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D O OU RO
Laura de Mello e Souza
DE S C L A S SI F IC A D O S
D O OU RO
1 , Entrevista dada a Luís Carlos Villalta, Renato Pinto Venâncio e Fábio Faversan
para a LPH Revista de História, n.5, Ouro Preto: UFOP, 1995, p.5-12. Entrevista dada
a José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego em Conversas com historiadores
brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, p.363-82 (ver sobretudo p.373-4).
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munity study in colonial Brazil. Tese de doutorado, Universidade de Yale, 1987. UMI
Dissertation Services, 1994. Laird W. Bergard – Slavery and the Demographic and
Economic History of Minas Gerais, Brazil. 1720-1888. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1999.
7 , Furtado, Júnia Ferreira, O livro da Capa Verde. O Regimento Diamantino
de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo:
Anablume, 1996. Mais recentemente, ver, sobre as relações entre o âmbito público
e o privado do poder político na capitania, Maria Veronica Campos, Governo de
Mineiros – de como meter as Minas numa moenda e beber lhe o caldo dourado –
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,,,
, AGR ADECIMENTOS
1. Arquivos
APM \ Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte. Foram utiliza-
dos códices (= cód.) de duas seções:
SC \ Seção Colonial
CMOP \ Câmara Municipal de Ouro Preto 19
AEAM \ Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Mariana.
2. Publicações
ABN \ Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
DH \ Documentos Históricos, Rio de Janeiro.
DI \ Documentos interessantes para a História e Costumes de São
Paulo, São Paulo.
HAHR \ Hispanic-American Historical Review.
RAPM \ Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte.
RBEP \ Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte.
RH \ Revista de História, São Paulo.
RHMC \ Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris.
RIHGB \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro.
RIHGMG \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Ge-
rais, Belo Horizonte.
RSPHAN \ Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, Rio de Janeiro.
INTRODUÇÃO
, PROBLEMAS E OPÇÕES
Marginalités au XVI Siécle, Paris, 1973; Olwen H. Hufton, The Poor of Eighteenth
Cenury France – 1750-1789, Oxford, 1974; Pierre Deyon, Le Temps des Prisions, Paris,
1975; Guy-H. Allard et al., Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d.;
Douglas Hay et al., Albion's Fatal Tree – Crime and Society in Eighteenth Century
England, Londres, 1975; Bronislaw Geremeck, Les Marginaux Parisiens au XIV et
XV siècles, Paris 1976; Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval,
Paris, 1976; Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978;
vários, Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979. Há ainda inúmeros
artigos nas revistas especializadas.
6 , G. Allard (org.), Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d. Vários,
Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 10-18, 1979.
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8 , Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo, (1942), 13.a ed., São Paulo,
1973. Especialmente a parte intitulada Vida Social .
9 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala 9a ed. Rio de Janeiro, 1958, p.25.
10 , Emília Viotti da Costa, Primeiros povoadores do Brasil , em: Revista
de História, n. 27, 1956, p.3-22. Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2a ed., Porto
Alegre, 1974.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
14 , Ibid, p.192.
15 , Cf. J. J. Da Cunha de Azeredo Coutinho, Discurso sobre o estado atual
das minas do Brasil (1804), em: Obras economicas..., introd. de Sérgio Buarque de
Holanda, São Paulo, 1966, p.187-229. Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da
capitania de Minas Gerais , em: Revista do Arquivo Público Mineiro, v.II , 1897. À
p.673, o seguinte trecho: “A capitania de Minas Gerais, que fez as grandes riquezas
dos felizes Reinados do Senhor D. João o 5º e do Senhor D. José 1º de feliz memória,
se acha em estado de pobreza, e de miséria; a abundancia das suas minas se fez
sensível no abatimento do valor da moeda da Europa inteira, foi inveja de muitas
nações, e este País se acha agora num extremo de miséria”.
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dava notícia de dois navios do Porto “com muita gente, que não se
deve apartar deles, antes voltar para o reino, mas o seu desígnio é
passar para as Minas, o que intentaram fazer por mil modos”.21 Na
expressão já tão conhecida de Antonil, “a mistura” foi “de toda a
condição de pessoas”, para desespero das autoridades, que tenta-
vam, a todo custo, refrear a onda migratória.22 Em 1709, era 30 mil o
número das pessoas ocupadas em atividades mineradoras, agrícolas
e comerciais, sem falar dos escravos vindos da África e das zonas
açucareiras em retração.23
Com os olhos voltados para o ouro, improvisando alojamentos
numa região deserta – até então, país das “serranias impenetráveis,
dos rios enormes, das riquezas minerais, das feras e dos monstros,
uma espécie das Hespéridas antigas guardadas por dragões” –,24
pode-se imaginar a fome que assolou essas populações. Os anos de
1697-98 e 1700-01 foram os das maiores crises, quando, ainda na
38 imagem popular de Antonil, os mineiros morriam à mingua “com
uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento”.25 A 20
de maio de 1698, em carta ao rei, escrevia Artur de Sá e Menezes,
governador da capitania do Rio, São Paulo e Minas:”... é sem dúvi-
da que rendera muito grande quantia, se os mineiros tiveram mi-
nerado este ano, o que não lhes foi possível pela grande fome, que
experimentaram, que chegou a necessidade a tal extremo, que se
Faria foi para Guaratinguetá, Antonio Dias foi para São Paulo.
Passou-se, a partir de então a cultivar roças conjugadas às lavras.28
Procurou-se também atentar mais cuidadosamente para o abasteci-
mento da capitania, suprido pela Bahia – onde eram numerosos os
currais – e, a partir da construção do Caminho Novo – terminado
em 1725 –, pelas capitanias do Sul.29 A fome nunca mais chegou a
ter tal alcance, pois a concentração de riquezas e a crescente estra-
tificação social fizeram com que ela voltasse a atuar no seu círculo
costumeiro: o da pobreza.
Entretanto, apesar de superado parcialmente o fantasma da fome,
apesar da imagem de uma sociedade rica, eufórica e democrática
que chegou até nós pelas festas barrocas, tudo indica que as coisas
se passaram diferentemente. Por certo, existiram nababos, e a histo-
riografia tradicional fixou a imagem do capitão-mor Antonio Alves
Pereira presenteando a Viscondessa de Condeixa – esposa do gover-
40 nador da capitania em 1808 – com uma terrina de canjica aurífera;
do contratador dr. João Fernandes de Oliveira mandando construir
um lago com navio e tudo para Chica da Silva que não conhecia o
mar.30 Mas, em proporção aos que se viam privados dela, a riqueza
era distribuída por um número limitado de pessoas.31 A sociedade
era pobre, e creio poder dizer que as festas eufóricas do século XVIII
tenham sido grandemente responsáveis por uma manipulação “au-
toritária” da estrutura social na medida em que uma das visões pos-
síveis da sociedade foi imposta como a visão da sociedade, a que
mais acertadamente refletia a estrutura social – no caso, a visão de
riqueza e de opulência.
Dentre os historiadores mineiros, talvez tenha sido Eduardo Friei-
ro o primeiro a formular conscientemente a crítica a este equívoco,
num artigo intitulado “Vila Rica, Vila Pobre”: “Uma das patranhas
da nossa história, tal como usualmente se conta nas escolas, é a da
pretendida riqueza e até mesmo opulência das Minas Gerais na épo-
ca da abundância do ouro. Em boa e pura verdade nunca houve a
tão propalada riqueza, a não ser na fantasia amplificadora de escri-
tores inclinados às hipérboles românticas. (…) A realidade foi bem
diversa. Nem riqueza, nem grandezas. Apenas o atraso econômico
e a pobreza, como herança dum desvairamento fugaz, próprio de 41
todas as Califórnias”.32
Na sociedade mineradora – como, de resto, nas outras partes da
colônia –, eram privilegiados os elementos que tivessem maior nú-
mero de escravos. Mais da metade das lavras estavam concentradas
nas mãos de menos de 1/5 dos proprietários de negros; o próprio
critério de concessão de datas assentava-se na quantidade de cati-
vos possuídos, as maiores extensões indo para as mãos dos grandes
senhores. Para estes, o luxo e a ostentação existiram de fato – não
como sintomas de irracionalidade, conforme disseram muitos, mas
como sinal distintivo do status social, como instrumento de domi-
nação necessário à consolidação e manutenção do mando. Acumu-
lação de escravos e luxo aparecem, aqui, como características de
32 , Eduardo Frieiro, Vila Rica , Vila Pobre , em: O Diabo na Livraria do Cônego
– Como era Gonzaga? E outros temas mineiros, Belo Horizonte, 1957, p.164. Numa
geração mais recente, Sylvio de Vasconcellos O ouro proclama riquezas, mas
os mineradores continuam pobre s” – Mineiridade. Ensaio de caracterização,
Belo Horizonte, 1968, p.30.
33 , O capitalista experimentado controla o seu consumo pessoal. Ja o escravis-
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48 , Ver nas tabelas (p.65-70) que o período de 1733 a 1750 representa o ápice da
produção das Minas Gerais. No cômputo geral, 1750-1755 representaria o período de
maior produção devido ao ouro goiano. Os dados e as tabelas são de Virgílio Noya
Pinto, O ouro brasileiro e o comércio anglo-português, São Paulo, 1979, p.71-5.
49 , O episódio é narrado, entre outros, pelo desembargador Teixeira Coelho,
ob.cit. p.472.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO
e fora muito útil que Deus acabara, e se fosse no nosso tempo, fica-
riam este restante que na falta com mais algum sossego”.51 Antonil
também ressaltaria o aspecto negativo das minas, prenunciando a
fisiocracia: “... e depois de descobertas as minas de ouro, que ser-
viram para enriquecer a poucos e para destruir a muitos, sendo as
minas do Brasil os canaviais e as malhadas, em que se planta o ta-
baco”.52
Em meados do século, Alexandre de Gusmão apontava o engodo
das minas, recriminando Portugal de “correr ignorantemente em
seguimento da riqueza imaginária das Minas de ouro, que nos tem
arruinado e empobrecido, quando nos pareceu encontrarmos ai
toda a nossa fortuna”.53 Nota-se em todos estes textos a preocupação
com os males que o “pernicioso metal” acarretava para a Metrópole
e, secundariamente, para a sua colônia: “... as Minas são a ruína de
Portugal, e o ouro a perdição das Minas “, observava o autor anôni-
50 mo do Roteiro do Maranhão, hierarquizando os danos e, ao mesmo
tempo, atrelando Metrópole e colônia na desgraça comum.54 Uma e
outra se prejudicavam com o engodo do ouro.55
A percepção inicial de que a Metrópole se prejudicava pensando
se beneficiar desdobra-se no desvelamento gradativo da verdadeira
E as esmeraldas,
Minas, que matavam
de esperança e febre
e nunca se achavam
e quando se achavam
eram verde engano?”
As impurezas do branco, p.109
118 arrobas em 1754, máximo percebido, para 35 apenas, exatamente 50 anos depois,
não ocorreu sequer uma só vez à administração outra explicação que a fraude”. Caio
Prado Jr., História Econômica do Brasil, 11ª ed., São Paulo, 1969, p.61. Os dados de
Caio Prado Jr. Não me parecem corretos; creio que o autor toma a produção total
da colônia pela produção das Minas Gerais, onde o ano de maior arrecadação foi
o de 1738.
60 , Ponderações da Junta da Fazenda sobre os meios de se ressarcir o
prejuízo da Real Fazenda com a arrecadação do quinto do ouro , RAPM ,
v. VI , 1901, p.167.
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descobrir sem grande risco das fábricas e sem muita perda de servi-
ços pela falibilidade dos resultados”.64
Há memórias e documentos da época onde a contestação do ex-
travio como categoria explicativa da decadência aparece associada
à falta de braços: assim em Eschwege, assim no Conde da Palma.
Num terceiro nível explicativo, surge a ideia de que a mineração
é ilusória porque, na realidade, não é trabalho. Este, por sua vez,
configura-se claramente como praga bíblica: penoso, demorado, di-
fícil, é provação necessária para a obtenção final da felicidade; “uma
riqueza achada de repente, e com facilidade, não nascida da indús-
tria, ou de trabalho”, será sempre perniciosa.65
Sendo atividade extrativa, o ouro sempre acaba, não é eterno,66
mas atrai os homens devido ao seu “caráter mais imediato, e de
primeira espécie”.67 Ninguém precisa encorajar os homens para a
atividade mineradora, pois “o natural instinto, de que nos dotou a
natureza, de caminharmos sempre pelo caminho mais curto à nos- 55
afirmar que “este país de Minas era riquíssimo, mas tudo quanto
produzia lhe levaram para fora, sem nele ficar cousa alguma...”.83
Segundo dissera ao tenente José Antonio de Melo, da Cavalaria
Paga da Capitania, Tiradentes considerava desgraçado o seu lugar
de origem “porque tirando-se dele tanto ouro e diamantes, nada lhe
ficava, e tudo saía para fora e os pobres filhos da América, sempre
famintos, e sem nada de seu”.84
Vinte anos após a Inconfidência, o viajante inglês Mawe regis-
trava a observação que lhe haviam feito os habitantes de Vila Rica:
84 , Ibid.
85 , Mawe, ob. cit., p.168-9.
86 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., p.197.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO
pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978, p.158, Michel Mollat cita, entre
outros, João de Friburgo, que “em nome da lei moral do trabalho, reprova os falsos
pobres, os válidos preguiçosos e vagabundos”. A esmola, que deveria ser tirada do
supérfluo, não deveria encorajar a preguiça.
3 , Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, Paris, 1976, p.72.
4 , A expressão é utilizada por Michel Mollat na obra já citada.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO
dos produtores, que se destinava a retirar do sistema seu sangue vital e provocar a
série de crises nas quais a economia feudal iria achar-se mergulhada nos séculos
XIV e XV. A fuga dos vilões que deixavam a terra muitas vezes assumia proporções
catastróficas tanto na Inglaterra quanto em outros lugares, e não apensa servia para
aumentar a população das cidades crescentes, como e principalmente no continente
contribuía para a continuação das quadrilhas de proscritos, da vagabundagem e
jacqueries periódicas”. – Dobb, ob. cit., p.64-5.
8 , Sobre essa fluidez das fronteiras, diz o historiador polonês Bronislaw Gereme-
ck: “... as pesquisas sobre criminalidade fazem parecer uma espécie de 'fronteira'
social, de franja da sociedade organizada, onde o trabalho se mistura com o crime.
A passagem para a marginalidade se realiza segundo um dégradé de cores; não exis-
tem barreiras entre a sociedade e suas margens, entre os grupos e os indivíduos que
observam as normas estabelecidas e os que as violam”. – Criminalité, Vagabon-
dage, Paupérisme: la Marginalité à l' Aube des Temps Modernes , em: Revue
d'Histoire Moderne et Contemporaine, XXI , julho-setembro, 1974, p.346.
Foi sobre esse contingente humano heterogêneo que incidiram
violentamente os esforços então empreendidos no sentido de gene-
ralizar a prática do trabalho: “O trabalho, reabilitado após ter sido
desprezado como consequência do pecado original, torna-se um dos
valores de uma sociedade que se lança no crescimento econômico, e
a partir do século XIII , as expressões vadio (oisif) e mendigo válido
tornam-se etiquetas injuriosas atribuídas e certos marginais”.9
“Tolerava-se o mendigo, mas odiava-se o vagabundo”, diz Mollar,
referindo-se a esse momento histórico em que começava a se esboçar
uma lei moral do trabalho.10 Definida como ausência de domicílio
ou como o morar em toda a parte, a vagabundagem e a itinerância
eram incômodas numa sociedade em que as relações pessoais ainda
tinham muito peso e para a qual o fato de o indivíduo não poder se
ligar a ninguém e por ninguém poder ser reconhecido eram sinais
extremos de isolamento.11 Elemento irregular e instável, carente de
vínculos, o vagabundo “trabalha às vezes, mendiga com frequência, 65
rouba se aparece a ocasião, e pode ser incidentalmente arrastado
para a criminalidade e delinquência, mas ele não é nada disso de
uma maneira estável”.12
9 , Jacques Le Goff, Les Marginaux dans l'Occident Médiéval , em: Les Mar-
ginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p.23.
10 , Mollar, ob.cit., p.299.
11 , A análise é de Mollat, ob.cit.
12 , Vexliard, ob.cit., p.220-1. No artigo já citado, Geremeck chama a atenção para
a extrema mobilidade existente nas sociedades pré-industriais, mobilidade essa que,
entretanto, é sempre regulamentada, obedecendo a trajetos pré-traçados: migrações
de companheiros e escolares, migrações camponesas ligadas aos grandes movimen-
tos de colonização, peregrinações. Nenhum desses movimentos apresentava perigo:
era a mobilidade não controlada ou individual que inquietava e ameaçava as socie-
dades tradicionais. Geremeck, ob.cit. E mais adiante: “Ao mesmo tempo em que a
sociedade pré-industrial, com seu corpo organizado, não pode tolerar o indivíduo
isolado, procurando enquadrá-lo em instituições e solidariedades corporativos, nos
laços de famílias, nas estruturas eclesiásticas – no que diz respeito a seus marginais,
ela se inclina a não suportar senão indivíduos sem ligações de grupos ou de solida-
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14 , Rui d'Abreu Torres, Vadiagem , em: Joel Serrão (org.), Dicionário da história
de Portugal e do Brasil, Porto, Iniciativas Editoriais, s.d., v. IV, p.239.
15 , Mollat, ob.cit., p.246.
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vadios, sem ofício nem senhor com que viviam, e sejam presos e
embarcados para o Brasil”.24
Já em pleno desenvolvimento do Império Colonial português, o
alvará de 1570, expedido sob o reinado de D. Sebastião, estabelecia a
diferença entre a pena administrada aos peões, que se caracterizava
pelo fato de poderem ser açoitados, e a destinada às pessoas de mor
qualidade, castigada muito frequentemente com o degredo. Isto não
quer dizer que os peões não fossem afetados pelo degredo, mas a re-
cíproca não era verdadeira: uma pessoa de mor qualidade nunca se-
ria açoitada; esta última categoria era degredada preferencialmente
para a África, ao passo que os peões eram expedidos para fora de
Lisboa, mas continuavam no país.25
As Ordenações Filipinas reforçaram, no Livro V, título 68, as dis-
posições que, trinta anos antes, fizera D. Sebastião:
70 Dos vadios. Mandamos que qualquer homem que não viver como se-
nhor, ou com amo, não tiver ofício, nem outro mester, em que trabalhe, ou
ganhe sua vida, ou não andar negociando algum negócio seu, ou alheio,
passados 20 dias do dia que chegar a qualquer cidade, vila ou lugar, não
tomando dentro dos ditos 20 dias amo, ou senhor, com quem viva, ou mes-
ter em que trabalhe e ganhe sua vida, ou se tomar, e depois o deixar, e não
continuar, seja preso e açoitado publicamente. E se for pessoa, em que não
caibam açoites, seja degredado para África por um ano.26
28 , Boxer, ob.cit., c. XIII : “Era comum que algumas semanas antes da partida
anual para as Índias, circulares oficiais forem enviadas a todos os corregedores da
Comarca lembrando-os de reunir e prender os criminosos efetivos ou potenciais, a
fim de que fossem sentenciados ao degredo para a Índia”. – p.314.
29 , Eric Williams, Capitalismo e escravidão, trad., Rio de Janeiro, 1975, p.14.
30 , Ibid, p.16-7.
31 , Ibid, p.19.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
38 , “Mas formaram-se aos poucos outras categorias, que não eram de escravos
nem podiam ser de senhores. Para elas não havia lugar no sistema produtivo da
colônia. Apesar disto, seus contingentes foram crescendo, crescimento que também
era fatal, e resultava do mesmo sistema da colonização. Acabaram constituindo
uma parte considerável da população e tendendo sempre para o aumento. O dese-
quilíbrio era fatal”. – Caio Prado Jr. ob.cit., p.360.
39 , Caio Prado Jr., ob.cit., p. 281.
40 , “Para este setor, não se pode nem ao menos falar em 'estrutura social', porque
é a instabilidade e a incoerência que se caracterizam, tendendo em todos os casos
para estas formas extremas de desagregação social, tão salientes e características
da vida brasileira e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização”. –
Caio Prado Jr., ob.cit., p.34. Em Circuito fechado, diz Florestan Fernandes: “Entre
esses dois extremos situava-se uma população livre de posição ambígua, predomi-
nantemente mestiça de brancos e indígenas, que se identificava com o segmento
dominante em termos de lealdade e de solidariedade, mas nem sempre se incluía na
ordem estamental. Onde o crescimento da economia colonial foi mais intenso, esse
setor ficava largamente marginalizado, protegendo-se sob a lavoura de subsistência
mas condenando-se a condições permanentes de anomia social”. Circuito fechado,
São Paulo, 1976, cap. A sociedade escravista , p.32.
pitão-do-mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à
produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio).
No Brasil, como no Ocidente moderno, o trabalho decente e hon-
rado é o que se relaciona à praga bíblica: “amassarás o pão com o
suor do teu rosto.” Mas há diferenças básicas entre a concepção de
desclassificado na Europa pré-capitalista e no Brasil colonial: lá, a
inadaptação a formas sistemáticas de exploração do trabalho pode
ser explicada pelo nascimento da sociedade capitalista que deses-
truturou o trabalho de caráter coletivo dos servos feudais; aqui, são
o escravismo e a necessidade da superexploração os principais res-
ponsáveis pelo aviltamento do trabalho, aviltamento esse que torna
impossível a compreensão e a persistência das formas primitivas
comunitárias e assistemáticas de trabalho, como foram a africana e
a indígena. Nas metrópoles e nas colônias, é o momento da gestação
do capitalismo; entretanto, apesar de complementares, conexas e até
mesmo indissociáveis, são diversas as formas com que se apresenta 77
em um e noutro ponto do mundo. É nessa unidade contraditória do
fenômeno que se explica a especificidade do processo histórico em
cada uma das partes.
A noção de trabalho vigente na colônia é importante para a com-
preensão de outra peculiaridade nossa: a extensão que entre nós
assume a expressão vadiagem e a categoria vadio. Mais do que na
Europa pré-capitalista, o vadio é aqui o indivíduo que não se insere
nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato,
a designação podendo abarcar uma enorme gama de indivíduos e
atividades esporádicas, o que dificulta enormemente uma definição
objetiva desta categoria social.
Atentando-se para algumas das conotações que a palavra assume
no trabalho do jesuíta Antonil, pode-se ter uma ideia dessa multi-
plicidade de acepções, aqui referentes a fins do século XVII e inícios
do século XVIII , já que a Cultura e opulência surgiu em 1711: “Para
vadios, tenha enxada e foices, e se se quiserem deter no engenho,
mande-lhes dizer pelo feitor que trabalhando, lhes pagarão seu jor-
nal. E, desta sorte, ou seguirão seu caminho, ou de vadios se farão
jornaleiros”.41 O vadio é aqui o indivíduo não inserido na estrutura
46 , Ibid, p.650.
47 , Das cartas do exmo. sr. Gomes Freire de Andrade , em RPHG , v. XVI ,
II , p.246
48 , Antonil, ob.cit., p.264.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
Brasil, este fato é particularmente sensível pelo caráter que tomara a colonização,
aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos, como veremos ao ana-
lisar a nossa economia, de uma conjuntura passageiramente favorável. Cultiva-se
a cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantará o algodão ou o café:
simplesmente oportunidade de momento...” – ob.cit., p.73. Há a esse respeito uma
bela passagem de Guimarães Rosa: “Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-giro
no vago das gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: O Zé -Zim,
o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: 'Zé-Zim, porque que
é que você não cria galinhas d'angola, como todo mundo faz?' 'Quero criar nada
não...' – me deu resposta: 'Eu gosto muito de mudar...'” – Grande sertão: veredas, 12ª
ed., Rio de Janeiro, 1978, p.35.
54 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, respectivamente p.331, 356 e 86.
55 , Aires da Mata Machado Filho, O negro e o garimpo em Minas Gerais, Rio de
Janeiro, s.d., p.32.
5 . E N T R E V I S TA A N E L S ON AGU I L A R
74 , A utilização dos vadios nessas funções foi, como já se disse, comum a toda
a colônia: “... essa população livre pobre representava uma espécie de 'argamassa
paramilitar', usada como um aríete na defesa das povoações, na penetração dos ter-
ritórios desconhecidos e na conquista de novas fronteiras” – Florestan Fernandes,
“A sociedade escravista”, em: Circuito fechado, São Paulo, 1976, p.33. Em são Paulo
também se aproveitaram desclassificados, conforme diz Sérgio Buarque de Holan-
da: “Em muitos lugares, tais elementos podiam ser aproveitados com vantagem, e de
fato o eram, na formação de corpos militares destinados à fronteira, na organização
de povoações novas, no desbravamento de sertões desconhecidos, como os de Ivaí
e Guarapuava. Mas nos distritos vizinhos do porto de embarque das monções, uma
grande parte do pessoal disponível tinha de ser absorvido no serviço das canoas”.
– Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2. Com os vadios da capitania formavam-
-se as tripulações das monções que partiam de Porto Feliz (então Araritaguaba)
para Cuiabá, e se fundo um capitão-mor daquela localidade, “Por isso esta gente
de alguma maneira devem ser respeitados (sic) por sua habilidade no trabalho do
A , Entradas , O devassamento do sertão das Minas e o estabe-
lecimento dos primeiros arraiais auríferos se fizeram sob o signo
do aproveitamento dos desclassificados sociais nas bandeiras que
entravam pelo mato. Antes mesmo de se procurar ouro no território
que depois ficou chamado Minas Gerais, Gabriel Soares, na última
década do século XVI , recebeu ordens reais para “tirar das prisões
os condenados a degredo, que fossem oficiais mecânicos e minei-
ros; a estes seria contado como da pena o tempo da expedição”75
Agostinho Barbalho Bezerra, que em 1664 foi encarregado pelo rei
do “descobrimento e entabolamento das Minas de Paranaguá”, no
então distrito do Rio de Janeiro, recebeu instruções semelhantes:
“E porque pode acontecer que pelas capitanias e sertões por onde
fizer jornada ao descobrimento das ditas minas andem algumas
pessoas retiradas por crimes, ou casos por que a justiça seja parte e
rio” – cit. p.72. Em Desterro, atual Florianópolis, havia carência de mão-de-obra por 91
ocasião da pesca das baleias, não bastando os lavradores pobres que então se faziam
jornaleiros: “Os trabalhadores voluntários não eram, todavia, suficientes por toda
parte. As armações recorriam, por isso, aos circeres, mobilizando sentenciados a
trabalhos forçados e até mesmo requisitavam ordenanças das milícias, no que o mo-
nopólio real das armações contava com a colaboração das autoridades. Sob ameaça
de prisão, também se recrutavam vadios, frequentadores de tavernas, motivo pelo
qual muita gente fugia ao se aproximar a temporada da captura da baleia”. – Jacob
Gorender, ob.cit., p.229.
75 , Aristides de Araújo Maia, Memória da província de Minas Gerais , em:
RAPM , v.VII , 1902, p.26.
76 , Traslados e excertos de alguns escritos com relação à empresa de
Agostinho Barbalho Bezerra para descobrimento das esmeraldas. Com
algumas observações e anotações – Provisão de 20-V-1664 em: RAPM , v.II ,
1897, p.531.
77 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p.429.
78 , Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos históricos, geográficos,
biográficos, estatísticos e noticiosos da província de São Paulo, São Paulo, 1954, v.I ,
p.380.
79 , José Manuel Sequeira, Memória , publicado em: Sérgio Buarque de Holanda,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
não hajam outros: hei por bem que sendo necessário aproveitar-se o
dito Agostinho Barbalho das ditas pessoas para algumas notícias ou
informações do que se pretende neste descobrimento, lhe possa per-
doar e perdoe em meu nome o tal crime, que tiver cometido...”.76 A
bandeira não vingou devido à morte de Agostinho Barbalho, e nada
mais se sabe sobre estes possíveis informantes a serem utilizados
pela expedição. Mas a mesma ideia de informantes de condição so-
cial indefinida aparece na narrativa que José Joaquim da Rocha faz
da bandeira de Fernão Dias Pais, que entrou para o sertão levando
com bastardos: estes, às margens do Vupubuçu, foram expedidos “a
fim de examinar a finalidade das terras circunvizinhas a este lago,
a ver se achavam alguma língua, que melhor ao informasse do que
buscavam”;77 bastardo podia então designar tanto o filho natural
como o mestiço, sendo certamente esta a acepção a que diz respeito
a passagem citada. De qualquer forma, tratar-se-ia de elementos de
92 mísera condição, arregimentados para engrossar a empresa arrisca-
da do sertanista.
D. Rodrigo de Castel Blanco – estranho aventureiro que morreu
em condições trágicas, envolvendo Borba Gato como possível cri-
minoso – também levou, ao que tudo indica, a sua quota de desclas-
sificados; pelo menos é o que sugere o “Bando mandado publicar na
vila de São Paulo e em rodas as mais da capitania, dando perdão aos
criminosos que andavam foragidos (exceto os de Lesa-Majestade)
para que se apresentassem a fim de fazer parte da força com que D.
Rodrigo de Castel Blanco tinha de entrar para o sertão em desco-
berto de minas”.78
Ao tratar do estímulo que julgava merecerem as expedições vol-
tadas para a procura de pedras preciosas, ouro e outros metais de
valor econômico, José Manuel Sequeira também sugere o aproveita-
mento dos desclassificados: “O único meio de que me lembro (se é
Monções, p.137.
80 , Licença de d. Brás Baltazar da Silveira a Lucas de Freitas de Aze-
vedo” – 29-V-1717, APM , SC , cód. 9, fls. 49 V-50.
81 , Descobrimento de Minas Gerais – relação circunstanciada , RIHGB ,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
sário para o povoamento e cultivo das colônias, devendo-se lhes em grande parte a
segurança da parte civilizada contra os índios ferozes, que eles continham nos re-
motos presídios.” Confrontada com o trecho de Teixeira Coelho, dá margem a duas
hipóteses: 1) A formulação de que os vadios, ódio de todas as nações civilizadas,
eram úteis nas Minas é de D. Antonio de Noronha, de quem Teixeira Coelho era
grande admirador; 2) Diogo de Vasconcellos leu mal Teixeira Coelho e atribuiu a
frase do desembargador ao governante. De qualquer forma, a ideia da utilidade dos
vadios mostra a sua presença marcante.
88 , Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o esta-
do de decadência da capitania de Minas Gerais e meio de remediá-lo, em:
RAPM , v.II , 1897, p.314-5.
89 , Requerimento que a S.Exa. Faz sobre datas de terras minerais e
sesmarias o alferes João Pereira (…), alferes da ordenança do destaca-
mento dos forros”– 19-X-1770, em: APM , SC , cód. 186, fls. 78-79 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
... é um lugar no centro desta capitania, pouco povoado, pouco sadio e in-
festado pelo antropófago botocudo, para o qual costumam ser remetidos
em muitas ocasiões alguns réus de crimes menos graves...90
águas do Sena, empregavam-se vagabundos para remover a lama e o lixo das ruas.
Geremeck, Criminalité, vagabondage, paupérisme..., p.351. Na região do Vale do Pa-
raíba, os homens livres pobres eram utilizados para “resolver o crônico problema de
construção e conservação de estradas”. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens
livres na ordem escravocrata, 2ª ed., São Paulo, 1974, p.97.
93 , As cartas Chilenas, fontes textuais, carta 3ª, p.88-95, e carta 4ª, p.101-10.
94 , Waldemar de Almeida Barbosa, ob.cit., p. 202 e p. 369.
95 , Bando sobre a limpeza de negros calhambolas; taberneiros; mas-
cates de qualquer qualidade – assim brancos como negros – e pessoas
vadias – e regularidades de capitães-do-mato, e pedestres – 8-IV-1764, em:
APM , SC , cód. 50, fls. 91 V.
96 , Este aspecto foi abordado no capítulo anterior.
97 , Ordem de 24-XI-1734, Coleção sumária das próprias leis, cartas ré-
gias, avisos e ordens , em: RAPM , v. XVI , p.450.
98 , “Administração Diamantina – Traslado dos autos de inquirição
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
ser a capitania das Minas abastecida em sua maior parte por gêne-
ros vindos de fora, mas está sobretudo ligada ao fato de o trabalho
da terra ser, a partir de uma determinada época, encarado como o
trabalho por excelência, a base sólida sobre que deveria se apoiar a
economia.96 Sendo assim, nada melhor do que ele para redimir o
desocupado do vício da ociosidade. Em 1734, o conde das Galvêas
lançava uma ordem segundo a qual os vadios não seriam conse-
tidos, obrigando-se lhes “a servir na cultura das terras” mediante
pena de expulsão da capitania.97 No Distrito Diamantino, ordenou
certa ocasião o Intendente que se fizesse a circunvalação dos cam-
pos lavrados “por dez ou doze miseráveis apenados sem paga, sem
ferramenta, e sem alimentos”.98 Em 1807, o governador D. Pedro
Maria de Ataíde e Mello cogitava da navegação do rio Doce e do de-
vassamento de seus sertões, dizendo que “muitos vadios, gentalha a
mais perigosa da sociedade, seriam obrigados a povoar e agricultar
98 estas terras”, e que, nessa empresa, seriam auxiliados pelo gover-
nem se poder averiguar aonde param estes delinquentes, para poderem ser casti-
gados como merecem os seus delitos”. – Carta do Morgado de Mateus ao Conde de
Oeiras – 21-IX-1765 – em: DI , v. IXXII , 1952, p. 94-5.
105 , “Tenho notícia que entraram nestas Minas grande número de ciganos que
o sr. Vice-Rei fez despejar do distrito da Bahia, e ainda que já se fazem algumas
queixas deles, e aqui haja um bando do sr. Conde das Galvêas para não viverem no
distrito das Minas; contudo por ora me parece acertado, castigando aos que come-
terem algum insulto, não intender com os mais, porque não suceda juntarem-se
em alguma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de perniciosas
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
... eu não me posso dispensar de mandá-las (as tropas), ainda que co-
nheço pouca ou nenhuma utilidade deste socorro; porque além de ser da
mais útil gente daquela capitania, vir descalça, nua e miserável, o seu ar-
mamento consiste em uns paus com um ferro na ponta, a que não lhe sei
dar o nome.123
112
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
113
1. ADMINISTR AÇÃO E ESTADO
sua maioria – eram trabalhadas por nativos. Cf. Vitorino Magalhães Godinho,
L'Économie de l'Empire Portugais aux XV et XVI Siécles, Paris, 1969, c. IV, p. 248 e
segs. Ver também c.III , p. 173-217.
10 ,Cartas chilenas, ob.cit., 9ª, versos 223-34, p. 217-8.
11 , Entre outros, Assumar – que depois fez carreira brilhantíssima nas Índias,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
tornando-se Marquês de Alorna –, Galvêas – que D. João V escolhera dez anos antes
para representar o seu governo no Vaticano e que, logo após entregar o governo das
Minas, tornou-se vice-rei do Brasil – Bobadela, o administrador colonial que maio-
res poderes reuniu durante todo o século XVIII; Valadares, a respeito de quem Dio-
go de Vasconcellos faz o seguinte comentário: “Deve ter sido muita a consideração
de que D. José (José Luis de Menezes Abranches Castelo Branco e Noronha) gozava
na corte para se lhe confiar o governo mais importante da Monarquia, sem ter feito
ainda aos seus 24 anos de idade. D. João III , a quem lhe estranhava ter confiado o go-
verno de Ceuta a um Menezes de 20 anos, respondeu: “Estes meus parentes de Vila
Real já nascem emplumados”. – Diogo de Vasconcellos, História média...., p. 195.
12 , O governante alegava ser a única autoridade secular a merecer incenso. En-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
tre muitas outras loucuras, quando ia montado “de jornada ou passeio, obrigava a
todos, que se apeiem e algumas vezes com pancadas, que dão os da sua comitiva”.
– em: Violências de um governador (1774), RAPM , VI , 1901, p. 187-8.
13 , Na Instrução dirigida a seu irmão, dizia Bobadela: “e assim se faz preciso
misturar o agro com o doce, em tal forma que se conheça, incontestável, que o vosso
ânimo só respira a defensa da razão, e da justiça, enquanto for pelo seu caminho”.
– Instrução e Norma que deu o Ilmo. E Exmo. sr. Conde de Bobadela a seu
irmão o preclaríssimo sr. José Antonio Freire de Andrada para o gover-
no de Minas, a quem veio suceder pela ausência de seu irmão, quando
passou ao sul , em: RAPM , IV, 1899, p. 729. A formulação do “bater-e-soprar” é de
Sylvio de Vasconcellos: “O soberano vê-se coagido a negociar sua autoridade com os
súditos, com muito tato e habilidade, cedendo quando necessário. Autoridade con-
sentida, frágil, muito diferente do absolutismo implantado em todo o resto do reino.
Fere, suplicia quando pode. Perdoa a seguir. Bate e sopra, como diz a gíria popular”,
em: Mineiridade, p. 68. O autor anula a autoridade metropolitana em nome de um
autonomismo mineiro, no que não tem razão.
14 , Motins no sertão..., em: RAPM , I , 1896, p. 670-1.
15 , Regimento ou instrução que trouxe o governador Martinho de
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
va e João Leme da Silva – 15-IX-1723, em: DI , XIII , 1901, p. 118. Ver também: Regi-
mento de um seguro, que se mandou a Lourenço Leme da Silva e João Leme
da Silva para virem a esta cidade – 27-I-1723; Registro do regimento que
levou Lourenço Leme para se estabelecer a cobrança dos quintos por
bateia nas minas de Cuiabá – 10-VI-1723; Registro do regimento que levou
para as novas minas do Cuiabá, o Mestre de Campo Regente João Leme
da Silva – 30-VII-1723, em: DI , XII , 1901, respectivamente p. 78-9; 87-98; 98-110.
Ainda sobre este assunto, Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Nobiliarchia paulis-
tana histórica e genealógica, tomo III , São Paulo, 1954, p. 30-5; Manuel Eufrásio de
Azevedo Marques, Apontamentos Históricos Geográficos, Biográficos, Estatísticos e
Noticiosos da Província de São Paulo, tomo II , São Paulo, 1954, p. 70-83. Estes dois
autores, concordando acerca dos crimes de que os irmãos eram evidentemente cul-
pados, dizem que a causa de sua morte foi uma intriga urdida por um familiar do
governador, Sebastião Fernandes do Rego.
24 , “Em o novo descobrimento das minas de Cuiabá assistiam dois homens, ir-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
mãos ou para melhor dizer duas feras, que assim o merecem as tiranias de que usa-
ram...” – carta de 29-X-1723, segundo Azevedo Marques. p. 80.
25 , “... os crimes dos irmãos Leme foram esquecidos, impetrando para eles Ro-
drigo Cesar o perdão, a fim de que não fosse prejudicado o interesse que o Governo
esperava tirar das minas, sujeitando-se até à imposição dos Lemes”. – Azevedo Mar-
ques, op.cit., p. 76. Ver também Eschwege, Pluto Brasiliensis, v.I, p. 124.
26 , No descobrimento das minas de Caeté, verificado por volta de 1701, teve papel
de destaque o emboaba Bento do Amaral da Silva, que cometera vários crimes no
Rio e em São Paulo. Apoiara-se no prestígio do sogro, Antonio de Godói Moreira,
amigo do governador Artur de Sá e Menezes, e fora para Caeté, onde se estabeleceu
e “se tornou homem abastado e opulento”. Waldemar de Almeida Barbosa, op.cit.,
I, p. 123.
27 , José Joaquim da Rocha, op. cit., p. 431.
28 , Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, p. 17 e sgs. Os fundadores destes arraiais
foram quase todos mineiros que fugiam da grande fome que então se alastrou pelas
minas, conforme foi mencionado no capítulo 1 deste trabalho.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
32 , Max Weber, Economia y Sociedad, trad. Esp., México, 1944, tomo III , p. 217-38.
33 , A respeito da oposição entre a atividade urbanizadora de portugueses e espa-
nhóis na América, ver Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, cap. O semea-
dor e o ladrilhador , p. 61-85.
34 , Gilberto Freyre chega mesmo a sugerir que as Minas, fator de renovação na
colônia, teriam contribuído para a derrocada do patriarcalismo. “Minas Gerais”,
diz este autor, “foi outra área colonial onde cedo se processou a diferenciação no
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
o Povoador, os reis visavam vantagens fiscais, com a cobrança dos preciosos dízi-
mos, que se obteriam se a autoridade fosse organizada em núcleos, sedes de fiscais e
administradores”. Faoro, ob.cit., 1ª ed., p. 85.
41 , “... o estar tão radicado o amotinar-se a gente das Minas, que muitos tinham
por brio entrar voluntariamente nos motins”. – Segundo Sylvio de Vasconcellos,
Mineiridade, p. 24.
42 , Segundo Sylvio de Vasconcellos, ob. cit., p. 25. Quando da sua nomeação, ao
passar por São Paulo a caminho de Minas, Assumar se horrorizou com o aspecto
das tropas que o foram recepcionar: “... eles vinham tão ridículos cada um por seu
modo”, diz o escrivão da jornada, “que era gosto ver adversidade (sic) das modas,
e das cores tão esquisitas porque havia casacas verdes com botões encarnados, ou-
tras azuis agaloadas por uma forma nunca vista e finalmente todas extravagantes,
vinham alguns com as cabeleiras tão em cima dos olhos, que se podia duvidar se
tinham frente, traziam então o chapéu caído para trás, que faziam umas formosas
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
9, fls.3 9.
53 , Sobre o uso das armas , 10-IX-1713, em: APM , SC , cód. 9, fls. 2.
54 , “Como em regra quem oprime se sente mal, imaginando a cada passo a revolta
dos oprimidos, assim viviam os brancos, cujo duende era o ódio dos negros”. Em:
Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 211.
55 , Documentação referente a Minas Gerais existente nos Arquivos
portugueses , carta de 5-VIII-1738, em: RAPM , XXVI , p. 178.
56 , Diogo de Vasconcellos, História antiga, p. 322. Leur multitude dans le Brésil
ferait craindre un soulèvement, funeste aux portugais, diz um documento anônimo.
Manuel Cardozo, A French Document in Rio de Janeiro, 1748 , em: HAHR , XXI ,
ag.1941, p. 430.
57 , Carta de Assumar ao Ouvidor-Geral da Comarca do Rio das Ve-
lhas , 21-XI-1719, em: APM , SC , cód. 11.
58 , Carta de Assumar ao rei de Portugal , carta de 20-IV-1719, em: RAPM ,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
74 , “Petição dos moradores do arraial dos Carijós contra os ciganos Manuel Cor-
tes e seus filhos Simão da Costa e Pedro da Costa, e outro Manuel Cortes, Francisco
da Costa seu cunhado e outro que andam na mesma companhia que pelo nome não
percam...”, 25-I-1768, em: APM , SC , cód. 103, fls. 43 V-44.
75 , Petição sobre calhambolas , 6-XII-1738, em: APM , SC , cód. 59, fls. 32 V-33.
76 , Bando sobre quilombolas (Assumar), 20-XII-1717, em: APM , SC , cód. 11,
fls. 269.
77 , Este assunto será examinado no próximo capitulo.
78 , “Tendo D. Brás trazido a sua mulher e filhos, a essa família ilustre e virtuo-
poderem investir contra os negros armados que, de noite, apare-
ciam por aquelas paragens. Tudo indicava serem quilombolas, di-
ziam os moradores, que pediam também a isenção de penas para
suas pessoas no caso de morrerem alguns negros, e a desobrigação
de, em tais casos, pagarem aos senhores deles. O governador despa-
chou favoravelmente, permitindo-lhes que atacassem os quilombo-
las e, ante a resistência destes, disparassem suas armas de fogo. Os
casos de morte – se estas ocorressem – seriam julgados conforme
as ordens de Sua Majestade “para semelhantes casos de negros qui-
lombolas”.75 O poder, pulverizado, se difundia, e tinha na relativi-
dade da Justiça uma atenuante para suas eventuais arbitrariedades.
Entretanto, nunca o procedimento oficial no sentido de purgar
a sociedade da sua parte corrompida parece ter sido tão objetivo e
transparente como no bando sobre quilombos lançado por Assu-
mar a 20-XII-1717. Determinava este que “toda pessoa de qualquer
qualidade ou condição” que quisesse agir por conta própria e atacar 141
os quilombos teria franco apoio do governo, que, sozinho, parecia
não conseguir arcar com a repressão. Os negros que resistissem te-
riam suas cabeças cortadas e levadas ao governante; os que pudes-
sem ser presos vivos, seriam justiçados exemplarmente, e tanto num
caso quanto no outro, os senhores deles não tinham o direito de
reclamar, “visto o dano público que fazem a todo o comum”. E os
tentáculos do poder não se detinham aí: “toda pessoa que lhes der
alojamento ou souber onde estão os ditos quilombos, e o não avisar,
sendo branco será açoitado pelas ruas públicas, e degradado para
Benguela, e sendo negro ou carijó, terá pena de morte”.76
A falta de laços familiares da população foi outro fantasma que
perseguiu as autoridades, e sanar este mal tornou-se um dos pontos
básicos da política normalizadora então levada a cabo. Ao contrário
do que sugere a visão da sociedade colonial nucleada na família,
esta foi, nos tempos coloniais, exceção: os elementos que para cá se
síssima se deve em grande parte a nobilitação dos lares cristãos e a vida religiosa da
Vila”. História Antiga... p. 305.
79 , Segundo Julita Scarano, ob.cit., p. 117.
80 , Segundo Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, p.59.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
close”. Segundo Christopher Hill, The World Turne Upside Down, p. 52.
87 , A situação era, pois, extremamente contraditória: “de um lado, a metrópo-
le pequena e pobre; de outro, a colônia, grande e cheia de riquezas: se a balança
demográfica pendesse para o domínio ultramarino, romper-se-ia o equilíbrio, e
desorganizar-se-ia o sistema”. Fernando A. Novais, ob.cit., p. 143.
88 , Carta que escreveu ao Excelentíssimo Senhor Conde de Assumar
o Excelentíssimo Senhor Vasco Fernandes Cesar de Menezes , Vice-Rei
e Capitão-General-de-mar-e-terra deste Estado , 17-XI-1720, em: DH , LXX ,
1946, p. 106.
89 , Instrução..., RAPM , IV, 1899, p. 731.
90 , “Era assim que frequentemente os Ministros, não tendo perto o corretivo
de suas arbitrariedades, prendiam a quem quisessem perseguir, por meio de seus
oficiais; e até que de Lisboa viessem provimentos a vítima ficava encarcerada meses
e anos”. Diogo de Vasconcellos, Linhas gerais da administração colonial
– Seu exercício – Capitães-Mores, Donatários, Governadores, Capitães-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
nição. O Vice-rei se descontentou com um advogado de nome José Pereira, por ele
feito juiz de sesmarias. Mandou buscar o homem e outros seus asseclas, “tive-os por
muitos meses reduzidos a uma aspérrima prisão, macerei-os até o último ponto, e
com este meu procedimento se intimidaram todos os mais; e depois de estar tudo
em sossego, tornei-lhe a permitir que voltassem para que pudessem contar aos ou-
tros o que lhes tinham sucedido...” – Relatório..., p. 423. A partir da segunda metade
do século XVIII – quando surge o Tratado dos delitos e das penas (1764) de Beccaria
– “a punição deixa, pouco a pouco, de ser uma cena”, e “tenderá a se tornar a par-
te a mais escondida do processo penal”, deixando “o domínio da percepção quase
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
ser presos e pagar multa. Mas havia uma ressalva, que agravava o
castigo: “Sucedendo porém que algumas destas (negras) sejam tão
miseráveis que se lhes impossibilite fazê-lo se lhes dobrará o tempo
da prisão, findo o qual se soltará, ficando na inteligência de que re-
petindo o referido delito se lhes triplicará e na quarta reincidência
se procederá na forma das reais ordens praticando-se igualmente a
mesma pena a respeito do dobro, e tresdobro da condenação nas que
forem escravas”.123
Já a legislação e as medidas contra os vadios não foram tão gene-
ralizadas como as referentes às negras de taboleiros. Nos primeiros
tempos, praticamente inexistiram, pois o tumulto então reinante
não permitia que se diferenciassem dos assassinos e facinorosos que
a Ordem tolerava. Além disso, foi com o acirramento de um sistema
econômico injusto e de uma superestrutura de poder iníqua que os
vadios e desocupados proliferaram. As condições de seu engendra-
154 mento correram pois paralelas à normalização e à estabilidade que
a zona aurífera alcançou a partir da década de 1730, pois eram o seu
reverso. Assim sendo, a primeira medida legal adotada em relação
a esta gente data de 1734, quando ficava aprovada a providência que
dera o Conde das Galvêas no sentido de ordenar a prisão e o degre-
do para a Colônia de “negros e mulatos forros, ociosos e vagabun-
dos”; a mesma ordem determinava “que não consentisse vadios, e
que os obrigasse a servir na cultura das terras, em minerar e nos
ofícios mecânicos, e que sejam expulsos de Minas os que não toma-
rem este modo de vida”.124
Por ocasião das medidas punitivas contra quilombolas, que tive-
ram especial intensidade nos anos de 1741, 1746 e 1757-1759, os deso-
cupados surgiram como alternativa de mão-de-obra a ser utilizada
de 1722. Coleção sumária das próprias leis ..., em: RAPM , XVI , p. 461.
137 , “Porquanto me consta que sem ordem de S. Majestade, nem minha, se tem
principiado a abrir caminho pela Jeruoca para o Rio de Janeiro, ordenado ao sar-
gento-mor Manuel Rois Pereira faça toda a diligencia por si, capitães-do-mato e
mais gente necessária para prender as pessoas que constar andam na dita abertura,
e os remeterá presos à minha ordem à cadeia desta Vila, dando-me conta com des-
tinação da parte que cada um tiver neste delito”. Ordem do capitão-general” .
17-I-1743, em: APM , SC , cód. 69, fls. 35.
138 , Cf. Maxwel, op.cit., p.120 e sgs.
139 , É o caso de Diogo de Vasconcellos, que ele diz: “... mas a verdade é que abateu
os poderosos, exaltou os humildes e conteve o país na melhor ordem, entregando
a seu sucessor o governo respeitado e a lei acima das paixões”. História Média..., p.
198.
140 , Dando-se o desconto devido à clara simpática que o liberal Diogo de Vascon-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
que bem demonstra o valor específico, que têm os grandes. Satisfeitos esses, poderá
qualquer governo passar por liberal e amado ainda que oprima os pequenos; eis
que no conter e coagir a prepotência daqueles é que está a tirania”. Em: História
162 Antiga..., p. 318-9. É preciso não esquecer que, sendo Pascoal da Silva Guimarães –
mineiro milionário – o cabeça do motim de 1720, o supliciado foi o pequeno artesão
Filipe dos Santos.
141 , Os dízimos, arrematados inicialmente no Rio, passaram para as Minas em
1714; pertenciam ao rei, Grão-Mestre de Ordem de Cristo. Os direitos de entradas
remontam ao tempo de D. Brás Baltazar, e foram introduzidos para ajudar o quinto.
Os direitos de passagens eram cotas exigidas das pessoas que transitavam por al-
guns rios da capitania, e foram estabelecidos a partir de 1711. O subsídio voluntário,
renovado constantemente pelos mais diversos motivos, foi inicialmente estabeleci-
do por ocasião do terremoto de 1755. O subsídio literário passou a vigorar a partir de
1773, e visava custear a subsistência dos professores régios da capitania; era cobrado
sobre a aguardente da cana e o gado, entre outros gêneros. O recolhimento dos dé-
bitos era geralmente feito por contratadores, que uma vez satisfeitas as necessidades
da Coroa, recolhiam o excedente para si.
142 , Para sistema de impostos a tributação das Minas, ver Pandiá Calógeras, As
minas do Brasil e sua legislação, Rio, 1904-05, 3 vols. O assunto é tratado resumi-
damente por Caio Prado Jr., História econômica do Brasil, cap. A mineração e a
ocupação do centro-sul ; Boxer, A idade do ouro do Brasil, cap. Vila Rica de
Ouro Preto.
143 , Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1952, p. 57. Referin-
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do-se aos detalhes e minúcias do sistema fiscal, diz o autor: “... pôs-se em execução
tudo o que o gênio migalheiro do despotismo podia inventar...” – ob.cit., p. 73.
144 , Para Diogo de Vasconcellos, a origem das revoltas ocorridas na década de
1730 no sertão do São Francisco deve ser buscada neste sistema: “Taxando os ne-
gros e mulatos forros, e não somente os escravos, tornou-se um vexame insupor-
tável e deu azo a práticas extravagantes. Os brancos não pagavam a taxa, e como
por graciosa mercê de S. Majestade os índios equiparavam-se aos brancos queriam
isentar-se; mas os mamelucos, filhos de índios e brancos, foram havidos por mu-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
latos e caíram na taxa (…). A massa do povo, quase toda de mestiços, paupérrima,
exasperou-se”. História Média, p. 96-7.
145 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, v. I , p. 62. Mawe, ob. cit., nota à p.176.
146 , Impostos na capitania mineira – clamores e súplicas das câmaras
em nome do povo, em: RAPM , II , p. 287-309. Representação datada de Vila Rica,
5-VII-1711, p. 287.
147 , ... por todo Direito divino e humano, reconhecemos que se deve
tributo ao V. Majestade, o qual consiste na contribuição dos povos em
reconhecimento do Senhorio do Seu Monarca de quem depende toda sua
conservação... Vila Nova da Rainha, 1-VIII-1742, em: RAPM , II , p.288.
148 , Representação da Vila de São José, 30-VIII-1744, RAPM , II , p.294.
149 , Representação de São João del Rei, 17-X-1744, em: RAPM , II . A câmara de
Sabará aborda os mesmos temas, com pequena variação: “Os cegos que vivem de
esmolas pagam de um tal, ou qual escravo, que guia sua cegueira, o que, por grande
pobreza da terra se lhe faz muito penoso”. Sabará, 17-X-1744, p. 302. E sobre as pros-
titutas: “Inumeráveis mulheres pretas e pardas são a capitação por suas pessoas por
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
não terem algum escravo, é certo, vivendo estas de ofensas de Deus, necessariamen-
te a sua contribuição há de sair do pecado.” Ibid.
15o , Representação de Vila Nova Rainha, 10-X-1744, p.304.
151 , Teixeira Coelho, ob. cit., p. 451.
152 , A expressão é utilizada por Boxer em The Portuguese Seaborne..., cap. Mer-
chants, monopolists, and smugglers , p. 337.
153 , Cf. Maxwell, ob.cit., p. 188 Boxer, A Idade do ouro..., diz: “Grande número de
arraia-miúda foi apanhado, mas ninguém ousava apresentar testemunho contra as
pessoas poderosas que estavam contrabandeando em larga escala, e que, quase sem-
a refletirem sobre a violência do tributo.150
Empobrecidos por “multiplicadas extorsões” e reduzidos a um es-
tado de extrema pobreza, os vassalos de Sua Majestade se lançaram
frequentemente no contrabando.151 Este foi, durante todo o período
em que se extraiu ouro, a “maior dor de cabeça fiscal” da Coroa. 152
Para combatê-lo, esta empreendeu uma luta desesperada contra os
caminhos clandestinos que então proliferavam, contra as casas de
cunhagem falsa, contra os extraviadores de ouro em pó. Muito dos
fraudadores foram homens importantes que tiveram seus atos aco-
bertados pela própria administração colonial; 153 outros, a maioria,
eram os miseráveis que o sistema econômico, a justiça iníqua e o
fisco extorsivo lançaram nas fímbrias da sociedade. Dentre estes –
pequenos faiscadores furtivos e mineiros clandestinos –, houve os
que, com seus conhecimentos, acabaram prestando serviços ao Es-
tado, para ele descobrindo minas de ouro e de diamantes.154 Even-
tualmente agraciados com a clemencia, foram, na maior parte das
o quinto: nada lhe ficava de reserva para tentá-lo ao contrabando”. ob.cit., p. 126.
162 , Os diamantes e o ouro eram conduzidos por “Cuiabá Mato Grosso Índias
de Espanhóis pelo troco da imensa prata que por aquelas partes se franqueia pelos
contrabandistas e libertinos”. Carta da câmara de Tamanduá :..., em: RAPM ,
II , p. 378.
163 , Ver Maxwel, Pombal, and the nationalization of the Luso-Brazi-
lian economy, em : HAHR , XLVIII , n.4, 1968, p. 608-31.
164 , Sobre o Distrito Diamantino, disse Martius: “Única na História, esta ideia
de isolar um território no qual todas as condições de vida civil de seus habitantes
ficassem sujeitas à exploração de um bem da Coroa”, segundo Caio Prado Jr., For-
mação..., p. 182.
165 , “Administração diamantina...”, in: RAPM , II , p. 149.
166 , Eschwege, ob.cit., p. 148.
167 , Administração diamantina , p. 150. “Ninguém podia julgar-se seguro em
sua casa. O senhor via com desconfiança no escravo um inimigo oculto que denun-
ciando-o obtinha a liberdade e partilhava seus bens com a fazenda real. A devassa
geral, que se conservava sempre aberta, era como uma teia imensa, infernal, susten-
tada pelas delações misteriosas, que se urdia nas trevas, para envolver as vítimas,
vivo da violência alcançada pela máquina administrativa colonial,
da iniquidade da sua Justiça, da arbitrariedade de suas medidas.164
O seu governo se dirigia diretamente a Lisboa, independendo do
capitão-general das Minas, com quem entrava frequentemente em
atrito, e a quem respondia apenas no plano militar. Frequentes nas
outras partes da capitania, os abusos atingiram ali limites nunca
vistos: “eis aqui as tristes consequências e a fácil abusão, que só pode
fazer de amplas jurisdições cometidas a indivíduos para as irem
exercer tão longe do trono: sujeitos pequenos, e iguais ao pó da terra
diante de V. Majestade, longe dela se fazem arrogantes, e insolentes
despostas...”.165 Violento ao extremo – lei “mais digna de brilhar no
Império Turco do que em um Estado cristão” 166 – o Regimento dos
Diamantes provocava também a desagregação das relações sociais,
instaurando o pânico e o hábito da delação entre os habitantes. Es-
tes, em 1799, pediam à rainha que lhes restituísse “a paz, o riso, a
alegria, e o amor à comunicação, pois entre nós presentemente reina 169
a desconfiança uns dos outros; os parentes se receiam dos parentes,
os amigos dos amigos, e que vivemos como é próprio, que vivia um
povo, onde não existes regras certas de justiça, onde habita a adu-
lação, e onde uma só palavra faz a ruína de uma família inteira”.167
Arrancados de suas terras, impedidos de delas extraírem qual-
quer riqueza, os habitantes da Demarcação encaminharam várias
queixas às autoridades, mostrando-lhes como ficavam deslocados
e sem emprego num lugar onde só havia olhos para diamantes. Se-
que muitas vezes faziam a calúnia, a vingança particular, o interesse e a ambição dos
agentes do fisco”. J. F. Santos, ob.cit., p. 142.
168 , Administração diamantina ..., p.145. “Como a mineração do ouro, que
era o principal recurso dos habitantes da demarcação, fora quase completamente
proibida, resultou abundar o número de escravos e operários, que ficaram desocu-
pados: a consequência foi a miséria de muitos. Era o pauperismo, que se procurava
por todos os meios estabelecer no solo mais rico do Brasil”. Joaquim Felício dos
Santos, ob.cit., p. 179.
169 , Ibid, p. 161. “Hoje, o Intendente determina a expulsão de um infeliz na sua
sala, no seu passeio, no meio dos seus deleites, e regozijos, e no mesmo instante é
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
arrancado do interior da sua casa, dentre os braços da esposa, dos filhos, ou do pai
de cima daquela terra, que pisou nascendo, é arrastado a uma prisão e daí, depois de
saciado o Intendente com os dias de prisão, que lhe parece é conduzido manietado
à casa do Escrivão dos Diamantes, onde ele mesmo firma com seu próprio punho a
sentença do seu desterro”. Administração diamantina ... p.146.
170 , Documentos relativos ao descobrimento dos diamantes na Co-
marca do Serro Frio copiados e conferidos por Augusto de Lima Em:
RAPM , VII , 1902, p. 280.
171 , Termo que fazem Manuel da Silva e Alexandre Leitão na forma
abaixo declarada . 20-IV-1795, em: APM , SC , cód. 89, fls. 97 V-98 V.
172 , Ver, a respeito: Bando de 9-I-1732, Sobre despejo e confisco nos terre-
nos diamantinos , em: Documentos relativos ..., p. 275-6; Bando de D. Louren-
ço de Almeida a respeito dos negros forros e vagabundos, s.d., em: RAPM , VII , p.
336-7; Ordens sobre negras de taboleiros, mestiços e escravos, in: APM, SC, cód. 50,
fls. 38 V-39; Bando de Gomes Freire de 22-V-1745, em: APM , SC , cód. 69, fls. 47-47 V.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
vamente.
177 , Cf. Bando de Gomes Freire – Tijuco, 22-V-1745, in: APM, SC, cód. 69, fls. 47-
47V; “Edital que foi a todos os capitães-mores, ouvidores, comandantes pagos dos
os matando por conta própria. Os únicos casos de oposição frontal
ao sistema disseram respeito à arrecadação dos tributos, e o mais
famoso deles foi o de 1789.
Então, já no final do período, os poderosos compunham uma ver-
dadeira oligarquia, perfeitamente inserida na estrutura de poder até
o governo de Cunha Menezes: Alvarenga Peixoto era um fazendei-
ro importante, como o era Álvares Maciel; Gonzaga era o Ouvidor
todo-poderoso de Vila Rica; Cláudio Manuel da Costa, secretário
de vários governadores, era o intelectual oficial da capitania, respei-
tadíssimo; Rolim pertencia a uma destacada família do Tijuco que,
segundo Maxwell, andava às voltas com contrabando de diamantes.
175
O próprio arrematante dos contratos, o milionário João Rodri-
gues de Macedo, estava envolvido na sedição. Tratava-se portanto
de um grupo poderoso que só discordara da estrutura de poder
quando se vira afastado de seus privilégios e onerado pela taxação,
com a qual a situação financeira de vários deles não podia arcar. 173
A crise em que já entrava o sistema colonial é que tornou grave o
conflito.
Não se pode, assim, falar de confronto radical entre potentados e
governo, senão em alguns casos esporádicos e que, como já foi dito,
fizeram a fama de déspotas de alguns governadores. Região ponti-
lhada por arraiais e vilas, as Minas não propiciaram a emergência
de figuras clássicas de potentados, como foram, entre outros, os do
sertão baiano do São Francisco.176
Esta situação peculiar à zona mineradora teve seus desdobramen-
tos. Em primeiro lugar, uma dependência maior da população ante o
Estado, pois não há poder que intermedeie esta relação. Além disso,
a fragilidade dos laços paternalistas, que se fizeram fortes em outros
pontos da colônia. Aqui, o Estado é o Pai-Patrão todo-poderoso, o
desta (comarca?) e mais guardas dos registros”, 20-IX-1767, in: APM, SC, cód. 50, fls.
126V; Aristides de Araújo Maia, op.cit., p. 42; José Joaquim da Rocha, op. Cit., p. 507.
178 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.211.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
176
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
VI , OS PROTAGONISTAS DA MISÉRIA
Ora pois, louco chefe, vai seguindo
A tua pretensão: trabalha, e força
Por fazer imortal a tua fama;
Levanta um edifício em tudo grande;
Um soberbo edifício, que desperte
A dura emulação na própria Roma
Em cima das janelas e das portas
Põe sábias inscrições, põe grandes bustos;
Que eu lhes porei por baixo, os tristes nomes
Dos pobres inocentes, que gemeram
Ao peso dos grilhões; porei os ossos
Daqueles, que os seus dias acabaram
Sem Cristo, e sem remédios no trabalho.
E nós, indigno chefe, e nós veremos, 177
A quais destes padrões não gasta o tempo.
Cartas Chilenas.
7 , Segundo Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala, 9ª ed., Rio de Janeiro, 1958,
p. 428.
8 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 459.
9 , Teixeira Coelho, ob.cit., p. 479.
10 , W. Cano, ob.cit., p. 102.
11 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da capitania de Minas Gerais
(1805), em: RAPM , II , 1897, p. 677.
12 , Basílio Teixeira de Saavedra, ob. cit., p.674.
13 , Segundo Iraci Del Nero da Costa, Vila Rica: População (1719-1862), tese de
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
2. A FLUIDEZ DA CAMADA
A ) Modo de vida ) A extrema pobreza foi uma das principais
marcas desta camada, a qual, em 1799, o bispo de Mariana se re-
feria da seguinte forma: “Famílias pobres impossibilitados (sic) de
homens pardos, pretos libertos, nascidos na miséria; criados na in-
digência, e sem a menor subsistência...”.19
Se, de modo geral, a instabilidade não permitiu que se constru-
íssem boas casas nem para os melhor aquinhoados pela fortuna,
pode-se imaginar o que seriam as habitações dos homens pobres,
cafuas miseráveis espalhadas pelas encostas dos morros ou depen- 181
duradas sobre despenhadeiros, cobertas com capim e folhas de
palmeiras, e tendo por piso o solo de terra esburacada.20 As fontes
eram raras, e muita gente morava a mais de uma milha de distância
de uma delas.21 Nas vilas, a gente pobre se fixava nas zonas perifé-
ricas, embora não haja pesquisa suficiente acerca dos tombamentos
para que esta afirmação possa ser feita sem cuidados.22 O mobiliá-
rio era modestíssimo, quase inexistente, havendo referências a casas
20 , Cf. Boxer, A idade de ouro do Brasil, p. 72; Spix & Marcius, ob.cit., v. II , p. 10;
Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa , em: Fo-
lhetins inacabados, introdução e organização de Alexandre Eulálio, São Paulo, 1978,
passim; Requerimento de uns nomeados despejados da lavra da Chapada
de Serro Frio..., em: APM , SC , cód. 186, fls. 22-22 V: “... e também suas casas fixadas
que são cobertas de capim se estão apodrecendo por falta de morada, e vivem com
maior desarrancho que inda não se viu...”.
21 , Mawe, Viagens ao interior do Brasil..., p. 106.
22 , Cf. Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, p. 84.
23 , ... e que sabe pelo ver que na dita casa não há mais que uma cama...”, em:
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
onde havia apenas uma cama para acomodar vários moradores du-
rante o sono.23
No que diz respeito à alimentação, não parece despropositada a
tese de Gilberto Freyre de que era esta camada social a pior alimen-
tada da colônia.24 Os viajantes se estenderam sobre o aspecto dé-
bil que tinha, população “ deploravelmente raquítica e pobre” cujo
olhar doentio “pode ser atribuído à sua alimentação miserável...”.25
Atravessando a capitania numa época de decadência, o inglês
Mawe, especialmente sensível ao problema, deixou retratada uma
situação-limite de penúria, que não devia entretanto diferir muito
da enfrentada pelas populações pobres no século anterior:
Parei para me refrescar em uma das melhores das poucas miseráveis ca-
sas da estrada. Havia na porta um gato semimorto de fome; a visão deste
pobre animal fez-me pressentir o que me aguardava nessa moradia, cuja
182 aparência levou-me a pensar não existir ai comida nem para ratos. Con-
templava aquela imagem de miséria e da fome, quando surgiu à porta uma
pobre mulher descarnada. Pedi-lhe um copo d'água, que ela me deu. En-
quanto bebia, pediu-me esmola; seu aspecto exprimia já o que sua língua
articulava. Dei-lhe uma pequena porção de mantimentos que meus solda-
dos tinham, assim com uma pequena moeda.26
AEAM , Devassas, 1733, fls. 111. Segundo uma autoridade, os pequenos e mo-
destos mineiros expulsos da lavra da chapada eram moradores que “bem se
acomodam em um jirau de varas do mato”, não necessitando pois de mobília.
Requerimento de uns nomeados. .., fls. 22V.
24 , “E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos
piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente
é que tem agido, aproveitando-se de sua fraqueza de gente mal alimentada, a
anemia palúdica, o beribéri, as verminoses, a sífilis, a bouba.” Casa Grande &
Senzala, p. 46-7.
25 , Mawe, ob.cit., p. 120.
26 , Ibid., p. 211.
27 , Ibid., p.201-2.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
28 , ibid, p.221.
29 , AEAM , Devassas – 1756-57, onde se nota a grande incidência de meretrício em
Conceição do Mato Dentro.
30 , Segundo Donald Ramos, ob. cit., p. 215.
31 , “... Narcisa Ribeira parda, moradora sua vizinha sendo sã não costuma ouvir
missa (…). Ao mesmo tempo que tem vestidos, e está rindo e folgando.” Em: AEAM ,
Devassas, 1748-1749, fls. 54 V.
32 , AEAM , Devassas, 1733, fls. 108.
33 , Joaquim Felício dos Santos, O capitão Mendonça , em: Folhetins inacaba-
dos Santos descreve da seguinte forma: “... seu traje ordinário con-
sistia em jaqueta de couro de veado, calças de tré, camisa de chita ou
riscado, chapéu de sola; de calçado, alparcatas”.33 O garimpeiro João
Costa vestiria um traje usual para os homens de vida dura e arris-
cada: “... grande chapéu de imbé de longas abas (…); vestia um largo
sortu de pano grosso azul, que descia-lhe até os joelhos, calçava bo-
tas brancas que cobriam-lhe o resto das pernas”.34 Muitos seriam os
que andavam esfarrapados e seminus. Por isso, o Auto de Vereação
que determinava o que devia ser feito por ocasião dos funerais de D.
João V considerava complacentemente o luto dos pobres:
…por sermos cientes da muita pobreza que há no país, que porém pos-
sibilitados, não podem cumprir com a fatura dos ditos lutos geralmente,
havemos por bem provendo de remédio, haver por satisfeitas as pessoas
pobres, aquelas que geralmente vivem da agência de seu trabalho, e costu-
mam andar de capote ou sem ele, haver-lhe por satisfeito o cumprimento
do dito luto com trazerem nos chapéus em mostras de sentimentos um
fumo ou insígnia preta, pendente para fora do dito chapéu...35
dos, p. 63.
34 , Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa ,
em: Folhetins inacabados, p. 80.
35 , Funerais de D. João V – Auto de Vereação , 16,17,19-XII-1750, em: RAPM ,
IX , 1904, p. 365.
36 , Quintos do ouro , em: RAPM , III , p. 72. Os pedidos de desobriga – licença
especial para não assistir à missa, sobretudo nos dias santos – eram devidos ge-
ralmente à falta de recursos para vestir adequadamente a família a fim de que esta
pudesse assistir à missa. Cf. AEAM , Devassas, 1756-1757, fls. 84 V.
37 , Fernando Henrique Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de janeiro,
Morando mal, comendo pessimamente e vestindo pior ainda, os
homens livres pobres viviam costeando a desclassificação, constan-
temente empurrados para ela pelo sistema econômico e pelas vio-
lentas superestruturas de poder. Na sociedade colonial escravista,
apresentavam traços específicos, sem entretanto se constituírem
em elementos isolados de um sistema. Imbricavam-se numa forma-
ção social cujos parâmetros básicos eram ditados pelo escravismo,
e mantinham com ela uma relação contraditória de incorporação
e exclusão. Tomados frequentemente como elementos avulsos, de-
sarticulados, os desclassificados realmente não o deixaram de ser,
tendo-se em vista uma sociedade fortemente estratificada nos ex-
tremos.
A posse da terra conferia ao senhor de engenho e de lavras um
caráter quase de nobreza, dando-lhes os sinais distintivos do status
e da honra – a que vinha se somar o repúdio às atividades manuais.
Proprietários, exploravam compulsoriamente a força de trabalho 185
dos escravos africanos sobre que se assentava o sistema; mercado-
res, eram peças fundamentais do processo de acumulação que se
verificava na Europa. Assim, os traços estamentais que caracteriza-
vam a formação social da colônia e tornavam nítidos os contornos
das camadas senhorial e escrava foram sendo paulatinamente alte-
rados pelas relações de produção. Esta sociedade híbrida de esta-
mentos e classes só podia ser compreendida se referida ao mundo da
produção. “Demônios bifrontes”, os produtores coloniais “eram, de
modo específico, uma classe definida no modo colonial de produ-
ção capitalista que continha alguns atributos derivados do caráter
capitalista mercantil da organização econômica em que se inseriam
e outros derivados do caráter escravista ou “encomendero” das rela-
ções sociais de produção sobre que se baseava a empresa colonial”.37
Os elementos que não se definiam, quer num extremo, quer nou-
tro, achavam-se desarticulados dentro desta formação social; entre-
tanto, seus caracteres específicos só podiam ser esclarecidos à luz do
escravismo, que os engendrava.
1975, cap. Classe sociais e História: considerações metodológicas , p. 111.
38 , O episódio dos irmãos Leme é um caso em que a infração equipara poderosos
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
Pinto, morador em São João del Rei e despacho que na mesma deferiu o
Ilmo. E Exmo. Sr. General”. São João del Rei, 13-IX-1764. Em: APM , SC , cód. 59,
fls. 84-84 V.
41 , “Requerimento que a S. Exa. Fez Leonor, e seus filhos, José Manuel e Severina
irregularidade da situação. “A pobre e miserável mulher”, disse o
vigário da freguesia, “que com a petição retro recorre a V.Exa., é
mui digna, e merecedora de que V. Exa., olhe com piedade e que se
compadeça da miséria e da consternação em que se acha, e os seus
filhos; porque sendo, como me consta, liberta, e oriunda de ventre
livre e de carijós, vive com os seus filhos em um rigoroso cativeiro
com o falho pretexto de administrada, e com escandalosa vida e
ofensa de Deus de que querendo se apartar, o não conseguiu pelo
grilhão do falso cativeiro em que injustamente a constringem...”.41
Ante tais depoimentos, o governador ordenou que uma escolta fosse
libertar os carijós.
Maria Moreira, nascida de “pais livres por serem carijós de cabelo
corredio”, também se achava indevidamente escravizada, e suplica-
va ao governador que lhe fosse concedida a liberdade de sair da casa
de seu senhor para poder tratar de seu requerimento. O governante
concordou, advertindo-a de que seria punida caso se afastasse “de
viver com a regularidade devida” – advertência que parece querer
lembrar à suplicante que seus dissabores e inseguranças de mulher
pobre não cessariam com a liberdade.42
A história de Agostinho Pereira, “de nação canarim, filho da ci-
dade de Goa”, é extraordinária, mais parecendo folhetim, e ilustra
muito bem o procedimento que se adotava no Império Colonial
português – ainda embebido no estatuto de pureza de sangue – para
com os povos colonizados, principalmente quando de pele escura.
Batizado, filho legítimo de Bartolomeu Pereira e de sua mulher Ma-
ria dos Anjos, Agostinho tinha quatorze anos quando foi procura-
do por Luís da Silva, escrivão da nau “Cananéia”, que lhe propôs
com seus filhos Felix, Mariana, Narcisa e Amaro, de geração carijós, com os
despachos e informações que houveram, e deferimento de S. Exa. Tudo seu teor
é o seguinte:” — dezembro de 1764 — fevereiro de 1765, in: APM, SC, cód. 59.
fls. 103-104V.
42 , Petição de Maria Moreira, índia de nação, e despacho de S.Exa .
Vila Rica, 21-II-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 101 V-102.
43 , Petição de Agostinho Pereira, de nação canarim, e despacho
o emprego de criado e uma viagem a Lisboa. Foram os dois parar
na Bahia, onde Luís da Silva deixou o canarim em companhia de
seu irmão Domingos Vaz, que comboiava negros para as Minas. O
canarim se viu novamente viajando, e ao chegar ao Pau de Cheiro
surgiram uns calhambolas que mataram o seu patrão e roubaram
tudo que levavam. Agostinho Pereira sobreviveu, e juntamente com
uns moleques foi conduzido à presença do Juiz dos Ausentes daque-
la comarca, que o trouxe para as Minas. Venderam-no então como
escravo a um Marcos Gonçalves, sem que o canarim se desse conta,
pensando que ia como homem livre. Marcos Gonçalves o vendeu
ao capitão Leandro Machado Luiz, um e outro sendo moradores no
Brumado do Ribeirão de Santa Bárbara. Passou a ser tratado como
escravo, “com castigos, como costumam, e como o suplicante no
vil estado da escravidão sempre viveu pobre, até de espirito como
são os canarins, e nunca achou meio de se reunir pelos meios da
Justiça, recorre agora à piedade de V. Exa. Para que pelas chagas de 189
N.S. Jesus Cristo se digne tomá-lo na sua proteção, mandando-o
pôr livre, e que lhe paguem suas soldadas desde o tempo do injusto
cativeiro”.43 Nada se sabe sobre o desenlace da infeliz aventura do
canarim, pois seguem-se averiguações sobre o caso, argumentando-
-se que o suplicante era escravo numa época em que todos os índios
(sic) o eram, a lei contra a sua escravidão sendo recente, e daí por
diante.
Outra história de desenlace desconhecido é a do pardo João Ra-
malho Pinto, que Luís Ramalho Botelho mandou prender sob alega-
ção de que era seu escravo. João Ramalho se dizia livre por ter sido
sua mãe alforriada um ano e sete meses antes do seu nascimento;
tinha vinte e sete anos, e vivia no Distrito do Arraial de Mateus
de S. Exa. Nela proferido, 17-X-1765 e 23-XII-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 185
V-186V. Waldemar de Almeida Barbosa alude a documentos existentes no Arquivo
Público Mineiro que atestam a presença de degredados indianos nas Minas; chama
a atenção para a devoção, bem difundida nas Minas, a um santo indiano: São Gon-
çalo Garcia. Cf. História de Minas, v. II , p. 322-3.
44 , Requerimento que a S. Exa. Fez o pardo João Ramalho Pinto, preso
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
mais das vezes, uma condição de vida que é destituída de sentido porque ditada pe-
las regras de domínio da produção escravocrata (…)”. Lúcio F. Kowarick, A cons-
tituição do mercado de mão-de-obra livre no Brasi l – Uma abordagem
histórica , mimeo., 1977.
48 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 11 V.
49 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 29.
50 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 35 V.
51 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 34.
52 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 76.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
cessário para a vestir, e que outras vezes o dito seu senhor a deixava
ficar com os passageiros que em sua casa se arranchavam só a fim
de com eles se desonestar...” Juliana tinha três filhos de pais desco-
nhecidos, e frequentemente seu senhor a aconselhava que dormisse
e se desonestasse “com negros para parir crioulos, e não o faça com
brancos...”.56 Em virtude da pobreza de Manuel Lobo, o reverendo
pároco intercedeu por ele junto ao visitador, e assim este rancheiro
pobre mas perfeitamente amoldado à ética escravista escapou à pu-
nição eclesiástica.
Relações amorosas e vantagens pecuniárias aparecem também no
caso de João Fernandes Quinteiros, que vivia com Quitéria borges e
aquietava o seu marido dando-lhe de comer e vestir.57 O pardo for-
ro Luís Pereira, morador nas Congonhas, consentia que suas filhas
“usassem mal de si para algumas conveniências que lhes fazem os
barregões delas”... Uma delas, de nome Úrsula, “estava por conta”
194 de um “homem do caminho” chamado Domingos Gonçalves Rico,
viajante ao que parece bastante turbulento, pois conforme narra a
testemunha da denúncia, dera havia ainda pouco tempo uma facada
em um homem.58 A outra filha de Luís Pereira estava ajustada para
casar com Francisco Soares, também pardo e forro, que frequentava
livremente a casa. Assim, o pai consentia que uma e outra estives-
sem “com seus amigos estando todos misturados”.59
Cristina, preta angola moradora no Morro costumava entregar
sua filha Leandra, parda forra, para alguns homens a “deflorarem”,
levando-a pessoalmente às suas casas. Indo para este fim procurar
a testemunha, esta lhe deu uma esmola e a aconselhou que casasse
Leandra, “para o que lhe daria maior esmola, e muita gente con-
correria com as suas, e lhe respondeu a dita Cristina que casando
a sua filha não ganhava coisa alguma, e que andando naquela vida
ganharia doblas (sic)”.60
57 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 162 V.
58 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio, 1734, fls. 106.
59 , Ibid., fls. 104 V-105.
60 , AEAM , Devassas, – 1733, fls. 89-89 V.
61 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 79 e 81 V.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
85 , “... por serem eles tão pouco acautelados no seu pecado que entrando ele tes-
temunha haverá coisa de quatro semanas (…) em casa dela dita preta Rosa, a achou
e viu no ato pecaminoso na sua cama com o dito Manuel de Lima...”. Em: AEAM ,
Devassas – 1733, fls.12.
86 , Cf. Carrato. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. c.1.
87 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 77.
88 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 107, 107 V e 108.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
onde o crioulo Julião Pinto tinha casa e uma pequena venda, o forro
Silvestre Ramos, também crioulo, recebeu vários ferimentos; isto se
passou na noite de 4 de setembro de 1790.101 Quase um mês depois,
quando se achava em casa da preta forra Maria Barbosa, o crioulo
forro Álvaro Pereira também recebeu vários ferimentos; a vítima
morava no Morro do Ouro Fino.102 As feridas que Manuel Fran-
cisco Nunes, pardo, provocou em Antonio Luís Brandão Coelho,
crioulo e forro como seu agressor são descritas detalhadamente. O
delito teve lugar por volta de sete horas da noite de 14 de agosto de
1792, e a mandante do crime foi a mulher de Manuel Francisco. O
crioulo recebeu “uma ferida simples no anterior do braço esquerdo
que cortou couro e carne sendo a ferida interna do tamanho de meia
polegada feita com instrumento cortante”.103
Há várias brigas e ferimentos que, ao que tudo indica, não se pas-
saram nas horas noturnas. Manuel da Silva Barros e José Pereira
da Costa, ambos moradores na Soledade, freguesia de Congonhas 205
do Campo, envolveram-se em uma rixa: o primeiro recebeu umas
cutiladas, dando, por sua vez, pancadas no adversário.104 Também
não foi à noite que Antonio Gomes de Gouveia alvejou o seu vizi-
nho João Pinheiro, ambos pardos, forros e moradores na freguesia
da Itatiaia.105 Não há igualmente especificação de horário na de-
vassa que trata das pancadas recebidas em Congonhas do Campo
por Rosa Gonçalves, preta forra que veio abortar em razão do aci-
dente.106 Nada se sabe sobre o teor da briga que envolveu a escrava
Inácia e Maria Josefa, mulher parda que atendia pela alcunha de
“a Gamba”; como consequência, Inácia teve o rosto retalhado, e “a
Gamba” saiu culpada por ter ferido a outra com uma navalha.107
Lourenço Teixeira, cabra forro, foi preso por dar pancadas no escra-
vo de um tenente- coronel, “sem mais causa que a sua malevolência”.
Por este motivo, acabou sendo expulso dos distritos das Catas Altas,
Inficcionado e Bento Rodrigues, onde não poderia mais entrar.108
Os conflitos que culminavam em ferimentos podiam ter lugar até
dentro da cadeia: em 1746, o pardo forro José da Cunha de Mendon-
ça, o mestiço Manuel Barbosa, o escravo crioulo Luis e um mulato
chamado João foram feridos na enxovia dos pretos de Vila Rica por
um negro forro de nome João Bonito, que enlouquecera.109 Mas o
local privilegiado das contendas era a rua, universo dos imprevistos
e das paixões, do engano, da decepção e da malandragem.110
As querelas eram outra forma de exteriorização dos conflitos.
Querelava-se a respeito de tudo: terras, pertences, limites, escravos.
Estiveram presentes entre os homens pobres, que muitas vezes que-
relaram com os indivíduos que lhes quiseram roubar cavalos, ou
206 que lhe feriram algum cativo. Foi este o caso de Manuel de Barros
Braga, que registrou querela contra um negro forro e capitão-do-
-mato, de nome Fradique de Souza, por este ter esfaqueado um seu
escravo, ferindo-o muito na mão esquerda.111 A preta forra Rosa
Maria também requereu querela por causa de uma escrava, em
quem Antonio de Almeida, morador na Água Limpa, dera algumas
Gervásio Gonçalves, por ordem do Ilmo. Sr. Governador desta capitania, em que se
obrigam a viver em paz” – 19-VII-1760, em: APM , SC , cód. 89, fls. 24 V.
114 , Termo de bem viver – 10-X-1766, em: APM , SC , cód. 89, fls. 35.
115 , Termo – 15-I-1777, em: APM , SC , cód. 89, fls. 62 V.
116 , Petição de Cosme Soares Ferreira, seus irmãos, moradores no sítio
chamado o Mocambo, e deferimento que S.Exa. No dito requerimento
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
137 , Termo de bem-viver – 11-VI (ou VII ?) - 1764, em: APM , SC , cód. 89, fls. 29.
138 , Petição de Gabriel da Silva Sampaio e despacho. Vila Rica, 25-X-1796,
em: APM , SC , cód. 260, fls. 67.
139 , APM , CMOP, cód. 47, respectivamente fls. 98 e 26.
140 , Ibid., idem, fls. 96.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
[...] o Tenente Ezequiel Rebello de Andrade tem tido sempre uma conduta
devassa, tem sido muito irregular no Serviço, além d'outros desmanchos
que são bem públicos nesta capitania, tendo só a virtude de ser limpo de
mãos; (…) o Alferes Joaquim José de Mesquita é o mais extravagante ofi-
cial, que eu conheço; tem chegado a vender seus uniformes, que já lhe tenho
mandado desempenhar; continua no mesmo desmancho, e a pretexto de
moléstias se esquiva sempre do Serviço; e acha-se a mais d'ano encantoado
nesta vila; saindo apenas de noite por não ter meios d'o fazer com decência
de dia, e dá com tal exemplo grande escândalo aos seus camaradas [...]155
exterior, tinha facilidade de contatos, podendo enviar ouro e diamantes sem gran-
de dificuldade para fora das Gerais e, mesmo, para o estrangeiro.” Julita Scarano,
ob.cit., p. 17.
172 , G. Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 178.
173 , Cf. Waldemar de A. Barbosa, op.cit., v.2, p. 394. Sendo extremamente fácil
de conseguir, a tonsura era frequentemente usada pelos criminosos franceses que
procurava, assim, escapar aos rigores da lei: “A falsa tonsura é aliás o sinal típico da
adesão ao meio criminoso”. Geremeck, ob.cit., p. 131. Ver também p. 155.
174 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 185.
175 , Cf. Waldemar de A. Barbosa, ob.cit., v.1, p. 211-2.
176 , Cópia de dois requerimentos e despachos de S. Exa. Proferidos ao
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
saltava uns quintais para ir ter à casa da dita mulher, foi corrido
por uns negros. O padre era tido por “mui namorado e lascivo”, e se
dizia “que as esmolas que se lhe dão dos santinhos que lança as gas-
ta com mulheres”. 183 Na freguesia de Nossa Senhora da Conceição
da Ariuóca, o Padre Felipe Teixeira Pinto foi culpado em primeiro
lapso de andar concubinato com uma escrava preta chamada Ana,
e também “por sair a bailar com uma mulatinha que lhe levaram à
casa”. 184 O Padre Manuel Serrão namorava Potência Leite, mulher
de Manuel Cabra, e ela tinha disso grande orgulho, perguntando
a terceiros “se tinha bom gosto em falar com o dito vigário” e se
ele “era gentil-homem”. Manuel Cabral consentia passivamente no
concubinato, conforme diz uma testemunha que, estando um dia
em sua casa, “viu que à vista do mesmo marido estando ela (Potên-
cia) em uma rede o Padre Manuel Serrão estava junto dela metendo-
-lhe as mãos nos peitos...”. 185
Havia ainda todo um rol de padres concubinatos e apóstatas, que 221
vagavam pelos matos cometendo desatinos. O Padre Antonio So-
ares, havia muitos anos que andava amancebado com a bastarda
Maria Pais, com quem tinha filhos; vivia para as partes do Sapucaí,
“apartado no mato”, “parecendo mais bruto do que clérigo”.186 O
Padre João de matos chegara a Baependi com uma comadre sua,
Helena de Tal, e com ela vivera amasiado todos aqueles anos, “como
régulo sem hábito nem tonsura, andando em visita com um baca-
marte, e terçado à cinta”, “metendo terror a todos e descompondo
a muitos”; apesar de tudo isso, e de ir ao arraial nos domingos sem
contudo assistir à missa, o colérico Padre Manuel Esteves, que des-
compusera a pobre mulher do roceiro, o desobrigou da quaresma,
dando comunhão a ele e a sua concubina.187 O Padre Antonio Soa-
alto. Cf. Mary and Misoginy – Women in Iberian Expansion Overseas – 1415-1815 —
some facts, fancies and personalities. Londres, 1975, p. 108-9.
183 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 137-137 V
184 , AEAM , Devassas – maio de 1730 - abril 1731, fls. 19.
185 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 45 V e 49-49 V
186 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 148 e 148 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
dir as vendas dentro das lojas, onde não podiam entrar, de dia ou
de noite, nem escravos, nem forros, fossem negros ou mulatos; os
negócios só podiam ter lugar do mostrador para fora.191 Mas nada
disso parece ter surtido o efeito desejado, e em 1732 o secretário do
Governo das Minas, Manuel da Fonseca Azevedo, estendia-se sobre
a matéria em representação dirigida a Sua Majestade:
na Comarca do Serro Frio. Primeiras administrações”, em: RAPM , VII , 1902, p.336-7.
Bando de 1-III-1743, em: APM , SC , cód. 50, fls. 38 V-39.
192 , Representação de 20-II-1732, segundo Waldemar A. Barbosa, Negros e qui-
lombos em Minas Gerais, p. 121.
193 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 93 V.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
pagavam”. 204
Muito frequente também era “alcovitar mulheres para homens”,
como corria fama de que fazia a parda forra Adriana Barbosa, le-
vando recados de homens para mulheres e, algumas vezes, “dando-
-lhes a sua própria cama para as suas torpezas”.205 De certa forma,
alcoviteiros eram os pais e mães e consentiam na prostituição de
suas filhas, incentivando-as muitas vezes, como a negra Cristina de
que já se falou acima.
Tendo-se em vista o tipo de sociedade desenvolvida nas Minas,
torna-se difícil estabelecer os limites da prostituição, palavra usada
com frequência para designar um tipo de estrutura assentada na
predominância dos fogos encabeçados por mulheres, que muitas
das autoridades – inclusive as da Igreja – consideravam imoral. A
visita eclesiástica tivera, nesse sentido, um papel “normalizador”
que correu paralelo ao do Estado, tentando erradicar as relações
228 extraconjugais sem alterar os pré-requisitos para o casamento.206
O grande número de mulheres indiciadas nas devassas sob designa-
ção de “mal procedidas” e as constantes insinuações de que viviam
da prostituição confirmam o aspecto extremamente rígido da ótica
eclesiástica, incapaz de captar a especificidade dessa formação so-
cial; por outro lado, nem tudo foi mistificação pura e simples: esses
documentos retratam, de uma forma ou de outra, a fluidez das re-
lações sociais, notadamente a da camada pobre e livre das Minas.
Muitas dessas mulheres prostitutas ou semiprostituidas eram ca-
sadas, como Paula Perpétua, parda forra casada com Francisco da
Cunha e tida por “mulher meretriz”, o marido se acomodando à
situação “por ser homem pobre, velho, e temer os impulsos da re-
ferida”.207 Também parda e forra, Gertrudes era casada mas vivia
ausente de seu marido, sendo “mulher desenvolta” “que se costu-
ma dar à desonestidade com quaisquer pessoas que a procuram”.208
216 , Termo de bem viver — 6-I-1772, in: APM, SC, cód. 89, fls. 51-51V.
217 , Termo, s.d., in: APM, SC, cód. 163, fls. 52V-53.
218 , AEAM , Devassas – 1747-1748, fls. 31V-32.
219 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 32V.
220 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 11V.
221 , AEAM , Devassas – 1748-1794, fls. 18-18V.
222 , AEAM , Devassas – 1733 – outubro-dezembro, fls. 71 V.
13 .O A RC A IC O E O MODE R N O : H I S T ÓR I A DE U M A A M I Z A DE
241 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 50-51 e 52. As reticências substituem as ex-
pressões “ele testemunha” ou “testemunha”, que, excessivamente repetidas, atrapa-
os nossos amigos – o que vendo ele testemunha e ouvindo entrou a tremer,
e a experimentar os cabelos arrepiados, e com o dito temor disse (…) ao
dito Paulo Gil que esperasse que ele (…) logo vinha, e com efeito se retirou
cheio de pavor para sua casa, e depois topando-se com o mesmo Paulo Gil
este com ele pelejara, dizendo que lhe fizera boa em lhe faltar, persistindo
sempre em o persuadir que tivesse a dita mandinga, até que passados mais
alguns dias o mesmo Paulo Gil, andando a dormir ele testemunha o feriu
em uma parte de um quadril com cuja dor acordando ele (…), e achando-
-se ferido, lhe perguntou porque razão ele o ferira, ao que ele dito Paulo Gil
respondera, que era para dar o sangue àqueles amigos que ele tinha visto
aquela noite, por cujo motivo lhe prometia (…) que havia de ter forças que
ninguém havia de poder com ele (…), ao que ele (…) respondeu que não
queria tais amigos; e logo (…) viu levantar um redemoinho no vento de tal
forma que tudo levava comigo, de que ficou ele (…) tão cheio de medo que
entrou a chamar por Santa Ana, e desde então até agora não quis ter mais
comércio com o dito Paulo Gil […] 241
lha a leitura.
242 , “... as atitudes mentais tradicionais envolvem a propriedade privada de meios
de defesa que a sociedade capitalista apenas reforçou e continuou”. Geremeck, Cri-
racterísticas de uma cultura primitiva e o seu novo meio sociocultu-
ral. Agente da circunscrição do mal tacitamente reconhecido e acei-
to por seus semelhantes, o feiticeiro perdia, na colônia portuguesa,
a sua função original. É claro que muitas formas de seu saber foram
preservadas, e a elas muita gente recorreu. Mas, fora do seu círcu-
lo, longe daqueles que, como ele, ainda preservavam essa forma de
saber, a feiticeira e o feiticeiro foram vistos como desclassificados.
269 , Cartas e devassa da morte de Antonio Antunes, crioulo forro, por alcunha o
Garrafa – APM , SC , cód. 223, fls. 37-39. O dono da casa em que se achava o Garrafa –
e que aparece na devassa ora como José Batista Rolim, ora como capitão José Rober-
to Rolim – era suspeito de contrabando de diamantes. Talvez pertencesse à família
do padre Rolim, bastante envolvida com esta prática. Cf. Maxwell, ob.cit., p. 145.
270 , “Carta do conde de Valadares ao Morgado de Mateus” – 18-II-1770, em: DI ,
XIV, 1895, p. 270-1. Ver também as outras cartas da correspondência entre Valadares
e o Morgado de Mateus, no mesmo volume; “Para todos os oficiais dos registros so-
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 3
serem feitas para a sua prisão. Não sabemos qual o crime de Manuel
da Costa Jardim – “réu delinquente em homicídio horroroso” –,
mas por dois anos – de 1768 a 1770 – ele foi assunto de várias cartas
que entre si trocaram o conde de Valadares e o Morgado de Mateus,
capitães-generais de Minas e de São Paulo. Valadares pedia “cautela
e segredo” na sua captura, e enviava ao colega de administração um
memorial contendo os sinais do réu. Natural da freguesia de Nossa
Senhora de Nazaré da Cachoeira do Campo, era filho de mulher
parda e homem branco, sendo considerado pardo ou mulato; tinha
“uma costura na cabeça”, o cabelo preso, a fisionomia carrancuda
e sinistra, o porte espigado e um “dente adiante quebrado, ou po-
dre”. Nesses dois anos, dois indivíduos foram presos por engano.
Afinal, o governador de Minas conseguiu localizá-lo: “Agora eu te-
nho a certeza, e notícia, que ele se acha no Convento dos Capuchos
dessa cidade (São Paulo) por recomendação de um sacerdote desta
capitania a um religioso, cunhado de um médico, aqui assistente; 243
servindo no convento de hortelão, ou cousa semelhante”.270
Caso curioso é o de Inácio Alves de Queiroga: assassinara um
ourives e seu escravo, roubando-lhe quarenta mil cruzados; depois
disso, recolhera-se para os confins do Itambé de Dentro, lá ficando
acastelado numa construção fortificada que, a 27 de setembro de
1736, o sargento-mor Romão Gamacho invadiu com o objetivo de
o prender. Ao delinquente não adiantaram “os cães de fila, armas,
seteiras da casa, e artifícios de pólvora, que dizem tinha, e se lhe
acharem uns em forma de morteiros, com pedras e metralha for-
mados de tamarasses cingidos de couros e fortificados com cordas e
outros para fazer voar quem lhe assaltasse a porta...”.271
bre haver recomendado segunda vez a prisão do Jardim”, em: APM , SC , cód. 163, fls.
46-46 V; “Circular aos capitães-mores para que seja preso o mulato Manuel Gomes
(sic) Jardim onde for achado ou encontrado nas jurisdições de cada um deles com o
memorial incluso”, em: APM , SC , cód. 163, fls. 20 V-21.
271 , Cartas de Martinho de Mendonça a Gomes Freire – 8-XI-1736, RAPM , 2, p.
376-7.
272 , “Para o alferes Francisco José de Aguilar que se acha em Paracatu e igual-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
mente para o alferes José Gonçalves Lima, que se acha em Jacuí” – carta do conde
de Valadares – 9-VIII-1768, em: APM , SC , cód. 163, fls. 4 V-5.
273 , “Provisão régia sobre a prisão de vários indivíduos, acusados do crime de
moeda falsa nas Minas” – 9-VIII-1768, em: APM , SC , cód. 163, fls. 4 V-5.
274 , Cf. Boxer, A idade de ouro..., p. 220; Carta régia sobre a prisão de vá-
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 3
pos, “aos magotes”. Eram tidos por inveterados ladrões das estradas,
sempre às voltas com o roubo de cavalos.281 Apresentavam acentua-
da solidariedade de grupo, pois tinham a uni-los, mais do que tudo,
a identidade cultural e a “nacionalidade” comum. Brigavam entre
si, muitas vezes se baleavam – em 1738, o cigano Fernando deu que-
rela de seu compatriota João Batista e de outros companheiros que
haviam atirado em seu filho João –,282 e foram frequentadores as-
síduos das cadeias mineiras.283 Não hesitaram em se misturar com
outros grupos de colonos, e em 1755 consta que andavam “vadiando
e furtando bestas junto com mulatos, carijós e gente da terra”. Mui-
tas ciganas viveram com os homens pobres e mesmo com os mais
bem situados socialmente, como a que Isidoro Coelho de Figueiredo
conservava ciumentamente reclusa em sua casa.285
O sertão foi palco de várias de suas tropelias. Já no tempo do con-
de das Galvêas, andava para os lados do rio São Francisco uma ex-
pedição para prender os ciganos que cometiam roubos, vagando em 247
quadrilha com mamelucos e ladrões.286 Seu número aumentou bas-
tante quando o vice-rei ordenou que fossem despejados da Bahia,
ocasião em que entraram na capitania das Minas; mas Martinho de
Mendonça não julgou oportuno persegui-los, optando por deixá-los
em paz e punir apenas os que cometessem delitos: “... por ora me
parece acertado, castigando aos que cometerem algum insulto, não
intender (sic) com os mais porque não suceda juntaram-se em algu-
ma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de per-
niciosas consequências, e dificultoso remédio, estando tão dispersos
os dragões deste presídio”. O governador interino dizia ainda que,
caso Bobadela achasse que podiam ser úteis no rio da Prata, para
lá seriam enviados.287 Outro local para onde se expediam ciganos
infratores era Angola.288
Com o intuito de prender alguns para com eles fazer uma leva
de eventuais soldados, Martinho de Mendonça acabou decidindo
organizar uma expedição e atacá-los. Essa diligência foi realizada
sem segredo, e resultou em fracasso. Querendo aproveitar a ocasião
em que um destacamento interrompera sua marcha devido às febres
do sertão, o governante ordenou que agissem contra os ciganos: “...
tendo notícia que se achavam em um rancho 26 ciganos contan-
do os filhos e escravos, e dizendo-lhe que estes publicavam haviam
de resistir, juntou de Paisanos oitenta e tantas pessoas armadas”
e caíram sobre os ciganos. Estes de fato apresentaram resistência,
matando um dragão e ferindo outro, mas perderam dois homens e
uma criança de peito. Os dragões conseguiram deter dois rapazes e
248 várias mulheres, e o episódio foi considerado “uma desgraça”. Nada
mais se sabe do fato, a não ser que os ciganos presos arrombaram a
cadeia de Vila Rica e fugiram para Sabará.290
Não era raro ocorrerem choques entre ciganos e tropas do gover-
no. Em 1773, os ciganos haviam tirado “violentamente das mãos dos
pedestres” um rapaz de treze ou quatorze anos de idade que ia ser
preso por ter furtado um cavalo nas proximidades de Congonhas.291
Alguns parece terem mantido boa inteligência com certos coman-
dantes de destacamentos, como o grupo de João Galvão, que recebia
apoio do comandante de Ouro Branco, pois “tendo-o podido pren-
der em muitas ocasiões”, não o fizera.292
Vila do Príncipe do Serro Frio. Contra Ciganos – e despacho que sobre ele deferiu o
sr. General, tudo do teor seguinte...” – 22-II-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 99 V-101.
294 , Mafalda Zemella, ob.cit., p. 150.
295 , Carta do Juiz Ordinário João Coelho Duarte ao governador – 21-10-1782, em:
APM , SC , cód. 223, fls. 22 V-23.
296 , Diogo de Vasconcellos, História média..., p. 245.
A PA L AV R A A F I A DA C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 6
308 , Cf. Aires da Mata Machado, Arraial do Tijuco – Cidade Diamantina, 2ª ed.,
São Paulo, s.d., p. 86-7. Sobre o processo desclassificador que originava o garim-
peiro, diz J. Felício dos Santos: “Resultou que por não terem onde trabalhar, para
evitarem a miséria, muitos se embrenharam pelas serras, e foram correr a vida ar-
riscada e aventureira do garimpo, apesar dos rigores das penas a que se sujeitavam.”
– Memórias..., p. 186.
309 , Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 99.
310 , Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa ,
em: Alexandre Eulálio, Folhetins inacabados, p. 68.
311 , “A caça que se dava ao garimpeiro era cruel, desapiedada, encarniçada: eram
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
e quando vencido e prisioneiro, no meio dos maiores sofrimentos, por que o faziam
passar, não traía seus companheiros e nem confessava os cúmplices, que poderia
256 comprometer”. – Memórias..., p.99.
320 , Geremeck propõe o inter-relacionamento do estudo da ação de grupo e o
das biografias individuais. Este é, para ele, particularmente importante: “... para
conhecer essa coletividade, não podemos nos apoiar em nenhuma abordagem glo-
bal; somos obrigados a abrir um caminho através de uma multiplicidade de casos
isolados.” – Les Marginaux Parisiens..., p. 74 e 142-3. Sobre o papel da memória e
dos heróis, diz Hobsbawn: “Após determinado decurso de gerações, a memória do
indivíduo mistura-se com o quadro coletivo dos heróis legendários do passado, o
homem com o mito e simbolismo ritual, de modo que o herói que por acaso sobre-
viva além dessa faixa, como Robin Hood, não pode mais ser substituído no contexto
da história real”. – E.J. Hobsbawm, Bandidos, trad., Rio de Janeiro, 1975, p. 130. E
mais adiante: “Pois os bandidos pertencem à história recordada, em contraposição à
história oficial dos livros. Fazem parte da história que é menos um registro de fatos
e daqueles que os realizaram, quando do símbolo dos fatos teoricamente controlá-
veis, mas na prática descontrolados, que moldam o mundo dos pobres: de reis justos
e de homens que levam justiça ao povo.” – p. 135.
321 , Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p.200.
322 , Ibid.
323 , Ibid.
324 , “De que servia a disciplina da infantaria, se tinha de bater-se com inimigos
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 9
Aos 18 dias do mês de abril de 1787, neste arraial do Tijuco e tronco dele,
onde eu escrivão adiante nomeado fui vindo, e sendo aí achei preso no
dito tronco a João Costa Pereira, homem branco, forro (sic), que se achava
vestido com camisa e veste branca, calções e meias encarnadas, ao qual fiz
as perguntas seguintes: donde era natural, quem eram seus pais, que idade
tinha, se era solteiro ou casado, ou se professo em alguma religião: – e por
ele me foi respondido que era natural das Gerais, que não conhecia seus
pais, que tinha trinta e três anos de idade, que era solteiro e não era profes-
so em religião alguma. E fazendo-lhe eu escrivão abaixar a cabeça, lhe não
vi sinal algum, por onde tivesse ordens, que o isentassem da jurisdição real. 259
O qual preso é de estatura baixa e grossa, cabelo amarrado, cara redonda,
olhos pardos, pouca barba e falto de dentes na frente.327
Nada mais se sabe de concreto sobre o garimpeiro da Serra, que
talvez tenha fugido da cadeia e voltado à vida arriscada e aventurosa
que tivera até então. Tudo indica que a memória popular fixou sua
imagem com carinho, romantizando-a e cultivando-a como a de
um herói.328
Tendo sido contemporâneo de João Costa, com quem chegou mes-
mo a garimpar, José Basílio de Souza era cabra, de estatura média,
uma passagem, o herói expõe seu modo de vida a outra personagem: “Será para ou-
tros um triste viver andar sempre proscrito, foragido, perseguido, exposto à morte
a cada momento, não tendo um abrigo certo, dormindo ao relento ou disputando
os covis às feras, hoje na abundância, amanhã sofrendo o frio, a fome, a sede... mas
para mim não: — encontro prazer nesta vida. Aqui ao menos respiro o ar da liber-
dade. Um dia havemos de ser livres; e enquanto não chega esse dia, não queres que
eu estenda o braço aos meus irmãos, que vejo sofrendo?” — Cenas da vida do
garimpeiro João Costa , em: Alexandre Eulálio, ob.cit., p. 82-3.
329 , J. F. Dos Santos, Memórias..., p.214.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
deixou seu filho como substituto: “Este filho, Bento se chamava, era o avesso de seu
pai, abundante em palavras, falando sempre rijo, e nada fino de engenho, e arteiro
A PA L AV R A A F I A DA C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 10
como ele (…) O descobridor Bento conservava-se em todo este tempo que traba-
lhavam lançado pelo comprido debaixo de umas verçudas ramalhadas, sem lhe dar
cuidado que se verificassem ou não as riquezas que prometera, cantando desentoa-
dissimamente a largas goelas suas cantigas namoradas, coisas que lhe davam mais
em que cuidar que o cumprimento de suas promessas.” – Vieira Couto, ob. cit., p.
102 e 104.
334 , Segundo Aires da Matta Machado Filho, Arraial do Tijuco – Cidade Dia-
mantina, p. 87-8.
335 , J. F. Dos Santos, Memórias.., p. 320. Sobre Isidoro, ver p.317-22.
336 , Cf. Roger Chartier, La Monarchie d'Argot entre le Mythe et
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 11
Isidoro foi venerado como santo por muito tempo. Nele se cor-
porifica, mais uma vez, a luta pela liberdade: “Perguntado se tinha
l'Histoire , em: Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p. 175-311;
ibid., “les élites et les gueux. Quelques représentations”, em: RHMC , XXI , julho-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
por todos não bastava para identificar os elementos avulsos que in-
tegravam a camada dos homens livres pobres.338
Numa sociedade de extremos bem definidos – a camada senhorial
e a camada escrava –, os homens livres pobres constantemente des-
classificados foram protagonistas miseráveis de uma triste aventura.
A heterogeneidade e a fluidez da camada que os envolveu, a vio-
lência dos mecanismos que os rejeitaram e os incorporaram quan-
do conveio, tolho-lhes a possibilidade de construir uma percepção
consciente da própria miséria. Esse eterno ser e não-ser impediu
que se enxergassem e compreendessem suas virtualidades; ao mes-
mo tempo, propiciou que outros construíssem um juízo sólido a seu
respeito; foi assim que a camada dominante, mais bem articulada,
pôde tecer a sua ideologia da vadiagem.
266
classe abraçada pelo autor, mas considero a citação elucidativa para o problema da
formação da consciência de grupo.
339 , A respeito da “turba” (the mob), diz Christopher Hill: “O que importa aos
nossos objetivos é a existência de uma vasta população que, na sua maioria, vive
próxima à linha da pobreza – podendo até situar-se abaixo dela –, pouco influencia-
da por ideologias políticas ou religiosas, mas constituindo-se em material acabado
para integrar o que, nos fins do século XVII , começou a ser chamado de “a turba”.
(…) Mas a turba é basicamente não-politica: poderia em 1647 ter sido usada por
presbiterianos contra o exército; em 1660, pelos realistas; pelos homens do rei e da
Igreja na época de rainha Ana”. The World Turned Upside Down, p. 41.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
CONCLUSAO
, A IDEOLOGIA DA VADIAGEM
Nesta terra não há povo, e por isso não há quem sirva ao Estado:
exceto muito pouco mulatos que usam seus ofícios,
todos mais são Senhores ou escravos
que servem aqueles Senhores...
Carta do Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras.
cerce do processo produtivo. De outro, uma massa de homens livres, sem sentido
produtivo, que tendo a posse raramente a propriedade da terra não se transforma
em mercadoria para o capital. Tal processo reforça o regime escravo, como refor-
ça também, em consequência, a situação da imensa maioria, que, sem passar pela
'escola do trabalho', se transforma numa população que, no mais das vezes adquire
as características de lumpen. Semelhante situação, originada pela propriedade es-
cravocrata, só poderia solidificar a percepção senhorial que encara a mão-de-obra
livre como a encarnação de uma corja inútil que prefere o vício, a vagabundagem ou
o crime à disciplina do trabalho nas fazendas”. Lucio Kowarick, A constituição do
mercado de mão-de-obra livre no Brasil..., parte III , p. 27. Essa análise diz respeito
ao fim do Império.
11 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, v.II , p.422.
12 , Eschwege, ob. cit., v. II , p. 448.
13 , Ibid., p. 423.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO
14 , Ibid., p. 423-4.
15 , Para citar apenas alguns autores, essa tendência acha-se presente no profundo
desencanto de Silvio Romero, Joaquim Nabuco e Monteiro Lobato para com o home
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
FONTES E BIBLIOGRAFIA
I. FONTES
1. Fontes Manuscritas
1.1 AEAM
Devassas — 1721-1735.
Devassas — 1727-1787.
Devassas — maio de 1730-abril de 1731
Devassas — 1733
Livro de Devassas — Comarca do Serro do Frio — 1734
Devassas — 1738.
Devassas — 1747-1748.
Devassas — 1748-1749.
Livro de Devassas — ano de 1753.
Devassas — 1756-1757.
Devassas — julho de 1762-dezembro de 1769.
Devassas — 1763-1764. 277
Livro de Devassas — janeiro de 1767-1777.
Livro de Devassas — 1800.
1.2. APM, SC
cód.1, Registro de alvarás, regimentos, cartas e ordens régias, cartas
patentes, provisões, confirmações de cartas patentes, sesmarias e doações
(1702-1740)
cód.4, Registro de alvarás, ordens, cartas régias e ofícios dos Governa-
dores ao Rei (1709-1722).
cód.9, Registro de cartas, ordens, despachos, instruções, bandos, cartas
patentes, provisões e sesmarias (1713-1717).
cód.11, Registro de cartas do Governador a diversas autoridades, ordens,
instruções e bandos (1713-1721).
cód.18, Originais de cartas e ordens régias (1720-1763).
cód.50, Registro de portarias, regimentos, ordens, bandos, editais, ins-
truções, cartas e assentos (1735-1776).
cód.59, Registro de petições e despachos (1736-1766).
cód.69, Registro de ordens, editais, nombramentos, portarias, instru-
ções, bandos, petições, informações, despachos e termos (1738-1755).
cód.84, Registro de cartas do Governador ao Vice-Rei e mais autorida-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO
AGRADECIMENTOS
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