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Cópia exclusiva para participantes da Formação em

Pedagogia Waldorf no Rio de Janeiro pelo Instituto Miguilim


para o Desenvolvimento Humano - 2023.
Boa leitura. Favor respeitar os direitos autorais e não
compartilhar e não reproduzir sem autorização do autor
(rogeriocalia@gmail.com). O livro em versão eletrônica está disponível na Amazon e o
livro em papel é distribuído pela Editora Antroposófica.

1
O Pensar Intuitivo na Ação e
no Diálogo
Uma introdução à “Filosofia da Liberdade” de Rudolf Steiner

Rogério Cerávolo Calia

2
Conselho Editorial Acadêmico

Wilson Nobre – Escola de Administração de Empresas de São Paulo - Fundação


Getulio Vargas (EAESP-FGV)

André Coimbra Felix Cardoso – Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) -


Campus Sorocaba.

Jonas Bach – Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM)

Melanie Mangels Guerra – Faculdade Rudolf Steiner

Adriana Silva – Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais


(IPCCIC)

Lilian Rodrigues de Oliveira Rosa – Instituto Paulista de Cidades Criativas e


Identidades Culturais (IPCCIC) e Centro Universitário Barão de Mauá

3
Para Suely Cerávolo e Celso Calia. Desfrutar o prazer de
praticar o pensar intuitivo é sentir gratidão pela educação que
vocês me proporcionaram com tanto amor e diálogo.

4
Como docente universitário, tenho lecionado sobre duas metodologias de
gestão colaborativas:

● a “Teoria U”, do Professor Otto Scharmer do M.I.T. (Massachusetts Institute of


Technology), e
● a “Liderança pelo Diálogo”, desenvolvida por Karl Martin Dietz e praticada na
DM-Drogerie Markt, uma grande empresa do varejo na Europa, com mais de
59 mil funcionários e 3.500 lojas.

Os criadores dessas duas metodologias de gestão colaborativas se inspiraram


num livro de Rudolf Steiner chamado “Filosofia da Liberdade”(1), que descreve um
processo criativo marcado pelo pensar intuitivo na ação e no diálogo.

A fim de desmistificar as ideias da “Filosofia da Liberdade” eu criei esse


pequeno livro, que é dividido em quatro partes.

A primeira parte é bem simples. Vamos relatar casos reais meus e seus, em
que cada um de nós realizou uma ação genuína sem máscaras, por meio do pensar
intuitivo.

Na segunda parte, vamos viajar a um “laboratório mental”, dentro de cada um


de nós, com a finalidade de desenvolvermos ainda mais esse motor das ações
genuínas que é o pensar intuitivo.

Na terceira parte, vamos colocar em prática o pensar intuitivo fortalecido para


melhor compreender o próprio senso de propósito e a própria individualidade genuína
que se autodefine. Em seguida, tentaremos dar um passo a mais no desafio de
compreender a individualidade genuína da outra pessoa e de ajudá-la a nos
compreender. Além disso, veremos como o pensar intuitivo ajuda a encontrar a
convergência de intenções entre as pessoas para solucionar conflitos e para criar
relacionamentos colaborativos.

Na quarta e última parte, vou lhe apresentar um resumo dos quinze capítulos
do livro “Filosofia da Liberdade” de Rudolf Steiner.

5
PRIMEIRA PARTE

ENCONTRAR O PENSAR INTUITIVO DENTRO DE AÇÕES JÁ


REALIZADAS POR SI MESMO

Mais de dez anos da vida de Rudolf Steiner foram dedicados à concepção e


escrita do livro “Filosofia da Liberdade”. Durante esta época, ele morou a maior parte
do tempo nas cidades de Viena, na Áustria e Veimar, na Alemanha.

Em Viena, Rudolf Steiner trabalhava como educador dos filhos de uma família.
Um dos meninos, o garoto Otto Specht, sofria de hidrocefalia, uma patologia que, além
de outras consequências, faz com que a cabeça tenha grandes proporções devido ao
excesso de líquido.

Era muito desafiador dar aulas para o garoto Otto. Depois de quinze minutos
de aula, o menino já perdia a concentração e começava a ter mal-estar.

O jovem educador Rudolf Steiner passava horas planejando uma única aula de
poucos minutos. A sequência dos assuntos e a forma de explicar eram
cautelosamente trabalhados para que o menino pudesse ter o máximo de
compreensão da matéria, no menor tempo, a fim de não causar qualquer mal-estar
àquele corpo tão frágil.

Além disso, Steiner observou atentamente os condicionantes da vitalidade do


garoto e teve insights para criar exercícios e movimentos corporais com fins
terapêuticos.

Fato é que a hidrocefalia do garoto Otto foi regredindo e, depois disso, ele
pôde participar do sistema oficial de educação. O menino ficou curado.

Anos depois, Otto Specht decidiu estudar medicina e conseguiu se tornar


médico formado. Infelizmente morreu na Primeira Guerra Mundial, quando teve que
trabalhar como médico das tropas(2).

Essa realização do jovem Rudolf Steiner é um momento biográfico especial, de


uma ação livre e genuína.

Ninguém mandou Steiner planejar as aulas na sequência de assuntos


específica que ele planejou. Ninguém o mandou criar aquela terapia. Ele
simplesmente observou as características e necessidades de seu aluno, teve insights,
notou que as ideias fizeram sentido e, então, as realizou.

Observar os fatos intensamente e compreendê-los criativamente aqui e agora;


só isso, de peito aberto: desse modo, o jovem educador pôde expressar, naquele

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momento, o melhor de si para o melhor benefício das pessoas no contexto em que
estava presente.

Quando nos sentamos para ler, de modo teórico, sobre a ação livre e genuína
no livro “Filosofia da Liberdade”, podemos nos assegurar de que o autor desta obra
não estava elucubrando. Rudolf Steiner viveu várias ações livres e genuínas
concretamente, e a reflexão sobre o que vivenciou, ele compartilhou na forma de
ideias claras e lógicas no livro “Filosofia da Liberdade”.

Que Ações Proporcionam um Sentimento de Liberdade?

Caso a liberdade deva se realizar, então, na natureza humana, a


vontade tem que ser trazida pelo pensar intuitivo.
Filosofia da Liberdade. Capítulo 13

No livro “Filosofia da Liberdade”, Rudolf Steiner não apresenta especulações


abstratas sobre a ideia da liberdade, mas utiliza uma abordagem prática com base na
observação direta e atenta.

Ele checa uma série de várias ações no arquivo de sua memória, para, em
seguida, identificar em que tipos de ação ele se sente mais livre e em quais se sente
determinado por alguma coisa que não seja sua própria vontade consciente.

Por meio deste método, Rudolf Steiner notou uma característica significativa
em todas as ações em que se sentia mais livre: percebeu que o motivo delas não foi
definido pelo jeito usual e superficial de pensar, mas por meio de uma experiência
criativa que chamou de “pensar intuitivo”.

Steiner notou, portanto, que se sentia mais livre nas ações que foram criadas
pelo pensar intuitivo.

[…] encontra a liberdade como característica das ações que fluem a


partir das intuições da consciência.
Capítulo 15

Quando a pessoa realiza uma ação sem utilizar o pensar intuitivo, parece que
não é ela mesma a verdadeira autora daquela ação. Nestas situações, ela se sente
apenas executando a ação sem consciência aprofundada do motivo, por estar sendo
condicionada por um instinto ou por um sentimento impulsivo, ou ainda por seguir
normas de grupos sociais sem refletir se fazem sentido.

7
A experiência de realizar uma ação pelo pensar intuitivo é bem diferente disso,
porque a pessoa percebe que a ação vem genuinamente do seu próprio ser. É a partir
da própria individualidade que a pessoa sente surgir uma ação criada pelo pensar
intuitivo.

Em síntese, para refletir sobre a liberdade humana, Rudolf Steiner observa:

● Que tipos de ações proporcionam o sentimento de liberdade;


● Qual é o papel do pensar intuitivo no processo de criar os motivos das ações; e
● Quão presente ele sentia a própria individualidade durante o pensar intuitivo e
durante a realização dessas ações.

Nessas considerações sobre a vontade humana, foi apresentado o que


o ser humano pode vivenciar em suas ações para chegar à consciência,
por meio dessa vivência: Minha vontade é livre.
É de significado especial, que a justificativa para caracterizar uma
vontade como sendo livre é obtida por meio da vivência: na vontade se
realiza a intuição de uma ideia. Isso só pode ser o resultado da
observação.
Capítulo 12

A pessoa recorda-se de várias ações suas

Seleciona as ações que lhe proporcionam um sentimento de


liberdade.

Examina em que medida é o seu pensar intuitivo que gera os


motivos dessas ações

Figura 1 - Um processo prático para checar a relação entre as ações realizadas, o


sentimento de liberdade e o papel do pensar intuitivo

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Trata-se de um processo bem simples: identificar as ações recordadas que
mais proporcionam um sentimento de liberdade e checar qual é o papel do pensar
intuitivo nessas ações.

Para investigar a ação livre e genuína, Steiner realizou esse procedimento em


sua experiência. Mas tanto eu como você também podemos realizar estes passos de
observação prática, cada um de nós na sua própria experiência.

Podemos conduzir estes “experimentos” ao recordar várias ações pessoais que


já criamos pelo pensar intuitivo no passado. Então, podemos observar em que medida
sentimos a presença da própria individualidade de modo mais autêntico e livre de
máscaras durante essas ações.

Lembrar e refletir sobre as ações que proporcionam um sentimento de


liberdade contrasta com o exercício de lembrar e refletir sobre as ações comandadas
pelo “piloto automático”. Algum tempo depois de terem ocorrido, a pessoa já percebe
que não se identifica mais com as ações realizadas pelo “piloto automático”. Essas
ações, com frequência, lhe deixam uma sensação meio nostálgica de não terem sido
realizadas, de fato, por si mesma. A pessoa percebe que ela foi apenas uma
engrenagem para essas ações pelo “piloto automático”.

Se a falta de liberdade é imposta, por meio de instrumentos físicos ou


por regras de costumes sociais, ou se a pessoa é não-livre, porque ela
segue seus instintos sexuais sem limites ou porque ela está presa às
amarras da moralidade convencional, tudo isso é indiferente para um
certo ponto de vista.
Mas que não se afirme, que uma pessoa destas possa dizer com razão
que uma ação seja a sua ação, porque ela é movida para esta ação por
um poder estranho.
Capítulo 9

Na ação livre e genuína nós não somos movidos por um poder estranho, mas
reconhecemos os aspectos mais autênticos da própria individualidade em ação.

É na ação que proporciona um certo sentimento de liberdade que observamos


as nossas capacidades mais criativas agindo. É com esse tipo de ação que faz sentido
identificar-se, ao reconhecer-se como o autor genuíno dessa realização.

As ações genuínas são uma oportunidade para cada um visualizar claramente


novas facetas do semblante de sua própria individualidade interior – facetas de si
mesmo que ainda lhe eram desconhecidas.

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Visão de Conjunto do Livro de Steiner Como um Todo

A leitura da “Filosofia da Liberdade” faz sentido para mim, porque me


proporciona ideias para conhecer melhor as minhas próprias fontes genuínas e para
compreender e conviver melhor com outras pessoas. Neste sentido, meus dois
principais propósitos com a leitura deste livro são o “autoconhecimento” e o “diálogo”.

No autoconhecimento, eu compreendo melhor a mim mesmo, e no diálogo


aprofundado, eu compreendo melhor a outra individualidade.

Depois de ler a “Filosofia da Liberdade” dezenas de vezes desde 1992 e de


atuar profissionalmente com essa obra desde 2012, sintetizo todo o conteúdo do livro
em apenas quatro desafios:

● O desafio de encontrar o pensar intuitivo em ações genuínas na própria


biografia;
● O desafio de desenvolver ainda mais o pensar intuitivo;
● O desafio de praticar o pensar intuitivo no autoconhecimento para ter maior
clareza dos conceitos escolhidos para auto definir-se;
● E o desafio de praticar o pensar intuitivo no diálogo para compreender a outra
individualidade, para ajudá-la a me compreender e para compreender a
potencial convergência de nossas intenções.

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1. Desafio de encontrar o pensar intuitivo na própria ação genuína

2. Desafio de desenvolver ainda mais o pensar intuitivo

3. Desafio de praticar o pensar intuitivo no autoconhecimento

- Ter maior clareza dos conceitos escolhidos para autodefinir-se

4. Desafio de praticar o pensar intuitivo no diálogo

- Compreensão mútua como individualidades genuínas

- Descobrir a potencial convergência de nossas intenções

Figura 2 - Os quatro principais desafios no livro “Filosofia da Liberdade”

Portanto, na minha visão, a “Filosofia da Liberdade” é uma obra que consiste


em quatro desafios. O desafio de a pessoa perceber que o pensar intuitivo já está
presente em suas próprias ações genuínas, o desafio de desenvolver ainda mais o
pensar intuitivo e os desafios de praticar o pensar intuitivo para aprofundar o
autoconhecimento e o diálogo.

A seguir, explicarei quais são as principais características de uma ação livre e


genuína gerada pelo pensar intuitivo. Com isso, ficará mais fácil identificar as ações
genuínas e o pensar intuitivo na sua própria experiência de vida.

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Um Caso Ilustrativo de Ação Genuína
Eu tinha por volta de 16 anos de idade quando, ao acordar de manhã, na casa
do meu pai, no bairro Interlagos, cidade de São Paulo, abro a porta do corredor para ir
tomar o café da manhã e me deparo com um homem portando um revólver na mão. É
um assalto. “Todos pra sala! Agachem. Mãos pra trás”, diz ele, em tom de voz
agressivo. Ele amarra forte meu pai, eu e o casal de caseiros, o que incomoda
bastante.

Ele dá um soco no peito do meu pai em castigo por ter dito que não tinha
nenhuma arma em casa – tinha, e o bandido a havia encontrado. Bebe
compulsivamente uísque na garrafa, e o pior de tudo: seus dedos oscilavam num
tremor intenso bem nos mecanismos do revólver! Pensei: “ele tem que se acalmar”.

Vi meu corpo tremendo com uma intensidade como nunca tinha visto antes.
Muita concentração mental para não urinar nas calças.

Até aqui, não havia nenhuma possibilidade de eu realizar uma ação genuína.
Estava preso por detrás de máscaras que inviabilizavam o meu senso de presença.

A máscara emocional e existencial do medo e da vitimização me impedia de


ser eu mesmo. A máscara interpessoal me impedia de acolher qualquer aprendizado
útil de outra pessoa. A máscara entre mim e os fatos só permitia que eu visse a
realidade de modo óbvio e limitado: “esse bandido é agressivo e nervoso”.

As máscaras começaram a ser dissolvidas quando olhei ao lado e observei


meu pai. Ele tinha acabado de levar um soco no peito e, mesmo assim, estava em
plena calma. Eu admirei aquela cena diante dos meus olhos: meu pai em completo
autodomínio. Deixei-me inspirar pela calma dele, peguei no embalo do exemplo e
também consegui articular a calma dentro de mim. A máscara interpessoal foi
superada.

No momento em que me acalmo, vejo um flash mental. Pensamentos claros,


num panorama diante de mim ainda antes mesmo de se expressarem em palavras:
“se eu der a oportunidade para esse cara ser mais comunicativo e colaborativo, será
que ele vai ter melhores condições para nos tratar de modo mais humano?”.

Tive a intuição desse conjunto de ideias interligadas numa relação lógica entre
elas. Tudo foi pensado num relance só, diante de mim, rapidamente; pensar intuitivo.

Ao visualizar esta pergunta, o medo sumiu e deixou espaço para sentimentos


bem diferentes. Senti fascínio e entusiasmo intelectual por aquela pergunta que
visualizei.

Sim, eu estava em desvantagem. Estava passando por uma experiência


aversiva no âmbito dos fatos práticos. Mas, no âmbito intelectual, eu retomava a
possibilidade de protagonismo. Parei de me considerar apenas uma vítima naquela

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situação e passei a definir a mim mesmo como um “facilitador de um diálogo
potencialmente autotransformador”.

Com isso, caiu a máscara que me impedia de ver a mim mesmo. Superei o
medo e dei vida ao sentimento de fascínio intelectual. Superei a autodefinição como
vítima e passei a me ver com meu senso de propósito que busco realizar até hoje.

Testo o bandido aos poucos, de acordo com aquela pergunta que visualizei
pelo pensar intuitivo. Puxo papo; ele pode participar da conversa ou não. Participa e
conversa. “Ele é um bandido comunicativo”.

Tomo coragem e testo o bandido mais um pouco. Falo para ele: “As coisas
que você tirou de mim não vão me fazer tanta falta. Mas o relógio de pulso que você
pegou, foi a minha avó quem me deu. Amo a minha avó e esse relógio é a lembrança
que eu tenho dela. Seria muito bom se você pudesse devolver esse relógio para
mim!”. O tempo para; a respiração para. Suspense. Parece que tudo está em câmera
lenta.

Observo-o colocando a mão no bolso e pegando o relógio.

Ele me devolve o relógio! Agora cai a máscara que me separava de uma visão
completa dos fatos. Esse é um bandido agressivo e nervoso, sim, mas ele também é
um bandido comunicativo e colaborativo! Passo a ver os fatos de modo bem mais
completo e com mais riqueza de detalhes. Vejo os fatos de modo mais criativo.

No momento em que o bandido me devolve o relógio, ele se acalma, e seus


dedos param de tremer nos mecanismos do revólver; seu tom de voz fica menos
agressivo e ele solta um pouco as amarras que apertavam nossos pulsos. Estar
amarrado se torna uma experiência menos desconfortável. Atendimento VIP. Assalto
“humanizado”.

Como o filósofo e reitor universitário Marcelo da Veiga diz, “vivemos na


realidade que somos capazes de compreender”.

Antes, eu compreendia a realidade de modo limitado ao compartilhar do


preconceito coletivo que considera que “nenhum bandido é colaborativo”. Dessa
forma, eu vivia aquela realidade com medo e no papel de vítima. Depois disso, o
pensar intuitivo me permitiu testar a realidade pouco a pouco e ver mais detalhes nos
fatos que estavam diante de mim, e que eu não via. O pensar criativo permitiu-me ver
os fatos de modo mais completo.

No momento em que comecei a ver os fatos com outros olhos e constatar que
aquele era um bandido comunicativo e colaborativo, passei a viver aquela realidade de
modo bem diferente: como um facilitador de diálogos autotransformadores. Sem medo
e sem me sentir como “vítima”. Realmente, “vivemos na realidade que somos capazes
de compreender”.

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Minha ação genuína foi a de testar o bandido pouco a pouco para ver se ele
era comunicativo e colaborativo. E o meu pensar intuitivo visualizou a pergunta
decisiva. A ação genuína é o efeito, e o pensar intuitivo é a causa.

Nessa ação genuína, eu tomei consciência, pela primeira vez, do meu senso
de propósito biográfico: ser um facilitador em diálogos potencialmente
autotransformadores.

Durante aquela ação genuína, eu estava sentindo o meu próprio ser “mais
inteiro” do que normalmente sinto, porque as atividades racionais, emocionais,
existenciais e sociais não estavam fragmentadas, mas estavam em sinergia num todo
coerente.

Quais São as Características de uma Ação Realizada pelo Pensar Intuitivo?

Não há segredo para a pessoa que quer identificar em sua memória algumas
ações genuínas que ela realizou no passado.

Para saber se a ação era genuína ou não, basta checar se ocorreram ao


menos algumas destas características que costumam fazer parte da experiência de
realizar uma ação pelo pensar intuitivo: uma visão mais criativa dos fatos; emoções de
envolvimento com o processo criativo; e identificação pessoal com a ação.

● Visão mais criativa dos fatos

As chances de realizar uma ação genuína aumentam, quando descobrimos um


jeito mais criativo de compreender os fatos no ambiente da nossa ação. Com essa
visão criativa, podemos perceber novas características surpreendentes nos fatos,
saindo da visão padrão que as pessoas em geral têm daquela situação.

Uma visão diferente e inovadora dos fatos ocorre, quando temos um insight e
vemos novos significados numa clara conexão de ideias. Algumas vezes, notamos que
primeiro vemos este insight mentalmente, e só momentos depois é que nos chegam
as palavras que descrevem as ideias contidas nele. Vários pensadores, matemáticos e
físicos chamam este tipo de insight de “pensar intuitivo”. O pensar intuitivo
complementa o jeito de pensar intelectual analítico usual.

O aprofundamento do conhecimento depende das forças da intuição


que atuam vividamente no pensar.
Dentro da vivência que se configura no pensar, essa intuição pode
entrar em fundamentos da realidade mais profundos ou menos
profundos.
Capítulo 7

14
● Emoções de envolvimento com o processo criativo

Outro sinal que costuma acompanhar uma ação genuína é o envolvimento


pessoal com o processo criativo. O pensar intuitivo ocorre em consonância com
emoções positivas favoráveis ao processo de ver os fatos com novos olhos.

Em contraposição, o pensar intelectual analítico (quando ele não é


acompanhado do pensar intuitivo) muitas vezes é vivenciado como algo sem graça,
entediante, “gélido” e “seco”, de modo que a pessoa não se sente envolvida e, pelo
contrário, sente a indiferença predominar.

O pensar intuitivo proporciona ideias e perspectivas de ação que sentimos


como interessantes e entusiasmantes.

O sentir é o meio, pelo qual os conceitos começam a ganhar vida


concreta.
Capítulo 6

● Identificação pessoal

Muitas ações realizadas pelo “piloto automático” podem causar certo


estranhamento algum tempo depois que ocorrem, porque a pessoa não se identifica
mais com elas. Mas a ação genuína reforça o senso de identidade significativo: a
pessoa considera que essa ação é gerada a partir de dentro do melhor do seu próprio
ser.

Toda ética que exige do ser humano que ele reprima a sua vontade, a
fim de realizar tarefas que ele não quer, não conta com o ser humano
inteiro, mas com um ser humano no qual falta a capacidade de ter
desejos intelectuais (espirituais).
Para o ser humano desenvolvido de modo harmônico, as assim
chamadas ideias sobre o bem não estão fora, mas estão dentro da
esfera do seu ser.
Capítulo 13

Como o pensar intuitivo surge a partir das fontes do próprio ser, a pessoa
sentirá um poderoso desejo legítimo que energiza a sua determinação de realizar esse
pensar intuitivo numa ação genuína.

O ser humano atribui um valor ao cumprimento de um desejo, porque


ele surge a partir do seu ser.

Capítulo 13

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A pessoa que age a partir do pensar intuitivo transborda o próprio ser nesse
processo criativo, e isso também se reflete num sentimento de amor pela ação. É
muito comum observar amor pela ação, por exemplo, em empreendedores, inventores,
inovadores, artistas, ambientalistas e ativistas sociais.

Apenas quando eu sigo o meu amor pelo objeto, sou eu mesmo que
estou agindo.
Eu não reconheço nenhum princípio exterior para a minha ação, porque
eu encontrei em mim mesmo o motivo da ação, o amor pela ação.
Capítulo 9

Além disso, a ação genuína gerada pelo pensar intuitivo pode ter um bom
resultado ético, na medida em que for cautelosamente contextualizada no ambiente
em que for realizada.

Ela (a minha ação) será “boa”, quando a minha intuição permeada em


amor se posiciona de modo correto no contexto do ambiente, o qual
também deve ser vivenciado intuitivamente.
Capítulo 9

Nas ações realizadas pelo pensar intuitivo, somos os verdadeiros autores


criativos dos motivos das ações. Em outros tipos de ação, nem sempre chegamos a
essa mesma constatação depois de praticar a autocrítica. Com frequência,
percebemos que não fomos os verdadeiros autores da ação, mas sim a raiva em nós,
as opiniões gerais em nós ou os hábitos coletivos em nós.

Encontrar o Pensar Intuitivo na Própria Ação Genuína

Como capacitar-se para ativar o pensar intuitivo em oportunidades futuras de


realização de novas ações genuínas? Um modo muito útil da pessoa dar um primeiro
passo na direção de preparar-se para futuras ações genuínas é familiarizar-se com o
modo que o seu pensar intuitivo funcionou durante as próprias ações genuínas já
realizadas em momentos autobiográficos do passado.

Primeiro, a pessoa lembra de uma ação genuína que ela já realizou em sua
biografia: a situação daquela ação, os resultados, as pessoas envolvidas etc... Em
seguida, a pessoa se esforça para lembrar como aconteceu a atividade criativa do
pensar intuitivo que gerou aquela ação genuína.

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Desenvolvemos um “faro” para reconhecer novas oportunidades de ações
genuínas em nossas vidas, quando praticamos este exercício de lembrar e recapitular
os processos criativos que já geraram ações genuínas pelo pensar intuitivo em cenas
do passado.

Este exercício ajuda a simplificar a compreensão da “Filosofia da Liberdade”,


ao mostrar que as ideias centrais desse livro não são difíceis de compreender, porque
expressam experiências relativamente fáceis de se observar dentro da própria
biografia.

EXERCÍCIO 1 – Descrever uma ação genuína sua que foi gerada pelo pensar
intuitivo

Descreva por escrito uma ação que você realizou em sua biografia profissional
ou pessoal e que você considera ser mais genuína do que a maior parte das demais
ações

a) Pensar criativo – Qual foi a nova forma de ver os fatos? Como foi o momento de ter
o insight? Qual foi a ideia criativa?

b) Envolvimento pessoal – Como estava o envolvimento emocional antes do processo


criativo? Houve alguma mudança do envolvimento emocional durante o processo
criativo? Se sim, qual?

c) Identificação significativa – De que modo esse processo criativo e essa ação


expressaram características genuínas da sua individualidade e do seu senso de
identidade?

d) Em que medida essa ação gerada pelo pensar intuitivo proporcionou um sentimento
de liberdade?

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SEGUNDA PARTE

UM “LABORATÓRIO MENTAL” PARA DESENVOLVER O PENSAR


INTUITIVO

Até agora, vimos como identificar ações que proporcionam um certo


sentimento de liberdade. Também desmistificamos o conceito do “pensar intuitivo”,
quando simplesmente observamos a presença desse conceito na nossa própria
biografia. Para isso, bastou refletir sobre o processo criativo que gerou as próprias
ações genuínas pessoais já realizadas no passado. Tudo isso nós já temos à
disposição, “de bandeja”.

Agora, vamos sair do campo prático e exercitar sistematicamente o nosso


pensar intuitivo para que ele seja ainda mais intenso. Depois disso, voltaremos a
aplicar o pensar intuitivo na prática do autoconhecimento e do diálogo.

Para desenvolvermos intencionalmente a capacidade do pensar intuitivo,


vamos:

● exercitar a capacidade de observar o próprio ato de pensar (3);


● exercitar a capacidade de observar como funciona o próprio ato de
observar os fatos;
● e conviver com perguntas essenciais.

Observar Como Funciona o Próprio Ato de Pensar

O esforço para observar como ocorre o próprio pensar gera dois benefícios:

● fortalece a capacidade de atenção;


● e proporciona insights sobre aspectos importantes do funcionamento dos
conceitos, com decorrências decisivas para o autoconhecimento e para o
diálogo.

Primeiramente, este exercício de observar a atividade de pensar nos tira da


zona de conforto de só observar objetos exteriores. Colocar o próprio pensar como um
objeto de observação é desafiador e até mesmo irritante, porque o pensar é um objeto
super dinâmico que foge rapidamente da nossa atenção.

Isso nos desafia para fortalecermos cada vez mais a “tocha da própria
atenção”, para que ela possa iluminar os caminhos inicialmente “escuros” da nossa
atividade mental durante os processos criativos que geram a ação genuína.

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Imagine que você realize um exercício de reflexão intelectual qualquer, que não
seja nem muito difícil, mas nem muito automático, e que demande o seu pensar
conceitual. Por exemplo, você escolhe um exercício de prova de vestibular ou de livro
de ensino médio. Um exercício de física ou de geometria, por exemplo. Ou, se não
gosta de exatas, você pode lembrar de um conflito que vivenciou e que resolveu
depois de se esforçar para compreendê-lo intelectualmente e para criar o conceito de
uma solução.

Vamos trabalhar aqui alguns destes exemplos para termos mais consciência de
como ocorre a vivência do ato de pensar. Começaremos com um caso simples de
geometria para praticar o pensar e em seguida para tentar observar como ele
funciona.

Antes de realizarmos este exercício é importante incluirmos alguns parênteses


aqui. Você pode me perguntar: para que vou tentar compreender como funciona o meu
pensar e quais são as características dos conceitos se eu não sou um cientista de
neurociência, nem um filósofo profissional? Se eu não sou especialista nesses
assuntos, por que vou tentar observá-los e refletir sobre eles?

É justamente este o ponto chave. Se “terceirizamos” para especialistas toda a


compreensão sobre como funciona a atividade de pensar e de observar, então
perdemos a oportunidade de checar de modo simples e direto como os componentes
básicos da nossa própria criatividade pessoal (observar e pensar) funcionam em nós
mesmos.

Veja que não são coisas excludentes. Obviamente acho muito interessante ler
sobre as descobertas científicas de neurocientistas sobre como funciona o ato de
pensar e o ato de observar nos seres humanos em geral.

Mas, em paralelo, podemos ter o espírito crítico de não aceitar argumentos de


autoridade cegamente e podemos sim realizar as nossas constatações diretas na
própria consciência, por mais simples que sejam, sobre como é a experiência durante
os momentos em que observamos as coisas e durante os momentos em que
pensamos sobre elas.

É só assim, observando a própria vivência mental, que você vai saber de fato
como o seu ato de pensar e de observar funcionam na prática e como você pode
desenvolver com mais atenção a sua capacidade de pensar e observar para ser uma
pessoa cada vez mais criativa e cada vez mais autêntica e genuína. Nem tudo vale a
pena terceirizar plenamente…

Então vamos lá. Façamos um exercício bem simples. Primeiro, vamos tentar
criar um estado de calma interior para concentrar a nossa capacidade de atenção e,
em seguida, realizaremos mentalmente o exercício.

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Exercício 2 – Funcionamento do ato de pensar

“Pense conceitualmente uma circunferência. Ou seja, explique o que é o


conceito da circunferência”.

Descreva por escrito o que você observou durante o exercício.

Ok? Sugiro, que você pare de ler, feche o livro ou o computador e faça isso
mentalmente: “Pense conceitualmente uma circunferência. Explique o que é o conceito
da circunferência”.

Fez? Ok.

Primeira pergunta: ao pensar conceitualmente sobre a circunferência, você


chegou ao quê? A sua circunferência tinha uma cor específica na sua tela mental ou
tinha um tamanho? Era vermelha, roxa, azul? Era grande ou pequena?

Se você “pensou” uma circunferência com cor ou tamanho, desculpe... mas


isso não foi pensar a circunferência conceitualmente.

Irritante, não é?

O conceito da circunferência nunca será amarelo, ou vermelho; não será


grande nem pequeno. Uma circunferência vermelha e grande que visualizo na minha
mente não é o “conceito” da circunferência, mas é apenas uma “imagem mental” de
uma circunferência.

Se eu teimar em dizer que a circunferência é algo vermelho e grande e você


insistir que a circunferência é uma coisa azul e pequena, nós dois nunca vamos nos
entender sobre a circunferência. Seremos estranhos um para ou outro. Conflito
insolúvel.

O conceito da circunferência pode ser expresso, por exemplo, como o “lugar


geométrico dos pontos de um plano que equidistam de um ponto fixo.” (4)

Isso é válido para as circunferências de todas as cores e tamanhos. Sabemos


que chegamos no conceito da circunferência, quando esse conceito faz sentido aqui e
agora na nossa consciência e não é a lembrança da autoridade de um professor de
colégio que nos força a aceitar esta definição.

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Esse exercício é decisivo para compreender a Filosofia da Liberdade. O foco
da Filosofia da Liberdade é a relação entre a ação e o pensar. Mas muita gente nem
entende com clareza a diferença entre “pensar” e “ter imagens mentais”!

Com frequência, achamos que estamos pensando, mas nem estamos


pensando; estamos apenas “baixando arquivos” e interligando imagens mentais. Isso
não é pensar.

“Pensar” é uma atividade mental que chega a um conceito. “Pensar” não é uma
atividade mental que manipula imagens mentais.

Conceitos são abertos, no sentido que podem ser compreendidos por todas as
pessoas. As imagens mentais costumam ser mais “fechadas” e compartilhadas por
alguns grupos de pessoas e não por todas as pessoas racionais.

Todas as pessoas podem compreender o conceito universal da circunferência e


se entender sobre isso. Mas apenas uma “panelinha” de poucas pessoas vai
concordar que circunferência “só pode ser” uma coisa vermelha de 3 metros de
diâmetro e vai discordar das pessoas que acham que circunferência é algo de cores e
tamanhos que não cumprem com esta especificação.

A diferença entre “pensar conceitualmente” versus “ter imagens mentais” pode


parecer inofensiva neste exemplo de geometria, porque nada disso muda a nossa
vida.

Mas a nossa vida muda bastante, quando começamos a perceber como


limitamos a nós mesmos ao ter uma compreensão estreita dos fatos profissionais e
dos fatos pessoais, por nos fixarmos em imagens mentais e por não conseguirmos
ativar o nosso pensar para chegar a conceitos mais amplos sobre os fatos decisivos
nas nossas trajetórias.

Fixar-se em imagens mentais é limitar-se na vida e trombar em infindáveis


percepções de conflitos com as outras pessoas que têm imagens mentais diferentes
das nossas sobre os mais diversos assuntos.

Ativar o pensar conceitual é saber usar um trampolim para conseguir pular para
fora das gaiolas mentais limitadas e alcançar horizontes mais amplos e arejados que
proporcionam plataformas funcionais de compreensão e de diálogo com as outras
pessoas.

Não se deve confundir: “ter imagens de pensamento” é diferente de


elaborar pensamentos por meio do pensar.
Imagens de pensamento podem surgir mentalmente de modo sonhador
como noções vagas. Isso não é o pensar.
Capítulo 3

21
Façamos um outro exercício. Novamente, primeiro vamos criar um estado de
calma interior e nos preparar para uma outra reflexão simples com o objetivo de
vivenciar o pensar conceitual conscientemente.

Exercício 3 – Funcionamento dos conceitos

“Pense conceitualmente um trovão. Explique o que é o conceito do trovão”

Descreva por escrito o que você observou durante o exercício.

Recomendo novamente que você pare, feche e desligue tudo e realize esse
simples desafio para observar como o seu próprio pensar funciona.

Ok? Feito?

Agora relembramos do nosso esforço mental realizado há poucos momentos


em que tentamos explicar para nós mesmos o que é o trovão e constatamos que, para
encontrar o conceito do trovão, o nosso pensar foi buscar outros conceitos e
interligou-os de um modo bem lógico e específico: raio, descarga elétrica,
deslocamento do ar, som. Para explicar o conceito do trovão, o nosso pensar
estabeleceu um relacionamento entre todos estes conceitos. Portanto, um conceito
não é uma ilha isolada.

Um conceito é “uma ponte de significados”. Conceito é algo relacional; cria


relacionamentos entre coisas, fatos e ideias. No conceito do trovão, já encontramos o
conceito do raio. Não é possível explicar o conceito do trovão sem conectá-lo com o
conceito do raio.

Este simples exercício nos proporciona um segundo insight muito importante


para voltar a aplicar mais tarde no autoconhecimento e no diálogo: Conceitos são
pontes. Conceitos são relacionais. Quando temos esta constatação como uma
vivência mental durante os exercícios, percebemos a enorme responsabilidade, por
exemplo, da pessoa utilizar conceitos para definir a si mesma.

Dependendo dos conceitos que usamos para nos definir, estamos lançando
pontes para o passado ou para o futuro; estamos lançando pontes para becos sem
saída ou para direções promissoras; estamos lançando pontes na direção de pessoas

22
que vão nos boicotar ou na direção de pessoas com as quais vamos ter bons frutos
em colaborações produtivas. Conceitos são pontes.

Por quê para a minha observação o trovão ocorre na sequência do raio,


eu não tenho como saber a princípio; por quê meu pensar conecta o
conceito de trovão com o do raio, eu sei imediatamente a partir do
conteúdo de ambos os conceitos.
Capítulo 3

Existe uma enorme diferença de como as partes de um acontecimento


se comportam entre si para mim antes e depois de eu encontrar os
conceitos correspondentes.
A mera observação me permite acompanhar o desenrolar das partes de
um acontecimento, mas a relação entre elas permanece obscura,
enquanto eu não obtiver o auxílio dos conceitos.
Capítulo 3

O pensar é capaz de estabelecer fios de ligação de um elemento de


observação para o outro. Ele conecta, com esses elementos, certos
conceitos e, por meio disso, os traz em uma relação.
Capítulo 04

Um exercício ainda mais desafiador e que nos tira ainda mais da zona de
conforto é o exercício de “observar a atividade do pensar”. Uma das finalidades deste
exercício é intensificar a força de atenção.

O exercício ocorre em dois passos. No primeiro, você refaz um dos exercícios


simples de praticar o pensar conceitual – como, por exemplo, o exercício de pensar
conceitualmente sobre a circunferência.

Você cria o estado de calma interior, se concentra mentalmente e refaz este


exercício. Busca o conjunto de conceitos e a relação entre eles que explica o que a
circunferência é universalmente. Esforça-se para não precisar de nenhum argumento
de autoridade (as cenas de memória com a fala do professor do colégio, por exemplo),
mas busca uma explicação que lhe convença a si mesmo aqui e agora.

Quando a explicação que reativou lhe fez sentido, então você concluiu este
primeiro passo do exercício e segue para o segundo passo. Acalma a sua atividade
mental e se concentra para esse próximo desafio.

23
Exercício 4 – Observar o pensar mentalmente

Passo 1 – Refaça um exercício de vivenciar conscientemente a experiência do pensar


conceitual. Por exemplo: “Volte a pensar, por um momento, sobre o conceito de uma
circunferência para explicar pra você mesmo o que é uma circunferência”

Passo 2 – “Resgate pela memória a atividade de pensar que você acabou de realizar
para explicar a circunferência e observe mentalmente essa atividade de pensar que
você realizou, ou seja, observe o seu pensar conceitual sobre a circunferência”.

Descreva por escrito o que você observou durante o exercício.

Sugiro novamente que você simplesmente pare de ler, feche e desligue tudo,
refaça a primeira parte e, depois, faça esta segunda parte do exercício.

Ok? Fez?

Que passo do exercício foi mais fácil realizar: o primeiro ou o segundo passo?
Por quê?

Em geral, as pessoas consideram mais fácil o primeiro passo do exercício,


porque é mais concreto, mais usual. Estamos acostumados a pensar conceitualmente
sobre vários assuntos todos os dias.

Mas observar mentalmente a própria atividade de pensar não é algo que


costumamos fazer em nossa rotina. Observar mentalmente a atividade de pensar é
“um estado de exceção”.

A observação de uma mesa, de uma árvore surge em mim, assim que


esses objetos aparecem no horizonte das minhas vivências. Mas o
pensar sobre esses objetos eu não observo simultaneamente.

24
Eu observo a mesa e eu realizo o pensar sobre a mesa, mas eu não
observo esse pensar no mesmo instante.
Primeiramente, eu preciso me transpor para um ponto de observação
fora da minha própria atividade, quando eu quiser, além de observar a
mesa, também observar o meu pensar sobre a mesa.
Enquanto que observar os objetos e processos e pensar sobre eles são
estados plenamente cotidianos que estão presentes continuamente na
minha vida, a observação do pensar é um tipo de estado de exceção.
Capítulo 3

Quando pensamos sobre a circunferência, temos um objeto de reflexão mais


concreto; fica mais fácil de fixar a nossa atenção. Mas quando tentamos observar
mentalmente a nossa atividade de pensar, nosso objeto de reflexão é menos familiar e
mais “volátil”, por escapar constantemente da nossa atenção. Nós saímos
completamente da nossa zona de conforto.

A maior parte das pessoas que fizeram este exercício comigo não chegaram a
nada concreto. Mas, pelo menos, só essas tentativas “frustradas” já proporcionam o
real “resultado” que é o de fortalecer a capacidade da atenção. Esse é o resultado
desejado.

A dificuldade de compreender a essência do pensar pela observação,


decorre que essa essência facilmente foge da mente que a observa,
quando quer trazê-la na direção da sua atenção.
Capítulo 8

Mas algumas pessoas chegaram sim a mais constatações. Um dos resultados


relatados (além de fortalecer a capacidade da atenção) é constatar que se trata do
“meu próprio eu” que está em atividade. É possível ter uma experiência significativa de
autoconhecimento sobre a atividade mental da própria individualidade.

No dia a dia, costumamos observar reflexos indiretos do nosso “eu”: a lista de


coisas de que gostamos e não gostamos, as escolhas profissionais e pessoais do
passado, a trajetória de vida, os estilos, os cargos e posições etc... No entanto, ao nos
familiarizarmos com o exercício de observar mentalmente a própria atividade de
pensar (sem confundir o que é “pensar” com o que é “manipular imagens mentais”),
nos defrontamos não apenas com características pessoais ou papéis, nem com
resultados prontos e acabados que foram colhidos no passado.

Ao praticar a observação mental da atividade de pensar, a pessoa se defronta


com o meu próprio “eu” em atividade aqui e agora – a atividade de buscar sentido para
os fatos, por meio de um conjunto de conceitos; a atividade de interligar ideias; a
25
atividade de constatar, quando a explicação traz nexo ao que estava desconexo e luz
ao que estava intelectualmente escuro.

O desafio de observar mentalmente a atividade de pensar abre uma porta para


se ter experiências nítidas sobre a atividade do próprio eu.

É o próprio eu que, estando dentro do pensar, observa a sua própria


atividade.
Capítulo 3

Mas para que isso tudo? Para satisfazer alguma excentricidade “cult”?

Não. Para algo extremamente aplicado, tanto na vida prática, como na vida
ética. O exercício de observar o pensar e de se acostumar a contemplar o próprio eu
(o próprio senso de identidade) em atividade cria um sensor pessoal. Com este
sensor, conseguimos ser mais autocríticos durante todas as tomadas de decisão para
checar: “Será que sou eu mesmo quem está tomando esta decisão? Ou será que
estou apenas permitindo ser manipulado por “programações” já pré-estabelecidas de
como conectar imagens mentais em “decisões” que apenas aparentam serem
minhas?”

Em síntese, os exercícios de observar o funcionamento do próprio pensar


trazem os seguintes benefícios:

● Discernir melhor a diferença entre a atividade de pensar versus a atividade de


manipular imagens mentais;
● Vivenciar mais claramente a natureza de conceitos como redes de
relacionamentos: “conceitos são pontes de significado”;
● Intensificar a capacidade da atenção para ter mais clareza nos próprios
processos mentais;
● E desenvolver a sensibilidade para constatar em que medida a atividade do
próprio eu (senso de identidade) está presente durante as diversas decisões
tomadas.

Em conjunto, estes elementos fazem com que a nossa experiência com o ato
de pensar se transforme. O salto qualitativo em clareza e em autenticidade desenvolve
ainda mais a capacidade pessoal para o pensar intuitivo.

26
Observar Como Funciona o Próprio Ato de Observar os Fatos

Quando nós nos determinamos a observar alguma coisa, nem sempre


conseguimos mergulhar na essência dela e, com frequência, apenas passamos de
raspão pela superfície das primeiras aparências.

O problema é que nos acostumamos a projetar nas coisas muitas ideias


pré-concebidas, preconceitos e explicações descontextualizadas. Todas essas
projeções são nossas e não são características essenciais daquilo que estamos
observando.

É como se houvesse uma crosta espessa de “piche” que nos impede de


mergulhar na essência das coisas.

O ser humano parece se fazer cego, quando ele é forçado a inserir a


vida de representações mentais entre o mundo e si mesmo.
Capítulo 5

Inicialmente, a pessoa tem a impressão que observa os fatos de modo objetivo,


mas, na verdade, está captando apenas informação das suas próprias ideias
preconcebidas individuais ou dos preconceitos coletivos que estão presentes em nela.
Para superar essa tendência e mergulhar mais na essência das coisas, Steiner sugere
observar o ato de observar.

Um caso ilustrativo

No momento em que a minha filha nasce, eu direciono o meu olhar para ela.
Eu a esperei por tantos meses e a sentia por debaixo da pele da barriga materna, mas
não a via. Finalmente chega o dia em que a verei. Ela ainda está encoberta dentro do
ventre, na sala de parto, e eu fico esperando numa outra sala, já que informei a equipe
que costumo desmaiar ao ver muito sangue…

Depois de a médica abrir uma camada, duas, três camadas do ventre, agora só
falta a última, e podem chamar o papai. Eu entro na sala, fico meio de lado e, quando
a médica abre a última camada, ouço sons encantadores de um choro. Desloco o meu
pescoço e direciono o meu olhar, tudo em câmera lenta. E a vejo.

Minha filha! Você. Seus traços, seu semblante, suas cores, seus gestos.

Frações de segundo que duram uma eternidade, durante as quais eu


simplesmente acolho sem interpretar todo aquele conjunto de sensações visuais e
auditivas. Cores, formas, luzes, sombras, sons, cheiros, calor.

27
Permaneço aberto ao afluxo de sensações. Mergulho na essência do que vejo
e ouço, para viver plenamente aquele momento de ver, pela primeiríssima vez, a
minha filha tão amada.

Outro exemplo, desta vez mais banal.

Subo a Serra do Mar. A estrada e o mundo estão mergulhados nos véus


brancos de uma névoa densa. Movemos-nos bem devagar com o carro. Vejo o feixe
de luz dos faróis do nosso carro e vejo, esboçados bem de leve, os contornos do
para-choque traseiro do carro da frente. Nada mais. Tudo branco.

De repente, vejo algo. Um vulto vindo na direção do meu carro. Vou diminuindo
a velocidade ainda mais, até parar. Mas o que é aquilo? Uma pessoa? Um animal?
Que animal? Um cachorro? Uma vaca?

Sei que algo está diante de mim, mas não sei o que é. Situação perfeita para
observar como funciona o ato de observar. Nem tenho como me apoiar nas muletas
das ideias preconcebidas e das interpretações descontextualizadas. Só vejo um ...
“hããããã”. Só “hããããã”. Indefinido. Não sei o que é. Não me vem nenhuma palavra
interpretativa, nenhum conceito explicativo. Só “hããããã”.

Só sei que estou aberto e plenamente presente ao afluxo de sensações visuais


e auditivas daquela “coisa” dentro da densa névoa branca e que somente depois
constato: é um cavalo!

Sabemos que estamos observando um objeto sem as distorções das nossas


ideias e imagens preconcebidas, quando geramos intencionalmente, em nós mesmos,
este estado do “hããããã” e abrimos mão das explicações descontextualizadas.
Simplesmente nos determinamos a abrir nossos sentidos ao afluxo de sensações de
cores, formas, luzes, sombras, cheiros e sons do objeto.

Mergulhamos na essência do objeto sem interpretá-lo. Retiramos as camadas


grudentas das nossas projeções interpretativas aderidas em volta do objeto.
Livramo-nos do piche de ideias preconcebidas e explicações fora de contexto que nós
tínhamos jogado por cima das coisas. Agora o objeto está nu e cru diante de nós.

Steiner se pergunta como é que o objeto da observação chega à consciência


da pessoa:

Para responder essa pergunta, nós precisamos retirar de nosso campo


de observação tudo o que já foi colocado nele por atividades do pensar
realizadas anteriormente. Isso porque o nosso conteúdo de

28
consciência, a cada momento, sempre se encontra carregado com
conceitos nas mais variadas formas.

Temos que imaginar, que um ser com inteligência humana plenamente


desenvolvida surja do nada e se coloque diante do mundo.

Do que esse ser tomaria consciência neste momento antes que ele
colocasse o seu pensar em atividade: esse é o conteúdo puro de
observação.

O mundo mostraria para este ser apenas um agregado de objetos da


sensação desconexos: cores, sons, sensações de pressão, calor, sabor
e cheiro; em seguida sentimentos de prazer e desprazer.

Esse agregado é o conteúdo da observação pura, livre de


pensamentos.

Diante desse agregado, se encontra o pensar que está preparado para


exercer a sua atividade, assim que surgir um ponto de partida para isso.
Por experiência, sabemos que o pensar encontra um ponto de partida
em pouco tempo. O pensar é capaz de estabelecer ligações de um
elemento da observação para os outros.
Capítulo 4

Esse tipo de exercício faz com que o objeto se torne como que uma pista de
aeroporto livre, limpa e desimpedida, para que os conceitos contextualizados possam
aterrissar sobre as asas do nosso pensar intuitivo e esclarecer aquele conjunto de
sensações, explicando-as aqui e agora num mergulho mais completo e criativo.

Quando o ato de observar é bem mais intencional e atento do que o usual, ele
dribla as representações mentais descontextualizadas e nos faz ver os níveis mais
profundos da essência daquele objeto.

O exercício de observar o ato de observar nos oferece a oportunidade de


inserir o nosso pensar intuitivo nas ricas sutilezas daquele contexto tão único.

Qual é a importância desta capacidade de observar o ato de observar e dessa


capacidade de inserir o nosso pensar intuitivo nas sutilezas únicas de cada contexto
específico? A importância destas capacidades é que elas possibilitam uma vida “mais
prática”. Temos uma vida mais prática quando conseguimos ter uma visão mais
realista e abrangente dos fatos. Isso abre espaço para que o pensar intuitivo gere
soluções criativas e customizadas para cada situação específica.

Vejamos aqui o relato de uma observação do ato de observar, realizada por um


famoso empresário europeu que estudou a fundo a Filosofia da Liberdade, Götz
Werner, o fundador da grande empresa de varejo DM-Drogerie:

29
“Como a marca nos encontra? Podemos observar isso claramente quando se
trata da marca de um comércio: Entramos em uma loja. Ainda antes de
visualizar alguma coisa em particular, observamos a sua atmosfera específica.
Surge um sentimento espontâneo de simpatia ou antipatia. A iluminação, a
instalação, os quadros e imagens, os produtos apresentados e, sobretudo, o
tom de como os colaboradores falam e se comunicam com os clientes, tudo
isso atua em conjunto nesta primeira impressão.
Quando mergulhamos na atmosfera de uma loja, vivenciamos uma quantidade
inacreditável de aspectos. Isso acontece de modo tão rápido e direto que, nas
situações específicas, nós nem nos damos conta. Apesar disto, essa
impressão é decisiva. Ela toca toda a nossa sensação de bem estar.
E tudo isso é vivenciado como algo que nós atribuímos imediatamente à
empresa, é vivenciado como expressão desta empresa, como mensagem da
marca.”(5)

Exercício 5 - Observar o ato de observar

Descreva uma situação em que você esteve imerso no ato de observar


e aberto ao afluxo de sensações visuais, auditivas, e às demais sensações
sem a intervenção de interpretações e ideias prévias.

De que modo esse mergulho no ato de observar lhe permitiu


compreender melhor os fatos em questão?

Como Turbinar o Pensar Intuitivo? Desconstruir os Atos de Pensar e Observar

Veja que estratégia curiosa de Steiner: para desenvolver ainda mais a


capacidade do pensar intuitivo, ele “desconstrói” os componentes básicos da busca do
conhecimento – o ato de pensar e o ato de observar.

Quando aceitamos o desafio de acompanhar Steiner nessa corajosa


desconstrução e persistimos nessa jornada, somos presenteados com um significativo
fortalecimento do nosso pensar intuitivo.

30
Aqui me vem uma analogia. Os cientistas compreenderam mais sobre o
espectro da luz quando eles foram além das cores óbvias que todo mundo vê no
arco-íris e desconstruíram as noções tradicionais sobre a luz.

De um lado extremo do arco íris, os cientistas foram investigar o que vai além
da cor roxa e encontraram o ultravioleta, que não é uma cor que se vê usualmente,
mas é um fenômeno químico que se constata em condições especiais de laboratório.

No outro extremo, os pesquisadores também foram investigar o que vai além


do vermelho e encontraram o infravermelho que também não é mais uma cor no
sentido usual, mas é “calor”, o que também se constata em condições especiais de
laboratório.

Como resultado dessa desconstrução, os cientistas compreenderam melhor a


natureza das cores do arco-íris e puderam criar mais inovações práticas que utilizam
os fenômenos da luz.

De modo semelhante, vejo que Steiner utilizou as condições especiais do seu


“laboratório mental” em exercícios para investigar os limites da atividade usual do
conhecimento ao observar o ato de pensar e ao observar o ato de observar.

Ao investigar os limites da experiência humana durante o ato de pensar usual,


Steiner constatou características decisivas da natureza dos conceitos e do senso de
identidade. E essas constatações geram decorrências bastante úteis:

● Perceber quando nos limitamos por imagens mentais engessadas ou quando


alcançamos conceitos mais abrangentes para compreender os fatos e as
pessoas;
● Perceber quando nos definimos com conceitos que nos levam a pontes e
conexões disfuncionais ou quando nos definimos com conceitos que nos levam
a conexões e rumos mais libertadores;
● Poder intensificar a capacidade da atenção; e
● Aumentar a sensibilidade para a presença do próprio senso de identidade nas
decisões que você quer que sejam realmente as suas.

Além disso, ao investigar os limites da experiência humana durante o ato usual


de observar, Steiner percebeu que a nossa capacidade de atenção pode retirar a
“crosta de piche” de ideias preconcebidas e de imagens mentais descontextualizadas
que nos impedem de ver os fatos como eles são. Isso é decisivo para nos permitir criar
soluções bem mais práticas aos desafios e demandas que agora conseguimos
observar de modo mais contextualizado e com maior riqueza de detalhes.

31
Conviver com Perguntas Essenciais

Outro modo de desenvolver intencionalmente o pensar intuitivo num campo


temático específico é conviver com perguntas essenciais.

O status atual da minha capacidade de conhecimento é limitado, porque


também é limitado o status atual das minhas capacidades de pensar e de observar. O
que me estimula a ir além das minhas limitações atuais num assunto específico? São
as perguntas essenciais.

As suas perguntas essenciais ampliam a capacidade de conhecimento, por


desafiarem a sua capacidade de observar e de pensar no campo temático escolhido.
Conviver com perguntas essenciais é conectar, cada vez mais, a sua individualidade
com os fatos e com o mundo ao seu redor.

Vejamos em que medida uma pergunta essencial é coletiva ou é individual.


Uma pessoa gera uma pergunta essencial quando se confronta com os fatos. Ela
observa os fatos e busca uma explicação para o que não compreende nestes fatos.

O primeiro passo, nesse processo é a criação de uma imagem interior a partir


da observação. Quando observa um objeto vermelho, por exemplo, ela cria uma
imagem mental dele. Essa imagem mental é igual à imagem mental que uma outra
pessoa cria ao observar o mesmo objeto vermelho? Não. Nossos órgãos dos sentidos
não funcionam de modo exatamente idêntico. Por exemplo, talvez uma pessoa seja
daltônica e a outra não.

Um outro exemplo mais significativo: eu e você estamos trabalhando num


mesmo projeto e surgem problemas e oportunidades imprevistos. As imagens mentais
que terei sobre a situação serão bem diferentes das imagens que você terá, porque
temos modos de olhar e observar bem diferentes em função de vários fatores bastante
subjetivos:

● a diferença do local onde nascemos e passamos a infância;


● a profissão que escolhemos;
● os lugares em que moramos;
● nossos gostos políticos;
● nossa diferença de idade;
● nossas diferenças de estilo; etc.

Tudo isso, faz com que você olhe os fatos e as situações com “óculos” que são
só seus. Tudo isso faz com que, para interpretar a realidade, você configure imagens
mentais que são só suas e bem diferentes das imagens mentais de outras pessoas
para os mesmos fatos.

32
Como a forma de ver e observar é muito pessoal, as imagens mentais que
você cria destes fatos também serão pessoais. Por decorrência, os questionamentos
que lhe surgem para você buscar explicações também serão muito pessoais. É por
isso que as perguntas essenciais são muito individuais.

No nosso conhecimento, trata-se de perguntas que nos surgem, quando


uma esfera de observações (condicionada pela localização, pelo tempo
e pela organização subjetiva) se confronta com uma esfera de conceitos
(que indica em direção da unidade do universo).
Minha tarefa consiste em equilibrar essas duas esferas que me são tão
familiares.
Não é possível falar aqui de um limite do conhecimento.
Pode ser que, em algum momento, isso ou aquilo permaneça sem
explicação, porque estamos impedidos pelo nosso lugar na vida de
observar as coisas que estão em jogo.
Mas, o que não é encontrado hoje, pode ser encontrado amanhã. As
limitações condicionadas desse modo são passageiras e podem ser
superadas, por meio do progresso da observação e do pensar.
Capítulo 7

Conforme você convive dias, semanas, meses ou até mesmo anos, com a
mesma pergunta essencial, ela lhe desafia a direcionar a sua atenção para você
observar mais profundamente os fatos. A pergunta essencial também estimula o seu
pensar intuitivo para buscar uma nova relação de conceitos que expliquem melhor os
fatos.

Conviver com perguntas essenciais é um modo adicional para desenvolver


sistematicamente o pensar intuitivo em um campo temático específico.

Exercício 6 - Conviver com uma pergunta essencial

Com que pergunta essencial você conviveu bastante tempo?

De que modo ela lhe ajudou a observar os fatos de novos modos e a ter novos
insights?

33
Síntese do “Laboratório Mental” para Desenvolver o Pensar Intuitivo

Podemos concluir que, na Filosofia da Liberdade, Steiner propõe três formas


para desenvolvermos sistematicamente a capacidade do pensar intuitivo:

● Observar como funciona a própria atividade de pensar;


● Observar como funciona o próprio ato de observar; e
● Conviver com perguntas essenciais.

Ao desenvolver a capacidade do pensar intuitivo desses modos, podemos encontrar


os seguintes aprendizados:

● Ter a vivência e o insight de que a atividade de pensar com conceitos é bem


diferente da atividade de manipular imagens mentais;
● Ter a vivência e o insight de que conceitos fazem pontes de significado entre as
coisas e também pontes de significado entre cada pessoa e a vida;
● Desenvolver a capacidade de atenção;
● Desenvolver um sensor para sentir em que medida é a nossa própria
individualidade (o próprio “eu”) que está tomando uma decisão ou não;
● Tirar as camadas de ideias preconcebidas e explicações descontextualizadas
que nos impedem de ver os fatos com maior riqueza de detalhes, a fim de
desenvolver soluções mais customizadas e mais “práticas” para aquele
contexto em questão; e
● Desenvolver a capacidade de observar e de pensar sobre um assunto
específico relacionado a uma pergunta essencial com a qual nós convivemos
por bastante tempo.

Agora podemos sair deste laboratório mental, onde realizamos exercícios tão
teóricos e sem nenhuma utilidade imediata, e podemos perceber que conquistamos
novas perspectivas.

Com a capacidade do pensar intuitivo fortalecida, voltaremos para a vida prática e


aplicaremos os novos insights e aprendizados nos próximos desafios.

Será que o pensar intuitivo renovado nos abre possibilidades inéditas para o
auto-conhecimento?

Será que o pensar intuitivo amplia a nossa capacidade para compreender a outra
pessoa com mais veracidade?

34
Será que o pensar intuitivo nos ajuda a comunicar mais genuinamente a própria
essência pessoal, para aumentar a chance de cada um de nós ser compreendido por
outro ser humano?

Será que, nos voos do pensar intuitivo, podemos encontrar novos pontos de
convergência e sinergia para as nossas intenções?

35
TERCEIRA PARTE

O PENSAR INTUITIVO NO AUTOCONHECIMENTO E EM ALGUNS


ASPECTOS DO DIÁLOGO

Na primeira parte deste livro, vimos que o pensar intuitivo já está disponível
para todos nós dentro das ações genuínas já realizadas na biografia de cada um. Na
segunda parte, viajamos a um laboratório mental e praticamos exercícios sistemáticos
para desenvolver ainda mais a capacidade do pensar intuitivo.

Agora, na terceira parte, veremos como o pensar intuitivo fortalecido pode ser
praticado no autoconhecimento e nos diálogos para a compreensão mútua, para a
superação de conflitos e também para a identificação de novas oportunidades de
colaboração.

Compreender a Individualidade Genuína em Si Mesmo e no Outro

Solidão é um sentimento com faces óbvias e com algumas faces menos


óbvias. Com frequência, consideramos que o sentimento de solidão é uma experiência
muito ruim, por incomodar bastante. No entanto, esse sentimento também pode ser
um sinalizador valioso que nos indica novas oportunidades de autoconhecimento e de
diálogo.

Até mesmo nas fases de vida mais fartas de calor humano dos amigos e familiares à
nossa volta, a solidão pode bater forte em nossas portas existenciais mais íntimas.

Você aceita fazermos um breve teste? Então reflita:

Na sua vida atual, quantas pessoas você percebe que realmente compreendem a sua
individualidade genuína e o seu senso de propósito? Cinco pessoas? Duas? Dez?
Zero? Uma pessoa? Quantas?

Por outro lado, quantas pessoas se sentem, de fato, compreendidas por você,
enquanto individualidades genuínas?

Meu senso de propósito é constituído por camadas concêntricas.


Vejo com clareza as camadas mais superficiais à minha frente, mas
ainda não consigo ver muito bem as camadas seguintes e mais
profundas do meu senso de propósito que pressinto serem a expressão
de aspectos ainda mais autênticos de mim.

36
Minha clareza sobre as camadas mais superficiais do meu
senso de propósito é o que me proporciona firmeza na vida. Graças a
essa clareza, pude conquistar o meu espaço atual nos ambientes
profissionais e pessoais, porque um número razoável de pessoas me
compreende e me apoia nessas camadas mais superficiais do meu
propósito.

Mas, apesar de ter o meu espaço, meus amigos e as pessoas


que amo, com frequência sinto uma profunda solidão…Solidão, por não
me sentir acompanhado nos momentos que tento tatear as camadas
mais profundas do meu senso de propósito, as quais não consigo ainda
ver nitidamente e não consigo traduzir em palavras precisas.

Gélida solidão. Nas camadas mais profundas e indefinidas da


realização da minha individualidade genuína, são tão poucas as
pessoas que me compreendem, que me apoiam!

Alívio. Como descrever a felicidade de quando você surge, me


compreende e me apoia até mesmo nas camadas mais indefinidas,
porém mais essenciais de mim. Com isso, você me dá asas para eu ser
uma pessoa ainda mais autêntica.

Acolhimento. E que reconforto você sente, quando eu também


me dedico para lhe compreender nas suas camadas mais indefinidas e
essenciais.

Como reduzir esse sentimento de solidão? As práticas do autoconhecimento e


do diálogo oferecem uma possibilidade para superar a solidão existencial.

O desafio do autoconhecimento na Filosofia da Liberdade consiste em a


pessoa praticar o pensar intuitivo para encontrar conceitos vívidos e claros que
definem a si mesma. E o desafio do diálogo humano na Filosofia da Liberdade é
compreender o pensar intuitivo da outra pessoa que ela utiliza para definir a si mesma.

Para compreender outro ser humano, é necessário ir além das características


“típicas” da pessoa; além das características tão previsíveis dela, por serem parte de
um padrão de comportamento dos grupos sociais de mesma profissão, ou de mesma
religião, ou que vieram da mesma localidade etc.

Cada pessoa tem características únicas e individuais em seu modo de pensar


e no modo de definir seus objetivos e propósitos.

37
O modo como uma pessoa específica pensa, não é possível deduzir a partir de
alguma idéia generalizante sobre a espécie humana. Para isso, a medida
decisiva é apenas o próprio indivíduo.
Também não é possível definir, a partir do caráter do ser humano em geral,
quais metas concretas o indivíduo quer almejar.
Quem quiser compreender um indivíduo em particular, tem que chegar até o
seu ser único, sem parar nas características típicas. Nesse sentido, cada ser
humano específico é um desafio e um “problema” a ser compreendido.
Capítulo 14

Isso significa que, para compreender uma outra pessoa, temos que abrir mão
da forma como nós a interpretamos. Em vez disso, devemos tentar compreender como
ela compreende a si própria.

Para todos os outros objetos, o observador tem que obter os conceitos por
meio de suas intuições; para compreender uma individualidade livre, trata-se
de captar em nosso intelecto (espírito) os conceitos dela, pelos quais ela define
a si própria. Temos que captar esses conceitos dela de modo puro (sem serem
misturados com os conteúdos dos próprios conceitos do observador).
Capítulo 14

Compreendemos a outra individualidade quando conseguimos calar a nossa


própria atividade de pensar para acolher como ela pensa a si mesma; a fim de acolher
como ela estabelece conceitos para se autodefinir.

A decorrência existencial disso, na vida prática, é significativa: Pois, se você


quiser ser compreendido pelas pessoas, você precisa primeiro ajudá-las a
compreender os conceitos que você escolhe para definir a si mesmo.

Quantas pessoas reclamam por não se sentirem compreendidas! Mas a


pergunta decisiva é se a pessoa é capaz de ajudar os outros a compreendê-la.

Se eu não me esforço para compreender mais claramente a mim mesmo, como


posso ter a expectativa de que uma outra pessoa consiga me compreender? Por esse
motivo, para você se sentir mais compreendido, precisa primeiro cumprir com a lição
de casa de buscar um discernimento mais claro de como você define a si mesmo.

E como fazer para ter mais clareza sobre os conceitos que você sente fazerem
sentido para se autodefinir? Tenho feito este exercício com centenas de pessoas em
várias cidades, e percebi algumas armadilhas.

Algumas pessoas se definem “copiando e colando” (copy e paste) o modo


como personalidades admiradas se definem. Outras se definem de modo tão vago e
38
genérico que não diz nada sobre si mesmas. Ainda outras se definem mais para
cumprir com a expectativa de alguém sobre “como elas deveriam ser”. Também
percebi que algumas pessoas emperram ao tentar se autodefinir: sentem o peso
excessivo da responsabilidade. “Decisivo demais. Melhor deixar para outro dia…”

Para não cair nestas armadilhas, recomendo que a pessoa pratique o exercício
de se auto definir sem idealizar nem complicar muito. A pessoa faz o exercício agora
na medida em que for possível e vai melhorando esse exercício, por exemplo, em
revisões a cada ano.

Autodefinir-se é sim algo bastante existencial e com decorrências práticas


significativas. É a autodefinição consciente que nos direciona até as portas e caminhos
da vida que queremos abrir e que nos alertam para as portas e caminhos que é mais
sensato fechar. É a autodefinição que gera espontaneamente os critérios para
considerarmos quais atividades fazem sentido e quais são perda de tempo. É a
autodefinição que também nos traz clareza sobre quais encontros humanos são
benéficos e quais são disfuncionais.

Pelo motivo de a autodefinição ser tão existencial e impactar quase todos os


campos da vida pessoal e profissional, raramente a pessoa vai ficar 100% satisfeita
com a primeira tentativa de se autodefinir claramente. Vale a pena deixar fluir o
exercício de autodefinição e ir notando que, a cada nova revisão, a pessoa chega
numa autodefinição mais fácil de comunicar e mais consonante com o sentimento que
ela tem de seu próprio sentido de vida. A cada nova revisão, a autodefinição ganha em
clareza e em autenticidade.

Mas como começar? Qual seria um ponto de partida para se autodefinir? Na


Filosofia da Liberdade, Steiner indica que os conceitos que utilizamos para definir a
nós mesmos surgem com clareza a partir de sentimentos vagos da própria existência.

Primeiramente nós nos sentimos como seres existentes e, ao longo do


gradativo desenvolvimento, nós arduamente chegamos ao ponto, no qual
surge o conceito de si próprio, a partir do sentimento vago da própria
existência.
O que, só mais tarde, surge na nossa consciência, já está originalmente
ligado inseparavelmente com o sentimento.
Capítulo 8

Em relação a esse “sentimento vago da própria existência”, me parece que


Rudolf Steiner não se refere a qualquer tipo de sentimento existencial, mas sim
àqueles sentimentos existenciais específicos que nos inspiram sobre o sentido da
própria vida.

39
São sentimentos existenciais que, em raros momentos, nos surgem e nos
presenteiam com a sensação de sermos tocados sutilmente pelo mais significativo
potencial do nosso próprio ser.

Por isso, é interessante, como ponto de partida, se lembrar de uma situação na


qual você vivenciou sentimentos existenciais significativos e que lhe inspiraram
(naquele momento ou mais tarde) a ter insights decisivos sobre o próprio senso de
propósito e sobre a definição de si mesmo.

Na primeira parte deste livro, eu relatei uma ação genuína que realizei aos 16
anos de idade durante um assalto em casa, no qual o pensar intuitivo me ajudou a
perceber novos fatos sobre o assaltante, me ajudou a me preencher de envolvimento
emocional positivo com o processo criativo e me ajudou a descortinar com clareza
conceitos da minha autodefinição como um facilitador de diálogos potencialmente auto
transformadores. Visualizei essa autodefinição num relance durante aqueles instantes,
mas só muitos anos mais tarde é que eu pude ter a plena consciência sobre o
significado dela e desse momento biográfico.

Portanto, a vivência existencial de ter realizado aquela ação genuína me


conduziu “ao ponto, no qual surge o conceito de si próprio, a partir do sentimento vago
da própria existência”, conforme as palavras de Steiner.

Como um segundo exemplo ilustrativo, compartilho com você a lembrança de


uma vivência existencial que sempre volta à minha memória e que também dá direção
e sentido às minhas reflexões de autodefinição.

Eu tinha nove anos de idade; estava com minha família, indo de carro, à
noite, de São Paulo para a nossa casa em Campos do Jordão. Ao subir a Serra
da Mantiqueira, eu sentei no colo da minha mãe em um longo abraço. Então,
olhei pela janela e visualizei o amplo panorama do céu estrelado. Parecia que
dava para tocar a via láctea.

Contemplei a amplidão das estrelas. Contemplei a interioridade de


coração no amor de mãe e filho.

De repente, uma intuição. Uma intuição que preencheu toda a minha


alma e o meu corpo com um profundo estado melancólico.

– “As estrelas ficam e a gente não!”


– “Eu e a minha mãe vamos morrer. Talvez ela morra antes de mim.
Talvez eu morra antes dela. Mas o certo é que ambos vamos morrer um dia.”
– “As estrelas ficam”

40
Essa melancolia foi, ao menos, atenuada pela vivência: “Ao contemplar
as estrelas e ao contemplar o amor de mãe e filho, este momento, de algum
modo, se torna mais do que um momento”.

Hoje, quando reflito sobre os sentimentos existenciais desta vivência que tive
aos nove anos, obtenho maior clareza conceitual para definir a mim mesmo como um
pesquisador de práticas contemplativas de meditação e mindfulness.

Exercício 7 – Autoconhecimento – Compreender-se como Individualidade


Genuína

Escreva para você mesmo sobre uma vivência existencial específica que tenha
sido significativa na sua biografia e que lhe inspira para encontrar os conceitos que
mais lhe fazem sentido para você definir a si mesmo.

Pode ser qualquer tipo de vivência existencial da infância ou da vida adulta que
lhe sinaliza sobre o significado da sua vida.

Uma opção, por exemplo, é uma situação, na qual você realizou uma ação
genuína que lhe permitiu ter mais clareza sobre o seu próprio senso de propósito e lhe
permitiu encontrar uma forma mais autêntica de você ver a si mesmo e definir a si
mesmo.

a) Descreva a situação e a vivência existencial. Se você optou por uma vivência


durante uma ação genuína, então, descreva também a ação genuína.

b) Com base nisso, expresse, por escrito, como você define a si mesmo. Ou seja,
expresse, por escrito, os conceitos que lhe fazem sentido para se autodefinir.

c) De que modo essa vivência existencial (ou essa ação genuína) proporcionou maior
clareza sobre o seu senso de propósito e sobre os conceitos que você vê sentido
escolher para definir a si mesmo?

Exercício 8 – Diálogo para Compreensão Mútua como Individualidades Genuínas

41
a) Em duplas. Uma pessoa fala durante 5 a 15 minutos e a outra somente escuta. A
pessoa que fala apresenta:

i) o caso de sua vivência existencial ou de sua ação genuína;

ii) os conceitos que escolheu para se autodefinir; e

iii) a conexão entre essa vivência e esses conceitos de autodefinição; explique


de que modo essa vivência existencial lhe inspirou para escolher os conceitos de
autodefinição.

b) Diálogo livre para aprofundar a compreensão.

c) Troca de papéis na dupla: quem falou agora escuta, e quem escutou agora fala
sobre os tópicos acima e, então, prosseguir com o diálogo livre.

Observação:

Tente escutar a outra pessoa sem interpretá-la. O desafio é “captar em nosso intelecto
(espírito) os conceitos dela, pelos quais ela define a si própria. Temos que captar
esses conceitos dela de modo puro (sem serem misturados com os conteúdos dos
próprios conceitos do observador).

Para isso, precisamos nos esforçar para desenvolvermos uma certa sensibilidade para
captar os movimentos do pensar intuitivo do outro.

O Desafio da Compreensão Mútua de Nossas Intenções Legítimas

O foco do livro “Filosofia da Liberdade” é compreender como cada pessoa


desenvolve a sua própria individualidade genuína e livre. Mas qual seria a decorrência
disso para a vida em sociedade?

Imagine duas pessoas que já convivem relativamente bem. Cada uma delas
começa a desenvolver ainda mais o seu pensar intuitivo e a sua própria
individualidade genuína. A convivência entre elas vai continuar a ser viável ao longo
do tempo ou a conexão entre elas vai se romper?

42
Mas como é possível uma vida conjunta entre os seres humanos,
quando cada um só busca fazer valer a sua individualidade?
Capítulo 9

Para lidarmos com esta questão, utilizaremos aquela distinção entre “pensar” e
“ter imagens mentais” que já vimos na parte anterior do nosso estudo. Relembrando:
com frequência, achamos que estamos pensando, mas não estamos. Essa confusão
acontece, quando conectamos imagens mentais passivamente.

As imagens mentais são úteis e necessárias em várias situações. No entanto,


é bastante comum que elas se engessem em explicações desatualizadas e
desalinhadas com as sutilezas do contexto em mãos aqui e agora.

A atividade de pensar funciona de modo bem diferente disso. O ato de pensar


resulta na obtenção de conceitos e de ideias contextualizados com os detalhes
essenciais da observação dos fatos. Conceitos e ideias são significados abrangentes
que podem ser compreendidos por todas as pessoas racionais e podem ser
operacionalizados em diversas possíveis configurações diferentes.

Para ilustrar a distinção entre pensar versus “ter imagens mentais”, vimos que
o conceito de uma circunferência pode se expressar como “a figura geométrica de
uma linha que une pontos equidistantes de um mesmo ponto central”. Esse conceito
explica o que a circunferência é, sendo que essa explicação faz sentido para mim aqui
e agora, e também faz sentido para inúmeras outras pessoas, ao pensarmos
ativamente a respeito da circunferência.

Vimos também que a imagem mental limita esse conceito para apenas uma de
suas inúmeras possibilidades de operacionalização; como, por exemplo, a imagem
mental de uma circunferência vermelha de 3 metros de diâmetro, que é bem diferente
de uma outra circunferência azul de 2 milímetros de diâmetro. Se eu acredito que a
circunferência tem que ser vermelha e você acredita que a circunferência tem que ser
azul, então nós não nos entenderemos. Mas se nós dois ativarmos a nossa
capacidade de pensar, então chegaremos ao mesmo conceito universal do que é uma
circunferência e nós nos entenderemos.

As reflexões a seguir, sobre o pensar intuitivo no diálogo humano, partem desta


experiência mental do papel dos conceitos e das ideias. Os seguintes papéis dos
conceitos e das ideias contribuem para eficácia do diálogo:

a) o papel de abranger significados amplos e de incluir inúmeras pessoas em


torno de uma mesma compreensão racional;

b) e o papel de gerar enorme flexibilidade, porque conceitos e ideias podem ser


operacionalizados concretamente de muitas diferentes formas.

43
Obviamente, ao longo da convivência entre duas individualidades genuínas,
podem surgir conflitos. No entanto, individualidades que sabem praticar o pensar
intuitivo conseguem descobrir várias soluções para o conflito. Isso porque o pensar
intuitivo nos ajuda a encontrar os conceitos decisivos sobre os objetivos e as
necessidades legítimas em jogo para identificarmos novas alternativas viáveis de
como atendê-los(6).

Quando presenciamos conflitos de outras pessoas, fica mais fácil observar a


tendência humana de “engessar” as opiniões. Isso é um claro sinal de que as pessoas
não estão praticando o pensar intuitivo e não estão chegando aos conceitos mais
universais que ajudam a ver a situação sob novas perspectivas.

Em conflitos emperrados por opiniões engessadas, as pessoas se limitam por


imagens mentais tendenciosas sobre “certo” e “errado” e por imagens mentais que
depreciam o outro ser humano.

Um mal entendido ético, um conflito está fora de cogitação no caso de seres


humanos eticamente livres.
Somente a pessoa eticamente não-livre (que segue o instinto da natureza ou
um mandamento de obrigação que ela considera) rejeita a outra pessoa,
quando ela não segue o mesmo instinto e o mesmo mandamento.
Capítulo 9

Mas também é possível observar situações bem diferentes que não são
limitadas pelas imagens mentais: pessoas que solucionam um conflito por meio de
diálogos transparentes e que alcançam conceitos mais amplos para ver o conflito “com
novos olhos” e encontrar os pontos de sinergia entre as intenções dos envolvidos.

A diferença entre eu e o meu semelhante não consiste de nós dois vivermos


em dois mundos intelectuais (espirituais) inteiramente distintos, mas consiste
dele receber outras intuições do que eu, a partir do mundo das ideias que nos
é comum. Ele quer desenvolver plenamente as intuições dele e eu, as minhas.
Quando nós dois realmente nos abastecemos a partir da ideia e não seguimos
nenhum estímulo exterior (físico ou intelectual), então nós necessariamente
nos encontraremos nas mesmas aspirações e nas mesmas intenções.
Capítulo 9

Portanto, o pensar intuitivo no diálogo pode resultar na convergência entre a


minha intenção e a sua intenção. Essa é a base para não nos dilacerarmos em tantos

44
conflitos sem sentido. Essa é a base para eu e você iniciarmos uma convivência
colaborativa.

É verdade que, num primeiro momento, eu e você podemos sim ter a


desagradável impressão de estarmos aprisionados em um conflito insolúvel, porque as
minhas palavras não são capazes de lhe transmitir plenamente a vivacidade e a
abrangência dos conceitos e ideias-chave que estão no núcleo dos meus reais
propósitos.

De modo semelhante, as suas palavras não me chegam com a clareza


desejada. Parece que elas estão envoltas por “embalagens” fabricadas pelas minhas
próprias imagens mentais, me impedindo o acesso ao núcleo de bom senso dos
conceitos escondidos dentro do seu propósito.

O que nos tira desse jogo de distorções? – O diálogo.

O diálogo entre duas individualidades genuínas é a prática do pensar intuitivo


para a compreensão mútua das intenções legítimas de cada um (7, 8, 9, 10).

É o pensar intuitivo que me possibilita desembrulhar as embalagens de


mal-entendidos que estão em torno das suas palavras. Finalmente chego ao núcleo
dos conceitos significativos lá dentro dos seus propósitos.

Como os conceitos são pontes de significado, ao compreender os conceitos


essenciais dentro dos seus propósitos eu já vejo como eles lançam pontes que
conectam os seus propósitos com os meus.

Com isso, fica óbvio visualizarmos soluções para os conflitos que naturalmente
surgem ao longo da nossa convivência. Com isso, fica óbvia a potencial sinergia entre
os meus propósitos e os seus propósitos em promissoras colaborações.

Nas palavras de Rudolf Steiner, “Quando nós dois realmente nos abastecemos
a partir da ideia e não seguimos nenhum estímulo exterior (físico ou intelectual), então
nós necessariamente nos encontraremos nas mesmas aspirações e nas mesmas
intenções”.

Além disso, se eu pratico o pensar intuitivo, então encontrarei o meu propósito


de vida, meus propósitos profissionais e meus propósitos operacionais do dia a dia. Se
você pratica o pensar intuitivo, então você também encontrará o seu propósito de vida,
os seus propósitos profissionais e os seus propósitos operacionais.

Os meus propósitos e os seus propósitos entrarão em conflitos ou vão reforçar


uns aos outros? Como nós obtivemos estes propósitos por meio do pensar intuitivo,
então cada um de nós compreende os significados amplos e essenciais dos conceitos
e das ideias que constituem o próprio propósito. Por isso, não será difícil encontrarmos
criativamente várias alternativas de como operacionalizar na prática os nossos
45
propósitos. Algumas destas numerosas alternativas de realização poderiam conflitar.
Mas nós temos como escolher as várias outras alternativas que não conflitam.

Portanto, para individualidades genuínas que geraram seus propósitos pelo


pensar intuitivo, não é possível se atolar em conflitos.

Parece-me que é essa a linha de raciocínio de Steiner, ao afirmar que “um mal
entendido ético, um embate está fora de cogitação no caso de seres humanos
eticamente livres”; ele considera que o “ser humano eticamente livre” é a
individualidade que contribui com o bem maior a partir de ações genuínas, do pensar
intuitivo e do diálogo.

Em síntese, as colaborações fundamentadas no pensar intuitivo são fortes e


suaves. O pensar intuitivo proporciona colaborações fortes de impacto por serem
fundamentadas em conceitos criativos e contextualizados com as sutilezas dos
detalhes do ambiente da colaboração.

E o pensar intuitivo também proporciona colaborações suaves, por nos equipar


com a flexibilidade mental necessária para driblarmos as percepções de conflito que
surgem ao longo do caminho.

Exercício 9 – O Pensar Intuitivo na Resolução de Conflitos e na Criação de


Colaborações

46
a) Descreva uma situação de resolução de conflito que você participou.

i) Que ideia ajudou as pessoas envolvidas a verem a situação de modo mais


criativo, mudando a forma de enxergar o conflito?

ii) Qual foi o insight decisivo para a solução do conflito?

iii) Qual era sua intenção legítima e qual era a intenção legítima da outra
pessoa? De que modo as intenções convergiram (se harmonizaram) após a resolução
do conflito?

iv) Qual foi o papel do diálogo na resolução do conflito?

b) Descreva uma situação em que você, junto com uma ou mais pessoas,
aproveitaram uma promissora oportunidade de colaboração.

i) Qual foi a colaboração? Que possibilidade de convergência das intenções foi


identificada?

ii) Qual foi o papel do diálogo na identificação dessa oportunidade de


colaboração?

QUARTA PARTE

SÍNTESE DOS QUINZE CAPÍTULOS DA FILOSOFIA DA LIBERDADE

Rudolf Steiner lançou a primeira edição do livro “A Filosofia da Liberdade” no


ano de 1893. Vinte e cinco anos depois, em 1918, editou a versão mais difundida do
livro com algumas complementações e alterações.

47
O livro conta com três partes. A primeira parte vai do capítulo 1 ao capítulo 7 e
é intitulada “Ciência da Liberdade”. A segunda parte contém os capítulos 8 ao 14 e é
denominada “A Realidade da Liberdade”. E a terceira parte com o título “As Questões
Finais” contém apenas um capítulo.

Capítulo 1

A Relação entre Liberdade, Ação e Conhecimento

Será que o ser humano pode ser livre ao realizar uma ação? Ou será que as
pessoas sempre são forçadas a agir do modo que agem?

Um dos pensadores que considera que a liberdade humana é uma ilusão


argumenta que um bêbado pode se sentir livre durante o momento em que fala algo
ofensivo. Mas, depois que o efeito do álcool passa e o sujeito retoma a sobriedade, ele
se arrepende de ter dito palavras inadequadas para alguém e percebe que não foi
livre.

Mas será que podemos comparar o ato de um bêbado com os atos de um


cientista no laboratório ou de um diplomata nas mesas de negociação? A diferença
entre um diplomata e um bêbado é que o diplomata tem um conhecimento
aprofundado sobre os motivos das suas ações.

Em que medida, posso me sentir mais livre, quando tenho conhecimento do


motivo de uma ação? E como funciona a minha atividade de pensar no momento em
que me torno consciente do motivo de uma ação?

Para compreender se é possível termos conhecimento do motivo da ação,


primeiro precisamos saber como funciona o nosso processo de ter conhecimento das
coisas em geral. Em seguida, poderemos entender como funciona o nosso processo
de ter conhecimento na situação específica de conhecermos o motivo de uma ação.

Além disso, podemos checar em que medida notamos um maior sentimento de


liberdade resultar da ação que realiza um motivo consciente.

Por esse motivo, os primeiros sete capítulos do livro (de um total de quinze
capítulos) buscam compreender como funciona o nosso processo de ter conhecimento
e qual é o papel do pensar intuitivo nesse processo.

Capítulo 2

O Desejo que Mobiliza a Busca por Conhecimento

48
Em que contexto real nós vivenciamos as motivações mais fortes para
ativarmos a busca por conhecimento?

Podemos observar na nossa vida prática, que o desejo por conhecimento


surge com força nos momentos em que observamos algo que nos causa uma
sensação de estranhamento enigmático.

Sinto-me integrado e familiarizado com os fatos que eu compreendo bem; e me


sinto distanciado dos fatos que me incomodam com a dúvida. Sinto-me como se fosse
um estranho naquele contexto que não compreendo. Então surge o desejo de
conhecer.

O desejo pelo conhecimento é gerado por um estado de insatisfação diante de


fatos que me preenchem de dúvidas. Nessa sensação de distanciamento dos fatos,
são formadas as perguntas a partir de uma tensão criativa no meu ser. Essas
perguntas ativam ainda mais a minha curiosidade para buscar por respostas e
explicações.

Diante dos fatos enigmáticos, me vivencio numa dualidade: eu versus os fatos


do mundo; sujeito versus objeto.

Capítulo 3

O Papel do Pensar e dos Conceitos

Como funciona a nossa atividade de pensar?

Imagine que você está observando uma jogada de bilhar. Você observa tudo
com os olhos, mas decide NÃO pensar a respeito do que você observa. De repente,
alguém impede o seu campo de visão com uma espessa cortina, logo depois de você
ver o taco movimentar a bola branca em direção a uma bola verde. O que você saberá
dizer a respeito da direção e intensidade do movimento da bola verde, se você se
limitar à observação sem o pensar? - Nada. Não será possível prever nada sobre os
fatos que não são compreendidos, mas apenas observados.

Em seguida, abre-se a cortina e você pode ver novamente o desenrolar dos


acontecimentos durante as jogadas seguintes de bilhar. Mas agora, você decide ativar
a sua capacidade de pensar sobre os fatos que você observa. Com isso, você conecta
conceitos de velocidade, massa, elasticidade, entre outros e começa a ver conexões
desses conceitos com os dados transmitidos pelos seus olhos sobre as cenas das
jogadas de bilhar.

Então, mais uma vez, lhe encobrem o campo de visão com a espessa cortina
que lhe impede de acompanhar os fatos, logo depois de você ter visto o taco
movimentar a bola branca em direção a uma outra bola, a amarela. O que você saberá
dizer dessa vez sobre os acontecimentos que estão ocorrendo atrás daquela cortina? -
49
Tudo. Você será capaz de saber a direção e a velocidade da bola amarela, por causa
dos conceitos que o pensar relacionou. Os conceitos gerados com o pensar fazem
com que você participe dos acontecimentos mesmo sem vê-los.

A sua atividade de pensar, se for realizada com precisão, lhe permitirá prever o
que vai acontecer, mesmo sem ver os fatos com os olhos.

Portanto, o pensar forma conceitos a partir dos acontecimentos, e os conceitos


explicam sobre o sentido desses acontecimentos.

Existe uma enorme diferença de como as partes de um acontecimento se


comportam entre si para mim antes e depois de eu encontrar os conceitos
correspondentes.
A mera observação me permite acompanhar o desenrolar das partes de um
acontecimento, mas a relação entre elas permanece obscura, enquanto eu não
obtiver o auxílio dos conceitos.

Observar os Fatos e Observar o Pensar

Tanto para a compreensão de um acontecimento cotidiano, como para a


compreensão de um desafio científico de enorme complexidade, a compreensão
humana depende das capacidades de observar e de pensar.

Observar e pensar são os dois pontos de partida para todas as aspirações


intelectuais (espirituais) da humanidade.

Tudo que aparece no campo de nossas vivências nós notamos, por meio da
observação: O conteúdo de sensações, objetos, opiniões, os sentimentos, atos
da vontade, sonhos, fantasias, imagens mentais, conceitos e ideias, todas as
ilusões e alucinações nos são dadas, por meio da observação.

No entanto, observar o pensar funciona de modo bem diferente de observar


todas as outras coisas. A observação de uma mesa surge em mim assim que a mesa
aparece no horizonte das minhas vivências, porque a mesa surge para a minha
observação como algo dado. Mas para eu observar o meu pensar sobre a mesa,
preciso, antes disso, pensar ativamente sobre ela. E, enquanto penso sobre a mesa,
eu não consigo simultaneamente observar o meu pensar sobre ela.

O processo de observar o pensar ocorre em dois passos diferentes. No


primeiro passo, eu penso sobre algo. No segundo passo, eu utilizo a atividade anterior
como meu novo objeto para ser observado pela memória. Nesse segundo passo,
coloco-me numa posição de observador de mim mesmo e observo as minhas

50
experiências mentais anteriores ao me recordar da minha atividade de ter pensado
sobre aquele objeto (durante o primeiro passo). Ou seja, no segundo passo, eu
contemplo (em observação interior) a atividade de pensar que realizei momentos
antes.

Faz parte do dia a dia, o meu estado de observar os objetos e observar os


acontecimentos. Também faz parte do dia a dia o estado de pensar sobre eles. No
entanto, não é usual esse outro estado de “observar o pensar”. Observar o pensar é
um estado de exceção.

Autoconhecimento: Observar o Pensar Ilumina o “Ponto Cego” da Nossa Atenção

Imagine uma situação em que você observa um fato que não compreende
direito no primeiro momento e, em seguida, você se esforça e ativa a sua capacidade
de pensar para identificar os conceitos que melhor explicam aquele fato.

Qual vai ser o foco da atenção naqueles momentos de pensar sobre o fato? O
seu foco da atenção vai estar sobre o fato ou sobre as características da sua própria
atividade mental ao pensar? O foco da atenção estará plenamente dedicado aos fatos
que a pessoa quer compreender e não sobre a própria atividade mental. Durante os
momentos de pensar ativamente, o conteúdo da nossa consciência está “para fora” de
nós e para dentro dos fatos do mundo sobre os quais estamos pensando.

Faz parte da natureza peculiar do pensar o fato de que a pessoa que está
pensando se esquece que está pensando enquanto realiza o pensar. Ela não está
ocupada com o pensar, mas apenas com o objeto observado sobre o qual ela está
pensando.

A primeira observação que fazemos sobre o pensar é que ele é o elemento


inobservado da nossa vida intelectual (espiritual) usual.

Por que normalmente não notamos a nossa atividade mental durante o


pensar? O motivo é simplesmente o fato de o pensar ser a nossa própria atividade
mental mais íntima e mais própria. É justamente por isso que o exercício de observar o
pensar pode se tornar o processo que nos permite nos conhecer a nós mesmos do
modo mais direto possível.

Portanto, a observação mais importante de todas que uma pessoa pode


realizar é a observação da própria atividade de pensar. Se a pessoa se esforçar com
boa vontade, ela conseguirá desenvolver a capacidade de observar o pensar. No ato
de observar o pensar, eu posso compreender melhor a mim mesmo, porque o pensar
é a minha atividade mais genuína.

51
É o próprio eu que, estando dentro do pensar, observa a sua própria atividade.

Conceitos são Interligações de Significados

Quando observo o pensar, eu compreendo a relação entre as partes do que


estou observando.

Pela observação sem o pensar, eu tenho um estímulo visual do raio


desconectado do estímulo auditivo do trovão. Mas quando observo o meu pensar
sobre o trovão, eu percebo que, dentro do conceito do trovão, já está presente a
conexão de significado com o conceito do raio.

A Diferença entre a Atividade de Pensar e a Visualização de Imagens Mentais

Não devemos confundir: ter imagens mentais (imagens de pensamento) é bem


diferente do que elaborar pensamentos por meio do pensar. As imagens mentais
podem surgir de modo sonhador como impressões vagas. Enquanto que o pensar é
uma atividade consciente.

Capítulo 4

Conceitos Versus Palavras

Por meio do pensar, surgem conceitos e ideias. Mas não é possível dizer com
palavras o que é um conceito.

As palavras podem apenas direcionar a atenção da pessoa, mostrando-lhe que


ela obteve conceitos.

Conceitos e Ideias

As ideias não são qualitativamente diferentes dos conceitos. As ideias são


conceitos mais abrangentes e com mais conteúdo.

52
O Pensar nas Explicações pela Lógica de Causa e Efeito

Imagine que você esteja passeando. De repente, ouve um barulho estranho e


vê o capim em movimento. Então, você tenta encontrar o que causou o barulho.
Poucos momentos depois, você vê um pássaro que sai voando daquele lugar. Com
isso, obtém-se a explicação para o barulho.

Como funciona passo a passo essa explicação? Quando ouço um barulho


estranho, eu primeiro procuro um conceito para aquela observação. Então, encontro o
conceito de que aquele barulho é o “efeito” de algo.

No momento em que conecto o conceito “efeito” com a observação daquele


barulho, eu me sinto com a necessidade de ultrapassar aquela primeira observação
isolada e de buscar pela “causa”. Por isso, vamos buscar o que causou o ruído e,
finalmente, encontramos o pássaro como a causa do barulho.

Portanto, a observação desafia o pensar e o pensar nos mostra o caminho


para não nos limitarmos a uma primeira vivência isolada, mas para buscarmos uma
outra vivência e estabelecermos uma relação de causa e efeito.

O Pensar é Objetivo ou Subjetivo?

Na medida em que a pessoa observa uma coisa, essa coisa lhe aparece como
algo dado. Na medida em que a pessoa pensa, ela aparece para si mesma como um
ser atuante. Portanto, a pessoa considera que aquela coisa é o objeto, e considera a si
mesma como o sujeito pensante.

A pessoa tem consciência dos objetos, porque ela direciona o seu pensar para
os fatos observados; e ela tem consciência de si mesma (autoconsciência), porque
direciona o pensar para si própria. Isso significa que é graças ao pensar que nós
conseguimos nos definir como sujeitos em contraposição aos objetos. Por esse motivo
não faz sentido considerar que o pensar é subjetivo!

O pensar não é objetivo nem subjetivo. O pensar vai além do que é objetivo e
do que é subjetivo, já pelo simples fato que é o próprio pensar que define esses dois
conceitos: “objeto” e “sujeito”. O pensar define todos os conceitos.

Portanto, não podemos considerar como subjetiva a conexão que o nosso


sujeito pensante estabelece entre um conceito e um objeto específico, porque não é o
sujeito quem realiza essa conexão, mas sim o pensar.

Não é pelo motivo de ser um sujeito, que o sujeito pensa. Mas é pelo motivo de
ser capaz de pensar que ele se manifesta a si mesmo como sujeito. Por isso, a
atividade que o ser humano exerce como ser pensante não é uma atividade subjetiva,
mas uma atividade que não é nem subjetiva nem objetiva, por ser uma atividade que
ultrapassa esses dois conceitos.

53
Não é o meu sujeito individual que pensa, porque é graças ao pensar que
surge a minha vida individual como sujeito.

Observar o Ato de Observar

Como é que os objetos da observação chegam à consciência humana antes de


se conectarem com os conceitos e com o pensar?

Imagine que uma pessoa plenamente inteligente e adulta surja do nada pela
primeiríssima vez entre nós. Como serão os primeiros momentos dessa pessoa ao
olhar, ouvir, cheirar e sentir o mundo ao seu redor? Como serão esses primeiros
momentos em que ela simplesmente observa o mundo, sem nenhuma ativação do
pensar?

Esse exemplo hipotético é radical, porque nós todos já temos uma enorme
quantidade de conceitos e de imagens mentais atuantes conscientemente ou
inconscientemente dentro de nós, a todos os momentos.

Essa pessoa adulta e inteligente recém surgida, do nada (e sem ativar ainda o
seu pensar), estaria com zero conceitos em sua consciência e zero imagens mentais
interpretativas. Ela observaria o afluxo de sensações visuais, auditivas, táteis, olfativas
etc, sem rótulos, sem explicações, sem conexões. O mundo para essa pessoa seria
um aglomerado desconexo de sensações e mais sensações.

Apenas no momento em que essa pessoa permitisse a primeiríssima ativação


do seu pensar é que ela iria elaborar conceitos e ideias que conectariam passo a
passo as sensações e observações isoladas num todo de significados explicativos
contextualizado.

A experiência de observar os fatos e intencionalmente se propor a não pensar


e não utilizar os conceitos e as imagens mentais arquivadas é a experiência de
vivenciar um agregado desconexo de sensações (“observação pura”).

Observação dos Fatos e Formação de Imagens Mentais

As imagens mentais decorrentes das observações dos fatos são objetivas ou


subjetivas?

A pessoa ingênua observa as sucessivas posições do sol de manhã, ao meio


dia e à tarde, e acredita que o sol se movimenta em torno da terra de verdade, porque
é isso que os seus olhos parecem ver ao longo do dia. A criança pequena de berço
estica o bracinho para pegar a lua, porque lhe parece que a lua está logo ali. Quando
olho uma avenida longa com várias árvores da mesma espécie plantadas em espaços
regulares nas calçadas, tenho a impressão de que as árvores ao final da avenida são
cada vez menores.

54
Quando uma nova observação nos leva em contradição com as explicações
que tínhamos anteriormente sobre as coisas, então nos sentimos na obrigação de
corrigir essas explicações anteriores e constatamos que as árvores naquela avenida
têm todas aproximadamente o mesmo tamanho, que a lua está muito mais distante do
que o nosso braço pode alcançar, e que o sol não gira em torno da terra.

Portanto, temos que realizar constantes correções sobre o sentido das nossas
observações. As pessoas ingênuas acreditam que a realidade dos fatos ocorre
exatamente do modo como os seus sentidos observam esses fatos.

A minha observação gera imagens sobre os fatos, e as características dessas


imagens dependem não só das características do objeto, mas também de
características minhas como observador. As imagens mentais decorrentes da
observação dependem da minha posição e localização, no que se refere aos efeitos
da perspectiva, por exemplo. Além disso, as imagens mentais decorrentes da
observação também dependem de como os meus órgãos sensoriais percebem as
qualidades do objeto. Se eu for daltônico, por exemplo, não verei a qualidade
cromática do vermelho. Portanto, de início, minhas imagens mentais geradas pela
observação são sim subjetivas.

Quando observo uma árvore, sou desafiado a encontrar o conceito daquela


árvore. Assim que a árvore sai do meu campo de observação, permanece na minha
consciência uma imagem mental que representa aquela árvore. Essa imagem da
representação mental se conectou comigo durante o ato de observação da árvore.

A árvore, eu observo fora de mim, no mundo, por meio dos meus órgãos dos
sentidos. A imagem da representação mental daquela árvore, eu observo dentro de
mim, na minha memória.

As observações dos fatos se perderiam, se eu não acumulasse experiência de


vida e não guardasse as imagens mentais das minhas representações dentro de mim,
na minha memória.

Eu percebo cores e sons nos objetos do mundo exterior; e eu percebo imagens


de representações mentais interiormente, dentro de mim mesmo.

Capítulo 5

A Relação entre Conceitos e Fatos

Muitas pessoas acreditam que a realidade dos fatos não tem nenhuma relação
com os conceitos. Essas pessoas são da opinião que os conceitos e pensamentos são
apenas fabricações pessoais sem nenhuma participação na realidade.

O conceito é uma fabricação da minha cabeça ou ele é parte intrínseca do


objeto observado? Será que o mundo se apresenta de modo completo sem o pensar?

55
Será que o mundo não faz com que o conceito de uma planta surja na cabeça
do observador humano de acordo com as leis da natureza e com a mesma
necessidade que faz com que a flor surja naquela planta?

Plante uma semente na terra. Ela lançará raiz e caule, se desenvolverá em


folhas e flores. Coloque essa planta diante da sua própria observação pensante,
diante da sua consciência reflexiva. A planta se unirá com um determinado conceito
em sua mente.

Por que esse conceito da planta pertenceria menos à planta como um todo do
que as folhas e flores?

Você pode retrucar que as folhas e as flores aparecem mesmo sem que um
sujeito esteja lá observando aquela planta, enquanto que o conceito da planta só
surge quando um ser humano se coloca diante da própria planta. Sem dúvida que sim.

Mas até mesmo as flores e folhas só aparecem na planta se houver terra na


qual a semente possa ser colocada e quando houver luz e ar, nos quais as
folhas e flores possam desabrochar.
De modo semelhante, surge o conceito da planta, quando uma consciência
pensante se coloca diante dela.

Se eu jogar uma pedra na direção horizontal, poderei observar a trajetória da


pedra formando uma linha. A forma dessa linha coincide com a forma da parábola. A
trajetória parabólica da pedra é uma decorrência necessária das forças e fenômenos
em jogo. Por isso, a forma da parábola e o conceito da parábola que visualizamos no
nosso pensar pertencem ao acontecimento como um todo, junto com todos os demais
fatores.

Num primeiro passo, nós observamos um objeto, mas não captamos, no


mesmo instante, o conceito correspondente àquele objeto. Pela observação nós
captamos o objeto “por fora”, exteriormente. Pelo pensar, captamos o conceito daquele
objeto “por dentro”, interiormente.

Dentro da nossa consciência se encontram os elementos do objeto que nos


vieram pela via exterior e se unem com os elementos do objeto que nos vieram pela
via interior. O objeto agora está completo em nossa consciência. Agora, nos sentimos
participando da realidade completa desse objeto.

A Necessidade de Realizar Recortes

56
O ser humano é um ser limitado. É, de início, um ser entre outros seres. A sua
existência pertence ao tempo e ao espaço. Por isso, a cada momento só lhe é
dada uma limitada parte do universo como um todo.

Porém, essa minha parte limitada faz fronteira a sua volta com outras partes
que não são minhas: tanto temporalmente, quanto espacialmente.

Imagine que a nossa existência estivesse conectada com todas as coisas de


modo que os acontecimentos do universo fossem ao mesmo tempo os nossos
próprios acontecimentos. Nestas condições, não haveria nenhuma diferença entre nós
e as coisas, e todos os acontecimentos ocorreriam uns nos outros continuamente. Se
fosse assim, o universo seria uma única coisa, uma unidade, um todo completo em si
mesmo. O fluxo dos acontecimentos não teria interrupção em nenhum lugar.

Por causa da nossa limitação, nos parece que uma coisa é algo isolado,
enquanto que, na verdade, não é algo isolado.
Por exemplo, em nenhum lugar a qualidade isolada “vermelho” ocorre de modo
separado em si mesma. Essa qualidade sempre está acompanhada de outras
qualidades, ela sempre pertence a outras qualidades. Sem essas outras
qualidades, o “vermelho” não tem existência.
No entanto, é uma necessidade nossa termos que fazer recortes do mundo e
contemplarmos cada recorte isoladamente.

Desse modo, o nosso intelecto só consegue apreender um único conceito por


vez que é retirado de um amplo e coerente sistema de conceitos.
Essa separação é um ato subjetivo. E realizamos essa separação, por sermos
seres não idênticos com os processos que acontecem no universo, mas por
sermos um ser meio a outros seres.

Por isso, é decisivo que a pessoa defina e posicione o significado do seu


próprio ser em relação aos demais seres; e essa autodefinição é bem diferente da
auto-observação.

A Auto-Observação de Si Mesmo Versus a Auto-Definição de Si Mesmo pelo Pensar

A simples observação de mim mesmo não me permite ir além do meu estado


atual. Pela auto-observação, identifico as minhas características atuais, de modo
semelhante ao que ocorre, por exemplo, na observação de um objeto como sendo
“amarelo”, “metálico”, “duro”, e resultando na constatação que define aquele objeto
como “ouro”.

57
Portanto, a auto-observação é limitada e resulta num conjunto de
características que apenas descrevem a minha personalidade atual sem abrir novas
perspectivas.

Observar a mim mesmo para identificar as minhas características atuais é um


ato bastante diferente da atividade de pensar sobre mim mesmo para definir a minha
relação com o mundo ao meu redor.

Da mesma forma que, pelo meu pensar, eu vejo as conexões do objeto no


contexto do mundo ao seu redor, também posso pensar sobre mim mesmo para me
autodefinir, quando eu estabeleço conexões de significado entre a minha
personalidade e os fatos e seres à minha volta. Deste modo, eu me coloco em ligação
com os processos do universo, por meio do meu pensar.

A auto-observação me coloca dentro de certos limites; e o meu pensar não tem


nada a ver com esses limites.

Nesse sentido, sou um ser duplo. Pela observação, estou fechado no âmbito
da minha personalidade; e pelo pensar, sou o portador de uma atividade que define a
minha existência limitada, a partir de uma esfera mais ampla.

O Pensar Intuitivo em Diálogo com a Vida do Universo

Nossa atividade de pensar não é individual como a nossa vida em sentimentos


e a nossa vida em observações. Nossa atividade de pensar é universal. Por ela,
encontramos um elemento que, pouco a pouco, pode unir a nossa individualidade
particular ao universo.

Pela vida em sentimentos, somos uma pessoa particular; e pela atividade de


pensar, somos o ser uno e universal que tudo compenetra.

Nós vemos uma força absoluta vir à existência dentro de nós, uma força que é
universal. Mas não tomamos conhecimento dessa força no momento em que
ela brota a partir do centro do universo, mas sim a partir de um ponto na
periferia.
Se fosse o primeiro caso, nós teríamos a solução para o enigma de todo o
universo, assim que a nossa consciência despertasse.
No entanto, por estarmos num ponto da periferia e por nos encontrarmos
restritos em limites específicos, precisamos tomar conhecimento das regiões
que estão fora do nosso próprio ser, por meio do auxílio do pensar que surge
com ímpeto dentro de nós a partir do ser universal geral.

58
É justamente por esse motivo que aparece em nós o desejo pelo
conhecimento: é porque o pensar se sobrepõe ao nosso ser particular e se relaciona
com o ser universal geral.

Seres que não pensam não têm o desejo pelo conhecimento. Quando outras
coisas aparecem diante deles, não aparece nenhuma pergunta. Por isso, essas outras
coisas permanecem exteriores a esses seres.

Mas para seres pensantes, abre-se o conceito diante da coisa exterior; e o


conceito é o que recebemos das coisas a partir de “dentro” e não, de “fora”.

Intuição e Observação

O objeto observado não é algo completo e acabado, mas é apenas um dos


lados da realidade total. O outro lado é o conceito. O ato do conhecimento é a síntese
do objeto observado com o conceito.

Objeto observado e conceito de uma coisa perfazem a totalidade dessa coisa.

Sem o pensar, os objetos da observação formam um aglomerado de


sensações sem nexo e sem explicação. É apenas por meio da atividade do pensar
estabelecendo conexões entre cada um dos seres observados que conseguimos
identificar o significado dos fatos isolados: o significado deles para si mesmos e o
significado deles para as demais partes do mundo.

O conteúdo dos objetos observados nos é dado a partir “de fora”,


exteriormente, pela observação, enquanto que o conteúdo do pensamento nos surge
“de dentro”, pelo que podemos denominar de “intuição”. A intuição é para o pensar, o
que a observação é para o objeto observado. As fontes do conhecimento humano são
a intuição e a observação.

Fragmentação e Unificação

Explicar alguma coisa, torná-la compreensível, não é nada mais do que


inseri-la no contexto de relações do qual nós a arrancamos devido aos recortes
subjetivos que fazemos inicialmente das coisas. O que nos aparece como coisas
isoladas pelo nosso ato de observação é unido parte por parte pelo mundo integrado
da nossa intuição, gerando contextos coerentes.

Nós voltamos a unificar, por meio do nosso pensar, o que tínhamos


fragmentado, por meio do nosso ato de observar.

59
Conhecimento e Ação

Nós só conseguiremos ser atuantes com plena força quando compreendermos bem o
objeto exterior ao qual queremos dedicar a nossa atividade.

Capítulo 6

Individualidade e Experiência Pessoal

Um aspecto importante de nossa individualidade é o conteúdo da nossa


experiência pessoal. Como é formada a experiência pessoal?

Quando observo um fato, o meu pensar é ativado e conecto um conceito com


aquele fato que explica as sensações que tive durante a observação objetiva. Esse
conhecimento fica armazenado em mim na forma de uma representação mental. A
representação mental é um conceito individualizado que tem conexão com um objeto
específico que foi observado por mim em algum momento no passado.

A soma de tudo sobre o que consigo formar representações mentais, eu posso


denominar de minha experiência.
A pessoa com a experiência mais rica é a pessoa com um maior número de
conceitos individualizados.
Uma pessoa que é desprovida da capacidade de ter intuições, não é capaz de
obter experiências. Os objetos se perdem do seu campo de observação
constantemente, porque lhe faltam os conceitos com os quais ela deveria
entrar em conexão com esses objetos.
Mas também não conseguirá acumular experiência, uma outra pessoa que
conta com boa capacidade de pensar, mas com capacidade de observação
limitada, devido a órgãos de sentido disfuncionais. Essa pessoa consegue
obter conceitos de algum modo, mas suas intuições não contam com a vívida
referência a coisas específicas.
O viajante que não pensa e também o erudito que vive em sistemas
conceituais abstratos são ambos incapazes de adquirir uma experiência rica.

Individualidade e Sentimentos
Até agora, refletimos sobre a busca por conhecimento. Mas além de sermos
seres pensantes, também somos seres com sentimentos. Como a nossa vida de
conhecimento se relaciona com a nossa vida de sentimentos?

60
Por meio do pensar, estabelecemos uma relação do objeto observado com o
conceito; e por meio do sentir estabelecemos uma relação do objeto observado com a
nossa própria subjetividade, na forma de prazer ou desprazer.
O pensar é o elemento da nossa natureza humana que nos permite participar
dos acontecimentos gerais do mundo e do universo; e o sentir é o elemento da nossa
natureza humana que nos permite voltar para dentro do âmbito do nosso próprio ser.

Nosso pensar nos une com o mundo; nosso sentir nos direciona para dentro de
nós mesmos e nos torna indivíduos.

O que aconteceria se o nosso ser se limitasse à busca por conhecimento e se


não tivéssemos os sentimentos? Nestas condições, seríamos indiferentes a tudo o que
ocorre. Nós poderíamos sim alcançar o autoconhecimento, mas seríamos indiferentes
até mesmo em relação à nossa própria pessoa.
Mas eu considero que a minha vida é valiosa e percebo que o meu ser
individual tem um valor, justamente por eu ter uma existência individual em
sentimentos. Tenho uma vida individual, porque posso sentir a mim mesmo e porque
posso sentir prazer ou desprazer nos acontecimentos da vida.

Nossa vida é um constante movimento pendular entre vivenciar os


acontecimentos universais gerais, por um lado, e o nosso ser individual, por
outro lado.

Uma individualidade desenvolvida consegue levar a vivacidade dos seus


sentimentos até a região dos conceitos e das ideias.
Por um lado, podemos notar que uma vida de sentimentos completamente
desprovida do pensar perderia, gradativamente, todas as conexões objetivas com o
mundo; por outro lado, podemos ter a experiência de que o sentimento é um meio
eficaz para que os conceitos comecem a ganhar vida concreta. Por isso, quem busca
ter uma existência humana abrangente e completa terá foco tanto na busca por
conhecimento, quanto no desenvolvimento da vida de sentimentos.

Em síntese, vimos dois aspectos da vida da individualidade humana.

Um primeiro aspecto é a nossa experiência, ou seja, nosso conhecimento


acumulado em representações mentais. As particularidades da nossa vida pessoal
definem os lugares e as posições a partir das quais observamos os fatos. Com base
nestes pontos pessoais de observação, encontramos os conceitos que explicam
nossas observações. Desenvolvemos a nossa experiência e pensamos os conceitos
de um modo especificamente pessoal, em função de nossos pontos de vista.

61
Um segundo aspecto da individualidade humana é o modo pessoal e único de
conectar sentimentos específicos com os fatos e acontecimentos que observamos.

Capítulo 7

Limites do Conhecimento

Existem limites para o conhecimento? Esses limites são iguais para todos os
seres humanos ou são limites pessoais? Como superar esses limites?

Limite do conhecimento é um assunto individual, porque falar de limite de


conhecimento só faz sentido em relação a perguntas de conhecimento específicas que
ainda não foram respondidas; e as perguntas de conhecimento são muito pessoais.
Cada pessoa tem a pergunta de conhecimento que vive nela.

Em dado momento, a pessoa pode não ter as respostas que satisfaçam a sua
pergunta de conhecimento individual, por encontrar limites que a impedem de
respondê-la. Mas estes limites individuais ao conhecimento para responder a própria
pergunta são limites passageiros. Eles são condicionados pelo tempo ou pelo espaço
ou pelas condições pessoais.

Por isso, esses limites podem ser superados em outro momento mais
adequado no tempo ou em outro campo de observação mais adequado no espaço ou
em uma situação em que as próprias capacidades pessoais de pensar e observar
estejam mais desenvolvidas.

O conhecimento não é um assunto geral do mundo, mas é um assunto que


cada ser humano tem que resolver consigo próprio.
As coisas não pedem por nenhuma explicação. Elas existem e atuam umas
sobre as outras de acordo com as leis que podem ser encontradas pelo pensar.
As coisas existem em unidade inseparável com essas leis.
Então surge o nosso eu diante das coisas e capta delas apenas o que nós
definimos como objetos observados. Mas no interior desse nosso eu,
encontra-se a força para encontrar também a outra parte da realidade.
A busca do conhecimento só alcança a satisfação, quando o eu reúne também
para si mesmo esses dois elementos da realidade que já estavam conectados
inseparavelmente no mundo. Nesse momento, o eu retorna à realidade.
Portanto, as condições para o surgimento do conhecimento ocorrem por meio
do eu humano e para o eu humano. É o eu humano que propõe a si mesmo as
perguntas de conhecimento. E ele as obtêm a partir do elemento plenamente
claro e transparente do pensar.

62
Se nós nos colocamos uma pergunta que não conseguimos responder, então o
conteúdo da pergunta não pode estar claro e nítido em todas as suas partes.
Não é o mundo que nos coloca perguntas, mas somos nós mesmos que as
colocamos.
Eu posso imaginar, que me falte toda a possibilidade de responder uma
pergunta que eu encontre escrita em algum lugar por aí, sem que eu conheça a
esfera de onde o conteúdo da pergunta foi obtido.
No nosso conhecimento, trata-se de perguntas que nos surgem, quando uma
esfera de observações (condicionada pela localização, pelo tempo e pela
organização subjetiva) se confronta com uma esfera de conceitos (que indica
em direção da unidade do universo). Minha tarefa consiste em equilibrar essas
duas esferas que me são tão familiares.

Não é possível falar aqui de um limite do conhecimento. Pode ser que, em


algum momento, isso ou aquilo permaneça sem explicação, porque estamos
impedidos pelo nosso lugar na vida de observar as coisas que estão em jogo.

Mas, o que não é encontrado hoje, pode ser encontrado amanhã. As limitações
condicionadas desse modo são passageiras e podem ser superadas, por meio
do progresso da observação e do pensar.

O Pensar Intuitivo Aprofunda a Busca por Conhecimento

O aprofundamento do conhecimento depende da intuição que vive dentro da


atividade do pensar. A intuição vivenciada no pensar pode atingir camadas mais
profundas da realidade durante a busca por conhecimento.

Capítulo 8

Recapitulemos o que conquistamos nos últimos capítulos.

O mundo aparece diante do ser humano como uma multiplicidade, como um


conjunto de coisas isoladas. Uma destas coisas isoladas, um ser entre seres, é
o próprio ser humano.

Essa configuração do mundo, nós identificamos como uma configuração dada.


Nós não a desenvolvemos por meio de atividade consciente, mas nós a
encontramos pronta. Por isso, essa configuração do mundo é a dos objetos da
observação.

63
Dentro do mundo das observações, nós observamos a nós mesmos. Essa
auto-observação permaneceria equiparada às múltiplas outras observações, se
não surgisse, a partir do centro dessa auto observação, algo que se mostra
capaz de conectar os objetos da observação em geral entre si e capaz de
conectar o conjunto de todos os objetos de observação com a observação do
nosso self (observação de si mesmo).
Esse algo que surge não é mais apenas objeto de observação. Esse algo não
é simplesmente encontrado, como no caso dos objetos da observação. Esse
algo vem à tona, por meio de atividade. E ele aparece, inicialmente, ligado com
o que observamos como sendo o nosso self. Mas o significado intrínseco
desse algo vai além do nosso self. Esse algo anexa determinações de
significado em cada objeto observado. Essas determinações de significado se
relacionam entre si e se fundamentam em um todo.
E, de modo semelhante como faz com todos os objetos observados, esse algo
também determina o que constatamos pela auto-observação. Determina-o com
conexões de significado e posiciona-o como sujeito ou “eu” diante dos objetos.
Esse algo é o pensar e as determinações de significado são os conceitos e as
ideias. Portanto, o pensar se manifesta, de início, no contexto da observação
do self.
No entanto, o pensar não é subjetivo, porque é com a ajuda do pensar que o
self se define como sujeito.
Essa relação de pensamentos consigo mesmo é uma definição de vida para a
nossa personalidade. Por meio dessa definição, nós conduzimos uma
existência de ideias e nos sentimos como seres pensantes.

Surge o Claro Conceito de Si Mesmo na Individualidade que se Auto-Determina

Obviamente, a nossa existência não é definida apenas por conexões lógicas.


Além de conectar os objetos observados com conceitos pelo pensar, nós também
conectamos os objetos observados com a nossa subjetividade, pelo sentir.

O papel do sentimento, de início, é semelhante ao papel do objeto observado.


A partir do exterior, eu capto os objetos observados objetivamente e, a partir do meu
interior, eu capto os sentimentos subjetivamente.

Vimos que, para compreender o significado da observação, precisamos da


complementação realizada pelo pensar para identificar os conceitos que dão sentido
ao objeto observado. De modo semelhante, o pensar descobre os conceitos que
proporcionam a compreensão do significado dos sentimentos. Esse processo ocorre
até mesmo com os sentimentos existenciais que me indicam o meu próprio significado
pessoal.

Em alguns momentos da vida, podem me surgir enigmáticos sentimentos e


impressões existenciais que me tocam e parecem querer me dizer muito sobre mim
mesmo, mas que ainda não consigo decodificar.

64
Esforço-me para compreender o sentido desses sentimentos e impressões
existenciais. Tempos mais tarde, me surge um insight, e vejo com clareza as ideias e
conceitos que me dizem o que aqueles sentimentos e impressões existenciais
significam. Nos vívidos conceitos de auto-definição que brotaram daqueles
sentimentos existenciais, agora eu sei, mais genuinamente, quem eu sou.

O significado dos conceitos de autodefinição já estava lá escondido dentro dos


sentimentos existenciais indefinidos que apareciam aqui e ali no percurso da minha
biografia. Esse significado já estava lá, surdo e mudo; e agora, ele se apresenta diante
de mim com clareza.

Primeiramente nós nos sentimos como seres existentes e, ao longo do


gradativo desenvolvimento, nós arduamente chegamos ao ponto, no qual
surge o conceito de si próprio, a partir do sentimento vago da própria
existência.

O que, só mais tarde, surge na nossa consciência, já está originalmente


ligado inseparavelmente com o sentimento.

Capítulo 09

Motivo da Ação e Predisposição Pessoal Mobilizadora

Imagine que duas pessoas diferentes têm a mesmíssima ideia de fazer uma
caminhada de meia hora. A primeira pessoa logo desiste da caminhada e permanece
no sofá, enquanto a segunda pessoa sai de casa e realiza, de fato, a caminhada de
meia hora.

Por que será que uma mesma ideia gerou ações tão diferentes nas duas
pessoas? Essa diferença ocorreu devido à variação na predisposição pessoal
mobilizadora (em inglês, o drive) dessas duas pessoas em relação à ideia da
caminhada.

A segunda pessoa já tinha uma opinião própria positiva sobre a importância da


caminhada para a saúde e já tinha desenvolvido sentimentos de prazer e bem-estar
em relação à caminhada. Mas essas características pessoais não eram
suficientemente intensas na outra pessoa que permaneceu no sofá, porque ela não
dispunha de uma predisposição pessoal mobilizadora (drive) para caminhadas.

65
Portanto, dois fatores são necessários para que uma ação ocorra: o motivo
(meta) da ação é o primeiro fator; o segundo fator é a predisposição pessoal
mobilizadora (drive) para transformar efetivamente esse motivo, essa meta, em ação.

O motivo da ação, em geral, é algo que ocorre no curto prazo e é definido por
uma ideia ou por uma imagem mental sobre a finalidade da ação. A predisposição
pessoal mobilizadora para a ação depende de características que tendem a ser mais
estáveis no longo prazo.

A predisposição mobilizadora para a ação pode ser gerada por diversos tipos
de características pessoais, como os instintos básicos, o padrão das reações
emocionais, a experiência prática, o estilo pessoal de pensar e a capacidade de ter
intuições.

As características da vida instintiva da pessoa em relação às necessidades


básicas ocorrem, em geral, por meio de um certo automatismo. Surge um estímulo
visual, auditivo ou olfativo e a predisposição mobilizadora já é ativada imediatamente
para deflagrar uma ação. Com frequência, isso acontece no “piloto automático” que
obedece ao comando do instinto sem nenhuma reflexão consciente.

Os padrões emocionais pessoais também são uma importante categoria de


predisposição mobilizadora para a ação. Alguém vê uma criança pedindo esmola e
vivencia um intenso sentimento de compaixão que o mobiliza para dar uma roupa para
a criança. Já outro sujeito também vê a cena da mesma criança pedindo dinheiro, mas
sente indignação e raiva ao suspeitar que se trata de uma criança sendo explorada por
adultos sem escrúpulos e, em vez de dar esmola, notifica o serviço social da prefeitura
sobre o suposto abuso. No primeiro caso, a ação foi deflagrada pelo sentimento de
compaixão e, no segundo caso, pelo sentimento de indignação.

A experiência prática também define algumas características da predisposição


mobilizadora para a ação. Quando vejo um problema, logo podem aparecer imagens
na minha cabeça de soluções do passado que servem de modelo para eu resolver
rapidamente a situação atual. Isso nem sempre funciona no novo contexto, mas, com
frequência, ajuda.

Por fim, a capacidade de ter intuições pode se manifestar como mais uma
categoria de predisposição mobilizadora para a ação. Diante de um desafio novo, a
pessoa não conta com experiências práticas anteriores e cria uma solução inovadora a
partir do pensar intuitivo. Para isso ser possível, é muito conveniente que a pessoa
tenha tido estímulos na escola, na formação profissional e, sobretudo, nas práticas de
autoconhecimento para desenvolver em si mesma a predisposição pessoal capaz de
ativar o pensar intuitivo.

A capacidade de ativar o pensar intuitivo pode atuar como predisposição


mobilizadora para a ação, por meio de intuições que tive no passado e também, por
meio de intuições que tenho no momento da ação.

66
As intuições que obtive no passado, por meio do pensar intuitivo, me
proporcionam um “estoque” de conceitos vívidos que podem ser mantidos de modo
latente em mim. Depois de dias, meses, anos ou décadas, pode surgir um novo
desafio específico como uma oportunidade para que um destes conceitos vívidos
realize o papel de ativar uma ação, por já estar presente em mim como predisposição
mobilizadora.

A predisposição mobilizadora só resulta em uma ação quando se encontra com


um estímulo compatível proporcionado por uma ideia ou por uma imagem mental que
gera um motivo e uma meta para a ação.

Existem as mais diversas metas e motivos de ação. Imagens mentais e ideias


sobre o próprio bem-estar, sobre o bem-estar coletivo e sobre o desenvolvimento ético
e cultural, são metas e objetivos usuais.

Quando uma imagem mental define o motivo e a finalidade da minha ação,


essa imagem mental se refere a uma situação específica e pontual. Além desse modo
pontual de determinar o motivo e a finalidade de ação, também é possível partir de um
conceito mais amplo e não limitado a nenhuma situação específica. Com frequência,
esses conceitos mais amplos estão presentes nos códigos de conduta pré-definidos
ou em sistemas de princípios morais.

Muitas pessoas se relacionam com princípios morais de um modo submisso


em ambientes sociais autoritários. Isso ocorre quando a pessoa segue as normas sem
refletir sobre o sentido delas. Mas também é possível ter uma relação mais madura
com as regras ao refletir e compreender o significado e propósito delas.

Em síntese, as metas e motivos de ação costumam surgir a partir ou de


imagens mentais com referência pontual a uma situação ou a partir de conceitos
presentes em códigos morais e em regras predeterminadas.

No entanto, também existe a possibilidade de que a meta e o motivo de uma


ação surjam a partir do pensar intuitivo, quando o indivíduo reconhece uma
necessidade de ação, após compreender em profundidade os fatos relevantes de uma
situação específica.

O Pensar Intuitivo na Ação

Quando a minha vontade segue os instintos e hábitos automáticos sem refletir,


então essa “minha” vontade não é a minha vontade. Quando a minha vontade segue o
autoritarismo de sistemas morais predefinidos sem refletir, então essa “minha” vontade
também não é a minha vontade. A “minha” vontade é a minha vontade, de fato,
quando a minha individualidade observa os fatos com riqueza de detalhes, ativa o

67
pensar intuitivo e cria uma ação para atender a uma necessidade específica no
contexto diante de mim.

Cada pessoa tem em si um conjunto muito único e pessoal de ideias vividas


geradas pelo pensar intuitivo ao longo de sua vida. Diante de uma nova situação de
vida, o indivíduo ativa e contextualiza algumas dessas ideias geradas pela atividade
do pensar intuitivo no passado ou, então, ele elabora novas ideias pelo pensar intuitivo
presente.

Quando esse conjunto muito individual de ideias obtidas pelo pensar intuitivo
se direciona para ações práticas em sociedade, ele pode ter um significado ético
bastante genuíno e benéfico para o todo, quando é movido por um amor genuíno pela
ação. Essa é a ideia do “individualismo ético”.

Esse amor pela ação não costuma estar presente quando a pessoa realiza
uma ação apenas por obrigação para se adequar à uma regra social.

A minha ação gerada pelo pensar intuitivo vai gerar efeitos tidos como “bons”
se ela for contextualizada adequadamente na situação geral em que ela se insere. O
pensar intuitivo gera a ideia da ação e também compreende o contexto da ação para
harmonizar a ação com o contexto.

O criminoso não age a partir do pensar intuitivo, mas a partir de instintos e


paixões. Por isso, o individualismo ético não corre o risco de resultar em ações
intencionalmente antiéticas.

O individual em mim não é o meu organismo com seus instintos e sentimentos,


mas é o mundo unificado das ideias que reluzem neste organismo.
Meus instintos e paixões fazem com que eu pertença à categoria genérica de
“ser humano”.
A minha individualidade é inaugurada, no momento em que a qualidade das
ideias se desenvolve de modo específico dentro desses instintos, paixões e
sentimentos.

A ação que proporciona um sentimento de liberdade é a ação gerada pelo


pensar intuitivo. A ação gerada pela imposição dos instintos naturais e a ação gerada
pelos imperativos de normas morais sem refletir não proporcionam o sentimento de
liberdade.

Vida Social e Convergência de Intenções

Será que a vida em comunidade é possível, quando cada pessoa busca a


realização de sua própria individualidade?

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Existem concepções moralistas que acreditam que o único mecanismo que
viabiliza uma vida em sociedade é o mecanismo das regras sociais que são impostas
e obedecidas por todos.

Mas existe outra possibilidade complementar de convivência harmônica entre


individualidades livres. Um indivíduo pode dialogar com outro até que os dois
percebam as interconexões sinérgicas entre as ideias presentes no núcleo das
intenções de ambos.

No momento em que compreendemos o núcleo da ideia da intenção um do


outro, eu e você estamos unidos por essa compreensão. Eu e você estamos unidos
pela mesma ideia. Portanto, quando encaramos o trabalhoso percurso do diálogo,
podemos chegar até o ponto em que constatamos a unicidade das ideias que vivem
em nossas intenções.

A diferença entre eu e o meu semelhante não consiste de nós dois vivermos


em dois mundos intelectuais (espirituais) inteiramente distintos, mas consiste
dele receber outras intuições do que eu, a partir do mundo das ideias que nos
é comum. Ele quer desenvolver plenamente as intuições dele e eu, as minhas.
Quando nós dois realmente nos abastecemos a partir da ideia e não seguimos
nenhum estímulo exterior (físico ou intelectual), então nós necessariamente
nos encontraremos nas mesmas aspirações e nas mesmas intenções.
Um mal entendido ético, um embate está fora de cogitação no caso de seres
humanos eticamente livres.

O que leva um ser humano a rejeitar outro ser humano? A pessoa que segue
apenas o instinto da natureza ou uma norma social predileta rejeita outra pessoa que
não segue os mesmos instintos nem as mesmas normas sociais.

Quem se esforça para compreender o sentido da vontade da outra pessoa,


consegue conviver com ela pacificamente. A atitude geradora de uma convivência que
respeita a dignidade humana é a atitude de compreender-se mutuamente e
harmonizar-se com a vontade e com as intenções legítimas das individualidades livres.

Etapas de Desenvolvimento

Só a própria pessoa pode realizar em si mesma o conceito do espírito livre.


Uma planta não é uma planta inteira nas primeiras fases do seu desenvolvimento,
enquanto ela não desabrochar flores e frutos. Um ser humano também não é um ser
humano inteiro, enquanto ele não desenvolver em si mesmo a ideia do espírito livre.

69
A natureza faz do ser humano um mero ser natural; a sociedade, o faz um ser
que age de acordo com leis; um ser livre só ele mesmo pode realizar a partir de
si mesmo.
A natureza libera o ser humano de suas amarras em um certo estágio de seu
desenvolvimento; a sociedade conduz esse desenvolvimento até um ponto
adiante; o último polimento, só o ser humano pode realizar em si mesmo.

Vida Ética e o Papel da Sociedade

A vida ética em sociedade surge graças às ideias éticas geradas por


individualidades livres concretas. Por isso, o papel da sociedade é atuar de modo que
favoreça o desenvolvimento das pessoas enquanto individualidades livres.

Capítulo 10

Intuição Ética e Autonomia do Espírito Livre

A pessoa que é capaz de ter intuições pode agir a partir de si mesma; e a


pessoa que não é capaz de ter intuições precisa buscá-las de outras pessoas, a fim de
ter uma contribuição na vida ética.

O ser humano toma ação em parte de modo livre e em parte de modo não livre.
Ele surge no mundo como um ser não livre e pode, passo a passo, se desenvolver até
o ponto em que encontra a si mesmo e realiza o espírito livre.

No início de seu desenvolvimento, a pessoa toma ação a partir dos


automatismos dos seus instintos condicionados por sua natureza biológica e, depois,
ela também toma ação a partir da obediência a normas de códigos morais sem refletir
sobre o sentido delas. Os automatismos dos instintos da natureza do corpo e a
obediência aos comandos dos códigos sociais de conduta moral sem refletir são
passos necessários ao desenvolvimento. Mas, além disso, existe sim a possibilidade
de superar esses dois estágios e atingir a realização do espírito livre em si mesmo.

É o indivíduo que realiza as intuições que criam as novas ideias de ações. Por
isso, os objetivos coletivos não surgem da coletividade, mas são concebidos por
indivíduos que fazem parte dessa coletividade.

Cada indivíduo livre está em busca da realização de sua própria meta, na


medida em que busca realizar as ideias geradas por suas intuições.
O mundo das ideias não se desenvolve em uma comunidade de seres
humanos, mas apenas em indivíduos humanos. O que surge como uma meta

70
coletiva de um conjunto humano é apenas o resultado da ação da vontade de
cada um dos indivíduos.

Ideias Universais Versus Ideias Individualizadas

Vamos refletir sobre uma aparente contradição. A pessoa livre busca o motivo
da sua ação a partir da intuição de conceitos e ideias. Como a pessoa pode ser livre e
agir a partir de sua individualidade única se as ideias e conceitos são elementos
universais que valem para todas as pessoas?

Aqui é necessário observar que a vida humana é como um pêndulo que oscila
em direção da atividade de conhecimento, por um lado, e se move também em direção
da realização de uma ação livre, pelo outro lado do pêndulo.

Para a atividade do conhecimento, as ideias são elementos universais que


podem ser compreendidos de modo muito semelhante por todas as pessoas. Mas
quando tenho uma intuição de uma ideia e a trago para uma ação, eu, de certo modo,
estou individualizando aquela ideia.

Capítulo 11

A Finalidade da Vida Humana

Enquanto que na natureza prevalece a lógica de causa e efeito, na esfera da


liberdade humana prevalece a lógica de finalidade.

Na natureza, uma causa é um objeto ou processo que atua sobre o efeito que
é outro objeto ou processo. Não é uma ideia que atua diretamente como uma causa
para um efeito, no âmbito da natureza; mas a ideia se expressa como lei da natureza
que rege a ligação lógica entre a causa e o efeito e a causa é um objeto ou processo
real.

Portanto, na lógica de causa e efeito, é a causa que atua sobre o efeito. Em


contraposição, na lógica de finalidade ocorre o contrário: o efeito (que é a finalidade da
ação) atua sobre a causa (que é a ação), definindo-a.

A ação humana livre segue a lógica de finalidade. A finalidade e objetivo da


ação é a ideia ou a representação (imagem) mental do efeito que atua sobre a causa.
A causa é a ação que visa atingir aquela finalidade e objetivo.

Qual é a tarefa e a missão de um indivíduo na vida? A vida humana tem a


finalidade e a determinação que o próprio indivíduo escolhe para si mesmo, de acordo
com as suas intuições das ideias que lhe fazem sentido.

71
Capítulo 12

Intuição, Imaginação e Técnica

Cada um de nós, ao longo da própria trajetória de vida, deu vivacidade a um


conjunto específico de ideias e conceitos. Por isso, cada pessoa tem em si mesma um
conjunto de ideias e conceitos vivificados disponíveis a cada momento, que são o
resultado da experiência de vida.

Não é possível a intuição de uma ideia ser diretamente realizada em uma ação
que transforma os fatos observados, porque as ideias são universais e gerais e podem
ser realizadas de inúmeras maneiras específicas.

O que faz a ponte entre a ideia intuída e os fatos transformados pela ação? É a
imagem (ou representação mental) gerada pela capacidade de imaginação criativa. A
imagem mental é o elo intermediário entre uma ideia e um objeto observado.

A pessoa livre tem uma intuição e observa atentamente os fatos objetivos do


ambiente onde quer realizar a ação correspondente. Em seguida, sua imaginação
criativa gera imagens mentais para definir uma possibilidade bem específica de como
transformar aquela ideia em ação.

É muito comum as pessoas buscarem essas imagens mentais de ação já


prontas e arquivadas na memória ao lembrarem de soluções para casos semelhantes,
ou ao buscarem por um exemplo para ser replicado, ou ao buscarem por um comando
diretivo de uma autoridade.

A pessoa que descobriu o espírito livre em si mesma vai além dessas opções e
realiza uma primeiríssima decisão, graças à sua capacidade de imaginação criativa,
que, a partir da ideia intuída, define a imagem mental de como realizar a ação
transformadora dos fatos objetivos.

O ser humano produz representações mentais concretas a partir do conjunto


de suas ideias por meio da imaginação.
O que o espírito livre precisa para realizar as suas ideias e para realizar-se, é a
imaginação de ação (imaginação moral). Ela é a fonte para a ação do espírito
livre.

Pessoas abstratas, que têm ideias de ação vagas, não são produtivas. Elas
falam de ideias e mais ideias, mas não conseguem condensá-las em possibilidades
concretas de ação. Apenas as pessoas com a capacidade de imaginação criativa são
produtivas na vida prática e na vida ética.

72
Até aqui, demos o passo que parte da intuição da ideia (por meio do pensar
intuitivo) para criar uma imagem mental da ação (por meio da imaginação criativa). O
próximo passo, no sentido da concretização da ideia, parte da imagem mental da ação
para chegar à técnica de ação que transforma efetivamente os fatos observados.

Algumas pessoas são brilhantes em sua capacidade de imaginação criativa e


geram excelentes imagens mentais de ação, mas não dominam as técnicas de ação
necessárias para transformar os fatos concretos. Existem outras pessoas que, pelo
contrário, têm o domínio técnico, mas não conseguem gerar imagens mentais criativas
pela imaginação. Com frequência, as pessoas desses dois perfis diferentes se unem
em colaboração para realizar, na prática, as imagens mentais criativas.

Em geral, as pessoas são mais aptas para encontrarem os conceitos sobre o


mundo que já está pronto, do que para definirem, de modo produtivo, as ações
futuras ainda não disponíveis, a partir da imaginação.

Observar o Pensar Intuitivo na Ação

De que modo uma pessoa pode constatar se uma ação sua é caracterizada
pelos atributos da liberdade? Só por meio da própria observação mental individual.

No momento em que estamos tendo uma intuição de ação, o nosso foco de


atenção está na ideia da ação, sem muita consciência sobre a própria atividade
intuitiva que está gerando essa ideia de ação. Mas, depois de a pessoa ter tido a
intuição da ação, ela pode se lembrar dessa atividade intuitiva e pode contemplar
mentalmente a atividade intuitiva (de ter pensado sobre a ideia da ação) que ela
recorda pela memória.

Com isso, a pessoa pode constatar em que medida o fator determinante da


ação realmente foi o pensar intuitivo e, em que medida, ela se sentiu livre durante
esse processo. Portanto, a capacidade de observar a atividade do pensar intuitivo que
gera a ação (e a capacidade de observar a atividade da imaginação criativa que torna
tangível a representação mental da ação) é o que possibilita a constatação mental
sobre a experiência pessoal da liberdade.

Nessas considerações sobre a vontade humana, foi apresentado o que o ser


humano pode vivenciar em suas ações para chegar à consciência, por meio
dessa vivência: Minha vontade é livre.
É de significado especial, que a justificativa para caracterizar uma vontade
como sendo livre é obtida por meio da vivência: na vontade se realiza a
intuição de uma ideia. Isso só pode ser o resultado da observação.

73
Capítulo 13

Sofrimento Versus Prazer Intelectual (Espiritual)

O que predomina na vida: alegria ou sofrimento, prazer ou desprazer? Steiner


apresenta as filosofias pessimistas de Schopenhauer e Eduard von Hartmann.
Hartmann considera que existe mais sofrimento na vida humana do que alegria, mas
que as pessoas vivem sem ter essa consciência. Quando o ser humano finalmente se
conscientiza de que o sofrimento na vida é maior do que a satisfação dos desejos,
então a pessoa deixa de priorizar os desejos e começa a se comprometer com tarefas
morais gerais.

Steiner tem uma visão bem diferente da visão de Hartmann. Por exemplo, se
uma pessoa ama a vista panorâmica da paisagem a partir do topo de uma montanha,
então essa pessoa vai aceitar realizar uma expedição difícil e trabalhosa passando por
vários obstáculos até chegar ao topo da montanha. Nesse momento, a pessoa não se
questiona se foi maior o prazer proporcionado por atingir o objetivo de ver a vista no
topo da montanha ou se foi maior o sofrimento pelo cansaço diante dos obstáculos ao
longo da caminhada.

Portanto, a vontade humana se mobiliza para buscar a satisfação de alcançar


seus objetivos, mesmo que a quantidade de sofrimento pelo caminho tenha sido maior.

A intensidade da vontade humana não é prejudicada pela reflexão sobre o


sofrimento ser eventualmente maior do que o prazer no balanço da vida. O que
mantém a vontade forte é a perspectiva de vir a sentir plenamente o prazer pela
satisfação de alcançar o seu objetivo, mesmo depois de a pessoa ter sido obrigada a
superar muitas dificuldades e sofrimentos.

O sofrimento só impacta negativamente a vontade quando ele diminui o desejo


pessoal de buscar atingir o próprio objetivo.

Não se pergunta se prazer ou desprazer está presente em maior medida, mas


se a vontade do prazer é forte o suficiente, para superar o desprazer.

A aspiração do ser humano se dirige pela quantidade da possível satisfação


depois da superação de todas as dificuldades.

A Origem das Tarefas Éticas

74
A ética pessimista acredita precisar mostrar ao ser humano que a caça pela
felicidade seria uma busca impossível, a fim de que o ser humano se dedique
às suas verdadeiras tarefas éticas.
No entanto, essas tarefas éticas não são nada menos do que a satisfação dos
desejos naturais e intelectuais (espirituais) concretos; e a satisfação deles será
buscada apesar do desprazer que ocorre durante essa busca.
Mas as tarefas que o ser humano tem que realizar, ele realiza, porque, pela
força do seu ser, ele as quer realizar, quando ele realmente reconheceu o ser
das tarefas.

O ser humano não está apenas em busca de uma felicidade genérica e


abstrata. O ser humano está em busca da satisfação de realizar o que o seu próprio
ser deseja; e ele visa o objeto concreto dessa busca. Para o ser humano, cumprir essa
busca é um prazer.

O ser humano não precisa negar a sua própria natureza a fim de ser ético,
porque a ética consiste em buscar realizar uma meta reconhecida como sendo
justificada. Faz parte da natureza humana buscar uma meta assim.

O Fortalecimento da Vontade pelo Pensar Intuitivo

A ética não consiste no extermínio de toda a busca por prazer, para que ideias
anêmicas e abstratas possam imperar onde não exista mais a oposição a
essas ideias que vinha da presença do forte desejo pelo prazer da vida.
Mas a ética consiste da vontade forte carregada pela intuição de ideias e que
atinge sua meta, mesmo quando o caminho para isso é cheio de espinhos.

Os ideais éticos surgem a partir da imaginação moral do ser humano. E a


realização desses ideais éticos depende que eles sejam desejados pelo ser
humano de modo suficientemente forte, a fim de superar dores e sofrimentos
intensos.
Esses ideais éticos são a intuição do ser humano, as forças mobilizadoras que
tensionam o seu espírito. Ele quer esses ideais éticos, porque a realização
deles é o seu maior prazer.
O ser humano não precisa deixar que a ética o proíba de buscar o prazer, para,
depois disso, ser comandado sobre o que ele deve buscar atingir por dever. O
ser humano irá buscar ideais éticos, quando a sua imaginação moral for
suficientemente ativa para lhe inspirar com intuições.
As intuições conferem força para a sua vontade, a fim de transpor os
obstáculos; a fim de transpor, até mesmo, os obstáculos presentes dentro da
sua própria organização humana (sendo que o desprazer está
necessariamente incluído dentre esses obstáculos internos).

75
Ética, Inteireza do Ser e Desejos Intelectuais (Espirituais)

Algumas pessoas sentem um deleite intelectual e espiritual ao transformar


seus ideais em realidade. A pessoa que busca realizar ideais gerados pelo pensar
intuitivo e pela imaginação está fazendo isso, porque ela considera que esses ideais
são o conteúdo do seu próprio ser. Portanto, a realização desses ideais pode
proporcionar um prazer para a pessoa, diante do qual, a satisfação de desejos do dia
a dia parece insignificante.

Quem quer exterminar o prazer pela satisfação do desejo humano, precisa,


primeiramente, transformar o ser humano num escravo, que não age porque
ele quer, mas apenas porque ele precisa. Pois a conquista do que é quisto gera
prazer.
O que se denomina como o bem não é o que o ser humano deve, mas é o que
ele quer, quando ele desenvolve a natureza humana verdadeira por inteiro.

O ser humano atribui um valor ao cumprimento de um desejo, porque ele surge


a partir do seu ser.

Alguns pensadores consideram que o ser humano não é naturalmente ético,


porque acreditam que a vontade humana se limita à busca pelo prazer pessoal de sua
natureza física. Essa reflexão é fundamentada na opinião de que o espírito humano
individual não é capaz de dar a si mesmo um conteúdo para as suas aspirações
éticas.

A busca pela satisfação de desejos básicos é atendida pela natureza física.


Mas para o desenvolvimento do ser humano inteiro também faz parte o surgimento de
desejos gerados pelo intelecto (espírito).

Toda ética que exige do ser humano que ele reprima a sua vontade, a fim de
realizar tarefas que ele não quer, não conta com o ser humano inteiro, mas
com um ser humano no qual falta a capacidade de ter desejos intelectuais
(espirituais).
Para o ser humano desenvolvido de modo harmônico, as assim chamadas
ideias sobre o bem não estão fora, mas estão dentro da esfera do seu ser.
A ação ética não consiste na eliminação de uma vontade própria unilateral,
mas no desenvolvimento da natureza humana por inteiro.

76
Com frequência, pessoas não maduras e desprovidas da imaginação moral
acreditam que o conteúdo completo da sua experiência humana se limita aos instintos
de sua natureza parcial. Por isso, vão repudiar ideias éticas que não foram criadas por
elas, para que possam desfrutar a vida plenamente sem serem perturbadas.

Para essas pessoas, obviamente não se aplica a reflexão válida para a pessoa
madura que realiza o “bem” ao concretizar a sua vontade direcionada pelo pensar
intuitivo e pela imaginação moral. O papel da educação é justamente auxiliar as
pessoas para que a natureza ética delas rompa a casca de ovo dos instintos e paixões
básicos.

A liberdade existe como uma possibilidade. Essa possibilidade de liberdade


não aparece nas ações geradas a partir das necessidades sensoriais e a partir das
necessidades e carências emocionais, mas nas ações geradas por necessidades
produzidas pelas intuições intelectuais (espirituais).

O Valor da Vida Pessoal

Qual é o valor da vida? O valor da vida de um ser humano amadurecido é o


valor que ele dá para si mesmo. Ele age como quer. Ou seja, ele age conforme suas
intuições éticas; e ele considera a realização do que quer como sendo o seu
verdadeiro prazer de vida.

O ser humano que desenvolve o seu ser de modo completo é o próprio


avaliador do valor de si mesmo.

É apenas na realização livre da intuição fluindo a partir do ser do indivíduo


humano que resultam a ética e o seu valor.

O individualismo ético considera que:

[...] a ética surge a partir do ser humano, quando ele desenvolve em si mesmo
a vontade ética como um membro de seu ser inteiro, de modo que cometer um
ato antiético lhe pareceria como uma mutilação e deformação do seu próprio
ser.

Capítulo 14

Individualidade Versus Comportamentos Grupais

77
Qual é a relação entre as manifestações únicas de uma individualidade e os
comportamentos típicos dos grupos a que ela pertence?

Uma pessoa nasce em grupos conforme, por exemplo, a sua raça, seu povo,
seu gênero (masculino ou feminino), e atua em agrupamentos humanos como sua
nação, sua comunidade religiosa etc. As características desses grupos humanos se
expressam até mesmo na fisionomia e no estilo das atitudes de cada pessoa.

No entanto, ao longo do seu desenvolvimento, a pessoa pode se libertar dos


padrões típicos dos grupos humanos de sua origem, ao criar características e funções
em si mesma que são determinadas individualmente pela própria pessoa. Nesse
processo de o indivíduo se auto-determinar, surge a oportunidade para que as
características típicas dos seus grupos humanos de origem se tornem meios de
expressão para que a pessoa manifeste o seu ser único nesses agrupamentos
humanos.

Com isso, as características típicas dos grupos humanos de origem são


reconfiguradas pela pessoa, de acordo com o seu ser individual.

Como compreender os comportamentos de uma individualidade? Na medida


que uma pessoa se comporta de acordo com os padrões típicos dos grupos sociais a
que ela pertence, primeiro precisamos buscar compreender essas características
grupais e coletivas do todo para, depois, podermos explicar o comportamento
específico daquela pessoa.

No entanto, na medida que uma individualidade reconfigura as características


dos seus grupos humanos de acordo com a expressão de seu ser único, então, a
própria individualidade deve ser compreendida independentemente dos determinismos
vindos dos comportamentos dos seus grupos humanos de origem.

Os comportamentos e ações de uma pessoa pouco individualizada são


determinados pelos comportamentos típicos e pelos padrões característicos dos
grupos sociais aos quais ela pertence; e os comportamentos e ações da pessoa que
avançou no desenvolvimento de sua individualidade são fundamentados pela sua
própria capacidade de auto-definição livre.

O Desafio de Compreender uma Individualidade Livre

A pessoa desenvolve a liberdade no âmbito de sua capacidade de pensar e de


sua capacidade de agir.

A forma como uma pessoa observa os fatos e conecta conceitos para explicar
esses fatos não é uma forma fixa e determinada por padrões de grupos humanos.
Pelo pensar intuitivo, cada pessoa pode conquistar uma forma bastante individual e
criativa de compreender os fatos com um conjunto muito único de conceitos

78
interligados de um modo também único. Cada indivíduo tem a sua própria visão dos
fatos.

O modo como uma pessoa define metas para a sua vontade também pode
ajudá-la a se libertar dos modos padrões típicos e grupais, quando ela manifestar o
seu estilo pessoal de concretizar o pensar intuitivo na ação.

Qual é o procedimento necessário para compreender uma outra individualidade


livre? Para compreender um indivíduo, é necessário alcançar as manifestações únicas
do seu ser e ir além das características típicas grupais e além de padrões.

Compreender um indivíduo é compreender o seu jeito de ver o mundo e o seu


próprio modo de definir conteúdo para a sua vontade.

Para compreender aspectos típicos de grupos humanos em uma pessoa, eu


faço uso de conceitos meus que aprendi ou desenvolvi para compreender os
comportamentos desses grupos. Porém, para compreender uma individualidade livre,
tenho que silenciar todo e qualquer conceito meu dentro de mim. Porque, o que
explica o pensar e o querer de uma individualidade livre são os conceitos que ela
própria determinou para si mesma.

Para todos os outros objetos, o observador tem que obter os conceitos por
meio de suas intuições; para compreender uma individualidade livre, trata-se
de captar em nosso intelecto (espírito) os conceitos dela, pelos quais ela define
a si própria. Temos que captar esses conceitos dela de modo puro (sem serem
misturados com os conteúdos dos próprios conceitos do observador).
Pessoas que, para julgar um outro ser humano, misturam imediatamente seus
próprios conceitos, não conseguem nunca alcançar a compreensão de uma
individualidade.

A Vida Ética da Humanidade Como um Todo

Conforme a pessoa se desenvolve como uma individualidade livre, ela pode


agir de modo verdadeiramente ético, por dispor da capacidade de ter intuições morais.

A vida ética da humanidade como um todo é composta por dois fatores:

● o conjunto das intuições éticas e imaginações morais de cada individualidade


livre; e
● a capacidade de acolhimento das comunidades humanas ao serem receptivas
para essas intuições éticas e imaginações morais de cada individualidade.

79
Capítulo Final

O Pensar Intuitivo e os Fundamentos da Existência

Rudolf Steiner também apresenta aqui a concepção de alguns filósofos que


acreditam que os aspectos mais importantes e fundamentais da vida estão em algum
tipo de além, fora do alcance da compreensão humana.

Schopenhauer escreve sobre uma “vontade” como se fosse uma entidade


divina, e Eduard von Hartmann considera que existe um ser arquetípico universal no
além, prescrevendo as vontades e regendo as reflexões lógicas aqui no nosso mundo
humano.

Steiner considera que as explicações desses pensadores foram construídas ao


projetarem inconscientemente aspectos das vivências humanas para a “tela” de um
além abstrato. Por não terem como ser vivenciadas pela nossa experiência mental e
sensorial, essas explicações não são o resultado do pensar intuitivo, mas são o
resultado de especulações.

Como refletir sobre os fundamentos mais essenciais da existência? No dia a


dia, refletimos sobre assuntos mais imediatos e restritos. No entanto, em alguns
momentos, buscamos por um sentido de vida mais abrangente nos conectando com
algum potencial significado da existência do universo como um todo.

O indivíduo humano em particular não está, de fato, separado do mundo. Ele é


uma parte do mundo e existe, na realidade, uma conexão com o todo do
cosmos, a qual é interrompida apenas pelo nosso ato de observação.

Qual é a conexão da minha vida tão particular e limitada com a vida ampla e
ilimitada do universo como um todo?

Vejamos um exemplo bem simples de como a nossa reflexão e a nossa


experiência mental podem ser ampliadas para âmbitos com significados cada vez mais
abrangentes.

Observo uma árvore e vou refletindo passo a passo sobre tudo o que permite a
existência dessa árvore com a finalidade de compreender o sistema de interconexões
do qual ela faz parte. A árvore não existiria sem o solo e sem a grande complexidade
das características geológicas e mineralógicas deste solo. A árvore também não
existiria sem a água que circula em seu ambiente e também não existiria sem as
múltiplas interconexões do seu bioma tanto no nível micro quanto no nível
macroecológico. A existência da árvore depende de relações climáticas próximas e
distantes; e a árvore só vive graças aos raios de sol, de modo que a existência da
árvore está diretamente relacionada com este corpo celeste solar tão distante.

80
Essas reflexões tão óbvias e disponíveis em qualquer enciclopédia podem ser
transformadas (pela observação aprofundada e pelo pensar intuitivo) numa
experiência mental sobre o todo do qual fazemos parte.

De modo semelhante, posso pensar que um determinado conhecimento que eu


conquistei só faz sentido em sucessivas e infindáveis conexões de ideias que vão se
expandindo cada vez mais na direção de uma ampla rede de significados contendo a
totalidade dos conceitos e ideias que potencialmente podem explicar o universo todo.

Esses são dois exemplos didáticos de como podemos buscar a experiência


mental que vai em direção do todo universal, por meio da nossa reflexão. Um outro
caminho mais realista em direção a essa experiência mental é o seguinte: ao longo da
minha biografia, realizei mergulhos profundos para compreender assuntos-chaves que
me desafiaram a cada fase da minha vida.

Depois de passar meses ou anos observando fatos, refletindo e trabalhando


sobre um assunto chave, começo a me familiarizar com aquele campo temático e a ter
insights significativos sobre ele. Com isso, começo a sentir que eu não sou apenas um
espectador dos fatos, mas começo a perceber que eu participo daquele campo
temático e que eu vivo conscientemente nele; e, a cada nova fase de vida, esse
processo se repete para novos campos temáticos na minha vida pessoal e
profissional.

[...] nós vivemos no real, no momento em que encontramos a ideia para os


objetos observados.

Depois de tanto trilhar ao longo das décadas, posso parar para uma reflexão
existencial decisiva e realizar uma colheita de todos os significados conquistados até
agora em minha vida. Nessa reflexão existencial, posso perceber que obtive
conhecimento aprofundado sobre diversos assuntos e, em cada um deles, conquistei
um campo gerador de insights que me faz sentir participante da vida.

Enquanto o ser humano compreende a si próprio apenas por meio da


auto-observação, ele se vê como esse ser humano em particular.
Enquanto ele olha para o mundo das ideias que brilha dentro dele e que
abrange todas as particularidades, então ele vê em si o real absoluto brilhar
vividamente.

Quando contemplo o panorama de todas essas experiências, percebo que


minha vida resultou numa sinfonia de conhecimentos aprofundados que, em conjunto,
me proporcionam o sentimento de participar da vida do universo.

81
Conforme ganho mais maturidade e mais conhecimentos aprofundados pelo
pensar intuitivo, esse processo de sentir-me participante da vida do universo vai se
consolidando e ampliando mais e mais.

O ser humano só consegue encontrar a sua existência total no universo


encerrada em si mesma, por meio da vivência intuitiva no pensar.

A unidade do mundo dos conceitos, a qual contém objetivamente os objetos


observados, também acolhe em si o conteúdo da nossa personalidade
subjetiva.

Além de obter essa consciência a partir da experiência pessoal, posso dar mais
um passo e buscar compreender também as experiências semelhantes realizadas
pelos meus amigos. Com isso, vejo como cada pessoa conquistou o seu conjunto de
campos temáticos enriquecidos com os conhecimentos aprofundados pelo pensar
intuitivo, proporcionando-lhe o sentimento de participar da vida do universo.

O pensar direciona todos os sujeitos da observação à unidade coletiva de


ideias a partir de toda a multiplicidade. O mundo de ideias unitário se
desenvolve nesses sujeitos como em uma pluralidade de indivíduos.

Posso então ter o insight de que é justamente nesse conjunto das minhas
experiências com o pensar intuitivo e das experiências similares de todos os demais
seres humanos que temos acesso à vida divina do universo como um todo.

Podemos ter a percepção de que a vida divina do universo se manifesta dentro


da experiência humana real, sem termos a necessidade de especular sobre um
suposto outro mundo do além.

Cada ser humano abrange com o seu pensar apenas uma parte do mundo das
idéias total e, nessa medida, os indivíduos também se diferenciam, por meio do
real conteúdo do pensar deles.
Mas esses conteúdos estão inseridos num todo encerrado em si mesmo, que
abrange os conteúdos do pensar de todos os seres humanos.
Com isso, o ser humano apreende, em seu pensar, o ser arquetípico comum a
todos e que permeia todos os seres humanos.

82
Participar da vida, a partir de conhecimentos aprofundados pelo pensar intuitivo
abre a possibilidade de participar conscientemente da vida divina do universo.

Bibliografia
1. Steiner, R. (2000). A Filosofia da Liberdade (GA [Catálogo Geral] 4). Trad. M. da Veiga.
São Paulo: Ed. Antroposófica.

2. Selg, P. (2007), Rudolf Steiners innere Situation zur Zeit der 'Philosophie der Freiheit':
Eine Studie. Dornach : Verl. am Goetheanum.

3. Strube, J. (2010). Die Beobachtung des Denkens: Rudolf Steiners" Philosophie der
Freiheit" als Weg zur Bildekräfte-Erkenntnis. Verlag für Anthroposophie.

4. Carvalho, B. (1988) Desenho Geométrico. Livro Técnico. Rio de Janeiro.

5. Werner, G. W. (2006). Führung für Mündige. Subsidiarität und Marke als Kennzeichen
einer modernen Führung, Karlsruher Universitätsverlag, Karlsruhe.

83
6. Fisher, R., Ury, W., & Patton, B. (2005). Como chegar ao sim: negociação de acordos
sem concessões. Imago.

7. Dietz, K. M. (1996). Gemeinschaft durch Freiheit: Perspektiven für die Zukunft des
Geisteslebens. Ed. Hardenberg im Verlag Freies Geistesleben.

8. Dietz, K. M., & Kracht, T. (2002). Dialogische Führung. Frankfurt am Main: Campus.

9. Dietz, K. M. (2008). Jeder Mensch ein Unternehmer: Grundzüge einer dialogischen


Kultur (Vol. 18). KIT Scientific Publishing.

10. Dietz, K. M. (1998). Dialog: die Kunst der Zusammenarbeit. Menon-Verlag

Outros Livros e Artigos Relacionados com o Assunto


● Bach Jr., J. (2015). O pensar intuitivo como fundamento de uma educação para a
liberdade. Educar em Revista, 31(56), 131-145.
● Bach Jr., J. (2017).Fenomenologia de Goethe e educação: a filosofia da educação de
Steiner. 1. ed. Curitiba: Lohengrin.
● Lanz, R. (1985). Do goethianismo à filosofia da liberdade. Antroposófica.
● Schieren, J. (2010). Die Veranlagung von intuitiven Fähigkeiten in der Pädagogik.
RoSE–Research on Steiner Education, 1(1).
● Veiga, M. D. (1998). Experiência, pensar e intuição–Introdução à Fenomenologia
Estrutural. São Paulo: Cone Sul

Nota: Os trechos da “Filosofia da Liberdade” de Rudolf Steiner utilizados neste


pequeno livro são traduções de Rogério Cerávolo Calia a partir do texto original em
alemão.

Rogério Cerávolo Calia é docente no curso de


Administração da Universidade de São Paulo (USP) no
Campus de Ribeirão Preto – SP. Trabalhou 8 anos na
empresa 3M. É doutor em Administração (FGV) e doutor
Engenharia de Produção (USP – São Carlos). Realizou
pesquisa de pós-doutorado sobre meditação mindfulness e
senso de propósito profissional com o Prof. Dr. Marcelo
Demarzo, da Escola Paulista de Medicina (UNIFESP).

84
RESUMO

Metodologias de gestão colaborativas requerem a capacidade do pensar intuitivo para


o compartilhamento de propósitos e valores. O pensar intuitivo viabiliza um
autoconhecimento mais genuíno e uma maior habilidade de diálogo para identificar a
convergência de intenções em oportunidades de colaboração. Esse livro, mostra como
desenvolver o pensar intuitivo para aplicá-lo ao desafio de criar um ambiente de
trabalho colaborativo, fundamentado no autoconhecimento e no diálogo. Na USP em
Ribeirão Preto, graduandos e pós-graduandos aprendem metodologias de gestão
colaborativas como a "Teoria U" do Professor Otto Scharmer do M.I.T. nos EUA e a
"Liderança pelo Diálogo" de Karl-Martin Dietz praticada na DM-Drogerie Markt, uma
grande empresa líder de varejo na Europa. Os criadores dessas duas metodologias de
gestão se inspiraram nos processos criativos do pensar intuitivo descritos por Rudolf
Steiner no livro "Filosofia da Liberdade". Aqui, desmistificamos o pensar intuitivo e
mostramos meios práticos de como desenvolvê-lo para estimular capacidades
profissionais necessárias em ambientes de trabalho colaborativos.

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