Você está na página 1de 15

A CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES INDÍGENAS E A

CRÍTICA À NOÇÃO DE “ÍNDIO” COMO CATEGORIA


TRANSITÓRIA
Por muito tempo, pensou-se que a identidade fosse algo único, evidente e imutável.
Nessa perspectiva, ser índio é ser diferente de qualquer outra coisa, algo transcendente,
que não muda nunca. Se não for assim, a pessoa ou o grupo já não é mais índio. Para
definir o ex-índio, dizia-se que era um aculturado, um selvagem em processo de civilizar-
se, um “amansado”. Essa diferença de condição era reconhecida até mesmo em termos legais, pois os índios
eram isentos, inimputáveis, não eram cidadãos, eram como se fossem menores, irresponsáveis. Mas podiam, e
deviam, deixar de ser isso tudo e se tornar integrados, assimilados a um todo maior: a nacionalidade brasileira.
(FUNARI, Pedro Paulo. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo: Contexto, 2016,
p. 20-21)
A QUESTÃO INDÍGENA NO BRASIL E A
CONSTITUIÇÃO DE 1988

Como resultado das lutas e mobilização dos índios, a Constituição de 1988 conferiu um tratamento
inovador aos povos indígenas. Pela primeira vez na história do Brasil, foi reconhecido seu
direito à diferença (art. 231), rompendo com a busca da assimilação, que havia prevalecido
até então. Foi lhes garantido o usufruto exclusivo de seus territórios ocupados por uso consuetudinário,
definidos a partir de seus usos, costumes e tradições (art. 231). A União foi instituída como instância
privilegiada das relações entre os índios e a sociedade nacional. Por meio do artigo 232, os indígenas e
suas organizações foram reconhecidos como partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus
direitos, o que incentivou a expansão e a consolidação de suas associações. Para isso, foram definidos
canais de comunicação direta entre os índios, o Ministério Público e o Congresso Nacional. Com tais
medidas, o conceito de “capacidade relativa dos silvícolas” (Código Civil, 1917), e a consequente
necessidade do “poder de tutela”, perdeu validade e atualidade. Estas vitórias constitucionais não foram
completas, pois estava prevista ainda a necessidade de sua regulamentação. Assim, no momento, o
estatuto jurídico dos indígenas continua incerto, indefinido. Se por um lado a questão da sua
incapacidade jurídica foi superada, por outro, os indígenas ainda não são cidadãos de pleno direito.
((FUNARI, Pedro Paulo. A temática indígena na escola: subsídios para os professores. São Paulo:
Contexto, 2016, p. 62-63)
POVOS ORIGINÁRIOS E DIREITO À
DIFERENÇA
“A assimilação deve ser compreendida como a
última fase da aculturação, fase aliás raramente
atingida. Ela implica o desaparecimento total da
cultura de origem de um grupo e na interiorização
completa da cultura do grupo dominante.”

CUCHE, Dennys. A noção de cultura nas Ciências


Sociais. 2. ed. Bauru: EDUSC, 2002. p.116.
BRÔ MC’S (GUARANI KAIOWÁ) E GEAN RAMOS (PANKARARU):
“POR QUE A GENTE NÃO PODE MUDAR E CONTINUAR SENDO ÍNDIO?”
https://www.youtube.com/watch?v=uuzTSTmIaUc&t=88s

Ao se imaginar que essas populações devem exibir comportamentos ou elementos de cultura material e
imaterial de tempos remotos, desconsidera-se praticamente toda a trajetória histórica dos indígenas,
marcada por permanências, fugas, capitulações, negociações, tentativas de extermínio, etc. Isso tudo, sem
contar aqueles grupos que se mantiveram isolados ou ocultados sob uma identidade não indígena, a fim
de evitarem perseguições e poderem, assim, se reproduzir física e culturalmente, ainda que com grandes
dificuldades. Por fim, cabe indagar: se aos nãos índios é dado o direito de mudar, de se
adequar a diferentes temporalidades sociais, por que apenas os indígenas deveriam
permanecer para sempre no passado? Contrariando, pois, as expectativas de muitos, nos últimos
anos verifica-se o surgimento ou “ressurgimento” de grupos indígenas, sobretudo na região Nordeste do
Brasil. Na verdade trata-se de grupos que, ao se organizarem social e politicamente, reclamam para si uma
identidade étnica diferenciada. (SILVA, Giovani José da. Histórias e culturais indígenas na Educação
Básica. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p. 22)
APARENTE PARADOXO DA PERDA DA DIVERSIDADE CULTURAL
(HOMOGENEIDADE) E A ACENTUAÇÃO DAS MICRODIFERENÇAS
(FRACIONAMENTO) QUE DEFINEM A IDENTIDADE ÉTNICA

A publicação Povos indígenas no Brasil (Ricardo, 1996; 2000; 2006; 2011; 2017),
veiculada pela organização não governamental Instituto Socioambiental (ISA), em
parceria com organismos nacionais e internacionais, em suas cinco últimas edições
registrou os seguintes números: 206 sociedades indígenas em 1996; 216 em 2000,
225 em 2006, 235 em 2011 e 305 em 2017. Isso não significa,
absolutamente, que antropólogos, historiadores ou outros
pesquisadores estejam “inventando” etnias indígenas pelo
Brasil afora, mas que, num certo espaço de quinze anos,
surgiram cerca de 30 grupos reivindicando para si uma
identidade étnica, se autoafirmando indígenas e alimentando
o desejo de serem vistos e reconhecidos como tais. Esses dados
revelam que, em um ambiente histórico propício, culturas
antes silenciadas e/ou ocultadas adquirem visibilidade.
(SILVA, Giovani José da. Histórias e culturais indígenas na Educação Básica. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2018, p. 22)
A INCONVENIÊNCIA DO USO DE CATEGORIAS COMO ETNIAS
“EMERGENTES”, “RESURGENTES” E “REMANESCENTES”:
A SUBSTANCIALIZAÇÃO E ESTIGMATIZAÇÃO
Na acepção antropológica (...) os
grupos étnicos não são definidos por qualquer conteúdo (cultural ou
não), mas como unidades sociais que emergem de mecanismos sociais de diferenciação
estrutural entre grupos em interação. Isto é, seus modos particulares de construir oposições e
classificar pessoas, o que coloca no centro da definição as “fronteiras” que delimitam e
separam os grupos e não mais os conteúdos compreendidos nelas. É nesse sentido que a cultura não
necessariamente desaparece da análise, mas deixa de ser teoricamente relevante para a definição dos grupos étnicos, já que
ela se torna uma variável e não a constante da definição: já não mais explica, mas é explicada pelos mecanismos e razões que
delimitam e definem os grupos.
Acompanhando essa inflexão interpretativa, o termo etnogênese deveria dirigir nossa atenção não para a “invenção das
tradições” em si mesmas, como em geral acontece, mas para os mecanismos sociais que permitem um
determinado grupo social estabelecer o descontínuo onde aparentemente só existia a
continuidade. Como na definição de grupo étnico, a “invenção cultural” não é desimportante para a análise da
etnogênese, só não é o teoricamente mais relevante. No seu lugar, importa compreender as razões, os meios e os processos
que permitem um determinado agregado qualquer se instituir como grupo, ao reivindicar para si o reconhecimento de uma
diferença em meio à indiferença, ao instituir uma fronteira onde antes só se postulava contiguidade e homogeneidade. Se o
etnocídio é o extermínio sistemático de um estilo de vida, a etnogênese, em oposição a ele, é a construção
de uma autoconsciência e de uma identidade coletiva contra uma ação de desrespeito
(em geral produzida pelo Estado nacional), com vistas ao reconhecimento e à
conquista de objetivos coletivos.
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA:
A PRIMAZIA DA IDENTIFICAÇÃO DO GRUPO EM
RELAÇÃO À CULTURA QUE EXIBE
Em suma, traços culturais poderão
variar no tempo e no espaço, como
Raça não existe, embora exista uma continuidade histórica de grupos de
origem pré-colombiana. Tampouco podem ser invocados critérios de fato variam, sem que isso afete a
baseados em formas culturais que se mantivessem inalteradas, pois isso
seria contraditório à natureza essencialmente dinâmica das culturas identidade do grupo. Essa
humanas: com efeito, qual o povo que pode exibir os mesmos traços
culturais de seus antepassados? Partilharíamos nós os usos e a língua que perspectiva está, assim, em
aqui vigoravam há apenas cem anos? Na realidade, a antropologia social
chegou à conclusão de que os grupos étnicos só podem consonância com a que percebe a
ser caracterizados pela própria distinção que cultura como algo essencialmente
eles percebem entre eles próprios e os outros dinâmico e perpetuamente
grupos com os quais interagem. Existem
enquanto se consideram distintos, não reelaborado. A cultura,
importando se essa distinção se manifesta ou
não em traços culturais. E, quanto ao critério portanto, em vez de ser o
individual de pertinência a tais grupos, ele pressuposto de um grupo
depende tão somente de uma autoidentificação
e do reconhecimento pelo grupo de que étnico, é de certa maneira
determinado indivíduo lhe pertence. Assim, o grupo
pode aceitar ou recusar mestiços, pode adotar ou ostracizar pessoas, ou
seja, ele dispõe de suas próprias regras de inclusão e exclusão.
produto deste. (CUNHA,
Manuela Carneiro da. Índios no
Comunidades indígenas são pois aquelas que, tendo uma continuidade Brasil: história, direitos e
histórica com sociedades pré-colombianas, se consideram distintas da
sociedade nacional. E índio é quem pertence a uma dessas comunidades cidadania. São Paulo: Claro
indígenas e é por ela reconhecido.
Enigma, 2012, p. 107-108)
(CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e
cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012, p. 103)
QUAL O CRITÉRIO DA INDIANIDADE?
A QUESTÃO DA AUTOIDENTIFICAÇÃO
Identidade e pertencimento étnico não são conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social. Dessa forma, não cabe ao Estado reconhecer quem é ou não
indígena, mas garantir que sejam respeitados os processos individuais e sociais de construção e formação de identidades étnicas. Os critérios adotados pela FUNAI se baseiam na
Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004, e no Estatuto do Índio (Lei 6.001/73). A Convenção 169 da OIT
sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004, em seu artigo 1º afirma que:
“1.

A presente convenção aplica-se: a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que
estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da
conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas,
culturais e políticas, ou parte delas.
2.

A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério
fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente
Convenção."
Já o Estatuto do Índio (Lei 6.001/73) define, em seu artigo 3º, indígena como:

"...todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade
nacional."

Dessa forma, os critérios utilizados consistem:

a) na auto-declaração e consciência de sua identidade indígena;


b) no reconhecimento dessa identidade por parte do grupo de origem;
DEMARCAR E PROTEGER AS TERRAS
INDÍGENAS
Assim, o princípio de que os índios são os primeiros “senhores da
terra” está consagrado na Constituição de 1988, entendido como
fonte primária de direitos, à frente de qualquer outro. Legitimou as
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios como bens
da União, destinadas à posse permanente, com usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
existentes. As terras tradicionalmente ocupadas passaram
a ser entendidas como aquelas habitadas, utilizadas e
necessárias à preservação de recursos destinados à
reprodução física e cultural. (SILVA, Giovani José da. Histórias
e culturais indígenas na Educação Básica. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2018, p.110)
A “CONSTITUIÇÃO CIDADÔ E O DIREITO DOS
POVOS SEREM O QUE SÃO:
https://www.youtube.com/watch?v=kWMHiwdbM_Q

Sem dúvida, a Constituição de 1988 trouxe um novo paradigma na


relação entre o Estado, as sociedades indígenas e a sociedade não
indígena. Ao romper com a proposta de integrar os índios no âmbito
da sociedade brasileira, passou a reconhecer os direitos coletivos
destes povos. A “Constituição Cidadã” garantiu aos
índios o direito de permanecerem índios, bem
como a manutenção de suas identidades étnica e
culturais. Também possibilitou a educação escolar indígena,
alicerçada em instrumentos de valorização das línguas, dos saberes e
das tradições indígenas. (SILVA, Giovani José da. Histórias e
culturais indígenas na Educação Básica. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2018, 113)

Você também pode gostar