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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

UNIVERSIDADE FEDERAL DO
AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz Université de Versailles
Antônio Cattani UFRGS
Alfredo Bosi USP
Arminda Mourão Botelho Ufam
Spartacus Astolfi Ufam
Boaventura Sousa Santos Universidade de Coimbra
Bernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira UFC
Conceição Almeira UFRN
Edgard de Assis Carvalho PUC/SP
Gabriel Conh USP
Gerusa Ferreira PUC/SP
José Vicente Tavares UFRGS
José Paulo Netto UFRJ
Paulo Emílio FGV/RJ
Élide Rugai Bastos Unicamp
Renan Freitas Pinto Ufam
Renato Ortiz Unicamp
Rosa Ester Rossini USP
Renato Tribuzy Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitor
Jacob Moysés Cohen

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

SERVIÇO SOCIAL
e os dilemas da saúde
em tempos de pandemia

A presente obra foi financiada pela

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Comitê Científico Alexa Cultural


Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)

Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)

Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Hamida Assunção Pinheiro


Marinez Gil Nogueira Cunha
Lidiany de Lima Cavalcante
Débora Cristina Bandeira Rodrigues
Organizadoras

SERVIÇO SOCIAL
e os dilemas da saúde
em tempos de pandemia

Embu das Artes


2020

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

© by Alexa Cultural

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Michel Justamand e Hamida Assunção Pinheiro
Revisão de língua
Tuca Dantas
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


P654h - PINHEIRO, Hamida Assunção
C972m - CUNHA, Marinez Gil Nogueira
C376l - CAVALCANTE, Lidiany de Lima
R696d - RODRIGUES, Débora Cristina Bandeira

Serviço Social e os dilemas da saúde em tempos de pandemia, Hami-


da Assunção Pinheiro, Marinez Gil Nogueira Cunha, Lidiany de Lima
Cavalcante e Débora Cristina Bandeira Rodrigues, Alexa Cultural: São
Paulo / Edua: Manaus, 2020

14x21cm - 248 páginas

ISBN - 978-65-87643-57-1
1. Serviço Social, 2. Artigos, 3. Pandemia, 4. Covid 19, 5. Políticas
Públicas, I-Título, II-Sumário, III-Bibliografia

CDD - 300

Índices para catálogo sistemático:


1. Serviço Social
2. Pandemia
3. Políticas Públicas

Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do Amazonas


Rua Henrique Franchini, 256 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos,
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM
alexa@alexacultural.com.br Campus Universitário Senador Arthur Virgilio
alexacultural@terra.com.br Filho, Centro de Convivência – Setor Norte
www.alexacultural.com.br Fone: (92) 3305-4291 e 3305-4290
www.alexaloja.com E-mail: ufam.editora@gmail.com
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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

AGRADECIMENTOS

À Universidade Federal do Amazonas, em especial à


Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPESP) pelo
permanente investimento na produção de conhecimento;

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior (CAPES) pelo suporte aos
Programas de Pós-Graduação do país;

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico (CNPq) pela sustentação das pesquisas e bolsas de
estudo para estudantes da Pós-Graduação;

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado Amazonas


(FAPEAM) pelo apoio às ações, aos eventos, às pesquisas e
bolsas de estudo para a Pós-Graduação.

Aos docentes, discentes e egressos do Programa de Pós-


Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia que
não mediram esforços para produzir reflexões teórico-empíricas,
mesmo em tempos tão adversos, para a presente coletânea.

Aos pesquisadores parceiros, docentes e discentes


envolvidos no Programa Nacional de Cooperação Acadêmica
(PROCAD-Amazônia), oriundos da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM), Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS) e Universidade Federal do Pará (UFPA)
que contribuíram para a produção dessa Coletânea.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

PREFÁCIO
A pandemia do novo Coronavírus, reconhecida como tal em
de 11 de março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS),
tem posto a situação da saúde pública em xeque. O novo Coronaví-
rus, doença causada pelo vírus Sars-CoV-2, evidencia abertamente
as dificuldades dos sistemas de saúde pública na atenção à saúde
em vários países do mundo e, em outros, explicita, a inexistência de
qualquer forma de proteção e controle público sanitário.
No Brasil, a pandemia tem mostrando as fragilidades do Sis-
tema Único de Saúde (SUS), o qual foi conquistado legitimamen-
te pela Constituição de 1988 e pela promulgação de Lei Orgânica
da Saúde (LOS) em 1990. Este sistema de saúde pública nasce no
país bastante fortalecido pelo Movimento Social – conhecido como
Reforma Sanitária – que o reivindicava desde a década de 1970.
Entretanto, durante a década de 1990 e nas décadas subsequentes, a
política de saúde brasileira, de caráter universal e integral, passa a
ser combatida pelas inciativas neoliberais que primam pela redução
dos gastos sociais, numa movimentação denominada de contrarre-
forma do Estado. Assim, os serviços de saúde passam a ser espaços
de muita disputa dos interesses privados, com grandes possibilida-
des e incentivos de privatização.
É nesse contexto de garantia legal de direito à saúde, por um
lado, e de desmonte e desfinanciamento dos serviços de saúde pú-
blica, por outro lado, que a pandemia de Covid-19 tem revelado
inúmeras dificuldades para o provimento da atenção universal e
integral à saúde da população brasileira. O resultado tem sido um
número constantemente progressivo de casos da doença, que coloca
o Brasil entre os maiores números de adoecimento e de óbitos no
mundo. Soma-se a isso a postura negacionista da Presidência da
República e de suas forças aliadas, que durante os mais de 6 meses
de vivência da pandemia que atingem o país, têm sido um elemento
a mais para a coibir as ações de prevenção da contaminação pelo
Corononavírus e, consequente, de potencialização do adoecimento
da população brasileira.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Nesse espaço de inúmeras contradições relacionadas à área


da saúde existem temáticas de extrema relevância para o aprofunda-
mento reflexivo de estudantes, de pesquisadores e de profissionais
de Serviço Social e de áreas afins. É com a perspectiva de incitar o
debate e a reflexão sobre o “Serviço Social e os dilemas da saúde
em tempos de pandemia” que o Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade
Federal do Amazonas, por intermédio das professoras permanen-
tes Dra. Hamida Assunção Pinheiro, Dra. Marinez Gil Nogueira
Cunha, Dra. Lidiany de Lima Cavalcante e Dra. Débora Cristina
Bandeira Rodrigues, organizou sua terceira coletânea de texto de
docentes, discentes e egressos, contando ainda com a produção in-
telectual de docentes e discentes da Pontifícia Universidade Cató-
lica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e da Universidade Federal do
Pará (UFPA).
Nesse contexto caótico de crise sanitária em tempos de pan-
demia, para além da crise econômica global do capitalismo que
também vem se aprofundando cada vez mais na última década, que
a discussão dos limites e das possibilidades das políticas públicas,
especialmente da saúde, e suas implicações para o trabalho do as-
sistente social tornam-se assuntos de grande interesse, bem como
urgentes e necessários para serem aprofundados de modo sério e
compromissado com os princípios democráticos. É com esse olhar
que o PPGSS priorizou a discussão da temática da saúde em tempos
pandêmicos.
Nesse sentido, este conjunto de textos que compõe a presente
coletânea representa um qualificado debate em torno da saúde e po-
líticas públicas em tempos de pandemia, do trabalho profissional do
assistente social na saúde e da relação entre Saúde, Serviço Social
e Ambiente. As discussões contidas nos capítulos, a partir de uma
abordagem crítica e de uma visão de totalidade, indicam diversos
dilemas escancarados pela crise sanitária, a exemplo da baixa qua-
lidade de vários serviços de saúde, da ínfima quantidade de leitos de
Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em alguns estados brasileiros,
da importância e papel estratégico do controle social na defesa do
SUS, das consequências do ensino remoto para a saúde de docentes
e discentes, da questão da saúde mental em meio à pandemia, da

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

integralidade na atenção à saúde da população LGBTI+, da violên-


cia contra as mulheres entre outras expressões da questão social tão
vívidas nos espaços de atuação dos assistentes sociais.
Esta coletânea, ao nosso ver, por meio das ricas análises aqui
contidas, cumpre um papel muito significativo em tempos tão du-
ros. Refletir e discutir é também resistir, e a resistência é uma salu-
tar expressão do viver. Viver de forma criativa e positiva, em busca
da superação do medo tão profundamente instaurado diante da onda
de contágio pelo novo Coronavírus. O medo do vírus, o medo do
desemprego, o medo de tantas outras perdas materiais e imateriais
são partes marcantes do cotidiano presente. Acreditamos que só o
conhecimento é capaz de possibilitar a segurança diante do medo.
Ainda que sejam tempos de grandes perdas, mortes de pes-
soas queridas, rostos conhecidos e tantos outros desconhecidos, é
preciso seguir em frente e potencializar a vida que continua a pul-
sar nos corpos teimosos que persistem e não tombaram diante das
inúmeras dificuldades e da onda avassaladora de contágio. É com
esse espírito que fica aqui o convite para leitura, para um mergulho
que nos anime para os enfrentamentos gerados por esses tempos tão
difíceis.

Belém, outubro de 2020.

Reinaldo Nobre Pontes


Professor do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Universidade Federal do Pará - UFPA

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

SUMÁRIO

Prefácio
Reinaldo Nobre Pontes
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Apresentação
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SEÇÃO 1
SAÚDE E POLÍTICAS PÚBLICAS EM TEMPOS DE PANDEMIA

A PANDEMIA POR COVID-19: inflexões devastadoras para a sociedade


Maria Isabel Barros Bellini, Débora Cristina Bandeira Rodrigues e Nadianna Rosa Marques
- 23 -
COLAPSO NO SISTEMA HOSPITALAR NA PANDEMIA:
a situação dos leitos hospitalares no Brasil
Yunier Sarmiento Ramírez e Aline dos Santos Pedraça
- 43 -

AS ARMADILHAS DO ENSINO REMOTO:


o redirecionamento do ensino superior e as implicações para a saúde
Kátia de Araújo Lima Vallina, Hamida Assunção Pinheiro e Clivia Costa Barroco
- 63 -
POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE INTEGRAL À POPULAÇÃO
LGBTI+ EM MANAUS-AM:
desafios frente à pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2)
Valeria Soares Barbosa e Sandra Helena da Silva
- 81 -
SEÇÃO 2
TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NA SAÚDE

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE PÚBLICA:


aproximações ao trabalho de assistentes sociais em
tempos de pandemia no Brasil
Ana Claudia Lopes Martins, Milena Fernandes Barroso e Taysa Cavalcante Rodrigues
- 101 -

- 13 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE:


demandas e desafios no contexto da pandemia
Vera Lucia Pereira e Yoshiko Sassaki
- 121 -

O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NAS ORGANIZAÇÕES


SOCIAIS DE SAÚDE (OSS) EM TEMPOS DE COVID-19 – BELÉM-PA
Adriana de Azevedo Mathis, Jefferson Franco Rodrigues e Cilene Sebastiana da Conceição Braga
- 139 -
O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL, A PRIVATIZAÇÃO DO
SUS E O DESAFIO DA LIBERDADE COMO VALOR ÉTICO:
uma aproximação
Lucilene Ferreira de Melo e Ruth Pereira de Melo
- 157 -
SEÇÃO 3
SAÚDE, SERVIÇO SOCIAL E AMBIENTE
SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE PANDEMIA:
entre o produtivismo e a produtividade na Universidade
Lidiany de Lima Cavalcante e Etiane Silva Valente
- 175 -
VIOLÊNCIA, SÓ UM PROBLEMA POLICIAL?
Uma análise da prática de assistentes sociais da rede pública de saúde
diante da violência sofrida por mulheres
Tainá Abecassis Teixeira e Iraildes Caldas Torres
- 193 -
PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DEFESA DO SUS:
os caminhos do controle social em Manaus
Suzane Pessoa Aires e Hamida Assunção Pinheiro
- 211 -
MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA, OS IMPACTOS AO MEIO AM-
BIENTE E AS APROXIMAÇÕES DO SERVIÇO SOCIAL AO TEMA
Erica Bomfim Bordin e Jane Cruz Prates
- 231 -
Sobre as orçanizadoras
- 245 -

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Susten-


tabilidade na Amazônia (PPGSS), ainda que em tempos tão ad-
versos profundamente agravados em decorrência da pandemia do
novo Coronavírus que atinge o mundo desde março de 2020, tem
a satisfação de lançar a 3ª. Coletânea que reúne textos de docentes,
discentes e egressos do Programa, bem como de professores de ou-
tras Universidades brasileiras, como é o caso da Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS) e da Universidade
Federal do Pará (UFPA). Vale destacar que a parceria acadêmica
entre UFAM, PUC/RS e UFPA advém desde 2018 quando ocor-
reu a aprovação da pesquisa denominada “A formação e o trabalho
profissional do Assistente Social: aproximações e particularidades
entre Amazônia e Sul do Brasil”, que vem sendo desenvolvida pelas
referidas instituições no âmbito do Programa Nacional de Coopera-
ção Acadêmica – PROCAD/Amazônia, edital no. 21/2018.
Esta coletânea intitulada “Serviço Social e os dilemas da
saúde em Tempos de Pandemia” tem o propósito de discutir alguns
aspectos relacionados às políticas públicas, especialmente à saúde
pública no cenário de pandemia, bem como algumas implicações
desta conjuntura para o trabalho profissional dos Assistentes So-
ciais e a interface da saúde com o ambiente na sociedade capitalista.
Nesse sentido, a obra está estruturada em 3 (três) seções com
distintos eixos temáticos, totalizando um conjunto de 12 textos que
possuem a saúde como fio condutor das discussões. A primeira Se-
ção denominada “Saúde e Políticas Públicas em tempos de pande-
mia” possui 4 (quatro) capítulos, os quais apresentam a pandemia
de COVID-19 no Brasil e algumas das suas especificidades na rea-
lidade brasileira.
O capítulo A Pandemia por COVID-19: inflexões devasta-
doras para a sociedade, de Maria Isabel Barros Bellini, Débora
Cristina Bandeira Rodrigues e Nadianna Rosa Marques aborda da-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

dos estatísticos relacionados à pandemia de COVID-19 referentes


aos estados do Rio Grande do Sul e do Amazonas, num esforço de
demonstrar como a doença afeta a sociedade como um todo, mas
em particular os profissional da área da saúde que estão muito mais
expostos à contaminação pelo vírus e outros adoecimentos ocasio-
nados pelo aumento da intensidade do trabalho e pela precarização
das condições e do ambiente de trabalho durante a pandemia.
O segundo capítulo dessa seção nomeado Colapso no siste-
ma hospitalar na pandemia: os leitos de UTI e a situação no Brasil,
de Yunier Sarmiento Ramirez e Aline dos Santos Pedraça, é um co-
tejamento de dados quantitativos e análises descritivas com a finali-
dade de realizar uma comparação entre as microrregiões do país no
quesito de leitos de UTI. Os autores buscam evidenciar a comple-
xidade de viabilizar quantidades ideais de leitos para a população
dos estados brasileiros diante da enorme crise sanitária vivenciada
na atualidade.
As armadilhas do ensino remoto: o redirecionamento do en-
sino superior e suas implicações para a saúde, de Kátia de Araújo
Lima Vallina, Hamida Assunção Pinheiro e Clivia Costa Barroco,
trata-se de um texto com o intuito de evidenciar como o ensino re-
moto vem se expandindo de modo significativo no cenário de pan-
demia da Covid-19 no contexto brasileiro. As autoras revelam que a
expansão do ensino remoto antecede a pandemia, na realidade está
presente no Brasil desde o fim da década de 1990 e início dos anos
2000 como parte das propostas neoliberais para a área educacional,
entretanto encontra condições bem favoráveis para seu crescimento
na situação de isolamento social imposta pelo avanço da Covid-19.
O texto explicita ainda algumas das implicações do ensino remoto
para saúde de docentes e discentes.
O último artigo dessa seção é intitulado Política Nacional
de Saúde Integral à população LGBTI+ em Manaus/AM: desafios
frente à pandemia do novo Coronavírus (SARS-CoV-2), escrito
por Valéria Soares Barbosa e Sandra Helena da Silva. As autoras
trouxeram a reflexão sobre os desafios da população LGBTI+ no
que tange as demandas pela implementação da Política de Saúde.
Aponta os entraves, como também as consequências do estigma,

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

marginalidade e discriminação, os quais se acentuaram diante do


cenário de pandemia na cidade de Manaus.
A segunda seção, também composta por 4 (quatro) capítulos,
chama-se “Trabalho do Assistente Social na Saúde”. Nesta encon-
tram-se relevantes discussões acerca do modo pelo qual a situação
de pandemia da COVID-19 vem afetando o trabalho dos profissio-
nais de Serviço Social. As reflexões evidenciam que o Assistente
Social possui um trabalho fundamental na política pública de saúde
brasileira, exercendo um papel estratégico para o acesso aos direi-
tos à saúde e tantos outros complementares ao bem estar do usuário.
O primeiro texto dessa seção, de Ana Claudia Lopes Martins,
Milena Fernandes Barroso e Taysa Cavalcante Rodrigues, sob o
título Serviço Social e Saúde Pública: aproximações ao trabalho de
Assistentes Sociais em tempos de pandemia no Brasil, traz à tona o
debate da disputa entre o projeto privatista e o de reforma sanitária
e suas consequências para o trabalho dos assistentes sociais. Numa
perspectiva crítica, as autoras ressaltam que a crise vivenciada na
área da saúde nos dias de hoje não foi ocasionada pura e simples-
mente pela pandemia da Covid-19, mas trata-se de um contexto que
vem se agudizando há algumas décadas como fruto da expansão
capitalista ávida por lucros e que protela as ações de promoção da
saúde.
Vera Lúcia Pereira e Yoshiko Sassaki, no artigo Serviço So-
cial e Saúde: demandas e desafios no contexto de pandemia, dis-
cutem o trabalho profissional do assistente social no contexto de
pandemia, com destaque para as atribuições, competências e prin-
cipais desafios vivenciados no cotidiano de trabalho marcado pela
crise sanitária aprofundada pela pandemia da Covid-19. O capítulo
evidencia a importância da atuação dos assistentes sociais para a
viabilização do acesso dos usuários do SUS aos diversos direitos
sociais que se inter-relacionam com a saúde, numa perspectiva de
intersetorialidade das políticas sociais.
Adriana de Azevedo Mathis, Jefferson Franco Rodrigues e
Cilene Sebastiana da Conceição Braga autores do capítulo Traba-
lho do Assistente Social, nas Organizações Sociais de Saúde (OSS)
em tempos de COVID-19 – Belém/PA discorrem acerca da atuação

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

do Assistente Social nos estabelecimentos de saúde que estão sob a


gestão das Organizações Sociais de Saúde em Belém/Pará. O traba-
lho aborda a precarização das relações e condições de trabalho dos
profissionais de Serviço Social terceirizados no contexto de pande-
mia de COVID19, a partir de dados de fontes oficiais do governo
nas três esferas administrativas, publicações do Sindicato de Traba-
lhadores da Saúde e Sindicato dos Médicos do Pará, bem como da
mídia em geral. Os resultados apontam para um potencial adoeci-
mento dos profissionais que atuam em hospitais geridos pelas OSS,
em decorrência da intensificação do ritmo e controle do trabalho.
A segunda seção encerra com a discussão de Lucilene Ferrei-
ra de Melo e Rute Pereira Melo no capítulo designado O Trabalho
do Assistente Social, a privatização do SUS e o desafio da liber-
dade como valor ético: uma aproximação. O texto volta-se para
a discussão sobre a liberdade como preceito ético e os desafios no
trabalho do Assistente Social no âmbito da saúde pública, os quais
apresentam limites e possibilidades asseverados pela égide neolibe-
ral. Os resultados sinalizaram que apesar do contexto de crise que
coloca o SUS no potencial de privatização, o Assistente Social deve
garantir o exercício profissional pautado nas diretrizes do Projeto
Ético-político, com a garantia da autonomia e liberdade profissio-
nal, na luta pela construção do protagonismo que possa fomentar a
transformação social.
A terceira seção está dedicada para abordagem das inter-re-
lações entre “Saúde, Serviço Social e Ambiente”, estando composta
por 4 (quatro) capítulos que incitam o leitor para a reflexão de te-
máticas correlatas à pandemia, mas que extrapolam a dimensão da
saúde e do trabalho profissional. Assim, são abordagens intrigantes
para pensar os efeitos da pandemia com maior amplitude.
O capítulo Saúde Mental em tempos de pandemia: entre o
produtivismo e a produtividade na Universidade, das autoras Li-
diany de Lima Cavalcante e Etiane de Lima Valente, reflete sobre
a saúde mental no Brasil, abordando o processo de adoecimento
mental de docentes e discentes em universidades públicas, diante
do contexto de imposição do produtivismo e de super exploração
das relações de trabalho no sistema capitalista. O texto analisa ain-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

da, a partir de reflexão teórica, como o período de pandemia pode


contribuir para a elevação do quadro de risco psíquico.
Taina Abecassis Teixeira e Iraildes Caldas Torres contri-
buem com o texto Violência, só um problema policial? Uma análi-
se da pratica de assistentes sociais da rede pública de saúde diante
da violência sofrida por mulheres. As autoras nos brindam com
um texto reflexivo sobre o trabalho profissional desenvolvido no
âmbito da saúde pública em Parintins-AM e situam a abordagem a
partir dos atendimentos do Serviço Social no enfrentamento à vio-
lência contra as mulheres. As ponderações mostraram a relevância
do olhar investigativo e da postura crítica, diante do cenário desa-
fiador de enfrentamento à violência e de fragmentação da rede de
atendimento.
O capítulo Participação social e defesa do SUS: os caminhos
do controle social em Manaus, de Suzane Pessoa Aires e Hamida
Assunção Pinheiro, convidam o leitor para refletir sobre a necessi-
dade no tempo presente da defesa intransigente do SUS, buscando
revelar o importante papel do controle e da participação social, de
forma democrática, a partir dos Conselhos de Saúde em Manaus.
As autoras acreditam que estes instrumentos e espaços são cruciais
para assegurar a permanência do SUS enquanto política pública que
visa universalidade e equidade no atendimento.
Erica Bomfim Bordin e Jane Cruz Prates, em texto intitulado
Modo de produção capitalista, os impactos ao meio ambiente e as
aproximações do serviço social ao tema, nos presenteiam com o
delineamento da discussão feita pelas principais revistas da área
de Serviço Social sobre a questão ambiental. O artigo evidencia
aspectos relevantes da relação entre homem e natureza na sociedade
capitalista de produção, assim como seus impactos para a destrui-
ção da recursos naturais e para produção de desigualdades sociais.
Isto posto, ainda que a conjuntura atual esteja profundamente
marcada pelos números elevados de mortes no Brasil e no mun-
do em decorrência da pandemia da COVID-19, é preciso reiterar
que a Ciência, as Universidades e os Programas de Pós-Graduação
brasileiros têm papel importante no fomento e na construção do
conhecimento, e é com esse espírito que este dossiê foi pensado e

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

elaborado. Assim, acreditamos que é necessário dar continuidade


às reflexões e discussões acadêmicas, não como forma de ignorar o
momento de calamidade que vivemos, ao contrário, como modo de
propiciar formas de resistência e, possivelmente, a formulação de
estratégias criativas de enfrentamento às inúmeras dificuldades que
se apresentam nos mais diversos âmbitos da sociedade.

Hamida Assunção Pinheiro,


Marinez Gil Nogueira Cunha
Lidiany de Lima Cavalcante
Débora Cristina Bandeira Rodrigues

Organizadoras da 3a. Coletânea do PPGSS


Comissão de Coordenação do PPGSS-UFAM

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Seção 1
Saúde e Políticas Públicas
em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A PANDEMIA POR COVID-19:


inflexões devastadoras para a sociedade
Maria Isabel Barros Bellini1
Débora Cristina Bandeira Rodrigues2
Nadianna Rosa Marques3

Introdução
Ao longo da história, as epidemias, endemias e pandemias
(re)produzem na sociedade uma dimensão particular de desorga-
nização em todas as dimensões da vida gerando adoecimento tan-
to físico como psíquico. Ventura (2013) aponta que epidemias são
eventos sociais totais que ameaçam a humanidade de todas as for-
mas: doenças, mal-estar, morte e causam efeitos como: criam de-
sordens, incrementam a violência e o medo (temor ao contágio),
geram estigmas, exacerbam as desigualdades sociais. Em contra-
nitência as respostas ao longo da história a esses eventos têm sido
estabelecidas medidas de proteção e profilaxia, práticas e estudos
científicos, expressões artísticas e literárias, entre outros. Ventu-
ra (2013) aprofunda: para ele, epidemia é uma “evolução brusca,
temporária e significativamente acima do esperado da incidência de
uma determinada doença” (p. 51) e por ser inesperado e violento
“atinge a todos em uma sociedade, sem distinção de classes, desor-
ganizando a vida de uma cidade, e refere-se que tal evento coloca
1 Doutora em Serviço social. Professora do curso de Serviço Social e do Programa de Pós-
-graduação em Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
– PUC-RS e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre trabalho, saúde e Interse-
torialidade (NETSI/PUC-RS). E-mail: maria.bellini@pucrs.br.
2 Pós-Doutora na área de Serviço Social pela PUCRS, Professora associada do Departamen-
to de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade
na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Pesquisadora do Grupo Inter-
disciplinar de Estudos Socioambientais e Desenvolvimento de Tecnologias Sociais na Ama-
zônia (Grupo Inter-Ação/UFAM) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Trabalho, Saúde
e Intersetorialidade (NETSI/PUC-RS). E-mail: deb.band@gmail.com. 
3 Doutoranda em Serviço Social na PUC-RS. Mestra em Serviço Social pela PUC-RS, Pro-
fessora na Universidade Federal de Santa Maria -RS e integrante do Núcleo de Estudos e
Pesquisa sobre Trabalho, Saúde e Intersetorialidade (NETSI/PUC-RS). E-mail: nadianna-
marques@gmail.com.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

os cadáveres na rua, que muda a tal ponto as mentalidades” (VEN-


TURA, 2013, p. 51).
Um exemplo desse tipo de evento ocorreu há mais de 3
décadas com o surgimento da Pandemia de HIV/Aids que levou a
criação de um conceito que incorpora dois focos de forma evidente
e expressa os efeitos de uma situação pandêmica na vida em socie-
dade. São eles:

o surgimento de novos problemas de saúde relacionados a novos


agentes infecciosos; e a mudança de comportamento epidemio-
lógico de velhas doenças infecciosas, incluindo a introdução
de agentes já conhecidos em novas populações de hospedeiros
suscetíveis e outras alterações importantes no seu padrão de
ocorrência (LUNA; SILVA JR., 2013, p. 123).

Acredita-se que a pandemia de coronavírus, ou simplesmente


pandemia, como iremos nos referir aqui, por suas consequências,
riscos e exigências de cuidado e proteção, pode desencadear pro-
cessos de saúde/adoecimento que não são novos, mas que em um
contexto pandêmico se expressam como novidades e exigem ações
inovadoras, que se não realizadas o resultado é o número assustador
de adoecimento e/ou de óbitos.
Essa é a primeira pandemia que tem como característica dra-
mática o crescimento exponencial do contágio, a capacidade do ví-
rus de estar em todos lugares e atingir indiscriminadamente. Depois
de 9 meses desde seu início seguimos sem uma vacina reconhecida
e revisões quanto à obtenção oscilam diariamente. No Brasil, em
meados de setembro, as notícias indicam mais 131.633 mil mor-
tos, um número médio de mil mortes por dia e mais de 4 milhões
de contaminados pela covid-19. Ainda estamos à deriva em mar
revolto. Frente ao inédito, inesperado e dramático cenário criado
pela pandemia, este artigo, elaborado em parceria por docentes pes-
quisadores de diferentes Instituições de Ensino Superior (IES) do
norte e do sul do Brasil, problematiza a pandemia de coronavírus
e sua expressão em dois estados, Rio Grande do Sul e Amazonas,
localizados em regiões opostas no mapa do Brasil, tendo realidades
diversas, e enfrentam a pandemia e as futuras sequelas deste trágico
momento para a população em geral.

- 24 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Da ubiquidade do vírus à solidão das mortes


Sabe-se que os fenômenos na área da saúde desencadeados
em forma de pandemias, endemias, desastres naturais são reflexos
de fatores demográficos, socioeconômicos e ambientais, e que po-
tencializam positiva ou negativamente a organização e desempe-
nhos dos sistemas de saúde nas áreas atingidas. Compreende-se
que os resultados de uma epidemia e/ou pandemia são devastadores
para toda sociedade, pois são abruptos e podem causar impactos
físicos, mentais e sociais para toda a população, sem distinções.
Acrescenta-se que a pandemia de coronavírus tem ainda uma ca-
racterística dramática, a solidão! As pessoas infectadas não podem
receber visitas, os familiares não podem acompanhar a internação,
os profissionais estão cobertos da cabeça aos pés, o rosto tapado
por máscaras, o que pode criar um distanciamento entre equipe e
paciente e, em caso de óbito, o velório não é permitido e o caixão
desce sem velas ou sem flores. Outra característica importante é
a ubiquidade da ameaça, ou seja, a capacidade de estar em todos
lugares, em todas as pessoas, em todas as coisas. É a onipresença
do vírus! Isso não significa que o vírus seja democrático, pois ainda
que ele esteja em todos os espaços, em alguns terá mais chances de
se reproduzir, e esses espaços são aqueles que não têm um bom sa-
neamento básico, as condições de tratamento e distribuição de água
potável são precárias, são precários ou inexistentes o tratamento e
drenagem de esgoto, entre outras condições de vida.
As epidemias/pandemias são eventos que apresentam evo-
lução rápida e exigem respostas rápidas, preferencialmente ainda
durante o evento, nas investigações, na busca de dados, nas análi-
ses e na organização e planejamento das ações de enfrentamento e,
principalmente, elas não fazem distinção entre os segmentos da po-
pulação – as distinções são determinadas pelas condições para o en-
frentamento desses eventos. Nessa perspectiva, a Organização das
Nações Unidas (ONU) reconheceu que a pandemia de coronavírus
é uma ameaça sem precedentes e sem limites geográficos, colocan-
do em risco a vida e a economia global, ainda que vários planos
tenham sido criados para o atendimento às populações mais vulne-
ráveis. A pandemia atinge países com crises humanitárias onde as

- 25 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

populações já vivem em condições extremamente precárias, expos-


tas a todos tipos de riscos, violências, guerras, incrementando toda
tragicidade possível nesse momento.
Sem exceção, Europa, África, América, Ásia e Oceania es-
tão atravessando momentos de extrema tensão com governantes e
populações que tanto seguem como ignoram as orientações quanto
aos cuidados, isolamento etc. Diretor do Center for Communicable
Disease Dynamics (CCDD), da Universidade de Harvard, o epide-
miologista Marc Lipsitch estima que uma pessoa infectada pode
contaminar duas ou três outras pessoas, o que significa que é um
vírus extremamente contagioso. Analisando os riscos de contágio,
em janeiro de 2020 pesquisadores da Universidade de Hong Kong
avisaram que o coronavírus poderia vir a ser uma epidemia global,
o que acabou se confirmando rapidamente.
 Assim como os desastres de grande expressão, a pandemia
atinge pontualmente grupos, populações, provoca rupturas imensas
nos cotidianos, ceifa vidas, esgota recursos, destrói ambientes, exi-
ge outras formas de organização. Para Marques,

O significativo aumento da ocorrência em desastres na sociedade,


originados por fenômenos da natureza, e/ou provocados através
da ação humana geram múltiplos impactos sociais, políticos e
econômicos, tornando-se um alerta à sociedade e à saúde pública.
A dramaticidade dos dados é reiterada pela Associação Médica
Brasileira (2012) que aponta que, no século XX, cerca de 3,5
milhões de pessoas perderam a vida em catástrofes naturais, e
mais de 200 milhões morreram em desastres causados pelo ho-
mem, como genocídios, conflitos civis e militares (MARQUES,
2018, p. 12).

O Brasil tem sido atingido cada vez mais por desastres pro-
vocados pela ação humana: inundações, incêndios, rupturas de
barragens. Autores que têm como objeto de estudo esses grandes
eventos explicam que o aumento das ocorrências se deve a fatores
diversos, como:

ausência de planejamento de uso e ocupação do solo, alterações


climáticas, rapidez e uso intenso dos meios de transporte, disse-
minação de tecnologia de risco, atentados terroristas, governança
local fragilizada, vulnerabilidade social e do ambiente natural

- 26 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ou construído, padrões de construção inseguros, deterioração ou


ausência de infraestrutura e serviço de emergência inexistente ou
despreparado (GÜINTER, 2017 apud MARQUES, 2018, p. 12).

 Marques (2018) revela que os estudos apontavam a


necessidade de harmonia entre o homem e o ambiente e subsidia-
ram a prevenção e os cuidados à saúde até o final do século XIX,
com os avanços tecnológicos e científicos e com a instituição de es-
tudos na área bacteriológica e da imunologia (MARQUES, 2018).
De acordo com as normativas da Política Nacional de Prote-
ção e Defesa Civil, situações de endemia, epidemia e pandemia são
classificadas como desastres naturais. Diante de situações de desas-
tres/pandemias compreende-se que a população acometida torna-se
duplamente vulnerável, necessitando da articulação das políticas
públicas para o enfrentamento das situações, pois as políticas so-
ciais se definem como a linha de ação coletiva que concretiza os
direitos sociais declarados e garantidos em leis (PEREIRA, 1996).
Sob essa perspectiva, afirma-se que uma situação de pandemia /de-
sastre/catástrofe por seus múltiplos aspectos e impactos é objeto de
responsabilidade de todas as políticas sociais públicas, sendo que
todas devem ser mobilizadas e articuladas a fim de que desenvol-
vam suas ações de forma conjunta e que, se necessário, convoquem
a participação de outros setores como voluntários, setores privados
e organizações governamentais e não governamentais. Se, segundo
Zylberman (p. 34, 2012), uma crise sanitária “é uma crise epide-
miológica, médica e também, indissociavelmente, uma crise políti-
ca e uma crise de governo [...] política (poder, violência, coerção)
e do governo (estrutura do Estado, comportamento dos governan-
tes)”, é possível afirmar que estamos vivendo no Brasil o impacto
e os efeitos de uma crise sanitária que se expressa no campo social,
econômico e político. Essa crise se acirra pela

histórica desigualdade social e com anos de destruição do SUS


[mas que não podemos ignorar a existência de resistências, como
trataremos adiante], coloca no horizonte imensas dificuldades
de se pensar um futuro tranquilo para esse quadro desolador
que a Pandemia tem gerado nos países onde, antecipadamente,
já passou. (MATOS, 2020, p. 1).

- 27 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

No Brasil, a pandemia de coronavírus foi reconhecida pelo


Senado em 20/03/2020 como estado de calamidade pública através
do Decreto nº 6/2020. Diversas medidas e tomadas de decisões em
uma “força tarefa” foram articuladas: isolamento social, fechamen-
to do comércio (permanecendo apenas serviços essenciais), o esta-
belecimento da Lei no.13.892/2020 (que prevê o pagamento de um
auxílio emergencial de R$ 600,00 aos trabalhadores de baixa renda
prejudicados pela pandemia) e a instituição da Medida Provisória
n° 944, de 2020 (Programa Emergencial de Suporte a Empregos)
que estabelece uma linha de crédito de R$ 34 bilhões para garantir
o pagamento dos salários em empresas com receita anual entre R$
360 mil e R$ 10 milhões. Uma das estratégias lançada em 17 de
abril pelo Ministério da Saúde (MS) e a Organização Pan-ameri-
cana de Saúde (OPAS) a fim de amenizar os efeitos negativos da
pandemia na saúde mental dos brasileiros foi a socialização de 08
vídeos principalmente voltados aos profissionais de saúde, familia-
res e cuidadores de pessoas idosas, população idosa, pais e crian-
ças. A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconheceu que os
profissionais de saúde precisam de suporte para o enfrentamento
da situação de trabalho a que estão expostos e foram criadas ações
através do sistema de telemedicina e telessaúde a fim de dar suporte
aos profissionais na linha de frente (OPAS, 2020).
Inicialmente, foram seguidas as orientações da OMS quan-
to a isolamento, orientações médicas, cuidados preventivos, ca-
pacitação de profissionais, ampla divulgação de informações etc.
Fato que somou na demissão do ministro da pasta da saúde, Luís
Henrique Mandetta, pelo Presidente da República Jair Bolsonaro,
no dia 16 de abril de 2020, em pleno crescimento dos números de
contágios, sob a alegação de que o ministro não atendia mais os
interesses do presidente. Atualmente, o Ministério da Saúde é co-
mandado por Eduardo Pazuello, nomeado no dia 16 de setembro de
2020, militar que não tem formação na área da saúde (GAÚCHA
ZH POLÍTICA, 2020).
Quanto aos trabalhadores da saúde, os que estão na “linha
de frente”, no atendimento direto à população afetada, o MS con-
siderou que o número é insuficiente tanto pela atual situação que o
SUS enfrenta com número reduzido de profissionais, quanto pela

- 28 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

previsão de adoecimento de profissionais da saúde. A previsão ini-


cial realizada pela OMS de que 40% dos trabalhadores da saúde se
afastariam durante a pandemia fomentou a publicação da Portaria
nº 639  (31/03/2020) dispondo sobre a ação Estratégica “O Brasil
Conta Comigo – Profissionais da Saúde”, voltada ao cadastramento
e capacitação de diferentes categorias profissionais que atuam na
saúde para o enfrentamento à pandemia. O que exigiu novamen-
te uma prontidão dos governantes, da rede de serviços, das polí-
ticas públicas, dos profissionais, dos gestores e da sociedade em
geral. Envolvidos visceralmente, os profissionais da rede de saúde
estão nas trincheiras do atendimento à população, enfrentando o
nunca visto em uma doença infecciosa cujo processo de contágio é
exponencial, rápido e letal comparado com outras doenças viven-
ciadas. 

O Brasil e a pandemia de norte a sul


  O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1990, vem,
desde a sua criação, encontrando reconhecimento nacional e inter-
nacional, entre ataques e defesas, desafios e contradições. Atual-
mente enfrenta os impactos da crise sanitária desencadeada pela
pandemia. Testado no seu limite, o SUS foi destacado na fala do
ex-ministro da saúde Luís Henrique Mandetta: “façam uma defesa
do SUS, da vida e da ciência”, e identifica-se na fala de diversos
gestores a preocupação com a superlotação do sistema de saúde,
fato recorrente em outros países com sistemas de saúde melhores
ou piores que o brasileiro (GAUCHAZH, 2020).
Nessa direção, Gastão apud Guimarães (2020) afirma: “Um
efeito inesperado do Coronavírus é o fortalecimento dessa ideia de
que a atenção e o cuidado à saúde precisam estar fora do mercado.
Cresce, no Brasil e no mundo todo, um reconhecimento da impor-
tância desses sistemas públicos” ( 2020, p. 1). O destaque posi-
tivo de um sistema público e universal que tem como premissa o
direito à saúde como direito à vida é defendido por trabalhadores
e pesquisadores da saúde. Para a professora-pesquisadora da Esco-
la Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, Fonseca apud
Guimarães (2020), é ingenuidade, “acreditar que o enfrentamento
dessa epidemia no Brasil poderia se dar fora de um sistema públi-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

co, fora de um Sistema Único de Saúde como é o SUS” (Fiocruz,


2020), e acrescenta que este é um “sofrimento coletivo” sendo fun-
damental estruturas estáveis para evitar os jogos mercadológicos
de interesses e lucros. Cita como exemplo o aumento abusivo do
preço do álcool gel e de outros produtos necessários para a prote-
ção das pessoas, como máscaras e luvas. Para estes pesquisadores
da saúde deve-se consolidar o reconhecimento da saúde como um
bem comum, o que foi proposto pelo SUS há mais de 3 décadas e
que é constituído de vários setores, sendo um deles o campo dos
profissionais que trabalharam/trabalham nas ações desenvolvidas.
Profissionais que têm sido atingidos pontualmente pela pandemia
(FIOCRUZ, 2020).
Considerando as dimensões da pandemia e a fim de aden-
sar a discussão, o artigo em tela está delimitado aos estados do
Amazonas e do Rio Grande do Sul, os quais estão localizados em
regiões opostas, sul e norte, apresentam realidades diferentes desde
as condições climáticas, características socioeconômicas e culturais
da população, densidade populacional, organização do sistema de
saúde e contingente de profissionais que atuam na rede de saúde
etc. Contingente de profissionais que atua diretamente na constru-
ção da Cadeia do Cuidado Progressivo à Saúde, que:

supõe a ruptura com o conceito de sistema verticalizado para


trabalhar com a ideia de rede, de um conjunto articulado de
serviços básicos, ambulatórios de especialidades e hospitais
gerais e especializados em que todas as ações e serviços de saúde
sejam prestados, reconhecendo-se contextos e histórias de vida
e assegurando adequado acolhimento e responsabilização pelos
problemas de saúde das pessoas e das populações (BRASIL,
2007, p. 13).

Busca-se com esse artigo avançar com produções que pos-


sam contribuir para o aprofundamento do conhecimento em saúde
frente a uma pandemia, acrescentando a importância da interação
entre universidade e política pública, vinculando acadêmicos, do-
centes, gestores e trabalhadores da rede de saúde, tornando possível
um processo contínuo de discussão e reflexão sobre as experiências
teórico-práticas, adensando e aprofundando o conhecimento sobre
a realidade. Acredita-se que essa interação possibilitará a interven-

- 30 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ção nas vulnerabilidades de ordem individual, social e institucio-


nal, com ênfase para a prevenção de processos de adoecimento que
podem se expressar em doenças, violências, medicalização, uso de
drogas, riscos em ambientes, isolamentos, ansiedade, depressão,
dentre outros. A seguir será apresentada a caracterização de cada
estado com informações sobre a pandemia sabendo que, quando
este artigo estiver sendo lido, a realidade será completamente di-
ferente. 

A pandemia no Rio Grande do Sul


O Estado do Rio Grande do Sul (RS), devido à emergência
sanitária, causada pela pandemia, decretou estado de calamidade
pública no dia 19/03/2020. Posteriormente o decreto legislativo
definiu restrições e medidas adotadas a fim de “controlar” a disse-
minação e propagação da doença. Medidas adotadas pelo RS: “Dis-
tanciamento Controlado”, via Decreto no. 55.240 de 10/05/2020,
monitoramento realizado com base em critérios de saúde e de ati-
vidade econômica e marcado com sistema de bandeiras que são
classificadas conforme o grau de risco de cada região (amarela, la-
ranja, vermelha e preta) (SES, 2020). O monitoramento das ações
é gerenciado por um “Gabinete de Crise”, instituído via Decreto
Municipal n° 2.698/2020 de 03/2020, estabelecendo medidas com-
plementares de prevenção ao contágio no âmbito da administração
pública. A classificação das regiões é realizada com base no grau
de risco, levando em consideração o número de casos confirmados
e número de leitos de UTI disponíveis. Essa classificação é moni-
torada semanalmente e divulgada geralmente na sexta-feira. Dessa
forma, a classificação da bandeira ocorre conforme o risco: se o
risco da região for menor, essa classificação passa a valer a partir da
meia-noite de sábado, e se a região apresenta recursos (como leitos
de UTI) e estrutura de recursos humanos para atendimento, poderá
haver uma nova classificação na segunda-feira, com vigência a par-
tir de terça-feira (SES, 2020).
Conforme site da Secretaria Estadual de Saúde do RS, de-
nominado Painel do Coronavírus, espaço para monitoramento e
divulgação dos dados, a orientação é de que, independente da ban-
deira classificada, os protocolos gerais devem ser respeitados por

- 31 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

todos os municípios. Até o momento da coleta dos dados, primeira


semana de setembro de 2020, o RS possuía 157.907 casos confir-
mados, apresentando uma incidência de 1.387,9 (para cada 100.000
habitantes), 4.080 óbitos e a mortalidade devido à contaminação
apresenta uma incidência de 35,9 (para cada 100.000 habitantes),
apresentando uma letalidade de 2,7%. Um aspecto importante para
compreender o cenário da pandemia no RS é avaliar a capacida-
de de atendimento relacionando leitos de internação UTI e o seu
percentual de ocupação. Dessa forma, seguem abaixo esses dados
sistematizados (SES, 2020).

Quadro 1 – Informações sobre leitos UTI/ Respiradores no RS*


Relação de Leitos UTI/ Total/ Ocupação Percentual de ocupa-
Respiradores Leitos ção
Leitos SUS 1.808 1.344 74,3% de ocupação
SUS
Leitos Privados 721 603 83,6% de ocupação
privados
Leitos covid-19 fora de 6.234 1.535 24,6% Taxa de ocupa-
UTI adulto ção confirma
Respiradores em UTI 2.529 47,2% Taxa de uso
1.193
adulto de respirador na UTI
adulto
*Quadro elaborado pelas autoras com base nas informações divulgadas
pela SES acessado em: https://covid.saude.rs.gov.br/, informadas no dia
04 de setembro de 2020.

O Quadro 1 demonstra que a pandemia vem sendo enfren-
tada em grande parte pelos serviços públicos, em especial o Sistema
Único de Saúde (e em especial com os profissionais que atuam na
linha de frente), com papel central desde o cuidado, monitoramento
em saúde ao controle epidemiológico. Salienta-se que em uma si-
tuação de epidemia/pandemia/desastres / emergências de qualquer
origem e magnitude a política de saúde tem a responsabilidade de
prover a proteção da saúde da população (FIOCRUZ, 2019). Sendo
assim, o Ministério da Saúde, as secretarias estaduais e municipais
de saúde, devem prever em seus Planos de Saúde as capacitações
técnicas e recursos de enfrentamento a situações de emergências e

- 32 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

desastres, com a capacidade de responder e reduzir ao máximo pos-


sível estruturas temporárias, improvisações e adoção de soluções de
curto prazo. Manuais de preparo para o setor da saúde, publicados
pela OPAS, orientam e apontam mecanismos e organizações frente
às emergências e desastres, a fim de melhorar a capacidade de res-
posta e o enfrentamento nessas situações, levando em consideração
os níveis nacionais, estaduais (subnacionais) e municipais (locais).
A Secretaria Estadual da Saúde/SES/RS em abril de 2020 consi-
derou insuficiente o contingente de profissionais da rede de saúde
para enfrentar a pandemia, indicando a necessidade de contratação
adicional de profissionais conforme informa a página da SES. Na
primeira semana de abril haviam sido chamados aproximadamente
13 técnicos em enfermagem e para a terceira semana de abril o cha-
mamento de 20 médicos reguladores.
O primeiro caso confirmado de covid-19 em profissional
de saúde no RS ocorreu em Porto Alegre, no dia 13 de março. Em
junho, o governo publicou dados sobre a contaminação de profis-
sionais da saúde no RS por covid-19: até setembro 4,4 mil profissio-
nais da saúde apresentaram diagnóstico positivo em 257 municípios
do RS. Dados anteriores apontam, em junho, 477 casos confirma-
dos e 2.283 casos em julho, mostrando uma progressão assustadora.
Levantamento realizado pelo jornal Correio do Povo apon-
ta que 11,8% do total de casos confirmados são de profissionais da
saúde e até o início de julho 38,18% desses profissionais tinham
sido afastados dos postos de trabalho devido à exposição à pande-
mia: médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e funcionários
vinculados aos setores administrativos das unidades de saúde. Os
motivos para afastamento: suspeita e/ou a confirmação da doença,
afastamentos preventivos de funcionários pertencentes a grupos de
risco e funcionários que apresentaram sintomas gripais (HUBLER,
2020). Conforme o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN),
o RS é o 5° Estado com maior número de profissionais de enfer-
magem com casos de covid-19. Os principais hospitais do Estado,
referência para internações no enfretamento da pandemia da co-
vid-19 – Grupo Hospitalar Conceição (GHC) e Hospital de Clínicas
–, até a primeira semana de julho apresentavam em seus quadros
645 funcionários afastados (GHC) e 285 funcionários afastados no

- 33 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Hospital de Clínicas. Destes, 651 casos foram confirmados por co-


vid-19, número expressivo e preocupante, que reflete diretamente
na capacidade técnica de saúde púbica de enfrentamento à Pande-
mia (HUBLER, 2020).
Os profissionais da área da saúde atendem cotidianamen-
te em um sistema de saúde colapsado, com falta de investimento
em hospitais, em UTIs, em respiradores e demais equipamentos.
Na área da assistência social, o quadro de recursos humanos exige
ampliação, visto que a população mais atingida pela covid-19 é a
população vulnerável economicamente, acometida pelo desempre-
go, subemprego, ausência de moradia, de abastecimento de água
e saneamento básico. Considerando o contexto social brasileiro
demarcado pelo não acesso da população às políticas sociais e de
condições inadequadas de confinamento e higiene, a pandemia se
configura um desastre de grandes proporções em que o número de
óbitos e o número de atingidos/infectados aumenta a cada semana
de forma assustadora. A declaração de Estado de Emergência con-
firma o impacto econômico que desencadeou uma desestabilização
social generalizada (em nível nacional, estadual e mesmo munici-
pal).

A pandemia no Amazonas
Falar de Amazônia requer a compreensão de um espaço plu-
ral, diverso e heterogêneo, seja em sua exuberância e riqueza dos
recursos naturais, no complexo da biodiversidade, seja no universo
de povos e culturas, enfim, num mosaico que não permite entendê-
-lo de maneira homogênea. A diversidade de povos que compõem a
Amazônia, as diversas particularidades culturais, sociais, econômi-
cas e ambientais colocam o estado e as autoridades competentes em
alerta para os riscos e combate, no momento, da pandemia. 
No Amazonas, devido à emergência sanitária, foi decreta-
da situação de emergência na saúde pública do Estado e instituído
o Comitê Intersetorial de Enfrentamento e Combate à covid-19,
através do Decreto nº 42.061, de 16 de março de 2020. O Decreto
colocou uma série de restrições e medidas que passaram a ser ado-
tadas a fim de “conter e controlar” a disseminação e propagação da
doença. Sendo a situação de calamidade pública mantida através

- 34 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

do Decreto no. 42.100 de 23.03.2020, uma das medidas adotadas


pelo governo do Amazonas para controlar a propagação do vírus
foi a suspensão do funcionamento de todos os estabelecimentos co-
merciais e de serviços não essenciais e destinados à recreação e
lazer, conforme o artigo 2º do Decreto nº 42.101, de 23 de março
de 2020. As medidas de suspensão das atividades e de isolamento
social foram revogadas no Amazonas a partir do Decreto nº 45.452
de 01/07/2020, revogando o inciso II do artigo 1º do Decreto nº
42.330, de 28 de maio de 2020. Até o momento da finalização deste
artigo, primeira semana de setembro de 2020, o Amazonas possuía
– conforme divulgação da Fundação de Vigilância em Saúde do
Amazonas (FVS-AM), no dia 13 de setembro de 2020, do Bole-
tim Diário Covid-19, edição nº 165 – mais 193 casos da doença no
Amazonas, sendo 168 detectados por testes rápidos, 25 são novos
casos detectados por RT-PCR, sendo 14 no interior do estado e 11
na capital, os dados são referentes as últimas 24 horas. Confirmados
quatro óbitos ocorridos nas últimas 24 horas, sendo um em Manaus
e três no interior do estado, elevando para 3.892 o total de mortes,
como pode ser visualizado na tabela a baixo. 

Tabela 1 – Óbitos no Amazonas – Período de março a setembro de 2020

Capital do Amazonas – Manaus 2.428


Interior do Amazonas 1.464
Total 3.892
Fonte: FVS/AM, 2020.

O boletim da FVS/AM acrescenta ainda que 14.999 pessoas


com diagnóstico de covid-19 estão sendo acompanhadas, o que cor-
responde a 12% dos casos confirmados ativos e recuperados mais
249 amazonenses nas últimas 24 horas, chegando a 105.369 o nú-
mero de pessoas recuperadas, quantidade que representa 84% dos
casos confirmados da doença. Entre os casos confirmados na data
de 08/09/2020, havia 206 pacientes internados, sendo 121 em leitos
clínicos (23 na rede privada e 98 na rede pública) e 85 em UTI (29
na rede privada e 56 na rede pública). Há ainda outros 79 pacientes
internados considerados suspeitos e que aguardam a confirmação

- 35 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

do diagnóstico. Desses, 52 estão em leitos clínicos (32 na rede pri-


vada e 20 na rede pública) e 27 estão em UTI (18 na rede privada e
nove na rede pública). 
O número de leitos e UTIs no Estado pode ser visualizado no
gráfico a seguir.

Gráfico 1 – Número de leitos covid-19 no Amazonas

Fonte: Governo do Amazonas, 2020.

Conforme reportagem do jornal Atual Amazonas


(17/05/2020), o estado ampliou a rede de atendimento e criou, na
ocasião, 1.138 leitos exclusivos para covid-19. De acordo com a
Secretaria de Saúde do Amazonas, só nas unidades gerenciadas
pelo Estado (SUSAM) em Manaus, foram criados 1.138 leitos para
covid-19 – 816 leitos clínicos, 243 de Unidade de Terapia Intensiva
(UTI) e 79 de Sala Vermelha4. O aumento foi de 65,7% comparado
com os 639 leitos do início da pandemia. Quanto aos profissionais
da área da saúde no Estado do Amazonas, o número de diagnos-
ticados com covid-19 chegou a 6.737 (FVS-AM em entrevista ao
Jornal Atual Amazonas), publicados em 24/07/2020. Do total de
casos confirmados na categoria, 6.695 se recuperaram, e 19 vieram
a óbito. Neste período foram testados 20.709 profissionais de saúde
no Estado.
Conforme OMS/OPAS, a organização está ajudando o Brasil
a ampliar a capacidade de diagnóstico, disponibilizando cursos vir-
4 De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde (Susam) em publicação oficial de
18/05/2020, o Hospital Pronto Socorro 28 de Agosto implantou 13 leitos de sala vermelha
equipados com suporte para pacientes que chegavam em estado crítico, incluindo respirado-
res, ampliando o fluxo de atendimento.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

tuais em português para profissionais de saúde. Em apoio às ações


do Ministério da Saúde quanto à capacidade de vigilância no mu-
nicípio de Manaus e no estado do Amazonas, foram contratados 23
enfermeiros, 2 profissionais de biotecnologia, 4 farmacêuticos, 3
biólogos, 6 técnicos de enfermagem e 9 datilógrafos.
A capital do Amazonas viveu momento de necessidade ex-
trema na área da saúde, no qual inúmeras pessoas demandavam por
hospitalização e a capacidade de atendimento hospitalar estava no
limite, o que somou na decisão do MS iniciar em Manaus o desloca-
mento dos primeiros profissionais cadastrados no Programa Brasil
Conta Comigo, lançado no início de abril, com o objetivo de auxi-
liar estados e municípios nas ações de enfrentamento ao coronaví-
rus. Sobre isso o então secretário-executivo do MS, Jõao Gabbardo,
afirmou, em reportagem de abril de 2020, que o Amazonas seria “o
primeiro estado que vamos fazer convocação dos voluntários que se
cadastraram. Em Manaus temos mais de 1 mil enfermeiros, cadas-
trados no Conselho Federal de Enfermagem, além de 80 médicos
cadastrados no Conselho Federal de Medicina”.
No momento de elaboração deste artigo, a FVS-AM atra-
vés do Boletim Diário Covid-19, edição nº 165, em 13/09/2020,
confirma a recuperação de mais 250 amazonenses nas últimas 24
horas, chegando a 107.951 o número de pessoas recuperadas da
covid-19 no estado. Essa quantidade representa 84% dos casos con-
firmados da doença. A consolidação dos casos notificados no Ama-
zonas é realizada pela FVS-AM a partir de informações obtidas em
três sistemas: e-SUS Notifica, Sistema de Informação da Vigilância
Epidemiológica da Gripe (Sivep-Gripe) e o Gerenciador de Am-
biente Laboratorial (GAL), até às 10 horas de cada dia. Em Manaus,
foram notificados 137.186 casos, enquanto, no interior do estado,
o número chega a 175.164, divulgado no boletim da FVS do dia
12/09/2020. Dos 127.132 casos confirmados no Amazonas até este
domingo, 13/09/2020, 45.396 são de Manaus (35,71%) e 81.736 do
interior do Estado (64,29%). Nesta edição do Boletim da FVS, 28
municípios do Estado do Amazonas não atualizaram o sistema de
informação para consolidação dos dados do boletim.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Considerações finais
Na esteira do presente da pandemia e do futuro da pós-pan-
demia, este artigo apresenta dados parciais sobre a realidade de 02
estados brasileiros no enfrentamento do coronavírus, os impactos
numéricos do contágio, dos óbitos nestes meses desde a descoberta
do vírus no Brasil. É uma contribuição para refletir sobre o efeito
da pandemia e da insuficiência do nosso conhecimento para vencer
um vírus desconhecido e produzido em laboratórios. Vírus que é
mais mortal conforme as desigualdades no acesso a recursos de saú-
de, quando a pandemia e seus impactos são minimizados por legis-
ladores e quando as questões econômicas sobressaem ao direito à
vida. Em relação à saúde, em especial a saúde dos profissionais que
estão na linha de frente, e sobre os contágios e impactos nas suas
vidas e na saúde, sabe-se que estes podem se expressar em sintomas
físicos que podem levar à morte, mesmo que os profissionais usem
os equipamentos adequados. Assim como existem outros impac-
tos em nível emocional e que se expressam em diversas formas de
sofrimento: depressão, dores físicas/crônicas, isolamento, falta de
ânimo, abuso de álcool/medicação, término de relacionamento/rup-
turas afetivas, aumento de conflitos interpessoais, má alimentação,
estresse, alteração do sono, desenvolvimento de ansiedade, pânico,
medo, angústia, quadros confusionais, somatizações, resistência/
oposição, risco de suicídio, dentre outras.
Considerando que a política de saúde a exemplo das políticas
sociais brasileiras traz embutida as contradições que resultam de
determinações políticas, culturais e econômicas que se repetem/edi-
tam/reeditam na história desse país, afira-se que o reconhecimento
destas contradições pode diminuir o risco de interpretações caolhas
da realidade, de análises despolitizadas que se encerram no aparen-
te e imediato. Assim, ao enfatizar os processos de adoecimento e
nos óbitos dos profissionais de saúde o artigo pretende contribuir
para o fortalecimento da Política de Saúde/Saúde do Trabalhador
na proteção dos recursos humanos no enfrentamento de desastres,
pandemias e calamidades públicas.
Neste momento da pandemia, considera-se fundamental o
governo incrementar estratégias para o fortalecimento das políticas
sociais públicas, em especial da rede de saúde e, consequentemen-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

te, dos profissionais e das organizações dos trabalhadores. Não há


ainda, elementos para medir ou prospectar qual será o impacto final
da pandemia, seja na saúde seja na economia do país, porém já é
possível afirmar  que será brutal, e que as perdas serão inúmeras.
Há quem compare a situação com a II Guerra Mundial, há quem
anuncie que será pior... Aprender com a história, aprender com essa
gravíssima situação de saúde pública e propor caminhos e possibi-
lidades de enfrentamento. 

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MINISTÉRIO DA SAÚDE POR NOVOS LEITOS E SERVIÇOS
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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

COLAPSO NO SISTEMA HOSPITALAR NA


PANDEMIA:
a situação dos leitos hospitalares no Brasil
Yunier Sarmiento Ramírez1
Aline dos Santos Pedraça2

Introdução
A crise na saúde pública atual não é reflexo de um problema
recente, mas recorrente, pois é de conhecimento geral a necessidade
de adequações nos sistemas de saúde. O que acontece é que se poster-
gam as ações, e os problemas se acumulam, o que passa a ser evidente
em momento de extrema necessidade. Com o aumento da população,
acresce a concentração de pessoas nas grandes cidades e aumenta a
expectativa de caos social, o que ativa o surgimento de novas formas
de doenças, que afetam o sistema de saúde. A situação piora devido
à falta de políticas públicas que determinem padrões de qualidade de
vida para as pessoas, principalmente aquelas que vivem em regiões
de vulnerabilidade social e que são fortemente impactadas e geram
instabilidade e descrédito para o sistema que deveria estar apto para o
infortúnio.
Teixeira (2018) destaca que nem a sociedade nem o Estado
brasileiro têm visto o projeto da Reforma Sanitária Brasileira (RSB)
como uma prioridade e a opção pelo Sistema Único de Saúde – SUS
como política prioritária. Devido aos boicotes sofridos, por vários vie-
ses, desde a Constituição de 1988, destaca-se como desafio conciliar a
RSB para a consolidação do SUS, enquanto sistema de saúde público,
universal, igualitário, integral e de qualidade, que fica na utopia, care-
cendo de meios para se sustentar e atuar de forma mais austera, o que
precisa ter resposta séria e consistente por parte do Estado.
1 Professor Visitante do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia
(PPGSS) da Universidade Federal do Amazonas. Graduado em Economia. Mestre em Gestão e Doutor em
Ciências Econômicas. E-mail: yunier.sarmiento@gmail.com.
2 Doutoranda em Ciência da Educação pela UNIT Brasil – Universidad del Sol – UNADES. Mestre
em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia (PPGSS) pela Universidade Federal do Amazonas.
Graduada em Serviço Social. Integrante do Grupo de Pesquisa Laboratório de Gênero – UFAM. E-mail:
alinepedraca7@gmail.com.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A crise sanitária causada pela covid-19 destaca a fragilidade


do sistema de saúde e o despreparo para situações adversas, e quan-
do se amplifica o olhar para regiões mais favorecidas essa tendência
de descaso só cresce pela ausência de resposta do Estado para a
consolidação do direito à saúde com qualidade e promoção de opor-
tunidades de socorro para situações mais extremas. A sociedade an-
seia por proteção, no campo da saúde, sem que seja pela perspectiva
da emergência forçada e sim pela disponibilidade de acesso, pelo
menos aos tratamentos básicos.
O objetivo principal deste texto é apresentar uma compara-
ção da situação dos leitos de UTI no nível das macrorregiões e esta-
dos do Brasil. O estudo destaca a perspectiva de acesso aos sistemas
de saúde da população em situações de regionalidade, fazendo um
comparativo das regiões do país, observando os aspectos em nível
de Brasil plural e regional, destacando as diferenças, ao que se refe-
re o acesso aos leitos de UTI.
O estudo tende a utilizar metodologias quantitativas, como
uso de dados estatísticos que destacam as diferenças das quantida-
des de leitos nas regiões, projetando para a pouca efetividade das
políticas públicas que acionam as demandas, mas que nos últimos
10 anos não providenciou leitos para situações pontuais e vai se
agravando para situações excepcionais, contrapondo ao que a Or-
ganização Mundial da Saúde (OMS) determina para esse tipo de
déficit dentro do sistema de saúde. A ideia é correlacionar os dados
e identificar fatores de impacto nessas demandas para sugerir dis-
cussões que promovam estabilidade e que possibilitem que o siste-
ma se reconfigure para atender mais prontamente às demandas de
saúde.
A pandemia que se vivenciou nos últimos meses acende um
alerta sobre as políticas paliativas e sobre a questão da saúde pú-
blica no Brasil, demandando assim a inclusão de políticas sérias de
adequação do sistema para se manter apto a novas formas de infec-
ção, que possivelmente virão. Independente de acontecer ou não, o
sistema de saúde tem que estar preparado para subsidiar respostas
de salvamento e proteção para a população que utiliza os serviços
de saúde.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Covid-19 e a situação dos leitos hospitalares no Brasil


Desde dezembro de 2019, a covid-19 tem sido o centro das
atenções globais e levantado a preocupação de todos. Aos poucos,
por diferentes formas, se espalhou pelo mundo e causou consequên-
cias devastadoras em todos os países afetados, sendo caracterizada
como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A pandemia exacerbou a crise econômica global. Organi-
zações mundiais, empresas, várias instituições e principalmente
governos tomaram uma série de medidas para conter seu impacto
e proliferação. De acordo com a Organização das Nações Unidas
(ONU), a economia mundial deve encolher 3,2% em 2020, taxa
mais baixa que 2009 provocada pela crise financeira de 2008. A
pandemia de coronavírus restringiu severamente as atividades eco-
nômicas, aumentou as incertezas e causou consequências que leva-
ram a uma recessão na economia superior à Grande Depressão de
1929 e à crise brasileira de 2014.
Na atualidade, a pandemia continua em crescimento, é carac-
terizada como uma família de diferentes vírus que podem provocar
infecções respiratórias. Segundo a Rede D’Or São Luiz, pela expe-
riência no tratamento da doença:

Os quadros podem ser de leve a moderado e, às vezes, grave.


Na maioria dos casos, a doença é sem gravidade e os sintomas
da doença são: febre, tosse, dificuldade para respirar, dores
musculares, dor de cabeça, dor de garganta, nariz escorrendo e
diarreia. Na forma grave, que acomete cerca de ¼ dos infectados,
há uma piora do quadro respiratório, com desenvolvimento de
pneumonia, podendo levar à insuficiência respiratória (Rede
D’Or São Luiz, 2020).

Devido a esta situação, o sistema de saúde mundial entrou


em colapso. O governo brasileiro tem tomado medidas para reduzir
seus impactos, mas a crise de saúde pública é inevitável. A pande-
mia expôs as fragilidades do Sistema Único de Saúde (SUS), cria-
do há mais de 30 anos, deprimido devido ao baixo investimento
financeiro há anos e evidenciada pela capacidade insuficiente de
atendimento hospitalar diante do adoecimento.
Não é um problema apenas no Brasil. Estudos têm sido rea-
lizados para avaliar o atendimento hospitalar em uma situação que

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ninguém esperava e mostram que não se estava preparado para en-


frentar uma doença de tal magnitude. O fato de não ser um pro-
blema único do Brasil não justifica o fraco investimento público
neste sentido para garantir o atendimento à população. Se nenhuma
ação de ampliação da oferta de leitos ou de contenção do vírus for
realizada, haverá alta probabilidade de saturação dos sistemas de
saúde em um espaço de tempo relativamente curto (NORONHA et
al., 2020).
Os fatos vão comprovar as previsões, mas, segundo especia-
listas, sem uma vacina fortemente testada, a situação está orien-
tada para governos em recessão econômica mostrando diretrizes
de como conseguirão atender a demanda da população. Portanto,
provocar a discussão sobre os pontos críticos da má gestão dos sis-
temas de saúde, tendo em vista as condições que os tornam vulnerá-
veis ​​por não implementar os recursos alocados de forma coerente, é
de interesse social, e por isso devem ser questionados, monitorados
e discutidos em sua essência. Nesse sentido, propõe-se a seguir ana-
lisar a situação dos leitos hospitalares no Brasil, levando em con-
sideração as diferenças entre grandes áreas e estados, auxiliando
na concretização de políticas públicas que atendam aos ideais de
atenção hospitalar.

Monitoramento dos leitos hospitalares nas grandes regi-


ões e estados do Brasil
Determinar o número de leitos hospitalares para uma popula-
ção é uma tarefa difícil, uma vez que uma série de fatores devem ser
considerados, tanto com relação à oferta de serviços hospitalares
quanto da demanda (necessidade de atendimento). Sua determina-
ção não é o objetivo desta pesquisa, mas deve-se destacar que dois
métodos tradicionais têm sido utilizados para seu cálculo. O pri-
meiro é baseado na proporção leito por habitante e o segundo adota
uma fórmula em que a quantidade de leitos é função do número de
internações esperadas, do tempo médio de permanência, conside-
rando-se uma taxa de ocupação de 80-85% (ZERAATI et al., 2005;
HARRISON et al., 2005).
Autores como Zeraati (2005) apontam que existe toda uma
teoria de que o aumento da oferta de leitos geraria uma deman-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

da adicional pelo aumento das taxas de internação. Essa afirmação


encontra suporte teórico nas leis de oferta e demanda amplamente
testadas no campo da economia. Certamente a área da saúde não
é indiferente, uma vez que se refere a serviços que são oferecidos
por instituições públicas ou privadas para uma determinada popu-
lação durante um período de tempo. Um estudo sobre a demanda
de serviços de saúde na Inglaterra em 1960, concluiu, entre outras
coisas, que “o número de leitos ofertados será o número de leitos
utilizados”, pois a oferta de leitos (com o devido financiamento de
sua ocupação) criará, inexoravelmente, a demanda pela utilização
desses serviços.
Estudos neste sentido podem produzir resultados diferentes e
não devem ser aceitos como uma generalidade para todos os países
ou localidades, se considerarmos os fatores que, além do preço, po-
dem aumentar a demanda. Entre os mais importantes estão a renda
dos consumidores, os preços dos bens relacionados, os gostos ou
preferências dos consumidores, bem como o tamanho ou número
dos consumidores. Considera-se que a demanda por leitos hospita-
lares ocorre devido à necessidade de atendimento por uma popula-
ção que obviamente não deseja, como é lógico, ter nenhuma doença
para fazer uso deste serviço, considerando-se neste caso o sistema
público.
Portanto, a renda, o preço dos bens relacionados e gostos
ou preferências não devem ser considerados para a análise dessa
demanda, a partir de uma abordagem economista; estudos clínicos
das principais doenças e causas de hospitalização seriam mais ade-
quados. De fato, o tamanho da população determinaria a demanda
pelo serviço, o que justifica a utilização da razão de leito per capita
para estimar a oferta. Certamente as curvas de oferta e demanda
tenderão a se equilibrar ao longo do tempo, devido a ajustes na
demanda ou na oferta. Duas realidades se contrapõem, a manuten-
ção de uma oferta de atenção hospitalar gera um custo considerável
para o governo e ao mesmo tempo deve ser uma preocupação em
manter a quantidade e qualidade adequadas de atenção hospitalar à
população.
Com relação ao número de leitos por habitantes, não está
estabelecido qual seria o índice ideal. O índice preconizado pela

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Organização Mundial da Saúde – OMS é de 3 a 5 leitos para cada


mil habitantes. Dados reunidos pela Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, (gráfico 1),
mostram que o número de leitos per capita varia muito entre os
países e ao longo do tempo.
No período analisado, para maioria dos países que compõem
a OCDE, o indicador diminuiu, apresentando uma tendência de-
crescente. Nesses países, considerando o Brasil, a queda em média
foi de aproximadamente 17%, de 5,47 leitos por mil habitantes em
2000 para 4,54 em 2018.

Gráfico 1 – Distribuição de leitos per capita nos países analisados pela


OCDE e Brasil

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da OCDE (2020), Leitos de


Hospital (indicador). Amostra OECD + Economias não pertencentes à
OCDE (Brasil, China, Rússia, Colômbia, África do Sul).

De acordo com o gráfico 1, muitos países atendem aos critérios


da OMS. Conforme indicado, a partir de Israel (3,02) o indicador
aumenta, mostra relações adequadas em vários países, destacando-
-se Japão, Coréia, Rússia, Alemanha, nessa ordem, com proporção
acima de oito leitos por 1000 habitantes. O Brasil também não aten-
de aos critérios ideais estabelecidos pela OMS, com uma proporção
de 2,3 para o ano de 2018; além de outras economias desenvolvidas
que chamam a atenção, como Estados Unidos (2,77), Nova Zelândia
(2,71), Dinamarca (2,61), Reino Unido (2,54), Canadá (2,52).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A diminuição do número de leitos tem despertado o interesse


de autores (DUARTE, 1999; HARPER E SHAHANI, 2002) em
investigar as causas dessas alterações, que em síntese respondem a
um conjunto de fatores:
»» Mudanças no perfil demográfico e epidemiológico.
»» Mudança do modelo assistencial (expansão da atenção
primária à saúde e perda da hegemonia do modelo hospita-
locêntrico).
»» Desconcentração da prestação de diversos serviços as-
sistenciais e surgimento de novas modalidades assistenciais
(Hospital-dia, a cirurgia ambulatorial, a assistência domici-
liar) .
»» O desenvolvimento tecnológico (incorporação de novas
tecnologias tanto diagnósticas quanto terapêuticas) dimi-
nuem a necessidade de internação hospitalar e encurtam os
períodos de permanência.
»» Uma gestão de leitos mais eficiente pelos hospitais devido
ao aumento da expectativa dos pacientes em relação ao servi-
ço prestado e à limitação de recursos.

No Brasil, trabalhos feitos sobre o assunto revelam uma pes-


quisa recente (LINS, 2019) que verifica empiricamente a Lei de
Roemer no Brasil, mostrando uma forte heterogeneidade da oferta
de leitos no país, por meio de uma análise de regressão quantílica.
Os resultados encontrados corroboraram a ideia teórica proposta,
ou seja, quanto maior a oferta de leitos se verifica um aumento nas
taxas de internações tanto em termos de Brasil, quanto em termos
de macrorregião, mas o estudo se baseia na observação da resposta
de cada quantil e utiliza a mediana condicional como medida de
tendência central para tornar mais robusto o modelo em relação aos
outliers. Portanto, propõe-se examinar as variáveis ​​analisadas, mas
em nível de Unidade de Terapia Intensiva – UTI a partir da corre-
lação entre elas.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Tabela 1 – Correlação de Pearson das variáveis, coleta de dados anos


2020 e 2019
Taxa de ocupa-
Leitos com-
ção em leitos
plementares x
UTI nas interna-
1000 hab.
ções SUS
Pearson
Taxa de ocupação 1 -,458**
Correlação
em leitos UTI nas
Significância ,000
internações SUS
N 56 56
Pearson
Leitos comple- -,458** 1
Correlação
mentares x 1000
Significância ,000
hab.
N 56 56
** A correlação é significativa no nível 0,01 (bicaudal).
Fonte: Saída do Software SPSS 20.0
A variável número de leitos hospitalares por mil habitantes,
em determinado espaço geográfico, no ano considerado, mede a
disponibilidade de leitos hospitalares públicos e privados, segun-
do localização geográfica. A taxa de Ocupação UTI (%) pode ser
calculada a partir da apuração diária ou dados mensais, e é número
de pacientes internados por dia em UTI/ leitos operacionais por dia
na UTI.
Os dados para a análise correspondem às variáveis taxa de
ocupação em leitos UTI nas internações SUS e leitos complemen-
tares x 1000 hab. para as Unidades Federativas – UF nos anos 2020
e 2019. As variáveis ​​possuem correlação significativa para alfa =
0,05, mas o coeficiente de correlação de Pearson () mostra uma rela-
ção indireta média, não muito forte, e isso significa que ao aumentar
os leitos x hab. as taxas de ocupação diminuem.
Um baixo coeficiente de determinação se destaca nos prin-
cipais indicadores do modelo, o R ao quadrado = 0,229 indica que
das variações totais da taxa de ocupação, a variável leitos por 1000
habitantes explica aproximadamente 23%. Porém, apesar do resul-
tado, é importante ser considerado pelas autoridades sanitárias no
sentido de favorecer investimentos para a criação de novos leitos
hospitalares, visto que, conforme evidenciado, são diversas as va-
riáveis ​​que influenciam na taxa de ocupação; porém, a variável in-
dependente representa um percentual significativo, resultado que

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

completa a análise de correlação considerando a relação inversa


entre as variáveis. O analise ANOVA mostrou que há um efeito
significativo da variável independente sobre a taxa de ocupação.
Com uma amostra de 56 observações o modelo é significativo (; a
significância é inferior a 0,05; além disso, os coeficientes de regres-
são também são significativos, uma vez que a sig. .
O modelo econométrico utilizado é especificado com as va-
riáveis em logaritmo, de forma que o coeficiente estimado de inte-
resse mede a elasticidade ou resposta percentual que a variação na
oferta de leitos (x) gera nas taxas de ocupações em leitos UTI nas
internações SUS (Y). A especificação é dada pela equação abaixo:
e A equação de regressão estimada é: , onde que é a inter-
secção da curva com o eixo Y.
O coeficiente de elasticidade é de aproximadamente 16,5;
com sinal negativo, o que implica que para um aumento de 1% em
leitos por habitante, as taxas de ocupação média diminuem aproxi-
madamente 16,5%. Podemos dizer, então, que a curva de relaciona-
mento entre as variáveis ​​é elástica, ou seja, uma redução percentual
na variável independente, gera um aumento percentual maior na
variável dependente, taxa de ocupação. Portanto, evidencia-se que
o aumento da oferta de leitos diminui a taxa de ocupação, questio-
namento demonstrado nos gráficos 2 e 3 .
Gráfico 2 – Taxa de ocupação em UTI, em internações SUS, Brasil.

Fonte: Própria a partir de dados da plataforma: auditasus.com.br.


1° quadrimestre de 2020.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Gráfico 3 – Qtd. Leitos UTI no Brasil.

Fonte: Própria a partir de dados da plataforma auditasus.com.br.


1° quadrimestre de 2020.

O Brasil no início de 2020 já apresentava taxas de ocupação


acima de 70%, então, à medida que aumentavam os casos da co-
vid-19, o sistema de saúde entrava em colapso e sua capacidade de
atendimento aos casos graves da doença era limitada. O sistema não
estava preparado para enfrentar uma pandemia de tais magnitudes.
Porém, diante dessa contingência, de janeiro a abril foram criados
14.748 novos leitos de UTI, ainda insuficientes para um período
de expansão da doença. Ressalta-se que a oferta de leitos não SUS
aumentou mais do que a oferta de leitos no SUS, o que dificulta
o acesso da população mais vulnerável, sem dinheiro e planos de
saúde com cobertura na rede privada. Além disso, destaca a ine-
ficiência da política pública e sua adaptabilidade em situações de
contingência em relação à saúde privada.
Com o apoio dos gráficos, pode-se afirmar que, apesar de
outros fatores, o aumento do número de leitos contribui para a dimi-
nuição das taxas de ocupação. A oferta de leitos ainda é insuficiente
se considerarmos o tamanho da população do Brasil e mesmo de
suas grandes regiões.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Gráfico 4 – % população residente

Fonte: Própria a partir de dados DATASUS.

Gráfico 5 – Qtd. Leitos UTI x 1000 hab.

Fonte: Própria a partir de dados DATASUS.

Em 2020, a população do Brasil ultrapassa 212 milhões de


pessoas e o gráfico 4 mostra as regiões mais populosas do país, o
que deixa as regiões com maior população em situação crítica se
for considerada a proporção de leitos de UTI, pois a média para o
Brasil é de 0,28 leitos por 1000 habitantes. De acordo com a OCDE,
os leitos de terapia intensiva estariam entre 2,5 a 4% dois leitos
destinados a casos agudos. Em geral, o Brasil tem 2,3 leitos hos-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

pitalares por 1000 habitantes e a situação mostrada no gráfico 5 a


nível das macrorregiões é extremamente preocupante diante de uma
pandemia, que ainda não possui uma vacina testada de forma efi-
ciente. Comparando os sistemas SUS e não SUS, a situação é ainda
mais preocupante porque a maioria da população requer atenção
pública e as diferenças não são significativas. Mesmo nas regiões
sudeste e centro-oeste o indicador é maior na atenção privada.
Uma visão geral da situação dos leitos em termos das Unida-
des da Federação pode ajudar a oferecer uma visão mais específica.
Deve-se considerar nos municípios, pois a condição dos territórios
é mais agravada, porque o alcance das políticas públicas é menor.
Os indicadores resumidos no quadro a seguir foram calculados a
partir do número de leitos das diferentes especialidades SUS e não
SUS nos estados.

Quadro 1 – Total de leitos por estados e outros indicadores de saúde.


Região/UF/In- Total Total 1 2 3 4 5
dicador leitos UTI
Rondônia 4782 475 2,57 0,26 76% 24% 3,2
Acre 1678 218 1,94 0,25 89% 11% 8,3
Amazonas 6886 964 1,62 0,23 84% 16% 5,1
Roraima 1529 100 2,80 0,18 91% 9% 10,1
Pará 16094 1738 1,87 0,20 76% 24% 3,1
Amapá 1330 196 1,58 0,23 81% 19% 4,3
Tocantins 3435 343 2,15 0,21 75% 25% 2,9
Maranhão 15379 1379 2,16 0,19 86% 14% 6,1
Piauí 26024 3350 8,05 1,04 73% 27% 2,7
Ceará 21699 2785 2,36 0,30 74% 26% 2,8
Rio Grande do
Norte 8499 1029 2,36 0,29 78% 22% 3,6
Paraíba 9221 1003 2,25 0,24 78% 22% 3,5
Pernambuco 26024 3350 2,70 0,35 73% 27% 2,7
Alagoas 6848 872 2,00 0,25 80% 20% 3,9
Sergipe 3631 573 1,54 0,24 80% 20% 3,9
Bahia 33353 4020 2,15 0,26 75% 25% 3,1

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Minas Gerais 48394 6607 2,26 0,31 65% 35% 1,8


Espírito Santo 9107 1817 2,20 0,44 64% 36% 1,8
Rio de Janeiro 40021 9070 2,36 0,54 61% 39% 1,6
São Paulo 112703 18769 2,45 0,41 57% 43% 1,3
Paraná 32420 4340 2,81 0,38 66% 34% 1,9
Santa Catarina 17113 1856 2,36 0,26 70% 30% 2,3
Rio Grande do
Sul 34096 3726 2,99 0,33 67% 33% 2,1
Mato Grosso
do Sul 6432 714 2,30 0,25 65% 35% 1,9
Mato Grosso 8470 1349 2,45 0,39 66% 34% 2,0
Goiás 19932 2159 2,84 0,31 60% 40% 1,5
Distrito Federal 8567 1692 2,66 0,52 51% 49% 1,0
Brasil 523667 74494 2,47 0,35 67% 33% 2,0
Fonte: Própria calculado a partir do Cadastro Nacional de estabeleci-
mentos de Saúde – CNESNet, 1° trimestre, 2020.

Além dos indicadores de total de leitos hospitalares e total


de leitos de UTI, os seguintes indicadores estão resumidos nessa
ordem:
1. Razão de leitos hospitalares por 1000 habitantes
2. Razão de leitos hospitalares UTI por 1000 habitantes
3. Proporção (%) de leitos hospitalares SUS
4. Proporção (%) de leitos hospitalares não SUS
5. Odds3 de leitos hospitalares da rede pública por leitos par-
ticulares
A intenção é sintetizar a situação dos indicadores nas Unida-
des Federais e atuar como tomadores de decisão nesse nível. Nas
duas primeiras colunas destacam-se os estados que apresentam va-
lores superiores à média nacional; nota-se que a situação é mais
desfavorável nos estados das regiões Norte e Centro-Oeste, também
as menos populosas do país, questão que pode sustentar esse resul-
tado. Como já foi dito, a situação de leitos por habitante não é favo-
rável no país, mas os estados de Sergipe, Amapá, Amazonas, Pará
e Acre se destacam com menos de dois leitos por mil habitantes.
3 Termo em inglês. Não existe tradução consensual para este termo em português. Foi traduzido como
probabilidade em outras referências (OPAS, 2020).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Todos os estados, exceto Piauí, têm menos de um leito de


UTI por 1000 habitantes. Em todos os estados a proporção de leitos
SUS é superior à da rede privada de saúde, com uma proporção no
país de 67% SUS para 33% não SUS. Nessa relação, os estados
da região Norte apresentam melhor situação, sendo também aque-
les com menos leitos por habitante. O quinto indicador é muito in-
teressante em relação às políticas públicas porque o Brasil, onde
grande parte da população depende de atendimento na rede pública,
apresenta uma situação bastante desfavorável, pois possui apenas 2
leitos na rede pública para cada leito particular. Os melhores rela-
cionamentos são encontrados nos estados de Roraima, Acre, Mara-
nhão, Amazonas.
Pode-se inferir que a rede privada, seguindo a lógica do ca-
pital, está mais concentrada nos estados mais populosos e com pior
situação econômica do país, fora da política pública, geralmente
deficitária em todo o território nacional; porque mesmo nos estados
da capital as desigualdades sociais se manifestam.
Posteriormente, é considerado o indicador razão de leitos
hospitalares UTI por 1000 habitantes para identificar as diferenças
que se observam entre os estados com o objetivo de analisar varia-
ções geográficas e temporais na distribuição de leitos hospitalares,
identificando situações de desequilíbrio para assim fornecer infor-
mações que permitam subsidiar processos de planejamento, gestão
e avaliação de políticas voltadas para a assistência médico-hospi-
talar. Para verificar se as diferenças apresentadas são realmente
significativas, foi realizada uma análise de variância (ANOVA)
de dois fatores, o indicador é considerado no período 2010-2020.
Primeiramente, os pré-requisitos para executar a análise ANOVA
são testados, como normalidade e homocedasticidade de variância,
por meio dos testes de Kolmogorov-Smirnov e Levene, sabendo que
deve ser atendido um ou outro pré-requisito. Para a análise de va-
riância, teste de Leverne com base na média, o pressuposto não é
cumprido, o nível de significância é menor que 0,05, há heteroce-
dasticidade na variância. Porém, o teste de normalidade é cumpri-
do, considerando o nível de significância de Kolmogorov-Smirnov
(maior que α = 0,05), portanto, os dados seguem uma distribuição
normal e a análise ANOVA pode ser executado.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Então, para um valor de alfa α = 0,05, a hipótese a ser testada


para a igualdade das médias é a seguinte:
Ho: As médias do indicador nos Estados são iguais
HA:Não todas as médias do indicador nos Estados são iguais
Onde μ são os níveis médios do indicador para cada ano.
Regra de decisão: Não rejeite a hipótese nula se o valor de signifi-
cância > α = 0,05. Caso contrário, rejeite a hipótese.
O quadro 2 mostra que o valor de significância para os anos
analisados e​​ para os Estados é inferior a 0,05, não se cumpre a
igualdade das médias, portanto, rejeita-se a hipótese nula. Existem
diferenças significativas entre os níveis médios do indicador leitos
hospitalares UTI por 1000 habitantes nos diferentes Estados e nos
anos do período analisado.

Quadro 2 – Testes de efeitos entre sujeitos.


Fonte Soma dos df Qua- F Sig.
Quadrados drado
médio
Modelo corrigido 1,876a 36 ,052 151,617 ,000
Intercepção 16,090 1 16,090 46813,522 ,000
Ano ,104 10 ,010 30,200 ,000
Estados 1,772 26 ,068 198,315 ,000
Erro ,089 ,000
Total 18,056
Corrected Total 1,965
a. R quadrado =
,955 (R quadra-
do ajustado =
,948)

b. Variável depen-
dente: Número
de leitos UTI x
1000 habitantes
Fonte: Saída do Software SPSS 20.0

De acordo com os resultados e a importância dos estatísti-


cos, há 95% de confiança de que existem diferenças significativas

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

no número de leitos de UTI nos Estado. Nessa perspectiva, sina-


lizam-se para que os órgãos responsáveis abordem
​​ as despropor-
ções regionais como um dos objetivos do planejamento territorial,
considerando o indicador como instrumento de monitoramento das
decisões das políticas de saúde. A análise de variância mostrou que
nem todas as médias são iguais, mas não revela quais médias não
são diferentes das demais. Portanto, outros testes estatísticos são
usados, como a comparação par a par de todos os pares de médias
possíveis. Este padrão é determinado a partir de uma variedade de
procedimentos estatísticos, incluindo o método de Tukey.
O método garante 95% e confiabilidade dos resultados, qua-
tro subgrupos foram construídos com base nos anos com valores de
significância maiores que α = 0,05. Em outras palavras, as diferen-
ças mais significativas estão nos anos do período inicial e final. A
intenção de utilizar os anos como variável de influência no número
de leitos de UTI é mostrar que as situações específicas de cada pe-
ríodo (econômica, política, social, orçamentária, demográfica etc.)
determinaram o número de leitos de UTI nos diferentes estados.
Por fim, há diferenças no número de leitos de UTI nos anos
de 2010 até o presente, mas que as variâncias do indicador não res-
pondem aos aumentos, mas sim às mudanças no modelo assisten-
cial e à transformação dos leitos de UTI por outras necessidades ou
vice-versa, ou por falta de orçamento para a manutenção do serviço.
Pois, conforme demonstrado, o indicador apresenta uma tendência
negativa à medida que diminui a cada ano.
Entretanto, como os resultados entre os Estados não são mui-
to distantes, para oferecer um nível mais alto de precisão, propõe-se
aplicar outra técnica de classificação, análise de cluster ou por agru-
pamento, que integre os resultados do indicador e considere a simi-
laridade dos dados com base na distância euclidiana ao quadrado.
Inicialmente, é realizada uma análise utilizando o cluster
hierárquico para determinar a quantidade de cluster a ser formado,
sendo utilizado o método de agrupamento de Ward, um dos mais
amplamente utilizados na bibliografia para esses casos, consideran-
do como medida dois intervalos à distância euclidiana. Foi possível
verificar como os Estados se reúnem e confirmam que os coeficien-
tes de distância entre eles são pequenos. Este critério é considerado
e, com o apoio do dendograma, decide-se formar quatro grupos ou

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

cluster. O procedimento é realizado novamente, a quantidade míni-


ma de cluster é especificada na solução e é verificado ainda a partir
da análise ANOVA que existem diferenças significativas entre os
grupos com níveis de α <0,05.
O quadro 3 resume como os Estados foram agrupados, em
cada um dos clusters. Quatro grupos foram formados com nove,
quatro, dois e doze Estados respectivamente. Com base nas se-
melhanças dos dados, os Estados com valores próximos foram
agrupados em cada cluster. A partir do agrupamento, é possível ob-
ter um quadro mais completo da situação nos leitos de UTI por ha-
bitante nas UF, onde quatro grupos claramente definidos são iden-
tificados e determinados por meio de métodos de classificação mais
precisos, como a distância euclidiana.
O quadro resume as médias dos indicadores em cada cluster,
bem como os valores mínimo e máximo. Ressalta-se que o Estado
de Roraima apresenta menor proporção com 0,17 leitos de UTI por
1000 habitantes e o Distrito Federal o maior valor, 0,52; entretanto,
todos os estados têm menos de uma cama para cada 1000 habitan-
tes.
Quadro 3 – Relatório número de leitos UTI x 1000 habitantes
Número
Míni- Total
de Média Máximo Estados
mo N
Clusters
Rondônia, Acre, To-
cantins, Paraíba, Per-
nambuco, Minas Ge-
1 ,246382 ,2238 ,2848 9 rais, Rio Grande do
Sul, Mato Grosso do
Sul, Goiás
Espírito Santo, São
2 ,330649 ,3123 ,3420 4 Paulo, Paraná, Mato
Grosso
Rio de Janeiro, Distri-
3 ,477803 ,4381 ,5175 2 to Federal
Amazonas, Roraima,
Pará, Amapá, Mara-
nhão, Piauí, Ceará,
4 ,200525 ,1741 ,2177 12 Rio Grande do Nor-
te, Alagoas, Sergipe,
Bahia, Santa Catarina
Total ,255627 ,1741 ,5175
Fonte: Própria a partir da saída do Software SPSS 20.0

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Isso contribui para orientar as políticas públicas, a fim de


eliminar as situações de desequilíbrio e subsidiar o planejamento,
voltadas à melhoria do indicador e na assistência em sentido geral.
Cabe às autoridades sanitárias verificar as diferenças e avaliá-las
com outros critérios, considerando, por exemplo, as perspectivas
demográficas e epidemiológicas dos Estados, para decidir onde re-
alizar os investimentos para aumentar o número de leitos de UTI.

Considerações finais
O novo coronavírus representa um teste severo para os siste-
mas de saúde dos países mais afetados pela epidemia, especialmen-
te em sua capacidade de atender aos casos mais graves em hospitais.
A determinação da oferta de leitos continua sendo uma das
disciplinas pendentes do sistema de saúde. O cálculo corresponde a
uma tarefa difícil para os tomadores de decisão, pois é influenciado
por um conjunto diversificado de variáveis ​​que se comportam de
forma diferente para cada localidade. A realidade é que a oferta
diminuiu não só no Brasil, mas no mundo, por motivos diversos,
mas é a população que mais precisa de cuidados que mais sofre com
essa situação e que exige que questões como essas sejam revistas
preferencialmente nas políticas públicas.
O estudo constatou a existência de relação inversa e correla-
ção moderada da taxa de ocupação em leitos UTI nas internações
SUS e leitos complementares x 1000 habitantes, mostrando por sua
elasticidade a sensibilidade do primeiro em relação à segunda va-
riável.
Mostra-se que a proporção de leitos por habitante é um in-
dicador a ser levado em consideração pelas autoridades sanitárias,
uma vez que o Brasil apresenta resultados abaixo dos critérios inter-
nacionais com diferenças significativas ao nível de suas sub-regiões
internas.

Referências
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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

AS ARMADILHAS DO ENSINO REMOTO:


o redirecionamento do ensino superior e as
implicações para a saúde
Kátia de Araújo Lima Vallina1
Hamida Assunção Pinheiro2
Clivia Costa Barroco3

Introdução
Os anos de 1970 e 1980 marcam o avanço do neoliberalis-
mo em termos mundiais, e em 1989 foram forjados conjuntamente
pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial (BM)
e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) os ditames do
chamado Consenso de Washington, que visava fazer dos mercados
emergentes, como o Brasil, um espaço para a expansão do capital,
tendo em vista a crise do fordismo instalada nos países centrais des-
de os anos de 1970.
Em termos gerais, o Consenso de Washington constituía-se
em um receituário de 10 (dez) imposições aos países em desenvol-
vimento para a concessão de novos empréstimos e que implicavam
em programas de ajustes financeiros e reformulação nos modelos
econômicos. O FMI passou a exigir dos países da América Lati-
na para a concessão de empréstimos: disciplina fiscal, redução dos
gastos públicos, reforma fiscal e tributária, abertura comercial e
econômica dos países, taxa de câmbio de mercado competitivo, li-
beralização do comércio exterior, investimento estrangeiro direto,
privatização, desregulamentação (econômica e trabalhista) e direito
à propriedade intelectual.
1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Uni-
versidade Federal do Amazonas – UFAM. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro – UFRJ. Atualmente integra a Diretoria Nacional do ANDES-SN, como Primeira Vice-Presidente da
Regional Norte 1, gestão 2018-2020. katiavallina@hotmail.com
2 Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas – UFAM e do
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia – PPGSS, no qual atua tam-
bém como coordenadora. Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela UFAM.
E-mail: hamida.assuncao@gmail.com
3 Bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Mestranda no Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia – PPGSS, sendo bolsista do CNPq.
cliviabarroco@gmail.com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

No Brasil as políticas neoliberais começaram a ser delinea-


das a partir do governo de Fernando Collor (1990-1992), que abriu
a economia brasileira à economia mundial, aumentou as taxas de ju-
ros e passou a financiar as despesas públicas com capital estrangei-
ro. No governo Itamar Franco (1993-1995) essas políticas tiveram
continuidade e foram intensificadas nos governos subsequentes de
Fernando Henrique Cardoso – FHC (1995-2003), Luiz Inácio Lula
da Silva (2004-2011), Dilma Rousseff (2011-2016), Michel Temer
(2016-2018) e Jair Bolsonaro (2019), com uma série de programas
de austeridade, ajuste fiscal e contrarreformas (trabalhista e previ-
denciária), que foram alterando paulatinamente o papel do Estado
brasileiro, com novas políticas referenciadas ao ideário neoliberal
ou ultraneoliberal, com a defesa da redução do Estado, dos gastos
públicos e desregulamentação dos direitos trabalhistas em favor dos
interesses dos capitalistas.
Desde a década de 1990 até aqui, os dias são marcados pela
promoção da disciplina fiscal, com a busca de um rigoroso equilí-
brio entre receitas e despesas públicas, eliminando o potencial de
endividamento do Estado para realizar políticas anticíclicas para
enfrentar o desemprego e o subemprego, além de realizar os inves-
timentos estruturantes e indispensáveis ao desenvolvimento susten-
tado de um país; passando pela redução das despesas primárias com
políticas de seguridade social, saúde, segurança pública, justiça etc.
Assim, foi sendo implementada a política de privatizações e desna-
cionalizações de empresas estatais, abarcando os setores das teleco-
municações, energia, mineração, dentre outras, associada à elimina-
ção das restrições ao investimento direto estrangeiro. A efetivação
da política de desregulamentação (nona diretriz do Consenso de
Washington) significou o afrouxamento da legislação econômica e
a contrarreforma trabalhista e previdenciária.
Entende-se que o “dissenso do consenso” não vingou em
nosso país nos governos petistas (2003-2016). No governo Te-
mer, a disciplina fiscal foi imposta pela Emenda Constitucional n°
95/2016, que congela as despesas “primárias” por 20 anos, ou seja,
impõe um teto de gastos igual ao nível das despesas realizadas no
ano de 2017 até 2037, sem tocar nas despesas do Estado com a dí-
vida pública, que chegam a quase 50% do total do orçamento e dos

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

gastos públicos. Sem permitir o aumento de receitas, segue sendo


rejeitado o combate à sonegação de impostos e à evasão de divisas,
e, implicitamente, negando a possibilidade de taxação de grandes
fortunas, o aumento de impostos e uma reforma tributária progres-
siva. Nesse sentido, prosseguem as políticas do governo federal de
favorecimento ao capital estrangeiro com a abertura de setores de
serviços como a saúde e educação, além da venda de terras a es-
trangeiros; a desregulamentação ambiental e a abertura de reservas
florestais à exploração econômica, em especial à mineração, e mais
recentemente foi encaminhado ao Congresso Nacional a proposta
da Reforma Administrativa (PEC 32/2020) e o Projeto de Lei Orça-
mentária (PLOA) para 2021, retirando recursos das áreas essenciais
como saúde, educação, assistência social, ciência e tecnologia.
No âmbito educacional, o receituário neoliberal tem sido
orientado pelo Banco Mundial com propostas educacionais dire-
cionadas a reduzir os gastos públicos por meio da privatização da
educação, sobretudo no ensino superior. Os documentos produzi-
dos desde a década de 1980 evidenciam qual o projeto de educação
do capital, que tem como eixos estruturantes de suas orientações e
diretrizes os que se seguem:

I) Empresariamento da educação; II) Mercadorização da Educa-


ção; III) Ampliação do setor da educação privada com incentivo
estatal; IV) Aligeiramento da educação (redução dos currículos);
V) Certificação em larga escala (Ensino a Distância (EaD),
ensino privado; VI) Parceria Público Privada (PPP); VII) Tercei-
rização das atividades meio e, mais recentemente, das atividades
fins; e VIII) Educação como “serviço” conforme expresso pela
OMC (GONÇALVES; FARAGE; ARAÚJO, 2019, p. 75).

Essas orientações e diretrizes supramencionadas foram sendo


consubstanciadas ao longo das últimas décadas e com a emergência
de uma crise sanitária, econômica, social e humanitária mundial
originada com a pandemia da covid-19 (doença provocada pelo ví-
rus Sars-Cov-2, da família dos coronavírus e, por isso, denominada
de “novo coronavírus”) que tem tido um ritmo de contaminação
diferenciado conforme o tipo de resposta dada pelos diferentes paí-
ses. Nesse sentido, a pandemia de covid-19 tem afetado a dinâmica
de acumulação capitalista em âmbito global, criando um cenário

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

potencial para que seja questionado o sistema produtivo de explora-


ção e acumulação de capital, alicerçado em abissais desigualdades
sociais.
No Brasil, a crise econômica a partir de 2015 foi refletida
na diminuição nos níveis de produtividade, na redução dos investi-
mentos e das taxas de lucros, no aumento do desemprego e da infor-
malidade, na queda do valor do salário mínimo, dentre outros. Tal
contexto antecedeu a crise sanitária, que no nosso país atingiu pro-
porções alarmantes com 3.862.311 contaminados e 120.828 mortes,
no final de agosto de 2020. No estado do Amazonas, o número
de contaminados por covid-19 foi de 3.639 e já morreram 2.246
pessoas, em agosto de 2020 (FUNDAÇÃO DE VIGILÂNCIA EM
SAÚDE DO AMAZONAS, 2020).
Os números da pandemia supracitados – em um cenário de
desmonte da ciência, saúde e educação públicas – evidenciam uma
política de morte e de deixar morrer. Não está havendo um esforço
de mitigação da crise econômica, sanitária e social e nem tampouco
uma intervenção estatal coordenada que siga as normas e preven-
ções sanitárias recomendadas pela Organização Mundial da Saúde
(OMS). O debate é sobre o custo da crise e quem pagará esse custo,
demonstrando que o momento é central para a luta de classes no
país.

As contrarreformas da educação superior no Brasil


Na década de 1990, no âmbito das políticas públicas edu-
cacionais para a educação básica, o Plano Decenal de Educação
para Todos (1993-2003) é o marco da implantação do receituário
neoliberal do Brasil. Forjado no governo Itamar Franco, esse plano
apresenta diretrizes políticas para a educação fundamental que con-
templam as resoluções da Conferência Mundial de Educação Para
Todos, ocorrida em Jomtien, na Tailândia, organizada pela UNES-
CO, UNICEF, PNUD e Banco Mundial. Em 1996 uma nova Lei
de Diretrizes e Bases da Educação entra em vigor (LDB – Lei no.
9.394/1996) e nela é estabelecida que a União deveria apresentar,
através do INEP, um novo plano de educação, que foi o primeiro
Plano Nacional da Educação (PNE – Lei no. 10.172/2001). Vale
ressaltar que esse plano apresenta a meta da universalização da edu-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

cação brasileira dos 04 aos 16 anos de idade. Contudo, a propos-


ta de investimento de 10% do PIB em Educação foi rebaixada na
Câmara Federal para 7%, e nem esse percentual de investimento
na educação foi assegurado. O que fez com que o PNE 2010-2020
apresentasse novamente a proposta de 7% do PIB, e não está claro
nesse PNE a questão do financiamento público e privado. Por fim,
a avaliação externa continua sendo o instrumento de aferição da
qualidade da política educacional, ou seja, a política de avaliação
aos moldes neoliberais passa a ser um elemento de gestão pública.
As alterações voltadas para o ensino superior público de-
correm inicialmente das reformas do Estado efetivadas sob os aus-
pícios do Ministério da Administração Federal e da Reforma do
Estado (MARE), em 1995, no governo FHC, com o Plano Dire-
tor da Reforma do Estado. As reformas propostas por este Plano
são concordantes com as diretrizes do Consenso de Washington,
bem como com os documentos dos organismos multilaterais (FMI,
BIRD e BM), em termos de liberalização econômica e financeira,
abertura comercial, desregulamentação, privatizações das empresas
e serviços públicos, dentre outros.
A educação superior, juntamente com a ciência e a tecnolo-
gia, passou a ser concebida como atividade inserida no setor de ser-
viços não-exclusivos ou competitivos do Estado; ou seja, “trata-se
de introduzir, na educação superior pública, a racionalidade geren-
cial capitalista e privada, que se traduz na redução da esfera públi-
ca ou na expansão do capital, com sua racionalidade organizativa”
(SILVA JR.; SGUISSARD, 2020, p. 93). O modelo universitário
brasileiro que tem como pressuposto a indissociabilidade do ensi-
no, pesquisa e extensão passou a ser combatido, pois era defendida
a proposta de distinção entre universidade de pesquisa (centros de
excelência) e universidades (ou instituições isoladas) de ensino; e
foram feitas campanhas de desqualificação dos servidores públicos,
nele incluídos os professores universitários, conjuntamente com a
valorização da educação superior privada.
A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 209, reforça a
liberdade para a iniciativa privada ao estabelecer que o ensino pode
ser “considerado livre para a iniciativa privada, desde que sejam
atendidas as condições para o cumprimento das normas gerais para

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

a educação nacional”. Com o Decreto n°. 2.207/1997, que regu-


lamentou o Sistema Federal de Ensino, começaram a ser criados
centros universitários, faculdades e institutos ou escolas superio-
res, que impulsionaram um grande crescimento do mercado de en-
sino superior privado: das 2.531 Instituições de Ensino Superior
(IES) criadas no período de 1995 a 2002, 2.136 foram IES privadas
(INEP, 2012).
Para que se possa dimensionar o crescimento extraordiná-
rio das IES da década de 1990 até o ano de 2020 basta mencio-
nar que no período de 1980 a 1998 o Brasil contava com somente
973 IES (INEP, 1999, p. 13). Já o Censo da Educação Superior em
2018 identificou que há 2.537 IES; destas 299 são IES públicas e
2.238 IES privadas (correspondendo a 88,2%). Das IES federais,
57% correspondem às universidades, 36,4% aos Institutos Fede-
rais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e Centros Federais de
Educação Tecnológica (CEFETS), 1,8% às faculdades e 4,5% são
centros universitários. Nas IES privadas predominam as faculdades
(86,2%) (INEP, 2019, p. 8). Esses dados evidenciam a lógica priva-
tizante da educação superior.
A privatização da educação teve continuidade nos governos
petistas com a destinação de recursos públicos para o setor privado,
com a concessão de benefícios tributários e/ou pela isenção de im-
postos. A propalada política de acesso ao ensino superior ocorreu
preponderantemente no setor privado, por meio do apoio e financia-
mento a dois programas: o Programa de Financiamento Estudantil
(FIES – Lei n°. 10.260/2001) e o Programa Universidade Para To-
dos (ProUni – Lei n°. 11.096/2005). O primeiro financia cursos de
nível superior e o segundo financia bolsas integrais e parciais em
instituições privadas.
O FIES e o ProUni foram programas que indubitavelmente
colaboraram com o processo de mercantilização do ensino superior,
cumprindo as diretrizes do FMI e Banco Mundial, com a redução de
verba pública destinada à educação superior e a ampliação a cada
ano do orçamento dos referidos programas. O PNE 2014-2024 (Lei
n° 13.005/2014), “criou o arcabouço jurídico para a consolidação
do Fies por sua ampliação para a graduação presencial e a distância
e a pós-graduação strictu sensu (...) o PNE privilegia os subsídios
públicos para o setor privado da educação” (LIMA, 2019, p. 21).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Além dos programas supracitados, foi criado o Programa de


Apoio ao Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades
Federais (REUNI), via Decreto Presidencial n°. 6.096/2007, com o
propósito de ampliação do número de matrícula na graduação das
universidades federais. Esse aumento implicava no acesso a verba
pública adicional e cada universidade individualmente assinava um
contrato de gestão com o governo federal. Dispensa dizer o quanto
essa expansão se deu de forma precarizada Brasil afora.
Os processos de contingenciamento e corte de recursos das
universidades públicas e das agências de fomento – Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e Conse-
lho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
– que ocorreram em 2019 e 2020 e o Projeto de Lei Orçamentária
Anual para 2021 (PLOA-2021) de Bolsonaro corta drasticamente
os recursos da Educação, C&T e Saúde em R$ 5,18 bilhões. Es-
sas são algumas medidas que comprovam o descompromisso desse
governo com a educação pública, com a ciência e com 70% da po-
pulação brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS),
dentre outros serviços públicos.
A apresentação da primeira versão do Programa Institutos
e Universidades Empreendedoras e Inovadoras – Future-se, em
17/07/2019, vem demonstrar a intenção do governo federal de sub-
meter a educação superior pública aos imperativos econômicos de
mercado. O referido programa foi alvo de severas críticas da comu-
nidade acadêmica e incontáveis notas das IFES (ANDIFES, 2020),
sendo rejeitado por 43 das 63 universidades federais (68%). Não
obstante a rejeição, em 2020, em plena pandemia da covid-19, o
governo encaminhou ao Congresso Nacional a segunda versão do
Programa “Future-se” (PL 3076/2020).
O Programa Future-se mantém as inconstitucionalidades da
proposta anterior, representa um ataque à autonomia administrati-
va, financeira, patrimonial e didática das IFES, propõe que a gestão
universitária se dê por meio das Organizações Sociais (OS) e fun-
dações. Tais medidas significam a refuncionalização das universi-
dades e institutos, cada vez mais distantes do investimento público
“para que possam ser ajustados ao padrão de acumulação do capital
encaminhado pelo Ministro Guedes, em sintonia com o núcleo he-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

gemônico do capital, objetivo incompatível com as universidades


públicas vivazes e pulsantes” (LEHER, 2020, p. 146).
De acordo com Sguissard (2020) não se pode compreender
o significado do Future-se desvinculado dos fundamentos econômi-
cos e político-ideológicos que o sustentam e sem os “modelos de
reforma” ultraliberais que lhe serviram de inspiração. O autor des-
taca três eixos de análise que o explicam: a) o recrudescimento da
competição e da concorrência em todos os setores da sociedade; b)
o saber como mercadoria e as instituições de pesquisa como empre-
sas produtoras de valor; e c) anti-intelectualismo, anticientificismo
e anti-“marxismo cultural”. Afirma “que o Future-se não nasce do
nada, mas possui uma série de elementos jurídicos que o antecedem
e que vai conformando, de modo gradativo e crescente, uma univer-
sidade federal heterônoma e tendo que se submeter cada vez mais,
às normas do mercado” (SGUISSARD, 2020, p. 192). Para Sguis-
sard (2020, p. 192), caso o Projeto de Lei do Future-se seja aprova-
do e implementado, “traduzir-se-á no que, pensamos, está contido
no título destas reflexões: um projeto neoliberal de heteronomia das
Federais e um passo a mais rumo a sua privado-mercantilização”.

A pandemia da covid-19 e a saúde dos docentes


A Síndrome Respiratória Aguda-2 (SARS-CoV-2), e sua do-
ença, a “covid-19”, como o próprio nome indica, já é a segunda
do seu gênero neste século (a SARS-1 surgiu em 2003). A epide-
mia teve início nos mercados da província de Wuhan, na China, e
se espalhou mundialmente já tendo infectado no início de setem-
bro de 2020 cerca de 26.722.578 pessoas e ceifado 977.229 vidas
(WORLDMETERS, 2020).
A gravidade da crise de saúde pública em nosso país decor-
rente dessa epidemia pode ser dimensionada quando se considera
que o Brasil possui 2,73% da população mundial e tem 15,31% dos
casos de contaminação e 14,31% dos óbitos mundiais. E lamenta-
velmente esses dados ainda não expressam a realidade, pois se sabe
que há subnotificações, não há testagem em massa e nem monitora-
mento dos contágios.
Indubitavelmente a crise sanitária mundial está aprofundan-
do a crise do capitalismo, que se arrasta desde 2008, acarretando

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

novos impactos para a economia capitalista global devido à para-


lisação da produção, que foi diferenciada em cada país de acordo
com a política de contenção adotada e o nível de isolamento social
obtido, sendo este um reflexo da eficácia (ou não) da adoção de me-
didas de prevenção e preservação da vida recomendadas pela OMS.
É sabido que a pandemia em curso não afeta igualmente a
todos em um mundo marcado por diversidade geográfica, cultural,
social e política. E num país como o Brasil, marcado por extremada
desigualdade social e concentração de renda, sabe-se que o slogan
“estamos todos juntos” é só uma retórica. É inquestionável que a
incidência e as formas de vivenciar a pandemia são extremamente
singularizadas entre as classes sociais. E quando se considera as
condições de vida e trabalho da classe trabalhadora, anteriores à
pandemia, sobretudo após a aprovação da contrarreforma trabalhis-
ta, da terceirização e do desmonte das políticas públicas, o cenário
que se desvela é ainda mais atemorizante e angustiante.
A quarentena, o distanciamento e o/ou isolamento social para
a contenção da circulação do vírus e redução do contágio são reco-
mendações básicas da OMS. As situações objetivas são diferencia-
das para aqueles que podem seguir o imperativo do “fique em casa”
e podem se isolar com remuneração e fazer o trabalho de modo
remoto. Mas a grande maioria da população é formada por aqueles
que não podem seguir nem a quarentena e nem tampouco o distan-
ciamento/isolamento social porque são trabalhadores informais ou
precarizados e não recebem do Estado o provimento de condições
de existência digna para permanecerem no isolamento social (lem-
bremos que o auxílio emergencial de R$ 600,00 foi reduzido pela
metade em setembro de 2020). Tais situações diferenciadas produ-
zem repercussões singulares que afetam todas as dimensões da vida
social, nela incluída a saúde física e mental.
Os relatórios da OMS (2020) indicam que a pandemia da co-
vid-19 tem impactado também a saúde mental das pessoas: o medo
de contágio e a perda de membros da família são agravados pelo so-
frimento causado pela perda de renda e, muitas vezes, de emprego.
Indicam, ainda, um aumento nos sintomas de depressão e ansiedade
em vários países. Há grupos populacionais específicos submetidos
a um risco particular de sofrimento psicológico relacionado à co-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

vid-19: os profissionais de saúde que estão no front, confrontados


com cargas de trabalho pesadas, decisões de vida ou morte e risco
de infecção. Outros grupos que correm um risco particular são as
mulheres, particularmente aquelas que estão fazendo malabaris-
mos com a educação em casa e trabalhando em tarefas domésticas;
pessoas idosas e aquelas que possuem condições de saúde mental
preexistentes. O problema se agrava quando se considera que em
diversos países os serviços de saúde mental foram interrompidos.
Os docentes das universidades públicas começaram a fazer
o trabalho remoto desde o início da pandemia, com o desenvolvi-
mento de atividades de pesquisa e extensão, atividades administra-
tivas e burocráticas, participação em reuniões virtuais, que são mais
desgastantes que as presenciais, dentre outras atividades que têm
afetado a saúde mental dos professores, deixando-os mais ansiosos,
estressados ou sobrecarregados, por ter que conciliar o trabalho re-
moto com atividades diversas do ambiente familiar. A respeito do
ensino remoto que está sendo imposto nesse momento de pandemia
é importante salientar que tal atividade tem aprofundado o desgaste
físico e mental dos professores (estresse, sofrimento, adoecimento),
e representa uma precarização e intensificação do trabalho docente,
contribuindo sobremaneira para o adoecimento docente.

O ensino remoto, a mercantilização do ensino superior pú-


blico e alguns rebatimentos sobre a saúde de discentes
A intenção de efetivar o ensino à distância no ensino funda-
mental, médio e superior vem sendo discutida como uma alternati-
va educacional, a partir da perspectiva do empreendedorismo e da
concepção de que a educação deve estar direcionada à aquisição
individual de conhecimento, sendo um espaço de formação para
a força de trabalho. Essas discussões são exemplos do privatismo,
que já estava presente no programa de Bolsonaro cadastrado no Tri-
bunal Superior Eleitoral – TSE, em que se afirma que as universi-
dades “devem desenvolver novos produtos, através de parcerias e
pesquisas com a iniciativa privada. Fomentar o empreendedorismo
para que o jovem saia da faculdade pensando em abrir uma empre-
sa” (PARTIDO SOCIAL LIBERAL, 2018, p. 46).
Já em seu primeiro ano de governo, Bolsonaro publica a Por-
taria n°. 2.117, de 6/12/2019, que estabelece em seu Art. 2º que

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

“as IES poderão introduzir a oferta de carga horária na modalidade


de EaD na organização pedagógica e curricular de seus cursos de
graduação presenciais, até o limite de 40% da carga horária total do
curso”, dentre outras que são associadas ao discurso da necessidade
de cobranças de mensalidade em universidades, estabelecimento de
vouchers, ofensivas contra o pensamento crítico e ataques à autono-
mia e democracia universitárias.
Com a pandemia da covid-19, o MEC publicou a Portaria
n°. 343, de 17/03/2020, autorizando, em caráter excepcional, que
as IES fizessem a “substituição das disciplinas presenciais, em an-
damento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informa-
ção e comunicação” (Art. 1º) pelo prazo de 30 dias prorrogáveis, e
alternativamente, autorizou suspensão das atividades acadêmicas
presenciais (Art. 2º). Esse prazo foi estendido por mais 30 dias pela
Portaria n°. 395, de 15/04/2020. Em 16/06/2020, através da Portaria
n°. 544, é reiterada a substituição das disciplinas presenciais por
“recursos educacionais digitais, tecnologias de informação e comu-
nicação” até 31/12/2020. Assim, estavam autorizadas aulas on-line
nas IES e essa medida corrobora para o projeto do capital para a
educação (ANDES-SN, 2019).
Até abril de 2020, somente seis universidades federais ha-
viam adotado o chamado Ensino Remoto Emergencial (ERE), pa-
norama que mudou radicalmente em agosto, com a adoção dessa
modalidade de ensino em aproximadamente 80% das universidades
federais, enquanto 18,89% delas seguem com atividades suspen-
sas e uma com atividades parciais, segundo dados do MEC (2020).
Contudo é importante frisar que o MEC supostamente contabiliza
a existência do ensino remoto nas universidades quando há cursos
atuando nessa modalidade. Um exemplo disso é o caso da UFAM,
que em abril de 2020 aparecia no site do MEC como já estando em
ensino remoto, mas cuja aprovação do ERE, de um Calendário Aca-
dêmico Especial, bem como da aprovação dos colegiados de curso
das disciplinas a serem ofertadas naquele momento ainda estão em
andamento. Ressalta-se, ainda, que na UFAM “a adesão ao ERE é
voluntária e facultativa, tanto para o docente, quanto para o discen-
te” (art. 9º da Resolução n° 003, de 12/08/2020).
No nosso entendimento, o ensino remoto imposto para as
universidades públicas apresenta sérias implicações para sua exe-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

cução: o reducionismo pedagógico desse tipo ensino; a (im)possi-


bilidade de acesso de inúmeros docentes e discentes às Tecnologias
de Informação e Comunicação (TIC); a transferência dos custos dos
insumos (energia, plano de internet e computador) para os docentes;
a falta de preparo dos docentes para ministrar aulas on-line; o tipo
de plataforma a ser disponibilizada pelas IES para o ensino remoto;
a possibilidade de apropriação de dados públicos e ataques ciber-
néticos; o uso do espaço doméstico dos docentes para o trabalho; o
aumento da exploração do trabalho e do adoecimento docente.
Diferente do ensino a distância (EaD), que é uma modalidade
educacional, regulamentada pelo Decreto n°. 9.057, de 25/05/2017,
que para a sua efetivação requer planejamento, formação, concep-
ção didático-pedagógica diferenciada, com projetos pedagógicos
pensados para esse formato de metodologia e que exigem investi-
mento em TICs, pessoal qualificado e política de acesso, o ensino
remoto que vem sendo dado nas IES em tempos de pandemia não
é EaD, é uma imitação deficiente e malfeita, de ensino a distância,
que apresenta sérias limitações pedagógicas que fragilizam o pro-
cesso de ensino e aprendizagem e pode trazer consequências dano-
sas para a qualidade do ensino, bem como ser um fator de segrega-
ção de discentes que não têm acesso às TICs.
As dificuldades de acesso às TICs tanto em relação à conexão
de internet de qualidade, com uma boa conexão de banda larga,
como aos dispositivos de informática (computadores, notebooks e
celulares) se constituem numa séria razão de afastamento e exclu-
são de expressivos segmentos de discentes mais vulneráveis social-
mente. E aqui vale mencionar a Pesquisa da Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (AN-
DIFES, 2018) do Perfil Socioeconômico de Estudantes de Gradu-
ação das Universidades Federais de Ensino Superior, qual identifi-
cou que 50,9% dos estudantes eram de famílias com renda mensal
bruta de até três salários mínimos. Como ofertar ensino remoto em
um contexto de exclusão digital? Queremos retroceder a um projeto
elitista de educação e deixar para trás estudantes oriundos de famí-
lias de baixa renda, indígenas, quilombolas e ribeirinhos? Vamos
aderir ao ideário meritocrático e individualista da educação neoli-
beral, que exclui estudantes das classes trabalhadoras?

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Ademais, deve-se considerar os impactos do novo formato


de ensino sobre a saúde dos estudantes. Maia e Dias (2020) desta-
cam que ainda são poucos os estudos que tratam sobre os impac-
tos da covid-19 sobre a saúde mental dos estudantes universitários.
Todavia, é possível obter alguns traços dessa realidade no contexto
brasileiro a partir da análise de reportagens em sítios eletrônicos.
A docente Camila Wanderley, orientadora do estudo “Os
efeitos da pandemia de Coronavírus na saúde mental dos estudantes
de ensino superior de Maceió-AL”, destacou em entrevista para a
Assessoria de Comunicação da Universidade Federal de Alagoas
– ASCOM UFAL – que a pandemia sugere um momento de in-
certezas em relações às expectativas e projetos dos discentes, agu-
çadas pela mudança nos fluxos das aulas e nas novas modalidades
de ensino, gerando apreensão ao futuro acadêmico e profissional e,
consequentemente, ocasionando o abalo na saúde mental dos estu-
dantes (ABREU, 2020).
Em matéria desenvolvida pelo Centro de Comunicação da
Universidade de Minas Gerais – UFMG (2020), estudantes de dife-
rentes cursos de graduação ressaltam a importância das ferramentas
de comunicação por vídeo no processo de ensino-aprendizagem,
porém revelam as dificuldades que estão atreladas a esse novo con-
texto, como a poluição sonora e distrações com os assuntos ligados
à vida doméstica, impossibilitando, em diversas ocasiões, a con-
centração nos estudos. O cenário sugere os obstáculos em torno da
adaptação ao Ensino Remoto Emergencial, que por sua vez pode
desencadear um quadro de angústia dos estudantes.
Maia e Dias (2020), ao avaliarem os impactos da covid-19
sobre estudantes universitários em Portugal, avaliam que as mu-
danças repentinas nas quais os discentes foram colocados, desde
a suspensão das aulas até a inserção no ensino digital, promove-
ram estados emocionais negativos, com consequências psicológicas
sem precedentes.
Embora os autores se refiram à realidade portuguesa, pode
se afirmar que são denominadores comuns que se encontram no
contexto brasileiro, e sugerem uma problemática voltada à saúde
mental que requer a elaboração de estudos e debates aprofundados
quanto ao cenário constatado, uma vez que a ansiedade, o estresse

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

e a depressão foram elementos evidenciados em produções inter-


nacionais que tratavam sobre a saúde de discentes em tempos de
pandemia. Portanto, acreditamos que o caso brasileiro deva ser ava-
liado com mais profundidade e criticidade.
Entende-se que a adesão ao ensino remoto não se trata apenas
de adaptar-se a uma “nova normalidade”. A realização do ensino
remoto é perpassada por muitas dificuldades, pois não se trata de
uma mera transposição de aulas presenciais para aulas remotas, há
pré-requisitos que vão desde o domínio das plataformas digitais,
preparação de aulas por meio digital, mudança na rotina doméstica
com demandas de familiares que também estão em isolamento so-
cial e que compartilham o mesmo espaço físico, ansiedades decor-
rentes dos riscos de ser infectado e infectar outras pessoas e medo
da morte.
Já existem ferramentas do serviço público federal e de pla-
taformas de código aberto (Open Source) que já realizam os servi-
ços oferecidos pelas empresas privadas, como Sistema Integrado
de Gestão de Atividades Acadêmicas (SIGAA) e a plataforma da
Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP); contudo, as univer-
sidades públicas estão optando pelo uso de plataformas privadas
como Google Education e similares para o ensino remoto. Os riscos
da utilização dessas plataformas são enormes, pois, como nos alerta
Bellan (2020, s/p), “há uma parte ‘invisível’ das TICs que não do-
minamos” e, além disso,

Elas são posse de conglomerados globais que, por meio da


datificação, expropriam o conhecimento produzido pela hu-
manidade. Como aponta o crítico Morozov, o Vale do Silício
tem interesse no domínio de todo o conhecimento produzido
no planeta. Em tempos de “Escola sem partido”, imaginem que
ameaças poderemos sofrer por conta de nossas aulas gravadas
por essas plataformas. Somos alienados da programação e dos
algoritmos dessas mídias digitais.

Leher (2020) chama a atenção para o fato de que as platafor-


mas de ensino utilizadas pelas corporações educacionais estão sob
a égide das cinco grandes corporações de Tecnologia da Informa-
ção (Amazon, Microsoft, Facebook, Apple, Alphabet/Google) que
detêm o fundamental do mercado mundial e todas elas possuem

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

objetivos estratégicos em prol da criação do mercado mundial de


ensino superior, um objetivo acalentado desde a criação do Acordo
Geral de Comércio de Serviços da OMC, em 1995.
Acredita-se que ao invés de fomentar o ensino remoto nas
universidades é fundamental dar continuidade às pesquisas que in-
vestigam o coronavírus para avançar no combate à covid-19, con-
tinuar desenvolvendo as inúmeras atividades científicas, culturais,
tecnológicas e o atendimento à sociedade por meio dos Hospitais
Universitários (HUs), prosseguir na produção de insumos de pro-
teção (EPIs, máscaras, álcool 70% e álcool em gel) a serem distri-
buídas para a população, colaborar no desenvolvimento de respira-
dores artificiais, realizar atendimentos psicossociais que garantam
a saúde mental de seus docentes, técnicos e estudantes, além de
ampliar ações e estratégias de cuidado e solidariedade para salvar
vidas, dentre inúmeras outras ações.

Considerações finais
À luz do exposto, afirma-se que a contrarreforma do ensino
superior possibilitou o processo de mercantilização da educação, a
partir das diretrizes postas por organismos internacionais, cenário
que promoveu a expansão do setor privado através de grupos e
conglomerados educacionais, visando a lucratividade nesse âmbito.
Pode-se assinalar que o alastramento da ofensiva neoliberal
na educação torna-se ainda mais evidente nos dias atuais, especifi-
camente no contexto de pandemia da covid-19, com a publicação
das portarias recentes pelo Ministério da Educação, relacionadas
ao Ensino Remoto Emergencial. Nesse cenário torna-se comum a
utilização de serviços de educação remota oferecidos por empre-
sas privadas. Essas são estratégias que, sob o viés de possibilitar o
ensino pelo meio digital e garantir o andamento do ano letivo sem
intercorrências, fomentam a privatização na política de educação.
A adoção do Ensino Remoto Emergencial é caracteriza-
da como um símbolo de avanços, por muitos de seus apoiadores,
porém são diversas as nuances negativas que são obscurecidas em
torno dessa modalidade de ensino, tais como as questões de infra-
estrutura, econômicas e sociais, que reforçam abismos já existentes
na sociedade.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Ademais, docentes e discentes se deparam com um novo uni-


verso, para o qual não foram preparados, e se veem obrigados a se
reinventar para que consigam se equiparar as exigências institucio-
nais, profissionais e acadêmicas. Um caminho de incertezas apre-
senta-se para esses sujeitos sociais, sendo motivo de adoecimentos
diversos bem como de sofrimento mental.
Por fim, o cenário atual requisita o desenvolvimento de
pesquisas que conheçam e analisem mais a fundo os impactos do
Ensino Remoto Emergencial sobre o futuro da educação pública e
também sobre os sujeitos sociais envolvidos nesse processo. Acre-
dita-se que esse é o caminho para que as discussões se fortaleçam e
sirvam de base para reivindicar uma educação pública e de qualida-
de, em oposição a que está sendo propalado pelo Capital.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

POLÍTICA NACIONAL DE SAÚDE


INTEGRAL À POPULAÇÃO LGBTI+ EM
MANAUS-AM:
desafios frente à pandemia do novo coronavírus
(SARS-CoV-2)
Valeria Soares Barbosa1
Sandra Helena da Silva2

Introdução
Nos últimos dez anos, tem crescido o número de pesquisas
em relação à violência praticada contra a população LGBTI+. Con-
tudo, pesquisas que investigam as experiências de jovens gays, lés-
bicas, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais, entre outros,
diante das violações dos direitos ao acesso à política pública de
saúde, ainda estão longe de se esgotar.
A Constituição Federal de 1988, em seu Art. 196, reconhece
a saúde como dever do Estado e direito de todos, criando mecanis-
mos por meio de políticas públicas e econômicas “que visem à re-
dução do risco de doença e de outros agravos” e busquem viabilizar
o acesso universal, gratuito e igualitário da população aos serviços
para a recuperação, promoção e proteção da saúde da população,
sem distinção de raça, etnia, classe social e gênero.
O reconhecimento do estado brasileiro sobre o acesso uni-
versal, gratuito e igualitário à política pública de saúde, não dá ga-
rantias de que na prática tal política será efetivada. São necessários
movimentos de lutas da sociedade civil, ações do Ministério Públi-
co, defesas por parte de profissionais, como os assistentes sociais
para que a política saia do papel e se transforme em equipamentos,
ambulatórios, hospitais e profissionais qualificados para atender as
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Ama-
zônia – PPGSS/UFAM. E-mail: valeria.ss_soares@hotmail.com.
2 Professora Permanente do PPGSS/UFAM. Doutora em Ciências Ambientais e Sustenta-
bilidade na Amazônia. Professora do Curso de Serviço Social ICSEZ/UFAM. E-mail: san-
drahs@ufam.edu.br.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

demandas da população. Foram incontáveis as lutas de homens e


mulheres ao longo da história, desde dos anos de 1970, quando do
início dos movimentos pela democratização à saúde e nos anos de
1986 com a elaboração da Reforma Sanitária, pelo direito à saúde
pública. (BRAVO, 1996).
O objetivo deste estudo é fazer um recorte na política pública
de saúde e discutir os desafios para a implementação da Política Na-
cional de Saúde Integral LGBTI+ na cidade de Manaus-AM, diante
de um cenário, em anos recentes, de sucateamento das políticas pú-
blicas e agravado com o cenário da pandemia do novo coronavírus
(SARS-CoV-2). Tal política foi instituída pela Portaria n° 2.836 em
1° de dezembro de 2011, e é reconhecida como um marco histórico
das demandas da comunidade, e documento norteador, legitimador
das especificidades da população LGBTI+.
É importante frisar como nota introdutória a opção por
trabalhar com a sigla LGBTI+, embora a Política de Atenção
Integral à Saúde faça uso da sigla LGBT. As discussões teóricas
apresentadas a seguir pretendem discutir a amplitude do tema sob
a sigla LGBTI+, por ser um conjunto de siglas que por si só traba-
lham a diversidade sexual e, ainda, por ser tal sigla reconhecida e
recomendada pela Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB) contemplando todos os seguimentos.
O procedimento metodológico é de natureza qualitativa
alinhado a análise de conteúdo. Para Bardin (2011) a análise de
conteúdo é um instrumento metodológico aplicado a discursos
diversificados, oscila entre os polos da objetividade, podendo os
discursos serem transformados numericamente, e o polo da subje-
tividade, valorando os dísticos dos informantes da pesquisa como
dados qualitativos fundamentais para a interpretação e compreen-
são do real. Nesse estudo os discursos proferidos pelos sujeitos pos-
sibilitou a compreensão dos movimentos de lutas e resistência para
a implementação da política em estudo na cidade de Manaus-AM,
as correlações de força entre os próprios movimentos, instituições
e o Estado.
Em relação aos participantes desta pesquisa, contamos com
representantes de três movimentos sociais e outros dois participan-
tes representantes de instituições do Estado do Amazonas, são eles:

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas


(ASSOTRAM), Associação Manifesta LGBT+, Coordenação Es-
tadual de Saúde Integral LGBTI do Amazonas, e os representantes
das instituições – Ambulatório de Diversidade Sexual e de Gênero
– Processo Transexualizador e Departamento de Promoção e De-
fesa de Direitos (DPDD) vinculado à Secretaria Estado de Justiça,
Direitos Humanos e Cidadania (SEJUSC) que colaboraram e ainda
colaboram junto aos coletivos, para a implementação da Política
de Saúde Integral LGBT em Manaus. Os nomes dos participantes
foram preservados. Para sua identificação foram utilizados codino-
mes representativos de cristais.
Para elaboração da pesquisa foram realizadas revisão de li-
teratura relativa à Política Nacional de Saúde Integral LGBT, além
da pesquisa documental nos acervos e materiais dos movimentos
sociais pesquisados e na Coordenação Estadual de Saúde LGBT do
Amazonas. A pesquisa foi realizada no período de maio de 2019 a
fevereiro de 2020 e contou com apoio financeiro da Fundação de
Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM.
O estudo está dividido em três partes: a primeira trata da
construção da política de saúde LGBTI+ no Brasil; na segunda par-
te abordamos brevemente as especificidades da Política Nacional de
Saúde Integral LGBT e por fim trazemos algumas reflexões sobre
o sucateamento da política pública de saúde, a pandemia do novo
coronavírus (SARS-CoV-2) para a população brasileira e LGBTI+.

A construção da política de saúde LGBTI+ no Brasil – mo-


vimentos de luta e resistências
Do tripé da Seguridade Social no Brasil, a saúde é a dimen-
são de maior atenção e luta por parte da população LGBTI+, visto
que ainda em pleno século XXI essas pessoas vivenciam situações
de constrangimento, preconceito e discriminação quando acessam
os serviços de saúde disponíveis na rede pública.
Os acessos aos serviços e equipamentos de saúde são
disponibilizados à toda sociedade brasileira, muito aquém do que
é direito. Desde os anos de 1990 o projeto de reforma sanitária foi
questionado e colocado em xeque por um novo projeto de saúde
regido sob a ótica privatista e mercadológica (BRAVO, 2006). Para

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

a população LGBTI+ que sempre enfrentou desafios no acesso aos


serviços de saúde, com o atual projeto de contrarreforma a situa-
ção se agrava. Visto os serviços e os equipamentos de saúde serem
insuficientes para atender as suas específicas demandas e além do
que, muitos deles passam por situações de desrespeito diante de
sua própria identidade, como a negativa do direito ao uso do nome
social, conforme Decreto Presidencial nº 8.727/2016.
Conforme a Carta dos Usuários do SUS, portaria nº 1.820 de
13 de agosto de 2009, o uso do nome social incluindo o cartão SUS
já é direito garantido desde 2009, mas na prática, a população LGB-
TI+ continua a ter esse direito desrespeitado pelos profissionais da
saúde (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2009).
Desde os finais dos anos 1980, de acordo com Bravo (2001)
e Andreazzi (2013), o Estado tem injetado capital financeiro no
mercado privado de saúde no Brasil, sucateando o SUS. Ao longo
desse processo, os movimentos sociais têm acompanhado esse es-
tado de desmonte das políticas públicas, e tem resistido, por meio
de estratégias que garantam minimamente sua participação nos es-
paços de controle social e nas conferências de saúde. Conferências
essas que são espaços de luta, conflitos, correlações de força e to-
madas de decisão, mas que de alguma forma representa estruturas
para o exercício da democracia (MENEZES, 2013).
As conferências têm sido pautadas pelo princípio da partici-
pação dos diversos segmentos da sociedade com objetivo de ava-
liar, definir propostas e as prioridades quanto à execução de políti-
cas públicas, nesse estudo em questão as voltadas para a saúde. As
conferências são espaços de disputa política e também de delibera-
ção coletiva sobre as diretrizes que devem guiar a saúde pública do
país (GUIZARDI et al., 2004).
Contando com a participação popular, a 1ª Conferência Na-
cional GLBT ocorreu nos dias 5 a 8 de junho de 2008, em Brasília,
foi tida pelos movimentos como um marco histórico na luta pe-
los seus direitos. A presente conferência teve como discussão os
“Direitos Humanos e Políticas Públicas: o caminho para garantir a
cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais”
(BRASIL, SECRETARIA ESPECIAL DOS DIREITOS HUMA-
NOS, 2008).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A 2ª Conferência Nacional LGBT ocorreu durante os dias 15


a 18 de dezembro de 2011. Trouxe como tema para a arena do deba-
te, “Por um país livre da pobreza e da discriminação, promovendo
a cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais”.
A 3ª Conferência Nacional LGBT foi realizada durante os
dias 24 a 27 de abril de 2016. Essa conferência, além das propostas
deliberadas, teve como grande conquista a assinatura e publicação
no Diário Oficial da União o Decreto Presidencial n° 8.727, de 28
de abril de 2016, que dispõem sobre o uso do nome social e o reco-
nhecimento da identidade de gênero das pessoas transexuais e tra-
vestis em todo o território nacional. Uma reinvindicação histórica
para essa população (BRASIL, SECRETARIA ESPECIAL DOS
DIREITOS HUMANOS, 2016).
A 4ª Conferência Nacional LGBT, prevista para o ano de
2019, não saiu do papel, em virtude da ausência de apoio político e
adesão por parte do atual governo que tem negado as lutas e direitos
da comunidade LGBTI+.
Para Boschetti (2017), a acumulação capitalista tem endu-
recido as condições de vida da classe trabalhadora e um expressi-
vo ataque aos direitos sociais conquistados historicamente, com a
justificativa da crise fiscal. Em relação aos direitos da população
LGBTI+ a situação se agravou. Para Jesus (2019) o Governo Bolso-
naro iniciou o ano de 2018 com a questão do apartheid de gênero,
de perseguição aos professores que trabalham a diversidade de gê-
nero, e evidenciou-se um movimento pelo apagamento de pessoas
trans, havendo por parte do atual governo um silenciamento quando
o tema é LGBTI+.
Este silenciamento pode ser identificado na atual conjuntura,
quando a Secretaria Especial dos Direitos Humanos que apoiou a
realização das conferências LGBT, já aqui citadas, deixa de exis-
tir, passando essa pauta dos direitos humanos para o Ministério da
Mulher, Família e Direitos Humanos, sob o comando da pastora
Damares Alves (MARINI; LINDNER; KRUSER, 2018).
A população LGBTI+, que antes era mencionada na Carta
de Diretrizes dos Direitos Humanos, agora não são mais citados.
A carta menciona apenas a promoção de direitos para mulher, a
família, a criança, o adolescente, o idoso, a juventude, a pessoa com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

deficiência, a população negra, as minorias étnicas e sociais e o


índio (Ibid., 2019).
Os movimentos sociais LGBTI+ no Brasil possuem desde a
década de 1980 como uma das principais bandeiras de luta a saúde
– mas uma saúde inclusiva, onde os profissionais de saúde respei-
tem os LGBTI+, o seu nome social, com acesso ao processo de
hormonioterapia, o combate e a prevenção do HIV/AIDS e a cirur-
gia de redesignação de sexo, sem entraves burocráticos, respeitando
ainda suas subjetividades.
É inegável a experiência do Brasil em relação ao combate
ao HIV/AIDS e mais recente o processo de transexualizador e de
cirurgia de redesignação de sexo. Tais procedimentos têm garantido
a promoção de saúde e bem-estar de parcelas da população LGB-
TI+. Contudo, os atendimentos e os acessos ao que está posto na
Política Nacional de Saúde Integral LGBTI+ ainda está longe do
ideal.

A Política Nacional de Saúde Integral de lésbicas, gays,


bissexuais, travestis e transexuais – LGBT
No Brasil, desde a década de 1980, foram surgindo diversos
movimentos em defesa da liberdade sexual, dos direitos humanos e
da saúde voltada para grupos específicos como a população LGB-
TI+, “cujas reflexões e práticas ativistas têm promovido importan-
tes mudanças de valores na sociedade brasileira” e a política em
pauta nesse estudo é fruto dessa luta (BRASIL, MINISTÉRIO DA
SAÚDE, 2013, p. 09).
Apresentando-se como um dos maiores marcos dos movi-
mentos sociais LGBTI+ em prol do seu direito à saúde pública
integral com equidade, a aprovação da Política Nacional de Saú-
de Integral LGBT demarcou o reconhecimento de pessoas que
historicamente foram marginalizadas pelo Estado e pela socieda-
de. Tal política, de acordo com o Ministério da Saúde (2013, p.
06), “É também um documento norteador e legitimador das suas
necessidades e especificidades, em conformidade aos postulados de
equidade previstos na Constituição Federal e na carta dos Usuários
do Sistema Único de Saúde”.
A política buscou romper com o estigma de que saúde LGB-
TI+ estava reduzido apenas à prevenção e combate do HIV/AIDS,

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

trouxe à tona outras questões que envolvem a saúde em sua totali-


dade, como a exemplo: a sua saúde reprodutiva, o processo transe-
xualizador, as cirurgias de redesignação de sexo, a saúde da mulher
lésbica, do homem trans, a gravidez e o pré-natal em homens trans
etc., especificidades que antes não eram consideradas, debatidas e
tratadas nos equipamentos de saúde.
A Política Nacional de Saúde Integral LGBT é norteada por
um conjunto de diretrizes operacionais que para a sua execução
exige, do Estado, desafios e compromissos de todas as áreas, até
mesmo porque sua existência não torna obrigatória a sua implemen-
tação em todos os estados brasileiros. Para isso, é “imprescindível
a ação da sociedade civil nas suas mais variadas modalidades de
organização com os governos para a garantia do direito à saúde... .”
(BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013, p. 06).
A Política em discussão trata-se de uma iniciativa de re-
paração histórica, que busca proporcionar aos seus usuários mais
equidade no acesso aos serviços de saúde ofertados pelo SUS. O
compromisso do Ministério da Saúde, de acordo com o Programa
Mais Saúde – Direito de Todos, lançado em 2008 visava reduzir
as desigualdades sociais e ampliar o acesso as ações e serviços de
qualidade, em especial para os grupos populacionais quilombolas,
LGBT, ciganos, população em situação de rua, entre outros. (BRA-
SIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008).
A política parte do princípio do respeito, do não preconceito
e discriminação como um fator predominante para a humanização
do acesso a esses grupos aos serviços de saúde público do país.
Trata-se de trabalhar as particularidades desses corpos, sem o viés
do binarismo3, como erroneamente eram tratados e medicados, com
o objetivo máximo de respeitar suas identidades de gêneros (BRA-
SIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2008).
Para os movimentos sociais pesquisados, tal política ainda
está longe de contemplar todos os seus corpos e identidades, vis-
to na prática estar reduzida ao processo transexualizador. Para os
participantes da pesquisa, a política relativa as suas especificidades
3 Este termo tem a competência de designar, na sociedade, a presença de somente duas
categorias de gênero, ou seja, fecha os princípios sociais em duas formas de vida, a de “ser
homem” e de “ser mulher”, excluindo outras formas de viver e inserindo-as nas anomalias da
sociedade. (CONCEIÇÃO, 2019).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

e demandas, ainda, não tem se efetivado em sua totalidade e sim


apenas em algumas particularidades, como afirma Rubi, Cristal e
Esmeralda:

Desde o período que foi criado, só agora em 2019 de fato foi


instalado o ambulatório transexualizador e isso foi feito com
muita luta. E, ainda assim, o ambulatório ainda tem um aten-
dimento limitado. Quando vou buscar o atendimento eu preciso
fazer muitos exames, rodar toda a cidade, demora meses e acre-
dito que isso responde sobre a falta de efetividade da Política
aqui em Manaus (RUBI, PESQUISA DE CAMPO, 2020).

Acredito que de fato ela não existe, mas está começando a ser
implementada. O processo transexualizador é uma parcela nesse
processo, mas uma saúde integral LGBTI+ ainda é uma luta
que estamos batalhando (CRISTAL, PESQUISA DE CAMPO,
2020).

Assim a política de fato não está efetivada mas ela está se efe-
tivando, a gente está pensando também em outros municípios
e pensando as especificidades dessas pessoas, porque o que
acontece com uma trans negra não é mesmo que acontece com a
trans branca, com a trans indígena etc. O plano está em parceria
com a UEA, com SUSAM e SEMSA para pensar, porque o Estado
constrói mas quem implementa é o município (ESMERALDA,
PESQUISA DE CAMPO, 2020).

Ao analisar as falas das três representantes de movimentos


sociais, e estas corroboram com as falas dos demais participantes,
observa-se a falta de efetividade por parte do Estado na implemen-
tação da política em Manaus. A presente situação vai ao encontro
dos estudos realizados por Bravo (2011) que aponta a falta de von-
tade política por parte do Estado, a ausência de investimentos no
SUS e a precarização dos serviços prestados, além da transferência
para a sociedade civil e o setor privado as responsabilidades para a
execução da política pública de saúde.
A realidade dos equipamentos de saúde e dos profissionais de
saúde é de abandono e descaso por parte do poder público. Desde os
anos de 1990 que os governos sob a ótica neoliberal vêm realizando
inúmeros ataques para a desqualificar os serviços públicos e valo-
rizar o setor privado nos mais diversos setores, para além da saúde
(BRAVO, 2011).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Para Bravo e Menezes (2011), entre os diversos fatores que


favorecem o desmonte da política de saúde no Brasil é a sua cen-
tralidade na doença, e não na promoção de saúde. Além do que está
centrado em um modelo de gestão burocrático, terceirizado, com
ênfase na privatização. Os efeitos desse movimento é precarização
das condições de trabalhado dos profissionais de saúde e o continuo
sucateamento dos equipamentos ambulatoriais e hospitalares. Para
Boschetti (2017), a lógica capitalista está destruindo e agudizando
as conquistas civilizatórias, resultantes das lutas sociais.
A Proposta de Emenda Constitucional – PEC n° 55 aprovada
em 2016 representou um claro exemplo do descaso do poder públi-
co para com as demandas da população, congelando por 20 anos os
gastos com a saúde e educação. A situação que já era precária tende
a se agravar com o passar dos anos (Ibidem, 2017).
Para a implementação da recém criada Política Nacional de
Saúde Integral LGBTI+, os problemas estruturais têm sido diver-
sos, entre eles, destacamos: os espaços de atendimento à população,
como a exemplo da Coordenação Estadual de Saúde Integral LGB-
TI que no período em que ocorreu a pesquisa de campo, funcionava
em um departamento dentro da SUSAM, coordenado por um único
profissional do Serviço Social. Na fala de Topázio, ele afirma que
algumas das coordenações criadas são formadas pelo EUQUIPE,
ou seja, um única pessoa para coordenar e executar todas as ativi-
dades. Além do EUQUIPE, as observações realizadas nas visitas
institucionais, além das falas dos participantes Onix, Ametista e
Topázio (2020) indicaram haver falta de espaços, parcos recursos
para deslocamentos e desenvolvimento de ações, ausência de uma
equipe de trabalho e precárias condições de trabalho. A realidade
encontrada nos espaços sócio-ocupacionais dos profissionais entre-
vistados, cuja responsabilidade é atuar na implementação da Políti-
ca Nacional de Saúde Integral LGBTI+, na cidade de Manaus, indi-
cam um cenário de desvalorização dos serviços públicos de saúde
voltados à essa população.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Sucateamento das Políticas Públicas de Saúde – desafios


para a população LGBTI+ em um cenário de pandemia
do novo coronavírus
A pandemia da covid pelo do novo coronavírus (SARS-CoV
2), logo depois do início da epidemia na China em fins de 2019,
chega ao Brasil em meados de fevereiro de 2020 e até a primeira
quinzena do mesmo ano foram registrados, de acordo com os dados
do Ministério da Saúde (2020), 4.330.455 casos e 131.663 mortes.
A pandemia ao chegar no Brasil encontra uma realidade de am-
pliadas desigualdades sociais, uma população em situação de extre-
ma vulnerabilidade, uma grave e histórica crise sanitária, um país
sem condições mínimas de saneamento básico e com um pujante
movimento pela privatização dos serviços públicos, de redução e
congelamento dos gastos públicos, como a exemplo das Emendas
Constitucionais n°. 55 e 95 ambas de 2016 (WERNECK; CARVA-
LHO, 2020).
Para Werneck e Carvalho (2020) há tempos a comunidade
científica do campo das doenças infecciosas vem alertando quanto
ao advento de novas epidemias. Para os pesquisadores isso seria
uma questão de tempo. O século XXI presenciou a ocorrência de
uma série de epidemias que foram contidas de alguma forma, tanto
no nível temporal como geográfico. A exemplo citamos a pandemia
da influenza H1N1 de 2009, que também foi devastadora. Estima-se
que entre 150 mil a 575 mil pessoas morreram de causas ligadas à
infecção.
A pandemia da virada do ano de 2019 para 2020 vem retratar
as dilacerantes tensões do modelo de organização social da atual
conjuntura. Lima, Buss e Paes-Sousa (2020) qualificam essas ten-
sões de nossa sociedade como: globalizada nas trocas econômicas,
mas frágil na proposição de um projeto político global, interconec-
tada pelas mídias digitais porém tomada pela desinformação, à bei-
ra de um colapso ambiental, mas dominantemente não sustentável,
com sinais claros de uma carência de ideais políticos e tão avessa à
política e projetos comuns.
Em tempos como os vividos na pandemia e no percurso do
sucateamento das políticas públicas e sociais, exige-se dos movi-
mentos sociais uma maior e mais ampliada mobilização, seja nas

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ruas, nas redes sociais, nas urnas eletrônicas. Este movimento a po-
pulação LGBTI+ vem percorrendo há décadas na luta pelo direito
a ter direitos como todo cidadão e cidadã de uma sociedade demo-
crática.
Os movimentos sociais da população LGBTI+, e não so-
mente eles, vêm há anos lutando e resistindo frente aos ataques e
ou abandono por parte do Estado, na busca de melhorias e acessos
aos serviços ofertados pelo SUS, mas se para a grande parte da
população essa luta tem sido desigual. Para a população pesquisada,
os desafios têm sido ainda mais ampliados e desumanos, em virtu-
de dos atos de discriminação e preconceitos vivenciados quando
da necessidade de tratamento médicos e hospitalares (CARDOSO;
FERRO, 2012).
Para Bravo (2001), um dos maiores agravos quando se fala de
saúde no Brasil é a incontrolável corrupção. O Estado gasta muito
pouco com saúde e gasta mal, além de não haver uma fiscalização
da destinação final dos recursos da saúde. No período da pandemia
essa situação se ampliou, visto ter sido possível observar as inúme-
ras denúncias contra os governos de diversos estados brasileiros,
como citado na rede midiática nacional, pelo uso inapropriado dos
recursos públicos destinados ao combate à pandemia.
O sucateamento da saúde pública no país, decorrente da au-
sência do Estado, interfere nesse processo e na qualidade de vida
dos indivíduos, uma vez que a própria política “considera o desen-
volvimento social uma condição imprescindível para a conquista da
saúde” (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013, p. 19).
Quando se trata da população LGBTI+ e o acesso à saúde, te-
mos os mesmo impasses: a falta de interesse do poder público, falta
de profissionais capacitados, a falta de diálogos sobre a educação
sexual nas escolas, ausência de debates sobre os temas sobre sexu-
alidade e identidade de gênero nas unidades de saúde (CARDOSO;
FERRO, 2012).
Os descasos do Estado diante da saúde pública, citados acima
por Cardoso e Ferro (2012), se avolumam ainda mais na atual con-
juntura política do estado brasileiro. Nesse aspecto, os participantes
da pesquisa declaram:

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

São as piores possíveis. Já desisti de tentar entender. Na verdade


eu penso sobre o que passa na cabeça desse ser. Me recuso a falar
o nome dele, as expectativas são as piores possíveis (CITRINO,
PESQUISA DE CAMPO, 2020).

Relacionadas as questões LGBT são as piores. Então sobre o


processo transexualizador, quem pegou esse projeto foi o Albert
Einstein em São Paulo. E a própria representante do Ministério
da Saúde falou bem claro: olha, sobre saúde LGBT, o que vocês
têm de recurso é somente pra processo transexualizador, e é
uma verba dos governos anteriores (Dilma/Temer), ou seja, é
o não financiamento da política pública, não reconhecimento
desse direito dessa população (TOPÁZIO, PESQUISA DE
CAMPO, 2020).

Presidente atual não demonstra expectativa de mudança frente


a seu pensar conservadorista e retrógrado (QUARTZO, PES-
QUISA DE CAMPO, 2020).

Os discursos proferidos pelos sujeitos da pesquisa corrobo-


ram com os dizeres de Jesus (2019) sobre a preocupação com os
retrocessos, no que tange aos direitos, a serem enfrentados pela
população LGBTI+ diante de um governo, cujo seu principal pro-
tagonista, o Presidente da República, já havia se declarado homo-
fóbico. Somado a esse discurso há o próprio movimento do Estado
em alinhar-se as políticas econômicas neoliberais cujo objetivo é
a privatização, a focalização e a descentralização das políticas so-
ciais. (BEHRING, 2002).
Vale frisar que as políticas sociais no Brasil são frutos de
conquistas resultantes da correlação de forças entre a classe tra-
balhadora e o Estado. Em tempos de crises econômica, política e
da situação atípica da covid-19, as negociações se restringem e em
outros momentos podem ser ampliadas. Mas este conjunto de de-
cisões, no geral, ficam a cargo de homens de carne e osso, que ba-
nalizam as possibilidades e limites da política social, como afirma
Berhring (2006).
Desde a criação do SUS até os dias de hoje, questões centrais
na área da saúde, como a universalização das ações e o financia-
mento efetivo, a política de gestão do trabalho e a educação na saú-
de e a política nacional de medicamentos não tiveram progressos e
sequer saíram do totalmente do papel ou foram discutidos (BRA-
VO; MENEZES, 2011).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

O fato é que a Política Nacional de Saúde Integral LGBT é


a mais atual de todas as conquistas da população LGBTI+. Contu-
do, sua recente criação não desresponsabiliza o Estado de dar con-
ta de atender as específicas demandas dessa população. É preciso,
assim como prevê as diretrizes da presente política, qualificar os
profissionais de saúde para que possam executar suas ações de
forma a gerar o mínimo de prejuízos e atrasos nos encaminhamen-
tos relativos aos cuidados de saúde dos LGBTI+ e dirimir ações de
violação de direitos (CARDOSO; FERRO, 2012).
Enquanto estamos aqui, dialogando sobre essa expressão da
questão social, a cada 48 horas, uma travesti é violentada em casa
ou na rua, segundo a Secretaria de Direitos Humanos da Previdên-
cia (BRASIL, 2013).
No ano de 2015, de acordo com os dados do Disk Denúncia
– Disk 100 foram recebidas 6.809 denúncias contra os LGBTI+,
equivalente a 19 denúncias por dia, conforme a Secretaria de Direi-
tos Humanos da Previdência do Brasil (BRASIL, 2013).
A Política Nacional de Saúde Integral LGBT possui um con-
junto de diretrizes, operacionalização que requer planos, com es-
tratégias e metas sanitárias, e sua execução exige o compromisso
dos movimentos sociais, das instituições parceiras e do Estado na
desconstrução de tabus e paradigmas heteronormativos4 ainda tão
arraigados no seio de nossa sociedade.
No pleno exercício da democracia e do controle social, é im-
prescindível a ação da sociedade civil nas suas mais diversas mo-
dalidades, movimentos sociais, coletivos, grupos, mobilizações,
paralizações etc. Cobrando do Estado a garantia do direito à saúde.
(BRASIL, 2013).
Para esse processo faz-se necessário implementar ações
valorativas dos direitos humanos, de preceitos éticos, de forma a
evitar a discriminação contra a população LGBTI+ nos espaços
e durante o atendimento nos serviços de saúde, ou seja, um
compromisso ético-político em todas as instâncias do SUS, para
além do que está posto nas diretrizes e normativa da política pública
de saúde.
4 Refere-se ao enquadramento de todas as relações entre pessoas em um binarismo de gênero
a partir do modelo do casal heterossexual, monogâmico e reprodutivo (PEREIRA; MELO,
2012).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Assim, saúde sem preconceito e discriminação deve ser uma


prerrogativa de todo cidadã e cidadão brasileiro. O acesso e garan-
tia a esse direito deve ser assegurado pelo Estado, respeitando as
especificidades de gênero, de raça, de etnia, geração, orientação e
práticas afetivas e sexuais.

Considerações finais
As discussões em torno dos direitos da população LGB-
TI+ estão longe de se esgotar, e em um cenário de acirramento
dos conflitos sociais/morais, de uma conjuntura política e econô-
mica conservadora e de extrema direita como a do Brasil exige
de nós, assistentes sociais e pesquisadores, ações e reflexões que
contribuam para fortalecer os movimentos sociais representativos
dessa comunidade, na garantia do acesso aos seus direitos.
Desde os anos 1990 há um movimento econômico e políti-
co fundado no ideário neoliberal de privatização dos bens, recursos
e políticas públicas, de precarização das condições de trabalho, de
sucateamento da educação e da saúde, da focalização dos progra-
mas da assistência social para o mais vulneráveis, de degradação
ambiental e mercantilização dos recursos naturais, o que repercute
diretamente na ampliação das taxas de desigualdades sociais e de-
gradação ambiental.
Nesse bojo é afetada toda uma população, a denominada
classe trabalhadora. Nessa classe está inserida também, mas talvez
quase nunca visível, a população LGBTI+, marginalizada, estig-
matizada, negada e discriminada por valores culturais heteronor-
mativos que se agravam quando associados à lógica capitalista e
racista tão presentes historicamente em nossa sociedade (TEIXEI-
RA, 2020).
Há décadas a população LGBTI+ vem lutando pelo seu di-
reito de ser reconhecida como cidadãos e cidadãs de direito. Ser
LGBTI+ na sociedade brasileira é um ato de resistência. É lutar pela
sobrevivência, pelo direito de existir, lutar para manter-se vivo,
diante de uma baixa expectativa de vida, como a de uma travesti e
mulheres transexuais. No Brasil a média de vida dessa população
é de apenas 35 anos, conforme dados do Observatório do Terceiro
Setor, em artigo produzido por Alves (2018). Com o cenário da

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

pandemia, essa situação se agravou ainda mais, suas cirurgias e tra-


tamentos foram paralisados, os acessos aos serviços públicos fica-
ram ainda mais tardios e a discriminação se avolumou.
Assim, certos estamos de que não esgotamos, neste estudo,
as discussões sobre essa temática, mas temos a convicção de que
conseguimos instigar você a pensar sobre os direitos da população
LGBTI+ e de como o acesso a esses direitos, aqui em especial à
saúde, exige deles e de nós maiores capacidades de resiliência, es-
tratégias de luta e resistência para vencer os descaso do Estado. Que
todos nós possamos sair mais fortes e conscientes no pós-pandemia
e atuar ativamente na construção de um novo modelo de sociedade,
de projetos, ideais e agendas políticas coletivas.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Seção 2
Trabalho do Assistente Social na
Saúde

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE PÚBLICA:


aproximações ao trabalho de assistentes sociais
em tempos de pandemia no Brasil
 
Ana Claudia Lopes Martins1
Milena Fernandes Barroso2
Taysa Cavalcante Rodrigues3
Introdução
 A saúde foi colocada no centro dos debates mundiais em 2020
pelo contexto da pandemia do chamado novo coronavírus. A questão
foi pautada em discussões que abordam desde o modelo de atenção à
saúde dos países, estrutura e acesso a insumos e tecnologia, até a ca-
pacidade de recursos humanos para os atendimentos. De modo geral,
foi explicitado que nenhum país do mundo estava preparado para a
pandemia – no sentido do insuficiente conhecimento científico sobre
a covid-19 e da precária estrutura dos serviços – e que, nos dois lados
do Atlântico, o afluxo de doentes para hospitais lotados e a escassez
de equipamentos de proteção eram uma constante, evidenciando os
limites dos sistemas de saúde em nível planetário. Nessa direção, des-
taca-se, entre outros, a gestão de autoridades mundiais, a exemplo da
Espanha, por ter proibido tardiamente grandes reuniões; da França,
devido à escassez de máscaras; do Reino Unido, em razão da cons-
cientização tardia do primeiro-ministro Boris Johnson, que “apertava
a mão de todos” nos hospitais (O TEMPO, 2020); e do Brasil, pela
insistência do presidente Jair Bolsonaro em negar as orientações sa-
nitárias e a gravidade da pandemia.
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Ama-
zônia (PPGSS) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: anaclaudialopesmar-
tins13@gmail.com
2 Doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Professora do curso de Ser-
viço Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), no Instituto de Ciências Sociais e
Zootecnia-ICSEZ. Docente permanente do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e
Sustentabilidade da Amazônia (PPGSS/Ufam). E-mail: mibarroso@yahoo.com.br
3 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Ama-
zônia (PPGSS) da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: taysacavalcante12@
gmail.com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A despeito da concordância com o insuficiente conhecimento


científico sobre os efeitos do novo coronavírus na saúde da popu-
lação, não compartilhamos das análises que limitam tais efeitos à
pandemia em si mesma e/ou unicamente a um problema de gestão.
Portanto, ainda que as diversas análises creditem à pandemia o mo-
tivo da crise mundial e, em particular, da brasileira, pesquisadoras e
pesquisadores do pensamento social crítico apontam, desde a déca-
da de 1970, para a emergência de uma crise estrutural e planetária
(MÉSZÁROS, 2009), não restrita à economia, mas de toda uma
forma de organização social.
Nessa direção, analisa-se a pandemia não como casualidade
ou “vingança divina”, mas como componente mesmo da vida huma-
na, que, no contexto de crise estrutural do capital, põe em relevo as
contradições, as desigualdades e os limites do capitalismo. Assim,
a crise sanitária, exponenciada com a pandemia, revela a barbárie
capitalista (acentuada em sua fase neoliberal), que no Brasil opera
com o corte nos investimentos de serviços públicos essenciais –
como é o caso da saúde –, o desmonte de políticas afirmativas e am-
bientais e o avanço de medidas ultraconservadoras. Ademais, longe
de se revelar como uma calamidade democrática, que atingiria a
todos indiscriminadamente, o contexto de pandemia elucida as de-
sigualdades historicamente presentes, tanto entre os Estados-nação
– destaca-se o acesso facilitado à tecnologia, inclusive na corrida
pela compra de respiradores a países da Europa e América do Norte
– como internamente no Brasil, deixando explícito o desemprego,
o subemprego, o déficit habitacional, o desabastecimento de água e
de saneamento básico e, nesse sentido, qual é a população que tem
o direito a não ser contaminada e qual é aquela que aparentemente
pode ser contaminada (BRUM, 2020).
Tais implicações, pelas razões anteriormente explicitadas,
lançam desafios ao conjunto de profissionais que vêm atuando na
“ponta” dos serviços de enfrentamento à expansão e consequências
da pandemia. Situam-se como trabalhadores sobre os quais recai
uma série de demandas que têm exigido respostas qualificadas, situ-
adas num quadro das mais diversas ordens de precarização. Dentre
essas profissões, insere-se o Serviço Social, que, historicamente,
tem na saúde uma das principais áreas de inserção. É nesse con-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

texto que situamos o objetivo deste artigo, qual seja, refletir sobre
o trabalho dos assistentes sociais na área da saúde em tempos de
pandemia no Brasil.
Parte-se do pressuposto de que tais condições são determina-
ções importantes para a atuação profissional deles, que têm a ques-
tão social como objeto de intervenção em todas as áreas de atuação.
Importante destacar ainda que os desafios aqui localizados não se
limitam ao ambiente hospitalar, uma vez que a atuação do Serviço
Social na área da saúde abrange os diversos níveis de atendimentos.
Na direção do que aponta Matos (2020, p. 2-3), os serviços de saúde
tiveram suas rotinas alteradas em todos os níveis: “[...] suspensão
de cirurgias eletivas nos ambulatórios especializados e hospitais;
‘transformação’ de leitos direcionados para os agravos decorrentes
da covid-19; suspensão de consultas ambulatoriais de rotina para
evitar aglomerações etc.”. Isso trouxe implicações aos profissionais
em geral e, em particular, aos/às assistentes sociais que atuam tam-
bém como importantes interlocutores/as na comunicação entre a
população usuária e os serviços.
Além disso, é oportuno localizar o profissional no “mundo
do trabalho”, que, ao mesmo tempo em que atua na atenção aos
trabalhadores, é também um trabalhador assalariado – com ou sem
vínculo formal – que vivencia no seu cotidiano profissional diversas
situações postas ao conjunto da classe trabalhadora. No contexto
de pandemia, isso ficou evidenciado, entre outros, na desproteção e
insegurança no trabalho, na falta e/ou insuficiência de equipamen-
tos de proteção individual (EPIs), na suspensão de férias, aumento
das horas e sobrecarga de trabalho, reduzido tempo de repouso etc.
Dito isso, o artigo foi dividido em duas partes relacionadas:
a primeira de contextualização da saúde no Brasil – com destaque
para o Sistema Único de Saúde (SUS) e as empreitadas de seu des-
monte, especialmente a partir da Emenda Constitucional nº 95/2016
– e da relação do Serviço Social com esse campo, numa tentativa
de explicitar as particularidades da atuação dos assistentes sociais
nesse espaço sócio-ocupacional. Para qualificar essa reflexão, apon-
tamos as tensões entre o projeto privatista e o de reforma sanitária
e seus rebatimentos nos princípios norteadores do trabalho desses
profissionais. Tais discussões nos possibilitaram chegar ao contexto

- 103 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

da pandemia (segunda parte do texto) e apontar o aprofundamento


dos desafios para a saúde pública brasileira e os desdobramentos
da agudização da crise sanitária ( expressão da crise estrutural) no
exercício profissional dos assistentes sociais, com repercussões di-
versas que reforçam a necessidade do debate permanente sobre as
atribuições e competências profissionais.

Saúde pública no Brasil e o Serviço Social


A saúde pública no Brasil tem como marco a criação do Sis-
tema Único de Saúde (SUS), sendo que seus antecedentes estavam
circunscritos à medicina curativa e ao privilégio de uns em detri-
mento de outros. Assim, aqueles que possuíam recursos financeiros
eram atendidos por médicos particulares, e os demais, maioria da
população, que não podiam pagar, dependiam da caridade ou da
assistência das Santas Casas de Misericórdia (D’AVILA, 2020). É
possível afirmar que, na história da saúde pública brasileira, a fi-
lantropia religiosa, na qual o atendimento à população se dava por
instituições e médicos filantropos, teve papel preponderante. O pa-
pel do Estado limitava-se, em grande medida, a promover ações
de saneamento básico e de enfrentamento às epidemias, como, por
exemplo, a ocorrida no final do século XIX e início do século XX,
com a campanha de vacinação contra a varíola (CARVALHO,
2013).
A inserção do Serviço Social nos processos de trabalho de-
senvolvidos na área da saúde data do surgimento da profissão no
país, ainda que inicialmente não tenha sido o principal empregador.
Após a 2ª Guerra Mundial, há uma ampliação da ação profissional
nesse campo que passa a ser o maior contratador de assistentes so-
ciais. Isso deriva tanto das condições gerais que determinaram a ex-
pansão da profissão, das exigências e demandas do aprofundamento
do capitalismo no Brasil quanto da ampliação do conceito de saúde
em 1948, que passa a enfocar os aspectos biopsicossociais, requisi-
tando outros profissionais para a área da saúde, com destaque para
o assistente social (BRAVO; MATOS, 2009).
Um dos marcos da constituição de uma proposta de sistema
de saúde brasileiro descentralizado e como direito de todos os ci-
dadãos foram as discussões da 3ª Conferência Nacional de Saúde,

- 104 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ocorrida em 1963 – entretanto, tal projeto estagnou com o início da


ditadura civil-militar em 1964. Carvalho (2013) destaca que essa
proposta além das mudanças na saúde visava também a superar o
regime autoritário, e contou com a participação de movimentos po-
pulares, universidades e partidos políticos progressistas. Esse mo-
vimento culminou com a proposta de Reforma Sanitária Brasileira,
consolidada na Constituição Federal de 1988 e reiterada pelas Leis
n° 8.080 e n° 8.142, de 1990.
Segundo Bravo e Matos (2009), o trabalho do assistente so-
cial na área da saúde no pós-1964 e durante a década de 1970 tam-
bém sofre com os rebatimentos das profundas transformações pelas
quais a profissão passou. Ainda conforme estes autores,

[...] o Serviço Social na saúde vai receber as influências da


modernização que se operou no âmbito das políticas sociais,
sedimentando sua ação na prática curativa, principalmente
na assistência médica previdenciária – maior empregador dos
profissionais. Foram enfatizadas as técnicas de intervenção, a
burocratização das atividades, a psicologização das relações so-
ciais e a concessão de benefícios. Foi utilizada uma terminologia
mais sofisticada e coerente com o modelo político-econômico
implantado no país (BRAVO; MATOS, 2009, p. 202).
         
Com a aprovação da Constituição de 1988, a saúde passa a
ser um direito universal, gratuito e igualitário, extensivo aos ser-
viços de promoção, proteção, recuperação e reabilitação dos in-
divíduos. Em 1990 é aprovada a Lei Orgânica de Saúde, Lei n°
8.080/90, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS)4 e tem
como princípios fundamentais: a universalização; a integralidade; a
democratização e a descentralização política-administrativa. Toda-
via, deve-se pontuar que, como afirmam Bravo e Matos (2009, p.
203), “esta conquista não foi dada, na medida em que no processo
constituinte foi visível a polarização da discussão da saúde em dois
blocos antagônicos [...]”: um que defendia os ideais da Reforma
Sanitária e outro que defendia a privatização dos serviços de saúde.
Isso culminou, apesar do atendimento em grande parte às reivin-
4 De acordo com Souza (2002), a implantação do SUS teve início com a ampliação da co-
bertura ou universalização das ações de saúde. Tal estratégia inicialmente abrangeu apenas
os beneficiários do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps),
cuja extinção ocorreu por meio da Lei n° 8.689, de 27 de julho de 1993.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

dicações do movimento sanitário, na não alteração da situação da


indústria farmacêutica e na abertura para as parcerias público-pri-
vadas (BRAVO, 2009).
No Serviço Social foram percebidas mudanças nesse con-
texto no que se refere à área da saúde, tais como: o surgimento
5

de posicionamentos críticos nos trabalhos em saúde que foram


apresentados em Congressos de Serviço Social (em 1985 e 1989);
trabalhos de Serviço Social apresentados em eventos sobre Saúde
Coletiva; proposta de intervenção para o Serviço Social no Inamps,
formulada pelas entidades representativas da categoria profissional;
por fim, a articulação do então Conselho Federal de Assistentes So-
ciais (CFAS) com outros conselhos federais de atuação na saúde.
Contudo, essas mudanças foram consideradas insuficientes, visto
que ocorreram poucas modificações na prática institucional do pro-
fissional, uma vez que a categoria profissional continuou desarti-
culada do Movimento de Reforma Sanitária e a produção sobre as
demandas da prática em saúde era insuficiente (BRAVO; MATOS,
2009).
Entretanto, ao tempo em que tais mudanças legais ocorreram,
o projeto neoliberal era consolidado enquanto projeto econômico
e político no Brasil na década de 1990, a partir das privatizações
e da mercantilização da saúde, ampliando o número de cidadãos
na posição de consumidor. Desde a constituição do SUS é fato que
os projetos em disputa determinam o perfil da comunidade usuária
atendida. Assim, entende-se que, mesmo em disputa, coexistem a
figura de duas “espécies” de usuários desses serviços: a do cidadão
em geral e a do “cidadão consumidor” – para quem vem se desti-
nando, por exemplo, o acesso por meio da sobrecontribuição com o
pagamento dos planos de saúde.
Conforme Bravo e Matos (2009) é nesse contexto que os
projetos antagônicos de saúde presentes no país trazem diferentes
requisições para o Serviço Social. De um lado, o projeto privatista,
que requisita “seleção socioeconômica dos usuários, atuação psi-
cossocial através de aconselhamentos, ação fiscalizatória aos usu-
ários dos planos de saúde, assistencialismo através da ideologia do
5 Vale ressaltar que essas mudanças, além de serem situadas no ambiente dos ares da rede-
mocratização, também se situam no bojo do processo de renovação profissional no país e na
construção do chamado Projeto Ético-político Profissional (PEPP).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

favor e predomínio de práticas individuais” (BRAVO; MATOS,


2009, p. 206). E, de outro, o projeto de reforma sanitária, que de-
manda que o assistente social defenda a “democratização de aces-
so às unidades e aos serviços de saúde, atendimento humanizado,
estratégias de interação da instituição de saúde com a realidade,
interdisciplinaridade, ênfase nas abordagens grupais, acesso demo-
crático às informações e estímulo à participação cidadã” (BRAVO;
MATOS, 2009, p. 206).
Não há dúvidas da influência do projeto de reforma sanitária
no processo de atualização e ampliação dos instrumentos de forma-
lização da profissão no âmbito regulatório. Nessa direção, Nogueira
e Mioto (2009) apontam pontos de convergência entre as inovações
em relação aos direitos sociais (incluindo a saúde) e o Código de
Ética Profissional e a Lei de Regulamentação da profissão, ambos
aprovados em 1993. Conforme os autores, “[...] a expansão dos
direitos de cidadania, a preocupação com a universalidade, com a
justiça social e o papel do Estado na provisão da atenção social são
pontos comuns que merecem destaque” (NOGUEIRA; MIOTO,
2009, p. 222).
A concepção de saúde enquanto direito social, que deve ser
garantido pelo Estado, ultrapassa, segundo esses autores, uma visão
acrítica e normativa, visto que implica o reconhecimento de que “a
saúde não pode ser um bem ou serviço factível de troca no mercado
[...] como um bem não mercantil, supõe a sua desmercadorização
para sua garantia, com as consequentes implicações na esfera da
política e da economia” (NOGUEIRA; MIOTO, 2009, p. 223).
Outro ponto importante que merece ser destacado na rela-
ção entre o SUS e o Projeto Ético-político da profissão é a relevân-
cia atribuída à participação da comunidade. Conforme Nogueira e
Mioto (2009, p. 225), além de ser um princípio constitucional, essa
participação expressa a face democrática e ampla da Reforma Sa-
nitária, possibilita a redução dos mecanismos de clientelismo e co-
optação e permite o acesso ao poder, mostrando “uma preocupação
com os mecanismos redistributivos contidos nas políticas de saúde,
com as formas organizacionais de como redistribuir ou favorecer
uma atenção de qualidade para todos os brasileiros”.
Nessa direção, sob a fiscalização dos conselhos de saúde (ins-
trumento de controle social), o financiamento da saúde no Brasil

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

com a aprovação do SUS passou a ser de responsabilidade dos três


níveis de governo – determinação aprovada em 2000 pela Emenda
Constitucional (EC) nº 29. Nos termos de Souza (2002, p. 18),

[...] além das transferências do Fundo Nacional de Saúde, os


fundos estaduais e municipais recebem aportes de seus próprios
orçamentos. Alguns estados promovem repasses de recursos
próprios para os fundos municipais de saúde, de acordo com
regras definidas no âmbito estadual. O nível federal ainda é o
responsável pela maior parcela do financiamento do SUS, em-
bora a participação dos municípios venha crescendo ao longo
dos últimos dez anos e haja a perspectiva de que a parcela dos
recursos estaduais no financiamento do sistema aumente signi-
ficativamente em decorrência da aprovação da EC-29.

Cabe destacar o caso da União em que o gasto mínimo com


saúde é de 15% da receita corrente líquida, mas nos últimos anos
vem incidindo em cortes, como podemos explicitar, em exem-
plo mais recente, com a aprovação da Emenda Constitucional nº
95/2016, que implicou o desfinanciamento público (MACHADO,
2020; MATOS, 2020). A EC nº 95/2016 fere diretamente o núcleo
essencial do direito à saúde ao congelar os investimentos em saúde
e educação até o ano de 2036 e, consequentemente, sucateia os ser-
viços de atendimento. A saber, quando a emenda passou a vigorar,
em 2017, os investimentos em serviços públicos de Saúde represen-
tavam 15,77% da arrecadação da União. Já em 2019, os recursos
destinados à área representaram 13,54% (CNS, 2020). Ainda que o
cenário de subfinanciamento seja anterior a essa emenda, foi a partir
dela que se observaram as maiores quedas nos valores investidos
pelo governo federal. Desde sua aprovação, os gastos públicos em
saúde não chegam a 4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, o
que indica uma intensificação dos ataques ao SUS, através da fal-
ta de políticas públicas e ameaças de privatizações (MACHADO,
2020).
Com a pandemia do novo coronavírus, somada ao subfinan-
ciamento do SUS e ao negacionismo do governo federal diante do
vírus, tornam-se exponenciais as dificuldades para a efetivação dos
serviços públicos de saúde (MATOS, 2020). Ademais, com o con-
gelamento do piso de aplicação em saúde, no ano de 2019, o SUS

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

sofreu uma perda de R$ 8,5 bilhões, valor primordial para os servi-


ços públicos de saúde na contenção dos casos de covid-19 (CEBES,
2019).
Considerando o presente contexto, a pandemia colocou em
relevo as tensões dos projetos em disputa na saúde que se desdo-
bram, entre outras, em precárias condições de trabalho dos profissio-
nais. Longe de serem heróis, esses profissionais são trabalhadores
que vivenciam os dilemas que a crise estrutural impõe ao “mundo
do trabalho”, que revelam contradições quando são convocados a
salvar vidas – tal fator não seria diferente com os assistentes sociais.
Desse modo, torna-se relevante discutir sobre o trabalho dos assis-
tentes sociais na área da saúde no atual cenário de pandemia.

O trabalho do assistente social na saúde no contexto de


pandemia
Como mencionado anteriormente, a saúde como área de
atuação dos assistentes sociais envolve múltiplas questões, com
destaque para as tensões entre o projeto privatista e o de Reforma
Sanitária, desdobrando-se em desafios diversos para o trabalho pro-
fissional nessa área. No contexto da pandemia, soma-se ao retro-
cesso na política de saúde já em curso (sucateamento de políticas
prioritárias e redução de investimentos etc. – que intensificam o
desmonte do SUS) a ausência de uma política nacional de enfrenta-
mento ao avanço das contaminações pela covid-19. Diferente dis-
so, “o gestor máximo do país ironiza a ciência, desvaloriza vidas e
brada em nome de uma dita economia ao defender abertamente a
retomada da ‘normalidade’” (PRAXIS, 2020, p. 12), colocando o
Brasil por mais de dois meses como o segundo país do planeta com
o maior número de contaminados: dados da OMS registram cerca
de 4 milhões e 330 mil contaminados e mais de 131 mil mortes
(WHO, 2020).
Yazbek et al. (2020) apontam que a calamidade pública vi-
venciada atualmente no país expõe a crise e a falácia das contrarre-
formas neoliberais, cujos interesses são voltados para o capital em
detrimento das demandas da classe trabalhadora. Em consonância,
o Conselho Federal de Serviço Social (2020d, p. 4) afirma que “é
visível que a pandemia não necessariamente criou novos proble-

- 109 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

mas, mas tem intensificado processos de desmonte do SUS e do


Suas que já estavam em curso, tornando ainda mais precarizadas
as políticas e as condições de trabalho dos(as) profissionais”. Nes-
se sentido, tal conjuntura implicou maiores desafios aos assistentes
sociais, comprometidos com o Projeto Ético-político e os princípios
da reforma sanitária.
Sabe-se que o trabalho do assistente social na área da saúde
é determinado pelas circunstâncias históricas e sociais. Conforme
aponta Costa (2009, p. 310), a inserção dos(as) assistentes sociais
nessa área “é mediatizada pelo reconhecimento social da profissão
e por um conjunto de necessidades que se definem a partir das con-
dições históricas sob as quais a saúde pública se desenvolveu no
Brasil”. Nesse sentido, a pandemia do novo coronavírus, ao avan-
çar mundialmente, coloca desafios aos países em todo o globo, tais
como: a falta de respiradores e equipamentos de proteção individual
(EPIs) – em especial luvas, máscaras, aventais e álcool em gel –,
o pequeno número de leitos hospitalares e de UTIs, entre outros
(LACERDA, 2020). Esses são desafios também vivenciados pelo
Brasil, que, como destacado, já sofre com o desfinanciamento pú-
blico para a área da saúde. Além disso, houve uma grande diminui-
ção dos repasses financeiros para os municípios, culminando com
a dificuldade de contratação de profissionais, o agravamento das
condições de trabalho e, consequentemente, de adoecimento das
equipes de saúde.
Os medos e receios gerados nos profissionais devido ao novo
coronavírus não atingiram somente aqueles da área da saúde. Um
exemplo pode ser citado pela pesquisa realizada em junho de 2020
pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e pelo Núcleo de Estudos
da Burocracia (NEB), que aponta sentimentos comuns nos traba-
lhadores da política de assistência social, tais como a insegurança
e o medo de contrair o coronavírus (90,66% dos entrevistados/as
possuem esse medo). Outro dado revela que 87,02% dos profissio-
nais não receberam treinamento para lidar com a pandemia e, con-
sequentemente, mais de 80% não se sentem preparados para atuar
em meio à pandemia. Além disso, 61,50% dos entrevistados afirma-
ram que não receberam qualquer EPI, reforçando que 67% desses
profissionais possuem o sentimento de desamparo em relação ao

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

governo federal (CRESS, 2020f).


Acerca dessa questão, o CFESS (2020d) fez um levantamen-
to – que se desdobrou na elaboração de um Parecer Jurídico (nº
05/2020-E) – em conjunto com os CRESS, no mês de abril de 2020,
sobre as condições de trabalho do assistente social, e apontou que
o maior quantitativo de denúncias foi referente à ausência de pro-
vimento e/ou insuficiência de Equipamento de Proteção Individual
(EPI) nas áreas de assistência social e saúde. O documento aponta
ainda a responsabilidade do empregador em fornecer os equipamen-
tos necessários ao exercício das atividades profissionais, segundo
legislação trabalhista vigente. Dessa maneira, sabendo que, diante
da atual conjuntura, os EPIs assumiram um papel fundamental na
segurança sanitária dos profissionais desta área, o CFESS (2020d)
salienta a importância dos canais de denúncias em caso de descum-
primento dessa obrigação – inclusive alguns CRESS criaram canais
para relatar acerca de irregularidades no trabalho do assistente so-
cial, em especial a ausência de EPIs e higienização nos locais de
trabalho6.
É necessário enfatizar que, por mais desafiadora que seja
a situação sanitária do país, em especial aos profissionais da área
da saúde, é importante que suas competências profissionais e
atribuições privativas sejam respeitadas, afinal, “mesmo em uma
situação de calamidade, de uma pandemia, não se pode referendar
o discurso de que todos(as) devem fazer tudo” (MATOS, 2020, p.
3). O debate sobre as competências e atribuições não é recente no
Serviço Social: estas são pautadas pelos artigos 4º e 5º da Lei de
Regulamentação da Profissão (Lei nº 8.662/1993). De modo breve,
Matos (2015, p. 681-682) as caracteriza da seguinte forma:
[...] as atribuições privativas são aquelas que se referem dire-
tamente à profissão, como a atribuição privativa de coordenar
cursos, bem como equipes de Serviço Social nas instituições
públicas e privadas. E competências são aquelas ações que
os(as) assistentes podem desenvolver, embora não lhes sejam
exclusivas.
Tendo em vista o contexto de pandemia e seu favorecimento
6 Segundo o site do CFESS, a instituição solicitará alterações na Nota Técnica nº 4/2020
da Anvisa, para que seja impossibilitado o uso de máscaras de tecidos por profissionais de
Serviço Social e que os EPIs sejam utilizados em todos os atendimentos, independentemente
de o diagnóstico de covid-19 do usuário ser positivo ou não.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

à polivalência do assistente social, torna-se oportuna a observação


de Matos (2015), ao salientar sobre o desenvolvimento de ações que
reafirmem e demarquem as atribuições privativas e competências
profissionais – pelo conjunto CFESS/CRESS – de modo que haja
uma reflexão da potencialização da profissão e do trabalho exercido
por esses profissionais. Nesse sentido, o CFESS (2020c) publicou
uma orientação normativa em 31 de março de 2020, reiterando que
a comunicação de óbito, bem como fornecimento de informações
sobre condições clínicas, boletins médicos, triagens, tratamentos,
prognósticos e afins, não é competência ou atribuição do assistente
social. Tal comunicação e esclarecimentos deverão ser feitos por
profissionais como médicos, enfermeiros, entre outros, que pos-
suem conhecimentos específicos à área médica.
As restrições na presença dos acompanhantes dos pacientes,
juntamente à suspensão de visitas, como uma forma de medida de
segurança visando a evitar aglomerações e o possível contágio, tam-
bém se colocam como um desafio para o trabalho dos assistentes
sociais, ao alterar as dinâmicas dos atendimentos. Nessas situações,
a competência profissional se volta para o atendimento às famílias:

Ao/À assistente social compete identificar a pessoa de referência


na unidade familiar, com o intuito do repasse das informações
clínicas diárias pela equipe médica, bem como sensibilização da
família para que eleja um membro, a fim de torná-lo referência
para tal finalidade; orientar os/as familiares sobre a rotina hospi-
talar e a dinâmica da unidade covid-19, bem como a importância
do isolamento social de familiares e/ou contactantes; atualizar
diariamente os contatos telefônicos e referências familiares para
disponibilizar às equipes (CFESS, 2020e, p. 4).

De acordo com nota do CFESS (2020a) datada de março de


2020, no que se refere ao trabalho realizado pelo Serviço Social, os
profissionais devem decidir qual a melhor forma de atendimento
para cada situação, atendendo às orientações dos órgãos e autori-
dades sanitárias a fim de proteger a saúde do usuário e do próprio
profissional. Contudo, se optarem por atendimentos remotos via
videoconferência, é essencial que sejam de caráter absolutamente
excepcional – afinal, não há no CFESS uma regulamentação acerca
dessa modalidade de atendimento –, de modo a garantir o sigilo dos

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

atendimentos aos usuários.


É importante assinalar, entre outros desafios, o maior risco
de contágio dos profissionais de saúde pelo contato direto com a
população infectada por covid-19 nos serviços de saúde: até o início
do mês de setembro, 288.936 mil profissionais testaram positivo
para covid-197; destes, 3.096 são assistentes sociais e economistas
domésticos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020). Além disso, con-
forme memorial no site do CFESS (2020), 41 assistentes sociais
faleceram em decorrência do coronavírus. Diante do quadro de sub-
notificação presente no Brasil, o profissional deve estar atento para
algumas questões, tais como:

[...] seguir as determinações das autoridades sanitárias compe-


tentes quanto às orientações para contenção da propagação do
vírus; debater, com as equipes profissionais e os/as gestores/as
locais, sobre a realização de atividades que devam ser mantidas
e aquelas que possam ser suspensas ou reformuladas, tendo em
vista os diferentes espaços sócio-ocupacionais e a defesa da
autonomia profissional; avaliarem a necessidade de realização
de visitas domiciliares e de atividades grupais, que reúnam um
número grande de usuários/as; informarem, aos/às responsáveis
pelas instituições, as condições éticas e técnicas que prejudiquem
a realização do trabalho, nos termos da Resolução CFESS nº
493/2006, com a devida segurança para os/as usuários/as e
trabalhadores/as (CFESS, 2020b, p. 3).

Nesse sentido, Matos (2020), com base no cenário atual da


pandemia, chama atenção para a importância de algumas estraté-
gias possíveis de serem realizadas no âmbito do trabalho profissio-
nal do assistente social, tais como: o prosseguimento nas tomadas
de decisão de modo coletivo, inclusive com profissionais de outras
instituições, visando a um diálogo coletivo que abarque questões
acerca da pandemia; evitar a realização de atividades que não se-
jam das atribuições privativas da profissão; adotar estratégias que
evitem os atendimentos presenciais com os usuários; memorar que
os assistentes sociais não são responsáveis pelo atendimento direto
às vítimas de covid-19, mas sim pelas orientações aos familiares e
amigos a respeito das repercussões do tratamento, recursos da assis-
7 No Amazonas, conforme a Fundação de Vigilância Sanitária (FVS/AM, 2020), até 10 de
setembro de 2020 mais de 7 mil profissionais de saúde já tinham testado positivo para co-
vid-19.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

tência social etc.; estar atento às violações dos direitos trabalhistas;


e a reapropriação do projeto ético-político da profissão.
Nesse sentido, reafirmamos também a importância da trajetó-
ria histórica entre Serviço Social e a saúde, para o reconhecimento
e valorização da profissão e do seu relevante arcabouço teórico-me-
todológico, técnico-operativo e ético-político nessa área. Pois esses
profissionais contribuem para o fortalecimento dos serviços públi-
cos de saúde e para uma política de saúde voltada aos interesses
da maioria da população (NOGUEIRA; MIOTO, 2009). Por fim,
concordamos com Bravo e Matos (2009, p. 214) quando afirmam
que “não existem fórmulas prontas na construção de um projeto
democrático e a sua defesa não deve ser exclusividade apenas de
uma categoria profissional”. Dessa maneira, mesmo em meio aos
desafios postos pela pandemia, faz-se necessário fortalecer o reco-
nhecimento do Serviço Social como profissão fulcral nesse campo,
com atribuições e competências em coerência com a sua trajetória
em defesa dos princípios do SUS.
 
Considerações finais
O ano de 2020 entrará para a história como um dos momentos
mais nevrálgicos do século XXI no que diz respeito à saúde dos se-
res humanos. A pandemia do novo coronavírus atingiu milhões de
pessoas em todas as partes do mundo. Nesse contexto, no roll dos
mais afetados encontra-se a maioria dos brasileiros, que a despeito
de o país ter um dos sistemas de saúde mais abrangentes – consi-
derado um dos melhores do mundo –, há dificuldade para acessar
serviços de saúde com qualidade. Considerando essas particularida-
des e localizando-a no contexto da crise planetária do capital, não é
de estranhar que esse cenário, além de explicitar as desigualdades
históricas do país, exponencie sobremaneira seus efeitos.
Essa realidade é, pois, o “chão” que determina o trabalho dos
assistentes sociais e revela os desafios enfrentados pelo conjunto da
profissão no contexto da pandemia. Ao se buscar uma aproximação
ao trabalho dos assistentes sociais na área da saúde em tempos
de pandemia no Brasil, a reflexão se depara com diversos desafios
que, não obstante as peculiaridades do momento, não se constituem
como novidades no cotidiano do exercício profissional nessa área.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Contudo, se revelam de forma mais preeminente, a saber: a pre-


carização dos serviços de saúde; a ausência de condições dignas
de trabalho; desvalorização profissional dada a hegemonia do sa-
ber médico; risco de contaminação; a sobrecarga pelo acúmulo de
atividades; jornadas exaustivas em razão do tempo de trabalho; e
a exigência da polivalência. Colocam-se como “novos desafios”
as mudanças nas rotinas de trabalho, tendo em vista a natureza da
pandemia e o conhecimento ainda insuficiente sobre ela, o que, nas
condições em que vem se situando o trabalho profissional, torna
esses trabalhadores ainda mais expostos.
Nesse sentido, buscou-se destacar que a ameaça ao sistema
público de saúde repercute diretamente no trabalho do assistente
social. O que exige que se busque reforçar a necessária defesa do
projeto de Reforma Sanitária articulado ao Projeto Ético-político
do Serviço Social, haja vista a importância contínua de formulação
de estratégias que reforcem ou criem experiências nos serviços que
efetivem o direito à saúde (BRAVO; MATOS, 2009), compreen-
dendo-o também enquanto confronto ao modelo privatista de saúde.
Por outro lado, alerta-se que, na tensão entre o projeto de Reforma
Sanitária e o projeto privatista, este último vem ganhando cada vez
mais força, através de valores individualistas que fortalecem a seg-
mentação do direito universal à saúde (BRAVO, 2009) e influen-
ciam práticas profissionais, entre as quais as dos assistentes sociais
antes e durante a pandemia.
Mesmo com esse cenário, a defesa do SUS enquanto políti-
ca pública de caráter universal ainda se reveste de suma importân-
cia, dado o significado revelado, contraditoriamente, também nesse
contexto pandêmico, em que funcionou como um dos principais
determinantes mitigadores dos efeitos da expansão virótica no país
e, por seu turno, dos impactos nos segmentos mais pauperizados, a
despeito dos desafios elencados no presente texto quanto à amplitu-
de, estrutura e qualidade dos serviços prestados.
Assim, o texto aponta para a importância do permanente de-
bate acerca das atribuições e competências profissionais, posto que
as singularidades do real em tempos de pandemia impõem condutas
muitas vezes não refletidas, que caminham na direção do pragma-
tismo e do conservadorismo. Ademais, é essencial nesse contex-

- 115 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

to o acesso aos equipamentos de segurança e à possibilidade de


revezamento dos profissionais em escalas de trabalho mais flexí-
veis, possibilitando a redução de presença física nos serviços (sem
o comprometimento do atendimento à população), para que haja
diminuição no risco de contágio. Cabe ressaltar a possibilidade e
a necessidade da denúncia junto aos CRESS e Ministério Público,
nos casos de essas exigências não serem atendidas.
Por fim, asseveram-se os limites das considerações aqui le-
vantadas, uma vez que a apreensão do trabalho dos assistentes so-
ciais durante a pandemia ainda em curso está circunscrita à apro-
ximação ao que a realidade apresenta em tempo real e exige que
novos estudos e pesquisas se realizem ao longo da pandemia.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

SERVIÇO SOCIAL E SAÚDE:


demandas e desafios no contexto da pandemia
Vera Lucia Pereira1
Yoshiko Sassaki2

Introdução
Este estudo debate sobre a atuação do assistente social na
área da saúde em tempos de pandemia, um tempo atípico de sur-
to de covid-19 (coronavírus), definido pela Organização Mundial
da Saúde como pandemia, ocasionando uma emergência em saúde
pública, em nível internacional, requerendo altos investimentos em
equipamentos e recursos humanos do Estado.
O termo pandemia, segundo a OMS, é usado para descrever
a disseminação mundial de uma nova doença, ou seja, um grande
surto de uma doença que afeta uma região e se espalha por diferen-
tes continentes com transmissão de pessoa para pessoa e coletiva-
mente. E, em consequência de sua gravidade, requer uma série de
medidas sanitárias para evitar a disseminação do vírus tais como
isolamento, quarentena, distanciamento social, uso de máscaras e
álcool em gel.
No Brasil, país de frágeis políticas sociais, o impacto da pan-
demia é mais latente, pois o país enfrenta uma permanente tensão
entre a ampliação dos serviços, a disponibilidade de recursos, os
interesses do Estado e do empresariado médico e, ainda, um qua-
dro de recursos humanos insuficientes para suprir a demanda, entre
outros fatores.

1 Mestra em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia pela UFAM. Docente no Curso


de Serviço Social da Universidade Nilton Lins. Desenvolve o Projeto de Extensão “Mobili-
zando Comunidades”, direcionado a comunidades da periferia de Manaus. Assistente Social
da Secretaria Estadual de Saúde atuando na Policlínica Codajás. veraluzpereira@hotmail.
com
2 Doutora em Serviço Social pela Unesp. Pós-doutora pela USP. Orienta discentes do PPGSS
e do PPGSCA da UFAM. Desenvolve os projetos “Políticas Públicas de Saúde e a Rede
Socioassistencial Voltadas à Pessoa Idosa em seu tempo de envelhecer na cidade de Ma-
naus-AM” e “Multidiversidades de contextos e abordagens dos sujeitos sociais na realidade
Amazônica”. sassakiyo@uol.com.br

- 121 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Segundo Yazbek et al. (2020) há, ainda, o agravamento das


consequências das desigualdades sociais, historicamente constru-
ídas no Brasil, que ganham visibilidade neste contexto, atingindo
de forma mais agressiva os grupos mais vulneráveis, cujo enfrenta-
mento requer o entendimento do contexto social, cultural, econômi-
co e político das populações.
Segundo Werneck e Carvalho (2020, p. 01) a pandemia da
covid-19 pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) se apresenta como
um dos desafios sanitários em escala global deste século. Os autores
explicitam que a epidemia iniciou na China em fins de 2019, sendo
que em meados do mês de abril de 2020 “já haviam ocorrido mais
de 2 milhões de casos e 120 mil mortes no mundo por covid-19, e
estão previstos ainda muitos casos e óbitos nos próximos meses.
No Brasil, até então, tinham sido registrados cerca de 21 mil casos
confirmados e 1.200 mortes pela covid-19”.
Os dados da pandemia, segundo o levantamento da univer-
sidade Johns Hopkins, nos EUA, “contabiliza mais de 24 milhões
de casos do novo coronavírus em todo o mundo. Do total, Estados
Unidos (5,8 milhões), Brasil (3,6 milhões) e Índia (3,2 milhões) têm
mais da metade das infecções (...)” (UOLNotícias, 2020).
E passados seis meses do início da pandemia no Brasil,
em final de agosto do corrente ano os infectados somam mais de
3.700.000 de pessoas, e mais de 117 mil mortes, sendo os recupera-
dos em torno de 2 .500.000 (UOLNotícias, 2020 ).
É um cenário que impacta a atuação dos profissionais de
saúde, pois uma pandemia atinge todos os setores da sociedade,
em todas as esferas da vida social, como previdência, educação,
habitação, assistência social, entre outros. E neste caso do
coronavírus, as medidas de prevenção foram o incentivo ao
isolamento e distanciamento social, fechamento de comércio e
de serviços, além do controle sobre circulação de pessoas (OMS,
2020). Os assistentes sociais também atuam desenvolvendo pa-
pel de destaque na linha de frente das ações, defendendo a vida,
prestando serviços profissionais frente aos impactos da crise que
a pandemia gerou na vida das pessoas, especialmente as que es-
tão em situação de vulnerabilidade social. Apenas os profissionais
considerados como pertencentes aos grupos de risco, acima de 60

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

anos e que apresentam alguma comorbidade (diabetes, hipertensão,


cardiopatias, entre outras ficaram afastados ou em home office).
O profissional frente às condições de trabalho que a pande-
mia agravou e/ou por desconhecer suas atribuições e competências
recebe demandas que não são suas, tais como busca por leitos dis-
poníveis na rede, remoção de pacientes e informação de óbitos. 
Para discutir essas demandas e os desafios que elas trazem é
que este artigo se constrói, a partir de bibliografias ainda escassas
sobre o tema, mas pertinentes para que a categoria profissional rea-
firme a relevância de sua atuação na vida da população. 
O assistente social é um profissional de luta, e neste momen-
to desafiador em que a população clama por serviços essenciais
para a manutenção da sua vida, este profissional deve reafirmar
seu compromisso com a população mais empobrecida, seguindo os
princípios de seu Código de Ética.

O assistente social como profissional da saúde


As profissões têm uma forte ligação com a lógica do capi-
tal que, na contemporaneidade, requer trabalhadores qualificados e
especializados, requisitados pelo processo de industrialização, ade-
quando os antigos ofícios às suas necessidades, bem como criando
novas.
O Serviço Social é uma dessas profissões surgidas na divisão
social e técnica do trabalho, no seio da sociedade capitalista, e como
as demais profissões está intimamente ligada à lógica do capital
oferecendo serviço especializado.
Um destes espaços de atuação é a saúde, onde o assistente
social é um dos profissionais com legitimidade social, numa vi-
são ampliada de saúde-doença como processo social (LAURELL,
1982; GARRAFA, 1991.)
Segundo Bravo (2009) a profissão surge no Brasil na conjun-
tura de 1930 a 1945, sob forte influência europeia, já com algumas
disciplinas relacionadas à saúde, e que se ampliam com o aprofun-
damento das exigências do capital, e após a Segunda Guerra mun-
dial passa ter forte influência dos Estados Unidos.
Cabe destacar o novo conceito de saúde elaborado pela Orga-
nização Mundial da Saúde (OMS) em 1947, que declara o processo

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

saúde-doença como “um estado de completo bem-estar físico, men-


tal e social, e não apenas a ausência de doença ou enfermidade”. É
este conceito que o Brasil adota no Sistema Único de Saúde (SUS)
em 1990.
Observa-se que esse novo conceito de saúde traz em sua es-
sência questões ligadas ao conjunto de condições indispensáveis
para sua configuração e determinam e/ou condicionam o acesso aos
serviços, como confirma Fleury-Teixeira (2009, p. 384):
As condições de habitação e ambientais do peridomicílio, a
existência de restrições no acesso à alimentação e a outros bens
fundamentais, as características físicas das atividades realizadas
no trabalho, assim como as condições do ambiente em que se
realiza o trabalho, podem implicar urna série de riscos à saúde
que, em geral, estão além da possibilidade de controle por parte
dos indivíduos.

É possível dizer que a saúde se relaciona com estas condições


ambientais e de moradia que incidem no adoecimento ou no bem-
-estar saudável, considerando as condições de vida da população,
o perfil epidemiológico e seus determinantes sociais. Assim, é ne-
cessário relacionar as principais morbimortalidades com a forma
de viver da população para entender a prevalência de determina-
das doenças, conforme Art. 3 da Lei Orgânica da Saúde (Lei no.
8.080/1990) do SUS.
Ancoradas neste conceito ampliado de saúde, algumas pro-
fissões estão ligadas à assistência e à promoção da saúde, conforme
a Constituição Federal de 1988, o que justifica a inserção do as-
sistente social, pois as questões que envolvem o processo saúde-
-doença são essencialmente sociais e se conformam em demandas
profissionais.
Dessa forma, a saúde ganha novo status, o de política de saú-
de, e os profissionais desta área recebem formação profissional em
saúde para atuar conforme o Sistema Único de Saúde (SUS), con-
forme o Artigo 15, inciso IX, da Lei Orgânica da Saúde que prevê a
“participação na formulação e na execução da política de formação
e desenvolvimento de recursos humanos para a saúde” (BRASIL,
1990).
Assim, o assistente social busca consolidar seu fazer profis-
sional, apoiando-se nos direitos sociais que a Constituição insti-

- 124 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

tuiu, viabilizando o acesso à saúde como direito de todos e dever


do Estado, atuando em prol da ampliação do Estado democrático,
e com isso ampliando o direito do cidadão e o fazer profissional
nesta nova realidade que se apresenta a partir da constituição de
1988. Mas contraditoriamente, o que está na letra não é garantia
que se efetive de fato, principalmente com o lastro neoliberal que
este país adotou a partir da fase de sua implantação, menos agora na
pandemia do coronavírus.
Do ponto de vista histórico, é possível dizer que o assisten-
te social é um profissional que mais se aproxima do usuário e do
cotidiano institucional, e este profissional deu um salto qualitativo
na sua abordagem teórica e consequentemente no seu saber-fazer a
partir desse novo conceito de saúde. Sob essa perspectiva de saúde
ampliada, esse profissional busca instrumentalizar o usuário na di-
mensão sócio-histórica enquanto sujeitos de direitos, impulsionado
pelo avanço das políticas públicas do Estado brasileiro a partir da
Constituição de 1988 e, na área da saúde, pela criação do SUS.
É perceptível que a criação do SUS ressignificou a intervenção
profissional dos assistentes sociais na área da saúde, visto que as
expressões da questão social que envolve o processo saúde-doença
são essencialmente sociais, bem como ampliou a sua inserção em
distintos setores da saúde, principalmente nos municípios, por con-
ta da descentralização e municipalização da saúde.
As exigências ao profissional se colocam no sentido de incor-
porar no seu fazer cotidiano, tanto os valores e princípios adotados
na Constituição Federal, quanto os princípios do seu novo Código
de Ética de 1993, cujos princípios se entrelaçam aos princípios do
SUS, e se ajustam à nova conjuntura do Brasil na área da saúde.
Dessa forma, vários desafios se apresentam sempre ressal-
tando o dilema de responder às demandas por meio das políticas
sociais, que em tempos sombrios de ultraliberalismo limitam o pa-
pel do Estado como garantidor dos direitos, com forte tendência de
privatização e/ou precarização dos serviços essenciais (YAZBEK
et al., 2020).
Este é um contexto que minimiza o papel do Estado na ga-
rantia dos recursos destinados à saúde, em que ao mesmo tempo
amplia o desemprego, a precarização do trabalho, a pobreza e, con-
sequentemente, agravam o processo saúde-doença.

- 125 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

É assim que o Brasil das desigualdades sociais e uma frágil


política social, e dentre elas a política pública de saúde, se depara
com a chegada da pandemia da covid-19, que tanto mundialmente
como no Brasil traz à tona a grave crise em que vive a área da saúde,
considerada serviço essencial para a população, exigindo estraté-
gias de superação no atendimento às diversas necessidades que se
apresentam e/ou agravam nesse momento.
No Estado do Amazonas, o primeiro caso foi diagnosticado
em 16 de março e em menos de um mês já havia mais de mil pesso-
as contaminadas. O primeiro óbito ocorreu em 24 de março e atin-
giu a maior taxa de letalidade do país. Esses dados são justificados
pela insuficiência de leitos de UTI, a baixa testagem da população
e os efeitos da temporada de chuva, típica do inverno amazônico
(BRASIL, 2020).
O quadro de calamidade que se instalou no Estado, principal-
mente na capital, Manaus, deixou evidente o caos na área da saúde,
uma das mais frágeis do país. Esse quadro trouxe muitas mortes,
levando à instalação de câmaras frigoríficas para armazenar os cor-
pos, aberturas de covas coletivas com ajuda de retroescavadeiras,
mostrando ao mundo todo o resultado do colapso nos hospitais, nas
UBSs, enfim na saúde pública.
Embora tenha sido anunciada e esperada, a pandemia não foi
recebida com medidas eficientes para sua prevenção e tratamento
por parte do Estado, com ações preventivas e curativas, como as
preconizadas pela OMS. Estas ações dependem de políticas sociais
fortes, de crescimento econômico e de fortalecimento das áreas afe-
tadas (LIMA et al., 2020).
Em meio a este cenário, os assistentes sociais, como profis-
sionais que atuam na área da saúde, também são chamados a com-
por a linha de frente do combate à pandemia, no momento em que
as necessidades sociais afloram de forma mais acentuada. Enten-
dendo que o Assistente social é um profissional “que luta por uma
saúde pública 100% estatal, reconhecida como direito de Segurida-
de Social, na defesa da Reforma Sanitária” e em consonância com
seu Projeto Ético-político, que na contramão do Projeto societário,
fomenta a existência de práticas democráticas, mesmo com os limi-
tes da atuação profissional (ABEPSS, 2020, s/p).

- 126 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Lutar por uma saúde pública é uma bandeira de luta da ca-


tegoria dos assistentes sociais. Essa luta não é somente em defe-
sa do SUS, mas também por melhores condições de trabalho dos
assistentes sociais, na perspectiva de responsabilizar o Estado na
condução das políticas sociais e direitos dos trabalhadores. Ou seja,
é preciso lutar por equipamentos de proteção individual e coletivo
para que se possa atuar com relativa segurança em favor dos mais
vulnerabilizados.

As demandas para o assistente social


As demandas postas para o fazer profissional dos assistentes
sociais pressupõe o entendimento do contexto em que elas se inse-
rem, considerando as determinações que as configuram.
O Serviço Social, seguindo essas determinações, acompa-
nhou as transformações vividas no mundo do trabalho, que recon-
figuraram as suas demandas, exigindo do profissional ultrapassar
seu papel disciplinador e montar estratégias de respostas para o
novo contexto. Essas respostas encontram respaldos nas políticas
públicas e no aparato legal da categoria profissional, tais como o
Código de Ética do Assistente Social, que traz em seus princípios
a defesa dos Direitos Humanos, bem como a Lei de Regulamenta-
ção da Profissão que dispõe sobre a profissão, suas competências e
atribuições.
Como a profissão tem aparato legal, também construiu seu
Projeto Ético-político, que instituiu diretrizes de ação, que segundo
Netto (2009, p. 04) apresentam:

(...) a auto-imagem de uma profissão, elegem os valores que a


legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos
e funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e ins-
titucionais) para o seu exercício, prescrevem normas para o
comportamento dos profissionais e estabelecem as bases das
suas relações com os usuários de seus serviços, com as outras
profissões e com as organizações e instituições sociais privadas
e públicas (inclusive o Estado, a quem cabe o reconhecimento
jurídico dos estatutos profissionais).

Esse projeto profissional também consubstancia o entendi-


mento das demandas postas para o Serviço Social, que têm como

- 127 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

base a questão social em suas mais variadas expressões “das de-


sigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura,
impensáveis sem a intermediação do Estado” (IAMAMOTO, 2007,
p. 17)
Aos assistentes sociais que atuam na saúde pública, confor-
me os princípios do projeto da Reforma Sanitária, as demandas se
apresentam nas questões de democratização das informações e do
acesso às unidades e aos serviços de saúde, construindo estratégias
de aproximação entre estas unidades de saúde e a realidade, inse-
ridas em equipe interdisciplinar, onde lhe cabe um papel conforme
sua especificidade.
Em tempos de pandemia, que traz à tona as desigualdades
sociais de forma mais acentuada, o assistente social recebe as mais
variadas demandas que se manifestam nas condições objetivas de
vida da população e não somente nos segmentos mais empobrecidos
da população. As incertezas, a recessão econômica e o medo de
perder seus entes queridos, que tornam vulneráveis pessoas idosas,
crianças, adolescentes e suas famílias, atingem da mesma forma os
profissionais de saúde.
Em pesquisa recente realizada em uma Unidade de Saúde
de Média Complexidade, desenvolvida por Pereira (2019), ficou
evidente que as demandas para o Serviço Social na saúde revelam
as necessidades básicas que o usuário não consegue suprir e que
refletem em seu processo de adoecimento. Embora esta Unidade
de Média Complexidade não tenha atendido diretamente pacientes
infectados, recebeu pessoas com outros problemas de saúde, que
vinham com sintomas do covid-19 e eram encaminhados às unida-
des de referência existentes na rede. Na rotina diária dos assistentes
sociais da referida unidade de saúde, as principais demandas foram
por agendamentos de consultas e exames, seguidas de orientações
para inclusão em programas sociais, como BPC, Passa Fácil, Passe
interestadual, entre outros (PEREIRA, 2019).
Essas demandas cresceram muito neste período de pandemia,
logo que a Unidade reabriu seus agendamentos em agosto de 2020,
momento de estabilidade dos casos de covid-19. Somam-se a essas,
as demandas atuais referentes à pandemia, na busca por consultas e
encaminhamentos para as UBSs de referência, licença médica para

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

tratamento das sequelas do referido vírus e a procura por testes que


a Unidade oferece para os servidores. Os anseios e angústias desses
profissionais não são menores e nem menos significantes do que as
dos profissionais que atuam em locais de referência que atendem os
infectados.
Já as demandas ao Serviço Social nos locais de referência
para o atendimento, como SPAs, Hospitais e UBSs, verificou-se
que os profissionais enfrentaram situações de extremo desespero,
com busca de notícias dos pacientes internados com ou sem suspei-
ta de vírus, pois as visitas e acompanhamentos ficaram suspensos
no período de pandemia. Em momentos como este, os profissionais
de Serviço Social também agem sob forte pressão por atribuições
que não pertencem ao rol de suas competências.
No controle ao contágio da covid-19, cabe aos assistentes so-
ciais assegurar que as famílias recebam as informações sobre esses
direitos e, principalmente, o direito ao acesso aos serviços de saúde.
O profissional desenvolve, nesse processo, a escuta qualificada, o
acolhimento social e o diálogo, bem como a inserção de usuários
em benefícios emergenciais, entendendo que o “compromisso fim
do nosso trabalho profissional é a qualidade com os serviços presta-
dos aos usuários” (MATOS, 2020, p. 06).
No que se refere às informações de agravamento e/ou óbito de
pessoas internadas, não cabe ao Serviço Social realizar tal atividade,
mas sim orientar e encaminhar para suporte sociopsicológico. Assim
como encaminhar para a assistência social as demandas de: auxílio
funeral; trâmite pós-óbito; realização de visita virtual com apoio
da psicologia; solicitação de ambulância para remoção de pacientes
de alta, entre outros. Desta forma, Matos (2020, p .03) aponta que:

mesmo em uma situação de calamidade, de uma pandemia, não


se pode referendar o discurso de que todos/as devem fazer tudo.
Mesmo nessas situações devemos nos ater a aquilo que temos
competência. Isso resguarda nosso agir profissional e rema contra
a sua desprofissionalização.

O referido autor também nos chama a atenção para as deman-


das que já são recorrentes, mas que não são atribuições do/a assis-
tente social, e que se acentuaram no período de pandemia quando

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

as unidades de saúde reordenaram os serviços de atendimento e


atribuíram funções diversas por escassez de profissionais. Convém
ressaltar que as ações socioassistenciais, ações de articulação com
a equipe de saúde e ações socioeducativas correspondem a quase
totalidade do exercício profissional nas áreas hospitalares. 
Nesse sentido, o documento “Parâmetros para a atuação de
assistentes sociais na saúde” elenca as principais ações a serem de-
senvolvidas pelos assistentes sociais, dentre elas a democratização
do acesso aos serviços por meio de orientações individuais e coleti-
vas, bem como os encaminhamentos quanto aos direitos sociais da
população usuária.
Nas palavras de Bravo e Matos (2004, p. 17), para uma atu-
ação eficaz:

O trabalho do assistente social na saúde deve ter como eixo


central a busca criativa e incessante da incorporação dos co-
nhecimentos e das novas requisições à profissão, articulados
aos princípios dos projetos da reforma sanitária e ético-político
do Serviço Social. É sempre na referência a estes dois projetos
que se poderá ter a compreensão se o profissional está de fato
dando respostas qualificadas às necessidades apresentadas pelos
usuários.

Assim, na realidade vivenciada, seja em tempos “normais”


ou atípicos, os impasses e desafios surgem requerendo estratégias
de superação que vão além do Serviço Social e também da Política
de Saúde. Essa realidade deixa latentes os efeitos da conjuntura atu-
al na forma de viabilizar o acesso aos serviços de saúde. Portanto,
a realidade atual da pandemia se apresenta como um desafio diário
na prática profissional, exigindo estratégias de enfrentamento aos
inúmeros “problemas” que extrapolam as atribuições e competên-
cias profissionais.

Desafios em tempo de pandemia
A conjuntura de pandemia do covid-19 gera uma situação
emergencial que demanda respostas urgentes, que requerem dos
profissionais de Serviço Social estratégias que vão além de seus
plantões e muros institucionais, buscando a rede de apoio nos mais

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

diversos setores afetados pela pandemia. Ao mesmo tempo, o pro-


fissional necessita ter equilíbrio emocional para exercer sua profis-
são num ambiente insalubre, lidando com o sofrimento psicossocial
dos usuários e dos seus também.
Vivenciar nesta situação adversa o que já vivenciamos fora
do cenário de pandemia, e entender as necessidades mais emer-
gentes da população, requer, além dos conhecimentos específicos,
conhecer os novos protocolos de atendimento e de biossegurança,
superando o medo e a impotência perante os acontecimentos.
A situação de pandemia nos remete ao medo da morte repen-
tina e precoce, e um funeral sem cortejo, sem despedidas, gerando
na população uma angústia e um “luto mais demorado do que o es-
perado, por não ter conseguido processar a situação nem se despedir
de forma que lhe permita ter um senso de realidade e concretude”
(BRASIL, 2020, p. 02).
Para diminuir os índices de contaminação e consequente-
mente as mortes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elencou
uma série de cuidados que a população deve seguir, tais como qua-
rentena, isolamento social, distanciamento social, higienização das
mãos com água e sabão e o uso de álcool em gel e de máscaras.
As informações e orientações demandadas ao Serviço Social
dizem respeito às medidas de prevenção e proteção à população
que impactam nas várias esferas da vida e representam um desafio
para o profissional, tendo em vista que, no Brasil, as recomenda-
ções de prevenção ao coronavírus, mediante isolamento doméstico
e higienização das mãos, ocorreram junto com a intensificação da
vulnerabilidade social da população decorrente do desemprego, o
subemprego, a ausência de moradia, de abastecimento de água e de
saneamento básico (CFESS, 2020).
Dessa forma, o simples ato de lavar as mãos com sabão acon-
tece de forma desigual para a população brasileira. Como lavar as
mãos se o acesso à água não é assegurado para todos, cotidiana-
mente? E o sabão, como comprar se a maior parte da população está
desempregada? Higienizar é necessário, é regra de sobrevivência,
mas uma parte da população vive em condições precárias onde o
alimento é prioridade.
Outra situação desafiadora está relacionada às normas de
distanciamento social e isolamento, quando muitos necessitam sair

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

para providenciar o sustento da família. Tanto o distanciamento


como o isolamento causam mudanças nas atividades do dia a dia
como o trabalho, a escola e o convívio comunitário, que sem previ-
são para o retorno à essas atividades, causam sensação de isolamen-
to emocional e privação de liberdade.
As consequências dessas medidas se apresentam de forma
mais grave para indivíduos que já apresentavam “fragilidades nas
redes socioafetivas, instabilidade no emprego e dificuldades finan-
ceiras, ou mesmo que não contam com um local adequado para se
manter em distanciamento social” (BRASIL, 2020, p. 03).
Com essas restrições e moradia inadequada, com espaços
restritos e um grande número de pessoas habitando neste mesmo
espaço, intensificam a convivência familiar e podem surgir e/ou
agravar situações de violência, uma vez que o contato com o agres-
sor se intensifica.
Outras nuances que permeiam as vulnerabilidades popula-
cionais nesse contexto devem ser consideradas,

(...) como as questões de qualidade de moradia e impossibilidade


de distanciamento adequado, com vistas também à perspectiva
da violência que incide sobre a população negra, mulheres,
população LGBTI+, indígenas e população em situação de rua,
pois todos esses grupos historicamente têm demonstrado dificul-
dade de acesso às políticas públicas de construção de cidadania
(BRASIL, 2020, p. 05).

Dessa forma, essas expressões da questão social já presen-


tes no cotidiano profissional do assistente social não surgem como
consequência da pandemia, mas se afloram como demandas ainda
mais intensas, exigindo a criação de novas estratégias de proteção à
vítima da violência sem desrespeitar as regras do isolamento.
Neste momento, o assistente social é um profissional indis-
pensável, uma vez que suas demandas tradicionais aparecem com
mais clareza e as instituições devem continuar funcionando, ofere-
cendo os serviços, mesmo que em home office para alguns.
Concomitante às demandas tradicionais, o profissional rece-
be as demandas emergentes que o contexto exige, em diferentes
graus de vulnerabilidade, que contraditoriamente são parecidas

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

com as demandas tradicionais, sejam elas da área da saúde, da as-


sistência e da previdência, atuando nos hospitais, postos de saúde,
CRAS e CREAs, bem como nas agências do INSS. Cabe destacar
que uma pandemia gera incertezas e angústias em toda população
independente de sua condição socioeconômica (CFESS, 2020).
O assistente social é um profissional que não foge à luta, ele
tem um compromisso histórico com o direito à vida, principalmente
aos desprovidos de condições humanas de sobrevivência.
Mesmo não fugindo à luta, são profissionais do grupo de ris-
co, que enfrentam os desafios comuns aos demais agentes envolvi-
dos, pois:

Os profissionais e os trabalhadores de saúde envolvidos direta


e indiretamente no enfrentamento da pandemia estão expostos
cotidianamente ao risco de adoecer pelo coronavírus, sendo que
a heterogeneidade que caracteriza este contingente da força de
trabalho determina formas diferentes de exposição, tanto ao risco
de contaminação quanto aos fatores associados às condições de
trabalho (TEIXEIRA et al., 2020, s/p).

O profissional ainda enfrenta o desafio de trabalhar em locais


não apropriados, em condições de sobrecarga de trabalho, escassez
de insumos e equipamentos de proteção, o que o torna um traba-
lhador suscetível à contaminação e adoecimento próprio e dos seus
familiares.
É preciso destacar o respaldo legal, no Art. 7º do Código de
Ética Profissional, que afirma como direito do assistente social, “a-
dispor de condições de trabalho condignas, seja em entidade públi-
ca ou privada, de forma a garantir a qualidade do exercício profis-
sional”. Esse respaldo legal nos indica a necessidade do profissional
de Serviço Social não aceitar condições de trabalho inseguras e que
violem os princípios éticos da categoria profissional.
Em relação à demanda de comunicação de óbitos, a catego-
ria profissional encontrou apoio no seu Conselho (CFESS) que em
sua Orientação Normativa n. 3/2020 diz que a atuação profissional
deve se dar em consonância com as competências e atribuições pro-
fissionais legalmente estabelecidas na Lei no 8.662/1993 e confor-
me as orientações contidas no documento “Parâmetros de Atuação

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

do/a Assistente Social na Política de Saúde”, que foi publicado pelo


CFESS em 2010.
A referida Orientação Normativa afirma que às famílias é
assegurado o direito de serem informadas sobre as condições de
saúde, do tratamento, da evolução, dos prognósticos e óbitos de
seus familiares, por uma equipe de profissionais qualificados com
conhecimentos específicos na causa mortis.
Essa referida Orientação Normativa ressalta que o profissio-
nal deve se ater às suas atribuições e competências profissionais,
sempre atento ao atendimento com qualidade e compromisso, não
estando obrigado a exercer atribuições que não são de sua compe-
tência. O profissional no âmbito de suas competências deve buscar
encontrar as melhores estratégias de cuidado, minimizando os da-
nos que a pandemia pode trazer para si e para a população.
Assim, Matos e Bravo (2006) afirmam que é importante fri-
sar que o Projeto Ético-político Profissional do assistente social re-
ferenda princípios e valores fundamentais contidos no Código de
Ética, que balizam nossa atuação profissional, principalmente em
situações de exceção como o contexto da covid-19 que vivencia-
mos. Por isso é preciso lutar para reafirmar nossos compromissos
éticos e políticos em defesa da vida.

Considerações finais
A pandemia da covid-19 encontrou a população brasileira
em situação de extrema vulnerabilidade social, e por isso há que se
destacar a importância da atuação profissional do assistente social
neste contexto, no sentido de proporcionar acesso aos serviços es-
senciais que o momento exige.
Em termos globais observamos que em situações de crises
sanitárias e emergenciais, como a Pandemia, as lideranças políticas
devem tomar atitudes rápidas a favor da população e em sintonia
com a OMS, pois as escolhas politicamente inadequadas agravadas
pela fragilidade do sistema de saúde elevam o número de vítimas
fatais.
Nessa realidade vivenciada pelos assistentes sociais que atu-
am na área da saúde, é latente os efeitos da conjuntura atual na for-
ma de viabilizar o acesso aos serviços de saúde, e que se apresenta

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

como um desafio diário na prática profissional, exigindo estratégias


de enfrentamento aos inúmeros “problemas” que extrapolam as
atribuições e competências profissionais.
As demandas e os desafios postos à profissão em tempos de
pandemia não são diferentes das surgidas no cotidiano. Contudo,
essas demandas ocorrem de formas intensificadas e imediatas, inse-
ridas em um clima de medo e insegurança, trazendo ao profissional
determinadas situações que fogem de seu âmbito de atuação.
No momento da fase de recuperação do paciente, nossa in-
tervenção imediatista ainda persiste, pois se faz necessário a preser-
vação da vida, mas que não deve se tornar rotina, requerendo para
sua superação uma leitura apurada da realidade, pois se faz urgente
o desenvolvimento de ações que minimizem os danos econômicos,
sociais e psicológicos das populações mais vulneráveis, ao mes-
mo tempo em que se devem buscar melhores condições de trabalho
para os assistentes sociais, não esquecendo o uso dos equipamentos
de proteção que devem ser assegurados pelas instituições emprega-
doras. 
Como profissionais inseridos nessa realidade atípica, que
impactou a totalidade da vida social, devemos intensificar nossas
ações em defesa do SUS, da seguridade social e das nossas condi-
ções de trabalho, de modo a realizar nossa intervenção, atravessan-
do limites e enxergando possibilidades, no sentido de garantia de
direitos dos usuários e dos assistentes sociais.
É necessário considerar que a pandemia acentuou a desigual-
dade social, evidenciou um desgoverno caótico descompromissado
com o direito à vida, causou exaustão aos profissionais de saúde,
e deixará sequelas psicossociais que exigirão do assistente social
grandes desafios na pós-pandemia. 
Não é possível negar que a pandemia nos fez entender que
a saúde envolve não somente a Política de Saúde, mas as demais
políticas sociais e os temas transversais, evidenciando a importância
do Serviço Social no enfrentamento à pandemia e as consequências
que ela deixará na sociedade.
 Este trabalho evidenciou a prática do assistente social na luta
contra a covid-19, mas seja qual for a realidade que se apresenta,
o assistente social deve atuar objetivando sua prática, entendendo

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

que a questão social que se expressa nesses espaços não é somente


seu objeto, mas de todos os profissionais que com ele compõem a
equipe interdisciplinar. Por fim, ressalta-se que a proposta do SUS
vai ao encontro dos interesses da classe trabalhadora, assim como o
Projeto Ético-político do Serviço Social, as duas propostas, portan-
to, devem se articular para garantir uma política de saúde universal,
integral e equânime. 

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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de Pós graduação Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia –
PPGSS) Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2019.
TEIXEIRA, C. F. S.; SOARES, C. M.; SOUZA, E. A.; LISBOA,
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doi.org/10.1590/0101-6628.209 

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL NAS


ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DE SAÚDE (OSS)
EM TEMPOS DE COVID-19 – BELÉM-PA
Adriana de Azevedo Mathis 1
Jefferson Franco Rodrigues 2
Cilene Sebastiana da Conceição Braga3

Introdução
O presente artigo tem como objetivo apresentar uma aná-
lise acerca da atuação do Assistente Social no contexto de contrar-
reformas e privatizações na política de saúde nos estabelecimentos
que estão sob a gestão das Organizações Sociais de Saúde (OSS).
Esse modelo de gestão, a partir da década de 1990, vem se expan-
dindo nos municípios e estados brasileiros e orientam políticas pú-
blicas sociais, em especial na área da saúde pública. Também ganha
destaque no contexto da pandemia da covid-19, com a criação e
implementação de hospitais de campanha por todo o Brasil. Tal fato
merece uma reflexão crítica, principalmente no que diz respeito aos
rebatimentos deste modelo de gestão na atuação do/da assistente
social nas OSS, na realidade paraense.
Destarte, o assistente social não está imune às mudanças e
dinâmicas provenientes dos processos sociais contemporâneos, que
reverberam nas suas relações e condições de trabalho, assim como
1 Assistente Social. Mestra e Doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
Pós-doutora pela Universidade Livre de Berlim/Alemanha. Professora do Programa de Pós-
-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará (PPGSS/UFPA). Coordena-
dora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Direitos Humanos e Seguridade Social
(TRADHUSS). drika.azevedo@hotmail.com
2 Assistente Social. Discente do Curso de Mestrado do Programa de Pós-graduação em
Serviço Social da Universidade Federal do Pará (PPGSS/UFPA). Integrante do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Trabalho, Direitos Humanos e Seguridade Social (TRADHUSS).
jefferson.franco@hotmail.com
3 Assistente Social. Mestra e Doutora pela Universidade Nacional de Brasília – UnB. Pós-
-doutora pelo Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE /Portugal. Professora do Programa
de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal do Pará (PPGSS/UFPA). Inte-
grante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Direitos Humanos e Seguridade Social
(TRADHUSS). cilenelins@yahoo.com.br

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

nas suas requisições, competências e atribuições profissionais. (IA-


MAMOTO; CARVALHO, 2014). De acordo com Iamamoto, a
profissão de Serviço Social apresenta-se como uma especialização
do trabalho social, inserida na divisão sócio-técnica do trabalho,
sob a égide do capitalismo. Trata-se de um profissional que é parte
integrante da “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2009) e,
para reproduzir-se precisa vender a sua força de trabalho especia-
lizada (seja para o Estado e/ou para organismos privados empre-
sariais e outros) em troca de um equivalente monetário para sua
subsistência.
Parte-se do pressuposto que a tendência neoliberal na reali-
dade brasileira ocasiona sérias consequências sociais: aprofunda o
quadro de desigualdades sociais no país, contribui para o aumento
do desemprego e retrocesso em termos dos direitos sociais traba-
lhistas, assim como para o crescimento da pobreza e da miséria em
todo o território brasileiro. Particularmente, na área da saúde, corro-
bora para o desmonte das políticas públicas sociais com redução de
investimentos na área da saúde e exclusão de programas e projetos
sociais, bem como intensifica o ritmo e a quantidade de trabalho dos
profissionais nos estabelecimentos de saúde públicos regidos por
OSS, em tempos de pandemia de covid-19.
Nesse cenário de crise sanitária, social e econômica observa-
-se uma intensificação do trabalho do assistente social no contexto
da pandemia de covid-19 marcado pelo alto índice de óbitos e infec-
tados pelo vírus. Esses elementos necessitam ser problematizados
pois o Brasil passou a ser reconhecido, ao lado dos Estados Unidos,
como um dos países que não atendem na íntegra as recomendações
da Organização Mundial de Saúde. O Brasil também não responde
às necessidades básicas de saúde da população na direção da di-
minuição do número de infectados e óbitos, pela ausência de uma
política eficaz e de um planejamento organizado entre Governo Fe-
deral, estados e municípios, de combate à pandemia.
Esse trabalho encontra-se organizado em 03 (três) partes, a
saber: a primeira parte aborda a contrarreforma do Estado brasilei-
ro e a privatização “não clássica” na área da saúde e o cenário da
covid-19; a segunda parte analisa a precarização do trabalho tercei-
rizado dos assistentes sociais nas OSS no contexto de pandemia; e

- 140 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

a última parte apresenta alguns dados relativos à temática em foco


no artigo, particularizando a atuação dos profissionais de Serviço
Social nas OSS, na cidade de Belém-Pará.

Política de saúde, contrarreformas, privatizações e a pan-


demia da covid-19
A partir da década de 1980, período de mundialização do
capital (CHESNAIS, 1996), a acumulação capitalista vem ocorren-
do através da centralização do capital e da hegemonia da esfera
financeira, com relações de políticas de dominação e dependência
entre os países. Os princípios e técnicas toyotistas identificados,
a princípio, na esfera da produção, são transferidos para a gestão
dos serviços públicos sociais com a finalidade de obtenção de uma
maior lucratividade.
Na prática, com padrão de acumulação flexível, caracteriza-
da pela intensificação e precarização das relações e condições de
trabalho, identifica-se um aumento no desemprego estrutural e a
subsunção do trabalhador à lógica do mercado, exigindo um per-
fil específico, polivalente, multiprofissional e especializado. Neste
sentido, a classe trabalhadora é submetida a diferentes formas de
exploração do trabalho para aumentar a produtividade do capital.
No Brasil, essas mudanças no formato do Estado ocorrem a
partir dos anos 1990, e se aprofundam no decorrer dos anos 2000,
com implementação e expansão das políticas de restruturação pro-
dutiva e tendências neoliberais no país, com base na orientação das
medidas de ajuste estrutural preconizadas pelo Consenso de Wa-
shington (TEIXEIRA, 1996). Cabe mencionar que a orientação
desse projeto neoliberal incidiu diretamente na reforma do Estado
brasileiro, período em que o país passou a seguir uma orientação
neoliberal em diversos setores da economia e da política e uma ade-
quação à lógica do capital.
Segundo Behring (2003, 2019) a “contrarreforma” do estado
brasileiro implicou num profundo retrocesso social. Para a autora,
ela se expressou na flexibilização das relações de trabalho, nas pri-
vatizações de bens e serviços públicos, no endividamento do Estado
e a sua relação direta com o capital estrangeiro, agravando ainda
mais a desigualdade social latente no país.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Importa sinalizar que, com a promulgação da Constituição


Federal de 1988 e com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS),
regulamentado pelas Leis no 8.080/1990 e no 8.142/90, a política
de saúde passa a ser um direito social de todos e dever do Estado.
A partir desses marcos legais, a saúde passou a ser um direito, ha-
vendo a obrigatoriedade do poder público de garanti-lo de forma
universal e igualitária, com a elaboração e execução dos serviços
de promoção, proteção e recuperação da saúde, pautados a partir
da descentralização nas esferas federal, estadual e municipal, com
recursos e financiamentos do Estado na sua promoção e execução.
Como destaca Bravo (2007), o direito à saúde é uma con-
quista que passa por tensionamentos e disputas polarizadas por dois
projetos divergentes: de um lado, identifica-se a defesa dos ideais
da reforma sanitária e, de outro, encontra-se a tendência de privati-
zação dos serviços de saúde. Naquele momento houve uma vitória
das premissas do movimento de reforma sanitária, inscrita na Cons-
tituição Federal de 1988, com a criação do SUS. Contudo, o que
se observa na prática é o boicote à implementação do SUS em uma
perspectiva universal e igualitária, configurando desta forma o não
reconhecimento dos direitos sociais conquistados.
Desse modo, a política de saúde vem sofrendo ataques na sua
viabilização e no seu financiamento público, colocando em xeque
os direitos sociais conquistados pela classe trabalhadora no período
de redemocratização do país. Evidencia-se, na realidade efetiva, o
crescente processo de privatização não clássica, via gestão tercei-
rizada, com a criação de “novos modelos de gestão”, tais como: as
Organizações Sociais (OS), as Organizações da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP), as Fundações Estatais de Direito Pri-
vado. Contudo, ao privatizar as políticas públicas de saúde, tem-se
a fragilização do SUS, da qualidade dos serviços à população e a
precarização do trabalho em saúde.
De acordo com as análises de Granemann (2008; 2011) esse
contexto é de plena expansão das privatizações “não clássicas”, que
não ocorrem mediante a venda do patrimônio público, como acon-
teceu outrora com diferentes instituições do Estado, mas sim com a
privatização via transferência da gestão e da gerência dos serviços
sociais (aqueles que não são considerados exclusivos da execução

- 142 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

direta do Estado) para empresas privadas de “fins não lucrativos”.


Nesse cenário, o que está em jogo e em disputa é a apropriação do
fundo público por tais empresas, para o mercado. Como esclarece
Granemann (2011),

[...] para a transferência do fundo público aos capitais não seria


recomendável seguir a mesma forma de “privatização clássica”
porque poderia provocar reações de insatisfação popular nas
massas miseráveis e de trabalhadores que se utilizam dos servi-
ços sociais públicos como sua única alternativa de atendimento
por saúde, educação, previdência, assistência, habitação, etc. A
recomendação clássica dos organismos do grande capital tem
insistido no combate à miséria pela via da gestão da pobreza.
Miséria não, pobreza administrável sim! A gestão da miséria e
da pobreza, por sua vez, deve ser lucrativa e eficiente. Lucrativa
para as frações do capital geri-las como prestação de serviços
para o Estado pelas parcerias e contratos de gestão (GRANE-
MANN, 2011, p. 54).

Como destaca Batista Junior (2011), “a verdade é que o SUS


foi transformado no maior balcão de negócios envolvendo a coisa
pública no nosso país”, privilegiando o mercado e interesses indi-
viduais dos empresários. Em contrapartida, há milhares de pessoas
que hoje sofrem nas filas de espera em diferentes regiões do país,
aguardando por um procedimento (consultas, exames etc.) e/ou in-
ternação, submetidas a longas filas de espera para ter o acesso à
política de saúde. Para o autor “são vítimas desse irresponsável e
ilegal processo de privatização do sistema que, está provado, é es-
tatística, matemática e economicamente, absolutamente impossível
de ser financiado em sua plenitude” (BATISTA JUNIOR, 2011, p.
38)
O SUS vem trilhando um caminho de universalização exclu-
dente, apresentando avanços, retrocessos e contradições entre o âm-
bito legal e o real, isto é, no que define as leis jurídicas e a materia-
lização no cotidiano da população. Bravo, Pelaez e Pinheiro (2018),
ao analisarem a política de saúde nos governos petistas, evidenciam
que não ocorreu um rompimento com a lógica neoliberal, apesar
de apresentar resultados positivos referentes a alguns indicadores
sociais, mas “o que se percebe é uma continuidade das políticas
focais, a falta de democratização do acesso, a não viabilização da

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Seguridade Social, a articulação com o mercado e a manutenção da


política de ajuste fiscal.”
Na atual conjuntura, o que está em conformação é um SUS
totalmente submetido ao mercado, como destaca Bravo et al.
(2019). A partir do governo Temer e Bolsonaro houve avanços na
defesa dos princípios defendidos pelo projeto privatista, como por
exemplo, a redução dos custos para a saúde, a fragmentação e a
focalização dos serviços nos mais pobres, a ampliação do mercado
com os planos populares de saúde e a gestão dos serviços públicos
para os novos modelos de gestão de saúde. Um dos ataques eviden-
ciados a partir desses governos é a aprovação da Emenda Constitu-
cional 95/2016, que congela, por um período de 20 anos, os gastos
públicos com a política de saúde e educação.
Em diversas regiões do mundo, e particular no Brasil, vive-se
um cenário de catástrofe social e sanitária, com o constante aumen-
to do número de pessoas infectadas e de mortes em decorrência
do vírus Sars-Cov-2 – o novo Coronavírus. Desde o primeiro caso
registrado em fevereiro de 2020 já são mais de 3 milhões de pes-
soas infectadas e mais de 100 mil mortes4. A pandemia revelou as
desigualdades de classe e acentuou as diferenças sociais, econômi-
cas, sanitárias e regionais vividas pela população pobre do país. É
notório que o avanço da pandemia repercute com mais intensidade
na população pobre, preta, da periferia das cidades brasileiras, que
vivenciam situações precárias de saneamento, de habitação, ausên-
cia de água potável e para higienização adequada das mãos, e tra-
ta-se de um segmento populacional dependente exclusivamente do
SUS. Em sua maioria, são pessoas que encontram-se desassistidas
pelas políticas públicas de saúde, trabalho e renda e estão vincula-
das a trabalhos informais, precários e sem a cobertura de direitos
trabalhistas.
Os ataques ao SUS continuam a repercutir no atual contex-
to da pandemia da covid-19. A atuação do Governo Federal vem
na contramão das orientações da Organização Mundial da Saúde
(OMS), e registra-se ao longo dos últimos meses: flexibilização
do isolamento social, falta de coordenação e planejamento de uma
política de combate à pandemia, com divergências entre Governo
4 Painel Coronavírus. Coronavírus//Brasil, 2020. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/ Acesso em:
31 ago. 2020.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Federal, estados e municípios, principalmente, no que tange ao en-


frentamento da doença, ausência de transparência e acesso às in-
formações a respeito da covid-19, constantes trocas de ministros
da saúde e ausência de ministro da saúde da área médica por vários
meses seguidos.
A pandemia trouxe uma pressão ao SUS em decorrência da
alta demanda gerada em busca de atendimentos e internações em
leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Por outro lado, a re-
alidade das capitais e do interior apresentaram uma baixa infraes-
trutura de leitos, equipamentos para o tratamento da covid-19 e de
proteção coletivo/individual para usuários e trabalhadores, além do
insuficiente número de profissionais da saúde, dentre outros. As-
sim, ocasionou o inchaço nos leitos das Unidade de Pronto Aten-
dimento (UPAs), dos hospitais de média e alta complexidade e dos
hospitais de campanhas que foram criados para atender exclusiva-
mente aos usuários com o vírus. Durante os primeiros meses da
pandemia, entre abril e maio de 2020, a cena era de caos e desespe-
ro nas cidades brasileiras com grandes filas nas portas dos serviços
de saúde, atendimentos em locais improvisados e sem infraestrutura
física e humana, sobrecarregando e intensificando o trabalho dos
profissionais, particularmente os assistentes sociais que estão na li-
nha de frente.
Também, no âmbito do trabalho, como destaca Antunes
(2020), a pandemia desnuda as contradições do capital e representa
um ataque frontal aos trabalhadores, submetendo os trabalhadores/
as a realizarem as suas atividades sem condições técnicas e éticas
necessárias para execução dos serviços, por conta de inúmeros fa-
tores como: ausência ou baixa oferta de Equipamentos de Proteção
Individuais (EPI’S) e coletivos; elevadas jornadas de trabalho, com
o aumento da intensificação e da pressão no local de trabalho, sem
momentos de repouso e/ou descanso, o que pode levar, em muitos
casos, a perda da vida e de adoecimentos no corpo e na mente.
A Medida Provisória nº 927, de 22 de março de 2020, do
governo federal, é um exemplo, ao destacar em seu art. 29 que “Os
casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão con-
siderados ocupacionais, exceto mediante comprovação do nexo
causal.” Contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF), em abril do

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

mesmo ano, reconheceu a covid-19 como doença ocupacional e jul-


gou como ilegal o referido artigo e desconsidera a necessidade de
comprovação do contágio relacionado ao vínculo com a atividade
de trabalho. Desse modo, a justiça concede o acesso aos direitos
trabalhistas para os/as profissionais da linha de frente, como o au-
xílio-doença. Essa decisão é deveras importante pois permite que
o/a profissional seja afastado do local de trabalho e realize o tra-
tamento, sem correr o risco de ser demitido, com pleno acesso à
seguridade social.
Também é digno de nota que o presidente Jair Bolsonaro ve-
tou integralmente o projeto de lei (PL 1.826/202) que indenizaria
no valor de 50 mil reais os/as trabalhadores/as incapacitados pela
covid-19 (ou seus herdeiros nos casos de quem evoluiu a óbito). A
justificativa para o veto da proposta foi que a indenização criaria
mais despesas ao governo no cenário de pandemia. Este fato revela
um impacto direto nos direitos trabalhistas daqueles/as que estão
diariamente em seu posto de trabalho, em diferentes turnos, com
altas jornadas de trabalho e submetidos aos riscos de contaminação
e adoecimento.
Ademais, a política de ajuste fiscal que está em andamento
vem instaurando no país uma política econômica de corte dos re-
cursos da área social. Na atual crise, o fundo público brasileiro está
sendo usado mais em beneficio da acumulação capitalista do que
em investimentos sociais e financiamentos de serviços públicos.
Identifica-se de forma sistemática ataques aos direitos sociais e às
políticas públicas, que passaram a ser flexibilizados e terceirizados.

Terceirização do trabalho do assistente social na saúde em


tempos de pandemia nas OSS em Belém-PA
O Serviço Social como uma profissão inscrita na divisão só-
cio-técnica do trabalho não tem como fugir dos impactos e mudan-
ças sócio-históricas no interior das estruturas do sistema capitalista
e das novas formas de organização e de gestão do trabalho. Os as-
sistentes sociais exercem esta profissão numa relação contratual de
assalariamento em espaços sócio-ocupacionais diversificados, tais
como: política de saúde, assistência social, previdência social, edu-
cação, habitação de interesse social etc., em instituições públicas

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

e/ou privadas. O objeto ou “matéria” do trabalho profissional são


as multifacetadas refrações da “questão social” e sua abordagem
implica decifrá-las no cotidiano da vida social, seja de forma indi-
vidual e/ou coletiva. (IAMAMOTO, 2015)
Em sua condição de trabalhador/a assalariado/a, também tem
o seu trabalho profissional subordinado à flexibilização/terceiriza-
ção das relações e condições de trabalho, marcadas pela precari-
zação e, por vezes, resulta em adoecimentos no campo da saúde
mental em decorrência da intensificação do trabalho no cotidiano
da profissão. Este cenário de privatização da política de saúde nos
estabelecimentos de saúde, onde estão inseridos os assistentes so-
ciais, ocasiona uma tensão, por parte dos profissionais, em relação
à defesa e expansão dos direitos sociais e as políticas sociais para
grande parte da população e a submissão à lógica do mercado e a
intensificação da privatização dos direitos sociais. (RAICHELIS,
2011, 2013)
Problematizar o trabalho do assistente social na sociedade con-
temporânea supõe pensá-lo como parte alíquota do trabalho da
classe trabalhadora, que vende sua força de trabalho em troca de
um salário, submetido aos dilemas e constrangimentos comuns a
todos os trabalhadores assalariados, o que implica ultrapassar a
visão liberal que apreende a prática do assistente social a partir
de uma relação dual e individual entre o profissional e os sujei-
tos aos quais presta serviços (RAICHELIS, 2011, p. 425-426)

Essas “novas” exigências estão presentes no âmbito do


trabalho na saúde pública com a terceirização/quarteirização do
trabalho, que vêm se ampliando com a implementação e expansão
dos modelos de gestão, com destaque para as OSS. Sendo assim, o
trabalho enfatiza as OSS por ser o modelo que vem se ampliando e
expandindo no setor saúde, em diferentes estados e municípios do
Brasil. As OSS são regulamentadas por meio da Lei nº 9.637/1998
e do Decreto 3.100/1999; elas são caracterizadas como instituições
de direito privado, “sem fins lucrativos”, podendo celebrar contra-
to de gestão com o Poder Executivo, assegurando dotação orça-
mentária para gerenciar serviços que não são exclusivos do Estado
“cujas atividades sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica,
ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde” (LEI Nº 9.637/1998).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Como pontuam Franco, Druck e Seligman Silva (2010)

a terceirização é uma das principais formas de flexibilização do


trabalho mediante a transferência da atividade de um “primeiro”
– que deveria se responsabilizar pela relação empregatícia – para
um “terceiro”, liberando, assim, o grande capital dos encargos
trabalhistas. [...]. A terceirização lança um manto de invisibili-
dade sobre o trabalho real – ocultando a relação capital/trabalho
e descaracterizando o vínculo empregado/empregador que pauta
o direito trabalhista – mediante a transferência de responsabi-
lidades de gestão e de custos para um “terceiro” (FRANCO;
DRUCK; SELIGMAN SILVA, 2010, p. 233)

No Estado do Pará, por exemplo, a regulamentação das Or-


ganizações Sociais ocorreu no ano de 1996, através da Lei Comple-
mentar nº 5.980/1996, sendo materializada e expandida, nos âmbi-
tos municipal e estadual, a gestão terceirizada por OS. Na política
de saúde, em mapeamento realizado no Cadastro Nacional de Esta-
belecimentos de Saúde (CNES) e no site da Secretaria Estadual de
Saúde do Pará (SESPA), identificou-se que há 21 estabelecimentos
de saúde administrado por OSS, sendo 17 hospitais média/alta com-
plexidade, 1 Centro Integrado de Inclusão e Reabilitação e 1 uma
Unidade de Alta Complexidade em Oncologia. Com relação aos
hospitais de campanha de covid-19 construídos em Belém, Santa-
rém, Marabá e Breves estavam/estão sob a gestão desse modelo.
Destaca-se que a modalidade de gestão terceirizada via OSS é pre-
dominante nos hospitais regionais e/ou especializados.
No que tange ao trabalho profissional nesta modalidade de
gestão, por exemplo, observa-se que a contratação dos recursos hu-
manos é via processos seletivos (análise de currículo e/ou entre-
vistas) ou por indicação, acarretando: ausência de estabilidade no
local de trabalho, constante rotatividade e eliminação de concursos
públicos para a área da saúde que seria a via mais democrática de
acesso e permanência ao/no serviço público. Como destaca Batista
Junior (2011), há recorrentes nomeações clientelistas e indicações
políticas que são mantidas e fortalecidas, com ingresso sem trans-
parência, com os salários diferenciados, sem direitos trabalhistas e
previdenciários, ocorrendo o fortalecimento de “currais eleitorais”
nos estados e municípios.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A contratação de Organizações Sociais, OSCIPs, os ditos “par-


ceiros privados” e congêneres, assim como das “cooperativas”
violentam os princípios constitucionais da legalidade, moralidade
e impessoalidade, solapam o instrumento jurídico do concurso
público como única forma de acesso ao serviço público, des-
tratam as leis de licitação e de Responsabilidade Fiscal, dentre
outras e, mesmo assim, têm tido a conivência de vários Tribunais
de Justiça pelo país afora (BATISTA JUNIOR, 2011, p. 38)

Como analisa Granemann (2008, p. 38), nestes modelos de


gestão a participação e organização dos trabalhadores são atingidas
diretamente, principalmente pelas diferentes modalidades de con-
tratação no trabalho presentes nos espaços de trabalho, o que frag-
menta e torna frágil a luta por melhores condições de vida, trabalho,
bem como a defesa e garantia de direitos sociais. Segundo a autora,
estes modelos de gestão acarretam “à repressão da organização das
lutas dos trabalhadores e à domesticação – pela ameaça velada ou
aberta – aos preceitos dos governos do capital.”
Os salários estabelecidos pelas OSS para os assistentes so-
ciais variam entre 2.000 e 3.000 reais, um valor relativamente baixo
e que não corresponde à complexidade do trabalho profissional na
área da saúde. Além disso, leva os trabalhadores à realização de
plantões e/ou a duplos/triplos vínculos de trabalho, para garantir
um aumento no salário e suprimir as suas necessidades sociais de
sobrevivência. Destaca-se que o valor está abaixo da Proposta de
Lei no. 4.022/2008, que ainda está em tramitação, que estabelece
o montante de R$ 3.720,00 para a jornada de trabalho de 30 horas
semanais.
Ainda, no que diz respeito à jornada de trabalho, direito
garantido em lei (Lei nº 12.317/2010), pode-se afirmar que nem
sempre as OSS do Estado respeitam a legislação, e os profissionais
terminam ultrapassando a jornada de 40 horas estabelecida pela ca-
tegoria. Como afirma Boschetti (2011, p. 567), a redução da jornada
de trabalho “ainda que não altere estruturalmente a organização do
trabalho, possibilita diminuir a sobrecarga do trabalho, o que pode
melhorar a saúde do trabalhador(a) e ainda impor limites à explora-
ção do trabalho pelo capital.”
No atual contexto, o vínculo de trabalho flexível, as ameaças
de demissão e o medo do desemprego estão entre os principais fa-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

tores que deixam os trabalhadores mais submissos aos parâmetros


organizacionais. Este fato pode ser observado pela diminuição ou
mesmo ausência de denúncias sobre as condições de trabalho, rea-
lizadas por parte dos profissionais, dirigidas aos conselhos da cate-
goria e aos órgãos de fiscalização do trabalho que ferem o Código
de Ética profissional.
As OSS no Estado do Pará, por vezes, são denunciadas pela
mídia local e por sindicatos de trabalhadores da saúde, no que tan-
ge aos atrasos nos pagamentos de salários, condições de trabalho
precárias e demissões em massa. Essa realidade, também, é viven-
ciada pelos assistentes sociais que trabalham em hospitais de gestão
das OSS. Além disso, percebe-se que tais trabalhadores, inseridos
nessa lógica de contrato terceirizado, ficam, na maioria das vezes,
descobertos quanto aos seus direitos trabalhistas. De acordo com as
informações disponíveis no site do Sindicato dos Médicos do Pará
(SINDMEPA), quanto aos atrasos dos pagamentos dos médicos por
uma determinada OS, afirma-se que:

Os atrasos começaram em abril e maio e foram regularizados


após procedimento administrativo instaurado pelo MPT do Pará.
Os pagamentos foram realizados no dia 15 de junho. Mas os
meses de junho e julho continuam sem previsão de pagamento,
apesar da Organização ter se comprometido em manter os pa-
gamentos em dia.
Além de não pagar os médicos, o Sindmepa tem informações
de retaliações, como demissões e encerramento de contratos de
médicos que denunciaram os atrasos e ameaçaram não entrar
mais nas escalas no mês de junho, caso o problema não fosse
solucionado (SINDICATO DOS MÉDICOS DO PARÁ, 2020)

Outros trabalhadores também denunciaram para a imprensa


do Estado a precarização do trabalho e o descaso com a atenção aos/
às profissionais que atuam no combate à pandemia, como exposto
pelo jornal eletrônico “A Nova Democracia”. Relata uma trabalha-
dora da saúde do Estado:

Quando entramos, no início, não nos falavam qual era a empresa


que estava contratando. Acho que a maioria entendeu que era
a própria Sespa. O máximo de informação que recebi no início
foi que havia uma empresa, mas que ela apenas estaria lá para
repasse, pois o governo estava resolvendo tudo. Não tinha nem

- 150 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

material pra gente trabalhar direito. Medicações importantes,


material para intubação. Cada plantão era um verdadeiro inferno
(A NOVA DEMOCRACIA, 2020)

A partir do que foi dito, a implementação da terceirização


nos serviços públicos apresenta impactos consideráveis nos esta-
belecimentos de saúde, tais como: instabilidade e insegurança no
local de trabalho, baixos salários, alta rotatividade, submissão a
diferentes jornadas de trabalho e ausência ou pouca proteção de
direitos trabalhistas. Neste sentido, o trabalho passa a ser por con-
trato por tempo determinado, que são mais flexíveis, de acordo com
os ritmos das empresas contratantes, passando a ter consequências
profundas no tempo de trabalho e na vida dos trabalhadores com
seus direitos ameaçados.
A “liberalização da terceirização”, como assinala Pereira
(2015, p. 63), tem como objetivo ampliar o âmbito do mercado na
execução de políticas públicas e visa a sua financeirização median-
te o desmonte dos pilares de sustentação do direito do trabalho. A
terceirização à moda brasileira, “não afasta o direito do trabalho,
mas o fragiliza”. Com discurso ideológico de racionalização e mo-
dernização, o que está em pauta é o ajuste fiscal proposto pelo Es-
tado. Segundo esse raciocínio, como enfatiza a autora, “o modelo
regulatório trabalhista tradicional seria a barreira arcaica que in-
viabiliza a prosperidade da nação”, observa-se um claro ataque ao
trabalho estável e público (PEREIRA, 2015, p. 63).
Destarte, Antunes (2006, 2009) sinaliza que há um intenso
processo de precarização do trabalho que se dá segundo as novas
formas de organização e de relações do trabalho: flexibilização, ter-
ceirização, subcontratação, polivalência do trabalhador, eficiência
e agilidade (controle da qualidade). O processo de terceirização/
privatização supõe a intensificação do controle e da exploração
do trabalho e tem implicações na descontinuidade do trabalho, na
alta rotatividade e no comprometimento da qualidade dos serviços.
Ademais, registra-se o aumento da insegurança e do medo do de-
semprego, os adoecimentos, os desgastes físicos e mentais e os re-
correntes acidentes fazem parte do cotidiano do trabalho.
Nesta perspectiva Alves (2013) ressalta, sendo que o traba-
lho flexível conduz,

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

[...] não apenas à precarização salarial, mas principalmente à


precarização do homem-que-trabalha; isto é, a nova morfologia
social do trabalho flexível tem um impacto disruptivo no me-
tabolismo social do homem-que-trabalha, atingindo irremedia-
velmente a vida cotidiana de homens e mulheres trabalhadores,
disseminando sentimento de insegurança e descontrole pessoal
(ALVES, 2013, p. 179).

A profissão de Serviço Social sofre os rebatimentos das mu-


danças ocorridas nas condições e relações de trabalho impostas pela
sociabilidade burguesa, expressas, no contexto atual, pela financei-
rização do capital. Desse modo, estabelece-se uma tensão entre
Projeto Ético-político Profissional (PEP) defendido pela categoria
e a alienação do trabalho presente na realidade indissociável do es-
tatuto de assalariado. Há uma tensão na defesa dos direitos sociais
e da garantia das políticas sociais e uma lógica de intensificação
da privatização dos direitos sociais onde esse profissional “vê-se
tolhido em suas ações, de depender de recursos, condições e meios
de trabalho cada vez mais escassos para operar as políticas sociais”
(IAMAMOTO, 2015, p. 149).
Finalmente, o Projeto Ético-político se expressa na defesa e
sustentação da construção de uma hegemonia no campo profissio-
nal e um claro compromisso em formar intelectuais capazes de pen-
sar e intervir criticamente nas refrações da questão social, a partir
de uma direção social crítica que está vinculada a projetos societá-
rios comprometidos com uma posição anticapitalista progressista e
de afirmação de direitos da classe trabalhadora. Como destaca Ia-
mamoto (2008), na atualidade é um desafio “tornar esse projeto um
guia efetivo para o exercício profissional e consolidá-lo por meio de
sua implementação efetiva”, sendo necessária a articulação política
organizativa, como o conjunto com a categoria profissional.
Considerações finais
Com a pandemia da covid 19, o Brasil vive uma das mais
profundas crises sanitária, econômica, social e política da história
recente do país e, em paralelo, acontece um processo acentuado das
desigualdades sociais, crescimento da pobreza e da miséria, e au-
mento considerável do número de infectados e de óbitos por conta
do coronavírus em todo o território brasileiro.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Importa registrar que, desde a Constituição Cidadã de 1988,


com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde passa a
ser um direito do cidadão e dever do Estado, aumentando conside-
ravelmente a demanda por saúde pública da população brasileira.
Parece notório que o volume de investimentos e recursos na área
da saúde não acompanhou o crescimento da demanda de grande
parte da população atendida exclusivamente nos estabelecimentos
de saúde SUS ou clínicas conveniadas.
Também, pode-se observar na realidade efetiva, inúmeros
problemas relacionados a implantação de uma política de saúde,
como, por exemplo: redução e escassez de recursos e investimentos
no SUS, restrições orçamentárias, exclusão de programas e projetos
sociais destinados aos mais diversos segmentos populacionais, falta
de medicamentos e insumos na área da saúde etc.
Este quadro de debilidade do SUS, registrado durante déca-
das, coloca em xeque a qualidade dos serviços de saúde destinados
à população e deixa a maioria dos brasileiros sem atendimentos bá-
sicos diante da pandemia de covid 19. A saúde transformada em
mercadoria e secundarizada pela economia, a não prioridade dada
à vida, evidenciada, principalmente, pela urgência de retorno a ro-
tinas de trabalho da maioria da população pobre, mostra a pouca
importância dada pelo atual governo brasileiro à vida de milhões de
brasileiros pobres que vivem na informalidade.
A realidade apresentou um triste quadro: a ausência e pre-
carização dos serviços oferecidos à população, o que resultou em
muitos casos de óbitos e violação de direitos sociais e humanos.
Contudo, apesar de todo o desagaste sofrido pelo SUS, ao longo dos
últimos anos, com a tendência de privatização da política de saúde
em curso, no Brasil, se não existisse o sistema de saúde pública com
todas as implicações de diversa monta o quadro epidemiológico na
realidade atual brasileira seria ainda mais catastrófico.
Nesse cenário de pandemia de covid 19, os assistentes so-
ciais, como trabalhadores da saúde, também viveram processos de
precarização de trabalho, que rebateu em especial nos trabalhadores
que atuam em hospitais geridos pelas OSS. Diante disso, observam-
-se contradições que vão de encontro aos princípios profissionais
dos assistentes sociais que atuam visando o fortalecimento do SUS
e a qualidade dos serviços prestados à população.

- 153 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

A partir destas considerações, a realidade vem exigindo


resistência e competência profissional dos assistentes sociais, de-
mandando a ampliação de conhecimentos para (re)pensar ações no
lócus de trabalho e estratégias coletivas na defesa dos direitos da
classe que vive do trabalho na direção do Projeto Ético-político pro-
fissional. Desta forma, pontua Netto (1996), que esse cenário exige
“coragem cívica e intelectual”; para isto, o profissional necessita de
um arcabouço teórico-metodológico, ético-político e técnico-ope-
rativo que possibilite analisar e intervir criticamente na realidade;
sem a apropriação desse referencial crítico ele não terá condições
objetivas para analisar a realidade e o funcionamento da sociedade
capitalista e captar as possibilidades de ações contidas na realidade.

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- 156 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL, A


PRIVATIZAÇÃO DO SUS E O DESAFIO DA
LIBERDADE COMO VALOR ÉTICO:
uma aproximação
Lucilene Ferreira de Melo1
Ruth Pereira de Melo2

Introdução
A reflexão em pauta trata sobre a liberdade como valor ético
central e o trabalho do assistente social no contexto da privatização
do SUS. O objetivo é compreender como a liberdade do ponto de
vista da ontologia do ser social se torna necessária e urgente no
cotidiano do profissional da saúde.
No código de ética de 1993 do Serviço Social há onze princí-
pios. Dentre esses selecionou-se para a servir de parâmetro à refle-
xão aqui empreendida, o “Reconhecimento da liberdade como valor
ético central e das demandas políticas a ela inerentes – autonomia,
emancipação e plena expansão dos indivíduos sociais (CFESS,
1993, p. 23)”. A escolha deve-se ao fato dele ser o fundamento do
Projeto Ético-político do Serviço Social brasileiro (LIMA, 2018) e
das dificuldades de compreensão do seu significado pela categoria
(DAROS; GUEDES, 2008).
Além disso a liberdade na contemporaneidade está cada vez
mais reforçada pelo viés liberal centrado nas escolhas individuais
e delimitada na forma jurídica, contrapondo-se à noção de liberda-
1 Assistente Social. Pós-doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte –UFRN. Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-
-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do
Amazonas – PPGSS/UFAM. Atuante também no Grupo de Pesquisa Gestão Social, Direitos
Humanos e Sustentabilidade na Amazônia – GEDHMAM/UFAM. lucilenefmelo@yahoo.
com.br
2 Assistente Social. Mestranda em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia no PP-
GSS/UFAM. Especialista em Gestão Social: Políticas Públicas, Redes e Defesa de Direitos
pela Universidade Norte do Paraná – Unopar. Participante do Grupo de Pesquisa Gestão
Social, Direitos Humanos e Sustentabilidade na Amazônia – GEDHMAM/UFAM. ruthpmo-
liveira@gmail.com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

de presente no código de ética profissional dos assistentes sociais.


Disso derivam algumas interpretações sobre a liberdade no trabalho
profissional, dentre essas o equívoco da leitura sobre a “autodeter-
minação” profissional (GUEDES, 2007), ou seja, a adesão ou cum-
primento do Projeto Ético-político Profissional do Serviço Social
Brasileiro depende exclusivamente de uma escolha do profissional,
sem considerar o peso do caráter contraditório da relação capital e
trabalho. Sobre isso (IAMAMOTO, 2007) utiliza o termo “incri-
minação moral da categoria”, uma transferência de responsabilida-
de dada a insuficiência do suporte teórico-metodológico utilizado,
uma vez que a reflexão incide sobre o indivíduo e não nas relações
sociais.
Por outro lado, o trabalho profissional do assistente social na
saúde é apontado como o aspecto mais frágil no que concerne ao
avanço da ruptura com o conservadorismo profissional. Essa é uma
questão a ser considerada e guarda relação com a apropriação do
Marxismo nos espaços ocupacionais, o que não se restringe à área
da saúde, o que requer maior trato, reflexões e avanços no atual
contexto.
A pesquisa adotada para este estudo foi bibliográfica. O texto
teve como embasamento teórico autores como: Lukács (1979); Ce-
luppi et al., (2019); Paim (2018); Bravo; Matos (2007); Iamamoto
(2007), entre outros.
Inicialmente, é feita uma reflexão acerca da liberdade como
valor ético do trabalho do assistente social em contraposição às
estratégias de privatização do Sistema Único de Saúde – SUS;
destacamos aqui a relação ontológica entre trabalho e liberdade;
contextualizamos as políticas neoliberais, a saúde como direito
constituinte, bem como ataques à sua consolidação. Na segunda
parte analisamos o exercício da profissão num contexto de desmon-
te da saúde e as demandas políticas que a ela são inerentes; discutin-
do as medidas privatistas na saúde e os processos de erosão no SUS
e o Serviço Social no contexto da privatização do SUS.

- 158 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Sobre a liberdade como valor ético do trabalho do assis-


tente social em contraposição às estratégias de privatiza-
ção do SUS

Relação ontológica entre trabalho e liberdade


A compreensão de liberdade disposta no código de ética
profissional do Serviço Social de 1993 é fundado na teoria social
de Marx, sua objetivação somente é possível a partir da categoria
trabalho e das escolhas do humano-genérico (ser social) (LIMA,
2018), e ela se contrapõe frontalmente com a concepção de liberda-
de da perspectiva liberal centrada no indivíduo, associada à proprie-
dade privada (DAROS; GUEDES, 2008).
Deste modo, há que se explicitar a compreensão acerca da
liberdade, do trabalho e do ser social e isso implica buscar eviden-
ciar qual a relação entre essas categoriais e como uma atua sobre a
outra.
Ao sistematizar as considerações de Lukács (1979), no trato
da ontologia marxiana, encontra-se o que o autor denomina como
ponto de partida para Marx: tudo que existe está no objetivo como
parte de um complexo concreto, derivando daí duas consequências
fundamentais. Primeira, “o ser em seu conjunto é visto como pro-
cesso histórico”; em segundo lugar, “as categorias são formas mo-
ventes e movidas da própria matéria” (LUKÁCS, 1979, p. 3).
Sobre a ontologia do ser social, Lukács (1979) menciona a re-
lação a co-determinação e engendramento recíproco entre três tipos
de seres, o orgânico, o inorgânico e o social, ou seja, o desenvolvi-
mento de um somente é possível a partir da dinâmica específica do
outro. Na relação entre eles há uma passagem de um ser ao outro,
mediatizado por um tipo de salto que resultará em algo qualitativa-
mente novo e mais complexo. Nesse entendimento, a relação entre
os seres ocorre numa intrínseca articulação, constituindo-se num
processo infinito, sem excluir as contradições.
Na sequência de suas argumentações, Lukács (1979) aborda
o nascimento do trabalho, indispensável ao processo de reprodução
orgânica: “Com o trabalho, portanto, dá-se ao mesmo tempo – onto-
logicamente – a possibilidade do seu desenvolvimento superior, do
desenvolvimento dos homens que trabalham” (LUKÁCS, 1979, p.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

6). Assim, o ser social é constituído pelo trabalho, uma nova forma
de ser, superior ao que era antes, mais sociabilizado, mais humano,
distinto da natureza, mas também parte dela, numa relação contínua
e transformadora com ela.
Imerso nas teias da vida social está o ser social num contí-
nuo devenir e inexoravelmente objetivado pelo trabalho, constrói
e se reconstrói na processualidade histórica, a partir de particulari-
dades inerentes ao seu ser, insere-se aqui as posições teleológicas,
“um modo de pôr – posição sempre realizada por uma consciência”
(LUKÁCS, 1979, p. 6). No complexo do trabalho, a consciência é
essencial, pelo “poder ontológico efetivo” é decisiva na tomada de
decisões (LUKÁCS, 1979).
Ainda segundo Lukács (1979) “O trabalho é um ato de pôr
consciente e, portanto, pressupõe um conhecimento concreto, ainda
que jamais perfeito, de determinadas finalidades e de determinados
meios” (p. 9). Nessa acepção, está posta a possibilidade concreta
da continuidade do desenvolvimento superior do ser social pela ne-
cessidade de aperfeiçoamento do trabalho, demandando educação,
pesquisa e inovação, pondo em movimento o salto qualitativo para
a transformação.
Acerca da relação ontológica entre trabalho e liberdade
Lukács (1979) aborda:

A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por


natureza, [...]. É o produto da própria atividade humana, que
decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente
daquilo que se propusera, mas que nas suas consequências
dilata – objetivamente e de modo contínuo – o espaço no qual
a liberdade se torna possível [...] (p. 17)

Novamente, aparece o trabalho como um mediador, oportu-


nizando um espaço de construção de liberdade, realizável pelo ser
social, porém como se concretizará é imprevisível. Isso tudo estará
submetido ao processo de reprodução da vida social, na concretude
dialética histórico-social face aos interesses sociais antagônicos e
as ideologias que falseiam a consciência, fazendo distanciamento
do ser em si.
É no proceder humano, ao dar respostas as suas necessida-
des, que o sujeito faz suas escolhas, criando uma nova forma de

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

objetividade de si mesmo. E, assim, pode gerar consequências ines-


peradas a caminho da liberdade. Um percurso particular que merece
ser analisado diante de uma conjuntura brasileira de retrocessos de
direitos e de ameaças à democracia.

Uma breve contextualização dos entraves na construção


da política de saúde no Brasil
Vive-se uma conjuntura resultante de políticas neoliberais
adotadas pelos governos ao longo da construção da história. Para
Celuppi et al., “o neoliberalismo está ancorado em pretensões de
desmonte dos sistemas de proteção social e incentivos à autorregu-
lação dos mercados” (2019, p. 305). Para tais autoras, países em de-
senvolvimento, como o Brasil, o movimento de contrarreforma do
Estado brasileiro avançou na estrutura de políticas sociais residuais,
sob desígnio de limitá-las ao mero assistencialismo (CELUPPI et
al., 2019).
São diversos obstáculos e ameaças ao sistema público, um
deles se dá em termos ideológicos, pois valores dominantes tendem
mais para a diferenciação, o individualismo e a distinção que para
coletividade e a igualdade (PAIM, 2018) e características peculia-
res do capitalismo, no qual os interesses de classes são contraditó-
rios, e o capital/mercado são prioridades para a classe dominante,
por isso há um grande interesse pela mercantilização dos direitos e
privatização do que é público.
O desmonte do Sistema Único de Saúde – SUS também se
processa a longo prazo, mas se tornou mais intenso com o governo
atual. “Para além do SUS, o que ocorre no governo em vigência são
políticas voltadas à precarização das condições de vida e saúde da
população” (WEILLER, 2019, p. 231).
Paim (2018) afirma que o predomínio da doutrina do neolibe-
ralismo representa um sério obstáculo para o desenvolvimento dos
sistemas universais de saúde. Para o autor isso ocorre mesmo com
garantia do direito preconizado na Constituição.
Sabe-se que a saúde é um direito elementar, gratuito, coletivo
e de reponsabilidade do Estado, elencados em um dos cinco artigos
da Constituição Federal de 1988:

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido


mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução
do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e
igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação (BRASIL, 2014, p. 58).

A Constituição legitima o Sistema Único de Saúde que se


materializa na Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, o qual esta-
belece condições para a promoção, proteção e recuperação da saú-
de, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes,
bem como outras providências. Como podemos observar no Art. 2º:

A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Es-


tado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação
e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução
de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento
de condições que assegurem acesso universal e igualitário às
ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação
(BRASIL, 1990, p. 1).

Contudo, Paim destaca que:

Apesar de a Constituição proclamar a saúde como direito de


todos e dever do Estado, o Estado brasileiro, através dos po-
deres executivo, legislativo e judiciário, não tem assegurado
as condições objetivas para a sustentabilidade econômica e
científico-tecnológica do SUS (PAIM, 2018, p. 1725).

Na sequência de suas ponderações, Paim (2018, p. 1725) afir-


ma, “o SUS enfrenta grandes interesses econômicos e financeiros
ligados a operadores de planos de saúde, as empresas de publicida-
de e as indústrias farmacêuticas e de equipamentos médico-hospita-
lares”. Interesses estes que não condizem com o interesse público e
nem visam a coletividade. Aliás, essa relação público-privada não é
algo recente; antecede a criação do Sistema Único de Saúde.
De acordo com Paim (2018, p. 1726) “a privatização da saú-
de que esteve presente na evolução das políticas públicas, mesmo
antes do SUS, apresenta distintas configurações decorrentes dos
movimentos e circuitos do capital no setor. Celuppi et al. (2019, p.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

305) corroboram “o sistema público universal foi entendido como o


novo espaço a ser explorado pelo mercado”.
Os governos e suas políticas neoliberais favorecem o capital,
inclusive nos últimos anos, tais estratégias ficam mais evidentes, à
medida que enfraquece as políticas sociais e expande-se o mercado
privado.
A falta de prioridade ao SUS e os ataques visando ao seu
desmonte foram reforçados pela crise econômica, pelas políticas de
austeridade fiscal e, especialmente, pela Emenda Constitucional 95
(EC-95/2016) que congela o orçamento público durante vinte anos
(PAIM, 2018, p. 1724).
Assim, o direito à saúde, um dos direitos sociais preconizado
no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, vem sendo ameaçado
com a privatização do SUS, direito este considerado essencial para
a garantia da vida do ser humano, e para conquistá-lo levou um per-
curso longo, um processo de construção difuso e que se consolidou
com o movimento da reforma sanitária, mas foi a VIII Conferência
Nacional de Saúde em 1986 que deu visibilidade para as demandas.
Destaca-se que, por muitos anos, o direito à saúde consistiu um di-
reito contributivo resguardado aos trabalhadores formais; o acesso
era restrito e não universal. Somente com a política de seguridade
social, a saúde ganha ênfase e uma organização na prestação de
serviços e com um responsável para financiá-la.
Portanto, a sustentabilidade do SUS é de suma importância
ao acesso a esse direito de saúde, pois, mesmo com tantas dificulda-
des e fragilidades, produziu conquistas e resultados significativos,
como sinaliza Paim (2018). Para tal autor “o reconhecimento for-
mal do direito à saúde tem possibilitado a difusão dessa conquista
na sociedade, seja nas manifestações da cidadania e na mídia, seja
nos processos de judicialização” (PAIM, 2018, p. 1725).
O exercício da profissão num contexto de desmonte da
saúde e as demandas políticas que a ela são inerentes
As medidas privatistas na saúde e os processos de erosão
no SUS
Historicamente, a saúde sempre trilhou um caminho com
entraves e desafios, embora avanços e conquistas sejam incontes-

- 163 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

táveis, mas, medidas privatistas na saúde e processos de erosão no


Sistema Único de Saúde sinalizam o desmonte do direito à saúde
cada vez mais intenso. De acordo com Celuppi et al., “tendo em
vista a hostilidade do cenário político-econômico brasileiro, perce-
be-se que são inúmeras as propostas de redução do sistema de saúde
e expansão do mercado privado no Brasil” (2019, p. 307).
Vale frisar que existe um conjunto de ações regressivas nas
políticas sociais, inclusive na saúde, e diversas são as estratégias
dos governos que devastam os avanços na saúde pública, bem como
as conquistas emanadas do SUS, propriamente um desmonte de di-
reitos. Sabe-se que isso não é algo recente e sim espólios da traje-
tória neoliberalista. Para Celuppi et al. (2019), o modelo de estru-
tura de governo adotado no país carrega heranças do forte período
de centralização do poder; incentivos à inciativa privada na saúde;
estímulo financeiro governamental para que os servidores optem
pelos planos privados.
Tais autoras asseveram que “as organizações privadas de
saúde estão articuladas com os mais variados setores das sociedades
e detêm o poder de influenciar diretamente nas políticas econômica
e social do País” (CELUPPI et al., 2019, p. 307). Nesse sentido, as
privatizações crescem e os serviços de saúde de qualidade tornam-
-se mais restritos à parcela da população que pode custear, à medida
que o SUS sofre grandes perdas no financiamento, como pode-se
constatar com a aprovação da Emenda Constitucional 95, de 15 de
dezembro de 2016 que altera o ato das disposições constitucionais
transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal.
A EC 95/2016 preconiza: Artigo 106. Fica instituído o Novo
Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Segurida-
de Social da União, que vigorará por vinte exercícios financeiros
(BRASIL, 2016). Paim (2018, p. 1726) afirma “com a aprovação
da EC-95/2016, o subfinanciamento crônico do SUS fica constitu-
cionalizado, cristalizando as dificuldades acumuladas desde 1988”.
Ademais,

[...] a aprovação da EC 95/2016 resulta no congelamento dos


gastos em serviços primários por tempo estimado em 20 anos.
Essa medida consiste na retração do financiamento do sistema
de saúde brasileiro, que se torna uma agravante ainda maior para

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

sustentabilidade e manutenção do SUS. A perda significativa de


recurso proposta por essa medida obriga os gestores e secretários
a reduzirem as ações e serviços disponíveis aos usuários, sob
o preceito de diminuir as despesas dos estados e municípios
(CELUPPI et al., 2019, p. 308).

Sumamente, a EC 95/2016 atinge os serviços primários, que


no caso da política de saúde, são serviços considerados como a por-
ta de entrada do SUS, as Unidades Básicas de Saúde (UBS’S), as
quais são responsáveis pelo atendimento das demandas de rotina
da população, como: consultas, exames, vacinação, tratamentos,
pré-natal, acompanhamento de pessoas que têm doenças crônicas,
a saber: diabetes e hipertensão, bem como atendimento odontológi-
co; compreende, também, os agentes comunitários de saúde (ACS),
equipe de saúde da família (ESF), em outras palavras, o primeiro
contato do cidadão à saúde está ameaçado.
Somando a isso, temos a aprovação da Lei de Responsabi-
lidade Fiscal (LRF). Segundo Celuppi et al. (2019) tal legislação
limita o percentual de gastos com pessoal, propondo entregá-las às
empresas privadas, por meio de terceirização da gestão pública. Ce-
luppi et al. acrescentam também:

São muitos os impactos resultantes da terceirização da gestão


pública: desresponsabilização do Estado de suas obrigações,
precarização das condições de trabalho, diminuição de salários,
desestabilização dos direitos trabalhistas e priorização da lógica
quantitativista de produção na assistência à saúde (CELUPPI et
al., 2019, p. 309)

Salienta-se que governos com políticas de cunho neoliberal


endossam a expansão do setor privado, seja na produção de serviços
ou na inserção deste setor na gestão pública. Em contrapartida, o
SUS, desde sua criação, foi prejudicado na expansão de seus servi-
ços, na definição de fontes de recursos e na concessão de subsídios
financeiros, ocasionando um dos maiores impasses para gestão e
efetivação do direito universal à saúde como direito de cidadania
(CELUPPI et al., 2019).
Enfim, tais medidas governamentais vêm afetando e corro-
endo os princípios do SUS postos desde a reforma sanitária; enfra-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

quecendo os serviços públicos, provocando significativas perdas à


saúde, pois os interesses da classe dominante do país auferem maior
extensão nas tomadas de decisões governamentais, favorecendo e
fortalecendo o mercado privado, à custa de sérios prejuízos aos tra-
balhadores, a coisa pública e a sociedade em geral.

O Serviço Social no contexto da privatização do SUS


A área da saúde faz parte do rol dos espaços ocupacionais
do serviço social no Brasil. Em Bravo e Matos (2007) é possível
observar um panorama do Serviço Social na área da saúde de 1930
ao início dos anos 2000. Eles expõem que, mesmo diante de mudan-
ças que se processaram na política de saúde no Brasil e na dinâmica
interna do serviço social, a atuação na área, até os anos de 1990,
se caracteriza como tradicional, distanciada da chamada intenção
de ruptura do Serviço Social brasileiro, e, além disso, a categoria
não era muito próxima ao Movimento da Reforma Sanitária. Nos
anos 2000 há uma tendência otimista. De três dimensões da pro-
fissão analisadas: a acadêmica, a política e o trabalho profissional,
somente as duas primeiras mostram aproximações com o projeto da
reforma sanitária e ao Projeto Etico-político profissional; no âmbito
do cotidiano profissional, ainda há que consolidar a ruptura com o
Serviço Social tradicional.
Há, portanto, nessa trajetória exposta por Bravo e Matos
(2007), ainda que apresente um panorama do século XX, o clássico
das questões inerentes ao trabalho na sociabilidade capitalista, as
quais para o assistente social não se apresentam de forma diferente,
ele também vivencia a alienação, uma vez que está inserido num
processo de trabalho modelado para atender as demandas do capi-
tal, está sob relações de poder no ambiente de trabalho, é um traba-
lhador assalariado, muitas vezes, sob precárias e flexíveis formas de
contratação, tudo isso condicionado pelo contexto sócio-histórico
(crises do capital, desmonte dos direitos, mercantilização de servi-
ços etc.). Aqui entra em cena não apenas o que deveria ser feito para
romper com o conservadorismo, mas quais as condições objetivas e
subjetivas para fazê-lo diferente.
A partir dessa aproximação maior sobre o avanço do projeto
de privatização da saúde, nota-se um processo de corrosão do SUS.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

O Conselho Federal do Serviço Social alerta a incidência do pro-


cesso de precarização do SUS no trabalho dos assistentes sociais:
[...] nas condições de trabalho, na formação profissional, nas
influências teóricas, na ampliação da demanda e na relação
com os demais profissionais e movimentos sociais. Amplia-se
o trabalho precarizado e os profissionais são chamados a ame-
nizar a situação da pobreza absoluta a que a classe trabalhadora
é submetida (CEFESS, 2010, p. 23).

Observa-se que essa incidência se projeta nas diferentes di-


mensões da profissão, na sua inserção no mercado de trabalho, no
usuário dos serviços sociais e nas relações internas e externas ao
espaço ocupacional. Depreende-se que está posto para a categoria
que o a precarização do SUS também significa a precarização da
profissão nesse espaço. Não há como fazer a desvinculação. Há
uma relação umbilical pela proximidade do Projeto Ético-político
da profissão com o projeto do SUS, oriundo do movimento da re-
forma sanitária.
Desse modo, há que fazer resistências a tais questões. Nessa
direção, um primeiro aspecto a destacar é que a resistência perpassa
pelo fortalecimento dos sujeitos políticos coletivos que se colocam
em defesa do SUS, a Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em
Serviço Social (ABEPSS), o Conselho Federal de Serviço Social
(CFESS) e os Conselhos Regionais de Serviço Social (CRESS), e,
também dos Sindicatos que a categoria se insere, a Frente Nacional
Contra a Privatização da Saúde, assim por diante, pois as bandeiras
de lutas e conquistas servirão de respaldo ao profissional na defesa
e efetivação de direitos.
O segundo aspecto é que não se pode perder de vista as ini-
ciativas do saber-fazer profissional, pois a direção das respostas
emitidas pelo profissional podem fazer muita diferença. Nelas vão
estar inscritas marcas de resistência ou não, e se constituem como
resultado obtido de múltiplas forças presentes onde se realiza o tra-
balho, pois conforme Iamamoto (2007) o assistente social faz parte
de um coletivo nas instituições na qual trabalha, o produto final do
trabalho é de um trabalho combinado ou cooperado, e sofre inge-
rência que ameaça sua relativa autonomia.
O terceiro aspecto, corroborando com Iamamoto (2007), é
a ampliação das reflexões e socialização sobre as especificidades

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

do saber-fazer profissional no cotidiano do processo de trabalho no


qual se insere o assistente social, seja na atenção básica, na média
ou alta complexidade. É preciso pesquisar sobre seus dilemas, seus
desafios e suas respostas, proporcionando um acúmulo de reflexões
da área para o aperfeiçoamento do trabalho e de quem trabalha.
Posto isso, retoma-se aqui a perspectiva de que é no processo
contraditório do trabalho que está a chave de ruptura da alienação,
deslocando-se o olhar para o ser social, não como objeto do capital,
mas um sujeito que expressa tanto a alienação quanto a rebeldia,
em meio a essas ambiguidades, há uma clareza da direção a seguir
“[...] a partir da apropriação de uma teoria crítica da sociedade e da
prática política que permita avançar na apreensão dos fundamentos
concretos da vida social” (IAMAMOTO, 2007, p. 414). Somados
a isso, o assistente social ainda pode contar para a defesa de sua
relativa autonomia: 1) No âmbito dos espaços ocupacionais: a sua
qualificação acadêmico-profissional, articulação com os demais
trabalhadores do processo de trabalho no qual está inserido e com
as forças políticas das organizações dos trabalhadores que ai inci-
dem; 2) Respaldo coletivo da categoria com um Projeto Político-
-profissional que amplie a as bases de apoio contra a alienação do
trabalho; 3) Direitos trabalhistas e proteção social assegurados em
contrato de trabalho (IAMAMOTO, 2007, p. 422-424).
Nessa direção, os profissionais são desafiados pelo Projeto
Ético-político do Serviço Social a sua plena expansão como indiví-
duos sociais como uma necessidade primária. Isso somente é pos-
sível a partir da liberdade na ótica da ontologia. O ponto de partida
está na construção de mediações, pôr em movimento o sujeito cria-
tivo é pôr-se em liberdade, a partir do trabalho, para manter-se um
sujeito vivo, transformador, “mediatizar o fazer profissional sob as
bases ético e política” (IAMAMOTO, 2007, p. 396). Isso significa
continuar o processo de construção do humano-genérico e, nesse
movimento, galgando níveis de consciência, ir se construindo como
um trabalhador assalariado, pertencente a uma categoria que possui
um Projeto Ético-político profissional que dá a direção à profissão e
faz parte disso engajar-se pela defesa do SUS.

- 168 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Considerações finais
Na trajetória da Política de Saúde no Brasil, a dinâmica uni-
versalização da saúde e privatização assume novos contornos pelo
movimento da Reforma Sanitária e, assim, os resultados conforma-
rão, a partir de 1988, a saúde como um direito e dever do Estado,
deixando de ser contributiva e passando a ser de acesso universal,
criando as bases para o Sistema Único de Saúde – SUS.
Observa-se no cenário da área da saúde um confronto entre
projetos distintos, por um lado, a defesa da universalização da saú-
de e, por outro, a defesa da privatização. O sistema público de saúde
no Brasil – o SUS – se materializa na relação público-privado, uma
contradição explicada, por exemplo, pela estrutura hibrida da rede
de atendimento, pelo financiamento por meio de renúncias fiscais e
a sua gestão por organizações sociais de saúde. Essa relação, cada
vez mais, vem tendendo para o viés da privatização e com isso um
retrocesso ao direito à saúde no Brasil.
Em meio a esse processo de desmonte do SUS encontra-se
o profissional de serviço social atuando face a todas essas adver-
sidades. A saída que se vislumbra para a sobrevivência nesse ce-
nário tão adverso é que nesse embate que ocorre no cotidiano do
profissional, o enfrentamento não pode ser vislumbrado do ponto
da relativa autonomia no viés do individualismo, por isso aqui, a
liberdade necessária, não é a do liberalismo, mas sim da ontologia
do ser social.
Entretanto, isso significa que as respostas e o enfrentamento
aos desafios no efetivo-exercício profissional, por meio das media-
ções, carece de teleologia embasada no Projeto Ético-político da
profissão. Uma vez que ele representa a construção coletiva da ca-
tegoria. Embora, mesmo salvaguardando essa base ético-política, e
um significado novo ao saber-fazer, o confronto é tenso, intenso na
relação capital x trabalho e no âmbito do Estado e longo.
Por fim, o Sistema Único de Saúde em 30 anos processou-se
em um caminho desafiador; no bojo desse processo, as ações contra
à saúde pública vêm galgando vitórias, ameaçando os direitos con-
sagrados pela Carta Cidadã, contudo, tais ameaças de retrocessos
podem ser contidas à medida que emergem manifestações e rei-
vindicações em defesa dos direitos sociais. Trata-se, portanto, de

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

resiliência, e profissionais, subsidiados pelo projeto ético-político


baseado em uma transformação social, possuem um papel impor-
tante frente às lutas travadas neste combate.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Seção 3
Saúde, Serviço Social e Ambiente

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

SAÚDE MENTAL EM TEMPOS DE


PANDEMIA:
entre o produtivismo e a produtividade na
Universidade
Lidiany de Lima Cavalcante1
Etiane Silva Valente2

Introdução
Tabus e preconceitos invisibilizaram a Saúde Mental por sé-
culos no Brasil. O tema foi reduzido às perspectivas da institucio-
nalização de pessoas, o que gerou um tabu sobre as possibilidades
mais amplas de tratar a discussão. A contemporaneidade demanda a
abertura dos portões para a compreensão da necessidade de quebrar
paradigmas para falar sobre tema de forma mais aberta, sobretudo
relacioná-lo aos desafios profissionais na universidade, onde o do-
cente assume um papel multifacetado.
O projeto exposto pela sociabilidade capitalista aponta uma
espécie de “capitalismo acadêmico” que de acordo com Delgado
(2007) invade as universidades na perspectiva de atender aos pro-
pósitos do produtivismo a qualquer custo. Tal contexto, aliado a
um peculiar período de pandemia, pode ocasionar a elevação dos
quadros de adoecimentos mentais, os quais já eram vislumbrados
no cotidiano das universidades.
Neste ínterim, a proposta da presente análise consistiu em
ponderar os desafios da saúde mental docente diante do produti-
vismo acadêmico imposto nas universidades públicas. Apesar de o
processo vir desde a década de 1990, faz-se relevante compreender
de que forma o período de pandemia pode contribuir para a eleva-
ção do quadro de risco psíquico.
1 Professora Pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas. Docente do Programa de
Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia – PPGSS/UFAM. Coorde-
nadora do Laboratório de Estudos de Gênero/UFAM.lidiany@ufam.edu.br
2 Assistente Social. Mestranda em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia, Bolsista
FAPEAM. etianevalente.as@gmail.com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Por meio de uma reflexão teórica, o estudo elenca o signifi-


cado de saúde mental no contexto político contemporâneo. A pos-
teriori, serão ponderadas algumas consequências de natureza social
da pandemia. Seguidamente serão aportadas análises sobre os de-
safios do produtivismo acadêmico diante do cenário de exploração
das relações de trabalho expressos no sistema capitalista.

Saúde mental na contemporaneidade


A visibilidade da Política de Saúde mental é recente, consi-
derando o contexto da saúde pública brasileira, sobretudo no campo
de ação profissional e na assistência à população. Ribeiro (1999)
destaca que a psiquiatria surgiu no século XIX, tendo como prin-
cipal campo de atuação os hospitais psiquiátricos com a indução
a tratamentos de internação, associados aos fármacos ministrados
aos indivíduos que se encontravam em condições de adoecimento
mental.
O contexto histórico da saúde mental revela desde o período
em que o indivíduo era tratado como louco ou doente, até condição
de transtorno. No Brasil, o contexto de exclusão e invisibilidade
levou ao debate sobre a Reforma Psiquiátrica, abordada por alguns
autores, tais como: Tundis e Costa (2007); Amarante (1995); Pau-
lin e Turato (2004) dentre outros. A referida reforma se constituiu
como marco na sociedade brasileira, juntamente com a Reforma
Sanitária, haja vista que ampliaram não apenas o debate, mas a for-
ma de construir plataformas de saúde que ultrapassassem o modelo
hospitalocêntrico para direcionar-se às comunidades. Nesse con-
texto, a saúde mental deixa de se resumir a mera medicalização,
mas sim abarca um contexto que envolve o ser humano de forma
integral dentro das perspectivas e princípios do SUS que fomentam
a equidade, universalidade e integralidade.
Apesar da dinâmica ocorrida nesse processo histórico, não
foi possível estabelecer um conceito fechado acerca da saúde men-
tal. A Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial
da Saúde (OPAS/OMS, 2016), esclarece que ainda não se tem uma
definição própria que possa elucidar o real significado de Saúde
Mental, mas, ela entende ser um ambiente que promova o respeito
e a proteção aos direitos básicos civis, políticos, socioeconômicos

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

e culturais, como fundamentais para a promoção da saúde mental.


Sem a segurança e a liberdade asseguradas por esses direitos, torna-
-se muito difícil manter o nível de saúde mental almejado.
Logo o conceito de Saúde vai para muito além do que o
próprio contexto de bem-estar físico, mental e social, considerado
inicialmente pela OMS/OPAS (2016), mas amplia-se uma vez que
outras variáveis participam na construção do conceito, as quais não
estão vislumbradas como aportes da totalidade, já que ensejos como
as condições de vida das pessoas com todas as suas nuanças, corro-
boram para o seu real significado.
Ainda de acordo com a OMS/OPAS (2016), a saúde mental
se efetiva quando o indivíduo consegue estabelecer estratégias de
enfrentamento para as dificuldades naturais do cotidiano, apresenta
potencial para o trabalho produtivo, tem ciência de suas habilida-
des e consegue contribuir com a comunidade em que vive. Sabe-se
que o conceito não pode ser generalizado, principalmente quando a
tratativa envolve a subjetividades humana. Entretanto, pode-se evi-
denciar que existem características potenciais que podem colocar a
saúde mental em risco, tais como: mudanças sociais rápidas (como
o contexto pandêmico da covid-19), condições estressantes de tra-
balho, discriminação de gênero ou orientação sexual, situações de
exclusão social, violência e violações de Direitos Humanos, entre
outras perspectivas.
Scliar (2007) destaca que a saúde de um indivíduo não evi-
dencia apenas fatores físicos ou fisiológicos, mas também a con-
juntura social, política, econômica e cultural, ou seja, a dinâmica
depende de múltiplas determinações que podem ser expressas pela
época, lugar, classe social, valores individuais, concepções científi-
cas, religiosas e filosóficas. Ao reconhecer a importância do debate
sobre a saúde mental, urge aprofundar a discussão sobre o reconhe-
cimento e a visibilidade das Políticas de Saúde Mental no Brasil.
Para Behring e Boschetti (2009) as políticas sociais se cons-
tituem como protoformas de respostas e possibilidades de enfrenta-
mento às expressões da Questão Social, alavancadas pelas relações
de exploração do capital sobre o trabalho, o que gera exclusão, dis-
criminação e invisibilidade humana. As políticas estão inseridas nas
teias das relações complexas entre Estado e Sociedade Civil, com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

todas as nuanças de conflitos e luta de classes, oriundos do sistema


capitalista.
Ainda de acordo com as autoras, a Política Social surge con-
juntamente às expressões da Questão Social, visto o papel determi-
nante das condições sociais na gênese da discussão entre as referidas
categorias. A indissociabilidade entre elas fomentou a construção
histórica dos vários segmentos de políticas, entre elas a de saúde
e no bojo da referida, a especificidade da política de saúde mental.
No entendimento de Pinto et al. (2019)

[...] as classes e os movimentos sociais têm na questão social a


problemática que os induz a resistir e lutar por um desenvolvi-
mento social mais igualitário. No contexto da saúde mental, a
luta dos movimentos sociais é o fator que impulsiona a criação
de políticas públicas e sociais sobre o tema.

É mediante a influência desses movimentos que a Política


Nacional de Saúde Mental surge no Brasil, já que a luta pela
construção de tal política pública e social orienta-se inicialmente
com a perspectiva de tornar a sociedade menos desigual. Assim,
as demandas para pol íticas públicas e sociais surgem no bojo
das expressões da Questão Social e, se fazem necessárias para que
os direitos sejam assegurados em todas as suas dimensões, sem
qualquer tipo de discriminação e preconceito.
Para Borges (2007) a discussão de políticas públicas em saú-
de mental é um avanço referente a todo um processo que ora foi
designado como reforma psiquiátrica. E foi a partir desse momento
de inflexão da reforma psiquiátrica, que a saúde mental encontrou
possibilidades, diante da proposta de desinstitucionalização do que
historicamente foi reconhecido como loucura. Tal contexto ocorreu
em paralelo aos momentos de redemocratização no país, lutas pelo
fortalecimento do movimento pela reforma sanitária, e inserção do
SUS na Constituição de 1988.
De forma a aprofundar a discussão por meio das normati-
vas jurídicas que orientam as vias legais dessa caminhada no cam-
po da saúde mental, tem-se a Lei da Reforma Psiquiátrica de Nº
10.216/01 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas por-
tadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

e as portarias do Ministério da Saúde, tais como: Portaria 336/2002


que regulamenta o funcionamento dos CAPS (Centros de Atenção
Psicossocial); Portaria 052/2004 que institui o Programa Anual de
Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS; Por-
taria 1876/2006 que institui Diretrizes Nacionais de Prevenção ao
Suicídio; Portaria 3.089/2011 que trata sobre o financiamento dos
CAPS; Portaria 132/2012 que institui o incentivo financeiro para
reabilitação da rede de atendimento Psicossocial do Sistema Único
de Saúde entre outras (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).
As portarias se constituem como instrumentos de menor peso
institucional em comparativo às leis, são formuladas pelo poder
executivo e reatualizadas conforme o avanço de sua implementação
e assinalam, sobretudo, modelos de assistência em saúde mental no
Sistema Único de Saúde.
A Política Nacional de Saúde Mental abrange a atenção a
pessoas com necessidades relacionadas a sofrimentos psíquicos
intensos como depressão, ansiedade, esquizofrenia, transtorno afe-
tivo bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo etc., e pessoas com
quadro de uso nocivo e dependência de substâncias psicoativas,
como álcool, cocaína, crack e outras drogas. A política apresen-
ta a perspectiva de atendimento pelos seguintes pontos: Redes de
Atenção Psicossocial – RAPS; Centros de Atenção Psicossocial –
CAPS e suas modalidades; urgência e emergência: SAMU 192, sala
de estabilização, UPA 24h e pronto socorro; Serviços Residenciais
Terapêuticos (SRT); Unidades de Acolhimento (UA), divididas em
acolhimento adulto e infantil; Ambulatórios Multiprofissionais de
Saúde Mental; Comunidades Terapêuticas; Enfermarias Especiali-
zadas em Hospital Geral; Hospital-Dia (MINISTÉRIO DA SAÚ-
DE, 2015).
Apesar de a Política Nacional de Saúde Mental apontar ao
contexto de desinstitucionalização, o caminho para a efetivação da
rede de atendimento é longo, visto a invisibilidade da política e o
secundarismo com que a referida é tratada no bojo das Políticas de
Saúde na realidade brasileira. Além disso, assiste-se a um cenário
de desmonte da RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) agravado
pelos fundamentos da necropolítica implementada no país durante
os últimos anos, o que aponta para o ostracismo quanto ao reconhe-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

cimento da saúde mental e potencial anulação de toda uma trajetó-


ria de luta histórica.

A pandemia de covid-19 no mundo e os desafios sociais


contemporâneos
A História da humanidade já foi marcada por várias epide-
mias e pandemias. O primeiro relato escrito data da antiguidade.
Conforme Rezende (2009) os primeiros achados encontram-se na
Bíblia, com apontamentos sobre doenças infecciosas que assola-
vam povos da época. As epidemias eram tratadas genericamente
como “peste”. Algumas eram associadas aos ratos ou outros ani-
mais. Ainda, segundo o autor, as epidemias com mais registro pelos
historiadores foram denominadas como: Peste de Atenas, Peste de
Siracusa, Peste Antonina, a Peste Justiniana e a Peste Negra no séc.
XIV.
Outro marco pandêmico se caracterizou pela Gripe Espanho-
la entre 1918 e 1920. De acordo com Goulart (2005), a Influenza se
disseminou no período da Segunda Guerra Mundial e fez milhões
de vítimas. Houve caos e censura por parte dos militares, o que
atrasou medidas importantes, já que o problema foi minimizado
pela mídia da época em várias partes do mundo. A denominação de
“Espanhola” veio justamente pelo fato de que a Espanha tratava a
problemática de maneira aberta no que tange aos dados.
Rezende (2009) aponta que, assim como a Gripe Espanhola,
outras epidemias de menor proporção se fizeram presentes no séc.
XX tais como: Gripe Asiática (1957 – 1958); Gripe de Hong Kong
(1968-1969); Gripe Russa (1977 – 1978); Gripe Aviária (2003 –
2004); Pandemia de 2009 (H1N1).
No final de 2019, o mundo muda mais uma vez de direção.
O contexto é marcado por uma doença causada pelo novo corona-
vírus, o que foi denominado como SARS-COV-2 ou covid-19. O
cenário econômico, social e cultural sofreu alterações não previstas.
Novas formas cotidianas de vida foram exigidas, tais como a qua-
rentena, o Lockdown e o isolamento social, para que a humanidade
pudesse amadurecer as formas de lidar com um inimigo invisível
que pode ser letal.
Segundo a Organização Pan-americana de Saúde (2020) ór-
gão da OMS (Organização Mundial de Saúde) até setembro do cor-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

rente ano, o mundo já tem mais de 28 milhões de casos confirmados


com mais de 920 mil mortes. Os dados da OPAS (2020) mostram
ainda que o maior número de óbitos está na região das Américas,
com mais de 14 milhões de casos e mais de quinhentas e vinte mil
mortes), ou seja, mais da metade dos óbitos apontados no mundo,
seguida da região da Europa, com quase 5 milhões de casos e mais
de 220 mil mortes; em terceiro lugar encontra-se a região do Sudes-
te Asiático, com mais de 5 milhões de casos e quase 90 mil mortes
até o dia 11 de setembro de 2020.
No que tange ao Brasil, os dados ultrapassam 4 milhões de
casos com mais de 140 mil mortes. O país está em terceiro lugar em
número de casos, sendo o segundo em quantitativo de óbitos. São
Paulo é o estado com maior número de casos, com mais de 890 mil
casos e mais de 32 mil mortes, seguido da Bahia, Minas Gerais e
Rio de Janeiro (OPAS, 2020).
Os dados da Pandemia revelam não apenas problemáticas de
naturezas biológicas e fisiológicas, mas também social e política.
Como o Brasil é um país com largo potencial de desigualdade, ain-
da encontramos cenários devastadores. Segundo a ANA – Agência
Nacional de Águas e Saneamento Básico (2019), mais de 40 mi-
lhões de pessoas não têm acesso ao sistema de abastecimento públi-
co de água. As principais bacias brasileiras (Manaus, Belém, Porto
Velho e Rio Branco) estão com problemas de poluição.
Os dados são aterradores para o cenário pandêmico em que
as formas de prevenção envolvem, sobretudo, acesso à água. Se-
gundo a Organização Trata Brasil (2020) a região sudeste do Brasil
apresenta os maiores índices de acesso a agua com 91%, seguido
da região sul com 90%; em terceiro lugar a região centro-oeste com
88,98%; em quarto lugar a região nordeste com 74,21% e em úl-
timo lugar a região norte do país com 57,05% da população com
abastecimento de água tratada.
Outro desafio expresso pela pandemia é o acirramento da
desigualdade social. Residências lotadas com poucos cômodos e
famílias numerosas em situação de extrema vulnerabilidade, o que
dificulta o isolamento social. Trata-se de uma problemática que as-
sola a realidade brasileira há tempos e a população pobre, negra e
periférica sente primeiro. O elevado quantitativo de óbitos entre os

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

mais pobres chama a atenção para o que Ianni (1992) chamou de


criminalização da pobreza. A população pobre é culpabilizada pela
situação em que vive e sofre com mais vigor as consequências das
expressões da Questão Social em qualquer tempo, incluindo nesse
bojo o período corrente de enfrentamento ao coronavírus.
No período de pandemia, as populações mais vulneráveis so-
frem com as agruras advindas de um sistema capitalista excludente,
acirrado pela necropolítica que vem se desenhando no Brasil. Um
cenário em que a população é culpabilizada pela própria situação,
além de não ter alcance às Políticas Públicas, sobretudo no campo
da saúde, principal mecanismo de enfrentamento ao contexto pan-
dêmico.
As expressões da Questão Social não param por aí. A Pan-
demia revela outro quadro que por vezes relega-se ao ostracismo:
os agravos na saúde mental. Um tema silencioso, cercado de tabus,
preconceitos e discriminações, mas que existe e assola o cotidiano
de forma atroz, conforme será ponderado a posteriori.

Saúde mental e produtivismo na universidade


Para o aprofundamento da discussão, faz-se relevante com-
preender algumas palavras, tais como: produtor. Entende-se que
dela se ramifica outras (produto, produtivo, produtividade e produ-
tivismo). Palavras que dão composição ao significado do que seja
na sua forma literal o produtivismo e a produtividade.
Segundo Bechara (2009) produtor significa quem produz.
Nesse caso, o indivíduo inserido na dinâmica da academia, produz
algo como resultado de algum estudo; produto significa o material
em si, o que é produzido seja pelo trabalho humano ou natureza;
produtivo é referente à produção, que produz, fértil, proveitoso; a
produtividade é a capacidade/habilidade de produzir, eficiência ou
rendimento; já o produtivismo é a produção máxima, quantificada
em larga escala de determinado material.
O trabalho de acordo com Marx (2013) é o elemento fun-
dante para a constituição do ser social e atua como mediador na
relação homem e natureza. Nessa perspectiva o homem transforma
a natureza, mas também é transformado por ela. O que diferencia o
homem dos animais é exatamente o trabalho, visto a sua realização

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

de forma consciente e intencional. O que torna diferente o arquiteto


da abelha se constitui pela intencionalidade. O arquiteto já tem em
mente o que será desenvolvido de forma consciente, ao contrário do
animal que o faz por instinto.
Da mesma forma em que o trabalho é considerado produtor
do ser social e pode fomentar a saúde, sob a égide do capital torna-
-se algo abstrato que reduz o indivíduo a mera condição de sujei-
to-mercadoria nos dizeres de Antunes (2010). A contradição existe
no fato de que ao mesmo tempo em que o trabalho se faz necessário
para garantir a vida, também pode simbolizar concretamente o ado-
ecimento e a morte.
O processo de inserção do produtivismo nas universidades
data da década de 1990, com a gestão federal de FHC. Por meio de
uma Reforma Administrativa com o objetivo de trazer a “eficiên-
cia” ao serviço público, houve um processo de integralização da
lógica do privado na esfera pública. Inicia-se o processo de inten-
sificação do produtivismo, a competição entre pares, o processo de
superexploração dentro de uma lógica capitalista excludente, que
prima pela competição e lógica do produto como resultado do que
precisa ser feito (OLIVEIRA; PEREIRA; LIMA, 2017).
O avanço da reforma administrativa no Brasil atingiu tam-
bém o universo acadêmico. A sobrecarga de trabalho se elevou e
dividiu o corpo docente e discente. O que antes era produtividade
assume as perspectivas do produtivismo. No caso da pós-gradu-
ação, os impactos envolvem a necessidade contínua de produção
científica para evitar o descredenciamento de docentes, assim como
resume-se a estratégia de sobrevivência aos programas. Nesse con-
texto o docente pesquisador reduz-se ao que produz, dentro de uma
lógica empresarial desumana, que desconsidera a trajetória, poten-
cial humano e, sobretudo, a saúde mental.
Borsoi (2012) ressalta que com o Programa de Apoio ao
Plano de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais –
REUNI, houve aumento de vagas na graduação e pós-graduação.
Entretanto, o quantitativo de professores/pesquisadores não seguiu
os mesmos critérios. Ressalta como resultados de pesquisa realiza-
da em uma universidade federal do sudeste, que 85% de docentes
tem orientandos de graduação e pós-graduação; desse total, cerca

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

de 39% ainda precisa realizar supervisão de estágios. 77% dos do-


centes precisam trabalhar de suas próprias casas, visto o tempo na
universidade não ser suficiente para atender as demandas; além dis-
so, a autora enfatiza que a sobrecarga de trabalho se apresenta de
forma ainda mais elevada quando se trata de cursos que apresentam
demanda social, tais como: Medicina, Enfermagem e Serviço So-
cial.
A lógica do capital convulsiona o desenvolvimento do tra-
balho imaterial docente aos regimentos, resoluções e normativas
com viés quantitativo, o que se agrava com a necessidade assumir
atividades administrativas, além das acadêmicas, demandar tempo
para o cumprimento de demandas emergentes, relatórios de pro-
dutividade e manutenção “regular” das produções científicas, entre
outros compromissos e responsabilidades.
Para Nardi (2006) o produtivismo cria o que se chama de
cidadanias que estão na esfera da segunda classe. Ao trazer a dis-
cussão para o campo da universidade, pondera-se que essa divisão
ocorre entre docentes que conseguem produzir e os que “não produ-
zem” em conformidade com as diretrizes fomentadas pelo direcio-
namento do capital; os que apresentam projetos com financiamento
ou não; docentes que assumiram a pós-graduação e os que foram
descredenciados. Essa divisão interna de pares configura o acirra-
mento da competição entre o jogo político do capital financeiro, que
dita as regras a partir de resultados puramente quantitativos, com
critérios que elevam-se de forma incessante com padrões cada vez
mais altos de exigências e exequibilidade.
A perspectiva da categoria trabalho no âmbito da universi-
dade funciona com base no produtor que precisa ser produtivo de
forma consciente e intencional, para desenvolver um produto a par-
tir de sua produtividade, o qual conduz ao produtivismo (produção
máxima).
Libâneo (2002) destaca que estamos diante de um novo pa-
radigma de produção, com o desenvolvimento e acesso a novas tec-
nologias vinculadas às reformas econômicas, que seguem o viés do
caráter financeiro. O processo de financeirização do capital conduz
ao processo de produtivismo extremo, em que resta ao trabalhador
a rivalidade, a disputa decursiva dos modos de produção capitalista

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

onde pouco interessa o contexto qualitativo do que é produzido, ou


mesmo a vida daquele que emprega tempo e recursos na sua execu-
ção.
Para essa disputa e/ou rivalidade no âmbito da universida-
de, Delgado (2007) chama de “capitalismo acadêmico.” Trata-se de
um formato para buscar diversas formas “criativas” de dar conta de
novos processos de trabalho e de como o capitalismo se materializa
por meio da produtividade.
Com as expressões das exigências contemporâneas, cada
vez mais a comunidade acadêmica mergulha no mar de busca por
produtividade com foco no produtivismo, a qual está sob os olha-
res avaliativos de órgãos estatais como a CAPES (Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que por meio de
políticas estabelecidas baseadas no fomento financeiro, acabam por
promover a valorização da produtividade e a competitividade quase
em nível empresarial (SGUISSARDI, 2008).
O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPq reforça o viés produtivista no nível superior,
a exemplo, a inserção do currículo da Plataforma Lattes, o que fo-
menta uma espécie de ansiedade para aqueles que precisam pre-
enchê-lo com as mais diversas produções e atualizações regulares,
tornando-o uma espécie de passaporte da vida acadêmica conforme
salienta Silva (2008).
A privatização e mercantilização do conhecimento propi-
ciaram uma nova função social para a Universidade pública, qual
seja a de associar esse ente público ao mercado por meio de uma ra-
cionalidade empresarial, onde a qualidade foi substituída pela pro-
dutividade e o saber pelo custo-benefício (RODRIGUEZ; MAR-
TINS, 2005).
Frente às análises, indaga-se: como fica o cenário de mer-
cantilização da produção científica em tempos de pandemia? De
que forma ocorre a corrida pelo produtivismo em época de ensino
remoto (realidade da maioria das universidades)? E qual o lugar
da saúde mental docente ao considerar os desafios que se agravam
mais ainda durante a situação de emergência em saúde pública?
Somente o tempo demandará a possibilidade de elencar res-
postas para as referidas questões. Mas é possível refletir que a cor-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

rida pela produção, o quantitativo de artigos que devem ser escritos


e publicados, as pesquisas que demandam andamentos e resultados,
provocam adoecimentos mentais que podem atingir grandes pro-
porções no âmbito acadêmico. Segundo Tundis e Monteiro (2018),
os motivos que levam ao adoecimento docente nas universidades
estão relacionados à polivalência, em que profissionais precisam
assumir diversos cargos ao mesmo tempo. Além disso, aparecem
como indicadores a falta de condições de trabalho e o produtivis-
mo, o que corrobora com as afirmações presentes. Sobre o quadro
crítico que leva ao sofrimento, as autoras apontam o esgotamento
profissional, a falta de reconhecimento, desvalorização, indignação
e injustiça. Entre os reflexos físicos evidenciam-se as dores de ca-
beça, costas e demais áreas do corpo, além das alterações de sono.
No campo psicológico apontam as alterações de humor, tristeza,
irritabilidade, sensação de abandono e vontade de ficar sozinho.
Ainda de acordo com as autoras, o processo de trabalho que
envolve prazer e sofrimento traz consequências diretas para a esfera
da saúde mental de docentes. Quando há a prevalência do sofri-
mento, docentes desenvolvem reações defensivas para se manter no
ambiente de trabalho, as quais no médio prazo se tornam ineficazes,
o que atinge diretamente a saúde mental.
Outro dado relevante da pesquisa de Tundis e Monteiro
(2018) evidencia o corte de gênero nos resultados. Detectou-se que
as mulheres apresentam tendência a desenvolver maior potencial de
sofrimento psíquico.
Para corroborar tal afirmação, recorre-se a Marx (2009) que
evidencia o contexto de opressão direcionado às mulheres no pro-
cesso de sociabilidade capitalista como força-motriz para ocasionar
danos que levam da violência e exclusão às ideações suicidas.
A prevalência do sofrimento psíquico em mulheres é também
ponderada por Lima e Lima Filho (2009), que asseveram a dupla
função da mulher como possibilidade de causa para o adoecimento,
visto que culturalmente as mulheres assumem atividades laborati-
vas, mas também são as responsáveis pelo cuidado da família.
Os dados de Tundis e Monteiro (2018) mostram ainda que as
condições de trabalho precárias, as altas cobranças por produtivis-
mo e o esgotamento físico e emocional de docentes potencializam

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

os riscos para a saúde mental dos profissionais nas universidades.


Os dados são corroborados por Borsoi e Pereira (2013) ao apontar
que a intensidade de atividades relacionadas ao mundo acadêmico
conduz ao adoecimento mental de docentes do Ensino Superior Pú-
blico.
Ao aprofundar o limiar das consequências, Oliveira; Perei-
ra; Lima (2017) apontam que o produtivismo excessivo pode levar
a várias problemáticas de natureza psíquica, tais como: transtornos
relacionados ao estresse, ansiedade e depressão. As alterações emo-
cionais envolvem desde a perda da vitalidade, profunda tristeza,
desgaste mental, tensão, frustação entre outras características, além
da perspectiva de adoecimentos físicos e fisiológicos. As autoras
discorrem ainda sobre as alterações psicossomáticas que relacio-
nam enxaqueca, alterações no sono, pressão e taquicardia, as quais
desenvolvem uma série de comorbidades, invisíveis à logica capi-
talista de produção.
Diante do ensejo, indaga-se como o produtivismo acadê-
mico se espraia no contexto de pandemia, associado às cobranças
de trabalho remoto, em que docentes são pressionados ao domínio
de tecnologias. Talvez seja cedo para elencar dados mais precisos,
visto que o processo ainda está sendo vivenciado, mas fatores como
o distanciamento social, associado ao Home Office com elevadas
jornadas de trabalho, sem as condições ambientais que favoreçam
o cumprimento de metas, podem conduzir não apenas ao estres-
se, mas às várias formas de esgotamento mental que potencializam
condições psicossociais de consequências talvez desconhecidas.
De acordo com Faro et al. (2020), o período pandêmico en-
volve três fases. O primeiro é o período pré-crise, em que a po-
pulação toma ciência da emergência de saúde pública, formas de
contágio e possibilidades de prevenção. No eixo de saúde mental, o
distanciamento social pode causar quadros de otimismo irrealista,
estresse e situações depressivas, causadas também pelo tratamento
midiático da questão. A fase seguinte é chamada de intracrise, em
que há maior conhecimento sobre a gravidade da situação, o colap-
so da assistência em saúde e elevação do número de óbitos. Nesse
período a saúde mental se agrava pela preocupação individual e
coletiva, com quadros de insônia, medo, dor pela perda de pessoas,

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

além da exigente rotina imposta pelo isolamento social. A terceira


fase é chamada de pós-crise, com a retomada gradual das atividades
cotidianas, mas que ressalta também as consequências do período
vivenciado na saúde mental.
Em tempo de pandemia, urge ponderar a importância da saú-
de mental. Não se trata apenas de elencar fatores relacionados ao
“capitalismo acadêmico” já enfatizado por Delgado (2007), mas de
considerar que pessoas estão à frente de um processo não vivido,
não experimentado e consequentemente desconhecido. Os efeitos
do distanciamento social causam desafios psíquicos que precisam
ser equacionados. Tais fatores quando aliados a um quadro de exi-
gências quanto ao produtivismo da universidade, associado ao tra-
balho remoto, pode significar a elevação dos fatores de risco ao
sofrimento psíquico a partir das experiências sociais desafiadoras.

Considerações finais
A reflexão sobre o período de pandemia, por si apresenta
contextos situacionais que sinalizam compreensões inovadoras no
que tange a situação do homem no mundo. Os “novos” tempos soli-
citam não apenas inovações tecnológicas, como também a reinven-
ção do humano para dar conta de inúmeras demandas que se fazem
presentes.
O cenário imposto pela covid-19 desenha um cotidiano sem
precedentes e deveria envolver, sobretudo, a garantia da vida, mas
o contexto da sociabilidade capitalista vai além das possibilidades
e sustenta de maneira atroz o produtivismo acadêmico, por meio da
aplicabilidade de aulas remotas, sobrecarga de trabalho, exigências
em pesquisas, distanciamento social e cobranças para a manutenção
das publicações de forma regular, mesmo diante de um momento
histórico atípico. As exigências não são novas, foram asseveradas
pelas reformas administrativas e propostas que ainda são adensadas
pela necropolítica vigente na realidade brasileira, as quais corrobo-
ram para o processo de adoecimento docente nas universidades bra-
sileiras. Os dados apontados revelaram que o adoecimento mental
no mundo acadêmico é decorrente das várias faces da precarização
do trabalho, evidentes na sociabilidade capitalista, as quais podem
estar em processo de constante mutação e aceleração, o que coloca

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

o docente em situação de oscilação entre o prazer e o sofrimento do


trabalho, o que conduz a quadros sociais e psíquicos não esperados,
como foi debatido (OLIVEIRA; PEREIRA; LIMA, 2017 e TUN-
DIS e MONTEIRO, 2018).
O tempo demanda uma perspectiva simbolizada pela vida,
mas as estratégias do capital impõem desafios não apenas invisí-
veis, como também os visíveis na teia das relações de trabalho.
Em meio a todos os aspectos que atingem diretamente a saú-
de mental dos indivíduos, há a necessidade de buscar estratégias
para a sobrevivência e luta contra as faces do produtivismo acadê-
mico, que de acordo com Oliveira; Pereira; Lima (2017) objetiva
conduzir a lógica da universidade para a direção empresarial.
Tempos sombrios exigem lutas e perspectivas de resistência,
pois como já dizia Fernando Pessoa: “é tempo de travessia e se não
ousarmos fazê-la, teremos ficado para sempre à margem de nós
mesmos.”

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

VIOLÊNCIA, SÓ UM PROBLEMA
POLICIAL?
Uma análise da prática de assistentes sociais da
rede pública de saúde diante da violência sofrida
por mulheres
Tainá Abecassis Teixeira1
Iraildes Caldas Torres2

Introdução
Este estudo apresenta uma abordagem sobre o atendimento
de saúde às mulheres vítimas de violência, dando especial destaque
ao relevo do trabalho de assistentes sociais no âmbito da rede públi-
ca de saúde do município de Parintins, no Amazonas.
A violência continua sendo uma realidade nociva à vida das
mulheres em todo o mundo. Em 2020, a expressividade da vio-
lência contra as mulheres ganhou notoriedade em meio à pande-
mia de covid-193. A ONU Mulheres (2020) afirmou que, diante
da necessidade de utilização da estratégia de distanciamento so-
cial com isolamento no domicílio, visando à diminuição dos ca-
sos da doença, houve o adensamento da violência doméstica e da
denúncia desse problema. Atrelada à violência doméstica, outras
de suas formas ficam ainda mais explícitas, sobretudo as de teor
estrutural, simbólica e as institucionalizadas. Prevenir a violência
é, não por acaso, desafiador quando se considera o contexto de
1 Assistente social. Graduada em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazonas –
UFAM. Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na
Amazônia (PPGSS/UFAM). Exerce o cargo de Analista Técnico-educacional no Centro de
Educação Tecnológica do Amazonas. tainaabecassis@gmail.com
2 Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas. Doutora em Ciências Sociais/
Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Pós-Doutora
pela Université Lumière de Lyon 2, França.
3 Refere-se à doença causada pelo novo coronavírus (SARS-coV-2), infecção respiratória
identificada no ano de 2019, caracterizada como Pandemia pela Organização Mundial da
Saúde em decorrência de sua abrangência mundial com elevado número de infectados em
diversos países. iraildes.caldas@gmail.com

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

desigualdades, opressões e explorações constitutivas do modo de


produção capitalista.
Não estamos falando de um tema emergente da atualidade.
A violência que oprime, cerceia e ocasiona a morte de mulheres é
consolidada em relações históricas de desigualdade, ampara-se nos
sistemas culturais e espraia-se com sentidos variantes no tempo. A
violência que afeta mulheres passou por alterações de significado. A
percepção de suas expressões físicas, psicológicas, morais, sexuais,
simbólicas com efeitos concretos foi construída/conquistada em
meio ao debate nos movimentos de mulheres, cientistas, legislações
e políticas sociais públicas.
No Serviço Social, a temática da violência contra as mulheres
é analisada criticamente, tendo por horizonte a instauração e con-
cretização de direitos e a superação da sociabilidade desigual vigen-
te. Percorre-se pela teoria social crítica com suporte metodológico,
ético-político e técnico-operativo objetivando o fim das opressões,
injustiças, ideologias antidemocráticas e discriminatórias. Opondo-
-se, portanto, às violências diversas da complexidade sociocultural,
entendidas enquanto expressões da questão social.
A perspectiva das relações de gênero e a necessidade da
transversalidade dessa discussão nas políticas sociais públicas é o
que orienta a construção desse texto, o qual apresenta parte dos re-
sultados da pesquisa realizada para construção da dissertação de
mestrado de uma das autoras: “A violência contra as mulheres como
um problema de saúde pública: o acesso e a interface de gênero na
saúde em Parintins-AM”, financiada pela Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e defendida no
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade
na Amazônia (PPGSS), em 2018.
A pesquisa assumiu as orientações das abordagens qualitati-
vas sem exclusão dos aspectos quantitativos, tomando como parâ-
metro conceptual as relações de gênero e as políticas públicas em
diálogo com o tema da violência doméstica contra as mulheres. O
trabalho de campo, realizado em Parintins, município do Estado do
Amazonas, atendeu a um procedimento de coleta de dados junto a
uma amostra de 18 mulheres, sendo 14 profissionais de saúde, 02
(duas) mulheres que sofreram violências, e foram atendidas na rede

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

de saúde pública do município de Parintins, e 02 (duas) militantes


de movimentos de mulheres/feministas, mas esse artigo apresenta
um recorte especial de análise nas falas de 04 (quatro) assistentes
sociais, ouvidas sob a técnica de entrevista semiestruturada, com
aplicação de formulário composto de questões fechadas e roteiro de
entrevista com perguntas abertas.
No período das entrevistas, realizadas entre dezembro de
2017 e março de 2018, essas profissionais estavam atuando na rede
pública de saúde do referido município, sendo que duas assisten-
tes sociais realizavam suas intervenções em, pelo menos, uma das
unidades básicas de saúde eleitas como campo de pesquisa (tota-
lizando três UBS)4 e outras duas atuavam no âmbito hospitalar.
Por envolver seres humanos, a pesquisa foi submetida ao Comitê
de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Amazonas,
recebendo autorização.
A partir da amostragem não probabilística intencional, des-
crita por Gil (1994), escolhemos o campo seguindo critérios de
abrangência dos níveis de complexidade da rede de atenção em
saúde. Buscou-se a perspectiva de profissionais das Unidades Bá-
sicas de Saúde (UBS) e do âmbito hospitalar, atenção primária e
secundária, respectivamente.
O referido município possui dois hospitais, um deles é priva-
do sem fins lucrativos e o outro é público de referência regional, o
qual foi eleito para a pesquisa. O “Centro de Saúde Dr. Toda” foi
selecionado para o estudo por ser um dos locais de referência para o
atendimento a vítimas de violência sexual. Outras duas unidades, a
UBS “Mãe Palmira” e o “Centro de saúde Dr. Aldrin Verçosa”, fo-
ram escolhidas por estarem na área de abrangência dos bairros mais
populosos do município, Paulo Corrêa (13.666) e Itaúna II (7.785),
conforme o Censo demográfico de 2010 (IBGE, 2017).
Tratando-se da segunda cidade mais populosa do Amazonas,
Parintins é uma referência para os municípios interioranos, o que
4 Na área da saúde em Parintins é comum que as profissionais das Unidades Básicas de
Saúde realizem intervenções em mais de uma unidade de saúde através do Programa Es-
tratégia de Saúde da Família, integrando Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), os
quais podem ser compostos por profissionais de diferentes formações: assistentes sociais,
enfermeiros, nutricionistas, médicos, psicólogos, entre outros. Assim, uma das profissionais
atendia usuários da UBS Mãe Palmira e também do Centro de Saúde Aldrin Verçosa, reve-
zando atendimentos nessas unidades.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

nos instigou a pesquisar sobre a situação que se encontra quanto aos


serviços e práticas de atenção à saúde das mulheres.
A pesquisa assume fundamental importância não só no âmbi-
to da temática de gênero, mas, sobretudo, porque poderá constituir-
-se num diagnóstico para possíveis tomadas de decisão na elabora-
ção de políticas públicas.

2. Atenção às mulheres em situação de violência no cam-


po da saúde pública: reflexões sobre perspectivas e práticas
profissionais de assistentes sociais no município de Parintins
Assumir o propósito de pesquisa relacionada à violência con-
tra as mulheres não nos permite tratá-la apenas como um problema
que afeta ou pode atingi-las em sua integridade psíquico-corporal,
mas requer análise dos fatores que constituem e consolidam o que
se denomina violento, dando luz ao significado social de suas ma-
nifestações.
Em nossa análise, a violência tem variadas ramificações na
sociedade, com sua base solidificada em uma estrutura e superes-
trutura capitalista. A sociabilidade do capital é fértil para o enrai-
zamento da violência inscrita nas relações de gênero, fortemente
moldada pelo patriarcado, com recorte de classe, “raça” e sexo,
conforme aborda Saffioti (2011), sendo estes sistemas representa-
tivos da exploração-dominação-opressão masculinizada, branca e
heteronormativa. Para Kergoat, (2010) essas dimensões são concre-
tas e interdependentes. O peso dessas persistentes relações de desi-
gualdade em detrimento das mulheres é o que (re)produz violências
diversas, muito evidenciadas nos dados de morbimortalidade divul-
gados por organizações de saúde e pesquisas científicas.
O Atlas da Violência 2020, do Instituto de Pesquisa Econô-
mica Aplicada (IPEA), apresenta um cenário ainda preocupante
sobre as taxas de homicídio de mulheres. Apesar da redução do nú-
mero de assassinatos em 2018, quando comparado ao ano de 2017,
há persistência da desigualdade de gênero, observada nos maiores
índices de mortalidade de mulheres na residência: “[...] é interes-
sante notar que o percentual de mulheres que sofrem a violência
dentro da residência é 2,7 maior do que o de homens, o que reflete
a dimensão da violência de gênero e, em particular, do feminicídio”

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

(CERQUEIRA et al., p. 11, 2020). Waiselfisz (2015) também apon-


tou esta realidade no Mapa da Violência. A pesquisa deste autor
chegou à conclusão de que a violência que aflige e mata mulheres é
majoritariamente perpetrada por homens conhecidos por elas, fre-
quentemente (não unicamente) no âmbito domiciliar.
A análise das relações de gênero é assertiva ao trazer a des-
naturalização da violência contra as mulheres e das relações patriar-
cais. Questiona-se as raízes da dominação masculina solidificadas
nos processos socioculturais, econômicos e políticos da sociedade.
Nessa ótica, vemos a possibilidade de superação dos sistemas de
desigualdade, os quais empregam lógicas de (re)produção e sociali-
zação que inferiorizam as mulheres e negam a diversidade humana.
Em Parintins, município do Amazonas com população es-
timada em 115.363 habitantes (IBGE, 2020), as mulheres têm um
papel fundamental no cuidado de seus familiares e da natureza, na
produção artesanal, no cultivo de alimentos e na área de serviços.
Elas acessam os serviços de saúde para si e para seus parentes, sen-
do as maiores frequentadoras das Unidades de Saúde pesquisadas,
conforme observação de campo feita por Teixeira (2018).
As mulheres buscam os espaços de saúde para que atendam
não apenas as suas demandas como também para os seus filhos,
companheiros afetivos e/ou outros membros de sua família por
serem as mais responsabilizadas pelas atividades que envolvem o
cuidado, análise presente na Política Nacional de Atenção Integral
à Saúde da Mulher (BRASIL, 2011) e que constituem os reflexos
da ideologia patriarcal, conforme análise de Cisne e Santos (2018).
Como trabalhadoras da saúde também se destacam. Exem-
plo disso é a composição completamente feminina das profissionais
de saúde entrevistadas. Escolhidas por amostragem aleatória, sem
critério baseado no sexo/gênero ou raça/etnia. Apenas preferimos
entrevistar profissionais (homens e/ou mulheres) com graduação
completa nas áreas sugeridas para atendimento a pessoas vítimas de
violência5 e que tivessem mais de 01 (um) ano de tempo de serviço
público na área da saúde do município de Parintins/AM. Assisten-
tes sociais, enfermeiras, médicas e psicólogas foram entrevistadas
5 Conforme orientação do Ministério da Saúde em Norma Técnica “Prevenção e Tratamento
dos Agravos resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes”. 3. ed. Brasí-
lia: Ministério da Saúde, 2012.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

na pesquisa de mestrado, mas neste artigo priorizamos as falas das


profissionais formadas em Serviço Social, as quais possuem o se-
guinte perfil: mais de 03 anos de tempo de serviço nas unidades
de saúde, tempo de formação que varia de 10 a 20 anos e estavam
dentro da faixa etária de 30 a 55 anos.
Chamou-nos atenção a frequência com que as profissionais,
de modo geral, estranhavam a realização da pesquisa na área da
saúde em vez de uma delegacia especializada. “Você vai ver a ques-
tão da violência mais na delegacia. Aqui vem mais a violência física
e sexual”, diziam (TEIXEIRA, 2018, p. 144). Uma delas afirmou:

Aqui nós lidamos com as sequelas da questão social [...]. a


gente pega resquícios da violência porque ela é desmistificada
em outra instituição, no caso, um CRAS ou o CREAS, ou a
própria delegacia da mulher. Então pra cá já vêm as sequelas
[...]. Então, são esses resquícios que nós tratamos aqui enquanto
prática. A desmistificação, a descoberta, é em outro segmento
de instituição de direito [...]. (ASSISTENTE SOCIAL N° 4,
PESQUISA DE CAMPO, 2017).

Para esta profissional, a área da saúde não é propícia para a


detecção de situações de violência em que a mulher é vitimada. Tal
forma de pensar é contestada pelo Ministério da Saúde (BRASIL,
2011) quando afirma no texto da Política Nacional de Atenção In-
tegral à Saúde da Mulher (PNAISM) que a saúde é um dos locais
mais favoráveis para o desvelamento da violência por se tratar de
um espaço muito acessado pelas mulheres em demandas diversas.
Autoras como Schraiber et al. (2005) trazem a noção de invi-
sibilização da violência contra as mulheres no contexto dos serviços
de saúde. O termo sugere que as práticas profissionais nesta polí-
tica tendem a negar sua responsabilidade quanto a torná-la visível.
As (des)motivações incluem o medo de “invadir a privacidade” da
mulher, a falta de protocolos estruturados para intervenção sobre os
casos, o entendimento de que se trata de um problema a ser resol-
vido na justiça e demais instituições de segurança pública, restando
à saúde o encaminhamento quando já foi feito o Boletim de Ocor-
rência Policial do caso. A sobrecarga com as demandas “mais tra-
dicionais”, quais sejam: o trato das enfermidades, dos traumas, das
lesões físicas e psíquicas aparece como um “motivo” para atender

- 198 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

apenas ao superficial das demandas de violências.


Nas discussões sobre os parâmetros de atuação de assistentes
sociais na área da saúde, Vasconcelos (2008) traz a terminologia
“demandas reprimidas” para nomear os problemas para os quais
não se dá uma resposta estruturada, embora estejam emergindo co-
tidianamente nos espaços sócio-ocupacionais em que a/o assisten-
te social trabalha. A autora sugere a construção de metodologias
de prevenção, rastreio e de educação em saúde, devendo-se ir para
além do tratamento de ocasionais sequelas.
As interfaces da violência são múltiplas, ganham corporeida-
de na vida das mulheres e podem ser apreendidas por profissionais
de variados campos de atuação. Os impactos da violência não ficam
alheios à área da saúde, nem se restringem às intervenções da área
policial.
Uma das assistentes sociais do hospital regional, entrevista-
da em nosso estudo, afirmou que, em unidade hospitalar, a prática
profissional sobre as violências fica limitada às sequelas, não per-
passando pelas atribuições de sua área de formação. Para a análise
desse discurso, trazemos para a reflexão a perspectiva de Vasconce-
los (2008, p. 5) em relação aos tradicionais plantões:
Esta forma de organização individual e coletiva do Serviço
Social na saúde e a postura dos profissionais de se colocarem
passivos, dependentes, submissos e subalternos ao movimento
das unidades de saúde – às rotinas institucionais, às solicitações
das direções de unidade, dos demais profissionais e dos serviços
de saúde, aceitando, ainda, como únicas, as demandas explícitas
dos usuários – resultam numa recepção passiva das demandas
explícitas dirigidas ao Serviço Social, o que determina a quali-
dade, quantidade, caráter, tipo e direção do trabalho realizado
pelos assistentes sociais.

Para a autora supracitada, os referidos plantões estão relacio-


nados não somente ao espaço físico, muitas vezes precarizados, em
que se encontram os profissionais de saúde, mas também caracteri-
zam o modus operandi diante das demandas que chegam ao serviço.
Recebe-se a demanda, escuta-se o indivíduo, encaminham-se os ca-
sos que não são percebidos como parte da rotina institucional para
outras instituições. Esses aspectos foram observados nos campos
pesquisados em Parintins.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Profissionais que atendem as ocorrências de violência sexual


em Parintins são acionadas/os conforme surge um caso geralmente
já denunciado, atuando em um tipo de “plantão”. De acordo com a
assistente social n° 01, o Serviço de Atendimento a Vítimas de Vio-
lência Sexual (SAVVIS) é especializado para intervenção curativa
das lesões geradas pelos abusos sexuais, em que as crianças e ado-
lescentes representam os casos mais frequentemente perceptíveis
nas abordagens do setor.
A violência contra as mulheres e crianças é notada pelos sin-
tomas físicos, principalmente quando são violações de ordem sexu-
al explícita, conforme outra assistente social entrevistada: “O servi-
ço que mais recebe é o SAVVIS e ele não passa por nós assistentes
sociais [da unidade de saúde]. São outras pessoas que prestam esse
serviço”, Assistente social N° 01 (TEIXEIRA, 2018, p. 94).
A tônica das intervenções sobre violências na saúde, princi-
palmente do campo hospitalar, está nos aspectos curativos, ligados
à medicina e clínica psicológica. As assistentes sociais do atendi-
mento especializado fazem os encaminhamentos e ligações com a
rede intersetorial, sobretudo Conselho Tutelar, Centro de Referên-
cia Especializada da Assistência Social (CREAS) e Delegacia Es-
pecializada em Crimes Contra a Mulher (DECCM). No entanto, as
profissionais foram unânimes ao afirmar a dificuldade de acompa-
nhamento dos casos, de obter feedback sobre os encaminhamentos
realizados às outras instituições da rede de atendimento, dando in-
dícios da inexistência de estruturação dos instrumentais e metodo-
logias de articulação intersetorial.
Uma análise integral desse processo considera não somen-
te os aspectos subjetivos, mas também os fatores objetivos como
determinantes desse cenário incipiente do exercício das assistentes
sociais na saúde quanto à abordagem das demandas de violências
contra mulheres. Iamamoto (2008, p. 63) explica que “o assistente
social não detém todos os meios necessários para a efetivação de
seu trabalho: financeiros, técnicos e humanos necessários ao exer-
cício profissional autônomo”. Isso, segundo esta autora, confere
uma autonomia relativa, característica presente nos diversos espa-
ços sócio-ocupacionais. Contudo, não se deve assumir uma postura
fatalista, e si propositiva, considerando o caráter dinâmico do real.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Um outro aspecto apreendido a partir da fala da assistente


social (Entrevista N° 1) é a ideia de que o SAVVIS é o serviço
que mais recebe casos de violência, também constatado na fala de
enfermeiras, psicólogas e médicas que participaram da pesquisa.
Questiona-se: em que medida as demais unidades da rede pública
de saúde de Parintins recebem mulheres que sofrem violências, le-
vando suas queixas sem nomear a origem destas?
Com proposta irrestrita ao atendimento feito pelo serviço
especializado, o Ministério da Saúde situa o papel estratégico dos
profissionais das unidades de saúde da rede de atenção básica. De-
ve-se tecer um diálogo intersetorial, não apenas com as delegacias
especiais que compõem a rede de proteção às mulheres em situa-
ção de violência, como também as políticas de educação, justiça,
segurança pública, assistência social, previdência social, além das
Organizações da Sociedade Civil e movimentos sociais.
As unidades de saúde pública “[...] ocupam papel importante
contra todo e qualquer tipo de violência, que podem influenciar ou
causar processos de adoecimento, derivando em questões de saúde
pública” (BRASIL, 2016, p. 214). Essa articulação entre as políti-
cas sociais públicas é fundamental para o acolhimento humanizado,
assistência às mulheres, notificação de casos e prevenção socioe-
ducativa, entre outras atividades de proteção e promoção da saúde.
Assistentes sociais são fundamentais nesse processo, vis-
to que pode realizar intervenções no intuito de contribuir para a
concretização dos direitos das mulheres. Para tanto, é essencial a
observância das sinalizações técnicas e as políticas voltadas para
assistência, prevenção e enfrentamento às violências, tendo como
referência o Código de Ética profissional. Participar da elaboração
e gerenciamento dessas políticas, assim como da formulação e im-
plementação de programas sociais são prerrogativas e competên-
cias previstas no artigo 4° da Lei n. 8662/93 (BARROCO; TERRA,
2012).
Para análise das práticas das assistentes sociais diante de de-
mandas de violência contra mulheres inquirimos as entrevistadas
sobre atribuições nos serviços de saúde diante da violência domésti-
ca ou sexual contra as mulheres e dificuldades da abordagem quanto
a esse tipo de demanda. Obtivemos os seguintes pronunciamentos:

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Eu acho que no serviço de saúde, o atendimento, principalmente


essa parte do atendimento psicológico, social, na questão do
acolhimento a essas mulheres. [...]. Nessa parte mais técnica
eu não consigo te dar uma posição (ASSISTENTE SOCIAL N°
1, PESQUISA DE CAMPO, 2017).

Sendo muito sincera, eu não sei. Temos o SAVVIS só. Tem os


programas, mas é mais voltado pra saúde delas, a prevenção de
câncer de colo do útero, de mama. Não assim pra se trabalhar a
violência, pra se evitar. Eu vou ser muito sincera. Eu não sei te
dizer. [...]. Eu acho que nós deveríamos ter uma equipe montada,
de psicólogo, de assistente social e um local também pra esse
atendimento [...]. (ASSISTENTE SOCIAL N° 2, PESQUISA
DE CAMPO, 2017).

No serviço público de saúde não [há dificuldades na aborda-


gem]. Eu acho que podia ter um ambiente, um local só pra
receber elas. Com profissionais preparados só pra receber elas
porque não é fácil. (ASSISTENTE SOCIAL N° 3, PESQUISA
DE CAMPO, 2017).

[...] Bom, nesse caso, especificamente, nós não atendemos, quer


dizer, existe alguns casos que tem o atendimento das ações do
serviço social. [...]. Eu vou lá, faço um registro de demandas
sociais, nosso, e lá nós vamos conversar com ela e, talvez, ela
vá contar o que houve. [..] aqui é atendimento, cura e reabili-
tação, mas nessa parte do retorno, do fluxograma da violência
que seria, como eu falei anteriormente, sentar com todos os
segmentos sociais pra traçar linhas de propostas pra prevenir
ou pra cuidar mais desse tipo de violência não existe ainda.
Ainda tá muito solto, muito fragmentado, cada um faz sua parte.
(ASSISTENTE SOCIAL N° 4, PESQUISA DE CAMPO, 2017).

Os discursos proferidos, de modo geral, nos permitem ave-


riguar que as profissionais não sentem que suas práticas estejam
integradas a um protocolo de atendimento a pessoas em situação
de violência. A atuação de médicos, enfermeiros e psicólogos ga-
nham destaque nos protocolos, sobretudo porque, na área da saú-
de, a atenção sobre os casos de violência ocorre, em sua maioria,
quando estão explícitas nos ferimentos, nas queixas, dores, traumas
psíquicos (SCHRAIBER et al., 2005).
Outras dificuldades foram apontadas pelas profissionais, tais
como a falta de um ambiente adequado para o acolhimento ético
humanizador e a fragmentação das práticas entre as diferentes pro-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

fissões da área da saúde. Analisamos, então, as dificuldades em


estabelecer a interdisciplinaridade entres os profissionais de saúde
em Parintins-AM, a precarização das condições de trabalho e das
políticas públicas de enfrentamento às violências nesse município.
Na contramão desse cenário, recomenda-se a análise crítica
das demandas dos usuárias(os) e a adoção de uma postura propo-
sitiva quanto à prevenção, detecção, abordagem e enfrentamento
das violências. A dedicação para a viabilização dos direitos sociais
dos usuários é um dos deveres pontuados no Código de Ética do
assistente social, publicado em 1993, o qual também assinala que
assistentes sociais devem ter acesso a informações institucionais
par que possam efetivar plenamente suas atribuições profissionais
(BARROCO; TERRA, 2012). Esse é um outro aspecto problemati-
zado a partir da pesquisa.
Verificamos que o grau de conhecimento das profissionais
sobre as Leis, Normas Técnicas e parâmetros de atuação sobre a
abordagem da violência doméstica e sexual contra mulheres no
campo da saúde pública ainda é pouco explorado. Apenas uma das
assistentes sociais entrevistadas afirmou conhecer e ter lido a Nor-
ma Técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes
da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes. E apesar de
a maioria (três profissionais) ter afirmado conhecer a ficha de noti-
ficação de violências do Ministério da Saúde, todas afirmaram não
ter acesso a esse instrumental na unidade de saúde em que trabalha,
seja por não dispor dele no local ou por nunca o ter visto.
Percebe-se, assim, que o protocolo de abordagem de casos de
violência é restrito aos profissionais do SAVVIS, sendo necessária
a divulgação sobre a importância de seu correto preenchimento en-
tre os demais profissionais de saúde, nas diferentes unidades da rede
de saúde, pois as unidades de saúde possuem o papel elementar de
acolher e notificar.
A Lei n° 10.778, de 24 de novembro de 2003, que instituiu a
Ficha de Notificação Compulsória, no território nacional, do caso
de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde
públicos ou privados, representa uma das estratégias de dimensio-
namento do problema na área da saúde, mas principalmente visa à
desmistificação das violências e suporte às mulheres. A aplicabili-

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

dade desta lei refere-se às violências baseadas no gênero e discri-


minação contra as mulheres, qualquer que seja o espaço em que as
violações ocorram, independente de quem seja o agressor, o que
inclui o Estado e seus agentes, ações e omissões. Trata-se de um im-
portante instrumental a ser apropriado pelas profissionais dessaúde
a fim de dimensionar o fenômeno da violência contra as mulheres e
subsidiar a proposição de políticas públicas de prevenção e enfren-
tamento6.
Os depoimentos das assistentes sociais ouvidas na pesquisa
trazem importantes aspectos para análise das práticas profissionais:

Com relação à criança, a gente sempre palestra nas escolas que


os pais ou mesmo coleguinhas observem, porque geralmente
as crianças são muito alegres. Então, a partir do momento que
aquela criança começa a ficar isolada no cantinho [...] a gente
já começa a perceber. Eu não sei nem o que falar [com relação
às mulheres adultas], em nenhum momento, nem um exemplo
eu tenho (risos). Eu não tenho como te dar [uma resposta]...
posso pular essa pergunta? (ASSISTENTE SOCIAL, Entrevista
N° 02, 2017).

Eu observo que elas são muito mais fechadas, mais oprimidas,


mais caladas nas nossas palestras dentro das escolas [...]. aí a
gente pede pra elas nos procurarem pra denunciar, sem ir na
delegacia, sem nada, pra procurar um profissional de saúde
como uma porta de entrada pra denúncia porque muitas vezes
essas adolescentes não têm a coragem que uma mulher formada
já tem de ir a uma delegacia denunciar porque é um pai, um
tio, um avô, é na mesma residência [...] elas acabam tomando
coragem de vir na unidade de saúde porque muitas não tem
coragem de ir na delegacia. Pra mim é muito difícil [perceber]
só de olhar para aquela mulher. Muitas vezes a gente vê quando
é física, através dos hematomas, que elas tentam esconder. Mas
quando é sexual ou quando é psicológica é mais difícil você
descobrir. (ASSISTENTE SOCIAL, Entrevista N° 03, 2017).

A partir das falas apresentadas, notamos que a realização de


palestras feitas nas escolas, geralmente para crianças, adolescentes
e jovens, torna-se o momento de aproximação com o público que
sofre a violência, revelando o caráter estratégico da atenção bási-
6 Os casos de suspeita ou confirmação de violência registrados nas unidades de saúde são
encaminhados à Vigilância em Saúde e alimentam o Sistema de Informação de Agravos de
Notificação (SINAN/MS).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ca em saúde e do programa de saúde na escola (PSE). Também é


importante para a tessitura de relações sociais equitativas entre a
categoria estudantil, seus familiares e a comunidade em geral.
O protocolo da atenção básica relativo à saúde da mulher,
publicado pelo Ministério da Saúde, informa que devem ser desen-
volvidas ações de produção do cuidado em saúde capazes de garan-
tir a concretização de direitos sexuais e a autonomia das mulheres
sobre seu corpo. É fundamental que os profissionais de saúde iden-
tifiquem e prestem atendimento integral e humanizado nas situa-
ções em que elas têm seus direitos – sexuais e humanos – violados.
(BRASIL, 2016, p. 214).
Abordagens socioeducativas são algumas das estratégias
descritas nos protocolos de ação e normas técnicas disponibilizadas
pelas organizações de saúde (WHO, 2010; BRASIL, 2012; BRA-
SIL, 2016) e que servem para diferentes tipos de violência em va-
riados grupos populacionais. Por meio da orientação individual ou
coletiva, realização de palestras, rodas de conversa ou outros me-
canismos, é possível fazer a abordagem diante das violências nas
áreas de abrangência das unidades (TEIXEIRA, 2018).
Essas ponderações confirmam nossas hipóteses sobre o po-
tencial da prática das assistentes sociais na área de saúde. Iamamoto
(2008) corrobora essa perspectiva ao analisar o Projeto Ético-polí-
tico profissional, seus compromissos com a classe trabalhadora, a
defesa da liberdade e da democracia como pilares do trabalho da
categoria. A autora traz o seguinte posicionamento:

A gênese da questão social encontra-se enraizada na contradição


fundamental que marca esta sociedade, assumindo roupagens
distintas em cada época [...] Assim, dar conta da questão social,
hoje, é decifrar desigualdades sociais – de classes – em seus
recortes de gênero, raça, etnia, religião, nacionalidade, meio
ambiente etc. Mas decifrar, também, as formas de resistência
e rebeldia com que são vivenciadas pelos sujeitos sociais (IA-
MAMOTO, 2008, p. 114).

Reafirma-se a importância de uma postura profissional crí-


tico-reflexiva sobre as manifestações da questão social que emer-
gem nos serviços públicos de saúde. O compromisso ético-político
inerente à formação da/do assistente social pressupõe a articulação

- 205 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

com os diferentes segmentos sociais, a construção de parcerias, a


proposição e elaboração de programas e projetos de intervenção so-
bre as violências que afetam a vida das mulheres em Parintins-AM.
Nessa perspectiva, Lisboa e Pinheiro (2005) apontam algu-
mas possibilidades para a prática de assistentes sociais nesse con-
texto. As autoras indicam que, primeiramente, a violência deve ser
entendida como uma das expressões da questão social, pois está
intrinsecamente relacionada com as desigualdades de classe, gêne-
ro, raça/etnia reproduzidas na sociedade do capital. Aplicação de
técnicas de entrevista com diálogo não julgador, informar o público
sobre os direitos e serviços, encaminhamento e acompanhamento
dos casos e visita domiciliar são algumas metodologias sugeridas.
Soma-se a essas recomendações, a criação ou apropriação
de instrumentais existentes para registro, a sistematização dos in-
dicadores e o seu uso para planejamento e elaboração de projetos
interventivos, a articulação intersetorial e multiprofissional com
perspectiva interdisciplinar. O compromisso ético-político no en-
frentamento à violência, buscando-se a ampliação dos direitos e
melhoria dos serviços mediante articulação com os movimentos
sociais de mulheres, a participação nos espaços de controle social
e o incentivo à participação popular no fortalecimento da defesa do
Sistema Único de Saúde universal e integral.
Abrir-se a discussões inovadoras e a crítica às posturas neo-
conservadoras são premissas para a melhoria do serviço público de
saúde e para a qualidade de vida das mulheres na região amazônica.

Considerações finais
O cenário parintinense é repleto de desafios e possibilidades
para a prática profissional de assistentes sociais da saúde pública
de Parintins/AM. A violência, entendida como complexo social ex-
pressivo e multiforme, representa um desses desafios na medida em
que gera impactos para as mulheres: traumatiza, fere e mata, tolhen-
do direitos e reduzindo a qualidade de vida.
A pesquisa junto às assistentes sociais evidenciou a necessi-
dade de ampliar as discussões sobre violência contra as mulheres,
transversalizando a perspectiva de gênero nas políticas de saúde do
interior do Amazonas. Observou-se a dificuldade das profissionais

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

em intervir sobre essas demandas em uma abordagem preventiva,


com rastreio e articulação política para enfrentamento.
Sabemos que a sobrecarga de trabalho, o não reconhecimen-
to das relações patriarcais de gênero reproduzidas na sociedade,
evidenciada nas condições de trabalho precarizadas, nas formações
acadêmicas tecnicistas, funcionais à lógica capitalista, os não-valo-
res da individualidade exacerbada, bem como as práticas profissio-
nais fragmentadas e acríticas influenciam para a reiteração do ciclo
de violências experimentadas pelas mulheres. Em oposição a essas
relações desiguais encontra-se o Serviço Social, profissão orientada
por princípios democráticos, libertários, de igualdade e justiça so-
cial, com suporte na teoria social crítica. Busca-se, então, recusar
reducionismos na atenção às expressões da questão social.
Consideramos a importância dessa perspectiva profissional
para o avanço da integralidade na abordagem do enfrentamento
às violências, tendo em vista a ampliação do olhar investigativo,
a humanização do atendimento, a escuta qualificada e a postu-
ra ativo-propositiva sobre as problemáticas vivenciadas na região
Amazônica. A interdisciplinaridade entre as profissões também é
fundamental para impulsionar práticas integrais e a construção de
metodologias inovadoras no combate às violências.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

PARTICIPAÇÃO SOCIAL E DEFESA DO SUS:


os caminhos do controle social em Manaus
Suzane Pessoa Aires1
Hamida Assunção Pinheiro2
Introdução
Pesquisar o controle social hoje se constitui, primeiramente,
em um grande desafio, uma vez que nos defrontamos diariamen-
te com retrocessos democráticos significativos. Soma-se a isso o
período contemporâneo em que o país se encontra, com profundo
processo de regressão e desmonte de direitos sociais, corrupção e
desvio de recursos públicos e uma sociedade que tem dificuldades
de se posicionar diante das medidas tomadas por aqueles que estão
no poder, eleitos para representar o povo.
Não podemos negar que a saúde foi uma das políticas que
mais avançou com o processo de redemocratização no Brasil. Ini-
cialmente instituída como seguro social, alcançando apenas aqueles
inseridos no mercado formal de trabalho, com o processo democrá-
tico em andamento e a grande movimentação social3, a saúde pas-
sa a compor o tripé da seguridade social, porém agora encontra-se
ameaçada, em vias de retroceder à condição de seguro, frente ao
avanço neoliberal4 que vem ganhando força.
1 Mestra em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas (UFAM). suzanepessoa@gmail.com
2 Professora da Universidade Federal do Amazonas do Departamento de Serviço Social e do
Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia. Mestra em
Sociedade e Cultura na Amazônia e Doutora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na
Amazônia. E-mail: hamida.assuncao@gmail.com.
3 Merece destaque aqui o Movimento de Reforma Sanitária que, segundo Paim (2009), foi
“composto por seguimentos populares, estudantes, pesquisadores e profissionais de saúde,
que propôs a Reforma Sanitária e a implantação do SUS. Instituições acadêmicas e socieda-
des científicas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), o Centro
Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) e a Associação Brasileira de Pós-graduação em
Saúde Coletiva (ABRASCO), entidades comunitárias, profissionais e sindicais, constituíram
um movimento social na segunda metade da década de 1970, defendendo a democratização
da saúde e a reestruturação do sistema de serviços (p. 39-40).
4 O discurso neoliberal no Brasil começou a se afirmar e a fincar raízes nas eleições presiden-
ciais de 1989. Começando no governo Collor, atravessando Itamar e as duas gestões de FHC
e chegando a Lula, quase todas as transformações necessárias para enfrentar a alta inflação
foram feitas em conjunto com as privatizações e a abertura comercial. A difusão cada vez

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Tomando como ponto de partida que a saúde, enquanto di-


reito universal e dever do Estado, é uma das principais conquistas
do processo de redemocratização brasileiro que se deu em grande
parte pela ampla mobilização social em sua defesa, pelo surgimento
de novos sujeitos participativos e com a organização da sociedade
civil, é importante que o controle social na saúde seja incentivado e
investigado enquanto caminho decisivo para o acesso democrático
aos serviços de saúde.
Hoje o cenário mundial, em termos de política de saúde, se
defronta com um contexto de pandemia5 causada pelo novo coro-
navírus (SARS-CoV-2) que, por sua vez, se apresenta como um
dos maiores desafios sanitários em escala global e mostra como a
participação e o controle social são importantes instrumentos para
o fortalecimento da saúde pública em um momento no qual é ne-
cessário não apenas amplo acesso, mas um atendimento universal,
integral e digno.
Este artigo é fruto de pesquisa desenvolvida em período que
antecedeu a pandemia de Covid-19, mais especificamente realizada
entre 2019 e 2020, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia. A investigação deu
origem à dissertação intitulada “Travessias do Controle Social no
Amazonas: nas trilhas do Conselho Estadual e Municipal de Saúde
em Manaus”, defendida em julho de 2020, e que discutiu os inú-
meros desafios postos ao Controle Social na Saúde da cidade de
Manaus. Durante a realização da pesquisa de campo, foram entre-
vistados 20 conselheiros de saúde, dos quais 05 integram o Con-
selho Estadual de Saúde do Amazonas (CES) e 15 fazem parte do
Conselho Municipal de Saúde de Manaus (CMS), a fim de investi-
gar os avanços e desafios e também as dificuldades que se fizeram
presentes na última década e que ainda permeiam esses espaços.
maior do discurso neoliberal é que foi produzindo, desde o governo Collor, os argumentos
necessários para promover, num país recém-democratizado, com um ativo movimento social
e ainda comemorando as “conquistas” de 1988, as mudanças necessárias. Desde a eleição de
Collor, passou a ser voz corrente a inescapável necessidade de reduzir o tamanho do Estado,
privatizar empresas estatais, controlar gastos públicos, abrir a economia etc. (PAULANI,
2006, p. 90).
5 Segundo a Organização Mundial da Saúde, pandemia é a disseminação mundial de uma
nova doença e o termo passa a ser usado quando uma epidemia ou surto que afeta uma re-
gião se espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa
(FIOCRUZ, 2020).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Saúde, democracia e controle social


A história das políticas sociais no Brasil tem se desenhado
enquanto longos e complexos momentos de luta e tomada de cons-
ciência da sociedade frente à negação do Estado em assumir res-
ponsabilidades de intervenção que busquem, por sua vez, assegurar
sobretudo direitos e garantias sociais. A política de saúde, em meio
a tantas outras políticas, tem sido construída a partir da organização
da sociedade civil na busca por uma saúde universal e de qualida-
de, oferecida pelo Estado e capaz de alcançar a todos os cidadãos
com equidade. O engajamento social na busca por uma saúde pú-
blica faz parte do processo de redemocratização brasileiro iniciado
na década de 1970 que demandava, entre outras coisas, uma maior
participação e envolvimento da sociedade na tomada de decisões de
interesse da coletividade.
Apenas em outubro de 1988 é promulgada a Constituição Fe-
deral e, no entanto, 30 anos após a sua promulgação, as conquistas
democráticas por ela trazidas têm se tornado alvo de retrocessos e
carece cada vez mais da organização, resistência e luta da socieda-
de. É, pois, urgente, que a sociedade se movimente e se articule a
ponto de explorar e exercitar a democracia através do envolvimento
e da participação social. O envolvimento da sociedade nas institui-
ções e na gestão das políticas públicas é um caminho valioso para
o estabelecimento de um controle das ações do Estado a partir da
grande massa, ou seja, a partir do povo, caracterizando a prática
democrática já que, conforme aponta Coutinho (2000):

[...] democracia é sinônimo de soberania popular. Ou seja: po-


demos defini-la como a presença efetiva das condições sociais
e institucionais que possibilitam ao conjunto dos cidadãos a
participação ativa na formação do governo e, em consequência,
no controle da vida social (p. 50).

No que condiz aos processos democráticos, o Brasil, segundo


a Constituição Federal de 1988, é definido como um Estado Demo-
crático de Direito6, no qual a relação Estado/Sociedade deve acon-
6 O Estado Democrático de Direito é regido pela vontade geral que, segundo Rousseau
(1985), refere-se ao atendimento do interesse comum da sociedade obtido por meio do con-
senso das partes, ou seja, as leis devem ser criadas pelo povo e para o povo, respeitando-se a
dignidade da pessoa humana.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

tecer através da inclusão da sociedade civil organizada nos espaços


participativos de tomada de decisões de interesse coletivo, ocupan-
do assim um papel central na formação do Estado. Partimos, por-
tanto, da perspectiva gramsciana como caminho para compreensão
desse modelo de Estado.
Temos, em Gramsci, um Estado ampliado, composto e per-
meado não só pela sociedade política, mas também pela sociedade
civil. As discussões gramscianas sobre o Estado, conforme explici-
ta Simionatto (1999) “[...] apresentam-se, a partir da existência de
duas esferas distintas no interior das superestruturas, quais sejam:
a) sociedade civil e, b) sociedade política” (p. 65). Portanto, é im-
portante entender o conceito de sociedade civil e sociedade política
em Gramsci. Simionatto (1999) aponta que:

Em Gramsci, a sociedade civil aparece como “o conjunto de


organismos chamados privados e que correspondem à função
de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a so-
ciedade”. Em outros termos, a sociedade civil compreende o
conjunto de relações sociais que engloba o devir concreto da vida
cotidiana, da vida em sociedade, o emaranhado das instituições
e ideologias nas quais as relações se cultivam e se organizam.
A sociedade política, no pensamento gramsciano, indica o con-
junto de aparelhos através dos quais a classe dominante exerce
a violência. Na sociedade política (Estado em sentido estrito, ou
Estado-coerção), ocorre sempre o exercício da ditadura, ou seja,
da dominação baseada na coerção (p. 68).

A concepção de Estado ampliado gramsciana nos coloca


diante de um Estado democrático, ou seja, um Estado que governa-
rá juntamente com a sociedade civil e que, por consequência, deve
contar com a participação ampla dos sujeitos contribuindo para
o aprofundamento na construção de uma sociedade democrática.
Chaui (2006) indica que:

[...] o fortalecimento da classe operária (em virtude da emancipa-


ção legal do trabalho, da criação do mercado de trabalho livre, da
industrialização e da concentração do capital) e a necessidade de
unificações nacionais (seja por ameaças externas, seja por guerras
de libertação nacional) forçaram a classe dominante a alargar as
franquias democráticas, ainda que sob controle (p. 221).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Tem-se, assim, uma forma de governo baseada na relação


entre coerção e consenso, em que diversos interesses estão em jogo,
e na qual o envolvimento da sociedade civil deve ocorrer de forma
efetiva, a fim de que se possa realmente exercer o controle social
democrático. Ao citar o conjunto de organismos da hegemonia pri-
vada que compõe a sociedade civil, concordamos com Coutinho
(2000), quando afirma que estes:

São os partidos de massa, os sindicatos, as diferentes associações,


os movimentos sociais etc., tudo aquilo que resulta de uma cres-
cente “socialização da política”, ou seja, do ingresso na esfera
pública de um número cada vez maior de novos sujeitos indivi-
duais e coletivos. [...] A “sociedade civil”, em Gramsci, é uma
importante arena de luta das classes: a partir de seu surgimento,
é sobretudo nela que as classes lutam para obter hegemonia, ou
seja, direção política fundada no consenso, capacitando-se assim
para a conquista e o exercício efetivo do poder governamental
(p. 170-171).

No Brasil, não tem sido fácil exercer o controle social de


forma hegemônica e democrática. Em um cenário de precarização
cada vez mais intensa de diversas políticas sociais, de exclusão das
grandes massas no acesso aos serviços e direitos sociais, do não
envolvimento dessas massas nos processos decisórios, o controle
democrático tem sido um constante desafio, seja no acesso a di-
reitos que, constitucionalmente, são tidos como universais, seja na
legitimação dos sujeitos sociais enquanto sujeitos políticos.
O Estado Ampliado, no entanto, mantém aberta a possibili-
dade de participação da sociedade organizada nos mecanismos de
controle social. Dessa forma, caracterizamos como de grande im-
portância os conselhos de saúde, uma vez que não apenas gestores
e trabalhadores da saúde os integram, mas também os usuários do
SUS que são os mais interessados no aprimoramento dessa política,
tão necessária e indispensável para a manutenção do bem estar físi-
co, psíquico e social dos cidadãos.
Uma vez conquistado e assegurado o direito à participação
social, é indispensável que esses espaços sejam ocupados majori-
tariamente pela população. São os usuários das diversas políticas
sociais que conhecem de perto suas fragilidades, sendo assim os

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

mais indicados à deliberação de medidas que visem as melhorias


dessas políticas. Gohn (2011) evidencia claramente a contribuição
da participação da sociedade nesses espaços ao afirmar que “[...]
a participação dos cidadãos provê informações e diagnósticos so-
bre os problemas públicos, gerando conhecimentos e subsídios à
elaboração de estratégias para resolução dos problemas e conflitos
envolvidos” (p. 46-57).
Participar socialmente é um dos caminhos efetivos para o
exercício e concretização da democracia. Ao participar a sociedade
compartilha o poder, descentralizando-o da classe dominante. Estar
envolvida nos processos decisórios do Estado é uma oportunida-
de de proporcionar aos cidadãos um melhor acesso aos serviços
sociais prestados, bem como à melhoria destes. Para se ter acesso
aos bens e serviços socialmente criados (pela classe trabalhadora)
é fundamental que a sociedade se organize e busque ocupar o lugar
que lhe cabe, qual seja, participando ativamente e compartilhando
do poder de decisão, como principal interessada nos assuntos da
coletividade.
No Brasil, a participação social tem como consequência a
efetivação do controle social democrático. Considerado uma inova-
ção democrática trazido pela Constituição Federal de 1988 o con-
trole social tem se constituído enquanto via de acesso ao fortaleci-
mento da cidadania, aprofundamento da democracia, socialização
da informação e construção de um senso crítico e cidadão. Porém,
segundo Machado (2013):

Ao abordar o tema do controle social é importante considerar que


a história do Brasil tem sido fortemente marcada por mecanismo
de controle do Estado sobre a sociedade civil, seja através do uso
da força física, polícia militar, ou através de políticas compen-
satórias e de controle, com o objetivo de conservar privilégios
ou interesses políticos [...]. Esses posicionamentos levam ao
fortalecimento de uma cultura de subalternidade, dependência
e não participação, os quais são marcados por heranças do
patrimonialismo e clientelismo, que tratam como propriedade
particular aquilo que é direito de cidadania (p. 192).

Levando em consideração os apontamentos da autora, pode-


mos considerar que o controle social, visto da perspectiva de um

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

controle exercido pela sociedade sobre o Estado, e não o contrário,


é uma conquista de grande relevância para a sociedade brasileira.
Com a promulgação da Constituição de 1988, pela primeira vez na
história do país, os cidadãos adquirem o direito de estarem envolvi-
dos e deliberarem sobre a construção de políticas públicas. Embo-
ra possa ser considerada ainda uma participação limitada, na qual
certamente o governo não saia perdendo seus interesses, o controle
social se caracteriza enquanto instrumento para a abertura de novas
possibilidades de participação e engajamento social junto ao Esta-
do.
A política pública de saúde, através dos conselhos e confe-
rências está aberta ao controle social mas, para isso, depende da or-
ganização da sociedade civil para que haja, de fato, uma ampliação
do Estado. Como indica Demo (2001) “[...] o controle democrático
só é viável na sociedade consciente e organizada” (p. 22). Sem essa
organização, o Estado segue com seu padrão de intervenção míni-
ma, atendendo aos interesses privados do capital e do mercado.
A política pública de saúde, materializada através do Sistema
Único de Saúde, é fruto do despertar de uma consciência demo-
crática que não foi facilitada ou incentivada pelo Estado. Por ser
uma conquista democrática, o SUS vem sendo implementado com
o envolvimento não só do governo, mas também da sociedade. Po-
rém, em seus 30 anos de existência, a influência do governo vem
prevalecendo sobre a baixa participação da população.
O cenário trazido pela covid-19 nos mostra de maneira ainda
mais aprofundada os diversos níveis de precarização do SUS, seja
em termos de deficiência de Recursos Humanos (vários processos
seletivos foram realizados em nível municipal e estadual para con-
tratação temporária de profissionais com a crescente demanda de
usuários), de falta de materiais no setor de alta complexidade, infra-
estrutura (foram necessárias novas instalações médicas em caráter
de urgência por falta de leitos nos hospitais já existentes), entre ou-
tros e, embora talvez nenhum sistema público de saúde (particular
ou público) estivesse pronto para atender de forma satisfatória a
todas as pessoas nesse cenário, no Brasil a pandemia trouxe à luz a
necessidade de mais investimentos na saúde pública e menos cor-
rupção e congelamento de gastos nas políticas sociais.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Assim, diante de tantas ameaças a que vem sendo exposto o


já fragilizado sistema brasileiro de saúde pública, além de uma pos-
sibilidade para exercício democrático, a política de saúde necessita
urgentemente da efetivação do controle social para que não seja
extinto definitivamente, retirando da sociedade um direito básico
de cidadania.

Conselhos de saúde e participação social em Manaus


Tendo como foco a área da saúde, os conselhos ocupam uma
posição relevante que permite a participação da sociedade na gestão
dessa política. No panorama contemporâneo, o Sistema Único de
Saúde encontra-se em vias de ser desmontado, o que demanda um
envolvimento organizado e articulado da sociedade civil, a fim de
impedir a privatização e mercantilização da saúde enquanto direito
social universal. É substancial que a sociedade conheça e faça uso
dos conselhos enquanto mecanismos de intervenção nas decisões
governamentais que têm retirado direitos constitucionais. Confor-
me aponta Raichelis (2007):

O padrão de intervenção do Estado brasileiro concentrou-se


no financiamento da acumulação e da expansão do capital, em
detrimento da consolidação de instituições democráticas e da
institucionalização do acesso público a bens, serviços e direitos
básicos de extensas camadas da população trabalhadora (p. 68).

Inserida em um contexto de Estado que sempre buscou forta-


lecer seus mecanismos de coerção a fim de controlar a sociedade e
beneficiar o mercado, a classe trabalhadora brasileira se vê cercada
de medidas que retiram direitos sociais de forma cada vez mais ace-
lerada. Concordamos, portanto, com Dallari (1999), quando afirma
que “[...] para proteger os direitos e interesses de um indivíduo ou
de um grupo é necessário que a sociedade assuma algum encargo
ou tome alguma atitude (p. 19)”.
Os conselhos de saúde são espaços de participação e luta,
que devem ter como prioridade ações que viabilizem melhorias na
garantia e no acesso da população aos serviços de saúde. Sabemos,
no entanto, que os conselhos, embora possuam grande importância,
não são entidades super poderosas, capazes de frear ou impedir de

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

forma efetiva os desmontes impostos à política de saúde. Ferraz


(2006) destaca que, os conselhos “não devem ser tomados como
uma instância privilegiada, mas compõem o conjunto de institui-
ções, arenas, experiências e práticas com as quais a experiência de-
mocrática brasileira tem se realizado” (p. 71).
Os conselhos de saúde, vale ressaltar, só são eficazes quando
conseguem cumprir com seus princípios de democracia participa-
tiva. Ou seja, é preciso que haja realmente participação e envolvi-
mento dos seus membros em todas as suas atividades, construindo,
executando, fiscalizando e avaliando a política de saúde e não ape-
nas votando e aprovando projetos que já chegam prontos ao conse-
lho.
Se o controle social que se faz presente dentro dos conselhos
de saúde não for democrático, então estes podem acabar contribuin-
do para a perpetuação do poder nas mãos das classes dominantes
e indo contra a democracia defendida pela Constituição de 1988.
Como afirma Costa (2007), a proposta da democracia é “limitar e
controlar o poder dos poderosos” (p. 99) e essa é também a proposta
do controle social, limitar e controlar a ação do Estado, redirecio-
nando as suas ações para os interesses coletivos.
Assim, a dinâmica dos conselhos é um ponto importante para
o aperfeiçoamento das atividades e para o aprimoramento e capaci-
tação dos conselheiros, sendo fundamental manter uma rotina vol-
tada sempre para discussão e debate do controle social na política
de saúde. Logo, acerca da dinâmica dos conselhos de saúde, o qua-
dro 1 apresenta as principais atividades desenvolvidas no âmbito do
CMS e do CES, segundo os participantes.

Quadro 1 – Principais atividades desenvolvidas nos conselhos de saúde


1º lugar Reunião mensal
2º lugar Visita e monitoramento dos serviços de saúde
Ação de mobilização da sociedade para o exercício do
3º lugar controle social
Planejamento das conferências municipais/estaduais de
4º lugar saúde
Fonte: Pesquisa de Campo, 2019.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Seguindo uma dinâmica de reuniões mensais, monitoramen-


to e fiscalização como principais atividades, os conselhos seguem
como organizações sistematizadas para o controle da política de
saúde. A sistematização das atividades, no entanto, não garante que
o seu desenvolvimento esteja acontecendo dentro dos parâmetros
democráticos necessários. A fiscalização dos usuários se torna cru-
cial para a garantia de que os interesses ali defendidos sejam cole-
tivos.
Sabemos que o Estado, embora represente somente 25% da
composição dos conselhos ainda é o segmento com mais força,
como afirma Dallari (2001) “a sociedade política de maior impor-
tância, por sua capacidade de influir e condicionar, bem como por
sua amplitude, é o Estado” (p. 49).
Por isso mesmo o governo acaba impondo suas decisões aos
demais segmentos que, por sua vez, ficam relegados à função de
apenas votar para aprovar ou não determinadas decisões, o que nos
remete novamente à uma democracia muito limitada. Uma das fun-
ções dos conselhos, como sabemos, é ampliar a discussão democrá-
tica e não restringi-la.
No desenvolvimento de suas atividades, as reuniões mensais
constituem a principal forma de encontro para debate dos assun-
tos que competem à apreciação dos conselhos e, nas reuniões, o
principal assunto discutido é a fiscalização e controle dos gastos
da saúde. Sobre essa fiscalização, 90% dos entrevistados afirma-
ram que é muito importante que haja tal fiscalização, enquanto 10%
classificou como importante.
Como vemos, é unânime por parte dos conselheiros que o
acompanhamento e a fiscalização dos recursos da saúde são de
suma importância. Quando o Estado decide que certos gastos públi-
cos devem ser mantidos em sigilo, ocorre a anulação da transparên-
cia pública, a restrição da cidadania e a contenção da democracia.
Mas não é fácil desenvolver com destreza essa atribuição. Sobre
essa questão vejamos o que a conselheira aponta:

É muito importante porque o recurso é seu, é meu, e o brasileiro,


ele é muito negligente nesse sentido, parece que a coisa pública
não é nossa, mas ela é nossa e a gente tem que fiscalizar e a
participação dentro do conselho tem que ser por esse lado, de

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

fiscalizar a aplicação desse recurso porque milhões de pessoas


dependem da saúde pública e uma vez que é desviado, muitas
pessoas acabam morrendo por causa desse desvio e isso acaba
sendo um crime hediondo porque mata as pessoas nas filas, nos
corredores, na falta de atendimento, então ainda falta muita
consciência disso (Conselheiro Estadual nº 02, Pesquisa de
Campo, 2019).

As políticas sociais são apenas um retorno de todo o capital


arrecadado pelo Estado através da classe trabalhadora (IAMAMO-
TO; CARVALHO, 2014). Não são os ricos e poderosos que nos
concedem favores, nós, enquanto sociedade e classe trabalhadora,
não temos recebido de volta nem o mínimo do que contribuímos
para Estado. O orçamento público7, portanto, é nosso, e o exercício
do controle social deve abranger a sua fiscalização de forma eficaz
para não termos nossos direitos mais diminuídos do que já estão.
Quando não há fiscalização e os recursos são escassos e,
além disso, são desviados, como podemos acompanhar nos diver-
sos esquemas de corrupção que não cessam de avançar na política
de saúde, o SUS se torna cada vez mais precário e o que vemos é o
que a conselheira apontou em sua fala, centenas de milhares de pes-
soas morrendo não apenas por um vírus novo e desconhecido, mas
pela falta de uma política de saúde que consiga atender e oferecer
todas as chances de luta pela vida a que temos direito.
O controle social na saúde é um instrumento indispensável
para a garantia da presença da população usuária nos espaços dos
conselhos. Podemos supor que sem a existência do controle social
talvez nossa política de saúde já estivesse completamente privatiza-
da. Daí a importância e necessidade de ampliação e efetivação do
controle social de forma essencialmente democrática, o que forta-
lece a democracia, amplia a cidadania e contribui para a construção
de uma visão crítica da realidade brasileira. Buscando o significado
do controle social para os conselheiros de saúde em Manaus, apon-
tamos aqui uma narrativa:
É o processo pelo qual o cidadão, de forma organizada e
agregada, debate pautas de interesse comunitário, defendendo
7 Segundo Salvador (2012), o orçamento público é “financiado pelos pobres via impostos so-
bre o salário e por meio de tributos indiretos, e apropriado pelos mais ricos, via transferência
de recursos para o mercado financeiro e acumulação do capital” (p. 7).

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

políticas públicas e acompanha a utilização eficiente nos gas-


tos da instituição (Conselheiro Municipal n° 15, Pesquisa de
Campo, 2019).

Entender a democracia como forma de participação social


está vinculado ao entendimento do controle social como instru-
mento não apenas de fiscalização, mas de um envolvimento mais
completo junto às políticas públicas. A ideia de debate e acompa-
nhamento dos assuntos de interesse coletivo relativos à saúde não
foge ao conceito de controle social aqui defendido, porém, como
afirma a conselheira, é também planejar e executar e esses dois ver-
bos agregam diversas outras atribuições que vão além do debate.
Em um país com tanta desigualdade social, alto índice de
corrupção e uma distribuição injusta da riqueza socialmente produ-
zida, que vem sendo redirecionada para políticas de redistribuição
de renda quando deveria oferecer políticas públicas de qualidade,
como saúde e educação, bem como a geração de emprego e renda,
tendo em vista que um dos maiores problemas hoje no Brasil é o
desemprego, é fundamental que a população participe.
Assim, sobre o favorecimento da participação social à políti-
ca de saúde, 85% dos entrevistados concordam que o envolvimento
da comunidade tem ajudado a fortalecer a saúde pública no Brasil e
15% acredita que esse envolvimento não é tão favorável quanto de-
veria ser, uma vez que a comunidade ainda é um segmento bastante
enfraquecido dentro dos conselhos de saúde. Aqui, destacamos um
relato do conselheiro:

É muito importante porque no conselho existem três segmentos,


os gestores, os trabalhadores e os usuários e, de alguma forma,
sempre quem acaba ganhando é o sistema (o governo), essa é
a realidade. Então o usuário lá dentro, antes das votações, nas
reuniões, ele tem a oportunidade de falar, questionar, de debater,
mas para isso é muito importante ele conhecer, se aprofundar
nos assuntos, saber para o que vai servir determinado projeto, se
vai influenciar na saúde da população de verdade (Conselheiro
Municipal n° 14, Pesquisa de Campo, 2019).

Para a política de saúde, a participação social tem significado


não apenas a inserção de novos sujeitos na gestão democrática da

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

saúde, mas a manutenção de um sistema de saúde público. Parti-


cipar socialmente significa o engajamento nas lutas em defesa do
SUS. Além de exercer a democracia, a sociedade toma parte a favor
da manutenção de um sistema de saúde que garanta o acesso de
todos à essa política e aos serviços oferecidos.
Analisando criticamente o posicionamento do conselheiro, é
necessário que a sociedade, bem como os próprios conselheiros,
se organizem e busquem capacitação e conhecimento para se in-
teirar do poder que possuem. Dos conselheiros entrevistados, 60%
já havia participado de alguma capacitação e 40% ainda não havia
participado de nenhum tipo de treinamento e/ou capacitação.
Os conselheiros participantes, embora em sua maioria viven-
ciando pela primeira vez a experiência de conselheiros de saúde, no
segmento dos usuários e dos trabalhadores da saúde são oriundos
de outras entidades como sindicatos e associação de moradores, o
que já garante uma certa experiência em participação social e marca
o início do engajamento desses sujeitos nas instituições de controle
social na saúde.
Os conselheiros de saúde carregam em si uma responsabili-
dade grande, de trabalhar na busca pela capacitação de si próprios e
dos novos sujeitos que surgirão, assim como assumir seu papel na
luta constante pela efetivação do controle social na saúde. Os con-
selhos devem elaborar atividades, ações e mobilizações que visem
assegurar o desenvolvimento e fortalecimento do controle social.
Segundo o conselheiro municipal nº 07, o CMS tem conseguido
desenvolver algumas estratégias nesse sentido:
A atual gestão está fazendo um trabalho bastante satisfatório,
está divulgando bastante, tanto que nós estamos fortalecendo os
conselhos locais de saúde porque esses conselhos são aqueles
que atuam dentro das unidades de saúde e são eles que envol-
vem a comunidade em si e está tendo bastante divulgação nas
nossas reuniões bimestrais junto aos representantes das zonas da
cidade, mas a gente observa que são sempre as mesmas pessoas
ali presentes, a gente convida, a gente põe na mídia mas, mes-
mo quando há eleição, as pessoas não aparecem (Conselheiro
Municipal nº 07, Pesquisa de Campo, 2019).

O trabalho em parceria com os conselhos locais de saúde é


importante, pois fortalece esses conselhos e incentiva a divulgação

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

de suas ações e, apesar de os conselhos locais estarem mais próxi-


mos da comunidade, os conselhos em nível municipal e estadual
não devem deixar de assumir sua parcela de responsabilidade nessa
questão.
Um dos principais instrumentos vinculados aos conselhos de
saúde que são capazes de contribuir amplamente para a capacitação
e qualificação dos conselheiros são as conferências de saúde. Dos
conselheiros entrevistados, 95% já participaram de conferências de
saúde e 100% deles reconhecem a importância que esses mecanis-
mos possuem. Segundo Escorel e Moreira (2009):

Há que se reconhecer que Conselhos e Conferências de Saúde


constituem uma proposta vigorosa de distribuição de poder, as-
sim como a existência de grandes avanços realizados no âmbito
da participação social em saúde nos últimos 20 anos, comparando
seja com outros setores dentro do próprio país, seja com outros
países (p. 245)

Além das conferências municipais e estaduais que seguem


sendo realizadas a cada 4 anos no Amazonas, o Conselho Municipal
realizada desde 2006 a Semana do Controle Social, em comemora-
ção ao aniversário do CMS. Esse evento é dedicado especialmente
aos conselheiros de saúde, mas também é aberto àqueles que este-
jam interessados.
Até o momento já foram realizadas 14 edições que tratam
sempre de temas como democracia, cidadania, qualificação dos con-
selheiros, participação popular, legislação da saúde, entre outros,
que fortalecem os processos participativos. A Semana do Controle
Social é um espaço para a reflexão e também para discussão e deba-
te acerca não apenas dos princípios do SUS, mas das dificuldades e
desafios que ele vem encontrando para a sua consolidação. É uma
oportunidade para analisar a conjuntura atual da política de saúde
e para pensar alternativas que busquem fortalecer o Sistema Único
de Saúde e garantir a continuidade da política de saúde enquanto
direito universal. No quadro 2, listamos as principais dificuldades
apontadas pelos conselheiros.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Quadro 2 – Principais dificuldades encontradas no exercício do controle


social
Baixa mobilização da sociedade para participar social-
1º lugar mente
Falta de conhecimento da sociedade sobre a legislação do
2º lugar SUS e sobre os conselhos de saúde
Falta de recursos financeiros para as atividades do contro-
3º lugar le social
4º lugar Falta de motivação dos conselheiros de saúde
5º lugar Outros (remuneração)
Fonte: Pesquisa de Campo, 2019.

Na área da saúde, portanto, os conselhos esbarram com todas


essas dificuldades de um lado, e do outro com os vários desafios que
se colocam diante do caminho no exercício de suas funções. Mas
participar não é fácil, requer tempo, dedicação, estudo e compro-
metimento com a defesa em nome da democratização do SUS. Não
sendo esta uma tarefa fácil, o conselheiro expõe quais os principais
limites que permeiam o exercício do controle social.

É a questão dos interesses, não é? Eu acho que, como nós somos


usuários, nós estamos mais livres, nós estamos mais autônomos,
e eu acho que tem muita representação lá dentro que está muito
ligada ao Estado. Acho que esse é um grande desafio porque,
na verdade, quando a gente vai para dentro de um espaço desse
de direito você precisa ter consciência de quem você está ser-
vindo ali dentro e aí é que está o difícil porque às vezes você se
contrapor, bater de frente, discutir, sabendo que depois pode ter
algum tipo de repressão, é complicado (Conselheira Estadual nº
03, Pesquisa de Campo, 2019).

O medo da repressão (não esqueçamos que a sociedade polí-


tica, o governo, é coercitivo), entre outras dificuldades como falta
de capacitação e recursos, fragilizam o processo de democratiza-
ção da saúde e efetivação do controle social no SUS. Embora não
tornem os conselhos completamente ineficientes, os limites encon-
trados formam uma barreira difícil de ser transposta sem os meios
necessários para que os conselhos se fortaleçam.
Ao longo de quase 30 anos essas mesmas dificuldades são
sempre as que aparecem nas pesquisas sobre o controle social na

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

saúde. Por que, durante quase três décadas, já não foram tomadas
providências para que essas dificuldades fossem amenizadas ou até
mesmo superadas? Silva (2003) nos ajuda com a resposta:

Não é a passividade política que preocupa os pluralistas/elitistas,


mas a maior participação que pode colocar em risco a estabilida-
de do sistema. Nesse sentido, a estrutura do “modelo” contribui
muito mais para a manutenção da apatia, em que o eleitor é
chamado apenas para votar em quem se apresenta como can-
didato e não para participar do processo decisório. As questões
importantes não são colocadas em discussão ou são disfarçadas,
além de que o governo não assume responsabilidades diante do
eleitorado. Ao indivíduo restaram apenas as eleições como única
forma de controle sobre os líderes eleitos (p. 16).

O controle social se torna um grande aliado enquanto instru-


mento de controle da sociedade civil sobre o Estado. Enquanto as
eleições, com toda a sua importância aqui reconhecida, tornam o
processo de democratização muito restrito, o controle social ultra-
passa a democracia representativa ampliando-a e tornando-a parti-
cipativa. Não é à toa que as dificuldades são sempre constantes na
história dos conselhos de saúde.
Essas dificuldades, recursos, capacitação, conscientização,
não são apenas as características das contradições que permeiam es-
ses espaços, mas são obstáculos que há tempos já poderiam ter sido
superados. Não sendo do interesse do governo capacitar a socieda-
de para fortalecer e ampliar o envolvimento social, os conselhos
seguem em sua existência, com as mesmas limitações de sempre.
Apesar das dificuldades e dos muitos desafios que os conse-
lhos precisam enfrentar, é importante salientar o quão significativas
essas instituições são para o aprofundamento da democracia brasi-
leira. As mudanças e contradições que se fazem presente nesses es-
paços visam caracterizá-los ainda mais como espaços para o debate
democrático e não deixam de fortalecê-los como canais de partici-
pação social. Sua existência e manutenção são fundamentais para
a democratização da saúde e para o exercício da cidadania e, por-
tanto, tem sua parcela de contribuição para a transformação social.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Considerações finais
Os estudos apontam que os momentos em que o governo
concede abertura à sociedade são aqueles em que esta se encontra
mais organizada e articulada. Portanto, a organização social está
longe de ser desnecessária, ao contrário, ela é item fundamental e
indiscutivelmente valioso para a consolidação e fortalecimento da
cidadania, bem como para a democratização da política de saúde
no país.
Com o desmonte que temos assistido, o SUS corre um perigo
iminente que ameaça constantemente sua existência e nos coloca à
mercê de um retrocesso que aponta para o retorno de uma política
de saúde na qualidade de seguro e não mais de seguridade social.
Os conselhos de saúde, mesmo com todas as dificuldades, têm man-
tido sua existência e a realização das conferências e, embora não
tenha sido possível observar uma ampliação consistente do exercí-
cio democrático dentro ou fora dessas instituições, a sua existência
e realização de atividades garantem que as raízes da democracia
continuem fincadas na política de saúde pública no Amazonas.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA,


OS IMPACTOS AO MEIO AMBIENTE E AS
APROXIMAÇÕES DO SERVIÇO
SOCIAL AO TEMA
Erica Bomfim Bordin1
Jane Cruz Prates2

Introdução
As extensas queimadas que atingem o pantanal mato-gros-
sense e a floresta amazônica no Brasil têm sido tema de intenso
debate internacional e de preocupação, inclusive de investidores
que se recusam a priorizar o país, para implantação de novos negó-
cios, o que tem impactado negativamente na economia brasileira,
já em profundo recesso. Essa crítica, absolutamente pertinente, se
justifica em razão da secundarização e do descaso com que o meio
ambiente vem sendo tratado pelo Governo Federal no Brasil. A pre-
ocupação com a questão ambiental hoje não pode mais limitar-se
a movimentos e organizações que historicamente tem lutado pela
defesa do meio ambiente, cuja importância é inegável, mas precisa
compor as prioridades, em termos de planejamento, da sociedade e
dos governos em todo o mundo, porque significa reconhecer a ne-
cessária centralidade da preservação da vida e da garantia de futuro
a todos os seres que habitam a terra.
É bem verdade que os problemas ambientais no Brasil,
infelizmente, não se limitam ao desmatamento e às queimadas,
1 Assistente Social. Mestra e doutora em Serviço Social pela PUC-RS. Pós-doutoranda no
PPGSS/PUC-RS como bolsista PNPD – professora colaboradora e pesquisadora do Núcleo
de Estudos em Políticas e Economia Social (NEPES). Principais experiências profissionais
como técnica, gestora, pesquisadora e assessora no campo das Organizações da Sociedade
Civil. E-mail: ebordin@pucrs.br.
2 Assistente Social. Mestra e doutora em Serviço Social pela PUC-RS. Pós-doutora em Ser-
viço Social pela PUC-SP. Coordenadora e professora do PPGSS/PUC-RS. Coordenadora do
Núcleo de Estudos em Políticas e Economia Social (NEPES). Líder do Grupo de Estudos so-
bre Teoria Marxiana, Ensino e Políticas Públicas (GTEMPP). Pesquisadora produtividade do
CNPq e editora da Revista Textos & Contextos, de Porto Alegre. E-mail: jprates@pucrs.br.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

mencionados no início desse artigo, embora elas causem imensos


estragos ao meio ambiente, a mata nativa, a saúde pública, ao ciclo
das águas, além da morte de animais silvestres e da ampliação do
aquecimento global, uma vez que a fumaça dificulta a formação
de chuvas e o carvão e a fuligem fazem a terra absorver mais ca-
lor. Somente nos primeiros 4 meses de 2020 foram desmatados
no Brasil 1.202 km² de floresta, conforme dados do satélite do Ins-
tituto Nacional de Pesquisas Espaciais – INPE, o que significa um
aumento de 55% do desmatamento em relação ao mesmo período
em 2019. No ano de 2019, a taxa consolidada de desmatamento nos
nove estados da Amazônia Legal (AC, AM, AP, MA, MT, PA, RO, RR
e TO) foi de 10.129 km2. (INPE, 2020). A recente onda de incêndios que
assola o Brasil, por sua vez, já devastou mais de 20.000 hectares de
vegetação. Entre janeiro e agosto de 2020 houve um aumento de
83% das queimadas em relação ao mesmo período em 2018, com
mais de 72 mil focos de incêndio.
Não há dúvidas de que a preservação e a conservação3, que
constituem a consciência e a responsabilidade em relação ao meio
ambiente e à vida, se contrapõem a ganância expressa pela busca de
ampliação desmedida dos negócios sem a devida preocupação com
a sustentabilidade4 e os impactos que o lucro fácil provocará na
terra e na vida de quem nela habita.
Os recentes e crescentes desmatamentos criminosos são
exemplo desse tipo de contradição. Estudo realizado pelo Ministério
Público Federal aponta que, cerca de um terço da área ilegal
desmatada na Amazônia foi alvo de queimadas em 2019. Segundo
laudo dos peritos, o fogo foi utilizado para expandir desmatamentos
mais antigos. (MPF, 2019).
Corroboram para isso, a posição caudatária ocupada pelos
interesses sociais em relação ao crescimento econômico, diferen-
3 Preservação seria manter a natureza livre de intervenções antrópicas, promovendo “ações
que garantem a manutenção das características próprias de um ambiente e as interações en-
tre os seus componentes” (WATANABE, 1997, p. 192). Conservação tem a ver com o uso
sustentável da natureza, um “sistema flexível ou um conjunto de diretrizes planejadas para o
manejo e utilização sustentada dos recursos naturais” (WATANABE, 1997, p. 56).
4 O conceito de desenvolvimento sustentável expresso na Cúpula Mundial em 2002 envolve
a definição atual mais concreta, em relação à melhoria da qualidade de vida de todos os habi-
tantes e ao uso de recursos naturais além da capacidade da Terra: “O desenvolvimento susten-
tável procura a melhoria da qualidade de vida de todos os habitantes do mundo sem aumentar
o uso de recursos naturais além da capacidade da Terra” (MIKHAILOVA, 2004, p. 27).

- 232 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

te do desenvolvimento econômico que pressupõe desenvolvimento


social, além da flexibilização das leis relativas aos cuidados am-
bientais e respectivas punições a quem as descumpre. Na verdade,
o que está em debate é a constatação de que os interesses privados
estão sendo sobrepostos aos interesses públicos, portanto, trata-se
de uma questão, antes de tudo, ética.
Parte-se do pressuposto de que, como assistentes sociais,
orientadas por uma direção social ético-política emancipatória, te-
mos o desafio de desenvolver a capacidade de decifrar a realidade
e construir propostas criativas e capazes de contribuir com a pre-
servação e efetivação de direitos. Nesse sentido, no desenho das
transformações societárias e consequentes expressões da questão
social, destaca-se a separação do homem com a natureza.
Visando problematizar esse tema, elaborou-se o projeto “A
configuração da relação Ser Humano – Natureza no contexto do
modo de produção capitalista e seus impactos no Meio Ambiente”.
O projeto vincula-se ao Núcleo de Estudos em Políticas e Econo-
mia Social – NEPES do PPGSS/PUC-RS, e objetiva “Analisar a
configuração da relação Ser Humano – Natureza, no contexto do
modo de produção capitalista, seus impactos e respostas no Meio
Ambiente, visando contribuir com a qualificação e a ampliação de
conhecimentos sobre esses processos”. Nesse estudo enfoca-se: o
impacto do modo de produção capitalista no Meio Ambiente; as
legislações, políticas públicas, programas e projetos vinculados ao
Meio Ambiente; os atores envolvidos na defesa do Meio Ambiente
– como os Movimentos e Organizações da Sociedade Civil; e por
fim, a apropriação e incidência do Serviço Social na questão am-
biental (BORDIN, 2019).
O recorte temporal da pesquisa se dá a partir dos anos 1970,
pois foi nessa época que os movimentos em prol do Meio Ambiente
ganharam força. A Conferência de Estocolmo que aconteceu em
1972 na Suécia, com a participação de mais de 113 países e 400
organizações, marcando a consolidação da consciência ambiental
e criando a agenda ambiental a nível internacional. Nessa ocasião
foi criada a ONU Meio Ambiente, que coordena as principais ações
prioritárias para a temática ambiental.
No contexto do Brasil, nos anos 1970, já existiam
movimentos ecológicos lutando contra as ações produtivistas do

- 233 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Governo Militar. Na mesma direção haviam marcos de legislações


importantes, norteados pelas conferências e encontros mundiais já
mencionados, sendo válido citar como exemplos, a criação da Se-
cretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA (1973), a Política Na-
cional do Meio Ambiente (1981), determinação de procedimentos
para atividades produtivas sujeitas a licenciamento (1997), criação
de lei definindo crimes ambientais (1998), criação da Política Na-
cional de Educação Ambiental (1999), criação do Sistema Nacional
de Unidades de Conservação da Natureza (2000), a criação da lei
n. 12.334/10 que estabelece a Política Nacional de Segurança de
Barragens (2010) e a revisão do Código Florestal (2012).
O conceito de Meio Ambiente construído na Conferência das
Nações Unidas sobre o Meio Ambiente realizado em Estocolmo,
em 1972, definiu meio ambiente como “o conjunto de componentes
físicos, químicos, biológicos e sociais capazes de causar efeitos di-
retos ou indiretos, em um prazo curto ou longo, sobre os seres vivos
e as atividades humanas”. Destacamos a inclusão dos componentes
sociais ao conceito de Meio Ambiente, o que é de extrema impor-
tância, ao analisarmos a atividade humana sobre o meio, e as conse-
quências dessas ações para as relações sociais, além das ambientais.
A Lei nº 6.938 de 1981 dispõe, em seu artigo 2º, que a Polí-
tica Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo “a preservação,
melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida,
visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-
-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da
dignidade da vida humana”. O conceito de Meio Ambiente está no
artigo 3º da referida lei:

Art 3º – Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por:


I – meio ambiente, o conjunto de condições, leis, influências e
interações de ordem física, química e biológica, que permite,
abriga e rege a vida em todas as suas formas;
V – recursos ambientais: a atmosfera, as águas interiores, su-
perficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo,
o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora.

Como se pode observar, a legislação nacional, referida não


contempla diretamente no conceito de meio ambiente os aspectos

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

sociais, ao qual se pretende dar centralidade no debate a ser aporta-


do pelo projeto, a partir do qual ora apresentamos breves resultados.
Destaca-se, contudo que, no presente artigo, são apenas
apontados resultados parciais do estudo em questão, obtidos a partir
das primeiras aproximações com a revisão teórica sobre a temática,
com vistas a identificar as alterações que vêm ocorrendo na relação
com o meio ambiente, nos marcos do modo de produção capitalis-
ta, bem como a análise sobre a produção do Serviço Social acerca
desse tema, tendo como fontes os periódicos da área classificados
pela Capes como A1 e A2, além da Revista Temporalis, em virtude
da sua relevância para a categoria profissional, por estar vinculada
à Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social –
ABEPSS.
Meio ambiente e modo de produção capitalista
A situação de degradação do planeta se acelera muito mais
rápido do que o previsto. “A acumulação de gás carbônico, a eleva-
ção da temperatura, o derretimento das geleiras polares e das ‘neves
eternas’, a desertificação das terras, as secas, as inundações”. Não
se trata apenas “do que vai acontecer no fim do século, ou dentro
de meio século, mas nos dez, vinte, trinta próximos anos. Não se
trata mais apenas da questão do planeta que deixaremos para nossos
filhos e netos, mas do futuro desta geração” (LÖWI, 2010, p. 682).
O autor é categórico ao dizer que devemos responsabilizar o
sistema capitalista por “a sua lógica absurda e míope de expansão
e acumulação sem limites, a seu produtivismo irracional obcecado
pela procura do lucro”. Pois, “todo aparelho produtivo capitalista
está baseado na utilização das energias fósseis – petróleo, carvão – ,
emissoras de gás responsável pelo efeito estufa”. (LÖWI, 2010, p.
684).
Nesse sentido, o consumo de energia, incluindo o transpor-
te e a eletricidade, é a maior fonte de emissões de gases de efeito
estufa, e, por conseguinte pelas mudanças climáticas causadas por
seres humanos, responsável por 73% das emissões mundiais. Os
outros principais emissores são: agropecuária (12%); uso da terra
(6,5%); processos industriais de produtos químicos, cimento e ou-
tros (5,6%); e resíduos, incluindo aterros e águas residuais (3,2%) 5.
5 Ver: Plataforma ClimateWatch do WRI, com base em dados brutos da IEA (2018). Dispo-
nível em: www.iea.org/statistics.

- 235 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Harvey traz uma descrição que Marx fez da acumulação pri-


mitiva, onde encontramos elementos que permanecem fortemente
presentes na geografia histórica do capitalismo até os nossos dias:
A mercadificação e a privatização da terra e a expulsão vio-
lenta de populações camponesas; a conversão de várias formas de
direitos de propriedade (comum, coletiva, do Estado etc.) em di-
reitos exclusivos de propriedade privada; a supressão dos direitos
dos camponeses às terras comuns [partilhadas]; a mercadificação
da força de trabalho e a supressão de formas alternativas (autócto-
nes) de produção e de consumo; processos coloniais, neocoloniais e
imperiais de apropriação de ativos (inclusive de recursos naturais);
a monetização da troca e a taxação, particularmente da terra; o co-
mércio de escravos; e a usura, a dívida nacional e em última análise
o sistema de crédito como meios radicais de acumulação primitiva
(HARVEY, 2005, p. 121).
O autor destaca que o Estado, sempre teve papel crucial no
apoio e promoção desses processos e na transição para o desenvol-
vimento capitalista, onde “o sistema de crédito e o capital financeiro
se tornaram grandes trampolins de predação, fraude e roubo”. Es-
tabeleceram-se a partir de 1973 e foram “espetacular por seu estilo
especulativo e predatório” (HARVEY, 2005, p. 122).
Em relação ao papel do Estado, o capitalismo neoliberal
exige mudanças políticas compatíveis ao seu modo de produção.
Destaca-se, nesse sentido, a desregulamentação, como as que temos
visto no Ministério do Meio Ambiente e da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento, que evidencia o relaxamento ou eliminação de prá-
ticas regulatórias que possam impor restrições à atuação do capital
em prol da agenda neoliberal.
A “destruição dos recursos ambientais globais (terra, ar,
água) e degradações de hábitats, que impedem tudo exceto formas
capital-intensivas de produção agrícola, também resultaram na
mercadificação por atacado da natureza em todas as suas formas”
(HARVEY, 2005, p. 123). Nesse sentido, tal como no passado, o
poder do Estado é com frequência usado para impor esses processos
mesmo contrariando a vontade popular. A regressão dos estatutos
regulatórios destinados a proteger o trabalho e o ambiente da degra-
dação tem envolvido a perda de direitos

- 236 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

O crescimento econômico, no sistema e modo de produção


capitalista, é tomado a priori como uma necessidade, o que não
corresponde a uma expansão (material) da produção ou do consu-
mo produtivo, principalmente devido ao avanço tecnológico. Sen-
do assim, precisamos ter consciência dos limites de realização, na
sociedade capitalista, das estratégias de redução de impactos e de
adaptação às necessárias e urgentes mudanças climáticas demanda-
das pela ciência climática (BARRETO, 2018).
Nesse sentido, o pressuposto que a sociedade do capital
figura como estágio último do desenvolvimento humano e, portan-
to, inquestionável, é o principal motivo pelo qual não se consegue
“sequer formular adequadamente os problemas ambientais que nos
desafiam, confrontando-se constantemente com resultados aparen-
temente paradoxais e desanimadores” (BARRETO, 2018, p. 123).
Uma ecologia que não se dá conta da relação entre “pro-
dutivismo” e lógica do lucro está destinada ao fracasso – ou pior, à
recuperação pelo sistema. A ausência de uma postura anticapitalista
coerente conduziu a maioria dos partidos verdes europeus a se tor-
narem simples parceiros “ecorreformistas” da gestão social-liberal
do capitalismo nos governos de centro-esquerda (LÖWI, 2009, p.
134). O que o autor propõe é o ecossocialismo:

uma corrente de pensamento e de ação ecológica que se apropria


dos conhecimentos adquiridos fundamentais do socialismo, mas
do socialismo desvencilhado de seus resíduos produtivistas. Para
os ecossocialistas, a lógica do mercado e do lucro, bem como a
lógica do autoritarismo burocrático do finado “socialismo real”,
são incompatíveis com as exigências de proteção do meio natu-
ral. Apesar de criticar a ideologia das correntes dominantes do
movimento operário, os ecossocialistas sabem que os trabalha-
dores e suas organizações são uma força essencial para qualquer
transformação radical do sistema, e para o estabelecimento de
uma nova sociedade, socialista e ecológica (LÖWI, 2009, p. 688).

Esta corrente mesmo não sendo homogênea, compartilha de


alguns temas comuns, como “a ruptura com a ideologia produtivista
do progresso – na sua forma capitalista e/ou burocrática – e contrá-
ria à expansão sem limite de um modo de produção e de consumo
destruidor da natureza”. Representa uma tentativa de articular as

- 237 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

ideias fundamentais do marxismo com os conhecimentos da crítica


ecológica (LÖWI, 2009, p. 689).
De acordo com o autor (LÖWI, 2009), o ecossocialismo
desenvolve uma crítica da tese da “neutralidade” das forças pro-
dutivas que predominou na esquerda do século XX, em suas duas
vertentes: a social‐democrata e a comunista soviética. Defende que
o conjunto do modo de produção e de consumo deve ser “transfor-
mado com a supressão das relações de produção capitalistas e o
início de uma transição para o socialismo”. Entendendo socialismo
a partir da ideia inicial, comum a Marx e aos socialistas libertários
de uma “utopia concreta”:
a ideia de uma sociedade sem classes e sem dominação onde
os principais meios de produção pertencem à coletividade, e as
principais decisões sobre investimento, sobre a produção e a dis-
tribuição não se encontram entregues às leis cegas do mercado,
a uma elite de proprietários, ou a uma camarilha burocrática,
mas são tomadas pelo conjunto da população após um amplo
debate democrático e pluralista. A aposta planetária deste pro-
cesso de transformação radical das relações dos humanos entre
si e com a natureza é uma mudança de paradigma civilizacional
que concerne não apenas ao aparelho produtivo e aos hábitos
de consumo, mas também ao habitat, à cultura, aos valores, ao
estilo de vida (LÖWI, 2009, p. 690).

O confronto das duas ideologias mais visivelmente opostas


à defesa teórica do capitalismo atual tende a assumir para os mar-
xistas um sentido autocrítico. Ressaltam-se as limitações economi-
cistas e produtivistas do marxismo na abordagem dos problemas
ambientais (RIBEIRO, 2002).
O triunfo do mais forte, do mais apto, é a lei suprema da
natureza. E nessa lei tem se apoiado no pensamento moderno tudo
o que há de mais retrógrado e de mais bárbaro. Em primeiro lugar,
o próprio capitalismo como forma natural de luta pela vida, assim
como os subprodutos de sua decrepitude: o fascismo cultuando a
guerra, o racismo promovendo a eugenia e o extermínio dos tidos
como inferiores (RIBEIRO, 2002, p. 25)
Marx, ao definir o socialismo/comunismo, falava de uma
sociedade onde os produtores associados governariam o metabolis-
mo humano com a natureza de uma forma racional, com o menor
gasto de energia. Desenvolveu assim, a mais radical concepção pos-
sível de sustentabilidade, onde nem mesmo todos os países e povos
- 238 -
SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

do mundo juntos seriam donos da terra – que estava cedida e preci-


sava ser mantida perpetuamente. “Assim, sua crítica geral requer,
ao invés de fendas abertas desenvolvidas sob o capitalismo, que
sejam necessários ciclos metabólicos fechados entre a humanidade
e a natureza” (FOSTER, 2012, p. 91).
É preciso olhar essa realidade de frente, desmistifica-la e
combatê-la, pois superar o capitalismo em prol de uma sociedade
de igualdade e sustentabilidade ecológica é a plataforma necessária
para enfrentar a crise climática que se aproxima.

Produção da área do Serviço Social em análise


Para verificar-se como a área do Serviço Social tem se apro-
priado e incidido sobre o tema do meio ambiente, realizou-se um
levantamento nas produções em periódicos, selecionando os artigos
publicados nas revistas da área do Serviço Social e Políticas Públi-
cas, qualis A1 e A2 + Temporalis, no período de 2010 a 2018, a
partir dos descritores: Ecologia, Meio ambiente, Socioambiental,
Ambiental, Desenvolvimento Sustentável e Sustentabilidade. De
um total de 2033 artigos, foram identificados apenas 51, ou seja,
2% do total de textos publicados. Excluindo três textos que não
tratavam da realidade do Brasil, a análise foi realizada a partir do
resumo de 49 artigos.
Quadro 1 – Produção da Revista da Área do Serviço Social e Políticas
Públicas
Revista da Área do Serviço Social e Tema
Qualis Total
Políticas Públicas Ambiental
1 Revista Katalysis A1 244 13
2 Serviço Social & Sociedade A1 273 5
3 Argumentum (Vitória) A2 228 5
4 Em Pauta (Rio de Janeiro) A2 207 6
5 Revista de Políticas Públicas (Ufam) A2 376 4
6 Ser Social (UnB) A2 198 4
7 Textos & Contextos (Porto Alegre) A2 260 3
8 Temporalis 247 8
TOTAL 2033 49
Fonte: Sistematizado pela autora (2019), a partir do Banco de Dados do
NEPES.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

Verifica-se que 13 textos analisam a questão ambiental a


partir das determinações estruturais e históricas da acumulação do
capital e a exploração de recursos naturais, ao mercantilizar o ho-
mem e a terra produzindo desigualdade, pobreza e depredação. Os
artigos questionam o modelo de desenvolvimento, no contexto da
crise financeira e ecológica global. Dentre esses, alguns salientam a
necessidade do consumo consciente e de indicadores sociais alter-
nativos.
Nesse sentido, dois (2) textos tratam especificamente sobre
o neodesenvolvimentismo e seus impactos nas políticas socioam-
bientais, onde em nome da sustentabilidade econômica promove-se
uma insustentabilidade socioambiental, com fortes rebatimentos na
população e no meio ambiente.
Em relação à conformação do conflito socioambiental
instaurado no entorno dos interesses a ações de Empresa, Estado
e Comunidade, foram encontrados oito (8) artigos, sendo que os
mesmos trazem análises relativas à mineradora, metalúrgica, hi-
drelétricas, fábrica de agrotóxicos, reservas extrativistas e desastres
socioambientais. São destacados, na mesma direção, os privilégios
concedidos às empresas através de regulamentações que visam ga-
rantir a reprodução do capital, resultando na agressão aos direitos
sociais e ambientais, e demais impactos na vida da população e ao
meio ambiente.
Além dos enfoques já mencionados, alguns artigos trazem
a realidade da pesca artesanal e do sistema de produção extrativista
de moluscos, e seus efeitos socioeconômicos e ambientais, sendo
que as diretrizes políticas e econômicas impostas pelo sistema im-
possibilita a manutenção desses setores “do lado de fora” do capital.
Em relação às políticas públicas citadas, são contempladas
na produção: a Política Nacional de Recursos Hídricos, Saneamen-
to (2), Assistência Social, e Planejamento Urbano. Além desses,
sete (7) artigos tratam sobre a Gestão Pública da questão ambiental
no território da cidade, sendo que enquanto uns destacam a possibi-
lidade de superação emancipatória e sustentável da pobreza, outros
salientam os limites das propostas que vêm sendo construídas no
âmbito dos órgãos oficiais com relação ao enfrentamento da des-
truição ambiental, escondendo atrás do chamado “desenvolvimento

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

sustentável” e da “economia verde” os efeitos produzidos pelo mo-


delo de produção capitalista.
Verifica-se que três artigos citam órgãos internacionais, es-
pecificamente a ONU – Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente (PNUMA), em relação ao conceito de “economia verde”
difundido pelo mesmo, de caráter reformista, na medida em que
não questiona o modo de produção capitalista. Na mesma direção
aparece a menção ao Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), destacando o modelo de gestão de cidades disseminado in-
terligado às questões de financiamento ao meio ambiente.
Textos sobre a Economia Solidária (1) e a Reciclagem (2),
destacam a questão ambiental como refração da questão social e
suas interlocuções com os processos de precarização das condições
de vida e trabalho, assim como possíveis estratégias de resistência,
com potencial de se efetivarem como uma forma de organização
produtiva com autogestão, democracia participativa e sustentabili-
dade ambiental.
Sobre a atuação e os desafios postos ao Serviço Social na
área ambiental, encontram-se cinco (5) textos, todos focados no tra-
balho profissional, sendo que nenhum deles trata sobre a formação
profissional. Destaca-se o baixo número de artigos que relacionam
a questão ambiental com o trabalho profissional do/da assistente
social.
Além dos enfoques já mencionados, quatro (4) textos rela-
cionam a questão ambiental com a causa identitária, à medida que o
sistema conduzido por interesses hegemônicos globais capitalistas,
acentua desigualdades sociais e de gênero, raça e segmentos espe-
cíficos – no caso nos artigos sobre mulheres, negros e jovens. Além
desses, dois (2) textos tratam sobre os processos de vulnerabilidade
socioambiental no contexto de ocupações populacionais em fave-
las.
Nove (9) dos 49 artigos analisados citam como fundamen-
tação teórica e metodológica a teoria marxiana, dentre estes, três
(3) possuem como objetivo principal debater o pensamento críti-
co-dialético de Marx e Engels, em contraposição ao pensamento
ecológico-ambientalista neutro no que diz respeito à contradição
entre o capital e o trabalho. Além desses, destaca-se o texto de Löwi

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

sobre Ecossocialismo que discorre sobre as mudanças necessárias


nas forças produtivas da atual sociedade capitalista.
Compõe a produção ainda três (3) textos que debatem a
questão ambiental na perspectiva do filósofo argentino Enrique
Dussel, todos dos mesmos autores, visando a aproximação teórica
entre a ecologia política e as lutas sociais na América Latina.
E por fim, existem textos que tratam sobre temas ainda pouco
conhecidos na área do Serviço Social, tais como a teoria e prática
das políticas de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) e a ado-
ção de modelos de transferências fiscais baseados em indicadores
ecológicos com foco nas políticas para a conservação da biodiver-
sidade.
Apesar de não serem expressivos numericamente, são encon-
trados textos relevantes para a reflexão sobre o Meio Ambiente.
Resta destacar que os temas mais deficitários na produção são os
relacionados à Legislação e Política Nacional de Meio Ambiente,
as práticas dos Movimentos Sociais e Organizações da Sociedade
Civil na área ambiental, que serão objeto de estudo do projeto de
pesquisa que vem sendo realizado. Nesse sentido, espera-se que, ao
fim da pesquisa, possam ser aportadas a esse debate.

Considerações finais
O tema do Meio Ambiente vem despertando progressiva-
mente a atenção de uma parcela maior da população, de profissio-
nais e de pesquisadores. Não é possível mais ignorar a urgência
em se debater e denunciar as consequências do modo de produção
capitalista para a sustentabilidade do planeta.
A interferência da ação humana no Meio Ambiente ficou
evidente nos primeiros meses de pandemia da covid-19, quando as
fábricas pararam ou diminuíram significativamente suas produções
e à redução no tráfego – deixaram de circular nas grandes cidades
ao se perceber as mudanças na coloração do céu, a diminuição da
poluição e a consequente melhoria da qualidade do ar, assim como
o surgimento de animais que há muito não eram avistados.
Se por um lado tem-se a oportunidade de rever ações e re-
conhecer o quanto esse sistema e modo de produção capitalista são
prejudiciais à vida, na contramão, o governo brasileiro e os grandes

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empresários se aproveitam da calamidade imposta pela pandemia


para ampliar a destruição de florestas através de incêndios, desma-
tamento, ataque aos povos indígenas, demais povos tradicionais e
grupos de reassentados, a fim de expandirem o agronegócio e os ga-
rimpos para aumentar seus lucros. O Brasil não pode ser o “celeiro
do mundo” às custas da devastação de suas reservas e do prejuízo à
vida e a saúde do seu povo.
Num momento tão crítico como esse, pesquisas desse tipo,
que dão visibilidade à violação de direitos, se fazem necessárias
para contribuir não só com a produção de conhecimentos sobre o
tema e a maior sensibilização da área para essa questão tão relevan-
te, mas também como elemento que pode trazer novos subsídios
para provocar a reflexão sobre a responsabilidade ambiental, sobre
a necessidade de incluir-se na formação a educação ambiental, en-
tre outras alternativas de resistência. Espera-se que o estudo que
deu base para essas reflexões, ainda em processo de amadurecimen-
to, possa contribuir nessa direção.

Referências
BARRETO, Eduardo Sá. O Capital na Estufa: para a crítica da
economia das mudanças climáticas. Coleção Niep-Marx. v. IV. Rio
de Janeiro: Consequência Editora, 2018.
BELLAMY FOSTER, John. A ecologia da economia política mar-
xista. Lutas Sociais, São Paulo, n. 28, p. 87-104, 1o sem. 2012.
Disponível em: http://www4.pucsp.br/neils/revista/vol.28/john-bel-
lamy-foster.pdf. Acesso em: 05 out. 2020.
BORDIN, Erica Bomfim. A configuração da relação Ser Huma-
no – Natureza, no contexto do modo de produção capitalista:
impactos e repostas ao Meio Ambiente. Projeto de Pesquisa – BPA
/ PUC-RS, 2019.
HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Loyola, 2005.
INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS –
INPE.  Desmatamento consolidado 2019 na Amazônia Legal.
Disponível em: http://www.inpe.br/noticias/noticia.php?Cod_
Noticia=5465. Acesso em: 28 set. 2020.

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SERVIÇO SOCIAL e os dilemas da saúde em tempos de pandemia

LÖWY, Michael. Crise Ecológica, Capitalismo, Altermundialismo:


um Ponto de Vista Ecossocialista (p. 132-140). ©INTERFACEHS
– Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio
Ambiente. v. 4, n. 3, Artigo 1, set./dez. 2009.
LÖWI, Michael. Cenários do pior e alternativa ecossocialista. Servi-
ço Social & Sociedade. São Paulo, n. 104, p. 681-694, out./dez. 2010.
MIKHAILOVA, Irina. Sustentabilidade: evolução dos conceitos
teóricos e os problemas da mensuração prática. Revista Economia
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ufsm.br/eed/article/download/3442/1970. Acesso em: 05 out. 2020.
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL – MPF. Amazônia Protege:
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alvo de ação do MPF. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/no-
ticias-pgr/amazonia-protege-estudo-mostra-queimadas-em-1-3-das-
-areas-de-desmatamento-ilegal-alvo-de-acao-do-mpf#:~:text=Cer-
ca%20de%201%2F3%20das,focos%20de%20calor%20este%20
ano. Acesso em: 28 set. 2020.
RIBEIRO, Demétrio. Breves notas sobre o tema marxismo e ecolo-
gismo. In: As portas de Tebas: ensaios de interpretação marxista /
Centro de Estudo Marxistas. Passo Fundo: UPF, 2002. 350 p.
WATANABE, Shigueo (coord.). Glossário de ecologia. 2. ed. São
Paulo: ACIESP, 1997.

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Sobre as Organizadoras
HAMIDA ASSUNÇÃO PINHEIRO
Professora do Departamento de Serviço Social da Universi-
dade Federal do Amazonas – UFAM. Atualmente, atua como do-
cente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social e Sustentabilidade na Amazônia (PPGSS) da UFAM. É dou-
tora em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia pela
UFAM, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela UFAM
e graduada em Serviço Social pela UFAM. É líder do Grupo de
Pesquisa Estudos de Sustentabilidade, Trabalho e Direitos na Ama-
zônia – ESTRADAS e também faz parte da diretoria da Associação
Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) pela
segunda gestão consecutiva (2017/2018 e 2019/2020). E-mail para
contato: hamida.assuncao@gmail.com ou hamida@ufam.edu.br

MARINEZ GIL NOGUEIRA CUNHA


Professora do Departamento de Serviço Social da Univer-
sidade Federal do Amazonas (UFAM), vinculada ao Programa de
Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia
(PPGSS/UFAM). É doutora em Biotecnologia na área de Gestão
da Inovação pelo Programa Multi-Institucional de Pós-graduação
em Biotecnologia - UFAM/INPA, mestre em Ciências Sociais na
área de Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do
Rio Grande do Norte e graduada em Serviço Social pela UFAM. É
Líder do Grupo de Pesquisa em Gestão Social, Direitos Humanos e
Sustentabilidade na Amazônia. E-mail: marinezgil@yahoo.com.br

LIDIANY DE LIMA CAVALCANTE


Professora do Departamento de Serviço Social da Univer-
sidade Federal do Amazonas (UFAM), vinculada ao Programa de
Pós-graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia
(PPGSS). É doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela
UFAM, mestre em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia
pela UFAM e graduada em Serviço Social pelo Centro Universitá-
rio do Norte. Coordena o Laboratório de Estudos de Gênero - LEG/

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UFAM. Membro do Grupo de Pesquisa em Gestão Social, Direitos


Humanos e Sustentabilidade na Amazônia. E-mail: lidiany@ufam.
edu.br

DÉBORA CRISTINA BANDEIRA RODRIGUES


Professora do Departamento de Serviço Social e do Programa
de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazô-
nia (PPGSS) da Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Pós
Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul – PUCRS. Doutora na área de Gestão da Ino-
vação em Biotecnologia pela UFAM, mestre em Sociedade e Cul-
tura na Amazônia pela UFAM e graduada em Serviço Social pela
UFAM. Pesquisadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos Socio-
ambientais e Desenvolvimento de Tecnologias Sociais na Amazô-
nia (Grupo Inter-Ação UFAM) e do Núcleo de Estudos e Pesquisa
sobre trabalho, saúde e Intersetorialidade (NETSI/PUCRS). E-mail:
deb.band@gmail.com.

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