Você está na página 1de 104

-1-

-2-
PROCESSO CIVILIZADOR
OCIDENTAL/EUROPEU,
TECNIZAÇÃO E
MODUS VIVENDI NA AMAZÔNIA
Experiência de campo sob a lente
figuracional/processual

A presente obra foi financiada pela

-3-
-4-
Gláucio Campos Gomes de Matos

PROCESSO CIVILIZADOR
OCIDENTAL/EUROPEU,
TECNIZAÇÃO E
MODUS VIVENDI NA AMAZÔNIA
Experiência de campo sob a lente
figuracional/processual

Embu das Artes - SP


2023
-5-
Comitê Científico - Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (ECA/USP - São Paulo/SP))
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Itacoatiara/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

-6-
Agradecimentos
Ao Dr. Nelson Matos Noronha, que viabilizou essa produção, na
condição de Coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Sociedade e Cultura na Amazônia.
À Fundação De Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas/
FAPEAM, por custear a produção.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior/CAPES, pelo apoio ao PPGSCA.
Ao Instituto de Filosofia, Ciências Humanas e Sociais/IFCHS, por
abrigar o PPGSCA.
À Pro-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade
Federal do Amazonas.

-7-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz Université de Versailles
Antônio Cattani UFRGS
Alfredo Bosi USP
Arminda Mourão Botelho Ufam
Spartacus Astolfi Ufam
Boaventura Sousa Santos Universidade de Coimbra
Bernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira UFC
Conceição Almeira UFRN
Edgard de Assis Carvalho PUC/SP
Gabriel Conh USP
Gerusa Ferreira PUC/SP
José Vicente Tavares UFRGS
José Paulo Netto UFRJ
Paulo Emílio FGV/RJ
Élide Rugai Bastos Unicamp
Renan Freitas Pinto Ufam
Renato Ortiz Unicamp
Rosa Ester Rossini USP
Renato Tribuzy Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza
-8-
Natureza, com ou sem humanos, segue
seu curso sem pedir licença.
Se uma espécie for extinta,
surge outra ou nenhuma.
Em sua irracionalidade,
isso não importa.

Gláucio Campos/ junho/22

-9-
© by Alexa Cultural

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor e Arte de Capa
Karel Langermans
Imagem de Capa
Gláucio Campos Gomes de Matos
Revisão Técnica
Iracema de Cássia da Silva Negreiros, Nelson Matos de Noronha e
Vanessa Pereira Araújo
Revisão de língua portuguesa
Gláucio Campos Gomes de Matos
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M433 - MATOS, Gláucio Campos Gomes de

Processo Civilizador Ocidental/Europeu, Tecnização e Modus Vivendi


na Amazônia: Experiência de campo sob a lente figuracional/processual.
Manaus: EDUA; São Paulo: Alexa Cultural, 2023.
14x21cm -104 páginas
ISBN - 978-85-5467-325-3

1. Sociologia - 2. Antropologia Social - 3. Ecologia - 4. Cultura - 5.


Amazônia - I- Sumário - II Bibliografia

CDD - 300/301

Índices para catálogo sistemático:


1. Antropologia Social
2. Sociologia
3. Ecologia

Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610


É proibida a reprodução parcial ou integral sem a autorização das organizadores

Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do


Rua Henrique Franchini, 256 Amazonas
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos,
alexa@alexacultural.com.br n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM
alexacultural@terra.com.br Campus Universitário Senador Arthur Virgilio
www.alexacultural.com.br Filho, Centro de Convivência – Setor Norte
www.alexaloja.com - 10 - Fone: (92) 3305-4291 e 3305-4290
E-mail: ufam.editora@gmail.com
DEUS DA FARTURA
LUZES SOBRE NARRATIVAS AUTOCTONIA DE
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA1
Gláucio Campos
1

Bela, deitada e adormecida,


Eis como és conhecida, pelos outsiders,
Que lhes contemplam e registram ima-
geticamente.

O Deus da Fartura, público entre os


grupos estabelecidos
(Bahsebo, pelos Tukano e Tuyuca; Kalli,
pelos Baniwa; Wanalli, pelos Tariano;
Barribo, pelos Dessano, conforme a
narrativa tradicional),
no fundo, em sua posição solitária,
galanteia suas esposas, que a cadeia
de montanhas, em uma perspecti-
va ilusionista, deu-lhes a silhueta de
mulheres deitadas.
Agora, agonizando na dor, vê transfor-
mações de seus originários filhos da ter-
ra, cujo o nome, com os anos de contato,
se esfacelou da esfera mnemônica,
porém, São Gabriel da Cachoeira, assim
foi registrada.

É, então, que a natureza, sensível e con-


dolente, sopra nuvens ou faz neblinar e
o véu se forma, ofuscando o observador,
ver o Deus da Fartura, amargar suas afli-
ções junto às companheiras seculares,
diante a tantas alterações das tradições.
Mas, o que poucos sabem, é que essa
ocasião, forças místicas movem o trio
amoroso para usufruírem dos momen-
tos de intimidade, com privacidade.
1 - Sobre a Mitologia do Deus da Fartura: Contribuição de Joscival Vasconcelos Reis (Tukano) e Donato Mi-
guel Vargas (Karapana)
- 11 -
A natureza, sábia em seu tempo,
lentamente descortina a cadeias de monta-
nhas, e a normalidade aparente, volta a se
revelar.

O Deus da Fartura, revigorado, em silêncio,


inatacável, forte, porém, flexível e
guardião do saber fazer, jamais desistirá,
pois os costumes ancestrais
(manejo a terra, cultivo da roça e relações
sociais)
dos filhos originários,
na esfera mnemônica, ele os ostentará.

S.G.C./AM/maio/2023

- 12 -
Sumário

Apresentação 15

Introdução 19

I MODUS VIVENDI PECULIAR A AMAZÔNIA 27


a) Dinâmica das figurações e processos de mudanças 41
b) Tecnização, práticas socioculturais e civilização 47

II SOBRE O PROCESSO CIVILIZADOR OCIDENTAL EUROPEU


NA AMAZÔNIA AUTOCTONIA 59
a) No contexto da história, o projeto intencional do
processo civilizador ocidental europeu na Amazônia. 63
b) Da carta de Pero Vaz de Caminha de 1500 e seu
desdobramento, Novo Mundo. 68
c) Olhares do processo civilizador ocidental/europeu na o
cupação colonial da Amazônia 69
1) Francisco Orellana e Padre Gaspar Carvajal (1542)
a descoberta do rio Amazonas. 70
2) Padre Cristobal d´Acuña na expedição Pedro
Teixeira no seu regresso de Quito ao Pará, em 1639. 71
3) O diário do padre Samuel Fritz 76
d)Conexões: contribuições da arqueologia e outras áreas 78

III O PROJETO CIVILIZADOR OCIDENTAL EUROPEU


INSTITUCIONALIZADO NA AMAZÔNIA AUTOCTONIA E
REGISTROS DE MUDANÇA DE COMPORTAMENTO DOS
AUTÓCTONES, AOS MOLDES OCIDENTAIS. 81
1) La Condamine 81
2) Padre João Daniel 82
3) Diretório dos Índios 82
4) Spix e Von Martius 84
5) Manaus e o Código de Postura 84
6) Louís Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz 85
7) Soares d´Azevedo 86
8) Estado brasileiro e a legislação para educação indígena 88
- 13 -
IV DOS ACHADOS DA PESQUISA ÀS CONSIDERAÇÕES 91
1) Fatores que contribuíram para intervenção dos
colonizadores na incrementação do modelo ocidental europeu 92
2) O projeto civilizador ocidental europeu desencadeou
dependência ao mesmo 92
3) Fatores que contribuíram para revitalização autóctone e a
mudança de direção do processo exclusivamente ocidental
europeu 93
4) Na contemporaneidade, a imbricada relação do processo
social sócio civilizacional ocidental europeu e autóctone 93

Considerações Finais 95

Referências Bibliográficas 97

- 14 -
APRESENTAÇÃO

O Professor Gláucio Campos Gomes de Matos, licenciado


em Educação Física pela Universidade Federal do Amazonas,
com mestrado e doutorado pela Universidade Estadual de Cam-
pinas/UNICAMP, lança-se ao desafio de superar os ditames de
sua área de formação. É o que podemos ver na obra e em outros
escritos que apresentamos aqui.
Da experiência de uma vivência que vai, da infância à
adolescência, pelo interior do Amazonas, traz à lume, agora na
posição de pesquisador, escritos sob os vieses da antropologia
social e da ecologia humana, na perspectiva da sociologia pro-
cessual/figuracional de Norbert Elias e Johan Goudsblom, que
buscam analisar processos sociais de longo prazo como ocor-
rem na Amazônia.
Em 2013, seu credenciamento no Programa de Pós-gra-
duação em Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade
Federal do Amazonas, permitiu criar a disciplina Processos Civi-
lizadores e Práticas Socioculturais em Comunidades Amazônicas,
com aplicação nos Polos de Benjamin Constant, Tabatinga, Pa-
rintins e, em 2023, em São Gabriel da Cachoeira/AM, o municí-
pio com a maior diversidade étnica do Brasil.
Em 2015, cria a disciplina Norbert Elias e Intérpretes: es-
critos sob o viés do processo civilizador; em 2016, cria a disciplina
Norbert Elias: Sobre o Tempo, Teoria Simbólica, Os Estabelecidos e
Os Outsiders, A Condição Humana e Norbert Elias Por Ele Mesmo.
Inquieto com a questão a ele colocada: “como você vai lidar com
os escritos de Norbert Elias no universo Amazônico?”, responde a
essa indagação na obra Ethos e Figurações na Hinterlândia Ama-
zônica, publicada em 2015/FAPEAM/VALER. Mostra, numa pers-
pectiva figuracional, a aplicação da teoria de Norbert Elias e das
contribuições de um dos seus mais brilhantes seguidores, Johan
Goudsblom, no universo empírico amazônico.
Em 2016, na revista Somanlu/dez. 2016, lança o primeiro
dossiê proveniente das disciplinas citadas e os escritos, a partir
de Norbert Elias, que foram apresentados no Grupo de Trabalho
- 15 -
Processos Civilizadores na Panamazônia, em novembro de 2016,
no II Seminário Internacional Sociedade e Cultura na Amazônia,
organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociedade e
Cultura na Amazônia (PPGSCA), da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM).
Em 2017, institui o Grupo de Pesquisa Processos Civilizado-
res Na Pan-Amazônia/GPPCPAM. Em 2018, junto com Grupo de
Pesquisa Processos Civilizadores na Pan-Amazônia, coordena o
I Simpósio Processos Civilizadores na Pan-Amazônia/SPCPAM e,
em 2020, o II SPCPAM. Organizou a coletânea intitulada Estudos
a Partir da Teoria de Norbert Elias/Alexa Cultural/EDUA/2020.
Em 2023, lança o e-book Reflexões a Partir de Norbert Elias e
Tributo a Johan Goudsblom. Alexa Cultural/EDUA/2023.
Avançando nos estudos de Norbert Elias e Johan Gouds-
blom, publica, em 2020, o artigo Norbert Elias para o Pensa-
mento Social e a Compreensão da Gênese do Processo Civilizador
Ocidental na Amazônia/Amazonas (2020). Na Conference ‘Long-
Term Processes in Human History: A Tribute to Johan Goudsblom’,
Amsterdam, 17-19 March 2022, defende o trabalho intitulado
“The Western Civilizing Process in the Brazilian Amazon”.
Em 2022, de onde saem os escritos publicados na pre-
sente obra, apresenta sua conferência O Processo Civilizador
Ocidental na Amazônia Autoctonia, mesa de abertura no XIX
SIMPÓSIO INTERNACIONAL PROCESSOS CIVILIZADORES SALVA-
DOR/BAHIA/BRASIL, 2022. Com essa intervenção, o professor
Gláucio Campos inaugurou, no Programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia, uma nova abordagem de
pesquisa, sustentado pela sociologia figuracional/processual,
numa perspectiva de longo prazo, para estudos amazônicos.
Dito isso, a obra em questão está sustentada por uma análise
processual/figuracional, dividida em dois temas, que marcam a
trajetória desse pesquisador.
O primeiro alude ao MODUS VIVENDI AMAZÔNICO, capta-
do por meio da pesquisa de campo, de sua tese de doutoramento,
e ao acompanhamento das mudanças ocorridas nas práticas so-
cioculturais de moradores de comunidades amazônicas, ao longo

- 16 -
dos anos, com a incorporação de novas tecnologias, associadas ao
incremento de mais energia e a suas redes de interdependências
funcionais ampliadas, dadas as novas figurações que se formaram.
A segunda parte trata de uma pesquisa documental e bi-
bliográfica, aliada à observação de campo, que traz à lume a tese
de um processo civilizador ocidental/europeu, colocado inten-
cionalmente sobre os povos do Novo Mundo e incrementado
na Amazônia brasileira. Segundo o autor, em sua autoimagem,
o colonizador se apropria das palavras “civilizado” e “civiliza-
ção” na forma, como ainda se emprega hoje, valorativa. Com
essa concepção, os povos originários amazônicos foram consi-
derados incivilizados, desencadeando, para o colonizador, uma
grande missão: a de os civilizar. Porém, o reverso da moeda se
evidencia, ao se analisar os escritos do padre Gaspar Carvajal,
os do padre Cristobal d´Acuña, e o diário do padre Samuel Fritz
entre outros. Esses escritos revelam que a população autóctone
da Amazônia, às margens dos rios, por onde passavam os cro-
nistas viajantes, alcançava cerca de oito mil a dez mil indivíduos.
Essas povoações, posteriormente denominadas pela ar-
queologia Grandes Cacicados, mostram-se uma complexa orga-
nização social, com normas de convivência, interdependência
funcional, relações de poder, diferenciação social, mecanismos
de controle e muito mais; o que leva o autor a compactuar com
Norbert Elias e Johan Goudsblom, a tese de que não há gru-
pos humanos a viver inteiramente sem normas. Essa assertiva,
Gláucio Campos a aplica à Amazônia, cuja população, em seu
regime ecológico, antecedente à colonização, possuía normas
sociais em relação com a natureza.
Como pode ser visto nas pesquisas de Gláucio Campos,
que têm como referência o município de São Gabriel da Ca-
choeira/AM, o projeto intencional de civilizar os autóctones da
Amazônia não se consolidou hegemonicamente e é no mesmo
processo que esses grupos, hoje, dialogam com a sociedade oci-
dental e se encontram numa balança de poder mais equilibra-
da. Resilientes, por força do habitus, não perderam sua língua e
nem outros costumes.

- 17 -
Num procedimento às cegas, como se apresentam outros
processos sociais de longo prazo, em julho de 2023, a constitui-
ção do Brasil de 1988, foi lançada em São Gabriel da Cachoeira,
escrita em Nheengatu. Nessa perspectiva, apresentamos esta
obra, na qual se encontra a tese de que um processo civilizador
ocidental/europeu foi posto na Amazônia, do qual a conclusão
está fora do alcance da vista, sem que, a despeito de sua abran-
gência e de sua eficácia, tenha alcançado a hegemonia sobre os
povos da região. Constata-se que os autóctones dependem e
estão inseridos nele, mas preservam o legado de suas normas
culturais, cosmologias, rituais, cantorias e muito mais.
Esta publicação teve o apoio da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado do Amazonas – FAPEAM. Apoio que tem sido
crucial para a consolidação dos programas de pesquisa à pós-
-graduação que, como o PPG Sociedade e Cultura na Amazônia,
são indicadores da ressignificação da noção de “processo civili-
zador”, onde a “civilização” seja figurada a partir do protagonis-
mo dos povos originários.

Nelson Matos de Noronha


PPGSCA/UFAM

- 18 -
Introdução

A
s reflexões, acompanhadas de imagens, que compõem
a presente obra, expressam a experiência de campo que se deu
entre rios, florestas e comunidades amazônicas, das quais re-
gistramos as não indígenas e indígenas, na perspectiva proces-
sual/figuracional.
A Amazônia Legal1 é constituída, geopoliticamente, pelos
estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondô-
nia, Roraima e Tocantins) e parte do Estado do Maranhão, con-
vivem com suas particularidades sociais/culturais, ambientais,
porém, não escaparam do processo civilizador ocidental, da tec-
nização e a incorporação de mais energia, em seu modo de vida.
Vislumbrar o Amazonas, do ponto de vista processual,
nos exige um nível de distanciamento e uma abordagem em re-
trospectiva, dando condições de vê-lo numa dinâmica, da qual
difere-se da visão em posição estática.
Ao pesquisador, de onde for, nesse universo de rios e flo-
restas, habitada por humanos e não humanos, um esclareci-
mento para não ser ofuscado pelo envolvimento,

Envolto a uma diversidade de costumes, na relação com uma


natureza excêntrica, de uma sociedade multiétnica, que a vi-
vência no dia a dia dificulta enxergar pormenores aparente-
mente insignificantes, porém, preciosos para interpretar o ob-
jeto a ser interpretado, o olhar distanciado permite registrar
com cuidado.
Agora, longe do campo observado, é momento de ruminar o
assimilado, descortinar, interpretar, grafar e deixa-lo no ponto
de ser degustado.
(Gláucio Campos – aos pesquisadores (as) de são Gabriel da
Cachoeira e um exercício para si mesmo. Maio/2023)

1 A Amazônia Legal corresponde à área de atuação da Superintendência de Desenvolvimen-


to da Amazônia – SUDAM delimitada em consonância ao Art. 2o da Lei Complementar n. 124, de
03.01.2007. Teve a finalidade promover o desenvolvimento includente e sustentável de sua área de
atuação e a integração competitiva da base produtiva regional na economia nacional e internacional.
(fonte: https://www.ibge.gov.br/geociencias/cartas-e-mapas/mapas-regionais/15819-amazonia-
-legal.html. Acesso 04/07/2023)

- 19 -
Em Ethos e Figurações na Hinterlândia Amazônica (MA-
TOS, 2015), apresento o modo de vida de comunidades ama-
zônicas não indígenas, que exibem, em várias atividades de seu
cotidiano, conhecimentos herdados da tradição autóctone, que
mostra a fragilidade, em tempos contemporâneos, organiza-
rem-se sob a forma do regime ecológico, que em situação de
desequilíbrio no ecossistema, há riscos aos humanos que vivem
dele e os não humanos que vivem nele.
Para exemplificar, destaco o caso dos yanomani do estado
de Roraima/AM, que tornou público em fevereiro de 2023. A so-
ciedade brasileira e internacional, pode acompanhar, por meio da
mídia2 e redes sociais, os efeitos da exploração do ouro no seu mo-
dus vivendi, ao afetar os principais ambientes de onde retiravam
seus sustentos, as florestas e rios. O ecossistema em desequilíbrio,
para uma sociedade que vive da caça, pesca e cultiva o solo, como
podemos acompanhar, coloca seus moradores em risco de vida. A
intervenção do Estado, se mostrou essencial, na situação proble-
ma, desencadeada pela exploração exagerada de ouro.
O caso dos yanomami incita ponderações sobre a Amazô-
nia, servindo-nos de aprendizagem e nos alerta, numa perspec-
tiva macro/global. Permite-nos a refletir, que a biosfera3 (hi-
drosfera, litosfera e atmosfera), habitat de nós seres humanos,
quando em desequilíbrio por forças antrópicas, desencadeia
consequências àqueles, que em sua racionalidade a espoliaram,
isto é, nós humanos, e àqueles não humanos.
Água, ar e terra, também, tornaram-se os meios de se
chegar, explorar e habitar, em proporção cada vez maior, os bio-
mas que constituem a Amazônia. Numa dimensão já mais vista,
ações antrópicas têm mexido com os elementos naturais, em
sua posição de equilíbrio. Para os Autóctones, que aprenderam
secularmente, na experiência de processos ecológicos, a convi-
ver com o que eles designam de Mãe Natureza, clamam para
uma maior humanização global, em atenção a ela.
2 https://amazoniareal.com.br/ouro-do-sangue-yanomami/ (Ouro do sangue Yanomami); https://
mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/rr-invasao-de-posseiros-e-garimpeiros-em-terra-yano-
mami/; https://noticias.unb.br/112-extensao-e-comunidade/6305-garimpo-ilegal-destruicao-da
-natureza-e-violencia-o-inferno-novamente-infligido-ao-povo-yanomami
3 Para compreender conceitos ecológicos, consultar a obra “Ecologia de Populações e Comunidades”

- 20 -
Amazônia, tema do dia, no palco das discussões ambien-
tais, exige um olhar sensível para as Conexões entre política,
ciência, tecnologia, etnoconhecimento, ecologia humana, reli-
gião, dentre outros, àqueles imbricados à Condição Humana, a
de se perceber, antes de tudo, um ser naturalmente constituído
e que precisa, entre outras coisas, da natureza para manutenção
da vida e por extensão, a vida dos não humanos em suas rela-
ções ecológicas.
Um esforço universal, necessita, do Homo sapiens, habi-
tante da Casa Comum4, em especial, a sociedade Ocidental, é im-
bricar na base de sua ou de nossa constituição, a compreensão
de que somos natureza e dela precisamos para manutenção da
espécie humana nesse planeta designado Terra. Fica dito, que
essas reflexões se dirigem, exclusivamente, ao ente biológico,
cujo diferencial, é, dentre outras qualidades, ser reflexivo para
inflexão. O regime ecológico não se restringe aos autóctones
amazônicos. Tudo o que aqui foi dito ou andam dizendo ou fa-
zendo por aí, para a Natureza, única, irracional e muito menos
vingativa, isso não importa.
Se uma espécie for extinta, surge outra, ou nenhuma. Para
a natureza, isso não importa. Em sua atemporalidade cega, sem
objetivo e rumo definido, abalos, catástrofes e desequilíbrios
naturais, interessam exclusivamente aos humanos. As relações
ecológicas se mostram necessárias para manutenção de equilí-
brios, a permitirem determinadas espécies sobreviverem, entre
elas, a humana, que habita o planeta Terra, a qual, hoje, mais do
que antes, dado a dinâmica das figurações, está sob a força das
interdependências funcionais, em esfera global e a Amazônia
Natureza, constituinte de seres bióticos e abióticos, está sob a
consequência de catástrofes naturais e não dá atenção a ações
antrópicas, porém, estas, afetam seus causadores, isto é, os hu-
manos e por extensão, os não humanos.
Dito isso, o acontecimento da exploração do ouro na área
yanomami, serve-nos de exemplo para mostrar o quão somos
responsáveis ou coautores, em muito, de ações antrópicas, que
4 Em referência Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o cuidado da Casa Co-
mum

- 21 -
acabam por provocar desequilíbrios em ecossistemas. Para isso,
invoco o conceito de figuração, segundo Norbert Elias (1980),

Quer dizer que os seres humanos são interdependentes. Um


dos aspectos mais elementares e universais de todas as con-
figurações humanas é o de que cada ser é interdependente
– cada um se pode referir a si mesmo como eu e aos outros
como tu, ele, ou ele, nós, vós ou eles. Não há ninguém que nun-
ca tenha estado inserido numa teia de pessoas. (ELIAS, 1982,
p. 139)

Elias, complementa, que os seres humanos, em virtude de


sua interdependência fundamental uns dos outros, agrupam-se
sempre na forma de figurações específicas. (ELIAS, 2006, p. 26).
A figuração que sustenta a exploração do ouro se mos-
trava turva a muitos que, direta ou indiretamente, a sustentam.
Interceptada por órgãos fiscalizadores do governo, os primei-
ros a serem diretamente atingindos foram os garimpeiros, tidos
como os perversos. Na sequência das investigações, empresá-
rios foram identificados, juntamente com empresas internacio-
nais. Porém, não se revelou o consumidor. Aquele que coloca em
movimento a extração do ouro. Na interdependência funcional, é
o consumidor, a colocar em movimento, a figuração da extração
do ouro, que seja legal ou ilegal. Para sacramentar o rito matri-
monial, a aliança, na preferência de muitos, deve ter uma maior
quantidade de quilates de ouro; possuir o anel de ouro, de doutor,
é um diferencial; expor a vaidade por meio de brincos, cordões e
outros adereços, tem mantido a exploração do ouro.
A Carta de Pero Vaz de Caminha, de 1500, é o primeiro
documento oficial de que se tem conhecimento, encaminhado à
Corte Portuguesa, dando notícias que as novas terras eram po-
tencialmente um lugar desse mineral precioso, já conhecido na
Europa e não menos pelos os originários filhos da terra. Assim,
a busca pelo ouro deu-se início, perdurando aos dias atuais.
Portanto, a exploração do ouro, com novos artefatos
tecnológicos e a incorporação de mais energia (GOUDSBLOM,

- 22 -
2006), que provocou desequilíbrio no sistema e abalou o regime
ecológico yanomami, estava sendo sustentado por uma grande
rede de indivíduos. No Amazonas, por extensão a Amazônia, a
extração da madeira (foto 01) é outro exemplo de intervenção
humana que mexe com o ecossistema local e provoca o desequi-
líbrio a ele, porém, o véu dificulta aos indivíduos, ligados nessa
rede, entenderem sua posição, no que coloca em movimento a
derrubada da floresta para o uso da madeira, plantio da soja,
formação de pasto para gado, dentre outros fins, que tem ser-
vido a nós humanos e ao que beneficiamos e produzimos, para
servir-nos em rede de consumidores, é o que busco mostra no
artigo intitulado, “El medio ambiente bajo el prisma de los pro-
nombres personales como modelos figuracionales” (MATOS,
2022).

Foto (01): Transporte de madeira em tora pelo Paraná do


Ramos/município de Boa Vista do Ramos/AM.
(Arquivo do autor)

- 23 -
A imagem, destacando o montante de madeira em toras,
extraída da floresta amazônica, é para dizer que, ninguém foi
ou é, autuado, multado ou cerceado sua liberdade, por um dis-
túrbio de personalidade ou outro problema psicológico, a ficar
desflorestando a região. O que há por trás, é uma rede, incluin-
do os consumidores, que sustenta tal prática. Dessa forma, figu-
rações complexas, segundo Elias (1980), devem ser abordadas
de forma indireta, no qual os pronomes pessoais como modelos
figuracionais – eu, tu, ele, eles, elas, nós, vós – contribuem para
ver nossas posições nas redes.
Do regime ecológico vivido pelos os autóctones, os ama-
zônidas, miscigenados com portugueses, africanos, indígenas,
nordestinos e entre outros que migraram para o Amazonas,
moradores de comunidades rurais, afastadas de centros urba-
nizados ou não, incorporaram mais energia e tecnologia, permi-
tindo desenvolverem suas práticas socioculturais em ambien-
te terrestre e aquático, acompanhando o tempo cíclico que se
expressa na a evolução das águas – enchente e vazante do rio
–, culminando com o período chuvoso ou de estiagem, que inci-
dem em seu modo de vida.
Permeando o cotidiano, uma exigência do Estado brasi-
leiro, se dá na atenção a educação, como direito de todos e de-
ver do Estado, destinada a crianças e jovens amazônidas.
Em outro momento, no artigo “Educação em comunida-
des amazônicas”, Matos e Rocha Ferreira (2019), destacam que
nesse universo, a formação dos indivíduos, acontece na con-
comitância de uma educação não formal, aquele passada por
sucessivas gerações, no seio da comunidade, com ênfase ao et-
noconhecimento e a educação institucionalizada, de responsa-
bilidade da escola, que molda o comportamento, no modelo do
processo civilizador ocidental, é o que se registra,

Em visita a escolas infantis, quer estejam situadas na capital


do Estado, nas sedes dos municípios e, por extensão, em área
rural, quer sejam de não indígenas quanto de indígenas, cons-
tatam-se os instrumentos civilizadores. A escola no Amazonas,
independente do espaço situado é, antes de tudo, modeladora

- 24 -
de comportamento. Fixado em quadros ou em paredes, pala-
vras de boas maneiras são destacadas: bom dia, boa tarde, boa
noite; com licença; obrigado; por favor (MATOS, 2015, p.39).

Aprende-se o conteúdo do português, matemática,


história e todas matérias da grade curricular, porém, segundo
Matos (2015), espera-se que crianças e jovens, se tornem in-
divíduos refinados e polidos, com condutas exemplares e boas
maneiras, no convívio social, ao molde ocidental europeu.
Destarte, o trabalho apresentado, envolve dois momen-
tos de pesquisa. O primeiro, é resultado de minha pesquisa de
doutorado, que teve ênfase qualitativa e aporte da etnografia,
com trabalho de campo, entrevistas de informantes, observa-
ção participante, entre outras exigências do método, o distan-
ciamento. Norteado pelos preceitos teóricos de Norbert Elias e
Johan Goudsblom, se desdobrou na publicação da obra Ethos e
Figurações na Hinterlândia Amazônica.
Incluo, também, nesse trabalho, resultados de pesquisas
apresentados no Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cul-
tura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas, da
sede e do município de São Gabriel da Cachoeira, cujo pesquisa-
dores, são membros do Grupo de pesquisa processos civilizado-
res na Panamazônia.
O segundo momento, amparado à experiência de campo,
os avanços na teoria do processo civilizador e o material pro-
duzido, dentre eles o trabalho “Pan-Amazônia sob o viés do
Processo Civilizador (2016)”, “Norbert Elias para o Pensamen-
to Social e a Compreensão da Gênese do Processo Civilizador
Ocidental na Amazônia/Amazonas” (2020)”, a apresentação do
trabalho The Western Civilizing Process in the Brazilian Amazon,
apresentado na Conference ‘Long-Term Processes in Human His-
tory: A Tribute to Johan Goudsblom’, Amsterdam, 17-19 March
2022 e a conferência “O Processo Civilizador Ocidental na Ama-
zônia Autoctonia”, apresentada no XIX Simpósio Internacional
Processos Civilizadores/ Salvador/Bahia/Brasil, 2022, que teve
o apoio do Programa de Pós-Gradução em Sociedade e Cultura
na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas.

- 25 -
Para essa segunda parte desses escritos, a pesquisa foi de
ênfase qualitativa, bibliográfica e documental, fortalecida pela a
experiência em campo.

- 26 -
I MODUS VIVENDI PECULIAR A AMAZÔNIA

No universo Amazônico, nas proximidades de centros


mais urbanizados ou em lagos e rios, encontramos comuni-
dades amazônicas (foto 02), que embora algumas sejam mais
isoladas do que outras, não estão desligadas do Estado. Rece-
bem auxílio do governo, respondem às leis estadual, municipal
e nacional. Possuem direitos e deveres e que desenvolvem suas
práticas socioculturais.

Foto (02): Comunidade Nossa Senhora de Fátima/Igarapé


Açu/Boa Vista do Ramos. A esquerda temos a escola; à direita,
Igreja. Aos fundos, residências, sede social e campo de futebol.
(Acervo do autor)

- 27 -
Hoje, a religião não se concentra apenas na católica e a
educação é institucionalizada e, irremediavelmente, uma edu-
cação passada de geração a geração por meio do etnoconheci-
mento, do qual, uma grande contribuição foi absorvida dos indí-
genas. Um conhecimento peculiar de sistematização, que se deu
na relação com o ambiente e na troca de experiências, na qual
foi e é selecionado o bom e descartado o ruim ao ser humano.
Para Posey et al (1987, p.13),

Os índios sobreviveram na Amazônia por milênios. Seu conhe-


cimento de ecossistemas, as relações planta-homem-animal e
a manipulação dos recursos naturais desenvolveram-se atra-
vés de incontáveis gerações, fruto de tentativas e de experiên-
cias acumuladas.

Posey et al. (1987), destacam a variedade de conhecimen-


tos acumulados por autóctones, o que designaram de etnoco-
nhecimento: “etnozoologia”, “etnomedicina”, “etnobotânica”,
“etnoagronomia” ou “etnoastronomia”. Assim, o que vemos nas
comunidades amazônicas, ainda, guardada as proporções, é um
saber fazer, marcada pela tradição de passar o conhecimento
de geração a geração, o qual tem permitido ao amazônida viver
dos rios e da floresta, extraindo e produzindo o sustento para
manutenção e dando passagem à vida, ao se apropriar do co-
nhecimento das parteiras e das ervas medicinais.
Sobre a parteira indígena, Quelma da Silva Otero, traz
dados preliminares de sua pesquisa intitulada “Parteiras Mul-
tietnicas, suas memórias e Saberes Tradicionais na hora da vida
pedir passagem”, sendo desenvolvida no município de São Ga-
briel da Cachoeira, vinculada ao programa de Pós-graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia/UFAM.
Otero, assume o propósito de visibilizar as parteiras indí-
genas de algumas etnias de São Gabriel da Cachoeira-AM, recu-
perando suas memórias e seus saberes tradicionais, registran-
do o originário e o sagrado de seus trabalhos. Numa sociedade
multiétnica, representada por vinte e três grupos indígenas,
busca-se o diálogo e registro com as parteiras indígenas das et-
nias: Tukano, Baniwa, Baré, Tariano e Yanomamy.

- 28 -
Segundo Otero, nos séculos XIV e XVIII, pesquisas revelam que
as parteiras, por não seguirem preceitos religiosos, assim tam-
bém, milhares de mulheres herboristas e curandeiras foram
mortas como bruxas em fogueiras na Europa Ocidental. Tal fato
ocorreu, também, segundo as narrativas dos povos originários
do rio Negro, durante a colonização e chegada dos carmelitas e
jesuítas. Para Matos (2015) e Muraro (2014), as parteiras são
detentoras de etnoconhecimento – benzimentos, uso de ervas
medicinais – absorvido de gerações anteriores.
Apesar de ações voltadas para o reconhecimento e aceitação
do trabalho das pateiras tradicionais indígenas, o processo his-
tórico de dominação, infiltração e imposição de novas práticas
obstétricas apresentadas como “o correto” e novas políticas pú-
blicas voltadas à benefícios de concepção de “parto” num con-
ceito ocidental, contribuíram e ainda contribuem para o pensa-
mento da ação das parteiras tradicionais de desqualificadas e
desprestigiadas. Tais fatos contribuem para a invisibilidade das
parteiras, assim como, a hierarquização conhecimento técnico e
científico, de um lado, sendo mais valorizado e legitimado, em
detrimento do informal e tácito, de outro, que, segundo Matos
(2015), está fadado ao desaparecimento. Em sua experiência,
um simples olhar, as parteiras tradicionais já reconhecem a fu-
tura mãe, diagnosticando até mesmo o sexo do bebê, todo esse
conhecimento vem de suas ancestrais. Em todas as etnias in-
dígenas em São Gabriel da Cachoeira há parteiras tradicionais,
contudo, aos poucos esta profissão e dom vêm perdendo espaço
na tradição indígena. Vivemos em tempo que o habitus do gestar
sagrado, ligado às crenças e mitos é visto como “ridículo” pela
civilização ocidental, que imputou, também, a descrença nas no-
vas gerações do município multiétnico.

Assim, o saber fazer está no dia a dia, nas relações sociais


da comunidade. A chegada de um caçador, membro da família,
com a embiara (animal caçado), torna-se momento de aprendi-
zagem. Ao tratar a caça, a exemplo de um veado, as crianças e jo-
vens se aproximam e têm, segundo Matos (20150) e Posey et al.
(1987), uma aula de anatomia veterinária. Ao abrir a o animal,
o caçador mostra, àqueles que estão observando, o coração,
vísceras, vertebras. Esse conhecimento é de grande vantagem
ao futuro caçador, que consegue localizar os pontos frágeis do
animal, quando estiver na posição de caça. Ser atingido por um
balaço de espingarda, não tem salvação, vem ao chão.
- 29 -
Se o interesse do amazônida é para suprir a necessidade
de madeira (foto 03), então, na floresta, age da seguinte forma,

Olhar para a árvore e observar a cor do tronco, o formato da


copa, o tamanho e a forma das folhas lhe dizem qual madeira
é. Se isso não lhe der condições, então retirar uma lasca da ár-
vore, cheirar e ver sua cor ajudam a eliminar a dúvida. [...]. Ele,
de posse das informações, saberá a utilidade da madeira, sua
durabilidade e para que construção ou objetivo servirá (MA-
TOS, 2015, p.206)

Foto (03): Identificação e extração do leite de amapá para fins


medicinais. Comunidade do Ipixuna, município de Boa Vista do
Ramos/AM
(acervo do autor)

- 30 -
Foto (04): Construção de um casco e o processo de aprendiza-
gem entre gerações. Comunidade do Ipixuna. Rio Ipixuna/Boa
Vista do Ramos/AM (Acervo do autor)

Na mobilidade pelos rios é utilizado o casco ou a canoa.


O primeiro é propício para as atividades de pesca ou de caça, O
casco, feito de um único tronco de árvore resistente à ação do
tempo. Identificar, na floresta, a melhor madeira para sua fabri-
cação (foto 04) é parte do processo, que tem sido passado por
sucessivas gerações.

- 31 -
Foto (05): Visita à roça de mandioca da etnia tukano da comu-
nidade de Santo Antônio de São Gabriel da Cachoeira/AM (foto
acervo do autor)

Em visita à roça de mandioca, cujo cultivo mantém uma


tradição da cultura itinerante absorvida dos indígenas (foto
05), porém, sem seguir a representação cosmológica autócto-
ne, se constata que as espécies plantadas são selecionadas com
o menor teor de ácido cianídrico, mais propícias ao consumo
humano.

A mandioca brava de alta toxidade é eliminada dos cultivares:


[...] Oliveira (1982) identificou e classificou cinquenta e dois
cultivares de mandioca quanto ao teor de ácido cianídrico. No
espaço empírico, longe dos laboratórios, é assim que se faz, se-
gundo o Sr. Heliomar Gonçalves, de 44 anos: aqui a mandioca
conhecida por Amanã, é a campeã, é a mais forte. A batata era
muito forte. Não deu certo, não vejo mais as pessoas planta-
rem. Ela é muito forte, até as folhas se carneiro comer morre
[...] as folhas são diferentes, a árvore cresce reta, a cor da ma-
niva é meio roxa, outras são tortas. Aqui prá nós eu planto a

- 32 -
Jurandi e a mandioca-branca, mas o pessoal planta a Milagrosa,
Amarelinha. A Jacaré cresce reta, a árvore é roxa. Lá no Curuçá
(comunidade), o pessoal planta a Tracajá, Surucucu. Todas elas
dão bem batata, produzem bem (Matos, 2015, p.178, grifos do
autor)

Portanto, o saber fazer está no cotidiano de comunida-


des amazônicas e se expressa na técnica de caça, pesca, cultivo
do solo, extração da madeira, criação de animais domésticos e
àqueles silvestres – mutum, veado, paca, porco, cutia, capiva-
ra entre outros – que domesticados, segundo Matos (20150)
e Posey et al. (1987), permitem-nos a aprenderem sobre seus
comportamentos: o seu habito alimentar, se é um animal diurno
ou noturno, os sons que emitem naturalmente ou ainda, suas
impressões no chão umedecido. Esse conhecimento e a posse
de artefatos tecnológicos, proporciona uma superioridade dos
humanos sobre os não humanos.
Na atividade de caçada, o caçador tem à disposição de seu
conhecimento, estratégia de abordagens e capturas variadas,
que acompanha o tempo cíclico, período chuvoso – com uma
diversidade de frutificação de espécies vegetais – e período de
estiagem, propício para caçar animais em bebedouros, quando
buscam água para saciar a sede, no verão amazônico.
Em período de frutificação, dependendo da região, alguns
frutos, que podem ser encontrados na extensão da floresta, com
potencial atrativo para o consumo de animais: piquiá, uxi liso
e o uxi coroa, ingá xixi, bacaba, buriti, goiaba de anta, marira-
na, piquiarana, cajurana, cupuaçurana, cacaurana, jatobá, jutai,
sorva, andiroba, copaíba, araratucupi, castanha amazônica, pé
de jabuti. A lista é grande, variando o nome popular, conforme
a região.
É o momento propício em que ocorre a dispersão de es-
pécies na floresta. Contribuem para a propagação das fruteiras,
aves como mutum, jacu, tucano, inambu entre outros. Entre
os roedores, a cutia, que enterra a semente e quando não vol-
ta para se alimentar, por lá fica, dando condições de brotar e
crescer. Não esquecendo da contribuição dos primatas, que em
- 33 -
alvoroço, nas copas das árvores, deixam cair frutos, na exten-
são da floresta. E, não mais importante, temos a contribuição de
indígenas e não indígenas, que ao coletarem frutos silvestres,
sempre se alimentam e em deslocamento, vão deixando as se-
mentes por onde passam. Nessa dispersão, e na sequência, as
relações ecológicas que se desencadearão, o bioma amazônico
sustentou e, ainda, sustenta, o regime ecológico vivido por gru-
pos autóctones.
O ciclo continua e o tempo de chuva vai cedendo grada-
tivamente a predominância ao período de estiagem, enfraque-
cendo da produção de frutos. O calor deixa o chão seco, assim
como folhas, gravetos, raízes, propícios à maior produção de
ruídos. Nesse caso, quem está em movimento, tanto o caçador
quanto da variedade de caça, é logo percebido. Assim, na rela-
ção que se estabelece entre caçador e caça, aquele que estiver
melhor posicionado e a percepção aguçada, sai em vantagem.
Diante ao ruído identificado, na posição adequada, o caçador sai
em vantagem (foto 06).
Dentre as modalidades de caçada, se utilizando de es-
pingarda, pode ser deslocando no período diurno pela floresta,
com atenção ao movimento de animais – de pelo e pena – que
se dá nas copas das árvores e no chão. Na parte aérea, podemos
encontra o mutum, jacu, cujubim, tucano, entre outros.
Se a religião permitir, nas copas das árvores, encontra-se
uma variedade de primatas, a exemplo do macaco guariba, ma-
caco prego, coatá, macaco aranha, macaco barrigudo. Esses são
os maiores da floresta amazônica e os mais apreciados.
No chão, a variedade é ampliada, pelo o veado, porco
caititu, porco queixada, cutia, jabuti, anta ou ainda, ciscando o
chão, em busca de alimento, os inambus, jacamim e por vezes o
mutum e o jacu.
Com o suporte de cães de caça, sem raça definida, a caça-
da pela floresta é uma opção frequente por caçadores que criam
esses cães. Porém, quanto mais se utiliza de cães de caça, mais
os animais silvestres se afastam dos arredores e adentram a flo-
resta. Os cães, são como redes lançadas na floresta, vasculham

- 34 -
cada buraco de pau ou no chão em busca de suas presas e perse-
guem qualquer animal que faz barulho ou exalam odor.
Na expertise do caçador, as qualidades perceptivas, aper-
feiçoadas com os anos de aprendizagem e treinamento, são
muito solicitadas. Os sentidos humanos – audição, visão, olfato,
paladar, tato – e aquele friozinho que toma o corpo, no sinal de
alertá-lo para algo que vem a acontecer, deixando sempre na
posição de expectativa, guiam os caçadores.

Foto (06): Veado mateiro. Resultado da caçada. Comunidade


Nossa Senhora de Fátima do Igarapé Açu/ Município de Boa
Vista do Ramos/AM. (Acervo do autor)

Dentre as modalidades de caçada, temos a de mutá. Um


jirau, acima do chão, a três ou quatro metros de altura, no qual
não permita a caça, com suas qualidades naturais perceptivas,
identifique a presença do indivíduo caçador na área. Pode ser,
realizado no período diurno ou noturno, esperando os animais
vêm se alimentar de frutas silvestres, consumir água e sais
minerais. A caça é diversificada: porco caititu, queixada, cutia,
inambus, mutum, jacu, entre outros.
No período em que as águas vão baixando, que frutos do
mato caem às margens de rios, a caçada pode ser feita utilizan-

- 35 -
do-se da canoa, no período noturno quando as caças descem da
mata para se alimentarem ou beberem água.
Nessa diversidade, há ainda a opção de caçada com a uti-
lização de armadilhas e a caçada à noite andando em uma trilha
(caçada na varrida), feitas pelo caçador.
A atividade de pescar é uma, se não a mais rentável em
fornecer, em menor tempo, a proteína animal para o alimento
da família. Acompanhando o tempo cíclico – enchente e vazante
do rio –, são várias técnicas: a pescaria de caniço, a de arpão
(foto 07), com arco e flecha, a porongação realizada à luz de lan-
terna; tem-se a pescaria com o uso de malhadeira; pescaria com
armadilhas, pescaria de linha.

Foto (07); Técnica de pescar em águas rasas com uso de arpão.


Comunidade do Ipixuna/Igarapé Açu. Município de Boa Vista
do Ramos/AM (acervo do autor)

Nesse modo de vida, a floresta e o rio, são os ambientes


que proporcionam ao amazônida, acompanhando o tempo cí-
clico, a prática do extrativismo animal (caça e pesca) e vegetal
(extração da madeira, retirada de palha, cipó, ervas e carcas de
árvores medicinais, breu e frutos que servem a alimentação).
- 36 -
Quanto aos frutos que servem a alimentação, se sobressai
a retirada de açaí, bacaba, os quais exigem que suba na árvore.
O patauá e o buriti, dão a margens de igarapés ou áreas alaga-
das. Infelizmente o patauázeiro é uma palmeira, dado sua a es-
pessura de tronco, dificulta subir e em sua maioria, é derrubado
a machado para retirada dos frutos.
Mas, não só da prática extrativista vivem os amazônidas.
A atividade de roça, com o cultivo da mandioca é para a produ-
ção de farinha e uma quantidade variada de produtos (beijus,
goma, crueira, entre outros) que servem a alimentação e a co-
mercialização.
O preparo da área e o manejo do solo, mantém a tradição
assimilada dos povos autóctones, isto é, a cultura itinerante a
qual se broca a área, na sequência faz-se derrubada da floresta,
após três meses ao sol, ateia fogo, faz-se a coivara para limpar
melhor a área e se procede com o plantio.
O plantio da mandioca é realizado somente pela família,
ou no sistema de ajuri, mutirão ou puxirum, como é conhecido
em algumas comunidades, a troca de dia. Já descrito por Wa-
gley (1988), Matos (2015) e registrado pelo padre João Daniel
(1741), esse sistema, implica que os anfitriões ficam compro-
metido em restituir o dia trabalhado, quando seus convidados
forem precisando de ajuda.
No puxirum os convidados podem trazer um pouco de
alimento para contribuir nas refeições, mas a maior parte é
responsabilidade do anfitrião que deve oferecer café, almoço e
merenda farta, servindo peixe, carne de caça ou de animais do-
mésticos abatidos.
O ajuri é um trabalho descontraído. Esforçam-se indivi-
dualmente para o sucesso da família que está investindo na roça.
As pessoas riem, conversam e trabalham, quando menos espe-
ram a tarefa é finalizada e o anfitrião chama para o almoço (foto
08). Nesse momento, a descontração é observada, entre as pro-
sas sérias dos assuntos da comunidade e às narrativas cômicas.
Nos círculos de conversa provocam gargalhadas ou os assuntos
sérios provocam tensões, surpresas. No vai e vem de pratos, o

- 37 -
alimento é servido e satisfeitos, se despedem para suas casas
onde há outras tarefas a serem concluídas e no compromisso,
do dia seguinte, se encontrarem no ajuri de outro conterrâneo.

Fotos 08: A refeição no ajuri, na comunidade Nossa Senhora


de Fátima/Igarapé Açu. Boa Vista do Ramos/AM
(acervo do autor)

Na figuração (foto 09) do ajuri para o plantio da roça é


identificado (MATOS, 2015): os anfitriões, cortadores de ma-
niva, distribuidores de maniva, fornecedor de água, cavadores,
plantadoras (es) e as cozinheiras. Em suas funções específicas,
o ajuri se desenvolve com dez, vinte ou mais convidados.

- 38 -
09: Plantio da maniva no ajuri. Homens e mulheres – crianças,
jovens, adultos – envolvidos na atividade tradicional. Comuni-
dade Maranata, Igarapé Açu/Boa Vista do Ramos.
(Arquivo do autor)

A roça é uma atividade agrícola, cuja a prática da cultu-


ra itinerante, como já foi dito, foi absorvida dos autóctones da
Amazônia. Isso é ratificado, na narrativa cosmológica, de Juran-
dir Farias da Silva, da etnia tukano, arqueólogo e mestrando do
Programa de Pós-graduação em Sociedade e Cultura na Amazô-
nia, da Universidade Federal do Amazonas, em suas pesquisas
sobre a prática secular do cultivo da mandioca, da Comunidade
de Santo Antônio em São Gabriel da Cachoeira/Am, pelos tuka-
nos, nos apresenta, a ancestralidade e a cosmologia que envolve
essa atividade:

Para povos tradicionais tukano a forma de trabalhar sempre foi


em coletivo ou ajuri como é conhecido aqui no alto Rio Negro ,

- 39 -
essa forma de trabalho estar no pilar da origem da humanida-
de conforme relatos de histórias tradicionais contados pelo an-
ciãos do povo tukano e dos demais etnias da família lingüística
do tronco tukano, relatam que o deus do alimento o Ba’asé-boo
quando fez a primeira roça do mundo reuniu todos os seres
viventes da terra os animais e o seres humanos com essa força
conjunta do ajuri que foi feito a roça.
“ Para povos originários da etnia tukano, a forma de trabalhar
sempre foi em coletivo ou ajuri como é conhecido aqui no alto
Rio Negro. Essa forma de trabalho estar no pilar da origem da
humanidade conforme relatos de histórias tradicionais conta-
dos pelo anciãos do povo tukano e dos demais etnias da família
linguística do tronco tukano. O deus do alimento o Ba’asé-boo
quando fez a primeira roça do mundo reuniu todos os seres
viventes da terra os animais e o seres humanos com essa força
conjunta do ajuri que foi feito a roça. Ela se intensificou a partir
do momento que o homem começou a se multiplicar formando
famílias, se expandido para outras regiões. Esse conhecimen-
to foi passado por Ba’asé-boo (criador de alimentos ou Deus
de alimentos), e tradicionalmente foi sendo transmitido de
geração para geração até os dias atuais. Antigamente, nossos
ancestrais trabalhavam conforme as regras estabelecidas pelo
Deus de alimentos que estabelecia o respeito com a natureza
era primordial. O não cumprimento e desrespeito às regras do
Ba’asé-boo, ocasionava doenças ou acidentes durante a execu-
ção do trabalho de todas as etapas da realização da roça, da
derrubada, queimada até o plantio da maniva. Essa exigência,
isto é, a boa relação do humano com a flora e fauna, assegurou
o repasse, por meio da oralidade, desse conhecimento/etno-
conhecimento e sua importância para as futuras gerações. Os
anciões de cada aldeia, detentor de benzimento e cosmovisão
adquirido, detinham essa função. O benzedor ou pajé, trata de
uma pessoa com um alto nível de conhecimento, capaz de pre-
vê o destino de uma pessoa e ver o passado para analisar a vida
de cada indivíduo. O pajé, não está sozinho, está na interação
com os kumuãs (pessoas com conhecimento vasto em benzi-
mento, o ba’asesé) e o bayá (mestre de cerimônias nas festas
tradicionais indígenas). Esses três pilares são fundamentais
para reger a vida cotidiana de uma comunidade. Antigamen-
te a roça era feita, uma distante da outra para que a floresta
tivesse uma boa recuperação. Para isso, as pessoas faziam em
períodos diferentes do ano, conforme as estações. No verão
longo era feita a roça de mata primaria ou mata virgem. No ve-

- 40 -
rão de duração curto, era feito na mata secundaria ou capoeira.
Geralmente no verão longo, eram feitas duas roças ao mesmo
período. Uma de mata virgem e outra de capoeira. Isso porque
a mata virgem possuir árvores robustas que demoram a secar
os galhos e os troncos, exigindo mais tempo de espera para
a queimada e posteriormente o plantio. Na mata de capoeira
nova, a secagem das arvores requer menos tempo para quei-
mada e plantio, crescimento da maniva, abreviando o período
de colheita da mandioca. Mas, com passar dos anos em contato
com os não indígenas e outros fatores, esses conhecimentos es-
tão sendo esquecidos e a relação entre o homem e floresta, se
modificando. Nesse sentido, a pesquisa em desenvolvimento
busca trazer contribuições para conhecer os costumes tradi-
cionais no trabalho da coivara da sociedade indígena do povo
tukano no alto Rio Negro. ”

a) Dinâmica das figurações e processos de mudanças

Esse modo de vida, que se reproduz em muitos espa-


ços amazônicos, não ficou cristalizado. Ele está em processo
e acompanha a dinâmica das figurações, as quais apresentam,
hoje, mais do antes, uma condição sine qua nom que é o ele-
mento tempo, a incorporação de mais energia, o processo de
tecnização e o processo civilizador ocidental, no qual, o Estado,
é o ente a estabelecer as normas de convivência nas relações
sociais e no trado com o ambiente.
Registro, que para alguns, a vida no ambiente de rios e
florestas, nem sempre foi a melhor opção para ascensão social.
Famílias ou àqueles, à medida em que a amadureciam na idade,
a busca de uma vida melhor, despertou em muitos – homens
e mulheres – a migração para a capital do Estado, no qual, o
Polo Industrial e Zona Franca, se tornaram o grande atrativo. A
capital, Manaus, passou a ser o novo ambiente desafiador à ho-
mens e mulheres, que sem profissão definida, vieram em busca
de melhorar de vida.
Vanessa Pereira Araújo, em sua dissertação “Entre o
oriente e o Amazonas: a figuração da mulher amazonense na
política de gestão RBA em uma fábrica chinesa da Zona Franca

- 41 -
de Manaus”, 2023, apresentado no programa de Pós-graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia/UFAM, traz uma síntese,
que conta um processo histórico da busca de ascensão social da
mulher amazonense, ao inserirem na figuração trabalhista de
uma fábrica chinesa.
Com a expansão do comércio internacional migram para
Manaus as empresas chinesas dentre elas algumas, que também
trazem o modelo chinês de administração e de produção no qual
as trabalhadoras amazonenses têm que se adequar. Foi sob a
base de uma cadeia produtiva diversificada, baixo custo de mão
de obra e produção em larga escala que as empresas chinesas
chegaram ao Brasil, especificamente no Amazonas compondo o
quadro de indústrias do Polo Industrial de Manaus (PIM).
Araújo (2023), em seus escritos, afirma que a implantação
das indústrias, as mulheres amazonenses foram atraídas para
a capital, no qual deixaram o modo de produção extrativista,
artesanal, para um novo modo de produção. Primeiramente, o
tempo cíclico, da natureza, orientadas pelo sol e chuva dire-
cionava suas atividades produtivas (MATOS, 2015), posterior-
mente, ao inserir-se nesse novo modelo, nessa nova figuração,
o tempo passou a ser controlado através do relógio e calendá-
rios (ELIAS, 1998), colocando-as em novas rotinas temporais,
imbricadas ao modo de produção.
Desde a Revolução Industrial, as relações comerciais e traba-
lhistas sofreram modificações que trouxeram benefícios para
os industriários, a mais recente delas foi o Código de conduta
de RBA (Responsible Business Alliance), servindo para fortale-
cer as leis em prol de garantir ao trabalhador um tratamento
humano e condições de trabalhos dignas para sua sobrevivên-
cia (RBA, 2021).
Constatou-se que a empresa chinesa Delta da Amazônia Ltda
contribui ativamente para o avanço social das industriarias,
promovendo treinamentos mensais, disponibilizando bolsas
de estudos para língua inglesa para alguns funcionários e mo-
tivando as colaboradoras mediante um programa de cargos e
salários.
Com os incentivos e reciclagem oferecidos as colaboradoras,
a empresa tem um retorno para otimização das atividades la-
borais, consequentemente diminui o tempo para execução de
tarefas, porque a medida em que elas avançam nos estudos,

- 42 -
tornam-se mais críticas sobre suas funções, desse modo, pro-
curam melhorias para o processo.
Hoje como emancipadas ou buscando cada vez mais sua eman-
cipação, as mulheres executam com excelência desde ativida-
des domésticas às que antes eram tidas como masculinas, dão
provas de serem capazes de cuidar suas vidas pessoais e la-
borais, ocupando funções profissionais nas diversas figurações
que se inserem. No decorrer deste estudo em consonância com
os dados coletados, observou-se que as mulheres inseridas na
figuração política de gestão RBA na empresa chinesa Delta da
Amazônia Ltda, possuem um diferencial social adquiridos em
consequência dos estudos.
A mão de obra feminina, dado o diferencial social que vem
atingindo, tem ganhado destaque no mercado de trabalho, pois
tem avançado em nível de profissionalização, ocupando espa-
ços e um leque de oportunidades laborais. Por intermédio da
Zona Franca de Manaus, o Polo Industrial, é um exemplo de
espaços laborais onde se pode constatar a protagonização da
mulher em várias figurações.

O exposto, é apenas um exemplo de pesquisa, que se re-


porta à busca de mulheres amazonense por ascensão social, fora
do ambiente rural. Mostra também que nas relações de interde-
pendências, no processo competitivo do mercado internacional,
as empresas buscam se adequar em prol de proporcionar uma
atenção mais humanizada à trabalhadora, o que demostra, o
maior nível de sensibilidade desencadeado no processo civiliza-
dor ocidental. Isso é mais um atrativo, para homens e mulheres,
da zona rural, migrarem para a capital do Estado.
Para aqueles que continuam na zona rural, interagem
com as atividades que integram a leitura, interpretação e com-
preensão do tempo cíclico, dando-lhes possibilidades de caçar,
pescar e realizar outras atividades, porém ajustado ao tempo
cronometrado – do relógio e do calendário – que os coage e os
coloca nas relações sociais, cada vez mais exigente, mais inter-
dependente, dado a diferenciação social que se expande e torna
a sociedade mais complexa.
Quem nasce em comunidade amazônica, embora não se
saiba se permanecerá residindo nela, terá que assimilar, na rela-

- 43 -
ção com o outro, os ciclos naturais e o arcabouço do etnoconhe-
cimento, que a ele está imbricado, em paralelo, ao tempo como
uma construção simbólica.
Em meados de novembro, o rio começa a subir e quem
reside às margens dos rios da Amazônia se organizam, para
enfrentar a cheia. O Estado, nessa ocasião, emite os alertas de
cheia, importante informação para prevenir quem reside, cria
e pratica a agricultura, às margens dos rios. Armazena-se se-
mentes, como filhos de bananeira, hastes de maniva, constroem
marombas para animais domésticos e muito mais.
No mês de junho, marcado no calendário, o rio começa
a descer e outra dinâmica assume a configuração das margens
dos rios. As pessoas se organizam para plantar, fazer cerca para
a boiada que vem da terra firme, por ocasião da enchente. Pre-
param para navegar em águas rasas, caçar, pescar e demais ati-
vidades, propícias para esse período.
Diante aos ciclos naturais, o amazônida sabe a época da
piracema de uma diversidade ictiológica dos rios da Amazônia.
Ele, o pescador, com a tecnologia da malhadeira (foto 10) de
diferentes tamanho, tamanho de malhas, espessura e resistên-
cia do náilon, é conhecedor do habito alimentar da população,
a qual é receptiva a uma variedade de espécies de peixes para
a refeição das famílias. É conhecedor, também, das técnicas de
intervenção ou técnicas de pescar no momento da piracema,
a qual pode ser um período em que os peixes estão migrando
para a reprodução. De posse de tecnologia das redes de pescas,
auxiliado por motores de autopropulsão e equipamentos para
conservação do pescado, o momento da pesca carrega consigo
o conceito de produção. Essa concepção, implica, na captura de
maior quantidade de peixe em menor tempo, pois, agora, o ex-
cedente vai ser comercializado na sede do município, onde se
encontra a rede de consumidores.

- 44 -
Foto (10): Pescador com malhadeira com resistência para
peixes grandes. Logo do Araçá. Comunidade Nossa Senhora de
Fátima/Igarapé Açu/Boa Vista do Ramos/AM.
(acervo do autor)

Homem e natureza convivem com novos “tempos”. A na-


tureza, única e atemporal em seus ciclos – ora com mais abun-
dância ora com escassez – e os humanos, inseridos no tempo
simbólico, a se apropriar dos ciclos naturais. Hoje, em novos
tempos para os humanos, vemos as intervenções sobre as espé-
cies que são caçadas, pescadas, assim também, é a retirada da
madeira, plantio da roça e muito mais. O modus vivendi amazô-
nico, sente a pressão do tempo dos relógios e calendários e com
ele, acompanha sua inserção no tempo produtivo. A natureza,
mais lenta em sua atemporalidade, os rios, florestas e seus habi-
tantes sentem a pressão da força humana, incorporada de mais
energia, mais tecnologia e uma rede de consumidores ampliada.
Para Norbert Elias,

- 45 -
O tempo tornou-se, portanto, a representação simbó-
lica de uma vasta rede de relações que reúne diversas
sequências de caráter individual, social ou puramente
físico.Tudo isso contribui, ao que parece, para modificar
nossa concepção das relações entre indivíduo, sociedade
e natureza. (ELIAS, 1998, p. 17)

Elias reforça,

“Ao examinarmos os problemas relativos ao tempo, aprende-


mos sobre os homens e sobre nós mesmos muitas coisas que
antes não discerníamos com clareza. (ELIAS, 1998, p. 7) ,

Para não alongar, vemos o tempo contribuiu para a dis-


ciplinarização e se fortaleceu numa, segundo Elias, “coação so-
cial” que se expressa em nossos dias, ou seja,

“...a coerção do tempo é de natureza social, posto que é exercida


pela multidão sobre o indivíduo, mas também repousa sobre
dados naturais, como o envelhecimento.” “...pela velocidade de
relógios, calendários e horários, ostenta nessa sociedade, as
propriedades que fomentam coações que o indivíduo impõe
a si mesmo. A pressão dessas coações é relativamente pouco
apreendida, medida, equilibrada e pacificada, porém, onipre-
sente e inevitável.” (ELIAS, 1998, p.21)

O tempo, como uma instituição simbólica, regulou as re-


lações sociais no universo amazônico. Embora, culturalmente
ainda se utilizem de expressões a exemplo de “na boca da noite”,
“a tardezinha”, “depois do almoço”, entre outras, as instituições
governamentais e não governamentais, estabelecem horários
da escola, os dias de recebimento de provento e pagamento de
dívidas, horários de saída e chegada, ao se utilizar os meios de
transporte, o cultivo e comercialização da produção e no bojo
dessa orquestração do tempo, segundo Matos (2015), a regula-
ção das funções fisiológicas.
Com a incorporação de mais energia, acompanhando os
preceitos sócio ecológicos de Johan Goudsblom (2014), trans-
formações se fizeram notar em todo universo amazônico, no

- 46 -
campo do extrativismo (animal e vegetal), no cultivo do solo e
no beneficiamento de seus produtos, na criação de animais, no
meio de transportes, no campo da comunicação e dentre outros,
no campo do tratamento da saúde.

b) Tecnização, práticas socioculturais e civilização

Uma questão que Norbert Elias (2006), levanta, ao iniciar


seu texto Tecnização e Civilização é: “o que tem a ver, tecnização
com a civilização.” (ELIAS, 2006).
Por tecnização Elias vai compreender,

“Tecnização é o processo que, à medida que avança, permite


que se aprenda a explorar objetos inanimados, cada vez mais
extensamente, em favor da humanidade, manejando-os e os
processando, na guerra e na paz, sobretudo na expectativa de
uma vida melhor”. (ELIAS, 2006, p. 35)

A concepção de tecnização como um processo orienta


nosso olhar para o universo amazônico e destaca mudanças que
vem ocorrendo ao longo dos séculos em seu modus vivendi e as
relações sócio ecológicas.
Ampliar nossas observações, a partir de uma análise em
retrospectiva, contribui para entendermos o processo de mu-
dança, sem deixar, contudo, de entender a incorporação de no-
vos aparatos tecnológicos, é o que alerta Norbert Elias, ao falar,

“Embora o conceito possa ser restringindo à era da máquina e,


assim, equiparado à motomecanização, trata-se de uma distor-
ção egocêntrica do desenvolvimento humano e lança uma som-
bra sobre a continuidade desse processo. ” (ELIAS, 2006, p. 35)

Para ilustrar, o processo de propagação da luz5, é um


exemplo. O sol ilumina, por séculos as sociedades humanas. A lua,
em seu período, também, ilumina as noites, porém, não todos os
espaços e nem sempre proporciona, a melhor visibilidade.

5 Para compreensão dos conceitos de propagação de luz, consultar a mecânica quântica, área da
física.

- 47 -
Johan Goudsblom, com base nos preceitos defendidos por
Norbert Elias (1994), na obra Fogo e Civilização (1995) propõe,
numa perspectiva sócio ecológica, que o controle e a domestifi-
cação do fogo, foi um passo importante no processo civilizador.
Mostra como as sociedades humanas tiveram de se regular e
distribuir funções, em prol de controlar o fogo.
Em poucas palavras, a assertiva de Goudsblom (1995),
confirma que não há na história da humanidade, grupos hu-
manos a viver inteiramente sem normas. Na Carta de Pero Vaz
de Caminha (1500), é registrado a presença do fogo, embaixo
de redes de indígenas, nas grandes casas ou malocas. Olhando
por esse viés, no universo dos grupos autóctones que habitam
a Amazônia, o domínio do fogo, com a chegada do colonizador,
já era um fato. Assim, compreendemos que o conceito de inci-
vilizados postos a eles, por viajantes, naturalistas, cronistas, re-
ligiosos, militares, foi no sentido pejorativo, carregado de juízo
de valor.
Partindo do controle do fogo, os humanos na Amazônia,
iluminavam suas noites, porém a propagação de sua luz era li-
mitada. As sociedades amazônicas – indígenas e não indígenas
– propagaram a luz, ao desenvolverem a técnica de conduzir o
fogo por meio do facho. Muito depois, dando mais autonomia ao
tempo do fogo, se apropriaram da poronga/lamparina movida a
óleo de animais e depois a combustível fóssil, a qual foi introdu-
zida, com mais intensidade na exploração da borracha e outras
drogas do sertão.
Posteriormente, chega a lanterna com a energia acumu-
lada nas pilhas e no continuar do processo, as lâmpadas led e
as lanternas recarregáveis à energia elétrica. A propagação da
luz deu aos humanos, grandes vantagens em seu sistema eco-
lógico. Assim no período noturno, a natureza sentiu os efeitos
dessa tecnologia. Maior foi a visibilidade na floresta e rios. Pô-
de-se caçar e pescar com mais intensidade, por maior tempo e
a possibilidade de visualizar, à noite, sua presa e realizar outras
atividades.
Alicerçado em Norbert Elias, vemos que a

- 48 -
“A tecnização envolve toda a humanidade. Inicialmente, desen-
volveu-se em ritmo mais lento, uma vez que os seres humanos
pouco sabiam do mundo ao seu redor. Contudo, acelerou-se, à
medida que se foi conhecendo a natureza inanimada. ” (ELIAS,
2006, p.36)

Padre João Daniel (1741) registra no período que passou


na Amazônia, especificamente em São Gabriel da Cachoeira, as-
sim como podemos ver em Matos (2015), que os grupos autóc-
tones, para trabalhar no cultivo do solo para o plantio da man-
dioca, tinham, na tradição, preparar a área. O machado de pedra
foi o instrumento utilizado para macerar, em circunferência, o
xilema e floema das grandes árvores. Com o sistema de seiva
interrompido, as árvores vinham morrer e secar, por um tempo
de 8, 9 meses. Secas, ateava-se fogo. No passar dos anos, chega
a tecnologia do machado de aço (foto 11) e as árvores vieram ao
chão em menor tempo e no chão, o fogo é ateado. Em seguida,
a motosserra é incorporada no universo amazônico, a relação
homem e meio, sentiu o efeito do tempo produtivo.
A incorporação de novas tecnologia e de mais energia,
vão substituindo o facão, enxada, pelas roçadeiras e alguns, se
apropriam da tecnologia de herbicidas para controlar as ervas
daninhas.
Nas transformações que vão ocorrendo, observa-se a dife-
renciação social crescente, no domínio e na posse de máquinas
que aceleram as atividades de derrubada da floresta, capinação
e entre outras, atribui-se valor do dia trabalhado, em detrimen-
to do dia trocado.

- 49 -
Foto (11): Uso do machado de aço na derrubada da mata para
o roçado. Comunidade Maranata/Igarapé Açu/Boa Vista do
Ramos/AM (Arquivo do autor)

Na casa de farinha, não é diferente, a tecnologia da con-


fecção de ralos artesanais, muito comum na tradição indígena,
cede espaço para o ralador de mandioca motorizado, conhecido,
por caititu. O tacho de argila, artesanal, para torrar farinha está,
há muito, sendo substituído pelo tacho de ferro. Ganha tempo
o produtor no fabrico da farinha e na durabilidade dos equipa-
mentos, porém, nesse processo de mudança, a técnica artesanal
de confecção de tacho de argila, de panelas e do ralo, isto é, o
etnoconhecimento, passado por sucessivas gerações, vai sendo,
gradativamente esfacelado.
As práticas socioculturais não deixaram de ser realizadas,
porém, agora, essas práticas estão subsidiadas por novos arte-
fatos tecnológicos, que contribuem com a comodidade e melhor
qualidade de vida do amazônida. Quem quer que seja e que es-

- 50 -
teja preocupado no fato da tecnização estar mexendo, alterando
o saber fazer, o modus vivendi na hinterlândia amazônica, vá lá e
pergunte a seus habitantes se eles preferem trabalhar de posse
de um machado ou de uma motosserra; se eles preferem ralar
mandioca no ralo feito artesanal ou se optam pelo caititu, movi-
do a máquina (foto 12); se preferem a lamparina ou a ilumina-
ção à luz elétrica; se preferem se deslocar dez horas a remo ou
fazer sua viagem de uma hora no motor de rabeta.

Foto (12): Ralador caititu movido a motor. Comunidade de


Santo Antônio em São Gabriel da Cachoeira/Am
(arquivo do autor)

Se o leitor ainda não estiver contente com os achados, e


insistir nos seus questionamentos, irá perceber que as residên-
cias cobertas com palha branca cederam suas coberturas para
as telhas de tecnologia de alumínio ou de fibrocimento.
Num sistema ecológico, cujo o clima quente e úmido, tí-
pico da Amazônia, a cobertura de palha (foro 13), é a mais in-
dicada ecologicamente, por manter uma temperatura agradá-

- 51 -
vel internamente. Porém, entre os moradores de comunidades
amazônicas, hoje, a preferência é cobrir sua residência com as
telhas de alumínio ou com a de fibrocimento. Com essa disposi-
ção em proteger sua família, dar conforto e comunidade, a pa-
lha branca, foi perdendo sua função para os humanos. Tal sen-
timento de perda, expressado na parábola Homem e a palheira,

Disse o homem à palheira: Palheira dá-me sua palha. E a alhei-


ra respondeu: dou minha palha sim, se você não me levar ao
chão. E o homem retrucou: não lhe levo ao chão pois não há
razão e palha não me faltará. Assim, o homem e a palheira in-
teragiam. A palheira filhou e o homem também. Palheira filha e
filho do homem viviam nessa interação. Certo dia o tataraneto
do homem não deu mais sentido a essa interação. Então, a pa-
lheira veio ao chão. No chão a palheira virou carvão. (MATOS,
2015, p. 90)

Foto (13): Casa coberta de palha branca. Comunidade Nossa


Senhora de Fátima/Igarape Açu/Boa Vista do Ramos
(Arquivo do autor)

- 52 -
A hinterlândia amazônica está em transformações como
resultado desse longo processo, que forças ocultas as colocam
em movimento. Um breve passeio “descompromissado”, mas
com o olhar distanciado, não terá dificuldades de encontrar no
comércio local de vários de seus municípios, uma diversidade
de marcas de motosserras, de motores de autopropulsão, roça-
deiras, caititus, tachos de ferro e não para por aí.
Os novos tempos são de mudanças, se observa, da mesma
forma, mudanças em recursos humanos. As assistências técni-
cas ampliaram e o diferencial social acompanhou. Se o proble-
ma técnico não é resolvido numa comunidade amazônica, é na
sede do município que se encontra o especialista para solucio-
nar o conserto do motosserra ou outro problema técnico.
Os municípios que se localizam às margens de rios, um
olhar especial, pois eles proporcionam campos de observação
propícios ao exposto nesses escritos, destacando os meios de
transportes marítimo. Os portos (foto 14) desses munícipios
nos levam a entender o papel do transporte fluvial, na força
oculta das transformações.

Foto (14): Ferry-Boat e lancha Ajato no porto Camanaus/ São


Gabriel da Cachoeira/AM (Acervo do autor)

- 53 -
Mas, irremediavelmente, sem a observação aos portos desti-
nados a ancoragem das embarcações na capital do estado, Manaus,
o olhar isoladamente para cada município, fica na superficialidade.
Avançando um pouco mais, sem dar atenção ao fato da existência
da Zona Franca e Polo Industrial de Manaus, mas superficial, a ob-
servação é. Conectar esses elementos, contribui para a compreen-
são do processo social de transformações na hinterlândia amazô-
nica, que antes de tudo, está conectado ao Estado, como regulador
das relações sociais, ambientais e na monopolização da força física
e da arrecadação dos impostos (ELIAS, 1993).
Os portos de Manaus revelam o avanço dos meios de
transporte fluvial que se destinam aos portos da hinterlândia
amazônica, levando cargas e passageiros. As embarcações in-
corporaram máquinas de maior potência, para atender ao tem-
po acelerado dos indivíduos, a exemplo das lanchas denomina-
das Ajato e a aerodinâmica dos cascos, com motores explosivos,
de autopropulsão movidos a combustíveis fósseis com força de
600hp de cavalo, algumas acopladas duas máquinas, deslizam
sobre as águas dos rios da Amazônia. Negro, Solimões e seus
afluentes, fornecem as estradas de rios que conduzem o amazô-
nida, aos seus destinos.
Presenciamos,

A competitividade do mercado e as novas figurações no Amazo-


nas, o processo de integração e o crescimento intensivo e exten-
sivo ocorrendo na região os barcos se destacam pelo tamanho
e a força das máquinas que os fazem colocar em movimento
por meio da energia derivada de combustível fóssil: Scania 170,
270 315, 420, 477 e 557hp; Caterpillar 58hp 480hp, 624 hp ou
1800hp; Mitsubishi, que era o antigo Daya, de alta rotação de
624hp ou o Mitsubishi de baixa rotação de 915hp ou de 1395 hp
(cavalos); o Yanmar deu um salto para as máquinas de 630, 829
e 900, 1200hp (cavalos). (MATOS, 2015, p. 152)

O calado dos cascos de barcos de grande porte foram


ajustados para deslizarem em águas baixas dos rios da Ama-
zônia, e a tecnologia do Ferry-Boat6, importado do Estado do
6 História do Ferry-Boat. Departamento de Estradas e Rodagem – DER, Curitiba/Paraná https://
www.der.pr.gov.br/Pagina/Historico-do-Ferry-Boat

- 54 -
Paraná/BR, permitiu as embarcações chegarem com certa fa-
cilidade nos municípios, levando maior quantidade de cargas e
passageiros. Ovos, frangos congelados, alimentos processados
(que tem colocado em risco a segurança alimentar da popula-
ção da hinterlândia), telhas para cobertura de residências, re-
frigerantes e bebidas alcóolicas, produtos hortifrúti, café, arroz,
açúcar, tacho para fazer farinha, veículos de diversas marcas, de
quatro e duas rodas, máquinas (motosserra, motor de rabeta,
caititu, roçadeira, máquina de autopropulsão, motor de polpa
de 15, 30, 40 115 hp, etc) e produtos importados, saem de Ma-
naus com destino aos municípios do Amazonas. Nessa interde-
pendência funcional, vemos do porto de cada município, outras
embarcações menores com motores de autopropulsão, bem
como as canoas movidas a motores de rabeta, lanchas movidas
a motores de polpa, balsas e o tradicional barco de linha, abas-
tecidos, contribuem a dar vasão à mercadoria provindo da ca-
pital do Estado, que a força oculta dos consumidores, absorvem
do comércio local na dinâmica que incrementam mudanças em
vários aspectos do modus vivendi na hinterlândia amazônica.
A imbricada relação, tecnização e civilização, se faz pre-
sente no universo amazônico. Ela, a tecnizaçõa, seguindo as
concepções de Norbert Elias, incide sobre a sociedade que a co-
loca em movimento, se é bom ou mal, vai depender de quem faz
a análise e de quem se apropria e passa a depender dela.
O uso de meios tecnológicos para a manutenção e forta-
lecimento da democracia, com a participação dos amazônidas
brasileiros ( povos originários, costumeiramente alijados da
vida política desse país), é o que mostra Iracema de Cássia da
Silva Negreiros, na dissertação de mestrado intitulada “Do voto
em cédula ao voto eletrônico: uma análise processual”, Manaus,
2023, apresentada no Programa de Pós-graduação em Socieda-
de e Cultura na Amazônia/UFAM.

Negreiros, em suas pesquisas, destaca as mudanças pelas


quais passou o sistema eleitoral brasileiro, com a superação do
voto censitário, do voto de cabresto, comum nos seringais da
Amazônia, da discriminação em razão do sexo, entre outras, e

- 55 -
afirma que as transformações continuam, sempre em busca da
evolução da democracia e da garantia de eleições transparen-
tes a todo cidadão brasileiro, esteja ele em um grande centro
urbano ou em uma comunidade amazônida de difícil acesso.
A tecnização (ELIAS, 2006), que se deu com a informatização
de dados, os estudos e programas desenvolvidos pelo Tribunal
Superior Eleitoral (TSE) e pelos Tribunais Regionais Eleitorais
(TREs), aliados à legislação e à necessidade de minimizar as
fraudes e fazer valer a vontade popular, culminaram na adoção
do processo de votação eletrônica. A informatização do voto
com a utilização da urna eletrônica, inaugurou uma nova etapa
no sistema de votação do Brasil, trouxe maior confiabilidade e
a certeza de que o candidato eleito é o que foi escolhido pelo
eleitor. É um divisor de águas na democracia desse país e um
impacto na Amazônia, que por décadas, sucumbiu ao voto de
cabresto.
No avançar tecnológico, a habilitaçao do eleitor para votar é
feita por coleta biométrica. O Brasil é considerado o pioneiro
na informatização de todas as etapas de uma eleição – a iden-
tificação do eleitor, a votação secreta, a apuração e a totaliza-
ção, inclusive com a utilização da biometria, ainda em fase de
implantação, dificultando, desta forma, a prática da corrupção,
conforme assevera Matos (2015).
A votação eletrônica trouxe inovação, celeridade e fidedigni-
dade ao processo eleitoral, possibilitando o melhoramento da
democracia brasileira, indígena e não indígena.

Na perspectiva, aqui assumida, seguindo os preceitos de


Norbert Elias (1980) e Joham Goudsblom (1995), o trio dos con-
troles básicos, pode ser identificado nas sociedades ocidentais e
as multiétnicas ou de grupos étnicos específicos. O trio diz res-
peito ao controle dos acontecimentos naturais, o das relações
sociais e ao autocontrole.
O controle, à medida do possível, da natureza, no regime
ecológico é uma condição sine qua non à sobrevivência e inde-
pende de ser aldeia autóctone ou comunidade não indígena.
Como veremos a seguir, os outros dois – relações sociais e ao
autocontrole – são perfeitamente perceptíveis antes, após a
chegada e na convivência com o colonizador e posteriormente,
na sociedade multiétnica. Desse contexto, o trio não deve ser
- 56 -
analisado isoladamente, mas interrelacionados e muito menos,
numa posição estática, como se mostra aqui, os processos so-
ciais de longo prazo na Amazônia.

- 57 -
- 58 -
II - SOBRE O PROCESSO CIVILIZADOR
OCIDENTAL EUROPEU NA AMAZÔNIA
AUTOCTONIA7
A concepção de civilizado e incivilizado, em obras que
tratam sobre a Amazônia, em especial, a população autóctone,
não é difícil de encontrar. Com a chegada do colonizador no
Novo Mundo, o encontro de Pedro Álvares Cabral, em 1500, re-
gistrado por seu escrivão Pero Vaz de Caminha, dá os primeiros
sinais de que os grupos humanos, habitantes das novas terras,
precisavam ser civilizados. Um século após esse encontro, os lu-
sitanos partem para a Amazônia, porém, antes deles, é o Padre
Gaspar Carvajal, na expedição de Francisco Orellana de 1542, a
registrar em seus escritos, o contato com a população originária
e sua impressão civilizatória.
Na sequência temos os registros do Padre Cristobal d´A-
cuña que acompanhou Pedro Teixeira de regresso de Quito ao
Pará em 1639.
No Diário do Padre Samuel Fritz, registra sua viagem no rio
Amazonas e chega na cidade do Grão-Pará em 11 de setembro de
1689. Fritz, em tom de denúncia, registra a ação de portugueses
sobre os originários da Amazônia, mas não deixa de evangelizar.
Na sequência temporal, a pesquisa bibliográfica e docu-
mental, nos permite identificar o uso dos adjetivos civilizados e
incivilizados, sobre os povos originários: La Condamine, mea-
dos de 1743 a 1744; Padre João Daniel, no período de 1741 a
1757; Marques de Pombal, que em 1757 instituiu o Diretório
dos Índios; Spix e Von Martius, que passaram na região em
1817; Paul Marcoy, que viajou pela região em 1847. A lista é
ampla, mas, por enquanto, nos serve de exemplo.
A metodologia é sustentada pela pesquisa documental
e bibliográfica, de abordagem processual de longo prazo (não
menos de três gerações), seguindo o pressuposto de processo
7 Conferência apresentada no XIX Simpósio Internacional Processos Civilizadores, Salvador/Bahia/
nov. 2022.

- 59 -
social defendido por Norbert Elias e base teórica em Norbert
Elias e Johan Goudsblom, tendo a contribuição da arqueologia.
A proposta é delinear mudança de direção de processos:
processo sócio ecológico da Amazônia autoctonia, para o pro-
cesso social sócio ocidental/civilizacional sobre a Amazônia
autoctonia e o desdobramento para o processo social sócio oci-
dental/civilizacional e autóctone.
Assim, para dirimir sobre esses adjetivos, que recaem so-
bre os autóctones de forma pejorativo, isto é, indivíduos incivi-
lizados e por outro lado, dignificante e enaltecedor aos não in-
dígenas, os ditos civilizados, apoio-me nos preceitos teóricos e
empíricos apresentados por Norbert Elias e Johan Goudsblom.
Para Norbert Elias,

O processo de civilização está relacionado à auto-regulação ad-


quirida, imperativa para a sobrevivência do ser humano. Sem
ela, as pessoas ficariam irremediavelmente sujeitas aos altos
e baixos das próprias pulsões [ urges], paixões e emoções, que
exigiriam satisfação imediata e causariam dor caso não fossem
saciadas. (ELIAS, 2006, p. 37)

No que se refere ao processo civilizador, Elias, argumenta


que,

“... constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos


rumo a uma direção muito específica, ... que pessoas isoladas
no passado não planejaram essa mudança, essa “civilização”,
deliberada. ” Porém seguiu uma ordem no sentido “...do contro-
le efetuado através de terceiras pessoas é convertido, de vários
aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas mais
animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida
comunal e investidas de sentimentos de vergonha, que a regu-
lação de toda a vida instintiva e afetiva por um firme autocon-
trole se torna cada vez mais estável, uniforme e generalizada. ”
(ELIAS, 1993, p. 193-4)

Com relação ao conceito de civilização, Norbert Elias sin-


tetiza e nos permite compreender, como, em sua autoimagem,

- 60 -
aquele que chegou Novo Mundo e posteriormente na Amazônia,
sentiu-se superior aos povos originários,

Civilização refere-se a uma grande variedade de fatos: ao ní-


vel da tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento
dos conhecimentos científicos, às idéias religiosas e aos cos-
tumes, entre outros…a função do conceito de civilização e que
qualidade comum leva todas essas várias atitudes e atividades
humanas a serem descritas como civilizadas, expressa: a cons-
ciência que o Ocidente tem de si mesmo. O conceito resume
tudo em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três sé-
culos se julga superior a sociedades mais antigas ou a so-
ciedades contemporâneas “mais primitivas”. (ELIAS, 1994,
p. 23) (grifo meu)

Elias, esclarece,

“Na verdade, uma fase fundamental do processo civilizador


foi concluída no exato momento em que a consciência de ci-
vilização, a consciência da superioridade de seu próprio
comportamento e sua corporificação na ciência, tecnologia ou
arte começaram a se espraiar por todas as nações do Ocidente.”
(ELIAS,1994, p. 64) (grifo meu)

Para Elias, o conceito de civilização inclui a função de dar


expressão a uma tendência continuamente expansionista
de grupos colonizadores. (ELIAS,1994, p. 25) (grifo meu)
Portanto, o conceito civilização é expansionista, valora-
tivo, eurocêntrico, possui um vies de superioridade. É nessa
perspectiva conceitual pejorativa, que o olhar de viajantes, re-
ligiosos, cronistas, naturalistas, destacam suas impressões, em
seus escritos, sobre os autóctones da Amazônia.
Johan Goudsblom (1995), censura a forma como a pa-
lavra civilização é empregada, contrapondo-se ao afirmar que
não há, na história da humanidade, grupos humanos a viver in-
teiramente sem normas.
Goudsblom, ao criticar o sentido como é empregado a pa-
lavra civilização, contrapõem-se e se apropria do conceito da

- 61 -
palavra cultura, aceita geralmente nas ciências sociais, no as-
pecto de que ... se refere aos aspectos comportamentais “apren-
didos, compartilhados e transmitidos”. (GOUDSBLOM, 1995,
p.17). Com essa concepção, usa a palavra civilização de maneira
semelhante à de cultura, isto é, não valorativa.
Os escritos de Johan Goudsblom, sobre o controle do
fogo, nos remetem aos povos da Amazônia, quando ele inda-
ga “...até que ponto a vida social humana esteve e está imbri-
cada em processos ecológicos. E também nos mostra que as
actividades humanas afetaram estes processos ecológicos du-
rante um período muito mais longo do que o habitual alertar”.
(GOUDSBLOM, 1995, pp.15/16) (grifo meu)
Para Goudsblom, a aprendizagem do controle do fogo foi,
e é, uma forma de civilização. Os humanos domesticaram o fogo
e o têm incorporado nas suas sociedades; estas sociedades tor-
naram-se mais complexas e mais civilizadas. (GOUDSBLOM,
1995, p. 16) (grifo meu)
Nessa perspectiva, é compreendido, que no regime eco-
lógico, vivido pelos autóctones da Amazônia, as normas impu-
tadas, num processo de longo prazo, foram direcionadas para
uma organização socioambiental.
Diante à fundamentação esclarecedora, defendo que o
processo civilizador, no modelo ocidental, na Amazônia, foi pos-
to intencionalmente sobre os grupos autóctones, diferentemen-
te como Norbert Elias (1994), mostra na obra Processo Civili-
zador – uma história dos costumes. Esse processo, fez declinar,
em grande medida, o regime ecológico vivido pelos autóctones.
Na Europa, Norbert Elias, sustenta que o processo civili-
zador,

... constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos


rumo a uma direção muito específica, ... que pessoas isoladas
no passado não planejaram essa mudança, essa “civilização”,
deliberada... Na verdade, nada na história indica que essa
mudança tenha sido realizada “racionalmente”, através de
qualquer educação intencional de pessoas isoladas ou de gru-

- 62 -
pos. A coisa aconteceu, de maneira geral, sem planejamen-
to algum, mas nem por isso sem um tipo de ordem... Porém
seguiu uma ordem no sentido “...do controle efetuado através
de terceiras pessoas é convertido, de vários aspectos, em auto-
controle, que as atividades humanas mais animalescas são pro-
gressivamente excluídas do palco da vida comunal e investidas
de sentimentos de vergonha, que a regulação de toda a vida
instintiva e afetiva por um firme autocontrole se torna cada vez
mais estável, uniforme e generalizada”. (ELIAS, 1993, p. 193-
4). (Aspas no original. Grifo meu.)

a) No contexto da história, o projeto intencional do proces-


so civilizador ocidental/europeu na Amazônia, se revela.

Sobre as fases de ocupação da Amazônia, Anna Roosevelt


(1992) e Aguinaldo Figueiredo (2011), com resultados dos es-
tudos arqueológicos, permitem situar temporalmente, subsi-
diando a assertiva da intencionalidade do processo civilizador
ocidental na Amazônia: As Fase Paleoindígena - 11.000 a 7.500
anos a. C; Fase Arcaica da pré-cerâmica – 7.500 a.C a 1000 a. C e
Fase Arcaica da cerâmica incipiente/ Fase da Pré-História Tar-
dia – 1000 a.C a 1000 d.C.
Na História, a divisão clássica é apresentada da seguin-
te forma. Quanto a pré-história: Período Paleolítico: pedra las-
cada; Período neolítico: pedra polida e Idade dos metais. No
que se refere à história, o autor apresenta: Idade Antiga; Idade
Média; Idade Moderna (1453 – 1789) e Idade Contemporânea
(1789 aos dias atuais).
Diante a classificação posta, infiro que o processo social
sócio ocidental civilizacional, mas que não extinguiu as normas
seculares dos autóctones, compreende a fase iniciado na Idade
Moderna (1453 – 1789) e se estendendo pela Idade Contem-
porânea (1789 aos dias atuais). Nesse curto prazo, identifico a
mudança de direção do regime ecológico, vivido pelos autócto-
nes para o modelo de imputou transformações na forma de se
comporta, sentir dos povos originários contatados, para o mo-
delo civilizacional ocidental.

- 63 -
É sobre esse novo modelo implantado, que pairam as in-
quietações, tensões e conflitos dos povos autóctones, que em
grande medida incidiram sobre seu modo cultural impondo,
em curto prazo, mudanças no individual e social. Porém, asse-
vero, da mesma forma, que a população amazônica originária,
convive com um processo social ocidental e o processo social
cultural autóctone. É nessa interpenetração, nessa imbricação,
que o processo civilizador – de um lado ocidental e de outro
cultural – caminha na Amazônia. É nesse curso, que na dinâmi-
ca cultural, populações autóctones incorporaram em seu modus
vivendi elementos da cultura ocidental, ora pela força, ora pela
persuasão, ora espontânea e por fim, por uma força oculta, de-
sencadeando sua autonomia. Elejo o município de São Gabriel
da Cachoeira, como exemplo da convivência desse processo,
por ser o que tem a maior população originária e com vinte e
três grupos étnicos. O português foi incrementado como língua
principal, porém não se deixou de falar yanomami, nheengatu,
tukano e outras línguas. É onde se constata, nas relações sociais
cotidiana, o pulsar do habitus autóctone.
Na esteira reflexiva, aponto a Carta de Pero Vaz de Cami-
nha, de 1500 como sendo o primeiro documento que mostra
a autoimagem de superioridade do colonizador, o qual já veio
com o conceito de civilização amadurecido na Europa. A car-
ta revela as primeiras impressões sobre os povos autóctones
das novas terras descoberta e coloca, intencionalmente, em
marcha o processo civilizador ocidental sobre os habitantes do
Novo Mundo. Após dois séculos de contato e a incorporação de
novos territórios, reverbera para Amazônia, impondo uma con-
dição: a tarefa dos civilizados que aportaram nas novas terras,
regar os povos autóctones da região, de civilidade, por meio da
força ou da persuasão.
Na carta, Pero Vaz de Caminha, escreve ao Rei de Portu-
gal, se postando eticamente na transcrição do campo observado
“... não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. ”
O documento, deixa transparecer, aquilo que está por vi,
o projeto civilizador ocidental sobre os originários das novas
terras encontradas,

- 64 -
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete
ou oito,... estariam já na praia assentados perto do rio obra de
sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali poucos
e poucos... Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam
de cobrir ou de mostrar suas vergonhas;... Então estiraram-se
de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobri-
rem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras
delas estavam bem rapadas e feitas... E mandou com eles, pra
lá ficar, um
mancebo degredado, criado de D. João Telo, a que cha-
mam Afonso Ribeiro, para lá andar com eles esaber de seu vi-
ver e maneiras... Ali andavam entre eles três ou quatro moças,
bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos
pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e
tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não
tínhamos nenhuma vergonha... Ali por então não houve mais
fala ou entendimento com eles, por a barbaria deles ser ta-
manha, quese não entendia nem ouvia ninguém... Ao domingo
de Pascoa pela manhã, determinou o Capitão de ir ouvir missa
e pregação naquele ilhéu... A qual missa, segundo meu parecer,
foi ouvida por todos com muito prazer e devoção... e que me-
lhor e muito melhor informação da terra dariam dois homens
destes degredados que aqui deixassem, do que eles dariam se
os levassem, por ser gente que ninguém entende... E que, por-
tanto, não cuidassem de aqui tomar ninguém por força nem de
fazer escândalo, para de todo mais os amansar e a pacifi-
car,... Também andavam, entre eles, quatro ou cinco mulheres
moças, nuas como eles,... e suas vergonhas tão nuas e com tanta
inocência descobertas, que nisso não havia nenhuma vergo-
nha... Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um
pouco se amansassem, logo duma mão paraoutra se esquiva-
vam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar
de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles
querem, para os bem amansar... Foram-se lá todos, e andaram
entre eles. E, segundo eles diziam, foram bem uma légua e meia
a uma povoação, em que haveria nove ou dez casas, as quais
eram tão compridas, cada uma, como esta nau capitânia.
Eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha,
de razoada altura; todas duma só peça, sem nenhum reparti-
mento, tinham dentro muitos esteios; e, de esteio a esteio, uma
rede atada pelos cabos, alta, em que dormiam. Debaixo, para
se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas
portas pequenas, uma num cabo, e outra no outro... Diziam
que em cada casa se recolhiam trinta ou quarenta pessoas,
e que assim os achavam... porque eles não tem coisa que de

- 65 -
ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas
como cunhas... . Eparece-me que viriam, este dia, à praia qua-
trocentos ou quatrocentos e cinqüenta... Andavam já mais
mansos e seguros entre nós, do que nós andávamos entre eles...
disse o Capitão que seria bom irmos direitos à Cruz... e que nos
puséssemos todos de joelhos e a beijássemos para eles verem
o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos... Parece-me
gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles
a nós, seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não
têm, nem entendem em nenhuma crença... E portanto, se os
degredados, que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala
e os entenderem, duvido
não que eles, segundo a santa intenção de
Vossa Alteza, se hão de fazer cristãos e crer em nossa santa
fé,... Portanto Vossa Alteza, que tanto deseja acrescentar a santa
fé católica, deve cuidar da sua salvação... Eles não lavram, nem
criam. Não há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem
galinha, nemqualquer outra alimária, que costumada seja ao vi-
ver dos homens. Nem comem senão desse inhame, que aqui
há muito, e dessa semente e frutos, que a terra e as árvores
de si lançam... E, segundo que a mim e a todos pareceu, esta
gente não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, senão en-
tender-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer,
como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhu-
ma idolatria, nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa
Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que
todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se
alguém vier, não deixe logo de vir clérigo para os batizar,...
Ora veja Vossa Alteza se quem em tal inocência vive se converte-
rá ou não, ensinando-lhes o que pertence à sua salvação... Porém
o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será sal-
var esta gente. E esta deve ser aprincipal semente que Vos-
sa Alteza em ela deve lançar. (CAMINHA, 1500). (grifo meu)

A carta traz em seu bojo, a concepção valorativa do con-


ceito de civilização, mas é no mesmo documento, que torna-se
campo de pesquisa processual. Há o registro do modus vivendi
dos grupos autóctones e suas normas desenvolvidas ao longo
dos séculos, compartilhando com Johan Goudsblom, a asserti-
va de que “A história humana (ou o pré-história) não oferece
um único/apenas um caso de um grupo inteiramente isento de
regras, de sociedades completamente “incivilizadas”. (GOUDS-
BLOM, 1995, p. 21)

- 66 -
Os grifos na carta dão suportes às discussões aqui postas,
uma vez que é em busca de desconstruir a concepção de ser os
autóctones, pessoas incivilizadas. Como o leitor pode conferir, o
uso do fogo no interior das grandes casas (malocas) e embaixo
de redes, para aquecer, é um dos grifos.
Para Goudsblom, o controle do fogo,

... é um elemento de cultura e, como tal, esteve presente, e fa-


zendo parte integrante da vida humana, por milhares e milha-
res de gerações. O trânsito da vida sem fogo à vida com fogo
fez da vida, em muitos sentidos, algo mais fácil e seguro. Mas,
também, criou novas restrições e riscos. A presença constan-
te do fogo num grupo humano é um factor que provoca compli-
cações; aprender a “acomodar-se” diante destas complicações
é um bom exemplo do tipo de “mutação” do comportamento
que deu ímpeto novo ao processo civilizador. (GOUDSBLOM,
1995, pp. 19 / 20) (grifo meu)

Goudsblom, em suas análises, vai distinguir três níveis


do processo civilizador. O individual, destacando as mutações
socioculturais como um processo de aprendizagem a lidar com
o fogo. Em termos mais gerais, para serem plenamente huma-
nas, todas as pessoas devem passar por um processo civilizador
próprio, no curso do qual aprendem, fundamentalmente graças
a outros, a regular suas impressões e impulsos sensoriais, a
comportar-se e a pensar. (GOUDSBLOM, 1995, p.20)
O segundo nível são os processos históricos, que quer di-
zer que os processos socioculturais, que ocorrem em qualquer
sociedade, através dos quais uma geração entrega para as se-
guintes, normas de conduta, e no decurso de que estes padrões
também podem mudar rapidamente ou com lentidão. O estu-
do de Elias centra-se neste segundo nível do processo civiliza-
dor na Europa Ocidental durante a primeira idade moderna.
(GOUDSBLOM, 1995, p. 20)
O terceiro nível de processos civilizadores, apresentado
por Goudsblom, é de uma história humana global. Ele configura
o cenário mais amplo dentro do qual os processos civilizadores

- 67 -
de segundo nível (sociais) e de primeiro nível (individual). Para
elucidar esse nível, Goudsblom, se apropria do controle do fogo
na diversidade cultural dentro e entre as sociedades.
Por hora basta, para compreender que os povos do Novo
Mundo, e com o destaque para a Amazônia, na chegada do co-
lonizador, já dominavam por séculos o uso do fogo, isso se con-
firma na carta de Caminha e nos escritos de Carvajal e Acuña.
Outro trecho grifado é o que se refere as casas longas,
onde habitavam cerca de trinta a quarenta pessoas. Isso repre-
senta, autocontrole, controle das emoções, o que Norbert Elias
(1994), vai identificar como elementos do processo civilizador
ocidental. No caso do Novo Mundo, podemos identificar como
esses elementos civilizacionais no modelo autóctone, forma
culturalmente desenvolvidos nas relações socioecológicas, sob
o olhar fiscalizador de Caciques.
Outros destaques na carta, contribuem para elucidar e
compartilhar com Goudsblom de que não há na história da hu-
manidade, grupos humanos a viver inteiramente sem normas.
Assim, os três níveis de um processo civilizacional, pode ser
perfeitamente compreendido no modus vivendi autóctone.
Como prediz as recomendações de Pero Vaz de Caminha
ao rei de Portugal, isto é, que venha o clérigo para batizar e
evangelizar os povos originários do Novo Mundo.

b) Da carta de Pero Vaz de Caminha de 1500 e seu desdo-


bramento, pelos séculos, novo mundo

A Companhia de Jesus/ Jesuítas chega nas Novas Terras


em 1549. São os criadores das primeiras escolas no Brasil, (LEI-
TE, 1938)
Na Amazônia, segundo Cunha (2018), os jesuítas chegam
em 1636, com a missão de evangelizar os povos autóctones. Po-
rém, o ensinar a ler e escrever e incrementar padrões de com-
portamento no modelo ocidental, acompanham essa missão;
impor a disciplinarização do tempo do relógio e calendário, em

- 68 -
detrimento do calendário cosmológico dos autóctones; elimi-
nar a língua materna e implantar o português; eliminar padrões
e hábitos culturais e implantar os padrões ocidentais.
Dos jesuítas, Padre José de Anchieta, dá uma grande con-
tribuição ao processo. Aprendeu a língua dos povos autóctones
e escreveu Arte da Gramática da Língua mais Usada na Costa do
Brasil e desenvolveu a Língua Geral Nheengatu, que se espraiou
por toda região brasileira, chegando a Amazônia, onde até os
dias atuais é falada.
Sobre o domínio da língua, Norbert Elias esclarece,

A capacidade de controlar os padrões de conhecimento e da


fala numa sociedade é, geralmente, um aspecto concomitante
da distribuição das oportunidades de poder numa sociedade.
Os impulsos de integração e desintegração deixam, usualmen-
te, marcas no desenvolvimento da língua e do conhecimento de
uma sociedade. (ELIAS, p. 1994, 8).

Assim, a análise na carta de Pero Vaz de Caminha, nos


revela que, diferentemente do processo civilizador, registrado
por Norbert Elias (1994, 1993) na Europa, no Novo Mundo, foi
posto em movimento intencionalmente. A propagação dos pa-
drões ocidentais de civilização, imputado aos povos originários
do Novo Mundo foi provocada pela opinião valorativa do colo-
nizador, em sua autoimagem, que estes povos eram primitivos
e incivilizados.

c) Olhares do processo civilizador ocidental/europeu na


ocupação colonial da Amazônia

Avançando no percurso histórico, de forma resumida, iden-


tificamos em (SANTOS, 2009; ABREU, 1998; TAVARES, 2011),
que a Amazônia foi ocupada, pelos lusitanos, na busca de incor-
porarem novos territórios, por volta de 1615. Porém, antes deles,
os espanhóis já se faziam presentes na região, isso implicou na
a disputa e pressão sobre os autóctones da região, que vinha do
Oeste pelos espanhóis e do Leste pelos portugueses.

- 69 -
No Tratado de Tordesilhas (1494), como pode ser obser-
vado, não dava o direito aos lusitanos, às terras que hoje é geo-
politicamente denominado de Amazônia. Mas isso não os impe-
diu de explorar a região. Somente no Tratado de Madrid (1750),
que a Amazônia passa a pertencer à Coroa Portuguesa. (ABREU,
1998, SANTOS, 2009).
Dito isso, os registros dessas expedições nos rios da Ama-
zônia, pelo padre Gaspar de Carvajal (1542), escrivão na ex-
pedição de Francisco Orellana; pelo padre Cristobal d´Acuña
na expedição de Pedro Teixeira, de regresso de Quito ao Pará
em 1639; o diário do padre Samuel Fritz, que passou ás índias
ocidentais em 1685, ou 1686, destinado à província de Quito,
entre outros, são fontes que nos colocam numa perspectiva pro-
cessual, de ver o processo civilizador ocidental, sendo arroga-
do sobre os autóctones da Amazônia, em detrimento, aos seus
preceitos culturais secularmente desenvolvidos, no contexto do
regime ecológico.

1) Francisco Orellana e Padre Gaspar Carvajal (1542) a


descoberta do rio Amazonas.

Assim como a carta de Pero Vaz de Caminha, destaco para


essas reflexões, trechos dos escritos do padre Gaspar de Carva-
jal, acompanhando, no ano de 1542, a expedição de Francisco
Orellana, pelo rio Amazonas

... vêm mais de dez mil índios por água e por terra, e como
os de terra não nos podiam atacar, serviam para fazer alga-
zarra; (p. 42)
... tinham reunido mais de 130 canoas, nas quais havia mais de
8.000 índios e por terra era incontável...(p. 43)
... povoação ... da qual encontrámos muita louça... talhas e cân-
taros enormes, de mais de vinte e cinco arrobas, e outras vasi-
lhas pequenas, como pratos, escudelas e candieiros, tudo da
melhor louça que já se viu no mundo...(p. 47)
...uma aldeia muito grande e populosa, com muitos bair-
ros,.. Nesses portos havia índios aos magotes, estendendo-
-se esta aldeia por mais de duas léguas e meia. (p. 49)
... passando sempre por províncias e povoações muito gran-

- 70 -
des, abastecendo-nos de comida o melhor que podíamos,
quando esta nos faltava. (p. 50)
Aí se encontrou muita comida, especialmente peixe, que havia
em tal abundância que pudemos abastecer largamente os ber-
gantins. Era o peixe que os índios tinham a secar para ir
vender terra a dentro. (p. 53)
... levantam-se mais de cinco mil índios com as suas armas,
e começam a dar gritos e a desafiar-nos, a bater com as armas
umas nas outras, fazendo um tal ruído que parecia que o rio
vinha abaixo. (p. 55) (grifos meu)

A expedição de Francisco Orellana, ao confrontar os in-


dígenas, implantou o medo, ao apresentar o “trovão” que mata,
isto é, a arma de fogo arcabuzes. Mas, Carvajal, mostra com
propriedade, de forma contundente, assim como veremos nos
registros do padre Acunã, uma região povoada, por muita gen-
te, detentores de habilidades especializadas na cerâmica, na
confecção de armas e meios de transporte, no preparo de ali-
mentos, criação e captura de animais silvestre e uma rede de
interdependência funcional evidente, mantendo o sistema de
escambo com outros grupos.
Acompanhando as premissas de Johan Goudsblom e Nor-
bert Elias, em cada cultura há normas e eles são civilizacionais.
Uma leitura mais atenta, identificamos que há relações de poder,
o domínio do fogo, interdependência funcional e uma crescente
diferenciação social. E, quanto mais diferenciada a sociedade é,
nas palavras de Goudsblom, mais complexa se torna.
Além do que, se infere, o que Anna Roosevelt (1992) e An-
tônio Porro (1992), destacam a presença dos grandes Cacica-
dos na Amazônia, pré-colonial.

2) Padre Cristobal d´Acuña na expedição Pedro Teixeira


no seu regresso de Quito ao Pará, em 1639.

São distintas províncias e Nações,... Passam de cento e cin-


coenta, todas de línguas diferentes, tão dilatadas e povoa-
das de moradores ... (p. 199)...São tão seguidas estas Nações,
...tanta multidão, sem o qual já não caberiam naquela ter-
ra. (p. 199)... as tartarugas saem a desovar nas praias,... até

- 71 -
metê-las nos currais que fizeram, onde as soltam, dando-lhes
por prisão aquele estreito cárcere, e alimentando-as com ra-
mos e folhas de árvores, as mantêm vivas por todo o tempo
que necessitam. (p. 181/2)... uns currais grandes, cercados
de paus, e cavados por dentro,... como lagoas de pouco fun-
do, conservem sempre em si a água de chuva. ... fabricam
talhas, panelas, fornos onde cozem as suas farinhas, caçarolas,
jarros, alguidares ...para comércio com as outras Nações ... (p.
235/6)... as suas casas mais de uma légua de extensão e como
não vive em cada casa uma família só... se abrigam debaixo de
cada teto quatro ou cinco, e muitas vezes ainda mais, dis-
so se poderá deduzir a multidão de toda esta aldeia,... (p, 244)
... todas povoadas por infinitas nações. (p. 247) São terras
altas, e que nunca se alagam, por maiores que sejam as inun-
dações; são muito férteis em mantimentos, tanto de milho,
mandioca e frutas como de caça e peixes, com o que os natu-
rais vivem fartos e se multiplicam cada dia mais. (p. 247)... com
os muitos escravos que se arrancassem deste rio, quando
não levassem outra coisa, seriam bem recebidos pela gen-
te do Pará, e... (p. 253) Das nações deste rio, que são mui-
tas, as primeiras se chamam Zurinas e Cayanas, e logo se
vão seguindo os Urutihans, Anamaris, Guarinumas, Cura-
naris, Erepunacas e Abacatis. (p. 260) ... Amazonas abaixo o
povoam os Zapucayas, Urubutingas, que são muito habeis em
fabricar coisas de madeira; atrás destes se seguem os Guara-
naguacas, Maraguas, Quimaús, Buraís, Punouys, Oregatús, Ape-
ras e outros cujos nomes não pude averiguar com certeza. (p.
260) Oferecem mil escravos... Despacham todos estes para
o Maranhão e Pará, ...onde serão sem dúvida ainda maio-
res as crueldades, ...Com isto ficará o rio tão alvoroçado que,
quando sua Majestade quiser que se pacifique, terá enormes
dificuldades, ao passo que, ficando como a deixei, com muito
pouco trabalho se conseguiria. (p. 273/ 274)

Após 97 anos da expedição de Orellana e os registros de


Carvajal, ratifica Acuña, em seus escritos, uma Amazônia povoa-
da. Uma organização social no regime ecológico e sustentado
por caciques; a diferenciação social evidente na confecção dos
artefatos, criação de animais e uma interdependência funcional
evidente.
Destaca, assim podemos ver na carta de Pero Vaz de Ca-
minha, casas de uso comum, habitada por várias famílias. Isso

- 72 -
implica em autocontrole dos impulsos e paixões, é o que vemos
em Elias (1994).
Os grandes povoados, como registram Carvajal e Acuña,
estavam e, podemos observar ainda hoje, submetidos a lideran-
ças de caciques. Sobre a função do cacique numa aldeia, trago a
fala do próprio autóctone, agora, numa posição de pesquisador,
observar sua cultura de dentro.
Orlindo Ramos Marques, (44 anos) da etnia tukano, da
aldeia de Caruru Cachoeira, do distrito de Pari-Cachoeira, do
município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, graduado
em sociologia, aluno do curso de Pós-Gradução em Sociedade e
Cultura na Amazônia, da Universidade Federal do Amazonas e
iniciado no processo de formação de pajé em 2014, fala sobre a
função do cacique numa aldeia:

Nos tempos antigos o pajé detinha o poder supremo, isso é in-


discutível. O pajé, com todo seu saber pleno, é o cacique. Os
pajés, são grandes guardiões do mundo humano e no mundo
da natureza. Ele que mantem a dialogicidade e conexão atra-
vés do bahsesé (benzimentos), bahsamorĩ (rituais de danças )
e kihti Ukusé(narrativas de origem ou cosmologia) com outras
dimensões do Õmẽ (ar), Di’ta (terra), Nuhku (floresta) e Ahko
(água). São dimensões onde nós vivemos e que existem vidas.
Os saberes tradicionais especificamente o Bahsesé junto com o
Yaí (pajé) são os berços da vida humana e da natureza.
O Yaí (pajé) é o maior detentor deste conhecimento e que man-
tem em conexão todos os patamares e maneja e sustenta o
equilíbrio do mundo que vivemos. Só o Yaí que forma os novos
especialistas. É ele que detém os saberes mais refinados e ple-
nos. Por isso ele tem poder de dá ordens, orientar o que é certo
e errado; pode dizer se as pessoas podem sair para o trabalho,
para a caçaria, para a pescaria. Ele que diz como o dia, a sema-
na, o mês e se o ano vai bom para o povo. Por tanto sua função é
extremamente importante na aldeia por que ele é responsável
pela organização da vida social deste povo. O Yaí ao perceber
que os dias não vão ser bons para eles, faz o Bahsesé para ter a
vida saudável e viver em harmonia com outras dimensões ou
com outros seres, pois precisa existir essa comunicação entre a
vida humana e a natureza.

- 73 -
De acordo com a tradição, não existe o ambiente sem sujeito,
existem sim tudo aquele que atribui vidas, alma e como pos-
suem vidas são importantes na existência do homem, ou seja,
existem interdependência ou entrelaçamento entre mundo da
cultura com o mundo da natureza como tem valor importante
perpassa de geração a geração.
O Yaí, Kumú e Baya são especialistas Tukano e as suas especia-
lidades são essenciais no núcleo social dos povos indígenas do
Rio Tiquié, também no município de São Gabriel da Cachoeira.
Os especialistas diferenciam-se em alguns aspectos de saberes.
O yaí, o kumu e o bayá exercem seus ofícios numa ação de com-
plementariedade, de modo que o primeiro é especialista em
diagnosticar as doenças e outros tipos de afecções e receitar as
fórmulas de bahsese, além de transitar nos patamares do cos-
mo, nos sonhos e manter a intercomunicação constante com
outros seres que povoam os diferentes espaços. O segundo é
especialista em bahsese, o kumu. O terceiro é especialista em
práticas sociais, sobretudo na condução das festas de poose
(dabucuri), o bayá.
Hoje, no contemporâneo, o que chama de mundo civilizado
ocidental, já temos outros especialistas nas aldeias que desem-
penham funções para atender as novas exigências, isto é, que
trabalha com olhar ocidental. Porém, o pajé não perdeu seu
espaço, sua função e sua importância na organização social da
aldeia. Mesmo com o processo civilizador ocidental em curso,
ele é respeitado.

A fala de Orlindo Ramos Marques, agora na condição de


pesquisador, contribui para desconstruir a concepção de inci-
vilizados que foi atribuído aos autóctones de modo geral e, em
especial, os originários da Amazônia. Mostra com propriedade,
a complexa relação de interdependência, poder e diferenciação
social, já estabelecidos em grupos autóctones, que vem se pro-
longando por séculos. Orlindo, originário de São Gabriel da Ca-
choeira, o município do Amazonas e do Brasil, de maior diver-
sidade étnica, a pesar de ser submetido ao processo civilizador
ocidental, não deixou de ser autóctone e dá exemplo da força do
habitus de se torna pajé.
São Gabriel da Cachoeira, campo que sustenta essas ob-
servações, pulsa a força do habitus que se expressa na culinária,

- 74 -
nas danças (foto 15), nos rituais, na cosmologia, nas relações
sociais e na força da língua, que a pesar de ter havido um pro-
jeto social para extirpá-la dos povos originários não teve êxi-
to. Ela está presente no dia a dia da população desse município
multiétnico que se comunica por maio do nheengatu, tukano,
baniwa e yanomami. E, o que se constata hoje, na busca de com-
preender a cultura originária, é uma diversidade de não indíge-
nas, buscando aprender sua língua, que está mais revigorada.
Norbert Elias (1994) argumenta que,

Ao aprenderem uma primeira língua, uma língua materna, as


crianças têm acesso ao mundo simbólico. Elas abrem para si
próprias a possibilidade de adquirir mais conhecimento, mais
experiências simbolizadas. ... A língua abre a porta para o mun-
do simbólico de um modo fortemente selectivo e, assim, de um
modo limitador. ...A aprendizagem de uma língua existente im-
plica que as experiências das crianças sejam padronizadas por
condições que existem antes da sua própria existência. (ELIAS,
1994, p. 129).

Agora, os autóctones, diante à imposição da língua por-


tuguesa, têm a condição de ensinar aos símbolos sociais dos
ocidentais e, em sua particularidade, sustentada pelo habitus
social, se aprende os símbolos sociais de suas etnias.
Para Norbert Elias (1994, p. 150),

“... Cada pessoa singular, por mais diferente que seja de todas as
demais, tem uma composição específica que compartilha com
outros membros de sua sociedade. Esse habitus, a composição
social dos indivíduos, como que constitui o solo de que brotam
as características pessoais mediante as quais um indivíduo dife-
re de outros membros de sua sociedade. (ELIAS, 1994, p. 150).

Segundo Elias (1994, p. 173)

Tem-se a impressão de que a solidez, a resistência e o arraiga-


mento do habitus social dos indivíduos numa unidade de so-

- 75 -
brevivência aumenta à medida que se alonga e encomprida a
cadeia de gerações em que certo habitus social se transmite de
pai para filho.

Isso nos permite compreender que há um habitus social


indígena, porém, há um habitus individual e social tukano, bani-
wa, baré, tuyuka, yanomami, tariano, kubeo, piratapuya, koripa-
ko, entre outros, que somente um olhar distanciado, consegue
distinguir. Esse é um objeto de estudo para os pesquisadores
indígenas que em breve estarão revelando, de dentro, os resul-
tados de suas pesquisas de mestrado.

Foto 15: Dança Karicu sendo ensaiada para o momento do


Dabucuri para escolares. Comunidade Itacoatiara/ Município
de São Gabriel da Cachoeira/AM.
(Acervo do autor)

3) O diário do padre Samuel Fritz

Fritz, em seu diário, mostra que passou ás índias ociden-


tais em 1685, ou 1686, destinado à província de quito e tra-
balhou com as 27 missões entre os Omágua (conhecidos como

- 76 -
cabeça chata, devido ao ritual do achatamento do crânio ini-
ciado na infância e que foi posteriormente abolido pelos mis-
sionários), que dominavam a técnica de extração do cahuchu
e o látex da seringueira e eram perseguidos, nessa época, pe-
los portugueses que os escravizavam. Em sua peregrinação, o
padre Samuel Fritz, nas apartadas aldeias, desenvolveu a mis-
sionarismo, doutrinando os grupos autóctones, entre eles, os
omágua, jurimagua, aisuare e os ibanoma. Em agosto de 1707 a
novembro de 1725, Fritz, em seu diário, relata a ação dos capi-
tães portugueses Ignácio Corrêa de Oliveira e José Pinheiro que
faziam resgates entre os Omágua e Ibanoma.
Samuel Fritz, registra que, dado a dizimação por epide-
mias e os descimentos, os Omágua foram misturados com os
cocama, os jurimagua e os portugueses, desencadeando povoa-
ções inter étnica e multiétnica.
Em seus escritos, mostra que os jurimágua e aisuare, a pe-
sar de andarem nus, já estão em processo de cobrir o corpo e
as indígenas, aprendendo a tecer suas roupas.
Relata sobre o Índios Gentis – Manaves/Manaos – arre-
banhados para ajudar nas tropas de resgates portuguesa,
desde 1664, por Pedro da Costa Favela.
Em 26 de julho de 1689, chega à boca do Rio Negro.
A 30 de julho chega a aldeia de Urubu, comandada pelo
missionário mercedário Theodosio da Veiga.
Em 5 de agosto no Rio Negro, encontra a tropa de resga-
te portuguesa a comando do capitão André Pinheiro.
Fritz chega na cidade do Grão-Pará em 11 de setembro de
1689, onde fica detido por 22 meses até ser liberado para o seu
retorno em Quito e suas missões dos Omágua.
Samuel Fritz, dá sua contribuição ao mostrar as barbá-
ries acometido pelos portugueses sobre os povos autóctones,
impondo medo. Isso permitiu, aos missionários, uma posição
estratégica de evangelizar e trazer para os moldes ocidentais,
os grupos étnicos.

- 77 -
d) Conexões: contribuições da arqueologia e outras áreas

Os estudos de Anna Roosevelt (1992) e Antônio Porro


(1992), podemos constatar, suas observações de que houve de-
sestruturação social da Amazônia autoctonia em 300 anos.
Em resumo, Roosevelt (1992), mostra que,

queda da desidade populacional na várzea; cacicados


os conquistadores se apoderam das áreas de várzea;
as sociedades indígenas pós-conquista diferem das sociedades
pré-históricas que as precedeeram.
...os conquistadores desarticularam os complexos político e
militar dos nativos, substituindo-os pelos seus...
...a adaptação etnográfica deve ser considerada, em parte,
como uma adaptação às consequências da conquista, e não
apenas às características do ambiente amazónico.

Antônio Porro (1992), registra que o modus vivendi dos


povos autóctones, da Amazônia, passaram por transformações
desencadeando,

a) o desaparecimento dos padrões adaptativos (demográfi-


cos, organizacionais e ergológicos) da população original, que
não chegam a se reconstituir, a não ser parcialmente, quando
do repovoamento induzido pelo colonizador;
b) a formação de um estrato que chamaremos neo-indígena,
inserido na sociedade colonial e marcado pelo desenraiza-
mento e pela aculturação intertribal e interétnica. (redu-
ções) (grifo meu)

As pesquisas arqueológicas contribuem para a aborda-


gem processual/figuracional desenvolvida por Norbert Elias,
seguido por Johan Goudsblom e incorporada nesse trabalho, o
qual envolve a pesquisa documental e bibliográfica, associado
ao campo.
Da chegada do colonizador ao Novo Mundo, aos dias
atuais, com os estudos da arqueologia, vemos na Amazônia, a

- 78 -
desestruturação dos grandes Cacicados, que, nos relatos postos
acima, revelam serem sociedades com relações de poder, cujo
comando estava a cargo do Cacique, responsável por estabele-
cer normas de convivências sociais.
Os grandes povoados, cacicados, revelam a interdepen-
dência funcional e dentre outros elementos, para o estudo do
processo civilizador, a diferenciação social crescente. Os acha-
dos, nos permitem, apoiado em Goudsblom e Elias, inferir que
essas sociedades já estavam em um nível de complexidade, dado
o grau de diferenciação social e a interdependência funcional
coexistindo. Portanto, para quem interessar, não há na história
da Amazônia autoctonia, grupo humano que viveu inteiramente
sem normas. Assim, o adjetivo incivilizado, não se aplica, a não
ser de forma pejorativo, que colocou em marcha o processo ci-
vilizador ocidental na região.

- 79 -
- 80 -
III O PROJETO CIVILIZADOR OCIDENTAL/
EUROPEU INSTITUCIONALIZADO NA
AMAZÔNIA AUTOCTONIA E REGISTROS
DE MUDANÇA DE COMPORTAMENTO DOS
AUTÓCTONES, AOS MOLDES OCIDENTAIS.

Os escritos de viajantes, cronistas, naturalistas, religiosos,


dão alicerce para identificação dessas mudanças. Dentre algu-
mas fontes que auxiliam com essas informações, extraio trechos
das obras de La Condamine, meados de 1743 a 1744; padre
João Daniel, 1741 a 1757; Marques de Pombal, que implantou o
Diretório dos Índios, 1757; Spix e Von Martius, 1817; Paulmar-
coy,1847; Código de Postura de Manaus, 1848, 1875, 1872, 1881e
demais datas; Louís Agassiz e Elizabeth Agassiz,1865-1866;
Soares d´Azevedo, 1950.

1) La Condamine, em meados de 1743, a meados de


1744, a descida pelo nosso rio-mar, desde Jaén de Bracamoros
até Belém do Pará, registra que Não há hoje em dia nenhu-
ma nação guerreira inimiga dos europeus nas margens do
Maranhão: todas foram submetidas, ou se retiraram para
longe. (p. 76)
Em São Paulo começamos a ver, em lugar de casas e igre-
jas de bambu, capelas e presbitérios de pedra, de terra e tijolo,
e muros alvejados com asseio. Fomos ainda agradavelmente
surpreendidos por ver, no meio daqueles desertos, cami-
sas de pano de Bretanha sobre todas as mulheres índias,
malas com fechaduras e chaves de ferro em suas casas, e
por achar aí agulhas e pequenos espelhos, facas, tesouras,
pentes, e diversos outros utensílios da Europa, que os índios
obtêm todos os anos no Pará, nas viagens que fazem até lá para
levar o “cacau”, que eles colhem sem nenhuma cultura pelas
margens do rio. (p. 76) (grifo meu).

- 81 -
O padre Samuel Fritz os tinha convertido todos à reli-
gião cristã, pelo fim do último século, e contavam-se então em
suas terras 30 aldeamentos, indicados pelos seus nomes na car-
ta desse padre.
Todos os habitantes, atemorizados pelas incursões de
alguns piratas do Pará, que vinham buscar escravos entre eles,
dispersaram-se pelos bosques, e pelas missões espanholas
e portuguesas.
O nome “omáguas”, na língua do Peru, assim como “cam-
bevas”, ...na língua do Brasil, significa “cabeça chata”; ...têm o
costume extravagante de apertar entre duas tábuas a fronte
das crianças que acabam de nascer, para lhes dar aquela estra-
nha figura, e para fazê-las mais parecidas, ..., com a lua cheia.
Coari é a derradeira das seis povoações dos missioná-
rios carmelitas portugueses; as cinco primeiras são formadas
dos restos da antiga missão do Pe. Samuel Fritz, e composta de
um grande número de diversas nações, a maior parte trans-
plantadas. As seis acham-se na margem austral do rio, onde as
terras são mais altas, e a abrigo de inundações. (p. 77/8) (grifo
meu)

2) Padre João Daniel, viveu na Amazônia de 1741 a 175,


na região do alto rio negro. ...vivem totalmente nus, como suas
mães os pariram, e à maneira dos bichos e feras do mato,...
andam e vivem todos juntos, como lotes e rebanhos de gado.
(DANIEL, 2004,V.1 273) (grifo meu).
Devem, pois introduzir-se nas missões dos índios as es-
colas de ler e escrever como meio único, e mais apropriado
de os civilizar, e com o ensino, a leitura dos livros, a doutrina
cristã, e a língua portuguesa... (DANIEL, 2004, v.2, p. 337) (grifo
meu).

3) O Diretório dos Índios (1757), criado por Marques de


Pombal. O Diretório é incisivo na institucionalização do proces-
so civilizador ocidental sobre os autóctones da Amazônia.

- 82 -
O documento proibi o uso da língua materna; cria esco-
las para indígenas ler e escrever, na língua portuguesa; proíbe o
uso da casa comum e fortalece as residências por família e usa-
-se da persuasão, nas mais das vezes e não da força física, para
imputar nos autóctones o modelo ocidental.
Do Diretório, aos trechos:

2) Havendo o dito Senhor declarado no mencionado Alvará,


que os Índios existentes nas Aldeias, que passarem a ser Vi-
las, sejam governados no Temporal pelos Juizes Ordinários,
Vereadores, e mais Oficiais de Justiça; ... advertindo aos Juizes
Ordinários, e aos Principais, no caso de haver neles alguma
negligência, ou descuido, a indispensável obrigação, que tem
por conta dos seus empregos, de castigar os delitos públi-
cos com a severidade, que pedir a deformidade do insulto,
e a circunstância do escândalo; persuadindo-lhes, que na
igualdade do prêmio, e do castigo, consiste o equilíbrio da
Justiça, e bom governo das Repúblicas... que procederão nes-
ta matéria na forma das Reais Leis de S. Majestade, nas quais
recomenda o mesmo Senhor, que nos castigos das referidas
culpas se pratique toda aquela suavidade, e brandura, que
as mesmas Leis permitirem, para que o horror do castigo os
não obrigue a desamparar as suas Povoações, tornando para os
escandalosos erros da Gentilidade. (grifo meu)
6) ... A máxima DE todas as Nações, ... introduzir logo nos povos
conquistados o seu próprio idioma, por ser indisputável, que
este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos
rústicos a barbaridade dos seus antigos costumes; ... esta-
belecer nas suas respectivas Povoações o uso da Língua Por-
tuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos,
e as Meninas, ...usem da língua própria das suas Nações, ou
da chamada geral; mas unicamente da Portuguesa, ...(grifo
meu)
...é a base fundamental da Civilidade, que se pretende, have-
rá em todas as Povoações duas escolas públicas, uma para os
Meninos, na qual se lhes ensine a Doutrina Cristã, A ler, escre-
ver, e contar na forma, que se pratica em todas as escolas
das nações civilizadas; E outra para as Meninas, na qual, além
de serem instruídas na Doutrina Cristã, se lhes ensinará a ler,
escrever, fiar, fazer renda, costura, e todos os mais ministérios
próprios daquele sexo. (grifo meu)

- 83 -
4) Spix e Von Martius em Viagem Pelo Amazonas e Rio
Negro
Destacam a extinção de vários grupos, por força das
epidemias, descimentos (tropa de resgates); reduções. Os au-
tores, nessa época, registram a extinção os tarumá, os uarana-
cuacena e os uarira. Na dos viajantes, a missão Novo Monte Car-
melo do Canomá... Foi fundada em 1811... era agora dirigida por
um padre secular Antônio Jesuíno Gonçalves... Achava-se ele,
inteiramente só entre cerca de uns mil mundurucus. Admi-
rei a perseverança e coragem com que esse homem, de gênio
tão suave, vivia entre selvagens, que só poucos anos antes ha-
viam abandonado a sua completa liberdade. Nisso, era ele bem
amparado por suas duas irmãs, que tinham empreendido
educar em sua casa algumas jovens índias, até as casarem
com mundurucu da vizinhança, modo tão simples, quanto
eficaz, de tornar acessível aos índios a civilização.
... um certo número de mundurucu para trabalhos
forçados, motivo pelo qual os índios já se haviam tornado
difíceis, ameaçando voltar às matas. (grifo meu)

5) Paul Marcoy desce o rio Amazonas do Peru ao Pará


em 1847
Em 1637... Pedro Teixeira subiu o Amazonas até Quito... O
relato de seu regresso despertou no governo do Pará, o gosto
pela ação civilizatória. As vilas no rio Amazonas surgiram... os
nativos da região foram batizados, vestidos com camisas ...e
distribuídos nos novos assentamentos. (MARCOY, 2006, p. 178).
Crescia o número de vilas e povoados – diminuía as po-
pulações indígenas.
Agora sairam...da independência à servidão, ...Os traba-
lhos e obrigações de todos os tipos... Epidemias... Foram causas
que levaram à extinção de grupos indígenas ao longo do rio.

6) Manaus e o Código de Postura


Manaus, a capital do Amazonas, contribui, com o seu Có-
digo de Postura (1848, 1875, 1872, 1881, 1893 e os por virem),

- 84 -
na continuidade do processo civilizador ocidental, já que certos
hábitos tradicionais, ferem com os padrões de pudor:

É proibido andar seminu ou indecentemente vestido pelas


ruas, praças e estradas da cidade, tomar banho nu, lavar
roupa e animais no seu litoral e igarapés, que a cortam, ou
próximo das fontes que fornecem água para consumo públi-
co. Pena de dez mil réis de multa ou três dias de prisão. (grifo
meu)

7) Louís Agassiz, naturalista e sua esposa Elizabeth


Cary Agassiz, no clássico Viagem ao Brasil 1865-1866, regis-
tram dos pormenores do processo civilizador projetado
para os povos autóctones no Amazonas
Transformações nos temidos mundurucu,

Os habitantes dessa localidade são os mundurucu e formam


uma das tribos mais inteligentes e de boa vontade da Amazô-
nia. são já por demais civilizados para que os possamos to-
mar como exemplo da vida selvagem nos índios primitivos.
(AGASSIZ, 2000, p. 297) (grifo meu)

Para efeito de compreender o destaque por Elizabeth


Agassiz, Spix e Martius, em 1817, falam dos mundurucu como
os decepadores de cabeça. Grupo temido por outros grupos, po-
rém já em processo civilizacional:

As habitações não são menos asseadas e todos os habitantes


se mostram decentemente vestidos, nos trajes invariáveis dos
índios civilizados: os homens de calças e camisa de algo-
dãozinho, as mulheres de saia de chitão e camisa folgada,
com seus cabelos negros presos e amarrados em cima da cabe-
ça por meio de uma travessa semicircular colocada tão para a
frente que chega até a testa, e em cujos lados prendem algumas
flores. (AGASSIZ, 2000, p. 299) (grifo meu)

Elizabeth Agassiz, registra resultados do processo civili-


zador ocidental que foi projetado para os povos autóctones,
- 85 -
Estudo com muito interesse a sua maneira de agir. ...não dei-
xaram as cadeiras em que o capitão os fez sentar, e daí só se
mexeram para trazer para perto de si a sua pequena bagagem;
a mulher tirou desta a sua costura e pôs-se a trabalhar,
enquanto que o marido enrola cigarros numa palha que os
índios empregam para esse fim. São certamente ocupações
bem civilizadas para selvagens...”. (AGASSIZ, 2000, p. 303)
(grifo meu)

8) Na obra na fronteira do brasil (as missões salesianas


no Amazonas), Soares d´Azevedo (1950), destaca a ação dos
religiosos nas povoações do alto rio Negro, dos rios Uaupés e
Içana, que iniciaram suas atividades por volta de 1914.

..., aumentando dia a dia as povoações e o número de ín-


dios aldeados. ...As antigas taperas, ....transformavam-se em
núcleos de civilização e trabalho, abrigando levas de indiví-
duos que antes vagueavam pelas matas e agora vinham entrar
na comunhão do progresso da Pátria. (D´AZEVEDO, 1950,
p.10) (grifo meu).
... as Missões Salesianas ...com os aguerridos batalhões de
Padres, Irmãos, Filhas de Maria Auxiliadora, enfermeiros,
educadores, dentistas, médicos, lavradores, técnicos etc...
para fornecer, ...assistência religiosa, ensino elementar e
agro-profissional, fixação dos índios ao solo, saneamento
e hospitalização. (D´AZEVEDO, 195º, p. 11) (grifo meu)
O resultado dessa intervenção no Rio Negro é registrado
pelo General Alexandrino da Cunha, a serviço do Presidente
da República, quando na função de fiscalizar fronteira, ao se
pronunciar: A influência das Missões Salesianas do Rio Negro é
sem dúvida alguma de benemerência patriótica: Barcelos, São
Gabriel, Taracuá, Jauareté, são centros de cultura moral e cí-
vica, escolas agrícolas, oficinas de carpintaria, alfaiataria,
mecânica, sapataria, armam os alunos para a futura luta pela
vida. (D´AZEVEDO, 1950, p.12) (grifo meu.)
Civilizar, no padrão da cultura ocidental, os indígenas,
esse era o lema das missões salesianas. Reunir o maior
número de indígenas, ... acostumá-los paulatinamente a vi-
ver em contato com os civilizados... proporcionar-lhes um
ambiente propício à civilização pela eliminação de fatores
negativos e mediante a adaptação progressiva de novos

- 86 -
hábitos e costumes compatíveis com seu estado primiti-
vo – constitui a finalidade que as Missões colimam, a tornar o
aborígene um elemento de civilização e relativo progresso.
(D´AZEVEDO, 1950, p. 17) (grifo meu)
Mas, as 62 povoações estão fundadas... Elas se acham dissemi-
nadas pelo Rio Negro, o Uaupés, o Tiquié e o Papuri. ...Devem
ser perto de 7.000 indígenas e não mais habitam “malocas”,
em que a promiscuidade inutiliza qualquer esforço moraliza-
dor, mas possuem residências próprias, já com certo asseio
e certo conforto,
É evidente que as crianças educadas em estabelecimentos da
missão, vestidas, alimentadas, já com hábitos de higiene, ao te-
rem de passar suas férias em casa dos pais, não haveriam de
se refugiar de novo na floresta ínvia e entrar em contato pro-
míscuo com as “malocas”. Poderão agora ir para “suas casas”,
em contato com seus pais vestidos e já com certos hábitos
de nossa própria civilização.” (D´AZEVEDO, 1950, p. 21) (Gri-
fo meu).
...cursos regulares de agricultura prática, e aprendiza-
gem profissional em oficinas de carpintaria, marcenaria,
alfaiataria, ferraria e mecânica elementar, olaria para os
menores... cursos regulares de ensino doméstico e profissional
para as meninas, de costura, corte e bordado, chapéus e confec-
ções, lavandaria e engomagem, e princípios de higiene e enfer-
magem. ” (D´AZEVEDO, 1950, p. 25) (grifo meu)

Soares d`Azevedo, nos mostra, a exemplo do município


de São Gabriel da Cachoeira, resultados do projeto civilizador
ocidental, colocado intencionalmente, sobre os autóctones da
Amazônia. A Casa Comum, registrada na carta de Pero Vaz de
Caminha e Padre de Acuña, mostra-se desconstruída seu signi-
ficado simbólico para a civilização autóctone. Mostra também, a
crescente diferenciação social ocorrendo, no modelo ocidental,
em detrimento do cultural.
Na esteira reflexiva, incrementar a concepção de proces-
so social, proposto por Norbert Elias, contribui ao entendimen-
to do projeto civilizador ocidental imputado sobre os povos ori-
ginários, na perspectiva de declínio e ascensão.
Elias assevera que os “processos sociais e seres humanos
singulares, logo também suas ações, são absolutamente insepa-

- 87 -
ráveis.... Se os seres humanos parassem de planejar e de agir,
então não haveria mais nenhum processo social. ” (ELIAS, 2006,
p. 31). A afirmação diz respeito da nossa contribuição na auto-
nomia do processo, destacando que,

A autonomia relativa dos processos sociais baseia-se, em ou-


tras palavras, no contínuo entrelaçamento de sensações, pen-
samentos e ações de diversos seres humanos singulares e de
grupos humanos, assim como no curso da natureza não-huma-
na. Dessa interdependência contínua resultam permanente-
mente transformações de longa duração na convivência
social, que nenhum ser humano planejou e que decerto tam-
bém ninguém antes previu. (ELIAS, 2006, p. 31) (grifos meu)

Conduzir as reflexões, sob a concepção de processo so-


cial, nos permite ponderar, em uma posição distanciada, resul-
tados do processo civilizador ocidental, em curso na Amazônia
autoctonia. É, nessa perspectiva, que vamos caminhando para
os achados dessa pesquisa. O que ascendeu e o que declinou, no
mesmo processo.

9) Estado brasileiro e a legislação para educação in-


dígena
A Constituição Federal brasileira de 1988, mostra os
avanços civilizacionais em favor dos autóctones. Assegurou às
comunidades indígenas, o direito a uma educação diferenciada,
específica e bilíngue, indo contra o estabelecido no Diretório
Dos Índios.
A Resolução CNE/CEB 1999, Fixa Diretrizes Nacionais
para o funcionamento das escolas indígenas.
O decreto nº 6.861, de 2009, dispõe sobre a Educação Es-
colar Indígena, define sua organização em territórios etnoedu-
cacionais.
A Resolução nº 5, 2012, define Diretrizes Curriculares Na-
cionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica.
A Resolução nº 1, de 7 de janeiro de 2015 - Institui Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores
Indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio.
- 88 -
Gersem Luciano Baniwa, na obra Educação Escolar Indí-
gena do Rio Negro, 1998 – 2011, relatos de experiências e li-
ções aprendidas, (2012,) PP. 361-2), traz em seus depoimentos,
aquilo que o processo civilizador atribuiu a ele e a muitos indí-
genas de São Gabriel da Cachoeira:

...a educação escolar ...indígenas ... era para civilizar,


... educar índios atrasados, sem cidadania, sem cultura e sem
conhecimentos.
...As escolas eram para fazer com que os índios deixassem de
ser índios o quanto antes.
... As línguas indígenas eram proibidas e as tradições e cultu-
ras, também..

Mas, o movimento Indígena contemporâneo e uma maior


sensibilidade dos não indígenas, desencadeou, segundo Ger-
sem Baniwa,

... um projeto de lei criou o Sistema Próprio de Educação, ga-


rantindo autonomia normativa e de gestão de toda a rede esco-
lar municipal...Ou seja, cada povo indígena poderia formar
e desenvolver seu sistema próprio de ensino-aprendiza-
gem, contemplando suas especificidades culturais e inte-
resses atuais.

Assim, hoje, a escola indígena se aplica uma educação


bilíngue, se reconhece o nheengatu, tukano, baniwa e yanoma-
mi, como línguas oficiais e a Carta Magna de 1988, é treduzida
para essa língua e lançada em São Gabriel da Cachoeira, em ju-
lho de 2023.

- 89 -
- 90 -
IV DOS ACHADOS DA PESQUISA ÀS
CONSIDERAÇÕES

Para estudos de processos sociais de longo prazo, a exem-


plo do processo civilizador, que vem imbricado a individualiza-
ção e a diferenciação social, segundo Elias (1993), é observar a
direção do processo, no qual podem ser identificados o declí-
nio de um lado e ascensão de outro. Por exemplo, o declínio da
língua por alguns grupos indígena caminhou pari passu com a
incorporação da língua portuguesa ou do nheengatu. No mesmo
processo de longo prazo, de declínio e ascensão, os autóctones
não desapareceram e, com um maior nível de conhecimento
ocidental, a resiliência se mostra.
Iniciado no período da História Moderna (1453 – 1789),
continuando na contemporânea (1789 aos dias atuais), os po-
vos autóctones amazônicos, com a chegada do colonizador, fo-
ram arrebanhados, submetidos e introduzidos, ora sob poder
da força física, ora pela persuasão e posteriormente, a depender
desse processo civilizador europeu, que agora, não se reduz à
exclusividade ocidental, mas imbrica-se ao autóctone em curso.
O projeto civilizador ocidental europeu, posto em movi-
mento intencionalmente, trouxe aos autóctones:
- No modus vivendi autoctonia amazônica, ocorre mu-
dança de direção do regime e processo ecológico se-
cular para o processo social sócio ocidental europeu;
- Em consequência, ocorre a desestruturação organiza-
cional dos grandes cacicados;
- Decréscimo do poder belicoso;
- A língua, em muitas etnias, foi abalada e adotada a lín-
gua geral e português;
- Os deuses foram desconstruídos e consolidou-se Jeová;
- Destruição da casa comum, para residências individuais;
- Na esfera mnemônica, ascende os registros por meio da
escrita e declina a oralidade.

- 91 -
1) Fatores que contribuíram para intervenção dos coloni-
zadores na incrementação do modelo ocidental europeu

Domínio da língua indígena, criação e introdução de uma


língua geral (nheengatu); Proibição do uso língua materna e
obrigatoriedade do uso do português;
Escravização dos grupos autóctones, descimento pelas
tropas de resgate, pelos missionários e o medo imputado, o que
fez aproximar dos religiosos;
Redução e a formação de povoações multiétnicas pelos
missionários, desencadeando a pacificação de grupos rivais e
maior autocontrole;
- Epidemias trazidas pelos colonizadores: doenças vené-
reas, varíola, sarampo, catapora, gripe, tuberculose, apro-
ximando os autóctones dos missionários;
- Criação de escolas de ler e escrever para os indígenas, na
língua portuguesa;
- Intervenção religiosa e persuasiva pelos missionários.

2) O projeto civilizador ocidental europeu desencadeou


dependência ao mesmo:

- O Estado brasileiro, permiti aos autóctones, reivindica-


rem seus direitos e reforçarem sua identidade;
- Incorporação de conhecimento ocidental em vários ní-
veis: do primário ao curso superior, adentrando na pós-
-graduação (mestrado e doutorado), bem como a forma-
ção em curso de licenciatura indígena e a implantação de
escolas bilíngues;
- A diferenciação social crescente em diferentes profis-
sões, sem, contudo, deixar a identidade autóctone;
- Incorporação de tecnologia ocidental, nos meios de co-
municação, nos transportes, na pesca, caça, no processo
de formação e em muitas necessidades do dia a dia;

- 92 -
3) Fatores que contribuíram para revitalização autoctonia
e a mudança de direção do processo exclusivamente oci-
dental europeu

- Domínio do português, do nheengatu e manutenção de


línguas originárias;
- Domínio do conhecimento não indígena, que permitiu
um diálogo com a sociedade ocidental em vários setores:
política, religião, educação e na saúde e muito mais.
- Maior nível de diferenciação social, no modelo ocidental,
sem, contudo, a perda do habitus guerreiro e ecológico
autóctone, se tornando um grande diferencial na imbrica-
da relação com a sociedade ocidental;
- Incorporação de tecnologias do não indígena;
- Maior sensibilidade da sociedade ocidental, resultado
de uma aprendizagem, em relação aos povos autóctones,
desencadeando parcerias;
- A disputa na política, no modelo ocidental;
- Manutenção do habitus guerreiro, agora se apresenta
em forma de diplomacia, diálogo, conhecimento e muito
mais.

4) Na contemporaneidade, a imbricada relação do processo


social sócio civilizacional ocidental europeu e autoctonia:

- Escolas bilíngue;
- Direitos amparados na constituição brasileira;
- Revitalização da grande maloca;
- Manutenção do habitus ecológico, o que permite os au-
tóctones estejam nas grandes discussões ambientais, no
modelo ocidental
- Incorporação de comportamentos – regras de etiquetas
e boas maneiras – do modelo ocidental, sem perder com-

- 93 -
pletamente os elementos culturais autóctone;
- Maior nível de diferenciação social, ao molde ocidental,
o que permite um diálogo com a sociedade;
- Individualização crescente
- Pacificação interna dos grupos que antes guerreavam,
o que permitiu o empoderamento e o fortalecimento da
identidade nós indígena. Permitindo o fortalecimento do
habitus social indígena, sem contudo, a perda do habitus
social e individual de diferentes etnias;
- Manutenção do habitus guerreiro e a resiliência por
meio do conhecimento ocidental, diplomacia e diálogo.
- Maior controle das pulsões, emoções e do autocontrole,
nas relações sociais

- 94 -
Considerações Finais

No processo social planejado e colocado em movimento


sobre os autóctones da Amazônia, em curto prazo, foi em decor-
rência da autoimagem de superioridade do colonizador e sua
concepção valorativa do conceito de civilização, que era e ainda
é concebido. O resultado provocou mudança de direção, do re-
gime ecológico, vivido securlamente pelos autóctones,e, para o
processo civilizador ocidental. Nesse processo houve declínio e
ascensão, no qual se pode constatar na sociogênese e psicogê-
nese autóctone.
Assim, na dinâmica das figurações, o processo civilizador
na Amazônia autoctonia não se mostra exclusivamente ociden-
tal. Na Amazônia, os autóctones vivem uma imbricada relação
do processo civilizador ocidental, do regime ecológico, elemen-
tos das diásporas, das migrações e os provindos de sua cultura
secular, que se mostra na língua, nos rituais, cantorias, culiná-
ria, no artesanato, pinturas, instrumentos musicais, na técnica
do cultivo da mandioca, relações de poder, entre e intra grupos
étnicos e a fabricação de seus produtos alimentares, nas er-
vas medicinais, na figura do cacique/pajé e na revitalização da
grande maloca.
Norbert Elias não deu muita atenção à religião, em suas
pesquisas sobre o processo civilizador desencadeado na Euro-
pa e reverberado para as sociedades ocidentais. Na Amazônia, a
intervenção dos missionários, foi decisiva para o processo civili-
zador ocidental que está em curso. Porém, no mesmo processo,
entre declínio e ascendência, se constata, a imbricada relação
do primeiro com a cultura/civilização autóctone.

- 95 -
- 96 -
Referências Bibliográficas

ABREU, Capistrano de., Capítulos de história colonial: 1500-


1800 / Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1998.
226 p. -- (Biblioteca básica brasileira)
AGASSIZ, Luís, AGASSIZ, Elizabeth. C., VIAGEM AO BRASIL
1865 – 1866. Brasília, Senado Federal, 2000.
ANCHIETA, José de, Arte de Grammatica da Lingva Mais Vsa-
da na Costa do Brasil. Coimbra: Antonio Mariz, 1595.
ARAÚJO, Vanessa Pereira. ENTRE O ORIENTE E O AMAZONAS:
a figuração da mulher amazonense na política de gestão
RBA em uma fábrica chinesa da Zona Franca de Manaus.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Gra-
duação em Sociedade e Cultura na Amazônia /Manaus, 2023.
BARBOSA, Antônio, L. Curso de Tupi Antigo: Gramática, Exer-
cícios, Textos. Rio de Janeiro: Livraria São José. 1956.
BRASIL., As leis e a educação escolar indígena: Programa Pa-
râmetros em Ação de Educação Escolar Indígena / organização
Luís Donisete Benzi Grupioni. - Brasília: Ministério da Educa-
ção, Secretaria de Educação Fundamental, 2001. 72 pp.
CABALZAR, Flora D. Educação escolar indígena do Rio Negro:
relatos de experiências e lições aprendidas. São Paulo: Instituto
Socioambiental; São Gabriel da Cachoeira, AM: Federação das
Organizações Indígenas do Rio Negro - FOIRN, 2012.
CAMINHA, P. V. d., Carta a El Rei D. Manuel, Dominus: São Paulo,
1963. A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. A Escola do
Futuro da Universidade de São Paulo. Texto-base digitalizado
por: NUPILL - Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e
Lingüística Universidade Federal de Santa Catarina.
CARVAJAL, G. de., ROJAS, A. de. e ACUÑA, C. de., Descobrimentos
do Rio das –Amazonas. Traduzidos e anotados por C. de Melo-
-Leitão. COMPANHIA EDITORA NACIONAL São Paulo - Rio de J

- 97 -
aneiro – Recife - Porto Alegre 1941
Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitu-
cional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações
determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1
a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 91/2016 e
pelo Decreto Legislativo no 186/2008. – Brasília: Senado Fede-
ral, Coordenação de Edições Técnicas, 2016
COUTO DE MAGALHÃES. O Selvagem: I Curso de Língua Geral
segundo Ollendorf; II Origens, Costumes, Região Selvagem – Me-
thodo a Empregar para Amasa-los por intermédio das Colonias
Militares e do Interprete Militar. Rio de Janeiro: Typographia da
Reforma, 1876.
CUNHA, J. A. da, Luzes apagadas: a educação escolar indíge-
na na Amazônia colonial. Tese de Doutorado. Universidade de
São Paulo. São Paulo: s.n, 2018
DANIEL, João. Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazo-
nas, v.I/ Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.
D´AZEVEDO, Soares. Nas Fronteiras do Brasil (Missões Sale-
sianas do Amazonas). Rio de Janeiro, 1950.
DIRETÓRIO DOS ÍNDIOS (1755) - Texto integral Registado
[sic] na Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, no livro da
Companhia Geral do Grão Pará, e Maranhão, a fol. 120. Belém a
18 de Agosto de 1758. https://www.nacaomestica.org/direto-
rio_dos_indios.htm - acessado 31/07/2020
ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. 4ª. edição. Lisboa:
Edições 70, 2011.
ELIAS, Norbert. Tecnização e civilização. In.: Escritos & En-
saios; 1: Estado, processo, opinião pública. Organização e apre-
sentação, Federico Neiburg e Leopoldo Waizbort. Rio de Janei-
ro: Jorge Zahar Ed., 2006.
ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora, 1994a.

- 98 -
ELIAS, Norbert. O processo civilizador – Uma história dos Cos-
tumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1994b.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador – Formação do Estado
e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edi-
tora, 1998.
ELIAS, Norbert. Teoria Simbólica. Tradução de Paulo Valverde.
Celta Editora OEIRAS/1994c.
GOUDSBLOM, J. Fuego y Civilizacion. Traducción de Oscar
Luis Molina S. Chile: Editorial Andres Belo, 1995
________.The Civiling process and the domestication of fire.
Journal of World History, vol. 3, n. I, 1992
________. Pensar com Elias. In.: Norbert Elias: a política e a his-
tória. Alain Garrigou e Bernard Lacroix (orgs.). São Paulo: Edi-
tora Perspectiva, 2001.
________. Introductory overviw: the Expanding Anthropos-
phere. In.: Mappae Mundi: Humans ad their Habitats in a Lon-
g-Term Sócio-Ecological Perspective Myths, Maps and Models.
Bert de Vries and Johan Goudsblom (eds.). Amsterdam Univer-
sity Press, Amsterdam, 2002.
________. O fogo e os combustíveis na história da humanida-
de. In.: Leituras de Norbert Elias: processo civilizador, educação
e fronteiras. Ademir Gebara, Célio Juvenal Costa, Magda Sarat
(organizadores). – Maringá: Eduem, 2014.
FIGUEIREDO, A. N., História do Amazonas. Manaus: Editora Va-
ler, 2011.
LEITE, S., SJ. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de
Janeiro/Brasília: Portugália/ Civilização Brasileira/INL, v. II
(1938).
LOUREIRO, A. J. S., O Amazonas na Época Imperial. 2.a edição.
Manaus: Editora Valer, 2007.
MATOS, Gláucio, C. G. de, Ethos e Figurações na Hinterlândia

- 99 -
Amazônica. Ed. Valer/FAPEAM, Manaus/AM, 2015.
MATOS, G. C. G, de, Norbert Elias Para o Pensamento Social e
a Compreensão da Gênese do Processo Civilizador na Ama-
zônia/Amazonas. In.: Norbert Elias em debate: usos e possi-
bilidades de pesquisa no Brasil/ [livro eletrônico]/ Ana Flavia
Braun Vieira; Miguel Archanjo de Freitas Junior (Orgs.). Ponta
Grossa: Texto e Contexto, 2020. (Coleção Singularis, v.6) 658 p.;
e-book PDF Interativo.
MATOS, G. C. G, de, El Medio Ambiente Bajo el Prisma de los
Pronombres Personales como Modelos Figuracionales. In.:
Tiempos de Cambio : diálogos desde Norbert Elias / Adrian Jits-
chin ... [et al.] ; coordinación general de Carina V. Kaplan ; Diego
M. Barragán Díaz. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires
: Editorial de la Facultad de Filosofía y Letras Universidad de
Buenos Aires, 2022. 642 p. ; 14 x 21 cm. - (Saberes)
MATOS, G. C. G. de, e ROCHA FERREIRA, M. B., Educação em
Comunidades Amazônicas. Rev. educ. PUC-Camp., Campinas,
24(3):367-383, set./dez., 2019.
MARCOY, P., Viagem pelo rio Amazonas. Tradução, introdução
e notas de Antônio Porro. – 2 ed. Em português. – Manaus: Edi-
tora da Universidade Federal do Amazonas, 2006.
NEGREIROS, I. de C. da S., Do Voto em Cédula ao Voto Eletrô-
nico: uma análise processual, 2023. Dissertação de mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e
Cultura na Amazônia. Universidade Federal do Amazonas.
O Diário do Padre Samuel Fritz, com introdução e notas de
Rodolfo Garcia./Renan Freitas Pinto, organizador - Manaus,
Editora da Universidade Federal do Amazonas/Faculdade Sale-
siana Dom Bosco, 2006.
PERONI, N. e Hernández, M. I. M., Ecologia de populações e
comunidades / Nivaldo Peroni e Malva Isabel Medina – Floria-
nópolis: CCB/EAD/UFSC, 2011.
PORRO, A. O povo das águas: ensaios de etno-história ama-

- 100 -
zônica. Rio de Janeiro: Vozes, 1995.
POSEY, D. A. et al. A ciência dos mebêngôkre: alternativas
contra a destruição. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi,
1987.
Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). / Organização de
Patrícia Melo Sampaio. – Manaus: EDUA, 2016. 406 p.
RODRIGUES, Aryon. D. Línguas Brasileiras. São Paulo: Edições
Loyola, 1986.
SANTOS, Francisco, J. dos, História geral da Amazônia. 3. ed. -
Rio de Janeiro: MEMVAVMEM, 2009.
RODRIGUES, João, B. Vocabulario Indigena Comparado para
Mostrar a Adulteração da Lingua (complemento do poran-
duba amazonense). Publicação da Bibliotheca Nacional. Rio
de Janeiro, 1892.
ROOSEVELT, A. 1992. Arqueologia Amazônica. In: História dos
Índios do Brasil. Edited by M. C. da Cunha p. 53-86. São Paulo:
Editora Cia. das Letras.
SAMPAIO, Theodoro. Da evolução histórica do vocabulário
geographico no Brazil. Revista do Instituto Histórico e Geo-
graphico de São Paulo. V.III, 1903. São Paulo, Typographia do
“DIARIO OFFICIAL”, 1904.
SANTOS, F.J. História geral da Amazônia. 3. ed. Rio de Janeiro:
MEMVAVMEM, 2009.
STRADELLI, Ermano. 1929. Vocabularios da lingua geral por-
tuguez-nheêngatú e nheêngatúportuguez, precedidos de um
esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de
contos em lingua geral nheêngatú poranduua. Revista do Insti-
tuto Historico e Geographico Brasileiro, Tomo 104, Volume 158,
p. 9-768.
SPIX, Joh. Bapt. von; MARTIUS.Viagem pelo Brasil, 1817 -1820
. 3 vols. Tradução: Lúcia Furquim Lahmeyer. Brasília: Edições
do Senado Federal, 2017.

- 101 -
TAVARES, Maria Goretti da Costa., A Amazônia brasileira: for-
mação histórico-territorial e perspectivas para o século
XXI. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 29 - Especial, pp.
107 - 121, 2011
WALLACE, Alfred R. Viagens pelo Amazonas e rio Negro.
COMPANHIA EDITORA NACIONAL São Paulo – Rio de Janeiro –
Recife – Porto Alegre, 19399.
WAGLEY,C. Uma comunidade amazônica. 3. ed. Belo Horizon-
te: Itatiaia, São Paulo: EDUSP, 1988.

- 102 -
- 103 -
- 104 -

Você também pode gostar