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Franz Kafka
Em um de seus ensaios mais instigantes (Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1975), Deleuze e Guattari elegeram Kafka como objeto de análise,
assim como fizeram com alguns (poucos) outros artistas-pensadores, sobretudo, por
ele ter insistido (e gostado de ficar) no lado de fora de seus escritos, da cultura de seu
tempo, das coisas mais valiosas que aquela, na ocasião, pôde lhe oferecer. Mas também
porque (e sobretudo) ele escreveu para fora, em direção oposta à do ofício e da
oficialidade. Em uma negação dupla – de si mesma e do próprio mundo a que se refere
– a escritura kafkiana simula estar fugindo, mas o que busca, para valer, é aniquilar o
que a persegue, por toda parte, como uma sombra malvada.
Todavia, é preciso estar atento, pois, por força das circunstâncias, Kafka se encolhe
como uma sanfona, soltando sons apenas aparentemente desarmônicos. Uma
rostidade impregnante, uma gestualidade intrusiva e uma condição minoritária
atravessam sua biografia. Tudo ali é uma falsa timidez. No entrelaçamento entre o que
existe e o que se diz, a alusão se transforma num magma de referências. E o que é (ou
era) rígido se desfaz ou desfia, pulveriza, vira névoa: o pai severo, a mãe possessiva, a
babá repressora e a irmã pegajosa se misturam em uma coelheira assignificante.
Cartas são escritas e cuidadosamente guardadas em gavetas para que ninguém as leia.
O que conta é o esquecimento do vínculo, a delação paterna. De Kooning e
Rauschenberg: a imagem do Pai é esboçada tão somente para ser apagada a lentos
golpes de borracha. Se o circuito é invadido e um forasteiro as lê – mesmo que em voz
baixa – elas saltam pelos ares, se enchem de ira, espalham cacos de não sentido.
Simultaneamente, risadas secretas abafam a morrinha do estigma acumulado. A
solidão ganha fôlegos que se distendem ao infinito e o páthos é uma masturbação
jorrante.
Importa aqui abrir espaço para o escritor, assim como para o sujeito, para a
coletividade, para os triângulos edipianos que se perfilam à sua revelia, quando as
formas se quebram e o estado normal dá lugar a uma percepção expandida do
cotidiano. O real escorre, então, entre os dedos e se deixa absorver como uma
possibilidade hipnótica de não ser. Importa aqui abrir uma lacuna que exiba uma
estranheza mais ampla do que permitem os rogos paternos e o abutre que adentra a
garganta na hora do grito. Importa aqui agarrar o mundo e rir dos homens, expressar
territórios que se desconstruam por si sós. Importam aqui, enfim, o labirinto e o não
retorno.
Obs. Este ensaio foi originalmente publicado nas revistas Zunái em 2015 e Mallarargens em 2019.