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Iraildes Caldas Torres
Rooney Vasconcelos Barros
(organizadores)

Amazônia
Gênero, Fronteira, Saberes e
Desenvolvimento

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Comitê Científico - Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid/Espanha)
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Gilse Elisa Rodrigues (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Tharcisio Santiago Cruz (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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Iraildes Caldas Torres
Rooney Vasconcelos Barros
(organizadores)

Amazônia
Gênero, Fronteira, Saberes e
Desenvolvimento

Embú das Artes - SP


2019

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira
Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel
COMITÊ EDITORIAL DA EDUA
Louis Marmoz Université de Versailles
Antônio Cattani UFRGS
Alfredo Bosi USP
Arminda Mourão Botelho Ufam
Spartacus Astolfi Ufam
Boaventura Sousa Santos Universidade de Coimbra
Bernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira UFC
Conceição Almeira UFRN
Edgard de Assis Carvalho PUC/SP
Gabriel Conh USP
Gerusa Ferreira PUC/SP
José Vicente Tavares UFRGS
José Paulo Netto UFRJ
Paulo Emílio FGV/RJ
Élide Rugai Bastos Unicamp
Renan Freitas Pinto Ufam
Renato Ortiz Unicamp
Rosa Ester Rossini USP
Renato Tribuzy Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitor
Jacob Moysés Cohen

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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Aos povos tradicionais da Amazônia profunda,
em especial, a Antônio da Silva Barros,
nosso apreço e reverência.

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© Alexa Cultural

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Klanger
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Revisão Técnica
Iraildes Caldas Torres e ichel Justamand

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

T693i - TORRES, Iraildes Caldas


B277r - BARROS, Rooney Vasconcelos

Amazônia: gênero, fronteira, saberes e desenvolvimento, Iraildes Caldas


Torres e Rooney Vasconcelos Barros, Manaus: EDUA; São Paulo: Alexa
Cultural, 2019.

14x21cm -298 páginas


ISBN - 978-85-5467-152-5
1. Antropologia - 2. Amazonas - 3. Interdisciplinaridade - 4. Artigos
5. Brasil - I- Sumário - II Bibliografia

CDD - 301

Índices para catálogo sistemático:


1. Amazonas
2. Antropologia
3.Interdisciplinaridade

Alexa Cultural Ltda


Rua Henrique Franchini, 256 Editora da Universidade Federal do Amazonas
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, n.
alexa@alexacultural.com.br 6200 - Coroado I, Manaus/AM
alexacultural@terra.com.br Campus Universitário Senador Arthur Virgilio
www.alexacultural.com.br Filho, Centro de Convivência – Setor Norte
www.alexaloja.com Fone: (92) 3305-4291 e 3305-4290
E-mail: ufam.editora@gmail.com

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO
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SEÇÃO I
OS SABERES TRADICIONAIS COMO MATRIZ
DOS POVOS ORIGINÁRIOS DA AMAZÔNIA

SABER TRADICIONAL COMO MATRIZ INDÍGENA


Rooney Augusto Vasconcelos Barros e Artemis de Araújo Soares
- 21 -

O ETNOCONHECIMENTO NAS PRÁTICAS EDUCATIVAS DA


COMUNIDADE TICUNA UMARIAÇÚ I EM TABATINGA-AM
Junior Peres de Araujo e Gláucio Campos Gomes de Mato
- 37 -

CASA DE FARINHA, UM LOCUS DE CONHECIMENTO


MATEMÁTICO
Francilene dos Santos Cruz e Marilene Corrêa da Silva Freitas
- 51 -

ARAÚJO LIMA E OS ESTIGMAS SOBRE O CLIMA E O HOMEM


DA AMAZÔNIA
Odenei de Souza Ribeiro
- 63 -

SEÇÃO II
CULTURAS INDÍGENAS EM AMBIENTE
DA EDUCAÇÃO FORMAL

OS ALTERINO DA AMAZÔNIA: IDENTIDADE, TERRITÓRIO E


TRANSIÇÃO URBANOLÓGICA
Elenilson Silva de Oliveira e Michel Justamand
- 77 -

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O VALE DO JAVARI E A EDUCAÇÃO FORMAL
NO SÉCULO XX: O QUE NOS APONTAM OS DOCUMENTOS
HISTÓRICOS ACERCA DA “ESCOLA PARA ÍNDIOS” NA
AMAZÔNIA BRASILEIRA?
Ildete Freitas Oliveira e Heloísa Helena Corrêa da Silva
- 95 -

A ECOLOGIA LINGUÍSTICA DO ALTO SOLIMÕES:


UM PANORAMA SOCIOLINGUÍSTICO DAS
LÍNGUAS EM CONTATO
Rosinéa Auxiliadora Pereira dos Santos e
Renilda Aparecida da Costa
- 115 -

SIMBOLOGIA MITOLÓGICA: DA INFÂNCIA


À ESCOLA SOB OLHAR TICUNA
Maria Auxiliadora Coelho Pinto e Michel Justamand
- 129 -

SEÇÃO III
O COMÉRCIO, AS VOZES SUBALTERNAS E A
SUSTENTABILIDADE NA FRONTEIRA

CARACTERIZAÇÃO DO COMÉRCIO PERUANO NA TRÍPLICE


FRONTEIRA BRASIL-COLÔMBIA-PERU: UM OLHAR POR
DETRÁS DA LENTE
Selomi Bermeguy Porto e Heloísa Helena Corrêa da Silva
- 149 -

AS VOZES SUBALTERNAS DO SINDPESCA/TABATINGA:


UM OLHAR INTERDISCIPLINAR SOBRE A VIOLÊNCIA NAS
ÁGUAS DO RIO SOLIMÕES NO ESTADO DO AMAZONAS
Dime Alexandre Londono Gomes, Luiz Fábio Silva Paiva e
Marilene Corrêa da Silva Freitas
- 167 -

- 10 -
POVOS DA FRONTEIRA E SUSTENTABILIDADE:
UM OLHAR PARA A COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS
AGRÍCOLAS DAS MULHERES RURAIS DE BENJAMIN
CONSTANT, NO AMAZONAS
Hilton Marcos de Araújo e Evandro de Morais Ramos
- 185 -

AS RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE OS HOMENS E AS


MULHERES NA PRODUÇÃO DA FARINHA ENQUANTO UM
CONHECIMENTO TRADICIONAL NA COMUNIDADE DE
NAPORA EM BENJAMIN CONSTANT/ ALTO SOLIMÕES
Jarliane da Silva Ferreira e Rosemara Staub de Barros
- 199 -

SEÇÃO IV
GÊNERO, PRÁTICAS ECOLÓGICAS, VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER E POLÍTICA HABITACIONAL

PRÁTICAS ECOLÓGICAS NO APRENDIZADO E DIFUSÃO


DE PLANTAS MEDICINAIS: O PAPEL DA MULHER EM
COMUNIDADES RIBEIRINHAS NA AMAZÔNIA
Evelyn Barroso Pedrosa, Débora Cristina Bandeira Rodrigues,
Camila Fernanda Pinheiro do Nascimento e Thamirys Souza e Silva
- 217 -

AGRICULTURA FAMILIAR NA AMAZÔNIA:


UMA QUESTÃO DE GÊNERO
Viviane de Oliveira Rocha e Iraildes Caldas Torres
- 235 -

SERVIÇO SOCIAL E A POLÍTICA DE HABITAÇÃO:


O TRABALHO SOCIAL NO PROGRAMA HABITACIONAL
MINHA CASA MINHA VIDA, COMO INSTRUMENTO DE
ACESSO DAS MULHERES À MORADIA
NA CIDADE DE MANAUS/AM.
Carliane Castro Silva e Sandra Helena da Silva
- 251 -

- 11 -
MULHERES VIOLENTADAS, QUEM SOMOS?
O PERFIL DAS MULHERES QUE SOFRERAM VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA NO ÂMBITO MARITAL ATENDIDAS NO
PRIMEIRO JUIZADO MARIA DA PENHA DE MANAUS.
Rayane de Oliveira Viana e Iraildes Caldas Torres
- 269 -

SOBRE OS ORGANIZADORES
- 285 -

SOBRE OS AUTORES
- 287 -

- 12 -
APRESENTAÇÃO
As pesquisas apresentadas nesta coletânea deslindam uma
porção da Amazônia Ocidental, circunscrita ao território do Ama-
zonas, com grande predominância investigativa na Tríplice Frontei-
ra Brasil/Colômbia/Peru. São resultados de pesquisas de mestrado e
doutorado que revelam modos de vida, saberes tradicionais e rela-
ções de trabalho, configuração de gênero, políticas públicas, educa-
ção indígena, dentre outras manifestações socioculturais da realida-
de amazônica.
A sistematização do conhecimento é uma artesania e uma
práxis laboriosa que exige preparo e entendimento intelectual. Aqui
reside a importância e significado da presença de um programa de
pós-graduação na Tríplice Fronteira Brasil/Colômbia/Peru, como
uma ferramenta de humanização socioeducativa que serve tanto
para a libertação e transformação do sujeito pesquisador, quanto das
coisas que ele descobre e que dá a conhecer ao mundo por meio de
análise reflexiva. O mundo circundante, envolvido neste processo,
espera ser transformado pela práxis do pesquisador e da pesquisado-
ra no âmbito de suas descobertas.
O sujeito possui uma função social na construção do conheci-
mento, uma postura engajada e compromissada com a sociedade. O
conhecimento tem o propósito de impactar a sociedade, contribuin-
do para o desenvolvimento dos povos. Deve contribuir para deso-
bstruir os preconceitos, as intolerâncias e as interpretações errôneas
sobre a Amazônia. Os saberes tradicionais são expressões marginais,
não inteligíveis aos olhos da ciência moderna, fato que contribui
para impor dificuldade à construção de um pensamento, a partir dos
locais, dos povos originários da Amazônia. Esses povos possuem um
conjunto de saberes e técnicas que aos poucos estão sendo desven-
dadas pelas novas formas de pensar a realidade sob os auspícios de
uma nova ciência.
As pesquisas que compõem esta coletânea se põem nas sendas
dos saberes tradicionais, em sua ampla maioria, valorizando o debate
ecológico com os sujeitos da investigação. São dezesseis textos ou
artigos didaticamente dispostos em quatro seções que oferecem ao
leitor uma amostra das pesquisas realizadas no município de Ben-

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jamin Constant, Tabatinga, Parintins e Manaus, todos no Estado do
Amazonas. Seguem uma linha metodológica da interdisciplinarida-
de, em sua ampla maioria, numa conversação dialógica do tecer-jun-
to envolvendo várias disciplinas.
A primeira seção traz o tema dos saberes tradicionais enquan-
to matriz dos povos originários da Amazônia. Rooney Augusto Vas-
concelos Barros e Artemis de Araújo Soares abrem a seção com o
debate crítico acerca dos pressupostos da ciência moderno-cartesia-
na que excluem o saber tradicional, considerando-o caricato, bizar-
ro e exótico. Os autores sugerem a descolonização do conhecimen-
to como uma forma de dar voz aos sujeitos locais de onde surgirão
conhecimentos, arquetipicamente instaurados, sob o fluxo de vozes
autorais.
Junior Peres de Araújo e Gláucio Campos Gomes Matos apre-
sentam uma discussão sobre o etnoconhecimento nas práticas edu-
cativas da comunidade Ticuna Umariaçú, apontando a forma pela
qual o currículo escolar inclui a temática indígena e de que maneira
esses saberes são postos em prática dentro da comunidade em ques-
tão. A casa de farinha como espaço de etnoconhecimento matemá-
tico é um tema abordado por Francilene dos Santos Cruz e Marilene
Corrêa da Silva Freitas, a partir de pesquisa realizada na comunidade
São Raimundo, área rural de Tabatinga, no Amazonas. As autoras
expõem a maneira pela qual a matemática é aplicada no cotidiano
dos moradores da comunidade, mostrando sua pertinência na cons-
trução da casa de farinha e seus utensílios. No encerramento dessa
seção Odenei de Souza Ribeiro traz uma reflexão acerca dos estigmas
sobre o clima e o homem amazônico, apresentando as asserções de
Araújo Lima sobre o clima caluniado, fazendo o contraponto crítico
quanto ao preconceito com a região e apresentando sua gente.
Elenilson Silva de Oliveira e Michel Justamand abrem a
segunda seção expondo o tema dos índios Alterino no Vale do Javari,
com o debate sobre a identidade, o território e a transição urbanoló-
gica no contexto da fronteira e da multiculturalidade. No âmbito da
cultura indígena, Ildete Freitas Oliveira e Heloísa Helena Corrêa da
Silva apresentam uma problematização sobre os documentos acer-
ca da “Escola para índios” na Amazônia, tomando o Vale do Javari
como uma espacialidade que clama pela educação escolar indígena.

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A ecologia linguística no Alto Solimões é um tema discuti-
do por Rosinéia Auxiliadora Pereira dos Santos e Renilda Aparecida
Costa, as quais mostram um panorama sociolinguístico das línguas
em contato e dos estudos que estão sendo realizados neste tema
no âmbito do Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia. Encerrando esta seção, Maria Auxiliadora Coelho Pinto e
Michel Justamand, expõem o tema da simbologia mitológica, visua-
lizando a vida dos Ticuna desde a infância até as escolas sob o olhar
dos próprios indígenas.
Na abertura da terceira seção Selomi Bermeguy Porto e He-
loísa Helena Corrêa da Silva, expõem o tema do comércio peruano
na Tríplice Fronteira Brasil/Colômbia/Peru, uma região rica, onde
as relações e influências se misturam a ponto de se ter dificuldade de
encontrar seus limites fronteiriços. Trata-se de relações sociais que
se entrelaçam em todos os sentidos da vida em sociedade, incluindo
as relações comerciais que se efetivam de forma flexibilizada e desre-
gulamentada no que diz respeito aos produtos peruanos comerciali-
zados no Brasil.
No artigo intitulado As vozes subalternas do SINDPESCA/
Tabatinga, Dime Alexandre Gomes, Luiz Flávio Paiva e Marilene
Corrêa da Silva Freitas discutem a violência na Tríplice Fronteira
Brasil/Colômbia/Peru, apontando como se constitui o aparato esta-
tal na efetivação de controle e segurança dos povos tradicionais que
vivem na Amazônia. A pesquisa constata que o aparato de segurança
pública não consegue proteger os trabalhadores da pesca artesanal
que trabalham nas águas do rio Solimões, os quais acabam ficando
em estado de vulnerabilidade social.
Hilton Marcos de Araújo e Evandro de Morais Ramos, nos
brindam com o tema da sustentabilidade no âmbito da comercializa-
ção de produtos agrícolas por parte das mulheres rurais, no municí-
pio de Benjamin Constant, no Amazonas. Os autores apresentam a
comercialização informal de produtos agrícolas produzidos e comer-
cializados pelas mulheres na feira da cidade, com o propósito de dar
visibilidade a estas trabalhadoras que são pouco vistas nos estudos
científicos, com raras exceções. Jarliane da Silva Ferreira e Rosemara
Staub Barros discutem as relações sociais entre homens e mulheres
na casa de farinha, cujo trabalho de produção é realizado por todos

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os membros da família, não só pela mulher. As mulheres aparecem
na pesquisa como as guardiãs de sementes crioulas, disseminando a
prática de produção de alimentos saudáveis, sem o uso de agrotóxi-
cos.
Na última seção dedicada aos estudos de gênero, Evelyn Pe-
drosa, Débora Rodrigues, Camila Nascimento e Thamirys Silva,
expõem as práticas ecológicas do aprendizado e difusão de plantas
medicinais, chamando a atenção para a importância do papel das
mulheres residentes em comunidades tradicionais da Amazônia,
particularmente no interior do Amazonas. Guardiãs dos saberes
tradicionais no manuseio das ervas, as mulheres contribuem para a
cura de doenças e outros males, sobretudo aqueles que acometem
as crianças, sendo, pois, importante a divulgação destas práticas e
saberes.
Viviane de Oliveira Rocha e Iraildes Caldas Torres, apresen-
tam o tema da agricultura familiar na Amazônia, com foco no Ama-
zonas, apontando as questões de gênero como elementos prepon-
derantes no sistema agrícola. As autoras discutem a agricultura e a
mulher associadas à fecundidade, ambas são geradoras de vida, o que
lhes confere um simbolismo de gênero.
No âmbito do Serviço Social e da política habitacional Carlia-
ne Castro Silva e Sandra Helena da Silva, discutem o Programa Mi-
nha Casa, Minha Vida, como instrumento de acesso das mulheres à
política de habitação. No fechamento desta seção, Rayane de Oliveira
Viana e Iraildes Caldas Torres, comparecem com o tema da violência
doméstica, apresentando o perfil das mulheres violentadas atendidas
no Primeiro Juizado Maria da Penha, na cidade de Manaus. As au-
toras chamam a atenção para o fato de que as agressões perpetradas
contra as mulheres crescem assustadoramente na cidade de Manaus
e que, na maioria das vezes, os agressores são seus maridos e ex-com-
panheiros.
Há, pois, necessidade de divulgarmos pesquisas que são de-
senvolvidas no âmbito da pós-graduação na Amazônia, pois não só
contribuem para o desenvolvimento regional, como também põem
em visibilidade as práticas e saberes dos povos tradicionais. É preciso
dar atenção às novas formas de fazer ciência que valorizem os sujei-
tos locais e as formas culturais e cognitivas dos saberes tradicionais.

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Por fim, cumpre-me agradecer à Fundação de Amparo à Pes-
quisa do Estado do Amazonas – FAPEAM, pelo apoio à publicação
desta coletânea por meio do Programa de Apoio à Pós-graduação
– POSGRAD. Agradecimentos também ao Programa de Pós-Gra-
duação Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal
do Amazonas, pela sensibilidade em aportar recursos do POSGRAD
à publicação.

Iraildes Caldas Torres


Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas

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SEÇÃO I
OS SABERES TRADICIONAIS COMO MATRIZ
DOS POVOS ORIGINÁRIOS DA AMAZÔNIA

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O SABER TRADICIONAL COMO MATRIZ
INDÍGENA
Rooney Augusto Vasconcelos Barros1
Artemis de Araújo Soares2

INTRODUÇÃO
Este estudo concentra-se na intenção de averiguar as formas
como se expressam os saberes tradicionais como matriz indígena na
Amazônia. Procuramos delinear nossas discussões na antropologia
do território sobre os saberes da Amazônia e o impacto com o co-
nhecimento ocidental. Busca-se investigar os novos pesquisadores a
adotar uma postura voltada para a descolonização do conhecimento,
tendo por base o reconhecimento dos saberes tradicionais como pro-
pulsores de conhecimento, capazes de explicar os nexos da vida na
Amazônia, em suas relações de materialidade e imaterialidade.
Os saberes tradicionais aqui discutidos nos impõem desafios
vultosos. Um deles é a possibilidade de constituir um objeto de estu-
do deslocado da ótica homogeneizadora e linearizante da razão mo-
derno-ocidental e, assim, trilharmos nas veredas da razão sensível.
Assenta-se num olhar rizomático que exige um desvio para nave-
gar em outras águas. Estamos falando de um conhecimento sensível
e imaginativo capaz de compreender o objeto em suas dimensões
mitológicas presentes nas narrativas orais, nos códigos morais e na
relação recíproca do homem com a natureza.
Esta pesquisa estabelece um diálogo fecundo com os saberes
locais, pondo no epicentro das discussões o “beiradão” amazônico,
a periferia rural, por assim dizer, para fazer “delirar” o debate em
torno dos saberes tradicionais, tendo como lugar de partida à cultura
local. É, este, pois, o lugar de enunciação deste estudo, a cultura rizo-
mática da floresta, da região varzeana.
1 Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas.
Professor e Coordenador de Projetos da Secretaria de Estado da Educação do Amazonas.
Email: r.vasconcelosbarros@gmail.com
2 Doutora em Ciências dos Desportos pela Universidade do Porto, Portugal. Professora da
Universidade Federal do Amazonas.

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No âmbito da experiência, os povos tradicionais da Amazônia
vão construindo os significados de suas vidas, suas subjetividades,
dentro de seus processos, ou seja, uma construção social, numa in-
terrelação com o outro e a cultura, tal qual a alma que adquire cres-
cimento no processo de socialização.
O trabalho seguiu as orientações metodológicas das aborda-
gens qualitativas, sem exclusão dos aspectos quantitativos, num de-
bate fecundo com a Filosofia, Antropologia e Sociologia. O campo da
pesquisa concentra-se na Comunidade Nossa Senhora das Graças,
na região do Paraná do Limão, área rural do Município de Parintins,
no Amazonas.
Deve-se reconhecer, por fim, a importância desta pesquisa
para a atualidade do conhecimento sobre a Amazônia profunda, sua
matriz epistêmica no campo dos saberes tradicionais, tendo como
ponto de partida um olhar de dentro da região que aponte para novas
formas de percepção longe dos estereótipos e preconceitos para com
a sua gente.
Palavras-chave: SaberTradicional, Indígena, Amazonas.

Um olhar para saberes tradicionais da Amazônia


Situar as discussões iniciais deste trabalho na antropologia do
território requer um exercício de construção sobre o tema da Ama-
zônia e da cultura das pessoas que habitam a região. O saber tra-
dicional e a ciência constituem polos que distanciam as diferentes
maneiras de viver dos povos, sua história, cultura e identidade. Esse
dualismo estabelecido no conhecimento ocidental dificulta a cons-
trução de um pensamento, a partir das localidades amazônicas.
Não obstante, essa matriz moderno-cartesiana vai sendo mo-
dificada e atualizada na história da América Latina, no âmbito da
produção do conhecimento, na literatura e nas artes de modo geral.
As produções realizadas pelo Programa de Pós-Graduação Socieda-
de e Cultura na Amazônia, ao qual estamos vinculados, é ilustrativo
do assunto que nos ocupa a mente neste momento. Os variados ma-
tizes interpretativos da região, por meio de uma perspectiva interdis-
ciplinar, dão novo vigor e fundamentos aos modos de vida dos povos
tradicionais e sua inserção no pensamento ocidental. De acordo com
Torres (2005, p.17,18), “a Amazônia é uma constelação aberta, sem

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fronteiras rígidas, articulada por processos sociais de grande alcance
simbólico que fazem dela uma construção social inventada pelo libe-
lo da fantasia e reconstruída em sua significação social”. E acrescenta:
Trata-se de uma realidade multifacetada em sua dimensão
regionalizada e em suas formas de conexão com o mundo. A sua
sociodiversidade abre um veio de múltiplas interpretações centradas
no núcleo homem/natureza/sociedade, cujas indagações são inesgo-
táveis como fonte de conhecimento.
A Amazônia não é, em si mesma, um paradigma de conhe-
cimento e nem uma epistemologia das criaturas. Ela é um campo
de saber multifacetado, aberto e prenhe de múltiplas interpretações
como expõe a autora retromencionada. Precisa ser interpretada com
lentes descolonizadas que possam corrigir os nódulos de obscurida-
des, construídos erroneamente e intencionalmente pelo matiz euro-
cêntrico ocidental.
O sistema de negação dos saberes tradicionais, elaborado e
mantido por uma racionalidade hegemônica, como sugere Santos
(2000), se encarregou peremptoriamente, de estabelecer o asilo en-
tre ciência e saberes tradicionais (tradição), numa flagrante ação de
epistemicídio anunciado por esse mesmo autor. Trata-se de ações
político-ideológicas configuradas em sistemas de exclusão, que pro-
duziram descodificação de fluxos, processos e controle de territórios,
genocídio indígena e vários outros processos de violências, cujas
consequências sangram a região até os dias atuais.
Esse sistema de exclusão, com efeito, é mantido sob algumas
normas e/ou dispositivos de poder, conforme podemos captar em
Foucault. A primeira norma de exclusão diz respeito ao impedi-
mento de construção de um pensamento próprio, local, configurada
numa interdição. Sob os nexos da interdição, os locais ou os coloni-
zados “não têm o direito de falar [...]. Não se pode[m] falar de tudo
em qualquer circunstância [...]. Qualquer um não pode falar de qual-
quer coisa” (FOUCAULT, 2006, p.9).
A segunda norma tácita de exclusão assenta-se na separação
entre razão e loucura. Segundo esta interdição, “o louco é aquele cujo
discurso não pode circular como o dos outros” (FOUCAULT, 2006,
p. 10). A terceira interdição, por fim, é a separação entre verdadeiro
e falso. Consiste em identificar que “o discurso verdadeiro, preciso
e desejável, é aquele ligado ao exercício do poder” (IBIDEM, p. 13).

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Foucault elucida essas interdições mostrando que elas subja-
zem ao pensamento ocidental, principalmente no que diz respeito
ao binarismo verdadeiro e falso. São sombras que se abatem sobre o
conhecimento, produzindo obscuridades (AGAMBEN, 2009) e uma
sociologia das ausências (SANTOS, 2000). É preciso, pois, abrir cla-
reiras, focos de luz, numa perspectiva de descolonização do conhe-
cimento para, então, construirmos a nossa própria teoria do conhe-
cimento, longe da segregação e coisificação dos saberes tradicionais
rastreados pela perspectiva do Norte, hegemônica e patriarcal.
No horizonte dessa visão de conhecimento hegemônica, as
sombras vão se configurando em não ser, negação da tradição, da ex-
periência, execração do senso comum, enfim, um tipo de pensamen-
to que estabelece o processo civilizatório sob os nexos da exclusão. É
assim que o território vai se configurando em instrumento de exercí-
cio de poder, quer seja pelo libelo das ações missionárias expressas na
conquista religiosa que se estabeleceu na Amazônia, desde o século
XVII, quer seja pela superestrutura do poder da Coroa no período
colonial e do Estado Nacional nos dias atuais.
Estamos nos referindo não só à destituição dos povos originá-
rios da Amazônia de seus locais de pertença, suas terras, promovido
pelo poder colonizador, mas também estamos falando de um con-
junto de fluxos definidos pelo capital para a região que tomam de
assalto os recursos naturais, transformando a região num palco de
disputa internacional (REIS, 1968).
Esta é, pois, a máquina capitalista, desejante, social e técni-
ca, correspondente a um pensamento único e a uma “única história
universal da contingência” (DELEUZE e GUATTARI, 2010, p. 301).
Nesse processo capitalista, a terra passa a ser vista como signo abstra-
to, um bem mercantil, uma mercadoria de troca.
A terra, no nascedouro do mercantilismo, passa a ser objeto
de disputa e de conquista, em cujo período fértil do quinhentismo
assentou-se o projeto colonizador em busca de novos territórios.
É, pois, neste processo violento de domínio das forças estrangeiras
sobre o Novo Mundo que ocorreu a desapropriação dos povos ori-
ginários de sua pertença territorial, oprimindo-os também em seus
saberes e modo de vida tradicional.
Esse processo de disputa territorial, sob a égide da acumula-
ção de capital e sob o manto da ciência, encarregou-se de estabelecer

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o hiato entre o homem e a natureza, numa relação de dominação e
subserviência. Capra (1982, p. 199) chama a atenção para o fato de
que,
O homem vive na natureza significa que a natureza é seu cor-
po, com o qual ele deve permanecer em contínuo intercurso se não
quiser morrer. Que a vida física e espiritual do homem está vinculada
à natureza significa, simplesmente, que a natureza está vinculada a si
mesma, para o homem é parte da natureza.
A natureza ou o ecossistema enquanto physis3 material e ima-
terial sofreu exclusão, foi diminuída em seus significados, tornou-se
menor, irracional, sob o domínio da razão ocidental. Tanto o sistema
capitalista quanto os Estados Nacionais se apropriaram dos recursos
naturais, coisificando-os no campo da mercantilização, destituindo
a natureza de sua ontologia. Uma ontologia de pertencimento e de
entrelaçamento entre natureza e cultura. O asilo natureza e cultu-
ra, criticado por Lévi-Strauss (1991), não contribui para o avanço
da humanidade ou para o desenvolvimento humano. Produziu, pelo
contrário, uma distensão, abriu uma fenda, um distanciamento entre
o mundo humano e o mundo natural. Numa leitura crítica sobre as
exclusões e dominação produzidas no âmbito do conhecimento mo-
derno, Lander (2005, p. 21), se expressa no seguinte sentido:
Essa preparação não oferece limites ao controle da natureza
pelo homem, e, ao mesmo tempo em que as ciências modernas se
desenvolvem a partir da ilustração, acontecessem sucessivos proces-
sos de separação, representados pelas rupturas entre corpo e mente,
razão e mundo.
É, pois, sob a égide da ilustração consubstanciada no Ilumi-
nismo como movimento, que fez nascer a razão como o único vetor
de conhecimento, que ocorreu a cisão entre povos bárbaros e civili-
zados, branco e negro, ciência e tradição ou experiência/modos de
vida. A mitologia, neste âmbito, é uma excrescência, vista como uma
“estória”, falseada com menor estatura. Ora, se “o mito é a história
de um povo, é a identidade primeira e mais profunda de uma coleti-
vidade” (LÉVI-STRAUSS 1991, p.15), como não assumir o status de
racionalização?4 De acordo com Santos (1996, p. 145),
3 Os pré-socráticos conceberam a physis em completa harmonia com o mundo circundan-
te sem ruptura, entre vida humana e vida natural/animal.
4 Racionalização enquanto forma de pensar distinta, diferente do Cogito (Razão). Existem
inúmeras formas de pensar que não se enquadram na estrutura canônica da ciência mo-
derna. São racionalizações e não racionalidade.

- 25 -
Todos os conhecimentos sustentam práticas e constituem sujei-
tos. Todos os conhecimentos são testemunhais porque o que co-
nhecem sobre o real (a sua dimensão ativa), se reflete sempre no
que dão a conhecer sobre o sujeito do conhecimento (a sua di-
mensão subjetiva) [...]. A ecologia dos saberes expande o caráter
testemunhal dos acontecimentos de forma a abarcar igualmente
as relações entre o conhecimento científico e o não científico,
alargando deste modo, o alcance da intersubjetividade como in-
terconhecimento e vice-versa.

Assimilar a cultura do lugar5 e discorrer sobre a sua gente,6


tendo como horizonte uma perspectiva de descolonização e de eco-
logia dos saberes, é um desafio, senão uma ousadia. E a primeira ou-
sadia, por assim dizer, consiste em reconhecermos a presença de um
patriarcado muito forte presente na região (TORRES, 2005). Pode-se
dizer que o verniz patriarcal está incrustado na Ilha Tupinambarana
desde o nome dessa localidade, passando pelas formas arquitetônicas
das igrejas que guardam aspectos visuais da falocracia nos formatos
das torres das capelas, nos monumentos e obeliscos. Cerqua (1980)
nos informa que a palavra Tupinambá significa homem viril, um ho-
mem guerreiro. A palavra Tupinambarana significa Tupi não verda-
deiro, circunscrita aos índios mestiços derivados dos Tupi. Castro
(2018, p.112), chama a atenção para o fato de que,
A identidade masculina patriarcal e hegemônica se estabelece
a partir de uma encarnação do poder de dominação via represen-
tações e significados incorporados nas culturas e estruturas sociais.
Esta imagem onipresente masculina, se expressa nas relações sociais.
A masculinidade patriarcal se legitima a partir da dominação e da
busca exacerbada do poder.
Agamben (2007) sugere a noção de biopolítica para com-
preender a luta da vida contra o poder, o qual busca submeter a pró-
pria vida a seus fins, muitas vezes, por meios ilegítimos. A masculi-
5 Em 1832, a Ilha Tupinambarana é elevada à categoria de cidade. A fundação do povoado
remonta o ano de 1796 sob a égide do capitão José Pedro Cordovil, seu fundador.
6 Parintins é uma territorialidade fundada sob a estirpe de várias etnias indígenas, tais
como: os Aratus, Apocuiaras, Yaras, Goduis e Curiatás. Estes foram os primeiros grupos
étnicos que habitaram a região parintinense. Tempos depois, provavelmente, no tempo
da conquista chegaram os Tupinambá provenientes da Costa brasileira. A partir de 1600
esse movimento migratório transformou-se num êxodo. Mais tarde, 1803 chegaram os
Mundurucu. A esse pessoal, reuniram-se outros civilizados. Toda essa gente plantava
tabaco, cacau, guaraná e maniva de cujas raízes faziam farinha. Cordovil deu lugar o nome
de Tupinambarana. (ver CERQUA, 1980; BITTENCOURT, 2001).

- 26 -
nidade patriarcal incorpora um tipo de poder ilegítimo, sendo, pois,
uma profanação que se deve resistir e destronar, como revela este
autor. A dominação masculina está em todos os lugares e espaços da
sociedade, uma ideia transvestida de ações, objetos, arquitetura, no-
mes de instituições e cidades. Se prestarmos atenção à denominação
da cidade de Parintins, vamos perceber que há uma valorização do
patriarcado viril, e não uma positivação da cultura local. Tupinam-
barana é um termo tributário de uma ancestralidade de grande valor
ontológico, existente no Brasil. Uma nação indígena, por assim dizer,
das mais vigorosas em termos de organização social, detentora de
um sistema moral riquíssimo e bem fundamentado nos valores de
domínios transcendentais como os princípios de liberdade, equida-
de, bem e mal. Torres (2015, p. 21) assinala dizendo que,
Talvez João Daniel esteja correto quando diz que a diferença
existente entre os indígenas e os brancos não seja de grau de huma-
nidade ou de raça superior e inferior, maior ou menor. A diferença
se interpõe no espectro da cultura dos povos que possuem aparato
de formação social dentro de seu regime de verdade historicamente
construído e elaborado.
É fato amplamente constatado que as culturas indígenas pos-
suem riquezas e organização social bem definidas. Esta constatação
acaba sendo um dado inaceitável por parte da estrutura de poder
eurocêntrica reforçado pela ciência moderna. Não nos causa espan-
to percebemos que a hegemonia do conhecimento regulador, como
sugere (SANTOS, 2010), tem seus olhares voltados para a invisibi-
lização das experiências, da tradição, promovendo um processo de
epistemicídio. Conforme este autor,
Na perspectiva das epistemologias abissais do Norte global,
o policiamento das fronteiras do conhecimento relevante é de longe
mais decisivo do que as discussões sobre diferenças internas. Como
consequência, um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer nos úl-
timos cinco séculos, e uma riqueza imensa de experiências cognitivas
tem vindo a ser desperdiçada (SANTOS 2010, p. 61).
Ler e interpretar o mundo são práticas forjadas em espaços e
tempo diferentes, em contextos culturais também diferentes, cujos
resultados remetem para o viver melhor dos povos e do planeta. A
interpretação do mundo, embora seja notadamente no âmbito da

- 27 -
ciência, sua matéria prima advém da realidade presente nos modos
de vida, nas cosmovisões arquetípicas, enfim, provém da economia
das trocas simbólicas, como anotou Bourdieu (2007).
Em entrevista com um dos sujeitos que compõe a amostra
de nossa pesquisa, estudioso da Amazônia e natural de Parintins,
constatamos o fato de que essa cidade, objeto desta análise, continua
possuindo forte influência das culturas indígenas em seu modo de
vida, Vejamos: “Parintins, como tantas outras cidades socioculturais
da Amazônia, possui forte influência de aspectos indígenas, assim
como da cultura portuguesa, japonesa, nordestina” (Ricardo Castro,
54 anos, professor universitário. entrevista, 2018).
O conjunto das coisas que se tornam manifestas ao ser social7
advém das suas culturas e experiências grupais vividas ao longo de
seus processos históricos. Lévi-Strauss (1996, p. 37) sinaliza dizendo
que:
A vivência como um todo decorre dos costumes e da filosofia
do grupo. É no grupo que os indivíduos aprendem sua lição; a
crença nos espíritos guardiões e própria ao grupo, e é a sociedade
inteira que ensina a seus membros que, para eles, só existe opor-
tunidade, no seio da ordem social.

É verdade, sim, que as culturas amazônicas de matriz indíge-


nas sofreram processos de amalgamação com outras culturas, sobre-
tudo a nordestina. De acordo com Torres (2005, p. 21),
As formas rústicas e tradicionais de lavrar a terra, por exem-
plo, advém da cultura dos nordestinos com os quais muitos cabocos8
amazônicos vão aprender. Os nordestinos trouxeram consigo a sua
culinária, o seu folclore, mitologia, a sua religiosidade popular e toda
uma experiência de sacrifícios que eles assimilaram como estratégia
de sobrevivência em meio ao sertão árido e ao fenômeno da seca.
Não resta dúvida quanto à constatação de que o encontro de
culturas enriqueceu e se somou às experiências indígenas, mas sem
esquecer que as culturas indígenas permaneceram fortes e pujantes
em muitos aspectos de forma hegemônica. É o que percebemos na
fala de Ricardo Castro:
7 Ser Social é uma expressão utilizada por Karl Marx na grande maioria dos seus escritos
para denominar os trabalhadores, operários, construtores da história.
8 A expressão caboco que vem sendo utilizado pela autora tem a intenção de se distanciar
do termo caboclo de origem colonizadora. A autora está se referindo ao termo popular
carinhosamente utilizado entre os nativos da Amazônia.

- 28 -
Os aspectos da cultura indígena estão presentes na linguagem,
na alimentação, no folclore e principalmente nas expressões re-
ligiosas e terapêuticas que subjazem na vivência religiosa do pa-
rintinense católico e nas práticas cotidianas de benzição, uso de
ervas e massagem no corpo e nos ossos, visto na prática de cura
dos puxadores (entrevista, 2018).

Não se pode deixar de assinalar que esse tipo de experiência,


que se põe como verniz de práxis social, assume fortemente um con-
teúdo circunscrito ao saber ecológico. Um saber que brota da aura
arquetípica da ancestralidade (TORRES, 2015) e “para recuperar al-
gumas dessas experiências, a ecologia de saberes recorre ao seu atri-
buto pós-abissal mais característico, a tradução intercultural” (SAN-
TOS, 2010, p. 61). É esta, pois, a função praxiológica do pesquisador:
elaborar o conhecimento, tendo como mola mestra a descolonização,
assinalando a desconstrução dos preconceitos, estereótipos e até de
alguns tabus. Trata-se de uma função ímpar do sujeito que pesquisa
e elabora, aquele que se propõe a criar num processo imaginativo e
ruminante do pensamento.
Essa ideia da elaboração de conhecimentos, por dentro das
culturas locais, requer uma interpretação nova no pensar, uma nova
aclimatação da mente, um processo novo da reflexão no serviço do
fazer e do pensar. Descolonizar o conhecimento supõe trazer à luz
os excluídos da história, aqueles segmentos sociais que foram silen-
ciados, essencializados, enquadrados no mundo natural como meros
povos da floresta. Quijano (2005, p. 108), é enfático ao afirmar que
a elaboração da perspectiva eurocêntrica do conhecimento levou à
legitimação “de ideias e práticas de relações de superioridade (infe-
rioridade entre dominantes e dominados [...]. Um instrumento de
dominação social universal”.
A concepção humanística da filosofia, sobretudo os estudos
de Dussel (1986, p. 5), nos instiga criticamente, colocando-nos dian-
te “do tribunal do sistema que acusa o outro [...], culpável, réu, refém
no sistema”. Um sistema que fala pelo outro não só com preconceito
e intolerância, mas também criminalizando os sujeitos. Mas, não só
isso, conforme Castro (2018, p. 24),
Os povos tradicionais da Amazônia, assim como os escravos
africanos são entendidos como não humanos ou semi-humanos,

- 29 -
quase animais, sexualmente monstruosos e selvagens. O homem
branco burguês ocidental se autoconsiderou o sujeito adequado para
o governar.
A compreensão da realidade Amazônica não deve prescindir
de uma análise crítica dos conceitos coloniais construídos de forma
preconceituosa e ideologicamente hegemônica, para legitimar uma
ordem de eugenia e supremacia político-econômica sobre os povos.
É preciso pôr o indivíduo e o sujeito no epicentro do conhecimento,
ao invés de pôr em relevo a paisagem natural como fizeram os viajan-
tes naturalistas em tempos idos.
Alguns autores como Santos (2000) sugerem que é preciso
reinventar a teoria crítica. Na perspectiva do complexo, reinventar
a teoria crítica não significa refutá-la. Significa, outrossim, revitali-
zar o pensamento emancipatório reposicionando-o naquilo que ela
sublinhou demasiadamente, seus excessos e cegueiras. Não devemos
mais, por exemplo, pensar em nome dos excluídos, mostrando-os
como coitadinhos e nem ver só o aspecto do sujeito frente às relações
de dominação e opressão. É preciso, também, abrir as contradições
existentes dentro dos grupos, comunidades, etnicidades, representa-
ção de trabalhadores e movimentos sociais que possuem seus exces-
sos, dominação, obcedâncias pelo poder, que possuem seus conflitos
e disputas acirradas que sangram e oprimem seus iguais.
Estamos falando da construção de um conhecimento que pos-
sa trazer à luz os silêncios, as sombras, os jogos de relações trapacei-
ras que se alojam nas estruturas sindicais, nas organizações comuni-
tárias, organizações indígenas que utilizam a boa-fé dos indivíduos
como moeda de troca numa sociedade do capital regida por classes.
Geralmente, essas agruras e obcedâncias não vêm a lume, mantendo
intacta e sem questionamento essa parte da sociedade, porque é trá-
gico envolver os excluídos nessas situações obscuras dos jogos. Maf-
fesoli (2003, p. 07), lembra que “não nos atrevemos a falar do que dá
medo. O trágico faz parte dessas coisas. É um não dito ensurdecedor,
é algo que, no cotidiano, é empiricamente vivido, é o sentimento trá-
gico da vida”.
Retomando o fio condutor de nosso raciocínio sobre a desco-
lonização do pensamento, deve-se apontar a necessidade de reabili-
tação da pessoa que foi eclipsada pela ciência moderna, termo que

- 30 -
foi sufocado e retirado de foco do seu próprio tempo para vagar no
reino da obscuridade. A concepção humanística das Ciências Sociais
enquanto agente catalisador da progressiva fusão das Ciências Natu-
rais e Ciências Sociais situa a pessoa, enquanto sujeito9 no mundo, no
centro do conhecimento, ao contrário das Ciências Humanas tradi-
cionais que põem a natureza humana no centro das discussões.
O desafio que se põe é estabelecer o diálogo com os diferentes
saberes numa perspectiva complexa de campos de experimentação
e cognição que conversem com o diferente, fazendo escavação das
tradições, contrário à sociologia da cegueira, como propõe Santos
(2000). É preciso, então, que a pessoa assuma o epicentro das discus-
sões, lembrando que “os dois séculos, os dois tempos não são apenas,
como foi sugerido, o século XIX e o XX, mas também, e antes de
tudo, o tempo da vida do indivíduo [...] e o tempo histórico coletivo
que chamamos o século XX” (AGAMBEN, 2009, p. 60).
A ideia de pessoa se diferencia das concepções de sujeito. En-
quanto que a noção de pessoa e de indivíduo assumem na moderni-
dade “um ponto de ação e de impressão particulares [...] do ‘eu’ como
condição da consciência e da ciência [...], consciência de ser e estar,
em que o ‘eu’ torna-se pessoalidade e personalidade” (MAUSS, 2003,
p. 186, 237, 239), a noção de sujeito na sociedade capitalista inscreve-
-se no estatuto da cidadania.10 A cidadania é a categoria que faz a me-
diação entre capital/trabalho. Nesse aspecto “compreender-se como
sujeito implica discutir o próprio sujeito” (NOGUEIRA, 1993, p. 31).
A nossa intenção, não obstante, é buscar uma explicação so-
bre a afirmação do homem e da mulher como uma forma específica
de ser, que somente pode se constituir em relações societais (comu-
nitárias) com os outros, e tem sua expressão primeira na forma de
um ser (existente) natural. Antes de constituir-se como ser social, o
homem congrega em si mesmo as propriedades das formas prece-
dentes de ser. Ele é tanto ser orgânico quanto ser inorgânico. É, pre-
ciso reconhecer, então, que a ideia de o homem submeter a natureza
à sua vontade não trouxe bons resultados à humanidade.
Ao se referir sobre o paradigma da ecologia profunda Ca-
pra (1996, p. 26) afirma que ela “não separa os seres humanos ou
9 Sujeito aqui compreendido como construtor da história, o sujeito do conhecimento e do
mundo da vida.
10 Não é o propósito deste estudo discutir o conceito de cidadania, ainda que não pos-
samos prescindir dela. Importa-nos mais a pessoa e sua cultura e visão de mundo e suas
relações no mundo da vida.

- 31 -
qualquer outra coisa do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não
como uma rede de fenômenos [...] interconectados [...]. Concebe os
seres humanos como um fio particular na teia da vida”.
É preciso considerar que o desenvolvimento do ser engendra
uma poiesis, uma produção da vida multidimensional, indiossincrá-
tica em sua condição de pertencimento de si como sapiens e demens,
relações que não estão circunscritas apenas à esfera da reprodução
física, mas incluem outros condicionantes históricos e vivenciais
como o desejo, as pulsões e a sedução que assumem igual relevância à
materialidade orgânica. As representações simbólicas que povoam o
imaginário das pessoas assumem igual importância em relação à ma-
terialidade. Essas representações são vitais porque envolvem o culto
aos ancestrais, mobilizam os mitos, o corpus moral e de crenças de
um povo, numa perspectiva de tributo às tradições e às experiências
acumuladas ao longo dos processos socioculturais.
A Amazônia, enquanto campo de conhecimento, continua
densamente desconhecida. Um desconhecimento de sua formação
sociocultural nos domínios da vida de sua gente, seus modos de vida,
seus sistemas de organização material e imaterial. É preciso deixar o
povo falar, abrir a caixa da tradição e seus sistemas simbólicos, sua
vida nua e crua, descolonizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O debate em torno dos saberes tradicionais, enquanto ma-
triz discursiva da tradição e experiências dos povos originários da
Amazônia, traz para o epicentro das discussões o “beiradão” e as co-
munidades interioranas desta região das águas e da grande floresta.
Apresentamos neste estudo a Amazônia enquanto campo de conhe-
cimento, para além de um laboratório de estudo, mas essencialmen-
te, como um campo epistemológico que se abre apara a ciência com
múltiplas dimensionalidades.
A Amazônia é uma realidade sociocultural protagonizada pe-
los povos originários de variadas etnias, os quais tem nos saberes tra-
dicionais as suas formas de conhecimento. A experiência é um con-
ceito que figura no âmbito dos saberes tradicionais como ação dos
sujeitos no plano da história. Sujeitos que se criam e se recriam em
meio aos processos socioculturais construídos ao longo da história.

- 32 -
Esta pesquisa mostra que a experiência dos povos tradicionais
da Amazônia encontra sentido e significação num modo de vida,
inspirado nos elementos cosmogônicos de efetivo entrelaçamento da
vida com a natureza. Há um acervo multifacetado de experiências
vividas pelas ancestralidades que estruturam modos de vida na rela-
ção homem/natureza/sociedade, ou seja, os povos tradicionais vivem
uma experiência singular e genuinamente impregnada de saberes
que emanam da terra/floresta/água e de seus entes sobrenaturais.
Esses saberes são prenhes de significados e simbologia, sendo,
pois, evocativos de um tipo de sabedoria que educam os sentidos no
plano da moralidade, das interdições, das relações que devem ser es-
tabelecidas com a mãe das águas, da mata, respeitando a terra e suas
leis no que diz respeito ao plantio e à colheita de produtos agrícolas,
enfim, estruturam a vida em sociedade. Não obstante, este tipo de
saber nem sempre é reconhecido pelas ciências, o que sugere uma
postura de descolonização do conhecimento por parte dos pesquisa-
dores contemporâneos.
Esta é, pois, a ideia central das discussões que empreendemos
neste texto. Apontamos a necessidade de a Amazônia ser olhada com
outras lentes, um olhar de dentro para fora, para corrigir as distor-
ções e as elaborações errôneas e preconceituosas que foram concei-
tualmente construídas em relação a região. Esta perspectiva precisa
ser acolhida pelos cientistas, pois é urgente a ideia de descolonização
do conhecimento, o que poderá contribuir de forma qualitativa para
reposicionar a Amazônia no pensamento ocidental.

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- 35 -
- 36 -
O ETNOCONHECIMENTO NAS PRÁTICAS
EDUCATIVAS DA COMUNIDADE TICUNA
UMARIAÇÚ I EM TABATINGA-AM
Junior Peres de Araujo11
Gláucio Campos Gomes de Mato12

INTRODUÇÃO
O presente artigo traz um estudo sobre a abordagem dos sa-
beres tradicionais nas práticas educativas formais do povo Ticuna
de Umariaçú, atentando-se para a maneira como o currículo aborda
essa temática e a forma como tais saberes são postos em práticas a
partir do ponto de vista dos educadores.
A comunidade indígena de Umariaçú I no município de Ta-
batinga-AM pertence à etnia Ticuna, o mais populoso grupo indí-
gena do Brasil segundo o IBGE. A comunidade de Umariaçú I está
situada às margens direita do Rio Solimões, vizinha à comunidade
de Umariaçú II também da etnia Ticuna e pertencente ao município
de Tabatinga. Juntas somam 7.219 habitantes (ISA, 2017), com uma
área de 4.855 (ha) homologada em 14 de dezembro de 1998. A maior
parte dos integrantes da comunidade é bilíngue, com domínio de sua
língua materna e do português, apenas uma minoria ainda não tem
domínio do português ou entende e fala pouco o português.
A comunidade não está tão distante da área urbana da cidade,
de modo que é possível o seu acesso mesmo por via terrestre, e apesar
da forte influência da cultura exterior, ainda prevalecem muitos aspec-
tos tradicionais da cultura Ticuna. As escolas da comunidade contam
com um currículo diferenciado, obedecendo à Constituição de 1988
com relação aos direitos fundamentais dos povos indígenas, em que
diz que devem ser asseguradas formas próprias de ensinar, com in-
clusão dos próprios elementos da cultura no currículo e nas práticas.
11 Licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Amazonas. Mestrando do
Programa Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas. ju-
nior_peres.a@hotmail.com
12 Doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas- Unicamp. Profes-
sor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia – Universidade
Federal do Amazonas.

- 37 -
Este estudo apresenta a análise do currículo que está sendo
desenvolvido nas escolas da comunidade, mostrando elementos da
cultura do povo Ticuna que são apontados como essenciais para
serem abordados nas práticas. Buscamos mostrar se realmente são
abordados e como são abordados estes saberes nas práticas desen-
volvidas pelos educadores, considerando a narrativa dos próprios
professores indígenas da comunidade.
O trabalho de campo foi realizado sob o aporte da entrevista
semiestruturada junto a uma amostra de 03 professores indígenas da
rede municipal de ensino, sendo 01 do sexo feminino e 02 do sexo
masculino, que são identificados com nomes fictícios de plantas e
animais, para preservar suas identidades.
A pesquisa mostra a relevância dos conhecimentos da cultu-
ra Ticuna, e a desvalorização atribuída pela comunidade educativa.
E possibilita repensar a execução de um currículo diferenciado por
meio das práticas pedagógicas.

O novo campo de conhecimento


Os estudos acerca dos conhecimentos tradicionais têm se in-
tensificado e tornado objeto de estudo de pesquisadores. Saberes que
antes permaneciam apenas no senso comum e narrativas, todavia
hoje passam a ganhar atenção e validade como conhecimento racio-
nal por meio dos métodos científicos.
A dicotomia entre a racionalidade e o senso comum sempre
pôs em xeque a validade dos vastos saberes dos povos tradicionais.
Todas as explicações e fazeres do homem, passados de geração a ge-
ração através da oralidade, tais como mitologia, histórias, lendas,
crenças, rituais, medicinas e as formas de interdependência homem-
-natureza, que resistem hoje, encontram respaldo nas práticas coti-
dianas desses povos e aos poucos foram ganhando espaço na ciência.
O etnoconhecimento é o campo que abarca todos os saberes
tradicionais ou local tornando-o válido cientificamente, não que este
não seja válido. Trata-se de saberes dados como verdades em deter-
minadas sociedades e em outras são postos em dúvida, tendo em vis-
ta a sua relatividade. Todavia, os estudos sobre toda forma de conhe-
cimentos e práticas de povos tradicionais, por meio das etnociências,
tendem a registrar, disseminar, preservar, valorizando o respeito aos

- 38 -
diferentes etnossaberes, questionando, assim, o etnocentrismo que
permeia o campo da pesquisa. Para Fernandes (2007, p. 02),

O prefixo ETNO procede do grego ÉTHNOS e em sua forma


mais antiga de ÉTHOS. ÉTNHOS para identidade de origem e
de condição, incluindo-se identidade de crenças, de valores, de
símbolos, de ritos, de morais, de língua, de códigos e de práti-
cas. Dessa identidade se formaram as vivências e os conceitos de
raça, povo, nação, classe social, corporação.

Neste sentido, o termo etno designa toda forma de explica-


ções, vivências e relações do homem em sociedades tradicionais. Dias
e Janeira apud Bastos (2013, p. 6196) afirmam que era impossível
pensar na junção do termo “etno” e “ciência”, pois historicamente
sempre se consideraram os saberes como manifestações atrasadas os
quais a racionalidade deveria desprezar. Atualmente, é retomada esta
questão no âmbito acadêmico para explicar um novo conhecimento
que se faz visível à racionalidade, e que sempre existiu, influenciando
maneiras de pensar e orientando valores e comportamentos sociais
(RODRIGUES, 2014, p. 208).
Da necessidade deste novo campo para estudo, deste novo
conhecimento, surgiu a Etnobiologia, numa intersecção entre Biolo-
gia e Antropologia, que, segundo Ferreira (2014, p. 19), corresponde
a toda forma de manejo dos povos tradicionais com os bens natu-
rais. No entanto, este novo campo não foi suficiente para estudar e
descrever a vastidão de saberes que se desenvolviam, necessitando,
portanto, de áreas mais específicas de estudos, delegando esta tare-
fa a campos interdisciplinares, incluindo várias disciplinas como a
Matemática, História, Geografia, Linguística, Medicina, Pedagogia,
Antropologia e tantas outras, surgindo assim o termo etnociências.
A integração dos saberes da tradição com as disciplinas dá ori-
gem a novos campos de estudos mais específicos, “todas as ciências
que consideram a cultura e a construção simbólica de um determi-
nado grupo e utiliza o prefixo etno é considerada uma etnociência”
(ibidem). É neste sentido, por exemplo, que temos etnobotânica, et-
noecologia, etnofarmacologia, etnohistória, etnolinguística, etnoen-
fermagem, etnomedicina, atnoantropologia, etnopedagogia, e tantas
outras possíveis (FERNANDES, 2007, p. 04).

- 39 -
O que todas têm em comum, tratam é o fato de estudar, pre-
servar e disseminar saberes construídos e perpassados ao longo de
gerações que, durante este processo, se estabeleceram como verdades
e assim permanecem independente do olhar racional da ciência.

Currículo das escolas indígenas Ticuna


A matriz curricular das escolas indígenas da comunidade de
Umariaçú I é o mesmo tanto para as escolas da rede municipal quan-
to estadual, pois o currículo da rede municipal ainda está em cons-
trução pela Secretaria Municipal de Educação (SEMED) do muní-
cipio e, portanto, até o momento está em execução o currículo da
Secretaria Estadual de Educação (SEDUC). Trata-se de um currículo
específico para escolas indígenas, atendendo a constituição, segundo
aponta o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas
(RCNEI), inscrito pelo artigo 210 da Constituição de 1988 que asse-
gura às comunidades indígenas formas próprias de aprendizagem e
de transmitir seus ensinamentos, e no artigo 215 aponta que é dever
do Estado proteger as manifestações culturais indígenas (BRASIL,
1998, p. 32).
Assim sendo, um currículo diferenciado que aborda a realida-
de específica a qual estará sendo desenvolvida passou a ser executado
em 2016 na comunidade intitulado Propostas pedagógicas de matri-
zes curriculares interculturais de referência para as escolas indígenas
no amazonas: ensino fundamental e ensino médio, pois anterior a
esta data era trabalhado a mesma matriz curricular das escolas não
indígenas. O atual currículo foi construído com a participação de
técnicos da Gerência de Educação Escolar Indígena, pedagogos, pro-
fessores, indígenas, gestores, conselheiros do Conselho de Educação
Escolar Indígena (CEEI/AM) e ainda professores das Universidades
do Estado do Amazonas (UEA) e Universidade Federal do Amazo-
nas (UFAM).
A matriz traz para o ensino de Linguagens a Língua Indígena,
Língua Portuguesa e Conhecimentos Tradicionais, em que a língua
materna é a primeira a ser aprendida na família e na escola trabalhada
em conjunto com a Língua Portuguesa e Conhecimentos Tradicio-
nais. Esta associação ocorre pelo fato de a língua indígena perpassar
por todas as áreas do conhecimento e torna-se elemento importante

- 40 -
para a comunicação e aquisição dos conhecimentos, e a língua por-
tuguesa se faz ferramenta crucial para propiciar o contato com não
indígenas. Ainda é assegurado o ensino de Língua Estrangeira, toda-
via, apenas a partir dos anos finais do Ensino Fundamental.
O ensino da Matemática e Conhecimentos Tradicionais é tra-
balhado intercultural e interdisciplinarmente, leva em consideração
os aspectos da cultura local e os saberes matemáticos presentes em
todos os contextos do cotidiano dos diferentes povos indígenas que
devem ser valorizados. O currículo indígena deve ser, na sua inte-
gralidade, voltado para a realidade sociocultural e interesses de cada
grupo. Por isso, o ensino da Matemática também não deve estar dis-
tante dos aspectos tradicionais locais e nem das experiências dos pro-
fessores e alunos (RAMOS, 2007).
Os componentes curriculares de Geografia e Contextos Locais
e Ciências e Saberes Indígenas defendem que o conhecimento deve
partir da realidade local do aluno e ligado diretamente a temas trans-
versais, levando ainda em consideração o conhecimento já adquirido
fora da escola. Igualmente a disciplina de História e Historiografia
Indígena parte do saber tradicional local antes do conhecimento sis-
temático, valorizando o conhecimento do povo, ao longo de gera-
ções, através da história oral dos mitos e lendas transmitidos pelos
mais idosos. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) afirma
que se deve “proporcionar aos índios, suas comunidades e povos,
a recuperação de suas memórias históricas” (BRASIL, 1996). É de
extrema importância o resgate e preservação dos saberes quase es-
quecidos, e que vivem apenas na memória de poucos.
O currículo apresenta os componentes de Arte, Cultura e Mi-
tologia; Práticas Corporais e Esportivas; e Formas Próprias de Educar:
Oralidade, Lazer e Expressões Culturais, os quais devem ser trabalha-
dos de acordo com a realidade que a escola apresenta, adequando-se
as experiências da comunidade educativa, em que este último refleti-
rá a criatividade do professor e sua capacidade de inovação das práti-
cas e deve contar principalmente com a participação de especialistas
em saberes tradicionais e sua aplicação por meio de projetos sobre
temas indígenas diversos, de acordo com os interesses da comuni-
dade educativa.

- 41 -
Os saberes tradicionais nas práticas educativas
É necessário instituir e implementar a educação diferenciada,
com bases nas práticas e nos aspectos da cultura local, para melhor
êxito no aprendizado, que certamente fará mais sentido ao educando.
Aprender é mais eficiente quando o estudante consegue incorporar
ao seu repertório de conceitos prévios os novos conteúdos (BASTOS,
2013, p. 61). O aluno já tem consigo um arcabouço de informações
e experiências vividas na família e em outros espaços frequentados
e que não deve ser desvalorizado, ou posto de lado em sala de aula.
O novo conhecimento deve ser associado a conhecimentos prévios
com exemplos práticos do seu dia a dia, para que haja significado,
e o aprendizado seja satisfatório. O currículo deve ser inovado e ter
como proposta tornar visível nas práticas as experiências do educan-
do. Segundo o professor Jaguar (47 anos) isso já estava sendo possí-
vel. Vejamos:

A nossa escola começa a receber a dois ano atrás o nosso currí-


culo diferente pelo estado, primeiro ela não era assim, era esque-
cido, entrava só língua portuguesa e outras disciplinas, mas hoje
já não, a nossa escola já tá trabalhando a resgatar a nossa cultu-
ra né, por que a nossa cultura fortalece principalmente a nossa
língua materna, que ela vai fortalecer que os professores daqui
da comunidade indígena que tá trabalhando pra não perder a
nossa língua, que ela fique viva para sempre porque a nossa mãe
é a nossa língua e através dela podemos traduzir, transmitir para
nossa futuras crianças, por isso nossa cultura deve ser resgata-
do, tanto o artesanato, a pintura, festival de moça nova e tantas
histórias que tem pra transmitir pra nossa crianças. Por isso eu
já incentivo meu aluno a cantar a música na língua ticuna e tam-
bém no português pra aprender os dois já pra não ter dificuldade
de nem um nem outro (Jaguar, entrevista, 2018).

Ramos (2007, p. 109) afirma que o currículo das escolas in-


dígenas não deve ser uma mera repetição de currículos de escolas
não indígenas, com conhecimentos desnecessários e apenas alguns
resquícios da cultura indígena. O autor ressalta ainda que o currículo
indígena deve ser, na sua integralidade, voltado para a realidade so-
ciocultural e interesses de cada grupo (ibidem, 2007, p. 109).
Ensinar conteúdos que refletem uma realidade distante e
desconhecida pelo aluno é quase impossível que ele assimile. Bastos

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(2013, p. 6198) considera que uma aprendizagem somente é signifi-
cativa para o aluno quando deixa algum registro para ele, que o novo
conhecimento tenha sentido dentro de sua realidade. Não é produti-
vo, por exemplo, falar sobre maçã, uva, pera e outras frutas que não
pertencem à região para ensinar hábitos de alimentação saudável em
sala de aula. Não são frutas de fácil acesso aos alunos, e mesmo há a
possibilidade de que nunca tenham tocado ou provado tais frutas, é
evidentemente mais vantajoso ensinar por meio de frutas regionais
que estão mais acessíveis e são até mesmo alimentos do seu cardápio
diário.
O professor Arara (48 anos), que trabalha de forma contex-
tualizada e interdisciplinar, expõe o seguinte relato:

Ensino na minha aula sobre fruta muito boa pra comer e pra
suco, o caju, que é bom pra remédio também, pra curar diarreia
tem que cozinhar a casca da árvore. Outro, jenipapo que tam-
bém faz suco né, mas não tem gosto muito bom, mas é bom pra
proteger de doença, e falo pra trazer de casa porque todos tem
na casa. Na aula de história, por exemplo, já falo sobre origem
do nome Umariaçú que contam os mais velhos, que bem anti-
gamente existia uma menina chamada Maria que morreu enfor-
cada no igarapé e partir daí surgiu o nome Umariaçú (Arara,
entrevista, 2018).

Para Ferreira (2014, p. 137), as aulas contextualizadas forta-


lecem os conhecimentos prévios dos alunos com os novos conheci-
mentos, e este processo aproxima duas formas de saber sem eliminar
um ao outro, e ambos contribuem para uma melhor compreensão
da vida.
As possibilidades para uma aula diferente que aborde os sabe-
res nas práticas são muitas, depende da criatividade e da capacidade
de inovação metodológica do professor. A professora Flor (43 anos)
também aborda vários conhecimentos vivenciados no cotidiano,
como as histórias contatadas pelos mais velhos, que vão desde a mi-
tologia, incluindo as lendas e mitos nas aulas de história e português.
Quaresma e Ferreira (2013, p. 239) afirmam que os mais velhos re-
presentam a voz da experiência e são responsáveis por transmitir os
conhecimentos do povo às crianças de modo a preservar e propagar
os conhecimentos da tradição.

- 43 -
Também aborda o vasto recurso didático da natureza ao redor
nas aulas de ciências e geografia, o artesanato local nas aulas de ma-
temática, até os rituais nas aulas de ciências, artes, ensino religioso,
dentre outros. Essa mesma professora revela que discute a festa da
moça nova, ritual de passagem para a vida adulta, a saber:

Ensino muito os alunos sobre o ritual da moça nova porque é


um mais importante ritual da comunidade, na aula de ciência
eu ensino puberdade, sobre mudança no corpo né. E também
que ritual da moça nova serve pra unir dois clãs diferentes com
casamento, não pode ser entre irmão e primo né, tem que ser de
outro clã. Na aula de arte nós canta música do ritual e mostra
dança que é feita no ritual, pinta com tinta do urucum e jenipapo
que também usam no ritual (Flor, entrevista, 2018).

Silva e Souza (2017, p. 210) consideram que os rituais têm uma


função pedagógica, pois, através deles, são repassados conhecimen-
tos aos mais novos. Os rituais possuem forte referencial simbólico e
são capazes de reavivar e transmitir memórias e saberes (SANETO,
2012, p. 43).
Os professores entendem e reconhecem o ritual da moça nova
como um importante elemento identitário da cultura Ticuna e atri-
buem uma valorização durante a abordagem em suas práticas. Toda-
via, a professora afirmou que ministrava aula em duas comunidades
diferentes e independentes, porém, da mesma etnia Ticuna, mas en-
fatizou que apenas abordava sobre o ritual em suas aulas que minis-
trava na outra comunidade, no caso a comunidade de Umariaçú II,
pois na comunidade que estamos tratando neste trabalho (Umariaçú
I), o ritual tinha sido proibido de ser realizado pelos líderes da comu-
nidade, influenciados por uma religião evangélica muito tradicional
que se instalara na comunidade, de modo que prevalecia certa resis-
tência e receio dos professores quando tocados neste assunto.

Desafios para a efetivação de uma educação diferenciada


Apesar da existência de um currículo específico para as escolas
indígenas que aborde aspectos da cultura local, ainda há os impasses
para sua efetivação que estão diretamente ligados à prática na escola.
Não são poucos os fatores que contribuem para o fracasso do ensino,

- 44 -
envolvendo a insuficiência dos recursos didáticos, estrutura física de
má qualidade, professores sem capacitação e ainda a ausência de uma
administração de educação local que ofereça o suporte necessário à
escola e aos professores.
Segundo Souza (2015, p. 62), há um contraste existente entre
o que determina a legislação e a real situação das escolas indígenas,
principalmente na construção de propostas pedagógicas que garan-
tam as especificidades de uma educação escolar indígena como “o
bilinguismo, a autonomia, forma do avaliar, formação de professores
indígenas e ambiente de aprendizagem dos saberes tradicionais indí-
genas” (IBIDEM, 2015, p. 62).
A pesquisa na comunidade de Umariaçú I mostra alguns des-
ses desafios que dificultam o desenvolvimento de uma educação di-
ferenciada que seja abordada de forma interdisciplinar nas práticas
dos professores elementos, embasada na cultura local, tornando o
aprendizado mais significativo para o aluno. Todavia, apesar de os
professores afirmarem trabalhar bastante de forma contextualiza os
saberes, muitos outros professores ainda apresentam dificuldades
em mediar pedagogicamente os conhecimentos da tradição Ticuna,
principalmente os recém-graduados. De acordo com Flor, ouvida
nesta pesquisa:

Tem um monte de professor daqui da comunidade que não sabe


como fazer aula diferente, não sabe ensinar a nossa cultura pros
aluno, por que nós temo na nossa aula que ensinar também a
nossa cultura, mas tem professor que não sabe nem como que
é que faz farinha mais, não sabe nem como que faz canoa, com
que madeira faz canoa, então como que vai falar de trabalho pros
alunos? (Flor, entrevista, 2018)

Peixoto (2016, p. 32) afirma que muitos não têm ensinamen-


tos tradicionais por estudarem na cidade, onde o preconceito e ideias
contrariam ao modo de pensar dos indígenas, e após serem inseridos
pelas comunidades por razões culturais, fogem dos seus costumes
tradicionais pois, não se identificam mais com a prática tradicional.
Neste sentido, a forte influência exterior à cultura tem feito
com que muitos dos aspectos ligados às vivências, ao trabalho e às
relações em grupo que caracterizam o povo Ticuna não sejam mais

- 45 -
reconhecidos e valorizados pelos integrantes da própria etnia, uma
vez que não está tão presente mais em seu cotidiano.
Há uma forte predominância de traços culturais não indíge-
nas pelo fato de alguns desses professores residirem no centro urba-
no, ou mesmo porque assim preferem quando não há uma valoriza-
ção dessa cultura por outra mais próxima. Alguns deles consideram
deixar um pouco mais de lado a sua cultura e adequar-se à outra para
obter mais oportunidades. “Há professor da comunidade que mora
aqui e trabalha aqui, mas não quer que o filho estude aqui, por que
não vai aprender nada importante, coloca pra estudar lá na cidade
por que vai aprender mais e vai ter bom trabalho” (Arara, entrevista,
2018).
Melo (2009, p. 87) destaca que a vida na cidade faz sentido
quando os indígenas desacreditam na vida na aldeia ou quando se
dão conta que são limitadas as possibilidades econômicas.
Nota-se que os próprios educadores indígenas da comuni-
dade não apostam na educação indígena, buscando a escola de fora
da comunidade como uma porta de melhores oportunidades, prin-
cipalmente o acesso ao ensino superior, uma vez que prevalece a
ideia de que uma educação não indígena oferecerá um aprendizado
mais satisfatório para concorrer a uma vaga no ensino superior com
alunos não indígenas. Assim sendo, muitas crianças da comunida-
de crescem morando e estudando em escolas da cidade e preferem
não retornar. Todavia, uma vez formado muitos acabam retornando
para a própria comunidade de origem, pois facilmente conseguem
emprego já que há exigência de que os professores sejam indígenas e
da própria comunidade.
A grande parte da escolarização e residência fora da comu-
nidade acaba distanciando o sujeito de sua cultura, que passa a não
reconhecer certos aspectos que identificam o seu grupo. Ademais, a
educação no ensino superior não está relacionada à uma educação
intercultural indígena e muito menos enfatiza como os professores
devem ensinar os saberes tradicionais locais, o que torna um desafio
mais tarde para o professor trabalhar de forma contextualizada. É o
que evidencia Arara (entrevista, 2018) “professor sai da comunidade
pra fazer faculdade, mas quando volta só ensina coisa de branco, mas
tem que ensinar também a nossa cultura”.

- 46 -
Jankauskas et al. (2015, p. 05) entende que “não há como cons-
truir uma educação indígena se os professores desta educação são
formados através de perspectivas não indígenas e por vezes, inclusi-
ve, de desvalorização da cultura indígena”. Desta forma, os professo-
res acabam que por reproduzir em suas práticas o que aprendem na
academia, sem adaptar e contextualizar os conteúdos de acordo com
a realidade que está inserido.
Torna-se fundamental, neste sentido, a oportunidade de for-
mação continuada para os professores, uma vez que podem ser ofe-
recidos subsídios para aperfeiçoarem e inovarem suas práticas meto-
dológicas. Os professores da comunidade, por sua vez, percebem esta
necessidade e se mostram insatisfeitos por não haver esta oportuni-
dade. De acordo com uma das pessoas evidenciadas nesta pesquisa:

Tem muita preocupação, porque a meta inda não foi alcançada


como nós professores queremos. Nós temos formação né, mas
como nós já temo formação, falta capacitação, tem que ter mais
apoio do nosso governantes, tem que nós ouvir quando a gente
vai pedir coisa que é necessário para a nossa escola, para nossos
alunos, então queremos que nosso governantes do nosso do mu-
nicípio conhecesse os professores e capacitar melhor, e convidar
os maiores professores que são doutores que ensinaram nós a
aprender a ler e escrever a nossa língua, tem que convidar pra dar
as aulas mais profunda né, pra nós professores, que é necessário
pra nós, porque nós como ticuna nós nunca vamos esquecer da
nossa língua que é principal identidade nossa, então precisamos
de capacitação pra melhorar nossa aula (Flor, entrevista, 2018)

Souza (2015, p. 124) destaca a importância da formação do-


cente para atuação nas escolas indígenas e também nos processos
de discussões educacionais, sendo necessário mais atenção às escolas
indígenas para que sejam construídas propostas pedagógicas que re-
flitam as reais necessidades do povo.
Certamente, o anseio de todo educador deve ser sua constante
capacitação e o aprimoramento de suas práticas, e para os profes-
sores que já atuam na rede municipal e estadual de educação indí-
gena torna difícil o deslocamento contínuo para a cidade em busca
de aperfeiçoamento, por isso é necessário e importante que sejam
implementadas políticas de formação continuada aos professores in-
dígenas sem que os mesmos necessitem sair de suas comunidades
por um longo período de tempo.

- 47 -
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os currículos indígenas se diferem dos currículos não indí-
genas, e assim é necessário que o planejamento das ações educativas
esteja em consonância com as ações do contexto espacial e cultural
no qual está inserido. Supõe adoção de valores que regem as relações
sociais indígenas, envolvendo as crenças que se manifestam por meio
dos rituais de passagens para a vida adulta, os contos que sustentam
a crença, a fé nos espíritos que garantem a proteção, a criatividade
na produção dos utensílios artesanais, o conhecimento sobre a me-
dicina das plantas que cura os enfermos, a natureza que produz o ali-
mento, preserva a vida humana e por ela é preservada. A forma como
esses povos se apropriam da natureza é apenas para sua subsistência,
e não para o enriquecimento material.
Esta pesquisa constata que há ainda muitos impasses que di-
ficultam a efetivação deste currículo específico, entre eles a escassez
de recursos didáticos, formação continuada para os professores, in-
fluência da cultura da cidade e principalmente a desvalorização da
cultura indígena. Essa educação diferenciada pode e deve acontecer,
no entanto, devem ser garantidas condições necessárias para sua efe-
tivação. Há que mudar os olhares sobre os povos indígenas, enxergar
melhor a diversidade cultural, a diversidade linguística, suas capaci-
dades de conhecimento sobre a floresta, sobre os lagos, sobre os iga-
rapés, sobre os rios, a grande diversidade de animais, de insetos. Isso
está associado à forma de conhecimento integral que os indígenas
têm com a vida na floresta.

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- 49 -
Universidade do Estado do Amazonas, PROFORMAR. Educação
Indígena./ Coordenador: José Aldemir Gomes Ramos. Manaus:
UEA Edições, 2007.

- 50 -
CASA DE FARINHA, UM LOCUS DE
CONHECIMENTO MATEMÁTICO
Francilene dos Santos Cruz13
Marilene Corrêa da Silva Freitas14

INTRODUÇÃO
Quando falamos em matemática, pensamos em cálculos, mas
devemos levar em consideração que a matemática é bem mais do
que apenas cálculos cansativos e cheios de regras como se apresenta
a matemática formal e científica nas escolas, faculdades, empresas
e outros. Existem algumas matemáticas que são aplicadas a partir
da aprendizagem das vivências e das necessidades de certos povos,
como a matemática informal que é praticada por famílias tradicio-
nais que residem em zonas rurais do município de Benjamim Cons-
tant, comunidade esta que é objeto desta pesquisa.
Este trabalho está pautado no uso de uma matemática infor-
mal, que vai a partir da construção da casa de farinha, bem como os
apetrechos e utensílios utilizados na casa de farinha.
Para a realização da pesquisa sobre as matemáticas praticadas
no espaço de uma comunidade, utilizei a pesquisa qualitativa, por me
atentar com exterioridades do mundo que o rodeiam, especialmente,
os de natureza cultural que não podem ser quantificados e sim inter-
pretados, mensurados, contextualizados e analisados.
Para Minayo (2000), a investigação social tem como base, na
análise de seu objeto, o aspecto qualitativo, o que pressupõe conside-
rar as condições sociais dos sujeitos da pesquisa, bem como o grupo
ou classe a que pertencem, com suas crenças, valores e significados,
uma vez que o objeto das ciências sociais, além de complexo e con-
traditório, sofre permanente transformação.
Segundo Barth (2000, p. 123), os fenômenos complexos preci-
13 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia-
PPGSCA/UFAM, mestre em Engenharia de Processos pela UFPA, docente na Universida-
de do Estado do Amazonas – UEA, E-mail: franci_78sl@hotmail.com
14 É doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade católica de São Paulo. Profes-
sora da Universidade Federal do Amazonas/UFAM. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Sociais-NEPES. E-mail: marilene.correa@uol.com.br

- 51 -
sam ser estudados em suas múltiplas singularidades, pois as pessoas
estão inseridas em mundos diferentes, parciais, simultâneos, nos
quais se movimentam. Diante do pensamento de Barth, precisamos
entender o modo de vida com suas peculiaridades e além disso com-
preender e não deixar perder a essência de modos de vidas distintos.
E foi com esse intuito que durante uma visita na comunidade
rural de São Raimundo, conhecemos os agricultores daquela região.
E durante algumas conversas informais que surgiram alguns questio-
namentos por parte dos pais de alunos, e algumas situações vieram à
tona, caso de uma mãe de um aluno da comunidade que questionou
sobre a matemática que as escolas passavam para os seus filhos. Esta
mãe foi mais direta ao saber que a pessoa que ela estava conversando
era uma professora de matemática e que ela queria saber qual o moti-
vo de nós, professores de matemática, não ensinarmos os filhos delas
algo que servisse para usar na sua vida cotidiana.
A preocupação dos povos tradicionais não se reduz a meros
questionamentos, é também a preocupação de vários professores
de matemática de toda região do Amazonas, pois, se pararmos para
pensar nas matemáticas que são aplicadas nas escolas, vamos perce-
ber que as mesmas não têm significado nenhum para muitos alunos.
As contas de algoritmos são apenas contas com algoritmos,
sem levar em conta o sentido usual que deve sempre ser levado em
consideração para que os significados dos números e suas formas se-
jam mais relevantes e tenham um valor na vida de cada aprendente.
E foi caminhando junto com os moradores daquela região
que nos despertou o interesse pelo tema da matemática informal no
doutorado. Pensava nas infinitas formas de demonstração de uma
matemática própria que era praticada pela maioria dos moradores
daquele grupo social. Percebemos que a maioria não possuía sequer
o ensino fundamental, mas, mesmo sem o estudo formal, eles de-
tinham um conhecimento da matemática que ia muito além de fazer
pequenas contas com os dedos.

A vida em comunidade tradicional


Nos estudos de Almeida (2004), especialmente os derivados
da Nova Cartografia Social, o conceito de “Tradicional” não se reduz
à história e incorpora as identidades coletivas redefinidas situacio-

- 52 -
nalmente numa mobilização continuada, assinalando que as uni-
dades sociais em jogo podem ser interpretadas como unidades de
mobilização.
Dentre algumas ações e autoafirmação que reuniram inúme-
ras ideias do que seria denominado povos e comunidades tradicio-
nais, fica instituído, por meio do Decreto 6.040, em 07 de fevereiro
de 2007, o conceito grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organiza-
ção social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados
e transmitidos pela tradição”.
Seguindo a linha de entendimento deste grupo, temos tam-
bém Rodrigues et al. (2011), que aborda sobre Comunidade Tradi-
cional, a qual, segundo os autores, constitui-se como um grupo so-
cial local que desenvolve:
a) dinâmicas temporais de vinculação a um espaço físico que
se torna território coletivo pela transformação da natureza por
meio do trabalho de seus fundadores que nele se instalaram;
b) saber peculiar, resultante das múltiplas formas de relações
integradas à natureza, constituído por conhecimentos, inova-
ções e práticas gerados e transmitidos pela tradição ou pela
interface com as dinâmicas da sociedade envolvente;
c) uma relativa autonomia para a reprodução de seus mem-
bros e da coletividade como uma totalidade social articulada
com o “mundo de fora”, ainda que quase invisíveis;
d) o reconhecimento de si como uma comunidade presente
herdeira de nomes, tradições, lugares socializados, direitos de
posse e proveito de um território ancestral;
e) a atualização pela memória da historicidade de lutas e de
resistências no passado e no presente para permanecerem no
território ancestral;
f) a experiência da vida em um território cercado e/ou amea-
çado;
g) estratégias atuais de acesso a direitos, a mercados de bens

- 53 -
menos periféricos e à conservação ambiental.
A necessidade de conhecer os saberes culturais que algumas
comunidades constituem num espaço adverso e que faz parte do seu
cotidiano como saber empírico, levou-me a escrever esse questio-
namento a partir de uma prática de campo na Comunidade de São
Raimundo, a qual vive basicamente da pesca, da caça e do plantio da
mandioca. Esses produtos são utilizados para a subsistência de suas
famílias e também para a venda em feiras e mercados nas cidades
próximas. Os moradores se organizaram para se adaptarem nesse
meio conforme suas necessidades básicas, buscando terras que se
aproximem de pequenos centros urbanos para então se deslocarem
e comercializarem seus produtos como o peixe, farinha, hortaliças e
outros para assim comprar bens de consumo e outras, que basica-
mente são industrializados e não produzidos por eles mesmos.
O trabalho na agricultura, em algumas comunidades às mar-
gens do rio Solimões, é composto por plantações em terra firme e em
terras de várzea15e é importante para a manutenção de práticas so-
cioculturais das populações tradicionais não indígenas, que residem
nessas regiões desde o tempo da extração da seringa pelos chamados
seringueiros da época. Os trabalhadores atuais são pessoas distintas e
com uma sabedoria nata que foi adquirida através dos seus antepas-
sados e que são transferidos para seus filhos através da convivência
do dia a dia. De acordo com Iriondo (1982, p. 49)

Normalmente considera-se como várzea do rio Amazonas a


planície inundável de depósitos holocênicos, diferindo da ter-
ra firme, que são as proporções mais elevadas nunca inundadas
pelo rio. De acordo com o critério descritivo-genético, a planície
Amazônica compreende a várzea ou planície propriamente dita
constituída por seus depósitos de canal e de inundação, que é a
faixa deprimida dentro da qual corre o rio.

A particularidade da Amazônia é dada a partir da diversidade


contida em seu interior, onde os povos tradicionais se organizaram
conforme o meio em que vivem. Desse modo, o território entendido
como lugar da vida é marcado pelas relações sociais, culturais e eco-
15 É a parte do plaino aluvial. O plaino aluvial (valley flat) é uma forma fundamental
produzida pela erosão lateral dos rios, definido como terreno baixo e plaino bordejando o
canal fluvial, e situado entre as paredes do vale. (Ver Thornbury,1958).

- 54 -
nômicas construídas historicamente no espaço vivido.
Durante muitos anos, o homem adaptou-se para a sobrevi-
vência e buscou as condições nos distintos ambientes que o circun-
dava, onde procurou meios para produzir e coletar seus alimentos.
Teve que aprender a construir suas próprias habitações, vestimentas,
utensílios domésticos que eram fabricados na grande maioria de ar-
gila, cuja matéria prima era retirada da própria natureza e de acordo
com os conhecimentos populares que serviam para garantir a quali-
dade desses objetos.
Baseados nesses conhecimentos adquiridos para o próprio
sustento, os seres humanos procuraram estabelecer relações de con-
vívio em comunidade e com o meio. De acordo com Moreira (1978,
p.11), “é no espaço natural que o homem se inscreve, desenvolvendo
aí suas atividades. E daí que resulta a sua humanização, isto é, sua
modificação, a partir da capacidade humana de ajustar o espaço na-
tural às suas necessidades”.
É preciso, pois, começarmos a compreender como os povos
tradicionais não indígenas possuem racionalidade diferente, baseada
nessas práticas socioculturais, para reunir elementos que nos escla-
reçam aquilo que queremos mostrar, que é o conhecimento empírico
pautado na etnomatemática.
Os saberes dos povos tradicionais não indígenas, vão além
do somente saber contar números básicos ou reconhecer dinheiro.
Esses povos trazem em sua essência o conhecimento de vida, da ne-
cessidade de se adaptar à realidade que os rodeia, e essas noções são
produzidas baseadas em interação direta com o mundo capitalista
que dita regras para o ser humano e para a sobrevivência.
O seu cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres pró-
prios da cultura. A todo instante estamos comparando, classificando,
quantificando, medindo, explicando, generalizando, inferindo, ava-
liando, utilizando os instrumentos materiais e intelectuais que são
próprios da nossa vivência cultural.
E é a partir dos conhecimentos próprios da cultura de um
povo, advindos de contagens e formas existentes no nosso meio, que
a etnomatemática aparece com o seu olhar minucioso e instigador,
mostrando as diversas maneiras de manusear a própria matemática
nas comunidades tradicionais.
D’Ambrósio (2019, p. 45), explica que a

- 55 -
Etnomatemática é a matemática praticada por grupos culturais,
tais como comunidades urbanas e rurais, grupos de trabalha-
dores, classes profissionais, crianças de uma certa faixa etária,
sociedades indígenas, e tantos outros grupos que se identificam
por objetivos e tradições comuns aos grupos.

A Etnomatemática deriva do pressuposto de que, na socie-


dade, cognição e cultura estão intrinsecamente ligadas, ou seja, “a
matemática é uma atividade universal, é uma atividade pancultural
e pan-humana. Em todas as culturas o pensamento matemático tem
tido lugar, tanto duma maneira espontânea como duma maneira or-
ganizada [...]” (GERDES, 2011, p. 159). Com base na relação entre
estes três eixos é que a Etnomatemática se constitui como campo de
investigação e como proposta de uma educação múltipla e universa-
lizante (FARIAS, C.; MENDES, 2014), correspondendo à proposição
de que existe a necessidade de um conhecimento matemático local
tanto quanto o conhecimento matemático global, ou seja: “[...] a Et-
nomatemática desenvolveu formas de conhecer e analisar as diversas
epistemologias matemáticas operando nos seus contextos culturais”
(MOREIRA, 2008, p. 6).

Matematizando a casa de farinha


A casa de farinha não possui parede, pois os agricultores afir-
mam que devido a temperatura alta que que resulta do forno de fari-
nha, não seria possível ficar no seu interior se ela fosse toda fechada
e também por ser um espaço físico que é dividido com várias pessoas
na fabricação da farinha. Esses trabalhadores se organizam em uma
pequena cooperativa, trabalham como em uma pequena coopera-
tiva, cujos valores dos produtos comercializados são na sua grande
maioria divididos entre os moradores que ali residem.

- 56 -
Foto 1 : Casa de farinha na Comunidade de São Raimundo- Benja-
min Constant

Fonte: Pesquisa de campo, 2018

A casa de farinha é feita pelos próprios produtores e sua arqui-


tetura obedece aos padrões pautados nos saberes adquiridos de seus
pais. Esses produtores guardam os conhecimentos dos seus antepas-
sados, juntamente com o seu linguajar próprio de uma comunidade
tradicional.
Para Márcia (2012, p. 124), no livro O ethos das mulheres da
floresta, “A casa de farinha realmente representa o locus da produção
e da manutenção das etnotecnologias aprendidas ancestralmente.
São conhecimentos adquiridos, conquistados, aprendidos e repassa-
dos na dinâmica do trabalho e das relações sociais”. Trata-se de uma
sabedoria popular que serve de base para complementar e entender
alguns processos matemáticos empíricos que fazem parte do dia a dia
de várias famílias.
Para iniciar a construção da casa de farinha, o morador co-
meça com a escolha de uma área do seu terreno, que é demarcada
baseada no tamanho apropriado para comportar todos os utensílios
e equipamentos que serão utilizados durante todo o processo da casa
de farinha, tais como: prensa, caixas, forno, moedor, etc.
A fabricação da casa é feita com árvores que são retiradas do
próprio terreno. Os trabalhos iniciam com as marcações dos quatro

- 57 -
cantos principais da casa de farinha, para os quais se utilizam qua-
tro esteios16 com uma altura média de três metros, alinhados de tal
forma que não fiquem fora do padrão, pois se assim não acontecer,
eles afirmam que a cobertura fica comprometida e que o caibro17 da
casa não sustentará o zinco ou palha, se a base principal não estiver
corretamente alinhada.

Figura 2: Esboço da casa de Figura 3: Esboço do caibro da


farinha casa de farinha

Fonte: Francilene dos Santos Cruz, 2018

Verifica-se que, apesar das palavras que são bem usuais des-
ses povos, essas mesmas palavras são facilmente traduzidas para a
linguagem formal da matemática que é aplicada na sala de aula, e
nota-se que os pequenos saberes são contemplados dentro de vários
campos da matemática, e que, exclusivamente nesse caso, ela está re-
lacionada diretamente à geometria plana e espacial.
De acordo com Carraher (1994, p.13), “enquanto atividade
humana, a matemática é uma forma particular de organizarmos os
objetos e os eventos do mundo. Podemos estabelecer relações entre
os objetos de nosso conhecimento, medi-los, contá-los, somá-los, di-
vidi-los etc. e verificar os resultados das diferentes formas de organi-
zação que escolhemos para nossas atividades”.
No entanto, percebe-se que a atividade de construção da casa
de farinha, assim como outra atividade de edificação, demanda um
16 Dito popular - Esteio é um pedaço de madeira que tem tamanho e firmeza suficiente
para segurar o caibro da casa de farinha. Na matemática formal – Esteio é um segmento
de reta que possui dimensões adequadas para sustentar a cobertura de uma construção.
17 Dito popular – Caibro é o lugar onde é colocada a palha ou telha de zinco. Na matemá-
tica formal – Caibro é uma forma geométrica conhecida pelo nome de pirâmide de base
retangular.

- 58 -
conhecimento matemático formal ou informal na sua completude
de formação.
Baseado ainda nos itens anteriores, verificaremos que apenas
a fase da construção da casa de farinha é cheia de muitos outros entes
geométricos que poderemos observar na figura a seguir:

Figura 4: Esboço da casa de farinha com itens de matemática

Fonte: Francilene dos Santos Cruz, 2018

Para a disciplina de Geometria, que é uma subárea da mate-


mática que se preocupa em estudar as formas, a primeira impressão
é a quantidade de formas geométricas que uma simples construção
da casa de farinha demonstra com sua simplicidade, porém cheia de
implicações da matemática que é aplicada na sala de aula e que não é
abstraída ou compreendida na sua completude.
Observemos agora a figura 4, que nos mostra uma simples
visualização do esboço da casa de farinha em diagonal. No primeiro
momento, damo-nos conta de que, na maioria de formação do esque-
leto da casa, temos por definição inúmeros seguimentos de retas; na
parte frontal da figura, teremos a forma geométrica do retângulo; na
parte lateral, também podemos considerar um retângulo com dimen-
sões distintas; quando visualizamos a estrutura do telhado, vemos que
a sua cobertura é formada por triângulos, segmentos de retas, além
disso não podemos esquecer que os cálculos de medidas de áreas e de
comprimentos são diretamente utilizados na sua confecção.

- 59 -
Seguindo ainda com a estrutura da casa de farinha, percebe-se
que são objetos no formato de um paralelogramo, que é uma figura
plana e que possui lados opostos paralelos, além de ângulos opostos
pelo vértice; vemos também que o paralelismo e perpendicularismo
são bastante vastos em toda sua formação física.
De acordo com Caraça (1998, p. 51), “um segmento de reta é
uma grandeza geométrica, a comparação de dois segmentos de reta é
uma operação do campo geométrico, a expressão numérica da medi-
ção significa a tradução dessa operação geométrica por meio de um
instrumento do campo numérico”. Podemos constatar as diversas
formas geométricas que se utilizam nos avanços do desenvolvimen-
to da humanidade, especificamente no constante aos conhecimentos
matemáticos. Cabe ainda refletir sobre a evolução e a complexidade
do desenvolvimento dos estudos para as atividades sociais humanas
a partir de suas necessidades no decorrer de toda sua existência.
Em vista do que foi demonstrado, percebe-se que a existência
dos saberes tradicionais vai além de apenas os atos de contar. As pes-
soas são detentoras de sabedoria que vai além e que não se desvincula
dos saberes científicos e formais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou verificar conceitos matemáticas que são
empregadas através do saber empírico e suas inúmeras utilidades na
vida cotidiana das pessoas. Trata-se de uma matemática denominada
em sua extensão como Etnomatemática. A Etnomatemática é uma
tendência da matemática que se preocupa com o saber baseado em
conhecimento da cultura em que se está inserido. No recorte aqui
apresentado, encontra-se evidenciado o saber informal dos traba-
lhadores das casas de farinha, unindo-se ao conhecimento formal e
científico que é posto nas escolas através dos livros didáticos, que
trazem em suas teorias e práticas através dos exercícios.
A pesquisa constata que a técnica utilizada na construção da
casa de farinha segue uma metodologia adquirida, repassada de pais
para filhos e que perdura por várias gerações nessas comunidades de
povos tradicionais, onde, além da construção da casa de farinha, são
construídos também os instrumentos usados durante a fabricação da
farinha, entre eles: a prensa, gamela, forno de barro, peneira, remo e
o moedor da mandioca.

- 60 -
Conclui-se que uma simples construção de casa de farinha
com seus apetrechos pode ser rica em inúmeros conteúdos de ma-
temática, que por vezes está contida na vida cotidiana das pessoas
em seus modos de vida. Tem-se por base as culturas locais e podem
fornecer aprendizado do povo tradicional daquela região, proporcio-
nando uma nova perspectiva de conhecimento, quando se utilizam
de elementos que rodeiam o campo da matemática como ciência, de
modo a mostrar sua essência a partir dos elementos constitutivos da
casa de farinha.

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Terras tradicionalmente
ocupadas: processos de territorialização e movimentos sociais.
Revista Brasileira Estudos Urbanos e Regionais, v. 6, 1, p. 9-32,
maio 2004.
BRASIL. Decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decre-
to/d6040.htm. Acesso em: 09 de julho de 2018.
CARAÇA, Bento. Conceitos Fundamentais da Matemática. Lis-
boa: Gradiva, 1998.
CARRAHER, Terezinha. Na Vida Dez, Na Escola Zero. São Paulo:
Cortez Editora, 1989.
D’AMBRÓSIO, Ubiratan. Etnomatemática: Elo entre as tradições
e a modernidade. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. p.112.
FARIAS, Carlos Aldemir. MENDES, Iran Abreu. As culturas são
as marcas das sociedades humanas. In: MENDES, Iran Abreu. FA-
RIAS, Carlos Aldemir (Org.).
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ria da Física. 2014. (Col. Contextos da Ciência).
GERDES, Paulus. Etnomatemática e Educação Matemática: uma
panorâmica geral. Quadrante. Lisboa, vol. 5, n. 2, p. 105-138. Dis-
ponível em:<http://heema.org/wp-content/uploads/2011/05/pg-
-FE-USP-Explora%C3%A7%C3%A3o-2.pdf>. Acesso em: 01 dez.

- 61 -
2015.
IRIONDO, M. H. 1982. Geomorfologia da Planície Amazônica.
Atas do IV Simpósio do Quaternário no Brasil. p. 323-348.
MOREIRA, Darlinda. Etnomatemática e mediação de saberes ma-
temáticos na Sociedade global e multicultural. In: Congresso Bra-
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ISBN: 858999404-X. p. 1-12.
RODRIGUES, Leila Ribeiro, GUIMARÃES, Felipe Flávio Fonse-
ca, COSTA, João Batista de Almeida. Comunidades tradicionais:
sujeitos de direito entre o desenvolvimento e a sustentabilidade.
Anais do I Circuito de debates. CODE 2011, IPEIA, 2011.
SUGUIO, K. & Bigarella, J. J. 1990. Ambientes fluviais. 2.ª ed. Flo-
rianópolis, editora da UFSC: Editora da UFPR. 183 p. il.
TORRES, Iraildes Caldas (Org). O ethos das mulheres da floresta.
Manaus: EditoraValer/Fapeam, 2012.

- 62 -
ARAÚJO LIMA E OS ESTIGMAS SOBRE O
CLIMA E O HOMEM DA AMAZÔNIA
Odenei de Souza Ribeiro18

INTRODUÇÃO
O livro, Amazônia - a terra e o homem de Araújo Lima, lan-
çado em 1931, sintetiza as posições de grande parte dos intelectuais
locais na luta contra os estigmas imputados à região. Araújo Lima
munido de um acervo de informações e com base no que havia de
mais avançado na medicina, na física, na geografia, na história, na
economia e na antropologia refutou e deu um duro golpe nas teses
que apontavam o clima e o meio físico como fator que impediria
o desenvolvimento da civilização moderna na Amazônia. Imedia-
tamente o livro Amazônia, a terra e o homem tornou-se referência
para quem procurava uma explicação científica para o atraso da
região, longe dos estigmas e preconceitos difundidos por uma lite-
ratura incapaz de compreender a problemática amazônica em sua
integridade. O livro de Araújo Lima ganhou destaque à medida que
o sociólogo pernambucano, Gilberto Freyre o citou várias vezes em
Casa–Grande & Senzala, dando relevância às qualidades científicas
do estudo minucioso empreendido pelo sanitarista amazonense.

O Intelectual e a Organização da Cultura


O título de médico sanitarista que Araújo Lima possuía, con-
feria a ele poder e prestígio no quadro social regional, conferiam
distinção ao portador que o credenciava a ocupar cargos públicos
de relevância. Título acadêmico que expõe por inteiro o processo e
os mecanismos sociais de deslocamento que os jovens, oriundos dos
setores dominantes da região, eram obrigados a fazer para os grandes
centros no Brasil e na Europa19, em busca de formação em direito ou
18 Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp. Professor da Universidade Federal do Ama-
zonas.
19 A propósito da necessidade de se deslocar para os grandes centros em busca de forma-
ção por parte dos filhos das classes dominantes na Rússia Gramsci nos fala: “uma elite den-
tre as pessoas mais ativas, enérgicas, empreendedoras e disciplinadas vai para o exterior,
assimila a cultura e as experiências históricas dos países mais desenvolvidos do Ocidente,
sem com isso perder as características mais essenciais da própria nacionalidade, isto é, sem

- 63 -
em medicina20.
Automaticamente os filhos dos setores dominantes que pos-
suíssem formação em Direito ou Medicina se habilitavam para assu-
mir funções na esfera pública e ao mesmo tempo conferia legitimi-
dade para organizar a esfera cultural. Não é sem sentido que Araújo
Lima exerceu o cargo de diretor da Instrução Pública do Amazonas
entre os anos de 1917 a 1919; exerceu o cargo de prefeito de Manaus
de 1924 a 1929, ao mesmo tempo, que era membro ativo da Acade-
mia Amazonense de Letras participando de suas discussões na esfera
local e nacional. (BITTENCOURT, 1985, p. 100).
As ambivalências e contradições que atravessavam as relações
sociais e as lutas entre as várias frações de classe dominante, pelo
poder legítimo de conduzir os rumos políticos e culturais da região,
se alargavam com o processo de mudanças mais amplas em curso no
Brasil.
Esse momento indica as estratégias e práticas utilizadas, por
esses grupos, a fim de se reproduzirem e manter o papel hegemônico
na organização da vida social regional. Jovens intelectuais que fo-
ram estudar em Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro ou até
mesmo na Europa, sem romper as ligações sentimentais, culturais e
históricas com a própria terra. Retornam a região com a missão de
despertar a consciência do povo para o desenvolvimento e o pro-
gresso difundido pelo ideário positivista e romântico. Ideais que se
ajustavam as suas aspirações privadas (tornar-se escritor reconhe-
cido socialmente) e sua missão pública de repor a região na agenda
política nacional.
Uma geração amazônica desfrutou dos encantos da civiliza-
ção europeia e trouxe para sua terra os hábitos de bom gosto, o poli-
mento social, o amor pelas coisas do espírito.
romper as ligações sentimentais e históricas com o próprio povo; feito assim seu aprendiza-
do intelectual, retornam ao país, obrigando o povo a um despertar forçado, a uma marcha
acelerada para frente (...)”(Gramsci,2004; 27). Há uma semelhança estrutural no processo
de formação das elites na Rússia e no Brasil e em particular no Amazonas, a missão de des-
pertar o povo para o progresso e a civilização é uma disposição comum em Araújo Lima,
Arthur Cezar, Djalma Batista e Tocantins.
20 Nas sociedades onde a base industrial é restrita e não se desenvolveram superestruturas
complexas, a maior parte dos intelectuais é do tipo tradicional, já que domina a produção
agrária e o latifúndio, daí nasce à vocação bacharelesca do advogado e do médico (Grams-
ci, 2004; 31). O fato da Amazônia não possuir uma base industrial explica a escolha feita
pelos filhos das classes dominantes entre direito ou medicina. Em uma sociedade que tem
como base econômica o extrativismo, as profissões que denotam prestígio são tradicional-
mente direito e medicina.

- 64 -
[...] há vários exemplos, relembre-se a figura do poeta amazo-
nense, Raimundo Monteiro, neto de um dos desbravadores dos
seringais do Madeira (seu avô fundou a cidade de Humaitá, que
personifica bem o homem de inteligência, de família abastada,
graças à borracha, típico da geração que viveu entre oitocentos
e os primeiros anos do século atual. Monteiro, muito moço, vai
estudar na França, como tantos outros jovens conterrâneos. E
lá se enternece pelo viver parisiense [...]. (TOCANTINS, 1982,
p. 125).

Araújo Lima faz parte dessa geração, nascido em 1884 na vila


de Muaná (Ilha de Marajó), Estado do Pará, cedo sua família trans-
feriu-se para Manaus, cidade na qual seu pai Dr. José Francisco de
Araújo Lima viera exercer a função de Juiz de direito na comarca
de Manaus, enquanto sua mãe D. Maria Amélia de Mendonça Lima
dirigia o Colégio Santa Catarina do qual era proprietária. A origem
familiar indica o espaço social no qual internalizara os primeiros ha-
bitus que serão atualizados e redefinidos a cada momento ao longo
de sua formação escolar e em contextos situacionais mais amplos.
(BOURDIEU, 1994, p. 46-81). Desse processo nascem as aspirações
e práticas objetivamente compatíveis ao conjunto das origens sociais
que dominavam a cena política, cultural e econômica de Manaus.
Araújo Lima

Fez o curso primário no Colégio Santa Catarina e o secundário,


no Ginásio Amazonense. Formou-se em Farmácia na Faculdade
de Medicina da Bahia, em 1902, doutorando-se em Medicina na
Faculdade do Rio de janeiro, em 1912. Diplomou-se em Medi-
cina Tropical, pela Universidade de Paris (1911-1912), conquis-
tando o atestado do Curso de Microbiologia do Instituto Pasteur
de Paris. (BITTENCOURT, 1985, p. 100).

A trajetória de Lima abre uma clareira que nos possibilita vi-


sualizar o jogo de forças presentes nas disputas entre os membros das
frações e classes dirigentes a fim de manter o status quo do grupo. Os
esquemas de pensamento adquiridos por meio das experiências esco-
lares, associado a uma ampla rede de relações sociais, foram decisivas
para que Araújo Lima tivesse um papel de destaque na esfera política
e cultural regional e ao mesmo tempo o habilitaram para assumir
a Inspetoria de Educação e a Intendência Municipal (prefeitura) de

- 65 -
Manaus. É possível afirmar que a maior parte do quadro dos inte-
lectuais da região tinha origem social em frações dos setores médios
(magistrados, militares graduados, profissionais liberais, e políticos
profissionais), na burguesia comercial e extrativa em declínio com
o fim do período da borracha. Suas aspirações políticas e literárias
- como ocupar cargos chaves na esfera pública, escrever em jornais,
poesia e romances - estavam condicionadas aos títulos, aos diplo-
mas e ao capital de relações sociais que mobilizavam como trunfo em
meio às lutas por posições mais relevantes. (MICELI, 2001, p. 53-68).
O fato é que entre as décadas de 1890 a 1935 havia uma dispu-
ta no meio científico, literário, artístico e filosófico por uma defini-
ção legítima do complexo bio-sócicultural da Amazônia. No centro
desse campo de lutas encontravam-se Emílio Goeldi, Jacques Huber,
Orville Derbe, Ferreira de Castro, Silvino Santos, Euclides da Cunha,
Alberto Rangel, Raul Bopp, Nunes Pereira, Álvaro Maia, Alfredo da
Matta, Péricles Morais, Abguar Bastos, Dalcídio Jurandir, Araújo
Lima e outros. A despeito dos distintos métodos, teorias e gêneros
literários em jogo nesse debate, é possível afirmar no limite, que as
obras desses autores, estejam polarizadas em torno da Antropogeo-
grafia de Friedrich Ratzel, da geografia humana de Vidal de La Bla-
che, das teorias raciológicas de Gobineau, do positivismo de Augusto
Comte, do evolucionismo de Spencer e das concepções humanistas
de Alexander Von Humboldt. Entretanto, a questão que nos inte-
ressa é a disputa em torno da questão nacional presente nos escritos
de cientistas, escritores e ensaístas brasileiros. Nesses termos é que
a Amazônia- a terra e o homem, de Araújo Lima constitui uma das
expressões mais dramáticas desse debate.

Na obra reaccionaria de rehabilitação que se vem operando, no


seio das elites brasileiras, contra as condenações pretensamente
propheticas de Buckle ou de Gobineau, resta apenas, regenera-
da a nacionalidade pela contradicta dos homens e dos feitos, só
ao homem amazônico o aviltamento daquella maldição. Resta o
labéo sobre o amazonense, o caboclo... Perdura o erro anthropo-
logico, sociológico e histórico. A inaptidão aos hábitos de pro-
gresso e civilização, que lhe attribuem, continúa arrolada entre
as fatalidades ethnicas que envilecem certas raças, compulso-
riamente excluídas do convívio da civilização. (LIMA, 2001, p.
37-38).

- 66 -
Investido de um arsenal de informações científicas de diversas
áreas, Araújo Lima elabora uma crítica aos que acreditam na incapa-
cidade de o homem amazônico incorporar os ideais de civilização e
progresso. Nesses termos é que a questão nacional se mostra como
pano de fundo no qual estão dispostos os dilemas da integração re-
gional. Sua crítica endereçada aos estigmas imputados ao homem
e ao clima amazônico visa demonstrar que a verdadeira causa do
subdesenvolvimento regional é a falta de uma ação coordenada pelo
poder público federal na área sanitária para garantir a saúde dos ha-
bitantes locais, investir maciçamente na educação e criar um fundo
de investimento para financiar a indústria regional.
Cientistas europeus, brasileiros, viajantes, escritores, intelec-
tuais locais disputam a primazia pelo poder legítimo de ordenar, clas-
sificar e explicar as relações sociais, a fauna, a flora e a paisagem física
da Amazônia, a raça e o meio constituem esquemas interpretativos
presentes nas disputas científicas e literárias. Escritores consagrados
como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Viana contri-
buíram, de forma decisiva, para tornar esses esquemas (meio e raça)
procedimentos comuns às análises sociais elaboradas naquele perío-
do. Esquemas de interpretação que atribuíam ao clima e ao índio as
causas do atraso cultural e econômico da Amazônia. Nesse aspecto,
intelectuais como Araújo Lima, e os seus concorrentes locais, Adria-
no Jorge, Alfredo da Matta, Agnello Bittencourt, Péricles de Moraes,
Álvaro Maia, Clóvis Barbosa e outros assumiram a missão de refutar
os estigmas que recaiam sobre a região. Munido das técnicas mais
modernas de pesquisa Araujo Lima refuta as teses que apontavam o
clima e o índio como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento
da Amazônia. A questão regional funciona como estratégia para os
grupos locais se posicionarem no jogo entre as forças políticas que
delineiam um projeto de nação naquele momento da vida nacional.

Estudando o eugenismo do índio, na evolução da nossa raça e


formação de nossa nacionalidade, assim conceitua Oliveira Via-
na: “O índio, o caboclo puro, arrancado das suas florestas pela
ferocidade do sertanista ou pela unção do missionário, é abso-
lutamente incivilizável, é inteiramente refratário a qualquer in-
fluxo educativo, no sentido de sua arianização. Parece que sua
estrutura mental é mais sólida do que a do negro e daí, desta

- 67 -
sua menor maleabilidade, a sua invencível resistência a ação dos
agentes civilizadores. [...]”. Não devemos aceitar, sem exame, o
julgamento condenatório da capacidade assimiladora e fixadora
do índio no seio da civilização. A incivilidade do índio, isto é, a
sua capacidade para assimilar a educação e para ser incorpora-
do à civilização, é uma tese arriscada, para não dizer temerária.
(LIMA, 2002, p. 76-77).

Ao ponderar sobre os limites da tese defendida por Oliveira


Viana, Araújo Lima situa o lugar do índio e da Amazônia na forma-
ção nacional, seus argumentos procuram reabilitar o índio, habitante
secular da Amazônia, face às concepções que o tem como um empe-
cilho a formação nacional. Contrário as teses de Bukle e Gobineau -
que setores da intelligentsia e frações das oligarquias aceitavam como
verdade científica – empreende um trabalho meticuloso de pesquisa.
Desloca, assim, a problemática do meio e da raça para os processos
socioeducacionais, a higiene e o desenvolvimento técnico. Não po-
demos imputar ao meio físico e, tampouco ao homem, a causa da
decadência, da estagnação socioeconômica e cultural a qual a região
encontrava-se. O suposto fenômeno de seleção telúrica que se pro-
cessa na região dos trópicos úmidos, tão propalado por Euclides da
Cunha e Oliveira Viana, não passava de análises precipitadas e im-
pressões claudicantes. Lima (2001, p. 138)
O que está em jogo não é somente a disputa por uma interpre-
tação legítima da Amazônia, capaz de projetar e consagrar seu autor
no espaço do campo intelectual. A posição dos intelectuais expõe as
ambivalências, contradições e alianças presentes nas lutas entre for-
ças sociais (grupos, frações e classes sociais) que buscam delinear um
projeto nacional, no início do século XX. Isto porque o campo inte-
lectual sofre injunções do campo de lutas políticas em um cenário de
intensas disputas pela constituição de uma hegemonia.

Com efeito, os intelectuais brasileiros se entregam à ação política


sem nenhuma hesitação e como se tivessem qualificação especial
para fazê-lo. Em muitas ocasiões, eles se tornam protagonistas
políticos centrais. Além disso, arrogam-se uma competência
particular para assumir a responsabilidade pela dimensão mais
política do fenômeno político: a Ideologia. (PÉCAUT, 1990, p.
7).

- 68 -
A observação expressa por Daniel Pécaut, em Os intelectuais
e a política no Brasil, nos diz muito sobre as relações estruturadas
entre o conjunto das elites dominantes e a atmosfera intelectual que
dominava o cenário do início do século XX. Para os intelectuais a
realidade brasileira e regional oferece um espetáculo de um povo ig-
norante de sua identidade, de sua cultura e de seu destino. Eles, os
intelectuais, assumem a missão de ajudar o povo a tomar consciência
de sua identidade, de sua cultura e ao mesmo tempo criar as condi-
ções ideológicas para proporcionar a unidade nacional. Daí a ambi-
valência entre o seu compromisso com os interesses populares e um
projeto nacional de feição autoritária.

“Organizar” a nação, esta é tarefa urgente, uma tarefa que cabe


às elites. Dela os intelectuais têm ainda motivos para participar,
na medida em que constitui um fato indissoluvelmente cultural
e político: forjar um povo também é traçar uma cultura capaz de
assegurar sua unidade. (PÉCAUT, 1990, p.15).

Os intelectuais de diferentes origens sociais e regionais não


ficaram imunes a essa tendência que permeava suas práticas, um
exemplo local pode ser observado na apresentação da revista Equa-
dor, lançada em Manaus, 1929 por Clóvis Barbosa.

O destino de Equador é trabalhar na preparação da consciência


nacional. Incurvar-se-á no exercício das forças expressivas da
raça, investigando-as. Interpretando-as. Equador nasceu na hora
de sol animadora duma consciência nova. Batizou-se com um
compromisso de esforço para achar o nosso rythmo. Preoccupa-
-se com a mentalidade social e physica absolutamente brasileira.
Quer olhar duro para a realidade semi-barbaras do meio. Quer
olhar assim: espelhando um sentimento humano sem desacerto
de espírito local.
Mas, engraçado! Equador anda vestido numa forma eccletica de
nacionalismo. Nacionalismo passadista e actualista [...]
[...] Mas, que culpa temos nós que os iniciados do Rio e de São
Paulo collassem errado os valores modernistas!... (BARBOSA,
2001, p. 3-5).

A disputa pela definição legítima da cultura e da identidade


nacional contrapõe intelectuais de distintas regiões. Nesse sentido

- 69 -
Clóvis Barbosa faz uma ressalva ao caráter mimético do modernis-
mo do Rio e de São Paulo. Para Barbosa, escritores situados naquelas
cidades copiaram o estilo estrangeiro sem acrescentar algo de si e de
sua região no processo criativo. Ele, parte do princípio que devemos
nos modernizar, mas sem abandonar nossas raízes hybridas, essas
devem se atualizar continuamente no interior das novas experiências
estéticas modernas que emergiram na Europa e nos Estados Unidos
da América. Não podemos simplesmente copiar os modelos euro-
peus, precisamos, segundo ele, reabilitar os valores locais e fundi-los
com as concepções de modernas. É nesse mesmo sentido que Araújo
Lima denuncia que o atraso de nossa região não tem como causa o
meio-físico e o homem, e sim a falta de políticas de educação, sani-
tárias e de desenvolvimento sócio econômico. A posição desses dois
autores denota a luta entre os intelectuais pela definição e classifica-
ção legítima da identidade e da cultura regional e nacional.
As obras produzidas em meio a essas disputas, particular-
mente a de Araújo Lima, denotam de maneira relativa à estrutura do
mundo social, os esquemas de percepção e de pensamento que estão
dispostos nas práticas sociais das classes e frações sociais nas quais
tem origens os agentes envolvidos nessa luta. Essa estrutura social e
os esquemas mentais podem ser observados a partir dos temas, dos
princípios científicos dispostos para interpretar, explicar e descre-
ver a Amazônia, no dizer de Roberto Schwarz tanto a história como
a estrutura social ficam cifrados na obra, assinalando as condições
sociais que lhe deram origem. Basta observarmos o que significou
as obras Os Sertões e Amazônia, um paraíso perdido de Euclides da
Cunha, do ponto de vista simbólico em meio àquela luta pela defini-
ção da cultura e da identidade nacional.
Euclides da Cunha é quem, primeiro, desperta o brasileiris-
mo-amazônico. Num sentido sociológico-político de integração da
Amazônia no Brasil tão afastado e até ignorante de suas deformações
sociais e econômicas, da aspereza de um meio que o homem amava
anonimamente. Esquecido do mundo, jogado no tumulto das pai-
xões, vítimas das doenças, de uma sociedade defeituosa, da crueldade
dos sobas.

É na Amazônia que Euclides da Cunha viu um novo Brasil: um


Brasil em que a mestiçagem étnica afirmava a presença do ho-

- 70 -
mem na terra e sua vitória sobre o meio[...]
Os Sertões abrem ao exame brasileiro o problema que o País ti-
nha de enfrentar e até hoje desafia a sua capacidade de solucioná-
-lo: as desigualdades regionais. (TOCANTINS,1992, p. 13-27).

Essas obras entendidas como modelos, vão pautar o campo


intelectual nos mais variados aspectos: na estética da narrativa, no
modo de organização estrutural da exposição, na arguta percepção
de uma cultura/ identidade nacional (constituída pela diversidade
de tipos sociais regionais), na lucidez com que trata a questão re-
gional de um Brasil profundo. Todos esses elementos sincronizados
num estilo no qual arte e ciência se confundem assumiram um papel
crucial na aspiração dos jovens que se lançavam no campo literário
daquele período. Haja vista, que os aspectos mais densos do livro
Os Sertões, converteram-se em princípios que modularam as tendên-
cias comuns aos intelectuais daquela geração. Com efeito, os inves-
timentos sociais, depositados na elaboração do livro por Euclides da
Cunha levaram-no a Academia Brasileira de Letras. À proporção que
aumentava seu prestígio intelectual, tornavam-se rarefeitas as críti-
cas ao conjunto de seus escritos naquele ambiente intelectual do iní-
cio do século XX. Consagração, que não evitou a crítica empreendida
por Araújo Lima em Amazônia- a terra e o homem, a concepção de
seleção telúrica a qual Euclides da Cunha atribuía a seleção dos ho-
mens mais fortes para ocupar o espaço físico da Amazônia.

Aqueles caboclos rijos e esse saxônico excepcional não são efei-


tos do meio: surgem a despeito do meio; triunfam num final
de luta, em que sucumbiram, em maior número, os que se não
aparelhavam dos mesmos requisitos de robustez, energia e abs-
tinência.
Esse derradeiro argumento, que o grande Euclides da Cunha
invocou para sustentar a “seleção telúrica” no alto Amazonas, é
frágil, fragilíssimo. (LIMA, 2001, p. 139, grifo do autor).

Nesses termos, Araújo Lima assinala que não é o meio físico


a causa que arruinava os homens. É a própria organização da vida
social-carente de um sistema de educação, de higiene e de alimenta-
ção- que impede os homens de sobressaírem nesse ambiente colos-
sal. A observação a que chegara Euclides da Cunha, sobre o homem

- 71 -
amazônico, não passava de nulidades, demonstradas pelas novas téc-
nicas alimentares e os novos tratamentos médicos que reduziram o
coeficiente de morbidade e letalidade das endemias tropicais. Araújo
Lima, conclui que o avanço da engenharia sanitária, dos procedi-
mentos médicos, concomitante a uma política de instrução educa-
cional constitui uma estratégia adequada para superar a situação de
atraso, abandono e esquecimento nos quais a Amazônia foi lançada
por setores da Nação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao indicar os limites da seleção telúrica formulada por dois
grandes espíritos da vida intelectual brasileira, Euclides da Cunha
e Oliveira Viana, Araújo Lima se põe de uma só vez no centro das
discussões sobre a cultura e a identidade nacional; e no centro da
luta em torno de projeto nacional, que deve ter por matriz a diver-
sidade cultural de nossas regiões, estabelecendo um pacto federativo
mais equilibrado entre os estados. A percepção de que os processos
socioeconômicos de ocupação da Amazônia se efetivaram historica-
mente por meio de ações solitárias, muitas vezes na base da aventura,
não podendo dessa forma subjugar as força da natureza, realidade
histórica que necessita de uma ação política coordenada do estado
para dar o suporte estratégico ao desenvolvimento sócio cultural e
econômico da Amazônia. Projeto político de caráter federal que deve
ter como eixo a saúde e a educação, por trás desse projeto de desen-
volvimento regional reside a missão dos intelectuais, que é dotar o
povo de consciência de seu papel na história. Cabe aos intelectuais,
por meio do poder público, formular projetos para conduzir os ho-
mens e a sociedade à civilização.

O homem só escoteiro, sem guia; sem saúde nem cultura; sem


defesa nem proteção; sem preparo nem prévio trabalho adapta-
tivo, o homem do Amazonas campeia naquele cenário como um
gigante, inconsciente de sua bravura. (LIMA, 2001, p. 54).

É dever do intelectual, fazer com que o povo adquira cons-


ciência de seu destino histórico e que aspirem uma organização do
estado, disposto a criar as estruturas administrativas, jurídicas, polí-
ticas necessárias para proteger, educar e curar os males dos desbra-

- 72 -
vadores de uma região tão inóspita. Essa concepção de um estado
coordenador das ações dos indivíduos em um espaço físico - per-
mitindo-lhes desenvolverem suas atividades privadas protegidas por
uma rede de instituições estatais de saúde, educação e orientação –
são percepções do mundo e da realidade amazônica comum as fra-
ções dos setores dominantes regionais nos quais Araújo Lima estava
enredado do ponto de vista de suas origens sociais. Tratava-se de
assegurar a coesão interna da nação por meio da educação públi-
ca, pois nas nacionalidades não há unidade antropológica, mas deve
haver unidade psíquica. A estrutura cerebral não oferece barreira à
transformação mental dos homens, independentemente de contingên-
cias raciais. A educação é o fator máximo de transformação histórica
das raças, traçando as diretrizes das nacionalidades. (LIMA, 2001, p.
48, grifo nosso). Não é o meio, nem a raça a razão da decadência,
do abandono e do atraso da Amazônia senão fatores históricos que
acompanharam uma economia destrutiva, juntamente com uma
ocupação predatória que dissipou toda a riqueza nativa. Todavia a
educação, o desenvolvimento técnico-científico e uma política de
saúde podem reverter esse quadro. Com um só lance Araújo Lima
postula a saída dos impasses regionais (atraso, declínio, abandono
e esquecimento) e as bases de um projeto nacional via educação. Os
distintos tipos físicos característicos da diversidade racial brasileira
seriam condensados em uma unidade nacional por meio da educa-
ção, a fim de superar o fatalismo e o determinismo que nos precipi-
tavam na barbárie e no atraso.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Clovis (Editor). Equador. Manaus: Edições do Estado
do Amazonas/ Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Des-
porto, 2001.
BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias:
vultos do passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. São Paulo:
Ática, 1994.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 2.ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.

- 73 -
LIMA, Araújo. Amazônia-a terra e o homem. 5.ed. Manaus: Edi-
ções do Governo do Amazonas, 2001.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e as políticas no Brasil: entre o
povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o paraíso perdido.
Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992.
TOCANTINS, Leandro. Amazonas, natureza, homem e tempo:
uma planificação ecológica da Amazônia. 2.ed. Rio de Janeiro: Bi-
blioteca do Exército/ Civilização Brasileira, 1982.

- 74 -
SEÇÃO II
CULTURAS INDÍGENAS EM AMBIENTE DA
EDUCAÇÃO FORMAL

- 75 -
- 76 -
OS ALTERINO DA AMAZÔNIA:
IDENTIDADE, TERRITÓRIO E TRANSIÇÃO
URBANOLÓGICA
Elenilson Silva de Oliveira21
Michel Justamand22

INTRODUÇÃO
Ao reportarmos a Amazônia como palco de relações socio-
culturais, políticas e econômicas, obviamente nos remete a com-
preendê-la em cenários históricos que vislumbram uma Amazônia
complexa e profunda. A formação social da Amazônia tem como
esteio o entrelaçamento de culturas, que se forjou sob os estágios de
um “lugar inventado”, da exploração das drogas do sertão, do ciclo
da Hevea, dos projetos estatais e na contemporaneidade, busca um
identidade.
Esses estágios de complexas relações promoveram a circu-
lação, a fixação e a transição de povos adjacentes, ao passo em que
na lógica da atração e repulsão foram fundamentais para determinar
tipologias de habitus e de cultura, a partir da ocupação de novos ter-
ritórioss como lugares de representação simbólica.
Atribuir à Amazônia contemporânea como um resultado do
processo de expansão capitalista, visualiza-se nesse campo uma trí-
ade sociedade-natureza-cultura multidiversa. Ao compasso em que
o território amazônico vem sendo explorado, os processos na tríade
configuram-se cada vez mais endêmicos e complexos, merecendo em
alguns casos serem revisitados no campo ciência multidisciplinar.
As frentes de ocupação da Amazônia, advindas desde a che-
gada do projeto civilizatório, contribuíram para reconfiguração de
uma Amazônia que antes era tida como o paraíso do novo mundo,
21 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia/
UFAM. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas/
IFAM – Campus Tabatinga. elenilson@ifam.edu.br.
22 Doutor em Ciências Sociais/Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia/
UFAM. micheljustamand@yahoo.com.br.

- 77 -
onde o colonizador, o negro, o índio, e outros personagens soavam
como notas de uma canção que nem sempre foi harmônica, amalga-
mando-se num território desconhecido. Território e identidades se
revelaram diante do tempo e espaço amazônico, em meio aos povos
dizimados, povos surgindo e povos nascendo. É nesse contexto que
tratamos no trabalho acerca dos alterinos da Amazônia, na tentativa
de fazer conhecer o que foi ignorado, ou até mesmo, fazer reverberar
sua identidade, ou sua contribuição para a formação de uma peque-
na parte de um todo, que se chama Amazônia.
O processo de construção da pesquisa antevisse de uma aná-
lise qualitativa exploratório-descritiva, buscando desvincular-se de
um empirismo desconexo ou de uma racionalidade vazia, visando
desta forma uma confluência, conforme defendem autores como Ba-
chelard (1977)23 e Bourdieu (1999)24. A coleta de dados, feita a partir
da observação de fenômenos e registro de depoimentos e entrevistas
em campo, serviu de aporte para exploração da pesquisa, na conflu-
ência de dados teóricos, empíricos e bibliográficos. A relevância do
trabalho vai de encontro ao que tem se manifestado acerca da identi-
dade dos alterinos da Amazônia.
Pensar na formação sociocultural da Amazônia sob a perspec-
tiva histórico-geográfica nos remete a endossar o diálogo de diversos
estudos a acerca de contextos e processos de ocupação, que tiveram
como eixo central a expansão capitalista. Considerada, talvez, como
a fronteira de expansão do agro, minério e hidronegócio no Brasil,
tornou-se um lugar de conflito de interesses públicos e privados, na-
cionais e internacionais, gerando tensões sociais, pela posse e uso das
terras, águas e florestas.
Desde o início da ocupação da Amazônia há um propósito
subjetivado na exploração dos recursos naturais, que culminou na
ascensão do projeto colonizador, a começar pelos portugueses, ho-
landeses, ingleses e franceses, que travaram lutas pelo domínio do
território, encontrando ao mesmo tempo, a resistência de numero-
sos povos nativos.
Mais tarde, negros são ‘convocados’ para também servir de
força de trabalho, sendo explorados nas drogas do sertão25. Apesar
23 BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
24 BOURDIEU, Pierre et al. A profissão do sociólogo. Preliminares epistemológicas. 2 ed.
Petrópolis. RJ: Vozes, 1999.
25 As Drogas do Sertão eram os produtos nativos extraídos, como urucum, guaraná, cacau,

- 78 -
de escravizados, lutaram, fugiram, foram caçados, resistiram e re-
produziram-se socialmente em quilombos espalhados pelo território
amazônico. Já não bastasse tais experiências com uso da mão de obra
nativa e de negros, nordestinos foram atraídos pelo sonho do eldo-
rado amazônico, em busca de atender mais uma vez o interesse do
capital nos seringais da Amazônia.
A Amazônia passa pelo que é considerado por Godfrey (1989,
p.4), por fases de expansão, que vai desde a Economia de Subsistên-
cia de Índios nativos, como período pré-capitalista; a extração de
recursos naturais, estímulo do Estado na instalação de frentes de ex-
ploração dos recursos naturais; a Agricultura Pioneira, que estimula
a agricultura regional; a Fronteira Verba, que consolida o interesse
capitalista por meio da implantação dos grandes projetos e a Prima-
zia Urbana e Despopulação Rural, que caracteriza o declínio da po-
pulação rural.
A Amazônia é caracterizada pela miscigenação de povos e por
uma intensa geração de conflitos, características da resistência da
própria região, que ainda desencadeia na contemporaneidade numa
Amazônia em processo de formação social contínuo e permanente,
marcada pelo espectro capitalista.
Como parte do modelo de Amazônia em si, o território do
Vale do Javari absorveu as mesmas aspirações. Podendo até ser con-
siderado há bem pouco tempo como um recorte do que representara
a Amazônia no século XVII.

O ALTO: IDENTIDADE, TERRITÓRIO E TERRITORIALI-


DADE DOS ALTERINOS
A Terra Indígena Vale do Javari, muitas décadas antes da de-
marcação, recebeu um grande contingente de pessoas dispostas a
explorar os seringais. Oriundas de cidades do Amazonas e principal-
mente de outros estados do Brasil, forjaram-se ali como verdadeiros
alterinos, os seus modos de vida em meio ao processo de aliciamento
em decorrência do interesse do capital na seringa da Amazônia.
Os Alterino são povos endêmicos que nasceram ou reprodu-
ziram-se sociocultural e econômico-ambientalmente na região co-
nhecida como Alto - daí o nome de alterinos – localizada na conver-
dentre outras produtos considerados especiarias.

- 79 -
gência dos municípios de Benjamin Constant e Atalaia do Norte, no
Amazonas. Os povos alterino foram criados a partir da lógica capita-
lista que predomina no país e na Amazônia por meio dos processos
de territorialização.
Os alterino se caracterizam como um povo temporário, ou
seja, eles estão desaparecendo, pois, os processos de ocupação e uso
das terras, águas e florestas estão diminuindo, ocasionados por di-
versas razões, que incluem a ausência do Estado, falta de diálogos
entre povos tradicionais indígenas e não indígenas, os conflitos e de-
marcação da Terra Indígena Vale do Javari, ocupando praticamente
todo território vivido pelos alterinos. O alterino não possui atributos
étnico-raciais, pois as gerações reproduzidas, não carregam na prá-
tica essa condição, como podemos observar nos indígenas e negros.
Isso se deve ao fato de que os alterino são povos miscigenados, não
podemos sem um estudo aprofundado categorizar sua identidade
étnica própria, pois além de indígenas, negros, nordestinos descen-
dentes de estrangeiros, os peruanos e colombianos configuram sua
composição social.
A identidade dos alterino foi forjada numa constante frontei-
ra étnica, num ambiente peculiar, onde culturas foram se adaptando
e se recriando no território em disputa. Ali, as comunidades tradicio-
nais foram criadas, apesar de induzidas pelo trabalho nos seringais,
seguindo um padrão natural, unindo as perspectivas sociais de cada
indivíduo e sua relação com a natureza, principalmente acerca do
uso dos recursos naturais. Claro que, o fator econômico imperava
no cotidiano das famílias no Alto, mas nem sempre viviam em de-
corrência da importância econômica, a produção de seringa e outros
produtos já tinha ‘dono’, o chamado de aviador. O caráter identitário
desse povo é ressaltado nos modos de vida estreitamente ligado às
águas e a floresta, além da terra que servia de fonte de manutenção
das famílias.
Diegues e Arruda (2001) conseguem exemplificar teoricamen-
te como os alterino relacionavam-se partindo de princípios coletivos,
organizados socialmente, utilizando caracterizações de comunidades
tradicionais de forma genérica. Diegues (2004, p. 87-88), descreve
essas caracterizações, nos seguintes termos:
• Dependência da relação de simbiose entre a natureza, os

- 80 -
ciclos e os recursos naturais renováveis com os quais se
constrói um modo de vida;
• Conhecimento aprofundado da natureza e de seus ciclos,
que se reflete na elaboração de estratégias de uso e de ma-
nejo dos recursos naturais. Esse conhecimento é transfe-
rido de geração em geração por via oral;
• Noção de território ou espaço onde o grupo social se re-
produz econômica e socialmente;
• Moradia e ocupação do território por várias gerações,
ainda que alguns membros individuais possam ter-se des-
locado para os centros urbanos e voltado para a terra de
seus antepassados;
• Importância das atividades de subsistência, ainda que a
produção de mercadorias possa estar mais ou menos de-
senvolvida, o que implica uma relação com o mercado;
• Reduzida acumulação de capital;
• Importância dada à unidade familiar, doméstica ou co-
munal e às relações de parentesco ou compadrio para o
exercício das atividades econômicas, sociais e culturais;
• Importância das simbologias, mitos e rituais associados à
caça, pesca e atividades extrativistas;
• A tecnologia utilizada, que é relativamente simples, de
impacto limitado sobre o meio ambiente. Há uma redu-
zida divisão técnica e social do trabalho, sobressaindo o
artesanal, cujo produtor (e sua família) domina todo o
processo de trabalho até o produto final;
• Fraco poder político, que em geral reside com os grupos
de poder dos centros urbanos; e
• Auto-identificação ou identificação pelos outros de se
pertencer a uma cultura distinta das outras.

Os alterino, em toda sua história passaram por momentos de


invisibilidade’, pois serviram como coadjuvantes de uma relação de
exploração em que o interesse econômico falava mais alto.
Para compreendermos a ascensão desta população, devemos
nos remeter como já dito, aos ciclos de exploração da Amazônia.
Para isso, nos sustentamos em diversos autores que contextuam as

- 81 -
fases em que a região viveu principalmente as previstas nos planos de
ocupação e desenvolvimento. É coerente considerar que a Amazônia
constitui-se ainda como um grande vazio demográfico, tratado com
esmero nos planos de desenvolvimento, mas que de fato não confi-
guram uma realidade palpável acerca da invisibilidade do homem
amazônico presente no espaço. De acordo com Nahum (2012, p.5):
Nestes planos temos o espaço representado como vazio, sem
a ação humana e o caráter contraditório dos processos produti-
vos da sociedade amazônica não se manifestam. O espaço não é
concebido enquanto esfera da sociedade, palco, produto e condi-
cionante de relações sociais; sem relações sociais. O espaço está
próximo da paisagem, mas não chega a sê-lo, pois esta manifes-
ta a dinâmica sócio-espacial, movimento tornado possível pela
ação de seu ilustre morador, sem ele a paisagem também não
existe.

Os ciclos de exploração, que começaram com as Drogas do


Sertão, traziam para a Amazônia populações de negros para serem
escravizadas, que se intensificaram com os planos de desenvolvimen-
to. Convenceram populações nordestinas, incentivaram outros imi-
grantes estrangeiros sem o status de escravo, escravizaram popula-
ções nativas, a favor de uma forte especulação sobre o capital natural
da Amazônia. Essa tendência do capitalismo voltada ao capital eco-
nômico é traduzida na teoria de Marx. O autor faz referência a “acu-
mulação primitiva do capital”, que no contexto amazônico, fizeram
da expropriação dos meios de produção e a dominação dos povos, os
subterfúgios para o modo capitalista de produção se desenvolver e
explorar as riquezas naturais. Marx (1858, p.721)
enquanto o capital, por um lado, tem de se empenhar para der-
rubar toda barreira local do intercâmbio, i.e., da troca, para con-
quistar toda a Terra como seu mercado, por outro, empenha-se
para destruir o espaço por meio do tempo; i.e., para reduzir a
um mínimo o tempo que custa o movimento de um local a ou-
tro. Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido,
portanto, o mercado em que circula, tanto mais ele se empenha
simultaneamente para uma maior expansão espacial do merca-
do e para uma maior destruição do espaço pelo tempo. (MARX,
1858, p.721)

Podemos apontar a teoria do capital de Marx, voltada às ri-


quezas naturais da Amazônia, ainda vista com interesse prioritaria-

- 82 -
mente econômico, em detrimento às populações e seus territórios.
Talvez sem o devido peso, além do capital econômico, surgem
em meio ao processo de ocupação da Amazônia o capital social e o
capital cultural. Bourdieu (2011, p. 67) define capital social como o
“conjunto de recursos, efetivos ou potenciais, relacionados com uma
posse durável de relações, mais ou menos institucionalizadas, de in-
terconhecimento e de conhecimento”. A interação social que inclui
todos os povos estabelecidos na Amazônia desenvolve uma rede de
produção econômica que estampa a vitrine brasileira para o mundo,
organizada pelo modelo de produção capitalista. Nesse sentido, ou-
tra forma de capital começa a se desenvolver na Amazônia, o capital
cultural. Bourdieu (2011) divide a concepção de capital cultural em
três formas: capital cultural incorporado, capital cultural objetivado
e capital cultural institucionalizado. O autor destaca que:

acumulação de capital cultural desde a mais tenra infância –


pressuposto de uma apropriação rápida e sem esforço de todo
tipo de capacidades úteis – só ocorre sem demora ou perda de
tempo, naquelas famílias possuidoras de um capital cultural tão
sólido que fazem com que todo o período de socialização seja,
ao mesmo tempo, acumulação. Por consequência, a transmissão
do capital cultural é, sem dúvida, a mais dissimulada forma de
transmissão hereditária de capital. (BOURDIEU, 1997, p.86).

A reprodução dos modos de vida de populações sob a égide do


capital passa a transformar a Amazônia no território de dominação
dos povos, de maneira a incorporarem o habitus, por meio da vio-
lência simbólica, sem ao menos notarem a força e o poder simbólico
das relações.
A partir da metade do século XX, a ocupação começou a ex-
pandir-se na Amazônia, e já carregada de um capital cultural, a mas-
sa populacional deslocou-se para os confins da Amazônia, uma parte
chegando até a fronteira entre Brasil e Peru, região com grande po-
tencial de exploração de borracha. Logicamente que os povos que já
viviam no lugar eram predominantemente índios de diversas etnias,
mas que já era observada a presença de exploradores, desde Remate
de Males, o primeiro vilarejo que deu após muitos anos lugar a cida-
de de Benjamin Constant. Conforme Coelho Filho et al (2017, p. 53):

- 83 -
O município teve como sede o povoado Remate de Males que se
destacava pela alta concentração de seringueiras e produtividade
de borracha que se tinha notícias na época, o que resultou na mi-
gração de milhares de nordestinos brasileiros e estrangeiros ao
interior do Amazonas, mais precisamente para esta região. [...]
Remate de Males surgiu da intensa comercialização da borracha.
Vizinha a cidade de Amélia/Peru, despontava com uma pequena
metrópole incrustada na margem direita do Rio Itacoaí, na re-
gião do Vale do Javari. [...]

O Alto é um traço singular na transformação da Amazônia


que, apesar de coincidir com fatos histórico-sociais, pode ser com-
preendido por meio de duas vertentes: o território e a territorialidade.
A compreensão do Alto como território e territorialidade tor-
na-se necessária, tendo em vista que mesmo sendo catalizador da
formação de uma classe de novos habitantes, já ostentava povos in-
dígenas diversos que viviam sob suas peculiaridades, mitos, crenças e
costumes. Conceber o conceito de território e sua relação com o Alto
é tecer ao mesmo tempo um argumento para denominar a população
daquele espaço. Diversos autores, dentre eles Prado Júnior (1987),
Raffestin (1993), Santos (2000), Haesbaert (2001), Souza (2001), Sa-
guet (2004), Becker (2010), Almeida (2012), expõem teorias sobre
território e territorialidade que se põem contrárias aos interesses go-
vernamentais e privados.
Para Raffestin (1993, p. 7) o território é definido pela relação
de poder, onde “não poderia ser nada mais que o produto dos atores
sociais. São eles que produzem o território, partindo da realidade ini-
cial, que é o espaço. Há, portanto, um processo de território, quando
se manifestam todas as espécies de relações de poder. ”
Ao observarmos o processo de ocupação da região, desde Re-
mate de Males, conseguiremos notar que a ascensão da população
migrante, no caso a nordestina e muitos miscigenados de décadas
atrás vivendo na Amazônia, partiu primeiramente de uma proposta
capitalista, de interesse de exploração dos recursos naturais.
A prova disso é a figura dos Coronéis de Barranco, que utili-
zavam das colônias de aviamento para exploração dos recursos e da
população, no âmbito extremamente econômico. Não se importar
com o capital cultural e afastar de qualquer tipo de conhecimento, a
não ser do trabalho essencial que era a mão de obra, era o lema para

- 84 -
manter a opressão dentro de um sistema pré-estabelecido.
Apesar de o Território do Alto ainda não ter sido declarado
como terra indígena, fato que veio a ocorrer somente em 2001, des-
de o início das relações de poderes existentes, prevaleciam a supe-
rioridade do trabalho e de gênero, pois para trabalhar nos seringais
dava-se preferência para os homens, as mulheres eram preteridas.
Para Haesbaert (2004, p. 1) o território, assim, em qualquer acep-
ção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder po-
lítico”. Ele diz respeito tanto “ao poder no sentido mais concreto,
de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apro-
priação”.
Para os alterino o território se configurava além da relação de
poder, mesmo predominante, ou seja, o território possuía uma rela-
ção identitária que pôde ser assimilada pelos modos de vida e repro-
dução social. Haesbaert (2004) descreve sobre os tipos de territórios,
sendo, portanto, associados aos dois territórios existentes no Alto: o
funcional e o simbólico. Vejamos:

Território funcional Território simbólico

Processos de Dominação Processos de Apropriação (Lefebvre)

“Territórios da desigualdade” “Territórios da diferença”

Território sem territorialidade Territorialidade sem território


(empiricamente impossível) (ex.: “Terra Prometida” dos judeus)

Princípio da exclusividade
Princípio da multiplicidade (no seu
(no seu extremo: unifuncionalidade)
extremo: múltiplas identidades)

Território como recurso, valor de Território como símbolo, valor


troca simbólico
(controle físico, produção, lucro) (“abrigo”, “lar”, segurança afetiva)
Fonte: Haesbaert (2004)

O contexto histórico-geográfico do Alto caracterizou-se a
princípio por esses dois territórios endossados pelo autor. Visando
uma reflexão no sentido do território funcional. Não é segredo con-

- 85 -
siderar que o Alto foi um espaço de relações de dominação, onde
quem ‘mandava’ eram os patrões, os que ‘obedeciam’ eram os em-
pregados, seringueiros na sua grande maioria, eu viviam numa es-
pécie de regime de análogos a escravidão, a ponto de usar a mão de
obra até os últimos custos para dar conta da demanda da produção.
Era considerado um território da desigualdade, um campo minado
onde estavam na linha de frente do conflito com indígenas, sendo
obrigados a embrenhar a mata a qualquer custo.
A única função daquela região era de gerar riqueza para um
sistema monopolista econômico, apadrinhado pelo governo, utili-
zando assim o território como recurso. Ou seja, a produção servia
como valor de troca, na maioria das vezes gêneros alimentícios, rou-
pas, apetrechos de trabalho com valores inflacionados como de cos-
tume. Comprar ‘fiado26’ para pagar na safra era comum na relação
patrão empregado, de fato, parte da produção estava sendo custeada
por produtos de necessidade dos alterino.
Para os alterino, o território se torna simbólico a partir de sua
apropriação, a posse, a comunhão do espaço e do lugar, dão um sen-
tido contraditório ao que se pretende para aquele lugar como pro-
jeto meramente econômico. Nesse sentido, as pessoas (invisíveis)
tornam-se visíveis, pois a necessidade de adaptação é iminente, o
território ganha valor simbólico quando se estabelece uma relação
com o ambiente, de formar a integrar os modos de vida e reprodução
social, dando espaço à nova vida, ao que podemos de chamar de lar,
de um lugar onde se estabelece relações sociais e de fortalecimentos
dos grupos sociais.
É nesse contexto que podemos dialogar com a territorialidade,
ou melhor, com a territorialidade dos alterino, pouco ou jamais vis-
ta e reconhecida. “A territorialidade manifesta-se em todas as esca-
las, desde as relações pessoais e cotidianas até as complexas relações
sociais” (BECKER, 2010, p.20), até mesmo nas relações de conflitos
com os indígenas, os alterino aprenderam a limitarem-se no uso do
território geográfico do Alto, mesmo existindo casos específicos de
ocupação e uso dos recursos naturais de forma sobrexploratória.
Havia uma relação de poder muito forte e que foi concebível
para que se formasse um território no Alto, mas que paralelo a esse
26 Os alterino compravam mantimentos que eram registrados pelo em uma conta indivi-
dual (dívida), geralmente quitada no retorno das viagens com a produção extraída.

- 86 -
processo, a territorialidade, como nicho de um território simbólico
era construída a cada movimento dos alterinos na construção dos
seus espaços políticos econômicos, sociais e culturais.

Transição Urbanológica
Haesbaert (2004, p.20) considera que “não há como definir o
indivíduo, o grupo, a comunidade, a sociedade sem ao mesmo ense-
ri-los num determinado contexto geográfico, ‘territorial”. Os povos
tradicionais não indígenas, forjados pela colonização, ocupação e ex-
ploração da Amazônia no período da borracha e mais recente da ma-
deira, estão passando por uma transição tratada neste estudo como
urbanológica. Essa transição passa por três estágios principais, o pri-
meiro se dá pelo contato permanente entre dois mundos, mediatiza-
dos pelo interesse do capital, onde o sujeito vive no rural ligado ao
urbano gerando commodities por meio do trabalho como extração e
comercialização de produtos da floresta e das águas.
No segundo estágio, o alterino já não vive prioritariamente no
rural, mas sim na cidade, adaptando-se as novas formas de reprodu-
ção social mantendo ainda sua ligação física com a vida de antiga-
mente, aventurando-se em viagens de interesses diversos, esporadi-
camente.
No terceiro estágio, suas raízes físicas deixam de existir, o con-
tato entre os dois mundos realiza-se apenas por meio das memórias
individuais e/ou coletivas dos mesmos. A partir daí, completa-se a
transição urbanológica, forjando-se o indivíduo urbano ou alterino
urbanizado.
A transição urbanológica é um conceito próprio que desig-
na a mudança de status da categoria rural ou tradicional dos povos
da Amazônia para um novo status ligado a urbanicidade. Pode-se
considerar como povos tradicionais, os indígenas, não indígenas,
quilombolas, camponeses, florestinos27, extrativistas, e todos autode-
clarados que vivem nas áreas rurais.
Para Oliveira (2000 apud BARTOLI, 2018, p.05) a generaliza-
ção do fenômeno urbano na Amazônia é discutida a partir da identi-
ficação de processos contraditórios, baseados num tripé: a destruição
de formas espaciais existentes, a criação de resistências e a reconstru-
27 Termo introduzido por Jorge Garsché (2012).

- 87 -
ção de formas e conteúdos espaciais dotados de novas dimensões e
significados.
Nesse sentido, a condição urbanológica se dá por meio da re-
lação de estreitamento com o mercado, sob a condição de produção
de bens e mercadorias, como rota de fuga para a sobrevivência da
população não tradicional.

Estágio primeiro dos alterinos


Esse estágio caracteriza-se pelo sujeito que vive no rural ligado
ao urbano gerando commodities por meio do trabalho como extração
e comercialização de produtos da floresta e das águas.
O âmago da criação do território do Alto deu-se como já tra-
tamos antes, pelo interesse econômico de produção de mercadoria,
principalmente pela seringa para alimentar a indústria capitalista. A
borracha foi por algumas décadas, pelo menos até o início da década
de 80 a grande propulsora da mobilidade no território, posterior-
mente substituída pela extração de madeira que teve entre o fim da
década de 80 e início da década de 90 como o maior auge. Atual-
mente, a pesca, a caça e a extração de madeira (em menor escala),
ainda continuam predominando como atividades de exploração no
território geográfico do Alto, mesmo clandestinamente.
Para situarmos os alterino nesse estágio é pertinente relacio-
nar o contexto histórico-geográfico ligado as características do terri-
tório que, mesmo por ocasião da demarcação da Terra Indígena Vale
do Javari, não deixa de ter relação sobre a decisão de permanecer nas
comunidades rurais e antigo seringais, o trabalho nas águas e nas flo-
restas como fonte de manutenção das famílias, quer seja na pesca, na
caça, na extração de madeira, segue sob o enfrentando da legislação
e os órgãos de fiscalização ambiental, tendo em vista a ilegalidade de
atividades exercidas no território.
Os alterino do primeiro estágio vivem ainda no Alto, man-
tendo relação com a cidade, para apenas comercializar produtos ex-
traídos, comprar mantimentos, visitar familiares nas cidades circun-
vizinhas, receber benefícios sociais, dentre outros Um dos sujeitos
ouvidos nesta pesquisa revela o seguinte:

- 88 -
Nasci e me criei no Alto, aqui na comunidade tem muita fartura,
a gente pesca, cria, faz um roçado, extrai frutos da floresta, caça
animais para sustentar a família. Vou a cidade de vez em quando,
mas passo a maior parte do tempo aqui. Vivemos da floresta, e
vendemos nossa produção na cidade. (H.B.N., 35 anos, entre-
vista, 2018).

Os alterino que se encontram nesse estágio permaneceram


talvez por escolha em continuar vivendo no território ou próximo
dele, resistindo à pressão da diáspora. Aqui o território como símbo-
lo ganha mais evidência como lugar de segurança, de vida, de costu-
mes, de cultura e continua preservado na prática cotidiana. O territó-
rio nesse estágio é de identificação, é o chamado território simbólico.
Em dado momento nesse estágio o território representa funcionali-
dade, representa lar e abrigo, e também gera recursos, onde os alte-
rinos, têm que acumular produtos da natureza, transformá-los em
mercadoria, ir até as cidades para comercializá-los, e assim, retornar
para reiniciar o ciclo.
O alterino mesmo ligado fortemente ao mercado (econômico)
resiste ao processo de deslocamento definitivo, preserva o habitus,
como princípio que o indivíduo carrega dentro de si, construídos
no processo de socialização. Bourdieu (2007, p. 191) define habitus
como um “sistema de disposições socialmente constituídas que, en-
quanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o prin-
cípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias
características de um grupo de agentes”.
Para o autor o habitus está na condição de relação do indiví-
duo com o acúmulo de bens simbólicos ao longo de sua vida, o capi-
tal social e o capital cultural estão intimamente ligados, construídos
historicamente no processo de socialização.
A própria estrutura social, a relação de poder no território,
a autonomia na exploração da natureza fazem com que os alterinos
optam por em permanecer nesse estágio, nos territórios de origem.

Estágio segundo dos alterinos


Nesse estágio o sujeito já não vive prioritariamente no rural,
mas sim na cidade. Esse povo adentrou no território do Alto em de-
corrência da existência de caça, pesca, extrativismo, principalmente

- 89 -
de madeira. O território é prioritariamente funcional, servindo como
recurso e valor de troca. Para Raffestin (1993, p. 08), “um recurso não
é uma coisa”, a matéria em si, ele “é uma relação cuja conquista faz
emergir propriedades necessárias à satisfação de necessidades”.
Envolvidos ou influenciados pelos conflitos com indígenas,
os alterinos do segundo estágio, optaram em migrar para as cidades
próximas, buscar uma nova forma de viver, por meio do trabalho
informal, acessando escolas e universidades. Mesmo assim, manti-
nham e/ou continuam mantendo uma estreita relação com o ter-
ritório do Alto. Essa relação tem, na maioria das vezes um caráter
econômico, tendo em vista que os mesmos, na grande proporção ho-
mens, retornam ao lugar para realizar algum tipo de atividade como
mencionamos anteriormente. Um outro sujeito entrevistado expõe:

Moro em Benjamin Constant há pelo menos 20 anos, antes eu


morava no Ituí, cheguei q ir para o seringal quando eu era crian-
ça, mas trabalhei mesmo foi com madeira, derrubada muitas ár-
vores como motosserra, ajudava a carregar pranchas de madeira
como empregado de um madeireiro. A madeira ia para as serra-
rias de Benjamin. Depois que começou a ficar escasso o trabalho,
fecharam os rios, eu decidi me mudar para cá. Mas ainda con-
tinuo tirando madeira, por encomenda, trago pranchas, tábuas,
listões, barrotes, faço todo esse trabalho com motosserra. Não
voltaria a morar lá porque aqui na cidade já me acostumei. Faço
várias atividades para sobreviver. (J.P.S, 49 anos, entrevistado,
2018).

O território para o alterino nesse estágio é caracterizado tipi-


camente como mercantil, pois a relação que ele mantém com o Alto
é centrada na exploração dos recursos naturais, como mercadoria,
obtendo lucros por meio das atividades exercidas no lugar.
Essas atividades não se concentram na caça de animais como
anta, queixada, tatu, capivara, macaco, aves como mutum, carcará,
jabuti. Nos rios pescam quelônios (tracajá, iaçá, tartarugas), piraru-
cu, sulamba, bagres e ornamentais com alto valor comercial (vendi-
dos no mercado de Letícia – Colômbia). A madeira ainda continua
sendo muito explorada, até mesmo por alterino do primeiro estágio.
Após o auge da madeira, as serrarias nas cidades próximas foram se
extinguindo ou diminuíram a capacidade de produção de subprodu-
to da madeira, principalmente em Benjamin Constant.

- 90 -
Ainda no estágio terceiro, existem os alterino que op-
taram viver numa relação mais próxima com o rural, em vez
de ficar nas cidades, ou assentamentos de reforma agrária,
como foi caso do Assentamento Bóia28, criado para receber
a população que saía do Alto. Muitos alterino passaram a
viver em comunidades rurais.

Terceiro estágio dos alterino


Nesse estágio concentram-se os alterino que decidiram aban-
donar definitivamente o território do Alto e viver única e exclusiva-
mente na cidade, apesar de muitos viverem ainda em comunidade
rurais. O contato físico como o território deixa e existir, passando
a dar lugar às memórias individuais e/ou coletivas, lembranças do
passando recente. Costa & Maciel (2016, p. 128) afirmam que:

a apropriação espacial - a territorialização - de partes do espaço


urbano se constitui como processo fundamental à possibilidade
de visualização e de luta política de um segmento social ou gru-
po cultural quanto à aceitação social de suas condições culturais
e à busca da melhoria das condições de vida (consumo, habita-
ção, lazer e trabalho).

Muitas pessoas dentro dos núcleos familiares não retornaram


mais ao território, viveram ou vivem na cidade, adaptando-se as no-
vas realidades. As raízes rurais vão aos poucos deixando de existir e
urbano passa a ser realidade no enfrentamento e mudança de cos-
tumes, cultura, crenças, trabalho, modos de vida que estão presen-
tes em cada alterino. Um outro sujeito ouvido na pesquisa revela o
seguinte:

Vim morar em Benjamin Constant de vez no final da década de


70, estava ficando muito perigoso morar no Alto por causa dos
conflitos com os índios. Eu nasci e me criei no rio Itacoaí, ajudei
meus pais a cortar seringa, mas vim pra cidade porque queria que
meus filhos estudassem. Sofri muito, pois não quis mais voltar,
deixei para trás minha vida de agricultora e seringueira, até hoje
não sei se o cemitério onde meu pai foi enterrado existe, acho que
o barranco caiu. Lá era área de livre acesso, hoje não pode mais
28 Em 2002, o INCRA, por meio da SR 15 cria o PA Bóia, com o objetivo de assentar as
famílias não indígenas remanescentes pós demarcação da Terra Indígena do Vale do Javari.

- 91 -
entrar porque é área demarcada. Na cidade, tive que reaprender a
viver foi muito difícil a vida na cidade no tempo que cheguei, não
sabia fazer nada além de trabalhar no campo, fui aprendendo aos
poucos. Aprendi a costurar, aprendi a ler aos 55 anos, fazia de tudo
um pouco para sustentar meus filhos (M.E.S., 72 anos).

A hipótese é de que todos os alterinos passarão por esses está-


gios em algum momento de suas vidas. Em decorrência do contexto
atual da então Terra indígena Vale do javari, não está sendo fácil vi-
ver no Alto como alterino, os mesmos não foram reconhecidos como
população tradicional e, especificamente a forma de como o processo
de demarcação invisibilizou essa população foi trágica. Fraxe (2007,
p.17) usa o argumento de ‘desconstrução da identidade dos povos
tradicionais do Vale’ como crítica a falta talvez de maturidade do Es-
tado e do Direito em lidar com a situação. A autora alerta que “Não
podemos desconsiderar, também, a possibilidade da máquina gover-
namental ter manipulado dados e informações e moldado opiniões
com vistas a obter aceitação social de suas decisões, muitas vezes des-
providas de conteúdo justificável” (FRAXE, 2007, p.17).
De fato, o simbólico, o imaterial, a memória coletiva, os mo-
dos de vida, a identidade dos alterino se perde, morrem aos poucos,
em decorrência de processos que os envolveram e que consequente-
mente marca gerações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Constata-se que, as novas formas de restruturação da popu-
lação não tradicional não indígena, aqui tratada como alterino é re-
flexo de tentativas de exilar-se, mas ao mesmo tempo de encontrar
novos territórios para reproduzirem-se. O desapossamento também
destrói sujeitos, identidades, grupos sociais e classes sociais, e que
estes não vivem sem seus territórios.
Podemos considerar que existem várias amazônias, herdadas
uma das outras por meio dos acontecimentos que se tornaram vi-
síveis, e de outros (invisíveis) que ganham notoriedade a partir da
excitação do conhecimento dinâmico e prático. Logicamente, enten-
demos que o processo de formação sociocultural na Amazônia não é
engessado, mesmo ligado pelas fases dos séculos atrás, possui singu-
laridades e significados endêmicos.

- 92 -
Os alterino como população semelhante a muitos outros na
Amazônia passam por uma transição urbanológica, que logicamen-
te, traz suas consequências positivas e negativas, sob os domínios e
as decisões que podem ter sido consideradas intransigentes, imposi-
tivos do ponto de vista do reconhecimento como população tradi-
cional, frente aos mesmos direitos que as populações tradicionais do
restante do país.
O deslocamento da população tradicional não indígena do
Vale do Javari em seus respectivos estágios, além demonstrar a ca-
pacidade dos alterino de adaptar suas vidas a diferentes realidades,
apresenta novas classes e grupos sociais multiterritoriais que não
perderam suas identidades de sujeitos. Este cenário recente promove
singularidades no complexo Amazônia apontadas para novos estu-
dos e novas compreensões das relações socioculturais nos multiter-
ritórios.

REFERÊNCIAS
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BECKER, B. K.. Novas territorialidades na Amazônia: desafio às
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COELHO FILHO, N. M.; BAIMA, T.S.; PONTES, M.S.. A econo-
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território amazônico. Revista Geopolítica Transfronteiriça, v. 1, nº
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COSTA, B. P.; MACIEL, J. L.. O território como conceito-chave
na educação ambiental – reflexões a partir do projeto comunitário

- 93 -
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DIEGUES, A. C. S.. O mito moderno da natureza intocada. 4ª ed.
São Paulo: HUCITEC: NUPAUB: USP, 2004. 169 p.
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dade. Rio de Janeiro: Editora Bertrand, 2004.
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de. Porto Alegre. Setembro, 2004.
NAHUM, J. S.. Região e representação: A Amazônia nos planos
de desenvolvimento. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias
Sociales. Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9796. Depósito
Legal: B. 21.742-98. Vol. XVII, nº 985, 25 de julio de 2012.
RAFFESTIN, C.. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática,
1993.

- 94 -
O VALE DO JAVARI E A EDUCAÇÃO FORMAL
NO SÉCULO XX: O QUE NOS APONTAM OS
DOCUMENTOS HISTÓRICOS ACERCA DA
“ESCOLA PARA ÍNDIOS” NA AMAZÔNIA
BRASILEIRA?
Ildete Freitas Oliveira29
Heloísa Helena Corrêa da Silva30

INTRODUÇÃO
Os esforços teórico-metodológicos empreendidos para a rea-
lização deste trabalho nascem dos compromissos de pesquisa assu-
midos pelos integrantes do Grupo de Pesquisa em Línguas e Culturas
Amazônicas - LCA, que a partir de um projeto apoiado pelo CNPq,
buscaram evidenciar a História social dos povos e das línguas do Vale
do Javari, no período compreendido entre 1866 a 1990.31 De cará-
ter multidisciplinar, o projeto contempla cinco eixos: o linguístico,
o geográfico, o histórico, o educacional e o eixo memória. Com vi-
gência de dois anos (aprovado pelo edital CNPq/MCTI Nº 25/2015
– Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas), a pesquisa é rea-
lizada tendo como base uma metodologia documental, envolvendo
arquivos doados ao referido grupo de pesquisa, além de pesquisa
bibliográfica. Os desdobramentos desse projeto maior, rendeu-nos
atividades acadêmicas como orientações de iniciação científica e tra-
balho de conclusão de curso na graduação, além de um projeto de
29 Doutoranda do Programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, Profes-
sora da Universidade do Estado do Amazonas/UEA. E-mail: profa.ildete.uea@gmail.com
30 É doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade católica de São Paulo e
Doutora em Serviço Social Universidade Federal do Amazonas - UFAM. E-mail: hhelena@
ufam.edu.br
31 Projeto de pesquisa multidisciplinar, que visa caracterizar a história social do Vale do
Javari, a partir de fontes históricas primárias, considerado o período de 1866 a 1990, que
conforma um grande período histórico para a região. Esta caracterização leva em conta a
história indígena, considerando-se principalmente a) a inter-relação entre os povos indí-
genas da área etnográfica e áreas adjacentes; e b) o impacto da ocupação não indígena da
região e as transformações em suas dinâmicas, bem como a produção de conhecimento
sobre a área que esta ocupação gerou. Por tratar-se de um trabalho multidisciplinar e tam-
bém de interesse para áreas diversas do conhecimento, pretende-se gerar produtos que
possibilitem o assentamento de referências para pesquisadores interessados sobre a região.

- 95 -
produtividade acadêmica. Atividades todas realizadas na Universi-
dade do Estado do Amazonas, na unidade Centro de Estudos Supe-
riores de Tabatinga, no Alto Solimões.
Por se tratar de um tema pouco explorado em relação à região
mencionada, acreditamos que este trabalho possa oferecer, aos seus
leitores e aos interessados na área, informações históricas relevantes.
Para este artigo, trazemos uma discussão acerca do eixo educacional
e dos elementos destacados sobre o seu conteúdo para a pesquisa. Os
resultados dessa análise documental sobre políticas públicas educa-
cionais oferecidas aos povos indígenas do Vale do Javari, estado do
Amazonas, contempla especificamente, o segundo período do gover-
no Vargas, passando pela promulgação da atual LDBEN 9394/96 e
chegando ao ano 2000 do século XXI.
É importante destacar que o Vale do Javari é o espaço terri-
torial de maior concentração de povos indígenas e índios isolados
do Amazonas e do mundo. É a partir desse contexto que buscamos,
neste trabalho, relacionar os fatos históricos encontrados nos livros,
com o que obtivemos da varredura dos arquivos documentais pes-
quisados, através do Acervo Memória Base Vale do Javari e Acervo
Memória Júlio César Melatti, dois acervos históricos doados ao Gru-
po de Pesquisa Línguas e Culturas Amazônicas (LCA), por fontes
distintas32.

32 O Acervo Memória Júlio César Melatti, é composto por 63 documentos. Possui alguns
documentos que pertenceram ao próprio Júlio César Melatti, professor do Departamento
de Antropologia da Universidade de Brasília, que fez visitas à região do Vale do Javari,
principalmente aos índios Marúbo, nos anos 1974/75, 1979 e 1983. Com o objetivo de rea-
lizar pesquisas etnográficas, segundo um documento sem identificação de data, intitulado
O Cólera dos Índios do Javari, de autoria do mesmo. Os outros documentos são originários
de relatórios de organizações como a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), Grupo de
Estudos Javari (GEJ), entre outras fontes. Acervo Memória Base do Javari (326 documen-
tos). Os dados encontrados referem-se aos anos de 1989, 1991 e 1992. E demonstra-nos
ausência de informações sobre políticas públicas educacionais durante 44 anos nesses do-
cumentos. Levamos em conta o início do período por nós investigado, até encontrarmos
o primeiro achado condizente ao tema em questão. E uma lacuna de 8 anos nos mesmos
documentos entre a última informação e o término do ano proposto no trabalho.

- 96 -
Mapa 01: Terra Indígena Vale do Javari-AM
Fonte: www. cimi.org.br. (2018)

As reflexões provenientes desta trajetória de pesquisa apre-


sentam a realidade da educação escolar indígena nessa região por
um período de 55 (cinquenta e cinco) anos, e consequentemente a
ação do estado brasileiro sobre esta população.
Atualmente, os povos indígenas do Brasil contam com direi-
tos garantidos pela Carta Magna, a Constituição Federal de 1988,
em vários âmbitos, e especificamente, direitos educacionais, que
também são garantidos pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional 9.394 de 1996. O quadro atual de direitos sociais conquis-
tados, é recente, fruto do enfrentamento do movimento indígena no
Brasil e da árdua atuação de homens e mulheres que compreenden-
do a necessidade da configuração de uma sociedade democrática, se
aplicaram nesse movimento, resultando em leis que contemplassem
os povos nativos do país. Todavia, os direitos garantidos pelas leis,
não necessariamente são respeitados e produzem benefícios diretos
aos povos indígenas.
Assim, o trabalho desenvolvido, objetiva levantar e discutir
as ações das políticas públicas educacionais exercidas sobre os povos
indígenas do Vale do Javari, no período histórico do ano de 1945 ao
ano 2000. De forma mais específica, buscamos relacionar as políti-
cas públicas educacionais para o Vale do Javari, no período histórico

- 97 -
mencionado, e ainda sistematizar dados sobre as iniciativas educa-
cionais desenvolvidas na área para o mesmo período e analisar o im-
pacto dessas políticas públicas de educação para esta região.
A temática abordada é importante por oferecer ao meio aca-
dêmico, bem como a outros domínios, informações e reflexões acer-
ca do que o Estado, ao longo de um período histórico considerado de
desenvolvimento para a sociedade brasileira, como a Era Vargas, ofe-
receu aos povos originários da porção territorial em questão, acerca
da educação escolar.

1. O marco de ações educacionais no Brasil: no berço da


colonização
Dentro de um contexto mais atual, podemos definir políticas
públicas de educação, como ações, programas, projetos, leis que re-
gulam, orientam e garantem o sistema de ensino, a instituição esco-
lar pública, laica e gratuita. Para Oliveira (2010, p.97), “quando se
refere à educação, são políticas públicas em prol da educação escolar.
Ou seja, “políticas públicas educacionais dizem respeito às decisões
do governo que tem incidência no ambiente escolar enquanto am-
biente de ensino-aprendizagem.” (IBIDEM, p. 97).
Os primeiros registros históricos que existem em relação a
uma educação formal no Brasil, ou seja, que responde por uma po-
lítica voltada para a educação, data dos anos de 1549. Neste perío-
do, é fácil perceber que existiam ideias um tanto diferentes das quais
temos e conhecemos hoje, a esse respeito. É nesse período que os
Jesuítas chegaram ao Brasil, padres da Companhia de Jesus que fica-
ram encarregados da educação, especialmente dos povos nativos. De
acordo com Saviani (2007, p.25, 26), “[...] os primeiros jesuítas, [...]
vieram com a missão [...] de converter os gentios. [...] criaram escolas
e instituíram colégios e seminários que foram espalhando-se pelas
diversas regiões do território.
Naquele momento, a educação possuía um forte caráter reli-
gioso, atuando como braço da Coroa Portuguesa para a realização
do seu projeto de colonização. Ainda assim, é o primeiro marco que
encontramos de uma educação estruturada, organizada suficiente-
mente para desenvolver um ensino regido pelo estado monárquico.
Observa-se que há a presença ferrenha da religião, no centro dessa

- 98 -
política, tendo como seus primeiros alvos os povos nativos que aqui
habitavam.
A atuação da Companhia de Jesus e o desenvolvimento co-
lonial da educação de índios, colonos vindos de Portugal e também
nascidos aqui, e posteriormente de negros africanos escravizados e
seus descendentes, conta com um total de 210 anos em solo brasi-
leiro. Encerrou-se com a administração do Marquês de Pombal que,
projetando outros rumos para a colônia dos trópicos, via na presença
jesuíta empecilho ao seu modelo colonizador mercantilista. Assim
temos, no período colonial, dois modelos distintos de ação gover-
namental absolutista sobre o que se pretendia junto aos coloniza-
dos. Embora altamente negadora de direitos, essas ações se caracte-
rizavam como políticas públicas de educação da época (ARANHA,
2006).

2. Instrução no Império Brasileiro e a constituição do Estado


Nacional
O império brasileiro, é o período da história da educação no
Brasil em que a escola surge como forma privilegiada de intervenção
no modo de vida e no funcionamento da sociedade, na gestão da po-
pulação e na constituição e individualização dos sujeitos (GONDRA,
2014). Logo, pensar as formas de educação no Império implica refle-
tir sobre o processo de construção do Estado brasileiro.
Embora a intervenção promovida pela educação que o estado
ofertaria à população, visasse promover o país, os processos de cons-
trução das formas de educação escolar no Brasil, no século XIX, não
foram uniformes, indiferenciados ou contínuos, e muito menos es-
tiveram resumidos à ação do Estado. Isso resultou, pois na desigual-
dade de condições educacionais entre as províncias, na profusão de
reformas, na complexidade de normas e nas tensões entre diferentes
concepções e formas de educação que foram múltiplas. Os ideais e os
discursos em prol da civilidade tornaram-se fundamento para uma
série de projetos políticos e medidas administrativas que nortearam
a constituição do Estado Nacional.
No âmbito da educação houve inúmeras iniciativas formais e
não formais desenvolvidas por diversos grupos de religiosos (cató-
licos, protestantes, espíritas, indígenas, orientais, do mundo árabe,
afro-brasileiros), e estas atividades cumpriram papel decisivo na di-

- 99 -
fusão da instrução e a aproximação com o Estado foi uma estratégia
eficiente para o sucesso destas iniciativas (GONDRA, SCHEUELER).
As medidas estabelecidas pela política indigenista imperial ti-
nham como objetivo “integrar” estes indivíduos ao “projeto de cons-
trução da nação e do Estado, fomentando o ingresso das populações
no mundo do trabalho e a civilização dos costumes” (GONDRA,
SCHEULER, 2008, p. 256). E, ao contrário do que é possível supor,
os autores informam que as discussões relacionadas aos indígenas
foram intensas, assim como foi intensa a atuação de parte dessa po-
pulação “diante das políticas ambivalentes do Estado” (p. 260).

3. Educação Brasileira no século XX: subsídios históricos para


a compreensão das políticas públicas em período recente
O período de 1945 ao ano de 1964 contempla o final do go-
verno ditatorial de Getúlio Vargas, conhecido mais enfaticamente
como Estado Novo, até o governo de João Goulart. De 1945 a 1946,
era possível destacar ou descrever a educação do país em 5 anos de
estudos Primários e 10 anos estudos Secundários, dividido em 6 anos
de estudos Ginasiais e 4 anos de estudos Colegiais. Também em 1946
começou-se a discutir a construção de um projeto de lei voltado para
a educação, programa que tinha como título “LDB-Lei de Diretrizes
e Bases da Educação.” (ROMANELLI, 1986)
Com o fim do Estado Novo, é eleito presidente do Brasil Gas-
par Dutra (1946) e ao mesmo tempo é elaborada uma nova carta
magna, fazendo com que a Constituição Federal considerada de
cunho democrático determinasse a obrigatoriedade de se cumprir o
ensino primário. Esta lei pode ser tomada como um marco histórico
no país, desde o período colonial, as monarquias que seguiram até o
Brasil república, em relação à educação pública e popular.
Em 1951, Getúlio Vargas torna-se presidente do Brasil nova-
mente, e é nessa década, mais especificamente em 1953, que a edu-
cação brasileira passa a ser administrada pelo MEC (Ministério da
Educação e Cultura). Juscelino Kubistchek, a partir de 1956, com sua
proposta desenvolvimentista para o Brasil, lança o seu “Plano de Me-
tas.” E a educação nacional fica firmada como o quinto tema básico
nesse plano. Nesse tocante, Oliveira (1955), ressalta que, o plano pro-
punha a formação de elites dirigentes, visando um desenvolvimento

- 100 -
econômico, privilegiando a técnica, e consequentemente um ensino
técnico, que incidiria sobre o surgimento de profissões que atendes-
sem a necessidade imposta pela economia do momento histórico de
se industrializar e modernizar o país. Apesar da existência de um
plano de metas para a educação, esta não foi prioridade desse go-
verno, e o que se propôs, não foi cumprido. Mas, fato curioso, é que
mesmo não havendo muita preocupação da parte do seu governo, os
recursos direcionados à educação nesse período foram aumentados
(SAVIANI, 2007).
Em 1961 a LDB é finalmente aprovada, regulamentada pela
Lei 4.024-LDB. Entretanto, as suas regulamentações foram conside-
radas pelos Escolanovistas desfavoráveis às classes subalternizadas.
Sequencialmente, em 1962, com base na concepção de ensino criada
por Paulo Freire é elaborado o Plano Nacional de educação e o Pro-
grama Nacional de Educação.

4. Período de 1964-1985 (Ditadura Militar)


Um longo período de 20 anos, momento em que se destacou
principalmente a opressão e o autoritarismo. Os novos “donos do
poder”, tinham grandes desafios relacionados à educação. Logo após
tomar posse do país, tiveram como “primeira ação política [...] cria-
ção do Salário-Educação Primário (Fnep) e o Fundo Nacional para
investimento Social (Finsocial)” (BARBOSA, 2008).
O primeiro passo para tentar sanar a situação lamentável em
que a educação e o ensino básico em nosso país se encontrava. De
acordo com Barbosa, (2008, p. 63), “[...] o analfabetismo, a relação
entre escolaridade e a empregabilidade. [...] número de analfabetos
com mais de 15 anos de idade contabilizando cerca de 40%, da falta
de escolas para as crianças [...].” Se evidenciou fortemente no proces-
so ditatorial que assolou o país. Mais uma vez se colocava em ação a
perspectiva de que o estado teria o poder de desenvolver mecanismos
que trariam a possibilidade de erguer a educação e através dela levar
a sociedade a melhorar em vários aspectos.
Outra ação dos novos donos do poder foi investir em acordos
internacionais com o objetivo de gerar recursos para a educação e fi-
nanciar projetos para produtividade. Para isso, “o Brasil traçou laços
de união principalmente com os Estados Unidos da América, fato

- 101 -
que ficaria marcado por décadas posteriores, não só na educação,
mas, também na economia da nação brasileira”. (BARBOSA, 2008,
p.63).
A União entre Brasil e Estados Unidos da América tinha como
objetivo trazer desenvolvimento para o país, mas todos sabem que a
história prova o contrário, e que na verdade, isso apenas afundaria
ainda mais o país com uma dívida externa. Os acordos feitos entre
ambos não deram ao Brasil os benefícios esperados. A maioria das
metas estabelecidas não foi cumprida, em outros casos nem chega-
ram a sair do papel.
A história da educação brasileira evidencia-nos um cenário de
uma educação sempre vinculada a manutenção do poder e do sta-
tus quo, excluindo a grande maioria que, por sua vez, é formada por
minorias sociais. Embora as propostas soem como comprometidas
com toda a população, elas correspondem a interesses políticos, eco-
nômicos e de gestão antes de qualquer outra intenção. Não se obser-
va, por exemplo, uma política intencional voltada para as questões
indígenas.

5. A pesquisa documental - um caminho metodológico


A pesquisa documental apresentou-se como forma privilegia-
da de desenvolvimento deste trabalho. Parte integrante do grande
projeto que desencadearia a orientação e o encaminhamento de ou-
tras pesquisas menores foi realizada através do Acervo Memória base
Vale do Javari e Acervo Memória Júlio César Melatti, bem como o
cruzamento dessas informações com os eventos históricos registra-
dos pelos livros, e outros materiais já publicados, num esforço de
pesquisa bibliográfica.
Quanto aos seus procedimentos técnicos, recorremos a pes-
quisa documental, que possui muita similaridade com a pesquisa bi-
bliográfica. A análise documental favorece a observação do processo
de maturação ou de evolução de indivíduos, grupos, conceitos, co-
nhecimentos, comportamentos, mentalidades, práticas, entre outros.
(CELLARD, 2008). Além de analisar os documentos de primeira
mão, existem também aqueles que já foram processados, mas po-
dem receber outras interpretações. Gil (2008) define os documentos
de primeira mão como os que não receberam qualquer tratamento

- 102 -
analítico.
O uso de documentos no campo da pesquisa e investigação
científica não é algo novo e precisa ser valorizado, pois de maneira
nenhuma diminui o mérito de um trabalho. Por meio do proces-
so de verificação documental, o pesquisador pode levantar dados
importantes, extrair informações ainda não observadas. Possibilita
a ampliação do entendimento e conhecimento sobre certo assunto,
fatos que estão relacionados no âmbito social, histórico, entre outros
das ciências sociais e humanas. Cellard, (2008, p. 295) destaca que “o
documento escrito constitui uma fonte extremamente preciosa para
todo pesquisador nas ciências sociais. [...] muito frequentemente, ele
permanece como único testemunho de atividades particulares ocor-
ridas num passado recente.
Em relação a sua abordagem, utilizamos a pesquisa qualitati-
va, que busca diretamente em responder a questões muito particula-
res, preocupando-se, nas ciências sociais, com um nível de realidade,
que não pode ser quantificado. Ou seja, não se restringe, nem se limi-
ta a números, trabalha com o universo de significados, motivos, aspi-
rações, crenças, valores e atitudes, o que responde a um espaço mais
profundo daquilo que estamos investigando. (DESLANDES, 1994).
Para obtenção dos dados, foram examinados 389 documen-
tos, através de consulta e leitura minuciosa dos dois acervos, num
período de seis meses, entre os anos de 2016 e 2017, como se pode
ver a tabela a seguir.

ACERVO PERÍODO
Consulta e leitura Acervo Memória base
Outubro a dezembro de 2016
Vale do Javari.
Consulta e leitura Acervo Memória Júlio
Janeiro a março de 2017
César Melatti.

Tabela I – Cronograma de consulta e leitura dos acervos.


Fonte: Arquivos digitais do Projeto História Social dos Povos e das Línguas do
Vale do Javari. (2016)

Para o registro e organização dos dados levantados nos do-


cumentos, elaboramos uma tabela no aplicativo Powerpoint, com o

- 103 -
objetivo de sistematizar os dados que eram localizados. Para essa ta-
refa, utilizamos critérios como: nome do acervo, tipo de documento,
informante, local da ocorrência e ano, e descrição da informação.
Acrescenta-se a estes documentos a presença ou não de escolas; es-
trutura física das escolas; escolas assistidas ou não; contratação de
professores; presença ou não de programas educacionais; projetos
de educação desenvolvidos; tipo de ensino: alfabetização/letramento;
política de ensino específica para a região e assuntos similares.

6. Dados encontrados no Acervo Memória Base Vale do Javari


O Acervo Memória Base Vale do Javari é composto de 326 do-
cumentos. As informações encontradas são apresentadas sistemati-
camente e particularmente em forma de tabela. Vejamos:

Ano Local Descrição


O ano letivo do exercício de 1989, teve início
normalmente, com a criação de mais 03
Área Indígena escolas, além daquelas que já funcionavam
1989 Vale do Javari desde o exercício anterior, totalizando 09
(nove) escolas, em nossa jurisdição.
Aprovação de um projeto de EDUCAÇÃO,
no valor de NCz$: 41.500, 00 (QUARENTA
Área Indígena E UM MIL QUINHENTOS CRUZADOS
1989
Vale do Javari NOVOS), destinados à construção de
escolas.
Presença de uma escola na ALDEIA PIN
1991 Rio Curuçá CURUÇÁ
A FUNAI requer a implantação de um
projeto na Área Indígena Vale do Javari,
Área Indígena com vistas a proteção dos índios isolados e
1991 Vale do Javari a assistência aos índios não isolados, voltado
para o atendimento à saúde, educação e
produção.”
Tabela II – Registros encontrados nos anos de 1989/91 sobre políticas públicas
educacionais no Vale do Javari.
Fonte: Arquivos digitais do Projeto História Social dos Povos e das Línguas do
Vale do Javari (2016)
Observamos nos documentos, que em 1992, na área indígena
Vale do Javari, havia um programa de educação sendo desenvolvido

- 104 -
pelo Estado brasileiro por professores rurais. Na jurisdição da cidade
de Atalaia do Norte, existiam trezentos e oitenta e dois (382) alunos
matriculados, distribuídos em onze escolas, e estas, em onze aldeias
indígenas, como se pode observar na tabela a seguir:

ALDEIAS QUANTIDADE DE ALUNOS


1-Aldeia Rio Novo Posto Indígena Ituí 40 alunos
2-Aldeia Vida Nova Posto Indígena Ituí 30 alunos
3-Aldeia Alegria Posto Indígena Ituí 25 alunos
4-Aldeia Mats Posto Indígena Ituí (sede Pin) 40 alunos
5-Aldeia Lobo Posto Indígena Ig Lobo (sede Pin) 42 alunos
6-Aldeia 31 Posto Indígena Lobo 62 alunos
7-Aldeia Curuçá Posto Indígena Curuçá (sede Pin) 35 alunos
8-Aldeia Maronal Posto Indígena Curuçá 34 alunos
9-Aldeia Massapê Posto Indígena Massapê (sede Pin) 28 alunos
10-Aldeia São Luís Sede ADR 18 alunos
11-Aldeia Lameirão Sede ADR 28 alunos
TOTAL DE ALDEIAS: 11 TOTAL DE ALUNOS: 382

Tabela III – Distribuição de escolas rurais no Vale do Javari em 1992.


Fonte: Arquivos digitais do Projeto História Social dos Povos e das Línguas do
Vale do Javari. (2016)

A tabela apresentada é o ponto forte em que se pode observar


a distribuição de escolas e a sua localização, incluindo a quantidade
de alunos matriculados. Para melhor contribuir no que tange a divi-
são e identificação dessas aldeias, vejamos também o mapa a seguir:

- 105 -
Mapa 2: Identificação da Terra indígena Vale do Javari no ano 1992.
Fonte: Fundação Nacional do Índio/Ministério da Justiça, 1992.

Já no ano de 1992, encontra-se o último registro em relação ao


assunto investigado, o qual é citado na tabela IV, sendo que os oitos
anos que se seguem, até o fim da investigação, não se achou registros
relacionados ao tema proposto nos documentos citados.

Ano Local Descrição

No mês de Abril é elaborado um projeto e


Área Indígena
1992 encaminhado ao Departamento de Educação
Vale do Javari
em Brasília.

Tabela IV – Registro do ano de 1992, temática: políticas públicas educacionais no


Vale do Javari.
Fonte: Arquivos digitais do Projeto História Social dos Povos e das Línguas do
Vale do Javari. (2016)
7- Dados encontrados no Acervo Memória Júlio César Melatti
Todos os dados seguem os critérios presentes na metodolo-

- 106 -
gia do trabalho desenvolvido, e que possuem relevância para a com-
preensão do contexto educativo da região que os documentos estão
relacionados.

Ano Local Descrição

1969 Rio Curuçá Presença de uma escola e sede da unidade.

Posto É incluída num projeto a construção de uma


1980 Indígena São escola em fase de montagem na 1ª Delegacia
Luiz Regional para os índios Kanamary.
É requerido num relatório que se construísse
Posto uma escola para os índios Marúbo, e que fosse
1982
Indígena Ituí contratado um professor, na atual aldeia sede
Posto IndigenaItuí.
É mencionado que em algumas aldeias/malocas
1991 Vale do Javari há escolas, onde o ensino é formal ou bilíngue
(em Português e na língua nativa).

Tabela V – Resultados da análise do Acervo Memória Júlio César Melatti entre o


ano de 1969 a 1991.
Fonte: Arquivos digitais do Projeto História Social dos Povos e das Línguas do
Vale do Javari.

8. Acervo Memória Base Vale do Javari


As informações achadas no Acervo Base Memória Vale do Ja-
vari, são claras em nos mostrar que durantes 55 anos, (recorte tem-
poral dessa pesquisa), a ação do Estado brasileiro nessa região, se
concretizou por meio de pequenos projetos e construções de escolas.
Em 1989, a análise demonstra que existiam nesse ano 9 (nove) esco-
las na região. Todavia, essa informação, não esclarece quais eram es-
sas escolas, onde estavam especificamente localizadas, qual o nível ou
modalidade de ensino ofertados nestas, qual a faixa etária dos alunos,
quantos professores as escolas possuíam e qual era a formação desses
professores. Isso indica pouca ou nenhuma sistematização de dados
por órgãos públicos, acerca da realidade da situação educacional que
ora nos dedicamos a pesquisar. No mesmo documento, de onde essa

- 107 -
informação é extraída se afirma que, “porém, logo em seguida, a es-
cola aldeia Maronal teve seu fechamento, motivado pela desistência
da professora responsável pelo funcionamento da mesma. Todavia,
apesar das dificuldades e carência de recursos, principalmente, re-
cursos humanos, as demais escolas funcionaram regularmente”.
Essa é a única escola identificada nominalmente, das 9 (nove)
apresentadas. Sobre o projeto aprovado no ano de 1989, no valor de
quarenta e um mil e quinhentos cruzados, destinados a construção
de escolas, é possível afirmar que, de fato, este foi implementado,
sem, é claro, especificar as aldeias que usufruíram de seus benefícios.
Vejamos o que um trecho do documento descreve:

Mas, tomando como base, que as atividades educacionais em


nossa jurisdição, encontra-se ainda em fase de implementação,
esperamos que num futuro breve, melhorarmos, em muito, nos-
sas atividades educacionais. [...]. Já providenciamos a compra de
materiais necessários e, brevemente, aproveitando as enchentes
dos rios, conduziremos referidos materiais para as Comunidades
Indígenas, para concluirmos a implantação do citado projeto.
(Acervo Memória Júlio César Melatti)

Estes primeiros registros só vão surgir, após a leitura de qua-


renta e cinco documentos dos sessenta e três presentes no Acervo
Memória Júlio César Melatti, mais especificamente, como conse-
quência da análise de cinco documentos referentes ao ano de 1989.
No contexto nacional, essa data corresponde ao período pós-dita-
dura militar ou redemocratização do país. O que nos permite inferir
que o projeto nacional, e especificamente o que tange à educação nos
“tempos de ferro”, na porção do território brasileiro que ora investi-
gamos, não dispunha de uma proposta clara, que objetivasse atender
as necessidades dos povos nativos.
Acerca do ano de 1992, encontramos 17 (dezessete) documen-
tos no respectivo acervo, dos quais um destes é descrito sobre das11
(onze) escolas contidas na tabela III. Para além do que já menciona-
mos, nestes documentos há a ausência de informações sobre o ensi-
no, como por exemplo, se ali se ofereciam turmas de alfabetização,
letramento, se o público atendido era de crianças, jovens ou adultos.
Também de toda a investigação realizada sobre o assunto,
percebemos que as ações exercidas pelo estado, geralmente, tinham

- 108 -
como os principais responsáveis os professores e as vezes os únicos
representantes legais do Estado nessas escolas. Salvo a presença e in-
tervenções da FUNAI nessa região quando em certos momentos, faz
ligações de cunho educativo entre os indígenas e a escola formal.
Relativamente a isso, no documento intitulado “Relatório de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Vale do Javari” de
Walter Coutinho (1998), as informações que temos é que, nesse pe-
ríodo, havia um grande isolamento e a descontinuidade na assistên-
cia por parte dos órgãos responsáveis para os índios do Javari. Que
durante as viagens de levantamento feitas por ele e o seu grupo de
trabalho, puderam verificar uma grande falta de assistência e apoio
às aldeias. Os únicos lugares que a FUNAI manteve presença perma-
nente e que está descrito foram o Posto Indígena Lobo e aldeia Trinta
e Um, Postos Indígenas Curuçá e Maronal, em que é mencionado
uma única vez sobre a presença de uma professora da Administra-
ção Regional de Atalaia do Norte que havia chegado recentemente
ao Posto Indígena Massapê. No mesmo documento, a tabela III e a
tabela IV nos apresentam o último dado e sobre isso o documento
revela o seguinte:

No mês de abril foi elaborado um Projeto encaminhado ao De-


partamento de educação, em Brasília, onde foram apontadas as
dificuldades e as necessidades no setor. Afora isso, limitamo-nos
a atender as solicitações da área, com relação a material escolar
contando com a prestimosa colaboração da Prefeitura Municipal
desta cidade, através de sua Secretaria de Educação. (Acervo Me-
mória Júlio César Melatti)

É importante ressaltar dois aspectos nesse trecho, sobre essa


informação: primeiro, a cidade à qual o documento se refere, é a ci-
dade de Atalaia do Norte (sede da região onde está localizada a terra
Vale do Javari); segundo, não houve comprovação nos documentos
lidos posteriormente que esse projeto tenha sido aprovado e imple-
mentado, nem quais foram os seus impactos. De modo que a ação
da FUNAI, nesse momento, diante das condições para atendimento
às necessidades escolares das aldeias por ela assistida, limitava-se à
oferta de material escolar, quando solicitado e que para sua entrega
seria necessário ainda contar com o apoio logístico da prefeitura lo-
cal e obviamente com as condições de navegabilidade dada pela cheia

- 109 -
dos rios que conduziriam até as aldeias onde haviam escolas.
9. Acervo Memória Júlio César Melatti
Dos sessenta e três documentos presentes no Acervo Memória
Júlio César Melatti, foram encontradas informações referentes aos
anos de 1969, 1980, 1982 e 1991. Da mesma forma que, no acervo
anterior, as ações exercidas são identificadas através da presença de
escolas e criação de projetos que visam construir escolas, sem, con-
tudo, dar informações precisas e estruturadas sobre a ação do estado
brasileiro no período investigado.
A tabela V, que trata desses dados, demonstra que foi encon-
trado o primeiro registro somente 24 anos depois do período que
inicia a investigação e análise, demonstra que, diferente do acervo
anterior já existia a presença do estado no que diz respeito a educa-
ção escolar indígena naquela região em um período mais recente,
segundo este acervo e os documentos ali presentes.
Com a mesma característica das outras informações encon-
tradas, não se pode identificar o nome da escola, a quantidade de
alunos, ou qual o tipo de ensino desenvolvido nessa instituição. Tal
informação é anterior a chegada da FUNAI no Vale do Javari que
data ao ano de 1971, sendo que nesse período somente se tem essa
única informação.
Treze anos depois do primeiro registro achado, em 1980,
menciona-se um projeto específico aos índios Kanamary que não há
identificação do nome e que também não se sabe se foi aprovado e
implementado. O fato é que o projeto não se tratava de uma política
pensada e formulada para educação no Javari, mas de uma ação mo-
mentânea e com poucos elementos que esclareçam as situações que
ora impulsionaram o encaminhamento do projeto. Isto torna desa-
fiadora a compreensão de como se dá a ação educativa e/ou políticas
públicas de educação para as populações indígenas do Vale do Javari.
As informações do ano de 1980 advêm de 08 (oito) documentos re-
ferentes apenas a esse ano, todos contidos no Acervo Memória Júlio
Cesar Melatti.
O ano de 1982 é contemplado com outros 08 documentos,
que apenas identificam uma informação a esse respeito. São docu-
mentos e relatórios da Fundação Nacional do Índio, que mencionam
claramente os índios Marúbo. Segundo este documento, “próximo à
Sede do posto vivem cerca de 45 Marúbo vindo do alto Ituí e Curuçá

- 110 -
estreitados pela facilidade de escoamento de sua produção e a fim de
receber noções de matemática, escrita, leitura e língua portuguesa
(Acervo Memória Júlio César Melatti).
Como tradição escolar não indígena e seus preceitos de aqui-
sição da leitura e da escrita prioritariamente e de outros conteúdos
desenvolvidos pela escola, os índios, como mencionado no trecho
acima, retirado do documento em análise, buscavam esse acesso, as-
sociando a necessidade de comercialização do seu trabalho à possibi-
lidade de se aprender o que a escola lhes parecia poder ensinar.
Em 1991, foi encontrado apenas um documento em todo
Acervo Memória Júlio César. Trata-se de um documento referente
a um projeto intitulado Projeto Saúde: Área indígena Vale do Javari,
que, de maneira fragmentada, informa que havia o ensino bilíngue
sendo realizado dentro da área mencionada. Por outro lado, não es-
clarece quais as aldeias estavam usufruindo dessas escolas e como es-
tava sendo feito essa educação, tampouco quais os pontos relevantes
desse trabalho.
Pode parecer que, ao longo das nossas observações e aponta-
mentos, a partir do que os documentos analisados nos trouxeram, o
que fizemos foi tão somente levantar indagações sem resposta. Na
verdade, os fatores apresentados nos dão a condição de perceber
quais as ações educacionais eram criadas e atendiam aos povos in-
dígenas do Vale do Javari, ou parte dele, uma vez que não se tem um
atendimento a todas as aldeias. E reforça em nós o entendimento
de que, no Brasil, a política indígena de educação necessariamente,
perpassa por diversos processos de lutas e reivindicações ao longo de
todo processo histórico, desde o período colonial até período con-
temporâneo. Sem isso, o pouco conquistado pelos povos indígenas
não teria se estabelecido, pois a análise histórica desse aspecto social,
que é a educação, nos indica o quanto a presença do estado junto aos
povos indígenas é insignificante.

Alguns apontamentos não conclusivos...


Antes mesmo do Brasil passar a ser colonizado pelos portu-
gueses e outros povos posteriores, os povos indígenas em nosso país
já realizavam a sua própria educação, sem dispor de um sistema a ser
seguido. Desenvolviam de maneira satisfatória o ensino e a apren-

- 111 -
dizagem em seus núcleos familiares e comunitários, usando
todo o ambiente a sua volta, a natureza, tendo como o meio social,
a família e a natureza, espaços férteis de desenvolvimento humano e
relação com tudo que é sagrado para estes povos.
A partir do Brasil colonial e da visão eurocêntrica aplicada a
estes povos, eles foram forçados a aprender e se submeter a um ou-
tro tipo de educação, que só tinha o objetivo de oprimi-los e fazer
com que abandonassem sua cultura, educação, crença e identidade.
Ou seja, tinha por objetivo integrá-los à sociedade nacional. Em con-
trapartida, por meio da educação escolar indígena estes povos hoje,
lutam para garantir os seus direitos e acesso a condições de vida me-
nos indignas. No meu ponto de vista, a escola, na sua tradução não
indígena, pode torná-los menos desiguais, numa sociedade histori-
camente desigual, impele-os a buscar por esse mecanismo.
A partir dos dados obtidos nessa análise documental, é pos-
sível afirmar que a educação oferecida aos povos do Vale do Java-
ri, no período estudado, manifestou-se principalmente por meio de
projetos e da construção de escolas, apresentando aspectos a serem
observados: a) as ações não levavam em consideração a realidade dos
povos nativos; b) além de não oferecer meios, como material didá-
tico-pedagógico de qualidade; c) contratação de professores, con-
forme o necessário; d) escolas estruturadas e assistidas; e) apoio aos
programas de trabalho, com maior intensidade. Os dados levantados
nos indicam apenas ações voltadas para a educação elementar dos
povos habitantes do Vale do Javari, e não mencionam ou descrevem
pontualmente políticas públicas de educação estadual, municipal ou
federal.

REFERÊNCIAS
ARANHA, Maria Lúcia Arruda. História da Educação e da Peda-
gogia. Geral e Brasil. São Paulo: Moderna, 2006.
BARBOSA, Walmir de Albuquerque. PROFORMAR: Políticas
públicas e educação. / Coordenador: Walmir de Albuquerque
Barbosa. Manaus: UEA Edições, 2007. 191 p.: Il, 28 cm.
BRASIL. Fundação Nacional do Índio. Lei n. 5.371, de 5 de de-
zembro de 1967.

- 112 -
CELLARD, A. A análise documental. In: POUPART, J. et al. A
pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos.
Petrópolis, Vozes, 2008.
COUTINHO, Jr. W. 1998. Relatório de identificação e delimitação
da Terra Indígena Vale do Javari. Brasília: FUNAI.
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- 113 -
- 114 -
A ECOLOGIA LINGUÍSTICA DO
ALTO SOLIMÕES: UM PANORAMA
SOCIOLINGUÍSTICO DAS LÍNGUAS EM
CONTATO
Rosinéa Auxiliadora Pereira dos Santos33
Renilda Aparecida da Costa34

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como intuito apresentar a ecologia linguís-
tica que caracteriza a região do Alto Solimões como multilíngue
e, por sua vez, multicultural. Ecologia linguística é aqui entendida
como “um reflexo linguístico da diversidade de espécies” (COUTO,
2009, p. 112), uma vez que, quando se trata de ecologia, as línguas
são consideradas como espécies biológicas hospedadas nas mentes
dos falantes.
O tema deste trabalho consiste na apresentação de um pano-
rama das línguas faladas nesta região amazônica, enfocando as lín-
guas em contato, a população e o município, uma vez que conhecer
a realidade sociolinguística dessa região é relevante em virtude da
presença das diversificadas culturas nesta região de fronteira o que
pode facilitar as discussões sobre a política linguística dessas línguas
em contato entre as lideranças indígenas e a os líderes do governo.
Compreende-se que uma política linguística deve partir da
realidade social da região, deve atender às demandas da sociedade
para que os sujeitos envolvidos em constante interação possam exer-
cer a sua cidadania, como, por exemplo, falar suas línguas, não só em
ambientes domésticos, mas também em contextos oficiais. Embora
as populações indígenas tenham conseguido o direito de viver sua

33 Acadêmica do curso de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e


Cultura da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas. Pesquisadora do grupo de
pesquisa Educação e Diversidade na Amazônia-GEPEDA. Professora da Universidade do
Estado do Amazonas-UEA. Email neiaaux@yahoo.com.br.
34 Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos/Unisinos
(2011). Professora adjunta da Universidade Federal do Amazonas, atuando no Instituto
de Filosofia Ciências Humanas e Sociais. Atua no Programa de Pós-graduação Sociedade
e Cultura na Amazônia. É coordenadora do Núcleo de Estudos Afro Indígena - NEAI/
UFAM.

- 115 -
cultura, a sociedade nacional ainda não absorveu essas sociedades
tradicionais no contexto urbano.
Em Tabatinga, os indígenas não falantes da língua oficial são
alijados, sentem dificuldades de comunicação nas unidades de saú-
de, nas escolas urbanas e também no comércio local. É possível até
ver placas em ambientes públicos com o enunciado “PROIBIDA A
ENTRADA DE INDÍGENAS”. Na avenida da Amizade, a principal
rua de Tabatinga, vemos as mulheres indígenas vendendo tucumã,
goiaba, tapioca entre outros produtos debaixo de sol ou debaixo de
chuva numa busca incessante de conseguir um sustento para seus
descendentes. Fazendo uma reflexão sobre esse processo de integra-
ção dos indígenas à sociedade nacional, pode-se afirmar que há uma
relação vertical entre povos indígenas e a nação, visto que alguns des-
ses povos tentam a integração nacional, todavia a sociedade nacional
não se integra aos povos indígenas efetivamente.
A metodologia consistiu em pesquisa bibliográfica, a partir da
leitura de teses que já estudaram as línguas dessa região, e também
pesquisas em sites como o da FUNAI e o do IBGE para conhecer as
etnias, sua população bem como as línguas faladas, além do municí-
pio onde essas populações indígenas se encontram. Também serviu
de base para esse trabalho o relatório do Plano de Desenvolvimento
para os povos indígenas (PDPI), o qual apresenta a relação dos povos
indígenas, juntamente com a área indígena.

1 - Entendendo os princípios da Ecolinguística


A Ecolinguística estuda as interações entre língua e seu con-
texto social, mental e natural, via população (COUTO, 2015). É uma
disciplina que se iniciou em meados dos anos 1980 e ganhou força
nos anos de 1990. Ao incluir os conceitos chaves da Ecologia, essa
disciplina observa as relações intrínsecas entre os seres vivos e seu
habitat de interação.
Couto (2009) afirma que para se compreender a ecologia lin-
guística é necessário que se entendam alguns conceitos fundamentais
da ecologia. O primeiro deles é a noção de ecossistema, visto como
um conjunto constituído pelos seres vivos e seu meio ambiente, em
sua totalidade. O ponto central aqui é entender como acontece a in-
terrelação entre eles. Em outras palavras, trata-se de uma visão ho-
lística sobre as relações interlinguísticas em determinado território.

- 116 -
O ecossistema é fundamental na língua e ele é constituído por
um povo vivendo num território, caracterizado como biótopo ou ni-
cho. Em outras palavras, existe o meio ambiente da língua que é for-
mado por uma população e um território. Nesse tripé, a interação é o
eixo sustentador na relação dinâmica entre as línguas, compreendi-
das nessa teoria como um meio de comunicação entre os indivíduos.
São as consideradas como trocas linguísticas, visto que “são formas
de comunicação por excelência – são também relações de poder sim-
bólico onde se atualizam as relações de força entre os entre os inter-
locutores” (BOURDIEU, 2008, p. 23-24).
As características da língua são sociais, mentais e culturais.
Sociais porque a língua é falada por um grupo de falante que com-
partilham o mesmo sistema linguístico; mentais em virtude de ser
um sistema abstrato alojado na mente dos falantes, por isso é tam-
bém considerada como um organismo vivo, daí seu caráter biológi-
co (MUWFENE, 2001 apud Couto, 2009); e por último, é cultural,
na medida em que é considerada como identidade de um povo e na
maioria das vezes está associada a ideia de nação.
Assim uma “língua é viva na medida em que é usada em Atos
de Interação Comunicativa35 em determinada comunidade. Se, e
quando ela deixa de ser usada nessas circunstâncias, passa a ser uma
língua morta” (COUTO, 2009, p. 12). Como se pode observar, há
uma espécie de simbiose entre a língua e os indivíduos falantes, pois
como ela só se manifesta a partir dos atos de fala, quando o último
falante morre, a língua também morre.
Os fatores do desaparecimento de uma língua são de ordem
política, econômica e social, uma vez que estão relacionadas aos
domínios territoriais entre povos, entre os quais haverá relações de
poder hierarquizadas conforme potencialidades econômicas e políti-
cas. Ou seja, a noção de povo é uma determinação política, pois seus
indivíduos desenvolvem uma série de comportamentos semelhantes,
o que faz com que eles se associem, mesmo que abstratamente, como
um só. Por isso, é comum se ouvir expressões como “nosso povo”,
“nossa terra” ou “nossa gente”, nas quais o uso do possessivo “nosso”
já congrega uma imagem de conjunto criada imaginariamente, mes-
35 Os atos de comunicação interativa consistem nas relações internas entre um membro p1
e um membro p2 de uma população. Essa interação se realiza num espaço específico de um
território e o resultado disso é um enunciado (COUTO, 2009).

- 117 -
mo que nem todos os indivíduos não se conheçam.
Para estudar os fenômenos da linguagem, é necessário conhe-
cer as seguintes propriedades do ecossistema: diversidade, recicla-
gem, abertura, adaptação e evolução (COUTO, 2015). O primeiro
consiste na diversificação de organismos e de entorno e caracteri-
zará o ambiente rico se houver diversas espécies em interação. Es-
sas espécies estarão em interrelação, de forma que, se uma deixar
de existir, as outras também se esgotarão A diversidade de línguas
na Amazônia caracteriza-a como um território multilíngue, no qual
muitas línguas estão em interação na medida em que seus indivíduos
interagem constantemente nas suas relações sociais. Podemos citar
a região da tríplice fronteira Brasil/Peru/Colômbia no município de
Tabatinga-AM, onde são faladas as línguas portuguesa e espanhola,
além das línguas indígenas como a Ticuna.
O segundo traço do ecossistema é a reciclagem dos recur-
sos próprios que é feita através da endoecologia. A endoecologia está
relacionada ao sistema linguístico, isto é, aos aspectos internos que
permitem os falantes construírem enunciados (ibidem, 2015). Como
as línguas são espécies vivas, elas se mesclam, mudam suas estruturas
através dos empréstimos linguísticos. Outro exemplo de reciclagem
são as variações linguísticas intergeracionais, nas quais há a diferença
nas falas das crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos.
A abertura ou porosidade consiste na possibilidade de co-
nexão entre os seres do ecossistema através da troca da matéria, da
energia e da informação com os ecossistemas próximos. Já a noção
de adaptação constitui-se num traço fundamental para a sobrevivên-
cia das espécies. Na dinâmica da língua, ela está nas interações co-
municativas, no qual o falante exprime seus pensamentos de forma
eficiente, para que o ouvinte o compreenda. A última característica
do ecossistema é a evolução também considerada como “sucessão
ecológica”. Ela apresenta uma relação de proximidade com a adapta-
ção, visto que a noção de adaptação já implica evoluir na medida em
que há mudança na estrutura das espécies. Neste traço, a evolução se
manifesta através do nascimento, do envelhecimento e da morte de
um organismo.
Há quatro ecossistemas linguísticos: o ecossistema natural,
ecossistema mental, o ecossistema social da língua e o ecossistema
integral da língua, neste há a convergência dos três primeiros (COU-

- 118 -
TO, 2015). Em se tratando do ecossistema natural da língua, povo,
língua e território são os elementos principais para a sua constitui-
ção. Enquanto que o ecossistema mental da língua, envolve as inter-
relações da língua dentro do cérebro, através das conexões entre os
neurônios. Ao passo que no ecossistema social da língua, a língua
se presentifica na população entendida como um grupo de sujeitos
como participantes de uma comunidade, esta é o locus das interações
dos seres sociais integrados numa coletividade, através da cultura do
povo em questão.
O último tipo, o ecossistema integral da língua, corresponde à
existência de uma língua falada por um povo que a use num territó-
rio em que esse povo se encontra. Couto (2015) faz uma observação
acerca dessa concepção afirmando que essa é a visão que um leigo faz
sobre a situação entre língua e a sua população. Nesse ecossistema,
implicam ainda dois conceitos fundamentais, que são os de comuni-
dade de língua e a comunidade de fala.
Entende-se por comunidade de língua como o domínio do
sistema linguístico, isto é, os locais onde a língua é falada nas co-
municações diárias e como forma de coesão social. Como ilustração,
citamos o domínio da língua portuguesa, como uma comunidade de
língua lusófona, que é a língua oficial e falada em Portugal, Guiné-
-Bissau, Angola, Cabo Verde, Brasil, Moçambique, Timor Leste, São
Tomé e Príncipe e Guiné Equatorial.
Outro exemplo de comunidade de língua é a espanhola, que é
a língua materna na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica,
Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nica-
rágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, República Dominicana,
Uruguai, Venezuela. Além desses países, essa língua também foi es-
tabelecida como a língua oficial na Guiné Equatorial e na Espanha.
Em se tratando de comunidade de fala, há uma complexidade
em sua definição, em virtude da amplitude que essa expressão de-
nota. Para Couto (2009), este termo está associado a um grupo de
pessoas em convívio em determinado espaço, utilizando o falar lo-
cal (ou vernáculo). Guy (2001) atesta que uma comunidade de fala
é constituída por falantes que apresentam traços linguísticos simila-
res, responsáveis pela distinção entre um grupo e outros. Um exem-
plo bastante claro sobre isso tem a ver com a variação linguística.

- 119 -
A língua varia regionalmente, daí as variantes da língua portuguesa
se apresentarem de forma distinta: o caipirês, o amazonês, enfim, as
variações dialetais que caracterizam uma região da outra.

2 - Panorama Sociolinguístico do Alto Solimões


O Alto Solimões é uma mesorregião, porque se caracteriza
como um território com propriedades físicas, econômicas e sociais
semelhantes, produtos de um conjunto de microrregiões, mas que
não é considerado como um Estado. É no sudoeste do estado do
Amazonas que está a sua localização, e apresenta uma biodiversidade
bastante rica em virtude de não só estar numa área fronteiriça com a
Colômbia e o Peru, mas também por ser constituída por ribeirinhos
e povos nativos, apresentando também uma riqueza na sua fauna e
flora.
Sua área territorial é de 214.217,8 Km² e sua extensão
envolve os municípios: Atalaia do Norte, Benjamin Cons-
tant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Tonantins, Santo
Antônio do Içá, Amaturá, Fonte Boa e Jutaí. A densidade
demográfica é de aproximadamente 240.000 habitantes e há
a presença considerável de populações indígenas. Segundo
dados do Plano de Desenvolvimento para os Povos Indíge-
nas (PDPI),36 o total dessa população soma 73.758 pessoas, o
que significa um percentual de 43% da população indígena do
Estado do Amazonas. Abaixo há a relação das etnias, municí-
pios e total da população:

36 Disponível em www.ciama.am.gov.br/arquivos.

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Tabela 1: Etnias, população e municípios da Mesorregião do Alto
Solimões
Etnia Língua(s) População Município
13.578 São Paulo de Olivença
15.857 Tabatinga
9.276 Benjamim Constant
5.866 Santo Antônio do Içá
Ticuna Ticuna
2.836 Amaturá
400 Jutaí
274 Fonte Boa
159 Tonantins
3.029 Tonantins
2.893 São Paulo de Olivença
2.618 Jutaí
Kokama
Kokama 1.919 Benjamin Constant
Português 1.593 Tabatinga
1.175 Amaturá
553 Fonte Boa
398 Santo Antônio do Içá
1.093 São Paulo de Olivença
Kambeba 1.013 Amaturá
Kambeba
Português 171 Fonte Boa
120 Santo Antônio do Içá
Língua geral
Kaixana 2.209 Tonantins
Português
Marubo Marubo 1.814 Atalaia do Norte
Mayoruna Mayoruna 1.727 Atalaia do Norte
992 Atalaia do Norte
100 Fonte Boa
Kanamari Kanamari 67 Tabatinga
48 Amaturá
281 Jutaí
Katukina Katukina 701 Jutaí
62 Tonantins
Miranha Português
55 Fonte Boa
Matis Matis 394 Atalaia do Norte
Witoto Witoto 234 Amaturá
Kulina 135 Atalaia do Norte
Kulina
Português 90 Jutaí
Fonte: Funai Tabatinga/Atalaia- Janeiro/201237

37 Dados retirados do plano de desenvolvimento para os povos indígenas.

- 121 -
Os dados apresentados acima ratificam a região do Alto Soli-
mões como multilíngue e que há o contato não só de línguas como
também de culturas. Os Kokama, os Kambeba e os Kaixana adota-
ram a língua nacional nas suas interações sociais, mostrando que há
uma relação simbólica nas trocas culturais e linguísticas. Notamos
ainda que esta região é uma zona fronteiriça, pois é “uma zona hí-
brida, babélica, onde os contatos se pulverizam e se ordenam segun-
do micro-hierarquias pouco suscetíveis de globalização (SANTOS,
2013, p.191).
A partir da tabela acima, percebemos que o povo Ticuna está
distribuído em oito municípios da região do Alto Solimões. Soman-
do 48.246 pessoas (PDPI, 2012), sua população é considerada como
a mais populosa da região do Alto Solimões. Vale ressaltar ainda que
este povo também é encontrado tanto na Colômbia como no Peru.
Dessa forma, este povo mantém contato com as línguas: portuguesa,
espanhola e Ticuna.
O povo Kokama é o segundo povo mais populoso com o total
da população de 14.178 pessoas (PDPI, 2012), distribuídas em oito
municípios. A língua Kokama está em processo de revitalização, em
virtude de a política colonialista pombalina ter exercido forte in-
fluência para do seu silenciamento. De acordo com Almeida e Ru-
bim (2012), a situação sociolinguística deste povo configurava-se da
seguinte maneira: havia um grupo falante da língua Kokama, ou seja
, uma geração de falante e ouvinte; como também havia aqueles que
entendiam o que os falantes diziam, mas não conseguiam se comu-
nicar na língua Kokama, ao passo que também podiam ocorrer situa-
ções nas quais uma geração apenas se lembrava de conversas com os
progenitores, na infância e por último, a geração mais recente, em
sua maioria, não tem fluência na fala, muito menos entende a língua.
A língua majoritária é a Portuguesa.
O povo Kambeba tem uma densidade demográfica de 2.397
pessoas distribuídas em quatro municípios. Falam a língua Kambeba
e a portuguesa, embora dominem um importante vocabulário da lín-
gua Kambeba, ela é usada em ocasiões formais como reuniões com
não-indígenas na escola das aldeias. A família linguística dessa lín-
gua étnica é a Tupi-Guarani. Segundo o site indígenas do Brasil, há a
presença desse povo (também chamados de Omágua) no Peru, onde

- 122 -
a língua materna é falada nas interações sociais, além de falarem o
Espanhol e o Kokama.
Kaixana apresenta uma população de 2.209 indígenas (PDPI,
2012) apenas no município de Tonantins. A língua Kaixana perten-
ceu a família Arawak e foi substituída pelo Nheegatu, em meados
do século XIX, em virtude da imposição missionária. Atualmente a
língua portuguesa é a língua mais utilizada por esse grupo.38 Segundo
dados do Instituto Socioambiental, a língua Kaixana foi extinta total-
mente ao longo do século XIX.
Os Kanamari são aproximadamente 1.488 (PDPI, 2012) em 5
municípios. Esta língua faz parte da família linguística Katukina. A
princípio, este povo viveu nos afluentes do Alto-Médio rio Juruá no
Amazonas. Dados do instituto Socioambiental39 afirmam que ainda
há a presença deles nessa região. Além dessa região, eles também se
estabeleceram no Alto Itaquaí, no médio Javari e ainda no Japurá.
A população do povo Marubo é de aproximadamente 1.814
pessoas (PDPI, 2012) que vivem na região do Vale do Javari40. Falam
a Língua Marubo da família linguística Pano, cujos falantes distri-
buem-se geograficamente na fronteira entre o Brasil e o Peru, mais
precisamente entre os rios Ucayali e o Alto Juruá e Purus (VELPER,
2009).
Os Mayoruna (também chamados Matsés no Peru) apresen-
tam uma população de 1.727 pessoas (PDPI, 2012) moradoras no
município de Atalaia do Norte. Segundo Coutinho (2017), a língua
desse povo pertence à família linguística Pano na região do Vale do
Rio Javari, ocupando uma região fronteiriça entre o Brasil e o Peru,
especificamente entre o sudoeste do estado do Amazonas e o sudeste
do departamento de Loreto. Ainda segundo Coutinho (2017) suas
24 aldeias localizam-se não só à margem dos rios Javari, Jaquirana,
Gálvez, Curuçá e Pardo, como também nos igarapés Choba e Lobo.
O povo Katukina, com uma população de 701 pessoas (PDPI,
2012), vivem às margens do Rio Biá, afluente do Rio Jutaí, localizado
entre os rios Juruá e Jandaiatuba (esses dois rios são afluentes do
38 Dados retirados do site: https://pib.socioambiental.org
39 POVOS INDÍGENAS DO BRASIL – ISA. Disponível em: https://pib.socioambiental.
org. Acesso em 01/12/2018.
40 Terra indígena demarcada no governo de Fernando Henrique Cardoso pelo decreto de
30 de abril de 2001. Neste território, há a presença dos povos indígenas: Marubo, Matsés,
Matis, Kanamari, Kulina.

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Rio Solimões). Para Deturch & Hoffman (2016), esse povo fala uma
variante de língua da família Katukina.
O povo Miranha tem uma população de 117 pessoas (PDPI,
2012) distribuídas nos municípios de Tonantins e de Fonte Boa. Da-
dos do Instituto socioambiental afirmam que há a presença desse
povo também na Colômbia, na região do médio Solimões e também
em Japurá.41 Segundo dados do Instituto Socioambiental (2018), a
língua Miranha apresenta-se como uma variante da língua Bora, da
qual está agrupada à família à qual pertence a língua Uitoto. Falam
Miranha e Português.42
Os Matis concentram-se no Município de Atalaia do Norte
com uma população de 394 pessoas. Nas interações diárias na área
indígena, esse grupo utiliza apenas a língua Matis (pertencente à fa-
mília pano). Contudo, tanto homens quanto as mulheres usam a Lín-
gua Portuguesa quando estão na zona urbana. Como vivem na terra
indígena do Vale do Javari, esses indígenas também falam o Marubo
e entendem as línguas dos Kulina, dos Mayoruna e dos Korubo.
Os Witoto43 tem uma população de 234 pessoas (PDPI,
2012) presentes no município de Amaturá. Falam a língua Witoto,
cuja família linguística é designada pelo mesmo nome.
Os Kulina têm uma densidade demográfica de 225 pessoas
(PDPI, 2012) distribuídas em dois municípios: Jutaí e Atalaia do
Norte. A língua Kulina pertence à família linguística Arawá e é fa-
lada nas aldeias, apesar de falarem também a Língua Portuguesa os
indivíduos do sexo masculino e os mais velhos.

3 - Refletindo sobre a Ecologia Linguística do Alto Solimões


A ecologia linguística do Alto Solimões caracteriza-se como
multilíngue, pois há o contato de onze línguas indígenas, além da
Língua Portuguesa e da Língua Espanhola. Esse multilinguismo é ca-
racterizado como societário ou territorial, uma vez que “é um reflexo
linguístico do que em Ecologia se chama de diversidade de espécies”
(COUTO, 209, p.113). Isso se caracteriza como um biótopo rico,
41 Como neste trabalho o foco é apenas a região do Alto Solimões, não adentraremos mais
profundamente nas regiões do Médio Solimões e Japurá.
42 Dados colhidos no relatório das etnias indígenas brasileiras da coordenação de Pesquisa
DAI/AMTB, ano 2010.
43 Sobre esse povo, ainda há escassas informações.

- 124 -
uma vez que há diversidade de espécies, o que promove essa região a
um patamar de multicultural, em virtude da proximidade da cultura
de 13 povos indígenas, além dos povos não indígenas como também
povos de outros países como o Peru e a Colômbia. Abaixo consta o
gráfico com o percentual das populações indígenas:

Figura 1 Percentual da População indígena do Alto Solimões

Notamos que a população Tikuna é a mais numerosa corres-


pondendo a 65% da população indígena, enquanto que a Miranha
não chega nem a 1%. Isso nos leva a compreender que o contato
entre os povos minoritários com a sociedade nacional provoca pro-
cesso de desaparecimento de alguns povos indígenas como os povos
Witoto, Kulina e Miranha correspondem a uma pequena porcenta-
gem de habitantes.
Outra questão a ser analisada neste Ecossistema Amazônico é
a situação de Fronteira Brasil-Colômbia, cujas relações econômico-
-culturais são mescladas, uma vez que há as delimitações geopolíticas
são imaginárias, o que caracteriza Tabatinga e Letícia como cidades
gêmeas, uma vez que não há nenhuma barreira física separando uma
cidade da outra, sendo separadas apenas virtualmente por questões
políticas.
Outro exemplo também dessa contiguidade entre línguas/
culturas por meio dos povos é o caso dos Matis, que falam as lín-
guas Matis, Portuguesa, Morubo e entendem as línguas dos Kulina,
Mayoruna e Korubo. Isso acontece a partir da necessidade dos con-
tatos entre um povo com o outro através dos Atos de Interação Co-
municativa.

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Outro aspecto a ser considerado neste ecossistema é a obsolên-
cia de algumas Línguas Indígenas, como as Línguas Kokama, Kam-
beba, Kaixana, Kulina e Miranha. A obsolência ocorre pelo contato
de línguas, quando há deslocamentos dos povos ou quando todos os
falantes da língua morrem. No caso da região Amazônica, sabemos
que as línguas indígenas foram silenciadas em virtude da política de
formação da nação, no qual foi estabelecida a Língua Portuguesa e as
populações indígenas foram forçadas a adotar essa língua.
Essa questão acima levantada nos conduz a analisar as carac-
terísticas do ecossistema linguístico que são a adaptação, a porosida-
de e a sucessão ecológica. No que se refere à adaptação, percebemos
que os povos citados acima adotaram a língua oficial do Brasil, ha-
vendo casos em que os indivíduos sejam monolíngues, ou seja, falam
apenas a língua portuguesa. Ilustramos ainda essa situação o caso dos
Kaixana, que adotaram o Nheengatu e a língua portuguesa nas suas
interações comunicativas.
A porosidade do ecossistema se evidencia pela presença do
mesmo povo em municípios diferentes, como por exemplo os Ticu-
na que estão nos municípios de São Paulo de Olivença, Tabatinga,
Benjamin Constant, Santo Antônio do Içá, Amaturá, Jutaí, Fonte
Boa e Tonantins. Em se tratando da sucessão ecológica, notamos que
as línguas indígenas que estão mais próximas da zona urbana, es-
tão cedendo lugar para a língua portuguesa em virtude da integração
com a sociedade nacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A região do Alto Solimões é um território com uma ecologia
linguística complexa, em virtude do contato entre línguas/povos di-
ferentes. Essa realidade abre espaço para questões como a política
linguística dessa região e a necessidade da elaboração de um planeja-
mento linguístico que respeite e contemple todos esses povos e essas
línguas, para que comece a haver a valorização desses povos e dessas
culturas, principalmente para aquelas etnias que estão caminhando
para a extinção.
As demandas políticas, culturais e educacionais são questões
que demarcam uma região multilíngue, como é o caso da região do
Alto Solimões, e que promovem uma língua para ser a oficial, a que

- 126 -
será usada nos ambientes públicos. Isso faz com que surja uma po-
lítica centralizadora conhecida como a política nacional, que criará
uma identidade nacional, juntamente uma língua oficial, fazendo
com que as culturas ao redor (as culturas indígenas) passem a ser
consideradas como uma importância secundária e acabam sendo
consideradas como cultura das minorias. O produto desta ação é o
silenciamento das línguas juntamente com seus povos, pois acabam
por aderir à cultura nacional para que possam sobreviver à violência,
como disse um cacique da etnia Kambeba44 “o Kambeba virou cabo-
clo para poder sobreviver”.

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44 Essa frase foi dita em um seminário por um acadêmico do curso de pós-graduação lato
senso Educação, Saúde e Saberes Tradicionais da Universidade do Estado do Amazonas.

- 127 -
zembro de 2016.
GUY, G. As comunidades de fala: fronteiras internas e externas.
In: Abralin, 2001. Disponível em: <http://sw.npd.ufc.br/abralin/
anais_con2int_conf02.pdf>. Acesso em: 10 julho. 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o
político na pós-modernidade. 14 ed. São Paulo: Cortez, 2013.
VELPER, Elena Monteiro. O mundo de João Tuxaua: (trans)for-
mação do povo Marubo. Rio de Janeiro, 2009. Tese (doutorado em
Antropologia Social) – Programa de pós-graduação em Antropo-
logia Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

- 128 -
SIMBOLOGIA MITOLÓGICA: DA INFÂNCIA
À ESCOLA SOB OLHAR TICUNA
Maria Auxiliadora Coelho Pinto45
Michel Justamand46

1. INTRODUÇÃO
No mundo em que vivemos, estamos sempre em constantes
momentos de aprendizado, troca de conhecimentos e saberes que
nos auxiliam a conhecer e até entender melhor onde vivemos. Nes-
sa incessante troca, percebemos não só o mundo real, mas também
o mundo imaginário. O mundo imaginário é aquele que permeia
a vida dos povos tradicionais, dotados de saberes, manifestações e
crenças nas dimensões do natural ao sagrado, como é o caso da mi-
tologia. Mas, para que ocorra compreensão em torno dessas ques-
tões, é preciso um olhar cuidadoso, diferenciado e respeitoso. Esses
saberes indígenas devem ser aproveitados pelas instituições escolares
e incorporados à educação escolar. A escola por meio de sua atuação
vem tentando assumir, nas aldeias, um novo significado, no sentido
de preservar as diferentes culturas, porém é possível perceber que, no
âmbito da escola indígena, não há uma prática educativa de ensino
contextualizado e definido de acordo com as novas propostas me-
todológicas de ensino, o que deixa as populações tradicionais ainda
atreladas ao ensino nos moldes europeus e permanece sendo trans-
mitida na segunda língua o que torna ainda mais dificultoso o enten-
dimento por parte dos Ticuna, uma vez que no sistema de ensino, o
que prevalece é a cultura universal de caráter impositivo aos modelos
educativos para os povos tradicionais. No entanto, o modelo edu-
cativo não demonstra ser muito favorável em relação à elaboração
de um currículo que realmente atenda às necessidades desses povos,
pois para a eficácia do fazer pedagógico, a própria escola tem de as-
sumir a sua função social para que possa contribuir no exercício da
45 Mestre em Estudos Amazônicos pela Universidad Nacional de Colômbia-UNAL. Dou-
toranda em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas-
-UFAM.
46 Doutor em Antropologia pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo. É Profes-
sor da Universidade Federal do Amazonas.

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cidadania de forma participativa e cooperativa, propondo junto aos
órgãos competentes um ensino voltado às diferentes populações.
Este trabalho é resultado da pesquisa sobre A Simbologia Mi-
tológica: da Infância à Escola sob olhar Ticuna que foi realizada na
Escola Municipal Indígena O’itchürüne localizada na aldeia do Uma-
riaçú I, com a turma do 1º ano do fundamental 1, tendo como obje-
tivo analisar como os elementos culturais estão sendo incorporados
no sistema de ensino escolar na efetivação do ensino e da aprendiza-
gem das crianças indígenas. Dialogamos e entrevistamos 08 crianças
da turma do 1º ano, pessoas da comunidade, dentre elas 01 idoso da
etnia Ticuna que o identificamos por Gavião, 01 professor identifica-
do por Tucano, 02 professoras, uma denominamos de Flor do campo
e a outra identificada por Flor de Liz. No campo da pesquisa, foram
adotadas entrevistas individuais com os adultos e grupo focal com as
crianças para que, nesse contexto houvesse um melhor entendimen-
to sobre o pensamento formulado por essas crianças da etnia Ticuna
sobre a Educação Escolar e a Educação Indígena.
A relevância social desse estudo se dá pela importância de
pensar os efeitos das mitologias sobre as populações tradicionais do
Alto Solimões, uma vez que essas narrativas poderão ser trabalhadas
dentro dos conteúdos do currículo escolar considerando as criações
de sentidos e significações sobre o conjunto de regras, crenças, valo-
res e modelos de conduta historicamente construídos e assim valori-
zar as memórias e os discursos orais formulando assim uma estraté-
gia de ensino na qual os saberes culturais resultem em aprendizagem,
pois educar não é uma ação isolada da cultura. A aprendizagem não
sendo uma tarefa isolada da cultura, os próprios sujeitos das comu-
nidades indígenas têm sua parcela de contribuição na formulação do
currículo, portanto é possível repensar a forma como está sendo pos-
to em prática nas escolas indígenas, o atendimento às perspectivas e
aos anseios das populações tradicionais.
Assim, nas escolas indígenas, o trabalho educativo deve ar-
ticular o mecanismo próprio da socialização dos saberes indígenas,
onde as crianças possam ser responsáveis pelo seu desenvolvimento
cognitivo, no que tange à natureza de seus mitos, que busca de forma
natural e explicativa as coisas que existem na aldeia tornando um
ensino mais significativo, contribuindo para a construção da identi-

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dade pessoal e cultural dos educandos com sentido próprio advindo
de seus ancestrais.
2. Quem são as crianças Ticuna da Escola O’itchürüne
A escola Municipal O’itchürüne tem como patrono o grande
herói da cultura Ticuna que surgiu com a festa da Moça Nova na
terra sagrada de Eware. De acordo com a mitologia, esse herói é con-
siderado pai do ritual da Moça Nova. É nessa escola que as crianças
da etnia Ticuna do 1º ano do ensino do fundamental estudam. Elas
vivem sua infância constituída por uma experiência social que é di-
ferente da criança não-indígena, pois é através da socialização dos
saberes tradicionais que se integram ao conhecimento do mundo.
Falam fluentemente a sua língua materna no cotidiano e possuem
uma rotina cultural, ou seja, dividem o tempo em atividade como ir à
roça, brincar, e ir para a escola. E devido a rotina escolar elas somente
vão à roça nos dias de sábado. Como mencionam os alunos do 1º
ano do ensino fundamental, reunidos no grupo de 8 alunos (idade
de 6 anos): “Vou pra roça com meu pai no dia de sábado porque
nos outros dias a gente vem pra a escola, mas vou com meu pai pra
roça é bem-bom brincar nas árvores com meus irmãos, mas as vezes
nós não ajuda, só brincamos, mas olhamos o que eles ficam fazendo”
(grupo focal, 2018).
De igual forma outra criança do grupo relata: “gosto de ir com
meu pai pra roça porque eu fico livre pra correr, brincar, e aprender
com meu pai como trabalhar na roça, mas nem todo dia eu vou por-
que tem que estudar” (grupo focal, 2018).
Na mesma roda de conversa do grupo, outra criança também
se expressa: “Eu gosto mais de ir pra roça do que ficar pra estudar.
“Lá a gente faz muita coisa legal, ouve história, vê como trabalha na
roça e brinca muito também” (grupo focal, 2018).
Na sequência outra criança também pede para falar: “Eu vou
toda vez com meu pai e lá eu brinco livre na natureza fico imitando
o canto dos passarinhos e dos sapos” (grupo focal, 2018). De acordo
com Silva (2002 p. 42) “crianças indígenas nos ensinam o quanto
a liberdade para experimentar sensações junto à natureza ampliam
nosso repertório de conhecimentos sobre o mundo”
Como percebemos, as crianças gostam de ser livres para brin-
car e acompanhar a família na roça, e assim pela observação vão

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aprendendo desde cedo as técnicas de como plantar e manusear os
instrumentos utilizados na agricultura. É o lugar também onde se di-
vertem com a natureza, brincam com as árvores e animais, imitando
o canto dos pássaros e de outros bichos. É uma aprendizagem de vida
que acontece na aldeia em diversos espaços.
As crianças desde de cedo vão desenvolvendo a noção de
responsabilidade de acordo com as divisões de trabalho na aldeia/
comunidade de acordo com o tipo e o gênero que irá desenvolver.
Como podemos observar na fala do Senhor Gavião (70 anos):

Na aldeia, as meninas observam as tarefas das mães e aprendem


qual trabalho que elas devem realizar como cuidar da casa, dos
irmãos pequenos, de fazer o que comer. É a mulher que tece e
faz os artesanatos. E ela a mãe ou avó vai explicando e ensinando
tudo com paciência porque na cultura é assim. Já os meninos
observam o trabalho do pai, aprendem pescar e caçar, plantar,
colher e mexer com a terra, e tem que prestar muita atenção tam-
bém da aldeia os outros trabalhos. Na roça tem que observar o
trabalho do pai também porque as atividades que faz é muita e
variada também, né, como: limpar a roça de macaxeira, colher as
frutas e plantar e cuidar da plantação, mesmo, né porque vai aju-
dar pra sustentar todos da casa e até vender também, tudo isso os
meninos vão observando e vão aprendendo” (entrevista/2018).

A criança tem liberdade de aprender esta atividade, ela não é


obrigada pelos pais. Sempre que observa é pela curiosidade de rea-
lizar ação em cima do objeto, e é assim que ela aprende e começa
adquirir o domínio da sua cultura e de seus costumes, é uma criança
que tem a mesma potencialidade do saber viver feliz e conhecer a sua
cultura, seu mundo e se adaptar as dinâmicas da sociedade na qual
vive.
Na função social da estrutura Ticuna, as crianças são vistas
como seres que têm a mesma capacidade do adulto de realizar a mes-
ma tarefa e de aprender, por isso elas são colocadas para fazer as mes-
mas tarefas que os pais fazem como: plantar, nadar no rio, pescar e
outras atividades que eles acreditam que devam ser ensinadas para as
crianças tornarem-se bons membros sociais do povo Ticuna. Uma
criança Ticuna aprende a nadar dos seis aos sete anos de idade, pela
vivência que tem com o rio. O pai torna-se apenas um mediador,
observa atentamente o seu filho para ajudá-lo em uma situação de

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risco ou de perigo. Essa forma de conduzir a liberdade das crianças
aprenderem engloba o “acesso aos diferentes lugares e às diferentes
pessoas, às várias atividades domésticas, educacionais e rituais, en-
fim, a quase tudo o que acontece à sua volta” (NUNES, 2002, p. 71).
Os ensinamentos repassados de pai para filho têm relações
culturais que servirá para a vida toda, pois os pais e os avós são re-
ferências importantes porque são representantes e membros da base
familiar, assim como os anciões, conseguem ligar a ancestralidade
ao futuro para ensinar e educar e dar continuidade à cultura do seu
povo.

3. Entre ritual e simbologia mitológica as concepções Ticuna:


do ensinamento indígena ao processo escolar
Nas sociedades indígenas, o mito é visto como os conheci-
mentos que transmitem e constroem a identidade étnica e servem
também para identificar as tradições culturais do povo originário.
São vivenciadas e interpretadas muitas vezes por pessoas mais velhas
da aldeia, dentre elas as avós que são mulheres sábias que transmitem
seus saberes que muitas vezes são repassadas através de narrativas.
Torres (2014, p.32) afirma que “os velhos são os agentes transmisso-
res do conhecimento nas aldeias”.
Com a intervenção das pessoas mais velhas da aldeia, as
crianças indígenas se auto reconhecem, entendendo o seu modo de
vida e de seu grupo na organização pessoal, comunitária e social.
Esse povo tem a sua forma de conceber o mundo e atuar nele
e o mito emerge de forma a contribuir com a educação voltada para
formação humana, o respeito pelo seu semelhante na sua diferença
e principalmente na preservação da natureza. É através dos mitos
que as crianças desde cedo constroem a noção da identidade, que é
fundamental para conhecer a si mesmo e o outro, as determinações
de padrões culturais são explicadas através das construções míticas.
A crença no mito faz com que eles acreditem que existe um mundo
superior e inferior no qual os seres sobrenaturais rodeiam o mun-
do, para ensinar a viver no mundo e proteger os povos tradicionais.
(PINTO, 2017, p. 125) diz que “na cultura popular, há uma variedade
de crença. Pode-se até não acreditar, porém, devemos respeitar, pois
existem pessoas que entendem, acreditam e confiam, como é o caso

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dos nossos indígenas, percebe-se cla­ramente em seus rituais”.
Para eles, no mundo inferior têm os imortais que estão desde
o surgimento da terra e ainda vivem embaixo da terra e se alguém age
fora dos padrões das normas sociais são levados para o mundo sub-
terrâneo. Atualmente nos rituais, os imortais são representados pelos
mascarados no ritual da festa de moça nova. Sobre o ritual, Oliveira
(2004, p.7) expressa que,
Uma jovem estava reclusa aguardando o ritual de iniciação,
quando escutou muito próximo o som triste do uaricana47 e em
seguida ouviu o som de vozes que cantavam e batiam tambor.
Curiosa, ela abandonou o seu recinto e resolveu ir olhar os dan-
çarinos. Estes, no entanto, eram seres malévolos que a violen-
taram e mataram-na. Desde este dia, como castigo, o céu sepa-
rou-se da terra e os homens deixaram de ser imortais. Eles hoje
adoecem, envelhecem e morrem.

Para os Ticuna, a festa da moça nova é um ritual de iniciação


feminina que tem o propósito de retratar e homenagear aquela moça
que apesar do acontecimento trágico48 ocorrido, marcou história en-
tre o povo Ticuna. Na realização desse ritual, as famílias cuidam para
que as suas adolescentes recebam todas orientações e ensinamentos
necessários para que, no futuro, estejam prontas para serem mães
e esposas, sem ter que passar por um destino tão trágico, pois esse
ritual representa para os indígenas a educação indígena transmitida
à luz da cultura e determina o papel da família na sociedade.
As meninas são orientadas pelas mães que transmitem a elas o
valor dos papéis que elas devem exercer e a importância do seu papel
como o membro de uma sociedade. Os meninos são orientados pelo
pai para que no futuro sejam um bom pai e um bom marido, e que
darão continuidade à tradição cultural do grupo, é uma forma de
fazer com que todos os membros se responsabilizem pela educação
indígena dos filhos.
Quando os Ticuna ouvem os seus mitos relembram o sentido
de existir do seu povo. Em conversa no pátio da escola O’itchürüne
com sr. Gavião, de 70 anos, sujeito desta pesquisa, nos relata um tre-
cho da mitologia que narra a origem do povo Ticuna nos seguintes
termos:
47 Flauta de formato longo que as mulheres são proibidas de ver
48 Episódio ocorrido antes da festa de iniciação feminina com a moça que estava reclusa.
Ela foi violentada e morta pelos seres sobrenaturais malévolos.

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Segundo a mitologia, o povo Ticuna foi pescado no rio Eware.
Atualmente fica localizado à comunidade Vendaval no municí-
pio de São Paulo de Olivença. O Yo’i é considerado o Deus Ticu-
na, tudo o que ele desejava ou pensava se tornava real todos seres
humanos que foram pescados no rio Eware foram chamados de
Povo Magüta e assim a Terra foi totalmente povoada com seres
humanos chamados atualmente de povo Ticuna que estão loca-
lizados e espalhados em todo Alto Solimões (entrevista, 2018). ]

Isto é o que o mito fundamenta: a origem do povo, norteando


a existência desse povo no percurso da sua história. É por meio do
mito que eles caracterizam a natureza como uma preciosidade, atri-
buída como patrimônio de herança para os filhos, netos e bisnetos
que darão continuidade da etnia. Eles sabem que as árvores na aldeia
têm valor significativo, uma vez que o conhecimento da natureza é
profundo e intenso. É através dela que produzem a medicina natural
que ajuda nos procedimentos da cura sob a responsabilidade do pajé
com proteção dos sobrenaturais. Os saberes dessa natureza vêm do
imaginado com a certeza de sua confirmação. Para Bachelard (1978,
p. 196) “A imaginação imagina incessantemente e se enriquece de
novas imagens. É essa riqueza do ser imaginado que queremos ex-
plorar”.
Na tradição oral, são revelados momentos mais significativos.
Para eles, tudo que há no mundo apresenta um significado, como na
exemplificação dada pelo Sr. Gavião (70|anos):

Nas águas desse rio que passa na frente da nossa aldeia, aqui não
escorre só água não, nesses rios de águas escorrem sangue dos
que viveram muito antes de nós e tudo que foi passado pra nós
como desenhos que nós faz em nós, tudo é sagrado, mas esses
meninos de hoje são sabe muito sobre isso, o tempo mudou mui-
to e os pais de hoje não ensinam mais seus filhos como no tempo
passado até nossos rituais não é mais como antigamente, agora
só esperam que a escola ensine tudo (entrevista, 2018).

Cada detalhe tem a sua importância para o povo indígena,


principalmente através da concepção dos mais antigos, começa pelo
mais simples dos detalhes sem deixar de lado a sua essência natural
de ser. Conforme o Referencial Curricular para as Escolas Indígenas

- 135 -
(RCNEI, 2002, p. 65) ressalta que “são os mais velhos, as lideranças
políticas, os pais e outros parentes, os curandeiros, xamãs ou pajés,
os artesãos, além de professores que fornecem o apoio necessário à
construção do currículo”.
As crianças indígenas sentem certo impacto cultural quando
se deparam com os desafios do mundo contemporâneo. Não é fácil
lidar com essas questões nos âmbitos escolares porque as crianças Ti-
cuna têm seu tempo de aprender, de acordo com os ensinamentos da
cultura realizados pelos adultos através de repetições para que consi-
gam absorver com mais naturalidade, porém nas escolas, esse tempo
é limitado e veloz na transmissão. Neste sentido, ao invés de ajudar
no entendimento do ensino sistematizado acaba criando barreiras
e dificultando a aprendizagem das crianças nos contextos escolares,
enquanto que a Educação Indígena repassada pelos adultos tem um
valor cultural e busca valorizar a formação do ser humano que visa
preservar e assegurar os aspectos culturais das gerações futuras.
É na aprendizagem da vida social que congrega múltiplo en-
sino voltado na compreensão das relações que eles têm entre si, ou
seja, todos nós fazemos uma sociedade que deve responder às neces-
sidades comunitárias para o bem-estar social de todos. Enquanto que
o currículo vem na contra mão com esses conhecimentos partindo
da imposição de um modelo pedagógico para as escolas indígenas,
enquanto que os valores culturais são importantes e são ensinadas
às crianças da etnia Ticuna ainda na infância. É através de contos
com caráter educativos, que as crianças vão incorporando as regras
de organização social aos poucos, vão sabendo a que grupo clãnico
pertencem, para que no futuro quando adultas saibam as regras ma-
trimoniais e respeito às diferenças.
Assim, a narrativa mítica fala também da origem dos clãs do
povo tradicional Ticuna. Os grupos clãnicos podem ser agrupados,
de um lado as nações “com penas” (Arara, Maguari, Mutum, Japó ou
Galinha) e da outras nações de “sem penas” (Onça, Avaí, Jenipapo,
Saúva, Buriti). Em meio a tudo isso, os filhos herdam a nação do pai.
Para Cuche (1999, p. 177) “a identidade cultural de um indivíduo ou
grupo permite que este se localize e seja localizado em um sistema
social. Sendo, ao mesmo tempo, inclusão e exclusão, configurasse em
uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na
diferença cultural”

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Esse sistema cultural foi criado pelos ancestrais para manter
a organização social dos grupos, ou seja, os grupos clãnicos “sem pe-
nas” podem se casar com os grupos clãnicos “com penas” e o clã não
indígena é representado pelo boi, é uma forma de respeitar o outro
grupo social. Na concepção do povo Ticuna, este casamento é mais
adequado para dar continuidade à reprodução humana. Quando se
trata das diferenças entre os grupos para evitar o que eles categori-
zam de casamento proibido. Os casamentos proibidos são considera-
dos quando os matrimônios acontecem entre os próprios clãs (pena/
com pena, e nem sem pena/sem pena) ou ainda mesmo o casal não
ter um grau de parentesco entre si, biologicamente, mesmo assim são
considerados como irmãos que casam entre si. Denominado wômã-
tchi49. São uniões estipuladas fora dos padrões sociais. Lévi-Strauss
(1987, p. 16) ressalta que “havia uma grande quantidade de regras de
casamento em todo o mundo que pareciam absolutamente desprovi-
das de significado, e isso era ainda mais irritante quanto, se de facto
não possuíam significado, deveria então haver regras diferentes para
cada povo.”
De acordo com a cultura do povo Ticuna, a união matrimo-
nial fora do padrão social poderá até ser aceita pelos membros da so-
ciedade na medida em que as avós reflitam, já que na concepção dos
avós o casamento entre irmãos gera conflito e muita vergonha para
o casal e para a família e de acordo com a cultura poderá desfazer
seu clã ocasionando a desvalorização da organização social composta
por uma simbologia. Dessa forma e de outras a noção de identidade
vai sendo incorporada na infância.
Na pesquisa ouvimos a professora Flor de Liz (25 anos) da
etnia Ticuna, que fez uma retrospectiva de sua infância e nos contou
sobre sua experiência vivida à luz da cultura. Vejamos seu relato:

Sou da etnia Ticuna pertenço ao clã de jenipapo, do grupo clã-


nico “sem pena”, fui batizada logo que nasci com nome usado
na etnia de Yapüüna50. Essa é uma história que até hoje tem um
enorme significado na minha vida. Lembro-me quando minha
avó pintou-me pela primeira vez eu me senti fora de mim, mas
confiei no que ela estava fazendo, quando ela terminou e eu olhei
no espelho vi algo diferente percebi ali a beleza que havia em
49 Na cultura Ticuna significa mistura de carne e sangue
50 Cor da fruta do jenipapo

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mim. Essa minha experiência foi vivida na aldeia Betânia mu-
nicípio de Santo Antônio do Içá. Tenho uma vasta lembrança
de minha infância, as primeiras histórias que ouvimos por in-
termédio dos meus avós, de como nosso povo foi criado. Foram
as primeiras narrativas sobre os mitos que os idosos da aldeia,
contavam pra nós como forma de ensinamento que ficou na mi-
nha memória. Gostava muito de ir à roça para plantar e colher,
mas o que me motivava a ajudar a minha família eram aqueles
momentos prazerosos de histórias contadas em qualquer lugar,
inclusive na roça no momento do descanso do trabalho, a mi-
nha avó nos fazia sentar na beira da roça e lá mesmo costumava
contar histórias relacionados aos seres sobrenaturais, que chega
fluía nossa imaginação. A finalidade era fazer respeitar a natu-
reza porque nossa avó dizia que cada árvore tem dono, que são
os espíritos que curam e seres que o cercam nossas vidas para
nos proteger. Todas as crianças Ticuna quando nascem recebem
um escudo protetor, fornecido pelo pajé, chamado de Poriã51. Se
ocorrer a quebra do escudo somente o pajé através da permissão
dos espíritos das árvores e dos animais poderá trazer de volta
(entrevista, 2018).

A experiência relatada por nossa interlocutora da etnia Ti-


cuna através do discurso oral trouxe a possibilidade de entender a
relação de sua vida familiar, a sua própria história durante a infân-
cia estabelecendo uma relação com sabedoria de anciões. O (RCNEI,
2002, p. 65) destaca que: “conhecimentos étnicos, sustenta a inter-
culturalidade e permite reordenar e reinterpretar os saberes trazidos
pelo patrimônio intelectual, social e moral à luz de um novo contexto
e na relação com outros conhecimentos.”
Falar de infância revela, no discurso dos participantes, uma
espécie de saudosismo, principalmente quando são mencionadas as
brincadeiras aprendidas com os irmãos mais velhos ou ensinadas aos
irmãos menores.
Assim, a professora Flor de Liz relembra a sua infância e relata
apontando como foi seu ingresso na educação escolar e em impres-
sões quando criança e estudante da Educação Infantil:

Quando completei quatro anos entrei na escola, mas já ouvia o


meu pai dizer que lá eu ia aprender muitas coisas que ainda eu
não sabia, e dizia que na escola o professor ia contar história, mas
quando entrei na escola, as atividades que o professor realizava
51 Escudo de proteção espiritual das crianças contra doenças.

- 138 -
era tarefa escrita e só aplicava conteúdo. Esses conteúdos aplica-
dos me interessavam apenas um pouco, mas o que tanto queria
eram as brincadeiras, mas as brincadeiras que faziam na escola
não eram do universo da criança Ticuna. As nossas brincadeiras
eram aprendidas com os nossos irmãos maiores, assim como os
nossos irmãos menores aprendiam com a gente. Na sala de aula
a nossa rotina não era a mesma e às vezes, eu não queria ir para
a aula, porque preferia ajudar a minha avó na roça, porque lá a
gente brincava com as árvores. Nós nativos queríamos brincar,
mas a escola não nos entendia. Houve um dia em que me lem-
bro muito bem de uma palavra que ouvi de uma professora não
indígena ela disse “que era preciso ser educada como crianças
não indígenas” e estas palavras ficaram na minha mente, fiquei
me perguntando porque eu não sou educada como criança não
indígena? E assim tinha curiosidade de aprender os valores não
indígenas. E hoje, já adulta que fui entender algumas coisas que
eu ouvia quando criança e aluna na escola (entrevista, 2018).

Como se vê nos relato, é importante a valorização da cultura


nos ambientes escolares, pois as crianças indígenas trazem para a sala
de aula uma experiência social que é diferente da criança não indíge-
na, pois é através do exercício dos saberes tradicionais transmitidos
pelos avós, ainda na infância que as crianças começam a se integrar
e adquirir o conhecimento das regras e condutas sociais. De acordo
com Silva, (1998, p. 68) “a infância é uma fase de aprendizado social.
Brincando, imitando os pais, ouvindo as histórias que os mais velhos
contam, participando das atividades cotidianas e rituais do grupo é
que as crianças crescem e se tornam adultas”.
Na cultura dos povos tradicionais os saberes marcam e defi-
nem muito bem o período da infância de uma criança. Acredito que
os representantes e lideranças que iniciaram o movimento indígena
sabiam que o conhecimento indígena de certa forma busca fortalecer
o conhecimento universal. Esses conhecimentos são fundamentais
para exercer a cidadania em contextos diferentes, seja na aldeia ou na
cidade, pois se a criança aprender somente o conhecimento valori-
zado na sociedade não indígena, como que ela vai poder exercer sua
cidadania em sua aldeia? Assim como também, se a criança aprender
somente o conhecimento indígena não se sentirá segura em enfren-
tar situações fora da aldeia.
É importante destacar que nos espaços escolares há uma re-
produção constante de repertórios canônicos de tradição literária

- 139 -
europeia, que nos currículos escolares apresentam uma visão “en-
gessada” sob exigência do sistema escolar, que acaba formando, na
maioria das vezes um sujeito cartesiano. Senna (1998, p. 137) assi-
mila que,

O sujeito cartesiano foi desde então abraçado pelos pesquisado-


res, tanto por ser constituído à própria imagem e semelhança
destes como por lhes apresentar a facilidade de poderem orientar
suas investigações sobre uma figura não sujeita a variações de
qualquer espécie, sempre capaz de compreender o mundo des-
crito e representado pelos cientistas e, acima de tudo, de reco-
nhecer o valor de verdade na palavra da ciência.

As narrativas indígenas que são contadas para as crianças ain-


da na infância têm valor significativo de estratégias discursivas da
oralidade que estão presentes na contação de histórias e nos textos
indígenas que motivam e podem promover a sensibilidade leitora
dos alunos e a intencionalidade do currículo escolar numa forma di-
nâmica.

4. Saberes Tradicionais, Ensino e Aprendizagem: um olhar


docente sobre a Infância na tradição cultural Ticuna
Nos saberes culturais estão presentes também as narrativas,
que servem de ensinamento e que são contadas pelos próprios indí-
genas, nestes contos, o narrador indígena desafia o universo imagi-
nário do ouvinte através das lembranças buscadas, acontecimentos
dos mitos, referências de parentesco com os clãs e os aspectos pre-
sentes nos cosmos, a força e a simbologia dos seres sobrenaturais,
todos esses acontecimentos são narrados em contextos diversos. São
conhecimentos que são pensados no universo da Educação Indíge-
na. Para Maher (2006, p. 11) “a Educação Indígena refere-se a todos
os processos educativos utilizados por cada povo indígena no en-
sinamento de atividades, sejam elas complexas ou corriqueiras”. O
ensinamento de atividades do povo tradicional Ticuna começa a ser
repassado para a criança na fase de sua formação pessoal, ainda no
período da infância. É o que expressa o professor Tucano (45, anos
do clã Mutum) nos seguintes termos,

- 140 -
A infância é o período que todos nós passamos, e que agora sem-
pre relembramos. É onde a aprendizagem é guiada pela curiosi-
dade, através de ouvir as histórias que nós aprendemos os valores
culturais do nosso povo. Essas histórias que às vezes utilizo para
distrair os alunos, e para chamar a atenção deles. Conto história
de seres sobrenaturais, como os mascarados que aparecem na
festa da Moça Nova, para que eles aprendam a ter respeito pelos
colegas e principalmente com os professores, e aderir normas de
conduta do povo ticuna. Sempre na sala de aula converso com os
alunos, sobre como era a vida de antigamente do nosso povo, o
modo de ser dos ticuna, para que nunca esqueçam sobre o nosso
costume. Fazendo entender e observarem as atividades que mãe
ou pai realizam para aprender a fazer, ajudar os pais na roça (en-
trevista, 2018).

A seguir, um outro comentário da professora Flor do Cam-


po (36 anos) que demonstra a sua opinião pessoal sobre a infância
do povo tradicional e a aprendizagem da criança por intermédio do
processo escolar:

A infância é a fase adequada de aprendizagem, é na escola que


a criança deve aprender os novos saberes, e vejo a infância da
atualidade como um período próprio para aprendizagem infan-
til. A escola ensina, mas não tudo. Na hora do intervalo, costu-
mo contar histórias que são relacionados à história ticuna, de
onde vieram da terra sagrada Eware que é lugar de princípio do
mundo da existência ticuna. Assim, a criança sabe desde cedo
as noções de organização de um grupo. Reúno as crianças em
roda e ali conto oralmente as histórias. Costumo dialogar com
as crianças sobre o clã de cada um, para eles saberem respeitar
o seu próximo e como chamá-lo os parentes, isso é para que as
crianças não se esqueçam dos nossos valores culturais. É mui-
ta história na aprendizagem da criança ticuna, pois todos nós
fomos educados desta maneira, e por isso que contar história é
compartilhar saberes do nosso povo (entrevista, 2018).

É na infância do povo tradicional Ticuna que a mitologia vai


sendo contada para contribuir nos ensinamentos, dando sentido e
significados para as coisas que existem na aldeia. É através dos mi-
tos que as crianças começam a compreenderem os fenômenos e seus
papéis como sujeitos produtoras da sua cultura. Pinto (2012, p. 11)
destaca que “os mitos povoam o imaginário das pessoas ou de uma

- 141 -
determinada comunidade. Eles existem em um determinado contex-
to explicativo”. Enquanto que o pensamento religioso, a crença nos
sobrenaturais torna possível a compreensão da origem desse povo, se
essas histórias fossem somente repassadas pela escola a compreensão
seria diferente.
A professora Flor de Liz pede pra comentar sobre a sua ex-
periência de docente numa turma da Educação Infantil, assim que
iniciou a sua profissão em escola indígena.
Vejamos, a seguir:

Sou Ticuna e agora docente da Educação Infantil uma pessoa


simples com nível superior e agora vivo na aldeia do Umariaçú
I e me colocando na condição de professora me ponho no lugar
das crianças. Trabalho com as brincadeiras que fizeram parte da
minha infância vivida, mas somente algumas que me lembro.
Como professora hoje reflito como articular na prática educa-
tiva o conhecimento que é produzido pelas crianças através da
interação social, porque sempre quando elas chegam à sala de
aula relatam o que fizeram em casa e o que gostam de fazer, e as
entendo por fazer parte desse universo nativo (entrevista, 2018).

Quando entramos em contato com a cultura Ticuna é impor-


tante levar em consideração algumas situações distintas que detecta-
mos através da nossa pesquisa de campo. É importante refletir antes
de desenvolver um trabalho pedagógico com os povos tradicionais,
pois na cultura existem as particularidades dos saberes que são la-
tentes, como percebemos através do estudo. É o que pensam e como
agem na infância que traz ensinamentos à luz da cultura até os meca-
nismos do sistema educativo. Bhabha (1994, p. 122) destaca cultura
como “um território de diferenças que precisa de permanentes tra-
duções, o problema crucial é quem traduz a quem (ou quem repre-
senta a quem) e através de quais significados políticos”.
Na cultura Ticuna, o ato de contar histórias envolve ouvir, ar-
gumentar e ensinar, logo tudo isso tem um caráter educativo e assim
vão aprendendo que são tão importantes quanto necessários, pois é
a partir dela que as crianças desenvolvem o seu imaginário para o
mundo real, confrontando as ideias com as interpretações e expli-
cações do conhecimento empírico e a partir daí vai se construindo
como pessoa e como membro de uma sociedade que precisa cons-

- 142 -
truir regras e valores para dar continuidade e vitalidade para o seu
povo, ensinando-lhe a pensar e se reconstruírem nesse novo tempo.
Neste sentido, Japiassu (1983, p.17) afirma que “se temos que ensinar
algo a nossos alunos, que lhes ensinemos a pensar, que lhe ensina-
remos a aprender, a se construírem e se reconstruírem, a fazerem
perguntas e a questionar o já sabido.”
Portanto, a escola e os profissionais que fazem parte dela de-
vem repensar sobre a sua prática de ensino educativo, buscar através
de estudos e de pesquisas entender um pouco mais sobre as popula-
ções tradicionais para quando propuserem um trabalho pedagógico
que este seja menos agressivo à cultura do outro, pois esse outro é
diferente na forma de pensar, de agir e de acreditar. São dois mundos
dentro de apenas um que não comporta e nem dar conta da imensa
pluralidade cultural. O nosso sistema educacional do século XXI ain-
da está atrelado ao século XVII, conforme (CHARLOT, 2013, p.60)
que diz que “escola estabilizada do século XVII, é uma escola cujos
conteúdos se sedimentaram no fim do século XIX e no início do sé-
culo XX”. Portanto, as escolas e principalmente as indígenas devem
se libertar da ótica cartesiana para articular o mecanismo próprio
que venha atender as perspectivas dos sujeitos nessa nova era em
cenários diferentes em todos os aspectos dos séculos passados.

5. Algumas Considerações nada Finais


O povo tradicional da etnia Ticuna encontra-se em toda área
de extensão do Alto Solimões, concentra-se nos municípios de Santo
Antônio do Içá, São Paulo de Olivença, Tabatinga, Benjamin Con-
stant e Amaturá. O nosso estudo ocorreu na Escola O’itchürüne na
comunidade indígena Umariaçú I que fica a cinco quilômetros do
perímetro urbano de Tabatinga no Amazonas. Buscou-se fazer uma
análise de como estão sendo incorporados no sistema o processo es-
colar e a percepção desses sujeitos no que tange ao ensino formal e
informal e a suas concepções e olhares culturais trilhados da infân-
cia à escola. A partir do estudo, percebemos o quanto que a mito-
logia desse povo tem um papel fundamental na orientação familiar
na construção dos conceitos às regras de condutas e até define seus
papéis na sociedade.
A nossa pesquisa reafirma o fato de que a mitologia marca a
história de origem desse grupo social, pela tradição, eles acreditam

- 143 -
que foram pescados no rio Eware e assim por diante. A escola muni-
cipal O’itchürüne, local da pesquisa, também tem a sua história com
viés mitológico, pois o patrono considerado pai do ritual da Moça
Nova na terra sagrada de Eware e as crianças da instituição escolar
vivem a sua infância, brincam, acompanham a família na roça, se di-
vertem com a natureza, brincam com as árvores, imitam os animais,
escutam as histórias e revivem seus mitos. É uma forma particular
de manter a sua cultura, como expressa Kambeba (2013, p. 19), “os
povos indígenas, mesmo que de formas diferentes, mantêm o mes-
mo ideal de conservar a sua cultura como herança ancestral”. Nas
memórias desse povo, têm histórias com enredo e textualidade cul-
tural relevante de contextos diferentes e contribui na aprendizagem
que a partir delas as crianças desde cedo desenvolvem a noção de
responsabilidade com seu grupo social. Enquanto que os professores
que trabalham na escola são da etnia Ticuna falam cotidianamente
a língua materna no âmbito escolar bem como fora dela. Possuem
conhecimentos oriundos de traços culturais construídos ao longo da
infância que perpassam ao longo da vida adulta e das gerações.
Os pais das crianças basicamente vivem da agricultura fami-
liar, alguns exercem a função de pedreiro, carregador, ajudante de
pedreiro e autônomos e uma pequena parte desses pais têm emprego
fixo. As mães trabalham como autônomas, vendem frutas na estra-
da que dá acesso à comunidade indígena e outras trazem as frutas
para venderem nas ruas da cidade ou na feira, um local cedido pela
prefeitura municipal de Tabatinga. Através da nossa pesquisa conse-
guimos adquirir um conhecimento mais profundo da cultura e sua
especificidade e com certeza teremos um olhar mais sensível em re-
lação à Educação desse povo buscando nas coisas mais simples do
meio em que vivem a grandeza de valorizar e entender o mundo ao
seu redor.

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TRAUSS, Lévis. Mito e Significado. Campinas São Paulo: Papirus,
1987.

- 146 -
SEÇÃO III
O COMÉRCIO, AS VOZES SUBALTERNAS E A
SUSTENTABILIDADE NA FRONTEIRA

- 147 -
- 148 -
CARACTERIZAÇÃO DO COMÉRCIO
PERUANO NA TRÍPLICE FRONTEIRA
BRASIL-COLÔMBIA-PERU: UM OLHAR POR
DETRÁS DA LENTE
Selomi Bermeguy Porto52
Heloísa Helena Corrêa da Silva53

INTRODUÇÃO
Os estudos sobre formação econômica de espaços urbanos e
rurais, influenciados por migração transfronteiriça, requer mais do
que conhecimentos específicos das ciências sociais aplicadas como a
Economia e Administração. É necessário, pois, abrir um diálogo com
outras áreas do conhecimento que, de forma integrativa, contribuam
para melhor compreender os elementos que tecem, formam e tra-
duzem a dinâmica econômica da região, principalmente quando se
trata de lugares situados em espaço fronteiriço da Amazônia, como é
o caso do município de Benjamin Constant e Tabatinga, situados no
Estado do Amazonas, na região da Tríplice Fronteira Brasil-Colôm-
bia Peru. Trata-se de uma região de população miscigenada formada
por brasileiros, colombianos e peruanos e, dentre estes, os indígenas
de etnias diversificadas, com predominância para a etnia Ticuna.
Região rica em diversidade cultural, destaca-se pela forte in-
teração social dos três países Brasil-Colômbia-Peru, num comparti-
lhamento e ao mesmo tempo disputa de espaço, fala, comida, músi-
cas, trabalho, o que influencia no viver na tríplice fronteira.
O empreendedorismo em seus vários segmentos de negócios
é uma marca da região e nisto os peruanos se destacam devido a
expressividade de atividades comerciais geridos por imigrantes pe-
52 Doutorando do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Uni-
versidade Federal do Amazonas. Professor do Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia
do Amazonas - IFAM, campus Tabatinga. E-mail: selomi@ifam.edu.br selomi_adm@
hotmail.com
53 Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade católica de São Paulo e Profes-
sora da Universidade Federal do Amazonas - UFAM. Departamento de Serviço Social DSS
e Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia - PPGSCA. Coordenado-
ra do grupo de pesquisa Questão Social e Serviço Social no Estado do Amazonas (Diretó-
rio de grupos do CNPq; certificado pela UFAM desde 2003). E-mail: hhelena@ufam.edu.br

- 149 -
ruanos em território brasileiro na tríplice fronteira. Com caracte-
rísticas próprias arraigadas a sua cultura se diferenciam dos demais
empreendimentos locais, o que se pode perceber da forma de arqui-
tetura dos estabelecimentos, tipos de produtos ofertados, método de
trabalho e forma de abordagem ao cliente.
As observações de nossa pesquisa nos possibilitaram identifi-
car em Tabatinga um ponto de concentração de empreendimentos
peruanos na venda de roupas, alimentos, leguminosas, verduras e
frutas, produtos domésticos e estivas em geral, assim como a mo-
dalidade de trabalho voltado para a prestação de serviços de beleza,
hotelaria, dentre outros.
Já em Benjamin Constant, é possível observar dois pontos de
maior concentração de empreendimentos peruanos, um localiza-se
próximo ao porto da cidade na área central e o outro no bairro de
Coimbra, próximo ao centro, em ambos com vendas de produtos
variados que vai desde vestuário, calçados, alimentação e estivas em
geral, dentre outros produtos, o que torna esse espaço uma disputa
comercial entre brasileiros e peruanos.
Esta pesquisa voltou-se para analisar os comerciantes perua-
nos étnicos ou co-étnicos que tenham empreendimentos nestas áreas
de maior concentração de comércio peruano. Demais empreendi-
mentos peruanos dispersos em pontos diferentes dos municípios
pesquisados não fizeram parte da presente pesquisa. Apresentamos o
comércio peruano tendo por base um cotejamento de dados biblio-
gráfico com uso ilustrativo e analítico da fotografia. A fotografia é
uma realidade congelada sujeita a várias leituras e releituras e apre-
senta como principal vantagem a possibilidade de observar e identi-
ficar aspectos que poderiam passar despercebidos, numa observação
a olho nu, sujeitas a várias distrações do ambiente e dos demais sen-
tidos do ser humano.
A pesquisa de natureza exploratória revela que existe uma
expressividade da atuação dos peruanos em atividades comerciais
nos municípios brasileiros da tríplice fronteira e que seus empreen-
dimentos apresentam características que os diferenciam dos em-
preendedores brasileiros que vai deste a arquitetura dos seus esta-
belecimentos, tipos de produtos ofertados, método de trabalho e até
mesmo a forma de abordagem ao cliente. A relevância social desta

- 150 -
pesquisa apresenta-se na perspectiva de contribuir no entendimento
de como o comércio peruano se configura através dos traços socio-
culturais. Provoca um olhar de enxergar o comércio peruano como
algo pertencente a tríplice fronteira necessitando de um olhar dos
governantes sobre a necessidade de políticas migratórias que aten-
dam com a regularização da inserção e organização do comércio pe-
ruano na região.

Vivência na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru


A Tríplice Fronteira Brasil-Colômbia-Peru é por assim dizer,
uma fronteira “sem fronteira”, onde as relações e influências se mis-
turam ao ponto de se ter dificuldade de encontrar seus limites fron-
teiriços. É um espaço de encontro de diferentes línguas faladas no
mesmo território, em que o português, espanhol e a língua indígena54
enobrecem a riqueza cultural promovendo falas próprias, fruto deste
contato. As línguas ultrapassam as fronteiras geográficas, culturais,
sociais e econômicas.
Lugar onde há a circulação de três moedas com predomi-
nância do real (moeda brasileira), o peso (moeda colombiana) e em
menor expressão o solis (moeda peruana). O sabor peruano e colom-
biano encontra-se com o sabor brasileiro na mesma refeição. As pes-
soas apresentam nacionalidades brasileira e colombiana, a depender
de suas relações conjugais e de suas conquistas por nacionalidade. Os
filhos de peruanos que moram no Brasil estudam na Colômbia, ou
que moram no Peru e os filhos estudam no Brasil. Colombianos que
residem em seu país e que frequentam as escolas brasileiras ou que
residem no Brasil e estudam na Colômbia.
Essa interação fronteiriça, que vai além das relações culturais,
sociais e comerciais, é possível devido o favorecimento geográfico
que possibilita fácil acesso de mobilidade entre os três países. Um
dado significativo que deve ser lembrado nessas discussões é o tema
da imigração. Gonçalves (2009) reforça que o processo de migração
surge ao longo da história da humanidade e que se caracteriza como
um fenômeno social, diverso e complexo isso porque “embora os mi-
grantes tenham experiências comuns [...] podem ser diferenciados
54 A tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru agrega em seu espaço territorial várias etnias
indígenas que fazem uso da língua indígena, em especial a região fronteiriça do Alto Soli-
mões a predominância é a língua ticuna.

- 151 -
pelo gênero, classe social, etnicidade, pela razão da migração, pela
idade, pela forma de migração, pela natureza e influência na econo-
mia global” (GONÇALVES, 2009, p. 23). Na tríplice fronteira Brasil-
-Colômbia-Peru existe uma tendência maior dos peruanos e colom-
bianos em migrar para os municípios brasileiros do que o inverso.
Tomando como referência o Brasil, Jakob (2011) destaca o
país como um dos países que ao longo dos anos tem se configurado
como destino importante para muitos imigrantes. A situação econô-
mica dos países influencia diretamente nesta escolha, pois mesmo
que muitos países se encontrem em crises, se estes apresentam uma
situação econômica melhor dos que outros, tornam-se uma alterna-
tiva de destino. Na verdade, todo país que desfruta do desenvolvi-
mento torna-se uma espécie de chamariz para atrair imigrantes, ao
mesmo tempo as questões socioeconômicas locais de alguns países
podem provocar esse processo migratório, no caso específico cita-
-se os países de fronteira com o Brasil servindo de estímulo para a
migração internacional. Para “além dos deslocamentos de curta dis-
tância nas áreas de fronteira internacional, observou-se a chegada
de estrangeiros em várias partes do território” (JAKOB, 2011, p. 93).
Santos (2012, p.63) diz que é possível inferir que o processo histórico
de ocupação humana da região amazônica teve influência das migra-
ções, principalmente as transfronteiriças, uma vez que a região faz
fronteira com vários países.
Um estudo realizado por Jakob (2011) sobre a Migração In-
ternacional na Amazônia Brasileira revela que migrantes são prove-
nientes de países que fazem fronteira com a Amazônia, como Peru,
Bolívia, Colômbia e Paraguai baseado no Censo Demográfico de
2000 e pela Contagem Populacional de 2007. Apresenta os municí-
pios de destino na Amazônia segundo os principais países de origem
dos migrantes, identificando que o destino da maioria dos estrangei-
ros peruanos é o Estado do Amazonas, com preferência para a capital
Manaus e dentre os municípios do interior do Amazonas destaca-se
o município de Tabatinga e de Benjamin Constant.
Geograficamente, a Tríplice Fronteira Brasil-Colômbia-Peru
situa-se na Amazônia, região sul-americana compartilhada. No Bra-
sil encontra-se situado no extremo oeste do Estado, na região do Alto
Solimões. Por parte da Colômbia, é representada pelo Departamen-

- 152 -
to colombiano do Amazonas. E no que tange ao Peru faz parte do
Departamento peruano de Loreto. Os municípios mais próximos e
que possibilitam fácil acesso entre os países são: Letícia na Colômbia;
Islândia e Santa Rosa no Peru, Atalaia do Norte, Benjamin Constant
e Tabatinga no Brasil.

Figura 1: Tríplice fronteira representada por Tabatinga/Brasil, Letícia/Colômbia e


Santa Rosa/Peru. Fonte: Google maps

Tabatinga é um município do Estado do Amazonas com po-


pulação estimada em 63.635 habitantes em 2017 de acordo com o
IBGE (2018), distante a 1.105 km em linha reta da capital do Estado,
Manaus, e a 1.607 km em via fluvial. O acesso ao município é possível
por meio do transporte aéreo e fluvial, uma vez que não possui estra-
da de acesso a Manaus e demais municípios do Estado, sendo que o
transporte principal de pessoas e mercadorias é o fluvial.
Tabatinga está estrategicamente localizada na tríplice frontei-
ra, fazendo fronteira com a Colômbia através da cidade de Letícia/
CO, interligadas por vias fluviais e terrestre o que lhe permite serem
chamadas de cidades gêmeas. Com o Peru, Tabatinga faz fronteira
fluvial com o município de Santa Rosa/Peru localizada a vista fron-
tal de Tabatinga. Mais do que aspectos culturais os três municípios
compartilham as águas do rio Solimões/Amazonas, o ar da vegetação
Amazônica, o céu azul e instável da tríplice fronteira.
As linhas divisórias que separam Tabatinga/Brasil e Letícia/
Colômbia não impedem as relações, influências e mobilidades fron-

- 153 -
teiriças, semelhantemente as águas que separam Tabatinga/Brasil
de Santa Rosa/Peru não são empecilhos para que os contatos cul-
turais, sociais e comerciais aconteçam entre os municípios frontei-
riços. Benjamin Constant está situado na Mesorregião do Sudoeste
Amazonense e Microrregião do Alto Solimões, em faixa considerada
fronteiriça. Trata-se de um município com presença marcante de es-
trangeiros dos países vizinhos, com predominância de peruanos.

Figura 2: Municípios fronteiriços Benjamin Constant/Brasil e Islândia/Peru


Fonte: Google maps

O acesso a esses municípios se dá unicamente por meio do


transporte fluvial, com exceção do município de Atalaia do Norte
devido a BR-307 que possibilita o acesso por estrada. Existe uma
frequente mobilidade de pessoas e mercadorias entre os municípios
brasileiros de Benjamin Constant e Tabatinga, assim como entre
Benjamin Constant e Islândia, município peruano. Em Islândia, vi-
vem aproximadamente 3 mil peruanos, município com uma arquite-
tura diferenciada, pois toda cidade é suspensa por pontes devido os
períodos de enchente do rio que deixa a localidade totalmente inun-
dada. A principal relação de Benjamin Constant com este município
peruano ocorre principalmente em virtude de questões comerciais.
Os aspectos culturais de influência fronteiriça se sobressaem
ficando em evidencia para quem chega nesses municípios. A culi-
nária peruana é um dos principais traços da região que obtêm re-

- 154 -
ceptividade dos brasileiros, tornando uma das principais opções em
seus cardápios alimentares. Em ambos os municípios (Benjamin
Constant e Tabatinga) encontra-se restaurantes e demais pontos de
vendas de comida peruana. Os tipos de comida peruana mais procu-
radas e conhecidas na região são o ceviche, lomo saltado, chicharrón
e fani. Além da aderência ao cardápio peruano, os brasileiros fazem
uso de ingrediente culinários estrangeiros em receitas brasileiras e de
outros produtos tanto colombianos quanto peruanos que são consu-
midos no cotidiano.
A presença estrangeira também se manifesta através das mú-
sicas colombianas e peruanas ouvidas pelos brasileiros, inserindo-se
na lista de músicas que compõem os repertórios ouvidos no dia a
dia, em festas de aniversários, confraternizações familiar, festas de
balada e nas ondas sonoras das emissoras de rádios locais. O ouvir e o
contato com os países vizinhos promovem uma interação frequente
de línguas espanhola e portuguesa na região, assim como vícios de
linguagem fruto deste contato, o que tem despertado o interesse de
estudo de alguns pesquisadores locais da área linguística.
A lista de procura por produtos peruanos e colombianos é
grande pelos brasileiros locais e turistas, como por exemplo, os per-
fumes. As linhas de perfumaria e cosméticos dos países vizinhos tem
conquistado o olfato e aprovação dos brasileiros, assim, o mercado
de comercialização de tais produtos seja por meio da compra direta
no estabelecimento ou por meio de catálogo de revistas peruanas e
colombianas tem sido muito frequente nesses municípios. Ainda é
possível citar as linhas de vestuário, de joias, relógios e eletrodomés-
ticos que também fazem parte das opções de compras dos brasileiros.
Esse contexto de interações socioculturais e econômicas exis-
tente na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru aponta para uma
nova realidade territorial que Gonçalves (2009, p. 18) afirma que
propicia o aparecimento de comunidades transnacionais que conse-
guem gerir a pertença a espaços sociais diferentes, criando elos Inter
econômicos, interculturais e outros” (GONÇALVES, 2009 p.18).
A migração transfronteiriça de imigrantes peruanos para o
Brasil tem acarretado uma aglomeração de peruanos em atividades
comerciais como estratégia para conseguir ocupação e renda, sendo
empreendedores em terra estrangeira.

- 155 -
O Comércio peruano na Tríplice Fronteira Brasil-Colômbia-
Peru
O comércio peruano é tão expressivo que passa a configurar-
-se como umas das principais características da tríplice fronteira Bra-
sil- Colômbia- Peru.
Parte dos produtos comercializados pelos estrangeiros advém
do país de origem, geralmente são embarcados no porto de Iquitos/
Peru, com desembarque em Santa Rosa/Peru que faz fronteira fluvial
com Tabatinga/AM e em Islândia, município peruano que faz divisa
com Benjamin Constant/AM.
Iquitos/Peru, capital da Amazônia Peruana, apresenta apro-
ximadamente 465 mil habitantes conhecida por ser uma cidade de
maior número de habitantes que não tem alternativa de acesso por
meio de rotas terrestres, uma vez que não possui estrada de acesso.
Assim, o transporte de pessoas e mercadorias com desembarque em
Santa Rosa/Peru e Islândia/Peru com destino aos respectivos muni-
cípios brasileiros Tabatinga e Benjamin Constant se dá por meio do
transporte fluvial. A distância entre Iquitos/Peru e Tabatinga é de
371 km e, de 375 km para Benjamin Constant.

A duração da viagem depende do tipo de embarcação, que va-


ria de 12 horas de viagem quando a opção for Lancha/Expresso ou
de 4 dias em Navio/Barco. Em relação às mercadorias a opção mais
conveniente devido preço de transporte e acomodação para maior
quantidade de produtos é o Navio/Barco.
Em ambos os municípios brasileiros, tanto de Benjamin
Constant quanto em Tabatinga, é possível observarmos a presença
do comércio peruano em vários pontos da cidade, todavia existe um

- 156 -
aglomerado quantificável de empreendimentos peruanos em locais
estratégicos próximos ao porto da cidade.
Essa aglomeração de empreendimentos peruanos próximo
ao porto deixa os comércios peruanos em lugares estratégicos, pois
trata-se de uma área comercial frequentada diariamente pelas pes-
soas para atender com suas necessidades de compras, trabalho, pas-
seio, pois todos que precisam sair ou entrar em tais municípios utili-
zando o modal fluvial passam pela área comercial dos peruanos, uma
marca expressiva do paisagismo desses municípios. Outro aspecto
favorável da localização e preferência dos empreendedores peruanos
é a facilidade de desembarque de suas mercadorias por estarem na
proximidade do rio, uma vez que as mercadorias chegam todas por
embarcações fluviais.
As observações e registros da área geográfica pesquisada,
possibilitou-nos identificar os principais segmentos de negócios em
que os empreendedores peruanos estão inseridos, sendo no ramo de
vestuário, de produtos alimentícios e domésticos e de estivas em ge-
ral, assim como no ramo de serviço, como salão de beleza e hotelaria.
Os empreendimentos peruanos apresentam características
que os diferenciam dos empreendimentos brasileiros.
Em termos de arquitetura, uma expressividade dos em-
preendimentos peruanos apresenta aspecto pouco apreciável. Existe
uma precariedade na estrutura física destes estabelecimentos que dá
vez para a improvisação, em que as madeiras e lonas fazem parte do
paisagismo arquitetônico de tais empreendimentos, salvo exceções
de alguns estabelecimentos.

- 157 -
Figura 6: Estrutura Física dos empreendimentos peruanos na tríplice fronteira
BR-CO-PE
Fonte: Pesquisa de campo, 2018

São espaços pequenos onde os produtos são amontoados no


chão do estabelecimento, pendurados nas paredes de madeira, utili-
zando as calçadas como parte da exposição de seus produtos. É qua-
se inexistente os estabelecimentos que possuem identificação com
nome do empreendimento. De acordo com Souza (2015, p.91),

Na cidade de Benjamin Constant como em Tabatinga do lado


brasileiro e Caballo Cocha e Islândia do lado peruano a carac-
terística marcante desse tipo comércio é a organização dos as-
pectos físicos dos estabelecimentos, nos quais se expõe à venda
todo tipo de produtos importados ou nacionais [...]. O aspecto
marcante é que todo espaço dentro ou fora (nas calçadas) do es-
tabelecimento é ocupado por algum produto [...].

Esse tipo de organização comercial se insere nos modus vi-


vendi dos imigrantes peruanos, que buscam reproduzir em espaço
brasileiro a forma de comércio existente em seu país de origem.

- 158 -
Figura 7: Empreendedorismo peruano na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru,
Benjamin Constant /AM, Tabatinga/AM.
Fonte: Pesquisa de campo, 2018

À primeira vista, a impressão que temos é que se trata de úni-


co estabelecimento sem conseguir identificar os limites que definem
cada espaço comercial já que são totalmente ocupados pela exposi-
ção dos produtos. Só é possível identificar os limites de cada esta-
belecimento ao se aproximar e observar que os próprios produtos
servem para delimitar as divisórias frontais dos mesmos. Além disso,
o estabelecimento atende com a função comercial e domiciliar de
tais imigrantes empreendedores peruanos, uma vez que improvisam
geralmente nos fundos da loja sua morada.
Souza (2015, p. 65), em sua pesquisa sobre cidades amazôni-
cas na fronteira Brasil-Peru, tomando como referência a cidade de
Benjamin Constant, considera como uma de suas características a
presença marcante do comércio realizado pelos imigrantes peruanos
e ainda aponta para um comércio em expansão. O empreendedoris-
mo peruano, nos municípios fronteiriços estudados, segue o curso
apontado pelo autor, pois o que se observa é uma expansão do co-
mércio peruano na região, geralmente concentrando pontos comer-
ciais de origem étnica ou coétnicas próximos um dos outros. Para
Ferreira (2016, p.66), “o imigrante peruano atua como vendedores
ambulantes nas ruas, praças, mercado e feira, bem como nos peque-
nos negócios”.

- 159 -
Esse cenário propicia uma discussão entre os brasileiros que
residem nos municípios hospedeiros, sendo que enquanto uns re-
conhecem a importância do comércio peruano para atendimento
das necessidades dos municípios. Outros manifestam inquietação e
preocupação com a crescente expansão do comércio peruano uma
vez que não concordam com a facilidade de entrada e permanência
dos peruanos e de seus produtos em território brasileiro.
Isso nos leva a discutir um outro ponto marcante do comércio
peruano referente aos produtos comercializados em seus estabele-
cimentos. Conforme Matos (2016, p.72), “na cidade existe um gru-
po de pequenos estabelecimentos, em frente ao mercado municipal
(camelôs), que os moradores chamam de: “os peruanos”. Quando
alguém pergunta: onde posso encontrar tal produto? Eles respon-
dem: nos peruanos!”. Os comerciantes peruanos são referência em
termos de variedade de produtos e preços acessíveis na região, ten-
do como principal ponto de identificação de maior concentração de
seus comércios, tanto em Benjamin Constant quanto em Tabatinga,
nas proximidades do mercado e feira municipal, estrategicamente
perto do porto.
A maior oferta procede de produtos estrangeiros advindos do
seu país de origem assim como da Colômbia. Dentre estes, o vestuá-
rio, produtos domésticos e estivas em geral, produtos alimentícios e
materiais de higiene e limpeza, assim como frutas, legumes e verdu-
ras.
Não resta dúvida de que o comércio peruano enfraquece
o comércio brasileiro, obtendo vantagens por não cumprir com a
obrigação tributária, principalmente quando se refere à entrada de
mercadoria estrangeira no país. Há, conforme Ferreira (2016) ine-
xistência de política pública destinada à economia local somada à de
fiscalização são aspectos que favorecem o comércio estrangeiro e ile-
gal na região. Isso possibilita os imigrantes peruanos ofertarem seus
produtos a preços mais acessíveis que os comerciantes brasileiros, já
que não cumprem com as obrigações tributárias.
O preço acessível ocasiona a aceitação dos produtos peruanos
pelos brasileiros, principalmente aqueles que possuem renda baixa,
conforme explica a autora, “os produtos comercializados por esse
imigrante tem boa aceitação no mercado local devido aos baixos pre-

- 160 -
ços ofertados o que possibilita o consumo de pessoas com baixíssima
renda” (IBIDEM, 2016, p. 66).
Quanto à licença para o funcionamento legal do empreendi-
mento, conforme a responsável pela emissão de alvarás de funcio-
namento de Benjamin Constant, todos os que possuem estabeleci-
mento fixo, na área onde a pesquisa foi realizada, possuem o alvará
uma vez que atenderam com os requisitos necessários para liberação
da licença de funcionamento. Conforme as informações fornecidas,
para conseguir o Alvará de Funcionamento55 é necessário atender
alguns requisitos, sendo: ter CNPJ, laudo de vistoria da defesa civil,
laudo da vigilância e do meio ambiente (a depender de qual seja a
atividade comercial) e pagamento da taxa do IPTU e do Alvará. Uma
vez que possuem alvará de licenciamento os empreendimentos pe-
ruanos passam estar legalizados. A responsável pelo setor revela que
não tem como negar liberação de alvará se esses estrangeiros apre-
sentam documentos brasileiros, agora a forma como conseguiram,
não cabe ao setor investigar ou indeferir a licença se estes atendem
com os requisitos necessários.
É possível que as relações conjugais favoreçam a conquista por
nacionalidade brasileira, pois conforme Matos (2016, p. 68), “é muito
provável que, na maioria dos casos, imigrantes peruanos se casaram
com brasileiras para serem naturalizados”. Porto (2017, p. 66) afirma
que “é nítida a presença de estrangeiros em território brasileiro ad-
vindos dos países vizinhos, Colômbia e Peru, em busca de melhores
oportunidades, os quais acabam estabelecendo relações conjugais e
moradias nos municípios de Tabatinga e Benjamin Constant”.
Para Porto (2017), “a nacionalidade tem se dado tanto por di-
reito adquirido na forma ius sanguinis (vínculo sanguíneo adquirido
por filiação independentemente do local de nascimento) e ius solis
(vínculo de territorialidade, decorrente do local onde o indivíduo
nasceu)” (IBIDEM, 2017, p. 67). Considerando o fácil acesso de mo-
bilidade territorial e a pluralidade de relações entre os povos frontei-
riços, a conquista por nacionalidade pode estar ligada também pelos
meios mencionados pelo autor.
55 A maioria dos peruanos possuem CNPJ no seu próprio nome e os que não possuem
tiram o alvará no nome de outra pessoa que tenha CNPJ. Inexiste registro de estrangeiros
querendo tirar o Alvará sem CPF, todos que buscam o setor já apresentam o CPF e em
alguns casos acompanhado da identidade estrangeira.

- 161 -
No que tange ao método de trabalho, os empreendedores pe-
ruanos apresentam uma rotina intensa de trabalho, geralmente não
fecham para almoço, fazem suas refeições no próprio estabelecimen-
to compartilhando muitas vezes o saborear da comida com o atendi-
mento ao cliente. Tem uma jornada de trabalho longa que inicia no
raiar do dia e se estende até o anoitecer.
Não obstante, exista uma discriminação por parte de alguns
brasileiros em relação aos peruanos caracterizando-os com termos
pejorativos como “traficantes”, preguiçosos e poucos higiênicos. Na
prática, o que se observa é que são pessoas trabalhadoras que não
escolhem tipo de trabalho, chegam como ambulantes, depois conse-
guem ponto de vendas e muitos expandem seus negócios. Não se vê
luxuosidade por parte desses trabalhadores, levam uma vida simples
sem ostentação. São os primeiros a abrir e os últimos a fecharem as
portas de seus estabelecimentos. Trabalham de domingo a domingo
e aos feriados, com exceção dos peruanos israelitas que devido à re-
ligião que professam fecham seus estabelecimentos para a guarda do
sábado.
Os empreendimentos peruanos somente realizam vendas
à vista em dinheiro, não vendem a prazo, nem trabalham com pa-
gamentos por meio de cartões. Outro aspecto é que nos empreen-
dimentos peruanos seguem a estrutura de empresa familiar, tendo
como preferência por empregados de origem peruana, principal-
mente para os empreendimentos mais recentes. De acordo com Sou-
za (2015, p. 90), “a mão de obra nesse segmento são os próprios com-
ponentes da família quase sempre o pai [...], a mãe e os filhos, vez
ou outra, parentes e amigos que chegaram depois e engajaram na
atividades comercial até se estabelecer como vendedores ambulantes
e iniciar seu próprio negócio”.
Existe laços étnicos que orientam as relações dos comercian-
tes peruanos, o que fica nítido na forma como estão localizados na
cidade sempre concentrando seus empreendimentos na mesma área,
e também pela mão de obra ser majoritariamente peruana em seus
estabelecimentos, revelando que existe um ponto em comum que
une esses comerciantes, que pode estar ligado a fatores como: es-
tratégia de fortalecimento econômico; relações familiares e laços de
amizade; ou ainda questões de pertencimento étnico. O patriotismo

- 162 -
é percebido na fala, na comida, no ouvir das músicas peruanas sem-
pre presente nos seus estabelecimentos ou a sintonização da TV nos
canais peruanos.
Os peruanos tem uma forma mais atenciosa de tratar os clien-
tes, e são mais suscetíveis a negociar descontos com os clientes. É
comum estacionar em frente ao estabelecimento e realizar a compra
sem sair do veículo, uma vez que o cliente é interceptado assim que
revela estar procurando algo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O comércio peruano é uma realidade tão expressiva na trípli-
ce fronteira Brasil, Colômbia, Peru que se tornou uma forte caracte-
rística desta região. Faz parte de sua história, podendo-se dizer que
dificilmente esse tipo de comércio será extinto do território brasilei-
ro uma vez que a perspectiva é de expansão do negócio.
O que se torna necessário é uma política de controle visando
não ao impedimento da atividade, mas a sua organização, conside-
rando dois aspectos importantes: os comerciantes brasileiros e os
consumidores, já que são as partes mais interessadas e afetadas com
o comércio peruano.
Não se pode negligenciar que embora existam críticas sobre a
presença expressiva de empreendimentos peruanos nos municípios
brasileiros fronteiriços, a realidade é que existe uma dependência
destes municípios em relação ao comércio peruano, já que são res-
ponsáveis por abastecer tanto Tabatinga quanto Benjamin Constant
com produtos essenciais para a qualidade de vida da população local,
como as frutas, verduras e legumes, além de outros produtos de ne-
cessidades secundárias e terciárias. Hoje, vêm assumindo influência
relevante na constituição de processos socioculturais na Amazônia,
de forma híbrida e naturalizada.

REFERÊNCIAS
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relações de poder que entrelaçam o trabalho da piscicultura em
Benjamin Constant, no Amazonas. 2016. 260 f. Tese (Doutorado
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MAA&url=http%3A%2F%2Fwww.periodicos.ufam.edu.
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SOUZA, Alex Sandro Nascimento de. Cidades amazônicas na
fronteira Brasil-Peru. Manaus: EDUA, 2015.

- 165 -
- 166 -
AS VOZES SUBALTERNAS DO
SINDPESCA/TABATINGA: UM OLHAR
INTERDISCIPLINAR SOBRE A VIOLÊNCIA
NAS ÁGUAS DO RIO SOLIMÕES NO ESTADO
DO AMAZONAS
Dime Alexandre Londono Gomes56
Luiz Fábio Silva Paiva57
Marilene Corrêa da Silva Freitas58

Rio Solimões um cenário de invisibilidades promovida pelo


Estado
A vida social é construída a partir de redes de proteção que
devem garantir alguns elementos básicos de segurança para sobre-
vivência de pessoas. Nas democracias burguesas e liberais, os siste-
mas de segurança foram erguidos tanto para conter ameaças à pessoa
quanto ao seu patrimônio. Defender o patrimônio de ações que o
destituam e o prejudiquem se tornou um elemento constitutivo dos
Estados nacionais, com aparatos de segurança capazes de realizar o
projeto de monopólio legítimo da força e controle social do territó-
rio.59 Neste artigo, exploramos os limites desse projeto, analisando
as fragilidades do sistema de segurança pública amazonense em seu
atendimento aos povos que vivem e trabalham nos rios do Alto Soli-
mões. Interessa-nos, fundamentalmente, entender os efeitos sociais
dos crimes cometidos contra populações que precisam realizar ativi-
dades importantes em uam região desprovida de serviços públicos de
segurança e que, atualmente, é alvo de ataques de pessoas definidas
56 Mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do
Amazonas.
57 Professor Dr. do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação
em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Pesquisador do Laboratório de Estudos
da Violência da UFC. E-mail: luizfabiocs@yahoo.com.br
58 Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade católica de São Paulo. Professora
do Programa de Pós-graduação Sociologia e em Sociedade e Cultura na Amazônia  da
Universidade Federal do Amazonas/UFAM. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e
Pesquisas Sociais-NEPES. E-mail: marilene.correa@uol.com.br
59 Sobre o monopólio da violência ver Weber (2004), Elias (1994) e Giddens (2008).

- 167 -
como “piratas dos rios”.
O fato do rio Solimões ser um rio de integração transfron-
teiriça entre os países que compõem a tríplice fronteira Amazôni-
ca Brasil, Colômbia e Peru, faz com que diversas atividades sejam
desenvolvidas em uma dinâmica que envolve múltiplas maneiras de
usar esse espaço geográfico, com algumas situações que borram as
fronteiras entre o lícito e o ilícito. O rio tem sido o cenário de deter-
minados crimes, o que revela fragilidades em relação a situação de
segurança pública local. As vozes subalternas do SINDPESCA e a po-
pulação, em geral, que necessita utilizar dessa via passaram conviver
com ações de “piratas”, como são chamadas pessoas que saqueiam
embarcações nos rios do Amazonas.
Os órgãos de segurança pública do Estado do Amazonas, es-
pecificamente polícia civil e a polícia militar, responsáveis pela segu-
rança nas áreas da zona urbana e rural do município de Tabatinga,
tem encontrado dificuldade no controle da violência e criminalidade.
Em linhas gerais, agentes de segurança pública chama atenção para
o fato de que os equipamentos policiais não têm condições efetivas
de realizar a segurança ao longo do Rio. Faltam pessoas, veículos e
combustível para realizar diligências no rio Solimões, isso faz com
que a violência na Amazônia mereça uma discussão séria sobre os
meios pelos quais o Estado nacional constitui e aciona para eficácia
simbólica e prática da sua ação para controle social do território.
O texto discute um recorte da nossa dissertação de mestra-
do, em fase de construção, intitulada “Mobilizações Sociopolíticas
do SINDPESCA/Tabatinga: Vozes de lutas e resistências por Terri-
tó(rios) de pesca no Alto Solimões”. O trabalho é desenvolvido pelo
programa de Pós-graduação Sociedade e Cultura na Amazônia PPS-
GCA/UFAM, para fins especificamente desse trabalho, dialogamos
com reflexões promovidas no âmbito dos resultados alcançados pelo
projeto “(In)segurança na fronteira: a maneira como os moradores
de Tabatinga falam da violência na tríplice fronteira entre Brasil,
Peru e Colômbia”. Desta forma, pretendemos oferecer uma contri-
buição a discussão sobre como o aparato estatal se constitui para o
controle social dos povos e comunidades tradicionais que vivem na
Amazônia e, no seu dia a dia, experimentam perigos oriundos de
ações que o aparato de segurança pública não consegue alcançar.

- 168 -
Os procedimentos metodológicos adotados nesta pesquisa
reúne um conjunto de ferramentas de coleta de dados manejadas nas
seguintes etapas: a) pesquisa bibliográfica de artigos publicados, te-
ses e dissertações com dados pertinentes ao assunto, de forma a se
obter as teorias existentes sobre o tema; b) pesquisa documental nos
arquivos virtuais da Secretaria de Segurança Pública do Amazonas
(SSP/AM), blog’s e portais locais da região do Alto Solimões, sites de
notícias do Estado do Amazonas, reportagens em grandes telejornais
de TV aberta de outros estados do Brasil. Ademais, foram verificados
os boletins de ocorrência levantados junto à delegacia interativa de
polícia civil de Tabatinga.
Em suma, tencionamos analisar as fragilidades na segurança
pública, envolvendo os subalternos do Sindicato dos pescadores(a)
de Tabatinga ao longo de 320 quilômetros navegáveis pelo rio So-
limões60 até o limite com o município de São Paulo de Olivença no
recorte epistemológico de 2016 a 2017.

Fonte: Laboratório de Cartografia social da Amazônia-Tabatinga-AM 2018

Espacialidades da violência no rio Solimões: Diálogos


interdisciplinares na Amazônia brasileira.
Na constituição da literatura que ancora esse trabalho, nos
deparamos com a escassez de pesquisas que dentro do pensamento
geográfico brasileiro investigassem a temática violência no Rio Soli-
mões ou nos rios da Amazônia brasileira. Desse modo, e como mes-
trando em um programa interdisciplinar, nos dispomos buscar em
diferentes áreas das ciências humanas e sociais, autores que pudes-
sem subsidiar férteis discussões para o entendimento do problema
60 Por este Rio são percorridos municípios do Alto e médio Solimões Benjamin Constant,
São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Içá, Tonantins, Jutaí, Fonte Boa, Tefé,
Coari, Codajás, Anamã, Alvarães Anori e Manacapuru

- 169 -
de pesquisa que, ora apresentamos.
Partimos de uma concepção de espaço geográfico como sendo
resultado das ações humanas, que na realização da vida produzem
espaço, num processo coletivo. Ele combina temporalidades e espa-
cialidades diversas podendo ser compreendido também como “es-
paço bananal” (SANTOS, 2008). Para isso temos em Ferreira e Pena
(2005), uma explanação sobre essas espacialidades:

[...]A espacialidade é uma categoria geográfica usada por todos


os ramos do conhecimento como uma primeira apreensão do fe-
nômeno na busca de sua explicação pelas diferentes especialida-
des. A espacialização das ocorrências permite aos órgãos de se-
gurança pública vigiar e punir crimes, mas não é suficiente para
combater a onda de violência que assola nossas cidades porque
não chega às suas raízes. [...] (p.156).

As espacialidades do rio Solimões e afluentes tem apresentado


uma conjuntura de ameaças aos subalternos das águas que vivem ás
margens desse rio. Relatórios produzidos anualmente pelo Conselho
Indigenista Missionário (CIMI) revelam denúncias sobre a violência
e as violações que acometem os povos indígenas até hoje no País. O
trabalho de Heck, Loebens e Carvalho (2005) do CIMI demonstrou
que os Estado brasileiro tem sido por um lado negligente em relação
a violências sofridas pelas comunidades indígenas, ao mesmo tem-
po em que tem sido protagonista de outras violências que ameaçam
as populações da Amazônia. São, também, pescadores(a) indígenas
parte da população do que estamos considerando aqui como as vozes
subalternas, termo cuja adoção tem fins pragmáticos em função da
maneira como nos referimos a diferentes pessoas que vivem, traba-
lham e circulam pelo rio Solimões.
É importante destacar que, para fins deste texto, vamos consi-
derar as vozes subalternas do SINDPESCA, os pescadores(a) indíge-
nas e não indígenas que trabalham e se deslocam pelo rio Solimões.
Não é nossa preocupação explicar as diferenças em relação ao efeito
social da violência sob cada um desses segmentos. Seria necessário
maior investimento em pesquisa para esse fim. Neste momento, te-
cer considerações sobre dados gerais que revelam o panorama de
fenômeno importante e que merece melhores investimentos de pes-

- 170 -
quisa para se compreender em toda sua extensão.
As Vozes Subalternas do SINDPESCA na identificação dos
espaços de violência no Rio Solimões

A partir dos diálogos nos encontros das assembleias gerais do


sindicato dos pescadores/a artesanais de Tabatinga (SINDPESCA),
criou-se a ideia de uma minioficina para a construção do mapa e pos-
teriormente a localização dos pontos de violência no rio Solimões.
Esses seriam os subalternos como descreve Spivak (2010), o sujeito
subalterno é aquele pertencente “às camadas mais baixas da socieda-
de constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados,
da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem
membros plenos no estrato social dominante” (p.12).
Spivak lida com o termo subalternidade. Mostra-nos a impor-
tância de dar voz e vez aos grupos humanos menosprezados, ou su-
balternizados. Lembra que esses grupos precisam se rebelar, mostrar
suas identidades e aparecerem para o mundo. A autora acrescenta
não se pode falar pelo subalterno, mas pode se trabalhar “contra”
a subalternidade, criando espaços nos quais o subalterno possa se
articular e, como consequência, possa também ser ouvido. (SPIVAK,
2010 p.14). Michel Justamand em o pensamento dissidente e a Ama-
zônia: contribuições dos intelectuais marginais, diz-nos que é preci-
so ouvir mais os subalternos, é preciso lhes dar mais atenção. Ouvir
mais os outros é um recado direto para os pesquisadores de questões
amazônicas. (JUSTAMAND, 2018).

- 171 -
Diálogos das vozes subalternas da pesca sobre a violência no
rio Solimões
Dime: Como as autoridades têm atuado para combater os cri-
mes e as violências sofridas pelos pescadores ribeirinhos da região
pelos chamados “piratas dos rios”? Como é que a senhora consegue
ver se as autoridades estão atuando?
E acho que eles não estão fazendo a parte deles ao nosso favor. É
muito difícil a gente dar uma queixa e eles irem logo ver isso. É muito
ruim mesmo essa questão de pirataria no rio. A gente andava tranqui-
lo e não tinha essas coisas, mas hoje em dia, o máximo de horário que
você pode chegar aqui é umas duas ou três horas da tarde. Se chegar
mais tarde que isso pode contar que é arriscado. Muitas pessoas são as-
saltadas, mas elas não chegam à polícia para fazer o B.O. Muitas vezes
não são nem os policiais que fazem descaso, mas sim que os próprios
pescadores que são assaltados que não tem coragem de ir lá falar. E eu
acho que a gente tem que ser mais atento quanto a isso. A gente não
pode ter medo de denunciar. A nossa vida não é fácil na beira do rio.
A gente dorme pela beira do rio e podemos até não amanhecer mais
vivos porque eles tomam tudo o que é da gente. Tudo isso é falta de
conhecimento de irmos na polícia dar parte. (Entrevista Cedida por
pescadora do SINDPESCA). (Fonte: Diário de campo, Alexandre
Gomes, 2018)
Dime: O senhor(a) saberia identificar onde estão acontecendo
esses ataques e esses roubos? Quais são os pontos aqui no Rio Soli-
mões?
Olha, aqui abaixo do Umariuaçú é um ponto, na boca do pa-
ranã pegando Teresina III é outro ponto e pegando lá abaixo do Sa-
potal é outro ponto. É perigoso essa passagem aí. (Fonte: Diário de
campo, Alexandre Gomes, 2018)
Nas respostas a essas duas perguntas direcionadas a dois pes-
cadores(a), é possível perceber, mais uma vez que, o problema da
violência no rio Solimões não é uma pauta prioritária dos órgãos de
segurança pública da região.
Neste trabalho, evidenciamos o fenômeno e esperamos novos
desdobramentos para compreender suas nuances e peculiaridades. É
importante destacar que esses subalternos que vivem às margens dos
rios da Amazônia carregam uma história de sofrimento e de violên-

- 172 -
cia invisibilizada pelo Estado. O medo e a sensação de insegurança
são palavras presentes no vocabulário dessas vozes subalternas do
alto Solimões. Medo de frequentar determinados espaços e de cir-
cular pelos meandros dos rios, limitando-se a certos lugares e ho-
rários específicos. Essa situação evidencia uma rotina de crimes que
aos poucos se tornaram comuns e desafiam o poder público em sua
tarefa de fazer a segurança em uma região com características am-
bientais únicas. As falas do crime61 passam a fazer parte de conversas
dos moradores do Alto Solimões e instituições de trabalhadores da
pesca que relatam assaltos como ações comuns, no seu dia a dia.
O aumento intensificado da violência ou a percepção de maior
perigo diante da exposição ao espaço público é o que faz emergir as
espacialidades do medo e insegurança (Herrera & Moreira, 2015).
Assim, as vias fluviais do rio Solimões foram se tornando o lugar de
falas do crime, com pessoas ressaltando o quanto se tornou perigoso
trabalhar e circular no rio. Em geral, os assaltos recorrentes criam
um mal-estar psicológico e social, criando diversos efeitos na manei-
ra como as pessoas buscam conter e controlar o risco dessas ocor-
rências na sua vida. Entre os efeitos importantes é possível identificar
nos estudos realizados a expansão de um sentimento de insegurança
nos subalternos do Sindpesca, afetando direitos básicos de cidadania
como os de residir, trabalhar, ir e vir em segurança, conforme esta-
belece a constituição federal de 1988.

Pesquisa documental uma abordagem metodológica


Algumas matérias analisadas são objetos de reportagens es-
peciais sobre esta região emblemática, que provoca intensas discus-
sões. A rede Record, emissora de televisão aberta brasileira, em 2017,
apresentou uma série especial intitulada “nas veias do tráfico” uma
metáfora que se refere aos meandros dos rios da Amazônia e, especi-
ficamente, ao rio Solimões, principal acesso de navegação e o comér-
cio ilícito de entorpecentes, que usando essas vias fluviais escoam tal
produto para diferentes partes do país e do mundo.
A utilização dos dados secundários foi útil para evidenciar o
quadro atual da segurança pública nas comunidades indígenas do
61 A fala do crime é uma maneira de ordenar o mundo ao relatar situações que dão sentido
ao mundo pela experiência de ser vítima ou tecer considerações sobre ações criminosas
(Caldeira, 2000).

- 173 -
município de Tabatinga, no Alto Solimões. Eles permitiram uma
espécie de varredura que permitiu identificar os crimes ocorridos
contra os povos tradicionais dessa região da Amazônia profunda.
Conversações e entrevistas oriundas das pesquisas empíricas desen-
volvidas no âmbito do projeto “(In)segurança na fronteira”, também,
foram úteis na análise de dados, com suporte de análises sociológicas
que visam a interpretação dos efeitos sociais de uma região trans-
fronteiriça permeada por relações entre o legal e o ilegal (ALBU-
QUERQUE e PAIVA, 2015).
Convém salientar que as fragilidades, na segurança pública
na região do Alto Solimões, se transformaram em um assunto re-
corrente, que tem ocupado os meios de comunicação amazonense,
alimentando uma grande quantidade de programas televisivos e
jornais impressos da chamada “imprensa marrom.62 A exemplo do
que acontece em outros territórios brasileiros, as medidas de segu-
rança pública terminam discutidas como uma questão meramente
policialesca em detrimento de um conjunto de ações estruturais que,
em tese, compõem as causalidades referentes ao envolvimento e ao
desdobramento de ações criminosas.
Por isso, ressaltamos que ao pensar sobre um problema de se-
gurança pública defendemos um conceito que trata a questão a partir
da ideia de que a pessoas gozam de direitos e o pleno exercício de sua
cidadania passa pelo entendimento de que, em todas as esferas que
compõem sua vida, o Estado deve atuar para garantia de direitos.63
É preciso considerar ainda que as ações de segurança pública não
podem se reduzir as reações a episódios criminais, desconsiderando
acontecimentos históricos, violações de direitos e injustiças sociais
como fenômenos que possibilitaram o uso de ações criminais como
meio de vida por determinados sujeitos e grupos. É preciso discu-
tir seriamente a maneira como vivemos e convivemos em socieda-
de, considerando as maneiras pelas quais os dispositivos de controle
social existem para garantir direitos e exigir as responsabilidades
62 É uma expressão de cunho pejorativo, utilizada para se referir a veículos de comunicação
(principalmente jornais, mas também revistas e emissoras de rádio e TV) considerados
sensacionalistas, ou seja, que buscam elevadas audiências e vendagem através da divulgação
exagerada de fatos e acontecimentos, ...
63 Para uma discussão mais demorada sobre os conceitos e as visões de mundo que com-
põem o campo da segurança pública ver os estudos de Soares (2006), Rolim (2006) e Cer-
queira, Lobão e Carvalho (2005).

- 174 -
diante da solidariedade e do respeito que devemos ter em relação
aos outros.

Desfechos e argumentações na tríplice fronteira Amazônica


Vários fatores contribuíram para o aumento da violência nas
margens do rio Solimões. São problemas estruturais que envolvem
causalidades sociais, políticas e econômicas. Os povos e comunida-
des tradicionais da Amazônia, grosso modo, dispõem de parcos re-
cursos financeiros oriundos de seu trabalho, vivenciando inúmeras
dificuldades ligadas às atividades laborais que podem desempenhar
nesse espaço e o pouco ou o inexistente apoio do Estado brasileiro
para esse fim. No alto Solimões, é possível identificar famílias que
vivem, basicamente, dos limitados benefícios sociais do governo fe-
deral, com dificuldades significativas para manter o mínimo para
sobrevivência de crianças que vivem situações de miséria e falta de
assistência à saúde e educação (OLIVAR, CUNHA e ROSA, 2015).
Percebemos a ausência de políticas públicas de segurança
pública, com medidas de prevenção e controle social baseadas em
estratégias de garantias de direito da população em situação de vul-
nerabilidade no curto, médio e longo prazo. Segundo o ministério da
Justiça, existe um Plano Estratégico de Fronteiras que, em linhas ge-
rais, propõe para essa região apenas a realização da Operação Ágata,
anualmente. Outras ações frequentes não constam desse plano. Isso
caracteriza uma maneira do governo federal olhar para uma Amazô-
nia a ser controlada, preservada e mantida como uma grande flores-
ta tropical despovoada e destituída de políticas para populações que
vivem, trabalham e precisam de serviços públicos (SANTOS, 2014).
Outra questão que surge, de forma nítida, é o memorando64 de
entendimento entre os Governos do Brasil, Colômbia e do Peru para
combater as atividades ilícitas nos rios fronteiriços ou comuns, fir-
mado em Letícia, em 20 de julho de 2008, decreto nº 8.689, de 28 de
março de 2016. Misse (2016) e Riccio (2017) destacam que a temática
da segurança pública, nas regiões de fronteira, adquiriu centralida-
64 As Partes comprometem-se a realizar esforços coordenados para conter o tráfego de
embarcações suspeitas, que ingressem ou que se encontrem nos respectivos rios limítrofes
ou comuns, de serem utilizadas na prática dos crimes e contravenções a que se refere este
Memorando de Entendimento. Esta cooperação, a ser realizada pela Armada Nacional
da República da Colômbia, pela Marinha, o Exército e a Polícia Federal do Brasil e pela
Marinha de Guerra do Peru, será regida pelo presente Memorando de Entendimento

- 175 -
de no debate público e político brasileiro. Não obstante, a questão
aparece sempre como um problema de ordem nacional ou no plano
da segurança nacional, sobretudo, em virtude dos circuitos interna-
cionais de drogas que os governos insistem em tratar como parte de
uma guerra (RODRIGUES, 2014). Nestas discussões, a população
local não aparece, é inexistente ou tratada de maneira genérica como
parte do problema. O morador do Amazonas e os subalternos do
SINDPESCA, não são pessoas ou sujeitos de direito que merecem ser
parte de uma política pública de prevenção da violência, consideran-
do problemas sociais, econômicos e políticos de uma região multi-
cultural e transfronteiriça.
Em relação aos aspectos económicos, a região é marcada
pela existência de esquemas ilegais que mobilizam significativos re-
cursos financeiros cujos efeitos, também, são sentidos no dia a dia
dos moradores do Alto Solimões. Paiva (2015) demonstrou que os
mercados ilegais de drogas que passam pela região são possíveis por
complexos processos de envolvimento e esquemas que movimentam
valores financeiros significativos. A presença de pessoas interessadas
em pagar pelo transporte de droga criou diversificadas situações de
assédio sob a população, em geral. O rio é também um caminho para
se levar droga até cidades como Manaus. Esse trânsito é, igualmente,
gerador de perigo e inconvenientes para uma população tencionada
por pessoas que fazem o crime e se apresentam como geradores de
oportunidades para quem deseja, entre outras coisas, obter recursos
monetários ou fazer uma aventura que lhe rende além de dinheiro
certa fama e notoriedade (PAIVA, 2018).
Segundo dados da Polícia Civil (PC) de Tabatinga, existe um
problema prático quanto a extensão fluvial das margens dos rios,
com um aparato policial insuficiente para o atendimento da popu-
lação. A polícia civil não dispõe de um efetivo de agentes e equipa-
mentos (armas, coletes, munição, veículos e lanchas) em quantidade
suficiente para o enfrentamento de problemas relacionados a difusão
do crime e violência, na região. A exemplo do que acontece em todo
Brasil, não existem política de incentivo ou de cargos e carreiras para
que essas corporações realizem com esmero sua tarefa. E para agra-
var essa realidade, a crise político-econômica pela qual passa o País
tem apresentado reflexos, pois faltam suprimentos básicos como, por
exemplo, combustíveis para as viaturas e embarcações.

- 176 -
A investigação em matérias de jornal possibilitou observar
que as instituições locais, como o sindicato de pescadores, não dis-
põem de informações precisas sobre como proceder diante das quei-
xas de seus associados a crimes cometidos no Rio. “Uma vez que, os
órgãos que deveriam atuar nessa situação, fogem da sua responsabi-
lidade, não havendo uma articulação entre os órgãos responsáveis
pela segurança pública nesta região da Amazônia”, disse o presiden-
te do sindicato dos pescadores e pescadoras artesanais de Tabatinga
(SINPESCA), em entrevista ao canal TV Folha, em março de 2017,
na matéria intitulada “fronteira vazada o narcotráfico no trapézio
amazônico”.
A jornalista Liege Albuquerque, em matéria publicada sobre
piratas nos rios Amazônicos, em 2017, descreve que:

A secretária de segurança pública do Amazonas (SSP-AM) não


tem dados discriminados de furtos, roubos e latrocínios nos rios
do Amazonas. Quando estes crimes são registrados, não há ne-
nhuma triagem que mostre se eles ocorreram em barcos ou em
terra. Na verdade, por medo de represálias, muitos dos roubos
e furtos em embarcações não são sequer registrados na polícia”
(ALBURQUERQUE, 2017).

A autora menciona uma situação de precariedade por parte


da secretária de segurança pública, com destaque para um problema
grave relativo à falta de informação pela principal instituição respon-
sável pelo controle social, no Estado do Amazonas. A força policial
é ineficiente e opera em condições precárias, pois os agentes enfren-
tam além da falta de condições de trabalho a total falta de informação
qualificada sobre os problemas que, em tese, deveriam estar prontos
para enfrentar.
Os dados contidos na tabela abaixo dão conta de que os deli-
tos ocorridos com maior frequência às margens do rio Solimões, nos
anos de 2016 e 2017, estão relacionados a roubo, furto e ameaças.
Isso se confirma no inventário feito das matérias de jornal e nas falas
de moradores observadas por incursões etnográficas no âmbito do
projeto “(In)segurança na fronteira”. É importante destacar a preca-
riedade dos dados em virtude da não realização de queixas formais
de casos de assalto. Em entrevistas realizadas pelos pesquisadores do
Projeto “(In)segurança na Fronteira”, os sindicatos e associações de

- 177 -
pescadores ressaltaram que recebem queixas e as mesmas, em muitas
situações, não são registradas na delegacia, gerando a subnotificação.

Obs: Dados referentes aos crimes que foram registrados na delegacia de polícia
civil, não sendo abrangidos os casos que não tiveram conhecimento da autoridade
policial.
Fonte: 4º Delegacia de polícia civil de Tabatinga

Conforme Rangel (2017), no último relatório do CIMI, o Es-


tado do Amazonas registrou doze(12) casos de assassinatos registra-
dos pelas equipes regionais do CIMI, sendo que um caso envolvendo
assassinato e outro tentativa de assassinato contra indígenas chama-
ram atenção em 2017 no Alto Solimões num deles, quatro indígenas
Tikuna deram carona em seu barco a dois homens que foram iden-
tificados como “peruanos”. Ao entrarem na embarcação, eles come-
çaram a fazer disparos com armas de fogo, matando três indígenas e
deixando ferida uma mulher.
A projeção que se tem do aumento da violência sofrida aos
subalternos das águas no município no ano de 2017, para o atual
contexto é expressivo, uma vez que o agravante se dá em virtude da
desativação da Base Anzol, principal ponto de fiscalização no rio So-
limões. Em matéria65 publicada pelo Portal O tambaqui, no dia 1º de
fevereiro de 2018.
Mas, segundo uma nota de imprensa,66 enviada pela superin-
tendência regional da polícia federal no Amazonas, junto à Rádio
65 Ver matéria nos anexos e a veracidade do conteúdo
66 Ver nota de impressa nos anexos para melhor compreensão e veracidade do texto.

- 178 -
Nacional de Tabatinga, por meio eletrônico, no dia 07 de fevereiro
de 2018, a base teria sido remanejada e atracada no porto do Voyage
em Tabatinga, local em que haverá reforço nas vistorias e controle de
embarcações que passam pelo porto dessa cidade Preocupados com
a situação, os povos das águas e a população que navegam pelo rio
Solimões tem mobilizado uma petição junto ao ministério público
federal para a reativação da base Anzol, para atenção do Ministério
da Justiça.
O processo de busca pela reativação da Base Anzol é objeto do
trabalho conjunto das populações que dela necessitam para transitar
pelo rio Solimões, conforme se pode observar no texto de um abaixo
assinado encontrado no site: www.peticaopublica.com.br,

o povo do alto Solimões pede a reativação da base Anzol, o abai-


xo assinado refere-se ao seguinte texto. A população do Alto Soli-
mões solicita a V.Sª que interceda junto ao Ministro da Justiça para
a reativação da Base Anzol.  A descontinuidade das atividades na
Base Anzol coloca em risco a Segurança Nacional, assim como a
vida dos ribeirinhos e embarcações que trafegam com passagei-
ros no Rio Solimões com as ações constantes dos “piratas do rio”. 
Houve aumento de violência, conforme veiculados nos meios de comu-
nicação nacional, regional e local, e ainda relatos de ribeirinhos que so-
freram e sofrem assaltos, inclusive os indígenas que dependem do rio
para sua sobrevivência. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O rio Solimões, representa o fio condutor das teorizações e
discussões que fomos construindo acerca das vozes subalternas do
SINDPESCA ao longo na nossa formação acadêmica no município
de Tabatinga, extremo oeste do Estado do Amazonas. As produções
acadêmicas e o olhar interdisciplinar constante sobre as questões que
norteiam este trabalho nos coloca este rio, como um desafio diário,
para que possamos encontrar o que importa dizer sobre àquilo que
nos propomos pesquisar.
O grande problema da região amazônica são as grandes dis-
tâncias e logística dificultosas, pois estamos falando de milhares de
quilômetros de rios navegáveis e fronteiras e uma baixa demografia.
Todo o aparato de segurança pública empreendido pelo Estado ainda
não tem sido suficiente para garantir a plena segurança aos povos e

- 179 -
comunidades tradicionais desta região. A sensação de insegurança é
algo que não está por se acabar tão breve, apesar de muitas estraté-
gias de combate à criminalidade estarem sendo executadas na zona
urbana do município, o rio Solimões, todavia, recebe apenas uma
pequena atenção anual por algumas ações do Estado.
Anualmente uma das operações de grande envergadura reali-
zada periodicamente é a chamada Operação Ágata. Esta e realizada
ainda nesta região da Amazônia por se tratar de uma região de gran-
de importância geopolítica para o país e, que faz fronteira com os
países vizinhos da Amazônia Peru e Colômbia.
Os números deste tipo de crime têm crescido nos rios da
Amazônia, principalmente em regiões do interior. A fiscalização
ineficiente e a falta de recursos destinados para a segurança pública
estão entre as causas do problema. A ação dos criminosos já ganhou
destaque em telejornais importantes do mundo e ocorrem principal-
mente nos rios Solimões, Amazonas e madeira. (BARREIRA & BA-
TISTA, 2011, p.19). Expressa a realidade de uma sociedade cada vez
mais vulnerável “O medo e a sensação de insegurança permanentes
levaram os indivíduos a posições extremas de busca pelo isolamento
e proteção social [...].

REFERÊNCIAS
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(in) Segurança e Sociedade: treze lições/ Barreira, César. Batista,
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Promulga o Memorando de Entendimento entre o Governo
da República Federativa do Brasil, o Governo da República da
Colômbia e o Governo da República do Peru para Combater as
Atividades Ilícitas nos Rios Fronteiriços ou Comuns, firmado em
Letícia, em 20 de julho de 2008. Disponível em: <http:// http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/
D8698.htm > Acessado em 30 jan. 2019.

- 182 -
O povo do Alto Solimões pede a reativação da Base Anzol.
Disponível em: <http://www.peticaopublica.com.br/pview.
aspx?pi=BR104459>. Acesso em: 17 de março de 2018.

- 183 -
- 184 -
POVOS DA FRONTEIRA E
SUSTENTABILIDADE: UM OLHAR PARA
A COMERCIALIZAÇÃO DE PRODUTOS
AGRÍCOLAS DAS MULHERES RURAIS DE
BENJAMIN CONSTANT, NO AMAZONAS
Hilton Marcos de Araújo67
Evandro de Morais Ramos68

INTRODUCÃO
Este trabalho intencionou estudar a dinâmica do trabalho das
mulheres agricultoras que atualmente apresenta um grande desafio
aos pesquisadores da Amazônica, do Brasil e do mundo. O objetivo
principal foi analisar e descrever uma tipologia do complexo siste-
ma de agricultura familiar das populações tradicionais do estado do
Amazonas. Este trabalho observou e analisou trabalhos desenvolvi-
dos a partir dos autores apresentados no Programa de Pós-Gradua-
ção Sociedade e Cultura na Amazônia, e partiu de uma abordagem
metodológica bibliográfica da disciplina “Gênero, Ciência e De-
senvolvimento na Amazônia”, ministrada pela pesquisadora e pro-
fessora Iraildes Caldas Torres da UFAM. O autor apropriou-se de
uma base empírica ampla, sustentada a partir da sua vivência, alia-
da ao entendimento sobre sustentabilidade na região. Delimitou-se
um conjunto de observações institucionais que foram analisadas e
agregadas no decorrer do trabalho, descrevendo as características a
partir de suas semelhanças e diferenças que vão além da perspectiva
pessoal do autor sobre a dinâmica peculiar do espaço de fronteira.
As entrevistas realizadas no âmbito da feira do produtor localizada
na área portuária de Benjamin Constant permitiram, nesse primeiro
momento, entender um pouco da dinâmica do comércio e cultivo
de produtos agrícolas numa das muitas comunidades da calha do
Javari/Solimões/Amazonas.

67 Matemático. Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal


do Amazonas.
68 É Doutor em Mídias educativas pela Universidade de Ilhas Baleares, Espirito Santo. É
professor da Universidade Federal do Amazonas

- 185 -
O presente artigo teve ainda a finalidade de oferecer infor-
mações referentes à tripla jornada de trabalho vivida pelas mulheres
ticunas da comunidade de Guanabara III e as relações sociais de-
senvolvidas por estas com o meio ambiente a partir da agricultura
familiar. Dando ênfase a comercialização de produtos agrícolas na
feira localizada na área portuária da cidade e o trabalho doméstico
em prol do bem-estar da sua família e da comunidade. Assim como
a importância dessas atividades para a sociedade capitalista na calha
do Alto Solimões no estado do Amazonas, bem como a relação diária
das agricultoras com a floresta na cidade de Benjamin Constant.
Para melhor se compreender o contexto sociocultural, enfa-
tiza-se que o município de Benjamin Constant situa-se na mesor-
região do Alto Solimões, no sudoeste amazonense, região norte do
Brasil. O mesmo encontra-se distante em linha reta a 1.120 quilôme-
tros da capital Manaus, e 1.628 quilômetros, por via fluvial, com área
territorial de 8. 793 Km2, tendo seus limites com os municípios de
Atalaia do Norte, Jutaí, São Paulo de Olivença, Ipixuna, Tabatinga e
com a república do Peru e da Colômbia.

Figura 1: Localização do Município de Benjamin Constant/AM.


Fonte: Relatório do Plano Diretor do Município de Benjamin Constant-Amazo-
nas-Brasil.

BENJAMIN CONSTANT
Segundo IBGE (2012), sua população atual é de 34.950 ha-
bitantes, distribuídos da seguinte forma: 20.138 habitantes na área
urbana e 14.812 habitantes na área rural.
O município teve sua criação por meio da Lei Estadual nº 191
de 29 de janeiro de 1898. Desmembrado do município de São Paulo
de Olivença, foi suprimido pelo Ato Estadual nº 45 de 28 de fevereiro
de 1930, restaurado posteriormente no ano seguinte pelo Ato Esta-
dual nº 33 de 14 de setembro de 1931.

- 186 -
De acordo com TORRES (2012), as populações tradicionais
da Amazônia têm o trabalho como fator determinante, efetivamente
no que diz respeito aos principais elementos da natureza como a ter-
ra, os rios e a floresta. Segundo a autora esses elementos representam
a vida, a esperança e direciona o ser humano a dar um sentido a sua
vida material e espiritual.
Mas a distância geográfica não foi motivo para que as cidades
ribeirinhas da Amazônia tivessem o controle de um contexto cul-
tural mais vasto, essencialmente porque as populações deixaram de
produzir suas culturas disjuntas das outras (OLIVEIRA, 2000, p. 12).
Pois, ao encontrar-se a cidade Benjamim Constant, situada numa
área fronteiriça, poderia recomendar que o tipo de cidades que dese-
jamos não pode separá-la dos tipos de pessoas que somos ou pode-
ríamos ser (HARVEY, 2007, p. 28).
A partir do contexto vivido, Harvey nos leva a refletir sobre a
realidade das cidades, do urbano na Amazônia e a respeito dos mo-
dos de vida das sociedades, que se organizaram e desenvolveram as
margens do Rio Javari e Solimões. Em relação, à mesma apresenta
três dimensões básicas, a cidade controlada, a cidade percebida e a
cidade vivida (NOGUEIRA, 2007).
A primeira dimensão é a de cidade controlada, que se examina
em todo seu argumento histórico, de um arrabalde da cidade que
foi se aperfeiçoando nas margens do rio Javari, pela influência dos
padres jesuítas nas fixações do território colonial, alargando-se num
contexto de monopólio econômico, e em seguida a cidade oficial-
mente apreciada como zona de segurança nacional. Na segunda, a
cidade é percebida por meio da marca de limite da clandestinidade,
da incerteza, do comércio de entorpecentes, “do tráfico” de modo
geral, da prostituição, da inatividade ociosa e da migração impulsiva,
como é constantemente achocalhada nos meios de comunicação e
nas mídias de modo geral (SOUZA, 2014, p. 22).
A dimensão da cidade do vivido, enfim é a que está na enver-
gadura da luta pela sobrevivência, de uma metodologia que enxerga a
distância do seguinte que também é entusiasmado, de tipos comuns
que esquadrinham no habitual o ingresso a aparelhos e providências
urbanas fundamentais, pelo atributo de vida que se transforma nas
nuances da capitalização e dos artifícios, na organização de uma nar-
rativa e de uma geografia especial (Idem, p. 22).

- 187 -
Diante do que foi exposto pelo autor, pela sua vivência e co-
nhecimento construído durante sua presença efetiva nesta área,
mostra-nos que a cidade de Benjamin Constant apresenta caracterís-
ticas bastante peculiares, bem diversificadas das demais cidades ama-
zonenses. Significa dizer que a misticidade dessa população surge do
terreno do concreto das coisas materiais conhecidas e vivenciadas
por estas (TORRES, 2012, p.102). Possuidora de uma área portuária
bastante movimentada, onde trafegam diversos tipos bem comuns a
este local, porém diferentes dos tipos encontrados nas demais regiões
de fronteira do Brasil.

1. A Feira de Benjamin Constant e os produtos


cultivados nas comunidades ticunas
A Feira Municipal da cidade é composta por uma enorme
variedade de trabalhadores informais, como mototaxistas, carrega-
dores, carroceiros, feirantes, açougueiros, vendedores ambulantes,
peixeiros e catraieiros que também são conhecidos como taxistas
fluviais. Cada desses profissionais desempenha funções importantes
para a movimentação de mercadorias e pessoas na área portuária.
E possibilitam o dinamismo econômico do comércio, facilitando a
mobilidade social e cultural da região.
Torres (2005) salienta que a Amazônia não pode ser resumida
somente pela sua biodiversidade. As dessemelhanças socioculturais
também são uma das principais peculiaridades da região. Sendo a
dinâmica organizacional do trabalho uma das variedades que não
podem ser compreendidas exclusivamente pela ótica do capitalismo.
Há maneiras particulares de ocupabilidade que se reorganizam nas
culturas tradicionais que se atrelam no âmbito das táticas de sobre-
vivências dos povos da floresta (p. 20). Esta concepção facilita o de-
senvolvimento do lócus da expansão econômica, construindo blocos
econômicos de alta complexidade de relações entre pessoas, bens e
ideias (BECKER, 2013, p. 23).
A dinâmica do comércio na feira municipal do produtor
envolve sobre maneira, cargas e produtos como hortaliças, frutas,
legumes, verduras, constituindo câmbios, frequências, preços, di-
namizando o transporte e comercialização de animais que estão
vinculados aos tipos, quantidade e formas de alimentos consumidos

- 188 -
pelos diferentes povos e etnias que constituem a sociedade nessa
fronteira Amazônica.
Samuel Benchimol no livro “Desenvolvimento Sustentável da
Amazônia: cenários, perspectivas e indicadores”, afirma que apesar
da enorme massa de grandeza física e de toda sua potencialidade de
recursos naturais, hídricos, energéticos, etc., o complexo da Ama-
zônia persiste em ser uma região conhecida por muitos como eco-
nomicamente pobre. Segundo este autor a pobreza dos homens é
ocasionada pela falta ou insuficiência de serviços fundamentais ou
de infraestrutura de cunho social, político, educacional, científico e/
ou tecnológico (BENCHIMOL, 2002, p. 11).
Na feira municipal, existem duas classes de feirantes que ha-
bitam o ambiente comercial na área portuária de Benjmin Constant:
os feirantes que trabalham dentro da feira, ou seja, no setor coberto.
Estes possuem boxes (quiosques) divididos e protegidos do sol e da
chuva, são organizados através de cooperativas e associações. Segun-
do entrevista feita com um deles, de modo geral os feirantes não são
agricultores, todos os produtos comercializados são comprados dos
produtores rurais exclusivamente para revenda a preços superfatu-
rados.
Outra classe são os trabalhadores e trabalhadoras que vendem
seus produtos do lado de fora da feira coberta. Seus produtos são
expostos ao sol e chuva, o que não os desvaloriza. Contatou-se que os
alimentos vendidos do lado de fora possuem uma qualidade superior
aos que são revendidos do lado de dentro. Especialmente porque são
produtos que são abastecidos dia a dia, e estão frequentemente fres-
cos e mais saudáveis.
Verificou-se que 99% (noventa e nove porcento) dos feirantes
que vendem do lado de fora da feira são agricultores familiares que
moram em comunidades indígenas e não indígenas. Identificou-se
ainda que 90% (noventa porcento) desses vendedores são do sexo
feminino. Ou seja, as mulheres são predominantes entre os feirantes
que vendem tanto do lado de dentro como do lado de fora nas proxi-
midades da feira municipal de Benjamin Constant.
Os produtos mais cultivados nas roças ticunas tanto na terra
firme quanto na várzea estão na tabela a seguir:

- 189 -
TABELA 1: Principais produtos cultivados pelas mulheres agricul-
toras ticunas e respectivos nomes em português e na língua ticuna.

Nome em
Nome em Língua Nome em Língua Nome em
Língua
Portuguesa Ticuna Língua Ticuna
Portuguesa
Abacate Nguma Aracá Tau`e
Abacaxi Tchinu Arroz Arutchu
Abiu Tau Bacuri Pocuri
Acafrao Depau Banana Po`i
Acaí Waira Batata Core
Alfavaca Tchawa Biribá Wiriwa
Amendoim Tetu Bucata Bosua`
Buriti Tema Cacau Tchapere
Café Cape` Cajarane Yomeru
Cana-de-
Caju Cou De`ne
acúcar
Cará U`i Carambola Carabola
Cebola-de-
Castanha Nhoó Tchaburuatu
palha
Cheiro-verde (coentro) Naeuwemu Chicória Tchicuria
Coqueiro Cucune Cubiu Bere
Cupuacu Cupu Cupuri Barú
Feijao Cumana,Purutu Fruta-pao Poutchire
Goiaba Oratcha Graviola Yaca
Ingá Pama Jambo Yabo
Jerimum Yuruma Laranja Naranha
Lima Dima Limao Irimawa
Macambo Ngu Macaxeira Tu`e
Mamao Papaya Mandioca Owa
Manga Maga Mapati Tchia
Maracuja Bora Machichi Matchitchi
Melancia Woratchia Melao Merau
Milho Tchawu Pé-de-jaboti Tutchi
Pepino
Pepino Pipino Puu
Silvestre
Pimenta
Pimenta ardosa Me`e Mee ya yiine
heirosa
Pimentao doce Mee ya maicurane Pupunha Itu
Sapote Otere Tangerina Tayrina

- 190 -
Taquari Tua` Tomate Tumatchi
Tucuma I`tcha Umari Tetchi
Umarirana Ngumari Urucum U`ta
Fonte: LIMA, 2006.

2. O Rio Solimões e os povos indígenas da Fronteira


Amazônica
Os povos nativos da Amazônia empregam vários conheci-
mentos, tanto para o cultivo como para a manutenção e conservação
do solo na região. Nas comunidades ribeirinhas da Amazônia os va-
lores e o conhecimento das mulheres estão quase sempre interliga-
dos aos elementais da natureza, essencialmente a função social das
mulheres está vinculada ao trabalho com a terra e os afazeres domés-
ticos, sendo a agricultura um dos principais trabalhos atribuídos a
elas. “Esses paradoxos que constituem o solo onde o sujeito político
se encontra, fazem parte do curso normal da história e da condição
humana” (TORRES, 2005, p.265).
Aos homens atribuem-se os trabalhos intimamente relacio-
nados aos rios, como a pesca, bem como a caça que seinterelacio-
na diretamente à floresta. Porém, neste trabalho, importa descrever
como a mulher incorpora-se a um mundo essencialmente patriarcal,
tornando-se peça fundamental na construção da teia das relações so-
ciais das sociedades tradicionais da Amazônia.
Apesar das mulheres possuírem uma efetiva relação com a
terra, para que haja uma harmoniosa concordância entre seus afa-
zeres domésticos e sociais, demonstram um profundo conhecimento
sobre espacialidade e temporalidade do contexto natural da movi-
mentação de subida e descida do Rio Javari/Solimões, trecho do rio
Amazonas próximo ao Peru e Colômbia.
Browder & Godfrey (2006) afirmam que: “As imagens re-
gionais tão arraigadas evocam ambientes essencialmente rurais, es-
parsamente povoados por tribos indígenas da floresta, seringueiros,
pequenos agricultores, criadores de animais, caboclos e outros cape-
sinos”. Torna-se relevante ressaltar que as populações ribeirinhas da
Amazônia possuem um estilo de vida bastante peculiar, geralmente
adaptável às cheias do rio, o que não é comum em outros lugares do
país.

- 191 -
Suas casas são construídas com esse propósito, normalmente
edificadas sobre estacas, permitindo que a água passe por baixo do
assoalho. Neste período, são as mulheres que constroem espécies de
canteiros (caixas de madeiras suspensas a dois metros do chão, pre-
enchidas com adubo orgânico e/ou terra preta) onde são cultivadas
várias espécies de verduras e leguminosas utilizadas para a alimenta-
ção das famílias durante a enchente do rio.
Noutros locais próximos às casas são construídos galinheiros
e currais, para que haja a preservação de porcos e/ou bois, cabras e
bodes. Porém, isso nem sempre é o suficiente para mantê-las seguras.
Na época das cheias o Solimões não só enche, mas muda tanto de
curso que não é surpresa se de repente a comunidade encontrar-se
no fundo do novo leito do rio (LIMA, 2006, p. 146).
Para Maria Jucelina (46 anos) uma das agricultoras que viveu
toda a sua vida na comunidade de Guanabara III, nos últimos 10
(dez) anos teve que reconstruir sua casa várias vezes para evitar que
a correnteza a destruisse e levasse. E afirma que

A erosão erodiu a encosta do rio antes dessa plataforma ser inun-


dada, eu pedi que meu marido juntamente com os comunitários
me construíssem uma nova casa. Tive que mudar para lá antes
que minha casa desaparecesse totalmente com a encosta do rio.
Ou isso, ou ficar desabrigada, sem teto.

Mas qual a relação entre fenômeno de subida e descida das


águas com a técnica de agricultura de subsistência das mulheres ti-
cunas do Javari/Solimoes? O imenso volume de água do Solimões
significa que este pode mudar de curso com imensa facilidade, esten-
dendo-se por terrenos planos e solos macios. Um fato determinante
entre as comunidades ribeirinhas como é o caso de Guanabara III, é
que quando o rio se move os comunitários não têm outra escolha a
não ser moverem com ele.
Mas porque os ribeirinhos continuam vivendo aqui? Apesar
disso, talvez seja exatamente por causa das mudanças constantes do
rio. Porque é por causa delas que as encostas dos rios ou várzeas,
como eles chamam, são as extensões de terras mais ricas em toda a
floresta.
Nazaré dos Santos (58 anos) agricultora e moradora da co-
munidade a mais de quarenta anos relata:

- 192 -
Aqui posso plantar tudo que eu preciso para minha familia e
para comercializar na feira da sede do municipio. Temos toma-
tes, pimentoes, chicoria, cebolinha, cuentro, batatas, machiche e
também pepinos. Além de platarmos macacheira e bananas para
nosso consumo e vendermos na cidade.

O ingrediente mágico que torna toda essa terra tão fértil é o


sedimento vindo das montanhas dos Andes suspenso nas águas mar-
rom escuro do rio. Quando o rio Solimões enche esse sedimento rico
em minerais é distribuído na terra tornando-a incrivelmente produ-
tiva. Essas planícies podem suportar o cultivo contínuo de diversos
produtos desde que seja em pequenas escalas, como o caso da agri-
cultura feita pelas mulheres da comunidade de Guanabara III.

3. A Importância da várzea para os moradores da fronteira


Através dos dados coletados e da observação direta a respeito
do trabalho informal das agricultoras e também feirantes moradoras
da comunidade ticuna de Guanabara III, calha do Solimões, verifica-
-se que a atividade é tida como um trabalho autônomo e ao mesmo
tempo doméstico, a qual as principais agentes encontram-se vincu-
ladas a uma associação que tem sua sede localizada na comunidade
indígena às margens direita do Rio Javari um dos principais afluentes
do Solimões-Amazonas.
Neste trabalho, realizamos entrevistas com mulheres agricul-
toras que comercializam seus produtos na Feira Municipal do Pro-
dutor da Zona Urbana de Benjamin Constant. A coleta de informa-
ções ocorreu por meio de uma conversa informal, e um formulário
com questões abertas realizada com o auxílio de um gravador de voz,
tendo como objetivo descrever e analisar as práticas profissionais da
atividade exercida e como se articula o processo de seu trabalho com
a sociedade em que se encontra.
Diariamente, milhares de pessoas utilizam os produtos ali-
mentícios vendidos na feira coberta do centro urbano do município,
especialmente advindos de comunidades indígenas e não indígenas
de Benjamin Constant e outras cidades do Alto Solimões.

A presença de peruanos em Benjamin Constant corresponde a


determinados períodos de fluxos migratórios com variações em

- 193 -
seu perfil de trabalho. Identificou-se estes migrantes no período
gomífero de seringalistas a seringueiros e comerciantes (rega-
tão), no período das serrarias como trabalhadores braçais, e no
período atual como comerciantes em geral e como prestadores
de serviços indo dos mais especializados médicos e enfermeiros
aos menos especializados como pedreiros, mecânicos e borra-
cheiros (SOUZA, 2014, p. 60).

Esses agricultores são procedentes do Distrito Municipal do


Javari, conhecido como Islândia, também os peruanos denominados
“israelitas”, essa classe de feirantes e agricultores, autodenominam-
-se “cocamas”, e dependem interinamente do cultivo e posterior ven-
da na feira da cidade.
Mas, isso só é possível devido às riquezas naturais existentes
na Amazônia. Um exemplo é a terra da várzea, extensões de terra lo-
calizadas às margens dos rios que inundam no período da enchente.
De acordo com Lima (2006) na Língua Ticuna a palavra “várzea” é
pronunciada n`guane`u que significa “terra alagada”. As agricultoras
da comunidade indígena Guanabara III dizem que em alguns lugares
os Ticunas pronuciam baiuãneu, ou baiuau, que quer dizer “lugar
onde sempre alaga”.
De acordo com as mulheres entrevistadas, existem diversos
tipos de ambientes bem definidos na várzea: o igapó, o chavascal, a
praia, a ilha e a restinga, cada um com suas peculiaridades.
O igapó (natchiruu) pode ser classificado como a superfície
mais baixa da várzea. Esse local não é muito usado para o plantio,
essencialmente porque no período das enchentes é o primeiro lugar
que alaga atingindo as plantações existentes e causando prejuízos às
agricultoras e consequentemente as famílias da comunidade. O cha-
vascal (ngou) caracteriza-se pelo fato de alagamento constante, po-
rém o ponto positivo é que nessa área encontram-se os açaizais, bu-
ritizais e ananizais. Frutas que servem como suplemento alimentar
das famílias indígenas e não indígenas e atualmente possuem um alto
valor econômico na feira municipal da zona urbana das cidades da
Amazônia. As praias só aparecem na época da vazante, também cha-
madas pelos ticunas como oqueaneu ou oquecu, que significa “solo
formado por grãos de areia”. Normalmente caracteriza-se como sen-
do o local onde se planta feijão, melancia, arroz e melão.

- 194 -
De acordo com Lima (2006) as mulheres ticunas fazem suas
roças num lugar da várzea denominado wa`mucu que significa “terra
fértil”, ou seja, é uma terra fofa conhecida entre os ribeirinhos como
tijolo-pau, que aparece nas praias imediatamente quando o rio inicia
a vazante.
Já a restinga (natamu) é formada depois de muito tempo a
partir do crescimento da praia. “A ideia original de que a região ama-
zônica era uniforme do ponto de vista geográfico, também, substi-
tuída pelo reconhecimento da existência de diferentes regiões, zonas
fisiográficas e ecossistemas diferenciados” (BENCHIMOL, 2002, p.
11).
Segundo o autor, é preciso admitir que os órgãos governa-
mentais venham aplicar e redirecionar as políticas públicas de forma
correta, para beneficiar os verdadeiros atores sociais desse cenário.
Pois somente conhecendo a realidade regional vivida por estes é que
serão levadas em consideração as especificidades e características de
cada uma delas.

4. A tecnologia da mandioca no Alto Solimões


Atualmente, é correto dizer que a base da alimentação dos
indígenas e das populações ribeirinhas da Amazônia é a mandio-
ca-brava e seus derivados. Uma das razões é porque essa planta é
bastante resistente, tendo a facilidade de crescer em qualquer tipo
de solo, sem contar que é muito simples plantá-la. Esse vegetal é um
dos mais ricos em amido e pode ser utilizado para produzir vários ti-
pos de alimentos, tais como a farinha de diferentes qualidades, beijus
(espécies de bolo com aspecto duro feito com farinha de mandioca
assado no mesmo forno onde é torrada a mesma), goma para tapioca
e até tucupí.
Uma importante descoberta feita pelos povos tradicionais da
floresta é que a mandioca é chamada brava porque possui uma quí-
mica que a torna venenosa. Por essa razão é necessário fazer um pro-
cesso de desintoxicação, porque se for ingerida na sua forma natural
pode até matar os animais e/ou os seres humanos que a ingerirem.
Esse complexo processo de desintoxicação é feito da seguinte forma:
As mulheres indígenas após todo o trabalho de plantio e manutenção
da roça colhem as raízes e fazem o transporte para a aldeia ou comu-

- 195 -
nidade onde fica a casa de farinha. Normalmente as nativas fazem
esse transporte em cestos cargueiros feitos de cipó, descascam e, pos-
teriormente, lavam e ralam a mandioca. Antigamente o processo de
ralagem era feito de forma rústica por meio de utensílios artesanais,
construídos geralmente de madeira, hoje a macaxeira é ralada com o
auxílio de uma tarisca (espécie de ralador com várias serras) movida
a base de um motor peck-peck, modelo mecânico movido a gasolina
muito usado em pequenas embarcações nos rios da Amazônia.
Depois de ralada, a massa é colocada no tipiti ou prensada
com pedaços de madeira bastante pesados, que servem como uma
espécie de espremedores usados para tirar o veneno da massa e em
seguida deixar bem sequinha. Esse sumo retirado da prensagem con-
tendo parte da química prejudicial à saúde é cozido e dele é feito o tu-
cupí, um tipo de molho que é temperado com pimenta e servido nas
refeições com peixe assado e outros gêneros alimentícios da região.
Em seguida, esfarela-se a massa seca e coloca-se na urupema (espécie
de peneira) e, finalmente, a massa é torrada para fazer a farinha, os
bejus e outros gêneros alimentícios que são armazenados em panei-
ros próprios para essa finalidade.
Nas comunidades indígenas as mulheres, além de participa-
rem de todas as etapas da farinhada, desde o plantio à venda na feira,
ainda trabalham na fabricação dos cestos. A produção dos cestos ini-
cia com a coleta das plantas e posterior retirada das fibras da floresta,
cada tipo com sua finalidade, por exemplo: o jamaxi é feito com cipó
imbé e cipó titica; o ralador de madeira marupá; o tipiti com talas de
arumã, bem como a urupema; e os paneiros para armazenar farinha
são feitos também de cipó e forrados com folhas de sororoca.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo teve uma grande preocupação com a ques-
tão das milhares de populações que habitam a região do alto Soli-
mões/Amazonas. Particular e especial interesse em divulgar e discu-
tir esse tema, pois esse meio de produção de subsistência é vital para
a mulher Amazônica sendo, também, relevante para as sociedades
tradicionais que possuem uma relação direta com a terra, os rios, a
floresta, assim como os meios de produção econômica que estes pro-
porcionam no sentido de valorização da sobrevivência de milhares
de pessoas que deles precisam diariamente.

- 196 -
Uma das principais contribuições deste trabalho foi que além
de analisar e descrever a produção e vivência das mulheres em áreas
protegidas, alude às pessoas a outra forma de plantar, cultivar e con-
ter o desmatamento que, consequentemente promove as mudanças
climáticas na região. Sensibiliza as pessoas a desenvolverem ativida-
des econômicas sustentáveis nas florestas, de modo a fortalecer as
comunidades locais e aproveitar os recursos disponíveis nas regiões
de floresta. O apoio a projetos de manejo florestal comunitário e
empresarial, manejo de pesca, iniciativas de capacitação, educação e
conscientização ambiental e ações de comunicação e políticas públi-
cas podem ter efeitos positivos na diminuição do impacto ambiental
nas diferentes áreas do planeta.
Desse levantamento, foi traçado o perfil das comunidades
usuárias da agricultura sustentável que desenvolvem ao longo dos
tempos diversas técnicas de cultivo existentes. Observando que são
os moradores das comunidades mais distantes que precisam ser aco-
lhidos pela política pública agrícola nas áreas rurais do Brasil. Além
da tabulação dos produtos mais cultivados por estas.
O cultivo e comercialização de produtos alimentícios de con-
sumo básico das cidades ribeirinhas da Amazônia devem ser feitos
conjuntamente, conciliados à preservação do meio ambiente, por-
tanto, trata-se de medida emergencial e o trabalho apontou que
muitas pessoas utilizam diariamente a técnica contribuindo para o
desenvolvimento responsável da região Amazônica.
Diante não só dos estudos realizados, mas também levando
em consideração a precariedade da qualidade oferecida pelo comér-
cio local, precisa-se fazer o fortalecimento do corpo técnico para en-
frentar os problemas existentes na sociedade que se utiliza desse ins-
trumento de trabalho, o que demanda fortalecimento da gestão das
associações locais, investindo em projetos e obras de apoio técnico e
também de estrutura organizacional apropriada as reais necessida-
des da demanda setorial dos municípios da fronteira.

REFERÊNCIAS
BECKER, Bertha. A urbe amazônica: a floresta e a cidade. Rio de
Janeiro: Garamond, 2013.

- 197 -
BENCHIMOL, Samuel. Desenvolvimento Sustentável da Ama-
zonia: cenários, perspectivas e indicadores. Manaus: Editora Va-
ler, 2002.
BROWDER, John O.; GODFREY, Brian J. Cidades da floresta:
urbanização, desenvolvimento e globalização na Amazônia Brasi-
leira. Manaus: EDUA, 2006.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolu-
ção urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
LIMA, Debora (orgs). Ngiã numa tadaucu i toru naãne (Vamos
cuidar da nossa terra). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
OLIVEIRA, José Aldemir. Cidades na selva. Manaus: Valer, 2000.
SOUZA, Alex Sandro Nascimento. A cidade na fronteira: Expan-
são do comércio peruano em Benjamin Constant no Amazonas –
Brasil. Dissertação de mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Geografia da Universidade Federal do Amazonas. Universida-
de Federal do Amazonas, Manaus, 2014.
TORRES, Iraildes Caldas. O clamor das operárias frente à política
sexista na Zona Franca de Manaus. In: TORRES, I. C. As novas
amazônicas. Manaus: Edua, 2005.
TORRES, Iraildes Caldas. Gênero e Sustentabilidade na Amazo-
nia. In: TORRES, I. C (org). O ethos das mulheres da floresta.
Manaus: Edua, 2012.

- 198 -
AS RELAÇÕES SOCIAIS ENTRE OS HOMENS
E AS MULHERES NA PRODUÇÃO DA
FARINHA ENQUANTO UM CONHECIMENTO
TRADICIONAL NA COMUNIDADE DE
NAPORA EM BENJAMIN CONSTANT/ ALTO
SOLIMÕES
Jarliane da Silva Ferreira69
Rosemara Staub de Barros70

INTRODUÇÃO
No cenário amazônico, prevalecem populações que conti-
nuam difundindo os conhecimentos tradicionais apesar das influên-
cias do mundo ocidental a que foram submetidos historicamente.
São conhecimentos nas formas do preparo de alimento, período e
formas de pesca, cultivo de plantas, mistérios da floresta entendidos
por pajés e muitos outros. Para Diegues (2009), a diversidade da vida
que a floresta oferece não é vista como “recurso natural”, mas sim
como um conjunto de seres vivos que têm um valor de uso e um
valor simbólico, integrado em complexa cosmologia.
O conhecimento tradicional pode ser definido como o “saber
e o saber-fazer, a respeito do mundo natural, sobrenatural, gerados
no âmbito da sociedade não-urbano/industrial, transmitidos oral-
mente de geração em geração” (DIEGUES, 2009, p. 14).
Na região do Alto Rio Solimões, são contabilizados mais de
225 mil habitantes, aos quais 41,95% residem nas denominadas co-
munidades tradicionais, seja em terras indígenas, não indígenas, as-
sentamentos; terra firme ou várzea. Na região, há aproximadamente
49.371 indígenas, formando 188 aldeias ao longo da região, com 37
terras indígenas oficialmente demarcadas (Sistema de Informações
Territoriais, 2011).
69 Doutora em Sociedade e Cultura pela Universidade Federal do Amazonas. Professora
do Instituto Natureza e Cultura/UFAM
70 Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas.

- 199 -
São 1.400.415 hectares de terras indígenas quase todas já de-
marcadas, sendo que muitas terras estão sendo reivindicadas por
suas populações, umas no sentido de demarcação e outras no sentido
de ampliação71. Ainda conta com a segunda reserva indígena do país
denominada Vale do Javari, situada no município de Atalaia do Nor-
te, constituída de Marubo, Matis, matsés, Kulina, Kanamary, Korubo
(Sistema de Informações Territoriais, 2011).
Os municípios que formam a região do Alto Rio Solimões72
possuem similaridades, a contar com grandes áreas inundadas
anualmente; uso dos rios para deslocamento; modos de produção
baseadas na pesca, agricultura; a ocorrência de terras indígenas ao
longo dos rios Solimões-Amazonas coincide com a localização das
várzeas mais conservadas (ALENCAR, 2005).
Assim, a região do Alto Rio Solimões caracteriza-se por ser
um espaço territorial que abriga em seu cenário especificidades am-
bientais e uma diversidade de povos que torna a região um espaço
multicultural.
Neste artigo nos concentraremos na descrição de uma das
práticas considerada tradicional por sua população, a farinhada; a
fim de considerar que essas populações mantêm formas de produção
de conhecimentos e de cultivo que corroboram com o processo de
formação de suas identidades, da vida em comunidade e da afirma-
ção em pertença aos grupos tradicionais que vivem e trabalham na
região do Alto Solimões.
Esta pesquisa se concentrou na comunidade Napora,73 no mu-
nicípio de Benjamin Constant. A comunidade está localizada em uma
área de ecossistema de várzea, com algumas áreas de terra-firme.

Napora: suas roças e suas gentes


Napora está localizada na ilha do Aramaçá, na confluência do
rio Javari com o Solimões, o tempo de navegação para chegar até a
comunidade é de aproximadamente 20 (vinte) minutos em motor
200 (duzentos) HP, e em torno de uma hora em barcos peques-pe-
71 Disponível na Página do Melatti: http://www.unb.br/ics/dan/juliomelatti/. Acesso em
11 de fevereiro de 2016.
72 Atalaia do Norte, Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá,
Santo Antônio do Içá, Tonantins, Jutaí e Fonte Boa.
73 Nome fictício dado à comunidade, campo da pesquisa. o termo é retirado da língua
indígena tikuna e significa coragem.

- 200 -
ques, com motor 13 HP. A comunidade faz parte de um conjunto
de outras treze comunidades de várzea que estão dentro da Ilha do
Aramaçá,74 com mais de mil habitantes. Na comunidade residem 98
pessoas, entre 29 famílias.

Figura 1: Comunidade de Napora em Benjamin Constant.

Fonte: Pesquisa de campo, 2016.

As populações denominadas ribeirinhas vivem em um siste-


ma de comunidade. Essa ideia traz a noção de lugar de fartura, de
vida livre e feliz, associada à noção de uma vida alicerçada em laços
de solidariedade e confiança.

A comunidade é pra mim o lugar onde posso sobreviver, tra-


balhar, criar os meus filhos e ter liberdade. Aqui não passamos
fome, tem o peixe, a farinha, a banana, trabalhamos quando po-
demos e queremos, diferente de lá da cidade que se você não
tiver um emprego não come e não tem quem te dê. Aqui não (M.
Z. B., 36 anos, apud, SILVA, 2010).
Aqui na comunidade é assim mesmo a gente vai pra cidade e dei-
xa a casa com a porta encostada, durmo até com a janela da casa
aberta se quiser que ninguém vem pra roubar não, diferente lá
da cidade que até assalto já tem (J. F., 61 anos, entrevista, 2016).
74 A Ilha do Aramaçá é considerada área de assentamento pelo Projeto PAE-
Agroextrativista, desde 1984, segundo dados do INCRA e hoje possui 13 comunidades
ribeirinhas.

- 201 -
Hoje, já em análises mais contemporâneos, Bauman (2001)
contribui para os estudos sobre comunidade e acrescenta “é bom ser
parte de uma comunidade”, entretanto com o visível desaparecimen-
to de velhas garantias, há nova fragilidade envolvendo os laços hu-
manos. Há uma suposta fragilidade e transitoriedade dos laços afeti-
vos e isso pode ser resultado do forte processo individualizante por
qual passa a modernidade líquida.
Hobsbawm (apud BAUMAN, 2001) diz que nunca a palavra
comunidade foi tão utilizada quanto em um momento em que as co-
munidades se tornaram mais difíceis de serem encontradas no real.
Assim, homens e mulheres procuram grupos de que possam fazer
parte, em um mundo de incerteza, em que tudo se desloca e muda.
Hoje é cada vez mais comum um sentimento de insegurança na so-
ciedade, causado pela ausência de relações pautadas na solidariedade
e confiança, uma sociedade marcada por um mal-estar, “daí decor-
rem consequências como alcoolismo, consumo de drogas, depressão,
doenças psíquicas, os quais testemunham a degradação dos laços”
(HESSEL & MORIN, 2012, p. 20).
No Alto Solimões como em outros municípios do estado do
Amazonas, é comum esse tipo de organização social, que é fundada
no parentesco e/ou na apropriação comunal do uso do recurso na-
tural de um mesmo território (ALENCAR, 2005). Esses grupos são
chamados de comunidades. Tipo de organização com cargos de re-
presentação política como presidente e vice-presidente, no qual tam-
bém são importantes o agente de saúde e o professor.
Também o conceito comunidade carrega um sentido relacio-
nal e remete não apenas aos bens materiais, mas principalmente ao
aspecto simbólico, remete a regras, valores e códigos morais, for-
nece elementos para a construção da identidade aos seus membros
(Cohen, apud GOMES, 2008). Na região, a formação das comunida-
des foi impulsionada pela presença da igreja Católica nas décadas de
1960-1970 e ainda pelo trabalho do Irmão José da Cruz,75 fundador

75 Em 1971 uma intensa movimentação de cunho messiânico atingiu profundamente os


tikuna e o seu modo de vida. O irmão José, vindo do Peru, era uma figura que usava uma
túnica de frade, carregava nas mãos uma enorme bíblia. Ele anunciava o fim do mundo e
os que se salvariam seria por intermédio da fé na cruz. A cruz deveria ser plantada em cada
local onde existiam adeptos, simbolizando a criação da Irmandade e a proteção de seus
membros. Irmão José baixou pelo Solimões até o Iça plantando a cruz por toda a região
(OLIVEIRA, 2015, p. 87).

- 202 -
da Cruzada, que reuniu muitos seguidores, principalmente em al-
deias indígenas.
A formação das comunidades consolidou um novo tipo de or-
ganização, antes eram famílias que viviam isoladas e separadas uma
das outras, com apenas alguns minutos ou poucas horas de distância
uma das outras, agora famílias que vivem em uma mesma organiza-
ção com suas regras e valores estabelecidos. Percebe-se que a partir
desse trabalho as comunidades vão se oficializando e se tornam co-
muns nas margens dos rios da região.
Para um grupo ser considerado como comunidade, necessi-
ta a escolha de um representante, como via de mediação entre os
membros da comunidade e o poder público local. Assim, se várias
famílias vivem em um espaço juntas ou separadas, mas, não têm um
representante, não são consideradas comunidades e nem têm acesso
aos benefícios das políticas públicas e nem tampouco aparecem no
mapa do município (ALENCAR, 2005).
Nesse contexto, o estabelecimento de comunidades formadas
por famílias extensas é comum. Ou seja, são muitas comunidades
em que nas famílias o casal tem muitos filhos e, muitas vezes, há a
inclusão de agregados, exemplo disso é que em muitas casas moram
mais de uma família. Fraxe (2004) observa que é necessário maior
mão-de-obra neste tipo de família, mas por outro lado, há mais
membros para a execução de diferentes trabalhos. Ou seja, quanto
mais membros, mais rápido a família terá o precioso alimento. Em
Napora, apesar da migração para a cidade devido a busca de níveis de
escolarização mais altos, há algumas famílias com essa característica.
Na comunidade, campo de pesquisa e todas as circunvizinhas,
tem pelo menos uma casa de farinha. Lá, a farinha é produzida em
um processo inteiramente artesanal. Geralmente estão presentes o
forno e diversos utensílios como: bacias, peneiras, prensa ou tipiti
(cilindro de fibras naturais trançadas, que serve para a retirada do
caldo, ácido cianídrico (FRAXE, et al, 2009).
No decorrer de muitos milhares de anos, os índios transfor-
maram veneno em alimento (Lévi-Strauss, apud, SANTOS, 2006),
por um processo de alta complexidade que envolve pelo menos 14
etapas diferentes.
A farinha, um dos principais alimentos do caboclo amazonen-
se em todos os municípios do estado, carece de muitas pessoas que se

- 203 -
concentram, quer para a sua fabricação, quer seja para o consumo de
suas famílias, bem como para a sua comercialização.
Na comunidade ribeirinha em estudo, a atividade voltada
para a agricultura desempenha papel econômico indispensável na
vida familiar. A roça é o local onde se dá o cultivo das espécies anuais
durante algum período, e após pousio76 voltam a ser utilizadas. A
roça é considerada como uma das principais atividades desempe-
nhadas pelo ribeirinho de Napora, pertencente à região do Alto Rio
Solimões.

Na roça, homens e mulheres produzem conhecimentos


Geralmente o processo de trabalho nas roças ocorre da seguin-
te forma: derrubada da capoeira e, posteriormente, ocorre a quei-
ma, seguida de encoivaramento, plantio e colheita (MATOS, 2015;
FRAXE et al, 2009). Esse cultivo do solo se mantém por gerações.
Matos (2015), em sua pesquisa em três comunidades ribeirinhas de
Boa Vista do Ramos, descreve todo o processo que envolve desde a
derrubada até o plantio da maniva.
Na comunidade em estudo, também os processos são bem pa-
recidos. Inicialmente, escolhe-se o local, que na maioria das vezes é
uma capoeira ou mata virgem, seguida da dinâmica de roçar, na qual
se retiram galhos e cipós do local escolhido para o empreendimento
da roça. Na sequência, faz-se a derrubada das árvores maiores, que,
dependendo do instrumento utilizado, vai envolver muito esforço de
quem a realiza. Essa técnica é realizada pelo homem, apesar do enor-
me esforço empreendido, a mulher ribeirinha não assume essa tarefa
devido a aspectos muito simbólicos: a mulher não foi feita para tirar
a vida e sim para gerá-la e mantê-la.
Nesse trabalho, com o uso de machado, o ribeirinho pode le-
var horas para a derrubada de uma árvore, e se for espinheiro ou
loro-jacaré, exigirá muito mais. Os homens mais velhos realizam o
trabalho com mais experiência e conhecimento. Necessitou de mui-
tas ensaios, erros, um reaprender constante, para chegar ao perfeito
equilíbrio entre empunhar o machado, direcionar para a árvore, o
76 Técnica ribeirinha que consiste em deixar o solo em descanso para a recuperação da
fertilidade do solo e eliminação de plantas invasoras (FRAXE, et al, 2009). O período de
descanso varia de 3 a 5 anos (NODA, et al, 1997). Os ribeirinhos entrevistados também
confirmaram este período.

- 204 -
ritmo, a força para gerar a tensão na dosagem certa, pois “se for com
ignorância (força), com brutalidade você só vai padecer e não vai
conseguir derrubar, vai só quebrar o cabo do machado, pois usar o
machado para derrubar uma árvore é jeito (técnica) não é força” (A.
F., 88 anos, entrevista, 2015).

No manuseio do machado, hoje menos utilizado em grandes


derrubadas, é observada sua empunhadura firme e a percepção
de relaxar as mãos momentos antes do impacto da ferramenta
contra o pau (árvore), evita que o corpo sofra o efeito da reação.
Quanto mais firme mantiver a empunhadura durante todo o ci-
clo do movimento, maiores serão as consequências estressantes
dessa atividade ao corpo ou ao cortador de pouca habilidade
(MATOS, 2015, p. 206).

Essa prática de derrubada, pelo esforço empreendido, pode


ser realizada por muitos. Às vezes, entre membros de uma mesma
família, geralmente entre o pai e os filhos mais velhos, e, às vezes,
em mutirão, prática comum em comunidades ribeirinhas. Em mu-
tirão, há de certa forma um alívio do estresse causado pela prática.
Entre compadres, amigos, parentes, a derrubada pode ser bem mais
animada. Em Napora, em práticas observadas, esse momento é hora
de muitas piadas, foco nos menos experientes, intimidando-os, esco-
lha geralmente de uma figura para tirar brincadeiras, falar de coisas
engraçadas, e, entre risos e piadas, o trabalho é desenvolvido com
menos sacrifício.
Atualmente, o motosserra faz em pouco tempo todo o traba-
lho que é feito com o machado. Em Napora, o uso do machado ainda
foi observado, porém hoje a prática de derrubar árvores se dá mais
com o uso do motosserra. “Hoje a gente para é na diária pra der-
rubar uma árvore, porque é um trabalho muito duro” (L. N. S., 40
anos, entrevista, 2016). Aquilo que se fazia em horas com o machado,
com o motosserra leva uns dez a vinte minutos. É o capitalismo que
chegou. Não se pode perder tempo. E ganhar tempo é válido para a
produtividade.
A prática de derrubar as árvores geralmente ocorre dois a
três meses antes do verão, pois as árvores, os galhos devem estar no
chão bem secos para serem queimados nesta época. Já em agosto ou
setembro, inicia-se a etapa que ocorre após a derrubação, é o mo-

- 205 -
mento da queima. Após esse processo pode-se encoivarar a área,
que consiste em retirar do local os pedaços de pau, o que restou da
queimação. Se não efetivar a coivara, fica mais difícil transitar no lo-
cal, e plantar se tornará complicado. “Essa prática quando não feita
dificulta a atividade de deslocamento, tanto para o plantio quanto
para a colheita” (MATOS, 2015, p. 208).
Tanto no trabalho de derrubação de árvores até a queima é
realizado pelos homens ribeirinhos, no contexto em pesquisa, não
se observou nenhuma mulher desempenhando esses papéis. Nestes
espaços e trabalhos, a predominância é de homens. É um ambiente
muito masculino. A mulher não é muito bem-vinda, na medida em
que há constantes constrangimentos por ser, no momento da obser-
vação, uma presença feminina entre eles. Observa-se que no ambien-
te rural ainda há certas predominâncias de machismos, exemplifica-
do em diferentes situações, de mulheres que quase não têm a palavra
em reuniões comunitárias, ou por nenhuma mulher ser presidente
de comunidade, ainda é a figura masculina que ocupa esse lugar de
prestígio e de liderança reconhecidos.
Já com a local pronto, inicia-se o trabalho do plantio da ma-
niva. Esse trabalho é desempenhado por homens e mulheres. Em al-
gumas localidades, se faz o teste de fertilidade do solo. Nos estudos
de Matos (2016), em Boa Vista do Ramos, apareceu uma técnica com
nome “fazer a mãe da roça”, ou seja, após a queimada, são enterradas
algumas manivas, se ela vier bonita, a roça dará muitas batatas. Essa
técnica garantirá colher boas plantações e dará consequentemente
boa farinhada.
Em Napora, essa técnica não foi observada. Os mais jovens já
não seguem os rituais dos mais velhos. Apenas um senhor afirmou
plantar a maniva no tempo da lua nova: “só planto na lua nova, pois
a macaxeira vai crescer para todos os lados, de comprimento e de
largura, fica grossa e comprida” (M. S., 66 anos, entrevista, 2016). Os
outros mais jovens dizem que isso é coisa dos antigos, “hoje a gente
não planta mais assim, basta o rio vazar que eu começo plantar, o
rio secou, as terras já tando dura, boa e limpa taca na terra, não tem
negócio de esperar a lua não. O papai só planta na lua nova, eu não
tenho esse negócio não” (L. N. S., 40 anos, entrevista, 2016).
A maniva é guardada pelas mulheres ribeirinhas ano a ano.
Esse trabalho é fundamental para a manutenção e continuidade da

- 206 -
tradição entre eles. A mulher ribeirinha, responsável pela continui-
dade da espécie, é quem sempre inicia o ciclo. A responsável por
gerar a vida. Nesse aspecto, a mulher jamais seria responsável para
derrubar, matar uma árvore, não pelo esforço empreendido, mas
porque, para essas populações, a mulher é mantenedora e geradora
de vidas. Isso envolve rituais de transmissão dos segredos da nature-
za, da floresta, que são repassados por meio da oralidade às gerações
futuras (OLIVEIRA, 2012).
Como se observa, as mulheres organizam em suas comuni-
dades formas de protagonismo e empoderamento local. Ou seja, as
mulheres começam a atuar em projetos e movimentos sociais para
garantir a qualidade de vida de seus familiares (TORRES, 2012).
Em uma comunidade ribeirinha do município, há um traba-
lho com mulheres que são as guardiãs das sementes crioulas da re-
gião.77 Lá, existe um banco de sementes em que são socializados por
essas mulheres ribeirinhas, garantindo a existência desses alimentos.
Nesse banco, há uma variedade de sementes guardadas.
Isso se dá devido a verificação de um processo de inserção de
sementes híbridas inseridas em comunidades da região. Está se dis-
seminando a ideia de plantar essa semente ao invés da regional, que
a própria população cultivava. Porém, os ribeirinhos começaram a
perceber que com essa semente só se plantava em um ano, no ano
seguinte já não servia mais. Ou seja, criavam-se dependência e gastos
consideráveis que sustentavam empresas. Assim, com essa semente
também vinha junto o seu pacote: a semente, os fertilizantes quími-
co-industriais, a necessidade do uso de agrotóxico, ou seja, havia um
esforço no uso desses elementos, próprio para garantir o lucro de
empresas: sementes, agrotóxicos, NPK (fertilizantes industrializa-
dos), tornando-se um ciclo vicioso e de dependência. Esse processo
foi muito prejudicial entre as famílias envolvidas. Passava-se por um
processo de perda da identidade por meio da perda das sementes,
pois, sabe-se, que continuar com o uso de um tipo de semente, ga-
rantem-se certos alimentos, a segurança alimentar, significando con-
tinuar a cultura e a identidade de um determinado grupo, que pos-
suem suas marcas registradas quando se come a farinha do caboco,
77 A comunidade de Napora faz parte desse projeto e as famílias, principalmente as mu-
lheres, levam as sementes para a comunidade responsável por guarda-las em uma espécie
de banco de sementes.

- 207 -
ou a farinha ova do Uarini, a melancia de Bom Intento, o maracujá
de São José.
Também se observou o uso de pilhas em cova das manivas,
com a falsa ilusão de que fortificava a produção. Essa técnica estava se
intensificando em algumas aldeias tikuna. Uma índia tikuna, em seu
depoimento em mesa redonda,78 abordou a complexidade e espanto
em tratar desse achado em comunidades indígenas da região. Foi por
esse motivo que ela aceitou realizar um trabalho em parceria com
a FUCAI (Fundación Camiños de la Identidad), em comunidades
indígenas, com a construção de roças sem queima, e livres de agro-
tóxicos. Como o agrotóxico é legal no Peru, e não tem tanto controle
sobre seu uso nos alimentos, muitos vêm envenenados do Peru para
serem consumidos no Brasil, principalmente em lugares fronteiriços
como é o caso de Benjamin Constant. Neste município, os produtos
como frutas morango, uva e legumes como tomates, vem carregados
de agrotóxicos, o que está ocasionando muitas doenças. O trabalho,
a partir das concepções da agroecologia, é importante na região. Sem
contar com a necessidade de pesquisas nesta área.
Na pesquisa de Fraxe et al (2009), em Manacapuru, mostrou
que o trabalho de produção e manutenção da roça é realizado apenas
pelos membros da família (pai, mãe e filhos), a prática de agregar ou-
tros comunitários sem laços de parentesco não é considerado. Assim,
esse trabalho é desempenhado pela própria família, e os filhos desde
pequenos são socializados para o trabalho.
Na comunidade de Napora, podem ocorrer os dois proces-
sos, tanto o trabalho de cultivo da mandioca em família, como em
mutirão. Isso vai depender do período, por exemplo, em janeiro ou
fevereiro, quando as águas começam a subir para atingir as cheias, os
ribeirinhos se reúnem em mutirão para salvar as plantações dos pa-
rentes: “temos que correr senão a água alcança a plantação e se perde
tudo” (J. F., 61 anos, entrevista, 2016).

78 Evento realizado pelo Observatório da Educação do Campo no Alto Solimões, de 19 a


21 de junho de 2015.

- 208 -
Figura 2 e 3: A produção da farinha na alagação.

Nesse momento, o trabalho se dá em mutirão, cada família


ajuda outra família. O pagamento geralmente é feito pela troca de
dia, um ajuda o outro. Com a falta do dinheiro, cada família se or-
ganiza, sai convidando, amigos, compadres, para o trabalho. Nesse
processo, o valor do dinheiro é substituído pelos laços de solidarie-
dade entre as famílias. Então aquele trabalho que seria realizado por
vários dias por uma só família, é vencido em algumas horas com a
ajuda e alegria de todos os convidados.
Se um comunitário não for para um mutirão, o outro também
não terá obrigação de ir quando for a vez dele de fazer o mutirão. En-
tretanto, essa prática tem sido cada vez menor no campo da pesquisa.
Os mais velhos dizem que “antes dava gosto fazer um mutirão, vinha
muita gente, e a gente terminava rapidinho uma roça (M. S., 66 anos,
entrevista, 2016).
Em Napora se dá o pagamento também por processos de tro-
ca. Ao término de preparação do produto, há divisão da farinha, cada
família pode levar parte da produção para o consumo. Se uma famí-
lia vai fazer a farinha para a comercialização aí é de responsabilidade
da própria família realizar o trabalho.
Assim, o trabalho representado pela Casa de Farinha é signifi-
cativo na comunidade e possui grande valor simbólico, com relações
de parentesco, diálogos constantes e principalmente, significa um
momento de socialização entre os comunitários. Quando acontece
mutirão na casa de farinha da comunidade observada esse trabalho
se dá a partir de muito cedo da manhã, já com distribuição de tarefas.
Essas tarefas não são oficialmente divididas, ninguém diz para onde
cada um deve se encaminhar, eles mesmos já sabem, dependendo de

- 209 -
sua condição física, gênero, de sua experiência, você vai se destinan-
do para determinada função. Os mais jovens ficam encarregados de
descascar a mandioca, juntamente com as senhoras da comunidade.
Já os mais experientes, quer seja homem ou mulher, obrigam-se à
torrada da farinha no forno. Todo esse trabalho é bastante signifi-
cativo.
Geralmente uma família com cinco a sete membros, a exem-
plo de uma família da comunidade de Napora, leva três dias para
arrancar até torrar a farinha. No primeiro dia, o pai e o filho mais
velho arrancam a macaxeira e armazenam em um camburão ou cai-
xa grande. Esta atividade inicia-se desde muito cedo da manhã, pois
levará horas e muito exaustão para desempenhá-lo.
No dia seguinte, pela manhã, começa o trabalho de descascar
a macaxeira. Todos, neste momento, são importantes, pois agilizam
o preparo. Nesse momento, entre os membros, não há muita conver-
sa, pois entre a família é algo mais formal, diferente de quando esse
processo é feito em mutirão, pois vem muita gente, há muita piada,
risos, gargalhadas, e o que é cansativo se torna uma prática com mui-
to bom humor e diversão.
A macaxeira, já descascada, é colocada para pubar, esse pro-
cesso é usado para o preparo da farinha d’água. Pubar a macaxeira
significa pôr na água por um dia para o processo seguinte.
No dia seguinte é o momento de sevar a macaxeira. Este pro-
cesso é realizado pelo pai e o filho mais velho. No dia seguinte, faz-se
a torra da farinha. Por exemplo, para cinco paneiros de farinha, leva-
-se em torno de 10 horas para finalização do trabalho. Esse processo
só é realizado pelo pai, mãe ou o filho mais velho, pois qualquer erro
pode colocar em risco a qualidade do produto e compromete a ven-
da.
No trabalho de campo, a família observada preparou cinco
paneiros de farinha e vendeu por setenta reais cada um, para com-
pradores colombianos sob encomenda. Nota-se que este processo de
preparo em vários dias só foi assim devido que não estava no período
das cheias dos rios, pois quando isso se dá faz-se todo o processo em
mutirão para não se perder as plantações.
Nota-se uma considerável perda do valor financeiro em refe-
rência ao valor de trabalho que este produto recebe quando se torna
farinha. Léna (2002, apud, Gomes, 2008) diz que geralmente os pre-

- 210 -
ços das produções na Amazônia dos Rios tornam-se impossíveis de
manter um nível de qualidade de vida descente no meio rural, devido
à estreita relação entre a economia local e a rede complexa que se dá
entre as relações do baixo nível de organização na produção e comer-
cialização e a comunicação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No processo de preparo do terreno para empreender uma
roça, a encoivara é a técnica de retirar todos os galhos, paus do local
onde será plantada a maniva. Ou seja, é a limpeza do terreno para a
plantação. Nestas considerações finais, é importante fazer essa ana-
logia com o processo de encoivarar, pois é o momento de retirar as
dúvidas, preparar o “terreno da ciência” para plantar, incitar novas
ideias, novas produções.
As discussões no texto apontaram para atenção acerca dos
diferentes conhecimentos produzidos entre os homens e mulheres
que vivem em comunidades rurais. Essas populações criam e recriam
formas de conhecimentos que se mantêm desde muitas gerações. São
saberes, segredos, crenças, regras diferentes que garantem a conti-
nuidade de seus legados: são conhecimentos tradicionais. Dentre
eles nos concentramos na produção da farinha. Boaventura Santos
chama de etnoconhecimento, esses estão presentes em epistemologias
diferenciadas, mais difundidas entre as populações tradicionais que
estão no sul do planeta.
Entretanto, essas formas de conhecimento nem sempre são
bem aceitas entre o meio acadêmico-científico, devido ao privilégio
epistemológico da ciência moderna, os outros saberes como os tra-
dicionais tendem a ser silenciados, ocorrendo uma espécie de mono-
cultura do saber (SANTOS, 2006). Essa vertente dominante precisa
ser superada.
Na pesquisa, os homens e as mulheres de Napora vivenciam
muitos saberes que permanecem, apesar das influências capitalistas e
ocidentais. Algumas mudanças já ocorrem, a maioria não menciona
a lua para o plantio, apenas o período certo para que a água do rio
não chegue em suas plantações. Isso significa que não há regras ge-
rais pelo fato de serem moradores da área rural, para essa população
importa que suas famílias não sofram grandes perdas com o plantio.

- 211 -
Nesse processo, esses homens e mulheres vivem e sobrevivem
executando muitas formas de trabalho. A farinhada é um exemplo
dessa prática que, dependendo da etapa, pode ser realizada por ho-
mens e mulheres, jovens e velhos.
Então, a lua já não dita mais o tempo na plantação. O nível
das águas é o mestre nesse processo. Isso não significa romper com
as sabedorias dos mais velhos e, sim, uma forma de se aliar cada vez
mais ao ciclo das águas, de se render às regras da natureza, simbo-
lizada pelas cheias dos rios. Garantir a sobrevivência e a qualidade
de vida de seus familiares é o que mantem esses homens e mulheres
entrelaçados neste complexo e contínuo fazer- reaprender- refazer.
Por meio do trabalho das mulheres guardiãs de sementes
crioulas, percebe-se o poder da mulher ribeirinha na continuidade
da espécie, da vida. Nesse sentido, há um forte processo de empode-
ramento local, de homens e mulheres que lutam por melhores con-
dições de vida e continuidade no mundo rural. Por outro lado, esse
fato indica a falta de políticas permanentes e eficazes para o meio
rural, exigindo mais atenção específica para as novas demandas e as
relações que aí se manifestam.

REFERÊNCIAS
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Santo do Izidoro. In: TORRES, I. C. O ethos das mulheres da flo-
resta. Manaus: Editora Valer. FAPEAM, 2012.

- 213 -
- 214 -
SEÇÃO IV
GÊNERO, PRÁTICAS ECOLÓGICAS,
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E
POLÍTICA HABITACIONAL

- 215 -
- 216 -
PRÁTICAS ECOLÓGICAS NO APRENDIZADO
E DIFUSÃO DE PLANTAS MEDICINAIS: O
PAPEL DA MULHER EM COMUNIDADES
RIBEIRINHAS NA AMAZÔNIA
Evelyn Barroso Pedrosa79
Débora Cristina Bandeira Rodrigues80
Camila Fernanda Pinheiro do Nascimento81
Thamirys Souza e Silva82

1. INTRODUÇÃO
O século XXI apresenta um cenário de diversos desafios e
conflitos em âmbitos diferenciados que necessitam urgentemente
de respostas. Uma questão que merece destaque é o agravamento da
crise socioambiental, que faz emergir as discussões que envolvem a
sustentabilidade, em suas várias dimensões (social, econômica, am-
biental, política), com as quais se pretende superar o desafio de pen-
sar e elaborar políticas que atendam efetivamente às demandas da
sociedade, sem degradar as funções ecossistêmicas essenciais do Pla-
neta. Trata-se de uma limitação ecológica existente na própria natu-
reza, a qual deve ser considerada no processo de gestão dos recursos
naturais, quando voltados a determinados modelos de crescimento
econômico pautados no acúmulo e desigualdades sociais de forma
irracional.
No âmbito desta discussão, impõe-se a necessidade de buscar
alternativas e estratégias para uma gestão adequada e racional dos
recursos naturais, motivada pelo reconhecimento dos limites biofí-
sicos postos pela biosfera ao modelo de desenvolvimento econômico
vivenciado pelas sociedades, sobretudo ocidentais, pautado no capi-
79 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sus-
tentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.
80 É Doutora em Gestão de Inovação em Biotecnologia pela Universidade Federal do
Amazonas. É professora da Universidade Federal do Amazonas
81 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Sus-
tentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.
82 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e
Sustentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas.

- 217 -
talismo. Consequentemente, há uma preocupação com as formas de
uso e manejo desses recursos, que precisam estar fundamentos nos
princípios da conservação ambiental.
Sobre a temática em pauta, estudiosos (Castro, 1997; Diegues,
2000, Chaves, 2001; Rodrigues, 2015) reconhecem que os povos tra-
dicionais desenvolveram técnicas, formas de uso e manejo dos re-
cursos naturais na perspectiva da sustentabilidade, através de saberes
dos mais “antigos”, do conhecimento profundo sobre o território e
realização de seus trabalhos, além disso, ressalta-se que suas ativi-
dades apresentam-se complexas, pois constituem formas múltiplas
de relacionamento em suas sociedades bem como com os recursos
naturais locais, com utilização de práticas ecologicamente corretas,
estabelecendo relação de simbiose com a natureza.
Entre os povos tradicionais não indígenas da Amazônia, as
práticas socioculturais se constituem como um dos elementos cen-
trais na vida destes povos, realizadas, não inconscientemente, mas a
partir de um saber local desenvolvido por várias gerações, detentoras
de conhecimentos tradicionais singulares, principalmente sobre os
recursos naturais disponíveis na região. Na perspectiva de FRAXE
(2004, p. 296), no contexto amazônico, a cultura destes povos reflete
uma forma singular de relação homem-natureza, sendo esta “imersa
numa atmosfera em que o imaginário privilegia o sentido estético
dessa realidade cultural”.
Neste cenário e não obstante ao debate apresentado, impor-
tante frisar que no contexto regional da Amazônia, em pleno século
XXI inúmeras dificuldades são identificadas em todo Estado, a po-
pulação carece pela falta de acesso a bens e serviços sociais, as polí-
ticas viabilizadas para a região não coadunam com as necessidades
socioambientais, culturais, econômicas e políticas. Nesse sentido,
Chaves (2013, p. 04) afirma que “as políticas públicas historicamente
editadas na região são reguladas por lógicas antagônicas aos inte-
resses e às demandas de vastos segmentos da população que vive na
Amazônia”.
Dentre as principais dificuldades enfrentadas pelas comuni-
dades mais isoladas da região encontra-se o acesso à educação e saú-
de. Em muitas comunidades ribeirinhas, as escolas funcionam em
regime de multisseriado (sistema no qual na mesma sala de aula são

- 218 -
ministradas diversas series simultaneamente), o que dificulta apren-
dizagem das crianças. No que tange à saúde, os postos construídos
não possuem medicamentos nem equipe profissional para fazer
atendimentos, impondo a necessidade de buscarem estes serviços em
outras comunidades ou nas sedes dos municípios, considerando que
o principal meio de acesso a outros locais é por via fluvial, torna-se
um desafio ainda maior para estas populações, a garantia de acesso a
estes serviços.
A fim de contribuir com o debate em pauta, o artigo apre-
senta discussão acerca dos conhecimentos tradicionais sobre plantas
medicinais fundamentados na cultura dos povos amazônidas, com
destaque para importância das práticas ecológicas desenvolvidas pe-
las mulheres ribeirinhas no processo de aprendizado e difusão dos
referidos conhecimentos. Importante ressaltar que as reflexões estão
embasadas em resultados de pesquisas83 realizadas sob uma perspec-
tiva inovadora, compreendendo os povos tradicionais como prota-
gonistas e detentores de conhecimentos particulares os quais podem
ser associados a técnicas de pesquisa, promovendo a junção conheci-
mento tradicional e técnico-cientifico.
Importa frisar a relevância da abordagem desta temática no
processo de resgate e valorização da cultura local e dos conhecimen-
tos tradicionais associados ao uso da biodiversidade com inestimável
valor imaterial, bem como na formulação e implementação de políti-
cas públicas voltadas para o enfretamento da desigualdade social em
diferentes âmbitos na área socioambiental.

2. Cultura e Povos Tradicionais na Amazônia


A Amazônia é detentora de um complexo cultural que com-
preende “... um conjunto de valores, crenças, atitudes e modos de
vida que delinearam a organização social e o sistema de conheci-
mentos, práticas e usos dos recursos naturais extraídos da floresta...”
(BENCHIMOL, 2009, p. 17). Estes elementos compõem o processo
de formação sociocultural, econômica e de subsistência do homem
amazônico ao longo dos séculos.
83 Os estudos foram desenvolvidos por pesquisadores que atuam no Grupo Interdiscipli-
nar de Estudos Socioambientais e de Desenvolvimento de Tecnologias Sociais na Amazô-
nia – Grupo Inter-Ação, vinculado ao Departamento de Serviço Social e ao Programa de
Pós-Graduação em Serviço Social e sustentabilidade na Amazônia (PPGSS) da UFAM,
bem como ao Diretório 5.0 do CNPq.

- 219 -
Historicamente, a região foi marcada por uma diversidade
cultural, ao mesmo tempo com características da multidiversidade
de povos que nela habitavam e habitam esta área da região Norte do
Brasil, podendo ser identificada no século XXI a miscigenação cultu-
ral resultante deste processo. Segundo Benchimol (2009),

o conhecer, o saber, o viver e o fazer na Amazônia foi um pro-


cesso predominantemente indígena. [...] que desenvolveram as
suas matrizes e seus valores, baseado no íntimo contato com o
ambiente físico e biológico. O seu ciclo de vida se adaptava às
peculiaridades regionais, dela retirando os recursos materiais de
subsistência e as fontes de inspiração do seu imaginário de mi-
tos, lendas e crenças. (p. 25).

Na ótica de alguns estudiosos que trabalham com povos tra-


dicionais no Brasil (BENCHIMOL, 2009; DIEGUES, 1999; CHAVES
et al, 2015), nas comunidades reconhecidamente como tradicionais,
a relação com o território acontece de forma diferenciada, possuem
autoidentificação, constroem significado dos espaços em que vivem
numa ótica individual e coletiva, nestas áreas residem, desenvolvem
atividades produtivas, estabelecem relações de sociabilidade familiar
e comunitária, (re)constroem formas de ser e viver pautados na cul-
tura local, estabelecendo maneiras particulares de adquirir conheci-
mentos, repassar saberes e agir sobre o território, as quais são mani-
festada por meio de suas instituições, crenças e valores.
Na perspectiva de Chaves (2015, p.135), “...o homem amazô-
nico é resultado dos intercâmbios históricos entre diferentes povos
que migraram para a região e as etnias locais...”, esse intercambio
revelou e possibilitou uma herança de diferentes manifestações so-
cioculturais expressas através do povo amazônico em suas vidas co-
tidianas, sejam elas por meio do trabalho, da educação, religião, das
lendas e contos regionais, pela organização familiar e territorial den-
tre outras características.
A convivência de proximidade dos povos tradicionais com a
biodiversidade, proporciona conhecimento aprofundado do lugar
que habitam, deste modo passam a nomear e classificar as espécies
vivas segundo os saberes construídos historicamente e socialmente,
para Diegues (1999), a diversidade de saberes identificados nestas

- 220 -
populações não diz respeito apenas à biodiversidade como “recurso
natural”, mas se constituem como conjunto de seres que possuem
valor de “uso” e valor simbólico que integram essa natureza, com isso
“... pode-se falar numa etno-bio-diversidade, isto é, a riqueza da na-
tureza da qual participam os humanos, nomeando-a, classificando-a,
domesticando-a, mas de nenhuma maneira selvagem e intocada.”
(DIEGUES, 1999, p. 3).
Desse modo, faz-se necessário e imprescindível entender a
percepção destes povos sobre as formas de uso e manejo dos recursos
naturais, identificar os saberes que os regem, refletindo e analisando
o modus vivendi através de seus sistemas de crença, mitos e ritos,
bem como da percepção de vida e aproveitamento dos recursos lo-
cais, a fim de promover preservação e conservação destes, uma vez
que estas populações têm contribuído com suas práticas sociocultu-
rais de base sustentável para a manutenção da sociobiodiversidade
ecológica respeitando a natureza, interagindo de forma compatível
com o ciclo de vida biológico dos recursos naturais, conservando e
protegendo a vida e a natureza em sua totalidade.

3. Plantas Medicinais em Comunidades Ribeirinhas:


aprendizado e difusão de conhecimentos tradicionais
As estratégias de resgate e valorização das práticas sociocultu-
rais no uso e manejo de plantas medicinais constituem-se de grande
relevância no processo de consolidação das relações sociais, modos
de vidas, formas de gestão dos recursos locais apropriados em co-
munidades ribeirinhas da Amazônia, compreendendo que estes en-
contram-se pautados na cultura local. De acordo com Chaves (2004,
2012) e Rodrigues (2015), nas comunidades ribeirinhas da região
amazônica, “as relações homem-natureza encontram-se mediadas
pela cultura” (p.25), assim, a cultura assume papel de grande rele-
vância no processo de desenvolvimento das comunidades.
Os povos tradicionais da Amazônia são detentores de sabe-
res sobre o ambiente amazônico e seus recursos, com suas especifi-
cidades no uso do território, no uso e manejo dos recursos naturais
através do saber fazer. É possível identificar no modo de vida dos
moradores das comunidades uma relação de reciprocidade com a
natureza dadivosa, sobretudo nas formas de subsistência a partir do
manejo dos recursos locais.

- 221 -
Dentre as diversas formas de relações estabelecidas, ressal-
tam-se elementos constitutivos na maneira de aprendizado e difusão
dos conhecimentos tradicionais transmitidos pela tradição oral, em
especial no uso e manejo de plantas medicinais, as quais apresentam
singularidades, conforme a figura 1 abaixo:

Figura 01: Elementos socioculturais das formas de aprendizagem e difusão dos


sabres tradicionais.
Fonte: Sistematizado a partir Rodrigues (2015) e Pedrosa - PIB-SA/0050/2017
Pesquisa de campo, edital 025/2015.

É importante destacar que os elementos socioculturais desta-


cados na figura 1, não constituem os únicos elementos no processo
de aprendizado e difusão, mas se destacam no decorrer da pesquisa
e coleta de dados como centrais nas práticas das comunitárias estu-
dadas no locus.
Nas comunidades investigadas, as comunitárias realizam o
manejo e uso da horta numa ética sustentável, não se constitui em
atividade econômica e geradora de trabalho e renda, mas reconhe-
cem potencial para criar farmácia de plantas medicinais comunitá-
ria, que possa gerar alternativa de renda. Um dos elementos impor-
tantes nesta análise diz respeito à fabricação de remédios caseiros
desenvolvidos pelas populações tradicionais, no qual atendem as
necessidades básicas de saúde da comunidade, processo conhecido
como medicina tradicional.

- 222 -
Vale ressaltar ainda, o sistema de uso e manejo no que se re-
fere ao aprendizado e difusão de conhecimentos tradicionais sobre
plantas medicinais, desenvolvido principalmente pelas mulheres
mais velhas da comunidade de São Lázaro e Santa Luzia, apresentam
elementos que se sobressaltam, de acordo com a pesquisa realizada,
como: a identidade laborativa das mulheres, a gestão do uso dos es-
paços, a divisão do trabalho nos grupos domésticos e a relevâncias do
papel das mulheres no uso e cultivo das plantas.

4. Mulheres Ribeirinhas Amazônidas: detentoras e “guardiãs”


de conhecimentos tradicionais
Nas sociedades tradicionais não indígenas da Amazônia, as
mulheres possuem papel social importante no processo de organi-
zação do trabalho, da economia doméstica e da comunidade de um
modo geral. Na leitura de Rodrigues (2009),

[...] é sabido que a mulher ribeirinha historicamente assume


papel preponderante em seu contexto sociocultural, ao mesmo
tempo em que luta para deixar de ser elemento de apoio ao ho-
mem apenas, buscando sustentar a cultura, as práticas sociais
tradicionais e a realidade do modus vivendi. (apud MAUÉS, p.
21).

Segundo Pontes et al (2013), as relações de gênero no contexto


comunitário estão entrelaçadas, sobretudo, pela cultura seja no agir
do cotidiano com as atividades domésticas, ou nas atividades que en-
volvam a comunidade nas práticas produtivas.
No que diz respeito às relações/papeis estabelecidos entre ho-
mem e mulher na região amazônica, é possível afirmar que estes se
dão dentro de um contexto sociocultural particular e singular.
Na perspectiva de alguns autores (FECHINE, 2008; RODRI-
GUES, 2009), pode-se observar que na maioria das comunidades
ribeirinhas da Amazônia são as mulheres que realizam tanto o traba-
lho de artesanato, de fiar, de confeccionar redes, fazer e moldar louça
de argila e cerâmica, muitas possuem o conhecimento em preparar
a rede de pesca, fazer abanos ou leques, paneiros84 para o depósito
84 Cesto sem alças, feito em trançado largo de talas de palmeira, ger. forrado de folhas,
muito utilizado para transportar e/ou acondicionar certos alimentos (farinha-d’água, fari-
nha de mandioca, açaí etc.) (Dicionário).

- 223 -
de farinha, cestos, peneiras, confeccionam o jirau para tratar o peixe
e suspensórios para plantar cebolinha e hortaliças; fabricam os seus
próprios fogões de barro e o forno de fazer farinha, tecem o tipiti que
é utilizado na fabricação de farinha, ao mesmo tempo em que de-
senvolvem trabalho de capinação do roçado para o plantio agrícola
e posterior queimada do matagal retirado, num processo de fertiliza-
ção e adubação da terra para o plantio.
Além de ocupar-se dos serviços domésticos, são detentoras
de um “saber fazer” singular, construído, sobretudo a partir do es-
tabelecimento da relação com a natureza, tendo suas bases fincadas,
sobretudo, na tradição oral. Com base nos estudos de Campos (2009)
e Rodrigues (2009) é possível afirmar que a mulher ribeirinha con-
tribui com o lugar em que vive e interage no espaço de seu cotidiano,
com características próprias, entre as quais se podem destacar:

[...] a profunda ligação com o lar e dedicação a família; relacio-


namento do saber individual (família) e o social (comunidade);
forte presença na agricultura, principalmente familiar. Esta pos-
sui uma significação do lugar em que vive e interage, construin-
do formas de participação no âmbito familiar e comunitário (p.
94).

Nesses locais, as mulheres são polivalentes e assumem diver-


sas atividades na casa e na comunidade, quais sejam: trabalhar no
roçado com o preparo da terra e plantio de mandioca, participar de
grupos de produção, se envolver nas atividades políticas e culturais
da comunidade, além dos afazeres domésticos.
A partir da leitura de Chaves (2001), as mulheres ribeirinhas
não ficam restritas a casa e à família cuidando dos filhos, elas também
participam de todas as atividades de subsistência da comunidade,
esta forma de organização encontra-se pautada na herança cultural
dos povos indígenas da região. Nas comunidades ribeirinhas, é pos-
sível observar que estas se movem a favor do bem de todos através
do seu trabalho nas atividades de subsistência e que esta forma de
organização remete às relações de gênero e trabalho no contexto ru-
ral amazônico.
Pautado nesta perspectiva de análise, pode-se afirmar que
na cultura cabocla ribeirinha, as mulheres se constituem elemento

- 224 -
chave para manutenção familiar e comunitária, não só no âmbito
do saber-fazer, mas, sobretudo de manutenção da cultura imaterial
existente nestes contextos, relacionada principalmente a valorização
e manutenção dos saberes tradicionais.
As mulheres são as principais detentoras dos conhecimentos
tradicionais sobre as formas de uso e manejo dos recursos na co-
munidade, além de organizarem a economia familiar e comunitária.
Acerca disto, Torres (2012) explica que:

A forma pela qual as mulheres se relacionam com o meio am-


biente mostra que elas têm como ponto de referência as suas vi-
vencias e experiências de vida. Esse relacionamento é tecido com
os papeis que elas desempenham na reprodução biológica, social
e cultural. E esse desempenho de papeis tem estreita relação com
o conceito de equilíbrio que envolve a relação mulher-terra, ter-
ra-vida, homem-mulher e homem natureza.

Vale destacar que a cultura das populações amazônidas se


constitui, na contemporaneidade, na síntese dos conhecimentos pro-
duzidos e assimilados pelas diferentes sociedades que a constituíram,
bem como sobre o meio em que vivem. Na discussão dessa relação
homem-mulher-natureza, Chaves (2001, p.78) traz contribuições
que fomentam a construção dos estudos na Amazônia. Para referida
autora, essa relação “é mediada pela cultura, na sua condição de sis-
tema de valores, usos e instituições, que de certa maneira, modelam
as ações dos sujeitos, como uma espécie de artífice da estética”.
Neste contexto, a identidade cultural dos grupos que hoje vi-
vem nesta região é resultado de um longo processo de miscigenação
o qual foi sendo delineado historicamente, demarcando a singula-
ridade sociocultural do homem/mulher da Amazônia (CHAVES,
2001).
Apesar das mudanças processadas nos habitus das sociedades
indígenas no período da colonização, dentre estas encontram-se as
formas de trabalho; as relações familiares; a organização sociopolí-
tica; e vários outros produtos da cultura matéria e imaterial, muito
da cultura destes sujeitos sociais permaneceram e foram repassadas
para futuras gerações, sendo estas também assimiladas pelos colonos.
De acordo com Rodrigues (2015), é através da herança cul-
tural, transmitida através de seus antepassados, que estes sujeitos

- 225 -
dominam as técnicas de preparação dos alimentos e dos derivados
da mandioca, a confecção dos instrumentos de trabalho, o conhe-
cimento do tempo propício para a pesca e à plantação dos produtos
agrícolas, as armadilhas que podem ser usadas para a caça dos ani-
mais silvestres, as madeiras adequadas para construção das casas, da
confecção das canoas, dos jiraus, dos canteiros, os nomes dos peixes
e quais os mais apropriados para o consumo, à utilização das plantas
medicinais, entre outros conhecimentos.
Neste contexto, vale destacar que os conhecimentos tradicio-
nais, o saber fazer e o cuidado com a natureza fazem parte das práti-
cas de homens e mulheres ribeirinhas, destacando-se determinadas
particularidades na forma de uso e manejo dos recursos naturais
pelas mulheres. Entre essas populações, a relação homem-natureza
acontece numa logica de reciprocidade pautada em valores construí-
dos historicamente e culturalmente.
Na leitura de Torres (2005), a transmissão dos conhecimentos
das populações locais, como no caso das comunidades de pescadores
ribeirinhos da Amazônia, ocorre pela continuidade das atividades
realizadas em grupo, ou dos registros mentais que são perpassados
de pai para filhos, nas quais os membros mais velhos da família pos-
suem um papel relevante neste processo de transmissão.
Estes conhecimentos foram identificados, através de pesquisa,
durante a realização de uma oficina sobre Plantas medicinais com
jovens, realizada na comunidade de São Lázaro, município de Caapi-
ranga/AM, na atividade foram identificadas espécies de plantas me-
dicinais, conforme apresenta o quadro 01.

- 226 -
Identificação de plantas medicinais pelas jovens

Plantas Parte Como


N. Pra que serve
Identificadas Utilizada Prepara?

Bate e põe na
1 Açaí Anemia água, pode
coar ou não.
Diarreia Casca
2 Azeitoneira
Inflamação Casca
3 Capim Santo Febre Folha
Pega a folha,
colocar na
4 Caju Infecção Folha água e tomar
por uma
semana.
Põe na água e
5 Copaíba Malária Folha
fica bebendo.
6 Jenipapo Anemia Fruta Suco da fruta.
7 Hortelã Cólica Folha
Pega a folha e
8 Hortelazinho Cólica para bebê Folha faz o chá para
bebê novo.
9 Jatobá Tosse Casa
Tira a casca
Dor de barriga Casca e põe para
10 Laranja ferver e toma.
Verme Casca
11 Mastruz Verme Folha
12 Pobre Velho Infecção Folha

Quadro 1: Identificação de plantas medicinais pelas jovens da comunidade.


Fonte: Pedrosa, 2017 e Edital 025/2015 CNPq.

A realização da oficina visibilizou os conhecimentos tradi-


cionais sobre as plantas medicinais existentes na comunidade por
parte das jovens, refutando teorias que sinalizam para processo de

- 227 -
perda dos conhecimentos tradicionais pelos mais jovens em socie-
dades consideradas tradicionais, a partir do avanço tecnológico das
sociedades modernas em todas as áreas. Através da oficina, as jovens
puderam interagir e compartilhar o conhecimento adquirido pelas
mães e mulheres mais velhas da comunidade ao longo dos anos, as
quais continuam aprendendo e ensinando aos seus filhos, netos de
geração a geração.
Os estudos desenvolvidos apontaram que este é um conhe-
cimento passado e repassado por meio da oralidade e da prática do
ensinar-observando-(re)fazendo, no qual as mães, tias e avós pedem
aos filhos(as) mais jovens, para irem pegar a planta no quintal, en-
sinam a fazer o remédio, o chá ou xarope, com a devida prescrição,
para que deve ser usado cada remédio.
Ao mesmo tempo, esta atividade possibilitou troca de saberes
e interação entre o público-alvo do projeto e pesquisadores, no qual
as jovens já tinham referência desse conhecimento de casa, apren-
dizagem que o grupo familiar carrega consigo, e ao mesmo tempo
é tido como algo comum pelas jovens da comunidade, a partir da
atividade/pesquisa passaram a ter um maior interesse pelo assunto,
em geral atentam mais para as plantas medicinais quando se tornam
mães, e precisam cuidar da saúde de seus filhos. O trabalho realizado
durante a oficina possibilitou despertamento das jovens no que se
refere às plantas medicinais como valor sociocultural.
Neste cenário a mulher assume relevância no seu protagonis-
mo no contexto familiar e comunitário, principalmente no tocan-
te ao seu trabalho no desenvolvimento das relações socioculturais.
Trata-se de mulheres ribeirinhas que são polivalentes no desenvol-
vimento dos papéis de mães, esposas, agriculturas, pescadoras, pro-
fessoras, artesãs, parteiras, dentre outras atividades que desenvolvem
concomitantemente no seu cotidiano. Neste sentido, faz-se necessá-
rio apreender e valorizar, ainda mais, à participação e o significado
que é atribuído a mulher da Amazônia, considerando as característi-
cas socioculturais desta população.
Um elemento que merece destaque, também, foi que a par-
tir do desenvolvimento das pesquisas e atividades, as comunitárias
passaram a ter maior compreensão sobre o vasto conhecimento que
possuem sobre plantas medicinais, além das formas de uso e manejo,

- 228 -
(re)valorizando as práticas culturais no uso das plantas medicinais, o
que se constituiu de fundamental importância para o fortalecimento
da cultura e identidade das comunitárias no âmbito local.
A mudança de entendimento foi constatada através do relato
das comunitárias a importância da abordagem da temática conforme
a fala abaixo, principalmente no que se refere aos conhecimentos,
prática e utilização das plantas medicinais para que as moradoras da
comunidade retomem a medicina tradicional, associando está a me-
dicina convencional, que resgata o conhecimento dos recursos locais
adquiridos por várias gerações.

Muito importante porque a gente sente uma dor e faz o remédio,


até ficar curado do que está sentindo. [...] Aprendi com minha
Mãe e com a comunidade. [...] Explico pouco, pois não moram
comigo. Mas quando eles vêm eu indico remédio caseiro e ensi-
no meus filhos a fazer (Comunitária 7 – Edital 025/2015 CNPq).

De acordo com os informantes das pesquisas e participan-


tes das atividades desenvolvidas através dos projetos de extensão,
as informações socializadas e a forma com que essas atividades fo-
ram desenvolvidas, proporcionaram ampliação dos conhecimentos
e acesso a novas informações sobre as plantas medicinais, bem como
orientações importantes em torno das formas de uso e manejo e a
constatação do conhecimento sobre as plantas medicinais que alguns
comunitários e principalmente as mulheres detêm, no início da pes-
quisas e das ações afirmavam não lembrar mais nada sobre o assunto
e no decorrer das pesquisas e atividades demostraram ter bastante
conhecimento a respeito da temática.
Partindo desta compreensão, enfatiza-se a importância da
mulher na valorização, manutenção e preservação dos conhecimen-
tos tradicionais, principalmente relacionados à forma de uso e mane-
jo de plantas medicinais tão importante para o acesso a saúde dessas
populações que têm nas plantas medicinais uma alternativa de pre-
venção, promoção, manutenção e recuperação da saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
É possível afirmar que há uma dinâmica entre os saberes das
populações tradicionais, suscetível às histórias de vida, as atividades

- 229 -
produtivas, ao modo do uso e manejo dos recursos naturais disponí-
veis nas áreas que habitam, da organização sociocultural de cada co-
munidade ribeirinha, bem como a capacidade desses grupos sociais
de se adaptarem ao contexto sociocultural da região Amazônica, ao
mesmo tempo em que desenvolvem novas habilidades de sobrevi-
vência nessa realidade, respeitando a dinâmica local (CHAVES,
ABREU e BINDÁ, 2004).
Diante deste contexto, é importante destacar a necessidade de
reconhecimento dos saberes produzidos e transformados, os quais
geram conhecimento popular, que aliados ao científico podem am-
pliar o potencial de produção de riquezas socioculturais, ambientais,
econômicas e políticas, além do patrimônio intelectual e cultural
imaterial dos povos amazônidas.
No contexto amazônico, os conhecimentos tradicionais sobre
plantas medicinais garantem as populações tradicionais formas di-
ferenciadas de prevenção, tratamento e promoção da saúde, tendo
em vista que esses sujeitos possuem um modo de vida, de produção
e reprodução social com particularidades sócio históricas, culturais
e ambientais.
Dentre as particularidades identificadas nas pesquisas e inter-
venções, chama atenção o papel das mulheres no processo de apren-
dizado e difusão dos conhecimentos tradicionais sobre plantas me-
dicinais, são as principais responsáveis por compor uma identidade
familiar, social, cultural e política nas comunidades, destacando-se:

a) A marcante presença das mulheres nas atividades sociocul-


turais;
b) O protagonismo e a liderança das mulheres da comunidade
em relação às atividades coletivas e produtivas;
c) A forte presença na agricultura. O que foi observado nas
comunidades é que elas assumem o papel de agricultoras e es-
tão diretamente desenvolvendo esta atividade, sobretudo no
roçado para produção de farinha;
d) A contribuição das mulheres no contexto familiar, onde
se pôde observar o protagonismo nas decisões familiares, na
educação dos filhos e no interesse na melhoria das condições

- 230 -
de vida das suas famílias e da comunidade em sua totalidade;
e) Conhecimento sobre técnicas de manejo dos Recursos Na-
turais;
f) A atuação das mulheres nas comunidades é de suma impor-
tância para a organização da comunidade;
g) As mulheres das comunidades sempre estão procurando se
articular e se unir para a superação dos diversos problemas
vivenciados no local;
h) Na realidade local elas são agentes sociais atuantes na trans-
formação da situação da mulher.

As reflexões resultantes dos resultados expostos neste artigo


conduzem à compreensão da necessidade de posicionamento do Es-
tado e sociedade civil para abertura de debate ampliado e que reme-
ta para a elaboração e implementação de políticas públicas para a
inclusão dessas mulheres nas políticas de públicas de preservação e
valorização desses conhecimentos tradicionais, principalmente vol-
tados para as práticas tradicionais de produção de remédios a partir
das plantas medicinais.
É preciso pensar na elaboração de políticas voltadas para a
realidade Amazônica, respeitando suas especificidades, a fim de que
sejam fomentadas e operacionalizadas estratégias políticas e sociais
fundamentadas nos princípios da sustentabilidade socioambiental,
de modo a garantir a conservação da cultura local, bem como a for-
mulação e a implementação de propostas para o enfretamento da
desigualdade social e das diferentes expressões da questão social.

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- 233 -
- 234 -
AGRICULTURA FAMILIAR NA AMAZÔNIA:
UMA QUESTÃO DE GÊNERO
Viviane de Oliveira Rocha85
Iraildes Caldas Torres86

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, muda-se o ser,


muda-se a confiança. Todo mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
(Luís de Camões)

INTRODUÇÃO
Este estudo assume o propósito de situar a participação das
mulheres na agricultura familiar, sua luta e empoderamento no con-
texto da proposta de reforma agrária, destacando o protagonismo
delas na vida comunitária na Amazônia. Trata-se de uma parte da
pesquisa de mestrado realizada no âmbito do Programa de Pós-gra-
duação em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia da Uni-
versidade Federal do Amazonas, defendida no ano de 2019.
Siliprandi (2015) destaca que as mulheres rurais, além de exe-
cutarem as atividades produtivas, estão presentes nas lutas sociais
dos agricultores, embora sua participação tenha pouca visibilida-
de. Ou seja, a participação das mulheres rurais no espaço político
é, peremptoriamente, sem visibilidade, embora essa realidade esteja
mudando nos dias atuais. Pode-se dizer que a organização das mu-
lheres no campo remonta os anos 1980, quando, em 1984, foi criado
o Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR) no Sertão
Central de Pernambuco, responsável pelo encaminhamento à Con-
federação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)
da proposta de sindicalização das mulheres.
Em um contexto de lutas pelas mulheres de todas as regiões,
as conquistas chegaram com a garantia e reconhecimento de alguns
85 Assistente Social. Mestra em Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia pela Uni-
versidade Federal do Amazonas.
86 Doutora em Antropologia Social pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.
Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas.

- 235 -
direitos, por exemplo, a criação da política de crédito Pronaf, de
forma a garantir uma intermediação estatal de forma sustentável e
solidária e em diálogo com as trabalhadoras rurais. No campo da ga-
rantia de direitos, em outros campos de direitos, como por exemplo,
o reconhecimento da profissão de trabalhadora rural por intermé-
dio do Programa Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural
(PNDTR), que, até então, não possuíam documentação e reconheci-
mento do desenvolvimento de suas atividades.
A metodologia seguiu os passos das abordagens qualitativa,
sem excluir os aspectos quantitativos, obedecendo a uma amostra 10
mulheres do Assentamento Água Branca e 04 homens do referido
assentamento, sendo que neste artigo referendamos a fala de 03 des-
tas mulheres. Estes sujeitos foram ouvidos sob a técnica de entrevis-
ta profunda, aquela que, conforme Bourdieu (2012), o pesquisador
pode coletar informações com um mesmo informante quantas vezes
forem necessárias. O trabalho segue a metodologia de conversação
entre a empiria e as teorias na perspectiva de gênero tendo por base
autores das teorias críticas.
É assim que este estudo assume relevância no âmbito da te-
mática de gênero no sentido de dar voz e visibilização às mulheres
agricultoras que, historicamente, não tiveram luminosidade na ciên-
cia. Assume importância, também, no âmbito da luta reivindicativas
das mulheres agricultoras que têm na Associação de Trabalhadores
e Trabalhadoras Rurais e da Comunidade Ubêre, o seu instrumento
de luta.

Agricultura Familiar na Amazônia


Na Amazônia, os estudos sobre a agricultura familiar87 têm
crescido e se desenvolvido de forma bem satisfatória já que as pes-
quisas realizadas também têm contribuído com o aumento da visi-
87 A categoria agricultura familiar ganham novos espaços de participação social nesse
contexto de efetivação das políticas públicas. Para que se cumprisse suas funções no desen-
volvimento econômico a agricultura precisava se modernizar, nesse sentido iniciaram os
ajustes que passou a ser realizado por um conjunto de ações e políticas públicas, como o
crédito rural, a garantia de preços mínimos, seguro agrícola, pesquisa agropecuária, assis-
tência técnica e extensão rural, incentivos fiscais às exportações, minidesvalorizações cam-
biais, subsídios à aquisição de insumos, expansão da fronteira agrícola e o desenvolvimento
de infraestrutura. Os principais beneficiados com essas foram políticas, principalmente os
médios e os grandes agricultores, localizados nas regiões sul e sudeste, produtores de pro-
dutos direcionados à exportação ou de interesses de grupos agroindustriais.

- 236 -
bilidade do trabalho de muitas famílias agricultoras. Neste contexto,
estão inseridas as mulheres com o seu protagonismo e sua liderança
nas comunidades enquanto figura central na organização do traba-
lho do seu grupo familiar e da comunidade.
As dificuldades enfrentadas pelas mulheres na área rural ainda
é uma realidade vivenciada mesmo diante de avanços, já que, existem
as políticas públicas, mas é necessário sua implantação, efetividade e
monitoramento. Esse processo até beneficiaria muitas famílias, mas
infelizmente ele esbarra no muro da burocracia que limita muito
mais do que inclui as famílias agricultoras nos programas sociais.
No âmbito do marco legal das políticas públicas para as mu-
lheres rurais podemos elencar nas marcas da Constituição Federal
de 1988, O II Plano Nacional de Reforma Agrária de 2003, o I Plano
Nacional de Políticas para as mulheres de 2003, a Portaria nº 981
de 2003, o II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres de 2008,
cabendo ainda destacar um instrumento que modifica a sistemática
de classificação das famílias beneficiarias da reforma agrária, que é a
Instrução Normativa 38 de 2007.
Há transformações no aspecto de gênero que garantem às mu-
lheres acesso às políticas públicas, pois elas passam a ter o direito de
ser titulares da terra. Com isso ocorre a ampliação do número de
grupos familiares unipessoais e uma tendência de redução do nú-
mero de casais, o que representa a ampliação dos domicílios mono-
parentais, com destaque para as famílias monoparentais femininas.
O crescimento do número de famílias monoparentais tam-
bém repercute no aumento da chefia feminina nas famílias. No censo
populacional do IBGE de 2000, 22,2% das famílias brasileiras tinham
mulheres como responsável pelo domicilio, número que aumentou
para 37,3% no censo de 2010. Nas áreas urbanas, a chefia feminina
nas famílias passou de 24,5% no senso de 2000 para 39,3% em 2010, e
nas áreas rurais este número dobrou em 10 anos, passando de 10,9%
em 2000 para 24,8% em 2010.
Esses dados são fundamentais para entendermos o papel de
homens e mulheres nas suas relações com as políticas públicas e com
o meio ambiente. Essas mulheres estão se organizando para propor
transformação desse sistema desigual e preconceituoso, projetando
ganhos a serem construídos por intermédio de ações e políticas cole-

- 237 -
tivas. Não se colocam como vítimas do sistema, nem como salvado-
ras do mundo, são mulheres agricultoras que lutam pelo direito de
serem sujeitos plenos de suas vidas, contribuindo à sua maneira, para
a transformação do mundo.
O modo de produzir adotado pelas mulheres na Amazônia
possui particularidades regionais, pois o Amazonas, um dos estados
que compõe a Amazônia brasileira, abriga em seu cenário não só
peculiaridade ambientais, mas também especificidades nas formas
de organizações socioculturais. As mulheres agricultoras buscam o
conhecimento da natureza para sua reprodução, adotando novos
métodos de produção, manejo e cuidado com a natureza, combinan-
do produção, preservação e conservação do meio ambiente. Elas se
preocupam com a segurança alimentar e nutricional.
Na agricultura são elas as grandes responsáveis pela produção
de alimentos com a encargo do preparo para o consumo da família,
elas empregam saberes e tecnologias sociais e tradicionais e moder-
nas para o trato da agricultura familiar. Elas possuem práticas sociais
que contribuem para a sustentabilidade, gestando formas de atuação
que demonstram sua corresponsabilidade para com a vida do plane-
ta. As formas de sustentabilidade gestadas pelas mulheres podemos
mencionar as seguintes: agricultura alternativa88 como a agroecolo-
gia e produção orgânica.89
Historicamente, o capital sempre buscou retirar da natureza
os seus recursos naturais como meio de sobrevivência sem se impor-
tar com a preservação. Ao longo do tempo, esses recursos foram se
perdendo, se tornando escassos, trazendo consequências negativas
ao meio ambiente.
Em virtude da descoberta das terras no período colonizador,
transformaram as riquezas em mercadorias, como a extração de ma-
88 Agricultura Alternativa pode ser entendida como uma tendência que tenta fornecer
produções sustentáveis por meio do uso de tecnologias e manejos ecologicamente sadios.
89 Definida pela Lei da Agricultura Orgânica de n°10.831 sendo agricultura orgânica
como: Sistema orgânico de produção agropecuária é todo aquele em que se adotam téc-
nicas específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos
disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo
a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimi-
zação da dependência de energia não-renovável, empregando, sempre que possível, méto-
dos culturais, biológicos e mecânicos, em contraposição ao uso de materiais sintéticos, a
eliminação do uso de organismos geneticamente modificados e radiações ionizantes, em
qualquer fase do processo de produção, processamento, armazenamento, distribuição e
comercialização, e a proteção do meio ambiente.

- 238 -
deiras, caça comercial dos animais silvestres, marcam a era da pro-
dução capitalista. O acesso à terra se deu para o desenvolvimento das
atividades agrícolas na lógica mercantil, este processo intensificou a
destruição desses recursos naturais.
A degradação do meio ambiente provocado principalmente
por atividade humanas, vinculada ao capital, tem rompido o equi-
líbrio natural como nos mostra Rossini e Calió (2009, p.326) “viver
o hoje e o amanhã sobre o planeta, que passa por uma aceleração
técnico-científica e informacional, provocando enormes ranhuras
no meio ambiente interferindo na vida humanidade”.
Verifica-se que nas últimas décadas os crescentes delitos eco-
lógicos têm crescido, como as queimadas, desmatamento sem os
devidos reflorestamentos Leff (2009, p. 33), destaca que as “transfor-
mação em campos de monoculturas ou seu uso como pasto para a
criação intensiva de gado degradou seus mecanismos de equilíbrio e
resiliência, tornando-os mais vulneráveis às catástrofes naturais.
A apropriação da natureza de forma destrutiva tem impacta-
do diretamente a humanidade, pois, se o meio ambiente não é consi-
derado dentro deste processo, aumentam-se a destruição e o impacta
na reprodução da vida.
Frente a esse cenário histórico degradante, as mulheres ma-
nifestam seu cuidado e trato com a natureza e seus elementais. Ao
direcionar um olhar para a Amazônia, elas assumem uma carga de
responsabilidade em torno da preservação e conservação ambiental,
pois elas são as mais afetadas pela degradação ambiental.
As mulheres desenvolvem, no âmbito do trabalho agrícola,
uma relação de afetividade e cumplicidade com a natureza. Elas cui-
dam do meio ambiente como se fosse suas casas, dando destino aos
resíduos sólidos produzidos na comunidade e realizando o trabalho
da roça sem agredir o meio ambiente natural.
O cuidado e a preocupação das mulheres com o meio am-
biente compõem um ciclo de luta pela continuidade da vida. Elas são
parte integrante desse ciclo, fazem opção de produção e produzir de
forma sustentável sem utilização de insumos químicos, assumindo
um compromisso com o meio ambiente e a sociedade.
Nesse processo, as mulheres têm assumido esse compromisso
que tem por base os conhecimentos adquiridos com seus antepas-

- 239 -
sados em suas propriedades, para produzirem com qualidade. E, na
medida em que há uma maior demanda no mercado pelos produtos
orgânicos, as mulheres veem-se valorizadas. Uma de nossas entrevis-
tas nos relata porque optou por produzir orgânicos. Vejamos:

Optei por trabalhar na produção de produtos orgânicos por


ser mais barato o modo de produzir, já que, utilizamos plantas
e raízes como inseticida natural. O processo de produtivo até a
colheita é bem mais demorado, no entanto, seu valor na venda é
bem mais valorizada. As pessoas hoje buscam adquiri produtos
com baixa taxa ou nenhum tipo de produtos químicos (Jade, 53
anos, Entrevista, 2018).

As mulheres são os sujeitos centrais da agricultura orgânica.


Elas têm um papel fundamental na defesa deste tipo de alimento.
Segundo os estudos de Karam (2004), as mulheres são as precursoras
nesse modo de produção que que foi gestado na agricultura familiar.
A agricultura orgânica tem desafiado a produção convencional de
alimentos produzidos pelos grandes agricultores.
A economia agrícola vem passando por um processo de mo-
dernização e inovação tecnológica com a introdução de implementos
orgânicos e maquinaria adequada ao desenvolvimento do trabalho.
Neste processo, ocorre a redefinição do papel dos trabalhadores com
especial relevo para o trabalho das mulheres.
A modernização tem contribuído positivamente para a pro-
dução de alimentos, o que exige práticas de sociabilidades voltadas
para a preservação do meio ambiente tornando mais humanizado o
processo produtivo. No Assentamento Água Branca, as práticas do
ajuri é a mola motriz da produção, como podemos visualizar na ima-
gem abaixo,

- 240 -
Imagem 1: Prática do Ajuri no Assentamento Água BrancaFoto:
Viviane Rocha, 2019.

Torres (2005) destaca que as mulheres da Amazônia são su-


jeitos centrais na organização do trabalho comunitário e da família.
São elas que dispõem sobre a economia doméstica e organizam o
trabalho na comunidade. Segundo a autora, as mulheres possuem
uma racionalidade ética com a mãe natureza, tendo maior cuidado
e atenção com a água, os animais domésticos e as plantações que
mantêm no entorno da casa. “A forma pela qual as mulheres se re-
lacionam com o meio ambiente mostra que elas têm como ponto de
referência as suas vivências e experiências de vida” (TORRES, 2013,
p.113). As mulheres possuem uma racionalidade ambiental e têm
consciência da importância das riquezas naturais existentes ao seu
redor, para garantir o espaço sustentável para as futuras gerações. De
acordo com Ametista (54 anos),

Trabalhar com o orgânico é para quem gosta, porque é difícil.


A produção é mais demorada e a desistência por parte dos agri-
cultores (homens) é grande. No projeto criado pelo Museu da
Amazônia em 2014 voltado para a produção orgânica foi inicia-
do com 14 participantes, sendo 09 homens e 05 mulheres, desses
desistiram 08 homens e 01 mulher. A parte pedagógica e buro-
crática de como era passado os ensinamentos por ser demora-
do e a maioria dos agricultores não disponibilizarem de tempo,
acabaram desistindo.

Analisar a questão de gênero na Amazônia exige que voltemos


a atenção para as peculiaridades da região. Conforme os estudos de

- 241 -
Nascimento et al (2015, p. 145), “pensar as relações de gênero com o
meio ambiente supõe uma análise sobre a construção do espaço so-
cial onde os sujeitos, de uma forma ou de outra, foram culturalmente
construídos. Homens e mulheres terão sempre olhares diferenciados
diante do mesmo objeto”.
Para Fischer (2010, p.195), a “condição da mulher no meio
rural se constitui numa configuração muito peculiar dos espaços pú-
blico e privado de produção e reprodução, em que um diz respeito
à produção bens materiais, e o outro, à reprodução dos indivíduos
sociais”.
Na agricultura familiar, as mulheres assumem distintos pa-
péis, inclusive o de prover a família, bem como o cuidado com a ter-
ra, para assim dar continuidade à reprodução da espécie. De acordo
com Paulilo (2016), isso não quer dizer que as mulheres querem ser
melhores que os homens, assim como o trabalho fora de casa não
as torna atuantes politicamente. Mesmo uma forte consciência das
“desigualdades de classe, não leva por adição, a uma preocupação
semelhante com a desigualdade entre os gêneros” (PAULILO, 2016,
p. 266).
Podemos dizer que as mulheres e os homens da agricultu-
ra familiar não são os sujeitos que depredam o meio ambiente, ao
contrário, eles fazem reposição e manejo das áreas onde ocorrem
a produção de alimentos. De acordo com Nascimento et al (2015,
p.146), “as mulheres possuem papel decisivo para reduzir os padrões
insustentáveis de consumo e produção e também para estimular in-
vestimentos em atividades produtivas ambientalmente saudáveis e
sustentáveis”.
De acordo com Karam (2004), a organização dos grupos de
agricultores, o investimento em assistência técnica nos processos
produtivos e de capacitação vieram colaborar para com o setor da
agricultura familiar orgânica principalmente para as famílias agri-
cultoras do Assentamento Água Branca que viram nessa nova forma
de produção, um meio de aumentar sua obtenção dos lucros, por
meio das vendas de seus produtos orgânicos, e assim, contribuir com
a preservação do meio ambiente. Para que seus espaços de comer-
cialização sejam valorizados e expandidos, faz-se necessário cumprir
algumas exigências legais. Na imagem abaixo, verificamos os produ-

- 242 -
tores de orgânicos do Estado do Amazonas recebendo seu certifica-
do de produção, dentre eles os produtores do Assentamento Água
Branca.

Imagem 2 Recebimento da Certificação OrgânicoFonte: Pesquisa de


Campo (2018).

Em agosto de 2018, as famílias do Assentamento Água Branca


receberam a certificação de produtor orgânico. Este certificado foi
aferido como forma de reconhecimento aos trabalhos dessas famí-
lias, principalmente dessas mulheres que se dedicaram a essa nova
modalidade de produção e de respeito ao meio ambiente. Os indi-
víduos de comunidades que residem na Amazônia brasileira em sua
grande maioria mantêm vínculo específico com a terra: floresta e
água (WITKOSKI, 2010).
Além do trabalho feminino ser bastante expressivo no As-
sentamento, as mulheres também têm um protagonismo político e
social muito forte. Elas conseguem dividir as tarefas tanto da casa
quanto de suas produções agrícolas com seus companheiros.
Vejamos a fala de uma de nossas entrevistadas sobre essa di-
visão de tarefas:

Aqui trabalhamos só eu e ele, então a gente concordou que os


dois dias que ele trabalha lá para o MUSA eu tomo conta da casa,
cuido da criação, da horta e é muito trabalho. Quando ele está
em casa, enquanto eu cuido das galinhas, ele cuida da horta, vai

- 243 -
aguar as plantas e as mudas de pupunha e castanheira (Safira, 38
anos, Entrevista/2018).

No que se refere ao desenvolvimento do trabalho rural, é im-


portante destacar que, nestes espaços sociais, as mulheres são sujeitos
atuantes, em sua ampla maioria. À medida em que se desenvolve o
capitalismo na agricultura, eleva-se o recurso do trabalho feminino,
isso significa impacto negativo às condições de vida das massas tra-
balhadoras, sobretudo para as mulheres que assumem duas ou três
jornadas de trabalho.
Stearns (2007) destaca que à medida que as civilizações foram
se desenvolvendo, a partir dos contatos e das limitações das trocas,
os sistemas de gênero, relações entre homens e mulheres, determina-
ção de papéis e definições dos atributos de cada gênero foram sendo
definidos, gerando de certo modo um deslocamento no contexto da
agricultura de uma igualdade entre homens e mulheres que existia.
Quando homens e mulheres trabalhavam na caça e coleta, ambos
contribuíam com a geração dos bens econômicos. De acordo com
Stearns (2007, p.31),

O trabalho das mulheres de juntar grãos e nozes era facilitado,


pois nascimentos muitos frequente e cuidados com crianças pe-
quenas seriam uma sobrecarga. A agricultura estabelecida, nos
locais em que se espalhou, mudou isso, beneficiando o domínio
masculino. À medida que os sistemas culturais, incluindo religi-
ões politeístas, apontavam para a importância de deusas, como
geradoras de forças criativas associadas com fecundidade e, por-
tanto, vitais para a agricultura.

Para Torres (2005), o entendimento das relações de gênero


pode ser um balizador das relações sociais em todos os sentidos. A
autora chama atenção para a necessidade de se preocupar em des-
construir e reconstruir os papéis atribuídos a mulheres e homens no
movimento da vida social, o que inclui as relações de trabalho, fami-
liar, conjugalidade, representatividade política, dentre outros.
Entende-se a agricultura familiar como um trabalho que en-
volve os diferentes membros da família que atuam a partir do cultivo
em pequena extensão de terra (SILVA; PORTELLA, 2010). De acor-
do com Guanziroli et al. (2009), “a agricultura familiar é compreen-

- 244 -
dida como uma forma de trabalho familiar”, assumindo a condição
do grupo social formado pelos pequenos proprietários de terra, que
desenvolvem seu trabalho mediante o uso da força de trabalho dos
membros de suas famílias, produzindo tanto para seu autoconsumo
como para a comercialização, e vivendo em pequenas comunidades
ou povoados rurais.
A participação das mulheres no trabalho na agricultura fami-
liar pode ser entendida como uma forma social de produção reco-
nhecida pela sociedade brasileira no contexto social e político, uma
vez que traz contribuições materiais e imateriais. Sendo assim, a agri-
cultura familiar pode ser compreendida pela lógica da organização
de grupos domésticos como força motriz orientadora para a vida so-
cial no campo. Um campo que é marcado pelas relações de gênero, e
que vai além do processo produtivo.
Para Schneider e Carvalho (2013), a categoria agricultura fa-
miliar sofreu várias mudanças no campo conceitual e tais mudan-
ças alteraram as visões e representações sobre alguns grupos sociais
como os camponeses e os agricultores familiares, agricultores de
subsistência, produtores de baixa renda, trabalhadores rurais, pro-
dutores de menor escala. Neste sentido, a partir dos anos 2000, re-
gistram-se avanços significativos no âmbito dessa discussão, ficando
estabelecido o conceito de agricultura familiar a partir da instituição
do Programa Nacional da Agricultura Familiar (PRONAF), definido
pela Lei nº 11.326/06, segundo o qual o produtor familiar é aquele
que possui área de até quatro módulos fiscais, que utiliza mão de
obra familiar, podendo manter até 2 empregados permanentes, que
inclui atividades de agropecuária, silvicultura, extrativista, aquicul-
tura, pesca artesanal.
De acordo com Oliveira (1991, p.55), a característica principal
da produção na agricultura familiar é o uso da força de trabalho dos
membros da família, que constitui, segundo ele, o “motor do proces-
so de trabalho na produção”. O trabalho é desenvolvido pela família
em busca da sua reprodução, de forma simultânea entre os membros
do grupo social no qual estão integrados.
A agricultura familiar tem como característica a divisão do
trabalho baseada na diferença de gênero. Conforme Butto e Hora
(2010, p. 11),

- 245 -
As limitações de acesso a recursos produtivos como a terra e o
crédito são abordadas, mas falta uma diferenciação entre acesso
à terra por meio de programas de reforma agrária e em situações
que envolvem processos de herança familiar. As limitações do
acesso ao crédito são em parte inexistentes (conta bancária e ti-
tularidade da terra) mas, as demais condições descritas indicam
maior enquadramento em programas sociais de transferência
de renda do que a inclusão imediata em programas de apoio à
produção.

Ploeg (2014) complementam a discussão apontando que a


agricultura familiar é muito rica se olhada a partir de dois fatores
principais que a descreve: a família, que é proprietária da terra e o
trabalho, que é realizado pelos seus membros. De acordo com este
autor,

A agricultura familiar também não se define somente pelo tama-


nho do estabelecimento, como quando falamos da agricultura de
pequena escala, mas sim pela forma com que as pessoas cultivam
e vivem. É por isso que a agricultura familiar é também conside-
rada uma forma de vida. (PLOEG, 2014, p.7)

A agricultura familiar assume uma importância social que


carrega a promessa de criar práticas agrícolas altamente produtivas,
sustentáveis, simples, flexíveis, inovadoras e dinâmicas. Tendo em
conta todas essas características, a agricultura familiar pode con-
tribuir significativamente para a soberania e segurança alimentar e
nutricional, fortalecendo o desenvolvimento econômico de diversas
maneiras, criando empregos e gerando renda. Eleva o grau de resi-
liência econômica, ecológica e social das comunidades rurais, geran-
do postos de trabalho atrativos para grande parte da sociedade, con-
tribuindo consideravelmente para a emancipação de suas parcelas
mais oprimidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pesquisar sobre a condição feminina na sociedade é, em todos
os níveis, um desafio, pois, apesar dos avanços que as mulheres ob-
tiveram ao longo da história da luta feminista, conclui-se que ainda
vivemos em constante embate com as definições de papéis definidos

- 246 -
à figura feminina pelas teorias do patriarcado, fato que, ao longo dos
séculos, manteve a inferioridade das mulheres sob os nexos da domi-
nação masculina.
A luta por direitos essenciais como melhores condições de
trabalho levou as mulheres a construírem uma identidade do femi-
nismo, voltada para a expressão do sujeito mulher em sua perspecti-
va ético-política.
Em algumas áreas de trabalho, é possível averiguarmos o
quanto os homens têm conseguido hegemonia nesses espaços, mas,
em outras, é possível perceber o quanto a presença feminina sur-
preende em quantidade e protagonismo. A agricultura familiar é um
desses espaços nos quais as mulheres encontram-se em presença ma-
joritária, isto, certamente, porque a agricultura está associada simbo-
licamente à mulher, ambas são geradoras de vidas.
Na Amazônia, há um campo propício para o desenvolvimen-
to da agricultura familiar no qual as mulheres rurais realizam prota-
gonismo, sendo figuras centrais na organização do trabalho em seu
grupo familiar e na comunidade, conforme esta pesquisa constata.
Essa pesquisa constata que as mulheres do Assentamento
Água Branca desempenham um papel importante no desenvolvi-
mento da agricultura familiar. A prevalência do trabalho feminino é
claramente constatada em nossa pesquisa de campo, notabilizando o
empoderamento político dessas mulheres.
A pesquisa constata também que nas últimas décadas as mu-
lheres passaram a ser incluídas nas políticas como sujeitos principais,
o que lhes permitiu ter o direito de serem titulares da terra. Esta con-
quista foi primordial para o seu desenvolvimento social, sobretudo
para as mulheres chefes de família.
Esta pesquisa constata ainda que as mulheres do assentamen-
to Água Branca não se veem como vítimas do sistema. São mulheres
agricultoras que lutam pelo direito de serem sujeitos plenos de suas
vidas. Contribuem para a preservação do meio no qual vivem e pela
melhoria da qualidade de vida não somente de seus familiares, mas
também da comunidade e da sociedade que adquire seus produtos
livre de agrotóxicos.
Não restam dúvidas o fato de essa pesquisa conter lacunas,
necessitando ampliar as discussões acerca do trabalho feminino na

- 247 -
agricultura, discorrendo com maior desenvoltura sobre o protago-
nismo das mulheres rurais frente à conquista de políticas públicas,
capazes de atender às necessidades desses sujeitos no assentamento
Água Branca.

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- 250 -
SERVIÇO SOCIAL E A POLÍTICA DE
HABITAÇÃO: O TRABALHO SOCIAL NO
PROGRAMA HABITACIONAL MINHA CASA
MINHA VIDA, COMO INSTRUMENTO DE
ACESSO DAS MULHERES À MORADIA NA
CIDADE DE MANAUS/AM.
Carliane Castro Silva90
Sandra Helena da Silva91

INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como proposta fazer uma análise do
Projeto de Trabalho Social (PTS)92 e a execução técnico-operativa
dos profissionais assistentes sociais durante as ações desenvolvidas
com as famílias contempladas pelo Programa Minha Casa Minha
Vida na Cidade de Manaus, em especial às mulheres chefes de fa-
mília, norteando a importância de compreender que a garantia do
direito à moradia adequada às mulheres é fundamental para a reali-
zação de suas atividades cotidianas e, inclusive, para a promoção da
autonomia em todas as áreas de sua vida e para a efetivação de outros
direitos.
Nessa perspectiva, este trabalho expressa os estudos e debates
sobre habitação e gênero, na área de Serviço Social, a partir da expe-
riência profissional na execução do Trabalho Social, buscando con-
textualizar a Habitação enquanto uma política social e direito do ci-
dadão, e analisar as competências do Assistente Social na habitação,
as leis e diretrizes da Política Habitacional e o estudo de gênero que
90 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sus-
tentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
91 Doutora em Ciência do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia pela
Universidade Federal do Amazonas. É professora da Universidade Federal do Amazonas.
Campus Parintins
92 A Política Nacional da Habitação (PNH) através da Normativa de Habitação do Minis-
tério das Cidades de Nº058/2011 consolidou o PTS como parte obrigatória dos projetos
de intervenção habitacional. Trata-se de uma atividade essencial a ser realizada com as
famílias beneficiadas pelos projetos envolvendo várias ações, que se iniciam antes da obra
e continuam após a mudança dos moradores.

- 251 -
incorpora a priorização de mulheres no planejamento e implantação
das políticas habitacionais, nestes, evidenciar as ações governamen-
tais direcionadas às mulheres, chefe de família.
Para a construção do referido trabalho, foram feitas pesquisas
bibliográficas através de artigos científicos, livros, vídeos, disserta-
ções, teses e documentação indireta através em meios eletrônicos e
legislações, a fim de construir um embasamento teórico e metodoló-
gico tanto da área habitacional como do Serviço Social.

BREVE HISTÓRICO DA POLÍTICA HABITACIONAL NO


BRASIL
Segundo Adas (2004), o crescimento demográfico do Brasil
teve início no século XIX, com a libertação dos escravos através da
Lei Áurea e a criação da Lei de Terras que tinha como objetivo doar
propriedades para todos os que quisessem cultivar a terra. Diante
disso os imigrantes foram atraídos para o Brasil com a intenção de
cultivar a terra.
Com a inversão do controle do capital através da industria-
lização, a cidade passou a comandar a economia. Não obstante a isto,
deve-se reconhecer que é no âmbito do processo de industrialização
e de desenvolvimento do país que a problemática habitacional se in-
tensifica.
Muitas famílias com grande número de filhos chegam às ci-
dades em busca de melhores condições de vida, o que aumentava o
contingente populacional e a proliferação de moradias irregulares,
inclusive áreas de proteção ambiental (ADAS, 2004). Milhares de
pessoas ocuparam os espaços urbanos, com o desejo de obter opor-
tunidades de trabalho e melhorar de vida, no entanto, nem todos
conseguiam emprego ou renda necessários para suprir suas necessi-
dades, passavam a viver em condições extremamente precárias. De
acordo com Maricato (2008, p. 22), “o crescimento urbano sempre se
deu com exclusão social, desde a emergência do trabalhador livre na
sociedade brasileira, que é quando as cidades tendem a ganhar nova
dimensão e tem início o problema da habitação”.
Diante deste cenário social, a política pública de habitação
programou, através do financiamento de unidades habitacionais e de
lotes de terras, a compra de moradias, no entanto a aquisição destas

- 252 -
moradias atendia somente a algumas famílias que pudessem arcar
com o financiamento, enquanto a população mais carente buscava
solucionar o problema através de loteamentos irregulares, com ha-
bitações precárias, e dessa forma fortaleceram as características das
desigualdades sociais, dividindo o espaço urbano entre o habitado
pelos ricos e o habitado pelos pobres, e em decorrência deste fator
que muitas famílias passam a habitar em locais impróprios como lei-
tos e orlas de igarapé, prédios abandonados, barranco entre outros.
No governo da ditadura militar, foi criado, através da Lei Fe-
deral nº 4.380 de 21/08/1964, o Banco Nacional de Habitação (BNH),
como um financiador de habitação e desenvolvimento urbano, finan-
ciando obras de construção de casas e infraestrutura de saneamento
e circulação. Foram construídas várias casas populares, porém eram
moradias de péssima qualidade e muito distante, visto que o primei-
ro programa habitacional foi a Companhia de Habitação Popular
(COHAB) que atendia às demandas econômicas e políticas como um
meio de sustentação de apoio das classes média para base do regime
militar, e a população continuava a ocupar ilegalmente outras áreas
para manter-se perto do trabalho.
O segundo programa habitacional foi o PROMORAR93, um
programa de erradicação de sub-habitação, que visava proporcionar
a urbanização das áreas subdesenvolvidas, sem remover os morado-
res do local, proporcionando financiamento para construção ou me-
lhoria de suas moradias. O Promorar e o Projeto João de Barro foram
as primeiras medidas concretas contra a recessão, ao poder reativar
a construção civil para reverter as taxas crescentes de desemprego,
com a finalidade de dar ênfase a construção civil como forma de de-
mocratizar a moradia e como fonte de geração de emprego, procu-
rando compatibilizar o acesso à casa própria com a nova realidade da
família brasileira, ajustando às metas de produção de novas habita-
ções a realidade orçamentaria do sistema, no entanto não passava de
uma manobra de finalidade política clientelista.
Na década de 80, após a extinção do BNH, outras alter-
nativas foram criadas para atender à população que clamava por
93 O Programa PROMORAR, criado em 1979 e financiado pelo BNH, foi a primeira ini-
ciativa séria de desfavelamento no país e que o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Urbano elaborou o primeiro projeto da Lei do Desenvolvimento Urbano, aquela que, após
muitos anos de estagnação ou debate no Congresso, acabou resultando na lei que se conhe-
ce como Estatuto da Cidade.

- 253 -
moradia, surgindo assim o Programa Nacional de Autoconstrução
(PNA), o Projeto João de Barros (PJB) e a criação do Ministério de
Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU). Em 1987, o re-
ferido Ministério teve mudanças em sua nomenclatura passando a
denominar-se Ministério da Habitação, Urbanismo e Meio Ambien-
te (MHU), agora, vinculado à Caixa Econômica Federal. Em 1988,
uma alteração na economia no país levou novamente a mudanças em
sua nomenclatura, passando a chamar-se Ministério da Habitação
e Bem-Estar (MBES). Com as medidas do Plano Verão, o referido
Ministério foi extinto e a Caixa Econômica Federal passou a ser vin-
culada ao Ministério da Fazenda que assumiu o controle do Sistema
Financeiro de Habitação no país.
Dentre as políticas setoriais de desenvolvimento urbano, foi
implementado o Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 10 de julho,
de 2001. Em seguida, no ano de 2003, foi criado o Conselho Nacio-
nal das Cidades e, em 2004, foi aprovada a nova Política Nacional de
Habitação
(PNH/2004). Desta forma, a Política Nacional de Habitação
se legitimou com a criação do Sistema e Fundo Nacional de Habita-
ção de Interesse Social (SNHIS/FNHIS), através da Lei 11.124, de 16
de junho 2005, integrando ações dos três poderes governamentais,
de forma descentralizada, articulada e com instrumentos voltados
à habitação, principalmente, para famílias de baixa renda (BRASIL,
2004).

POLÍTICA HABITACIONAL - PROGRAMA MINHA CASA,


MINHA VIDA.
Constam informações da Cartilha do Ministério das Cidades
que a concepção de Nova Política Habitacional surge no governo de
Luiz Inácio Lula da Silva, com ações estratégicas para minimizar o
déficit habitacional, através da criação do Ministério das Cidades em
2003, estabelecendo um novo modelo de organização institucional
como um instrumento de orientação das estratégias e ações a serem
implantadas pela Política Nacional de Habitação (PNH), que foi
aprovado pelo Conselho das Cidades em 2004, desempenhando em
princípios as diretrizes com o objetivo de garantir para a população
de baixa renda a possibilidade de acesso à moradia digna, com fun-
damentos na integração entre política nacional de desenvolvimento
urbano e política habitacional.

- 254 -
[...] A política habitacional além do financiamento exige uma
política urbana que permita um crescimento urbano menos con-
centrado, com a reserva de áreas de expansão para a construção
(RIBEIRO; PECHMAN, 1985, p. 68).

Conforme o Ministério das Cidades, 2004, a PNH é coerente


com a Constituição Federal, que considera a habitação um direito do
cidadão, com o Estatuto da Cidade, que estabelece a função social da
propriedade e com as diretrizes do atual governo, que preconiza a
inclusão social, a gestão participativa e democrática. Visa promover
condições de acesso à moradia digna a todos os segmentos da popu-
lação, especialmente o de baixa renda, contribuindo para a inclusão
social.
O Programa Habitacional Minha Casa Minha Vida tem se
constituído de fundamental importância dentro da política de ha-
bitação, na garantia do acesso a famílias de baixa renda à moradia
digna, contribuindo para a redução do déficit habitacional. Entende-
-se que o Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV – Recursos
do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, conforme França
(2012), é um programa do Governo Federal, administrado pelo Mi-
nistério das Cidades e operacionalizado pela CAIXA, que consiste
em construção ou requalificação de imóveis com objetivo de mini-
mizar os problemas da falta de moradia, e é sob esta ótica que as três
esferas de Governo (Estadual, Municipal e Federal) vêm propondo
políticas públicas buscando minimizar o déficit habitacional através
de programas de produção de unidades habitacionais em todo o país.
Para o Ministério das Cidades (2011), o conceito de déficit
habitacional é bem mais amplo e demanda ações efetivas correlacio-
nadas à política urbana, tais como saneamento, infraestrutura, equi-
pamentos sociais, tendo em vista que a má condição de moradia afeta
a educação, saúde, transporte e outras necessidades básicas.
Em Manaus, o Programa Federal Minha Casa, Minha Vida
está fomentando vários empreendimentos habitacionais, como por
exemplo: Residencial Viver Melhor I, II e III, Residencial Cidadão
Manauara I, etc., procurando beneficiar famílias em vulnerabilidades
sociais, que caracterizam, no geral, perfil socioeconômico, baixa es-
colaridade, predominância da mulher como chefe de família, consi-
derável número de trabalhadores no mercado informal, proveniente

- 255 -
de moradias localizadas em área de risco e/ou casas cedidas ou aluga-
das, sendo que essas famílias são selecionadas por critérios nacionais
(obrigatório) e locais (opcional).

[...] Art. 1º O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV


tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção
e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação
de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais
(Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011).

De acordo com o disposto na Lei 11.977 de 07 de julho


de 2009 e Portaria n°595/2013 são critérios nacionais:
a) Famílias residentes em área de risco ou insalubres ou que
tenham sido desabrigadas;
b) Famílias com mulheres responsáveis pela unidade fami-
liar;
c) Famílias de que façam parte pessoas com deficiência.

SERVIÇO SOCIAL E HABITAÇÃO


Santos (2012), aborda o conjunto das expressões que definem
as desigualdades sociais, historicamente marcadas pela escravidão na
sociedade, onde há uma separação entre homens e meio de produção
na transformação do sistema capitalista, tornando a exploração do
trabalho em mercadoria, também detectado na retirada do mínimo
de segurança dos trabalhadores ligados à terra que não poderiam ser
expulsos, porém o capitalismo extinguiu essa proteção e protagoni-
zou o crescimento da massa empobrecida, desprovendo a população
não somente do acesso à moradia, como também de direitos econô-
micos e sociais. Fez-se necessário reivindicar formulações de políti-
cas sociais, e a questão social surgiu no século XIX para suavizar os
problemas sociais da população menos favorecida.

[...] A questão social insere-se no contexto do empobrecimento


da classe trabalhadora com a consolidação e expansão do capita-
lismo desde o início do século XIX, bem como o quadro da luta
e do reconhecimento dos direitos sociais e das políticas públicas
correspondentes, além dos espaços das organizações e movi-
mentos por cidadania social. (SANTOS, 2012, p. 3)

- 256 -
Observa-se que, infelizmente, nos dias atuais o Serviço Social
e Questão Social estão relacionados ao desenvolvimento do trabalho
na sociedade capitalista, esta por sua vez destitui as leis já conquista-
das, desestabilizando a constituição, e contribuindo para perda dos
direitos trabalhistas, terceirização, privatização ou mesmo extinções
de muitas categorias, fato que retira do Estado o compromisso social
passando para o terceiro setor suas responsabilidades.
O Serviço Social na Habitação possibilita que uma grande
parcela da população tenha acesso à moradia digna, não apenas na
provisão de imóveis, mas também no acesso aos novos patamares do
princípio da justiça e equidade no qual o cidadão deverá ser inserido
através das políticas sociais.

[...] A moradia se manifesta enquanto questão social no espaço


urbano a partir do processo de industrialização, pois o advento
das indústrias incide de fato numa desorganização na cidade que
acontece devido ao populacional advindo com a expressão do
Capital. (SILVA, 1989)

Considerando a área habitacional como espaço sócio ocupa-


cional do Serviço Social é importante a compreensão de que o usuá-
rio na contemporaneidade demonstrará a demanda e suas necessida-
des, e é nesse contexto que se faz necessário desvelar que as políticas
habitacionais podem responder as necessidades de maneira eficaz.

[...] O Assistente Social tornou-se um solucionador dos problemas que


se apresentam diante dele. Os problemas eram identificados pela própria
instituição, pelos próprios objetivos do contexto em que atuava o As-
sistente Social, obrigando-se este à manipulação de certos recursos, e a
partir deles, pensar os problemas apresentados. (FALEIROS, 1999, p. 17).

A relação do serviço social na área habitacional é de amenizar


a desigualdade social por meio do planejamento, execução e acom-
panhamento de programas e projetos habitacionais. Trabalhando,
portanto, na distribuição dos direitos de cidadania, como facilitado-
res do exercício destes direitos que o Estado tem feito questão de
complicar e de mostrar como favores (ESTEVÃO, 2006).
Na área habitacional, o Assistente Social não avaliza somente
a provisão de moradia, mas, também, a estrutura necessária para a

- 257 -
moradia e mobilidade do usuário e sua família por isso a atuação
desse profissional deve estar pautada na autonomia e ampliação dos
direitos do cidadão.
Para (PINHEIRO, 2008, p.168), O direito à moradia só foi ex-
pressamente incluído no rol dos direitos constitucionais como direi-
to social fundamental em 14 de fevereiro de 2000, através da emenda
constitucional nº 26 que modificou a redação do art. 6º, passando a
expressar o seguinte: “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde,
a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previ-
dência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição”.
O Assistente Social, na área habitacional, atua também na au-
toestima dos beneficiários que passam a se observar como sujeitos
de cidadania, que gozam de direitos e de políticas habitacionais. É
um profissional preocupado com a ampliação dos direitos sociais
universais, e contra as desigualdades; até mesmo para cobrar dele
esta postura estabelecida em seu atual Código de Ética Profissional
(CRESS, 2005).
O Serviço Social, na área habitacional, possui o compromisso
de amenizar as desigualdades sociais no exercício de formulação e
implementação de propostas em nível de organizações das forças da
sociedade civil e políticas sociais para o enfrentamento das necessi-
dades de sua demanda, por meio de políticas públicas de desenvolvi-
mento urbano, facilitando o acesso à moradia, acompanhamento de
programas e projetos sociais e habitacionais como viabilizadores do
exercício dos direitos de cidadania.
As competências e atribuições do Serviço Social são norteadas
pelos princípios fundamentais do Código de Ética Profissional, que
direciona a prática profissional do Assistente Social tendo como ob-
jeto de trabalho as questões sociais nas suas mais diversas expressões,
onde o profissional tem como atribuição instrumentalizar pessoas e
comunidades no conhecimento de seus direitos e deveres, na defesa
e ampliação de direitos sociais, desenvolvendo assim sua autonomia
e seu potencial de defesa.

MORADIA, MULHERES E O TRABALHO SOCIAL


A moradia tornou-se direito social a partir de 2000, regida
pela Emenda Constitucional 26, junto a outros direitos do artigo 6º

- 258 -
da Constituição Federal, e consta na Declaração Universal dos Direi-
tos Humanos de 1948, a habitação também é considerada um direito
fundamental da pessoa humana.
Morais (2013) afirma que a habitação é um bem meritório,
que apresenta elevadas externalidades positivas em termo de bem-
-estar social. A provisão desta para a população representa um as-
pecto fundamental das políticas públicas de combate à pobreza, que
garante o acesso em estado de exclusão social a serviços sociais míni-
mos, como moradia e serviços de infraestruturas urbanas adequadas.
Alguns instrumentos internacionais apontam a moradia
como direito social fundamental para a exigência de implementação
de medidas concretas por parte dos Estados, ao atendimento daque-
les que não possuem o acesso à habitação via mercado. Dentre os
mais importantes desses documentos, podemos citar a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, o Pacto dos Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, a Convenção sobre todas as Formas de Discrimi-
nação Racial, a Convenção sobre os Direitos da Criança, a Conven-
ção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra
a Mulher.
Nas últimas décadas, a Política habitacional assim como as
diversas políticas sociais, vêm experimentando um desmonte, bem
como nas estruturas responsáveis pelo atendimento às necessidades
sociais postas pelas demandas da moradia social. Aliados à crise eco-
nômica, ou ideológica, do Estado capitalista neoliberal, os resulta-
dos têm sido: o forte empobrecimento da população, o aumento do
desemprego, informalização do trabalho e ampliação do número de
famílias em moradias inadequadas, configurando estes problemas
como sinônimos de desigualdades, exclusão socioeconômica e sócio
espacial, causando impactos direto na vida das famílias que reivindi-
cam por moradia. (BRASIL. Estatuto da Cidade. Lei 10.257, de 10 de
julho de 2001, p. 21).
Nessa ótica de direitos sociais, nas duas últimas décadas, inú-
meras políticas setoriais passaram a se desenvolver focalizadas no
atendimento das famílias mais carentes, principalmente à mulher
considerada chefe de família. Para Ávila (2001), a mulher como chefe
de família tem poder e responsabilidade pela manutenção do grupo
familiar. Na última quadra histórica, a mulher transcende a condição

- 259 -
de parte da família, responsável pelos afazeres domésticos, tornando-
-se comandante desta em diversas situações.
De acordo com Scherer (2009, p. 144), a participação das mu-
lheres no decorrer dos tempos tornou-se significativa como referên-
cia básica na família. Segundo a mesma autora, no Brasil, as famílias
chefiadas por mulheres correspondem a 11,1 milhões de família. E
uma em cada quatro famílias brasileiras é chefiada por mulheres.
Em se tratando de moradia, o projeto de lei nº 352/2017 é
um grande avanço de mais uma conquista para as mulheres, o pro-
jeto dispõe a mulher a prioridade na titularidade da posse do imó-
vel oriundo dos Programas Habitacionais do Governo Federal. Tal
garantia de direito marca uma grande conquista alcançada pelas
mulheres em um cenário onde há um crescimento do números de
mulheres chefiando famílias, dando a ela e sua família garantia da
permanência no imóvel em caso de dissolução da união conjugal
(BRASIL. Estatuto da Cidade, 2001). Para as mulheres, a garantia da
moradia adequada se relaciona intimamente a sua segurança, saúde,
condições de subsistência e bem-estar, desta forma as mulheres não
se intimidam em lutar por ter um uma moradia adequada.
A lei nº 11.977/09 de 07 de julho de 2009, em seu artigo 35
que regulamenta o Programa Minha Casa, Minha Vida –PMCMV,
deixa esta conquista de direito bem clara, pois estabelece em sua
norma que em caso de dissolução da sociedade conjugal, o título da
propriedade do imóvel será registrado em nome da mulher, ou a ela
transferido, independentemente do regime de bens aplicável. As po-
líticas de habitação devem priorizar a titularidade da moradia em
nome das mulheres ou, ao menos, em nome de ambos os cônjuges,
no entanto esses beneficiários necessitam de orientação quanto ao
uso consciente do espaço da nova moradia. É neste contexto que o
Trabalho Social, que faz parte do Programa Minha Casa Minha Vida
se torna relevante, pois através do PTS (Projeto de Trabalho Social)
é possível favorecer às famílias contempladas a correta apropriação
e uso dos imóveis, promover a mobilização e a participação social
dos beneficiários por meio de atividades de caráter sócio – educativo,
fortalecimento de bases associativas, de ações direcionadas à educa-
ção sanitária, ambiental, patrimonial, saúde e geração de trabalho e
renda. Delorenzo (2010, p.15) aborda o objetivo do PTS:

- 260 -
[...] Desenvolver ações de apoio e fortalecimento à participação
efetiva das famílias beneficiárias na implementação do Projeto,
através de atividade que promovem a inclusão social e produtiva,
tendo em vista garantir a habitabilidade familiar e comunitária,
a geração de renda e, consequentemente, a sustentabilidade do
projeto.

O campo profissional oportunizou conhecer o PTS. Durante


meu fazer profissional técnico-operativo, pude me certificar que as
características dos beneficiários atendidos no PTS estava pautada na
perspectiva de gênero, ou seja, em sua maioria eram mulheres chefes
de família, pois a garantia do direito à moradia adequada é funda-
mental para realização de suas atividades cotidianas e inclusive para
a promoção da autonomia em todas as áreas de sua vida. A partici-
pação da mulher, quer seja nas reuniões executadas, quer seja nas
atividades dos grupos de geração de trabalho e renda, no processo de
mobilização e organização comunitária, desperta a conquista da sua
própria autonomia. Presume-se que tais condições a fortalece contra
a própria opressão que persiste, muitas vezes, nos papéis familiares
estabelecidos pela sociedade, ou seja, o de ser simples mantenedora
do lar nos afazeres domésticos e apaziguadora de conflitos entre os
filhos.
Durante as ações executadas do trabalho social como Assis-
tente Social de Projetos Habitacionais, nas atividades dos eixos Mo-
bilização, Organização Comunitária e Fortalecimento Social; Edu-
cação Ambiental e Patrimonial; Desenvolvimento Socioeconômico
de geração de trabalho e renda para famílias de baixa renda, nos é
permitido afirmar a essencialidade da participação da mulher nes-
tes empreendimentos, haja visto que, seja nas reuniões, palestras,
oficinas ou cursos de geração de trabalho e renda, sua participação
chegava a cerca de 90%, o que levava a despertar a conquista da sua
própria autonomia.
A atuação do Assistente Social neste processo de inclusão da
mulher frente à participação política e cidadã apresenta-se como ins-
trumento de combate à exclusão social entre gêneros, nos diversos
espaços de decisões. Deste modo, na perspectiva feminista de cida-
dania, eis o grande papel para que o Assistente Social possa desempe-
nhar ações transformadoras, de justiça social, igualdade, liberdade e

- 261 -
de encorajamento para as conquistas de direitos às diversas políticas
públicas.
Delorenzo (2010) esclarece que o trabalho do assistente social
está em desenvolver uma série de atividades com os moradores para
incentivar a organização local, estimulando articulações com outros
grupos e movimentos da cidade, além do território. Nesse sentido,
a população é motivada a participar de movimentos sociais, fórum,
conselhos gestores, conferência, orçamento participativo, formando
liderança nas comunidades, o que é positivo para a democracia.
Faz-se necessário destacar que embora o Trabalho Social se
apresente com caráter de desenvolvimento socioeconômico e sus-
tentável das famílias acompanhadas, a maneira como o Serviço So-
cial se apresenta para sua demanda e desenvolve as ações propostas
no projeto, quebra as barreiras impostas, principalmente às que se
referem a questões de relação de gênero, pois o trabalho social pos-
sibilita resgatar vínculos familiares e a participação efetiva de cada
cidadão, promovendo estratégias para o desenvolvimento dos laços
de vizinhança, organização comunitária e a participação política.
O emprego, a renda, o acesso à educação e saúde são com-
ponentes que criam condições para que as mulheres conquistem a
igualdade de condições de inserção e de competitividade no mercado
de trabalho, mas o caminho para a equidade de gênero precisa se dar
conta de que há desafios em diferentes espaços e dimensões e que se
traduzem de maneiras diferentes para as mulheres.
De acordo com Cassab e Oliveira (2010), a atuação do Assis-
tente Social neste processo de inclusão da mulher frente à participa-
ção política e cidadã, apresenta-se como instrumento de combate à
exclusão social entre gêneros, nos diversos espaços de decisões. Deste
modo, na perspectiva feminista de cidadania, eis o grande papel para
que o Assistente Social possa desempenhar ações transformadoras,
de justiça social, igualdade, liberdade e de encorajamento para as
conquistas de direitos às diversas políticas públicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns instrumentos internacionais apontam a moradia
como direito social de grande relevância, para a exigência de imple-
mentação de medidas concretas por parte dos Estados, ao atendi-

- 262 -
mento daqueles que não possui o acesso à habitação via mercado.
Dentre os mais importantes desses documentos, podemos citar a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção sobre todas as Formas
de Discriminação Racial, a Convenção sobre os Direitos da Criança,
a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discrimina-
ção contra a Mulher. Por conseguinte, o indivíduo é merecedor de
uma vida digna, o direito à moradia, é condição para que se alcance
a vivência com dignidade humana, e o direito à moradia não pode
ser considerado um favor devendo atender a necessidade da pessoa.
O estudo possibilitou o conhecimento das características e
relevância da atuação do profissional de Serviço Social inserido no
Projeto de Trabalho Social (PTS), o qual se fez necessário conhecer
as atribuições e competências da atuação frente às demandas apre-
sentadas pelas famílias atendidas, sobretudo quando são colocadas
em prática as ações desenvolvidas no âmbito das políticas habita-
cionais, contribuindo assim para a qualidade de vida dos beneficiá-
rios. Foi possível observar que a atuação do profissional de Serviço
Social na área habitacional sinaliza instrumentalização de pessoas e
comunidades no conhecimento de seus direitos e deveres, desenvol-
vendo assim sua autonomia e seu potencial de defesa. Neste sentido,
o profissional coordena e direciona as atividades desenvolvidas pelo
PTS, tais como atendimentos sociais as famílias beneficiarias, rea-
lização de palestras econômicas, políticas, disseminando noções de
educação patrimonial e ambiental, de relações de convivência e par-
ticipação coletiva das famílias, sendo capaz de inserir outros atores
municipais e estaduais na promoção de articulações necessária para
o fortalecimento de vínculos com o poder público.
Cabe esclarecer que dentro da perspectiva de gênero foi possí-
vel compreender que, nas ações socioeducativas oferecidas pelo Tra-
balho Social que envolve várias ações que iniciam antes da entrega
dos imóveis e continuam após a mudança dos beneficiários, teve a
participação efetiva de mulheres chefes de famílias. Sua participação
ocorre pelas qualidades que a mesma possui na relação de vínculos
afetivos estabelecidos com a família, na responsabilidade de garan-
tir abrigo, na manutenção do lar e, principalmente, pela persistên-
cia na luta pela aquisição da casa própria. A perspectiva no requisito

- 263 -
tem em vista as ações de titularidades ao gênero feminino, que traz
a oportunidade através de ações de apoio a inúmeras possibilidades
de emancipação nas interlocuções com os demais segmentos sociais
e políticas públicas.
Por fim, os resultados não objetivam encontrar verdades ab-
solutas e sim contribuir com novas possibilidades de reflexão sobre
o assunto ao que foi exposto. Sendo assim espera-se que este estudo
proporcione subsídios para elaboração de novos conhecimentos so-
bre o assunto abordado e o reconhecimento dos programas habita-
cionais como novos espaços de atuação do profissional de Serviço
Social na área habitacional.

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- 267 -
- 268 -
MULHERES VIOLENTADAS, QUEM SOMOS?
O perfil das mulheres que sofreram violência
doméstica no âmbito marital atendidas no
Primeiro Juizado Maria da Penha de Manaus.
Rayane de Oliveira Viana94
Iraildes Caldas Torres95

1 – INTRODUÇÃO
Este trabalho apresenta o perfil das mulheres que sofreram
violência doméstica no âmbito marital, atendidas no Primeiro Juiza-
do Maria da Penha, na cidade de Manaus. O período de abrangência
da pesquisa está circunscrito aos meses de maio a junho de 2016,
junto a uma amostra de usuárias do Juizado em apreço. Os proce-
dimentos metodológicos adotados estão pautados na abordagem da
pesquisa qualitativa e quantitativa, com base na observação direta e
análise de fichas de registro de atendimento. Dentre os resultados
constados, fica clara a existência de uma problemática crescente da
violência doméstica no âmbito marital, na qual está situado o ciclo
da violência em suas fases constitutivas. Deve-se concluir, por fim,
que estamos diante de uma grave situação de mulheres agredidas e
que vêm sendo atendidas pelo Juizado em questão, sobressaindo a
violência praticada por seus ex-companheiros.
A Violência Doméstica se dá de várias formas, sejam elas físi-
ca, psicológica, sexual, moral ou patrimonial, além disso, pode ocor-
rer entre membros do mesmo grupo familiar ou por aqueles que a
mulher em situação de violência possui uma relação de afinidade ou
afetividade. Esta violência é fundamentada nas relações de gênero
e poder entre homens e mulheres, assim como infringe os direitos
humanos fundamentais a vida.
As ocorrências de violência doméstica e familiar contra a
mulher são comuns no Brasil e em outros países, o que denota cer-
94 Assistente Social. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sus-
tentabilidade na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
95 Doutora em Antropologia Social pela Pontíficia Universidade Católica de São Paulo.
Professora Titular da Universidade Federal do Amazonas.

- 269 -
ta naturalização da violência doméstica que se constitui num ciclo
vicioso, que se expressa com altos índices no âmbito marital. Pou-
cas mulheres denunciam as agressões, menos ainda aquelas que dão
prosseguimento aos processos judiciais, tendo em vista que muitas
delas se sentem ameaçadas, com medo, se retraem por causa dos fi-
lhos, ou por pensarem que só ocorreu uma vez ou mesmo por não
quererem prejudicar o agressor.
Cavalcanti (2008, p. 51) chama a atenção para o fato de que “a
violência doméstica se fundamenta em relações interpessoais de de-
sigualdades e de poder entre mulheres e homens ligados por vínculos
consanguíneos parentais, de afetividade ou de amizade”. Tendo em
vista que o autor das agressões em sua maioria são os maridos, com-
panheiros ou ex-maridos e ex-companheiros, o ciclo da violência é
algo presente na relação entre vítima e agressor, na qual seu rompi-
mento se expressa através da denúncia e assim, gera-se o processo no
Juizado Especializado no Combate a Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher.
Desse modo, o trabalho propôs-se a identificar o perfil da mu-
lher que sofreu violência no âmbito marital atendida no Primeiro
Juizado Maria da Penha da cidade de Manaus, onde foi realizada
pesquisa na instituição junto a uma amostra de usuárias que partici-
param dos atendimentos em grupo e individual por parte da Equipe
Multidisciplinar, durante os meses de maio a julho de 2016.
Os instrumentais utilizados na análise dos dados e informa-
ções fornecidos foram as fichas aplicadas no acolhimento, as quais
foram submetidas a um tratamento estatístico, somado às observa-
ções diretas que fizemos no caminho do estágio durante as apresen-
tações do Projeto Maria Acolhe96 e as entrevistas realizadas nos aten-
dimentos individuais com usuárias.
É assim que este estudo assume fundamental importância na
compreensão e quem são essas mulheres que sofreram violência no
âmbito marital e decidiram romper o ciclo da violência a partir da
denúncia da agressão. Além disso, poderá contribuir de forma signi-
96 Projeto desenvolvido pela Equipe Multidisciplinar do Primeiro Juizado Especializado
no Combate à Violência Doméstica e Familiar contra à Mulher, para atender a demanda
institucional. É feito o acolhimento dos usuários no espaço de trabalho da Equipe Técnica,
onde ocorrem as apresentações, orientações e reflexões sobre a violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher e sobre o trâmite processual. Os encontros ocorrerão duas vezes ao
mês com datas específicas para Requerentes e Requeridos.

- 270 -
ficativa para a elucidação de fatores que concorrem para a violência
doméstica, ao mesmo tempo em que poderá colaborar para o forta-
lecimento e formulação de políticas públicas que levem ao monitora-
mento deste tipo de violência na cidade de Manaus.

2 – A CRESCENTE PROBLEMÁTICA DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA CONTRA A MULHER NO ÂMBITO
MARITAL
As agressões e maus tratos no âmbito da violência doméstica
constituem-se num tipo de violação dos direitos humanos, um des-
respeito à dignidade, segurança e integridade física e psíquica. No
que concerne a definição de violência, importa explicitar que há um
consenso entre os teóricos de que violência é tão somente uma ex-
pressão da manifestação de poder. É compreendida como ato brutal,
constrangimento, abuso, proibição, falta de respeito e discriminação,
invasão, ofensa, agressão física, psíquica, moral ou patrimonial con-
tra alguém, caracterizando relações que se baseiam ou não em na
intimidação pelo medo e pelo terror.
Em Arendt (1994), a definição de violência depende da com-
preensão do conceito de poder, que quando entendido como ins-
trumento de controle, faz existir um instinto de dominação. A au-
tora faz referência à abordagem de Sartre sobre violência, em que
“um homem sente mais homem quando se põe e faz dos outros um
instrumento de sua vontade o que lhe dar um prazer incomparável”
(ARENDT, 1994, p. 89).
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar
a Violência Contra a Mulher instituiu que a violência doméstica re-
presenta a violação contra dignidade da mulher, que se manifesta nas
relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres
e que se encontra em todos os setores da sociedade, independente de
classe, raça, grupo étnico, cultural, nível educacional, idade ou reli-
gião. É preciso, pois, eliminar a violência contra a mulher, para seu
desenvolvimento individual e social na luta pela sua equidade em
todas as esferas da vida.
Segundo o Art. 5º da Lei 11.340/2016, configura-se violência
doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão ba-
seada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual
ou psicológico e dano moral ou patrimonial, seja nos ambientes de

- 271 -
unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação ín-
tima de afeto.
As ocorrências dessa violência são comuns no Brasil e em ou-
tros países, o que denota certa naturalização da violência doméstica
que se constitui num ciclo vicioso, que se rompe quando denuncia-
do. Segundo Atlas de Violência de 2019, apenas em 2017, mais de
221 mil mulheres procuraram delegacias de polícia para registrar
episódios de agressão (lesão corporal dolosa) em decorrência de vio-
lência doméstica.
De acordo com o Mapa da Violência do ano de 2018, foram
noticiados 14.796 casos de violência doméstica em todas as unidades
federativas, dos quais o maior percentual de 58% correspondia aos
agressores eram os companheiros, sejam namorados, ex ou esposos,
enquanto 42% eram pais, avôs, tios e padrastos.
Segundo dados do Sistema de Segurança Pública do Amazo-
nas (SSP-AM), no primeiro mês de 2019 foram registrados 1.270 ca-
sos de violência doméstica comparado a janeiro do ano anterior, em
que houve 734 registros. Todavia, no ano de 2018 foram registradas
17,9 mil ocorrências de violência doméstica em Manaus, de janeiro a
novembro, contra 19,8 mil de igual período do ano passado.
A nossa pesquisa foi realizada junto ao Primeiro Juizado Es-
pecializado no Combate a Violência Doméstica e Familiar contra a
Mulher da cidade de Manaus, tendo por base as fichas de acolhi-
mentos de mulheres atendidas pela Equipe Multidisciplinar desta
instituição, no período de maio a julho de 2016. Realizamos o le-
vantamento estatístico da distribuição dos tipos de relacionamentos
afetivos no âmbito marital das mulheres em situação de violência
com os agressores, como mostra o gráfico a seguir:

- 272 -
GRÁFICO 01: Distribuição dos tipos de relacionamentos afetivos
das mulheres em situação de violência com os agressores

FONTE: Fichas de acolhimento usuárias do Primeiro Juizado Maria da Penha de


maio a julho, 2016.

Esta pesquisa constata que o maior percentual de agressores


enquadra-se no perfil de ex-companheiros (43%) das mulheres aten-
didas pela Equipe, seguida do percentual de companheiro (23%) e
posteriormente os maridos e ex-maridos com ambos percentuais
no valor de 17%, portanto, este tipo de violência ocorre com maior
frequência dentro do ambiente familiar, na maioria das vezes pelo
companheiro da vítima.
Nesse contexto, o agressor possui uma relação de convívio e
privacidade com a vítima, a hierarquia ou poder existente para prati-
car o ato, faz com que a violência se mostre uma situação complexa,
pois ela pode voltar a se repetir e posteriormente se agravar, podendo
até causar a morte da vítima.
Bourdieu (1995) assinala que esse sistema de dominação mas-
culina está estruturada socialmente nas ideias de propriedade, de
poder e determinação dos corpos, sobre a sexualidade e as condutas
sexuais dos gêneros não masculinos, sobre os territórios públicos no
mercado de trabalho e nos postos de decisão, direção e na política,
portanto, o poder patriarcal estrutura-se, assim, na desigualdade en-
tre os gêneros masculino e feminino.
Saffioti (2004) pontua que apesar das desigualdades entre ho-
mens e mulheres serem fruto do patriarcado, deve-se reconhecer que
este é um fenômeno social que está em permanente transformação.

- 273 -
Tem influência no sexismo cristalizado na sociedade, tendo, pois, na
culpabilização da mulher o seu ponto central.
Historicamente, a violência contra a mulher foi tratada como
assunto de esfera privada, pois “em briga de marido e mulher, nin-
guém mete a colher”. Esta naturalização e banalização da violência
permitiam a não intervenção da polícia, da Justiça ou da sociedade,
nem mesmo da própria família, pois não se reconhecia esta violação
dos direitos humanos, que afetava sua integridade física e psicológica
da mulher.

3 – AS TIPOLOGIAS E O CICLO DA VIOLÊNCIA


DOMÉSTICA NO ÂMBITO MARITAL
Como exposto anteriormente, as violências domésticas e in-
trafamiliares contra as mulheres são cometidas em sua maioria por
seus maridos, companheiros ou ex-maridos e ex-companheiros.
Desse modo, no contexto de violência no âmbito marital, parte-se da
compreensão que as mulheres nessa situação se encontram em um
ciclo de violência, que pode se expressar de forma lenta ou silenciosa
e pode progredir em intensidade e consequências.
Com a instituição da Lei 11.340/2006, configurou-se violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão
baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, se-
xual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, seja nos ambientes
de unidade doméstica, no âmbito da família ou em qualquer relação
íntima de afeto. O ciclo da violência apresenta três fases, na qual se
situam várias violências, com destaque à física, psicológica e moral,
porém não se desconsidera a ocorrência das demais.
A Violência Física é compreendida como qualquer condu-
ta que ofenda a integridade ou saúde corporal da mulher, ou seja,
qualquer agressão que deixe ou não marcas visíveis no corpo de uma
mulher, qualquer uso de força física que eu ofenda a saúde desta. Seja
estas agressões, tapas, socos, pontapés, chutes, empurrões, puxões de
cabelo.
A Violência Psicológica é identificada como qualquer conduta
que cause dano emocional e diminuição da autoestima que prejudi-
que o pleno desenvolvimento ou que vise desagradar ou controlar
ações, comportamento, crenças e decisões, mediante ameaça, cons-

- 274 -
trangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância cons-
tante, perseguição, insulto, chantagem (humilhação, constrangimen-
to, isolamento, vigilância, chantagem).
A Violência Moral é abrangida nos delitos contra honra da
mulher, seja ela calúnia, difamação ou injúria, pois são cometidos em
decorrência de vínculo de natureza familiar ou afetiva. Estes crimes
estão previstos e definidos nos artigos 138, 139 e 140 do Código Pe-
nal, contudo foram abrangidos pela Lei Maria da Penha.
O autor das agressões inicialmente não comete violência físi-
ca, mas parte de violências psicológica e moral, seja inibindo a liber-
dade individual da vítima ou a humilhando e a constrangendo. Desse
modo, a mulher tem sua psiqué abalada, expressa em sua autoestima
fragilizada, que posteriormente, tolera as agressões físicas. Segundo
Bernardino (2016), a violência psicológica em geral precede a física,
todavia, a primeira deve ser identificada independente de sua relação
com a segunda. A mulher vítima da agressão tende a aceitar, justifi-
car as atitudes do agressor e protelar a exposição de suas angústias
até a situação se tornar insustentável.
O ciclo da violência se inicia com a fase da tensão, em que
ocorrem as agressões verbais, crises de ciúmes, ameaças, destruição
de objetos, entre outros. A mulher percebe em seu companheiro um
comportamento mais agressivo e demonstra precaução com relação
a ele, geralmente evitando conflitos e negando qualquer abuso que
esteja ocorrendo, chegando a justificar a agressão que sofreu. A ten-
são fica insuportável e consequentemente acabam conduzindo à fase
dois.
Posteriormente, ocorre a fase da explosão em que a tensão
acumulada acaba motivando o incidente da agressão física. Mesmo
sendo considerada a fase mais curta, é nesta fase que ocorrem os ata-
ques mais graves, em que provavelmente a mulher negará a seriedade
dos danos que sofreu para acalmar o agressor e assegurar o término
desta fase.
A terceira e última fase, caracterizada como “lua-de-mel”, é
aquela na qual o agressor demonstra arrependimento pela maneira
que agiu, demonstra um comportamento gentil, calmo e atencioso,
além de afirmar que a situação nunca mais ocorrerá, o que reforça
na mulher a esperança da mudança no comportamento do compa-

- 275 -
nheiro. É durante esta fase que a probabilidade de a mulher fugir é
menor, pois normalmente ela sente-se encorajada a manter o rela-
cionamento com o agressor.
Ressalta-se que, na maioria das vezes, não há nenhum com-
portamento amoroso na terceira fase, apenas a ausência de agressões.
Além disso, há chances dessas situações pararem na fase da lua-de-
-mel e nunca mais ocorrer outra agressão, mas, por ser um ciclo, a
tendência é que retorne para a fase da tensão e assim sucessivamente,
portanto,

Essas situações tanto podem ocorrer da forma como foram des-


critas aqui, como podem nunca acontecer. Esse é apenas um
padrão geral que em cada caso vai se manifestar de modo dife-
renciado. Mas é importante conhecer o ciclo da violência para
ajudar as mulheres a identificá-lo, quando for o caso, e a impedir
que ele se reproduza (SOARES, 2005, p. 25).

Conforme a referida autora, o ciclo da violência costuma se


repetir, com episódios de violência cada vez mais graves e em inter-
valos menores entre as fases. Por isso, permanecer em uma situação
violenta sem procurar ajuda, seja de familiares, amigos ou de redes
de apoio, pode representar riscos com consequências graves, pois a
mulher que está nessa situação em geral precisa de apoio para que-
brar o silêncio e romper esse ciclo.
Entretanto, mesmo reconhecendo a situação em que se en-
contram, muitas mulheres ainda têm dificuldades de romper com
esse ciclo devido a uma série de fatores que ultrapassam a dependên-
cia emocional e/ou financeira, já que muitas das mulheres em situa-
ção de violência possuem falta de qualificação profissional ou escola-
ridade. Todavia, há aquelas que decidem romper esse ciclo por meio
da denúncia, desse modo, é relevante saber o perfil dessas mulheres.

4 – O PERFIL DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE


VIOLÊNCIA NO ÂMBITO MARITAL
Como supracitado anteriormente, o ciclo de violência possui
várias fases e a mulher inserida nesse contexto tem sua saúde mental
e física fragilizados. Desse modo, quando a vítima decide fazer a de-

- 276 -
núncia é o momento em que esta reconhece a necessidade de romper
com o ciclo. Na maioria dos casos, a denúncia ocorre quando atingi-
do o ápice do ciclo, com a violência física, cuja possui o maior índice
de registro de ocorrências.
A Lei Maria da Penha representou um grande avanço legis-
lativo no enfrentamento e prevenção da violência contra a mulher,
além disso, estabeleceu mecanismos e direcionamentos para as polí-
ticas e órgãos representativos na efetivação dos direitos das mulhe-
res. O artigo 14 da Lei 11.340/2006 instituiu a criação de Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência
civil e criminal.
Para traçar o perfil das mulheres atendidas no Primeiro Jui-
zado, procedeu-se ao levantamento estatístico das fichas de aco-
lhimento preenchidas pelas usuárias que participaram do Projeto
Maria Acolhe e que foram atendidas entre maio a julho pela Equipe
Multidisciplinar. No período de maio a julho, foram atendidas 100
usuárias com processo no Primeiro Juizado Maria da Penha que so-
freram violência doméstica no âmbito marital. Ou seja, foram levan-
tadas somente as fichas das requerentes que foram agredidas por seus
maridos, ex-maridos, companheiros e ex-companheiros.
A maioria das mulheres atendidas encontra-se entre as faixas
etária de 29 a 35 e 36 a 42 anos. Ressalte-se, a partir de Torres (2005),
que a violência doméstica atinge todas as classes sociais, etnias, e não
se expressa em apenas uma determinada faixa etária. Os gráficos a
seguir mostram o estado civil das mulheres atendidas no referido
Juizado, a saber:

Gráfico 02: Esrado Civil das mulheres

FONTE: Fichas de acolhimento usuárias de maio a julho, 2016.

- 277 -
Verificamos que 50% das mulheres têm o estado civil de sol-
teiras, informação obtida por ocasião dos atendimentos, em razão
do afastamento do agressor do lar por meio das Medidas Proteti-
vas de Urgência97, ou mesmo após a separação em circunstância da
violência sofrida. Contudo, como já constatado neste estudo, muitas
mulheres sofrem agressões após o fim do relacionamento ou sofrem
durante a relação e continuam sofrendo posterior a separação. Con-
forme o relato de Margarida98, 42 anos:

Hoje nós estamos separados desde final do ano [...] fui na dele-
gacia, a delegada gerou as Medidas Protetivas. Esse é o segundo
B.O, ela falou pra ele sair de casa, ele saiu, mas mesmo com a
medida, ele continua me ligando, me perturbando, mandando
mensagem, às vezes ele pede pra voltar, outras ele vem com gros-
seria me xingando e me ameaçando (Entrevista, 2016).

Além de descumprir as Medidas Protetivas de Urgência esta-


belecidas judicialmente para o resguardo da integridade de Marga-
rida, o seu ex-companheiro continua lhe agredindo moralmente e
psicologicamente. De acordo com Dias (2010), tais comportamentos
expressam o controle que o agressor quer manter sobre a vítima, fe-
rindo-a e atribuindo-lhe qualidades negativas à sua honra através de
injúrias e a isolando de sua vida social por meio de ameaças.
Identificamos ainda no gráfico 2 que 35% das mulheres
atendidas encontram-se em estado de união estável. Muitas dessas
mulheres resolvem renunciar à representação processual contra o
agressor e mantem a relação marital que, como demonstrado neste
estudo, são justificados em razão de ameaças/medo, dependências
emocional, financeira e para preservar a família.
Dias (2010) dirige uma crítica a ideia de família como entida-
de inviolável, pois estas mulheres possuem dificuldades em romper o
ciclo de violência, tornando-se um círculo vicioso. A própria vítima
passa a naturalizar tal situação na medida em que o silêncio e a au-
sência de ação para combater a violência faz com que o homem teste
seus limites de dominação.
97 As Medidas Protetivas de Urgência são medidas solicitadas durante o registro de ocor-
rência policial, com o propósito de proteger a mulher e evitar mais prejuízos decorrentes
da violência. São avaliadas e cedidas quando o juiz ou juíza concordam e com o pedido
feita pela vítima.
98 Utilizamos nomes de flores com o intuito de salvaguardar o anonimato das informantes.

- 278 -
Os gráficos seguintes apresentam a escolaridade e renda das
mulheres atendidas no Primeiro Juizado:

Gráfico 03: Escolaridade das mulheres

FONTE: Fichas de acolhimento usuárias de maio a julho, 2016.

Gráfico 04: Renda das mulheres

FONTE: Fichas de acolhimento usuárias de maio a julho, 2016.

- 279 -
Gráfico 05: Trabalho das mulheres

FONTE: Fichas de acolhimento usuárias de maio a julho, 2016.

O gráfico 05 confirma o que é exposto pelos gráficos 11 e 12,


em que 24% das mulheres informaram que estão desempregadas,
19% trabalham formalmente e 16% informalmente. Apesar do avan-
ço das lutas pela igualdade de direitos entre homens e mulheres con-
quistadas na Constituição Federal de 1988, ainda persiste a falta de
equidade salarial. As mulheres continuam ganhando menor salário
mesmo possuindo a mesma ou superior qualificação do que os ho-
mens (TORRES, 2005).
Muitas mulheres que sofrem violência nesse contexto en-
contram-se em situação de desemprego em razão de fatores como
o controle do companheiro ou ex-companheiro sobre a parceira ao
proibi-la de trabalhar ou estudar. Muitas delas durante o relaciona-
mento ficam com a responsabilidade de criação e cuidado dos filhos
enquanto o provedor da casa é o marido, ou mesmo quando estão
empregadas, perdem seus empregos por causa da violência.
A situação das mulheres que sofrem esse controle por parte
dos companheiros, advém da desigualdade e gênero existente entre
homens e mulheres, que segundo Blay (2014, p. 186), são expressas
na contradição de um sistema de sociedade que estabeleceu e na-
turalizou o homem associado ao trabalho e a esfera pública como
provedores da família, assim, instituindo superioridade às mulheres.
Margarida (47 anos) revela o seguinte:

- 280 -
Ele foi no meu trabalho umas três vezes, me acusava de ter outro,
tive que pedir liberação do meu chefe. Me afastei por um tempo,
ele (o chefe) achou melhor porque tava me prejudicando no tra-
balho. Mesmo depois da separação ele (o agressor) chegou ainda
ir lá atrás de mim, eu não vivo mais, tenho medo de sair de casa,
troquei até de número (Entrevista 2016).

Mesmo após a separação, Margarida sofria com constantes


violências psicológicas por parte de seu ex-companheiro por não
aceitar a separação, o que lhe fez se afastar do trabalho. Muitas mu-
lheres acabam se afastando de seus empregos por constrangimento
ou porque cedem as vontades do companheiro. A violência se deu
através da privação da vítima, através do isolamento e ameaças,
mecanismos utilizados pelo companheiro para exercer seu poder e
controle. Trata-se de valores e ações que interferem negativamente
no relacionamento do casal, o que se constitui em desigualdade na
relação homem/mulher.
Foucault (1999) denomina de poder disciplinar essa forma de
controle dos corpos dos indivíduos por meio de mecanismos de vi-
gilância que estabelece o poder disciplinar. Neste aspecto, os homens
dirigem-se às suas companheiras como objeto-propriedade e buscam
controlar seus corpos, disciplinando-as e vigiando-as. É assim que, o
agressor possui um poder sobre a mulher a qual agride, faz uso da
sua força física, poder econômico, passando a manipulá-la, violá-la e
agredi-la psicologicamente, moralmente e fisicamente.
A violência doméstica contra a mulher assenta-se nessa estru-
tura patriarcal que influencia toda a sociedade, fruto de noções de su-
perioridade masculina, poder do macho, historicamente construído.
Trata-se de um poder de complexos mecanismos de controle social
que oprimem e marginalizam as mulheres marcadas pela violência
física e psíquica. Para Sabadell (2005), a violência entre cônjuges ou
companheiros constitui uma das faces da violência familiar relacio-
nado aos valores patriarcais, na qual a mulher encontra-se controla-
da e vigiada.
Parece haver o desenvolvimento de uma estrutura social mas-
culina do ponto de vista cultural, não de indivíduos em particular,
que está pouco preparada para receber a rejeição feminina, no sen-
tido de que só ele quem pode rejeitar. Este modelo aparece de ma-

- 281 -
neira muito forte na violência contra as mulheres, porque quando
uma mulher desiste daquele homem e decide acabar com a relação, a
“honra” dele está manchada99. Essa “desonra” também ocorre quan-
do a mulher é que provê o sustento da casa e o homem se vê incapaz
quando está desempregado

5 – Considerações Finais
A violência doméstica contra a mulher tem se evidenciado
cada vez mais por meio de denúncias, principalmente no âmbito ma-
rital e após este, tendo em vista que os ex-companheiros são aqueles
que mais violentam as mulheres, o que chama atenção para o fato
de que a violência ocorre fora da relação na medida em que esses
ex-companheiros continuam controlando a vida de suas ex-compa-
nheiras.
As tipologias de violências que mais atingem as mulheres
(física, psicológica e moral) acabam confirmando o ciclo vicioso da
violência, no qual as mulheres são acometidas. Deve-se reconhecer
que as agressões passam a atingir seu ápice com violência física, pos-
teriormente vem a fase ‘Lua de Mel’, momento em que o agressor
demonstra arrependimento e promete mudanças, mas as agressões
voltam a acontecer.
No que tange ao perfil, a pesquisa revela que os maiores per-
centuais indicam as mulheres amostradas enquanto solteiras, com
baixa escolaridade, desempregas e sem renda, o que contribui a
dependência delas aos seus companheiros, quer seja econômica ou
emocional.
Torna-se mister que haja a desconstrução de valores tradicio-
nais que reforçam os papéis sociais desiguais de homens e mulheres
no intuito de construir novos parâmetros de relações entre os gêne-
ros, visando o respeito às suas especificidades e distinções. Assim,
as maiores representações de lutas pela igualdade entre os gêneros
feminino e masculino e o combate à violência doméstica contra a
mulher refletem nas lutas feministas e a partir da instituição da Lei
nº 11.340/06, assunto que enfocaremos a seguir.

99 HEILBORN, Maria Luiza. Link: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/vio-


lencias/violencia-domestica-e-familiar-contra-as-mulheres/. Acessado em 11/11/2016

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TORRES, Iraildes Caldas. A perspectiva de poder em Foucault e
suas conexidades com as relações de gênero. Revista Pensamento
& Realidade. 2011: e-ISSN: 2237-4418; ISSN Impresso: 1415-5109.

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SOBRE OS ORGANIZADORES

IRAILDES CALDAS TORRES


Possui graduação em Licenciatura Plena em Filosofia pelo
Instituto Superior de Filosofia, Teologia, Pastoral e Ciências Huma-
nas da CNBB (1987); Bacharelado em Teologia pelo Instituto Supe-
rior de Filosofia Teologia Pastoral e Ciências Humanas da CNBB
(1989); Bacharelado em Serviço Social pela Universidade Federal do
Amazonas (1991); Mestrado em Educação pela Universidade Fede-
ral do Amazonas (1998) e doutorado em Ciências Sociais/ Antropo-
logia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2003), e
Pós-Doutorado na Université Lumiére de Lyon 2, na França (2015).
Atualmente é professora associada da Universidade Federal do Ama-
zonas. Possui experiência nas áreas de Sociologia, Antropologia, Et-
nologia Indígena e Serviço Social atuando principalmente nos temas
de gênero e manifestações simbólicas; trabalho, movimentos e prá-
ticas sociais na Amazônia. Exerceu o cargo de Diretora da Editora
da Universidade Federal do Amazonas (EDUA) no período de 2009
a 2013. É Membro da Academia de Letras do Brasil. É Vice-Presi-
dente da ABEPPA - Associação Brasileira de Escritores e Poetas da
PAN- Amazônia. Atualmente é professora titular da Universidade
Federal do Amazonas e exerce o cargo de coordenadora do Progra-
ma de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia da Univer-
sidade Federal do Amazonas. Possui vários livros publicados,artigos
em periódicos especializados,capítulos de livros e outras produções
bibliográficas

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ROONEY AUGUSTO VASCONCELOS BARROS
Doutor e mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela
Universidade Federal do Amazonas. Possui graduação em Licen-
ciatura Plena em História pela Universidade do Estado do Amazo-
nas. Possui Especialização em Historiografia da Amazônia. Exerceu
a docência na Universidade do Estado do Amazonas e no Centro
Universidade do Norte. É Membro do Grupo de Estudo, Pesquisa e
Observatório Social: Gênero, Política e Poder (GEPOS) vinculados
ao CNPq e à Universidade Federal do Amazonas, com publicações
relevantes em livro, capítulos de livro em coletâneas e artigos em pe-
riódicos especializados. Sua área de interesse na temática de gênero
levou a desenvolver uma tese de doutorado no tema da sexualida-
de, erotismo e sedução, envolvendo múltiplas sexualidades, dentre
as quais aquelas da mitologia amazônica e das narrativas selvagens.
Atualmente exerce o cargo de Coordenador de Projetos da Secretaria
de Estado da Educação do Amazonas. Desenvolve pesquisa avançada
com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Ama-
zonas em cinco comunidades tradicionais do Baixo Amazonas. É um
dos organizadores da Coletânea Epifanias da Amazônia: Relações de
Poder, Trabalho e Práticas Sociais (Grafisa 2017).

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SOBRE OS AUTORES

ARTEMIS DE ARAÚJO SOARES


Atua no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia - PPGSCA como professora e Membro da Coordenação
para o biênio 2018/2020. É Professora Titular da Faculdade de Edu-
cação Física e Fisioterapia da Universidade Federal do Amazonas,
onde ministra disciplinas da área Socioantropológica e da Ginástica.
Graduada em Educação Física e em Letras pela Universidade Federal
do Amazonas (1973), com mestrado em Educação Física na Escola
de Educação Física e Esporte na Universidade de São Paulo (1981)
e doutorado em Ciências do Desporto na Universidade do Porto
(1999). Fez Pos-doc em Paris, na Université Paris-5 (Paris-Descar-
tes) e na Université Rennes 2. Foi professora visitante da Université
Rennes 2 em 2018/2019. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Edu-
cação Física, corporeidade, escolares, relações interculturais e povos
da Amazônia UFAM, atuando principalmente em temas relativos a
estudos socio-culturais-desportivos, povos tradicionais e ginástica
rítmica. É membro da Academia Amazonense de Letras ocupando a
cadeira num. 40 desde novembro de 2017.

CAMILA FERNANDA PINHEIRO DO NASCIMENTO


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
e sustentabilidade na Amazônia (PPGSS-UFAM). Pesquisadora do
Grupo de Estudos socioambientais e desenvolvimento de tecnologias
sociais na Amazônia (Grupo Inter-Ação). E-mail: camilanascimen-
to.seso@gmail.com. Temática Acadêmica: comunidades ribeirinhas,
saúde, atenção básica na Amazônia, questão socioambiental, gênero
e tecnologias sociais.

CARLIANE CASTRO SILVA
Assistente Social. Possui Especialização em Assistência Social
e Família – FAMETRO. Graduada em Serviço Social pela Faculda-
de Metropolitana de Manaus - FAMETRO. Temática Acadêmica:
Gênero e Política para Mulheres. TEMA: Serviço Social e a Política
de Habitação: O Trabalho Social no Programa Habitacional Minha

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Casa Minha Vida, como instrumento de acesso das mulheres à mo-
radia na Cidade de Manaus/AM.

DÉBORA CRISTINA BANDEIRA RODRIGUES


Doutora na área de Gestão da Inovação em Biotecnologia,
Professora associada do Departamento de Serviço Social e do Progra-
ma de Pós-graduação Serviço Social e Sustentabilidade na Amazônia
da Universidade Federal do Amazonas. E- mail: deb.band@gmail.
com. Temática Acadêmica: questões socioambientais na Amazônia;
conhecimentos tradicionais na Amazônia; pesquisa-ação; pesquisa
participante, cidadania - interdisciplinaridade, educação ambiental -
formação profissional e relação homem-natureza na Amazônia.

DIME ALEXANDRE LONDONO GOMES


Mestrando em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Uni-
versidade Federal do Amazonas/UFAM. Bolsista CAPES. Pós-Gra-
duação Lato-Sensu em Relações Internacionais e Geopolítica da Pan
Amazônia e Licenciado em Geografia (2015) ambos pela Universida-
de do Estado do Amazonas/UEA, Centro de Estudos Superiores de
Tabatinga/CESTB. É pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social
da Amazônia- PNCSA/NCSA/UEA- Núcleo Tabatinga-AM.

ELENILSON SILVA DE OLIVEIRA


Graduado em Licenciatura em Ciências Agrárias, pela Uni-
versidade Federal do Amazonas-UFAM. Possui Especialização em
Conservação dos Recursos Naturais, pela Universidade do Estado
do Amazonas-UEA. Mestrado em Ciências , pelo Programa de Pós-
-Graduação em Educação Agrícola-PPGEA, da Universidadde Fede-
ral Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Atualmente é Doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia
- PPGSCA, pela Universidade Federal do Amazonas-UFAM. É Pro-
fessor na área de Agricultura do Instituto Federal de Educação, Ciên-
cia e Tecnologia do Amazonas. Atua nas áreas de Ciências Humanas,
Sociais e Agrárias, realizando trabalhos nos campos da Educação em
Agroecologia, Educação do Campo, Fronteiras, Territorialidades,
História Oral.

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EVANDRO DE MORAIS RAMOS
Professor Associado IV, lotado na Faculdade de Artes da
UFAM. É Formado em licenciatura em Matemática pela UFAM;
Doutor em Tecnologias Educativas pela Universidade de Ilhas Ba-
leares/ES; e integrante do PPGSCA. Desde o mês julho/2017, atua
como Diretor do Centro de Educação a Distância (CED). Contatos
(92)99985-5270 evandromramos@hotmail.com.

EVELYN BARROSO PEDROSA


Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
e Sustentabilidade na Amazônia e Bacharel em Serviço Social da
Universidade Federal do Amazonas – UFAM. Pesquisadora do Gru-
po Interdisciplinar de Estudos Socioambientais e Desenvolvimento
de Tecnologias Sociais na Amazônia (Grupo Inter-Ação). E-mail:
evelyn_barroso_@hotmail.com. Temática Acadêmica: Questão so-
cioambiental, sustentabilidade, conhecimentos tradicionais e saúde.

FRANCILENE DOS SANTOS CRUZ


Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Socieda-
de e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
- UFAM. Mestra em Engenharia de Processos pela Universidade Fe-
deral do Pará /UFPA (2016), Especialista em Educação Matemática
pela Universidade do Estado do Amazonas e Licenciada em Mate-
mática pela Universidade do Estado do Amazonas, atualmente é Do-
cente do Curso de Matemática no Centro de Estudos Superiores de
Tabatinga - E-mail: franci_78sl@hotmail.com

GLÁUCIO CAMPOS GOMES DE MATOS


Doutor em Educação Física pela FACULDADE DE EDUCA-
ÇÃO FÍSICA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS.
Professor da Faculdade de Educação Física e Fisioterapia da Univer-
sidade Federal do Amazonas. Professor e Orientador de mestrado e
doutorado do Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na
Amazônia. Pesquisa atividades socioculturais em comunidades ama-
zônicas/ ribeirinhas: extrativismo animal (caça, pesca) e vegetal, cul-
tivo da terra e criação de animais; lazer e meio ambiente em comu-

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nidades ribeirinhas; relação homem e ambiente amazônico. Estuda
a Teoria de Norbert Elias: Processos Civilizadores, poder, figuração,
individualização no processo social, diferenciação social, processo
social.

HELOÍSA HELENA CORRÊA DA SILVA


Possui graduação em Serviço Social pela Universidade Fede-
ral do Amazonas. Mestrado, doutorado e pós-doutorado em Serviço
Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-
SP. É professora associada 4 da Universidade Federal do Amazonas
-UFAM, Departamento de Serviço Social e no Programa de Pós-Gra-
duação Sociedade e Cultura na Amazônia - PPGSCA. Coordenadora
do Grupo de Pesquisa Questão Social e Serviço Social no Estado do
Amazonas.

HILTON MARCOS ARAÚJO


Graduado em Licenciatura Plena em Matemática pela UFAM
(2005-2008) e Licenciatura Plena em Pedagogia com Ênfase em in-
terculturalidade. Pós-Graduação Lato Senso Especialista em Coor-
denação Pedagógica pela UFAM. Mestre em Sociedade e Cultura na
Amazônia pelo PPGSCA-UFAM, Atualmente moro em Benjamin
Constant, estudo, trabalho e vivo a 44 anos na região Amazônica do
Alto Solimões e na tríplice fronteira Peru/Brasil/Colômbia. Tenho
vasto conhecimento sobre os minicípios de Atalaia do Norte (Vale
do Javari), São Paulo de Olivença, Tabatinga, Benjamin Constant,
Letícia (Colômbia), Islândia (Peru) e Santa Rosa (Peru).

ILDETE FREITA OLIVEIRA


É professora Assistente da Universidade do Estado do Ama-
zonas/UEA Lotada no Centro de Estudos Superiores de Tabatinga/
CESTB, na mesorregião do Alto Solimões, Tríplice fronteira amazô-
nica Brasil, Colômbia e Peru. Doutoranda em Sociedade e Cultura na
Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas/UFAM. Mestre
em Educação pela Universidade Federal de São João del-Rei/UFSJ.
Especialista em Alfabetização e licenciada em Pedagogia, ambos pela
Universidade Estadual de Montes Claros/UNIMONTES. Membro

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dos Grupos de Pesquisa em Estudos e Pesquisas em Educação Esco-
lar Indígena e Etnografia e Questão Social e Serviço Social no Estado
do Amazonas (UFAM).

JARLIANE DA SILVA FERREIRA


Docente pesquisadora, Adjunto III no Instituto de Natureza e
Cultura – INC/UFAM, Licenciada em Pedagogia, Mestre em Educa-
ção (PPGE), Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia – PPGS-
CA/UFAM. Coordenadora do Programa Observatório da Educação
do Campo no Alto Solimões – OBECAS e do Laboratório Interdisci-
plinar de Pesquisa em Educação do Campo – LIPECAM/PROPESP/
UFAM. Atua na pesquisa, ensino e extensão nas seguintes temáticas:
educação do campo na Amazônia, formação de professores indíge-
nas e não indígenas, educação de jovens e adultos, estágios supervi-
sionados, história da educação.

JUNIOR PERES DE ARAÚJO


Graduado em Pedagogia pela Universidade do Estado do
Amazonas, mestrando do Programa de Pós-graduação em Socieda-
de e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas,
professor da Secretaria Municipal de Educação – SEMED Tabatinga.
LUIZ FLÁVIO SILVA PAIVA
Professor Dr. do Departamento de Ciências Sociais e do Pro-
grama de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal do
Ceará. Pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência da UFC.
E-mail: luizfabiocs@yahoo.com.br

MARIA AUXILIADORA COELHO PINTO


Mestra em Estudos Amazônicos pela Universidad Nacional
de Colômbia-UNAL, doutoranda em Sociedade e Cultura na Ama-
zônia pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do
Amazonas- UFAM. Docente da Universidade do Estado do Amazo-
nas - UEA. Grupo de Pesquisa: Educação e Diversidade Amazônica
- GPEDA/UEA. Atualmente desenvolve trabalhos na área indígena
e ribeirinha do Alto Solimões com ênfase em Educação, Histórias e
Culturas Amazônicas. E-mail: auxicoelho@hotmail.com.

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MARILENE CORRÊA DA SILVA FREITAS
Professora Titular do Departamento de Ciências Sociais da
Universidade Federal do Amazonas, desde agosto de 2017. Possui
graduação em Serviço Social pela Universidade Federal do Amazo-
nas (1975), Mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (1989) e Doutorado em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual de Campinas (1997), Pós-Doutoramento
na Université de CAEN e na UNESCO (2001-2002). Atualmente é
professora Titular da Universidade Federal do Amazonas e Coorde-
nadora do Laboratório de Estudos Interdisciplinares do PPGSCA.
Presidente da AFIRSE - seção Brasileira de (2007-2011); Secretária
de Estado de Ciência e Tecnologia do Amazonas (2003-2007); Rei-
tora da Universidade do Estado do Amazonas (maio de 2007- março
de 2010). Membro do Conselho Nacional do FNMA (2009-2011);
Membro por notório saber do Instituto de Desenvolvimento Susten-
tável Mamirauá (MCT); Membro do Conselho Superior da Funda-
ção Oswaldo Cruz; Membro do Conselho Editorial do Jornal Ciência
Hoje, publicação da SBPC, desde janeiro de 2013, Membro Eleito
do Conselho da SBPC, Área A, Região Norte, período 2011-2015 .
Professora, pesquisadora e orientadora dos Programas de Pós-Gra-
duação Doutorados e Mestrado Sociedade e Cultura na Amazônia,
Mestrado em Sociologia da Universidade Federal do Amazonas e
Agricultura no Trópico Úmido do INPA. Tem experiência na área
de Sociologia, com ênfase em Sociologia Contemporânea, atuando
principalmente nos seguintes temas: Amazônia, políticas públicas,
política científica, teoria sociológica, desenvolvimento socioeconô-
mico. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação Sociedade e
Cultura na Amazônia de setembro de 2012 outubro de 2016. Pre-
sidente do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (2016-
2018). E-mail: marilenecorreas@uol.com.br

MICHEL JUSTAMAND
Bacharel e Licenciado em História pela PUC/SP (1999); Habi-
litado em Filosofia (2001) e Sociologia (2002) pela PUC/SP; Mestre
em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP (2002); Licenciado em
Pedagogia pela UniNove/SP (2003); Doutor em Ciências Sociais/An-
tropologia pela PUC/SP (2007); Pós-Doutor em História pela PUC/
SP (2012); em Arqueologia pela UNICAMP (2017) e em Sociedade e

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Cultura pela UFBA. Orgulho-me por ter sido Professor de História
e Geografia no Ensino Fundamental e de História e Sociologia no
Ensino Médio da Rede Pública Estadual de São Paulo entre 1995 e
2009 e Professor Voluntário de História no Cursinho Pré-Vestibular
de Alunas e Alunos da PUC/SP, entre 1997 e 1999. Sou Professor
Associado I do Curso de Antropologia da Universidade Federal do
Amazonas/UFAM, no Alto Solimões, em Benjamin Constant, desde
2009; e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação So-
ciedade e Cultura na Amazônia/PPGSCA, desde 2014. Dirijo com
Gilse Elisa Rodrigues a Coleção Fazendo Antropologia no Alto Soli-
mões/FAAS desde 2012.

ODENEI DE SOUZA RIBEIRO


Professor Adjunto IV da Universidade Federal do Amazonas.
Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia (2012), Mestre em So-
ciologia pela Universidade Estadual de Campinas (1999), Graduado
em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Amazonas (1993).
Tem experiência na área de Pensamento Social, Teoria Sociológica,
Ciência Política. Desenvolve suas atividades junto ao Programa de
Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PGSCA) e no
Departamento de Ciências Sociais (DCiS) na Universidade Federal
do Amazonas (UFAM).

RAYANE DE OLIVEIRA VIANA


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Serviço Social
e Sustentabilidade na Amazônia pela Universidade Federal do Ama-
zonas – PPGSS/UFAM. Membro do Grupo de Estudo, Pesquisa e
Observatório Social: Gênero, Política e Poder (GEPOS), da Univer-
sidade Federal do Amazonas – UFAM. Possui especialização em Po-
líticas Públicas de Atenção à Família pela Faculdade Salesiana Dom
Bosco (FSDB). Graduada em Serviço Social pela Universidade Fede-
ral do Amazonas – UFAM. Temática Acadêmica: Políticas Públicas;
Gênero e Violência.

RENILDA APARECIDA COSTA


Doutorado em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do
Rio dos Sinos/Unisinos (2011). Atualmente é professora adjunta da

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Universidade Federal do Amazonas, atuando no Instituto de Filoso-
fia Ciências Humanas e Sociais, na área da Sociologia. Atua no Pro-
grama de Pós-graduação Sociedade e Cultura na Amazônia desde
2014. É coordenadora do Núcleo de Estudos Afro Indígena - NEAI/
UFAM. Tem experiência nas áreas de conhecimento da Educação,
Sociologia, Sociologia da Educação e Sociologia da Religião. Atuan-
do principalmente nos seguintes temas: Identidade Nacional Brasi-
leira, Identidade Étnico-racial e Educação, Constituição da Identi-
dade Religiosa na Amazônia, diálogo Inter-religioso e Religiões de
Matrizes Africana.

ROSEMARA STAUB DE BARROS


É docente associada (nível IV) da Universidade Federal do
Amazonas - UFAM, lotada desde (1990) na Faculdade de Artes/
FAARTES; Professora permanente do Programa de Pós-Graduação
Sociedade e Cultura na Amazônia/PPGSCA-UFAM. Possui dou-
torado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo - PUC/SP (2002), Mestrado em Artes (Mú-
sica) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho -
UNESP (1996) e graduação em Educação Artística (Música) pela Fa-
culdade de Artes Santa Marcelina (1980/1982). É líder do Grupo de
Estudos e Pesquisas em Música na Amazônia e do Grupo de Estudos
e Pesquisa em Processos de Criação em Arte.

ROSINÉA AUXILIADORA PEREIRA DOS SANTOS


Mestre em Letras pela Universidade Federal de Roraima.
Professora da Universidade do Estado do Amazonas - UEA. Pesqui-
sadora do Grupo de Pesquisa Educação e Diversidade da Amazô-
nia-GPEDA. Doutoranda do Programa da Pós-graduação em Socie-
dade e Cultura da Amazônia – PPGSCA da Universidade Federal do
Amazonas – UFAM.

SANDRA HELENA DA SILVA


Possui graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo (1998). Mestrado em Psicologia da Saú-
de pela Universidade Metodista de São Paulo (2005). Doutorado em

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Ciências do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável na Amazônia
pela Universidade Federal do Amazonas. Atualmente é Professora
Adjunta na Universidade Federal do Amazonas - Campus Parintins.
Coordenadora do Curso de Serviço Social. Professora Associada nos
Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Sustentabilidade
na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas e no Progra-
ma Pós-Graduação em Ensino das Ciências Ambientais. Desenvolve
projetos de pesquisa e extensão nas áreas de sustentabilidade, gênero,
trabalho, agricultura familiar e serviço social.

SELOMI BERMEGUY PORTO


Doutorando em Sociedade e Cultura na Amazônia/PPGSCA
(UFAM). Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/PPGSCA
(UFAM). Especialista em Gestão de Marketing em Serviço e Social.
Graduado em Administração pela Universidade Federal do Amazo-
nas (2011). Professor de Administração do Instituto Federal de Edu-
cação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). Com interesse
de pesquisa nos seguintes temas: Economia Solidária com ênfase no
Cooperativismo; Trabalho, emprego, ocupação e renda; Economia e
trabalho informal; Análise socioeconômica.
 
THAMIRYS SOUZA E SILVA
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço So-
cial e sustentabilidade na Amazônia (PPGSS-UFAM). Especialista
em Gestão de Políticas Públicas – FAMETRO. Bacharel em Serviço
Social. Pesquisadora do Grupo de Estudos socioambientais e desen-
volvimento de tecnologias sociais na Amazônia (Grupo Inter-Ação).
E-mail: thamyassocial@gmail.com. Temática Acadêmica: gênero,
questão socioambiental, organização sociopolítica e saúde.

VIVIANE DE OLIVEIRA ROCHA


Assistente social, Mestra em Serviço Social e Sustentabilida-
de na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Membro do Grupo de Estudo, Pesquisa e Observatório Social: Gêne-
ro, Política e Poder - GEPOS da Universidade Federal do Amazona.
Atualmente Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação
Hospital Adriano Jorge. Tem experiência nas áreas de Políticas So-

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ciais, atuando principalmente nos seguintes temas: Gênero, agricul-
tura familiar, políticas públicas.

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