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Anais do Fórum Nacional de Publicações-Ano I, Brasil, 2022

ISBN: 978-65-84897-00-7

EPISTEMOLOGIAS DAS RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

MARCELO GIL DA SILVA

Bonito 2022

DOI: 10.46898/home.trab2022.31
Anais do Fórum Nacional de Publicações-Ano I, Brasil, 2022
ISBN: 978-65-84897-00-7

Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras


Marcelo Gil da Silva

Resumo

O presente trabalho é uma reflexão originária a partir da disciplina “Epistemologias das


Religiões Afro-Brasileiras”, ministrada pelo Prof. Dr. Mario Teixeira de Sá Junior, inserida no
Programa de Pós Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. A citação de diversos autores foi essencial para a construção de um
entendimento geral, não apenas religioso, mas para uma compreensão da sociedade brasileira
e como ela vem se moldando a partir do Século XIX. Tal compreensão social, abrangendo
aspectos políticos, econômicos e religiosos que nos levam a interpretar um pouco mais da
história e cultura brasileira, especialmente citando um olhar marxista, quando da necessidade
de expor marginalizados e as diferenças de classes, como a busca de uma libertação e a
procura por quem mostra um possível caminho à mesma. Coloco um tempero de minhas
experiências e um olhar de meu conhecimento também na área teológica.

Palavras-chave

Religiões afro-brasileiras; umbanda; quimbanda; candomblé; exu; antropologia; sociedade.

Abstract

The present work is a reflection originating from the discipline “Epistemologies of


Afro-Brazilian Religions”, taught by Prof. Dr. Mario Teixeira de Sá Junior, inserted in the
Postgraduate Program in Social Anthropology at the Federal University of Mato Grosso do
Sul. The citation of several authors was essential for the construction of a general
understanding, not only religious, but for an understanding of Brazilian society and how it has
been shaped since the 19th century. Such social understanding, encompassing political,
economic and religious aspects that lead us to interpret a little more of Brazilian history and
culture, especially citing a Marxist perspective, when the need to expose marginalized and
class differences, such as the search for liberation and the search for someone who shows a
possible path to it. I add a flavor of my experiences and a look at my knowledge also in the
theological area.

Keywords

Afro-Brazilian religions; umbanda; chimbanda; candomblé; exu; anthropology; society.

2
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Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras
Marcelo Gil da Silva

INTRODUÇÃO

Singelamente, o panorama geral das religiões afro-brasileiras tem como matriz a cultura e a
própria religiosidade africana. Assim, com a vinda de pessoas da África para o Brasil,
sabidamente um deslocamento forçado e dentro de uma doutrina de escravidão, traz também
essas matrizes, que em solo brasileiro se depara com religiões europeias e indígenas e,
inevitavelmente forma-se o sincretismo religioso. “(...) há a constante necessidade por parte
dos estudos antropológicos e sociológicos de definir o que é o sincretismo para entender as
transformações no campo das religiosidades afro-brasileiras” 1(SILVEIRA e COSTA, 2013,
p. 225).

Conforme a estrutura religiosa da matriz africana, lembrando que difere em alguns aspectos,
tendo em vista a própria diversidade cultural do vasto continente africano e, o Brasil ter
recebido pessoas de diversas localidades desse continente, há características que fazem
paralelos com as religiões trazidas pelos europeus e dos nativos brasileiros (índios) “(...) as
culturas religiosas negras, que tendo experimentado diversos processos sincréticos na África,
assimilaram no Brasil, práticas cristãs, indígenas e espíritas, possibilitando novas
identidades religiosas com diferentes fases e direções” 2(BOAVENTURA, 2012, p. 84).

Tem-se a estrutura básica das religiões afro-brasileiras alguns aspectos que podemos
denominar como principais, sendo o culto ao espírito criador, a crença aos espíritos naturais e
aos espíritos ancestrais. E isso não fica apenas para as religiões afro-brasileiras, mas também
encontramos esses aspectos, ainda que de formas sutis, em muitas religiões ou culturas.
Percebe-se que há um forte paralelo com o espiritismo kardecista, tendo em vista a
comunicação com os espíritos ancestrais e, paralelamente podemos também colocar que os
espíritos naturais revelados nas religiões afro-brasileiras podem ser os espíritos evoluídos,
conforme o kardecismo e, realmente encontramos em todas as religiões do mundo a crença de
um criador, em que tudo tem um princípio e o princípio se torna ao criador.

1
SILVEIRA, Allice Toledo Lima da; COSTA, Alexandre Ferreira da. Para Repensar o Sincretismo
Religioso: Palavra, Significação e Conceito. In: Intersecções, Edição 11, Ano 6, Número 3. Jundiaí:
Centro Universitário Padre Anchieta, Nov 2013. p. 225.
2
BOAVENTURA, Josuel dos Santos. Revelação Cristã e Culturas Afro-Brasileiras à Luz da
Teologia de Andrés Torres Queiruga. Porto Alegre: PUCRS, 2012. p. 84.
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Marcelo Gil da Silva

QUESTÕES DE FRONTEIRA - Sobre uma antropologia da história

Sempre acreditei em compreender a História de uma forma mais abrangente e, se oras a


cronologia importa, às vezes nos limita a uma interpretação mais ampla, porém, também
analisar eventos dentro de uma sequência que os desencadearam, como contexto e, não
obstante, o próprio tempo. E ainda que se tente desprender dos preconceitos, cada um olhará
com o seu próprio ser e assim, cada ciência examina à sua forma, mas a junção das ciências,
ou posso dizer, a sincronia das mesmas, torna-se necessária para o anseio humano de entender
melhor a si mesmo, sua atuação com seus pares e sua conexão com o cosmos.

Nesse momento, a Antropologia busca o olhar que normalmente não vemos na História e,
quando tradicionalmente a História tem sido interpretada pelo mundo da escrita e por um
conjunto social que vai determinando seu olhar, a Antropologia vai buscando compreender o
ser humano dentro do seu tempo, contextualizando dentro de cada grupo social, independente
da escrita, mas a busca da interpretação de cada grupo.

Possivelmente esse diálogo entre as ciências, hoje Antropologia e História vai ganhando
diferentes formas e talvez outras ciências, oras diacrônicas e oras sincrônicas, podem levar a
Humanidade a uma melhor compreensão de si mesma, cada indivíduo consigo mesmo, assim
como com o coletivo e, volto a falar, da conexão humana com o cosmos.

Enquanto na História vai se seguindo uma análise de um grupo de sociedades que foi se
proclamando “padrão”, todas as culturas ou sociedades não pertencentes a esse grupo, vão
sendo entendidos a partir do olhar “padrão”. Já a Antropologia estuda o ser humano em seu
grupo social, considerando o que ele representa em seu contexto e o que este representa para
ele. “Antropólogo estuda o ser humano em coletividades específicas” 3(SA JUNIOR, 2022).

Com a intensificação de se estudar as sociedades do ponto de vista de cada uma delas levará o
ser humano a uma compreensão mais abrangente e trazer novos entendimentos históricos,
muitas vezes já endurecidos com os olhares tradicionais. E essa é uma contribuição da
Antropologia, que por sua vez, se utiliza dos saberes históricos para a construção da
interpretação das sociedades. “A história é construída tanto no interior de uma sociedade
como entre sociedades que repõem estruturas passadas na orquestração do presente”
4
(SCHWARCZ, 2005, p. 128).

3
SA JUNIOR, M. T. Epistemologia das Religiões Afro-brasileiras: aula. [23 de março, 2022].
UFMS, Campo Grande.
4
SCHWARCZ, Lilia K. In: Novos Estudos. Número 72, Jul 2005. p. 128.
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RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES AFRO-BRASILEIRAS

É evidente que um povo carrega sua história, cultura, religião e tudo mais, além de seu código
genético. Muitas vezes a interpretação mais óbvia é associar características a uma cultura ou
religião. De certa forma, é comum criar um estereótipo, pois o mesmo contribui para um
raciocínio e satisfaz definições pré determinadas. As características são diversas e, antes de
comentar sobre as “raças” humanas, podem ser políticas, ideológicas, geográficas, dentre
outras. Assim, recordo que certa vez (Século XXI) um turista brasileiro ao visitar um destino
turístico também brasileiro, pergunta a origem de outra turista, jovem mulher de pele clara,
cabelos louros e olhos claros e, a mesma responde ser da África. O brasileiro espantado
questiona, como se ela não soubesse de onde fosse, que a mesma não era de lá. Mesmo a
jovem africana repetindo que era de lá, o mesmo ainda insistiu que os pais dela não eram de
lá. Ela afirmou que seus pais também eram africanos. O questionador, ainda duvidando, não
conseguia entender ser possível ter na África pessoas com a fisionomia da jovem turista.

Percebe-se entre a segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX uma
preocupação a respeito da miscigenação que além das misturas genéticas traziam consigo o
sincretismo religioso. “(...) longe do negro se converter ao catolicismo, é o catolicismo quem
vem recebendo a imensa influência do fetichismo e se adapta ao animismo” 5(RODRIGUES
apud SCHWARCZ, 2007, p. 882). E a preocupação bem relatada pelo médico Raimundo Nina
Rodrigues, também estudioso de diversas ciências, é que em suas observações, mais
propriamente das pessoas de origem africana, os escravos ou descendentes dos mesmos,
percebendo suas crenças, definia como uma certa histeria e que acreditava ser um fator
genético.

“Sua tese geral era clara: os povos mestiços seriam mais dados ao desequilíbrio e,
por isso, fadados a vícios e degenerações. Mais ainda: o país todo estaria condenado
ao fracasso em função da mestiçagem extremada de suas raças” 6(RODRIGUES
apud SCHWARCZ, 2007, p. 883).

E não apenas Nina Rodrigues, mas também um pensamento que foi se disseminando pelos
anos finais do século XIX e vai entrando no século seguinte é a crença entorno do eugenismo,
como vemos também pelo pensamento de Louis Agassiz em 1865:

5
RODRIGUES apud SCHWARCZ. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. In: Revista de
Antropologia, V. 50 Nº 2. São Paulo: USP, 2007. p. 882.
6
____________ . p. 883.
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“Não poderá negar a deterioração decorrente da amálgama das raças mais geral aqui
do que em qualquer outro país do mundo, e que vai apagando rapidamente as
melhores qualidades do branco, do negro e do índio deixando um tipo indefinido,
híbrido, deficiente em energia física e mental” (SCHWARCZ apud AGASSIZ, 1993,
p. 13)

Naturalmente em processos migratórios, o povo de um espaço passa a habitar um novo espaço


e leva consigo, sua cultura, sua forma de pensar, suas crenças e, deparando-se com novas
crenças, ideias e culturas, vai se adaptando à sua nova vida, ou a vida vai se adaptando ao seu
ser, ou um pouco dos dois. Porém, quando se trata de um coletivo, tendem-se os comuns a se
associarem, fazendo ganhar força suas tradições ancestrais, o que no aspecto religioso, vai
mais influenciando do que sendo influenciado. Vejamos o exemplo de um antigo Rei, o
Salomão:

“(...) “Não se casem com mulheres dessas nações, pois desviarão seu coração para os
deuses delas”. E, no entanto, Salomão amou essas mulheres. No total, casou-se com
setecentas princesas e teve trezentas concubinas. E elas desviaram seu coração do
Senhor. Quando Salomão era idoso, elas o induziram a adorar outros deuses em vez
de ser inteiramente fiel ao Senhor” 7(1 REIS 11:2-4).

Quando então no Brasil, essas populações oriundas da África, de ex-escravos ou seus


descendentes, mestiços ou não, procurando viver à sua maneira e convictos de suas crenças,
eram analisados do ponto de vista de uma cultura europeia, essas espiritualidades foram tidas
como histéricas e nocivas para a formação da sociedade brasileira e quanto mais tais
populações aumentassem, pelos seus descendentes “puros” ou mestiços, essa espiritualidade
ou “histeria” aumentaria. Apesar das religiões afro-brasileiras terem se iniciado com essas
populações, sua influência atingia também demais membros da sociedade, como relata Nina
Rodrigues: “(…) a crença supersticiosa nas práticas fetichistas por parte de pessoas
influentes, e poder-se-á fazer uma ideia do grau de proteção indireta de que hoje podem
dispor os feiticeiros” 8(RODRIGUES, 2021, p. 46).

E sobre essa influência das religiões afro-brasileiras em diversas camadas sociais, Lilia
Schwarcz também comenta ao analisar o pensamento de Nina Rodrigues: “(…) o sincretismo
religioso e a constatação de que a crença encontra-se generalizada, chegando até a elite”
9
(RODRIGUES apud SCHWARCZ, 2007, p. 885).
7
BÍBLIA NOVA VERSÃO TRANSFORMADORA. São Paulo: Mundo Cristão, 2016.
8
RODRIGUES, R.N. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. P55. Bahia, 2021. p. 46.
9
RODRIGUES apud SCHWARCZ. O Animismo Fetichista dos Negros Baianos. In: Revista de
Antropologia, V. 50 Nº 2. São Paulo: USP, 2007. p. 885.
6
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AS RELIGIÕES AFRICANAS NO BRASIL

Roger Bastide, francês, chega ao Brasil e se depara com uma realidade totalmente diferente
do que se via na Europa e, no aspecto sociológico vai buscando entender, ainda que
etnograficamente, essa cultura miscigenada brasileira. Vai percebendo que o negro, o mestiço,
ou seja, os africanos ou seus descendentes, trazem suas crenças e nota-se em alguns grupos
uma predominância do sistema de crenças dos Nagô (falantes do Iorubá). Assim, Bastide
ressalta uma origem de religião “pura” desses grupos afro-brasileiros e, a o desenvolvimento
de novas crenças com essas bases, porém, já misturadas com novos pensares e menos
institucionalizadas. Faz uma distinção do que seria a religião africana e a “magia”, essas
novas formas surgentes.

“[...] a religião afro-brasileira tende, em algumas grandes cidades como Rio e São
Paulo, devido à influência da desorganização urbana, a tomar, cada vez mais, um
aspecto de magia, seja para o bem, seja para o mal. [...] A macumba do Rio é um
exemplo frisante. Portanto,[...] por toda parte em que a religião africana tende a se
manter como religião verdadeira, o sincretismo tem a forma de um sistema de
correspondências classificadoras; por toda parte em que é magia, toma a forma de
um sistema acumulador de elementos tomados a todos os cultos, mas
desempenhando todos a mesma função, agindo todos segundo o mesmo princípio de
eficiência” 10(BASTIDE apud OLIVEIRA, 2008, p. 92).

Bastide vai associando a construção da sociedade brasileira com essa transição cultural do
povo, com toda a miscigenação e as somatórias culturais e religiosas. Percebe a sociedade
brasileira como uma sociedade rural e transitória para uma urbanizada e um momento de
fronteira entre ambas, em que se encontra o nascimento de crenças, que ele vai definindo
como “magia”, por ser já desviado do tradicional da origem dessas crenças.

Continuando seu olhar, Roger Bastide vê como ele mesmo retrata, “homens de cor” vão sendo
marginalizadas pela “elite branca”, como Bastide comenta sobre a contração de empregos
domésticos: “(...) até êstes último anos em anúncios de jornais, do tipo “não se aceitam
empregados de côr”, ao mesmo tempo em que as casas aristocráticas preferem mulheres
brancas ou criados japoneses” 11
(BASTIDE, 1971, p. 420). e isso implica numa menor
participação na economia como um todo, surgindo zonas marginais nas cidades, concentrando

10
BASTIDE, Roger apud OLIVEIRA, A. S. Roger Bastide e a Identidade Nagocêntrica. In: Sankofa.
Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Número 2. São Paulo: USP, Dez
2005, p. 92.
11
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. Tradução de Maria Eloísa Capellato e Olívia
Krahenbühl. Segunda Edição. São Paulo: Livraria Editora Pioneira, 1971, p. 421.
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as “pessoas de cor” e ao mesmo tempo, com suas bagagens culturais e religiosas e surgem
religiões, que de raízes africanas como o Candomblé, a Macumba, a Quimbanda e a
Umbanda.

Essas novas religiões vão sendo as religiões dos “excluídos”, de certa forma, os
marginalizados sociais, pelo próprio pensamento tradicional da elite branca.

O SEGREDO DA MACUMBA

O livro trata como personagem central, Exu e percebe-se uma visão marxista no que tange o
aspecto revolucionário, pelo clamor das periferias, dos excluídos, dos oprimidos, através da
sociedade capitalista. E este Exu, interpretado de diferentes formas dentro das construções das
religiões afro-brasileiras, porém a representação e necessidade de se contrapor à opressão de
diversas formas.

As diferentes formas de interpretar Exu difere por questões da crenças, do entendimento


religioso, mas também pelo aspecto socioeconômico regional, considerando as realidades das
localidades brasileiras, conforme Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz: “A condição do
negro e da cultura negra não é absolutamente a mesma na Bahia, no Rio e em São Paulo”
12
(LAPASSADE & LUZ, 1972, p. XV).

Essa contracultura, manifestada aqui pela macumba, vem a se opor a um sistema de opressão,
já oriundo de outros tempos, mas tratando-se da formação do capitalismo e bem retratado por
Karl Marx, que faz suas previsões para muitas décadas no futuro, é também analisada por
Georges Lapassade e Marco Aurélio Luz, percebendo que Umbanda se rende e aparentemente
termina por servir aos propósitos do sistema de opressão, enquanto a Quimbanda vai sendo
essa contracultura, nascendo dos anseios das camadas mais oprimidas da sociedade.
Lapassade e Luz afirmam: “Quimbanda dá continuação à firme vontade de manter as antigas
tradições africanas, enquanto Umbanda, ao contrário, procura romper com o caráter não
civilizado dessas práticas, o que se deve a influência do homem branco, demasiado instruído
para admiti-las” 13(LAPASSADE & LUZ, 1972, p. 92).

12
LAPASSADE, Georges & LUZ, Marco Aurélio. O Segredo da Macumba. Editora Paz e Terra. São
Paulo: 1972, p. XV.
13
____________ . p. 92.
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GUERRA DE ORIXÁ

Muito mais amplo do que o clichê “conflito entre bem e mal”, aproveitando o pensamento da
Yvonne Maggie, "A demanda era uma guerra de orixá, mas tal guerra estabelecia-se a partir
dos homens" 14
(MAGGIE, 2001, p. 45), embora referindo-se a um caso específico, posso
compreender como uma amostra dos conflitos no espaço religioso, como muitas vezes nos
espaços sociais.

Em qualquer organização, vai se estabelecendo uma hierarquia e as próprias religiões


afro-brasileiras provocam algumas rupturas quando observamos o contexto social no
surgimento das mesmas. Tais religiões vão nascendo pelo anseio da libertação, da
contracultura, de uma tentativa de se opor ao opressor, como vamos percebendo a construção
de uma religião bem brasileira, a Umbanda, mas ela mesma vai se institucionalizando, o que é
inerente de qualquer organização social, assim havendo uma hierarquia humana, mas que
reflete também no entendimento de uma hierarquia espiritual, nem sempre convergente entre
os umbandistas, especialmente percebidas nos diversos centros ou terreiros, considerando
também os aspectos culturais regionais.

O ser humano procura seus deuses, seja como os entendem, que sejam orixás ou exus, para
suas próprias demandas e se e quando atendido, ocorre o que se entende por bem ou por mal
ou ambos, pela ótica humana e, que não necessariamente é a ótica dos seres espirituais, como
percebe-se o relato de Yvonne Maggie, ao receber um esclarecimento de seu aluno Mário, que
havia sido presidente do terreiro objeto de estudo dela:

“A demanda é uma guerra, mas não é com orixá de luz. Porque este orixá não faz
demanda. A matéria pede, mas os orixás usam um espírito sem luz. (...) O que é mal
para você talvez não seja para ele. Porque eu peço uma coisa de mal para você e
penso que vai fazer mal mas, na realidade, pode causar bem a você” 15(MAGGIE,
2001, p. 74) .

Na prática, o ser humano, em sua busca espiritual, vai projetando sua interpretação de mundo,
conforme o contexto social em que vive nas interpretações religiosas e aparecem os conflitos,
pelas próprias ações humanas, o que reflete num conflito espiritual, que termina por uma
disputa de poder, para se fazer prevalecer uma ou outra interpretação que satisfaça os anseios
da comunidade.

14
MAGGIE, Yvonne. Guerra de Orixá. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 3ª Edição, 2001, p. 45.
15
____________ . p. 74.
9
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VOVÓ NAGÔ E PAPAI BRANCO

Já se percebe pelo título do livro de Beatriz Góis Dantas, “Vovó Nagô e Papai Branco: usos e
abusos da África no Brasil”, uma “mistura” de uma tradição ancestral nagô, oriunda da África
e a influência europeia (papai branco). Porém, é claro que não se resume o livro pela capa,
nem pelo título e, nesse caso, uma leitura riquíssima para uma compreensão antropológica da
diversidade cultural brasileira. Vale também entender que o título remete também à uma
personagem central, Mãe Bilina, “(...) nascida Umbelina de Araújo, e finada chefe do terreiro
"nagô" mais tradicional de Laranjeiras: Terreiro de Santa Bárbara Virgem” 16(FRY, 1988,
p.15). Sua biografia, conforme o prefácio de Peter Fry no livro de Beatriz Dantas:

“A vovó é Isméria, ou Birunqué, em nagô, e é africana. O papai é o tabelião Manoel


Joaquim de Araújo, em cuja casa é criada Bilina e onde trabalha sua mãe nos anos
que se seguem à abolição da escravidão. Bilina é criada católica e também sucessora
de sua avó Isméria na tradição religiosa africana” 17(FRY, 1988, p.16).

Aproveitando que a essência da pesquisa de Beatriz Góis Dantas, conforme seu livro, já
mencionado, trata de tradição religiosa e por fim, cultural, com origens africanas e vai
aceitando uma influência de origem europeia, por sua vez do cristianismo católico, ao mesmo
tempo que há um diálogo entre o candomblé nagô e o catolicismo. De certa forma, a aceitação
natural de que ser católico não impede de buscar outras culturas, adeptos do candomblé nagô
não percebiam uma concorrência de fiéis, enquanto o diálogo com outras crenças ou
interpretações já não seria possível, provocando uma impureza religiosa.

“À exceção do catolicismo, as demais formas religiosas são tidas como


incompatíveis com o Nagô, exigindo-se dos que ingressam no grupo de culto o
abandono da prática religiosa anterior. Mas o Nagô e o catolicismo não se excluem.
Ao contrário, ser nagô é condição que se acrescenta ao ser católico” 18(DANTAS,

1988, p. 135).

Intelectuais contribuíram e de forma inconsciente com a construção e significado da “pureza


nagô”, com as ideias já levantadas desde o Século XIX e se estendendo pelas primeiras
décadas do Século XX, de pureza de raças, ideologias e religiões. Foi se construindo que ao se
tratar das crenças africanas ou afro-brasileiras, o candomblé nagô e, mais especificamente do

16
FRY, Peter. Prefácio In: DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da
África no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1988, p. 15.
17
____________ . p. 16.
18
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 135.
10
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terreiro estudado por Beatriz Dantas (Terreiro de Santa Bárbara Virgem), tendo em vista essa
raiz nagô africana, constrói-se uma imagem de que esse candomblé seria puro. Assim, muitos
intelectuais, talvez acreditando estarem influenciando, também eram influenciados e, foi se
fortalecendo esse culto nagô como “oficial”, ou “legítimo”.

“Nessa dinâmica do feitiço-contra feitiço está subjacente a ideia de que a África


"pura" 'tem maior eficácia mágica que os "misturados", sendo capaz de desfazer os
trabalhos' feitos por aqueles. Essa avaliação externa do poder e da força' dos chefes
de terreiro é um elemento chave no sucesso dos mesmos, pois é através dessa
retórica que se atrai para o Candomblé as "pessoas de fora", responsáveis por parte
significativa das suas rendas” 19(DANTAS, 1988, p. 232).

O CAMPO DA NOSTALGIA E A RECUSA DA SAUDADE

Ao falar de religiões afro-brasileiras entramos num território inevitavelmente sincrético.


Fala-se de crenças, de cultura, de sociedades e, originárias de dois lugares, a África e o Brasil
e assim nos perguntamos: O que é a África e o que é o Brasil? “Antes de ser "religião",
portanto, os cultos de possessão no Brasil foram (e são até hoje) considerados
essencialmente locais de pertencimento, territórios e fontes identitárias da população dos
descendentes de escravos” 20(BIRMAN, 1997, p. 79).

Significar o Brasil é considerar a influência da África e, nesse contexto, os africanos e seus


descendentes, como toda as suas bagagens culturais e religiosas. Como também não
poderemos considerar que essa África ancestral também recebe a influência desse Brasil.

“Presença da África, maior ou menor, seria aquilo que definiria os cultos


afro-brasileiros. O sentido da África viria de uma imagem composta por traços
genéricos, facilmente relacionados com a noção de tradicionalidade que, por sua vez,
era associada aos terreiros supostamente tradicionais” 21(BIRMAN, 1997, p. 82).

Vemos que forma-se uma imagem da África, que pode não ser a originária, mas vai ficando
no imaginário e vai se percebendo uma distinção entre a África e a África inventada,
conforme a Patrícia Birman relata:

19
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de
Janeiro: Graal, 1988, p. 232.
20
BIRMAN, Patrícia. O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos
afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.2: 75-92, 1997. p. 79
21
____________ . p. 82.
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“Como o povo inventou a África, ou ainda como certos segmentos religiosos


fizeram das suas áfricas modos de poder e de relação com a sociedade inclusiva,
tomaram-se assim questões que orientaram inúmeros artigos que implicitamente
debatiam com a ideia de uma cultura tradicional e originária” 22(BIRMAN, 1997, p.
83).

O ponto é que o que temos de informação intelectual é muitas vezes influenciada pela própria
obtenção da informação. A pesquisa vai procurar defender uma hipótese ou uma ideia, que
por sua vez é influência e influencia uma ideologia e, vai se tendo uma imagem que pode ou
não ser reflexo do objeto. Dessa forma, como comentado pela Patrícia Birman, percebe-se
duas áfricas:

“Uma áfrica funcional, inventada, a serviço de interesses políticos locais e nacionais


se opôs, assim, a uma África originária, produto da tradição africana conservada
pelos negros no Brasil. Ambas falavam do povo, das identidades deste e das formas
pelas quais se estabelecia a relação entre este e a nação. Mas não falavam do mesmo
lugar, o que levou a uma mudança nas perguntas e nos resultados de pesquisa
apresentados” 23(BIRMAN, 1997, p. 82).

Aqui abordo e vou sintetizando o pensamento de muitos autores, considerando outros


capítulos e, percebo que vai além da temática afro-brasileira, pois o próprio método de
pesquisa influencia nos resultados. Assim temos uma riqueza muito maior, quando
consideramos as facetas de tudo, ou do que imaginamos do que é “tudo”. Birman cita
Marshall Sahlins, pois vem de encontro ao sincretismo que estamos comentando:

“Para compreendermos movimentos culturalistas contemporâneos, as lições da


sabedoria tradicional poderiam ser tomadas da seguinte forma: a defesa de uma
tradição implica alguma consciência, consciência da tradição implica alguma
invenção, a invenção da tradição implica alguma tradição” 24
(SAHLINS apud
BIRMAN, 1997, p.89).

DIVERSIDADE E INFLUÊNCIA

22
BIRMAN, Patrícia. O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas dos estudos
afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.2: 75-92, 1997. p. 83
23
____________ . p. 82.
24
SAHLINS apud BIRMAN, Patrícia. O campo da nostalgia e a recusa da saudade: temas e dilemas
dos estudos afro-brasileiros. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n.2: 75-92, 1997. p. 89
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Marcelo Gil da Silva

Muitas vezes, um olhar etnográfico ou histórico nos remete a uma análise mais cronológica ou
mesmo se utilizando de padrões que consideramos “normais” de acordo com a nossa cultura,
ou melhor dizendo, a cultura de quem analisa. É evidente ser inevitável separar o pesquisador
da pesquisa e, até mesmo o autor da obra, pois são as lentes que olhamos que vão
determinando o que é visto. Claro que desse modo, podemos até questionar a realidade, pois
de certa forma, vamos a criando através de nossas próprias expectativas, ou da expectativa de
quem pesquisa.

Para que não sejamos influenciados pela nossa vontade de provar nossas teses e, com isso,
encontramos os argumentos que as sustentam, mas com base nas lentes que utilizamos, é bom
olhar além do que acreditamos ser a nossa cultura, ou a cultura do pesquisador. E isso talvez
seja a antropologia, procurar entender a cultura de um grupo dentro desse grupo e suas
relações com demais grupos.

Ao falarmos de religiões afro-brasileiras, sabemos das origens culturais na África, composta


por uma diversidade de etnias e culturas e, que ganham um terreno fértil em terras brasileiras,
em contexto com todo um cenário político-social.

“Os negros trazidos para o Brasil a fim de constituírem uma força de trabalho
escrava procediam de diferentes regiões da África, formavam parte de diversos
povos e etnias; nessa situação viram-se colocados elementos oriundos de várias
sociedades, de distintas culturas” 25(ORDEP, 1995, p. 88).

Apesar desses povos africanos terem vindo ao Brasil para serem escravos, eles, com suas
tradições, suas bagagens culturais e, podemos dizer, religiosas, vão influenciando o povo que
os oprimia de tal forma, que os mesmo passaram a praticar suas crenças e ao mesmo tempo
moldá-las, construindo assim religiões afro-brasileiras, as quais àquelas que se inclinavam e
ao mesmo tempo caiam na simpatia da elite (branca) brasileira e, até mesmo, descritas de
forma a parecerem “oficiais”, passam a ser aceitas e não sofrem perseguições, que vou tratar
aqui, de políticas.

De acordo com Beatriz Dantas,“os terreiros mais tradicionais, objeto de estudo dos
antropólogos, centros da “verdadeira religião”, aos quais eles emprestavam sua
proteção, conseguiam ficar a salvo da repressão policial, que incidia mais violenta
sobre os “impuros”, não valorizados” 26(ORDEP, 1995, p. 52).

25
SERRA, Ordep. Águas do Rei. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 88.
26
SERRA, Ordep. Águas do Rei. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, p. 52.
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Pesquisadores, de certa forma, escolhiam terreiros que consideravam mais representantes dos
cultos originais e influenciados e influenciando, se tem uma visão talvez um pouco pobre da
cultura afro-brasileira. Refletindo à época em que se começa a estudar, observando o
afloramento das religiões afro-brasileiras, especificamente o Século XIX, como resultado
também de séculos anteriores, mas focando nesse, o que predominava no mundo ocidental e
no próprio Brasil foi a construção de uma sociedade capitalista com base na segregação
socioeconômica, através da exploração do trabalho, ora escrava, ora assalariada e desde que
se mantivesse o status quo, ricos ricos, pobres pobres, poderia haver a religião que houvesse,
pois a mesma seria para preencher a alma e ao mesmo tempo termina por servir para a
manutenção do sistema (capitalismo).

A BUSCA DA ÁFRICA NO CANDOMBLÉ

Uma forma de compreender o Brasil, especialmente o contraste social que vai além do
entendimento ricos x pobres, mas tratando-se de justiça, ou da própria injustiça, o que se
acentua através do poder econômico, considerando os aspectos religiosos e as religiões
afro-brasileiras, pelas suas características de atingirem com profundidade os anseios
cotidianos de quem as procura ou pratica é que há uma figura central. Tal figura, conforme a
minha interpretação do pensamento da Stefania Capone, é Exu:

Exu encarna o herói ambíguo, o trickster cujas armas são a esperteza, a mobilidade,
a sorte. Ora, a sociedade brasileira é uma sociedade ambígua, estruturada em função
de uma pequena elite. (...) Exu representa, então, uma solução possível para o
conflito entre um ideal irrealizável e uma realidade em que as possibilidades de
ascensão social são muito reduzidas. (...) O Exu africano, portanto, transforma-se
para se adaptar a uma nova realidade. Ele passa a ser brasileiro! 27(CAPONE, 2004,
p. 26).

O papel de Exu foi se consolidando pelo tempo e vale notar que acontecimentos anteriores,
desde tempos coloniais vão moldando o pensar dos novos americanos (cultura não nativa do
continente, mas da cultura sincrética que foi se moldando). Como relatado pela Capone: “Nos
séculos XVI e XVII, diabos, diabas e diabinhos povoaram a vida cotidiana dos colonos, como

CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de


27

Janeiro: Pallas/Contra Capa , 2004, p. 26.


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se fossem divindades domésticas e inofensivas” 28(CAPONE, 2004, p. 95). Mais adiante esses
“seres” europeus invocados vão modelando um novo pensar, mas que na essência,
representavam a quem se recorria para os problemas diários, como Stefania comenta mais
adiante: “Esse diabo, que fazia tanto bem quanto mal, protetor e "padrinho", encontrava com
facilidade seu correspondente nas crenças dos escravos africanos ligadas a Exu”
29
(CAPONE, 2004, p. 95).

Ouso interpretar, porém uma representatividade parcial, que “Exu e Pombagira seu
correspondente feminino (...)” 30(CAPONE, 2004, p. 121), considerando alguns autores aqui
já mencionados, como também breves diálogos, em especial com Exu, que tais entidades são
rebeldes, mas que a origem de sua rebeldia vem da busca dos oprimidos pelos seus anseios,
muitas vezes a libertação de injustiças.

Temos assim não uma definição de Exu sendo do bem ou do mal, mas sendo um “vingador”
daquele que o invoca para “resolver” os problemas de quem o procura, ainda que se trate algo
mesquinho. Porém num universo mais amplo, com um olhar mais abrangente, há um espírito
que é a soma dos anseios populares, que representa a libertação dos oprimidos, ou seja, uma
personificação da justiça, ou o que as camadas sociais não pertencentes às elites acreditam ser
justiça.

Apesar de vermos as entidades dos cultos afro-brasileiros atenderem aos anseios humanos e,
especialmente ao se tratar do cotidiano, a invocação de Exu ou Pombagira vai além dos
interesses individuais, mas nota-se uma energia entorno de uma representação do que se
entende por justiça.

E através de muitos desses interesses individuais traduz-se o anseio de prosperidade e a


percepção popular, de forma, que para muitos, haverá a necessidade de um mediador,
representado de várias formas em diferentes crenças, mas aqui nesse breve estudo, o Exu,
como comentado pela Stefania Capone:

Com efeito, raramente a ascensão social é considerada no Brasil o simples resultado


do trabalho. O brasileiro não fica rico trabalhando, e sim graças à sorte, à
intervenção de um padrinho (ou madrinha), de um padroeiro ou de alguém que o

28
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de
Janeiro: Pallas/Contra Capa , 2004, p. 95.
29
__________ p. 95.
30
__________ p. 121.
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ajuda a avançar. (...) O Exu encarna com perfeição esse mediador ideal: ele é o
"compadre" ao qual o médium deve seu sucesso 31(CAPONE, 2004, 177).

NEOPENTECOSTALISMO E RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS

Inevitável demonstrar a relação entre o neopentecostalismo e as religiões afro-brasileiras,


tendo em vista todo um contexto cultural e religioso brasileiro. Com uma população de
maioria cristã e conforme os censos, essa maioria católica, percebemos que muitas das
referências advém do pensamento na linha cristã. Falando do neopentecostalismo, acredito
que o pensamento de Vagner Gonçalves da Silva dá uma base para reflexão:

O neopentecostalismo, em conseqüência da crença de que é preciso eliminar a


presença e a ação do demônio no mundo, tem como característica classificar as
outras denominações religiosas como pouco engajadas nessa batalha, ou até mesmo
como espaços privilegiados da ação dos demônios, os quais se “disfarçariam” em
divindades cultuadas nesses sistemas. É o caso, sobretudo, das religiões
afro-brasileiras, cujos deuses, principalmente os exus e as pombagiras, são vistos
como manifestações dos demônios. Uma outra face desse processo é,
paradoxalmente, a “incorporação" da liturgia afro-brasileira nas práticas
neopentecostais de algumas igrejas. 32(SILVA, 2007, 207)

Temos visto que os ataques às religiões afro-brasileiras são realidade e, não somente no que
tange a religião, mas à cultura afro-brasileira. Considerando a “ (...) recente decisão do
Ministério da Educação pela inclusão da temática “História e Cultura Afro-brasileira” no
currículo oficial da rede de ensino, livros didáticos abordando este assunto começam a ser
produzidos” (SILVA. 2007, p. 219), quem não percebia o preconceito e posso dizer até
33

racismo, não deixou notar ou até já se pegou sendo a si próprio, preconceituoso. Claro,
mesmo que haja um certo predomínio da cultura evangélica, isso sem tratar do lado mais
agressivo do neopentecostalismo, a “queima de livros”, ou seja, esconder o que não deseja
ver, não faz com que o “escondido” deixe de existir. Não se percebe que estudar a história e
culturas do próprio país é importante para conhecer a sociedade, o meio em que se vive e
assim, conhecer a si mesmo. E com as culturas encontram-se as crenças, as religiões e não é

31
CAPONE, Stefania. A busca da África no candomblé: Tradição e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Pallas/Contra Capa , 2004, p. 177.
32
SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do
ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de
Janeiro, v.13, n. 1, p. 207-236, 2007, p. 207.
33
__________ p. 219.
16
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necessário praticar ou concordar com cada uma delas para estudá-las e, saber que tudo
compôs um propósito histórico-cultural na formação da sociedade brasileira.

As religiões afro-brasileiras refletem o próprio cotidiano e forma em que o indivíduo vê a


sociedade e a estrutura de poder, especificamente o estatal, como vemos a contribuição de
Peter Fry, citado por Silva:

Estado se reflete no plano do imaginário religioso: “Os despachantes e os políticos


locais fazem a mediação entre Estado e o homem comum, assim como os espíritos
da umbanda mediam sua relação com um Deus distante e desinteressado”. Por isso,
os “espíritos das trevas” (principalmente Exu), a quem se pede o favor por meio do
despacho, seriam tão fundamentais nesse sistema como os “espíritos de luz”: “Exu
da meia-noite/ Exu da encruzilhada/ O povo da umbanda/ Sem Exu não consegue
nada” 34(Fry apud Silva, 2007, 225).

Já tive experiência de presenciar o ataque neopentecostal e curiosamente não contra algum


terreiro de candomblé ou similar, mas contra outra igreja, que podemos tratar como
pentecostal. Há alguns anos, a igreja neopentecostal, com sede em minha cidade, organizou
cultos ao ar livre (nas ruas), para levar a mensagem evangélica até as pessoas que não iam até
o templo. A questão é que numa dessas, próximo à minha residência. montaram o palco,
sistema de som e realizaram um culto, com música, louvores, pregação e até uma lojinha
improvisada com produtos evangélicos (em outros tempos poderia aparecer alguém chutando
o “pau da barraca”, mas fica para uma outra história), exatamente em frente à outra igreja,
atrapalhando as celebrações desta última. Pensando ter havido um equívoco quanto à escolha
do local, exatamente uma semana depois, a igreja neopentecostal repete todo o ritual.
Membros da igreja que teve as celebrações comprometidas pela temporariamente itinerante se
indignaram juntamente com outras testemunhas. Já membros da igreja que promoveu o culto
ao ar livre consideraram a mesma estar em seu direito e se a outra igreja teve a celebração
comprometida, deveria ter participado do culto ao ar livre, se submetendo à outra.

Parece até haver um “espírito” que guia as pessoas a tomarem ações que interferem nas
outras, de forma boa ou ruim, o que me leva a questionar se é o ser humano que invoca seus
deuses e, os mesmos o atendem, ou, iludidos, os ser humano que atende aos interesses desses
deuses.

34
FRY apud SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras:
Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo.
Mana, Rio de Janeiro, v.13, n. 1, p. 207-236, 2007, p. 225.
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Tratando-se do neopentecostalismo, que ataca as religiões afro-brasileiras, com a tese de


“exorcizar” os demônios, que para tais religiões são entidades não necessariamente malígnas.

Para que tais espíritos entrem no corpo das pessoas como exus e saiam como
demônios, é preciso uma operação em que os dois sistemas de referência
(neopentecostal e afro-brasileiro) se sobreponham e forneçam previamente seus
significados, um a serviço da eficácia simbólica do outro. Caso contrário, não
somente é impossível responder se os orixás, os caboclos, os guias são deuses ou
demônios, como a própria pergunta não faz sentido. Antes que os termos sejam
trocados de lugar de um sistema para outro, é preciso estabelecer equivalências entre
eles a partir dos lugares que ocupam em seus próprios sistemas e nos sistemas que os
recebem 35(SILVA, 2007, p. 227).

CONSIDERAÇÕES

Epistemologias das religiões afro-brasileiras aqui comentadas nos levam a reflexões para
contribuir na compreensão, ainda que de forma singela, da construção de uma sociedade
brasileira, especificamente desde o Século XIX, considerando aspectos sociais, políticos,
econômicos e religiosos. Aspectos que moldam a vida da sociedade brasileira e esse anseio,
talvez utópico, da libertação das camadas mais pobres e a busca por justiça pelos mesmos, o
que talvez nos leva a refletir se quem venceu o desfile do Carnaval 2022 foi a escola de samba
“Acadêmicos da Grande Rio” ou o tema escolhido pela mesma, “Exu”, representante no
anseio popular.

REFERÊNCIAS

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