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Índio e povo indígena: do

conceito à
autodeterminação
Publicado por Laudelino Pereira Neto
há 9 anos

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RESUMO

O presente artigo visa identificar quais os


direitos humanos a serem reconhecidos e
assegurados aos índios e povos indígenas
por nosso Estado, demonstrando a exten-
são, conteúdo e formas de exercício efetivo
desses direitos, buscando afastar qualquer
entendimento que venha a resultar em
uma negação do índio brasileiro. Visa ain-
da evitar o preconceito, baseado no ponto
de vista estrito da cultura dos não índios, a
configurar uma falsa noção de que são in-
capazes e devem estar sob a tutela plena
do poder público. Isoladamente, nossa
Constituição vigente não oferece condi-
ções de entendimento específico e seguro
do que seja terras tradicionalmente ocupa-
das pelos índios. O direito de autodetermi-
nação ou livre determinação dos povos
indígenas está embasado nos postulados
da igualdade, da liberdade e da fraternida-
de, e encontra embasamento no Direito
Internacional, em especial no sistema in-
ternacional de proteção aos direitos huma-
nos a garantir o desenvolvimento humano
global. Com fundamento no direito à auto-
determinação dos povos, analisamos a
possibilidade dos povos indígenas exerce-
rem o direito de secessão, sob condições e
requisitos concretos, específicos e em situ-
ações extraordinárias.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Povos


indígenas. Indigenato. Autodeterminação.
Secessão.

ABSTRACT

This article seeks to identify which human


rights to be recognized and ensured the
Indians and indigenous peoples for our
state, demonstrating the extent, content
and forms of effective exercise of these
rights, seeking to dispel any understan-
ding that may result in a denial of the Bra-
zilian Indians. Also aims to avoid bias ba-
sed on strict point of view of the culture of
non-Indians, setting up a false notion that
they are incapable and must be under the
full authority of the government. Alone,
our current Constitution does not offer
conditions to specific and safe understan-
ding of what is lands traditionally occupi-
ed by Indians. The right of self-determina-
tion or free determination of indigenous
peoples is based in the postulates of equa-
lity, liberty and fraternity, and finds basis
in international law, especially in the in-
ternational system for protecting human
rights to ensure the overall human deve-
lopment. Based in the right to self-deter-
mination, we analyze the possibility of in-
digenous people to exercise their right of
secession under conditions and concrete,
specific requirements and in extraordinary
situations.

Keywords: Human Rights. Indigenous pe-


ople. Indigenato. Self-determination. Se-
cession.

1. INTRODUÇÃO.

Atualmente, é inevitável não se evidenciar


a crescente importância para nossa socie-
dade de um melhor conhecimento dos
fenômenos não só jurídicos, mas também
sociais, humanos e, por que não, econômi-
cos, ligados aos povos indígenas.

Apesar do Estado brasileiro reconhecer e


regular, desde os tempos do império luso-
brasileiro, os direitos e interesses dos po-
vos indígenas, ainda vislumbramos deba-
tes e controvérsias jurídicas e sociais acer-
ca do índio e povos indígenas, proprieda-
des e posses, capacidade e autonomia,
exercício livre de seus costumes, línguas,
crenças e tradições, direito ao desenvolvi-
mento humano etc.

Um traço marcante que pontua a relevân-


cia do tema são os conflitos (muitas vezes
violentos) envolvendo índios (principal-
mente crianças, adolescentes e idosos) e
não índios em nosso vasto território nacio-
nal.

Assim, busca este artigo identificar quais


os direitos humanos a serem reconhecidos
e assegurados aos índios e povos indígenas
por nosso Estado, demonstrando a exten-
são, conteúdo e formas de exercício efetivo
desses direitos, buscando afastar qualquer
entendimento que venha a resultar em
uma negação do índio brasileiro, especifi-
camente (a) verificar se as definições de
índio, de povo indígena e de terras indíge-
nas condizem com os critérios antropoló-
gicos e constitucionais aceitáveis e viáveis;
(b) demonstrar a importância humana em
se reconhecer e proteger as organizações
sociais, costumes, línguas, crenças e tradi-
ções indígenas, protegidas por nosso bloco
de constitucionalidade, incluindo a não
necessidade de tutela específica do índio
por parte da Administração Pública; (b)
estabelecer os requisitos necessários ao
efetivo exercício do direito humano ao au-
togoverno dos povos indígenas, principal-
mente os relativos ao exercício do direito à
secessão dos povos indígenas.

Não restam dúvidas de que a Constituição


da Republica Federativa do Brasil de 1988
foi a que mais se preocupou em assegurar
os direitos e demais interesses dos povos
indígenas em nosso Estado, dedicando,
inclusive, capítulo específico aos denomi-
nados índios (CUNHA JR. E NOVELINO,
2012, p. 989).

No entanto, ao verificarmos nosso cotidia-


no, percebemos a falta de efetividade
quanto à implantação e exercício desses
direitos fundamentais pelos povos indíge-
nas. Não estamos a falar de um atraso de
pouco mais de vinte anos, mas de uma es-
pera agonizante que perdura mais de três
séculos, com prejuízo de gerações e de-
mais gerações dos povos indígenas.

2. NOÇÃO HISTÓRICO-LEGISLATI-
VA.

A proteção legislativa do índio brasileiro


remonta o século XVII e início do século
XVIII, com as Cartas de 30/07/1609 e de
10/09/1611 do rei espanhol Filipe III, du-
rante a União Ibérica, reconhecendo pela
primeira vez aos índios o domínio absolu-
to sobre as terras ocupadas (RIBEIRO,
2012, p. 565 e 566), e mais tarde, já sob o
império português, com o Alvará Régio de
1680 reinteirado pela Lei Pombalina de
1755 (HOLTHE, 2010, p. 1044), dispondo
que “nas terras dadas de sesmaria a pes-
soas particulares se reserva sempre o
prejuízo de terceiro, e muito mais se en-
tende, e quero que se entenda, ser reser-
vado o prejuízo e o direito dos índios, pri-
mários e naturais delas.”

Vários foram os textos legislativos que se


seguiram, porém destacamos, frente à im-
portância relativa a este trabalho:

a) A Constituição Federal de 1934, por ter


sido a primeira a incluir o tema em nível
constitucional, resguardando os direitos
dos índios sobre as terras onde se localiza-
vam e proibindo a alienação destas (art.
129);

b) A lei federal n. 6001 de 19/12/1973, que


dispõe sobre o estatuto do índio; e

c) A Carta Política de 1988, por tratar da


Constituição nacional que mais reconhe-
ceu e garantiu direitos aos povos indíge-
nas.

Apesar de a Constituição vigente possuir


um capítulo específico sobre os direitos
fundamentais dos índios e povos indíge-
nas, podemos encontrar normas de prote-
ção equivalente por todo o texto constitu-
cional[1].

3. O ÍNDIO.

Não há no texto constitucional, de forma


explícita, a definição de índio e de povo ou
comunidade indígena. Estas se encontram
no art. 3º, incisos I e II do Estatuto do Ín-
dio. Reza esses incisos que o índio ou silví-
cola “é todo indivíduo de origem e ascen-
dência pré-colombiana que se identifica e
é identificado como pertencente a um
grupo étnico cujas características cultu-
rais o distinguem da sociedade nacional”,
e que devemos entender por comunidade
indígena ou grupo tribal o “conjunto de
famílias ou comunidades indígenas, quer
vivendo em estado de completo isolamen-
to em relação aos outros setores da comu-
nhão nacional, quer em contatos intermi-
tentes ou permanentes, sem, contudo es-
tarem neles integrados”.

Afora o critério cultural e o de pertença


étnica encontrados nessas definições, des-
tacamos um terceiro critério, o genealógi-
co, quando o legislador se refere à “... ori-
gem e ascendência pré-colombiana...”
que, no meu humilde entender, fere o di-
reito fundamental à autonomia dos povos
indígenas, restando tais definições em
desconformidade com os preceitos consti-
tucionais vigentes.

Além do mais, perfazendo uma interpreta-


ção conjunta com o art. 4º do mesmo texto
legal, que classifica os índios em isolados,
em vias de integração e integrados, numa
perspectiva integracionista, em que se
acredita existir possíveis estágios de evolu-
ção cultural na trajetória de vida dos po-
vos indígenas.

Por esta lente, enxerga-se o índio como


um ser inferior, desprovido de condições
de vida independente, necessitando ser
integrado a uma cultura nacional que se
autodenomina superior (BARRETO, 2008,
34). Ora, “o diverso não é inferior, a exi-
gir auxílio ou tutela, é apenas e tão so-
mente, diverso” (ALMEIDA, 2013, p. 261).

Segundo FACCIONI (2013, p. 379),

Os povos indígenas constituem etnias com


características culturais, tradicionais, de
organização social e formas de vida com-
pletamente distintas da sociedade ociden-
tal envolvente. Essa diferença cultural car-
rega consigo um desafio ao ordenamento
jurídico dos Estados que são compostos
por esses povos, sobretudo o brasileiro,
tão rico em etnias indígenas.

O ordenamento jurídico nacional sempre


considerou essas diferenças como situa-
ções transitórias, tendentes a desaparece-
rem à medida em que os povos indígenas
fossem sendo integrados à comunhão na-
cional. Contudo, essa concepção assimila-
cionista deu lugar a um entendimento de
respeito à multiculturalidade, tendo sido
acolhido pela Constituição Federal de
1988 que, na linha da evolução do direito
internacional, estabeleceu verdadeiro di-
reito fundamental à diversidade cultural.

Não há em nossa sociedade uma compre-


ensão bem definida e adequada aos precei-
tos constitucionais vigentes do que seja
povo indígena ou mesmo o índio, desa-
guando no preconceito e no ponto de vista
estrito da cultura dos não índios, a confi-
gurar uma falsa noção de que são incapa-
zes e devem estar sub a tutela plena do po-
der público.

Quanto à capacidade do índio, o atual Có-


digo Civil (lei federal n. 10.406/2002) dis-
põe que esta será regulada por legislação
especial, o que não se deu até os dias atu-
ais. Assim, o Estatuto do Índio ainda regu-
la o tema (arts. 7º ao 11), impondo aos ín-
dios e suas comunidades a tutela da Fun-
dação Nacional do Índio (FUNAI), funda-
ção pública federal, com natureza jurídica
de autarquia.

Data venia, vislumbramos a não recepção


desta tutela por nossa Constituição Fede-
ral, por ferir a igualdade, a dignidade da
pessoa humana e, principalmente, o direi-
to humano de autodeterminação perten-
cente aos índios brasileiros.

4. TERRAS TRADICIONALMENTE
OCUPADAS PELOS ÍNDIOS.

Nosso Estado reconheceu (art. 231, caput,


primeira parte, CR/88) aos índios brasilei-
ros e suas comunidades o direito funda-
mental à existência, respeito e manuten-
ção de suas organizações sociais, costu-
mes, línguas, crenças e tradições, cabendo
ao ente estatal União proteger e fazer res-
peitar todos esses bens de forma efetiva,
“... sedimentando o direito à diversidade
étnica e cultural...” (HOLTHE, 2010, p.
1049).

Além dos bens citados acima, a segunda


parte do caput do art. 231, combinado
com os parágrafos 1º, 2º e 4º, reservam
aos índios os direitos originários sobre as
terras que tradicionalmente ocupam, com-
petindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar esse direito, até porque, a
terra para o índio está umbilicalmente li-
gada à sua existência individual e coletiva.

Por terras tradicionalmente ocupadas pe-


los índios, o constituinte originário enten-
deu aquelas ocupadas em caráter perma-
nente, às utilizadas para suas atividades
produtivas, as imprescindíveis à preserva-
ção dos recursos ambientais necessários
ao bem-estar dos índios e de suas comuni-
dades, e também aquelas necessárias à
reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições (art. 231, § 1º,
CR/88).

As terras indígenas não são de proprieda-


de dos índios ou de suas comunidades.
Elas são bens públicos de uso especial, “...
Afetadas, por efeito de destinação consti-
tucional...”[2] de propriedade da União
Federal (art. 20, XI, CR/88), destinada à
posse permanente dos índios e suas comu-
nidades (art. 231, § 2º, primeira parte,
CR/88). Essas terras são inalienáveis, in-
disponíveis, os direitos sobre ela são im-
prescritíveis (art. 231, § 4º, CR/88), reser-
vadas e de uso vinculado para o fim de
proteção social, antropológica, jurídica,
econômica, cultural e humana dos índios,
das comunidades indígenas e dos demais
grupos tribais brasileiros[3].

Resta claro que nossa Constituição estabe-


leceu o instituto do indigenato, entenden-
do-se este como aquele direito congênito e
primário, pertencente aos índios e suas
comunidades sobre as terras tradicional-
mente ocupadas por eles.

O indigenato é instituto jurídico adotado


pelo Brasil desde o Alvará de 1680 (que,
conforme vimos, reconheceu os índios
como primários e naturais senhores de
suas terras), constituindo-se em fonte pri-
mária (os índios são os primeiros possui-
dores de suas terras, não as tendo adquiri-
do a partir de qualquer ato jurídico) e
congênita (os índios já nascem com esse
direito da posse territorial) (HOLTHE,
2010, p. 1050 e 1051).

Não devemos confundir o indigenato com


a posse civil. O indigenato (posse sobre as
terras tradicionalmente ocupadas por eles)
possui natureza constitucional, regulado
totalmente pela Constituição, tratando-se
de verdadeiro direito fundamental dos ín-
dios e povos indígenas[4]. Além disso,
conforme HOLTHE (2010, p. 1051), a pos-
se civil decorre de uma situação de fato
(ex.: apossamento da coisa) e se legitima a
partir de um título jurídico anterior. No
indigenato, a fonte do direito à posse da
terra indígena é primaria e congênita, legi-
tima-se por si mesmo, sem a necessidade
de ato jurídico anterior.

... A posse indígena não se confunde com a


exteriorização do domínio, decorrente do
exercício, pelo possuidor, de alguns dos
poderes inerentes ao proprietário. A posse
indígena é muito mais ampla. A posse in-
dígena caracteriza-se pela ocupação da
terra segundo os usos, costumes e tradi-
ções... (ALMEIDA, 2013, p. 259).

Com o escopo de regularizar a situação


relativa ao exercício dos direitos dos índi-
os e suas comunidades sobre as terras in-
dígenas, o constituinte originário impôs à
União Federal o dever de demarcá-las (art.
231, caput, segunda parte, CR/88).

A demarcação de terras tradicionalmente


ocupadas pelos índios nada mais é que um
processo administrativo, com natureza de
ato administrativo complexo, de iniciativa
e orientação da FUNAI, com o fim de defi-
nir e fixar os limites territoriais, bem como
solucionar, no que for possíveis, pendênci-
as e conflitos existentes sobre elas.

A demarcação não cria os direitos indíge-


nas e, muito menos, constitui título de
propriedade, posso ou ocupação da terra
indígena (RIBEIRO, 2012, p. 576).

Como o indigenato não depende de um


título jurídico que o legitime, entende-se
que não é a demarcação que constitui
a terra como indígena. A propriedade
dessas terras pela União e a posse e o usu-
fruto dos indígenas depende apenas do
preenchimento das condições pre-
vistas na própria Constituição (art.
231, § 1º), sendo o processo de demarca-
ção um simples meio administrativo de
identificação e delimitação física da terra
indígena (a demarcação, portanto, é ato
declaratório, e não constitutivo)
(HOLTHE, 2010, p. 1052).

Reza o art. 67 do Ato das Disposições


Constitucionais Transitórias (ADCT) de
nossa Constituição que “a União concluirá
a demarcação das terras indígenas no
prazo de cinco anos a partir da promul-
gação da Constituição”. É cristalino o atu-
al estado de inconstitucionalidade por
omissão.

De forma resumida, o processo adminis-


trativo de demarcação de terras indígenas
possui as seguintes fases: (a) identificação;
(b) delimitação; (c) publicidade; (d) prazo
para interposição de recurso por vício ou
indenizatório; (e) elaboração do parecer
final e encaminhamento da proposta de
demarcação para o Ministro da Justiça; (f)
se aprovada a proposta, expedição de por-
taria para a demarcação física e reassenta-
mento dos não índios; (g) homologação
por decreto do Presidente da República,
ato este provido de presunção de legitimi-
dade e veracidade, natureza declaratória e
força auto-executória; (h) registro em livro
do patrimônio da União e no cartório lo-
cal; e, por fim, (i) regularização fundiária,
com a desintrusão e solução das pendênci-
as judiciais (MAIA, 2013, p.449 a 453).

Tendo em vista o aspecto congênito dos


direitos dos índios sobre as terras indíge-
nas, o constituinte originário considerou
nulos e extintos todos os títulos e demais
atos que tinham por objeto o domínio, a
posse e a ocupação dessas terras, assim
como as referentes à exploração
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