sua baixa autoestima em relação ao corpo e à se-
xualidade está relacionada a uma série de fatores culturais, sociais
e subjetivos que permeiam sua experiência corporal e influenciam
sua construção identitária. Nesse sentido, é fundamental considerar
tanto as dimensões objetivas quanto subjetivas do corpo, bem como
as interações e relações que se estabelecem entre elas, a fim de com-
preender as múltiplas e complexas formas em que o corpo se insere
e é construído nas sociedades humanas.

O corpo na clínica psicológica

O levantamento de dados foi realizado a partir de 12 sessões


de atendimento clínico psicológico no EPSICO. Durante as sessões,
a jovem relatou suas preocupações com a aparência física e sua insa-

- 136 -
tisfação com seu corpo, bem como sua dificuldade em se relacionar
afetivamente e sexualmente.
A jovem em questão, que chamaremos de Ana, tem 21 anos e
está cursando o segundo ano, em um curso de exatas, em uma uni-
versidade pública. Ela se autodenomina evangélica, realiza estágio
remunerado em uma empresa de construção civil e dedicada aos
estudos, e entre outras queixas, a que evidenciou-se foi a baixa au-
toestima em relação ao seu corpo. Ana sempre se considerou acima
do peso e acredita que essa condição a torna menos atraente e menos
desejável sexualmente.
Essa percepção de si mesma como “fora dos padrões” se forja
pelas normas culturais de beleza e aparência que são transmitidas
pela sociedade. Essas normas ditam o que é considerado atraente e
desejável, criando uma pressão constante para que as pessoas se en-
quadrem nesses padrões. As mulheres, em particular, são alvo des-
sa pressão, sendo constantemente julgadas por sua aparência física.
Essas normas de beleza e aparência na contemporaneidade ganham
a cena principalmente nas redes sociais como Instagram e TikTok,
enquanto meios midiáticos ditadores sobre beleza versus fealdade.
Sobre o contexto contemporâneo de dispositivos de moldes
corporais, enfatizamos que os julgamentos entre beleza ou de feiura,
no que se refere ao teor de critérios estéticos, são muito próximos de
aspectos religiosos, políticos, morais e sociais, o modo de problema-
tizar a aparência (de pessoas, animais, coisas e fatos), e obviamente de
conceber noções de aceitabilidade de belo são mutáveis linearmente
ao curso da História, sendo essencial olhar para a mesma quando se
está diante de idealizações de imagem corporal (ECO, 2015).
Abrimos aqui um breve parênteses para o conceito de ima-
gem corporal, que segundo Schilder (1994), o qual a estudou-a sob o
foco das ciências sociais e da psicanálise, é um evento multifacetado,
trata-se de uma capacidade além do gênero organicista, sendo uma
somatória cognoscente de desejos, atitudes emocionais e interação
com os outras pessoas, e, aparência desta imagem tem seus aspectos
construtivos e também patológicos.
Para Ana, essa pressão da sua imagem corporal externa eclo-
diu em intensidade no ambiente universitário, porém, como o ser
humano é um amálgama de contextos, indicamos aqui sem delongas

- 137 -
que parte da queixa da paciente foi intensificada também pela baga-
gem religiosa anterior que ela já carregava em conceitos morais/exis-
tenciais, haja vista que ela declara-se evangélica (consideramos que tal
religião desempenha um papel de juízo entre a liberdade sexual antes
do casamento, ao passo em que quem obedece aos dogmas agrada um
Ser bondoso superior, e quem desvia-se dos princípios doutrinários
distancia-se do divino, do bom, do belo, do virtuoso, acarretando sen-
sação de mal estar, que manifestam-se em alguns casos por deprecia-
ção de si).
Além desse histórico citado, vimos que Ana na experiência na
universidade, se sente cercada por jovens que em sua narrativa, se en-
caixam nos padrões de beleza e são sexualmente ativos e atraentes, e,
ela se compara constantemente com as outras jovens e acredita que
não é tão bonita ou atraente quanto elas. Essa comparação constante é
prejudicial à sua autoestima e a faz sentir-se inadequada e indesejável.
Essa intensidade ocorreu principalmente após ela ter “ficado” com um
rapaz de sua turma durante duas semanas. Após isso, ela relatou em
sessão de psicoterapia, que ele se afastou e “ficou mais frio”, porém ela
descobriu por meio de outros colegas de sua turma que eles estavam
ficando com sua melhor amiga.
Após essa experiência, Ana relatou que a baixa autoestima tem
efeitos significativos em sua vida sexual. Ela afirma que se sente inse-
gura e envergonhada em relação ao seu corpo, o que a impede de se
sentir à vontade durante as relações sexuais. Ela evita se despir na fren-
te de parceiros e se preocupa constantemente com o que eles pensam
dela. Isso afeta sua capacidade de experimentar prazer e de se conectar
emocionalmente com seus parceiros.
A experiência de Ana é um exemplo dos efeitos nocivos que as
normas culturais de beleza e aparência podem ter na autoestima e na
vida sexual das pessoas. Para mudar essa situação, é necessário criar
um diálogo aberto e franco sobre os padrões de beleza e como eles
afetam as pessoas. É importante que as pessoas aprendam a valorizar
a diversidade de corpos e a reconhecer que a aparência física não é o
único fator que determina a atração e o desejo sexual. Além disso, é
necessário oferecer apoio psicológico e emocional às pessoas que en-
frentam baixa autoestima, para que possam superar esses obstáculos
e desfrutar de uma vida sexual saudável e satisfatória, bem como atin-
jam o nível desejável de consciência corporal e autoapreciação pessoal.

- 138 -
O corpo e a sexualidade narrados à luz da antropologia do
corpo

A partir do caso apresentado, podemos refletir sobre algumas


das principais discussões presentes na antropologia do corpo e suas
relações com a baixa autoestima corporal e sexualidade. Segundo
Shilling (2003), o corpo é uma construção social e cultural, e suas
práticas e representações estão sempre ligadas a contextos especí-
ficos de tempo e espaço. Assim, a imagem corporal de Ana é cons-
truída a partir dos padrões estéticos e culturais que circulam em sua
sociedade, e que valorizam especialmente a beleza, a juventude e a
magreza.
A experiência de Ana é moldada pelas normas culturais e so-
ciais em relação ao corpo e à sexualidade. A antropóloga do corpo,
Emily Martin, argumenta que o corpo é culturalmente construído e
que nossas percepções e experiências são moldadas por normas cul-
turais (MARTIN, 1994). Em muitas sociedades ocidentais, o corpo
é visto como uma mercadoria que deve ser moldada e aprimorada
através de dietas, exercícios e procedimentos cosméticos (GIMLIN,
2002). Essas normas criam padrões estreitos de beleza que são inal-
cançáveis para
​​ a maioria das pessoas e podem levar a uma baixa au-
toestima e insatisfação corporal (HESSE-BIBER, 2016).
Ao falarmos em normas, ancoramo-nos também em uma
perspectiva bourdieusiana, pois reconhecemos que na atualidade
há um número restrito de moldes e sensações, relativas às funções
corporais que agridem com poder invisível, porem real, a juventude
que busca aceitação. Tais moldes pairam nos “campos de poder”, que
incentiva em celeridade e ajuda das mídias uma ideologia de “eu sou
jovem, belo(a), desejável, aceitável, admirável, logo, tenho poder”, to-
davia, na verdade perde-se o poder mais rico e genuíno, àquele liga-
do a essência humana, a consciência corporal e a validação pessoal,
quando um indivíduo quando “deixa-se” em prol de regimentos de
terceiros.
Assim, o campo do poder e os modelos de corpos perfeitos/
desejáveis, são movidos no capital cultural, este campo de poder, na
medida em que propõe modelos de corpos a serem modeláveis, de-
precia as práticas sociais das demais classes, aquelas com menores

- 139 -
condições de adesão aos tratamentos estéticos ou de saúde em prol
de mudanças corporais, e o resultado de dado poder legitima ainda
mais os que podem fazê-lo enquanto classe dominante, preconizan-
do seu perfil enquanto referência física a ser seguida (BOURDIEU,
2009).
Podemos dizer, em compreensão aos princípios de Bourdieu
(1996; 2009) sobre campo, habitus e poder que há uma violência
simbólica permeando os formatos, crenças e valorização corporal
que induz subjetivamente o desejo de jovens que, pensam estar deci-
didos a partir de sua própria opinião idiossincrática e consciente de
realizar mudanças corporais, no intuito de estarem mais satisfeitos
consigo, quando no fundo estão, na maioria das vezes, agindo con-
forme o regime ditatorial na construção da imagem corporal, de de-
terminações simbólicas estruturadas e estruturantes sobre um corpo
belo, funcional, sexual, dentre outras venustidades.
Além disso, a construção da imagem corporal está relaciona-
da a questões de gênero, raça e classe social. Como argumenta Butler
(2003), a identidade de gênero é construída a partir de normas cultu-
rais que estabelecem o que é considerado “masculino” e “feminino”.
No caso de Ana, podemos observar que ela se sente inadequada em
relação a padrões femininos de beleza e sexualidade, que valorizam
a magreza e a disponibilidade sexual.
No que diz respeito à sexualidade, podemos observar que a
baixa autoestima de Ana está relacionada a questões de poder e con-
trole. Como argumenta Foucault (2001), a sexualidade é uma práti-
ca social que está ligada a relações de poder, e que é utilizada para
exercer controle sobre os corpos e as identidades. No caso de Ana,
podemos observar que ela sente medo e insegurança em relação ao
sexo, e que essa insegurança está relacionada à pressão social para
ser sexualmente ativa e ao medo de não corresponder às expectati-
vas dos outros. Além disso, a sexualidade feminina é frequentemente
estigmatizada em muitas culturas ocidentais, o que pode levar a sen-
timentos de vergonha e culpa (RICH, 1995). Isso pode afetar a au-
toestima das mulheres e sua capacidade de se sentirem confortáveis​​
em seus corpos e em expressar sua sexualidade (TOLMAN, 2005).
Portanto, é importante para nós pesquisadores (as) e profis-
sionais das ciências humanas e sociais, estudarmos as relações en-
tre corpo, sexualidade e autoestima em diferentes contextos sociais
- 140 -
e culturais, a fim de entender como esses fatores interagem para
influenciar a saúde mental e física dos jovens universitários. Além
disso, é importante considerar como as intervenções podem ser de-
senvolvidas para ajudar os jovens a desenvolver uma autoestima sau-
dável e positiva em relação ao corpo e à sexualidade.

Algumas considerações
O caso de Ana ilustra como as normas culturais e sociais em
relação ao corpo e à sexualidade podem moldar as experiências e
percepções individuais. A antropologia do corpo oferece uma lente
crítica para analisar como essas normas são criadas e reproduzidas
em sociedade e como elas afetam a autoestima e o bem-estar psico-
lógico das pessoas.
A partir do relato da jovem, fica evidente que a autoestima é
um fator crucial para a experiência sexual, e que a rejeição por parte
do rapaz afetou profundamente sua autoestima e sua percepção de si
mesma como ser ou não desejável. Por meio da análise antropológica
do corpo, é possível compreender como as normas culturais moldam
a experiência corporal das pessoas, influenciando a forma como elas
se percebem, se relacionam com os outros e experimentam sua se-
xualidade. Nesse sentido, a intervenção psicológica no caso da jovem
deve levar em conta não apenas as questões emocionais e psicológi-
cas, mas também as dimensões culturais e sociais que influenciam
sua autoestima e sua percepção do corpo.
Podemos, portanto, refletir que a questão da autoestima em
relação ao corpo e sexualidade é uma questão extremamente com-
plexa e multifacetada. No caso da jovem universitária estudada, sua
autoestima foi significativamente afetada pelo episódio de ter sido
trocada em um relacionamento. Isso desencadeou uma série de sen-
timentos depreciativos em relação ao seu próprio corpo, a sexualida-
de e por conseguinte ao seu bem estar.
É importante destacar que a autoestima é um aspecto funda-
mental da saúde mental e emocional. No caso da jovem universitária,
sua baixa autoestima a levou a se sentir desconfortável em situações
sociais e a evitar atividades que antes lhe traziam prazer.
Como psicólogos (as), precisamos estar atentos às maneiras
como a cultura e a sociedade moldam as percepções e atitudes em

- 141 -
relação ao corpo e à sexualidade, e como isso pode afetar a saúde
emocional e física das pessoas. Devemos incentivar uma cultura de
aceitação e respeito às diferenças e promover o empoderamento das
pessoas em relação a seus corpos e sexualidades.
A experiência da clínica quando manejada em uma perspecti-
va interdisciplinar, podemos ajudar a desafiar essas normas e promo-
ver uma maior diversidade de corpos e identidades sexuais na socie-
dade. Ao considerar a perspectiva antropológica do corpo, é possível
entender que a experiência corporal não é apenas individual, mas
também coletiva, e que as normas culturais e sociais que regulam a
experiência corporal das pessoas têm implicações profundas na saú-
de mental e emocional das pessoas. Portanto, a intervenção psico-
lógica deve levar em conta não apenas as questões individuais, mas
também as dimensões culturais e sociais que influenciam a experiên-
cia corporal da jovem universitária.

Referências

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literário. Traduzido por Maria Lucia Machado. São Paulo: Compa-
nhia das letras, 1996.
_________. O poder simbólico. 12.ed. Traduzido por Fernando To-
maz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
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Brasileira, 2003.
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Identity. New York: Routledge, 1990.
CSORDAS, Ts. Embodiment as a paradigm for anthropology.
Ethos, v. 18, n. 1, p. 5-47, 1990.
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FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber.
Rio de Janeiro: Graal, 2001
GIMLIN, D. Body work: Beauty and self-image in American cul-
ture. University of California Press, 2022.

- 142 -
HESSE-BIBER, S. The cult of thinness (3rd ed.). Oxford Univer-
sity Press, 2016.
LE BRETON, D. A sociologia do corpo. 2.ed. Petrópolis: Vozes,
2007.
LUTZ, D. J et al. The role of appearance-based rejection sensiti-
vity in college student alcohol and drug use. Journal of American
College Health, 67(1), 51-59, 2019.
MARTIN, E. Flexible bodies: The role of immunity in American
culture from the days of polio to the age of AIDS. Beacon Press,
1994.
NEVES, A. L. M. et al. Saúde mental e universidade: experiência
do - Espaço de Atendimento Psicossocial” (EPSICO). Trabalho (En)
Cena, [S. l.], v. 4, n. 2, p. 531-542, 2019. Disponível em: https://
sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/encena/article/view/7482.
Acesso em: 18 mar. 2023.
RICH, Adrienne. Of woman born: Motherhood as experience and
institution Nova Iroque/Londres: WW Norton & Company, 1995.
SCHILDER, P. A imagem do corpo:  as energias construtivas da
psique. Traduzido por Rosane Wertman. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1994.
SHILLING, C. The body and social theory. London: SAGE, 2003.
TOLMAN, D. Dilemmas of desire: teenage girls talk about sexua-
lity. Cambridge: Harvard University Press, 2005.

- 143 -
- 144 -
AS ESCOLAS DO AMAZONAS E A
INTEGRAÇÃO DAS TECNOLOGIAS
DIGITAIS:
das ações e dos desafios para a formação35

Amanda Ramos Mustafa36

Resumo
As tecnologias digitais da informação e comunicação (TDICs) oportunizam o
acesso a infinitas informações quase que instantaneamente, essa celeridade e
toda a dimensão multimodal da linguagem do ciberespaço pode favorecer a
aprendizagem de conhecimentos diversos em um simples “clique” em frente
ao computador ou celular. Mediante isso, nosso objetivo é discutir o contexto
histórico relacionado a incorporação das TDICs no cenário educacional ama-
zonense no âmbito da Seduc-Am, pontuando quais os seus projetos formativos
mais recentes direcionados aos seus professores e como essas ações tem chega-
do nesse público. Nosso parâmetro investigativo é a reflexão crítica ancorada
nos pressupostos teóricos atinentes às TDICs, aos letramentos e aos letramen-
tos digitais, mobilizados por pesquisadores das áreas da linguística aplicada e
do campo da Educação. Metodologicamente, trabalhamos com a abordagem
qualitativa, do tipo bibliográfica e de campo, guiada pela a perspectiva dialógica
do discurso. Para a parte bibliográfica buscamos dados em estudos de pesquisa-
dores que se debruçaram sobre a temática em questão no contexto amazônico
e, também, nas plataformas digitais oficiais da Seduc-Am, dentre outras que
apontam os principais atos de formação continuada da secretaria destinados
aos professores envolvendo o uso pedagógico dos aportes tecnológicos digitais.
Já na pesquisa de campo, tivemos o procedimento técnico da etnografia virtual
com cinco professores da Seduc, utilizando o Google Forms. Os resultados in-
dicam que os programas e a oferta de cursos formativos com foco nas TDICs
(e até de outros) da Seduc precisam ganhar mais notoriedade junto aos seus
professores e que a formação continuada.
Palavras-chave: TDICs. Letramentos digitais. Formação de professores.

Palavras iniciais

As tecnologias digitais da informação e comunicação (TDICs)


oportunizam o acesso a infinitas informações quase que instantanea-
mente, essa celeridade e toda a dimensão multimodal da linguagem
35 Este trabalho é um recorte de nossa pesquisa doutoral desenvolvida no programa de pós-
graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
36 Mestra em Letras e Artes. Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós -Graduação
em Educação da Universidade Federal do Amazonas (PPGE/UFAM). Professora de Língua
Inglesa da Secretaria de Estado de Educação e Desporto do Amazonas (Seduc/AM). E-mail:
mustafa.amanda@gmail.com

- 145 -
do ciberespaço pode favorecer a aprendizagem de conhecimentos
diversos em um simples “clique” em frente ao computador ou celu-
lar, por exemplo, com isso, elas podem ser estimulantes e importan-
tes para a produção de novas formas de aprender e ensinar (LEVY,
1999).
Nas afirmações de Moran (2015) e Kenski (2012), a escola
precisa fundir-se aos espaços significativos da sociedade, demarcada
pelo universo do contato físico e do digital, pois estamos vivendo
numa era de demasiadas redes de informações e meios informati-
vos híbridos com forte influência da cultura digital. Em face dessa
eclosão digital, as TDICs se mostram mais do que um auxílio, elas
podem ser integradas nas bases de sustentação dos processos de en-
sino e aprendizagem na escola, muitos são os letramentos digitais
existentes que podem influenciar a vida dos jovens, que facilmente
conseguem acessar aplicativos e plataformas.
No mais recente documento normativo da educação básica:
a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), imputada pela lei n°
13.415/2017 para nortear as aprendizagens essenciais a serem tra-
balhadas com o estudante ao longo das etapas da educação básica,
enquadra as TDICs dentro de um patamar mais elevado e mais con-
textualizado no ensino em relação a todas as legislações pretéritas a
BNCC, o referido documento se assenta em dez competências na
condução do processo pedagógico, das quais três (sendo a 1, 4 e 5)
fazem menção explícitas quanto ao uso das TDICs alinhavadas ao
fator da cultura digital (BRASIL, 2018).
Isso implica dizer que escolas e professores precisam estar pre-
parados para saber lidar com eficiência com as TDICs. Posto isto,
no âmbito da educação básica estadual do Amazonas, parece-nos
necessário e pertinente a reflexão sobre as indagações que motivam
a criação deste escrito: como tem sido desenvolvidas as políticas de
implementação das TDICs na Secretaria de Estado de Educação e
Desporto do Amazonas (Seduc/Am)? Quais as suas políticas forma-
tivas mais recentes neste campo e como elas tem alcançado os educa-
dores da rede? Eles têm conseguido participar dos cursos?
Diante das questões postas buscamos primeiramente trazer
a lume o contexto histórico relacionado a incorporação das TDICs
no cenário educacional da Seduc-Am, para na sequência abordar os
seus projetos formativos mais recentes direcionados aos seus profes-
- 146 -
sores e como essas ações têm chegado nesse público. Nosso parâme-
tro investigativo é a reflexão crítica ancorada nos pressupostos teóri-
cos atinentes às Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação
- TDICs, aos letramentos e aos letramentos digitais, mobilizados
por pesquisadores das áreas da linguística aplicada (RIBEIRO, 2007;
KLEIMAN, 1995; BUZATO, 2006; XAVIER, 2011) e do campo da
Educação (SOARES, 2003; KENSKI, 2012; GOULART, 2006). Me-
todologicamente, trabalhamos com a abordagem qualitativa (CHIZ-
ZOTTI (2003), do tipo bibliográfica e de campo (GIL, 2008), guiada
pela a perspectiva dialógica do discurso pautada em Bakhtin (2016;
2017), para quem um determinado fenômeno pode ser analisado
pelo viés da linguagem situada, demarcada pela dialogicidade cons-
truída entre um “eu” e o “outro”. Para a parte bibliográfica buscamos
dados em estudos de pesquisadores que se debruçaram sobre a te-
mática das TDICs no contexto amazônico (GARCIA, 2006; MELO
NETO, 2007; 2020) e, também, nas plataformas digitais oficiais da
Seduc-Am, dentre outras que apontam os principais atos de forma-
ção continuada da secretaria destinados aos professores envolvendo
o uso pedagógico dos aportes tecnológicos digitais. Já na pesquisa de
campo, lançamos mão do procedimento técnico da etnografia vir-
tual (HINE, 2000) com cinco professores da Seduc-Am, utilizando
o Google Forms, mediante o preenchimento do Termo de Consenti-
mento Livre e Esclarecido TCLE, para coletar os informes sobre suas
impressões frente as ações formativas recentes no escopo abordado

Letramentos e Letramentos Digitais: do que estamos fa-


lando?

Letramento é um termo traduzido do vocábulo da língua in-


glesa literacy, que significa “letrado”. Os estudos de Soares (2003)
e Kleiman (1995) consolidaram o desenvolvimento desta temática
no Brasil. Para Soares (2002, p. 2), letramento significa o “estado ou
condição de quem exerce as práticas sociais de leitura e de escrita, de
quem participa de eventos em que a escrita é parte integrante da in-
teração entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação”.
Nesta ótica, o letramento se associa diretamente a uma participação
ativa do sujeito em situações de leitura e escrita como tecnologias
proeminentes na interação e nos seus processos interpretativos, ti-

- 147 -
dos por Soares (2002), como eventos de letramento, isto é, oportuni-
dades de discussão e possíveis soluções a problemáticas sociais que
vão do cotidiano a esfera acadêmica e do trabalho.
Ao conceituar o letramento, Kleiman (1995, p. 19) diz tratar-
-se de um conjunto de práticas sociais onde a leitura e a escrita são
utilizadas como um sistema simbólico e tecnológico, em situações
específicas e para objetivos específicos, sendo também “práticas e
eventos relacionados com uso, função e impacto social da escrita”.
Para a autora, essas práticas de leitura e de escrita geram ações e con-
sequências em várias dimensões (mundo do trabalho e das relações
sociais, por exemplo) de quem participa ativamente das interações
ocorridas na sociedade.
A pluralização “letramentos” se deve a diversidade de ênfases
dadas aos conceitos na caracterização desse fenômeno conforme ele
ia sendo estudado, principalmente, nas áreas de letras e da educação
(SOARES, 2002). Assim, com o avanço dos estudos sobre este tema,
várias adjetivações ascendiam: letramento acadêmico, letramento
literário, letramento matemático, letramento digital e outros, englo-
bando seus usos nesses contextos observando os aspectos pessoais,
sociais, históricos, culturais e tecnológicos dos alunos. E, o próprio
termo “letramento digital” por apresentar uma gama de oportuni-
dades para práticas letradas no ciberespaço já tem sido utilizado no
plural, o que nos permite nos apropriarmos dessa pluralização quan-
do oportuno (GAVIN et. al, 2016).
Nessa direção, verificamos que os conceitos e sentidos atri-
buídos ao letramento como prática social coadunam com a premis-
sa dialógica Bakhtiniana, haja vista que a linguagem estudada pelo
viés do letramento acontece em contextos situados, isto é, contextos
históricos, culturais e ideológicos, logo são práticas formadas por
relações dialógicas mediadas pelos gêneros discursivos (BAKHTIN,
2016), que, por seu turno, podem gerar feixes de sentidos divergen-
tes ou convergentes, dependendo da mobilização do universo de sig-
nos feita pelas vozes polifônicas dos membros de um grupo social
(VOLÓCHINOV, 2018). Nesse sentido, Goulart (2006, p. 458) aduz
que a compreensão de letramento sob o olhar bakhtiniano,

[...] está vinculado ao conjunto de linguagens sociais que identi-


ficam práticas sociais, com expressões orais e escritas, e relacio-

- 148 -
nado a instituições e a gêneros de discurso que aí se produzem.
Estaria, consequentemente, conectado de modo forte à forma-
ção dos diferentes campos de conhecimento. Assim, vivendo
em sociedades letradas, tanto os sujeitos escolarizados quanto
os não escolarizados são afetados de alguma forma pelo fenô-
meno do letramento.

Nesses dizeres vemos que o fenômeno do(s) letramento(s) se


movimenta socialmente pela interação entre os sujeitos de camadas
sociais diversas, experienciando o caminho do diálogo e compreen-
são responsiva por meio de expressões orais e escritas das “palavras
outras”, postas nos gêneros discursivos ideológicos; nesse prisma,
os sujeitos assumem um posicionamento enunciativo único frente
a diversos saberes. E com o avanço das mídias digitais, os debates
se avolumam em torno das inúmeras modalidades de escrita digital
que começaram a surgir e que segundo Coscarelli e Ribeiro (2017),
estão imbricadas ao uso da Internet como novas fontes de leitura e
práticas interativas que se desdobram por meio das telas de compu-
tadores e outros dispositivos.
Estamos falando do letramento digital ou letramentos digi-
tais, trazidos a lume por conta da disseminação das TDICs, e que vai
além do simples ato de manusear um computador, mas compreende
a procura, a seleção dos materiais por meio de diversos navegadores,
assim como as interações nesse universo.
Buzato (2006) entende letramento digital como um conjunto
de práticas sociais construídas e entrelaçadas por meio de dispositi-
vos digitais para finalidades específicas, experienciadas em contextos
socioculturais de tempo e espaços limitados ou naqueles, cuja a inte-
ração é mediada por recursos tecnológicos. Trata-se, na verdade, de
uma condição em que um sujeito tem domínio de funções e de ações
necessárias à utilização eficiente e rápida de dispositivos digitais,
mas também, uma prática de comunicação por ativada pelos novos
gêneros digitais mediados por aparelhos tecnológicos.
Nessa mesma direção Xavier (2011, p. 06), afirma que o grau
de letramento digital de uma pessoa aumenta à medida que cresce o
seu domínio nos dispositivos tecnológicos que ela usa em suas prá-
ticas cotidianas e cita como exemplo, um sujeito que cria um blog e
produz material para essa criação ou ainda cria e mantém um site de
relacionamento com seu perfil, “participa intensa e relevantemente

- 149 -
de discussões em comunidades virtuais e contribui constantemente
para a ampliação da vida na cibercultura, pode ser considerado um
sujeito dotado de um alto nível de letramento digital”.
Toda essa realidade não deixa de ser percebida pela educação,
haja vista que o letramento digital em sala de aula vem se tornando
uma alternativa eficiente para desenvolver as capacidades analíticas
dos discentes com relação às múltiplas linguagens dos ambientes mi-
diáticos, frutíferos em recursos sofisticados, que o aluno pode ma-
nusear com simples clique ao mesmo tempo que interage com um
mundo novo e desafiador.
Evidentemente que se trata de um desafio para o professor, em
especial da educação básica que precisa estar preparado para lidar
com esse novo ethos, ciente de que precisa qualificar-se por meio
da formação continuada para poder enfrentar as complexidades dos
saberes de hoje, gerados pelas mídias digitais, misturando o visual, o
verbal e a sonoridade ou seja, o letramento digital.
Mas para essas inovações acontecerem na escola, a responsa-
bilidade não é só do professor, se estende também as políticas pú-
blicas educacionais, que precisam dar o suporte técnico e formativo
necessário aos professores, para que o aprendizado com as TDICs
traga sentido no chão da escola.
No Estado do Amazonas, as iniciativas de políticas educacio-
nais voltadas à incorporação das TDICs nas escolas estaduais ficam
a cargo da Seduc-Am, cuja formação continuada de seus professo-
res são executadas pelo Centro de Formação de Professores Padre
José de Anchieta (Cepan) e, também, por parcerias firmadas entre a
Seduc-Am, a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e a Uni-
versidade do Estado do Amazonas (UEA), mas como explicitaremos
na próxima seção, a implementação de tecnologias digitais nos edu-
candários da Seduc-Am, tem sido desenvolvida em meio a enormes
desafios estruturais e de formação. É sobre esse cenário que trata-
remos a partir da próxima seção já demonstrando os resultados e
discussões dos achados bibliográficos e de campo.

- 150 -
As Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação nas
Escolas do Amazonas um breve histórico das ações e dos
desafios e suas implicações na formação docente

Discorrer sobre a política educacional tecnológica para edu-


cação básica amazonense é uma tarefa bastante desafiadora, pois
poucos são os registros em termos de legislação e de ações que aju-
dam a traçar o contexto histórico da formação continuada atinente
ao uso pedagógico das TDICs no âmbito da Seduc-Am. No decorrer
de nossas discussões, veremos que as fontes referendadas nessa seção
nos concederam mais informes sobre as políticas de implementação
desses aportes do que sobre a formação continuada propriamente
dita. Nesse primeiro momento, em algumas ocasiões, elas aparecem
discretamente, e em outras nem isso, mas subentende-se que estão
presentes, de qualquer maneira, conhecer a linha temporal de como
as TDICs foram se fazendo presentes no contexto amazônico, nos
ajuda a compreender o estado atual das políticas formativas e como
elas tem alcançado professores no escopo das TDICs.
Neste sentido, vale destacar os estudos de Garcia (2006) e
Melo Neto (2007, 2020), nos trazendo uma descrição analítica a res-
peito das primeiras políticas tecnológicas educacionais para o Ama-
zonas. Garcia (2006) discutiu as práticas pedagógicas desenvolvidas
no âmbito do ProInfo em uma escola pública da Seduc-Am e Melo
Neto (2007, 2020), por seu turno, focou no ciclo de formulação das
políticas públicas de implementação do Programa de Inovação Edu-
cação Conectada (PIEC) criado em 2018, observando o delineamen-
to desse projeto no Amazonas.
Apontando os aspectos históricos, Melo Neto (2020) relata
que a primeira experiência expressiva na rede pública de ensino a
utilizar a informática como ferramenta pedagógica ocorreu no ano
de 1996, na Secretaria Municipal de Educação de Manaus (SEME-
D-AM), com o Projeto Horizonte, desenvolvendo atividades educa-
cionais com base na linguagem Logo37 em dez escolas públicas muni-
cipais da capital Manaus.
No ano seguinte, o Amazonas aderiu ao Programa Nacional
de Informática (ProInfo), com a intenção de tornar o computador
37 Logo se refere a uma linguagem de programação interpretada, criada na década de 60,
direcionada ao ambiente educacional para aprendizagens (de crianças, jovens e adultos)
(VALENTE, 1993).

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pedagogicamente accessível para professores e alunos nas escolas e,
também, buscar uma educação mais moderna. De acordo com Gar-
cia (2006) e Melo Neto (2007), a adesão ao referido projeto exigiu da
Seduc-Am a criação de núcleos de tecnologias educacionais (NTEs)
e urgente formação de recursos humanos. Os núcleos tinham res-
ponsabilidade de atuar na formação dos docentes em exercício e
também introduzir recursos de informática e mídias, haja vista que
se objetivava ampliar o Proinfo em cerca de 25 laboratórios de in-
formáticas no estado até 1999. Todavia, até 2001, somente 19 labora-
tórios foram criados, sendo 16 na capital e três no interior (Autazes,
Coari e Boa Vista do Ramos).
Conforme Garcia (2006), várias foram as adversidades que
prejudicaram a efetivação do Proinfo no Amazonas, problemas re-
ferentes a fatores políticos que envolvem mudanças de secretários e
outros de cunho logístico, de estrutura física das escolas para receber
os equipamentos e a falta de manutenção destes dispositivos. Um
dado importante trazido pela autora é que somado as dificuldades
citadas, poucos professores utilizavam os laboratórios, pois se sen-
tiam inseguros para realizar atividades pedagógicas com os alunos,
mesmo tendo participado de atividades formativas nos NTEs, o que
nos mostra que as TDICs por si só não trazem mudanças, mas pre-
cisa do professor capacitado para a adoção e uso pedagógico desses
recursos.
Outro programa relevante implementado em 1998 pela Se-
duc-Am diz respeito ao Centro de Informática Benjamin Constant
(Ceinfor), localizado no centro de Manaus, idealizado para promo-
ver a tecnologia na educação e oferecer cursos técnicos de infor-
mática aos alunos da rede. Em 2003, o Ceinfor foi substituído pelo
Centro de Educação Tecnológica do Amazonas (CETAM), que ainda
mantém suas atividades atendendo 61 municípios do Amazonas, ar-
ticulando parcerias com instituições públicas e privadas para fomen-
tar cursos técnicos de inclusão digital e outros na área da saúde, gas-
tronomia, serviços públicos e empreendedorismo, a fim de qualificar
jovens e adultos para o mercado de trabalho (MELO NETO, 2020).
Em 2007 a Seduc-Am implantou o Centro de Mídias da Edu-
cação do Amazonas (Cemeam), objetivando prover o ensino media-
do por tecnologia aos estudantes de Ensino Médio (em alguns casos,
o fundamental) residentes em comunidades rurais e ribeirinhas, cuja

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locomoção ocorre pelas inúmeras vias fluviais que formam a malha
hidrográfica da região (SEDUC/Am, [sd]). Como o Cemeam apre-
senta uma estrutura bastante consistente, transmitie palestras e cur-
sos em parceria com outros órgãos governamentais e departamentos
da Seduc/Am à sua comunidade escolar e sociedade de modo geral;
muito do que se fez na formação docente amazonense nesses últimos
três anos, marcados pela Pandemia da Covid-1938, deve-se a este se-
tor.39
Em 2010, surge o programa Professor na Era Digital, uma ini-
ciativa política de inclusão digital dos professores da Seduc-Am, a
intensão era disponibilizar por meio do projeto cerca de 22 mil com-
putadores para os educadores efetivos e não efetivos da rede esta-
dual de ensino (SEDUC/Am, 2010). Mas, apesar deste programa ter
apresentado prospectos promissores, vale destacar que nem todos os
educadores foram contemplados40, principalmente, aqueles ingressa-
dos na Seduc-Am após o ano de 2011.
Em 2012, mediante o apoio financeiro do governo federal, é
lançado Programa Banda Larga nas escolas da Seduc-Am, com a fi-
nalidade de oferecer ao ensino público estadual o acesso à rede mun-
dial de computadores, esse programa impulsionou a Seduc-Am a
expandir os laboratórios de informática nas escolas (algumas foram
equipadas inclusive com lousa digital), lançar seu Portal Educacional
e implementar o diário digital nos seus educandários da capital. Nes-
se mesmo período, a secretaria realizou um repasse de 17.650 tablets
aos seus professores e, também, para cerca de 55 mil alunos do ter-
ceiro ano do Ensino Médio. Já em 2014, disponibilizou modens 3G
para os professores atuantes em Manaus, visando potencializar ainda
mais o acesso à internet por parte de seus docentes para o preenchi-
mento do diário digital (SEDUC/Am, 2014).
O projeto mais recente no sentido de promover o acesso a in-
ternet de alta velocidade e fomentar o uso pedagógico das TDICs
38 Covid-19 é uma nova espécie de coronavírus2 ou o Sars-Cov-2, originando-se, assim, a
Corona Virus Disease, traduzida no Brasil como de Síndrome Respiratória Aguda Grave de
Coronavírus-2.
39 Essa informação consta no Plano de Retorno às Atividades Presenciais – Ações
Pedagógicas, de Gestão e Saúde para as atividades de ensino pós-pandemia da Covid-19.
Disponível em: http://www.educacao.am.gov.br/
40 Situação que testemunhamos a partir do nosso ingresso enquanto docente efetivo da Seduc-
AM no ano de 2013. Na época, vários docentes não contemplados pelo programa Professor na
Era Digital, tentaram sem sucesso reivindicar esse direito.

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na Educação Básica do Amazonas é o Programa de Inovação Edu-
cação Conectada (PIEC), de abrangência nacional criado em 2018
pelo Ministério da Educação (MEC), a meta é universalizar o acesso
à internet nas escolas brasileiras até o ano de 2024. Todavia, o PIEC
não é um programa democrático, que chega nas escolas de forma au-
tomática, a adesão depende de uma série de exigências burocráticas
requeridas aos centros de ensino. Comprovamos no site “Medidor
Educação Conectada”41, que até o mês de março de 2023, somente
133 escolas estaduais do Amazonas conseguiram aderir ao progra-
ma, este é um número pequeno se consideramos que a Seduc-Am
possui 598 escolas, sendo 229 em Manaus e 369 no interior42. E no
interior do Estado a situação é mais crítica, pois dos seus 61 muni-
cípios, até o presente momento, março de 2023, apenas 12 cidades
participam do programa. Conforme Melo Neto (2020), as razões de
toda essa discrepância, seja na capital ou no interior, estão nos im-
bróglios presentes nas etapas de filiação e continuidade das escolas
ao PIEC.
Apesar de todos os óbices atinentes a chegada do PIEC nas
escolas amazonense, esse contexto abriu as portas para a promoção
de formação continuada dos professores da Secretaria no cerne das
TDICs, a primeira delas diz respeito a uma especialização a nível
latu sensu em “Letramento Digital”, ofertada em 2018 pela Seduc-
-Am em parceria com a UEA, aos professores da capital e do interior
que quisessem participar. O curso foi iniciado em outubro daquele
mesmo ano e finalizado em fevereiro de 2020 (UEA, 2018). Conside-
ramos essa iniciativa pertinente e louvável. Todavia, ao trabalharmos
na orientação do trabalho de conclusão de curso (TCC) de três pro-
fessores cursistas nos anos de 2019 e 2020, constatamos que fatores
relacionados a precariedade de infraestrutura das escolas, o acesso à
internet e, até mesmo, condição financeira dos educadores para ad-
quirirem equipamentos adequados que os auxiliassem durante os 18
meses do curso, prejudicou muito esse processo formativo.
Com isso, traçamos até aqui uma linha temporal das políti-
cas educacionais amazonense para incorporação das TDICs em suas
agências de letramentos, as escolas, esse trajeto revelou que essa em-
preitada na esfera da Seduc-Am perpassa por vários desafios atrela-
41 Cf. https://medidor.educacaoconectada.mec.gov.br.
42 Esses dados constam no Plano de Retorno às Atividades Presenciais – Ações Pedagógicas,
de Gestão e Saúde para as atividades de ensino pós-pandemia da Covid-19.

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dos ao extenso cenário hidrográfico natural do Amazonas (causando
sérios problemas de logística) e pelos precários serviços de teleco-
municações disponibilizados às escolas. Vale destacar que a temática
da formação continuada nas políticas abordadas não pôde ser apro-
fundada em seus aspectos descritivos, com exceção da última relata-
da no parágrafo supracitado, por falta de dados, contudo, inferimos,
estar subentendido que a cada tentativa política houve pelo menos
ensaios nessa direção, pois entendemos ser incoerente tentar promo-
ver uma mudança em qualquer esfera profissional sem o mínimo de
capacitação de recursos humanos.
Assim, compreendemos que evidenciar e discutir o panorama
aqui apresentado é importante porque todos os empreendimentos
listados até o presente momento refletem diretamente naquilo que
tem sido atualmente desenvolvido para potencializar os saberes do-
centes (TARDIF, 2002) dos professores e, consequentemente no pe-
dagogizar desses profissionais, pois se eles não tiverem o mínimo de
estrutura digital para trabalhar, fica difícil mobilizar com eficiência
esses novos saberes no chão da escola.
Obviamente que todas as ações de incorporação das TDICs
elencadas até aqui, demonstram o despertamento da Seduc-Am e
de seus docentes para se adaptarem à nova realidade de ensino asso-
ciadas às práticas sociais culturais e virtuais que se fazem potencial-
mente presentes na vida de seus discentes fora dos muros da escola,
por isso há a necessidade ser melhorada cada vez mais.
Diante do exposto, concordamos com Melo Neto (2020), que
essas descontinuidades e desamparos tem a ver com as mudanças de
governo, cujas transições não garantem as condições administrati-
vas, materiais e pedagógicas necessárias para consolidar os progra-
mas tecnológicos em andamento, tornando, assim, a inclusão das
TDICs nas escolas da educação básica no Amazonas ineficientes,
como também, a formação de professores, sobre as quais discutire-
mos na seção subsequente.

As ações mais recentes e as vozes docentes: que formação


de fato tem chegado aos professores?
Discorremos nessa seção a respeito das atuais ações formati-
vas da Seduc-Am para seus professores, ações focadas no uso das

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TDICs nos anos de 2020, 2021 e no primeiro semestre de 2022, e
como de fato os educadores tem sido alcançados e participado desses
eventos de letramentos digitais formativos.
Antes, porém, é preciso sinalizarmos que os anos assinalados
foram mundialmente marcados por um acontecimento impactante e
muito desestabilizador para a biografia da humanidade: a pandemia
da Covid-1943. Os tempos aflitivos dessa triste catástrofe exigiram
uma série de mudanças sanitaristas a nível global, a principal delas
foi o distanciamento social como medida mais eficaz para a preser-
vação das vidas, desta maneira, houve um reordenamento na forma
de se comunicar e interagir no mundo do trabalho, no cotidiano, no
entretenimento, na educação e afins, tudo precisou se modificar para
outros formatos não presenciais.
Nesse contexto as TDICs foram bem precisas, grandes aliadas
que oportunizaram as atividades interativas humanas ocorrerem de
forma remota e híbrida. Nunca o uso desses aportes foi tão intenso
quanto neste período e até quem não era familiarizado com o uni-
verso digital teve que se adaptar. Na esfera educacional não foi di-
ferente, no Brasil e no mundo as aulas presenciais foram suspensas,
as escolas se fecharam fisicamente e a educação passou a se movi-
mentar pelas vias das plataformas do Ciberespaço, adotando logo no
início da suspensão das aulas o ensino remoto emergencial (ERE) e
posteriormente o ensino híbrido.
No Amazonas, a educação na Seduc-Am caminhou nos anos
de 2020 e 2021 na linha do ERE e do ensino híbrido por meio do
Projeto Aula em Casa, que consistia na transmissão de videoaulas
pela TV aberta e internet, permitindo, assim, a continuidade das
atividades escolares. O conteúdo curricular foi reorganizado para
suprir as necessidades dos alunos de cada nível, etapa e modalidade
de ensino da educação Básica. No que tange à formação continuada
dos professores, a Seduc-Am criou o programa Diálogos Formativos
para tratar de temáticas voltadas à educação considerando o contex-
to da pandemia e dentre elas o uso das TDICs (DANTAS e MUSTA-
FA, 2020).
Em face do ERE e do Híbrido, os professores, que até então,
só viviam a realidade pedagógica na cultura da presencialidade e
43 Os primeiros casos de Covid-19 surgiram na cidade de Wuhan, na China, mas logo o vírus
se disseminou os demais países, “tornando-se uma das mais temidas e letais pandemias da
história recente da humanidade”, ceifou milhares de vidas (DANTAS, MUSTAFA, 2021, p.4).

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proeminente cultura da escrita impressa, precisaram urgentemente
de capacitação, vinda por meio de partilhas entre os pares e do pro-
grama Diálogos Formativos através do Cemeam, que transmitia pela
TV aberta encontro das águas e pelo seu canal oficial no YouTube
tutoriais a respeito de várias ferramentas educacionais (Google Clas-
sroom, WhatsApp, Google Forms, Facebook, Trello, Google Docs,
Mind Master, Kahoot, Google Meet e Edmodo) como possibilidades
pedagógicas (DANTAS; MUSTAFA, 2020).
Considerando que o objetivo deste trabalho está focado no
contexto histórico relacionado a incorporação das TDICs no cenário
educacional da Seduc-Am e quais os seus projetos formativos mais
recentes direcionados aos seus professores nessa área, não entrare-
mos no mérito qualitativo dessas formações no sentido de se atende-
ram ou não as necessidades formativas dos educadores, mas o fato é
que elas passaram a existir com muito mais intensidade no cenário
amazonense a partir da pandemia.
O programa Diálogos Formativos encerrou-se em 202244, ano
em que as atividades escolares já aconteciam de forma presencial na
rede. Porém, a partir da pandemia, a Seduc-Am passou a reconfi-
gurar as formas de oferta de seus cursos mais, ajustando-os à mo-
dalidade de ensino a distância (EaD), seja sobre as TDICs ou outras
temáticas, assim, em 2021 ela criou o Cepan Digital, um projeto de
formação continuada a distância, que segue a tendência de uma for-
mação nos prospectos da EaD. Além do Cepan Digital a Seduc-Am
também firma parcerias formativas com empresas privadas, a mais
recente foi com a fundação vivo, ofertando no primeiro semestre de
2022, seis cursos45 voltados para o uso das TDICs na educação.
Consultando a plataforma Saber + da Seduc-Am, averigua-
mos que no início desse ano de 2023, chegaram nas escolas da rede
os novos itinerários formativos direcionados a atuação dos professo-
res na sala de aula, a saber: unidades curriculares de aprofundamen-
tos (UCAs) e unidades curriculares eletivas orientadas (UCEOs),
os quais incorporam os novos arranjos da BNCC (SEDUC, 2023a).
Nesses documentos é bastante enfatizado as competências gerais
1 e 4 da BNCC, que aludem sobre o uso das TDICs na educação
brasileira. Nas orientações metodológicas desses escritos é solicita-
44 Informação fornecida pela coordenadoria do Cepan Digital via contato de mensagens
instantânea pelo aplicativo do WhatsApp no 10 de março de 2023.
45 Informação fornecida via e-mail pelo Cepan Digital em 01 de fevereiro de 2023.

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do aos docentes o trabalho com produção de vídeos, infográficos,
mapas mentais, podcasts, portfólios, infográficos, usar plataformas
como Tik Tok e vários outros aplicativos digitais para “proporcionar
o letramento digital e computacional” aos alunos (SEDUC, 2023b;
2023c).
Teoricamente, as ações formativas recentes e os documen-
tos parecem apresentar uma linha pedagógica de trabalho com o
digital visionária, contextualizada à sociedade do século XXI, mas
as questões a serem pensadas são: as iniciativas formativas para o
uso das TDICs nas escolas amazonenses têm de fato alcançado os
professores? Como vem sendo desenhado esse cenário na percepção
dos educadores? As respostas para essas indagações só poderão ser
observadas a partir das vozes dos docentes, os sujeitos para quem
de fato as ações políticas formativas para o uso das TDICs fazem
sentido.
Uma vez que não existe mais o projeto Diálogos Formati-
vos, selecionamos os enunciados de 5 professores da rede estadual
de ensino do Amazonas, lotados em escolas de ensino fundamental
e médio da zona centro oeste de Manaus, os quais aceitaram cola-
borar voluntariamente com este estudo por meio do preenchimen-
to do TCLE, respondido virtualmente através do Google Forms;
por questões éticas, aqui, os nossos participantes são identificados
pelo nomes de Educador 1, Educador 2, Educador 3, Educador 4 e
Educador 5. Vejamos, agora, por meio da lente Bakhtiniana, o que
enunciam essas vozes sobre o conhecimento acerca da existência do
Cepan Digital, dos cursos ofertados no com foco pedagógico nas
TDICs, bem como o grau de envolvimento que eles conseguem ter
nessas formações:

Já ouvi falar do Cepan Digital, mas não fiz nenhuma formação


EaD da Seduc por falta de tempo mesmo, porque não adianta
lançar um monte de coisa e não priorizar o tempo necessário pra
gente participar (EDUCADOR 1, agosto de 2022).
Não sabia do projeto de curso EaD da Seduc, mas que bom!,
mas mesmo sendo digital precisam se organizar pra gente fa-
zer os cursos dentro das nossas horas de trabalho, porque temos
vida fora daqui (EDUCADOR 2, agosto de 2022)
Não tenho conhecimento de cursos EAD na Seduc, por isso não
fiz, mas a ideia é boa (EDUCADOR 3, agosto de 2022)

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Tenho ciência do programa de formação EaD da Seduc, gostaria
muito de ter feito um curso que vi de lógica computacional, mas
não fiz por falta de tempo mesmo, trabalho 60 horas (EDUCA-
DOR 4, agosto de 2022);
Então, soube por alto que agora podemos fazer cursos em EaD
pelo Cepan, mas o problema é que a gente nem fica sabendo
quando tem esses cursos e nem como funcionam, e se o nosso
tempo casa com essas formações (EDUCADOR 5, agosto de
2022).

Analisando discursivamente essas enunciações, percebemos


que os professores demonstraram ter pouco ou nenhum conheci-
mento do programa Cepan Digital e nem como funciona a oferta
de cursos, expressões como “não sabia do projeto” (educador 2), “Já
ouvi falar” (educador 1) e “soube por alto” (educador 5) comprovam
nossa afirmação, além disso, nenhum deles conseguiu participar de
algum dos cursos, ou porquê não sabiam (o problema é que a gente
nem fica sabendo - educador 5) ou devido ao fator tempo, sobre o
qual trataremos adiante. Logo, vemos a necessidade de se melhorar
a comunicação e diálogo do Cepan com as escolas e com os profes-
sores, a fim de que haja não só a ciência da existência do programa,
mas um ato responsável de se direcionar ao seu interlocutor, consi-
derando suas reais condições de participação do diálogo e todas as
relações e embates que dele possam surgir (BAKHTIN, 2017).
Averiguando junto ao Cepan Digital como ocorre a divulga-
ção do programa e o convite para os professores participarem dos
cursos, a resposta obtida46 é de que essa dinâmica acontece pelo site
e redes sociais do próprio Cepan, bem como pelos grupos de What-
sApp das escolas e de professores da rede. Mesmo essas estratégias
sendo relevantes, compreendemos ser necessário fazer um traba-
lho mais efetivo de aproximação do departamento para melhorar
o vínculo de interação com os docentes, talvez por meio de visitas
nas escolas, assim como, intensificando o sistema de engajamento
presencial e digital com o corpo pedagógico dos educandários, pois
nem sempre o mero encaminhamento de mensagens eletrônicas em
grupos de professores, sem o devido reforço da escola, consegue ge-
rar o alcance do público a contento.
As falas dos docentes expressam ainda que apesar deles apre-
ciarem a ideia do surgimento do projeto (a ideia é boa - Educador 3;
46 Resposta fornecida pela coordenadoria do Cepan Digital via contato de mensagens
instantânea pelo aplicativo do WhatsApp no 10 de março de 2023.

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“que é bom” -Educador 1), suas contrapalavras evidenciam a neces-
sidade de as formações, mesmo sendo on-line, serem ajustadas de
acordo com seus horários de trabalhos, como argumenta o Educa-
dor 2 “mesmo sendo digital precisam se organizar pra gente fazer os
cursos dentro das nossas horas de trabalho”, ou seja, o fator “tempo”
é fortemente endossado, pois fica explícito nos dizeres que a maioria
trabalha 40 horas, temos um professor, o Educador 4, com jornada
de trabalho de 60 horas, logo, em face dessa intensidade, subenten-
de-se que esses profissionais não são liberados para o aprimoramen-
to de suas funções e que não possuem condições reais de tempo que
gostariam ou deveriam ter para participar e obter melhor aproveita-
mento e reflexão tão requeridos diante de novos saberes.
Neste sentido, não basta só proporcionar a formação para o
profissional docente, mas também, rever os fundamentos epistemo-
lógicos e conceituais que sustentam a forma de participação do edu-
cador, pois na linha Bakhtiniana, um sujeito só pode contribuir com
o seu “outro” no andamento dos processos históricos, sociais e cultu-
rais se ele puder estar presente no diálogo e exercer sua dialogicidade
de forma ativa dentro sua esfera de participação que são seus lugares
de enunciação únicos e irrepetíveis (BAKHTIN, 2017).
Mediante o exposto detectamos que mudanças tem aconte-
cido no centro de capacitação da Seduc-Am, a formação tem sido
redesenhada para o formato digital, porém não tem alcançado um
número significativo de docentes da rede, que por seu turno, carece,
portanto, mobilizar melhores estratégias que alinhem a notoriedade
do Cepan Digital e dos cursos ofertados ao poder de participação
dos professores, observando a carga horária de trabalho desses pro-
fissionais, a fim de que essas iniciativas não tornem um peso a ser
carregado pelos educadores para além de sua jornada de trabalho,
pelo contrário, se sintam valorizados e motivados em ter uma atitude
responsiva ativa (BAKHTIN, 2017) nos projetos de aprimoramento
de seus letramentos digitais promovidos pelo Cepan, seja na moda-
lidade presencial ou em EaD.

Considerações (não) finais


Guiados pela lente do método bakhtiniano, nosso diálogo
nesse texto focou como tem sido desenvolvida as políticas de imple-

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mentação das TDICs atinentes a formação do professor da Secretaria
de Estado de Educação e Desporto do Amazonas (Seduc/Am), des-
de as primeiras iniciativas na década de 1990, porém, dando ênfase
nas mais recentes que são, no momento, as mais visíveis, verificando
como os professores ficam a par dessas propostas e se eles têm con-
seguido participar ou não das capacitações ofertadas no nicho das
tecnologias digitais.
Para tanto, dialogamos primeiramente sobre a presença das
TDICs na biografia humana e como esses aportes tem redesenhados
suas práticas sociais na orbita multimodal do ciberespaço por meio
da cibercultura. Mediante isso, sob a perspectiva dos letramentos di-
gitais, argumentamos que as TDICs precisam se consolidar no pro-
cesso de ensinar e de aprender nas escolas da educação básica, em
nosso caso, as do contexto amazônico, de modo mais latente possí-
vel, mas para isso é imperativo o fornecimento de condições mate-
riais e políticas formativas que facultem o professor ser o agente de
letramentos digitais que os alunos precisam ter nessas experiências.
Nessa senda, no estado do Amazonas, no âmbito da Sedu-
c-Am, os resultados indicam que o processo de estruturação para
a integração das TDICs no ensino e aprendizagem de suas escolas
tem ocorrido, porém de forma lenta e ineficiente, isso porque a in-
cidência da descontinuidade e desemparo governamental ainda se
mostram problemáticas acentuadas e impeditivas de avanços tecno-
lógicos nas escolas, que como vimos, ainda sofrem com a falta de
recursos, acesso a internet e capacitação.
Especificamente sobre as ações mais recentes de formação
continuada dos professores no escopo desta discussão, os achados
evidenciam que os programas tem sido redesenhados para moda-
lidade EaD por meio do Cepan digital e parcerias firmadas pela se-
cretaria com empresas que atuam no setor tecnológico, contudo, o
campo mostrou a notoriedade dessas ações por parte dos professores
ainda é pequena, o que implica na adesão, além disso, apesar de apre-
ciarem esses novos projetos, os educadores almejam que a dinâmica
dessas ofertas se alinhem a sua jornada de trabalho.
Diante do exposto argumentamos que os programas e a oferta
de cursos formativos com foco nas TDICs (e até de outros) da Sedu-
c-Am precisam ganhar mais notoriedade junto aos seus professores
e que a formação continuada disponibilizada, mesmo em EaD, seja

- 161 -
mobilizada, considerando a jornada de trabalho e as reais condições
materiais de participação desse público. Nesse sentido, ouvir os pro-
fessores e movimentar uma parceria dialógica mais firme com as
coordenadorias, gestores e pedagogos das escolas e poderá facilitar
nesse processo.
Assim, encerramos esse texto, porém não as palavras e con-
trapalavras que ele gerou e poderá gerar a respeito da temática e das
questões que nele foram abordadas a respeito do estado atual e o
desejado na formação de professores amazonenses referente aos seus
saberes docentes quanto aos seus letramentos digitais.

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nov.20

- 165 -
- 166 -
O REFERENCIAL CURRICULAR
AMAZONENSE DO ENSINO MÉDIO À LUZ
DA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA

Gabriele Vaz da Costa47


Pedro Rodolfo Fernandes da Silva48

Resumo
No presente texto busca-se compreender a educação emancipadora a partir dos
estudos e reflexões de Theodor Adorno, identificando as principais críticas que
o pensador alemão faz à indústria cultural, à semiformação e à educação auto-
ritária que impedem a formação de sujeitos autônomos e críticos. Em seguida,
analisa-se as diretrizes e os objetivos do Referencial Curricular Amazonense do
Ensino Médio - RCA-EM, buscando verificar em que medida o novo currículo
do Amazonas promove uma educação emancipadora, de modo que a análise
do currículo contribua para a reflexão sobre uma educação que favoreça a for-
mação de sujeitos críticos, autônomos e capazes de transformar a realidade em
que vivem.
Palavras-chave: Referencial Curricular Amazonense do Ensino Médio; educa-
ção emancipadora; Adorno.

Introdução

A reforma do Ensino Médio, iniciada por meio da Medi-


da Provisória 746/2016 e levada à cabo com a promulgação da Lei
13.415, de 16 de fevereiro de 2017, determinou a necessidade do
estabelecimento de uma nova Base Nacional Comum Curricular
(BNCC), concluída em 2018 com a homologação da BNCC Etapa
Ensino Médio. A partir disso, as unidades da federação elaboraram
seus currículos, visando implementar os princípios contidos na base
nacional ajustados à realidade própria de cada região. No caso do
Estado do Amazonas, o Referencial Curricular Amazonense (RCA)
foi redigido em dois documentos, um para o ensino fundamental
(RCA-EF) e outro para o ensino médio (RCA-EM)49.
47 Licenciada em Filosofia pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
48 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCAR. Professor da
Universidade Federal do Amazonas – UFAM.
49 Todas as referências ao Referencial Curricular Amazonense (AMAZONAS, 2021) dizem
respeito à etapa Ensino Médio, ou seja, Referencial Curricular Amazonense do Ensino Médio
(RCA-EM), pois, embora haja o Referencial Curricular Amazonense do Ensino Fundamental
(RCA-EF), aqui nos ativemos ao primeiro por ser a etapa da educação em que a Filosofia
constitui, junto de outros componentes curriculares, a área de Ciências Humanas e Sociais

- 167 -
Desde sua aprovação e divulgação, o debate sobre os princí-
pios da BNCC e sobre a forma de como viabilizá-los na realidade es-
colar tem ocupado o centro da discussão da educação básica no país,
gerando muitas insatisfações e críticas de diversos setores sociais, de
modo que o atual governo, por meio do Ministério da Educação,
publicou a Portaria Nº 399, de 8 de março de 202350, que instituiu a
consulta pública para a avaliação e reestruturação da política nacio-
nal de Ensino Médio.
Nesse contexto de incerteza e instabilidade que ronda a
BNCC, com efeitos diretos sobre o RCA-EM, e apesar do pouco tem-
po de implementação do novo currículo no Amazonas, pois a efetiva
conclusão da sua implementação nas três séries do ensino médio se
dará em 2024, quando o novo currículo também for implementa-
do no terceiro ano, far-se-á uma breve análise do Referencial Cur-
ricular Amazonense – Ensino Médio (RCA-EM), à luz da educação
emancipadora, buscando avaliar em que medida esse novo currículo
desenvolve a criticidade dos estudantes, despertando-os para o pro-
tagonismo juvenil e formando-os para o exercício da liberdade.
Educação emancipadora
A educação emancipadora, segundo Adorno, se refere àquela
que visa promover a libertação dos indivíduos da opressão, da alie-
nação e da barbárie, possibilitando-lhes o desenvolvimento de sua
capacidade crítica e de sua autonomia pessoal51. Ela deve permitir
que os indivíduos se desenvolvam plenamente e sejam capazes de
pensar a realidade de forma crítica e independente, a fim de se tor-
narem capazes de participar, de maneira ativa e significativa, de uma
sociedade democrática.
A emancipação (mündigkeit) é um conceito que se refere à liber-
tação de condições opressivas ou de dependência. No contexto da Teoria
Crítica de Adorno, a emancipação pode ser entendida como a libertação
dos indivíduos de todas as formas de opressão, incluindo opressão polí-
tica, econômica e cultural. Adorno considerava que a emancipação era
um objetivo importante para a sociedade e que os indivíduos deveriam
lutar por sua própria emancipação e pelo bem comum52.

Aplicadas.
50 BRASIL, 2023.
51 ADORNO, 1995, p. 121.
52 VILELA, 2007, p. 237.

- 168 -
A autonomia é um conceito que se refere à capacidade de um
indivíduo agir de forma independente, sem ser controlado ou in-
fluenciado por outras pessoas ou forças externas. A autonomia é vis-
ta como uma condição necessária para a emancipação, pois permite
que os indivíduos tomem decisões por si mesmos, de acordo com
suas próprias crenças e valores. Na filosofia de Adorno, a emancipa-
ção e a autonomia estão intimamente ligadas, pois ambas envolvem a
libertação do indivíduo de condições opressivas e alienantes.
Toda educação, portanto, deve se voltar diretamente para criar
condições que propiciem o desenvolvimento da emancipação e da
autonomia humana. Adorno defendia que a autonomia seria a ver-
dadeira força de contraposição aos princípios da barbárie53, princi-
palmente contra aquela que ocorreu em Auschwitz.
O pensador da escola de Frankfurt apresenta uma definição
geral do que entende por barbárie:

Entendo por barbárie algo muito simples, ou seja, que, estan-


do na civilização do mais alto desenvolvimento tecnológico, as
pessoas se encontrem atrasadas de um modo peculiarmente dis-
forme em relação a sua própria civilização, e não apenas por não
terem em sua arrasadora maioria experimentado a formação nos
termos correspondentes ao conceito de civilização, mas também
por se encontrarem tomadas por uma agressividade primitiva,
um ódio primitivo ou, na terminologia culta, um impulso de
destruição, que contribui para aumentar ainda mais o perigo de
que toda esta civilização venha a explodir, aliás uma tendência
imanente que a caracteriza. Considero tão urgente impedir isto
que eu reordenaria todos os outros objetivos educacionais por
esta prioridade54.

A barbárie, na perspectiva de Adorno, se manifesta por meio


dos preconceitos, estando relacionada também com atitudes repres-
sivas e agressivas. Segundo Melonio, acreditava-se que barbárie era
um termo designado aos primitivos, aqueles que eram tidos como
estrangeiros e que eram vistos como não civilizados, mas no “estado
de maior civilização e progresso tecnológico é que ocorrem as con-
dições necessárias para o surgimento da barbárie55”.

53 ADORNO, 1995, p. 123.


54 ADORNO, 1995, p. 155.
55 MELONIO, 2012, p. 92.

- 169 -
A Segunda Guerra Mundial foi palco de extremas violações
dos direitos humanos. As dores causadas pela barbárie praticada nos
campos de concentração de Auschwitz ecoaram por todo o mundo,
levando-nos a questionar o quanto somos, de fato, seres “civilizados”
ou racionais como comumente se diz.

Primeiramente, torna-se necessário esclarecer que Auschwitz


foi um complexo de campos de concentração utilizado pelo re-
gime nazista, construído na Polônia a partir de 1940. Tais com-
plexos tinham como função principal prender os inimigos do
regime nazista, manter um contingente de trabalhadores para a
realização de trabalho forçado e exterminar determinados gru-
pos indesejáveis aos olhos dos nazistas. A câmara de gás ficou
conhecida como forma mais comum de exterminar os prisionei-
ros, que em seguida eram cremados em grandes fornos crema-
tórios56.

Para Adorno, os fatos ocorridos em Auschwitz simbolizam


um radical retrocesso humano, um retorno à barbárie. No entanto, o
pensador alemão buscou mostrar como as atrocidades de Auschwitz
não surgiram do nada, mas que houve mecanismos sociais e políti-
cos que concorreram para tal acontecimento. Este fato lamentável
na história da humanidade será o ponto de partida da concepção de
educação de Adorno.
Em Educação e emancipação, o pensador frankfurtiano apre-
senta o que, para ele, é o primeiro objetivo da educação:

A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas


para a educação. [...] Qualquer debate acerca de metas educa-
cionais carece de significado e importância frente a essa meta:
que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se
dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à
barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi
a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persisti-
rem no que têm de fundamental as condições que geram esta
regressão57.

Evitar que as barbáries de Auschwitz se repitam é, fundamen-


talmente, a finalidade da educação. Neste sentido, podemos afirmar
56 Id., p. 83.
57 ADORNO, 1995, p. 118.

- 170 -
que a proposta educacional de Adorno parte, antes de tudo, de um
princípio ético. Ele também alerta insistentemente para o fato de que
os mecanismos que possibilitaram Auschwitz ainda estão presentes
na sociedade:

É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas ca-


pazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos
a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente
capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma cons-
ciência geral acerca desses mecanismos. [...] A educação tem
sentido unicamente como educação dirigida a uma autorrefle-
xão crítica. Contudo, na medida em que, conforme os ensina-
mentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles
que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância,
a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se
concentrar na primeira infância58.

Para Adorno, portanto, importa que a educação, cujo objeti-


vo é evitar o que aconteceu em Auschwitz, esteja presente desde a
primeira infância, com o objetivo de não apenas transmitir conhe-
cimentos, mas também promover, desde cedo, uma conscientização
ética para se formar um bom caráter.

A indústria cultural, semiformação e o autoritarismo

Segundo Adorno, mesmo após a Segunda Guerra Mundial,


a sociedade manteve em sua estrutura os elementos e mecanismos
que ocasionaram as barbáries de Auschwitz, como por exemplo os
discursos autoritários, o nacionalismo e a uniformização dos com-
portamentos dos indivíduos promovida pela indústria cultural. Tais
elementos acabaram por influir também no sistema educacional.
O conceito de indústria cultural foi desenvolvido por Adorno
e Horkheimer, na obra Dialética do Esclarecimento, para explicar a
tentativa de padronização social que suprime a singularidade, a au-
tonomia e o pensamento crítico dos indivíduos. Seguindo a lógica
do capitalismo, a cultura e todo tipo de produção humana – como
a arte, a comunicação e os bens materiais – foram moldados para
o consumo em massa. Por essa razão, não é interessante à indús-
58 Id., p. 121 - 122.

- 171 -
tria cultural que os indivíduos possuam senso crítico e autonomia,
mas sim que compartilhem dos mesmos gostos e comportamentos.
E para alcançar isso, ela manipula os indivíduos pelos meios de co-
municação em massa, como a televisão, filmes, rádios, revistas, etc.59
Desse modo, a indústria cultural tem o poder de controlar o indiví-
duo naquilo que ele deve consumir ou pensar60.
Quando a educação se organiza nos moldes da indústria cul-
tural, ela deixa de ser instrumento de esclarecimento e passa a ser
também padronizadora, como ocorre com o sistema de produção
em uma fábrica. E, com isso, a educação promove uma semiforma-
ção61. Assim, a educação que promove a semiformação é revestida
de autoritarismo, pois impede a emancipação dos alunos. Na confe-
rência intitulada Educação para quê? Adorno apresenta sua ideia de
educação:

A seguir, e assumindo o risco, gostaria de apresentar a minha


concepção inicial de educação. Evidentemente não a assim
chamada modelagem de pessoas, porque não temos o direito
de modelar pessoas a partir do seu exterior; mas também não a
mera transmissão de conhecimentos, cuja característica de coisa
morta já foi mais do que destacada, mas a produção de uma
consciência verdadeira. Isto seria inclusive da maior importân-
cia política; sua ideia, se é permitido dizer assim, é uma exigên-
cia política. Isto é: uma democracia com o dever de não apenas
funcionar, mas operar conforme seu conceito, demanda pessoas
emancipadas. Uma democracia só pode ser imaginada enquanto
uma sociedade de quem é emancipado62.

Nota-se que a concepção de educação em Adorno vai além


da mera transmissão de conhecimentos. A educação tem o objeti-
vo de formar integralmente o indivíduo, de proporcionar condições
para o desenvolvimento de uma consciência crítica e emancipada.
A educação emancipadora é também uma exigência política, pois a
democracia depende de pessoas autônomas, emancipadas, para que
de fato essa educação possa ser exercida social e politicamente.
O autoritarismo, encontrado na sociedade, é outro elemento
apontado por Adorno como condição favorável para uma regressão
59 ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 128.
60 ZAMBEL; LASTÓRIA, 2016, p. 2206.
61 Id., p. 2209.
62 ADORNO, 1995, p. 141 - 142.

- 172 -
à barbárie. O autoritarismo está presente nos sistemas educacionais
sob a forma de severidade, e é considerado, por muitos, um instru-
mento pedagógico eficaz, o que Adorno rejeita totalmente63.
Segundo Adorno64, a educação pautada no autoritarismo e na
severidade acaba fazendo crer que quem é severo consigo mesmo
adquire o direito de ser severo também com outros; a consequência
dessa educação é a geração de pessoas sem a capacidade psicológi-
ca de ter empatia. Saber suportar a dor não torna ninguém melhor,
aliás, é mais propenso que tenha um efeito psicológico prejudicial.
Além disso, o sistema educativo tradicional, baseado em uma pe-
dagogia autoritária e em uma avaliação baseada meramente em no-
tas e outras formas tradicionais de aferir o conhecimento, favorece
a reprodução das desigualdades sociais e impõe aos indivíduos uma
forma de pensar padronizada e alienante.

Emancipação e Esclarecimento

O que é, precisamente, a emancipação a qual se refere Ador-


no? Trata-se da famosa proposta kantiana encontrada em seu breve
ensaio Resposta à pergunta: que é Esclarecimento?65 Adorno afirma:

A exigência de emancipação parece ser evidente numa demo-


cracia. Para precisar a questão, gostaria de remeter ao início do
breve ensaio de Kant intitulado “Resposta à pergunta: o que é
esclarecimento?”. Ali ele define a menoridade ou tutela e, deste
modo, também a emancipação, afirmando que este estado de
menoridade é auto inculpável quando sua causa não é a falta de
entendimento, mas a falta de decisão e de coragem de servir-se
do entendimento sem a orientação de outrem66.

Por Esclarecimento, ou Iluminismo (Aufklärung), podemos


compreender não somente um movimento filosófico que defendeu,
extensivamente, o cultivo da razão, mas também um movimento que
pretendeu racionalizar o mundo e, por meio da ciência, tornar a na-
tureza manipulável em benefício da humanidade.

63 ADORNO, 1995, p. 128.


64 Id., ibid.
65 KANT, 1985.
66 ADORNO, 1995, p. 167.

- 173 -
Entretanto, o projeto iluminista que visava um contínuo pro-
gresso moral e intelectual converteu-se em um projeto de autodes-
truição. Segundo Adorno, o Esclarecimento havia falhado em sua
promessa de libertar o indivíduo da sua menoridade porque se
baseava em uma concepção de razão e ciência que era limitada e
parcial. Ele defendia a necessidade de uma crítica mais profunda e
radical da razão e da ciência, que permitisse aos indivíduos com-
preender as estruturas sociais e políticas em que estavam inseridos e
questioná-las de forma crítica.
Para Adorno, a filosofia do Esclarecimento, principalmente na
figura de Kant, não levou em consideração, de forma mais ampla,
o poder presente nas relações sociais e políticas. A razão crítica, tal
como proposta pelo pensamento kantiano, não poderia ser usada
para compreender e superar esses problemas, pois ela era conside-
rada o núcleo e o critério absoluto de toda a verdade, e a realidade
e os indivíduos eram compreendidos como elementos governados
por leis universais. Em sentido contrário, Adorno defendia a ideia
de que a razão crítica deveria ser complementada por uma reflexão
que compreendesse o movimento dialético da história e dos fato-
res sociais que determinam o pensamento e a subjetividade humana
e, com isso, “os conceitos de razão e de verdade deixam de possuir
valores absolutos para se transformarem em valores temporalmente
válidos”67. O homem e seu mundo devem ser entendidos, portanto,
a partir das condições materiais do seu tempo histórico, e não como
uma categoria universal idealizada.
A razão, que deveria emancipar o homem, passou a ter um
caráter instrumental, pois é usada pura e simplesmente com o obje-
tivo de alcançar os fins desejados pelo sistema capitalista. Ou seja, o
avanço tecnológico, que poderia trazer vários benefícios à sociedade,
foi colocado à serviço da reprodução da lógica capitalista. Por meio
da mídia, do cinema, da televisão, do rádio, da publicidade, etc., ela
impõe valores e comportamentos que devem alcançar a todos, mas,
na maioria das vezes, não estimula a criatividade e, sobretudo, a cri-
ticidade.
Portanto, por mais que Adorno recorra a Kant para apresentar
o conceito de emancipação, ele não adere rigorosamente ao projeto
Iluminista do século XVIII. Como afirma Pagni:
67 LIMA, 2013, p. 94.

- 174 -
Embora Adorno tome a ideia de emancipação contida nessa
tradição, o faz como uma metáfora e como uma forma de crí-
tica. Por isso, retomou as ideias de emancipação humana e de
autonomia do pensamento da tradição iluminista alemã para
cobrar as promessas nelas contidas que não foram realizadas
e para diagnosticar que elas resultaram em mera ideologia. No
presente, tal ideologia não apenas corrobora o ajustamento do
indivíduo ao existente e a heteronomia de seu pensamento na
sociedade administrada, como também concorre para que a ra-
cionalidade instrumental e o princípio de dominação, nos quais
se fundamentam e se encontram prefigurados na gênese daque-
las ideias modernas de emancipação e autonomia, preponderem
em sua concretude no mundo existente68.

É um fato que o Esclarecimento trouxe benefícios à socieda-


de. Foram as lutas dos pensadores iluministas que proporcionaram
aos homens o direito à liberdade e à igualdade. Entretanto, o mesmo
ideal iluminista que livrou os homens das superstições e da intole-
rância religiosa, conduziu os homens a novas formas de guerras, de
dominação e de intolerância.
O projeto iluminista que defendeu e valorizou a educação e a
emancipação dos homens, falhou por não apresentar como isso seria
alcançado, pois, afinal, a educação não é necessariamente emancipa-
dora69. Assim, por falta de uma visão crítica e histórica da sociedade,
a valorização da razão defendida pelo Iluminismo acabou se aliando
à ideologia dominante da época e, assim, a razão tornou-se instru-
mental. Como afirma Maar:

O desenvolvimento da sociedade a partir da Ilustração, em que


cabe importante papel à educação e formação cultural, conduziu
inexoravelmente à barbárie. [...] O essencial é pensar a socie-
dade e a educação em seu devir. Só assim seria possível fixar
alternativas históricas tendo como base a emancipação de todos
no sentido de se tornarem sujeitos refletidos da história, aptos a
interromper a barbárie e realizar o conteúdo positivo, emancipa-
tório, do movimento de ilustração da razão70.

A educação emancipadora, portanto, é aquela: 1) que possi-


bilita as condições e incentiva o pensamento crítico para a saída do
68 PAGNI, 2016, p. 144-145.
69 MAAR, 1995, p. 11.
70 Id., ibid.

- 175 -
homem de sua menoridade; 2) que possibilita a formação de indivíduos
capazes de julgar por si próprios; 3) que forma indivíduos aptos para o
bom funcionamento da democracia, desempenhando papel ativo, e não
meramente passivo; por fim, 4) que, desde a primeira infância, forma o
caráter necessário para que os horrores de Auschwitz não se repitam71.

RCA-EM: conceito, objetivos e diretrizes


O Referencial Curricular Amazonense do Ensino Médio
(RCA-EM) é o conjunto de diretrizes, objetivos e conteúdos para a
educação básica, etapa ensino médio, no Estado do Amazonas, tendo
como marco legal a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
- LDB (Lei 9.394/1996, com as alterações da Lei 13.415/2017); o Pla-
no Nacional de Educação (PNE); a Lei 13.005/2015; as Resoluções
02/2018, 03/2018 e 04/2018 do Conselho Nacional de Educação, Câ-
mara de Educação Básica (CNE/CEB); e a Portaria do Ministério da
Educação (MEC) Nº 1.432/201872. O RCA-EM segue os princípios
da BNCC, com orientações para o ensino médio e tem como obje-
tivo garantir uma educação de qualidade para todos os estudantes
do Estado, independentemente de sua origem socioeconômica ou
cultural, buscando promover e valorizar a cultura e a diversidade
do Amazonas, a educação indígena, afrodescendente e a educação
ambiental, estimulando a conscientização e a preservação do meio
ambiente.
O Referencial Curricular Amazonense do Ensino Médio bus-
ca desenvolver competências e habilidades para o mundo do traba-
lho, preparando os estudantes para o mercado de trabalho e para
a vida profissional73. Isso inclui a oferta de cursos técnicos e pro-
fissionalizantes, bem como a inclusão de conteúdos voltados para a
formação em áreas específicas, como tecnologia, negócios e comuni-
cação. O RCA-EM também busca desenvolver habilidades e compe-
tências digitais, preparando os estudantes para o uso das tecnologias
da informação e da comunicação na vida cotidiana e no mundo do
trabalho74. Isso engloba a inclusão de conteúdos e atividades relacio-
nadas à informática, programação, robótica, internet, entre outros.
71 ADORNO, 1995, p. 123.
72 AMAZONAS, 2021, p. 12.
73 Id., p. 252.
74 Id., p. 15.

- 176 -
O RCA-EM inclui objetivos e conteúdos para as áreas de lin-
guagens, matemática, ciências, história, geografia, arte, educação
física e educação ambiental, além de orientações para o desenvolvi-
mento de projetos interdisciplinares e para a utilização de metodolo-
gias ativas e inovadoras75, como a educação baseada em projetos de
vida e a aprendizagem baseada em problemas76.
O Referencial também busca fomentar a educação para a paz
e a tolerância77, preparando os estudantes para conviver com as di-
ferenças e construir relações saudáveis e respeitosas. Isso implica a
inclusão de conteúdos relacionados à diversidade étnica, cultural, se-
xual e de gênero, com o objetivo de desenvolver a consciência crítica
e a solidariedade entre os estudantes78.
O RCA-EM79 destaca que, embora o Brasil tenha expandido
o acesso ao ensino médio às populações brasileiras, não conseguiu
criar políticas públicas e educacionais de permanência nas escolas.
Como consequência, a evasão e a repetência se elevaram a índices
preocupantes. Para solucionar estes e outros problemas decorrentes
de várias mudanças na sociedade pós industrial, surgiu a necessida-
de de promover uma reforma geral do ensino médio, visando flexibi-
lizar e estabelecer uma nova organização curricular, contemplando:
1) Formação Geral Básica (FGB): que estabelece um conjun-
to de competências e habilidades previstas na BNCC para todas as
áreas de conhecimento escolar: i) Linguagens e suas Tecnologias; ii)
Matemática e suas Tecnologias; iii) Ciências da Natureza e suas Tec-
nologias; e iv) Ciências Humanas e Sociais Aplicadas80.
2) Os Itinerários Formativos (IFs): conjunto de disciplinas,
projetos, oficinas e núcleos de estudo, entre outras situações de tra-
balho que os estudantes poderão escolher durante o Ensino Médio.
Os IFs são organizados por meio da oferta de diferentes arranjos
curriculares, observando a relevância, o interesse e a possibilidade
dos sistemas de ensino regional e local81.

75 AMAZOANS, 2021, p. 284.


76 Id., p. 31.
77 Id., p. 214.
78 Id., p. 195.
79 Id., p. 14 – 15.
80 Id., p. 23.
81 Id., p. 229.

- 177 -
Os IFs são organizados a partir de um ou mais dos seguintes
eixos estruturantes: investigação científica, mediação e intervenção
sociocultural, processos criativos e empreendedorismo, os quais
“visam integrar e integralizar os diferentes arranjos dos Itinerários
Formativos, bem como criar oportunidades para que os estudantes
vivenciem experiências educativas82”.
Essa organização curricular tem por objetivo tornar o ensino
médio mais interessante e condizente com a realidade dos jovens es-
tudantes, pois é recorrente a reclamação de que a escola e os conteú-
dos educacionais tem se distanciado da realidade dos jovens, geran-
do neles uma percepção de que o conteúdo ensinado na escola não
tem importância ou valor prático para sua vida83.
Por fim, o RCA-EM apresenta-se como um instrumento que
busca desenvolver todas as habilidades e competências dos estudantes,
preparando-os para a vida e para o mundo do trabalho, além de valori-
zar a cultura e diversidade do Estado do Amazonas e formar cidadãos
responsáveis e comprometidos com o desenvolvimento da sociedade.
O Referencial Curricular Amazonense do Ensino Médio
(RCA-EM) à luz da educação emancipadora
No que se refere a sua elaboração, o RCA-EM, por meio de
suas diretrizes, objetivos e conteúdos, indica certa intenção de for-
mar indivíduos críticos, autônomos e capazes de compreender e agir
na sociedade, como, por exemplo, o destaque que é dado à formação
cultural, crítica e científica, além da valorização da identidade regio-
nal e étnica.
Assim, ao avaliar as diretrizes, os objetivos e conteúdos do
RCA-EM à luz da educação emancipadora, pode-se inferir que, ao
menos do ponto de vista documental, o Referencial pretende pro-
mover a emancipação dos estudantes à medida que estabelece como
princípio a formação crítica e autônoma dos indivíduos, bem como
a valorização da diversidade e da formação humana e ética. Pode-se
verificar isso, por exemplo, nas dez competências gerais da educação
básica que a BNCC estabelece e que o RCA-EM reproduz integral-
mente em seu texto84.
82 AMAZONAS, 2021, p. 231.
83 Id., p. 18.
84 BRASIL, 2018, p. 9. IN: AMAZONAS, 2021, p. 21 - 22.

- 178 -
Essas dez competências gerais apresentam diversas metas im-
portantes que contribuem para a formação integral, como a impor-
tância do conhecimento histórico, o exercício da curiosidade intelec-
tual, a valorização da diversidade cultural e artística, o uso crítico das
tecnologias, a compreensão da relação entre trabalho e cidadania, a
argumentação baseada em fatos, o autoconhecimento e o cuidado
da saúde física e emocional, o diálogo e a resolução de conflitos, o
agir com autonomia e responsabilidade, e muitas outras. Essas metas
parecem estar de acordo com a concepção e os objetivos da educação
emancipadora, pois, a princípio, podem contribuir para a formação
crítica e autônoma do indivíduo.
No entanto, é importante destacar que a educação emancipa-
dora não se limita aos aspectos cognitivos da educação, mas inclui
a crítica como exercício contínuo e visceral. Assim, a autonomia e a
consciência crítica proporcionadas por uma educação emancipadora
estão ancoradas em uma crítica sistemática da sociedade capitalista e
de seus mecanismos de dominação. Uma educação que se pretenda
emancipadora, mas tem a crítica como uma prática esporádica, é um
arremedo de educação emancipadora, pois a crítica é estruturalmen-
te constitutiva da educação emancipadora.
O RCA-EM, apesar de propor a formação de indivíduos críti-
cos e autônomos, não toma a crítica como constitutiva da educação
e, portanto, não promove a crítica da sociedade e dos mecanismos
opressores como parte integrante do processo de educação e de
emancipação.
Visto que a ideologia capitalista produz a alienação dos in-
divíduos, a educação emancipadora deve buscar romper com esse
padrão. E para isso ela requer a crítica da sociedade e a luta pela
libertação dos indivíduos das várias formas de opressão. No entanto,
observa-se que o RCA-EM se concentra na formação e desenvolvi-
mento dos jovens para alcançarem certo preparo para o mercado de
trabalho, ignorando, em boa medida, a crítica aos fundamentos do
capitalismo.
Nesse contexto, os jovens, sujeitos do ensino médio, apesar de
serem reconhecidos em sua diversidade pelo RCA-EM85, são instiga-
dos a almejarem uma formação profissional que, despida da crítica
ao capitalismo, os tornará meros operários autômatos, produtores e
85 AMAZONAS, 2021, p. 20 – 21.

- 179 -
consumidores, alimentando o sistema de produção capitalista. Além
disso, a maior parte das escolas públicas não possui a infraestrutu-
ra necessária para uma formação com qualidade para o mundo do
trabalho, ou seja, há uma espécie de estelionato educacional, pois se
induz o jovem a acreditar que receberá uma determinada formação
que, efetivamente, não se pode oferecer considerando a estrutura es-
colar disponível.
Assim, a educação emancipadora e o RCA-EM estão em con-
flito no que se refere aos seus objetivos: enquanto a primeira prioriza
a formação crítica do indivíduo como forma de questionar e mudar
as estruturas sociais opressoras, o segundo prioriza a preparação do
jovem para o mundo do trabalho, induzindo-o a pensar que rece-
berá uma formação teórica e prática para dominar as ferramentas
tecnológicas.
O RCA-EM, pelo modo como vem sendo implementado, pode-
rá fomentar aprendizagens que priorizam a obediência e a submissão
às normas sociais e laborais, em vez de questioná-las e mudá-las. É
necessário, portanto, que os currículos e as escolas não percam de vista
que a prioridade é formar sujeitos emancipados, e não conformados.
Nesse contexto, não se pode deixar de combater a tendência
crescente de se conceber a educação como uma ferramenta pura-
mente instrumental, destinada exclusivamente a preparar os jovens
para o mercado de trabalho. Uma educação que se concentra na pre-
paração para o mundo do trabalho, limita a capacidade do indivíduo
de pensar crítica e independentemente, uma vez que o sistema edu-
cacional é controlado pelas forças econômicas e políticas dominan-
tes. Os próprios conceitos de competências e habilidades, fundantes
da BNCC e incorporados ao RCA-EM, podem denotar um caráter
tecnicista, como observa Manfré:

Em nossa leitura, formação na BNCC é sinônimo de qualifi-


cação, preparação, desenvolvimento de competências e habili-
dades tão requeridas por uma simples empresa capitalista. [...]
Desse modo, nota-se a forma como as políticas educacionais
estão sendo constituídas em uma articulação direta às regras do
mercado e de competitividade internacionais86.

86 MANFRÉ, 2020, p. 938.

- 180 -
A formação educacional não deve ser vista como um meio
para atender às demandas do mercado, alinhada às necessidades do
sistema capitalista. Desse modo, o RCA-EM pode ser visto como
uma barreira à formação crítica e autônoma do indivíduo, limitando
sua capacidade de questionar e mudar as estruturas sociais de do-
minação. A educação seria, neste caso, vista como um processo de
adaptação às exigências do mundo do trabalho, desconsiderando sua
importância como meio de formação humana e social.

Conclusão

A educação é um dos principais pilares de uma sociedade,


pois é por meio dela que as pessoas têm a oportunidade de adquirir
conhecimentos e habilidades que lhes permitirão participar de for-
ma consciente e crítica na construção de um outro mundo. Desse
modo, é fundamental que a educação seja capaz de desenvolver o
senso crítico, a autonomia e a capacidade de transformação dos estu-
dantes. Nesse sentido, a educação emancipadora apresenta-se como
práxis educativa que pode desenvolver nos estudantes a capacidade
de pensar por si mesmos, de modo que questionem as verdades ab-
solutas e, sobretudo, se engajem na transformação social.
A análise das diretrizes e objetivos do RCA-EM permitiu e
avaliar se as propostas educacionais para o Estado do Amazonas es-
tão alinhadas à perspectiva da educação emancipadora. Identificou-
-se que essas políticas educacionais buscam desenvolver a formação
integral dos estudantes, preparando-os para o mundo do trabalho e
para a vida em sociedade. No entanto, observou-se que a autonomia
juvenil presente no RCA-EM não está ligada a um contexto teórico
crítico-sistemático, seja filosófico, sociológico ou pedagógico, o que
pode ser considerado um distanciamento do conceito de autonomia
que fundamenta a educação emancipadora.
A educação emancipadora não se limita à transmissão de co-
nhecimentos, por isso julgamos ser necessário que o professor esteja
engajado na construção de práticas pedagógicas inovadoras que va-
lorizem a participação ativa dos estudantes, o trabalho em equipe, o
diálogo e a reflexão crítica. Mas, para isso, julgamos ser necessário
também que o governo e as autoridades criem condições para que

- 181 -
os professores possam exercer seu trabalho de forma adequada e efi-
ciente. Uma das condições fundamentais é a existência de uma boa
estrutura nas escolas, que possa garantir um ambiente de aprendi-
zagem seguro, saudável e adequado às necessidades dos estudantes
e dos professores. Isso implica em investimentos em infraestrutura,
como a construção e reforma de prédios escolares, aquisição de equi-
pamentos e materiais didáticos, além da disponibilização de recur-
sos humanos qualificados, como pedagogos, psicólogos, assistentes
sociais, entre outros profissionais que possam auxiliar o trabalho do
professor. É preciso ainda que haja uma política salarial adequada e
justa para os professores, que reflita o seu importante papel na socie-
dade e valorize sua formação e dedicação ao trabalho. Infelizmen-
te, muitos professores enfrentam baixos salários e condições precá-
rias de trabalho, o que acaba desestimulando muitos profissionais
qualificados a se dedicarem à carreira. Além disso, é preciso que os
governos e autoridades se comprometam em garantir a formação
continuada dos professores, oferecendo cursos de atualização, espe-
cialização e aperfeiçoamento, que possam auxiliar os professores a
se atualizarem em relação às mudanças e demandas do mundo con-
temporâneo.

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- 185 -
- 186 -
“UM PINGO DE CAFÉ NUM JARRO DE
LEITE”:87
negros e relações étnico-raciais no Amazonas.

Jésssica Dayse Matos Gomes88


Renilda Aparecida Costa89

O pensamento social disseminado com o sistema coloniza-


dor implantado na Amazônia, assim como em várias outras áreas
do Brasil, subjugou e transformou pessoas em objetos da coloniza-
ção, centros de discursos estereotipados que negavam o sujeito ne-
gro existente na colônia de forma intencional (HONNETH, 2005),
realocando-os à condição de indivíduos, invisibilizados e silenciados
em razão de sua cor.
A dominação branqueadora fez de tudo para tirar a autono-
mia das populações indígenas e dos negros amazônidas colocando-
-os em um processo de alienação e assim silenciando-os, pois, para
Follmann et al. (2017, p. 30) quando falta autonomia ocorre a alie-
nação, o sujeito é silenciado. Este conceito de alienação está inspira-
do nas reflexões de Peter Berguer ao contrapor o “opus alienun” ao
“opus proprium”. (BERGUER, 2004 apud FOLLMANN, 2012, p. 04).
O alcance epistemológico dos temas afro-brasileiros impul-
siona pesquisadores a círculos que estão além do limite temporal e
espacial que são analisados no ambiente da academia e para além
deste: o meio social. Tais estudos podem se enquadrar na interdis-
ciplinaridade. Entretanto, deve-se considerar que a concepção epis-
temológica do pesquisador e de outros atores sociais determina e
condiciona sua prática no espaço acadêmico e em seu cotidiano.
Olhar para a identidade negra na constituição sociocultural
da população amazonense e suas perspectivas na contemporaneida-
de é imprescindível para o conhecimento do contexto amazônico e
de suas populações, pois, ainda há negação da presença negra no
87 Metáfora de Mário Ypiranga Monteiro (1967) para a presença negra (pingo de café|) na
Amazônia, considerada pelo autor como pequena e de pouca força, comparada ao jarro de
leite (brancos) que domina a região. In: MONTEIRO, Mário Ypiranga. Folclore Amazonico
valoriza o índio. In: Folha de São Paulo, Supl. Da Amazônia: pgs.38,39, 16 de Abril, 1967.
88 Doutora em Sociedade e Cultura no Amazonas (PPGSCA/UFAM).
89 Professora do Departamento de Ciências Sociais da UFAM e docente do PPGSCA/UFAM.

- 187 -
Amazonas, assim como também existem defensores da suposta de-
mocracia racial na região.
Os estudos realizados por pesquisadores no Amazonas torna-
ram-se pontos de bifurcações no meio acadêmico fecundando novas
perspectivas sobre a identidade amazonense, sobre a cultura regio-
nal sob diferentes perspectivas, leituras e ambientes em seu universo
de pluralidade (REIS, 2017). O reducionismo da realidade deu lugar
às novas abordagens sobre a formação sociocultural do Amazonas,
destituindo de maneira gradual o determinismo que contribuiu para
caracterizar uma Amazônia predominantemente indígena, com ex-
clusão da cultura negra. Ainda que as teorias sejam finitas, os novos
estudos são um reencantamento do universo científico, uma vez que
possibilitam novos sentidos e significados ainda mais sensíveis para
a realidade em que se vive (PRIGOGINE E SLENGERS, 1984).
Entre os estudos encontramos temáticas que tratam de perso-
nalidades negras no campo político (SILVA JÚNIOR, 2006; 2017);
Memórias da escravidão no Baixo Amazonas (CAMPOS, 2010; SIL-
VA, 2010; MOURÃO, 2010), Tráfico de africanos e mestiçagem no
Amazonas (SAMPAIO, 2011; COSTA, 2014), Fugas e emancipações
no Amazonas (POZZA NETO, 2011; GOMES, 2011; CAVALCAN-
TE, 2011, 2013), Identidades e territórios quilombolas (FARIAS
JÚNIOR, 2011; RANCIARO, 2004, 2016; SILVA, 2014; ROCHA,
2014;2019), manifestações culturais negras (BRAGA, 2011; ÁVILA,
2012), assim como outras pesquisas de múltiplas abordagens sobre a
presença negra no Estado do Amazonas que estão sendo realizadas.
Com as contribuições de tais pesquisadores, apresentamos
neste texto considerações a respeito dos negros e suas relações étni-
co-raciais no Amazonas analisando os silenciamentos, as negações,
as lutas e os processos de luta, identidades, reconhecimento étnico,
registros históricos e novas abordagens sobre as concepções episte-
mológicas relativas à cultura negra identificada no Amazonas, uma
vez que há casos onde a negligência historiográfica nacional causou
como uma de suas graves consequências o silenciamento dos afro-
descendentes e, no território amazonense a população negra não
pode ser tratada como insignificante para a constituição étnico-ra-
cial local.

- 188 -
Negros, identidades e relações étnico-raciais em questão

Pode-se considerar que a população negra90 foi, durante mui-


to tempo, silenciada nos documentos oficiais, e limitada a feiras do
conhecimento sob o ponto de vista do folclore, apresentando apenas
a contribuição gastronômica, festiva e a condição escrava. Kabenge-
le Munanga (2004) considera que é difícil e doloroso o processo de
identidade negra no Brasil, pois é complexo definir quem é ou não
negro, uma vez que a ânsia pelo branqueamento envolveu a popula-
ção brasileira.
A introjecção do ideal de branqueamento é considerada por
Munanga como um fator que faz com que muitos sujeitos não se
considerem negros/negras. Para Follmann et al. (2017) o branquea-
mento processual imposto ao Brasil alienou a sociedade que a condi-
cionou a se identificar como branca, a ter a referência cultural euro-
peia na religião, a marginalizar, subalternizar e silenciar sujeitos em
virtude da narrativa histórica.
Nas últimas décadas tem-se analisado de forma mais abran-
gente os variados aspectos da cultura Africana e Afro-brasileira, li-
gando sua importância como uma das culturas formadoras da iden-
tidade brasileira, mas, sobretudo, de grande relevância na identidade
nacional, com novas abordagens que até então eram silenciadas nos
registros da História Oficial. Com as lutas do Movimento Negro que
tiveram alcance nas camadas do governo, principalmente na esfera
da Educação, as leis nº 10.639/03 e nº 11.345/08 foram promulgadas
possibilitando promoção das discussões sobre as relações étnico-ra-
ciais nas modalidades de ensino, desde a Educação Básica até o En-
sino nas Universidades e Institutos.
Para Follmann et al. (2017) as populações que foram margi-
nalizadas, invisibilizadas e levadas à exclusão no processo histórico
apresentaram sofrimentos também pela falta de respeito por sua tra-
dição oral, com recusas para que a cultura letrada lhes fosse aces-
sível, pois, suas oralidades suportaram sucessivas proibições como,
por exemplo, “de falar sua língua materna ou vivenciar a sua cultura
plenamente por serem julgadas como inferiores pelos europeus”. A
90 A população negra ou afrodescendente é composta pelos cidadãos/cidadãs que se definem
como os que possuem cor preta e/ou parda, considerando as definições do Movimento Negro,
os conceitos Antropológicos, Históricos-sociais, e as classificações do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (SILVA JÚNIOR, 2000).

- 189 -
falta de acesso à cultura letrada fez com que “muito de sua história
oral não fosse documentada” (IBIDEM et al., 2017, p.43).
Na contemporaneidade, ser negro envolve muitas questões
que ultrapassam a determinação do pigmento melanina que compõe
a derme. A análise da cor da pele com caráter puramente biológi-
co não é mais o único elemento levado em questão quando se tra-
ta sobre a identidade racial. Guerreiro Ramos (1995) considera que
não se pode utilizar conceitos biológicos para analisar as questões
sociais, sobretudo as relações étnico-raciais no Brasil. É importante
considerar que na atualidade, o sentido de pertencimento a um gru-
po pela conscientização de seus direitos políticos e sociais e seu am-
paro simbólico tem constantemente estado no núcleo das discussões
sobre as questões étnico-raciais (BARROS, 2014).
Abordar a etnicidade e o tema identidade é trazer a discus-
são e reflexão sobre o processo de (re) conhecimento de si no meio
social. Hall considera que a identidade cultural passa por crise na
sociedade moderna e existem várias identidades, pois os sujeitos se
fragmentaram. As identidades culturais são, segundo o autor, pontos
de identificação que possuem instabilidade ou sutura criados dentro
das manifestações histórico-culturais (HALL, 1996, p. 70). Elas são
construídas muitas vezes ao se recorrer aos antepassados históricos e
com ressignificações ou ainda mais fragmentações.
Sobre os sujeitos fragmentados, o autor também enfatiza que
a decadência atingiu as antigas identidades até então estabilizadas e
que solidificaram as sociedades mundiais. Tal declínio acabou por
favorecer o surgimento de “novas identidades e fragmentando o
indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado” (HALL,
1998, p. 6).
Zygmund Bauman considera que a fragmentação das identi-
dades ou sua mutação gera consequentemente uma sociedade indivi-
dualizada. As identidades então são (trans) formadas historicamente
de acordo com as representações das culturas. Elas são construídas e
estão em constante mudança, entram em conflito e contradições, pois,
não são unificadas em volta de um sujeito coeso, lógico (HALL, 2012).
Pode-se entender que as identidades são construídas e consti-
tuídas em meio a era pós-moderna, em virtude dos discursos levan-
tados nesta fase.

- 190 -
A nação é construída e constituída de representações, pois, é
algo que produz sentidos - um sistema de representação cul-
tural. [...] uma nação seria então uma comunidade simbólica,
imaginada, forjada em nível representacional (PANTA E PAL-
LISSER, 2017, p. 118).

Questões que envolvem a identidade cultural sucessivamente


foram e continuam sendo pautas de discussões de vários teóricos. A
categoria identidade permite revisitações às teorias sociológicas, às
concepções antropológicas, aos registros históricos e jurídicos, além
de outras discussões que perpassam pelos campos da Psicologia e da
Biologia.
Sobre a identidade, Hall (2012) considera que esta é construí-
da por meio da afirmação dos sujeitos e do conhecimento do que lhes
é diferente, da relação com o outro. Deve-se considerar que a afir-
mação de identidade tem se desenvolvido com evidência em meio
aos estudos de diferentes campos do conhecimento científico assim
como entre questionamentos da sociedade civil e, principalmente
ligam-se a processos de lutas por reconhecimento identitário, por
reivindicações de territórios ancestrais e manutenção de tradições de
grupos e comunidades. Entende-se que a identidade contribui para
que cada grupo possa se reconhecer no grupo, tendo sua linguagem,
seus símbolos, tradições e memórias como base.
É importante refletir que a afirmação e reconhecimento de
identidades passam pela percepção do que é diferente pelo sujeito
que se reconhece como pertencente a um grupo específico e se vê
amparado por este. A diferença faz parte da humanidade e está co-
nectada à diversidade de características pessoais e públicas que cada
sujeito ou grupo possui.
Pode-se entender que a percepção da identidade se dá na re-
lação com o diferente, mais precisamente com o Outro, dependendo
de outra identidade para a sua existência como já afirmaram Mar-
cielly Cristina Moresco e Regiane Ribeiro (2015) no primeiro capí-
tulo da obra “Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos cul-
turais”, elaborada por Kathryn Woodward.
As relações raciais amazonenses refletem todo o projeto de
constituição identitária elaborado para o contexto nacional. No que
tange ao Brasil, as diferenças percebidas e construídas socialmente

- 191 -
desencadearam a percepção de sujeitos sobre suas identidades, per-
passando por um longo processo envolvido na complexidade das re-
lações étnico-raciais.
Costa (2017) considera que ao se abordar a construção das
relações raciais no território brasileiro deve-se atentar para como se
deram as trajetórias de sujeitos que foram realizando a sua constitui-
ção identitária étnico-racial no decorrer da construção da nação bra-
sileira. É necessário analisar a constituição subjetiva da identidade
étnico-racial dos sujeitos da nação brasileira edificada e que refletem
as consequências no Amazonas e por isso se utilizam análises socio-
lógicas em diálogos com outros campos do conhecimento como a
História, a Antropologia e a Geografia.
Na escrita da História da nação existem grupos que são reco-
nhecidos como importantes para a formação da cultura considera-
da tipicamente brasileira, contribuindo de forma significativa para a
identidade nacional. Para os grupos se reconhecerem como tal exis-
te a base em suportes como a língua, os símbolos e os costumes de
seus antepassados que contribuem para a compreensão da chamada
identidade da nação. Ivo Follmann et al. (2017) destacam que o povo
brasileiro deriva da tríplice matriz cultural “apoiada e alimentada em
3 grandes tradições, com raízes distintas - a indígena ou ameríndia, a
africana ou dos afrodescendentes e a europeia ou branca” (IBIDEM
et al., 2017, p. 40).
O Brasil da tríplice matriz indígena, africana e europeia se
constituiu alienado de sua própria gênese cultural em virtude do da-
noso processo de branqueamento e enquadramento de sua memória
tendo como referência a matriz europeia (IBIDEM et al., 2017). Para
os autores, o branqueamento imposto ao povo brasileiro refletiu o
modelo colonial arquitetado pelos europeus, que não aceitavam as
diferenças culturais de outros povos e acabavam por negá-las.
A negação das diferenças no Brasil liga-se ao distanciamento
sociocultural e marginalização das culturas negra e indígena, assim
como as lutas desses grupos étnicos por emancipações e exercício
de direitos. Deve-se também considerar que não se pode dissociar a
história das desigualdades, das lutas pela liberdade e pela igualdade
social da história das diferenças (BARROS, 2014, p. 7).
O modelo colonial imposto ao Brasil se desenvolveu com a
negação e com ideologias, sobretudo a de branqueamento da popu-

- 192 -
lação brasileira que tentou sufocar o máximo que pode as identi-
dades étnicas diferentes à sua. Para Kabengele Munanga (2008) os
movimentos sociais tais como o Movimento Negro, em particular,
têm dificuldades em mobilizar seus pares em sua luta comum que
buscam mudanças no seio social devido dificuldades que se assen-
tam nas bases da ideologia racial de branqueamento organizada pela
elite brasileira no período conclusivo do século XIX à metade do
século XX.
Levando-se o período base apontado por Munanga (2008),
Renato Ortiz (2006) em seu livro Cultura Brasileira e Identidade Na-
cional aborda a questão racial analisando os discursos dos precur-
sores das Ciências Sociais brasileira Nina Rodrigues, Sílvio Romero
e Euclides da Cunha no período de transição entre os séculos XIX e
XX.
Analisando a obra de Sílvio Romero e o período de transi-
ção entre os séculos XIX e XX, Ortiz (2006) considera que o autor
de História da Literatura Brasileira (1943) lista as teorias europeias
que teriam sobrepujado os limites do período romântico brasileiro,
destacando o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolu-
cionismo de Spencer. Essas teorias, segundo Ortiz, se assemelham
por considerar a evolução histórica dos povos, apesar de terem con-
cepções distintas entre si.
Deve-se considerar que a superioridade europeia era funda-
mentada por meio das teorias que ganharam evidência em meio à
efervescência científica que considerava a Europa o continente em
estágio mais avançado da civilização mundial. Novas concepções de-
rivadas das teorias comtiana, darwinista e spenceriana acabaram por
justificar a superioridade europeia e logo, a inferioridade do povo
americano, sendo que no Brasil as teorias mostravam aos intelectuais
o problema do atraso da nação brasileira em relação aos países da
Europa (ORTIZ, 2006).
O autor também enfatiza a necessidade de explicar o atraso
brasileiro e apontar a possibilidade de o Brasil se constituir como
nação num tempo próximo ou mesmo em um futuro distante, pois,
a questão contraditória em foco dos estudiosos do período envolve
o descompassado entre teoria e o que era vivenciado, o que se forta-
lecia na construção de uma identidade nacional, no destaque desse
caráter, sendo que a teoria evolucionista concedeu à vanguarda inte-

- 193 -
lectual brasileira as concepções para o entendimento do dilema entre
o conceito de atraso e a realidade nacional distante da europeia. Mas,
deve-se considerar que a diferente nação brasileira desenvolve suas
próprias características em sua diferença em relação à Europa avan-
çada (IBIDEM, 2006).
Nesse sentido, o caráter particularmente nacional do Brasil no
período estudado e o questionamento sobre o descompasso entre o
teórico e o real cenário de atraso brasileiro pode ser entendido com
o auxílio de outros conceitos. O próprio Ortiz (2006) aponta que
a noção geral de compreensão das sociedades fornecida pela teoria
evolucionista, somada à outras concepções - que contribuem para o
entendimento da especificidade nacional brasileira - encontram na
transição dos séculos XIX e XX justificativas nas noções de meio e
raça (IBIDEM, 2006).
O Brasil atrasado seria, segundo a interpretação desses con-
ceitos (sobretudo o de meio), um lugar onde a natureza supera o ho-
mem, sendo que a cultura europeia teria empecilhos para se enraizar.
Os precursores das Ciências Sociais brasileiras aceitaram em parte a
interpretação determinista do historiador inglês Henry Buckle, uma
vez que a questão racial era considerada mais problemática do que a
de determinismo pelo meio (IBIDEM, 2006). O autor também enfa-
tiza que a questão racial no Brasil também é reforçada pela política
de imigração realizada no final do século XIX e volta à tona a discus-
são sobre o problema da mestiçagem (IBIDEM, 2006).
Até este período de transição as discussões sobre as relações
étnico-raciais eram tratadas de forma superficial. Os intelectuais do
Romantismo no Brasil ignoraram a presença dos africanos, no en-
tanto, a culminância do processo abolicionista com a promulgação
da Lei Áurea gera transformações radicais nesse cenário da presen-
ça do africano e seus descendentes no território brasileiro. O autor
ressalta que a transição do negro do regime de escravidão para o
trabalho livre marca uma nova ordem política ainda que a população
negra seja tratada pelos brancos como massa de cidadãos de menor
qualidade. Os negros então passam a ser observados e reavaliados
pelos produtores culturais e estudiosos da época como indivíduos
que obtém maior relevância social e econômica que os indígenas
(IBIDEM, 2006).
Então, pode-se considerar que, com as transformações sociais
e o processo abolicionista ocorrido no final do século XIX e início

- 194 -
do século XX, o negro passa a estar em meio às preocupações nacio-
nais. Ainda assim há a preocupação com os contrastes culturais que
existem no Brasil trazendo então novamente as misturas étnicas que
o brasileiro possui.
Sobre a questão da mestiçagem, Ortiz (2006) retoma a ideia
de o Brasil ser espaço de miscigenação das três raças (branca, negra
e indígena) ainda que a cultura branca estivesse considerada como
o padrão de civilidade no quadro de interpretação social brasileiro
(IBIDEM, 2006).
Na questão do progresso da humanidade, em particular, da
civilização brasileira, o negro e o índio eram considerados atrasados,
empecilhos para a civilidade. Para Carneiro (2015) a origem de todas
as construções de nossa identidade nacional está na violação colonial
de mulheres negras e indígenas realizadas por senhores brancos, que
acabaram gerando a miscigenação como resultado de tais violências
e dando estrutura “ao mito da democracia racial latino-americana,
que no Brasil chegou até as últimas consequências” (CARNEIRO,
2011, p. 1).
É importante ressaltar que o projeto de branqueamento da
população brasileira não teria sido concluído, resultando em uma
sociedade plural composta de várias identidades étnicas, com com-
posições proporcionalmente desiguais que colorem o Brasil que se
conhece atualmente (MUNANGA, 2008).
Pode-se entender que havia desigualdade racial na questão da
identidade nacional. Necessitava-se de um equilíbrio na evolução do
brasileiro, sendo que o mestiço foi concebido como tal ponto de har-
monia idealizado pelos intelectuais do século XIX. O mestiço seria
a representação adequada da chamada identidade nacional (ORTIZ,
2006), que era uma particularidade racial idealizada no Segundo
Reinado que evoluiu para um símbolo de uma nação devidamente
mestiça (FERNANDES, 2007).
Para Mariana Panta e Nikolas Pallisser (2017, p. 118)

as culturas nacionais surgem como um dos fundamentos básicos


da composição da chamada identidade cultural, uma vez que,
são construídas e alteradas no cerne da representação”, confor-
me Stuart Hall já afirmou (HALL, 2006).

- 195 -
Na virada dos séculos XIX e XX, de acordo com Ortiz (2006)
é desenvolvida a “fábula das três raças” em meio às teorias raciais
europeias que transitavam entre os intelectuais brasileiros da época.
Para Follmann et al. (2017) as três referências histórico-culturais de
base da constituição da identidade brasileira foram envolvidas em
um processo de branqueamento que resultou na alienação do brasi-
leiro a respeito de suas próprias origens culturais negra e indígena,
ou seja, projetou a negação dessas matrizes e a identificação com a
cultura branca/europeia hegemônica. No Amazonas, pode-se iden-
tificar as influencias dos projeto de branqueamento da nação e como
é refletido nas identidades étnicas dos amazonenses.

Negros e relações étnico-raciais no território amazonense


A respeito das relações raciais no Estado do Amazonas pode-
-se considerar o exemplo da capital Manaus como ponto de partida
para a discussão sobre o processo de branqueamento ocorrido na
população do território. Mário Ypiranga Monteiro (1976) afirma que
Manaus trilha para se tornar uma cidade cosmopolita no início do
século XX, com o boom da borracha91, mas que

Não se deve esquecer de que a sua fundação, como forte, data de


1669. Antes, já os portugueses ensaiavam por aqui essas coisas
de conúbios com a índia e também por via das dúvidas, esta-
belecia o governo luso a estratificação racial, afastando o pre-
to. O preto na Amazônia, é um elemento de poucas sugestões,
sobreviveu a duras penas, condenado a não usar joias e roupas
burguesas, enquanto que o índio plantava a sua cultura em plena
sociedade lusa, impondo a sua língua como primeiro fator de
aprisionamento social do conquistador. Mais tarde surgiram as
famílias brancaranas e a herança sanguínea continuaria domi-
nando para sempre. Esse processo de caldeamento persevera.
Não se duvide, portanto, da ausência completa de folclore negro
na Amazônia, de origem diretamente africana. A escravidão por
aqui foi escassa, e o negro - um pingo de café num jarro de leite.
(MONTEIRO, 1967, p. 38-39).

O autor cita como os índios e negros lidavam com a domi-


nação lusa, uma realidade em que vivenciavam e que resistiram de
91 Corresponde ao período histórico extração do látex na Amazônia também chamado de
ciclo da borracha, “que se inicia por volta de 1850, adquire intensidade nas décadas de 1890-
1900 e atinge o seu apogeu na primeira década do século XX” (BENCHIMOL, 2009, p. 227).

- 196 -
distintas maneiras no território amazonense. Afirma que se pode
entender o porquê da pouca evidencia à cultura negra no Amazonas
justificando que foram poucos os negros em condição de escravidão
presentes no Estado, sendo que as outras culturas assim teriam se
sobressaído. Para Costa (2005):

Após o chamado “ciclo da borracha”, a região sofre realmente um


processo de retração econômica. Manaus recolhe-se para remen-
dar suas redes e refazer suas forças em novas alianças político-
-culturais. As elites desenvolvem um pensamento glebarista, de
exaltação ao regionalismo, expresso na literatura da caboclitude
de Álvaro Maia, na sociologia humanista de André Araújo, nos
estudos do folclore amazonense de Mário Ypiranga Monteiro
e na etnologia de Nunes Pereira, estudiosos da cultura cabocla,
cultura da mestiçagem que se implanta no Brasil a partir dos
anos 30 (COSTA, 2005, p. 94).

O projeto de nação que visou o branqueamento da população


brasileira não extinguiu as matrizes negra e indígena, porém deixou
marcas profundas na história, cultura e identidade do país. As su-
cessivas tentativas de homogeneizar e unificar a população brasileira
teriam causado fragmentações nas identidades étnicas que se torna-
ram conflitantes e paradoxais.
Juarez Clementino Silva Júnior (2019) considera que variados
equívocos e distorções pesam sobre as visões populares internas e ex-
ternas que existem a respeito da região amazônica. Tais visões equi-
vocadas abrangem as concepções sobre a composição étnico-racial
do povo amazônico e suas influencias histórico-culturais, demográ-
ficos e sociais possibilitando a permanência de premissas falaciosas
sobre o contexto regional que indicam a mesma base de pensamento
social, que segundo autor tem os seguintes eixos:

A da quase exclusiva presença e ancestralidade indígena; A da


inexistência ou inexpressiva presença de população negra/afro-
descendente; A de que a população seria composta virtualmente
apenas por indígenas, brancos ou da figura típica regional ama-
zônica, o caboclo, que por critérios científicos/sociais, não con-
figura na realidade grupo étnico- racial, mas sim uma identidade
cultural regional (SILVA JÚNIOR, 2019, p. 224)

- 197 -
As ideias errôneas sobre a constituição sociocultural amazôni-
ca reafirmam a negação à contribuição de negros e negras na região,
como se os mesmos fossem irrelevantes para a formação e desen-
volvimento regional, como se não tivesse tido impacto. Mas, a cul-
tura negra é presente na formação étnica amazônica, nas memórias
transmitidas entre gerações, nas múltiplas manifestações folclóricas,
na linguagem, na gastronomia, nas práticas religiosas e para além
das manifestações populares está entre outros aspectos históricos,
socioculturais, políticos e econômicos da região.
Em meio a toda a diversidade que a presença negra dissemi-
nou na Amazônia encontramos as relações étnico étnico-raciais que
ainda são analisadas em fragmentos, assim como esta região com-
plexa e diversificada. Vale ressaltar que o estudo da cultura negra na
região é de suma importância para o conhecimento da Amazônia
multiétnica que contemporaneamente é conhecida e evidenciada,
mas ainda estudada com poucos olhares para a contribuição negra
(GOMES E COSTA, 2021).
Ousa-se questionar a referida “fase de superação de preconcei-
tos” em meio ao processo de miscigenação ocorrido na Amazônia,
como Benchimol (2009) considerou ao abordar que em tal período
a sociedade amazônica teria absorvido e integrado várias nuances
étnicas e antropológicas de grupos que geraram uma vasta popula-
ção mestiça. O autor ainda enfatiza que, apesar disso se tem algumas
contribuições das populações negras que, com outros grupos étnicos
criaram “formas de convivência, de vida e de trabalho” com valores,
virtudes e pecados do “velho mundo afro-ibérico e mediterrâneo
com os novos dons, primícias e diferentes maneiras de ser e viver do
trópico úmido amazônico” (BENCHIMOL, 2009, p. 121).
Diante do exposto pode-se considerar que os intérpretes da
Amazônia citaram alguns encontros e análises não aprofundadas so-
bre a presença negra na região, mas, evidenciando povos indígenas e
caboclos, suas influências e legado que contribuíram para o enqua-
dramento das referidas identidades étnico raciais na região.
Documentos e relatos de época testemunham que a presença
negra no Amazonas se deu em virtude da vinda de pessoas livres
escravizadas procedentes de diferentes localidades, tais como Pará,
Maranhão, Sergipe, Barbados que acabou por disseminar influências

- 198 -
culturais como o tambor de mina e o boi-bumbá92 (SILVA JÚNIOR,
2006). Relatos de naturalistas trazem informações sobre manifesta-
ções negras no Amazonas, como por exemplo, o realizado por Henry
Bates na antiga Vila de Serpa, território do atual município de Ita-
coatiara. O viajante registrou a manifestação de negros com batu-
ques de gambá93 e danças em honra à São Benedito no período do
Natal (BATES, 1979).
O registro de Henry Bates da manifestação negra em Serpa
(Itacoatiara) apresenta uma prática que também se fazia presente em
vários ambientes do Amazonas, assim como em múltiplos territórios
amazônicos. O gambá, de acordo com Braga (2011, p. 164) tem como
referência o instrumento musical homônimo cujo batuque embala a
dança de matriz africana realizada por negros na Amazônia.
A dança do gambá também é registrada em outros territórios
do Baixo Amazonas, como é o caso do município de Maués94. Para
Ávila (2016, p.10) “o gambá uma manifestação performática de co-
munidades ribeirinhas da região do Baixo Amazonas (compreendi-
da na fronteira entre os Estados do Amazonas e Pará)”.
O autor considera que a manifestação pode ser encontrada
em vários municípios amazonenses, principalmente os considerados
ribeirinhos, comunidades quilombolas e indígenas, no período de
brincadeiras dançantes ou festas de santo. Entre os municípios onde
a dança do gambá ainda ocorre estão os localizados no Baixo Ama-
zonas, na região do rio Madeira e território do Médio Rio Negro
(AVILA, 2012).
Em Vila Nova/Parintins, na região do Baixo Amazonas, Hen-
ry Bates registra a presença de negros entre os 31 alunos do Padre
Torquato95 (BATES, 1979). Vale ressaltar que Parintins localiza-se na
92 Salles (2004, p. 193-200) considera que popularmente divulgado no Pará, o termo boi-
bumbá é uma expressão provavelmente alusiva a palavra africana bumba que significa
“instrumento de percussão, tambor, que pode derivar do quicongo mbumba, bater”.
93 Esse tambor era chamado de gambá, em alusão ao animal marsupial. [...] (BRAGA, 2011,
p. 164).
94 Maués é um município amazonense localizado na região conhecida por Baixo Amazonas,
fronteira com o Estado do Pará, ao leste. Compreende a antiga missão de Maguases, “que foi
fundada em 1669 pelos missionários jesuítas entre os índios Maraguases (agora conhecidos
pelo nome de Sateré-mawé)” (ÁVILA, 2016, p. 56).
95 Padre Torquato Antônio de Sousa. Bates (1944) relata que Pe. Torquato foi várias vezes
presidente da Câmara Provincial do Amazonas, sendo que durante a visita do naturalista à
Vila Bela o referido padre estava assumindo os cargos de vigário e mestre-escola do lugar.
O projeto n.7 do vereador Odovaldo Ferreira Novo, da casa legislativa de Parintins no ano
de 1956 propõe que a praça da matriz tenha nome alterado para homenagear o Pe. Torquato
pelos serviços prestados ao município. É registrado no projeto que o sacerdote foi um dos

- 199 -
fronteira como o Estado do Pará, área de forte trânsito de pessoas e
cargas. O próprio naturalista faz o relato de um encontro com um
negro alforriado próximo à Serra da Valéria, comunidade rural de
Parintins. O negro chamado Lima estaria com sua esposa da etnia
Maué em uma canoa descendo para Santarém-Pará a fim de barga-
nhar a sua colheita anual de tabaco por mercadorias da Europa.
A Província do Amazonas foi a segunda unidade administra-
tiva do país a abolir a escravidão quatro anos antes da lei Áurea de
1888, tendo como antecessora a Província do Ceará, que oficializou
a abolição da escravatura em seu território no dia 25 de março de
1884.
É importante rememorar a emancipação da população negra
no Amazonas e a esperada declaração dada na Praça 28 de setembro,
mais precisamente no dia 10 de julho de 1884, no centro da capital
do Amazonas, Manaus, um marco da luta pela liberdade da popu-
lação afro amazonense. Mas, também é necessário destacar que a
Abolição da Escravatura no território do Amazonas aconteceu como
resultado de um árduo processo de lutas, com as ações de negros
resistentes à escravidão, à segregação e ao racismo; do movimento
negro, de abolicionistas e defensores da liberdade/equidade, além da
afirmação identitária em sua auto-eco-organização (MORIN, 2001),
com todo esse processo os que até então eram tidos como meros in-
divíduos na sociedade brasileira passaram a ser vistos como sujeitos
de sua própria história, não mais restritos à mão de obra escrava,
marginalizado (a), objeto sexual ou empregada doméstica, ainda que
exista a fragmentação dos conhecimentos sobre e dos sujeitos tam-
bém em relação à suas atividades e identidades culturais.
No Amazonas, a emancipação dos negros ocorreu após uma
campanha abolicionista de 16 anos que teve a African House e a fun-
dação dos chamados “bairros negros” no pós-abolição como, por
exemplo, a Vila São José (atual Praça da Saudade), Praça 14 e o Zum-
bi dos Palmares (SILVA JÚNIOR, 2006). Para Provino Pozza Neto
(2011) em sua dissertação intitulada AVE LIBERTAS: ações eman-
cipacionistas no Amazonas Imperial considera que a alforria foi um
autores do Projeto transformado na Lei n. 2, de 15 de outubro de 1853 que elevou a Freguesia
de Vila Nova da Rainha à Vila e Município da Vila Bela da Imperatriz. O mesmo documento
apresenta Pe. Torquato como o primeiro professor da primeira escola pública Provincial e
criador da cadeira do ensino primário para o sexo feminino. In: BUTEL; SOUZA; CURSINO;
CARNEIRO, 2011, p. 134)

- 200 -
dos instrumentos usados para a abolição da escravatura no território
amazonense, pois, proporcionava

A emancipação dentro dos limites da legalidade jurídica, [...] foi


um instrumento da luta antiescravista explorado pelos emanci-
pacionistas convictos em limpar gradualmente a mancha da es-
cravidão, numa luta tardia que fez do Brasil o último país cristão
e ocidental a abandonar o regime (POZZA NETO, 2011, p. 11).

O autor considera que as alforrias foram concretizadas prin-


cipalmente no decênio de 1870, período em que negros ou “pardos”
como o padre Daniel Pedro Marques de Oliveira96 enfrentaram o sis-
tema escravista e se destacaram de tal modo que se tornaram amea-
ças a autoridades locais (ABREU, 2013).
No final do século XIX, o Estado do Amazonas tinha  como
chefe do poder executivo o maranhense Eduardo Gonçalves Ribeiro,
considerado o primeiro governador negro do Brasil (SILVA JÚNIOR,
2006). Durante o seu governo, mudanças significativas foram realiza-
das em Manaus e no interior do Estado, mas se destacam as obras que
tiveram início na Capital e que atualmente são patrimônios arquitetô-
nicos e pontos turísticos que remontam à Belle Époque amazonense.
A Manaus com caráter cosmopolita teria sido idealizada desde
antes ao período áureo da extração do látex. Mário Ypiranga Montei-
ro (1967), considera que a cidade se cosmopolitizou nos anos iniciais
do século XX, mas que anterior à sua fundação como centro urbano
os portugueses já teriam ensaiado essa cosmopolitização em alian-
ça com as índias estabelecendo a administração portuguesa assim
como “a estratificação racial, afastando o preto”. (MONTEIRO, 1967,
p. 38-39). Ainda que o projeto colonial tenha idealizado ocultar a
presença negra no Amazonas não obteve sucesso, pois, a própria
Manaus Cosmopolita foi desenvolvida com a mão de obra negra.
Karla Patrícia Palmeira Frota (2018) em sua tese intitulada
Nas pegadas de um santo negro: a expressão feminina nos festejos de
São Benedito na Praça Quatorze de Janeiro em Manaus, Amazonas
afirma que no governo de Eduardo Ribeiro, mais precisamente no
ano de 1890, o então chefe de Estado recrutou ”famílias negras ma-
ranhenses para vir e participar da construção arquitetônica e urba-
nística da cidade de Manaus” (FROTA, 2018, p. 37).
96 Deputado da Província do Amazonas na década de 1870 (ABREU, 2013).

- 201 -
Eduardo Ribeiro segundo Benchimol (2009), é um dos sím-
bolos da ascensão social negra através do engajamento político no
Amazonas, sendo esse ilustre maranhense o impulsionador da ur-
banização da capital Manaus no período do apogeu da extração do
látex. Frota (2018) destaca que o período áureo da extração de bor-
racha e o desenvolvimento arquitetônico teve sua realização pelo tra-
balho de muitos nordestinos, sobretudo negros/negras que vieram
para a o Amazonas atraídos pela prosperidade econômica que a ven-
da da borracha prometia.
Também deve-se evidenciar que a presença de africanos e
afrodescendentes no território do atual Estado do Amazonas não se
limitam ao período que a escravidão imperou nessas terras, sendo
que, nos tempos que se seguiam no Pós-abolição o trânsito de ne-
gras e negros nas localidades amazonenses eram constantes e desen-
cadearam impactos em vários âmbitos locais como, por exemplo, a
economia, sociedade e cultura do referido estado.
Na História do Amazonas também se tem o destaque da pre-
sença de negros barbadianos e seus descendentes que teriam se es-
tabelecido no bairro Praça 14 de Janeiro em Manaus (CARVALHO,
2015). No referido bairro os barbadianos teriam se dedicado à prá-
tica comercial, sendo que na contemporaneidade os descendentes
barbadianos da família Redman ainda residem na Praça 14 (ROSA,
2018).
Cledenice Blackman et all (2020) consideram a existência de
um bairro barbadiano na cidade de Manaus ainda que os estudos
sobre a presença afro-antilhana no território amazonense sejam
embrionários. Além das pesquisas sobre os barbadianos da família
Redman há também os registros sobre os Scantlebury, que, segundo
Lima (2013) tiveram mudanças na grafia de seu sobrenome devi-
do um erro cartorial. Os Scantlebury conhecidos como Scantbelruy
manauenses vieram para o Estado do Amazonas devido a oferta de
trabalho como é o caso de Charles Scantlebury que chegou em Ma-
naus para o trabalho na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, sendo
que resolveu residir na capital do Amazonas (LIMA, 2013).
Benchimol (2009) destaca que a corrente migratória de 2.211
barbadianos vem para a Amazônia em 1910 para o trabalho na Es-
trada de Ferro Madeira - Mamoré, sendo que após a realização da
obra tais caribenhos foram para Belém e Manaus onde algumas
- 202 -
mulheres, as mais humildes, se tornaram lavadeiras e engoma-
deiras exímias, enquanto que outras e seus maridos consegui-
ram ascender na escala social em diversos setores e profissões
(BENCHIMOL, 2009, p. 119).

Lima (2013) considera que ainda que a corrente migratória de


barbadianos para o território amazônico tenha sido impulsionada
pelas ações de companhias estrangeiras a mesma não é quantificada
pelas autoridades locais, sendo que a presença dos migrantes não
foi tratada com indiferença ou desapercebida por tais comandantes
(LIMA, 2013).
Entre os vários questionamentos que suscitam reflexões sobre
a presença e contribuições de negros/negras no Amazonas devemos
considerar que o estudo da história, cultura africana e afro-brasileira
é necessário para o conhecimento da ocupação e constituição identi-
tária da região ressaltando as relações étnico-raciais que se desenvol-
veram no território amazônico.
As vivencias de negros e negras no Amazonas não se limitam
ao arquétipo de escravos, mas deve-se considerar os trânsitos de ne-
gros e negras que também estavam afora a situação de cativos, além
das levas de negros nordestinos que buscaram trabalhos e melho-
rias de vida assim como barbadianos que transitaram e se fixaram
no território amazonense. Os negros e negras amazonenses ou que
migraram para o estado se tornaram amazonenses pelas suas terri-
torialidades.
Sobre a vinda de negros nordestinos para os domínios amazo-
nenses se pode considerar que suas heranças culturais são intensas
sobretudo quando se rememora a presença de tais populações no
período áureo de extração do látex, considerado um tempo de apo-
geu econômico e cultural da História amazônica. Levas de migrantes
chegaram ao território amazonense no período áureo da borracha e
para além dele, sendo muitos nordestinos negros.
O conhecimento sobre a trajetória dos negros no espaço
amazonense exige um trabalho minucioso colaborado com grandes
obras sobre a presença negra na Amazônia, entre as quais se encon-
tram os indícios para reflexão, uma vez que Ginzburg (1989, p. 177)
considera que “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas -
sinais, indícios - que permitem decifrá-la”. Sobre o exposto, Gomes

- 203 -
(2011, p. 6) considera que é por meio de sinais em meio à documen-
tos e da investigação da

realidade opaca da colônia que seguiremos os fugitivos pelo


vasto território amazônico na expectativa de decifrar suas
ações, sem, todavia, a mínima pretensão de exaurir as muitas
perguntas carentes de respostas.

As trajetórias de negros tanto no período da escravatura como


nos tempos do Pós-abolição mostram que em distintos espaços do
território amazonense a presença negra contribuiu de diferentes
formas para a história, cultura e identidade das populações locais.
O reconhecimento de um Amazonas com identidades negras tam-
bém se dá por meio da luta dos remanescentes que resistem pela
manutenção das tradições afro-brasileiras e o respeito às terras de
seus ancestrais, territórios de relações interétnicas. As comunidades
quilombolas reconhecidas nos últimos anos passam por conflitos
territoriais, sempre revisitando as memórias da escravidão dos an-
tepassados e as tradições que vem sendo mantidas em seus meios.
Tais espaços comunitários se interligam como ambientes simbólicos
onde indivíduos tornam-se sujeitos através do sentimento de identi-
dade e manutenção das tradições.
A epistemologia das comunidades negras amazônicas reflete
seus conhecimentos e tradições que resistem no tempo e nas me-
mórias de seus sujeitos, em suas identidades. As relações entre estas
identidades as distinguem, pois, a identidade é marcada pela dife-
rença, e esta gera classificação por símbolos em vários domínios da
sociedade humana. Liz (2001, p. 36) considera que
as diferenças culturais são, em grande parte, resultado da inter-
venção dos sistemas educacionais, já que os seres humanos não
possuem diferenças - elas são construídas a partir de contextos
que eram sempre relacionais.

Para Silva Júnior (2019, p. 224) considera que

a dispersão, a não consolidação/sistematização e divulgação das


várias fontes e dados sobre a presença negra no Amazonas, tem
resultado no processo já tradicional de negação e invisibilização
de tal presença”.

- 204 -
As pesquisas realizadas sobre a presença negra trazem ver-
dades negadas por grupos hegemônicos da sociedade amazonense,
pois, os escravos africanos em número reduzido e seu impacto na
produção da economia regional direcionam para observações a res-
peito da presença negra na região amazônica, presença esta que não
deve ser mais silenciada (SAMPAIO, 2011).

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- 208 -
PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL:
Os lugares de memória do Saneamento

Ghislaine Raposo Bacelar97


Artemis de Araújo Soares98

Resumo: Esta pesquisa tem como objetivo identificar as políticas de sociabili-


dade dos espaços da cidade de Manaus, focalizando a memória afetiva e social
do saneamento, desvelando a memória das águas como patrimônio material e
imaterial da cidade de Manaus, na valorização da história incluindo as edifica-
ções num conjunto arquitetônico de real valor sociocultural. Para a realização
deste estudo, buscou-se o apoio em experiências vivenciadas e detectadas por
meio de pesquisas incluídas na tese Memória das Águas da cidade de Manaus
– um patrimônio material e imaterial ¹, obedecendo tanto às normas nacionais
quanto as internacionais. Observou-se a legislação e especificação técnica para
manutenção, conservação e restauração de monumentos históricos, respeitando
os valores estéticos e históricos dos mesmos, sem infringir a sua integridade fí-
sica. Metodologicamente, abraçamos uma pesquisa bibliográfica e documental,
escolhendo os procedimentos pertinentes. O empoderamento das boas águas,
elementos políticos de uma época, falas, relatórios e posturas na busca de uma
condição de higiene abordando ainda como patrimônio material e imaterial a
história, a memória e a identidade cultural sendo a cidade o lugar do homem
numa multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma transdisciplinar,
abordam o real na busca de cadeias de significados. Obstina-se trazer contribui-
ções para a preservação e manutenção do patrimônio histórico que traz consigo
as memórias que constituem e formação social da cidade de Manaus.
Palavras-chave: Saneamento Básico; Memória; Conservação, Restauração; Pa-
trimônio Histórico.

Introdução
Este estudo lança um olhar para as questões políticas do sa-
neamento básico na cidade de Manaus, falas e relatos com os primei-
ros passos para o abastecimento de água da população e o reconheci-
mento de um processo de melhoria e tratamento da saúde pública. O
principal objetivo é desvelar a memória das águas como patrimônio
material e imaterial da cidade de Manaus, na valorização da história
de seu sistema de saneamento básico como um conjunto arquitetô-
nico de real valor sociocultural.
97 Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM.
98 Professora titular da FEFF-UFAM, doutorado na Universidade de Paris (Paris-Descartes)
e na Universidade de Renne - Doutorado em Ciências do Desporto na Universidade do Porto.
E-mail: artemissoares@gmail.com.

- 209 -
Define-se conceitualmente o que é patrimônio, sua proteção
e preservação conforme a legislação vigente orientada pelo Instituto
de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Os monu-
mentos arquitetônicos definidos neste estudo como elementos da
história do saneamento básico são apresentados com sua evolução
histórica, evocando sentidos, vivência e valores como o complexo
da Castelhana, complexo do Mocó, Usina Chaminé e a Galeria de
drenagem construída pelos Ingleses no Centro Histórico.
Para a realização deste estudo, buscou-se o apoio em expe-
riências vivenciadas e detectadas por meio de pesquisas, obedecen-
do tanto às normas nacionais quanto as internacionais, legislação e
especificação técnica para manutenção, conservação e restauração,
respeitando os valores estéticos e históricos do monumento, sem
infringir a sua integridade física. Quando buscamos a definição de
cultura e patrimônio cultural, temos em mente que o significado tem
diferentes sentidos para diversos grupos de pessoas, principalmente
para um grupo de pessoas que luta pela defesa de uma identidade e
de uma memória cultural.
Isso culminará em reconhecimento e proteção do patrimônio
cultural, um dos maiores trunfos que as cidades têm para os seus
projetos de futuro, ou seja, premissas de desenvolvimento verda-
deiro, tal como proteger as referências que identificam a cidade, sua
história e sua gente; impedir os excessos ocorridos no processo de
globalização, no qual edifícios de valor arquitetônico são substituí-
dos por outros de qualidade cada vez mais questionável ou simples-
mente demolidos; largos e praças sacrificados para a passagem de
viadutos, pistas elevadas e estacionamentos aos quais a população
acostumou-se a olhar como aspecto degradado dos centros cada vez
mais abandonados e violentos, abrangendo a memória do sanea-
mento das cidades brasileiras, especificamente de Manaus, como um
dos desafios.
Considerando todos os estudos analisados e aqui expostos,
propõe-se que sejam considerados dignos de restauração todos os
bens móveis, imóveis ou integrados aqui referidos, que devido a toda
sua representatividade e identidade cultural regional devam ser pre-
servados em sua integridade e que sejam reconhecidos pelo Instituto
Histórico e Artístico Nacional.

- 210 -
Lugares de memória

Para um processo permanente de construção e reconstrução, é


necessário entender que é a construção de “lugares de memória”, que
proporcionam a conservação, a discussão e socialização das memó-
rias individuais e coletivas. A definição “lugares de memória”, con-
ceito de Nora (1993), teve como objetivo evitar o desaparecimento
dos registros históricos e, para isso, realizou um inventário de locais
no presente que continuavam repletos de passado: arquivos, monu-
mentos, museus e outros espaços específicos. Dessa forma, “lugares
de memória” podem ser de objetos materiais e concretos até vestí-
gios imateriais e orais. Porém, eles só se convertem em “lugares de
memória”, se as imaginações coletivas investem-lhes como lugares
simbólicos (IBIDEM, 1993).
Para Le Goff (2003), a construção da memória constitui im-
portante função social, na medida em que se reproduz informações
mesmo ante a ausência de dados escritos, baseando-se no estudo de
objetos que marcaram o seu acontecimento. É importante destacar,
dessa memória coletiva e afetiva, o patrimônio construído para valo-
rização de uma época, o conhecimento como uma reconstrução dos
fatos, além da identificação política e cultural apropriada nas edifica-
ções existentes e o reconhecimento das falas, dos saberes, da história
envolvida.
Seguindo o pensamento de Bourdieu (1996), a construção so-
ciológica não se refere aos espaços topográficos, mas sim pressupõe
desvendar as relações sociais que se dão nos espaços de natureza ob-
jetiva e simbólica. Ainda na mesma linha, acrescenta-se à construção
do espaço social de Bourdieu (1996, p. 14):
O pesquisador, ao mesmo tempo mais modesto e mais ambicio-
so do que o curioso pelos exotismos, objetiva aprender estrutu-
ras e mecanismos que, ainda que por razões diferentes, escapam
tanto ao olhar nativo quanto ao olhar estrangeiro, tais como os
princípios de construção do espaço social ou os mecanismos de
reprodução desse espaço e que ele acha que pode representar em
um modelo que tem a pretensão de validade universal.

Significativamente o “habitus” do capital simbólico nos leva


ainda a um jogo científico. O imaginário dava lugar à vida, como era
descrito por Carvajal (1941, p. 50),

- 211 -
Vimos uma boca de outro grande rio, à mão esquerda, que entra-
va no que navegávamos, e de água negra como tinta, e por isso
lhe pusemos o nome de Rio Negro. Corria ele tanto, e com tal
ferocidade que em mais de vinte léguas fazia uma faixa na outra
água, sem misturar-se com a mesma”.

A busca desse pertencimento e a memória do encontro das


águas entre o Negro e o Solimões mostram as visões do mundo,
criando uma relação social entre o inédito e o patrimônio natu-
ral. Na construção da cidade de Manaus, no século XIX e início do
século XX, as intervenções urbanas foram orientadas a partir das
modificações sanitárias, estéticas e disciplinares, estruturadas por
programas de melhoramento e embelezamento que o modelo de ur-
banismo impôs à época. A importância de entender as relações da
nossa sociedade com o ambiente, que hoje é um problema que se
apresenta como prioritário ao se pensar as cidades, demonstra que
as ações e as intervenções urbanas devem encontrar soluções que
inventem formas novas de se relacionar com seus patrimônios natu-
rais e culturais, o que implica rever as próprias concepções acerca do
homem e suas sociabilidades diante do ambiente, presentes em nossa
cultura através da nossa história.
Segundo Pesavento (2002), a narrativa dos autores Thiago de
Mello e Jeferson Peres descrevem que Manaus possuía valor de uso.
A cidade pertencia a seus moradores. As praças, os cinemas, o mer-
cado, as ruas e avenidas faziam parte da vida de cada um. As calçadas
eram locais de conversas, o banho, nos igarapés limpos e convidati-
vos era um direito de todos depois da semana de trabalho e estudo.
Havia, por parte dos moradores, o sentimento de pertencimento à
cidade. Esta sociedade possuía “o poder simbólico de domínio sobre
a cidade, do sentir-se urbano, do ser visto e reconhecido” (IBIDEM,
2002, p. 98).
“Para bom esgoto, água muita”, revela o relatório apresentado
em 1900 pelo Secretário de Negócios do Interior, Francisco P. R, Bit-
tencourt, ao governador Ramalho Junior. Melo, (1991), acrescenta
que, no ano de 1900, o rio Negro é proposto como receptor do lan-
çamento do esgoto sanitário, por ser considerado como purificador
das águas de esgoto pelos fenômenos mecânicos, físicos e biológicos.
Quando tratamos de áreas urbanas, as questões do saneamen-
to ambiental do município são prioritárias, sendo um pré-requisito

- 212 -
para a qualidade ambiental e despoluição dos cursos d’água, além de
diminuir os riscos e melhorar as condições estéticas desses manan-
ciais. Já nesta época começou a impermeabilização excessiva do solo
urbano, como consequência da implantação de vias de circulação,
confecção de calçadas e construção de casas nas várzeas dos cursos
d’água, aumentando a ocorrência de enchentes e de alagamentos,
com reflexos negativos nas atividades urbanas e em problemas per-
tinentes à saúde pública.
As propostas do governo de José Cardoso Ramalho Junior
geraram duas alternativas sobre o lançamento de esgoto, que foram
postas em questão: Na primeira alternativa as terras afastadas do pe-
rímetro urbano foram inviáveis devido a sua topografia cortada por
igarapés. Na segunda alternativa foi considerado o rio Negro, por ser
extenso e possuir aumento de velocidade em determinada época do
ano, sendo escolhido para receber os produtos de esgoto, por não
possuir cidades vizinhas (OLIVEIRA, 1991).
Fato histórico ocorrido em 1913 foi a manifestação popular
em protesto as altas taxas que eram cobradas pelos serviços de água
e esgoto, que acabou resultando na depredação da empresa. Após
este acontecimento a concessão estrangeira chegou ao fim, o Esta-
do então assume os serviços e em 1969 é autorizada a criação da
Companhia de Saneamento do Amazonas – Cosama, com vários
acionistas, pertencendo ao Governo do Estado metade das ações e a
outra metade distribuída entre a Superintendência da Zona Franca
de Manaus – Suframa, Centrais Elétricas do Amazonas, Municípios
do Amazonas, tais como São Paulo de Olivença, Barcelos e Autazes
(BACELAR, 2003).

Somente em 1943, o escritório Saturnino de Brito organizou o


primeiro projeto de ampliação dos sistemas de abastecimento
de água e esgotos sanitários da cidade de Manaus. Esse mesmo
relatório descreve que as inúmeras casas construídas às margens
do rio deveriam ser demolidas para que, em toda a extensão
dos limites da cidade, ficasse uma margem de domínio públi-
co, para que fossem instalados sistemas de esgotos sanitários e
evitar poluições locais no período de secas do rio. (SANTOS,
2006, p. 28).

Em 1961, de acordo com o engenheiro e pesquisador Duran-


go Duarte em seu livro Manaus: séries 1960, dois fatores se apre-

- 213 -
sentavam como críticos: o dramático quadro de abastecimento de
água de Manaus e as incontáveis e frequentes queixas de prejuízos
aos consumidores. As condições energéticas fizeram o governador
Gilberto Mestrinho, junto a Centrais Elétricas de Manaus – CEM,
a instalação de conjugados dinamarqueses para evitar a interrupção
do bombeamento para os reservatórios existentes e evitando o risco
de interrupção no abastecimento de água por falta de energia na Es-
tação do bombeamento da Ponta do Ismael.
Ainda em 1963, Plínio Coelho sucedeu a Gilberto Mestrinho
no governo do Estado. Diante da magnitude do problema, decidiu
lançar uma campanha inusitada. Pedia para que a população de fu-
mantes da capital amazonense deixasse de consumir cinco cigarros
por dia. O apelo pregava que o fumante que aderisse, economizaria
o suficiente para pagar uma taxa de colaboração mínima mensal. O
arrecadado seria destinado à manutenção dos serviços de água, tra-
tamento, ampliação da rede aos bairros e ruas que não tinham água
encanada. Evidentemente, a campanha não teve sucesso e nada do
que o governador pretendia foi realizado.
Em 13 de novembro de 1969, foi criada a Companhia de Sa-
neamento do Amazonas – COSAMA, autorizada pela Lei Municipal
n° 1053, o seu intuito era a exploração dos serviços de abastecimento
de água e esgotamento sanitário, dando continuidade ao processo de
desenvolvimento neste seguimento. Sede inaugurada no dia 5 de ou-
tubro de 1970, localizada na Rua Miranda Leão, n° 42, sob a direção
de Alberto de Rezende Rocha, o primeiro presidente da companhia
(MELO, 1991).
Em 1.º de abril de 1972, no governo João Walter de Andrade,
tendo como diretor-presidente da Cosama, na época, o engenheiro
sanitarista Waldir dos Santos Brito, foi inaugurado na tomada d’água
da Ponta do Ismael, no bairro da Compensa, a primeira etapa da
Estação de Tratamento de água de Manaus e, no ano seguinte, a se-
gunda etapa (IBIDEM, 1991).
É importante salientar que essas obras foram projetadas para
atender uma população de 750.000 habitantes, e considerando dados
do IBGE (IBGE, 2002), a cidade de Manaus foi a que mais cresceu
na década de 1960 a 2000, com o desenvolvimento das atividades
industriais e comerciais atraídos pela Zona Franca de Manaus, pro-
porcionando uma grande demanda de mão de obra com a imigração
de população de municípios do Amazonas e de outros Estados.

- 214 -
No período de 1988 a 1991, a estação de tratamento de água
de Manaus é ampliada e modernizada para cumprir normas exigidas
pela Organização Mundial de Saúde – OMS e assegurar a qualidade
da água de Manaus para o consumo humano.
No dia 4/7/2000 foi firmado o Contrato de Concessão entre o
município de Manaus, a Concessionária Manaus Saneamento S.A.
e COSAMA, com prazo de vigência de 30 (trinta) anos, contados
a partir da efetiva assunção dos serviços. Em 11/8/2000 a empresa
passou a se chamar Águas do Amazonas S.A. A partir desta data, os
seguintes eventos ocorreram em relação aos serviços de saneamento
básico prestados na região (MANAUS, 2014).
Em um leilão realizado no dia 29 de junho de 2000, na bolsa
de valores do Rio de Janeiro, a SUEZ, empresa francesa que atua na
área de abastecimento de água, foi vencedora do leilão da Manaus
Saneamento, subsidiária integral da COSAMA que, em 11 de agosto
de 2000, passa a se chamar Águas do Amazonas S. A. O grupo fran-
cês SUEZ é líder mundial na gestão de serviços de água e esgoto,
atendendo a mais de 100 milhões de clientes. “Na sequência, com
um lance de R$ 193.000.000,00 feito pela Ondeo Services, a empresa
arrematou a Manaus Saneamento, e os novos administradores assi-
naram o contrato de concessão no dia 4 de julho de 2000, assumindo
imediatamente as operações da empresa” (BACELAR, 2003, p. 29).
Mesmo tendo havido várias mudanças nas empresas que geriram a
companhia de saneamento da cidade pouco ou quase nada foi rea-
lizado no sentido de preservar a história dos sistemas antigos que
até os dias atuais poderiam ser utilizados para escrever uma nova
história99.

O Empoderamento das “boas águas”


Manaus, o Lugar da Barra do Rio Negro, lugar imponente
considerando sua localização próxima da confluência do Rio Negro
e Rio Solimões. Suas histórias inúmeras vezes contadas por diversos
autores, confronta sua origem indígena miscigenada por europeus.
99 Para se ter uma ideia mais ampla sobre a prestação dos serviços de abastecimento de água
em Manaus, é importante conhecer a transformação da oferta do sistema público em serviço
concedido. Segue no anexo I os dados históricos desde o período colonial até o ano de 2017,
disponibilizados através dos relatórios de atividades da ARSAM (Agencia Reguladora dos
Serviços Públicos Concedidos do Estado do Amazonas) – 2013/2017

- 215 -
Se quisermos lançar novos alicerces para sua criação teríamos que
buscar outros remanescentes físicos e culturais para uma nova inves-
tigação e um novo olhar dos elementos de memória da vida urbana.
A localização geográfica da cidade de Manaus, implantada no
centro da maior bacia hidrográfica do mundo, certamente seria um
fator que favorecia um manancial seguro para a população do lugar.
A cidade localiza-se às margens do Rio Negro e durante o perío-
do provincial era bastante recortada por igarapés, muitos dos quais
aterrados na última década do século XIX. Inserida em um contexto
eminentemente aquático, provavelmente a população local não tinha
dificuldades em se abastecer de “boas águas” (MESQUITA, 1999).
Faltando 20 anos para inaugurarmos um novo século, Dr.
Satyro de Oliveira Dias, presidente da Província, entendeu a preo-
cupação com a qualidade de vida da população. Em sua fala à As-
sembleia Legislativa Provincial em 04 de abril de 1881, menciona as
dificuldades de abastecimento com as distâncias das fontes de água
às condições de higiene dos igarapés, frequentado por carroceiros,
que abasteciam pipas; lavadeiras, e pessoas que de uma forma geral
costumavam banhar-se nas águas, e até proceder a lavagem de ani-
mais (MELO, 1991).
Mario Ypiranga Monteiro afirma que o primeiro esgoto de
que se tem notícia partiu do alto da praça da Imperatriz para o rio
Negro, em 1866, segundo aprovação da Assembleia Legislativa Pro-
vincial em outubro. Na época, a crise de higiene europeia era univer-
sal, principalmente em se tratando da região mais aberta e receptiva
à entrada do progresso técnico, principalmente antes das grandes
aventuras no campo da química, da biologia, da medicina preven-
tiva, da profilaxia individual”, ainda prosseguia em sua explicação:
“Mas os banhos na Europa tal como ainda hodiernamente, eram
proibitivos a certa camada social, não somente na sazão invernosa, à
carência de possibilidades para sua constância e efetividade (MON-
TEIRO, 1997).
É importante citar que mesmo com a implantação dos esgotos
internos e externos para captação de restos de animais e das águas
pluviais e ter água encanada, as epidemias continuaram na nossa re-
gião, ora vindo do resto da América, como a febre Amarela, ora da
Europa epidemias de gripe e de cólera.

- 216 -
Com essas lições de Saúde Pública se permite o luxo de fechar
os olhos às mesmas facilidades encontradas no passado: case-
bres imundos às margens do igarapé e amontoado de lixo e de
fezes, venda indiscriminada de guloseimas na via pública sem a
necessária licença e cautela contra infecções, as tais guloseimas
denominadas humoristicamente pelo povo “espera-me no céu”,
“Jesus te espera” (MONTEIRO, 1997, p. 19).

De acordo com sanitaristas da época, para evitar as diversas


enfermidades recomendava-se a filtragem e a fervedura no consumo
das águas dos igarapés, principalmente na época das cheias. Ainda
temos na ‘fala’ do Dr. Satyro de Oliveira Dias, condicionantes de um
melhor entendimento, considerando o documento da época, para o
melhoramento das fontes e abastecimento de água potável para a ca-
pital: atendendo as ponderações que vos diz o ano passado acerca da
Lei 427 de 19 de Maio de 1879, resolvestes revogá-la, e voltastes a de
n.º 503 de 3 de Novembro de 1880, pela qual foi a presidência autori-
zada a despender a quantia de 20 contos de réis com a construção de
um reservatório ou com a represa das águas da vertente do Mocó no
igarapé de Manáos, ou com obras necessárias para melhorar aquele
manancial de modo a poder ser abastecida a população da capital
de água potável em condições de asseio e pureza (PROVÍNCIA DO
AMAZONAS, 1881).
Devido à tendência dos hábitos indígenas, Manaus não se en-
quadrava totalmente ao padrão europeu, suas características regio-
nais se misturavam aos benefícios introduzidos pela indústria e pe-
las modernas noções de higiene. “O traçado da capital da província
do Amazonas obedecia praticamente aos ditames da natureza: era
desenhada por vários igarapés, seu relevo era bastante acidentado,
com morros e ladeiras”; além disso, era comum nas construções re-
sidenciais o uso de materiais da região, tais como a madeira e o barro
(MESQUITA, 1999, p. 36).
Vários relatos descrevem como aspecto urbanístico desorga-
nizado, apenas um aglomerado definido com os caprichos da na-
tureza: diversos igarapés recortavam irregularmente a cidade, cujos
limites eram definidos muitas vezes por acidentes naturais. “Manaus
era a capital provincial localizada na região mais distante da Corte
e para chegar a ela era necessário empreender longas e nem sempre
cômodas viagens pluviais” (MESQUITA, 1999, p. 122).

- 217 -
Considerando o trânsito de embarcações na malha de rios
amazônicos apenas na metade de 1860 as restrições à navegação in-
ternacional foram liberadas. D. Pedro II baixou o Decreto 3.749 de
7 de dezembro de 1866, abrindo aos navios mercantes de todas as
nações e com navios estrangeiros à porta, Manaus inseriu-se na rota
do comercio exterior: encurtou as distâncias com o mundo: conta-
bilizou excelentes resultados econômicos e socioculturais. Logo se
implantaram as primeiras linhas incentivadas de navegação de longo
curso. Em 1874, o navio Mallard, da frota de Alexandre Amorim, fez
a viagem inaugural entre a Europa e o porto de Manaus. Em 1877, os
navios da Red Cross Line começaram a fazer a linha Liverpool – Ma-
naus e em 1881, a Booth Stean Ship Company Ltd. Implantou a linha
Nova York-Manaus-Nova York, e assim intensificou-se o tráfego de
navios a vapor na malha fluvial do Amazonas (GARCIA, 2005).
Segundo a pesquisadora e jornalista Regina Melo em seu livro
História do Saneamento de Manaus (1991), os primeiros passos para
o abastecimento de água potável começaram a ser dados na admi-
nistração do então presidente José Lustosa da Cunha Paranaguá por
volta dos anos de 1883. A Diretoria de Obras Públicas procedeu à
exploração dos mananciais das fontes do Mocó, Castelhana e igara-
pés da Cachoeirinha, Cachoeira Grande e seus afluentes. Bento de
Figueiredo Tenreiro Aranha era jornalista, filho do primeiro presi-
dente da província do Amazonas, chamado João Batista de Figueire-
do Aranha (1987, p. 15-16) descreve:
Era cortada a cidade da Barra […], ao Norte pelo igarapé da
Castelhana, que desagua no da Cachoeira Grande e pelo dos
Remédios (Aterro), no logar denominado Mocó, cujas águas
lançam-se no Rio Negro. Este último igarapé dividia o bairro
da Republica do dos Remedios. Ao Occidente o igarapé da Ca-
choeira Grande limitava a cidade, e entre elle e o do Espírito-
Santo corriam os igarapés de S. Vicente, cuja fonte estava si-
tuada na extrema Occidental da rua da Palma, hoje denominada
Saldanha Marinho; e o da Bica, seu afluente, que nasce na rua
10 de Julho, ainda não existente nessa epocha, e cujo leito se
estende ao longo do largo da Pólvora, formando com o igarapé
da Cachoeira Grande o arrabalde denominado Cornetas e Sacco
do Alferes.

Para onde quer que nos voltemos, deparamos com as mesmas


antinomias. Temos certa ideia tradicional do que nós mesmos so-
- 218 -
mos como indivíduos. E temos certa noção do que queremos dizer
quando dizemos “sociedade”. Mas essas duas ideias - a consciência
que temos de nós como sociedade, de um lado, e como indivíduos,
de outro – nunca chegam realmente a coalescer. Decerto nos aperce-
bemos, ao mesmo tempo, de que na realidade não existe esse abismo
entre o indivíduo e a sociedade. Ninguém duvida de que os indiví-
duos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma socieda-
de de indivíduos. Mas quando tentamos reconstruir no pensamento
aquilo que vivenciamos cotidianamente, na realidade verificamos
como naquele quebra-cabeça cujas peças não compõem uma ima-
gem íntegra, que há lacunas e falhas em constante formação em nos-
so fluxo de pensamento (ELIAS, 1994).

Figura 01 - Igarapé do Espírito Santo - Avenida Eduardo Ribeiro

Fonte: https://manausdeantigamente.blogspot.com/>, acesso em


25/07/2022.

Estamos em 1902, o governador Silvério José Nery perante o


Congresso dos Representantes, divulga que a Manáos Railway Com-
pany, empresa de capital estrangeiro, mediante contrato de 20 de ju-
lho de 1898, mantinha o bombeamento da água dos Mananciais da
Cachoeira Grande para os reservatórios do Mocó e da Castelhana.
No seu livro “O Instituto do Tombamento e Proteção do Bem
Cultural”, Robério Braga (2007) conceitua o Bem Cultural como
meio ambiente e afirma: Não só a ciência jurídica cuida do instituto

- 219 -
do bem, nem mesmo pelas razões que o fundamentam no campo do
direito. Assim fazem a psicologia quando trata dos chamados guias
de valor, a economia que se debate entre bem e necessidade do ser
humano; a física e a medicina também a ele estão atentas, esta que
cuida da proteção primeira da vida, e que mais recentemente se vem
dedicando, acertadamente, a apreciar questões relativas ao meio am-
biente como peculiares para o homem, sob o aspecto relevante da
qualidade de vida (IBIDEM, 2007).
Isto nos remete ainda a entender a fala do governador Silvério
José Nery, nesta época, revelando na mensagem do Estado: “Manaós,
cidade de construção recente, não obedeceu, com pesar o declara-
mos a determinados preceitos de higiene geral”, contestando perante
o Congresso: “No meu relatório de 1899 enumerei o grande alcance
do beneficiamento da água fornecida à população; infelizmente con-
tinuamos no mesmo estado de cousas” (IBIDEM, 2007).

Tombamento e Registro
Sendo a cidade, por excelência, o “lugar do homem”, ela se
presta à multiplicidade de olhares entrecruzados que, de forma
transdisciplinar, abordam o real na busca de cadeias de significados.
Pesavento (2002, p. 9) relata o que de mais importante temos: nosso
Patrimônio. “O Patrimônio pode herdar uma pertença a uma família
ou a uma nação. Conceituando é possível falar-se de um patrimônio
cultural ou simbólico.”
Ao conceituar a palavra patrimônio, verifica-se que ela possui
dois vocábulos: pater e nomos. Pater significa, etimologicamente, o
chefe de família e, em um sentido mais amplo, os nossos antepas-
sados. Vincula-se, portanto, aos bens, haveres ou heranças por eles
deixados e que podem ser de ordem material ou imaterial. Nomos
significa, em grego, lei, usos e costumes relacionados à origem, tanto
de uma família quanto de uma cidade.
Portanto, o patrimônio está ligado ao contato permanente
com as origens que fundaram uma sociedade e à ética de uma deter-
minada comunidade. A história, a memória e a identidade cultural
são valores que garantem a preservação do patrimônio e a ampliação
na representatividade destes bens, são heranças para as gerações fu-
turas. Diante disso, podem ser citadas duas acepções do Patrimônio
Cultural:

- 220 -
Patrimônio Cultural é o conjunto de bens móveis e imóveis
existentes no país, cuja conservação seja de interesse público, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis, quer por seu excepcional va-
lor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (Decreto-
-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937).
As águas da Cachoeira Grande, com a captação passaram a
abastecer diversos pontos da cidade e para isso foi construído, con-
comitantemente com a obra da represa, o Reservatório da Castelha-
na. O historiador Loureiro (2008), identificou semelhança arquitetô-
nica entre o reservatório da Castelhana e a Casa de Bombas que fora
projetada por Bittencourt (1883). Estes dois projetos seguem o estilo
do Revivalismo Gótico.
Localizado na Av. Constantino Nery, em confluência com o
Boulevard Álvaro Maia, s/n no Centro da cidade de Manaus, esta
edificação foi reconhecida como patrimônio histórico, sendo tom-
bado pelo Governo do Estado do Amazonas, através do Decreto
11.187, de 14 de junho de 1988.
Foi construído abaixo da nascente da Cachoeira Grande, que
deságua a margem esquerda do Rio Negro, entre as barreiras do bair-
ro da cidade conhecido como Plano inclinado. A represa foi destina-
da a movimentar uma estação de bombeamento contendo duas tur-
binas e duas bombas, que abasteceriam o reservatório da Castelhana
e o tanque de água do Bairro dos Remédios, situado na Rua Miranda
Leão (antiga Faculdade de Direito).

Figura 02 - Reservatório da Castelhana

Fonte: Fundo Editorial da Associação Comercial do Amazonas, 1988.

- 221 -
O Reservatório elevado da Castelhana (castelhana alta) é um
reservatório tipo elevado em concreto armado, projetado pelo Ar-
quiteto Severiano Mário Porto em 1980. Ao invés de utilizar apenas
um grande cilindro, o arquiteto preferiu subdividir cada projeto em
seis cilindros conjugados de idênticas capacidades. Este reservatório
compõe com o Castelinho o complexo de abastecimento de água do
centro de Manaus e em vários bairros que os circunda. Sua capacida-
de é de 3.500 m³ com 23m de altura.
Com isso, o Complexo de Distribuição de água da Castelhana
com a construção do Reservatório de Concreto armado denominado
Castelhana Alta passou a compor as melhorias de reserva e fornecimen-
to de água a população do centro da cidade e outros bairros próximos.
O Reservatório do Mocó
Nos tempos coloniais, o abastecimento de água era realizado
de diversas formas e as grandes dificuldades enfrentadas pela popu-
lação iam desde longas distâncias das fontes de água, às condições de
higiene dos igarapés.
Devido à urgência em oferecer água potável, no ano de 1883 foi
aprovada a Lei da Província no. 615, que autorizava o início das obras de
canalização na capital (MESQUITA, 1999). A partir desse momento, a
primeira obra para o fornecimento de água foi a Represa do Igarapé da
Cachoeira Grande, por apresentar um grande volume de água, na época,
com uma vazão média de oito milhões de litros diários (MELO, 1991).
Após a construção da Castelhana, o primeiro reservatório,
observou-se que a cota baixa do nível de água não permitia abaste-
cer, com pressão suficiente, novas áreas urbanas, visto que a cidade
crescia desordenadamente. Sendo assim, na gestão do governador
Eduardo Gonçalves Ribeiro, houve a construção de um novo reser-
vatório que funcionaria no alto do Mocó (IBIDEM, 1991).
O Reservatório do Mocó é uma das maiores obras de abaste-
cimento da cidade de Manaus, sendo inaugurado no período áureo
do ciclo da borracha, entre os anos de 1893 a 1896, e tinha como
finalidade resolver o problema de abastecimento, que carecia de sé-
rios cuidados devido ao aumento da população e a proliferação de
doenças provenientes de água contaminada (IPHAN, 2011).
O sistema de Reservação do Mocó, composto por três reserva-
tórios, um apoiado e dois elevados, distinguem-se entre: Mocó Velho

- 222 -
e Mocó Novo. Esse sistema continua sendo um dos pontos principais
de reserva e distribuição de água, pois o complexo é responsável por
abastecer 40% da população da cidade de Manaus, cumprindo ainda
sua função principal.
Com um extraordinário testemunho histórico e paisagístico,
está situado ao lado do histórico Cemitério São João Batista de Ma-
naus, e por se tratar de uma obra datada do século XIX, fez parte
de um estudo sobre a importância das caixas d’água para o abaste-
cimento das principais cidades brasileiras. Destacou-se por ser um
modelo significativo de emprego do ferro na arquitetura no final des-
te século, bem como pelo fato de ser um dos mais antigos, dispondo
no processo de tombamento pelo Instituto de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – IPHAN, como item especial de preservação e
conservação.
No final do século XIX existia uma preocupação com a higie-
nização em todo Brasil e isto está relacionado com a implantação de
políticas urbanas diferenciadas. Em Manaus, particularmente nessa
época, a cidade se expandia e se projetava como capital financeira e
vitrine para o capital estrangeiro, em função do Ciclo econômico da
Borracha, quando alguns serviços de infraestrutura urbana foram
implantados, bem como foram erguidas belas edificações.
Trata-se de um edifício de estilo eclético, possui formato qua-
drangular e simétrico, é composto de estrutura de fachada maciça de
pedra de arenito, ricas em óxido de ferro (AMAZONITA), medindo
1,11 de espessura (IPHAN, 2011, p. 227).
Figura 03 - Reservatório do Mocó

Fonte: Figura da autora (2018).

- 223 -
Durante 15 anos acolheu o Centro de Artesanato Branco Silva
e após esse período, em 1982, abrigou no pavimento térreo o antigo
Teatro Caixa D’água e o Teatro Álvaro Braga. O local abria as portas
para a comunidade e a presença do público era freqüente principal-
mente nos fins de semana; possuía sistema de som ao vivo e peças
com artistas locais como parte do Centro de Turismo Vasco Vasques.

Considerações Finais

Esta pesquisa buscou desvelar a memória das águas como pa-


trimônio material e imaterial da cidade de Manaus, na valorização
da história de seu sistema de saneamento básico como um conjunto
arquitetônico de real valor sociocultural. Investigou-se o saneamen-
to básico da cidade de Manaus, com ênfase no Complexo de Reser-
vação de Água da Castelhana e Complexo de Reservação de Água
do Mocó, reconstruindo a memória das águas. Diante disso, segui-
ram-se os passos desse saneamento básico e identificando o patri-
mônio material através das edificações históricas apresentadas e os
significados implícitos das memórias na evolução urbana, procuran-
do destacar um patrimônio de saberes e as transformações culturais
vividas.
Para a reconstrução desse cenário das águas utilizou-se o sig-
nificado nos diferentes sentidos, buscando uma identidade cultural
na certeza do reconhecimento e proteção do patrimônio no tocan-
te a sua relevância histórica, considerando ainda uma apropriação
simbólica e afetiva, evitando uma descaracterização nos elementos
edificados e protegendo sua originalidade. Por fim, ressalta-se a im-
portância do patrimônio histórico, sua restauração e a memória das
águas que percorrem a formação social da cidade de Manaus.

Referências

ARANHA, Bento de Figueiredo Tenreiro. Um olhar pelo passa-


do. Manaus: Prefeitura Municipal/GRAFIMA, 1990. [Original de
1897].
BACELAR, Ghislaine. Gerenciamento de perdas de abasteci-
mento de água focalizando a demanda. 2003. 26 p. Dissertação

- 224 -
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Amazonas, Manaus, 2008.
BITTENCOURT, Simone; POGGERE, Giovana Clarice. Sanea-
mento ambiental. Curitiba: Fael, p. 256, 2016.
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máz. Lisboa; Rio de Janeiro: DIFEL/ Bertrand, 1989, 17-58 p.
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-graduados em História/Departamento de História, PUC-SP), São
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Sanitário. Manaus, 2014.
MELO, Regina. História do saneamento de Manaus. 1. ed. Ma-
naus: Espaço Comunicação LTDA, 1991.

- 225 -
MESQUITA, Otoni Moreira de. História e arquitetura: 1852 -
1910. 2. ed. Manaus: Valer, 1999, 21 p.
MONTEIRO, Mario Ypiranga. O Tigreiro. ed. Universidade do
Amazonas, 1997.

- 226 -
E A TITULAÇÃO DOS QUILOMBOS
COMO FICA?
O orçamento quilombola e “necropotência” do
“Programa Titula Brasil”100

Bruno de Oliveira Rodrigues101

Resumo
O trabalho pretende focalizar a leitura crítica do Programa Titula Brasil, prin-
cipalmente buscando identificar as aberturas semânticas altamente arriscadas
que se introduz no campo dos direitos quilombolas. O caminho desta pesquisa
passa pela análise da estrutura do campo das políticas estatais que têm como
destinatários os quilombolas. Para tanto, iniciamos o debate demarcando a pas-
sagem do momento de protagonismo da judicialização para o de disputa no
campo da política orçamentária, desde o passado recente (2012) até a atualida-
de, com foco na determinação do perfil de tratamento da temática nos governos
Dilma, Temer e Bolsonaro, analisando inclusive o efetivo empenho de recursos
para a titulação das terras quilombolas. Um levantamento documental vai ser
associado diretamente ao quantitativo das titulações das terras quilombolas
pelo INCRA, o que entendemos apresentar um sintoma social da questão. Ao
fim, analisamos o Programa Titula Brasil, apresentando aspectos sociais e polí-
ticos do seu surgimento, destacando seus idealizadores e os sujeitos sociais que
definem o perfil dessa política. Verificamos que o programa é marcado pelos in-
teresses dos ruralistas, privilegiando a legitimação da grilagem e da violência no
campo, além de ser indiferente às demandas étnicas. Assim sendo, o programa
passa a ser um risco quando distribui títulos sem qualquer marco normativo
claro e restrições programáticas da ação do Estado, tratando-se de uma política
de assédio direto à clientela da reforma agrária e, de forma indireta, um risco
colateral para as políticas de regularização dos territórios étnicos no
Brasil.
Palavras-chave: Programa Titula Brasil; Ruralistas; Quilombos; Orçamento;
Titulações.

Introdução
O trabalho pretende focalizar a leitura crítica do Programa
Titula Brasil, principalmente buscando identificar as aberturas se-
mânticas altamente arriscadas que se introduz, considerando que o
100 Este texto foi publicado na Revista Norus, v. 10, n. 17 (2022). Estando disponível no
endereço: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/NORUS/article/view/22948
101 Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF); Professor
do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM); E-mail:
brunorodrigues@ufam.edu.br;

- 227 -
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) o
desenhou sem grandes delimitações e restrições, servindo proposi-
talmente a um projeto de poder que se amolda à bancada ruralista,
que domina as malhas de poder do campo estatal na atualidade.
Na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), mais exata-
mente entre 2003 e 2016, a questão quilombola recebeu um trata-
mento expansivo, no sentido de mobilizar a máquina estatal para
a concretização do direito quilombola, principalmente no que con-
cerne ao investimento orçamentário progressivo para a realização
dos procedimentos de titulação junto ao INCRA. Nesse mesmo
período, a questão quilombola começou a ser disputada no campo
jurídico, no Supremo Tribunal Federal (STF), pela Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADIn) 3.239, que visava tornar inconstitu-
cional todo o marco legal de proteção do direito das comunidades
quilombolas.
Em 2016, com o golpe de Estado, houve um processo de es-
vaziamento orçamentário e paralização burocrática do INCRA,
justificado sempre pela indeterminação jurídica. Mas em 2018, o
STF confirmou a constitucionalidade do decreto 4.887/03 que es-
tava sendo impugnado pelo Democratas (DEM). Ainda assim,
o esvaziamento orçamentário perdurou, sob o discurso da crise
financeira do Estado e indisponibilidade orçamentária, seguido das
discussões sobre teto de gasto.
Em 2019, Bolsonaro assume a presidência e, com isso, seu ali-
nhamento político com as elites agrárias sepultou de forma definitiva
o direito quilombola no campo orçamentário. A sequência do feito
no campo é um rearranjo burocrático, o qual culmina na criação
do Programa Titula Brasil, que transfere as competências de regu-
larização fundiária, até então de competência do INCRA, para os
municípios e, com isso, fica escancarada inicialmente uma tentativa
explícita de legitimação da grilagem sobre terras públicas que tem
como principal antagonista a clientela da reforma agrária.
Contudo, o que nos mobiliza neste texto é vislumbrar quais
são os possíveis impactos e vibrações que essa política pode ter fren-
te às terras étnicas, especialmente a quilombola. O caminho deste
escrito passa pela análise da estrutura do campo das políticas esta-
tais que têm como destinatários os quilombolas. Para tanto, inicia-
mos por uma atenta análise documental, principalmente no que se
- 228 -
refere à Lei Orçamentária Anual (LOA) desde 2012, desenhando
contextos a partir dos grupos de poder que atuam como protago-
nistas no Estado, tanto no campo da projeção de poder, como de
efetivo empenho na mobilização de recursos para a titulação dos ter-
ritórios quilombolas.
Analisamos, na sequência, a organização institucional da
questão quilombola, verificando principalmente o INCRA e a Fun-
dação Palmares, que são sujeitos agentes importantes para a efetiva-
ção do direito quilombola em todas as suas dimensões. Com isso,
a contextualização dos sujeitos institucionais demonstra a grande
capilaridade dos grupos de poder na determinação e condução da
burocracia estatal, o que entendemos ser um sintoma importante
para definição do quadro da efetivação dos direitos dos quilombos.
Ao fim, analisamos o Programa Titula Brasil, apresentando
aspectos sociais e políticos do seu surgimento, destacando seus idea-
lizadores e os sujeitos sociais que o definem. Verificamos que o pro-
grama é marcado pelos interesses dos ruralistas, privilegiando a legi-
timação da grilagem e da violência no campo, além de ser indiferente
às demandas étnicas. O programa pode ser, então, um risco, quando
distribui títulos sem qualquer marco normativo claro e restrições
programáticas da ação do Estado, tratando-se de uma política de as-
sédio direto à clientela da reforma agrária e, de forma indireta, pode
ser um risco colateral para as políticas de regularização dos territó-
rios étnicos no Brasil. Eis o que vamos buscar verificar!

Panorama e contextualização – o direito quilombola em


disputa

Entre 2004 e 2018, a questão quilombola ficou refém de ju-


dicialização no Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto objeto
de discussão sobre o marco hermenêutico e interpretativo do direi-
to étnico, principalmente sobre a validade e harmonia do decreto
4.887, de 2003, no sistema jurídico. Então, o debate da (in)validade
da regulamentação interpretativa dos direitos quilombolas ocupa a
centralidade do debate público até 2018, pois a posição e decisão do
STF é um importante elemento definidor no campo e universo da
concretização dos direitos quilombolas. A judicialização, no entanto,

- 229 -
não impediu a expansão dos recursos orçamentários e maior sensibi-
lidade discursiva e de ação governamental às demandas quilombolas
de 2003 a 2016.
A judicialização da questão quilombola nutriu os debates deste
autor em sua dissertação (RODRIGUES, 2014) e depois ocupou par-
te dos esforços na tese entre 2017-2021 (RODRIGUES, 2021), além
de grande parte dos debates públicos envolvendo a questão quilom-
bola de forma ampliada. Até 2018, provocamos reflexões sobre quais
seriam os impactos nas condições do reconhecimento e titulação das
terras das comunidades quilombolas ante a confirmação ou refuta-
ção do direito no julgamento (ADIn 3.239) no STF. Após a procla-
mação do resultado, acompanhamos os desdobramentos imediata-
mente sequenciais e, hoje, podemos indicar que o campo sofreu uma
reordenação e um redimensionamento das disputas, transferindo o
protagonismo dos debates e da luta pelo direito quilombola para ou-
tras duas arenas (TURNER, 2008) – a política e a administrativa,
como trataremos aqui. Em 2018, há a consolidação do direito com
a confirmação da constitucionalidade do decreto 4.887, que fora
impugnado pelo Partido Democratas. Por outro lado, o cenário de
titulação não avançou no sentido de finalizar procedimentos admi-
nistrativos no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) que culminassem na efetiva entrega da terra às comuni-
dades.
O ataque jurídico foi protagonizado pela bancada rura-
lista – trata-se, portanto, de maquinação estratégica política pelo
instrumento do direito, comumente conhecido como o fenômeno
da judicialização da política, que tem como foco a paralização da
efetivação de direitos sociais e coletivos. Antes da decisão do STF,
pensamos que a confirmação do direito quilombola traria um
fortalecimento para a luta étnica no Brasil. Mas o feito não se confir-
mou. A decisão não foi capaz de suscitar alterações substanciais no
campo, principalmente no que concerne à emissão de novos títulos
em favor das comunidades quilombolas, pois foram criados outros
canais de antagonismos que funcionaram como freios paralelos.
Em 2016, com o golpe de Estado e a ascensão de Michel Te-
mer ao poder, a administração pública reorganizou-se com o fito de
paralisar as titulações. Naquele momento, o artifício argumentativo
era ainda a pendência da decisão do STF quanto à constitucionalida-

- 230 -
de do decreto impugnado, o que causaria insegurança jurídica, sen-
do, portanto, necessário aguardar sua definição. Contudo, mesmo
em fevereiro de 2018, ainda com Temer no poder, o poder público
não induziu qualquer alteração ou guinada para retomar procedi-
mentos de titulação, mesmo com a decisão da constitucionalidade
do decreto.
Temer iniciou uma operação de disjunção da organização
administrativa de efetivação do direito quilombola, primeiro, com a
paralização das titulações, depois com as alterações das competên-
cias ministeriais, movendo as responsabilidades de acompanhamen-
to dos processos de titulação do Ministério do Desenvolvimento
Agrário (MDA) para o Ministério da Educação e Cultura (MEC),
o que recebeu muitas críticas. Assim, a indefinição perdurou no go-
verno Temer, no qual tal competência ainda passou pelo Ministério
do Desenvolvimento Social e Agrário (fusão MDA com Ministé-
rio da Agricultura), pela Casa Civil da Presidência da República e
voltando ainda, ao cabo, ao primeiro. Depois, Bolsonaro extingue
o MDA e dá o “golpe final”: transfere a competência das titulações
ao Ministério da Agricultura, Pesca e Abastecimento (MAPA), en-
tregando a responsabilidade das titulações das terras quilombolas
àqueles que historicamente as combatem. Ainda que tenha havido
esse “dá cá e toma lá” quanto à competência administrativa, por
todo o período perdurou o vínculo de delegação ministerial dos
procedimentos administrativos ao INCRA102. O esforço de alte-
rações ministeriais é forma estratégica que visa a descentralizar o
debate quilombola da atenção à efetiva titulação. Isso confunde e
desvia o debate para outros focos, em vez de se enfrentar o tema do
andamento dos procedimentos administrativos de titulação e da dis-
ponibilidade orçamentária ao feito, com foco na realização dos Rela-
tórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTIDs) e da emissão
dos decretos presidenciais de titulação.
A distribuição orçamentária para a titulação quilombola
Paralelamente ao imbróglio e indefinição das competências,
as estratégias de estagnação do direito quilombola deve ser lidas
através da radiografia da disponibilidade orçamentária da União.
102 Significa dizer que, mesmo alterando o Ministério de ancoragem da política, a respon-
sabilidade quanto ao reconhecimento, demarcação e titulação, continuou como atribuição do
INCRA.

- 231 -
Uma das formas de imobilização dos direitos é o sufocamento pela
inexecução administrativa, que se dá pela ausência de recursos para
realização das atividades meio, as quais impedem o atingimento das
atividades fins.
A Comissão Pró-Índio de São Paulo alertou que, em sete
anos, o orçamento do INCRA reduziu 94% para a questão quilom-
bola. Em 2017, o órgão contava com quatro milhões de reais para
avançar em 1.600 procedimentos de titulações, destacando ainda
que nove das 30 superintendências tinham menos de dez mil reais
para regulamentar terras quilombolas por ano, como é o caso da
Superintendência do INCRA de Mato Grosso, que tinha, em 2017,
orçamento de R$ 6.844,00 para regularizar 73 comunidades. A tí-
tulo de exemplo, foi apurado que a Superintendência do INCRA de
São Paulo gastou cerca de 60 mil reais e dois anos para elaboração
de um RTID. Nessa superintendência havia, no mesmo período, 50
procedimentos abertos e um orçamento de 30 mil para o ano, ou
seja, o orçamento de dois anos do órgão foi suficiente para fazer so-
mente um RTID. A fórmula orçamentária e matemática indica no-
tadamente um contexto de paralização dos processos de titulação, já
que 87% dos processos ainda não contam com RTID confeccionado
(PRÓ-ÍNDIO, 2017).
Em 2019, Paula Paiva Paulo registrou que, em dez anos, o
orçamento do INCRA reduziu 90% e somente 7,2% dos pro-
cessos abertos foram concluídos. Em 2010, o INCRA recebeu
32,1 milhões de reais para as titulações das terras quilombolas
e, nove anos depois, em 2019, o valor era de 3,4 milhões, ou
seja, cerca de 10% daquele de 2010 (PAULO, 2019). Rodrigo
Ranthum (2020) apresenta um quadro detalhado da evolução
orçamentária do INCRA de 2009 a 2020. Vejamos:

- 232 -
Tabela 3 - Evolução orçamentária do INCRA

Fonte: Rodrigo Ranthum, 2020.

Na lei orçamentária para 2021 (Lei 14.144), os programas


de reforma agrária tiveram redução de 99% na previsão orçamen-
tária em relação ao ano anterior, assim como a previsão para re-
conhecimento, titulação e crédito para as comunidades quilombo-
las que já foram assentadas teve corte de 90% dos recursos. Nessa
mesma previsão, para 2021, do orçamento que havia sido revisto
para o INCRA, de 3,4 bilhões de reais, 2,2 bilhões foram destinados
ao pagamento de precatórias de indenizações por desapropriação
de terras improdutivas, ou seja, 66% do orçamento do órgão (PO-
DER360, 2020). Mas, antes mesmo de esse se efetivar, Bolsonaro re-
duziu a verba para titulações de 3,2 milhões de reais para 329,8 mil
reais quando da promulgação da leorçamentária (RBA, 2020), o que
vai se repetir na sequência, no orçamento de 2022, como veremos
adiante.
Rodrigo Ranthum (2020) diz que o INCRA vem sofrendo
com o desprestígio sucessivo dos governos, e destinando cada vez
mais seu orçamento para pagamento de sentenças judiciais diversas,
enquanto as atividades finalísticas ficam negligenciadas. Ranthum
apresenta mais dois quadros de dados que nos parece importantes
para entender esse cenário:

- 233 -
Quadro 3 - Distribuição orçamentária do INCRA

Fonte: Rodrigo Ranthum, 2020.

Quadro 4 - Execução orçamentária

Fonte: Rodrigo Ranthum, 2020.



É de fácil constatação, nos quadros acima, que há no governo
de Bolsonaro uma alteração substancial na destinação dos recursos
do INCRA, privilegiando o pagamento das precatórias relativas às
indenizações por desapropriação de terras improdutivas. Isso revela
uma nítida guinada voltada ao atendimento dos interesses ruralistas,
já que beneficia proprietários rurais improdutivos em detrimento
das funções finalísticas do órgão.
Em publicação da Confederação Nacional das Associações
dos Servidores do INCRA, é ressaltado que o INCRA chegou aos
seus 50 anos, em 020, em seu pior momento, com apenas 66% do
orçamento em relação a 20 anos atrás, com um terço dos servidores

- 234 -
e com ações restritivas em relação a mobilidade, assistência e atin-
gimento de seus objetivos, o qual resta materializado no abandono
da meta da democratização do acesso às terras pela reforma agrária
e pela titulação das terras quilombolas. Não é a primeira vez que o
órgão é alvo de ataques. Antes disso, Sarney chegou a extingui-lo
por dois anos na década de 1980; depois, Collor dispensou 40% dos
seus servidores e, no governo FHC, houve perseguições e demissões
no órgão, pois os servidores se opuseram à onda de privatizações que
estava sendo operada. O principal meio de ataque ao órgão ocorre
pelo esvaziamento orçamentário, visando à paralização de seus ser-
viços (CNASI, 2020).
Ranthum (2020) destaca que as despesas do INCRA, como
locomoção e diárias, reduziram-se, de 2018 a 2019, em 68%; depois,
até outubro de 2020, em mais 79%, o que significa que os servido-
res estão se locomovendo menos, ou seja, fiscalizando menos e não
realizando atendimento aos assentados. Barbieri (2022) e Motoryn
(2022) noticiaram que o INCRA ficou sem orçamento em maio
de 2022, e anunciou a paralização de suas atividades, agravando
ainda mais o contexto. Isso significa, basicamente, a paralização da
reforma agrária e o aprofundamento da imobilidade dos direitos dos
quilombos, entre outros.
Recentemente, Sílvio Almeida, em debate na Câmara dos
Deputados, indicou que seria necessário maior espaço orçamentá-
rio para proteger as comunidades quilombolas em meio a presente
pandemia. Além disso, Givânia Silvia103 registrou criticamente que
o valor orçamentário do INCRA para o reconhecimento e delimi-
tação das terras, de 6,2 milhões de reais em 2010, reduziu-se para
233 mil reais em 2020. Já o valor para as indenizações, saiu da casa
dos 25 milhões de reais em 2010 para 2,7 milhões em 2020. A líder
quilombola assinalou, então, que o INCRA precisa ter maior capacida-
de técnica e orçamentária para acelerar processos (BRANDÃO, 2021).
O Plano Plurianual (PPA)104, embora não seja uma lei de
implementação imediata, constitui uma espécie de carta de pla-
103 Quilombola da Comunidade da Conceição das Crioulas, primeira da comunidade a cursar
universidade, é mestre em política social e foi, no governo Lula, Secretária de Políticas para
Comunidades Tradicionais (Subcom) na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial (Seppir).
104 É a lei/documento que define as ações prioritárias do governo para um período de quatro
anos, na qual são previstos planos, ações e metas específicas de diversas naturezas, as quais
devem orientar a produção da LOA e das políticas de Estado.

- 235 -
nejamento estratégico que demonstra intenções governamentais
quanto a diversos temas e campos. No quadriênio 2012-2015, do
governo de Dilma, o PPA foi aprovado pela Lei nº 12.593/12, que
registrava, no objetivo 987, a meta de decretar, como de interesse
social, o número de 120 territórios quilombolas; publicar 140 por-
tarias reconhecendo 64 mil hectares e beneficiando 14 mil famílias;
publicar 190 RTIDs, identificando 660 mil hectares e; ainda, visto-
riar 520 territórios quilombolas, indenizando 250 mil hectares. Já no
PPA de 2016- 2019, do governo Temer, publicado na lei 13.249/16,
no objetivo 987 previa a meta de titular 40.000 hectares para as co-
munidades quilombolas e publicar 60 relatórios de delimitação. Essa
versão já contém uma enorme redução das metas. Contudo, a guina-
da mais significativa é na lei 13.971/19, que trata do PPA 2019-2023,
do governo Bolsonaro, na qual não há qualquer meta relacionada
à população negra, tampouco quilombola. Conforme relatório do
INESC, elaborado por Zigoni (2020), isso significa que não existe
qualquer lanejamento ou política pública para realização dos direitos
das comunidades quilombolas, assim, não há metas e nem indicado-
res relacionados à população quilombola.
Sem metas expressas em termos de política de Estado, os qui-
lombolas só aparecem subfinanciados em outras políticas, como
da saúde (SUS). A título de exemplo, no orçamento de 2019, foram
previstos 2,8 bilhões de reais para a FUNASA, que atende os mu-
nicípios de menos de 50 mil habitantes para ações de serviços sus-
tentáveis e saneamento básico, onde geralmente aquelas comunida-
des estão situadas. Contudo, somente 100 milhões foram aplicados,
para atender cinco estados (em que o PPA faz uma rápida menção
à intenção de produzir efeitos nas comunidades quilombolas – sem
prever ações específicas). Já, em 2020, o valor orçado foi de 3 bi-
lhões e somente 37 milhões foram aplicados. Contudo, nessa últi-
ma versão, nenhum registro se fez relativo às comunidades qui-
lombolas. Além disso, desde 2017 não há empenho de orçamento
específico para titulação de comunidades quilombolas e para ações
de apoio ao desenvolvimento sustentável dessas comunidades -
esse último item, sem orçamento desde 2016 (ZIGONI, 2020).
Vejamos a evolução do empenho de valores para o desenvol-
vimento sustentável das comunidades indígenas, quilombolas e tra-
dicionais, que é apresentada por Zigoni:

- 236 -
Tabela 3 - Execução orçamentária

Fonte: ZIGONI, 2020, p. 8.

O abandono é gritante e demonstra um contexto de esvazia-


mento da política étnica, já que em alguns anos a aplicação é zero e,
quando há aplicação, esta nunca ultrapassa 30% do orçado. Vejamos
o que Zigoni (2020) novamente nos apresenta sobre o orçamento do
INCRA:

Quadro 4: Execução orçamentária


Fonte: ZIGONI, 2020.

O desmonte da política étnica voltada para as comunidades


quilombolas é sistêmico e atinge todos os órgãos vinculados, refor-
çando a tese de um ataque coordenado às comunidades quilombo-
las. No quadro acima é latente a correlação entre o orçado e aplicado,

- 237 -
e, a partir de 2016, o orçamento quilombola é dizimado literalmen-
te. Zigoni (2020) ainda nos mostra como o orçamento da Fundação
Cultural Palmares (FCP) é atingido:

Quadro 4: Execução orçamentária

Fonte: ZIGONI, 2020

No último quadro podemos notar que a FCP, assim como o


INCRA, vem sendo desprovida de recursos financeiros para viabili-
zação das suas finalidades, seja em nível de previsão orçamentária,
de quase 30 milhões de reais em 2016 para 5 milhões em 2019, seja
de efetiva disponibilização orçamentária, de 15 milhões de reais em
2016 (cerca de 50% empenhado) para menos de 5 milhões em 2019.
Ainda que haja uma proximidade estatística entre o orçado e o rea-
lizado em 2019, o valor é três vezes menor do que o realizado em
2016.
Quando ingressamos analiticamente no orçamento fede-
ral anual de 2022 (Lei 14.303 – LOA), que é dividido em cinco
volumes, algumas coisas são alarmantes quanto à questão qui-
lombola. Iniciando a leitura no volume 1, que é o quadro de con-
solidação orçamentária, o termo “quilombo” aparece em três itens
na ferramenta de pesquisa, quais sejam: (1) no item 21C9, que é
relacionado a investimentos em saneamento básico, vinculado ao
Ministério da Saúde, voltado para as comunidades tradicionais, qui-
lombolas e assentamentos rurais, com orçamento de cerca de 181
milhões de reais (p. 347 e 389); (2) no item 21AR, que trata da “pro-
moção e defesa de direitos humanos para todos”, em que aparece ti-

- 238 -
tulação dos quilombos dentro um rol muito grande de metas, com
orçamento de pouco mais de 13 milhões de reais.
Nesses dois primeiros eixos, a questão quilombola só aparece
associada a outras pautas. Já no item 210Z (3), que trata de “reconhe-
cimento e indenização de territórios quilombolas” (p. 441), não há
menção a recursos para esta rubrica. Contudo, no volume 4, quando
adentramos no orçamento de 3,4 bilhões do INCRA, identificamos
um volume de recursos para as titulações. Inicialmente são atribuí-
dos R$ 590 mil reais para a meta, mas Bolsonaro vetou R$ 351 mil
do orçamento inicial, restando pouco mais de R$ 154 mil reais para o
reconhecimento e titulação dos quilombos no Brasil no ano de 2022,
dos quais R$ 100 mil reais serão destinados à titulação de uma co-
munidade no Amapá, o que deixa R$ 54 mil reais para titular qui-
lombos no resto do país (p. 31).
Ainda no anexo 4, podemos verificar que o INCRA detém
orçamento para pagamento de precatórios e sentenças judiciais que
foi determinado em R$ 1,5 bi, ou seja, cerca de 45% do orçamento
do órgão. Isso não se confunde necessariamente com a indeniza-
ção das terras quilombolas, mas sim é uma cifra para pagamentos
de toda e qualquer decisão judicial em desfavor do INCRA, assim
como precatórios de diversas naturezas. No orçamento do INCRA
foi ainda aportado o valor de 600 mil reais para a pacificação no
campo, 127 milhões de reais para a reforma agrária e 2,4 milhões
para aquisição de terras, mas somente 154 mil reais para a titula-
ção de quilombos. Vale ainda anotar que a agricultura sustentável
e a assistência técnica rural ficaram com orçamento de 50 mil reais
cada, para dar assistência a cerca de 9.400 assentamentos no Brasil.
Esses dados são importantes para se verificar as prioridades atribuí-
das ao órgão no momento atual. De outro lado, o INCRA previu
640 mil reais para auxílio-moradia para funcionários públicos e 16
milhões de reais para assistência médica e odontológica aos servido-
res. É nítida aí uma inversão das atividades finalísticas do órgão! Em
janeiro de 2022, Bolsonaro ainda vetou fração orçamentária destina-
da a pesquisas científicas voltadas para a questão indígena e quilom-
bola (MARTELLO, 2022).
Em vistas ao relatório de gestão de 2021 do INCRA, pode-
mos verificar que, com relação à realização do item orçamentário
210Z (já citado acima), foi informado o quantitativo 0 de ações. O

- 239 -
INCRA assentou ainda informação confusa, de que teriam sido as-
sentadas pelo Programa Nacional de Reforma Agrária (PNRA) 57
famílias quilombolas nas superintendências de Goiás, Paraná, Pa-
raíba e Rio Grande do Norte. Contudo, no relatório não são trazi-
das mais informações. Informou-se, ainda, a publicação em 2020
de cinco RTIDs e de mais 13 em 2021. No entanto, o mesmo re-
latório indica que nenhum RTID foi concluído em 2020 e 2021,
ou seja, trata-se de Relatórios que já estavam finalizados, mas não
publicados. Para 2021, foram previstos 318 mil reais para as titula-
ções, dos quais só foram empenhados 160 mil (INCRA, 2021d). Por
tais indicadores, podemos identificar um reforço dos sintomas da
política voltada para a questão quilombola no Brasil.

Racismo institucional e estrutural

A construção da identidade negra sempre foi pautada pela


categorização hierárquica de sujeitos, que determina posições e
possibilidades sociais, principalmente na distribuição dos recursos
sociais das mais variadas naturezas. Historicamente o racismo era
prática comunicada expressamente, tendo evoluído para formas de
expressões subterrâneas e camufladas, principalmente com as con-
solidações da igualdade formal nos sistemas jurídicos ocidentais, em
que tais práticas passaram a compor o “politicamente incorreto”.
Balibar chama de “memórias insistentes” aquelas que perdu-
ram na atualidade e são combatidas pelos grupos dominantes, ma-
terializando-se através de ódio e desprezo (BALIBAR, 1991). Com
isso, segundo Arruti (2016), os grupos humanos são, então, separa-
dos em universos semânticos que, para Quijano (2009), são a matriz
e resultado dos processos de disputa pelo controle do meio de existir.
Silvio Almeida (2018), por outro lado, ensina que tra-
ços biológicos e morfológicos são acionados como marcado-
res dessa diferenciação, os quais, mesmo com a universalização
do direito, perduram na estrutura social em seu nível mais pro-
fundo sendo, então, convertidos em desvantagens práticas que
se impregnam na rotinização das práticas institucionais e com capa-
cidade de retro-eco-produção (MORIN, 2012) nos sistemas sociais,
aparecendo de forma suaves ou “toleráveis”, o que, segundo Balibar,

- 240 -
tornando-se estáveis a partir da normalização do sistema, canalizan-
do-se pelo direito e, através deste, produzindo controle social (1991).
A pedra angular da classificação social passa pela negativação
da negritude, o que João Pacheco de Oliveira (2018) indica ser um
caminho comum adotado na sociedade brasileira, da qual as pri-
meiras vítimas foram os indígenas, depois os negros escravizados,
seguidos pelos mamelucos e caborés105. A produção do racismo é o
resultado de um processo de conformação social histórica desprovi-
do de fundamento intelectual.
Esse contexto é expressão do modo pelo qual o grupo de po-
der do governo Bolsonaro vê a questão quilombola. O que é de fácil
constatação nas declarações do presidente, tais como aquela proferi-
da no clube judaico Hebraica Rio, em 03 de abril de 2017:

Temos que mudar isso daí! Mas nós não temos hoje em dia mais
autonomia para mudar isso daí. Entregou-se tanto nossa nação
que chegamos a esse ponto. Mas dá pra mudar o nosso país!
Isso aqui é só reserva indígena, tá faltando quilombolas... é ou-
tra brincadeira. Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista...
olha, o afrodescendente mais leve lá, pesava sete arrobas... não
fazem nada! Eu acho que nem pra procriadores servem mais...
mais de um bilhão de reais por ano gastado com eles.

Esse discurso rendeu a Bolsonaro dois processos, um cível
(TRF2, 2017) e um criminal (no STF). No primeiro ele foi conde-
nado a pagar 50 mil reais, na sentença em primeiro grau, que foi
reformada em segundo grau para registrar que a manifestação es-
taria albergada pela imunidade parlamentar e, no mesmo sentido,
assim decidiu o STF, quando negou a denúncia criminal pelo crime
de racismo com o mesmo motivo (STF, 2018). Em 2017, Bolsonaro
declarou que iria acabar com as reservas indígenas e a titulação de
terras quilombolas, prometendo, naquela ocasião, que, se chegasse
ao poder: “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indí-
gena ou pra quilombola” (DOLZAN, 2017).
Barreto (2020) diz que essa é uma estratégia típica das orga-
nizações racistas, que se autoapresentam positivamente e “outro-
-apresentam” negativamente, a qual pretende indicar polarização
105 De acordo com o dicionário Priberam, o termo está relacionado a mestiço de negro com
índio e a caboclo que mora no campo/roça, em sinônimo de caipira, matuto e roceiro.

- 241 -
social. Fazendo uso de sarcasmo, utilizando como referência o peso
através do acionamento do termo “arroba”, que era utilizado pelos
negociadores de escravos e hoje é parte da linguagem do universo
da pecuária de bovinos, Bolsonaro, assim, refere-se aos quilombo-
las como animais. O racismo se opera na sua estrutura discursiva
através do humor, da ironia e da atribuição de vagabundagem para
estereotipar o negro, o discurso que animaliza o negro se eviden-
cia ainda pela palavra “procriar”, reduzindo as relações humanas a
meras funções iológicas, do mesmo modo comumente referido aos
bovinos (SILVA, 2020).
Episódios racistas e de preconceito de gênero não são novida-
des discursivas de Bolsonaro, como no episódio da Preta Gil, quando
afirmou que seus filhos não teriam como se relacionar com negras,
pois não viveriam em contextos de promiscuidade106; ou no caso da
Deputada Maria do Rosário, quando a chamou de “vagabunda”107; ou
quando chama a Ministra Menneluci de “sapatona”, porque a mesma
teria dito que se relaciona com mulheres e homens, e teria dito ain-
da que se orgulha muito da sua filha que é gay. No mesmo vídeo
Bolsonaro rechaça a proposta de cota para transexual nos concursos
de professor e de inserção da temática da família LGBT nos livros
escolares, indicando que: “vai ensinar o teu filho a ter como exemplo
um traveco”108. Além disso, é Bolsonaro a favor do golpe militar e da
tortura, indicando não acreditar na mudança pelo voto109, reforçado
pela exaltação do Coronel Ultra quando votou pelo impeachment de
Dilma110.
Essa classe de manifestação é o núcleo fundante do homo de-
mens, evidenciando a extensão da irrazão e do delírio que vive no
coração da hubris. Essa desmedida da razão é expressa na estupidez
e na desumanidade da humanidade, que deveria ser contida pelos
reguladores sociais, culturais e externos, sob pena de a racionalida-
106 Resposta de Jair Bolsonaro para Preta Gil. Disponível em: https://www.youtube.com/
embed/%20lkZv3iyZdkA?rel=0. Acesso em: 12 abr. 2021.
107 Bolsonaro (PP-RJ) x Maria do Rosário (PT-RS). Disponível em: https://www.youtube.
com/embed/atKHN_irOsQ?rel=0. Acesso em: 12 abr. 2021
108 Jair Bolsonaro (PP-RJ) ofende Ministra Eleonora Menicucci (PT-MG). Disponível em:
https://www.youtube.com/embed/Do6nXV59ZzE?rel=0. Acesso em: 27 mar. 2020.
109 Bolsonaro: “Sou a favor da tortura, golpe militar, fechar o congresso nacional e matar inocentes”.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ihvl497x37c. Acesso em: 25 de março de
2020.
110 Bolsonaro exalta Ustra na votação do impeachment em 2016. Disponível em:https://
www.youtube.com/watch?v=aL3NlWj5gy4. Acesso em: 25 mar. 2020.

- 242 -
de degenerar em “racionalização”, sendo esta última a decomposi-
ção da primeira e responsável pela irrupção da loucura mortífera
(MORIN, 2012, p. 117-128). Os esquemas mentais e discursivos
de Bolsonaro são a potencialização da hubris, pois sonega o direito
de reconhecimento da própria humanidade dos quilombolas, e das
minorias como um todo, ao mesmo tempo que se regozija como o
sofrimento das massas empobrecidas, naturalizando as dimensões
de dominação e de opressão.
A estrutura discursiva de Bolsonaro apresenta um contexto de
condução do tema do direito quilombola, e da efetivação da políti-
ca quilombola como um todo, que se traduz na entrega do INCRA
aos ruralistas, depois no esvaziamento orçamentário do órgão, que
se materializa na paralização das titulações e dos financiamentos
para o desenvolvimento das comunidades já tituladas. Para Morin,
o rompimento dos reguladores sociais é uma permissividade para
a agressividade, violência e o desejo humano (MORIN, 2012, p.
117-128), pois, no caso, os reguladores são entregues aos agressores
violentos e sedentos pela realização de seus desejos, quais sejam, a
terra como mercadoria e livre dos pesos humanos minoritários que
as ocupam.
A agência Deutsche Welle (Sob Bolsonaro..., 2022), em maté-
ria reproduzida em Carta Capital, registrou que, sob o comando de
Bolsonaro, a titulação quilombola pelo INCRA cai ao menor pata-
mar da história. Isso é ratificado por Lobato (2022) ao indicar que,
entre 2019 e 2021, somente 12 territórios foram titulados, embora
só quatro o tenham sido por meio dos esforços do INCRA e com
a titulação por decreto presidencial – os demais foram derivados
de esforços estaduais. No mesmo sentido, a Fundação Cultural Pal-
mares certificou111 um número bastante baixo de quilombos, endo
180 em 2019, depois 29 em 2020 (DALLABRIDA, 2021) e, em 2021,
foram 39 (FCP, 2022), tudo sob a presidência de Sérgio Camargo.

Uma institucionalidade enviesada


A Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da
Cultura, foi criada pelo presidente José Sarney em 1988. O órgão
111 Vale lembrar que o certificado de reconhecimento da identidade que expede às comunida-
des é documento essencial para iniciar os trabalhos de titulação no INCRA, espécie procedi-
mental que está, atualmente, estagnada. A certificação não tem relação direta com a identifica-
ção e delimitação do território, só reconhece os vínculos étnicos do grupo.

- 243 -
representa um importante ator social na consolidação e avanço do
direito quilombola. Nos governos pós-88 a FCP foi pouco assedia-
da pelos grupos de poder, pois sua ação ordinária é indiferente aos
grandes objetivos da bancada ruralista, embora tenha sempre en-
frentado resistência na implementação de seus objetivos, o que se
expressa em seu pequeno espaço orçamentário. Sua função básica é

[...] promover e preservar a cultura afro-brasileira. Preocupada


com a igualdade racial e com a valorização das manifestações
de matriz africana, a Palmares formula e implanta políticas pú-
blicas que potencializam a participação da população negra bra-
sileira nos processos de desenvolvimento do País. (FCP, 2013).

Dessa forma, os objetivos estão vinculados ao combate ao ra-


cismo,promoção da igualdade, valorização da cultura negra, com o
fim de expandir a cidadania no exercício dos direitos individuais e
coletivos, com reconhecimento e respeito à diversidade do povo bra-
sileiro. A FCP financia, através de editais, inúmeros projetos voltados
para as finalidades de preservação do patrimônio cultural material e
imaterial afro-brasileiro (FCP, 2013). Na FCP, o Departamento de
Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro é o responsável pela certifi-
cação de reconhecimento de comunidades quilombolas, recebendo
os pedidos oriundos de comunidades que se autorreconhecem como
remanescentes quilombolas. Para isso, há um procedimento interno
para efetivação do registro.
É incumbência da FCP a assessoria jurídica às comunidades
quilombolas quando turbadas na posse de seu território, além do
auxílio para a formulação dos planos de etnodesenvolvimento das
comunidades tituladas. Um dos eixos de ação da FCP é voltado à
inclusão e sustentabilidade das comunidades quilombolas, para
o que está previsto financiamento de pesquisas, estudos, levanta-
mentos sobre patrimônio afro-brasileiro, embora nesse campo de
pesquisa não haja recursos na fundação. A FCP ordinária e histori-
camente foi dirigida por pessoas engajadas no movimento negro e
sensíveis às suas pautas, tendo referenciado sempre as represen ta-
ções construídas pelo histórico de luta do negro na sociedade brasi-
leira. Isso até o golpe de 2016.
Ainda assim, a FCP cumpre um papel determinante na en-
grenagem social do reconhecimento étnico – deveria ser, portanto,

- 244 -
ator importante no debate público voltado à expansão dos direitos
étnicos das comunidades afrodescendentes, tendo como missão o
fortalecimento dos movimentos sociais e incentivo à organização
das comunidades. Contudo, desde o início do governo Temer, um
projeto de desmantelamento se iniciou, chegando ao seu apaga-
mento pleno com Bolsonaro. É inegável a importância da atuação
da FCP para o campo, a qual deveria adensar-se no debate público
ao lado dos movimentos sociais, principalmente porque a lei lhe dá
atribuição de assistente das comunidades no pós-titulação. A FCP
deveria ocupar um papel no campo e ajudar os movimentos sociais
a criar ruídos de violação da ordem e no sistema, o qual coloca esses
sujeitos históricos estruturalmente em desvantagens na distribuição
dos bens sociais.
Em consulta atualizada, no item de apresentação no site da
FCP, podemos identificar um texto mais acanhado em relação a suas
próprias funções, indicando que busca promover políticas culturais
igualitárias e inclusivas, o que é um sintoma do momento político
atual dessa instituição.
Dentro das suas incumbências, para além da certificação da
identidade, a FCP deveria fomentar a cultura negra e apoiar a difu-
são do ensino da história da África e dos afro-brasileiros nas escolas,
comprometendo-se ainda a combater o racismo (FCP, 2021). Parece-
-nos que, de uma autoexpressão de órgão ativo, passou a um agente
observador, com ação passiva e de mero acompanhamento.
Temer entregou a presidência da FCP a Erivaldo Oliveira da
Silva, administrador e sem vínculos com os movimentos sociais. De-
pois, Bolsonaro deu a presidência da FCP para Sérgio Camargo, que
piorou o contexto e perfil da instituição, tendo, em março de 2022,
sido transferida a presidência (substituta) à Marco Antônio Evange-
lista, com o fito de viabilizar filiação artidária à candidatura ao legis-
lativo no ano corrente. Marco é servidor de arreira da FCP alinhado
à inclinação ideológica de Camargo, como podemos constatar pela
mensagem do Twitter desse último:

Com 30 anos de serviço público na instituição, ele dará conti-


nuidade ao trabalho honesto, digno e libertador realizado pela
minha gestão. A Palmares deixou de ser uma senzala do PT.
Hoje é uma verdadeira fundação cultural, nacionalmente co-

- 245 -
nhecida e respeitada depois da minha chegada. Sucesso, Marco
Antonio! (ROSÁRIO, 2022).

Camargo foi um golpe ao órgão, tendo dispensado, por te-


lefone, as equipes anteriores, justificando que precisaria “montar
uma nova equipe de extrema direita” (BATISTA, 2020). Camargo
já manifestou publicamente que a escravidão foi “benéfica para os
descendentes”, considerando inclusive que o movimento negro é
“escória maldita”, tendo indicado ainda que não acredita em racis-
mo estrutural, uma vez que ele seria “circunstancial” (Sob Bolsona-
ro..., 2020). Trata-se de um presidente negro, de direita e racista que
passou pelo comando da FCP. Ocorre que o cenário de pan-
demia consolidou o desaparecimento da FCP, que só apare-
ceu no cenário nacional para defender o fim do dia da cons-
ciência negra, já que o feriado causaria danos financeiros
ao país, tendo ainda extinguido sete órgãos colegiados da FCP.
Pela portaria 57, de 31 de março de 2022, assinada pelo atual
presidente da FCP, estabeleceu-se um conjunto de novas diretrizes
para o procedimento de certificação, prevendo, em regra, um con-
junto maior de dificuldades burocráticas e suprimindo e autonomia
das comunidades. Na leitura da Coordenação Nacional de Arti-
culação de Quilombos (CONAQ, 2022), o ato é um desserviço ao
campo, já que prevê a notificação das comunidades sobre deman-
das de apresentação de documentos por e-mail e por publicação
em diário oficial. Assevera a CONAQ que a alteração da regra sem
consulta fere a Convenção 169. Além disso, a normativa demanda
que as comunidades apresentem (necessariamente) um relatório
detalhado de identidade e permite à FCP questionar a autodecla-
ração, convocando a comunidade a prestar esclarecimentos sobre
sua própria trajetória, demandando inclusive apresentação de novos
documentos. A relatoria da trajetória da comunidade é comumente
realizada por um antropólogo no processo de titulação, consideran-
do a precariedade de recursos de que essas comunidades dispõem
ordinariamente, e que nem mesmo o INCRA tem empenhado es-
forços, por falta de recursos (MADEIRO, 2022; MARTELLO, 2022),
No governo de Bolsonaro, o desprestígio ao negro e ao qui-
lombola se materializa em diversas instâncias, como na exclusão de
seis representantes do movimento negro no Conselho da Igualda-
de Racial, entre outros vinculados à CUT e à UNE. Os seis mem-

- 246 -
bros excluídos faziam parte da Coalizão Negra por Direitos, tendo
sido indicados outros membros que não fazem parte da mesma112.
Trata-se, portanto, de um ato direto de represália e esvaziamento
das instâncias de representação do movimento negro (CATRACA-
LIVRE, 2020).
Depois, em 2020, quando se instaura um contexto de pandemia
e o governo federal ignora as comunidades quilombolas e qualquer au-
xílio para as mesmas, a CONAQ, junto com PT, PC do B, PSol, PSB e
Rede tiveram que ingressar com Ação de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) para incluir os quilombolas no quadro de priori-
dades para votação e para as suspensões dos despejos de comunidades
durante a pandemia (OLIVEIRA, 2021). A ação julgada procedente,
determinando que o governo federal elaborasse e apresentasse plano
específico considerando as comunidades quilombolas na fase prioritá-
ria (STF, 2021). Com isso, no dia 9 de abril de 2021, o governo federal
informou, através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, que investiria 1,4 milhões de reais em ações, com previsão de
vacinação de pelo menos 1,1 milhão de quilombolas acima de 18 anos,
além de liberação de recursos para pagamento de auxílio emergencial a
essa população e entrega de 440 mil cestas básicas, através do PNAE
(Programa Nacional de Alimentação Escolar) (AGÊNCIA BRASIL,
2021).
A pandemia representou para os quilombolas a expansão do
processo de abandono pelo Estado, de modo que optaram, em di-
versas partes do país, pelo autoisolamento como forma de barrei-
ra sanitária. Além disso, como a maioria das comunidades vive da
agricultura, elas ficaram à mercê da insegurança alimentar, já que
não conseguiam se locomover para comercializar seus produtos e, ao
mesmo tempo, muitas pessoas dessas comunidades tiveram o auxílio
emergencial negado (SILVA; SILVA, 2020). No site “Quilombo Sem
Covid”, em dados atualizados em 12 de janeiro de 2022, contabili-
zam-se 5.666 casos de Covid, com 301 mortes registradas e, ainda,
1.492 casos monitorados113.
Em junho de 2020, o Congresso Nacional aprovou o projeto
de lei 1.142/2020, que previa ações específicas para as comunidades
quilombolas, o qual o presidente aprovou com 22 vetos de pontos
que eram nucleares para a garantia básica de sobrevivência duran-
112 Vale anotar que o feito ocorreu logo após a coalizão ter protocolado pedido de impeach-
ment de Bolsonaro.
113 Depois de janeiro não houve mais dados atualizados.

- 247 -
te a pandemia, tais como a garantia de acesso à água potável, dis-
tribuição de material de higiene pessoal (lei 14.021/20), entre ou-
tros. O que expressa perspectivas de uma necropolítica (MBEMBE,
2011) que, pela via da omissão, vai exterminar os quilombolas pelo
abandono, tornando mais desesperador o contexto de invisibilidade
(PEDROSA NETO, 2021).
Gilvânia Silva, citada por Guimarães (2020), diz que quando
morre uma mulher quilombola, morre com ela parte da história que
não está escrita nos livros – “é a história da memória que vai embora
com aquele corpo”. As comunidades quilombolas viveram momentos
de grande privação durante a pandemia, com dificuldade de acesso à
água potável, álcool em gel, agravando ainda mais aqueles contextos
em que a energia é de má qualidade, assim como a internet, o que
impede acompanharem o andamento do ensino à distância – fato
que, em alguma medida, perdura no momento atual.
É no governo Bolsonaro que se registra a menor marcha dos
processos de certificação e titulação quilombola desde a criação do
INCRA, conforme destacam os dados que vamos apresentar (ACHA-
DOS E PERDIDOS, 2021). Na primeira tabela, a seguir exposta, po-
demos verificar a expansão das pendências de titulação em relação
àquelas certificações concluídas pela Fundação Palmares. Vejamos:

Quadro 5: Certificação Territórios Quilombolas

Fonte: Achados e pedidos, 2021, p. 15


- 248 -
Esse contexto pode ser mais bem aferido se o determinarmos
em números médios de certificações por ciclos de governos, o que
veremos na próxima tabela:

Tabela 5: Certificações por governo

Fonte: Achados e pedidos, 2021.

A FCP certificou, em 2019, o total de 69 comunidades, em


2020 foram 29, em 2021 somente 39, e não há dados relativos a
2022. Com isso, considerando os anos de 2019 a 2021, a média de
certificação do governo Bolsonaro é de 45,6 certificações por ano,
o que representa um gap bastante grande em relação às médias dos
governos anteriores, considerando um declínio de quase quatro
vezes o quantitativo do governo de Temer, no qual houve, inclusive
um incremento de certificações.
No governo Temer, entre 2016 e 2018, foram lançados 68 edi-
tais para confecção de RTIDs e reconheceu-se as delimitações terri-
toriais a partir de 40 portarias editadas. De outro lado, entre 2019 e
2021, no governo Bolsonaro, foram lançados 12 editais de RTID e
somente três portarias foram editadas. Isso representa um decrésci-
mo de 71% no movimento dos procedimentos de titulação em rela-
ção ao governo Temer (ACHADOS E PEDIDOS, 2021).

- 249 -
Tabela 6: Quantitativo de titulações por ano

Fonte: INCRA, 2022



Através do INCRA, no primeiro mandato do governo Dilma
(2011-2014), foram titulados 14 quilombos (média anual de 3,5). Já
no segundomandato (2015-2016) foram mais cinco (média anual
de 2,5)114. No governo deTemer (2016-2018) foram tituladas mais
três comunidades (média anual de 1)e, por derradeiro, mais três ti-
tulações para o governo Bolsonaro (2019-2022)(média anual de 1).
Assim, em termos efetivos, há um processo progressivo deredução
dos efeitos da titulação quilombola e, em termos absolutos, temos
295 títulos em 196 territórios115, albergando a regularização a 342
comunidades (INCRA, 2022b). Atualmente há 1.802 processos de
titulaçãoabertos no INCRA (INCRA, 2022c), os quais, repita-se,
contam com 54 mil reais anuais para marcha em 2022. Com esses
dados, podemos verificar que há um processo de paralização da po-
lítica de titulação quilombola, com cortes orçamentários e retração
na marcha dos procedimentos – o que é compatível com a valora-
ção do direito imputada pelo governo federal sob o comando do
presidente Bolsonaro, que busca inviabilizar o direito através de seu
esvaziamento institucional sistemático.
O INCRA, por sua vez, é refém dos ruralistas no governo Bol-
sonaro, pois sua presidência foi entregue, desde outubro de 2019, a
Geraldo José da Câmara Ferreira de Melo Filho, que é economis-

114 A titulação de 2016 contabilizamos para Dilma, considerando que foi feita antes do seu
afastamento.
115 Em um mesmo território, contíguo ou não, pode haver mais de um título e, ainda, um
título pode abrigar mais de uma comunidade.

- 250 -
ta e pecuarista116. Com isso, a presidência do INCRA hoje engrossa
as fileiras da bancada ruralista e determina o perfil de sua gestão
que, aliada à gestão da FCP, criou uma perfeita orquestra de paralisia
burocrática dos aparelhos de Estado relacionados à política quilom-
bola, o que vai se perfectibilizar com o programa Titula Brasil que
vamos analisar na sequência.

E agora com o “Titula Brasil”?


O INCRA lançou a portaria conjunta de número 1 com o
MAPA, em 2 de dezembro de 2020. Nela se desenha o Programa
Titula Brasil que, em 2021, foi regulamentado pela instrução nor-
mativa nº 105 do INCRA. Por esta, cria-se a autorização da possibi-
lidade de transferência das competências do INCRA para questões
de regularização fundiária de sua alçada (assim mesmo – genérico).
Vejamos:
Art. 1º - O Programa Titula Brasil, criado pela Portaria Con-
junta nº 1, de 2 de dezembro de 2020, da Secretaria Especial
de Assuntos Fundiários - SEAF/MAPA e do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária - Incra, cujas diretrizes são
indicadas na Portaria nº 26, de 4 de dezembro de 2020, da Se-
cretaria Especial de Assuntos Fundiários, tem como objetivos:
I - ampliar a regularização e a titulação nos projetos de reforma
agrária do Incra ou terras públicas federais sob domínio da
União ou do Incra passíveis de regularização fundiária;
II - expandir a capacidade operacional da política pública de
regularização fundiária e de titulação;
III - agilizar processos, garantir segurança jurídica, reduzir cus-
tos operacionais e, ainda, gerar maior eficiência e celeridade aos
procedimentos de regularização fundiária e titulação.
IV - reduzir o acervo de processos de regularização fundiária e
titulação pendentes de análise;

116 Geraldo é pecuarista em Minas Gerais e na Bahia e é filho do ex-governador do Rio


Grande do Norte. Em 2014 integrou a chapa para comandar a Associação
dos Criadores de Guzerá do Brasil (ACGB), da qual foi diretor-técnico e foi também
conselheiro consultivo na Associação Brasileira de Criadores de Zebu (ABCZ) (PECUÁRIA.
COM, 2019), além de ter sido superintendente da CNA (Confederação Nacional da
Agricultura). De acordo com Guimarães (2020), a família do presidente do INCRA é dona
de dezessete mil hectares grande parte dos quais é improdutiva há anos e onde se encontram
treze acampamentos de sem-terra. Desde a falência de usinas de cana-de-açúcar que a família
possuía, ela acumula atualmente enormes dívidas com a Receita Federal e outras de natureza
trabalhistas. O pai do presidente do INCRA foi vice-governador do Rio Grande do Norte por
duas vezes, em 1979 e 1983, filiado à ARENA e depois ao PDS, governou aquele estado na
legislatura que se iniciou em 1987 e, depois, foinsenador de 1995 a 2003.

- 251 -
V - auxiliar na supervisão dos ocupantes em projetos de assen-
tamento; e
VI - fomentar boas práticas no federalismo cooperativo com os
municípios.

Basicamente, o programa tem a intenção de transferir a com-


petência de regularização fundiária que estaria sob a responsabili-
dade do INCRA aos órgãos municipais, com intenção de expandir
as titulações territoriais. Vale anotação aqui de que a portaria não
delimita quais são as categorias de regularização de terra que esta-
riam envolvidas nessa autorização. Com isso, a possibilidade de se
entregar às oligarquias locais o poder de distribuir terras fica es-
cancarada, ou seja, a ilegalidade se canaliza pela via legal, abrindo
um nebuloso precedente, cuja extensão dos efeitos ainda estamos
acompanhando. Esta é, por excelência, uma iniciativa nociva à
democratização da terra no Brasil, pois passa para os municípios,
que já são financeiramente mais frágeis, responsabilidades sem qual-
quer contrapartida financeira. O INCRA se torna alguma espécie de
órgão de suporte, primeiro com acompanhamento e treinamento,
depois órgão de controle, com mera fiscalização e convalidação.
À primeira vista, a política é um golpe direcionado aos proje-
tos de assentamento e reforma agrária. Contudo, o que preocupa na
questão quilombola (e mais amplamente na questão étnica) é a aber-
tura semântica dada ao inciso primeiro, no fragmento que diz “pas-
síveis de regularização fundiária” – em suma, isto é um “cheque em
branco” para terceirização pública da regulamentação da terra fede-
ral, já que o território quilombola é uma espacialidade objetiva que
comporta interpretação como terra que é objeto de uma espécie de
“regularização fundiária” e que está sob a competência do INCRA.
Nos modelos de cooperação técnica que estão disponíveis no site do
INCRA (2022d), é repassada a responsabilidade por irregularidades
aos municípios que aderem ao programa e nenhuma cláusula de bar-
reira é estabelecida em relação à titulação de processos subjacentes
que possam existir, seja do próprio INCRA, seja da FUNAI, apresen-
tando uma janela de oportunidade perigosa em face das demandas
dos quilombos e dos indígenas. Além disso, é possível ali observar
que os planos de trabalhos apresentados pelos municípios detêm
quatro ou cinco páginas, ou seja, são extremamente vagos e sem de-
talhamento, criando um limbo sobre a forma de atuação, os meios
que serão empregados e quais suas efetivas finalidades.

- 252 -
O programa foi apelidado pelos ambientalistas de “Inva-
de Brasil”, que terceiriza aos municípios as titulações das terras da
União. Justifica-se que o feito reduziria os custos e daria maior ce-
leridade/eficiência operacionais às titulações, que devem ser opera-
cionalizadas a partir de ACT (Acordos de Cooperação Técnica), sem
previsão de repasses de recursos. O programa será executado por
núcleos (NMRF – Núcleo Municipal de Regularização Fundiária)
criados pelas prefeituras, que indicarão técnicos para vistoria e che-
cagem local, os quais serão treinados de forma online117. A Confede-
ração dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (CONDSEF) e
a Confederação Nacional das Associações dos Servidores do INCRA
(CNASI) afirmam que esse programa aprofunda a crise e o desmonte
da autarquia (INCRA), dando maior poder aos grileiros (SINTSEF/
BA, 2021).
O idealizador do programa, que assina o decreto conjunta-
mente com o presidente do INCRA, é o já conhecido e “todo-pode-
roso” ruralista (no governo Bolsonaro) Luiz Antônio Nabhan Garcia,
ex-presidente da UDR e Secretário Especial de Assuntos Fundiários
do MAPA (GIOVANAZ, 2021). Agora, o que aqui problematizamos
é como essa política vai incidir no processo de titulação quilombola,
ou melhor, como essa nova possibilidade estrutural de repasse de
competência vai impactar o já paralisado processo de regularização
fundiária quilombola.
As perspectivas de um programa que tenha a contribuição
de Nabhan não são positivas para os quilombolas, já que este é um
dos principais atores-vetores de ódio e conflito no campo. Cida de
Oliveira (2021) diz que se trata de um programa para acelerar a ti-
tulação de terras da grilagem, tendo ressaltado que Nabhan foi ferre-
nho defensor da conhecida “MP da grilagem” em 2019, que tratava
da titulação agrária pela autodeclaração e que caducou por falta de
apreciação do Congresso Nacional.
Essa política acaba, portanto, por beneficiar só os ricos/lati-
fundiários georreferenciados localmente, já que transfere o poder
administrativo e de decisão para as zonas de sua influência. As pre-
feituras não têm a estrutura e as ferramentas necessárias para ins-
trumentalizar a política. O INCRA deveria, então, ser fortalecido
117 Pode-se verificar o treinamento online na ENAGRO (Escola Nacional de Gestão Agro-
pecuária), em que foram previstos, em 2022, nove cursos de 20h a 40h. Disponível em https://
sistemasweb.agricultura.gov.br/avaenagro/mod/page/view.php?id=1804.

- 253 -
para concretização de metas finalísticas, e não esvaziado como tal
política pretende. Nabhan é um defensor da liberação do porte e do
comércio de armas no Brasil, defendendo a venda de armamentos
pesados à população civil:

Em julho de 2003, uma reportagem do Estadão mostrou um


grupo de homens da milícia, encapuzados e com fuzis em pu-
nho. Dias depois, um fazendeiro próximo a Nabhan foi preso
em flagrante pela Polícia Federal por porte ilegal de armas. Ele
afirmou que parte do armamento pertencia ao hoje secretário. O
preso afirmou ainda que a reportagem havia sido feita em uma
das fazendas de Nabhan Garcia, a São Manoel. Segundo ele, o
próprio Nabhan aparecia na foto junto aos milicianos - ele seria
o quinto da esquerda para a direita, com o rosto coberto, como
os outros, usando um boné da Mercedes-Benz. (FUHRMANN,
2020).

O Jornal Nacional de São Paulo, em 2003, publicou a maté-


ria “Exército particular está a postos no Pontal”, quando um grupo
de fazendeiros se apresenta armado com fuzis para resistir à invasão
do MST (CAMPELO, 2018). Dias depois, um fazendeiro próximo a
Nabahn foi preso, tendo indicado que parte do armamento era de
Nabhan (FUHRMANN, 2019).
Nabhan é ainda responsável pela demissão do presidente
da FUNAI em 2019, o general da reserva Franklimberg de Freitas,
que revelou que sua demissão foi exigência de Nabhan, depois de
ter pressionado o órgão por cargos e Freitas ter resistido (SANTOS,
2019). Além disso, Nabahn já manifestou que, no Governo Bolso-
naro, a reforma agrária e as demarcações serão passadas a limpo
(ESTADÃO, 2019). Assim sendo, sua trajetória ligada ao agronegó-
cio e contrária às pautas étnicas o coloca em polo diametralmente
contrário às demandas étnicas. Assim, quando se cria uma política
indefinida, sem muitas diretrizes e organização, os seus idealizado-
res nos dão uma noção de qual a guinada que ela pretende operar.
Em fevereiro de 2021, o Serviço Federal de Processamento de Da-
dos (SERPRO) lançou aplicativo do programa, pautado no dis-
curso da automatização e desburocratização da regularização fun-
diária, ajudando a reconhecer, de acordo com Nabahn, “o direito
daquelas famílias que colonizaram o Brasil” (INCRA, 2021a). No
dia 04/04/2021, o INCRA firmou o primeiro acordo de cooperação,
- 254 -
com a prefeitura de Jesuíta/PR (INCRA, 2021c). Já no dia seguin-
te, o INCRA firmara outros com as prefeituras de Brasilândia do
Sul/PR e Formosa do Oestes/PR (INCRA, 2021d). Depois, no dia
14/04/2021 (dez dias depois), o INCRA noticiou que 605 prefeitu-
ras haviam aderido ao Programa Titula Brasil e, em 2022, o número
chega a 1.198 (BASSI, FUHRMANN, RAMOS, MERLINO, 2022a).
Pelas regras do programa, a prefeitura deve pedir adesão pelo site
do INCRA (2021b). O instituto já noticiou que quase duas mil pre-
feituras estão aptas a fazer o cadastro (AGRO EM DIA, 2021). Em
13 de fevereiro de 2022, o portal da Agência Brasil informa que o
Programa Titula Brasil já tem mais de 600 núcleos municipais de
regularização fundiária em funcionamento no Brasil (FRANCO,
2022), com 39% dos municípios da Amazônia Legal já cadastrados,
sendo que 70 deles estão localizados no “arco de desmatamento”, que
vai do oeste do Maranhão até o Acre, e que é onde se concentra o
maior nível de desmatamento na atualidade (BASSI, FUHRMANN,
RAMOS, MERLINO, 2022a).
O Ministério Público Federal vem acionando as superinten-
dências do INCRA e prefeituras, principalmente para determinar
que sejam consultados outros órgãos públicos antes de emissão de
títulos, principalmente para não haver sobreposição da regulamen-
tação fundiária com as terras indígenas, quilombolas e de comuni-
dades tradicionais, buscando, com isso, garantir maior transparên-
cia ao procedimento (BASSI, FUHRMANN, RAMOS, MERLINO,
2022b). Contudo, tais notificações não são vinculativas, são meras
recomendações oficiais.
O “De olho nos ruralistas”, publicou artigo muito interes-
sante (BASSI, FUHRMANN, RAMOS, MERLINO, 2022), rela-
tando a implementação do referido programa no município de
Manicoré, no sul do Amazonas. Este e “Humaitá, Lábrea, Boca
do Acre, Apuí, Novo Aripuanã e Canutama concentraram 80%
de toda a supressão vegetal no estado entre 2020 e 2021”. Mani-
coré implementou o programa, já entregou títulos provisórios,
encobertando contextos de grilagem e violência contra povos do
campo. Fuhrmann, Bassi e Merlino alertam sobre os riscos de que
o programa Titula Brasil atropele os procedimentos de titulação dos
povos indígenas e comunidades tradicionais. Em Rondônia, os atores
políticos, como senadores e deputados, chegaram a reunir-se com a

- 255 -
Associação dos Municípios de Rondônia (AROM) para orientar os
prefeitos sobre a política e procedimentos de adesão ao programa.
Os municípios de Alto Alegre do Pindaré/MA (prefeito Fran-
cisco Dantas Ribeiro Filho) e de Nova Canaã/MT (prefeito Rubens
Roberto Rosa), a título de exemplo, somam diversas similaridades
interessantes para nossa análise: ambos os prefeitos são ruralistas-
-latifundiários e respondem processos judiciais por utilização de
trabalho escravo, tendo mobilizado rapidamente seus municípios
na adesão ao programa em comento. No mesmo sentido, o prefei-
to de Amarante do Maranhão/MA, Valderly Gomes Miranda, que
tem patrimônio rural quinze vezes maior do que o PIB da cidade,
mobilizou seu município à rápida adesão. O município é conhecido
pelo alto nível de desmatamento e brutal violência no campo, mar-
cado por assassínios de lideranças indígenas e tradicionais (BASSI,
FUHRMANN, RAMOS, MERLINO, 2022b).
Nesse contexto, criou-se uma ampliação das ferramentas de
colonização do Estado pela classe ruralista, que está sempre fric-
cionando as fronteiras da regulamentação via assédio das bordas
da legalidade. Os ruralistas, poderíamos ler na concepção de Edgar
Morin, aproveitam-se das estruturas do Estado, canalizando por ali
sua arrogância, seu luxo e tudo de arbitrário que é comum às eli-
tes no poder, manifestando o prazer da dominação sobre as classes
inferiores, e submetendo-as ao suplício proposital. Contudo, essa
dominação não é direta, ela demanda o manuseio do Estado pela
política, em que, até na democracia, são necessários chefes que se
desenham discursivamente como serventes da sociedade, embora se
tornem, em verdade, parasitas que se apropriam pessoalmente do
poder (MORIN, 2012).
Essas elites do agronegócio exercem o predomínio através das
estruturas do Estado, levando-nos a um momento em que a polí-
tica quilombola é paralisada por completo, em que não há marcha
para os procedimentos de titulação, assim como não há orçamen-
to e tampouco intenção política para concretizar direitos étnicos
no Brasil. Ao mesmo tempo, o INCRA passa por um processo de
enxugamento, o que inviabiliza a realização de seus objetivos. Em
verdade, em termos de necropolítica, o abandono pelo Estado da
política quilombola é uma estratégia de deixar e fazer morrer, seja
em termos simbólico-culturais, seja em termos físicos, relegando es-

- 256 -
sas comunidades à insegurança alimentar, de saúde, à violência do/
no campo etc.

Últimas notícias

Esse tópico final do texto destaca a iniciativa legislativa de
março de 2022 (Projeto de Lei (PL) 486, de 2022), proposto pelo Se-
nador José Serra, que nos parece ser uma iniciativa com potência
para regular e criar retrações nesse campo, principalmente porque
tem como objetivo criar sanções criminais e administrativas relati-
vas às fraudes (omissão, falsidade ou prestação de informações en-
ganosas) no Cadastro Ambiental Rural, penalizando o registro de
terras sobrepostos à áreas protegidas, florestas públicas, entre outras.
O artigo 2 do PL acrescenta o art. 69B à Lei 9.605118, indicando a
proibição expressa da sobreposição sobre terras ocupadas por qui-
lombos.

Art. 69-B. Inscrever intencionalmente no Cadastro Am-


biental Rural, de forma total ou parcialmente falsa ou
enganosa, inclusive por omissão, em nome de particu-
lar, imóvel rural com área localizada em unidade de con-
servação da natureza de domínio público, terra indíge-
na, terra tradicionalmente ocupada por remanescentes das
comunidades dos quilombos, floresta pública não destinada ou
qualquer área para a qual a transferên-
cia para o domínio privado seja vedada por lei:
Pena - detenção de um a dois anos, e multa.
Parágrafo único. A pena é aumentada até o dobro se o crime for
praticado para a obtenção de vantagem pecuniária ou creditícia.

Já o art. 4 altera a redação do art. 29 da Lei nº 12.651119, acres-


cendo parágrafos que tornam nulos os efeitos dos registros sobre-
postos:

§ 5º Fica vedada a inscrição no CAR, por particulares, de imóveis


em áreas, glebas ou lotes localizados em unidades de conservação
da natureza de domínio público, terras indígenas, terras tradicio-
nalmente ocupadas por remanescentes das comunidades dos qui-
118 Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesi-
vas ao meio ambiente, e dá outras providências.
119 Lei de proteção da vegetação nativa.

- 257 -
lombos, florestas públicas não destinadas e demais áreas para as
quais a transferência para o domínio privado seja vedada por
lei.

Cabe agora saber a potência desse projeto para se transfor-


mar em lei, formando consensos no Congresso Nacional para, após,
quando e se ingressar no universo jurídico, produzir efeitos e ser
uma baliza no campo, inserindo a criminalização e a nulidade das
práticas enganosas que circundam a temática, principalmente confi-
gurando um freio para a falta de regulamentação do Programa Titula
Brasil.

Considerações Finais

Este trabalho apresentou uma reflexão sobre o contexto e de-


senho do exercício da política quilombola no Brasil, com intenção de
apresentar elementos consolidados, a partir de fontes documentais,
mas também intentou indicar elementos dos eixos de abertura e das
potências do campo quilombola. Pretendeu-se desenhar os contor-
nos de uma luta que ocorre em multinível e que aciona uma gama
bastante diversa de ferramentas e estratégias.
A polaridade do campo é latente quando se verifica como os
órgãos públicos responsáveis pela proteção e efetivação dos direitos
das comunidades quilombolas são assediados pelos grupos de po-
der que lhe fazem antagonismo. Desde o governo Temer, começou
um processo de desmonte e entrega dos equipamentos públicos de
reconhecimento da identidade e titulação dos territórios quilom-
bolas aos seus históricos agentes refratários, vinculados esses ao
agronegócio, com um único fim de congelar de forma subterrânea
as ações de Estado para essa população. O projeto de poder é cla-
ro e é comunicado publicamente em uma espécie de “falta de filtro”
discursivo do presidente da república. De outro lado, as estratégias
de esvaziamento da política quilombola se dão nos becos escuros
da burocracia estatal, no veto da lei orçamentária, na indicação dos
presidentes de órgãos e na focalização de outras metas finalistas das
institucionalidades implicadas, permitindo que, ao fim, se funda-
mente a paralisia pela falta de recursos e se exalte tudo o que foi
feito para outras questões. A estratégia da negação do direito pela

- 258 -
via orçamentária e pela desmobilização dos equipamentos de Esta-
do, criados para a concretização do direito quilombola, é a mais alta
expressão do racismo institucional, que nega concretização anun-
ciando o direito formalmente pela via do direito, o que expressa um
tipo de loucura irracional da ordem posta.
Os dados apresentados são retratos bastante objetivos de um
paulatino esfacelamento do direito quilombola, seja pela redução
efetiva de efeitos da mesma, seja pela progressiva redução orçamen-
tária, culminando na elaboração de políticas de Estado que, pelo
silêncio, autorizam as barbáries e o extermínio, considerando que
o programa Titula Brasil é a derrubada da cerca de contenção que
balançava, mas ainda estava em pé – utilizando uma anedota do uni-
verso semântico do agressor.
Como sociólogo assimilo as concepções pessimistas de Bau-
man quanto ao presente em curto alcance, mas, enquanto jurista,
vejo que os alicerces do direito quilombola ainda estão profunda-
mente enraizados na ordem jurídica, o que confere bases para gui-
nadas futuras. De outro lado, Boaventura de Souza Santos (2003) é
claro ao indicar que o direito sempre foi uma mera ferramenta, e que
as elites sempre foram mais competentes na sua manipulação. Assim
sendo, a maior parte das potências do campo estão sob responsabi-
lidade da mobilização social e da manutenção da continuidade da
busca pelo existir. No final, é uma questão de continuar existindo e
resistir às marés permissivas do “permitir” e “deixar morrer” de um
lado, ou de “fazer morrer” de outro.

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_______. Supremo determina que Governo Federal elabore pla-
no de combate à Covid-19 para população quilombola. 25 fev.

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2021. Acesso em: 12 abr. 2021.
TRF2 - Tribunal Regional da Segunda Região. Processo 0101298-
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TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: ação simbólica
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WELLE, Doutsche. Sob Bolsonaro, reconhecimento de quilombolas
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ZIGONI, Carmela. Nota técnica: orçamento público voltado para
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SET2020.pdf. Acesso em: 23 abr. 2021.

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Sobre os(as) autores(as)

Amanda Ramos Mustafa: Doutoranda no Programa de Pós-


-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas
- PPGE/UFAM. É membro Grupo de Pesquisa Política Linguística
para Línguas Indígenas do Amazonas na Universidade Federal do
Amazonas.

Ana Carolina Peixoto Mourão: Psicóloga graduada pela Uni-


versidade Federal do Amazonas (UFAM). Atuou como estagiária de
psicologia no ambulatório de Saúde Mental da Policlínica Codajás.

André Luiz Machado das Neves: Psicólogo e Doutor em Saú-


de Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Professor da Escola Supe-
rior de Ciências da Saúde da Universidade do Estado do Amazo-
nas (UEA). Docente permanente do Programa de Pós-Graduação
em Saúde Coletiva (PPGSC/UEA). É líder do Grupo de Pesquisa:
Núcleo de Estudos Psicossociais sobre Direitos Humanos e Saúde
(NEPDES) e pesquisador do Laboratório de Desenvolvimento e
Educação da Faculdade de Psicologia da UFAM. Membro da Câma-
ra de assessoramento científico de pesquisa da Fundação de Ampa-
ro à Pesquisa do Estado do Amazonas - FAPEAM (2022-2024). É
membro da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da
ABRASCO.

Artemis de Araújo Soares: Professora Titular e pesquisado-


ra da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM). Doutora em Ciências do Desporto
na Universidade do Porto, Mestra em Educação Física na Escola de
Educação Física e Esporte na Universidade de São Paulo (USP). De-
senvolve estudos dentro do tema corpo, corporeidade e povos tra-
dicionais. Tem Pós-doutorado na Université Paris 5 e na Université
Rennes-2 – França. É Membro da Academia Amazonense de Letras.

Bruno de Oliveira Rodrigues: É professor do Departamento


de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (UFAM);

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Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Flumi-
nense (UFF); Professor do Programa de Pós-Graduação em Socie-
dade e Cultura do Amazonas (PPGSCA/UFA). É vice-lider do Labo-
ratório de Estudo sobre Movimentos Sociais, Trabalho e Identidade
(LEMSTI).

Cynthia Maria Bindá Leite: É Doutoranda na Universidade


Federal do Amazonas (UFAM). Coordenou o Programa Brasil Alfa-
betizado, vinculado à Secretaria de Educação do Estado do Amazo-
nas. Atualmente trabalha na Gerência de Atendimento Específico e a
Diversidade na SEDUC/AM.

Erica Vidal Rotondano: É professora do curso de Licenciatu-


ra em Pedagogia da Escola Normal Superior (ENS) da Universidade
do Estado do Amazonas (UEA). Integra o grupo de pesquisa Educa-
ção Inclusiva e o Aprender na Diversidade. É membro da Comissão
da Gratificação de Produtividade Acadêmica da Escola Normal Su-
perior da UEA, bem como da Comissão para Desenvolvimento da
Política de Saúde Mental e Atenção Psicossocial da UEA. Doutora
em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
em convênio com a Universidade do Estado do Amazonas (DINTER
UEA/UERJ).

Érika da Silva Ramos: É Doutora em Sociedade e Cultura na


Amazônia (UFAM). É membro do Grupo de Estudos e Pesquisas
sobre Educação e Ensino de Ciências na Amazônia (GEPECAM /
UEA). É professora colaboradora na pós-graduação no IDAAM.

Esly Camico Mandu: É indígena da etnia Koripako. Gradua-


ção em Licenciatura Indígena Políticas Educacionais e Desenvolvi-
mento Sustentável pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM);
Mestrando em Sociedade e Cultura da Amazônia pela UFAM e é
Professor da Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do En-
sino-AM.

Gabriele Vaz da Costa: Graduando em Filosofia pela Univer-


sidade Federal do Amazonas (UFAM).

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Ghislaine Raposo Bacelar: É engenheira e doutora em Socie-
dade e Cultura na Amazônia pela UFAM. Professora de ensino supe-
rior de graduação da Universidade Federal do Amazonas - UFAM e
Professora de Graduação e pós-graduação do Centro Universitário
do Norte – SER.

Gizelly de Carvalho Martins: É Psicóloga e mestra em Psi-


cologia pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. É pro-
fessora da Escola Superior de Ciências da Saúde da Universidade do
Estado do Amazonas no curso de Medicina.

Heloisa Helena Corrêa da Silva: É professora titular da Uni-


versidade Federal do Amazonas (UFAM), atuando junto ao Curso
de Serviço Social e ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade
e Cultura da Amazônia. Doutora em Serviço Social pea Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora no
Núcleo de Estudos e Pesquisas em Assistência e Seguridade Social
(NEPSAS/PUC-SP). Pesquisadora na Rede PROINQUI sobre Pro-
moção de Direitos dos Povos Indígenas e Quilombolas.

Jéssica Dayse Matos Gomes: É doutora em Sociedade e Cul-


tural da Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
e é professora de ensino fundamental/médio da Secretaria de Estado
da Educação e Qualidade de Ensino do Amazonas.

Lionela da Silva Corrêa: Possui Doutorado em Ciências pelo


programa de Educação Física e Esporte da USP, Mestrado em Ciên-
cias da Saúde pela Universidade Federal do Amazonas (2011), Gra-
duação em Educação Física pela Universidade Federal do Amazonas
(2009). Atualmente é professora adjunto II da Universidade Federal
do Amazonas, membro do Grupo de Pesquisa em Ginástica da USP
- GYMNUSP e do grupo Corpo, Gênero, Ensino e Multiculturali-
dade. É coordenadora do Programa de dança, atividades circenses e
ginástica - PRODAGIN.

Meriane Teixeira de Matos: Mestre pelo Programa de Pós-


-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) pela

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Universidade Federal do Amazonas; Graduada em Licenciatura em
Educação Física pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É
professora na Secretaria Municipal de Educação (SEMED).

Michele Viviene Carbinatto: Docente na Universidade de


São Paulo (USP) - Escola de Educação Física e Esportes, Departa-
mento de Esporte. É doutora em Educação Física pela EEFE/USP
e têm Pós-Doutorado no Teachers College da Columbia University
(Nova Iorque/EUA). Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Gi-
nástica (GYMNUSP). Líder do Grupo de Ginástica para Todos da
USP (GYMNUSP).

Munique Therense Costa de Morais Pontes: É psicóloga e


têm doutorado em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social
(IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Docente
permanente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da
Universidade do Estado do Amazonas (PPGSC-UEA) e do Progra-
ma de Pós-Graduação em Segurança Pública, Cidadania e Direitos
Humanos da Universidade do Estado do Amazonas (PPGSP/UEA).
Vice coordenadora do Núcleo de Estudos Psicossociais sobre Direi-
tos Humanos e Saúde (NEPDS/UEA).

Natasha Rodrigues Cavalcante: Bacharel em Fisioterapia


pelo Centro Universitário do Norte - UNINORTE, Licenciada em
Dança pela Universidade do Estado do Amazonas - UEA. Pós-gra-
duanda em Produção e Gestão de Mídias Digitais e Educacionais
- UEA, pós-graduada em Gestão Estratégica de Eventos pela Uni-
versidade Veiga de Almeida - UVA. Atua como professora do Ensino
Básico.

Paula Mirana de Sousa Ramos: É doutora em Sociedade e


Cultura na Amazônia na Universidade Federal do Amazonas (2016).
Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Ciência
Política, atuando principalmente nos seguintes temas: Campo Políti-
co, Comportamento Eleitoral, Comportamento Político e Sociologia
Política

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Pedro Rodolfo Fernandes da Silva: Professor na Universida-
de Federal do Amazonas (UFAM). Doutor em Filosofia pelo Pro-
grama de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar). É Professor do Programa de Pós-Graduação
em Filosofia - Mestrado Profissional em Filosofia - PROF-FILO da
UFAM.

Rebeka Cristina Gomes Vieira: Graduada em Pedagogia


(FAMETRO). Atualmente voluntaria no projeto de pesquisa Dança,
Psicologia e TEA.

Renilda Aparecida Costa: Doutorado em Ciências Sociais


pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/ Unisinos( 2011). É pro-
fessora adjunta da Universidade Federal do Amazonas, atuando no
Instituto de Filosofia Ciências Humanas e Sociais, na área da Socio-
logia. Atua no Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia. É coordenadora do Núcleo de Estudos Afro Indígena -
NEAI/UFAM.

Rosa Patrícia Viana Pinto Farias: Mestre em Sociedade e


Cultura na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Ministra aulas há mais de 20 anos, em escolas públicas e
privadas de Manaus, nas áreas de História, Filosofia e Sociologia.

Rosangela Miranda Aufiero: Possui graduação em Psicologia


pela Universidade Gama Filho (1988). Especialista em Psicopedago-
gia, Saúde Mental, Atualmente é Psicologa da Policlínica Codajás.

Socorro de Fátima Moraes Nina: Psicóloga e Doutora em So-


ciedade e Cultura na Amazônia. Pesquisadora do LAPSIC/UFAM.
Líder do Núcleo Interdisciplinar de Saúde e Ambiente- NISA /UEA.

Tereza de Sousa Ramos: Doutora em Sociedade e Cultura na


Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (2019). Atual-
mente é professora na Universidade Federal do Amazonas e na SE-
DUC - AM.

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