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Núcleo Interdisciplinar de Meio Ambiente - PUC-Rio Departamento de Direito

O RECONHECIMENTO DOS POVOS E DAS COMUNIDADES


TRADICIONAIS NO BRASIL: AVANÇOS E DESAFIOS A PARTIR DA
CONVENÇÃO 169 DA OIT

Aluno: Jorge Alberto Fernandes de Oliveira


Orientadora: Virgínia Totti Guimarães

Introdução

A Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) trata sobre os povos


indígenas e tribais e foi internalizada no Brasil em 2004, por meio do Decreto nº 5.051. De
acordo com a Convenção, os povos tribais são aqueles “cujas condições sociais, culturais e
econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total
ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial” (art. 1o).
No Brasil, a categoria corrente para se referenciar a tais atores é comunidade tradicional,
de maneira que, o Decreto 6.040/2007 trata da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais. Os povos indígenas e quilombolas contam
com um aparato legal específico de proteção, de modo que, apesar de estarem representados na
respectiva legislação, tendem a lançar mão de maneira mais intensa de outras normativas
próprias, que avançam mais em termos de seus direitos. No entanto, para os grupos não-
indígenas e não-quilombolas, estes dois instrumentos (Convenção 169 e Decreto 6.040) formam
a principal via jurídica de proteção no país.
Considerando que comunidade tradicional é uma categoria jurídica consolidada no
Brasil, enquanto internacionalmente prevalece a concepção de povos tribais, ainda que se
referindo essencialmente aos mesmos grupos sociais, um objetivo preliminar da produção
corrente é evidenciar a associação dos dois conceitos.
Igualmente, intenta-se, promover uma análise acerca da proteção estabelecida a partir
da dinâmica da Convenção 169 e do Decreto 6.040 inter-relacionados, de maneira a se avaliar
as convergências e os limites entre uma normativa e outra.
Ademais, busca-se produzir subsídios no sentido de dar visibilidade à luta por direitos
dos povos e comunidades tradicionais no Brasil, especialmente no que tange a utilização das
diretrizes propostas pela Convenção 169.

Metodologia
A elaboração deste escrito reúne pesquisa normativa, a partir dos textos na íntegra do
da Convenção 169 e do Decreto 6.040. Inclui igualmente pesquisas bibliográficas,
essencialmente de autores que pesquisam os direitos humanos, a diversidade cultural e os povos
e comunidades tradicionais, com base historicizada, visando a problematização do alargamento
do modelo capitalista industrial e na perspectiva da ampliação dos direitos das populações
vulneráveis, com destaque para Boaventura de Sousa Santos.
A pesquisa insere-se nas articulações promovidas para a elaboração do Informe Especial
sobre Violação de Direitos Humanos de Povos Indígenas na Panamazônia da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos com a Rede Eclesial Pan-Amazônica. O respectivo
informe encontra-se em fase de publicação, e envolveu a participação de várias universidades
(entre elas a PUC-Rio) que integram a Asociación de Universidades Confiadas a la a Compañía
de Jesús en América Latina (AUSJAL). Ainda no sentido de reunir subsídios para o supracitado
informe, foi realizada no Rio de Janeiro, a oficina “Práticas emancipatórias face às novas
estratégias de espoliação e violação de direitos na Amazônia”, que contou com a participação
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de vários atores locais e instituições relacionados às lutas das comunidades tradicionais no


entorno da Panamazônia.

Comunidades tradicionais ou povos tribais?

A Convenção 169, ainda que se aplique expressamente aos dois grupos, conceitua
separadamente os termos povos indígenas (preponderância especificamente do elemento
étnico) e povos tribais (para além do elemento étnico, relaciona-se a saberes e fazeres
tradicionais). Vale pontuar que durante todo o texto, a única menção a um dos dois em separado
é a do artigo 28, que aborda as diretrizes para preservação da língua indígena, mas que, ainda
assim, abre a possibilidade para as línguas provenientes de grupos não indígenas (por óbvio os
tribais). Ou seja, a separação é meramente terminológica, posto que a proteção oferecida se
manifesta de maneira equânime aos dois grupos. Nessa diretriz, vale mencionar a compreensão
da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de que os povos tribais têm os mesmos direitos
que os povos indígenas1, pois compartilham de características sociais, culturais e econômicas
distintas, incluindo relação especial com territórios ancestrais2.
Já no âmbito brasileiro, o termo consolidado é comunidade tradicional, de maneira que
o Decreto 6.040 é nomeado como Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos
e Comunidades Tradicionais.
Durante um período, utilizava-se o conceito de populações originárias. Cabe pontuar
que trata-se de uma definição menos ampla, pois no bojo das comunidades tradicionais há povos
constituídos pelos elementos de costume, que não necessariamente estão atrelados a uma
origem étnica específica.

Reconhecimento de quem?
Concebidos enquanto
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição (Decreto 6.040/2007, Art 3º, I),

os povos e comunidades tradicionais são sujeitos de direitos, que se organizam enquanto


grupos, a partir de modos tradicionais de vida. Indígenas, quilombolas, caiçaras, ribeirinhos,
pescadores artesanais, açorianos, quebradeiras de coco babaçu, cipozeiros, catadores de
carangueijo, seringueiros, castanheiros, apanhadores de flor, vazanteiros, veredeiros,
barranqueiros, pescadores artesanais, marisqueiros, pastoreios, gerazeiros, faxinaleiros,
caipiras, sertanejos, praieiros, chapadeiros, catingueiros, retireiros do Araguaia, pomeranos,
comunidades de fundo de pasto, pantaneiros, catadoras de mangaba, piaçabeiros, campeiros,
jangadeiros, ciganos, povos de terreiro, caboclos, ciganos, entre muitos outros, havendo,
inclusive, a possibilidades de novas denominações virem a se formar.
Conforme assinalado por DIEGUES (1996, p. 87),

“comunidades tradicionais estão relacionadas com um tipo de organização econômica


e social com reduzida acumulação de capital, não usando força de trabalho

1 CIDH. Direitos dos Povos Indígenas e Tribais sobre suas terras ancestrais e recursos naturais: normas e
jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 30 dez 2009. para.
35.
2 Corte IDH. Caso del Pueblo Saramaka Vs. Suriname. Sentença de 28 de novembro de 2007.
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assalariado. Nelas produtores independentes estão envolvidos em atividades


econômicas de pequena escala, como agricultura e pesca, coleta e artesanato.
Economicamente, portanto, essas comunidades se baseiam no uso dos recursos
naturais renováveis (...). Seus padrões de consumo, baixa densidade populacional e
limitado desenvolvimento tecnológico fazem com que sua interferência no meio
ambiente seja pequena...”.

Importante considerar, conforme destacado por CRUZ (2012, p. 3), que o termo não se
restringe a uma “categoria de análise”, mas de outro feito se configura na dimensão de “uma
categoria da prática política”, na medida em que constitui uma “identidade sociopolítica”, que
serve para mobilizar os atores e organizar as respectivas lutas.
No Brasil, estima-se que tais grupos sejam compostos por 8 a 25 milhões de pessoas
(divergências entre autores) e que ocupem cerca de 25% do território nacional (APUD Silva,
2009, p. 9).

Critérios/procedimentos para o reconhecimento


O reconhecimento de povos e comunidades tradicionais ocorre mediante um processo
composto de dois estágios: o auto-reconhecimento e a auto-identificação.
No âmbito do auto-reconhecimento, considera-se as múltiplas formas que as
comunidades reproduzem sua tradicionalidade, de maneira que seja um processo autônomo e
essencialmente auto-gerido, em que a identidade coletiva é constituída a partir da identificação
do grupo sobre si e sobre os demais membros. Portanto, para fazer parte, é necessário ser
reconhecido pela comunidade como seu membro.
No tocante à auto-defPortanto, a dimensão mais preponderante para o reconhecimento
da condição de comunidade tradicional é o aspecto da auto-identificação, que propõe uma
consciência individual acerca de sua identidade. Conforme assinalado por MOREIRA &
PIMENTEL (2015, p. 159):

Também denominado autorreconhecimento, auto-atribuição, autodefinição, dentre


outras denominações, o direito à autoidentificação é uma das pedras fundamentais dos
Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais e implica, por essência, o
reconhecimento do direito de autodeterminar-se, de autogerir-se e, por via de
consequência, de autorreconhecer-se, atribuindo-se identidade de forma autônoma,
sem a necessidade de chancela estatal, todavia, obrigando o Estado à adoção de
políticas específicas, inclusive vinculando-o na obrigação de reconhecer o
autorreconhecimento.

Em termos de marco normativo, é possível delinear dois critérios nessa definição: um


objetivo e outro subjetivo. Na dimensão objetiva, a partir da Conveção 169 da OIT, artigo 1.a,
exige-se que “os membros compartilhem valores sociais, culturais e econômicos e que estejam
regidos total ou parcialmente por seus próprios costumes e tradições ou por uma legislação
especial.”5 . No que concerne o aspecto subjetivo, requere-se que haja uma “consciência da
comunidade que faz com que seus membros se compreendam como membros de uma
comunidade diferenciada, na qual seus integrantes compartilhem de uma identidade coletiva.6

5 CIDH. Povos indígenas, comunidades afrodescendentes e recursos naturais: proteção de direitos humanos no
contexto de atividade de extração, exploração e desenvolvimento. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 47/15. 31 dez 2015.
para. 30.
6 CIDH. Povos indígenas, comunidades afrodescendentes e recursos naturais: proteção de direitos humanos no
contexto de atividade de extração, exploração e desenvolvimento. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 47/15. 31 dez 2015.
para. 30.
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Cabe ressaltar que tal realidade é fruto de demandas históricas dos movimentos de povos
e comunidades tradicionais ao redor do mundo, de maneira que esta vem se configurando como
uma das garantias mais basilares no direito internacional. Em suma, o direito a se auto-
identificar representa a possibilidade de existir na ordem material e formal, com autonomia e
liberdade. Além disso, ele é condicionante de direitos posteriores, como da propriedade de
territórios ou da consulta por parte dos governos. Visando promover tal dimensão, o Decreto
6.040 apresenta como seu objetivo específico número VI, reconhecer com celeridade a auto-
identificação, visando acesso pleno aos direitos civis (individuais e coletivos).
O reconhecimento é uma medida especial voltada para as respectivas populações, que
segundo a própria Convenção 169, não pode representar uma deterioração aos direitos gerais
da cidadania, nem ensejar discriminações (Artigo 4º).
O Decreto 6.040 consolida os Planos de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais, a Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais — CNPCT, os fóruns regionais e locais e também o Plano
Plurianual, enquanto instrumentos de implementação da respectiva política. Dessa forma, estes
órgãos e outros derivados (comissões estaduais, por exemplo), colaboram na direção de ampliar
as bases para o reconhecimento dos povos e comunidades em termos gerais. Cabe ressaltar que
essa etapa é meramente regulatória, de maneira que não cabe a tais instrumentos aferir a
condição de comunidade tradicional, mas apenas a de dar consequência à auto-identificação.

O reconhecimento enquanto agenda contra-hegemônica


“Até 2002 vivíamos com nosso modo de vida na invisibilidade, e a invisibilidade
garantia nosso modo de vida. O autorreconhecimento veio da necessidade de defesa do nosso
território” (MOTOKI para Reporte Brasil, 2018). A fala em questão é de Maria de Fátima
Alves, apanhadora de flores, da Serra do Espinhaço em Minas Gerais, e expõe em algum nível
a trajetória dessa discussão. Durante muito tempo, não estar visível, de maneira a não se afirmar
enquanto comunidade, e consequentemente se coadunar às outras coletividades, sem promover
os elementos constitutivos de suas identidades culturais, seria uma alternativa para a
manutenção de seus saberes, fazeres, modos de vida. Quando se alargam as frentes de ataques
direcionadas a tais grupos, e essas ganham distintos contornos e justificativa (interesses
privados, grilagem de terras, justificativas ambientais...), o cenário passa a se transformar. Se
antes se esconder era uma estratégia a se considerar, quando aumentam as violações,
desenvolve-se a noção da visibilidade social enquanto elemento capaz de somar na proteção
comunitária, e é justamente o ponto sobre o qual prevalece o instituto do reconhecimento como
prática efetiva.
SANTOS (1997, p. 107, 108) reflete com profundidade sobre a globalização (ou ainda
em seus termos as várias globalizações), entendo-a como conjunto de processos que envolvem
conflitos, com vencidos e vencedores, de maneira que estes últimos são os que assumem a
hegemonia do discurso. Assim, os ditos vencidos desaparecem de cena, sucumbindo em termos
estruturais, mas sofrendo também violência simbólica no que diz respeito ao ato de se
posicionar e fazer valer suas ideias e identidade. É bem a tônica do provérbio africano que diz
que enquanto os leões não puderem contar suas próprias histórias, os contos de caça sempre
glorificarão os caçadores. Assim, é possível conjecturar que o protagonismo de grupos sociais
vulneráveis (como das comunidades tradicionais), frente a um contexto de globalizações, é o
exercício de desierarquização dos modos de vida, de maneira que a multiplicidade torne-se
visível, e o padrão urbano-industrial deixe de ser padrão, sendo apenas mais uma possibilidade.
Tal cenário envolve formas contra-hegemônicas de empoderamento, que na maioria dos casos
não está posta ainda na ordem do dia.
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Resta ainda a necessidade de não reduzir a questão apenas a uma matéria psicológica,
no tocante a um autorreconhecimento ou incentivo à estima dos grupos, posto que reconhecer
só tem validade, se for seguido de demais institutos redistributivos, como por exemplo do
direito ao território. FRASER e HONETT (2003, apud PINTO, 2016, p. 7), asseveram o
seguinte:

Não se trata de ser tomado por uma identidade distorcida ou uma subjetividade
enfraquecida como resultado de ser depreciado pelos outros. É, em vez disso, ser
constituído por padrões institucionalizados de valores culturais de tal forma que
impossibilite atuar com paridade na vida social.

Arremata-se desse debate, que o reconhecimento enquanto agenda pública é um


fenômeno em disputa.
Por um lado, existe o risco deste processo converter-se em uma nova forma de
etnocentrismo, de modo que a categorização de identidades poderia ser utilizada para o
recrudescimento da exclusão e das desigualdades, ou ainda do favorecimento à sobreposição
de uma cultura sobre a outra. Um exemplo são os vários movimentos, amplamente denunciados,
de catequização de comunidades indígenas por parte de missionários religiosos
neopentecostais, que se utilizam da identificação de grupos para promover suas missões
evangelizadoras. Nesse ínterim, a agenda de reconhecimento pode se confundir com um esforço
colonizador de catalogação para fins de apropriação cultural e exploração ideológica.
Por outro lado, é possível conceber este movimento na qualidade de uma atividade
essencialmente garantista e capaz de ampliar direitos. SANTOS (1997, p. 122) afirma que “as
pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o
direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. Esta é uma premissa
absolutamente irrefutável para se pensar em direção ao fortalecimento das identidades coletivas
e do alargamento da autonomia comunitária. A noção da igualdade na diferença precisa lidar
necessariamente com a diversidade cultural, na medida e nos limites do consentimento dos
atores sociais relacionados. Portanto, o reconhecimento não pode ocorrer de maneira vertical e
determinista. Ou ele é fruto da demanda local, expressada através da autoidentificação, ou ele
não deve ser considerado.
O Decreto 6.040 traz standards legais, que contribuem substancialmente para esse
debate. O Art. 1º estabelece os princípios do referido instrumento. Logo no primeiro inciso
reitera-se o seguinte:
I - o reconhecimento, a valorização e o respeito à diversidade socioambiental e cultural
dos povos e comunidades tradicionais, levando-se em conta, dentre outros aspectos,
os recortes etnia, raça, gênero, idade, religiosidade, ancestralidade, orientação sexual
e atividades laborais, entre outros, bem como a relação desses em cada comunidade
ou povo, de modo a não desrespeitar, subsumir ou negligenciar as diferenças dos
mesmos grupos, comunidades ou povos ou, ainda, instaurar ou reforçar qualquer
relação de desigualdade;

Infere-se, justamente, a necessidade de se evidenciar o caráter multicultural e diverso,


favorecendo a diferença (relação de essência que tem a ver com pluralidade), na mesma
proporção que recusa as desigualdades (diferenças hierarquizadas, que privilegiam uns em
detrimento de outros).

Conclusão
O fecho das reflexões expostas aponta para o processo de autoidentificação e
reconhecimento dos povos e comunidades tradicionais como uma prerrogativa para garantias
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mínimas de tratamento respeitoso para com povos e comunidades tradicionais. É


imprescindível que se suscitem novas ferramentas, incumbidas de amplificarem seu patamar de
autonomia, de forma a favorecer, conforme entendido no Art. 1º do Decretto 6.040, o pleno e
efetivo exercício da cidadania.
Para tanto, faz-se urgente o respeito aos modos de vida tradicionais e a recusa de
posturas colonizadoras e autoritárias. Para além de problematizar o paradigma urbano-
industrial, é crucial extirpar a noção etnocêntrica de sua inexorabilidade. Primeiramente ele
deve ser entendido enquanto construção dinâmica (e portanto mutável), em seguida há que se
considerá-lo na justa medida de uma escolha social, feita dentre várias outras hipóteses. Não há
modo de vida melhor ou pior, todos são legítimos e devem ser respeitados. Nestes termos, cabe
à sociedade brasileira, em seu conjunto, romper com a visão de que determinadas culturas estão
atreladas a um suposto atraso. A vida no campo, na floresta, nas comunidades tradicionais,
assim como os saberes e os fazeres, devem ser preservados em sua multiplicidade, sem arroubos
de urbanização e descaracterização de identidades. Assim, as violações perpetradas,
independente do motivo, devem ser caracterizadas como violações ao patrimônio comum da
humanidade, inclusive às violações ao direito por reconhecimento.
O Decreto 6.040 manifesta um avanço histórico, ampliando as diretrizes de
reconhecimento formal, e otimizando os paradigmas concernentes às políticas públicas para tais
populações. Por outro lado, expõe uma insuficiência, dada a necessidade de uma série de outras
diretrizes legais para que se efetive a proteção dessas populações. A própria configuração das
normativas enquanto decreto suscitam a fragilidade legislativa, posto que não existe lei
ordinária sobre o tema, vulnerabilizando ainda mais os respectivos grupos.
A Convenção 169 representa uma grande evolução no contexto internacional da defesa
dos direitos dos povos e comunidades tradicionais, trazendo interessantes contornos à questão
do reconhecimento, e sendo de imensa valia para os respectivos grupos sociais, a sua
internalização no ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, ela ainda sofre substantivas
limitações em relação à sua aplicabilidade. Um dos entraves mais preponderantes diz respeito
à auto-identificação enquanto parâmetro para o reconhecimento, pois apesar da Convenção
garantir, o Estado brasileiro impõe sistematicamente impedimentos e barreiras para a efetivação
desse direito.
Percebe-se um contexto legal sensível de proteção, a partir de dois indícios. O primeiro
temporal, na medida em que a Convenção passa a vigorar no Brasil somente em 2004 e o
Decreto em 2007, sendo portanto muito recentes. O segundo formal, no sentido de que é nítida
a necessidade de uma série de outras diretrizes legais para que se efetive a proteção dessas
populações. A própria configuração enquanto Decreto, suscita a fragilidade legislativa, posto
que não há uma lei ordinária sobre o tema, vulnerabilizando ainda mais os respectivos grupos.
A Convenção, apesar de seu caráter supralegal, também não foi capaz de gerar repercussão
legislativa, na diretriz de ampliar os direitos previstos. Denota-se, assim, um aparato legal não
consolidado, em que apesar de um princípio norteador forte (intento protetivo das
comunidades), a existência de poucas normas efetivas impedem a concretização em termos de
procedimentos dessa proteção. Considerando a extrema vulnerabilidade de tais populações,
torna-se imperioso ampliar direitos voltados para promover o protagonismo dos povos e
comunidades tradicionais, tanto no aspecto interno, quanto externo.
Internamente, é vital o fortalecimento de laços, a liberdade de se auto-organizar e a
autoestima em torno de sua própria identidade. Este processo deve ser realizado, conforme
aponta a Convenção 169 em seu preâmbulo: “Reconhecendo as aspirações desses povos a
assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento
econômico”. Aspectos como sistemas de justiça próprios, como do direito indígena, ou de
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modelos específico de propriedade, como da propriedade comunal, devem ser juridicamente


considerados e garantidos.
Externamente, é fundamental repensar às instituições contemporâneas, no sentido de
fortalecer o diálogo intercultural e o compartilhamento horizontal de perspectivas. É
indeclinável que haja uma reforma estrutural nos parâmetros atuais de democracia e
representatividade, garantindo participação plena das referidas comunidades nos espaços de
poder e controle social. Infelizmente, a presença dos respectivos atores no âmbito dos três
poderes ainda é ridiculamente baixa, impactando consequentemente na invisibilização das
demandas concernentes.
Resta, nesse escopo, a constituição de uma práxis efetiva, em que, para além de aspectos
normativos, haja um avanço efetivo na melhoria das condições de vida, e na realização dos
direitos humanos em relação à realidade concreta de tais grupos. Em suma, que seja viabilizado
um projeto civilizatório em que caibam todos.

Referências:
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