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UNIVERSALIDADE E INDIVISIBILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS:

CONTRADICÕES E EVOLUÇÕES
María Elena Rodriguez

Introdução

Avanços no reconhecimento formal e material dos direitos humanos, impulsionados pelo


direito internacional e pelo direito interno de quase a totalidade dos estados democráticos,
serviram de base para promover a ideia de que eles são uma realidade no mundo todo;
mesmo que não são uma prática para uma maioria. Quer dizer, os direitos humanos
integram o imaginário do ser humano de hoje, sendo um dos termos mais utilizados na
política, filosofia e direito na atualidade.

Hoje depois de 70 anos da Declaração Universal a teoria e a prática internacional dos


direitos humanos continuam a enfrentar debates sobre as características que definem a
sua concepção integral: universalidade, inalienabilidade, indivisibilidade e
interdependência. Estes conceitos são percebidos como substanciais para a sua validade
como direitos, mas também incorporam as críticas mais importantes que a eles se fazem.
Nos quadros deste breve artigo, concentrar-me-ei nos princípios de universalidade e
indivisibilidade, os quais, do ponto de vista da globalização dos direitos humanos,
assumem particular importância.

Universalidade

A teoria universal dos direitos humanos afirma que eles se aplicam a todos simplesmente
porque são pessoas. Mas há uma grande confusão sobre o significado do universalismo,
são muitos os sentidos em que a universalidade é entendida e debatida. Eles variam em
termos de aplicabilidade e abrangência, origem histórica, origens formais e criação de
normas, aceitação antropológica e filosófica, uniformidade, indivisibilidade, legitimidade
e garantias de efetivação.

Nos últimos tempos quem desafia de maneira mais contundente esta ideia da
universalidade é o chamado "relativismo cultural". Afirma-se desde este ponto de vista,
por um lado, que a ideia da universalidade dos direitos humanos é antes de mais nada
uma projeção imperialista, usada como um dispositivo retórico para legitimar processos
de dominação econômica e política, bem como de exclusão social1; e, por outro lado, que
são culturalmente hegemônicos e entram em conflito com correntes de pensamento,
tradições culturais, costumes e crenças religiosas que são com eles heterogêneos.

Os relativistas sustentam que “as culturas manifestam uma variedade tão ampla e diversa
de preferências, moralidade, motivações e avaliações que nenhum princípio de direitos
humanos pode ser dito como evidente e reconhecido em todos os momentos e lugares”.
Não há valores absolutos ou princípios pelos quais qualquer cultura ou sociedade pode
ser julgada à parte da própria cultura. Para Parekh (1999), esse tipo de relativismo cultural
deve ser distinguido de um relativismo moral mais profundo: os relativistas culturais
tipicamente não negam a verdade ou a moralidade, mas sustentam que “Para cada cultura
alguns juízos morais são válidos, nenhum julgamento moral é universalmente válido”. Os
relativistas tipicamente sustentam que existe um elo fundamental entre as origens
culturais de um valor ou princípio e sua validade para essa cultura.

Embora essa perspectiva relativista possa ser tentadora, esse argumento traz uma
autocontradição debilitante: postulando que as únicas fontes de validade moral são as
próprias culturas individuais, a pessoa está impedida de fazer quaisquer julgamentos
morais consistentes sem uma comparabilidade mínima, inclusive se se expressa de formas
amplamente divergentes.

Deixemos de lado por enquanto o relativismo cultural e olhemos outros pontos que
também colocam hoje em questão a universalidade. O grande número de dispositivos
normativos dos direitos humanos juridicamente vinculantes poderia ser poderia tomado
como a grande prova de que a intenção ética da Declaração Universal de Direitos
Humanos de 1948 foi bem-sucedida, na medida em que pelo menos consolidou o discurso
internacional sobre eles e, ao fazê-lo, contribuiu para a criação de um fundamento
consensual no qual esse discurso se baseia. A tal “universalidade jurídica internacional”
baseada na confiança nas posições dos Estados é um método insuficiente para estabelecer


1
Vários autores desconfiam de uso do discurso da universalidade dos direitos humanos com um elemento
da política externa, em especial dos Estados ocidentais. Por exemplo, as intervenções em Kosovo, Serra
Leoa e, ainda mais controvertida, no Iraque, se basearam, na ideia de estender para seus habitantes os
direitos democráticos que a maioria das pessoas no Ocidente possui.

a universalidade dos direitos humanos. De fato, é improvável que as normas de direitos
humanos sejam respeitadas na prática sem uma forte legitimação no âmbito nacional.
Embora diversos povos em todo o mundo tenham abraçado o corpus dos direitos
humanos, essas mesmas pessoas também procuram contribuir para sua adaptação e
atualização, às vezes reformulando-os radicalmente, em outras, parcialmente. Uma
importante indicação desta situação é o grande numero de reservas feitas aos tratados de
direitos humanos registradas pelos signatários desses instrumentos ao a eles aderir. As
reservas são artifícios dos Estados que permitem certa seletividade na aplicabilidade dos
direitos aprovados e que permite que desvios internos ou, de maneira mais clara, a não
aplicabilidade das normas permaneçam legais. As reservas formuladas em relação aos
tratados de direitos humanos, argumenta Hinz (2009), atacam de modo direto o patamar
padrão mínimo de proteção de direitos que o tratado em questão pretende em princípio
assegurar.2

Para Haarscher (2004), hoje a universalidade dos direitos humanos também se vê atacada
frontalmente por enfrentamentos explícitos entre eles e outros valores, especialmente
aqueles relativos à xenofobia e ao racismo, à invocação de valores africanos3 e asiáticos
e ao islamismo. Outro ataque tem a ver com a aplicabilidade: o valor dos direitos humanos
é supostamente aceito, mas o problema está relacionado a circunstâncias particulares que
fazem que o respeito a esses direitos (ou a parte deles) seja inalcançável.

Talvez a situação mais relevante seja a questão econômica como entrave inviabilizador
do caráter universal dos direitos humanos. Nesse contexto, muitos países mais pobres ou
situados na periferia do sistema global, justificam a não implementação de direitos
alegando a escassez de recursos materiais. Dessa forma, a pretensão de universalidade
seria algo irrealizável, uma vez que a consagração dos direitos humanos estaria
condicionada à existência de riqueza e abundância suficientes.

Outro elemento a considerar é que, porém, nenhum desses desenvolvimentos normativos


implica sua aplicação homogénea, universal e generalizada. A chamada cultura e a prática


2
Na Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra a Mulher se tem
autorizado o uso das reservas seguindo o regime regulado na Convenção de Viena. Isso tem ocasionado
que esta convenção se encontre hoje cheia de reservas que distorcem os direitos nela consagrado.
3
Por exemplo, a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos tenta uma unificação abrangente das
noções de comunidade, direitos individuais e deveres para com a família, a comunidade e o Estado. A Carta
é, assim, adaptada ao modelo comunitário.
dos direitos humanos coexistem com outros sistemas normativos que legitimam a
exploração, o abuso, a violência, a intolerância dos direitos humanos, apesar de serem
definidos como universais, não abrangem todas as personas. Sua natureza cultural e
política é frágil perante corporações transnacionais e empresas que detém o poder direta
ou indiretamente e porque frequentemente as instituições que os defendem são menos
poderosas que aquelas que os eliminam. Além do que a total aplicação dos direitos
humanos supõe a plena vigência de vida democrática, tanto em seu aspecto formal como
substantivo, bem como em suas dimensões política, econômica e social.

Processos tão atuais como a migração em massa e a existência de diferentes grupos


culturais dentro de grandes metrópoles trazem para mais perto a discussão de como
assegurar a convivência de comunidades étnicas com culturas, religiões ou línguas
diferentes no mesmo espaço social ou geográfico. O relativismo cultural se encontra aqui
interpelando os valores da sociedade ocidental no seu centro, como no caso por exemplo
da Alemanha, que nos últimos meses abriu precedentes ao discutir e aceitar a poligamia
e o casamento infantil de sírios refugiados neste país europeu, onde tais práticas em
princípio são proibidas.

É claro que a coexistência multicultural não pode ser empregada para justificar
dominação, abuso ou exploração de um ser humano sobre outro, no que refere a sexo,
idade, cor, crença religiosa ou filiação política. Eis o ponto central do problema. Nesse
sentido, a crítica da universalidade dos direitos humanos por sua suposta essência
capitalista ou liberal carece de força.

E, no entanto, a questão permanece: mesmo que os direitos humanos devam ser tomados
como universais para manter-se coerentes, o que devemos fazer quando confrontados
com práticas ou culturas com as quais a "nossa" versão dos direitos humanos colide?
Devemos ficar de braços cruzados quando atrocidades são cometidas? Certamente não.
Os direitos humanos universais não devem ser geograficamente ou culturalmente
"flexíveis" (de modo a não minar todo o seu propósito), devemos ver o contínuo dos
direitos e da cultura como relacional, não como exclusivo.

Talvez o melhor argumento seja que realmente precisamos ver os direitos humanos como
uma cultura em si, um aprendizado coletivo sobre o que é melhor para os seres humanos
em todo o mundo. Isso é assim porque as culturas não são homogêneas, ao contrário, são
heterogêneas e inerentemente maleáveis. Elas também podem e devem ter suas
conceituações de direitos humanos, mas isso tem de ser construído em uma cultura de
confluências, como sugere Herrera Flores (2005). Essencialmente, os direitos humanos
devem ser capazes de absorver a diferença cultural, sem perder sua universalidade.

Indivisibilidade

A noção de que todos os direitos humanos são indivisíveis e interdependentes teve origem
em discussões no âmbito das Nações Unidas na década de 1950. Desde essa época este
tem sido o tema de várias Conferências Mundiais sobre Direitos Humanos, Declarações
e disputas entre acadêmicos, ativistas e advogados. Essa ideia encontra fundamentação
conceitual e filosófica nos trabalhos de acadêmicos que argumentam que todos os direitos
humanos são necessários para assegurar a dignidade da pessoa.

Por definição, o principio de indivisibilidade sustenta que a implementação de todos os


direitos simultaneamente é necessária para o pleno funcionamento do sistema de direitos
humanos. Se a integralidade se rompe, afeta-se a pessoa como um todo e não apenas uma
parte dela. Por sua vez, a interdependência significa que todos os direitos humanos estão
interrelacionados, nenhum deles pode ser totalmente implementado ou realizado sem a
plena realização de todos os outros.

Aqueles autores, como Donelly (2003), que se situam no campo da indivisibilidade e da


interdependência entre os direitos argumentam que a aplicação dos direitos humanos é
arbitrária e incompleta sem um compromisso com estes princípios; a não implementação
simultânea de todos os direitos humanos pode alimentar prioridades ou priorizações
perigosas por parte dos governos (ou seja, enfatizando direitos civis ou direitos
econômicos, sociais e culturais). As questões em torno da priorização e do cumprimento
parcial dos direitos humanos estão no cerne da questão da indivisibilidade e da
interdependência.

Em contrapartida, vários autores levantam argumentos fortes contra a indivisibilidade e a


interdependência, no sentido de que não é necessário que cada direito individual seja
plenamente realizado para que os outros possam ter significado. Se assim não fosse,
muitos países ficariam paralisados em sua tentativa da implementação dos direitos. Na
verdade, argumentam, esses países não entram automaticamente em conflito com os
princípios da indivisibilidade e da interdependência se priorizarem alguns direitos sobre
os outros ao longo processo continuado e programado à luz dos recursos disponíveis.4

Conclusão

É, portanto, aparente que alguns dos mais amplamente aceitos fundamentos centrais dos
dos direitos humanos – universalidade e indivisibilidade – se mostram, após uma inspeção
atenta, em realidade ainda hoje como altamente controversos. No entanto, ao invés de
enfraquecer todo o conceito de direitos humanos, essas críticas simplesmente nos
lembram da necessidade de reavaliar continuamente nossas suposições sobre eles de
modo a torná-los cada vez mais inclusivos e cada vez mais tangíveis para aquelas parcelas
da humanidade que permanecem ainda do lado de fora, olhando para dentro na
expectativa da integração em suas formas de realização prática.


4
Ver Chapman (2009) para uma sistematização dessas posições.


Referências

Chapman, A. R. (2009) “The Divisibility of Indivisible Human Rights”, Economic


Rights Working Papers, no. 9, University of Connecticut, Human Rights Institute.

Donnelly, J. (2003) Universal Human Rights in Theory and Practice (Ithaca, NY: Cornell
University Press).

Haarscher, G. (2004) “Can Human Rights be ‘contextualized’?”, in A. Sajó (org.)


Human Rights with Modesty: The Problem of Universalism (Dordrecht: Springer).

Herrera Flores, J. (2005) Los derechos humanos como produtos culturales. Crítica del
humanismo abstracto (Madri: Catarata).
Hinz, M. (2009) “Human rights between universalism and cultural relativism? The need
for anthropological jurisprudence in the globalising world”, in A. Bösl and J. Diescho
(orgs.), Human Rights in Africa: Legal Perspectives on their Protection and Promotion
(Windhoek: Macmillan Education Namibia).

Parekh, B. (1999) “Non-Ethnocentric Universalism”, in T. Dunne and N. J. Wheeler


(orgs.), Human Rights in Global Politics (Cambridge: Cambridge University Press).

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