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ISBN: 978-65-84897-00-7
Bonito 2022
DOI: 10.46898/home.trab2022.31
Anais do Fórum Nacional de Publicações-Ano I, Brasil, 2022
ISBN: 978-65-84897-00-7
Resumo
Palavras-chave
Abstract
Keywords
2
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Anais do Fórum Nacional de Publicações-Ano I, Brasil, 2022
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Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras
Marcelo Gil da Silva
INTRODUÇÃO
Singelamente, o panorama geral das religiões afro-brasileiras tem como matriz a cultura e a
própria religiosidade africana. Assim, com a vinda de pessoas da África para o Brasil,
sabidamente um deslocamento forçado e dentro de uma doutrina de escravidão, traz também
essas matrizes, que em solo brasileiro se depara com religiões europeias e indígenas e,
inevitavelmente forma-se o sincretismo religioso. “(...) há a constante necessidade por parte
dos estudos antropológicos e sociológicos de definir o que é o sincretismo para entender as
transformações no campo das religiosidades afro-brasileiras” 1(SILVEIRA e COSTA, 2013,
p. 225).
Conforme a estrutura religiosa da matriz africana, lembrando que difere em alguns aspectos,
tendo em vista a própria diversidade cultural do vasto continente africano e, o Brasil ter
recebido pessoas de diversas localidades desse continente, há características que fazem
paralelos com as religiões trazidas pelos europeus e dos nativos brasileiros (índios) “(...) as
culturas religiosas negras, que tendo experimentado diversos processos sincréticos na África,
assimilaram no Brasil, práticas cristãs, indígenas e espíritas, possibilitando novas
identidades religiosas com diferentes fases e direções” 2(BOAVENTURA, 2012, p. 84).
Tem-se a estrutura básica das religiões afro-brasileiras alguns aspectos que podemos
denominar como principais, sendo o culto ao espírito criador, a crença aos espíritos naturais e
aos espíritos ancestrais. E isso não fica apenas para as religiões afro-brasileiras, mas também
encontramos esses aspectos, ainda que de formas sutis, em muitas religiões ou culturas.
Percebe-se que há um forte paralelo com o espiritismo kardecista, tendo em vista a
comunicação com os espíritos ancestrais e, paralelamente podemos também colocar que os
espíritos naturais revelados nas religiões afro-brasileiras podem ser os espíritos evoluídos,
conforme o kardecismo e, realmente encontramos em todas as religiões do mundo a crença de
um criador, em que tudo tem um princípio e o princípio se torna ao criador.
1
SILVEIRA, Allice Toledo Lima da; COSTA, Alexandre Ferreira da. Para Repensar o Sincretismo
Religioso: Palavra, Significação e Conceito. In: Intersecções, Edição 11, Ano 6, Número 3. Jundiaí:
Centro Universitário Padre Anchieta, Nov 2013. p. 225.
2
BOAVENTURA, Josuel dos Santos. Revelação Cristã e Culturas Afro-Brasileiras à Luz da
Teologia de Andrés Torres Queiruga. Porto Alegre: PUCRS, 2012. p. 84.
3
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Nesse momento, a Antropologia busca o olhar que normalmente não vemos na História e,
quando tradicionalmente a História tem sido interpretada pelo mundo da escrita e por um
conjunto social que vai determinando seu olhar, a Antropologia vai buscando compreender o
ser humano dentro do seu tempo, contextualizando dentro de cada grupo social, independente
da escrita, mas a busca da interpretação de cada grupo.
Possivelmente esse diálogo entre as ciências, hoje Antropologia e História vai ganhando
diferentes formas e talvez outras ciências, oras diacrônicas e oras sincrônicas, podem levar a
Humanidade a uma melhor compreensão de si mesma, cada indivíduo consigo mesmo, assim
como com o coletivo e, volto a falar, da conexão humana com o cosmos.
Enquanto na História vai se seguindo uma análise de um grupo de sociedades que foi se
proclamando “padrão”, todas as culturas ou sociedades não pertencentes a esse grupo, vão
sendo entendidos a partir do olhar “padrão”. Já a Antropologia estuda o ser humano em seu
grupo social, considerando o que ele representa em seu contexto e o que este representa para
ele. “Antropólogo estuda o ser humano em coletividades específicas” 3(SA JUNIOR, 2022).
Com a intensificação de se estudar as sociedades do ponto de vista de cada uma delas levará o
ser humano a uma compreensão mais abrangente e trazer novos entendimentos históricos,
muitas vezes já endurecidos com os olhares tradicionais. E essa é uma contribuição da
Antropologia, que por sua vez, se utiliza dos saberes históricos para a construção da
interpretação das sociedades. “A história é construída tanto no interior de uma sociedade
como entre sociedades que repõem estruturas passadas na orquestração do presente”
4
(SCHWARCZ, 2005, p. 128).
3
SA JUNIOR, M. T. Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras: aula. [23 de março, 2022].
UFMS, Campo Grande.
4
SCHWARCZ, Lilia K. In: Novos Estudos. Número 72, Jul 2005. p. 128.
4
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Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras
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É evidente que um povo carrega sua história, cultura, religião e tudo mais, além de seu código
genético. Muitas vezes a interpretação mais óbvia é associar características a uma cultura ou
religião. De certa forma, é comum criar um estereótipo, pois o mesmo contribui para um
raciocínio e satisfaz definições pré determinadas. As características são diversas e, antes de
comentar sobre as “raças” humanas, podem ser políticas, ideológicas, geográficas, dentre
outras. Assim, recordo que certa vez (Século XXI) um turista brasileiro ao visitar um destino
turístico também brasileiro, pergunta a origem de outra turista, jovem mulher de pele clara,
cabelos louros e olhos claros e, a mesma responde ser da África. O brasileiro espantado
questiona, como se ela não soubesse de onde fosse, que a mesma não era de lá. Mesmo a
jovem africana repetindo que era de lá, o mesmo ainda insistiu que os pais dela não eram de
lá. Ela afirmou que seus pais também eram africanos. O questionador, ainda duvidando, não
conseguia entender ser possível ter na África pessoas com a fisionomia da jovem turista.
Percebe-se entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX uma
preocupação a respeito da miscigenação que além das misturas genéticas traziam consigo o
sincretismo religioso. “(...) longe do negro se converter ao catolicismo, é o catolicismo quem
vem recebendo a imensa influência do fetichismo e se adapta ao animismo” 5(RODRIGUES
apud SCHWARCZ, 2007, p. 882). E a preocupação bem relatada pelo médico Raimundo Nina
Rodrigues, também estudioso de diversas ciências, é que em suas observações, mais
propriamente das pessoas de origem africana, os escravos ou descendentes dos mesmos,
percebendo suas crenças, definia como uma certa histeria e que acreditava ser um fator
genético.
“Sua tese geral era clara: os povos mestiços seriam mais dados ao desequilíbrio e,
por isso, fadados a vícios e degenerações. Mais ainda: o país todo estaria condenado
ao fracasso em função da mestiçagem extremada de suas raças” 6(RODRIGUES
apud SCHWARCZ, 2007, p. 883).
E não apenas Nina Rodrigues, mas também um pensamento que foi se disseminando pelos
anos finais do século XIX e vai entrando no século seguinte é a crença entorno do eugenismo,
como vemos também pelo pensamento de Louis Agassiz em 1865:
5
RODRIGUES apud SCHWARCZ. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. In: Revista de
Antropologia, V. 50 Nº 2. São Paulo: USP, 2007. p. 882.
6
____________ . p. 883.
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“Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui
do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as
melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido,
híbrido, deficiente em energia física e mental” (SCHWARCZ apud AGASSIZ, 1993,
p. 13)
“(...) “Não se casem com mulheres dessas nações, pois desviarão seu coração para os
deuses delas”. E, no entanto, Salomão amou essas mulheres. No total, casou-se com
setecentas princesas e teve trezentas concubinas. E elas desviaram seu coração do
Senhor. Quando Salomão era idoso, elas o induziram a adorar outros deuses em vez
de ser inteiramente fiel ao Senhor” 7(1 REIS 11:2-4).
E sobre essa influência das religiões afro-brasileiras em diversas camadas sociais, Lilia
Schwarcz também comenta ao analisar o pensamento de Nina Rodrigues: “(…) o sincretismo
religioso e a constatação de que a crença encontra-se generalizada, chegando até a elite”
9
(RODRIGUES apud SCHWARCZ, 2007, p. 885).
7
BÍBLIA NOVA VERSÃO TRANSFORMADORA. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.
8
RODRIGUES, R.N. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. P55. Bahia, 2021. p. 46.
9
RODRIGUES apud SCHWARCZ. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. In: Revista de
Antropologia, V. 50 Nº 2. São Paulo: USP, 2007. p. 885.
6
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Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras
Marcelo Gil da Silva
Roger Bastide, francês, chega ao Brasil e se depara com uma realidade totalmente diferente
do que se via na Europa e, no aspecto sociológico vai buscando entender, ainda que
etnograficamente, essa cultura miscigenada brasileira. Vai percebendo que o negro, o mestiço,
ou seja, os africanos ou seus descendentes, trazem suas crenças e nota-se em alguns grupos
uma predominância do sistema de crenças dos Nagô (falantes do Iorubá). Assim, Bastide
ressalta uma origem de religião “pura” desses grupos afro-brasileiros e, a o desenvolvimento
de novas crenças com essas bases, porém, já misturadas com novos pensares e menos
institucionalizadas. Faz uma distinção do que seria a religião africana e a “magia”, essas
novas formas surgentes.
“[...] a religião afro-brasileira tende, em algumas grandes cidades como Rio e São
Paulo, devido à influência da desorganização urbana, a tomar, cada vez mais, um
aspecto de magia, seja para o bem, seja para o mal. [...] A macumba do Rio é um
exemplo frisante. Portanto,[...] por toda parte em que a religião africana tende a se
manter como religião verdadeira, o sincretismo tem a forma de um sistema de
correspondências classificadoras; por toda parte em que é magia, toma a forma de
um sistema acumulador de elementos tomados a todos os cultos, mas
desempenhando todos a mesma função, agindo todos segundo o mesmo princípio de
eficiência” 10(BASTIDE apud OLIVEIRA, 2008, p. 92).
Bastide vai associando a construção da sociedade brasileira com essa transição cultural do
povo, com toda a miscigenação e as somatórias culturais e religiosas. Percebe a sociedade
brasileira como uma sociedade rural e transitória para uma urbanizada e um momento de
fronteira entre ambas, em que se encontra o nascimento de crenças, que ele vai definindo
como “magia”, por ser já desviado do tradicional da origem dessas crenças.
Continuando seu olhar, Roger Bastide vê como ele mesmo retrata, “homens de cor” vão sendo
marginalizadas pela “elite branca”, como Bastide comenta sobre a contração de empregos
domésticos: “(...) até êstes último anos em anúncios de jornais, do tipo “não se aceitam
empregados de côr”, ao mesmo tempo em que as casas aristocráticas preferem mulheres
brancas ou criados japoneses” 11
(BASTIDE, 1971, p. 420). e isso implica numa menor
participação na economia como um todo, surgindo zonas marginais nas cidades, concentrando
10
BASTIDE, Roger apud OLIVEIRA, A. S. Roger Bastide e a Identidade Nagocêntrica. In: Sankofa.
Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Número 2. São Paulo: USP, Dez
2005, p. 92.
11
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. Tradução de Maria Eloísa Capellato e Olívia
Krahenbühl. Segunda Edição. São Paulo: Livraria Editora Pioneira, 1971, p. 421.
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as “pessoas de cor” e ao mesmo tempo, com suas bagagens culturais e religiosas e surgem
religiões, que de raízes africanas como o Candomblé, a Macumba, a Quimbanda e a
Umbanda.
Essas novas religiões vão sendo as religiões dos “excluídos”, de certa forma, os
marginalizados sociais, pelo próprio pensamento tradicional da elite branca.
O SEGREDO DA MACUMBA
O livro trata como personagem central, Exu e percebe-se uma visão marxista no que tange o
aspecto revolucionário, pelo clamor das periferias, dos excluídos, dos oprimidos, através da
sociedade capitalista. E este Exu, interpretado de diferentes formas dentro das construções das
religiões afro-brasileiras, porém a representação e necessidade de se contrapor à opressão de
diversas formas.
Essa contracultura, manifestada aqui pela macumba, vem a se opor a um sistema de opressão,
já oriundo de outros tempos, mas tratando-se da formação do capitalismo e bem retratado por
Karl Marx, que faz suas previsões para muitas décadas no futuro, é também analisada por
Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz, percebendo que Umbanda se rende e aparentemente
termina por servir aos propósitos do sistema de opressão, enquanto a Quimbanda vai sendo
essa contracultura, nascendo dos anseios das camadas mais oprimidas da sociedade.
Lapassade e Luz afirmam: “Quimbanda dá continuação à firme vontade de manter as antigas
tradições africanas, enquanto Umbanda, ao contrário, procura romper com o caráter não
civilizado dessas práticas, o que se deve a influência do homem branco, demasiado instruído
para admiti-las” 13(LAPASSADE & LUZ, 1972, p. 92).
12
LAPASSADE, Georges & LUZ, Marco Aurélio. O Segredo da Macumba. Editora Paz e Terra. São
Paulo: 1972, p. XV.
13
____________ . p. 92.
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GUERRA DE ORIXÁ
Muito mais amplo do que o clichê “conflito entre bem e mal”, aproveitando o pensamento da
Yvonne Maggie, "A demanda era uma guerra de orixá, mas tal guerra estabelecia-se a partir
dos homens" 14
(MAGGIE, 2001, p. 45), embora referindo-se a um caso específico, posso
compreender como uma amostra dos conflitos no espaço religioso, como muitas vezes nos
espaços sociais.
O ser humano procura seus deuses, seja como os entendem, que sejam orixás ou exus, para
suas próprias demandas e se e quando atendido, ocorre o que se entende por bem ou por mal
ou ambos, pela ótica humana e, que não necessariamente é a ótica dos seres espirituais, como
percebe-se o relato de Yvonne Maggie, ao receber um esclarecimento de seu aluno Mário, que
havia sido presidente do terreiro objeto de estudo dela:
“A demanda é uma guerra, mas não é com orixá de luz. Porque este orixá não faz
demanda. A matéria pede, mas os orixás usam um espírito sem luz. (...) O que é mal
para você talvez não seja para ele. Porque eu peço uma coisa de mal para você e
penso que vai fazer mal mas, na realidade, pode causar bem a você” 15(MAGGIE,
2001, p. 74) .
Na prática, o ser humano, em sua busca espiritual, vai projetando sua interpretação de mundo,
conforme o contexto social em que vive nas interpretações religiosas e aparecem os conflitos,
pelas próprias ações humanas, o que reflete num conflito espiritual, que termina por uma
disputa de poder, para se fazer prevalecer uma ou outra interpretação que satisfaça os anseios
da comunidade.
14
MAGGIE, Yvonne. Guerra de Orixá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 3ª Edição, 2001, p. 45.
15
____________ . p. 74.
9
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Já se percebe pelo título do livro de Beatriz Góis Dantas, “Vovó Nagô e Papai Branco: usos e
abusos da África no Brasil”, uma “mistura” de uma tradição ancestral nagô, oriunda da África
e a influência europeia (papai branco). Porém, é claro que não se resume o livro pela capa,
nem pelo título e, nesse caso, uma leitura riquíssima para uma compreensão antropológica da
diversidade cultural brasileira. Vale também entender que o título remete também à uma
personagem central, Mãe Bilina, “(...) nascida Umbelina de Araújo, e finada chefe do terreiro
"nagô" mais tradicional de Laranjeiras: Terreiro de Santa Bárbara Virgem” 16(FRY, 1988,
p.15). Sua biografia, conforme o prefácio de Peter Fry no livro de Beatriz Dantas:
Aproveitando que a essência da pesquisa de Beatriz Góis Dantas, conforme seu livro, já
mencionado, trata de tradição religiosa e por fim, cultural, com origens africanas e vai
aceitando uma influência de origem europeia, por sua vez do cristianismo católico, ao mesmo
tempo que há um diálogo entre o candomblé nagô e o catolicismo. De certa forma, a aceitação
natural de que ser católico não impede de buscar outras culturas, adeptos do candomblé nagô
não percebiam uma concorrência de fiéis, enquanto o diálogo com outras crenças ou
interpretações já não seria possível, provocando uma impureza religiosa.
1988, p. 135).
16
FRY, Peter. Prefácio In: DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da
África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 15.
17
____________ . p. 16.
18
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 135.
10
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terreiro estudado por Beatriz Dantas (Terreiro de Santa Bárbara Virgem), tendo em vista essa
raiz nagô africana, constrói-se uma imagem de que esse candomblé seria puro. Assim, muitos
intelectuais, talvez acreditando estarem influenciando, também eram influenciados e, foi se
fortalecendo esse culto nagô como “oficial”, ou “legítimo”.
Vemos que forma-se uma imagem da África, que pode não ser a originária, mas vai ficando
no imaginário e vai se percebendo uma distinção entre a África e a África inventada,
conforme a Patrícia Birman relata:
19
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 232.
20
BIRMAN, Patrícia. O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos
afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.2: 75-92, 1997. p. 79
21
____________ . p. 82.
11
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O ponto é que o que temos de informação intelectual é muitas vezes influenciada pela própria
obtenção da informação. A pesquisa vai procurar defender uma hipótese ou uma ideia, que
por sua vez é influência e influencia uma ideologia e, vai se tendo uma imagem que pode ou
não ser reflexo do objeto. Dessa forma, como comentado pela Patrícia Birman, percebe-se
duas áfricas:
DIVERSIDADE E INFLUÊNCIA
22
BIRMAN, Patrícia. O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos
afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.2: 75-92, 1997. p. 83
23
____________ . p. 82.
24
SAHLINS apud BIRMAN, Patrícia. O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas
dos estudos afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.2: 75-92, 1997. p. 89
12
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Muitas vezes, um olhar etnográfico ou histórico nos remete a uma análise mais cronológica ou
mesmo se utilizando de padrões que consideramos “normais” de acordo com a nossa cultura,
ou melhor dizendo, a cultura de quem analisa. É evidente ser inevitável separar o pesquisador
da pesquisa e, até mesmo o autor da obra, pois são as lentes que olhamos que vão
determinando o que é visto. Claro que desse modo, podemos até questionar a realidade, pois
de certa forma, vamos a criando através de nossas próprias expectativas, ou da expectativa de
quem pesquisa.
Para que não sejamos influenciados pela nossa vontade de provar nossas teses e, com isso,
encontramos os argumentos que as sustentam, mas com base nas lentes que utilizamos, é bom
olhar além do que acreditamos ser a nossa cultura, ou a cultura do pesquisador. E isso talvez
seja a antropologia, procurar entender a cultura de um grupo dentro desse grupo e suas
relações com demais grupos.
“Os negros trazidos para o Brasil a fim de constituírem uma força de trabalho
escrava procediam de diferentes regiões da África, formavam parte de diversos
povos e etnias; nessa situação viram-se colocados elementos oriundos de várias
sociedades, de distintas culturas” 25(ORDEP, 1995, p. 88).
Apesar desses povos africanos terem vindo ao Brasil para serem escravos, eles, com suas
tradições, suas bagagens culturais e, podemos dizer, religiosas, vão influenciando o povo que
os oprimia de tal forma, que os mesmo passaram a praticar suas crenças e ao mesmo tempo
moldá-las, construindo assim religiões afro-brasileiras, as quais àquelas que se inclinavam e
ao mesmo tempo caiam na simpatia da elite (branca) brasileira e, até mesmo, descritas de
forma a parecerem “oficiais”, passam a ser aceitas e não sofrem perseguições, que vou tratar
aqui, de políticas.
De acordo com Beatriz Dantas,“os terreiros mais tradicionais, objeto de estudo dos
antropólogos, centros da “verdadeira religião”, aos quais eles emprestavam sua
proteção, conseguiam ficar a salvo da repressão policial, que incidia mais violenta
sobre os “impuros”, não valorizados” 26(ORDEP, 1995, p. 52).
25
SERRA, Ordep. Águas do Rei. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 88.
26
SERRA, Ordep. Águas do Rei. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 52.
13
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Pesquisadores, de certa forma, escolhiam terreiros que consideravam mais representantes dos
cultos originais e influenciados e influenciando, se tem uma visão talvez um pouco pobre da
cultura afro-brasileira. Refletindo à época em que se começa a estudar, observando o
afloramento das religiões afro-brasileiras, especificamente o Século XIX, como resultado
também de séculos anteriores, mas focando nesse, o que predominava no mundo ocidental e
no próprio Brasil foi a construção de uma sociedade capitalista com base na segregação
socioeconômica, através da exploração do trabalho, ora escrava, ora assalariada e desde que
se mantivesse o status quo, ricos ricos, pobres pobres, poderia haver a religião que houvesse,
pois a mesma seria para preencher a alma e ao mesmo tempo termina por servir para a
manutenção do sistema (capitalismo).
Uma forma de compreender o Brasil, especialmente o contraste social que vai além do
entendimento ricos x pobres, mas tratando-se de justiça, ou da própria injustiça, o que se
acentua através do poder econômico, considerando os aspectos religiosos e as religiões
afro-brasileiras, pelas suas características de atingirem com profundidade os anseios
cotidianos de quem as procura ou pratica é que há uma figura central. Tal figura, conforme a
minha interpretação do pensamento da Stefania Capone, é Exu:
Exu encarna o herói ambíguo, o trickster cujas armas são a esperteza, a mobilidade,
a sorte. Ora, a sociedade brasileira é uma sociedade ambígua, estruturada em função
de uma pequena elite. (...) Exu representa, então, uma solução possível para o
conflito entre um ideal irrealizável e uma realidade em que as possibilidades de
ascensão social são muito reduzidas. (...) O Exu africano, portanto, transforma-se
para se adaptar a uma nova realidade. Ele passa a ser brasileiro! 27(CAPONE, 2004,
p. 26).
O papel de Exu foi se consolidando pelo tempo e vale notar que acontecimentos anteriores,
desde tempos coloniais vão moldando o pensar dos novos americanos (cultura não nativa do
continente, mas da cultura sincrética que foi se moldando). Como relatado pela Capone: “Nos
séculos XVI e XVII, diabos, diabas e diabinhos povoaram a vida cotidiana dos colonos, como
se fossem divindades domésticas e inofensivas” 28(CAPONE, 2004, p. 95). Mais adiante esses
“seres” europeus invocados vão modelando um novo pensar, mas que na essência,
representavam a quem se recorria para os problemas diários, como Stefania comenta mais
adiante: “Esse diabo, que fazia tanto bem quanto mal, protetor e "padrinho", encontrava com
facilidade seu correspondente nas crenças dos escravos africanos ligadas a Exu”
29
(CAPONE, 2004, p. 95).
Ouso interpretar, porém uma representatividade parcial, que “Exu e Pombagira seu
correspondente feminino (...)” 30(CAPONE, 2004, p. 121), considerando alguns autores aqui
já mencionados, como também breves diálogos, em especial com Exu, que tais entidades são
rebeldes, mas que a origem de sua rebeldia vem da busca dos oprimidos pelos seus anseios,
muitas vezes a libertação de injustiças.
Temos assim não uma definição de Exu sendo do bem ou do mal, mas sendo um “vingador”
daquele que o invoca para “resolver” os problemas de quem o procura, ainda que se trate algo
mesquinho. Porém num universo mais amplo, com um olhar mais abrangente, há um espírito
que é a soma dos anseios populares, que representa a libertação dos oprimidos, ou seja, uma
personificação da justiça, ou o que as camadas sociais não pertencentes às elites acreditam ser
justiça.
Apesar de vermos as entidades dos cultos afro-brasileiros atenderem aos anseios humanos e,
especialmente ao se tratar do cotidiano, a invocação de Exu ou Pombagira vai além dos
interesses individuais, mas nota-se uma energia entorno de uma representação do que se
entende por justiça.
28
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Pallas/Contra Capa , 2004, p. 95.
29
__________ p. 95.
30
__________ p. 121.
15
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ajuda a avançar. (...) O Exu encarna com perfeição esse mediador ideal: ele é o
"compadre" ao qual o médium deve seu sucesso 31(CAPONE, 2004, 177).
Temos visto que os ataques às religiões afro-brasileiras são realidade e, não somente no que
tange a religião, mas à cultura afro-brasileira. Considerando a “ (...) recente decisão do
Ministério da Educação pela inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira” no
currículo oficial da rede de ensino, livros didáticos abordando este assunto começam a ser
produzidos” (SILVA. 2007, p. 219), quem não percebia o preconceito e posso dizer até
33
racismo, não deixou notar ou até já se pegou sendo a si próprio, preconceituoso. Claro,
mesmo que haja um certo predomínio da cultura evangélica, isso sem tratar do lado mais
agressivo do neopentecostalismo, a “queima de livros”, ou seja, esconder o que não deseja
ver, não faz com que o “escondido” deixe de existir. Não se percebe que estudar a história e
culturas do próprio país é importante para conhecer a sociedade, o meio em que se vive e
assim, conhecer a si mesmo. E com as culturas encontram-se as crenças, as religiões e não é
31
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas/Contra Capa , 2004, p. 177.
32
SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do
ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de
Janeiro, v.13, n. 1, p. 207-236, 2007, p. 207.
33
__________ p. 219.
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DOI: 10.46898/home.trab2022.31
Anais do Fórum Nacional de Publicações-Ano I, Brasil, 2022
ISBN: 978-65-84897-00-7
Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras
Marcelo Gil da Silva
necessário praticar ou concordar com cada uma delas para estudá-las e, saber que tudo
compôs um propósito histórico-cultural na formação da sociedade brasileira.
Parece até haver um “espírito” que guia as pessoas a tomarem ações que interferem nas
outras, de forma boa ou ruim, o que me leva a questionar se é o ser humano que invoca seus
deuses e, os mesmos o atendem, ou, iludidos, os ser humano que atende aos interesses desses
deuses.
34
FRY apud SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras:
Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo.
Mana, Rio de Janeiro, v.13, n. 1, p. 207-236, 2007, p. 225.
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ISBN: 978-65-84897-00-7
Para que tais espíritos entrem no corpo das pessoas como exus e saiam como
demônios, é preciso uma operação em que os dois sistemas de referência
(neopentecostal e afro-brasileiro) se sobreponham e forneçam previamente seus
significados, um a serviço da eficácia simbólica do outro. Caso contrário, não
somente é impossível responder se os orixás, os caboclos, os guias são deuses ou
demônios, como a própria pergunta não faz sentido. Antes que os termos sejam
trocados de lugar de um sistema para outro, é preciso estabelecer equivalências entre
eles a partir dos lugares que ocupam em seus próprios sistemas e nos sistemas que os
recebem 35(SILVA, 2007, p. 227).
CONSIDERAÇÕES
Epistemologias das religiões afro-brasileiras aqui comentadas nos levam a reflexões para
contribuir na compreensão, ainda que de forma singela, da construção de uma sociedade
brasileira, especificamente desde o Século XIX, considerando aspectos sociais, políticos,
econômicos e religiosos. Aspectos que moldam a vida da sociedade brasileira e esse anseio,
talvez utópico, da libertação das camadas mais pobres e a busca por justiça pelos mesmos, o
que talvez nos leva a refletir se quem venceu o desfile do Carnaval 2022 foi a escola de samba
“Acadêmicos da Grande Rio” ou o tema escolhido pela mesma, “Exu”, representante no
anseio popular.
REFERÊNCIAS
35
SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do
ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de
Janeiro, v.13, n. 1, p. 207-236, 2007, p. 227.
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