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Interculturalidade e direitos fundamentais culturais

INTERCULTURALIDADE E DIREITOS FUNDAMENTAIS CULTURAIS

Revista de Direito Constitucional e Internacional | vol. 63/2008 | p. 30 - 41 | Abr - Jun /


2008
Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 3 | p. 1211 - 1224 | Ago / 2011
DTR\2008\934
___________________________________________________________________________
Ana Maria D'Ávila Lopes
Mestre e Doutora em Direito Constitucional pela UFMG. Professora do Mestrado em Direito
Constitucional da UFCE. Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da
Universidade de Fortaleza. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Área do Direito: Constitucional; Internacional

Resumo: Neste artigo busca-se evidenciar a importância da proposta da interculturalidade


para a construção de uma sociedade na qual as diferentes culturas possam não apenas
conviver se tolerando, mas também interagindo e aprendendo umas das outras. Nesse
contexto, surge a responsabilidade do estado de implementar políticas públicas para que
esse objetivo possa ser alcançado.

Palavras-chave: Interculturalidade - Multiculturalismo - Direitos culturais - Direitos


fundamentais - Minorias

Abstract: This paper aims to show the importance of interculturality for constructing a
society, where the different cultures can not only coexist but also interact and learn from
each other. In that context, it emerges the responsibility of the state to implement policies
so that aim could be achieved.

Keywords: Interculturality - Multiculturalism - Cultural rights - Fundamental rights -


Minorities

Sumário:
1. Introdução - 2. Multiculturalismo x Interculturalidade - 3. Redefinindo os direitos
culturais - 4. Os direitos culturais como direitos fundamentais - 6. Conclusão - 7.
Referências bibliográficas

1. Introdução

A globalização revela uma intricada realidade de mutações sociais, culturais, políticas e


econômicas, cujas repercussões ainda não podem ser totalmente dimensionadas, mas que
vêm abalando os alicerces conceituais da cultura jurídica ocidental.

No atual mundo globalizado, onde a diversidade cultural exsurge na sua plenitude,


levantam-se interrogações sobre como garantir o respeito e a convivência pacífica entre os
diversos grupos culturais dos que a humanidade está composta.

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Interculturalidade e direitos fundamentais culturais

Perante essa realidade, o multiculturalismo e a interculturalidade surgem, não para


apontar a diversidade cultural como uma nova tendência da sociedade globalizada, mas
com o intuito de oferecer respostas aos questionamentos que a sociedade do século XXI faz
perante a sua crescente complexidade.

Buscando contribuir na elucidação de alguns desses interrogantes, é que neste trabalho


serão inicialmente diferenciados os conceitos multiculturalismo e interculturalidade,
salientado as vantagens teóricas e práticas deste último na consolidação de uma sociedade
pacífica, na qual as culturas não apenas se respeitem ou se tolerem, mas possam interagir
e aprender umas das outras. Seguidamente, os direitos culturais serão definidos para
posteriormente defender sua natureza de direitos fundamentais. Finalmente, no marco da
Constituição Federal (LGL\1988\3) brasileira de 1988, serão analisadas as normas
relativas à proteção dos direitos culturais evidenciando a necessidade de uma maior
atuação do Estado e da sociedade civil para sua real implementação.

2. Multiculturalismo x Interculturalidade

O multiculturalismo - também chamado de pluralismo cultural ou cosmopolitismo - busca


conciliar o reconhecimento e respeito à diversidade cultural presente em todas as
sociedades.

A expressão multiculturalismo designa, originariamente, a coexistência de formas culturais


ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio das sociedades modernas (...).
Existem diferentes noções de multiculturalismo, nem todas no sentido "emancipatório". O
termo apresenta as mesmas dificuldades e potencialidades do conceito de "cultura", um
conceito central das humanidades e das ciências sociais e que, nas últimas décadas, se
tornou terreno explícito de lutas políticas. 1

Mikhaël Elbaz 2 ensina que multiculturalismo é um conceito e uma ideologia, cuja


polissemia somente pode ser entendida no âmbito da desestruturação da narração
nacional, sob os efeitos da globalização.

A interculturalidade, pela sua vez, é um conceito que, embora tenha também surgido como
reação dos Estados nacionais ao processo de uniformização cultural decorrente da
globalização, difere substancialmente do multiculturalismo. Virgilio Alvarado 3 distingue
claramente os dois conceitos ao afirmar que, enquanto o multiculturalismo propugna a
convivência num mesmo espaço social de culturas diferentes sob o princípio da tolerância
e do respeito à diferença, a interculturalidade, ao pressupor como inevitável a interação
entre essas culturas, propõe um projeto político que permita estabelecer um diálogo entre
elas, como forma de garantir uma real convivência pacífica. 4

Em favor do conceito interculturalidade, Alvarado aponta algumas das suas principais


características:

a) É um conceito dinâmico que supera o multiculturalismo ao reconhecer a sociedade como


um espaço de permanente interação;

b) Propugna não apenas o respeito à diversidade cultural, mas a necessidade da


convivência e troca de experiências;

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c) Procura re-criar as culturas existentes, reconhecendo que se encontram em permanente


transformação;

d) Propõe uma nova síntese cultural, o que implica a re-elaboração dos modelos culturais
preconcebidos;

e) Pressupõe a interação entre as culturas, que embora muitas vezes tensa, pode ser
regulada.

Nesse contexto, Alvarado afirma que o Estado não está apenas obrigado a criar e fortalecer
mecanismos de resgate e respeito da identidade cultural dos diferentes grupos que o
compõem, como assim o propõe o multiculturalismo, mas deve também o Estado adotar
sistemática e gradualmente espaços e processos de interação positiva entre as diferentes
culturas, com a finalidade de abrir e gerar relações de confiança, de reconhecimento
mútuo, de comunicação, diálogo e debate, aprendizagem e intercâmbio, cooperação e
convivência.

Nessa linha de pensamento, pronuncia-se Fidel Tubino:

Mientras que en el multiculturalismo la palabra clave es tolerancia, en la interculturalidad


"la palabra claves es diálogo. La interculturalidad reasume en parte el multiculturalismo, en
el sentido de que para dialogar hay que presuponer respeto mutuo y condiciones de
igualdad entre los que dialogan" (Etxeberria 2001:18). 5

Para tal, faz-se necessário elucidar que e quais são os direitos culturais que devem ser
protegidos e promovidos pelo Estado, tema que será desenvolvido a seguir.

3. Redefinindo os direitos culturais

A doutrina tradicional classifica os direitos fundamentais em três gerações levando em


consideração a época histórica do seu surgimento. Nesse sentido, a primeira geração de
direitos, que compreende os direitos individuais e políticos, surgiu juntamente com a
afirmação do individualista e abstencionista Estado Liberal de Direito, no final do século
XVIII. A segunda geração, que abrange os direitos sociais, econômicos e culturais, foi
produto das lutas e reivindicações sociais que deflagraram o intervencionista Estado Social
de Direito, consolidado constitucionalmente em alguns países na segunda década do
século XX. Por último, a terceira geração, que abarca todos os direitos de solidariedade,
está ainda em fase de desenvolvimento e ampliação do atual Estado Democrático de
Direito. A nossa insistência pelo emprego do questionado termo geração, que parece
indicar que cada nova geração extingue a anterior, deve-se ao fato de que, na atualidade,
a doutrina é praticamente unânime em compreender que as três gerações coexistem sem
uma extinguir a outra, descartando, assim, qualquer tipo de confusão que o termo possa
provocar.

A bibliografia existente, a respeito de quase todos esses direitos, é muito rica e variada,
não apenas no Brasil, mas no mundo todo. Não é difícil encontrar obras, pesquisas e
estudos sobre o direito à vida, à liberdade, à igualdade ou à propriedade, clássicos direitos
individuais. Dos direitos políticos muito, também, tem-se escrito, especialmente nos dias
atuais com a redefinição do conceito de cidadania. Os direitos sociais e econômicos, por
sua vez, têm sido objeto de análises e discussões que têm até ultrapassado os âmbitos do

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discurso jurídico, para se tornarem centro de atenção de outros cientistas preocupados


com a satisfação das necessidades básicas dos seres humanos. Os novos direitos difusos,
como os que protegem o meio ambiente e o consumidor, ou os decorrentes dos avanços da
biomedicina e da informática, têm atraído também o interesse interdisciplinar de velhos e
novos estudiosos do direito. Entretanto, pouco, ou quase nada, tem-se dedicado ao estudo
dos direitos culturais.

Os direitos culturais, incluídos na segunda geração dos direitos fundamentais, surgiram no


início do século XX, com o intuito de defender e promover basicamente o direito à
educação, visto que, à época, a expressão direito cultural estava associada à idéia de
instrução. Com o passar dos anos, e graças ao processo mundial de globalização e aos
aportes teóricos do multiculturalismo, ampliou-se o conteúdo do termo cultura, sendo hoje
entendido como toda manifestação criativa e própria do sentir e pensar de um grupo social.

A cultura é um conjunto de traços distintivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos


que caracterizam uma sociedade ou um grupo social. A cultura engloba, além das artes e
das letras, o modo de viver junto, o sistema de valores, as tradições e crenças. 6

A ultrapassada identificação de cultura com instrução-educação não fazia mais do que


refletir a errada concepção da hegemonia da cultura européia, considerada como o modelo
das outras. Desse modo, à época, não se podia falar de um direito cultural como o direito
de todo povo de se manifestar segundo suas próprias tradições, costumes ou valores, mas
como direito de "toda pessoa de aprender a cultura ocidental".

A idéia de cultura, num dos seus usos mais comuns, está associada a um dos domínios do
saber institucionalizado de ocidente, as humanidades. Definida como repositório do que de
melhor foi pensado e produzido pela humanidade, a cultura, neste sentido, assenta em
critérios de valor, estéticos, morais, ou cognitivos que, definindo-se a si próprios como
universais, elidem a diferença cultural ou a especificidade histórica dos objetos que
classificam (...).

Uma outra concepção, que coexiste com a anterior, reconhece a pluralidade de culturas,
definindo-as como totalidades complexas que confundem com as sociedades, permitindo
caracterizar modos de vida assentes em condições materiais e simbólicas. Esta definição
leva a estabelecer distinções entre culturas que podem ser consideradas seja como
diferentes e incomensuráveis, e julgadas segundo padrões relativistas, seja como
exemplares de estádios numa escala evolutiva que conduz do "elementar" ou "simples" ao
"complexo" e do "primitivo" ao "civilizado". 7

Hoje, não mais deve se entender que existem hierarquias de culturas nem imposições de
modelos comportamentais. Assim, com base nesse entendimento, foram aprovadas, nas
31 ª e 33 ª sessões gerais da Unesco, em 2002 e 2005 respectivamente, a Declaração
Universal sobre Diversidade Cultural e a Convenção sobre a proteção e promoção da
diversidade das expressões culturais estabelecendo, esta última, dentre seus princípios:

"Art. 2.º Princípios orientadores

(...)

3. Princípio da igual dignidade e do respeito de todas as culturas."

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A protecção e a promoção da diversidade das expressões culturais implicam o


reconhecimento da igual dignidade e do respeito de todas as culturas, incluindo as das
pessoas pertencentes a minorias e as dos povos autóctones. 8

Toda cultura, enquanto não afronte a dignidade humana, é válida e valiosa e, como tal,
deve ser respeitada e protegida. 9

Desse modo, os direitos fundamentais culturais que, na sua origem referiam-se apenas ao
direito à educação, mudaram hoje de conteúdo. Assim, enquanto o direito à educação
passou hoje a ser identificado como instrução e compreendido como um direito
fundamental social, conforme o previsto no art. 6.º, da CF/1988 (LGL\1988\3)10, os
direitos culturais passaram a se referir a todas as manifestações materiais e imateriais dos
diversos grupos humanos. Foi dessa forma como o constituinte brasileiro concebeu esses
direitos, prevendo-os nos artigos 215 e 216, da CF/1988 (LGL\1988\3).

Com efeito, no art. 215, da CF/1988 (LGL\1988\3) estabelece-se a obrigação do estado de


proteger todas as manifestações populares, indígenas, afro-brasileiras, e de todos os
outros grupos participantes do processo civilizatório nacional, enquanto que, no art. 216,
da CF/1988 (LGL\1988\3) define-se o patrimônio cultural brasileiro como o conjunto de
bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, que
sejam portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira.

Portanto, os direitos culturais não podem mais ser entendidos como sinônimos de instrução
ou educação, sem que isso implique qualquer intenção de diminuir-lhes sua importância ou
transcendência para o desenvolvimento da personalidade humana. A presente proposta,
diferentemente, dirige-se a contribuir para a valorização da diversidade cultural de todos
os povos, 11 por meio do cumprimento e aperfeiçoamento das normas nacionais vigentes.

4. Os direitos culturais como direitos fundamentais

Embora os direitos culturais não se encontrem expressamente previstos no Título II Dos


Direitos e Garantias Fundamentais da Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar, por
força do artigo 5.º, § 2.º, da CF/1988 (LGL\1988\3), que se tratam indubitavelmente de
direitos fundamentais:

Art. 5.º (...)

§ 2.º. Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes
do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a
República Federativa do Brasil seja parte.

O constituinte de 1988, ao instituir o art. 5.º, § 2.º, previu que as fontes dos direitos e
garantias fundamentais poderiam ter assento em outras partes do texto formal da
Constituição, além do Título II, bem como em outros textos legais internacionais ou
nacionais, desde que os mesmos versem sobre matéria relativa a esses direitos.

Flávia Piovesan, ao se referir à interpretação do dispositivo em análise, afirma que:

(...) advém de interpretação sistemática e teleológica do texto, especialmente em face da


força expansiva dos valores da dignidade humana e dos direitos fundamentais, como

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parâmetros axiológicos a orientar a compreensão do fenômeno constitucional. A esse


raciocínio se acrescentam o principio da máxima efetividade das normas constitucionais
referentes a direitos e garantias fundamentais e a natureza materialmente constitucional
dos direitos fundamentais. 12

A respeito de direitos e garantias fundamentais previstos no texto constitucional, mas fora


do Título II, o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADIn 939-7/DF, alargou
o seu rol para além do art. 5.º, no sentido de considerar cláusula pétrea a garantia
constitucional assegurada no art. 150, III, b, da CF/1988 (LGL\1988\3) que consagra o
princípio da anterioridade tributária. Impende, também, ressaltar que no julgamento da
ADIn 939-7, o Ministro Carlos Veloso referiu-se aos direitos e garantias sociais, direitos
atinentes à nacionalidade e direitos políticos como pertencentes à categoria de direitos e
garantias individuais. 13

No entanto, o argumento da possibilidade da inclusão formal dos direitos culturais no


catálogo dos direitos fundamentais, graças à norma prevista no art. 5.º § 2.º, da CF/1988
(LGL\1988\3) não é o único, nem talvez o mais forte, para afirmar a sua natureza de direito
fundamental. Pelo contrário, o mais sólido argumento é sua correspondência substancial
com a definição de direitos fundamentais, entendidos estes como princípios jurídicos
positivos, de nível constitucional, que refletem os valores mais essenciais de uma
sociedade, visando proteger diretamente a dignidade humana, na busca pela legitimação
da atuação estatal e dos particulares. 14

Da definição pode-se inferir que os direitos fundamentais são normas positivas do mais alto
nível hierárquico, visto a sua função de preservar a dignidade de todo ser humano, tarefa
que deve ser o centro e fim de todo agir. Aliás, a proteção da dignidade humana é o
elemento essencial para a caracterização de um direito como fundamental. É verdade que
todo direito, toda norma jurídica, tem como objeto a salvaguarda e bem-estar do ser
humano - ou pelo menos assim deveria sê-lo - mas, no caso dos direitos fundamentais,
essa proteção é direta e sem mediações normativas.

O caráter principiológico dos direitos fundamentais deriva, pela sua vez, da estrutura
abstrata do seu enunciado, conforme os ensinamentos do jurista alemão Robert Alexy. 15
Por outro lado, afirma-se, também, que os direitos fundamentais buscam legitimar o
Estado, na medida em que o grau de proteção desses direitos permitirá definir o grau de
democracia vigente. Contudo, não apenas o estado está submetido aos limites impostos
pelas normas dos direitos fundamentais, mas os particulares também devem obediência
aos seus ditames. 16

A importância do reconhecimento dos direitos culturais como direitos fundamentais é


essencial para garantir uma proteção muito mais rigorosa a respeito do seu cumprimento.
Desse modo, diversos mecanismos constitucionais de proteção estão previstos, como é o
caso, por exemplo, o mandado de injunção, que permite a toda pessoa impetrar essa ação
no caso de falta de norma regulamentadora que inviabilize o exercício de um direito ou
liberdade constitucional (art. 5.º, LXXI, da CF/1988 (LGL\1988\3)).

Outra importante forma de proteção dos direitos culturais é a norma que estabelece que
todo direito fundamental tem aplicação imediata (art. 5.º, § 1.º, da CF/1988
(LGL\1988\3)), evitando-se, assim, que a falta de uma norma regulamentadora torne

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inviável o seu exercício. Esta afirmação, aparentemente contraditória com a previsão do


mandado de injunção citada no parágrafo anterior, não faz mais do que reforçar a idéia de
que a omissão do legislador, embora tenha que ser saneada, não irá prejudicar os direitos
culturais, cujo exercício será pleno até não vir uma norma que a regulamente. 17

5. PROTEÇÃO CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS CULTURAIS

Não existe nada mais rico do que a diversidade humana. Impor padronizações ou modelos
culturais é ir de encontro à própria natureza do ser humano e, conseqüentemente, ir contra
sua dignidade, princípio fundamental do Estado brasileiro (art. 1.º, III, da CF/1988
(LGL\1988\3)).

A norma prevista no caput do art. 5.º, "todos são iguais", deve ser interpretada no âmbito
jurídico da sua aplicação. Todos, perante o direito, são iguais, e assim devem ser tratados
pelo direito. 18 Não obstante, inexistem dois seres humanos biologicamente iguais e, muito
menos, culturalmente iguais. O direito deve tratar as pessoas como iguais, mas não visar
igualá-las.

Deve-se promover o reconhecimento e a valorização de todos os grupos culturais.


Valorização esta que deve ser inculcada desde os primeiros anos de formação da pessoa,
fixando-se nos, programas de ensino fundamental, o respeito aos valores culturais e
artísticos, nacionais e regionais, conforme dispõe a Constituição (art. 210, da CF/1988
(LGL\1988\3)).

Nesse sentido pronuncia-se Carlos Alberto Torres:

[...] as metas maiores da educação multicultural são várias. Elas variam, primeiro, desde
o desenvolvimento de uma alfabetização étnica e cultural (por exemplo, ampliar o grau de
informação sobre a história e as contribuições dos grupos étnicos tradicionalmente
excluídos do currículo) até o desenvolvimento pessoal (por exemplo, desenvolver o
orgulho da própria identidade étnica). Segundo, variam desde a mudança de atitudes e
clarificação de valores (por exemplo, desafiar preconceitos, estereótipos, etnocentrismo e
racismo) até promover a competência multicultural (por exemplo, aprender como interagir
com pessoas diferentes de nós, ou como compreender as diferenças culturais). Terceiro,
variam desde o desenvolvimento da proficiência em aptidões básicas (por exemplo,
melhorar a leitura, a escrita e as habilidades matemáticas de pessoas cujo fundo étnico,
racial e/ou de classe é diferente do capital cultural predominante nas escolas formais) até
a busca da aquisição simultânea de equidade e excelência educacional (por exemplo,
desenvolver o aprendizado de opções atuantes através de diferentes culturas e estilos de
aprendizagem). Quarto, variam desde o aspirar pelo fortalecimento individual até o
alcançar reformas sociais (por exemplo, cultivar nos estudantes as atitudes, valores,
habilidades, hábitos e disciplina para que se tornem agentes sociais comprometidos com a
reforma das escolas e da sociedade, com o fim de erradicar as disparidades sociais, as
opressões racistas, sexistas e classistas, e com isto de melhorar a igualdade das
oportunidades educacionais e ocupacionais para todos). 19

O ensino da história brasileira, pela sua vez, deve levar em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro (art. 242, § 1.º, da CF/1988
(LGL\1988\3)).

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O resgate ao respeito da diversidade é um imperativo do Estado Democrático de Direito, no


qual todas as culturas devem ter o direito de manifestar-se livremente, conforme o
estabelecido no inciso IX, do art. 5.º: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística,
científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença".

Portanto, é tarefa do Estado reconhecer, em primeiro lugar, essas diferenças para assim
protegê-las, proibindo qualquer tipo de discriminação e promovendo o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de
discriminação (Art. 3.º, IV, da CF/1988 (LGL\1988\3)).

Entretanto, não é suficiente apenas proclamar o reconhecimento da diversidade cultural


(art. 215, da CF/1988 (LGL\1988\3)), ou da liberdade de manifestação de expressão da
atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (art. 5.º, IX, da CF/1988
(LGL\1988\3)), ou a proibição de qualquer forma de discriminação (art. 3.º, III, da
CF/1988 (LGL\1988\3)), se não se estabelecem normas concretas de proteção e promoção
desses direitos. Assim, é competência comum da União, dos Estados, Distrito Federal e
Municípios:

Art. 23. (...)

III - proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural,
os monumentos, as paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos;

IV - impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens


de valor histórico, artístico ou cultural;

V - proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência;

(...)

Impende salientar que a referida obrigação não deve ficar reduzida à atuação do Poder
Público, devendo existir a colaboração da sociedade (216, § 1.º, da CF/1988
(LGL\1988\3)). Com efeito, a sociedade não pode ficar à margem da concretização dos
direitos fundamentais. A Constituição Federal (LGL\1988\3) prevê diversos mecanismos de
participação popular na defesa de seus direitos. Participação esta que pode ser de forma
individual como, por exemplo, por meio do exercício do direito de petição para denunciar
ou reclamar a violação de algum direito (conforme o art. 5.º, XXXIV, a, da CF/1988
(LGL\1988\3)) ou da ação popular para defender o patrimônio histórico e cultural (art. 5.º,
LXXIII, da CF/1988 (LGL\1988\3)), ou de forma coletiva, por meio da ação civil pública.

A responsabilidade da sociedade está também evidenciada na atividade econômica que,


mesmo de natureza privada, deve viabilizar o desenvolvimento cultural e o bem-estar da
população (art. 219, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Assim, por exemplo, na produção e
programação das emissoras de rádio e televisão devem ser atendidos os seguintes
princípios:

"Art. 221. (...)

I - preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas;

II - promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que

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objetive sua divulgação;

III - regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais


estabelecidos em lei;"

Destarte, Estado e sociedade devem juntar esforços para a concretização dos direitos
fundamentais culturais, porque somente dessa forma poder-se-á afirmar que se vive em
uma sociedade democrática, na qual todas as pessoas têm iguais direitos de desenvolver
plenamente sua personalidade.

É, dessa forma, obrigação do Estado adotar políticas públicas para a implementação efetiva
das normas constitucionais de proteção dos direitos culturais.

No se trata, por tanto, de reconocer que existen grupos indígenas en el territorio con su
historia, costumbres, lenguas, etc. se trata de que la Constitución integre la totalidad de las
realidades socioculturales como parte constitutiva de la nación para que cada grupo social
encuentre su espacio y su función. En este sentido el Estado debe elaborar políticas
públicas voluntaristas que hagan avanzar las ideas, las formas de organización y la
participación ideológica, social, política, económica, etc. de tal manera que se vaya
creando una nueva consciencia de pertenencia y coexistencia. 20

No entanto, como afirma Wayne Norman, 21 não é suficiente apenas que as políticas
públicas atendam à justiça das suas instituições e aos direitos que as definem, mas devem
também atender às virtudes da cidadania, que não pode ser mais considerada como um
pacote de direitos e liberdades, mas deve incluir virtudes, responsabilidades, atitudes e
identidades. A cidadania deve ser entendida não mais como um status, mas como um agir
em prol do bem-estar da comunidade. 22

É, nesse sentido, obrigação do Estado não apenas reconhecer, resgatar e garantir o


respeito à diversidade cultural do seu povo, mas garantir que, embora diferentes, seja
possível conviver pacificamente, interagindo e aprendendo uns dos e com os outros.

6. Conclusão

A construção e o fortalecimento de um estado democrático exigem não apenas o


reconhecimento da sua diversidade cultural, mas a implementação de políticas públicas
especiais que possam garantir a pacífica convivência e interação dos diversos grupos
culturais que o compõem, haja vista que a defesa da diversidade cultural torna-se um
imperativo ético indissociável do respeito à dignidade humana, conforme o disposto na
Declaração Universal sobre a diversidade cultural da Unesco e na Constituição Federal de
1988.

No século XXI, a humanidade ainda tem a chance de superar os erros do passado. É com
essa preocupação que a interculturalidade propõe não apenas o reconhecimento/respeito
do outro, mas a necessidade de promover a interação pacífica entre as diversas culturas,
pressuposto do próprio engrandecimento da humanidade.

7. Referências bibliográficas

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http://www.ces.fe.uc.pt/emancipa/research/pt/ft/intromulti.html. Acesso em
01.10.2004.

2. ELBAZ, Mikhaël. El inestimable vínculo cívico en la sociedad-mundo. In: ELBAZ, Mikhaël.


HELLY, Denise. Globalización, ciudadanía y multiculturalismo. Granada: Maristán, 2002, p.
27.

3. ALVARADO, Virgilio. Políticas públicas e interculturalidade. In: FULLER, Norma (ed.)


Interculturalidade y política. Lima: Red para el desarrollo de las ciencias sociales en el Perú,
2003, p. 33 e ss.

4. FULLER, Norma. Introducción. In: FULLER, Norma (ed.) Interculturalidade y política.


Lima: Red para el desarrollo de las ciencias sociales en el Perú, 2003, p. 15.

5. TUBINO, Fidel. Entre el multiculturalismo y la interculturalidade: más allá de la


discriminación positiva. In: FULLER, Norma (ed.) Interculturalidade y política. Lima: Red
para el desarrollo de las ciencias sociales en el Perú, 2003, p. 74.

6. UNESCO. Declaração Universal sobre a diversidade cultural. Disponível em:


http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf. Acesso em:
27.11.2007.

7. SANTOS, Boaventura de Sousa. NUNES, João Arriscado. Introdução: para ampliar o


cânone do reconhecimento, da diferença e da igualdade. Disponível em:
http://www.ces.fe.uc.pt/emancipa/research/pt/ft/intromulti.html. Acesso em
01.10.2004.

8. UNESCO. Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões


culturais. Disponível em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001502/150224POR.pdf. Acesso em:
27.11.2007.

9. No entanto, o reconhecimento da diversidade cultural dos seres humanos não deve ser
usado como pretexto nem muito menos para justificar atos transgressores à dignidade
humana ou dos outros direitos fundamentais, conforme o disposto no art. 4.° da
Declaração Universal sobre a diversidade cultural.

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Interculturalidade e direitos fundamentais culturais

10. Art. 6.º "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos
desamparados, na forma desta Constituição". BRASIL. Constituição da República
(LGL\1988\3) Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm . Acesso em:
27.11.2007.

11. O termo povo é utilizado neste texto no sentido amplo de nação ou comunidade
cultural, e não no sentido político-jurídico.

12. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1995, p. 160.

13. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIn 939 -DF. Disponível em: www.stf.gov.br.
Acesso em: 14.12.2006.

14. LOPES, Ana Maria DŽÁvila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001, p. 36-37.

15. Cf. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudios
Constitucionais, 1993.

16. Cf. SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2004.

17. Cf. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. Malheiros: São
Paulo. 2004.

18. Art. 5.º "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: (...)". BRASIL. Constituição da República (LGL\1988\3) Federativa do Brasil de
1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao.htm . Acesso em:
27.11.2007.

19. TORRES, Carlos Alberto. Democracia, educação e multiculturalismo: dilemas da


cidadania em um mundo globalizado. (Trad.) Carlos Almeida Pereira. Petrópolis: Vozes,
2001, p. 202-203.

20. ALVARADO, Virgilio. Políticas públicas e interculturalidade. In: FULLER, Norma (ed.)
Interculturalidade y política. Lima: Red para el desarrollo de las ciencias sociales en el Perú,
2003, p. 45.

21. NORMAN, Wayne. Justicia y estabilidad política en el Estado multicultural. Lecciones de


la teoría y la práctica de Canadá. In: ELBAZ, Mikhaël. HELLY, Denise. Globalización,
ciudadanía y multiculturalismo. Granada: Maristán, 2002, p. 120.

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Interculturalidade e direitos fundamentais culturais

22. Cf. LOPES, Ana Maria DŽÁvila. A cidadania na Constituição Federal (LGL\1988\3)
brasileira de 1988: redefinindo a participação política. In: Paulo Bonavides; Francisco
Gérson Lima de Marques; Fayga Silveira Bedê. (Org.). Constituição e cidadania. Estudos
em Homenagem ao Professor J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Malheiros, 2006. v. 1, p.
21-34.

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