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Sociedade e Cultura

ISSN: 1415-8566
brmpechincha@hotmail.com
Universidade Federal de Goiás
Brasil

Oliveira Cardoso de, Roberto


Identidade étnica, identificação e manipulação
Sociedade e Cultura, vol. 6, núm. 2, julho-dezembro, 2003, pp. 117-131
Universidade Federal de Goiás
Goiania, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=70360202

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Identidade étnica, identificação e manipulação*
ROBERTO CARDOSO DE OLIVEIRA**

1 – Introdução que Fredrik Barth (1969) faz ao conceito de


grupo étnico como “unidade portadora de
Um dos fenômenos mais comuns no mundo cultura” para concebê-lo como um “organiza-
moderno talvez seja o contato interétnico, tional type”. Barth toma por referência uma
entendendo-se como tal as relações que têm definição consensual, conforme pode ser
lugar entre indivíduos e grupos de diferentes deduzida da literatura antropológica1. Segundo
procedências “nacionais”, “raciais” ou “cultu- essa definição um grupo étnico designa uma
rais”. É fato sabido que isso se tornou possível população que:
graças à expansão das chamadas Civilizações
e à diminuição do mundo pela modernização dos a) “se perpetua principalmente por meios
transportes. Nesse sentido, parafraseando a biológicos”;
conhecida afirmação cartesiana, mais do que o b) “compartilha de valores culturais funda-
“bom senso” parece ser a identificação étnica mentais, postos em prática em formas
a coisa “melhor” distribuída no mundo! Este culturais num todo explícito”;
ensaio pretende discutir o conceito de identidade
étnica, descrever algumas modalidades de sua c) “compõe um campo de comunicação e
constituição e examinar as possibilidades de sua interação”;
explicação para, finalmente, sugerir sua relevân- d) “tem um grupo de membros que se iden-
cia para a investigação das relações interétnicas. tifica e é identificado por outros como
Porém a pesquisa dessa temática deve ser constituinte de uma categoria distinguível
precedida de esclarecimentos sobre os conceitos de outras categorias da mesma ordem”
de etnia e de grupo étnico, de modo a justificar (Barth, 1969: 10-11).
a inclusão da identidade étnica no centro de
Entre essas características, o partilhar uma
nossas reflexões.
cultura comum é freqüentemente considerado
de central importância. “Na minha opinião – diz
2 – O conceito de grupo étnico Barth – é mais proveitoso considerar-se esta
importante característica como uma implicação
Para tratar sucinta e compreensivamente
ou um resultado do que como uma característica
desse tema, parece oportuno partir da crítica
primária e de definição da organização dos
grupos étnicos” (1969:11). Para a classificação
* Este artigo faz parte do livro Identidade, etnia e estrutu- dos indivíduos ou grupos locais a ênfase tem
ra social, publicado em 1976 pela Livraria Pioneira Editora
(SP). Os direitos de publicação foram gentilmente cedidos sido posta no aspecto cultural dos portadores,
pela Editora Tomson e liberados pelo autor. Harley do Nas-
cimento Pereira e Alda Lúcia Souza, alunos de Ciências 1. Barth faz referência a um artigo de Narroll (1964), onde
Sociais da UFG e bolsistas do CNPq, digitaram o texto, que diferentes conceitos de etnia são discutidos para propósitos
é reproduzido como no original. de análise comparativa. Quanto a uma crítica radical a esse
** Professor do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre artigo, especialmente ao método comparativo, destaco o
as Américas – Ceppac/UnB. comentário de Leach ao fim do mesmo (Leach, 1964:299).
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critério que depende da visualização de traços variáveis apresente diversidades regionais de


particulares da cultura, i.e., como são dados comportamento institucionalizado explícito,
“objetivamente ao observador etnográfico” diversidades estas que não refletem diferenças
(Barth, 1969:12). À base desse critério, as na orientação cultural. Como deverão eles, então,
diferenças passam a ser entre culturas, não entre ser classificados, se formas institucionais explí-
organizações étnicas, uma vez que as análises citas forem diagnosticadas?” (Barth, 1969:12).
são conduzidas sobre formas culturais mani- Barth responde a essas questões tomando o
festas que podem ser relacionadas como um caso dos Pathan (“Pathan Identity and its
conjunto de itens ou traços culturais. Até onde Maintenance”, in Barth, 1969: 117-34) e mostra
esse critério dá conta da persistência da identi- como a identidade étnica é irredutível às formas
ficação étnica de pessoas e de grupos, quando culturais e sociais altamente variáveis ou como
praticamente não se “observam” traços cultu- “diferentes formas de organização Pathan
rais manifestos diferenciais? representam várias maneiras de consumar a
Há mais de dez anos atrás defrontamo-nos identidade em condições de mudança” (Barth,
com esse problema ao estudar o processo de 1969:132). Tornou-se possível chegar-se a tais
assimilação (R. Cardoso de Oliveira, 1960a), o resultados – que melhor explicam a realidade
que nos levou a formular um conceito capaz de Pathan – graças à formulação de grupo étnico
apreender, ao lado da “peculiaridade cultural” não mais em termos culturais, stricto sensu,
do grupo étnico estudado, a “identificação senão como um tipo de organização.3 Sublinha
étnica” de seus membros.2 Nessa mesma pes- Barth que, “concentrando-nos no que é social-
quisa cuidamos de ampliar a própria noção de mente efetivo, podemos ver os grupos étnicos
identificação étnica, valendo-nos para tanto da como uma forma de organização social”, sendo
seguinte definição proposta por Daniel Glaser: que o aspecto crítico da definição passa a ser
“Identificação étnica refere-se ao uso que uma aquele que se relaciona diretamente com a
pessoa faz de termos raciais, nacionais ou identificação étnica, a saber “a característica
religiosos para se identificar e, desse modo, de auto-atribuição por outros” (Barth, 1969:13).4
relacionar-se aos outros” (D. Glaser, 1958:31; Na medida em que os agentes se valem da
R. Cardoso de Oliveira, 1960a:125). Voltaremos identidade étnica para classificar a si próprios e
à noção de identificação étnica adiante. Por ora os outros para propósitos de interação, eles
interessa reter o essencial da crítica de Barth, formam grupos étnicos em seu sentido de
bem como sua proposição de grupo étnico como organização (Barth, 1969:13-4).5
um tipo de organização. Neste sentido será
suficiente considerar que a “interconexão entre
3 – Identidade e identificação
grupo étnico e cultura” é algo sujeito a tantas
confusões (Barth, 1969:12) que melhor seria A noção de identidade contém duas dimen-
tomá-los separadamente para fins analíticos e sões: a pessoal (ou individual) e a social (ou cole-
de conformidade com a natureza dos problemas tiva). Antropólogos (ex.: W. H. Goodenough,
formulados para a investigação. Veja-se, por 1963, M. Moerman, 1965) e sociólogos (ex.: E.
exemplo, que, “se o mesmo grupo de pessoas
com os mesmos valores e idéias, se defrontasse 3. “Deste ponto de vista, o ponto crítico da investigação
com as diferentes oportunidades oferecidas em torna-se a fronteira étnica que define o grupo e não a essên-
cia cultural que ele encerra” (Barth, 1969:15).
diferentes meios, seguiria também diferentes
4. “Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quan-
padrões de vida e institucionalizaria diferentes do classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica
formas de comportamento. Da mesma forma, mais geral, presuntivamente determinada por sua origem e
devemos esperar que um grupo étnico espalhado formação” (Barth, 1969:14).
5. “É importante reconhecer que embora categorias étnicas
num território de circunstâncias ecológicas levem em conta diferenças culturais, podemos presumir que
não há uma simples relação biunívoca entre unidades étni-
2. Assimilação foi definida então como “o ‘processus’ pelo cas e semelhanças e diferenças culturais. Os traços que são
qual um grupo étnico se incorpora noutro, perdendo (a) sua levados em conta não são a soma de diferenças ‘objetivas’,
peculiaridade cultural e (b) sua identificação étnica anteri- mas só aquelas que os próprios atores consideram significa-
or” (R. Cardoso de Oliveira, 1960a:111). tivas” (Barth, 1969:14).
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Goffman, 1963; McCall & Simmons, 1966) têm parece fundamental. Fundamental porque eles
trabalhado a noção de identidade e procurado refletem a identidade em processo. Como é
mostrar como a pessoal e social estão interco- assumida por indivíduos e grupos em diferentes
nectadas, permitindo-nos tomá-las como dimen- situações concretas. A investigação desse
sões de um mesmo e inclusivo fenômeno, situado processo nos levará a diferentes formas de
em diferentes níveis de realização. O nível identificação, empiricamente dadas, de modo a
individual, onde a identidade pessoal é objeto de permitir o conhecimento da emergência da
investigação por psicólogos (ex.: Erikson, 1968, identidade étnica. Como diria Barth, “por uma
1970), e o nível coletivo, plano em que a identi- simples análise de um processo, podemos
dade social se edifica e se realiza. O reconhe- entender a variedade de formas complexas que
cimento desses níveis é importante porque nos ele produz” (Barth, 1966:2).8
permite estudar a identidade como antropólogos Se entre uma ocasião e outra um indivíduo
ou sociólogos, sem cairmos em certos “psico- não pode ser reconhecido como uma mesma
logismos” tão comuns a uma dada ordem de pessoa, nenhuma identidade social poderia ser
investigação interdisciplinar, como não pode construída (McCall & Simmons, 1966:65). Nessa
deixar de ser a pesquisa da identidade étnica, linha de raciocínio a identidade social surge como
vista esta última como um caso particular da a atualização do processo de identificação e
identidade social. A importância de tomar a envolve a noção de grupo, particularmente a
identidade como um fenômeno bidimensional
de grupo social. Porém, a identidade social não
permite, por outro lado, incorporar as contri-
se descarta da identidade pessoal, pois esta
buições dos estudos psicológicos, especialmente
também de algum modo é um reflexo daquela.9
relevantes para a descrição dos processos de
“A identidade social e a identidade pessoal são
identificação, mantendo-nos fiéis ao princípio
parte, em primeiro lugar, dos interesses e defi-
durkheimiano de explicar o social pelo social
nições de outras pessoas em relação ao indivíduo
(sem que isso signifique ignorar o “fato psíquico”
cuja identidade está em questão” (E. Goffman,
– o que freqüentemente tem ocorrido na melhor
tradição da antropologia social).6 A distinção que 1963:105-106). O conceito de identidade pessoal
Erikson faz, por exemplo, entre identidade e e social possui um conteúdo marcadamente
identificação é crucial, embora ele considere ser reflexivo ou comunicativo, posto que supõe
a identificação um mecanismo de limitada relações sociais tanto quanto um código de cate-
utilidade, uma vez que a identidade não seria gorias destinado a orientar o desenvolvimento
uma soma de identificações mas uma realidade dessas relações.10 No âmbito das relações inte-
gestáltica.7 Contudo, para o deslindamento da
identidade social, em sua expressão étnica, a 8. “Para que um conceito de processo seja analiticamente
útil, deve-se referir a alguma coisa que governe e afete a
apreensão dos mecanismos de identificação nos atividade, alguma coisa que restrinja e canalize o possível
curso dos eventos. (...) O estudo do processo deve ser um
6. Audrey Richards, em sua avaliação da situação dos estu- estudo de interdependências prováveis ou necessárias que
dos sobre a socialização na antropologia social britânica, governam o curso dos eventos” (Barth, 1969:2).
assinala o medo tradicional dos antropólogos sociais diante 9. A distinção que Goffman faz entre identidade pessoal e
da psicologia. “Este medo pode ou não enfatizar a postura individual (Ego identity, na acepção de Erikson) não é rele-
especificamente antipsicológica levada a efeito por antro- vante para o presente estudo. Mesmo porque a noção de
pólogos sociais deste país aproximadamente nos últimos “identidade experimentada” (Felt identity), se a tomarmos
vinte anos. É fácil entender as razões de Durkheim ao ten- num sentido fenomenológico, implica necessariamente a
tar isolar um ‘fato social’ em sua pureza e foi muito bom dimensão social da pessoa ou “persona”, i.e., “une
para a Sociologia que ele assim procedesse. É menos fácil conscience et une categorie”, no dizer de Mauss (Marcel
entender as afirmações quase defensivas que alguns antro- Mauss, 1950:358).
pólogos britânicos fizeram recentemente” (Richards, 1970, 10. Conforme Goodenough, “... a formação de identidade
7-8). envolve um relacionamento do ego com pessoas e coisas no
7. Falando da identidade no plano individual e no âmbito seu meio ambiente, de modos diferentes, ao qual nós ordina-
psicoterápico, Erikson diz “... como toda cura atesta, iden- riamente nos referimos sob o rótulo de identificação”
tificações ‘mais desejáveis’ tendem, ao mesmo tempo, a ser (Goodenough, 1963:204). Essa identificação, como se verá
pouco a pouco subordinadas a uma Gestalt nova, singular, adiante, seguindo o próprio Goodenough, envolve necessa-
que é mais do que a soma de suas partes. O fato é que a riamente a idéia de “sistemas de categorização”, aspecto
identificação como um mecanismo é de utilidade limitada” fundamental da identidade étnica (cf. também McCall &
(Erickson, 1968:158). Simmons; 1966:64).
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rétnicas este código tende a se exprimir como interétnica.14 A conscientização dessa situação
um sistema de “oposições” ou contrastes. Me- pelos indivíduos inseridos na conjunção
lhor poderemos dar conta do processo de iden- interétnica é que seria o alvo preliminar do
tificação étnica se elaborarmos a noção de analista. Um estudo do “modelo consciente”, na
“identidade contrastiva”.11 acepção de Lévi-Strauss, dos indivíduos atuantes
A identidade contrastiva parece se consti- no cenário interétnico. Uma tal consciência,
tuir na essência da identidade étnica, i.e., à base etnocêntrica em larga escala, estaria pautada
da qual esta se define. Implica a afirmação do por valores e se assumiria como ideologia.15
nós diante dos outros. Quando uma pessoa ou Esta relação entre identidade e valor foi
um grupo se afirmam como tais, o fazem como bem percebida por Erikson em seus estudos
meio de diferenciação em relação a alguma sobre a confusão individual e a ordem social,
pessoa ou grupo com que se defrontam. É uma notadamente com referência à socialização do
identidade que surge por oposição. Ela não se jovem. Diz ele que “...identidade e ideologia são
afirma isoladamente.12 No caso da identidade dois aspectos do mesmo processo. Ambos
étnica ela se afirma “negando” a outra identi- fornecem a condição necessária para uma maior
dade, “etnocentricamente” por ela visualizada. maturação individual e, com ela, para a próxima
Nesse sentido, o etnocentrismo, como sistema forma de identificação mais inclusiva, ou seja, a
de representações, é a comprovação empírica solidariedade ligando identidades comuns em
da emergência da identidade étnica em seu vida, ação e criação conjuntas” (Erikson, 1968:
estado mais “primitivo” – se assim podemos nos 189). Depois de estabelecer um conjunto de
expressar. Através dos “nossos valores não determinações ideológicas, condicionantes do
julgamos apenas os dos outros, mas os ‘outros’”. processo de socialização – e que não se justi-
Significa isso que a identidade étnica seja valor? ficaria aqui enunciar e discutir –, afirma que
Sabemos que ela não se funda numa percepção “sem tal compromisso ideológico, ainda que
cinestésica de ser, mas numa auto-apreensão implícito num modo de vida, a juventude sofre
de si em situação. Tomando por referência um de uma confusão de valores que pode ser
modelo existencial de pessoa, diríamos que o especificamente perigosa para alguns, mas que
que transforma o indivíduo em pessoa é a em grande escala é certamente perigosa para o
situação, num sentido fenomenológico e, funcionamento da sociedade” (Erikson, 1968:
portanto, como fato de consciência.13 Mas a
peculiaridade da situação que engendra a 14. Cf. R. Cardoso de Oliveira, 1962, 1964 e 1967. Nesses
identidade étnica é a situação de contato trabalhos apresentamos (1962) e desenvolvemos (1964 e,
principalmente, 1967) um modelo de investigação que de-
interétnico, sobretudo – mas não exclusi- nominamos fricção interétnica, como uma maneira de des-
vamente – quando esta tem lugar como fricção crever a situação de contato entre grupos étnicos
irreversivelmente vinculados uns aos outros, a despeito das
contradições – expressas através de conflitos (manifestos)
11. Falamos de identidade contrastiva (contrastive identity) ou tensões (latentes) – entre si existentes. Uma série de
como noção, num sentido aproximado ao usado por Barth pesquisas que se seguiram ao projeto inicial (1962), utili-
(1969:132), que não a trabalhou como conceito, nem a zando-se da mesma abordagem, levou a conclusões simila-
explorou teoricamente. res, guardando-se, naturalmente, as peculiaridades de cada
12. Moerman, estudando os Lue da moderna Tailândia e “área de fricção interétnica” investigada (Laraia & Matta,
apoiando-se teoricamente em Murphy (1964:848), segun- 1967; Melatti, 1967; Santos, 1970; Amorim, 1970). Com
do o qual “essa condição de membro depende de uma cate- o intuito de distinguir o conjunto da teoria de aculturação,
goria dos excluídos, um sentido de alteridade...”, “os Lue permitindo-nos a falar, grosso modo, em teoria de fricção
não podem ser identificados (...) em isolamento” (Moerman, interétnica.
1965:1216). 15. B. Ward apresenta a seguinte tipologia, de inspiração
13. “Um último componente nesta breve exposição de um lévi-straussiana, de “modelos conscientes”: “Nós podemos
modelo existencial da pessoa é a noção da situação. O que e devemos contrastar modelos conscientes existentes como
concretiza o ego, e que transforma o indivíduo (como um construídos nas mentes das próprias pessoas em estudo com
membro típico da espécie) numa pessoa é a sua situação. A modelos do observador construídos por estranhos, inclusive
noção de situação tem um status fenomenológico que a cientistas sociais, mas provavelmente é sempre útil pensar
diferencia da noção fisicalística do meio ambiente; dito em também em termos de, pelo menos, as três espécies diferen-
outros termos, a situação transcende o local físico. Uma tes de modelos conscientes que aqui distinguimos como
pessoa é situada e se situa no mundo” (E.A Tiryakian, modelos imediatos, modelos ideológicos e modelos de ob-
1968:84). servadores internos” (Ward, 1965:137).
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188).16 Sendo psicólogo, seu objetivo não é o berto a estrutura social propriamente dita (Lévi-
mesmo do antropólogo social, uma vez que este Strauss, 1958:305-306). Fenômenos como as
não busca apreender a identidade como resul- “flutuações” da identidade étnica, tanto quanto
tado do mecanismos redutíveis à escala indivi- os mecanismos de identificação ganharão, assim,
dual, mas como um “precipitado” de uma plu- em objetividade, na medida em que identidade
ralidade de identificações (étnicas) que tem e identificação forem sendo despojadas de seus
propriedades “sui generis”, não necessaria- atributos circunstanciais e descobertas (ou
mente as mesmas encontradiças na investigação redescobertas) em suas propriedades consti-
de indivíduos particulares.17 Embora a pesquisa tutivas. Portanto, não se pretende neste ensaio
antropológica deva partir deles, dos modos de descrever e explicar a identidade e a sua
se assumirem em situação (interétnica), ela os emergência em tal ou qual sistema interétnico,
transcende, explicando-os ao nível do sistema senão o de discutir a possibilidade de conhe-
interétnico, como sistema social inclusivo. As cimento da identidade étnica, apreendida na
afirmações de Erikson referentes às determi- dimensão de sua generalidade (melhor diria,
nações ideológicas, portanto carregadas de valor, universalidade), quaisquer que sejam os sistemas
como algo intimamente relacionado com a identi- interétnicos particulares que a engendrem e que
dade individual, trazem assim real contribuição a contenham. Todavia, nosso projeto é mera-
a uma teoria da identidade étnica, pois apontam mente exploratório, ensaístico literalmente
para uma relação (identidade-R-valor) já ope- falando, em face do conhecimento fragmentário
rante ao nível individual. que se possui dos fenômenos étnicos em sua
Mas antes de entrarmos no exame de conexão com as noções de identidade e de grupo
alguns modos de identificação étnica cabe organizado. Acreditamos, porém, que o equa-
assinalar que estamos tentando descobrir a cionar consistentemente a identidade e a
estrutura da identidade étnica enquanto objeto identificação étnicas poderá resultar numa
legítimo de investigação. Para tanto, tentar-se- contribuição para o desenvolvimento de pesqui-
á aqui constituir teoricamente o nosso objeto sas que, conjugadas, logrem um mais completo
no sentido que lhe dá Gilles Gaston Granger, que conhecimento e uma mais aprimorada metodo-
reserva à palavra objeto para aquilo que a logia.
ciência procura lograr conhecer (Granger,
1970:79). Como se verá adiante o nosso objeto 4 – Modalidades de identificação étnica
não se esgota nas identidades concretas,
observáveis ao nível do empírico, ainda que elas Frederik K. Lehman, em um interessante
sejam a “matéria-prima” indispensável para a estudo sobre as categorias étnicas em Burma
“construção de modelos que tornem manifesta (F.K. Lehman, 1967), é que nos abre as melhores
a estrutura” da própria identidade étnica – como perspectivas para uma análise mais profícua da
nos ensina Lévi-Strauss com relação aos identificação étnica. Permita-nos citar o essen-
procedimentos analíticos que ponham a desco- cial trecho de seu estudo: “A minha opinião é
de quando as pessoas se identificam como mem-
16. Como psicólogo, seu objeto é o que denomina “identi- bros de alguma categoria ‘étnica’ (...) elas estão
dade psicossocial”, situada em três ordens: a “somática”, ao
nível dos organismos, a de “Ego”, ao nível da integração da
tomando posições em sistemas de relações inter-
experiência pessoal e comportamento, e a “social”, ao ní- grupais culturalmente definidos (...). Estes siste-
vel da participação das ordens anteriores numa “colocação mas de relações intergrupais (...) compreendem
histórico-geográfica” (Erikson, 1970:749-50).
categorias complementares complexamente
17. A distinção de uma abordagem antropológica, estrutu-
ralista, de uma outra psicológica, é feita com grande clareza interdependentes. Afirmo, em particular, que, na
por um psicólogo a propósito de uma avaliação de Audrey realidade, categorias étnicas são formalmente
Richards sobre trabalhos de Lévi-Strauss referentes ao “pen-
samento selvagem”. Diz Jahoda que “... o objeto de exame
como papéis e são, neste sentido, só muito
é, portanto, uma pensée collective, um precipitado de uma indiretamente descritivas das características
multidão de mentes dentro de uma dada cultura. É possível empíricas de grupos substantivos de pessoas”
que tal produto coletivo tenha propriedades sui generis não
necessariamente identificáveis no pensamento de indivídu- (pp. 106-107). Isso não quer dizer que a identi-
os particulares.” (G. Jahoda, 1970:41-2). dade seja papel (“role”), senão que do ponto
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de vista formal é semelhante a papel, como minado sistema de relações, i.e., de conjunção
também assim nos parece ser o status, a saber: intertribal.19 Significa que na atual situação do
para cada relação de identidade culturalmente alto Xingu, por força da intensidade das relações
possível há uma correspondente relação de intertribais, traduzíveis freqüentemente por
status, i.e., de direitos e deveres (cf. W. H. matrimônios entre indivíduos de diferentes
Goodenough, 1965:8). Mas o que interessa grupos, produziu-se um sistema de relações
sublinhar é que sendo a identidade étnica uma sociais em termos do qual um indivíduo sempre
categoria semelhante a papel, ela não pode ser terá alternativas (delimitadas naturalmente por
definida em termos absolutos, porém unicamente fatores estruturais) para sua identificação tribal,
em relação a um sistema de identidades étni- quer cumprindo a regra da patrilateralidade, quer
cas,18 diferentemente valorizadas em contextos invocando a matrilateralidade (particularmente
específicos ou em situações particulares. Nas em situações de reivindicação de direitos de
relações interétnicas, de conformidade, por chefia); como regras secundárias também um
exemplo, com a dinâmica do sistema de fricção indivíduo poderá invocar seu conhecimento da
interétnica, as relações se dão em termos de língua (como indicador de seu conhecimento da
dominação e sujeição – o que é coerente, falando cultura do grupo) e/ou do lugar de nascimento
com referência a papéis, com a possibilidade (localidade, podendo ser esta patri ou matri –
entrevista por Nadel (S.F. Nadel, 1957:109) de como indicador de pertinência histórica). Mas o
reduzi-los (os papéis) a uma dimensão de sobre- importante disto – e é esta a contribuição de
posição e subposição (cf. também Lehman, Menget para a elaboração de um modelo mais
1967:107). É consistente, por outro lado, com o consistente da “situação xinguana” – é que não
que afirmamos atrás a respeito do caráter se pode compreendê-la procurando construir
contrastivo da identidade étnica, na medida em (ou reconstruir como alguns antropólogos o
que implica o confronto com outra(s) identi- tentaram – ex. Ellen R. Becker)20 unidades
dade(s) e a(s) apreende num sistema de repre- étnicas reais, mas, ao contrário, deve-se procu-
sentações de conteúdo ideológico. rar tomá-las como categorias a codificarem uma
teia de relações, esta sim considerada como o
foco explicativo de uma etnologia do alto Xingu.
(i) A identificação em contextos intertribais
Uma outra área de aculturação intertribal,
Mas se tomarmos outros contextos, não que juntamente com a do Xingu e a do Rio Negro
necessariamente redutíveis ao modelo de fricção representa uma região da maior relevância para
interétnica (cf. nota 14), a identidade contrastiva se compreender a dinâmica de conjunções
persiste atualizando a identidade étnica e interculturais em níveis de relações intertribais,
representando-a num sistema de referência de é a do Chaco, particularmente em sua extensão
caráter ideológico. Pelo que se conhece de (como área cultural) às margens ocidentais do
regiões interculturais como o alto Xingu, por rio Paraguai, portanto em território brasileiro.
exemplo, os diferentes grupos indígenas em Infelizmente é uma área que não oferece as
interação afirmam suas respectivas identidades mesmas condições de investigação etnográfica
por meio de um sistema de referências ou de que as duas outras mencionadas, uma vez que,
categorias construído como uma ideologia de sendo uma zona de colonização secular e inten-
relações intertribais. Patrick Menget, em suas
19. As considerações que fazemos sobre o Xingu são em
pesquisas no Xingu, indica que as identidades larga escala o resultado de conversas com Patrick Menget,
de Kamayurá, Waurá, Kalapálo etc. constituem doutorando da Universidade de Havard, durante o período
categorias étnicas de que lançam mão os em que elaborava sua dissertação. Todavia, nossas interpre-
tações do “caso xinguano” talvez não correspondam inte-
indivíduos e os grupos para se situar num deter- gralmente com as de Menget, razão pela qual somos os
únicos responsáveis pelas mesmas. Suas idéias brevemente
18. “Um papel é definido não em termos absolutos mas poderão ser conhecidas com a publicação de seu artigo
relativos a todo um sistema de outros papéis. Talvez o “Ethnies et Société: Remarques sur le Système Social
sistema de papéis excepcionais consista de somente dois Xinguano”, atualmente em elaboração.
papéis ou somente de duas espécies de papéis, i.e., uma 20. Cf. Ellen R. Becker, “Xingu Society”, Dissertação de
única espécie de relação” (Lehman, 1967:107). Ph. D. (1969).
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sa, não permitiu que sobrevivessem nos dias de os Terêna, hoje majoritários. Isso nos leva a dois
hoje sistemas de relações intertribais de escalas pontos que gostaríamos de abordar.
de operacionalidade iguais às que se observam Em primeiro lugar, o status de minoria
nos altos rios Xingu e Negro. Contudo, alguns étnica ou tribal de certas identidades; em
fenômenos que pudemos observar só puderam segundo lugar, a relação entre o conceito de
ser entendidos através da concepção das identi- identidade étnica e o de grupo étnico, como
dades étnicas (ou tribais) como estando definimos esse último nas primeiras páginas
organizadas num sistema de categorias. Cabe deste ensaio e de acordo com Barth. Tomemos
fazer alusão aqui à manipulação de identidades o caso dos remanescentes Kinikináu de
feita por um koixomunetí (médico-feiticeiro) da Cachoeirinha para nos ajudar a examinar esses
aldeia Terêna denominada Cachoeirinha (ou pontos. Encontram-se agrupados em três grupos
Bookotí, em idioma Txané). Trata-se do índio domésticos (dados de 1960) e em uma única
F.S., filho de pai Layâna (um subgrupo Guaná, parentela, originária de um único grupo local
tal como o grupo Terêna) e mãe Terêna. Embora chamado Paraíso. Seus componentes mantêm
a filiação obedeça a um padrão patrilinear, F.S. viva o que se poderia chamar de “identidade
invoca sua identidade Layâna quando assume o histórica”, pois comumente, e inclusive na
papel de koixomunetí, em face do grande ocasião do censo, fazem questão de se
prestígio que goza o maior koixomunetí de identificar como Kinikináu de modo a contras-
Cachoerinha (e provavelmente das aldeias tarem sua identidade com a dos seus vizinhos
Terêna em seu conjunto), o igualmente Layâna Terêna. Na época, isso nos surpreendeu, pois
Gonçalo – que se serve em seus rituais acabávamos de presenciar o casamento de um
xamanísticos de palavras da língua Layâna que jovem membro da família com uma Terêna e
efetivamente não domina; faz das palavras acreditávamos ser mais estratégica em mani-
Layâna um uso quase cabalístico, como para festação inversa, isto é, um escamoteamento da
impressionar seus clientes Terêna. Mas freqüen- identidade Kinikináu. Com o relativo desprezo
temente F.S. está a invocar sua identidade que goza qualquer outra identidade que não seja
Terêna, alegando tê-la por direito uma vez que a dos “donos do lugar” – como assim se afirmam
sua mãe era Terêna. Sua ambição em se tornar os Terêna, nas alusões freqüentes que fazem
“capitão” da aldeia leva-o a jogar com duas às identidades “dos outros”21 sempre que
identidades “virtuais”, dependendo das circuns- desejam marcar seus direitos sobre a terra da
tâncias e das pessoas com quem interage (R. reserva, portanto, sempre que querem fixar seu
Cardoso de Oliveira, 1968:111). status superior – seria de se esperar que esses
Porém, esse caso não é isolado no “sui Kinikináu cuidassem de evitar o estigma. Mas
generis” sistema de relações intertribais que logo aprendemos que eles assim se identificavam
marcam a atualidade Terêna. Darcy Ribeiro, perante o pesquisador, uma pessoa de fora,
prefaciando nosso livro O Processo de Assi- capaz talvez de vê-los como são, “diferentes”
milação dos Terêna (pp. 11-2) e apoiado dos Terêna, “melhores” do que eles; porém toda
também em suas próprias observações sobre a a vez que surpreendemos um ou outro Kinikináu
realidade Terêna, diz que, “através dos últimos em situações de interação com indivíduos
150 anos de interação com a nossa sociedade, Terêna, sem a participação de indivíduos de
os diversos grupos Guaná vieram a fundir-se, outras etnias, seu comportamento verbal era no
restando, em nossos dias, um apenas, os Terêna, sentido de evitar qualquer referência à sua
que passaram a reunir todos os sobreviventes identidade Kinikináu.
da tribo”. Apesar do reduzido tempo que passou
junto a esses índios, Ribeiro soube ver que de 21. Como informação suplementar devemos assinalar que
há uma tendência à hierarquização dessas identidades, es-
fato se tratava de um único grupo organizado, tando as de Kinikináu e Layâna, pelo menos na Aldeia
i.e., os Terêna. E que os remanescentes Layâna Cachoeirinha, acima da de Xamakoto ou Guató, estas últi-
e Kinikináu, juntamente com os Terêna mas relacionadas com o status de cativos que, no passado,
membros desses grupos étnicos desfrutavam nas aldeias
propriamente ditos, não constituíam senão um Terêna. Hoje seus poucos descendentes ainda são alvo de
único grupo étnico – não mais os Guaná – mas discriminação.
OLIVEIRA, ROBERTO CARDOSO DE. Identidade étnica, identificação e manipulação

Esse caso sugere que bem se trata do que posse de direitos que aqueles não poderiam
Erikson denomina (tomando o termo de Vann reivindicar; é o que se pode deduzir dessa frase
Woodward) “surrendered identity”,22 a saber, do velho Leme, chefe da parentela Kinikináu:
uma identidade latente que é apenas “renun- “Não sou como muito morador daqui, nunca fui
ciada” como método e em atenção a uma práxis kauti (cativo) e sou Kinikináu de família naati
ditada pelas circunstâncias, mas que a qualquer (de chefes)”.
momento pode ser atualizada, invocada. Mas Comparando a situação da comunidade de
essa invocação nos indica que, no grupo fechado Cachoeirinha com a que desfrutam os grupos
de sua parentela, os Kinikináu buscam se apoiar xinguanos, pode-se dizer que a situação dos
numa ideologia étnica que os municie de valores Kinikináu corresponde a um caso limite, em que
capazes de fortalecê-los no confronto cotidiano um conjunto de indivíduos, na falta de um grupo
com os Terêna que insistem em considerá-los, étnico de referência, efetivamente existente
há pelo menos 50 anos, “hóspedes”! Experimen- (portanto como “organizational type”), apela à
tam nesse sentido uma “dolorosa consciência sua história (tanto quanto os Terêna também o
de identidade,”23 moralmente indispensável para fazem com relação a elas) e se representa como
sustentá-los na situação de “minoria étnica” de categoria étnica num sistema ideológico deter-
que desfrutam. E é precisamente devido a essa minado. A possibilidade da emergência dessa
condição de minoria, de representantes da “clas- modalidade de identidade étnica talvez seja
se dos de fora” – como os vêem os Terêna –, proporcional à consciência de sua história, ou à
que são estigmatizados, a confirmar as conclu- sua “historicidade”,25 que remanescentes tribais
sões de Goffman de que a estigmatização é o ou étnicos possam possuir. Já quanto à situação
meio de remover minorias dos caminhos da dos xinguanos, a correspondência entre identi-
competição.24 Os Kinikináu, no entanto, não dades étnica e grupo étnico é, por assim dizer,
constituem um grupo organizado (“organiza- sincrônica, não mediatizada por uma história e
tional type”) provavelmente já a partir de 1908, por uma invocação do passado, pois no Xingu
quando ainda tinham uma aldeia – e certamente as unidades étnicas (como as que mencionamos
desde 1925, quando dela saíram seus últimos parágrafos atrás) persistem como grupos tribais,
quinze moradores de mudança para Lalima (R. portanto como “organizational type”. Não obs-
Cardoso de Oliveira, 1960a:62, nota 108); mas tante, seria importante investigar como e em que
a “identidade histórica” que cultivam serve-lhes escala pode ter lugar o processo de identificação
para marcar o seu lugar na comunidade de étnica envolvendo remanescentes tribais tam-
Cachoeirinha, para contrastá-los com os “donos bém no Xingu (pois existem), descendentes de
do lugar”, singularizá-los, o que significa também grupos já desaparecidos, por isso sem preen-
diferenciá-los dos demais membros da “classe cherem as condições do tipo organizado de que
de fora” (remanescentes Guató, Xikito, tanto fala Barth, como tal é o caso dos Kustenáo,
quanto paraguaios mestiços), como a afirmar a Nahukuá, Trumái, entre outros. Com relação a
esses remanescentes é possível que mecanismos
22. “Gosto deste termo (identidade renunciada) porque ele de identificação étnica semelhantes aos obser-
não presume ausência total, mas algo a ser recuperado. Isto vados em Cachoeirinha tenham lugar no Xingu
deve ser enfatizado porque o que é latente pode se tornar de forma que o modelo elaborado sobre aquela
uma realidade viva e, assim, uma ponte do passado para o
futuro” (Erikson, 1968:297). realidade bem poderá ajudar a compreender uma
23. Falando sobre a criação artística entre minorias judias “segunda situação” por ora ainda não investigada
ou negras, Erikson diz que “... ela inclui a decisão moral de por Menget.
que uma certa identidade-consciência dolorosa pode ter que
ser tolerada a fim de fornecer à consciência do homem uma
crítica de condições, com o ‘insight’ e as concepções neces- (ii) A identificação no confronto com os brancos
sárias para curá-lo do que mais profundamente o divide e o
ameaça, ou seja, a sua divisão no que chamamos de pseudo- As relações interétnicas não se dão somen-
espécies” (Erikson, 1968:298).
te em sistemas de interações intertribais. Dão-
24. “... a estigmatização dos indivíduos pertencentes a cer-
tos grupos raciais, religiosos e étnicos tem aparentemente
funcionado como um meio de remover essas minorias de 25. Cf. Claude Lefort (1952); também R. Cardoso de Oli-
vários caminhos de competição (...)” (Goffman, 1963:139). veira (1960a:67).
SOCIEDADE E CULTURA, V. 6, N. 2, JUL./DEZ. 2003, P. 117-131

se também – e sobretudo – em situações de que lhe dá uma sociologia das classes sociais.
contato entre “índios” e “brancos”, como assim Na medida em que uma contradição de classe
são mencionadas essas relações na etnologia tem lugar, as etnias indígenas tendem a ocupar
americanista. E na tradição dessa etnologia, é no sistema social inclusivo, portanto nacional,
necessário acentuar, a expressão “relações posições “de classe”: nas zonas rurais – e
interétnicas” sempre esteve aplicada às que têm estamos fazendo referência expressa à reali-
lugar entre o conquistador europeu e as popu- dade brasileira – tendem a ser identificadas com
lações aborígines, menos freqüentemente entre camponeses ou com trabalhadores agrícolas;
aquele e os grupos negros transladados (cujos nas áreas urbanas, com operários ou traba-
remanescentes têm sido alvo de estudos de lhadores braçais. Isso não significa absolu-
“relações raciais”) e muito raramente às rela- tamente que como grupos étnicos (“organi-
ções intertribais. Neste ensaio, que visa zational type”) tenham “consciência de classe’
examinar a identificação étnica como um e se assumam como ‘classe”. O estudo que
processo de maior generalidade, tal diferen- fizemos sobre os Terêna rurais e urbanos (R.
ciação é contraproducente, pois pode levar a Cardoso de Oliveira, 1968) oferece uma confir-
um entendimento errôneo de um único fenômeno mação dessa assertiva; como também o estudo
que apenas diferentemente se manifesta de dos Tükúna pode servir para mostrar a dialética
conformidade com a diversidade das situações entre etnia e classe social (R. Cardoso de
de contato. Portanto, embora também nós Oliveira, 1964, esp. Cap. VI). Mas o ponto que
tenhamos acompanhado a mesma tradição em desejamos fixar aqui é que a natureza das
trabalhos anteriores – como um meio de mais relações entre brancos e índios é de dominação
facilmente marcar no discurso as relações entre e sujeição, sendo consistente com um certo tipo
índios e brancos – já aqui estaremos usando a de colonialismo interno de que falamos noutro
expressão interétnica para designar as relações lugar (R. Cardoso de Oliveira, 1966).
que se dão entre etnias em geral, como se definiu Num tal contexto, as relações interétnicas
no princípio deste ensaio tanto quanto em produzem modalidades de identificação que
coerência com a etimologia do termo; a menção obedecem a imperativos que devemos examinar.
a relações intertribais, como um caso particular Gostaríamos de aludir ao que observamos em
das relações interétnicas, obedece fundamen- 1959, quando de nossa primeira viagem aos
talmente a propósitos descritivos. Tükúna, do alto rio Solimões, nas fronteiras
Todavia, se os mecanismos de identificação amazônicas entre Brasil, Peru e Colômbia. Esse
étnica podem estar sujeitos a princípios estru- caso foi descrito e analisado em publicações
turais comuns, tal não acontece com o contexto anteriores (R. Cardoso de Oliveira, 1960b e
no qual se dão as relações interétnicas. Esse 1964), por isso limitamo-nos a resumir aqui o
contexto, naturalmente, cinge-se a estruturas de essencial. Trata-se de observações feitas sobre
outra ordem. As relações que envolvem etnias uma família residente na aldeia Mariauçu, dentro
de escalas tão diferentes, como são a sociedade da reserva supervisionada pelo “Posto Indígena
nacional (quer seja através de seus segmentos Ticunas”. A peculiaridade do caso está na
regionais muitas vezes demograficamente determinação do grupo familiar em identificar
inexpressivos) e os grupos indígenas, obedecem como Tükúna os seus membros mais jovens
ainda a certas dinâmicas peculiares, como (duas meninas e um menino), filhos de um
tentamos descrever em nosso modelo do mestiço (de pai branco e mãe Tükúna – do clã
“potencial de integração” (R. Cardoso de Auaí e da metade das Plantas) e de uma Tükúna
Oliveira, 1967) e em consonância com a teoria do clã Manguari e da metade das Aves. Dentro
de fricção interétnica a que já aludimos. dos princípios estruturais de organização étnica
Implicam a admissão tácita não apenas de uma Tükúna, essas crianças não poderiam jamais ser
hierarquia de status (ou um sistema de estra- consideradas membros do grupo, uma vez que
tificação), pois essa também tem lugar como não possuíam status clânico, posto que este se
uma ideologia da situação de contato, mas recebe pela linha paterna. O avô das crianças,
sobretudo uma “estrutura de classes”, no sentido sogro do mestiço, percebendo que a não-incor-
OLIVEIRA, ROBERTO CARDOSO DE. Identidade étnica, identificação e manipulação

poração definitiva de seus netos na comunidade outro caso Terêna, feita num dos artigos citados
Tükúna constituía uma ameaça para eles no que (R. Cardoso de Oliveira, 1960b), sugere que a
tange aos seus direitos sobre a terra da reserva, identificação étnica alcançada por manipulações
decidiu promover a identificação étnica dos de regras sociais é um fenômeno mais geral do
membros espúrios de sua família. É necessário que se poderia imaginar no quadro das relações
acentuar que isso ocorreu num período espe- entre índios e brancos. 26 O fenômeno do
cialmente crítico, quando seus patrícios forçavam “caboclismo” (R. Cardoso de Oliveira, 1964,
a expulsão da reserva das famílias de regionais, cap. V, passim) pode ser considerado como o
não índios, que nela habitavam como arren- reverso da medalha: o índio procurando evitar
datários de terras. Sendo membro do clã Man- sua identificação tribal (como o caso do Calixto,
guari, portanto da metade oposta à que pertencia culturalmente Tükuna) ou mistificando-a (como
à mãe do mestiço, seu genro, fez com que o do cafuzo, filho de pai Tükúna), ambos
recebessem nomes do clã materno submetendo- empenhados em aparecer como “civilizados”,
os ao ritual de nominação. Graças a essa mani- uma vez que, vivendo fora da reserva, não ou
pulação das regras de filiação clânica (e assim muito pouco se beneficiaram de uma ação
da identidade étnica), pôde regularizar a situação protetora ainda menos eficaz em terras fora da
dos netos; de um lado, rompeu com o princípio reserva, ao passo que, nessas condições, uma
de descendência patrilinear, sacramentalizando identificação tribal só poderia lhes trazer
pelo ritual a transmissão de nomes do clã Auaí; dificuldade na interação com os regionais.27
de outro lado, pôde obedecer ao princípio Cabe lembrar, a propósito, que em Santa Rita
igualmente importante da exogamia das meta- do Weil, uma das povoações brasileiras próxima
des, “dando” às crianças um pai Auaí, compa- de igarapés habitados por índios Tükúna e de
tível com sua filha, mãe de seus netos, membro propriedade de seringalistas, a discriminação ao
do clã Manguari por filiação patrilinear. No caso índio chegou ao ponto da missão protestante local
observado há de se notar que duas ordens de destinar aos Tükúna templos próprios para os
pressão eram sentidas por essa família: uma, de cultos evangélicos e para suas crianças escola
parte da própria comunidade Tükúna de separada da dos filhos dos regionais (R. Cardoso
Mariuaçu, ciosa de não permitir intrusos em suas
de Oliveira, 1964:113-14). E isso se deu por
terras; outra, de parte do Posto Indígena, que
pressão da sociedade brasileira local, para não
discrimina sistematicamente os moradores não
se contaminar das “impurezas” do convívio com
índios da reserva. Ser Tükúna para essa família
era firmar seu direito à terra e à proteção – que 26. A análise do sistema de nominação tomado como base
embora insuficiente é necessária numa região da identificação étnica dos Kaingang e dos Xokleng, apenas
de conflitos entre índios e “patrões”, seringueiros esboçada por Silvio Coelho dos Santos (Santos, 1970:115-
16), parece indicar iguais tendências, particularmente com
e seringalistas. A decisão do chefe da família referência às relações dos primeiros com a sociedade nacio-
em assimilar seus netos (e seu genro) à nal.
sociedade Tükúna é sintomático do papel da 27. Os dois casos estão analisados na obra citada; bastaria
mencionar aqui o fato do Calixto ter sido o principal infor-
sociedade nacional no ativamento do processo mante de Curt Nimuendaju e de ser ele filho de pai alemão e
de identificação étnica. mãe Tükúna: vive como Tükúna, apesar de suas ambigüida-
A sociedade nacional exerce outros tipos des, num igarapé no alto rio Solimões, no município de São
Paulo de Olivença, mas apesar disso “vê” os Tükúna com os
de pressão, nem sempre com resultados “posi- olhos dos brancos tanto quanto vê a si mesmo, isto é, atra-
tivos”, entendendo-se por isso sua contribuição vés dos esteriótipos negativos forjados pela sociedade regi-
– se bem que indireta – para o fortalecimento onal. É assim um caso extremo de “caboclismo”, como
assim nos referimos ao modo do índio ver-se a si mesmo
da identidade étnica e nos termos do exemplo como caboclo – uma categoria pejorativa elaborada pelo
examinado acima. A situação de “índios de branco. Quanto ao cafuzo, um indivíduo de tez negra e
alguns traços indígenas, foi nosso cozinheiro durante toda a
reserva” é que parece ensejar essa modalidade expedição de 1959; denunciou-se Tükúna somente quando
de identificação, pondo em prática mecanismos das “festas da moça nova” ocorrida no igarapé Belém, oca-
sócio-culturais consistentes com formas orga- sião em que não resistiu de invocar sua identidade Tükúna
(“surrended identity”) para mais plenamente participar das
nizadoras ainda vivas nas sociedades tribais. A danças e bebedeiras que cercavam os rituais de iniciação e
análise comparada desse caso Tükúna com um das festividades que se prolongaram por três dias.
SOCIEDADE E CULTURA, V. 6, N. 2, JUL./DEZ. 2003, P. 117-131

o índio, ou “caboclo” como são denominados de identificação étnica não parece haver maior
regionalmente os Tükúna. Isso é indicativo dos alienação da identidade tribal. E é homólogo –
obstáculos que encontram os índios para como Melatti indicou (Melatti, 1967:157-58) –
sobreviver sem constrangimento na ordem aos diversos casos que enfeixamos na denomi-
nacional. nação de “caboclismos”, a que já nos referimos.
Dentre as compulsões desagregadoras que Porém, ainda que não se possa dizer que toda
mais eficazmente afetam os grupos indígenas identidade negativa seja engendrada na infância
em contato sistemático com a sociedade (e mesmo com relação ao caso Krahô não sabe-
nacional, estariam as que atingem diretamente mos em que escala as crianças absorvem as
os seus contingentes infantis. A permanência tensões da fricção interétnica), seria ingênuo
contínua em situações de discriminação desperta menosprezar a possibilidade de serem inculca-
desde cedo nas crianças uma consciência dos, já nessa fase etária, os valores mais nega-
negativa de si ou, em termos de Erikson, uma tivos a deteriorarem a consciência étnica.
“identidade negativa” que se prolongará na Mary E. Goodman, em sua pesquisa sobre
juventude e maturidade, raramente transformável o surgimento de “consciência racial” em crian-
numa identidade positiva capaz de auxiliar o ças,31 chega à surpreendente conclusão de que
indivíduo ou o grupo a enfrentar situações elas já aos quatro anos de idade podem
críticas.28 É claro que a expectativa de um demonstrar claros sinais de intolerância racial,
comportamento “positivo” poderá variar de portanto – podemos dizer – sinais de que começa
acordo com os valores tribais (variável cultural) a se constituir em tenra idade uma identidade
e a situação de contato (variável sociológica: étnica. Não importa que a pesquisa dessa
inserção ou não do grupo tribal num sistema de antropóloga tenha sido feita com crianças norte-
fricção interétnica).29 Júlio C. Melatti mostra, americanas, pois em circunstâncias de tensões
por exemplo, como os Xerente não se intimidam “raciais”, o que poderia variar (essa é uma hipó-
no contato com os brancos e sabem enfrentá- tese) seria apenas a manifestação do preconceito
los altivamente como que afirmando sua ou a forma da discriminação. Em nossa pesquisa
identidade étnica (Melatti, 1967:151), enquanto junto aos índios Terêna, tivemos a oportunidade
os Krahô, ao contrário, buscam vencer os
de tentar verificar a magnitude do “preconceito
brancos transformando-se neles, como conta o
racial” entre alunos de uma escola bastante
mito de aukê e deste passando à ação através
próxima de uma reserva indígena. Escolheu-se
de movimentos messiânicos na esperança de se
então uma escola primária da povoação de
tornarem civilizados.30 Nos quadros do processo
Duque Estrada, a oito quilômetros da aldeia de
Cachoeirinha. Contamos com a colaboração da
28. “A identidade negativa é a soma de todas aquelas iden-
tificações e os fragmentos de identidade que o indivíduo tem professora que aceitou nossa sugestão de
que reprimir em si mesmo por serem indesejáveis ou irre- solicitar às crianças (entre sete e onze anos)
conciliáveis, ou pela qual indivíduos atípicos e minorias
marcadas são forçadas a se sentir ‘diferentes’. No caso de
pequenas composições sobre o Índio, seus
crises agravadas, um indivíduo (ou mesmo um grupo) pode hábitos e costumes. A análise desses trabalhos
perder as esperanças de ter habilidade para conter esses escolares demonstraria – o que para nós foi
elementos negativos numa identidade positiva” (Erikson,
1970:733). surpreendente na época (1957) – que a maior
29. Os critérios de inserção num sistema de fricção parte deles falava de um índio abstrato, “de arco
interétnica, bem como uma classificação dos grupos indíge- e flexa”, adorando o sol e a lua, i.e., o “índio”
nas brasileiros em obediência a esses critérios, foram por
nós elaborados numa comunicação apresentada em 1969
presente nos livros didáticos; e os poucos alunos
num simpósio realizado no Burg Wartenstein, na Áustria que mencionaram os Terêna o fizeram chaman-
(R. Cardoso de Oliveira & L. de Castro Faria, 1971).
30. J. C. Melatti mostra a relação entre o mito Aukê e o 31. Diz Goodman “... que ‘crianças pequenas’ algumas ve-
messianismo Krahô, descrevendo um movimento ocorrido zes prestam uma atenção muito pequena à raça, que elas só
em 1951 (Melatti, 1967:151-55). Esse mito, que está pre- estão prontas para prestar atenção à raça quando começam
sente também em outros grupos Timbira, foi analisado por a prestar atenção a outros atributos física e socialmente
Da Matta, que o classificou de “antimito” precisamente por significativos (como idade e sexo) e que a intensidade e tipo
seu caráter dinâmico, capaz de permitir “uma passagem de atenção prestada por crianças diferentes variam como
para uma ordem mais complexa, aquela da ideologia políti- uma função de certos fatores interrelacionados” (Goodman,
ca” (Da Matta, 1970:104). 1968:245).
OLIVEIRA, ROBERTO CARDOSO DE. Identidade étnica, identificação e manipulação

do-os de “bugres” (o equivalente do “caboclo” aqui a razão do caráter hipotético que atribuímos
do Solimões), “decadentes”, “misturados”, à maioria de nossas afirmações, mas no fato de
“alcoólatras” etc., sempre comparando-os com não havermos chegado a elaborar modelos
os “verdadeiros índios”, certamente apreendidos “mais completos” de sistemas de represen-
nas preleções de sua professora. Mas o mais tações; a saber, de não havermos analisado nos
significativo desse episódio foi o fato dos três limites deste ensaio ao menos uma ideologia
alunos Terêna – residentes em Duque Estrada étnica, produzida por um grupo étnico particular,
– reagirem como se não fosse com eles, escre- inserido numa situação de conjunção interétnica
vendo praticamente a mesma coisa (se bem que (leia-se, também, intertribal). O estudo intensivo
com muito menor entusiasmo) que seus colegas de uma ideologia étnica (e um estudo desse teor
do primeiro grupo. Se parte das crianças não reservamo-nos fazer proximamente juntos aos
houvesse se referido aos Terêna como “índios Terêna) permitirá construir um conjunto articu-
decadentes”, poder-se-ia pensar que a menção lado de modos de identificação étnica como
à categoria abstrata “Índio” é que não teria descrição de um processo cujo nexo só poderá
levado os alunos Terêna a nela se classificarem ser encontrado (numa primeira aproximação) no
– pois o que é esse “Índio” genérico, senão uma interior de um sistema de valores. E é aqui que
abstração?32 Contudo, o que parece mais plau- uma abordagem estruturalista – no amplo sentido
sível é que eles não se permitiram assumir sua que lhe confere Jean Piaget (Piaget, 1968 esp.
identidade étnica num ambiente nitidamente “Conclusion”) – se reconcilia com uma análise
adverso, com medo talvez de se colocarem eles de conteúdos culturais; mas é preciso dizer que
próprios como temas de debate e que por certo a cultura aqui significa valores, no sentido preciso
teriam muito a perder, pois não se é “bugre” que lhe deu Barth, incluindo a coexistência de
impunemente no sul de Mato Grosso. diferentes valores no interior de uma cultura
(Barth, 1966:12); mas significa também “pa-
drão”, no sentido que lhe dá Goodenough
5 – Possibilidades de explicação (Goodenough, 1970:98-104), “de perceber, crer,
As modalidades de identificação étnica avaliar e agir”.
selecionadas para exame não pretenderam Ora, num sistema interétnico é natural que
esgotar todas as possibilidades de emergência emerja o que se poderia chamar de “cultura do
da identidade étnica. Nem podemos esperar que contato” – expressão que preferimos em lugar
possamos esgotá-las, pois tal como os mitos – a do consagrado “sistema intercultural”, uma vez
aceitarmos os argumentos de Lévi-Strauss – o que este costuma representar uma amálgama,
conjunto dos modos de identificação seriam da uma mistura genérica de coisas diversas,
ordem do discurso (e particularmente de um indeterminada, muitas vezes descrito como uma
resultante de ganhos e perdas (aculturação)
discurso ideológico); a não ser que a população
entre sistemas culturais em conjunção. É no
– ou o sistema interétnico (viz. Intertribal),
interior de uma determinada “cultura de contato”
diríamos nós – se extinguisse, esse conjunto
que poderemos nos propor a buscar soluções
jamais estaria encerrado.33 Portanto, não estaria
para problemas de caráter geral, como o grau
32. A percepção do “Índio”, como “categoria étnica”, me-
de sistematização e consistência entre diferentes
receria investigações comparativas específicas, destinadas valores que coexistem numa cultura,34 tanto
a mostrar um painel de ideologias étnicas e de como são quanto questões mais específicas como o padrão
elaboradas pelos diferentes sistemas cognitivos tribais.
de coerência entre o sistema de valores (qual-
33. Cf. Lévi-Strauss, 1964:15. Completando seu pensamen-
to, diz: “De nada valeria então reprovarmos a um lingüista quer que seja o grau de integração ou consis-
que escrevesse a gramática de uma língua sem ter registrado tência) e os mecanismos de identificação étnica.
a totalidade de linguagens pronunciadas desde que esta lín-
gua existe, e sem conhecer as mudanças verbais que terão
Sendo as categorias étnicas componentes de um
lugar enquanto ela existir. A experiência prova que um nú-
mero irrisório de frases, em comparação com todas aquelas 34. “O problema, da forma como o vejo, é compreender
que ele tinha podido recolher, teoricamente permite ao como qualquer grau de sistematização e consistência é esta-
lingüista elaborar uma gramática da língua que ele estuda” belecido e mantido entre os valores diferentes que coexis-
(ibidem). tem numa cultura” (Barth, 1966:12).
SOCIEDADE E CULTURA, V. 6, N. 2, JUL./DEZ. 2003, P. 117-131

sistema ideológico, estão carregadas de valor; logia, de caráter formalizante, vem sendo
e os valores são fatos empíricos, passíveis de desenvolvida por Barth com o objetivo de
serem descobertos, “pois não são construções elaborar “modelos gerativos” de organização
do analista mas sim pontos de vista dos próprios social38 e que nos parece ser da maior fecun-
agentes”.35 Trata-se, assim, como já se assi- didade para a descrição e análise de situações
nalou, de apreender “modelos conscientes” interétnicas particulares, sempre que a mani-
como preliminares de uma análise estrutural. Em pulação da identidade étnica for redutível a
se tratando de valores, há de se mencionar o esquemas transacionais. Mas a teoria dos jogos,
problema da escolha; por acaso não é a identi- subjacente ao modelo, não nos parece capaz de
ficação étnica – nos contextos em que a temos transcender o plano empírico e questionar a
examinado – de algum modo uma “escolha”? estrutura da identificação étnica além de sua
Se temos por projeto tomar a identidade manifestação em tal ou qual sociedade ou
étnica e o processo de sua emergência (a situação de contato.39
identificação) como nosso objeto de pesquisa e, Goodenough (1965) desenvolveu um mode-
como tal, susceptível de estruturação, será lo bastante engenhoso para captar o que chama
necessário ao menos nos interrogarmos sobre de gramaticalidade das identidades sociais,40
os caminhos que pode seguir a investigação mas, se nossa interpretação é correta, ele – o
antropológica. Se a identidade étnica é um valor, modelo – melhor se aplica a sistemas culturais
enquanto categoria ideologicamente valorizada,
ela é passível de uma certa escolha ou opção quer tipo que oferecem as bases para o desenvolvimento de
em situações determinadas, algumas delas uma comunidade de interesses dos membros do grupo” (Barth,
1966:13).
examinadas páginas atrás. Barth propõe um
38. “O formalismo particular da Teoria dos Jogos não é tão
modelo, fundado na teoria dos jogos (“game importante para os propósitos antropológicos como é o
theory”), por meio do qual nos habilita a trabalhar caráter fundamental da teoria como um modelo gerativo.
com a dimensão “transacional” da identidade Ela pode servir como um protótipo para um modelo pro-
cessual de interação e, concentrando-me em transação como
no sentido em que, numa relação entre A e B, o isolado analítico no campo da organização social, estou
ambos os termos tentam assegurar que o valor privilegiando o que considero o aspecto mais crucial da
teoria para os nossos propósitos” (Barth, 1966:5).
ganho seja sempre maior (ou pelo menos igual)
39. Um modelo bastante elaborado, no sentido de sua
ao valor perdido.36 Trata-se, portanto, de formalização, é o que nos propõe Jean Piaget (1965:100-
modelos estratégicos (escolhas estratégicas), 42). Permite-nos trabalhar com estruturas operatórias abran-
cuja utilização pode nos levar a descobrir as gendo três realidades sociais fundamentais que para Piaget
são as regras, os valores e os signos. “Toda sociedade é um
constrições estruturais que uma situação sistema de obrigações (regras), de trocas (valores) e de sím-
totalizadora impõe à escolha aberta dos bolos convencionais que servem de expressão às regras e
aos valores (signos)” (p.100). Graças à aplicação consisten-
indivíduos e dos grupos; são restrições à escolha te de esquemas logísticos, diferentes aspectos dos fenôme-
que, na teoria dos jogos, são expressas como nos de troca e interação, dos valores individuais e coletivos,
“regras” definidoras do “jogo”.37 Essa metodo- são equacionados em termos de sistemas de equilíbrio, onde
seus rompimentos são vistos como crises. Como se vê, por
mais convidativa que seja a reflexão esta tentativa de
35. “Sustento que esses valores são fatos empíricos que “logicizar” os fatos sociais, particularmente aqueles que di-
podem ser descobertos – eles não são constructos do analis- zem respeito às questões aqui propostas, a teoria mais geral
ta mas opiniões sustentadas pelos próprios agentes.” (Barth, que está por trás de Piaget (Pareto, Durkheim, Kelsen – por
1966:12). ele citados) não dá conta do caráter dinâmico e muitas
36. “Ela é constituída por um fluxo básico de prestações vezes conflituoso dos sistemas de interação. Quanto ao pro-
entre dois ou mais atores; em sua forma elementar, ‘A’ blema específico da identificação étnica, o modelo, entre-
oferece prestações ‘x’ e ‘B’ retribui com prestações ‘y’, tanto, apresenta pontos sugestivos, razão pela qual o
assim A x y B. Além disso, de acordo com a definição, estamos mencionando nesta nota, mais como um convite
cada parte tenta consistentemente assegurar que o valor ao exame pelo leitor interessado em análises formais. Como
ganho seja maior do que o valor perdido. Isso define dois uma técnica de análise formal talvez possa oferecer maior
limites: para A, x < y e para B, x > y” (Barth, 1966:13). rentabilidade, em níveis mais abstratos e de maior generali-
37. “A natureza dessas vantagens e as várias restrições às dade, do que a Teoria dos Jogos utilizada por Barth pôde
escolhas abertas aos indivíduos dependem das característi- apresentar na pesquisa empírica.
cas estruturais da situação total que, na Teoria dos Jogos, 40. Esse código ou “gramática” da identidade social se funda
são expressas como regras que definem o jogo. Em tal estru- em princípios dentre os quais destacamos dois: 1) que todo
tura, os grupos que realmente emergem se relacionam desta indivíduo possui mais identidades do que poderia assumir a
forma às características estruturais ou condições de qual um só tempo numa dada interação; 2) que para qualquer
OLIVEIRA, ROBERTO CARDOSO DE. Identidade étnica, identificação e manipulação

com alto grau de congruência41 e para os quais os grupos étnicos em contato. Nesse sentido,
um código social seria equivalente ao idioma essa “cultura do contato” pode ser mais do que
falado pelos indivíduos-membros. Daí porque um um sistema de valores, sendo o conjunto de
sistema monolítico de relações de status (de representações (em que se incluem também os
“direitos e deveres”) pode ser equiparado a um valores) que um grupo étnico faz da situação de
sistema equivalente de identidades sociais, mas contato em que está inserido e nos termos da
não étnicas. O caso dos Truk, tomado como qual classifica (identifica) a si próprio e aos
ilustração por Goodenough, indica boas possi- outros.
bilidades de se dar conta do fenômeno de
identificação social em termos de relações de
6 – Conclusão
status, descrevendo suas dimensões com o
recurso técnico de uma “escala de Guttman”. Na escala em que estão os nossos conheci-
O que se tratou de entender então, porém, foram mentos sobre a identidade e a identificação
as relações de identidade-status no âmbito de étnicas, parece-nos apropriado distinguir pelo
uma cultura determinada (e guardada sua menos três “tipos” de situações de contato (com
inteireza, ao menos para fins analíticos), e não suas correlatas “culturas do contato”):
de se penetrar no interior de um outro sistema 1) a que envolve unidades étnicas simetri-
de relações, sincrético por natureza, tal como o camente relacionadas (como estão ilustradas em
sistema interétnico – este sim a base de inteli- muitas das relações intertribais no Xingu);
gibilidade da identificação étnica. A “cultura do 2) a que envolve unidades assimétricas e
contato”, entendida principalmente como um hierarquicamente justapostas (como exempli-
sistema de valores altamente dinâmico, portanto, ficam as relações intertribais que tiveram lugar
susceptível de fornecer o rationale das “flutua-
no Chaco no período à conquista e das quais se
ções” da identidade étnica (ou, em outros termos,
capta hoje formas remanescentes no sul de Mato
a lógica da manipulação dessa identidade),
Grosso);
poderá permitir a elaboração de uma tipologia
3) a que envolve unidades étnicas assime-
capaz de conter diferentes “culturas do contato”
tricamente relacionadas, mas presas a um
e de conformidade com a maior ou menor
sistema de dominação e sujeição (nas áreas de
distância e “oposição” das culturas em conjun-
fricção interétnica ou como bem representam
ção, da maior ou menor tensão e conflito entre
as relações entre índios e brancos na forma em
identidade assumida por alguém há apenas um número limi-
que se dão em contextos coloniais, incluindo aí
tado de identidades combinadas (“matching identities”), i.e., o do “colonialismo interno”). O primeiro “tipo”
susceptíveis de serem assumidas pelo outro indivíduo, talvez permaneça mais como uma figura teórica,
contraparte da interação (Cf. Goodenough, 1965:5-6). Da
mesma maneira que um professor não pode sê-lo a todo uma vez que rareiam progressivamente sistemas
instante e em todo lugar, ele não poderia assumir todas suas de relações intertribais de caráter simétrico. O
identidades (ex.: pai, marido, consultor técnico, chefe de
departamento etc.) a um só tempo numa mesma interação.
segundo “tipo” corresponde à emergência de
De resto, se assumisse a de professor junto a seu filho ou a sistemas de estratificação – portanto de status
sua mulher, a relação seria tão pouco congruente como se –, tendo por marco diferencial a categoria étnica
assumisse a de pai diante de seus alunos ou de seus colegas de
Conselho Técnico. A essa incongruência de identidade é que dos indivíduos ou grupos em contato; tais siste-
Goodenough chama de não-gramaticalidade, sendo que a mas podem ser encontrados em contextos intertri-
gramaticalidade da relação de identidade estaria na consti-
tuição de pares de identidade combinadas (professor-aluno,
bais, como os que nos referimos na discussão
pai-filho, marido-mulher etc.). dos remanescentes Guaná, como também em
41. Não se quer dizer com isso que tais sistemas culturais contextos altamente complexos como são as
constituam uma totalidade absolutamente integrada, no sen- “sociedades de castas”.42 Finalmente, o terceiro
tido, aliás, muito bem criticado por Barth (1966:12); nem
queremos dizer, também, que os sistemas interétnicos não
engendrem seus próprios códigos, suficientemente articula- 42. Cf. Louis Dumont, 1966. Nessa obra o Autor teoriza
dos para permitir serem tratados como “idiomas” comuns, brilhantemente sobre o sistema de castas, revelando toda
i.e., “falados” pelos grupos étnicos em contato contínuo e uma ideologia hierárquica subjacente. Uma investigação do
sistemático. Porém, o método de Goodenough, por estar processo de identificação étnica em tal contexto, minado
em caráter probatório, ainda não nos parece oferecer segu- pela oposição religiosa do puro e do impuro, muitos nos
ras perspectivas para a análise da identificação étnica. poderia ensinar.
SOCIEDADE E CULTURA, V. 6, N. 2, JUL./DEZ. 2003, P. 117-131

“tipo” corresponde às relações que têm lugar relações interétnicas em geral? A resposta a
no âmbito de uma “estrutura de classes”, no essa pergunta certamente poderá ser melhor
sentido em que as relações de dominação- encontrada aguardando-se o desenvolvimento
sujeição obedecem a uma dinâmica de ordem de estudos que venham a absorver o modelo.
diversa daquela que tem lugar num sistema de Acreditamos, porém, que o conceito de identi-
estratificação, expressa no “tipo” anterior.43 dade étnica, como categoria ideológica (na
Evidentemente não são tipos weberianos, pois forma que a definimos), tanto quanto a análise
se mesclam sempre de algum modo e sua do processo de identificação, revelam um
distinção somente é válida para fins analíticos. terreno bastante firme para se pisar na busca
Se representássemos estes “tipos” como de um conhecimento mais sistemático das
círculos, verificaríamos que eles teriam em suas relações interétnicas. A problemática da
áreas de intersecção um conjunto de elementos identidade e da identificação étnicas, desde que
comuns e que poderíamos imaginar como sendo sempre seja contextualizada, i.e., relacionada
propriedades estruturais do processo de com a natureza (ou “tipo”) da situação de
identificação étnica: contato, promete ter uma bastante razoável
possibilidade – se nos é lícito supor – de
a) o caráter contrastivo da identidade
implementar a investigação empírica, pois toca
étnica e seu forte teor de “oposição”
uma esfera crucial de qualquer sistema de
com vistas à afirmação individual ou
relações sociais: a da relação entre o indivíduo
grupal;
e o grupo; constitui a ponte entre o indivíduo e a
b) sua manipulação em situações de ambi-
sociedade, em termos semelhantes (se bem que
güidade, quando abrem-se diante do
não idênticos) ao que representa o papel (“role”)
indivíduo ou do grupo alternativas para
numa teoria como a de Nadel (1957:20). E, nos
a “escolha” (de identidade étnicas) à
termos de uma teoria das relações interétnicas,
base de critérios de “ganhos e perdas”
fenômenos como as “flutuações” da identidade
(critérios de valor e não como meca-
étnica – graças às possibilidades abertas à sua
nismos de aculturação) na situação de
manipulação – e o exercício da identificação
contato.44
(étnica), devem ser interpretados como o esforço
Qual a importância desse modelo tentativo muitas vezes dramático do indivíduo e do grupo
de identificação étnica para o estudo das para lograrem sua sobrevivência social.

43. Cf. Rodolfo Stavenhagen, 1962. A distinção entre sis-


tema de estratificação social e “estrutura de classes” está
muito bem demonstrada nesse artigo.
44. À base de nossa análise somos levados a concluir pelo
oposto da consideração feita por Goodenough de que “é
mais provável que os cenários sociais afetem a maneira
como uma pessoa se conduz na mesma relação de identidade
do que governem a seleção de identidade, mas – pondera em
tempo Goodenough – isto é um assunto que requer investi-
gação empírica” (1965:6). Sua conclusão parece consisten-
te com relação a sistemas de papéis e/ou de status, em ter-
mos dos quais pretende traduzir um sistema de identidades
sociais.

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