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ISSN 2359-4799

Volume 5 / Número 1 / Ano 2019 – p. 148-160

O DIÁLOGO MULTICULTURAL DOS DIREITOS HUMANOS EM


JÜRGEN HABERMAS

THE MULTICULTURAL DIALOGUE OF HUMAN RIGHTS BY JÜRGEN


HABERMAS
Suzana Lourete de Alvarenga
Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E-mail: suzana.lourete@gmail.com

Artigo submetido em 05/03/2019, aceito em 15/06/2019 e publicado em 15/09/2019.

Resumo: O presente artigo discute como o filósofo Jürgen Habermas compreende a possiblidade de
um diálogo multicultural dos direitos humanos hodiernamente. De início, retoma-se o conceito de
direitos humanos por meio da compreensão de sua matriz moral e de sua positivação como norma
jurídica. A seguir, propõe-se uma análise acerca da pretensão de validade universal dos direitos
humanos por meio da primazia moral da dignidade humana e a provável hermenêutica desses direitos
sob o ponto de vista de outras culturas. No terceiro momento, são apresentadas críticas orientais ao
sistema ocidental de direitos humanos e às respectivas réplicas expostas por Habermas, bem como
uma breve explanação sobre sua proposta a um possível direito cosmopolita. Ao final, passa-se a uma
análise do ataque fundamentalista a respeito da autolegislação secular dos direitos humanos e à
conclusão sobre a importância do diálogo intercultural para uma hermenêutica mais inclusiva e eficaz
dos direitos humanos.
Palavras-chave: Habermas; direitos humanos; dignidade humana; validade universal.

Abstract: This article debates how the philosophe Jürgen Habermas understands a multicultural
dialog possibility of human rights nowadays. In the beginning, the concept of human rights is return
through the comprehension of the moral source and its positivation as legal rights. After that, starts the
analysis about the human rights universal intention by the moral primacy of human dignity and its
probable hermeneutic from the point of view of other cultures. In a third moment, shows the oriental
critics about over the occidental system of human rights and the respective Habermas’ answers, as
well as a brief explanation about his proposal of a probable cosmopolitan rights. Lastly, this article
exams the fundamentalist attack on the secular self-legislation of the human rights and the conclusion
about the importance of the intercultural dialog toward a hermeneutic more inclusive and efficient of
the human rights.
Keywords: Habermas; human rights; human dignity; universal validation.

1 INTRODUÇÃO
A concepção atual dos direitos demandas por mais liberdades e mais
humanos é fruto de um longo processo igualdades se mostram necessárias no
histórico de agregação de valores, os quais tempo e determinado local à convivência
foram adquiridos por meio de lutas e coletiva e à existência humana. A Segunda
movimentos sociais à medida que as Guerra Mundial (1939-1945) despertou o
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mundo para uma reformulação dos Direitos espaço geográfico, é forçoso que o
Humanos. Os horrores dessa guerra, não etnocentrismo perca sua força a fim de
somente pelos sangrentos conflitos, mas prover a formação de uma comunidade,
principalmente pelas atrocidades dos minimamente, pacífica. Isso porque, essas
regimes totalitários, mostraram um descaso sociedades necessitam abrigar diferentes
pela dignidade da pessoa humana e fizeram culturas, religiões, etnias etc., a fim de
emergir uma opinião pública internacional embrionar as características do modus
decidida a impedir que tais episódios se vivendi dos Estados modernos. Estes são
repetissem. No entanto, a Organização das assim designados, principalmente, a partir
Nações Unidas (ONU) ficou a cargo dos da Revolução Francesa e pela Declaração
vencedores da Segunda Guerra Mundial, dos Direitos do Homem e do Cidadão
bem como o título e o conteúdo da (1789), documento histórico que dará a
Declaração Universal dos Direitos base à Declaração de 1948.
Humanos (DUDH), de 10 de dezembro de Dessa forma, para a tomada de
1948, veio a refletir, segundo as críticas decisões políticas, uma tradição
que passaremos a analisar, o etnocentrismo cultural/religiosa ou uma ideologia não
ocidental e a imposição de certa pode se sobrepor às demais, sem que haja
hegemonia política dos EUA, Inglaterra, ameaça real de rompimento do tecido
França e Rússia e outros aliados políticos social. Portanto, sobre a legitimidade dos
(PANDEYA, 1985, p. 299). direitos humanos, faz-se necessária a
Eis, assim, uma problemática à reflexão se eles apresentam esse
definição de direitos humanos, pois: etnocentrismo europeu ou se é possível que
eles projetem anseios da comunidade
O etnocentrismo consiste em erigir,
de maneira indevida, os valores global. Diferentemente das ordens jurídicas
próprios da sociedade a que se tradicionais embasadas no direito natural
pertence em valores universais. O fundamentado na religião ou na metafísica,
etnocentrista é, por assim dizer, a o direito moderno – assim entendido como
caricatura natural do universalista:
aquele que nasce no seio do Estado
este, em sua aspiração ao universal,
parte de um aspecto particular que Moderno – edifica-se essencialmente sobre
depois procura generalizar; e esse direitos subjetivos, consoante a posição
aspecto particular deve hobbesiana, de que aos agentes é permitido
necessariamente ser-lhe familiar, isto tudo aquilo que não for expressamente
é, encontrar-se na sua própria cultura.
proibido. Com isso, passamos a observar
A única diferença — mas é evidente
que ela é decisiva — é que o uma separação entre o direito jurídico e a
etnocentrista segue a via do menor moral.
esforço, e procede de maneira não Na visão do filósofo alemão Jürgen
crítica: acredita que os seus valores Habermas, o direito moderno precisa ser
são os valores, e isso basta-lhe.”
compreendido como um complemento
(TODOROV, 1989, p. 19-20).
funcional à moral pós-tradicional, vez que
Dentro da lógica do etnocentrismo, sem o esteio religioso metafísico ou
o mundo é visto por intermédio da cultura daquela unicidade etnocêntrica, perde-se o
daquele que observa, cuja tendência é motivo mais forte para o seguimento de
considerar o seu modo de vida mais mandamentos morais, sejam eles fundados
orgânico que dos demais, bem como dá a na expectativa da salvação, sejam eles
esse indivíduo a percepção de que sua embasados por uma ordem étnica
dinâmica de viver seja a mais correta e, uníssona1. Assim, Habermas (1997, v. 1, p.
consequentemente, mais justa. Todavia,
com a formação de sociedades cada vez 1
“Outra conotação deve-se à mudança da
mais complexas, nas quais diversas formas perspectiva, de Deus para o homem. “Validade”
de vida precisam coexistir em um mesmo significa agora que normas morais contarão com a
concordância de todos os envolvidos, quando esses,
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139) afirma que para determinar o dever diante de sua formalidade (LUCHI, 2005,
ser moral dos agentes, o discurso necessita p. 123).
de uma complementaridade que imponha Por ser sua principal característica
coercibilidade nas práticas individuais e evolutiva a radicação nas liberdades de
coletivas. Para o autor, esse complemento ação subjetivas, esse direito não mais está
só pode vir do direito positivo moderno. subordinado à moral, não configurando,
Os processos jurídicos e moral são
como na formulação kantiana, uma
separados, sendo que os produtos dedução de preceitos transcendentais. A
resultantes de ambos são relacionados moral, agora entendida em um nível pós-
como se a moral fizesse exigências convencional correlacionado com a ética
conteudísticas àquilo que deveria do discurso, passa a ser uma fonte de
resultar do procedimento jurídico.
Ademais, os próprios produtos
saberes, enquanto o direito moderno, por
morais podem já entrar diretamente usa vez é fonte de ações, cuja abrangência
no procedimento jurídico, juntamente exerce influência para além da moral,
com outros argumentos. Esse é o atingindo os campos éticos, pragmáticos,
sentido da complementaridade como referindo-se também como fonte de saber.
explicitamente tratado em FG [1991],
pois aí a moral exige positivação. Mormente, no que concerne aos
Pode-se afirmar que se trata de uma direitos humanos, Habermas (2002, pp.
complementaridade do ponto de vista 214, 217) lhes concede duas características
do observador, segundo a qual o próprias às normas morais. A primeira
direito parece cumprir um papel
afirma que tanto os direitos humanos
funcional de suprir os déficits
funcionais da moral; (DUTRA, 2009, quanto as normas morais fazem referência
p. 129). a todas as pessoas, não apenas como
cidadãs de um Estado, mas sim como seres
Contudo, não é nosso objetivo aqui humanos; e, a segunda diz que a
adentrar aos conceitos e diferenças das argumentação moral é a única justificativa
normas morais e das normas jurídicas. para ambos. Entretanto, essas semelhanças
Partimos, assim, da noção de que tanto não significam que os direitos humanos
questões morais quanto questões jurídicas são constituídos apenas por pretensões
têm em comum a tarefa de regular de morais de validade. Argumentos morais
forma legítima as resoluções interpessoais são necessários para se justificar os direitos
de conflitos. Todavia, a diferença entre humanos, mas não o bastante para aquilo
ambos reside no modo como cada um que é inerente ao seu conceito, pois
responde aos mesmos problemas. também compartilham características de
Enquanto a moral se revela como uma ordenamentos jurídicos (seja nacional,
fonte de saber atemporal e sem barreiras no internacional ou global).
espaço social que nos diz por que devemos Habermas acentua que o conceito
fazer algo, o direito, além de ser um saber, "direito" na expressão "direitos humanos"
é ao mesmo tempo um sistema de ações, requer um entendimento como conceito
vez que orienta de forma precisa o agir em jurídico. Direitos humanos são, segundo
casos de conflitos e protege a integralidade seu pleno significado, direitos jurídicos, e
de seus membros na história e em um não direitos pré-jurídicos, puros
território geográfico limitado. Soma-se moralmente (LOHMANN, 2013); eles são
que, no âmbito institucional, o direito normas legais, que foram declaradas em
positivo se distingue dos costumes atos de fundações revolucionárias do
desvalorizados e de meras convenções, Estado, ou, como após a Segunda Guerra
Mundial, foram anunciados na unificação
em discursos práticos, testarem em conjunto se a legal dos povos – sendo o exemplo maior a
respectiva práxis vem ao encontro do interesse de Declaração Universal dos Direitos
todos em igual medida” (HABERMAS, 2002b, p. Humanos, 1948 – ou em documentos da
49).
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constituição de fundamentação de novos se plenamente, especialmente em países


Estados (p. ex.: a Constituição Federal do como o nosso, de grande pluralidade e
Brasil, 1988). multicultural, a fim de se refletir acerca da
É necessário que se faça a legitimidade das normas jurídicas que nos
diferenciação no entendimento dos direitos regem, tendo em vista habitarmos uma
humanos como direitos pré-estatais, ou comunidade cada vez mais global, sem
seja, puramente morais e como direitos uma matriz jurídica-moral apenas.
juridicamente institucionalizados. No A filosofia habermasiana apresenta
primeiro caso, devemos compreender que elementos ao fundamento democrático da
os direitos morais são apenas fracos, pois inclusão social por meio do direito. Nossa
não são acionáveis perante um tribunal intenção no presente artigo é a de trazer
diante. Por isso, para essa compreensão algumas contribuições de Habermas que
dos direitos humanos, temos amiúde só as podem servir como subsídios teóricos para
questões de fundamentação dos direitos todos aqueles que acreditam na democracia
humanos no primeiro plano dos deveres e lutam pela consolidação do Estado
morais. Por sua vez, o direito jurídico e a Democrático de Direito e a efetivação dos
política são tratados como meios ou Direitos Humanos de nosso povo.
objetos de sustentação aos mandamentos Diante das limitações próprias de
morais, através do elemento da um artigo, registra-se que este estudo não
coercibilidade. Em outra margem, se os tem a pretensão de esgotar a temática, mas
direitos humanos forem compreendidos sim elevar seus principais elementos.
como direitos jurídicos, ficam situados em
um sistema, no mínimo, estatal positivado, 2 A PRETENSÃO DE VALIDADE
sem uma fundamentação forte que UNIVERSAL DOS DIREITOS
justifique sua existência – não sendo muito HUMANOS
diferente, assim, de meras portarias,
resoluções administrativas. Portanto, eles A Declaração Universal dos
são direitos mais fortes quando se Direitos Humanos (DUDH) foi aprovada
demandáveis judicialmente perante um em 1948 na Assembleia Geral da
Tribunal, o qual pode impor sua tutela. Organização das Nações Unidas (ONU) e
Direitos jurídicos também têm a pretensão consiste no documento fundamental de
de serem fundamentados ou representação da luta universal contra a
fundamentáveis moralmente, mas essa opressão e a discriminação ao defender a
moral ganha força coercitiva ao ser igualdade e a dignidade dos seres humanos
positivada juridicamente por um poder e reconhece as liberdades subjetivas devem
legislador estatal. (LOHMANN, 2013). ser aplicados a todos, independentemente
No presente artigo, pretende-se de nacionalidade ou tradição cultural.
discutir parte da trajetória teórica de Jürgen Dessa forma, pode-se dizer que os direitos
Habermas, procurando explicitar as humanos são essenciais a todas as pessoas,
principais críticas que o autor desfere às sem que haja discriminação por raça, cor,
teorias positivistas e seu contínuo esforço gênero, idioma, nacionalidade ou por
para a construção de uma teoria social qualquer outro motivo. São classificados
crítica, pela elaboração do paradigma como civis ou políticos, como o direito à
comunicativo, regido por uma vida, à igualdade perante a lei e à liberdade
racionalidade crítica e dialógica, assim de expressão. Podem também ser
como algumas de suas contribuições para o designados como econômicos, sociais e
entendimento do papel do direito na culturais.
democracia em sociedades Apesar de ainda ser necessário
contemporâneas. O estudo de autores conceituar os direitos humanos nos dias
democráticos nos cursos jurídicos justifica- atuais – mormente pela abrangência cada
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vez maior de direitos a serem tutelados do direito à maior medida possível de


dentro de sua sistemática –, de sua iguais liberdades subjetivas de ação.
(2) Direitos fundamentais que
definição não surge qualquer razão
resultam da configuração
impositiva de validade universal. Essa politicamente autônoma do status de
imperiosidade só se faz sensível quando um membro numa associação
passamos a compreender os direitos voluntaria de parceiros do direito.
humanos, intrinsicamente, vinculados ao (3) Direitos fundamentais que
conceito de dignidade humana, dando, resultam imediatamente da
possibilidade de postulação judicial
assim, uma justificação legítima à de direitos e da configuração
pretensão de validade universal. Seguimos politicamente autônoma da proteção
com o entendimento de habermasiano, jurídica individual.
quando este afirma que a validade [...]
universal dos direitos humanos só será (4) Direitos fundamentais a
possível a partir do reconhecimento participação, em igualdade de
chances, em processos de formação
intersubjetivo e intercultural de que todos da opinião e da vontade, nos quais os
são dignos de igual respeito e deferência civis exercitam sua autonomia
mútua. Dessa forma, Habermas (2001, p. política e através dos quais eles criam
150) questiona como os direitos humanos direito legítimo.
podem valer de modo ilimitado para todas [...]
as pessoas, considerando existir uma (5) Direitos fundamentais a condições
de vida garantidas social, técnica e
tensão peculiar entre o seu sentido ecologicamente, na medida em que
universal de caráter moral e as condições isso for necessário para um
locais jurídicas da sua efetivação dentro de aproveitamento, em igualdade de
um Estado nacional para os seus cidadãos. chances, dos direitos elencados de (1)
ate (4) (HABERMAS, 1997a, v.1,
O caráter moral dos direitos
159-160).
humanos tem sua fonte na “dignidade
humana”, a qual é uma e a mesma em todo Dignidade humana perfaz, assim, a
lugar e para todos, e não meramente uma função de um sismômetro que registra o
expressão classificatória. Dessa fonte que é constitutivo para a ordem legal
deriva o significado de todos os direitos democrática, nomeadamente apenas
básicos, bem como se baseia a aqueles direitos que os cidadãos de uma
indivisibilidade de todas as categorias de comunidade política devem garantir a si
direitos humanos (HABERMAS, 2010, pp. mesmos caso sejam capazes de se respeitar
468, 469). Consequentemente, apenas em como membros de uma associação
colaboração de um direito humano com voluntária de pessoas livres e iguais. A
outro, por exemplo, a liberdade de garantia desses direitos humanos ascende
expressão com o direito de filiação a ao status de cidadão a quem, como sujeitos
partido político ou, ainda, o direito ao lazer de iguais direitos, tem uma reivindicação
cominado com o direito à segurança de ser respeitado em sua dignidade
pública, seria possível a promessa moral de humana.
respeitar, igualmente, a dignidade humana Segundo Forst (2010, p. 719), o
de cada pessoa. Essa função heurística da direito a esse reconhecimento de igual
dignidade humana é a chave para a lógica respeito é o direito de justificação, pois
da interconexão entre as cinco categorias assegura a igual posição de pessoas no
de direitos fundamentais, necessárias a mundo político e social. Ainda segundo o
toda Constituição Democrática, autor, a justificação moral dos direitos
apresentadas por Habermas, a saber: humanos deve ter validade universal e
(1) Direitos fundamentais que reflexiva, pois o argumento reflexivo
resultam da configuração autônoma permite fundamentá-los longe da acusação
de etnocêntrica de direitos humanos, pois
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essa própria cobrança exige o direito a históricas se restringe, em princípio, ao


justificações adequadas que não excluam âmbito do Estado nacional que os
os afetados. Em suma, a abordagem positivou. Ocorre que os direitos humanos
reflexiva interpreta a própria noção de são marcados por uma vocação natural
justificação de uma maneira normativa para a universalidade, diante de sua dúbia
como um conceito básico da razão prática natureza: um lado voltado para a moral e
e como uma prática de autonomia moral e outra face para o direito. Muito embora
política - como uma prática que simplifica sejam normas jurídicas, que protegem
o direito à justificação e que fundamenta os apenas os cidadãos dentro de um Estado
direitos humanos nessa base. específico, o qual lhes positiva em sua
Para Habermas (2001, p. 150), a constituição, como direitos fundamentais,
universalização dos direitos humanos pode os direitos humanos se relacionam com
ser imaginada por duas formas: (1) todos cada pessoa como se fossem normas
os Estados se transformam em Estados morais (HABERMAS, 2001) e “funcionam
democráticos de direito, facultando-se a como orientações morais para a avaliação
cada indivíduo o direito a uma de objetivos políticos” (Id., 2003, p. 49).
nacionalidade de sua escolha ou; (2) A face jurídica do sistema de
estabelece-se uma grande confederação direitos fundado discursivamente volta-se
mundial (um megaestado pós-nacional) para trás, para um passado que ainda não
onde cada indivíduo, dotado de se esgotou, para o Estado democrático de
personalidade jurídica cosmopolita será direito, todavia sua face moral olha para
tido como “cidadão do mundo” e terá além do Estado nacional e enxerga ao
acesso direto e imediato ao usufruto longe a globalização dos direitos humanos.
efetivo dos direitos humanos onde quer Quando essa globalização se consolidar, os
que esteja, fazendo assim, valer o artigo conceitos de direito fundamental e direitos
282 da Declaração Universal dos Direitos humanos se confundirão, pois o primeiro
Humanos (DUDH). nada mais é, desde já, direitos humanos
Pode-se dizer que a proposta positivados no âmbito do sistema jurídico
habermasiana de cosmopolitismo se de um Estado nacional.
assemelha à perspectiva kantiana da “paz Assim sendo, pode-se dizer que a
perpétua”, segundo a qual é possível a pretensão universal da dignidade humana e
transição do direito internacional para os dos direitos humanos minaram o
direitos dos cidadãos mundiais particularismo de comunidades civil
(HABERMAS, 2003, p. 38). Kant (2002, específicas. Ao obrigar um Estado
p. 35) idealiza acerca da Paz Perpétua: democrático o reconhecimento da
“Após muitas revoluções, virá por fim a dignidade humana e dos direitos humanos,
realizar-se o que a Natureza apresenta ele precisa, primeiro internamente
como propósito supremo: um estado de reconhecer como portador de direitos
cidadania mundial como o seio em que se humanos todos os aqueles em seu âmbito
desenvolverão todas as disposições estatal, sejam estes estrangeiros, sem
originárias do gênero humano”. nacionalidade ou só pessoas em estada
Contudo, a validade dos direitos temporária ou, até mesmo, uma pessoa em
fundamentais inseridos nas constituições situação ilegal no país (LOURETE, 2018,
p. 131).
Esse "universalismo interno" dos
2
“Todo ser humano tem direito a uma ordem social
e internacional em que os direitos e liberdades direitos humanos corresponde, em segundo
estabelecidos na presente Declaração possam ser lugar, a um "universalismo externo", no
plenamente realizados” (ONU, 1948. Disponível qual a democracia é obrigada,
em < http://www.dudh.org.br/wp- especialmente, a respeitar a todos para
content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: 07 além dos limites territoriais de determinado
maio 2018.
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Estados em que as pessoas vivem, onde podem se concretizar passo a passo, com
são detentoras de seus direitos reveses e decretos (idem).
fundamentais. Em princípio, parece clara Apesar de reconhecer ser uma
essa dupla universalização de uma situação instável, Habermas insiste que os
democracia específica, porém, em sua direitos humanos oferecem forte
forma concreta, ela é difícil e complexa no fundamento de legitimação para uma
aprimoramento; assim, segundo Lohmann política inclusiva na comunidade dos
(2013), a força dos direitos humanos povos, vez que quase todos os Estados
universais para a constituição da sociedade ratificaram o teor da Declaração Universal
mundial continuaria obscura. dos Direitos Humanos da ONU3, de 1948,
Dessa forma, a exigência bem como as demais Convenções e Pactos
apresentada pelo art. 28 da DUDH só que lhe sucedem. Além disso, o autor
traduz o que reza a força garantidora legal compreende que a melhor hermenêutica
da dignidade humana. Entretanto, ainda desses direitos no mundo contemporâneo
precisa ser analisada a questão de como seria aquela obtida através e sob o ponto de
deve ocorrer, em nível transnacional, a vista de outras culturas.
realização do conteúdo normativo da Aqui, merece destaque as
dignidade humana. Nesse ponto, Habermas considerações que Richard Rorty (2011)
aproveita a discussão levantada desde faz sobre a hermenêutica dos direitos
Kant, na qual diferentes modelos de estado humanos. A crítica do autor norte-
mundial, federação de estados, sistema americano não é, necessariamente,
federal de nível mais amplo, direcionada à compreensão habermasiana,
"constitucionalização dos direitos dos mas sim como ele entende que deveria ser
povos", "República da humanidade" foram a interpretação desses direitos. Para Rorty,
colocados, desenvolvendo sua sugestão de esses dois séculos de afirmação histórica
uma "constitucionalização dos direitos dos dos direitos humanos são melhor
povos" (LOHMANN, 2013). Nesse sentido percebidos como aquele no qual ocorreu
republicano, estão ligados à dignidade um enorme e rápido progresso de
humana modelos nos quais as pessoas não sentimentos, tornando-se mais fácil
são apenas portadoras passivas de direitos motivar uma pessoa à ação ao se contar
humanos, mas sim próprias autoras desse histórias tristes e sentimentais de outras
regime jurídico internacional. pessoas/povo. Isso difere em muito de se
Isso é muito significativo, pois compreendê-los como um período de
nessa assunção do papel de legislador, uma profundo entendimento sobre a natureza da
pessoa passa a formar um nível mais racionalidade ou da moralidade. Por meio
elevado na esfera política, na qual é dessas narrativas, seria possível
discutida e reivindicada, publicamente, a sensibilizar habitantes de países ricos e
obtenção e o aprimoramento dos direitos seguros a se colorarem no lugar daqueles
humanos. Neste processo de deliberação e que são perseguidos, humilhados e tolhidos
institucionalização política, valem os de qualquer direito. Eis, assim, a resposta à
argumentos e os motivos que devem ser pergunta que o próprio filósofo lança: “Por
diferenciados conforme as várias que eu deveria me importar com um
dimensões (morais, legais, política- estranho, uma pessoa que não é meu
históricas) da dignidade humana e dos
direitos humanos. Para Habermas, estes 3
Para melhor análise, ver “ONU publica textos
são processos deliberativos nos quais a explicativos sobre cada artigo da Declaração
ideia de direitos humanos universais Universal dos Direitos Humanos”. Disponível em:
argumentos históricos, evolutivos, https://nacoesunidas.org/onu-publica-textos-
políticos, práxis e institucionalizações só explicativos-sobre-cada-artigo-da-declaracao-
universal-dos-direitos-humanos/. Acesso em: 31
maio 2019.
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parente, uma pessoa cujos hábitos que eu direito internacional passa por profundos
considero repugnante?” (id., p. 185). Mas questionamentos e cada vez mais se coloca
toda essa proposição não responde o em dúvida a tutela do ocidente em relação
porquê se deve agir moralmente com o a certos valores, outrora tidos como
outro. universais. A crescente globalização injeta
Rorty afirma que não está claro o a necessidade de maior consciência acerca
porquê se deve respeitar a dignidade do pluralismo cultural e da compreensão
humana e por que essa deve se sobrepor a sobre a visão das diversas culturas
qualquer atributo pessoal de cada humano existentes, não apenas a visão eurocêntrica
(ex.: religião, gênero, tradição cultura, ou norte-americana, como se essa culturas
orientação sexual, etnia...). detivessem o que Rorty (2011, p. 179)
Tradicionalmente, a “racionalidade” é o denomina de o “paradigma humano”.
atributo humano que sustenta a No diálogo intercultural sobre
moralidade. Entretanto, para esse filósofo, direitos humanos, uma das questões
não fica demonstrada a relevância da centrais é se esses possuem qualquer
escolha moral e acrescenta que o que validade fora da cultura ocidental de onde
separa os seres humanos de outros seres do se originaram. Em particular, a grande
reino animal são os fatos historicamente crítica se concentra na facticidade de um
contingentes de mundo e de cultura feitos individualismo inerente à ideia de direito
pelos próprios humanos. Erroneamente, subjetivo ser uma imposição estrangeira a
essa contingência, como o próprio autor culturas orientadas de forma mais
afirma, é entendida por alguns de seus comunitária. Para Pogge (2000, p. 51), a
críticos como um “relativismo cultural”, o insistência na juridificação dos direitos
qual estaria associado à irracionalidade por humanos provoca críticas de autores
negar a existência de uma moralidade comunitaristas e de intelectuais orientais
transcultural. em sentido de que essas normas levam as
Rorty ressalta que projetos pessoas a se enxergarem como ocidentais,
fundacionistas – aqueles com alta carga ou seja, atomizadas, seculares, indivíduos
sobre o “absoluto”/verdade metafísica – autointeressados em seus direitos, mesmo
estão fora de moda, pois “nós vemos nossa que seja a custo de outras pessoas ou de
tarefa como uma questão de fazer nossa toda a sociedade.
própria cultura – a cultura dos direitos Habermas (2001, pp. 153, 155)
humanos – mais autoconsciente e mais enfatiza que a controvérsia gira em torno,
poderosa, ao invés de demonstrar sua sobretudo, do individualismo e do caráter
superioridade para outas culturas ao apelar secular dessas normas. Portanto, mais que
para algo transcultural” (RORTY, 2011, críticas a uma tentativa de imposição e
pp. 170-171). Podemos extrair então, dominação, são críticas ao valor central da
resumidamente, que para a filosofia autonomia. Diante disso, o filosofo de
pragmática não existe conhecimento como Frankfurt expõe que as críticas orientais
o anunciado por Platão, o ideal. aos direitos humanos vão em três direções.
A primeira vertente põe em questão
3 AS CRÍTICAS À CULTURA o princípio da primazia dos direitos em
OCIDENTAL DOS DIREITOS relação às obrigações. As culturas antigas
HUMANOS da Ásia e da África priorizam a
comunidade em detrimento dos indivíduos,
O pluralismo e a multipolaridade não existindo também uma separação mais
provocados pela mundialização cultural rigorosa entre direito e ética, sendo a
hodierna estão abertos à nova visão de comunidade política, tradicionalmente,
aproximações e de teorizações integrada com base não no direito, mas em
interculturais das normas jurídicas. O obrigações, cujo ethos exige a submissão e
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o enquadramento de cada indivíduo, sendo, humanos depende de boas e


assim, incompatível com a compreensão eficientes políticas internacionais de
desenvolvimento econômico e social
ocidental individualista do direito.
(Conferência de Teerã, 1968)5.
Habermas replica esse
entendimento e afirma que os direitos Portanto, ao se afirmar que os
subjetivos “protegem não apenas a direitos humanos são indivisíveis se diz
perseguição escrupulosa de um modelo de que não existe meio-termo, vez que só há
vida ético, mas também uma orientação vida verdadeiramente digna se todos os
pelas preferências próprias de cada um, direitos previstos no ordenamento
livre de considerações morais” (2001, internacional de direitos humanos
p.156). Isso tem relação direta no estiverem sendo respeitados, sejam civis e
liberalismo econômico dos países políticos, sejam econômicos, sociais e
ocidentais. Entretanto, os países asiáticos culturais. Os direitos humanos são,
também formulam leis positivas e portanto, um conjunto de normas e não de
coercitivas para poderem participar da cada direito individualmente (WEIS, 1999,
comercialização capitalista, pois, sem p. 118).
segurança jurídica, seria improvável A segunda crítica põe em jogo uma
contratar e manter relações na esfera de um “hierarquia” comunitária dos direitos
comércio econômico globalizado. humanos, no sentido de que governos
Tem-se aí uma contradição ditatoriais asiáticos e africanos justificam
performática, a qual deve ser analisada, suas violações dos direitos fundamentais e
pois os países asiáticos não podem querer direitos civis políticos sob a égide da
as benesses do liberalismo econômico sem primazia de direitos sociais e culturais,
também garantir aos seus cidadãos um para um desenvolvimento econômico em
ordenamento jurídico com garantias supostos termos coletivos, que
subjetivas de ação, o qual se mostra eficaz “suspendem” o exercício concreto das
no modelo capitalista. Segundo Habermas liberdades subjetivas e políticas até se
(2001, p. 157), a questão dos direitos chegar a uma provável estabilidade
humanos para as sociedades orientais não é econômica.
cultural, mas sim socioeconômica, pois o Novamente, percebe-se a supressão
ponto a ser observado é se as formas ao exercício pleno dos direitos humanos.
tradicionais de integração política e social Sequer há como questionar se há uma
podem ser adaptadas aos imperativos supremacia da autonomia pública sobre a
essenciais da modernização. privada, pois, em regimes ditatoriais, não é
A réplica habermasiana vai ao possível atribuir autonomia aos indivíduos.
encontro do caráter indivisível, A estes não é permitida a participação
interdependente e complementar dos política para a formação de um
direitos humanos, reiteradamente afirmado ordenamento jurídico legítimo.
nas Convenções e Resoluções das Nações A terceira e última crítica oriental
Unidas4. se queixa dos efeitos negativos de uma
13. Como os direitos humanos e as ordem jurídica individualista sobre a
liberdades fundamentais são coesão social da comunidade, pondo em
indivisíveis, a realização dos direitos
civis e políticos sem o gozo dos
direitos econômicos, sociais e 5
Proclamada pela Conferência de Direitos
culturais resulta impossível. A
Humanos em Teerã a 13 de Maio de 1968.
realização de um progresso
Disponível em
duradouro na aplicação dos direitos
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Conf
er%C3%AAncias-de-C%C3%BApula-das-
4
Resolução nº 32/130 (a977); Resolução nº 39/145 Na%C3%A7%C3%B5es-Unidas-sobre-Direitos-
(1984); Resolução 41/117 (1986); Conferência Humanos/proclamacao-de-teera.html. Acesso em:
Mundial Sobre Direitos Humanos (1993). 31 maio 2019.
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risco a integridade das ordens familiares, desse processo como cidadãos livres
de vizinhança e políticas, pois o e iguais. Quando esclarecemos de tal
maneira o projeto do Direito, é fácil
individualismo fornece direitos subjetivos notar que a substância normativa dos
reclamáveis e, assim, gera conflitos entre direitos à liberdade já está contida no
os próprios cidadãos, indo contra o instrumento que é, ao mesmo tempo
consenso tradicional. necessário à institucionalização
jurídica do uso público da razão por
Habermas replica ao defender que
parte de cidadãos soberanos. O objeto
os direitos humanos não devem ser vistos central da análise a seguir é formado
como direitos naturais inatos, fixados na então pelos pressupostos da
religião ou na metafísica, de indivíduos comunicação e pelos processos de
que vêm e enxergam o mundo antes de uma formação discursiva da opinião e
da vontade, em que o uso público da
qualquer socialização. Portanto, ao
razão se manifesta (HABERMAS,
descartar esse ideal, não há que se falar em 2002, p. 87).
antítese oriental, segundo a qual as
reivindicações comunitárias precedem Os cidadãos são autônomos
àquelas de direitos individuais. politicamente porque ditam suas próprias
Assim, no embate entre leis. Essa ideia de autolegislação fortalece
“invidualistas” versus “coletivistas”, o procedimento de uma construção
Habermas (2001, p. 159) explana que “o democrática da vontade, tornando
individualismo compreendido de modo exagerada qualquer fundamentação dos
correto permanece incompleto sem essa direitos humanos embasada fortemente na
dose de “comunitarismo”. Isso porque a religiosidade ou em uma filosofia
integridade da pessoa particular só pode metafísica (HABERMAS, 2001, p. 160).
ser protegida com conjunto ao acesso livre Portanto, o sistema de direitos, para ser
às relações interpessoais e às tradições legítimo, não pode ser outorgado, mas
culturais, nas quais mantém sua identidade. deve poder ser observado racionalmente e
estruturado de forma politicamente
A relação dialética entre autonomia autônoma, com a participação, em
privada e pública só se torna clara por
meio da possibilidade de
princípio, de todos os interessados
institucionalização do status de um (LUCHI, 2005, p. 136). Contudo, ao invés
cidadão como esse, democrático e de descartar o aspecto legal dos direitos
dotado de competências para o humanos na esperança de se manter um
estabelecimento do Direito, e isso consenso maior com as tradições não
somente com o auxílio do direito
coercitivo. No entanto, porque esse
ocidentais, deve-se diferenciar a concepção
direito se direciona a pessoas que, de direitos individuais da “cultura do
sem direitos civis subjetivos, não individualismo”, a qual acaba por
podem assumir de forma alguma o influenciar a cultura jurídica de várias
status de pessoas juridicamente aptas, sociedades ocidentais.
as autonomias privada e pública dos
cidadãos pressupõem-se Segundo Habermas, citado por
reciprocamente. [...], os dois Flynn (2003, pp. 450-451), o conceito de
elementos já estão entrelaçados no direitos individuais está baseado sobre uma
conceito do direito positivo e fundamentação intersubjetiva do direito e
coercitivo: não haverá direito algum,
não no ideal do individualismo. Isso tem
se não houver liberdades subjetivas
de ação que possam ser juridicamente uma lógica: por si só, um ordenamento
demandadas e que garantam a jurídico não pode determinar como tais
autonomia privada de pessoas em direitos devem ser utilizados, como devem
particular juridicamente aptas; e ser vistos pelas pessoas ou como as
tampouco haverá direito legítimo, se
pessoas devem se compreender. Indivíduos
não houver o estabelecimento comum
e democrático do Direito por parte de podem exercitar seus direitos de fala,
cidadãos legitimados para participar organização e participação em um governo
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a fim de coordenar mudanças para a vida igualmente, prejudicado pelo


em comum, em um projeto para realizar o fundamentalismo, pois tal princípio deve
sistema de direitos de forma consistente possibilitar a coexistência igualitária dos
com os ideais de sua própria cultura ou, diferentes credos no interior de uma
ainda, podem escolher defender, comunidade política.
individualmente, seus direitos contra todos. Entretanto, Habermas (2001, pp.
Todas essas diferenças levam à formação 161-162) afirmar que mesmo em eticidades
da cultura jurídica de uma comunidade. onde há um fundamentalismo mais intenso
Mas isso não é suficiente, porque há uma tendência de transformação dos
mesmo que as críticas assumam que a conceitos absolutos da verdade, a qual
cultura do individualismo não seja, passa a conviver com o saber profano
necessariamente, resultado do sistema de público, dentro do mesmo universo
direitos, elas ainda podem questionar os discursivo. Esse movimento de
pressupostos dos conceitos de direitos transformação parte, segundo o autor, das
individuais. Contudo, um aspecto central camadas intelectuais da população. Isso
do sistema de direitos habermasiano não significa o rompimento com a
fornece a resposta a tais críticas, ao eticidade cultural, mas sim a noção acerca
substituir o sistema de direitos individuais da importância dos elementos do agir
para o de fundamentação intersubjetiva. comunicativo e do discurso. Assim,
Em um nível conceitual, direitos não se independente do pano de fundo sócio-
dirigem urgentemente a indivíduos cultural, todos os participantes sabem,
atomizados e separados os quais são, intuitivamente, que um consenso baseado
possessivamente, colocados uns contra os na convicção pacífica não pode se efetivar
outros. Ao contrário, como elementos de enquanto não existirem condições
uma ordem legal acionável, eles simétricas entre os agentes e ouvintes do
pressupõem colaboração entre sujeitos que discurso.
se reconhecem, em seus direitos e deveres
recíprocos, na qualidade de cidadãos livres 4 CONCLUSÃO
e iguais (HABERMAS, 1997, p. 127).
Certamente que a secularização da Apesar de tomar forte defesa da
política e a laicidade da maioria dos autonomia e, consequentemente, do
Estados ocidentais abrem espaço para uma modelo individualista do ordenamento
visão mais democrática das concepções de jurídico, Habermas (2001, p. 162) não
verdade, mormente em sociedades afirma com veemência que os direitos
multiculturais, cuja pluralidade (cultural, humanos seja a única ou a melhor via para
religiosa, moral, ideológica etc.) dos aos desafios das sociedades
agentes traz à tona inúmeras verdades contemporâneas. O debate proposto tem
subjetivas e não admite se fundamentar a por finalidade esclarecer os “pontos cegos”
partir de um único ponto de vista da cultura ocidental eurocêntrica.
(HABERMAS, 1987, 116). Frustração e descontentamento
Assim, a legitimação profana dos entre culturas aguçam a busca por
direitos humanos, desapegada da respostas mais satisfatórias, processo que
autoridade divina, é um desafio aos desenvolve o sentimento de incompletude
fundamentalistas religiosos. Em Estados que, por sua vez, impulsiona o diálogo
teocráticos, a própria aspiração à verdade é entre as culturas. Esse processo conduz, ou
absoluta, o que é incompatível com a ao menos deve conduzir, a uma mudança
inclusão igualitária de pessoas adeptas a recíproca construindo uma concepção
outros credos e ao exercício pleno de suas multicultural de direitos humanos.
liberdades religiosas, de expressão, opinião Entretanto, quanto mais espaço o diálogo
etc. O exercício da tolerância se vê, intercultural ganha, a consciência da
159 v.5 n.1 2019

incompletude se ergue formando uma REFERÊNCIAS


simbiose que proporciona o constante
aprofundamento da consciência da DUTRA, Delamar José Volpato.
incompletude e da necessidade desse Consequências da neutralização moral
diálogo. Assim, a consciência, antes difusa, do procedimento jurídico em Direito e
torna-se autorreflexiva e articulada, à Democracia. Disponível em
proporção que progride o debate. <https://periodicos.ufsc.br/index.php/ethic/
A noção de validade universal para article/view/1677-2954.2009v8n3p127>.
Habermas é uma pretensão presente na Acesso em: 19 fev. 2018. Florianópolis,
prática comunicativa, existente, segundo o 2009.
autor, em qualquer comunidade humana. FLYNN, Jeffrey. Habermas on Human
Essa pressuposição que os falantes fazem Rights: Law, Morality and Itercultural
não tem qualquer relação com um Dialogue. Florida: Social Theory and
princípio imóvel que os atrairia à verdade Practice. V. 29, n. 3, 2003.
universal, pois, não há um mundo
suprassensível que projete aos falantes um HABERMAS, Jürgen. The concept of
ideal comunicativo. Quando um falante human dignity and the realistic utopia of
busca argumentar seriamente em torno de human rights.. Oxford: Metaphilosophy,
uma proposição, prática ou teórica, v. 41, n. 4, July 2010.
pressupõe-se que essa possa ser HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-
reconhecida como válida universalmente, nacional: ensaios políticos. Trad. Márcio
através do assentimento dos outros Seligmann-Silva. São Paulo: Littera
participantes, em uma situação ideal de Mundi, 2001.
fala, e não pelo fato de representar uma
verdade transcendental-metafísica. Na HABERMAS, Jürgen. A inclusão do
medida em que uma situação ideal de fala outro: estudos de teoria política. Tradução:
diz respeito a condições que só se atingem Georde Sperber e Paulo Astor Soethe. São
de maneira aproximativa/falível, a Paulo: Edições Loyola, 2002.
universalidade de um assentimento nunca é HABERMAS, Jürgen. Direito e
fixa. Eis o motivo para a possibilidade do democracia: entre facticidade e validade.
resgate das pretensões de validade através Volume I. Trad. Flávio B. Siebeneichler.
do discurso, em uma busca de se corrigir Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.
aquilo que se demonstrou falho no agir
HABERMAS, Jürgen. Teoría y praxis:
comunicativo.
Estudios de filosofía social. Trad. Salvador
Aí reside a importância do discurso M. Torres y Carlos M. Espí. Madri:
cultural interno: estimular a boa-fé, o Editorial Tecnos, 1987.
respeito mútuo e o sentimento de igualdade
em relação às culturas alheias, de forma KANT, Immanuel. A Paz Perpétua e
que o conceito que se tem de “outros” seja outros opúsculos. Trad. Artur Morão.
alargado, possibilitando a inclusão cultural Lisboa: 2002.
nessa categoria. Por ser um processo LOHMANN, Geog. As definições
mútuo, é de extrema importância, para o teóricas de direitos humanos de Jürgen
sucesso do diálogo intercultural que seja Habermas: o princípio legal e as correções
despertada a vontade do diálogo, que não morais. Disponível em
pode ocorrer de forma unilateral, dado que http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci
deve sobrevir, concomitantemente, em _arttext&pid=S0101-31732013000400007.
todas as culturas envolvidas. Acesso em: 04 nov. 2016. Marília, 2013
LOURETE, Suzana de Alvarenga. A
Legitimidade Pós-Metafísica dos
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Direitos Humanos em Jürgen


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