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A POLÍTICA DE RECONHECIMENTO DE

CHARLES TAYLOR PARA UMA CULTURA DE


DIREITOS HUMANOS

Fabrício José Rodrigues de Lemos*

Multiculturalismo é uma política sobre a forma como as diferentes culturas


podem coexistir dentro de um determinado espaço geográfico, i.e., “a body of thought
in political philosophy about the proper way to respond to cultural and religious
diversity[1].” Este ensaio pretende apresentar uma revisão sobre a política de
reconhecimento de Charles Taylor e demonstrar como o tema pode ser conexo e
interessante para uma cultura de direitos humanos mais tolerante.

Em seu livro “Multiculturalismo[2]”, Taylor convidou K. Anthony Appiah,


Jürgen Habermas, Steven C. Rockefeller, Michael Walzer e Susan Wolf para tecer
comentários sobre um artigo de sua autoria acerca da política de reconhecimento.

No que consiste a política do reconhecimento de Taylor? A título de


introdução, o autor indica:

Alguns aspectos da política actual estimulam a necessidade, ou, por vezes, a


exigência, de reconhecimento. Pode-se dizer que a necessidade é, no âmbito da política,
uma das forças motrizes dos movimentos nacionalistas. E a exigência faz-se sentir, na
política de hoje, de determinadas formas, em nome dos grupos minoritários ou
‘subalternos’, em algumas manifestações do feminismo e naquilo que agora, na política,
se designa por ‘multiculturalismo’.[3]

Imaginando-se, portanto, que há relação entre reconhecimento e identidade,


esta concebida como a maneira com que alguém se vê e se percebe como ser humano, o
autor faz a seguinte constatação: “A tese consiste no facto de a nossa identidade ser
formada, em parte, pela existência ou inexistência de reconhecimento e, muitas vezes,
pelo reconhecimento incorrecto dos outros[4].” Ele argumenta que essa inexistência de
reconhecimento ou o reconhecimento incorreto por parte da sociedade e de outros
membros da comunidade em que o indivíduo está inserido constituem uma forma de
agressão, afetando negativamente sua identidade, “reduzindo a pessoa a uma maneira de
ser falsa, distorcida, que a restringe[5].”

O autor argumenta que, por exemplo, nas sociedades patriarcais, as


mulheres eram levadas a adotar uma visão depreciativa de si próprias, sendo que,
quando as barreiras reais impostas às mulheres deixavam de existir, elas ainda
demonstravam certa incapacidade de aproveitar as novas oportunidades que surgiam. O
mesmo ocorre com os negros, a quem foi imposta uma visão depreciativa e de
inferioridade incorporada por alguns indivíduos e determinante para suas dificuldades
para prosperar. “Nesta perspectiva, a sua auto depreciação torna-se um dos instrumentos
mais poderosos da sua própria opressão[6].” O mesmo se argumenta no relativo aos
indígenas e os povos colonizados, o que pode ser vislumbrado ainda hoje nessa
“síndrome de vira-lata”, esse “coitadismo”, que o brasileiro possui.
O autor indica: “Perante estas considerações, o reconhecimento incorrecto
não implica só uma falta do respeito devido. Pode também marcar as suas vítimas de
forma cruel, subjugando-as através de um sentimento incapacitante de ódio contra elas
mesmas[7].” Desse modo, argumenta o autor que a necessidade do devido
reconhecimento e o respeito são necessidades humanas vitais.

O reconhecimento igualitário não é apenas a situação adequada para uma


sociedade democrática saudável. A sua recusa pode prejudicar as pessoas visadas,
segundo uma perspectiva moderna generalizada (…). A projecção de uma imagem do
outro como ser inferior e desprezível pode, realmente, ter um efeito de distorção e de
opressão, ao ponto de essa imagem ser interiorizada.[8]

O autor aduz que a democracia introduziu a política de reconhecimento


igualitário, que assumiu diversas formas durante os anos, agora retornando à discussão,
também na esfera pública, sob a forma de “exigências de um estatuto igual para as
diversas culturas e para os sexos[9].”

Em relação à responsabilidade pública, Amy Gutmann indica:

Reconhecer e tratar os membros de alguns grupos como iguais parece


exigir, hoje, das instituições públicas que admitam, em vez de ignorarem, as
especificidades culturais, pelos menos em relação àquelas pessoas cuja capacidade de
compreensão depende da vitalidade da respectiva cultura. Esta exigência de
reconhecimento político das especificidades culturais – alargado a todos os indivíduos –
é compatível com uma forma de universalismo que considera a cultura e o contexto
cultural valorizado pelos indivíduos como fazendo parte dos seus interesses
fundamentais. (…) Questões sobre a eventualidade e o modo de reconhecimento
político dos grupos culturais figuram entre as mais proeminentes e desagradáveis dos
programas governamentais de muitas das actuais sociedades democráticas e
democratizantes.[10]

Por isso, no âmbito social, o autor argumenta que o reconhecimento


igualitário “não é apenas a situação adequada para uma sociedade democrática
saudável”:[11] Taylor considera a recusa deste reconhecimento como algo prejudicial às
pessoas, visto que passam a interiorizar essa imagem de ser inferior e desprezível.

O discurso do reconhecimento chega ao indivíduo em dois níveis: a esfera


privada, íntima, em que o próprio indivíduo se inferioriza ante a inexistência de
reconhecimento alheio ou o reconhecimento incorreto por parte da sociedade e a esfera
pública, na qual a política de reconhecimento passou a desempenhar um papel ainda
maior, para a qual as instituições públicas devem estar atentas.

O autor argumenta que, em decorrência da mudança da honra para a


dignidade, surgiu uma política de universalismo, a qual dá ênfase à dignidade igual para
todos os cidadãos e possui como escopo a igualdade de direitos e privilégios. Nesse
sentido, argumenta Taylor, há divergência no relativo ao que seja a igualdade – qual
seja, somente no sentido civil e político ou também no socioeconômico. Nessa última
perspectiva, coexistem na mesma sociedade cidadãos de “primeira” e “segunda” classe,
ante a disparidade de riquezas. A sociedade deve, portanto, formalizar ações
compensatórias através da igualdade em prol àqueles que, de forma sistemática, são
“impedidos de usufruírem ao máximo dos seus direitos de cidadania[12].”

Ao mesmo tempo, em decorrência do desenvolvimento da noção moderna


de identidade, originou-se a ideia de uma política de diferença. Taylor, nesse passo,
apresenta uma clara distinção entre ambas as posições:

É claro que esta política também tem uma base universalista, o que contribui
para a confusão ou coincidência entre as duas políticas. Todas as pessoas devem ser
reconhecidas pelas suas identidades únicas. Aqui, porém, o reconhecimento tem outro
significado. Em relação à política de igual dignidade, aquilo que se estabelece visa a
igualdade universal, um cabaz idêntico de direito e imunidades; quanto à política de
diferença, exige-se o reconhecimento da identidade única deste ou daquele indivíduo ou
grupo, do carácter singular de cada um. Quer isto dizer, por outras palavras, que é
precisamente esta singularidade que tem sido ignorada, disfarçada, assimilada a uma
identidade dominante ou de maioria. E é esta assimilação que constitui o pecado cardeal
contra o ideal de autenticidade.[13]

Taylor coaduna com a ideia da política de diferença em um segundo modelo


de liberalismo, em que “o Estado adota uma concepção substantiva de bem, levando em
conta metas coletivas, primando pela defesa da comunidade e pela diversidade
cultural[14].” Para justificar sua escolha por um modelo de sociedade liberal,
tradicionalmente atrelado à formação estatal de cunho mais individualista, Taylor indica
que essa forma de Estado foca na proteção dos direitos fundamentais, eis que suas
políticas públicas se voltam para as metas coletivas de defesa de particularidades
culturais das minorias, transformando-as em direitos legítimos. Ademais, indica Taylor,
que nem mesmo em face dessas particularidades culturais das minorias, se pode afastar
certos direitos, como, por exemplo, o direito à vida e às liberdades individuais.

Uma sociedade com objetivos coletivos fortes pode ser liberal, segundo esta
perspectiva, desde que seja capaz de respeitar a diversidade, em especial, quando
considera aqueles que não compartilham dos objetivos comuns, e desde que possa
proporcionar garantias adequadas para os direitos fundamentais. Concretizar todos estes
objetivos irá provocar, sem dúvida, tensões e dificuldades, mas não é nada de
impossível, e os problemas não são, em princípio, maiores do que aqueles que qualquer
sociedade liberal encontra quando tem de combinar, por exemplo, liberdades com
igualdades ou prosperidade com justiça.[15]

Michael Walzer, em comentário, chama essa forma de liberalismo defendida


por Taylor, de Liberalismo 2, o qual “permite um estado comprometido com a
sobrevivência e o florescimento de uma determinada nação, cultura ou religião, ou com
um grupo (limitado) de nações, culturas e religiões – desde que os direitos básicos dos
cidadãos que têm diferentes compromissos ou que não têm nenhuns estejam
protegidos[16].”

Considerando-se, portanto, que o objetivo da política de reconhecimento de


Taylor “é a de que todos reconheçam o valor igual das diferentes culturas: que as
deixemos, não só sobreviver, mas também admitamos seu mérito[17]”, objetivou-se
demonstrar de que maneira o autor cunhou uma teoria em que as diferentes culturas
restassem acomodadas – uma na qual as diferentes concepções de vida boa estivessem
protegidas e, ao mesmo tempo, houvesse a defesa das diversas culturas dentro de um
contexto de segurança para a autenticidade – “ser verdadeiro para comigo mesmo e para
com a minha maneira própria de ser[18].” Nesse sentido, buscou-se demonstrar de que
maneira o autor cunhou uma teoria em que os direitos fundamentais individuais não
entrassem em conflitos com alguns direitos coletivos ou de grupo, tendo em vista que “a
cidadania se faz tanto pelos direitos fundamentais, como pela defesa de direitos que
levam em conta as particularidades das diferenças culturais que são exercidas dentro dos
limites no Estado nação[19].”

* Mestrando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos
(2014). Possui graduação em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
Unisinos (2013). Integrante do Núcleo de Direitos Humanos da Unisinos (NDH).
Advogado. http://lattes.cnpq.br/4217441321009017

[1].Um corpo do pensamento na filosofia política sobre a maneira adequada de


responder à diversidade cultural e religiosa. (tradução nossa). MULTICULTURALISM.
In: STANFORD Encyclopedia of Philosophy. Monday-Friday, Sept 24 2010.
Disponível em: <http://plato.stanford.edu/entries/multiculturalism/>. Acesso em: 08
nov. 2014.

[2] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998.

[3] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 45.

[4] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 45.

[5] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 45.

[6] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 46.

[7] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 46.

[8] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.


56-57.

[9] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p. 48.

[10] GUTMANN, Amy. In.: TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa:


Instituto Piaget, 1998. p. 23-24.

[11] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.


56.

[12] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.


58.

[13] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.


58-59.
[14] SILVA, Larissa Tenfen. O multiculturalismo e a política de reconhecimento de
Charles Taylor. Novos Estudos Jurídicos. Florianópolis, v. 11, n. 02, p. 317-318, jul.-
dez. 2006.

[15] TAYLOR, Charles. El multiculturalismo y la política del reconocimiento.


México: Fondo de Cultura Económica, 1993. p. 89.

[16] WALZER, Michael. In.: TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa:


Instituto Piaget, 1998. p. 117-118.

[17] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.


84.

[18] TAYLOR, Charles. (Org.). Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, 1998. p.


48

[19] SILVA, Larissa Tenfen. O multiculturalismo e a política de reconhecimento de


Charles Taylor. Novos Estudos Jurídicos. Florianópolis, v. 11, n. 02, p. 319, jul.-dez.
2006.

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