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DIREITOS HUMANOS E DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO:

CONHECER, RESPEITAR E CONVIVER


RELATO DE EXPERIÊNCIA
Alex Villas Boas1 - PUCPR
Aline Vicentim2 - Centro de Defesa da Infância

Eixo – Educação e Direitos Humanos


Agência Financiadora: não contou com financiamento

Resumo

A presente proposta se constitui como um Relato de Experiência a respeito do Curso de


Extensão em “Direitos Humanos e Diálogo Inter-religioso” que tinha como “objetivo da
experiência” promover a cultura de “conhecer, respeitar e conviver”, realizado nos meses de
Agosto a Outubro de 2016, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP). A
metodologia adotada foi de abordar conceitos básicos de Direitos Humanos e sua evolução
histórica para uma compreensão atualizada do tema, bem como os princípios éticos que
fundamentam a relação entre Direitos Humanos, Teologia Pública e Cidadania, inspirado pela
obra do analista social Boaventura Sousa Santos, “Se Deus fosse um ativista dos Direitos
Humanos” (2013). Tal abordagem se dava por meio de exposições de categorias básicas de
Direitos Humanos e Teologia, valores comuns a gramática dos Direitos Humanos e da
dignidade humana nas Tradições religiosas, contextualização histórica, estudos de caso e
simulação de aplicação destas categorias destinadas a resolução de conflitos atuais, nos quais a
questão religiosa aparece como um dos fatores determinantes. O público bastante diversificado
propiciou uma interação rica na qual as situações simuladas solicitavam dos participantes não
somente uma reflexão teórica, mas suas experiências limites vividas no cotidiano de modo
direto e/ou indireto, nas quais as reflexões propostas pelo curso ajudavam a iluminar a difícil,
porém nobre tarefa de promover o entendimento entre religiões, civilizações e culturas em prol
do bem comum, e especialmente dos que mais necessitam por se encontrarem em situações de
alta vulnerabilidade social. Também a categoria de Teologia Pública e Plural na qual se procura
um reconhecimento das diversas tradições religiosas e o papel que as mesmas são chamadas a
ter na sociedade, dada a capilaridade social que as mesmas possuem, foram de grande valia para
promover o conhecimento das diferenças, o respeito pelas alteridades e ampliação de
consciência sobre a tarefa comum de conviver através de uma cidadania mais participativa.

1
Livre docente na Área de Teologia. Professor Adjunto no Programa de Pós-Graduação em Teologia da Pontifícia
Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Vice-presidente da ALALITE ((Associação Latino Americana de
Literaturas e Teologias) e Professor convidado na Faculdade de Letras da Universidade de Aveiro, Portugal. E-
mail: alex.boas@pucpr.br.
2
Mestre em Direito Internacional com especialização em Direitos Humanos e Políticas Públicas pelo Institute de
hautes études internationales et du dévelopment (IHEID), Suiça. Pesquisadora associada ao Grupo de Pesquisa
em Espiritualidade, Cultura e Práxis do PPGT PUC PR. Coordenadora de Projetos do Centro Marista de Defesa
da Infância. Email: a.vicentim@solmarista.org.br.

ISSN 2176-1396
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Palavras-chave: Direitos Humanos. Diálogo Inter-religioso. Teologia Pública. Educação em


Direitos Humanos.

Introdução

A proposta de apresentar o Relato de Experiência sobre o “Curso de Extensão em


Direitos Humanos e Diálogo Inter-religioso: Conhecer, Respeitar e Conviver” no XIII
Congresso Nacional de Educação (EDUCERE), visa refletir a respeito de sua realização
original na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP) junto à comunidade
acadêmica composta por especialistas no assunto, propiciando assim um enriquecimento e
amadurecimento da proposta para se ofertar sua segunda edição na Pontifícia Universidade
Católica do Paraná (PUC PR), valorizando suas prioridades e metas, de modo a interagir o
Programa de Pós-Graduação em Teologia e o Programa de Pós-Graduação em Direitos
Humanos, bem como o Núcleo de Direitos Humanos e o Núcleo de Diálogo Inter-religioso.
Essa re-proposição da experiência visa ampliar a perspectiva dos Direitos Humanos nos
espaços religiosos, bem como apresentar uma forma cooperativa de pensamento teológico com
os esforços empreendidos dentro e fora da universidade de promoção da dignidade humana,
qualificando os argumentos, que não raro residem em uma discussão superficial diante das
várias visões de senso comum na sociedade contemporânea, superando anacronismos religiosos
e/ou culturais a respeito da pessoa humana, em um ambiente propício que é a universidade.
A iniciativa do curso visava sanar a necessidade de maior conhecimento sobre questões
atuais que demandam uma cultura de respeito e tolerância, como valores de convivência e
cidadania. O cenário político nacional e internacional contemporâneo apresenta problemas que
envolve tanto a questão da dignidade humana, quanto a questão do fundamentalismo religioso.
Tais questões, não raro, resultam em formas de intolerância a minorias, de autoritarismo e crise
da democracia, que dada a complexidade, se entende que melhor podem ser abordadas estas
situações em uma proposta interdisciplinar, na qual se fez a proposta do curso em parceria com
diferentes áreas de saber. Com isso, a finalidade é fomentar na comunidade educacional e civil
uma cultura ética e política que implica aceitar e respeitar as diferenças e as singularidades,
rejeitar injustiças sociais e a discriminação de pessoas e grupos, sabendo reconhecer que toda
pessoa tem a livre escolha das próprias convicções.
O Diálogo Inter-religioso manifesta-se, assim, como uma ferramenta a ser estudada
quanto a aplicação de garantias de direitos individuais e coletivos, assim como o modo de
expressão de acordos estabelecidos de convivência social e política.
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No que toca aos Objetivos específicos, o curso visava:


- Abordar os conceitos básicos de Direitos Humanos e sua evolução histórica para
uma compreensão atualizada do tema;
- Apresentar os princípios éticos que fundamentam a relação entre Direitos Humanos,
Teologia e Cidadania;
- Analisar os Tratados Internacionais como base de estudo técnico de aplicação dos
Direitos Humanos e Diálogo Inter-Religioso, em especial a Declaração Universal dos
Direitos Humanos e a Declaração Sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Intolerância e Discriminação Baseadas em Religião ou Crença;
- Expor a concepção básica de Direitos Humanos, Cidadania, bem como seus
Fundamentos Teológicos, tendo como sua expressão concreta o Diálogo Inter-
religioso;
- Abordar o conteúdo de fundamentos da teologia e suas vertentes nos Direitos
Humanos;
- Analisar como os valores e a cidadania são essenciais para o desenvolvimento dos
temas do curso e como estes podem ser identificados de modo preciso no exercícios
dos direitos e deveres sociais;
- Analisar junto com os participantes do curso e por meio das simulações de estudo
de caso, possíveis práticas de diálogos inter-religiosos na sociedade e sugestões de
ações individuais ou coletivas possíveis.
O ângulo que aqui se escolhe para discutir a interação entre Direitos Humanos e Diálogo
Inter-religoso é motivado pela análise que Boaventura Sousa Santos faz da questão da
“gramática dos Direitos Humanos”, enquanto discurso sobre a dignidade humana em seu livro
“Se Deus fosse um militante dos Direitos Humanos” (SANTOS, 2013). Ali apresenta a questão
da dignidade humana como um ponto pacífico na cultura contemporânea, porém, elaborada e
imaginada distintamente, quer seja por uma cultura hegemônica, quer seja, portanto, de modo
contracultural, e com isso contra hegemônico, valorizando as minorias e atenta aos direitos
sociais, a fim de reduzir a distância social. O analista português aponta para o fato que esta não
é exclusivamente uma questão política, mas também cultural, dado que a visão hegemônica de
cultura, não raro conta com uma teologia tradicionalista e/ou fundamentalista, ainda que a
primeira possa não apoiar ativa e explicitamente uma postura hegêmonica, também não é
contracultural, se posicionando como se fosse meramente não hegemônica. Dito de outro modo,
sem oferecer resistências.
Por outro lado, o autor apresenta a luta contra hegemônica dos movimentos sociais, que
não deve ser vista como uma recusa total da religião, mas antes como cooperativa das
reinvidicações sociais e das minorias culturais, a partir do que chama de teologias políticas
plurais(SANTOS, 2013, p. 30; 142).
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1. Conhecer: Direitos Humanos e Teologia Plural

O primeiro momento de “conhecer” visa apresentar o contexto histórico em que a


sociedade ocidental sente maior necessidade de valorizar a dignidade humana, contexto comum
no qual se dá início um movimento organizado dentro da temática dos direitos universais que
se transformaria no que hoje conhecemos como Direitos Humanos. Nesse mesmo contexto dá-
se uma revisão da hermenêutica teológica que visa atender as mesmas necessidades apontadas
pelo movimento dos Direitos Humanos.
O primeiro ponto em comum entre a gramática dos Direitos Humanos e o surgimento
da concepção de Teologia Plural, enquanto discussão teórica que sustenta a prática do Diálogo
Inter-religioso se na formulação da agenda ética do século XXI, que vai se formando após um
dos eventos mais sintomáticos da crise cultural e política do século XX, a saber as atrocidades
da Segunda Guerra Mundial. De acordo com o sociólogo polonês Zigmunt Bauman, tais
atrocidades indicam uma mentalidade de época que tem o Holocausto como símbolo, contudo
este não era um produto isolado da Alemanha nazista, mas um modo de ser da modernidade,
usando como exemplo de modus operandi o processo de execução de um campo de
concentração. Nessa real metáfora moderna, o sociólogo descreve o procedimento de um
general para realizar a execução de extermínio na câmera de gás, dando uma séria de comandos
em que cada um deve ser executado por tão somente um único soldado ou um grupo pequeno
de forma isolada, ou seja, sem ser necessário que quem executa seu comando saiba do processo
como um todo. Na medida em que cada soldado cumpria eticamente seu dever, com eficiência
e prontidão, a despeito da ignorância da finalidade das ações, se instaurava uma cultura em que
mesmo cada um cumprindo seu dever não se dá conta de que colabora para a produção de
vítimas invisíveis (BAUMAN, 1989, p. 197-229).
Dois traços intimamente ligados podem ser identificados na contemporaneidade,
oriundos desta crise, a saber, a indiferença da maioria e o fascínio pelo totalitarismo de alguns
somado a interesses políticos escusos que continuam promovendo novas formas sofisticadas de
crueldade tendo como “solução” [Endlösung] a exclusão, categoria adotada pelo regime nazista
para o extermínio judeu. Também para a Teologia do século do XX é Auschwitz um momento
crucial para por em cheque as teodiceias, aquelas formas de teologia em que a realidade social
é justificada pela vontade divina. A ideia de um Deus todo-poderoso que regia uma grande
harmonia dos fatos, extraindo coisas boas das coisas más cai por terra com tamanha crueldade
da Shoah, atingindo assim a estrutura de esperança da teologia judaica do Povo eleito e da
teologia cristã de um Deus intervencionista, implodindo a argumentação teológica da segunda
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escolástica das “provas” da existência de Deus e levando inevitavelmente a pergunta pelo


sentido da existência, diante das duas tradições teológicas, a pergunta judaica do silêncio de
Deus? E a pergunta cristã do por que Deus não interfere? Tal contexto levou a concepção de
elaborar um conceito de Deus sem provar a existência de Deus, na perspectiva de pensar Deus
após Auschwitz de Hans Jonas que aponta para a bondade de Deus como pressuposto ético das
Escrituras Hebraicas, fonte de Sua impotência em Sua decisão de “abandonar-se ao acaso”, ao
invés de controlar o acaso na concepção de providência da teodiceia. Abandona-se assim ao
“risco”, à “diversidade infinita do devir” para se comprometer na aventura humana “do espaço
e do tempo”. A criação do ser humano à “imagem e semelhança” de Deus implica que para o
surgimento da condição humana haja uma contração divina que abdica ou se autolimita em sua
plena autonomia, e assim o humano participa da criação, toma parte dela como co-criador, que
resulta da decisão divina de não controlar, diferente de não participar, pois situar a questão de
Deus responsavelmente, tal qual a questão humana, implica nem abstrai-lo do mundo, e menos
ainda identifica-lo, mas garantir a autonomia do Criador e da criação para passar a pensar a
questão de Deus também como “ser-no-mundo”. Com isso, o filósofo judeu, Hans Jonas, aponta
para uma fenomenologia de Deus hegeliana, na qual morte e vida serão vistas dialeticamente,
e Deus se manifesta na intensificação da vitalidade, ao perceber o valor da vida diante da morte.
Deus assim, ao invés de evitar o mal, aposta na capacidade humana de superar o mal (JONAS,
1987, p. 9-21). Ademais, se evidencia como sinais da ação de Deus a presença de pessoas com
maior consciência da dignidade humana e com posturas proféticas que emergem de suas
próprias experiências religiosas como “justa indignação” que deseja o fim da indiferença
(HESCHEL, 2007, p. 1-3; 63-64). Desta indignação comum brota o tema da alteridade na
discussão ética no Ocidente, de onde emerge a gramática da dignidade humana, também comum
ao movimento dos Direitos Humanos e a Teologia Política Plural.
De acordo com a Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), entende-se por
um de seus princípios fundamentais que

Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados
de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade” e ainda se entende que “todo ser humano tem capacidade para gozar os
direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição (ONU,
1948, art I eII).
Tais princípios são constitutivos de um compromisso entre Estados, Organizações
Internacionais, Sociedade Civil, Religiões e indivíduos, a fim de promover “o reconhecimento
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da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e


inalienáveis” como “fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, dado

[...] que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos


bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo
em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem
a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser
humano comum (ONU, 1948, Preâmbulo 1º e 2º).

Deste momento de tomada de consciência da comunidade internacional a respeito da


necessidade de uma ampla compreensão da dignidade humana, também as questões religiosas
são chamadas a ressignificação de mentalidades e convicções que promovam intolerância e
discriminação para que cooperem com a tarefa da construção de uma cultura de paz, pois “o
uso da religião ou das convicções com fins incompatíveis” colaboraram para causar “direta ou
indiretamente guerras e grandes sofrimentos à humanidade” (ONU, 1981)3. Disto se entende
que para uma cultura de paz é necessário superar as visões proselitistas e de pretensa
superioridade de cada religião, considerando que “todo ser humano tem direito à liberdade de
pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou
crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto
e pela observância, em público ou em particular” (ONU, 1948, Art. 18º).
Desta consciência de liberdade religiosa emerge aquilo que se chama de Teologia Plural,
enquanto abordagem que propõe um itinerário de reconhecimento da alteridade e as múltiplas
perspectivas existentes em uma sociedade plural. Na concepção de Boaventura Sousa Santos o
sentido de sagrado nas teologias pluralistas “ocorre num dado contexto social e político, e o seu
valor humano depende da sua abertura a novos contextos, tornando-se relevante pela forma
como responde as necessidades sociais e existenciais de um determinado tempo”, sendo assim
“um contributo para a vida pública e organização política da sociedade” (SANTOS, 2013, p.
42-43).
Dentro da trajetória curricular do curso os três primeiros encontros relacionados ao
“conhecer” foram dedicados a:
- Apresentação de Direitos Básicos de Direitos Humanos e Teologia Plural;
- discussão com base no conhecimento individual de cada participante;
- análise de práticas sociais;

3
DECLARAÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE INTOLERÂNCIA E DISCRIMINAÇÃO FUNDADAS NA
RELIGIÃO OU NAS CONVICÇÕES. (Proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas a 25 de novembro de 1981 - Resolução 36/55)
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- simulação de escrita da Declaração Universal dos Direitos Humanos com cada


participante adotando uma visão de cultura religiosa de um Estado distinto.

2. Respeitar: A gramática comum da dignidade humana

O respeito à dignidade humana é o princípio fundamental para a construção de uma


cultura de paz, entendendo que há uma igual dignidade entre as alteridades. O respeito ao ser
humano se constitui como um hipodigma entre os paradigmas religiosos e culturais, ou seja,
aquilo que é comum as diferentes padrões de vida na condição humana, uma espécie de
“mínimo múltiplo comum” aplicado aos valores, “mínimo” por ser irredutível, “múltiplo” por
ser identificada em várias expressões de cultura e religião e “comum” por possibilitar a unidade
humana. O respeito na Tradição teológica faz parte do substrato semântico de reverência, um
olhar cuidador daquilo que se contempla.

O respeito à alteridade é uma forma de responsabilidade ética na sociedade plural e é


constitutivo de uma identidade aberta a alteridade. Para uma análise da questão intercultural o
curso propôs se ater aos conceitos de narrativa e de recepção estética no que toca a questão da
identidade. No que toca a narrativa, pode-se dizer que ela tem um papel decisivo por ser o modo
como a identidade cultural se estrutura, sendo a identidade em si uma construção que se dá ao
se narrar. Por cultura, elege-se aqui, a noção de relação entre instituições produtoras de sentido,
a concepção de sentido da vida e o imaginário cultural que daí decorre, emoldurando um sistema
de ações, como elemento mais objetivo da questão (QUINTÁS, 2003, p. 23-50), contudo,
enquanto dimensão subjetiva, ou seja, da consciência do sujeito, a identidade se dá muito mais
como processo de identificação com “sistemas de representação (elementos de simbolização e
procedimentos de encenação desses elementos)” inerentes às “relações entre indivíduos e os
grupos” em seus respectivos espaços de “reprodução e produção” de sentido (WINCK, 2017,
p. 24). Dito de outro modo, a identidade se dá como processo de identificação com narrativas
que promovem uma imaginário que acessa um sentido para a vida que é produzido e
reproduzido “por” e “entre grupos” situados no espaço (locais físicos e virtuais) e tempo
(assimilado no cotidiano ou eventualmente), em meio a um dinamismo de busca de sentido, de
modo que tal processo, longe de ser “estático” é “dinâmico” em sua interação com imaginários,
narrativas, grupos e momentos da própria pessoa, em que vai tecendo a sua própria narrativa.
Em um ambiente de cultura dominante isso produz pessoas adeptas das instituições produtoras
de sentido, e pessoas inimigas das instituições produtoras de sentido distintos da cultura
dominante. Esse “outro”, que não é igual ao “mesmo” da identidade dominante, ou se negava
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em sua condição de diferente, ou era coagido a identificação, quando não sua eliminação era
assumida como solução para a manutenção da identidade dominante.
Deste modo se previu a simulação de práticas sociais nas quais as narrativas oriundas
de culturas dominantes eram insuficientes em sua forma tradicional para solucionar conflitos
interpessoais e sociais. Seguindo a trajetória curricular do curso, foram propostas atividades de
reflexão em grupos que visavam reforçar narrativas excludentes, e ao mesmo tempo se colocar
no lugar da alteridade excluída. Em uma atividade em grupo, utilizou-se três casos em que era
solicitado o valor (ou a ausência) do respeito e da tolerância para compreensão e resolução do
conflito, ilustradas por imagens:
Figura 1 - mulher islâmica expulsa de praia francesa por usar burquini

Fonte: Parstoday.com4

Figura 2 - proibido ingresso em fórum para cumprir uma intimação judicial, por não trajar vestimentas “adequadas”

Fonte: douradosinforma.com5

Figura 3 - Professora é proibida de dar aula usando turbante afro, em sala de aula com crucifixo

Fonte: awejure.com6 Fonte: Pinterest.com7

4
Fonte:http://parstoday.com/pt/radio/programs-i7276-
viola%C3%A7%C3%A3o_dos_direitos_humanos_no_ocidente_da_ilus%C3%A3o_%C3%A0_verdade
5
Fonte: http://www.douradosinforma.com.br/noticias/dourados/vereador-indigena-denuncia-ter-sofrido-racismo-
durante-sessao-da-camara
6
Fonte: https://br.pinterest.com/leitoraincomum/cultura-afro-brasileira/?lp=true
7
Fonte: http://awure.jor.br/
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3. Conviver: a construção do bem comum

De acordo com a “Declaração sobre a eliminação de todas as Formas de Intolerância e


Discriminação fundadas na Religião ou nas Convicções”,

a liberdade de religião ou de convicções deve contribuir também na realização dos


objetivos da paz mundial, justiça social e amizade entre os povos e à eliminação das
ideologias ou práticas do colonialismo e da discriminação racial (ONU, 1981,
Prêambulo).

As teologias plurais, e consequentemente o diálogo inter-religioso assumem tal


concepção como sendo um sinal da dimensão sagrada da vida humana, e nesse sentido também
promovem teologias políticas, no sentido de perceber um sinal do sagrado em uma práxis
promotora de políticas públicas coerentes com a gramática da dignidade humana. Nesse sentido
as chamadas teologias políticas, como é o caso da teologia latino americana, a teologia africana,
a black theology norte-americana como desdobramento de teologias plurais são cooperativas
da concepção contra-hegemônica dos Direitos Humanos, entendo, portanto, a necessidade de
garantir direitos econômicos, sociais e culturais.
Por outro lado, visões hegêmonicas dos Direitos Humanos, não raro retroalimentam a
visão de religião hegemônica e cultura dominante. Contudo, em uma mesma tradição religiosa
que reside dentro de uma sociedade plural com múltiplas visões culturais, não raro ocorre a
confusão entre experiência religiosa e distintas visões culturais, âmbito promotor de conflito,
que são ao mesmo tempo oportunidades de reforçar ou reduzir a consciência da dignidade
humana da alteridade, como meio de construção do bem comum:

zonas de contato são, portanto, zonas em que ideias, conhecimentos, formas de poder,
universos simbólicos e modos de agir rivais se encontram em condições desiguais e
interagem de múltiplas formas de modo a dar origem a constelações culturais híbridas,
nas quais a desigualdade das trocas pode ser reforçada ou reduzida (SANTOS, 2013:
81).
Deste modo a inclusão do tema Direitos Humanos dentro dos espaços religiosos
inevitavelmente é conflituoso, contudo o modo de ver o conflito é que pode ser frutuoso. Com
isso conclusão da trajetória curricular neste aspecto visava qualificar a argumentação,
identificando pontos comuns entre religiões e culturas e as possibilidades de conviência
harmoniosa em comunidade.
Os participantes escolheram culturas religiosas que desejavam pesquisar e dentro delas
identificar princípios dos Direitos Humanos e valores comuns entre as tradições religiosas
(catolicismo, umbanda, hinduísmo e islamismo), com o objetivo de realizar rodas de conversas,
propondo experiência de convivência baseados nesses valores comuns, tendo já qualificados os
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argumentos dos conflitos existentes entre os grupos escolhidos. A atividade se encerrava com
a formação de mapas conceituais.

Conclusão: Resultados da Experiência

O curso buscou analisar as interfaces entre Direitos Humanos, Teologia e Religiões


identificando os elementos possíveis e valores comuns para a construção de uma sociedade
mais democrática, tolerante e assim fomentar uma cultura de paz marcada por conhecer,
respeitar e conviver com as diferenças. Desta forma, pretendeu-se tanto conceber uma visão da
dignidade humana de modo que as comunidades religiosas sejam cooperativas com os
processos de transformação social, quanto também explorar como a coexistência e a diversidade
cultural, econômica e social hoje tornam-se possíveis, contando com as comunidades religiosas.
A metodologia de “conhecer, respeitar e conviver” adotada no curso visava promover
em cada encontro, um desses aspectos, no qual o “conhecer” diz respeito a categorias básicas
de Direitos Humanos, Teologia Plural e respectivos contextos históricos; o “respeitar” buscou
tratar da gramática da dignidade humana, como um valor comum para a sociedade
contemporânea e, por fim o “conviver” como tarefa de promoção do bem comum e
reconhecimento de alteridades. Em uma breve análise dos resultados alcançados pode se dizer
que houve grande receptividade da temática, em grupos como líderes religiosos, alunos de
graduação em teologia e filosofia, de diversas confissões, de direito, relações internacionais,
psicólogos, professores e diretores de escolas públicas nos quais o conhecimento sobre o
assunto foi apontado como importante ferramenta para trabalhar com seus respectivos públicos
em situações de conflito.
A combinação do tema Direitos Humanos e Diálogo Inter-religioso identificou uma
lacuna na formação dos diversos profissionais, pois apesar do conhecimento de um dos
assuntos, havia desconhecimento do outro e da possibilidade interação de ambos, de modo que
a problematização de estudos de caso, inicialmente se revelava superficial em alguns desses
aspectos, sendo necessário um trabalho de redução de assimetria conceitual paralelo com
indicação de bibliografia para as duas áreas.
Especial destaque para os debates provocados e simulações de conflito para se
desenvolver propostas de resolução, bem como a conscientização da complexidade da temática.
O fato de o curso durar dois meses permitia uma análise de como os diferentes perfis
conseguiram visualizar o tema em seus respectivos públicos e se identificou como a questão
teve grande pertinência, sobretudo no espaço escolar, devido as diversas sensibilidades
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religiosas nesse âmbito, em que as ferramentas de análise sobre linguagem religiosa poderiam
ajudar o aluno a estabelecer correlações de elementos comuns. O mesmo se verificou nas
abordagens terapêuticas nas quais uma visão religiosa fundamentalista era fonte de graves
conflitos psíquicos, e saber identificar o fenômeno propiciava ao profissional estudar novas
estratégias. Também os participantes que atuam em instituições religiosas relatavam como
desde momentos formativos, como situações no cotidiano da comunidade ganhavam nova luz
sobre o entendimento de leituras diferentes da realidade.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e Holocausto. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.

HESCHEL, Abraham Joshua. The Prophets: vol. I-II. Peabody: Hendrickson Publishers, 2007.

JONAS, Hans. Der Gottesbregriff nach Auschwitz: Eine judische Stimme. Frankfurt-am-
Main: Suhrkamp, 1987.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Assembleia Geral das Nações Unidas,
10 de dezembro de 1948.

ONU. Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação


fundadas na Religião ou nas Convicções, Resolução 36/55, Assembleia Geral das Nações
Unidas, 25 de novembro de 1981.

QUINTÁS, Alfonso López. La Cultura y el Sentido de la vida. Madrid: Edicioness RIALP, 2003.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Se Deus fosse um ativista de Direitos Humanos Coimbra,


Almedina, 2013.

WINCK, Otto. Minha pátria é minha língua: Identidade e sistema literário na Galiza.
Curitiba: Appris Editora, 2017.

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