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212 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 17 N 48

Cadernos de um sorgimento; Note sul Machiavelli, sulla politica e


sullo Stato moderno; Letteratura e vita nazionale
revolucionário e Passato e presente.
Essa primeira tentativa de organização dos
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, 6 vols. textos de Gramsci, conforme observa Carlos Nelson
Edição de Carlos Nelson Coutinho, com a colabo- Coutinho,2 professor titular de teoria política da
ração de Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio UFRJ e tradutor das obras de Gramsci no Brasil,
Nogueira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, mesmo com todas as indicações e advertências con-
1999-2002. tidas nos prefácios e nas apresentações, induz à fal-
sa noção de que Gramsci, ao longo do período em
Ivete Simionatto que passou no cárcere, tenha se dedicado a escre-
ver sobre temas variados em seis diferentes livros.
“Americanismo e fordismo”, um dos mais Essa chave de leitura somente será superada a
instigantes textos da obra de Antonio Gramsci, partir de 1975, quando os escritos carcerários de
publicado pela primeira vez no Brasil na década Gramsci são publicados na Itália em sua integralida-
de 1960, chega novamente até nós com o quarto de, pelo Instituto Gramsci, com a edição crítica dos
volume da nova edição dos Cadernos do cárcere. Cadernos do cárcere, em quatro volumes. Organiza-
Esse tema contempla uma das mais brilhantes da por Valentino Gerratana, essa edição apresenta a
análises sobre o fenômeno americano como for- produção gramsciana na forma como foi exposta
ma extrema de “revolução passiva” e de regulação nos cadernos. Foram excluídas as traduções, os
das relações humanas e sociais. Como processo apontamentos, as minutas de cartas e todo o mate-
de organização do trabalho, o americanismo não rial não relacionado ao trabalho teórico.
busca rearticular apenas o mundo da produção. No Brasil, a primeira tradução da obra gra-
Imbrica-se, também, na esfera da reprodução da msciana ocorreu na década de 1960, por iniciati-
vida social, já que o controle do capital não inci- va de Coutinho, Leandro Konder e Luiz Mário
de somente na extração da mais-valia, mas impli- Gazzaneo. A decisiva coragem de Ênio Silveira
ca, ainda, no consentimento e na adesão das clas- proporcionou, entre 1966 e 1968, a publicação,
ses à nova ideologia. A hegemonia que “nasce da pela Editora Civilização Brasileira, de parte dos tí-
fábrica”, escreve Gramsci,1 é acompanhada por tulos da edição temática togliattiana, paralisada
uma “moral dos produtores” e por uma “ética do pela radicalização do regime militar.
trabalho”, destinadas a produzir formas de passi- Em 1966, foram publicados Concepção dia-
vidade e adaptação das classes trabalhadoras às lética da história (que por problemas de censura
estratégias de dominação capitalistas. não manteve o título original: II materialismo sto-
Escrito por Gramsci em 1934, “Americanismo rico e la filosofia di Benedetto Croce) e um volu-
e fordismo” aparece originalmente no caderno de me das Cartas do cárcere, que continha parte da
número 22 e integra a produção do último perío- edição de Sergio Caprioglio e Elza Fubini, publi-
do em que permaneceu no cárcere. Durante os cadas na Itália em 1965. Em 1968, é a vez de Os
anos de reclusão, Gramsci preencheu 33 cadernos intelectuais e a organização da cultura, Literatu-
escolares, dos quais 29 compõem a primeira edi- ra e vida nacional e Maquiavel, a política e o Es-
ção de sua obra publicada na Itália, entre 1948 e tado moderno. Constava ainda do projeto original
1951. O responsável pela organização do material de divulgação das obras de Gramsci no Brasil a
desta edição inaugural foi Palmiro Togliatti, com- publicação dos textos II Risorgimento e Passato e
panheiro de Gramsci na batalha contra o fascis- presente, não traduzidos devido ao recrudesci-
mo. Togliatti agrupou os escritos carcerários por mento da censura após a promulgação do AI-5.
temas, a partir dos seguintes títulos: Il materialis- A reedição dos volumes desse projeto edito-
mo storico e la filosofia di Benedetto Croce; Gli in- rial só irá ocorrer na segunda metade da década
tellettuali e l’organizzazione della cultura; Il Ri- de 1970, quando se começa a discutir no país o
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chamado processo de “distensão”, e, posterior- Brasil em 1999, organizada por Carlos Nelson
mente, de “abertura” político-democrática. Nesse Coutinho, incansável e persistente divulgador da
contexto, os textos de Gramsci contribuíram de obra de Gramsci, com a colaboração de Marco
forma decisiva na análise do quadro sociopolítico Aurélio Nogueira, professor livre-docente da
que se delineava com a crise da ditadura militar, Unesp e Luiz Sérgio Henriques, editor da revista
o tensionamento entre a ordem estabelecida e a eletrônica Gramsci e o Brasil. Considerado hoje o
luta pela democracia, a reinserção dos movimen- maior especialista em Gramsci no Brasil, Coutinho
tos da sociedade civil na arena política, bem como consolida, nesta edição, a vitalidade de um pensa-
a introdução de uma inovadora concepção de so- mento que sobreviveu a diferentes conjunturas e
cialismo junto aos segmentos de esquerda. continua sendo referência para os segmentos de
Assim, se na década de 1960, período de sua esquerda do mundo todo, empenhados na cons-
primeira tradução, as idéias de Gramsci não tive- trução de um outro projeto civilizatório.
ram grande repercussão no Brasil, entre os anos A nova tradução brasileira dos Cadernos pode
de 1970 e 1980, quando a crise do regime autori- ser considerada um projeto inédito, uma vez que
tário e do modelo econômico-social por ele im- articula tanto elementos da edição temática togliat-
posto começam a explicitar-se abertamente, sua tiana quanto da edição crítica de Gerratana. Esses
obra passa a receber um tratamento mais coeren- dois critérios de organização dos escritos carcerá-
te e sistemático, tanto no âmbito acadêmico quan- rios de Gramsci, que tornaram possível a divulga-
to na esfera da política. ção de seu pensamento em diversos continentes,
Desvendado no texto e no contexto, autores fornecendo caminhos fecundos no repensar do de-
de diversos campos do conhecimento elegeram bate marxista e das estratégias políticas da esquer-
Gramsci como o pensador privilegiado na revisão da, vêm sendo acrescidos de novos elementos por
de aportes teóricos e no rompimento com matri- intérpretes do pensamento gramsciano. O filólogo
zes conservadoras que ganharam força nos tem- italiano Gianni Francioni sugere uma edição dos
pos da ditadura. Tornou-se referencial singular e Cadernos do cárcere em que sejam agrupados se-
fonte inspiradora de trabalhos nas áreas de educa- paradamente”3 os “cadernos miscelâneos” – sobre
ção, sociologia, ciência política, antropologia, temas variados, cujos títulos aparecem repetida-
serviço social, direito, ciências da religião, entre mente em vários cadernos – e os “cadernos espe-
outras, que buscaram, em seu contexto particular, ciais” – referem-se à reelaboração de apontamentos
articular a fecundidade e a universalidade das ca- presentes nos “cadernos miscelâneos”. Vale lem-
tegorias gramscianas, seja na prática investigativa, brar que essa metodologia já havia sido adotada na
seja na transformação dos processos sociais. edição crítica de Gerratana, segundo as indicações
Essa ascensão meteórica, contudo, não impe- do próprio Gramsci, mas nesta os cadernos “misce-
diu que tanto a primeira edição italiana quanto a lâneos” aparecem intercaladamente, respeitando a
brasileira sempre suscitassem calorosos embates, ordem em que foram escritos.
semeando controvérsias e indagações, desconside- A presente edição brasileira optou por outra
rando-se, muitas vezes, as circunstâncias e as con- alternativa metodológica: reproduz os “cadernos
dições históricas no momento em que foram pro- especiais” tal como se encontram na edição de
jetadas. Seria esse o verdadeiro Gramsci? Hoje, Gerratana, mantendo os mesmos critérios de nu-
passados mais de meio século de sua publicação meração dos cadernos e das notas “miscelâneas”.
na Itália e quase quarenta anos no Brasil, pode-se Estas, no entanto, são agrupadas em cada “cader-
reafirmar, ainda que se reconheça seus limites, a no especial” de acordo com o tema tratado, con-
inquestionável importância dessa edição, seu ine- servando a ordem cronológica e a numeração uti-
gável valor histórico, teórico e político, imprescin- lizadas na edição italiana. Este critério, conforme
dível na organização das edições posteriores. esclarece Coutinho”,4 oferece ao leitor de língua
A edição completa dos Cadernos do cárcere portuguesa a junção dos elementos positivos das
começou a ser publicada pela primeira vez no duas edições italianas: da velha edição temática,
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conserva as vantagens de uma maior acessibilida- mas fundamentais que revelam ser a história “um
de imediata aos textos gramscianos; mas, ao mes- contínuo e progressivo fazer-se.”6
mo tempo, coloca à sua disposição os instrumen- O volume 2, lançado em 2000, versa sobre
tos que lhe permitem desfrutar do rigor filológico os intelectuais, o princípio educativo e o jornalis-
próprio da edição de Gerratana”. mo. Congrega os cadernos 12, 24 e 28, nos quais
O projeto brasileiro apresenta a obra de Gramsci apresenta uma nova concepção de inte-
Gramsci em dez volumes. Os Cadernos do cárce- lectual, a partir do lugar e da função que este de-
re, especificamente, compreendem seis volumes: sempenha num determinado processo histórico,
1) Introdução ao estudo da filosofia. A filosofia de propondo que seu “modo de ser não pode mais
Benedetto Croce; 2) Os intelectuais. O princípio consistir na eloqüência, força motriz exterior e
educativo. Jornalismo; 3) Maquiavel. Notas sobre momentânea dos afetos e das paixões, mas numa
o Estado e a política; 4) Temas de cultura. Ação inserção ativa na vida prática, como construtor,
católica. Americanismo e fordismo; 5) O Risorgi- organizador, persuasor permanente.”7 O papel re-
mento italiano. Notas sobre a história da Itália; 6) volucionário dos intelectuais no diálogo com as
Literatura. Folclore. Gramática. Abrange, ainda, camadas populares e na função da cultura como
dois volumes sobre os Escritos políticos, de 1910 a forjadora da liberdade constitui-se o cerne das re-
1920 e de 1921 a 1926, e dois volumes das Cartas flexões destes cadernos.
do cárcere. Além da diferente organização do ma- Os cadernos 13 e 18 integram o volume 3,
terial, esta nova edição contém inúmeros textos também publicado em 2000, apresentando uma
ainda não publicados no Brasil. contribuição fundamental à teorização do partido
O primeiro volume, publicado em dezembro político – o “moderno príncipe”, o “condottiero”,
de 1999, contém os cadernos 10 e 11. O caderno expressão da vontade coletiva – e uma análise da
10, dedicado à Filosofia de Benedetto Croce, traz política a partir da interlocução com a obra de Ma-
à cena o diálogo de Gramsci com um dos maiores quiavel. Encontramos, ainda, neste volume, a bri-
representantes do liberalismo italiano. Estrutura, lhante análise do pensador sobre a correlação de
superestrutura, ideologia, filosofia, hegemonia, forças, novas reflexões sobre Estado e hegemonia,
intelectuais, história e política, objetividade e sub- Oriente e Ocidente, guerra de movimento, guerra
jetividade, individual e coletivo, necessidade e li- de posição e revolução passiva, categorias que se
berdade, são categorias presentes nesta interlocu- configuram no epicentro das reflexões gramscia-
ção com o napolitano Croce, reafirmando o esforço nas de todo o período carcerário.
de Gramsci em recuperar a teoria social de Marx e Além do caderno 22, que trata de “Americanis-
traduzi-la como filosofia da práxis. No caderno 11, mo e Fordismo”, conforme já indicou-se, o volume
o autor desenvolve uma longa polêmica com Bu- 4, publicado em 2001, congrega também os cader-
kharin, a partir da obra intitulada A teoria do ma- nos 16, 20 e 26, que abordam temas relativos à es-
terialismo histórico – manual popular de sociologia fera da cultura, condição necessária ao processo re-
marxista, chamada por Gramsci de “Ensaio popu- volucionário, o tema da Ação Católica e o peso
lar de sociologia”. Neste debate, desencadeia uma secular da Igreja na determinação da visão de mun-
pesada crítica ao economicismo e ao marxismo do e do modo de pensar das massas populares.
vulgar decorrentes da Segunda Internacional, bem O volume 5, por meio do caderno 19, abor-
como à sociologia, nascida no berço do positivis- da o Risorgimento italiano, clássico exemplo de re-
mo. Gramsci defende o marxismo como uma filo- volução passiva. O volume 6, a ser publicado em
sofia da história, um pensamento aberto, não de- 2002, tratará dos temas relativos ao folclore, à lite-
terminado a priori. “A filosofia da práxis – escreve ratura e à gramática, incluindo, ainda, a apresenta-
ele – é o historicismo absoluto, a mundialização e ção de um índice analítico dos principais concei-
terrenalidade absoluta do pensamento, um huma- tos gramscianos e um sumário detalhado de todos
nismo absoluto da história.”5 Vários cadernos mis- os cadernos.
celâneos complementam este volume, trazendo te- Os dois volumes sobre os Escritos políticos,
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de 1910 a 1920 e de 1921 a 1926, previstos para tico e a opressão nos instiga a permanecer aber-
publicação em 2002, tornarão possível o acesso às tos ao novo, que, de maneira contínua, irrompe
principais elaborações do jovem Gramsci, textos na história, voltando brutalmente nossa atenção
de extrema riqueza e documentos excepcionais, para o presente tal como é, se se quer transformá-
que traçam um itinerário político e intelectual de- lo. Seu pensamento não se dirige, apenas, aos ho-
cisivo não apenas da história da Itália, mas tam- mens do século XX, mas continuará – como era
bém da realidade européia. A militância política, seu desejo – für ewig, ou seja, para sempre. Eter-
as reflexões sobre o papel dos partidos, dos sin- nizado em sua obra, permanecerá como um im-
dicatos, do movimento operário em geral, apare- portante e imprescindível referencial, pelas luzes
cem aqui como temas centrais para pensar a revo- que lança sobre a discussão da política e das ins-
lução socialista. tituições, num momento em que se esfumam as
As Cartas do cárcere completarão, em 2003, crenças no Estado, na política e na própria es-
o projeto editorial da nova edição, por meio de querda. Enfim, quando carecemos, mais do que
dois volumes. Contrapondo-se à velha edição bra- nunca, de uma verdadeira “reforma intelectual e
sileira, que contém apenas 223 cartas, a nova moral”.
edição incluirá todas as cartas carcerárias de
Gramsci descobertas até o momento, cerca de 500 Notas
cartas. Além disso, mesmo as já publicadas em
português serão novamente traduzidas e anota- 1 Antonio Gramsci, Cadernos do cárcere, vol. 4, edição
das. As cartas constituem uma preciosa chave para de Carlos Nelson Coutinho, com a colaboração de
a leitura dos Cadernos, oferecida por Gramsci Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio
sem intencionalidade, ferramenta metodológica de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001.
fundamental à compreensão do caminho percorri- 2 Idem, vol. 1, 1999.
do ao longo das reflexões carcerárias. Num diálo- 3 Idem, p. 12.
go mais consigo mesmo do que com seus interlo- 4 Idem, p. 44.
cutores diretos, o pensador vai, dialeticamente, 5 Idem, p. 155.
descrevendo a sua trajetória e traçando a sua au- 6 Idem, p. 256.
tobiografia política, intelectual e moral. 7 Idem, p. 53.
Este magnífico projeto editorial dos Cader- 8 V. Gerratana, “A reforma gramsciana da política”, Re-
nos do cárcere, resultado de um rigoroso trabalho vista Presença, São Paulo, 17, nov., 1991, pp. 57-63.
de pesquisa, aliado a uma tradução impecável, re-
presenta, sem dúvida, um marco no pensamento
social brasileiro. A reedição da obra de Gramsci, IVETE SIMIONATTO é professora titular do
reafirmando seu aporte categorial rigorosamente Departamento de Serviço Social da
dialético-marxista e seu projeto revolucionário de Universidade Federal de Santa Catarina.
sociedade, constitui-se uma contribuição inestimá-
vel, não apenas no plano das idéias, mas também
no plano da ação política, e, sobretudo, referência
obrigatória àqueles que buscam a construção de
uma sociedade radicalmente democrática.
Pensador comunista, o autor dos Cadernos
espalhou por todos os continentes a idéia de re-
volução contra o status quo, não pautada em so-
nhos e ideais, mas na construção paciente, ação
tenaz e combativa, processo contínuo que neces-
sariamente se renova e se transforma.8 Sua pro-
funda reflexão sobre o capitalismo, o poder polí-

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