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Estudos Jurídicos

38(3):38-49 setembro-dezembro 2005


© 2005 by Unisinos

A tese central de Jürgen Habermas em Facticidade e validade


Jürgen Habermas’ central thesis in Between Facts and Norms

Emílio Peluso Neder Meyer1

Resumo: O presente ensaio aborda a tese central desenvolvida por Jürgen Habermas em sua
obra Facticidade e validade, a qual consiste numa abordagem sobre a tensão interna entre demo-
cracia e direito e que vem sendo, ao longo da história da ciência política e da ciência do Direito,
posta de lado em favor de uma ou de outra perspectiva unilateral.

Palavras-chave: Jürgen Habermas, facticidade, validez, democracia, Direito, tensão.

Abstract: This article discusses the central thesis developed by Jürgen Habermas in his work,
Between Facts and Norms, which approaches the inner tension between democracy and law. This
1
Professor de Hermenêutica e tension has been, throughout the history of political science and the history of law, set aside in
Teoria da Argumentação Jurídica da favor of some unilateral perspective.
PUCMinas. Mestrando em Direito
Constitucional pela Faculdade de
Direito da UFMG. Key words: Jürgen Habermas, facts, norms, democracy, law, tension.

Introdução do moderno. A segunda é que não se trata de um direito


em geral, mas do direito presente na figura histórica dos
A tese central da obra Faktizität und Geltung: Beiträge zur Estados Democráticos de Direito, um direito que obtém
Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtstaats2 (Fac- legitimidade por intermédio da própria legalidade. Em
ticidade e validade: contribuições para uma teoria discursiva terceiro, e por fim, não há que se confundir uma gênese lógica
do Direito e do Estado Democrático de Direito)3 pode ser do direito com uma gênese histórica. Uma gênese histórica
localizada nos Capítulos III e IV da mesma. Consiste na passaria pela descrição do poder soberano que vem pôr
tensão interna entre democracia e direito e que vem sendo, fim às guerras religiosas e que, posteriormente, submete-
ao longo da história da ciência política e da ciência do Direi- se aos limites impostos pelo movimento liberal e pelos
to, posta de lado em favor de uma ou de outra perspectiva direitos de propriedade; em seguida, são acrescentados os
unilateral. direitos sociais, como um compromisso entre capitalismo e
Redondo (Habermas, 1998, p. 11) salienta que três democracia: o resultado é um sistema jurídico autopoiético
advertências devem estar subjacentes a qualquer inter- que “juridifica” suas próprias condições de legitimidade.
pretação que se tente fazer desses capítulos. A primeira é Numa gênese lógica, trata-se da reconstrução conceitual
que Habermas não se refere a um “sistema de direitos” da idealidade que articula a realidade do direito, reduzin-
como ele deveria ser, mas ao sistema de direitos que está do e descobrindo a unidade das relações conceituais e de
presente na maioria das Constituições exemplares do mun- princípio presentes nessa complexa estrutura histórica, a

2
Na tradução para o português, Habermas (1997). Utilizar-se-á, ao longo do texto, entretanto, a tradução espanhola (Habermas, 1998).
3
“Habermas has entitled his new book Faktizität und Geltung, but this might also serve as an appropriate title for his entire corpus. Throughout his career,
Habermas has sought to do justice to the poles of facticity and normative validity and to the tensions that exist between these poles. In his more ‘sociological’
mode, he seeks to provide a comprehensive understanding and analysis of the facticity of modern societies in their full complexity. But he has also consistently
argued that an adequate account of the development of modern societies must do justice to the implicit and explicit claims to legitimacy and normative validity.
He has argued – as he does so persuasively in his present book – that no normative theory (whether of democracy, law, morality, or ethics) is adequate unless
it can be related to, and integrated with, the sheer facticity of everyday social life.” (Bernstein, 1996, p. 1127-1128). Tradução livre: “Habermas intitulou seu novo
livro Facticidade e Validade, mas isto pode também servir como um título próprio para toda sua obra. Ao longo de sua carreira, Habermas procurou fazer justiça
aos pólos de facticidade e validade normativa e às tensões existentes entre tais pólos. Na sua versão mais ‘sociológica’, ele procura sustentar uma interpretação
compreensiva e uma análise da facticidade das sociedades modernas em toda sua complexidade. Mas ele também tem pleiteado com consistência que uma
explicação adequada do desenvolvimento de sociedades modernas deve fazer justiça às reivindicações implícitas e explícitas de legitimidade e validade
normativa. Ele tem afirmado – como o faz de forma tão persuasiva no presente livro – que nenhuma teoria normativa (seja da democracia, direito, moralidade ou
ética) é adequada a menos que possa ser relacionada, e integrada, à facticidade desviante da vida social cotidiana”.

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A tese central de Jürgen Habermas em Facticidade e validade

partir dos elementos da “forma jurídica” e do “princípio cuja máxima liberdade e o arbítrio de cada um possa ser com-
do discurso”4. patível com a liberdade de todos segundo uma lei geral.
O próprio Habermas (1999, p. 329ss) salienta que, em Diante das relações entre sistemas e mundo da vida, pode-se
Faktizität und Geltung, procurou fazer contribuições a seis explicar por que o direito moderno cumpre de maneira especial
tópicos: a forma e a função do direito moderno; a relação a função de integração social em sociedades complexas6. Em
entre direito e moralidade; a relação entre direitos humanos tais sociedades, o sistema econômico exerce uma forte inge-
e soberania popular; a função epistêmica da democracia; o rência. Além disto, elas dependem de âmbitos de ação neutros
papel central da opinião pública em democracias de massa; eticamente, vinculando-se também a decisões de indivíduos
e o debate entre paradigmas concorrentes do direito. Com guiados por seus próprios interesses. Ocorre que o direito não
isso, o que se busca neste texto é proceder a uma recons- se limita a cumprir os requisitos funcionais dessa sociedade
trução pormenorizada da tese esposada pelo alemão numa complexa. Ele deve também satisfazer as precárias condições
de suas mais difundidas obras, principalmente no campo da de integração social, o que se dá quando se utiliza de operações
Filosofia do Direito, da Hermenêutica Jurídica e do Direito de entendimento intersubjetivo por meio da ação comunicativa,
Constitucional, sem, contudo, incorrer em visões parciais. ou seja, por meio da aceitabilidade de pretensões de validade7.
O direito transfere para as leis o encargo de cumprimento
Legitimidade por meio da legalidade: o sistema do das exigências de moralidade por meio do asseguramento de
direito em Habermas liberdades subjetivas, livrando os indivíduos do fardo outrora
atribuído aos mesmos.
Habermas (1998, p. 147) pretende introduzir a categoria É o procedimento legislativo que garante legitimidade às
do direito, mais propriamente a do direito moderno, desde leis: esse paradoxo da derivação da legitimidade pela legalidade se
o ponto de vista da teoria da ação comunicativa. Ele o faz, desse explica porque os direitos de participação política, enquanto
modo, com uma reconstrução racional da autocompreensão direitos subjetivos, têm a mesma estrutura dos direitos que
das ordens jurídicas modernas. De início, toma os direitos dão aos indivíduos liberdades de escolha. Outrossim, esse
que os cidadãos devem reconhecer-se reciprocamente caso procedimento tem que apresentar aos cidadãos as expecta-
queiram regular sua convivência sob os auspícios do direi- tivas normativas advindas da orientação pelo bem comum,
to positivo, uma categoria que é, sobretudo, marcada pela uma vez a força legitimadora do processo democrático surge
recepção do próprio sistema de direitos da tensão interna do próprio entendimento dos sujeitos acerca do modo como
entre facticidade e validade inerente ao modo de validade pretendem regular sua convivência: é dizer, ele deve tentar
ambivalente que é a validade jurídica5. cumprir sua função de integração social.
O conceito de direito subjetivo desempenha um papel Habermas (1998, p. 149) pretende esclarecer a cone-
de destaque na compreensão moderna do direito. A ele cor- xão entre autonomia pública e privada com a ajuda de
responde o conceito de liberdade subjetiva de ação, segundo um conceito discursivo de direito. Segundo o filósofo, a
o qual os direitos subjetivos fixam os limites dentro dos coesão entre essas autonomias não foi colocada até agora
quais um sujeito está legitimado para afirmar sua vontade. de uma maneira satisfatória, tanto no interior da dogmática
Esses direitos definem iguais liberdades de ação para todos jurídica, quanto na tradição do direito natural racional, em
os indivíduos, qualificando-os como portadores de direito virtude dos obstáculos colocados por uma visão de base de
ou sujeitos de direito. Kant formula seu princípio geral do filosofia da consciência e por uma herança metafísica do
direito neste mesmo diapasão, ou seja, é legítima toda ação direito natural.

4
À guisa de um esclarecimento prévio, Habermas, como salienta Redondo (Habermas, 1998, p. 9), procede à gênese lógica do sistema de direitos através de dois
elementos. O “princípio do discurso” define que só são legítimas as normas de ação que possam ser aceitas por todos os possíveis afetados como participantes
de discursos racionais. A “forma jurídica”, que Habermas toma de Kant, define para as normas que: cuida-se de normas em que se prescinde da capacidade do
destinatário de ligar sua vontade por sua própria iniciativa; trata-se de assuntos bem tipificados e que, por isso, incorrem em uma abstração do mundo da vida; e
não dependem da motivação do agente quando ele cumpre ou não a norma.
5
“Mas esse sentido tautológico da validade do Direito só se explica com referência à validade social e à validade no sentido de legitimidade. A validade social diz
respeito à capacidade de imposição das normas entre os destinatários, isto é, a sua aceitação fáctica e que na teoria do Direito se chama de eficácia. Já a validade,
sentido utilizado na teoria do Direito sob o nome de legitimidade, “se mede pela resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa”. Isto é, pode-
se pressupor que a norma ingressou no ordenamento jurídico por meio de um processo legislativo racional e que ela pode ser a qualquer momento justificada
aduzindo razões morais, éticas e/ou pragmáticas” (Repolês, 2003, p. 72).
6
“[...] Habermas compreende o direito funcionalmente, ‘como que reduzindo as diferenças nas sociedades, cujas capacidades de integração estão esgotadas’”. Nas
sociedades atuais cada vez mais complexas, as tradições culturais, crenças, práticas e suposições normativas comuns, as quais emergem daquilo que Habermas
nomina “mundo da vida”, de um grupo social situado historicamente, tornam-se incapazes de fornecer uma justificação normativa aceitável para todos os modos
existentes de interação social. Ao mesmo tempo, ditas interações são mediadas cada vez mais predominantemente através de sistemas autônomos, como a
economia de mercado e a burocracia administrativa estatal, os quais freqüentemente se furtam ao controle dos atores sociais dependentes desses sistemas.
Assim, malgrado o mundo da vida seja normativamente complexo, ele torna-se sempre mais impotente, normativamente precário e com maior freqüência os
sistemas auto-referenciais invadem os espaços sociais em grandes extensões. Sob essas circunstâncias, Habermas assume que o direito é o único meio legítimo
para a ampla integração normativa da sociedade, uma “dobradiça entre sistema e o mundo da vida” (Rosenfeld, 2003a, p. 21, destaques do original).
7
A integração social não-violenta pressupõe a coordenação de planos de ação de diferentes atores. É um engate que possibilita um entrelaçamento de intenções
e ações, ocasionando padrões de comportamento e ordem social. Se a linguagem é utilizada apenas como medium, a coordenação se dá pela influenciação
recíproca de atores que agem uns sobre os outros de modo funcional (ação estratégica); mas se as forças ilocucionárias assumem um papel coordenador na ação,
a linguagem mesma passa a ser explorada como fonte de integração social: esse é o agir comunicativo. É uma busca incondicional de fins ilocucionários. O falante
adota o enfoque performativo de quem busca se entender com o outro sobre algo no mundo.

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Emílio Peluso Neder Meyer

A filosofia da consciência e os problemas de uma Kant percebera que os direitos subjetivos não podem
subordinação do direito à moral ser formados a partir de uma estrutura de direito privado.
Se as partes se utilizam de um contrato com determinada
Na teoria do direito de Kant, a relação entre princípio finalidade, o contrato social, de seu turno, é “um fim em
da moralidade, princípio do direito e princípio democrático si”. A Constituição é instauradora de uma ordem de coope-
permaneceu obscura. Todos eles expressam a mesma idéia de ração entre sujeitos, fundando-se no direito público e não
autolegislação. Redondo (Habermas, 1998, p. 25) afirma que Kant no direito privado.
introduz dois conceitos de liberdade. O primeiro é negativo e se O único direito natural que esse contrato social funda
refere à liberdade de arbítrio: significa a capacidade de poder atuar é o direito a iguais liberdades subjetivas de ação. Tal direito
de modo que também se poderia não haver atuado, quaisquer original do homem Kant embasa na vontade autônoma de
que fossem os motivos; o segundo é positivo e diz respeito à indivíduos que, como pessoas morais, dispõem de antemão
faculdade da razão pura de ser, ela mesma, prática, algo possível de uma razão examinadora de normas, perspectiva mediante
apenas a partir de uma máxima que se sujeite à condição de ser a qual podem fundamentar sua escolha pelo abandono do
uma lei geral para todos. Concomitantemente, duas classes de leis estado de liberdades não asseguradas. Ao mesmo tempo,
da liberdade são introduzidas. Serão elas jurídicas caso se refiram a Kant vê que esse direito único pode se diferenciar num siste-
relações externas e sua legalidade; mas se as leis são os próprios ma de direitos no qual se pode positivar tanto liberdade como
motivos da ação, serão elas leis morais – com isto, Kant pôde igualdade. Como a legitimidade deve ser interna ao próprio
concluir que a liberdade é o único direito, o direito original, devido direito positivo, o contrato social só pode impor e fazer valer
a todo homem em virtude de sua humanidade. A diferenciação o princípio do direito ligando a formação da vontade política
entre agir conforme o dever moral e fazer tudo o que as leis do legislador às condições de um procedimento democrático:
não proíbam (livre-arbítrio) é extremamente importante para o dessa forma são ligados o direito a iguais liberdades subjetivas
próprio Habermas, na medida em permitirá diferenciar uma e a soberania popular. O princípio do direito parece, assim,
ação moral de uma ação conforme ao direito, com base em Kant. mediar o princípio da moralidade e o princípio democrático;
No direito em idéia, cuida-se de definir a relação dos arbítrios conceitualmente, eles se explicam mutuamente.
de cada uma das partes, livres segundo a primeira concepção de Habermas (1998, p. 159) acredita que a filosofia do direito
liberdade (negativa). No sentido da liberdade positiva, o direito é de Kant esconde essa circunstância. Se isto for assim, o direito
o conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser não é o médio entre moralidade e democracia, mas apenas um
compatibilizado com o arbítrio de outro segundo uma lei geral reverso da moeda do princípio democrático. Tanto em Kant,
da liberdade, uma norma geral. Aqui se trata de uma ordem que, quanto em Rousseau, parece que soberania popular e direitos
por ser externa, é coercitiva e que deve ser vista como realizando humanos competem entre si8. Em Kant, prevalece a idéia de
uma conexão entre a mútua coerção geral com a liberdade de que ninguém pode dar seu assentimento no exercício de sua
todos e de cada um. autonomia cidadã a leis que vulneram a autonomia privada
A definição kantiana do Poder Legislativo funda-se no assegurada pelo direito natural. A forma gradual da passagem
princípio do direito. O Poder Legislativo deve concordar da moral ao direito impede que Kant dê a devida importância
com a vontade unida do povo. Dele provém todo o direito ao contrato social, da forma como o faz Rousseau.
e, por isso, não pode cometer injustiça a ninguém. Se alguém Rousseau e Kant conceberam autonomia como a união de
dispõe de algo de outro, ele pode cometer injustiças, mas razão prática e vontade soberana, a fim de que os princípios dos
nunca quando dispõe de algo que é de si mesmo. Só a vontade direitos humanos e da soberania popular pudessem ser interpre-
concordante de todos pode ser legisladora. Como assevera tados reciprocamente, acabando por falhar ambos ao tentar dar
Redondo (Habermas, 1998, p. 29), se chamamos isto de a tal relação um caráter mais unívoco9.
princípio democrático, resulta que ele deriva do princípio do direito, Segundo Habermas, Jean-Jacques Rousseau dá à idéia
já que é uma especificação do conteúdo daquela referência de autolegislação uma conotação mais ética do que moral.
a uma lei geral. Não coincide com o princípio moral, posto Como membros de um corpo coletivo, os indivíduos se
que regula apenas relações externas, a ação exigida deve ser unem numa espécie de sujeito de grandes dimensões e
apenas conforme a lei, não precisa ser por respeito à lei, e o âmbito que é portador da produção das normas, rompendo com
da lei é mais restrito. Com isso, o princípio do direito parece interesses privados de pessoas privadas, simplesmente
realizar uma mediação entre o “princípio da democracia” e submetidas às leis. Rousseau conta com virtudes polí-
o princípio moral. Mais abaixo veremos como Habermas ticas vinculadas ao ethos de uma comunidade, integrada
enxerga essa relação. por tradições culturais comuns. A única alternativa à

8
“Rousseau produz uma revolução no campo da teoria política ao vincular a justificação da obediência com a autoria da lei por aqueles que devem respeitá-la.
Kant, por sua vez, amplia o tema no plano moral ao desenvolver a questão da autonomia da vontade, situando-a como princípio da moralidade, e transforma a
teoria política de Rousseau, combinando-a com elementos liberais e articulando as conquistas da liberdade jurídica em uma filosofia da história” (Terra, 2004, p.
20).
9
“Habermas explica que na Modernidade se opera uma separação entre Direito e Moral, bem como entre estes e a Ética. O produto do processo de diferenciação
e de racionalização do mundo da vida assim delimitado é, por um lado, a idéia de auto-realização, tributária do pensamento de Rousseau, ligada à construção de
sua idéia de soberania popular e de autonomia política. Por outro lado, temos como produto a autodeterminação, idéia desenvolvida por Kant junto aos direitos
humanos e à autonomia privada” (Repolês, 2003, p. 90).

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insubmissão a essa homogeneidade é a coação estatal. havia afirmado em suas Tanner Lectures, quando postulou
Assim, ele não pode explicar como sem repressão cabe uma derivação do direito a partir da moral, formando-se
estabelecer uma mediação entre a vontade geral e o ar- uma relação de subordinação, nesse outro momento ele
bítrio dos indivíduos. propugna por uma relação de complementariedade ou co-
originariedade (Cattoni de Oliveira, 2004a, p. 207). Vejamos
Y esto, a su vez, sólo puede averiguarse introduciéndose en las como ele procede a essa reconstrução.
condiciones pragmáticas de procesos de argumentación en Para Habermas (1998, p. 170), num nível pós-meta-
los que sobre la base de las informaciones pertinentes no se
imponga otra cosa que la coércion del mejor argumento [...].
físico de fundamentação, estão separadas da eticidade
La conexión interna que buscamos entre soberanía popular tradicional tanto as normas jurídicas como as normas
y derechos del hombre ha de radicar, pues, en el contenido morais. De seu turno, estas normas, não obstante distin-
normativo de un modo de ejercicio de la autonomía política, tas, complementam-se mutuamente. Assim, o conceito
que no viene asegurado por la forma de leyes generales
sino sólo por la forma de comunicación que representa la
de autonomia deve estar articulado de uma maneira tão
formación discursiva de la opinión y la voluntad comunes abstrata que possa adotar em relação a cada tipo de
(Habermas, 1998, p. 168, destaques do original). norma de ação uma forma específica: o princípio moral e
o princípio democrático.
Kant e Rousseau não conseguem vislumbrar devidamen- Com a modernidade e a quebra dos fundamentos sacros
te tal conexão em virtude de estarem ainda presos à filosofia do amálgama em que se constituíam direito, moral e ética,
da consciência. Se a vontade geral só pode se formar no sujeito ocorrem os processos de diferenciação10. Questões jurídicas
particular, como quer Kant, então a autonomia moral do se apartam de questões éticas e morais; paralelamente, usos
sujeito particular tem que penetrar por meio da autonomia e costumes passam a significar puras convenções. Questões
política de todos, assegurando de antemão em termos de jurídicas e questões morais têm em vista o mesmo proble-
direito natural a autonomia privada de cada um. De outra ma, qual seja, o de como ordenar legitimamente as relações
parte, se a vontade racional só pode se formar num sujeito de interpessoais e como coordenar entre si ações por meio de
grandes dimensões que é um povo ou uma nação, como quer normas justificadas, solucionando conflitos sob o pano de
Rousseau, a autonomia política tem que ser entendida como fundo de normas compartilhadas. Mas tal referência se dá
a realização autoconsciente da essência ética da comunidade de forma distinta. Moral e direito se distinguem prima facie
concreta; além disso, a autonomia privada só é protegida da no sentido de que a moral pós-tradicional não representa
força esmagadora da autonomia política por intermédio da mais do que uma forma de saber cultural, ao passo que o
forma não-discriminatória de leis gerais. direito é obrigatório no nível institucional – o direito é, ao
Mas, para Habermas, os membros de uma comunidade mesmo tempo, sistema de saber e sistema de ação.
política, como participantes de discursos racionais, devem As normas gerais de ação se ramificam em normas morais
poder examinar se a norma encontra o assentimento de todos e normas jurídicas. Com isto, autonomia moral e autonomia
possíveis afetados. Assim, a almejada conexão interna entre política são co-originais e explicadas com a ajuda de um princípio
direitos humanos e soberania popular (e que, por assim dizer, do discurso11, algo que representa as justificativas pós-tradicionais
constitui o núcleo da tese esposada em Faktizität und Geltung) de fundamentação. Esse princípio tem um conteúdo normativo
consiste num sistema de direitos que apresenta exatamente as do sentido da imparcialidade dos juízos práticos. Mas está num nível
condições para a institucionalização jurídica de formas de que é neutro diante da moral e do direito, uma vez que se refere
comunicação necessárias para a produção politicamente a normas de ação em geral. Habermas (1998, p. 172) o enuncia
autônoma de normas. O direito a iguais liberdades subjetivas da seguinte maneira:
de ação não pode ser imposto ao legislador soberano como
um limite externo, nem ser instrumentalizado como requisito D: Válidas son aquellas normas (y sólo aquellas normas)
a las que todos los que puedan verse afectados por ellas
para seus fins. A substância dos direitos humanos está nas pudiesen prestar su asentimiento como participantes en
condições formais da institucionalização jurídica de um tipo discursos racionales.
de formação discursiva da opinião e da vontade, no qual a
soberania popular requer a forma jurídica. Os conceitos envolvidos em tal enunciado são assim
explicados pelo filósofo:
A complementaridade entre direito e moral
̇ “Válido”: refere-se a normas de ação e os cor-
Em Faktizität und Geltung, Habermas estabelece uma respondentes enunciados normativos gerais ou univer-
outra relação entre direito e moral. Diferentemente do que sais;

10
“O Direito e a organização política pré-modernos encontravam tradução, em última análise, em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito,
moral, tradição, e costumes transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam [...]. O Direito, portanto, enquanto um único ordenamento
de normas gerais e abstratas válidas para toda a sociedade, não existia, mas tão-somente ordenamentos sucessivos e excludentes entre si, consagradores dos
privilégios de cada casta e facção de casta, consubstanciados em normas oriundas da barafunda legislativa imemorial, nas tradições, nos usos e costumes locais,
aplicados casuisticamente como normas concretas e individuais, e não como um único ordenamento jurídico integrados por normas gerais e abstratas válidas
para todos” (Carvalho Netto, 2004, p. 30, destaques do original).
11
“O sentido da palavra Discurso na teoria de Habermas é justamente o de uso reflexivo da razão comunicativa que permite a problematização” (Repolês, 2003, p. 50).

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̇ “Normas de ação”: expectativas de comporta- morais, as razões têm que ser aceitas por todos, num âmbito
mento generalizadas na dimensão temporal, social e de de referência que ultrapassa fronteiras. Em questões ético-po-
conteúdo; líticas, a forma de vida de uma comunidade política constitui
̇ “Afetado”: qualquer um que tenha seus interesses o referencial para encontrar regulações que expressem uma
atingidos pelas conseqüências que presumidamente autocompreensão coletiva; as razões têm que ser aceitas pelos
possa dar lugar a uma prática geral regulada por nor- membros que compartilham das tradições e valorações. Tais
mas; compromissos têm que poder ser aceitos por todas as partes,
̇ “Discurso racional”: toda tentativa de entendi- mesmo que as razões para tanto possam divergir caso a caso.
mento acerca de pretensões de validade que se tornaram O princípio do discurso só explica o ponto de vista do
problemáticas, na medida em que tal tentativa tenha qual se pode fundamentar imparcialmente normas de ação;
lugar sob condições de comunicação que dentro de um Habermas parte de que o próprio princípio tem fundamento
âmbito público estruturado e constituído por deveres nas relações simétricas de reconhecimento inscritas nas formas
ilocucionários possibilitem o livre processamento de de vida comunicativamente estruturadas. Uma norma de ação
temas e contribuições. Tal expressão se refere também só se torna válida caso suas pretensões de validade possam ser
indiretamente a negociações, na medida em que estas reconhecidas pelos possíveis atingidos, é dizer, por um reco-
se dão segundo procedimentos discursivamente funda- nhecimento motivado racionalmente e passível de problemati-
dos. zações a qualquer momento. A justificação desse pressuposto se
dá por meio de uma investigação em termos de uma teoria da
Repolês (2003, p. 98-99, destaques nossos) traça as argumentação. Ele conduz à distinção entre os diversos tipos
características do princípio do discurso, cuja redação vale de discurso. Para cada um desses tipos, o julgamento imparcial
transcrever: deverá mostrar que regras permeiam as respostas às corres-
pondentes questões, sejam elas pragmáticas, éticas ou morais.
Portanto, o princípio D é neutro, pois refere-se a normas de Tais regras de argumentação operacionalizam o princípio do
ação em geral. Ele é abstrato porque apenas explicita o ponto discurso (Habermas, 1998, p. 174). No que se refere às questões
de partida do qual é possível fundamentar imparcialmente
normas de ação. Ele é ainda sem conteúdo uma vez que os morais, o princípio do discurso requer a forma de um princípio
argumentos que poderão ser utilizados para a fundamentação da universalização (“U”). Aqui o princípio moral desempenha
das normas de ação não podem ser determinados a não uma regra de argumentação. Nos discursos de aplicação, o princípio
ser posteriormente, na discussão. Pode-se ainda dizer que moral é complementado por um princípio da adequação ou
ele é procedimental, já que exige que toda forma de vida
comunicativamente estruturada tenha como condição de senso de adequabilidade12.
realização o reconhecimento mútuo, a simetria entre os O princípio moral compreendido em termos de uma teoria
participantes, e relações de inclusão entre eles. Finalmente, o do discurso transcende os limites entre âmbitos da vida
princípio do discurso tem um sentido normativo na medida em privada e pública, limites historicamente fortuitos e que
que determina como “as questões práticas podem ser julgadas
imparcialmente e decididas racionalmente”,mas ainda assim é discorrem de modo distinto segundo as diferentes estruturas
neutro em relação à moral e ao Direito. sociais. O princípio moral leva a sério o sentido universalista
da validade das regras morais ao exigir que a “assunção ideal
Em Habermas, o princípio moral só é uma especificação do do papel” que efetua cada indivíduo em particular e de forma
princípio do discurso para as normas de ação que podem justi- privada se converta em uma práxis pública a ser exercitada
ficar-se do ponto de vista de se levar em conta o igual interesse por todos13. Uma divisão dos aspectos morais e jurídicos
de todos. Já o princípio democrático será uma especialização de segundo um âmbito privado e público perde o sentido na
“D” para as normas de ação que apresentam a forma do direito e medida em que no exercício da soberania popular são tam-
podem ser justificadas recorrendo-se a razões pragmáticas, razões bém levados em conta argumentos morais. Em sociedades
ético-políticas, e não apenas razões morais. O tipo de razão segue complexas, a moral só tem efetividade para além do próximo
a lógica do tipo de questão a ser tratada. No caso de normas se traduzida para o código do direito14.

12
A distinção de discursos de aplicação e discursos de justificação é perpetrada por Klaus Günther (1988; 1993; 2004). Os esclarecimentos de Cattoni de Oliveira
(2002, p. 85) são extremamente pertinentes: “Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de
razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo
estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático [...]. Já discursos de aplicação se referem à adequabilidade de normas válidas a um caso
concreto, nos termos do princípio da adequabilidade, sempre pressupondo um ‘pano de fundo de visões paradigmáticas seletivas’ ”.
13
Repolês (2003, p. 100) salienta que a posição de Habermas em referência ao princípio moral “U” é diferente em Faktizität und Geltung. Habermas incorporou as críticas
de Günther e difere, para os discursos morais e jurídicos, discursos de justificação e validade das normas dos discursos de aplicação e adequabilidade das normas.
14
Tal expressão foi cunhada originalmente num contexto de Teoria dos Sistemas. Na teoria luhmanniana, um sistema só pode se diferenciar na medida em que o
faz em relação ao seu ambiente. O sistema traça, por intermédio de suas operações, seus próprios limites em relação aos elementos que não lhe pertencem e que,
justamente por isso, fazem parte de seu ambiente. Ele não opera para além de seus limites, o que não significa um total isolamento do sistema. As operações são,
realmente, sempre internas, mas através da observação os limites podem ser passíveis de serem transcendidos, verificando-se várias formas de interdependência
entre sistema e ambiente. As operações de um sistema funcionam de acordo com o código do sistema. A codificação é uma duplicação da comunicação a
partir de uma afirmação e de uma negação. “Con código se entiende una regla de duplicación que permite relacionar toda entidad que caiga en su campo de
aplicación con una entidad correspondiente. Esto es válido en primer lugar para el código del lenguaje [...] que permite relacionar toda enunciación positiva (Ja-
Fassung) con una enunciación negativa correspondiente (Nein-Fassung): el enunciado negativo hoy llueve puede entenderse como la negación del enunciado
negativo hoy no llueve. Con base en el lenguaje, esto es válido para los códigos de los diversos sistemas de funciones [...] basados siempre en un esquema
binario” (Corsi et al., 1996, p. 40). O código do direito é a licitude (Recht) e a ilicitude (Unrecht). A noção de código binário é extremamente importante para esse
trabalho porque as chamadas sentenças intermediárias pressupõem uma possível transigência com relação ao mesmo, uma manipulação, como se verá adiante.
Quando uma decisão no âmbito do controle de constitucionalidade não viola tal código, é que poderá ser ela legítima. Para tanto, ver Chamon Júnior (2005, p.

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A tese central de Jürgen Habermas em Facticidade e validade

Já a finalidade do princípio democrático é fixar um procedi- biografia. Normas jurídicas regulam relações interpessoais e
mento de produção legítima de normas jurídicas. Ele enuncia conflitos entre atores que se reconhecem como membros de
que só podem pretender validade legítima normas jurídicas que, num uma comunidade artificial, ou seja, uma comunidade criada pelas
processo discursivo de produção, articulado juridicamente, possam en- mesmas normas jurídicas. Para além desses aspectos, ainda
contrar o assentimento de todos os membros da comunidade jurídica. O outros podem ser definidos no que concerne à legalidade.
princípio democrático explica o sentido realizador da prática Apenas matérias referentes a relações externas podem ser
de autodeterminação dos membros de uma comunidade reguladas pelo medium do direito; o comportamento conforme
jurídica que se reconhecem uns aos outros como membros a normas só é imposto quando necessário.
livres e iguais de uma associação à qual aderiram voluntaria- Os aspectos da legalidade não são entendidos por Ha-
mente (Habermas, 1998, p. 175). O princípio democrático bermas como restrições da moral: para ele, devem estes ser
só diz como se pode institucionalizar uma livre formação da compreendidos da perspectiva da relação de complementariedade
opinião e da vontade políticas: por intermédio de um sistema entre direito e moral. A constituição da forma jurídica é neces-
de direitos que assegure, a cada um, igual participação em sária para compensar os déficits do desmoronamento de
tal processo de produção normativa. Enquanto o princípio uma eticidade tradicional. No que tange à extensão, moral
moral opera no plano da estrutura interna de um jogo de e direito também podem ser assim diferenciados:
argumentação, o princípio democrático se refere ao plano
da institucionalização externa. As matérias jurídicas carentes de regulamentação são ao
mesmo tempo mais restritas e mais abrangentes do que os
Assim, fica demarcada a diferença entre o princípio mo- assuntos moralmente relevantes: são mais restritas porque só o
ral e o princípio democrático segundo os níveis de referência. comportamento exterior da regulamentação jurídica é acessível,
Há ainda a diferença respeitante às normas jurídicas e às ou seja, apenas o seu comportamento coercível; e são mais
outras normas de ação. Ao passo que o princípio moral se abrangentes porque o direito – como meio de organização do
domínio político – não se refere apenas à regulamentação de
estende a todas as normas de ação justificáveis de um ponto conflitos de ação interpessoais, mas também ao cumprimento
de vista moral, o princípio democrático está demarcado de programas políticos e demarcações políticas de objetivos. Eis
segundo normas jurídicas. A forma jurídica se desenvolveu por que as regulamentações jurídicas tangenciam não apenas
no curso da evolução social. Frente às regras de convivência questões morais em sentido estrito, mas também questões
pragmáticas e éticas, bem como o estabelecimento de acordos
que só podem ser justificadas do ponto de vista da moral, entre interesses conflitantes (Habermas, 2002, p. 289).
as normas jurídicas têm um caráter artificial, são normas de
ação aplicáveis a si mesmas15. O sistema de direitos não só A moral racional, enquanto alternativa de ação, junto de
tem que institucionalizar uma formação racional da vontade sua base normativa, aparece na mira de uma problematização.
política, mas também garantir o meio mesmo em que esta A moral racional se especializa em questões de justiça e con-
possa se expressar como vontade comum dos membros sidera tudo segundo o foco da universalização. Ela preconiza
de uma comunidade jurídica que possa se entender como o julgamento imparcial de conflitos de ação, possibilitando
resultado de uma associação livre. Essa forma jurídica, vale um saber apto a orientá-la, mas que, de per si, não diz qual a
salientar, inclui a supremacia constitucional. ação correta. A moral racional vem representada no nível da
As características formais do direito são explicadas por Ha- cultura e, assim, pode ser interpretada, transmitida e reelaborada
bermas (1998, p. 177) por intermédio da relação entre aquele e criticamente. Tal moral se refere a ações possíveis, mas não
a moral. Novamente, ele retoma Kant para dizer que este havia mantém qualquer contato com os motivos, os quais dão à
caracterizado a legalidade de formas de ação pelo recurso a três moral a força motriz para se converter em prática, e nem com
formas de abstração referentes aos destinatários da norma. Em as instituições que colocam em prática as expectativas morais
primeiro lugar, o direito abstrai da capacidade dos destinatários devidamente justificadas. Uma moral desse tipo permaneceria
de dar curso à sua iniciativa por sua própria vontade, contando ineficaz se não pudesse alcançar os motivos do agente por uma
apenas com seu arbítrio. Em segundo lugar, o direito abstrai da outra via que não a da internalização, é dizer, a institucionaliza-
complexidade dos planos de ação que afeta, restringindo-se à ção de um sistema jurídico que complemente a moral no que
relação externa que representa a operação de atores que, definidos concerne à ação.
conforme características sociais típicas, possam exercer uns com
os outros. Em terceiro lugar, o direito abstrai do tipo de motivação El derecho es ambas as cosas a la vez: un sistema de saber
y un sistema de acción; cabe entenderlo como un texto de
que leva à conformação pela regra. proposiciones e interpretaciones normativas, y también
Junto das formas de ação assim definidas em termos de como institución, es decir, como un complejo de elementos
legalidade ou da forma jurídica está o status restrito que de- regulativos de la acción (Habermas, 1998, p. 180).
têm os sujeitos de direito. Normas morais regulam relações
interpessoais e conflitos entre pessoas físicas, que se reco- A pessoa que julga e atua moralmente deve se apropriar
nhecem como membros de uma comunidade “quase natural”, de forma autônoma de tal saber, elaborá-lo e traduzi-lo na
na qual estão também destinatários que possuem sua própria prática. Portanto, ela está submetida tanto a exigências cognitivas

15
“As normas jurídicas têm um caráter artificial, no sentido de que elas são produzidas intencionalmente e de modo reflexivo, aplicando-se a si mesmas. Por
esse motivo, não basta que o princípio da democracia fixe os procedimentos de normatização legítima do Direito, como ele deve também dirigir a produção do
próprio Direito. Isto é, não basta que o processo de instauração de normas seja legítimo. Antes há que pressupor a possibilidade de criação de uma comunidade
jurídica que institucionalize os direitos de participação de todos os seus membros, no processo de instauração dessas normas” (Repolês, 2003, p. 102).

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Emílio Peluso Neder Meyer

quanto motivacionais e, ainda, organizacionais, cujo fardo é livre En cambio, a través de un sistema jurídico con el que está
quando considerada como sujeito de direito. Vejamos como internamente vinculada, la moral puede irradiar sobre
todos los ámbitos de acción, incluso sobre esos ámbitos
Habermas vê tais exigências. sistémicamente autonomizados de interacciones regidas por
No que respeita às exigências cognitivas, Habermas salienta, em medios de regulación o control sistémico, que descargan a
primeiro lugar, que a moral racional pode proporcionar, unica- los actores de todas las exigencias morales a excepción de la
mente, um procedimento para o julgamento imparcial de questões. É única obediencia al derecho (Habermas, 1998, p. 183-184).
o caráter extremamente abstrato de normas como igual respeito
por todos, justiça distributiva, etc., que ocasiona problemas de Tanto o direito como a moral devem garantir a autonomia de
aplicação tão logo um conflito transcenda o âmbito próximo das todos os envolvidos em suas normas. Ambos buscam legitimi-
interações. A decisão nesses casos exige operações complexas. dade no próprio fato de proporcionar a liberdade. Ocorre que a
Essa indeterminação cognitiva é absorvida pela facticidade da autonomia, no caso do direito, se bifurca; tal divisão não encontra
produção do direito. O legislador político diz quais normas valem correspondência na moral. A moral pede que cada indivíduo
como direito, e os tribunais decidem para as partes, de forma obedeça às normas que estabelece para si próprio, por um juízo
arrazoada, qual a interpretação adequada. O sistema jurídico retira imparcial ao qual ele procede de per si ou coletivamente. Uma vez
dos sujeitos de direito, considerados em seu papel de destinatários, que as normas jurídicas são estabelecidas por instituições que as
o poder de definição no que compete aos critérios de julgamento aplicam coercitivamente e que, nos discursos de justificação e
acerca do que é justo ou injusto. aplicação jurídicas, levam em conta não apenas a formação da
No que se refere às exigências motivacionais, as expectativas dos opinião e da vontade, mas, em certos casos, uma decisão coleti-
indivíduos concernentes à sua própria força de vontade fazem va, há uma partilha de papéis entre firmar e enunciar o direito e
parte também do problema posto pela moral racional. Uma mo- entre obedecer-lhe como destinatário. Tal partilha não significa
ral racional, não suficientemente fincada em motivos e atitudes o nascimento de uma oposição, ou uma dualidade irreconciliável,
de seus destinatários, depende de um direito que imponha co- mas de uma coesão, justamente para que a legitimidade surja da
ercitivamente o comportamento conforme a norma, deixando legalidade. A coesão interna entre autonomia pública e autonomia
ao arbítrio do agente os motivos e atitudes. O direito coercitivo privada é o objeto do próximo tópico.
dota as expectativas normativas de ameaças de sanção, de ma-
neira que os destinatários possam se restringir a considerações A relação eqüiprimordial entre autonomia pública e
acerca de prudência sobre as conseqüências que vão afetar privada por meio do sistema de direitos e a coesão
seus interesses por meio das ações. Para além do problema da interna entre direitos humanos e soberania popular
debilidade da vontade, Habermas ainda aponta o problema da
exigibilidade. Se for necessário que sejam consideradas válidas as
Dando curso à sua teoria acerca do direito, Habermas (1998,
normas que, no suposto de uma observância geral das mesmas,
p. 184) mostra agora como um sistema de direitos pode lidar de
merecerem o assentimento racionalmente motivado de todos
maneira correta com a coesão interna entre autonomia pública e
os afetados, não se pode exigir de ninguém que se atenha a uma
privada. Tal sistema contém os direitos que os cidadãos deverão
norma que não cumpra referido pressuposto.
atribuir-se reciprocamente caso queiram regular sua convivência
Já o problema da atribuição das obrigações, resultante
de forma legítima por meio do direito positivo. Num primeiro
do caráter universalista da moral racional, liga-se às exigências
passo, tais direitos devem ser inseridos da perspectiva de alguém
organizacionais, que crescem na medida da complexidade da
que não está implicado no processo de atribuição mútua. Antes
sociedade. Apenas o direito é reflexivo no sentido de possuir
de chegar a este ponto, Habermas já percorrera os caminhos ne-
um escalonamento de normas que é reflexivo: ele contém
cessários para tanto: primeiro, ele aludiu, da história da dogmática
normas secundárias que servem à geração de normas pri-
do direito, ao paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da
márias de regulação ou controle do comportamento. Ele
legalidade; em segundo lugar, a autonomia foi relida, ainda que de
pode estabelecer competências e fundar organizações, pode
uma forma mais breve que a abordada neste tópico, a partir da
estabelecer um sistema de dotação de obrigações que não só
conexão interna entre autonomia pública e autonomia privada;
se refira a pessoas físicas, mas também a pessoas jurídicas.
por último, a relação de complementariedade entre direito e
Por fim,
moral permitiu uma melhor distinção entre normas jurídicas e
una moral racional que solo cobrase eficacia a través de
normas gerais de ação.
procesos de socialización y de la conciencia de los indivíduos Não raro, Estado de Direito e democracia são apresentados
permanecería restringida a un estrecho radio de acción. como idéias opostas. O princípio do Estado de Direito16 vez por

16
Rosenfeld (2004, p. 17) lembra que a expressão Rechtsstaat cunhada pelos alemães remonta a Kant, ou mesmo antes, e não significa rule of law, mas, no inglês,
State rule through law, ou a regra (ou governo) do Estado por meio do direito. O Kaiser, para governar com a legitimidade que a ordem dinástica logicamente não
poderia fornecer a ele, dependia de um outro tipo de legitimidade a ser atribuída pelo menos formalmente pelo Reichstag. O Kaiser se utiliza estrategicamente
da legitimidade política para realizar a vontade do Estado que encarnava, sem com isso retirar as vestes do jurídico do poder que exercia. Já a expressão L’État
de droit, tradução literal de Rechtsstaat feita por Carré de Malberg, não significou substancialmente aquilo que foi cunhada pelos germânicos. Rosenfeld traduz
a expressão como Estado por meio da democracia jurídica ou Estado por meio da regra democrática, da lei democrática, já que o povo soberano se faz presente
pela aprovação democrática da lei, segundo a Revolução Francesa. Um regime legal, na França, deve ser um regime democrático. A legitimidade está aqui
intimamente ligada aos ideais de Rousseau: legitimidade que existe se representa a vontade geral do povo. No século XX, com o próprio Carré de Malberg, os
franceses puderam verificar que a democracia, de per si, não garantia direitos constitucionais; daí a expressão passou a ser entendida como a regra do direito
ou a regra do Estado por meio do direito democrático. Por fim, nos Estados Unidos, rule of law, ou Estado de Direito, esteve desde sempre ligado à proteção dos
direitos fundamentais. Direito constitucionais sempre foram considerados direitos.

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A tese central de Jürgen Habermas em Facticidade e validade

outra não se faz presente mesmo naquelas ordens em que o poder ercitivamente, impor a renúncia às liberdades comunicativas e
político se utiliza do direito; o poder político encontra-se ainda exigir dos sujeitos uma atitude objetivante de um ator que age
não domesticado pelo direito. Em outras situações, há Estados estrategicamente. Isto pode ocorrer, no máximo, pela discricio-
de direito em que o poder político ainda não foi democratizado. nariedade dos mesmos. As normas jurídicas devem deixar um
Habermas (2002, p. 285-286) quer, assim, demonstrar como é espaço, sempre, para que possam ser seguidas por respeito.
comum que vejamos o princípio do direito e o princípio da demo- O princípio democrático une o princípio do discurso à
cracia como opostos, ou seja, como às vezes é difícil vislumbrar, forma jurídica. Tal entrelaçamento é concebido como uma gênese
em virtude dos problemas empíricos, a eqüiprimordialidade entre lógica do direito que pode ser reconstruída passo a passo. Ela
autonomia pública e privada; disso não decorre que tal reconci- tem início com a aplicação do princípio do discurso ao direito
liação não seja possível do ponto de vista normativo. a liberdades subjetivas de ação (direito que é constitutivo da
O medium que representa o direito pressupõe direitos que defi- própria forma jurídica) e termina com a institucionalização
nem o status de sujeitos de direito como portadores dos mesmos. jurídica de condições para o exercício discursivo da autonomia
Neste passo, dois aspectos podem ser destacados: um primeiro, política que configura e concretiza a autonomia privada. Dá de
relativo ao arbítrio regido pelos interesses de sujeitos que atuam barato que o princípio democrático seja o núcleo do sistema de
orientados pelo seu sucesso, é desvinculado dos contextos de direitos. Tal gênese lógica se dá num processo circular, no qual
ação orientada ao entendimento nos quais se dão as obrigações; o código do direito e o princípio democrático se constituem
um segundo aspecto é o da coordenação de ações por meio de co-originariamente.
normas coercitivas que limitam os espaços de ação desde fora.
Tais aspectos do medium do direito são apenas o reverso da mesma The democratic principle can take institutional shape only in the
moeda. Este fato elucida por que os direitos ocupam a posição system of rights necessary if citizens are to be both addressees
and authors of laws that “legitimately regulate their living
fundamental de assegurar e compatibilizar as chamadas liberdades together.” More specifically, the “application of the discourse
comunicativas. Estas, ad instar de Klaus Günther, Habermas (1998, principle to the medium of law as such” issues in a set of rights
p. 185) as conceitua como a possibilidade pressuposta recipro- guaranteeing the private autonomy of the addressees of law,
camente na ação comunicativa de assumir uma posição diante while the requirement that the addressees also be authors of
law generates rights of political participation and thus the public
de uma locução ou manifestação de um próximo e diante das autonomy of citizens (Rheg, 1996, p. 1153)18.
pretensões de validade que são levantadas junto de tais manifes-
tações, as quais buscam um reconhecimento intersubjetivo17. Tal
reconhecimento comporta obrigações exoneradas pelas próprias Esta circularidade do processo de autoconstituição do
liberdades subjetivas que o direito institui. A ação comunicativa direito e do processo democrático deu azo para que Frank
importa em uma intersubjetividade das relações estabelecidas Michelman levantasse uma objeção. Haveria a persistência de
entre os agentes, e tal explica por que esta liberdade está anexada um paradoxo, e não uma tensão constitutiva, entre direitos e
a obrigações ilocucionárias. democracia que se realiza ab initio no ato do poder constituinte
Desse modo, a autonomia privada pode ser entendida originário, é dizer, será que é possível reconhecer realmente
como a liberdade negativa de abandonar a zona pública de como democrático o processo de formação da opinião e da
obrigações ilocucionárias recíprocas e deter-se numa posi- vontade levado a cabo pelos pais fundadores? Habermas levanta
ção de observador mútuo e do também mútuo exercício de a questão, ventilada adiante, de que os cidadãos que decidem
influências recíprocas. A autonomia privada se circunscreve pela criação autônoma de uma associação de participantes do
até onde o sujeito de direito não precisa prestar contas ou direito livres e iguais colocam-se diante da aporia de dizer que
arrazoar o curso de suas ações. As liberdades comunicativas direitos eles devem se atribuir reciprocamente, caso queiram
desobrigam os sujeitos de entrar na ação comunicativa e regular legitimamente sua convivência por intermédio do direito
contrair obrigações ilocucionárias. positivo. Duas constatações se seguem:
O direito legítimo só é compatível com um modo de coer-
- Em primeiro lugar, constatamos que só pode ser tido como
ção jurídica que não destrua os motivos racionais de obediência legítimo aquilo em torno do qual os participantes da deliberação
ao direito (Habermas, 1998, p. 187). O direito não pode, co- livre podem unir-se por si mesmos, sem depender de ninguém

17
Klaus Günther (1996, p. 1038) esclarece que o conceito de “liberdade comunicativa” refere-se a um dos mais basilares conceitos de liberdade, ou seja, a
possibilidade de dizer “não”.“The possibility to say ‘no’ is constitutive for the possibility of alternatives, and for the actor’s awareness that he or she could decide
between taking an affirmative position toward a plan of action. Taking an affirmative position then means taking a negative position toward the counterreasons
which could be mobilized against the action plan. Thus, the actor’s will can be interpreted as the result of a double negativity, that is, as the negation of the
possibility of a negation of her intention. Then, it seems that this structure of double negativity is the central feature of communicative freedom.”. Tradução
livre: “A possibilidade de dizer ‘não’ é constitutiva da possibilidade de alternativas e da consciência do ator de que ele ou ela poderiam decidir por assumir uma
posição afirmativa diante de um plano de ação. Assumir uma posição afirmativa então significa assumir uma posição negativa diante das contra-razões que
poderiam ser levantadas contra o plano de ação. Assim, a vontade do ator pode ser interpretada como o resultado de uma dupla negação, ou seja, como a
negação da possibilidade da negação de sua intenção. Então, parece que esta estrutura de dupla negação é a característica central da liberdade comunicativa.”
Em se tratando de uma liberdade negativa, Günther salienta que tal dupla negação deve ser entendida em termos de relações ilocucionárias entre falante e
ouvinte: trata-se da recusa do ouvinte em aceitar o pronunciamento do falante, algo fundamental para a liberdade comunicativa. A possibilidade de dizer “não” é
a liberdade de tomar uma posição diante das pretensões de validade de um ato de linguagem. Isto envolve, por óbvio, a terceira possibilidade de não adentrar na
comunicação (o que é diferente de abandoná-la após o estabelecimento de obrigações ilocucionárias entre as partes).
18
Tradução livre: “O princípio democrático pode obter uma forma institucional apenas no sistema de direitos necessários se os cidadãos podem ser ao mesmo
tempo destinatários e autores das leis que ‘legitimamente regulam sua vida em conjunto’. Mais especificamente, a ‘aplicação do princípio do discurso ao medium
do direito como tal’ deságua numa estrutura de direitos garantindo a autonomia privada dos destinatários do direito, enquanto que a exigência de que os
mesmos sejam também autores daquele gera direitos de participação política e, assim, a autonomia pública dos cidadãos.”

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Emílio Peluso Neder Meyer

– portanto, aquilo que encontra o assentimento fundamentado política de cidadãos livres e iguais, é enunciado na Constitui-
de todos, sob as condições de um discurso racional. Isso não ção, e apenas isto, dependendo de uma explicação cotidiana,
exclui, naturalmente, a possibilidade do falibilismo, pois a busca
da única resposta correta não é capaz de garantir, por si mesma,
num processo que se corrige a si mesmo.
um resultado correto. Somente o caráter discursivo do processo Não bastam, porém, os direitos políticos para o processo
de deliberação é capaz de fundamentar a possibilidade de de autolegislação. O sistema de direitos deve conter a resposta à
autocorreções reiteradas e, destarte, a perspectiva de resultados questão de quais são os direitos para a convivência legítima
racionalmente aceitáveis.
- Em segundo lugar, constatamos que os participantes se
dos cidadãos sob a égide do direito positivo. Somando o con-
comprometem, através de um questionamento específico, ceito de forma jurídica, que, como em Luhmann, é entendido
a assumir o direito moderno como medium para regular sua como um conceito relativo à estabilização de expectativas
convivência. Ora, o modo de legitimação de um assentimento sociais de comportamento, e o conceito de princípio do discurso,
geral obtido sob condições do discurso, e a idéia de leis
obrigatórias que abrem espaço para iguais liberdades subjetivas
Habermas (1998, p. 188) introduz em abstrato três categorias
fazem jus ao conceito kantiano de autonomia política: aqui de direitos que estabelecem o código do direito ao criar o status
ninguém é livre, enquanto houver um único cidadão impedido de sujeitos de direito:
de gozar da igual liberdade sob as leis que todos os cidadãos
se deram a si mesmos, seguindo uma deliberação racional. (1) Direitos fundamentais resultantes do desenvolvimento e
(Habermas, 2003, p. 162). configuração politicamente autônomos do direito ao maior
grau possível de iguais liberdades subjetivas de ação. Apenas
Michelman (Habermas, 2003, p. 164) sustenta que a prática com o princípio do discurso é possível vislumbrar que
qualquer pessoa tem um direito a iguais liberdades subjetivas
constituinte não pode ser explicada da ótica da teoria do discurso,
de ação. Mas apenas com essa categoria o código do direito
já que, dentro do processo circular de autoconstituição do direito, não poderá restar institucionalizado. É preciso encontrar a
poderia haver um regresso ao infinito. A legitimidade proce- aplicação dentro de uma comunidade jurídica e determinar
dimental dos resultados discursivos depende não somente da direitos passíveis de reclamação.
observância do procedimento, mas de pontos de vista temporais,
sociais e objetivos, segundo a crítica de Michelman. O paradoxo São correlatos desses mesmos direitos:
levantado por Michelman, é, em verdade, tão antigo quanto a pró-
(2) Direitos fundamentais resultantes do desenvolvimento e
pria história do Direito Constitucional, fruto de eternos debates,
configuração politicamente autônomos do status de membro
como os travados entre Hans Kelsen e Carl Schmitt19. da associação voluntária que é a comunidade política. Normas
Habermas responde às críticas de Michelman com algo jurídicas se referem a contextos de interação de sociedades
que ele entende ser próprio do caráter das Constituições concretas. Elas advêm de um legislador histórico, tendo como
referência um âmbito jurídico geograficamente delimitado,
dos Estados Democráticos de Direito: sua abertura para o
assim, um espaço restrito de validade. É preciso lembrar que
futuro. Uma Constituição democrática cria um projeto capaz todo monopólio da coerção é finito, provincial com relação
de formar tradições com um início definido na história20. ao futuro e ao espaço. Por isso o código do direito deve incluir
As gerações vindouras possuem a tarefa de reinterpretar e direitos referentes ao pertencimento a uma determinada
associação de sujeitos de direito, permitindo a diferenciação
reafirmar a Constituição, atualizando a substância normativa
entre membros e não membros. São os chamados direitos de
do sistema de direitos. nacionalidade.
(3) Direitos fundamentais que resultam diretamente da
É verdade que essa continuação falível do evento fundador acionabilidade dos direitos, ou seja, da possibilidade de
só pode escapar do círculo da autoconstituição discursiva reclamar judicialmente seu cumprimento, bem como os
de uma comunidade, se esse processo, que não é imune a direitos que resultam do desenvolvimento e configuração
interrupções e a recaídas históricas, puder ser interpretado, politicamente autônomos da proteção dos direitos individuais.
a longo prazo, como um processo de aprendizagem que se Os sujeitos de direito só poderão mobilizar na forma de
corrige a si mesmo (Habermas, 2003, p. 165). faculdades de exercer uma ação jurídica as faculdades de
coerção ligadas a seus direitos se eles tiverem livre acesso a
tribunais independentes, que decidam imparcialmente e de
A amarração entre os princípios do Estado Democrático
maneira impositiva.
de Direito se evidencia na prática comum de cidadãos que
procuram interpretar e atualizar uma Constituição. O sentido
As três categorias elencadas são resultado da aplicação
performativo dessa prática, que visa criar uma comunidade

19
Kelsen tentou ocultar tal paradoxo com sua teoria pura. A norma fundamental seria um pressuposto da Ciência do Direito e por isso não seria ele mesmo objeto
de questionamento; a Ciência do Direito pertencia ao campo do dever ser. Schmitt expôs o paradoxo, dando prevalência à democracia, conceituada por ele como
a unidade do político que radicava no Presidente da República (tal como na Igreja Católica, o Presidente, e não o Parlamento, melhor exprimia o princípio da
representação) (Caldwell, 1997, p. 85ss).
20
A idéia da Constituição como um projeto é própria de teorias reconstrutivas como as de Habermas e Dworkin e põe de lado teorias originalistas que visam
alcançar a vontade do constituinte, como se ela pudesse prender as próximas gerações de uma vez por todas, como se encerrasse um processo. Daí afirmar
Rosenfeld ser a identidade constitucional um projeto aberto que se concretiza na construção e reconstrução. “O sujeito constitucional, que emerge do encontro
do eu com o outro, fundado na ausência e na alienação, encontra-se em uma posição que requer que ele esqueça a sua identidade utilizando-se do medium
de um discurso constitucional, enraizado em uma linguagem comum que vincula e une o multifacetado eu constitucional aos seus múltiplos outros. Esse
discurso constitucional deve ser construído, sobretudo, a partir de um texto constitucional que deve ser localizado em seu contexto próprio, levando em conta
as restrições normativas e factuais relevantes. Como o texto é dependente do contexto e como o contexto é aberto-a-finalidades (open-ended) e sujeito a
transformações ao longo do tempo, o sujeito constitucional precisa recorrer ao discurso constitucional para inventar e reinventar a sua identidade. [...] Em resumo,
a auto-identidade constitucional, no entanto, só pode ser articulada pouco a pouco por um sujeito parcial que deve construí-la a partir de fragmentos díspares
que precisam ser projetados em um passado e um futuro incertos” (Rosenfeld, 2003b, p. 39-41).

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A tese central de Jürgen Habermas em Facticidade e validade

do princípio do discurso ao medium do direito, ou seja, são dos indivíduos apenas está previamente dado o princípio
condições da configuração da associação horizontal dos do discurso, inscrito nas próprias condições de associação
comunicativa e no medium do direito. É certo que o código
cidadãos. Tais direitos garantem apenas a autonomia privada jurídico estabelecido já representa direitos de liberdade
dos cidadãos, dando aos mesmos o status de destinatários das que fixam o status de sujeitos de direito e garantem a sua
normas, o que possibilita sua reclamação uns em relação aos integridade, mas tais direitos são condições necessárias que
outros. Não há direito legítimo sem essas três categorias de direitos. no máximo possibilitam o uso da autonomia política. Como
condições de possibilidade, eles não restringem a soberania
Não se está falando aqui dos direitos liberais. Os direitos do legislador, mesmo que não estejam à sua livre disposição.
fundamentais pertencentes ao código do direito são direitos “Las condiciones posibilitantes no imponen restricciones a aquello
não saturados. Eles devem ser interpretados e desenvolvidos que constituyen” (Habermas, 1998, p. 194).
de acordo com as circunstâncias por um legislador político.
Os cidadãos atribuem-se mutuamente direitos determinados O princípio do discurso só pode adotar a forma de
e não regulam sua convivência apenas em abstrato. Direitos princípio da democracia se ambos se entrelaçarem e de-
clássicos de liberdade, direitos políticos e direito ao devido senvolverem um sistema de direitos que leve em conta a
processo são interpretações das categorias de direitos acima reciprocidade da autonomia pública e da autonomia privada.
definidas, são concretizações. Os direitos não saturados das Todo exercício da autonomia política é uma interpretação
três primeiras categorias definidas por Habermas (1998, p. desse sistema não saturado e isto vale também para os
192) são princípios jurídicos que orientam o constituinte. Sua direitos políticos. O princípio de que o poder do Estado
soberania não está afetada porque ele precisa seguir tais emana do povo deve ser especificado em cada caso. Assim,
categorias se quiser utilizar o medium do direito. os diferentes capítulos referentes aos direitos fundamentais
Para que eles sejam considerados como autores é neces- em cada Constituição são diferentes leituras, para Habermas,
sária uma outra categoria: de um mesmo sistema de direitos. A primazia da Constituição
sobre as leis pertence à sistemática do Estado de direito, mas isso só
(4) Direitos fundamentais de participação em igualdade significa uma fixação relativa do conteúdo das normas constitucionais.
de oportunidades nos processos de formação da opinião
Toda Constituição é um projeto que só ganha consistência
e da vontade comuns, nos quais os cidadãos exerçam sua
autonomia política e mediante os quais seja estabelecido por meio da interpretação constitucional.
o direito legítimo. O teórico do direito diz aos cidadãos Assegurando eqüiprimordialmente a autonomia pública
que direitos atribuir-se mutuamente se quiserem regular e privada, o sistema de direitos operacionaliza a tensão entre
sua convivência por meio do direito positivo. Deve haver,
facticidade e validade, entre positividade e legitimidade. De
contudo, uma mudança de perspectiva se tais cidadãos
devem, eles mesmos, fazer uso do princípio do discurso. um lado, o sistema desencadeia, por intermédio de leis coer-
Como sujeitos de direito, eles só alcançarão sua autonomia citivas que tornam compatíveis iguais liberdades de ação, os
caso possam se ver como autores dos direitos dos quais são arbítrios de sujeitos que agem estrategicamente. Por outro
destinatários. Para tanto, contudo, não cabe a eles disporem
lado, ele mobiliza e une na autonomia pública as liberdades
do meio do direito: esse é o único código pelo qual podem
expressar sua autonomia. São os próprios cidadãos, como comunicativas de cidadãos que almejam o bem comum.
legisladores constituintes, que devem estruturar os direitos O paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da
que transformam o princípio do discurso em princípio legalidade só aparece caso se conceba o sistema jurídico
democrático21.
como um processo circular que retorna recursivamente a
si mesmo e se legitima a si mesmo. A tal se opõe, segundo
Tal categoria tem uma aplicação na interpretação que Habermas, o fato de que instituições jurídicas da liberda-
pode ser feita em termos de Direito Constitucional das de caem no desuso sem as iniciativas de uma população
categorias de (1) a (4), bem como no desenvolvimento e acostumada à liberdade. A espontaneidade desta população
configuração política de tais direitos. Os direitos políticos não é algo que possa ser imposto pelo direito. Pelo contrá-
fundam o status de cidadãos livres e iguais, o qual é auto-re- rio, tal só é possível em tradições que mantenham vivo o
ferencial, já que possibilita aos cidadãos mudar sua posição sentimento de liberdade e que a promovam, contribuindo
jurídica a fim de melhor configurar sua autonomia pública para a manutenção de uma cultura política liberal. O direito
e privada. Por fim: pode diminuir o encargo do uso de liberdades comunicati-
vas. A teoria do discurso compreende o direito de ambas
(5) Direitos fundamentais que garantam condições de
vida que, social, técnica e ecologicamente asseguradas na as perspectivas. De uma parte, o fardo da legitimação da
medida de sua necessidade em cada caso, proporcionem o produção do direito se desloca e não recai tanto sobre as
usufruto por igual de oportunidades dos direitos elencados virtudes de cidadãos, mas sobre procedimentos de forma-
de (1) a (4).
ção da opinião e da vontade. Por outro, a tradução para
Desse modo, nem o âmbito da autonomia política dos cidadãos
é restringido desde fora por um direito natural ou moral e nem o código do direito das liberdades comunicativas implica
a autonomia privada do indivíduo é instrumentalizada por uma que o direito mesmo deve se abrir a fontes de legitimação
legislação dita soberana. Para a prática de autodeterminação das quais não pode dispor a bel-prazer.

21
“De igual forma que la libertad comunicativa, antes de toda institucionalización, está referida a condiciones de un empleo del lenguaje orientado al
entendimiento, y depende de esas condiciones, así también los derechos a hacer uso público de la libertad comunicativa dependen de formas de comunicación
y de procedimientos discursivos de deliberación y decisión, asegurados jurídicamente. Éstos tienen que garantizar que todos los resultados obtenidos de manera
formal y procedimentalmente correcta tengan a su favor la presunción de legitimidad” (Habermas, 1998, p. 193, destaques do original).

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Emílio Peluso Neder Meyer

O direito moderno possui certas qualidades formais. Em autonomia pública, eles definem como o igual será tratado
primeiro lugar, ele é estruturado individualisticamente. As ordens como igual e o desigual como desigual, por intermédio de
jurídicas modernas estruturam-se sobre direitos subjetivos, que suas liberdades comunicativas. No entanto, tal diferenciação
dão aos destinatários um âmbito de ação para que eles possam não compromete a coesão interna entre autonomia pública
proceder de acordo com suas preferências. Dentro do que foi e privada. Em sociedades pós-tradicionais, os indivíduos
limitado pelo direito, as pessoas agem sem que precisem motivar não têm como dispor do “medium” jurídico nos processos de
as atitudes que tomam, ao contrário do que ocorre em relação integração social, não podendo mais apelar para justificações
às normas morais. Porém, ao contrário das normas morais, metafísicas. Partindo desse ponto, é imperioso ressaltar que
a cujos motivos as pessoas devem também ligar sua vontade os indivíduos devem fazer uso de sua autonomia pública para
autônoma, as normas jurídicas aplicam-se cogentemente. Daí definir que direitos cabem a quem e em que medida; ao mesmo
uma segunda característica do direito moderno: ele é cogente. A tempo, eles só podem fazer um uso adequado das já mencio-
legitimidade do direito moderno consiste no espaço deixado nadas liberdades comunicativas se dispuserem de condições
para que as pessoas possam obedecer-lhe por respeito. O mínimas para tanto. Assim, autonomia pública e privada são
direito moderno é, ao mesmo tempo, a consagração de leis eqüiprimordiais, co-originárias, complementares.
da coerção e leis da liberdade22. E, em terceiro lugar, é preciso
salientar que o direito moderno é positivo, ou seja, é um direito Regulamentações que podem pretender legitimidade são
justamente as que podem contar com a concordância de
escrito e modificável que, para que obtenha legitimidade, deve possivelmente todos os afetados enquanto participantes em
ser constituído por meio de um procedimento democrático que discursos racionais, nos termos do “princípio do discurso”. Se
garanta, eqüitativamente, a autonomia pública e privada dos que os discursos e negociações são o que constitui o espaço de
são atingidos por ele (Habermas, 2001, p. 145-147). formação da opinião e da vontade política racional, então,
segundo Habermas, a suposição de racionalidade que
Com isso, de um lado, estabelece-se uma relação concei- deve embasar o processo democrático tem que se apoiar
tual entre o caráter de coercibilidade e a modificabilidade do num arranjo comunicativo segundo o qual tudo depende
direito moderno: a facticidade da imposição do direito tem das condições sob as quais se podem institucionalizar
uma ligação direta com as normas que, se impostas agora, juridicamente as formas de comunicação necessárias para
a criação legítima do Direito (Cattoni de Oliveira, 2004b, p.
podem não sê-lo no futuro, e isto por obra de um legislador 180).
que pode alterá-las a qualquer momento. De outro lado, para
que se possa obedecer a um direito que não pode mais apelar
Conclusões
para uma moral eterna (direito natural) ante a dessacralização
das imagens de mundo, é necessário que ele obedeça a um
Numa drástica redução, pode-se dizer que a tese central
procedimento de institucionalização que assegure a autonomia
de Faktizität und Geltung, e partir da qual Habermas rela-
dos destinatários. Ou seja, um procedimento democrático.
cionará direito e poder político, constitui-se na relação de
O princípio democrático garante legitimidade ao direito
eqüiprimordialidade entre autonomia pública e autonomia
ao fundar a idéia de que suas normas possuem como alvo
privada, na complementariedade entre direito e moral e
destinatários que podem se ver como autores das mesmas.
na relação recíproca entre direitos humanos e soberania
Está aí a coesão interna entre direitos humanos e soberania
popular que partem de um mesmo princípio do discurso. A
popular23. A forma do direito define os procedimentos de-
fim de esposar sua tese da coesão interna entre direitos
mocráticos de formação da opinião e da vontade que irão
e democracia, Habermas introduz a categoria do direito
dizer que direitos cabem a quem:
moderno a partir do ponto de vista da teoria da ação co-
A almejada coesão interna entre direitos humanos e municativa. O direito não se limita a cumprir os requisitos
soberania popular consiste assim em que a exigência de funcionais de uma sociedade complexa, não, mais do que
institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público isso, ele exerce a integração social por meio da aceitabilidade
das liberdade comunicativas seja cumprida justamente por de pretensões de validade, e isto se dá pela superação do
meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possibilitam
o exercício da soberania popular não se podem impingir de paradoxo da derivação da legitimidade pela legalidade, ou seja,
fora, como uma restrição (Habermas, 2002, p. 292). o procedimento legislativo passa a ser visto como garante
da legitimidade às leis. Mas isso só é possível perceber por
Com a autonomia privada, os indivíduos decidem como meio de um conceito discursivo de direito que traga à luz a
usufruir dos direitos subjetivos de que dispõem; com a coesão interna entre autonomia pública e autonomia privada,

22
“Isso se revela na peculiar ambivalência com que o direito vai de encontro a seus destinatários e deles espera obediência. Pois ele os deixa livres, seja para
considerar as normas apenas como uma restrição efetiva de seu espaço de ação e portar-se estrategicamente em face das conseqüências previsíveis de uma
possível violação das regras, seja para querer cumprir as leis em uma atitude performativa – e isso por respeito a resultados de uma formação comum da vontade
que demandam legitimidade para si.” (Habermas, 2002, p. 287).
23
Cattoni de Oliveira (2005, p. 11-12), referindo-se a voto recente do Ministro Celso de Mello no Mandado de Segurança nº 24.831-9/DF, traduz de forma exemplar
a questão: “Nesse sentido, o Min. Celso de Mello procurou recuperar, de uma perspectiva principiológica, que certamente contribui para uma compreensão
constitucionalmente adequada da representação política e do exercício do Poder Legislativo ao Estado Democrático de Direito, a intuição normativa segundo
a qual a Constituição da República articula, de forma complexa, questões políticas – éticas, morais e pragmáticas – a questões jurídicas. Mas tal articulação deve
ser compreendida de tal forma que a proteção de direitos não fique prejudicada por razões de Estado. A garantia dos direitos fundamentais, no duplo sentido de
direitos individuais e de direitos de participação política, envolve, assim, compreendê-los como garantias constitutivas do próprio processo democrático.”

48 Estudos Jurídicos

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A tese central de Jürgen Habermas em Facticidade e validade

algo de certa forma intuído por Kant e Rousseau, mas não DE OLIVEIRA (coord.), Jurisdição e hermenêutica constitucional:
levado devidamente a efeito, justamente por estarem presos no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte, Mandamentos,
à filosofia da consciência. p. 189-225.
Tal conexão interna é apresentada por Habermas com o CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. 2004b. Coesão interna entre
Estado de Direito e Democracia na Teoria Discursiva do Direi-
recurso a um sistema de direitos que apresente as condições de
to de Jürgen Habermas. In: M. A. CATTONI DE OLIVEIRA
institucionalização jurídica de formas de comunicação para
(coord.), Jurisdição e hermenêutica constitucional: no Estado Democrático
a produção politicamente autônoma de normas. de Direito. Belo Horizonte, Mandamentos, p. 171-188.
Em sociedades modernas e complexas, não é possível mais CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. 2005. Minorias e democracia no
apelar para uma moral que, numa relação de subordinação, Brasil. Manuscrito, UFMG, PUC/MG, 9.
ofereça conteúdo e legitimidade ao direito. Moral, ética e direito CHAMON JÚNIOR, L. A. 2005. Filosofia do Direito na alta moder-
tornam-se distintos. A moral e o Direito são co-originados num nidade: incursões teóricas em Kelsen, Luhmann e Habermas. Rio de
princípio do discurso de conteúdo neutro, que pede o assentimento Janeiro, Lumen Juris, 285 p.
dos afetados para que possa haver validade nas normas de ação CORSI, G.; ESPOSITO, E. y BARALDI, C. 1996. Glosario sobre la
implicadas. Tal princípio assume um caráter especial quando teoría social de Niklas Luhmann. México, ITESO, 191 p.
ligado à forma do direito e torna-se um princípio democrático aberto GÜNTHER, K. 1988. Der Sinn für Angemessenheit: Anwendungsdis-
kurse in Moral und Recht. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag,
a argumentos éticos, morais e pragmáticos. Daí que o conceito
410 p.
de autonomia, que na moral é unívoco, se bifurca no direito:
GÜNTHER, K. 1993. The sense of appropriateness: application dis-
autonomia pública e autonomia privada. Isso levou à idéia de courses in morality and law. Albany, State University of New
que democracia e Estado de Direito são concepções irrecon- York, 353 p.
ciliáveis: Habermas tem em mente, justamente, proceder a GÜNTHER, K. 1996. Communicative freedom, communicative
essa reconciliação. O conceito de liberdades comunicativas permite power and jurisgenesis. Cardozo Law Review, 17:1035-1058.
verificar que o desuso de obrigações ilocucionárias só pode ser GÜNTHER, K. 2004. Teoria da argumentação no direito e na moral:
uma discricionariedade dos sujeitos de direito a partir de sua justificação e aplicação. São Paulo, Landy, 424 p.
autonomia privada; por isso, o direito deve sempre deixar um HABERMAS, J. 2001. A constelação pós-nacional: ensaios políticos. São
espaço para que possa ser, à disposição dos cidadãos, obedecido Paulo, Littera Mundi, 220 p.
por respeito. HABERMAS, J. 1997. Direito e democracia: entre facticidade e validade.
Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1º vol., 354 p.
Com isso, o princípio democrático passa a ser o núcleo de
HABERMAS, J. 1998. Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado
um sistema de direitos reconstruído numa gênese lógica. Esse
democrático de derecho en términos de teoría del discurso. Madri, Trotta,
sistema de direitos contém (a) direitos a iguais liberdades 689 p.
subjetivas de ação; (b) direitos de configuração como HABERMAS, J. 1999. Introduction. Ratio Juris, 12(4):329-335.
membros de uma associação política; (c) direitos de acesso HABERMAS, J. 2002. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São
à justiça para proteção daqueles direitos; (d) direitos de Paulo, Loyola, 392 p.
participação política que revelem a autonomia pública para HABERMAS, J. 2003. Era das transições. Rio de Janeiro, Tempo
a delimitação das três primeiras categorias; e (e) direitos de Brasileiro, 220 p.
garantia de condições sociais necessárias para o usufruto REDONDO, M. J. 1998. Introducción. In: J. HABERMAS, Fac-
das outras categorias de direitos. Desse modo, a almejada ticidad y validez: sobre el derecho y el Estado democrático de derecho
coesão interna entre direitos humanos e soberania popular en términos de teoría del discurso. Madrid, Trotta, p. 9-55.
REHG, W. 1996. Against subordination: morality, discourse and
é alcançada pela institucionalização jurídico-constitucional
decision in the legal theory of Jürgen Habermas. Cardozo Law
de procedimentos de participação na formação da opinião
Review, 17:1147-1162.
e da vontade, procedimentos estes que estão imbricados na REPOLÊS, M. F. S. 2003. Habermas e a desobediência civil. Belo Ho-
inabdicável forma jurídica moderna. rizonte, Mandamentos, 152 p.
ROSENFELD, M. 2003a. O direito enquanto discurso: reduzindo
Referências as diferenças entre direitos e democracia. Revista do Ministério
Público do Estado do Maranhão, 10:9-44.
BERNSTEIN, R. 1996. The retrieval of the democratic ethos. ROSENFELD, M. 2003b. A identidade do sujeito constitucional. Belo
Cardozo Law Review, 17: 1127-1146. Horizonte, Mandamentos, 115 p.
CARVALHO NETTO, M. de. 2004. A interpretação constitucional ROSENFELD, M. 2004. A identidade do sujeito constitucional
sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. In: M. A. e o Estado Democrático de Direito. Cadernos da Escola do Le-
CATTONI DE OLIVEIRA (coord.), Jurisdição e hermenêutica gislativo, 7(12):11-63.
constitucional: no Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte, TERRA, R. 2004. Kant & o direito. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,
Mandamentos, p. 25-44. 64 p.
CALDWELL, P. 1997. Popular sovereignty and the crisis of German
Constitutional Law: the theory and practice of Weimar Constitutional-
ism. London, Duke University Press, 300 p.
CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. 2002. Direito Constitucional. Belo
Horizonte, Mandamentos, 208 p.
CATTONI DE OLIVEIRA, M. A. 2004a. Teoria discursiva
da argumentação jurídica de aplicação e garantia processual
jurisdicional dos direitos fundamentais. In: M. A. CATTONI

Vol. 38 n. 3 • setembro-dezembro 2005 49

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