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KAFKA E A LITERATURA DA ESTRANHEZA

Jorge Lucio de Campos

"O todo parece, ao mesmo tempo, não ter sentido


e ser completo. Longe, longe de ti se desdobra a
história mundial, a história mundial da tua alma"

Franz Kafka

Em um de seus ensaios mais instigantes (Kafka: pour une littérature mineure. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1975), Deleuze e Guattari elegeram Kafka como objeto de análise,
assim como fizeram com alguns (poucos) outros artistas-pensadores, sobretudo, por
ele ter insistido (e gostado de ficar) no lado de fora de seus escritos, da cultura de seu
tempo, das coisas mais valiosas que aquela, na ocasião, pôde lhe oferecer. Mas também
porque (e sobretudo) ele escreveu para fora, em direção oposta à do ofício e da
oficialidade. Em uma negação dupla – de si mesma e do próprio mundo a que se refere
– a escritura kafkiana simula estar fugindo, mas o que busca, para valer, é aniquilar o
que a persegue, por toda parte, como uma sombra malvada.

As cenas, os personagens e os detalhes se projetam para além da trama que costuram,


a partir de suas diferenças originárias. Perfuram a brancura do papel e se esparramam,
até se embaralharem completamente uns com os outros, uns nos outros, com os seus
pressupostos e acidentes, intenções e desculpas, num tempo-espaço mais do que
judeu, alemão ou europeu. O corpus literário é aqui, assumidamente, um rizoma, uma
grande toca discursiva, excêntrica e sinuosa, um entrelaçamento entre vida e vocábulo,
memória e página, angústia e mancha gráfica.

Todavia, é preciso estar atento, pois, por força das circunstâncias, Kafka se encolhe
como uma sanfona, soltando sons apenas aparentemente desarmônicos. Uma
rostidade impregnante, uma gestualidade intrusiva e uma condição minoritária
atravessam sua biografia. Tudo ali é uma falsa timidez. No entrelaçamento entre o que
existe e o que se diz, a alusão se transforma num magma de referências. E o que é (ou
era) rígido se desfaz ou desfia, pulveriza, vira névoa: o pai severo, a mãe possessiva, a
babá repressora e a irmã pegajosa se misturam em uma coelheira assignificante.

Cartas são escritas e cuidadosamente guardadas em gavetas para que ninguém as leia.
O que conta é o esquecimento do vínculo, a delação paterna. De Kooning e
Rauschenberg: a imagem do Pai é esboçada tão somente para ser apagada a lentos
golpes de borracha. Se o circuito é invadido e um forasteiro as lê – mesmo que em voz
baixa – elas saltam pelos ares, se enchem de ira, espalham cacos de não sentido.
Simultaneamente, risadas secretas abafam a morrinha do estigma acumulado. A
solidão ganha fôlegos que se distendem ao infinito e o páthos é uma masturbação
jorrante.

Em Kafka, as máscaras são imprescindíveis: a ratazana, o macaco e o texugo são


amizades definidoras. Nada de choro, sendo tudo, no fundo, pilhéria e gargalhada. Ao
escolherem-no, Deleuze e Guattari rejeitaram, de um só golpe, a versão psicanalítica
do desejo e as lógicas da representação e da hermenêutica. Ao enfatizar a natureza
política de seus escritos, desdenharam deles como enunciados de afirmação. O que
sempre esteve em jogo ali foi "agarrar o mundo de outro modo", com aparatos tortos
de expressão e decodificação. O que obcecou o tcheco, até o último dia de vida, foram
as linhas de fuga do poder – ou antes aquelas a ele avessas – presentes no socius, mas
sob a sua pele, cravadas na carne das regras simbólicas.

Da infância reclusa ao ambiente opaco de trabalho, o estigma da estranheza advém do


contexto em que Kafka se inseriu. Em suas mãos, a literatura se agiganta, embora se
torne sempre "menor" que ela mesma. Sem chance, na prática, de efetivá-lo, concebe
um meio em que a alienação de seu povo e os seus conflitos psicológicos – a condição
de singularidade que o acompanhou desde o início, por exemplo – podem, de alguma
forma, ser resolvidos. Para Deleuze e Guattari, ela tem uma função social e política que,
antes favorecendo as dicções coletivas, se vale do jargão pessoal como um coeficiente
de dissolução do que é.

Kafka padece da impossibilidade de escrever, embora nunca pare de fazê-lo, de


remendar o texto central com garatujas periféricas, notas de pé de página invisíveis,
assinaladas ao léu. Cada traço no branco do papel é um curativo na língua crua que não
deixa de ser o que lembra o que foi percebido, pensado, mas não enunciado. Só a partir
daí, as suas parábolas se tornam legíveis e aceitáveis. Os seus fragmentos se inscrevem
no fora do que é dito pelas máscaras, na miséria do que é vivido para não ser dito. Kafka,
antes de Gregor, é um besouro grudado no céu da literatura. Joseph K., antes de
Josefina, é uma máquina de guerra que expele afetos estreitos. Josefina, antes do
artista do trapézio, é o desejo encarnado numa pirueta.

Importa aqui abrir espaço para o escritor, assim como para o sujeito, para a
coletividade, para os triângulos edipianos que se perfilam à sua revelia, quando as
formas se quebram e o estado normal dá lugar a uma percepção expandida do
cotidiano. O real escorre, então, entre os dedos e se deixa absorver como uma
possibilidade hipnótica de não ser. Importa aqui abrir uma lacuna que exiba uma
estranheza mais ampla do que permitem os rogos paternos e o abutre que adentra a
garganta na hora do grito. Importa aqui agarrar o mundo e rir dos homens, expressar
territórios que se desconstruam por si sós. Importam aqui, enfim, o labirinto e o não
retorno.

Obs. Este ensaio foi originalmente publicado nas revistas Zunái em 2015 e Mallarargens em 2019.

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