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DE POVOS E COMUNIDADES
TRADICIONAIS NO BRASIL*
Resumo: a garantia dos direitos dos povos e comunidades tradicionais reivindicada há tempos
por estes sujeitos é um grande desafio. Neste estudo procurou-se realizar uma análise centrada
no direito a autoidentificação, buscando identificar o arcabouço jurídico relativo ao tema e
investigar a apropriação deste direito pelo judiciário brasileiro. Desta forma, é demonstrada
a afirmação e aplicação do direito a autoidentificação no Brasil.
T
ambém denominado autorreconhecimento, auto-atribuição, autodefinição, dentre
outras denominações, o direito à autoidentificação é uma das pedras fundamentais
dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais e implica, por essência, o
reconhecimento do direito de autodeterminar-se, de autogerir-se e, por via de consequência,
de autorreconhecer-se, atribuindo-se identidade de forma autônoma, sem a necessidade de
chancela estatal, todavia, obrigando o Estado à adoção de políticas específicas, inclusive
vinculando-o na obrigação de reconhecer o autorreconhecimento.
Vale salientar que o direito à autoidentificação é próprio de uma compreensão de
pluralismo, esteiada na diversidade, comunidade e interculturalidade que segundo Wolkmer
possui como princípios valorativos:
Com efeito, só é outorgado ao próprio sujeito o direito de dizer sua identidade, a par-
tir da sua cultura, ou como define Laraia (2001, p.35), segundo a lente pela qual vê o mundo:
[...] cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferen-
tes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas. Por exemplo, a floresta
amazônica não passa para o antropólogo — desprovido de um razoável conhecimento de botânica
— de um amontoado confuso de árvores e arbustos, dos mais diversos tamanhos e com uma imensa
variedade de tonalidades verdes. A visão que um índio Tupi tem deste mesmo cenário é totalmente
diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e uma referência espacial.
1. para muitos grupos, a noção de tradicional faz parte da sua agenda reivindicatória, sendo certo
que, como efeito da crescente politização que constrói novos sujeitos de direitos, essa noção seja
operacionalizada em suas lutas políticas locais;
2. para reconhecer a tradicionalidade de certos grupos menos articulados politicamente, é necessário
atentar para as diversas denominações que eles assumem localmente, o que pode levar gestores e
autoridades a confundi-los com pequenos agricultores e outras populações não tradicionais;
3 é relativamente comum que o reconhecimento da tradicionalidade apareça atrelado a critérios
temporais ou geracionais de permanência no local. É importante distinguir ambos, de modo que os
movimentos migratórios locais e as dinâmicas demográficas não sejam tomados como indicativos
de exclusão;
4. é também comum ocorrer a confusão entre a atividade econômica praticada e a identidade do
grupo. Segundo essa perspectiva, se a atividade econômica praticada não pode ser definida como
“tradicional”, os grupos que a adotam também não poderiam.
As comunidades tradicionais referidas ao longo deste texto tendem a assumir denominação local não
necessariamente acoplada ao qualificativo tradicional, sendo autodesignadas conforme diversificadas
denominações regionais. É preciso atentar para o fato de que o autorreconhecimento de grupos ditos
tradicionais tem sido parte de um processo que se constitui, muitas vezes, a partir do conflito e das
circunstâncias. Assim, grupos étnicos ou outros povos ditos tradicionais que, em passado recente,
não reivindicavam qualquer identidade específica, com o passar do tempo, assumem a tradicionali-
dade em seu discurso e prática política (BRASIL, MPF, 2014, p. 92).
A Carta Política Brasileira de 1988 contribuiu para superar uma tradição publicista liberal-in-
dividualista e social-intervencionista, transformando-se num importante instrumento diretivo
propulsor para um novo constitucionalismo, de tipo pluralista e multicultural (WOLKMER,
2013, p. 29).
Art. 2º Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto,
os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, do-
tados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a
resistência à opressão histórica sofrida.
§ 1º Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos
será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
Art. 4º O Termo de Autorização de Uso Sustentável – TAUS das áreas definidas no artigo 2º
serão outorgados exclusivamente a grupos culturalmente diferenciados e que ‘se reconhecem
como tais’, que possuem formas próprias de organização social, que utilizam áreas da União
e seus recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, econômica, am-
biental e religiosa utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela
tradição (grifo nosso).
Art. 2º. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins desta Lei,
os grupos étnico-raciais, segundo ‘critérios de auto-atribuição’, com trajetória histórica pró-
pria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relaciona-
da com a resistência à opressão histórica sofrida (grifamos).
§1º.Para os fins desta Lei, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será
atestada mediante autodefinição da própria comunidade (grifo nosso).
A temática perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ) também tem sido tra-
tada embora não seja grande a diversidade de precedentes o envolvendo. Um importante
precedente refere-se ao Acórdão proferido em 2011 quando da apreciação do Recurso em
Mandado de Segurança n.º 30.675 - AM (2009/0200796-2), relatado pelo Ministro Gilson
Dipp. Neste caso discutia-se a possibilidade de intervenção da FUNAI como assistente de um
indígena da etnia Kokama, em processo penal no qual era réu. O Tribunal de origem negou
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 25, n. 2, p. 159-170, abr./jun. 2015. 163
a assistência da FUNAI ao argumento de que o indígena estava integrado à “sociedade, pos-
suindo título de eleitor, CPF, certificado de dispensa militar e outros documentos, faltando
assim legitimidade à FUNAI para representá-lo ou assisti-lo judicialmente”. Tal decisão fora
tomada mesmo perante o autorreconhecimento do indígena, bem como da existência de lau-
do antropológico afirmando tal condição.
Neste precedente o STJ anulou o processo de origem até a decisão de negativa de
assistência da FUNAI e firmou entendimento de que não existe mais a classificação entre
índios integrados e não integrados, existe sim “índio” e “não-índio” sendo irrelevante o grau
de integração.
Essa decisão afirmou, ademais, a autoidentificação como critério para a atribuição
de identidade, socorreu-se do disposto na Convenção n. 169 da OIT sustentando que esta
acolheu, formalmente, como critério de identificação a auto-atribuição, de tal modo que é
indígena quem se sente, comporta-se ou afirma-se como tal, de acordo com os costumes,
organizações, usos, língua, crenças e tradições indígenas da comunidade a que pertença, o
ministro assim fundamentou seu voto:
Recentemente, adotando normativo da Convenção OIT 169 o Estado brasileiro (Decreto nº 5.051, DO
de 20.04.2004) acolheu formalmente, como critério de identificação, a autoidentificação, de tal modo
que, para fins legais, é indígena quem se sente, se comporta ou se afirma como tal, de acordo com os
costumes, organização, usos, língua, crenças e tradições indígenas da comunidade a que pertença.
O conteúdo nuclear desse estado decorre do regime constitucional do art. 231 da CF que relaciona
a condição e direitos dos indígenas com a existência de organização, língua, crenças, usos e costumes
próprios, pouco importando se são os índios mais ou menos familiarizados com os usos e costumes
não índios, ou se possuem documentação e exercem direitos de cidadania não índia.
E isto porque, compulsando as normas insertas no Decreto nº 4887/2003, percebe-se que o mesmo
realmente se distanciou do teor do art. 68 do ADCT. Senão vejamos: enquanto este último está
direcionado ‘aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras’,
ou seja, às pessoas físicas descendentes daqueles que integraram uma comunidade de quilombo e
que estivessem, quando da promulgação da CRFB/88, ocupando aquelas terras, o Decreto em co-
mento redefine o destinatário do dispositivo quando estabelece, em seu art. 2º, que “consideram-se
remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins deste Decreto, os grupos ético-raciais ”,
representados por ‘associações legalmente constituídas‘ (art. 17, parágrafo único), ampliando, assim,
o alcance do dispositivo constitucional.
O mero voto singular não tem o condão de sinalizar o posicionamento que será adotado pelos de-
mais Ministros do Supremo Tribunal Federal, mas a força dos argumentos defendidos pelo Ministro
Relator levantam questionamentos fundados acerca da constitucionalidade do indigitado Decreto.
[...] Ante o exposto, com base no artigo 97 da Constituição da República, na Súmula Vinculante
nº 10, do Supremo Tribunal Federal, e nos artigos 12, inciso VII e 167, do Regimento Inter-
no deste Tribunal, SUSCITO ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE do Decreto nº
4.887/2003.
O fato de que ainda não houve julgamento definitivo pelo STF não impede que o voto acima alu-
dido seja tomado como paradigma, tendo em vista que os argumentos expendidos pelo Min. César
Peluso são fortes e convincentes, podendo seu entendimento ser livremente adotado pelos demais
magistrados.
3. Como direito fundamental que é, o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
guarda aplicabilidade imediata. “Princípio é imperativo. Princípio está no mundo jurídico. Princípio
é mais do que regra. Não teria sentido exigir complementação para um princípio que é mais do que
uma regra e que contém a própria regra”. (Desembargador Paulo Afonso Brum Vaz).
Importante notar que relativo ao direito a autoidentificação este Tribunal não dialoga
apenas com o Decreto 4.887/2003, mas suscita a Convenção 169 da OIT, importante dispositivo
na luta dos povos e comunidades tradicionais incorporado no sistema de leis internas brasileiro.
Sobre este particular, o Agravo de Instrumento (N.º 200804000340375) suscitado por empresa
privada contra decisão que indeferiu pedido de antecipação de tutela em ação declaratória de nu-
lidade de atos praticados pelo INCRA referentes ao procedimento administrativo e judicial para
identificação de área a ser eventualmente titulada como terras quilombolas é interessante. No caso,
o agravante contestava os termos de laudo antropológico e de interpretação do art. 68-ADCT.
A Relatora Maria Lúcia Luz Leiria, apoiando-se na doutrina de Déborah Duprat,
em profunda análise, negou provimento ao referido agravo e consolidou importante jurispru-
dência no âmbito do TRF da 4º região dispondo em seu voto que:
[...] O art. 2º,’caput’, e o art. 3, § 4º, do referido Decreto, pois, estão em conformidade com as pre-
visões da referida Convenção. A negação do critério de autoatribuição tem um nítido viés etnocen-
trista, porque busca impor ao grupo uma rigidez cultural e impedi-lo de, a partir de 5 de outubro de
1988, conceber novos estilos de vida, de construir novas formas de vida coletiva, enfim, a dinâmica
de qualquer comunidade real, que se modifica, se desloca, idealiza projetos e os realiza, sem perder,
por isso, a sua identidade (DUPRAT, 2005).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Referências