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Os Direitos Humanos e o conflito entre o Universalismo e o Relativismo Cultural

Kátia Fernandes Barbosa

Introdução

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) lançou em evidência o tema dos “direitos


humanos”, elevando-o a um status global, a partir dela e como resposta às atrocidades
resultantes do poder beligerante, nasce em 1948 a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, propondo uma flexibilização da soberania dos Estados para formalização de
diversos documentos jurídicos que visam a promoção e a afirmação de direitos humanos
numa perspectiva mundial. E justamente nesse sentido de globalizar os direitos humanos que
nasce o dilema quanto à sua intenção. De um lado os que aderem a teoria do Relativismo
Cultural face ao caráter Universal dos Direitos Humanos. Tais ideias Universalistas e
Relativistas serão objeto deste trabalho.

As questões que emergem são: é possível definir padrões universais numa sociedade
mundial tão plural do ponto de vista econômico, social e cultural? A perspectiva ocidental tem
caráter impositivo frente a outras perspectivas diferentes? A relativização poderia resultar na
legitimação de práticas desumanas?

Estas são algumas das muitas indagações que permeiam o debate entre universalistas e
relativistas. A dialética entre essas duas posições é sempre saudável diante da imensa
incógnita em que se assenta o processo de globalização.

Não se espera, nas linhas seguintes, esgotar o tema, tampouco apontar solução, mas
sim expor os conceitos de Universalismo e Relativismo Cultural, bem como seus pontos de
vista no que tange a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) o marco mais
significativo da internacionalização dos direitos humanos.

UNIVERSALISMO

A proposta central do universalismo é o estabelecimento de um padrão universal de


direitos humanos que atinja a todos, sem distinção, independentemente das circunstâncias e
que se encontram e de outros fatores tais como religião, costumes, hábitos e cultura.
Essa característica universalista é facilmente constatada na Declaração Universal dos
Direitos Humanos de 1948 que para alguns autores, como Fábio Konder Comparato que
aponta a Declaração Universal como o ápice de um processo ético que, ainda, permitiu que a
igualdade de toda pessoa fosse reconhecida, independente de da raça, cor, sexo, língua,
religião ou quaisquer outras circunstância.

Pela universalização buscou-se a proteção do indivíduo pelo simples fato de ser


humano sem se fazer distinção do país que nasceu e em que tipo de cultura ele esteja inserido.
Apenas a condição humana já lhe garante direitos decorrentes da dignidade da pessoa
humana, valor que não pode ser desassociado do ser humano. Compreendo assim que,
qualquer que seja o contexto em que o homem esteja inserido lhe será atribuído, de maneira
inderrogável, direitos fundamentais universais.

A Professora Flávia Piovesan, umas das grandes defensoras do universalismo,


compreende se faz necessária a vinculação dos Estados para o reconhecimento e promoção
desses direitos universais e ressalta ainda que a intervenção da comunidade internacional deve
ocorrer de maneira pacífica ante uma cultura globalizada que prima por estabelecer “padrões
mínimos de proteção dos direitos humanos” o que Piovesan denominou de “mínimo ético
irredutível”.

Para os defensores do universalismo, a proposta relativista constitui uma forma de


encobrir atos atentatórios à dignidade da pessoa humana como práticas intoleráveis, mas
legitimadas em nome da cultura. Práticas estas que podem ser mutilações, opressões e
humilhações de pessoas, tolhendo seu direito de ser livre.

A exemplo de tais práticas, vale destacar a cultura muçulmana que é fortemente


marcada pelo autoritarismo e patriarcalismo que compreende as mulheres como destinadas
apenas ao casamento e à procriação. Tal cultura está tão enraizada que a maioria das mulheres
de conforma, se submete e aceitam tal situação e nela se perpetuam. Outras mulheres, ainda
que insatisfeitas com a situação fática, não se rebelam contra o sistema, por medo das
consequências, tais como isolamento, segregação e humilhação. A proposta universalista não
visa eliminar a cultura local, mas sim inibir e, se possível, eliminar práticas consideradas
desumanas, tais como mutilação genital. Para os universalistas, uma cultura, por mais legítima
que seja não pode tolher a liberdade e a dignidade humana.
RELATIVISMO CULTURAL

Manter a identidade cultural é ideia central dos adeptos ao Relativismo Cultural,


especialmente aquelas fundamentadas em questões de cunho religioso.

A vertente relativista é fortemente influenciada pelo elemento cultural. Elemento este


que, para os relativistas, legitimam práticas - muitas delas não vista com bons olhos pelos
universalistas - e justificam a rechaçamento da validade universal dos direitos humanos,
visto que, na visão relativista, não é possível determinar um padrão universal, mas sim
respeitar e considerar a pluralidade cultural que muitas vezes se revela divergentes em
aspectos elementares, tais como liberdades individuais e a vida. A tônica do relativismo é a
exigência do respeito à diferença, à diversidade e identidades culturais.

O cerne do pensamento da corrente relativista é que uma vez que há diversas culturas,
há de se ter também diversos sistemas morais e não um principio moral de validade universal.
A cultura seria, portanto, a fonte válida da moral e do direito, permitindo assim que cada
cultura produzisse seu particular entendimento sobre quais seriam seus direitos fundamentais.

O elemento cultural dos países, especialmente os não-ocidentais entra diretamente em


conflito com o caráter ocidental dos direitos humanos. Para os muçulmanos, ávidos
defensores do relativismo cultural, a perspectiva universal dos direitos humanos é um
imposição ocidental ao resto do mundo, caracterizado por um imperialismo ocidental. Nesta
mesma linha, Patrícia Jerônimo corrobora ao afirmar que os direitos humanos só assumem seu
verdadeiro sentido quanto aplicados ao ocidente, em virtude de sua natureza jus filosófica.
Ao ultrapassar os limites do ocidente, esta dignidade inerente ao ser humano ganha novas e
divergentes forma de expressão.

Em linhas gerais, portanto, o Relativismo Cultural compreende que a universalização


dos direitos humanos como uma postura autoritária, imposta pelo ocidente, e que não teria
poder para interferir nas realidades que dela divergem em defesa e proteção da identidade
cultural dos povos.

A principal acusação dos Relativistas aos Universalistas é que a internacionalização


dos direitos humanos é mera forma de fortalecer os interesses geopolíticos ocidentais.
SINCRETISMO ENTRE OS PARADIGMAS

O grande desafio é implementar mecanismos para efetivação desses direitos chamados


universais aliados ao respeito às particularidades dos povos, no entanto sem dar guarida a uma
ideia segregadora e particularista, pois é possível afirmar que existem sim traços comuns em
todas as sociedades, a dignidade da pessoa humana é o traço mais evidente. A Professora
Flávia Piovesan defende um “núcleo mínimo e intangível”, núcleo este que não se pode
permitir que os Estados o violem alicerçados no argumento de preservação da identidade
cultural.

O sincretismo, em suma, trata-se do equilíbrio entre as vertentes universalista e


relativista, cada uma despida de seus excessos, ou seja sem o caráter por vezes impositivo do
universalismo e sem individualização inescrupulosa do relativismo.

Revela-se, portanto, a necessidade de buscar o ponto convergente estre essas duas


vertentes. Entendo que a universalidade pode ser enriquecida pela diversidade cultural como
pondera Antônio Augusto Cançado Trindade e ainda exorta que a defesa de nenhuma
corrente poderá legitimar a denegação ou violação de direitos humanos.

Para Boaventura os direitos humanos precisam ser revisados sob uma ótica
multicultural para que sejam pré-requisito de uma relação de equilíbrio entre a competência
global e a legitimidade local. Ou seja, a transformação de um “localismo globalizado num
projeto cosmopolita”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história da filosofia e das ciências é marcada desde a antiguidade pelo choque entre
paradigmas, ou seja, entre formas de se compreender a realidade. O universalismo e o
relativismo são dois desses paradigmas que inflamam as divergências entre o Ocidente e ouras
civilizações na temática da implementação dos direitos positivados por documentos jurídicos
internacionais sobre a temática dos direitos humanos.

A universalização dos direitos se faz necessária e a diversidade cultural existente entre


os povos deve ser considerada nesse processo, tomando o devido cuidado para que a
identidade cultural não resulte em atrocidades cometida pelos Estados conta a dignidade da
pessoa humana.
Para implementação e efetivação dos direitos humanos em âmbito internacional se faz
necessária a promoção do diálogo entre esses paradigmas para que deste diálogo emerja um
novo paradigma multicultural.

Se por um lado a dicotomia radical constitui uma barreira à construção de uma


sociedade mais solidária e justa, por outro lado o diálogo entre os paradigmas do
universalismo e do relativismo se mostra como um caminho para a evolução e a proteção da
vida humana.

REFERÊNCIAS

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos. 1. ed. v. I. Curitiba: Juruá, 2006.

JERÔNIMO, Patrícia. Os Direitos do Homem à Escala das Civilizações. Coimbra: Almedina,


2001.

TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Dilemas e desafios da Proteção Internacional dos


Direitos Humanos no limiar do século XXI. Revista Brasileira de Política Internacional.
Disponível em https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-
73291997000100007. Acesso em 09 de junho de 2020

SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma Concepção Multicultural De Direitos Humanos.


https://politicaspublicasuneb.wordpress.com/2017/05/19/resenha-da-obra-por-uma-
concepcao-multicultural-de-direitos-humanos/. Acesso em 10 de junho de 2020.

COMPARATO, Fábio Konder. Sentido Histórico da Declaração Universal. Disponível em


http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/konder.htm. Acesso em 10 de junho de 2020.

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