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DE S C L A S SI F IC A D O S

D O OU RO
Laura de Mello e Souza

DE S C L A S SI F IC A D O S
D O OU RO

Ouro sobre Azul | Rio de Janeiro 2015


à memoria de Sérgio Buarque de Holanda
PR EFÁCIO À NOVA EDIÇÃO 9
AGR ADECIMENTOS 17
ABR EVIAÇÕES 17
INTRODUÇÃO , Problemas e opções 21
I. O FALSO FAUSTO 33
II. DA UTILIDADE DOS VADIOS 77
1 , O processo de desclassificação social no Ocidente 77
2 , Império Colonial, ergástulo de delinquentes 84
3 , Brasil: estrutura econômica
e processo de desclassificação social 87
4 , O processo de desclassificação nas Minas 96
5 , As várias formas da utilidade dos desclassificados 103
III. NAS R EDES DO PODER 131
1. , Administração e Estado 131
2. , As diferentes formas do exercício do poder nas Minas 144
3. , Oligarcas e potentados 197
IV. OS PROTAGONISTAS DA MISÉR IA 203
1. , Aspectos gerais da população 203
2. , A fluidez da camada 207
3. , Infratores e infrações: os casos individuais 241
4. , Infratores e infrações: aspectos de grupo 74
CONCLUSÃO , A ideologia da vadiagem 295
1. , As metamorfoses do ônus e da utilidade 295
2. , A humanidade inviável 300
FONTES E BIBLIOGR AFIAS 307
CR ÉDITOS DAS ILUSTR AÇÕES 318
, PR EFÁCIO À 4 a. EDIÇÃO

Destinado à obtenção do título de mestre, Desclassificados do ouro


foi escrito no início de 1980. O título foi concedido em outubro da-
quele ano, mas o livro só veio a público no final de 1982, e, desde en-
tão, ao longo destes 21 anos, teve algumas reimpressões. A presente
edição não pode ser considerada como “revista”, pois, exceto por
algumas correções formais, nada se alterou do conteúdo. O editor,
entretanto, possibilitou o acréscimo de uma bela iconografia e deste
Prefácio, onde, sustentando a argumentação central do livro, faço
alguns esclarecimentos.
Como já lembrei em outras ocasiões1Desclassificados foi con-
cebido num contexto de hipertrofia do estado brasileiro nos seus 9

aspectos mais nefastos e negativos. As liberdades individuais não


existiam, o medo era constante e geral o desalento, pelo menos en-
tre jovens que, como eu, saíam da adolescência. Meus trabalhos de
pesquisa com vistas ao mestrado começaram em 1976, embalados
pelo capitulo Vida Social , de Caio Prado Jr, em Formação do Bra-
sil Contemporâneo, e pelas três ou quatro conferências de Michel
Foucault no Departamento de Filosofia da USP, logo interrompidas,
pelo seu protesto ante o assassinato de Wladmir Herzog e, mais
tarde, sistematizadas na obra Histórica da Sexualidade – vol. 1 – A
vontade de saber. Nos anos seguintes, foi – como boa parte de mi-
nha geração na USP – leitora assídua de Antonio Gramsci e, ainda,
de obras sociológicas sobre a questão da força de trabalho. Havia
na época, grande fascínio pelas formas alternativas de viver e de

1 , Entrevista dada a Luís Carlos Villalta, Renato Pinto Venâncio e Fábio Faversan
para a LPH Revista de História, n.5, Ouro Preto: UFOP, 1995, p.5-12. Entrevista dada
a José Geraldo Vinci de Moraes e José Marcio Rego em Conversas com historiadores
brasileiros. São Paulo: Editora 34, 2002, p.363-82 (ver sobretudo p.373-4).
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pensar, as desconstruções parecendo bem mais promissoras do que


se afigurariam depois. Estudar os vencidos, os de baixo, não era, no
Brasil de então, mero modismo, mas forma de situar-se no mundo
de divergir e buscar caminhos novos. Quando todos os meus com-
panheiros mais chegados ou quase toda a minha geração estudava
o escravismo, focalizando de várias formas os seus protagonistas
principais – os escravos –, pensei poder contribuir à discussão pelo
seu avesso, ou seja, trazendo à baila um vasto contingente humano
afeito ao trabalho assistemático e esporádico: homens livres pobres,
sempre prestes a se tornarem desocupados, habituados ao biscate e à
incerteza de um eterno ser-e-não-ser. No mundo onde os extremos
– senhores e escravos – eram bem definidos e capazes de definir, o
homem livre pobre era, parecia-me o marginal entre os marginais.
Apesar da repercussão favorável e da acolhida generosa que, no
geral, o trabalho suscitou, surgiram, ao longo dos anos, algumas
10 críticas e reparos. O avanço impressionante da pesquisa histórica
em Minas Gerais, em grande parte tributária da consolidação dos
cursos universitários e dos programas de pós-graduação, revificou
a historiografia regional. Documentos que eram de difícil consulta,
como o Códice Costa Matoso, receberam edições críticas cuidado-
síssimas, facilitando o acesso dos pesquisadores a fontes primárias
preciosas.2
Muitos estudos mais verticais e recortados trouxeram novo ma-
triz à análise da sociedade mineira setecentista, a ênfase à agricul-
tura e à constituição de um mercado interno tornando-se, de certa
forma, os carros-chefes dessa renovação.3 Contribuições interes-

2 , Na publicação dessas fontes, ressalte-se o trabalho magnifico da Fundação


João Pinheiro, que trouxe a público edições críticas de clássicos como José Joaquim
da Rocha, Teixeira Coelho e Vieira Couto. Destaco aqui duas importantes publica-
ções mais recentes: Códice Costa Matoso – edição coordenada por Luciano Raposo
de Almeida Figueiredo e Maria Verônica Campos. Belo Horizonte, Fundação Pi-
nheiro, 1999, 2 v. Luís Gomes Ferreira, Erário Mineral. Edição organizada por Júnia
Ferreira Furtado, Belo Horizonte, Fundação João Pinheiro, 2002.
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3 , Carla Maria Carvalho de Almeida, Alterações nas unidades produtivas mi-


neiras – Mariana, 1750-1850. Dissertação de Mestrado, Departamento de História,
UFF, 1994. Francisco Eduardo de Andrade, A enxada complexa: roceiros e fazendei-
ros em Minas Gerais na primeira metade do século XIX . Dissertação de Mestrado,
Departamento de História, FAFICH-UFMG , Belo Horizonte, 1994. Ângelo Alves
Carrara, Agricultura e pecuária na Capitania de Minas Gerais (1674-1807). Tese de
Doutorado, Departamento de História – UFRJ , Rio de Janeiro, 1997. Cláudia Maria
das Graças Chaves, Perfeitos negociantes – mercadores das Minas setecentistas. São
Paulo: Annablume, 1999. Júnia Ferreira Furtado, Homens de negócio – a interiori-
zação da metrópole e do comércio nas Minas setecentistas. São Paulo: Hucitec 1999.
José Newton Coelho de Menezes, O continente rústico: abastecimento alimentar na
Comarca do Serro do Frio – 1750-1810. Belo Horizonte: Maria Fumaça, 1997. Sô-
nia Maria de Magalhães, A mesa de Mariana – produção e consumo de alimentos
em Minas Gerais (1750-1850). Dissertação de Mestrado, Departamento de História,
Unesp/Franca1998. Flávio Marcus da Silva, Subsistência e poder – a política do abas-
tecimento alimentar nas minas setecentistas. Tese de Doutorado, Departamento de 11
História, FAFICH-UFMG : Belo Horizonte, 2002. Sobre aspectos mais gerais da so-
ciedade, ver Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, O avesso da memória – coti-
diano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII . Rio de Janeiro: José
Olympio, Brasília: EDUNB , 1993; do mesmo autor, Barrocas famílias – vida familiar
em Minas Gerais no século XVIII . São Paulo: Hucitec 1997; Marco Antônio Silveira,
O universo indistinto – estado e sociedade nas Minas setecentistas (1735-1808), São
Paulo: Hucitec, 1997; do mesmo autor, Fama publica – poder e costume nas Minas se-
tecentistas. Tese de Doutorado Departamento de História, FFLCH-USP, 2000; Júnia
Ferreira Furtado, Chica da Silva e o contratador dos diamantes, São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2003; Luís Carlos Villalta, Reformismo ilustrado, censura e práticas
de leitura: usos do livro na América Portuguesa. Tese de Doutorado, Departamento
de História, FFLCH-USP, 1999; Álvaro de Araújo Antunes, Espelho de cem faces; o
universo relacional do advogado setecentistas José Pereira Ribeiro. Dissertação de
Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG , 1999. Sobre urbanização, ver
Maria Aparecida Menezes Borrego, Códigos e práticas – o processo de constituição
urbana em Vila Rica colonial (1702-1748), São Paulo: Annablume, 2004, e Claudia
Damasceno Fonseca, Des Terres aux Villes de l’Or. Pouvoirs et Territoires Urbains
au Minas Gerais (Brésil, XVIII e siècle), Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian,
2003. Sobre a questão indígena, ver Maria Leonia Chaves de Resende, Gentios Bra-
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santes também se verificaram na análise do escravismo, onde in-


fluência anglo-saxônica – com o apreço pela capacidade de os es-
cravos conduzirem sua existência por meio dos poros e interstícios
do sistema – se faz notar de modo especial. O estratagema, a nego-
ciação, a esperteza passaram a sobrenadar, relativizando a ideia da
escravidão-cárcere, da qual era impossível sair.4 Eu mesma acabei
por rever concepções que endossara antes, como a analogia entre
o aumento das alforrias e o “sucateamento’ da força de trabalho.5
Estudos específicos mostraram, afinal, que a obtenção de alforrias
constituíra um processo complexo, composto por variáveis como
a sazonalidade, o gênero, a idade.6 Por fim, cabe destacar a relati-

sílicos – índios coloniais em Minas Gerais Setecentista. Tese de Doutorado, Depar-


tamento de História, Unicamp, 2003; ver ainda Hal Langfur, The Forbidden Lands:
Frontier Settlers, Slaves, and Indians in Minas Gerais, Brazil, 1760-1830. Tese de
12 Doutorado, Universidade do Texas, 1999. Sobre o papel dos paulistas na formação
dos currais de gado do médio São Francisco, ver Márcio Roberto Alves dos Santos,
Bandeirante Paulistas no sertão do São Francisco e do Verde Grande – 1688-1732.
Dissertação de Mestrado, Departamento de História, FAFICH-UFMG , 2004. Como
obra de referência, ver Adriana Romeiro e Angela Viana Botelho, Dicionário Histó-
rico das Minas Gerais – período colonial. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
4 , Eduardo França Paiva, Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII –
estratégias de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume, 1995. Do
mesmo autor, Escravidão e universo cultural na colônia – Minas Gerais, 1716-1789.
Belo Horizonte: Editora UFMG , 2001. Julita Scarano – Negro nas terras do ouro –
cotidiano e solidariedade – século XVIII , São Paulo: Brasiliense, 2002. Liana Maria
Reis, Por ser público e notório: escravos urbanos e criminalidade na capitania de Mi-
nas (1720-1800). Tese de Doutorado, Departamento de História, FFLCH-USP, 2002;
Para as relações entre escravidão e protoindustrialização, já no século XIX , Douglas
Cole Libby, Transformação e trabalho em uma economia escravista – Minas Gerais
no século XIX . São Paulo: Brasiliense, 1988.
5 , Laura de Mello e Souza – Coartação: problemática e episódios referen-
tes a Minas Gerais no século XVIII , em: Maria Beatriz Nizza da Silva (org.),
Brasil – colonização e escravidão, Rio de Janeiro Nova Fronteira, 2000, p.275-95.
6 , Kathleen Joan Higgins, The Slave Society in Eighteenth-century Sabara: a com-
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vização do peso opressor do Estado, não apenas capaz de cooptar


agentes locais como, também, de se mostrar rígido na letra mas ine-
ficiente na execução. O trabalho de Júnia Ferreira Furtado sobre o
Distrito Diamantino ressaltou justamente essa capacidade de ação
cotidiana dos habitantes do Tijuco, que nenhum Regimento conse-
guiu, na prática, neutralizar.7
Em graus variáveis, muitos dos trabalhos acima citados relativi-
zaram, pois, alguns pontos de Desclassificados do ouro. Tal é, afinal,
o destino de todo estudo de História, e entendo que o fato deve ser
visto como positivo: o contrário – a permanência de verdades ina-
baláveis – significaria estagnação desalentadora da vida intelectual
do país. Por meio de um ou outro acréscimo, sobretudo nas notas,
eu poderia ter incorporado, nesta edição, os reparos que conside-
ro significativos. Não o fiz porque acredito que um livro é também
filho de seu temo, e não quis tirar-lhe este caráter. E resto, como
afirmei em outro Prefácio, escrito para um outro livro meu, não sou 13
mais capaz de escrever como então, e o tom geral do livro reflete
uma juventude que já não possuo, expressa também na adjetivação
e nos juízos de valor que, hoje, eu manejaria com maior prudência.
Há pontos, contudo em que minhas posições foram mal compre-
endidas ou mesmo distorcidas. No limite, houve quem confessasse
espanto por Desclassificados endossar “amplamente as considera-
ções das ‘camadas dominantes’”, nada havendo que diferenciasse
qualitativamente as análises de Gilberto Freyre, as de Caio Prado
Jr. e a minha, sobretudo porque as fontes utilizadas, quase sempre

munity study in colonial Brazil. Tese de doutorado, Universidade de Yale, 1987. UMI
Dissertation Services, 1994. Laird W. Bergard – Slavery and the Demographic and
Economic History of Minas Gerais, Brazil. 1720-1888. Cambridge: Cambridge Uni-
versity Press, 1999.
7 , Furtado, Júnia Ferreira, O livro da Capa Verde. O Regimento Diamantino
de 1771 e a vida no Distrito Diamantino no período da Real Extração. São Paulo:
Anablume, 1996. Mais recentemente, ver, sobre as relações entre o âmbito público
e o privado do poder político na capitania, Maria Veronica Campos, Governo de
Mineiros – de como meter as Minas numa moenda e beber lhe o caldo dourado –
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de natureza oficial, se encarregaram de me trair.8 Em mais de uma


obra sua, Carlo Ginzburg defendeu, muito melhor do que eu pode-
ria fazê-lo, a posição de que os testemunhos – históricos, literários,
iconográficos – podem e devem ser lidos ao revés.9 A meu ver, acre-
ditar que fontes seriais propiciem abordagens mais “objetivas” ou
democráticas seria, no primeiro caso, ingenuidade e, no segundo,
uma certa demagogia. Por muito que me honre figurar ao lado de
dois dos grandes “explicadores do Brasil”, acredito que Desclassifi-
cados do ouro, sem dúvida muito influenciado pela perspectiva ana-
lítica de Caio Prado Jr. – nos 1970, uma das mais oxigenadoras que
havia -, problematizou de modo inovador a ambiguidade constituti-
va do trabalho e do homem livre no mundo do escravismo colonial.
Numa perspectiva histórica, a desclassificação – vocábulo que não
apresenta qualquer caráter pejorativo, mas meramente analítico,
ancorado na sociologia – fora abordada sobretudo para os contex-
14 tos da industrialização. Vê-la no mundo do capitalismo nascente e
antes do advento da indústria foi, a meu ver, um avanço. Por outro
lado, associar a desclassificação social ocorrida na colônia com os
processos mais amplos de pauperização do Ocidente destacando
o papel neles desempenhado pelas colônias, amplificou o escopo e
teve por objetivo mostrar que o recorte específico não deve, nunca,

1693 a 1737. Tese de Doutorado, Departamento de História, FLCH-USP, 2002; sobre


o visionarismo político e a conflitualidade na capitania, ver Adriana Romeiro, Um
visionário na corte de D. João V – revolta e milenarismo nas Minas Gerais. Belo
horizonte: Editora UFMG , 2001. Sobre a administração da capitania, Virginia Maria
Trindade Valadares, A sombra do poder – Martinho de Melo e Castro e a administra-
ção da capitania de Minas Gerais (1770-1795). Dissertação de Mestrado, Faculdade
de Letras, Universidade de Lisboa, 1997, 2 vol.
8 , Sheila de Castro Faria, A colônia em movimento – fortuna e família no cotidia-
no colonial. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1998, p. 395-6.
9 , Entre outros: O Inquisidor como antropólogo: uma analogia e suas
implicações , em: A micro-história e outros ensaios. Tradução Portuguesa, Lisbo:
Difel, 1991, p. 203-14 Estranhamento – pré-história de um procedimento
literário , em: Olhos de madeira – nove ensaios sobre a distância. São Paulo: Com-
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deixar de lado o enquadramento geral. Usando uma terminologia


que, então, não se achava em voga, penso ser cabível dizer que Des-
classificados do ouro ajuda a pensar a globalização da pobreza – ob-
jeto que não fazia parte das cogitações de Freyre e de Prado Jr. Por
fim, parece não ter ficado claro para muitos que este livro aborda
não apenas a constituição e o modo de vida dos homens livres po-
bres em Minas Gerais, mas também a ideologia da vadiagem, ou
seja, o olhar raivoso e desqualificador que as elites – agora é delas
mesmo que se trata – lançaram, séculos afora, sobre o mundo do
não-trabalho e sobre os mestiços de vário matiz, que teimosamente
se desejava branquear.
Outra crítica recorrente diz respeito a uma possível hipertrofia
que o setor aurífero recebeu neste trabalho.10 Minas não era só ouro:
passadas as primeiras crises – terríveis, na virada do século XVII –
havia, desde o início do povoamento, cultura de subsistência, mui-
to alambique, monjolo, criação de porcos e currais de gado. Havia, 15
igualmente, fortunas feitas no comércio de secos e molhados, na
venda de carne, no transporte de mulas. Se é inegável a diversifi-
cação da estrutura econômica desde muito cedo no século XVIII ,
continuo acreditando que foi o ouro o grande dinamizador da eco-
nomia das Minas, o elemento que lhe deu a cor e a especificidade.
Os homens que abriram fazenda ao longo do Caminho Novo – uma
das quais chegou até os dias de hoje, sempre na mesma família – não
o fizeram porque achassem boas as terras dali, mas porque foram
atraídas pela mineração.11 Os que, como aquele célebre Castro de
panhia das Letras, 2001, p. 15-41; Os andarilhos do bem – feitiçarias e cultos agrários
nos séculos XVI e XVII . São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
10 , Veja, por exemplo, Liana Maria Reis e Carlos Magno Guimarães, Agricul-
tura e escravidão em Minas Gerais (1700-50), em: Revista do Departamen-
to de História, Belo Horizonte, FAFICH-UFMG , n.2, 1986, p.7-36; Agricultura e
caminhos de Minas (1700-50), em: Revista do Departamento de História, Belo
Horizonte, FAFICH-UFMG , n.4, 1987, p.85-99.
11 , Ver André Figueiredo Rodrigues, Um potentado na Mantiqueira: José Aires
Gomes e a ocupação da terra na Borda do Campo. Dissertação de Mestrado, Depar-
tamento de História, FFLCH-USP, São Paulo, 2002.
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Sabará, morreram milionários com o comércio, foram ter às Mi-


nas para vender fazendas e comestíveis aos mineradores. Quando
a mineração caiu irreversivelmente, ocorreu, por um lado, a di-
áspora mineira e, por outro, a ruralização profunda da região. A
nomenclatura da capitania, depois província e hoje estado, acusa
o nexo profundo da economia, e é bom lembrar que, no Brasil, só
Minas Gerais derivou o nome da atividade econômica principal: a
cana-de-açúcar, o café ou o gado não foram capazes de nomear as
regiões onde mais se desenvolveram. O ouro, pois, marcou indele-
velmente a velha capitania: mais do que à agricultura, é a ele que se
deve a identidade colonial da região.
A capitania de Minas Gerais foi um de meus principais objetos
de estudo durante quase 30 anos. Protegida pelo âmbito regional,
ensaiei os primeiros passos de historiadora e fui ganhando familia-
ridade com os problemas complexos que essa prática impõe. Entre-
16 tanto, a fase aberta com Desclassificados foi-se fechando, e vejo-me
agora envolvida com preocupações muito diferentes. Por todos es-
ses motivos, deixo aqui o mesmo livro publicado em 1982. Cabe ao
leitor julgar sobre o interesse que ele ainda possa ter, e suplantar as
lacunas que ele certamente não preencheu.

,,,
, AGR ADECIMENTOS

Este trabalho foi possível devido ao auxílio de amigos, de colegas, ao 17


interesse que por ele manifestaram pessoas com as quais até então
eu nunca tivera contato. As sugestões feitas por elas, o apoio rece-
bido acham-se presentes nestas páginas, e a todas deixo aqui meu
reconhecimento.
Nos arquivos em que trabalhei, encontrei compreensão e espírito
de solidariedade por parte dos funcionários; ao lado da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que com
uma bolsa de mestrado me possibilitou trabalhar dois anos e meio
em regime de dedicação integral, eles foram os responsáveis pelas
condições materiais que viabilizaram a pesquisa.
Sem querer hierarquizar meus débitos, gostaria de mencionar es-
pecialmente cinco amigos: Fernando A. Novais, que durante todos
esses anos me deu o privilégio de sua orientação; Maria Inês e Sílvio
de Mello Carvalho, que com sua acolhida encantaram minhas esta-
dias mineiras; Samir Curi Meserani, que abriu espaço em sua casa
para que eu pudesse ali instalar um escritório de emergência; Sérgio
Buarque de Holanda, que acompanhou a pesquisa com generosi-
dade e o interesse que o caracterizavam, enriquecendo-a inestima-
velmente com conversas e observações. A ele, este livro é dedicado.
, ABR EVIAÇÕES

1. Arquivos
APM \ Arquivo Público Mineiro, em Belo Horizonte. Foram utiliza-
dos códices (= cód.) de duas seções:
SC \ Seção Colonial
CMOP \ Câmara Municipal de Ouro Preto 19
AEAM \ Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, Mariana.

2. Publicações
ABN \ Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
DH \ Documentos Históricos, Rio de Janeiro.
DI \ Documentos interessantes para a História e Costumes de São
Paulo, São Paulo.
HAHR \ Hispanic-American Historical Review.
RAPM \ Revista do Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte.
RBEP \ Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte.
RH \ Revista de História, São Paulo.
RHMC \ Revue d’Histoire Moderne et Contemporaine, Paris.
RIHGB \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio
de Janeiro.
RIHGMG \ Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Ge-
rais, Belo Horizonte.
RSPHAN \ Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
cional, Rio de Janeiro.
INTRODUÇÃO
, PROBLEMAS E OPÇÕES

Além de tantas outras viradas bruscas, os anos 1960 e 1970 do século


XX revelaram um interesse súbito pelas minorias, pela marginalida-
de, pela exclusão – a tal ponto que, no futuro, ao lado da revolução
comportamental, do movimento estudantil, da incorporação (latu
sensu) do Oriente, talvez fique este súbito interesse dos estudos aca-
dêmicos pelo louco, pelo criminoso, pelo mendigo, pelo migrante
miserável que o capitalismo selvagem dos países latino-americanos
despejou sobre os seus principais centros urbanos.
Objeto de estudo recentemente incorporado ao repertório temá-
tico da Universidade, o marginal carecia, entretanto, de estatuto
teórico. Como definir um elemento que pertence e não pertence à 21
sociedade, que é parte e negação do sistema, enfim, que vive a cava-
leiro de dois mundos, na encruzilhada de vários caminhos? No que
difere dos outros, dos não-marginais, e no que lhes é semelhante?
Os sociólogos latino-americanos debruçaram-se detidamente
sobre a marginalidade – Nun, Quijano, Murmis, Veckemans, Ko-
warick, Berlinck, para citar apenas alguns –1 e algumas instituições

1 , Aliás, no conjunto da produção cientifica sobre marginalidade, é interessante


destacar o papel e o vulto dos estudiosos latino-americanos, para quem o problema
é especialmente vivo e doloroso. Alguns exemplos: Manuel Berlinck, Marginalida-
de social e relações de classe em São Paulo: Petrópolis, Vozes, 1975; Lúcio F. Kowa-
rick, Capitalismo e marginalidade na América Latina, Rio de Janeiro: Paz e Terra
1975; José Nun, Superpoblación Relativa, Ejército Industrial de Reserva
y Masa Marginal , em: Revista Latinoamericana de Sociologia, julho, 1969; Aní-
bal Quijano, Polo Marginal de la Economia y Mano de Obra Marginada ,
Lima, 1971; A. Quijano, Notas sobre el Concepto de la Marginalidad Social. Santiago,
1971; Roger Veckermans, Marginalidad y Pleno Empleo, Santiago, 1970; R. Vecker-
mans, Una estrategia para la miseri ”, Santiago: DESAL , 1967 e ainda: Margina-
lidad, incorporación y integración, Santiago: DESAL , Boletin n.37, 1967.
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também privilegiaram esse campo de estudo, como a CEPAL e a DE-


SAL . Além da questão do marginal na sociedade, surgiram deba-
tes cujo articulador comum foi a questão do “exército de reserva”.2
Por mais que surgissem discordâncias e aflorassem contradições,
imprecisões e dificuldades, o conceito foi despido do psicologismo
com que o revestiu um de seus progenitores, Stonequist,3 e tornou-
-se definitivamente dependente das formulações feitas por Marx
em O Capital.4 Não era mais possível compreender o processo de
marginalização sem pensar na expropriação, na acumulação pri-
mitiva, na constituição da mão-de-obra para a indústria e, uma vez
configurada a sociedade industrial, na função do exército de reserva
enquanto elementos de contenção salarial. A sociedade industrial
contemporânea é, pois, o cimento comum de tantas interpretações
diferentes.
Entre os historiadores, o problema se delineou de modo diverso.
22 Mendigos, vagabundos, marginais em geral têm sido estudados – ou
pelo menos mencionados – já há muitos anos, mas só recentemente
é que se tornaram uma espécie de febre acadêmica.5 Infelizmente, a
indefinição do objeto é incomparavelmente maior entre os estudos
de História do que entre os de Ciências Sociais, atingindo níveis
quase insuportáveis. Os colóquios ou edições coletivas surgidos re-

2 , Fernando Henrique Cardoso, Comentário sobre os conceitos de super-


população relativa e marginalidade , em: Sobre teoria e método em Sociolo-
gia, CEBRAP : São Paulo, 1971.
3 , E. V. Stonequist, O homem marginal, (1937), trad., São Paulo, 1948.
4 , Karl Marx, O Capital, Rio de Janeiro, 1975, livro 1, v.2, c. XXIII .
5 , Entre os precursosres nesse campo: Ribbon Turner, A History of Vagrants and
Vagrancy, and Beggars and Begging, Londres, 1887; C. Paultres, De la Répression de
la Mendicité et du Vagabondage en Frances sous l'Ancien Régime, Paris, 1907; W.H.
Dawson, The Vagrancy Problem, Londres, 1910. Mais recentemente destacam-se
as seguintes obras: Eric J. Hobsbawn, Primitive Rebels – Studies in Archaic Forms
of Social Movement in the 19th and 20th Century. Londres, 1959; e ainda: Bandits,
Londres, 1969; J. R. Poynter, Society and Pauperism – English Ideas on Poor Relief,
1795 – 1834, Londres-Toronto, 1969; José Luís Alonso Hernandez et al., Culture et
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

centemente refletem essa indefinição, o conceito de marginalidade


apresentando elasticidade suficiente para abrigar feiticeiras, alqui-
mistas, loucos, seres monstruosos, autores tratados de oniromancia,
pícaros, mendigos (falsos e verdadeiros), vagabundos, indígenas,
“hippies”, “apaches”.6 De onde começa a surgir outra discussão:
marginal seria antes o insólito, o exótico, do que o elemento vomi-
tado por uma ordem incapaz de o conter? O marginal seria aquele
que, deliberadamente, se coloca à margem, ou o que é colocado à
margem? Mais ainda: porque não entender o marginal como o que
está mal integrado na sociedade? Em outras palavras: o que está mal
classificado?
Atendo-se frequentemente ao estudo dos canais institucionais,
dissociando marginalidade e pobreza, esses estudos pouca luz
lançam sobre o conceito, e, se comparados aos estudos dos soció-
logos, apresentam um nível de articulação bastante inferior, dada
a heterogeneidade dos períodos abordados. Não há, para uni-los, 23
um substrato comum, e o problema de especificidade histórica faz
com que o elemento mal aceito num dado contexto possa perfeita-
mente sê-lo em outro. Daí a enorme gama de categorias abarcadas
pelo conceito que, nessa variedade, acaba por se esvaziar e perder o
sentido: um conceito que é tudo ao mesmo tempo acaba não sendo
rigorosamente nada. Outro vicio curioso presente nos estudos his-
toriográficos da marginalidade é a omissão constante – talvez, re-

Marginalités au XVI Siécle, Paris, 1973; Olwen H. Hufton, The Poor of Eighteenth
Cenury France – 1750-1789, Oxford, 1974; Pierre Deyon, Le Temps des Prisions, Paris,
1975; Guy-H. Allard et al., Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d.;
Douglas Hay et al., Albion's Fatal Tree – Crime and Society in Eighteenth Century
England, Londres, 1975; Bronislaw Geremeck, Les Marginaux Parisiens au XIV et
XV siècles, Paris 1976; Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval,
Paris, 1976; Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978;
vários, Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979. Há ainda inúmeros
artigos nas revistas especializadas.
6 , G. Allard (org.), Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, Montréal, s.d. Vários,
Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 10-18, 1979.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

cusa sistemática – em incorporar as boas contribuições dos estudos


sociológicos modernos, o que os acaba levando a delírios empíricos
pouco frutíferos. Nesse contexto, não chega a provocar assombro a
constatação final de Michel Mollat, grande autoridade francesa em
história da marginalidade que, de uma vez por todas, decidiu pela
perenidade da Pobreza.7
A partir dessas constatações, o conceito de marginalidade usa-
do pelos sociólogos ganha nova configuração: mesmo quando vago
e impreciso, essas características não chegam a incomodar muito,
nem a escamotear a verdadeira natureza do conceito, que é a sua
historicidade. De fato, parece difícil – para não dizer impossível
– dissociá-lo da sociedade industrial que o engendrou, e bastante
problemático aplicá-lo a realidades históricas que não sejam as da
industrialização, como é o caso deste trabalho, que tem por objeto
os desclassificados sociais da mineração no período colonial.
24 Já desclassificado social é uma expressão bastante definida. Reme-
te, obrigatoriamente, ao conceito de classificação, deixando claro
que, se existe uma ordem classificadora, o seu reverso é a desclas-
sificação. Em outras palavras: uns são bem mais classificados por-
que outros não o são, e o desclassificado só existe enquanto existe o
classificado social, partes antagônicas e complementares do mesmo
todo. Nesse contexto, é impossível pensar em desclassificação social
sem pensar na vinculação que esta oferece com o nível infra-estrutu-
ral, parte fundante do processo de desclassificação. Contrariamente
ao que acontece com o conceito de marginalidade conforme tem
sido empregado por historiadores, não há, neste modo de ver, am-
plitude ilimitada nem dissociação entre marginalidade e pobreza,
entre o fenômeno e aquilo que o engendrou. Além disso, fica clara a

7 , A misericórdia pode mudar de nome e de face; sua natureza continua sendo


a Caridade, perene como a Pobreza”, Michel Mollat, Les Pauvres au Moyen-Age,
Paris, 1978, p.359. Ressalva seja feita aos excelentes trabalhos do historiador polonês
Bronislaw Geremeck, dentre os quais destaca-se Les Marginaux Parisiens au XIVe et
XVe siècles, Paris, 1976.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

orientação subjacente: não é qualquer não-inserção que conta – a da


feiticeira, a do louco, a do oniromancista, todas elas circunstanciais
e episódicas –, mas a não-inserção motivada por dados estruturais:
a pobreza torna-se, assim, o primeiro – mas não o único – dentre os
agentes desclassificatórios.
Marginalidade pode ainda fazer pensar em algo que se separa de
um todo uniforme, constituído, no caso, pela sociedade. Já desclas-
sificação sugere a exterioridade ante a classificação e o distancia-
mento em face de um todo heterogêneo e diversificado.
Outro ponto favorável ao emprego do conceito de desclassifica-
ção social como adequado ao tratamento da realidade colonial é o
fato da sociedade de então apresentar-se definida em termos esta-
mentais, ou seja, de status, de honra (o que remete a classificação)
e de, ao mesmo tempo, atravessar um processo de constituição de
classes (o que remete a desclassificação). Assim, os dois princípios
antagônicos e convergentes da classificação e da desclassificação 25
conviviam no seio da sociedade colonial. O objeto de estudo desta
pesquisa será, pois, definido, de agora em diante, como desclassifi-
cado social. A sua dimensão espaço-temporal é a região de Minas
Gerais no século XVIII . O objetivo máximo é a compreensão dos
processos que levam ao seu engendramento e à sua posição no seio
da sociedade colonial.
O desclassificado social é um homem livre pobre – frequente-
mente miserável –, o que, numa sociedade escravista, não chega a
apresentar grandes vantagens com relação ao escravo. Objeto de es-
tudo bastante problemático, não costuma povoar as preocupações
dos nossos pesquisadores. Excetuando-se o período republicano, –
cujos estudiosos se voltam cada vez mais para a história da classe
operária nacional –, torna-se difícil reunir títulos que tratem espe-
cificamente das populações pobres. O grande marco neste assun-
to continua sendo Homens livres na ordem escravocrata, de Maria
Sylvia de Carvalho Franco, estudo magistral sobre os homens livres
do Vale do Paraíba nas suas relações com o poder e com a economia
mercantil. E para frisar o atraso que apresentamos neste campo, é
preciso não esquecer que foi Caio Prado Jr. Quem até hoje – tendo-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

-se passado quase 40 anos – melhor colocou o problema do papel da


“camada intermediária” na nossa história.8
Como explicar essa ausência?
Difícil não colocar a questão em termos ideológicos, mesmo por-
que o tratamento tangencial dado pelas grandes obras historiográfi-
cas às populações pobres assim o exige. Em seu clássico Casa Gran-
de & Senzala, Gilberto Freyre fornece um exemplo modelar desse
procedimento. Preocupado com a família enquanto unidade básica
da colonização, nega a importância que porventura apresentasse a
colonização por indivíduos – “os soldados de fortuna, aventureiros,
degredados, cristãos-novos fugidos à perseguição religiosa, náu-
fragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira” –,9 afir-
mando não terem estes elementos deixado traço algum na “plástica
econômica” do Brasil. Ora, entre muitos outros, Emília Viotti da
Costa e Raymundo Faoro apontam a existência de elementos social-
26 mente desclassificados desde os primórdios de nossa colonização; a
primeira analisando as penas de degredo e relativizando a noção de
crime; o segundo indicando a imagem paradisíaca da colônia que o
estamento dominante em Portugal divulgava entre a arraia miúda
como chamariz de gente.10
Essa extrema reserva com relação às camadas pobres encontram
uma explicação – mesmo que esfarrapada – na natureza da do-
cumentação dos nossos arquivos, abundantes em fontes oficiais e
extremamente pobres em fontes coletivas – as sources massives dos
franceses. Realmente, são poucos e bastante danificados os docu-
mentos relativos a assentos de nascimentos, óbitos, casamentos –
sem falar na documentação que, de uma forma ou de outra, deixava
entrever o modo de vida dessa gente. Este problema se agrava para

8 , Caio Prado Jr. Formação do Brasil contemporâneo, (1942), 13.a ed., São Paulo,
1973. Especialmente a parte intitulada Vida Social .
9 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala 9a ed. Rio de Janeiro, 1958, p.25.
10 , Emília Viotti da Costa, Primeiros povoadores do Brasil , em: Revista
de História, n. 27, 1956, p.3-22. Raymundo Faoro, Os donos do poder, 2a ed., Porto
Alegre, 1974.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

o Brasil colonial, onde os indivíduos alfabetizados eram pouquíssi-


mos e a situação social se achava bastante complicada pelo escravis-
mo: como esperar registro escrito de mestiços miseráveis, de forros
recém-egressos da escravidão, de “caribocas” e “carijós” que vaga-
vam pelos engenhos e pelas lavras?
O historiador só pode trabalhar com documentos que existem:
não pode inventá-los, mas pode re-inventá-los, lê-los com novos
olhos. Um documento oficial pode conter dados sobre camadas so-
ciais que não entravam na cogitação das pessoas que, durante sécu-
los, procuraram nele informações sobre administração ou política.
Para esta pesquise, utilizei não só a documentação oficial – a cor-
respondência administrativa das autoridades – como documentos
que vem sendo publicados pela Revista do Arquivo Público Mineiro
há quase cem anos. Consultei também documentos publicados por
outras revistas, e uma grande parte desta pesquisa é composta por
manuscritos lidos no próprio Arquivo Público Mineiro, em Belo 27
Horizonte, e no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana,
em Mariana, onde, aceitando o desafio colocado pelo tema, procu-
rei levantar as fontes coletivas disponíveis, trabalhando assim com
assentos de prisões, autos de querelas e de devassas, estas tanto civis
como eclesiásticas. As Memórias – publicadas, na sua maior parte
entre os anos 80 do século XVIII e o início do século XIX –, as esta-
tísticas e os escritos dos viajantes dos primeiros vinte anos do século
XIX completam o quadro documental.
A sugestão do cenário – economia do ouro – veio com a leitura de
Caio Prado Jr, que associa o aumento da camada intermediária co-
lonial à evolução “por arrancos, por ciclos, em que se alternam, no
tempo e no espaço, prosperidade e ruina”,11 e que, sendo caracterís-
tica da história econômica da colônia, teria atingido sua dimensão
mais catastróficas e profunda nos distritos da mineração.
O ouro dominou todo o nosso século XVIII , lançando raízes no
século XVII e apresentando ecos ainda no século XIX . Tratava-se,
portanto, de um largo espaço de tempo, o que impunha de imediato

11 , Caio Prado Jr., ob. cit., p.286.


DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

o problema da periodização: como dar conta, numa pesquisa, de


mais de cem anos?
Já se tem dito com frequência que a periodização não deve ser
apenas cronológica, mas também lógica. A história de um movi-
mento social deve, dada a própria natureza do tema, apresentar
uma circunscrição cronológica bastante rígida, permitindo, quando
muito, uma margem de oscilação para o delineamento de seus ante-
cedentes e de suas decorrências. Quando se trata, contudo, de traçar
o painel de um processo, não há como evitar os largos espaços de
tempo. O mesmo se dá para um trabalho que busca a compreensão
de uma camada social em toda a sua complexidade, o que só pode
ser conseguido através da compreensão do seu processo de consti-
tuição. Assim, a análise dos desclassificados sociais só poderá ser
bem-sucedida se iluminada pela percepção do processo de desclassi-
ficação que os engendra.
28 EM artigo intitulado “Periodização da História de Minas”,12
Francisco Iglésias propõe duas periodizações – uma, com ênfase no
político, outra com ênfase no econômico – a serem cruzadas para se
poder obter uma periodização final, mais correta. Com base no pri-
meiro critério, distingue sete momentos – dos primórdios aos dias
atuais –, dos quais apenas três dizem respeito ao período abrangido
por esta pesquisa: dos primeiros tempos a 1693 – época das entra-
das para o sertão e dos primeiros descobertos do ouro –; de 1693 a
1720, quando impera a instabilidade da ordem, o aventureirismo e
as rebeliões; de 1720 a 1822, período marcado pela urbanização, pela
instalação da máquina administrativa e pelo pico e declínio da mi-
neração.13 Levando em conta o segundo critério, a periodização se
apresenta um pouco diferente: são quatro os momentos destacados,
dos quais cabe mencionar os dois primeiros: 1693-1770, surgimento,
esplendor e declínio da atividade mineratória, e 1770-1830, quando o
declínio da mineração norteia a busca de outra atividade.14

12 , Francisco Iglésias, Periodização da História de Minas Gerais , in: Re-


vista Brasileira de Estudos Políticos, v.29, julho de 1970.
13 , Ibid, p.188.
Retomando esta periodização, e levando adiante a sua proposta,
o marco inicial adotado nesta pesquisa foi 1693, ano em que se criou
a capitania do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas, sendo Antonio
Pais de Sande designado para governá-la. 1805 foi a data escolhida
para fechar aproximadamente o período, uma vez que a decadência
da atividade mineradora e suas consequências já podiam ser então
adequadamente avaliadas; aliás, 1804 e 1805 são os anos de publica-
ção de duas memórias significativas sobre o estado da miséria da
capitania: respectivamente, a de Azeredo Coutinho e Basílio Teixei-
ra de Saavedra.15
Entre um e outro marco, alguns momentos se destacam como
especialmente significativos pelas transformações estruturais que
acarretam: 1709, término da Guerra dos Emboabas, nomeação de
Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho para o governo da
capitania e primeira grande investida da Coroa no sentido de es-
tabelecer sua autoridade na zona mineradora, de que a separação 29
entre as capitanias de São Paulo-Minas e Rio de Janeiro será uma
consequência direta, como o seria também o início oficial do movi-
mento urbanizador (1711); 1720, ano da revoltada frustrada de Feli-
pe dos Santos, violentamente sufocada por Assumar que, então, se
torna o primeiro governador da capitania independente de Minas,
fechando o período conturbado dos primeiros descobertos e inau-
gurando a fase de autoridade consolidada; 1732-1736, marcado pelo
apogeu aurífero que a festa do “triunfo Eucarístico” reflete, e pelo

14 , Ibid, p.192.
15 , Cf. J. J. Da Cunha de Azeredo Coutinho, Discurso sobre o estado atual
das minas do Brasil (1804), em: Obras economicas..., introd. de Sérgio Buarque de
Holanda, São Paulo, 1966, p.187-229. Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da
capitania de Minas Gerais , em: Revista do Arquivo Público Mineiro, v.II , 1897. À
p.673, o seguinte trecho: “A capitania de Minas Gerais, que fez as grandes riquezas
dos felizes Reinados do Senhor D. João o 5º e do Senhor D. José 1º de feliz memória,
se acha em estado de pobreza, e de miséria; a abundancia das suas minas se fez
sensível no abatimento do valor da moeda da Europa inteira, foi inveja de muitas
nações, e este País se acha agora num extremo de miséria”.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

início do Governo de Gomes Freire de Andrada, uma das maiores


figuras do império colonial português; 1748-1752, quando a festa do
“Áureo Trono Episcopal” marca o início da decadência, expressa
também no fim do imposto da capitação e na isenção da penhora
para os senhores de lavras com mais de 30 escravos; 1788-89, quan-
do os colonos mineiros exprimem seu descontentamento ante a si-
tuação econômica e política através da Inconfidência.
Composta a cronologia – sempre tão importante para qualquer
trabalho de História –, é preciso ir além dela. E endossar, para a
análise da desclassificação social nas Minas do século XVIII brasilei-
ro, o procedimento teórico proposto por R. Nardeau e C. Panaccio
na conclusão do colóquio canadense sobre marginalidade, e que os
estudiosos do assunto raramente adotam: “Parece-nos importante
reconhecer que a análise da marginalidade é sempre função de uma
rede de relações, e que não poderia se limitar a uma simples des-
30 crição neutra de objetos empíricos reais tomados em si mesmos.”16

16 , R. Nardeau e C. Panaccio em: G. Allard, ob. cit., p.168.


I , O FALSO FAUSTO
E apesar de tudo o que se expõe, e que tanto cons-
pira para se julgarem estas minas as mais pobres, e
desgraçadas das que vivem em sociedade; não é tão
fácil afirmar delas este conceito, não se olhando mais
que para o seu desmarcado comércio de importação,
e vendo ao longe por entre a escassa luz de narrações
adulteradas o seu luxo descomedido. Mas se atentar
qualquer para o modo por que vivem e comerciam os
vassalos de Sua Majestade neste país, verá que o ordi-
nário deles pensa mal, e olha tão-somente para uma
falsa reputação, e trabalha por um falso brilhante no
que pertence aos seus que início ­de ­s­­de­longe quer se
lhe atribuam: pretendendo, à imitação dos cômicos
e figuras teatrais, fingir com palhetas douradas ouro 31
maciço, e com vidros lapidados preciosa pedraria.
Representação da Câmara de Mariana, 1789.

, Em 1733, houve em Vila Rica uma festividade religiosa que re-


tirou o Santíssimo Sacramento da Igreja do Rosário e o conduziu
triunfalmente para a Matriz do Pilar. O acontecimento ocorreu
no dia 24 de maio, mas foi antecedido por um longo período de
preparativos, desde a proclamação oficial da festa até os “seis dias
sucessivos de luminárias” que precederam imediatamente a procis-
são. Esta se achava programada para ter lugar no dia 23, sábado, que
amanheceu sereno e assim continuou até o momento em que a ceri-
mônia deveria ter início. Foi então que, súbita e inexplicavelmente,
“os desejos de todo o concurso” foram esvanecidos por uma chuva
repentina, “muda voz do Céu” que provocou o adiamento da festa
para o dia seguinte.
As janelas foram adornadas com colchas de seda e damasco, e
as ruas se enfeitaram com arcos, para além dos quais foi montado
um altar “para descanso do Divino Sacramento, e deliberado ato da
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

pública veneração”. Completavam o quadro muitas flores, aromas e


uma verdadeira explosão cromática, tudo isto segundo o testemu-
nho de Simão Ferreira Machado, autor do Triunfo Eucarístico, texto
em que a trasladação é narrada.
Parece não ter tido limites a pompa então presenciada por Vila
Rica: danças, alegorias, cavalhadas, figuras a cavalo representando
os Quatro Ventos, todos luxuosamente vestidos e enfeitados com
pedras preciosas. O bairro de Ouro Preto, onde se situava a Matriz,
também foi representado, ao lado da Lua, das Ninfas, de Marte, de
Vênus, de Mercúrio, de Júpiter, do Sol, da Estrela d'Alva e da Ves-
pertina, entre muitas outras figuras. O Conde das Galvêas, gover-
nador de Minas, assistiu às festas juntamente com “toda a Nobreza,
e Senado da Câmara”, e Simão Ferreira Machado diz não haver lem-
brança “que visse o Brasil, nem consta, que se fizesse no América
ato de maior grandeza”. E continua o autor se dentre os povos os
32 portugueses se destacam pelos seus atos admiráveis, “agora se vêm
gloriosamente excedidos dos sempre memoráveis habitadores da
Paróquia do Ouro Preto”, que com “majestosa pompa e magnífi-
co aparato” transladaram o Santíssimo da Igreja do Rosário para a
nova Matriz do Pilar.1
Minas estava então no seu apogeu. Vila Rica era, “por situação
da natureza cabeça de toda a América, pela opulência das riquezas
a pérola preciosa do Brasil”.2 Os diamantes tinham sido descober-
tos havia pouco, e em 1729 D. Lourenço de Almeida comunicara
oficialmente à Coroa o seu achado. O Fisco lançava vistas gordas
sobre o ouro e preparava o terreno para estabelecer a capitação, o
que seria feito em 1735. Os primeiros resultados da ação do aparelho
administrativo – cujas bases Antonio de Albuquerque Coelho de

1 , Cito a publicação fac-símile feita por Affonso Ávila em Resíduos Seiscentistas


em Minas – textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco, Belo Horizon-
te, 1967, v.1. As passagens citadas encontram-se entre as páginas 131-283, sendo estas
referentes à numeração original.
2 , Prévia Alocutória ao Triunfo Eucarístico, em: Affonso Ávila, ob cit. v.1,
p.s25.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Carvalho plantara em 1711 – começavam a aparecer, e a inquieta


sociedade mineradora dos primeiros tempos já se apresentava mais
acomodada. As festas e as procissões religiosas contavam entre os
grandes divertimentos da população, o que se harmoniza perfeita-
mente com o extremo apreço pelo aspecto externo do culto e da
religião que, entre nós, sempre se manifestou.3 Mais do que expres-
são de uma religiosidade intensa, a festa religiosa era um aconteci-
mento que propiciava o encontro e a comunicação; aliás, este seu
aspecto acabava, muitas vezes, por sobrepujar os eventuais anseios
místicos, como deixa entrever o último bispo mineiro do período
colonial, Frei Cipriano de São José, ao retratar a romaria do Senhor
Bom Jesus de Matosinhos: “... tal era a confusão e tão descomposto
o tumulto, que a capela de Matosinhos mais parecia praça de touros
que Igreja de fiéis”.4
Atrelando-se à tradição exaltatória do mito edênico que carac-
teriza a crônica colonial,5 o Triunfo Eucarístico retrata muito bem 33
o estado de euforia da sociedade mineradora numa festa “mais de
regozijo dos sentidos do que propriamente de comprazimento espi-
ritual”.6 O que está sendo festejado é antes o êxito da empresa aurí-
fera do que o Santíssimo Sacramento, e nessa excitação visual carac-
teristicamente barroca, é a comunidade mineira que se celebra a si
própria, esfumaçando, na celebração do metal preciso, as diferenças

3 , As festividades religiosas absorviam recursos extraordinários. Boxer diz que,


como as Câmaras da Metrópole, as da colônia esbanjavam dinheiro nessas festas, fi-
cando sem fundos para seus encargos costumeiros (conservação de estradas e pon-
tes etc.). A Câmara de Lisboa teria ido à bancarrota com festa de Corpus Christi de
1719. The Portuguese Seaborne Empire, Londres, 1969, p.282-3. Portuguese Society in
the Tropics – the Municipal Councils of Goa, Macao, Bahia and Luanda – 1510-1800,
Madison, 1965, p.143. Para as festividades religiosas na Bahia, ver p.89-91
4 , Segundo José Ferreira Carrato, Igreja, Iluminismo e escolas mineiras coloniais,
São Paulo, 1968, p.37.
5 , A observação é de Affonso Ávila em O lúdico e as projeções do mundo barroco,
São Paulo, 1971, p.114.
6 , Affonso Ávila, ob. cit., p.117.
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sociais que separam os homens que buscam o ouro daqueles que


usufruem do seu produto. A festa tem, assim, uma enorme congra-
çadora, orientando a sociedade para o evento e a fazendo esquecer
da sua faina cotidiana; é o momento do primado do extraordinário
– o sobrenatural, o mitológico, o ouro – sobre a rotina. No momento
de sua maior abundância, é como se o ouro estivesse ao alcance de
todos, a todos iluminando com o seu brilho na festa barroca.
O ano de 1748 corresponde a outro grande momento de efusão
barroca: a festa do Áureo Trono Episcopal, que celebra a criação do
Bispado de Mariana. Na verdade, a criação se dera em 1745, sendo
designado D. Frei Manuel da Cruz, então bispo do Maranhão, para
ocupar o cargo pela primeira vez. O prelado deixaram a sua antiga
diocese em agosto de 1747, empreendendo uma fantástica travessia
dos sertões que só terminaria em outubro de 1748, “vencendo doen-
ças, perigos e privações, confortando religiosamente as almas larga-
34 das no imenso vale do São Francisco, escassas populações que des-
conheciam a assistência regular da Igreja e que acorriam das partes
mais remotas daqueles sertões em busca de bênçãos e sacramentos
que o bispo ia distribuindo em sua passagem”.7 Sabendo que a sua
chegada provocaria festividades e gastos excessivos, o bispo pro-
curou evitar que se ventilasse a notícia, pois, segundo um cronista
anônimo, o ouro já estava em decadência.8 Não se sabe se o bispo
agiu assim por prudência ou se recebeu ordens das autoridades me-
tropolitanas. O fato é que a festa não pôde ser evitada e, como a do
Triunfo Eucarístico, foi extremamente luxuosa.

7 , Affonso Ávila, Resíduos seiscentistas..., p.27.


8 , “... mas foi com o desígnio oculto de não o avisar, senão na véspera de sua
chegada, para não dar lugar aos excessivos gastos de pompa, e lustre, com que os
habitantes daquele dourado Empório da América costumam ostentar-se em seme-
lhantes funções, sem embargo de ser tanta a decadência do mesmo país, que por
acaso se acha nele quem possa com o dispêndio necessário para a conservação da
sua pessoa, e fábricas”. Áureo trono episcopal, p.35. O grifo é meu. Cito pela edição
fac-símile de Affonso Ávila.
9 , Triunfo eucarístico, p.97.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Se o texto da festa de 1733 fala de pretos e pardos enquanto inte-


grantes de Irmandade próprias9, o Áureo Trono Episcopal, retra-
tando os pajens mulatinhos, “iguais na estatura” e luxuosamente
ataviados com sedas, fitas, ouro e diamantes, procura integrar esses
elementos na sociedade, fazendo deles os acompanhantes de uma
das figuras principais.10 Há ainda referência a uma dança indígena
executada por mulatinhos, que assim faziam as vezes do gentio da
terra.11
Mais do que o ouro, é aqui a sociedade mineradora o principal
protagonista: uma sociedade que já se assentara razoavelmente e
que passava a contar com sua própria sede eclesiástica. Mas se o
caráter de acampamento aurífero não mais persistia, se as casas co-
meçavam a se requintar e as vilas ganhar edificações, o ouro escas-
seava. Neste mesmo ano de 1748, terminavam as obras do Palácio
dos Governadores em Vila Rica, ampliava-se o antigo palácio do
Conde de Assumar na cidade Mariana, onde também se construi- 35
ria, no ano seguinte, o primeiro chafariz de repuxo, um e outro
empreendimento fazendo parte da reformulação urbanística então
sofrida pela cidade mineira.12 A capitação dos escravos e o censo das
indústrias renderia, entre 1735 e 1751, pouco mais de 2.066 arrobas –

10 , Áureo tronco..., p.100-1


11 , “Seguia-se às sobreditas figuras uma dança de Carijós, ou gentio da terra. Era
esta ajustada de onze mulatinhos de idade juvenil, nus de cintura para cima, a qual
cingiam várias plumas cinzentas caídas até os joelhos, formando saiote; rodeavam
as cabeças penachos das mesmas plumas, e outros cingidos de papel pintado, e latas
crespas; nos braços e nas pernas tinham várias prisões de fitas, maravilhas, e gui-
zos; na variedade das mudanças usavam de uns arcos, com que formavam diversos
enleios, cantando ao mesmo tempo célebres toadas ao som de tamboril, flautas e
pífaros pastoris, tocados por outros carijós mais adultos, que na grosseria natural
dos gestos excitavam motivo de grande jocosidade.” – ob.cit., p.108-9.
12 , Dados levantados em Carrato, ob.cit. Mariana é a única cidade de Minas Ge-
rais no século XVIII , as demais aglomerações urbanas sendo vilas e arraiais.
13 , Fonte: J.J. Teixeira Coelho, Instrução para o governo da Capitania de
Minas Gerais , RAPM , v. VIII , p. 495.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

rendimento máximo até então alcançado –, 13 mas a decadência já


era sensível e só por acaso encontraria o observador alguém capaz
de arcar com o “dispêndio necessário para a conservação da sua
pessoa e fábricas”.14
Tudo leva a crer ter sido este o momento em que se encerrou o
apogeu e começou, lentamente, a decadência, que os anos 1770 pre-
senciaram já evidente e palpável. As duas festas barrocas serviriam,
assim, para periodizar o período áureo das Minas, constituindo
uma e outra dois grandes monumentos ao luxo e à ostentação.
Endossando-se a ideia de que a festa funciona como mecanismo
de reforço, de inversão e de neutralização,15 teríamos no Áureo Tro-
no a ritualização de uma sociedade rica e opulenta – reforço – que
procura, através da festa, criar um largo espaço comum de riqueza –
riqueza que é de poucos mas que o espetáculo luxuoso procura apre-
sentar como sendo de muitos, de todos, desde os nobres senhores do
36 Senado até o mulatinho e o gentio da terra. O verdadeiro caráter
da sociedade é, aqui, invertido: a riqueza já começava a sumir, mas
aparece como pródiga; ela era de poucos, e aparece como de todos.
Por fim, a festa cria uma zona (fictícia) de convivência, proporcio-
nando a ilusão (barroca) de que a sociedade é rica e igualitária: está
criado o espaço da neutralização dos conflitos e diferenças. A festa
seria, como o rito, um momento especial construído pela sociedade,
situação surgida “sob a égide e o controle do sistema social”, e por
ele programada.16 A mensagem social de riqueza e opulência para
todos ganharia, com a festa, enorme clareza e força persuasória.
Mas a mensagem viria como que cifrada: o barroco se utiliza da
ilusão e do paradoxo, e, assim, o luxo era ostentação pura, o fausto
14 , Este documento foi citado à nota 8.
15 ,Cf. Roberto da Matta, Carnavais, malandros e heróis, Rio de Janeiro, 1979, ca-
pítulos 1, 2 e 3.
16 , Roberto da Matta, ob.cit. p.56.
17 , José Veríssimo Álvares da Silva, Memória Histórica sobre a Agricultu-
ra Portuguesa , segundo Fernando Novais, Portugal e Brasil na Crise do Antigo
Sistema Colonial, São Paulo, 1979, p.205. O autor citado faz estas considerações so-
bre a realidade metropolitana, na época dos descobrimentos.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

era falso, a riqueza começava a ser pobreza e o apogeu, decadência.


“Em tal abundância, quem poderia ver, começamos a ser pobres”.17
Em 1789, a Representação da Câmara de Mariana acusava a per-
cepção de que os espetáculos teatrais usam de artifícios para indu-
zir o espectador a uma falsa consciência, fazendo as palhetas dou-
radas passarem por ouro maciço e os vidros lapidados por preciosa
pedraria. O que subjaz a este documento extraordinário é a ideia
do paradoxo, do fausto que é falso, ideia que pode ser rastreada ao
longo de todo o século XVIII mineiro.
O grande paradoxo inicial é o signo da fome que marcou o nas-
cimento das minas de ouro. O nobre metal – cuja “figura”, segun-
do Domingos Vandelli, aparece “em pó, em pequenas lâminas, em
grãos angulares em cristais quadrangulares, octógonos, e pirami-
dais, em laminas aplicadas às vezes uma em cima da outra; ou se
acha também algumas vezes em pedaços, como fundidos” –18 pro-
vocou um afluxo formidável de gente, não só da Metrópole como 37
das capitanias vizinhas. Da praça de Santos fugiam soldados em
busca de riqueza das Minas, o mesmo acontecendo com os da guar-
nição do Rio de Janeiro, que, em troca da defesa da cidade, recebiam
o soldo e uma ração diária de farinha.19 Durante os 60 primeiros
anos do século XVIII , a corrida do ouro provocou na Metrópole a
saída de aproximadamente 600 mil indivíduos, em média anual de
8 a 10 mil indivíduos.20 Em 1730, o governador do Rio de Janeiro

18 , Domingos Vandelli, Memória III. Sobre as minas de ouro do Brasil ,


ABN , XX , 1898, p.267.
19 , Carta da rainha ao governador da praça de Santos – 27-IX-1704,
DI , n.XVI , 1895, p.37-8; Carta régia estabelecendo providências a fim de se
evitar a deserção de soldados da guarnição do Rio de Janeiro para as
Minas – 28-III-1711 – DI , v.XLIX , 1929, p.20-2.
20 , Vitorino M. Godinho, A estrutura da antiga sociedade portuguesa, Lisboa,
1971, p.43-4. Sobre o assunto, diz Caio Prado Jr.: “...um rush de proporções gigan-
tescas que relativamente às condições da colônia é ainda mais acentuado e violento
que o famoso rush californiano do século XIX”. – História econômica do Brasil, 11ª
ed., São Paulo, 1971, p.64.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dava notícia de dois navios do Porto “com muita gente, que não se
deve apartar deles, antes voltar para o reino, mas o seu desígnio é
passar para as Minas, o que intentaram fazer por mil modos”.21 Na
expressão já tão conhecida de Antonil, “a mistura” foi “de toda a
condição de pessoas”, para desespero das autoridades, que tenta-
vam, a todo custo, refrear a onda migratória.22 Em 1709, era 30 mil o
número das pessoas ocupadas em atividades mineradoras, agrícolas
e comerciais, sem falar dos escravos vindos da África e das zonas
açucareiras em retração.23
Com os olhos voltados para o ouro, improvisando alojamentos
numa região deserta – até então, país das “serranias impenetráveis,
dos rios enormes, das riquezas minerais, das feras e dos monstros,
uma espécie das Hespéridas antigas guardadas por dragões” –,24
pode-se imaginar a fome que assolou essas populações. Os anos de
1697-98 e 1700-01 foram os das maiores crises, quando, ainda na
38 imagem popular de Antonil, os mineiros morriam à mingua “com
uma espiga de milho na mão, sem terem outro sustento”.25 A 20
de maio de 1698, em carta ao rei, escrevia Artur de Sá e Menezes,
governador da capitania do Rio, São Paulo e Minas:”... é sem dúvi-
da que rendera muito grande quantia, se os mineiros tiveram mi-
nerado este ano, o que não lhes foi possível pela grande fome, que
experimentaram, que chegou a necessidade a tal extremo, que se

21 , Carta do governador do Rio de Janeiro ao Capitão Francisco Men-


des Galvão sobre a tentativa de deserção para as minas de muitos indi-
víduos recém-chegados do reino...”– 25-X-1730 – DI , v. XLIX , 1929, p.203.
22 , Muitos historiadores mineiros oscilam entre o privilegiamento do compo-
nente reinol (baianos) e o do paulista da formação inicial da população mineradora.
Salomão e Sylvio de Vasconcellos adotavam a primeira posição, enquanto Diogo de
Vasconcellos ressaltava nas suas Histórias o papel do paulista, seguindo a tradição
de Cláudio Manuel da Costa.
23 , Boxer, A idade de ouro do Brasil, trad., São Paulo, 1969.
24 , Diogo de Vasconcellos, História antiga de Minas Gerais, Belo Horizonte,
1904, p.85.
25 , Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas, introd. A. P.
Canabrava, São Paulo, 2ª ed., s.d., p.267.
aproveitaram dos mais imundos animais, e faltando-lhes estes para
poderem se alimentar a vida, largaram as minas e fugiram para os
matos com seus escravos e sustentaram-se das frutas agrestes que
neles achavam...”.26 Com a falta de alimentos, as Minas se trans-
formaram no centro de inflação da colônia: o alqueire de milho era
vendido por vinte oitavas de ouro; o de farinha, por 32, assim como
o de feijão, a galinha alcançava 12 oitavas, e um gatinho ou cachorri-
nho chegavam a 32; o prato de sal custava 8 oitavas, e quem quisesse
fumar teria de pagar 5 oitavas pela vara de fumo. Morria-se de fome,
“tapanhunos e carijós, por comerem bichos de taquara, que para os
comer é necessário estar um tacho no fogo bem quente, e aliás vão
botando os que estão vivos logo bolem com a quentura, que são os
bons, e se come algum que esteja morto é veneno refinado”.27
Estes anos foram aqueles em que a fome atingiu os seus limites
extremos, e muito povoado foi deixado para trás pelos mineiros.
Conhecem-se entre outros, os casos de abandono do Ribeirão do 39
Carmo e da Serra do Ouro Preto, a deserção desta dando origem
a muitos outros arraiais; até os fundadores debandaram: o Padre

26 , Segundo Diogo de Vasconcellos, ob.cit. Belo Horizonte, 1904.


27 , Documento do Códice Costa Matoso segundo Mafalda Zemella, O abasteci-
mento da capitania de Minas Gerais, São Paulo, 1951, p.223.
28 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit. p.120 e segs. Para o autor do Diálogo das gran-
dezas do Brasil (1618), o problema da mineração consistia, mais do que em encontrar
metais, na dificuldade de alimentar os mineiros. Sugestão feita: “... o primeiro que
se devia fazer antes de bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos,
houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão,
e como os houvesse em abundância, tratar-se-ia da lavoura das minas; mas isto se
faz pelo contrário, porque, se m terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e
como as minas estão muito pelo sertão, os que vão levam de carreto o mantimento
necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura que tinham come-
çado. E esta cuido que é a verdadeira causa de darem as ditas minas pouco de si”.
– Diálogos das grandezas do Brasil, introd. Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo
Garcia, Rio de Janeiro, 1930, p.63. O autor não está se referindo às Minas Gerais, pois
estas ainda não haviam sido descobertas.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Faria foi para Guaratinguetá, Antonio Dias foi para São Paulo.
Passou-se, a partir de então a cultivar roças conjugadas às lavras.28
Procurou-se também atentar mais cuidadosamente para o abasteci-
mento da capitania, suprido pela Bahia – onde eram numerosos os
currais – e, a partir da construção do Caminho Novo – terminado
em 1725 –, pelas capitanias do Sul.29 A fome nunca mais chegou a
ter tal alcance, pois a concentração de riquezas e a crescente estra-
tificação social fizeram com que ela voltasse a atuar no seu círculo
costumeiro: o da pobreza.
Entretanto, apesar de superado parcialmente o fantasma da fome,
apesar da imagem de uma sociedade rica, eufórica e democrática
que chegou até nós pelas festas barrocas, tudo indica que as coisas
se passaram diferentemente. Por certo, existiram nababos, e a histo-
riografia tradicional fixou a imagem do capitão-mor Antonio Alves
Pereira presenteando a Viscondessa de Condeixa – esposa do gover-
40 nador da capitania em 1808 – com uma terrina de canjica aurífera;
do contratador dr. João Fernandes de Oliveira mandando construir
um lago com navio e tudo para Chica da Silva que não conhecia o
mar.30 Mas, em proporção aos que se viam privados dela, a riqueza
era distribuída por um número limitado de pessoas.31 A sociedade

29 , Mafalda Zemella, ob.cit. c. III, passim. A autora arrola os gêneros consumidos


em 4 categorias: 1) essenciais à subsistência (cereais, sal, açúcar, carne, toucinho);
2) essenciais ao trabalho nas Minas (utensílios de ferro e aço, pólvora, armas, es-
cravos); 3) artigos para vestimenta, mobiliário e artigos domésticos, arreios para
animais, cavalgaduras; 4) pinga e tabaco. Cf. p.189-90.
30 , João Domas Filho, O ouro das Gerais e a civilização da capitania, São Paulo,
1957, p.18-23. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed.,
Rio de Janeiro, 1952, p.161-2.
31 , “A nobreza do oficio e a do dinheiro eram evidentemente uma minoria que se
concentrava nas vilas ou em suas imediações, nas grandes propriedades rurais, en-
quanto a massa escrava e os libertos, brancos, pardos ou pretos, todos pés-rapados,
constituíam uma imensa multidão de oprimidos pelas extorsões de todos os gêne-
ros”. Augusto de Lima Jr. A capitania das Minas Gerais, 2ª ed., Belo Horizonte-São
Paulo, 1978, p.82.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

era pobre, e creio poder dizer que as festas eufóricas do século XVIII
tenham sido grandemente responsáveis por uma manipulação “au-
toritária” da estrutura social na medida em que uma das visões pos-
síveis da sociedade foi imposta como a visão da sociedade, a que
mais acertadamente refletia a estrutura social – no caso, a visão de
riqueza e de opulência.
Dentre os historiadores mineiros, talvez tenha sido Eduardo Friei-
ro o primeiro a formular conscientemente a crítica a este equívoco,
num artigo intitulado “Vila Rica, Vila Pobre”: “Uma das patranhas
da nossa história, tal como usualmente se conta nas escolas, é a da
pretendida riqueza e até mesmo opulência das Minas Gerais na épo-
ca da abundância do ouro. Em boa e pura verdade nunca houve a
tão propalada riqueza, a não ser na fantasia amplificadora de escri-
tores inclinados às hipérboles românticas. (…) A realidade foi bem
diversa. Nem riqueza, nem grandezas. Apenas o atraso econômico
e a pobreza, como herança dum desvairamento fugaz, próprio de 41
todas as Califórnias”.32
Na sociedade mineradora – como, de resto, nas outras partes da
colônia –, eram privilegiados os elementos que tivessem maior nú-
mero de escravos. Mais da metade das lavras estavam concentradas
nas mãos de menos de 1/5 dos proprietários de negros; o próprio
critério de concessão de datas assentava-se na quantidade de cati-
vos possuídos, as maiores extensões indo para as mãos dos grandes
senhores. Para estes, o luxo e a ostentação existiram de fato – não
como sintomas de irracionalidade, conforme disseram muitos, mas
como sinal distintivo do status social, como instrumento de domi-
nação necessário à consolidação e manutenção do mando. Acumu-
lação de escravos e luxo aparecem, aqui, como características de

32 , Eduardo Frieiro, Vila Rica , Vila Pobre , em: O Diabo na Livraria do Cônego
– Como era Gonzaga? E outros temas mineiros, Belo Horizonte, 1957, p.164. Numa
geração mais recente, Sylvio de Vasconcellos O ouro proclama riquezas, mas
os mineradores continuam pobre s” – Mineiridade. Ensaio de caracterização,
Belo Horizonte, 1968, p.30.
33 , O capitalista experimentado controla o seu consumo pessoal. Ja o escravis-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

uma sociedade escravista especifica, própria ao sistema colonial,


e indicam o seu caráter extremamente restritivo.33 Poucos foram,
pois, nas Minas os grandes senhores de escravos e lavras. Sylvio de
Vasconcellos cita documento que calcula em três a média de escra-
vos dos senhores de Rio Acima, sendo que, dos 96 proprietários de
São João del Rei, apenas 7 possuíam mais de 12 negros.34 A partir de
dados como este, foram feitas inferências sobre a maior distribui-
ção da riqueza na sociedade mineira, que, por sua vez, seria mais
democrática. Tentarei mostrar que as coisas se passaram de modo
diferente.
Em análise recente, Wilson Cano35 contestou com brilho a asso-
ciação entre a capacidade dinamizadora da economia mineira e a
sua alta produtividade. Diz o autor que, apesar de ter gerado efeitos
produtivos na economia do sul e desenvolvido a urbanização, o apa-
relho burocrático e o militar, o ouro não engendrou segmentos pro-
42 dutivos in loco, pois importava-se a maior parte dos meios de sub-
sistência e quase não havia produção interna ou retenção local do
excedente produzido. Por outro lado, a pequena necessidade de ma-
quinário condicionou os investimentos maciços em mão-de-obra,
originando uma economia de densidade elevada na qual o escravo,
utilizado em larga escala, representava grande porcentagem de ca-
pital imobilizado. As relações entre os gastos com mão-de-obra e o
total de ouro produzido seriam do seguinte teor:

total de ouro produzido 644,1 t/ouro


gastos quantificáveis com mão-de-obra 331,2 t/ouro
saldo e gastos não quantificados 312,9 t/ouro

ta assume dividas crescentes, tornando-se dependente do mercador-usurário e se


endividando. Jacob Gorender, Escravismo Colonial, São Paulo, 1978, p.432. É em
Genovese que se encontra admiravelmente formulada a função do luxo e dos gastos
suntuários na sociedade escravista patriarcal. Economia Política de la esclavitud,
trad., Barcelona, s.d., p.24-5
34 , Sylvio de Vasconcellos, ob.cit. p.61.
35 , Economia do ouro em Minas Gerais (século XVIII), em: Contexto n.3,
São Paulo, 1977, p.91-109.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

A produção bruta de ouro foi elevada, e Minas representou 70%


da produção da colônia no século XVIII (ver tabelas, p.70-5); entre-
tanto, o sistema colonial fez com que o fisco, a tributação sobre os
escravos, o sistema monetário implantado e as importações – que se
faziam pelo exclusivo de comércio – consumissem a sua maior par-
te. Deduzidos pelos gastos de compra e manutenção da escravaria
e os gastos não quantificáveis, o saldo se tornava negativo. Dado o
baixo nível da renda, poucos foram, nestas condições, os que fize-
ram fortuna.
Conforme rareava o ouro, os mineradores se viam impossibili-
tados de suportar o ônus dos custos de manutenção da escravaria,
situação que o mínimo contingente de mão-de-obra voltada para
a subsistência não podia contornar.36 Máquina dispendiosa, com
pequena capacidade de produzir excedente para sua reprodução, o
escravo certamente não seria capaz de engendrar o superexcedente
necessário à compra de sua liberdade, o que implica uma revisão 43
das análises das alforrias empreendidas normalmente: estas não te-
riam sido obtidas através de recompensas pagas a alguma gema ou
pepita gigantesca que os escravos encontrassem eventualmente nas
lavras, nem com o ouro que, artificiosamente, escondiam na cara-
pinha;37 ela foi, isso sim, a saída possível para os empreendedores, a
maneira encontrada para conservar parte do antigo capital. Assim,
as alforrias não se deveram à capacidade apresentada pela escrava-
ria em comprar a própria liberdade – o que só poderia ocorrer com
a produção de um excedente –; não foram, portanto, conseguidas
pelos escravos, e sim concedidas pelos senhores que, com sua deca-
dência das atividades mineradoras, passaram a ter nos gastos com a
reprodução da força de trabalho um encargo pesado demais. Como

36 , Segundo os cálculos de W. Cano, 80% da população se dedicava à mineração,


os 20% restantes não dando conta da oferta alimentar.
37 , Esta tese é endossada, entre outros, por João Camilo de O. Torres, ob.cit. e
Eschwege, Pluto Brasiliensis.
38 , W. Cano, ob.cit. p.103.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

decorrência desse estado de coisas, “sucateava-se compulsoriamen-


te a 'maquina'!”.38
Conclui-se que a economia mineira apresentava baixos níveis de
rende distribuídos de uma maneira menos desigual do que no caso
do açúcar.39 Mas se a sociedade mineira foi das mais abertas da co-
lônia, essa abertura teria se dado por baixo, pela falta – quase au-
sência – do grande capital e pelo seu baixo poder de concentração.
Daí o número de pequenos empreendedores, daí o mercado maior
constituído pelo avultado número de homens livres – homens esses,
entretanto, de baixo poder aquisitivo e pequena dimensão econômi-
ca. Em suma, levando-se adiante essas considerações, a constituição
democrática da sociedade mineira poderia se reduzir numa expres-
são: um maior número de pessoas dividiam a pobreza.
“Copiosas de ouro para os desejos da cobiça”, dadivosas em rique-
zas, proporcionando a “felicidade da fortuna” e “afluência do ouro”
44 a quem elas recorresse, heis como o Triunfo Eucarístico descreve
as terras do ouro. Nelas os homens viviam “com as abundancias do

Maurício Goulart em A escravidão no Brasil – Das origens à extinção do tráfico, 3ª


ed., São Paulo, 1975, apresenta interpretação convergente à de Cano: “À medida que
perece a empresa, aumenta o número de libertos; já lhes vimos as porcentagens sur-
preendentes sobre a população, a partir de 1786. Seriam as consequências de proble-
mas íntimos, de remorsos de última hora, de pavor do inferno como castigo da car-
ne. Mas também o eram da situação financeira: valeria mais alforriar os cativos que
sustentá-los. A explicação sentimental, decorrente das concubinagens, calha bem
para os mulatos; pode chegar sem dissonância até as negras; não explica, porém, a
magnanimidade para com os retintos. Atente-se, além disso, no número de forros
em 1739 e 1786: lá, a situação próspera, mal passavam de 1,2% sobre a escravaria;
eram agora, na vazante, mais de 35%. Não morreriam supersticiosos àquele tempo,
seriam menos retas as consciências, ou menor o medo? Nada disso. Apenas, os acer-
tos de contas eram mais onerosos. Gerando prole farta, a concupiscência fora fonte
de pecúnia; e quando resgatar pecados ou mestiços chegava a custar 300 oitavas
por arrependimento, os acordos com o céu deviam parecer menos urgentes”. p.169.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

ouro”: “os de Portugal pelo comércio participantes, os da América


neste Brasil do manancial possuidores; uns e outros persuadidos,
que depois das antigas, e sempre sucessivas glórias militares, come-
çavam a contar séculos de riquezas”.40
As opulentas Minas haviam sido agraciadas com “tesouro de ri-
quezas as mais finas”,41 mas os habitantes do Tijuco as viam, em
1738, com olhos diferentes: impedidos pela administração diaman-
tina de minerarem ouro, achavam-se “arruinados e perdidos”; arca-
dos sob o peso de “grandes prejuízos e ruinas”, começaram a deser-
tar para as capitanias vizinhas. Muitos outros acabariam seguindo
este exemplo, e, concluíam os autores de uma súplica dirigida a D.
João V, “esta comarca, que era uma das mais abundantes e ricas,
ficará reduzida a miserável estado”.42
Alusões à pobreza, à ruina, ao abandono a que ficavam relegadas
as populações mineradores representam a tônica dominante dos
documentos do século XVIII mineiro, sejam eles oficiais ou não. Os 45
dois textos que descrevem as festas barrocas apresentam-se, portan-
to, como extremamente destoantes no concerto geral: quase que se
poderia dizer constituírem os únicos registros que fazem menção
à riqueza e à opulência. Mais um motivo, pois, para se acreditar
na inversão ideológica operada através da visão que as festividades

39 , “... a economia da mineração, muito embora tenha apresentado um perfil


distributivo menos desigual da renda, tal distribuição, na realidade, tem muito mais
a ver com uma distribuição de baixos níveis de renda do que de níveis médios ou
de altas rendas. Como certamente operou a custos elevados, provavelmente suas
margens de lucro eram baixas para os medianamente bem-sucedidos, altas, para os
pouco bem-afortunados, isto é, para aqueles de maior sorte no encontro do minério,
e ínfimas, e até mesmo negativas, para muitos, para os malsucedidos”. – W. Cano,
ob.cit. p.105-6.
40 , Cf. Prévia alocutória ao Triunfo eucarístico, p.15-20.
41 , Áureo trono episcopal, p.184.
42 , Súplica dos habitantes do Tijuco dirigida a D. João V, segundo Joaquim Fe-
lício do Santos, Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio, 1956; as passagens
citadas acham-se respectivamente nas p.75, 76 e 78.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

conferiam à sociedade. Sendo, como já ficou dito acima, mecanismo


de reforço, inversão e neutralização, a festa servia admiravelmente
à perpetuação de um estado de coisas que interessava tanto ao lado
metropolitano quanto à sociedade escravista colonial: em um e ou-
tro, é o mando que se legitima, igualando as diferenças e, ao mesmo
tempo acentuando-as; é o poder que se faz autêntico por conferir
um espaço às populações pobres – o mulato, o gentio da terra – e,
simultaneamente, mantê-las a uma distância respeitosa que a pom-
pa ajuda a delimitar.
Tendo sido um dos temas preferidos pelos homens da época, é
curioso que a pobreza mineira transparecesse tão pouco na histo-
riografia, onde sempre foi escamoteada e substituída pelo tema da
decadência, território vago que, na maior parte das vezes, aparece
como definido na década de 1770. Foi no ano de 1763 em que a cota
anual das cem arrobas pode ser preenchida pela última vez, mas
46 tudo indica que a decadência vinha de antes, conforme se infere da
preocupação de D. Frei Manuel da Cruz em esconder a data de sua
chegada a Mariana. Mais frequente na medida em que avançava o
século e a escassez passava a ser flagrante, o tema da opulência sur-
ge como referido a uma época remota, Idade de Ouro idealizada e
posta a perder devido à incúria dos mineiros.
Conforme já se disse, o período compreendido entre 1733 e 1748
correspondeu ao ápice da economia do ouro em Minas Gerais. O
Conde das Galvêas e Martinho de Mendonça de Pina e de Proen-
ça – este, funcionário da Coroa que, de 1736 a 1737, exerceu interi-
namente a governança – receberam da Metrópole ordens expressas
para instalar nas Minas a capitação e o censo das indústrias devido
à “crescente prosperidade das minas e a generalização escandalo-
sa dos extravios”.43 Ao nomear, em 1735, Gomes Freire de Andrada
para o governo das Minas, a Metrópole tinha em mente tanto o in-
cremento da defesa do sul – para o governante escolhido apresen-
tava qualidades de sobra – como o estabelecimento de um sistema

43 , Diogo de Vasconcellos, História Média de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1917,


p.65.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

fiscal que favorecesse mais intensamente a Coroa, contando em am-


bos os casos com firmeza e a autoridade deste general.
No dizer de Affonso Ávila, assim como D. João V foi o rei da eu-
foria do ouro, foi o Conde das Galvêas “o embaixador de sua pom-
pa”.44 A demarcação do Distrito Diamantino e a criação da Inten-
dência dos Diamantes ocorreram em seu governo, mas há quem já
veja decadência nessa época, o período áureo sendo identificado a
um momento anterior: “Veio o s.r. D. Lourenço de Almeida, que
foi o tempo mais feliz que tiveram as Minas, porque corria o ouro
em pó a 1320, muita moeda e dobrões de ouro e muita prata e co-
bre; mas, atrás da bonança veio a tormenta; porque veio o sr. Conde
das Galvêas...”45 José Joaquim da Rocha partilha da mesma opinião
e diz que, tendo Galvêas sido encarregado pelo rei de estabelecer
a capitação, não o fez “por ver a decadência em que se achava já
a capitania que lhe foi conferida para governar”.46 Na “Instrução”
do desembargador Teixeira Coelho a periodização da decadência 47
aparece ligeiramente alterada: “Este governador (Galvêas) tinha um
grande talento, e luzes superiores: foi o prudentíssimo, e nunca se-
guiu a péssima conduta de fazer avultar os seus serviços à custa de
lágrimas, e da substância dos povos. Governou pouco tempo, mas
com acerto; e os mesmos povos lamentaram a sua retirada, que fi-
xou a época da ruína de Minas”.47 André de Mello e Castro, conde
das Galvêas, deixou o governo das Minas em 1736 para ser vice-rei
do Brasil.
Até aqui, ficou dito que, para os homens do século XVIII , a per-
cepção da decadência se apresentava vaga e atemporal – espécie de
consciência difusa e carente de contornos –, e que se opunha dia-

44 , O lúdico e as projeções do mundo barroco, p.205-6.


45 , Códice Costa Matoso, segundo Waldemar de almeida Barbosa, História de
Minas, v.1, Belo Horizonte, 1979, p.151.
46 , José Joaquim da Rocha, Memória da Capitania de Minas Gerais , RAPM ,
v.II , p.486.
47 , J. J. Teixeira Coelho, Instruções para o governo da capitania de Minas
Gerais , RAPM , v. VIII , p.473. O grifo é meu.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

metralmente a uma opulência mítica e igualmente desprovida de


limites cronológicos. Como contrapartida desta imprecisão, o luxo
das festas barrocas e a quantidade de ouro arrecadada pelos quintos
são dados concretos. Foi no ano de 1725 que o quinto ultra passou,
em Minas Gerais, os mil quilos, mas o pico absoluto foi alcançado
no período que vai de 1737 a 1746, quando apenas uma vez – em 1744,
ou seja, um ano antes da designação de D. Frei Manuel da Cruz para
o bispado de Mariana – a produção não alcançou a casa dos 1,900
quilos.48
Feitas essas considerações, qual seria o significado profundo da
noção de decadência conforme aparece nos textos do século XVIII?
Analisando as considerações acima citadas, vê-se que no docu-
mento do códice Matoso o período do conde das Galvêas aparece
como tormentoso, adjetivo que, obviamente, não pode se referir a
falta de ouro, pois 1733 é o ano da grande subida na arrecadação
48 do metal (ver tabelas ao final do capitulo). A tormenta poderia ser
por outro lado, a constante ameaça do estabelecimento da capitação
representada pela figura do conde, pois que com esse intento a Co-
roa o designara para o governo de Minas. Mais ainda: tormentosa
seria, para o minerador ou garimpeiro do Distrito Diamantino, a
proibição imposta em 1734 pela Coroa sobre a extração de ouro e
diamantes na Demarcação – proibição essa intentada com vistas a
impedir, ante o excessivo afluxo de pedras, a queda dos preços no
mercado internacional.
Já Teixeira Coelho louva a prudência do conde, prudência essa
que deve ser creditada à sua atuação no episódio do estabelecimento
da capitação. De fato, o governante, uma vez sondadas as opiniões
dos homens bons, julgou desacertada a medida e inadequado o sis-

48 , Ver nas tabelas (p.65-70) que o período de 1733 a 1750 representa o ápice da
produção das Minas Gerais. No cômputo geral, 1750-1755 representaria o período de
maior produção devido ao ouro goiano. Os dados e as tabelas são de Virgílio Noya
Pinto, O ouro brasileiro e o comércio anglo-português, São Paulo, 1979, p.71-5.
49 , O episódio é narrado, entre outros, pelo desembargador Teixeira Coelho,
ob.cit. p.472.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

tema de tributação,49 o que comunicou à Coroa. Não procurou se


enaltecer às custas da taxação extorsiva, é isto que quer dizer o de-
sembargador da Relação do Porto. Sua retirada marcou “a época da
ruina de Minas” porque veio Gomes Freire e estabeleceu a odiada
capitação.
A decadência assume agora feição totalmente nova, não mais re-
ferida ao decréscimo da produção, mas ao ônus crescente da tribu-
tação sobre os mineiros. Conforme aumentava a produção, mais lu-
cro a Coroa procurava extrair do negócio, e mais violento se tornava
o sistema fiscal. A coroa enriquecia, mas o mineiro ficava pobre.
Resta ver a maneira pela qual a percepção da decadência/pobreza
gradativamente cedeu lugar à constatação, por parte dos homens da
época, dos motivos que a engendravam.
Desde cedo se firmou a imagem de que o ouro, metal nobre por
excelência, correspondia a uma riqueza enganadora, fátua e, no li-
mite, falsa. O problema é complexo e tem vários desdobramentos, 49
pois se tudo “conspira para se julgarem estas minas as mais pobres,
e desgraçadas das que vivem em sociedade”, “não é fácil afirmar
delas este conceito” porque a aparência – o luxo, a ostentação – en-
cobre a essência, a pobreza que está por trás da “falsa reputação” e
do “falso brilhante”.50
Em 1704, D. Álvaro da Silveira de Albuquerque – então governa-
dor do Rio, São Paulo e Minas – escreveu ao governador-geral mos-
trando extrema contrariedade ante a multidão de gente que afluía
para as Minas, e desabafando: “Estas minas perdem todo este Brasil,

50 , Passagens da Representação citada na epigrafe deste capítulo, RAPM , VI , p.47.


51 , “Carta de D. Álvaro da Silveira de Albuquerque ao governador geral do Estado
do Brasil sobre socorros para o Rio de Janeiro e para a colônia do Sacramento e so-
bre o rush para as Minas” – 5-V-1704 – DI , v.51, 1930, p.242. Os grifos são todos meus.
Historiando o afluxo de gente às Minas, diz o Pe. Manuel da Fonseca: “... com a fama
do ouro tinha concorrido tanto povo, não só de São Paulo e de todo o Brasil, mas
passando além do mar a notícia de tão pernicioso metal, se abalaram também os
europeus...” Manuel da Fonseca, Vida do venerável pe. Belchior de Pontes da Com-
panhia de Jesus... (1752), São Paulo, s.d., p.204. O grifo é meu.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

e fora muito útil que Deus acabara, e se fosse no nosso tempo, fica-
riam este restante que na falta com mais algum sossego”.51 Antonil
também ressaltaria o aspecto negativo das minas, prenunciando a
fisiocracia: “... e depois de descobertas as minas de ouro, que ser-
viram para enriquecer a poucos e para destruir a muitos, sendo as
minas do Brasil os canaviais e as malhadas, em que se planta o ta-
baco”.52
Em meados do século, Alexandre de Gusmão apontava o engodo
das minas, recriminando Portugal de “correr ignorantemente em
seguimento da riqueza imaginária das Minas de ouro, que nos tem
arruinado e empobrecido, quando nos pareceu encontrarmos ai
toda a nossa fortuna”.53 Nota-se em todos estes textos a preocupação
com os males que o “pernicioso metal” acarretava para a Metrópole
e, secundariamente, para a sua colônia: “... as Minas são a ruína de
Portugal, e o ouro a perdição das Minas “, observava o autor anôni-
50 mo do Roteiro do Maranhão, hierarquizando os danos e, ao mesmo
tempo, atrelando Metrópole e colônia na desgraça comum.54 Uma e
outra se prejudicavam com o engodo do ouro.55
A percepção inicial de que a Metrópole se prejudicava pensando
se beneficiar desdobra-se no desvelamento gradativo da verdadeira

52 , Cultura e opulência..., p.227. O grifo é meu.


53 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., p.151. O grifo é meu.
54 , Roteiro do Maranhão a Goiás pela Capitania de Piauí , RIHGB , LXII ,
I , p.116. Segundo Godinho, a nobreza metropolitana de então se perdia em “facili-
dades irresponsáveis” que lhe emprestava o ouro e que acabara contaminando todo
o povo de Lisboa, para onde as “falsas prosperidades do ouro” atraíam chusmas de
marginais, Godinho, ob.cit.
55 , A dupla face do ouro transparece em um ditado que Diogo de Vasconcellos
cita na sua História Média: “no Tocantins e nos Crichás, dizia-se que a riqueza
vinha em um ano e a morte em seis meses.” – p.153. O tema do falso já pode ser
detectado na história lendária de Fernão Dias Pais, que saiu para o sertão em bus-
ca de esmeraldas e encontrou pedras verdes sem valor, morrendo na ilusão de ter
descoberto as famosas pedras preciosas. Carlos Drummond de Andrade tem uma
passagem alusiva a este respeito:
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

natureza da economia mineradora e na conscientização do estado


de pobre da capitania de Minas, que passa a ser o foco principal
das atenções. Pressionado, talvez, pelo Morgado de Mateus, então
governador de São Paulo e ocupado em levantar dinheiro e tropas
para as guerras do Sul, Luís Diogo Lobo da Silva revela ao colega de
cargo a “palheta dourada” que todos acreditavam “ouro maciço”:

O conceito, que a V. Exa. Deve esta capitania a respeito da opulência, que


lhe considera, é igual ao que dela fazemos na Europa, e lhe julga todos os
habitadores dos Governos da América (…). Porém logo que se conhecem
a fundamento, e se entra na substancial inteligência da qualidade destas,
sua substância, ramos de que dependem, e estado atual a que tem chegado,
refletindo na preguiça dos seus habitantes, se vê com evidência o quanto é
diferente a realidade, da opinião geral, que logra da riqueza, que não pos-
sui.56
51
Assim, paradoxalmente, a famosa capitania seria na realidade
“uma das capitanias mais pobres, que tem a América”, o que se de-
via em grande parte à diminuição dos jornais e ao desprezo pela

E as esmeraldas,
Minas, que matavam
de esperança e febre
e nunca se achavam
e quando se achavam
eram verde engano?”
As impurezas do branco, p.109

Comentando a pobreza da capitania de São Paulo, dizia o Morgado de Mateus ao


futuro Pombal: “... sendo a riqueza do ouro que aqui ficou uma felicidade transitória
para aqueles em cujas mãos estava, pois não podia permanecer não havendo em que
se empregasse de sorte que o rendimento fizesse círculo, ou retrocedesse outra vez
para seu próprio dono – Carta de 13-VIII-1765, DI , LXXII , 1952, p.71.
56 , Carta de 9-1 V, 1766, DI , v.14, 1895, p.177. O grifo é meu.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

agricultura, manufaturas e criação de gado. O motivo que leva a


esse desprezo não é, entretanto, abordado.
Uma vez detectada a pobreza e entendida as Minas como o seu
cenário, elabora-se a formulação de que o fausto é falso, de que a
natureza do ouro é intrinsecamente enganadora. Porém, conforme
se configura a franca decadência das Minas, começa a surgir a ne-
cessidade de explicar esse estado de coisas e justificar a pobreza.
Parte-se então para uma séria de racionalizações que, apesar de
mais elaboradas, resvalam no problema sem dar conta da sua ver-
dadeira natureza.
Num primeiro nível – o mais elementar –, surge a explicação de
que não há riqueza devido ao extravio e ao contrabando. De fato,
há fortes indícios de que este existiu durante todo o período mine-
rador, constituindo-se em preocupação central das autoridades co-
loniais. As medidas contra o extravio e os extraviadores atingiram
52 intensidade máxima no Distrito Diamantino, onde as penas contra
este crime eram violentíssimas e abrangiam uma gama de varia-
ções que ia desde a prisão até o degredo e a morte civil.57 Grupos
poderosos chegaram a se envolver nessa atividade ilícita, como teria
acontecido com o Padre Rolim e a família Vieira Couto.58
A explicação da decadência pelo extravio se articulou basicamen-
te do lado do poder: são os bandos, são os governantes, é, mais do
que ninguém, Martinho de Mello e Castro, o ministro de D. Maria
I, para quem as “fraudes” constituíam as causas principais. Sobre
esta certeza se assentou a sua Instrução Política para o Visconde de
Barbacena, datada de 1788. É necessário atentar para o fato de, nes-
ta concepção, riqueza se identificar com rendimento das quotas do

57 , Este assunto será tratado com mais vagar no capítulo 3.


58 , A sugestão é de Maxwell, que aponta também a possível participação dos
altos funcionários coloniais no negócio. Conivente ou não, o próprio desembar-
gador Gonzaga teria diamantes em sua casa: se o magistrado não exercia o ilícito
comércio, pessoas chegadas a ele o faziam. Cf. A devassa da devassa, Paz e Terra:
Rio de Janeiro, 1977, p.121-2.
59 , “... durante maio século em que o rendimento baixou em Minas Gerais (…) de
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

ouro, o que explica o ângulo privilegiado: é a riqueza da Metrópole


que continua em questão.59
A partir dos estudos científicos levados a cabo pelos membros da
Academia de Ciências de Lisboa – entre os quais, D. Rodrigo de
Sousa Coutinho –, o extravio deixa de ser a explicação preferida e
as atenções se voltam para a inadequação dos métodos utilizados na
extração do metal. Galga-se assim um segundo patamar na tentati-
va de compreensão do problema.
Em 1791, a Junta da Fazenda opinava sobre o estado da capitania e
o decréscimo da arrecadação do ouro traçando o perfil do que fora,
por todos aqueles anos, o procedimento adotado: aproveitamento
do ouro aluvional e de fácil extração:

[...] foi naquele tempo de abundância, e quando a extração do mesmo ouro


era mais fácil e menos dispendiosa; pois que achava junto nos córregos
aonde estava como depositado pelo decurso de longos anos pelas enxurra- 53
das que cotidianamente a conduzidos morros: hoje porém se acha somente
no centro dos ditos morros dificultosos de se lavarem, não só pela situação,
e falta de águas, como pelas poucas forças dos mineiros [...]60

Uma vez extraído o metal de aluvião, os veeiros de grupiara ou


meia-encosta, os de galeria, enfim, os que adentravam pela ter-
ra apresentavam extração mais difícil, para a qual a técnica rudi-
mentar dos mineiros das Gerais era bastante inadequada. Dentre

118 arrobas em 1754, máximo percebido, para 35 apenas, exatamente 50 anos depois,
não ocorreu sequer uma só vez à administração outra explicação que a fraude”. Caio
Prado Jr., História Econômica do Brasil, 11ª ed., São Paulo, 1969, p.61. Os dados de
Caio Prado Jr. Não me parecem corretos; creio que o autor toma a produção total
da colônia pela produção das Minas Gerais, onde o ano de maior arrecadação foi
o de 1738.
60 , Ponderações da Junta da Fazenda sobre os meios de se ressarcir o
prejuízo da Real Fazenda com a arrecadação do quinto do ouro , RAPM ,
v. VI , 1901, p.167.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

as memórias que estudaram o problema e se inserem no clima de


reformismo ilustrado vigente na Metrópole a partir da década de
1790,61 tem-se a de Ferreira Câmara e as de Vieira Couto. Este, na
sua primeira memória – a de 1799 – fala da necessidade da metalur-
gia do ferro na mineração.
Mas é em Eschwege, anos depois, que o problema aparece clara-
mente formulado. Segundo o mineralogista alemão, a pobreza do-
minava inúmeros arraiais auríferos: “Se se pergunta, nesses lugares,
sobre a causa dessa decadência, obtém-se como resposta ter sido a
escassez do ouro que impeliu uma parte da população a deixar o
local e outra a cair na miséria, pelo abandono dos serviços de mine-
ração. O observador superficial aceitará essa explicação como ver-
dadeira, e, propagando-a, dará uma ideia falsa sobre um dos assun-
tos econômicos de maior importância para a capitania de Minas”.62
A região continuava rica nas profundezas, prossegue Eschwege, e
54 apenas a riqueza superficial havia sido explorada: mas isto não sa-
biam os mineiros, pois eram ignorantes em matéria de mineração e
adotavam os métodos os “mais inoportunos”.63
Em 1813, o Conde da Palma também acusava com clareza os mo-
tivos da decadência: “erram todos aqueles” que não apontarem as
dificuldades dos trabalhos da mineração, advindas ou da “profun-
didade, em que se acham as formações do ouro com os entulhos
corridos de outras lavras indiretamente trabalhadas, ou pela rique-
za e obstáculos que se encontram nas montanhas, por onde atraves-
sam os veeiros, e em que existem as matrizes, as quais não é possível

61 , O reformismo ilustrado é estudado no livro de Fernando A. Novais, já cita-


do; Maxwell também estuda o problema em The generation of the 1790s and
the Idea of Luso-Brazilian empire , em Dauril Alden, Colonial Roots of Modern
Brazil, Berkeley, 1973, p.107-44.
62 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, trad., São Paulo, 1944, p.241-2.
63 , A ideia da riqueza das camadas profundas parece não corresponder à realida-
de, pois, segundo Caio Prado Jr., não teríamos rochas matrizes. História econômica
do Brasil, p.60.
64 , Correspondência do Conde da Palma 1810-1814”, RAPM , v.XX , 1924, p.356.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

descobrir sem grande risco das fábricas e sem muita perda de servi-
ços pela falibilidade dos resultados”.64
Há memórias e documentos da época onde a contestação do ex-
travio como categoria explicativa da decadência aparece associada
à falta de braços: assim em Eschwege, assim no Conde da Palma.
Num terceiro nível explicativo, surge a ideia de que a mineração
é ilusória porque, na realidade, não é trabalho. Este, por sua vez,
configura-se claramente como praga bíblica: penoso, demorado, di-
fícil, é provação necessária para a obtenção final da felicidade; “uma
riqueza achada de repente, e com facilidade, não nascida da indús-
tria, ou de trabalho”, será sempre perniciosa.65
Sendo atividade extrativa, o ouro sempre acaba, não é eterno,66
mas atrai os homens devido ao seu “caráter mais imediato, e de
primeira espécie”.67 Ninguém precisa encorajar os homens para a
atividade mineradora, pois “o natural instinto, de que nos dotou a
natureza, de caminharmos sempre pelo caminho mais curto à nos- 55

65 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da capitania de Minas Ge-


rais” 1808, RAPM , v. II , 1897, p.674. No começo do século passado, Mawe se escan-
dalizava com a população mineira e formulava sua opinião: “A educação, hábitos,
preconceitos hereditários os tornam inaptos para a vida ativa; sempre entregues à
perspectiva de enriquecer subitamente, imaginam estar isentos da lei universal da
natureza, que obriga o homem a ganhar o pão com o suro do seu rosto”. Viagens ao
interior do Brasil, principalmente aos Distritos do ouro e diamantes, trad. Rio de
Janeiro, 1944, p.177.
66 , Esta ideia acha-se presente na Memória sobre a utilidade pública em se
extrair o ouro das Minas e os motivos dos poucos interesses que fazem
os particulares, que mineram igualmente no Brasil , de Antonio Pires da
Silva Pontes Leme – RAPM, v.1, 1896, p.417-26.
67 , Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o es-
tado de decadência da capitania de Minas Gerais e meios de remediá-lo,
RAPM , v.II , 1897, p.317.
68 , J. Vieira Couto, Memória sobre as Minas da capitania de Minas Ge-
rais. Suas descrições, ensaios, e domicílios próprio. À maneira de itine-
rário. 1801, RAPM , v.X , 1905, p.84.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

sa felicidade, fará que hajam sempre muitos mineiros”.68 Mas há que


ter muito cuidado, pois nem sempre o caminho mais curto é o que, a
longo prazo, traz a felicidade: na verdade, o ouro é riqueza aparente,
“que não indo de par com os reais, desaparece de súbito”.69 Isto não
impediu que o Estado português descurasse da agricultura e se vol-
tasse exclusivamente para a mineração, continua o mineralogista do
Tijuco; urge, pois, que se restaure aquela que é a verdadeira riqueza,
a “que nos oferece a madre terra todos os anos, em sua renovada
superfície”70 e que, para florescer, não precisa quebrar os montes
nem revolver e arrancar as entranhas que a geraram. Mas fica uma
pergunta no ar: “Donde vem tão fatal inércia? Donde tanta indife-
rença para a cultura de gêneros que cada um deles poderia fazer a
felicidade de muita gente?”
O reformismo ilustrado português caracterizou-se também por
um revivescer fisiocrático, a “imaginária riqueza das minas” pas-
56 sando a ser encarada como um mal e a agricultura assumindo a
feição de verdadeira riqueza.71 Na “Memória” datada de 1798, José
Elói Ottoni comparava sua época com a “época venturosa” de D.
Manuel: “Donde se deve concluir que infelizmente para o nosso
Portugal se descobriram as Minas; pois que nos fizeram desprezar
as verdadeiras riquezas da Agricultura para corrermos cansados
após um fantasma de riquezas imaginárias.”72 O “Discurso sobre o
estado atual das Minas do Brasil”, de Azeredo Coutinho, também
se atrela a essa linha explicativa, Cavar ouro significava então cavar
a própria ruína, pois já não se viviam mais os tempos do bullionis-
mo, e a Inglaterra, onde em 1776 Adam Smith publicara a Riqueza
das Nações, estava em franca fase de revolução industrial. Na obra

69 , Idem, ibid., p.83.


70 , Idem, ibid.
71 , Formulações essas desenvolvidas, entre outros, por José Veríssimo Álvares da
Silva na sua Memória histórica sobre a agricultura portuguesa , citada por
Fernando Novais, ob.cit. p.205.
72 , José Elói Ottoni, Memória sobre o estado atual da Capitania de Mi-
nas Gerais , 1798, ABN , v. XXX , p.310-1.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

do bispo-economista, mais do que em qualquer outra, plantar sur-


ge como sinônimo de trabalho, enquanto minerar significa jogo e
aventura; o agricultor, com o trabalho contínuo e a utilização de
máquinas, aumenta a sua riqueza e a da nação: “Não é assim a res-
peito do mineiro: a maior extração do ouro não depende do seu
braço, depende do acaso, e muitas vezes o que menos trabalha é o
que descobre um tesouro mais rico”.73 Riqueza “casual”, “variável” e
“caprichosa”, o ouro transferia essas virtualidades para o mineiro e
para a nação mineradora, assim tornada “inconstante”: “uma nação
sensata não deve imitar os desvarios de um jogador, deve estabe-
lecer-se sobre bases mais sólidas e mais permanentes”.74 Estas são
as proporcionadas pela agricultura, riqueza verdadeira, enquanto o
ouro não passa de mera representação de riqueza.
Muitas vezes pertinentes, estas formulações não chegaram ao cer-
ne do problema, apesar de, uma vez ou outra, terem nele resvalado.
Conforme vislumbrara a câmara de Vila Rica em 1751, não havia na 57
colônia gênero algum que saísse “para fora mais do que o ouro”75 e
este, uma vez em Portugal, logo passava para os países mais adian-
tados da Europa, pagando as importações do pequenino reino
luso.76 “De fato”, constatava amargamente Pombal, “Portugal per-
mitirá que seus tesouros fossem usados contra si mesmo e, por isto,
as riquezas das minas eram quiméricas para ele”.77 Ante a miséria
das Minas, Vieira Couto se consternava e dava o povo como fonte
e princípio das riquezas de um país: para povo laborioso, riqueza;
para povo rico, nação igualmente rica. Nesse caso, continuava, per-
73 , J. J. da Cunha Azeredo Coutinho, ob.cit. p.7.
74 , Idem.
75 , Carta da câmara de Vila Rica, 3, IV, 1751, cit. em Waldemar de Almeida
Barbosa, ob.cit. p.199.
76 , O argutíssimo Antonil constatara este estado de coisas ao falar do descobri-
mento do ouro: “passa em pó e em moeda para os reinos estranhos; e a menor parte
é a que fica em Portugal e nas cidades do Brasil...” Antonil, ob.cit. p.304.
77 , Segundo Maxwell, ob.cit. p.24.
78 , Vieira Couto, Memória sobre a capitania de Minas Gerais, seu terri-
tório, clima etc .” (1799), RIHGB , v.XI , 1848, p.325.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

plexo, o mineralogista, como explicar “um ente que não existe na


natureza, um erário rico de uma nação pobre?”.78
As questões colocadas por Vieira Couto haviam começado a ser
respondidas com nitidez durante o movimento da Inconfidência
Mineira, mas delas não parecia o mineralogista fazer caso – talvez
porque a desconfiança de sediciosa tivesse pesado sobre sua família.
De fato, foi aquele o momento em que a percepção do estatuto co-
lonial aflorou às consciências mais esclarecidas do Brasil, e não foi
ocasional o fato destas terem primeiro se manifestado na capitania
do ouro e do falso fausto. Durante todo o século XVIII , fora aquela a
região mais lucrativa dos domínios portugueses de ultramar, teatro
de violências fiscais e do autoritarismo ilimitado dos governantes.
Aos poucos, a decadência da capitania – que, como se viu acima,
fora alegada desde muito cedo – começou a assumir contornos pre-
cisos nas consciências: não apenas indefinida e atemporal, mas di-
58 fícil de ser delineada devido ao fato de estar imersa na realidade
colonial, e de corporificar a dependência. Não podia, pois, haver
ouro que chegasse para a voracidade do fisco, e a maior quantida-
de de ouro encontrando não significava, obrigatoriamente, riqueza.
Quase nada escapava às malhas do sistema colonial: fisco voraz, tri-
butação sobre escravos, sistema monetário especifico e importações
feitas pelo exclusivo de comércio eram os meios de que se servia a
Metrópole para a retirada do ouro. Esse mecanismo gerava pobreza,
implicando, para o colono, impossibilidade de comprar escravos;
numa sociedade escravista, isto implicava mais pobreza. O círculo
se fechava, e o verdadeiro tema – o mundo de pobreza em que se
movia o mineiro – era, através dos tempos, recoberto pelo tema da
decadência.
A percepção da decadência do ouro provocou, do lado da Metró-
pole, medidas reformistas visando à preservação dos seus domínios.
Não era a pobreza da colônia que se achava em questão, nem a per-
cepção clara da pobreza da Metrópole, pois esta implicaria transfor-
mações radicais que levariam à supressão do sistema colonial e da

79 , Utilizo, de maneira esquemática, a análise da crise do sistema colonial em-


3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

dependência portuguesa ante a Inglaterra; daí o debate ter se cen-


trado na decadência do ouro e nos meios de remediá-la.79
Na consciência do colono, o problema se encaminhou diferen-
temente. Mais do que a decadência, importava explicar a pobreza,
concreta e palpável para o habitante das Minas. Não conta, neste
caso, que os inconfidentes fossem membros da plutocracia local que
Fanfarrão Minésio afastara do poder e do usufruto de suas benes-
ses; tampouco é relevante o fato de Tiradentes ser o filho decaído de
uma família que tivera melhores dias e que ansiava ascender social-
mente. O que de fato interessa é a tomada de consciência do “viver
em colônias” que então se verificou.80
Ao tenente-coronel Frâncico de Paula Freire de Andrada, dissera
Tiradentes que, apesar de tanta riqueza, Minas era pobre “só porque
a Europa, como uma esponja, lhe tivesse chupando toda a substân-
cia, e os Exmos. Generais de três em três anos traziam uma quadri-
lha, a que chamavam de criados, que depois de comerem a honra, 59
a fazenda, e os ofícios, que deviam ser dos habitantes, se iam rindo
deles para Portugal”.81 A ideia de que a riqueza, drenada para fora,
engendrava pobreza, acha-se presente em tudo quanto de subversi-
vo se imputou ao Alferes: teria abordado Antonio de Afonseca Pes-
tana para convencê-lo de que “este país das Minas era fertilíssimo
e riquíssimo em tudo; a não ir toda a riqueza para fora, seria a terra
da maior utilidade...”;82 José Vasconcellos Parada e Souza o ouvira

preendida por Fernando Novais no trabalho já citado. A percepção clara do dilema


metropolitano ante a evasão do ouro para os centros hegemônicos aparece formula-
da em D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Cf. Novais, ob.cit. p.235-6.
80 , As considerações sobre a plutocracia mineira e sobre a procedência de Ti-
radentes foram tomadas de Maxwell, A devassa da devassa. A expressão “viver em
colônias” é de Vilhena, e serve de título capítulo II do trabalho de Carlos Guilher-
me Motta, Atitudes de inovação no Brasil – 1789-1801, Lisboa, 1970. Nesta obra, a
tomada de consciência dos “seres coloniais” é analisada com extrema propriedade.
81 , Segundo Maxwell, ob.cit., p.153.
82 , Segundo Waldemar de Almeida Barbosa, ob. cit., p.420.
83 , Ibid.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

afirmar que “este país de Minas era riquíssimo, mas tudo quanto
produzia lhe levaram para fora, sem nele ficar cousa alguma...”.83
Segundo dissera ao tenente José Antonio de Melo, da Cavalaria
Paga da Capitania, Tiradentes considerava desgraçado o seu lugar
de origem “porque tirando-se dele tanto ouro e diamantes, nada lhe
ficava, e tudo saía para fora e os pobres filhos da América, sempre
famintos, e sem nada de seu”.84
Vinte anos após a Inconfidência, o viajante inglês Mawe regis-
trava a observação que lhe haviam feito os habitantes de Vila Rica:

Quando lhes falavam da riqueza da terra e da quantidade de ouro que


lhe era reputada, eles pareceram satisfeitos de ter encontrado oportunida-
de para dizer-nos acreditarem ser todo o ouro enviado à Inglaterra, acres-
centando que sua terra se deveria chamar atualmente Vila Pobre, em lugar
de Vila Rica.85
60
A riqueza enganadora – apanágio de poucos, consagrada pela ri-
tualização barroca da opulência, filha da fome de muitos e escamo-
teada, através dos tempos, pelo tema da decadência; palheta doura-
da que a ilusão transformava em pepita maciça e que o reformismo
ilustrado procurava ultrapassar com paliativos – aparecia em toda
a sua transparência, uma vez desvelada a sua verdadeira função:
propulsionar a acumulação primitiva nos centros hegemônicos
europeus, ou seja, desempenhar o papel máximo das colônias na
época do Antigo Sistema Colonial. Como consequência, a pobreza
das Minas e o aniquilamento das forças vivas do reino; onde, para
Alexandre Herculano, a aventura marítima provocou um enrique-
cimento aparente, empobrecendo-o e “convertendo-o num grêmio
social, cujas funções características foram por séculos o madraço e
o mendigo”.86

84 , Ibid.
85 , Mawe, ob. cit., p.168-9.
86 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob. cit., p.197.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

II , DA UTILIDADE DOS VADIOS

Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra


eles se tem muitas vezes legislado; porém as regras comuns
relativas a este ponto não podem ser aplicáveis em toda a sua
extensão ao território de Minas, porque estes vadios, que em
outra parte seriam prejudiciais, seriam ali úteis.
J.J. Teixeira Coelho.

1. O PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO SOCIAL NO OCIDENTE


, A miséria, a vagabundagem, o desnível entre as condições de
vida dos homens existiram desde cedo, dela escapando apenas as
sociedades primitivas.1 A guerra, as grandes intempéries climáticas,
as epidemias de doenças misteriosas sempre contaram entre os prin-
61
cipais agentes causadores de indivíduos socialmente desclassificados:
são as determinantes conjunturais, frequentes por exemplo na Alta
Idade Média, e extremamente importantes para tornar compreensível
o processo de desclassificação das populações.
A Idade Média é um período especialmente elucidativo para
quem estuda a marginalidade, pois em seu seio se verificaram as
grandes transformações que marcaram a concepção moderna da
pobreza. Durante séculos, o pobre havia sido o pobre de Cristo, o
coitadinho que merecia ajuda e com o qual a população das vilas
convivia sem escândalo. Para eles os mosteiros abriam suas portas e
distribuíam seus grãos. Nunca deixou de haver quem alertasse para
a diferença entre pobres válidos e pobres inválidos – os vadios e os
vagabundos sendo, via de regra, olhados com desconfiança –, mas
essa dicotomia só se tornou mais acentuada na Baixa Idade Média.
Inicialmente, os braços de Cristo se abriam para todos – não indis-
tintamente, mas para todos.2

1 , Ver a esse respeito Alexandre Vexliard, Introduction à la Sociologie du Vaga-


bondage, Paris, 1956.
2 , Os vagabundos sempre foram os menos considerados. Em seu trabalho, Les
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Com suas grandes convulsões, com a urbanização e as transfor-


mações na economia monetária e na estrutura da propriedade ru-
ral, o século XII acusa a grande virada. Toda uma série de mudan-
ças estruturais começavam a solapar irremediavelmente o sistema
feudal, engendrando a pobreza e provocando uma transformação
radical na concepção que dela se tivera por todos aqueles séculos: “A
miséria é filha da estrada e da cidade”.3 Até então, não fora reconhe-
cida como problema social, pois a humanidade medieval não busca-
va a igualdade; a pobreza era uma riqueza espiritual, e o pobre, um
intermediário entre o rico e Deus: daí a enorme preocupação com
as esmolas, “economia da salvação”.4
As transformações estruturais – a que se somou à ação de São
Francisco de Assis – fizeram do pobre uma criatura deste mundo.
As municipalidades e o poder público passaram a se encarregar das
esmolas. De personagem do discurso dos doutores da Igreja e dos
62 poderosos em geral, passou o pobre a ser ator do drama, protago-
nista real da História.
Essa entrada definitiva em cena foi anunciada durante séculos
pelos movimentos messiânicos, pelo hussismo, por John Ball, pela
Jacquerie, pelas súbitas e rápidas “fúrias camponesas”. Afinal, no
século XIV, sua presença explodiu por toda a Europa – uma Europa
combalida pela Peste, pela Guerra e pela Fome. As leis inglesas e
francesas de repressão à vadiagem e a de obrigatoriedade do traba-
lho foram a resposta mais imediata a esse estado de coisas, a legis-
lação e as instituições de caridade se tornando, mais do que nunca,
instrumentos dos poderosos no seu confronto com a miséria.
A partir do século XIV, pois, a pobreza já não pode ser considera-
da como uma série de casos individuais, e os pobres se tornam nu-

pauvres au Moyen-Age – Étude Sociale, Paris, 1978, p.158, Michel Mollat cita, entre
outros, João de Friburgo, que “em nome da lei moral do trabalho, reprova os falsos
pobres, os válidos preguiçosos e vagabundos”. A esmola, que deveria ser tirada do
supérfluo, não deveria encorajar a preguiça.
3 , Jean-Louis Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, Paris, 1976, p.72.
4 , A expressão é utilizada por Michel Mollat na obra já citada.
3 . E N T R E V I S TA A WA L N IC E N O GU E I R A G A LVÃO

merosos demais para serem ajudados, onerando Deus e o Estado. O


trabalho e sua virtude redentora foram então exaustivamente lem-
brados, citando-se, como uma glosa, a vida dos santos. “O pobre,
o miserável, os humilhados se confrontam, implacavelmente, com
essa dualidade do bem e do mal: por um lado, representam o Cristo
humilhado e, por outro, ameaçam a ordem social”.5
De enorme importância é o aparecimento, durante os séculos
XIII e XIV, de um novo tipo de pobre: aquele a quem Mollat chama
“pobre laborioso, o camponês expropriado que, trabalhador, não
conseguia sustentar a família com o seu trabalho.6 Conforme avan-
çava o processo de dissolução das relações servis e de acumulação
primitiva, aumentavam os contingentes dessa nova camada social,
cuja característica mais importante era a pauperização crescente.7

5 , Goglin, ob.cit. p.135. Analisando as miniaturas da Bíblia moralizante do duque


de Borgonha Filipe, o Audaz. Goglin observa que os rostos dos pobres retratados 63
“lembram estranhamente os de carrascos, de malvados e de brutos”: é a pobreza
aparecendo como aspecto degradante da condição humana, “forma de humilhação
e de infâmia, com peso de maldição”. – p.139.
6 , “Tradicionalmente, a pobreza resultava da impossibilidade de ganhar seu pão
devido à incapacidade (idade, doença), ao desemprego, ao fracasso de uma ativida-
de, à perda de capital. Ora, eis que surge um grupo numeroso de pessoas exercendo
uma atividade regular e no entanto insuficiente para fazê-los viver decentemen-
te.” – Mollar, ob.cit., p.200. Na sociedade feudal, hierárquica ao extremo, não havia
terra sem dono, nem servo sem senhor. Christopher Hill cita um diálogo de uma
peça de Middleton extremamente elucidativo a respeito das transformações veri-
ficadas ao fim da Idade Média – Whose man art thou?, pergunta uma personagem,
ao que a outra responde: I'm a servant, yet a masterless man, sit.– How can that be?,
exclama, incrédulo, o interlocutor. Os masterless men se multiplicaram durante o
fim da Idade Média, atingindo o número de 13 mil no norte da Inglaterra, em 1569.
Christopher Hill, The World Turned Upside Down, Londres, 1975, cap. Masteless
Man, p.39. Sobre o assunto, ver também Maurice Dobb, A evolução do capitalismo,
trad., 3ªed. Rio de Janeiro, 1973, c.n., p.49-108
7 , Analisando o movimento de emigração que se verifica a partir das proprie-
dades senhoriais, diz Dobb ter ele se constituído numa “deserção maciça por parte
O aparecimento dessa pobreza laboriosa colocou em cheque as
formulações até então elaboradas sobre a miséria. Nela, não havia
nada que lembrasse o “repúdio à vida” do tempo dos eremitas nem a
boemia tolerada dos goliardos e dos clérigos vagabundos, estudan-
tes extravagantes e, como François Villon, poetas inconformados.
O homem pobre expropriado não era inválido, e almejava ter acesso
ao trabalho, mas muitas vezes não o conseguia: mais do que nunca,
eram claras as condições estruturais que faziam delem um deso-
cupado, um biscateiro intermitente e, no limite, um mendigo, um
vagabundo, um criminoso. Verificando-se no seio de uma formação
social produtora de valores de uso, a expansão do setor mercantil
provocava a dissolução gradativa dos laços servis e libertava um nú-
mero de pessoas superior à capacidade de absorção do sistema. Tor-
naram-se fluidas as fronteiras entre o mundo do crime e o mundo
do trabalho: trabalho obrigatório para todo homem pobre válido,
integrante não mais da legião dos “coitadinhos de Cristo”, mas da
“classe perigosa” que começava a assombrar as cidades e os burgos
no outono da Idade Média.8

dos produtores, que se destinava a retirar do sistema seu sangue vital e provocar a
série de crises nas quais a economia feudal iria achar-se mergulhada nos séculos
XIV e XV. A fuga dos vilões que deixavam a terra muitas vezes assumia proporções
catastróficas tanto na Inglaterra quanto em outros lugares, e não apensa servia para
aumentar a população das cidades crescentes, como e principalmente no continente
contribuía para a continuação das quadrilhas de proscritos, da vagabundagem e
jacqueries periódicas”. – Dobb, ob. cit., p.64-5.
8 , Sobre essa fluidez das fronteiras, diz o historiador polonês Bronislaw Gereme-
ck: “... as pesquisas sobre criminalidade fazem parecer uma espécie de 'fronteira'
social, de franja da sociedade organizada, onde o trabalho se mistura com o crime.
A passagem para a marginalidade se realiza segundo um dégradé de cores; não exis-
tem barreiras entre a sociedade e suas margens, entre os grupos e os indivíduos que
observam as normas estabelecidas e os que as violam”. – Criminalité, Vagabon-
dage, Paupérisme: la Marginalité à l' Aube des Temps Modernes , em: Revue
d'Histoire Moderne et Contemporaine, XXI , julho-setembro, 1974, p.346.
Foi sobre esse contingente humano heterogêneo que incidiram
violentamente os esforços então empreendidos no sentido de gene-
ralizar a prática do trabalho: “O trabalho, reabilitado após ter sido
desprezado como consequência do pecado original, torna-se um dos
valores de uma sociedade que se lança no crescimento econômico, e
a partir do século XIII , as expressões vadio (oisif) e mendigo válido
tornam-se etiquetas injuriosas atribuídas e certos marginais”.9
“Tolerava-se o mendigo, mas odiava-se o vagabundo”, diz Mollar,
referindo-se a esse momento histórico em que começava a se esboçar
uma lei moral do trabalho.10 Definida como ausência de domicílio
ou como o morar em toda a parte, a vagabundagem e a itinerância
eram incômodas numa sociedade em que as relações pessoais ainda
tinham muito peso e para a qual o fato de o indivíduo não poder se
ligar a ninguém e por ninguém poder ser reconhecido eram sinais
extremos de isolamento.11 Elemento irregular e instável, carente de
vínculos, o vagabundo “trabalha às vezes, mendiga com frequência, 65
rouba se aparece a ocasião, e pode ser incidentalmente arrastado
para a criminalidade e delinquência, mas ele não é nada disso de
uma maneira estável”.12

9 , Jacques Le Goff, Les Marginaux dans l'Occident Médiéval , em: Les Mar-
ginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p.23.
10 , Mollar, ob.cit., p.299.
11 , A análise é de Mollat, ob.cit.
12 , Vexliard, ob.cit., p.220-1. No artigo já citado, Geremeck chama a atenção para
a extrema mobilidade existente nas sociedades pré-industriais, mobilidade essa que,
entretanto, é sempre regulamentada, obedecendo a trajetos pré-traçados: migrações
de companheiros e escolares, migrações camponesas ligadas aos grandes movimen-
tos de colonização, peregrinações. Nenhum desses movimentos apresentava perigo:
era a mobilidade não controlada ou individual que inquietava e ameaçava as socie-
dades tradicionais. Geremeck, ob.cit. E mais adiante: “Ao mesmo tempo em que a
sociedade pré-industrial, com seu corpo organizado, não pode tolerar o indivíduo
isolado, procurando enquadrá-lo em instituições e solidariedades corporativos, nos
laços de famílias, nas estruturas eclesiásticas – no que diz respeito a seus marginais,
ela se inclina a não suportar senão indivíduos sem ligações de grupos ou de solida-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Estabelecendo-se uma cronologia sumária das medidas tomadas


contra mendigos, vagabundos e desocupados, pode-se notar a sua
concomitância em diferentes pontos da Europa. Em 1308, Fernando
IV de Castela ordenava que os mendigos aptos ao trabalho deixas-
sem Burgos, mas foi Pedro I quem, em 1351, aperfeiçoou a repressão.
1311 foi o ano em que o arcebispo de Ravena estabeleceu a distinção
entre os pobres que recebiam publicamente as distribuições e as es-
molas, e os poveri vergognosi. Entre 1346 e 1348, surgia o Notaten-
buch, de Dithmas de Merckenbach, o mais antigo dos glossários e
descrição de um meio marginal. Em 1349, numa Inglaterra ainda
combalida pela Peste Negra, surgia o Statute of Labourers; no ano
seguinte, a mendicância passava a ser permitida aos incapazes de
trabalhar e aos que tivesse mais de 60 anos. Na França, em 1351, a
ordenação de João II, o Bom, marcou o início da caça aos errantes;
fez-se então um apelo aos pregadores e monges para que só encora-
66 jassem a caridade em favor dos inaptos ao trabalho, os desocupados
devendo deixar Paris sob pena de 4 dias de prisão e, em seguida,
marcação com ferro quente e banimento; em 1367, o preboste de Pa-
ris convocou os vadios para cavarem fossos e consertarem as forti-
ficações da cidade, numa política já nítida de utilização do trabalho
forçado que, nos séculos posteriores, se tornará comum. Em 1388,
a lei inglesa obrigava o pobre a se fixar no local de nascimento ou
residência, procedimento lembrado novamente em 1405 e em 1509.
A utilização compulsória da força de trabalho aparece também em
Castela, em 1395, quando os particulares são autorizados a prender
vagabundos e fazê-los trabalhar em suas terras por um mês, sem
que por isso recebam salário. Ao fazer com que os vagabundos e
delinquentes embarcassem à força nas galeras, Jacques Coeur intro-
duzia, em 1453, o que a partir de então seria o castigo clássico desses
indivíduos: as galés.13
riedade. Em um indivíduo sem laços, ela se prontifica a ver um mendigo válido; em
dois errantes, ela vê vagabundos temíveis”. – p.359.
13 , Os dados foram extraídos dos seguintes trabalhos: Bronislaw Geremeck, Les
marginaux parisiens aux XIV et XV siécles, Paris, 1976, p.30; Mollat, ob.cit.; Goglin,
ob.cit.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Como no resto da Europa, foi no século XIV que as preocupações


das autoridades e dos governantes portugueses acerca da obrigato-
riedade do trabalho se cristalizaram em leis repressivas que, tam-
bém como nos outros lugares, visavam sobretudo aos mendigos
e aos vagabundos. É preciso, de início, estabelecer uma diferença
que diz respeito ao termo empregado para estes últimos: vagabond
e vagrancy são as expressões que a legislação inglesa utiliza para
indicar o sujeito e a sua ação; em francês, os mesmos são designados
com vagabond e vagabondage; vagabund e vagabundieren para a
língua alemã, e vagabundo e vagabundagen para o espanhol, todos,
portanto, se referindo a expressão latina: vagativu. É evidente que
existem muitas nuances e variações: o errant, tanto para o inglês
como para o frances, o oisif francês, e uma infinidade mais de pa-
lavras específicas a cada língua. O interessante é que, existindo a
palavra em português – vagabundo –, e tendo dela o mesmo sentido
que as suas equivalentes em outras línguas, é ao vadio e à vadiagem 67
que mais dizem respeito às leis portuguesas, apesar das menções ao
vagabundo e à vagabundagem. A especificada assumida pelo termo
na legislação portuguesa parece, assim, acusar uma preocupação
que se volta sobretudo para o combate à ausência de trabalho (va-
diagem), o perigo representado pelo caráter andejo do desocupado
(vagabundagem) passando para segundo plano.
Já no início do século XIII , um diploma régio mandava perseguir
os vadios, proibindo os desprovidos de bens de raiz, de senhor ou de
ocupação idônea de habitarem o reino.14 Em 1349, quando governa-
va Portugal o rei Afonso IV, foi expedido, a 3 de julho, um documen-
to que procurava limitar o número de ociosos e impedir os abando-
nos de trabalho, a vadiagem e a mendicância de que se queixavam as
cidades; estas deveriam expulsar os vadios, proibindo-lhes o acesso
aos hospitais e punindo os que os acolhesse. Este soberano fixou
ainda um limite superior para os salários.15 Alguns anos depois, em

14 , Rui d'Abreu Torres, Vadiagem , em: Joel Serrão (org.), Dicionário da história
de Portugal e do Brasil, Porto, Iniciativas Editoriais, s.d., v. IV, p.239.
15 , Mollat, ob.cit., p.246.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

1371, as Cortes de Lisboa se queixavam de abandono dos trabalhos


do campo, da exigência de altos salários e da vadiagem.16 Por fim,
em 1375, vinha à luz a célebre Lei das Sesmarias, coroamento do es-
forço então dispendido por D. Fernando para incrementar a agri-
cultura e aumentar o número dos trabalhadores rurais em Portugal.
Para esse fim, compelia ao trabalho agrícola os ociosos, os vadios e
os mendigos válidos.17 Com relação a estes últimos, a legislação era
bastante dura: “se os achassem ter algum aleijão, mas não tal, que os
impedisse poderem servir com outros membros do corpo”,18 os ju-
ízes os obrigavam a trabalhar. Os ociosos que se recusassem a exer-
cer qualquer atividade seriam, na primeira vez, açoitados e, quando
reincidentes, “seriam açoitados com pregão, e ultimamente lança-
dos fora do reino, porque El Rei mandava e queria que ninguém
no seu reino fosse vadio”.19 Com sua legislação, D. Fernando visava
acudir a esses males, mas os resultados foram poucos: “Faltou uma
68 elite, que as fizesse cumprir (as leis). As herdades continuavam in-
cultas e desertas, os lavradores não arrotearam terras de novo, mas
largaram as que possuíam, e os matos invadiram mais fazendas de-
samparadas pelos senhorios. O êxodo dos campos levava assim as
energias para as terras de beira-mar, para o tráfico marítimo...”.20
Seria, na concepção de Antonio Sérgio, a “política de transporte”
levando a melhor sobre a “política de fixação” – o que sugere que, ao
invés de serem absorvidos pelos trabalhos agrícolas, os desclassifi-
cados o foram pela aventura marítima.

16 , Mollat, ob.cit.; Rui d'Abreu Torres, ob.cit.


17 , Mollat, ob.cit.; Rui d'Abreu Torres, ob.cit., p. 239. Antonio Sérgio, Breve inter-
pretação da história de Portugal, Lisboa, 1972, p.29.
18 , Rui d'Abreu Torres, ob.cit., p.18.
19 , Rui d'Abreu Torres, Mendicidade , em: Joel Serrão, ob.cit., v. III , p.18.
20 , Antonio Sérgio, ob.cit., p.29. Ver também As duas políticas nacionais ,
em: Ensaios II , Lisboa, 1972, p.63-91.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

2. O IMPÉR IO COLONIAL , ERGÁSTULO DE DELINQUENTES


, De fato, as conquistas marítimas tiveram um papel muito im-
portante na absorção dos mendigos e vagabundos da metrópole,
muitas vezes recrutados à força para fazerem serviço militar nas
possessões de além-mar. A jurisprudência selvagem de Portugal no
Antigo Regime sentenciava multidões de pequenos larápios e outros
infratores com prisão e exílio: todo navio que partia para o Brasil,
Índia ou África trazia, sobretudo a partir do século XVII , a sua quo-
ta de degredados.21
“As possessões ultramarinas foram sempre para Portugal o er-
gástulo de seus delinquentes”, disse o historiador português Cos-
ta Lobo. Formaram-se importantes correntes migratórias para as
colônias, sendo a da Índia particularmente intensa entre os anos
de 1497-1527, quando 80 mil homens deixaram a Metrópole.22 Pelo
alvará de 6 de maio de 1536, D. João III determinava que os moços
vadios de Lisboa que andavam “na Ribeira a furtar bolsas e a fazer 69
outros delitos” fossem desterrados para o Brasil.23 Nas Cortes de Al-
meirim de 1544 pediram os procuradores de Lisboa que o monarca
mandasse fazer de seis em seis meses “correição de patifes e homens

21 , Charles R. Boxer, The Portuguese Seaborne Empire – 1415-1825, Londres, 1969.


Sobretudo o c. XIII , Soldiers, settlers and vagabonds . A respeito da pouca
gravidade, aos olhos da justiça contemporânea, dos delitos então castigados com
degredo, ver Emília Viotti da Costa, “Primeiros povoadores do Brasil , em: Re-
vista de História, 1956, XIII , n.27. Segundo as Ordenações Manuelinas, em trechos
citados pela autora, o degredo podia ser imputado aos “que fazem assuadas ou que-
bram portas ou as fecham de noite por fora”, e ainda aos “que compra colmeias para
matar as abelhas”. – p.3.
22 , A. De Souza Silva Costa Lobo, História da sociedade em Portugal – no século
XV, Lisboa, 1904, p.49. Apenas 1/10 dos que embarcavam voltavam a Portugal: “Dos
embarcados, uma grande parte constava de criminosos, que haveriam de morrer na
forca, ou de terminar uma parte ou resto de seus dias no degredo da África ou nas
cadeias.” –ob.cit., p.48-9.
23 , Dr. José vieira Fazenda, Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro,
RIHGB , v.149, 1924, p.53. Devo esta indicação a Leila Mezan Algranti.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

vadios, sem ofício nem senhor com que viviam, e sejam presos e
embarcados para o Brasil”.24
Já em pleno desenvolvimento do Império Colonial português, o
alvará de 1570, expedido sob o reinado de D. Sebastião, estabelecia a
diferença entre a pena administrada aos peões, que se caracterizava
pelo fato de poderem ser açoitados, e a destinada às pessoas de mor
qualidade, castigada muito frequentemente com o degredo. Isto não
quer dizer que os peões não fossem afetados pelo degredo, mas a re-
cíproca não era verdadeira: uma pessoa de mor qualidade nunca se-
ria açoitada; esta última categoria era degredada preferencialmente
para a África, ao passo que os peões eram expedidos para fora de
Lisboa, mas continuavam no país.25
As Ordenações Filipinas reforçaram, no Livro V, título 68, as dis-
posições que, trinta anos antes, fizera D. Sebastião:

70 Dos vadios. Mandamos que qualquer homem que não viver como se-
nhor, ou com amo, não tiver ofício, nem outro mester, em que trabalhe, ou
ganhe sua vida, ou não andar negociando algum negócio seu, ou alheio,
passados 20 dias do dia que chegar a qualquer cidade, vila ou lugar, não
tomando dentro dos ditos 20 dias amo, ou senhor, com quem viva, ou mes-
ter em que trabalhe e ganhe sua vida, ou se tomar, e depois o deixar, e não
continuar, seja preso e açoitado publicamente. E se for pessoa, em que não
caibam açoites, seja degredado para África por um ano.26

Se vadios, mendigos e toda espécie de pobres pulularam em Por-


tugal no período compreendido entre a consolidação da dinastia
de Avis no poder e o florescer do Império Colonial, as condições
internas do pequeno reino não favoreceram a sua diminuição. No
século XVIII , ao se referir às naus que partiam, dizia o cronista Luís
Montez Matoso que “já se vai prendendo para a Índia”;27 em 1667,

24 , Segundo Rui d'Abreu Torres, Vadiagem ” p.239.


25 , Segundo Vitorino Magalhães Godinho, ob.cit., p.116-7.
26 , Ibid., p.172-3.
27 , Ibid, p.156.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

a Coroa promulgou uma série de editos violentamente repressivos,


ordenando o sentenciamento sumário de pessoas que ainda espe-
ravam julgamento. Culpados de crimes como vagabundagem eram
sentenciados ao degredo para Mazagão, no Marrocos, enquanto os
envolvidos com ofensas mais graves seguiam deportados para o
Maranhão, Brasil e Cachéu.28
A partir do momento em que existiram colônias, o estado mer-
cantilista europeu se encarregou de propulsionar seu povoamento
com uma grande parcela de elementos socialmente desclassificados.
Por toda a Europa presenciou-se o recrutamento forçado dessa gen-
te, emigração que, no dizer de Eric Williams, “condizia com as teo-
rias mercantilistas da época que preconizavam vigorosamente que
se pusesse o pobre no trabalho industrioso e útil e se favorecesse a
emigração, voluntária ou involuntária, a fim de aliviar a propor-
ção de pobres e achar ocupações mais proveitosas no estrangeiro
para os ociosos e vagabundos da metrópole”.29 EM 1664, a Inglater- 71
ra baniu para as colônias uma enorme quantidade de vagabundos,
vadios, desocupados, ladrões e ciganos; nos anos que antecederam
o Toleration Act (1689), os distúrbios políticos e religiosos engros-
saram a emigração, que arrastou, entre outros, muitos dos prisio-
neiros irlandeses de Cromwell.30 A deportação de criminosos che-
gou a proporcionar lucros, negociantes e juízes instrumentalizando
a lei para aumentar o número de criminosos deportados para as
suas plantações antilhanas de açúcar: “Aterrorizavam os pequenos
transgressores com a perspectiva de enforcamento e depois os indu-
ziam a solicitar deportação”.31

28 , Boxer, ob.cit., c. XIII : “Era comum que algumas semanas antes da partida
anual para as Índias, circulares oficiais forem enviadas a todos os corregedores da
Comarca lembrando-os de reunir e prender os criminosos efetivos ou potenciais, a
fim de que fossem sentenciados ao degredo para a Índia”. – p.314.
29 , Eric Williams, Capitalismo e escravidão, trad., Rio de Janeiro, 1975, p.14.
30 , Ibid, p.16-7.
31 , Ibid, p.19.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Parte considerável da mão-de-obra recrutada para o povoamento


das colônias norte-americanas foi abarcada pelo sistema de servi-
dão temporária; o indivíduo assinava um contrato em que se com-
prometia a trabalhar por tempo determinado (entre 5 e 10 anos),
recebendo, em troca, a passagem, a manutenção de sua subsistência
e, no fim do contrato, um pedaço de terra ou uma indenização em
dinheiro.32 O tratamento dispensado a esses infelizes praticamente
não diferiu do que receberia, anos depois, os escravos negros. Ainda
para Eric Williams, a servidão branca teria sido o sistema sobre que
se montou o tráfico de escravos: “base histórica em que se ergueu a
escravidão negra”.33

3. BR ASIL: ESTRUTUR A ECONÔMICA E PROCESSO DE DES-


CLASSIFICAÇÃO SOCIAL , Até aqui, foi rapidamente analisado o
processo de pauperização crescente que atingiu em cheio a Europa,
72 sobretudo, a partir do século XIV. Mais ainda, os mecanismos de
que lançava mão o Velho Continente para, uma vez descoberto o
Novo Mundo, minorar o ônus representado pelos pobres improdu-
tivos e, simultaneamente, povoar as colônias que se iam forman-
do. Procurou-se também mostrar como Portugal, às vésperas de

32 , “Os esforços realizados principalmente na Inglaterra, para recrutar mão-


-de-obra no regime prevalecente de servidão temporária, se intensificaram com a
prosperidade do negócio. Por todos os meios procurava-se induzir as pessoas que
haviam cometido qualquer crime ou mesmo contravenção a vender-se para traba-
lhar na América em vez de ir para o cárcere. Contudo, o suprimento de mão-de-
-obra deveria ser insuficiente, pois a prática do rapto de adultos e crianças tendeu a
transformar-se em calamidade pública nesse país”. Celso Furtado, Formação econô-
mica do Brasil, 7ª ed., São Paulo, 1969, p.26.
33 , Eric Williams, ob.cit., p.24. Para esse autor, a escravidão “faz parte desse qua-
dro geral do tratamento cruel das classes desprivilegiadas, das insensíveis leis dos
pobres e severas leis feudais, e da indiferença com que a classe capitalista ascen-
dente estava “começando a calcular a prosperidade em termos de libras esterlinas
e... acostumando-se à ideia de sacrificar a vida humana ao imperativo sagrado do
aumento da produção”. – p.9.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

se tornar metrópole colonizadora, inseria-se no movimento geral


europeu. Assim, processo de pauperização e utilização dos pobres
e desclassificados como povoadores das colônias adquiriram feição
de dois grandes movimentos que marcaram a história do Ocidente
no período compreendido entre os séculos XIV e XVII; tê-los como
ponto de referência é imprescindível para se poder compreender as
raízes do fenômeno de desclassificação tal como se processou no
Brasil colonial, mas não é o bastante: a compreensão das condicio-
nantes estruturais que propiciaram entre nós o aparecimento de
uma vasta camada de homens livres pobres e expropriados só po-
derá ser satisfatória na medida em que, considerando o que há de
comum e genérico, buscar a ultrapassagem: procurar o específico
e o particular.
Colônia americana de uma metrópole europeia que o pauperismo
atingira desde o século XIV, o Brasil fazia parte do Império Colonial
português, inserindo-se portanto no que ficou conhecido como Sis- 73
tema Colonial da Época Mercantilista. Mas, antes de surgir nas co-
lônias norte-americanas, nas colônias do Mar das Antilhas ou nas
do mundo hispânico, foi na colônia portuguesa da América que se
enraizou a escravidão. Mais ainda: enquanto o sistema de entrepos-
tos e feitorias que marcou o comércio com a Ásia ainda propicia-
va lucros a Portugal, no Brasil já se plantava cana e comercializava
o açúcar, permitindo, assim, que se fale, já para meados do século
XVI , de uma agroindústria voltada para a exportação de gêneros
comerciáveis no mercado externo.
Colônia da época mercantilista, seu objetivo máximo era dar lu-
cros à Metrópole e nela propulsionar a acumulação de capital atra-
vés do exclusivo de comércio e do tráfico negreiro, constituindo-se
em “retaguarda econômica da Metrópole” e lhe garantindo a au-
tonomia.34 A adoção do trabalho escravo se deveu, nesse contex-

34 , Utilizo aqui a análise de Fernando Novais no trabalho já citado, sobretudo o


capitulo 2, “A crise do antigo sistema colonial”, no qual é examinada a colonização
moderna como elemento acelerador da acumulação primitiva: “... a colonização do
Novo Mundo na Época Moderna apresenta-se como peça de um sistema, instru-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

to à necessidade de maximizar os lucros através, por um lado da


superexploração de uma forma de trabalho compulsório-limite –
pois eram apropriados o trabalho e o trabalhador –, e, por outro, às
grandes vantagens comerciais que advinham do tráfico.35
Assim, a exploração colonial se apoiou, desde o início, na grande
propriedade agrícola de cunho comercial e no escravismo. Resta sa-
ber como um e outro elemento atuaram no processo de formação de
desclassificados sociais.
Partindo-se da análise da estrutura econômica da colônia, pode-
-se constatar que havia condições favoráveis à proliferação de des-
classificados: nas suas linhas gerais, tratava-se de uma colônia de
exploração destinada a produzir gêneros tropicais cuja comerciali-
zação favorecesse ao máximo a acumulação de capital nos centros
hegemônicos europeus. Uma economia de bases tão frágeis, tão pre-
cárias, centrada na grande propriedade agrícola e na exploração em
74 larga escala, estava fadada a arrastar consigo um grande número de
indivíduos, constantemente afetados pelas flutuações e incertezas
do mercado internacional.36 Ao mesmo tempo, impedia que os des-

mento de acumulação primitiva da época do capitalismo mercantil. (…) Completa-


-se, entrementes, a conotação do “sentido profundo da colonização: comercial e
capitalista, isto é, elemento constitutivo no processo de formação do capitalismo
moderno”. – p.70.
35 , Para Fernando Novais, é a partir do tráfico negreiro que se pode entender a
escravidão colonial, e na “preferência pelo africano se revela a engrenagem do sis-
tema mercantilista de colonização, que visava promover a acumulação primitiva na
metrópole: ora, o tráfico negreiro, isto é, o abastecimento das colônias com escravos,
abria um novo e importante setor do comércio colonial, enquanto o apresamento
dos indígenas era um negócio interno da colônia. Assim, os ganhos comerciais
resultantes da preação dos aborígenes mantinham-se na colônia, com os colonos
empenhados nesse 'gênero de vida'; a acumulação gerada no comércio africano,
entretanto, fluía para a metrópole, realizavam-na os mercadores metropolitanos,
engajados no abastecimento dessa 'mercadoria'. Esse talvez seja o segredo da melhor
'adaptação' do negro à lavoura... escravista”. – p.105.
36 , Celso Furtado chama a atenção, na obra já citada, para a enorme capacidade
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

providos de cabedal tivessem acesso às fontes geradoras de riqueza.


Por sua vez, o escravismo desempenhava neste processo um pa-
pel igualmente importante, bloqueando na maior parte das vezes as
possibilidades de utilização da mão-de-obra livre, limitada assim
aos interstícios que, por um motivo ou por outro, não podiam ser
ocupados pelo trabalho escravo. Mais ainda: esteio da economia e
princípio articulador da sociedade, o escravismo gerava uma des-
qualificação do trabalho aos olhos do homem livre, e provocava,
no escravo recém-egresso do cativeiro, uma situação bastante pe-
culiar e que não raro assumia as características de um verdadeiro
deslocamento. Mesmo assim, o número dos homens livres e libertos
aumentou muito no decorrer o período colonial.
Essa população livre teve, entretanto um papel extremamente pe-
culiar no nosso contexto colonial. Inicialmente, conforme viu com
propriedade Caio Prado Jr., a sociedade foi definida basicamente
pelos extremos: os senhores e os escravos, que os portugueses co- 75
nheciam e exploravam desde o século XV;37 as funções socioeco-
da indústria açucareira em resistir aos fluxos e refluxos do mercado internacional;
refere-se entretanto ao maquinário, aos bens de capital. Parece evidente que a po-
pulação pobre e mesmo remediada muito sofreu com essa instabilidade, conforme
observa outro autor: “... já assinalei esta evolução por arrancos, por ciclos em que
se alternam, no tempo e no espaço, prosperidade e ruína, e que se resume a histó-
ria econômica do Brasil colônia. As repercussões sociais de uma tal história foram
nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial,
desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos
avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência.
Passará a vegetar à margem da ordem social”. – Caio Prado Jr. Formação do Bra-
sil contemporâneo (1942), 13ª ed., São Paulo, 1973, p.286. Semelhante é a posição de
Sérgio Buarque de Holanda: “Os próprios vícios do sistema econômico de produção
tinham criado, em todo o Brasil colonial, uma imensa população flutuante, sem
posição social nítida, vivendo parasitariamente à margem das atividades regulares
e remuneradoras”. – Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2.
37 , Em A escravidão africana no Brasil – das origens à extinção do tráfico, Mau-
rício Goulart fornece um painel geral dos primeiros tempos do escravismo em Por-
tugal e suas colônias. Cf. c.I, p.7-28.
nômicas eram, então, bem definidas. No decorrer do processo de
colonização, os extremos da escala social continuaram a ser clara-
mente configurados, mas a estrutura da sociedade foi se tornando
mais complexa devido ao aumento da “camada intermédia”, cuja
indefinição inicial foi, aos poucos, assumindo o caráter de desclas-
sificação.38
A camada dos desclassificados ocupou todo o “vácuo imenso” que
se abriu entre os extremos da escala social, categorias “nitidamente
definidas e entrosadas na obra da colonização”.39 Ao contrário dos
senhores e dos escravos, essa camada não possui estrutura social
configurada, caracterizando-se pela fluidez, pela instabilidade, pelo
trabalho esporádico, incerto e aleatório.40 Ocupou as funções que
o escravo não podia desempenhar, ou por ser antieconômico des-
viar mão-de-obra da produção, ou por colocar em risco a condição
servil: funções de supervisão (o feitor), de defesa e policiamento (ca-

38 , “Mas formaram-se aos poucos outras categorias, que não eram de escravos
nem podiam ser de senhores. Para elas não havia lugar no sistema produtivo da
colônia. Apesar disto, seus contingentes foram crescendo, crescimento que também
era fatal, e resultava do mesmo sistema da colonização. Acabaram constituindo
uma parte considerável da população e tendendo sempre para o aumento. O dese-
quilíbrio era fatal”. – Caio Prado Jr. ob.cit., p.360.
39 , Caio Prado Jr., ob.cit., p. 281.
40 , “Para este setor, não se pode nem ao menos falar em 'estrutura social', porque
é a instabilidade e a incoerência que se caracterizam, tendendo em todos os casos
para estas formas extremas de desagregação social, tão salientes e características
da vida brasileira e que notei em outro capítulo: a vadiagem e a caboclização”. –
Caio Prado Jr., ob.cit., p.34. Em Circuito fechado, diz Florestan Fernandes: “Entre
esses dois extremos situava-se uma população livre de posição ambígua, predomi-
nantemente mestiça de brancos e indígenas, que se identificava com o segmento
dominante em termos de lealdade e de solidariedade, mas nem sempre se incluía na
ordem estamental. Onde o crescimento da economia colonial foi mais intenso, esse
setor ficava largamente marginalizado, protegendo-se sob a lavoura de subsistência
mas condenando-se a condições permanentes de anomia social”. Circuito fechado,
São Paulo, 1976, cap. A sociedade escravista , p.32.
pitão-do-mato, milícias e ordenanças), e funções complementares à
produção (desmatamento, preparo do solo para o plantio).
No Brasil, como no Ocidente moderno, o trabalho decente e hon-
rado é o que se relaciona à praga bíblica: “amassarás o pão com o
suor do teu rosto.” Mas há diferenças básicas entre a concepção de
desclassificado na Europa pré-capitalista e no Brasil colonial: lá, a
inadaptação a formas sistemáticas de exploração do trabalho pode
ser explicada pelo nascimento da sociedade capitalista que deses-
truturou o trabalho de caráter coletivo dos servos feudais; aqui, são
o escravismo e a necessidade da superexploração os principais res-
ponsáveis pelo aviltamento do trabalho, aviltamento esse que torna
impossível a compreensão e a persistência das formas primitivas
comunitárias e assistemáticas de trabalho, como foram a africana e
a indígena. Nas metrópoles e nas colônias, é o momento da gestação
do capitalismo; entretanto, apesar de complementares, conexas e até
mesmo indissociáveis, são diversas as formas com que se apresenta 77
em um e noutro ponto do mundo. É nessa unidade contraditória do
fenômeno que se explica a especificidade do processo histórico em
cada uma das partes.
A noção de trabalho vigente na colônia é importante para a com-
preensão de outra peculiaridade nossa: a extensão que entre nós
assume a expressão vadiagem e a categoria vadio. Mais do que na
Europa pré-capitalista, o vadio é aqui o indivíduo que não se insere
nos padrões de trabalho ditados pela obtenção do lucro imediato,
a designação podendo abarcar uma enorme gama de indivíduos e
atividades esporádicas, o que dificulta enormemente uma definição
objetiva desta categoria social.
Atentando-se para algumas das conotações que a palavra assume
no trabalho do jesuíta Antonil, pode-se ter uma ideia dessa multi-
plicidade de acepções, aqui referentes a fins do século XVII e inícios
do século XVIII , já que a Cultura e opulência surgiu em 1711: “Para
vadios, tenha enxada e foices, e se se quiserem deter no engenho,
mande-lhes dizer pelo feitor que trabalhando, lhes pagarão seu jor-
nal. E, desta sorte, ou seguirão seu caminho, ou de vadios se farão
jornaleiros”.41 O vadio é aqui o indivíduo não inserido na estrutura

41 , André João Antonil, ob.cit., p.168.


DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

de produção colonial, e que pode, de um momento para o outro,


ser aproveitado por ela. Mais adiante, Antonil opõe vadio a homem
de cabedal: “Convidou a fama das minas tão abundantes do Brasil
homens de toda a casta e de todas as partes, uns de cabedal, e ou-
tros vadios”.42 Vadios, nesta passagem, é por extensão todo homem
desprovido de dinheiro. E ainda em Antonil, a palavra adquire nova
cor: “Os vadios que vão às minas para tirar ouro não dos ribeiros,
mas dos canudos em que o ajuntam e guardam os que trabalham
nas catas, usaram de traições lamentáveis e de mortes mais que
cruéis, ficando estes crimes sem castigo”.43 Este vadio é portanto,
criminoso e ladrão.
Identificados genericamente aos infratores são os vadios de que
fala a correspondência entre Gomes Freire de Andrada e o governa-
dor interino Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, quando
tratam dos motins ocorridos no sertão do rio São Francisco em 1736
78 e que, segundo Diogo de Vasconcelos, constituíram-se numa típica
rebelião de potentados locais contra o fisco, ou seja, contra a autori-
dade organizada:44 “No sertão houve duas assuadas, uma contra o
juiz de Papagaio que ia tirar uma devassa na barra do rio das Velhas,
outra nos confins da capitania para a parte do rio das Velhas, digo
rio Verde, contra o comissário André Moreira de Carvalho, encar-
regado da cobrança da capitação, e suposto que só constassem de
vadio que como diziam não queriam que se tirasse devassa aonde
nunca se tirou, nem se cobrasse direito algum real aonde só se devia
dizimo a Deus...”.45 Estes vadios são, portanto, indivíduos que, ao
que parece, formulam com clareza a sua resistência ante o Estado,
insistindo na persistência do localismo. Podem, neste contexto, ser
opositores bem situados socialmente, mas um trecho que segue na

42 , André João Antonil, ob.cit., p.303


43 , Ibid.
44 , Diogo de Vasconcellos, História média de Minas Gerais, capítulo Motins
no sertão.”
45 , Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire – 29-VI-1736, em: Motins
no sertão e outras ocorrências em Minas Gerais , RAPM , v.1, 1896, p.649.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

mesma carta faz pensar que sejam mandatários de potentados: “...


mandando logo prender Antonio Tinoco Barcellos, que por cartas
de pessoas que reputo zelosas e verdadeiras, me constava fomentar
os vadios que fizeram as assuadas”.46
Em carta de 24 de julho de 1736, Gomes Freire, ocupado com ne-
gócios no Rio de Janeiro, congratulava o governador interino pelas
“admiráveis providências que tem tomado para o sertão a extinção
dos vadios”, aqui claramente identificados a revoltosos.47 Traba-
lhadores esporádico, homem desprovido de dinheiro, criminoso,
ladrão, sublevado, revoltoso e até mesmo potentado dissidente,
eis algumas das conotações assumidas pela personagem do vadio
colonial. Apesar de imprecisão pode-se, na maior parte das vezes,
identificar vadio e homem pobre expropriado, mesmo que para isto
seja necessário uma leitura cuidadosa das fontes. O que se torna fla-
grante a partir dessa leitura é, entretanto, o destaque especial dado
ao termo como designativo da infração e da desclassificação, o que 79
já fora apontado acima quando se constatou o uso que dessa palavra
se faz nas leis portuguesas. Por um motivo ou por outro, por mais
variada e fluida que tenha sido a “camada intermédia” nos tempos
coloniais, não parece pequeno o papel nela desempenhado pelo que
se convencionou chamar vadio, expressão que, de agora em diante,
será frequentemente usada neste trabalho como sinônimo de des-
classificado social.
Elemento vomitado por um sistema que simultaneamente o cria-
va e o deixava sem razão de ser, vadio poderia se tornar o pequeno
proprietário que não conseguia se manter à sombra do senhor de
engenho; o artesão que não encontrava meio propício para o exer-
cício de sua profissão; o mulato que não desejava mourejar ao lado
negro – pois não queria ser confundido com ele – e que não tinha
condições de ingressar no mundo dos brancos; vadio continuava
muitas vezes a ser o que já viera de além-mar com esta pecha: o cri-

46 , Ibid, p.650.
47 , Das cartas do exmo. sr. Gomes Freire de Andrade , em RPHG , v. XVI ,
II , p.246
48 , Antonil, ob.cit., p.264.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

minoso, o ladrão, o degredado em geral. À sua volta formava-se um


círculo vicioso: a estrutura econômica engendrava o desocupado,
impedindo-o de ter atividades constantes; o desocupado, desprovi-
do de trabalho, tornava-se oneroso ao sistema. Aparentando-se com
os componentes do exército industrial de reserva, o desclassificado
se engastava, entretanto, num contexto próprio: o do escravismo.

4. O PROCESSO DE DESCLASSIFICAÇÃO NAS MINAS , Perso-


nagem presente na nossa história desde os inícios da colonização,
a gênese e desenvolvimento do vadio tiveram características gerais
comuns a toda a colônia. Tentei traçar acima as componentes estru-
turais gerais de seu engendramento, passando, a partir de agora, a
examinar as peculiaridades que envolveram a sua presença na zona
mineradora.
Como já foi visto no capítulo anterior, a mineração se estabele-
80 ceu sob o signo da pobreza e da conturbação social, marcando-a
sobretudo o enorme afluxo de gente que acudiu ao apelo do ouro e
cuja composição social se apresentava bastante heterogênea. Mais
do que em qualquer outro ponto da colônia, foi grande nas Minas a
instabilidade social, a itinerância, o imediatismo, o caráter provisó-
rio assumido pelos empreendimentos.
Os arraiais auríferos foram, nos primeiros tempos, “freguesias
móveis como os filhos de Israel no deserto”.48 O autor do diário da
viagem do conde de Assumar às Minas se espanta com o aspecto
de São João del Rei, que podendo ser das mais bem plantadas vilas
das Minas, era, entretanto, uma das piores, “por ter quase todas as
casas de palha, e umas mui separadas das outras e juntamente pelas
lavras de ouro, que ficam tão perto delas, que hoje se fazem, amanhã
as botam em terra para trabalhar, o que causa toda irregularida-
de...”.49 De fato, a empresa mineira era transitória e itinerante, ca-

49 , Diário da jornada que fez o Exmo. sr. d. Pedro desde o Rio de


Janeiro até a cidade de São Paulo e desta até as Minas, no ano de 1717
– Revista do SPHAN , n.3, p.313.
50 , Para essa itinerância da empresa e o baixo teor de capital fixo, ver Celso
5 . E N T R E V I S TA A N E L S ON AGU I L A R

racterizando-se pelo baixo teor de capital fixo e pela capacidade de


deslocamento em tempo relativamente curto. A exploração aurífera
obedecia, no seu desenvolvimento ao lucro mais imediato: voltava-
-se inicialmente para o ouro depositado no fundo dos rios (aluvião),
depois para o ouro depositado nas encostas (grupiaras) e, finalmen-
te, para os veios subterrâneos (galerias). Nesse contexto, era a fase
inicial a que maiores lucros apresentava. A população acompanhava
os trabalhos da exploração aurífera no seu itinerário, canalizando
para a mineração todos os seus esforços e deixando de lado as outras
atividades. Os resultados imediatos desse procedimento eram, por
um lado, o desenraizamento constante da população e, por outro, a
fome que, conforme se viu no capítulo anterior, assombrava a em-
presa mineradora.50 As pessoas tendiam a ver como provisório e
intermitente tudo que as cercava; as primeiras minerações, situadas
ao longo dos rios, sujeitavam o ritmo do seu trabalho à alternância
dos períodos de chuva e de seca. A fixação do homem à terra só se 81
estabilizava um pouco mais quando a exploração se fixava nos alu-
viões de meia encosta, as grupiaras ou catas altas.51
A itinerância e o senso do provisório persistiram por muito tem-
po, a ponto de, em 1808, Mawe captar seus ecos: “... os agricultores
pareciam agir como se o arrendamento, em virtude do qual possu-
íam as terras, estivessem prestes a ser anulado: tudo em torno deles
parecia anunciar criaturas que vivem de expedientes”.52 Explicadas

Furtado, ob.cit., p.82.


51 , Miran de Barros Latif, ob.cit., p.91. Entretanto todo o período minerador,
parece ter sido maior o prestigio da mineração aluvional. Na sua “Memória” de
1799, Vieira Couto dá um motivo possível: “O horror de se soterrar um homem em
uma mina por todo um dia, de se despedir ao nascer do sol de sua brilhante luz, e
de só se guiar pelo fraco clarão de uma candeia, de ouvir estalar a cada instante a
montanha sobre a cabeça, e esperar a cada passo pela morte, parece que estas coisas
foram desgostando pouco a pouco os homens do trabalho das minas, e enfim os
determinaram por uma vez para a mineração dos rios.” – ob.cit., p.303.
52 , Mawe, ob.cit., p.154-5.
53 , Caio Prado Jr. Considera os deslocamentos de população como ensaios e
tentativas caracteristicamente brasileiros de procura de melhores condições: “No
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

nas Minas por uma série de fatores ligados ao caráter da explora-


ção aurífera, essas peculiaridades são, no seu conjunto, clarificadas
pelo próprio sentido da exploração colonial, assentada na aferição
rápida e imediata do maior lucro possível.53 Uma série infindável
de ditados populares refletem esse estado de coisas, que empresta
suas características também à formação social da colônia, profun-
damente marcada pela instabilidade: “Por fora muita farofa, por
dentro molambo só”, citado por Gilberto Freyre e que apresenta
outra variação: “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”, um
e outro refletindo a ideia do falso fausto que já foi explorada atrás;
“Pai rico, filho nobre, neto pobre”, também mencionado pelo soció-
logo pernambucano, é um ditado que, nas Minas, assume cor local
– “Capitão Tomé ouro só, neto molambo só” – e que no sul do Bra-
sil se apresenta como “Pai taverneiro, filho cavaleiro, neto indigen-
te”;54 registre-se ainda “Avô ladrão, filho barão, neto mandrião”. Há
82 também os curiosos ditos coletados por Aires da Mata Machado na
região do arraial da Chapada, e que, mesmo quando posteriores à
época de ouro da mineração, são extremamente significativos como
reminiscências: “Mineração e eleição, só depois da apuração”, clara-
mente a alusivo à fraude eleitoral, numa comparação entre o caráter

Brasil, este fato é particularmente sensível pelo caráter que tomara a colonização,
aproveitamento aleatório em cada um de seus momentos, como veremos ao ana-
lisar a nossa economia, de uma conjuntura passageiramente favorável. Cultiva-se
a cana como se extrai o ouro, como mais tarde se plantará o algodão ou o café:
simplesmente oportunidade de momento...” – ob.cit., p.73. Há a esse respeito uma
bela passagem de Guimarães Rosa: “Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-giro
no vago das gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: O Zé -Zim,
o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: 'Zé-Zim, porque que
é que você não cria galinhas d'angola, como todo mundo faz?' 'Quero criar nada
não...' – me deu resposta: 'Eu gosto muito de mudar...'” – Grande sertão: veredas, 12ª
ed., Rio de Janeiro, 1978, p.35.
54 , Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, respectivamente p.331, 356 e 86.
55 , Aires da Mata Machado Filho, O negro e o garimpo em Minas Gerais, Rio de
Janeiro, s.d., p.32.
5 . E N T R E V I S TA A N E L S ON AGU I L A R

incerto do resultado das eleições e o da faina mineradora; “Serviço


de muita ganga, entra vestido e sai de tanga”, onde fica expresso o
perigoso representado por investimentos de vulto em algo tão alea-
tório como a mineração. E, por fim, ante todos os aspectos adversos
desta atividade, o conformismo do mineiro: “O que há de ser meu
está debaixo da terra”, onde o duplo sentido liga inexoravelmente o
homem ao seu trabalho até que sobrevenha a morte.55
Na mineração, como de resto em qualquer atividade primordial
da colônia, a força de trabalho era basicamente escrava, havendo
entretanto os interstícios ocupados pelo trabalho livre ou semili-
vre.56 Dificilmente o homem livre destituído de recursos vultuosos
poderia se manter como proprietário, sobretudo em Minas, região
que, apesar de tida tradicionalmente como rica e democrática, apre-
sentava possibilidades favoráveis apenas a um pequeno número de
pessoas. A análise empreendida no capítulo anterior tentou mostrar
este aspecto restrito da riqueza, e os documentos relativos à desi- 83
gualdade e injustiça na distribuição das datas minerais glosam essa
análise.
De início, pelo Regimento de distribuição das lavras, nota-se o
caráter restritivo e eminentemente escravista da mineração: as datas
seriam concedidas conforme o número de escravos que cada um
possuísse, donde parece ficar descartada a possibilidade, para o ho-
mem livre pobre, de possuir lavra sua.57 Mesmo que se tome como
ponto de partida a afirmação corrente que diz ter sido muito raro o
homem livre que, mesmo pobre, não possuísse escravos, defronta-

56 , Florestan Fernandes, A sociedade escravista , ob.cit., p.20-1.


57 , A primeira data cabia ao descobridor do ribeiro, que tinha o direito de esco-
lher o local; a segunda ia para a Fazenda Real, sendo vendida em hasta pública pelo
maior preço; a terceira também era dada ao descobridor para que a minerasse; as
demais eram distribuídas aos pretendentes conforme o número de escravos de cada
um: “Se o pretendente tivesse 12 ou mais escravos, ganharia uma data de 30 braças
em quadra (cerca de 66m²); se o mineiro possuísse menos de 12 escravos, receberia
terra mineral na proporção de 2 braças e meia por escravo (cerca de 5,5m²) – Walde-
mar de Almeida Barbosa, ob.cit., v.I , p.54.
mo-nos com uma situação de injustiça e desigualdade, refletida até
nos documentos oficiais. Essa situação acha-se descrita em carta do
Ouvidor-Geral da Comarca do rio das Mortes, datada de 1733:
Senhor. Na forma do capítulo 5º, e 20 do Regimento das terras mi-
neiras, é V.M servido ordenar se repartam estas, segundo o número
de escravos, que os mineiros tiver e, repartindo-se as datas, braças e
ainda palmos, sendo necessário, para que todos, assim ricos, como
pobres, fiquem acomodados, e extraiam ouro, o que se tem prati-
cado tanto pelo contrário nestas Minas, que os ricos fizeram, e tem
feito seleiros das terras mineirais, em prejuízo dos Reais Quintos de
V.M ., e da observância do capítulo 7º do mesmo Regimento, porque
as não lavram, e de dos pobres (sic), que não tendo onde trabalhar
se sujeitam a meter os escravos nas lavras daqueles só pelo terço
do ouro que extraem, ou lhas compram por exorbitantes preços, fi-
cando os pobres sem terras para lavrar, havendo-as em poder dos
ricos e poderosos, de cuja desordem nascem mortes, demandas e
dissenções...
Os grandes responsáveis por esse estado de coisas seriam, segun-
do o Ouvidor, os Guardas-Mores, que “por sua própria autoridade”
davam todas as lavras aos poderosos e deixavam os pobres “sem lhe
repartirem uma tão só braça”. O magistrado pedia solução para as
injustiças e uma repartição mais racional das terras, de maneira a
que ficassem “assim ricos, como poderosos, e pobres todos acomo-
dados, e extraiam ouro, e paguei quintos a V.M .”.58
O rei, D. João V, respondeu com uma provisão dirigida ao conde
das Galvêas, ordenando-lhe que se manifestasse sobre a “desordem”
a que aludia o Ouvidor. A preocupação que movia as autoridades
no sentido de procurarem uma distribuição mais justas das datas

58 , Carta do ouvidor-geral da comarca do rio das Mortes, e superintendente,


Francisco Leite Tavares – 20-VII-1733, em: Terras Minerais – Relação das or-
dens sobre terras minerais, que, por cópia, foi enviada a Conselho Ge-
ral da Província de Minas Gerais – RAPM , I, 1896, p.699-700.
59 , Bastante lúcida para a época é a formulação de Diogo de Vasconcellos no
grande livro que é a História média: “As duas principais causas que impediram a
não era a situação de penúria em que se encontravam os mineiros
modestos, com quem, de fato, pouco se importavam a Coroa e seus
prebostes; o verdadeiro interesse em jogo era o pagamento adequa-
do dos Reais Quintos, a que devia concorrer a maior número pos-
sível de pessoas.59
A principal resposta do homem livre pobre ante a situação foi,
ao que tudo indica, o garimpo e a faiscarem, que mal davam para
a subsistência. Os “homens faiscadores” trabalhavam nos rios com
uns poucos escravos, e muitos deixavam esse tipo de atividade por
não poderem se manter, nem a seus negros.60
A situação continuou difícil para o pequeno minerador durante
todo o período. Se a empresa exigia algum serviço mais custoso, o
mineiro não tinha condições de arcar com as despesas.61 Não era,
organização econômica das indústrias eram as minas de ouro e a escravidão. Como
bem se adivinha, estas causas deixavam os moços sem emprego, ainda que quises-
sem empregar-se; e, como nem todos podiam receber a educação moral suficiente, 85
não era para se estranhar que os povoados se enchessem de libertinos e turbulen-
tos”, p. 212-3.
60 , “... a maior parte deles são os que andam perdidos, porque não tiram as pe-
dras, que bastem para que o seu valor lhe dê o sustento para os seus negros – Carta
de D. Lourenço de Almeida a S. Mjde. Sobre providências a tomar na ex-
tração dos diamantes . – 11-VI-1730, RAPM , v.VII , 1902, p.266.
61 , “... sendo-me constante a grande decadência em que estão as lavras desta ca-
pitania por serem limitadas às faisqueiras dos serviços em que se trabalha e por não
terem os mineiros as posses necessárias para fazerem alguns serviços custosos, que
poderiam ser de grande utilidade” – Bando de D. Antonio de Noronha – 15-III-1776.
APM , S.C ., cód.50, fls. 68v. Diz o desembargador Teixeira Coelho: “Os mineiros, que
se acham faltos de cabedais e onerados com muitas dívidas, não podem fazer ser-
viços custosos; contentam-se pela maior parte, por causa da indigência, em serem
simples faiscadores. Sabem que em alguns sítios das suas terras se ocultam ricas
formações, e veeiros de ouro; porém como para o extraírem lhes é preciso fazer
serviços que excedam suas possibilidades, não se animam a entrar na execução de
obra que não tem proporção com as suas forças”. – p.499-500.
62 , “...como mortais, estão os escravos sujeitos à velhice, à doença e À morte; e
esta muitas vezes se acelera ou debaixo das ruínas de uma cata profunda, ou no cer-
co dos rios, que uma imprevista cheia ou outro algum incidente arrombara”. – José
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

assim, de admirar que muitos caíssem na miséria, sobretudo quan-


do a mineração começou a declinar. Não se minerava sem escravos,
e estes eram custoso, além de morrerem em grande número no ser-
viço insalubre das lavras.62 Carentes de mão-de-obra, os mineiros
com frequência faziam os trabalhos de maneira inadequada, entu-
lhando canais que ainda poderiam ser ´pauteis: “Deste modo as ter-
ras de mineração em poucos anos se tornam inúteis; e os mineiros
sucumbem aos miseráveis efeitos da indigência”.63 Até os filhos de
antigos e ricos mineiros, empenhados e falidos, caíam na miséria,
e desesperançosos da mineração, escondiam-se nos matos e nas ro-
ças.64 No início do século XIX , os viajantes traçarão o retrato trági-
co de homens miseráveis que vegetavam nas fímbrias do sistema,
voltados para um agricultura de subsistência mesquinha e esporá-
dica que, muitas vezes, mal conseguia impedir com que morressem
de fome.
86
5. AS VÁR IAS FOR MAS DE UTILIDADE DOS DECLASSIFICADOS
, Somando-se aos aventureiros do ouro e aos desclassificados que
Portugal despejava nas Minas, toda uma camada de gente decaída
e triturada pela engrenagem econômica da colônia ficava aparen-
temente sem razão de ser, vagando pelos arraiais, pedindo esmo-
la e comida, brigando pela estrada e pelas serranias, amanhecen-
do morta embaixo das pontes ou no fundo dos córregos mineiros.
Muitos morriam de fome e de doença, mestiços desraçados que, não
bastassem a desclassificação social e econômica, traziam estigmati-

Elói Ottoni, Memória sobre o estado atual da Capitania de Minas Gerais


– 1798 – ABN , v.XXX , p.304.
63 , José Elói Ottoni, ob.cit., p.305.
64 , Vieira Couto, Considerações sobre as duas classes ..., RIHGB , v.XXV,
1862, p.421.
65 , A ideia curiosa da desclassificação racial foi, de certa forma, desenvolvida
por Mário de Andrade num dos mais belos ensaios que se escreveram no Brasil:
“Que os mulatos eram façanhudos, não tem dúvida que sim. Mas eram porém, pelo
simples fato de formarem a classe servil numerosa, mas livre. É tantas vezes a classe
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

zada na pele a desclassificação racial.65 Sua presença inquietava os


administradores coloniais e todos aqueles que escreveram sobre as
Minas; dentre estes, cabe destacar o desembargador Teixeira Coe-
lho.
A sua Instrução para o governo da capitania de Minas Gerais
(1780) é um documento precioso e indispensável à compreensão do
século XVIII mineiro. Nela, o magistrado se estende sobre os vadios,
origem e causa de toda a espécie de desordens, e adota uma posição
extremamente peculiar em face do problema que representam: “Os
vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra eles se tem
muitas vezes legislado; porém as regras comuns relativas a este pon-
to não podem ser aplicáveis ao território de Minas; porque estes va-
dios, que em outra parte seriam prejudiciais, são ali úteis”.66 Negros
forros e mestiços na sua maior parte – mulatos, caboclos, carijós
–, serviam para povoar locais distantes como Cuieté, Abre Cam-
po e Peçanha, onde se iam estabelecendo presídios; engrossavam 87
os contingentes que entravam mato adentro destruindo quilombos
e prendendo foragidos; cultivam plantações de subsistência, enfim,
realizavam uma série de tarefas que não podiam ser cumpridas pela
mão-de-obra escrava.
Os vadios – e eis aqui esta palavra servindo para designar toda a
camada dos desclassificados sociais – existiam em todos os países,
que desclassifica os homens... (…) Os mulatos não eram nem melhores nem piores
que brancos portugueses ou negros africanos. O que eles estavam era numa situação
particular, desclassificados por não terem raça mais. Nem eram negros sob o baca-
lhau escravocrata, nem branco mandões e donos livres, dotados duma liberdade
muito vazia, que não tinha nenhuma espécie de educação, nem meios para se ocu-
par permanentemente. Não eram escravos mais, não chegavam a ser proletariado,
nem nada”. – O Aleijadinho (1928), em: Aspectos das Artes Plásticas no Brasil, São
Paulo, s.d., p.19-20.
66 , Teixeira Coelho, ob.cit., p.479. O grifo é meu.
67 , Cf. Michel Foucault, Histoire de la Folie à l' Âge Classique, Paris, 1972, 1ª parte,
c.II , p.56-91; Pierre Deyon, Le Temps des Prisons, Paris, 1975, c.II , p.31-48; Christian
Paultre, De la Répression de la Mendicité et du Vagabondage em France sous l'Ancien
Régime (1906), Genebra, 1975 (reimpressão, 3ª parte, p.137-310.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

eram parte constitutiva do momento histórico, e contra eles incidia


toda a legislação repressiva que, tendo florescido com especial vigor
nos séculos XVI e XVII , entrava pelo século XVIII . Em toda parte,
eram motivo de preocupação para as autoridades, que os fechavam
em workhouses, em hospícios, em instituições de caridade.67 Gere-
meck narra as hostilidades que, já nos séculos XIV e XV, existiam
contra os marginais, e que se traduziam muitas vezes em expressões
linguísticas. Dá o exemplo de um vagabundo auxiliar de pedrei-
ro que aparece condenado com a sentença de morte por ser inútil
ao mundo.68 Veredicto pronunciado em relação a um vagabundo,
Geremeck o considera como expressão da opinião corrente sobre
os marginais, chegando mesmo a afirmar que “o desprezo de que
são objeto constitui o cimento dessas categorias tão diversas, tão
diferentes quanto à sua gênese e às funções que assumem”.69 A ideia
de inutilidade de que se reveste esta categoria social aparece, assim
88 como caraterística da consciência coletiva de um momento histó-
rico: o do surgimento do capitalismo. Acha-se estreitamente asso-
ciada, creio podê-lo afirmar, ao ônus que representa a reprodução
desta gente. É a esse ônus que Teixeira Coelho opõe a utilidade dos
vadios mineiros, que não eram característica exclusiva da colônia
portuguesa setecentista, mas podiam ser encarados sob um ângulo

68 , Textualmente, a sentença dizia: Estoit digne de mourir comme inutile au mon-


de, c'est assavoir d'estre pendu comme larron. B. Geremeck, Les Marginaux Parisiens
aux XIV et XV Siècles, c.IX , Les limites du monde marginal , p.329.
69 , Geremeck, ob.cit., p.340. Por ocasião da interpretação do edito de Carlos IX ,
de 1566, um jurista lionês define vagabundo da seguinte forma: “Vagabonds sont
gens oiseux faits-neantz, gens sans aveu, agens abandonnez, gens sans domicile,
sans mestier et vacation, et comme les appelles l'ordonnance de la police de Paris,
gens qui ne servent que de nombre, sunt pondus inutilae terrae”. Segundo Gereme-
ck, “Criminalité, vagabondage, paupérisme”, p.349.
70 , Aristides de Araújo Maia, Memórias da província de Minas Gerais , em:
RAPM , VII , 1885, p.42.
71 , RAPM , v.VI , p.145-6.
72 , Carta do conde de Valladares Ao Morgado de Mateus – 10-III-1770 –em: DI ,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

especial, que desvendava a sua peculiaridade. É nesta peculiaridade


que reside a questão.
De fato, o que está por detrás da afirmação de Teixeira Coelho é
uma ideia de uma mão-de-obra alternativa à escrava, de uma espé-
cie de exército de reserva da escravidão. Era assim que a vadiagem,
a desclassificação social, se atrelava a um novo contexto, no qual a
utilidade ganhava destaque mas convivia também com o ônus.
A documentação permite que se constate com segurança a exis-
tência dos desclassificados sociais mineiros, mas não responde à
incógnita da sua reprodução, ou seja, as condições concretas de sua
subsistência. Como comia e procriava uma “casta de gente” que vi-
via de expedientes e de biscates esporádicos? Quem arcava com o
ônus da reprodução de uma “gente ociosa que só servia para con-
sumir viveres”,70 quem suportava “o peso enorme da parte dos va-
dios”? 71
A ideia da utilidade dos vadios no século XVIII mineiro se cruza, 89
assim, de modo quase inextricável com a ideia do ônus representado
pela vadiagem. Em 1770, escrevia o conde de Valladares, governador
de Minas, a seu colega Luís Antonio de Souza, Morgado de Mateus
e então capitão-general da capitania de São Paulo, recém-recriada:
“De mulatos, cabras e mestiços abunda esta capitania, fazendo-se
muitos deles pela sua vadiação, e ociosidade dignos de se fazerem
sair desta capitania e de se empregarem em cousas úteis”.72 A eli-
minação dos vadios pela sua expulsão da capitania significava a su-
pressão de uma gente onerosa e desejável, mas esta possibilidade
aparecia imediatamente associada ao emprego dos desclassificados
em algo útil, mostrando muito bem a oscilação em que se viam
envolvidas as autoridades. O mesmo Valladares, que como se verá
adiante teve na tentativa de solucionar o problema dos vadios um

v.XIV, 1895, p.272. O grifo é meu.


73 , Para o capitão-mor Manuel Antunes (...) – 10-I-1773, em: APM , SC ,
cód.199, fls.6V-7. Basílio Teixeira de Savedra sugeria que se estabelecessem novos
presídios “para que os presos possam trabalhar nas obras públicas, possam alimen-
tar-se do seu trabalho” – Informação , p.678.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dos pontos de honra de seu governo, insistia junto aos capitães-mo-


res para que os empregassem: “À minha presença tem chegado que
no Distrito da Campanha há várias pessoas ociosas, que cometem
suas travessuras, com as quais causam perturbações aos moradores,
no que tem grande culpa o comandante daquele Distrito, por não
cuidar na forma das minhas ordens, em os pacificar e repreender, ao
qual deve admoestar de Ordem Minha, para que reprima os ocio-
sos, e vadios, fazendo que todos cuidem em empregar-se nos seus
ofícios, para que vivendo em paz não me venha representações...”73
Não fica explicito qual o caráter desses ofícios, mas está claramente
formulada a necessidade de associar a repressão à utilidade. O ônus
eventualmente representado pelos desclassificados convertia-se,
através do castigo, em trabalho, e portanto, em utilidade.
Várias eram as alternativas para a utilização da mão-de-obra
desclassificada: constituição dos corpos que se aventuravam pelo
90 sertão em entradas; a guarda, defesa e manutenção dos presídios; o
trabalho nas obras públicas e na lavoura de subsistência; a formação
de corpos de guarda e polícia privada; a composição de corpos de
milícia e de outros recrutados esporadicamente para fins diversos; a
abertura e povoamento de novas áreas, as fronteiras.74

74 , A utilização dos vadios nessas funções foi, como já se disse, comum a toda
a colônia: “... essa população livre pobre representava uma espécie de 'argamassa
paramilitar', usada como um aríete na defesa das povoações, na penetração dos ter-
ritórios desconhecidos e na conquista de novas fronteiras” – Florestan Fernandes,
“A sociedade escravista”, em: Circuito fechado, São Paulo, 1976, p.33. Em são Paulo
também se aproveitaram desclassificados, conforme diz Sérgio Buarque de Holan-
da: “Em muitos lugares, tais elementos podiam ser aproveitados com vantagem, e de
fato o eram, na formação de corpos militares destinados à fronteira, na organização
de povoações novas, no desbravamento de sertões desconhecidos, como os de Ivaí
e Guarapuava. Mas nos distritos vizinhos do porto de embarque das monções, uma
grande parte do pessoal disponível tinha de ser absorvido no serviço das canoas”.
– Monções, 2ª ed., São Paulo, 1976, p.71-2. Com os vadios da capitania formavam-
-se as tripulações das monções que partiam de Porto Feliz (então Araritaguaba)
para Cuiabá, e se fundo um capitão-mor daquela localidade, “Por isso esta gente
de alguma maneira devem ser respeitados (sic) por sua habilidade no trabalho do
A , Entradas , O devassamento do sertão das Minas e o estabe-
lecimento dos primeiros arraiais auríferos se fizeram sob o signo
do aproveitamento dos desclassificados sociais nas bandeiras que
entravam pelo mato. Antes mesmo de se procurar ouro no território
que depois ficou chamado Minas Gerais, Gabriel Soares, na última
década do século XVI , recebeu ordens reais para “tirar das prisões
os condenados a degredo, que fossem oficiais mecânicos e minei-
ros; a estes seria contado como da pena o tempo da expedição”75
Agostinho Barbalho Bezerra, que em 1664 foi encarregado pelo rei
do “descobrimento e entabolamento das Minas de Paranaguá”, no
então distrito do Rio de Janeiro, recebeu instruções semelhantes:
“E porque pode acontecer que pelas capitanias e sertões por onde
fizer jornada ao descobrimento das ditas minas andem algumas
pessoas retiradas por crimes, ou casos por que a justiça seja parte e

rio” – cit. p.72. Em Desterro, atual Florianópolis, havia carência de mão-de-obra por 91
ocasião da pesca das baleias, não bastando os lavradores pobres que então se faziam
jornaleiros: “Os trabalhadores voluntários não eram, todavia, suficientes por toda
parte. As armações recorriam, por isso, aos circeres, mobilizando sentenciados a
trabalhos forçados e até mesmo requisitavam ordenanças das milícias, no que o mo-
nopólio real das armações contava com a colaboração das autoridades. Sob ameaça
de prisão, também se recrutavam vadios, frequentadores de tavernas, motivo pelo
qual muita gente fugia ao se aproximar a temporada da captura da baleia”. – Jacob
Gorender, ob.cit., p.229.
75 , Aristides de Araújo Maia, Memória da província de Minas Gerais , em:
RAPM , v.VII , 1902, p.26.
76 , Traslados e excertos de alguns escritos com relação à empresa de
Agostinho Barbalho Bezerra para descobrimento das esmeraldas. Com
algumas observações e anotações – Provisão de 20-V-1664 em: RAPM , v.II ,
1897, p.531.
77 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p.429.
78 , Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, Apontamentos históricos, geográficos,
biográficos, estatísticos e noticiosos da província de São Paulo, São Paulo, 1954, v.I ,
p.380.
79 , José Manuel Sequeira, Memória , publicado em: Sérgio Buarque de Holanda,
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não hajam outros: hei por bem que sendo necessário aproveitar-se o
dito Agostinho Barbalho das ditas pessoas para algumas notícias ou
informações do que se pretende neste descobrimento, lhe possa per-
doar e perdoe em meu nome o tal crime, que tiver cometido...”.76 A
bandeira não vingou devido à morte de Agostinho Barbalho, e nada
mais se sabe sobre estes possíveis informantes a serem utilizados
pela expedição. Mas a mesma ideia de informantes de condição so-
cial indefinida aparece na narrativa que José Joaquim da Rocha faz
da bandeira de Fernão Dias Pais, que entrou para o sertão levando
com bastardos: estes, às margens do Vupubuçu, foram expedidos “a
fim de examinar a finalidade das terras circunvizinhas a este lago,
a ver se achavam alguma língua, que melhor ao informasse do que
buscavam”;77 bastardo podia então designar tanto o filho natural
como o mestiço, sendo certamente esta a acepção a que diz respeito
a passagem citada. De qualquer forma, tratar-se-ia de elementos de
92 mísera condição, arregimentados para engrossar a empresa arrisca-
da do sertanista.
D. Rodrigo de Castel Blanco – estranho aventureiro que morreu
em condições trágicas, envolvendo Borba Gato como possível cri-
minoso – também levou, ao que tudo indica, a sua quota de desclas-
sificados; pelo menos é o que sugere o “Bando mandado publicar na
vila de São Paulo e em rodas as mais da capitania, dando perdão aos
criminosos que andavam foragidos (exceto os de Lesa-Majestade)
para que se apresentassem a fim de fazer parte da força com que D.
Rodrigo de Castel Blanco tinha de entrar para o sertão em desco-
berto de minas”.78
Ao tratar do estímulo que julgava merecerem as expedições vol-
tadas para a procura de pedras preciosas, ouro e outros metais de
valor econômico, José Manuel Sequeira também sugere o aproveita-
mento dos desclassificados: “O único meio de que me lembro (se é

Monções, p.137.
80 , Licença de d. Brás Baltazar da Silveira a Lucas de Freitas de Aze-
vedo” – 29-V-1717, APM , SC , cód. 9, fls. 49 V-50.
81 , Descobrimento de Minas Gerais – relação circunstanciada , RIHGB ,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

licito um simples vassalo indicar meios que só competem ao sobera-


no) era o de um decreto real pelo qual se perdoassem todos e quais-
quer delitos antes cometidos que não forem de Lesa-Majestade aos
facinorosos, que vivem prófugos e foragidos, e que espontaneamen-
te se apresentarem dentro de certo tempo para serem ocupados no
exercício do sertão pelo tempo que merecer a gravidade do delito”.79
As diligências de Lucas de Azevedo no sentido de procurar esme-
raldas receberam, por “serem em tanta utilidade ao de arregimenta-
rem desclassificados: “... licença para poder haver a si todos aqueles
chamados gentios forros de mamelucos, mulatos, negros, índios
e bastardos que achar e tiver notícia tirando-os de qualquer parte
onde estiverem para o ajudarem nos ditos descobrimentos...”.80
É claro o motivo que norteia a doção dos desclassificados como
componentes adequados para entradas e expedições sertanistas: o
enveredar pelo mato apresentava enorme tentação para os cativos,
que, em situações semelhantes, buscavam a fuga e a liberdade. Além 93
disso, era oneroso à economia colonial afastar um negro minerador
de sua faina diária.
Assim, dentro da colônia setecentista, as Minas apresentaram fei-
ção peculiar: situadas na região central, foram, de certa forma, o
resultado das entradas e bandeiras, que levavam um grande número
de desclassificados. A desclassificação seria, pois, particularmente
intensa naquela região, que se constituiu assim numa amostragem
privilegiada do fenômeno ao mesmo tempo em que aliviou outras
regiões dos seus elementos indesejados, funcionando como uma
“válvula interna”.

B , Presídios , Os presídios foram, em grande parte, mantidos


e desenvolvidos às custas do trabalho de desclassificados. Localiza-
vam-se em terras remotas, as conquistas, e foram feitos para com-

v.XXIX , t.1, p.5-114.


82 , Diz José Joaquim da Rocha: “Dos sertões penetrados naquele tempo, era o
mais notável, o da Casa da Casca nome que se deu a uma aldeia de gentio situada no
lugar hoje denominado Cuieté, ao meio dia do Rio Doce em distância de 5 léguas”.
– ob.cit., p.426-7
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

bater o extravio do ouro, para inspecionar e impedir o avanço dos


índios, sobretudo botocudos.81 Em muitos deles viviam gentios ca-
tequizados e pacíficos, e era frequente possuírem campos de lavoura
cultivados pelos criminosos e desocupados. Os mais citados são o
de Abre campo, o do Peçanha, o do Cuieté, que ao que tudo indica é
a mesma localidade que algumas vezes surge designada como Casa
da Casca ou Casca.82 Situada no lado Sul do rio Doce, era cortada
por vários córregos, ribeiros e rios menores, e em suas margens en-
contrava-se outro; mas havia um grande problema: índio bravo, bo-
tocudo. Esta conquista havia sido promovida por Luís Diogo Lobo
da Silva, pelo conde de Valadares e por D. Antonio de Noronha.
Este último procurou torná-la produtiva, para lá se dirigindo em
pessoa a 12 de setembro de 1779.83 O presídio de Abre Campo fora
desenvolvido pelo conde de Valadares, e sua conservação fora consi-
derada de enorme utilidade pelo mesmo D. Antonio de Noronha: “...
94 porque além de haverem nele Minas donde se extrai ouro, serve de
embaraço ao gentio para penetrar aquele sertão, e hostilizar as mui-
tas fazendas, que se achavam povoadas e cultivadas nas vizinhanças
do rio Casca.”.84.
O envio de vadios para os presídios e conquistas foi medida ado-
tada por praticamente todos os governantes nas décadas de 1760,
1770 e até mesmo 1780. As Cartas Chilenas criticam a arbitrariedade
de Fanfarrão Minésio e de seus prebostes no trato com essa gente:

83 , Teixeira Coelho, ob.cit., p.487, 488 e 489.


84. , Carta de D. Antonio de Noronha citada em Teixeira Coelho, ob.cit., p.509.
85 , Carta 3ª, versos 164-169, em: Tarquínio J.B. De Oliveira, As Cartas Chilenas –
fontes textuais, São Paulo, 1972, p.92.
86 , Diogo de Vasconcellos, História Média.., p.237.
87 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.237. Segue-se nas p.238-9, uma
curiosa passagem: “… os vadios, que em todos os países formaram a classe mais
inútil e nefanda, em Minas, dizia D. Antonio de Noronha, eram um elemento neces-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Os nossos comandantes, que conhecem


A vontade do Chefe, também querem
Imitar deste Cabo o ardente zelo:
Enviam para as pedras os vadios,
Que na forma das ordens mandar devem
Habitar em desterro novas terras.85

D. Rodrigo José de Menezes pensou em aproveitar economica-


mente o Cuieté com atividades outras que a mineração: a extração
de madeiras e o cultivo de algodoeiros. Para tal, ordenou aos co-
mandantes distritais que enviassem os vadios que conseguissem
apanhar para a cadeia de Vila Rica, onde, na formulação feliz de
Diogo de Vasconcellos, “escolheriam ou a farda para o Rio Grande,
ou a foice para o Cuité”.86 O historiador mineiro considerava ótimo
o sistema de utilização deste tipo de mão-de-obra:
Porque, primeiro, separava da sociedade sã a parte corrompida que per- 95
vertia a mocidade; segundo, utilizava os ociosos em matéria de serviço pú-
blico; terceiro, aumentava as receitas da coroa, aliviando em geral as quotas
da derrama.87

sário para o povoamento e cultivo das colônias, devendo-se lhes em grande parte a
segurança da parte civilizada contra os índios ferozes, que eles continham nos re-
motos presídios.” Confrontada com o trecho de Teixeira Coelho, dá margem a duas
hipóteses: 1) A formulação de que os vadios, ódio de todas as nações civilizadas,
eram úteis nas Minas é de D. Antonio de Noronha, de quem Teixeira Coelho era
grande admirador; 2) Diogo de Vasconcellos leu mal Teixeira Coelho e atribuiu a
frase do desembargador ao governante. De qualquer forma, a ideia da utilidade dos
vadios mostra a sua presença marcante.
88 , Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o esta-
do de decadência da capitania de Minas Gerais e meio de remediá-lo, em:
RAPM , v.II , 1897, p.314-5.
89 , Requerimento que a S.Exa. Faz sobre datas de terras minerais e
sesmarias o alferes João Pereira (…), alferes da ordenança do destaca-
mento dos forros”– 19-X-1770, em: APM , SC , cód. 186, fls. 78-79 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Antes de Diogo de Vasconcelos, D. Rodrigo também deixou ex-


presso o seu conceito sobre o aproveitamento dos vadios no incre-
mento do presídio do Cuieté:

Encarreguei a direção desta obra a um homem muito perito, e capaz de


dar conta de si, e para nele trabalharem mandei por toda a capitania pren-
der os vadios, que se encontrassem, e remetê-los para aquele sítio, fazendo
deste modo com pouco despesa aquela importante obra, e purgando tam-
bém a sociedade civil dos perturbadores dela.88

Os presídios e as conquistas remotas eram locais pouco acolhe-


dores. Segundo um artigo integrante de várias expedições às con-
quistas – inclusive da que, no tempo de Luís Diogo Lobo da Silva, se
enviou ao Abre Campo – os indivíduos que lá se viviam passavam
“várias fomes e calamidades”, e sofriam constantes investidas dos
96 índios puris, ficando muitos mortos pelos matos.89 Já no século XIX ,
um senhor pedia comutação ou alteração da pena que coubera a um
seu escravo, degredado para o Cuieté:

... é um lugar no centro desta capitania, pouco povoado, pouco sadio e in-
festado pelo antropófago botocudo, para o qual costumam ser remetidos
em muitas ocasiões alguns réus de crimes menos graves...90

De fato, a documentação não indica transgressões graves como


motivo de degredo para os presídios: Manuel Lopes Pena, Dionísio
Pereira Brandão e Joaquim, de Almeida Pinto, presos pelo coman-

90 , Para a Mesa do Desembargo do Paço – 21-III-1812, em: RAPM , v.XVII ,


1913, cód. 199, fls. 8 V-9.
91 , Para o capitão-mor Manuel Furtado Leite de Mendonça – 21-I-1773,
APM , SC , cód. 199, fls. 8V-9.
92 , Conforme decreto de 4-IX-1755, os mendigos e os vagabundos deveriam traba-
lhar nas obras de Lisboa, Rui d'Abreu Torres, Mendicidade, p.19. Na França, durante
o inverno de 1516, procurou-se empregar os vagabundos nos trabalhos destinados
a elevar fortificações; quando este não podia ser executado devido ao nível alto das
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

dante de São Gonçalo do Rio Abaixo, só seriam remetidos para o


Abre Campo caso ficasse flagrante a sua vadiagem, pois caso con-
trário – “tendo os ditos ofícios, e trabalhando-os” – cumpririam
sete dias de prisão e seriam soltos a seguir. O bastardo José Moreira,
preso por embriaguez, deveria se apresentar de três em três meses
com uma certidão de bem-viver – sem o que, sua sorte seria o Cuie-
té.91 Pode-se assim imaginar a quantidade de infrações insignifican-
tes que jaziam detrás de muitos dos moradores daquelas paragens.

C , Obras públicas e lavoura , Para o trabalho em obras públi-


cas sempre foi comum o emprego de desclassificados.92 Devido ao
terrível depoimento das Cartas Chilenas, ficou famosa a construção
da Casa da Câmara e Cadeia de Vila Rica empreendida por Luís da
Cunha Menezes, o Fanfarrão Minésio.93 Há notícia de vadio traba-
lhando na abertura de picadas e caminhos durante o governo de D.
Rodrigo José de Menezes,94 e o trabalho nas lavouras dos presídios 97
não deixa de ter caráter de obra pública. D. Antonio de Noronha
refere-se à agriculturação dos campos do Cuieté como “ofício útil
ao público”.95 A utilidade da lavoura não vinha apenas do fato de

águas do Sena, empregavam-se vagabundos para remover a lama e o lixo das ruas.
Geremeck, Criminalité, vagabondage, paupérisme..., p.351. Na região do Vale do Pa-
raíba, os homens livres pobres eram utilizados para “resolver o crônico problema de
construção e conservação de estradas”. Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens
livres na ordem escravocrata, 2ª ed., São Paulo, 1974, p.97.
93 , As cartas Chilenas, fontes textuais, carta 3ª, p.88-95, e carta 4ª, p.101-10.
94 , Waldemar de Almeida Barbosa, ob.cit., p. 202 e p. 369.
95 , Bando sobre a limpeza de negros calhambolas; taberneiros; mas-
cates de qualquer qualidade – assim brancos como negros – e pessoas
vadias – e regularidades de capitães-do-mato, e pedestres – 8-IV-1764, em:
APM , SC , cód. 50, fls. 91 V.
96 , Este aspecto foi abordado no capítulo anterior.
97 , Ordem de 24-XI-1734, Coleção sumária das próprias leis, cartas ré-
gias, avisos e ordens , em: RAPM , v. XVI , p.450.
98 , “Administração Diamantina – Traslado dos autos de inquirição
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

ser a capitania das Minas abastecida em sua maior parte por gêne-
ros vindos de fora, mas está sobretudo ligada ao fato de o trabalho
da terra ser, a partir de uma determinada época, encarado como o
trabalho por excelência, a base sólida sobre que deveria se apoiar a
economia.96 Sendo assim, nada melhor do que ele para redimir o
desocupado do vício da ociosidade. Em 1734, o conde das Galvêas
lançava uma ordem segundo a qual os vadios não seriam conse-
tidos, obrigando-se lhes “a servir na cultura das terras” mediante
pena de expulsão da capitania.97 No Distrito Diamantino, ordenou
certa ocasião o Intendente que se fizesse a circunvalação dos cam-
pos lavrados “por dez ou doze miseráveis apenados sem paga, sem
ferramenta, e sem alimentos”.98 Em 1807, o governador D. Pedro
Maria de Ataíde e Mello cogitava da navegação do rio Doce e do de-
vassamento de seus sertões, dizendo que “muitos vadios, gentalha a
mais perigosa da sociedade, seriam obrigados a povoar e agricultar
98 estas terras”, e que, nessa empresa, seriam auxiliados pelo gover-

que mandou V. Exa. Proceder sobre as condutas do Intendente dos Dia-


mantes João Inácio do Amaral Silveira e do Fiscal João da Cunha Soto
Maior, assim como sobre a importante administração, que lhe está en-
carregada . – RAPM , v. II , 1897, p.154. Dentre as causas da decadência da agricul-
tura portuguesa arroladas em 1792 pelo Intendente-Geral da agricultura, D. Luís
Ferrari de Mordau, a oitava era “Muita gente pobre e muita preguiça”, e a déci-
ma, “Muitos vadios, muitos criados, muitos ociosos e muitos soldados extraídos
da lavoura”. Entre outras proposições para o solucionamento do problema, estava
a mobilização para o trabalho dos “vadios, licenciados, e pobres de profissão, por
outro modo, vagabundos, e mendicantes, e mulheres públicas de má vida.” segundo
Vitorino Magalhães Godinho, ob.cit., p.195.
99 , Sobre a navegação do rio Doce , carta de 14-IX-1807, em: RAPM , v. XI ,
1906, p.300.
100 , Carta de 14-XI-1818, em: Originais de ordens régias e avisos – 1817-1818, APM ,
SC , livro 377, n.52.
101 , Segundo Xavier da Veiga, Efemérides Mineiras (1664-1897), Ouro Preto, 1897,
v. IV, p.3 51-6.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

no.99 Em 1818, já no fim do período colonial, José Inácio do Coito


Moreno enviou ao rei um plano para melhorar a agricultura da ca-
pitania e nela empregar os vadios.100 O Conselho Geral da Provín-
cia continuaria a perseguir a ideia do aproveitamento dos vadios
na agricultura, conforme consta no projeto que, nesse sentido, foi
apresentado a 15 de dezembro de 1831.101 Nada consegui saber sobre
a execução prática de todos esses projetos.

D , Polícia privada , Tem-se lembrado exaustivamente a pre-


sença dos desclassificados nos corpos de guarda pessoal e de polí-
cia privada. Nos documentos sobre os levantes ocorridos no sertão
do São Francisco em 1736 fica clara a participação dos vadios como
corpo pessoal dos potentados do lugar. De fato, era frequente ver-se
um poderoso com sua guarda pessoal, “brancos de ruim conduta,
mulatos e negros com armas de fogo, catanas e porretes” como os
que serviam a um certo Manuel José, apaniguado do Ouvidor do 99
Serro.102 Como os desclassificados em geral, esses indivíduos eram,
na sua maior parte, mestiços: o Tenente-Coronel Amador de Souza
foi morto em 1738 por um Antonio Francisco e seu irmão que, esco-
rados em carijós por eles armados, pretendiam matar ainda outras
pessoas, lançando os habitantes de Congonhas na maior conster-
nação.103

102 , A justiça na capitania de Minas Gerais – correspondência de D. Rodri-


go José de Menezes com o ministro Martinho de Mello e Castro e com o Ouvidor do
Serro Frio Joaquim Manuel de Seixas Abranches, in: RAPM , v. IV, 1899, p.14.
103 , Carta, 28-V-1738, em: APM , SC , cód. 69, fls. 5 V.
104 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.172. Em São Paulo, o Morga-
do de Mateus se queixava ao primeiro-ministro de D. José 1 dos vadios-capangas
que haviam matado um capitão de ordenanças eu escrivão de Taubaté: “E porque
de ordinário estes delitos são executados por homens vadios e mandados para este
fim por pessoas que atraiçoadamente se pretendem vingar por estes meios, ficando
desta sorte oculto o que manda, e fugindo o que executa, pela facilidade com que se
passam pelo matos a outras terras, e com que ficam no mesmo mato vivendo pelas
roças e pelos chamados sítios, de que há grande quantidade sem se saber nunca,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Diogo de Vasconcellos aventa uma hipótese segundo a qual os


desclassificados empregados como guarda pessoal ou como agen-
tes da repressão fomentariam a paranoia da classe dominante para
justificarem a sua função: “Para bem compreendermos o enredo da-
queles tempos, convém lembrar que a bruta classe numerosa de fei-
tores, capangas e capitães-do-mato viviam de explorar o medo dos
senhores, para se tornarem necessários. Inúmeros vadios, que eram
parasitas nas fazendas, tinha-se por guarda-costas e espias dos pro-
prietários. Essa grande caterva tinha todo interesse, pois, de criar
boatos e exagera-los.104 Não considera, entretanto, o outro lado da
moeda: que num sistema escravista cujo alicerce da economia eram
os escravos, muito mais numerosos do que a gente branca de posses,
a manutenção de uma polícia pessoal era extremamente necessária
para a continuidade da dominação. A paranoia existia; não era cria-
da de fora para dentro, mas correspondia a algo profundo, inerente
100 ao sistema. Essa paranoia real poderia ser alimentada pelos capan-
gas, mas nunca inventada por eles que, dada as condições acima
apontadas, eram úteis e necessários.

E , Fronteiras e expansão territorial , Numa colônia cujas fron-


teiras ainda eram móveis e provisórias, cujos limites só seriam tra-
çados em 1777 – mas que, até o século XX , seriam redefinidos –, a
expansão e as frentes do povoamento eram extremamente impor-
tantes. O aventurar-se num sertão inóspito, desconhecido e cheio
dos nativos da terra era uma empresa arriscada; muitos o faziam

nem se poder averiguar aonde param estes delinquentes, para poderem ser casti-
gados como merecem os seus delitos”. – Carta do Morgado de Mateus ao Conde de
Oeiras – 21-IX-1765 – em: DI , v. IXXII , 1952, p. 94-5.
105 , “Tenho notícia que entraram nestas Minas grande número de ciganos que
o sr. Vice-Rei fez despejar do distrito da Bahia, e ainda que já se fazem algumas
queixas deles, e aqui haja um bando do sr. Conde das Galvêas para não viverem no
distrito das Minas; contudo por ora me parece acertado, castigando aos que come-
terem algum insulto, não intender com os mais, porque não suceda juntarem-se
em alguma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de perniciosas
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

tendo em vistas a riqueza rápida que daí poderia advir, recrutando


vadios, criminosos e toda a sorte de infratores para engrossarem a
expedição. Por outro lado, dada a dificuldade de lá chegar o braço
da Justiça, a paragem longínqua era atraente ao perseguido pela lei.
Sob coação ou por livre e espontânea vontade, os desclassificados
– eles mesmos, fímbria da sociedade – se localizaram com frequ-
ência na fronteira geográfica, nas zonas remotas que, muitas vezes,
eram alvo da disputa de duas ou mais capitanias, que brigavam pela
sua jurisdição. Magotes de ciganos ficavam de tocaia nas bordas
dos caminhos, lançando-se sobre os viandantes e sobre suas cargas,
roubando cavalos e mantimentos; caso as autoridades vissem nesses
elementos a possibilidade de serem úteis, agrupavam-no e os envia-
vam para o Sul, grande sorvedouro de desclassificados por todo o
século XVIII devido a questão fronteiriça da colônia do Sacramento
e, por algum tempo, dos Sete Povos de Missões.105 “Prender para
Montevidéu”, para a “Nova Colônia”, para o rio da Prata, ou generi- 101
camente para o Sul são expressões correntes na documentação por
todo o período.
As zonas novas recebiam grande afluxo de vadios. Quando sur-
giram os descobertos do Paracatu, o governador comentou com o
ouvidor-geral do Sabará sobre a necessidade de ter dragões a postos
em Vila Rica para poder mandá-los de uma hora para outra àquela
região, “porque conheço que a sua assistência conservará em res-

consequências, e dificultoso remédio, estando tão dispersos os dragões deste presí-


dio; se porém a V.E. Parecer que esta gente pode ser útil para o rio da Prata com o 1º
aviso se passarão ordens circulares para os prenderem as ordenanças, e se remeterão
a essa cidade”. – Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire 13-I-1737 – Das
cartas do Exmo.sr. Gomes Freire , em: RAPM , v. XVI , 2, p. 394.
106 , Para o Ouvidor-Geral do Sabará Simão da Costa e Mendanha , 21-
VIII -1744, em: APM , SC , cód.84, fls.46 V-47.
107 , Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico-geográfico de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 1971, p. 45.
108 , Carta da comarca de Tamanduá acerca dos limites de Minas Ge-
rais com Goiás, 10-VII-1793, em: RAPM , v. II , 1897, p.372 e 382 respectivamente.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

peito a coleção de vadios que vão a estabelecer-se naquele descober-


to...”.106 Os primeiros moradores do arraial do Araxá sofreram os
inconvenientes de um povoado em pleno sertão, longe das autori-
dades, para onde afluíam vadios e aventureiros de toda espécie.107
Os desordeiros que se estabeleceram na região de Tamanduá, ter-
mo que durante muito tempo provocou disputas entre as capitanias
de Minas e Goiás, foram alvo constante das queixas das camaristas
junto aos governantes. Segundo diziam aqueles, os vadios estavam
interessados em confundirem os limites e as jurisdições para fica-
rem isentos dos castigos de que seriam merecedores, fazendo do
local um couto para criminosos. Os camaristas são extremamente
rigorosos no juízo que fazem dos indivíduos aventureiros, intro-
jetando, de certa forma, a ótica oficial ante o problema: “homens
foragidos, vagabundos, insidiosos, inimigos da paz, das repúblicas,
cheios de impetuosas malaversações populares”, “feras racionais e
102 irracionais”.108

F , Milícias e corpos militares , As milícias coloniais lançaram


mão com muita frequência do recrutamento de desclassificados. Se-
gundo um historiador mineiro, “o aproveitamento mais útil desses
viciosos foi na organização de verdadeiros corpos de tropa”.109 Na

Em 1798, a câmara reiterava suas queixas: Informação da Câmara de São Bento do


Tamanduá sobre divisões entre esta e a capitania de Goiás” em: RAPM , v. XI , 1906,
p. 429-430.
109 , Flamínio Corso, Terra do Ouro, Ouro Preto, 1932, p.138. A utilização dos
vadios nas tropas não foi peculiaridade mineira: o grosso das unidades regulares da
Bahia era recrutada entre os vagabundos itinerantes e mulatos da terra. Ver Boxer,
The Portuguese Seaborne Empire. Na Idade de Ouro do Brasil, o mesmo autor fala
da predominância de fora-da-lei dentre a população rio-grandense no século XVIII ,
muitos deles colonos que vinham da Bahia e que eram na maior parte, vadios con-
vocados nas cidades para o serviço de dragões (c.IX). Fala também da utilização
que fizeram os senhores de engenho de elementos desclassificados na Guerra dos
Mascates, e que ficaram conhecidos por Tunda-Cumbés (c.v.).
110 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 239.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

mesma linha, Diogo de Vasconcellos chega a dizer que, em meio às


dificuldades apresentadas para o recrutamento de vadios – dificul-
dades essas devidas a disputas entre autoridades –, a declaração de
que tal se fazia para o serviço militar simplificava imediatamente
os complicados trâmites que nos outros casos, envolviam o dito re-
crutamento.110 Este, muitas vezes, se fazia às pressas para o desem-
penho de alguma função específica, como é o caso das tropas que
se constituíam para combater e arrasar quilombos. Neste sentido,
o interino José Antonio Freire de Andrade ordenou, em 1741, que
o sargento-mor João da Silva Ferreira apenasse “todos os capitães-
-do-mato, carijós, negros forros e mulatos que não tiverem ofício ou
fazenda em que trabalhar” para que compusessem um corpo desti-
nado a enfrentar os quilombos que então proliferavam nos distri-
tos de Sussuí e Paraopeba, ambos na comarca do Rio das Mortes.111
Luís Diogo Lobo da Silva também lançou mão de “pardos e negros
livres” miseráveis para enfrentar “os negros do mato, a que vulgar- 103
mente chamam de calhambolas”.112
Com o objetivo especial de prender os carijós assassinos e de-
sordeiros que andavam pondo em alvoroço a população de Con-
gonhas, e dos quais já se falou acima, ordenou o governador que se
arregimentasse quantos carijós fosse possível sob “pena de proceder
contra quem se escusar de obedecer ao suplicante na dita diligên-
cia”.113 Assim, os carijós que, a mandado de terceiros, haviam come-
tido assassinato, seriam atacados por carijós pagos pelo Estado. Nas
desordens e na repressão, de um e de outro lado do poder, atuavam
os protagonistas da miséria.
111 , Ordem – 28-IV-174, em: APM , SC , cód.69, fls. 23 V.
112 , Bando , em: APM , SC , cód. 50, fls. 90-90 V.
113 , Carta, 28-V-1738, em: APM , SC , cód.69, fls. 5 v.
114 , Xavier da Veiga, ob.cit., v.IV, p. 228.
115 , Diogo de Vasconcellos, p. 212-3.
116 , Carta da Comarca de Tamanduá..., p. 377.
117 , Dando notícia do movimento dos espanhóis no sul e pedindo-lhe o
auxílio de alguma força , 18-I-1773, em: DI , v. XXV, 1901, p. 37.
118 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 26-XI-1775, in: DI,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

A 18 de novembro de 1773, era expedida uma ordem aprovando


a organização de uma tropa de pedestres destinada a reprimir os
ataques de botocudos e prender escravos fugidos; compunham-na
vadios e facinorosos.114 Parece ter havido certa receptividade à pra-
tica de se recrutarem vadios, talvez por colaboração de interessados;
a “parte sossegada e laboriosa que os vadios inquietavam”115 e que,
uma vez afastados os infratores, respirava aliviada sem se preocupar
com os motivos das infrações. Foi este o caso da mesma Câmara de
Tamanduá acima citada que se regozijou ante a determinação de
uma empresa destinada a “alistar e matricular a aqueles facinorosos
habitantes fazendo entre eles um corpo de milícia auxiliar e orde-
nanças a fim de os civilizar na obediência às Leis Divinas de Vossa
Majestade, que até então só conheciam as da impiedade”.116
É numa das formas do recrutamento que se pode analisar o movi-
mento através do qual a utilidade se torna ônus, e este se transforma
104 novamente em utilidade: o episódio que envolve o envio de tropas
para o sul no ano de 1777. Já em 1773, o Morgado de Mateus escrevia
ao conde de Valladares falando do movimento das tropas espanho-
las no sul pedindo que lhe mandasse “toda a gente que lhe for inútil
para ser empregada com aproveitamento naquela fronteira”.117 São
Paulo funcionava então como ponto de convergência das tropas de
Minas, Mato Grosso, Goiás e Rio, recrutando também em suas ater-
ras os soldados que deveriam seguir para o sul. Em 1775, Lavradio
dizia Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador de São Paulo,
que os homens disponíveis para as tropas do sul deveriam seguir
da maneira que fosse possível, sem grandes preocupações com a sua
vestimenta precária, com a falta de armamentos ou de disciplina. A
carta é extraordinária como registro da ótica oficial ante o aprovei-
tamento dos homens livres pobres e desocupados: “... importa mui-

n.17, 1895, p.44-5. O grifo é meu.


119 , Carta de D. Antonio de Noronha a Martim Lopes Lobo de Saldanha, 20-III-
1777, em: DI , n. 17, 1895, p. 285-7, e Para o capitão-general de Minas Gerais,
sobre os socorros que de lá vem para o sul , 2-IV-1777, em: DI , v. 42, 1903, p.
222-3.
120 , Para o mesmo vice-rei, sobre a remessa de notícias dos inimigos,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

to pouco que o regimento de voluntários vá menos bem regulado;


antes pelo contrário esta qualidade de gente, e aquela tropa tira as
suas maiores vantagens da própria irregularidade”. E mais adiante,
comentando a ação dos antigos paulistas desbravadores:

Nunca foram vestidos regularmente; eram armados à sua fantasia; al-


guns iam calçados; a maior parte deles descalços: as selas de seus cavalos
eram uns couros; assim atravessando os pântanos, os rios; subiam e des-
ciam as serras; atacavam os inimigos, e se faziam formidáveis. Sempre que
estes homens foram chamados ao Rio Grande nas Companhias Aventurei-
ras, iam quase em igual desordem; assim trabalhavam; e alguma coisa que
por lá se fez boa, quase sempre se lhe deveu a eles. (sic) A experiência deste
ser o caráter de semelhantes homens, e que sempre toda a tropa ligeira, em
toda parte do mundo, foi no seu princípio formada desta forma, faz que eu
insista a V.Exa. Para que eles marchem ainda que não estejam preparados
em toda regularidade”.118 105

Difícil encontrar texto onde melhor se exprimam as vantagens


advindas do emprego, por parte do estado, de uma mão-de-obra
miserável que pela sua própria miserabilidade tornava-se extrema-
mente útil.
Por fim, em 1777, a manutenção de tropas no sul tornou-se mais
premente devido a intensificação das hostilidades. O governador de
São Paulo pediu então a D. Antonio de Noronha que enviasse forças,
e este conseguiu arrebanhar 4000 homens que Martim Lopes deve-
ria fazer ao chegar ao sul, onde serviram sob as ordens do tenente-
-general João Henrique de Bohm, chefe das tropas lá sediadas.119
Em fins de março começaram a chegar de São Paulo os primeiros
corpos das Minas, e Martim Lopes se consternou ante seu estado,

prisão de traidores e chegada de tropas vindas de Minas Gerais, 23-IV-


1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 245.
121 , Para o capitão general de Minas Gerais, dando-lhe notícia da
chegada das forças de Minas e do mau estado em que vieram. 14-IV-1777,
em: DI , v 42, 1903, p. 247-8.
122 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão, José Marcelino de
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

pois vinham praticamente nus – “sem mais que umas ceroulas e


camisas” – e desarmados – “com muito poucas armas particulares,
e estas desconcertadas”120 Pediu ao colega de Minas que enviasse
mantimentos ou auxílio pecuniário para a alimentação dos solda-
dos, pois achava que o dinheiro de que dispunha não cobriria os
gastos com alimentação daquela tropa.121
Ao receber de Lavradio o aviso de que as tropas estavam a cami-
nho, o governador do Viamão, brigadeiro Marcelino de Figueiredo
intuiu o tipo de gente que estava para chegar: “... eu não sei que gente
será: porém é certo que paisana, e bisonha, não pode cá servir, que
de confusão, e falta de dinheiro, e mantimentos, e consequentemen-
te impossibilitar a subsistência das tropas...”.122 Os desclassificados
onerosos à capitania de Minas haviam, ante o episódio das guerras
do sul, se tornado úteis em outro contexto; mas a sua miséria e o seu
despreparo poderiam torná-los onerosos novamente, e prejudiciais
106 aos soldados melhor preparados que com eles se veriam obrigados a
repartir sua ração. O brigadeiro teria suas apreensões confirmadas
por carta de Martim Lopes:

... eu não me posso dispensar de mandá-las (as tropas), ainda que co-
nheço pouca ou nenhuma utilidade deste socorro; porque além de ser da
mais útil gente daquela capitania, vir descalça, nua e miserável, o seu ar-
mamento consiste em uns paus com um ferro na ponta, a que não lhe sei
dar o nome.123

Figueiredo, a Martim Lopes Lobo de Saldanha , 16-IV-1777, em: DI , n. 17, 1895,


p. 297.
123 , Para o brigadeiro José Marcelino de Figueiredo, enviando-lhe no-
tícias sobre as forças espanholas e sobre a imprestabilidade das tropas
de Minas Gerais e pedindo sua proteção para um afilhado. 30-IV-1777, em:
DI , v. 42, 1903, p. 253-4.
124 , Para o vice-rei do Estado, sobre algumas necessidades das tropas
desta capitania e imprestabilidade das forças vindas de Minas Gerais .
3-V- 1777, em: DI , v. 42, 1903, p. 255.
125 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão, José Marcelino de
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Na medida em que as tropas iam alcançando São Paulo, Martim


Lopes passava-lhes revista para retirar “os quebrados, aleijados
e idosos, de 60 até 100 anos” e que, por incrível que pareça, eram
muitos.124
Com a chegada das tropas ao sul confirmaram-se os temores do
brigadeiro, consternado ante o quadro de miséria que tinha sob os
olhos: “... o Exército tem custado muito a sustentar neste país, quan-
to mais tanta gente paisana, que não valerá o que comem pela maior
parte...”.125
Quando as queixas dos comandantes do sul e de Martim Lopes
chegaram a Lavradio, este deu mostras de estar, desde o início, cien-
te do tipo de homem que Minas forneceria, e que, apesar de tudo,
era útil à sua maneira, ou seja, servia para fazer número ante o exér-
cito inimigo: “Este socorro das Minas nunca o considerei corpo que
formasse linha com o exército, mas sim corpo de homens capazes 107
para o mato, que junto com as nossas tropas irregulares pudesse
fazer um peso ou estrago sobre os nossos inimigos, e este é o maior
serviço de que eu os julgo capazes, nem o general se servirá deles
por outro modo”.126
A posição de D. Antonio de Noronha era análoga à de Lavradio:

Figueiredo, a Martim Lopes Lobo de Saldanha . 8-V-1777, em: DI , n.1 7, 1895,


p. 302.
126 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 2-V-1777, em: DI , n.
17, 1895, p. 248. O grifo é meu.
127 , Carta de D. Antonio de Noronha a Martim Lopes Lobo de Saldanha – 13-V-
1777, em: DI , XIII , 1895, p. 290-1.
128 , Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha, 22-V-1777, em: DI , v.
17, 1895, p. 251-2.
129 , Carta de João Henrique de Bohm a Martim L. L. De Saldanha, 12-VI-1777,
em: DI, v. 17, 1895, p. 324-5.
130 , Para o brigadeiro José Marcelino de Figueiredo, sobre a volta das
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Queira V.Exa. Refletir em que o Ilmo. E Exmo. s.r. Marquês Vice-rei me


não ordenou que eu formasse um corpo de tropa regular; mas somente que
fizesse expedir para o Rio Grande 4 mil homens, assim brancos, como mes-
tiços, mulatos e negros: estes quatro mil homens não reputo eu como tropa
que possa entrar em ação, e só como recruta, para completar as praças que
faltam nos regimentos do Exército, e para se empregarem nos diferentes
trabalhos do campo em que os quiser ocupar o general do mesmo exército.

D. Antonio dizia ainda que não tinha condições de gastar dinhei-


ro com uniformes e armamentos para esta gente, pois “semelhante
qualidade de homens, como não têm estímulos de honra, e se con-
duzem por violência poderão desertar em grande parte antes que
cheguem ao lugar do seu destino”, levando consigo os fardamentos
ou arrebentando-os completamente no decorrer da viagem, o que
tornava sesse tipo de despesa absolutamente inútil.127
108 Por fim, ante a avalancha de protestos levantados pela tal tropa
em toda parte por onde passou, Lavradio ordenou que se desse um
sumiço nos elementos inaproveitáveis pelo exército, já que deles, no
dizer das autoridades, não se poderia tirar nenhuma utilidade, e
mantê-los significava arcar com as despesas inúteis.128 “Multidão de
gentes sem armas, sem vestidos e sem disciplina”,129 que “só para o
consumo tem préstimo”,130 capazes de causar mais danos do que os
próprios-castelhanos131 pela sua vagabundagem e mal proceder,132

forças de Minas, socorro a Laguna e prisão de traidores , 5-VI-1777, em:


DI , v. 42, 1903, p. 284.
131 , Carta do brigadeiro-governador do Viamão a Martim L.L. De Saldanha:
5-VI-1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 304.
132 , “Eu que nenhuma utilidade lhe achei tomei a resolução de fazer retroceder os
ditos destacamentos, e os remeti para a sua respectiva capitania, para me livrar da
fome, que causaria nesta terra tanto homem vagabundo, sem nenhum serviço mais
do que aumentar neste continente um tão grande bando de ladrões, e malfeitores”.
Ofício sobre a partida de Minas Gerais para São Paulo de um corpo de 4
mil homens . 2-VIII-1777, em: DI , v. XXVIII , 1898, p. 344.
133 ,Carta de José Marcelino de Figueiredo a Martim L. L. De Saldanha. 13-III-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

os pobres farrapos humanos serviram contudo para muita coisa.


Após tripudiar sobre eles, as autoridades encontraram por fim uma
maneira de transformar o ônus da sua subsistência em utilidade
para o Estado: o governador de Viamão ficou com 140, que vestiu
e armou em duas companhias de caçadores;133 capitão-mor regente
da vila de Lages escolheu 200 e os enviou como socorro para Lagu-
na, e Martim Lopes sugeriu o aproveitamento de mais uns cem nos
trabalhos de “uma dilatada roça” feita com intuito de alimentar as
tropas.134
Nesta complicada relação entre o ônus e a utilidade representados
pela existência dos desclassificados, examinei os diferentes aspectos
que se reveste a utilidade, e a maneira como custeia, com frequên-
cia, o ônus. Por sua vez, este costuma ser, de maneira geral, associa-
do aos custos de reprodução e subsistência da população desclas-
sificada. Se os povos dão a seu rei “a utilidade conforme o uso do
seu viver”, há que atentar para os vadios, “que de alguma forma são 109
perniciosos ao Estado”.135 Os homens laboriosos – a quem se opõem
os desclassificados – não podiam suportar “o peso enorme da parte
dos vadios” – “gente volante, ou, como lhe chamam, de pé ligeiro”
–, que por incomodar a manutenção e romper equilíbrio dos negó-
cios, devia ser posta para trabalhar.136 Só assim se poderia evitar

1777, em: DI , v. 17, 1895, p. 308.


134 ,Para o mesmo vice-rei, sobre o retrocesso das forças de Minas, fa-
tura de roças no caminho do sol... 3-VI-1777, em: DI , v. 42, p. 275-6.
135 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 507.
136 ,Representação da Câmara de Mariana, p. 145 e 50 respectivamente. “Porque
é muito grande o número de gente ociosa, e de grande peso para os trabalhadores o
contribuírem estes tão somente com o quinto de S.Mjde”. – ibid, p. 150 e 151.
137 , Quintos do ouro em: RAPM, v.LII , 1898, p.75.
138 , Basílio Teixeira de Saavedra, ob.cit., p. 674.
139 , Cf. Fernando Henrique Cardoso, Classes sociais e História..., p. 113.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

que o ócio sobrepesasse o trabalho,137 perturbando o funcionamen-


to da economia, o rendimento dos quintos, o sossego da sociedade.
A gente forra e pobre, estigmatizada pela escravidão, poderia ter “a
louca opinião” de que não devia trabalhar,138 mas logo lhe caíam em
cima os agentes do recrutamento, os potentados em busca de asse-
clas, os proprietários de fazendas em busca de jornaleiros, as auto-
ridades administrativas que, para maximizar os lucros metropoli-
tanos, superexploravam tanto o trabalho escravo como o trabalho
livre. “Ruína dos Estados”, “canalha indômita”, “gente ociosa que só
servia para consumir víveres”, a Coroa entretanto se lembrava deles
nas horas de aperto, tivessem sessenta ou até cem anos. E lá iam eles,
nus, doentes, mancos, sujos, alquebrados, argamassa necessária à
consolidação das fronteiras, à continuidade do mando, à manuten-
ção do sistema colonial.
Mais do que em qualquer outro ponto da colônia, foram nu-
110 merosíssimos nas Minas, onde condições específicas, tanto infra-
-estruturais – analisadas neste capítulo – como superestruturais
– que serão tratadas a seguir – favoreceram a sua proliferação e,
ao mesmo tempo, os deixaram sem razão de ser. O seu número as-
sustador pesava por sobre a “parte não corrompida” da sociedade,
que assim se via compelida a encontrar uma utilidade para aquele
enorme manancial de mão-de-obra livre. A estrutura da economia
mineira, mais aberta e diversificada, propiciou condições – mesmo
que limitadas – para o aproveitamento desses homens, fazendo com
que o ônus dos vadios se metamorfoseasse em utilidade. Essa me-
tamorfose não era, entretanto, irreversível: de um momento para
outro, podia-se novamente sentir o peso dos vadios, aproveitados
quase sempre em tarefas secundárias; a exploração colonial seguia
sem eles, mas eles faziam parte da exploração colonial, eram por ela
gerados e colaboravam para a sua manutenção.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Assim, não se pode dizer que fossem dispensáveis a persistência


da produção e da sociedade escravista:139 imbricados em seu seio,
preenchendo os interstícios deixados pelo trabalho escravo, con-
tribuíram para a construção, manutenção e derrocada do mundo
colonial. Negação do trabalho, trabalharam. Negação da revolta,
revoltaram-se com frequência e alimentaram quase todos os movi-
mentos regenciais. Negação da Ordem, embrenharam-se pelos ma-
tos no encalço de quilombolas e de índios bravos. Camada fluida,
indefinida, fugidia, imprecisa, espalhou contudo os seus borrões no
seio de uma sociedade estamental, e espraiando-lhe os contornos,
só nela pôde existir.
Longe de ser pacífica, essa existência teve grandes percalços, um
dos maiores tendo sido a inimizade constante das autoridades co-
loniais, do Poder Constituído que, através de medidas altamente
repressivas, nunca deixou de envolver os vadios com suas redes ten-
taculares. 111
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

112
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

III , NAS R EDES DO PODER


A sombra, quando o sol está no zênite, é muito peque-
nina, e toda se vos mete debaixo dos pés; mas quando o
sol está no oriente ou no ocaso, essa mesma sombra se
estende tão imensamente, que mal cabe dentro dos ho-
rizontes. Assim nem mais nem menos os que pretendem
e alcançam os governos ultramarinos. Lá onde o sol está
no zênite, não só se metem estas sombras debaixo dos
pés do príncipe, senão também dos de seu ministro. Mas
quando chegam àquelas Índias, onde nasce o sol, ou a
estas, onde se põe, crescem tanto as mesmas sombras,
que excedem muito a medida dos mesmos reis de que
são imagens. Padre Antonio Vieira

113
1. ADMINISTR AÇÃO E ESTADO

Amigo Doroteu, se acaso vires


Na Corte algum Fidalgo pobre, e roto,
Dize-lhe, que procure este governo;
Que a não se acreditar, que há outra vida,
Com fazer quatro mimos aos rendeiros,
Há de à Pátria voltar, casquilho, e gordo.1

, Critilo, ressentido com Luís da Cunha Menezes e ainda marcado


pelos graves desentendimentos que entre eles houvera, aproveitava
para deixar expresso o conceito que fazia da administração portu-
guesa nas Minas, e que é, para certos autores, extensivo à adminis-
tração colonial como um todo.
Em The Portuguese Seaborne Empire, Boxer aponta a participa-
ção ativa que, apesar das proibições metropolitanas, os administra-

1 , Cartas chilenas, ob.cit., carta 8ª, versos 360-5, p. 177.


DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dores coloniais tinham no comércio, e que tornava mais toleráveis


os baixos salários pagos a esses funcionários, fechando por isso
os olhos da Coroa ante as irregularidades. Como, de outra forma,
compensar as rudezas e os perigos da vida nas colônias distantes?2
As fraudes atingiam grandes proporções, e, comentando-as, dizia
Afonso de Albuquerque a D. Manuel: “As pessoas na Índia têm a
consciência bastante elástica, e quando roubam pensam estar fa-
zendo uma peregrinação a Jerusalém”.3 A maior parte das fortunas
construídas no comércio colonial eram empregadas por seus pro-
prietários na compra de casas, terras e na formação de morgados em
Portugal, para onde retornavam “casquilhos” e “gordos”.
Assim, o spoils system tolerado por Portugal seria uma compo-
nente necessária à manutenção do Império, que para Boxer teria
como pontes básicos de apoio as Câmaras Municipais e as Santas
Casas de Misericórdia.
114 Já Raymundo Faoro transcende a explicação assentada apenas
no nível institucional, e atribui papel de destaque à centralização
precoce e à formação de um corpo de leis que, desde o século XIV,
caracterizaram o pequeno Estado europeu. Pioneiro na iniciativa
colonizadora, Portugal soube transpor com sucesso o sistema ad-
ministrativo metropolitano para as colônias. Através do estamen-
to burocrático, criatura e instrumento do estado patrimonialista
português, a metrópole iniciou a obra centralizadora a partir do
Governo-Geral, acirrando pouco a pouco os mecanismos de poder

2 , Apesar da nomeação para os cargos de governadores e capitães-mores não ul-


trapassar o período de 6 anos (século XVIII), um grande número de administrado-
res passou de 20 a 30 anos no Brasil, ocupando diversos postos. Essa longa perma-
nência se dava frequentemente a contragosto, obedecendo apenas ao interesse que
tinham pela carreira administrativa. Suas cartas são ladainhas de queixas contra o
clima, os alojamentos, os subalternos, a comida. A volta era ansiosamente esperada.
Cf. Dauril Alden, Royal Government in Colonial Brazil – with special reference to
the Adminstration of the Marquis of Lavradio, Viceroy – 1769 - 1779, Berkeley, 1968,
c.II , item The Delimitation of the Autority of the Governors-General .
3 , Segundo Boxer, ob.cit., p. 336
e repressão, valendo-se de caudilhos e bandeirantes, fazendo deles
prepostos seus e espichando, assim, os braços até o sertão longín-
quo.
Sistema coeso e racional em que o rei – “senhor de tudo, das atri-
buições e das incumbências”4 – a tudo provia, a administração por-
tuguesa reduzia o funcionário colonial à dimensão de mera sombra.
Por detrás das câmaras, das nomeações locais, do comércio, divi-
sava-se a presença do Estado, o grande empreendedor da aventura
ultramarina. Como consequência mais profunda, a Lei subordinava
a Realidade, descolando-se dela com frequência e com frequência
não a conseguindo exprimir:

A ordem pública portuguesa, imobilizada nos alvarás, regimentos e


ordenações, prestigiada pelos batalhões, atravessa o oceano, incorrupta,
carapaça imposta ao corpo sem que as medidas deste a reclamasse. O Es-
tado sobrepôs-se, estranho, alheio, distante à sociedade, amputando todos 115
os membros que resistissem ao domínio (…) Nenhuma comunicação, ne-
nhum contrato, nenhuma onda vitalizadora flui entre o governo e as popu-
lações: a ordem se traduz na obediência passiva ou no silêncio. (..) O Estado
não é sentido como o protetor dos interesses da população, o defensor das
atividades dos particulares. Ele será, unicamente, monstro sem alma, o
titular da violência, o impiedoso cobrador de impostos, o recrutador de
homens para empresas com as quais ninguém se sentirá solidário. (…) Ao
sul e ao norte, os centros de autoridades são sucursais de Lisboa: o Estado,
imposto à colônia antes que ela tivesse povo, permanece integro, reforça-
do pela espada ultramarina, quando a sociedade americana ousa romper a
casca do ovo que a aprisiona.5

Valorizando de forma extrema a racionalidade da ação estatal,


Faoro deixa entretanto uma fresta à contestação: é quando se refere
ao funcionário colonial como mera sombra. Citando Vieira, lembra

4 , Raymundo Faoro, ob.cit., 2ª edição, p. 171.


5 , Ibid, p. 164-5.
6 , Ibid, p. 172.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

logo em seguida que a sombra é pequena sob o sol a pino, e longa


quando este se acha no ocaso, o mesmo sucedendo com os gover-
nantes ultra-marinos.6 Ora, se estes fogem ao controle, o mesmo
pode acontecer com as leis e determinações que o Estado os incum-
be de cumprir.
Quem leva esta linha de raciocínio às últimas consequências e
envereda, portanto, em argumentação oposta é Caio Prado Jr, cuja
Formação do Brasil Contemporâneo precedeu de mais de quinze
anos a publicação da primeira edição de Os donos do poder. Em
poucas páginas surge a imagem de um sistema administrativo as-
sentado na confusão, na irracionalidade e transposto para o Brasil
devido à falta de imaginação que, nos administradores portugueses,
aliou-se à incapacidade de criar algo novo para a colônia americana.
Aqui, este aparato arcaico, inadequado e frequentemente emperra-
do não pode fazer face à realidade do dia a dia: como consequência,
116 a realidade que a lei não cobria passou a agir sobre a própria lei, de-
terminando pequenas modificações que acabaram por se constituir
em diferenças ante o modelo transplantado.
Para a confusão do sistema administrativo, continua Caio Prado
Jr., muito contribuía o fato de não existir então a ideia de divisão
dos poderes, a monarquia portuguesa aparecendo como um todo
uno e indivisível e a legislação refletindo esse estado de coisas: após
as Ordenações Filipinas (1603), não teria havido senão uma enorme
quantidade de cartas de lei, alvarás, provisões régias, ordens para
reger a vida da colônia, nunca se cogitando o entrosamento entre
as partes, as leis sendo muitas vezes – como no caso das medidas
fiscais – criadas ao sabor das circunstancias. Daí haver frequente
contradição entre elas, o que dava vez à desobediência:

A complexidade dos órgãos, a confusão de funções e competência; a au-


sência de método e clareza na confecção das leis, a regulamentação espar-
sa, desencontrada e contraditória que a caracteriza, acrescida e complicada
por uma verborragia abundante em que não falta às vezes até dissertações
literárias; o excesso de burocracia dos órgãos centrais em que se acumula
um funcionalismo inútil e numeroso, de caráter mais deliberativo, enquan-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

to os agentes efeitos, os executores, rareiam, a centralização administrativa


que faz de Lisboa a cabeça pensante única em negócios passados a centenas
de léguas que se percorrem em lentos barracos a vela; tudo isto, que vimos
acima, não poderia resultar noutra coisa senão naquela monstruosa, em-
perrada e ineficiente máquina burocrática que é a administração colonial.
E com toda aquela complexidade e variedade de órgãos e funções, não há,
pode-se dizer, nenhuma especialização. Todos eles abrangem sempre o
conjunto dos negócios relativos a determinado setor, confundindo assun-
tos os mais variados e que as mesmas pessoas não podiam por natureza
exercer com eficiência.7

Essencialmente divergentes, as interpretações de Faoro e Caio


Prado Jr., acerca da administração colonial apresentam grande
utilidade quando confrontadas. Para o primeiro, a colonização se
realiza sob a égide do Estado, que com suas leis consegue envolver
a colônia enorme e dar conta do duro recado que era a adminis- 117
tração colonial; aliás, foi a presença marcante do Estado e do seu
corpo legislativo que tornaram possível preservar a colônia por tan-
tos séculos, moldando a realidade a seu gosto, e a ela sobrepondo a
lei. Assim, apesar de monstruoso, o Estado português empreendeu
com sucesso a tarefa colonizadora. Já para o segundo, o Estado tei-
mosamente centralista gera uma máquina burocrática ineficiente,
introduzindo a irracionalidade e a desordem no funcionamento do
sistema administrativo como um todo. Não se trata, para ele, de
analisar o Estado – que conta muito pouco no seu esquema analíti-
co, voltado basicamente para o sentido da colonização portuguesa
no Brasil e para a formação de uma nacionalidade –, mas de ressal-
tar as sequelas advindas de um sistema de colonização inadequado.8
A realidade é a mais viva e mais rica do que a Lei, a quem acaba
muitas vezes por modificar e até mesmo por criar, como no caso da

7 , Caio Prado Jr., ob.cit, p. 333.


8 , A preocupação nacionalista de Caio Prado Jr. Me foi sugerida por Silvia Lara,
que a esse respeito elaborou um artigo, ainda inédito. Em Formação do Brasil con-
temporâneo, ela aparece de modo implícito, mas não deixa de estar presente.
9 , Os portugueses retiraram ouro da África, onde as minas – subterrâneas na
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

legislação fiscalista característica das minas de ouro e diamantes.


Analisando-se o caso específico da administração mineira à luz
de uma e outra interpretação, desvelam-se alguns aspectos interes-
santes de sua estrutura mais profunda. Tomando-se premissa de
Faoro como verdadeira, pode-se notar que, de fato, ela se adapta
admiravelmente ao caso mineiro: talvez nunca as leis tenham, na
colônia, precedido a fixação das populações com tanta intensidade
quanto nas Minas. Mal se tinha certeza da existência de ouro, e já
surgia o Regimento de Datas (1702); as esmeraldas eram apenas um
boato, e o rei investia Agostinho Barbalho e Fernão Dias em seus
prepostos; os arraiais auríferos não contavam ainda com meia dúzia
de anos, e a urbanização levada a cabo pelo Estado tomava conta da
zona mineradora.
Por outro lado, a presença do ouro e das pedras preciosas eram
uma realidade impar para a metrópole, que nunca se vira às voltas
118 com sua exploração sistemática.9 As Minas criaram, assim, a neces-
sidade de um sistema fiscal adequado, como diz Caio Prado Jr.
Um outro exemplo interessante na oposição entre o critério nor-
teado pela realidade e o critério norteado pela lei aparece no con-
fronto entre Gonzaga e Cunha Menezes, que as Cartas Chilenas re-
fletem. Refiro-me ao episódio das tropas: escorado na lei, o Ouvidor
contesta violentamente a validade dos atos do governante, que, mais
permeável à realidade da terra, compõe os corpos militares com os
elementos de que dispõe, ou seja, os mestiços e forros pobres.10

Tu sabes, Doroteu, que as nossas Tropas


De Infantaria são; porém montadas:
Que as leis do nosso Reino não consentem,
Que estas montadas Tropas se componham

sua maioria – eram trabalhadas por nativos. Cf. Vitorino Magalhães Godinho,
L'Économie de l'Empire Portugais aux XV et XVI Siécles, Paris, 1969, c. IV, p. 248 e
segs. Ver também c.III , p. 173-217.
10 ,Cartas chilenas, ob.cit., 9ª, versos 223-34, p. 217-8.
11 , Entre outros, Assumar – que depois fez carreira brilhantíssima nas Índias,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

De membros, que não tenham certas rendas,


Com que possam manter os seus cavalos.
Hora houve, Doroteu, quais são as posses
Dos míseros paisanos, que se alistam
Nos fortes Regimentos. Quase todos
Um sendeiro não têm, e muitos deles
Gemeram nas prisões, por não poderem
Ajeitar uma grossa, e curta farda.

A importância da exploração aurífera no contexto mercantilista


da época fazia de Minas o centro das atenções metropolitanas, que
durante um século não se desviaram daquela região centra, perdida
no coração da América e atravessada pela Serra do Espinhaço. Mais
do que em qualquer ponto de seus domínios, o Estado – sol no seu
zênite – esteve presente nas Minas, como acusa a correspondência
meticulosa estabelecida entre os ministros portugueses, o próprio 119
rei e os administradores locais. Estes foram, ao que tudo indica, es-
colhidos a dedo, tendo sido sempre homens da maior confiança do
rei.11
Mas se a exploração aurífera despertava a cobiça do Estado, por
que não provocaria sentimentos semelhantes nos homens? Longe
da Metrópole, longe até mesmo do litoral e das frotas, as Minas ex-
citavam os ânimos e propiciavam toda a sorte de infrações. Não fo-

tornando-se Marquês de Alorna –, Galvêas – que D. João V escolhera dez anos antes
para representar o seu governo no Vaticano e que, logo após entregar o governo das
Minas, tornou-se vice-rei do Brasil – Bobadela, o administrador colonial que maio-
res poderes reuniu durante todo o século XVIII; Valadares, a respeito de quem Dio-
go de Vasconcellos faz o seguinte comentário: “Deve ter sido muita a consideração
de que D. José (José Luis de Menezes Abranches Castelo Branco e Noronha) gozava
na corte para se lhe confiar o governo mais importante da Monarquia, sem ter feito
ainda aos seus 24 anos de idade. D. João III , a quem lhe estranhava ter confiado o go-
verno de Ceuta a um Menezes de 20 anos, respondeu: “Estes meus parentes de Vila
Real já nascem emplumados”. – Diogo de Vasconcellos, História média...., p. 195.
12 , O governante alegava ser a única autoridade secular a merecer incenso. En-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

ram poucos – como sugere Maxwell e como já se disse no capítulo


1 – os administradores que se envolveram com contrabandistas e
negócios ilegais, os funcionários da Intendência que se entregaram
à fraude, os governantes que se desmandaram em arbitrariedades
inconcebíveis – sobretudo no tocante ao milionário Distrito Dia-
mantino, conforme se verá adiante. Antonio Carlos Furtado de
Mendonça ficou na História como administrador desvairado, que
criou em Vila Rica um clima de hostilidade devido ao fato de o bis-
po ter incensado na missa, além de sua pessoa, outro magistrado.12
Se, como disse Vieira, a sombra dos funcionários se alongava quan-
do longe do sol metropolitano, as Minas foram um dos pontos do
Império onde ela amis se encompridou, os funcionários coloniais
procurando e muitas vezes conseguindo distender as redes do po-
der em proveito próprio.
Assim, engolfada em contradições, a administração mineira
120 apresentou um movimento pendular entre a sujeição extrema ao

tre muitas outras loucuras, quando ia montado “de jornada ou passeio, obrigava a
todos, que se apeiem e algumas vezes com pancadas, que dão os da sua comitiva”.
– em: Violências de um governador (1774), RAPM , VI , 1901, p. 187-8.
13 , Na Instrução dirigida a seu irmão, dizia Bobadela: “e assim se faz preciso
misturar o agro com o doce, em tal forma que se conheça, incontestável, que o vosso
ânimo só respira a defensa da razão, e da justiça, enquanto for pelo seu caminho”.
– Instrução e Norma que deu o Ilmo. E Exmo. sr. Conde de Bobadela a seu
irmão o preclaríssimo sr. José Antonio Freire de Andrada para o gover-
no de Minas, a quem veio suceder pela ausência de seu irmão, quando
passou ao sul , em: RAPM , IV, 1899, p. 729. A formulação do “bater-e-soprar” é de
Sylvio de Vasconcellos: “O soberano vê-se coagido a negociar sua autoridade com os
súditos, com muito tato e habilidade, cedendo quando necessário. Autoridade con-
sentida, frágil, muito diferente do absolutismo implantado em todo o resto do reino.
Fere, suplicia quando pode. Perdoa a seguir. Bate e sopra, como diz a gíria popular”,
em: Mineiridade, p. 68. O autor anula a autoridade metropolitana em nome de um
autonomismo mineiro, no que não tem razão.
14 , Motins no sertão..., em: RAPM , I , 1896, p. 670-1.
15 , Regimento ou instrução que trouxe o governador Martinho de
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Estado e a autonomia. Por esse motivo, entre outros, o governo das


Minas foi sempre uma empresa difícil e delicada, exigindo a mis-
tura do agro com o doce e a adoção da prática do bater-e-soprar.13
Não era portanto, serviço que qualquer um pudesse desempenhar
a contento, como dizia Martinho de Mendonça em sua correspon-
dência com a metrópole: “Repetidas vezes tenho dito a V. Exa. Que
as Minas não é governo em que se possa ocupar um escudeiro de
aldeia, sem esplendor, ainda que com sangue ilustre, talento e fide-
lidade. As aparências exteriores da autoridade são o primeiro pre-
dicado que se deve buscar para o governo das Minas, para que os
povos lhe tenham grande respeito, os poderosos lhe obedeçam com
menos repugnância, e os ministros se persuadam que S. Majesta-
de faz dele justa confiança...” Martinho de Mendonça, ilustrado da
primeira geração, não era qualquer um, mas, “escudeiro de aldeia”,
sentia-se incapaz para o duro exercício do mando no sertão hostil
das Minas. É certo que estava desejoso de voltar a Portugal, como 121
é certo também que tinha razão ao apontar Gomes Freire – a quem
substituía interinamente – como a pessoa ideal para a administra-
ção da tumultuada capitania: “tudo concorre na pessoa do General
estando a memória fresca de que foi General Seu Pai, e mais ascen-
dentes próximos.”14
A ideia de que cumpria misturar o agro com o doce também se
acha expressa na instrução que a Coroa dirigiu ao próprio Marti-
nho de Mendonça: “Confio de vós que usareis sempre daquela mo-
deração, e suavidade que é conveniente, e que nos casos em que for
necessário, mostreis todo o vigor e resolução”.15 Havia, pois, que fa-
zer sentir a presença do Estado e, ao mesmo tempo, evitar que ela se
tornasse importuna e odiosa, pois as distâncias e a morosidade do
aparelho administrativo colocavam a Metrópole em situação deli-
cada. Tudo devia ser feito de modo a que o mando se revestisse de
brandura, passando quase despercebido e, se possível, introjetando-

Mendonça de Pina e de Proença , em: RAPM , III , 1898, p. 88.


16 , Cartas do governador da capitania de Minas Gerais D. Rodrigo
José de Menezes acerca da administração da justiça na mesma capitania ,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

-se nas consciências a ponto de se tornar uma necessidade profun-


da. “Sempre me persuadi”, dizia o ponderado Conde de Cavaleiros
já na década de 80, “de que uma bem calculada e dirigida prudência
seria suficiente em quem governa, para ganhar os corações dos ho-
mens e obrigá-los com uma força voluntária a cumprirem as suas
obrigações, sem que aparecessem conduzidos mais que pela própria
vontade, e sem que percebessem mão Superior e estranha que des-
se os movimentos às suas ações”.16 O que esse governante pregava
não era sertão a transformação das necessidades do Estado em se-
gunda natureza, poder pulverizado que, dentro de cada indivíduo,
o compelisse a agir conforme as disposições da Metrópole.17 Seria
este o coroamento do exercício do mando, o momento supremo de
perfeição atingido pelas redes do poder. Mas as forças contrárias
agiam no sentido de dissolver essas malhas, de atenuar a força do
Estado, de privilegiar localismos. Uma delas é apontada pelo pró-
122 prio D. Rodrigo, e coincide com a análise de Caio Prado Jr.: é o
funcionamento moroso da “monstruosa, emperrada e ineficiente
máquina burocrática que é a administração colonial”, é “a ausência
de método e clareza na confecção das leis”. No pequeno prazo de
três anos, o governante se via compelido a resolver os mais diversos
problemas, na sua maioria subordinados ao parecer das Secretarias
de Estado que, por sua vez, sucumbiam sob o peso da quantidade
de negócios que por elas passava. O Conselho Ultramarino não ti-
nha condições de funcionar adequadamente: “A multidão de ordens

em: RAPM , IV, p. 5.


17 , A respeito das “microestruturas de poder”, ver os trabalhos de Michel Fou-
cault, principalmente as conferências realizadas na PUC/RJ e publicadas sob o título
de A verdade e as formas jurídicas, Cadernos da PUC/RJ: Rio de Janeiro, 1974; Sur-
veiller et Punir – Naissance de la prison, Paris, 1975; História da sexualidade – v.1 – A
vontade de saber, Paz e Terra: São Paulo, 1977.
18 , Cartas do governador da Capitania de Minas Gerais ..., em: RAPM,
IV, p. 7.
19 , Foram numerosos os levantes havidos nas Minas contra a tributação: os de
Pitangui, o de Vila Rica, os do sertão do rio São Francisco, para citar apenas alguns.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

depois expedidas pelo mesmo Conselho a esta Capitania fazem um


corpo informe e contraditório, sendo cada uma delas ditada pelas
inclinações da ocnjuntura”.18 Por outro lado, há que considerar a
natural inclinação de um povo que, tendo sob seus olhos a riqueza
que ali se gerava, ansiava por maior liberdade.
Em outros pontos da colônia, autonomismo e extrema dependên-
cia apareciam separados: no Nordeste, esta faceta se fazia sentir, en-
quanto no Sul manifestava-se aquela de modo predominante. Nas
Minas, os dois aspectos aparecem juntos, fazendo desta região, ain-
da uma vez, a amostragem privilegiada da colônia.
Feitas essas considerações, creio não ser arriscado dizer que a
administração nas Minas funcionava de modo contraditório: para
cobrar o imposto, o Estado deveria ser firme e incisivo; mostrando-
-se presente demais, provocava descontentamentos, e consequente-
mente atrapalhava as cobranças.19 Para ser governador das Minas,
era preciso ser zeloso dos interesses reais; uma vez na colônia, a 123

É necessário lembrar também os cuidados que envolveram o estabelecimento da


Casa de Fundição e, posteriormente, o do imposto da capitação.
Quando pacificava os ânimos ainda exaltados pelo conflito emboaba, dizia Anto-
nio de Albuquerque ao rei: “... tendo entendido que seria melhor e mais seguro o
recorrer aos meios brandos e suaves para se mudarem estes movimentos entre uns
e outros vassalos, do que aos meios rigorosos, de que poderiam nascer algumas
perturbações que não teriam à depois fácil composição”. Segundo Diogo de Vascon-
cellos, em: História antiga..., p. 262.
Assumar também se exprimiu admiravelmente sobre as contradições do mando:
“Vejo que nada se logra com o meu gênio, que é muito diferente do destas gentes,
que por caminho nenhum se pode governar; só deixando-os à lei da Natureza, que
é o que até agora não lhes tenho consentido, e nem enquanto eu puder lhe o hei de
permitir; mas, a experiência me vai mostrando, que cada dia posso menos; porque
como nas matérias, em que devo usar de força, me descobrem a fraqueza, e impos-
sibilidade, ficam por este modo inúteis as minhas diligências”. – Segundo Faoro,
ob.cit., 1ª ed., p. 89.
20 , Faoro, opbcit., 1ª ed., p. 58.
21 , Ibid., p. 77.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

pressão dos spoils system agia em sentido contrário, muitas vezes


levando a melhor. Para que tudo funcionasse adequadamente, era
essencial que se mantivesse estreita a subordinação a Lisboa, mas a
distância e a complexidade da máquina burocrática iam, aos pou-
cos, dissolvendo os laços entre Metrópole e Colônia. Não é pois de
admirar que, ante as contradições do aparelho administrativo das
Minas, as explicações de Faoro e Prado Jr. Possam caber com igual
justeza.
O Estado foi um dos sustentáculos da política econômica do siste-
ma colonial – Estado absolutista que, como tal, não podia prescin-
dir do poder e da violência nas suas múltiplas facetas: centralismo
administrativo, fisco, arbitrariedades de governantes e de potenta-
dos. Mas, sem nunca esquecer a sua presença, é preciso não deixar
de lado o contexto específico das Minas, que acabou por gerar situa-
ções diversas no tempo e no espaço. Assim, os diferentes momentos
124 da repressão. Assim também o balancez que se delineou entre uma
política que utilizava os desclassificados e uma política que se recu-
sava a arcar com o seu ônus. Como já sugeri, utilidade e ônus são
duas faces de uma mesma moeda, como a sombra curta e a sombra
espraiada são duas realidades concomitantes da administração nas
Minas.

2. AS DIFERENTES FORMAS DO EXERCÍCIO DO PODER NAS MINAS


A , A preocupação normalizadora

Tamanho era o empenho de obedecer às ordens metropolitanas que as


vilas se criavam antes dos povoados, a organização administrativa prece-
dia à fixação das populações. Começava-se, com isso, uma prática que iria
marcar a história da colônia: a criação da realidade pelas leis e ordens ré-
gias,

diz Raymundo Faoro.20 De fato, foi sôfrega a investida da iniciativa


urbanizatória sobre as terras minerais, o que se explica pela neces-

22 , Esses elementos seriam, para Faoro, “um ramo do estamento burocrático, o


PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

sidade premente de normalizar a população heterogênea e inquieta


das Minas e enquadrá-la dentro das normas administrativas da Me-
trópole. Essas medidas constituíam a condução necessária para a
implantação do sistema fiscal, que drenaria as riquezas para a Corte
de D. João V.
Antes de se proceder à urbanização e à montagem do aparelho
administrativo, os indivíduos turbulentos e facinorosos foram fre-
quentemente utilizados pelo Estado. Isso não quer dizer que, a par-
tir de então, não se utilizassem marginais, e este ponto foi bastante
discutido no capítulo anterior. O que fica claro é que, como atitude
deliberada, a utilização desses desclassificados em funções direta-
mente ligadas ao Estado foi mais rara após os primeiros tempos.
Nessa época, eram mais fluidas as fronteiras entre o potentado e
o infrator, o que torna às vezes difícil distinguir esta categoria es-
pecial de criminoso da dos desclassificados propriamente ditos.
Durante todo o século XVII , o sertão foi convulsionado pela ação 125
dos caudilhos, para cujos desmandos e tropelias a Coroa fazia vistas
grossas. Na política oficial ante esses indivíduos, Faoro detecta três
momentos: inicialmente, o que se caracteriza pelo estímulo franco
da Coroa; a seguir, o momento de simples transigência, “suportan-
do os arranhões da autoridade”; por fim, já no final do século, o
aberto desentendimento, fruto do choque entre a “voracidade fiscal
da Coroa e a privatização do poder dos potentados”.21
Na aventura aurífera, detecta-se assim, um movimento contra-
ditório: investidos de poder, os caudilhos – paulistas na sua maior
parte – se lançaram à procura das riquezas minerais almejando a
premiação com que lhes acenava a Coroa; uma vez encontrado o

qual, com a propriedade territorial, tenderia a privatizar-se”. – ob.cit., 1ª ed., p. 84.


A empresa, mesmo quando encetada por particulares, deveria tomar o caráter de
trabalho público, a soberania real delegando poderes aos bandeirantes: “Seus atos
eram sacramentados e formalizados com rígido aparato burocrático, acompanhado
de escrivães e meirinhos”. – ibid. p.83.
23 , Registro de um bando que se lançou na vila de Itu e de Sorocaba,
para acudirem todos para prenderem ou matarem Lourenço Leme da Sil-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

minério, a recompensa vinha mas logo se desencadeava a ruptura


entre as duas partes, fruto da necessidade de consolidação do Esta-
do fiscalista.22
Na fase de conformação do território das Minas, aventureiros, as-
sassinos e bandidos conviveram com “homens bons”, muitas vezes
tornando-se um deles enquanto estes, por sua vez, se perdiam em
desmandos e acabavam perseguidos pela justiça. Não foi outro o
caso de Borba Gato, a que a Coroa fechou os olhos. Entretanto, o
mais típico dos episódios que ilustram a indefinição entre os cri-
minosos e os “homens bons” é o caso dos irmãos Leme. Membros
da camada dominante paulista, eram conhecidos na sua vila natal
pelos desmandos a que se entregavam; apesar disso, quando resol-
veram se lançar na conquista das minas do Cuiabá, contaram com
as graças da Coroa. Em janeiro de 1723, ao saber da sua chegada a
São Paulo, o então governador Rodrigo Cesar de Menezes chama-
126 va-os à sua presença para deles – que reputava “pessoas principais
desta capitania” – obter certas informações. Alguns meses depois,
Lourenço Leme voltava a Cuiabá com um regimento que estabelecia
a cobrança dos quintos por bateia; entre os potentados e o governo,
o fiscalismo se insinuava para lançar a discórdia. Em setembro, o

va e João Leme da Silva – 15-IX-1723, em: DI , XIII , 1901, p. 118. Ver também: Regi-
mento de um seguro, que se mandou a Lourenço Leme da Silva e João Leme
da Silva para virem a esta cidade – 27-I-1723; Registro do regimento que
levou Lourenço Leme para se estabelecer a cobrança dos quintos por
bateia nas minas de Cuiabá – 10-VI-1723; Registro do regimento que levou
para as novas minas do Cuiabá, o Mestre de Campo Regente João Leme
da Silva – 30-VII-1723, em: DI , XII , 1901, respectivamente p. 78-9; 87-98; 98-110.
Ainda sobre este assunto, Pedro Taques de Almeida Paes Leme, Nobiliarchia paulis-
tana histórica e genealógica, tomo III , São Paulo, 1954, p. 30-5; Manuel Eufrásio de
Azevedo Marques, Apontamentos Históricos Geográficos, Biográficos, Estatísticos e
Noticiosos da Província de São Paulo, tomo II , São Paulo, 1954, p. 70-83. Estes dois
autores, concordando acerca dos crimes de que os irmãos eram evidentemente cul-
pados, dizem que a causa de sua morte foi uma intriga urdida por um familiar do
governador, Sebastião Fernandes do Rego.
24 , “Em o novo descobrimento das minas de Cuiabá assistiam dois homens, ir-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

governante convocava gente para prender ou matar os irmãos Leme,


que passam a ser designados como autores de “mortes, roubos e in-
solências”.23 Em outubro de 1723, o Capitão-General comunicava à
Coroa os crimes dos dois irmãos.24 Lourenço Leme foi morto no
Cuiabá, e João Leme foi remetido à Relação da Bahia, onde pereceu
degolado.
Nesse episódio fica clara a utilização deliberada dos bandidos por
parte da Coroa, que ignorou seus desmandos enquanto foi interes-
sante mantê-los na cabeça da região, liquidando-os quando, uma
vez fixados o povoamento e a exploração aurífera, começaram a de-
safiar o poder central.25 A situação é peculiar por serem os irmãos
em questão indivíduos de destaque, a quem não se pode propria-
mente chamar desclassificados; ilustra porém o comportamento
ambíguo da Coroa em relação ao aproveitamento da violência e do
banditismo nos primeiros tempos da mineração.26
“Bem se pode considerar o estado em que se achavam as Minas 127
por todo este tempo, em que só o despotismo e a liberdade dos fa-
cinorosos punham e revogavam as leis a seu arbítrio”, comenta José

mãos ou para melhor dizer duas feras, que assim o merecem as tiranias de que usa-
ram...” – carta de 29-X-1723, segundo Azevedo Marques. p. 80.
25 , “... os crimes dos irmãos Leme foram esquecidos, impetrando para eles Ro-
drigo Cesar o perdão, a fim de que não fosse prejudicado o interesse que o Governo
esperava tirar das minas, sujeitando-se até à imposição dos Lemes”. – Azevedo Mar-
ques, op.cit., p. 76. Ver também Eschwege, Pluto Brasiliensis, v.I, p. 124.
26 , No descobrimento das minas de Caeté, verificado por volta de 1701, teve papel
de destaque o emboaba Bento do Amaral da Silva, que cometera vários crimes no
Rio e em São Paulo. Apoiara-se no prestígio do sogro, Antonio de Godói Moreira,
amigo do governador Artur de Sá e Menezes, e fora para Caeté, onde se estabeleceu
e “se tornou homem abastado e opulento”. Waldemar de Almeida Barbosa, op.cit.,
I, p. 123.
27 , José Joaquim da Rocha, op. cit., p. 431.
28 , Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, p. 17 e sgs. Os fundadores destes arraiais
foram quase todos mineiros que fugiam da grande fome que então se alastrou pelas
minas, conforme foi mencionado no capítulo 1 deste trabalho.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Joaquim da Rocha, que dá especial destaque ao movimento urba-


nizatório das Minas.27 Urgia, pois, encetar a urbanização e a nor-
malização das populações. Nos últimos anos do século XVII , Artur
de Sá e Menezes começou o policiamento das Minas; sua iniciativa
não teve continuidade. Um surto urbanizatório incipiente foi esbo-
çado ainda por essa época, quando se fundaram alguns arraiais,
entre eles os de Camargo, Cachoeira, São Bartolomeu, Casa Branca,
Rio das Pedras.28 A eclosão do conflito entre paulistas e emboabas
tornou ainda mais complexa a situação das Minas, e para procurar
solucioná-la a Coroa nomeou aquele que, para Dauril Alden, foi um
dos maiores administradores coloniais de todos os tempos: Antonio
de Albuquerque Coelho de Carvalho. A carta em que era designado
vinha datada de Lisboa, 9 de novembro de 1709, e o cerne das preo-
cupações reais era, com toda a clareza, a questão relativa a paulistas
e emboabas. O documento apresenta grande interesse por refletir a
128 estreita relação entre o estabelecimento da justiça, da administração

29 , São particularmente significativas as seguintes passagens: 1) a que alude à


normalização e à necessidade de fundar cidades: “... pondo em execução que se fun-
dem algumas povoações para que as pessoas que assistem nas Minas viviam regu-
ladas, e na subordinação da Justiça... 2) a que fala da premiação: “... e vos encarrego
muito façais entender aqueles vassalos que este Regimento não é para os conquistar,
porque estou certo na obediência, que têm, a fidelidade que devem Guardar ao seu
Príncipe, mas que é para os defender de violências, e conservar em paz, e justiça,
que é a primeira obrigação do Rei, e os persuadireis a se abstraírem dos delitos, que
cometem, e viverem como católicos, obedecendo as minhas ordens, e aos Meus Mi-
nistros, por quem lhes mando administrar justiça, que os hei de premiar, e honrar
muito conforme o seu merecimento, e aos que obrarem em o Meu Serviço, e os que
mais se sinalaram nele ficarão na Minha Real Lembrança de que sereis obrigado
informar ele muito particularmente”. “Nomeação de Antonio de Albuquerque”, in:
RAPM , XI , 1906, p. 684 e 686.
30 , Para esses episódios, ver a síntese de Charles R. Boxer em A idade de ouro do
Brasil, c.3, p. 83-105.
31 , José Joaquim da Rocha, ob. Cit., p. 435.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

e das primeiras cidades, retratando também o sistema de prêmio e


recompensa com que o Estado recrutava os seus auxiliares no tra-
balho de consolidação do poder.29
Empreendendo uma peregrinação pelas zonas conturbadas, Al-
buquerque conseguiu impor a autoridade real, cedendo e contem-
porizando com os revoltosos na medida do possível. Por fim, para
colocar um termo às insatisfações que ainda persistiam, São Paulo
foi elevada à categoria de cidade e a capitania do Rio de Janeiro foi
desmembrada, criando-se em 1710 a capitania de São Paulo e Mi-
nas do Ouro.30 Naqueles tempos difíceis, Albuquerque teria sido “o
primeiro que susteve com desembaraço as rédeas do governo; que
pisou em Minas com luzimento, e firmeza do caráter que em El-Rei
pusera, que promulgou as leis do soberano e fez respeitar neste con-
tinente o Seu Nome”.31
Abria-se um novo período, norteado pela ação mais racional do
Estado, empreiteiro, a partir de então, do movimento urbanizatório 129
e do estabelecimento do aparelho administrativo. A construção de
cidades sempre foi um instrumento importantíssimo da domina-
ção, como viu muito bem Max Weber;32 se não teve para nós a pro-
jeção e o alcance que a caracterizou entre os hispano-americanos
– ladrilhadores meticulosos –, é incontestável que, no caso mineiro,
correspondeu a uma política deliberada e sistemática. Mesmo que,
nos primeiros tempos, os arraiais tenham sido semeados ao léu,
acompanhando os trabalhos da mineração, é importante ressaltar
que, a partir do governo de Albuquerque, o Estado tomou as rédeas
do processo. Isto não fez com que as cidades mineiras fossem me-
lhor ordenadas – nem de longe lembrariam os quadriláteros carac-

32 , Max Weber, Economia y Sociedad, trad. Esp., México, 1944, tomo III , p. 217-38.
33 , A respeito da oposição entre a atividade urbanizadora de portugueses e espa-
nhóis na América, ver Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, cap. O semea-
dor e o ladrilhador , p. 61-85.
34 , Gilberto Freyre chega mesmo a sugerir que as Minas, fator de renovação na
colônia, teriam contribuído para a derrocada do patriarcalismo. “Minas Gerais”,
diz este autor, “foi outra área colonial onde cedo se processou a diferenciação no
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

terísticos dos planos urbanos da América Espanhola –, e no entanto


serviram muito bem ao propósito que as criara: a consolidação do
poder metropolitano no seio do sertão das Minas.33
A intensa vida urbana das Minas constituiu uma experiência ím-
par na colônia predominantemente agrícola e rural que ainda era
o Brasil no século XVIII . Assim sendo, os resquícios patriarcalistas
de nossa formação – tão acentuados em outros pontos – nunca tive-
ram, ali, maior significado.34
O período mais intenso deste processo urbanizatório foi o com-
preendido entre 1711 e 1715, e que Albuquerque inaugurou com a
fundação de Mariana, Vila Rica e Sabará. D. Brás Baltazar da Sil-
veira continuou a obra: em 1713, São José del Rei; em 1714, Caeté e
Serro; em 1715, Pitangui. 1714 foi também o ano da criação das três
primeiras comarcas da capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e Rio
das Mortes. Este primeiro período foi encerrado por Assumar em
130
sentido urbano. Em Minas, o século XVIII é de diferenciação intensa, às vezes em
franco conflito com as tendências para a integração no sentido rural, católico, por-
tuguês”. Sobrados e Mucambos, São Paulo, 1936, p. 35.
35 , As datas precisas destas fundações, e os nomes que então tiveram as vilas são
os seguintes: 8-IV-1711: Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo (Mariana);
8-VII-1711: Vila Rica de Albuquerque, logo mudada para Vila Rica de Nossa Senhora
do Pilar; 17-VII-1711: Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará; 8-XII-1713:
São João del Rei; 19-I-1714: Vila Nova da Rainha (Caeté) e Vila do Príncipe(Serro);
6-II-1715: Nossa Senhora da Piedade do Pitangui; 17-I-1718: São José del Rei (Tira-
dentes). Para uma síntese da fundação das primeiras vilas, ver Diogo de Vascon-
cellos, História antiga...; José Joaquim da Rocha, ob.cit.; Floriano Peixoto de Paula,
Vilas de Minas Gerais no período colonial , em: RBEP, XIX , junho de 1965,
p. 275-84; Waldemar de Almeida Barbosa, Dicionário histórico geográfico de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 1971; Sérgio Buarque de Holanda, Metais e Pedras Pre-
ciosas , em: HGCB , II .
36 , Cf. João Camilo de Oliveira Torres, ob.cit., p. 78.
37 , Cf. Flamínio Corso, Terra do Ouro, cap. O palácio dos governadores , p.
29.
38 , Cf. João Camilo de Oliveira Torres. O homem e a montanha, p. 46. Apesar da
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

1718, com a criação da vila de São José del Rei.35


As vilas mineiras foram, por muito tempo, reunião de pequenos
arraiais situados nos vales, onde se ajuntava o ouro de aluvião.36
Vila Rica formou-se a partir dos arraiais de Nossa Senhora do Pilar
de Ouro Preto, Padre Faria e Antonio Dias, situados em três vales
contíguos do fundo dos quais começaram a subir pelas encostas dos
morros.37 Pode-se imaginar como eram rústicas essas vilas, com o
aspecto alongado de caminhos que as casas de barro e de pau-a-
-pique costeavam.
O ímpeto urbanizador trouxe como uma de suas consequências
um convívio entre populações muito mais íntimo do que em qual-
quer outro ponto da colônia. Essa intimidade não só favoreceu a
emergência dos conflitos como propiciou a aplicação de medidas
punitivas. Normalizar a população e cobrar impostos tornaram-
-se necessidades prementes, e os acampamentos de faiscadores da
véspera foram subitamente assaltados por uma legião de burocratas 131
portugueses.38
Reduzir os moradores à obediência, ao sossego, à união era in-
dispensável para que os trabalhos auríferos se fizessem com suces-
so, possibilitando à Coroa a auriferação de lucros maiores. Não era
outro o tom da carta com que o rei louvava o trabalho pacificador
de Antonio de Albuquerque, e não foi outra, por todo o período, a
preocupação básica dos governantes das Minas, sempre alertas ao
perigo latente que a população de escravos, índios, forros e mes-
tiços representava para a Coroa39 – situação característica de um

urbanização ter correspondido, nas Minas, a uma política deliberada do Estado, é


preciso não esquecer que a atividade mineradora, pelo seu próprio caráter, propicia
a formação de núcleos urbanos.
39 , Carta ao rei de Antonio de Albuquerque – 25-II-1711, em: DI , XIV, 1895,
p. 267-8.
40 , Parece ter sido longa a tradição portuguesa no sentido de normalizar os po-
vos para deles tirar proveito: “O povoamento obedece à conveniência de congregar
populações dispersas e vagabundas, mamelucos, índios forros, que tumultuam, em
regiões sem lei, o sossego da agricultura e do pastorei. Fiéis à escola de D. Sancho I ,
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contexto absolutista em que o Estado nada tem de representativo,


descolando-se muitas vezes da maioria dos súditos para se investir
em defensor dos interesses de uma camada restrita.40
Assim, uma vez urbanizada a capitania e criadas as condições de
funcionamento do aparelho administrativo, os governantes passa-
ram a se preocupar com a gente que morava nas Minas. Assumar foi
o primeiro a quem essa questão inquietou com especial intensidade.
Mais do que em qualquer dos administradores que o antecederam
e até mesmo mais do que nos que vieram depois dele, nota-se no
conde uma grande animosidade em relação aos habitantes das Mi-
nas, assim como um pânico incontrolável de que ocorressem suble-
vações escravas. Para ele, o espírito de rebelião era quase que uma
segunda natureza da “gente das Minas”, e caro custava estirpa-lo.41
A própria paisagem parecia incitar ao motim aquela “gente intratá-
vel, sem domicilio”, que, apesar de estar em “contínuo movimento”,
132 era “menos inconstante que os seus costumes; os dias nunca ama-
nhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é frio naquele
país, menos o vício, que está ardendo sempre. (…) a terra parece
que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos;
desfilam liberdade os ares; vomitam insolências as nuvens; influem

o Povoador, os reis visavam vantagens fiscais, com a cobrança dos preciosos dízi-
mos, que se obteriam se a autoridade fosse organizada em núcleos, sedes de fiscais e
administradores”. Faoro, ob.cit., 1ª ed., p. 85.
41 , “... o estar tão radicado o amotinar-se a gente das Minas, que muitos tinham
por brio entrar voluntariamente nos motins”. – Segundo Sylvio de Vasconcellos,
Mineiridade, p. 24.
42 , Segundo Sylvio de Vasconcellos, ob. cit., p. 25. Quando da sua nomeação, ao
passar por São Paulo a caminho de Minas, Assumar se horrorizou com o aspecto
das tropas que o foram recepcionar: “... eles vinham tão ridículos cada um por seu
modo”, diz o escrivão da jornada, “que era gosto ver adversidade (sic) das modas,
e das cores tão esquisitas porque havia casacas verdes com botões encarnados, ou-
tras azuis agaloadas por uma forma nunca vista e finalmente todas extravagantes,
vinham alguns com as cabeleiras tão em cima dos olhos, que se podia duvidar se
tinham frente, traziam então o chapéu caído para trás, que faziam umas formosas
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a


natureza anda inquieta consigo e, amotinada lá por dentro, é como
no inferno”.42
A mestiçagem era tida como uma das principais responsáveis
pelos defeitos de uma população composta “de tão más gentes”.
Avessos ao sossego e à sujeição, dizia Lavradio que aqueles povos –
“gentes da pior educação, de um caráter o mais libertino, como são
negros, mulatos, cabras, mestiços, e outras gentes semelhantes” –
tornavam impossível o exercício do governo.43 Ao tratar da criação
de escolas, D. Lourenço de Almeida advertia o rei que os esforços
poderiam ser infrutíferos: “...recreio que estes (os rapazes da terra)
tomem pouca doutrina por serem filhos de negras que não é possível
que lhes aproveite as luzes, conforme a experiência, que é em todo
este Brasil...”.44 Por si só um mal considerável, a mestiçagem tinha a
agravante de contagiar os brancos com seus defeitos dissolvedores
do caráter e da vontade: “... os filhos de homens de bem” – dizia 133
um dos delatores da Inconfidência, que a ideologia dos governantes
parece ter aliciado com sucesso em todos os níveis – “que tiveram
a desgraça de nascerem e serem criados no Brasil, não herdam os
estímulos de honra, mas adotam de boa vontade os costumes dos
negros, mulatos, gentios e mais gente ridícula que há nesta terra”.45
No início dos anos 1730, estudando as possibilidades de se esta-
belecer nas Minas o imposto da capitação, a Coroa dirigiu ao go-
vernador Conde das Galvêas uma série de cartas ordenando que
se examinassem as vantagens e desvantagens da alforria. O Conde
respondeu que, apesar de serem ordinariamente atrevidos, os forros

figuras principalmente aqueles que abotoavam as casacas muito acima”. – Diário


da jornada que fez ..., RSPHAN , p. 302.
43 , Relatório do marquês do Lavradio, em: RIHGB , v.IV, p. 424.
44 , Segundo José Ferreira Carrato, ob.cit., p. 97.
45 , O indivíduo é Basílio de Britto Malheiro. Segundo Carrato, ob.cit., p. 101.
46 , Carta régia dirigida ao Conde das Galvêas sobre negros forros, 17-VI-1733, em:
APM , SC , cód. 18. Ver também a carta de 20-V-1732, no mesmo códice.
47 , Cf. Julita Scarano, Devoção e escrivão, São Paulo, 1975, p. 116-7.
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trabalhavam nas lavras e apresentavam utilidade aos reais quintos,


como contribuintes que eram. Já os mulatos forros eram bem mais
insolentes, “porque a mistura que têm de brancos, os enche de tanta
soberba e vaidade que fogem ao trabalho servil, com que poderiam
viver, e assim vive a maior parte deles, como gente ociosa”. O rei
alarmou-se ante essas informações, pedindo que Galvêas opinasse
sobre a necessidade de se “dar alguma providência acerca dos mula-
tos forros, que vivem também em grande liberdade”.46
Aqui, mais uma vez cruzam-se o ônus e a utilidade representa-
da pelo indivíduo mal situado na ordem social. Elementos amea-
çadores, os forros podiam entretanto apresentar utilidade à Coroa.
Como viu Julita Scarano, Lisboa parece, neste episódio, bastante
perplexa quanto à atitude que deveria tomar, buscando no parecer
do governante uma possível solução.47
Empurrados para as fímbrias do sistema que os criava e os deixava
134 sem espaço próprio, os mestiços e os forros foram com frequência
equiparados aos quilombolas, a ponto de conviverem até hoje nas
páginas de um códice do Arquivo Público Mineiro.48 Malvistos pe-
los habitantes, queixaram-se junto às autoridades, como na petição
dirigida ao rei em 1755, onde falam da sua impossibilidade de defesa
ante a má-fé dos brancos, que os exploravam “sem mais temor a
Deus e às Justiças como é vulgar naquele país onde o pobre preto e
preta libertos não tem que os auxilie”.49 Através dos tempos, foram
cerceadas as menores tentativas que empreenderam no sentido de se
organizarem como uma categoria social: em ordem de 27 de janei-
ro de 1728, a Coroa determinava que a Patente recém-concedida a

48 , Registro de cartas do governador concernentes à repressão de


quilombos , em: APM , SC , cód. 199.
49 , Segundo Julita Sacarano, p. 124. A autora alcança o ponto alto de seu livro
quando aborda o problema dos homens forros, no capítulo 3, item O forro e o
pardo , p. 115-29.
50 , Ordem de 27-I-1728, em: RAPM , XVI , 1, p. 342.
51 , Ordem de 13-I-1731, ibid, p.3 43.
52 , Para ser publicado em Ribeirão Abaixo, 6-III-1715, em: APM , SC , cód.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Francisco Gil de Andrade, “capitão de infantaria da ordenança dos


homens pardos e bastardos forros da vila de Sabará” fosse invali-
dada, “porque não convém, que semelhantes homens sirvam obrar
em tal caso, era misturá-los com os mais corpos das ordenanças
dos homens brancos, para ficarem mais sujeitos e obedientes”.50 A
medida foi reforçada três anos depois, quando se determinou que
as companhias fossem distritais, os brancos e os pardos forros se
misturando para maior “aquietação e sossego dos povos”.51
Proibições sucessivas lhes tolheram o porte de armas de fogo, to-
leradas nos homens brancos e “nobres” sobretudo quando “fossem
a alguma viagem ou diligência”,52 mas nunca em negros, carijós,
mulatos e bastardos, que as não podiam usar “nem curtas, nem
compridas sob pena de se lhe tomarem por perdidas, e ter os dias de
prisão que me parecer”.53
No que diz respeito às sublevações escravas, a paranoia dos go-
vernantes e dos potentados não teve limites durante todo o período 135
colonial.54 Mesmo quando não havia situação concreta que pudesse
provocar receio de insulto, diz um documento, “contudo da plebe
bárbara, sempre se devia acautelar...”.55 Conforme aumentava a po-
pulação escrava – nas Minas, em muito superior à branca –, o temor

9, fls.3 9.
53 , Sobre o uso das armas , 10-IX-1713, em: APM , SC , cód. 9, fls. 2.
54 , “Como em regra quem oprime se sente mal, imaginando a cada passo a revolta
dos oprimidos, assim viviam os brancos, cujo duende era o ódio dos negros”. Em:
Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 211.
55 , Documentação referente a Minas Gerais existente nos Arquivos
portugueses , carta de 5-VIII-1738, em: RAPM , XXVI , p. 178.
56 , Diogo de Vasconcellos, História antiga, p. 322. Leur multitude dans le Brésil
ferait craindre un soulèvement, funeste aux portugais, diz um documento anônimo.
Manuel Cardozo, A French Document in Rio de Janeiro, 1748 , em: HAHR , XXI ,
ag.1941, p. 430.
57 , Carta de Assumar ao Ouvidor-Geral da Comarca do Rio das Ve-
lhas , 21-XI-1719, em: APM , SC , cód. 11.
58 , Carta de Assumar ao rei de Portugal , carta de 20-IV-1719, em: RAPM ,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

crescia, “independente de qualquer assanho daqueles infelizes”.56


Para evitar as situações de fuga e revolta, Assumar chegou a sugerir
as medidas as mais cruéis, como o corte do tendão de Aquiles dos
cativos, buscando inspiração confessa no “Code Noir”. Para o Con-
de, os negros eram “os que podem pôr em maior cuidado este gover-
no”, e o seu modo de vida não podia ser qualificado adequadamente
de escravidão, pois viviam nas Minas numa “liberdade licenciosa”.57
O pior, dizia ainda D. Pedro de Almeida, é que “se lhes não po-
dem tirar os pensamentos e os desejos naturais de liberdade”, assim
como não se pode exterminá-los todos, “sendo tão necessários para
a subsistência do país”.58 A “negraria” das Minas parecia-lhe par-
ticularmente inclinada à sublevação, e o governador reputava esta
matéria de suma importância por dela depender “a conservação ou
Ruína deste país”.59 Para evitar que acontecesse o pior – algo seme-
lhante “aos Palmares de Pernambuco” –, urgia aplicar “os Remédios
136 Violentos, como tão preciosos a uma canalha tão indômita”.60
Os numerosos bandos e cartas sobre a repressão dos quilombos
apresentam sempre a mesma terminologia para designar os malefí-
cios advindos da ação dos quilombolas; os negros aparecem aí como
os grandes inimigos da Ordem, do sossego dos povos, do trabalho e
da liberdade.61 Mal necessário a uma sociedade escravista, o Estado
tentava de todas as formas reduzir o âmbito de suas ações, esteri-
lizá-las e, se possível fosse, extirpar de suas consciências o desejo

v.III . 1898, p. 265-6.


59 , Carta de 13-VII-1718, em: RAPM , III , p. 251-2.
60 , Ibid.
61 , "Recebi a carta que V. Ms. Me escreveram na data de 18 do corrente Mês pelo
motivo da grande perturbação que causam ao sossego público destes povos os pre-
tos fugidos, a que dão o nome de calhambolas com as suas desordens...” Carta à
Câmara de Vila Rica, da parte de Luís da Cunha Menezes”, 16-VI-1784, em:
APM , SC , cód. 240, fls. 19 V-20. Os documentos neste teor são inúmeros.
62 , “... e que desta escandalosa liberdade tem não poucas vezes resultado não só
violentamente e de mão armada tirarem mulheres brancas dos mesmos povoados,
mas levarem igualmente pretas e escravos, com que reforçam as tropas dos seus
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

incontrolável da liberdade – uma liberdade que não lhes cabia de


direito, “escandalosa” quando por eles usufruída, pois era privilé-
gio dos brancos e do seu mundo, do qual, diziam as autoridades,
os negros a desejavam tolher.62 Esta ideia surge claramente confi-
gurada num bando do tempo de Luís Diogo Lobo da Silva, onde os
quilombolas aparecem como os agentes da opressão, numa inversão
curiosa que escamoteia a natureza do regime escravista.63 Este de-
veria ser preservado a todo custo, e para tal, nele não podiam caber
os anseios de liberdade do cativo.64

parciais...” “Bando sobre a limpeza dos negros calhambolas; taberneiros; mascates


de qualquer qualidade – assim brancos como negros – e pessoas vadias – e regulari-
dades de capitães-do-mato, e pedestres”, em: APM , SC , cód. 50, fls. 91 V.
63 , “... na ideia de se constituírem de maior terror ao público, e de dificultarem
a destruição destas prejudiciais quadrilhas, e desejando aliviar os povos de seme-
lhante opressão e dissipar por uma vez as raízes que se podem adiantar de se não 137
atalharem vigorosamente tão crimináveis excessos...” – ibid.
64 , “... a vista do perigo grande que correm estas minas pela forma em que nelas
vivem os escravos mais como livres que como cativos...” – Sobre as mortes e rou-
bos constantes na comarca do Rio das Velhas que cometem os negros
dos quilombos . Em: APM , SC , cód. 4, fls. 742.
65 , Em 1773, escrevia o governador para o capitão-mor Manuel Antunes: “Rece-
bi a sua carta de 7 do passado com as representações que lhe fez José (Vieira?) de
Almeida, e a mulher de Daniel Dias Cabeça, Quitéria da Cunha Pontes, sobre a má
vista que esta tem do dito seu marido, por respeito de uma mulata, e a dissipação
total que faz dos bens, ficando ela extorquida dos que levou: pelo que respeita a
dissipação, ela que requeira ao juiz de órfãos para lhe dar a justa providência na
forma da lei; e pelo que toca aos maus-tratos que costuma dar à mulher por causa
da mulata, ordene V.M ., ao comandante de ordem minha, chame ao dito Cabeça,
e o repreenda severamente, admoestando-o que se não viver como deve com sua
mulher, apartando-se (sic) a ocasião, que o há de prender e remeter-me a esta capital
na forma das ordens, indagando sempre o dito comandante se o dito (…) Cabeça
pratica o contrário, a fim de livrar que não mate a mulher porém caso prossiga nos
meus péssimos costumes, nunca o comandante o deve logo prender, sem me dar
parte para eu resolver o que entender justo, mas o que ameace e o atemorize”. – Car-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Ante o perigo difuso representado pela população, a Coroa ten-


tava medidas saneadoras; procurava prover a tudo, regulando rela-
ções conjugais e brigas de vizinhos;65 contava com o apoio das De-
vassas Eclesiásticas, que a partir de 1721 esquadrinharam a vida das
populações mineiras, reprovando suas relações ilícitas e o seu modo
de vida; premiava os agentes que se lançavam na repressão dos ele-
mentos incômodos e incentivava as câmaras e fazerem o mesmo.
A leitura das cartas patentes concedidas pelos governadores reve-
la esta preocupação com a recompensa ante serviços prestados na
consolidação da Ordem. Paulo Rodrigues Durão, pai do futuro Frei
Santa Rita Durão, foi nomeado sargento-mor de Mato-Dentro por
ter auxiliado Assumar na repressão a quilombos.66 Tomás do Lago
de Medeiros recebeu patente de coronel de Paracatu e foi instituído
da guardamoria e do privilégio de distribuição das datas daquelas
terras mineiras; como contrapartida, deveria zelar pela boa compo-
138 sição do povoamento a ser estabelecido naquelas paragens: “... terá
grandíssimo cuidado de que na gente com que entrar na dita Con-
quista haja toda a quietação e sossego, para o que aproveitara mui-
to não levar em sua companhia criminosos, nem malfeitores antes
pessoas que vão só a ela, não por fugirem à justiça, mas por buscar
a conveniência dos descobrimentos...”.67 Manoel de Barros Guedes
Madureira foi agraciado com a patente de capitão de dragões por ter
sido encarregado “da guarda de um facinoso (sic) que o governador
mandou arrastar pelas ruas e esquartejar para horror dos mais ré-

ta de 10-I-1773, APM , SC , cód. 199, fls. 7-7 V.


66 , “Carta patente de 17-X-1722”, “Cartas Patentes”, RAPM , IV, 1899, p. 101.
67 , Patente de coronel do Paracatu e conquista concedida a Tomás do
Lago Medeiros , 26-I-1722, em: Cartas atentes, RAPM , IV, 1899, p. 106.
68 , Carta patente nomeando Manuel de Barros Guedes Madureira ca-
pitão da terceira tropa de dragões . 30-VII-1735, em: Cartas Patentes”, RAPM ,
p. 116-7.
69 , Carta patente confirmando a nomeação de Francisco Rodrigues
Vilarinho, no posto de Capitão de Cavalos da Companhia de Ouro Bran-
co , 5-I-1739, ibid., p. 127.
gulos e acompanhando-o até o lugar do suplício com soldados ar-
mados pelo receio que havia de que o povo intentasse embaraçar o
tal castigo...”.68 O régulo facinoroso era, no caso, Felipe dos Santos.
Por ocasião das modificações que introduziu no Regimento Militar,
criando quatro regimentos de cavalaria de ordenança por comar-
ca e visando uma organização militar que melhor respondesse em
casos de ataque inimigo, Gomes Freire de Andrada nomeou Fran-
cisco Rodrigues Vilarinho para o posto de capitão de cavalos do
Regimento de Vila Rica; Vilarinho dera mostras de si na repressão
aos levantes havidos no governo de Assumar, “fazendo rondas de
dia, e de noite, e metendo guardas nas parte mais suspeitosas, para
evitar tumultos, ajudando a prender os cabeças do motim, e muitos
ociosos e vagabundos para Montevidéu”.69
No penoso trabalho de arrancar os “terríveis espinhos” que con-
tinuavam infeccionando o país “tanto contra o serviço de Sua Ma-
jestade como de (sic) República”,70 a Coroa premiava os agentes da
normalização também com tabelionatos e ofícios de juiz de órfãos
– atividades das mais lucrativas naqueles tempos. Foi esta a recom-
pensa recebida por Domingos Alves Ferreira, fiel servidor real que
se engajou por conta própria na repressão dos motins do Sertão, ten-
do em represália a sua casa pilhada e incendiada pelos revoltosos,
que o chamaram de “traidor do povo”. Domingos Alves foi ainda
nomeado capitão-mor do Acari, e sua conduta foi tomada como
modelo. A premiação era nestes casos, exemplar: “... serviria de in-
centivo para que em outras semelhantes ocasiões, houvesse vassalos

70 , Trecho de uma carta de Gomes Freire a Martinho de Mendonça, 12-VI-1736,


em: Documentos – Das cartas do Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade...
para o senhor Martinho de Mendonça de Pina e de Proença”, em: RAPM ,
XXVI , 2, p. 243.
71 , Carta de Martinho de Mendonça a Gomes Freire, 19-XII-1736, em: Motins do
Sertão , RAPM , I , p. 654.
72 , Segundo Diogo de Vasconcellos, Pombal “tinha em Minas um corpo de secre-
tas que se misturavam com o povo e lhe remetia as delações”. História média, p. 215.
73 , Consulta da capitania de Minas , em: RAPM , XVI , p.261.
que com igual zelo se interessassem no Serviço de Sua Majestade”.71
Este caso ilustra admiravelmente o aproveitamento de elementos
avulsos por parte da Coroa, que assim estendia as malhas da domi-
nação aos recônditos mais afastados colônia, comprando a adesão
com a mercê. É curioso como, neste episódio, honra e privilégio
encontramos presentes: a patente de capitão e o cargo lucrativo do
tabelionato.
Tornado norma, este procedimento desencadeava nos habitantes
mais bem situados socialmente uma verdadeira fúria normalizado-
ra.72 As câmaras foram disto o melhor exemplo: as representações
que enviavam à Metrópole pediam com frequência adoção de me-
didas repressivas contra os quilombos, contra criminosos e infra-
tores de um modo geral. No início da década de 1780, os oficiais da
câmara de vila Nova da Rainha requisitavam um juiz de fora para
a região. O magistrado se tornara necessário, diziam, para “coibir a
maldade da maior parte dos habitantes, que vendo-se tão longe das
Justiças, e sem quase nenhuma sujeição, cometiam continuamente
crimes horrorosos, e escapavam quase sempre à inútil vigilância de
comandantes de distritos, tão remotos”.73
Em 1768, os moradores do arraial de Carijós queixavam-se da
“oprimição” que viviam sofrendo por causa dos ciganos – “levan-
tados e quebrantadores das leis” – e pediam auxílio oficial para
combatê-los.74
De trinta anos antes é uma petição dos moradores do Morro do
Ouro Fino, em Vila Rica, onde pedem licença ao governador para

74 , “Petição dos moradores do arraial dos Carijós contra os ciganos Manuel Cor-
tes e seus filhos Simão da Costa e Pedro da Costa, e outro Manuel Cortes, Francisco
da Costa seu cunhado e outro que andam na mesma companhia que pelo nome não
percam...”, 25-I-1768, em: APM , SC , cód. 103, fls. 43 V-44.
75 , Petição sobre calhambolas , 6-XII-1738, em: APM , SC , cód. 59, fls. 32 V-33.
76 , Bando sobre quilombolas (Assumar), 20-XII-1717, em: APM , SC , cód. 11,
fls. 269.
77 , Este assunto será examinado no próximo capitulo.
78 , “Tendo D. Brás trazido a sua mulher e filhos, a essa família ilustre e virtuo-
poderem investir contra os negros armados que, de noite, apare-
ciam por aquelas paragens. Tudo indicava serem quilombolas, di-
ziam os moradores, que pediam também a isenção de penas para
suas pessoas no caso de morrerem alguns negros, e a desobrigação
de, em tais casos, pagarem aos senhores deles. O governador despa-
chou favoravelmente, permitindo-lhes que atacassem os quilombo-
las e, ante a resistência destes, disparassem suas armas de fogo. Os
casos de morte – se estas ocorressem – seriam julgados conforme
as ordens de Sua Majestade “para semelhantes casos de negros qui-
lombolas”.75 O poder, pulverizado, se difundia, e tinha na relativi-
dade da Justiça uma atenuante para suas eventuais arbitrariedades.
Entretanto, nunca o procedimento oficial no sentido de purgar
a sociedade da sua parte corrompida parece ter sido tão objetivo e
transparente como no bando sobre quilombos lançado por Assu-
mar a 20-XII-1717. Determinava este que “toda pessoa de qualquer
qualidade ou condição” que quisesse agir por conta própria e atacar 141
os quilombos teria franco apoio do governo, que, sozinho, parecia
não conseguir arcar com a repressão. Os negros que resistissem te-
riam suas cabeças cortadas e levadas ao governante; os que pudes-
sem ser presos vivos, seriam justiçados exemplarmente, e tanto num
caso quanto no outro, os senhores deles não tinham o direito de
reclamar, “visto o dano público que fazem a todo o comum”. E os
tentáculos do poder não se detinham aí: “toda pessoa que lhes der
alojamento ou souber onde estão os ditos quilombos, e o não avisar,
sendo branco será açoitado pelas ruas públicas, e degradado para
Benguela, e sendo negro ou carijó, terá pena de morte”.76
A falta de laços familiares da população foi outro fantasma que
perseguiu as autoridades, e sanar este mal tornou-se um dos pontos
básicos da política normalizadora então levada a cabo. Ao contrário
do que sugere a visão da sociedade colonial nucleada na família,
esta foi, nos tempos coloniais, exceção: os elementos que para cá se

síssima se deve em grande parte a nobilitação dos lares cristãos e a vida religiosa da
Vila”. História Antiga... p. 305.
79 , Segundo Julita Scarano, ob.cit., p. 117.
80 , Segundo Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos, p.59.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dirigiram eram solteiros e desenraizados, e muitos se ressentiram


da falta de mulher branca. Aos poucos, foram se formando famílias
ilegais, à margem do vínculo do matrimônio. Contra a difusão do
concubinato, muito se bateu a Igreja, conforme refletem as Devassas
Ecelsiásticas.77 Mas os governantes também deixaram registradas
as medias que nesse sentido se esboçaram e se cumpriram.
Segundo Diogo de Vasconcellos, D. Brás Baltazar da Silveira exer-
ceu importante função normalizadora sobre a população, dando-
-lhe o exemplo da vida familiar, pois ao contrário da maior parte
dos governantes coloniais, trouxe para as Minas sua mulher e seus
filhos.78 Num documento da Irmandade do Convento de São Do-
mingos de Lisboa, datado de 6 de novembro de 1646, já aparecia
uma ideia que, posteriormente, alcançaria grande voga entre os
nosso dirigentes coloniais: a de que a falta de base familiar interfere
funestamente no rendimento do trabalho. Assim, urgia normalizar
142 a população através do casamento não apenas para melhor governá-
-la, como também para mais proveito se extrair dela; segundo re-
zava aquele documento, a Coroa devia zelar para que não faltasse
trabalho aos “homens pretos forros e mulheres que não fossem ca-
sados, não tivessem ofícios e que andam pela terra vadios”.79 Quase
cem anos mais tarde, D. João V aperfeiçoaria a formulação, asso-
ciando o pouco caso pelo trabalho à desobediência das ordens reais
que se notava entre os colonos solteiros, que por isso e para melhor
servirem às necessidades da Coroa, deviam encontrar uma compa-
nheira oficial:

… por este modo ficarão mais obedientes às minhas reais ordens, e os


filhos que tiverem do matrimônio os farão ainda mais obedientes e vos or-
deno me informeis se será conveniente mandar eu que só casados possam

81 , Segundo Boxer, A Idade de Ouro do Brasil, p.184.


82 , RAPM , VI , p.146.
83 , Em 1732, o rei ordenava ao governador das Minas que impedisse a saída de
mulheres para o Reino, medida reiterada no ano seguinte com uma retificação: a
lei ficaria improcedente caso as ditas mulheres estivessem acompanhadas de seus
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

entrar na governança das câmaras das vilas, e se haverá suficiente número


de casados para se poder praticar essa ordem... e mostra a experiência nos
poucos casados que há nesta terra, que são muito maiores trabalhadores
em desentranharem o ouro da terra, que estes solteirões que só lhes leva o
tempo a se ocuparem em extravagâncias...80

Na mesma época, D. Lourenço de Almeida – governante aquém


se destinava a carta acima citada – explicava o comportamento dos
solteiros dizendo que nada tinham a perder nas terras mineiras “por
ser o seu cabedal pouco volumoso, por consistir todo em ouro, nem
mulher, nem filhos que deixar, não só se atrevem a faltar à obedi-
ência e às justiças de V. Majestade, se não também em cometerem
continuamente os mais atrozes delitos, com estão sucedendo nas
minas”.81
Mais para o final do período minerador, chegou a haver sugestões
no sentido de premiar os casados e punir os opositores do matrimô- 143
nio, “pois que olhando mal o estado do matrimônio, não se interes-
sam em se entrelaçar uns com os outros, nem buscam a união de
forjas tão proveitosas para fazer mais sólida, permanente e lucrativa
a laboração de qualquer gênero que seja”. Os bens não se transmi-
tiam de pai para filho, “acabando com a primeira vida de qualquer
proprietário a roça, a lavra, a tenda etc.”82 A Coroa tinha grande
interessa na manutenção da propriedade e, portanto, na realização
de matrimônios que evitassem o degringolar das fortunas.
Havia ainda um problema gravíssimo para o pequeno reino colo-
nizador: a Metrópole não podia suprir a sua colônia de gente, e no
entanto esta necessitava de um povo que a defendesse, que a fizesse
funcionar e render. Era inviável uma colônia sem povo, e solteiros
não deixavam frutos. Uma das soluções seria aceitar os casamen-
tos mistos e a sua consequência: uma população de mestiços. Mas,
como já se viu, a mestiçagem inspirava medo, como medo inspira-

maridos. Cf. “Ordem de 14 de abril de 1731” e “Ordem de 20 de fevereiro de 1733”, em:


RAPM , XVI , p.461-2; Carta régia ao conde das Galvêas , 20-II-1733, em: APM ,
SC , cód. 18, fls.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

va o forro, um e outro representantes de uma humanidade nova,


desconhecida, frequentemente identificada à animalidade. As leis
que proibiam a volta de mulheres sozinhas para o reino de Portu-
gal foram uma tentativa de contornar este problema, como o foram
também as leis pombalinas que incentivavam os casamentos mistos
entre brancos e índias.83 Em 1751, o ministro de D. José I dirigiu a
Bobadela uma carta “secretíssima” onde estes problemas eram dis-
cutidos em primeira mão: “E como este grande número de gente que
é necessário para povoar, guarnecer e sustentar uma tão desmedida
fronteira não pode humanamente sair deste reino e ilhas adjacentes;
porque ainda que as ilhas e o reino ficassem inteiramente desertos
isso não bastaria para que esta vastíssima raia fosse povoada”, era
preciso “abolir toda a diferença entre portugueses e tapes, privile-
giando os primeiros quando casarem com as filhas dos segundos;
declarando que os filhos de semelhantes matrimônio serão reputa-
144 dos por naturais deste reino e nele hábeis para ofícios e honras...”.84
Essas leis não foram feitas em nome do respeito à população mes-
tiça da colônia. Pombal visava, antes de mais nada, a preservação
do patrimônio colonial que a presença permanente do castelhano
ameaçava. Como diria mais tarde Martinho de Mello e Castro, “as
principais forças que hão de defender o Brasil, são as do mesmo Bra-
sil”.85 Para esse fim – cuidar da defesa –, a Coroa aceitaria, por con-

84 , “Carta secretíssima de Carvalho e Mello para Gomes de Andrada, para servir


de suplemento às instruções que lhe foram enviadas sobre a forma da execução do
tratado preliminar de limites, assinado em Madri a 13 de janeiro de 1750” – segundo
Maxwell, op.cit., p. 31.
85 , Instrução de Martinho de Mello e Castro a Luís de Vasconcellos e
Souza acerca do governo do Brasil , in: RIHGB , XXV, 1862, p.481.
86 , A partir dos fins do século XVI , o Estado espanhol interveio na luta contra
o desenvolvimento do pauperismo, então considerado como séria ameaça ao equi-
líbrio e à segurança da população. Cf. Bartolomé Bennassar, L'homme espagnol –
attitudes et mentalítés du XVI au XIX siècles, Paris, 1975, p. 112. De autor anônimo,
diziam, em 1665, as “Considerations concerning Common Fields and Enclosures”:
“The poor increase like fleas and lice, and these vermin will eat us up unless we en-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

veniência, a população estranha e ameaçadora, que aqui vivia. Mas,


de fato, ela jamais seria aceita, e para enquadrá-la e mantê-la nos
trilhos da Ordem, os vigilantes aparelhos repressivos nunca deixa-
ram de ser acionados. Se era comum a todos os governos o cuidado
despertado pelos pobres e pelo pauperismo,86 o escravismo e a mes-
tiçagem faziam com que a nossa colônia apresentasse um quadro
bem mais complexo. Não havia que compreendê-lo: a ameaça inter-
na, a Coroa dar-se ia por satisfeita se o seu controle fosse eficaz.87

B , O cumprimento da lei e o exercício da violência , A Justiça


foi uma das facetas do Poder que melhor contribuíram para a ma-
nutenção do sistema colonial. Nas Minas, mais do que em qualquer
parte, a violência, a coerção e a arbitrariedade foram as suas caracte-
rísticas principais. “Rara é a lei que se não repute por violenta, e com
especialidade nas partes donde falta a coação para ser por meio dela
executada”,88 escrevia Assumar o vice-rei Vasco Fernandes Cesar 145
de Menezes, definindo qual deveria ser o caráter da Justiça naquelas
partes da colônia. Os ministros que a exerciam gozavam de bastante
independência, sendo que, no caso dos ouvidores, pode-se mesmo

close”. Segundo Christopher Hill, The World Turne Upside Down, p. 52.
87 , A situação era, pois, extremamente contraditória: “de um lado, a metrópo-
le pequena e pobre; de outro, a colônia, grande e cheia de riquezas: se a balança
demográfica pendesse para o domínio ultramarino, romper-se-ia o equilíbrio, e
desorganizar-se-ia o sistema”. Fernando A. Novais, ob.cit., p. 143.
88 , Carta que escreveu ao Excelentíssimo Senhor Conde de Assumar
o Excelentíssimo Senhor Vasco Fernandes Cesar de Menezes , Vice-Rei
e Capitão-General-de-mar-e-terra deste Estado , 17-XI-1720, em: DH , LXX ,
1946, p. 106.
89 , Instrução..., RAPM , IV, 1899, p. 731.
90 , “Era assim que frequentemente os Ministros, não tendo perto o corretivo
de suas arbitrariedades, prendiam a quem quisessem perseguir, por meio de seus
oficiais; e até que de Lisboa viessem provimentos a vítima ficava encarcerada meses
e anos”. Diogo de Vasconcellos, Linhas gerais da administração colonial
– Seu exercício – Capitães-Mores, Donatários, Governadores, Capitães-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

falar de uma grande autonomia em relação aos governadores, que


guardavam certa reserva ante estes magistrados. “Tratai aos Ou-
vidores com uma muito particular atenção”, recomendava Gomes
Freire a seu irmão José Antonio, “porque são os primeiros cargos
do governador e os que têm mais emoção no espírito dos povos pela
extrema subordinação e império que neles têm”.89 A autonomia e o
prestígio faziam pois do Ouvidor uma figura destacada na capita-
nia, e não foram poucos os choques entre eles e os capitães-generais,
o mais célebre deles tendo sido o que abalou as relações de Tomás
Antonio Gonzaga com o governador Luís da Cunha Menezes. Era
pois frequente que as regalias de que gozavam estes magistrados
abrissem caminho à iniquidade.90
Em muitas partes, sobretudo nas mais retiradas, a figura que do-
minava o exercício da Justiça era a do capitão-mor das ordenanças,
verdadeiro delegado de polícia que punia criminosos e prevenia in-
146 frações. Exercia, nesses casos, “uma autoridade plenária e absoluta,
resumindo em suas mãos todo o poder de julgar e punir discricio-
nariamente”.91

-Generais, Vice-rei, Capitães-Mores de Vilas e Cidades”, RAPM , I , XIX , 1921,


p. 119-20. “Ficou célebre o juiz de fora (também ouvidor) de Paracatu dr. José Gregó-
rio de Moraes Novarro, executando obras à custa direta do povo, inclusive grande
parte do calçamento da vila”. Em: Floriano Peixoto de Paula, ob.cit., p. 281.
91 , Diogo de Vasconcellos, artigo citado, p. 122-3.
92 , “O sistema judiciário e o aparelho policial são, antes de tudo, dirigidos contra
os escalões inferiores da hierarquia social: são eles que se deve vigiar, que criam o
perigo, que estão em contato permanente com o crime. Entre eles, a infração parece
ser um fenômeno endêmico a que só as penas severas podem conter”. Bronislaw
Geremeck, Les marginaux parisiens..., p. 19.
93 , Para Roberto da Matta, a violência é um recurso hierarquizador utilizado
quando os outros recursos estão impotentes. Cf. “Você sabe com quem está falan-
do?”, p. 165-6, em: Carnavais, malandros e heróis.
94 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 74 e segs.
95 , Miran de Barros Latif, ob. Cit., p.170.
96 , O lúdico e as projeções do mundo barroco, p. 170.
De maneira geral, a violência da justiça se refletia nas prisões, nos
castigos exemplares e na aplicação da pena de morte. Como em toda
parte, afetava especialmente os pobres e os destituídos de proprie-
dade, confirmando assim o seu papel de consolidadora do poder de
uma camada social ou, em outras palavras, revelando o seu caráter
instrumentalizador.92 Apontava sobretudo para a extrema necessi-
dade de hierarquização, atuando sempre que esta se via ameaçada
ou enfraquecida.93
Os presos por crimes comuns – “presos do conselho” – iam para
a cadeia da câmara, que sustentava os réus pobres, e diferiam essen-
cialmente dos presos do rei – os que atentavam contra a Sua Pessoa
ou contra o regime político – e dos presos do bispo, que iam para o
aljube. Nos lugares em que não houvesse prisão do rei nem do bispo,
os culpados iam para a mesma cadeia que os presos comuns, sendo
entretanto sustentados pelos remetentes.94 A presença dos presos
na mesma casa em que os camaristas exerciam suas funções teve 147
repercussões sobre os povos: “... as cadeias públicas, tornaram-se
os maiores edifícios entre o casario, estampando suas janelas gra-
deadas sobre a praça principal. E como funcionem nestes mesmos
edifícios os governos das comarcas e das câmaras, o povinho não
tarda em confundir os atos do governo com tudo o que seja coerção
e violência”.95
Nem todos os presos eram alojados na cadeia, muitos sendo en-
viados para longe, para serviços militares e presídios. A sorte dos
que ficavam não era invejável: antes de ocupar o prédio que hoje se
conhece e que, para Afonso Ávila, é a expressão arquitetônica do

97 , Carta de 15-II-1730, em: Documentação referente a Minas Gerais existente nos


arquivos portugueses”, RAPM , XXVI , 1975, p. 173.
98 , “... porque esta cadeia anda todos os anos arrendada em mais de 8 mil cru-
zados a homens de tão pouco e ser e vil nascimento, que para tirarem o que dão de
renda fazem negócios com os presos, e ultimamente fogem com eles...” Carta de
D. Lourenço ao rei, 23-V-1726, segundo Feu de Carvalho, Reminiscência de Vila
Rica – Sobre a casa da cadeia”, em: RAPM , XIX , 1921, p. 284-5.
99 , Carta de 8-III-1773, em: APM , SC , cód. 199, fls. 12 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

absolutismo portugês,96 a cadeia de Vila Rica era precária, de barro


e pau-a-pique, “as paredes podres pela tenuidade de materiais de
que se compõem”.97 Os presos fugiam com grande frequência, em
maio de 1726 já o tendo feito três vezes naquele ano. A precarieda-
de do prédio não era entretanto o único motivo, contando muito a
demora em se sentenciarem os infratores e o entendimento havido
entre os presos e os indivíduos que arrendavam a cadeia.98 As fugas
continuaram se verificando através de anos, e em 1773 eram atri-
buídas a um motivo tão curioso quanto o que foi citado acima: a
resistência dos escrivães em aprontarem os processos dos crimino-
sos por serem estes muito pobres, e não poderem lhes pagar, o que
resultava em longuíssimas estadas na cadeias, interrompidas, afinal,
pelas fugas.99
Muitas vezes amontoados em lugares pequenos onde mal podiam
respirar, os pobres presos sofriam de “extremosas fomes e misérias”,
148 como os cinquenta que o capitão-mor da Vila do Príncipe, Libera-
to José Cordeiro, conservava na cadeia sem julgamento.100 Alguns
eram assassinos, como um tal Domingos José, que juntamente com
Manuel de Tal cometera uma morte no Rio das Velhas, passando
depois para a comarca de Vila Rica, onde mataram um negro que
guardava arreios.101 Havia os ladrões de cavalos como Manuel Ri-
beiro, que após seis anos de prisão conseguira fugir,102 e havia tam-

100 , Carta de Joaquim Manuel de Seixas Abranches a D. Rodrigo José de Mene-


zes, 15-VII-1782, em: APM , SC , cód. 223, fls. 5-5 V.
101 , Carta de 22-III-1773, em: APM , SC , cód. 199, fls. 13 V.
102 , Carta de 8-III-1773, ibid, fls. 12 V.
103 , Alvará de 8-X-1758, em: RAPM , XVI , p. 357.
104 , Cf. Carta já citada de Seixas Abranches a D. Rodrigo José de Menezes.
105 , Segundo Quilombos em Minas Gerais , em: RIHGMG , VI , 1959, p. 442.
106 , ibid., p.440.
107 , Carta de Manuel Joaquim Pedroso a D. Rodrigo José de Menezes, 7-XI-1781,
em APM , SC , cód. 223, fls. 12 V-13.
108 , Há uma excelente passagem de Lavradio acerca do exemplo dado pela pu-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

bém os escravos, cujo sustento era diariamente pago aos carcereiros


segundo a orientação do Ouvidor.103 Prendiam-se ainda vadios e
indivíduos de mau procedimento, como os recolhidos à cadeia de
Vila do Príncipe no ano de 1782. Entretanto, estes eram quase sem-
pre enviados para lugares distantes.104
Não se mediam os meios para efetuar uma prisão, a justiça se mos-
trando onipotente. Para prender negros, mestiços e forros que es-
tavam sob suspeita de minerarem clandestinamente, o governador
interino José Antonio Freire de Andrade ordenou a Paulo Correia,
cabo do Milho Verde, que entrasse pela roça que havia sido de Luís
Coelho, cercasse suas casas e senzalas e prendesse todos que achasse
suspeitos, “como também o Pai e filho, senhores de roça, e todos
os instrumentos de minerar, e armas que se lhes acharem...”.105 O
mesmo foi ordenado ao alferes José dos Santos Pereira, que deveria
invadir de madrugada as “lavrinhas do Mendoim, e Batatal”, vascu-
lhando, como no caso anterior, as casas e senzalas.106 149
Quando transportados de um local para outro, os presos eram
postos em correntes e grilhões e iam acompanhados de força mili-
tar. A justificativa para tal procedimento era rebuscada o suficiente
para acabar revelando sua verdadeira natureza: alegava-se que essas
medidas eram tomadas em nome da segurança dos presos, mas o
que de fato buscavam era evitar as fugas e desordens que poderiam
vir a cometer.107 Guardiãs da Ordem e do Privilégio, a justiça vestia
no entanto a roupagem de defensora dos povos, indiscriminada-
mente.

nição. O Vice-rei se descontentou com um advogado de nome José Pereira, por ele
feito juiz de sesmarias. Mandou buscar o homem e outros seus asseclas, “tive-os por
muitos meses reduzidos a uma aspérrima prisão, macerei-os até o último ponto, e
com este meu procedimento se intimidaram todos os mais; e depois de estar tudo
em sossego, tornei-lhe a permitir que voltassem para que pudessem contar aos ou-
tros o que lhes tinham sucedido...” – Relatório..., p. 423. A partir da segunda metade
do século XVIII – quando surge o Tratado dos delitos e das penas (1764) de Beccaria
– “a punição deixa, pouco a pouco, de ser uma cena”, e “tenderá a se tornar a par-
te a mais escondida do processo penal”, deixando “o domínio da percepção quase
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Tanto a prisão como a pena de morte tinham caráter de puni-


ção exemplar, esta última sendo comumente aplicada a indivíduos
socialmente instáveis ou desclassificados.108 Se a sujeita e doença
eram causas de morte para os pobres, a lei também contribuía gran-
demente.109 Até 1730, nenhuma autoridade tinha atribuições para
sentenciar de morte – ao que tudo indica, nem mesmo os casos de
escravos que matavam senhores –, e os réus eram remetidos para a
Bahia, onde o Tribunal da Relação os julgava.110 Entretanto, em 1726
o governador pedia que os quatro ministros das comarcas compu-
sessem uma junta que pudesse dar a sentença de morte, “porque só
assim remedeia-se tanto dano”, como eram as incursões de negros
matadores e salteadores que assombravam os caminhos e que deve-
riam ser executados “para exemplo dos mais negros...”.111 Em 1730,
o governante dirigia um ofício ao rei onde falava dos “distúrbios”,
“delitos” e “toda casta de insultos” que continuavam cometendo os
150 negros, a causa sendo o fato de nas Minas não se lhes dar “o ultimo
suplicio; que os intimide”112 – o que era um subterfúgio bastante
cômodo para explicar a agitação e o mal-estar social. A resposta não

cotidiana para ingressar no da consciência abstrata”. Michel Foucault, Surveiller et


Punir, p. 14-5 e sgs.
109 , No final do século XVI , 2 mil pessoas eram anualmente executadas na Ingla-
terra, principalmente entre os pobres. Cf. Christopher Hill, Reformation to indus-
trial Revolution, Londres, s.d., p. 46-7.
110 , Cf. Diogo de Vasconcellos, História Antiga..., p. 370 e sgs. Assumar lançou
bandos que ameaçavam as populações pobres com a pena de morte, mas esta atitude
não era legalmente sancionada.
111 , Carta de 20-VI-1726, segundo Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 369.
112 , Ofício de 10-VI-1730, ibid, p. 370.
113 , Carta régia de 24-II-1731, em: DI , XIV, 1895, p. 251-2.
114 , Junta de Justiça para a execução e imposição da pena de morte aos
negros, bastardos, mulatos e carijós . Em: RAPM , IX , 1904, p. 347-8.
115 , Ordem de 31-XII-1735, em: RAPM , XVI .
116 , O caráter violentamente classista da Justiça é apontado em todos os artigos
do livro Albion's Fatal Tree, onde vários autores ingleses analisam as diversas infra-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

tardou: a 24 de fevereiro do ano seguinte, o rei concedia o direito


de julgar os delitos cometidos por ‘” bastardos, carijós, mulatos e
negros” com a pena máxima. O julgamento deveria ser dirigido por
uma junta composta pelos Ouvidores das quatros comarcas – Ouro
Preto, Sabará (ou rio das Velhas), Rio das Mortes e Serro do Frio –,
pelo juiz de fora da Vila de Ribeirão do Carmo e pelo Provedor da
Fazenda. Em caso de ocorrer empate entre os seis ministros, caberia
ao governador, com o seu voto, desempatar.113 O bando de 12-VI-
1731 publicou a lei com todo o aparato, fazendo saber aos “negros,
bastardos, mulatos, carijós e peões” que os seus “atrozes crimes”
seriam, a partir de então, julgados, a pena máxima sendo o enfor-
camento, “Pois que só com o exemplo do castigo de morte natural
poderá deixar de haver a atrocidade de crimes, que repetidas vezes
se cometem...”.114 A Real Piedade do monarca ordenara que a lei se
fizesse pública para alertar aquela “casta de gente” que, “pelo temor
do castigo”, talvez se contivesse nos seu crimes. 151
Em 1735, uma nova ordem determinava que, dada a dificuldade
de se juntar os seis ministros para formar a Junta da Justiça, esta
poderia ser composta por apenas quatro ministros:115 a Justiça se
simplificava com as vistas à presteza da execução e à necessidade
do exemplo que muitos destes casos exigiam. Sobre os pobres, os

ções que se puniram com o enforcamento da Inglaterra do século XVIII . De grande


interesse são os artigos de Peter Linebaugh e E.P. Thompson, respectivamente The
Tyburn Riot against the Surgeons” e The crime of anonimity. No primeiro,
o autor analisa a prática desenvolvida entre os cirurgiões de roubarem cadáveres de
enforcados para estudos anatômicos, e que acabou culminando com uma revolta
popular. Já o estudo de Thompson se volta para o crime das cartas anônimas, puni-
do com a forca. Numa sociedade baseada em relações paternalistas de dominação
e subordinação, inúmeros eram os motivos que levavam as pessoas a buscarem o
anonimato quando reivindicavam algo ou quando se insurgiam contra uma ordem
de coisas. Albion's Fatal Tree – Crime and Society in Eighteenth Century England,
Londres, 1975. Em outro trabalho, o mesmo Thompson trata da lei sangrenta que
punia as pequenas infrações dos caçadores furtivos nas florestas reais. E.P. Thomp-
son, Whigs and Hunters – The Origins of the Black Act, Londres. 1975.
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mestiços, os negros, a “casta da terra”, abatia-se implacável a pena


da forca, que só em casos gravíssimos – como o de Lesa-Majestade –
seria aplicada aos homens brancos melhor situados socialmente.116
Estes continuariam a ser julgados na Bahia.117
Só em 1175 é que se criaria em Minas uma Junta de Justiça para
sentenciar “todos os réus que cometerem delitos”: oficiais e soldados
pagos ou das companhias de ordenanças que desobedecessem aos
superiores, desertores, rebeldes, homicidas, fossem eles “europeus,
ou americanos, e ainda africanos ou livres ou escravos.” Quase 45
anos depois de estabelecida para os desclassificados é que a pena
máxima alcançava os demais habitantes da região do ouro.118
Dentre a categoria dos homens livres pobres, expropriados, mes-
tiços ou negros, as negras quitandeiras e os vadios foram aqueles
sobre que mais incidiu a legislação mineira na forma de bandos e
instruções repressivas.
152 As negras quitandeiras dispunham em taboleiros doces e comes-
tíveis para vendê-los aos mineiros e escravos que trabalhavam nas
lavras. Eram, por isso, também conhecidas como negras de tabo-
leiros. Sua zona de ação era constituída pelos ribeiros e morros em
que se processavam os trabalhos auríferos. Muitas delas parecem
ter sido escravas que os donos colocavam no comércio para deste
negócio auferirem lucros; outras, livres, agiam por conta própria,
visando a sua subsistência. Constantemente acusadas de desordei-
ras, prostitutas, descaminhadoras de ouro e coniventes de quilom-

117 , Em 1720 – antes, portanto, de estabelecida a pena de morte – ao sentenciar Fi-


lipe dos Santos, Assumar viu-se às voltas com uma situação extremamente delicada,
porque irregular. Cf. Diogo de Vasconcellos, História Antiga..., p. 370.
118 , Carta régia sobre a Junta da Justiça , em: RAPM , XVI , 1911, p. 471-2.
119 , Sobre as negras não andarem vendendo pelas lavras , 4-II-1714, em:
APM , SC , cód. 9, fls. 6 V.
120 , Ordem de Assumar à Câmara de Vila Rica – 24-XI-1720, em: APM , SC ,
cód. 11, fls. 249-249 V.
121 , Segundo Augusto de Lima, Um município do ouro – Memória Históri-
ca , em: RAPM , VI , 1901, p. 327-8.
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bolas, essas mulheres foram sistematicamente perseguidas pela le-


gislação durante todo o período minerador. Nos tempos de D. Brás
Baltazar da Silveira já se proibia a circulação de qualquer “negra ou
parda, fosse escrava ou livre”, que andasse negociando comestíveis
nas zonas auríferas “sob pena de castigo severo e, se fosse escrava,
pagaria a seu senhor 40 oitavas de ouro, metade para fazenda real
e metade para o denunciante” – o que incentivava o hábito da de-
lação119 Assumar impedia-lhes o acesso às lavras, mas pedia à Câ-
mara que lhes reservasse um local em que pudessem negociar em
quitandas.120 D. Lourenço de Almeida legislava contra o comércio
das negras e mulatas, escravas ou forras, que subissem o Morro das
Congonhas, em Sabará, para vender seus quitutes, quando seriam
presas, açoitadas cem vezes, privadas dos comestíveis e bebidas que
andassem vendendo e remetidas para a cadeia local, onde perma-
neceriam detidas por três meses, em cujo termo deveriam pagar a
soma de 20 oitavas de ouro. Caso fossem escravas, esta quantia seria 153
desembolsada por seus senhores; destinava-se, em um e outro caso
às despesas da Câmara.121 As penas impostas a este tipo de infração
apareceriam ligeiramente modificadas no tempo de Gomes Frei-
re de Andrada, quando, para os brancos, a prisão seria diminuída
para vinte dias e a pena pecuniária subiria para quarenta oitavas,
enquanto os negros, mulatos e carijós teriam oito dias de cadeia,
as mesmas quarenta oitavas de multa e ainda cinquenta açoites em
praça pública.122 Sobre a cabeça dos miseráveis, a Justiça se fazia,
invariavelmente, mais pesada: em 1754, as negras quitandeiras e os
comissários volantes que andassem vendendo nas lavras deveriam

122 , Sobre os inconvenientes que resultam as negras de taboleiros que


há nos morros de Vila Rica e Mata Cavalos – 1-III-1736, em: APM , SC , cód.
1, fls. 184-184 V.
123 , Bando sobre a limpeza dos negros calhambolas. .. – APM , SC , cód.
50, fls. 93 V.
124 , Ordem de 24-XI-1734, segundo Coleção sumária das próprias leis ...,
RAPM , XVI , p. 450.
125 , Ordem de 28-IV-1741, Segundo Quilombos em Minas Gerais , em: RIHG-
MG , VI , p. 436.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

ser presos e pagar multa. Mas havia uma ressalva, que agravava o
castigo: “Sucedendo porém que algumas destas (negras) sejam tão
miseráveis que se lhes impossibilite fazê-lo se lhes dobrará o tempo
da prisão, findo o qual se soltará, ficando na inteligência de que re-
petindo o referido delito se lhes triplicará e na quarta reincidência
se procederá na forma das reais ordens praticando-se igualmente a
mesma pena a respeito do dobro, e tresdobro da condenação nas que
forem escravas”.123
Já a legislação e as medidas contra os vadios não foram tão gene-
ralizadas como as referentes às negras de taboleiros. Nos primeiros
tempos, praticamente inexistiram, pois o tumulto então reinante
não permitia que se diferenciassem dos assassinos e facinorosos que
a Ordem tolerava. Além disso, foi com o acirramento de um sistema
econômico injusto e de uma superestrutura de poder iníqua que os
vadios e desocupados proliferaram. As condições de seu engendra-
154 mento correram pois paralelas à normalização e à estabilidade que
a zona aurífera alcançou a partir da década de 1730, pois eram o seu
reverso. Assim sendo, a primeira medida legal adotada em relação
a esta gente data de 1734, quando ficava aprovada a providência que
dera o Conde das Galvêas no sentido de ordenar a prisão e o degre-
do para a Colônia de “negros e mulatos forros, ociosos e vagabun-
dos”; a mesma ordem determinava “que não consentisse vadios, e
que os obrigasse a servir na cultura das terras, em minerar e nos
ofícios mecânicos, e que sejam expulsos de Minas os que não toma-
rem este modo de vida”.124
Por ocasião das medidas punitivas contra quilombolas, que tive-
ram especial intensidade nos anos de 1741, 1746 e 1757-1759, os deso-
cupados surgiram como alternativa de mão-de-obra a ser utilizada

126 , Documento avulso, APM , SC , cód. 50, fls. 81 V.


127 , RAPM , XVI , I , p. 451-2.
128 , Instruções pelas quais se devem regular os capitães-mores e co-
mandantes dos Distritos desta capitania de Minas Gerais nas prisões e
procedimentos contra os vadios e facinorosos remetidos pelo Ilmo. e
Exmo. sr. Conde de Valadares governador e capitão-general desta ca-
nas expedições repressivas. Apenavam-se então os “negros forros e
mulatos” que não tivessem “ofício, ou fazenda em que trabalhar” e
deles se faziam soldados.125 Por vadios entendia-se então “todas as
pessoas que não tiver fazendas suas, ou alheia (sic), que não tiver
ofício em que trabalhe, ou amo a que sirva”, e se lhes dava o prazo
de vinte dias para “tomar amo, ou ofício”. Em ordem de 11 de março
de 1757, o rei atribuía aos capitães dos distritos a responsabilidade
pelos delitos dos vadios, que deveriam ser punidos pelas justiças or-
dinárias.126
Para as últimas décadas do século, agravou-se o problema repre-
sentado pelo ônus da vadiagem, pois a capitania esgotava as suas
potencialidades e, mais do que nunca, via-se impossibilitada de ar-
car com os custos de reprodução daquela gente. Foi então – 1766 e
1769 – que se verificaram duas investidas consideráveis contra os
desocupados: a carta régia de 22 de julho de 1766 e as “Instruções”
acerca dos vadios. Dirigida a Luís Diogo Lobo da Silva, o teor da 155
carta régia era o seguinte:
Sendo-me presente em muitas e repetidas queixas, os cruéis, e
atrozes insultos, que nos Sertões dessa Capitania têm cometido os
vadios; e os facinorosos, que neles vivem, como foram separados da
Sociedade civil, e Comércio humano: sou servido ordenar que todos
os homens que nos ditos Sertões se acharem vagabundos, ou em Sí-
tios volantes, sejam logo obrigados a escolherem lugares acomoda-
dos para viverem juntos em Povoações Civis, que pelo menos tenha
de cinquenta fogos para cima com Juiz Ordinário, Vereadores, Pro-
curador do Conselho, repartindo-se entre eles com justa proporção
as terras adjacentes; e isto debaixo da pena de que aqueles, que no
termo competente, que se lhes assinar nos Editais que se fixarem
para este efeito, não aparecerem para se congregarem e reduzir à
sociedade civil nas Povoações acima declarada (sic), serão tratados
como Salteadores de Caminhos, e inimigos comuns, e como tais
punidos com as severidades das Leis; excetuando-se contudo pri-
meiramente os Roceiros, que com criados, Escravos, e Fábrica de

pitania em observância da ordem de vinte e quatro de novembro de mil


DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

lavoura vivem nas suas Fazendas sujeitos a serem infectados daque-


les infames, e perniciosos vadios: Em segundo lugar os Rancheiros,
que nas Estradas públicas se acham estabelecidos com seus Ranchos
para a hospitalidade e comodidade dos Viandantes, em benefício
do Comércio e da comunicação das gentes: Em terceiro lugar as
Bandeiras, ou Tropas, que em Corpo, ou sociedade louvável vão aos
Sertões congregados em boa união, para neles fazerem novos Des-
cobrimentos: Sou servido outrossim que os mesmos Roceiros, Ran-
cheiros e Tropas de Bandeira tenham toda a autoridade necessária
para prenderem, e remeterem às cadeias públicas das comarcas que
tiverem mais vizinhas, todos os homens, que se acharem dispersos,
ou seja nos ditos chamados Sítios Volantes, sem estabelecimento
permanente, e sólido, ou seja nos Caminhos, e Matos, remetendo
com eles autuados os lugares, Estado e circunstâncias, em que esti-
verem ao tempo, em que forem encontrados...127
156 Esta carta ilustra a intolerância oficial para com a mobilidade
não-controlada de indivíduos e grupos de indivíduos que não se
ajustavam adequadamente à ordem social. A itinerância represen-
tava, pois, uma ameaça, e devia ser reduzida à fixação no seio da
Sociedade Civil. Mais uma vez, o que se nota é um medo difuso
ante o incontrolável, o desenquadrado, o que foge à política da nor-
malização. Somada a isto, havia a incapacidade crescente de admitir
elementos não-produtivos – ou que se inseriam esporadicamente na
estrutura produtiva. A solução para este “peso inútil da terra” era a
concessão de terras a serem agriculturadas pelos vadios que, assim,
se metamorfoseavam em elementos úteis. Caso eles não se confor-
massem com esta medida, a repressão faria seu serviço.
Note-se ainda neste documento a necessidade de alertar para a
utilidade dos roceiros, rancheiros e tropas de bandeiras, que não de-
viam ser confundidos com “homens tão infames e tão perniciosos”
como os vadios. Esta ressalva sugere uma grande fluidez da camada
livre pobre, onde era frequente não se diferenciarem claramente os
elementos: vadios, facinorosos, rancheiros e pequenos lavradores

setecentos e trinta e quatro e da carta régia de 22 de julho de 1766 – 25-


PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

não apresentavam, portanto, características próprias suficiente-


mente definidas para marcarem o seu lugar na sociedade. Havia que
tomar precauções para não confundir a parte sã da sociedade com
a sua face corrompida – o que, mais uma vez, remete à reversibili-
dade constante do bem-classificado no desclassificado, do útil ao
oneroso.
Em 1769 se instruíram os capitães-mores e comandantes dos dis-
tritos quanto ao procedimento que deviam adotar contra os vadios
e facinorosos, que uma vez presos, seriam inquiridos conforme uma
fórmula fixa. Nesta, deveria constar o dia, mês e ano em que se ve-
rificara a prisão, o nome e cor do indiciado, o seu local de mora-
dia, o nome do indivíduo que efetuara a prisão e o de seu superior.
Seguia-se a orientação de um questionário composto pôr três itens:
“1º Item: Se o autuado vive com senhor, ou amo, ou se tem ofício
ou outro mister em que trabalhe, ou ganhe a sua vida, ou se anda
negociando algum negócio seu ou alheio, que o obrigue a residir 157
neste arraial, e há quantos dias chegou a ele e se tem moléstia que o
impossibilite de trabalhar. 2º Item: Se o autuado é ladrão, matador,
revoltoso e escandaloso. 3º Item: Se o autuado vive em arraial, ou
em sítio despovoado não tendo nele roça com fábrica de lavoura, ou
rancho para a hospitalidade dos viandantes, e se anda vagabundo
assistindo em sítios volantes”.128
Seguiam-se outras dez instruções que orientavam os capitães-
-mores e comandantes no sentido de reconhecer o ônus efetivo do
indivíduo que estava sendo preso e a sua periculosidade para o bem
comum. Para tal, não se deveriam inquirir como testemunhas pes-
soas que fossem inimigas dos autuados, pois estas poderiam faltar

IV-1769, APM , SC , cód. 163, fls. 49.


129 , Ibid. Em 1783, o tenente destacado na Vila do Príncipe, Liberato José Cor-
deiro, escrevia a D. Rodrigo José de Menezes que, apesar das “ordens repetidas para
prender vadios e facinorosos, o juiz ordinário Manuel Caetano da Silva publica-
va que soltaria, por não deverem ser presos, quanto não tivessem culpa formada
e não consentiria que entrassem na cadeia senão os presos da Justiça”. – Diogo de
Vasconcellos, História Média..., p. 238. Além destas discussões entre autoridades,
com a verdade e fazer passar por vadios elementos bem inseridos na
Ordem. Os comandantes deveriam agir movidos “do zelo de extir-
pação dos vadios”, e não por “paixões particulares”, como se tinha
notícia de que vinha acontecendo; este delito era gravíssimo por
oprimir inocentes, e os seus autores seriam considerados infratores
maiores que os próprios vadios, podendo até merecer a expulsão do
corpo militar.129 Havia também que se proceder com extremo cui-
dado no sentido de não formar autos contra “pessoas estabelecidas
nos arraiais, nem contra aqueles que foram bem reputados”.130 Os
procedimentos dos autuados – mesmo quando “públicos amance-
bados” – só interessariam e só deveriam ser arguidos caso acarre-
tassem prejuízo ao bem comum ou alteração do sossego dos povos,
pois o objeto da Instrução não eram as ações particulares de cada
um, enquanto não ofendessem ao público.131 Os autores de mortes e
roubos deveriam ser presos, mas os que incorressem em outras in-
frações só o seriam quando surpreendidos em flagrante delito: “es-
perar para matar, desafios, ferimentos graves, e ainda leves, sendo
feitos de noite, ou outros maiores....”. 132 Caso os autores de injúrias

havia os “abusos, excessos, e até despotismos que os capitães de distritos praticaram


capturando naqueles não os facinorosos para serem remetidos imediatamente às
cabeças das comarcas, o que era muito de lhes louvar, mas até todos os que infe-
lizmente incorriam na sua desgraça e que contra tais queriam derramar todo o fel
do seu ódio”... Sobre uma representação do capitão-mor de Barbacena e
providências relativas à modificação do uniforme militar . 11-6-1805, em:
RAPM , XI , 1906, p. 281.
130 , Instruções pelas quais se devem regular. .., fls.50.
131 , Ibid.
132 , Ibid, fls. 50 V.
133 , Ibid.
134 , Ibid, fls. 51.
135 , “...para que reprima aos ociosos, e vadios, fazendo que todos cuidem em
empregar-se nos seus ofícios, para que vivendo em paz, não me venham representa-
ções...” Para o capitão-mor Manuel Antunes (Ribeiro?)”, em: APM , SC , cód.
199, fls. 6 V-7. O governo do conde de Valadares foi um momento em que a política
ou de ferimentos fossem “pessoas bem morigeradas, que vivem com
sossego, e que propósito (sic) fizeram os tais ferimentos, não as po-
derão prender os comandantes, porque todas estas providencias se
encaminham à extirpação dos vadios e facinorosos, e não à vexação
dos homens bons, que por caso acidental delinquiram”.133 Por fim, a
Instrução reiterava a necessidade de se tomar o devido cuidado para
não se proceder equivocadamente com os que se achavam bem si-
tuados na ordem social: “Devem os comandantes fazer que de noite
não andem vadios fazendo distúrbios pelos arraiais dos seus distri-
tos, porém não devem impedir que andem de noite aquelas pessoas,
que vão a negócios precisos nem os criados ou escravos, que vão a
alguma parte por ordem de seus amos e senhores nem aquelas pes-
soas, que andam viajando, porque da prisão, ou rendição destas se
pode seguir gravíssimo prejuízo na demora das contas, e da entrega,
e encomendas, que levarem, ou recados a que forem mandados”.134
O que transparece nesta Instrução é a preocupação em circuns- 159
crever os homens que não trabalham ou que cometiam infrações
sérias, com o roubo – crime contra a propriedade e, portanto, gra-
víssimo – e a morte – privação da vida humana. Mas, mesmo antes
nestes dois casos extremos, havia que se levar em conta a condição
do infrator, atentando-se cuidadosamente para a sua utilidade den-
tro do sistema. Assim, mesmo quando cometessem crimes, os “ho-
mens bem morigerados” que pagavam seus impostos e possuíam
lavras ou estabelecimentos próprios, não poderiam, de forma algu-
ma, receber o tratamento que se reservava aos desocupados ou aos
trabalhadores intermitentes, elementos onerosos à Coroa sobretudo

adotada antes os vadios tomaram dimensões consideráveis. Segundo Teixeira Co-


elho, o conde acreditava que o procedimento em relação aos vadios deveria ser me-
lhor estudado. É de seu governo, como se viu, que data a Instrução acima transcrita.
Com base na prisão e no recrutamento, formou-se uma tropa de pedestres para
conter os assaltos dos índios nos presídios, sobretudo no de Cuieté. A existência
dessa tropa foi aprovada por ordem de Erário dirigida à Junta da Fazenda e datada
de 18 de novembro de 1773. Teixeira Coelho, ob.cit., p. 479.
136 , Frades e estrangeiros foram expulsos entre outras, pela ordem de 13 de maio
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

num período em que já era franca a decadência. “Perturbadores da


ordem”, “pessoas ociosas que cometem suas travessuras”, os vadios
deveriam ser, pois, reprimidos e obrigados ao trabalho.135
As atribuições administrativas dos governantes atingiram no sé-
culo XVIII mineiro uma extensão considerável, sempre marcadas
pela violência. Foi comum expulsar indivíduos da capitania e até
mesmo para outras colônias, como Benguela e Angola. Com fre-
quência, frades estrangeiros e ourives tiveram igual sorte.136 Os de-
sertores foram asperamente perseguidos, e a abertura de caminhos
passou a ser severamente controlada, prendendo-se os indivíduos
que agiam nesse sentido.137
Apesar de ter sido generalizada durante todo o período, a repres-
são variou de caráter. Extremamente violenta no primeiro momento,
quando cumpria normalizar as populações a ferro e fogo, encontrou
em Assumar e na sua luta contra negros, sediciosos e potentados um
160 governante que a exprimiu admiravelmente. Nas décadas seguin-
tes, D. Lourenço de Almeida e André de Mello e Castro ficaram
marcados na memória dos habitantes do Distrito Diamantino por
terem sido os primeiros a legislarem sobre os diamantes e proibirem
a mineração do ouro, expulsando a arraia-miúda da circunscrição.

de 1722. Coleção sumária das próprias leis ..., em: RAPM , XVI , p. 461.
137 , “Porquanto me consta que sem ordem de S. Majestade, nem minha, se tem
principiado a abrir caminho pela Jeruoca para o Rio de Janeiro, ordenado ao sar-
gento-mor Manuel Rois Pereira faça toda a diligencia por si, capitães-do-mato e
mais gente necessária para prender as pessoas que constar andam na dita abertura,
e os remeterá presos à minha ordem à cadeia desta Vila, dando-me conta com des-
tinação da parte que cada um tiver neste delito”. Ordem do capitão-general” .
17-I-1743, em: APM , SC , cód. 69, fls. 35.
138 , Cf. Maxwel, op.cit., p.120 e sgs.
139 , É o caso de Diogo de Vasconcellos, que ele diz: “... mas a verdade é que abateu
os poderosos, exaltou os humildes e conteve o país na melhor ordem, entregando
a seu sucessor o governo respeitado e a lei acima das paixões”. História Média..., p.
198.
140 , Dando-se o desconto devido à clara simpática que o liberal Diogo de Vascon-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Gomes Freire foi o paladino da capitação e o arregimentado dos


povos, que enviava para as guerras do Sul; além disso, investiu vi-
gorosamente contra os quilombos que proliferaram na sua gestão.
Os governos de Luís Diogo, Valladares, D. Antonio de Noronha e
D. Rodrigo José de Menezes destacaram-se dos demais pela presen-
ça marcante que ai tiveram os desclassificados. É desta época que
data a preocupação plenamente configurada com os vadios, o ônus
que representavam e as diversas possibilidades de serem utilizados,
atenuando assim os efeitos da decadência. Com suas considerações
sobre o exercício do governo e da justiça na capitania, D. Rodrigo
nos deixou um retrato bastante diferente do que ficou com Assu-
mar: a época era outra, e, mais do que nunca, havia que misturar
o agro com o doce, disfarçar a firmeza do mando sob aparência da
temperança e da concórdia.
Cunha Menezes ocupou, neste contexto, um lugar à parte. Tanto
as Cartas Chilenas como o que sobre ele se escreveu fazem pensar 161
em uma curiosa política populista que aproveitava os naturais da
terra, os mulatos desraçados e desclassificados que tanto horrori-
zaram em espirito estamental e conservador como o de Gonzaga.
O Fanfarrão Minésio apoiou-se neles para militarizar a capitania e
fazer frente aos oligarcas que afastara do poder, sobretudo os que se
achavam envolvidos no contrabando.138 Ficou odiado pelos povos,
como odiados ficaram Assumar e, segundo alguns depoimentos,
Valladares.139 Mas os “povos” que se odiaram não foram os pobres
mestiços miseráveis, nem os índios confinados, nem os negros ca-
tivos: foram os potentados, que viram nos governantes mais auto-
ritários ferrenhos opositores de suas pretensões autonomistas. É
evidente que esses governos não serviram aos pobres, pois a tal não
se destinam os governos absolutos; o que parece certo, entretanto, é

cellos votava ao tirânico Assumar, são interessantes as suas considerações acerca


deste governante: “Mesmo sem praticar ato algum notório de tirania. Já passava
por tirano, só porque não admitia nem dissimulava a influência perniciosa dos Mi-
nistros e funcionários relapsos; e admira que, sendo toda a sua política dirigida
para livrar o povo em geral de seus opressores, chamando à ordem os potentados e
os pequenos déspotas, a tanto se inimizasse desde o princípio de seu governo: fato
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que a marca despótica que deles se registrou deveu-se mais ao fato


de terem colocado o poder da Coroa acima dos interesses locais do
que aos desmandos que cometeram contra mazombos e negros.140
C , O fiscalismo , A rede de tributos com que Portugal envolveu
o Brasil foi de extrema importância para a sua fazenda: assim, os
dízimos, os direitos de entradas, os direitos de passagens, o subsídio
voluntário e o subsídio literário.141 Nenhum deles entretanto teve a
dimensão atingida pelas diferentes formas com que o Estado arre-
cadou ouro e diamantes. Desde os primeiros tempos, a mineração
foi rigorosamente disciplinada por um órgão criado a fim de super-
visionar a arrecadação dos tributos: a Intendência das Minas, diri-

que bem demonstra o valor específico, que têm os grandes. Satisfeitos esses, poderá
qualquer governo passar por liberal e amado ainda que oprima os pequenos; eis
que no conter e coagir a prepotência daqueles é que está a tirania”. Em: História

162 Antiga..., p. 318-9. É preciso não esquecer que, sendo Pascoal da Silva Guimarães –
mineiro milionário – o cabeça do motim de 1720, o supliciado foi o pequeno artesão
Filipe dos Santos.
141 , Os dízimos, arrematados inicialmente no Rio, passaram para as Minas em
1714; pertenciam ao rei, Grão-Mestre de Ordem de Cristo. Os direitos de entradas
remontam ao tempo de D. Brás Baltazar, e foram introduzidos para ajudar o quinto.
Os direitos de passagens eram cotas exigidas das pessoas que transitavam por al-
guns rios da capitania, e foram estabelecidos a partir de 1711. O subsídio voluntário,
renovado constantemente pelos mais diversos motivos, foi inicialmente estabeleci-
do por ocasião do terremoto de 1755. O subsídio literário passou a vigorar a partir de
1773, e visava custear a subsistência dos professores régios da capitania; era cobrado
sobre a aguardente da cana e o gado, entre outros gêneros. O recolhimento dos dé-
bitos era geralmente feito por contratadores, que uma vez satisfeitas as necessidades
da Coroa, recolhiam o excedente para si.
142 , Para sistema de impostos a tributação das Minas, ver Pandiá Calógeras, As
minas do Brasil e sua legislação, Rio, 1904-05, 3 vols. O assunto é tratado resumi-
damente por Caio Prado Jr., História econômica do Brasil, cap. A mineração e a
ocupação do centro-sul ; Boxer, A idade do ouro do Brasil, cap. Vila Rica de
Ouro Preto.
143 , Memórias do Distrito Diamantino, 3ª ed., Rio de Janeiro, 1952, p. 57. Referin-
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gida por um superintendente e que, com independência em relação


ao governo da capitania, subordinava-se diretamente a Lisboa: a ela
deviam ser imediatamente comunicadas as descobertas de jazidas.
A tributação do ouro se verificou de início sob a forma de cobran-
ça por bateias. Depois, surgiu a capitação, que recaía sobre qualquer
escravo empregado nos trabalhos auríferos. Por fim, instituíram-se
as Casas de Fundição, onde se recolhia, fundia, se reduzia a barras
e se quintava todo o ouro produzido. De lá, deduzido o quinto, era
devolvido aos proprietários. O ouro que circulasse em pó, pepitas
ou barras não quintadas era proibido, e punido todo aquele que o
detivesse.
Nas Minas, a Fundição vigorou de 1725 a 1735; interrompida até
1751 pelo sistema de capitação, voltou então a funcionar, sendo o
sistema de quintos definitivamente restabelecido até o final do pe-
ríodo.142
Comentando o fiscalismo, Joaquim Felício dos Santos dizia que “a 163
sorte dos povos era indiferente ao Governo, quando se tratava dos
interesses da fazenda”. E acrescentava: “Devia-se deixar ao povo os
únicos meios de subsistência: o mais se lhe tomava a bem da metró-
pole”.143
De fato, os mineiros foram massacrados pelos tributos enquanto
houve ouro para extrair da terra. Desde a primeira adotada, todas as
formas de arrecadação foram injustas; a de bateias onerava as lavras
pobres com numerosos escravos e favorecia as ricas onde trabalhava
um menor número de cativos: não incidia, portanto, sobre o produ-
to, mas sobre a mão-de-obra. Mas foi a capitação que mais revoltas

do-se aos detalhes e minúcias do sistema fiscal, diz o autor: “... pôs-se em execução
tudo o que o gênio migalheiro do despotismo podia inventar...” – ob.cit., p. 73.
144 , Para Diogo de Vasconcellos, a origem das revoltas ocorridas na década de
1730 no sertão do São Francisco deve ser buscada neste sistema: “Taxando os ne-
gros e mulatos forros, e não somente os escravos, tornou-se um vexame insupor-
tável e deu azo a práticas extravagantes. Os brancos não pagavam a taxa, e como
por graciosa mercê de S. Majestade os índios equiparavam-se aos brancos queriam
isentar-se; mas os mamelucos, filhos de índios e brancos, foram havidos por mu-
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provocou. Neste sistema, os mineiros cujos escravos tivessem sorte


na mineração pagavam sobre cada escravo a mesma quantia que pa-
gavam os mineiros cujos escravos pouco ou nada ganhavam, e que
constituíam a maioria da população. Os negros, mulatos e mestiços
livres que não possuíam escravos deveriam pagar a taxa sobre si
mesmos. 144 As lojas de comércio pagavam capitação mais elevada,
e do imposto só ficavam isentas as crianças menores de quatorze
anos e os escravos que trabalhassem para oficiais, ministros régios
e eclesiásticos.145 Todo escravo deveria ser matriculado, ou seja, ter
o seu nome oficialmente registrado; fosse ou não extraído ouro, o
imposto seria pago por cativo – per capita.
Contra a capitação se levantaram as câmaras mineiras em repre-
sentações dirigidas à Coroa. O imposto, diziam, era cobrado “sem
que daí se extraia outra coisa mais que prantos, clamores e ruínas
populares”, não resultando qualquer proveito à Real Fazenda.146
164 Respeitosos, os vassalos não contestavam o direito real de cobrar
tributos, pedindo apenas uma reformulação, pois achava-se o “povo

latos e caíram na taxa (…). A massa do povo, quase toda de mestiços, paupérrima,
exasperou-se”. História Média, p. 96-7.
145 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, v. I , p. 62. Mawe, ob. cit., nota à p.176.
146 , Impostos na capitania mineira – clamores e súplicas das câmaras
em nome do povo, em: RAPM , II , p. 287-309. Representação datada de Vila Rica,
5-VII-1711, p. 287.
147 , ... por todo Direito divino e humano, reconhecemos que se deve
tributo ao V. Majestade, o qual consiste na contribuição dos povos em
reconhecimento do Senhorio do Seu Monarca de quem depende toda sua
conservação... Vila Nova da Rainha, 1-VIII-1742, em: RAPM , II , p.288.
148 , Representação da Vila de São José, 30-VIII-1744, RAPM , II , p.294.
149 , Representação de São João del Rei, 17-X-1744, em: RAPM , II . A câmara de
Sabará aborda os mesmos temas, com pequena variação: “Os cegos que vivem de
esmolas pagam de um tal, ou qual escravo, que guia sua cegueira, o que, por grande
pobreza da terra se lhe faz muito penoso”. Sabará, 17-X-1744, p. 302. E sobre as pros-
titutas: “Inumeráveis mulheres pretas e pardas são a capitação por suas pessoas por
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deste continente reduzido à última miséria no modo ou forma com


que se acha estabelecido (sic) a capitação (…) pois sente maior gra-
vame o pobre, que o rico...”. 147
Com o avançar do período, crescia a dificuldade em pagar o im-
posto; o ouro rareava, e muita mulher forra era levada à prostitui-
ção: “Que a tantas calamidades se seguem prantos, e lamentos (com
naturais do outro sexo) de tantas mulheres forras, pardas e negras
crioulas, e adventícias, que protestando nas Intendências sua po-
breza, e necessidade, confessam no mesmo tempo o seu pecado, o
ilícito meio com que dizem foram precisadas a adquirir aquele ouro;
outras com mais lágrimas que palavras dão alguma pequena peça
de ouro do seu pobre adorno”.148 Os senhores se viam impossibi-
litados de sustentar seus escravos, que famintos e nus assaltavam
as roças e os caminhos. As câmaras se queixavam da extensão que
o tributo alcançara, quando em princípio deveria ser pago apenas
pelos mineiros: “... pagam quintos o negro, negra, mulato e mulata 165
forros que não têm escravos com que tirem ouro; pagam quintos os
escravos doentes, posto que lhes dure a queixa um, ou dois anos, pa-
gam os fugidos, porque importa mais a justificação do que o tributo,
e também pagam todos os escravos, que se ocupam no serviço eco-
nômico das famílias, sem darem a seus senhores utilidade, até o es-
cravo do miserável cego mendicante paga, e também as meretrizes
querem fazer da capitação necessidade para as ofensas de Deus”.149
A generalidade do tributo obrigava, assim, a ir “contra a lei de Deus
a mesma lei”, o que deveria dizem as câmaras, levar as autoridades

não terem algum escravo, é certo, vivendo estas de ofensas de Deus, necessariamen-
te a sua contribuição há de sair do pecado.” Ibid.
15o , Representação de Vila Nova Rainha, 10-X-1744, p.304.
151 , Teixeira Coelho, ob. cit., p. 451.
152 , A expressão é utilizada por Boxer em The Portuguese Seaborne..., cap. Mer-
chants, monopolists, and smugglers , p. 337.
153 , Cf. Maxwell, ob.cit., p. 188 Boxer, A Idade do ouro..., diz: “Grande número de
arraia-miúda foi apanhado, mas ninguém ousava apresentar testemunho contra as
pessoas poderosas que estavam contrabandeando em larga escala, e que, quase sem-
a refletirem sobre a violência do tributo.150
Empobrecidos por “multiplicadas extorsões” e reduzidos a um es-
tado de extrema pobreza, os vassalos de Sua Majestade se lançaram
frequentemente no contrabando.151 Este foi, durante todo o período
em que se extraiu ouro, a “maior dor de cabeça fiscal” da Coroa. 152
Para combatê-lo, esta empreendeu uma luta desesperada contra os
caminhos clandestinos que então proliferavam, contra as casas de
cunhagem falsa, contra os extraviadores de ouro em pó. Muito dos
fraudadores foram homens importantes que tiveram seus atos aco-
bertados pela própria administração colonial; 153 outros, a maioria,
eram os miseráveis que o sistema econômico, a justiça iníqua e o
fisco extorsivo lançaram nas fímbrias da sociedade. Dentre estes –
pequenos faiscadores furtivos e mineiros clandestinos –, houve os
que, com seus conhecimentos, acabaram prestando serviços ao Es-
tado, para ele descobrindo minas de ouro e de diamantes.154 Even-
tualmente agraciados com a clemencia, foram, na maior parte das

pre, trabalhavam de acordo com os funcionários do governo, que deviam obrigá-los


a acatar a lei”, p. 219.
154 , Cf. Mawe, ob.cit., p. 244-5. Entre outras, o viajante narra a história de des-
coberta do diamante do Rio Abaeté, encontrado “por três homens condenados ao
banimento por crimes capitais” e que, com isso, conseguiram a absolvição, p. 145-6.
Eschwege contesta o caráter criminoso que Mawe imputara a esses homens. Cf.,
ob.cit., p.1 59.
155 , “Carta do conde de Valladares ao Morgado de Mateus, sobre extravio de
diamantes”. – 1-VIII-1771, em: DI , 1895, p. 275. Diz Joaquim Felício dos Santos: “Era
essa política do tempo. Muitas vezes o governo baixava-se a transigir com os cri-
minosos, que galardoava e premiava, quando daí podia resultar interesses a bem do
fisco”. Ob.cit., p.58.
156 , “...terá pena de vida, e traidor ao Príncipe Nosso Senhor qualquer pessoa
de qualquer qualidade, ou condição que seja que levar ouro em pó fora desta vila
sem quintar...” – Regimento das terras minerais de 27 de abril de 1680 , em:
RIHGB , LXIV, p. 51.
157 , Carta régia de 11-II-1719, em: RIHGB , VI , p.207.
158 , Termo que fazem Manuel José de Freitas e Manuel Carvalho da
vezes, tratados como “terríveis e abomináveis delinquentes a quem
cumpria prender, macerar, banir.155 Desde os primeiros anos da mi-
neração, foram tidos como traidores do Príncipe a quem cabia tirar
a própria vida.156 Mais tarde, o rei determinou que, além do confisco
de seus bens e do ouro que tivesse consigo, o extraviador de ouro
em pó ou em barra seria degredado para a Índia por período de 10
anos.157 Muitas vezes, uma simples suspeita bastava para atirar o
indivíduo na desgraça. Assim aconteceu a Manuel José de Freitas e
Manuel Carvalho da Cunha, que “por alguma suspeita de que pro-
curavam ou ocultavam diamantes no Distrito Diamantino aonde
foram presos, o que não se pôde verificar ou legalizar de modo que
lhes resulte culpa para maior procedimento”. Foram soltos após al-
gum tempo, sendo despejados dos territórios e se comprometendo a
não entrar mais nos “matos e sertões devolutos com o pretexto de se
apossarem de terras sem licença competente”.158
Às tentativas de refrear o contrabando deveu-se muito da flutu- 167
ação do sistema tributário. Como já se viu no capítulo 1, há quem
diga que o contrabando correspondeu mais a um subterfúgio do
que à realidade. Teixeira Coelho abraçou esta posição: para ele, a
extrema penúria dos mineiros era o maior óbice ao contrabando,
que, quando verificava, dizia respeito a quantias ínfimas.159 O de-
sembargador apresentava ainda uma engenhosa explicação para o
uso de ouro em pó, que, de certa forma, era por ele defendido a mi-
séria em que vivia a maior parte dos mineiros e o fato da população
ser composta basicamente por faiscadores que extraíam diariamen-

Cunha de despejo e inibição na forma abaixo declarada . 9-II-1795, em:


APM , SC , cód. 89, fls. 93.
159 , Teixeira Coelho, ob.cit, p.499.
160 , Mafalda Zamella, O abastecimento da capitania de Minas Gerais, p. 165.
16 1 , Joaquim Felício dos Santos é da mesma opinião: “... em geral não era o minei-
ro quem exercia o contrabando: gente pobre, sempre perseguida pelos credores, não
podia acumular grande quantidade de ouro em pó que fizesse conta mandar, sem
pagar o quinto, às praças marítimas. Quando o mineiro extraía uma oitava, quase
sempre acontecia que oitenta eram para pagar as despesas da produção, e vinte para
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te apenas alguns vinténs de ouro justificavam o emprego do ouro


em pó como moeda: Essa gente miserável, quando encerrava o dia
de trabalho, passava pelas vendas para adquirir algo necessário ao
sustento cotidiano. Jamais chegava a juntar uma quantia de ouro
em pó suficiente para levar à Casa de Fundição e transformá-la em
moeda em barra”.160 Daí a insistência das populações na utilização
do ouro em pó.161
Através de Mato Grosso e Goiás, nessa época de fronteiras esfu-
maçadas, o ouro e os diamantes eram trocados por prata espanhola,
a região sendo particularmente acolhedora para “contrabandistas e
libertinos”.162 Neste tipo de transação, os ingleses tiveram, ao que
tudo indica, um papel importante.163
Disseminado por toda a colônia e especialmente dirigido, no sé-
culo XVIII , para as Minas, foi entretanto no Distrito Diamantino
que o Fisco mostrou sua face mais cruel e violenta. Demarcado e
168 cercado a partir de 1734, o território diamantífero foi o exemplo mais

o quinto: nada lhe ficava de reserva para tentá-lo ao contrabando”. ob.cit., p. 126.
162 , Os diamantes e o ouro eram conduzidos por “Cuiabá Mato Grosso Índias
de Espanhóis pelo troco da imensa prata que por aquelas partes se franqueia pelos
contrabandistas e libertinos”. Carta da câmara de Tamanduá :..., em: RAPM ,
II , p. 378.
163 , Ver Maxwel, Pombal, and the nationalization of the Luso-Brazi-
lian economy, em : HAHR , XLVIII , n.4, 1968, p. 608-31.
164 , Sobre o Distrito Diamantino, disse Martius: “Única na História, esta ideia
de isolar um território no qual todas as condições de vida civil de seus habitantes
ficassem sujeitas à exploração de um bem da Coroa”, segundo Caio Prado Jr., For-
mação..., p. 182.
165 , “Administração diamantina...”, in: RAPM , II , p. 149.
166 , Eschwege, ob.cit., p. 148.
167 , Administração diamantina , p. 150. “Ninguém podia julgar-se seguro em
sua casa. O senhor via com desconfiança no escravo um inimigo oculto que denun-
ciando-o obtinha a liberdade e partilhava seus bens com a fazenda real. A devassa
geral, que se conservava sempre aberta, era como uma teia imensa, infernal, susten-
tada pelas delações misteriosas, que se urdia nas trevas, para envolver as vítimas,
vivo da violência alcançada pela máquina administrativa colonial,
da iniquidade da sua Justiça, da arbitrariedade de suas medidas.164
O seu governo se dirigia diretamente a Lisboa, independendo do
capitão-general das Minas, com quem entrava frequentemente em
atrito, e a quem respondia apenas no plano militar. Frequentes nas
outras partes da capitania, os abusos atingiram ali limites nunca
vistos: “eis aqui as tristes consequências e a fácil abusão, que só pode
fazer de amplas jurisdições cometidas a indivíduos para as irem
exercer tão longe do trono: sujeitos pequenos, e iguais ao pó da terra
diante de V. Majestade, longe dela se fazem arrogantes, e insolentes
despostas...”.165 Violento ao extremo – lei “mais digna de brilhar no
Império Turco do que em um Estado cristão” 166 – o Regimento dos
Diamantes provocava também a desagregação das relações sociais,
instaurando o pânico e o hábito da delação entre os habitantes. Es-
tes, em 1799, pediam à rainha que lhes restituísse “a paz, o riso, a
alegria, e o amor à comunicação, pois entre nós presentemente reina 169
a desconfiança uns dos outros; os parentes se receiam dos parentes,
os amigos dos amigos, e que vivemos como é próprio, que vivia um
povo, onde não existes regras certas de justiça, onde habita a adu-
lação, e onde uma só palavra faz a ruína de uma família inteira”.167
Arrancados de suas terras, impedidos de delas extraírem qual-
quer riqueza, os habitantes da Demarcação encaminharam várias
queixas às autoridades, mostrando-lhes como ficavam deslocados
e sem emprego num lugar onde só havia olhos para diamantes. Se-

que muitas vezes faziam a calúnia, a vingança particular, o interesse e a ambição dos
agentes do fisco”. J. F. Santos, ob.cit., p. 142.
168 , Administração diamantina ..., p.145. “Como a mineração do ouro, que
era o principal recurso dos habitantes da demarcação, fora quase completamente
proibida, resultou abundar o número de escravos e operários, que ficaram desocu-
pados: a consequência foi a miséria de muitos. Era o pauperismo, que se procurava
por todos os meios estabelecer no solo mais rico do Brasil”. Joaquim Felício dos
Santos, ob.cit., p. 179.
169 , Ibid, p. 161. “Hoje, o Intendente determina a expulsão de um infeliz na sua
sala, no seu passeio, no meio dos seus deleites, e regozijos, e no mesmo instante é
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ria justo, perguntavam, que, “cobertos de misérias e necessidades”,


pisassem “um chão rico, cuja riqueza a terra cobre, e a constitui inú-
til para os seus moradores”? 168 Afetados ao máximo pelo arbítrio,
deixaram formuladas com clareza as causas que provocavam a sua
desclassificação, pedindo ao Príncipe Regente que suspendesse a
pena de banimento e morte civil infligida a inúmeros dentre eles,
atentando para o despovoamento que vinha sofrendo a região e
para a “miséria, e desgraça extrema de numerosas famílias errantes,
foragidas, e enfim banidas por crimes que o ódio tem armado, a
quem o desterro, e degredo equivale a todos os horrores da morte”;
pedia que restituísse “cidadãos úteis ao Estado, maridos às esposas
desamparadas, pais a filhos mendigos, e enfim a serenidade e a paz
a um povo atormentado e oprimido...”, insinuando que os banidos
da demarcação caíam com frequência na mais completa miséria.169
Os homens livres pobres –“casta de gente toda forra”, conforme
170 dizia D. Lourenço de Almeida170– foram perseguidos pelas suspei-
tas constantes de mineração clandestina de diamantes, preocupa-
ção essa que as inúmeras leis e bandos refletem admiravelmente.
Assim, Manuel da Silva, morador no Arraial de Congonhas do

arrancado do interior da sua casa, dentre os braços da esposa, dos filhos, ou do pai
de cima daquela terra, que pisou nascendo, é arrastado a uma prisão e daí, depois de
saciado o Intendente com os dias de prisão, que lhe parece é conduzido manietado
à casa do Escrivão dos Diamantes, onde ele mesmo firma com seu próprio punho a
sentença do seu desterro”. Administração diamantina ... p.146.
170 , Documentos relativos ao descobrimento dos diamantes na Co-
marca do Serro Frio copiados e conferidos por Augusto de Lima Em:
RAPM , VII , 1902, p. 280.
171 , Termo que fazem Manuel da Silva e Alexandre Leitão na forma
abaixo declarada . 20-IV-1795, em: APM , SC , cód. 89, fls. 97 V-98 V.
172 , Ver, a respeito: Bando de 9-I-1732, Sobre despejo e confisco nos terre-
nos diamantinos , em: Documentos relativos ..., p. 275-6; Bando de D. Louren-
ço de Almeida a respeito dos negros forros e vagabundos, s.d., em: RAPM , VII , p.
336-7; Ordens sobre negras de taboleiros, mestiços e escravos, in: APM, SC, cód. 50,
fls. 38 V-39; Bando de Gomes Freire de 22-V-1745, em: APM , SC , cód. 69, fls. 47-47 V.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Campo, e Alexandre Teixeira Leitão, da Vila do Tamanduá, ambos


crioulos e presos por terem entrado no território diamantino do In-
daiá. Recolhidos à cadeia de vila Rica, foram designados para servir
no presídio do Cuieté, devendo antes assinar um termo em que se
comprometiam a “não entrarem mais em tempo algum em nenhum
dos territórios diamantinos que se acham vedados...”.171 Mais do
que nas outras comarcas, foram também numerosas no Distrito
Diamantino as leis contra negras de taboleiros e vendas próximas
às lavras, tidas como locais suspeitos onde se efetuavam transações
ilícitas com pedras.172
Esquadrinhando córregos ocultos e serranias desoladas, patru-
lhando os caminhos e as lavagens de diamantes com seus famosos
dragões, o Fisco se fazia odiado e se preocupava apenas com a ex-
tração. A Coroa tinha suas razões para proibir a mineração do ouro,
para decretar o banimento e a morte civil de qualquer suspeito, para
perseguir incansavelmente os traficantes. 171
E o monarca, “antes ele quererá ver o distrito diamantino despo-
voado de seus moradores do que tornarem estes às suas passadas
traficâncias de diamantes...”. 173 Assim, se preciso fosse, a Coroa fa-
ria do Tijuco uma terra de ninguém, pais estranho em que os prin-
cipais protagonistas não eram os homens, mas as pedras preciosas.
Situação anormal, houve quem a denunciasse com desespero:
“Qual foi o meu crime? Tirar diamantes da terra. Mas quem foi que
ai os escondeu, senão Deus, para nós com nosso trabalho irmos pro-
curá-los? Que direito, portanto, há para se nos proibir a mineração?
Deus criou os quatro elementos para gozo dos homens: o ar que

173 , Segundo Joaquim Felício do Santos, ob.cit., p.92.


174 , Carta escrita em São João del Rei a 15-II-1796 por um indivíduo despejado,
que se dirigia a um seu irmão residente no Tijuco. Segundo Joaquim Felício dos
Santos, p. 266.
175 , A devassa da devassa, p. 89.
176 , É preciso não esquecer que houve nas Minas um tipo muito peculiar de po-
tentado: o mestiço enriquecido de que Afonso Arinos e Eduardo Frieiro nos dão
uma ideia romantizada em O mestre de campo e Mameluco Boaventura, respecti-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

respiramos, a água que bebemos, o fogo que nos aquece, e a terra


para dela tirarmos todo o proveito, já cavando-lhe as entranhas para
extrairmos os minerais e pedras preciosas, já cultivando-a para ali-
mentarmo-nos, já caçando nas suas matas e campos. Sou proscrito
e criminoso por ter querido gozar dos benefícios concedidos pela
Providência...”. 174

3. OLIGARCAS E POTENTADOS , Extremamente forte em


muitos pontos da colônia, o papel desempenhado pelos potentados
e pelos oligarcas foi, nas Minas, tênue. A presença marcante do Es-
tado, os olhos vigilantes do fisco, as violências da justiça coloca-
ram, de certa forma, os poderosos num respeitoso segundo plano.
Na História ficaram os nomes de Manuel Nunes Viana, Pascoal da
Silva Guimarães, Domingos Rodrigues do Prado, Francisco Ama-
ral Gurgel, Maria da Cruz, todos eles pertencendo ao momento que
172 antecedeu a instalação dos aparelhos de poder, ou, sendo seus con-
temporâneos, habitando o sertão longínquo onde raramente che-
gavam os homens do governo. É verdade que participaram dos le-
vantes havidos nas primeiras décadas da história mineira: a guerra
dos emboabas, o levante de Pitangui, o de Vila Rica, o do sertão do
São Francisco. Com eles, a Coroa não transigiu, se bem que nunca
lhes tenha dado a pena máxima que reservava aos bastardos, forros
e carijós. SE muito conservaram suas fazendas, o seu prestígio só foi
tolerado até o ponto em que podia ser absorvido pelo Poder Central:
nunca além.
Como era de praxe no Brasil, estes poderosos tiveram sua polí-
cia pessoal, composta de elementos socialmente desclassificados.
Algumas vezes, chegaram a exercer a justiça e a violência parale-
lamente ao governo; mesmo aí, compuseram harmoniosamente a
rede de poder que envolvia as Minas, perseguindo negros fugidos e

vamente.
177 , Cf. Bando de Gomes Freire – Tijuco, 22-V-1745, in: APM, SC, cód. 69, fls. 47-
47V; “Edital que foi a todos os capitães-mores, ouvidores, comandantes pagos dos
os matando por conta própria. Os únicos casos de oposição frontal
ao sistema disseram respeito à arrecadação dos tributos, e o mais
famoso deles foi o de 1789.
Então, já no final do período, os poderosos compunham uma ver-
dadeira oligarquia, perfeitamente inserida na estrutura de poder até
o governo de Cunha Menezes: Alvarenga Peixoto era um fazendei-
ro importante, como o era Álvares Maciel; Gonzaga era o Ouvidor
todo-poderoso de Vila Rica; Cláudio Manuel da Costa, secretário
de vários governadores, era o intelectual oficial da capitania, respei-
tadíssimo; Rolim pertencia a uma destacada família do Tijuco que,
segundo Maxwell, andava às voltas com contrabando de diamantes.
175
O próprio arrematante dos contratos, o milionário João Rodri-
gues de Macedo, estava envolvido na sedição. Tratava-se portanto
de um grupo poderoso que só discordara da estrutura de poder
quando se vira afastado de seus privilégios e onerado pela taxação,
com a qual a situação financeira de vários deles não podia arcar. 173
A crise em que já entrava o sistema colonial é que tornou grave o
conflito.
Não se pode, assim, falar de confronto radical entre potentados e
governo, senão em alguns casos esporádicos e que, como já foi dito,
fizeram a fama de déspotas de alguns governadores. Região ponti-
lhada por arraiais e vilas, as Minas não propiciaram a emergência
de figuras clássicas de potentados, como foram, entre outros, os do
sertão baiano do São Francisco.176
Esta situação peculiar à zona mineradora teve seus desdobramen-
tos. Em primeiro lugar, uma dependência maior da população ante o
Estado, pois não há poder que intermedeie esta relação. Além disso,
a fragilidade dos laços paternalistas, que se fizeram fortes em outros
pontos da colônia. Aqui, o Estado é o Pai-Patrão todo-poderoso, o

desta (comarca?) e mais guardas dos registros”, 20-IX-1767, in: APM, SC, cód. 50, fls.
126V; Aristides de Araújo Maia, op.cit., p. 42; José Joaquim da Rocha, op. Cit., p. 507.
178 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p.211.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

defensor e o algoz que dispõe livremente da sorte da arraia-miúda.


Mais presentes do que em qualquer outra parte da colônia, as su-
perestruturas de poder tiveram importância extrema no processo
de consolidação do domínio metropolitano nas Minas. Zona de
destaque para o Estado absolutista português, foi envolvida por
uma verdadeira rede de que faziam parte o aparelho administrativo,
a justiça, o fisco. Estes, para melhor cumprirem seu papel, contaram
com o apoio da camada dominante: os camaristas amedrontados
ante a ameaça constante dos escravos fugidos, dos mineiros expul-
sos das lavras de diamante, dos vadios maltrapilhos e esfomeados.
Serviram-se do Pânico difuso que assolou com frequência os “ho-
mens bons”, e com violência e arbitrariedade superaram os eventu-
ais danos provocados pelas incursões de quilombolas, pelos crimes
e desordens dos desclassificados. Monstro tentacular, introjetou a
repressão, semeou o hábito de delatar, criou informantes. Muito
174 desclassificado pereceu entre suas engrenagens, e outros tantos aí
se engendraram. E esta foi a contradição máxima que acompanhou
o Poder enquanto agiu sobre as Minas: instrumento pacificador,
muitas vezes fomentou a revolta; elemento de normalização, criou
com frequência situações absurdamente anormais, como no caso da
Demarcação Diamantina; visando, na teoria, a paz e o sossego dos
povos, proporcionou uma situação estável apenas para a camada
dominante, deixando os povos – na acepção verdadeira da palavra
– entregues à justiça, à iniquidade, à violência, originárias muitas
vezes de seus próprios aparelhos
Assim sendo, a administração serviu, em primeiro lugar, à Metró-
pole, e depois, na medida em que havia consonância de interesses,
aos homens bons. A justiça supliciou com a pena máxima a popu-
lação negra e mestiça, os naturais da terra que criavam a riqueza
ilusória que se dissolvia no além-mar. O fisco, instrumento máximo
da extorsão, recaiu com mais peso sobre os que não tinham voz para
protestar.
Estes, os danados da terra, os desclassificados que morriam de
fome numa terra onde tanta riqueza era gerada, foram o inimigo
interno que cumpria enquadrar, normalizar, cercear. Quando a si-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

tuação econômica piorava, quando os rendimentos do ouro e do


diamante caíam, quando os mecanismos do poder se acirravam
para tentar extrair mais lucro, as autoridades só enxergavam o lado
oneroso de sua existência: eram no dizer de Gomes Freire as “pes-
soas avulsas que só serviam para fraudar a Real Fazenda”, eram os
desertores inclinados à vida ociosa “e só de peso para o país por que
transitam”, era a “gente ociosa que só servia para consumir víve-
res e contrabandear”, eram os vadios sem exercício que, como tais,
mostravam-se perniciosos ao Estado.177 E aí, tornando-se intolerá-
veis, a repressão incidia mais violentamente sobre eles na forma da
pena de morte, das sucessivas ordens de prisão, das Instruções que
norteavam a sua captura, das tropas formadas para defender os pre-
sídios – medidas mais frequentes no momento em que a derrocada
econômica foi mais sensível.
Mas, repentinamente, o elemento oneroso da véspera podia se
metamorfosear no sertanista corajoso e atrevido, bom para povo- 175
ar lugares longínquos infestados de índios, para descobrir veeiros
perdidos nas distâncias, para rechaçar o castelhano belicoso que
pressionava a fronteira. No momento em que acirraram as tensões
entre as metrópoles europeias, intensificando-se a disputa pelas
possessões coloniais, a questão hispano-portuguesa da colônia do
Sacramento fez com que os indivíduos onerosos se tornassem úteis.
Servindo mais para “alimpar” a capitania das Minas do que “para
socorrer a outra”, os desclassificados foram recrutados aos magotes,
aos magotes despejados sobre o Sul. “São interessantes estes gover-
nos absolutos”, comentaria, ante essa política oscilatória, um histo-
riador liberal, “na paz a pátria pertencia só aos nobres brancos, mas
na guerra serviam-lhe todas as cores!”.178
Assim, quando o ônus se fazia sentir mais intensamente, a res-
posta era a repressão pura e simples, as execuções sumárias, o ba-
nimento e as prisões. Quando havia entretanto uma possibilidade
do Estado tirar partido dos desclassificados, a utilidade mostrava
a sua face. Envolvidos pelas redes da violência e do arbítrio, os des-
classificados eram os protagonistas miseráveis de um jogo que se
desenrolava além de seu alcance.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

176
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

VI , OS PROTAGONISTAS DA MISÉRIA
Ora pois, louco chefe, vai seguindo
A tua pretensão: trabalha, e força
Por fazer imortal a tua fama;
Levanta um edifício em tudo grande;
Um soberbo edifício, que desperte
A dura emulação na própria Roma
Em cima das janelas e das portas
Põe sábias inscrições, põe grandes bustos;
Que eu lhes porei por baixo, os tristes nomes
Dos pobres inocentes, que gemeram
Ao peso dos grilhões; porei os ossos
Daqueles, que os seus dias acabaram
Sem Cristo, e sem remédios no trabalho.
E nós, indigno chefe, e nós veremos, 177
A quais destes padrões não gasta o tempo.
Cartas Chilenas.

1. ASPECTOS GER AIS DA POPULAÇÃO


, Citada exaustivamente pelos estudiosos da história mineira, a
tabela de população referente ao ano de 1776 acusa a existência de
70.769 brancos, 82 mil pardos e 167 mil pretos, somando 319.769 in-
divíduos.1 Convertidos em porcentagens, estes números significam
22,09% de brancos, 25,67% de pardos e 52,22% de negros, ou seja,
uma população onde mestiços e negros passavam 77,9%.
A flagrante superioridade numérica da população de cor seria
característica da capitania mineira durante todo o século XVIII . Já
nos primeiros anos de sua história, “a massa branca era compara-
tivamente diminuta”, os escravos somando 27.909 em 1716 e 35.094

1 , População da província de Minas Gerais , em: RAPM , IV, p.294-6; Es-


chwege, Pluto Brasiliensis, v. II , p. 455; José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 511. Os
historiadores que tratam da história mineira utilizam invariavelmente essa tabela.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

indivíduos em 1718.2 Entre 1735 e 1749, a população de cor perma-


neceria estável, declinando ligeiramente a partir de 1740.3 Em 1742,
a escravaria representava pouco mais de 70% num total de 266.868
habitantes.4 Em 1786, às vésperas da Inconfidência, os homens
brancos somavam 65.664 almas, enquanto os pardos chegavam a
100.685 e os escravos atingiam a cifra de 196.498. O total dessas três
categorias era de 362.847, a soma dos pardos e pretos ultrapassando
80% do total.5 Essa proporção não se alteraria significativamente
nos primeiros anos do século XIX : para 1808, Spix & Martius falam
de 433.049 habitantes, sendo 106.684 brancos – ou 24,63% –, 145.393
mulatos – ou 33, 57% – e 180.072 negros – ou 41,58% –; portanto,
75,15% de mestiços e negros.6
Tomando-se como base o censo de 1776, todas as comarcas da ca-
pitania de Minas apresentavam grande superioridade numérica de
mestiços e negros. Exceto para a comarca do Rio das Mortes, onde
178 aparecia mais numerosa, a população branca era sempre insigni-
ficante quando confrontada com o número de negros, e, não raro,
ultrapassava-a também o contingente de homens pardos, como no
caso da comarca de Sabará. Assim sendo, não é de admirar que, em
meados do século XIX , o viajante Burton encontrasse em Minas Ge-
rais uma cidade de cinco mil habitantes onde apenas duas famílias
eram de puro sangue europeu: se no litoral fora possível aos colo-
nos casarem suas filhas com indivíduos de origem europeia, “nas
capitanias do interior o mulatismo tornara-se um 'mal necessário'

2 , Diogo de Vasconcellos, História antiga de Minas Gerais, p. 323. Eduardo Frieiro


fala de 35 mil cativos para 1719. O diabo na livraria do cônego – Como era Gonzaga?
– E outros temas mineiros, Belo Horizonte, 1929, p. 234.
3 , Mauricio Goulart. A escravidão no Brasil – das origens à extinção do tráfico, 3ª
ed., São Paulo 1975, p. 68-9.
4 , Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica – Formação e desenvolvimento – Residências,
São Paulo, 1977, p. 35.
5 , População da província de Minas Gerais , p. 294.
6 , Spix & Martius, Viagem pelo Brasil, trad., Rio de Janeiro, 1938, 3 vol., v. II , p.
322.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

(mulatism became a necessary evil)”.7


Fica pois evidente que a grande maioria dos párias e desclassifi-
cados era constituída de mestiços e negros forros e fugidos, o que se
reflete muitas vezes nos comentários preconceituosos das fontes: “É
a vila de Pitangui aonde ainda há alguma sombra da forma antiga
de Minas, por ser muito povoada de pés rapados, caribocas e mu-
latos, que são os executores das insolências”.8 Ao falar da utilidade
dos vadios, o desembargador Teixeira Coelho confirmava a com-
posição racial dessa gente: “Eles, à exceção de um pequeno número
de brancos, são todos mulatos, cabras, mestiços, negros e forros...”.9
Os alforriados se multiplicaram com o avançar do século: em 1739
correspondiam a 1,2% do total da escravaria, aumentando para 35%
em 1786 e atingindo a casa dos 41% em 1808.10 O forro recém-egres-
so do cativeiro engrossaria frequentemente as fileiras dos desclassi-
ficados sociais, e a respeito deles a camada dominante se expressava
com desdém e pouco caso: “... os pretos forros, filhos do País, cha- 179
mados crioulos, que não são também boa fazenda...”.11
Esses indivíduos eram, em geral, filhos de uniões ilícitas, o que
não chegava a constituir marca discriminatória ou uma peculiari-
dade em face da camada dominante. “Os casamentos, e mais ainda
as mancebias de proprietários com mulheres pretas, e multas têm
feito mais de três partes do povo de gente liberta, sem criação, sem
meios de alimentar-se, sem costumes e com a louca opinião de que
a gente forra não deve trabalhar”, continuava o autor da Informação
da Capitania de Minas Gerais.12 Dificultados por uma série de obs-
táculos de ordem econômica – o alto custo do sacramento – e reli-

7 , Segundo Gilberto Freire, Casa Grande & Senzala, 9ª ed., Rio de Janeiro, 1958,
p. 428.
8 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 459.
9 , Teixeira Coelho, ob.cit., p. 479.
10 , W. Cano, ob.cit., p. 102.
11 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação da capitania de Minas Gerais
(1805), em: RAPM , II , 1897, p. 677.
12 , Basílio Teixeira de Saavedra, ob. cit., p.674.
13 , Segundo Iraci Del Nero da Costa, Vila Rica: População (1719-1862), tese de
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

giosa – as limitações impostas pela Igreja –, os casamentos não se


efetuariam na sua forma legítima, os indigentes sendo, “por assim
dizer, arrastados pela falta de recursos a viver de modo irregular”.13
A Igreja autorizava casamentos precoces e tornava as coisas mais
simples para os melhor situados socialmente, fazendo com que o
matrimônio se tornasse um ideal atingível apenas para alguns.14
A consequência natural dessa ordem de coisas foi o alto índice de
crianças bastardas: 60% das nascidas entre 1759 e 1763; 90% das que
nasceram entre 1719 e 1723 – quando a sociedade ainda se achava
bastante indefinida – e entre 1734 e 1738. Até 1788, o aumento do
tráfico teve influência sobre o maior número de bastardos verificado
nesses anos.15 Pode-se então imaginar o vasto contingente dos mes-
tiços originados por uniões ilícitas que aumentavam o número dos
socialmente desclassificados nas Minas.
Assim sendo, a família da gente livre pobre estruturou-se inde-
180 pendente dos laços matrimoniais. E, revelação surpreendente, uma
pesquisa sobre a população setecentista de Vila Rica acusa a enorme
importância das mulheres como cabeças das famílias, ou seja, como
chefes da casa.16 De todos os fogos arrolados, 45% eram dirigidos
por mulheres, sendo que em 83,1% destes casos, elas nunca haviam
se casado. Estava longe o tempo em que faltavam mulheres nas Mi-
nas: a partir da metade do século, tornaram-se numerosas – o que
encorajou a promiscuidade e criou condições para a predominância
de fogos femininos.17 Estas mulheres eram, na sua grande maioria,
negras e mestiças pobres, o que pode ser verificado no fato de pou-
quíssimas – 5,2% – dentre elas serem chamadas em Vila Rica, de
senhoras ou donas.18

mestrado apresenta à FEA/USP, São Paulo, 1977.


14 , Cf. Donald Ramos, Mariage and the family in colonial Vila Rica , em:
HAHR , v. IV, maio de 1975, p. 212-3.
15 , Iraci del Nero da Costa, ob.cit., Batismos inocentes , passim.
16 , Donald Ramos, ob.cit., p. 200-25, passim.
17 , Uso essa expressão para designar o que Ramos chama de “Matrifocal”.
18 , Donald Ramos, ob.cit., p. 218-20.
19 , Segundo Julita Scarano, ob.cit., p. 116.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

A gente livre pobre que descambou com frequência para a des-


classificação social foi, pois, no século XVIII , predominantemente
negra e mestiça, bastarda e oriunda de casas dirigidas por mulheres
sozinhas. Franja da sociedade organizada, apresentava uma mescla
curiosa de crime e trabalho, liberdade e cativeiro, norma e infração.

2. A FLUIDEZ DA CAMADA
A ) Modo de vida ) A extrema pobreza foi uma das principais
marcas desta camada, a qual, em 1799, o bispo de Mariana se re-
feria da seguinte forma: “Famílias pobres impossibilitados (sic) de
homens pardos, pretos libertos, nascidos na miséria; criados na in-
digência, e sem a menor subsistência...”.19
Se, de modo geral, a instabilidade não permitiu que se constru-
íssem boas casas nem para os melhor aquinhoados pela fortuna,
pode-se imaginar o que seriam as habitações dos homens pobres,
cafuas miseráveis espalhadas pelas encostas dos morros ou depen- 181
duradas sobre despenhadeiros, cobertas com capim e folhas de
palmeiras, e tendo por piso o solo de terra esburacada.20 As fontes
eram raras, e muita gente morava a mais de uma milha de distância
de uma delas.21 Nas vilas, a gente pobre se fixava nas zonas perifé-
ricas, embora não haja pesquisa suficiente acerca dos tombamentos
para que esta afirmação possa ser feita sem cuidados.22 O mobiliá-
rio era modestíssimo, quase inexistente, havendo referências a casas

20 , Cf. Boxer, A idade de ouro do Brasil, p. 72; Spix & Marcius, ob.cit., v. II , p. 10;
Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa , em: Fo-
lhetins inacabados, introdução e organização de Alexandre Eulálio, São Paulo, 1978,
passim; Requerimento de uns nomeados despejados da lavra da Chapada
de Serro Frio..., em: APM , SC , cód. 186, fls. 22-22 V: “... e também suas casas fixadas
que são cobertas de capim se estão apodrecendo por falta de morada, e vivem com
maior desarrancho que inda não se viu...”.
21 , Mawe, Viagens ao interior do Brasil..., p. 106.
22 , Cf. Sylvio de Vasconcellos, Vila Rica, p. 84.
23 , ... e que sabe pelo ver que na dita casa não há mais que uma cama...”, em:
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

onde havia apenas uma cama para acomodar vários moradores du-
rante o sono.23
No que diz respeito à alimentação, não parece despropositada a
tese de Gilberto Freyre de que era esta camada social a pior alimen-
tada da colônia.24 Os viajantes se estenderam sobre o aspecto dé-
bil que tinha, população “ deploravelmente raquítica e pobre” cujo
olhar doentio “pode ser atribuído à sua alimentação miserável...”.25
Atravessando a capitania numa época de decadência, o inglês
Mawe, especialmente sensível ao problema, deixou retratada uma
situação-limite de penúria, que não devia entretanto diferir muito
da enfrentada pelas populações pobres no século anterior:

Parei para me refrescar em uma das melhores das poucas miseráveis ca-
sas da estrada. Havia na porta um gato semimorto de fome; a visão deste
pobre animal fez-me pressentir o que me aguardava nessa moradia, cuja
182 aparência levou-me a pensar não existir ai comida nem para ratos. Con-
templava aquela imagem de miséria e da fome, quando surgiu à porta uma
pobre mulher descarnada. Pedi-lhe um copo d'água, que ela me deu. En-
quanto bebia, pediu-me esmola; seu aspecto exprimia já o que sua língua
articulava. Dei-lhe uma pequena porção de mantimentos que meus solda-
dos tinham, assim com uma pequena moeda.26

AEAM , Devassas, 1733, fls. 111. Segundo uma autoridade, os pequenos e mo-
destos mineiros expulsos da lavra da chapada eram moradores que “bem se
acomodam em um jirau de varas do mato”, não necessitando pois de mobília.
Requerimento de uns nomeados. .., fls. 22V.
24 , “E que da população média, livre mas miserável, provenham muitos dos
piores elementos; dos mais débeis e incapazes. É que sobre eles principalmente
é que tem agido, aproveitando-se de sua fraqueza de gente mal alimentada, a
anemia palúdica, o beribéri, as verminoses, a sífilis, a bouba.” Casa Grande &
Senzala, p. 46-7.
25 , Mawe, ob.cit., p. 120.
26 , Ibid., p. 211.
27 , Ibid., p.201-2.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Quando cozinhavam, diz o viajante que os soldados deviam estar


alertas para impedir que algum vagabundo esfaimado os roubasse,
o grosso da população tendo, nesta região, o milho e a água como
alimentos básicos.27 Todas essas considerações dizem respeito ao
Distrito Diamantino; para Mawe, o Tijuco seria dos locais mais po-
bres que jamais vira: “Cento e cinquenta desses infelizes vinham
todas a semanas receber a farinha que o Intendente lhes dava. São
absolutamente desocupados, porque não há agricultura nem manu-
faturas para lhes dar trabalho...”.28 De fato, somando-se a violência
inaudita do fisco a essas causas estruturais, ter-se-ão os motivos que
provocavam tanta miséria na população do Distrito. Abundavam
as mulheres paupérrimas, o que também faz pensar nos maridos
banidos e explica a alta taxa de prostituição que lá se verificava.29
A vestimenta dos homens pobres era a mais precária que se pos-
sa imaginar. Há notícia de um pai extremamente pobre que, diri-
gindo-se à Câmara, pedia uma pequena soma para ser usada como 183
dote de usa filha, “tão pobre e miserável (que) não tinha roupas para
aparecer (em público) ou outras necessidades para seu uso pesso-
al”.30 Por outro lado, o fato de uma mulher possuir roupas era luxo
e ostentação suficientes para constar das devassas e a incriminar
como mal-procedida.31 Em Vila Rica, a escrava do sacristão Diogo
Pereira causava escândalo por andar “bem tratada com saias de ca-
melão e chinelas”, como se fosse senhora.32 O vestuário era simples e
grosseiro até para os mais abonados, como seria o caso de Jerônimo
Pinto de Mendonça, capitão-do-mato fictício que Joaquim Felício

28 , ibid, p.221.
29 , AEAM , Devassas – 1756-57, onde se nota a grande incidência de meretrício em
Conceição do Mato Dentro.
30 , Segundo Donald Ramos, ob. cit., p. 215.
31 , “... Narcisa Ribeira parda, moradora sua vizinha sendo sã não costuma ouvir
missa (…). Ao mesmo tempo que tem vestidos, e está rindo e folgando.” Em: AEAM ,
Devassas, 1748-1749, fls. 54 V.
32 , AEAM , Devassas, 1733, fls. 108.
33 , Joaquim Felício dos Santos, O capitão Mendonça , em: Folhetins inacaba-
dos Santos descreve da seguinte forma: “... seu traje ordinário con-
sistia em jaqueta de couro de veado, calças de tré, camisa de chita ou
riscado, chapéu de sola; de calçado, alparcatas”.33 O garimpeiro João
Costa vestiria um traje usual para os homens de vida dura e arris-
cada: “... grande chapéu de imbé de longas abas (…); vestia um largo
sortu de pano grosso azul, que descia-lhe até os joelhos, calçava bo-
tas brancas que cobriam-lhe o resto das pernas”.34 Muitos seriam os
que andavam esfarrapados e seminus. Por isso, o Auto de Vereação
que determinava o que devia ser feito por ocasião dos funerais de D.
João V considerava complacentemente o luto dos pobres:

…por sermos cientes da muita pobreza que há no país, que porém pos-
sibilitados, não podem cumprir com a fatura dos ditos lutos geralmente,
havemos por bem provendo de remédio, haver por satisfeitas as pessoas
pobres, aquelas que geralmente vivem da agência de seu trabalho, e costu-
mam andar de capote ou sem ele, haver-lhe por satisfeito o cumprimento
do dito luto com trazerem nos chapéus em mostras de sentimentos um
fumo ou insígnia preta, pendente para fora do dito chapéu...35

Conforme dizia em 1789 a Câmara de Mariana: “Em duas pala-


vras, os pobres são mais que os ricos, e uma família numerosa, que
só tem o dia, e noite para manter-se carece de esmola para se ves-
tir”.36

dos, p. 63.
34 , Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa ,
em: Folhetins inacabados, p. 80.
35 , Funerais de D. João V – Auto de Vereação , 16,17,19-XII-1750, em: RAPM ,
IX , 1904, p. 365.
36 , Quintos do ouro , em: RAPM , III , p. 72. Os pedidos de desobriga – licença
especial para não assistir à missa, sobretudo nos dias santos – eram devidos ge-
ralmente à falta de recursos para vestir adequadamente a família a fim de que esta
pudesse assistir à missa. Cf. AEAM , Devassas, 1756-1757, fls. 84 V.
37 , Fernando Henrique Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de janeiro,
Morando mal, comendo pessimamente e vestindo pior ainda, os
homens livres pobres viviam costeando a desclassificação, constan-
temente empurrados para ela pelo sistema econômico e pelas vio-
lentas superestruturas de poder. Na sociedade colonial escravista,
apresentavam traços específicos, sem entretanto se constituírem
em elementos isolados de um sistema. Imbricavam-se numa forma-
ção social cujos parâmetros básicos eram ditados pelo escravismo,
e mantinham com ela uma relação contraditória de incorporação
e exclusão. Tomados frequentemente como elementos avulsos, de-
sarticulados, os desclassificados realmente não o deixaram de ser,
tendo-se em vista uma sociedade fortemente estratificada nos ex-
tremos.
A posse da terra conferia ao senhor de engenho e de lavras um
caráter quase de nobreza, dando-lhes os sinais distintivos do status
e da honra – a que vinha se somar o repúdio às atividades manuais.
Proprietários, exploravam compulsoriamente a força de trabalho 185
dos escravos africanos sobre que se assentava o sistema; mercado-
res, eram peças fundamentais do processo de acumulação que se
verificava na Europa. Assim, os traços estamentais que caracteriza-
vam a formação social da colônia e tornavam nítidos os contornos
das camadas senhorial e escrava foram sendo paulatinamente alte-
rados pelas relações de produção. Esta sociedade híbrida de esta-
mentos e classes só podia ser compreendida se referida ao mundo da
produção. “Demônios bifrontes”, os produtores coloniais “eram, de
modo específico, uma classe definida no modo colonial de produ-
ção capitalista que continha alguns atributos derivados do caráter
capitalista mercantil da organização econômica em que se inseriam
e outros derivados do caráter escravista ou “encomendero” das rela-
ções sociais de produção sobre que se baseava a empresa colonial”.37
Os elementos que não se definiam, quer num extremo, quer nou-
tro, achavam-se desarticulados dentro desta formação social; entre-
tanto, seus caracteres específicos só podiam ser esclarecidos à luz do
escravismo, que os engendrava.
1975, cap. Classe sociais e História: considerações metodológicas , p. 111.
38 , O episódio dos irmãos Leme é um caso em que a infração equipara poderosos
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Brancos, pretos, mestiços, homens livres ou escravos fugidos, es-


ses indivíduos aproximavam-se uns dos outros mais do que se tem
dito, apesar de não chegarem a configurar o que se chamaria cons-
ciência de grupo. Entretanto, em muitos casos apresentaram certa
coesão que, mesmo sendo espontânea, deve ser levada em conta.
Camada social extremamente fluida, esta fluidez se verificava, en-
tretanto, antes para baixo do que para cima, e mais no meio do que
nos extremos: senhores escravos eram bem definidos na hierarquia
social, e as eventuais indefinições que os afetavam só surgiam no
momento da infração – também está mais possível de nivelar os de
baixo (escravos e forros) do que os de cima: os empresários coloniais
impunes e intocáveis na maior parte das vezes.38
Independente dessas eventuais infrações niveladoras, os grupos
que maiores proximidades apresentaram foram pois o dos escravos
e o dos forros. Isto se faz notar na ocorrência de casamentos entre
186 forros e cativos, estes sendo, muitas vezes, escravos dos primeiros.
É o caso do enlace de “Garcia Pedroso preto forro com Maria da
Costa, também preta sua escrava”, celebrado a 15 de novembro de
1744, em Vila Rica. Do mesmo teor foi a união de “Tomás de Freitas
preto da nação Mina escravo do contraente, Ana de jesus, com a dita
Ana de Jesus preta forra da nação Guiné”, verificado a 9 de janeiro
de 1745, na mesma vila.39
Particularmente elucidativos são os diversos requerimentos e pe-
tições que os forros recém-egressos do cativeiro dirigiam ao gover-
nador, acusando o desrespeito dos senhores ante a sua nova condi-
ção, e atestando a indiferenciação existente entre o forro e o cativo.
O escravo recém-liberto e novamente escravizado seria um tipo pe-
culiar de desclassificado social, situado a cavaleiro de dois mundos

e desclassificados. Cf. c.3 deste trabalho.


39 , Segundo Iraci del Nero da Costa, As populações das Minas Gerais no
século XVIII: um estudo de demografia histórica , em: Boletim da FEA/USP,
São Paulo, 1978. As considerações sobre os casamentos entre forros e cativos tam-
bém foram tomadas do autor. Ver p. 22.
40 , Cópia de uma petição de Maria Angola, escrava que foi de Manuel
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

– o mundo do cativeiro e o mundo da liberdade – e não pertencendo


a nenhum. Tomado por cativo, o recém-alforriado se sabia livre e
despejava provar a todo custo sua nova condição, procurando fazer
com que os outros reconhecessem a liberdade que, apesar de lhe
pertencer de direito, acabava, muitas vezes, existindo apenas para
ele, subjetivamente. O não-reconhecimento desta liberdade e o em-
prego da coerção, que explorava como uma escrava uma força de
trabalho liberta, eram procedimentos encaixados nas vastas redes
do poder que se abatiam sobre os desclassificados.
Assim, em 1764, Maria Angola – “pobre negra do Gentio da Guiné
que não tem que gastar, nem quem por ela seja” – dirigiu uma peti-
ção ao capitão-general pedindo que lhe restituísse “a sua liberdade
tão bem fundamentada” que, “com violência notória”, vinha sendo
desrespeitada, a ponto da suplicante ser encarcerada em São João
del Rei. É certo, argumentava Maria Angola, “que a liberdade, uma
vez adquirida, não retrocede”, mas nada podia a pobre negra ante a 187
força dos poderosos que a haviam metido na cadeia – motivo pelo
qual pedia proteção ao governante, que ordenou sua soltura a 15 de
dezembro de 1764.40
No mesmo ano, Leonor, seus filhos José, Manuel e Severina e seus
netos Felix, Mariana, Narcisa e Amaro, todos “de geração carijó”,
requereram ao governador dizendo que, em função das leis de 1755,
deveriam ser considerados “libertos e isentos de escravidão em que
se achavam os ditos carijós”, que Domingos de Oliveira continuava
conservando sob seu poder como se ainda fossem escravos. Estando
ciente de que transgredia a lei, o tal Domingos de Oliveira colocara
os índios sob guarda por ocasião da visita do governador à fregue-
sia, impedindo-os assim de protestarem em seu direito à liberdade.
O governador ordenou que se fizessem averiguações junto a várias
autoridades e pessoas idôneas, todas elas concordando quanto à

Pinto, morador em São João del Rei e despacho que na mesma deferiu o
Ilmo. E Exmo. Sr. General”. São João del Rei, 13-IX-1764. Em: APM , SC , cód. 59,
fls. 84-84 V.
41 , “Requerimento que a S. Exa. Fez Leonor, e seus filhos, José Manuel e Severina
irregularidade da situação. “A pobre e miserável mulher”, disse o
vigário da freguesia, “que com a petição retro recorre a V.Exa., é
mui digna, e merecedora de que V. Exa., olhe com piedade e que se
compadeça da miséria e da consternação em que se acha, e os seus
filhos; porque sendo, como me consta, liberta, e oriunda de ventre
livre e de carijós, vive com os seus filhos em um rigoroso cativeiro
com o falho pretexto de administrada, e com escandalosa vida e
ofensa de Deus de que querendo se apartar, o não conseguiu pelo
grilhão do falso cativeiro em que injustamente a constringem...”.41
Ante tais depoimentos, o governador ordenou que uma escolta fosse
libertar os carijós.
Maria Moreira, nascida de “pais livres por serem carijós de cabelo
corredio”, também se achava indevidamente escravizada, e suplica-
va ao governador que lhe fosse concedida a liberdade de sair da casa
de seu senhor para poder tratar de seu requerimento. O governante
concordou, advertindo-a de que seria punida caso se afastasse “de
viver com a regularidade devida” – advertência que parece querer
lembrar à suplicante que seus dissabores e inseguranças de mulher
pobre não cessariam com a liberdade.42
A história de Agostinho Pereira, “de nação canarim, filho da ci-
dade de Goa”, é extraordinária, mais parecendo folhetim, e ilustra
muito bem o procedimento que se adotava no Império Colonial
português – ainda embebido no estatuto de pureza de sangue – para
com os povos colonizados, principalmente quando de pele escura.
Batizado, filho legítimo de Bartolomeu Pereira e de sua mulher Ma-
ria dos Anjos, Agostinho tinha quatorze anos quando foi procura-
do por Luís da Silva, escrivão da nau “Cananéia”, que lhe propôs

com seus filhos Felix, Mariana, Narcisa e Amaro, de geração carijós, com os
despachos e informações que houveram, e deferimento de S. Exa. Tudo seu teor
é o seguinte:” — dezembro de 1764 — fevereiro de 1765, in: APM, SC, cód. 59.
fls. 103-104V.
42 , Petição de Maria Moreira, índia de nação, e despacho de S.Exa .
Vila Rica, 21-II-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 101 V-102.
43 , Petição de Agostinho Pereira, de nação canarim, e despacho
o emprego de criado e uma viagem a Lisboa. Foram os dois parar
na Bahia, onde Luís da Silva deixou o canarim em companhia de
seu irmão Domingos Vaz, que comboiava negros para as Minas. O
canarim se viu novamente viajando, e ao chegar ao Pau de Cheiro
surgiram uns calhambolas que mataram o seu patrão e roubaram
tudo que levavam. Agostinho Pereira sobreviveu, e juntamente com
uns moleques foi conduzido à presença do Juiz dos Ausentes daque-
la comarca, que o trouxe para as Minas. Venderam-no então como
escravo a um Marcos Gonçalves, sem que o canarim se desse conta,
pensando que ia como homem livre. Marcos Gonçalves o vendeu
ao capitão Leandro Machado Luiz, um e outro sendo moradores no
Brumado do Ribeirão de Santa Bárbara. Passou a ser tratado como
escravo, “com castigos, como costumam, e como o suplicante no
vil estado da escravidão sempre viveu pobre, até de espirito como
são os canarins, e nunca achou meio de se reunir pelos meios da
Justiça, recorre agora à piedade de V. Exa. Para que pelas chagas de 189
N.S. Jesus Cristo se digne tomá-lo na sua proteção, mandando-o
pôr livre, e que lhe paguem suas soldadas desde o tempo do injusto
cativeiro”.43 Nada se sabe sobre o desenlace da infeliz aventura do
canarim, pois seguem-se averiguações sobre o caso, argumentando-
-se que o suplicante era escravo numa época em que todos os índios
(sic) o eram, a lei contra a sua escravidão sendo recente, e daí por
diante.
Outra história de desenlace desconhecido é a do pardo João Ra-
malho Pinto, que Luís Ramalho Botelho mandou prender sob alega-
ção de que era seu escravo. João Ramalho se dizia livre por ter sido
sua mãe alforriada um ano e sete meses antes do seu nascimento;
tinha vinte e sete anos, e vivia no Distrito do Arraial de Mateus

de S. Exa. Nela proferido, 17-X-1765 e 23-XII-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 185
V-186V. Waldemar de Almeida Barbosa alude a documentos existentes no Arquivo
Público Mineiro que atestam a presença de degredados indianos nas Minas; chama
a atenção para a devoção, bem difundida nas Minas, a um santo indiano: São Gon-
çalo Garcia. Cf. História de Minas, v. II , p. 322-3.
44 , Requerimento que a S. Exa. Fez o pardo João Ramalho Pinto, preso
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Leme, com mulher, roça e escravos. Luís Ramalho Botelho contra


argumentava dizendo que a origem da dúvida residia na certidão
de batismo de João, onde, por “lapso da pena do padre”, estava dito
que a mãe do pardo era mulata forra. Na realidade, esta fora escrava
sua, como ficava comprovado pela certidão de nascimento de uma
outra sua filha, nascida em 1744 e, portanto, depois de João Rama-
lho.44 Apesar do desfecho não ficar explicito, tudo faz pensar que se
tratava de mais um caso de abuso de poder.
A parda forra Floriana Maria morava em casa de José Luís Reis,
na Guarapiranga. Filha de pais incógnitos, fora exposta na casa do
primeiro marido da mulher de José Luís, onde trabalho desde a sua
infância no serviço doméstico e na roça, “com foice e enxada na
mão como se fosse escrava, sendo de seu nascimento livre e liberta”.
Os pseudo-senhores, “por ingratos, ou pouco tementes a Deus, sem
agradecimento ao atual benefício que estão recebendo da suplican-
190 te, a castigam, maltratam, e metem em ferros com público escânda-
lo”, pelo que Floriano Maria resolveu requerer junto ao governador
e suplicar que “a deposite em casa honrada onde se conserve a supli-
cante em honesta fama até conseguir estado de casada”. Suas súpli-
cas foram ouvidas, e a infeliz parda deve ter passado a viver como
agregada em alguma casa, impossibilitada de se manter devido à
sua extrema pobreza.45
Em 1772, Suzana Josefa da Trindade e sua filha Isabel da Veiga,
ambas crioulas e forras, receberam do governador deferimento fa-

no calabouço litigando sobre sua liberdade com Luís Ramalho Botelho,


este ermitão da Sra. Do Terço desta vila e aquele morador de Mateus
Leme, 27-II-1770, APM , SC , cód. 186, fls. 6-8 V. Requerimento de Luís Ramalho
Monteiro Botelho, parte no requerimento acima de José Ramalho Pin-
to, com os documentos nele incorporados... 11-1769, em: APM , SC , cód. 186,
fls. 8 V-11.
45 , Requerimento que a S.Exa. Fez Floriana Maia, parda forra assis-
tente em casa de José Luis dos Reis sobre ser liberta como dele consta ,
em: APM , SC , cód.186, fls. 40 V.
46 , Requerimento que a S. Exa. Fez Josefa da Trindade, crioula forra
vorável às suas súplicas. Como tantas outras, tratava-se de uma his-
tória de trabalhos forçados e sem pagamento, sendo as suplicantes
livres. Estando Isabel em casa de Manuel Pereira, depois falecido,
o cônego Francisco Ribeiro e uma D. Quitéria Inácia Barbosa Leite
de Campos pediram que lhes cedesse a moça para ir trabalhar em
casa de D. Quitéria. O consentimento foi dado, e a tal senhora le-
vou a infeliz crioula para uma roça, “usando dela como sua escrava,
açoitando-a, metendo-a em ferros, onde a teve tão martirizada” que
a pobre ficou coberta de ferimentos e cicatrizes. Sua mãe conseguiu,
por fim, que o capitão do distrito a fosse buscar, “e indo este a achou
inda com ferros, tão enferma que a trouxe para a sua casa”, de onde
voltou à casa materna. Extremamente pobre, Suzana Josefa gastava
mais do que podia com cirurgiões, e resolveu então pedir, através do
governante que D. Quitéria pagasse os jornais dos quatro anos em
que tivera Isabel consigo.46
Em todos esses casos, a liberdade mostra a face duplamente fictícia 191
que adquire numa sociedade escravista. Por um lado, o forro, mise-
rável no mais das vezes, é facilmente passível de ser reescravizado
por indivíduos que, nesse sistema, não chegam a ser excessivamente
inescrupulosos. Por outro, uma vez livre, o peso desclassificado da
estrutura econômica e das superestruturas de poder o empurram
para as fímbrias da sociedade, onde passa a vegetar devido à impos-
sibilidade de colocar sua força de trabalho no mercado. O sistema
que o engendrou o deixa, simultaneamente, sem razão de ser. Nes-
sas condições, de que lhe poderá servir a liberdade?47
A fluidez da sociedade pode ser mais uma vez confirmada no ca-
ráter que assumiam as relações amorosas e a vida sexual do colono
mineiro. As devassas eclesiásticas, empreendidas por sucessivos vi-
sitadores que, entre 1721 e o princípio do século XIX , vasculharam
meticulosamente a capitania, fornecem o painel de uma sociedade
em que as camadas inferiores apresentavam intenso convívio e in-
terpenetração. Assim, Domingos Gonçalves Vieira, natural do arce-

da cidade de Mariana , 9-VIII-1772, em: APM , SC , cód. 186, fls. 166.


47 , “Mas a liberdade significa unicamente escapar do trabalho compulsório e, no
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

bispado de Braga, “homem solteiro que vive de seu trabalho, de ida-


de que deve ser de vinte e oito anos pouco mais ou menos”, levou à
mesa da visitação uma denúncia que ouvira da boca de “Maria preta
de nação conga escrava de Domingos Francisco morador em Rio
Abaixo desta freguesia”, sugerindo o convívio entre o homem livre
pobre e a escrava faladeira.48 Um outro exemplo das inter-relações
que se verificaram no seio da camada pobre aparece no depoimento
de José Duarte Campelo, pardo forro que era roceiro e que recebera
em sua casa a preta forra Maria da Silva, casada com o bastardo João
Correia de Santa Ana. Estando doente, Maria da Silva não recebeu
os sacramentos.49 Há ainda o caso de Domingos Lopes, que vivia
concubinato com uma paulista bastarda – “por cujo respeito tem es-
tado muito mal, e esfalfado” –, ambos residindo em casa de Suzana,
negra forra e consentidora do concubinato.50
Naqueles tempos, o concubinato não era, em si, um sinal de po-
192 breza ou de inferioridade social: a 1 de fevereiro de 1721, o capitão
Paulo Rodrigues Durão comparecia à mesa da visita, onde se re-
gistrara a acusação de que vivia em concubinato com “uma mulher
desimpedida”, que o visitador ordenou expulsasse de sua casa.51 A
referida mulher devia ser a mãe do futuro Frei José de Santa Rita
Durão, nascido em 1722, e o capitão era homem de posses e prestí-
gio no arraial do Inficcionado. Já o indiano Jacinto Ribeiro, pintor
de trinta e oito anos, tinha “de suas portas adentro” uma escrava
chamada Leonor; extremamente pobre, pagou na Mesa três oitavas

mais das vezes, uma condição de vida que é destituída de sentido porque ditada pe-
las regras de domínio da produção escravocrata (…)”. Lúcio F. Kowarick, A cons-
tituição do mercado de mão-de-obra livre no Brasi l – Uma abordagem
histórica , mimeo., 1977.
48 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 11 V.
49 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 29.
50 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 35 V.
51 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 34.
52 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 76.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

de ouro para si e para escrava.52 Se no caso de Paulo Durão o matri-


mônio não era dificultado por empecilhos de ordem econômica, o
mesmo não se poderia dizer do modesto pintor da Índia.
Filipa, preta mina, consentia que sua filha Tereza, parda e forra,
tivesse “tratos ilícitos” com homens; devido à sua extrema pobreza,
o próprio visitador a eximiu da pena pecuniária, como que mos-
trando certa complacência para com o caso.53 O mesmo sucedeu
com Antonio Rodrigues, homem extremamente pobre que parecia
ignorar o fato de em sua casa entrar e sair João de Almeida Silva,
indivíduo que estava de casamento acertado com sua filha Isabel
Rodrigues.54 A pobreza sendo empecilho ao casamento, as famílias
fechavam os olhos ao concubinato, e a Igreja, às vezes, parecia fazer
o mesmo.
João da Silva Ferreira, morador no sítio da Boa Vista, vivera por
algum tempo com Rosa de tal, dela tendo uma filha; a seguir, con-
traíra casamento com Maria Gomes, mãe de Rosa, que levou para 193
a casa do novo marido uma outra sua filha, essa de nome Páscoa.
João da Silva passou então a arranjar sucessivos noivos para Pás-
coa, levando-os para a sua casa e servindo de seus préstimos para,
depois, desfazer os casamentos.55 A promiscuidade sexual se mis-
turava, aqui, com a exploração de uma força de trabalho disponível
no momento.
Promiscuidade sexual e pobreza aparecem novamente de mãos
dadas no caso de Manuel Lobo Pereira e de sua escrava Juliana. Esta
teria dito à testemunha que a denunciou na mesa da visitação “...
que o dito seu senhor a chamava para com ele se ir deitar na cama,
mas que ela algumas vezes o não fazia em razão de ele não dar o ne-

53 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 30 V.


54 , Ibid., fls. 31.
55 , “... João da Silva Ferreira costuma ajustar casamentos para a dita sua enteada
Páscoa, e trazer logo para casa o sujeito com quem ajusta o casamento para a dita
enteada só a fim de que este o ajude a trabalhar na roça, fora de casa...”, em: AEAM ,
Devassas, 1756-1757, fls. 34.
56 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 41 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

cessário para a vestir, e que outras vezes o dito seu senhor a deixava
ficar com os passageiros que em sua casa se arranchavam só a fim
de com eles se desonestar...” Juliana tinha três filhos de pais desco-
nhecidos, e frequentemente seu senhor a aconselhava que dormisse
e se desonestasse “com negros para parir crioulos, e não o faça com
brancos...”.56 Em virtude da pobreza de Manuel Lobo, o reverendo
pároco intercedeu por ele junto ao visitador, e assim este rancheiro
pobre mas perfeitamente amoldado à ética escravista escapou à pu-
nição eclesiástica.
Relações amorosas e vantagens pecuniárias aparecem também no
caso de João Fernandes Quinteiros, que vivia com Quitéria borges e
aquietava o seu marido dando-lhe de comer e vestir.57 O pardo for-
ro Luís Pereira, morador nas Congonhas, consentia que suas filhas
“usassem mal de si para algumas conveniências que lhes fazem os
barregões delas”... Uma delas, de nome Úrsula, “estava por conta”
194 de um “homem do caminho” chamado Domingos Gonçalves Rico,
viajante ao que parece bastante turbulento, pois conforme narra a
testemunha da denúncia, dera havia ainda pouco tempo uma facada
em um homem.58 A outra filha de Luís Pereira estava ajustada para
casar com Francisco Soares, também pardo e forro, que frequentava
livremente a casa. Assim, o pai consentia que uma e outra estives-
sem “com seus amigos estando todos misturados”.59
Cristina, preta angola moradora no Morro costumava entregar
sua filha Leandra, parda forra, para alguns homens a “deflorarem”,
levando-a pessoalmente às suas casas. Indo para este fim procurar
a testemunha, esta lhe deu uma esmola e a aconselhou que casasse
Leandra, “para o que lhe daria maior esmola, e muita gente con-
correria com as suas, e lhe respondeu a dita Cristina que casando
a sua filha não ganhava coisa alguma, e que andando naquela vida
ganharia doblas (sic)”.60
57 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 162 V.
58 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio, 1734, fls. 106.
59 , Ibid., fls. 104 V-105.
60 , AEAM , Devassas, – 1733, fls. 89-89 V.
61 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 79 e 81 V.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Dona Vitoriana, mulher de um Luís Pinhão de Matos, tirara toda


a família da miséria através do adultério que cometia com o Ouvi-
dor da Comarca, José Pinto Ferreira. Este entrava e saía livremente
da casa da amante, que humilhava o pobre marido, trazendo-o “de-
baixo do pé, dando-lhe pancadas e chamando-lhe cornudo diante
de gente”. Satisfeita com o sucesso de seu novo estado Dona Vitoria-
na passou a alcovitar as filhas, “dizendo que não há cousa como ser
mulher dama, que sempre tem duas patacas na algibeira.61
Outro Ouvidor que se encantou com as moças pobres foi o dr.
José Telles da Silva. Além de se envolver com Joana Vitória, “mulher
pública que pela sua dissolução” já havia sido expulsa da comarca, o
magistrado cortejou Isabel da Encarnação, usando como alcoviteira
uma negra de nome Antônia de tal, cujo marido estava preso na ca-
deia. Convidou-a três vezes “para que fosse assistir a uma comédia
que na sua casa se fazia de noite”, “tudo a fim de tratar ilicitamente”
com Isabel. Chamada à mesa de visita, a moça confirmou as infor- 195
mações, negando entretanto que tivesse atendido aos apelos. Não
se sabe se ela acabou cedendo, ou se foi caluniada: mais adiante, na
devassa, uma testemunha assegura que, entrando na casa de Isabel,
viu-a engomando a roupa do Ouvidor.62
Nesse meio indefinido e fluido, onde a pobreza comum acabava
identificando indivíduos que aparentemente não tinham nenhuma
ligação uns com os outros, a bigamia foi frequente.63 Abundam os
casos de homens que viveram com duas mulheres, e de mulheres
que viveram com dois homens, todos felizes e satisfeitos nesse modo
coletivo de viver a afetividade.
A negra Quitéria, casada, era amásia de Manuel Rodrigues da
Costa, “e vivem todos juntos com o marido da mesma negra”.64 Sem
62 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 52 V, 53, 56.
63 , “Os casos de bigamia parece que foram frequentes em regiões como as das
minas, de população flutuante, constituindo um problema difícil para os bispos de
Mariana, depois de terem sido o maior espantalho de patriarcas severos com filhas
moças dentro de casa.” Em: Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, p. 91.
64 , AEAM , Livro de devassas – ano de 1753, fls. 22.
65 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 49.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

coabitar com os dois amigos ao mesmo tempo, Potência Leite, mu-


lher de Manuel Cabral, foi culpada “de andar amigada com dois
homens”, um residente na mesma freguesia que ela e outro que fora
“pedir hábito de frade à Bahia...”.65 Tereza de Jesus também tratava
separadamente com seus dois homens: casada com André de Souza
Álvares, morava com o marido e recebia visitas constantes de José
Luís Lima, morador na Ponte Nova da Paraopeba que entrava e saía
da sua casa “a qualquer hora sem temor de Deus, nem pejo do mun-
do”. Esporadicamente, o marido consentia que Tereza de Jesus fosse
em “companhia do referido para várias jornadas que faz o mesmo”.
Indiferente ao juízo que deles faziam os vizinhos e conhecidos, os
três acabaram por se arranchar “como sócios neste mesmo sítio,
morando todos na mesma casa...”.66
Os homens-bígamos foram ainda mais frequentes. O ferrador
João Teixeira de Carvalho, morador em Santo Antonio da Casa
196 Branca, andava amancebado com duas mulatas “que tem de por-
tas adentro, uma sua cativa por nome Rosa, outra forra por nome
Joana, as quais ambas têm parido...”.67 Domingos Dias Vidal, mo-
rador no Pará-Acima, tinha uma longa história para contar sobre
sua bigamia: casado nas partes do Rio das Mortes, fugira de lá com
duas irmãs, Filipa e Maria Gonçalves. A esta tratava por cunhada e
por mulher a outra. Na verdade, parece que Maria Gonçalves, que
era a mais velha, fora a primeira no seu afeto, e nessa época, Filipa
andava com o irmão de Domingos. Este acabou se enciumando e
ameaçou o irmão de morte, fugindo a seguir com as duas mulheres,
excomungado pelo pároco daquela paragem. Além de tudo isso, era
fama pública que viviam “em muito mau estado”.68 José Ferreira da
Silva, homem solteiro que vivia de seus negócios, tinha dentro de
casa duas mulheres brancas reputadas por suas concubinas. Cha-
mado à mesa de visitação, foi admoestado de que “lançasse fora de

66 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 92.


67 , AEAM , Livro de devassas – ano de 1753, fls. 14 V.
68 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 31 e 33 V.
69 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 26-27.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

sua casa as ditas mulheres dentro de três dias peremptórios, e fizesse


cessar o escândalo que dava aos católicos...”.69 José Ferreira aceitou
a admoestação, prometendo expulsar suas infelizes companheiras.
Como, de resto, toda legislação em qualquer parte do mundo, a
regulamentação eclesiástica acerca dessas infrações é extremamen-
te flexível em relação às faltas cometidas por indivíduos do sexo
masculino. Amasiados tanto os homens quanto as mulheres, eram
estas entretanto as “lançadas para fora” das casas em que viviam,
as desterradas para os mais diferentes lugares. Antônia Bicuda, da
freguesia de São João del Rei, fora culpada em primeiro lapso de
concubinato com Amador do Santos; teve pena de dois anos de de-
gredo para a Nova Colônia, enquanto de Amadeu exigiu-se apenas
que fosse fazer vida com sua mulher legítima dentro de seis meses!70
Antônia da Luz, mulher parda e forra, culpada em primeiro lapso
de concubinato com José Pereira, teve pena de dois anos de degredo
para a Nova Colônia: sobre seu companheiro, nem uma palavra foi 197
dita.71 Mesmo sendo “pobre, e miserável”, Marta da Cunha teve de
pagar vinte cruzados pelo seu concubinato com circunstâncias de
incesto, e ainda recebeu pena de dois anos de degredo para fora da
comarca.72 A negra forra Mariana foi desterrada para a colônia do
Sacramento por amor de Alexandre Pereira, morador na freguesia
de São Jose del Rei. Mas, pelo menos neste caso, o desenlace foi feliz:
Mariana conseguiu passar para o Rio de Janeiro, “onde a mandou
buscar o tal Alexandre, que passou a viver com ela e separado de
sua mulher”.73
A leitura desses casos permite compreender o modo pelo qual o
concubinato, uma vez repreendido e reprimido pelas visitas eclesi-
ásticas, lançava as mulheres concubinas na desgraça, deixando-as
sem teto e sem raízes, banindo-as para longe dos amados, que, “sen-

70 , AEAM Devassa – maio 1730 abril 1731, fls. 17 V.


71 , Ibid., fls. 17.
72 , Ibid., fls. 22 V.
73 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 125V-126.
74 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 43.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

tenciados camerariamente”, “admoestados” ou obrigados a pagar


uma pena pecuniária, continuavam vivendo em suas casas e gozan-
do de suas liberdades.
A promiscuidade em que viviam os homens pobres da mineração
gerava situações curiosas. Chamando para depor, um mineiro da
região de Braga incriminou Jerônimo Pinto Pais e Brito, morador
na Ponte de João Velho e amancebado com Antônia de Moura, mu-
lata forra que dele tivera um filho. Jerônimo Pinto andara igual-
mente amancebado com a irmã de Antônia, Anastácia Gonçalves.
Ambas eram filhas de Luzia de Moura, negra forra, e o mineiro fora
informado de todos esses detalhes por Anastácia Gonçalves, que
havia sido concubina também dele testemunha, confessando-lhe
nessa ocasião que Jerônimo Pinto a havia desonrado antes de andar
com sua irmã.74
O incesto era outra consequência da promiscuidade, das casas
198 excessivamente pequenas para os numerosos moradores que nelas
conviviam, deitados em poucas camas, repartindo cômodos. Dizia-
-se em Pitangui que João Pereira da Silva andava com a irmã, dela
tendo dois filhos. Seu irmão Pedro Vaz dormia no quarto de suas
irmãs, e isto era motivo para que se murmurasse com escândalo.75
Em Baependi, Domingos Luís, bastardo, desonrava suas três fi-
lhas.76 Em São José del Rei, a parda forra Maria da Afonsa, mulher
viúva que atendia pela alcunha de “a parteira” encontrara seu filho
mais velho “tendo ajuntamento carnal com uma sua legítima irmã
por nome Maria, também filha da dita Maria parteira”. Todos sa-
biam das relações que os dois irmãos mantinham, e quando Maria
se queixou certa vez das pancadas que lhe dava o irmão, respondeu-
-lhe a preta forra Maria Rodrigues: “você tem a culpa por lhe dar
tanta confiança e deitar-se debaixo dele.” 77

75 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 34.


76 , AEAM , ibid., fls. 206 V.
77 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 141 V e 140-140 V.
78 , Ibid., fls. 7.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Incesto era então definido da seguinte forma: “Se alguma pessoa


cometeu o crime de incesto, tendo ajuntamento com alguma paren-
ta por consanguinidade, ou afinidade em grau proibido, ou com-
padre com comadre, ou padrinho com afilhada, ou madrinha com
afilhado...”.78 Diogo Ferreira, que vivia no Pará-Abaixo concubinato
com uma sua sobrinha chamada Maria Barbosa fora excomungado
pelo pároco, e enjeitara um filho havido da ligação incestuosa com a
moça.79 João da Silva, bastardo solteiro que morava acima do Corgo
dos Parentis(sic), deixara a casa da mãe para viver em companhia
de sua tia Natália. Não havia na casa cômodos suficientes para que
dormissem separados, e assim sendo, Natália se deitava durante a
noite em uma rede, com uma sobrinha de seis ou sete anos de idade,
e João da Silva “em um jirau à vista um do outro”. Durante algum
tempo, tia e sobrinho haviam morado com Antonio de Freitas So-
ares, que nesta ocasião desconfiou de que existia algo entre os dois,
enxotando-os por isso de sua casa. A “razão que teve para deles 199
desconfiar da sobredita matéria fora ouvi-los algumas vezes estar
falando entre si palavras lascivas, e desonestas, e o não se querer
apartar nunca um do outro de tal sorte que para onde um ia haviam
de ir ambos”. João da Silva e sua tia Natália foram presos, “e depois
de estarem na cadeia da Vila de São José, fugiram dela”.80
A história do incesto de Estêvão Leme de brito com sua cunhada
Margarida Correia, irmã de sua mulher Maria Correia é das mais
divertidas. Moradores no Pitangui, viviam, ao que parece, todos
juntos em uma “casa mista”. Certo dia, a testemunha da devassa
foi à casa de Estêvão com sua mulher, “e entrando no terreno do
mesmo donde se descobre a casa, e fogo da mesma, viu ele testemu-
nha ao dito Estêvão Leme estar dando abraços, e ósculos na mesma
Margarida Correia...”. Constrangido, o visitante proferiu algumas
palavras em voz alta, para ver se os dois enamorados se envergonha-
vam; estes, entretanto, fecharam a porta do fogo e não se alteraram.

79 , AEAM , Devassas – 1748-1479, fls. 32 V.


80 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 14 V, 16, 17 e 30.
81 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 75-75 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

A testemunha e sua mulher dirigiram-se então para a casa, onde


estavam os demais familiares, e começaram a perguntar por onde
andava Margarida. Esta afinal apareceu, depois de muito tempo,
e logo surgiu também o cunhado Estêvão. Uma terceira irmã, de
nome Francisca Correia, começou então a descompor a impávida
Margarida, “dizendo-lhe que bem podia fazer aquilo mais oculto,
e que bem sabia que ali estavam ele testemunha e sua mulher pro-
curando por ela...” Margarida respondeu “que desgraçada era quem
andava como ela, porque o dito Estêvão Leme a não quis largar, ao
que também respondeu a mulher do mesmo Estêvão Leme que bem
sabia quem ele era, porque tanto que pegava em uma pessoa mais a
não largava, como ela experimentava; e muito mais a quem cobiçava
como era referida sua irmã e cunhada...”. A esta altura, a mulher da
testemunha, escandalizadíssima, exclamou “que semelhantes ofen-
sas de Deus se não consentiam”; a sua reprimenda foi logo cortada
200 pela mulher de Estêvão, dizendo esta “que se lhe não consentiam
naqueles desaforos, sempre andava triste...”.81
A leitura dos documentos que falam das relações amorosas da
população pobre das Minas deixa constantemente entrever o mun-
do das infrações e dos pequenos crimes. Assim, o bêbado Caeta-
no, pardo a quem a mulher abandonara por amor de outro pardo,
este de nome Severino. Os amantes haviam fugido com o auxílio
de um irmão da dita mulher, que se chamava Manuel.82 Filipe de
Tal era um faiscador casado no Rio São Francisco, onde tinha dois
filhos; juntou-se com Josefa, crioula cujo marido se achava preso em
Paracatu, e ambos foram morar no sítio da testemunha que mais
atarde os incriminaria na mesa da visitação. Em virtude da chegada
do visitador à freguesia, o par fugira para os matos de Antonio dos
Santo Ferreira.83 Manuel dos Santos Gato, casado na freguesia da

82 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 13 V.


83 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 48 V.
84 , AEAM , Livro de Devassas – 1800, fls. 3 V e 5.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Guarapiranga, deixou sua mulher e roubou a de Serafim Afonso,


levando-a para viver com ele no presídio do Rio Pomba.84
Grande parte da população vivia em concubinato, que era, por-
tanto, uma relação corriqueira e, como tal, aceita. Conforme se viu
acima, a própria testemunha que acorria à mesa para incriminar
o conhecido acabava confessando que tivera “tratos ilícitos” com a
parceira do incriminado. No dizer das testemunhas, os amasiados
provocavam o escândalo público, e sobre suas baixezas a popula-
ção murmurava consternada. O ato sexual, que todos praticavam
nas Minas com brancas, pardas, mestiças, carijós, caribocas, forras
e escravas era descrito na devassa como “ato pecaminoso”.85 Essa
discrepância entre o que se dizia ao visitador e o que se fazia coti-
dianamente deveu-se, por um lado, ao duplo padrão de moralidade
existente numa sociedade escravista e, por outro, ao fato de haver
uma intermediação entre a testemunha e o relato que chegou até
nós: o escrivão da devassa, que obviamente reproduzia a ideologia 201
oficial, de que a Igreja era um dos principais sustentáculos. Assim,
contrariamente ao que diz um historiador – que os testemunhos
eram extraídos da “melhor gente” da terra –,86 o que se nota é o
nível modesto dos depoentes, talvez escolhidos a dedo pela Igreja
que, assim, intimidava mais facilmente e os humildes biscateiros e
artesãos, deles extorquindo segredos e confidências. Ocorria pois a
interiorização da ideologia oficial e da moralidade empedernida que
se opunha à realidade complexa da colônia – as festas, os batuques,
os motivos de alegria e de regozijo passando a ser encarados como
infrações pecaminosas. Como resultado, fingia-se na mesa da visita
uma regularidade de ações que não existia na vida real.

85 , “... por serem eles tão pouco acautelados no seu pecado que entrando ele tes-
temunha haverá coisa de quatro semanas (…) em casa dela dita preta Rosa, a achou
e viu no ato pecaminoso na sua cama com o dito Manuel de Lima...”. Em: AEAM ,
Devassas – 1733, fls.12.
86 , Cf. Carrato. Igreja, iluminismo e escolas mineiras coloniais. c.1.
87 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 77.
88 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 107, 107 V e 108.
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Fernando Lopes de Carvalho, morador na rua Direita da Vila


de São João del Rei, foi incriminado não apenas por frequentar
de dia e de noite a casa de uma mulata que vivia “sobre si”, mas
porque demorava-se na casa da amada “pondo-se ele a tocar viola
e ela a cantar porta em alto voz, não só inquietando a vizinhança
mas causando escândalo...”.87 Igual consternação causou na festa
do Divino Espírito Santo da freguesia de Cachoeira um carro em
que iam vários padres seculares moradores na vila de Ouro Preto,
“os quais andavam no dito carro tocando violas e entre eles uma
negra chamada Vicência cantando vestida de homem...”. Vicência
cantava “o Arromba e outras modas da terra”, que uma testemunha
reputou de as “mais desonestas” – qualificativo que, ao que tudo
indica, não lhes cabia.88 Os padres foram punidos, e um deles, cône-
go de Angola, foi expulso das Minas. A parda Narcisa Ribeira, que
não gostava de ouvir missa, tinha má fama por ter vestidos e andar
202 sempre rindo e folgando.89 Dona de uma venda na Água Limpa,
a preta Rosa foi acusada na devassa de consentir “ a sua porta aos
domingos e dia santos, danças de negros batuques escravos, com
geral escândalo, e inquietações, e perdas assim dos escravos, como
de seus senhores...”.90 Os batuques e folguedos dos negros e mesti-
ços foram constantemente punidos pelas autoridades, que nunca os
toleraram talvez por ensejarem uma ocasião de ajuntamento e soli-
dariedade grupal através do lazer. As pequenas festas que os negros,
mulatos e carijós realizavam nos domingos e dias santos deveriam,
no tempo de José Antonio Freire de Andrade, ser dispersadas por
rondas de seis homens e um sargento, organizadas expressamente

“A ligeira multa em trajes de homem


Dança o quente lundu, e o vil batuque...”
Cartas Chilenas, carta 6ª, versos 245-246 , p. 148.
89 , AEAM , Devassas – 1748 -1749, fls. 54 V.
90 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 16 V.
91 , Bando de 10-X-1756, in: APM , SC , cód. 50, fls. 72 V-73.
92 , Essas considerações sobre o conflito e sobre a violência devem muito à análise
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

com esse intuito. O argumento dado era o de que nasciam “grandes


desordens” desses batuques, que frequentemente degringolavam
em brigas e ferimentos. É significativo o fato de os tambores deve-
rem ser quebrados pelas rondas, o que de certa forma os equiparava
às armas – paus, porretes, facas, navalhas, facões –, que os soldados
deveriam apreender.91

B ) O conflito latente ) Portadores de uma especificidade ame-


açadora, constantemente desclassificados por forças alheias à sua
vontade, reduzidos à miséria e obrigados a viver na promiscuidade,
os homens livres pobres e mestiços foram o inimigo difuso que as-
sombrou as autoridades coloniais e a política da metrópole dentro
da sua colônia. Para reduzi-los a uma normalidade estereotipada e
ditada de cima, não se pouparam esforços. Seu modo peculiar de
vida, suas festas e seus passatempos foram constantemente identifi-
cados à infração; esta, por sua vez, teve os seus contornos alargados 203
de tal forma que se tornou difícil dissociar a figura do homem livre
pobre e o mundo do crime que lhe era atribuído como “habitar”
normal. Espreitados por todos os cantos, esses indivíduos desenvol-
veram uma forma de vida e de relacionamento que se caracterizou
pelo conflito – conflito dentro do próprio grupo, conflito com a so-
ciedade escravista e com seus mecanismos repressores.92
A violência latente no seio da camada se desdobrou numa gama
enorme de infrações, das mais insignificantes às mais graves. A do-
cumentação permite conhecer a sua natureza, mas nada ou quase
nada deixa entrever sobre os seus motivos – ou, pelo menos, não se
estende sobre eles.
De modo geral, era de noite que as infrações aconteciam.93 Pro-
curando evitá-las – “assaltos, roubos e pendências” efetuados “não
só por negros, mas também por alguns homens brancos extrava-

brilhante de Maria Sylvia de Carvalho Franco em Homens livres na ordem escravo-


crata, 2ª ed., São Paulo, 1974, c.1, passim.
93 , “A horado crime, como é sabido, soa à meia-noite. A noite realça e faz apare-
cer a impotência do homem, ela esconde as forças impuras e os malfeitores. A an-
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gantes” – os vereadores e autoridades judiciárias mandaram fazer


um sino e o colocaram na casa da Câmara, devendo este tocar “das
oito para as nove horas da noite, para depois de tocado saírem ron-
das pelas ruas desta vila a prender a todas as pessoas que cometeram
semelhantes insultos e delitos, e a perturbarem a paz e o sossego pú-
blico, que se castigarão pelas justiças de El-Rei Nosso Senhor...”.94
Muitos foram os editais neste teor, havendo um que proibia “asso-
bios à noite, que ofendiam aos bons costumes e a Deus”.95
Era, pois, de noite que muitas das tensões se canalizavam para
brigas e ferimentos. Jerônimo Francisco da Costa foi baleado na
cara um pouco adiante da ponte de Antonio Dias, sendo sua queixa
registrada a 30 de julho de 1729; os autores do “maleficio” seriam uns
negros e uma escrava chamada Antonila, que lhe haviam roubado
alguns pertences.96 Na noite de 23 de julho de 1733, Sebastiana de
Jesus, moradora no Ouro Preto, recebera umas facadas, sem que se
204 saiba o motivo.97 A parda Joana de Jesus, moradora na Barra, fre-
guesia de Antonio Dias, recebera um ferimento na noite de dez para
onze de maio de 1738.98 Josefa Maria, parda forra que habitava a fre-
guesia de Ouro Branco, fora ferida e baleada na noite de 27 de julho
de 1772.99 Uma sua vizinha, a crioula forra Ângela Lopes do Vale,
fora ferida e roubada algumas noites antes.100 Na rua da Ponte Seca,

gústia metafísica é acompanhada pelo medo ante a violência, o banditismo, o roubo


favorecido pelas trevas.” Bronislaw Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 27.
94 , Edital do Senado da Câmara: Vila Rica, 4-V-1729, segundo Feu de Carvalho,
Reminiscências de Vila Rica – Sobre a casa da cadeia”, em: RAPM , XIX , 1921,
p. 297-8.
95 , Segundo Feu de Carvalho, p. 298.
96 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 82.
97 , Ibid., fls. 96 V.
98 , Ibid., fls. 114 V.
99 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 88.
100 , Ibid., idem.
101 , Ibid, fls. 108 V.
102 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 82.
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onde o crioulo Julião Pinto tinha casa e uma pequena venda, o forro
Silvestre Ramos, também crioulo, recebeu vários ferimentos; isto se
passou na noite de 4 de setembro de 1790.101 Quase um mês depois,
quando se achava em casa da preta forra Maria Barbosa, o crioulo
forro Álvaro Pereira também recebeu vários ferimentos; a vítima
morava no Morro do Ouro Fino.102 As feridas que Manuel Fran-
cisco Nunes, pardo, provocou em Antonio Luís Brandão Coelho,
crioulo e forro como seu agressor são descritas detalhadamente. O
delito teve lugar por volta de sete horas da noite de 14 de agosto de
1792, e a mandante do crime foi a mulher de Manuel Francisco. O
crioulo recebeu “uma ferida simples no anterior do braço esquerdo
que cortou couro e carne sendo a ferida interna do tamanho de meia
polegada feita com instrumento cortante”.103
Há várias brigas e ferimentos que, ao que tudo indica, não se pas-
saram nas horas noturnas. Manuel da Silva Barros e José Pereira
da Costa, ambos moradores na Soledade, freguesia de Congonhas 205
do Campo, envolveram-se em uma rixa: o primeiro recebeu umas
cutiladas, dando, por sua vez, pancadas no adversário.104 Também
não foi à noite que Antonio Gomes de Gouveia alvejou o seu vizi-
nho João Pinheiro, ambos pardos, forros e moradores na freguesia
da Itatiaia.105 Não há igualmente especificação de horário na de-
vassa que trata das pancadas recebidas em Congonhas do Campo
por Rosa Gonçalves, preta forra que veio abortar em razão do aci-
dente.106 Nada se sabe sobre o teor da briga que envolveu a escrava
Inácia e Maria Josefa, mulher parda que atendia pela alcunha de
“a Gamba”; como consequência, Inácia teve o rosto retalhado, e “a
Gamba” saiu culpada por ter ferido a outra com uma navalha.107

103 , Ibid., fls. 112 V.


104 , Ibid., fls. 24.
105 , Ibid., fls. 74.
106 , Ibid., idem, fls. 26.
107 , Ibid., idem, fls. 99.
108 , Termo que assina Lourenço Teixeira cabra forro para não tornar
mais ao distrito das Catas Altas, Inficcionado e Bento Roiz, sob as penas
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Lourenço Teixeira, cabra forro, foi preso por dar pancadas no escra-
vo de um tenente- coronel, “sem mais causa que a sua malevolência”.
Por este motivo, acabou sendo expulso dos distritos das Catas Altas,
Inficcionado e Bento Rodrigues, onde não poderia mais entrar.108
Os conflitos que culminavam em ferimentos podiam ter lugar até
dentro da cadeia: em 1746, o pardo forro José da Cunha de Mendon-
ça, o mestiço Manuel Barbosa, o escravo crioulo Luis e um mulato
chamado João foram feridos na enxovia dos pretos de Vila Rica por
um negro forro de nome João Bonito, que enlouquecera.109 Mas o
local privilegiado das contendas era a rua, universo dos imprevistos
e das paixões, do engano, da decepção e da malandragem.110
As querelas eram outra forma de exteriorização dos conflitos.
Querelava-se a respeito de tudo: terras, pertences, limites, escravos.
Estiveram presentes entre os homens pobres, que muitas vezes que-
relaram com os indivíduos que lhes quiseram roubar cavalos, ou
206 que lhe feriram algum cativo. Foi este o caso de Manuel de Barros
Braga, que registrou querela contra um negro forro e capitão-do-
-mato, de nome Fradique de Souza, por este ter esfaqueado um seu
escravo, ferindo-o muito na mão esquerda.111 A preta forra Rosa
Maria também requereu querela por causa de uma escrava, em
quem Antonio de Almeida, morador na Água Limpa, dera algumas

abaixo cominadas , 7-VII-1748, em: APM , SC , cód. 89, fls. 6 V .


109 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 21. Examinando os motivos de prisão nos vinte pri-
meiros anos do século XV, Geremeck conclui que as rixas e acusações de ferimentos
ocupam o primeiro lugar: ¾ do conjunto. Isto se deveria à “brutalidade elementar
da vida quotidiana”. Les Marginaux Parisiens..., p. 70.
110 , Roberto da Matta empreende uma análise bonita sobre a oposição entre a
casa e a rua: “Na rua, então, o mundo tende a ser visto como um universo hob-
besiano, onde todos tendem a estar em luta contra todos, até que alguma forma
de hierarquização possa surgir e assim ordenar algum tipo de ordem.” Carnavais,
malandros e heróis. p. 70 e segs.
111 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 16 V.
112 , Ibid., Idem, fls. 13 V.
113 , Cf. “Termo que assinaram na secretaria deste governo João Gonçalves Lima e
pancadas.112 A tensão partia, assim, de um confronto físico, passan-
do a seguir para o nível legal.
As brigas e desentendimentos podiam atingir certa intensidade
sem entretanto desembocarem em danos físicos. Quando isto acon-
tecia, os envolvidos na disputa eram chamados pelas autoridades
para assinarem termo de bem viver, comprometendo-se a “viverem
com muita paz e quietação” mediante castigo.113 As alterações tra-
duziram com frequência a tensão que existia no nível das relações
vicinais. A boa vizinhança era uma política respeitada, e os seus
violadores não eram vistos com bons olhos. Manuel dos Santos Ne-
ves teve de comparecer ante o governador para assinar um termo
que determinava o cessamento das “continuadas” desordens com
que até o presente insultou os vizinhos do Brumado do Sumidouro”.
O desordeiro deveria, a partir de então, “viver com moderação e boa
harmonia com os mesmos”.114 As medidas tomadas contra José de
Lemos Ribeiro, homem pardo morador no Curral del Rei, onde vi- 207
via com sua mulher, foram mais drásticas: preso “por ser revoltoso,
e avizinhar mal com os vizinhos”, teve de assinar um termo em que
se comprometia a não mais viver “no referido distrito e comarca”.115
A tensão detectada nas relações vicinais refletiu muitas vezes a
tentativa de uma das partes em subjugar a outra, escorando-se, para
isso, na superioridade econômica e social. Cosme Soares Ferreira
e seus irmãos achavam-se em “paz pacífica” havia mais de quinze
anos, estabelecidos em roças modestas que trabalhavam com seus
braços, “por não terem escravo nem mais coisa alguma que o seu
trabalho, a fim de sustentarem suas mulheres e filhos e uma irmã
solteira...”. Foi quando Bernardo da Silva Esteves e Manuel Pereira
de Freitas, seus vizinhos, começaram a dizer que o sítio dos irmãos

Gervásio Gonçalves, por ordem do Ilmo. Sr. Governador desta capitania, em que se
obrigam a viver em paz” – 19-VII-1760, em: APM , SC , cód. 89, fls. 24 V.
114 , Termo de bem viver – 10-X-1766, em: APM , SC , cód. 89, fls. 35.
115 , Termo – 15-I-1777, em: APM , SC , cód. 89, fls. 62 V.
116 , Petição de Cosme Soares Ferreira, seus irmãos, moradores no sítio
chamado o Mocambo, e deferimento que S.Exa. No dito requerimento
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

se encontrava em terras de sua sesmaria. “Sumamente pobres”, os


suplicantes pediram ao governante que intercedesse em seu favor,
doando-lhes meia légua de terra em quadra extraída de terras devo-
lutas e de “sobras” das sesmarias circunvizinhas.116 A história con-
tada por Antonio Lopes dos Santos é semelhante. Pequeno sitiante
na Barra do Bacalhau da freguesia de Guarapiranga, pai de quatro
filhos, o suplicante se viu às voltas com o despotismo de Gonçalo
Roiz Monteiro e seus sócios, “homens com menos atenção à pobre-
za, e voluntários” que, apesar da” vastidão dos matos da sesmaria
que possui imensidade de madeira de lei”, entraram no sítio de
Antonio Lopes “e quanta madeira acharam a cortaram para fazer
casas”.117
Os conflitos havidos no universo familiar também foram nume-
rosos, os mais frequentes sendo os que atritavam marido e mulher.
Devido às queixas de Rita de Oliveira sobre a “má vida que lhe dava,
208 e várias violências com que ela praticava”, o pardo Miguel Pruden-
te foi preso no distrito de Itaverava.118 Igual tratamento recebeu na
cidade Mariana José Bernardes de Oliveira, “por querer que sua
mulher o sustentasse com o trabalho ilícito de seu corpo”.119 Menos
frequentes são os casos de prisão por desobediência aos pais, como
sucedeu a Bernardo da Rocha, crioulo forro “insolente e desobe-
diente a seu pai”.120 Há ainda o episódio curioso de Manuel Inácio
da Costa, pardo forro encarcerado devido a uma queixa que dele fez
um seu irmão “de desinquieto e mal procedido”.121

deu.” – 12-VII-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 152-152 V.


117 , Requerimento de Antonio Lopes dos Santos, morador na barra do
Bacalhau ”— 20-VI-1771, em: APM , SC , cód. 186, fls. 4 V-5.
118 , APM , SC , cód. 145, fls. 122, e Termo de bem viver – 19-XI-1766, APM , SC ,
cód. 89, fls. 35 V.
119 , APM , SC , cód. 145, fls. 96.
120 , Ibid., Idem, fls. 13 V.
121 , APM , SC , cód. 145, fls. 121.
122 , Ibid., idem, fls. 97.
123 , Ibid., idem, fls. 98.
11. S OL I L Ó QU I DA I N FÂ N C I A

Na tentativa de viverem de biscates e de expedientes, muitos in-


divíduos infringiam a norma e desencadeavam situações de tensão.
Jacinto Rodrigues Seixas foi preso em Mariana “por fazer cartas fal-
sas em nome de várias pessoas, pedindo esmolas”.122 Um pardo for-
ro de nome João Gonçalves da Silva havia furtado um negro, ven-
dendo-o em seguida; foi preso na ocasião em que cobrava o produto
de sua venda.123 Clemente da Costa, recusou-se a entregar o cativo
negociado, ocultando-o e provocando, assim, a ira do ludibriado,
que dele deu queixa, fazendo com que fosse preso.124
A vadiagem flanqueava o mundo dos expedientes, e dela muito já
se falou neste trabalho. Tida como infração grave, era quase sem-
pre acompanhada, nos papéis oficiais, de qualificativos desairosos.
Assim, José Borges Pinto, homem pardo, e Antônia da Cruz, cabra,
presos moradores no arraial do Araçuaí e enviados ao Tijuco, eram
“vadios e facinorosos”.125 Antônio de Morais, preso por ordem do
governador, é chamado de vadio e perturbador”.126 Para o bastardo 209
Manuel da Siqueira, preso nas Catas Altas da Noruega, a vadiagem
aparece associada à truculência, pois era ele dado a distribuir pan-
cadas e provocar vários distúrbios.127 Sem ofício, pedindo esmolas,
dando mostras de “mau viver” pela vida licenciosa que sempre le-
vara, provocando o escândalo entre os moradores dos distritos por
onde andava, o pardo Pedro José Gomes “foi ordenado não usasse
de pedir mais esmolas (…), empregando-se em algum lícito traba-
lho”.128
A prisão e soltura de inúmeros mestiços – pardos na sua maioria
– que transparece na leitura dos assentos e registros de prisão acusa

124 , Ibid., idem, fls. 25.


125 , Para o doutor ouvidor da Vila do Príncipe – 9-V-1769, em: APM , SC ,
cód.163, fls.51 V.
126 , APM , SC , cód. 145, fls.1.
127 , Ibid, idem, fls. 123.
128 , Termo – 6-IV-1773, em: APM , SC , cód. 89, fls. 59.
129 , Ver sobretudo APM , SC , cód. 145, passim.
130 , APM , SC , cód. 145, fls. 3.
todo mundo de infrações indefinidas, difíceis de serem classifica-
das, mas que fazem pensar sobretudo em rixas e desentendimentos
provocados por valentões e por indivíduos mal ajustados à ordem
social.129 Antonio da Cruz, homem bastardo, foi preso “pela cul-
pa de absoluto e levantado”, tendo tocaiado o cabo do Ouro Fino
Francisco de Souza.130 Também bastardo era Gervásio da Silva de
Camargo, encarcerado “por absoluto”, por ter dado um tiro no es-
cravo de um soldado por “vir fugido da cidade de São Paulo”.131 Por
“uns absolutos que teve com Helena Maria mulher branca”, o pardo
forro Antonio Mendes foi recolhido à cadeia, onde permaneceu por
cinco dias e assinou um termo de não mais incomodar a sobredita
Helena.132 Conduzidos ao calabouço e posteriormente entregues à
Justiça, José dos Santos e Felix de Lima Xavier parecem ter sido in-
fratores de maior calibre; o primeiro respondia pela culpa de “adúl-
tero e perturbador da paz”, enquanto o segundo além de “absoluto e
perturbador da paz”, tinha contra si um abaixo-assinado dos mora-
dores da Cachoeira, onde também atirara em um clérigo com uma
espingarda.133 Desocupado e desordeiro, Raimundo de Abreu foi
preso por queixa de Caetano Furtado de Mendonça, que o acusou
de “desinquietador de Eugênia Gomes, mulher do sobredito Fur-
tado”; foi-lhe ordenado que “se abstivesse de continuar no mesmo
insulto, empregando-se em regular conduta no uso de seu ofício”.134
Pelo seu “mau viver”, Alexandre Correia de Magalhães fora despeja-
do das Minas pelo conde das Galvêas e, posteriormente, por Gomes
Freire de Andrada, que acabou lhe suspendendo a pena devido ao
fato de um certo Fernando Camello ter dito que o réu era necessário
à execução de uma diligência; Alexandre Correia continuou entre-
tanto com “escandalosa vida”, e em um só mês “duas vezes armou

131 , Ibid., idem, fls. 95.


132 , Ibid., idem, fls. 3.
133 , Ibid., idem, respectivamente, fls. 95 e 61.
134 , Termo – 20-II-1776, em: APM , SC , cód. 89, fls. 61-61 V.
135 , Carta de 8-XI-1736, em: RAPM , XVI , 2, p. 376-7.
136 , APM , SC , cód. 145, fls. 13.
uma pistola para atirar a uns homens”. Martinho de Mendonça o
mandou então prender, ocasião em que o revoltoso se vangloriou
de ter conseguido a suspensão do despejo por meio de um dinheiro
que dera Fernando Camello para que este comprasse roupas e in-
tercedesse em seu favor. Acabou sendo preso.135 Acompanhado por
dois crioulos, Calixto e Marcelina, o mulato Bento Soares foi preso
quando intentava passar a estrada do Registro por fora dele; ini-
cialmente encerrado no calabouço, passou depois para a cadeia.136
Juntamente com José de Faria, homem que vivia de sua agência, os
irmãos João Roiz da Silva e José Roiz da Silveira foram detidos e ad-
moestados, obrigando-se a partir de então a viverem “quietos e pa-
cificamente no distrito em que são moradores”, e a “não ofender por
modo algum ao preto João Nunes”, por queixa do qual haviam sido
presos.137 O cabo de esquadra Gabriel da Silva Sampaio, da Com-
panhia de Ordenanças do distrito de Ituverava fora encarregado da
prisão de um pardo chamado Caetano Coelho, que de fato captu- 211
rou. Quando se preparava para colocar Caetano no tronco, apare-
ceu à porta um tio do preso, pardo também e chamado José Antonio
de Santa Rita, que de pistola na mão surripiou o sobrinho e o levou
pela rua acima. O cabo de esquadra chegou à porta e começou a
gritar: “Aqui de El Rei!” – ao que José Antonio respondeu que mata-
ria quem perto dele chegasse, “e como a vida é amável ninguém se
chegou, e logo lhe quebrou as algemas e o levou de garupa e pôs-se
em fugida”. José Antonio era tido como revoltoso, andando sempre
à noite no seu cavalo e cometendo desmandos.138
Outro tipo de desordem eram os incêndios deliberados e os ar-
rombamentos. Sobre os primeiros, nada se sabe, podendo talvez
estarem associados a vinganças pessoais; quanto aos segundos, re-
lacionam-se, na maior parte das vezes, a tentativas de roubos – ten-

137 , Termo de bem-viver – 11-VI (ou VII ?) - 1764, em: APM , SC , cód. 89, fls. 29.
138 , Petição de Gabriel da Silva Sampaio e despacho. Vila Rica, 25-X-1796,
em: APM , SC , cód. 260, fls. 67.
139 , APM , CMOP, cód. 47, respectivamente fls. 98 e 26.
140 , Ibid., idem, fls. 96.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

tativas essas que frequentemente se concretizavam. Gracia Maria da


Silva, preta forra que morava no arraial das Congonhas do Campo,
e Josefa Maria, parda forra residente no arraial da Itaubira, tiveram
suas casas queimadas sem que sobre o fato haja qualquer explicação
nas devassas.139 Além de ter sua casa no Córrego Seco arromba, a
preta Josefa da Silva recebeu várias pancadas dos infratores.140 O
mesmo sucedeu a Narcisa Tereza, parda forra que morava no arraial
do Ouro Branco.141 Em outubro de 1776, o preto forro Luís Alves
teve sua casa no Capão de Cima arrombada por Manuel dos Santos,
crioulo forro que também lhe roubou pertences.142 Moradora no
Ouro Preto, a forra Micaela de Matos foi vítima de “assuada e ar-
rombamento de portas” na noite de 29 para 30 de janeiro de 1735.143
Desordeiros fizeram o mesmo na casa de Inês Maia, com o intuito
de lhe “fazer mal feito”.144 A preta Ana Maria, assistente em São
Gonçalo do Tijuco, freguesia da Cachoeira do Campo, também teve
212 a sua residência arrombada.145 Com exceção de um único caso, to-
das as pessoas que tiveram casas queimadas ou arrombadas eram
mulheres, o que não deixa de ser sugestivo. Isto ocorria não apenas
por ser o sexo feminino tido como mais fraco e menos afeito à resis-
tência, mas porque era considerável o número de mulheres sozinhas
que encabeçavam fogos.146
Exceto no caso do tio que vai à Casa do Tronco libertar o sobri-
nho preso pelo cabo de esquadra, todas as infrações examinadas
até agora refletem a extrema tensão existente entre os membros da
camada livre pobre. Predominam os choques e as relações confli-
tantes, mas há exemplos de indivíduos levados à transgressão pela

141 , Ibid., idem, fls. 99.


142 , Ibid., idem, fls. 92.
143 , Ibid., idem, fls. 101.
144 , Ibid., idem, fls. 89.
145 , APM , SC , cód. 145, fls. 78.
146 , Cf. Donald Ramos, op. cit., passim.
147 , APM , SC , cód. 145, fls. 104.
148 , Ibid., idem, fls. 98.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

solidariedade com o próximo. Foi o caso de Inácio de Araújo Mon-


teiro, preso a 14 de novembro de 1769 por dar asilo a malfeitores e
criminosos.147 José de Mendonça Furtado, pardo forro, permaneceu
dez dias na cadeia, no ano de 1766, por ter fornecido cavalos “a uns
homens, e auxiliá-los, que vinham de romper e passar pela picada
proibida que vem da Paraibuna para Iaruóca”.148 Em 1765, os capi-
tães-do-mato Atanásio Antônio, Francisco da Costa e Ambrósio de
tal, todos cabras, tinham recebido a incumbência de prender dois
negros e uma crioula que andavam aquilombados, mas, deliberada-
mente, os deixaram fugir. Foram presos, e quando iam transferidos
sob escolta dos pedestres José Coelho e João Pereira da Cruz, estes
os puseram em liberdade, desaparecendo os cinco. Todos os capi-
tães-mores comandantes de distritos e todos os oficiais das milícias
da capitania foram então alertados para prenderem os infratores,
distribuindo-se uma descrição dos delinquentes que fornece infor-
mações sobre sua aparência física. Atanásio Antonio era cabra, alto 213
e magro, tendo 30 anos de idade; Francisco da Costa apresentava as
mesmas características que o outro capitão-do-mato, sendo entre-
tanto um pouco mais moço, com 25 anos; Ambrósio de tal era cabra,
de estatura ordinária, cheio de corpo e com aproximadamente 35
anos; pardo claro, o pedestre José Coelho da Fonseca era oficial de
seleiro, cheio de corpo e estatura baixa; pardo também, João Pereira
da Cruz era descrito da mesma forma que seu companheiro pedes-
tre.149
Este documento é muito interessante não apenas por apontar a
inversão que, nesta camada fluida, podia se verificar a qualquer mo-
mento, os agentes da repressão metamorfoseando-se em infratores,
mas – coisa rara – por fornecer dados sobre a idade, cor e aparência
física dos infratores. Com base em alguns poucos documentos deste
tipo, é possível reconstituir precariamente o perfil físico desses pro-
tagonistas da miséria.
149 , Portaria geral para serem presos os capitães-do-mato que nela se
declaram . Vila Rica, 25-I-1765, em: APM , SC , cód. 118, fls. 83-83 V.
150 , Diogo de Vasconcellos, História média..., p. 117-8
151 , Cópia da guia dos presos que faz menção a portaria supr. Tijuco,
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Dos sediciosos que, no governo de Martinho de Mendonça, fugi-


ram para a Bahia, sabe-se de Antonio Gomes Vitório que “embora
tivesse carta da terra, passava por branco, alto, magro, pintado de
branco”. Seu irmão, Constantino Gomes Vitório, era mais velho,
mais alto, com as costas curvas e as pernas grossas, tendo na Bahia
duas irmãs mulheres damas, D. Maria e D. Isabel. De boa estatura,
Francisco de Souza era ferreiro, “bem parecido, idade de 30 anos
mais ou menos, cabelos ruivos, branco, natural do rio São Francis-
co de baixo”. O mameluco Antonio Pereira Caminha tinha cabelo
corrido, era baixo, com barba, cabelos brancos e um sinal na cara;
natural de Sergipe, onde tinha mulher, era ourives e fugira com um
frade compadre de Antonio Vitório, cujo nome era Frei José de São
Paulo. José de Fonseca, de 25 anos, era alto, com dois dentes de cima
podres e quebrados, sendo sua mãe um natural do Rio de Janeiro
que matara o marido em Pitangui.150 Dos presos que, em 1765, rece-
214 beram no Tijuco a pena do degredo, tinha João Pires de Sá “estatura
mediana, cara redonda, olhos pardos encovados, barba preta, cabelo
corredio” e 35 anos de idade; foi degredado por 10 anos para Angola.
De “estatura mais que mediana”, José Antunes tinha pouca barba,
cabelos castanhos, curtos, e a cara comprida; contava com 25 anos
de idade, e também teve degredo de 10 anos para Angola. “Picado na
cara, grosso e refeito, de mediana estatura, já pintado de brancas, e
barba fechada”, o preto forro José Teixeira Alves, de nação mina, foi
degredado para fora da capitania. Igual sorte teve o forro Jerônimo,
mina também, de estatura mediana, sinal na fonte, pouca barba e
cabelo já bastante branco. Alto, grosso de corpo, barba fechada, o
crioulo forro Antonio Leite e seu filho João – este, imberbe, magro e
espigado – também foram expulsos da capitania das Minas.151
Muitos desses infratores, de que se sabe tão pouco, foram reme-
tidos para os presídios distantes.152 Agentes obscuros de infrações
12-II-1965, em: APM , SC , cód. 118, fls. 100-100 V.
152 , Ver APM , SC , cód. 145, fls. 106 V, 107 V, 108, 110 V, 130. Idem para APM , SC ,
cód. 242, fls. 7 V-8.
153 , Ordem de José Antonio Freire de Andrada – 19-V-1959, em: APM , SC , cód.
50, fls. 78 V.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

muitas vezes indefinidas, engastaram-se numa sociedade fluida que


tanto podia aceitá-los como repudiá-los. A larga gama de delitos
que cometeram explica muito da natureza fugidia dessa formação
social. Mas nem todos os infratores foram obscuros, assim como
nem todas as infrações foram indefinidas e difíceis de serem clas-
sificadas. Houve um grupo famosos de bandidos, de garimpeiros
imortalizados pela tradição romântica, de ciganos e falsários que os
dragões das Minas perseguiam sem trégua. E houve os indivíduos
que enveredaram por trilhas que, em toda parte, têm-se por escusas:
a prostituição, a feitiçaria, a deserção, o mundo dos roubos e dos
crimes de morte. Na indefinição geral, foi essa a parte da camada
que se apresentou com maior nitidez.

3. INFR ATOR ES E INFR AÇÕES: OS CASOS INDIVIDUAIS


A , Desertores , Para melhor compreender a grande ocorrência
da deserção, é preciso lembrar o aspecto forçado que, na maior par- 215
te das vezes, assumia o recrutamento. Quando juntava gente para
perseguir os quilombolas, José Antonio Freire de Andrada enfren-
tou esse problema, pois as pessoas “se haviam refugiado por casas,
fazendas e lavras dos moradores desta capitania para não irem à
dita expedição”.153 O corpo de soldados da colônia era composto
frequentemente por indivíduos semidesclassificados, dados a toda
sorte de arruaças. No tempo de Martinho de Mendonça, eram co-
muns as queixas apresentadas pelos roceiros dos caminhos contra
os soldados das paradas. Segundo narra José Joaquim da Rocha, a
criação súbita de muitos regimentos da Cavalaria Auxiliar gerou nas
Minas um problema seríssimo, “puxando-se para estes indivíduos,
que pela sua pobreza, andavam nus, e descalços, muitos se viram
na precisão de pedirem esmolas; e outros, de furtar, para aparece-
rem com os diferentes uniformes, que lhes foram ordenados, e não
experimentaram os rigorosos castigos, que lhes impunham pela fal-

154 , José Joaquim da Rocha, ob.cit., p. 503.


155 , “Proposta para nomeação, promoção e reforma de oficiais dos cor-
pos , em: Diversos registros da correspondência oficial do governador
tas”.154 No início do século XIX , quando era governador o visconde
de Condeixa, os problemas com os soldados e oficiais continuavam
existindo. Ao tratar da reforma dos oficiais de linha com a terça
parte de seu soldo, dizia o visconde não estar cometendo nenhuma
“injúria, ou injustiça”, dado o pouco préstimo daqueles elementos:

[...] o Tenente Ezequiel Rebello de Andrade tem tido sempre uma conduta
devassa, tem sido muito irregular no Serviço, além d'outros desmanchos
que são bem públicos nesta capitania, tendo só a virtude de ser limpo de
mãos; (…) o Alferes Joaquim José de Mesquita é o mais extravagante ofi-
cial, que eu conheço; tem chegado a vender seus uniformes, que já lhe tenho
mandado desempenhar; continua no mesmo desmancho, e a pretexto de
moléstias se esquiva sempre do Serviço; e acha-se a mais d'ano encantoado
nesta vila; saindo apenas de noite por não ter meios d'o fazer com decência
de dia, e dá com tal exemplo grande escândalo aos seus camaradas [...]155

Logo na entrada da Igrejinha de Nossa Senhora do Ó, em Sabará,


o ex-voto de seu patrono, capitão-mor Lucas Ribeiro de Almeida,
deixou registrado o ataque que este recebeu de quatro soldados dra-
gões, que subitamente se lançaram sobre ele.156 São frequentes os
casos de soldados que, como Joaquim da Costa Teixeira e o pardo
Manuel Pimenta, eram recolhidos ao calabouço por terem cometido
desordens em sua ronda, “saltando quintais, roubando-os, tirando

D. Pedro Maria de Athayde e Mello , RAPM , XI, 1906, p. 303.


156 , “Nem com as espadas nem com vários tiros que lhe deram foi possível que
conseguissem o intento porque a Mão de Deus deu forças ao seu devoto para que
de tudo se defendesse, sem receber o menor perigo nem a si nem os escravos que o
acompanhavam. Em sinal de agradecimento, mandou fazer esta memória que suce-
deu em os 29 de dezembro de 1720” – Segundo Lúcia Machado de Almeida, Passeio
a Sabará, 3ª ed., São Paulo, 1964, p. 106.
157 , APM , SC , cód. 145, respectivamente fls. 97 e 121 V.
158 , Para a soltura de José Álvares da Silva – 30-IV-1795, em: APM , SC , cód.
242, fls. 8-8 V.
rótulas das janelas, e fazendo outras coisas semelhantes.157 tendo
sido soldado do Regimento de Cavalaria de Vila Rica, José Álvares
da Silva foi parar na cadeia, e de lá, remeteram-no para o presídio
do Cuieté.158
Devido a essas contingências variadas, verificavam-se então as
deserções. Do Cuité desertou o pardo Nicolau Pereira no ano de
1767,159 e, no ano seguinte, com seus trastes e com armas do presídio,
o mesmo fizeram com os índios João e Antonio.160 Em 1773, Manuel
Barbosa Lima, homem pardo, desertou do presídio do Abre Campo,
para onde deveria voltar sob pena de lá ficar como degredado.161
Havia desertores das mais diversas procedências: da praça da co-
lônia, como o cabo de esquadra Antonio Moreira,162 do Regimento
de Cavalaria Regular da guarnição das Minas, como os soldados
João Pontes, José Francisco Correia e Francisco José Peixoto.163 Mas
os que aparecem na documentação em maior número são os que
desertavam da Praça do Rio de Janeiro e embarafustavam pela capi- 217
tania do ouro. No ano de 1767, um grande número deles foi ai preso:
em setembro, Miguel Rodrigues, homem branco que foram parar
na comarca do Rio das Mortes; em outubro, Manuel da Cunha e Fe-
lix Pinto, este encontrado em Capivari; em novembro, os bastardos
José de Mesquita, Manuel Martins, João Leme da Silva e os brancos
Manuel Fernandes de Oliveira e Antonio Alves da Silva, todos vin-
dos da comarca do Rio das Mortes, que era onde desembocava o
caminho do Rio.164 Os governantes paulistas também se queixavam

159 , APM , SC , cód. 145, fls. 133.


160 , Despacho sobre índios fugidos – 22-XII-1768, APM , SC , cód. 103, fls. 124.
161 , Termo – 6-IV-1773, em: APM , SC , cód. 89, fls. 59.
162 , APM , SC , cód. 145, fls. 2 V.
163 , APM , SC , cód. 242, fls. 38 V.
164 , APM , SC , cód. 145, fls. 123, 61 V, 99, 123 V, 99, 2 V.
165 , Cf. Carta do conde de Valadares ao Morgado de Mateus sobre
desertores – 24-X-1771, em: DI , XIV, 1895, p. 276; Ibid., 11-XI-1772, p. 278. Carta
de Martim Lopes Lobo de Saldanha a D. Rodrigo José de Menezes – sobre
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

de soldados que da sua capitania passavam para a das Minas, pedin-


do providências sobre o assunto.165
O soldado desertor é outro caso típico de inversão, como o dos
capitães-do-mato que ficou citado acima: paladinos da ordem e da
força, passam para o outro lado, tornando-se infratores. Entretanto,
são com frequência reincorporados às milícias, após terem cumpri-
do pena por algum tempo: os toscos corpos militares da colônia não
podiam se permitir luxos nesse sentido.166

B , Padres infratores , Desde os primeiros tempos das Minas,


os clérigos foram vistos como “elementos perturbadores e corro-
sivos”.167 Achavam-se isentos da jurisdição civil, e com frequên-
cia meteram-se em negócios ilícitos de contrabando e extravio de
ouro. Contra eles se remeteram sucessivas ordens de expulsão: em
1713, 1714, 1721, 1722, 1723, 1725, 1744, 1753.168 Diziam algumas delas
218 que os frades que acorriam às Minas eram “levados de interesses
temporais”, não se portando como verdadeiros religiosos;169 viviam
com “indecência”, e se fosse preciso recorrer ao braço militar para

a passagem de desertores nos Registros – 2-V-1780, em: DI , XLIII , 1903, p.325.


166 , Entre os anos de 1685 e 1715, quase 50 sobre cada 100 homens enviados às
galeras eram, na França, desertores do exército real. Até 1684, os desertores presos
e julgados por um conselho de guerra eram condenados à morte, passando, a partir
de então, a serem empregados nas galeras, muitos tendo que carregar marcas in-
famantes: orelhas e narizes cortados, flores-de-lis estampadas nas faces. De nada
adiantaram entretanto essas normas repressivas, pois devido ao grande número de
guerras, as deserções continuaram se multiplicando. Cf. André Zysberg, Galères et
Galériens em France de l'Age Classique aux Lumières”, em: Les Marginaux et les Exclus
dans l'Histoire, p. 369-70.
167 , Diogo de Vasconcellos, História antiga..., p. 301.
168 , Waldemar de Almeida Barbosa, História de Minas, v.2, p. 394.
169 , Ordem de 13-V-1722, em: RAPM , XVI , p. 461.
170 , Ordem sobre expulsão de frades — 1-VII-1753, em: APM , SC , cód.69, fls. III .
171 , “O governo julgava ser muito maior a possibilidade de um membro de ordem
religiosa fazer contrabando, pois, possuindo casas em diversos pontos do Brasil e no
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

expulsá-los, isso seria feito.170


O clero das Minas era composto basicamente por padres secula-
res, pois a Coroa via com desconfiança os regulares, negando-lhes
licença de permanência no território aurífero.171 Sem se identifica-
rem com os desclassificados propriamente ditos, pode-se entretanto
considerar que apresentavam certa tendência a serem assimilados
pelo mundo das infrações, e, como disse Geremeck dos frades fran-
ceses, constituíram “uma larga plataforma de recrutamento para o
mundo do crime”.172 Muitos foram os que se ordenaram para fugir
da justiça comum: assim, José Ribeiro Dias, culpado no “levante de
Minas” e que, apesar do hábito foi expulso da capitania em 1733.173
Houve alguns frades famosos, como Frei Francisco de Menezes,
revoltoso emboaba. O Padre Félix José Soares da Silva, “aventureiro
e contrabandista de escol”,174 também fez nome como contraventor:
esteve preso por duas vezes, livrando-se com recurso à Coroa.175
Francamente desclassificados foram os obscuros Frei Inácio de 219
Nossa Senhora de Montserrat e Frei Domingos da Porciúncula, que
se mancomunaram com os vadios facinorosos João e José da Silva
Pereira e com Bernardo João de Souza para infernizarem o irmão
deste, Lucas Fernandes de Souza. Apóstatas os dois, estavam “vi-
vendo escandalosamente naqueles sertões, fora de sua religião, e
sem licença de seus prelados, entregues a todos os vícios, servindo
de total perturbação ao sossego público daqueles moradores”.176

exterior, tinha facilidade de contatos, podendo enviar ouro e diamantes sem gran-
de dificuldade para fora das Gerais e, mesmo, para o estrangeiro.” Julita Scarano,
ob.cit., p. 17.
172 , G. Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 178.
173 , Cf. Waldemar de A. Barbosa, op.cit., v.2, p. 394. Sendo extremamente fácil
de conseguir, a tonsura era frequentemente usada pelos criminosos franceses que
procurava, assim, escapar aos rigores da lei: “A falsa tonsura é aliás o sinal típico da
adesão ao meio criminoso”. Geremeck, ob.cit., p. 131. Ver também p. 155.
174 , Diogo de Vasconcellos, História Média..., p. 185.
175 , Cf. Waldemar de A. Barbosa, ob.cit., v.1, p. 211-2.
176 , Cópia de dois requerimentos e despachos de S. Exa. Proferidos ao
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Havia-os bêbedos – como o padre João Gomes, admoestado pela


visita que em setembro de 1730 se fez na Vila de S. José del Rei –;177
jogadores e pederastas – como o Padre Felipe da Silveira, que “em
uma só noite ganhou uns negros e um cavalo a um João Fernen-
tier”,178 e que, ao mesmo tempo, andava com uns rapazinhos dos
quais o maior teria no máximo doze anos –; 179 violentos – como
o Padre Bartolomeu, que além de andar “com sua catana à cinta,
e pistolas, e chapéu branco”, costumava descompor os homens do
púlpito e apontar com o dedo para alguns.180 A esta última cate-
goria pertencia também o Padre Manuel Esteves da Costa, vigário
de Baependi. Tinha “mente impudente”, era destemperado e tratava
os seus fregueses “sempre coléricos e com mau modo, oferecendo
pancadas a muitos”. Confessando-se certa vez a mulher de uma tes-
temunha da devassa, que era roceiro, e “dizendo-lhe esta que não
podia ir à missa por ser pobre se irritou ao dito vigário, dizendo à
220 dita sua mulher que ele testemunha não trabalhava por trazer sem-
pre o sentido entre as pernas da dita sua mulher, palavras indignas
de um pároco e em semelhante lugar...”. 181
O concubinato foi muito comum entre o clero, e isso se deveu em
grande parte ao caráter secular dos padres que aqui estiveram.182 O
Frei Luís Coelho, religioso de Nossa Senhora do Carmo do convento
de São Paulo, cobiçava Domingas de Tal, mulher casada e tida por
mal procedida, e a espreitava amiúde pela gelosia; certa vez, quando

alferes Lucas Fernandes de Souza moradores nas Minas Novas – 5-III-


1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 112 V-113.
177 , AEAM , Devassas — maio 1730-abril 1731, fls. 25V.
178 , AEAM, Devassas – 1738, fls. 167 V.
179 , “... acompanhando continuamente com eles admitindo-os em sua casa várias
vezes sem serem pessoas capazes de terem negócios políticos com ele, pois sendo
três o mais velho terá doze anos – AEAM , Devassas – 1738, fls. 174 V.
180 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 41 V.
181 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 143 V.
182 , Para Boxer o concubinato ocorreu com frequencia em todo o clero latino-
-americano, os jesuítas tendo sido os que apresentaram padrão de moralidade mais
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

saltava uns quintais para ir ter à casa da dita mulher, foi corrido
por uns negros. O padre era tido por “mui namorado e lascivo”, e se
dizia “que as esmolas que se lhe dão dos santinhos que lança as gas-
ta com mulheres”. 183 Na freguesia de Nossa Senhora da Conceição
da Ariuóca, o Padre Felipe Teixeira Pinto foi culpado em primeiro
lapso de andar concubinato com uma escrava preta chamada Ana,
e também “por sair a bailar com uma mulatinha que lhe levaram à
casa”. 184 O Padre Manuel Serrão namorava Potência Leite, mulher
de Manuel Cabra, e ela tinha disso grande orgulho, perguntando
a terceiros “se tinha bom gosto em falar com o dito vigário” e se
ele “era gentil-homem”. Manuel Cabral consentia passivamente no
concubinato, conforme diz uma testemunha que, estando um dia
em sua casa, “viu que à vista do mesmo marido estando ela (Potên-
cia) em uma rede o Padre Manuel Serrão estava junto dela metendo-
-lhe as mãos nos peitos...”. 185
Havia ainda todo um rol de padres concubinatos e apóstatas, que 221
vagavam pelos matos cometendo desatinos. O Padre Antonio So-
ares, havia muitos anos que andava amancebado com a bastarda
Maria Pais, com quem tinha filhos; vivia para as partes do Sapucaí,
“apartado no mato”, “parecendo mais bruto do que clérigo”.186 O
Padre João de matos chegara a Baependi com uma comadre sua,
Helena de Tal, e com ela vivera amasiado todos aqueles anos, “como
régulo sem hábito nem tonsura, andando em visita com um baca-
marte, e terçado à cinta”, “metendo terror a todos e descompondo
a muitos”; apesar de tudo isso, e de ir ao arraial nos domingos sem
contudo assistir à missa, o colérico Padre Manuel Esteves, que des-
compusera a pobre mulher do roceiro, o desobrigou da quaresma,
dando comunhão a ele e a sua concubina.187 O Padre Antonio Soa-

alto. Cf. Mary and Misoginy – Women in Iberian Expansion Overseas – 1415-1815 —
some facts, fancies and personalities. Londres, 1975, p. 108-9.
183 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 137-137 V
184 , AEAM , Devassas – maio de 1730 - abril 1731, fls. 19.
185 , AEAM , Devassas – 1727-1787, fls. 45 V e 49-49 V
186 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 148 e 148 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

res e o Padre João de Matos acabaram presos e remetidos para o Rio


de Janeiro.
O Padre Inácio Moreira de Figueiredo constitui um caso à par-
te. Vivia “escandalosamente pelas capoeiras, inquietando as casas
honradas, e famílias delas, com armas defensas”; tinha por amá-
sia uma escrava mulatinha que mantivera por algum tempo oculta
no mato, e andava “tão aborrecido e estranhado dos fiéis que lhes
puseram a alcunha de Padre Capoeiras”. Era revoltoso e atrevido,
descompondo sem temor seu pai, o capitão Luís de Figueiredo, e
sua mãe, D. Antônia; tratava-o “com palavras injuriosas e escanda-
losas, até chegara dizer-lhe que não é seu filho e que é filho da puta,
com injúria grande, por ser homem distinto e sua mãe D. Antonio
em todo tempo conhecida por matrona de conhecida pureza”. Certa
vez, tanto maltratou seu pai que este “se retirou a pé com o capote às
costas para casa de seu Reverendo Vigário chorando e queixando-
222 -se do dito padre seu filho”. O “Padre Capoeiras” costumava ainda
arrombar portas e gavetas de seu pai, e chegou um dia a atirá-lo no
chão e pôr o pé no seu pescoço, o pai sendo velho e doente.188 Nasci-
do, pois, em família de posses, este curioso espécimen descambava
para a marginalidade, como tantos outros seus companheiros de
batina.

C , As vendas e as negras quitandeiras , Já analisadas no capí-


tulo anterior, as negras quitandeiras ou de tabuleiros exerceram
não apenas o comércio ambulante como trabalharam muitas vezes
nas vendas e lojas de comestíveis que serviam os escravos e os ho-
mens livres pobres da mineração. Tanto as negras como as vendas
foram objeto de uma luta incessante empreendida pelas autorida-
des, deste e do outro lado do oceano. Pelo temor que despertavam,
devem realmente ter representado papel de destaque na agremiação
de indivíduos pobres e desclassificados, estabelecendo vínculos de

187 , AEAM , Devassas – 1738, fls. 148 e 148 V.


188 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 16 V-17-17 V-18.
189 , “Este 'templo de Anti-Cristo', este Templum diaboli, esta 'nave da Contra
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

solidariedade entre eles e ocupando o lugar que, na Europa, foi pre-


enchido pela taverna.189 Foi, entre outras coisas, o seu “local santo”
de lazer e de namoro, o espaço onde suas festas e seus batuques se
desenrolaram. Por isso a queixa dos moradores “da opressão que
continuamente tem pelas repetidas desordens e desgraças sucedidas
por causa de muitas vendas”, já que nessas lojas também se briga-
va e se bebia aguardente. As negras eram tidas como as principais
culpadas de tudo quanto era desordem, e por esse motivo ordena-
va um bando do tempo de D. Lourenço de Almeida que os donos
vendessem os gêneros “por sua mão” ou tivessem negros homens
que o fizessem, “mas de nenhuma sorte terão negras ou mulatas, ou
escravas ou forras, vendendo nos ditos ranchos...”. 190 Havia queixas
de que as negras das vendas recolhiam negros para lhes comprarem
ocultamente os diamantes que furtavam a seus senhores, o mesmo
fazendo com os “muitos homens vagabundos que andam pelos rios
e ribeiros e pelos matos fazendo negócios atravessados com os ne- 223
gros” para depois revenderem as pedras a atravessadores que con-
tatavam nas vendas. Houve então determinações procurando impe-

Igreja' é o lugar da alegria e do não-trabalho, o local santo do lazer e do jogo, e serve,


evidentemente, a todas as classes sociais. Para os grupos criminosos, a taverna tem
um papel particular. É a casa, a instituição da vida coletiva que substitui o lar, é o
local do esquecimento e o lugar da memória... Passar a vida na taverna, de dia e de
noite, em boa companhia, jogando dados e baralho, eis o sonho do vagabundo. No
nível das mentalidades e da imaginação coletiva, a taverna é o fator capital de es-
tabilização da existência criminosa, pois sanciona a anomia social, forma modelos
de cultura e escala original de valores, favorece o estabelecimento de laços internos
no seio do meio criminoso e promove sua afirmação — no plano da sociedade e
no plano da consciência — enquanto 'anti-sociedade'”. B. Geremeck, “Criminalité,
vagabondage, paupérisme: la marginalité à l'aube des temps modernes”, rm: RHMC ,
XXI , julho-setembro de 1974, p. 344.
190 , “Sobre não haver vendas com negras, nem estas a faiscar no morro das Con-
gonhas do Sabará”, segundo Augusto de Lima, Um munícipio do ouro – Memó-
ria Histórica , em: RAPM , VI , 1901, p. 326-8.
191 , Bando de D. Lourenço de Almeida, “Sobre o descobrimento dos diamantes
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dir as vendas dentro das lojas, onde não podiam entrar, de dia ou
de noite, nem escravos, nem forros, fossem negros ou mulatos; os
negócios só podiam ter lugar do mostrador para fora.191 Mas nada
disso parece ter surtido o efeito desejado, e em 1732 o secretário do
Governo das Minas, Manuel da Fonseca Azevedo, estendia-se sobre
a matéria em representação dirigida a Sua Majestade:

Outros moradores, em grande número, têm casas de vendas de comer


e beber, onde põem negras suas para convidarem os negros a comprar e,
para melhor o conseguir, ganhando os ânimos dos mesmos negros, con-
sentem que tratem com eles luxuriosamente e muitas vezes sucedeu retira-
ram-se os senhores das casas das vendas, dando os passeios, jogando com
outros seus semelhantes, para darem lugar a que as negras fiquem mais
desembaraçadas para o uso de seus apetites (…) Quase todas essas negras
recolhem nas suas casas, a toda hora do dia ou da noite, não somente ne-
224 gros mineiros, mas os negros fugidos, e destes ajuntamentos, resulta que,
por ocasião de se embebedarem, se matam e se ferem, com grande prejuízo
dos seus senhores e do sossego público... (…) Nas mesmas casas têm os
negros fugidos a seu asilo porque, escondendo-se nelas, se ocultam a seus
senhores e, daí, dispõem as suas fugidas, recolhendo-se também, nas mes-
mas casas, os furtos que fazem, nos quais as mesmas negras são às vezes
conselheiras e participantes. Também nas mesmas casas vêm prover-se do
necessário os negros salteadores dos quilombos, tomando notícia das pes-
soas a quem hão de roubar e as partes por onde lhes convém entrar e sair,
o que tudo fazem mais facilmente, achando ajuda e agasalho nestas negras
que assistem nas vendas...192

Nos últimos anos da década de quarenta, duas escravas tinham

na Comarca do Serro Frio. Primeiras administrações”, em: RAPM , VII , 1902, p.336-7.
Bando de 1-III-1743, em: APM , SC , cód. 50, fls. 38 V-39.
192 , Representação de 20-II-1732, segundo Waldemar A. Barbosa, Negros e qui-
lombos em Minas Gerais, p. 121.
193 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 93 V.
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suas vendas no morro do Batatal na Roça Acima; foram acusadas na


mesa da visitação de “meterem em suas casas negros e negras com
o capataz vendo (ileg.) cometendo pecados com grande escândalo”.
193
Na sua venda na Água Limpa, da qual vivia, a preta forra Rosa
consentia batuques de negros e capitães-do-mato, numa curiosa
agremiação de algozes e vítimas unidos pelo lazer.194 Eugênia, negra
forra moradora no arraial da Paraúna recolhia em sua casa negras
de tabuleiros e negros das faisqueiras, “e a uns e outros consente em
sua casa de noite para todas as velhacarias e maganagens...”.195
Pontos de ligação entre o comércio e os quilombos, esconderijo
de negros fugidos, locais alegres de batuques e amores, as vendas
foram também pontos privilegiados de contrabando. Em 1734, João
Cardoso Lima foi causado ante o visitador de consentir em sua casa
“muitas velhacarias, recolhendo nela negros ateus incentivando que
na casa se use de toda a desonestidade e velhacarias só a fim de lhe
comprar pedras com encargo de sua consciência...”. 196 225
Mais do que em qualquer outro ponto de Minas, as autoridades
do Distrito Diamantino se empenharam na luta pela redução das
vendas e lojas.197 Mas por todo o território aurífero foram elas enca-
radas com desconfiança, espaço reservado a uma espécie de “anti-
-sociedade” como diz Geremeck – que, através da infração e do la-
zer congregava elementos avulsos para lhes emprestar, mesmo que
momentaneamente os traços da coesão social e da solidariedade.

D , Prostituição , As prostitutas foram numerosas em todo o


Império Colonial Português, sobretudo quando, nos primeiros
tempos dos núcleos urbanos, a população feminina ainda não se es-
tabilizara em fogos. Boxer fala da escassez de mulheres brancas em

194 , AEAM , Devassas – julho 1762 - dezembro 1769, fls. 15 V.


195 , AEAM , Livro das Devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734 , fls. 102 V.
166 , AEAM , Livro das Devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734, fls. 71 V.
197 , Cf. Joaquim Felício dos Santos, Memórias do Distrito Diamantino, p. 237.
Ver também Fritz Teixeira de Salles, Vila Rica do Pilar, Belo Horizonte, 1965, p. 106.
198 , Boxer, Mary and Misoginy..., c.1, Morocco, West Africa and Atlantic
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Luanda, para onde a Coroa enviou, em 1593, um grupo de 12 “órfãs


do rei”, jovens brancas em idade de casamento vindas dos orfanatos
de Lisboa e do Porto; cada jovem tinha um dote na forma de postos
subalternos na administração para quem se casasse com elas. Não
há notícia do emprego desse sistema no Brasil, tendo ele sido parti-
cularmente bem-sucedido na Índia.198
Nas Minas, as prostitutas pulularam por todo o período em que
durou a atividade aurífera. Muitas para lá se dirigiram nos primei-
ros tempos, como tantos outros atraídas pelo ouro;199 houve tam-
bém as que foram obrigadas a dotar este gênero de vida devido às
difíceis condições de subsistência que a região oferecia. Os primeiros
tempos, quando era grande o afluxo de homens, devem ter sido es-
pecialmente propícios para o exercício dessa atividade; mas mesmo
depois, quando se estabilizou a proporção entre os sexos, ela conti-
nuou sendo intensamente desempenhada. No Tijuco, muitos foram
226 os bandos contra a prostituição, como o famoso e sempre citado de
2 de dezembro de 1733, que falava dos “pecados públicos, que com
tanta soltura” corriam “desenfreadamente” no Arraial “pelo grande
número de mulheres desonestas” que lá habitavam, “com vida tão
dissoluta e escandalosa, que não se contentando de andarem com
cadeiras e serpentinas acompanhadas de escravos, se atrevem irre-
verentes a entrar na casa de Deus com vestidos ricos e pomposos, e
totalmente alheios e impróprios de sua condição...”.200 Já na época
de franca decadência, Basílio Teixeira de Saavedra propunha “casas
de correção para as mulheres prevaricadoras”.201 Muitos devem ter
sido os casos de mulheres sozinhas, mãe solteiras que tinham de

Islands”, p. 11-34, passim.


199 , Em 1723, o governador de São Paulo, Rodrigo Cesar de Menezes, proibia a
passagem de “algumas mulheres mal procedidas brancas, bastardas, e mulatas for-
ras” para as Minas do Cuiabá, onde causavam grandes perturbações. Cf. Regimen-
to de um bando sobre não passarem mulheres ao novo descobrimento das
minas do Cuiabá – 27-VII-1723, em: DI , XII , 1901, p. 111.
200 , Apud Xavier da Veiga, ob.cit., v. IV, p. 290; Joaquim Felício dos Santos, Me-
mórias..., p. 68.
201 , Basílio Teixeira de Saavedra, Informação..., p. 678.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

sustentar os filhos e a casa com o produto do seu trabalho, exer-


cendo esporadicamente a prostituição para completarem a receita
doméstica; assim sendo, a pureza feminina se cristalizaria em ideal
inatingível: “Mulheres brancas, puras, não há; a Mãe de Deus não
só simboliza a mulher desejada e perfeita, como sem dúvida, seria
a figura mais ouvida pelo Filho-Deus. A grande maioria das ermi-
das a têm como orago, através de suas inúmeras invocações: Nossa
Senhora da Piedade, da Conceição, dos Anjos, das Mercês, da Mise-
ricórdia, das Dores”.202
Como é sabido, e abundantemente confirmado pela documenta-
ção, foi comum viverem os senhores da prostituição de suas escra-
vas. Manuel das Silva, morador no Campestre, freguesia de Itau-
bira, era “público e escandaloso consentidor” de que suas escravas
fossem mal procedidas e se dessem a homens; com as atividades de
uma delas, chegava a angariar semanalmente uma oitava e meia,
e costumava dizer que gostaria imensamente “que os negros se 227
lhe convertessem em negras, porque lhe rendiam mais os jornais”
(...)203 Maria Franca, casada com Cristóvão da Silva Guimarães e
moradora no distrito da Capela de Santa Rita permitia que suas
escravas Joana Grande, Joana Pequena, uma outra por alcunha o
Foguete e Veronica, carijó, fossem à casa de vários homens, lá pas-
sando dias e noite seguidos, quando então as mandava buscar. Se as
escravas não lhe entregassem o jornal, Maria Franca “as manda que
vão ganhar pelo melhor modo que puderem”; fruto harmonioso de
uma sociedade escravista, a tal senhora se indignou quando os vizi-
nhos ensaiaram uma queixa sobre o mau procedimento de suas es-
cravas, dizendo “que muito favor lhe fizera em lhe trazer carne para
eles se regalarem”, pois viera de São José del Rei com suas escravas
“para fartar os moradores de Rio Abaixo, que estavam famintos...”.
Com toda a desenvoltura, Maria Franca costumava perguntar às
suas escravas com quem dormiam, “e quais eram os que melhor lhe

202 , Sylvio de Vasconcellos, Mineiridade, p. 144.


203 , AEAM , Livro das Devassas – ano de 1735, fls. 35 V.
204 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 80 V, 81 V, 93, 95 V, 96-96 V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

pagavam”. 204
Muito frequente também era “alcovitar mulheres para homens”,
como corria fama de que fazia a parda forra Adriana Barbosa, le-
vando recados de homens para mulheres e, algumas vezes, “dando-
-lhes a sua própria cama para as suas torpezas”.205 De certa forma,
alcoviteiros eram os pais e mães e consentiam na prostituição de
suas filhas, incentivando-as muitas vezes, como a negra Cristina de
que já se falou acima.
Tendo-se em vista o tipo de sociedade desenvolvida nas Minas,
torna-se difícil estabelecer os limites da prostituição, palavra usada
com frequência para designar um tipo de estrutura assentada na
predominância dos fogos encabeçados por mulheres, que muitas
das autoridades – inclusive as da Igreja – consideravam imoral. A
visita eclesiástica tivera, nesse sentido, um papel “normalizador”
que correu paralelo ao do Estado, tentando erradicar as relações
228 extraconjugais sem alterar os pré-requisitos para o casamento.206
O grande número de mulheres indiciadas nas devassas sob designa-
ção de “mal procedidas” e as constantes insinuações de que viviam
da prostituição confirmam o aspecto extremamente rígido da ótica
eclesiástica, incapaz de captar a especificidade dessa formação so-
cial; por outro lado, nem tudo foi mistificação pura e simples: esses
documentos retratam, de uma forma ou de outra, a fluidez das re-
lações sociais, notadamente a da camada pobre e livre das Minas.
Muitas dessas mulheres prostitutas ou semiprostituidas eram ca-
sadas, como Paula Perpétua, parda forra casada com Francisco da
Cunha e tida por “mulher meretriz”, o marido se acomodando à
situação “por ser homem pobre, velho, e temer os impulsos da re-
ferida”.207 Também parda e forra, Gertrudes era casada mas vivia
ausente de seu marido, sendo “mulher desenvolta” “que se costu-
ma dar à desonestidade com quaisquer pessoas que a procuram”.208

205 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 9 V-10.


206 , Cf. Donald Ramos, ob.cit., p. 224-5.
207 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 7 V; Livro de Devassas – ano de 1753, fls. 21 V.
208 , Ibid., idem, fls. 9-9 V.78
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

Eusébia Álvares estava separada de seu marido, o oficial de carpin-


teiro e mulato Eusébio porque este vivia bêbado; portava-se “mere-
trizmente estando pronta para ofender a Deus com qualquer pes-
soa”.209 Situação mais complexa era a de Simão Lopes da Silva, sua
mulher Branca Saldanha e sua filha Páscoa: Branca teria abandona-
do o marido porque este tinha “cópula incestuosa” com a filha, que
também foi se foi de casa e passou a “viver meretriz”. Entretanto,
dizia-se que, mancomunadas, a mãe e a filha tinham levantado falso
testemunho contra o pai e o marido “para viverem à sua vontade
meretricidamente”.210
Antônia Curraleira morava sozinha e era prostituta publicamente
conhecida, como o eram também as mulatas Ascença e Antonia,
moradoras no Arraial da Feira.211 Preta forra, Maria da Silva foi
acusada de ser meretriz por mais de uma testemunha, apesar de
haver quem duvidasse, dizendo que à sua casa iam homens apenas
para comprar o sabão que ela vendia para viver.212 229
Algumas meretrizes moravam na roça, como Ana da Cunha e
suas filhas Rita e Maria Fernanda, assistentes na fazenda de um
Manuel Gonçalves Chaves, que acabou sendo chamado pelo visita-
dor e admoestado por consentir “desonestidades” em suas terras.213
Em Vila Rica, outras iam à igreja buscar fregueses, como Inácia da
Silva, parda forra, e as mulheres que com ela moravam; nos dias de
missa, ficavam chamando os homens da porta, e estes escapavam
pela sacristia para irem ter com elas.214
Houve as que conviveram de muito perto com o mundo nebuloso
do crime, para onde podiam escorregar através de infrações muitas

209 , Ibid., idem, fls. 14.


210 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 18.
211 , AEAM , Livro de Devassas – ano de 1753, fls. 23.
212 , “... a qual não se vê dar escândalo algum, porém tem ouvido dizer que ela é
mal procedida, e inda que ele testemunha vê lá entrar muitos homens, sempre jul-
gou que iriam lá a comprar-lhe sabão, que é o negócio de que vive.” — Ibid., fls. 27.
213 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 27 V.
214 , AEAM , Devassas — 1733 — outubro-dezembro, fls. 62V.
215 , AEAM , Devassas — 1748-1749, fls. 43V.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

vezes pequenas. A paulista Josefa Maria de Almeida vivia bêbada.215


Ana Maria da Silva, mulher parda, foi recolhida à cadeia por en-
volvimento na morte de um José Marques; devido a “sua má vida,
e horríveis procedimentos”, seria despejada de Vila Rica dentro de
24 horas para ir viver com moderação junto de sua mãe, compro-
metendo-se a não causar perturbações, “e menos usar de batuques,
nem de outros divertimentos ilícitos” sob pena de ser degredada
para fora da capitania.216 Expulsa da comarca do Rio das Velhas foi
Maria Parda, que morava na freguesia dos Raposos e vivia escanda-
losamente inquietando o povo do arraial.217
Numa sociedade iníqua e desigual, essas mulheres tiveram de
deixar de lado os pruridos morais para poderem sobreviver. Nada
tinha muita importância ante a violência do cotidiano, como fica
claro na fala desaforada de Maria da Costa, que, brigando com uma
mulher, disse-lhe que se era “capaz de dar uma bofetada em Nos-
230 sa Senhora do Pilar”, com muito mais facilidade esbofetearia a sua
contendora, finalizando que “se ela era mulher pecadora, que por
ela tinha sido Santa Maria Madalena...”.218
As casas de prostituição – ou casas de alcouce – foram nume-
rosas, exercendo função semelhante às vendas e lojas de comer e
beber, com as quais às vezes se confundiam. Na casa que tinha a
mulata Catarina, na Lavagem do Batatal, homens e mulheres se en-
contravam, entrando e saindo a qualquer hora do dia e da noite, e
nela fazendo “galhofas”.219 Na casa do pardo Custódio, em São João
del Rei, também havia, além do amor ilícito, os batuques que os vi-
zinhos estavam acostumados a ouvir todas as noites.220 A casa pú-
blica de Maria Crioula, negra forra também conhecida por “a Lava-
deira” era frequentada por negros, soldados, e capitães-do-mato.221

216 , Termo de bem viver — 6-I-1772, in: APM, SC, cód. 89, fls. 51-51V.
217 , Termo, s.d., in: APM, SC, cód. 163, fls. 52V-53.
218 , AEAM , Devassas – 1747-1748, fls. 31V-32.
219 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 32V.
220 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 11V.
221 , AEAM , Devassas – 1748-1794, fls. 18-18V.
222 , AEAM , Devassas – 1733 – outubro-dezembro, fls. 71 V.
13 .O A RC A IC O E O MODE R N O : H I S T ÓR I A DE U M A A M I Z A DE

Igualmente heterogênea era a freguesia da crioula forra Francisca,


que morava na Queimada de Vila Rica e lá consentia “não só a ne-
gros, como também a brancos, como são uns que andam vendendo
pelas portas fazendas”.222 No Tijuco, Rosa Pereira da Costa, mulher
parda, dava casa de alcouce para uma infinidade de pessoas, “em
forma que nela se ajuntam todas as noites quase todas as mulheres
damas que há neste arraial e quantidade de homens de toda qua-
lidade, e na dita casa estão todas as noites até fora de horas con-
versando e tratando uns com os outros descompostamente”, “fa-
zendo saraus e galhofas”.223 No caminho do Padre Faria, num local
chamado Piçarrão, o preto forro José dava casa de alcouce apenas a
negros e negras.224
Josefa Maria de Souza tinha no Ouro Branco, em Vila Rica, um
misto de estalagem e casa de prostituição. Abrigava “toda a casta
de passageiros”, cozinhando para eles e também lhes prestando ou-
tros serviços; era infamada de servir “aos hóspedes, em atos torpes 231
e lascivos, por si e sua filha Jacinta, e por Rosa mulher bastarda que
tinha em sua casa, e lhe tirava contas do que davam por seus atos
ilícitos, e quando os hóspedes eram muitos e eram necessárias mais
mulheres as convocava deste arraial, e também de outras partes, vi-
nham assistir à sua casa, para o mesmo torpe lucro”.225 A estalagem
era o seu modo de vida, mas a prostituição aparecia como oportu-
nidade de aumentar os rendimentos.
E , Feitiçaria , Se na Europa o momento áureo da feitiçaria foi
o século XVI ,226 a feitiçaria foi o seu agente privilegiado. Tida como

223 , AEAM , Livro de Devassas – Comarca do Serro do Frio – 17348, fls. 73 V, 74 V


e 75.
224 , AEAM , Devassas – 1733 – outubro-dezembro, fls. 71 V.
225 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 67 V-68, 69, 70, 71.
226 , Cf. Goglin, Les Misérables dans l'Occident Médiéval, c.III , item Sur les
Chemins du Ciel, de la Terre et de l'Enfer, passim.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

mais pérfida do que o homem, a mulher apresentaria sempre uma


quantidade menor de fé ( foemina = Fe e minus, ou seja, fé de me-
nos).227
É curioso constatar, nas Minas do século XVIII , a grande incidên-
cia de feiticeiros homens – mais numerosos talvez do que as mu-
lheres. Isto se deve em grande a parte à sua extração social, homens
pobres que eram, negros forros e, algumas vezes, escravos: ora, nas
culturas primitivas, africanas e indígenas, a magia é desempenhada
sobretudo pelos homens.
Houve mulheres feiticeiras, como a negra forra Luzia Lopes, que
chegou a ser chicoteada por suas práticas escusas em Conceição do
Mato Dentro.228 Moradora no córrego do Brumado, a parda Timó-
tea Nogueira havia sido anteriormente agregada na fazenda do ca-
pitão José Antonio das Neves, que a lançou fora por feitiçaria; dizia
esta mulher que era capaz de fazer vir o demônio à sua presença
232 todas as vezes que quisesse, sabendo certos segredos “para facilitar
as mulheres aos homens para terem entre si cópula”.229
Prostituição e feitiçaria confundiam-se algumas vezes.230 Publi-
camente conhecida como meretriz, Custódia era também “infama-

227 , Jean Gouglet, Um Portrait des Sorcières au xv Siècle”, em Allard et al.,


Aspects de la Marginalité au Moyen-Age, p. 137. Jean Delumeau fala do sentimento
contraditório, misto de veneração e de medo, que os homens têm em relação às
mulheres através dos séculos; o medo de mulher seria característico às sociedades
patriarcais. Cf. Jean Delumeau, La peur em Occident – XIV-XVIII siècles, Paris, 1798,
c.10, Les Agents de Satan – III – La Femme , p. 305-45. Thomas S. Szasz, ao tratar
do Malleus Maleficarum – obra medieval sobre feitiçaria –, diz tratar-se de “uma
espécie de teoria científico-religiosa da superioridade masculina, justificando — e,
na realidade, exigindo – a perseguição das mulheres como membros de uma classe
inferior, pecadora e perigosa de indivíduos” – A fabricação da loucura, Rio de Ja-
neiro, 1976, p.36.
228 , AEAM , Livro de Devassas – janeiro 1767-1777, fls. 32-32 V.
229 , Ibid., idem, fls. 67V.
230 , Para se assegurarem da constância dos amantes, as prostitutas não hesitam
em usar “filtros de amor”, sortilégios vários e chegam até a fazer apelo ao diabo. Cf.
da de feiticeira”; certa ocasião, quando a mulher de uma das teste-
munhas que a incriminaram achava-se “doente de partos”, “sucedeu
ir-se enterrar o sangue do dito parto”, achando-se a tal Custódia na
função do enterro, “e que para isso pedido ansiosamente”. Tempos
depois foi encontrado um embrulho de uma seda ou tafetá seme-
lhante ao da roupa de Custódia, contendo “um pouco de sangue do
mesmo parto com unhas, cabelos, ossos e um espinho de (ileg.) ca-
xeiro, donde se originara a suspeita de ser a dita Custódia a que fez
a dita embrulhada”.231A prostituta Arcângela, moradora do Tijuco,
era acusada de ter feito pacto com o diabo “de lhe dar os filhos que
parisse para por este meio ter fortuna por cuja razão lhe chamam a
mulher do diabo”. Essa desconfiança adveio, ao que tudo indica, de
uns acidentes uterinos ocorridos com a mulher em casa de tercei-
ros, quando se cogitou que tivesse tomado algo “para ter fortuna”. O
médico que a acudiu disse “ter desconfiado, pelas expressões e ges-
tos de Arcângela, que com elas e passava algo de sobrenatural, mas 233
acabou vendo que eram folhetos uterinos”. Houve testemunhas que
protestaram contra a suspeita de feitiçaria, afirmando ser Arcângela
“uma pobre moça que não tem nada de seu”.232
As acusações de feitiçaria contra homens são inúmeras. Um es-
cravo de Bernardo Pereira Brasil curava “fingidamente com enga-
nos, mostrando tirava (sic) ossos e outras drogas dos corpos daque-
les a quem curava, chupando-os com a boca, e dizendo que por este
modo tirava os feitiços”;233 como pena, foram-lhe impostos 60 açoi-
tes a serem dados por seu amo na principal rua do arraial.234 Próxi-
mo às Congonhas do Campo vivia o negro Domingos Caldeireiro,

Geremeck, Les Marginaux Parisiens..., p. 252.


231 , AEAM , Devassas – 1763-1764, fls. 17-17 V.
232 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734, fls. 84, 87, 88,
88 V-89, 75.
233 , Ibid., idem, fls. 97.
234 , AEAM , Devassas – 1721-1735, fls. 47.
235 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls. 49.
diversas vezes culpado e preso “por fazer curas com feitiçarias”, per-
mitindo também em sua casa ajuntamento de negros, danças e ba-
tuques.235 “O Careta era um negro cujo antigo dono morrera, e que
costumava ser visto nas imediações da Vila do Príncipe “com uma
panela fervendo sem fogo”, donde considerarem-no feiticeiro.236
Amancebado com Francisca Correia, preta forra, vivia um escra-
vo cujo nome não é citado e que costumava adorar em sua casa ao
“deus de sua terra”, corporificando numa panela que ficava pendu-
rada no teto; serviam-lhe guisados, pedindo-lhe depois licença para
os comer, e ao seu redor faziam também “suas festas e calunduras”.
O negro tirava brasas do fogo com a boca, deitando-as depois na
água a fim de lavar uma crioulinha que com ele morava, e para evi-
tar castigos de seu senhor costumava untar o corpo com o suco de
um pau do mato.237 Muito frequentador das prostitutas era o mulato
forro Antonio Julião, mestre sapateiro morador no arraial da Roça
234 Grande e que vivia separado de sua mulher; usava de feitiçarias para
ser querido das meretrizes, e “no Sabará ia o dito mulambo juntar-
-se de noite com mas mulatas damas no sítio da Forca, e ai usava
com elas de feitiçarias para lhe adquirir fortunas”.238 Na Vila do
Príncipe costumava aparecer um escravo chamado José, que punha
no chão um prato d'água e fincava ao seu lado uma faca de ponta;
fazia a seguir umas perguntas “às quais respondia de junto do prato
uma vozinha a modo de chiar de morcego, que ele, testemunha não
entendia, porém que o tal negro dizia que aquela dita voz queria
dizer a moléstia ou achaque que cada qual tinha”; a testemunha,
incrédula, achou que estes artifícios destinavam-se unicamente a
angariar fundos para o negro, mas nem por isso deixou de falar
dele como feiticeiro ao vigário visitador.239 O preto Inácio, de nação
mina e morador no Piçarrão, era casado tinha família e vivia de

236 , AEAM , Devassas – 1748-1749, fls. 7 V.


237 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 96-97.
238 , AEAM , Livro de devassas – janeiro 1767-1777, fls.47.
239 , AEAM , Livro de devassas – Comarca do Serro do Frio – 1734, fls. 52-52 V.
240 , AEAM , Devassas – julho 1762 – dezembro 1769, fls.106.
14 . PR E FÁC IO A T E M P O DE C L I M A

fazer curas com raízes, viajando de um lado para outro mentado em


seu cavalo; fora já preso por superstições e feitiçarias.240
A história de Paulo Gil, pardo forro, apresenta francos traços de
feitiçaria. Dizia-se que tinha pacto com o demônio, havendo provo-
cado a morte de várias pessoas. Andou certa vez amancebado com
uma escrava de nome Rita, e na ocasião a dona desta foi contra o
romance. Paulo Gil ameaçou a senhora, que a partir de então come-
çou a definhar, experimentando “tanto dano na sua saúde, que está
(ileg.) a morrer, e da mesma sorte a referida escrava experimentou
tanto dano da saúde que de repente se viu cheia de malefícios.”, que
só foram curados à custa de exorcismos dos sacerdotes católicos.
Paulo Gil jactou-se então de que faria todo o dano que pudesse à
família dos senhores de Rita, assim como à escrava. Murmurava-se
ainda que o pardo costumava pedir a alguns negros “o seu próprio
sangue para com ele escrever cartas ao demônio, prometendo-lhes
forças agigantadas e outras coisas mais”. Um desses rapazes, o par- 235
do forro João Batista, que contava com 20 anos, deixou registrado
na mesa da visita o seguinte depoimento:

[…] estando ele testemunha em casa de Antonio Rodrigues donde estava


também Paulo Gil aí lhe disse o dito Paulo Gil (…) se queria ter mandinga
para ninguém poder com ele (…), e neste lhe mostrou um pedaço de pedra
de cor parda que lhe disse era pedra de Ara, a qual quis moer para lhe dar
(…) a beber, o que ele testemunha não quis consentir, e apartando-se do
dito Paulo Gil o mesmo Paulo Gil foi seguindo ele (…) persuadindo-o sem-
pre a que quisesse ter a dita mandinga, em cujas persuasões continuou o
tempo de 8 dias, do que ele testemunha sempre repugnou, até que em uma
noite levou a ele testemunha a um caminho de encruzilhadas, e deixando-
-o (…) no referido sítio lhe disse que o esperasse aí um pouco de tempo
que ele logo vinha, e com efeito ele testemunha ficou (…) e passado um
instante chegou o dito Paulo Gil com 7 ou 8 figuras negras todas de forma
humana, e apenas chegou disse a ele (…) estas formais palavras – aqui estão

241 , AEAM , Devassas – 1756-1757, fls. 50-51 e 52. As reticências substituem as ex-
pressões “ele testemunha” ou “testemunha”, que, excessivamente repetidas, atrapa-
os nossos amigos – o que vendo ele testemunha e ouvindo entrou a tremer,
e a experimentar os cabelos arrepiados, e com o dito temor disse (…) ao
dito Paulo Gil que esperasse que ele (…) logo vinha, e com efeito se retirou
cheio de pavor para sua casa, e depois topando-se com o mesmo Paulo Gil
este com ele pelejara, dizendo que lhe fizera boa em lhe faltar, persistindo
sempre em o persuadir que tivesse a dita mandinga, até que passados mais
alguns dias o mesmo Paulo Gil, andando a dormir ele testemunha o feriu
em uma parte de um quadril com cuja dor acordando ele (…), e achando-
-se ferido, lhe perguntou porque razão ele o ferira, ao que ele dito Paulo Gil
respondera, que era para dar o sangue àqueles amigos que ele tinha visto
aquela noite, por cujo motivo lhe prometia (…) que havia de ter forças que
ninguém havia de poder com ele (…), ao que ele (…) respondeu que não
queria tais amigos; e logo (…) viu levantar um redemoinho no vento de tal
forma que tudo levava comigo, de que ficou ele (…) tão cheio de medo que
entrou a chamar por Santa Ana, e desde então até agora não quis ter mais
comércio com o dito Paulo Gil […] 241

Excetuando-se este caso, onde surge com força o sobrenatural e


os pactos demoníacos, a tônica dos outros episódios de feitiçaria é a
cura e o misticismo de raízes africanas. O que transparece em todos
eles é uma certa dificuldade de integração ao meio social por parte
dos indivíduos que exercem essas práticas. Havia, por um lado, o re-
púdio da sociedade negros em sua grande maioria, esses indivíduos
traziam na cor da pele a presença de um mundo secreto e desconhe-
cido, de que a feitiçaria era um dos ecos ameaçadores. O africano
podia ser escravo dócil e serviçal; mas por detrás dessa aparência
inofensiva escondia-se o protagonista da rebelião e da revolta, o re-
presentante misterioso e traiçoeiro de uma humanidade diferente e
perigosa, o feiticeiro que subvertia o mundo ordenado dos brancos
e instaurava o caos.
Por outro lado, existia uma defasagem entre práticas mágicas ca-

lha a leitura.
242 , “... as atitudes mentais tradicionais envolvem a propriedade privada de meios
de defesa que a sociedade capitalista apenas reforçou e continuou”. Geremeck, Cri-
racterísticas de uma cultura primitiva e o seu novo meio sociocultu-
ral. Agente da circunscrição do mal tacitamente reconhecido e acei-
to por seus semelhantes, o feiticeiro perdia, na colônia portuguesa,
a sua função original. É claro que muitas formas de seu saber foram
preservadas, e a elas muita gente recorreu. Mas, fora do seu círcu-
lo, longe daqueles que, como ele, ainda preservavam essa forma de
saber, a feiticeira e o feiticeiro foram vistos como desclassificados.

F ,Roubos , Como atividade mais regular e organizada, o roubo


parece requerer a ação coletiva: é então que se torna especialmente
perigoso e ameaçador para a propriedade; entretanto, como recurso
individual e intermitente, não alcançou grande destaque entre as
práticas criminosas, e a documentação não se atém a ele de modo
especial – situação bastante diferente da encontrada na Europa,
onde, desde Idade Média, era enorme o rigor da justiça ante o fur-
to.242 Na camada fluida que foi a dos homens pobres, acabava se
tornando um expediente a mais, de que tanto o soldado como o va-
dio, tanto o capitão-do-mato como o quilombola, tanto o pequeno
artesão como o roceiro pobre podia lançar mão esporadicamente.
As casas ofereciam então pouca segurança, e os ladrões entravam
nelas sem maiores dificuldades – conforme se viu pela frequência
dos casos de arrombamento. Para isso, bastava forçar as rótulas, as
portas, ou, como diz um bando do tempo de Assumar, arruinar as
paredes com socavões.243
Os pequenos roubos permearam portanto toda a camada dos ho-
mens livres pobres. Manuel Pinto Biscaia registrou querela contra
Fulano de Campos por este lhe ter furtado um pouco de milho.244
Antonio Gomes, morador no Padre Faria, foi acusado de roubar

minalité, vagabondage, paupérisme .., p.342-3.


243 , “Ordem de Assumar aos capitães-do-mato para prenderem todo negro que
for encontrado na vila ou fora dela depois das 9 horas da noite” – 15-I-1718, em: APM ,
SC , cód. 11, fls. 210 V.
244 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 27.
245 , Ibid., idem, fls. 102.
umas pistolas a João Roiz na noite de 28 de março de 1735.245 No
caminho da serra do Tapanhoacanga, roubaram a João Cerqueira
da Costa a importante soma de 532 oitavas, além de papéis e rou-
pas.246 Na casa de José Gomes, morador na Chapada, entraram uns
homens com máscaras e lenços na cara, levando vários objetos de
ouro lavrado.247
O furto de gado e de cavalos aparece como uma atividade mais
organizada, exercida por indivíduos isolados ou por pequenos gru-
pos. Mateus de Moura Pinto, pardo forro, e Antonio da Encarnação
foram ladrões de cavalos que acabaram na cadeia.248 Além de andar
desavergonhadamente com a amásia crioula encarapitada nas ancas
de seu cavalo, além de promover na casa dela “batuques de dan-
ças proibidas e desonestas”, Dionísio Gonçalves de Barros furtava
os seus cavalos dos pastos, vivendo de os trocar e “de comer gado
alheio”. Sabendo disso, muitas vezes os oficiais da justiça tentaram
prendê-lo, mas sempre sem sucesso devido à turbulência do ladrão,
que era temerário a ponto de ouvir missa com esporas e de arre-
meter contra o padre capelão, que, certa vez, o quisera admoestar
e acabara levando “muita pancada na porta da sacristia”.249 Donos
de um pequeno pouso na freguesia de Itaverava, Manuel Pacheco e
Antônia Lopes tinham um filho chamado José, que vivia com uma
escrava da casa, Loureça. Antônia Lopes, mulher “de má consciên-
cia” mandava no marido e criava os bastardinhos do filho, instruin-
do-os na prática do furto e do gado, a que se dedicava também José.
Certa vez, mataram duas vacas de propriedade do juiz vintenário,
conduzindo a carne dentro de um carro, coberta por ramos de ár-
vore. A fama dessa família sinistra começou a ser celebrada até em
pasquins anônimos, e muitos viandantes deixaram de se arranchar

246 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 27.


247 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 106 V.
248 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 120, APM , SC , cód. 145, fls. 1.
249 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 87 V.
250 , AEAM , Devassas – julho 1762-dezembro 1769, fls. 87 V.
251 , Ibid., idem, fls. 14, 15 V e 16.
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 1

em seu pouso.25o Bento Luís e Inácia, parda quartada, viviam aman-


cebados por ser ele casado no Rio de Janeiro, e jaziam “adormecidos
na excomunhão”; tinham filhos, e eram todos conhecidos publi-
camente como ladrões de cavalos.251 A publicidade de todas essas
infrações não chegava entretanto a colocar os seus fautores fora do
convívio da sociedade.

G , Mortes , Muitas das tensões manifestadas pelas arruaças,


pelas rixas e pelos ferimentos podiam degringolar em morte. De
repente, numa manhã de janeiro, aparecia no campo de São José o
corpo de uma menina parda de nome ignorado, enquanto surgia
boiando o cadáver de um afogado na cachoeira da roça do capitão-
-mor Henrique Lopes.252 E, pelos anos afora, mês após mês, divi-
savam-se cadáveres pelas serranias mineiras assim que as brumas
matinais começavam a subir: amarrado a um esteio, no alto do Ca-
quende, o preto Angola Antonio do Rosário; atirado na borda de 239
um rio, junto à ponta do Rodeio da Itatiaia, um homem branco que
ficou sem nome; no fundo de um poço natural, no rio da Barra do
Ouro Preto, Manuel de Oliveira Guimaraes; enforcado na Cachoei-
ra, outro branco que permaneceu incógnito através dos séculos.253
Alguns ficavam ocultos em capoeiras, como os que se encontra no
caminho das lavras novas da ponte da Olaria de Baixo “e se conhe-
ceu ser um de pessoa branca e três de negros”.254 Nesses casos, o
reconhecimento do corpo se tornava difícil, e nem a cor do infeliz
podia ser definida com segurança.255 Houve os que foram descober-
tos quando já ia avançada a sua decomposição, e esse foi o caso de
um corpo “ao parecer branco” que se achou numa roça que beirava
252 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 82 V; APM , CMOP, cód. 29, fls. 106 V.
253 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 21; APM , CMOP, cód. 19, fls. 115; APM , CMOP, cód. 47,
fls. 14; APM , CMOP, cód. 19, fls. 106.
254 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 96.
255 , “Tem devassa da morte de um homem que não pode averiguar se era branco,
ou não, achado na serra”. – 10-IV-1737, em: APM , CMOP, cód.19, fls. 111.
256 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 61 V.
257 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 101 V; APM , CMOP, cód. 19, fls. 102.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

a estrada de Itaverava, “em cujos ossos, caveira e mais roupas se fez


corpo de delito em 21 de fevereiro de 1762”. 256 Muitos encontraram
a morte dentro das vilas e dos arraiais: numa noite de janeiro, o
crioulo forro Antonio Afonso caiu sem vida na rua das Cabeças,
em Vila Rica, onde, no beco da cadeia, foi morta uma mulata des-
conhecida. 257
Em certas ocasiões, um só conflito liquidava vários homens, como
ocorreu aos forros Francisco Batista, crioulo, e João Batista, cabra,
que morreram juntos com um negro quilombola em uma briga que,
na paragem chamadas as Cruzes, envolveu ainda outros negros fu-
gidos.258 Mas havia também os casos de vários homens dando cabo
de um, e isto sucedeu na devassa que se fez da morte de Ângelo
Pereira, da qual saíram culpados quatro indivíduos.259
Muitas dessas mortes ocorridas nas vilas e seus arredores fica-
ram sem punição, pois nunca se soube quem as provocou. Outras
240 tiveram as culpas apuradas. Assim, sabe-se que o autor da morte de
Manuel Pereira dos Santos, crioulo forro, foi o mulato João Gue-
des;260 que a mão que esfaqueou Roque de Tal na barriga, por baixo
da costela esquerda e com “uma faca flamenga muito velha e ruim”,
foi a de seu irmão Manuel de Tal, que contava onze anos, um a mais
do que a vítima.261
De causa de algumas dessas mortes ficaram registradas descri-
ções detalhadas. Um pardo encontrado no morro dos Ramos, em
Vila Rica, apresentava vários ferimentos profundos na cabeça, na
perna e no pé.262 O crioulo Manuel, morto nas imediações do Ti-
juco, levara “uma estocada por cima da teta esquerda, do tamanho
de uma polegada, de que lançava muito sangue, e mostrava ser feita

258 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 114.


259 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 91 V.
260 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 104.
261 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 112.
262 , APM , CMOP, cód. 47, fls. 111 V-112.
263 , Ibid., idem, fls. 112.
264 , Ibid., idem, fls. 112V.
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 2

com instrumento furante”, além de ter também uma cutilada na


mão esquerda.263 Antonio Fernandes de Azevedo, viandante do ca-
minho, foi achado morto “com 14 feridas da barriga até os peitos,
que mostravam serem feitas com instrumentos de ferro, faca ou coi-
sa semelhante, e nas costas um rombo de tiro de bala que passou
aos peitos sem chumbo algum, e na mão direita oito feridas, e na
esquerda sete, que todas pareciam terem sido feitas com o mesmo
instrumento, e ponta de faca”.264
Por detrás de muitos desses crimes estavam motivos passionais.
Casada com José Francisco, homem branco, Rosa matou o marido
auxiliada por dois negros, mas a devassa mostrou a participação de
outros dois indivíduos: Francisco da Costa Lima, primo de Rosa, e
um mulato de alcunha “o Pernambuco”. 265 Ana de São José, mulata,
por antonomásia “a mulata do porto”, matou com veneno o seu ma-
rido, Antonio da Silva Costa.266 Em 1736, Maria Pedrosa foi autora
de um crime passional no Serro do Frio, assassinando o marido e 241
jogando seu corpo num rio, para depois, em trajos de homem, fugir
com um mulato para a freguesia de Curral del Rei. EM seguida,
alcançou a capitania do Rio de Janeiro, onde, em Inhomirim, ficou
assistindo em casa de Manuel Francisco, cangalheiro com quem ia
se casar.267
Havia os assassínios que permaneciam envoltos em mistério, e a
leitura atenta dos documentos que os narram faz pensar em histó-
rias escusas de abusos de poder. O escrivão da vara de São João del
Rei havia sido incumbido da penhora dos bens de Matias Ferreira,
podendo prendê-lo se preciso fosse. Acompanhado de outro oficial
e de alguns soldados, dirigiu-se para a casa do indivíduo, cercando-
-a. Saiu então da casa o sogro de Matias, empunhando uma faca e

265 , APM , CMOP, cód. 145, fls. 109 V.


266 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 86.
267 , Carta de Gomes Freire a Martinho de Mendonça – 8-XI-1736, em: RAPM ,
XVI , 2, p. 376-7.
268 , “Requerimento que a S.Exa., fez João Batista Pereira, escrivão da vara do
Meirinho da Ouvidoria da Vila de São João del Rei” – 4-VI-1772, em: APM , SC , cód.
186, fls. 156.
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ameaçando resistência. Intimado a se render, fugiu, saltando por


cima de um córrego de modo tão desastrado que caiu sobre a faca e
morreu. Essa foi a história que o escrivão contou, mas houve quem
a narrasse de modo diferente – segundo ele, “pessoas suas inimigas
e mal afeitas”, que o desejavam incriminar. O que se sabe é que o
escrivão passou um mau bocado, procurando provar sua inocência.
Os documentos não dizem se o conseguiu.268
Igualmente escusa é a história da morte de Antonio Garrafa, pre-
to crioulo que o soldado José Alves da Silva assassinou no arraial do
Tijuco. A ronda militar andava pelas ruas na noite de 15 de julho;
deveria ser onze horas ou meia-noite quando os soldados ouviram
tocar batuques em casa de José Batista (ou Roberto) Rolim, “e su-
pondo seria algum ajuntamento de salteadores de cargos diaman-
tinos, aos quais vulgarmente se chamam garimpeiros, entraram a
longe (sic) das ditas casas...”. Delas saiu espantado o negro Garrafa,
242 e sobre ele disparou o soldado José Álvares, provocando sua morte
imediata.
Ouviram-se várias testemunhas, e não ficou provada a resistência
que, no dizer do assassino, lhe fizera o Garrafa. O auto do corpo de
delito igualmente negou que o crioulo tivesse enfrentado o soldado,
“pois mostra que o falecido recebeu o tiro da espádua esquerda até o
pescoço, e em ação mais natural de quem foge do que quem comete
e resiste”.269
Alguns criminosos passavam de uma capitania para outra, e os
governantes trocavam cartas e deliberavam sobre as diligências a

269 , Cartas e devassa da morte de Antonio Antunes, crioulo forro, por alcunha o
Garrafa – APM , SC , cód. 223, fls. 37-39. O dono da casa em que se achava o Garrafa –
e que aparece na devassa ora como José Batista Rolim, ora como capitão José Rober-
to Rolim – era suspeito de contrabando de diamantes. Talvez pertencesse à família
do padre Rolim, bastante envolvida com esta prática. Cf. Maxwell, ob.cit., p. 145.
270 , “Carta do conde de Valadares ao Morgado de Mateus” – 18-II-1770, em: DI ,
XIV, 1895, p. 270-1. Ver também as outras cartas da correspondência entre Valadares
e o Morgado de Mateus, no mesmo volume; “Para todos os oficiais dos registros so-
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 3

serem feitas para a sua prisão. Não sabemos qual o crime de Manuel
da Costa Jardim – “réu delinquente em homicídio horroroso” –,
mas por dois anos – de 1768 a 1770 – ele foi assunto de várias cartas
que entre si trocaram o conde de Valadares e o Morgado de Mateus,
capitães-generais de Minas e de São Paulo. Valadares pedia “cautela
e segredo” na sua captura, e enviava ao colega de administração um
memorial contendo os sinais do réu. Natural da freguesia de Nossa
Senhora de Nazaré da Cachoeira do Campo, era filho de mulher
parda e homem branco, sendo considerado pardo ou mulato; tinha
“uma costura na cabeça”, o cabelo preso, a fisionomia carrancuda
e sinistra, o porte espigado e um “dente adiante quebrado, ou po-
dre”. Nesses dois anos, dois indivíduos foram presos por engano.
Afinal, o governador de Minas conseguiu localizá-lo: “Agora eu te-
nho a certeza, e notícia, que ele se acha no Convento dos Capuchos
dessa cidade (São Paulo) por recomendação de um sacerdote desta
capitania a um religioso, cunhado de um médico, aqui assistente; 243
servindo no convento de hortelão, ou cousa semelhante”.270
Caso curioso é o de Inácio Alves de Queiroga: assassinara um
ourives e seu escravo, roubando-lhe quarenta mil cruzados; depois
disso, recolhera-se para os confins do Itambé de Dentro, lá ficando
acastelado numa construção fortificada que, a 27 de setembro de
1736, o sargento-mor Romão Gamacho invadiu com o objetivo de
o prender. Ao delinquente não adiantaram “os cães de fila, armas,
seteiras da casa, e artifícios de pólvora, que dizem tinha, e se lhe
acharem uns em forma de morteiros, com pedras e metralha for-
mados de tamarasses cingidos de couros e fortificados com cordas e
outros para fazer voar quem lhe assaltasse a porta...”.271

bre haver recomendado segunda vez a prisão do Jardim”, em: APM , SC , cód. 163, fls.
46-46 V; “Circular aos capitães-mores para que seja preso o mulato Manuel Gomes
(sic) Jardim onde for achado ou encontrado nas jurisdições de cada um deles com o
memorial incluso”, em: APM , SC , cód. 163, fls. 20 V-21.
271 , Cartas de Martinho de Mendonça a Gomes Freire – 8-XI-1736, RAPM , 2, p.
376-7.
272 , “Para o alferes Francisco José de Aguilar que se acha em Paracatu e igual-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

H , Falsários e extraviadores , Dentre todas as categorias de in-


fratores, talvez seja esta a mais difícil de definir socialmente. Havia
extraviadores modestos e os havia graúdos, conforme vem sendo
dito no curso deste trabalho com bastante frequência. Os limites
do extravio são igualmente difíceis de precisar, pois nunca se sabe
se sua dimensão era real ou fantasiosamente aumentada pelas au-
toridades e pelos rigores desvairados do fisco. Muitos faiscadores
miúdos foram acusados de extravios, muitas negras forras tiveram
suas lojas colocadas sob suspeita. Por toda parte, o Estado via pesso-
as “com grandes astúcias e malícias” que procuravam fraudar a Real
Fazenda. Dizia um documento oficial que os moradores recolhiam
e ocultavam em suas casas os extraviadores, “os quais são brancos,
pretos, mulatos, estes se confundem com escravos e pessoas domés-
ticas dos mesmos moradores, e pelos matos vizinhos também se fa-
244 zem extravios”. Os descaminhadores eram capazes de lançar mão
dos mais complicados estratagemas, daí a necessidade de agir com
vigilância e atenção, revistando as pessoas que iam pelas estradas,
“examinando os trastes que traz com toda miudeza, advertindo que
entre outras indústrias que a sua má inclinação lhe advertem, são
levar o ouro na barriga dos cavalos, e entre as suas ferraduras, nos
bornais da sela e seu cochim, nas coronhas das armas, nos saltos
e solas (…) das botas, ou sapatos, e em outras muitas semelhantes
partes”.272
Várias foram as acusações que se fizeram de moeda falsa, como a
que recaiu sobre João Teixeira Soto Maior, Inácio Alves, ourives,
e Domingos dos Santos, um deles conseguindo fugir da cadeia em
que haviam todos sido encarcerados.273 Em 1731 foi descoberta a
famosa quadrilha dos falsários que atuava na serra da Paraopeba,

mente para o alferes José Gonçalves Lima, que se acha em Jacuí” – carta do conde
de Valadares – 9-VIII-1768, em: APM , SC , cód. 163, fls. 4 V-5.
273 , “Provisão régia sobre a prisão de vários indivíduos, acusados do crime de
moeda falsa nas Minas” – 9-VIII-1768, em: APM , SC , cód. 163, fls. 4 V-5.
274 , Cf. Boxer, A idade de ouro..., p. 220; Carta régia sobre a prisão de vá-
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 3

dirigida por Inácio de Souza Ferreira e contando com protetores


influentes, entre os quais se dizia achar o próprio secretário de D.
Lourenço de Almeida e um irmão do rei, o Infante D. Francisco. Ti-
nham boas instalações e contavam com mais de 30 escravos negros
bem armados.274
Em 1731, um grande grupo de extraviadores havia passado ao
largo do Registro do Rio Paraibuna, para tal servindo-se de uma
picada oculta no mato. Foi mandada em seu encalço uma patrulha
de vinte soldados e mais doze negros cedidos por um habitante da
região, e sobre eles dispararam os infratores assim que os viram. A
patrulha bateu “vergonhosamente” em retirada, largando três ar-
mas em poder daqueles, que eram uns quarenta negros. Os infrato-
res tinham mais de quarenta arroubas de ouro, além de “cousa de 15
armas, entre clavinas, e pistolas”. Nada fica dito sobre o desenlace
do episódio”.275
Uma vez presos, o destino dos extraviadores e falsários podia ser 245
a cadeia do Limoeiro em Lisboa, para onde se deliberou que fosse
mandado o extraviador de diamantes Antonio Trintão Barbosa.276
Mas podia ser também o degredo, como ocorreu a seis do falsários
detidos no Serro, que o governo da capitania enviou para a Ilha de
Santa Catarina.277 No desterro, muitos, renitentes, voltavam para as
Minas: “Manuel Mendes, que V.Exa., mandou para a Colônia por
falsário, tornou para sua casa onde vive muito contente, e sabendo
rios indivíduos acusados de moeda falsa nas Minas – 12-VIII-1732, em: DI ,
XLIX , 1929, p. 253-5.
275 , “Provisão régia sobre um grande descaminho do ouro nos quintos, mandan-
do abrir devassa, a afim de serem punidos os culpados.” – 23-II-1731, em: DI , XLIX ,
1929, p. 224-6.
276 , Carta de Joaquim Manuel Seixas Abranches a D. Rodrigo José de Menezes –
28-IV-1783, em: APM , SC , cód. 223, fls. 27 V.
277 , “Para Matias Coelho de Souza Mestre de Campo Governador do Rio” – 5-IV-
1743, em: APM , SC , cód. 84, fls. 17-17 V.
278 , “Das cartas do Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade (…) para o sr. Martinho
de Mendonça...” – Carta de 8-XI-1736, em: RAPM , XVI , 2, 1911, p. 376-7.
279 , Cf. “Lista de pessoas envolvidas no tráfico de diamantes”, Tijuco, 7-XII-1752
A PA L AV R A A F I A DA C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 4

que eu tinha dado ordem para se prenderem todos os que remetidos


por ordem de V. Exa., em leva voltaram às Minas, recorreu dizendo
voltara com despacho de V.Exa., que deixara no Registro”. Eviden-
temente, não havia despacho nenhum, e o novo destino de Manuel
Mendes parece ter sido um dos presídios do sertão.278
Muitos eram os que o governo tomava por envolvidos no tráfico, e
que nem sempre o exerceram: andantes do caminho, vendeiros, car-
pinteiros, administradores do contrato, feitores, pretas forras sem
ocupação especificada.279 A sua procedência social podia ser diver-
sa, mas a punição, quando vinha, acabava irmanando-os na desgra-
ça comum: e assim agia o Fisco como mecanismo desclassificador.
Como muitos outros casos de infração examinados até agora,
nem sempre o extravio e a falsificação de ouro foram exercidos por
elementos avulsos. Houve solidariedade a uni-los, como no caso da
quadrilha da Paraopeba. Talvez se pudesse dizer que descaminha-
246 dores, falsários e contrabandistas representam uma forma mista,
em que o aspecto grupal se manifestou com certa constância. Mas
foram os bandidos das estradas, os garimpeiros e os ciganos – além,
evidentemente dos quilombolas – as categorias infratoras que maior
espírito de grupo apresentaram.

4. INFR ATOR ES E INFR AÇÕES:ASPECTOS DE GRUPO


A , Cigano , Como ocorre ainda hoje, o simples fato de ser ci-
gano era motivo de desconfiança, conforme transparece numa for-
mulação que, em 1737, fazia Martinho de Mendonça: “Pelo que toca
a ciganos, as queixas que há são só por serem ciganos, sem que se
aponte culpa individual”.280 Indivíduos estranhos, de procedência
desconhecida, pele morena, cabelos longos e barbas hirsutas, o que
mais inquietava neles era o fato de andarem sempre juntos, em gru-
e 10-I-1753, em: APM , SC , cód. 69, fls. 103-104.
280 , “Das cartas do Exmo.sr. Gomes Freire de Andrade... para o sr. Martinho de
Mendonça...”, 12-III-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 399.
281 , “A devassa pelo achado dos furtos de bestas em poder dos ciganos João Ma-
nuel e outros, no sitio dos crioulos” – 25-IX-1800, em: APM , CMOP, cód. 47, fls. 128.
282 , APM , CMOP, cód. 19, fls. 27 V.
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pos, “aos magotes”. Eram tidos por inveterados ladrões das estradas,
sempre às voltas com o roubo de cavalos.281 Apresentavam acentua-
da solidariedade de grupo, pois tinham a uni-los, mais do que tudo,
a identidade cultural e a “nacionalidade” comum. Brigavam entre
si, muitas vezes se baleavam – em 1738, o cigano Fernando deu que-
rela de seu compatriota João Batista e de outros companheiros que
haviam atirado em seu filho João –,282 e foram frequentadores as-
síduos das cadeias mineiras.283 Não hesitaram em se misturar com
outros grupos de colonos, e em 1755 consta que andavam “vadiando
e furtando bestas junto com mulatos, carijós e gente da terra”. Mui-
tas ciganas viveram com os homens pobres e mesmo com os mais
bem situados socialmente, como a que Isidoro Coelho de Figueiredo
conservava ciumentamente reclusa em sua casa.285
O sertão foi palco de várias de suas tropelias. Já no tempo do con-
de das Galvêas, andava para os lados do rio São Francisco uma ex-
pedição para prender os ciganos que cometiam roubos, vagando em 247
quadrilha com mamelucos e ladrões.286 Seu número aumentou bas-
tante quando o vice-rei ordenou que fossem despejados da Bahia,
ocasião em que entraram na capitania das Minas; mas Martinho de
Mendonça não julgou oportuno persegui-los, optando por deixá-los
em paz e punir apenas os que cometessem delitos: “... por ora me
parece acertado, castigando aos que cometerem algum insulto, não
intender (sic) com os mais porque não suceda juntaram-se em algu-
ma parte remota, salteando os caminhos, o que agora seria de per-
niciosas consequências, e dificultoso remédio, estando tão dispersos
os dragões deste presídio”. O governador interino dizia ainda que,

283 , Cf. APM , SC , cód. 145, fls. 15 V e fls. 108.


284 , Carta de 15-IX-1755, APM , SC , cód. 69, fls. 144.
285 , AEAM , Devassas – 1733, fls. 38-38 V.
286 , Cartas de Martinho de Mendonça a Gomes Freire — 11-VIII-1736, 26-IX-
1736, em: RAPM , XVI , 2, p. 351 e 381.
287 , Carta de 13-I-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 394.
288 , Carta de 13-II-1737, ibid., p. 273.
289 , Carta de 18-VII-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 446.
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caso Bobadela achasse que podiam ser úteis no rio da Prata, para
lá seriam enviados.287 Outro local para onde se expediam ciganos
infratores era Angola.288
Com o intuito de prender alguns para com eles fazer uma leva
de eventuais soldados, Martinho de Mendonça acabou decidindo
organizar uma expedição e atacá-los. Essa diligência foi realizada
sem segredo, e resultou em fracasso. Querendo aproveitar a ocasião
em que um destacamento interrompera sua marcha devido às febres
do sertão, o governante ordenou que agissem contra os ciganos: “...
tendo notícia que se achavam em um rancho 26 ciganos contan-
do os filhos e escravos, e dizendo-lhe que estes publicavam haviam
de resistir, juntou de Paisanos oitenta e tantas pessoas armadas”
e caíram sobre os ciganos. Estes de fato apresentaram resistência,
matando um dragão e ferindo outro, mas perderam dois homens e
uma criança de peito. Os dragões conseguiram deter dois rapazes e
248 várias mulheres, e o episódio foi considerado “uma desgraça”. Nada
mais se sabe do fato, a não ser que os ciganos presos arrombaram a
cadeia de Vila Rica e fugiram para Sabará.290
Não era raro ocorrerem choques entre ciganos e tropas do gover-
no. Em 1773, os ciganos haviam tirado “violentamente das mãos dos
pedestres” um rapaz de treze ou quatorze anos de idade que ia ser
preso por ter furtado um cavalo nas proximidades de Congonhas.291
Alguns parece terem mantido boa inteligência com certos coman-
dantes de destacamentos, como o grupo de João Galvão, que recebia
apoio do comandante de Ouro Branco, pois “tendo-o podido pren-
der em muitas ocasiões”, não o fizera.292

290 , Carta de 20-VIII-1737, em: RAPM , XVI , 2, p. 448.


291 , “Para o comandante do Rio das Pedras” – Vila Rica, 2-III-1773, em: APM , SC ,
cód. 199, fls. 12-12V.
292 , “Para o capitão-mor José Alves Maciel” – Vila Rica, 4-VIII-1777, em: APM ,
SC , cód. 215, fls. 95-95 V.
293 , “Requerimento feito a S.Exa. Em nome de João Marques da Silva, Alcaide da
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Contra os ciganos pesou também a suspeita de extraviadores de


ouro e diamantes. O alcaide da Vila do Príncipe dirigiu requeri-
mento ao governador falando deste assunto; segurando ele, os ci-
ganos valiam-se “de caminhos, picadas e atalhos não seguidos a
fim de pactuarem nos bosques e paragens solitárias os seus ilícitos
negócios, permitindo-lhes aquela acautelada comunicação inaveri-
guáveis os delitos...”. Eram olhados com receio e desconfiança por
serem “pessoas volantes, sem domicílio”, “pessoas inúteis” que es-
tavam sempre cometendo furtos e intimidando as populações dos
pequenos arraiais, “em que não têm forças para reparo do temor
que se lhes infunde de os verem armados, sujeitando-se por ele a
tudo o que eles querem”; assim, obrigados pelo receio, os habitantes
abriam-lhes seus paióis e lhes cediam seus cavalos. Nos ciganos, o
que mais incomodava era a itinerância, o “prejudicial e ambulativo
giro”, o “repreensível ócio” em que viviam. Deveriam pois ser puni-
dos, deixando-se em paz apenas os que decidissem “viver do 249

B , Bandidos , Nos caminhos difíceis e perigosos daqueles tem-


pos, era comum morrer gente assassinada por bandidos ou pelos
próprios companheiros de viagem, “que suprimiam os respectivos
sócios para não dividirem o ouro apurado nas negociações”.294 Em
1792, um certo Joaquim José de Castro mandou matar o arrematan-
te da passagem da Barra do Sapucaí com o rio Grande; refugiou-
-se depois a três léguas dali, fazendo um séquito de matadores que
passaram a assustar os viandantes que comerciavam pela região,
“horrorizando e atemorizando os moradores”. Tomaram-se provi-
dências para a prisão do grupo, necessária “tanto para o sossego
público como para serviço de Deus e de S. Majestade”. 295

Vila do Príncipe do Serro Frio. Contra Ciganos – e despacho que sobre ele deferiu o
sr. General, tudo do teor seguinte...” – 22-II-1765, em: APM , SC , cód. 59, fls. 99 V-101.
294 , Mafalda Zemella, ob.cit., p. 150.
295 , Carta do Juiz Ordinário João Coelho Duarte ao governador – 21-10-1782, em:
APM , SC , cód. 223, fls. 22 V-23.
296 , Diogo de Vasconcellos, História média..., p. 245.
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Esses grupos de bandidos e salteadores dos caminhos foram nu-


merosos nas Minas, mas nenhum assumiu as proporções da famosa
quadrilha da Mantiqueira, descoberta no tempo de D. Rodrigo José
de Menezes. Atuava numa região coberta por florestas e brenhas,
por onde “se estendia a estrada do Rio em solidões até a Paraíba do
Sul, interrompidas apenas por casas de rancheiros de espaço a espa-
ço, servindo aos viajantes”. 296 Apesar de ermo, esse caminho nunca
sofrera atentados graves, os rancheiros devendo fornecer animais
frescos para as tropas reais, que transportavam enormes quantida-
des de ouro.
A quadrilha da Mantiqueira foi talvez a única organização crimi-
nosa de vulto havida em Minas Gerais. Inicialmente, atacou apenas
contrabandistas de ouro e diamantes, “gente cuja falta não se fazia
sentir a não ser pelos cúmplices, e estes não caíam na facilidade de
acusá-la, visto o rigor da lei, que os igualava no crime”. 297 Entretan-
250 to, quando começaram a desaparecer pessoas importantes, os ban-
didos se fizeram notar, dando origem a uma série de boatos sobre
o bando.
Divididos em duas turmas, residiam em dois lugares diferentes:
Barroso e Ressaca. Os da primeira localidade espreitavam os vian-
dantes que pareciam trazer grandes quantidades de ouro e que vi-
nham de Goiás; os que ficavam a postos na segunda, vigiavam os
que vinham do Tijuco ou do Serro. Possuíam um sistema de avisos,
e uma vez feito o alerta, partiam para o alto da serra e lá aguarda-
vam a passagem das vítimas. A quadrilha se compunha “de ciganos
e de alguns mestiços carijós, sob a direção de um homem branco de
barbas compridas, que se apurou ser Joaquim de Oliveira, por alcu-
nha 'Montanha'”. 298 Demorou algum tempo para ser descoberta,
tendo, nesse período, cometido várias mortes.

297 , Ibid., idem, p. 247.


298 , Ibid., idem. p. 248.
299 , Do ouvidor da comarca do Rio das Velhas, José Caetano Cesar
Manitt i – 28-IV-1783, em: APM , SC , cód. 223, fls. 26V-27.
300 , De Luís Ferreira de Araújo e Azevedo a R. Rodrigo José de Mene-
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Em setembro de 1782, desapareceu um importante morador do


Tijuco que ia ao Rio tratar de negócios; José Antonio de Andrade,
conhecido também como “o Assucreira”. Em abril de 1783, foi des-
coberto o cadáver de Antonio Sanhudo de Araújo, negociante de
fazendas. Procedeu-se então ao interrogatório de várias testemu-
nhas, mas muito pouco se apurou sobre a natureza e procedência
dos criminosos. Começava a correr o boato de que os matadores
eram “membros de uma infame quadrilha, que há longos tempos
infesta os caminhos ermos, e vizinhos à serra da Mantiqueira”.299
O cigano João Galvão era membro importante do bando; antes
de conseguir pôr as mãos nele, os soldados do governo prenderam
alguns membros de sua família e vários ciganos a ele associados.
Detiveram também Joana Pinheira, “irmã de Miguel Pinheiro, a
qual era cônsul dos Galvões, e de Joaquim Montanha, fugidos”.300
Miguel Pinheiro de Rezende era outro membro do bando; caboclo,
foi preso pelo alferes Joaquim José da Silva Xavier, e confessou “que 251
Joaquim Montanha era o chefe maior e mais culpado da quadrilha,
tendo dirigido em pessoa todos os assaltos da Serra, e que estava
oculto em uma ilha tapada de mato...” 301 Francisco Botelho, um pa-
pudo casado com Francisca de Oliveira, cabocla como o marido, era
cúmplice dos malefícios, e sabia do esconderijo de Montanha: este
achava-se oculto com o auxílio do pai e da mãe, que lhe forneciam
tudo o que era necessário.
Os componentes da quadrilha acabaram sendo presos e senten-
ciados. Alguns foram remetidos para o Rio de Janeiro, por ordem
do vice-rei; 302 de outros, ainda havia sinais no tempo em que gover-
nava a capitania o visconde de Barbacena, quando andavam pelas
vilas de Mogimirim e de Mogiguaçu.303

zes – 9-V-1783, em: APM , SC , cód. 223, fls. 27V-28V.


301 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 253.
302 , Ordem de 25-VIII-1784, in: APM , SC , cód. 242, fls. 30-30V; “Carta de Luis da
Cunha Menezes a Tomás Antonio Gonzaga” – 16-VIII-1784, in: APM , SC , cód. 240,
fls. 28-28V.
303 , “Para o visconde de Barbacena” – carta de Bernardo José de Lorena – 15-V-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

Manuel Henriques, o “Mão-de-Luva”, foi um curioso bandido do


tempo da mineração. Diz a lenda que era mutilado e tinha a mão
esquerda de couro. Explorava ouro clandestinamente, e também
assaltava comboios. Estabeleceu-se numa região afastada – que al-
gumas fontes dizem ser Cantagalo, mas que Diogo de Vasconcellos
afirma ser Macacu –;304 constituindo uma verdadeira povoação de
homens facinorosos e semidesclassificados, onde havia cerca de du-
zentas casas. Luís da Cunha Menezes mandou uma carta enganosa
a essa gente, dizendo ter chegado a hora de legalizar a mineração
naqueles ribeiros e que, com esse intuito, o governo enviaria emis-
sários que procederiam à repartição das terras. Em março de 1784,
Mão-de-Luva se opôs tenazmente à entrada dos homens do gover-
no, no que foi seguido e apoiado por todos os moradores do lugar.
Mas o régulo acabou se intimidando, pois “estava idoso e padecia de
formigueiro nos pés e de uma chaga no nariz”.305 Dirigiu-se a Vila
252 Rica e pediu perdão de suas faltas ao capitão-general; logrado, foi
preso junto com sua gente e sentenciado no juízo da Intendência-
-Geral do ouro de Vila Rica.
O que transparece nesse episódio é, mais uma vez, a utilização
momentânea dos facinorosos, que se fixaram no sertão remoto e
lá estabeleceram um povoado. Entretanto, à medida que o bandido
foi se fortalecendo e se transformando em régulo, o governo passou
a suportá-lo mal, tendo por fim que eliminá-lo: falou-se então de
“povoar-se aquele inculto sertão por vassalos úteis e industriosos,

1790, em: DI , XLV, 1924, p. 240.


304 , Mawe, ob.cit., p. 139-41; Ofício do vice-rei Luis de Vasconcellos e
Souza com cópia da relação instrutiva e circunstanciada para ser en-
tregue a seu sucessor – 20-VIII-1789, em: RIHGB , IV, 1842, p. 24-5. Diogo de
Vasconcellos, ob. cit., p. 260-4.
305 , Diogo de Vasconcellos, ob.cit., p. 262.
306, “Ofício do vice-rei Luís de Vasconcellos...”, p. 24-5.
307 , Vieira Couto, Memória sobre as Minas da capitania de Minas Gerais.
Suas descrições, ensaios e domicílios próprios. À maneira de itinerário.
(1801), em: RAPM , X , 1905, p. 64, nota 4.
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 8

reprimir-se a continuação dos extravios e contrabandos, e reparti-


rem-se as terras minerais por pessoas que, empregando-se naqueles
trabalhos, pudesse aproveitar-se deles em utilidade do Estado...”.
Para tal, formaram-se destacamentos nos pontos que se constitu-
íam em boca de sertão, e as tropas começaram a “embaraçar os ex-
travios, prender os culpados e evitar toda a entrada e comunicação”.
306
Já não havia mais lugar para “Mão-de-Luva”.

C , Garimpeiros , “Nome com que se apelida neste país aos que


mineram furtivamente as terras diamantinas, e que assim são cha-
mados por viverem e andarem escondidos pelas grimpas das ser-
ras” – eis como, na sua “Memória” de 1801, Vieira Couto definia o
garimpeiro.307
O grupo dos garimpeiros foi um dos mais solidários de que se teve
notícia no período colonial. Gerados pelo processo de desclassifica-
ção que o fiscalismo desvairado – “o gênio migalheiro do despotis- 253
mo” – tornou particularmente intenso na demarcação diamantina,
eles existiram em vários pontos da capitania, para onde muitos fu-
giram dando origem a novos descobertos.308 Alguns haviam sido
expulsos do Distrito, outros se viram impedidos de faiscar de vido
às leis restritivas que se fizeram a esse respeito. Não se confundiam
com o bandido, apresentando uma espécie de código próprio de
conduta, pautado na lealdade; limitavam-se a trabalhar em terras
vedadas, e esse era seu único crime, pois respeitavam “a vida, os

308 , Cf. Aires da Mata Machado, Arraial do Tijuco – Cidade Diamantina, 2ª ed.,
São Paulo, s.d., p. 86-7. Sobre o processo desclassificador que originava o garim-
peiro, diz J. Felício dos Santos: “Resultou que por não terem onde trabalhar, para
evitarem a miséria, muitos se embrenharam pelas serras, e foram correr a vida ar-
riscada e aventureira do garimpo, apesar dos rigores das penas a que se sujeitavam.”
– Memórias..., p. 186.
309 , Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 99.
310 , Joaquim Felício dos Santos, Cenas da vida do garimpeiro João Costa ,
em: Alexandre Eulálio, Folhetins inacabados, p. 68.
311 , “A caça que se dava ao garimpeiro era cruel, desapiedada, encarniçada: eram
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

direitos, a propriedade de seus concidadãos”.309 Quando trabalha-


vam sós, chamavam-se faiscadores, mas quase sempre andavam em
grupo sob o comando de um chefe por eles escolhido e que assumia
o título de capitão.310 No seu encalço havia sempre esquadras de
pedestres que giravam permanentemente pelas terras diamantinas,
retornando ao Tijuco no final de cada mês. Apesar de tanta vigilân-
cia, os garimpeiros conseguiam se esquivar e viver nas brenhas e
nos córregos ocultos que só eles conheciam.311
Especialmente atingidos pelos rigores do fisco e pelo mau funcio-
namento da estrutura econômica, o garimpeiro era, em geral, um
homem pobre. Vieira Couto deixou descrição do grupo de Isidoro,
“capitão” famosíssimo, onde fica clara a composição social desses
bandos: “Esta gente compunha um magote de 60 para 70 pessoas,
mui bem matizado de diferentes cores, quais as de brancos, mulatos,
cabras, pretos, tudo gente ínfima e de costumes tais, como pedia seu
254 péssimo e infeliz gênero de vida”.312
O garimpeiro e o quilombola se entenderam bem: “... um e outro
fora da lei, ainda que por motivos diversos, não tardou se encontras-

perseguidos e se procurava exterminá-los como a animais ferozes. As partidas do


rei disseminadas por todo o Distrito, patrulhavam os córregos, os campos, as ser-
ras, os montes, sem cessar dia e noite, rendendo-se, renovando-se; se encontravam o
garimpeiro desprevenido, sua captura devia ser feita a todo o transe. Quanto ainda
os campos diamantinos alvejam com os ossos de nossos infelizes patrícios, teste-
munhando a bárbara tirania, que sobre nós pesou outrora!” — Joaquim Felício dos
Santos, Memórias..., p. 99. Mais adiante, diz este historiador: “... a maior parte das
vezes arrastavam-se seus cadáveres e lançavam-se nos rios mais próximos, quando
não se deixavam insepultos no campo para servirem de pasto aos animais.” – p.107.
Muitos acabavam sendo devorados pelos corvos, pois a população temia sepultá-los
e, com isso, ser suspeita de cumplicidade.
312 , Vieira Couto, ob.cit., p. 95.
313 , Aires da Matta Machado, O negro e o garimpo em Minas Gerais, p. 14.
314 , Aires da Matta Machado, ob.cit., p.14.
315 , Cf. Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p. 209-11.
316 , Ibid., idem, p.220-1.
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 9

sem solidários, buscando a subsistência nas minerações furtivas”.313


O “capangueiro” ou comerciante de capanga foi outro elemento que
se vinculou solidariamente ao garimpeiro, comprando-lhe o produ-
to que extraía das faisqueiras e, por meio de avisos, protegendo-o
das tropas de dragões que patrulhavam o Distrito.314 De um modo
geral, houve relacionamento estreito entre os garimpeiros e os agen-
tes do contrabando. 315
Os “cachaceiros” ou vendedores de cachaça foram muitas vezes
acusados de cumplicidade com os garimpeiros; dizia-se que o seu
“aparente modo de vida” consistia em conduzir cachaça para os ar-
raiais, mas na realidade ocupar-se-iam do contrabando.
Muitos intendentes foram suspeitos de manter entendimentos
ocultos com os garimpeiros. Conta-se de João Fernandes de Oli-
veira que certa noite recebera a visita de um “indivíduo desco-
nhecido, e que estiveram em conferência secreta até bem tarde;
ninguém soube o que trataram, mas suspeitou-se ser um chefe 255
oculto de garimpeiros, que lhe oferecera seus serviços e de seus
companheiros”.317Felisberto Caldeira Brant foi sempre muito tole-
rante com o garimpo, e no tempo do Intendente Câmara, Isidoro
foi chamado a participar de uma expedição que, dirigida pelo cien-
tista Vieira Couto, empenhou-se em novos descobertos na região
da Nova Lorena Diamantina. Dessa empresa participaram ainda o
Intendente do Ouro de Sabará e um sargento-mor com 30 soldados;
o grupo de garimpeiros juntou-se a eles nas proximidades de Pitan-
gui, e isto ocorreu em 1800.318 Momentaneamente aproveitado pelo
Poder, Isidoro seria suplicado nove anos depois.
A memória coletiva parece ter registrado com simpatia e solida-
riedade a figura do garimpeiro. Dele, o romântico Joaquim Felício

317 , J.F. Santos, ob.cit., p. 166-7.


318 , Vieira Couto, ob.cit., p.95 e sgs.
319 , “Nunca o garimpeiro agredia as tropas reais, mas, quando acometido, sabia
defender-se com coragem, e quase sempre as rechaçava, se o combate se tratava em
igual número e condição, porque combatia para salvar a vida e a liberdade quando
vitorioso, voltava pacífico para o trabalho e não procurava tirar proveito da vitória;
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

dos Santos fez um herói popular em constante luta pela liberdade.319


Com base em depoimentos de pessoas idosas e em documentos que
depois dele se perderam, o historiador do Tijuco traçou um painel
impressionante do que teria sido a luta desses homens que viveram
acuados e morreram violentamente. Acreditando no valor das nar-
rativas coletadas e procurando, a partir de casos individuais, lançar
luz sobre a dinâmica social, é interessante examinar um pouco mais
atentamente as histórias de três desses heróis – histórias que, mes-
mo se fantasiadas, são da maior importância, pois representam a
cristalização mítica, simbólica, de uma realidade dolorosa.320
João Costa foi um garimpeiro que atuou na região dos diaman-
tes entre 1781 e 1787. A primeira notícia que se tem de sua atividade

e quando vencido e prisioneiro, no meio dos maiores sofrimentos, por que o faziam
passar, não traía seus companheiros e nem confessava os cúmplices, que poderia
256 comprometer”. – Memórias..., p.99.
320 , Geremeck propõe o inter-relacionamento do estudo da ação de grupo e o
das biografias individuais. Este é, para ele, particularmente importante: “... para
conhecer essa coletividade, não podemos nos apoiar em nenhuma abordagem glo-
bal; somos obrigados a abrir um caminho através de uma multiplicidade de casos
isolados.” – Les Marginaux Parisiens..., p. 74 e 142-3. Sobre o papel da memória e
dos heróis, diz Hobsbawn: “Após determinado decurso de gerações, a memória do
indivíduo mistura-se com o quadro coletivo dos heróis legendários do passado, o
homem com o mito e simbolismo ritual, de modo que o herói que por acaso sobre-
viva além dessa faixa, como Robin Hood, não pode mais ser substituído no contexto
da história real”. – E.J. Hobsbawm, Bandidos, trad., Rio de Janeiro, 1975, p. 130. E
mais adiante: “Pois os bandidos pertencem à história recordada, em contraposição à
história oficial dos livros. Fazem parte da história que é menos um registro de fatos
e daqueles que os realizaram, quando do símbolo dos fatos teoricamente controlá-
veis, mas na prática descontrolados, que moldam o mundo dos pobres: de reis justos
e de homens que levam justiça ao povo.” – p. 135.
321 , Joaquim Felício dos Santos, Memórias..., p.200.
322 , Ibid.
323 , Ibid.
324 , “De que servia a disciplina da infantaria, se tinha de bater-se com inimigos
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 9

refere-se às explorações da Serra de Santo Antonio do Itacambiru-


çu, onde trabalhou com seus homens após ter batido e expulsado as
forças destacadas para guardar o local. Ante os reforços que foram
depois enviados para a Serra, João Costa se retirou momentanea-
mente para Sabará, voltando acompanhado de vários mineiros que
andavam com dificuldades de subsistência devido à escassez do
ouro naquele lugar. Chegaram tropas reais para expulsá-los, mas
foram vergonhosamente batidas em um encontro decisivo que se
deu no Campo Belo. O intendente dos diamantes recorreu então
ao governador da capitania, D. Rodrigo José de Menezes, que acor-
reu pessoalmente à Demarcação para lutar contra João Costa e seus
homens. “Em fins de janeiro de 1782”, conta Joaquim Felício dos
Santos, “aqui chegou acompanhado de duzentos soldados bem mu-
niciados, para reunir-se com as tropas dos dragões e pedestres da
Extração, e depois com as forças destacadas na Serra; não se esque-
ceu da artilharia; trazia dois pesados canhões de grosso calibre. Diz 257
a tradição que o belicoso governador não falava senão de sua expe-
dição; e pelos importantes preparativos, que ordenava, e minucio-
sas providências, que dava, se conhecia estar seriamente persuadido
da grandeza da campanha que ia empreender”.321 No dia em que
partiu o capitão-general, houve missa, sermão e bênção: “era como
se tivessem de ir guerrear mouros ou hereges”.322 Preparado como
se fosse enfrentar inimigos ferozes, continua o cronista do Tijuco,
o exército “marchava para matar nossos irmãos, pobres párias do
tempo, muitos dos quais levados à miséria, vítimas do despotismo
dos mandões da metrópole, iam procurar um meio de vida no que
se qualificara crime horrendo: o garimpo!”323
O imponente exército passou momentos difíceis no Itacambiru-
çu, e D. Rodrigo chegou a desanimar; os garimpeiros nunca apa-
reciam em campo aberto, andando sempre ocultos pelas brenhas
e pelos penedos, aparecendo de repente, matando alguns soldados

invencíveis, porque nunca se apresentavam em campo, ocultos, embrenhados nos


matos, nas serras, nas furnas, ou disseminados pelas planícies, vivendo debaixo das
lapas ou em pequenos colmados construídos em um momento, sem estabelecimen-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

e desaparecendo mais que depressa, numa tática típica de guerri-


lha.324 Depois de algum tempo, entretanto, o governador e suas for-
ças conseguiram surpreender os homens de João Costa, matando e
ferindo muitos deles: a Serra voltou a ser território da Intendência, e
os garimpeiros se dispersaram.
O valente João Costa, entretanto, não desanimou: reapareceu
no Itacambiruçu em 1784, voltando a enfrentar as tropas reais e
vencendo-as. Tornou-se então senhor incontestado dos campos
diamantíferos da Serra, o que era reconhecido por um funcionário
da Intendência que, em 1786, escrevia à Junta a seguinte carta: “Os
únicos senhores deste lugar são os garimpeiros. Eles fazem o que
querem, e têm-se apoderado dos córregos diamantinos em grande
multidão à muita força de armas, e estão tão desaforados, que até
vão as povoações buscar mantimentos e traficam publicamente”.325
O garimpeiro e seus homens ainda tiveram alguns encontros vio-
258 lentos com as tropas oficiais, depois do que, mesmo quando derro-
tados, acabavam voltando às explorações da Serra. Mas uma certa
Margarida Felicidade, amante de João Costa, traiu o companheiro e
denunciou seu esconderijo às tropas do governo.
Tendo sido ferido, Tinoco, um dos garimpeiros, originário de Mi-
nas Novas, preferiu se matar a cair nas mãos dos soldados, cravando
no peito uma espada curta. Mas o chefe famoso do bando foi preso
e levado ao Tijuco, que parou para vê-lo entrar no arraial: “Logo
que correu a notícia de que estava a chegar, as praias do Rio Grande
cobriram-se de curiosos, outros mais sôfregos subiram até os Cam-
pos dos Cristais: o arraial ficou despovoado. Era tal a fama de João

to fixo, inimigos que conheciam todos os recantos, os esconderijos, as mais insigni-


ficantes trilhas do terreno?” —J. F. Dos Santos, ob.cit., p.201.
325 , Carta do caixa administrador-geral da Intendência, apud J.F. Dos Santos,
ob.cit., p. 202.
326 , J. F. Dos Santos, ob.cit., p.205.
327 , Apud J.F. Dos Santos, ob.cit., p. 205
328 , A João Costa, J.F. Dos Santos dedicou um folhetim romanceado, onde apa-
rece novamente a ideia do garimpeiro como indivíduo em luta pela liberdade. Em
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Costa, por suas proezas, bravura, ousadia e coragem, que cada um


imaginava ir ver um Golias, um gigante da fábula, um ente extraor-
dinário, sobrenatural. Mas, como sempre acontece em casos seme-
lhantes, a figura de João Costa não correspondeu à sua nomeada”.326
O termo de prisão, hábito e tonsura que se lavrou dizia o seguinte:

Aos 18 dias do mês de abril de 1787, neste arraial do Tijuco e tronco dele,
onde eu escrivão adiante nomeado fui vindo, e sendo aí achei preso no
dito tronco a João Costa Pereira, homem branco, forro (sic), que se achava
vestido com camisa e veste branca, calções e meias encarnadas, ao qual fiz
as perguntas seguintes: donde era natural, quem eram seus pais, que idade
tinha, se era solteiro ou casado, ou se professo em alguma religião: – e por
ele me foi respondido que era natural das Gerais, que não conhecia seus
pais, que tinha trinta e três anos de idade, que era solteiro e não era profes-
so em religião alguma. E fazendo-lhe eu escrivão abaixar a cabeça, lhe não
vi sinal algum, por onde tivesse ordens, que o isentassem da jurisdição real. 259
O qual preso é de estatura baixa e grossa, cabelo amarrado, cara redonda,
olhos pardos, pouca barba e falto de dentes na frente.327
Nada mais se sabe de concreto sobre o garimpeiro da Serra, que
talvez tenha fugido da cadeia e voltado à vida arriscada e aventurosa
que tivera até então. Tudo indica que a memória popular fixou sua
imagem com carinho, romantizando-a e cultivando-a como a de
um herói.328
Tendo sido contemporâneo de João Costa, com quem chegou mes-
mo a garimpar, José Basílio de Souza era cabra, de estatura média,

uma passagem, o herói expõe seu modo de vida a outra personagem: “Será para ou-
tros um triste viver andar sempre proscrito, foragido, perseguido, exposto à morte
a cada momento, não tendo um abrigo certo, dormindo ao relento ou disputando
os covis às feras, hoje na abundância, amanhã sofrendo o frio, a fome, a sede... mas
para mim não: — encontro prazer nesta vida. Aqui ao menos respiro o ar da liber-
dade. Um dia havemos de ser livres; e enquanto não chega esse dia, não queres que
eu estenda o braço aos meus irmãos, que vejo sofrendo?” — Cenas da vida do
garimpeiro João Costa , em: Alexandre Eulálio, ob.cit., p. 82-3.
329 , J. F. Dos Santos, Memórias..., p.214.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

cabelos crespos, musculatura reforçada, “olhos pretos e expressivos,


semblante alegre, boa dentadura”.329 Por não ter oficio definido,
foi despejado para fora do Distrito Diamantino em 1775, voltando
algum tempo depois com licença de residir no Tijuco; entretanto,
como continuasse a viver sem ofício e fosse suspeito de contraban-
do, teve novamente de assinar termo de despejo. Desta vez, a sua
volta foi clandestina, passando José Basílio a atuar como garimpei-
ro. Prenderam-no em 1780, mas conseguiu fugir e passou a minerar
por toda parte, sempre acompanhado de um pequeno grupo de seis
a dez garimpeiros e perseguido sem trégua pelas forças de Extração.
Preso mais uma vez após um violento encontro com soldados no
Córrego da Guinada, o garimpeiro foi condenado a trabalhar dez
anos como galé nos serviços da Extração, e começou a cumprir a
sentença nos serviços da Passagem do Jequitinhonha. “Os galés du-
rante o dia trabalhavam soltos debaixo da vigilância de uma forte
260 guarda; à noite dormiam dois a dois, presos dejungidos com uma
corrente de ferro fechada ao pescoço por uma grossa argola”.330 A
vigilância era grande, mas José Basílio conseguiu manter corres-
pondência com pessoas do Tijuco que o protegiam e que acabaram
lhe enviando limas, verruma e faca, e assim possibilitaram sua fuga.
Evadiu-se com um companheiro, e ainda presos uma o outro pelo
pescoço, atiraram-se nadando no Jequitinhonha. Logo acorreram
os guardas, e conseguiram balear o amigo de José Basílio, que afun-
dou levando consigo o “capitão”; às custas de muito esforço, este
limou a corrente e voltou à tona. Refugiou-se em casa de um parente
ferreiro que morava na Serra na barra do Rio Manso, fazendo com
o ferro da corrente os instrumentos de que necessitava para voltar à
garimpagem. Por mais seis anos, foi o terror das tropas da Extração;

330 , Ibid., p.215.


331 , Cf. J. F. Dos santos, ob.cit., p.214-20. O autor monta a sua narrativa com base
no último processo instaurado contra José Basílio, que se encontrava em sua posse.
332 , Vieira, Couto, op.cit., p.95.
333 , sidoro teve de abandonar o pessoal da expedição para tratar de negócios, e
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 9

mas em 1791, gravemente ferido, caiu de novo em poder dos dragões


e respondeu a um minucioso interrogatório, conseguindo omitir
todos os nomes e pessoas que com ele se haviam envolvido em con-
trabando e na aquisição de diamantes. Imputaram-se lhe outros cri-
mes, como o de roubo e o de assassinato, mas conseguiu se eximir
dessas culpas e foi condenado, como extraviador de diamantes, a
dez anos de degredo para Angola. Nesta altura dos acontecimentos,
perde-se a sua pista, e o mais provável é que realmente tenha ido
cumprir pena na África.331
Isidoro foi talvez o mais famoso garimpeiro das Minas. Traba-
lhou na mineração furtiva dos diamantes desde os últimos anos do
século XVIII até 1809, quando, na intendência de Manuel Ferreira da
Câmara, foi barbaramente assassinado. Era pardo, e fora escravo de
um certo Frei Rangel, de quem a Fazenda Real o confiscara por ser
acusado de contrabando. Isidoro foi então condenado a trabalhar
como galé no serviço da Extração, e como acontecera a José Basílio, 261
conseguiu fugir. Parece ter aí começado a sua atividade de garim-
peiro: outros cativos se uniram a ele, que se tornou o chefe de uma
tropa de aproximadamente 50 garimpeiros escravos.
O tal do Frei Rangel era minerador, e Isidoro crescera na intimi-
dade das técnicas e segredos da exploração do ouro e dos diaman-
tes. Isso fez dele um grande especialista em terras diamantíferas e
em lavras; conhecia os serviços mais fáceis, mas não os revelava a
ninguém. Mantinha contatos permanentes com pessoas importan-
tes do Tijuco; a quem vendia os diamantes que extraía; protegido
por muitos figurões, circulava com desenvoltura pelos arraiais, e
apesar das recompensas prometidas pela sua captura, a população
fingia não dar conta de sua presença.
Isidoro era alto, corpulento, e dele Vieira Couto deixou uma
descrição detalhada: “O capitão Isidoro era, a cuja voz e aceno se
movia todo este rancho (de garimpeiros), homem pardo, maior de
cinquenta anos, de muito poucas palavras, e estas muito atenciosas,

deixou seu filho como substituto: “Este filho, Bento se chamava, era o avesso de seu
pai, abundante em palavras, falando sempre rijo, e nada fino de engenho, e arteiro
A PA L AV R A A F I A DA C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 10

macias e corteses; mas de gênio retrincado e sagaz, e a cujos dotes


deveu ele a prerrogativa de sempre dominar sobre grandes enxames
de tal gente”. 332
Conforme ficou dito acima, participou de uma expedição oficial
de reconhecimento da Nova Lorena Diamantina, chefiada por Viei-
ra Couto.333
O Intendente Câmara foi incansável na perseguição de Isidoro,
espalhando patrulhas por todo o Distrito. Depois de anos de resis-
tência, foi traído por um companheiro, entrando preso no Tijuco
em junho de 1809. Começou então um verdadeiro martírio em que
as torturas e o interrogatório se intercalavam; a narração desse su-
plício correu por muito tempo impressa em um folheto intitulado
Proclamação ou aviso ao povo do Tijuco por Manuel Ferreira da Câ-
mara Bitancourt – Refutada por um morador do mesmo município.
É o testemunho de um adversário, e apesar da sua parcialidade, vale
262 a pena transcrevê-lo:

Entrou este miserável numa tarde em Tijuco, montado em um cavalo,


cercado de Pedestres e Povo, com três tiros de espingarda, e alguns golpes
de facão; vinha tão curvado, que quase tocava com a cabeça na sela. No ou-
tro dia foi perguntado, para que V. S., de gosto se pôs muito bizarro e ufa-
no vestido na sua Beca, precedido de Escrivães, Meirinhos, e seus Leitores
negros. Perguntava-se com empenho a quem vendia diamantes; esperava-
-se uma grande lista de nomes, e principalmente de duas ou três pessoas!

como ele (…) O descobridor Bento conservava-se em todo este tempo que traba-
lhavam lançado pelo comprido debaixo de umas verçudas ramalhadas, sem lhe dar
cuidado que se verificassem ou não as riquezas que prometera, cantando desentoa-
dissimamente a largas goelas suas cantigas namoradas, coisas que lhe davam mais
em que cuidar que o cumprimento de suas promessas.” – Vieira Couto, ob. cit., p.
102 e 104.
334 , Segundo Aires da Matta Machado Filho, Arraial do Tijuco – Cidade Dia-
mantina, p. 87-8.
335 , J. F. Dos Santos, Memórias.., p. 320. Sobre Isidoro, ver p.317-22.
336 , Cf. Roger Chartier, La Monarchie d'Argot entre le Mythe et
C A RTA S A M Á R IO DE A N DR A DE / 11

Depois de quase duas horas de perguntas, nada se pôde alcançar do infeliz,


sempre indiferente tanto aos ameaços, como às promessas. Assim mesmo
todo conspurcado de sangue negro e coalhado, com costelas quebradas,
é atado a uma escada que se mandou pôr fronteira às janelas, donde V. S,
presenciava, e administrava os açoites. Que novo e inesperado fenômeno
o vem então afligir! O açoitado não lisonjeia os ouvidos de V. S., com seus
gritos e com seus gemidos. Clama então V.S, aos pedestres que puxem pelos
bacalhaus, estes sobem e descem alternativamente com presteza e força;
rasgam-se as carnes, o sangue salpica a terra, e não obstante o desgraçado
não geme! Suspeita V.S, que não haja aqui alguma causa oculta, que faça
que o padecente não sinta; chega-se V.S, mesmo ao lugar do patíbulo, pega
e meneia os bacalhaus, e acha que as pernas eram brandas (e na verdade o
estavam por muito banhadas em sangue) e encomenda outros para o dia
seguinte. Ah! Meu Câmara, como envileceste nesse dia as graves vestes de
Têmis, e as confundiste com a jaqueta de carrasco! E ousas dar-te o nome
de Pai do Povo! 334 263
“No seguinte dia não houve justiça, porque os bacalhaus não estavam
ainda prontos. Ao terceiro foi segunda vez chamado; e foi com altas e de-
sentoadas vozes entre os açoites. O coitado então se lhe lançou aos pés
rogando que lhe perdoasse, que estava mais para morrer, que para sofrer
tormentos: foi repelido a pontapés. Eu o vi sair para o terreiro soçobrado
sobre quatro Pedestres, podendo apenas mover os pés; o rosto desfigurado,
a cabeça caída a uma banda, e recostada sobre os ombros de um dos pedes-
tres. Então maldisse e odiei todo o gênero humano, como uma raça capaz
de produzir feras! No meio dos açoites desfaleceu, e um pedestre gritou que
era morto. Foi ao mesmo tempo chamado Médico, e Confessor; tocavam os
sinos a viático, e à Santa Unção: foi aos poucos tornando a si; e felizmente
para V.S., não morreu daquela vez; porém passado pouco tempo, e na mes-
ma prisão acabou. E é isto ser Pai do Povo?

Isidoro foi venerado como santo por muito tempo. Nele se cor-
porifica, mais uma vez, a luta pela liberdade: “Perguntado se tinha

l'Histoire , em: Les Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, Paris, 1979, p. 175-311;
ibid., “les élites et les gueux. Quelques représentations”, em: RHMC , XXI , julho-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

extraído diamantes nas lavras impedidas? – Respondeu que os dia-


mantes eram de Deus, e só dele; e por isso não cometera crime em
extraí-los”.335
Na formação social complexa característica de nosso período co-
lonial, os desclassificados corresponderam a uma categoria mais
abrangente do que aquela que serviu para designar os marginais
em outras sociedades que também atravessavam o momento de
gestação do capitalismo. Na Europa, esses elementos se agruparam
muitas vezes em verdadeiras anti-sociedades, adotando uma forma
específica de expressão: assim, as monarquias argóticas, que com
seus reis e seus jargões constituíam uma forma alternativa à socie-
dade que impelira os desclassificados para as suas margens.336 A
identificação da “franja inferior” tornava-se pois mais fácil e mais
precisa nessas sociedades, e não foi difícil segregá-la – o que se fez
desde cedo com as workhouses e, posteriormente, com o “Grande
264 Fechamento”.
No Brasil, essa segregação não seria feita com facilidade. Por isso,
este capítulo não se ateve apenas aos desclassificados sociais, aos
indivíduos que a estrutura escravista de produção colonial colocava
nas fímbrias do sistema, e que a superestrutura violenta continua-
va excluindo: procurou ser também um retrato da camada fluida
dos homens livres pobres em que se engastavam os desclassifica-
dos. Engendrados por processos que se achavam em permanente
movimento de constituição, os desclassificados se inseriam numa
sociedade especifica que o escravismo coloria e que comportava
uma larga faixa de gente dificilmente definível: uma camada social
onde os papéis dos indivíduos eram transitórios e flutuantes, onde
os homens livres pobres entravam e saíam da desclassificação, con-
vivendo estreitamente com escravos, com quilombolas, com arte-

-setembro de 1974, p. 376-88.


337 , Endosso aqui a análise de Maria Sylvia de Carvalho Franco: “... sua dimensão
de homens chega-lhe, assim, estritamente com subjetividade. Através dessa pura e
direta apreensão de si mesmo como pessoa, vinda da irrealização de seus atributos
humanos na criação de um mundo exterior, define-se o caráter irredutível das ten-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

sãos modestos, com roceiros pobres, com mineradores miseráveis.


Havia muitas características comuns entre eles: a cor da pele – ne-
gra, parda, vermelha, acobreada, branca às vezes –, o nascimento
bastardo, a insegurança do cotidiano, o pânico permanente ante a
Justiça atenta e rígida, a itinerância, os concubinatos, as infrações
que cometiam e que acabavam por igualá-los e colocá-los como
opositores do Poder e da Ordem constituída. Essas afinidades cria-
vam solidariedades temporárias, podendo mesmo propiciar formas
intermitentes e curiosas de consciência de grupo: as que afloravam
nas vendas, nas tavernas, nas casas de alcouce, nos batuques, nos en-
tendimentos entre contrabandistas e quilombolas. Mas eram mui-
tos os fatores que agiam em sentido contrário, desmantelando as
solidariedades e dissolvendo a consciência, e assim, ante as pressões
oficiais, o desclassificado partia no encalço do desclassificado para
reprimi-lo; o vadio recrutado à força exterminava os quilombolas;
o homem pobre impotente ante a rede do poder denunciava o seu 265
igual: o garimpeiro entregava o seu chefe aos dragões da Extração; o
forro esfaqueava o pardo nas tavernas e nos becos. A violência assu-
mia a forma de uma resistência possível, mas pulverizada pela fata
de coesão do grupo social, que se lançava em lutas pessoais de ex-
termínio.337 As tensões constantes criavam situações de confronto,
traduzidas nas arruaças, nas assuadas, nas desordens, nos arrom-
bamentos, nos incêndios, nos ferimentos, nos roubos, nas mortes.
O conflito latente acentuava assim a fluidez da camada e bloqueava
a possibilidade de uma tomada – mesmo parcial – de consciência:
de relance, momentaneamente, o inimigo comum era vislumbrado,
mas não se uniam forças para enfrentá-lo, e a pobreza partilhada

sões geradas. A visão de si mesmo e do adversário como homens integrais impede


que as desavenças sejam conduzidas para lutas parciais, mas faz com que tendam a
transformar-se em lutas de extermínio”. Homens livres na ordem escravocrata, p. 59.
338 , “Por si só a pobreza só podia engendrar laços passageiros, correspondendo à
partilha de uma adversidade comum. (…) A pobreza não é suficiente para constituir
uma classe; pode criar grupos, mas consciência de classe, é dificil detectá-la até en-
tre os Ciompi”. Mollat, ob. cit., p. 271. Divirjo fundamentalmente da concepção de
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

por todos não bastava para identificar os elementos avulsos que in-
tegravam a camada dos homens livres pobres.338
Numa sociedade de extremos bem definidos – a camada senhorial
e a camada escrava –, os homens livres pobres constantemente des-
classificados foram protagonistas miseráveis de uma triste aventura.
A heterogeneidade e a fluidez da camada que os envolveu, a vio-
lência dos mecanismos que os rejeitaram e os incorporaram quan-
do conveio, tolho-lhes a possibilidade de construir uma percepção
consciente da própria miséria. Esse eterno ser e não-ser impediu
que se enxergassem e compreendessem suas virtualidades; ao mes-
mo tempo, propiciou que outros construíssem um juízo sólido a seu
respeito; foi assim que a camada dominante, mais bem articulada,
pôde tecer a sua ideologia da vadiagem.

266

classe abraçada pelo autor, mas considero a citação elucidativa para o problema da
formação da consciência de grupo.
339 , A respeito da “turba” (the mob), diz Christopher Hill: “O que importa aos
nossos objetivos é a existência de uma vasta população que, na sua maioria, vive
próxima à linha da pobreza – podendo até situar-se abaixo dela –, pouco influencia-
da por ideologias políticas ou religiosas, mas constituindo-se em material acabado
para integrar o que, nos fins do século XVII , começou a ser chamado de “a turba”.
(…) Mas a turba é basicamente não-politica: poderia em 1647 ter sido usada por
presbiterianos contra o exército; em 1660, pelos realistas; pelos homens do rei e da
Igreja na época de rainha Ana”. The World Turned Upside Down, p. 41.
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CONCLUSAO
, A IDEOLOGIA DA VADIAGEM

Nesta terra não há povo, e por isso não há quem sirva ao Estado:
exceto muito pouco mulatos que usam seus ofícios,
todos mais são Senhores ou escravos
que servem aqueles Senhores...
Carta do Morgado de Mateus ao Conde de Oeiras.

1. AS METAMOR FOSES DO ÔNUS E DA UTILIDADE , O processo


de formação do capitalismo gerou, de um e de outro lado do Atlân-
tico, multidões de desclassificados sociais. Lá, vegetaram nas fím-
brias do sistema até que “a inteligência do capitalismo nascente” 1
os encerrasse em estabelecimentos especiais e, logo depois, passasse
a ter neles um exército de reserva para o proletariado. Aqui, cria- 267
dos e deixados sem razão de ser, foram sistematicamente taxados
de vadios e inaptos ao trabalho, avolumando-se durante os séculos
e constituindo, na época da abolição, uma massa considerável de
mão-de-obra inaproveitada.2
Conforme ficou dito no capítulo 2 deste trabalho, os documentos
europeus se referiram com frequência ao caráter de inutilidade que
revestia a camada dos desclassificados: seriam, assim, “inúteis ao
mundo”, ou, na formação do jurista de Lyon, “o peso inútil da ter-
ra”. Necessitando com premência de braços para suas plantations, as
colônias absorveram um grande número desses elementos indeseja-
dos, e, “ergástulo de delinquentes”, exerceram a função que caberia,
a seguir, ao “grande fechamento”. Foi assim que a inutilidade dos

1 , A expressão é utilizada por Marcel Bataillon ao comentar a De subvencio-


ne pauperum, de Juan Luis Vives. Cf. Jean Villar, Le picarisme espagnol: de
l'interférence des marginalités à leur sublimation esthétique , em: Les
Marginaux et les Exclus dans l'Histoire, p. 29-77; ver sobretudo p. 49
2 , Cf. Robert Conrad, The destruction of Brazilian Slavery – 1850-1888, Berkeley,
1972, cap. 3, The Crisis of Labour , p. 30-46.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

vadios, ladrões, vagabundos e criminosos dos centros hegemônicos


pôde, pela primeira vez, se transformar em utilidade, filtrada pela
válvula de escape do Sistema Colonial.
As Minas foram o espaço privilegiado da desclassificação social
nos tempos coloniais, e isto se deveu tanto ao rápido afluxo popu-
lacional que lá se verificou como caráter especifico da exploração
aurífera. Nas lavras, os homens livres foram mais numerosos que
em outros pontos da colônia, e, por mais paradoxal que possa pa-
recer, entre eles se dividiu a extrema pobreza da economia minera-
dora – como se viu no capitulo 1, democrática na miséria que soube
distribuir entre um maior número de indivíduos. Triturados por
uma exploração econômica predatória e imprevidente, esmagados
pelo peso enorme do fiscalismo, perseguidos por uma política nor-
malizadora que os desejava enquadrar a todo custo, os desclassifi-
cados proliferaram nas montanhas mineiras como em viveiro; essa
268 pujança extrema foi vista de duas maneiras opostas: como utilidade
e como ônus.
A percepção de sua utilidade se assentava na ideia de que, one-
rosos em “todas as nações civilizadas”, os vadios seriam úteis na
região das Minas, onde havia demanda considerável de mão-de-
-obra alternativa à escrava e que servisse para reprimir quilombos,
vigiar os índios do sertão, agriculturar terras longínquas cobertas
ainda por florestas virgens, descobrir novos regatos auríferos e veios
escondidos nas profundezas, desempenhar enfim tarefas de que o
cativo não podia se desincumbir. Aliás, desde os fins do século XVII
as Minas vinham funcionando como “ergástulo interno” de delin-
quentes, drenando os desclassificados incômodos das capitanias
vizinhas, agasalhando os desertores dos portos costeiros e os cri-
minosos temíveis que haviam cometido delitos em outras paragens.
Entretanto, se por um lado o sistema colonial e o escravismo
emprestavam nova face aos desclassificados, tornando-os aprovei-
táveis e até úteis, a sua característica de “peso inútil da terra” não
se perdera de todo, e voltava esporadicamente a aflorar nas consi-
derações drásticas das autoridades, que neles não viam senão uma
gente inútil e onerosa ao Estado, boa apenas para consumir viveres
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

e criar confusões. Dizia Martinho de Mello e Castro ao Visconde


de Barbacena “que os habitantes que fazem a riqueza dos Estados
são os úteis e laboriosos, e não os ociosos e vadios, que são a ruína
dos mesmos. Estados”.3 Os mestiços pobres da colônia levavam uma
vida desregrada e constituíam uma humanidade estranha e desco-
nhecida que ameaçava ininterruptamente a segurança dos “homens
bons”, dos administradores coloniais e, em última instância, da
Metrópole. Estava criado o impasse: os escravos, numerosíssimos,
era a classe laboriosa, mas desconheciam a virtude; os libertos, em
número considerável, eram perniciosos ao Estado; os brancos, esses
eram os “vassalos úteis da capitania; mas desgraçadamente em me-
nor número”.4 Havia pois que vigiar sem repouso esses indivíduos,
e enviá-los para longe sempre que fosse necessário. E era na defesa
das fronteiras que essa gente onerosa – fronteira viva da sociedade –
adquiria novamente o seu caráter de utilidade: longe da parte sã do
corpo social, deixava de contaminá-lo e de pesar sobre ele com os 269
custos de sua reprodução, ao mesmo tempo em que defendia uma
colônia que lhe era madrasta. Útil enquanto vivo, o desclassificado
continuava sendo-o depois da morte, quando não mais apresentava
motivo de preocupação para uma sociedade que vivia no constante
dilema de metamorfosear o ônus da vadiagem em utilidade: e os
desclassificados morreram em quantidade, abandonados que foram
à fome, às febres do sertão, às flechas dos índios, às balas dos caste-
lhanos.
A nítida predominância da utilidade sobre o ônus constituiu um
traço específico dos nossos tempos coloniais, e a diferenciou ante
o processo de desclassificação verificado na Europa Moderno. Nas
Minas, uma e outra característica se alternaram em função da in-
tensidade com que lá atuaram os aparelhos de poder: em épocas de

3 , Instrução para o Visconde de Barbacena, Luís Antonio Furtado de


Mendonça, governador e capitão-general da capitania de Minas Gerai s
(1788), in: RIHGB , VI , p.18.
4 , Descobrimento de Minas Gerais – Relação circunstanciada”, RIHGB ,
XXIX , tomo 1, p. 108-9.
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fúria normalizadora e fiscalista, o ônus cresceu sobre a utilidade;


quando se fez presente a premência de adotar medidas que incre-
mentassem a agricultura e possibilitassem novos descobertos, a uti-
lidade recobriu o ônus.
O balancez dessa política que ora via no desclassificado um ini-
migo em potencial, ora um auxiliar valioso, teve consequências
funestas para a formação de uma consciência de grupo entre esses
elementos. Se o sentimento latente e impreciso de que o sistema pro-
dutivo o rejeitava podia se configurar para o desclassificado, a sua
revolta explodia em conflitos que o opunham ao seu semelhante, em
arruaças inconsequentes que podiam acabar lhe tirando a vida; o li-
mite de sua insatisfação ante aquela ordem injusta era o banditismo
das estradas e das montanhas, o garimpo aventureiro, o roubo e o
assassinato incipientemente organizados. Mas logo essa consciência
rudimentar se dissolvia ante a ideia de que também ele pertencia
270 ao sistema: era o capanga do potentado, o matador de vadio e qui-
lombola, o descobridor de ouro. A ideia de que o vadio podia ser
útil era, assim, extremamente eficaz: propiciava o aproveitamento
de mão-de-obra barata e ainda bloqueava a eventual construção de
uma consciência grupal.
Criava-se assim um círculo vicioso: o sentimento de estranheza
ante um sistema que não o abrigava tolhia no desclassificado a pos-
sibilidade de se identificar com o seu semelhante, e o lançava na
violência; esta, por sua vez, opunha-o a seu semelhante, e impedia
o crescimento da consciência de grupo. O mesmo mecanismo se
verificava quando as atividades repressivas incorporavam o desclas-
sificado: perseguindo e matando o seu igual, o algoz se identificava
com a camada dominante e experimentava um sentimento de estra-
nheza ante o seu companheiro de miséria: assim, a possibilidade de
se transformar em carrasco do seu semelhante subentendia o con-
gelamento da consciência de grupo.
A consequência dessa ordem de coisas foi uma camada fluida e
inconsistente, que abrigou desclassificados e homens livres pobres.
Entre ela e a sociedade escravista tomada no seu conjunto, estabe-
leceu-se uma relação assentada na dialética da igualdade e da dife-
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

rença. A infração nivelava homens livre pobres e escravos fugidos


na medida em que um e outro eram inimigos da ordem e da se-
gurança; mas havia um fosso enorme entre eles: uns eram donos
de si, e outros eram propriedade alheia — o que não impedia que,
momentaneamente, fossem identificados, como acontecia toda vez
que o forro ou o liberto eram reescravizados. Enquanto seres livres,
os homens pobres desprovidos de consciência de grupo procura-
ram, a cada momento, estabelecer liames com a camada dominante,
buscando traçar as fronteiras que os separavam dos cativos — daí o
forro dono de escravos, daí o liberto que não carregava peso; entre-
tanto, múltiplas situações acabavam atirando esses homens livres ao
encontro dos cativos: nas tavernas, no garimpo, nos roubos, acaba-
vam por se irmanar, igualados na transgressão.
Por outro lado, os homens livres proprietários de bens e de escra-
vos ajudaram a recriar e a lembrar, a cada momento, a diferença que
os separava dos homens livres pobres, expropriados: se não havia 271
possibilidade de equiparação entre proprietários e escravos, já que
um era livre e o outro cativo, já que um possuía o outro, o escra-
vismo se encarregava de apagar as semelhanças que porventura se
estabelecessem entre os institucionalmente livres: substituiu-se a
pecha da escravidão pela da vadiagem. Desta forma, a camada do-
minante buscava sua identidade e consolidação de sua dominância,
procurando sublinhar as diferenças entre si e os dominados num
sentido lato. Mais ainda: acentuava a diferença entre os dominados,
quebrando novamente a possibilidade de conscientização, ressal-
tando a indolência, a inércia, a inaptidão do homem livre ao traba-
lho. Desta forma, legitimava e justificava a cada passo a existência
do regime compulsório de trabalho.
Muitos pontos comuns uniam pois os escravos – laboriosos, mas
desprovidos de virtude – os forros – perniciosos ao Estado pela
intermitência de suas atividades –, os homens livres pobres. Eram
parte de um mesmo todo: a camada fluida e inconsistente que,
apesar de formas esporádicas de solidariedade, nunca se enxergou
como um grupo coeso.
A fluidez que chegava a nivelar até mesmo os homens livres e os
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

cativos era, entretanto, característica a esta franja inferior da socie-


dade; ela não abarcava os melhores situados na escala social, aqueles
cuja posição ante o processo produtivo era mais nítida e definida:
os proprietários das lavras e das terras, os grandes comerciantes
coloniais. Para eles, a sociedade estava rigidamente hierarquizada,
e as características estamentais apagavam de imediato as indefini-
ções que eventualmente surgissem. Entretanto, numa sociedade es-
cravista, a continuidade da dominação desta camada assentava-se
na preservação do regime compulsório de trabalho – a escravidão
negra –, no exercício da violência e da repressão – de que se encar-
regavam os aparelhos do poder – e na construção de uma visão de
mundo que justificasse, a cada passo, o escravismo. A construção
dessa visão de mundo foi a contrapartida da falta de consciência
do homem livre pobre, a ideologia da vadiagem sendo um de seus
principais pontos de apoio.
272
2. A HUMANIDADE INVIÁVEL , Á perplexidade do homem livre
pobre e constantemente desclassificado, a camada dominante opôs
um corpo bastante organizado de formulações, cujas raízes lançam
seus frutos ainda hoje, pois foram incorporadas e reelaboradas pela
nossa tradição autoritária. Em síntese, a camada dos homens pobres
era tida como uma outra humanidade, inviável pela sua indolência,
pela sua ignorância, pelos seus vícios, pela mestiçagem ou pela cor
negra de sua pele. Habitantes de uma terra rica e farta, esses homens
nada faziam para dela conseguir frutos: preferiam viver de expe-
dientes e de esmolas, descurando do futuro, repudiando as formas
permanentes da atividade econômica e abraçando um modo de vida
itinerante e imprevidente.
Eram, pois, integrantes de “quase uma nova natureza fora do co-
mum”, “despidos daquela bem regulada ambição que faz florescer
os Estados e impede os homens ao trabalho e às indústrias”.5 A in-

5 , Marechal José Arouche de Toledo Rendon, Reflexões sobre o estado em


que se acha a agricultura na capitania de São Paulo (1788), em: DI , XLIV,
1915, p. 196.
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dolência e a preguiça – transcendentes por todo o Brasil6 – gras-


savam entre a gente livre pobre, “gente degenerada de costumes”.7
Para conter esses homens “incapazes de educação e de seus princí-
pios”,8 o recurso à força era a única alternativa possível, já que cons-
tituíam o lado interno do perigo que podia pôr a perder a colônia:
“...uns povos compostos de tão más gentes, em um país tão extenso,
fazendo-se independentes, que era muito arriscado a poderem al-
gum dia dar trabalho de maior consequência..”.9
No discurso dos “homens bons” – cujos interesses, aliás, eram em
muitos pontos concomitantes –, configurava-se com nitidez a con-
cepção de que os homens livres eram vadios e inaptos ao trabalho.
Isso não impedia que se recorresse a eles com frequência, empre-
gando-os nas tarefas que o escravo não podia preencher; entretanto,
no mundo das ideologias, o ônus que representavam aparecia como
predominante, recobrindo a utilidade empiricamente constatável e
escamoteando-a. 273
Essa valorização do ônus remetia novamente à ideia de que eram
inúteis ao mundo, de que constituíam o peso inútil da terra: de nada
serviam, e portanto era como se não existissem para o mundo do
trabalho. Prestavam, entretanto, para justificar a escravidão: para
lembrar, a cada instante, que o recurso à mão-de-obra escrava era
imprescindível ao funcionamento da colônia.10

6 , Cf. Instruções de Martinho de Mello e Castro a Luís de Vascon-


cellos e Souza, acerca do governo do Brasil , RIHGB , XXV, 1862.
7 , “... que eles ou seus pais foram escravos, (…) servindo de peso ao Estado, pois
vivem ou do furto ou da esmola, gente de cor chamada...” – Vieira Couto, “conside-
rações sobre as duas classes...” em: RIHGB , XXV, 1862, p. 421.
8 , Regra geral: a força é feita para homens incapazes de educação e
de seus princípios . – Descobrimento de Minas Gerais — Relação circuns-
tanciada , em: RIHGB, XXIX , 1, p. 108.
9 , Relatório do Marquês do Lavradio, Vice-Rei do Rio de Janeiro, en-
tregando o governo a Luís de Vasconcellos e Souza, que o sucedeu no
vice-reinado – 19-VI-1779, RIHGB , IV, p. 458.
10 , “De um lado, pois, o trabalho escravo, superexplorado, que constitui o ali-
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O fato de os homens pobres serem apresentados como humani-


dade inviável tinha ainda outra virtude para a ideologia da camada
dominante: justificava a repressão violenta que exerciam os apare-
lhos do poder, sem a qual o regime compulsório de trabalho era
uma ameaça grande demais. Desta forma, os desclassificados se
constituíam em peça imprescindível na ideologia de sustentação do
sistema escravista.
Mineralogista e empresário, Eschwege foi particularmente sen-
sível ao impasse que se colocava para a camada dominante em face
dos problemas apresentados pela exploração de uma força de tra-
balho barata. “É quase impossível, pois, no Brasil”, dizia ele, “fa-
zer prosperar uma indústria, quando se depende do concurso dos
homens livres”.11 “O fato incontestável”, afirmava mais adiante, “é
que a atual geração de homens livres jamais se submeterá ao tra-
balho rude, feito até agora pelos escravos”.12 Os forros não podiam
274 ser considerado mercado potencial de mão-de-obra: “Pelos traços
característicos dessa raça de cor, mas livre, percebe-se que enquanto
não for a mesma educada convenientemente, a fim de que apren-
da a conhecer o verdadeiro valor do homem, não lhe será fácil, no
próximo século, executar serviços até então a cargo dos escravos”.13

cerce do processo produtivo. De outro, uma massa de homens livres, sem sentido
produtivo, que tendo a posse raramente a propriedade da terra não se transforma
em mercadoria para o capital. Tal processo reforça o regime escravo, como refor-
ça também, em consequência, a situação da imensa maioria, que, sem passar pela
'escola do trabalho', se transforma numa população que, no mais das vezes adquire
as características de lumpen. Semelhante situação, originada pela propriedade es-
cravocrata, só poderia solidificar a percepção senhorial que encara a mão-de-obra
livre como a encarnação de uma corja inútil que prefere o vício, a vagabundagem ou
o crime à disciplina do trabalho nas fazendas”. Lucio Kowarick, A constituição do
mercado de mão-de-obra livre no Brasil..., parte III , p. 27. Essa análise diz respeito
ao fim do Império.
11 , Eschwege, Pluto Brasiliensis, v.II , p.422.
12 , Eschwege, ob. cit., v. II , p. 448.
13 , Ibid., p. 423.
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Cumpria, pois, impedir a abolição do tráfico e rejeitar a “intromis-


são inglesa” nesse assunto, procurando substituir gradativamente a
mão-de-obra escrava pelo colonato europeu; qualquer procedimen-
to contrário poderia ser fatal: “Todas as empresas tropeçarão em
obstáculos invencíveis, assim que o tráfico de africanos for extinto.
Assim, todos os setores da indústria brasileira sofrerão as funestas
consequências dessa medida”.14 Como justificava da escravidão,
poucas formulações seriam tão convincentes quanto a de Eschwege.
O mundo das ideologias não é unicamente o espelho da “má cons-
ciência” da camada dominante; pode até vir a sê-lo, mas o que im-
porta de modo primordial é o fato de desvelar, quando lido com
atenção, os mecanismos profundos que se acham em curso na in-
fraestrutura. A justificação do escravismo nos seus diferentes níveis
e a desqualificação do homem livre pobre enquanto mão-de-obra
e ser humano não correspondeu a uma política consciente e deli-
berada dos administradores, dos senhores de engenhos e de lavras, 275
dos grandes comerciantes: ela foi uma necessidade profunda que se
moldou simultaneamente ao desenvolvimento do processo de ex-
ploração colonial – de que fez parte a mineração. Condicionada,
pois, pelos movimentos que se achavam em curso na estrutura da
sociedade e que os aparelhos de poder regulavam vigilantemente,
a ideologia da vadiagem ganhou vida própria através dos tempos.
Incapaz de captar a especificidade de uma formação social que se
apresentava definida nos extremos, rigidamente hierarquizada na
sua porção superior e fluida na camada que avizinhava com os ca-
tivos, reteve a imagem mais nítida dos senhores e dos escravos e
jogou fora a camada intermediária. Como sequela fatal, muitas aná-
lises sociológicas e históricas privilegiaram a porção bem classifi-
cada – a dos senhores e a dos escravos – e se abstiveram de tratar
a parte difícil de classificar: a dos desclassificados.15 Conhecidas já
no tempo do Morgado de Mateus, mas popularizada na expressão

14 , Ibid., p. 423-4.
15 , Para citar apenas alguns autores, essa tendência acha-se presente no profundo
desencanto de Silvio Romero, Joaquim Nabuco e Monteiro Lobato para com o home
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de Couty, surgiu uma definição mágica: “O Brasil não tem povo”.


Pois caberia chamar de povo a “quase inútil população de caboclos e
brancarrões, mais valiosa como material clínico do que como força
econômica”?16
Fechava-se, assim, o circuito: a liberdade pouco valia para o in-
divíduo pobre que o mundo da produção e os aparelhos de poder
esmagavam sem trégua, e no entanto ele era homem livre numa
sociedade escravista. Aproveitando de modo intermitente mas re-
gular pelo Estado e pelos homens bons, a sua utilidade real e empi-
ricamente detectável era revestida por um ônus que o deixava sem
razão de ser. A formulação dessa inutilidade justificava o sistema
escravista, e o atributo da vadiagem passava a englobar toda uma
camada social, desclassificando-a: no meio fluido dos homens livres
pobres, todos passavam a ser vadios para a ótica dominante. Vadios
e inúteis, era como se não existissem, como se o país não tivesse
276 povo – pois, cativo, o escravo não era cidadão. E assim, inexistindo
ou sendo identificado à animalidade, o homem livre pobre perma-
neceu esquecido através do século.

livre pobre – o Jeca Tatu apático e amarelo. Lembre-se sobretudo do “amorfismo


social” de Oliveira Viaanna.
16, Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, v.I, p. 47.
Aldair / aqui tb precisamos das editoras
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FONTES E BIBLIOGRAFIA
I. FONTES
1. Fontes Manuscritas
1.1 AEAM
Devassas — 1721-1735.
Devassas — 1727-1787.
Devassas — maio de 1730-abril de 1731
Devassas — 1733
Livro de Devassas — Comarca do Serro do Frio — 1734
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Livro de Devassas — ano de 1753.
Devassas — 1756-1757.
Devassas — julho de 1762-dezembro de 1769.
Devassas — 1763-1764. 277
Livro de Devassas — janeiro de 1767-1777.
Livro de Devassas — 1800.
1.2. APM, SC
cód.1, Registro de alvarás, regimentos, cartas e ordens régias, cartas
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(1702-1740)
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cód.11, Registro de cartas do Governador a diversas autoridades, ordens,
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ções, bandos, petições, informações, despachos e termos (1738-1755).
cód.84, Registro de cartas do Governador ao Vice-Rei e mais autorida-
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des da capitania (1734-1749).


cód.89, Termos de fiança e obrigação (1745-1797).
cód.103, Registro de termos, petições e despachos (1752-1771).
cód.118, Registro de ordens, portarias, editais, instruções, cartas e ates-
tados (1755-1766).
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cód.163, Registro de cartas, ordens, circulares e instruções do Governa-
dor a diversas autoridades da capitania (1768-1770).
cód.186, Registro de petições, informações e despachos (1771-1787).
cód.199, Registro de cartas do governador concernentes à repressão de
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cód.215, Registro de cartas, ordens e circulares do governador a diversas
autoridades da capitania e cartas destas ao mesmo (1776-1778).
cód.223, Registro de cartas das câmaras, juízes e outras autoridades da
capitania dirigidas ao Governador (1780).
278 cód.240, Registro de cartas do Governador às Câmaras, juízes e outras
autoridades da capitania (1783-1788).
cód.242, Registro de portarias do Governador, ordens suas de soltura de
prisão (1783-1797).
cód.260, Registro de petições e despachos (1788-1797).
1.3 APM, CMOP.
Cód.19, Termos de distribuição de querelas e devassas (1724-1726).
cód.47, Termos de distribuição de devassas, querelas, com procedências
de listas das devassas anteriores (1741-1809).
2. FONTES IMPRESSAS
2. 1. Correspondência Administrativa e Legislação.
2.1.1. DH
“Carta que escreveu ao Excelentíssimo Senhor Conde de Assumar o
Excelentíssimo Senhor Vasco Fernandes Cesar de Menezes, Vice-Rei e
Capitão-General de Mar e Terra deste Estado” — 17-XI-1720, v.LXXI, 1946,
p.106.
2.1.2 DI
“Carta de D. Álvaro da Silveira de Albuquerque ao governador geral do
Estado do Brasil sobre socorros para o Rio de Janeiro e para a colônia do
Sacramento e sobre o rush para as Minas” — 5-V-1704, LI, 1930.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

“Carta da rainha ao governador da Praça de Santos” — 27-IX-1704, XVI,


1895, p.37-8.
“Carta do rei a Antonio de Albuquerque” — 25-II-1711, XIV, 1895, p.267-8.
“Carta régia estabelecendo providências a fim de se evitar a deserção
de soldados da guarnição do Rio de Janeiro para as Minas” — 28-III-1711,
XLIX, 1929, p.20-2.
“Documentação sobre os irmãos Leme” (1723), XII, 1901, p.78-9, 87-98,
98-110, 118.
“Regimento de um bando sobre não passarem mulheres ao novo desco-
brimento das Minas do Cuiabá” — 27-VII-1723, XII, 1901, p.111.
“Carta do governador do Rio de Janeiro ao capitão Francisco Mendes
Galvão sobre a tentativa de deserção para as Minas de muitos indivíduos
recém-chegados do reino...” — 25-X-1730, XLIX, 1929.
“Provisão régia sobre um grande descaminho do ouro dos quintos,
mandando abrir devassa, a fim de serem punidos os culpados” — 23-II-
1731, XLIX, 1929, p.224-6. 279
“Carta régia de 24-II-1731”, XIV, 1895, p.251-2.
“Carta régia sobre a prisão de vários indivíduos acusados de moeda falsa
nas Minas” — 12-VIII-1732, XLIX, 1929, p.253-5.
“Provisão régia sobre a prisão de vários indivíduos, acusados do crime
de moeda falsa nas Minas “— 9-III-1733, XLIX, 1929, p.263-4.
Carta de 13-VIII-1765, LXXII, 1952, p.71.
“Carta do Morgado de Mateus ao conde de Oeiras” — 21-IX-1765, LXXII,
1952, p.94-5.
Carta de 9-IV-1766, XIV, 1895, p.177.
“Correspondência entre José Luís Abrantes, conde de Valadares, e Luís
Antonio de Souza Botelho Mourão, Morgado de Mateus” (1769-1772), XIV,
1895.
“Dando notícia do movimento dos espanhóis no sul e pedindo auxílio de
alguma força” — 18-I-1773, XXXV, 1901, p.37.
Carta de Lavradio a Martim Lopes Lobo de Saldanha — 26-XI-1775,
XVII, 1895, p.44-5.
“Ofício sobre a partida de Minas Gerais para São Paulo de um corpo de
4000 homens” — 2-VIII-1777, XXVIII, 1898, p.344.
“Carta de Martim Lopes Lobo de Saldanha a D. Rodrigo José de Mene-
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

zes — sobre a passagem de desertores nos registros” — 2-V-1780, XLIII,


1903.
“Para o visconde de Barbacena” — 15-V-1790, XLV, 1924, p.240.
Cartas — XLII, 1903.
Cartas — XVII, 1895.
2.1.3. RAPM
“A justiça na capitania de Minas Gerais — Correspondência do gover-
nador D. Rodrigo José de Menezes com o ministro Martinho de Mello e
Castro...”, IV, 1899, p.3-82.
“Administração diamantina — Traslado dos autos de inquirição que
mandou S. Exa., proceder sobre as condutas do Intendente dos diaman-
tes João Inácio do Amaral Silveira e do Fiscal João da Cunha Soto Maior,
assim como sobre a importante administração, que lhe está encarregada”
— v.II, 1897, 1, p.329-43 e 2, p.141-85.
Carta — Comarca de Tamanduá acerca dos limites de Minas Gerais com
280 Goiás — 20-VII-1793, v.II, 1897, p.373.
“Cartas de Assumar ao rei de Portugal” — v.III, 1898, p.251-2 e 263-6.
“Cartas patentes” — v.IV, 1899, p.101-28.
“Coleção sumária das próprias leis, cartas régias, avisos e ordens...”,
v.XVI, 1, 1911, p.331-474.
“Consulta da capitania de Minas”, v.XVI, v.1, p.235-306.
“Correspondência do conde da Palma — 1810-1814”, v.XX, 1924, p.353-411.
“Das cartas do Exmo. sr. Gomes Freire de Andrade (…) para o sr. Marti-
nho de Mendonça de Pina e de Proença...”, v.XVI, 2, p.239-460.
“Diversos registros da correspondência oficial do governador D. Pedro
Maria de Ataíde e Mello” — v.XI, 1906.
“Documentação referente a Minas Gerais existente nos arquivos portu-
gueses” — v.XXVI, 1975, p.121-303.
“Documentos relativos ao descobrimento dos diamantes na Comarca
do Serro do Frio copiados e conferidos por Augusto de Lima”, v.VII, 1902,
p.263-355.
“Funerais de D.João V — auto de vereação” — 16,17,19-XII-1750, v.IX,
1904, p.359-65.
“Impostos da capitania mineira — clamores e súplicas das câmaras em
nome do povo” — v.II, 1897, p.287-309.
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

“Informação da Câmara de S.Bento do Tamanduá sobre divisões entre


esta e a capitania de Goiás” — v.XI, 1906, p.429-30.
“Junta de justiça para a execução e imposição da pena de morte aos ne-
gros, bastardos, mulatos e carijós” — IX, 1904, p.347-8.
“Motins no sertão e outras ocorrências em Minas Gerais” — correspon-
dência entre Martinho de Mendonça de Pina e de Proença e Gomes Freire
de Andrade — v.I, 1896, p.649-72.
“Nomeação de Antonio de Albuquerque”, v.XI, 1906, p.684-6.
“Para a Mesa do Desembaraço do Paço” — 21-III-1812, v.XVIII, 1913,
p.499.
“Ponderações sobre a Junta da Fazenda sobre os meios de se ressarcir o
prejuízo da Real Fazenda com a arrecadação do quinto do ouro” — v.VI,
1901, p.153-73.
“Quintos do ouro” — v.III, 1898, p.65-75.
“Sobre a navegação do rio Doce” — v.XI, 1906, p.298-302.
“Sobre o descobrimento dos diamantes na Comarca do Serro do Frio. 281
Primeiras administrações”, v.VII, 1902, p.251-63.
“Sobre uma representação do capitão-mor de Barbacena e providências
relativas à modificação do uniforme militar” — 11-VI-1805, v.XI,1906, p.281.
“Traslados e exertos de alguns escritos com relação à empresa de Agosti-
nho Barbalho Bezerra para descobrimento das esmeraldas. Com algumas
observações e anotações” — v.II, 1897, p.531.
“Terras Minerais — Relação das ordens sobre terras minerais que, por
cópia, foi enviada ao Conselho Geral da Província de Minas Gerais” — v.I,
1896, p.673-734.
“Violências de um governador” (1774), v.VI, 1901, p.185-8.
2.1.4. RIHGB
Carta régia de 11-II-1719, v.VI, p.207.
“Regimento de terras minerais de 27 de abril de 1680”, V.LXIV, p.51.
2.1.5. RIHGMG
“Quilombos em Minas Gerais” — correspondência entre várias autori-
dades — v.VI, 1959.
2.1.6. RSPHAN
“Diário da jornada que fez o Exmo. sr. D. Pedro desde o Rio de Janeiro
até a cidade de São Paulo e desta até as Minas, no ano de 1717”, v.III.
DE S C L A S SI F IC A D O S D O OU RO

2.2 INSTRUÇÕES, REGIMENTOS E RELATÓRIOS DE GOVERNAN-


TES COLONIAIS
2.2.1. RAPM
“Exposição do governador D. Rodrigo José de Menezes sobre o estado
de decadência da capitania de Minas Gerais e maios de remediá-lo” (1780),
v.II, 1897, p.311-27.
“Instrução e norma que deu o Ilmo. E Exmo. sr. Conde de Bobadella e
seu irmão o preclaríssimo sr. José Antonio Freire de Andrada para o go-
verno de Minas, a quem veio suceder pela ausência de seu irmão, quando
passou ao sul” (1752) — v.IV, 1899, p.727-35.
“Regimento ou instrução que trouxe o governador Martinho de Men-
donça de Pina e de Proença” (1733) — v.III, 1898, p.85-8.
2.2.2. RIHGB
“Instrução de Martinho de Mello e Castro a Luís de Vasconcellos e Sou-
za acerca do governo do Brasil” (1779), v.XXV, 1862.
282 “Ofício do vice-rei Luís de Vasconcellos e Souza com cópia da relação
instrutiva e circunstanciada para ser entregue a seu sucessor” — 20-VIII-
1789, v.IV, 1842.
“Relatório do Marquês de Lavradio” (1779), v.IV, p.409.
2.3 MEMÓRIAS, INSTRUÇÕES, INFORMAÇÕES
COELHO, J.J. Teixeira. “Instrução para o governo da capitania de Minas
Gerais” (1780), RAPM, v.VIII, p.3.
COUTO, J. Vieira. “Memória sobre a capitania de Minas Gerais, seu ter-
ritório, clima etc.” (1799), RIHGB, v.XI, 1848, p.289.
———. “Memória sobre as Minas da capitania de Minas Gerais, Suas
descrições, ensaios e domicílios próprios. À maneira de itinerário”. (1801),
RAPM, X, 1905, p.57.
———. “Considerações sobre as duas classes mais importantes de povo-
adores da capitania de Minas Gerais, como são as de mineiros e agriculto-
res, e a maneira de as animar — RIHGB, v.XXV, 1862, p.421-9.
———. “Descobrimento de Minas Gerais — relação circunstanciada”,
RIHGB, v.XXIX, 1, p.5.
LEME, Antonio Pires da Silva Pontes. “Memória sobre a utilidade pú-
blica em se extrair o ouro das Minas e os motivos dos poucos e interesses
que fazem os particulares que mineram igualmente no Brasil” — RAPM,
PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

v.I, 1896, p.417.


OTTONI, José Elói. “Memória sobre o estado atual da capitania de Mi-
nas Gerais” (1796), ABN, v.XXX, p.301.
ROCHA, José Joaquim da. “Memória da capitania de Minas Gerais” (fim
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VANDELLI, Domingos. “Memória III. Sobre as Minas de ouro do Bra-
sil”, ABN, v.XX, 1898, p.266.
2.4. ESTATÍSTICAS
“População da província de Minas Gerais”, RAPM, v.IV, 1898, p.294-6.
2.5. CRONISTAS E OUTROS AUTORES 283
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e
Minas, (1711), introd. Alice P.Canabrava, 2ª ed., São Paulo, s.d.
———. Áureo Trono Episcopal colocado nas Minas do Ouro, in: ÁVI-
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e as projeções do mundo barroco, v.II, Belo Horizonte, 1967.
ANTONIL, André João. Cartas Chilenas. introd. e notas de Tarquínio
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COUTINHO, J.J. Da Cunha Azeredo. “Discurso sobre o estado atual das
minas do Brasil” (1804) in Obras econômicas..., introd. Sérgio Buarque de
Holanda, São Paulo, 1966, p.187-229.
———. Dialogo das grandezas do Brasil (1618), introd. Capistrano de
Abreu e notas de Rodolfo Garcia, Rio de Janeiro, 1930.
FONSECA, Manuel da. Vida do venerável padre Belchior de Pontes da
Companhia de Jesus (1752), prefácio de Afonso d'E. Taunay, São Paulo, s.d.
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ca e Genealógica, 3 vol., São Paulo, 1954.
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v.LXII, 1, p.60.
2.6. VIAJANTES
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PR E FÁC IO À 4 A E DIÇ ÃO

AGRADECIMENTOS

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