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O DIREITO À RELIGIÃO E A DECOLONIZAÇÃO DA TRANSCENDÊNCIA

Wilson Avilla1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo abordar a questão do direito à religião, relacionando-
a a um itinerário básico de desenvolvimento conceitual, e à complexidade da multiculturalidade
na pós-modernidade, bem como apontar para a compreensão da transcendência não somente como
um direito, mas também como uma necessidade, em dupla acepção (em relação ao divino e ao
outro), de percorrer um caminho de coexistência sem as concepções colonialistas que insistem em
estruturar nas diferentes formas de organização social, imaginários e mentalidades.

Palavras-chave: Direitos humanos. Intolerância religiosa. Direito de religião. Direito à


transcendência. Decolonialidade.

Abstract: This article aims to address the issue of the right to religion, relating it to a basic itinerary
of conceptual development, and to the complexity of multiculturalism in postmodernity, as well
as pointing to the understanding of transcendence not only as a right, but also as a also as a need,
in a double sense (in relation to the divine and the other), to follow a path of coexistence without
the colonialist conceptions that insist on structuring, in the different forms of social organization,
imaginaries and mentalities.

Keywords: Human rights. Religious intolerance. Right of religion. Right to transcendence.


Decoloniality.

1. Introdução
“Os inquisidores colocarão fogo nos olhos do seu deus e com ele consumirão aqueles que
se atrevem a ser diferentes. Os pacificadores colocarão o fogo nas lanternas e nos fogões, para
iluminar, aquecer, cozer...” 2
A emblemática afirmação de Rubem Alves3 enuncia metaforicamente um dos grandes
problemas da humanidade, tão antigo quanto ela própria: a intolerância religiosa. Por outra

1 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura. Doutorando em Ciências da Religião.


2 ALVES, 1982, p. 11
3 Rubem Azevedo Alves (1933-2014) foi psicanalista, educador, teólogo, escritor e pastor presbiteriano brasileiro. Autor de livros

religiosos, educacionais, existenciais e infantis. É considerado um dos principais pedagogos brasileiros, e intelectual polivalente
nos debates sociais no Brasil. Foi também professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubem_Alves, acesso em 13/01/2022, às 17:43 h.)

1
perspectiva, a mesma afirmação sugere também uma postura pacificadora diante do desafio da
coexistência humana em meio às diferenças de crenças religiosas. Contida na coletânea de ensaios
denominada “Dogmatismo e Tolerância”, de caráter autobiográfico, a declaração faz coro com
uma série de escritos que são expressões de momentos pessoais de luta do autor. Em meio a elas,
o desejo de Alves era que cada leitor ouvisse a temática da liberdade, e tinha por intenção assustar
tanto protestantes quanto católicos, no contexto bem delimitado das tensões que marcaram as duas
correntes religiosas, e que serviu de pano de fundo às suas considerações.4 Embora Alves tenha
falado no âmbito da cristandade brasileira, sua fala continua reverberando um desejo inerente ao
diálogo inter-religioso que alcança cada ser humano, religioso ou não, no mundo todo.
A questão é por demais complexa, razão pela qual por vezes é tão difícil ouvir a temática
da liberdade que Alves gostaria que seus leitores ouvissem. As dificuldades para ouvir são criadas,
na maioria das vezes, por quem deveria zelar pela preservação de direitos – o Estado. E não se
trata de adotar argumentos ad-hoc para justificar tal argumento, com uma postura de defesa da
transferência para o aparato governamental de toda a responsabilidade por todas as esferas da vida
social e privada. Trata-se de uma constatação factível e necessária de que os interesses e esforços
do poder público não podem ser mensurados apenas por boas intenções consagradas por diplomas
legais. Só podem ser medidos por ações eficazes, que resultem, principalmente, em diminuição
das terríveis estatísticas que apontam para o crescimento do ódio e não da paz.
Em 2016 o ENEM5 propôs em sua prova anual o tema de redação “Caminhos para combater
a intolerância religiosa no Brasil”, que contava com quatro textos de apoio, incluindo um trecho
da Constituição Federal e uma fala do Ministério Público sobre a laicidade do Estado brasileiro. O
Edital do exame indicava que na argumentação e na elaboração das propostas os candidatos
deveriam considerar os direitos humanos. Refletir sobre tal questão não é somente uma iniciativa
discricionária e burocrática, ou de mera reflexão acadêmica, ela faz parte de compromissos
políticos do estado brasileiro no âmbito internacional, posto que o Brasil é signatário da Declaração
Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas. A título de exemplo, vale
lembrar que em 2003, o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH) apoiou-se

4 ALVES, 1982, p. 7
5 Exame Nacional do Ensino Médio – instituído em 1998, com o objetivo de avaliar o desempenho escolar dos estudantes ao
término da educação básica. Em 2009, o exame aperfeiçoou sua metodologia e passou a ser utilizado como mecanismo de acesso
à educação superior. (https://www.gov.br/inep/pt-br/areas-de-atuacao/avaliacao-e-exames-educacionais/enem, acesso em
14/01/2021, às 11:07 h.)

2
em documentos internacionais e nacionais para inserir o Brasil na ‘Década da Educação em
Direitos Humanos, prevista no Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos (PMEDH).
A partir do artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos - que garante a
liberdade de pensamento, consciência e religião, incluindo a liberdade de se manifestar essa
religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou
coletivamente, em público ou em particular – já existe um longo trajeto marcado por tratados e
declarações. Alguns deles - em 1981, foi divulgada pela Organização das Nações Unidas a
Declaração sobre a eliminação de todas as formas de intolerância e discriminação fundadas na
religião ou convicções; em 1992, no mesmo âmbito, a Declaração sobre os direitos das pessoas
pertencentes a minorias nacionais ou étnicas, religiosas e linguísticas; em 1995, a Declaração de
princípios sobre a tolerância, adotada pelos estados membros da UNESCO, e em 2001, a
Declaração universal sobre a diversidade cultural, subscrita pela Conferência Geral da
Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura.
Apesar do trajeto histórico e legal, bem mais amplo do que o que está mencionado neste
escrito, obviamente, Rodrigues6 entende que nos encontramos na situação, impensável há dez
anos, em que é preciso reafirmar valores e convicções que eram julgadas como estabelecidas. No
que ele chama de nevoeiro da chamada pós-modernidade, com seus desdobramentos quase nunca
claros, o que antes era óbvio deixou de sê-lo. Não é difícil constatar o mesmo que Rodrigues, é
como se de repente a ideia que todos os seres humanos possuem direitos inalienáveis não fosse
mais tão inerente às respostas dadas a diversas instâncias de barbárie, que insistem, em pleno
século 21, para falar apenas do que é mais atual, em degradar o ser humano. Ele afirma que a lição
deveria ter sido aprendida, por fatos inegáveis, ainda na memória coletiva recente, tais como
Auschwitz, os gulags stalinistas, genocídios e violências étnicas, precarização continuada das
condições de vida do povo palestino, preconceitos contra minorias, e o crescimento dos regimes
ditatoriais.7
De repente, tornou-se aceitável manifestar, nesse ambiente líquido e plurifacetado das
redes sociais, gestos de intolerância, crenças que excluem e desumanizam seres humanos,
agendas que, em nome de uma pretensa “segurança”, defendem o raciocínio torto e infeliz
de que “direitos humanos” deveriam ser estendidos apenas a “humanos direitos” – e com
isso, na superficialidade e ignorância que caracteriza boa parte dos discursos
disseminados por essas novíssimas mídias, as pessoas não percebem que operam uma

6 Rui Luis Rodrigues é professor de História Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Estuda a
obra de Erasmo de Roterdã.
7 https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/liberdade-religiosa-como-direito-transcendencia, acesso em

14/01/2021, às 10:37 h.

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distinção totalmente infundada e arbitrária entre aqueles que são, apenas, seres humanos
e cujos direitos são-lhes inalienáveis apenas e tão somente por causa de sua humanidade.8

Na análise de Rodrigues, a razão pela qual é necessário assegurar o direito à liberdade


religiosa é relativamente óbvia: em poucas áreas que não o campo religioso se manifestaram tão
consistentemente, ao longo da história, a intransigência e a intolerância. Lidando sempre com as
convicções mais profundas dos seres humanos, as religiões foram, e continuam sendo, por demais
vezes, fonte de discriminação e de violência.9

2. Abordagens e delimitações sobre a complexidade do tema


Necessidade proporcional à complexidade da questão. Ponderando sobre tal complexidade
Volf10 pontua que há hoje em dia candentes debates acerca do papel das religiões na esfera pública,
e não é difícil entender a razão para tanto. Ele explica que, primeiro, as religiões vêm crescendo
numericamente, e seus adeptos no mundo inteiro estão cada vez menos dispostos a limitar suas
convicções e práticas à esfera privada da família ou da comunidade religiosa. Em vez disso,
querem que essas convicções e práticas moldem a vida pública. Ou seja, de um modo ou de outro,
muitos cidadãos religiosos objetivam moldar a esfera pública de acordo com sua visão pessoal do
que é uma vida boa. Como segunda razão, Volf argumenta que em um mundo globalizado como
o de hoje, não é possível isolar as religiões em áreas geográficas definidas. À medida que o mundo
diminui de tamanho, na compreensão do intelectual croata, e a interdependência dos povos
aumenta, apaixonados e defensores de diferentes religiões passam a ocupar o mesmo espaço, e
toda sorte de conflito decorre desses encontros e desencontros.11 Na conclusão de sua obra “Fé
pública” Volf menciona, com provável intenção paradigmática, o discurso do ex-presidente dos
Estados Unidos da América, proferido em 4 de junho de 2009, na Universidade do Cairo, como
um esforço para redefinir as relações entre os Estados Unidos e as comunidades muçulmanas no
início do seu mandato presidencial. As profundas tensões decorrentes das guerras no Iraque e no
Afeganistão delimitaram o tema das falas de caráter filosófico e moral, nas quais Obama sugeriu

8 https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/liberdade-religiosa-como-direito-transcendencia, acesso em
14/01/2021, às 10:37 h.
9 https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/liberdade-religiosa-como-direito-transcendencia, acesso em
14/01/2021, às 10:37 h.
10 Miroslav Volf (1956- ), croata, é teólogo protestante e intelectual. Doutor em Teologia pela Universidade de Tubingen, dirige

atualmente o ‘Centro de Fé e Cultura’ da Universidade de Yale. Tem mais de vinte obras publicadas.
11 VOLF, 2011, p. 9

4
uma alternativa para o “choque de civilizações”. Em uma menção autobiográfica, no início de suas
palavras, ele disse:
Eu sou cristão, mas meu pai veio de uma família queniana que inclui gerações de
muçulmanos. Na infância, passei vários anos na Indonésia e ouvi o chamado do azan ao
amanhecer e ao anoitecer. Como jovem adulto, trabalhei em comunidades de Chicago
onde muita gente encontra dignidade e paz em sua fé muçulmana.12

Este estudo de caráter introdutório não tem por objetivo formular um antídoto para o
choque apontado por Obama, tampouco pretende detalhar o longo itinerário histórico, explicando
sua evolução, nem mesmo tenciona apontar todas as causas que fazem da intolerância religiosa um
problema de tão grande dimensão, mas, sem receio de soar superficial, alguns componentes da
intrincada trama de intolerância religiosa do retorcido tecido social podem e devem ser indicados
para uma compreensão adequada da questão em tela.
O primeiro deles se configura na crise de identidade das sociedades modernas. Hall13
afirma categoricamente que as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno,
até aqui visto como um sujeito unificado. É inegável que esse componente é parte de um processo
mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades
modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável
no mundo social. Um movimento que resulta no que Hall denomina como ‘identidades
descentradas, deslocadas ou fragmentadas.14 Os argumentos do respeitado sociólogo britânico-
jamaicano apontam para o ressurgimento de nacionalismos e particularismos no final do século
XX, de forma inesperada e concomitante à globalização. Tanto o capitalismo quanto o marxismo
elaboraram teoricamente, em diferentes formas, a ascensão de valores e identidades mais
universalistas, mas o que se viu, e se vê no presente, são desvios variados e contraditórios, nos
embates entre valores e identidades nas esferas local e global.
Um segundo componente pode ser identificado nos dilemas existenciais e humanistas
que decorrem dos imperativos desenvolvimentistas inerentes ao ‘capitalismo selvagem’ e
afligem os não comprometidos com sistemas econômicos predatórios.15 A questão é de inegável

12 VOLF, 2011, p. 165


13 Stuart Hall (1932-2014) foi teórico cultural e sociólogo britânico-jamaicano. Viveu e atuou no Reino Unido a partir de 1951. Foi
um dos fundadores da escola de pensamento que hoje é conhecida como ‘Estudos culturais britânicos’. Fundou também a revista
‘New Left Review’. O jornal britânico ‘The Observer’ o considerou como um dos principais teóricos culturais do país.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Stuart_Hall, acesso em 13/01/2022, às 18:40 h.)
14 HALL, 1992, pp. 7-8
15 Expressão usada pela primeira vez por Karl Marx, em ‘O capital’

5
interdisciplinaridade, e só assim pode ser enunciada adequadamente. Alcantara e Sampaio, em
pesquisa acadêmica sobre Bem Viver16 como paradigma de desenvolvimento, mencionam as
últimas edições do Fórum Social Mundial que sugeriram discutir alternativas de um novo modelo
civilizatório que tenha como base o Bem Viver, na tentativa de reconsiderar as relações com a
natureza, norteadas por um consumo responsável. Postulam os pesquisadores que indicadores,
como o Índice de Necessidades Básicas (In)Satisfeitas, índices de Vulnerabilidade, Índice do
Desenvolvimento Humano e outros, possuem limitações para se aferir o Bem Viver. Não é próprio
de nenhum deles considerar significados em dimensões subjetivas, posto que a ciência, de base
racional, ainda tem dificuldade para compreender o tema.17
A política do bem viver, em suas perspectivas de ideal humano, busca suplantar as crises
de caráter sistêmico, ou civilizatórias, e alcançar uma reflexão sobre a qualidade de vida em esferas
mais elevadas, que contemplem questões como espiritualidade, natureza, modos de vida e
consumo, política, ética. Por isso Alcantara e Sampaio entendem que há necessidade de
amadurecer o diálogo sobre o tema Bem Viver como uma proposta alternativa de
desenvolvimento, quando se pensa a relação sociedade e natureza.18 Os temas bem viver e
qualidade de vida são próximos, apesar de haver diferenças subjetivas e objetivas, apesar de haver
diferenças subjetivas e objetivas em suas concepções, pelo fato de que ambos requerem um
parâmetro conhecido como “Bem comum”, incorporando a dimensão social, ambiental e política.
Entretanto, a intersubjetividade presente no Bem Viver transcende instrumental da qualidade e
vida, formado por símbolos, significados e sentido coletivos que não pertencem unicamente a
alguém, mas por uma comunidade.19 Ou seja, a religião não é prescindível no espectro completo
de uma visão holística do ser humano e sua existência social.
Um terceiro componente, indispensável ao debate presente, é a mudança de concepção
antropológica sobre a religião. Asad, em suas considerações sobre a construção da religião como

16 Conceito originário da expressão andina sumak kawsay, em kíchwa, e refere-se a uma oportunidade, bem como uma filosofia,
para imaginar outros mundos. Diz respeito a uma passagem de uma sociedade antropocêntrica para uma sociobiocêntrica, com a
reorganização dos direitos humanos e da Natureza. O bem viver possui como contribuição a possibilidade do estabelecimento de
novos diálogos, propriamente práticas discursivas subversivas às ordens conceituais paradigmáticas. Procura estabelecer relações
intimas entre os conhecimentos tradicionais e contemporâneos em uma relação dialética de compreensão democrática, e construir
novas ligações positivas e dignas com a vida, uma vida construída em coletividade em valorização dos conhecimentos, que valoriza
as pluralidades e os diversos modos de ser e estar em contato com a vida. Para tanto, não tolerará a destruição da natureza, nem as
explorações entre os indivíduos, povos e nações, tão pouco as desigualdades entre os indivíduos. “O bem viver será para todos ou
não será” (ACOSTA, 2016, p. 240).
17 ALCANTARA & SAMPAIO, 2017, p. 232
18 ALCANTARA & SAMPAIO, 2017, p. 233
19 ALCANTARA & SAMPAIO, 2017, pp. 247-248

6
uma categoria antropológica, acentua que para os antropólogos do século XX a religião não é um
modo arcaico do pensamento científico, nem de qualquer outra empreitada secular, como as
valorizadas atualmente. Ao contrário, ela é um espaço distintivo da prática e da crença humanas
que não pode ser reduzido a nenhum outro. Assim, diz ele, a essência da religião não deve ser
confundida com a essência da política, ainda que em muitas sociedades as duas possam se sobrepor
e se entrelaçar. Asad, faz comentário muito pertinente, de que
talvez seja uma feliz coincidência que esse esforço de definição da religião seja
convergente com a exigência liberal de nossa época: que ela seja mantida bem separada
da política, do direito e da ciência – espaços nos quais diversos poderes e razões articulam
nossa vida distintamente moderna. Essa definição é, ao mesmo tempo, parte de uma
estratégia de confinamento (para os liberais seculares) e de defesa (para os cristãos
liberais) da religião.20

Por fim, um quarto e último componente, nesta breve análise introdutória, é a evolução do
conceito de direitos humanos. Embora muitos considerem o conceito tão antigo quanto a
humanidade, e apontem para suas origens em contextos bastante remotos, o ponto histórico mais
próximo do contexto presente é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada
em 1789, pela Assembleia Nacional da França. Não há como discutir nestas poucas linhas o efetivo
cumprimento e coerência do documento legal, mas é certo que o valor fundamental introduzido
por ele foi a afirmação de que “todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”.
Sendo estes, direitos de liberdade, propriedade privada, inviolabilidade da pessoa e resistência à
opressão. Talvez pela primeira vez a liberdade religiosa e liberdade de expressão tenham sido
salvaguardadas nos limites da ordem e da lei públicas. À mesma época se definiram os conceitos
de direitos civis e políticos, bom base nas ideias centrais de liberdade pessoal e proteção dos
indivíduos contra as violações do Estado.

3. Breve itinerário conceitual, jurídico e histórico


Outro marco histórico é a criação da Organização das Nações Unidas, com o objetivo de
cooperar com a paz internacional e prevenir conflitos. Ainda que muitos ideais não tenham sido
alcançados plenamente, tais como o direito incondicional à vida, à liberdade, à comida, abrigo e
nacionalidade, a nova instituição deixou claro seu propósito, mesmo que não vinculativo, logo no
primeiro artigo da Carta, pela qual seus signatários se comprometeram a “alcançar a cooperação

20 ASAD, 2010, p. 263

7
internacional na solução de problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou
humanitário, e em promover e encorajar o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais para todos sem distinção de raça, sexo, idioma ou religião. Desde então já foram
formulados diversos documentos normativos e propostos tratados nesse mesmo sentido.21 Avanços
inquestionáveis, com alguns parágrafos, absolutamente necessários, já que por causa deles nos
dilaceramos. Foi Voltaire quem assim afirmou – “o direito da intolerância é, portanto, absurdo e
bárbaro; é o direito dos tigres, e realmente horrível, porque os tigres não dilaceram senão para
comer, enquanto nós nos dilaceramos por causa de alguns parágrafos”.22
Filósofos e sociólogos, tais como Marcuse, Habermas, Bobbio (dentre os mais destacados),
deram contribuições significativas para consolidar, no século 20, uma posição sobre qual deve ser
a postura das sociedades modernas na busca de convivência pacífica entre as diferentes crenças.
Nas palavras de Habermas, a democracia sanciona a prática da tolerância religiosa, pois “é a arte
da convivência entre diferentes”. Um dos atuais integrantes do Supremo Tribunal Federal,
preleciona em sua obra sobre Direitos Humanos Fundamentais, que eles surgiram da fusão de
várias fontes e tradições, arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos pensamentos
filosófico-jurídicos. Essas ideias encontravam um ponto fundamental em comum, a necessidade
de limitação e controle dos abusos de poder do próprio Estado e de suas autoridades constituídas
e a consagração dos princípios básicos da igualdade e da legalidade como regentes do Estado
moderno e contemporâneo.23
O marco definitivo, por mais que seja muito pretensioso assim afirmar, ainda é a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. No Brasil, a Constituição de 1988, chamada
de ‘Cidadã’, fez da liberdade religiosa um direito fundamental, sendo sua inobservância tipificada
como crime. Scherkerkewitz24, em bem articulado artigo jurídico, o chama de ‘Direito de religião’.
Consoante a intenção constitucional, o propósito do legislador de fazer do Brasil um país laico se
coaduna com a divisão acentuada entre o Estado e a Igreja (religiões em geral), e, portanto, com a
ausência de uma religião oficial, cabendo ao Estado, no entanto, prestar proteção e garantia ao
livre exercício de todas as religiões. Na visão do articulista o Constituinte reconheceu o caráter
inegavelmente benéfico da existência de todas as religiões para a sociedade, e recorrendo ao

21 https://www.coespu.org/index.php/articles/human-rights-evolution-brief-history, acesso em 17/12/2021, às 20:42 h.


22 VOLTAIRE, 2017, p. 42
23 MORAES, 2005, p. 2
24 Procurador do Estado de São Paulo, Mestre e doutorando em Direito pela PUC/SP e Professor Universitário

8
ensinamento de outro teórico conclui que o Estado tem o dever de proteger o pluralismo religioso
dentro de seu território, criar as condições materiais para um bom exercício sem problemas dos
atos religiosos das distintas religiões, velar pela pureza do princípio de igualdade religiosa,
mantendo-se, no entanto, à margem do fato religioso, sem incorporá-lo em sua ideologia.
Digna de menção é a compreensão de Scherkerkewitz no sentido de que a ideia de liberdade
religiosa não pode ser entendida de uma maneira estática, sem atentar para as mudanças da
sociedade, sua reivindicação intelectual da propriedade de uma abordagem calcada no conceito de
religião, já que, à luz do que ele atribui a Konvitz, o que para um homem é religião, pode ser
considerado por outro como uma superstição primitiva, imoralidade, ou até mesmo crime, não
havendo possibilidade de uma definição judicial (ou legal) do que venha a ser uma religião. Nada
mais apropriado.
Desta forma, a religião, para tomar posse de sua propriedade, renuncia a toda pretensão
sobre tudo o que pertença àquelas e devolve tudo o que lhe tem sido imposto pela força.
Ela não pretende, como a metafísica, explicar e determinar o Universo de acordo com sua
natureza; ela não pretende aperfeiçoá-lo e consumá-lo, como a moral, a partir da força da
liberdade e do arbítrio divino do homem. Sua essência não é pensamento nem ação, senão
intuição e sentimento. [...] A religião faz com que, para um espírito piedoso, tudo seja
sagrado e valioso, incluindo o profano e o comum tudo o que percebe e não percebe, o
que se encontra no sistema de seus próprios pensamentos e é acorde ou não com sua forma
peculiar de realizar; a religião é a única inimiga jurada de toda pedantice e de toda
unilateralidade.25

Ler a afirmação de Schleiermacher26 é quase como contemplar o reverso do mundo na


atualidade. As religiões, ressalvado o risco de errar por generalizar, estão muito mais próximas da
amizade com toda a pedantice e unilateralidade. Apesar dos esforços dos teóricos, em diversas
áreas. No âmbito das doutrinas jurídicas as distinções têm se proposto a delimitar claramente a
liberdade de crença, a liberdade de culto, e de organização religiosa. Sendo, respectivamente, a
liberdade de aderir ou não, crer ou não em algo de cunho religioso, a liberdade de praticar atos
próprios das manifestações religiosas exteriores, o que inclui recebimento de contribuições para
tanto, e a liberdade de estabelecimento e organização de instituições, sem a preocupação de defini-
las ontologicamente.

4. Alguns dados sobre a discriminação religiosa no contexto brasileiro

25SCHLEIERMACHER, 2000, pp. 33, 41


26 Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768 - 1834) foi pregador em Berlim na Igreja da Trindade e professor de Filosofia
da Teologia na Universidade de Berlim. Traduziu as obras de Platão para o alemão. Foi influenciado por Kant e Fichte.
(https://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Schleiermacher, acesso em 13/01/2021, às 21:47 h.)

9
Apesar de toda a construção de um pensamento pluralista e tolerante nos âmbitos da
religião e da democracia, e dos esforços de juristas e operadores do Direito, os crimes contra a
liberdade religiosa vêm aumentando nos últimos tempos – sobretudo na pandemia. E tal qual vem
ocorrendo com a organização de dados sobre os danos causados pelo vírus Covid-19, no âmbito
governamental, há um descompasso entre realidades e seus mapeamentos.
No sítio digital do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, uma
publicação de 13 de junho de 2019, faz o balanço referente às denúncias de discriminação religiosa,
e aponta 506 casos registrados no Disque Direitos Humanos durante o ano 2018. Entre os
segmentos mais atingidos estão umbanda (72), candomblé (47), testemunhas de Jeová (31),
matrizes africanas (28) e alguns segmentos evangélicos (23). No mesmo endereço da rede mundial
de computadores, a ministra Damares Alves declarou:
“O ministério promove políticas públicas visando o respeito a todos os grupos religiosos.
Entre as áreas específicas, possuímos setores na Secretaria Nacional da Proteção Global
(SNPG) e Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir),
que tratam especificamente da pauta. É o governo federal cuidando de todas os
segmentos”.

No mesmo contexto, o secretário nacional de Proteção Global do ministério, Sérgio


Queiroz, ressaltou que o órgão tem a responsabilidade de promover direitos para todos os grupos
religiosos, por questão de pauta e compromisso legal.27
Hédio Silva, militante por direitos, afirmou (no dia de Combate à Intolerância Religiosa28),
no entanto, que há pouco a comemorar, e que o atual ocupante do cargo de presidente da República
é o principal propagador da intolerância, e esses casos aumentaram em 2020. As denúncias de
casos relacionados à intolerância religiosa, dirigidas à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos
(ONDH), pelo Disque 100, aumentaram 41,2% no primeiro semestre de 2020 em relação ao
mesmo período de 2019. Se comparado ao mesmo período de 2018, as denúncias aumentaram
136%, segundo dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

27 https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/junho/balanco-anual-disque-100-registra-mais-de-500-casos-de-
discriminacao-religiosa, acesso em 13/01/2022, às 15:54 h.
28 O Dia 21 de janeiro, marca o “Dia Mundial da Religião”, proposto pela Assembleia Espiritual Nacional (1949), promovida pelos

Bahá’ís, religião fundada por Bahá'u'lláh, na região da Pérsia, com o objetivo de promover o diálogo inter-religioso, a tolerância e
o respeito. No Brasil, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, instituído pela Lei Federal nº 11.635, de 27 de dezembro
de 2007, é celebrado em alusão a morte da Ialorixá baiana Gildásia dos Santos e Santos – conhecida como Mãe Gilda, fundadora
do terreiro de candomblé Ilê Asé Abassá. A candomblecista teve sua casa e seu terreiro invadidos por um grupo de outra religião,
e foi acusada de charlatanismo. Após a publicação de uma matéria jornalística, intitulada “Macumbeiros e Charlatões lesam o bolso
e a vida dos clientes”, Mãe Gilda e o marido foram perseguidos, sofreram várias agressões físicas e verbais, e depredações dentro
do espaço religioso. Após o ocorrido teve um infarto fulminante e morreu. (https://justica.sp.gov.br/index.php/21-de-janeiro-dia-
nacional-de-combate-a-intolerancia-religiosa/, acesso em 14/01/2021, às 12:17 h.)

10
Júnior afirma que é preciso avançar não apenas no sentido de reprimir a discriminação, mas criar
uma cultura de convivência e coexistência, não só entre os grupos religiosos, mas também entre
os brasileiros que não professam religião nenhuma.29
Ivanir dos Santos30, embora não discorde dos posicionamentos de Hédio Silva, comemorou
a divulgação de dados relativos à intolerância religiosa, promovida pelo Instituto de Segurança
Pública do Rio de Janeiro, por ter sido a primeira vez que ela acontece. Ele reconhece o valor da
iniciativa, mas observa que é uma estatística policial que precisa ser detalhada, considerando que
há muita subnotificação. Para Renata Souza (PSOL), presidente da Comissão de Defesa dos
Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, os números mostram
a fragilidade das políticas públicas no enfrentamento aos crimes de injúria racial e ao racismo
religioso.31 32
O pesquisador Sidnei Barreto Nogueira33 comenta que apesar de todas as iniciativas para
promover a liberdade de culto, em combater a intolerância religiosa, dentre as quais destaca a Lei
9.45934, a legislação brasileira ainda tem lacunas, e a elas se soma a ausência de conhecimentos
que poderiam evitar a estereotipação e imagem negativa das religiões.35
Há quem relacione o crescimento da intolerância religiosa ao colapso das democracias
liberais, e dos consequentes processos de bipolarização política e politização da religião,
adensados durante a pandemia.36
A Carta Magna Internacional dos Direitos Humanos define que o reconhecimento da
dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana é
o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.37 Embora indispensável como
componente estrutural da sociedade, como medida de controle e freio comportamental, o
dispositivo de lei não alcançará êxito sem o reconhecimento da transcendência que ele encerra.

29 https://www.brasildefato.com.br/2021/01/21/no-dia-de-combate-a-intolerancia-religiosa-ha-pouco-a-comemorar-diz-lideranca,
acesso em 13/01/2022, às 15:51 h.
30 Diretor do Centro de Articulação de População Marginalizada (Ceap) e membro da Comissão de Combate à Intolerância

Religiosa, o babalaô Ivanir dos Santos, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
31 https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/rj-teve-mais-de-1-3-mil-crimes-que-podem-estar-ligados-a-intolerancia-religiosa/,

acesso em 13/01/2021, às 15:52 h.


32 https://www.brasildefato.com.br/2020/01/21/denuncias-de-intolerancia-religiosa-aumentaram-56-no-brasil-em-2019, acesso

em 13/01/2022, às 15: 42 h.
33 Professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e coordenador

do Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-Brasileiras.


34 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9459.htm
35 https://jornal.usp.br/atualidades/falta-de-conhecimento-sobre-outras-culturas-agrava-intolerancia-religiosa-no-brasil/, acesso

em 13/01/2022, `s 15:44 h.
36 https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/o-aumento-da-intolerancia-religiosa/, acesso em 13/01/2022, às 15:46 h.
37 http://hrlibrary.umn.edu/edumat/hreduseries/hereandnow/Part-1/short-history.htm, acesso em 13/01/2022, às 15:50 h.

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Medidas práticas dão vida aos constructos teóricos, mas, desprovidos de suas essências, não
podem se tornar um fim em si mesmos.

4. Considerações finais
É preciso estabelecer conexões entre esses constructos e seus desdobramentos práticos por
meio de uma compreensão maior de que a liberdade religiosa é uma elaboração do direito à
transcendência, e que tal direito não pode ser definido ou delimitado a partir das concepções
colonialistas que escreveram incontáveis capítulos da história, e assim continuam fazendo.
Esta compreensão deve ter início em afirmações que não são complexas, mas que nem por
isso podem ser consideradas simplistas. Alves, com a profundidade que lhe é característica, pontua
que religiões são organizações simbólicas do mundo.38 Mas na medida em que elas se expressam
como manifestações de deuses ciumentos, ainda citando Alves, é preciso transcender também na
acepção de que há outros universos possíveis, e isso significa dizer que a mais bela flor não é a
mais bela flor, que os deuses não são deuses. Por isso, argumenta ele, a linguagem religiosa sente
vertigens diante de qualquer tipo de pluralismo e relativismo. Os pregadores de alternativas devem
ser liquidados. Os deuses são ciumentos e intolerantes. Pelo menos, é só assim que os
conhecemos.39
Há, portanto, que se alcançar uma dupla transcendência, no plano da experiência
individual, e da compreensão coletiva. Assim expressou Rodrigues, ao dizer que na expressão
religiosa o ser humano encontra condições para se auto transcender, para ir além de si mesmo. Tal
transcendência não condiciona a crença num Outro transcendente, como sugerem diversas
religiões, mesmo nas que se fundamentam na noção de um sagrado transcendente, porque continua
sendo possível que o ser humano se mova para além de si, na direção de outras pessoas.40 É
imperativo também mover-se também para além dos ciúmes dos deuses, nos termos de Alves.
Lembrando Tillich, no que diz respeito à expressão máxima de sua teologia, a identificação
de uma ‘preocupação suprema’ mostra que não conseguimos viver apenas no círculo restrito de
nosso self, precisamos aprender os caminhos que nos conduzam para fora de nós e facilitem nossas

38 ALVES, 1982, p. 25
39 ALVES, 1982, p. 26
40 https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/direitos-humanos/liberdade-religiosa-como-direito, acesso em 14/01/2021, às

10:37 h.

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ligações com a comunidade humana. Por onde se conclui que a liberdade é, portanto, um direito à
transcendência, e que por extensão, não pode ser colonizada.
É inconcebível que no estágio em que se encontra a humanidade, na quarta geração dos
direitos humanos, como distinguem alguns estudiosos, caracterizada pela preocupação com a
bioética, o impacto da ciência nas vidas futuras, e as interações com o meio, a importância da
transcendência não seja priorizada. Ribeiro41 se vale do pensamento de Gieger e Hinkelammert
para indicar que
Boa parte das análises [da abordagem sobre religião, decolonialidade e o princípio
pluralista] tem sido desenvolvida com a consciência de que há limites nos discursos
relativos ao pluralismo religioso, incluindo aqueles construídos nas práticas de defesa dos
direitos humanos e na valorização dos processos de humanização e cidadania. Muitas
vezes tais discursos são cooptados pela força imperial do sistema capitalista e podem
conviver com ela em certa harmonia e assimilação mútua (RIGER, 2008). Há, por vezes,
uma ausência de crítica à força do sistema econômico, responsável pelas violações
fundamentais dos direitos, causando assim formas de cooperação, assimilação e
harmonização com visões oriundas da democracia liberal formal (HINKELAMMERT,
2014)42

Delimitando suas fontes, Ribeiro elenca Stuart Hall, como a primeira, que enfatiza o
surgimento da modernidade como ato de violência, e que gerou consequências brutais intrínsecas
que prosseguem até hoje. Homi Bhabha, o segundo, destacado pela importância que dá à
visibilidade necessária para o empoderamentos de grupos subalternos a partir das negociações de
poder e de saber que fazem nos entre-lugares da cultura. E como um terceiro bloco, a visão
sociológica do português Boaventura de Souza Santos, com suas análises históricas do
epistemicídio dos povos do Sul, resultante de uma “sociologia das ausências” relativa à produção
do conhecimento, e com a valorização de uma “Ecologia de saberes” que pode surgir com o
empoderamento destes mesmos povos nas fronteiras culturais.43
A partir delas Ribeiro afirma categoricamente que é preciso decolonizar:
a) a crítica à visão de um pensamento único;
b) a perspectiva de “controcentrismos”;
c) a ideia de universalismo, sobretudo das ciências e da ética;
d) a análise crítica da supremacia da racionalidade formal técnico-científica e da forma
meramente conceitual da produção de conhecimento;

41 Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, com estágio de pesquisa de Pós-doutorado na
Southern Methodist University, Dallas-EUA.
42 RIBEIRO, 2020, p. 23
43 RIBEIRO, 2020, p. 23

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e) a revisão da noção de indivíduo desprovida da interação constituinte do humano com a
comunidade, a história, a natureza e o cosmo;
f) o exame da ideologia das identidades fixas.

Isto posto, a conclusão de Ribeiro pode muito bem ser adotada como uma conclusão que

estabelece um princípio, tanto em sentido de conceito, quanto de começo, para a questão abordada

por este escrito. A tarefa de decolonizar o poder, o saber e o ser, nas quais o princípio pluralista

está assentado, resulta em uma tríplice demanda e na esfera religiosa uma série de desafios

práticos. Entre eles está o cultivo de espiritualidades ecumênicas em função da valorização do

pluralismo religioso crescente hoje na sociedade. Para seguir nesta direção, prossegue ele, uma das

pressuposições importantes é a compreensão de que toda e qualquer ação ou reflexão sobre a

democracia e/ou direitos humanos, típicas da visão decolonial, requer análises mais consistentes e

posicionamentos mais nítidos acerca das questões que lhe são mais diretamente relacionadas, de

uma lista que não é pequena. No caso do Brasil, consideradas as dificuldades históricas no

tratamento de tais questões, tanto quanto a riqueza teológica de vários grupos que reagiram aos

processos dominantes e se colocaram francamente a favor do aprofundamento da democracia e

dos direitos, esse processo avaliativo, reflexivo e propositivo torna-se cada vez mais imperativo.44

E que toda a intolerância religiosa e repressão sejam vencidas, lembrando de Alves, tal

qual no início destas considerações – o discurso contra a repressão só se torna audível quando as

novas realidades vitais já se impõem de tal forma que o custo da repressão é maior que o custo do

protesto contra ela.45

44 RIBEIRO, 2020, p. 38
45 ALVES, 1982, p. 45

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5. Referências bibliográficas

ALCANTARA, L. S., & SAMPAIO, C. A. (abril de 2017). Bem Viver como paradigma de
desenvolvimento: utopia ou alternativa possível? (U. F. Paraná, Ed.) Desenvolvimento e
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ALVES, R. (1982). Dogmatismo e tolerância. Em R. ALVES, Dogmatismo e tolerância.
Paulinas.
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RIBEIRO, C. d. (2020). Religião, Decolonialidade e o Princípio Pluralista. (U. F. Fora, Ed.)
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