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MUNDO JURÍDICO

Artigo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista

O Risco do Dissenso segundo Jürgen Habermas

Bárbara Gomes Lupetti Baptista


Mestranda em Direito na Universidade Gama Filho e Advogada no Rio de Janeiro

RESUMO: Este artigo visa analisar o risco do dissenso, na teoria de Jürgen Habermas, como
um elemento que - ao invés de enfraquecer ou dilacerar - fortalece a prevalência do consenso
na sociedade democrática moderna.

ABSTRACT: This article aims at analyzing the risk of controversy according to the Theory
of Jürgen Habermas, as element at – in spite of weaken or tearing into pieces – strengthens the
prevalence of the consensus in the modern democratic society.

SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais 2. Considerações gerais sobre alguns importantes


aspectos da Teoria de Habermas – a tensão entre facticidade e validade 3. O contexto social
no qual a Teoria de Habermas foi construída 4. Razão Prática x Razão Comunicativa: aspectos
gerais da Teoria da Ação Comunicativa 5. O discurso em Habermas: consenso e dissenso 6. O
risco do dissenso – uma visão Habermasiana 7. Uma breve visão crítica sobre o risco do
dissenso, em Habermas, a partir da Teoria dos Sistemas, de Niklas Luhmann 8. Considerações
finais 9. Referências bibliográficas.

1. Considerações Iniciais

Estudar a teoria de Jürgen Habermas, fundada no princípio do discurso, é crucial para


se tratar qualquer tema ligado à democracia no processo, sendo certo que, neste trabalho,
abordar-se-á, especificamente, o risco do dissenso presente na teoria habermasiana, fazendo-
se, ao final, um paralelo, a partir de sintéticas considerações sobre o mesmo tema, segundo a
teoria de Niklas Luhmann.

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2. Considerações gerais sobre alguns importantes aspectos da Teoria de Habermas – a


tensão entre facticidade e validade

A tensão entre facticidade e validade, a que chama atenção Habermas, consubstancia,


na verdade, uma tensão entre a legalidade/positividade e a legitimidade do Direito.

Habermas aponta uma extrema preocupação com o fato de as teorias contemporâneas


da política e do Direito se fecharem em campos opostos: princípios puramente normativistas,
que correm o risco de perder o contato com a realidade social, e princípios puramente
objetivistas, que não focalizam as normas.

Por isso, Habermas não permite que os ideais de sociedade se desvencilhem de uma
carga fática, em puro discurso abstrato ou filosófico. Da mesma forma, não permite que a
realidade perca as potencialidades ideais a que serve, em uma sociologia do direito
estritamente descritiva. E é com base nesses fatos que demonstra a preocupação em não
estudar a tensão entre facticidade e validade, fixando uma única orientação disciplinar,
adotando, em toda a sua teoria, um caráter nitidamente interdisciplinar.

A partir daí, Habermas passa a preocupar-se com a necessidade de que se reconstrua o


Direito, a partir da sua teoria do discurso, da razão comunicativa, através da participação
efetiva dos cidadãos no processo de reconstrução e legitimação do Direito e o faz através do
conceito de democracia participativa1.

Habermas observa a irremediável invasão do Direito na sociabilidade e se dedica a


estudar a eficácia social dos pressupostos normativos. Isso se dá sob dois aspectos, ligados à
validade do Direito: 1) direito positivo: só é válido como direito positivo aquilo que obtém
1
O conceito de democracia, proposto por Habermas, implica na auto-legislação dos cidadãos e pode ser entendido no
seguinte trecho de sua obra “Direito e Democracia entre facticidade e validade”, in verbis: “Uma ordem jurídica não pode
limitar-se apenas a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as demais pessoas; o reconhecimento
recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar-se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um
liberdades iguais, de modo que “a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de todos”. As leis
morais preenchem esta condição per se; no caso das regras do direito positivo, no entanto, essa condição precisa ser
preenchida pelo legislador político. No sistema jurídico, o processo da legislação constitui, pois, o lugar propriamente
dito da integração social. Por isso, temos que supor que os participantes do processo de legislação saem do papel de
sujeitos privados do direito e assumem, através de seu papel de cidadãos, a perspectiva de membros de uma
comunidade jurídica livremente associada, na qual um acordo sobre os princípios normativos da regulamentação da
convivência já está assegurado através da tradição ou pode ser conseguido através de um entendimento segundo regras
reconhecidas normativamente. (HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. 2a ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, Vol. I, p. 52-53)

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força de direito através de procedimentos jurídicos tidos como válidos; 2) validade social das
normas do direito positivo: a validade social é determinada pelo grau em que consegue se
impor na esfera social; só se impõe se for socialmente, no campo fático, aceita como norma
jurídica.

Habermas se dedica, outrossim, ao estudo da evolução do conceito de razão,


destacando o desaparecimento da razão antes tida como uma razão puramente científica,
imutável, absolutamente verdadeira, e o surgimento de uma razão limitada, em constante
modificação, de acordo com a história, com demais fatores complexos, sociais e valorativos2-3.

Habermas se preocupa em justificar que a sua pesquisa se destina a comprovar que o


pressentimento presente hoje nas sociedades, de que a política atual, secularizada, demonstra,
cada vez mais, não haver formas de se manter um estado democrático de direito sem uma
democracia radical, de fato, está correto. Ele propõe que é pelo consenso, pela
conscientização dos cidadãos de que o gozo das liberdades só se dará com a autonomia
política, que se chegará à democracia efetiva.

Ele aponta que o conflito do Direito se dá por causa da tensão permanente existente
entre coerção e positividade versus aceitabilidade racional e legitimidade. Isto é, sob pena de
as decisões e as normas serem estritamente arbitrárias e, conseqüentemente, inaceitáveis,
levando à desintegração social, o Direito deve, justamente, fundar a positividade na
legitimidade. A coerção deve garantir um nível de aceitação da norma. Para que se atinja a
integração social efetiva, o Direito deve mediar o mecanismo da legalidade e da legitimidade,

2
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. 2a ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003,
Vol. I, págs. 17-27
3
Habermas substitui o conceito de razão prática pelo de razão comunicativa, e o faz, a fim de que seja possível dar respostas
à questão da integração social, sem, no entanto, negar, por completo, o conceito de razão. A razão prática vinculava-se,
sobremaneira, ao elemento moral, já a razão comunicativa é dele desvinculada. Maria Repolês assim se expressa ao definir a
substituição do conceito de razão feito por Habermas: “(...) é que a razão comunicativa vai ser compreendida a partir do
medium da linguagem cotidiana, liberando-se, portanto, do elemento moral que estava presente na razão prática. Sob a sua
base moral, a razão prática tinha necessidade de pressupor um possível ator individual ou um macro-sujeito no nível do
estado ou da sociedade. A razão prática, sendo uma faculdade subjetiva, diz aos atores o que “devem” fazer, sendo, assim,
uma fonte imediata de prescrição que estabelece regras de ação. A razão prática, em definitivo, estabeleceria um dever
transcendental forte e centrado, que indica concretamente como agir. E tem, por isso, uma ligação direta com a prática social
(...) Já a razão comunicativa, liberta dessa moral, é capaz de se abrir ao mesmo tempo para discursos éticos, morais e
pragmáticos (...) apenas obriga os indivíduos comunicativamente atuantes a se comprometerem com pressupostos
pragmáticos contrafactuais, cujo telos é o entendimento mútuo. A razão comunicativa mantém uma ligação indireta com a
prática social, porque não diz aos atores como agir. São os próprios atores que, ao usarem a linguagem com vistas ao
entendimento mútuo, estabelecem determinadas condutas como válidas.”. (REPOLÊS, María Fernanda Salcedo. Habermas e
a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, págs. 48-49)

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sendo certo que esta, por sua vez, é alimentada através da capacidade comunicativa da
sociedade.

Eis o paradoxo: a legitimidade do sistema jurídico a partir da legalidade. Tal paradoxo


pode ser analisado a partir da seguinte interpretação, de caráter dúplice: 1. a necessidade de as
normas jurídicas se apresentarem como limites fáticos aos quais a sociedade precisa se
adequar; 2. a necessidade de as normas jurídicas precisarem desenvolver uma força social
integradora, em que a obrigação de obedecer esteja sustentada pelo reconhecimento subjetivo
de todos os integrantes da sociedade. Eis a ambivalência das sociedades modernas: a validade
jurídica representada, concomitantemente, pela coerção e pela liberdade. Garante-se a
liberdade de ação individual pela coerção do direito objetivo.4

Habermas aborda duas formas de validade jurídica das normas e o faz sob interessante
ponto de vista: o de que algumas normas podem ser respeitadas por causa das sanções
impostas como conseqüência de sua não observância e outras por causa da aceitação fática
por parte dos seus destinatários, isto é, as normas são observadas e obedecidas por puro
respeito às leis, advindo de um reconhecimento racionalmente motivado, obediência ao direito
que se dá pelo motivo não-coercitivo do dever.

Nesse particular, pelo que se pôde observar do estudo da teoria de Habermas, ele se
preocupa com o fato de, hodiernamente, mesmo no estado democrático de direito, existir um
ordenamento jurídico que, a todo momento, tem que ceder às pressões sociais decorrentes da
falta de legitimidade das decisões que são tomadas e das normas existentes. Ele acredita que
é, através da teoria do discurso, que se deve construir um direito, que seja ao mesmo tempo
coercitivo e legítimo. Esta é a busca e a intenção: em suma, mediar o estado e a sociedade, a
partir da idéia do Direito como meio de integração social.

Habermas, como já asseverado, defende que a tensão entre facticidade e validade se dá


por causa da tensão entre legalidade e legitimidade. Ele propõe que os cidadãos participem de
4
“Embora pretensões de direito estejam ligadas a autorizações de coerção, elas também podem ser seguidas, a qualquer
momento, por respeito à lei, isto é, levando em conta sua pretensão de validade normativa (...) o curioso é que a validade
jurídica de uma norma significa apenas que está garantida, de um lado, a legalidade do comportamento em geral, no sentido
de uma obediência à norma, a qual pode, em certas circunstâncias, ser imposta por meio de sanções e, de outro lado, a
legitimidade da própria regra, que torna possível em qualquer momento uma obediência à norma por respeito à lei.”.
(HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003,
Vol.I, p. 51-52)

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um processo de auto-regulação, um processo legislativo. Ou seja, que os cidadãos participem


de um processo de legitimação do direito. E por quê? Porque para ele, quanto mais
democrático for o processo de positivação do direito, mais legítimo ele será, mais aceito
socialmente será e, justamente, pela teoria do discurso, mais facilmente se dará a
democratização do processo de positivação do direito. Em apertada síntese, seria esta a visão
de Habermas e a base para a construção de sua teoria.

Segundo Habermas, os novos caminhos da democracia e do direito envolveriam o


fortalecimento da busca de soluções a partir dos processos de comunicação. Não haveria
direito absoluto e imutável ante a defesa dos méritos da processualidade argumentativa.

Mais adiante, analisar-se-á, com maior destaque, a teoria do Agir Comunicativo, onde
a questão da argumentação e do diálogo são elementares.

Outro aspecto presente na teoria de Habermas diz respeito à moral. Em Habermas


resta clara a distinção entre Direito e Moral, todavia, a fundamentação de sua teoria se faz
pela moral. Embora se reconheça que Direito e Moral não são sinônimos, a teoria
habermasiana deixa transparecer a idéia de que a moral é, na verdade, o pano de fundo do
Direito. Para ele não há conflito nem subordinação entre moral e direito, há sim
complementaridade.

Os trechos a seguir, destacados da obra de Maria Fernanda Salcedo Repolês, definem


precisamente a complementaridade entre Direito e Moral, tão presente na teoria de Habermas,
in verbis: 5

“O direito não representa apenas uma forma de saber cultural, como a moral,
pois forma, simultaneamente, um componente importante do sistema de
instituições sociais. O direito é um sistema de saber e, ao mesmo tempo, um
sistema de ação. Por outro lado, dizer que direito e moral são distintos não
implica em dizer que eles sejam excludentes, assim, é necessário esclarecer a
relação de complementaridade entre ambos...”.

5
REPOLÊS, Maria Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 100-105.

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“...Toda argumentação tem um marco normativo, e nesse sentido, o âmbito do


Direito, no qual esses discursos encontram espaço públicos institucionalizados
para se desenvolver, mantém uma ligação com a moral. Isso porque, embora o
Direito se destine a um círculo limitado de pessoas, ele tem que regular as
condutas no igual interesse de todos os seus destinatários e não apenas de
grupos específico...”

“A moral é descrita por Habermas como “especializada em questões de


justiça”, abordando “tudo à luz forte e restrita da universalidade”
[Habermas,1977-1: I, 149]. Apesar de constituir um procedimento que permite
avaliar situações controversas, a partir do qual os sujeitos podem elaborar
juízos, a moral não chega a estabelecer um catálogo de deveres ou sequer um
sistema hierárquico de normas, que orientem esses sujeitos para a ação. Por
isso, a moral pós-convencional é deficiente cognitivamente, porque ela não
gera obrigações institucionais, não gera normatividade nesse sentido. Já o
Direito mantém um nível de saber altamente racional e artificial, por meio da
formação de uma dogmática jurídica e de uma ciência do Direito, que lhe
permitem estruturar-se cognitivamente. E ainda, o Direito constitui fonte de
normatividade pelo pronunciamento do legislador político e dos tribunais que
resolvem o que é Direito e o que não é Direito...”

Na verdade, parece-me, em suma, que Habermas quer dizer que o Direito é tanto uma
instituição social - que regula a ação/conduta humana - quanto é um texto de proposições, por
meio das quais se torna legítimo/válido. Já a moral, de caráter mais universalizado, mais
ligada à justiça, pretende, apenas, a aceitabilidade universal das normas jurídicas, não
possuindo a característica funcional do Direito. Para Habermas, uma ordem jurídica só pode
ser legítima se não contradisser preceitos morais.

No que atinge a ética, ligada à bondade, para Habermas, parece que as questões éticas
são determinadas por aquilo que as partes num ato de decisão coletiva de poriam de acordo,
estabelecendo-se certos “pressupostos pragmáticos de argumentação”, isto é, condições
concebidas com o escopo de garantir que todos possuam igual direito e oportunidade no uso
da palavra, não podendo haver distorção resultante de diferenças de poder e influência.

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Ter-se-ia, então um conteúdo que se pudesse referir à solidariedade vivida, ou seja, a


uma ética não apenas formal; ética na qual a participação igualitária na tomada das decisões
não se referisse apenas ao uso da palavra, mas também à participação efetiva dos indivíduos e
dos grupos; e, ainda, a um sentido de responsabilidade que, dentre outros aspectos, sugerisse
uma articulação entre a palavra e a ação, não podendo haver incompatibilidade entre essas
duas dimensões do espaço público.

A legitimidade do Direito se apóia em um arranjo comunicativo, no entender de


Habermas, pois cada membro da sociedade participa de um procedimento discursivo o qual os
coloca em condições de igualdade e lhes dá liberdade de argumentação. As normas resultantes
do processo de argumentação são em prol de todos os envolvidos no processo e são
legitimadas na medida em que intersubjetivamente formadas e reciprocamente obedecidas e
respeitadas. Diante do que se propõe, em termos de processo para se alcançar a democracia,
quem elabora as normas é, concomitantemente, autor e destinatário (auto-legislação).

Os pontos adrede destacados dizem respeito a aspectos gerais da teoria habermasiana,


que se faz relevantes para o entendimento do tema em espécie.

3. O contexto social no qual a Teoria de Habermas foi construída

Habermas foi membro da segunda fase da Escola de Frankfurt, cujo escopo era, em
linhas gerais, o de desenvolver uma teoria social crítica com intenções práticas.

Devemos, pois, analisar o estudo da teoria de Habermas a partir do contexto local,


histórico e político.

Habermas é pós-positivista, sendo certo que a sua teoria foi construída na época em
que o positivismo era altamente criticado – como sustenta Maria Fernanda Salcedo Repolês –
“por ter se esquecido dos padrões de Justiça reclamados pela sociedade, em nome da
supervaloração de processos formais e da fidelidade à letra da lei”. Novas tendências,
vinculadas ao movimento da Corte Constitucional Alemã, “jurisprudência dos valores”,
buscavam uma maior aproximação do Judiciário com as questões sociais e éticas.

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Na Corte Constitucional Alemã e no modelo teórico aplicado predominantemente,


havia a presença pacífica e reiterada de uma orientação para a chamada jurisprudência de
valoração (ou jurisprudência dos valores), que expressa um tipo de caminho adotado dentro
da atividade judicial responsável pela maior interação dos tribunais com as grandes questões
sociais e éticas do país.

Pois bem, além disso, é cediço que a sociedade moderna está calcada no pluralismo
(pluralismo este que aceita a tolerância às diversas formas de vida), sendo portanto, uma
“sociedade aberta” a todos os tipos de concepções culturais possíveis, que devem coexistir de
forma harmônica.6

Aliás, o pluralismo é tanto característico da sociedade moderna, quanto o é do Estado


Democrático de Direito, que, através da Constituição, deve harmonizar tais diferenças -
inerentes ao convívio social moderno - bem como contemplar direitos e garantias que
preservem os diversos grupos sociais.

A dificuldade de se encontrar critérios objetos de validade para o direito advém,


justamente, do fato de ter havido uma brusca transformação na sociedade. A idéia de uma
moral e também de uma racionalidade absoluta, universal, não podem mais ser concebidas e
aceitáveis. O pluralismo toma conta da sociedade e o multiculturalismo deve ser enxergado e
reconhecido como uma realidade irremediável7.

6
Karl Popper define a “sociedade aberta” como uma sociedade não estamental (Idade Antiga e Idade Média). Trata-se, a
sociedade moderna, de uma sociedade aberta, por ser caracterizada por experiências diversas, que se modificam com a
convivência. Cuida-se, outrossim, de uma sociedade dinâmica, projetada pelo dissenso, que é dela naturalmente integrante,
tendo em vista o aparente conflito de interesses, concepções, pensamentos. Vê-se, ainda, a respeito, a análise de Giovanni
Reale e Dario Antiseri: “Ao contrário, a sociedade aberta, na sua concepção, configura-se inversamente como sociedade
baseada no exercício crítico da razão humana, como sociedade que não apenas tolera como também estimula, em seu interior
e por meio das instituições democráticas, a liberdade dos indivíduos e dos grupos tendo em vista a solução dos problemas
sociais, ou seja, tendo em vista contínuas reformas”. (REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da filosofia. 4ª ed.. São
Paulo: Paulus, 1991, p. 1035).
7
A questão do “pluralismo razoável”, tratada por John Rawls, no amadurecimento de sua Teoria da Justiça, é, justamente, o
reconhecimento do fato irrefutável de que vivemos hoje em sociedades plurais, em que não é possível, nem desejável,
alcançar uma unidade do pensamento, qualquer que seja a sua esfera, nem mesmo uma unidade do ponto de vista religioso ou
cultural. Aliás, as tentativas acompanhadas dessa unidade resultaram, sempre, em autoritarismo e violência. Por isso, não é
possível tratar de questões pessoais. Os princípios devem se tratados de forma abstrata, sendo este, a meu ver, o embrião que
despertou John Rawls a mudar a sua concepção metafísica de justiça, a partir do viés político (sempre empregado no sentido
de público), o que fez em sua obra “Justiça e Democracia”, especificamente, no capítulo IV, A teoria da justiça como
eqüidade: uma teoria política, e não metafísica.

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Andréa Semprini pontua de forma interessante e objetiva a questão, entendendo o


multiculturalismo da seguinte forma8:

“Uma das questões fundamentais do multiculturalismo é a diferença.


Diferença sociológica e demográfica, mas também diferença enquanto
categoria filosófica (...) Consideradas em seu conjunto, as problemáticas que
animam o multiculturalismo convergem para um mesmo ponto, o
questionamento radical do projeto filosófico da modernidade. Os
“modernistas” amam destacar que esse questionamento somente é possível no
seio da modernidade, a única que colocou entre seus valores a possibilidade da
crítica. A modernidade seria um projeto inacabado, como sugere a bela
fórmula de Habermas? Poderia ela evoluir e se adaptar a uma nova condição
histórica? Ou ela estaria prestes a cumprir o seu papel? Finalmente, não se
trata de enterrar ou salvar a modernidade em si, mas avaliar se suas categorias
estão ainda em condições de compreender as mutações em curso nas
sociedades contemporâneas, de explicar os problemas antigos e novos que as
entrecortam e de dar uma resposta às perguntas da sociedade que mudaram de
natureza e modalidade de expressão.”.

Gisele Cittadino destaca que “a identidade não é a marca da sociedade democrática


contemporânea. Ao invés da homogeneidade e da similitude, a diferença e o desacordo são
os seus traços fundamentais...”9.

É neste contexto social que a teoria habermasiana se aplica e é, pois, justamente, esta a
dificuldade de tratar o assunto “consenso”, face ao atual pluralismo inevitável das sociedades
modernas.

O pluralismo e o dissenso - através do qual se deseja alcançar o consenso - são


intrínsecos ao processo democrático, e inevitáveis. O trecho a seguir descreve de forma muito
interessante a necessidade do pluralismo para a democracia e aponta o aspecto positivo de sua
existência nas sociedades modernas, literis10:

8
SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Tradução Laureano Pelegrin. Bauru, São Paulo: EDUSC, 1999.
9
CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. 3 a ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, pág. 77.
10
KAUFMANN, Arthur. Filosofia del derecho. Tradução de Luis Villar Borda e Ana María Montoya. 2ª ed.. Bogotá:
Universidad Externado Colombia, 1999, p. 519, disponível em http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/1573, em 14/07/2005.

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“El pluralismo pertenece esencialmente a la democracia. En la sociedad


humana moderna hay una multiplicidad de puntos de vista y sistemas
normativos diferentes con igual derecho a la validez, y hay una multitud de
métodos, que son adecuados al correspondiente objeto de la investigación. En
esto se distingue el pluralismo tanto del monismo como del dualismo. Muchos
consideran el pluralismo como um defecto, algo que seria mejor que no
existiera. Se ve en él una carga, ciertamente necesaria, pero de todas maneras
uumacarga. Sin duda lo es, y en verdad

en el mismo sentido en que para un violinista es una carga verse con todos los
músicos que actúan em una orquestra. Y así como el violinista no es ningún
impedimento para la sinfonía, el pluralismo no es obstáculo para el
esclarecimiento de la verdad, sino por el contrario una condición de la
posibilidad de verdad. El pluralismo se infiere no sólo del relativismo sino
también del modo de conocimiento de la verdad. Es un servicio
imperecedero el prestado por la teoria del discurso, al haver dejado en
claro que el conocimiento científico no se obtiene en solitario sino que
existe un esfuerzo cooperativo. La teoría de consenso y la teoría de
convergencia de la verdad, que la complementa, presuponen
necesariamente una multiplicidad de sujetos cognoscentes.”. (grifou-se)

Diante desse novo retrato social, pluralista, multicultural, a integração social só se


torna possível a partir do consenso, ou, pelo menos, a partir de compromissos racionais entre
os falantes. Diz-se compromissos racionais porque surge, a partir da conscientização dos
próprios cidadãos (não é impositivo), a necessidade de se tolerar e de se consensualizar as
formas de organização social, com fins à democracia e ao bem-estar da coletividade. Para
tanto, os participantes devem ter iguais oportunidades de oferecer suas pretensões e se
mostrarem dispostos a tê-las suscetíveis à crítica, para que se chegue o mais próximo possível
de um consenso.

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John Rawls, ao tratar do consenso por justaposição, reconhece o pluralismo e a sua


importância para a integração social, sendo, a meu ver, inevitável, fazer este paralelo no
estudo do consenso e do dissenso em Habermas11.

Francisco de Castilho Prates, ao tratar do estudo do Estado Democrático de Direito em


uma sociedade de risco - aqui a idéia de risco se vincula ao “risco do dissenso” – define
bastante bem a necessidade de estarmos atentos para a inexistência, cada vez mais presente,
de uma moral e de conceitos universais, pontuando a necessidade de refletirmos para a
mudança de paradigmas sociais e para a existência irremediável da diferença, expressando-se
da seguinte forma12:

“ (...) Nessa ordem de idéias, a conclusão a que chegamos é que inseridos em


um período histórico no qual o risco é permanente e inafastável, fruto de
uma complexidade e pluralidade crescente, onde o transcendente não
mais pode legitimar as decisões, o trajeto que se revela mais plausível
para lidar com estes desafios e com as tensões que a modernidade e seus
mais divergentes modos de vida carregam, é admitirmos que a nossa
racionalidade, principalmente em seu viés iluminista, é limitada, não
havendo mais um único método nem conhecimento que forneçam uma
segurança completa e definitiva (...)”. (grifou-se)

Importante traçar esse panorama, a fim de registrar o contexto social em que a teoria
habermasiana foi construída, pois, sem isso, não se teria a idéia completa do seu objeto de
análise.

4) Razão Prática x Razão Comunicativa: aspectos gerais da Teoria da Ação


Comunicativa

11
O consenso por justaposição consiste no fato de que doutrinas diferentes e – em alguns casos – até mesmo, conflitantes,
sustentem a base comum e pública das disposições políticas da sociedade democrática em que se aplica. A solução de John
Rawls para a justiça consiste em estabelecer o consenso como forma de justificar a não preponderância de uma vontade
particular sobre um interesse coletivo. Ou seja, a importância de que a doutrina particular não imponha as suas regras ou
respostas. Outro fato importante é a preocupação de Rawls em construir uma teoria publicamente reconhecida, fazendo-o a
partir de um consenso através de premissas reconhecidas publicamente como verdadeiras e aceitáveis, o que leva,
inevitavelmente, ao alcance de um consenso racional, isto é, voluntário, alheio a imposições ou coações, advindo da
deliberação e da consciência de todos. (RAWLS, John. Justiça e Democracia. 1a ed. 2a tir. São Paulo: Martins Fontes, 2002).
12
PRATES, Francisco de Castilho. O Estado Democrático de Direito em uma Sociedade Complexa e de Risco, disponível em
http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto714.htm, em 15/08/2005.

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Este ponto merece destaque porque consubstancia a base da teoria do agir


comunicativo e, por conseguinte, nos faz compreender, com maior propriedade, o fundamento
da teoria de Habermas sobre o consenso e o dissenso.

Habermas trata da distinção de razão prática e razão comunicativa, justificando, desde


logo, que opta pela teoria do agir comunicativo para fundamentar o seu estudo, teoria esta que
vai, justamente, substituir a idéia de razão prática pela de razão comunicativa (a razão
comunicativa é, na verdade, pela teoria habermasiana, a base da reconstrução da sociedade).

A razão prática é, pelo que se infere do estudo, em síntese, instrumento de dominação,


que conduz a vontade e busca orientar o indivíduo em seu agir. É uma típica teoria do “dever-
ser”. A razão prática é composta de uma visão totalmente normativista e vinculada à moral,
eis que estabelece regras de ação, conduzindo o ator da razão ao que deve fazer, como deve
agir, enfim, trata-se de uma orientação obrigatória do agir.

A razão comunicativa, fundamento da teoria do agir comunicativo, não é uma fonte de


normas de agir, mas sim a base do diálogo, do entendimento mútuo, sendo compreendida a
partir da linguagem cotidiana, desprendida de conceitos morais, de regras e de normas sobre
como agir. A razão comunicativa possibilita a interação entre os atores da razão que visam ao
entendimento, ao consenso, uma vez que são os próprios atores, ao usarem a linguagem com
vistas ao entendimento mútuo, que estabelecem quais são as condutas tidas como válidas.

Diante dessa nova fundamentação, fulcrada na razão comunicativa, é que se pode


garantir a integração social almejada e, de fato, atingida, pelo mecanismo do entendimento, do
diálogo.

Parece-me que Habermas reconhece, na razão comunicativa, uma forma de, através da
linguagem, construir-se e manter-se uma determinada ordem social. Isto porque, falante e
ouvinte – membros da sociedade – ao se comunicarem e dialogarem, acabam por definir
normas de conduta social que lhes serão aplicáveis e impostas através da aceitação racional,
advinda do entendimento e da conseqüente conscientização de sua importância e validade
para todos, não por coação.

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Maria Fernanda Repolês, mais uma vez, define de maneira muito pertinente a visão
habermasiana sobre a razão comunicativa, valendo destacar o trecho a seguir, expressis
verbis13:
“ (...) Apresentada a teoria da linguagem reconstruída por Habermas, pode-se
concluir que a linguagem pode ser uma forma de integração social
bastante efetiva porque é por meio dela que as práticas sociais podem se
dar tendo como fim o entendimento mútuo, por via do agir

comunicativo. Ou seja, sendo o agir comunicativo, e seu objetivo de alcançar


o entendimento mútuo, um mecanismo de coordenação da ação, os
pressupostos contrafactuais da linguagem, de atores que orientam sua ação por
pretensões de validade, mantêm uma ligação com a construção e
preservações de ordens sociais [o que leva à segurança e “estabilidade”, aqui
não utilizada como imutabilidade]. Isto porque também as ordens sociais
existem pelo reconhecimento de proferimentos normativos de validade”.
(grifou-se)

A teoria do agir comunicativo surge como forma de oposição à teoria do agir


estratégico, sendo certo que é tida como fonte de integração social, a partir da prevalência da
força consensual do entendimento, da busca da produção do consenso através da
argumentação – distante da coerção.

O agir comunicativo permite que a adesão às teses argumentativas e o consenso se


dêem de forma racional, a partir do processo de comunicação entre os sujeitos, dos planos de
ação definidos cooperativamente, mediante interpretações comuns e horizontes
compartilhados, buscando, assim, a preservação da ordem social autônoma e não
individualista.

A diferença do agir comunicativo e do agir estratégico se dá porque este corresponde a


uma ação meramente instrumental. Neste, usa-se a linguagem apenas como meio de
informações, como se a linguagem fosse uma ação voltada para a simulação, tratando-se, pois,
o agir estratégico, de uma distorção do agir comunicativo. O falante, na teoria do agir

13
REPOLÊS, María Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p.64

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Artigo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista

estratégico, simula a intenção para perquirir se os meios de argumentação que utiliza são
hábeis para produzir os efeitos efetivamente desejados, de sucesso, poder ou influência.

O agir comunicativo é a disposição dos particulares para, a partir do diálogo, do


discurso, se entenderem, e alcançarem um consenso sobre algo do mundo. A comunicação
para Habermas é diálogo e o agir comunicativo é o instrumento para alcançá-lo.

Interessante notar que, para Habermas, a existência da relação pautada no diálogo


supõe que as pessoas almejam a validade de um argumento, qualquer que seja, e questionam a
verdade dos fatos, bem como a correção ou adequação das normas. Por maiores que sejam os
obstáculos à efetivação do entendimento não-coercitivo, a capacidade dos sujeitos em se
comunicarem é um dado que permanece, a despeito da lógica do sistema. O sujeito em
interação constrói e reconstrói as regras que regem a sociedade.

Inês Sílvia Vitorino Sampaio, destaca, em trecho de um interessante artigo de sua


autoria a respeito de conceitos e modelos da comunicação, o seguinte14:

“Habermas recupera, na sua teoria da ação comunicativa, elementos da teoria


da linguagem do segundo Wittgenstein e da teoria dos atos de fala de Austin.
No primeiro caso, incorpora a tese de que falar é agir socialmente, ou seja,
constitui uma forma de vida e de seguimento a regras gestadas socialmente.
No segundo caso, assume a tese de que falar coisas significa fazer
proferimentos que estabelecem relações sociais. Nesse sentido, a sua teoria
ultrapassa a esfera da lingüística e se configura como pragmática. A
pressuposição de uma situação ideal de diálogo, ainda que não realizável
empiricamente, está presente em toda interação mediada pelo discurso. Essa
situação ideal antecipada, caracterizada pela ausência de qualquer forma de
mutilação sistemática da comunicação, onde prevalece sempre a força do
melhor argumento e se assegura igualdade de condições para todos os
participantes do discurso, tem como pressuposto a antecipação também
de uma forma ideal de vida, marcada pelos ideais de liberdade e justiça“.
(grifou-se)

14
SAMPAIO, Inês Sílvia Vitorino. Conceitos e Modelos da Comunicação, disponível em
http://www.uff.br/mestcii/ines1.htm, em 12/07/2005.

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Artigo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista

Para Habermas, a teoria do agir comunicativo não implica anarquia, mas, de fato, traz
consigo a idéia de uma liberdade comunicativa plena, imprescindível ao estado democrático
de direito e que se propõe a, em última instância, garantir efetivamente liberdades
subjetivas/individuais iguais.

O conceito de agir comunicativo corresponde, pois, às ações orientadas para o


entendimento mútuo, em que o ator social inicia o processo da comunicação a fim de atingir a
compreensão mútua e consensual. Habermas trabalha com o conceito de discurso como uma
forma de comunicação que consiste na integração dos membros da sociedade.

5. O discurso em Habermas: consenso e dissenso

Para Habermas, democracia é institucionalizar o princípio do discurso. O discurso, na


teoria de Habermas, é, na verdade, em síntese, o que permite falante e ouvinte compartilharem
o saber, com fins à integração social, à interação, ao entendimento mútuo sobre algo do
mundo.

O princípio do discurso é abordado, na teoria de Habermas, fundamentalmente,


quando se trata da auto-legislação, ou seja, da efetiva participação dos cidadãos, através do
discurso e do consenso, no processo legislativo.

A conseqüência inalienável da auto-legislação, segundo a teoria habermasiana, é,


justamente, a legitimação do Direito, uma vez que, se produzido pelos próprios cidadãos, em
consenso, de comum acordo, em condições justas e de efetiva igualdade, certamente, será por
eles aceito e aplicado.

A partir do discurso, o processo democrático assume o ônus de ter de aceitar que


quaisquer temas e questões públicas, sejam levadas à arena do debate para serem discutidas
pelos cidadãos, o que, embora não seja palpável na sociedade brasileira atual, se viável,
configuraria, de fato, a concretização de tudo que se estuda sobre democracia e até mesmo
sobre justiça.

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Habermas destaca a importância da linguagem e do discurso no processo de integração


social não violento, destacando que “...no uso da linguagem orientada pelo entendimento, ao
qual o agir comunicativo está referido, os participantes unem-se em torno da pretensa
validade de suas ações de fala, ou constatam dissensos, os quais eles, de comum acordo,
levarão em conta no decorrer da ação...”15.

A noção de racionalidade comunicativa pretende, com isso, explicitar a relação social


entre pelo menos dois atores que, através da argumentação, chegam a uma posição

de consenso. Nesse processo, faz-se possível ultrapassar o nível da cotidianidade, onde impera
o consenso ingênuo – não problematizado, mas a qualquer hora problematizável (esfera da
socialidade fática) – e atingir o consenso crítico, fundamentado em razões (esfera discursiva),
âmbito da ação comunicativa, tudo isso a partir de um processo mútuo de compreensão,
mediado lingüisticamente. Por conseguinte, o elemento que estrutura esse tal processo mútuo
de compreensão é a intersubjetividade daqueles que participam da relação discursiva, ausente
qualquer postura manipuladora.

José Eduardo Farias destaca, de forma bastante interessante, que: “(...) só se produz
consenso a partir do dissenso, ao mesmo tempo em que todo consenso é apenas o primeiro
passo para um dissenso futuro (...)”, ou seja, o dissenso é o ponto de partida para a conquista
do consenso.16

Para Habermas, a comunicação é a busca incessante de um entendimento entre as


pessoas. Quer dizer, a comunicação consiste no instrumento para a realização do consenso,
sendo certo que este é, com efeito, inatingível. O que se precisa preservar, segundo o estudo
da teoria habermasiana, é, justamente, o dissenso, a heterogeneidade. Importa perceber, nesse
contexto, que o consenso, conforme propõe Habermas, não é algo que nega a
heterogeneidade, a diferença, a individualidade dos sujeitos, mas, por outro lado, um
mecanismo capaz de proporcionar uma unidade da razão na multiciplicidade de vozes. O
consenso não é um acontecimento estático, mas dinâmico, provisório e político.

15
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. 2a ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003,
Vol. I, p. 36.
16
FARIAS, José Eduardo. Poder e Legitimidade: uma introdução à política do direito. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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6. O risco do dissenso – uma visão Habermasiana

O risco do dissenso estará sempre presente em uma teoria comunicativa, pois é


inerente ao processo de diálogo. O mecanismo de entendimento sempre levará a esse risco
que é, na verdade, o que permite ao ouvinte, no diálogo, “poder dizer não”!

Indiscutivelmente, todo processo de interação pressupõe o risco do dissenso,


especialmente, quando se trata, como no caso, de um processo de interação fulcrado na
comunicação através de mecanismos de entendimento. Ao se tentar acordar, o ouvinte é,

necessariamente, obrigado a tomar posição de concordância ou de discordância. E aí


reside o suposto risco, pois, se a sociedade for por demais complexa e houver um grande
índice de discordância, como se garantirá a integração social e como se coordenará ações
conjuntas?

Este problema não se resolve, concretamente, na teoria de Habermas, mas não me


parece que, simplesmente por isto, não mereça intenso destaque e reflexão.

De fato, é complexo imaginar um entendimento consensual mútuo em uma sociedade


altamente pluralista. Entretanto, se seguíssemos à risca a lógica da teoria de Habermas,
poderíamos resolver tal problemática, a partir dela própria, o que significa dizer, chegando-se
ao consenso a partir do dissenso.

O consenso é, para Habermas, o efetivo resultado do diálogo e, ao final do processo de


comunicação, para ele, as pessoas, de fato, chegam a um acordo - não imposto - refletido e
consciente de que, mesmo em se fazendo concessões, o que do entendimento resulta é o que
há de melhor e de mais viável para aquela sociedade específica. Ao se pensar desta forma,
com efeito, é possível, mesmo havendo risco de dissenso, alcançar-se, através dele, o
consenso final.

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María Fernanda Salcedo Repolês, mais uma vez, destaca de forma interessante a
questão do risco do dissenso em Habermas, bem como a dificuldade de aplicar a sua teoria
nas sociedades modernas, valendo destacar o seguinte trecho de sua obra17:

“...A integração social ainda é possível sobre o pano de fundo comum que
faz possível a comunicação entre falante e ouvinte, e que é, inclusive,
pressuposto para o desacordo entre ambos. O mundo da vida é o horizonte
presente em toda interação entre atores e, ao mesmo tempo, a fonte a partir da
qual os atores podem elaborar suas interpretações e atos de fala. No mundo da
vida está presente um saber não problematizado que é visto pelos atores como
uma certeza óbvia e imediata. Quando tematizado, ele deixa de ser mundo da
vida para entrar em contato com as pretensões de validade, mas é justamente
por meio

desse processo de problematização que o mundo da vida se reproduz,


enquanto pano de fundo, e forma um complexo de ‘tradições entrelaçadas, de
ordens legítimas e de identidades pessoas’. Em sociedades pós-industriais, o
mundo da vida opõe problemas para a integração social. Em sociedades
arcaicas, ele se apresentava suficiente para garantir a integração social,
porque era possível estabilizar expectativas de comportamento e criar o
complexo cristalizado de convicções, crenças e tradições por meio da
formação de instituições fortes, regidas por uma autoridade
inquestionável, que ritualizava os processos de entendimento de forma a
limitar a comunicação, protegendo aquele complexo da instabilidade
provocada pela problematização dos conteúdos...O direito ainda está ligado
e incorporado nos conteúdos éticos e religiosos não questionáveis, os quais
dão a unidade e identidade da sociedade. Mas no processo da modernidade,
o risco de dissenso é incorporado à própria dimensão da validade. A
diferenciação funcional característica desse processo, amplia os papéis
sociais, os interesses, as concepções de vida boa, portanto, amplia os
espaços de opção...”. (grifou-se)

O fato de a teoria de Habermas ter como pano de fundo a ética do discurso, ou seja,
estar preocupada com questões de ordem moral, faz com que se torne ainda mais complicado

17
REPOLÊS, María Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p.68.

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conciliar a perspectiva de uma sociedade multicultural e a possibilidade de um consenso


universal, especialmente, pelo fato de que não há mais moral universal, nem conceitos
universalmente aplicáveis.

Nota-se da análise da teoria de Habermas e de suas críticas, que o risco do dissenso


está, ao que me parece, justamente, no suposto perigo de não se poder alcançar, jamais, o
consenso e, a partir daí, instaurar-se a imposição, o autoritarismo, a instabilidade e a
insegurança.

Habermas trata o risco do dissenso, na obra objeto mais específico deste estudo, da
seguinte forma, literis18:

“A motivação racional para o acordo, que se apóia sobre “poder dizer


não”, tem certamente a vantagem de uma estabilização não-violenta de
expectativas de comportamento. Todavia, o alto risco de dissenso,
alimentado a cada passo através de experiências, portanto através de
contingências repletas de surpresas, tornaria a integração social através
do uso da linguagem orientado pelo entendimento inteiramente
implausível, se o agir comunicativo não estivesse embutido em contextos
do mundo da vida, os quais fornecem apoio através de um maciço pano
de fundo consensual...o mundo da vida nos envolve no modo de uma certeza
imediata, a partir da qual nós vivemos e falamos diretamente...o mundo da
vida, do qual as instituições são uma parte, manifesta-se como um complexo
de tradições entrelaçadas, de ordens legítimas e de identidades pessoais – tudo
reproduzido pelo agir comunicativo...”. (grifou-se)

Não se pode tratar de consenso e dissenso sem tratar do conceito de “mundo da vida”,
muito presente na teoria de Habermas. Ele é importante para reconstruir as condições da
integração social. Equivale à esfera cotidiana representada pelos elementos da cultura, da
sociedade, da personalidade etc., representando, na verdade, as nossas certezas prévias, as
nossas convicções pessoais, construídas no decorrer da vida, bem como os conceitos prévios.

18
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. 2a ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003,
Vol. I, págs. 40 e 41.

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Enfim, tem um caráter pré-predicativo, pré-categorial e consubstancia a experiência de mundo


de cada um. É a representação das formas de vida na sociedade, das tradições.

Por outro lado, tendo em vista a diversidade presente na sociedade, qualquer busca de
‘consenso’ possibilita um maior dissenso, por isso o direito nem sempre refletirá um acordo
de todos, mas sim uma inclusão de identidades passíveis de serem alteradas em um momento
posterior. É o dissenso e sua natural aceitação e prevalência que permite a vigência da
democracia e a ausência do autoritarismo e da imposição.

É, justamente, a possibilidade de dissenso, de atitudes contrárias às expectativas


normativas institucionalizadas, que nos faz considerar normal o comportamento divergente,
um comportamento previsto pelo próprio direito e razão de ser deste, já que, se não houvesse
desrespeito às normas, estas seriam desnecessárias. O não direito é a outra face do direito,
sendo, ambos, estabelecidos pelo sistema jurídico.19

A tensão imanente entre facticidade e validade consiste, também neste aspecto - ligado
ao consenso - na tensão entre aceitabilidade fática e aceitabilidade racional. A aceitabilidade
importa que – na situação ideal de discurso – ao pressupor igualdade e liberdade dos
participantes, a norma será observada por qualquer sujeito que se oriente na busca do
consenso racional.

7. Uma breve visão crítica sobre o risco do dissenso, em Habermas, a partir da Teoria
dos Sistemas, de Niklas Luhmann

Em linhas sintéticas e gerais, a teoria dos sistemas sociais, de Luhmann, é a teoria que
tem como objeto de estudo sistemas autopoiéticos sociais20.

O ponto de partida de Luhmann é a teoria do sistema social mais abrangente, isto é,


aquele que inclui todos os outros sistemas presentes na sociedade, como uma rede geral, v.g.,

19
TORRES, Ana Paula Repolês. A questão da obediência às normas na perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann. Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 03 de julho de 2005.
20
Autopoiesis significa que um sistema complexo reproduz os seus elementos e as suas estruturas dentro de um processo
operacionalmente fechado com ajuda dos seus próprios elementos. Autopoiesis refere-se à autonomia.

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o Direito seria um subsistema, ou seja, seria um sistema parcial de um sistema total, maior,
global, no caso, a sociedade.

O Direito seria um subsistema que não interviria, mas interagiria com o sistema global
e com os demais subsistemas existentes.

Como o objeto deste estudo não é, especificamente, a teoria dos sistemas, basta, para
complementar a breve definição acima destacada – necssárias, apenas, como ponto de partida
para o que se propõe tratar – transcrever trecho de Francisco de Castilho Prates, que
contextualiza muito bem dita teoria, in verbis:21

“ (...) A Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, ao abandonar essa pretensão


de neutralidade do observador e admitir que todo conhecimento

é relativo, limitado, torna-se um instrumental adequado para trabalhar a


sociedade moderna, uma sociedade altamente complexa na qual várias são as
possibilidades de agir e na qual não há mais um ponto preferencial de
observação dessa mesma sociedade, uma sociedade constituída de subsistemas
sociais não mais atrelados a qualquer fundamento externo, mas sim
subsistemas que produzem eles próprios os elementos de que necessitam, ou
seja, subsistemas autopoiéticos. Ao admitir que os sistemas sociais são
distinções que se produzem por si próprias, sem a necessidade de algo externo,
a mencionada teoria admite que a sociedade moderna é uma sociedade
constituída por vários paradoxos, paradoxos estes que nada mais são do que
específicas distinções sem qualquer síntese, sem nada acima dos mesmos
capaz de determiná-los ou ocultá-los (...)”.

Pois bem, pontuadas tais questões, vale destacar, de plano, uma das importantes distinções
entre a teoria de Habermas e a de Luhmann, que diz respeito à moralidade.

Na teoria do discurso de Habermas, a autonomia do Direito fundamenta-se


moralmente, distinguindo-se, pois, de forma radical, da autopoiese proposta por Luhmann.

21
PRATES, Francisco de Castilho. O Estado Democrático de Direito em uma Sociedade Complexa e de Risco, disponível em
http://www.mundojuridico.adv.br/html/artigos/documentos/texto714.htm, em 15/08/2005.

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Por conseguinte, o direito não é concebido, em Habermas, como sistema funcional,


autônomo, que se auto-regula e se auto-legitima; ao revés, ele precisa de ser fundamentado (o
que já foi tratado acima, em linhas gerais) por um procedimento racional, o que não significa,
de forma alguma, que haja confusão nas esferas moral e jurídica, mas que o direito é meio de
integração social, dependente de normas jurídicas que se tornem legítimas pela aceitação
racional dos indivíduos.

Para Habermas, ao contrário de Luhmann, o Direito não se apresenta como um sistema


entre outros sistemas funcionais, o que traz como conseqüência prática irremediável, uma
sobrecarga do Direito em uma sociedade complexa, como a moderna.

Na perspectiva habermasiana, a construção do consenso se dá a partir de


procedimentos que tendem à normatização universal, o que não significa que Habermas
ignore o pluralismo.

O que se nota da crítica à Habermas é que - enquanto ele se utiliza dos conteúdos
valorativos para fundamentar o consenso que, a partir do diálogo, se perfaz - a sua crítica

assegura que tais conteúdos valorativos, por não serem universais, na realidade, implicam na
existência de um dissenso, em termos de conteúdo, essencialmente.

Habermas vê o processo de entendimento sob a perspectiva da produção de um


acordo, sempre, enfatizando que o entendimento só logra êxito quando resulta em consenso,
não importando o conteúdo do diálogo ou do consenso, mas sim as condições formais de sua
realização efetiva.

Entretanto, a sua crítica se dá porque a interação, na verdade, nas sociedades


complexas, em que a diversidade de valores e interesses é incontrolável, é eventual, não sendo
a regra. A comunicação leva tanto ao entendimento quanto ao desentendimento, ou seja, ao
consenso e ao dissenso.

Ocorre que, a meu sentir, o que é preciso distinguir é o fato de que Habermas absorve
o pluralismo como algo existente, mas que não obstaculiza o consenso e o entendimento. A

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partir da reprodução do dissenso dá-se o consenso. Para ele, justamente, as diferenças e a


autonomia das esferas plurais de comunicação é que permitem a integração social, a partir do
diálogo e do respeito à diferença. Para Luhmann, o Direito não pode ter esse papel. A política
não interfere no Direito e vice-versa. O Direito é um subsistema. A moral, da mesma forma, é
neutralizada, portanto, não há esta comunicação entre os sistemas que permita a existência de
um consenso final.

Habermas não teme o dissenso, ao contrário, o valora, uma vez que o processo de
entendimento em curso, inevitavelmente, permite a sua existência. O dissenso, no processo de
diálogo, de comunicação, deve ser aflorado, jamais restringido, tudo com a finalidade de
permitir a abertura na sociedade e o absoluto respeito e reconhecimento à diferença.22

Pelo que se depreende das leituras, parece-me que Luhmann até admitiria a existência
de um consenso, todavia, o admitiria apenas no que pertine aos procedimentos para a
legitimação do Direito, não quanto ao seu conteúdo. O Professor Marcelo Neves destaca de
forma peculiar tal entendimento, in verbis23:

“ (...) cabe observar que os procedimentos do estado de direito, não servem,


geralmente, à construção do consenso jurídico-político em torno de valores e
interesses. É o consenso em relação aos procedimentos que possibilita a
convivência com o dissenso político e jurídico sobre valores e interesses do
Estado Democrático de Direito, tornando-a suportável na sociedade
complexa de hoje. Isso porque é no âmbito deste que se pode construir e
desenvolver uma esfera pública pluralista constitucionalmente estruturada,
cujos procedimentos estão abertos aos mais diferentes modos de agir e
vivenciar políticos e admitir até mesmo os argumentos e as opiniões
minoritárias como probabilidades de transformação de conteúdo da ordem

22
O “permanecer aberto” significa predisposição ao risco do dissenso. (BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco.
Constituição, Política e Judiciário em uma Sociedade de Risco Permanente: um ensaio a partir da Teoria dos Sistemas,
disponível em http://metacritica.ulusofona.pt/pdf, acesso em 03 de julho de 2005.
23
NEVES, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o Estado Democrático de Direito a partir de além de Habermas. In: SOUZA,
Jessé (org.): Democracia Hoje: Novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília, Editora Universidade de
Brasília (UnB), 2001, p. 143.

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jurídico-política, desde que respeitadas e mantidas as regras procedimentais do


jogo (...)”. (grifou-se)

Seria, justamente, ao fazer a intermediação entre consenso quanto aos procedimentos e


dissenso quanto ao conteúdo que o estado democrático viabilizaria o respeito às diferenças na
sociedade contemporânea.

Poderíamos dizer que Luhmann atenta mais para o risco, para a implausibilidade da
competência comunicativa dos cidadãos, ressaltando sempre que quanto maior a participação,
maior a possibilidade do dissenso, sendo totalmente improvável a comunicação, ainda mais
em uma sociedade pluralista como a atual, ao passo que Habermas ainda deposita sua crença
na força emancipatória da razão, na racionalidade comunicativa, como uma via para se
alcançar um direito mais justo.

Cabe lembrar que o discurso da participação tem uma face perversa, por ser útil à
política, já que ao mesmo tempo em que se prega uma consideração da igualdade de todos, na
medida em que todos podem influir, em tese, nas decisões políticas, o papel do Estado é
minimizado ao atribuir aos cidadãos a responsabilidade pelas questões que sejam de seus
interesses.

O que é revelado pela Teoria dos Sistemas e, de certa forma, aceito por Habermas, na
medida em que o mesmo afirma ser o projeto de inclusão da modernidade um processo de
aprendizagem, é que a exclusão é o outro lado da inclusão, sendo, portanto, impossível a
inclusão de todos, ao mesmo tempo, em todos os sistemas sociais.

Com Habermas, poderíamos dizer que a democracia consiste em possibilitar o


exercício das liberdades comunicativas, mas nunca desrespeitando as liberdades subjetivas, ou
seja, a igualdade dos cidadãos deve ser buscada respeitando-se a diferença.

Tendo em vista a impossibilidade de impor uma auto-legislação, uma maior


participação popular que seria desejável para se aumentar a eficácia social do direito,
podemos dizer que a institucionalização - que é característica do direito moderno - baseia-se
numa presunção de um consenso que é improvável de ser alcançado na sociedade moderna,

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funcionado como um mecanismo necessário para se garantir a liberdade individual de cada


um.

O que a perspectiva sociológica luhmanniana não adota é uma postura normativa que
pretenda que o direito seja sempre legítimo, nem mesmo Habermas entende que isso

seja possível, pois a liberdade comunicativa não pode ser imposta, já que se trata de um
contra-senso a imposição de um autonomia.

A tese de que a comunicação se realiza com o propósito da realização do consenso


fundamentado em razões adquire um estatuto de legitimidade que é negado para outros jogos
da comunicação. Niklas Luhmann argúi em favor do caráter empiricamente falso dessa tese
afirmando com propriedade que “pode-se comunicar também para se marcar o dissenso,
pode-se querer o conflito, e não existe nenhuma razão concludente para se tomar a busca de
consenso como mais racional do que a busca do dissenso“. Ele acentua ainda que, embora a
comunicação não seja possível sem algum consenso, também não o é sem algum dissenso.

A meu ver, a principal crítica que se faz à teoria de Habermas é, pois, a sua insistência
quanto à pretensão da universalidade. Habermas insiste em um universalismo consensual que,
pela análise crítica, dificultaria uma consideração adequada da questão do pluralismo em
sociedades complexas. Ademais, a idéia de aceitabilidade não responde, no entender dos
críticos, ao problema do dissenso estrutural da esfera pública nas condições complexas da
sociedade mundial, globalizada e complexa24.

8. Considerações Finais

O “risco do dissenso” mereceu destaque neste estudo porque o considerei como sendo
o “paradoxo” da teoria habermasiana.

Embora a teoria habermasiana seja muito bem construída e, diante da sua lógica, até
mesmo possível de ser aplicada, acho, na verdade, que o seu entrave, no nosso contexto
social, é justamente o “risco do dissenso”.
24
Vide nota 23, p. 125.

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Aliás, o dissenso é uma realidade muito presente em nossa sociedade, cada vez mais
corrompida e desigual. Falar em consenso, em espaço público e em democracia participativa,
especialmente no Brasil, é paradoxal.

O individualismo preponderante, a terrível desigualdade social e a busca da satisfação


de interesses particularizados obstaculizam o consenso. Impossível falar-se em participação
efetiva de todos os cidadãos nas tomadas de decisões da sociedade, até mesmo porque, além
da desigualdade, os cidadãos não teriam capacidade intelectual e cultural, por falta de preparo,
de levar debates à arena pública em busca de um consenso.

Habermas trabalha com outros contextos sociais e é preciso levar isto em conta.
Preocupa-se e dedica-se, de forma bastante considerável e intensa, à questão da necessidade
de se efetivar a integração social, analisando-a a partir de um contexto atual, de um mundo
globalizado, no qual, integrar-se não é nada simples. A sua teoria do discurso, o agir
comunicativo e todos os pontos por ele estudados, a meu ver, destinam-se a possibilitar,
efetivamente, formas de integração social.

As críticas feitas à teoria de Habermas, em geral, refutam a sua forma de tratar o


consenso em sociedades pluralistas, bem como indagam que o consenso, inevitavelmente,
acaba por representar a hegemonia de um grupo mais forte sobre outro mais fraco, mas, na
verdade, não me parece assim, pois Habermas deixa claro que o consenso deve se dar de
forma absolutamente igualitária, ou seja, no espaço público, em que todos possam freqüentar
em condições iguais de debate.

Com efeito, é preciso contextualizar a teoria e verificar se, de fato, as bases para se
alcançar o consenso são possíveis na sociedade em que se pretende aplicá-la, a fim de que a
idéia, que tem cunho democrático, não apresente um resultado anti-democrático, autoritário e
baseado em sobreposição de interesses. O objetivo da teoria baseada no consenso é a
conciliação de interesses, mediante concessões mútuas daqueles que participam do processo
de diálogo, a fim de estabelecer as regras sociais.

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É fato irrefutável que a sociedade moderna é pluralista e que, por conseguinte, não é
mais possível se pensar em conceitos de aplicação universal. Todavia, não se pode confundir
isto com o fato de o consenso também não ser possível. O que Habermas propõe é,
justamente, sem ignorar o pluralismo, apostar no consenso como forma de integração social e
de democratização do Direito, legitimando-o e validando-o na prática cotidiana.

Até porque, o que é o consenso senão uma opinião universal, resultante de opiniões
particularizadas? Parece haver um paradoxo, mas na verdade, não há. Até mesmo porque, o
consenso é aplicado em um contexto multicultural, mas isto não significa, necessariamente,
que este contexto seja universal. É universal no sentido de que é alcançável dentro de um
grupo determinado e específico de pessoas. Portanto, este grupo determinado e específico de
pessoas, pode, perfeitamente, atingir o consenso, inclusive porque as opiniões, muitas vezes,
são convergentes.

O que se pôde depreender do estudo, em apertada síntese e em linhas gerais, é que


Habermas, em sua teoria, trabalha o risco do dissenso como algo positivo e inerente à
integração social, bem como necessário e imprescindível ao processo democrático. Por outro
lado, a crítica que se lhe faz decorre do fato de que nas atuais sociedades, imensamente
complexas, seria impossível obter-se consensos universais, uma vez que os interesses são
múltiplos e o dissenso predomina.

No entanto, o que Habermas propõe é que, mesmo nas sociedades plurais, é possível
alcançar o consenso, construindo-o a partir do incansável diálogo entre os cidadãos, até que se
chegue a um denominador comum para as ações sociais. Parece-me que as diferenças, o
multiculturalismo e a ausência de conceitos universais, não impedem, em absoluto, a
possibilidade de se consensualizar sobre temas que, afinal de contas, serão resultado de um
interesse comum.

Os interesses individuais, mesmo nas sociedades complexas, não anulam os interesses


comuns, mas com eles devem interagir. Sempre, em qualquer tipo de sociedade, haverá
interesses pessoais e interesses públicos e é, para a concretização e homogeneização destes
últimos, que o consenso é necessário.

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MUNDO JURÍDICO
Artigo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista

O risco do dissenso surge, na teoria habermasiana, como um mecanismo de


fundamental importância para a manutenção da democracia, por aceitar as diferenças e a
divergências, consensualizando, a partir delas, uma forma, não violenta nem impositiva, de se
resolver qualquer problemática pelo diálogo.

O desacordo só existe nos sistemas democráticos, pois, apenas neles, é possível ouvir a
voz dos cidadãos, de forma efetiva, sendo, portanto, a meu sentir, altamente positiva a
presença do risco do dissenso na sociedade.

Considerei interessante terminar este trabalho, transcrevendo um trecho da obra de


Goergen, que não tem ligação direta com o tema do risco do dissenso, mas nos faz refletir
sobre a importância da teoria habermasiana, literis25:

“Se o modelo dialógico/comunicativo de Habermas pode ser


qualificado de romântico diante de um mundo cada vez mais cindido,
não se pode desprezar sua proposta por ser talvez o único caminho
que sustenta a esperança da grande maioria da humanidade num
mundo melhor (GOERGEN, 1996, p.21-22)”. (grifou-se)

A teoria de Habermas, ainda que aparentemente utópica, em se efetivando, permitiria


atingir-se o que, ao final, todos desejam: a paz social, a igualdade, a liberdade e a justiça.
Penso que, quando analisamos as obras de muitos dos teóricos que estudamos, não o fazemos
para aplicarmos à risca o que propõem, mas, sem dúvida, ao menos, para refletirmos e para
pensarmos em formas alternativas de se atingir o que propõem.

Por derradeiro, vale destacar trecho da obra de Habermas, extraído do verbete de


Paulo Ghiraldelli Jr., denominado Escola de Frankfurt e Pragmatismo – em Espelhos, em que
o Autor destaca a essência da ideologia da teoria de Habermas, fazendo-o da seguinte forma26:
“ (...) Isso nos faz pensar, enfatiza Habermas, em criar um mundo onde
não exista a violência, não exista o poder interferindo o discurso, a

25
GOERGEN, Pedro L. A crítica da modernidade e educação. Pro-Posições, Campinas, v.7, n.2 [20], jul., 1996, in
“Habermas e a Teoria do Conhecimento”, por Arilene Maria Soares de Medeiros e Maria Auxiliadora de Resende Braga
Marques, disponível em http://www.bibli.fae.unicamp.br/etd/art01v5n1.pdf, acesso em 14/07/2005.
26
Paulo Ghiraldelli Jr. - Escola de Frankfurt e Pragmatismo – em Espelhos, disponível em
http://www.ghiraldelli.pro.br/Verbete.htm, em 14/08/2005.

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Artigo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista

ideologia e todas as diferenças que impedem os usuários da linguagem de


se colocarem horizontalmente uns em relação aos outros.”. (grifou-se)

9. Referências Bibliográficas

BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. Interpretação jurídica no marco do Estado


Democrático de Direito: um estudo a partir do sistema de controle difuso de
constitucionalidade no Brasil. Disponível em http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp,
acesso em 05/07/2005.

CITTADINO, Gisele. Pluralismo, Direito e Justiça Distributiva: elementos da filosofia


constitucional contemporânea. 3a ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.

FARIAS, José Eduardo. Poder e Legitimidade: uma introdução à política do direito. São
Paulo: Perspectiva, 1978.

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia entre facticidade e validade. 2a ed. Rio de


Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

MEDEIROS, Arilene Maria Soares de, e MARQUES, Maria Auxiliadora de Resende Braga.
Habermas e a Teoria do Conhecimento. Disponível em
http://www.bibli.fae.unicamp.br/etd/art01v5n1.pdf, acesso em 14/07/2005

NEVES, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o Estado Democrático de Direito a partir de


além de Habermas. In: SOUZA, Jessé (org.): Democracia Hoje: Novos desafios para a teoria
democrática contemporânea. Brasília, Editora Universidade de Brasília (UnB), 2001, págs.
111 a 164.

PRATES, Francisco de Castilho. O Estado Democrático de Direito em uma Sociedade Complexa e de Risco.
Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso realizado em 15/08/2005.

RAWLS, John. Justiça e Democracia. 1a ed. 2a tir. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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Artigo de Bárbara Gomes Lupetti Baptista

REPOLÊS, María Fernanda Salcedo. Habermas e a Desobediência Civil. Belo Horizonte:


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TORRES, Ana Paula Repolês. A questão da obediência às normas na perspectiva da Teoria


dos Sistemas de Niklas Luhmann. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso
em 03 de julho de 2005.

SEMPRINI, Andrea. Multiculturalismo. Tradução Laureano Pelegrin. Bauru, São Paulo:


EDUSC, 1999.

Rio de Janeiro, setembro de 2005.

COMO CITAR ESTE ARTIGO:


BAPTISTA, Bárbara Gomes Lupetti. O Risco do Dissenso segundo Jürgen

Habermas. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br. Acesso em xx


de xxxxxxxx de xxxx.
(substituir x por dados da data de acesso ao site)

Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 10.02.2006

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