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Brotando da Terra: A subordinação dos pobre-livres, no Ceará,

Sob a vigência da escravidão (1780-1880).

FRANCISCO JOSÉ PINHEIRO ​

Fortaleza - Ce
AGRADECIMENTOS

Agradeço às pessoas e instituições que contribuíram para a realização desse


trabalho. Na Secretaria de Cultura do Estado do Ceará, agradeço a dedicação dos funcionários
dos setores: de “obras raras”, “do Ceará” e de microfilmagem e aos funcionários do arquivo
público, onde realizei a maior parte desta pesquisa. Agradeço a Odete Pompeu que me ajudou
nas transcrições da documentação. Gostaria de fazer um agradecimento especial à Jônia
Pompeu e ao José Carlos Saboia, que, graças ao apoio logístico que me foi concedido através
do seu gabinete, possibilitaram-me o acesso ao Centro de Documentação e Informação (Seção
de Documentação Parlamentar). Nesse setor, realizei outro momento importante desta

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pesquisa, no que se refere à documentação da Câmara dos Deputados. Aos colegas do
mestrado agradeço, em especial, a Kátia e Emília, com quem fiz algumas discussões nas
disciplinas de pesquisa orientada; quanto aos professores, sou grato a todos que fazem o
mestrado, sou grato também à Marly e à Maria, que, além da eficiência como secretárias,
foram solidárias nos momentos de dificuldade no mestrado. Dentre os professores nomearei
aqueles com quem tive um contato mais direto durante o curso: Jorge Siqueira, Michael
Zaidan, Ariano Suassuna, Socorro Ferraz, Armando S. Maior e Marcos Antônio e Marc
Hoffnagel. Aos professores Roberto Smith e Silvia Porto Alegre, da Universidade Federal do
Ceará, agradeço pelas leituras e sugestões criteriosas que muito me ajudaram na elaboração
deste trabalho. Ao professor Francisco José Teixeira, da Universidade Estadual do Ceará, com
quem também tive o prazer de discutir as minhas dificuldades, sou grato pela paciência e
sugestões. Ao professor Eduardo Diatahy, da Universidade Federal do Ceará, que leu a
primeira versão desta dissertação também sou grato. À Margarida, companheira, que
vivenciou e participou de todo o processo de elaboração deste trabalho, fazendo as primeiras
revisões, ajudando na transcrição da documentação, fazendo boa parte da datilografia, sou
grato. Luiza de Teodoro, que tem tido uma importante participação na minha formação, e que
neste trabalho, foi responsável pela revisão final. Ao professor doutor Marc J. Hoffnagel,
responsável pela orientação desta dissertação, sou grato pela orientação criteriosa. Foi um
esforço redobrado responder aos seus questionamentos, o que muitas vezes não me foi
possível, devido às limitações da documentação e da bibliografia sobre o tema. No entanto,
foi gratificante trabalhar sob sua orientação.
SUMÁRIO
Introdução ________________________________________________5
1 – A produção do algodão e as Transformações sociais no Ceará (1780/1840) 10
2. Quem são e como viviam os pobres-livres na área da Pecuária/algodoeira? 15
2.1 – Os autos de queixas e o quotidiano dos pobre-livres 32
3 - O papel do Estado na construção de um discurso sobre vadios e a vadiagem
para justificar a violência sobre os pobres-livres em fins do século XVIII. 47
3.1 -As várias concepções de vadio
3- A polícia do passaporte mais um mecanismo coercitivo para subordinação da
população livre-pobre.
3.1 - A polícia do passaporte no contexto algodoeiro (1780-1820) 42
3.2 - O período do governador Manuel Ignácio de Sampaio e a retomada da
polícia do passaporte. 50
3.3 - A polícia do passaporte e o cotidiano da capitania 57
– Parte II
4 - A Economia da Província e a Reestruturação da Agricultura de Exportação
(1850/1880) ________________86
4.1 – A Reestruturação da Agricultura Comercial e a
Economia da Província (1845/1880) ________________________________
5 – A população pobre/livre e a organização do trabalho na província do ceará
(1850/1880) 40
5.1– Introdução _______________________________________________ 40
5.2– Agricultura Comercial e as necessidades infraestruturais ________ 41
5.3 – As Relações de Trabalho no Ceará ____________________________ 44
5.4 – O Trabalho Escravo (1780/1840) ____________________________ 44
5.5- As Formas de Trabalho “Livre” na Província (1780/1850) _______ 48
6 – A Organização do Trabalho e a População Pobre/Livre (1850/1880)
6.1 – Os Mecanismos Extra Econômicos para Submeter a População
Pobre/Livre____________________________________________________
7 – A Companhia de Trabalhadores e o Projeto Alencar Araripe: Propostas Para
Organizar O Trabalho Livre.
7.1 – Introdução ________________________________________________
7.2– A Companhia de Trabalhadores de 1858__________________________
7.3– Projeto Alencar Araripe e a Organização do Trabalho na Província ___
8 – Conclusão ______________________________________________
9 – Bibliografia____________________________________________

5
1 INTRODUÇÃO

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​Alguns trabalhos marcaram os estudos sobre o Brasil colonial e os “Desclassificados do
Ouro”, de Laura de M. e Souza foi um desses. Ela faz um debate sobre a questão teórica,
chamando atenção para a imprecisão dos conceitos utilizados pelos historiadores no final do
século XX, ao afirmar que: “Objeto de estudo recentemente incorporado ao repertório
temático da Universidade, o marginal carecia, entretanto, de estatuto teórico. Como definir
um elemento que pertence e não pertence à sociedade, que é parte e negação do sistema (…).”
E mais, acrescenta a autora: “o conceito de marginalidade apresentando elasticidade suficiente
para abrigar feiticeiras, alquimistas, loucos, seres monstruosos, autores de tratados de
oniromancia, mendigos (falsos e verdadeiros), vagabundos, indígenas “hippies” “apaches”. A
autora buscou resolver a imprecisão teórica, recorrendo ao conceito de desclassificado social
“é uma expressão bastante definida. Remete obrigatoriamente, ao conceito de classificação,
deixando claro, se existe uma ordem classificadora, o seu reverso é a desclassificação. Em
outras palavras: uns são bem classificados porque outros não o são, e o desclassificado só
existe enquanto existe o classificado social, partes antagônicas e complementares do mesmo
todo”. Por fim, concluiu afirmando que: “O desclassificado social é um homem livre pobre –
frequentemente miserável – o que, numa sociedade escravista, não chega a apresentar grandes
vantagens com relação ao escravo”.
​Outro autor que marcou profundamente a historiografia mundial foi Thompson, outra
inspiração teórica desse estudo para construir explicações sobre o Ceará a partir do século
XVIII. De acordo com Thompson. “Se detemos a história num determinado ponto, verifica-se
que não há classes, mas simplesmente uma multidão de indivíduos com um amontoado de
experiências”. E mais prossegue o autor: “já o exame desses indivíduos num período
adequado de mudanças sociais, observemos padrões em suas relações, suas idéias e
instituições. A classe é definida “pelos homens enquanto vivem sua própria história e, afinal,
esta é sua única definição”. Por outro, na perspectiva dialética, afirma que: “Não podemos ter
amor sem amantes, nem submissão sem senhores rurais e camponeses”.
O objetivo deste trabalho é situar uma multidão aparentemente disforme, pobre-livres, em fins
do século XVIII aos fins do XIX, na Capitania/Província do Ceará. É obvio que não posso
comparar as condições da Inglaterra, estudada por Thompson, com as do Ceará. Uma região
marcadamente agrária, com relações de trabalho escravistas e, no final do século XVIII
passou a incorporar, como força de trabalho, os pobre-livres. Para pensar a composição social
tornar-se necessário identificar, também, uma parcela composta pelos proprietários rurais, que
viria se constituir na classe dominante local e uma parcela muito pequena composta de
padres, advogados etc, que iram compor a burocracia. No final do século XVIII, como na
Inglaterra, “(…) a maioria de homens de mulheres de posses sentiu a necessidade de pôr em
ordem as casas dos pobres. As soluções propostas podiam variar, mas era basicamente o
mesmo impulso que movia Colquhoun, com sua defesa de uma polícia mais eficiente (...)” O
que também eram as soluções propostas na capitania do Ceará, principalmente, a partir de fins
do século XVIII.
​O nosso esforço metodológico é, como a partir de um corpus documental que, à primeira
vista, parecia ininteligível, buscar conexões nas ações de homens e mulheres no Ceará de fins
do século XVIII até fins do XIX, em que de um lado busco identificar o campesinato em
formação e do outro os grandes proprietários de terra.
​Um dos objetivos nesse trabalho é analisar as propostas dos grupos dominantes para
organizar o trabalho pobre-livre na Capitania/Província do Ceará, a partir do final do século
XVIII. Um dos aspectos que deve ser destacado é a relação entre a organização do trabalho
pobre-livre e a estruturação da agricultura comercial.
​As transformações que ocorreram na capitania/província do Ceará, a partir de fins do
século XVIII, em função da estruturação da agricultura para exportação, criaram novas
necessidades como a organização de relações de trabalho regular e disciplinado. E essa será a
principal fonte de conflito entre os pobre-livres que praticavam “economia de
aprovisionamento”, compreendendo o “costumeiro estoque de bens, tem seus limites na
produção e não possui propensão inerente para um trabalho contínuo”. No contexto da
produção algodoeira, no período inicial, fins do século XVIII e início do XIX, havia um
conflito aberto, ao menos entre os representantes da burocracia metropolitana e o modo de
vida adotada pelos pobre-livres.
​Como se pode constatar, no exame do discurso dos grupos dominantes locais, a
intervenção do Estado de forma coercitiva e o papel religião católica, como mecanismo de
“convencimento” passaram a ser utilizadas como instrumentos de persuasão para alterar modo

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de vida dos pobre-livres na perspectiva do trabalho livre, regular e continuo.
​Na segunda metade do século XIX, mais uma vez se repõe a necessidade de organização
de relações de trabalho livre em âmbito nacional. Essa se transformou em uma das principais
preocupações da classe dominante agrária, principalmente em áreas como as províncias do
Norte, em que o trabalho escravo estava em crise desde de 1850, em função de um conjunto
de fatores, dentre os quais o tráfico interprovincial. Na análise das propostas para organizar o
trabalho “livre” na capitania/província do Ceará, além de buscar recuperar as propostas dos
grupos dominantes, estamos propondo uma periodização para a história da Província (área
pecuária-algodoeira). Nessa periodização, levaríamos em conta dois momentos: O primeiro
de fins do século XVIII e início do XIX; o segundo período vai de 1850 até a década de 1880.
​O primeiro momento se caracteriza pela transição da pecuária articulada, como afirma
SAHLINS, com uma ““economia de aprovisionamento” e a produção para aprovisionamento
à de “agricultura de subsistência”, pois esta última vem acompanhada de uma concepção
equivocada que comporta o binômio: trabalho contínuo-sobrevivência; enquanto que a
produção para aprovisionamento fornece à família seu “costumeiro estoque de bens, tem seus
limites na produção e não possui propensão inerente para um trabalho contínuo” e ainda, “não
é descrita exatamente como produção para uso, isto é, para consumo direto. As famílias
podem produzir para troca, assim conseguindo indiretamente o que precisam. Ainda assim, é
o que eles precisam que governa a produção, e não o lucro que possa ter. O interesse na troca
permanece como um interesse de consumo, e não com um interesse capitalista”.
​Com a produção de algodão (1780-1825), foi o primeiro período de incorporarão da
capitania do Ceará ao capitalismo nascente. O segundo período se caracteriza pela superação
da crise que se abateu sobre a província a partir de 1825 até por volta de 1850 quando, mais
uma vez, se deu a incorporação da província ao mercado mundial com a recuperação da
indústria têxtil inglesa e a necessidade de reincorporar das áreas produtoras de algodão. No
âmbito provincial, mais uma vez, houve a tentativa de subordinação da agricultura de
aprovisionamento à agricultura comercial. No entanto, apesar dessa busca de subordinação, as
relações de trabalho que se estabeleceram no âmbito da capitania/província eram relações que
pode ser caracterizada como camponesa. As relações de trabalho Capitalistas no campo
cearense começaram a se estabelecer na década de 1970.
​Quanto às fontes utilizadas neste trabalho, foram as memórias, e as políticas do passaporte,
os bandos, políticas excepcionais, para fins do século XVIII e nas primeiras décadas do XIX.
Para o segundo período dei ênfase à imprensa provincial. Através da imprensa, na segunda
metade do século XIX, foi possível acompanhar as análises sobre os principais “problemas”
enfrentados no âmbito da Província, do ponto de vista dos grupos dominantes locais. Outra
fonte, foram os anais da Câmara dos Deputados de grande valia na análise comparativa, para
percebermos como projeto da classe dominante local, para submeter a população livre-pobre,
foi reproduzido em forma de projeto de lei pelos representantes da Província na câmara dos
deputados. Percebe-se, claramente, que os deputados provinciais estavam em perfeita sintonia
com as reivindicações dos grupos dominantes locais. Os projetos apresentados eram, na
verdade, uma síntese das propostas debatidas na imprensa provincial e dos relatórios de
presidência da província. Da documentação cartorial, utilizamos basicamente os inventários,
os quais foram importantes, principalmente na análise da relação do número de escravizados
por proprietários, na primeira metade do século XIX, pois as estatísticas sobre a população
escrava nesse período eram insuficientes e falhas. Outras fontes que utilizamos foram os
processos crimes (autos de querelas), as Descrições, Memórias da Capitania, Relatórios de
Presidentes de Província, a legislação provincial e nacional. Os relatos de viajantes como: As
anotações da Comissão Científica que esteve no Ceará em 1859 foram também importantes
para desenvolvimento desse estudo.
​Este trabalho está dividido em 7 capítulos. No primeiro recuperamos o debate sobre o
vadio e a vadiagem e os mecanismos propostos para submeter a população livre-pobre em
fins do século XVIII e início de XIX. No segundo período (1780-1820), analiso a
implementação da política do passaporte, um dos mecanismos essenciais para controlar a
população livre-pobre. Essa política foi implementada devido o desenvolvimento da cultura
algodoeira em que a agricultura passou de predominantemente aprovisionamento, para uma
agricultura voltada para o mercado. No terceiro capítulo, procurei relacionar as
transformações que ocorreram na agricultura provincial, na segunda metade do século XIX,
com as propostas dos grupos dominantes, quanto à necessidade de reestruturação das estradas,
portos etc. No entanto, nos parece importante ressaltar que a principal preocupação dos
grandes proprietários de terra estava relacionada com a organização relações de trabalho livre.

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Nesse mesmo capítulo, procurei descrever as relações de trabalho na Província, tomando
como parâmetro os dois períodos acima propostos. Essa análise foi feita procurando averiguar
dois aspectos: um, que se refere à participação do trabalho escravo e outro que se diferencia
as relações de trabalho livre nos dois períodos. Além do mais, procuramos recuperar as
propostas dos grupos dominantes locais para organizar relações de Trabalho “Livre” na
Província. Finalmente, analisamos os mecanismos que foram propostos para convencer a
população livre/pobre a se submeter às relações de trabalho regular e disciplinado. Entre estes
mecanismos, analisamos o uso das leis do Recrutamento, da religião – principalmente das
Missões católicas, que tinham o poder de convencimento, mas, sobretudo um papel
pedagógico de treinar a população livre/pobre para o trabalho – a relação entre o pequeno e o
grande proprietário, a relação direta entre o proprietário e os seus agregados e, finalmente, as
formas de controle do acesso à terra.
​No capítulo finais analisamos duas propostas de locação de serviço. A primeira, a
Companhia de Trabalhadores – auxiliadora da agricultura e obras públicas, criada em 1857 e
regularizada em janeiro de 1858. Essa Companhia, criada pelo Presidente da Província, tinha
por objetivo organizar a força de trabalho, que seria composta exclusivamente de homens
livres para suprir as necessidades, principalmente, da agricultura. A Companhia foi criada no
contexto da reestruturação da agricultura comercial e tinha na coerção o principal meio para
convencer a população livre/pobre a se submeter a uma relação de trabalho regular e
disciplinada.
​A segunda proposta analisada foi a do projeto de lei apresentado em 1869 pelo deputado
Alencar Araripe na câmara dos deputados. Essa proposta, como a Companhia de
Trabalhadores, tinha por objetivo submeter a população livre/pobre às relações de trabalho
regular e disciplinado, para prover as necessidades da agricultura e dos serviços domésticos.
A proposta de Alencar Araripe era, na verdade, uma tentativa de tornar nacional um projeto
regional, com o objetivo de suprir as necessidades de força de trabalho, o que, de certa forma,
explica a completa modificação por que passou esse projeto no Senado, apesar de ter sido
aprovado na Câmara. A lei de locação de serviços de 1879 foi elaborada a partir da discussão
da proposta de Alencar Araripe. No entanto, o que se constata, quando se compara a lei e a
proposta, e a a lei dela resultante é que essa termina por responder às demandas da área
cafeeira, ao ampliar o contrato para estrangeiros. Além da locação, a lei dá ênfase à parceria,
que é uma das relações de trabalho que se torna importante na área cafeeira.
​O Projeto Alencar Araripe, como a Companhia de Trabalhadores de 1857, tinha também a
coerção como principal mecanismo para submeter a população pobre/livre ao trabalho.
A produção de algodão e as Transformações sociais no Ceará (1780/1840)

​Em fins do século XVIII, a transformação do algodão em produto para exportação


possibilitou a incorporação, como força de trabalho, uma parcela da população que se
dedicava economia de aprovisionamento. Como assinalou Silvia Porto Alegre, “ao contrário
das fazendas de gado, concentradas em grandes latifúndios, o algodão permitiu também a
expansão da pequena produção, associada à plantação de alimentos ”.
​ oi a partir desse período que se iniciou a estruturação das relações de trabalho, tendo por
F
base a parceria (moradia de condição).
​Em fins do século XVIII já se constata o uso da parceria na Capitania do Ceará. O
processo era o seguinte: o proprietário “dava” a terra para o homem livre/pobre morar e
exigia como contra partida dois ou três dias de trabalho por semana, de acordo com as
necessidades do proprietário, e a divisão da produção em que a metade ficava com o
proprietário, a meia. Essa relação de trabalho tornou-se hegemônica no Ceará na segunda
metade do século XIX e manteve-se hegemônica até pelo menos o final da década de 1970.
​A pequena produção, também, foi importante para a expansão da produção algodoeira na
Capitania. Em fins do século XVIII, com o declínio das charqueadas, a pecuária perdeu o
predomínio na produção para o mercado. Essa perda do predomínio não significou o
desaparecimento dessa atividade. Esta passou a ocupar uma posição secundária e o algodão,
assumiu o primeiro lugar na pauta de exportação da Capitania.
​No contexto o domínio sobre a propriedade fundiária tornou-se central para a organização
das relações de trabalho, marcadas pela subordinação da população livre-pobre aos grandes
proprietários. O acesso à terra se fazia através do sistema sesmarial, pela compra, em pequena
escala, através de dote, herança, ou através do aforamento, da moradoria de condição e

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posseiros.
​O cultivo do algodão na Capitania do Ceará respondia à demanda do mercado europeu, em
função da revolução industrial que estava em curso a partir do fim do século XVIII. Dobb, ao
analisar a revolução industrial, destacou como um processo que deve ser visto como um todo,
embora reconhecendo o desenvolvimento desigual nos diversos ramos. Na indústria têxtil, no
entanto, foi onde a revolução ganhou contornos no fim do século XVIII, entre 1770 e 1785,
com uma série de inventos, que ía da máquina de fiar ao tear mecânico.
​Essas transformações tiveram reflexos no mundo colonial. Portugal e suas colônias foram
beneficiados nesse momento em função da sua posição de “neutralidade” diante dos conflitos
que envolveram os países da Europa e que quase sempre afetavam as rotas de fornecimento e
de matéria-prima.
​O Brasil vivenciaria, em fins do século XVIII, a um “boom” algodoeiro. “A cultura
algodoeira disseminar-se-á largamente pelo território Brasileiro”, assumindo uma posição
destacada no suprimento de matéria-prima, para a indústria têxtil inglesa. Esse período foi
marcado por transformações no espaço colonial. Em 1799 houve a desvinculação da
Capitania do Ceará da de Pernambuco. Havendo, simultaneamente, o esforço para manter as
relações comerciais diretamente com a Europa, o que até então era proibido, pois a Capitania
do Ceará estava subordinada administrativamente à de Pernambuco.
​A partir da primeira década do século XIX desenvolveu-se o comércio direto, eliminando
gradativamente a intermediação de Pernambuco “e o fim do monopólio português sobre o
comércio externo, colocam o Ceará na órbita direta do domínio mercantil inglês”.
​O algodão era um produto conhecido pelos primeiros habitantes do Brasil e na Capitania
do Ceará, até fins do século XVIII, a produção atendia as necessidades da população pobre
local. Pedro Alberto O. da Silva, analisando estudo de 1788 sobre a agricultura e a pecuária
na freguesia de Sobral, constatou que: “Quanto ao tipo de lavoura praticada, além dos
produtos de subsistência, 333 fazendas plantavam algodão; em sua maioria para consumo
próprio e da região. Muito pouco ia para Pernambuco (...)”
​No entanto, aos poucos o algodão foi deixando de ser apenas uma matéria-prima para
atender as necessidades da população local e se transformou em mercadoria para exportação.
​Em 1778, o algodão cearense exportado pelo porto de Recife já era o principal produto na
pauta de exportação.
​Os dados disponíveis sobre a exportação algodoeira nesse período demonstram que ela se
tornou crescente no fim do século XVIII até os primeiros anos da década de 1820.

EXPORTAÇÃO DE ALGODÃO DA PROVÍNCIA DO CEARÁ (1778-1822)


Ano Porto Exportação Kg
1778 Fortaleza 169.061
1810 Fortaleza, Aracati, Acaraú 395.707
1811 Fortaleza 172.071
1812 Fortaleza 152.550
1813 Fortaleza 312.675
1814 Fortaleza 316.705
1815 Fortaleza 245.895
1816 Fortaleza 358.875
1817 Fortaleza 181.440
1818 Fortaleza 462.960
1819 Fortaleza 636.360
1820 Fortaleza 327.435
1821 Fortaleza 318.435
1822 Fortaleza 263.040
Fonte: Girão, op. cit., p.215; Alegre, Silvia Porto, op. cit. p.102.

​No entanto, apesar da insuficiência de dados estatísticos sobre o período que se estende de
1822 até por volta de 1840, o que se constata a partir dos primeiros anos da década de 1820, a
produção algodoeira entrou em declínio. Como assinala Silvia Porto Alegre “O valor da
arroba no mercado externo continua a subir, até atingir a cotação máxima de 9.150 réis, em

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1818. Após essa data começam a cair os preços, que atingem apenas 5.000 réis a arroba em
1822, indício do fim desse período de relativa prosperidade”. A fala do presidente da
Província, ao instalar o conselho geral em 1829, também constatou o declínio da produção
algodoeira da Província:
“Baixa do algodão, que sendo outrora fonte primária de prosperidade do Ceará,
hoje não paga de certo o trabalho do lavrador.”
​Os fatores de ordem interna, como as doenças que atacaram o algodão e a instabilidade
política da Província, abalada com a Confederação do Equador, acentuaram a crise, que teve,
no entanto, como fator principal, a concorrência da produção dos Estados Unidos e as
transformações ocorridas ao nível do mercado mundial.
​Na década de 1830, durante o governo de José Martiniano de Alencar (o senador Alencar),
foram adotadas medidas para incentivar a produção algodoeira na Província. O Presidente
passou a adiantar o capital para o financiamento da produção, além de incentivar a produção
de máquinas para o beneficiamento, possibilitando que houvesse um surto algodoeiro durante
o seu governo. No entanto, esse surto teve vida efêmera, devido às determinações do mercado
mundial, que viveu até fins da década de 1840 um período de estagnação.
​Concluindo este tópico, diríamos que alguns dos aspectos que caracterizavam as relações
de trabalho no Ceará, neste primeiro período, eram a baixa monetização da economia e a não
separação dos produtores diretos dos meios de produção. No entanto, o que se percebe é a
elaboração de discurso sobre os pobres-livres em que a vadiagem e o seu combate ganhava
centralidade.

– Quem são e como viviam os pobres-livres na área da Pecuária/algodoeira?

​Concomitante com o crescimento da produção algodoeira vai se estabelecendo, como


política, ações de combate aos vadios e a vadiagem.
​Nesse tópico procuramos traçar um perfil dos pobre-livres e como eles viviam. Quem são
os vadios e os que promovem a vadiagem? Em outros termos quem são os pobre-livres na
área de pecuária/algodoeira? Recorrendo, mais uma vez, Laura de M. e Souza como o
conceito de: “desclassificado social é uma expressão bastante definida. Remete,
obrigatoriamente, ao conceito de classificação, deixando claro que, se existe uma ordem
classificadora, o seu reverso é a desclassificação”. Em outras palavras: “uns são bem
classificados porque outros não o são, e o desclassificado só existe enquanto existe o
classificado social, partes antagônicas e complementares do mesmo todo.” Na área da
pecuária só existe pobre-livre (sem terras, pequenos proprietários, artesãos etc.) por existir o
grande proprietário que são partes de um todo e a existência de um necessariamente implica
na existência do outro. A autora também, demonstrando a conexão do processo que ocorreu
na Europa como aquele em curso no espaço colonial e, chamava a atenção para a
especificidade desse espaço ao afirmar que: “a compreensão das condicionantes estruturais
que propiciam entre nós o aparecimento de uma vasta camada de homens livres pobres e
expropriados só poderá ser satisfatório na medida em que, considerando o que há de comum e
genérico, buscar a ultrapassagem: procurar o específico e o particular.” Noutro passagem a
autora afirmava que: “A noção de trabalho vigente na colônia é importante para a
compreensão de outra peculiaridade nossa: a extensão que entre nós assume a expressão
vadiagem e a categoria vadio”. E mais acrescenta: “Mais do que na Europa pré-capitalista, o
vadio é aqui o indivíduo que não se insere nos padrões de trabalho ditados pela obtenção de
lucro imediato, a designação podendo abarcar uma enorme gama de indivíduos e atividades
esporádicas, o que dificulta enormemente uma definição objetiva desta categoria social.”
​O que houve de específico e particular na capitania do Ceará, uma região inserida,
inicialmente, na atividade de pecuária articulada com uma agricultura produtora de
alimentos? Como analisei, há ao menos quatro aspectos estruturantes na capitania do Ceará
que devem ser destacados. São eles: a forma como se deu a sua ocupação, implicando na
desestruturação do modo de vida dos povos nativos, a concentração fundiária, a presença
pequena de escravos não ultrapassando 13% da população e a economia da pecuária
possibilitando o crescimento dos livre e pobres mas, era incapaz de incorpora-los como força
de trabalho.
​Para compreender o processo de desclassificação na capitania do Ceará retomarei o
processo de conquista pelos portugueses, que só veio ocorrer em fins do século XVII e início

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do XVIII e, como a partir desse momento começou ser “produzida” uma parcela dos
desclassificados, resultante da desestruturação dos povos indígenas. Processo que teve
continuidade com a implantação das políticas estabelecidas pelo diretório pombalino a partir
1759.
​Em fins do século XVII e início do seguinte começaram os relatos sobre os conflitos
devido a ocupação pela pecuária com os povos nativos. Em 1708 o desembargador Soares de
Reimão denunciava o roubo de índias na capitania e mais deixava explícito que nada podia
fazer frente aos abusos. Afirmava ainda que as ações dos visitadores (representantes da igreja)
não tinham eficácia. Esses são dados reveladores do impacto, para os povos nativos, causado
pelo avanço da pecuária:

“Senhor, Nessa Capitania do Ceará estão vários moradores com Índias furtadas a
seus maridos há quatro, dez, quinze anos sem lhes quererem largar, e fazendo-me os maridos
requerimentos lhe não deferi por falta de jurisdição enviando-os para as justiças me
responderão que não entendiam o que havia de fazer, nem tinham dinheiro que gastar: E
porque é grande desserviço de Deus, e os visitadores mandando algumas para seus maridos,
as vão buscar para casa, tanto que acaba a visita,(…).”

​Os missionários, também, denunciavam os abusos sobre os povos nativos. Em 1713, cinco
anos após a denúncia do desembargador Reimão, uma representação do jesuítas João Guedes,
ao conselho ultramarino, tornava explícito que não houve mudança após as denúncias de 1708
e, mais uma vez se percebe o impacto desagregador causado pelo avanço da pecuária afirmar
que:

“(...)em cuja diligência demorando-se tempo bastante tivera ocasião de observar a


excessiva soberba em que viviam os moradores da dita freguesia, sendo mui raro aquele que
não tivesse em sua casa alguma índia tirada das aldeias (...) usando dela para ofensas de
Deus.”

​Esse quadro assumiu tal gravidade que o bispo de Pernambuco, a quem o Ceará estava
vinculado, publicou uma pastoral excomungando todos os homens que mantivesse índias
roubadas das aldeias. O documento era explícito de como deveria proceder para evitar a
excomunhão ao afirmar que:
“E assim no que respeita a Pastoral que o Bispo de Pernambuco passou com pena
de excomunhão para que os moradores da Ribeira do Acaraú largassem no termo de três dias
a qualquer índia, que em suas casas tivessem, a e repusessem no dito termo na aldeia, donde a
tivessem tirado,(…).”

​Em 1719 o missionário Antonio de Souza Leal, que esteve por 18 anos em Pernambuco e
mas capitanias anexas, mais uma vez, faz um relato circunstanciado sobre os abusos
cometidos contra os povos nativos. Há uma passagem elucidativa do impacto causado pelo
avanço da pecuária na capitania ao afirmar que:

“Não era o gentio senhor de sua liberdade, nem de seus bens, nem de suas
mulheres e filhas, nem sequer de suas vidas, pois era opinião geral naquele sertão que era
lícito matá-lo, porque não era cristão nem servia a Deus.”

​O parecer do conselho ultramarino de 29/10/1720, feita a partir da representação do


missionário Antonio de Souza Leal, é possível avaliar o impacto do processo de conquista
para os povos nativos ocasionado, muitas vezes, o extermínio de vários povos, mas sobretudo
na desestruturação do seu modo de vida, usando como desculpa a guerra justa:
“Que estas guerras as mandam fazer os capitães mores todas as vezes que se lhe
antoja e lhe persuada a sua ambição e a dos moradores porque todos são interessados nos
cativeiros dos pobres Índios e ainda os que estão aldeados e tem clérigos por seus
missionários,(…).”

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​E mais, prossegue o parecer denunciando o genocídio perpetrado sobre os povos nativos,
com a conivência do capitão-mor governador, mas principalmente como esse atos foram
banalizados e naturalizados. O roubo das mulheres e filhas, obrigar índios livres ao trabalho
sem qualquer recompensa. As fontes são ricas para se perceber como se deu esse processo,
elucidativas para compreender a origem de uma parcela dos desclassificados na capitania.
“são vexados pelos capitães mores com grandes violência e injustiças porque os
obrigam a que lhe trabalhem para eles sem estipêndio, e sem sustento ocupando os Índios em
pesca, em lavrar mandioca, cortar e conduzir madeiras, as Índias em lhes fiar algodão e o
mesmo fazem também em parte os soldados dos presídios e os moradores, e roubando as
mulheres e filhos, e com tal devassidão e soltura como se tudo fossem actos muitos lícitos, e
não merecem, nem castigo, nem repreensão;(…).”

​Uma outra fonte essencial para avaliar-se o impacto do processo de conquista na


desagregação dos povos nativos são os batizados. Analisarei os realizados no período de
1729-1808, nas quatro freguesias da ribeira do Jaguaribe. Um dos aspectos ressaltados, para
perceber o impacto, era a quantidade de filhos ilegítimos das mulheres indígenas. Esse dado
vem corroborar com as denúncias feitas pelos missionários a partir de fins do século XVII,
mas, principalmente no início do XVIII em relação ao roubo das mulheres indígenas das
aldeias.
​A análise será feita, inicialmente, na freguesia de Russas no período de (1730-1799), os
filhos ilegítimos dos povos nativos era de 39%. Para a igreja, no entanto, esses chegavam a
46,3%, pois havia um percentual de 7% que apesar dos pais reconhecerem não estavam
legalizados frente a Igreja. Por outro entre os livres, não índios, esse percentual era de apenas
7%. É esse processo que vai gestando uma parcela da população composta por mulatos,
mamelucos e pardos que está na origem dos pobre-livres.

Batizados na freguesia de Russas (1730-1799)

Fonte: batizados da diocese de Limoeiro do Norte.

​Para a freguesia de Aracati o percentual de ilegitimidade era de 56,3% somando-se os


filhos naturais, com pais reconhecidos chega a 64,3% ficando próximo do percentual dos
escravizados africanos e seus descendentes que era de 75%. Entre os livres esse percentual era
de 15% os filhos ilegítimos somando-se aos filhos naturais com pais reconhecidos chegasse
29%.
Batizados de Aracati 1742-1793

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Fonte: Batizados da diocese de Limoeiro do Norte.

​Na freguesia do Icó os percentuais ficaram muito próximo dos observados em Russas e
Aracati. Isto é, um elevado índice de filhos ilegitimidade entre os povos indígenas chegando a
44,7% e, os com pais reconhecidos 34,3%. Somando-se os dois percentuais chega-se 79%.
Entre os livres esse percentual era de 9%, somando-se aos filhos naturais chegava-se aos
23%. Entre os escravizados africanos e seus descendentes esse percentual era de 76% os
filhos ilegítimos, somando com os filhos com pais reconhecidos esse percentual chegava a
90%.

Batizados freguesia do Icó (1729-1786)

Fonte: Batizados da diocese de Limoeiro do Norte.

​Para a freguesia de Quixeramobim (1755-1808) houve uma queda significativa dos filhos
ilegítimos para 27,7%, no entanto há um crescimento significativo dos filhos, considerados
ilegítimos pela igreja, que classifiquei com pais reconhecidos para 19%. Ficando o total em
46,7%. Essa queda pode ser entendida em função do avanço da igreja coibindo as ações
ilegais frente ao casamento. Essa freguesia foi constituída na segunda metade do século XVIII
quando a presença da igreja se fazia mais efetiva e, alguma forma inibindo os abusos sobre as
mulheres indígenas como também foram adotadas políticas repressivas, pelo diretório
pombalino, frente a dispersão dos povos indígenas tema que será tratado a seguir. Entre os
livres o percentual era de 10% somando-se aos filhos reconhecidos pelos pais chegava-se a
23%.
Batizados freguesia de Quixeramobim (1755-1808)

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Fonte: Batizados da diocese de Limoeiro do Norte.

​Esses resultados corroboram com as denúncias feitas pelos missionários, a partir de fins do
século XVII, em relação aos abusos cometidos contra os povos indígenas, ficando explícito
como o processo de conquista da capitania teve um forte impacto na desestruturação do modo
de vida dos povos nativos e, foi um dos elementos para explicar o surgimento de uma parcela
dos desclassificados.
​Examinarei como esse processo teve continuidade no período pombalino quando foram
acentuando-se as políticas com o fim de evitar a dispersão do índios. Nesse contexto, já não
era mais um rio caudaloso mas, um fio esmaecido que continuava a alimentar os
desclassificados e os interesses dos grandes proprietário. No governo Borges da Fonseca
foram lançados vários bandos, legislação extraordinária, sobre essa temática e, no de 1773 a
ordem do governador era explicita, todos deviam se recolher as suas vilas e as licenças
anteriores estavam revogadas:
“Faço saber a todos os índios, e moradores desta Capitania (...) que se recolham
logo e sem a menor perda de tempo a todos as suas respectivas Vilas os Índios que andarem
fora delas. Pelo que ordeno a todos os Comandantes das Freguesias que cuidadosamente o
farão executar com a maior atividade sem admitirem licença alguma que seja anterior a data
deste, de baixo das penas impostas nas ordens de S. Majestade e repetidas vezes publicadas
em vários Bandos, as quais lhes hão de ser irreversivelmente impostas.”

​As ordens eram precisas e repetidas em diversos bandos devendo ser cumpridas a risca. O
bando lançado aos 17 de novembro de 1789, no governo Luis da Mota Feo Torres, é mais um
indício sobre o modo como se reproduziam os pobre-livres, principalmente os indígenas ao
afirmar que:

(...) Faço saber a todos os moradores desta Capitania que tendo mostrado a
experiência, que não bastarão os Bandos pelos quais repetidas vezes se fez notória a proibição
de se conservarem Índios em serviços particulares sem, as licenças necessárias,(…).”

​Noutro trecho o governador explicitava que os moradores, em claro desafio as


determinações o diretório pombalino, iam estabelecendo relações de trabalho como os índios
que desobedecia a todas as determinações causando a perda de controle dessa população pelo
Estado e mais uma vez exigia dos diretores das vilas de índios e aos chefes indígenas (os
principais) para cumprirem a legislação:

“(...)e Recomendando aos Diretores e Principais a inviolável e exata observância


de todas as Ordens respectivas a repartição do Povo: e lhes ordeno que não apliquem Índios
algum ao serviço particular dos moradores para fora das Vilas sem que estes lhe apresentem
licença minha por escrito, nem consintam que os ditos moradores retenham em casa os
referidos índios além do tempo por que lhe foram concedidos,(…).”

​A fala do governador tornava explicita que a dispersão dos índios tinha a conivência do
grandes proprietários ao aceitarem os mesmo nas suas terras sem licença e, esse foi um dos
mecanismos que garantiu a sobrevivência dos pobre-livres na capitania. A desobediência a

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legislação era algo grave, na perspectiva do governador, e nesse bando foi estabelecida
penas, para quem continuasse a praticar os delitos, que iam de multas até degredo para
Angola, sem apelação.

“(...) Nenhuma pessoa de qualquer qualidade que seja poderá ir tirar Índios para
seu serviço, ou para outro efeito sem licença das pessoas que lho podem dar na forma das
minhas leis, nem o poderão deixar ficar nas suas casas depois de passar o tempo em que lhe
foram concedidas, e aos que o contrário fizerem incorrerão pela primeira vez na pena de dous
meses de prisão, e de vinte mil reis para as despesas das obras da Matriz desta Vila; e pela
segunda terão a mesma pena em dobro, e pela terceira serão degredados cinco anos para
Angola, também sem apelação.(…).”

​Pela documentação analisada pode-se afirmar que o processo de dispersão da população


indígena, na segunda metade do século XVIII, se transformou em um dos mecanismos de
sobrevivência e contava com a conivência dos grandes proprietários. E os índios dispersos
passará a compor uma parcela significativa dos pobre-livres.
​Pelo exame de diversas fontes como os batizados, os bandos, relato dos missionários,
ficava explicito que os índios passaram a viver nas grandes propriedades com agregados, as
mulheres denunciadas por prostituição, outros passavam a cultivar seus roçados em áreas
fora das suas vilas, mas, também como trabalhadores esporádicos (jornaleiros).
​A origem da desclassificação não ficou restrita a desorganização dos povos indígenas. Em
uma formação social predominantemente agrária, o acesso à terra se transformou em
importante elemento de classificação, mas, também de desclassificação. Esse foi, sem dúvida,
um dos mecanismos que possibilitou surgimento dos classificados e por outro vai gestando os
desclassificados. No final do século XVIII, já era possível constatar parcela da população
livre-pobre, em plena vigência do trabalho escravo, vivendo da agricultura produtora de
alimentos. No entanto, para terem acesso à terra se subordinavam aos grandes proprietários.
Por outro lado, esse foi também um mecanismos importante de sobrevivência e reprodução
dos pobre-livres.
​Esse levantamento traz dados sobre a situação da agricultura e pecuária e está representado
territorialmente no mapa abaixo. Tais dados referem-se à dimensão das propriedades, das
terras arrendadas, também da quantidade de força de trabalho escrava, dos instrumentos de
trabalho, da produção, do destino desta etc. Essas informações são essenciais
para se traçar o perfil social da população dessa região em que foram arroladas todas as
unidades produtivas, totalizando 852. De início se constata um descompasso entre as unidades
produtivas e as três categorias que serão descritas. Para tal é necessário esclarecer que há um
conjunto de proprietários que detém mais de uma unidade produtiva, por outro há foreiros que
são proprietários e também moradores. Torna-se necessário iniciar a análise fazendo uma
explicação dos critérios que foram utilizados para agrupar cada uma das categorias. O
principal critério foi a identificação que constava no próprio levantamento. Em algumas
situações, pequenos proprietários se identificam como moradores. Apesar de terem suas
terras, eles moravam e cultivavam a lavoura ou criavam seus rebanhos em terras alheias e
nestas condições, mesmo sendo proprietários de uma parcela de terra, eles foram qualificados
como moradores. O mesmo critério foi usado para as demais categorias.
​Os dados contidos nesse relatório são importantes para se analisar como se deu a
constituição das relações de trabalho no campo, e um dos aspectos mais destacados que estava
se constituindo era a submissão dos pobres-livres e pequenos proprietários aos grandes
proprietários de terra.
​Em uma formação social predominantemente agrária, o acesso à terra se transformou em
importante elemento de poder e foi esse um dos mecanismos que possibilitou, já no final do
século XVIII, a subordinação de parcela da população livre-pobre, em plena vigência do
trabalho escravizado.
​O estudo será feito a partir da reprodução de um conjunto de tabelas e gráficos que
possibilitará uma visão geral das diversas categorias, tendo como referência as formas de
acesso à terra.
​A tabela a seguir possibilita uma visão geral da forma como se deu a divisão da terra, ao
retratar as diversas modalidades de acesso a essa e o que cada categoria representava em
termos de domínio sobre a propriedade fundiária. Esses dados, também, possibilita traçar um

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perfil dos pobre-livres na capitania, como a população sem terra, e pequenos proprietários,
tendo como atividade principal a agricultura em base familiar, produtora de alimentos por
excelência. No conjunto estão, também, incluídos uma gama de trabalhadores artesanais
como: ferreiros, carpinteiros, celeiros, sapateiros, costureiras, vaqueiros etc. Sendo assim o
discurso sobre a vadiagem, em grande medida, eram uma tentativa de fazer com que essa
parcela da população adotasse um modo de vida em que tempo de trabalho se tornasse
predominante frente ao trabalho eventual que até então era hegemônico.
Tabela - Perfil dos usuários da terra na região norte da capitania do Ceará em 1788.
Tipo de usuário No usuários % por categoria Total de terra (ha) % terra por categoria
Proprietário 344 69,2 910.442,44 94,2
Foreiro 51 10,3 34.195,00 3,5
Morador de condição 102 20,5 22.532,41 2,3
Total 497 100 967.169,85 100
Fonte: “Superintendência do Desenvolvimento do Estado do Ceará (SUDEC) e Universidade Vale do Acaraú –
Estudo do remanejamento da pecuária na zona norte do Ceará (2 volumes) – 1976.

​O morador de condição, modalidade de relação de trabalho que se tornou hegemônica no


Ceará, na segunda metade do século XIX, foi também um dos mecanismos de sobrevivência e
reprodução dos pobre-livres, representava 20,5%, como categoria, no entanto, ocupavam
apenas 2,3% da terra. Além do mais, estavam subordinados aos grandes proprietários.
Reproduzimos abaixo uma tabela de 30, dos 102 Moradores de Condição. Para que possamos
ter uma noção da dimensão da área ocupada pelos por eles. Usei as medidas que até hoje são
referências no interior do Ceará como a braça, que corresponde a 2 metros e 20 centímetros.
Como se constata os moradores explorava áreas muito pequenas, as vezes menor do que um
hectare, 100 metros por 100 metros, um quarteirão, para o leitor ter uma noção. Havia
também, algumas situações que merecem ser destacadas, como por exemplo, alguns filhos
como moradores nas propriedades dos pais. Ou alguns proprietários como Grabriel Ponciano
de Albuquerque que tinha cinco moradores nas suas terras. Como também alguns que
moravam em terra da padroeira Nossa Senhora da Conceição, a famosa terra da santa. De um
modo geral era indicada apenas a largura da área explorada. Como afirmei, anteriormente, o
número de escravos era pequeno e a maioria não os tinha. Outro dado que chama a atenção
era quanto a produção desses moradores de condição, pois, a imensa maioria se dedicava a
produção de alimentos que eram consumidos por ele e sua família e uma parcela era vendida
no próprio termo da vila (no município).

Nome No Escravos Atividade Dimensão da terra


Quirino Cordeiro de Sousa 0 Pecuária + lavoura 132 metros (60 braças)
Fco Antônio de Souza 0 lavoura 440 metros (200 braças)
Joaquim José Teixeira 0 lavoura ?
Cap Tomé Ximenes 0 lavoura 286 metros (130braças )
Madeira de Vasconcelos
Baltazar R dos Reis 2 Pecuária 660 metros
Marcolino Pais Barreto 0 lavoura 110 metros (50braças)
Fco Álvares Bezerra 1 lavoura 220 metros (100 braças)
Fco Xavier Correia 0 lavoura
Diogo José Campos 3 Pecuária Morador rendeiro do seu Pai
Fco Xavier da Conceição 0 lavoura 88 metros (40 braças)
Manuel Antônio Correia 0 pecuária 110 metros (50braças)
João Rodrigues da Costa 0 lavoura 440metros (200 braças)
Joaquim Marques da Costa 0 lavoura 110 metros (50braças)
Manuel Lourenço da Costa 5 Pecuária + lavoura 110 metros x 880 metros
José da Silva Dorneles 0 lavoura (66 metros) 30 braças
João do E Santo 0 lavoura (66 metros) 30 braças
Bartolomeu de Paiva Dias 0 pecuária do seu pai Domingos Paiva
Dias
Felipe Gomes da Frota 0 pecuária 220 metros (100braças)
Estevão Gonçalves 0 lavoura 132 metros (60 braças)
0 pecuária ?

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Manuel de Jesus
Gregório de Freitas Lima 0 lavoura 250 braças de Nossa.
Senhora. conceição
Antônio de Souza 0 lavoura 20 braças
Magalhães
Fco Chaves Pereira 0 lavoura 50 braças
Geraldo José Ribeiro 0 pecuária 31 braças
José Ferreira Ribeiro 0 lavoura 50 braças
José de Sá Ribeiro 0 lavoura 200 braças
Luis Máximo Rodrigues 0 lavoura 600 braças
Inácio Pereira de Sá 0 lavoura 50 braças
João Teixeira Sampaio 0 lavoura 50 braças
Fonte: “Superintendência do Desenvolvimento do Estado do Ceará (SUDEC) e Universidade Vale do Acaraú –

Estudo do remanejamento da pecuária na zona norte do Ceará (2 volumes) – 1976. ​

​A tabela a seguir possibilita uma visão geral da divisão da terra na região norte da
capitania do Ceará. O que se constata era uma representação de 27,2% de minifúndios e
pequenos proprietários categorias que podem ser incluídos entre os pobre-livres.

Tabela - Perfil dos proprietários em relação à dimensão da terra em 1788.


Tipo de Dimensão por No de % de Total de terra por % de terra por
proprietário (ha) proprietários proprietário por categoria (ha) categoria
categoria
minifundiários 1 - 50 59 15,7 971,14 0,1
Pequeno 51 - 200 43 11,5 4.847,2 0,5
proprietário
Médio 201-750 80 21,3 35.129, 5 3,9
proprietário
Grande 751-13.069 148 39,5 475.526,6 52,2
proprietário
latifundiário 13.070 14 3,7 393,932 43,3
Não identificado - 31 8,3
375 100 910.442,44 100
Fonte: “Superintendência do Desenvolvimento do Estado do Ceará (SUDEC) e Universidade Vale do Acaraú –
Estudo do remanejamento da pecuária na zona norte do Ceará (2 volumes) – 1976.

​Outros aspectos importantes para definirem a posição social dos proprietários, além da
concentração fundiária, são: a atividade exercida e a quantidade de escravo, que se
transformou em outro elemento indicativo de riqueza, portanto de posição social.
​A tabela a seguir possibilita uma análise panorâmica da situação dos proprietários, tendo
como referência os dois aspectos anteriormente referidos. É possível estabelecer uma relação
direta entre o tamanho da propriedade e o percentual de escravos com a atividade
desenvolvida. A imensa maioria dos proprietários minifundiários, isto é, 89% tinham como
atividade principal a agricultura produtora de alimentos e a média de escravo por proprietário
é a mais baixa, 0,6. E mais, dos 48 proprietários minifundiários que tinha como atividade a
agricultura, apenas 11 eram proprietários de escravos, o que representava apenas 23%,
enquanto 77% não dispunha de força de trabalho escravo. Nesta mesma categoria, os
pecuaristas, que eram apenas 3, não tinham escravos. Por outro lado, dos três que eram
pecuarista e agricultores, dois eram proprietários de escravos. Mais uma vez, se constata que
os minifundiários era agricultores em base familiar o que os aproximavam dos moradores de
condição.
​Ao fazer análise dos pequenos proprietários constata-se que a mesma lógica se mantém:
60% eram agricultores, o que correspondia a 24, destes apenas 7 eram proprietários de
escravos, o que correspondia a 29%, enquanto 71% não tinham escravo. Os que se auto-
identificavam como pecuaristas correspondiam a 37,5% e 66,6% eram proprietários de
escravos. À medida que cresceu o percentual dos que declaravam serem pecuaristas, também

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foi alterada a média para 1 escravo por proprietário o que era uma média baixa.

Tipo de Proprietário Atividade Proprietários Escravos
% No por proprietáro
Lav % No Pec % No Pec-Lav % No
Minifúndio 1-50 89 48 5,5 3 5,5 3 14,7 54 0,6
Pequeno 51-200 24……..60 37,5 15 2,5 1 11…….40 1.1
Médio 201-750 29,3 17 52,2 37 24 17 19,5 71 2.1
Grande 751-13.000 14,9 20 44,8 60 40,3 55 36,8 135 4
Latifúndio 13.001 00 00 40 6 60 9 15……..4,1 9.2
Indefinido - 35,3 18 41,2 21 23,5 12 51 14 3,3
Total 126 141 97 366
Fonte: “Superintendência do Desenvolvimento do Estado do Ceará (SUDEC) e Universidade Vale do Acaraú –
Estudo do remanejamento da pecuária na zona norte do Ceará (2 volumes) – 1976.

​Por fim examinarei o que era produzido nas diversas unidades produtiva e qual era o seu
destino. A maior parcela era para o consumo dos produtores e parte era vendido no termo da
vila. Os produtores consorciavam milho, feijão e algodão, e 80% plantavam mandioca uma
das bases alimentares dos cearenses a farinha e os derivados da mandioca como polvilho
(goma) até hoje largamente utilizada na nossa alimentação. A cana era cultiva por apenas 7
grandes produtores para produzir rapadura e mel e alguma cachaça também eram consumidas
no termo da vila. Havia produtos como a mamona que era utilizada como combustível para
iluminar as noites no sertão, sendo, também usada no fabrico da rapadura em pequenas
porções.
Produtos Total dos Produtores No % Destino
Não produziu 22 (7,3)
Mandioca 239 (80, 2) Vende parte no termo
Milho 206 (69) Vende parte no termo
Feijão 71 (23,8) Vende parte no termo
Arroz 34 (11,4) Vende parte no termo
Algodão total 151 (51) Vende no termo e Pernambuco
Mamona 16 (5,3) Vende no termo
Cana 7 (2,3) Vende no termo
Fonte: “Superintendência do Desenvolvimento do Estado do Ceará (SUDEC) e Universidade Vale do Acaraú –
Estudo do remanejamento da pecuária na zona norte do Ceará (2 volumes) – 1976.

​Os produtos destinados a alimentação estavam no topo da produção, no entanto, o algodão


já ocupava a terceira posição nesse ranque, uma parcela era consumido pelos produtores,
40%, e maior parte era vendida na vila e para Pernambuco. O produto que irá se transformar
na principal mercadoria, conectando o Ceará com mercado capitalista, em 1788 ocupava a
terceira posição dentre os produtos mais cultivados.

Os Autos de queixa e o Quotidiano do pobre-livres

​Os autos de queixas é mais uma fonte de informações importantes, retratando a


complexidade social da capitania do Ceará no final do século XVIII, mas, é sobretudo uma
fonte para identificar quem eram e como sobreviviam os pobre-livres. Entre (1778-1800),
foram examinados 85 (oitenta e cinco) processos com um universo de 268 (duzentas e
sessenta e oito) testemunhas das quais citarei algumas para demonstra essa complexidade
social e como sobreviviam os pobre-livres.
​O primeiro processo a ser examinado é o de escravizado Manoel, na vila de Aracati, em
fins do século XVIII uma das mais importantes vilas da capitania, onde estavam situadas
oficinas de charqueadas, fábricas rústicas de carne, atividade importante para o
desenvolvimento comercial da capitania. Esse processo é elucidativo para compreender o
quotidiano dos pobre-livres e escravos que iam construindo, em uma sociedade escravista, os

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espaços convivência e sobrevivência. De acordo com os depoimentos é possível concluir que
o escravo tinha liderança entre os seus companheiros de infortúnio mas, também entre os
pobre-livres e, ao mesmo tempo era hostilizado pela vizinhança composta de pobre-livres. O
depoimento do Alferes Manoel da Silva Carneiro homem branco, solteiro, morador na vila de
Aracati pecuarista, de 48 anos, sabia ler, um representante típico da classe dominante local,
era esclarecedor sobre o modo de vida do escravo. Por outro lado, como a cor da pele e a
pobreza eram mecanismos de desclassificação pois, as suas ações do escravo junto com a
gente da plebe incomodava os homens brancos, isto é, se os atos ficassem restritos aos
desclassificados pouco importava ao afirmar que:

“sabe pelo ver que o preto Manoel querelado traz a muito tempo desencaminhada
a preta Romana (...)o mesmo preto tem uma casa alugada que só lhe serve para jogos e
maganagens (...)da tal casa aonde continuamente há insultos, jogos, e inquietações, causadas
pelo tal querelado(criminoso)(...) sendo certo que este negro se faz intolerável por ser um
vadio sem ocupação mais que ficar fazendo ajuntamento de negros e de outra gente da plebe,
metido a valente fazendo desatenções a homens brancos (...)”

​O depoimento do alferes era, também, esclarecedor do modo de vida que estava se


constituindo e, as relações estabelecidas entre pobres livres e escravizados. Os outros
depoimentos nos ajuda a avançar na compreensão de como sobrevivam os pobre-livres. Nesse
sentido a próxima testemunhas era uma mulher pobre “Maria José do Nascimento, mulher
parda, solteira moradora vila que vive de suas costuras” de 46 anos analfabeta. O seu
depoimento, de modo geral, reproduzia o que havia sido dito pelo alferes, no entanto, havia
diferenças denotando o lugar social de onde ela falava, sobretudo por ser vizinha e conviver
no dia-a-dia. Para Maria José as ações dos escravizados e dos “vadios e da gente perdida”
causava incomodo a todos principalmente a vizinhança, que era o seu caso e não apenas aos
homens brancos. Como também afirmações da depoente estabelece uma clara diferenciação
entre ela e seus vizinhos indesejáveis, que são qualificados como gente vadia, perdida
(desqualificada moralmente), ladrões, sem ofício, isto é, sem profissão:

“(...)sabe por ser bem publico que o crioulo querelado escravo de Ignácio dos
Santos não tem sujeição nenhuma a seu senhor (...)sabe pelo o ver que tem uma casa alugada
na Rua do Medeiro onde ela testemunha mora na qual casa faz o contínuo ajuntamento de
outros negros e gente vadia e perdida que jogam e fazem barulhos causando inquietação a
vizinhança não tendo o dito preto outro ofício e também se queixa de que furta para jogar de
sorte que a ninguém obedece nem a seu senhor por mais que o tenha prendido sendo para
todos atrevido e petulante”.

​Esse depoimento é rico para a reconstrução do modo-de-vida dos pobres, mas também, das
relações estabelecidas entre os pobres e os escravizados. Por outro, como os espaços da vila
iam sendo esquadrinhados em uma clara separação entre pobres e ricos. A rua do madeiro,
pelas descrições, fica próximo ao rio Jaguaribe, região do porto dos barcos, uma área
destinada aos desclassificados onde morava uma costureira, um escravo etc.
​Outro processo analisado versava sobre uma tentativa de crime em 1782, também, na vila
de Aracati, era reverso da medalha aconteceu na área rica da cidade.
​Nesse processo, mais uma vez, é possível constatar como sobreviviam os pobre-livres e
como a cor da pele e o trabalho manual eram elementos que desqualificava. Nesse caso, os
litigantes eram representantes de situações sociais extremas: de um lado, estavam os membros
de uma poderosa família cearense representada por Jacinto José da Costa Barros e seu irmão,
o mestre de campo José da Costa Barros, do outro um mulato, oficial de sapateiro, Antônio
Francisco Pereira.
​Esse processo é mais uma peça para ir reconstruindo o modo-de-vida em uma vila
próspera como Aracati, em que os espaços entre pobre e ricos eram claramente delimitados.
Seja nas igrejas em que os sepultamentos denunciavam a posição social das pessoas. Quem
era sepultado no altar mor eram os ricos e os religiosos, os pobres nos altares laterais ou fora
da igreja. Na malha urbana também começava a ser delimitado os espaços. Esse processo é a
demonstração de uma tentativa de romper essas regras. Uma festa que reunia a classe
dominante local, lá estava presente um dos principais charqueadores da capitania Bernardo

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Pinto Martins, que também era detentor da patente de sargento e foi vereador na câmara de
Aracati, vários militares de patente, não era espaço para ser frequentado por um mulato oficial
de sapateiro.
​Os depoimentos era um verdadeiro quebra-cabeça, onde todos incriminavam o mulato
sapateiro por uma tentativa de assassinato, aparentemente sem motivação. O que se destacava,
nos depoimentos, era o caráter facinoroso do mulato, que havia atirado de caso pensado “sem
motivo”. O depoimento a seguir traz um conjunto de fatos que não estava explicitado nos
primeiros, possibilitando ao historiador a montagem do quebra-cabeça. Outro aspecto
importante, na construção dos grupos de interesses, é levar-se em conta que os dois primeiros
depoentes pertenciam ao mesmo grupo social do queixoso e seus depoimentos retratam o
ponto de vista desse grupo, condenando a ação do sapateiro, identificando-o como revoltoso e
que tinha problemas anteriores, argumento que justificaria, plenamente, a ação do mestre de
campo em agredi-lo e colocá-lo em “seu lugar”. Isto é, expulsando-o de uma festa da classe
dominante, local que não era permitida a presença dos pobres-livres.

“(...) o mulato Antônio Francisco oficial de Sapateiro, nesta vila, de propósito e


caso pensado (...) dera o tiro no queixoso por equivocação por que (...) pretendia matar era ao
seu irmão (...) o mestre de campo Pedro José da Costa Barros (...)em razão de que estando
este no principio da noite em Casa de Luiz de Freitas por ocasião do divertimento do noivado
de sua filha o (...) mulato querelado tirara certas confianças as quais lhes estranhou (o) mestre
de Campo e em dispique disto é que o procurou matar,(...) Sabem (...) que o querelado era
revoltoso e tinha tido varias bulhas e pendências nesta vila por ser metido a valente disto sabe
pelo ver, (...)”

​Por outro lado, na recomposição dos depoimentos, aos poucos se revela o motivo da
tentativa de assassinato perpetrada pelo sapateiro. O terceiro depoente, o furriel Manoel José
da Fonseca, que era qualificado como um homem branco, militar, solteiro, idade de 30 anos,
morador na vila de Aracati e que se auto-identificava como tendo a profissão de alfaiate
revelava o motivo da tentativa de assassinato.

“(...)apareceu ali o dito mulato querelado e se embaraçou com umas razões


confiados com o sargento mor Bernardo Pinto o que todos estranharão, e querendo o dito
Mestre de Campo por ser um homem principal deu uns pescoções em o dito mulato e o
puseram na rua e por isso é que sucedeu o referido tiro dirigido [ao] Mestre de Campo (…).”

​O que motivou o tiro teria sido a atitude do mestre de campo agredindo o sapateiro mulato,
por ofender o sargento-mor Bernardo Pinto. No entanto, fica claro a hierarquização dos
espaços e dos cargos. O mestre de campo “por ser um homem principal” tinha que dá o
exemplo não permitindo que um mulato estragasse a festa de um seu subordinado, mas
principalmente dos ricos da vila. Uma festa dos classificados não havia espaço para
desclassificados. ​
​Um outro processo, do mesmo período, era contra Antônio José, descendente de índio,
solteiro, morador nas Lavras da Mangabeira, por defloramento. O depoimento de Joana Maria
Álvares vizinha da vítima, moradora em Lavras da Mangabeira, de 30 anos, casada, era
esclarecedor de como iam construindo estratégias de sobrevivência dos pobre-livres e dos
padrões morais vigentes.

“(...)como vizinha da querelante (Josefa de Sá e Albuquerque) que esta até o


presente sendo (...) muito honesta, recolhida acautelada na companhia de sua mãe Joana
Rodrigues (...) indo o querelado de Pernambuco para aquele lugar e não tendo casa em que se
a recolhesse pediu a mãe da querelante por ser esta sua rendeira, que o deixasse recolher na
sua casa por algum tempo enquanto mandava levantar uma palhoça(…).”

​O depoimento esclarecia qual deveria ser o comportamento das mulheres, preparadas para
o casamento, também revelava mulheres chefe de família como era Joana Rodrigues, que
poderia ser por viuves ou provavelmente mãe solteira mas, criava a sua filha Josefa de Sá e
Albuquerque de forma honesta, recolhida, acautelada, para quebrar o ciclo de ser pobre, ter

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uma filha ilegítima preparando-a para o casamento. O ato de Antônio José, descendente de
índio, poderia perpetuar na filha as condições enfrentadas pela mãe e, só havia uma forma de
reparar o crime realizando o casamento, no caso do criminoso ser solteiro, caso contrário a
filha iria cumprir o desiderato da mãe ser mãe solteira e descriminada socialmente. No
entanto, além do drama vivenciado por essas mulheres, o processo é mais uma peça no quebra
cabeça para entender como viviam os pobre-livres, no caso Joana Rodrigues e sua filha Josefa
de Sá e Albuquerque eram sem terra e para sobreviver eram moradoras de condição na terra
de Antônio José, uma das relações de trabalho que se tornou hegemônica no Ceará até a
década de 1970.
​ s processos, também, revelavam as ocupações exercidas pela população cearense e havia
O
uma diversidade de atividade exercida pelos livre-pobres.
​Dentre as profissões almejada pelos pobre-livres era a de vaqueiro, uma das poucas
ocupações a possibilitar ascensão social. Um dado que chamava a atenção era que em um
período onde predominava o analfabetismo alguns vaqueiros sabiam ler como era o caso de
Rafael Vieira Teixeira, pardo, casado, morador no Mocambo ribeira do Jaguaribe com 40
anos. O outro era Francisco Sales Teixeira, branco, com casta de pardo, solteiro, com 22 anos,
também, sabia escrever.
​Mas havia outras ocupações exercidas pelos pobre-livres como “Vicente Ferreira, que
mostra ter casta de pardo longe, solteiro, morador no Estreito que vive de seu trabalho 22
anos, analfabeto.” Isto é como trabalhadores esporádicos, jornaleiro que era a condição de
pelo menos 18% dos pobre-livres.
​Havia situações pouco comum como era o caso “Antônio Ferreira de Mello, branco,
casado morador nas Traíras arrabaldes da Povoação de Russas vive de suas lavouras e Musica
46 anos” Enquanto as condições vivenciadas por “Antônio de Souza Magalhães homem
branco, casado(...) vive de seu oficio de fazer cangalhas 38 anos” O artesanato era a ocupação
de 13% dos pobre-livres.
​Portanto ao examinar os processos do período (1778-1800), é possível agrupar a população
pobre cearense em várias categorias ocupacionais. Os que se identificavam por sobreviver da
venda de sua força de trabalho. Como vaqueiros, artesãos, agencia e trabalho. Além dos
produtores agrícolas, a categoria mais significativa na segunda metade do século XVIII,
representavam 22%. Essa categoria era complexo, pois aí estavam moradores, arrendatários,
foreiros e pequenos proprietários. Como foi analisado, a partir das informações contidas no
levantamento de 1788. A agricultura, como atividade principal, era majoritariamente exercida
pelos pobres-livres e pequenos proprietários com trabalho familiar. A parcela da população
majoritária dos lavradores poderia ser caracterizada por manter uma relação de
dependência/subordinação aos grandes proprietários de terra, na condição de pequenos
proprietários ou como moradores de condição.
Ocupações dos pobre-livres 1778-1800
Ocupações %
Número de testemunhas (268) 100
Agencia/Trabalho (jornaleiros) 18
Artesanato (sapateiro, costureira, carpinteiro etc) 13
Vaqueiro 7
Agricultores (morador, foreiro, pequeno 22
proprietário)
Fonte: Autos de queixas (arquivo público do Ceará-secção histórica)

​Como se percebe a tabela não fecha 100% pois, classificamos apenas as atividades
exercidas pelos pobre-livres.
​No segundo período, de 1802-1824, foram consultados um universo de 82 (oitenta e dois)
processos com 247 (duzentas e quarenta e sete) testemunhas.
​No período inicial (1778-1800), 15% das testemunhas se auto-identificavam como
criadores de gado, nesse período, caiu para apenas 3,2%. Por outro lado, a agricultura teve
uma expansão significativa passando de 23% para 36,7% das testemunhas que se auto-
identificavam como vivendo da lavoura, o que representava uma expansão superior a 50%.
Essa atividade continuou ser desempenhada, predominantemente, pelos livres-pobres, mas
criadores de gados e comerciantes também passaram a ter na agricultura atividade importante.
Isto é, houve uma mudança do perfil da agricultura em que os mais abastados também

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passaram a se identificar e investir nesse setor.
Ocupações dos pobre-livres 1802-1824
Ocupações %
Número de testemunhas (247) 100
Agencia/Trabalho (jornaleiros) 12
Artesanato (sapateiro, costureira, carpinteiro, 8
ferreiro, ourives, alfaiate, latoeiro, santeiro, oleiro,
seleiro, carapina etc)
Vaqueiro 4
Agricultores (morador, foreiro, pequeno 36,7
proprietário)
Pescador 2

​Como temos afirmado os autos de queixa possibilita a reconstrução do quotidiano dos


pobre-livres, mas também as alianças ou os grupos de interesses que estavam se constituindo.
O primeiro processo a ser analisado, no período inicial do século XIX, foi movido pelo
escravizado a ganho, o preto Manoel, oficial de sapateiro, da viúva Feliciana Lopes de
Freitas, contra a sua mulher a índia Izabel Vieira por adultério. Esse processo é um exemplo
de que é possível recuperar o quotidiano de um escravizado na vila de Fortaleza, as alianças
construídas entre os debaixo e o universo de valores por ele expresso.
​Um africano ou descendente se casando com uma índia, o que denunciava a aliança de
matrizes culturais diversas a se encontrar na vila de Fortaleza. O espaço de negociação
estabelecido pelo escravizado com sua proprietária, uma viuva, que tinha como uma fonte de
renda o ganho do escravo. As condições materiais estabelecidas pelo escravo para preservar o
casamento, a rede de contatos estabelecidas por ele revelada na denúncia, e a decepção com a
atitude adotada pela índia Izabel Vieira:

“do preto Manoel oficial de sapateiro escravo da viúva Feliciana Lopes de Freitas
morador nesta vila, de Izabel Vieira, Índia que casando-se com o suplicante, e fazendo vida
marital, e ele a tinha, e mantinha conforme podia e não obstante ser cativo fez um rancho
onde trabalhava, pagando dois cruzados por semana a sua senhora, e o mais que ganhava
despendia com a suplicada e por isso devendo ela proceder conforme o seu estado, ela o fez
pelo contrario(…),”

​Na petição inicial o escravizado Manoel narrava o seu dia-a-dia, onde se constata que ele
morava em uma habitação precária nos arrabaldes da Vila de Fortaleza, separado de sua
senhora, se comprometia a pagar dois cruzados semanalmente. Como sapateiro estabeleceu
uma clientela e, inclusive fazia serviços fiados pois, enquanto estava doente deixou algumas
contas para serem recebidas por sua mulher para garantir a sua sobrevivência. E na queixa,
quase uma súplica, demonstrado o sacrifício feito por ele, para dar dignidade ao casamento,
resultou na traição da sua mulher. Que ao invés de cobrar as dívidas para se manter de forma
honesta se prostituiu. Por fim, há outro dado a ser destacado, na doença grave ele foi para a
casa de sua senhora para se tratar e mais, o escravizado, na petição, com licença de sua
senhora, argumentava que a índia sem temor a deus o traiu. Tipificava o crime como adultério
e solicitava sua punição:

“porque adoecendo (...) de moléstia grave e para se tratar melhor se retirou para a
casa de sua senhora, e a suplicada ficou no dito rancho, e para se manter lhe deixou dívidas
para cobrar do negócio que fazia, e o mesmo negócio de que tratava ela, sem temor de Deus
se entrou a prostituir com o soldado de infantaria Braz de tal,(…).”

​O escravo solicitava a punição da índia Izabel Vieira por crime de adultério. Esclarece que
para mover o processo obteve licença de sua senhora, e mais, solicitava a punição com prisão
para que ela se corrija, sirva de exemplo para outras mulheres e sobretudo, para a sua própria
satisfação.

“a suplicada deve ser punida pelo crime de adultério que tem cometido, (...), com
o de facto querelado tem para cujo fim obteve licença de sua Senhora que junto oferece, para

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emenda dela exemplo de outras, satisfação do suplicante, portanto, pede ao Senhor Juiz
ordinário (...) e provado quanto baste se passe as ordens necessárias para ser presa,(...)”

​As testemunhas arroladas no processo são, também, importantes para se perceber teia de
relações estabelecidas por um escravizado com os pobre-livres. As três eram vizinhos do
rancho e eram pobres, um deles era carapina, carpinteiro de obras grossas e as outras duas
mulheres solteira, uma cabra e outra que não era branca mas bem parece.
“Simplício de tal solteiro que vive de seu ofício de carapina que mora vizinho=
Maria da Silva mulher cabra solteira, mora vizinha = Anna de Tal mulher solteira que se não é
branca bem parece, mora vizinha”.

​Esse outro auto de queixa é mais uma peça, no quebra-cabeça, para compreendermos
como viviam os pobres livres. Neste caso era um índio Francisco Roque da Silva morava, no
momento, na vila de Fortaleza, se queixando de Januário de Souza, pardo, solteiro, por ter
desvirginado e emprenhado a sua filha com 13 para 14 anos.

“Auto da querela e denúncia que dá Francisco Roque da Silva, índio casado


morador de presentemente na Vila da Fortaleza, como administrador de sua filha Antonia, de
Januário de Souza, pardo solteiro, e de presente preso na cadeia desta vila, por este lhe ter
desvirginado e emprenhado a dita sua filha. [analfabeto]”.

​Há dois aspectos a ser destacado, o primeiro é como os povos indígenas incorporavam os
valores ditados pela sociedade circundante. O argumento do índio era uma reprodução do
discurso católico quanto ao casamento mas, não só o casamento era uma possibilidade de
estabelecer aliança ao afirmar que:

“(...) em sua casa onde morava no sítio das Aroeiras, termo do Aquiraz a dita sua
filha, a qual neste tempo estava com idade de 13 para 14 anos, tratando-a e educando para se
casar com pessoa do seu merecimento, o suplicado com promessa de casamento a entrou a
aliciar (...)”.

​As testemunhas de um modo geral, denunciavam o universo de relações estabelecidas


entre os pobre-livres. Duas das testemunhas são trabalhadores manuais, sapateiros o que era,
no contexto, algo que desqualificava e um terceiro um trabalhador da baixa burocracia
nascente:

“Roque Jose do Rosário casado que vive do ofício de sapateiro morador nesta vila
= Estevam Rodrigues das Neves, casado, vive de ser oficial da Inspeção = José Rodrigues
casado, oficial de sapateiro”.

​Mais um auto de queixa uma peça para compreender como viviam e se relacionavam os
pobre-livres. O marido Pedro José Pereira, com casta da terra descendente de índio,
denunciava duas mulheres e o pai delas por darem uma surra na sua mulher Izabel Maria.
Todos, acusados e acusadores eram qualificados como mestiços.
​Esses processos são elucidativos de como viviam os pobre-livres e de alguma forma põe
por terra a imagem das mulheres tidas como recolhidas e recatadas, essa era deveria ser as
condições para as da classe dominante, não era a mesma realidades dessas mulheres
denunciadas, por surrarem juntas com o pai Izabel Maria. Eram pessoas que o espaço urbano
fazia parte do quotidiano, no trabalho, na interação com os vizinhos e nas desavenças.

“Sumário da querela e denúncia que dá Pedro José Pereira casado sua casta da
terra morador no lugar (...) Sapiranga deste termo, de Rosa de Tal e sua irmã Francisca Luiza
ambas solteiras filhas de Francisco Honório, todas mestiças assistentes no dito lugar e do dito
seu pai por estas darem em sua mulher Izabel Maria”.

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​As testemunhas um era um mameluco, solteiro que vivia de suas lavouras:
“Antonio Jose de Paiva mameluco solteiro morador em [sítio Sapiranga] que vive
de suas lavouras 23 anos”.

​O outro era um homem branco, também vivendo de suas lavouras:


"Francisco Ferreira Couto, branco, casado, morador no sitio Sapiranga que vive de
suas lavouras (...) 30 anos”.

​No Livro de Queixas (1816-1823) continuarei reproduzindo alguns depoimentos para


identificar como viviam uma parcela significativa dos pobre-livres. Veja o que afirmava:

“Ignácio da Cruz, pardo solteiro morador na Varginha (...) que vive de sua agência
idade 19 anos (…). Disse que estando ele testemunha alugado trabalhando em um roçado de
Joaquim Ferreira que parece branco casado (...)”

​Na mesma perspectiva era o depoimento de “Faustino Rodrigues da Silva pardo solteiro
morador na Varginha que vive de sua enxada de idade 25 anos (...)”.
​A outra testemunha era João Manoel de Carvalho, pardo, casado morador na Varginha,
termo [município] da vila do Icó que vivia do seu trabalho, de 25 anos.
​Outro dado importante era quanto à utilização do trabalho livre e escravizado nas mesmas
atividades o que, de alguma forma demostra um processo complexo, e o preconceito em
relação ao trabalho manual é algo a ser examinado como mais cuidado, podendo ficar restrito
aos setores dominantes que tinham pretensões a nobilitação. A resistência dos pobre-livres
deve examinado com relação ao predomínio do tempo de trabalho em relação ao tempo livre.
Joaquim Ferreira, o proprietário que alugava as três testemunhas para trabalhar no seu roçado,
era também proprietário de escravo, tudo faz crer trabalhava lado-a-lado com os livres na
agricultura.
​ utro auto de queixa que nos ajuda a perceber o dia-a-dia dos moradores da capitania foi
O
feito aos 01/10/1807 Povoação de Santa Cruz da Serra de Uruburetama por:

“Francisco Fernandes Tabosa branco solteiro morador nesta Serra de


Uruburetama, de Manoel Lopes de Souza, homem pardo, solteiro vagamundo, por este lhe
haver furtado dois cavalos”.

​As testemunhas eram uma amostra da qualidade e como sobreviviam os pobre-livres na


capitania.
– “Luiz do Rego Cunha pardo solteiro morador nesta povoação que vive de seu
ofício de ferreiro (...) 25 anos (...)sabe por ver que o querelado Manoel Lopes de Souza
furtara os dois cavalos (...) por que foi atrás dele e o pegou em cima de um, e uma rapariga
que ele levava em o outro, e os prendeu (...)”.

​A outra testemunha era pardo, solteiro e vivia de seu trabalho isto é, se alugava e tinha
alguma agricultura:

“Marcos José de Souza pardo solteiro morador nesta povoação que vive de seu
trabalho (...) 21 anos. Analfabeto”.

​Como analisamos os pobre-livres sobreviviam majoritariamente como agricultores, mas,


também como jornaleiros, artesãos, no entanto na tentativa de criminalizar e controlar essa
parcela da população em fins do século XVIII foram editados vários bandos, política
excepcional para combater a vadiagem e o roubo. As autoridades querem fazer crer que um

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dos mecanismos de sobrevivência dos pobre-livres era o roubo. Essa era uma prática de uma
parcela ínfima da população, principalmente em momentos excepcionais como nas secas.
Como propõe Walter Benjamim essa documentação de ser lida a contrapelo. Thompson
analisando a Inglaterra, no mesmo período, faz a seguinte afirmativa: “As cifras são, então,
estimativas impressionistas. Revelava tanto sobre o comportamento criminosos dos
despossuídos quanto sobre a mentalidade das classes proprietárias (que supunham – não sem
razão-que qualquer pessoa sem emprego estável e sem propriedade teria de se manter por
meios ilícitos).”
​Os dados, até então examinados, demostrar as formas de sobrevivência dos pobre-livres,
era nas fazendas de gado como vaqueiros e seus auxiliares ou na condição de agregados na
produção de alimentos, membros dos exércitos particulares, com o trabalho artesanal, no
entanto, os representantes do estado metropolitano a cada passo criminalizava essa população
pela necessidade de controle social sobre ela, inclusive recomendando e criando vilas para
controlar os vadios na segunda metade do século XVIII.
​No contexto da seca de 1792/4, que assolava a capitania, teve continuidade a edição de
bandos para combater os vadios e a vadiagem. Mais uma vez, o governador Feo Torres
lançava um bando para a ribeira de Russas e outras partes da ribeira do Jaguaribe, em que
tornava-se explícito os mecanismos de sobrevivência de uma parcela dos pobre-livres,
principalmente, em um contexto de seca.

“Por quanto tem chegado em repetidas queixas a minha presença que tendo-se
refugiado de outras a esta Capitania inumeráveis vadios, vagabundos, bandidos e facinorosos
de um e outro sexo, e de todas as qualidades, aumentarão excessivamente o número assas
crescido, que já nela havia de semelhantes indivíduos que postando-se uns, e discorrendo
outros por vários lugares das Ribeiras do Jaguaribe e Icó, as tem devastado assolada e
destruído, ainda mais do que mesmo a seca,(...)propondo-se extinguir com violência e
escândalo jamais visto os gados e lavouras das mesmas Ribeiras em danos irreparável de seus
moradores e Real Fazenda(...) chegando a sua dissolução ao extremo de matarem as rezes sem
mais interesse que o de lhe tirarem os couros, e comerem, a imitação das feras, aquela parte
que o mais lhe agrade, deixando o resto nos matos.”

​No entanto, mais uma vez acentuou a importância de examinar o discurso sobre os pobre-
livres a contrapelo como propunha Walter Benjamim. Esse era um contexto excepcional, a
capitania era assolada por uma seca longa agravando as condições dos pobres, que muitas
vezes recorriam a expedientes extraordinários para garantir a sobrevivência. Como, também,
no contexto era fundamental controlar os pobre-livres, sobretudo modificar o seu modo de
vida em relação ao tempo de trabalho. Constata-se que concomitante com a produção do
algodão, exigindo a alteração entre o trabalho continua frente ao trabalho eventual até então
dominante o que vai acentuar o discurso de combate a vadiagem. No entanto, além das ações
coercitivas do Estado metropolitano, o processo de constituição fundiária na capitania do
Ceará, marcadamente excludente, foi um dos elementos essenciais para compreender a
subordinação da população livre-pobre em fins do século XVIII e início do XIX.
O papel do Estado na construção de um discurso sobre vadios e a vadiagem
para justificar a violência sobre os pobres-livres em fins do século XVIII.

​Nesse capítulo examinaremos os mecanismos em que a ação coercitiva do Estado foi
essencial na subordinação dessa população. Mas além do uso da violência, os representantes
do Estado metropolitano também atuaram no processo de normatização do quotidiano das
pessoas, que implicava na observação de regras morais, o que convergia para a aquisição dos
novos valores societários condizentes com o capitalismo nascente, tendo como instituição
fundamental a igreja católica. Dentre os valores a serem incorporados pela população estava o
trabalho regular e disciplinado para produzir excedente, isto é, a alteração profunda na
economia de aprovisionamento. Além do papel da religião fundamental para a produção dos
valores condizentes com as necessidades do capitalismo na capitania do Ceará. O que a
primeira vista parece contraditório a medida em que a base ideológica do capitalismo era
liberal e, em grande medida anticlerical, no entanto, na Inglaterra berço do capitalismo o
papel da religião foi essencial. No entanto, para suprir as demandas do capitalismo nascente
por matéria-prima, a religião foi largamente utilizada por ser, talvez, o único mecanismo
capaz de "convencer” os pobre-livres a alterar o seu modo de vida. Tal opção fez com que a

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própria ética do trabalho não tivesse como referência a concepção liberal, mas, teológica em
que havia uma forte entre a mortificação da matéria, através do trabalho, para purificação do
espírito garantindo a salvação.
​Além da religião, a legislação do passaporte, aplicada na capitania, será um dos elementos
essenciais no estabelecimento dessas normas. O objetivo desse capítulo é analisar como se
deu o processo de incorporação da capitania do Ceará ao circuito da produção algodoeira
submetida à dinâmica do capitalismo nascente e, sobretudo, como esse processo implicou em
mudanças no modo de vida da população pobre-livre. Será feita uma análise dos mecanismos
que foram se constituindo para justificar as ações coercitivas e submeter a população pobre-
livre à produção de excedente. Para analisar como se deu esse processo será examinado mais
um conjunto de normas, expressas em vários documentos que foram produzidos a partir de
1785. O primeiro se deu em função da solicitação feita, pela câmara da vila de Fortaleza,
requerendo cobrança de imposto extra sobre os produtos exportados pelo seu porto, como:
algodão, couros, solas e farinha, argumentando que o imposto arrecadado sobre o gado
abatido no açougue público era insuficiente para cobrir as suas despesas. As memórias
produzidas sobre a capitania, como a do naturalista Feijó, que esteve no Ceará entre 1799 até
a primeira década do século XIX. Além do parecer do governador da capitania, João Baptista
Azeredo Montauri. Essas propostas tinham por inspiração as recomendações feitas pelo
Conselho Ultramarino.
​Na capitania do Ceará, com analisamos, na segunda metade do século XVIII, a população
pobre-livre foi integrada, enquanto força de trabalho na produção de algodão. Como, também,
em outros espaços do Nordeste Ocidental, estudado por Guilermo Palácios, a incorporação da
força de trabalho pobre-livre foi essencial na produção de alimentos, mas, sobretudo, na
produção dos bens que comporão a pauta de exportação da região. No entanto, não foi
necessária a expulsão dos pobres-livres do campo, como estava ocorrendo na Europa,
principalmente na Inglaterra, pois aqui a principal atividade era a agrícola para produção de
alimentos como para exportação, no caso do algodão. O essencial era controlar os passos
dessa população livre-pobre através de políticas como a do passaporte, de combate a
“vadiagem” e da dispersão da população indígena. Recorro, mais uma vez, a Laura de Mello e
Souza ao examinar o processo de desclassificação no Brasil, no período colonial, afirma que:
“No Brasil, como no Ocidente moderno, trabalho decente e honrado é o que se relaciona a
praga bíblica: ‘amassarás o pão com o suor do teu rosto.” A autora, estabelecendo um paralelo
entre o espaço colonial e a Europa, afirmava que uma das diferenças essenciais é quanto ao
passado feudal europeu, que foi desestruturado e as pessoas resistem a se submeterem ao
trabalho sistemático exigido pelo capitalismo na Europa. Enquanto no Brasil, “são o
escravismo e a necessidade de superexploração os principais responsáveis pelo aviltamento
do trabalho, aviltamento esse que torna impossível a compreensão e a persistência das formas
primitivas comunitárias e assistemáticas de trabalho, como foram à africana e indígena.”
Palácios, no estudo sobre os trabalhadores pobres-livres nas capitanias de Pernambuco e
Paraíba, ao analisar o processo de incorporação da população pobre-livre, aponta questões
que são essenciais como: “As condições estruturais da produção nas comunidades
camponesas na época (1759) suas limitadas margens de mercantilização de excedentes e sua
concentração na agricultura de subsistência o que dava lugar a uma desproporção entre o
tempo do trabalho e o tempo “livre”, e a “ociosidade” se destaca como o elemento
característico desse núcleo, sobretudo comparados com um sistema hegemônico centrado no
interminável trabalho do eito dos escravos”. Como analisei, o autor faz outra constatação
essencial para compreender a articulação de um discurso sobre a vadiagem nessa região, em
que se colocava em confronto valores como vadiagem versus desperdício, que é um valor
típico da modernidade. Como também propõe Andrade ao analisar a situação dos pobres
livres na capitania de Alagoas “Essa visão desqualificadora da elite se constituía, a partir do
tenso convívio entre uma sociedade com moderna concepção de tempo, que se erigia na
sociedade capitalista, e um tempo assistemático compartilhado pelos homens livres pobres,
forros e escravos. O tempo vivido por esses segmentos possuía uma coerência diferente do
tempo capitalista, linear, abstrato e contabilizável”.
​No Ceará, o processo de incorporação da população pobre-livre como produtora de
mercadorias foi tardio, quando comparada com a região estudada por Palácios, isto é, no final
do século XVIII e início do XIX, em que esse processo teve início no âmbito da crise
açucareira a partir das primeiras décadas do século XVIII, como afirma o autor: “O vazio
deixado pelas crises das plantações [de cana-de-açúcar] ofereceu as condições favoráveis para
a expansão marginal de estruturas produtivas e formas de organização social que não
dependiam do trabalho escravo e que eram capazes (embora por sua própria precariedade) de

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adapta-se com agilidade às oscilações de um mercado que exigia basicamente tabaco para
comprar escravos e comida para alimentá-los”. Como foi visto, no Ceará o processo começou
a se intensificar a partir de fins do século XVIII, quando se iniciou a produção algodoeira.
​A perspectiva indicada por Laura de Mello é esclarecedora para se examinar esse processo
e perceber o conflito que se estabeleceu entre a concepção de mundo expressa pela burocracia
portuguesa aqui instalada, que incorporava os valores de uma sociedade que se fazia
capitalista, frente ao modo de vida da população pobre-livre, sobretudo dos povos nativos.
​As várias concepções de vadio

​Mais uma vez, recorre-se a Laura de Mello e Sousa, ao afirmar que: "na metrópole e na
colônia, estava em gestação o capitalismo, apesar dos dois espaços estarem intimamente
articulados, as formas como o capitalismo estava sendo gestado teve suas particularidades,
devido ao contexto histórico”. Nessa perspectiva é importante prosseguir examinando como
ocorreu a subordinação da população livre-pobre, numa região que predominava um modo de
vida tipicamente agrário.
​Um dos eixos da investigação é acompanhar como vão se alterando os discursos e as
práticas de combate a “vadiagem” a partir do final do século XVIII, para se perceber como se
construíram historicamente justificativas para subordinar a população pobre-livre.
​Para a instituição do capitalismo tornar-se efetiva, era essencial ter o controle sobre a força
de trabalho. No entanto, não se pode imaginar que a lógica do capital se impõe da mesma
forma nas mais diversas partes do planeta. O capital tem uma lógica que lhe é imanente, no
entanto, a lógica não se impõe sem levar em conta o contexto histórico. A situação histórica
da capitania do Ceará, do final do século XVIII, era bem diversa da Inglaterra, em que a
expropriação crescente da população servil obrigava milhares de camponeses e trabalhadores
sem terra a migrar para os centros urbanos. No Ceará, como de resto na colônia, os centros
urbanos eram extensão do mundo rural. Na capitania do Ceará como em outras regiões das
capitanias subalternas a Pernambuco, situada nas franjas da produção principal, cultivo de
cana, se desenvolveu uma importante atividade agrícola para a produção de alimentos e no
período em análise, a maioria da população pobre-livre tinha como principal ocupação uma
economia de aprovisionamento, o que significava a produção, essencialmente, de valores de
uso e os trabalhadores resistiram a produção de excedente, visto que isto implicaria em
mudança radical do seu modo de vida como analisou Palácios nas capitanias de Pernambuco e
Paraíba.
​De outro lado, era essencial elaborar mecanismos para justificar o controle sobre essa
população. Nesse contexto será examinada a construção de um discurso e de uma prática para
justificar a coerção exercida pelo Estado na subordinação da população pobre-livre. Laura de
Mello, analisando as medidas adotadas para combater a vadiagem nas Minas Gerais, na
primeira metade do século XVIII, fez uma síntese sobre o conceito de vadio para essa região e
que se presta para a região da pecuária, apesar de conterem as suas especificidades, quando
afirma que era considerado vadio o: “Trabalhador esporádico, homem desprovido de dinheiro,
criminoso, ladrão, sublevado, revoltoso e até mesmo potentado dissidente, eis algumas das
conotações assumidas pela personagem do vadio colonial.” Apesar dessa gama de indivíduos
que são incorporados à condição de vadio, na prática recaiu essencialmente sobre a população
pobre-livre, como afirma a própria autora. A investigação ora realizada esta demonstrando
situação idêntica para o Ceará. Para tal farei, mais uma vez, à análise dos bandos, legislação
excepcional.
​Em 1786 o governador Montauri responde à consulta feita pela Secretaria de Estado e em
decorrência reeditou o bando de 1783. Essa é uma fonte importante para se perceber a
constituição do discurso e das práticas adotadas contra os ditos vadios. Montauri, nesse
bando, também já se referia à polícia do passaporte, que ganhou efetividade nas primeiras
décadas do século XIX. Nesse contexto, quando estava apenas iniciando a produção
algodoeira, a preocupação que se destacava era com o combate à criminalidade, mas também
a vadiagem. O governador chegou a listar os crimes cometidos na capitania e nessa lista está
nitidamente enunciada a categoria de crimes como: roubo, mortes, deflorações etc. Afirmava
ainda o governador que a primeira obrigação era garantir a tranqüilidade da população.

“Porquanto conheço que uma das mais rigorosas obrigações que no governo desta
capitania me são impostas é a de conservarem a tranquilidade, e paz dos povos dela,

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amparando, e defendendo os bons, e pacíficos dos insultos, e despotismos dos maus, e
perversos; e tendo a este fim aplicado(...) as providências que o tempo tem permitido, (...),
vejo que elas não tem sido bastantes a reprimir a inveterada malícia, com que um crescido
número de homens cabras, e outros desta categoria infestam estes sertões, cometendo a cada
passo roubos, homicídios, deflorações, e outros horrendos delitos, (...)”

​O governador identificava os cabras como o alvo das ações repressivas. Esse termo tinha
algumas conotações, em termos étnicos era a população resultante das relações entre índios e
negros, mas também, vai se transformando em qualificativo negativo que recaia sobre a
população pobre. Nesse sentido, o objetivo do governador era combater “a inveterada
malícia” da população cabra. No discurso fica explícito como essa parcela da população era
qualificada: “peste que infestava o interior da capitania”. Um dos mecanismos apontados para
coibir a criminalidade era a aplicação da polícia do passaporte. Para que essa política se
mostrasse eficaz, Montauri propunha a montagem de uma estrutura policial que ia do
governador aos comandantes do distrito policial nas vilas e povoações. A primeira regra,
dessa proposta de política repressiva, era que todas as pessoas deveriam ter passaporte
(identidade) quando fossem se movimentar de uma vila para outra. Segunda regra: sempre
que a pessoa fosse fazer algum deslocamento era obrigada a solicitar autorização da
autoridade policial, de seu distrito, informando para onde iria e quanto tempo ficaria na
localidade. Por fim, ao chegar à nova localidade era obrigada a se apresentar ao comandante
de distrito policial.
​O bando ainda ressaltava como a principal preocupação combater a criminalidade, isto é,
proteger a propriedade privada. No entanto, rapidamente essa proposta vai se voltar para
controlar os que resistiam ao trabalho e os desertores. Montauri, no entanto, destacava que os
principais responsáveis pela perpetração dos crimes eram os senhores de fazendas, criadores
de gado.
​Para denunciar a gravidade dos crimes, que são cometidos sob a proteção dos criadores de
gado, o governador recorre a vários argumentos sendo o primeiro deles os relacionados aos
preceitos religiosos. Estes argumentos também foram utilizados para justificar a violência
sobre a população pobre-livre para obrigá-la a se subordinar.

“(...)as ordens, que tenho dado para que ninguém transite sem passaporte; e
também porque muitos senhores de fazendas de gados, esquecidos até das obrigações de
Católicos, conservam nelas muitos dos sobreditos indivíduos Criminosos, e desertores com o
diabólico interesse de serem executores das suas paixões, sem que as penas estabelecidas nas
Leis Militares, e Civis contra os fautores de semelhantes delinqüentes, lhes imprimam o
respeito, e temor devido; tudo prejudicialíssimo à República, e as mesmas fazendas de gados,
que destroem roubando-os para se sustentarem; e assim mesmo ao comércio, e a real Fazenda,
como é patente, e me consta por várias representações.”

​E mais, de acordo com o governador, a ação dos proprietários protegendo os criminosos


era prejudicial à propriedade, à economia, aos interesses da metrópole, prejudicando o
comércio, reduzindo a arrecadação de impostos, isto é, a coisa pública. Como afirma Laura de
Mello e Sousa, para Minas Gerais, os potentados ricos também poderiam ser classificados na
condição de facinorosos. No Ceará, também, se constata essa situação. Era comum a
formação de exércitos particulares para defender os interesses privados dos proprietários no
enfrentamento aos seus desafetos. Tais exércitos foram usados nos conflitos entre os grandes
proprietários em disputa pela terra, como ocorreu entre as famílias Monte e Feitosa na
capitania do Ceará, a partir de 1725.
​Em outro trecho, Montauri destaca a preocupação com o controle da população dita vadia.
O governador vai listar os “predicados” para alguém ser considerado vadio e o papel que deve
desempenhar a polícia para garantir o combate à “vadiagem e à ociosidade”.

“(...) e os mesmos Oficiais, e a todos os dos outros distritos desta capitania,


senhores de fazendas, e outros quaisquer moradores, que cada um nos seus distritos examine
as ocupações dos sujeitos que neles residem, não consentindo homens alguns vadios, e
ociosos, que não vivifiquem o ofício, trabalho, ou negócio de que vivem:”

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​A determinação era enfática ao ordenar aos criadores de gados, oficiais de milícias e aos
moradores em geral, que aqueles que não vivifiquem o ofício, isto é, não exercem qualquer
atividade produtiva são considerados vadios e devem ser banidos da capitania. O termo
vivificar pode significar dar vida, conservar a existência, mas, sobretudo nesse contexto,
fecundar, no sentido da canção popular de fecundar a terra, produzir.
​O que se pode constatar, também, é que a imensa maioria da população cearense não tem
ofício, vivendo da atividade agrícola para seu próprio sustento comercializando uma parcela
para satisfazer as suas necessidades, uma atividade exercida pela população pobre-livre, e só
uma parcela reduzida dos abastados eram criadores. Além do mais, a esmagadora maioria da
população não tinha a propriedade da terra e só a acessava subordinado aos interesses dos
proprietários. A maioria esmagadora dos predicados para ser considerado vadio recaiam sobre
os pobre-livres. E mais, o governador recomendava aos comandantes de distritos policiais e
aos fazendeiros que adotassem procedimentos para não consentir homens vadios no seu
respectivo distrito e fazendas.
​Mas o morador muitas vezes exercia uma função dupla de trabalhador e ao mesmo tempo
capanga. Também contra essa possibilidade, o governador vai fazer uma recomendação
explícita de que só deve permanecer na propriedade os que forem necessários para exercer as
atividades relacionadas com a agricultura e a pecuária, procurando inibir a formação de
exércitos particulares. Outra preocupação que se tornou constante neste período era quanto à
dispersão da população livre-pobre, principalmente a população indígena, pois as vilas
indígenas deveriam se transformar em uma fonte segura para fornecer força de trabalho. A
dispersão da população pobre-livre implicaria na perda de controle dessa população pelo
Estado e a transferência desse controle para os grandes proprietários o que a tornaria uma
força de trabalho particular, impedindo ou ao menos restringindo a mobilidade dessa parcela
da população para atender a demanda de outros proprietários. O controle particular de alguns
proprietários significaria que essa força de trabalho ficaria cativa a poucos, além de fortalecer
o poder privado deste, pois os moradores podiam ser rapidamente transformados em cabras
ou capangas para as disputas particulares. Sob o controle do Estado, haveria a possibilidade
de deslocamento e utilização dessa população como força de trabalho para as atividades que
começavam a despontar, como a agricultura para exportação, mas, sobretudo, encontrar
mecanismos para obrigar a mesma a se dedicar à produção de excedente.

“e aos senhores de fazendas, que nelas não constam mais que aqueles homens
necessários que ocupam na Criação dos gados, e cultura de plantas, (...)”

​O governador reiterava aos fazendeiros para não aceitarem criminosos ou desertores. A


ênfase recaia sobre os desertores, que caso fossem identificados deveriam ser presos,
concedendo aos fazendeiros o poder de polícia. Agindo ao contrário, poderiam ser punidos
com a mesma pena. Além do mais, as autoridades policiais subalternas deveriam comunicar
ao governador todos os dados disponíveis sobre o preso.

“os quais de nenhum modo sejam criminosos, ou desertores tanto desta como de
outra qualquer capitania; e que sabendo são tais, os prendam logo, e remetam á (...) cadeia
tudo sob pena de prisão, e das mais estabelecidas nas leis: que os (...) oficiais, e comandantes,
logo que no seu distrito apareça sujeito desconhecido sem passaporte, o prendam, e remetam
á cadeia mais vizinha dando me imediatamente parte circunstanciada com a qualidade do
preso, naturalidade, e com todas as particularidades, que dele souberem, e puderem conhecer
por informações.”

​Montauri relatou o rosário de crimes que foram cometidos pelos grandes proprietários,
mas, sobretudo, aqueles perpetrados pela família Feitosa. A partir dessa constatação sobre os
crimes cometidos pelos grandes proprietários e seus agregados, o governador indicava outra
fonte de verbas para a construção das obras públicas reclamadas pela câmara de Fortaleza,
que seria a cobrança de taxas sobre cada criminoso que esteja agregado nas fazendas. Para
justificar a proposta, Montauri fez uma série de acusações contra a família Feitosa, que era a
maior proprietária de terra na capitania. Essa família havia caído em desgraça a partir de
1725, quando iniciou uma guerra contra a família dos Montes. Os Feitosas foram acusados de
desafiarem as ordens das autoridades para depor armas, além de serem acusados, em devassa,

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por vários crimes. Em 25 de janeiro de 1725 o capitão-mor (governador) Manuel Francês
suspendeu de seus postos o coronel Francisco Alves Feitosa e o comissário Lourenço Alves
Feitosa, cabos das ribeiras dos Inhamuns e Quixelou. E, mais de meio século após, estes
acontecimentos estavam vivos na memória dos governantes, mas também da população local.

“Outro meio que me ocorre, e que aqui aponto, e lembro para poder se levantar
dinheiro para as sobreditas obras públicas é o seguinte que é outro imposto sobre o vício, ou
crime, Já fica dito que esta capitania abunda escandalosa, e exuberantemente em malfeitores,
vadios, e peralvilhos, e que esta má gente tem acolhimento, e protecção por outros de
semelhante categoria, que são mais ricos, e por isso poderosos nesta comarca, especialmente
pelos régulos, e sublevados Feitosas da ribeira dos Caratiús, essencialmente na Casa, e
fazendas do Coronel Miliciano Manoel Martins Chaves chefe da família dos mesmos Feitosas
dos ditos Caratiús, e pela mesma forma na Casa, e fazendas de seus Irmãos, e nas de seu
sobrinho a ele em tudo semelhante Bernardino Gomes Franco; e na Casa finalmente de todos
os parentes, e família dos ditos Feitosas; e amparados, e protegidos, como disse, os ditos
facinorosos não experimentam o castigo que as leis determinam sobre os horrendos delitos
que eles aqui a cada passo perpetram e se acaso algum deste facinorosos chega a ser preso,
fica na cadeia, e nela morre, se acaso a sua indústria lhe não dá lugar a poder escapar da
mesma cadeia, como também freqüentemente aqui sucede (...)”

​É importante destacar que a referência aos ricos potentados também revela a incapacidade
do Estado metropolitano em estabelecer a ordem interna dada à fragilidade das instituições no
espaço colonial, sobretudo devido à reduzida presença do aparato policial para fazer cumprir
as determinações, seja pela autoridade que ocupava a função executiva, no caso o governador,
ou a judiciária (ouvidor-mor). Isto de alguma forma explica o poder privado que vai sendo
constituído pelos grandes proprietários de terra, que em muitas ocasiões se sobrepõe ao poder
público, como pareceu ser o caso da família Feitosa no Ceará.
​Retomando os argumentos utilizados por Montauri, para combater a criminalidade, perante
o Conselho de Estado, este propõe que deveria ser articulada uma ação conjunta com os
governos das capitanias vizinhas.

“(...) por isso horrorizado eu do que tinha notícia, e do que via por isso a dar todos
aquelas providencias que julguei úteis, e necessária afim de evitar os contínuos malefícios que
estes facinorosos aqui praticam; e pela outra parte também para que os ditos criminosos
pudessem ser prezo, e se revendo, e fazendo para isso uma concordata com os Governos
circunvizinhos as desta capitania, para quem mutuamente auxiliando-nos pudéssemos
perseguir a todos os ditos facinorosos em qualquer das ditas capitania, afim de que pudessem
ser presos, e remetidos ás justiças respectivas como já disto mesmo eu dei conta a informei a
V.Exa pela minhas antecedentes Cartas, (...)”

​O governador ressaltava o processo conflituoso que se desenrolava entre os representantes


do poder português, no âmbito da capitania do Ceará. De outro lado, as mesmas queixas eram
feitas pelo ouvidor-mor contra o governador. O que se constata é que ambos procuravam
sensibilizar o poder metropolitano para garantir-lhes mais espaço de ação e muitas vezes
utilizavam o argumento de combater o crime para concentrar maiores atribuições. Essa
estratégia torna-se explícita na proposta do governador ao procurar assumir as atribuições da
justiça, invadindo a alçada do ouvidor geral. No entanto, apesar do conflito de atribuições,
tanto Avellar (ouvidor) como Montaury (governador) têm ponto de vista semelhante quando a
avaliação recaia sobre a população pobre-livre. Montaury, por exemplo, qualificava essa
população como povos rústicos.

“(...)porem infelizmente tenho o desgosto de ver que nenhuma destas, e outras


providencias com que me lembrei poder atalhar os danos ponderados, e ainda outros, e fazer
castigar os réus, tem tudo o seu êxito talvez porque os Ministros da Justiça desta capitania,
devendo ser quem se desvelassem nestas observâncias, e me coadjuvassem como eram
obrigados, sejam os que iludam, e perturbem o que eu determino, como aqui, com
demonstrações não equivocas, de alguma maneira se tem evidenciado, fazendo supor a este
rústicos povos, que eu nenhuma autoridade tenho pelo meu lugar para determinar o que tenho
determinado,(...);”

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​Pela passagem acima fica explícita a disputa de poder que havia entre o capitão-mor
governador e o ouvidor geral. O governador acusava o ouvidor de ser um dos pontos de
desagregação ao desobedecer às determinações metropolitanas e procurava demostrar com
suas ações que o governador não tinha poder. As acusações feitas contra a família Feitosa, que
não se restringiam a esse grupo familiar, apontavam para um problema a mais a ser
enfrentado pelo Estado, na tentativa de incorporar a capitania do Ceará como produtora
agricultura comercial. Estratégia que era essencial na busca de novas fontes de recursos para a
combalida economia metropolitana, devido à crise da produção de ouro no Brasil. O problema
a ser enfrentado era, além de “convencer” a população livre e pobre a produzir excedente,
fazer ver aos proprietários que eles deveriam colaborar com os planos da metrópole, o que
implicaria, por exemplo, em abrir mão de seus exércitos particulares. Exércitos compostos
pelos “cabras” que ficavam arranchados na fazenda, executando serviços esporádicos e sendo
utilizados, muitas vezes nos assassinatos dos desafetos dos grandes proprietários, esses
exércitos se transformaram em instrumentos fundamentais para o estabelecimento e
manutenção do poder dos grandes proprietários locais. Abrir mão dos “cabras” era colocar
seu poder em risco, principalmente, em um contexto onde a presença do Estado era frágil e o
poder dos proprietários se sobrepunha no âmbito local. Um dos argumentos de Montaury,
para sensibilizar o poder metropolitano, mas, sobretudo, para colocar os proprietários em
situação de dificuldade era ressaltar a condição de católicos, o que implicaria a observação de
determinados preceitos e obrigações. Uma das recomendações apresentadas pelo governador
era a retirada dos criminosos das fazendas, que eram utilizados para cometerem delitos,
devendo ser mantidos apenas os trabalhadores necessários para o trabalho na pecuária e na
agricultura cultivada de forma subsidiária.
​Mais uma vez o governador Montauri faz pesadas acusação contra os grandes
proprietários, sobretudo em relação aos Feitosas. Afirmava que estes são ricos, protegidos da
justiça e os crimes por eles praticados não se restringiam ao âmbito da capitania, mas,
também a proteção aos desertores vindo de outras regiões do Brasil.

“por isso antes maiores relaxações se permitem, principalmente os já ditos


Feitosas, que são, (...), os mais audaciosos, insultores, e os mais bem amparados, e
favorecidos das Justiças desta capitania, porque são ricos, como é aqui tão manifesto, e claro
como a Luz do Sol: e se estes Feitosas, e outros de semelhante categoria se contentassem só
de serem protetores dos dessertores não só da Tropa desta capitania, mas de todas as do
Brazil, porque de todas elas se refugiam, esse acolhem á protecção dos ponderados, e
régulos;”

​Outra modalidade de crime cometido pelos proprietários, passava a preocupar o


governador, a proteção aos vadios e à “vadiagem”. Como se explicita na citação abaixo:

“esse contentassem pela outra parte com ampararem os facinorosos cabras,


mestiços, e outra gentalha de semelhante categoria, isso mesmo era assas criminal, e punível;
porem com o amparo que fazem a estes malfeitores, e a todo gênero de vadios, e peralvilhos,
(...)”

​A acusação do governador envolvia um conjunto de incriminações graves, dentre elas


insinuava a conivência da justiça com os desmandos dos grandes proprietários. O que havia
era uma disputa de atribuições entre o governador e o ouvidor. É óbvio que os crimes
ocorriam no entanto, a disputa surda entre os representantes do poder metropolitano na
capitania era um ingrediente a mais no contexto. O que denotava certa parcialidade na fala do
governador. No entanto, a despeito dessa situação, é possível constatar que a tradição dos
proprietários como protetores de criminosos se estendeu até a década de 1960 e, na maioria
das vezes, os cabras se transformavam em matadores utilizados para cometerem os crimes por
eles encomendados. No entanto, para o governador o crime mais grave cometido pelos
proprietários era a proteção que davam aos “vadios”.
​Outro tema ressaltado, pelo governador, era em relação às vilas de índios e a sua
população e, o tom das denúncias era o mesmo em relação aos procedimentos adotados pelos
grandes proprietários de terra. Mais uma vez os proprietários são acusados de impedir a ação

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da justiça, por aceitarem nas suas propriedades os índios fugitivos das vilas, esvaziando de
sua principal função, que era ser um repositório de força de trabalho. Essa situação se tornou
aguda para o projeto de colocar à disposição dos mesmos proprietários, ou de “incentivar” a
produção de alimentos e algodão no final do século XVIII. O seu esvaziamento causaria
grandes dificuldades para a implementação da agricultura, mas, sobretudo, para a garantia de
uma força de trabalho regular que estivesse à disposição dos proprietários.

“(...)se permitem o outro absurdo, qual é não só o de acolherem, e conservarem


nas suas casas, e fazendas, os índios, que das suas vilas, por crimes, culpas, ou por vadiação
fogem para das mesmas para a proteção dos ditos régulos, e poderosos,(...)”

​Fica explicitada na passagem seguinte, que a preocupação do governador não era apenas
com a impunidade ocasionada pela fuga dos índios, mas sobremaneira como processo de
esvaziamento destas vilas, inviabilizava o controle dessa população. Sendo assim, perder o
esse controle era correr o risco de inviabilizar o projeto de desenvolvimento da capitania e
sobretudo admitir a vadiagem.

​“mas também que é mais, o de desinquietarem, e seduzirem os mesmos índios


para deixarem as ditas suas vilas; com o que se vem aqui as mais escandalosas, e relaxadas
emigrações dos mesmos Índios, e as suas vilas reduzidas a uns quase desertos;(...)”.

​O crime dos proprietários, de acordo com o governador, não se restringia à proteção aos
vadios, desertores, mas, o incentivo à fuga dos índios de suas vilas era considerado tão grave
e danoso quanto os crimes acima mencionados, por colocar em risco as propostas
estabelecidas através do Diretório Pombalino. No trecho a seguir se explicita, ainda mais, a
preocupação do Estado com a perda de controle sobre essa população. Em um período em que
a produção algodoeira começa a se tornar importante mercadoria na pauta de exportações da
capitania exigindo a mobilização de força de trabalho. A alusão à polícia e à direção da vila é
significativa, pois o diretor era um branco encarregado de administrar as vilas até que os
índios fossem capazes de fazê-los. O diretor exercia, dentre outras funções, a de distribuição
da força de trabalho e a polícia era quem tentava controlar os passos da população para
impedir a dispersão.

“(...)porque destes índios tiram eles o partido de gratuitos servidores, e os mesmos


índios se lhes não dá disso, contanto que os deixem viver, como entre os ditos protetores
vivem, em uma criminal liberdade, porque o que querem é fugirem da polícia, e direção, em
que nas suas respectivas vilas devem viver, (...).”

​O governador também apresentava como um dos mecanismos para combater os vadios e a


ociosidade o trabalho forçado nas obras públicas, como forma de reparar os crimes, o que se
tornou efetivo no início do século XIX. Na correspondência do governador aos comandantes
de distritos era uma constante a informação de que o preso estava trabalhando em obras
públicas para pagar pelos seus erros, como se constata no ofício dirigido ao diretor da vila de
Arronches (Parangaba). No entanto, mais uma vez, se explicitava a disputa entre o
governador e o ouvidor geral, com o primeiro procurando invadir as funções do ouvidor. O
governador propõe que seja autorizada, pela autoridade real, a ação privativa do governador
no combate à vadiagem, sendo um dos castigos o trabalho forçado nas obras públicas e outras
atividades.

“(...)obrigando-se pela outra parte aos que foram unicamente vadios, e ociosos, a
que trabalhem eles mesmo nas obras públicas, e em todas as mais da causa pública; e que este
objeto de polícia seja privativamente incumbido á vigilância, inspecção, e autoridade dos
governadores desta capitania, por positiva, e muito particular recomendação, e ordem de Sua
Majestade, porque só assim poderá ter êxito permanente o que lembro (...)”

​Montauri vai propor que seja montada uma estrutura jurídica tendo como base de

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sustentação os juízes ordinários, que eram eleitos juntos com as câmaras municipais, um
grande proprietário (homem bom). Essa proposta praticamente esvaziava as funções do
ouvidor, que fazia suas correições anuais e era nesse momento que os processos eram
movidos no âmbito das vilas. Para além das disputas entre os representantes do Estado
português na capitania, o governador propunha punição para os grandes proprietários. Os
juízes ordinários fariam um levantamento dos protetores e dos protegidos, para que eles,
privativamente definissem as penas em que incorreram. Os proprietários pagariam em
dinheiro ou bens. É importante destacar, mais uma vez, o olhar de Montauri recaia sobre os
índios dispersos, mas, também, sobre toda ordem de desertores, vadios, facinorosos e
bandidos, peralvilhos. As vilas de índios, em particular, foram concebidas para se
transformarem no mais seguro repositório de força de trabalho, para tanto era fundamental
controlar os passos dessa população e impedir a sua dispersão.

“e para que se conheça quais sejas os protetores dos ponderados desertores, dos
dispersos Índios, e finalmente dos peralvilhos, vadios, facinorosos, e bandidos que tenho
falado, se determine também por ordem Régia, que cada um dos Juízes Ordinários desta
capitania nos seus respectivos departamentos sejam uns Juízes Comissários da Polícia nesta
parte, debaixo da imediata inspecção, e vigilância, de que tenho falado, dos Governadores
desta capitania, e que cada um dos referidos Juízes por uma particular, e privativa devassa
inquira sobre este objeto de Polícia, e regulação para se conhecer assim de condição do
protetor, como da quantidade dos protegidos, e que fixada a devassa a remetam os ditos juízes
ao Governador para este fazer executar as penas pecuniárias de que tenho falado. (...)”

​Torna-se explícita a tentativa de transformar em direito privativo do governador as ações


para controlar a força de trabalho, colocando sob sua jurisdição a ação dos juízes ordinários
que estavam subordinados ao ouvidor. Logo a seguir, o governador procurava demonstrar a
viabilidade de sua proposta sobre à cobrança de imposto aos fazendeiros. A proposta, apesar
de não está clara sobre o quanto seria cobrado pelo crime, deixa implícito que o valor deveria
ser equivalente ao número de protegidos ou, usando a linguagem do governador, de
desertores, índios dispersos, vadios, facinorosos, que tivesse em cada fazenda serviria de base
para o cálculo do valor do imposto a ser cobrado. O governador também propôs como deveria
ser a modalidade de cobrança, apontando simplesmente para o confisco de bens dos
fazendeiros que fugissem.

“E porque parecera que a execução, ou para melhor dizer a arrecadação deste


imposto que me ocorre,(...), poderá ser de alguma dificuldade, devo ponderar o que me ocorre
por outra parte(...).Todos os ponderados indivíduos protetores são afazendados para poderem
sustentar aqueles séquitos, e pela maior parte são donos de fazendas de gados assim vacuns,
como cavalares; e por isso posto que suceda fugir o regulo protector, ele sempre há de deixar
bens desta espécie que são de difícil transporte, sobre os quais se deve logo fazer apreensão
correspondente, que é o objecto essencial a que se encaminha a minha diligência,(...)”

​Desta forma, acreditava o governador que poderia reprimir a ação dos proprietários na
proteção dos criminosos, sobretudo para inibir a ação dos vadios e da vadiagem na capitania
do Ceará.

“além do outro muito mais essencial da diminuição, e se possível for da total


extinção, dos ditos facinorosos;”.

​E mais, para garantir a eficácia das investigações, o governador propunha que estas seriam
feitas em sigilo e os seus resultados enviadas para o governador.

“e tirada a referida devassa, de que tenho falado, com o segredo competente,


sendo ela remetida serrada com o mesmo segredo á Secretaria do Governo desta capitania,
não se pode tomar a conseqüência de que transpirando a realidade do Crime, deserte o
regulo:”

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​Em seguida, o governador apresentava o plano de como deveria ser executada a cobrança
do novo imposto. Esse plano envolvia o juiz ordinário, via de regra um grande proprietário,
eleito junto com a câmara, o capitão-mor da ordenança ou comandante de distrito, no caso da
família Feitosa desde o período colonial foi a representante do Estado português na região dos
Inhamus. Portanto, seriam os grandes proprietários executando uma legislação contra os seus
pares. Apesar das disputas que havia entre estes as dificuldades de execução dessa
modalidade de legislação era previsível, principalmente frente a um Estado frágil, como se
constata pelo exame da memória apresentada pelo governador Montauri, no final do século
XVIII, em que ele afirmava para a rainha de Portugal a fragilidade das forças pagas da
capitania do Ceará. Por outro lado, as forças de milícias eram compostas e mantidas pelos
grandes proprietários e, dificilmente, somente em caso excepcional, voltariam suas armas
contra os seus iguais. Nesse período, havia uma imbricação entre o interesse público e
privado os interesses dos grandes proprietários se confundiam com o do Estado, até mesmo
para garantir a segurança. Sendo assim, os grandes proprietários que eram parceiros do
Estado, quando era necessário e do seu interesse, atuavam para impor normas contra os
pobres-livres. Havia relatos das próprias autoridades locais em que muitas vezes eram
impedidos de entrar nessas fazendas (unidade produtiva da pecuária), mesmo tendo ordem
judicial, para prender os criminosos foragidos da justiça. No entanto, o próprio governador
deixa claro a fragilidade da força policial para fazer valer a sua proposta:

“Para suprirem a falta de tropa paga, na ocorrência de alguma precisão, há na


capitania já alguns Terços de Auxiliares, porem ainda não são quantos podem ter à proporção
da população dela podem criar-se de novo mais alguns, encarregando de os exercitarem
oficiais em quem haja suficiência”.

​Por fim, Montauri detalhava como deveria ser efetivada a cobrança do imposto. Como
afirmado acima, a possibilidade de efetivação do processo era difícil e, ainda mais a cobrança
do imposto, já para que isso ocorresse era necessário não só invadir as fazendas, mas ainda
fazer o confisco dos bens e colocá-los em leilão público. Nos leilões para estabelecer a
cobrança do dízimo, que era o mais importante imposto cobrado sobre o gado, muitas vezes
não aparecia arrematador. Quem se arriscaria na arrematação de bens confiscados de um
grande proprietário, já que a presença do Estado era extremamente débil.

“E que logo o Governador passe a ordenar que o mesmo Juiz acompanhado dos
seus respectivos Oficiais, e assistido do capitão-mor da ordenança, ou comandante do
respectivo distrito vão com agente necessária ao lugar, e fazenda do que for dono
compreendido réu protetor na mesma devassa, a apreender as rezes que forem suficientes para
o embolso do que tocar ao dito regulo, ou protetor, e das ditas rezes vendidas logo em praça
pública com as solenidades legais, se receba do comprador o correspondente valor em
dinheiro para ser remetido com as devidas seguranças, ou ao cofre desta câmara, ou ao da real
fazenda com a aplicação positiva das obras públicas, de que se tem tratado,(...)”.

​Comparando-se com a proposta do ouvidor geral, que adotava as sugestões apresentadas
pelo conselho ultramarino, em que o imposto recaía sobre os pobres-livres e a do governador
geral propor que os grandes proprietários, também, fossem penalizados por cometer e facilitar
a atuação dos “criminosos”, era uma proposta de difícil execução diante do que foi afirmado
acima.
​O bando de 1783 do governador Montauri, reeditado em 1786, representava um processo
de transição entre as propostas de combate ao crime de forma genérica e as propostas que, a
partir desse contexto, iriam especializar-se em um crime específico, o da vadiagem.
​É importante também destacar que a partir de 1777, com o início do governo da rainha
Maria I, houve mudanças importantes nos rumos da política que vinha sendo implementada
durante o governo de D. José I, sob a égide do marquês de Pombal. Uma das mudanças
ocorreu nas instituições culturais. As “novas reformas realizaram-se nas instituições culturais,
ofuscando a antiga centralidade da Universidade de Coimbra. Em primeiro lugar, a Academia
Real de Ciência foi se impondo como novo reduto de saber da corte de Dona Maria. Criada
por aviso régio de 24 de dezembro de 1779, a Academia se dedicaria não apenas a um ramo
de estudos (...), propunha-se a estudar e difundir variados setores do conhecimento, desde

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literatura e história até as ciências naturais, agricultura e economia”. As mudanças foram
essenciais em relação ao espaço colonial, principalmente no que diz respeito à orientação
econômica. Na capitania do Ceará é possível constatar a nova orientação da Academia Real,
cuja principal preocupação “era racionalizar para gerar lucro e maneiras mais diretas de
controle por parte da metrópole portuguesa”. Nessa perspectiva é importante examinar a
solicitação feita pela Câmara de Fortaleza à rainha D. Maria I, mas, sobretudo, a resposta do
Conselho Ultramarino.
​Veja como os argumentos eram articulados. Primeiro, a rainha aprovou a proposta da
câmara de controlar e combater a “ociosidade” da população. Tais preocupações se
coadunavam com aquelas destacadas pelo governador e o ouvidor geral da capitania, as duas
principais autoridades representantes da administração metropolitana.
​O principal argumento utilizado pela câmara de Fortaleza era que os crimes aumentavam
devido à falta de punição dos criminosos, devido a falta de cadeias seguras para impedir as
fugas constantes. A construção de cadeias era apresentada como essenciais para reduzir a
criminalidade e a resposta do Conselho Ultramarino aprovava a proposta:

“Tendo sido presente a Sua Majestade a conta que essa Câmera dirigiu a Real
presença em 29 de Dezembro próximo passado, em que representa a necessidade de edificar
casa de câmara e cadeia, e de se fazerem as outras obras indispensáveis; para o que requer a
mesma câmara, que se imponha um direito sobre o algodão couros salgados, e solas que se
exportarem deste distrito: Foi a Rainha Nossa Senhora servida resolver sobre a mesma
representação pela maneira seguinte: que participe eu a essa câmara, que sendo muito
acertada a sua pretensão pelo que pretende ao procurar que se fação as obras, de que se trata”,

​No entanto, no trecho seguinte fica explícita a preocupação com as medidas que poderiam
acarretar prejuízos para o comércio da capitania, sobretudo aos interesses da metrópole, na
medida em que as sobretaxas recairiam sobre os produtos de exportação. Esses produtos
enfrentavam, no mercado que se mundializava, a concorrência de outros centros produtores,
principalmente o algodão que se transformou no principal produto na pauta de exportação. Os
adjetivos utilizados para expressar a reprovação das medidas não deixavam qualquer dúvida,
ao classificá-las como prejudiciais e ruinosas ao comércio. E mais, combatia-se o argumento
da câmara de que outras câmaras da capitania já estavam cobrando impostos extras sobre os
produtos indicados, afirmando que não se deve imitar o erro, mas ao contrário, era preciso
corrigi-lo. Percebe-se assim que era o cálculo racional, a necessidade de garantir lucros para a
combalida economia portuguesa que justificava a reação metropolitana.

“são porém os meios que procura para fazer um rendimento próprio para esta
despesa, os mais prejudiciais, e ruinosos ao comércio, e cultura desta capitania; porque um
Direito na exportação dos gêneros de que ela abunda, tende directamente a diminuir a sua
exportação, e por conseqüência a agricultura, em que consiste unicamente a sua riqueza: e
que se em outros distritos se tem praticado um semelhante modo de se levantar dinheiro para
as obras públicas, que este erro político se não deve imitar, mas antes é preciso emenda-lo;”.

​A solução apresentada pela burocracia metropolitana reforça a preocupação com o


combate à ociosidade, mas, sobretudo, transferindo o ônus de tais medidas aos ditos
“ociosos”. E, nesse contexto, o debate sobre os desperdícios relacionados com a vadiagem,
que era apresentada como uma forma de desvio da força de trabalho, que deveria ser utilizada
para produzir algo útil, isto é, que gerasse lucro. Sendo assim, o imposto deveria recair sobre
os produtos consumidos prioritariamente pelos pobres e, como castigo, eles teriam de custear
a construção das cadeias, para garantir a punição dos “vadios”, isto é, tais medidas se
voltavam contra a população livre-pobre. E mais, essa política, também, era tida como
importante por combater o “vício” do alcoolismo que, de acordo com os argumentos
elencados pela burocracia, era um dos elementos indutores da ociosidade e da vadiagem. Aqui
estão articuladas medidas que abrangem dois aspectos importantes: o combate ao vício, à
ociosidade e que ainda garantiria a competitividade dos produtos exportáveis. O imposto
recaiu sobre um produto consumido, digamos, no “mercado interno”.

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“(...) e que nesta consideração, me manda Sua Majestade de remeter a dita
representação dessa câmara para que fazendo eu conhecer a mesma(...)a impropriedade dos
direitos de que se lembra, se apontem outros menos ruinosos para o referido intento: que um
deles seria uma imposição sobre o consumo da aguardente da terra, ou cachaça, e de todos os
mais licores espirituosos, a qual, imposição serviria ao mesmo de regulação de polícia, em
quanto diminui o uso de semelhantes bebidas que há mil outros objetos de luxo, sobre o
consumo dos quais se podem por direitos, que não prejudiquem a agricultura ou ao comércio;
e que desta natureza é que a câmara deve apontar os que lhe parecerem mais próprios, e
conforme á utilidade pública desta Comarca:”

​O imposto deve incidir sobre as bebidas e sobre os objetos de luxo, pois, dessa forma não
prejudicaria a lavoura e o comércio, que era de onde poderiam ser gerados lucros para a
metrópole. Ao finalizar as propostas, o governador reproduz as recomendações da Secretaria
de Estado em que, mais uma vez, o argumento sobre a necessidade de obtenção de lucro se
faz presente. Além do mais, recomendava os cálculos dos custos de tais obras e, necessidade
de um planejamento adequado para garantir a eficácia do empreendimento, sobretudo, as
fontes de recursos para a sua execução.

“terminando-se finalmente o referido Real aviso nas próprias expressões


seguintes, = E isto é o que Vmce lhe deve participar, tomando porém a si este negócio, e
informado por esta Secretaria de Estado com mais individuação, (...), e discernimento, assim
da necessidade das pretendidas obras, e do que elas poderiam custar, como dos meios mais
adequados para se porém em execução (...)”.

​Na resposta da câmara de Fortaleza, sobre a resolução do Conselho Ultramarino, há alguns


aspectos que merecem ser destacados. O primeiro era sobre as concepções de mundo presente
nos diversos estratos da burocracia metropolitana e dos seus representantes no espaço
colonial. Na primeira parte da resposta aparece, mais uma vez, uma visão racional do cálculo,
da previsão de receitas e despesas necessárias para a execução do plano apresentado pelos
vereadores. Por outro lado, ao apresentar outra proposta para garantir as despesas da câmara,
aparecem elementos de uma sociedade estamental. O valor pecuniário aduzido a cada crime,
como fica explícito na citação abaixo, estava relacionado a qualidade, à origem étnica de cada
indivíduo, e sua condição de livre ou escravo. As categorias sociais são: os brancos, mestiços,
preto forro, por fim, estão os escravos africanos e indígenas. Além do mais, constata a câmara
que essa é uma região pobre e que não há consumo de produtos de luxo, mas, por outro lado,
propõe que seja cobrada multa sobre as pessoas da plebe que cometem crimes, como uma
forma de compensar os lucros que deveria resultar da cobrança dos produtos de luxo que
tinham um consumo reduzido ou por recair sobre uma parcela da população que se constituía
na fração da classe dominante local. Mais uma vez, pela proposta, o ônus deve recair sobre a
população pobre. O que demonstra, por outro lado, que já estava se constituindo uma
diferenciação social entre ricos e plebe, como era pejorativamente classificada a população
pobre-livre no período em análise.

“Alem deste meio por ser esta vila, e os lugares do seu termo destituídos de luxo,
o qual por ser vicio tem ao mesmo tempo por objecto o grande numero de pessoas da plebe
que se encalavam nas culpas de furto de gados, armas curtas, e proibidas, e concubinatos
escandalosos, nos lembra, que também se podia impor, que cada uma destas pessoas, que nas
devassas que tirão os corregedores, ou nas devassas Janeiras, forem compreendidos, ou
pronunciados nos preditos crimes, sendo branco, pague para este Senado de três até quatro
mil reis, sendo mameluco, ou misto, ou preto forro dois mil reis, ate dois mil e quatro centos
reis; sendo cativo, ou índio, dez até doze tostões, ficando ligado a esta contribuição logo que
forem pronunciados, e que sem a cumprirem se lhes não conceda livramento:”.

​Os crimes elencados são aqueles praticados, em geral, pelos pobres, conforme
levantamento realizando nos autos de querela e denúncia.
​Em 1786, o governador da capitania do Ceará, João Baptista de Azeredo Montauri,
respondendo a consulta do governo metropolitano sobre a solicitação da câmara de Fortaleza,
faz uma análise sobre as vilas de índios que foram criadas, por determinação do Diretório

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Pombalino, a partir de 1759 no Ceará. O governador destacava a situação de pobreza destas
vilas e as dificuldades que as mesmas teriam em pagar qualquer imposto.

“(...) visto terem os índios as suas vilas, e as suas câmaras, que também são
pobres, e que em caso semelhante deverá ser aplicada a dita pequena imposição
preferivelmente ás suas câmaras respectivas, ainda quando sendo, como são, os ditos Índios
tão pobres e miseráveis, dificultosamente terão, com que paguem aquele mesmo pequeno
ônus, que a câmara aponta, (...)”

​O segundo aspecto destacado foi criminalizar as migrações sazonais, uma prática


tradicional dos povos nativos, que eram apresentadas, na fala do governador, como deserção,
para em seguida descrever os utensílios dos índios em que se destaca a noção de pobreza e
riqueza. O seu olhar se dá a partir de uma visão eurocêntrica, racional. A primeira
preocupação era descrever os apetrechos domésticos para confirmar o grau de pobreza.
Portanto, a sobrevivência seria difícil, não apenas das formas de trabalho comunitário, como
afirma Laura de Mello e Souza, mas do próprio modo de vida dos povos nativos.

“(…)devendo-se temer ainda outra conseqüência qual é a deserção dos mesmos


índios aqueles são muito propensos, porque no comum não possuem mais que uma rede, em
que dormem, e um alforge, ou saco de couro, a que chamam uru, em que consiste toda a sua
mobília,(...)”

​Além de qualificar os índios como pobres, o governador os reprovava, por não terem
qualquer ambição em acumular, o que era visto como um problema grave tendo em vista que
esse era um dos elementos fundamentais do capitalismo a possibilidade de ascensão social
pela acumulação de bens resultante do esforço individual. Para os povos nativos, no entanto,
esses valores não tinha qualquer significado. Os europeus, ao invés de qualificar como um
aspecto da cultura desses povos, passam a apresentar como preguiça, em que a noção acima
apontada do desperdício ganha um poder explicativo quando se tratava das populações
nativas. Além do mais, na perspectiva do europeu, a migração era um problema grave
dificultando o controle dessas populações. A situação agravou-se ainda mais no final do
século XVIII, quando se iniciou a produção algodoeira, exigindo mais força de trabalho em
uma região em que o trabalho escravizado africano era reduzido. Nesse contexto, o
governador passou a qualificar a migração na mesma condição da deserção, que era um crime
grave cometido, principalmente, pelos soldados (pagos), recrutados entre os pobres-livres. E
mais, o governador tem uma visão marcadamente negativa sobre o modo de vida dos povos
indígenas que passou a ser considerado desonesto, amoral e, o aspecto mais grave, para o
governador, era não ter apego a bens materiais. Mais uma vez se exacerba a sua perspectiva
eurocêntrica.

“(...) e como são inteiramente desapegados de tudo o que é honesto, e lícito, e despidos de
quanto pode ser objecto de afeto, ou amor civil, e pública mudam-se a todos os momentos de
um para outro distrito, buscando a sua primitiva vida errática, e selvática, de que ainda hoje se
lembram saudosos;(...)”

​No dia-a-dia os índios resistem, ao seu modo, as imposições da sociedade circundante.


Mesmo depois de um século de contato permanente, na capitania do Ceará.
​A resistência aos valores “modernos” é interpretada como aversão ao trabalho, falta de
apego aos bens materiais, ao afirmar que os índios se contentam com o mínimo necessário,
uma rede e comida. Os povos nativos são a negação do conceito moderno de trabalho e do
trabalhador que estava sendo forjado pelo capitalismo.
​No contexto da seca de 1792-1794, governo Luiz da Mota Feo Torres lançava mais um
bando para combater os vadios e a vadiagem, por constatar que as medidas repressivas, até
então adotas, não foram eficazes ao afirmar que:

“(...)tem sido infrutuosas todas as providências, que até agora tenho a este respeito
dado, e se fazem por isso necessários outras, mais fortes, violentas insólitas proporcionadas a

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malícia, relaxação dos delinqüentes”.

​Para o governador não restava dúvida, que deveria adotar penas mais violentas e públicas
para combater, o que ele classificava como “malícia e relaxação dos delinquentes”.
Ordenando castigos públicos de acordo com a qualidade e condição das pessoas.

​“Ordeno portanto que da publicação deste bando em diante todas aquelas pessoas que
forem compreendidas em furtos de gados ou roças sejam logo presas e sem piedade punidas
com acoites os que forem escravos, cabras ou místicos, com rodas de pau os que forem ou
parecerem brancos e com palmatoadas as mulheres a proporção da culpa, e robustez de cada
um, cujo castigo, se administrará na parte mais pública da vila ou povoação mais vizinha ao
lugar do delito, a cujas cadeias serão remetidos e se lhe continuara em dias interpolados e
assim mesmo se praticarão com os vadios e vagabundos forasteiros, que no prazo de três dias
não evacuarem esta Capitania,(…).”

​Os castigos eram aplicados de acordo com a qualidade e condição. Fica explicitado que os
escravos (condição) e os cabras ou mestiços (qualidade) tinham tratamentos idênticos eram
açoitados em praça mais pública. Os que fossem ou parecerem brancos em roda de pau e as
mulheres com palmatórias. Os castigos eram repetidos em dias interpolados de acordo com o
arbítrio da autoridade local. Os mesmos castigos também estavam previstos para “vadios e
vagabundos forasteiros. Noutro trecho o governador explicitava a preocupação com a situação
e recomendava as autoridades policiais ações coordenadas para extirpar da capitania o que ele
qualificava de inimigos da paz da humanidade, além de um perigoso contágio:

​“a cujos Capitães mores comandantes de distritos, e geralmente a todos os oficiais de


Milícia, recomendo muito e ordeno, que executem e fação assim executar exactamente
prestando mutuamente uns aos outros os auxílios necessários sem a distinção de Ordenança
ou Auxilio que uns, e outros deverão pronta e simultaneamente presta-los, como para apagar
um assas dito comum, rechaçar os comuns inimigos da paz da humanidade, e aplacar tão
perigoso contagio: ficará ao arbítrio dos Capitães Mores ou Comandantes o tempo da prisão”.

​Essa percepção, também, estava expressa na memória escrita pelo naturalista João da Silva
Feijó. Nas memórias sobre o Ceará, Feijó tratava de temas como: clima, vegetação, presença
de minerais, tipos de madeiras, regime das chuvas, etc. Na nota introdutória, Feijó fez uma
apreciação sobre as possibilidades da natureza cearense, destacando as suas potencialidades,
ao afirmar que:

“É necessário ter muito pouco conhecimento do físico da capitania do Ceará para


duvidar das imensas vantagens que ela pode produzir em utilidade dos seus habitantes,
aumento do seu comércio e prosperidade geral do Estado: assim me tem persuadido a
continuada observação que tenho feito sobre o seu físico e moral por espaço de onze anos
sucessivos (...)”.

​Feijó era um observador qualificado. Sob a influência do iluminista portador de um ideário


progresso, também, por fazer observações por um longo período sobre a capitania, o que o
colocava como uma voz “autorizada” para discorrer sobre o Ceará e suas potencialidades.
Além do mais, os seus escritos demonstra acuidade da observação sobre os mais diversos
aspectos da realidade local. Um dos aspectos por ele descrito, em artigo intitulado “Do
político do Ceará” de 1814, era a descrição sobre a população cearense. Se natureza era
pródiga, por outro lado, ao descrever a população local, revelava toda uma carga de
preconceitos. A primeira observação era sobre a pouca densidade populacional e a
composição étnica na capitania do Ceará ao afirmar que:

“Sendo porém esta capitania tão vasta, é de admirar a sua diminuta e desfalecida
população, que apenas montará a 150 mil habitantes de todas as classes, e estes pela maior
parte de péssima qualidade;(...)”.

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​Em outras palavras, havia uma presença diminuta de brancos, a imensa maioria da
população é composta por índios e seus descendentes e parcela de negros, mulatos e pardos.
Pelo censo de 1808 a população branca representava 34%, enquanto os índios, negros e
mulatos representavam 66%. Essa composição étnica era o que fundamentava a opinião do
naturalista Feijó. Mas do ponto de vista de um iluminista, a imensa maioria da população
analfabeta, também, era levado em conta para qualifica-lá. No período no máximo 10% da
população livre era alfabetizada, para os escravizados não há dados.
​O período pode ser caracterizado como um dos momentos de mudanças significativas na
capitania, pois foi nesse contexto que se deu a separação do Ceará de Pernambuco. A
principal repercussão, dessa medida, era a possibilidade do comércio direto da capitania com
Portugal. No cenário econômico, o algodão despontava como o principal produto de
exportação da capitania. A descrição do naturalista Feijó estava situada em um contexto, em
que o controle da população livre-pobre era essencial.
​Feijó ao afirmar que os 150 mil habitantes são de todas as classes, não estava se referindo
ao conceito de classe que modernamente conhecemos; o termo classe expressaria pertencente
a diversas etnias. Entretanto o importante é ressaltar o juízo de valor que ele fez dos
habitantes do Ceará, designando a maior parte como de péssima qualidade. Quais são os
predicados utilizados pelo autor para fazer tal afirmação? O primeiro predicado para
desqualificar essa parcela da população cearense era a sua origem étnica. Dos grupos étnicos,
o primeiro a ser descrito foram os povos indígenas. Um dos predicados para desqualificá-los
eram ser nascidos no espaço colonial, mas, sobretudo serem índios:

“porque uns são índios originais do país, entes de si mesmos ineptos para se
felicitarem ou para fazerem a felicidade dos outros, ou seja por natureza e sua constituição
física, ou por falta de educação ou por algum capricho particular etc.,”

​O que poderia justificar uma percepção preconceituosa e negativa dos povos indígenas, no
início do século XIX? Mais uma vez, mostra-se uma concepção societária em que o único
modo de vida possível era aquele que estava se constituindo na Europa e não se admitia
outras possibilidades de sociabilidade. Os povos nativos eram considerados incapazes por
resistirem ao modo de vida que se fazia capitalista. O naturalista Feijó apresentava algumas
hipóteses para identificar tal incapacidade. A primeira seria da própria natureza dos índios,
que teriam nascido geneticamente marcados pela incapacidade, hipótese que já havia sido
apresentada por outros autores no período. O autor ainda aduz a outra possibilidade que seria
a falta de educação. Isto é, caso houvesse ensinamento poderia haver utilidade para os povos
nativos. Essa hipótese era importante, pois caso essa possibilidade não fosse aventada e se
mantivesse a avaliação de que a população nativa era inútil, principalmente a indígena,
inviabilizaria o projeto metropolitano de subordinar a população livre-pobre ao trabalho
regular. A despeito do tom negativo como eram descritos os povos nativos, tidos como
incapazes, seja por sua própria natureza, pela constituição física, o autor não fechava todas as
possibilidades para tornar esses povos aptos ao trabalho e apontava para educação, para o
trabalho, como uma possibilidade de torná-los úteis, isto é, produtivos na perspectiva
capitalista.
​O segundo grupo étnico descrito foram os “cabras”, que era como o autor classificava a
população resultante da miscigenação dos negros e índios, a perspectiva era a mesma daquela
feita em relação aos índios ao afirmar que:

“outros são provenientes destes (índios) com os negros, cuja raça indígena
constituem o maior número dela, conhecido com a vil denominação de – cabras – (...)”

​O mesmo tom negativo com que foram descritos os índios, também, eram os seus
descendentes. Os cabras são denominados de forma preconceituosa como vis seres
desprezíveis, mesquinhos e repugnantes. Essa era a perspectiva que se apresentava, aos olhos
de intelectuais orgânicos, do status quo, como era o naturalista Feijó.
​Em seguida Feijó descreve os mamelucos, destacando que há os verdadeiros e os falsos.
Em relação a esse grupo social, há uma certa condescendência por resultar do cruzamento

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com os brancos, apesar de também serem descritos de forma negativa.

“outros são nascidos dos mesmos índios com os brancos, que faz em uma
diminuta parte da população, verdadeiros mamelucos, porque há outra raça impropriamente
assim chamada, proveniente de mistura de outras, digo, de todas as classes entre si; (...)”.

​Por fim, o naturalista faz referência aos brancos e o problema era serem estes a parcela
minoritária da população local.
​Mais uma vez, ao final da breve avaliação sobre a população cearense, Feijó colocava, em
confronto a natureza pródiga, capaz de suprir as necessidades da população local, oferecendo
uma gama de alimentos, que para a sua obtenção a população teria de despender o mínimo de
esforço.
“(...)o país lhes é favorabilíssimo, por lhes(…) subministrar com liberalidade
multiplicados meios de fácil subsistência, na abundância de raízes ou batatas e de infinitos
frutos silvestres, e de imensas caça e pesca (...)”.

​A comparação entre a prodigalidade da natureza, que era capaz de suprir as exigências da


população, revelava por um lado, todo um preconceito que foi sendo construído para justificar
as ações coercitivas que serão posta em prática sobre a população livre-pobre; de outro lado, a
desqualificação recaia sobre uma parcela, que era a maior parte, sobretudo em relação à
população livre-pobre. A natureza pródiga possibilitava a sobrevivência da população sem
que ela tenha que fazer grandes esforços e, na percepção do naturalista, esse era um dos
aspectos que explicava todo os problemas relacionados com a indisposição da população
livre-pobre para o trabalho.

“por isso mesmo de ordinário muito preguiçosos e indolentes, com particularidade


os índios, cabras e mamelucos, que são em extrema vadios, dissolutos nos costumes e cheios
de vícios que pode produzir no coração humano uma vida licenciosa (...)”.

​Para Feijó não havia dúvida que o principal problema residia na população livre indígena e
seus descendentes com os negros e em menor escala a mameluca. É importante destacar que
apesar de todo o preconceito em relação à população negra, não há uma palavra sequer na
avaliação feita por Feijó sobre essa parcela da população. Como se justificava esse silêncio
em relação a essa parcela da população? Toda a construção desse discurso era para justificar a
ação coercitiva que se desenvolvia sobre os livres-pobres. A população negra, além de ser
pequena, uma parcela significativa estava subordinada na condição de escravizado. Nessa
perspectiva, tornava-se inócuo o debate sobre essa parcela da população, pois esse era um
problema particular que caberia aos senhores de escravo resolverem. Mais uma vez, constata-
se um discurso que era portador de uma negatividade extrema em relação à maior parcela da
população livre-pobre, qualificada como indolente, preguiçosa, vadia, dissoluta dos costumes
e, utilizando um estilo redundante, o autor vai acentuar o caráter e o poder de desagregação da
população livre-pobre cearense, na perspectiva da sociabilidade por ele defendida, quando
afirmava que esta era portadora de vícios que haviam atingido a cota máxima que o coração
humano podia imaginar. Entretanto, a despeito de toda a carga negativa, o naturalista
vislumbrava, como em outras passagens já analisadas, alguma possibilidade de recuperação
dessa população.
​Porém mesmo descrevendo a população livre-pobre como sendo a causadora dos males da
capitania e considerá-la praticamente inútil, Feijó não descartava a possibilidade, mesmo que
remota, de transformá-la em força de trabalho. Para tal, no entanto, seria essencial uma ação
educativa como se deduz da afirmação a seguir:

“no centro da mais crassa ignorância, donde provém neles a falta de sentimento e
de virtudes morais, e outros vícios já pouco estranhados contra todos os direitos da natureza e
da sociedade.”

​O conceito de educação proposto por Feijó ia além da concepção formal, ultrapassava a

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noção de letramento, apresentado-a na perspectiva de alterar o modo de vida com a aquisição
de novos valores. A principal idéia contida nas observações do naturalista era a adoção de
mecanismos que implicava na aquisição de novos valores, estranhos ao modo de vida dos
povos nativos, adequando-os às exigências posta por uma sociabilidade marcada pela
racionalidade do capitalismo em constituição. Destacava-se, na proposição, a necessidade de
convencer a população livre-pobre a produzir excedente, o que implicava uma alteração
radical na divisão entre tempo livre e do trabalho. Nesse sentido, a concepção de educação
implicava na aquisição de novos valores “morais”, mas, sobremodo a exigência da educação
para o trabalho. E mais, Feijó afirmava que a perdurar tal situação, essa parcela majoritária da
população voltava-se contra a natureza, sobretudo contra os direitos de toda a sociedade.
​A análise do naturalista Feijó, em relação ao espaço cearense, faz uma completa inversão
dos valores; a maioria da população local era composta por mamelucos, índios, negros e os
genericamente chamados de pardos. Esse conjunto que se está aqui conceituando como livre-
pobre, na sua imensa maioria, era constituído por posseiros, moradores e os povos indígenas
que tinham outras concepções de propriedades. Ao afirmar que o modo de vida dessa parcela
majoritária da população colidia com a natureza e os interesses da sociedade, estava
reduzindo a sociedade aos interesses metropolitanos e de uma parcela ínfima dos proprietários
locais, o embrião de uma classe dominante constituída, majoritariamente, pelos criadores de
gado. Como afirma Lígia Osório, essa concepção que estava em processo de constituição,
fazendo parte do nascimento do capitalismo construiu também um novo ideário sobre a posse
da terra: “(...) o capitalismo incutiu a idéia de que o “estar” numa determinada zona do
planeta só conferia à população local direitos sobre o território se a ocupação efetuada fosse
possível atribuir o predicado de “produtiva”, o que na maioria das vezes significava “produzir
para o mercado”. Esse foi um dos argumentos largamente utilizado para justificar o esbulho
das terras indígenas no início do século XIX na capitania do Ceará.

​A atuação do Estado: A políc1a do passaporte mais um mecanismo coercitivo para


subordinação da população livre-pobre.

– A polícia do passaporte no contexto algodoeiro (1780-1820)

​A política do passaporte foi mais um mecanismo que o Estado metropolitano elaborou para
coagir, controlar e submeter a população livre-pobre na capitania do Ceará. Os registros, na
capitania, sobre a exigência do passaporte datam da segunda metade do século XVIII na
correspondência trocada entre os capitães-mores (governador) e os diretores de índios.
​No início do século XIX foram localizadas regras escritas e de forma sistemática essa
política foi implementada. As regras estavam contidas em circulares aos comandantes de
distritos, de ordenanças e capitães-mores. Além dos modelos para autorizarem os respectivos
passaportes. Analisar a política do passaporte é se debruçar sobre um dos mecanismos
intervenção do Estado metropolitano para submeter a população livre-pobre a uma nova
disciplina do trabalho. A alteração mais significativa era como o tempo deveria ser utilizado
por uma população rural, por excelência, em que a maioria esmagadora se dedicava à
atividade agrícola para o seu próprio consumo, para se transformar em produtora de
excedente como algo necessário, o que implicava em modificações substanciais no seu modo
de vida. Uma dela era em relação ao tempo de trabalho se tornar predominante frente ao
trabalho eventual que até então era hegemônico. Nesse sentido foi necessária a aplicação de
mecanismos coercitivos e a polícia do passaporte foi um dos mecanismos usados para que
esse processo se concretizasse.
​A política (polícia) do passaporte tradicionalmente se preocupava em controlar a entrada
de estrangeiros e de pessoas advindas de outras capitanias, entretanto no início do século XIX
ganhou uma nova conotação e passou a ser executada para controlar a movimentação da
população no espaço da capitania. Essa modificação se deu no período em que a produção
algodoeira atingiu o seu auge e população livre-pobre deveria ser incorporada como força de
trabalho.
​Para a aplicação dessa política foi essencial a intervenção do Estado. O governador
articulava uma rede formada pela estrutura policial, constituída pelos comandantes de
distritos, de ordenanças e capitães-mores essenciais efetivar a aplicação da lei.
​Ao lado da política do passaporte foram executadas outras medidas que, também, tinham

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por objetivo controlar a população livre-pobre. Esse era o teor de um bando editado em 1804,
pelo governador João Carlos Augusto Oeynhunsen.
​O principal objetivo da legislação extraordinária, como afirmava o governador
Oeynhunsen, era combater a liberdade de ação de uma certa classe de gente, isto é, os pobres-
livres considerados inúteis na perspectiva mercantil.
O texto revelava, mais uma vez, a concepção negativa sobre a população livre-
pobre; qualificando o seu modo de vida como devasso. O que justificava essa adjetivação em
relação a essa população? Pelo que se pode detectar, era por essa não se submeter à legislação
imposta pelo Estado absoluto português, tendo por objetivo submetê-la às exigências ditadas
pelo capitalismo, para que se transformasse em produtora de excedente e de se subordinar às
relações de trabalho regular e disciplinado. Para o governador o modo de vida dessa
população era desviante, errante, vagabundo e ocioso. Na conclusão se tornava claro que a
preocupação centrava-se na “inutilidade” que a liberdade desta população ocasionava, devido
à inobservância da legislação ditada pela Sua Alteza Real. Isto é, essa população não produzia
excedente, concepção também expressa, pelo naturalista Feijó no mesmo período, como
analisamos acima.
​A adoção de uma vida errante e vagabunda tinha como decorrência lógica, na perspectiva
do governador, que essa era uma população inútil. Nesse contexto, o combate ao ócio e a
indução ao trabalho eram essenciais, principalmente em uma região em que a população
escravizada não passava de 13% da população da capitania. A mais importante conclusão a
que chegara o governador era que o modo de vida dos pobres-livres poderia levar à ruína da
sociedade, não só por serem inúteis, improdutivos, mas também pelo mau exemplo que
davam:

“Por quanto para obstar a excessiva devassidão, que tenho observado nesta
capitania, e por termo a ilimitada liberdade com que nesta classe de gentes professando um
escandaloso desprezo para as sagradas, e respeitáveis leis de Sua alteza Real (...), adotam uma
vida errante, e vagabunda, tornando-se pelo ócio, a que se entregam não só inúteis, mas até
ruinosos a sociedade pela desorganização, e mau exemplo, que nela introduzem:”

​O contexto em que esse documento foi editado, na primeira década do século XIX, quando
o algodão, o principal produto para exportação, estava atingindo o melhor preço no mercado
internacional, sendo necessário aumentar a sua produção. Para tanto era essencial o concurso
da força de trabalho da população pobre-livre. Essa legislação foi posta em prática para
responder a essa exigência.
​Em uma linguagem marcadamente barroca, o governador vai anunciar primeiro: a justeza
da legislação produzida pelo poder real para garantir o sossego; mas, sobretudo que essas
medidas tenderiam a produzir uma maior prosperidade:

“E lhe tem parecido justo e necessário para (...) as paternais, e inimitáveis vistas
do mesmo senhor, todas tendentes a conservar o sossego, e a produzir a maior prosperidade
deste País, das providências terminantes, e que prometam um tão salutífero resultado (...);”

​O governador João Carlos Augusto Oeynhunsen explicitava que as ordens reais são
comunicadas para todas as vilas e, como estavam sendo executadas na capitania e, mais uma
vez, constata-se que os encarregados de executarem tais ordens são os corpos policiais e os
juízes ordinários. É importante destacar que a escolha dos juízes ordinários, vereadores,
capitães-mores e coronéis de milícias sistematicamente recaiam sobre os grandes
proprietários havendo assim um forte imbricamento entre o Estado e os proprietários. No
entanto, isto não implica afirmar que os grandes proprietários, nesse período, já constituem
uma classe ou uma fração pronta e acabada, com uma identidade e interesses comuns. Por
outro lado, é também importante acentuar que há, em determinados contextos, conflito entre
os interesses dos proprietários locais e as determinações do Estado metropolitano. Ressalte-se,
no entanto, que se por um lado não havia uma identidade em todos os momentos entre as
determinações do Estado metropolitano e os interesses dos proprietários locais, não se deve
concluir que havia um confronto entre os interesses locais e aqueles que eram ditados pelos
interesses da metrópole. O que se pode afirmar era que esses interesses poderiam, em
determinados contextos, terem identidade e em outros entrarem em conflito aberto, como foi

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o caso das políticas para impedir a dispersão dos povos indígenas analisadas antes.

“(...) e com efeito até as mais remotas vilas desta capitania, tenho dirigido as
referidas ordens, encarregando da sua observância os respectivos capitães mores, juízes
ordinários, coronéis de milícias dos seus Distritos,(…).”

​Nesse período já havia uma maior complexidade na organização do corpo de policial, pois
já estava espalhado por todas as vilas e distritos da capitania e, como afirmava o governador
as ordens chegaram às vilas e aos seus distritos. Isto é, era de conhecimento de todas as
autoridades locais, o que as deixavam comprometidas com a sua execução ou ao menos não
poderiam alegar desconhecê-las. No trecho seguinte, o governador propõe fazer uma
experiência na vila de Fortaleza sobre o que veria se transformar na polícia do passaporte. No
bando de 1804 já estava esboçado um conjunto de propostas que a partir de 1813 seriam
incorporadas pela polícia do passaporte, que foi estendida para toda a capitania.

“(...) que assim cumpre, e conste a todos os habitantes desta vila, e seu termo, que
para o futuro atraídos por negócios, ou por outras razões, quiserem sair desta para as
capitanias vizinhas, ou desta vila para outras da mesma capitania, mandei publicar, e afixar
este para que chegue ao conhecimento de todos, e para que não se podendo alegar ignorância,
se não iluda o seu efeito. Como é justo, que nesta vila, que é a capital desta capitania se
observem as Reais Ordens com tanta exatidão, que venha ela a ser o modelo das outras vilas,
tanto pelo seu regimen particular, como pela polícia, e boa ordem, que nela devem reinar, e
como demais a exactidão, e vigilância, que reconheço nas pessoas, que nelas se acham
empregados me permitem a infalível observância de tudo que a esse respeito determinar:”

​O governador transformou a vila de Fortaleza em um laboratório para experimentar aquela


que seria a principal política para controlar a população pobre-livre. A fala do governador é
explícita nesse sentido de transformar Fortaleza em modelo para ser seguido por outras vilas,
destacando os predicados que ela dispunha para cumprir esse papel. Todos estavam
relacionados com a possibilidade de controlar a população trabalhadora, isto é, ter polícia,
serem esses trabalhadores do conhecimento do governador e garantir tudo o que foi
determinado pela legislação. Fica também patente a necessidade de êxito da experiência que
posteriormente seria generalizada para a capitania.
​Por fim, o governador passou a ordenar como deveria agir o comandante da guarnição e o
juiz ordinário, da vila de Fortaleza, para combater o modo de vida considerado escandaloso e
ruinoso para a economia local, de certa classe da população da capitania. Apesar de não
explicitar quem era essa população ruinosa, fica subtendido que não era toda a população,
mas uma parcela que produzia apenas para seu próprio consumo.
​O cerne da questão era controlar os passos da população livre-pobre, apertar o cerco contra
“a vadiagem”. Inicialmente, o governador Oeynhunsen fez recomendações ao juiz ordinário e
a autoridade policial para agirem com mais rigor, determinando como deveriam ser as suas
ações para efetivar o que estava expresso no bando de 1804.

“Recomendo muito positivamente ao capitão, que comanda a guarnição desta vila,


assim como ao Juiz Ordinário dela, que cada um pela sua parte, que lhe toca façam observar a
mais bem entendida polícia, concorrendo cada um com a autoridade, de que é depositário,
auxiliando-se mutuamente no exato cumprimento do que se segue”.

​A principal determinação era a exigência da obrigatoriedade de apresentação do passaporte


para os que chegassem à vila de Fortaleza, caso contrário seriam considerados vadios, tendo
como pena imediata a prisão:

“Toda aquela pessoa, que quinze dias contados da data desta em diante chegando
a esta vila, quer venha doutra vila desta capitania, quer venha doutra capitania não apresentar
o competente passaporte, ou guia assinada pelo seu Juiz Ordinário, e se for de povoação onde
não haja juiz pelo comandante dela, será preso na cadeia desta vila, onde será conservado
como vadio, até se lhe dar destino,(…).”

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​Na legislação já estavam previstas as penalidades, que variavam de acordo com a
gravidade do crime. Caso a pessoa fosse presa sem passaporte seria empregada na limpeza
pública, quando flagrada com armas proibidas trabalharia na obra de construção do forte do
Mucuripe e a sanção máxima era a expulsão da capitania.

“(...) e empregado (...) na Limpeza desta vila, ou em outra qualquer faxina; mas
fazendo-se suspeito por trazer armas proibidas, será preso, e empregado nas obras das
fortificações de Mucuripe, até que haja ocasião de o mandar sair da capitania”.

​Além das punições, o bando apresentava um regramento que deveria ser observado pelos
visitantes da vila. Ao chegarem, deveriam apresentar-se na casa do capitão comandante,
prestando informações sobre a atividade exercida, o tempo que permaneceriam, onde
ficariam na mesma e, sobretudo apresentarem o passaporte à autoridade policial. Mais uma
vez, era notória a determinação do governador de controlar os passos dos que chegassem à
vila.

“Para que isto assim se observe, faço publico, que toda, e qualquer pessoa que da
data desta em diante entrar nesta vila devem ir apresentar-se a casa do capitão comandante
dela José Henriques Correia declarar o seu nome, manifestar o seu passaporte; dizer que
ofício tem, a que negócio vem; quanto tempo se há de demorar na vila, e aonde se vai
arranchar como estas mesmas assistem (moram) nas outras vilas desta capitania”.

​No entanto, a tentativa de controle não ficava restrita às pessoas que vinham de outras
capitanias, ela também recaia sobre a população da capitania. Qualquer pessoa que
pretendesse sair de uma vila para outra, na capitania, era obrigada a solicitar uma guia ou
passaporte ao juiz ordinário. As recomendações eram idênticas para os que vinham de outras
capitanias, no entanto, havia uma informação suplementar para os habitantes da capitania: se
era trabalhador e, não sendo conhecido do juiz era necessária a presença de duas testemunhas.
Uma das “preocupações” do governador era não apenas a qualificação formal, a determinação
ia além, deveria declarar a profissão, mas, também, comprovar que era trabalhador, ser
moderado no modo de viver, ter bom procedimento, ter boa educação; estes eram os
requisitos necessários para o que o juiz concedesse o passaporte. Estas são as qualidades
exigidas pelo capital para o padrão de trabalhador moderno. O Ceará, a despeito de ser uma
região em que predominavam as atividades agrárias, apresentava uma parcela da população se
ocupando com alguns ofícios como: ferreiro, sapateiro, carpinteiro, latoeiro, costureiras,
vaqueiros etc; como analisei acima, o perfil exigido, pelo governador, abrangia o conjunto da
população livre-pobre.

“(...),e as pessoas que saindo desta não se proverem de passaporte serão


infalivelmente presos,(...)os que não apresentarem: Declaro, que toda a pessoa que quiser
passar desta vila para outra não poderá fazer, sem pedir ao Juiz ordinário dela um passaporte
no qual bastará, que o dito Juiz declare o nome do viajante; o seu oficio; o lugar a que
pertence; e finalmente, se é reconhecido (...) bem morigerado; para cujo efeito, não sendo o
impetrante conhecido pessoalmente pelo dito juiz, exigirão dele duas testemunhas para assim
o poder atestar”.

​No bando fazia parte de um processo de aperfeiçoamento das medidas para controlar a
população pobre-livre, pois isentava do passaporte as pessoas conhecidas pelos seus cargos,
postos e autoridades. O que tornava a proposta marcadamente subjetiva. Esse princípio foi
incorporado à tradição cultural dos setores dominantes. Via de regra, em situações as mais
diversas, você ainda é surpreendido com a seguinte pergunta. Você sabe com quem está
falando?

“Esta guia simples bastará para aqueles que não pretendem sair da capitania
porque neste segundo caso, deverá o pretendente apresentar-me seu alvará de legitimação,
para eu lhe conferir a dita licença: Fica entendido, que destas formalidades, ficam excetuadas

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aquelas pessoas conhecidas pelos seus cargos, postos e autoridades. E que além disso pelos
seus costumes se não fossem suspeitos [espero, que o fiel e exato cumprimento de tudo
quanto fica publicado neste Edital, e lhe deixará na certeza](...)de que espero da obediência, e
mansidão que tenho observado neste Povo, que assim o cumprirão; como pode haver caso em
que esta seja transgredida:”

​O governador isenta do passaporte as autoridades tidas como: as pessoas conhecidas pelos


seus cargos, postos e autoridades. No entanto, ao acrescentar: “E que além disso pelos seus
costumes se não fossem suspeitos(...)” transforma o bando em instrumento marcadamente
subjetivo e sob seu arbítrio. Por fim, o governador procurava responsabilizar a população com
a observância das suas determinações, estabelecendo punições para aqueles que aceitarem nas
suas casas pessoas sem passaporte. As penas a que estavam sujeitos eram as mesmas
aplicadas sobre os vadios, que iam da prisão com trabalhos forçado até a expulsão da
capitania:

“Ordeno: que toda aquela pessoa, que receber em sua casa um viajante, que já não
tenha legitimado, e apresentado em casa do sobredito comandante, sendo convencido de a ter
feito por desobediência, seja castigado com a mesma pena destinada aos sobreditos vadios, e
com a mesma, que fica cominada aos que trazem armas proibidas, se a pessoa, que tiverem
acoitado as trouxe com efeito.”

​O governador encerra o texto, fazendo um apelo à população, afirmando que havia duas
possibilidades: a primeira seria que esta se submetesse ao que estava determinado ou, caso
contrário, seria obrigado a utilizar a força para que as determinações fossem obedecidas. Pela
proposição fica explícita que, a despeito do governador apresentar alternativas, estas não
existem. Isto é, a população era coagida a se submeter ao que estava determinado pelo
diploma legal.

“Espero que o fiel, e exato cumprimento de tudo quanto fica publicado neste
edital me deixará na certeza do desvelo com que procurarão propagar, e manter a boa ordem,
e a precisa harmonia, e me porá antes nas circunstancias de mostrar a minha satisfação, pela
obediência, que se professa a todas as ordens, que tem por objeto estes importantes artigos, do
que de empregar o rigor para as fazer executar”.

​O bando colocava à disposição das autoridades todo um arcabouço legal que poderia ser
utilizado como instrumento de controle e disciplinamento da população pobre-livre. Por outro
lado, traçava um perfil do modo de vida que deveria ser observado por essa população. Há
fortes indícios de que essas normas foram aos poucos sendo aplicadas na capitania, tendo em
consideração que a produção algodoeira para exportação cresceu sem que para tal tenha
ocorrido um crescimento da população escrava, tampouco houve inovações tecnológicas
capazes de alterar a produtividade das áreas cultivadas.

O período do governador Manuel Ignácio de Sampaio e a retomada da


polícia do passaporte.

​O período do governador Sampaio, de 19 de março de 1812 até 12 de janeiro de 1820,
pode ser caracterizado, em termos de subordinação dos pobre-livres, como uma continuidade
do governo que o antecedeu.
​Nesse período, a economia algodoeira atingiu o auge que foi marcado pelo processo
repressivo, principalmente, sobre os povos indígenas, tendo como argumento o combate à
dispersão, considerada um dos problemas a ser enfrentado pelo governo. No entanto, a
repressão não ficou restrita a essa parcela da população livre-pobre.
​Sobre o governador Sampaio, Raimundo Girão afirmava que foi “o administrador mais
inteligente e enérgico do Ceará colonial. Realizou efetivamente, boa soma de melhoramentos
materiais e mostrou-se severo na defesa da ordem pública, o que lhe valeu, aliás injustamente,
a balda de tirano”. No entanto, as suas ações demonstram que a balda não foi por acaso. Uma

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das primeiras ações do seu governo foi a reorganização da estrutura policial para reprimir a
“vadiagem”. O seu governo teve como um dos atos inaugurais, em 08 de maio 1812, um
ofício circular determinando o combate à criminalidade e à vadiagem. O ofício era dirigido
aos que comandavam a estrutura policial como: os capitães-mores e comandantes de
ordenanças. A primeira constatação feita pelo governador era quanto às dificuldades
enfrentadas pela justiça para fazer valer as determinações. A partir dessa constatação foram
adota medidas assegurando que as ações do judiciário passariam a ser executadas através da
articulação entre os juízes ordinários e as forças policiais. Como fica elucidado no trecho a
seguir ao afirmar que:

“Sendo essencialmente necessário purgar a capitania de tantos facinorosos que a


infestam e tendo sucedido que alguns juízes ordinários tem tido as maiores dificuldades para
executarem varias diligencias tendentes ao dito fim: Ordeno a Vossa merce para que
imediatamente participe a todos os comandantes de distritos, e oficiais de ordenanças da sua
capitania mor que uma das primeiras obrigações de todos os seus subalternos é dar as justiças
de Sua. Alteza. Real. os auxílios que elas lhe requererem,(...)”

O tempo do verbo usado pelo governador foi o imperativo, ordeno a ação conjunta
entre a polícia e a justiça no combate aos facinorosos. É importante destacar, mais uma vez, o
termo usado para identificar os facinorosos era que infestavam, como se fosse uma praga que
invadia a capitania, e devia ser debelada. A linguagem e as medidas eram idênticas a utilizada
pelos governos anteriores.
​Além da ação de integração da polícia e justiça, foi feito um mapeamento conhecer o
funcionamento da estrutura policial. Para tanto, o governador enviou ofício aos comandantes
dos diversos termos, solicitando informações sobre a estrutura policial em todas as 12 vilas
dos brancos e, ao mesmo tempo, indagando da necessidade de aumentar ou não os distritos
policiais em cada vila e seu termo, o que equivaleria atualmente ao município.
​Na vila de Granja havia 12 distritos policiais e a pergunta era se seria necessário criar mais
distritos para que os seus comandantes pudessem cumprir as suas funções. Em ofício dirigido
ao comandante em 22 de junho de 1812, (a pouco mais de um mês do ofício circular), se
explicitava a prioridade dos corpos policiais na manutenção da ordem pública e no
desenvolvimento da agricultura.
​No contexto a vadiagem era tipificada como um crime grave por ser considerada a causa
dos diversos crimes, e a polícia deveria combatê-la através do incentivo ao desenvolvimento
da agricultura. A desobediência da população resultaria em prisão, os corpos policiais e os
juízes ordinários seriam responsabilizados se as ordens não fossem executadas:

“(...) Pela relação que me remeteu dos comandantes de distritos do termo dessa
vila fico certo estar(...)divido em 12 distritos Vmce. me informará se será necessário criar
algum outro comandante de distrito novo afim de se conseguirem os dous fins principais do
estabelecimento dos ditos comandantes (...) a manutenção da boa ordem e do sossego público,
e o adiantamento da agricultura no que os ditos comandantes devem também ter a maior
vigilância persuadindo e obrigando os povos a que façam roçados e plantações
principalmente de mandioca e remetendo presos a esta vila os que desprezando estes avisos
continuarem a ser vadios, ficando-me responsáveis pela falta de execução a esta minha
ordem. (...)”.

O caráter autoritário do governador pode ser constatado pelo exame da


correspondência aos comandantes dos distritos onde são instruídos a obrigar a população a
plantar roçados, isto é, plantação de mandioca para fazer farinha, importante ingrediente na
nossa alimentação.
A estrutura policial era complexa, nas 12 vilas de brancos havia 104 distritos
policiais o que dava a dimensão do aparato para controlar os passos da população livre-pobre.
Afora as vilas de índios que eram em número de 5(cinco).
​Outra medida, no sentido de conhecer a capitania, foi a realização, em 1813, do
recenseamento da população. O governador se apropriava das informações para garantir uma
atuação eficaz, do seu governo, que notabilizou-se pelo aspecto coercitivo.
​Toda essa preocupação vai anteceder ao lançamento da legislação do passaporte, que tinha

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como principal objetivo controlar os passos da população livre e pobre, mas, sobretudo, fazê-
la se integrar à produção de excedente. O que havia sido proposto, em 1804, para a vila de
Fortaleza era estendido para a capitania e foi outro elemento de intervenção institucional para
controlar e subordinar a população livre-pobre. Em 23 de fevereiro de 1813, o governador
Manuel Ignácio de Sampaio apresentava essa nova legislação que se apropriava de elementos
contidos no bando de 1804, mas procurava tornar mais rigoroso e coercitivo o controle sobre
a população livre-pobre. A primeira medida proposta por essa legislação era o
estabelecimento de uma hierarquização em relação às autoridades da capitania, que podiam
conceder a licença (passaporte), ficando as principais atribuições a cargo do próprio
governador.
​A proposta determinava quem poderia autorizar o deslocamento da população na capitania
e para fora dela. Na capitania, somente o governador e o ouvidor geral, a autoridade máxima
da justiça. Havia, também, as atribuições das autoridades subalternas, elencando as condições
para passar passaporte a aqueles que estavam sob sua jurisdição. Iniciava pelas autoridades
militares, que podiam passar passaporte para os seus subordinados. No entanto, a licença
concedida pelos comandantes de regimentos, milícias e capitães das ordenanças das vilas, era
limitada há apenas 3 (três) meses:

“Comandantes de Regimentos de Milícias- a todos os indivíduos de seu regimento


concedendo-lhe licença por 3 meses, mas é necessário que juntem folha corrida.
Os capitães Mores de Ordenanças ou quem suas vezes fizer- A todos os indivíduos
da sua corporação concedendo-lhe licença só para 3 meses mas é necessário que junte folha
corrida;(…).”

​A folha corrida que teve vigência no Brasil, de forma plena durante a última ditadura
civil/militar (1964-1985), era um atestado de bons antecedentes expedida pela autoridade
policial. No período do governador Sampaio quem não apresentasse bons antecedentes não
teria acesso ao passaporte, isto é, estava impedido de se deslocar do seu termo (município) e,
mesmo dentro deste poderia ser preso se fosse encontrado sem a licença. Na prática o
passaporte se transformava em um salvo conduto para a população pobre-livre.
​O juiz ordinário, era eleito junto com os vereadores, não tinha formação jurídica, podia
conceder licença para todos os que habitavam no termo (município) da vila. Mais uma vez,
havia a exigência da folha corrida.

“Juízes Ordinários-A todos os indivíduos moradores no termo da sua vila


obrigando-os sempre a juntar folha corrida, mas os militares precisão pela mesma forma de
licença Militar.”

​A autoridade dos militares ficava restrita aos seus comandados e podia passa licença
(passaporte) para circularem dentro do termo (município) e para os que ficavam nos limites
do seu termo (município).

“Comandantes de Distritos - A todos os oficiais inferiores aos soldados de milícias


e ordenanças moradores no seu Distrito mas unicamente para o termo da mesma vila que eles
pertencem e de forma nenhuma para fora da capitania nem para os termos da Vilas que não
forem limítrofes, porem os oficiais inferiores de milícias e ordenanças, e os soldados
milicianos necessitam de licença Militar”.

​Se acaso um soldado tivesse necessidade de ir para uma vila que não fosse limítrofe a
jurisdição do seu comandante, deveria recorrer ao juiz ordinário para poder obter o seu
passaporte. O juiz ordinário, via de regra, era um grande proprietário, eleito entre os homens
“bons” da vila.
​Os comandantes de companhia e milicianos poderiam passar passaporte para os seus
soldados e por um prazo extremamente reduzido, de 1 (um) mês.

“Os Comandantes de Companhia e Milicianos - Aos seus soldados unicamente

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dentro do Distrito de seu regimento concedendo-lhe licença de hum mês.”

O que chamava a atenção, nessas medidas era, mais uma vez, a tentativa de
controle dos pobre-livres ao determinar que todas pessoas, para saírem dos seus distritos,
eram obrigadas a tirarem o passaporte caso contrário estariam sujeitas à pena de prisão.
Como, também, determinava a responsabilidade de cada autoridade, no âmbito do termo
(município), de sua vila e nos distritos. A começar pelos militares, que eram obrigados a
solicitarem licença para se ausentar do seu distrito:

“Os militares precisão também de licença militar para sairem cada um do seu
Distrito;”

​Em uma sociedade marcadamente patriarcal, não havia regras especiais para as mulheres,
que eram tratadas como subordinadas aos homens. No caso das casadas e viúvas as regras
eram as mesmas estabelecidas para os maridos e as solteiras são igualadas a situação mais vil,
a dos soldados.

“As mulheres casadas, viúvas para obterem passaporte estão no caso de seus
maridos, e as solteiras como se fossem casadas com soldados de ordenanças.”

A polícia do passaporte além de buscar controlar o movimento da população livre-pobre,


responsabilizava as autoridades pelo ato de conceder a licença ao afirmar que:

“Todos os que passarem passaporte ficam responsáveis pelas pessoas a quem os


passam”.

​A determinação acima procurava estabelecer uma verdadeira rede de responsabilidade,


envolvendo todas as autoridades ao colocá-las como co-responsáveis pela licença concedida e
mantinha, também, uma espada sobre a cabeça da população, principalmente, a livre-pobre,
ao determinar que:

​“Todas aquelas pessoas que vagar pelas estradas nesta capitania sem ter
passaporte na forma acima declarada será preso e conduzidos á cadeia da vila em cujo o
termo for apreendida para se legitimar.”

​O processo de legitimação não era tão simples e nem todos estavam habilitados para
receber o passaporte como analisado. A tentativa de controlar a população não se restringia
aos moradores da capitania, mas também os que vinham de outras capitanias.

“Na mesma pena incorrerão todos aqueles que vindo de capitania diferente não
trouxerem passaporte legitimamente passado pelas autoridades competentes”.

Até então foi examinada a legislação no seu aspecto formal, isto é, como ela foi
concebida pelo legislador, sem acompanhar como se deu a sua execução na capitania. No
período do governador Sampaio será possível fazer o exame desse processo. Existe
documentação versando sobre a temática. No próximo tópico será analisada sua aplicação e a
adequação à realidade local.

2.3- A polícia do passaporte e o cotidiano da capitania

​Como analisei, formalmente a legislação sobre o passaporte era rígida, no entanto, a sua

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aplicação vai se adequando às exigências de uma sociedade em que as diferenciações sociais
já podiam ser vislumbradas e os interesses ditados pela necessidade de desenvolver as
atividades produtivas locais, como a agricultura, era vital para reforçar a decadente economia
da capitania e a metropolitana.
​As diferenciações entre os proprietários e não-proprietários já eram nítidas. Mesmo entre
os proprietários havia diferenciações sociais que implicavam em privilégio ou discriminação.
Ser um grande fazendeiro criador de gado era pertencer ao estrato que se diferenciava e, que
viria compor a classe dominante na capitania, enquanto os produtores agrícolas eram, via de
regra, os pequenos proprietários e moradores de condição subordinados aos grandes
proprietários. Apesar de serem proprietários, os pequenos não terão o mesmo tratamento
dispensado aos fazendeiros criadores de gado, pois, apesar da atividade ter entrado em crise
no final do século XVIII, estes continuaram a deter grandes porções de terras e poder.
​Entre os não-proprietários também se estabeleceu diferenciações como a origem étnica
(qualidade), um dos aspectos relevantes na definição da posição social. Um branco pobre
apresentava melhores condições sociais do que um índio ou um negro livre, pois ser banco já
garantia um melhor tratamento diante da justiça e da sociedade em geral. Sendo assim,
trabalhar com o conceito de classe é importante, mas não seria suficiente para explicar a
complexidade social da capitania do Ceará no período. O conceito de classe é fundamental,
no entanto, torna-se necessário adicionar a esse conceito outros como: o de raça e o de
gênero. O conceito de gênero, no entanto, é amplo e pode não enriquecer a explicação. A
mulher pobre-livre enfrentava situações muito adversas se comparada com as condições da
mulher da classe dominante. A mulher indígena e a negra são tratadas de forma diferente da
branca mesmo sendo pobre-livre.
​É importante, por outro lado, ressaltar que perduravam distinções de uma sociedade que
mantinha influência de uma sociedade estamental. Uma demonstração do caráter estamental
pode ser constatada na forma como as autoridades se auto-identificavam. Manoel Ignácio de
Sampaio, governador da capitania do Ceará, ao apresentar suas credenciais a primeira era
fidalgo da casa real e a última referência era a função que estava em exercício:

“Manoel Ignácio de Sampaio, fidalgo da Caza Real, Coronel do Real Corpo de


Engenheiros, e Governador da capitania do Ceará”.

​Mesmo os povos indígenas não estavam imunes a esse tipo de influência. Em 1782, D.
José de Souza e Castro, um dos chefes indígenas do povo tabajara, solicitava a patente de
capitão-mor da vila Viçosa. A nomeação revela a influência de uma sociedade em que ser
nobre era a garantia de privilégio e no espaço colonial esse processo se dava, em grande
medida, pela via militar. Ao ser nomeado, uma das exigências era que o chefe indígena
passasse a se subordinar ao sistema colonial, devendo obediência ao rei e, não tinha
remuneração, a recompensa era de caráter honorífico como estava explicitado na nomeação
feita pelo capitão general-governador de Pernambuco.

“Luiz Diogo Lobo da Silva do Conselho de S. V. Magde Fidelíssima (...)


Governador capitão General de Pernambuco Paraíba e mais capitanias anexas. Faço saber aos
que esta carta patente virem que porquanto revela vago o posto de capitão mor da nação
tabajara da Vila Viçosa Real; e deve prove-lo em índio da mesma nação e vila, e por ser
informado da capacidade e merecimentos de D. José de Souza e Castro de quem espero que
daqui em diante procedera conforme a confiança, que dele faço hei por bem na conformidade
do Regimento deste Governo, e decreto de 14 de setembro de 1748 nomear como por esta
nomeio ao dito D. José de Souza e Castro no referido posto de o Governador capitão Mor da
Nação Tabajara da Vila de Viçosa Real ficando por esta obrigado a impedir o uso da antiga
língua, e as desertar dos seus patrícios a ociosidade com o qual posto não vencera soldo
algum mais gozará de todas as honras graças e privilégios, que em razão dele lhe
pertencerem”.

​O posto de governador capitão-mor dos índios, se por um lado trazia alguma benesse, por
outro selava um compromisso com o Estado metropolitano, transformando-o em um agente
desses interesses. As determinações oriundas da carta patente implicavam em implementar as
políticas que foram extremamente lesivas aos interesses dos povos nativos como: a obrigação

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de falar a língua portuguesa e transformá-los em trabalhadores disciplinados, como fica
indicado na consigna de desertar dos seus patrícios a ociosidade.
​Apesar de na capitania do Ceará a acumulação de riqueza, comparativamente a região
açucareira e das Minas Gerais, ter sido pequena e o estabelecimento de uma “nobreza” local
ter sido exígua, ter pouca influência no modo de vida de uma sociedade sertaneja marcada
pela pobreza material. Quando comparamos o patrimônio material construído no Ceará com
os de Pernambuco, da Bahia e das cidades do circuito do ouro, tornar-se explícita a diferença
em termo de ostentação dessas regiões em relação ao Ceará. As igrejas, particularmente,
como símbolos de ostentação, no Ceará expressam essas diferenças: são despojadas e feitas
com material local. As residências, guardadas as exceções, principalmente, na segunda
metade do século XIX, em que a produção algodoeira possibilitou o acúmulo de fortunas,
também eram rústicas e construídas com material da região. Mas mesmo assim já se pode
constatar um processo de diferenciação explícita entre os proprietários e os não-proprietários,
principalmente quando da aplicação das leis de combate à vadiagem.
​Retomando o debate sobre a aplicação da polícia do passaporte, havia aspectos fazendo
com que a lei se adeque as particularidades da capitania, sobretudo para impedir a sua
transformação em barreira para o desenvolvimento das atividades produtivas, em especial as
atividades comerciais e agrícolas.
​ tentativa de controlar a população se traduzia, mais uma vez, na busca de incorporá-la
A
como produtora de excedentes, seja de alimentos ou de algodão para exportação.
​O acento do discurso não era o combate à criminalidade de modo geral, como analisamos
para períodos anteriores, centrava-se em uma modalidade de crime a vadiagem. Os
representantes do Estado metropolitano não estavam preocupados em prender os
proprietários, os comerciantes e os escravos, isto é, aqueles que estavam integrados à
produção, mas a população livre-pobre que não produzia excedente. Produzir para o seu
consumo, valor de uso, não era suficiente para livrá-la da pecha de vadia. Na correspondência
do governador para os comandantes de distritos, esse aspecto se tornava explícito.
​O ofício expedido ao capitão-mor das ordenanças de Fortaleza, em 20 de março de 1813,
tornava explícito a necessidade de adequação da legislação, quando o governador ressaltava
que a aplicação da lei não devia ferir os interesses maiores, que eram desenvolver a
agricultura na capitania ao afirmar que:

“Em resposta ao seu ofício de 18 do corrente sou a dizer aVossa Merce que sendo
certo que o principal fim a que me proponho com o recrutamento dos índios é o aumento
d’agricultura não deve ele ser executado de forma que venha a prejudicar esta mesma
agricultura”.

​O governador prossegue na sua resposta declarando, literalmente, qual era o objetivo da


legislação que ele havia editado:

“Portanto se os índios que se acham no distrito do Parasinho tem avultadas


plantações, como diz o comandante, deve o mesmo (…) suspender o seu recrutamento até o
último do mês de junho do corrente ano.”

E mais, prossegue Sampaio, a trégua seria até o final da colheita, no entanto,


ressaltava que seriam presos todos que, até aquela data, não apresentassem ao comandante do
distrito licença do governador para continuarem a fazer as plantações.

“No último do referido mês de junho devera ele remeter presos aqueles que não
lhe apresentarem licença minha para ali continuarem as plantações”.

​Por fim, o governador concluiu de forma esclarecedora, afirmando que a legislação tinha
por objetivo fazer a população livre-pobre se integrar à produção de excedente. A afirmação
não deixava dúvida. O indulto que já havia sido concedido para outras pessoas obedecia a
uma regra básica: terem roçados de vulto (grandes). E mais, para aqueles que estavam se

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integrando como produtores agrícolas, todas as facilidades eram concedidas como o texto
explicitava. Os índios poderiam apresentar requerimentos que seriam despachados pelo
governador, desde que as suas plantações correspondessem ao que o governador denominava
de plantações de grande vulto. Em outros termos, se os índios produzissem para além das suas
necessidades de consumo.

“Neste intervalo de tempo podem os ditos índios dirigir-me os requerimentos


necessários para alcançarem as ditas licenças que eu já tenho concedido a outros a bem do
aumento da agricultura depois de proceder as devidas informações. Este indulto porém deve
ser unicamente concedido aqueles cujas plantações façam grande vulto.”

​O caráter discricionário da lei vai se tornar uma constante mantendo a lógica do bando de
1804. Em 1813, mais uma vez, na correspondência entre Sampaio e o capitão-mor de
Quixeramobim, José Pereira Deca, se explicita esse caráter discricionário da legislação
quando o governador determinava ao capitão-mor para não incomodar os condutores de
boiadas, aparentemente negando o que estabelecia a política do passaporte:

“Em resposta ao que Vossa Merce me representa no ofício de 18 de março que é


digno de toda a ponderação, sou a dizer a Vossa Merce que passe as ordens necessárias para
que no decurso do corrente ano de 1813 não sejam incomodadas as pessoas que conduzirem
boiadas ainda que não tragam passaportes (...).”

​Mais uma vez, fica explícito que apesar do caráter, aparentemente inflexível da legislação,
está vai se adequar aos interesses dos grandes criadores de gado. A pecuária, apesar da crise
que atravessava, era uma atividade importante para a economia local e mais , os criadores era
a parcela mais representativa da classe dominante local, em constituição, não seria “racional”
criar obstáculos para o transporte das boiadas, era fazer com que a lei tivesse uma ação
contrária ao que havia sido proposta, que era controlar os passos da população pobre-livre
para forçá-la a se dedicar às atividades produtoras de excedente.
​As recomendações do governador, ao fazer ressalvas em relação às pessoas suspeitas e
desconhecidas, para não dispensar a apresentação do passaporte, caso contrário seriam presas,
são elucidativas nesse sentido. Não significava que qualquer pessoa trabalhando como
tangedor de gado seria dispensada de apresentar passaporte, tal exceção era para as pessoas
conhecidas e, principalmente, os habitantes da capitania.

“(...)salvo se entre as ditas pessoas sair [aparecer] algumas de desconfiança por


que esta deve em todo o caso ser capturada uma vez que não tragam passaporte para se
legitimar.”

​A lei do passaporte foi um caso típico, mas não isolado do caráter subjetivo que a
legislação assumia. O objetivo do governador era impedir a circulação de “vadios” e as
pessoas desconhecidas de uma vila para outra e, sobretudo, as que vinham de outras
províncias consideradas suspeitas. Dentre estas, nas perspectivas dos representantes do Estado
português, era onde estariam os criminosos em potencial que “infestavam” o interior da
capitania e contra eles deveria ser aplicado o que determinava a legislação.

“Aqueles porém que traficam em todo este sertão passando constantemente de um


para outro termo, de uma para outra capitania sem trazerem o competente passaporte devem
causar a maior desconfiança, e é com efeito entre estes que se acham o maior número de
criminosos que infestam este sertão, e que iludindo por este meio a vigilância das justiças de
Sua Alteza Real e dos comandantes conseguem evadir-se dos castigos determinados pelas
leis. Contra estes pois, deve-se executar a risca minha Ordem de 23 de Fevereiro.”

​Apesar da ordem para a ser lei executada a risca, mais uma vez, eram ressaltadas as
exceções e cautela com as pessoas conhecidas. Na verdade, sob a desculpa de pessoas

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conhecidas, o que estava posto era a utilização da lei contra os livres-pobres para obrigá-los a
se submeter ao trabalho regular e disciplinado.

“exceto se for alguma pessoa muito conhecida, e que claramente se evidencie que
a falta do Passaporte procede de descuido, e não de malícia.”

​As exceções eram para garantir os interesses dos proprietários. À medida que os
tangedores eram apenas executores de tarefas demandas pelos grandes proprietários, impedir
sua ação só criaria dificuldades para o desenvolvimento das atividades produtivas, mas
também contrariaria os interesses dos criadores de gado (fazendeiros), que representavam os
interesses do grupo dominante local, que eram importantes aliados dos representantes do
Estado português na execução da legislação, pois via de regra, os cargos honoríficos como: de
capitães-mores, comandantes de milícias e comandantes de distritos eram ocupados pelos
grandes proprietários.
​No primeiro semestre, a partir de abril-maio, no final do período chuvoso era quando as
boiadas estavam sendo transportadas para serem abatidas nas oficinas ou charqueadas
situadas no litoral; exigir passaporte, aplicar a lei de forma rigorosa prejudicaria as atividades
produtivas e os interesses dos grandes proprietários. Nesse sentido, Sampaio recomendava
moderação na aplicação da lei aos comandantes de distritos. No entanto, a partir de junho
quando o movimento das boiadas se reduz ou praticamente cessava, eram retomadas as
recomendações para a lei ser aplicada sem exceção. Fica explícito que a legislação era
aplicada de forma seletiva, de modo a não prejudicar as atividades produtivas e os interesses
dos proprietários e da coroa portuguesa.

“Em todo o caso porém será útil que d’aqui até junho Vossa Merce proceda com
alguma moderação na execução da dita minha Ordem mas de junho em diante deve ser
executada a risca de forma acima dita.”

Por um lado, a correspondência entre o governador, os capitães-mores, os


comandantes de distrito, era rica em exemplos de como a política do passaporte foi aplicada
para favorecer os setores dominantes, vinculados à atividade da pecuária, por outro lado,
como foi importante para obrigar a população livre-pobre a se submeter ao trabalho regular
para produção de excedente.
A responsabilidade de quem deveria executar ou tornar efetiva a política do
passaporte também sofreu adequações. Os diretores das vilas de índios tornaram-se os
responsáveis por passar os passaportes para os seus dirigidos. Como afirmava o governador
Sampaio, em uma nova determinação ampliando a ordem de 23 de fevereiro, que havia
estabelecido as regras iniciais para aplicação da política do passaporte, ao afirmar que:

“Em ampliação da minha Ordem de 23 de fevereiro do presente ano desejando em


tudo ser útil aos índios seus dirigidos autorizo a Vossa merce para passar passaporte tanto para
o interior como para o exterior da capitania a todos os índios seus dirigidos tanto soldados de
ordenanças como oficiais inferiores como oficiais de patente a exceção unicamente dos
capitães mores e sargento mores.”

​Ao mesmo tempo em que o governador Sampaio aparentemente ampliava os poderes dos
diretores das vilas de índios, os comprometia como responsáveis pelos passaportes que
passam. Na prática se o índio com passaporte cometesse um delito, o diretor poderia ser
responsabilizado pelos seus atos, como se explicita no trecho a seguir:

“No caso que Vossa merce também dispensar-lhe a obrigação de ajuntar folha
corrida ficando Vossa merce em todo o caso responsável por aqueles índios a quem passar
passaporte (...)”.

Procurando demonstrar que aplicação da lei obedecia a uma lógica ou lógicas será
citado mais um ofício dirigido pelo, governador Sampaio, ao capitão-mor José Alves Feitosa,

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de São João do Príncipe (Tauá). O ofício era de outubro de 1813, período em que não há
trânsito de boiada, quando é possível ter um controle mais rigoroso da população sem causar
transtorno a essa atividade. A vila de Tauá era uma região fronteiriça com a capitania do
Piauí, e, nesse período, havia uma preocupação com os grupos armados que atuavam nessa
região vindos do Cariri cearense. Em função das medidas adotadas pelo governador, seria
lógico que houvesse um controle mais rígido dos que circulavam na região, mas, mesmo
assim, a lei continuava a ser utilizada como instrumento de discriminação ao determinar que
capitão-mor prendesse apenas as pessoas desconhecidas que não portassem o documento.

“(...) Entre as pessoas que tem vindo do Cariri noto que há muitas que não tem
passaporte. Se entre estas houver alguma que não seja conhecida é necessário faze-la remeter
a cadeia na forma das minhas ordens (...)”.

Como analisado, Sampaio foi criando exceções na aplicação da lei, para se


adequar a realidade da capitania ditado pelos interesses da administração e do setor dominante
local. Como se percebe a lei é uma relação social.
​A correspondência entre o governador, os capitães-mores, comandantes de distrito e os
juízes ordinários, os executores da ação policial e da justiça, respectivamente, é rica e
possibilita acompanhar os embates entre as diversas esferas do poder para tornar efetivas as
determinações dos que exerciam a função executiva. Além do mais, fica explícito que o
governador estabelecia mecanismos para controlar as ações dos subordinados. Como se
constata no ofício de março de 1814, do governador, ao capitão-mor da vila do Icó, era
exigido o cumprimento da polícia do passaporte. Havia um controle centralizado, através do
envio sistemático dos livros de anotações dos passaportes de cada distrito, sobre a execução
do que estabelecia a ordem de 23 de fevereiro de 1813. No ofício Sampaio respondia as
indagações do capitão-mor do Icó, havia referência à lista dos passaportes passados pelos
comandantes de distrito e se constatava que a determinação não estava sendo executada:

“Por este correio recebi o seu ofício de 28 de mês passado e com ele várias listas
dos Passaportes passados pelos comandantes de distritos desse termo pelos quais venho no
conhecimento de que a minha ordem de 23 de fevereiro do ano passado esteve unicamente em
vigor no termo dessa vila por espaço de dois ou quando muito 3 meses (...).”

​No trecho seguinte fica patente que a política ditada pelos representantes do Estado
português enfrentava resistência dos proprietários de terra, tendo em vista que eram eles que
ocupavam os postos de comando da estrutura policial e o governador para persuadi-los,
ameaçava lançar mãos de instrumentos coercitivos e mais, responsabilizava-os pela
desorganização do Estado, o que trazia como decorrência certa conivência com a
criminalidade e também pela precária situação da segurança pública e individual na capitania.

“(...) eu já estava certo pelas participações [correspondência] que tinha tido pelos
comandantes de distritos dos outros termos cuja a falta de serviço é muito digna de repreensão
e castigo, e tende unicamente a uma perfeita desorganização do Estado, e a uma anarquia
completa facilitando-se por esta forma escapula dos criminosos desta capitania e tronando-se
por conseqüência mui precária a segurança pública, e individual.”

​E mais, Sampaio exigia a execução da política em toda a sua extensão, sem exceção, o que
não era contraditório com o que vem sendo examinando, tendo em vista que na vila do Icó e
seu município a política do passaporte não estava sendo executada ou só fora em curto espaço
de tempo como foi constatado. O governador fazia lembrar ao capitão-mor as
responsabilidades do seu cargo e do comando que deve exercer sobre os subordinados, os
comandantes de distritos.

“Espero portanto que Vossa merce em desempenho dos deveres do cargo que
ocupa haja de executar, e fazer executar pelos comandantes de distritos do termo dessa vila
com maior exactidão e em toda a sua extensão a dita minha ordem de 23 de fevereiro do ano
passado que estabelece a Polícia dos Passaportes que deve estar em uso nesta capitania (...)”.

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​Para demonstrar que as suas determinações estavam respaldadas pelas autoridades
superiores e desrespeitá-las traria implicações com essas, o governador afirmava que a sua
proposta havia sido aprovada pelo príncipe regente. Sendo assim, desrespeitar a política do
passaporte era afrontar o próprio príncipe. Em uma sociedade hierarquizada e com fortes
vínculos estamentais, recorrer a esses recursos tinha um caráter simbólico.

“(...) a qual tendo subido a Augusta Presença do P. R. N. S. teve a fortuna de ser


aprovada pelo mesmo Augusto Senhor como me foi participado por aviso da Secretaria
d’Estado datado de 3 de setembro do ano passado”.

​O controle centralizado na execução da política do passaporte não ficou restrito à vila do


Icó, é possível constatar a partir do exame da documentação enviada pelos capitães-mores de
cada termo. Esse controle demonstrava eficácia ao menos na circulação das informações, o
governador tomava conhecimento de aspectos pormenorizados sobre os mais diversos
acontecimentos no âmbito das vilas e distritos e, as barreiras enfrentados para a execução da
política do passaporte no âmbito da capitania do Ceará.
​Para o termo do Icó foram detectadas duas ordens de problemas: a primeira era a falta de
execução da política por alguns comandantes de distritos. Segunda, os que executavam
extrapolavam as suas funções, como passar passaporte para fora da capitania, atribuição
exclusiva do governador e ouvidor-mor.

​“Tenho a advertir-lhe 1 o
que na forma da citada ordem nenhum comandante de
distritos pode passar passaporte para fora da capitania como abusivamente fez o comandante a
quem pertence o caderno que incluso lhe remeto, e que não sei a quem pertence por não vir
assinados o único que continuou a tomar a lembrança dos passaportes passados depois de mês
de julho próximo passado”.

​Por fim, mantendo a mesma linha de recomendações, o governador Sampaio, determinava


que a política deveria ser executada de acordo com a determinação de 23 de fevereiro de
1813, principalmente o parágrafo que afirmava que todas as pessoas que fossem encontradas
vagando pelas estradas sem passaporte deveriam ser presas. Sendo assim, fica acentuado o
caráter aparentemente geral da determinação e seu aspecto coercitivo.

o
“2 que é necessário executar, e fazer executar com grande cuidado o que
prescreve a dita Polícia do Passaporte no & que principia = Toda aquela pessoa= etc”.

​Essas eram também, quase nos mesmos termos, as recomendações feitas, através do ofício,
ao capitão-mor do S. João do Príncipe (Tauá), de 15 de abril de 1814. A primeira constatação
era quanto à atuação dos comandantes de distritos na aplicação do que determinava a polícia
do passaporte. A segunda esclarecia a quem cabiam determinadas atribuições.

“(...)Pelas partes de alguns comandantes de distritos vejo eu que ainda alguns


deles continua a frouxidão relativa a polícia dos passaportes; cujo respeito tenho a disser-lhe
que é necessário fazer executar o que lhe ordenei em 15 de janeiro tendo a acrescentar que
quando algum indivíduo for preso por falta de passaporte não é perante os comandantes que
se deve legitimar, mas unicamente perante Vossa merce, e no fim de 3 dias entregue ao Juiz
ordinário se não se legitimar (...)”.

​Em mais um ofício ao sargento-mor de Sobral, Sampaio ordenava a prisão de duas pessoas
estranhas que estavam sem passaporte. A recomendação para efetuar essas prisões não
contradizia a ordem de março de 1814, que se coaduna com o caráter discricionário da lei. O
governador afirmava que prender quem anda sem passaporte era a regra, ela deve ser
flexibilizada em situações particulares, o que não era o caso dos desconhecidos que chegaram
a um dos distritos de Sobral. Por outro lado, percebe-se que o governador constituiu uma rede

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de informações sobre as ações das autoridades subordinadas na capitania.

“(...) Ordene ao comandante Antônio Gonçalves Rosa que faça prender os dois
homens que vieram para o seu distrito sem passaporte, o que ele deveria ter já feito em
virtude da minha Ordem de 23 de fevereiro do ano passado, o que se não opõe á outra minha
ordem de março do corrente ano, por que prender um homem estranho que não traz
passaporte é prisão em flagrante”.

​Por fim, serão analisadas as informações contidas no livro de registro de passaporte que
recobre o período de 1813 até 1824. Esse conjunto de documentos torna explícito que essa
legislação foi efetivada na capitania. Em julho de 1813 foi concedido um passaporte a João
Ferreira, mameluco, morador na vila de Sobral que se encontrava na vila de Aracati. O
documento faz uma descrição minuciosa do solicitante para possibilitar a sua identificação. A
licença foi concedida para João ir a sua casa na vila de Sobral, o que também demonstra que
havia mobilidade da população na capitania.

“Passou-se passaporte a João Ferreira de Souza mameluco casado morador na vila


de Sobral para ir para sua casa o qual tem os sinais seguintes = mameluco trigueiro, estatura
ordinária, cabelos pretos pouco armado, rosto descarnado com as faces ... rugadas, 2 sinais na
face direita, testa pequena, olhos pardos ... nariz afilado boca pequena com um dente falto
adiante na parte de cima pouca barba, curta pintada de branco. Vila do Aracati 26 de julho de
1813”.

​Outros registros foram localizados, apesar de não conterem a riqueza de informações, mas,
são importantes para constatar a aplicação da legislação e a mobilidade da população na
capitania. Era a situação do pardo João Soares, morador no termo de Sobral, estava na vila de
Aracati, deslocava-se para Lavras, no sul do Ceará, e daí para a sua casa.

“Passou-se passaporte para João Soares de Silva pardo casado morador na Cruz
do Padre da vila de Sobral para ir as Lavras, e dai para sua casa em 25 de Agosto de 1813 na
vila de Aracati”.

​A partir das últimas décadas do século XVIII se iniciou todo um processo, tendo por
objetivo disciplinar a população pobre-livre para que se submetesse ao trabalho regular e
disciplinado, mas, sobretudo, garantir o monopólio da coerção sob o controle dos
representantes do Estado metropolitano na capitania. Pelo exame da documentação era
notória que a aplicação da legislação obedeceu a uma lógica que foi a adequação da legislação
à realidade local. Nas ordens emanadas do governador, a lei deveria ser aplicada ao pé da
letra, no entanto, o próprio governador Sampaio recomendava, em determinadas
circunstâncias, moderação na sua aplicação, caracterizando um processo de adequação do
texto legal à realidade da capitania.
Por fim, constata-se sintonia dos interesse dos grupos dominantes locais e os da metrópole em
submeter os pobre-livres como trabalhadores produtores de excedente, principalmente, no
contexto algodoeiro em uma capitania em que o trabalho escrava não teria condições de
responder a demanda.

Parte II

As Transformações Sociais na província do Ceará na segunda metade do século XIX.

Nesta segunda parte do estudo faremos uma análise sobre as transformações


sociais na província do Ceará entre 1850/1880. Esse foi o segundo período de inserção da
Província na economia mundial através do algodão. No primeiro momento como analisamos
na primeira parte do estudo, estava em curso mudanças na economia que exigia
transformações nas relações de trabalho.

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Na segunda metade do século XIX, aos poucos a agricultura para exportação
tornou-se mais uma vez hegemônica na Província do Ceará.

A RESTRUTURAÇÃO DA AGRICULTURA COMERCIAL E A ECONOMIA


PROVINCIAL (1845-1880)

​Como assinalou Hobsbawm, o período final da década de 1840 foi marcado pela
liberalização do comércio mundial. Tal fato demarcava também uma nova fase no
desenvolvimento do capitalismo, que ingressava na fase de hegemonia do capital industrial.
Foi nesse contexto que a economia da Província apresentou sinais de recuperação, com o
renascimento da agricultura comercial, possibilitando a reinserção dessa no mercado europeu.
​O renascimento agrícola foi marcado pela recuperação do algodão, que havia entrado em
crise a partir da década de 20, e pelo aparecimento do café e do açúcar como produtos para
exportação.
​O café se transformou num produto importante na pauta de exportação da Província na
segunda metade do século XIX, chegando em alguns momentos, como entre 1860/1865, a
superar o algodão, em termos de produção para exportação.
​De acordo com o Barão de Studart, o café foi introduzido no Ceará na primeira metade do
século XVIII (1746), mas, segundo outros autores, como o Senador Pompeu, no ensaio
estatístico da Província do Ceará, o café começou a ser cultivado em maiores proporções a
partir de 1822 através de sementes vindas de Pernambuco, plantadas no Cariri cearense e daí
se expandindo para outras áreas da Província.
​Nesse período a produção estava voltada para atender ao consumo local. Foi somente a
partir de 1846 que a produção cafeeira passou a constar da pauta de exportação cearense.
Inicialmente, o cultivo se deu na serra de Maranguape. Posteriormente, estendeu-se
praticamente por todas as áreas da Província propícias ao seu cultivo. Foi, entretanto, na serra
de Baturité onde se concentrou a maior parcela da produção cearense.
​O Relatório do Presidente da Província de 1862 constatou a existência de 600 fazendas
produtoras de café na Província, das quais 40% estavam situadas na serra de Baturité.
​A produção tornou-se crescente a partir de 1845, sendo o período de maior exportação
entre 1860/1865, quando chegou a 8.321.716 kg, como podemos constatar pelo quadro
abaixo.
Quadro III
EXPORTAÇÃO DE CAFÉ DA PROVÍNCIA DO CEARÁ (1850-1880)
Período Peso (Kg) Valor Oficial
1850-1855 1.763.797 311.469$540
1855-1860 2.128.320 1.199:509$730
1860-1865 8.321.716 4.078:150$240
1865-1870 4.611.958 1.945:820$800
1870-1875 5.095.399 2.577:066$000
1875-1880 7.752.618 3.158:417$050
Fonte: Guabiraba, M. Célia de Araújo, A crise Cearense p.215 Fortaleza, 1989, p.215

​O açúcar era o terceiro produto de importância na pauta de exportação da Província a


partir dos fins da década de 1840. As áreas mais importantes eram os municípios de
Maranguape, Fortaleza, Aquiraz e Cascavel.
​Como constatou o senador Pompeu, no Ensaio Estatístico da Província do Ceará, a cultura
canavieira teve um papel importante como base alimentar da população da Província, desde o
processo de ocupação em fins do século XVII e início do seguinte.
​ seguir, tentaremos reconstituir o percurso da cultura canavieira na Província, no século
A
XIX.
​Como constatou Silva Paulet, na “Descrição Abreviada da Capitania do Ceará”, escrita no
início do século XIX, a rapadura, um dos derivados da cana, era um dos componentes básicos
da alimentação da população:

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“Há lavouras de cana no termo da vila do Crato, mas muito pouco açúcar; surtem-
se os povos de Pernambuco, e as canas do país (Província) são desmanchadas, em pequenas
engenhocas, em rapaduras, que com farinha servem ao sustento do povo, que preferem com
gosto a outro alimento.”

​Silva Paulet, no trabalho mencionado, ao analisar a situação econômica de diversas vilas,


mais uma vez, ressaltou a importância do cultivo de cana para a produção de rapadura:

“Na serra de Baturité (...) está situada esta vila (Monte-Mor o Novo). A
agricultura é de legumes, que se vendem em pequena quantidade para a vila de Fortaleza,
algodão e cana. (...) A cana é reduzida a rapaduras, que se extrai para o sertão de Campo-
Maior e Canindé, termo da Fortaleza, em engenhocas mais pobres que as do Cariri.”

​Na “Notícia Geral da Capitania de Seará Grande”, de fins do século XVIII. Azevedo
Montaury, Governador da Capitania, referiu-se à abundância de cana-de-açúcar, concluindo
que era mal aproveitada pela população. A produção restringia-se ao consumo local:

“Há na Capitania grande abundância de canas-de-açúcar, porém a natural inércia


daqueles povos os não deixa lembrar de grande proveito que dela se pode tirar,(...).”

​Os derivados cana-de-açúcar foi um importante componente na alimentação da população


da Província. No entanto, foi somente em fins da década de 1840 que se iniciou a produção de
açúcar para exportação, em função das transformações que ocorreram-no mercado
internacional, fazendo com que a produção de rapadura e aguardente sofresse um ligeiro
declínio. O quadro abaixo retrata a evolução da exportação açucareira na Província a partir da
década de 1850.
EXPORTAÇÃO DE AÇUCAR DA PROVÍNCIA DO CEARÁ (1850-1880)
Período Peso (Kg) Valor Oficial
1850-1855 1.140.325 118:339$500
1855-1860 8.827.036 1.246:897$770
1860-1865 8.428.132 1.074:053$040
1865-1870 7.784.457 1.084:445$000
1870-1875 9.720.650 1.151:645$000
1875-1880 5.585.652 629:034$000
Fonte: Guabiraba, M. Célia de Araújo, op. cit. p.215

​Analisando a evolução da exportação açucareira de 1850 a 1870, constata-se que houve
crescimento significativo nesse período, apesar de na década de 1860 os preços terem entrado
em crise no mercado europeu e o algodão ter se transformado no principal produto na pauta
de exportação da Província, fazendo com que todos os esforços estivessem voltados para a
sua produção.
​O auge dos preços da produção açucareira foi entre 1855 e 1860. Para fazermos uma
análise comparativa com o algodão, o principal produto na pauta de exportações, colocaremos
em confronto o valor da exportação dos dois produtos entre 1855-1860. O valor da exportação
do açúcar era equivalente a 50% da exportação algodoeira.
​O Jornal Araripe, em 1859, refletiu as transformações que estavam em curso no cultivo de
açúcar:
“(...) na situação da nossa agricultura nesta comarca do Crato, onde há grande
cultura (...) para fabrico de açúcar e de rapaduras, que é aplicado a todos os usos da vida do
nosso povo, daquelas das comarcas vizinhas, e finalmente até daquelas outras das Províncias
próximas (…).”

​No entanto, as condições favoráveis para a produção açucareira aconteceram por um


período muito curto, mais ou menos uma década. Isso se evidenciou nas análises feitas pelo

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Jornal Araripe. Em 1859 o Jornal se referia à grande cultura para o fabrico de açúcar e
rapadura, enquanto três anos após, em 1862, o mesmo jornal, fazendo uma análise da situação
da economia da Comarca do Crato, constatou a crise da produção açucareira:

“A uma alta excessiva, que tiveram os gêneros da produção do Cariri em começo


do ano passado, sucedeu uma desapreciação (sic) tal, que não saberíamos, como sair a nossa
agricultura de tão sérios embaraços, (...) O açúcar em sua forma adotada ao consumo dos
sertões, o qual nos anos anteriores fazia a máxima parte da exportação do Cariri, e mantinha
um comércio muito proveitoso, tendo na safra do ano passado logrado o preço de oito mil
reis, e superior, está sendo vendido presentemente pela diminuta quantia de 3$000 reis a
carga, o que vem a ser cinco tostões por arroba, e nem sempre acha comprador, se não por
dois terços dela! (...)”

​Os relatórios dos Presidentes da Província, também, se reportaram a crise do açúcar. Em


1860, o Presidente ao fazer uma comparação entre a produção cafeeira e a açucareira,
evidenciava as dificuldades desta última:

“É notável desproporcional gradação que apresenta a produção de café, aliás de


recente data, na província, e um desanimo no fabrico de açúcar. Este efeito com razão atribui-
se às nossas defeituosas vias de comunicação e aos custos dos transportes, por isso que
avultando em pouco uma carga deste último gênero, juntamente a metade d'ella é absorvido
com o frete que paga no mercado ao povo que uma igual quantidade do primeiro obtêm o
tripulo do valor (...).”

​No início da década de 1870, a produção açucareira provincial estava inviabilizada pela
queda constante dos preços no mercado europeu. O relatório do Presidente da Província de
1872 retratou essa situação:

“As indústrias não prosperam pela ausência de meios fáceis, rápidos e baratos de
transporte. Os artigos de transportes sobre lutarem com grandes dificuldades para chegarem
ao principal mercado da província, vêm-se absorver-se uma grande parte do seu valor no
custo do transporte. É claro o motivo do abandono da cultura de cana, de certa zona do
interior da província em diante. O fabricante do açúcar bruto, depois de tantos sacrifícios e
incômodos só obtêm 100 réis por arroba”
Si, porém, a distância for de 500 km, o frete de despesas por arroba de café,
algodão e couros levasse à 3$900 para os dous primeiros, e à 3$500 para o último, deixando
ao produtor o valor líquido de 2$700 por arroba de café, 4$800 pela de algodão e 5$000 pela
de couros, desaparecendo inteiramente a indústria sacarina (...)”

​Como tentativa para salvar a lavoura açucareira no Ceará foi proposta a implantação de
engenhos centrais. Essa proposta começou a ser discutida em Pernambuco a partir da década
de 1850. No entanto, só foi implantada duas décadas após. “Durante a década de 1870 tanto o
governo provincial quanto o imperial começaram a oferecer subsídios a engenhos centrais.
(...) A Assembleia Provincial de Pernambuco aprovou a lei 1.141, a 8 de junho de 1874, que
autorizava o Presidente a promover seis engenhos centrais garantindo um lucro de 7% sobre
500 contos por engenho, por vinte anos.”
​No Ceará, como em Pernambuco, o engenho central, segundo os produtores, minoraria um
dos problemas básicos: a “escassez” de trabalhadores. É o que pode ser constatado pelo
Relatório do Presidente da Província, de 1875:

​“O cultivo da cana é, entre nós, o mais penoso e improdutivo. A dificuldade de braços para
vencer o grande trabalho de plantio e moagem (...) tem dado lugar a decadência desse (...)
ramo da indústria (...).
​Nessas condições não é lícito cruzar os braços (...).Está demonstrado que o (...)meio mais
pronto (...) para o melhoramento (...) é o estabelecimento dos engenhos centrais.”

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​Na imprensa foi aventada, também, uma possibilidade para resolver a crise da lavoura
açucareira. No entanto, as sugestões, apresentadas na imprensa e nos relatórios de Presidentes
da Província, ficaram apenas no nível de propostas, pois não se constata a implantação de
engenhos centrais na Província. O que demonstra que o açúcar era um produto secundário
para economia cearense, não despertando o interesse de investimentos no setor.
​Para finalizar a análise sobre a cultura açucareira destacaremos um aspecto que nos
pareceu importante para compreendermos o comportamento da economia da Província nas
conjunturas de crise. Os relatórios sobre a situação das indústrias manufatureira e fabril da
Província demonstram que, à medida que a produção para a exportação se inviabilizou, a
produção se voltou para o abastecimento do mercado interno, implementado o fabrico de
rapaduras e aguardente. Isso atendia fundamentalmente à demanda do mercado local, como se
pode constatar no relatório da Vila de Baturité:

“Engenhos = 571 sendo de ferro 21 (notando-se que a fabricação de açucar tem


desaparecido, sendo apenas nestes engenhos fabricada (...) rapaduras, que em sua maioria é
no município. Açúcar = 500 arrobas anuais não chegando para o consumo do município.
Fábrica de destilação = 51.”

​Dentre os produtos de exportação o algodão era o principal e se constituiu na base


econômica da Província, isto é, além de ser um produto importante para o consumo interno,
em termos do valor da exportação global da Província o algodão tinha uma posição destacada.
​O processo de recuperação do algodão, a que nos referimos acima, estava associado ao
processo de liberalização do mercado europeu, a partir da década de 1840. Como acentuou
Hobsbawm “a tendência mais impressionante era o movimento em direção à total liberdade
de comércio”. Noutro trecho Hobsbawm “Não há dúvida que a liberalização trouxe todo tipo
de resultados especificamente positivos.”
​Além das transformações no mercado europeu, a guerra nos Estados Unidos criou uma
conjuntura favorável para a produção algodoeira cearense.
​Em fins da década de 1840 teve início a recuperação da economia algodoeira cearense,
que, em 1852, já representava 60% do valor total da exportação da Província.
​Na década de 1850, no âmbito da Província, foram adotadas algumas medidas que tiveram
repercussões na produção, tais como: a introdução das máquinas modernas de descaroçar e
sementes mais resistentes às pragas.
​Para avaliarmos o interesse que passou a despertar o cultivo de algodão na Província na
segunda metade do século XIX, analisaremos uma série de artigos publicados na imprensa a
partir de 1855.
​O Jornal Araripe, publicado na cidade do Crato, passou a discutir a viabilidade do plantio
de algodão no Cariri cearense. O jornal apontava a diversificação das culturas como uma das
possibilidades para suprir a crise econômica no âmbito da comarca. O algodão era tido como
produto capaz de substituir a cultura canavieira, a principal atividade da agricultura comercial
do sul da Província:

“As vezes pela incúria de seus habitantes um país se vê reduzido a mesquinha


proporções (...).
​O Cariri, se tem circunscrito a esse ramo (a cana) de cultura pouco importante
com preferência a outros, que podiam tornar imensamente rico (...). Assim é que a cana tem
formado o único ramo da cultura, quando é ela nas condições atuais do comércio causa
secundária em relação ao algodão, cujo consumo é infinitamente maior, e cujos lucros são
superiores (...) é indubitável que na Chapada do Araripe sua cultura será tão fácil, como
rendosa (...).
Mas infelizmente entre nos cujas circunstancias comerciais se tornam dia a dia
mais critica pela deficiência do numerário, não há quem se proponha a utilizar-se daquele
terreno desaproveitado, cultivando neste sentido (...).”

​Em 1857, mais uma vez, o Araripe voltou a se posicionar sobre o cultivo de algodão no

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Cariri, referindo-se ao nascimento da cultura algodoeira e da atividade comercial que se
desenvolvia em função do algodão.

“Depois de algumas considerações, que aventuramos sobre a conveniência da


introdução do algodão nesta comarca e sua plantação nos terrenos que abundam aos misteres
da agricultura, temos tido a satisfação de ver nascer no Cariri uma indústria tão cheia de
esperança para o país. (…).
Alguns agricultores procuraram verificar até que ponto eram exatos os nossos
cálculos sobre os lucros desse trabalho, e que futuro lhes poderia assinar entre nos as mais
indústrias concorrentes. (...).
Vemos por isso que de muitas partes já vai afluindo ao mercado algodão da
melhor qualidade e que negociantes tem havido, como Sr. Tenente Coronel Antonio Luís, que
desse gênero tem recolhido porções avultadas.”

​No mesmo editorial o algodão, mais uma vez, era apontado como o produto capaz de tirar
da crise a economia da Comarca:

“Nos muito nos regozijamos com isto; porque desejando o aumento da exportação
de seu comércio, não vemos si não o algodão, que de pronto e de um modo eficaz, possa
operar essa revolução, tornando mais abundante o numerário, (...) e o crédito individual tanto
maior quanto deve ser a confiança nos recursos de um país, (...). Não há quem nos possa
contestar, que sem um novo ramo de indústria, que lhe valha novos recursos, o Cariri não
pode pagar o que importa.”

​Em 1862, com a queda dos preços do açúcar, mais uma vez o algodão era apontado como a
cultura capaz de suprir a crise da economia do sul da Província:

“A uma alta excessiva, que tiveram os gêneros ​da produção do Cariri, em


começo do ano passado, sucedeu uma desapreciação (sic) tal, que não saberíamos, como sair
a nossa agricultura de tão sérios embaraços se a crise por que passa o comércio europeu das
manufaturas de algodão, nos não apontasse uma especulação assas lucrativa que pode
remediar os males provindo da escassez do meio circulante, da baixa completa dos gêneros da
nossa produção agrícola. O açúcar (rapadura) tendo na safra do ano passado logrado o preço
de oito mil reis, e superior, está sendo vendido presentemente pela diminuta quantia de 3000
reis (...). Na mesma proporção tem baixado todos os artigos da produção do país e a fortuna
pública decresce por tal modo que consideramo-la extinta, nosso comércio aniquilado. Uma
tal situação é talvez a mais desesperada por que tem passado esta comarca; (...).Julgamos pois
conveniente lembrar o plantio do algodão, que nas circunstancias anormais, em que nos
achamos; é o único capaz de nobilitar o nosso comércio, refazer as forças perdidas pela crise.”

​Em 1861 o Jornal Pedro II, órgão de uma fação do partido conservador do Ceará, editado
em Fortaleza, fez uma análise sobre guerra civil americana e as suas repercussões no
comércio mundial. Acentuou as dificuldades que teria a Inglaterra para suprir as necessidades
de matéria-prima para a indústria têxtil, apontando o Brasil como o país capaz de suprir tais
necessidades e, mais especificamente, as Províncias do Norte. Como não poderia ser diferente
o jornal apontava Ceará como aquela que teria as melhores condições para produzir algodão:

“As províncias que ficam ao norte do Brasil, e a do Ceará sobre todas, é a que
oferece melhores condições para a plantação de algodão, e por isso lembramos aos nossos
comprovincianos a conveniência de fazer convergir, seus esforços na exploração desse
manancial de riqueza de que, tantos lucros podem auferir. A plantação do algodão não
exigindo grandes capitais, intermediando pouco tempo do ato de plantação ao a colheita, deve
merecer de preferência a qualquer ramo da agricultura a atenção dos homens mais abastados
da província de nosso povo em geral, no empenho de fazermos todos suas lavras grandes ou
pequenas conforme os recursos e possibilidades de cada um.”

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​Em 1864, João Brígido fez uma análise sobre repercussão da produção algodoeira na
Comarca do Crato, destacando diversos aspectos como:

“A colheita promete ser pingue, e desde já se experimentando as vantagens que


oferece este ramo da indústria agrícola. Diversos lavradores vão enchendo os seus paióis, e o
capital posto em momento para a compra desse produto equivale já à metade do que nos
importam anualmente pela rapadura e pelo açúcar, ramo principal da nossa produção.”

​O autor retratava a expectativa que a produção algodoeira criou uma expectativa tal que,
segundo Brígido, fez avançar a agricultura em muitas áreas novas isto é, terras incultas,
passaram a ser ocupadas com o cultivo do algodão. No entanto, Brígido, também retratava
decorrência do interesse pelo novo cultivo o abandono de atividades tradicionais como a
produção de alimentos em favor da produção algodoeira:

“Este aspecto, que torna o comércio do algodão, tem por tal modo incitado a
ambição de nossos agricultores que no fim do ano não haverá uma geira de terra em pousio,
todas as capoeiras estão convertidas em roça e todas as outras plantações serão abandonadas
por essa que a situação econômica converteu em mais lucrativa, fabulosamente lucrativa. ”

​Além do mais João Brígido destacou outros aspectos relacionados como a deficiência de
estradas e dos meios de transporte, que demonstram o caráter geral das modificações
ocorridas devido a produção algodoeira, na segunda metade do século XIX:

“Contando por milhares de braços que atrai esta indústria, a safra do ano futuro
nos parece tão boa que desde logo prevemos que o transporte não será possível com os meios
e com as vias de que atualmente dispomos.”

​Noutro trecho, o articulista acentuou as dificuldades de transporte, devido às condições das


estradas, mas sobretudo, pela falta de animais de carga em função do crescimento da
produção algodoeira no sertão:

“as cavalgaduras, que fazem os transportes dos nossos gêneros, não bastão para
levar ao mercado todo esse algodão. Elas pertencem pela maior parte às freguesias dos
sertões, e aí reclamam os seus serviços safras igualmente copiosas. ”

​O Relatório, sobre as condições da indústria extrativa e manufatureira da Província, de


1868 retratavam as transformações em curso na Província em função da produção algodoeira
na segunda metade do século XIX. As informações analisava a situação nas mais destacadas
regiões produtoras. O relato sobre a vila de Saboeiro retratava o entusiasmo em função do
avanço do cultivo de algodão:

​“Com o desenvolvimento que de pouco anos para cá tem tido o plantio do


algodão em toda a província, neste município também se há apurado um grande
melhoramento à respeito desta indústria (...).
​Na cultura do algodão sobressaem com grande vantagem neste município (...)
nas terras adjacentes à grande Serra do Araripe. Avalia-se a produção de algodão em 3 mil
arrobas de lã anualmente sendo 600 mais ou menos consumidos no município e os mais
exportados para fora dele. ”

​O mesmo destaque era, também, explicitado no relatório sobre São Matheus, o algodão era
apontado como o principal produto de exportação, ressaltando que a sua produção mais

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intensiva teve início por volta de 1864/1865:

“O algodão que, a três anos, principiou a ser cultivado neste município, em maior
escala, tem sido n’estes últimos tempos um dos importantes objetos de exportação (...), para a
capital, Aracati, Icó.”

​Não era diferente o entusiasmo ao relatar o avanço do cultivo de algodão, que segundo o
relatório, se disseminou por todas as áreas da Província. Do litoral ao sertão, em áreas
tradicionais de pecuária, ao algodão se transformou no principal produto da pauta de
exportações, na década de 1860, sendo, também, estabelecido o consórcio entre as culturas
tradicionais como milho, feijão e a própria pecuária. O que pode ser constatado pelo relatório
da Vila de Imperatriz (Itapipoca):

“Além da agricultura ser a primordial indústria, (...). É por entre os variegados


ramos de aplicação do trabalho, a indústria pastoril e agrícola tornam o pecúlio do município
(...) com 26.105 habitantes.”
​A criação de gado, principal aplicação (...); a agricultura lutando com as
mesmas desvantagens (...) e à (...) rotina sem qualificação, agorenta por falta de braços e de
máquinas que reduzem o preço da produção (...) também não deixa um importante lugar entre
os demais municípios (...) senão com sua grande produção de algodão, que manda para essa
Capital, e para o Maranhão e Pernambuco.”

​Finalmente é importante atentarmos para a referência feita por Rodolfo Teófilo, em


passagem que já se tornou clássica, onde retratou com nitidez as repercussões da produção
algodoeira na Província do Ceará na década de 1860:

“De um ano para o outro, a província cobriu-se de algodoais; derribam-se as


matas seculares do litoral às serras ao sertão; (...). Os homens descuidavam-se da mandioca e
dos legumes, as próprias mulheres abandonavam os teares pelo plantio do precioso arbusto
(...).”

EXPORTAÇÃO DE ALGODÃO DA PROVÍNCIA DO CEARÁ (1850-1880)


Período Peso (Kg) Valor Oficial
1850-1855 3.789.476 135.263$511
1855-1860 5.217.293 2.367:181$452
1860-1865 4.546.908 4.379:717$692
1865-1870 18.620.811 14.878:524$900
1870-1875 31.164.349 16.814:110$000
1875-1880 9.215.401 3.701:931$745__
Fonte: Guabiraba, M. Célia de Araújo, op. cit. p.215

​Como se pode perceber pelo quadro acima, entre 1850-1855 a exportação de algodão pelo
porto de Fortaleza (o principal da Província) foi de 3.799.476 kg; em 1865-1870, quando
estava em curso a guerra nos Estados Unidos e o mercado europeu teve de recorrer a fontes
alternativas para suprir a lacuna deixada pela produção americana, as exportações saltaram
para 18.620111 kg. No entanto, os primeiros anos da década de 1870, exportação continuou
crescendo, no entanto, a queda dos preços no mercado europeu, em função da “Grande
Depressão”, como denominou Dobb, e a recuperação da produção dos Estados Unidos,
determinou uma queda brusca da produção a partir de 1876. Apesar do esforço dos produtores
em aumentarem a exportação como forma de enfrentarem a crise, a estratégia se mostrou
inviável, pois os preços continuaram caindo de forma constante. Mais uma vez recorro a
Rodolfo Teófilo, um observador arguto das condições enfrentadas pela Província no período:

“Negociantes e lavradores tentam arcar com a crise, abrindo novas e imensas


lavras que produzem (1871) 7.906.944 kg; mas o preço baixava sempre; o prejuízo continuou
imenso. Empenharam os últimos recursos e atiraram-se à luta; a safra seguinte deu 7.382.748
kg, e o preço baixar sempre! Estavam os lavradores vencidos, e pobres e endividados.”

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​A mudança foi rápida, do entusiasmo a partir da década de 1850, quando o algodão era
tido como a solução frente a crise da agricultura tradicional como a da cana, para a crise na
década de 1870, devido ao fim da guerra civil americana. A queda dos preços do algodão no
mercado europeu teve reflexos imediatos na província.
​A imprensa, que havia retratado com entusiasmo as novas perspectivas, a partir de
1873/1874, relacionava a queda das rendas públicas ao declínio dos preços dos produtos
agrícolas na Europa. Em 1874, o Jornal Cearense, em editorial, fez a análise seguinte:

“A fortuna pública tem estado seriamente comprometida desde que, depreciando-


se os gêneros de produção da província nos mercados europeus, tornou-se está um
consumidor sem rendas. As despesas, que ficam aquém dos lucros, tendem a empobrecer,
consumindo as economias feitas; e, pois que elas são inevitáveis, todas as reservas se
esgotam, até sobrevir a indigência. ”

​A crise da produção algodoeira repercutiu na província como um todo. Além da agricultura


foi no comércio, (um dos ramos que mais se beneficiou com o desenvolvimento da agricultura
de exportação), onde a crise teve reflexos a curtíssimo prazo, mais uma vez a imprensa, em
análise cotidianas como constatou as transformações. O Jornal Cearense no mesmo editorial
afirmava que:

“N’estas condições nos temos achado desde 1870. O comércio definha a olhos
vistos, a agricultura enferma, todas as relações da vida econômica se alteram, indo o mal em
progressão espantosa.
O sinal de que esta crise vai solapando tudo, no gênero das finanças, está em que
as rendas públicas baixam consideravelmente, escasseia o meio circulante, fecham-se os
estabelecimentos comerciais por centenas, e finalmente as operações de carteira são
nulíssimas e arriscadas, todo gênero de transação já se dificulta com as praças da Europa,
onde os negociantes do país tinham constante provisão e fundos para praticarem seus saques.”

​O quadro retratado, pelo editorial, era aterrador, a redução das rendas públicas, a crise
comercial, as dificuldades de crédito e a redução das transações com a Europa, cessando as
possibilidades dos comerciantes locais em buscar crédito, que era a principal fonte de
financiamento. Casas comercias como a Boris Fréres que, também, atuava no ramo do crédito
e tinha fortes ligações como o velho continente.
​Esse quadro era descrito por todas as correntes de pensamento seja os liberais, através do
seu jornal o cearense, ou os conservadores do jornal Pedro II que em junho de 1874, fez
comentário seguinte, apesar de não ser tão dramático o quanto o traçado pelo jornal Cearense,
também constatava a situação de crise da economia provincial:

“A crise comercial por que ora passamos é assustadora, e as consequências


desastrosas que d'ela nos hão de vir, levarão o comércio desta praça a um verdadeiro estado
de insolvência si os negociantes de primeira classe não tomarem a atitude que as
circunstancias atuais aconselham. ”

​Um elemento a mais para percebermos o quadro da crise é acompanhar os anúncios de


falências, publicadas nos jornais. Os editais sobre falência tornaram-se uma constante na
imprensa provincial. No Jornal Constituição, de 1874, constatamos diversos exemplos, dos
quais destacamos o seguinte:

“Faço saber perante Edital que por parte de Joaquim da Cunha Freire (Barão de
Ibiapaba) e Irmão, negociantes matriculados, moradores (...) Cidade da Fortaleza, foi
apresentado a petição de teor seguinte: Ilm Sr. Juiz de direito do Comércio
– Dizem Joaquim da C. Freire e Irmão, (...) que Francisco R. da Silva, negociante
também, e estabelecido na casa de secos e molhados (...) nesta cidade, lhes está a dever
(...)7:245$190 reis, vencidos e a vencer sendo instado a pagar a primeira parte, o não tem

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podido fazer, exibindo um balanço, do qual evidentemente se vê que se acha lançado,
procedendo o mau estado de suas de perda ao jogo”.

​Noutro edital, no mesmo jornal, de junho de 1874, em que João Antonio de Cunha
solicitou a declaração de sua falência, justificou-a como resultado da crise que recaia sobre a
economia regional:

“Ilustríssimo Senhor, do balanço junto verá V.S. o estado de insolvência de sua


casa comercial. A triste crise por que ultimamente há passado quase todo o norte do Brasil, é a
causa primordial das numerosas falências ultimamente havidas de Pernambuco para o norte.
A nossa praça especialmente é a que mais tem sofrido e as causas são tão patentes que
ninguém melhor que V.S. pode aquilatar. Esse ilustrado juízo ultimamente tem tomado
conhecimento de outros casos de falência, e segundo é opinião geral, muitas outros serão
ainda julgados.”

Para concluirmos, destacamos que a crise algodoeira que se abateu sobre a


província, a partir da de década de 1870, teve impactos devastadores para a província, que
havia vivenciados um período de prosperidade a partir da década de 1850. Esse quadro
agravou-se com as secas que se abateram sobre a província a partir de 1877-1879, resultado
em dos piores desastres humanitários registrado na história da região. Fortaleza uma cidade
com 20 mil habitantes em poucos meses passou a ter 120 mil habitantes o que inviabilizaria
qualquer perspectiva de acolher toda essa população. O resultado foi a aglomeração dos ditos
retirantes em abarracamentos com condição degradantes o que resultaria no avanço de doença
vitimando milhares de pessoas. Rodolfo Teófilo narrou a situação alarmante em que em um só
dia morreram mais de mil pessoas que foram sepultadas em valas comuns.
No entanto, o estudo tem por objetivo analisar como se deu a subordinação da
livre-pobre nesse contexto. Tendo como referência esse conjunto de transformações que
ocorreram no Ceará na segunda metade do século XIX, é importante perceber como a classe
dominante agrária elaborou estratégias para justificar a repressão sobre essa população para
submete-la ao trabalho regular e disciplinado.

A População Livre/Pobre e a Organização das relações de trabalho no Ceará


(1850-1880).

Introdução
Como analisei, na segunda metade do século XIX, estava em curso uma série de
transformações no âmbito da Província do Ceará. Estas modificações não ficaram restritas aos
aspectos materiais houve repercussões no modo de vida da população livre-pobre. O objetivo
desse capítulo é recuperar as propostas dos grupos dominantes locais para organizar as
relações de trabalho na Província a partir da população pobre-livre.
​O renascimento da agricultura comercial na Província, exigiu a incorporação crescente de
força de trabalho. Exigiu sobretudo, a criação de mecanismos para garantir a submissão, da
força de trabalho e dos trabalhadores aos grandes proprietários.
​Na análise das relações de trabalho na Província, de 1850 até 1880. Iniciarei fazendo um
panorama sobre o trabalho escravizado no Ceará.

Panorama da população livre e escrava no Ceará (XVIII-XIX)

​É importante afirmar o caráter escravista da formação social cearense. Isto, no entanto, não
inviabilizava ressaltar a importância do trabalho livre já no primeiro período algodoeiro
(1780-1825). Farei a comparação da participação do escravo como força de trabalho na
capitania do Ceará com outra área de pecuária, como a capitania do Piauí, que conforme os

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dados expostos a seguir: “Em 1697 a população escrava representava 64,52% da população
total. Em 1762 a população escrava representava 36,44% e no final deste século. Em 1797, o
total de escravos correspondia a 32,64%, enquanto as pessoas livres, 67,36%”.
​Por outro, constata-se como sendo na capitania do Ceará onde houve um crescimento
significativo de sua população, na segunda metade do século XVIII. Quanto à presença de
escravizados, ao ser comparado com as capitanias anexas a de Pernambuco percebe-se que a
relação entre a população escravizada e a população em geral, para o ano de 1763, no Ceará
era o menor percentual, com 12,5%. No Rio G. do Norte o percentual era quase o dobro de
24%. Estou comparando Capitanias com atividades produtivas em que predominava a
pecuária articulada à agricultura de subsistência perfil econômico do Ceará e do Rio Grande
do Norte.
Tabela I - População da capitania de Pernambuco e suas anexas (1763).
Capitanias Escravos População livre População total
Pernambuco 23.299 66.810 90.109
Paraíba 9.293 29.865 39.158
Rio G. do Norte 5.570 18.806 23.305
Ceará 2.128 14.882 17.010

​Fonte: José Ribeiro Junior. Colonização e Monopólio no Nordeste Brasileiro. A companhia Geral de
​Pernambuco e Paraíba. (1759-1780). São Paulo, HUCITEC, 1976, p.72.

O exame dos inventários de 1800 a 1840, das Comarcas do Icó, Acaraú e São João
do Príncipe (Tauá), reforçam as constatações feitas por Pedro Alberto O. da Silva para o
período final do século XVIII: a participação do trabalhador escravizado na capitania era
pequena.
INVENTÁRIOS DAS VILAS DE S. J. DO PRÍNCIPE, ACARAÚ e ICÓ.
1800 – 1840
o o o
Localidade N Inventários N Escravos N Proprietários Escravos/ Proprietários

Tauá 102 525 102 5,1


Acaraú 41 172 41 4,1
Icó 48 246 48 5,1
Fontes: Arquivo Público do Estado do Ceará e 2 Cartórios de Icó.

Quando dividimos o número de proprietários pelo total de escravizados, obtemos uma média de
4,7 por proprietário. No entanto, ao fazermos uma análise mais acurada constatamos que 20,5%
dos proprietários não tinham escravizados e 30% tinham somente 2. É importante salientar que
50,5 dos proprietários estavam situados na faixa entre 0(zero) e 02 escravizados. Além do mais,
como se pode constatar no quadro a seguir, 70,8% dos proprietários possuíam entre 0 e 5
escravizados.
A DISTRIBUIÇÃO DOS ESCRAVOS POR PROPRIETÁRIOS (%) (1800-1840)
No Escravos Icó Acaraú (Tauá) Média
00 6,7 17,0 27,4 20,5
01-05 56,2 53,6 41,1 50,3
06-10 14,7 17,6 20,5 7,6
11-15 4,2 4,8 4,9 4,6
16-20 2,1 4,8 1,9 2,9
21-25 6,3 00 0,1 2,4
26-30 00 00 1,0 0,3
31-35 00 00 00 00
36-40 00 00 00 00
41-45 00 00 2,9 0.98
Fonte: Segundo Cartório do Icó; Arquivo Público do Estado do Ceará

Para o início do século XIX há dados sobre a distribuição da população escravizada, o que
pode ser constatado era a concentração nas áreas ocupadas pela pecuária. Outras fontes
documentais importantes para avaliarmos a participação dos escravizados na Província são as

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descrições feitas no período como: A “Descrição Abreviada da Capitania do Ceará,” escrita
por volta de 1816, por Silva Paulet, ao referir-se à Vila de Aquiraz, fez a seguinte
constatação:

“Esta vila é a mais antiga, (...). A agricultura é mandioca, milho e algum feijão,
que se consome na vila de Fortaleza e na do Aracati; produz algodão, mas em pouca
quantidade. Está inteiramente arruinada e sem comércio; (...) Ha no termo 28 engenhocas de
fazer rapaduras, mas é necessário advertir, que tais fábricas nada são; algumas nem um
escravo tem (...)”

​Ou como se percebe pelo exame da tabela construída a partir do censo de 1804.
População da capitania do Ceará grande em 1804

Vilas Branco -Pretos e Pardos Livres Pretos e Pardos Escravos Total da População
Aquiraz 2.679 2.145 702 5.526
Aracati 2.339 1.490 1.102 4.931
Russas 3.753 2.769 943 7.465
Icó 3.822 3.522 1.507 8.851
Crato 6.797 12.793 1.091 20.681
Tauá 5.362 3.231 1.856 10.448
Granja 1.047 1.656 759 3.502
Sobral 2.781 4.193 2.978 9.952
Campo Maior 1.757 2.986 1.270 6.013
Fonte: Revista do Instituto do Ceará. Tomo XXIX, p. 279

​O que se pode constata é que o percentual de escravizados nessa região, uma área em que a
pecuária determinava a sua dinâmica econômica/social, a maior parcela estava na área
representado pela pecuária. Enquanto a atividade agrícola era praticada, de forma
hegemônica, pela população pobre-livre. Conforme foi demonstrado a partir da análise de um
conjunto de fontes como o levantamento sobre a agricultura e pecuária, 1788, na freguesia de
Sobral, censo da população do Ceará de 1804, os inventários, as descrições da capitania.
​A vila do Crato, situada em uma região agrícola, era onde estava o menor percentual de
escravizados, sendo apenas 5,2% em relação à população total. As vilas situadas na região de
pecuária como: Sobral a população escrava correspondia a 30%; em Aracati esse percentual
chegava a 22%, Campo Maior (Quixeramobim) 21%, em Icó a 17%, em São João do
Príncipe era 17,7%, São Bernardo de Russas correspondia 12,6%, vila de Aquiraz, apesar de
situada no litoral, tinha a maior parte de seu território na região da pecuária o percentual era
de 12,7% só para citar as vilas mais importantes que estavam relacionadas com o circuito da
pecuária. Tornar-se evidente que a maior parcela dos escravizados estava nas regiões em que
predominava a atividade pecuarista.
​Na capitania do Ceará, não há dados sobre a população escrava até a primeira metade do
século XVIII, estes estão disponíveis só a partir da segunda metade. Em 1762, 87% da
população cearense eram livres.
​Para dar continuidade a essa visão panorâmica, recorro aos censos realizados na capitania
no início do século XIX (1813) e o de 1872 e o levantamento de 1881/1883.
​De acordo com Pedro Alberto de Oliveira, o recenseamento de 1813 foi um dos melhores
executado na capitania do Ceará, na época do governador Manoel Inácio de Sampaio,
revelava a população do Ceará em 148.74 habitantes, destes 28% era composta pela
população branca; 6% era a população indígena, 16% era composta pela população negra,
(sendo 45,1% desta representada pela população escravizada, mas, a maioria da população
negra era livre 54,9%). Os pardos representavam 50% da população, destes apenas 8,6 eram
escravizados.

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​Para o século XIX, os dados estatísticos demonstram que a população escravizada, não
ultrapassou 12% da população total da Capitania.

Tabela - População livre e escrava na província do Ceará (1813-1872).


Ano Nº livres % Nº escravos % Total
1813 131.537 88,5 17.208 11,5 148.745
1835 195.610 88,0 27.944 12,0 223.554
1858 453.918 93,4 32.208 6,6 486.108
1860 468.308 93,0 35.441 7,0 503.579
1872 689.773 95,6 31.913 4,4 721.686


Fonte: Relatório do Presidente da Província João de S. Souza, 01 jul., 1858, pg 30; Melo, Manuel Nunes,
Rev. Inst. do Ceará, Tomo XXV, Ano XXV, 1911, pg 50ss; Silva, Pedro Alberto de Oliveira, Escravidão no
Ceará, O Trabalho Escravo, Fortaleza 1986, pg 18.

​Para a segunda metade do século XIX, percebe-se um declínio acentuado da


população escravizada em relação à população total. No entanto, é importante avaliar a
participação do trabalho escravo na agricultura. Pelo que se constata no quadro acima, a
população escravizada no Ceará em 1860 correspondia a 35.501, 7% da população total. No
entanto, apenas 10.000 deles eram trabalhadores agrícolas, isto é, 28% dos escravos. Em 1872
a população escravizada era de 31.913, isto é, 4,4% da população. Destes, apenas 7.375
estava alocado na agricultura, o que representava 23% da população escravizada cearense.

População da Província do Ceará por Sexo e Etnia, Condição (1872)

Sexo Livres Escravizdos % Total %


Homens 350.906 14.941 (46,8) 365.847 51
Mulheres 338.867 16.972 (53,2) 355.839 49
Total 689.773(95,6) 31.913(4,4) 721.686 100
Etnia
Brancos 268.836 - 268.836 37
Pardos 339.166 18.254 (57,2) 357.420 50
Pretos 28.934 13.659 (42,8) 42.593 6
Caboclos 52.837 - 52.837 7
Total 689.773 31.913 721.686 100
Fonte: revista do instituto do Ceará. Tomo XXV – 1911. p. 52

​Ao examinar a distribuição da população geral, em relação ao sexo, havia um desequilíbrio


em que os homens eram a maioria. No entanto, em relação à população escravizada a situação
fica invertida, as mulheres representava 53,2% da população.
​Em relação à origem étnica dos escravizados há um predomínio da população parda
57,2%. Os demais 42,8 da população escravizada era composta pelos negros. Não havia no
censo qualquer referência a africano sendo gerações que nasceram no Brasil. Sendo assim
havia uma diferença em relação à região sudeste pois, até a primeira metade do século XIX
havia a hegemonia dos africanos e seus descendentes diretos os crioulos. Outra decorrência
lógica era que as lembranças do continente africano iam ficando cada vez mais distante.

Perfil dos Escravos no levantamento de 1881-1882

​Um outro conjunto de dados, relevantes para compreender perfil dos escravos, foram os
obtidos a partir da matrícula geral feita por exigência da lei 2040 de 28/09/1872, popularizada
como a lei de ventre livre. A matrícula qualificou todos os escravos da província. Tais
informações possibilitam traçar o perfil social dos escravos ao informar: a cor, estado civil,
profissão, acuidade para o trabalho, moralidade, idade, sexo, a localidade, o proprietário,
pessoas na família. No entanto, o levantamento realizado nos 45 municípios a partir de 1881
contém informações em alguns municípios, como o de Fortaleza, que deixou lacunas os dados

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só constavam: localidade de habitação do escravo, a data em que foi feita a matricula, nome,
cor da pele, idade e o nome do senhor. Nas outras localidades, além dos dados citados acima,
foi indicado o estado civil, a profissão, se tinha aptidão para o trabalho, quantas pessoas na
família, moralidade e observação. Esse conjunto de informações sem sobra de dúvidas
possibilitaria traçar um perfil dos escravos no Ceará. A tabela a seguir traz informações
quanto o estado civil, a participação das crianças e, sobretudo sobre o casamento.

Estado civil da população escrava no Ceará, em 1881/1883.


V Casado
Criança i c/escravo
(%) u (%)
v
a
( Casado
% Casado c/livre
Localidade Total Solteiro (%) ) (%) (%)

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Aracati 38 15,7 81,6 0 2,7 0 100
Aquiraz 14 64,5 28,5 0 7 100 0
13,1 2 100
,
Assaré 38 73,6 6 10,5 0
Acaraú 15 0 100 0 0 0 0
Barbalha 19 0 0 0 100 15,8 84,2
Baturité 13 0 69,3 0 30,7 100 0
Crateús 4 0 35 0 75 66,7 33,3
Cascavel 58 0 72 0 28 100 0
Canindé 20 0 100 0 0 0 0
0 4 76
,
Crato 360 83,2 2 12,4 34
Granja 64 9,3 67,3 0 23,4 40 60
Itapipoca 75 5,3 68 0 26,7 84,3 15,7
Ipú 14 0 92,8 0 14,2 100 0
Icó 3 0 0 0 100 100 0
12,5 6 36,4
,
Independência 16 25 2 56,2 63,6
Jaguaribe 24 ? 77 ? 33 ? ?
Jardim 9 35,7 0 0 64,3 11 89
20 1 00
L. Mangabeira 10 44 1 33 100
26 0 00
Limoeiro 27 59 0 15 100
00 0 ?
Morada Nova 7 43 0 57 ?
00 0 67
Maranguape 9 33 0 67 33
13,3 0 83,4
Mombaça 60 74,7 0 12 16,6
23,5 1 85,4
Milagres e ,
Pacatuba 123 64,2 6 33 14.6
00 0 84
Pereiro 6 84 0 16 16
50,3 0 ?
Pedra Branca 147 47,7 0 2 ?
4 1 ?
Quixeramobim 52 72 0 14 ?
00 0 00
Quixadá 11 100 0 0 00
00 0 ?
Russas 280 96,6 0 3,4 ?
44,4 5 40
,
Saboeiro 18 22,2 5 27,7 60
16,7 0 26,1
Sobral 144 64,2 0 19,1 73,9
27,3 4 75
,
Tauá 22 45,4 5 23,5 25
14,2 0 50
V. alegre 21 76,2 0 9,5 50
Total 1728

​O município de Fortaleza, onde estava concentrado o maior plantel, foi retirado por não

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constar os dados sobre o estado civil. Ao tratamos os dados levando em conta o estado civil,
vide tabela acima, foram computados 1728 escravizados. Esses dados possibilitam uma visão
geral sobre os aspectos considerados relevantes, na perspectiva do professor Robert Slenes,
para que possamos analisar a formação da família escrava no Ceará.
​ Ao examinamos as informações quanto ao casamento constata-se que 16,3, isto é, 280
eram casados. Desse total 164 eram casados com livres ou libertos correspondendo a 58,5%
dos casamentos. Cifra significativa, que merece analise acurada de como se estabeleceu a
relação entre a população escravizada e a pobre-livre no Ceará. Esse fenômeno é, também,
verificável no século XVIII. Levando em conta a afirmação de Schwartz em que os
proprietários buscavam restringir o universo social dos escravizados, no caso da Bahia.

​População Escrava da Província do Ceará por Sexo e Etnia (1872-1883)


Homens % Mulheres % Total
45 55 2610
Etnia Total %
Pardo 1033 48,6
Mulato 191 9
Preto 509 24
Cabra 277 13
Crioulo 36 0,28
Fula 4 0,18
Caboclo 6 0,28
Indefinido 69 3

​Nesse levantamento foram registrados 2.610 escravizados, pois foi incluído o município de
Fortaleza, mais uma vez as mulheres representavam a maioria. Outro dado importante era a
presença significativa de crianças entre 0 e 13 anos representavam 19,2% da população
escravizada arrolada na Província. Nesse levantamento foram registrados ao menos 2
escravos brancos. Quanta a origem étnica a totalidade nasceu no Brasil e, a maior parcela era
natural da Província do Ceará. Um tema deve ser destacado com base nestes dados a
reposição por via da reprodução dos cativos no Ceará. Outro aspecto diz respeito à origem
étnica, quando é feita a qualificação aparece o termo crioulo são os descendentes de africanos
e no Ceará se transformou, também, em sinônimo de negro.
​Outro dado, para traçar um perfil da população escravizada, no período, foi a análise das
ocupações. Uma parcela de 20,3% dos escravizados eram detentores de alguma habilidade
que o colocava como alguém diferenciado. Dessa totalidade os trabalhadores domésticos
representavam a maioria, 42,3% enquanto os rurais 21,7% e outras especialidades era 35,1%.
Dentre as categorias especializadas apresentarei em tabela para o leitor acompanhar:

Quadro das profissões (1881/1883) no Ceará.


Profissão Quantidade %
Cozinheira 56 39,7
Costureira 49 34,7
Engomadeira 4 2,8
Servente 12 8,5
Vaqueiro 7 5,0
Rendeira/ fiandeira 9 6,4
Parteira 1 0,7
Carpinteiro 2 1,4
Sapateiro 1 0,7
Fonte: Arquivo público do Ceará- secção histórica-matricula dos escravos

​Como ficou demonstrado havia uma variedade de profissões exercida pelos escravizados
no Ceará, no período final da escravidão. O universo social foi sendo ampliado quando
comparado a situação analisada por Mattoso para os séculos iniciais da escravidão no Brasil.
A imensa maioria trabalhadores escravizados eram domésticos destacando-se as cozinheiras,
costureiras. A profissão de servente pode ser o ajudante de pedreiro, mas também no sentido

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de quem serve. Há escravizadas que auxiliam uma escravizada cozinheira pode ser
denominada de servente. No entanto, é possível constatar as variadas atividades exercidas
pelos escravizados, inclusive a de vaqueiro considerada, por muitos estudiosos, como uma
atividade típica dos homens livres.
​A seguir recuperamos o debate sobre o declínio do trabalho escravizado na Província. Ao
analisarmos a participação do trabalho escravizado na Província, na segunda metade do
século XIX, temos como pressupostos as transformações que ocorreram no período, em que
passou de uma economia onde predominava a pecuária articulada à agricultura de
aprovisionamento, com exceção do período algodoeiro (1780-1820), para uma agricultura
predominantemente de exportação.
​Examinaremos aqui a discussão feita, na imprensa, nos Relatórios de Presidentes da
Província sobre o trabalho escravizado.
​Como examinamos acima, a participação do trabalho escravizado na Província, reduziu-se
significativamente quando comparada com a primeira metade do século XIX.
​Na imprensa provincial, a partir da década de 1850, ao analisar as transformações em
curso na Província, destacava dentre outras mudanças o impacto do tráfico inter-provincial de
escravizados. O que se constata é que mesmo o trabalho escravizado sendo secundário, para a
agricultura, o tráfico interprovincial, no entanto, afetou a disponibilidade de força de trabalho
escravizada na Província. O Jornal Cearense, em editorial de 1857, ao fazer uma análise da
agricultura provincial, apontando as causas que explicavam o aumento dos preços dos gêneros
alimentícios, retratou muito bem as transformações em curso e o significado do trabalho
escravizado neste contexto:

“Estas indústrias (agricultura para exportação) dando mais lucros muito mais
vantajoso, que da cultura de mandioca, e legumes desviaram desta grande parte dos braços,
para emprega-los com mais vantagens,(…). Segundo a exportação contínua de escravos, que
não pode regular em menos de 300 à 400 anualmente depois da extinção do tráfico para cá.
Com quanto a maior parte desses escravos não estivesse empregado na
agricultura; contudo estavam eles em misteres, que hoje ocupam braços livres, que se
deslocaram da agricultura: por quanto esses escravos pela maior parte eram empregados nas
cidades em serviços domésticos, ou na criação de gados: na falta deles esses serviços é hoje
feito por homens livres. ”

​O jornal apontava a realocação do trabalhador livre devido a redução dos escravizados. Por
outro lado, confirmava o que apresentamos na tabela acima sobre as atividades exercida pelos
escravizados, destacando que as principais atividades nos centros urbanos como: o trabalho
doméstico, a pecuária. E mais, essas atividades, antes ocupadas pelos escravizados, passaram
a ser exercidas pelos pobre-livres. Estava em andamento dois movimentos aparentemente
contraditórios o desenvolvimento da agricultura comercial e a exportação de escravizados,
principalmente, no sudeste cafeeiro. Tal movimento tornava imprescindível a submissão dos
pobre-livres como força de trabalho. Na mesma perspectiva era a constatação feita pelo
Jornal Araripe, em 1859, ao fazer uma avaliação sobre a agricultura na comarca do Crato ao
afirmar que:

“(...) não dispondo (...) os agricultores, proprietários ou senhores de engenho, (...)


de grandes fábricas ou escravaturas para o respectivo tráfico, acham-se aqui na indeclinável
necessidade de trabalhar com alugados (...).”

O Relatório do Presidente da Província, de 1860, ao analisar o desenvolvimento


do comércio e da agricultura provincial, também constatou a reduzida presença de
trabalhadores escravizados:

“É maravilhoso o fenômeno que se ostenta nesta província do constante e rápido


desenvolvimento, que tem adquirido estas duas principais fontes de riqueza nacional,
(agricultura e comércio) quando tantas e tão poderosas causas, (...) que conspiram para
comprimi-las. Quando se atenta para a escassez dos braços de que se ressentem os trabalhos
agrícolas, para a muito reduzida escravatura existente na província (...).”

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Mais uma vez, foi constatado pelo presidente da província, o desenvolvimento da
agricultura mesmo com a escassez de trabalhadores escravizados. Esse desenvolvimento foi
possível devido a subordinação da população livre-pobre.
Mais uma vez, o relatório do presidente da Província, de 1871, apresentado por
Joaquim Cunha Freire, (B. de Ibiapaba), cearense, deputado provincial pelo Partido
Conservador, um grande comerciante em Fortaleza, conhecedor da realidade provincial,
acentuou a caráter secundário do trabalho escravo na Província, ao fazer a seguinte
constatação:

“A escravidão no Ceará é um facto condenado, e o trabalho livre de difícil e


demorada solução em outras províncias, uma realidade neste florescente torrão do Império.”

A constatação do presidente da província destacava, por um lado, a redução de


trabalho escravizados e a solução para essa questão, de difícil solução em outras regiões, no
Ceará foi possível recorrendo ao trabalho dos livre-pobres. O que se percebe, pela análise
dados sobre o trabalho escravizado no Ceará na segunda metade do XIX, é que houve um
declínio da dessa população. No entanto, o que nos parece importante é avaliar a participação
do trabalho escravizado na agricultura com base nos censos da segunda metade do XIX. Pelo
que se constata a população escravizada no Ceará em 1860 era de 35.501 (7%) da população.
No entanto, desses, apenas 10.000 eram trabalhadores agrícolas, isto é, 28% dos escravizados.
Em 1872, a população escravizada era de 31.913, isto é 4,4% da população. Destes, apenas
7.375 estavam alocados na agricultura, o que representava 23% da população escravizada
cearense. Como se percebe houve um movimento inverso, quando analisamos a participação
do trabalho escravizado na Província na segunda metade do século XIX e o desenvolvimento
da agricultura, pois enquanto a agricultura comercial cresceu, a participação de trabalho
escravo decresceu.
​Afirmo que o trabalho escravizado, na segunda metade do século XIX, teve uma
participação pequena na agricultura provincial. No entanto, a produção agrícola cresceu de
forma ininterrupta, a partir de 1850, graças à utilização da população pobre/livre. As
evidências sugerem que a principal estratégia utilizada para submeter essa população foi,
como já constatamos para o final do século XVIII e início do XIX, condicionar o acesso à
terra as regras ditadas pelos grandes proprietários, além dos mecanismos tradicionais como
controlar os seus movimentos através de mecanismos como: “combate a vadiagem”. No
entanto, o papel da religião, mais uma vez, foi essencial.

A organização do Trabalho e a População Livre e Pobre (1850-1880).

​Como analisei, a segunda metade do século XIX foi marcada por transformações no
âmbito da Província como o renascimento da cultura algodoeira e o aparecimento do açúcar e
do café enquanto produtos para exportação. Além do mais, foi nesse período que teve início o
tráfico inter-provincial de escravizados. A Província do Ceará foi uma das áreas que, em
termos percentuais, mais perdeu escravos com o tráfico entre 1850-1880 saíram oficialmente
16.480 escravizados. Essas transformações colocaram, mais uma vez, na ordem do dia a
necessidade de organizar o trabalho na província tendo por base a população pobre/livre
nacional.
​O objetivo nesta secção é recuperar as propostas dos grupos dominantes locais para
estruturar as relações de trabalho “livre” na Província na virada da segunda metade do século
XIX e os aspectos tidos como impeditivos para a concretização desse projeto.
​A principal proposta do grupo dominante local, para estruturar as relações de trabalho, era
recorrer a população “livre”/pobre. A Imprensa provincial, os relatórios do Presidente da
Província, os debates realizados no parlamento, em âmbito nacional, foram explicitadas essas
propostas.
​A análise será feita, inicialmente, examinando como a imprensa abordou a temática. Os
primeiros ensaios sobre as medidas que deveriam ser adotadas para possibilitar o
desenvolvimento da agricultura foram apresentados no final da década de 1840. O jornal
Cearense, em 1847, fez uma análise sobre a agricultura da Província, apontando as causas do
seu atraso como: falta de recursos, de conhecimento, mas o destaque era para a preguiça:

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“A segunda causa do nosso atraso(...) é a preguiça dos nossos comprovincianos.
Talvez seja ela natural proveniente do nosso cálido clima; talvez provenha da falta de meios
para levantarem os alicerces da empresa, talvez por falta do conhecimento das vantagens da
lavoura; não sabemos; o certo é, que, inimigo da diligência, o nosso povo nos bons anos de
inverso, contenta-se com abrir pequenos roçados, em que plantão milho, arroz, feijão, ou
mandioca em porção tal que tudo junto apenas basta para nos prover e as vezes nem isso.”

​Mais uma vez, se explicitava que a agricultura de aprovisionamento não livrava os pobre-
livres da pecha de vadios e preguiçosos. Essa concepção estava expressa quando o jornal
afirmava, em editorial, que o povo era inimigo da diligência. No contexto, mais uma vez,
estava em curso a necessidade de transformar a agricultura produtora de alimentos, por
excelência, em uma agricultura produtora de excedente destinada a suprir as demandas do
mercado. No ano seguinte, 1848, o Jornal Cearense, mais uma vez, fez uma análise sobre as
necessidades da agricultura cearense. Dentre os diversos problemas apontados, sobressaiam-
se três relacionados com a organização do mercado de trabalho: a falta de estradas, de capital
e mais uma vez, de gente laboriosa.

“Diariamente, queixamo-nos por não termos exportação, quando alias nossas


terras são fertilíssimas, mas a razão de tudo isso é a dificuldade de comunicação sobretudo, a
escassez de capitais, e a falta de gente laboriosa.”

​A natureza era apresentada, mais uma vez, como pródiga e fertilíssima, no entanto, falta
estradas, capitais mas, sobremaneira de gente laboriosa. O que se constata é que aos olhos do
grupo dominante o que era considerado preguiça poderia significar a resistência da população
livre/pobre em se submeter às relações de trabalho disciplinado e contínuo. Ao fim da década
de 1850, o jornal Cearense referia-se aos lavradores, que era os que se denominava de
arrendatários, isto é, pequenos produtores, que arrendavam uma parcela de terra pagando o
arrendamento em produtos. O jornal refere-se à necessidade de proteção do Estado para com
esses produtores por se dedicarem à produção de alimentos, num período em que o Brasil
enfrentava uma crise alimentícia:

“A falta de proteção a pequena indústria, que se dá particularmente à cultura de


mandioca, e legumes entre nós, cujos lavradores, além da renda do terreno, são
sobrecarregados do imposto, como este que estabelece dois mil reis por alqueire de farinha ou
legumes que se exporta da província;(...) ”

​ O jornal, em 1857, constatava as dificuldades políticas enfrentadas pelas províncias do


norte, frente ao projeto hegemônico das províncias cafeeiras (do sul) de atrair imigrantes
europeus, para suprir a lacuna devido o fim tráfico internacional. Nesse período se explicitava
o projeto das províncias (do norte) que era suprir a escassez de braços recorrendo a população
pobre e livre nacional.

“O Brasil inteiro sente esta falta, e para supri-la o governo tem um crédito de seis
mil contos, e uma grande sociedade central no Rio se tem encarregado da introdução de
colonos europeus nas províncias do sul. Para nós não chegam esses benefícios; é inútil
pensarmos neles. Contemos somente com nossas forças e dupliquemo-las com a indústria.
Nós não temos escravatura, ou pouco tivemos. ”

​Noutra passagem, mais uma vez, o jornal acentuou as dificuldades de obter recursos do
governo imperial para atrair imigrantes europeu e apresentava como solução para a escassez
de braços recorrer ao braço livre nacional. Esse era o cerne do projeto dos grupos dominantes
locais/regional:

“...Devemos procurar colonos europeus, ou limitarmo-nos aos braços nacionais?


Para empreender a colonização europeia não há capitais, e nem podemos contar com o auxílio

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do governo geral. Por tanto devemos limitar-nos aos braços nacionais.”

​Já se explicitava em fins da década 1850 que a resolução para falta de braços era recorrer
aos pobre-livres nacional. A questão era como submeter essa população ao trabalho regular e
disciplinado. A mesma perspectiva era apresentada pelo presidente da Província, no relatório
lido na abertura dos trabalhos legislativos, em 1859. O presidente fez apreciações sobre a
colonização com trabalhadores europeus chegando as mesmas conclusões da imprensa local
para depois concluir que:

​“No estado atual de nossas cousas tentarmos qualquer experiência deste


gênero, seria inútil e até prejudicial; antes resignarmos-nos aos fracos recursos que
actualmente poderemos ir tirando de nossos próprios braços, do que arriscarmo-nos em
empresa dificílima (...). ”

​No trecho seguinte, o Presidente indaga aos deputados provinciais se não seria mais digno
recorrer ao braço nacional. E mais uma vez, como ocorreu no primeiro período algodoeiro,
era necessário construir argumentos para justificar ações coercitivas em relação aos pobre-
livres. Os conceitos como utilidade verso inutilidade são outra vez evocados:

“Não será porém possível e mesmo digno de ensaiar-se um sistema de


Colonização com os nossos próprios homens, aproveitando-se mediante vantagens suficientes
os indivíduos que de ordinário em tão grande cópia vivem quase inúteis, e muito perniciosos,
no seio de nossas cidades e no interior de nossas províncias ?.”

​O que se percebe havia convergência entre as propostas defendidas pela imprensa e as


apresentadas pelos Presidentes da Província, sobre as possibilidades de suprir a “escassez” de
braços. Isto é, os governantes estavam em sintonia com as propostas da classe dominante
local. E mais uma vez, o discurso sobre a utilidade e a vadiagem são recorrentes para
justificar as ações coercitivas sobre os pobre-livres para submete-los ao trabalho regular e
disciplinado.
​O que faremos a seguir é recuperar, do ponto de vista da classe dominante, os problemas
que dificultavam a organização do trabalho livre. Vejamos, de início, quais as barreiras
apontadas pela imprensa para organizar as relações “Livres” de trabalho no Ceará.
​O Jornal Cearense, em 1857, voltava ao tema em um artigo já citado “Os Males da Nossa
Indústria Agricola”, quando apresentava a falta de leis para regularizar as relações de trabalho
como uma das dificuldades que os grupos dominantes locais enfrentavam para organizar o
trabalho livre:

“Felizmente o nosso povo não é estranho ao trabalho, (...). O que é preciso é que
se regularize melhor o sistema de trabalho, e o mais conveniente, seria da parceria do dono
do estabelecimento com as famílias de trabalhadores agregados, dando lhes terra para plantar
e outras vantagens, como em alguns de nossos sítios já se pratica.”

​O articulista apresentava como uma possível solução a regularização das relações de


trabalho que vinha sendo constituídas a partir de fins do século XVIII, o morador de
condição. As relações de trabalho assalariado estava fora de cogitação.
​O Jornal Araripe editado em 1859, reproduz a mesma linha dos diversos órgãos da
imprensa provincial, ao fazer uma análise sobre a Comarca do Crato quando, também,
constatava à falta de trabalho escravizado mas, sobretudo, a “inconstância” dos trabalhadores
livres como sendo uma das principais dificuldades enfrentadas pelos proprietários para
produzirem:

​“(...)os agricultores, proprietários ou senhores de engenho(...)acham-se aqui na


indeclinável necessidade de trabalhar com alugados, que por tal forma tem para si que são os

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senhores da situação, e que podem impor a lei, prestando-se apenas ao trabalho como e
quando querem, como si não lhes fosse ele retribuído, segundo o ajuste feito de parte a parte.

​O jornal ao constatar a reduzida escravatura na comarca, cobrava as regras para garantir a


regularidade dos trabalhadores livres, na década em que a agricultura comercial foi se
tornando hegemônica na Província, dentre esses aspectos, ressaltava: a necessidade de leis
para regularizar o sistema de trabalho, em função da “inconstância” dos trabalhadores; a falta
de ensino profissional e também, nessa conjuntura, a diminuição de braços, devido à saída do
trabalhador escravizado.
​O Jornal Araripe, em 1859, como também fez o Cearense, reproduzindo o pensamento da
classe dominante local, propõe a transformação do morador em “morador de condição”,
sugere que os “vadios e ociosos” empregam-se em atividades úteis, isto é, na produção de
mercadorias:

​“Entendem-se mui livremente os vadios que não podem ser coagidos, sem
ofensa de sua liberdade, ao serviço ou ao emprego de suas faculdades nativas. A fim de que
daí tirem a subsistência por meio de uma ocupação honesta e útil, que converta-os antes em
homens honrados do que em díscolos, que solapam por seus vícios a sociedade (...),”

​Mais uma vez, como no final do século XVIII, foi retomado o debate sobre os vadios e a
vadiagem verso a utilidade e a honestidade. Alguém que não deveria ser visto como um peso
para a sociedade, em suma alguém que com suas ações não sejam elementos de “perturbação
da ordem social”. Noutro trecho o jornal expressa o significado da aprovação e
regulamentação da lei da terra em 1855, que estabeleceu a propriedade privada da terra no
Brasil, foi um elemento importantíssimo para os proprietários se sentirem seguros no
estabelecimento de regras na subordinação dos pobre-livres.

“a seu turno reflictam também os senhores de engenho, que a Constituição tem


lhes garantido o pleno uso de suas propriedades, e que por tanto fica-lhes perfeitamente livre
o direito de dar rancho ou morada em suas terras a quem melhor lhes parecer,(...)”

​No trecho seguinte, o articulista do jornal O Araripe traça um perfil do que seria o modelo
de trabalhador, era fundamental verificar o modo de vida anterior, as qualidades pessoais, a
disposição para o trabalho, ao afirmar que:

“(...)e, neste pressuposto, curem de ser mui escrupulosos na admissão de


moradores em suas propriedades, não recebendo-os aí sem uma previa sindicância a respeito
não só do motivo que os leva àquele passo de transferência do domicílio, como ainda das
qualidades pessoais do pretendente, seu modo de vida anterior, e em que ali vem ocupar-se,
impondo-lhe além disso a condição de preferir a outro qualquer o seu serviço quando d’elle
tenha necessidades, no que não pode haver opressão, por quanto sendo ele dado ao serviços
por aluguel, ser-lhe-a indiferente que trabalhe ao seu proprietário antes de que a outro.”

​Por fim o articulista, como vinha sendo debatido em diversos espaços, apresentava a
modalidade de relação de trabalho que deveria se estabelecer entre os proprietários e os
pobre-livres. Isto é, a moradia de condição.

​“Si este concede habitação nas suas terras, si n’aquelas não molhadas, dá agua
de regra para as plantações de seu morador, não é muito que este também dê-lhe aquele
preferencia, quando há precisão, e mediante o competente salário estipulado ou de costume.”

​Como analisamos, na primeira parte desse trabalho, o jornal Araripe retomava no contexto
da reestruturação da agricultura para exportação o discurso sobre vadios e vadiagem como o

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principal argumento para justificar ações coercitivas sobre os pobre-livres e também apontava
as condicionantes para que os grandes proprietários admitisse os moradores. As condições
sugeridas é o que vai se tornar a principal modalidade de relação de trabalho no campo
cearense até a década de 1970.
​No mesmo ano 1859 Francisco Freire Alemão, que esteve no Ceará chefiando a expedição
científica, reproduziu o depoimento de proprietário do Icó, tornando patente que as propostas
apresentadas, pela imprensa da época, vinha sendo posta em prática na província. Isto é, entre
os grandes proprietários e a população livre-pobre estavam em curso, na segunda metade do
século XIX, a transformação do morador em morador de condição:

​“Propriedade do Senhor Firmino, Major da Guarda Nacional (...)Tem


estabelecido em suas terras 360 moradores, que não pagam arrendamento; mas diz ele que
quando precisão de trabalhadores eles se prestam de graça dando-lhe só alimentos, e que às
vezes reúne 200 ou 300 homens. ”

​Irineu Pinheiro, em estudo sobre o Cariri cearense, constatou que o processo em curso na
segunda metade do século XIX, por volta de 1950, havia generalizando-se na região e era
visto como algo incorporado a cultura local. A subordinação dos pobre-livres aos grandes
proprietários, mas, sobretudo a adoção de relação de trabalho marcada pela exploração fosse
algo normal:

“Entre os donos da terra e seus moradores, convenciona-se, no Cariri, que este


têm obrigação de trabalhar nas roças daqueles durante determinados dias da semana, três ou
quatro, por exemplo (...)”

​O que teve seus primeiros ensaios em fins do século XVIII, na década de 1950 era
apresentado como uma convenção. Outra forma de submissão da população pobre e livre foi
através da relação latifúndio/minifúndio. Isto é, pela submissão do pequeno produtor
independente ao grande proprietário. Freire Alemão, no mesmo período, ao referir-se às
relações de trabalho em Pacatuba e Fortaleza, constatou essa forma de submissão:

“A gente livre aqui, que constitui o povo é todo mestiça, mamelucos, cabras etc.
Trabalham pouco para si fazendo roças, gostam mais de se alugar, porque assim estão certos
de passar melhor e comer carne diariamente (...)”

​O trabalho esporádico como jornaleiro, que também constatamos, já a partir de fins do


século XVIII, se transformou em uma modalidade de trabalho largamente utilizada na
província do Ceará, como constatou o Freire Alemão. Mas também uma avaliação
preconceituosa dos livres-pobres ao qualifica-lá como gente mestiça, como sendo sinal de
degradação.
​No contexto da seca de 1877-79, quando a agricultura algodoeira estava em crise, e o
governo imperial não tinha recurso ou não estava interessado em manter a população cearense
na província, os representantes do Ceará, na câmara dos deputados, apresentavam a parceria
(morador de condição) como uma solução engendrada na província para resolver a “escassez
de braços” devido o fim próximo do trabalho escravizado. João Brígido, Deputado pela
Província do Ceará, em discurso na Câmara dos Deputados, sobre a migração de cearenses
para o sudeste cafeeiro, foi um dos que mais destacou às relações de trabalho na Província
como algo que já havia sido incorporado a cultura local ao destacar, mais uma vez, a
importância da parceria e como essa poderia ser uma solução para atrair esses trabalhadores
para o setor cafeeiro:

“Si lhes derem terras, lhes facilitaram, os meios de adquirir, si fôr possível
estabelecer a parceria como temos no Ceará, sim os agricultores cearenses poderão prestar
grande serviço à lavoura.”

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​No mesmo contexto, Paula Pessoa, também deputado pela Província do Ceará, em
discurso na Câmara dos Deputados em 1879, ressaltou a importância da pequena produção
para a economia provincial:

“A província do Ceará sr. Presidente, não tinha menos de 900.000 almas, e é uma
verdade reconhecida que duas eram as fontes de riqueza: a criação de gado e a pequena
lavoura, exercida por braços livres.”

​O deputado Paula Pessoa, mais uma vez, ressaltava a importância da pequena produção,
realizada pelos moradores, na base da moradia de condição como sendo um fato consumado.
​Mais uma vez, recorro ao deputado João Brígido, em discurso que defende a liberação de
verbas para socorrer a população flagelada pela seca, analisou o papel da pequena produção:

“A verdade é esta não espere no entanto que a maioria dos Cearenses emigrados
preste à lavoura grandes serviços. Os que não eram pastores, eram lavradores, porém livres,
ou proprietários. A subdivisão do solo no norte do Império é completa; (...) Eles não comem
de ração, são jornaleiros algumas vezes, mas tendo a sua vivenda, livre da autoridade do
senhorio. ”

​Mais uma vez Brigido destacava a importância do trabalho livre no Ceará e defende que os
cearenses poderiam ser úteis no sudeste cafeeiro, se fosse reproduzido as relações de trabalho
vigentes na província. No entanto, Brigido em um esforço de retórica afirmava que a divisão
da terra era uma realidade no norte. Esse argumento era assacado para convencer da
importância de se estabelecer a parceria ou a moradia de condição a principal modalidade de
relação de trabalho vigente no Ceará. Como, também, em relação a condição de jornaleiro
(trabalhador alugado) era uma modalidade importante mas, não era a principal. Noutro trecho,
João Brígido destacava a importância da produção familiar para a economia cearense,
demonstrando relação dos grandes produtores x pequenos produtores se transformou numa
modalidade de produção importante para a economia provincial, como constatou Freire
Alemão em fins da década de 1850:

​“No sul do império a grande propriedade passa ainda por cousa utilíssima; aqui
não se conhece ainda a pequena, mas profícua lavoura do norte. O Ceará mandava pela
alfândega da Fortaleza cerca de 140,000 sacos de algodão, e não tínhamos a grande
propriedade ou grandes fazendas.
​“Os chefes de família pobre com sua mulher e filhos, trabalhavam nas suas
roças. As pequenas quantidades de produtos multiplicados pelo número das famílias davam
aquele resultado. O algodão era exclusivamente dos pobres.”

​Na tentativa de convencer os seus pares, na câmara, Brigido, mais uma vez, fazia
referência a pequena produção no Ceará como uma saída para resolver a escassez de braços
no sudeste cafeeiro. No seu discurso ele acentuava a importância do trabalho familiar na
produção algodoeira, sem no entanto, descrever quais as condições a que estavam submetidos
essas famílias.
​O que deve ser acentuado sobre a discussão em relação à escassez de braços na Província,
a partir de 1871/1872, é que, com a crise da produção algodoeira devido a queda dos preços
no mercado internacional, uma das reações dos produtores provinciais foi aumentar a
produção para compensar as perdas em função do rebaixamento dos preços. Observe-se que
esta discussão estava em sintonia com o processo de desescravização nacional:

“(...) Exergar-se por toda a parte nossa sorte, só porque muito cedo resolvemos o
problema do trabalho livre, acabando com o escravo (...), e entregando a lavoura aos
estímulos do homem que percebe salário.
Retirando o escravo da lavoura, (...) ficou o fazendeiro entregue à vontade, ao
capricho do trabalhador livre. ”

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​Além do mais, a discussão sobre a escassez de braços tinha por objetivo fortalecer os
mecanismos de submissão da população livre/pobre, aumentando a oferta de braços,
possibilitando o rebaixamento do preço da jornada de trabalho, fazendo crescer a produção
algodoeira, transferindo aos trabalhadores o ônus da crise por que passava a economia
provincial, como se pode constatar pela citação a seguir:

“De tempos em tempos à esta parte começaram alguns negociantes d’esta praça
(Fortaleza) mais relacionados com os nossos centros produtores de Maranguape, Baturité, á
fazer um ensaio, (...)mandaram vir de Portugal alguns emigrantes, destinados ao trabalho da
lavoura, e pensaram por esse meio estabelecer a concorrência com os braços nacionais, para
colherem daí mais aumento do trabalho e barateza nos salários. Essa expectativa foi
completamente iludida.”

​Enfim, os grupos dominantes locais, como se pode constatar pelas citações acima,
apontavam, como principais dificuldades para organizar relação de trabalho “livre”, a
vadiagem, a instabilidade dos trabalhadores e a forma como era realizado o recrutamento.
Continuaremos, no próximo tópico, analisando as propostas dos grupos dominantes locais
para submeterem a população livre/pobre.

Os Mecanismos coercitivos e Religiosos para submeter a população pobre-


livre.

​Os mecanismos propostos para submeterem os grupos subalternos devem ser analisados
levando-se em conta duas vertentes: aquela que depende da intervenção do Estado e a que não
dependia de forma direta dessa intervenção. Partindo deste pressuposto, julgamos necessário
analisar o papel do Estado em dois períodos: de 1830 até fins da década de 1850.
​Nesse período, o que caracterizava a atuação do Estado era a preocupação com a
segurança, o que era compreensível, tendo em vista a situação da Província que, na década de
1830, enfrentou a Revolta de Pinto Madeira. José Martiniano de Alencar, em 1834, na fala
com que abriu os trabalhos da Assembleia Legislativa Provincial do Ceará, fez o seguinte
comentário:

“N’estes dois ramos (segurança pública e administração da justiça) poucos difere


o estado da Província d’aquele, que na sessão passada vos referi. Com tudo sempre me cabe a
consolação de afirmar-vos que os criminosos prepotentes, e de séquitos tem diminuído, e só
no termo da Villa de Telha Nova, inda existem, (...) alguns criminosos (...) que jamais tem
deixado de andar, com seus séquitos a despeito de todas as diligências do Governo (...).”

​O Relatório do Presidente da Província, em 1837, vem reforçar a nossa constatação sobre o


papel do Estado no âmbito provincial. Na abertura da terceira sessão legislativa, o Presidente
da Província fez o seguinte comentário sobre o número de assassinatos ocorridos na
Província:

“(...) os assassinatos sucedidos na Província, (...) eles chegaram a 24 felizmente há


uma diferença, de 9 para menos; mas não é somente esta circunstância que nos deve dar
esperança de melhor segurança; é sim que estes, assassinatos são pela mor parte o efeito
repentino de rixas, e brigas entre pessoas da última classe da sociedade, e não o resultado
desses assaltos sanguinolentos dados por indivíduos prepotentes que acompanhados por
grandes séquitos de homens armados corriam de uma extremidade da Província a outra,
levando o terror e a consternação a todas as partes e pondo em susto e risco todos cidadãos.
Esses séquitos de facto se acham dissolvidos: (...)”

Na década de 1850, percebemos, no entanto, um processo de mudança do


discurso. Foram vencidas as rebeliões na província, possibilitando maior estabilidade política
e uma menor preocupação com a segurança e a criminalidade por parte do Estado. Ao mesmo

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tempo contata-se o crescimento da agricultura comercial, o que levaria o Estado e os
segmentos da classe dominante a demonstrar preocupação com a organização das relações de
trabalho, como examinamos em capítulos anteriores.
O que se percebe pelo exame dos Relatórios dos Presidentes da Província, em fins
da década de 1840, é que a segurança pública, a da propriedade, bem como a individual
passaram a ser encaradas sob outra ótica. A resolução destes problemas vão além do
aperfeiçoamento dos mecanismos coercitivos. A partir de então, o fortalecimento da religião,
da educação se apresentava como mecanismo importante para solucionar as questões
relacionadas com a segurança pública, individual e da propriedade. É possível discernir nesse
discurso, também, uma certa preocupação em preparar a população para o trabalho. O
relatório de 1849 é elucidativo neste sentido:

“A impunidade, de que todo o país se ressente, e concorrentemente a ignorância e


a falta de educação moral e religiosa, e de hábitos laboriosos nas classes baixas da sociedade,
são seguramente as causas primarias da frequência desses atentados.”

O Relatório de 1851, ao apontar as causas de ociosidade, também evidenciava as


mesas preocupações. Isto é, relaciona a necessidade de educação moral com a preparação para
o trabalho:

“Diversas são as causas (...) de crimes (...) mas entre elas avulta a ociosidade, a
falta de educação moral e religiosa, e sobretudo a indulgência e bonomia proverbial dos
jurados, e só pelo andar dos tempos com o progresso da civilização, da moralidade, e da ação
perseverante e inexorável da justiça.”

​Essas preocupações estavam presentes no Relatório do Presidente da Província de 1865. A


Relação entre educação moral, religião e a preparação para o trabalho, mais uma vez, estava
explícita:

“A estatística criminal demonstra, infelizmente, que os direitos individuais ainda


estão longe de ser tão garantidos e respeitados na Província, quanto o exigem a civilização e
os interesses mais vitais da sociedade (...).
As principais causas d’este triste estado de cousas estão verificadas pelos próprios
dados estatísticos: a maior parte dos crimes são cometidos por analfabetos, sem profissão
conhecida; o maior parte número de julgamentos dá em resultados a absolvição.
Sem a instrução que eleva e enobrece o espírito, sem a educação moral que cria a
religião do dever, sem os hábitos do trabalho, que radicam o espírito de paz e de ordem, os
instintos perversos se desencadeiam, se não lhes embarga o passo e temor da sanção penal.”

​Ao propor as medidas que deveriam ser adotadas para modificar a situação da segurança
pública e individual na Província, o Presidente era enfático quanto à necessidade de fortalecer
os aspectos relacionados com a religião, a moral, sobretudo, os mecanismos que induzissem a
população pobre ao trabalho:

“A difusão de luzes e o ensino moral e religioso, a compulsão ao trabalho e a


severidade dos juízes são, a meu ver, os meios mais eficazes de melhorar esse estado de
cousas e cercar a vida e o direito das necessárias garantias. ”

Em outro trecho, o Presidente da Província explicitava a forma como o Estado deveria atuar
para combater o crime e a ociosidade, nesse contexto, são apresentados como algo imbricado.

“Da observação da estatística criminal resulta que seria de grande vantagem para a
preservação dos delitos empregar todos os esforços a fim de tornar-se efetivo o ensino
obrigatório criado pela resolução provincial de 2 de janeiro de 1865: obrigando os ociosos a
tomar uma ocupação útil e honesta, como prescreve o artigo 295 do código criminal; -
punido severamente os delitos policiais; procedendo mais escrupulosa revisão na luta dos
juízes de fato. ”

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​O artigo 295 dizia respeito ao “código do bom viver”, isto é: aqueles que fossem presos,
acusados de vadiagem, eram obrigados a assinar um documento, perante o delegado de
Polícia, em que se comprometiam a engajar-se numa atividade honesta e útil, o que se traduz
como engajamento numa das atividades que fossem do interesse dos grupos dominantes. Eis o
mecanismo sugerido pelo Presidente da Província para combater a criminalidade e a
ociosidade. Sendo assim, o que queremos acentuar é que a preocupação do Estado passou a
ser a organização das relações de trabalho.
​Vamos comparar as propostas constantes nos relatórios dos presidentes da Província e
retomar as debatidas pela imprensa provincial. O Jornal Cearense ao fazer uma apreciação
sobre a situação da agricultura na Província, em 1857, explicitou estratégias quase idênticas a
aquelas expostas nos relatórios, para submeter o trabalhador livre:

“Uma polícia ativa e vigilante, que não consentisse vadios sem modo de vida
conhecido; uma administração da justiça mais imparcial, e econômica que fizesse seguros os
contratos de locação de serviços, concorreriam para o aumento de braços, sem precisarmos de
colonização... .”

O jornal colocava no centro do debate o combate a “vadiagem”, como, também,


defendia como saída para a crise recorrer braços ao trabalho livre nacional. Todas as fontes
analisadas como: as propostas dos parlamentares, dos presidentes de província e a imprensa
não alimentava a possibilidade de atrair imigrantes para a província e sim o braço livre
nacional, isto é, os pobre-livres.
​O noutro trecho o jornal, mais uma vez, insistia na necessidade da intervenção do Estado
para possibilitar a organização do trabalho livre, ao afirmar que se fazia necessária a melhor
estruturação dos aparelhos coercitivos, para combater a vadiagem e a melhor organização do
Judiciário para garantir o cumprimento dos contratos de trabalho:

“A falta de uma polícia vigilante, que previna os furtos não poucos, que há de
gados, e de outros gêneros alimentícios, que obrigue aos vadios á tomarem um meio de vida
honesta. A falta de execução da lei de contractos, que são constantemente iludidos e violados
impunemente por muitos operários assalariados e agricultores.”

​Quando comparamos o discurso dos representantes do Estado e da Imprensa, constatamos


que as propostas convergiam no mesmo sentido, isto é, de apresentar a intervenção do Estado
como uma das formas para resolver os problemas relacionados com a organização do
Trabalho, tendo no centro da estratégia o combate a vadiagem e a garantia do cumprimento
dos contratos.
​Jornal, no contexto, também vai avaliar o recrutamento para as forças policiais. O
Recrutamento foi outro mecanismo que os grupos dominantes locais tentaram se apropriar
para submeterem a população livre/pobre. Na reflexão sobre o recrutamento e a organização
do trabalho livre analisaremos, fundamentalmente, o significado desse mecanismo assumiu no
pós 1850.
​Mais uma vez, o jornal Cearense em dezembro de 1857, analisando a carestia dos gêneros
alimentícios na Província, elencava diversas causas, dentre elas o crescimento da agricultura
comercial em detrimento da produção de alimento. No entanto, ao deter-se sobre os
problemas para organizar à força de trabalho livre, apresentava um conjunto de aspectos que
dificultavam a sua organização tais como:

“O recrutamento que não só anualmente tira da Província porção de braços


vigorosos, como dá ocasião á que a maior parte dos rapazes solteiros pobres, com medo da
praça, andem sempre foragidos, ocultos, e sem persistência aos seus domicílios de suas
famílias. Essa vida de homizio dá-lhes hábitos nômades, torna-os desgotosos, indolentes,
preguiçoso e viciosos.”

​O recrutamento, na perspectiva do jornal, era um elemento de desagregação social e, mais

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tendo como decorrência, principalmente para os mais jovens, a adoção de um modo-de-vida
em tudo contrário aos esforços que vinham sendo feito pela classe dominante agrária local
para garantir a organização do trabalho pobre-livre.
​O Jornal Cearense em 1858, mais uma, vez relacionava o recrutamento como um
mecanismo que dificultava a organização trabalho, acentuado o inconveniente destas ações e
sobretudo afirmando que ela recaia sobre os pobres, que era exatamente a parcela da
população apontada como a possibilidade de suprir a necessidade de braços:

“Esta medida tal como se pratica entre nós é uma barbaria, que envergonha nossos
costumes, (...).
Está caçada é feita em todo tempo, de modo que não há garantia alguma para certa
classe de cidadãos; porém por uma inépcia(...) de nossos administradores, mandão agravar no
princípio do inverno, quando as classes pobres (sobre quem pesa o tributo de sangue) estão
plantando, ou mudando seus roçados, e lavouras.”

​O Jornal retomava, praticamente a mesma argumentação apresentada no ano anterior,


sobre os males causados pelo recrutamento como um mecanismo que dificultava a
organização do trabalho livre e que contribuía para fortalecer hábitos, como o da vadiagem,
acentuando o caráter anti-social, mas sobretudo anti-cristã:

“De modo que o recrutamento não traz somente o mal imediato da privação de
braços, que se arrancão à agricultura; acarreta ainda como consequência sua a expatriação,
homizio, e fuga de muitos indivíduos, que receosos se escondem, ou mudam-se de distrito em
distrito, procurando um asilo, onde possam escapar.
Esta necessidade faz contrair aos rapazes habito nômades, desgostos pela vida
sedentária, pelo trabalho, e por conseguinte vícios inerentes à tais hábitos de cidadãos
morigerados, e úteis, tornam se as vezes vagabundos e réus de polícia.
Eis como uma medida anti-social, e anti-cristão deprava uma sociedade, corrompe
os costumes, e perverte a índole do povo.”

​Onde queria chegar a classe dominante local com esses argumentos? Com certeza não era
uma preocupação com os pobres. O discurso sobre o recrutamento foi se transformando, a
medida que as condições da Província também mudavam. A partir da década de 1850, são
basicamente duas as reivindicações dos grupos dominantes devido o recrutamento. Ambas
tinham um traço comum: relacionar o desenvolvimento da agricultura com a necessidade de
modificar a forma como era executado o recrutamento da Província direcionando ou
modificando para ir ao encontro dos interesses da agricultura comercial. Isso se caracterizava
como uma tentativa dos grupos dominantes locais de se apropriarem do recrutamento como
um dos mecanismos para organizar o trabalho livre na Província.
​A seguir, o jornal, mais uma vez, explicitava impacto do recrutamento para a economia
provincial, em que há uma relação entre o recrutamento e desfalque de braços para a
agricultura e óbvio como um mecanismo que dificultava a organização do trabalho livre,
mas, sobretudo contribuía no processo de desagregação social e na construção de um modo-
de-vida errante:

“Acossados então os pobres pelo recrutamento desamparam serviços, e perdem


roçados feitos, e a consequência é a falta de legumes, a carestia e penúria.
De modo que o recrutamento não traz somente o mal imediato de privação dos
braços, que se arrancão a agricultura; acarreta ainda como consequência sua a expatriação,
homizio, e fuga de muitos indivíduos que receosos se escondem ou mudam-se de distrito em
distrito, procurando um asilo, onde possam escapar.”

​A década de 1860 foi um momento conjuntural difícil para a economia provincial, em


função da convergência de diversos fatores, como: a Guerra do Paraguai e o desenvolvimento
da agricultura comercial. Nesse contexto tornou-se crescente a necessidade de força de
trabalho, na agricultura, pecuária e transporte. Foi no entanto, o período em que houve a
acentuação do recrutamento para do Guerra do Paraguai. A imprensa provincial, mais uma

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vez, retratou o impacto do recrutamento militar para a Guerra do Paraguai e o seu significado
na organização do mercado de trabalho de forma ainda mais dramática.

“De diversos pontos da província nos comunicam que a vexação do recrutamento


e da captura dos guardas nacionais designados têm quase despovoado os termos.
Lamentamos profundamente este acontecimento, de que resultara, (...) que para o
ano seguinte teremos grande escassez de cereais, (...) visto (...) que entramos na quadra em
que se costuma preparar os terrenos para as plantações, e aqueles que os deviam preparar
deixaram suas habitações para se ocultarem em esconderijos (...). Agora mesmo as safras de
café e algodão estão ameaçadas de serem muito menos abundantes (...) por falta de braços
para colheita
Sabemos que é urgente a necessidade de mandar para o sul o contingente de
guerra, com que o Ceará deve contribuir, e nos persuadimos que si melhor educação se desse
ao povo este não prestaria o repugnante espetáculo, (...).”

​Em 1866, mais uma vez, o jornal Constituição, que era editado por uma das facções do
Partido Conservador do Ceará, publicou uma correspondência que abordava o impacto do
recrutamento na desorganização do Mercado de Trabalho:

“A agricultura muito sofreu com o recrutamento e designação; e a criação de


gados, que a princípio pouco sofreu (ao menos aqui) agora está em apertos.
A seca açouta-nos desapiedadamente; nossos gados (...) morrem (...) por falta de
pasto. (...) não encontramos recursos, se não na rama de juazeiro, (...). Mas como havemos de
dar-lhe (...) se não tivermos gente, (...).
Não achamos os braços necessários para tão penoso trabalho, porque o povo ainda
está assombrado das perseguições que sofreu, e ainda sofre. As ameaças de recrutamento,
prisões caprichosas, e arbitrarias (...) continua de sorte, que o povo assombrado foge do
trabalho.”

​O jornal traçava em cores dramática a situação da população devido o recrutamento,


usando como fonte de informação as correspondências enviadas pelos leitores nas diversas
regiões da província. Como essa reproduzida ou criada a partir de relatos retratando, de
acordo com o jornal, a dramaticidade enfrentada pelos proprietários, mas sobretudo pelos
jovens diante da incerteza ocasionada pelo recrutamento.

“Procura-se um rapaz para o serviço do trato do gado, ele apesar de querer ganhar
o jornal, escusa-se dizendo – não posso por que não sei, se estou designado; receio ser preso
(...). Alguns indivíduos solteiros, que tinham algumas reses, as tem perdido quase todas, por
não poderem tratar d’elas, em consequência de recearem ser preso; (...)outros casados estão
no mesmo caso por não poderem ser ajudados por seus filhos, pela mesma razão. Assim, por
exemplo, há aqui um homem pobre, (...) que apenas tem um filho homem solteiro, este que
poderia ajudar, a ganhar alguma cousa para auxilia-lo na sustentação da família, foi
designado, e acha-se embrenhado nos matos. Este pobre homem tem outros filhos, porém
todos casados, e com família faz pena ver o lidar d’este pobre homem de mais de 60 anos.”

​O Jornal Cearense, liberal, em setembro de 1866, fazia constatação idêntica e ao mesmo


tempo denunciava a ação dos encarregados pelo recrutamento em diversas regiões da
província. Como também, o jornal constituição, pintava uma situação dramático e afirmava
o pânico que tomava conta da população em idade do recrutamento, sendo apontado como
desorganizador do mercado de trabalho:

"Em Maranguape consta que o Capitão Estevão tem levado susto e terror por
todos os moradores do mato (...).
De Maria Pereira as folhas de oposição referem cousas muitos graves (...). Consta-
nos que nos sítios, e casas do mato nos termos d’esta cidade, Aquiraz,
Maranguape, não se encontra um indivíduo do sexo masculino, senão algum

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velho, ou criança porque todos os mais ou tem emigrado, ou estão foragidos.
Este pânico ainda é pior que a violência do recrutamento, porque ameaça a terra
de grande penúria, e o comércio de grandes prejuízos, e estagnação”.

​Noutro trecho o jornal destacava o impacto para a agricultura por ocorrer o recrutamento
em setembro, que antecede ao período chuvoso, nosso inverno, quando estão sendo abertos
novos roçados, além da colheita do café.

“É agora justamente o tempo dos roçados para a plantação de cereais, e legumes; é


o tempo de colheita do café etc; ora os braços com que se fazem tais serviços são esses
trabalhadores, que andam foragidos com medo do recrutamento. Se pois tais serviços
deixarem de fazer-se não haverá farinha, nem legume para o ano; não se apanhará o café, e
por conseguinte a fome será inevitável, e o prejuízo do comércio também: porque lhe faltará a
safra com que contava. Este estado por tanto é desastroso.”

​O Pedro II, jornal conservador, também em 1867, fez uma análise sobre o recrutamento,
em que mais uma vez fica explícita a relação entre essa medida e a desorganização do
trabalho livre:

​“Somos informados que está aberto, o recrutamento por toda a província (...) a
vista d’isto não desejamos criar tropeços no publico serviços; (...) o que desejamos é
demonstrar algumas inconveniências que se vão dando e que muitos males fazem ao comércio
e a agricultura; estas duas fontes importantes do progresso (...).Temos pois a lamentar danos
muito veementes se não houver toda a consideração para os lugares agrícolas como Imperatriz
(Itapipoca), Baturité, Santa-cruz (Uruburetama), Maranguape Pacatuba e outras localidades.
Não acabou ainda a colheita das vantajosas safras de café, algodão e açúcar e
plantações no próximo inverno e sentimos a falta de braços para o trabalho e conduções na
presente safra, um recrutamento forçado n’estes pontos agrícolas (...) não será uma
calamidade ?(...).”

​Os argumentos elencados pelo jornal Pedro II, eram os mesmos apresentados pelos demais
órgãos da imprensa, fosse liberal ou conservador, o que tornava explícito que a problemática
unificava as diversas linhas de pensamento da Província. O recrutamento traria prejuízos para
a economia local, mas sobretudo, implicava na redução dos trabalhadores livres.
​Até mesmo o Relatório e Catálogo da Exposição Agrícola e Industrial do Ceará, realizada
em 1866, que deveria ter um caráter técnico, também explicitava a proposta dos grupos
dominantes locais, quando exigiam a intervenção do Estado na organização do mercado de
trabalho e propunha modificações na Lei do Recrutamento isentando dessa obrigação os
trabalhadores agrícolas:

“Reduzida a agricultura ao braço livre, se por um lado goza de todas as vantagens


de um trabalho mais inteligente, perfectível e econômico, por outro luta ainda com a
deficiência de operários; pois alem de ser limitada esta classe, não é na agricultura que ela
encontra as melhores garantias de bem estar e segurança de futuro. As obras públicas, as
diversas construções, o trafego de comércio solicitam braços, e por sobre elevados salário,
oferecem ao operário uma proteção que e de máxima importância na província. Refiro-me à
exceção dos serviços militares.”

​O que se percebe, pela declaração do Presidente da Província em 1867, é de certa forma a


posição do Governo Imperial respondendo as reivindicações dos grupos dominantes locais,
sobre a isenção do recrutamento dos trabalhadores agrícolas, ao declarar que:

​“Expedi sempre as mais terminantes ordens para os contingentes de guerra (...).


Atendi as isenções legais e procurei não afugentar da lavoura os homens dedicados ao
trabalho e que não estão no rigor das instruções do governo, sujeitos ao serviço do exército.”

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​O que se constata, pelas citações acima, é que, as reclamações contra o recrutamento, a
partir da década de 1850, relacionavam essa medida como um dos aspectos que dificultavam
a organização do trabalho livre. No entanto, esse discurso pode ser analisado como uma forma
de “sensibilizar” o Estado para que este intervenha, no sentido de modificar a Lei do
Recrutamento, isentando deste serviço os trabalhadores agrícolas, como estava proposto no
Catálogo da Exposição Agrícola e Industrial do Ceará, de 1866. A declaração do Presidente
da Província era, também, uma tentativa de amenizar as críticas das diversas correntes de
pensamento da Província frente a lei do recrutamento e, da necessidade de organizar as
relações de trabalho com base na população livre-pobre.
​Nesse contexto, havia outros mecanismos que auxiliava na organização das relações de
trabalho como que era o contrato a soldada, em que o juiz de órfãos entregava os jovens
órfãos a tutores que os utilizavam como força de trabalho. A intervenção do Juiz Municipal de
órfãos de Fortaleza, ilustra mais uma vez, como se deu a intervenção do Estado na
organização do trabalho na Província:

“Juiz Municipal e de órfãos do Termo de Fortaleza (...) Tendo trazido a meu


conhecimento o Tenente Coronel T.L. da Silva Castro, que ontem foram presos em seu sítio
Palha, de ordem do subdelegado do distrito de Arronches, os menores José e Antonio, órfãos
que por este juízo lhe foram dados à soldada, e tendo sido preso igualmente, de ordem d’esse
subdelegado, o menor Casimiro, que fôra dado também por este juízo a José F. Negreiros (...)
e cumprindo-me fazer efetivos esses contractos ao mesmo tempo que velas pelo destino
desses menores. Os órfão, ora recrutados, achando-se á soldada, não podem ser retirados da
companhia de seus tutores sem quebra de um contracto garantido pelas leis orfanológicas.”

​O que se constata é a convergência dos interesses da classe dominante local frente a
necessidade de organizar as relações de trabalho, na província, a partir da subordinação da
população livre-pobre, fazendo desaparecer eventuais divergências como se constata a partir
da análise dos jornais representantes da mais diversas correntes de pensamento ou como
afirma Simão no contexto do congresso agrícola do Recife em 1878 afirmava que:“Os
fazendeiros das diversas províncias presentes em Pernambuco representam os interesses de
uma agricultura em crise(…). A questão da mão-de-obra não representava maior
preocupação(…); à transição para o trabalho livre vinha sendo feita com relativa tranquilidade
e todos concordavam quanto ao fato de não existir carência de trabalhadores na região.
Mesmo assim, foram várias as solicitações por meios capazes de aumentar o controle dos
fazendeiros sobre os homens livres, por formas de coagir a população pobre ao trabalho e
coibir a “ociosidade”;”

O Papel da Religião na organização do trabalho livre.

Analisarei a religião como um dos mecanismos essenciais para “convencer” a


população livre-pobre a se submeter as relações de trabalho regular e disciplinado. Fazendo
um paralelo entre o tempo histórico na Europa e Estados Unidos vivenciava na segunda fase
revolução industrial, recorro a Hobsbawm ao analisar o período que se estende de 1848-1875
afirmava que: “O fato significativo era que o progresso estava agora geograficamente mais
espalhado, apesar de muito desigual. A presença de estradas de ferro e, numa escala menor,
máquinas a vapor, introduzia então o poder em todos os continentes e em países não-
industrializados”.
​Hobsbawm ao examinar a sociedade burguesa do ponto de vista do
pensamento, nesse período, destacava o triunfo da ciência frente a qualquer outra forma de
pensamento.
“A sociedade burguesa, de nosso período, estava confiante e orgulhosa de seus
sucessos. Em nenhum outro campo da vida humana isso era mais evidente que no avanço do
conhecimento, da “ciência” Homens cultos deste período não estavam apenas orgulhosos de
suas ciências, mas preparados para subordinar todas as outras formas de atividade intelectual
a elas.”
No entanto, esse era um processo desigual e apesar da Província do Ceará está
sendo, mais uma vez, incorporada ao circuito capitalista, o contexto histórico era bem diverso

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daquele vivenciado no centro do capitalismo mundial. Enquanto a ciência triunfava
submetendo as demais forma de pensamento, no Ceará em fins da década de 1840 a religião
era apresentada como o meio para convencer a população livre-pobre a se engajar no mundo
de trabalho. Os capuchinhos foi uma das ordens religiosa que se destacou nesse processo. Em
artigo sobre o papel dos capuchinhos na segunda metade do XIX, Palácios analisa o objetivo
da atuação:

“Os frades capuchinhos italianos – sobretudo aqueles provenientes das províncias


sicilianas de Messina e Calabria – foram agentes políticos de primeira importância na
elaboração da nova estrutura de legitimação do sistema de controle social do trabalho que
começou a ser montada no Nordeste do Brasil após a abolição do tráfico escravo. Originários
de regiões camponesas do sul da península, mendicantes e rudes, especialistas na “tradução”
da “palavra de Deus” para as massas rurais, os capuchinhos penetraram fundo no espaço e (...)
no coração e na mente das comunidades de pobres livres do Nordeste, sobretudo em
Pernambuco, uma espécie de “laboratório” virtual das suas ações pastorais”.

​É elucidativa, nesse sentido, a análise que o jornal Cearense fazia em 1847 sobre a
agricultura provincial, ao discutir as possibilidades de transformação do conceito que a
população livre-pobre tinha sobre o trabalho e, mais, como convencê-la a se engajar no
trabalho regular e disciplinado, a religião era apontada como o único meio capaz de realizar
esta transformação ao afirmar que:

“Para tirar os nossos comprovincianos do centro o apego a preguiça, para


lhes descruzar os braços, infundindo-lhes o amor ao trabalho preciso uma força quase
sobre-natural, d’uma força superior das leis humanas. Nosso povo está ainda meio
selvagem: necessita pois ser antes moralizado, para depois ser guiado pelo freio das luzes;
(...).Para mover a nossa gente nenhum outro meio há se não a opinião. E quem consegui ter
sobre o nosso povo? (...) no nosso entender só a Religião. A única alavanca assas forte para
levantar a massa dos nossos patrícios a fé.”

​A lógica argumentativa usada pelo articulista era construída a partir de um diagnóstico


sobre a população da Província, sempre de forma negativa, em que essa era classificada com
preguiçosa, selvagem e não estava alicerçada em valores capazes move-lá racionalmente,
sendo assim os argumentos lógicos não funcionaria, as luzes, o debate racional demonstrando
as vantagens do trabalho e a possibilidade da prosperidade individual, na opinião do
articulista, estava fora de cogitação, sendo necessário recorrer a emoção e, a religião era um
instrumento essencial para tocar os sentimentos da população.
​No trecho seguinte, avançando na construção dos seus argumentos, o articulista traçava o
perfil do religioso ideal para convencer a população pobre-livre a se “civilizar”. E mais uma
vez, não era o argumento, racional que convenceria a população pobre-livre, mas o exemplo:

​O religioso, tal como o afiguramos, não obedecendo as cegas paixões e


vaidades humanas, lançar mão da enxada, e procurar o bem geral, buscando também o
seu, (...)Taxarão de imaginário o nosso projeto (...) Ele na realidade filha da imaginação
(...)Não se poder negar que ele não é impossível: digo-o quanto dócil nosso povo a voz do
púlpito (...). Não o presenciamos nas missões que entre nós tem havido?”

​Como se constata, a Religião era encarada como um instrumento fundamental para


transformar o modo de vida. Esse processo estava sendo posto em prática através das missões.
Com isso, é importante fazer uma rápida análise da Missão como um meio de divulgação do
novo conceito de trabalho que estava se estruturando.
​Mais uma vez, recorro ao jornal Cearense fazendo uma apreciação sobre a atuação dos
missionários capuchinhos, destacando a figura do Frei Caetano de Gratiere. O frei Caetano
veio na primeira leva dos capuchinhos, aos 11 de setembro de 1841, para Recife com mais 4
frades. O jornal após seis anos da chegada dos missionários destacava a importância da sua
atuação e a possibilidade de transformação do modo de vida da população através do exemplo
dado por eles:

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“Estendendo suas missões pelo centro de nossa província (...) tem sabido chamar a
seu favor o amor e respeito dos povos a que tem pregado a palavra do evangelho. Suas
maneiras afáveis e dóceis; sua prudência e paciência para com todos; sua vida exemplar(...)”

​Noutro trecho, o Jornal destaca o poder que tinha a pregação do missionário para “corrigir
até aqueles que caíram em erro”, isto é colocar freios na população e combatendo o “vício”:

“Com que força não doutrina ele aos que o ouvem? Com que ardor não explica e
prega palavras santas do Evangelho? Que frutos não tem colhido na gloriosa carreira que
abraçou? Aqui inimigo se congraça com o seu inimigo: ali o marido desvairado abraça
arrependido sua virtuosa esposa (...).
Tais tem sido os triunfos (...) desse eloquente missionário, que fulminando o vício
e o crime vai arrebanhando para o sagrado aprisco as ovelhas que dele se tinham desgarrado.”

​A ação dos missionários seguia uma cartilha pensada na perspectiva de “convencer” os


pobres-livres a se submeter ao trabalho regular e disciplinado. A análise do regulamento das
missões, catecismo contendo regras de comportamento para a população, se explicita a
relação entre a religião e o trabalho. O regulamento estava dividido em vários tópicos, dos
quais destacaremos alguns como: a obrigação do homem moço, dos jornaleiros e dos artífices.
​Vejamos quais são as recomendações aos homens moços:

“Frequentar a doutrina Cristã, Evitar a Ociosidade e más companhias, fugir dos


divertimentos perigosos, recolher-se de tarde à casa muito cedo, não furtar em casa cousa
alguma.”

​A década de 1840 foi marcado por uma série movimentos populares que,
momentaneamente, abalou as bases de sustentação do império. As recomendações aos moços
além de refletir sobre a necessidade de se submeter ao trabalho regular e disciplinado,
também, aconselhava sobre as más companhias e divertimentos perigosos. As obrigações dos
jornaleiros são:

“Oferecer a Deus as próprias fadigas, trabalhar com atividade, economia e


precisão, conforme as regras d’arte, não perder tempo, abster-se nos trabalhos de profanos
discursos.”

Laura de Mello e Souza ao examinar o processo de desclassificação no Brasil, no


período colonial, afirma que: “No Brasil, como no Ocidente moderno, trabalho decente e
honrado é o que se relaciona a praga bíblica: ‘amassarás o pão com o suor do teu rosto.” As
obrigações dos jornaleiros, mais uma vez, como afirma Laura, recorre aos signos religiosos
para convencer ao trabalhador pobre-livre no contexto da escravidão. No entanto, é uma
constante a preocupação em combater o discurso “profano” contidas nas revoltas republicanas
que marcaram a região desde 1817.
​Mais uma vez, nas recomendações aos jornaleiros (os que trabalham por jornada), se
explicita a relação entre religião e trabalho.

Das obrigações dos artífices: “Fazer as obras com toda a diligência.”

​Essa concepção estava presente, ao longo da segunda metade do século XIX, na pregação
dos capuchinhos mas, também de religiosos como o padre Ibiapina de forma reiterada. A
seguir, abordaremos a experiência missionária do padre Ibiapina, que percorreu as províncias
do que hoje compõe a região nordeste entre 1860 e 1875, pregando, construindo igrejas,
açudes, cacimbas, cemitérios e Casas de Caridade que eram escolas de formação para o
trabalho. No Ceará construiu várias Casas de Caridade, principalmente, no Cariri.

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​A ação de Ibiapina tinha uma clara identidade como o método utilizado pelos capuchinhos.
Era orientada por uma visão teológica em que o combate ao pecado e ao ócio deveria se dar
através da mortificação do corpo e, de preferência, pelo trabalho. O regulamento das Casas de
Caridade, fundadas por Ibiapina, retrata muito bem esse aspecto, ao definir como um dos
principais objetivos era a preparação para o trabalho e a educação moral:

“Art. 1 – Têm dois fins as Casas de Caridade desta Instituição, e vêm a ser a
educação moral e o Trabalho.
Art. 3 – A primeira educação das órfãs é ler, escrever, contar, aprender a doutrina
cristã e cozer. Finda esta educação entraram nos trabalhos manuais como tecer panos, fiar nos
engenhos, fazer sapatos e qualquer gênero de indústria que a casa tenha adotado.”

​As casas de caridade articulava aspectos considerados cruciais, do ponto de vista da classe
dominante, que era construir valores de base cristã para servir de freio aos instintos do povo,
quase selvagem, como afirmava o discurso dominante, e tornar a população dócil para o
trabalho. No Capítulo segundo o regulamento define que além das órfãs, a casa de caridade
pode receber mulheres para o trabalho. O que definia a aceitação ou não na casa, após seis
meses de noviciado, era, sobretudo, o amor ao trabalho:

“Art. 6 – As mulheres para o trabalho não serão logo definitivamente aceitas, mas
estarão na Casa como em noviciado de 6 meses para provarem sua conduta, amor ao trabalho
e verdadeira religião.
Art. 7 – Serão, também, ensinadas em doutrina e a ler nas horas vagas do trabalho. ”

​ As experiências das casas de caridade foram importantes, mas, atingia um público


limitada, no entanto, as pregações de Ibiapina, nas missões, eram experiências, também,
utilizada pelos frades italianos, feitas para milhares de pessoas e, são constantes as referências
à necessidade de mortificação da matéria para salvação da alma como também a divulgação
da devoção ao coração de jesus e de Maria:

“Seu prazer, sua felicidade neste mundo é sofrer, destruir-se aniquilar-se e morrer
a tudo que é sensível, a fim de ganhar os sagrados Corações de Jesus e de Maria, ....”

​Nas crônicas das casas de caridade, um diário em que foram registradas as experiências do
padre Ibiapina na ação missionária, contém narrativas sobre o funcionamento das missões e,
nesta havia uma relação explicita entre os atos de fé e o trabalho. O trabalho, enquanto meio
para combater o pecado e o ócio, era um tema recorrente na ação pastoral do período. Na sua
pregação, o trabalho manual perde o seu caráter aviltante, para se transformar em algo divino
e um meio essencial para a salvação das almas. Na descrição a seguir tornar-se mais uma vez
claro a relação entre fé e trabalho:

“Dividido o tempo entre a oração e o trabalho, em quanto uns corriam com afã
para o tribunal da penitência, outros desempenhavam com a melhor vontade as ordens de seus
Gedeões e as obras materiais marcham a par do progresso espiritual. ”

​A indução ao trabalho a partir da ação missionária tinha uma eficácia comprovada, pois, o
discurso era feito a multidões que chegavam a 14 mil pessoas por missão, que escutavam
atentamente os conselhos, os quais eram seguidos como preceitos. Ao lado do discurso havia
toda uma prática pedagógica nas atividades de mutirão, utilizadas na construção de igrejas,
casas de caridade, açudes, cemitérios e cacimbas, o que envolvia algumas centenas de
pessoas. A descrição sobre a missão em agosto de 1868 em Goianinha é um exemplo desse
processo pedagógico de formação para o trabalho. Eram 12 mil pessoas trabalhando na
construção de obras públicas mas, o mais importante era o convencimento de que o trabalho
manual era algo enobrecedor e o caminho para a salvação das almas. Esse processo estavam
ocorrendo em plena vigência da escravidão.

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“Abriu-se missão no dia 18 (agosto de 1868) e nunca povo algum apresentou tanto
desenvolvimento, gosto e vontade no trabalho material, como o de Goianinha. Dividido o
serviço por turmas, estabelecerão se onze decorrias com seu respectivo Chefe que faziam
tijolos, 20 pedreiros com os serventes... trabalhavam no serviço da capela; 30 carpinas
aprontavam as madeiras, 200 a 300 homens trabalhavam em um açude; outros conduziam nos
ombros as madeiras tiradas a uma e duas léguas... o resto do povo, homens e mulheres e
meninos, formigavam no carreto do material da lenha para queimar o tijolo e o mais que lhe
ordenava. Dez, doze mil almas, reunidas em um lugar tão pequeno por espaço de 12 dias que
durou a missão, apresentarão a maior docilidade, e melhor vontade e a mais sublime
obediência...”

​A imprensa da Província referia-se à ação de Ibiapina como um benefício à Religião e ao


Estado, por desenvolver na população hábitos de uma vida exemplar. Colocando freios,
através da fé, desenvolvendo hábitos do trabalho ou como afirma o jornal o “amor ao
trabalho”. A ação do padre cumpria duas missões fundamentais, do ponto de vista dos grupos
dominantes locais, civilizar e desenvolver hábitos morigerados:

“Nesta vila (de Flores Pernambuco) esteve reverendo Dr. Ibiapina que, com sua
palavra autorizada, ... tem prestado ao governo do seu país e a religião bem entendida, que é a
educação do povo, desarraigando do seu (...) hábitos de vício e do crime e suplantado em seu
lugar a moralidade a sobriedade e o amor ao trabalho”.

Noutro trecho o jornal elogiava a ação de Ibiapaba, destacando o papel das casas
de caridade como sendo um espaço por excelência formativo, civilizatório, citando a
construção de mais uma casa na Vila de Triunfo, em Pernambuco.

“Muito lhe devem os nossos sertões. Nesta comarca pós ele em prática o profundo
e sábio aforismo – educai a mulher e civilizarás o mundo – fundou ... (na) vila de Triunfo um
recolhimento de educação e trabalho para as órfãs desvalidas...”.

O que se percebe é que a religião foi um importante fator para convencer a


população livre e pobre a submeter-se a uma relação de trabalho regular e disciplinado, além
de ter funcionado como escola, para treinar a população para o trabalho através das Casas de
Caridade e das Missões.
Concluindo, gostaria de destacar que, a intervenção do Estado era apontada como
um mecanismo essencial para a organização do Trabalho livre na Província, na segunda
metade do século XIX e a Igreja desempenhou um papel fundamental no “convencimento”
dos pobre-livres.

A Companhia de Trabalhadores do Ceará e o Projeto Alencar Araripe: Duas


propostas para organizar as relações de trabalho livre.

Introdução

​ Como analisamos, as propostas dos grupos dominantes na provincial, a partir


de fins do século XVIII, para organizar as relações de trabalho já recorriam aos braços livre,
em pleno contexto da escravidão. Na segunda metade do XIX era apontado com a
possibilidade de resolver crise de braços, recorrendo a população livre-pobre, o que exigiria a
intervenção do Estado. Para concretização desse projeto, os grupos dominantes locais viam na
intervenção do Estado uma solução decisiva. Neste capítulo, analisaremos duas propostas em
que explicitam essas aspirações. Analisarei, inicialmente, a experiência da Companhia de
Trabalhadores – Auxiliadora da Agricultura e Obras Públicas, criada por lei provincial n. 829,
de 29 de setembro de 1857. Em seguida, faremos uma análise do Projeto Alencar Araripe,
apresentado na Câmara dos Deputados em 1869, sobre locação de serviços.

A Companhia de Trabalhadores de 1858

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​Na década de 1850, estava ocorrendo a reestruturação da agricultura para exportação na
Província do Ceará. Quando, também, iniciou o tráfico inter-provincial de escravizados. A
Província do Ceará, em termos percentuais, foi uma das que mais perdeu escravizados. Nesse
contexto, a Assembléia Provincial propôs a implementação da proposta do Presidente da
Província, em 1857 e regularizada em janeiro de 1858, pela Lei Provincial n.834 e modificada
pelo regulamento de 3 de novembro de 1858.
​A implementação de uma legislação para garantir processo de transição do trabalho
escravizado para o trabalhador livre-pobre, na província do Ceará, se antecipava ao debate
nacional. A primeira lei, no âmbito nacional, indicando esse processo gradual foi de 1871,
ventre livre e mesmo os debates do final do XIX não apontava como saída para resolver a
crise, devido o declínio do trabalho, recorrer a população pobre-livre.
​A Companhia de Trabalhadores tinha uma organização militar. Estava dividida em
companhias e os comandantes tinham a patente de capitão. Cada município sediava uma
companhia, subdividida em esquadras, ficando estas sediadas nos distritos, comandadas por
um sargento.
​No relatório de 1858, o Presidente da Província ao referir-se ao regulamento da
companhia, explicitava o seu objetivo, que era organizar uma força de trabalho regular e
disciplinada ao afirmar que:

“Entendo que d'El-Rei se poderá colheres grandes vantagens; tempo virá em que
seja necessário empreender-se obras mais importantes nos distritos do interior, e em que as
diversas lavouras da Província precisarem de braços ainda mais que a actualidade, e com os
recursos que aquele regulamento cria, será possível obter-se sem grandes dificuldades muitos,
trabalhadores hoje completamente perdidos para umas e outras; ele é em todo caso um meio
apropriado de chamar-se ao trabalho as classes ociosas, com manifesta utilidade para si e para
a sociedade.”

​A justificativa do presidente da Província, para a criação da companhia, reproduz


argumentos idênticos daqueles apresentados de forma reiterada pela imprensa provincial, em
que a marca era a desqualificação dos pobre-livres e o recurso aos meios coercitivos.
​Na abertura dos trabalhos do Legislativo Provincial, o Presidente, mais uma vez, se
pronunciava sobre a companhia de trabalhadores solicitando a contribuição dos deputados.
Ao mesmo tempo destacava as modificações que ele pretendia apresentar e a perspectiva era
de aperfeiçoar os mecanismos coercitivos para submeter os ditos “vadios ou remissos” e
garantir a regularidade da força de trabalho e das relações de trabalho:

“Não pus logo em execução porque quis primeiramente submete-lo a vossa


ilustrada apreciação, e pensar ainda mais maduramente sobre qualquer aperfeiçoamento, que
possa ter. Assim me parece desde já, que alguma modificação convirá fazer-se-lhe no sentido
de ampliar o prazo de art. 27 marcado para o engajamento de trabalhadores destinados ao
serviço da agricultura, e em geral estabelecer-se medidas mais enérgicas para compelir a ele
os vadios ou remissos.”

​O artigo 27 tratava do período de duração do contrato, inicialmente, como de 6 meses. No
entanto, antes da lei entrar em vigor, o presidente propunha à Assembleia Provincial a
ampliação do prazo do contrato para os trabalhadores da agricultura, o que vem confirmar que
uma das principais preocupações era ter uma força de trabalho regular.
​Citaremos, a seguir, o Regulamento aprovado em 02 de janeiro de 1858. Faremos uma
análise dos artigos que nos possibilite perceber a proposta da Companhia para organizar o
trabalho “livre”. O artigo 5, definia os indivíduos que deveriam ser recrutados pela
companhia. De antemão os recrutados deveriam ser todos os homens livres. No entanto, havia
exceções, como:

“1. Ser menor de 18 anos ou maior de 50, ou sofrer moléstia ou aleijão que o
Inabilite para o trabalho.
2.Ter propriedade, emprego ou indústria de que tire meios de decente subsistência.

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3 Ser mestre, oficial, ou aprendiz de qualquer ofício mecânico.
4 Ser patrão, mestre ou remeiro de canoa, ou embarcação de qualquer espécie
5 Ser feitor de estabelecimento agrícola, ou fazenda de gado
6 Ser pescador incorporado a alguma companhia, ou Associação de pescaria.
7 Achar-se engajado por contracto escrito como fâmulo, ou para qualquer
serviço útil.”

​O que se constata da análise das isenções, é que estavam isentos aqueles que não podiam
trabalhar e os que tinham uma ocupação regular. Com isso, a grande maioria da população
pobre-livre, que sobrevivia da agricultura de aprovisionamento e, não era proprietária,
trabalhava esporadicamente para os grandes proprietários, era o principal alvo da Companhia
dos Trabalhadores.
​No artigo 6, explicita-se a exigência da regularidade do trabalhador para fazer jus às
isenções:
“Para que aproveitem as isenções (...) é necessário que os indivíduos que as
alegarem, se acharem empregados ou se ocupem efetiva e habitualmente nos diversos
misteres ou serviços ali mencionados.”

​O trabalhador livre-pobre na condição de jornaleiro (trabalho esporádico), os que


trabalhavam na agricultura de aprovisionamento não estariam incluídos como passiveis de
isenção. Os artigos 7, 36, 37 e 38 demonstram, mais uma vez, que um dos principais objetivos
da Companhia dos Trabalhadores, era ter o controle da força de trabalho. Para reforçar o que
propunha o artigo 6, o artigo 7 determinava que:

“Todos os mais indivíduos que não estiverem em alguma daquelas circunstancias


(isentos) serão alistados em cada distrito, ou lugares deles em que o devam ser, na forma deste
Regulamento.”

​Essa medida, caso fosse executada, possibilitaria conhecer em cada distrito a população
livre que não era isenta e poderia ser recrutada de acordo com as exigências dos proprietários
para serem engajados nas atividades produtivas, mas também poderia induzir a alguns
buscarem trabalho de acordo com os padrões exigidos pela lei.
​O artigo 36 tornava clara a necessidade de controlar a força de trabalho, recorrendo aos
mecanismos como o passaporte ou licença do comandante do distrito, como já havia sido
usado em fins do século XVIII mas, sobretudo no início do XIX no período do governador
Sampaio. O artigo proibia a liberdade de locomoção dos indivíduos que estivessem inscritos,
com contrato ou não, a não ser com a licença do Comandante:

“Os trabalhadores inscritos e sujeitos ao serviço, estejam ou não contratados ou


em serviço não poderão sair do seu distrito sem licença do comandante de secção, ou do lugar
onde estiverem servindo, ou da companhia.”

Os artigos 37 e 38 tinham objetivos idênticos. O artigo 37, por exemplo, punia


com prisão o trabalhador que fosse encontrado fora do seu distrito, sem a licença do
comandante do respectivo distrito, como determinava o artigo a seguir:
​“Aquele que sem a referida licença se apresentar em outro distrito, deverá ser preso
pelo comandante de secção do lugar ou pelo da companhia, e remetido para o seu, ou para a
aquele onde estiver trabalhando, podendo ser além disso preso até por três dias.”

​O artigo 38 tornava mais explícito o controle exercido sobre o trabalhador, ao determinar:


​“Todo trabalhador que sair de seu distrito para outro com licença, a qual servirá
de seu guia, será considerado adido á secção do lugar para onde for, para o que apresentará a
mesma licença ao respectivo comandante.”

O que se constata é que o modus operandi foi sendo retomado a cada período em

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que a agricultura comercial necessitava de braços. No final do século XVIII foram usados os
bandos, legislação extraordinária, no início do XIX foi a polícia do passaporte, nesse
momento é a proposta de criação de uma companhia de trabalhadores. No entanto, nos
diversos períodos, estudado nesse trabalho, o traço comum era uso da coerção para submeter
a população livre-pobre ao trabalho regular e disciplinado. E mais uma vez, a licença como o
passaporte, no início do XIX, funcionava como um mecanismo fundamental no controle da
força de trabalho, pois os trabalhadores que não tivessem a licença estavam sujeitos a pena de
prisão. Aqueles que a tinha, livravam-se da prisão, mas estavam completamente submetidos.
A licença, se por um lado, possibilitava a “livre” locomoção do trabalhador, por outro,
obrigava-o a se apresentar ao Comandante do lugar para onde fosse. Conclusão: com ou sem
licença o trabalhador tinha a sua liberdade de locomoção limitada.
​A seguir examinaremos os dispositivos que regulamentavam as relações entre o locador e
o locatário. Nessa análise, faremos uma reflexão sobre os artigos 25, 28 e 31.
​Os artigos 25 e 31 determinavam que a mediação entre o trabalhador e o proprietário seria
feita pelo Juiz de Paz. Como analisamos, esse era um típico representante dos interesses dos
grandes proprietários.
​O artigo 27 determinava que o preço do salário deveria ser estipulado de antemão, bem
como o lugar e a forma de pagamento. Enquanto o artigo 28, negando as determinações do
27, afirmava:

“Quando outra cousa se não estipule, o preço do salário será o que geralmente se
pagar no lugar onde os serviços tem-se de prestar e o pagamento será feito por semana.”

​Em um período em que os direitos individuais praticamente eram inexistentes e, de outro


lado, estava em negociação um proprietário diante de um pobre-livre tendo como mediador
dos conflitos o Juiz de Paz, eleito entre os grandes proprietários, a tendência era que os
conflitos fossem sempre definidos em favor do proprietário. Este artigo, na verdade, legalizou
uma prática que se tornou corriqueira, na relação entre o trabalhador e o proprietário. Este
determinava como e quanto deveria pagar (na maioria das vezes diária insignificante) ou,
simplesmente, não pagava, principalmente no caso dos moradores de suas terras.O artigo 31,
regulava a punição dos proprietários, que não cumprissem o contrato, se mostrava com
determinações frouxas, ao afirmar que tal caso ficaria na dependência do Juiz de Paz. Este
aplicaria ou não a lei, mesmo que fosse constatada a transgressão:

“(...) os locatários que não satisfizerem seus empenhos para com os trabalhadores,
que engajarem, deverão ser chamados perante o juiz de paz do distrito onde celebrou o
a
contrato, (...) e este lhes poderá impôr a multa ou pena de que trata a 2 parte do artigo
seguinte (...), além da obrigação de pagar ao locador o que lhe estiver a dever.”

​A legislação em relação ao trabalhador estavam bem definidas, o mesmo não ocorria em


relação aos proprietários, que poderiam defini-las de acordo com o seu arbítrio, como era o
caso dos salários. Mesmo naqueles aspectos que estavam definidos, os mecanismos que eram
postos à disposição dos trabalhadores eram insuficientes, como os recursos jurídicos posto a
disposição do trabalhador, como afirmei, para fazer valer o que determinava a lei. Esse era,
por exemplo, o caso do contrato feito perante o Juiz de Paz. Como representante dos grandes
proprietários, não iria puni-los, mesmo que isso estivesse determinado na lei. No artigo 31, a
punição do proprietário estava condicionada à vontade do Juiz de Paz.
​Um outro aspecto, que é importante destacarmos, é a prioridade dada à agricultura, ficando
explícita a relação entre reestruturação da agricultura comercial e a organização da
Companhia de Trabalhadores. O artigo 24 é elucidativo nesse sentido, ao determinar que:

“Se houver mais de um pretendente, e o número dos trabalhadores disponíveis não


for suficiente para satisfazer-se a todos, serão atendidos de preferência os que quiserem para
serviço da lavoura(...).”

A seguir, examinaremos as modificações efetuadas no regulamento de 02 de jan.


1858, pelo de 3 de novembro de 1858. De um modo geral, as modificações buscavam

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fortalecer o controle sobre os trabalhadores. Vejamos o que determina o artigo 1º, que
modificava o art. 5º:

“Na disposição do art. 5º parágrafo 1º do regulamento de 2 de janeiro deste ano


serão compreendidos também os menores de 18 até 14 anos que estiverem em estado de
trabalhar, sejam órfãos ou não e cujos pais, tutores ou curadores não possam dar-lhes
educação nem uma ocupação útil e decente. ”

​Numa Província em que as escolas públicas praticamente inexistiam, garantir a educação


formal ou para o trabalho era praticamente impossível para a população livre-pobre. Desta
forma, a quase totalidade dos jovens livres-pobres, entre 14 e 18 anos, estava sujeito a
recrutamento forçado para o trabalho. Para se ter uma ideia da situação das escolas públicas,
na Província, basta ver a estatística: em 1822, havia 18 escolas de primeiras letras para uma
população de 200.000 habitantes. Em 1834, existiam na Província 34 escolas, para uma
população de 223.554. Na segunda metade do século XIX, essa situação não se alterou
substancialmente, pois, em 1860, existiam na Província 80 escolas de primeiras letras, para
uma população de 503.759 habitantes. Além do mais, a definição do que era decente e útil era
subjetivo mas, significava mais e mais se submeter a relações de trabalho regular. Nesses
termos, o que esse artigo fazia era estender a obrigatoriedade do recrutamento à população
livre entre 14 e 50 anos.
​O artigo 5º, que modificava o art. 27, revelava preocupação idêntica, ao elevar
o período do contrato de 6 meses para um ano, com direito a renovação. No entanto, não
determinava as condições para tal, nem por quantas vezes essa renovação poderia ser
efetuada.
Enquanto o artigo 8º, que modificava o 40, determinava que:

“Fica também elevado ao duplo o número de dias de prisão, de que trata o artigo
40 do regulamento, e que tem de ser imposta aos trabalhadores remissos ou desobedientes
(...).”

​As modificações propostas no regulamento da companhia de trabalhadores, em fins de


1858, foi marcado pelo aumento do cerco aos pobre-livres ao acentuar as medidas de caráter
coercitivo. Os grupos dominantes locais percebiam que seria praticamente inviável organizar
as relações de trabalho “livre” sem recorrer ao aparato coercitivo. No entanto, propunham
formas compensatórias para os que se submetessem. O art. 29, do regulamento de 02/01/1858,
retratava este imbricamento entre coerção e compensação:
“Os trabalhadores engajados pela forma acima referida ficam isentos do serviço
publico (recrutamento) durante o tempo do contracto, uma vez que se mantenham no exacto
cumprimento dos mesmos. ”

​Como examinamos o recrutamento era uma das ações mais temida pela população pobre-
livre e a possibilidade de isenção poderia se transformar em uma armar na aceitação dessa
população para submeter ao contrato proposto. No entanto, mais uma vez, a isenção não era
algo automático dependia do desempenho do trabalhador. Porém, mesmo que tivesse um
“bom” desempenho, o julgamento ficava a critério dos proprietários contratantes o que
geraria uma situação marcadamente desvantajosa para o trabalhador. Na discussão, no âmbito
nacional, quando esse tema foi abordado havia denúncias de que muitos trabalhadores se
submetiam a trabalhar de graça para evitar o recrutamento.
​Para finalizar o tópico, faremos uma análise sobre a posição da imprensa liberal frente a
proposta de organização da companhia de trabalhadores. É importante, de antemão,
esclarecermos que a proposta foi elaborada e aprovada por um governo conservador, ao qual a
imprensa liberal fazia uma oposição cerrada. No entanto, apesar dessa posição do jornal
“Cearense” fez o comentário seguinte:

“(...) Nosso fim porém é falar de seu celebre regulamento criando uma
companhia, ou companhias de trabalhadores. É um monumento de arbítrio e despropósito.
Aqui a intenção é louvável; porém o meio e ilegal, e inexequível.

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Quer ele (o Presidente da Província) aproveitar em favor da indústria os braços
ociosos. O fim, repetimos; é louvável por que por uma parte tende a dar ocupação a ociosos, e
a fazer-lhes contrair o habito do trabalho; e por outra quer dar força à indústria de que tanto
precisamos (...). ”

​Constatamos que apesar de se tratar de um projeto conservador, propondo a intervenção do


Estado para organizar as relações de trabalho na Província, o jornal “Cearense” afirmava que
“a intenção é louvável”. Vê-se que, apesar das “divergências ideológicas” entre liberais e
conservadores, no âmbito da Província do Ceará, a necessidade de organizar as relações de
trabalho, tendo por base o homem livre/pobre, tinha uma importância vital para a
sobrevivência dos grupos dominantes, fazendo com que, nesses momentos, apesar das
divergências quantos aos meios, havia concordância quanto à necessidade de transformar os
homens livres/pobres em força de trabalho.

O projeto Alencar Araripe e a organização de trabalho livre na província.



​No âmbito nacional, a partir dos anos 1860, na Câmara dos Deputados, principalmente,
teve início as discussões sobre a possibilidade de suprir as lacunas que iam sendo deixadas
pela redução do trabalho escravizado era recorrer ao “livre” nacional.
​Essas discussões estavam relacionadas, como propõe Lúcio Lamounier, com o fracasso
das primeiras experiências com a colonização estrangeira. Além disso, despertou o debate
sobre a necessidade da elaboração de uma legislação capaz de regulamentar as relações entre
os proprietários e os trabalhadores livres. Foi nesse contexto que Alencar Araripe, deputado
pela Província do Ceará, apresentou o seu projeto em 1869. Na Província do Ceará, o projeto
Alencar Araripe representava uma síntese das propostas dos grupos dominantes locais para
organizar o trabalho livre. Em primeiro lugar, havia como principal preocupação regularizar
as relações entre os senhores de terra e a população livre-pobre através da intervenção do
Estado. Como sugere Gebara: “A Pedra de toque de raciocínio de Araripe era o uso da
coerção como instrumento necessário para forçar o empregado a cumprir as exigências
contratuais. Essa colocação está em linha com o objetivo dos desejos dos empregadores: mão-
de-obra segura, dócil e estável.”
​Como propunham os grupos dominantes da Província do Ceará e, em boa medida os
representantes das províncias do Norte, o projeto Alencar Araripe também tinha como
proposta central organizar o trabalho livre, tendo por base o trabalhador livre nacional.
Segundo: buscava regularizar as relações de trabalho vigentes na Província, como a parceria;
além do mais, propunha isentar do recrutamento militar os trabalhadores com contrato de
locação, proposta contida no projeto de 1858 de autoria do presidente da província. Como
estava proposto no artigo 1º, o escopo do projeto era regularizar as relações com a população
pobre-livre nacional respondendo a uma das principais aspirações dos grupos dominantes da
Província do Ceará e, mais uma vez, a coerção era o instrumento essencial para organizar as
relações de trabalho:

“Ao contrato de locação de serviço feito por nacionais é aplicável a pena de prisão
simples de 5 a 20 dias, quando o locador não cumprir.”

​Ou, como explicitou Alencar Araripe na discussão do projeto em 1875, ao afirmar que:

​“O projeto não obriga a trabalhar, obriga, sim, a cumprir os contratos legalmente feitos.”

​Nos artigos 2º e 3º torna-se clara a subordinação do projeto aos interesses dos grandes
proprietários, ao propor que sua execução e as pendências, entre o locador (trabalhador) e o
locatário (proprietário), fossem resolvidos pelo Juiz de Paz, um típico representante dos
interesses locais. A mesma proposição contida no projeto de 1858. Vejamos como o projeto
trata da aplicação da pena de prisão e da realização do contrato:

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“Art. 2º - A pena (de prisão) será imposta pelo Juiz de Paz do domicílio do
locatário, mediante processo sumário e com apelação ex-oficio para o Juiz de direito da
Comarca.
Art. 3º - O contrato será feito por e em presença do Juiz de Paz do lugar do
mesmo contrato.”

​A função do Juiz de Paz foi uma das poucas que permaneceu sob influência dos interesses
locais, após a reforma procedida pela lei de 1840, de reinterpretação do Ato Adicional,
centralizando o poder nas mãos do Imperador. O Juiz de Paz era eleito pelo voto direto. Era
quase sempre um grande proprietário ou um representante desses. E era exatamente, esse Juiz,
o “mediador” entre trabalhador e o proprietário, de acordo com o projeto Alencar Araripe.
​Os artigos 9º e 10º, que isentavam do recrutamento militar os trabalhadores com contrato
de locação, tornavam, mais uma vez, claro o objetivo do projeto, ao submeterem ao arbítrio
dos grandes proprietários, as decisões sobre quem deveria ser isentado:

“Art. 9º-Os presidentes de Província a requerimento do proprietário de


estabelecimentos rurais, tendo em consideração a importância destes designará d’entre os
locadores até o número de dez, que ficarão isentos do recrutamento durante o tempo do
contrato. ”

​Como o projeto de 1858, ficava a cargo do proprietário definir quais os trabalhadores


seriam isentados do recrutamento. No projeto não havia menção que garantisse, ao
trabalhador, a isenção do recrutamento, sem a consentimento proprietário. De um modo geral
as decisões sobre quem deveria ser isentado ou não, dependia do arbítrio do proprietário. Isto
é, seriam isentados aqueles que tivessem “bom comportamento”, cumprindo o contrato à risca
e aceitando as condições aviltantes de trabalho. O recrutamento era um terror para os pobre-
livres, como descrevemos anteriormente, e Araripe propunha, em lei, que determinação dos
que deveriam ser recrutados fosse atribuição dos proprietários.
​O artigo 10º, isentava do recrutamento militar os trabalhadores com contrato para o serviço
doméstico:

“Ficarão também isentos do recrutamento os indivíduos que se contratarem como


criados para o serviço doméstico.”

​Como examinamos, no capítulo que trata de uma visão panorâmica sobre o trabalho
escravizado na província, ficou demonstrado que uma parcela significativa desses
trabalhadores eram domésticos. Para suprir essa lacuna o projeto Alencar Araripe propõe a
regulamentação de trabalho doméstico, mas vai além isentando-os do recrutamento.
​Do ponto de vista dos grandes proprietários da Província, o projeto era excelente. O artigo
primeiro criava os mecanismos legais para obrigar os trabalhadores ao cumprimento dos
contratos. Os artigos 3ºe 4º, reforçavam o poder dos grandes proprietários, ao transferirem
para o Juiz de Paz, o poder de condenar o trabalhador através de processo sumário, enquanto
o trabalhador, para condenar o proprietário, deveria recorrer à justiça comum. Por outro lado,
os artigos 9º e 10º induzia o trabalhador a se submeter ao contrato, frente à possibilidade de
ser isentado do recrutamento, em uma conjuntura marcada pela Guerra entre o Brasil e o
Paraguai, período, em que o recrutamento se transformou numa ameaça real para a população
livre/pobre.
​O projeto foi apresentado em 1869, no entanto, só entrou em discussão na Câmara dos
deputados em 1875. Dos debates sobre o projeto, em 1875, recuperaremos duas perspectivas:
de um lado, a intervenção de Martinho Campos, cafeicultor, representante de Minas Gerais.
Do outro, Alencar Araripe, representante da Província do Ceará.
​Como propõe Ana Lúcia D. Lana, no sudeste cafeeiro, a transição para o trabalho livre
percorreu dois caminhos. O projeto dos cafeicultores do Rio de Janeiro, Minas Gerais e
Espírito Santo que se manteve fiel à proposta de abolição gradual do trabalho escravizado,
como havia sido posto pela lei de 1871 (do ventre livre), tinha como um dos principais

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objetivos protelar ao máximo a abolição do trabalho escravizado. O outro projeto, dos
cafeicultores do oeste paulista, que começaram a abandonar a proposta de 1871, em fins da
década de 1870, era em favor do projeto imigrantista.
​Na intervenção de Martinho Campos, um defensor das propostas dos cafeicultores de
Minas, do projeto de abolição gradual do trabalho escravizado, de outro o projeto Alencar
Araripe apontando para uma terceira via de transição do trabalho escravizado para o trabalho
livre no Brasil. Esse projeto representava as aspirações do setor dominante das Províncias do
Norte em crise, é partir desses pressupostos que analisarei essas intervenções na discussão do
projeto.
​Martinho Campos criticou o núcleo do projeto, o que havia de mais importante para
consolidação do trabalho livre, que já vinha sendo largamente usado nas províncias do Norte,
o artigo 1º, que garantia a regularidade da força de trabalho, e os artigos 9º e 10º, que
isentavam do recrutamento militar os trabalhadores que tivessem contrato de locação.
​As objeções de Martinho Campos eram feitas em relação, ao principal objetivo do projeto,
a subordinar a população livre-pobre aos grandes proprietários. Vejamos como ele se
posicionou em relação ao artigo 1º, que determinava a pena de prisão de 5 a 20 dias para o
trabalhador que desrespeitasse as determinações contratuais:

“Não esqueça a câmara que aqui o locador é um miserável jornaleiro que contrata
com um homem relativamente poderoso e eu não conheço a necessidade desta intervenção da
lei no presente caso.”

​Noutro trecho, Campos reforçou seu posicionamento ao afirmar que:

“O locatário faz o contrato de serviços, se não adiantou dinheiro não sei porque
obrigará o jornaleiro que não recebeu salários; se os recebeu já há disposição de lei que o
obriga.”

​Concluindo a análise sobre o artigo 1º, Campos tenta inviabilizar a proposta dos grupos
dominantes da Província com um argumento liberal clássico ao afirmar que:

“Eu entendo, sr. Presidente, que esta matéria não precisa de lei: que as
necessidades obrigarão suficientemente os pobres a trabalhar; que as necessidades e o
interesse recíproco os leva locador e locatário, a chegarem a acordo. ”

Isto é, na perspectiva de Campos, as leis de mercado seriam suficientes para fazer


com que trabalhador e patrão chegasse a um termo comum. Campos fazia de conta que o
Brasil era um país em que havia um mercado de trabalho constituído e a escravidão era
apenas um detalhe. Em verdade a argumentação de Martinho Campos tinha como principal
objetivo prolongar ao máximo a transição do trabalho escravizado para o trabalho “livre” no
Brasil. Ao aprovar uma proposta dessas possibilitava que um setor ponderável da classe
dominante agrária de regiões, como as províncias do norte, que haviam vendido boa parte dos
escravizados, através do tráfico inter-provincial, construísse uma terceira via para a transição
que era recorrer ao braço livre nacional, proposta amplamente discutida e posta em prática na
província do Ceará desde as primeiras décadas do século XIX, mas, sem sobra de dúvida
ganhou força a partir de 1850 como examinamos nos capítulos anteriores.
​Martinho Campos ao analisar o artigo 2º, desenvolveu a mesma linha de raciocínio
afirmando que se o projeto fosse transformado em lei, obrigaria a população livre/pobre a se
submeter ao trabalho regular, na medida em que dava aos Juízes de Paz e de Direito poderes
excessivos, que era um dos trunfos no projeto de setores agrários das províncias do norte. Os
jornais da província do Ceará, na segunda metade do XIX, ao debater sobre as saídas
possíveis para resolver a escassez de braços descartavam a imigração estrangeira, afirmavam
que o trabalho escravizado estava em franco declínio e a saída era o trabalho livre nacional.
Martinho Campos ao criticar as bases de sustentação procurava inviabilizar aspectos que eram
cruciais para viabilizar as propostas dos grupos dominantes locais:
“Tenho muitos escrúpulos a respeito deste auxilio à lavoura. Isto dá um arbítrio
imenso aos juízes de paz e direito, tratando da população pobre e desvalida.”

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​Campos fez uma comparação entre os artigos 2º e 4º, que determinavam as penas no caso
de descumprimento do contrato para o trabalhador e para o proprietário respectivamente,
demonstrando como o tratamento era desigual:

“O rico que toma um alugado tem ação sumária contra ele para sujeita-lo ao
serviço com pena de prisão por até vinte dias, dá-lhe em compreensão no artigo 4º o
executivo para haver o seu salário. ”

​A posição adotada pelo deputado Martinho Campos não deve ser interpretada como uma
defesa dos interesses do pobre-livres, mas de uma disputa em curso no seio da classe
dominante agrária sobre qual o projeto deveria prevalecer na transição para o trabalho livre no
Brasil, e as ditas províncias do norte, no contexto, era uma região secundária, a área estava
açucareira em crise e a atividade algodoeira era algo incipiente frente a pujança da
cafeicultura do sudeste e essa fração da classe dominante não poderia colocar em risco o
projeto hegemônico representado pelo sudeste. A crítica de M. Campos tornou-se mais
contundente em relação aos artigos 9º e 10º, que tratavam da isenção para o recrutamento
militar, ao afirmar que:

“Eu sei de delegados e inspectores de quarteirão fazerem roças e manterem


culturas com o trabalho gratuito dos pobres. Isto na província do Rio de Janeiro, (...) e outros
lugares. Nas épocas de recrutamento, então não falemos o pobre em geral trabalha de graça.”

​Esse era um mecanismo essencial que estava presente em todos os debates, ao longo da
segunda metade do XIX no Ceará, quando se tratava de regulamentar o trabalho dos pobre-
livres e Campos tenta destruí-lo com o argumento primeiro: no Rio de Janeiro, onde estava
situada a sede do governo imperial, essa medida resultava em arbítrio como não seria em
outras províncias. Essa era uma das pedras de toque para atrair o pobre-livre a se submeter ao
trabalho regular e disciplinado a retirada dessa proposta era esvaziar mais ainda as pretensões
da classe dominante local. Noutra passagem, quando Campos refere-se especificamente ao
artigo 9º do projeto, mais uma vez reafirma seu ponto de vista, de que esse era um mecanismo
para submeter a população pobre aos grandes proprietários:

“Um artigo do projeto dá a cada fazenda dez locadores de serviços, e portanto dez
conscritos isentos do serviço militar (…). Não fica ninguém (…) e declaro a V. Excia que
todo o mundo terá hoje trabalhador de graça, menos quem tiver escrúpulo de comer o suor do
povo gratuitamente; será o resultado do projeto se for lei.”

​Campos chegou a uma conclusão, a partir da qual justificou o seu voto contrário ao
projeto: era desnecessária a regulamentação das relações de trabalho, pois o próprio mercado
se encarregaria disso. Esse era um pressuposto básico do liberalismo e Martinho Campos era
membro do Partido Liberal. Um outro aspecto, que deve ser levado em conta para
compreendermos o posicionamento de M. Campos contra o projeto, era o fato deste ser um
projeto apresentado por parlamentares do Partido Conservador, que estava no poder.
​No entanto, é importante ressaltar que para os cafeicultores de Minas Gerais, do Rio de
Janeiro e Espírito Santo era fundamental postergarem ao máximo a abolição do trabalho
escravizado; e o projeto Alencar Araripe, ao propor a regularização do trabalho livre,
colocaria em risco o projeto de abolição gradual. Este nos parece o aspecto fundamental para
explicar a posição de Martinho Campos.
​Na defesa do projeto, em 1875, Alencar Araripe, mais uma vez, usou como principal
argumento, a necessidade de colocar à disposição da agricultura, da indústria e dos serviços
domésticos, uma força de trabalho regular:

“Sr. Presidente, discutimos um projeto cujo intento é regular um serviço de grande


importância. Necessitamos de braços para a lavoura, de operários para a indústria, e de
criados para o trabalho doméstico. As relações que daí formão entre os cidadãos acham-se

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mal definidas pela atual legislação: entre o locador de serviços e o locatário nada é firme e
seguro; reina completo arbítrio. O presente projeto vem suprir a lacuna.”

​Mais uma vez, Araripe reforça o argumento da necessidade de uma forma de trabalho
regular e abundante o que era uma questão fundamental para a província do Ceará, apesar de
nesse contexto a agricultura para exportação já está em crise, principalmente o algodão:

“A lavoura lucrará com isto, assim como a indústria, assim como as famílias.
Contratando serviços, os lavradores estarão certos de poder realizar as suas
plantações e tirar as suas safras; o fabricante contará com operários para a laboração de suas
fábricas, as famílias terão certos os serviços de que necessitam.”

​Alencar Araripe, prosseguindo na mesma linha de argumentação, procurou demonstrar o


que impossibilitava a utilização do trabalhador livre nacional era a falta de leis. No entanto,
apesar da alusão à lavoura nacional, Alencar Araripe reproduz uma argumentação que era
típica dos grupos dominantes Provinciais:

“Em um país, onde a agricultura faz a base principal da nossa economia social, é
de suma importância cuidar dos meios de dar braços à lavoura. Hoje os nossos agricultores
não buscam com empenho trabalhadores na classe operaria do país porque não contão com
garantia alguma: eles sabem que se ajustarem trabalhos com o operário não podem contar
com os seus serviços por tempo certo. Embora hajam ajustes, o operário de um momento para
outro abandona o trabalho, e deixa o proprietário baldo de prosseguir em seus serviços.”

​Analisaremos como Araripe vai se defender das críticas ao artigo 1º, que determinava a
pena de prisão para o trabalhador que não cumprisse o contrato. Alencar Araripe parte do
pressuposto de que deve haver igualdade entre as partes envolvidas no contrato. Para o autor,
o proprietário apresentava como garantia os seus bens, aos quais o trabalhador pode recorrer,
no caso do proprietário se recusar ao pagamento dos salários mas, o trabalhador, no
argumento do deputado, só tem a vida e a pena de prisão seria a garantia o cumprimento do
contrato:

“Na confecção do projeto considerei que a primeira vantagem nos contratos é a


igualdade entre as estipulantes. Ora, ninguém pode duvidar que o proprietário exibe nos seus
bens todos os meios de garantir o locador, o qual pode por esses bens haver o pagamento do
salário; mas o proletário, que deve a prestação dos serviços ajustados, pode a todo momento
abandonar esse serviço sem deixar ao locatário meio algum de faze-lo cumprir o seu dever. O
meio de remediar o mal é procurar criar garantias a favor daqueles que hoje a não encontrão.”

​Mas o trabalhador, como garantiria o cumprimento do contrato? Para Alencar Araripe, só


havia duas formas de como garantir o seu cumprimento:

“As garantias para as obrigações civis são de dous gêneros: a comum e ordinária é
a que nasce da propriedade, a outra, que somente deve admitir-se na ausência desta, é que
estabelece sobre a pessoa. É regra de direito que quem não garante com a propriedade a
execução das obrigações civis a deve garantir com a pessoa .”

​A pena de prisão surge como um instrumento legal e eficaz para garantir uma força de
trabalho regular e disciplinada numa Província em que, apesar da população livre/pobre, que
era a quem o projeto atingiria, ter acesso aos meios de produção, não tinha a posse legal,
restando, nesse caso, de acordo com o projeto, a pessoa como garantia.
​Alencar Araripe concentrou a sua defesa na necessidade de estabelecimento de
instrumentos jurídicos capazes de assegurar uma força de trabalho regular. Além do mais, de
acordo com Araripe, não era nova no país, pois as leis de 1830 e 1837 sobre a locação de
serviço já usavam esses mecanismos para obrigar o trabalhador a cumprir o contrato:

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​“Não é, pois, novo o gênero de garantia aquela que o projeto estabelece em
favor do locatário, quando determina que se o locador fizer um contrato e depois não cumprir
as obrigações a que se sujeitou, (...) seja compelido pela prisão a presta-lo.”

​A seguir, mais uma vez, Alencar Araripe ressaltava a importância da pena de prisão para
garantir a regularidade da força de trabalho:

“Estabelecida a pena de prisão contra o locador recalcitrante aos seus deveres, o


locatário pode contar com o cumprimento do contrato que fizer, e não ficará à mercê da
vontade e mero arbítrio do locador.”

​Finalmente, Araripe justifica a necessidade de uma nova ordenação jurídica, argumentando


que as ordenações ou leis de 1830 e 1837 eram inexequíveis e não correspondiam às atuais
circunstâncias do país:

“Nem estas leis, nem as disposições das nossas ordenações, satisfazem as nossas
atuais necessidades.
A lei de 13 de setembro de 1830 só tem aplicação quando há adiantamento de
salários; a lei de 11 de outubro de 1837 é concernente aos colonos; as providências das
ordenações são minguadas e inexequível. A ordenação e as duas leis citadas estão fora do uso,
porque não correspondem às atuais circunstancias do país.”

A posição de Alencar Araripe era semelhante as defendidas por outros


representantes do Nordeste (províncias do Norte) como já fiz menção ao congresso agrícola
do Recife de 1878. As evidências sugerem que esta posição estava de acordo com as
proposições de outros representantes do Nordeste no que diz respeito à lavoura e sobre a
necessidade de organização do trabalho livre nacional. Examinaremos a discussão sobre o
auxílio à lavoura, que ocorreu a partir de 1877 na Câmara dos Deputados, contexto da seca de
1877-1879. A posição adotada pelo deputado José Monte, representante da Província de
Sergipe, alinhava como principal perspectiva o uso da coerção, para obrigar os “vadios” se
transformarem em homens laboriosos, com medida compensatória, como também havia sido
apresentada no Ceará a partir de 1850, a isenção do recrutamento militar:

“Ao temor do castigo deve aliar-se a esperança de recompensa para os vadios que
transformarem-se em homens laboriosos e locarem seus serviços por um certo número de
anos à grande lavoura. Essa recompensa deve consistir na isenção do alistamento para o
serviço do exército e armada em tempo de paz.”

​No âmbito dessa discussão, José Angelo, Deputado pela Província de Alagoas, ao se
referir à “escassez” de braços fez proposições que reforçam o que temos afirmado sobre a
consciência que a classe dominante regional tinha, de que a saída, para esta área, era recorrer
ao trabalhador livre nacional:

“A aquisição de braços por meio da emigração estrangeira é questão complexa e


difícil, tão mal sucedidos os empreendimentos feitos, precários e nulos os resultados
obtidos(...).”
É assunto de mais séria meditação sob suas diversas relações, não sendo, de
desprezar duas hipóteses – ainda não estudadas – a dotação de braços às atuais propriedades
rurais – para que se vão preenchendo os claros deixados pela extinção dos atuais – e adoção
de expedientes indiretos, e incentivos que indução a população livre do país a se prestar ao
serviço das ditas propriedades.”

​Também em relação a imigração os argumentos são idênticos aqueles feitos na imprensa


provincial do Ceará e, a conclusão era também a mesma. Isto é, a solução estava no uso do

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braço livre nacional.
No mesmo contexto dois anos após, 1879, teve início a discussão sobre a
importação de trabalhadores chineses, mais uma vez ficava patente a similitude dos projetos
defendidos pelos grupos dominantes regionais sobre a organização das relações de trabalho
como se explicitava, mais uma vez, as declarações de José Monte, Deputado pela Província
de Alagoas, ao afirmar que:

​“A grande lavoura do norte nada tem que esperar dos colonos vindos para o
Brasil (...). Resta-nos só esperar do braço escravo e do livre nacional; e em minha opinião há
muito que esperar deste último (...).”

​O deputado vai reiterar a necessidade da intervenção coercitiva do Estado para obrigar os


pobre-livres a se submeter as relações de trabalho regular e disciplinado. Tese que, do ponto
de vista dos grupos dominantes regionais, era fundamental para organizar relações de
trabalho:

“Mas para isso é preciso que os poderes públicos preocupem-se seriamente com
os meios para coibir a vadiação e a ociosidade para forçar esses braços a procurarem o
trabalho (...).”

​O que se constata é que havia acordo dos representantes, das províncias do Norte, sobre as
possibilidades para suprir a força de trabalho devido o rápido declínio do trabalho
escravizado. A defesa do representante de Alagoas, nos pontos mais importantes, guarda
semelhanças com aqueles apresentados no projeto Alencar Araripe e nos debates feitos pela
imprensa local como também no congresso agrícola de Recife em 1878. Para Alencar
Araripe, como para os outros representantes da região, a solução para o suprimento de braços
residia na mobilização do trabalhador livre nacional através do poder coercitivo do Estado e
quando possível articulado a medidas compensatórias como a isenção do recrutamento. No
entanto, o projeto aprovado em 1879 é bem diferente da proposta de Alencar Araripe, que
havia sido apresentada em 1869. Na verdade, a proposta aprovada representou uma vitória
dos interesses dos cafeicultores do Oeste paulista, ao enfatizar como um dos principais
aspectos a regularização do trabalho do imigrante.

Considerações Finais

Uma das conclusões a que se pode chegar, sobre a organização de relações de


trabalho com base na população pobre-livre em fins do século XVIII e ao longo do seguinte,
esteve relacionado com o desenvolvimento da agricultura voltada para o mercado. O primeiro
processo de incorporação da população livre-pobre na capitania do Ceará ocorreu
inicialmente em fins do século XVIII devido o desenvolvimento da produção de algodão em
sintonia com a revolução industrial e no contexto da escravidão. No período teve início as
primeiras experiências com moradia de condição, trabalhadores esporádicos (jornaleiros)
acompanhado de uma legislação repressiva sob o discurso de combate a vadiagem. Além do
mais, a forma como se deu a estruturação fundiária, marcadamente concentradora, foi algo
estruturante e um dos instrumentos essenciais para a garantir a subordinação da população
pobre-livre. Das políticas de combate a vadiagem além dos bandos, legislação extraordinária,
que foi largamente usada no período, também fez parte desse arsenal chamada polícia do
passaporte, instrumento para coibir os pobre-livres ao trabalho regular e disciplinado. Esse
arsenal teve um uso mais efetivo, no início do século XIX, no governo do governador
Sampaio quando a produção de algodão chegava ao auge e, toda a ação governamental era
para forçar a produção agrícola, para produção de alimento e a agricultura de exportação.
Nesse contexto, pode-se concluir que no final do século do século XVIII havia
uma clara identidade de interesses entre as determinações ultramarinas e os grupos de
interesses,(grandes proprietários de terra), que se estruturava na capitania. As ações dos
governantes, representantes da coroa portuguesa, se dava em consonância com as aspirações
e práticas executadas no âmbito da capitania por esse grupo. Todo um conjunto de leis para
subordinar os pobre-livre ao trabalho regular e disciplinado era um exemplo do que estou
afirmando. No entanto, não é possível esquecer que esse era um período marcado por uma

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profunda crise da combalida economia metropolitana e as rendas geradas a partir do algodão,
também vai irrigar os seus cofres metropolitano e fazer a riqueza desse grupo agrária local.
Na segunda parte do estudo farei a análise sobre segundo momento de
incorporação a província ao mercado internacional, no contexto da transição do trabalho
escravo para o trabalho livre no Brasil. Os estudos até então realizados priorizavam como o
processo ocorreu no sudeste cafeeiro e, na maioria das vezes apresentam problemas de
generalizações, em que estudos de casos são apresentados como sendo o processo geral de
transição no Brasil.
Essa parte do estudo priorizou recuperar as propostas dos grupos dominantes na
Província do Ceará para organizar o de Trabalho “Livre”, uma área representativa do
complexo pecuário/algodoeiro, dando luz a outros processos que ocorreram para além do
sudeste cafeeiro.
​Como analisamos, neste período, a situação se transformou consideravelmente
com a hegemonia da agricultura comercial, fazendo-se necessária, ainda mais, uma força de
trabalho regular e disciplinada. Uma das estratégias da classe dominante provincial mas,
também, uma proposta pensada no âmbito das províncias do Norte, era regulamentar as
relações de trabalho entre a população livre/pobre e os grandes proprietários, e para tal a
pedra de toque era o uso de políticas coercitivas patrocinada pelo Estado articulada, quando
possível, com políticas compensatórias com a isenção do serviço militar (recrutamento).
​No entanto, além da intervenção coercitiva do Estado, era apontada como
mecanismo de “convencimento” a atuação da Igreja, principalmente através das missões. Ao
longo, principalmente, da segunda metade do século XIX, se multiplicaram as ações
missionárias dos capuchinos italianos, mas, também de padres seculares como o padre
Antonio Ibiapina.
A organização de relações de trabalho livre, nesse caso em oposição ao trabalho
escravizado, não deve ser analisada como o processo clássico europeu, do qual uma das
primeiras decorrências foi a destituição do produtor do direto dos meios de produção. Na
Província do Ceará, o que se percebe é que a estruturação do trabalho “livre” significou, antes
de mais nada, a regulamentação das relações já existentes entre a população livre/pobre e os
grandes proprietários. No entanto, as regras estabelecidas para possibilitar o acesso dos
homens livres/pobres à terra, estavam sob controle dos grandes proprietários. Nesse sentido é
importante ressaltar que, apesar da subordinação da economia provincial ao movimento mais
geral da economia capitalista, não se percebe no âmbito local a reprodução do processo que
estava ocorrendo na Europa. A subordinação ocorria fundamentalmente na determinação do
que produzir.
Finalmente, fazemos referência a dois aspectos que são fundamentais para
compreendermos a organização do trabalho livre na Província do Ceará, não significou a
transição do trabalho escravizado para o trabalho assalariado; foi fundamentalmente a
estruturação de mecanismos para submeter a população livre/pobre ao trabalho regular e
disciplinado. O processo de transição, em que o trabalhador livre nacional era hegemônico,
fez com que, na Província do Ceará a partir de 1850, houvesse a antecipação de uma
discussão que no âmbito nacional teve início em fins da década de 1870: como organizar o
trabalho tendo como força de trabalho da população livre-pobre. No entanto, apesar dessa
antecipação, no Ceará, as relações de trabalho “livre” não se estruturaram tendo por bases
relações de trabalho capitalista. O que se percebe da análise das propostas dos grupos
dominantes locais é que o seu principal objetivo era se apropriar da força de trabalho e do
trabalhador. Em outros termos, as relações que se estabeleceram eram tipicamente pré-
capitalistas, tendo como uma das características principais a baixa monetização, pois os
trabalhadores executavam suas tarefas de graça ou recebiam os “salários” em produtos.
Portanto, recorrer à força de trabalho da população livre-pobre não significou
necessariamente, na Província do Ceará, a transição para relações trabalho capitalista. Ao
contrário: o que houve foi a reiteração de uma mentalidade escravista. Não é por acaso que no
Ceará, em muitas áreas do campo, permanecem, até os anos 1970, relações de trabalho
tipicamente pré-capitalistas. E os proprietários rurais mantinham posições estratégicas no
poder Estadual.

BIBLIOGRAFIA
Fontes Primárias

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Ceará (1868)
Cearense (1846-1880)
Constituição (1865-1876)
Pedro II (1867,1874)
3) Publicações Oficiais
- Relatórios do Presidente da Província do Ceará (1837-1839-1849-1851-1858-1860-1865-
1867-1871-1875).
-Relatório e Catálogo da Exposição Agrícola Industrial do Ceará (1866). -Leis provinciais do
Ceará – Regulamento No. 38 de 01 Jan 1858/
Idem – Regulamento ​No. 40 de 03 Nov 1858.
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Câmara dos Deputados, 07 Ago 1869 (Projeto de Locação de Serviços) Idem, 20 Ago 1875
(Discussão do projeto No. 93 de 1874 sobre locação de serviços) Idem, 20 Jun 1877 (parecer
da Comissão de Agricultura da Câmara)
Idem, 17 Set 1879 (Intervenção de Alencar Araripe)
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