Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
-2-
Caio Augusto Teixeira Souto
Ismael Maciel de Menezes Filho
Iná Isabel de Almeida Rafael
Organizadores
-3-
Comitê Científico Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Aldair Oliveira de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (USP/EcA - São paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Roberta Ferreira Coelho de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)
-4-
Caio Augusto Teixeira Souto
Ismael Maciel de Menezes Filho
Iná Isabel de Almeida Rafael
Organizadores
-5-
UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira
Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel
Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira
Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe
Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza
-6-
Aos autores e todos envolvidos nesta obra;
-7-
© by Alexa Cultural
Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Klanger
Revisão Técnica
Caio Augusto Teixeira Souto
Revisão da língua portuguesa
Os autores
Edição e diagramação
Alexa Cultural
-9-
lho Sena, Pedro Eduardo Garcia de Andrade e José Galúcio Campos,
aborda a importância da filosofia na formação do aluno do Ensino
Médio Integrado, destacando sua contribuição para o desenvolvi-
mento da capacidade crítica e reflexiva dos estudantes.
Já “Pedagogia Imagética: processos de imaginar em meio a en-
contros intergeracionais no lavrado amazônico”, de Rosemara Staub
de Barros Zago e Larissa Silva Gonçalves, explora as relações entre
imaginação, pedagogia e cultura, a partir de encontros intergeracio-
nais na região do lavrado amazônico.
O quinto capítulo, “O contexto amazônico nos experimen-
tos de ciências naturais: o que dizem os livros didáticos?”, de Ettore
Paredes Antunes, Jullia Negreiros Moraes e Kelly Caroline Oliveira,
apresenta uma análise dos livros didáticos de ciências naturais uti-
lizados no Ensino Fundamental II no estado do Amazonas, com o
objetivo de identificar como o contexto amazônico é tratado nesses
materiais.
Em “O espetáculo de dança indígena Kedacery: uma análise
de semiótica peirceana”, de Ismael Maciel de Menezes Filho, é rea-
lizada uma análise semiótica do espetáculo de dança indígena Ke-
dacery, num exercício de leitura sobre a fricção interétnica provoca-
da pela apresentação de uma dança indígena numa comunidade de
não-indígenas.
O sétimo capítulo, intitulado “Juventudes universitárias e saú-
de mental: reflexões a partir de atendimentos psicológicos no Pro-
jeto Espaço de Atendimento Psicossocial (EPSICO)”, é um trabalho
coletivo assinado por André Luiz Machado das Neves, Erica Vidal
Rotondano, Érika da Silva Ramos, Gizelly de Carvalho Martins, Mu-
nique Therense Costa de Moraes e Socorro de Fátima Moraes Nina.
Nesse capítulo, os autores se debruçam sobre o tema da saúde mental
entre os jovens universitários da região, analisando os atendimentos
psicológicos realizados no Projeto EPSICO e refletindo sobre as pos-
síveis causas e consequências desse fenômeno.
Já o oitavo capítulo, intitulado “Para uma crítica da mitopoé-
tica na Amazônia”, tem como autor Harald Sá Peixoto Pinheiro. Nes-
se capítulo, o autor faz uma análise crítica das expressões culturais
dos povos amazônicos, a partir da mitologia amazônica. Ele discute
como os mitos da região são construídos e como eles refletem a rea-
- 10 -
lidade local, trazendo à tona questões relacionadas à identidade, à
história e à cultura da região.
O nono capítulo, intitulado “Manaus: um campo literário?”, é
de autoria de Iná Isabel de Almeida Rafael. Nesse capítulo, a autora
discute a emergência de uma cena literária em Manaus, analisan-
do as obras de diversos autores que representam a cidade e a região
amazônica. Ela destaca a pluralidade cultural e étnica da região, pre-
sente nas obras literárias, e reflete sobre como essa cena literária se
desenvolve e se relaciona com outras regiões do país.
O décimo capítulo da coletânea se chama “Araújo Lima e os
estigmas sobre o clima e o homem da Amazônia” e é escrito por Ode-
nei de Souza Ribeiro. Analisa-se como a imagem da região amazôni-
ca, marcada por uma suposta hostilidade climática foi construída ao
longo do tempo e como ela tem sido perpetuada na cultura popular.
Ele também propõe uma reflexão sobre os efeitos desses estigmas na
vida das pessoas que habitam a região, questionando a necessidade
de uma revisão crítica dessas representações e propondo alternativas
mais justas e precisas para a compreensão da Amazônia e de suas
populações.
O capítulo “Meu corpo, minha pesca: técnicas corporais de
mulheres amazônicas pescadoras artesanais de camarão”, escrito por
Artemis de Araújo Soares e Everton Dorzane Vieira, traz uma abor-
dagem interessante sobre as técnicas corporais utilizadas pelas mu-
lheres pescadoras artesanais de camarão na Amazônia. O capítulo
mostra como essas mulheres desenvolvem habilidades específicas ao
longo do tempo, utilizando o próprio corpo como ferramenta para
a pesca.
No capítulo intitulado “Pesquisas e práticas interdisciplinares
em envenenamentos ofídicos na América Latina”, os autores Alícia
Patrine Cacau dos Santos, Altair Seabra de Farias, Jacqueline Sachett,
Felipe Leão Gomes Murta, Vinicius Azevedo Machado e Wuelton
Marcelo Monteiro apresentam uma abordagem interdisciplinar so-
bre o tema dos envenenamentos ofídicos na América Latina. Eles
discutem as implicações socioeconômicas e de saúde pública dos
envenenamentos, as estratégias para prevenção e tratamento, e apre-
sentam um panorama dos estudos sobre o assunto na região.
O último texto apresentado nesta coletânea, “De lavrador a
quilombola: memória, trabalho e identidade na Comunidade da Ca-
- 11 -
veira”, assinado por Sidnei Peres e Gessiane Ambrosio Nazário, traz
reflexões relevantes sobre transformações em comunidades tradicio-
nais, memória, trabalho e identidade. Embora o texto não trate dire-
tamente de temas relacionados à Amazônia, sua análise é de grande
pertinência para compreender a complexidade sociocultural da re-
gião amazônica. Vale ressaltar que os autores possuem vínculos com
questões sociais e ambientais relevantes para a região, o que justifica
plenamente a inclusão do texto nesta coletânea sobre a Amazônia.
Com certeza, esta leitura proporcionará importantes insights sobre
a dinâmica e transformações das comunidades tradicionais, tema de
grande importância para o entendimento da região amazônica.
A coletânea Perspectivas e leituras sobre cultura, educação e
identidade na Amazônia é uma obra que se destaca pela sua riqueza e
pluralidade de abordagens e perspectivas. Ela é resultado do esforço
conjunto dos professores Caio Augusto Teixeira Souto, Ismael Maciel
de Menezes Filho e Iná Isabel de Almeida Rafael em sua organiza-
ção. Os textos apresentados na coletânea oferecem uma compreen-
são mais ampla e profunda da complexidade sociocultural da região
amazônica, e dos processos educacionais, culturais e identitários que
a permeiam. Além disso, a obra apresenta uma amostra do que é
desenvolvido pelos pesquisadores do programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia, demonstrando a relevância e
diversidade de temas e abordagens produzidos no programa. Assim,
essa coletânea se revela de grande importância para a reflexão e de-
bate acerca dos desafios e possibilidades do ensino, cultura e identi-
dade na Amazônia.
- 12 -
SUMÁRIO
Apresentação
Caio Augusto Teixeira Souto, Ismael Maciel de Menezes Filho e
Iná Isabel de Almeida Rafael
-9-
- 13 -
Mitopoética e desejo mimético em pesquisas etnográficas na Amazônia
Harald Sá Peixoto Pinheiro
- 121 -
Manaus: um campo literário? Autores e obras multifacetadas
Iná Isabel de Almeida Rafael
- 139 -
Araújo Lima e os estigmas sobre o clima e o homem da Amazônia
Odenei de Souza Ribeiro
- 159 -
Meu corpo, minha pesca: técnicas corporais de mulheres
amazônicas pescadoras artesanais de camarão
Artemis de Araújo Soares e Everton Dorzane Vieira
- 171 -
Pesquisas e práticas interdisciplinares em envenenamentos ofídicos na
América Latina
Alícia Patrine Cacau dos Santos, Altair Seabra de Farias, Jacqueline Sachett
Felipe Leão Gomes Murta, Vinicius Azevedo Machado e Wuelton Marcelo Monteiro
- 189 -
De lavrador a quilombola: memória, trabalho e identidade na
Comunidade da Caveira
Gessiane Ambrosio Nazario e Sidnei Peres
- 205 -
- 14 -
Desafios na docência da disciplina de filosofia no
ensino médio integrado durante a pandemia de
covid-19 no Amazonas
Introdução
A pandemia da Covid-19 transformou profundamente a roti-
na escolar em todo o mundo. No Brasil, o estado do Amazonas foi
um dos mais afetados pela doença, com um elevado número de casos
e óbitos. Além do impacto na saúde pública, a pandemia também ge-
rou grandes prejuízos à educação, especialmente no que se refere ao
Ensino Médio. A suspensão das aulas presenciais e a transição para
o ensino remoto tiveram impactos significativos na aprendizagem
dos estudantes e na prática da docência pelos professores, que foram
forçados que se adaptar a um novo formato de ensino e enfrentar
desafios tais como: a instabilidade ou mesmo a falta de acesso à in-
ternet, e a falta de preparo específico dos professores para o ensino
à distância. Neste texto, discutiremos os impactos da Covid-19 no
Ensino Médio no estado do Amazonas, a partir da experiência de
dois docentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecno-
logia (IFAM), um deles lotado no Campus Manaus Centro, o outro
no Campus Presidente Figueiredo, que se situa a uma distância de
aproximadamente 120 km da capital. Este texto, portanto, tem como
objetivo analisar os desafios enfrentados e algumas de suas impli-
cações. Buscamos refletir sobre a resiliência dos professores e dos
alunos em lidar com as adversidades do ensino remoto, mas também
sobre a fadiga e o descaso que muitos deles têm enfrentado, reflexos
de problemas estruturais relacionados ao neoliberalismo e à desva-
lorização da educação no Brasil.
- 15 -
de maneira uniforme em todo o estado. O IFAM é uma instituição
multicampi, com 3 campi na capital e outros 14 espalhados pelo in-
terior do Amazonas. Na capital, as dificuldades e os prejuízos cau-
sados pela pandemia foram grandes, porém, muito menores que no
interior do estado. No campus Manaus Centro (CMC) as atividades
remotas se iniciaram apenas em agosto de 2020, após o recesso do
meio do ano. Nesse ínterim, os professores receberam treinamento
para a utilização da plataforma SIGAA (Sistema Integrado de Gestão
de Atividades Acadêmicas) de forma remota. Participaram também
de cursos on-line de capacitação, visando uma preparação mínima
para a realização das atividades educativas sob essa nova realidade.
Após várias reuniões, ficou estabelecido que as atividades de
retorno ocorreriam de forma remota, divididas em duas categorias:
aulas síncronas (encontros em tempo real pelo Google meet); e au-
las assíncronas (estudos dirigidos pelo sistema integrado SIGAA,
conteúdos pelo Google classroom, postagem de textos e vídeos, den-
tre outras atividades). Antes do retorno das atividades escolares, a
preparação para a retomada das aulas de filosofia iniciou-se com a
inserção na plataforma SIGAA (em todas as turmas) de um rotei-
ro contendo os objetivos de cada aula, de textos e de vídeos curtos
abrangendo os temas a serem trabalhados. Esses conteúdos seriam
posteriormente transmitidos de forma alternada nos encontros sín-
cronos e assíncronos.
Ainda relacionado à parte docente, realizaram-se (por con-
ta própria) alguns investimentos como a troca de plano da internet
residencial por um melhor e a colocação de um novo drive SSD no
computador, visando uma maior eficiência da máquina. Avalia-se
que tais intervenções permitiram melhor qualidade das transmis-
sões em tempo real. As aulas síncronas inicialmente apresentaram
algumas dificuldades oriundas da falta de conhecimento de como
lecionar por meios virtuais. Aos poucos foi se desenvolvendo uma
maior familiaridade com a plataforma Google meet e com o sistema
SIGAA.
Entretanto, a realidade de parte dos discentes não foi a mes-
ma. De acordo com relatos destes, muitos alunos não possuíam aces-
so à Internet, não conseguiam se concentrar nos encontros remotos
ou não assistiam às aulas em um local adequado, com silêncio ou
boa conexão. Tais situações podem ter comprometido, inicialmente,
- 16 -
o bom aproveitamento das aulas síncronas. Essas considerações cor-
roboram com o relatado feito por Gross, Minoda e Fonseca (2020)
sobre os desafios presentes na educação remota, como por exemplo,
problemas de conectividade, famílias que não tem acesso aos recur-
sos tecnológicos e não têm condições de ajudar academicamente seus
filhos e alunos que não tem maturidade para estudar a distância.
Situações semelhantes também foram evidenciadas em maté-
ria do site Agência Senado (2022) sobre o ensino no período da pan-
demia, onde a necessidade de ensino remoto evidenciou dificulda-
des na maior parte das escolas brasileiras, em especial nas unidades
públicas, onde foi possível somar o despreparo tecnológico à falta
de conhecimento de como ensinar por meios virtuais. A situação foi
ainda mais crítica para quem não pôde contar com aparelhos (com-
putador, tablet ou celular) na residência e, muito menos, com acesso
adequado à internet.
A situação calamitosa da pandemia na cidade de Manaus não
permitiu que os setores institucionais (serviço social e setor pedagó-
gico), que tratam diretamente de problemas pontuais, tivessem um
contato mais efetivo com os estudantes e suas famílias, contato este
que poderia atenuar os problemas vividos. Ainda em relação à pan-
demia, o estado do Amazonas e, principalmente, a cidade de Manaus
sofreram no início de 2021 os efeitos de uma tragédia sanitária como
a lotação de hospitais, a falta de vacinas e de oxigênio e ainda a de-
sastrosa gestão do Governo Federal. Conforme matéria do SINASEF,
sindicato que representa os Servidores Federais da Educação Básica,
Profissional e Tecnológica (2023), o efeito da pandemia no Instituto
Federal do Amazonas (IFAM) foi devastador: apenas no mês de ja-
neiro de 2021 acorreram 14 mortes de servidores (incluindo o reitor
da instituição), 12 delas motivadas pela COVID-19.
Outra observação que merece destaque é o fato de que alguns
alunos se conectavam às aulas, porém, não participavam das discus-
sões ou sequer ligavam a câmera, ou seja, faziam de conta que esta-
vam acompanhando o conteúdo. Outros, por sua vez, se mostraram
muito assíduos e se comunicavam bastante. Avalia-se que a filosofia
como componente curricular no ensino médio se constitui como um
importante campo de realização de discussões e reflexões acerca de
temas variados da condição humana, capaz de contribuir para a for-
mação integral do educando. Nesse sentido, as aulas remotas restrin-
- 17 -
giram e/ou dificultaram bastante o processo de diálogo e discussão
sobre os conteúdos e questões advindas destes.
Porém, apesar das dificuldades, as discussões nas aulas sín-
cronas posteriormente fluíram. Percebeu-se, nos momentos de con-
versa, que alguns alunos demonstravam ansiedade e se mostraram
apreensivos pelo retorno das atividades presenciais. Foi possível
notar que a pandemia causou efeitos nocivos na saúde mental dos
estudantes. Observa-se que as considerações de Vazquez, et. al. se
aplicam aos estudantes do IFAM:
- 18 -
Campus Presidente Figueiredo
- 19 -
minimizar os impactos da suspensão das aulas presenciais no ano
letivo de 2020, foi tomada a decisão de que o ano seria dividido em
apenas três bimestres e que a nota do quarto bimestre seria obtida
através da multiplicação por dois da nota do terceiro bimestre.
Cada campus do IFAM teve relativa autonomia para buscar
soluções a essa situação emergencial, dentro dos limites estabeleci-
dos pela Reitoria. Por um lado, essa autonomia permitiu que as ins-
tituições de ensino encontrassem soluções criativas para garantir o
aprendizado dos alunos, como o uso de plataformas digitais para au-
las remotas, criação de atividades pedagógicas adaptadas ao ensino à
distância e a disponibilização de conteúdos online. No entanto, essa
autonomia também apresentou grandes dificuldades, uma vez que
cada campus possui suas próprias limitações em termos de recursos
tecnológicos, equipe pedagógica capacitada e estrutura física ade-
quada para o ensino remoto. Uma solução levada a cabo pelos ser-
vidores de Presidente Figueiredo foi a implantação do sistema quin-
zenal de rotas, que se mostrou uma solução bastante criativa e, até
certo ponto, eficaz. O sistema consistia em levar e buscar materiais
para as regiões rurais afastadas do município, onde muitos alunos
tinham dificuldades de acesso aos recursos digitais utilizados nas
aulas remotas. Essa iniciativa exigiu dos próprios professores – que
tinham que dirigir até essas localidades – uma grande dedicação e
empenho, além de um trabalho em equipe coordenado e bem plane-
jado. Cada professor ficava responsável por uma determinada rota,
e era necessário organizar os horários, os materiais a serem levados
e as orientações para os alunos. Esse sistema quinzenal de rotas foi
fundamental para garantir que certos alunos que habitavam áreas
rurais não fossem ainda mais prejudicados no processo de aprendi-
zagem durante a pandemia.
Essa logística quinzenal não envolvia apenas o transporte de
material didático, mas também a entrega de kits de alimentação para
os alunos, que muitas vezes vivem em situação de vulnerabilida-
de social e insegurança alimentar. Os professores, além de lidarem
com a sobrecarga de trabalho em decorrência do ensino remoto, se
dispuseram a realizar esse trabalho voluntário de levar e buscar o
material para os alunos. Inicialmente, os próprios docentes arcaram
com o custo desses alimentos, mas logo o valor que seria destinado
para as merendas escolares foi realocado para esse fim. Infelizmente,
- 20 -
essa não foi a única dificuldade enfrentada pelo campus durante a
pandemia. O número de servidores do IFAM que perderam a vida
para a COVID-19 é expressivo, deixando uma marca de tristeza e
saudade na comunidade escolar. Apesar disso, os professores e fun-
cionários continuaram a exercer seu trabalho com coragem e com-
prometimento, mostrando o verdadeiro espírito de solidariedade e
resiliência.
Como muitos servidores foram acometidos pela COVID-19 e
alguns vieram a falecer, isso agravou ainda mais a situação de escas-
sez de pessoal no campus. Essa falta de servidores também impac-
tou na realização de atividades que demandam mais presença física,
como a manutenção das instalações e equipamentos. Com menos
servidores disponíveis, a equipe de manutenção precisou se desdo-
brar para garantir o funcionamento adequado de salas de aula, labo-
ratórios e outros espaços. Apesar das adversidades, os servidores se
mantiveram firmes em sua missão de oferecer direitos básicos aos
estudantes, encontrando soluções criativas para os desafios que sur-
giram ao longo do caminho.
Com a implementação do ensino remoto, muitos servidores
precisaram adaptar-se às novas rotinas e às demandas da educação a
distância, o que pode ter gerado um maior nível de estresse e sobre-
carga. Além disso, alguns servidores precisaram afastar-se de suas
atividades por motivos de saúde ou para cuidar de familiares doentes
ou em situação de vulnerabilidade. A redução da equipe de servi-
dores, somada à sobrecarga de trabalho, certamente afetou a quali-
dade e a efetividade do ensino e do apoio pedagógico oferecido aos
alunos. Entre as vítimas da COVID-19, esteve inclusive o dirigente
máximo da instituição, Prof. Dr. Antônio Venâncio Castelo Branco,
que deixou um legado importante para a comunidade acadêmica. A
morte desses profissionais deixou uma lacuna irreparável, não só no
IFAM, mas em suas comunidades e famílias. A instituição se uniu
em luto e solidariedade, prestando homenagens e mantendo vivo o
legado desses servidores, que dedicaram suas vidas à educação.
Quanto especificamente à disciplina de Filosofia, o docente
responsável por ela experimentou, durante este período, uma condi-
ção peculiar. Com apenas uma disciplina por semana, esse professor
teve a responsabilidade de lecionar simultaneamente para 12 turmas
diferentes com um total de mais de 400 alunos, distribuídas nos três
- 21 -
anos do Ensino Médio Integrado. Essa situação sobrecarregou o
docente, que precisava preparar e dar aulas de filosofia para tantas
turmas em frações de tempo muito curtas, além de corrigir provas,
trabalhos e atividades de todos os alunos. Como o campus estava
sem um professor de filosofia há mais de um ano, o recém-empos-
sado professor teve de assumir, além das disciplinas do ano corrente
(2021), também as do ano anterior (2020) e as de um bimestre do
ano de 2019, chegando ao total de 23 disciplinas com carga horária
anual dentro de um mesmo ano letivo. Isso é a exata demonstração
da falta de investimento em recursos humanos para a educação que
se agravou nos anos Temer e Bolsonaro.
É importante destacar que a disciplina de filosofia tem um
papel fundamental no desenvolvimento crítico e reflexivo dos alunos,
contribuindo para a formação de cidadãos conscientes e atuantes
na sociedade. Portanto, é fundamental que haja investimentos na
formação de professores e na contratação de novos docentes para
suprir a demanda de disciplinas como filosofia em todas as escolas
do país. Corrigir mais de mil trabalhos em um único bimestre
é uma carga de trabalho extremamente exaustiva para qualquer
professor. Além de prejudicar a saúde física e mental do docente,
essa sobrecarga pode afetar negativamente a qualidade do ensino
e da avaliação. A correção de trabalhos é uma tarefa essencial
para avaliar o desempenho dos alunos, mas quando realizada em
grande quantidade e em um curto período, perde sensivelmente em
qualidade e deixa de permitir uma atenção individualizada para cada
estudante.
Apesar disso, em comparação com outras regiões do estado
do Amazonas, o município de Presidente Figueiredo é considerado
mais desenvolvido e tem uma estrutura um pouco mais adequada
em termos de acesso à saúde, educação e infraestrutura. Porém, ain-
da assim, a região enfrenta desafios em relação à educação, especial-
mente quando se trata do ensino remoto, que tem sido a única opção
durante a pandemia. Nos campi de outras localidades do Amazonas,
como Tabatinga ou São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, a situa-
ção pode ter sido ainda mais desafiadora devido à distância e às con-
dições geográficas e socioeconômicas.
- 22 -
Conclusão
- 23 -
Referências:
- 24 -
LIBERALISMO REFORMISTA E
EDUCAÇÃO: EXPLORAÇÃO DO TRABALHO
DOCENTE E SUAS PERSPECTIVAS DE
ACELERAÇÃO NO CENÁRIO PANDÊMICO
Introdução
- 25 -
A retomada liberal no Brasil e o reformismo trabalhista:
construindo o precariado brasileiro
- 26 -
Hoje, à luz dos acontecimentos históricos, está evidente que a
proposta trazida pelo Partido dos Trabalhadores guardava remotas
possibilidades de execução. A tão desejada conciliação de classes re-
velou-se uma grande quimera, impossibilitada de efetuar-se diante
da resistência das camadas conservadoras e elitizadas da sociedade
brasileira. Já no governo Dilma Rousseff, muitas dessas posições fo-
ram não só descumpridas, como abandonadas por inteiro, cedendo
lugar a uma política de ajustes ocasionais e de interesse restrito, os
quais davam poucos indicativos de fluir para a execução de algum
plano mais abrangente.
De qualquer modo, o fato é que foram escassas as mudanças
promovidas no mundo do trabalho ao longo desse período, tendo
as reformas conjunturais sido substituídas por decretos paliativos,
os quais não ofereciam indícios mínimos para a imposição de uma
outra ordem laboral.
Contudo, esse panorama estava em vias de ser modificado. As
transformações estruturais da legislação brasileira ocorridas após a
ascensão à presidência de Michel Temer promoveram uma intensa
guinada liberal que atingiu diversos setores da sociedade, no que as
relações de trabalho, longe de passarem incolumemente, tornaram-
-se um dos eixos centrais desse plano de mudança político-econô-
mica.
Com a promulgação da LEI Nº 13.467, DE 13 DE JULHO DE
2017, instalou-se no país um horizonte totalmente novo e contrário
ao que estava definido na antiga Consolidação das Leis Trabalhistas,
cujo texto apontava para uma série de medidas protetivas de forte
impacto na garantia dos direitos do trabalhador, as quais, com as
alterações realizadas, passaram a assumir em diversos aspectos uma
forma limitada ou até mesmo inexistente.
A jornada intermitente de trabalho, a prevalência dos acordos
sobre o marco legal, a supressão de intervalos e do tempo de desloca-
mento como período de trabalho e tantas outras revisões, trouxeram
significativas vantagens para os regimes patronais e puseram os tra-
balhadores num estado de fragilidade conspícua, em que até mesmo
as possibilidades de contestação foram suprimidas, uma vez que eles
passaram a correr o risco de arcar com as custas de processos caso
estes viessem a ser julgados improcedentes.
- 27 -
Dessa maneira, o que se inaugura no Brasil é uma configura-
ção do mundo do trabalho que ruma para a ampliação do número
de trabalhadores atuantes em condições cada vez menos salutares e
exponencialmente degradantes, aumentando dessa maneira o leque
de indivíduos pertencentes ao extrato denominado por Guy Stan-
ding como precariado, o qual ele trata preliminarmente da seguinte
maneira:
- 29 -
No trabalho docente, tais mudanças também se fazem sentir,
provocando efeitos negativos sobre o já combalido cenário da valori-
zação profissional e garantias sociais. Se antes o professor procurava
a todo custo sair de uma condição exploratória, angariando meios
de legitimação de seu ofício pela procura do devido cumprimento
dos textos regulatórios de sua atividade, agora ele se vê retornado à
estaca zero, uma vez que seu estado precário encontra-se amparado
constitucionalmente. Esse é um problema que se mostra como emer-
gente e merecedor de atenção quanto aos seus aspectos intrínsecos.
Contudo, para se compreender a dimensão dos prejuízos cau-
sados a essa classe trabalhista, faz-se necessário discutir em um nível
básico os impactos dessas mudanças no regime econômico, no que
uma retomada dos conceitos da crítica marxista da economia políti-
ca é de importância precípua.
- 30 -
nomino mais-trabalho [mehrarbeit] (surplus labour). Do mesmo
modo como, para a compreensão do valor em geral, é indispensável
entendê-lo com mero coágulo do tempo de trabalho, como simples
trabalho objetivado, para mero coágulo de tempo de trabalho ex-
cedente, como simples mais-trabalho objetivado. O que diferencia
as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a so-
ciedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a
forma pela qual esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato,
do trabalhador. (MARX, 2017, p. 293).
- 31 -
Têm-se, assim, e a cada dia mais intensamente, as condições
próprias para o aumento da taxa de exploração. Esta, que também
integra o conjunto da economia política marxista, define-se pela li-
gação existente entre a mais-valia e o capital variável, sendo este o
custo da força de trabalho na confecção de um produto. Tomada essa
relação, considera-se que a taxa de exploração é medida por mv/cv,
ou a mais-valia dividida pelo capital variável, o que implica na fór-
mula mv/cv, cujo resultado é um cálculo percentual.
Obviamente, quando da efetivação desses números, há que
se observar diversos aspectos que interferem na mais-valia, princi-
palmente o capital constante. Também certas garantias trabalhistas
podem ser somadas aos valores relativos ao capital variável, dimi-
nuindo os índices extraídos como mais-valia, o que demonstra que
há um interesse direto do capitalista em tornar os benefícios con-
cedidos para além dos salários cada vez menores. Portanto, longe
de ser uma quantificação simples, o cálculo em questão pede que se
considere uma série de dados cuja natureza possui vínculo direto
com a ordem social em vigor.
Transpondo essa problemática para a realidade do trabalho
docente, é possível aferir em termos bastante concretos o quanto as
mudanças em curso no país alteram os valores em favor do capitalis-
ta e manifestam o seu claro proveito em acentuar as divergências em
vista do lucro, o qual pretende ver aumentado sempre que possível.
Contudo, antes que se arvore nessa problemática, é preciso res-
ponder a um questionamento fundamentalmente importante, e que
remete ainda às bases do pensamento de Marx. Dada a natureza do tra-
balho do educador, é possível falar em taxa de mais-valia docente? Este
é um ponto do qual depende em muito a continuidade dessa discussão.
A perspectiva adotada por Marx, ao longo de toda sua análise
da economia política, é uma perspectiva que considera por princípio
a sociedade industrial. Assim, a realização de trabalho se dá sobretu-
do na geração de mercadorias nas fábricas: “o processo de produção,
como unidade dos processos de trabalho e de formação de valor, é
processo de produção de mercadorias” (MARX, 2017, p. 273). Dessa
maneira, tomando-se por base os paradigmas constituídos, o traba-
lho docente, por não se voltar para a elaboração material de valores
de uso, não poderia ser considerado a partir de certas categorias com
que se aborda o modo de produção capitalista, dentre elas a mais-va-
- 32 -
lia em sentido estrito.
Tal visão, contudo, parece por demais rigorosa, e não agre-
ga o próprio movimento histórico do capital, cuja dinâmica é fre-
quentemente colocada por Marx como um item a ser acompanhado
permanentemente. As mudanças ocorridas no sistema econômico
tornaram setores que antes operavam de maneira diversa a agirem
segundo a lógica dominante do capitalismo, assumindo, portanto, a
sua forma de organização. Dentro desse cenário, uma das alterações
marcantes passou a ser percebida no ramo de serviços, que começou
a atuar num ordenamento industrial, convertendo suas atividades
em autênticas mercadorias. Desse modo, áreas como o ensino, antes
refratárias à mercantilização, passaram a não somente aceitar esse
novo direcionamento, como também a assumi-lo como a linha cen-
tral de sua sistemática produtiva.
Isso criou um plano a partir do qual tornou-se, senão plena-
mente possível quanto aos conceitos-chave da teoria marxista, ao
menos analogamente válido utilizar-se da mais-valia para analisar a
exploração sofrida pelos educadores em seu processo de atuação no
mundo do trabalho.
Obviamente, os limites dessa analogia são perceptíveis. A
impossibilidade de haver, por exemplo, uma base qualquer para de-
terminar a mesma taxa no que diz respeito ao ensino público, pelo
simples fato de ali perder-se a dimensão do lucro pela venda de mer-
cadorias, já demonstra a falibilidade dos procedimentos aqui aven-
tados numa escala mais abrangente, bem como preserva o estatuto
mais ortodoxo do pensamento de Marx.
Trata-se, portanto, de utilizar-se de um instrumental analítico
que pode ser útil para um certo fim, porém na certeza de que este
não pode ser validado como uma ferramenta universal para os casos
do tipo. Com isso, a posição a ser adotada adiante é de um pragma-
tismo tímido, mas que se pretende de alguma forma elucidativo.
- 33 -
vigente. Nos mais diversos setores, a instituição de uma lógica precá-
ria por parte dos empregadores tem se expandido de modo sistemá-
tico, no que a educação é um dos exemplos de atividade progressiva-
mente integrada a essas diretrizes.
Entretanto, cabe fazer algumas ponderações de caráter um
tanto histórico. Como profissionais liberais, os professores sempre se
encontraram na linha divisória para a informalidade, em especial no
mercado das aulas particulares e cursos preparatórios. No entanto,
para além desse quadro já estabelecido, a guinada ultraliberal recen-
te acentuou de maneira substantiva o problema, convertendo o que
antes era um cenário a ser revertido numa regra aceita e validada
legalmente, tornando as possibilidades de contraposição cada vez
mais diminuídas.
Senão, vejamos o caso notoriamente divulgado de uma insti-
tuição universitária privada que demitiu 1,2 mil (FOLHA DE SÂO
PAULO, 2019), de seus funcionários tão logo a reforma trabalhista
foi aprovada. Nesse caso, alguns dos professores foram recontratados
mediante a nova legislação, o que os reduziu ao estatuto de professo-
res horistas, passando a receber apenas por tempo de efetivo traba-
lho em sala de aula, sem mais considerar o período dispensado para
correções de provas e atividades de planejamento.
Tal medida, liberada pela nova lei, além de constituir uma
inocultável subtração indevida de pagamento, ainda altera de modo
basilar a relação existente entre aquilo que o professor gera enquanto
riqueza e o que recebe, aumentando de a taxa de exploração docente
a níveis antes inauditos.
Como se tal não fosse o bastante, o ano de 2020 apresentou
uma contingência inesperada, e que agravou ainda mais essas ten-
dências. A pandemia que se disseminou radicalmente teve um sen-
sível impacto nos sistemas de ensino, alterando com mais força os já
discrepantes acordos entre empresários e trabalhadores da educação,
causando prejuízos a estes que atingem de modo decisivo as suas
limitadas possibilidades de aquisição de direitos, e lançando-os num
regime de exploração altamente potencializado.
Convém ratificar novamente que os efeitos advindos pelo
chamado coronavírus de nenhum modo podem ser tomados como
protagonistas responsáveis por esse estado de coisas. Os processos
- 34 -
que ora se instalam nas relações trabalhistas, em especial quanto ao
trabalho docente, já se encontravam em ampla expansão, tendo sido
agora tão somente acelerados pelas circunstâncias sanitárias. Assim,
trata-se sobretudo de um processo de ampliação de procedimentos
já em voga, e que tiveram removidos agora alguns dos últimos obs-
táculos para o seu pleno desenvolvimento.
Provavelmente, o principal mecanismo de aumento de preca-
rização do trabalho docente encontra-se no emprego em larga esca-
la das aulas remotas para alunos do ensino superior e da educação
básica - embora esta o receba com maiores reticências, devido às
exigências fixadas no contato entre pais e empresa -. Em períodos
anteriores à pandemia, estas eram algo que se encontrava previsto,
mas que sofria resistência de diversos setores, inclusive na comuni-
dade de estudantes. Porém, com as dificuldades encontradas para
reuniões e mobilidade social, seu uso passou a apresentar-se como
solução única e, logo, inevitavelmente aceita, a despeito de todas as
dificuldades para sua implementação. Dessa forma, diante da difi-
culdade de contrapor-se a uma conjuntura global e totalizante, cou-
be ao professor tão só submeter-se ao novo modelo, num movimen-
to cujas consequências se mostram cada vez mais fragmentadoras de
suas condições de bem-estar, trabalho e valorização.
Para constatar isso, basta atentar, por exemplo, para a matéria
intitulada Professores relatam de aulas online com 300 alunos a de-
missões por pop-up, escrita por Thiago Domenici, vinculada no sítio
eletrônico UOL, em 23 de setembro de 2020. Nela são fornecidos
diversos dados acerca da condição de professores de ensino supe-
rior ao longo da retomada das aulas de modo remoto, tendo sido
estes submetidos a diversas situações aviltantes, como demissão via
mensagens em computadores e salários reduzidos a níveis irrisó-
rios. Como era de se esperar, os empresários do ramo defendem-se
alegando terem tido perdas significativas no período pandêmico:
“Como justificativa, as universidades citam a redução de alunos ma-
triculados, o aumento da evasão escolar e a inadimplência durante a
pandemia.” (DOMENICI, 2020). Contudo, conforme colocado por
um dos docentes, de nenhuma maneira podemos considerar que:
“está provado que ‘houve redução do número de matrículas que jus-
tificasse a redução na carga horária dos professores’ da Anhembi, por
exemplo” (DOMENICI, 2020).
- 35 -
Disso decorre que a análise mais pertinente é a de que os man-
tenedores dessas instituições aproveitaram-se da situação em vigor
para maximizar seus lucros, agindo com total indiferença para com
as consequências de suas ações em relação a professores e aos pró-
prios alunos.
Como resultado, o que se tem é uma condição insustentável
tanto do ponto de vista trabalhista quanto pedagógico, em que pro-
fessores e alunos tentam de maneira inglória atuar para garantir o
mínimo processo formativo e, no caso dos primeiros, as possibilida-
des de sustento.
Para se medir o quanto isso amplia a exploração docente em
tais instituições, podemos observar o caso citado do professor Enzo,
que teve sua carga horária reduzida de 21 para 3 horas semanais, no
que passou a receber um salário de r$ 500, ou seja, algo em torno de
r$ 42 a hora/aula. Ora, este mesmo professor afirma que o salto de
alunos por disciplina ministrada foi de 50 para 200. Um aumento
absolutamente exorbitante.
Seguindo o raciocínio, se tomarmos um valor médio pago por
aluno de r$ 1200, a uma margem de lucro de 25%, poderíamos dizer
que a instituição ganha r$ 300 por aluno. Multiplicado pelo número
de alunos na turma, o valor chega a r$ 60.000 por turma mensais.
Dessa maneira, ainda que somássemos os proventos das horas de
trabalho de cinco professores, teríamos o valor de r$ 2520. Logo, se
colocássemos tais números na fórmula clássica mais-valia/capital
variável, teríamos um percentual próximo de 2400%, que podería-
mos ligar à taxa de exploração docente em tais circunstâncias. Um
número muito maior do que qualquer métrica de ensino presencial
pré-pandêmico.
Obviamente, os cálculos apresentados são apenas esboços, e
carecem de maiores especificações para um estudo mais rigoroso.
Contudo, mesmo que apenas ilustrativos, eles servem para indicar
o fato insofismável de que a aceleração dos modos exploratórios do
trabalho docente, cuja marcha ruma não para a pauperização plena
dos sujeitos envolvidos, caminha também para fazer ruir o já frágil
edifício da educação brasileira por inteiro, haja vista que na outra
ponta o ensino público tem tido dificuldades crescentes nos últimos
anos para manter os padrões mínimos de qualidade do ensino.
- 36 -
Considerações finais
Referências:
- 37 -
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid=S1414-49802007000100007&lng=en&nrm=iso>. Aces-
so em 30 de dezembro de 2020. https://doi.org/10.1590/S1414-
49802007000100007.
ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2018.
BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm.
Acesso em 11.11.2019.
DOMENICI, Thiago. Professores relatam de aulas online com
300 alunos a demissões por pop-up. UOL/Pública.org. Disponí-
vel em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-publi-
ca/2020/09/23/professores-relatam-de-aulas-online-com-300-alunos-a-
-demissoes-por-pop-up.htm>. Acesso em: 30.12.2020
FOLHA DE SÃO PAULO. Estácio de Sá demite 1,2 mil professores
após reforma trabalhista. Disponível em: <https://www1.folha.uol.
com.br/mercado/2017/12/1940980-estacio-de-sa-demite-12-mil-pro-
fessores-apos-reforma-trabalhista.shtml>. Acesso em: 30.12.2020
MARX, Karl. O capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O
Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo: 2017.
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia Política: Uma Intro-
dução Crítica. São Paulo: Cortez, 2012.
SLEE, Tom. Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado.
São Paulo: Elefante, 2017.
STANDING, Guy. O Precariado: A Nova Classe Perigosa. Belo Ho-
rizonte: Autêntica Editora, 2014.
- 38 -
A FILOSOFIA E A FORMAÇÃO DO ALUNO
DO ENSINO MÉDIO INTEGRADO: UM
PRIMEIRO OLHAR1
Introdução
- 39 -
se pode aprender, mas apenas se pode filosofar, ou seja, exercitar o
talento da razão, fazendo-a seguir seus próprios princípios univer-
sais. Essas diferentes definições permitem perceber a profundidade e
a amplitude do termo.
A filosofia é uma disciplina que faz parte do bloco de conhe-
cimento das Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006).
As Orientações curriculares para o ensino médio (2006, p. 28) ex-
pressam que a filosofia, juntamente com as demais disciplinas deve
compor o papel proposto para a formação do ensino médio. Porém,
esse componente não constitui uma mera oferta de conhecimentos
a serem assimilados pelo estudante, mas propõe o aprendizado de
uma relação com o conhecimento que lhe permita adaptar-se com
flexibilidade às novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores. Portanto, mas que dominar um conteúdo, consiste em
saber ter acesso aos diversos conhecimentos de forma significativa.
Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
(Lei nº 9.394/96) afirma que a filosofia deve promover o pleno desen-
volvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996).
Estima-se que a filosofia no ensino médio possui predomi-
nantemente a tarefa de desenvolver um pensamento independente e
crítico em relação ao mundo e a si mesmo. Como bem expressaram
Aranha e Martins (2007, p. 88): a importância do ensino de filosofia
nas escolas consiste em aprimorar a reflexão crítica típica do filosofar
que é inerente a qualquer ser humano.
Assim, este artigo tem como objetivo elencar os fatores (variá-
veis) relativos à disciplina filosofia na formação do aluno do ensino
médio integrado, por meio de uma pesquisa exploratória e qualitati-
va. Para tanto, lançamos as seguintes questões:
a) – É o aluno do ensino médio integrado interessado em fi-
losofia, afinal?
b) – Quais as principais dificuldades de aprendizagem em re-
lação a essa disciplina, segundo os alunos?
c) – Que dizem os alunos com respeito aos méritos ou valores
que a filosofia pode agregar-lhes à vida pessoal ou profissio-
nal?
- 40 -
Os achados aqui contidos tornam-se pertinentes na medida
em que os alunos participantes da pesquisa são do ensino médio in-
tegrado e na instituição em que a pesquisa foi realizada, à exceção da
língua portuguesa, as disciplinas de humanidades, em particular a
filosofia, são deixadas em segundo plano.
Dessarte o exposto, acreditamos que as conclusões dessa in-
vestigação possam favorecer a prática de ações concretas voltadas à
melhoria do ensino de filosofia para o ensino integrado.
Material e Métodos
- 41 -
A pesquisa envolveu a aplicação de questionário a alunos (as)
do 3º ano do ensino médio integrado. A escolha de estudantes do 3º
ano residiu no fato destes se encontrarem na fase final dos estudos
secundários, onde, infere-se que exista um maior amadurecimento
intelectual e crítico.
Esse estudo foi realizado entre o segundo semestre de 2020 e
o primeiro de 2021. O questionário foi aplicado a 52 alunos, sendo
21 do curso integrado em química; 17 do curso integrado em ele-
trotécnica; 06 alunos do curso integrado em mecânica; 04 alunos do
curso integrado em edificações; e 04 alunos do curso integrado em
informática.
Os respectivos participantes, no momento da pesquisa, esta-
vam na faixa etária entre 17 e 18 anos. Nesse sentido, a participação
no estudo ocorreu mediante o consentimento de pais e/ou respon-
sáveis anuindo à participação dos menores de idade, bem como o
próprio assentimento desses menores e o assentimento dos partici-
pantes maiores de idade. Os modelos dos termos de consentimento e
assentimento utilizados se encontram nos apêndices 2, 3 e 4.
Devido à pandemia de Covid-19, provocada pelo vírus SARS-
COV-2, que impossibilitou a realização de aulas presenciais, a apli-
cação do questionário se deu por meio digital. Estima-se que muitos
alunos não participaram do estudo devido a problemas de acesso à
internet, à falta de comunicação e, também, de interesse. Assim, a
totalidade de discentes que poderiam ter participado do estudo seria
aproximadamente 150 alunos.
O critério de inclusão para participação do estudo consistiu
no aluno estar cursando o terceiro ano do ensino médio na institui-
ção. Participaram alunos de ambos os sexos, independente de idade,
etnia, gênero e religião. Quanto aos critérios de exclusão, os mesmos
se aplicam aos alunos que se encontravam em licença médica e/ou
que trancaram a matrícula durante o período da pesquisa.
A pesquisa possui risco mínimo (conforme Art. 21 da Reso-
lução 510/2016 que trata da ética na pesquisa na área de Ciências
Humanas e Sociais), no sentido das opiniões e do tempo gasto para a
participação do aluno. As perguntas não apresentam teor de ameaça
ou constrangimento. Apesar dos riscos serem mínimos, em razão da
aplicação do questionário, as respectivas perguntas foram elaboradas
- 42 -
no sentido de não causar desconforto, constrangimento ou danos
psicológicos.
Quanto aos benefícios, estima-se que um estudo desta nature-
za poderá evidenciar os pontos positivos e as dificuldades encontra-
das pelos alunos em relação à disciplina, fornecendo elementos para
o melhoramento significativo da prática do magistério realizado pe-
los professores de filosofia da instituição.
Os procedimentos éticos deste estudo basearam-se na Reso-
lução 510/2016 que trata da ética na pesquisa na área de Ciências
Humanas e Sociais. Antes de sua execução esta pesquisa passou pelo
Comitê de Ética na Pesquisa da instituição, sendo aprovada sob o pa-
recer número 4.349.238. Este procedimento se deu através do preen-
chimento do Protocolo de Pesquisa, submetido eletronicamente por
meio da Plataforma Brasil.
Resultados e discussão
A exposição e a discussão das respostas dos estudantes se ini-
ciam pelas perguntas diretas com respostas sim ou não, quais sejam:
as perguntas 1, 2 e 4. As respostas se encontram na Tabela 1.
- 43 -
discussão em Willingham (2011), capítulo 3, o interesse é premissa
à aprendizagem; é condição necessária, mas não suficiente. Portan-
to, embora a maioria dos estudantes se identifique com a disciplina
de filosofia, isto não implica que a maioria não terá dificuldade em
aprendê-la.
Ainda na Tabela 1, a maioria dos estudantes, 35 alunos, res-
pondeu ser curta a carga horária da disciplina em tela e 17 respon-
deram que é suficiente. Observa-se, portanto, que o mesmo número
de estudantes que não se identifica com a disciplina julga a carga de
1 hora semanal suficiente.
Em relação às principais dificuldades de aprendizagem en-
frentadas pelos estudantes participantes da pesquisa, obteve-se o se-
guinte ranking disposto na Tabela 2.
- 44 -
a escrita são as manifestações do pensamento. Mais recentemente,
no manual de Psicologia Cognitiva de Sternberg e Sternberg (2015),
capítulos 8 e 9, os autores argumentam em favor de que se o sujeito
(aluno) não tem problemas e/ou transtorno de aprendizagem, é de se
esperar que a fala (argumentação) e a escrita (elaboração de textos)
sejam a manifestação do pensamento organizado, do raciocínio reto.
Assim, existe uma relação entre argumentação e escrita de textos.
Em segundo lugar, dada a abstração subjacente aos conceitos
filosóficos, torna-se desafiador o aprendizado dessa disciplina. Wil-
lingham (2011), no capítulo 4, discute as razões desta dificuldade em
aprender conceitos (ideais) abstratos e aprofunda o assunto explo-
rando os motivos de o aluno não conseguir aplicá-los (empregá-los)
em contextos reais fora da escola. É possível sintetizar os argumentos
de Willingham com as seguintes sentenças:
1. É um princípio cognitivo que aprendemos coisas novas por
meio das coisas concretas e, sobretudo, familiares, que já sa-
bemos (pp. 86-90).
2. Conhecimento profundo se relaciona com conhecimentos
antigos, assim o aluno consegue aplicá-los em diferentes con-
textos (pp. 91-95).
De 1 e 2 podemos concluir duas coisas. Em primeiro, no âm-
bito da educação formal ou escolar, os conceitos científicos e filo-
sóficos – como é o caso aqui – são apresentados prontos, acabados,
genéricos e universais, ou seja: na educação formal a abstração vem
primeiro, depois o professor ressignifica esses conceitos à luz de casos
particulares, reais e concretos. Então os conceitos espontâneos cons-
tituem-se numa ascendente do concreto ao abstrato e os conceitos
filosóficos (científicos), por outro lado, fazem o percurso contrário,
do abstrato em direção ao concreto (VIGOTSKI, 2009), capítulo 5.
Em segundo, a aprendizagem de conceitos abstratos não pre-
cede “transferência cognitiva” (WILLINGHAM, 2011, p. 95) – que
significa a transferência do aprendizado em sala de aula para o mun-
do fora da escola. Pedagogicamente, isso ressalta a relevância do em-
prego de analogias no ensino de filosofia, as chamadas de situações-
-problemas concretas. É por meio da transferência cognitiva que o
aluno consegue níveis de conhecimento mais profundos (STERN-
BERG; STERNBERG, 2016, pp. 385-390).
- 45 -
Pelo exposto, acreditamos que, enquanto não acontecer a de-
vida aprendizagem dos conceitos em níveis mais profundos, é de se
esperar que os alunos apresentam dificuldades na argumentação fa-
lada ou escrita.
A quinta questão indagou qual (ais) tema(s) da disciplina filo-
sofia o aluno considera mais importante(s)? (Tabela 3). Nessa ques-
tão o aluno pôde assinalar mais de uma opção.
- 47 -
avalia as implicações que envolvem as sensações e os sentimentos e
investiga a integração deles nas atividades físicas e mentais dos ho-
mens, debruçando-se sobre as produções da sensibilidade, com a fi-
nalidade de definir suas relações com o conhecimento, com a ética e
com a razão. Infere-se que essa temática, por ser abordada de forma
pontual dentro do pensamento de alguns filósofos, seja menos con-
siderada pelos estudantes participantes do estudo.
A sexta questão perguntou no que a disciplina de filosofia pode
contribuir para a vida pessoal ou acadêmica dos alunos entrevista-
dos. As respostas foram examinadas à luz da codificação qualitati-
va de dados conforme Ludke e André (2015), capítulo 4. Usando-se
dessa técnica emergiu, em uma primeira codificação, 14 categorias
conceituais que encerravam as respostas dos entrevistados. Em uma
segunda codificação, e em observância às possibilidades de conver-
gência entre as 16 categorias iniciais, elas reduziram-se a 3 grandes
categorias conceituais mais robustas.
Não é ocioso dizer que após a segunda codificação, as catego-
rias iniciais foram dispostas como subcategorias de análise. Dida-
ticamente separamo-las em Quadros para facilitar o entendimento,
mas não antes de qualificá-las individualmente como segue.
a. Categoria Pensamento
- 48 -
Quadro 1 – Respostas dos alunos sobre a categoria Pensamento, código 01.
Categoria: Pensamento
Subcategorias: 1. Pensamento Crítico. 2. Pensamento Reto. 3. Pensamento
Reflexivo. 4. Abrir a Mente.
Quantidade: 20 respostas.
- 49 -
capaz de melhorar a qualidade da vida em sociedade. Assim, emergiram
muitas dimensões que remetem diretamente à ética e a política.
Nesse aspecto, 3 foram as subcategorias abarcadas por esta ca-
tegoria conceitual maior e mais robusta, quais sejam: a ética, a políti-
ca, compreensão do contexto intrapessoal e interpessoal.
Aqui, deve ficar claro, que os alunos fizeram alusão a vida em
sociedade no que concerne tanto ao entendimento das relações de
poder inerente ao estado democrático, quanto ao convívio em comu-
nidade local e, até mesmo, da convivência entre pares.
Ademais, no aspecto individual, o saber filosófico, segundo
os estudantes, funcionaria como um norte intelectual auxiliando o
julgamento das ações humanas de outrem, e contribuiria para a au-
torreflexão de nossas ações.
No Quadro 2, estão dispostas as 16 respostas aglutinadas nes-
sa categoria.
- 50 -
c. Categoria Instrumento Intelectual.
- 51 -
Quadro 3 – Respostas dos alunos sobre a categoria Instrumento, código 03.
Categoria: Instrumento
Subcategorias: 1. Entender outras disciplinas. 2. Compreensão de texto. 3.
Conhecimentos diversos. 4. Formação acadêmica.
Quantidade: 12 respostas.
- 52 -
Aranha e Martins (2007, p. 91) afirmam que a Filosofia consis-
te num modo de pensar que acompanha o ser humano na tarefa de
compreender o mundo e agir sobre ele, numa atitude diante da vida,
em suas diversas circunstâncias. Avalia-se que o cabedal teórico pro-
porcionado pela reflexão filosófica contribui para a vida concreta do
indivíduo, como citado pelos alunos em respostas como “estimula o
pensamento”, “ajuda a compreender o mundo” ou “ajuda a construir
pensamentos corretos”.
Os estudantes afirmaram reconhecer a existência de um cará-
ter interdisciplinar na filosofia, no sentido de que os temas filosóficos
podem ajudar na compreensão de outros saberes. De acordo com as
Orientações Curriculares para o Ensino Médio na área de Ciências
Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006, p. 25), a prática inter-
disciplinar é enriquecedora, pois estimula a criatividade, a curiosi-
dade e a afetividade. Além disso, incentiva a participação ativa na
formação do jovem e a capacidade para o diálogo com outras áreas
do conhecimento.
É possível afirmar que a filosofia (CAMPESTRINI, VANDRE-
SEN, PAULINO, 2000, p. 155) se configura como um referencial de
interdisciplinaridade, pois é entendida como princípio mediador de
comunicação entre as diferentes disciplinas ou ciências, como ele-
mento teórico metodológico da diferença e da criatividade e como
princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência
ou disciplina.
Os participantes também afirmaram que a filosofia os auxilia a
desenvolver uma compreensão melhor de fatos envolvendo questões
de natureza ética e política e, também, de assuntos da vida prática,
como o conhecimento das ações humanas. Essas respostas corrobo-
ram com o interesse pela ética e pela filosofia política citadas na quin-
ta questão (Tabela 3). Entende-se que tratar de temas que abordam
questões envolvendo a ética e a política representa uma tarefa capaz de
promover a construção de um pensamento crítico e de uma consciên-
cia social, proporcionando ao estudante compreender os princípios, as
normas e estruturas sociais, bem como as relações de poder na socie-
dade. Essa compreensão permitirá uma participação mais consciente
e efetiva do estudante na vida pública enquanto cidadão.
Foi citada também a importância da filosofia como algo que
pode incentivar o hábito de ler e/ou de estimular a leitura de textos
- 53 -
considerados de difícil compreensão. Pode-se afirmar que a leitura
permite ao aluno vivenciar novas experiências, construir conheci-
mentos e viajar por lugares ainda desconhecidos. Pode também aju-
dar no desenvolvimento de um olhar crítico sobre os fatos, permitin-
do assumir uma postura ativa frente ao mundo.
Em relação à disciplina filosofia e a leitura, esta promove o de-
senvolvimento geral de competências comunicativas, o que implica
um tipo de leitura que envolve a capacidade de análise, de interpreta-
ção, de reconstrução racional e de crítica. Isso possibilita o exercício
da autonomia no sentido de concordar ou não com os propósitos de
um texto (BRASIL, 2006, p.31).
Constata-se que muitos filósofos ilustres, além de autores de
obras estritamente filosóficas, também foram escritores (Sartre), en-
saístas (Camus), poetas (Goethe) ou contistas (Voltaire). Esses filó-
sofos-escritores e outros, por meio de seu talento permitem, além da
experiência de ler suas obras, também uma “leitura” da realidade,
geralmente diferente do estabelecido pelo senso comum. A relação
entre filosofia, leitura e literatura, portanto, é muito estreita e pode
despertar no educando o hábito de ler e de se aventurar em textos
considerados mais complicados.
Conforme as respostas coletadas, a filosofia também promo-
ve a reflexão, não apenas de temas filosóficos, mas também sobre a
realidade que nos cerca. As Orientações Curriculares para o Ensino
Médio (2006, p.29) expressam que a filosofia tem como objetivo de-
senvolver a capacidade de responder questões advindas das mais di-
versas situações, ao mesmo tempo apoiadas em conhecimentos pré-
vios. Portanto, a filosofia como disciplina escolar do ensino básico
se constitui como um importante campo de realização de discussões
e reflexões acerca de temas variados da condição humana, capaz de
contribuir para a formação integral do educando.
Os alunos ainda disseram que a filosofia estimula a busca por
conhecimentos do mundo e, também, pode enriquecer a vida acadê-
mica. Estima-se que a filosofia ajuda-os a dialogar com a realidade e
com o mundo que os cerca, levando-os a desenvolver um pensar crí-
tico que lhe proporcione conhecimentos enriquecedores para além
dos conteúdos filosóficos.
Conforme Fabrini (2005, p. 25) o ensino de filosofia, seja nos
departamentos de filosofia, nos cursos universitários, no ensino mé-
- 54 -
dio, e mesmo fora deles, possui a tarefa de produzir um diálogo vivo,
entre múltiplos sujeitos de enunciação do presente coletivo. Isto sig-
nifica que a filosofia, ou antes, a realização de uma leitura filosófica
pode contribuir para suprir o déficit primário de análise do presente.
Outras respostas isoladas trataram de contribuições diver-
sas como ajuda a abrir a mente, ajuda a conhecer a sociedade, o ser
humano e os valores. Avalia-se que os temas presentes na filosofia
tratam da realidade em seus múltiplos aspectos, sejam eles éticos, es-
téticos, lógicos, políticos ou de outra natureza. Seus conteúdos tam-
bém possibilitam uma abertura para a própria subjetividade, condu-
zindo o indivíduo ao exercício socrático de “conhecer a si mesmo”.
Comte-Sponville (2002, p. 13) expressa que a Filosofia é uma
atividade realizada pelo homem e representa uma dimensão cons-
titutiva de sua existência. No entanto, é possível raciocinar sem fi-
losofar (como na ciência) ou viver sem filosofar (vida na paixão ou
na tolice). Porém, completa Comte-Sponville “não podemos, sem
Filosofia, pensar nossa vida e viver nosso pensamento: já que isso é a
própria Filosofia” (COMTE-SPONVILLE, 2002, p. 13). Nesse ponto
se encontraria uma das maiores contribuições da Filosofia: refletir
sobre o conhecimento, sobre a vida, sobre os valores e sobre os pró-
prios anseios, pois, nenhum outro saber basta para empreender essa
reflexão, nem nos dispensa dela. A partir do momento em que nos
interrogamos, damos um passo em direção à Filosofia. Mesmo o ato
de contestar qual a importância ou a utilidade da Filosofia representa
não uma saída, mas uma entrada nela.
Verificou-se ainda que, mesmo os estudantes que afirmaram
não se identificarem com a disciplina, souberam reconhecer que os
conteúdos filosóficos se impõem, mostrando pertinência, podendo
contribuir de alguma maneira para a vida, seja no âmbito acadêmico
ou no pessoal.
Estima-se que a filosofia e seus conteúdos, juntamente com
os demais componentes curriculares, constituem saberes necessários
para uma formação integral do homem através do processo educa-
tivo. Infere-se que essas considerações coadunam com as palavras
de Immanuel Kant: “O homem não pode tornar-se um verdadeiro
homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”
(KANT, 1996, p. 15).
- 55 -
Considerações finais
- 56 -
vel estabelecer se há algo de factual entre elas. Apenas foi obtido um
ranking estatístico conforme a concepção dos alunos partícipes. Isso
é algo que carece de investigação mais cuidadosa no futuro.
Os achados advindos da derradeira pergunta de pesquisa so-
bre a importância da filosofia para a condução da vida pessoal e pro-
fissional dos estudantes se mostrou em perfeita conformidade com
o exposto nas conclusões acima, porque, segundo os estudantes, a
filosofia contribui para o desenvolvimento do raciocínio reto, claro,
límpido e crítico.
Em adição, a disciplina em tela, conforme os alunos facilita a
compreensão dos diferentes saberes disciplinares e evita a visão uni-
lateral das vivências em sociedade e entre indivíduos de culturas di-
ferentes. Por fim, ainda segundo os alunos, a disciplina em destaque
fomenta a criação do hábito da leitura tendo como consequência o
desenvolvimento das competências comunicativas.
Em síntese, é possível concluir, diante das perguntas nortea-
doras desta investigação, que o papel da filosofia é fundamental para
a formação do sujeito, sobretudo na aquisição de conhecimentos
voltados à melhor condução dos aspectos de ordem prática na vida
pessoal ou profissional dos alunos finalistas.
Referências:
- 57 -
CAMPESTRINI, D., VANDRESEN, V., PAULINO, L. “Interdiscipli-
naridade: a Filosofia como instrumento de diálogo entre as ciências”.
Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina. v. 5, n. 5, 2000. P.
145-167.
CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
COMTE-SPONVILLE, A. Apresentação da Filosofia. São Paulo. Mar-
tins Fontes, 2002.
DELEUZE, G., GUATTARI, F. O que é a Filosofia? São Paulo: Editora
34, 1992.
FABBRINI R. N. “O Ensino de Filosofia: a leitura e o acontecimento”.
Trans/Form/Ação, São Paulo, 28 (1): 7 - 27, 2005.
GONSALVES, E. P. Conversas sobre iniciação à pesquisa científica. 3ª
ed., Campinas, Alínea, 2001.
HESSEN, J. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KANT, I. Sobre a pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 1996.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia
científica. 3ª ed., São Paulo: Atlas, 1991.
LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens
qualitativas. 2ª ed., Rio de Janeiro: E.P.U., 2015.
ROSENFIELD, K. H. Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
SCHLESENER, A. H. “Cidadania e Política”. IN: CORDI, C. et. al.
Para filosofar. São Paulo: Scipione, 1997.
STERNBERG, R. J.; STERNBERG, K. Psicologia cognitiva. 2ª ed.
São Paulo: Cengage Learning, 2016.
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2 ed.,
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
WILLINGHAM, D. T. Por que os alunos não gostam da escola? Res-
postas da ciência cognitiva para tornar a escola mais atrativa e afetiva.
1ª ed., Porto Alegre: Artmed, 2011.
- 58 -
PEDAGOGIA IMAGÉTICA: PROCESSOS
DE IMAGINAR EM MEIO A ENCONTROS
INTERGERACIONAIS NO LAVRADO
AMAZÔNICO
- 59 -
no, do prazer que temos de nos movimentar em meio a imagens.
Imagens da realidade, imagens materializadas pela ação criativa
imagens sonhadas... Para além do grande conjunto de imagens visí-
veis, já criadas, existe número maior de imagens invisíveis, que nos
habitam e interferem na lida criativa diária, sob condução da imagi-
nação e da racionalidade. Esta afirmação congrega bases conceituais
diversas, desde a psicanálise freudiana de séculos passados, à discus-
são quântica da contemporaneidade, passando pela racionalidade
dos povos originários, que se posiciona como equilíbrio entre céu e
terra, entre mundos visíveis e invisíveis. (KOPENAWA, 2015; KRE-
NAK, 2019) Apesar de referenciais tão distintos em relação a seus
fundamentos, em uma proposição interdisciplinar é possível tecer
uma linha comum, que evidencia o tanto que desconhecemos e não
vemos, concomitante a tantas imagens externas, que nos transpas-
sam constantemente.
É deste cenário, que se exprime através de imagens, que a Pe-
dagogia Imagética propõe movimentar ferramentas sensíveis, cria-
tivas, imaginativas e intelectuais, para ir ao encontro das imagens
internas, pois são elas que induzem as conexões com as visões ex-
ternas. E tal conectividade é que movimenta nosso ser e estar no
mundo. Mais conscientes das imagens que nos constituem podemos
desenvolver as mais diversas ações humanas, com mais qualidade
e aprimoramento. Interseccionando discussões relativas à educa-
ção, embasado em dados de pesquisas desenvolvidas há mais de dez
anos junto ao Grupo de Pesquisa Criança, Educação e Arte – CrEAr/
UFRR vimos observando que a alfabetização das crianças em idade
escolar, encaminhada na interseção entre a Educação Infantil e Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, está centrada em letras, números e
formas, com foco no domínio da escrita. A conquista do letramento
é dimensão importante de nossa humanidade e será tanto melhor
sucedida, quanto mais os alfabetizadores compreenderem sobre a in-
trínseca relação entre escrita e representação imagética, que envolve
expressividades múltiplas em suportes os mais variados, integrando
grafismos, corpo e imaginação.
Afirmamos que existe um déficit nos educadores, em relação
as aprendizagens e compreensões envolvendo textos visuais, que
abundam na expressividade das crianças. Textos estes que não tra-
tam apenas da imagem visual, como registro gráfico no desenho e
- 60 -
pintura, por exemplo, mas da experiência abrangente de imagens
incluindo corpo – gesto – sonoridade – dramaturgia lúdica, na cul-
tura da criança. (GONÇALVES, 2007; 2008) É então na contramão
deste analfabetismo visual, no sentido de um desconhecimento em
relação aos meandros da visualidade como base da constituição do
pensamento, (VYGOTSKY, 1999; 2009) que viemos trabalhando no
ensino, pesquisa e extensão, com ações voltadas as crianças, a par-
tir de vivências educativas intergeracionais, onde jovens, adultos e
idosos, se reúnem para criar conjuntamente e que tem resultado em
pesquisa e reflexões, acerca do papel do professor em prática de Arte
Educação especificamente, e na prática docente como um todo.
Para expor mais sentidos em relação as ações, que compõe a
Pedagogia Imagética vamos movimentar imagens ideias, que expli-
citam o desenho da metodologia desenvolvido no trabalho de tese
intermeando dados da realidade vivenciada com a Pedagogia Imagé-
tica, para desenvolver um discurso dialógico, quer dizer comprome-
tido com a movimentação e transformação tanto das ideias, quanto
da realidade e especialmente, da realidade educativa, fim mesmo de
nossa prática profissional. A Pedagogia Imagética versa sobre meto-
dologia em constante revisão, que se retroalimenta a partir de ações
concretas com coletivo intergeracional. Cada novo grupo com que
partilhamos ações criativas põe em xeque as considerações elenca-
das preteritamente. E este movimento recursivo constante, de revi-
são e renovação das bases conceituais, a partir dos dados da realida-
de foi iniciado na tese, com a reflexão sobre metodologia a posteriori
indicada por Morin. (2005; 2014)
Costuma-se, pelo método científico clássico herdado das
ciências duras, definir a priori os métodos que encaminharão a pes-
quisa. O autor por sua vez detalha as características de engessamento
desta prática chamando atenção para as possibilidades perdidas em
relação a criação científica. A escolha prévia do método é a escolha
de uma visão e com ela a sobreposição de filtros diante do que inte-
ressa investigar. Levando em conta os processos socioculturais, que
envolvem a educação, uma pesquisa que objetive à transformação
de visões e, por conseguinte, de realidades educativas problemáti-
cas, necessita apostar em métodos criativos. Estes, segundo Morin,
(2005; 2014) são possíveis quando há postura de abertura, ou seja,
de encontro diante da realidade a ser investigada. Postura caracte-
- 61 -
rizada no trabalho que desenvolvemos, por uma escuta sensível que
detalharemos a seguir reunida a dimensões de mediação simbólica e
o exercício de dialogia.
Através do exercício de uma escuta atenta, envolvendo silen-
ciamento e abertura à realidade, viemos desenvolvendo as ações do
Programa de Extensão CriAção representado pelo Projeto Encontros
CriAtivos vinculado ao CAV/UFRR, com grupo intergeracional com-
posto por crianças, adolescentes, adultos, idosos, da comunidade em
geral e universitária. Temos experimentado a cada encontro, um jogo
de silenciar, para poder ouvir a novidade, que se configura a partir
do coletivo de pessoas, que se reúnem livremente, em busca de mo-
vimentar a expressividade criativa. Movimento que, conforme indica
Bachelard (2001) acompanha a abertura e novidade da imaginação.
Para o autor, imaginação “[...] é antes a faculdade de deformar as ima-
gens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-
-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança
de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há
ação imaginante.” (BACHELARD, 2001, p.01 grifo do autor)
Neste percurso libertar-nos das imagens primeiras, pré-con-
cebidas, é necessário se há o interesse em transformar as próprias
visões. Desse modo as falas e interações das pessoas presentes a cada
Encontro CriAtivo, se revelam como material expressivo reunido aos
elementos plásticos, desenhos, pinturas, esculturas, etc., produzidos.
A escuta sensível agrega gestos e expressividades as mais variadas,
incluindo o desejo, ou não, em realizar as atividades. A vivência dos
momentos criativos segue como em comunidades de fazeres tradi-
cionais, onde a produção matérica é permeada de conversas, diva-
gações, contação de histórias, rememorações, de jovens e velhos em
comunhão, perfazendo um emaranhado de significações. Cada en-
contro é composto de momento de escuta dos desejos e proposições
dos presentes, seguido de pesquisa e experimentação plástica, onde
são registrados em suportes diversos, as imagens e símbolos fruto
das memórias pessoais. Importante também é o momento de avalia-
ção do vivenciado para sondar percepções, sentidos e interpretações,
sobre as visualidades criadas e o ciclo é completo com o sonhar no-
vas possibilidades de ação criativa e construções de sentidos.
Na Tese desenvolvemos a imagem do oroboro intergeracio-
nal, para tratar do movimento mnemônico circular, que representa
- 62 -
o encontro de pontos da extremidade evolutiva humana, quais se-
jam, o velho e a criança. A relação entre os saberes dos mais velhos
e a motivação dos mais jovens para aprender, desenha a imagem de
um coletivo autopoiético, que se retroalimenta a partir do encontro.
Configuração que se renova a cada encontro, em função das pessoas
que participam a cada dia, de seus desejos e inspirações partilhados
nutrindo a continuidade da ação. Percebemos que ao se abrir para
um exercício de escuta com esta qualidade de aprofundamento e,
portanto, de respeito e acolhimento a quem chega, com a bagagem
que chega, se instaura energia de continuidade em fluxo contínuo.
É difícil querer sair dos Encontros CriAtivos e é comum as falas
dos familiares e das próprias crianças contando que acordam cedo
e animadas, para os dias de vivência. Mas permitir a instauração do
círculo de oroboros é aceitar viajar junto com a serpente, em seus
movimentos naturais e imaginários. Se contorcer, enrolar e estender,
por territórios de saberes desconhecidos, que nutrem a riqueza das
experiências simbólicas, de quem aceita se movimentar com ela. Tal
movimentação costuma ser de deleite, mas podem acontecer movi-
mentos vertiginosos tirando o chão das certezas docentes, quando
a instrumentalização da formação pedagógica perde sua função em
experiências educativas, que não se encaixam em padrões escolares
estabelecidos, como faixa etária predeterminada, espaços de apren-
dizagem diferentes da sala de aula, etc. Cabe então exercitar uma
abertura interna, para abrir mão do conhecimento preconcebido, em
prol do acolhimento da visão da alteridade, seja de um outo ser, seja
de diferentes espaços.
Para Morin, (2014) ao se pretender experimentar um método
criativo, há que se abrir ao exercício da dialogia, onde o papel da
alteridade assume sentido duplo.
- 63 -
comunico, simpatizo, comungo. O princípio da comunicação está,
pois, incluído no princípio de identidade e manifesta-se no princí-
pio de inclusão. (MORIN, 2014, p.123, grifo do autor)
- 64 -
xo e infinito comparado a imagem de um espiral helicoidal indica
tendência cíclica de especialização das apropriações humanas a ní-
veis intra e interpsíquicos, em um movimento de memória e pensa-
mento, cíclico e ao mesmo tempo evolutivo, em meio a movimentos
internos de campos de força específicos. Em cada vivência humana,
criativa por natureza, é possível descrever movimento de circulari-
dade de retorno as lembranças à memória e a experimentação de
projeções imaginárias que encaminham gradualmente a um apro-
fundamento da capacidade cognitiva e o desejo de ampliação das
vivências emocionais. Observamos tal processo ao longo de nossas
pesquisas acompanhando a produção gráfica e simbólica de crianças
jovens e adultos. A fonte das criações recai sobre as experiências re-
gistradas na memória, continuamente revisitadas e postas em xeque,
pelos desafios que as interações com a materialidade disponibilizam
e com os movimentos de projeção e profundidade, das forças da
imaginação.
Vygotsky (2009) apresenta uma imagem de tal processo ao
tratar do circuito criativo. Segundo o autor, tudo o que existe exter-
namente é fruto das qualidades de reprodução e transformação, da
memória. A função mnemônica, enquanto capacidade plástica guar-
da em seus arcabouços, o legado das experiências vividas e enquanto
qualidade criativa, põe em movimento as imagens lembranças, por
entre tempos e espaços múltiplos, ao imaginar. Tudo o que se mani-
festa nesta dimensão resulta das mediações envolvendo memória e
imaginação criadora. Do computador, por meio do qual estas linhas
são escritas, passando pelos aviões, pela nanotecnologia e infinida-
de de criações humanas, o que existe é fruto do aperfeiçoamento de
memórias pessoais e da história humana submergindo e emergindo
continuamente, pela função psicológica da imaginação. Neste senti-
do, uma tríade se estabelece como estrutura dos movimentos criati-
vos, onde temos uma imagem-lembrança de referência que é posta
em movimento pelas qualidades da imaginação criadora resultando
em nova imagem-referência. Esta, por sua vez tende a se converter
em nova imagem lembrança, a nutrir movimentos circulares e he-
licoidais infinitos ∞ imagens em imagens, memórias em memórias,
signos em signos... ∞
Um exemplo, é comum as crianças em seu processo de de-
senvolvimento gráfico, desenharem casas dos mais diferentes tipos
- 65 -
e modelos. A casa desenhada é, e não é, a casa real. É na medida em
que o registro é fruto das memórias com sua casa. A imagem da casa
concreta dialoga com as imagens da casa afetiva, onde residem situa-
ções variadas e sensações, emoções, percepções diversas. Cada novo
desenho da casa resulta do jogo da imaginação, das imagens destas
inúmeras casas (real e simbólicas) postas em movimento. E quanto
mais exercitar o desenho, mais experimentará dos jogos de repre-
sentação, que permitirão aprimorar as aprendizagens envolvendo as
apropriações da escrita e interpretação, dos sentidos e significados, das
linguagens. (GONÇALVES, 2007; 2008) É retomada assim a ideia de
que os processos de aprendizagem envolvem dimensão dialógica, o
acolhimento a uma referência, um emissor, uma alteridade, e a movi-
mentação de sensações percepções e ideias, que oportunizam ampliar
as configurações de sentidos e significados. Por meio de interações
entre sujeitos na teoria de Vygotsky e interatuações que refletem as
expressões dos indivíduos – sujeitos, na fala de Morin, as mais diversas
atividades mediadoras são estimuladas e encaminham constantemen-
te, múltiplas apropriações internas e respostas externas.
Na concepção de Morin, (2005) a percepção da composição
dialógica, enquanto movimento de interação-escuta-ressignificação
do conhecimento, soma atributos biológicos. O autor caracteriza a
vida, como processo de organização auto-organização reorganiza-
ção, em um ritmo de ordem e desordem, compor e recompor com-
preensões, em um fluir repleto de complexidade, mas contínuo. Tal
conjunção, efetiva a realidade e as atividades dos seres vivos, carac-
terizando a existência como uma interatuação, quer dizer, atuação
constante e mediada entre sujeito-natureza-linguagem. A esta carac-
terística de ação entre situações, o autor explicita que existiria um
operar por três princípios fundamentais. O hologramático, onde a
parte representa o todo e o todo é maior que a soma das partes, que
inclui abertura infinita para as possibilidades de experiência e o co-
nhecer. O recursivo, em que a resposta é base para nova pergunta e
as causas são efeitos de ações e consequências pretéritas reforçando
a ideia de movimento infinito. E o princípio dialógico, que permeia
a reunião de noções antagônicas e complementares concomitante-
mente. Estes operadores da teoria da complexidade reverberam um
processo de respiração oxigenação de percepções, ligam e religam
visões de diferentes referências, experiências, saberes e fazeres, en-
- 66 -
caminhando à compreensão mais ampla das realidades manifestas.
(MORIN, 2005; 2014; 2015)
As teorias de Vygotsky (1996; 1999; 2009) e Morin (2005;
2014; 2015) explicitam que há movimentos externos e internos
agindo simultaneamente, enquanto o pensamento se processa. E as
aprendizagens intelectuais, são diretamente resultantes das afecções
e vivências sensíveis incentivadas a nível físico, natural, mas são pro-
cessadas internamente e emocionalmente. Há um contínuo exercício
de mediação dialógica encaminhando aprendizagens e desenvolvi-
mento. A dialogia é fruto de estruturas racionais de linguagem, pos-
tas em movimento pela ação da alteridade, depende de um outro, é
exercício de composição entre seres, espaços, situações, visões, com-
preensões.
Corrobora com esta reflexão a caracterização segundo Ba-
khtin, (2010) do encontro dialógico como processo ativo, que enca-
minha ao pensamento participante. Este resulta da escuta que fala,
quer dizer, de um exercício de escuta que recria o que ouve, a par-
tir de uma qualidade de presença atenta e interessada, com o que
se processa no diálogo. E ao escutar, desde um lugar de presença,
movimenta e transforma o que foi ouvido, recria visões e a própria
ação, tende à conscientização. Para o autor, o dialogismo se desen-
volve através de sua teoria da enunciação, que também evidencia a
importância do papel da alteridade à compreensão dos significados
do discurso. Quem fala comunica a alguém. O que é dito tem em
vista aquele que ouve e está permeado dos sentidos partilhados en-
tre os sujeitos que dialogam e os meandros da cultura, de onde são
estruturados os conteúdos, os sentidos, significações e a própria lin-
guagem. Os significados resultam proporcionais aos contextos e são
articulados, a cada novo diálogo, em movimentos sígnicos que ten-
dem a aprimorar sentidos – significados – diálogos, em movimento
contínuo.
Por sua vez, na concepção freiriana, o diálogo é conceito e prá-
tica, ação reflexão, com vistas à emancipação do sujeito, em meio ao
exercício de co-labor-ação, trabalho de conscientização acionado em
coletivo. (FREIRE, 1987) O autor nos convida ao exercício da escu-
ta, com vistas à apropriação dos sentidos e ideologias, presentes em
discursos coletivos, em consonância à experiência do silêncio, como
qualidade de autorreflexão, visando a liberdade individual e coletiva.
- 67 -
A dialogicidade freiriana reúne exercício de liberdade e experiência
criativa, enraizada no solo da materialidade, e transformadora do
indivíduo em ação social. Sendo este conceito, caro às teorias de base
materialista histórica, que tem na realidade e nas relações sociais,
imbricada teia de relações, a construir sentidos e significados, tão
diversos quanto as infinitas possibilidades de composição social.
E para complementar a revisão acerca do diálogo incluímos a
proposição dialógica de Bohm (2002; 2011), onde criação e diálogo,
estão intrinsecamente reunidos visando a conscientização e trans-
formação dos paradigmas científicos. Físico teórico, Bohm (IDEM)
desenvolveu teorias sobre variáveis ocultas, que não podem ser me-
didas por fórmulas matemáticas, mas que interferem nas medições e
movimentos das partículas. Seu trabalho contribui com as descober-
tas da Física Quântica, articulando as incertezas do que está oculto,
com o que se manifesta na realidade, enquanto padrões de movi-
mento. É seu o conceito de holomovimento, que sinteticamente indi-
ca “movimento de conexões”, como sendo a natureza básica da reali-
dade, onde o conhecido é parte de um fluxo dinâmico da totalidade,
composto por ordens explícitas referenciadas no que é visto e ordens
implícitas, espaço-fluxo para além e aquém, da dimensão visível. Na
integração entre o que se mostra e o que ainda não conseguimos
compreender, entre conhecido e desconhecido, o físico desenvolve a
técnica que ficou conhecida nas mais diversas áreas, como “diálogo
de Bohm”, onde propõe a articulação de uma experiência livre de juí-
zos pré-concebidos, em meio a movimentação de conceitos, possível
pela comunicação dialógica. Se caracteriza como proposta radical de
experiência da escuta, através da suspensão das visões conhecidas,
para buscar ouvir em inteireza e presença, os objetivos coletivos e
suposições individuais, que se estabelecem de acordo com o grupo
reunido para dialogar. Desse modo, o diálogo proposto por Bohm
(2005; 2011), articula exercício de pensamento coletivo e comuni-
cação inclusiva, com intuito de movimentar novidade à reflexão,
transformar e ampliar os campos de visão do conhecimento. Ilustra
a escuta, nesta perspectiva, o silenciar de si mesmo, com intenção
de agregar a voz da alteridade, reintegrar rearticular e renovar, as
próprias compreensões, através de um exercício de diálogo compro-
metido com a integração consciente do pensar e ampliação das po-
tencialidades reflexivas.
- 68 -
Na breve revisão teórica apresentada aqui, a concepção do co-
nhecimento é dialógica e cada autor apresenta interesse científico es-
pecífico, mas suas teorias demonstram cerne comum, na ideia da cir-
cularidade recursiva dos movimentos dialógicos. É ponto comum,
que para caracterizar a dialogicidade está se falando de movimento
repleto de contínuas disrupções e, portanto, complexo por nature-
za. Também é comum nas teorias referenciadas neste trabalho, a
perspectiva do encontro, caracterizando que só há diálogo, se hou-
ver reunião, conexão. E, consequentemente, a qualidade do diálogo
é aprimorada, com o aprofundamento da consciência da presença,
dos seres envolvidos na prática dialógica. A perspectiva da novidade,
como produto do dialogar é condicionada a uma maior conscienti-
zação dos meandros que compõe o processo dialógico, que incluem
dimensões estruturais, como os princípios complexos de Morin e
tem foco no caráter fluídico, que evidencia o dialogar com processo
de movimentar sentidos e significações sociais, no caso de Bakhtin
(2010) e Freire (1987) e epistemologias científicas como em Bohm
(2005; 2011) e Morin. (2005; 2014; 2015)
A profundidade da experiência do diálogo, reside então en-
quanto escuta atenta e sensível de um outro, autotransformação ex-
pressivo-criativa, pessoal e social. Diz respeito a movimentar lem-
branças, em busca de acessar a memória, enquanto fronteira entre
o profundo da imaginação e as experiências perceptivas vivencia-
das mais a nível externo, ou seja, que se dão a conhecer. A inter-
secção entre memória e imaginação é a base do circuito criativo de
Vygotsky (2009) e fundamenta os processos de mediação criativa,
as aprendizagens e desenvolvimento da linguagem e do pensar. E a
reunião de escuta sensível, mediação simbólica e dialogia, estruturam
as proposições da Pedagogia Imagética, que viemos desenvolvendo
concretamente nas ações de ensino, pesquisa e extensão, junto à co-
munidade acadêmica e em geral.
A cada novo Encontro CriAtivo, ação extensiva realizada com
grupos intergeracionais, temos a memória, recordações e lembran-
ças, como matéria-prima para as experimentações e recomposições
simbólicas dos participantes, a serem movimentadas em vivências
criativas lúdico estética. Exercitamos a escuta com qualidade, foca-
da no acolhimento da presença dos que chegam e como chegam,
para criar conexão e encaminhar as vivências com representação e
- 69 -
movimentação da imaginação, de maneira a proporcionar a quem
chega, se sentir livre para ter espaço e tempo reservado, a voar longe.
Retomamos a Bachelard, (2001; 2002) para salientar a importância
das experimentações envolvendo a imaginação poética, que se per-
mite devanear. E o papel desta, para vivência do imaginar, enquanto
capacidade humana de criar símbolos e refletir por meio de ideias,
que por sua vez, também são imagens símbolos. Na visão do autor, a
imaginação criadora nutrida pelas experiências físicas e simbólicas,
com os elementos naturais é a base da racionalidade. Fundamental
então vivenciar os devaneios da água, fogo, terra e ar, em busca de
um deleite estético, para recriar a contemplação e alcançar “os altos
voos da razão”.
Imaginar é movimentar e materializar imagens e nos Encon-
tros CriAtivos nutrimos a imaginação, com partilha de histórias vi-
vidas e inventadas, contos visíveis e invisíveis, que abundam nestas
terras do Extremo Norte brasileiro, onde os simbolismos dos povos
originários seguem vivos. Das histórias contadas, ouvidas e mate-
rializadas, em inúmeros suportes plásticos, como papel, tela, tecido,
argila, corpo, dentre outros, encaminhamos a exposição dos traba-
lhos criados, para exercitar a percepção dos sentidos e significações
advindas dos textos visuais, objetivando a ampliação da visão, pela
rememoração do produzido e exercícios de compreensão dos pro-
cessos vivenciados. Cada imagem criada, sintetiza memórias inter-
nas de quem a produziu e ofertam nova referência imagética, para
nutrir o movimento circular e helicoidal, do circuito criativo vigotis-
kiniano descrito nas linhas precedentes.
O método dialógico apresentado na revisão, que antecedeu es-
tas linhas e as demais dimensões que compõe a Pedagogia Imagética,
quais sejam, escuta sensível e a mediação simbólica, são vivenciadas
tanto na realidade das ações de Extensão, caracterizadas aqui pelas
partilhas referentes aos Encontros CriAtivos, quanto nos projetos de
pesquisa que coordenamos, sobre metodologias criativas e no ensino
acadêmico. Em todas estas frentes partimos do silêncio com a qua-
lidade sensível de acolhimento descrita no início deste texto, para
vivenciar experimentações criativas visando o encontro com os sim-
bolismos internos, formas abstratas, pensamentos, signos de realida-
de, expressos em desenhos, pinturas, cerâmica... corpo, som, letras,
emoção. Nutridos com o exercício e benesses da CriAção, crianças
- 70 -
jovens, adultos e idosos, experimentam cada um a sua maneira e
em virtude de maior, ou menor tempo de vivência com a Pedago-
gia Imagética, o incentivo à conscientização. E um convite contínuo
para caminhar buscando ampliar mais e mais, a visão da realidade
consoante a vivências expressivas e o exercício dialógico interpes-
soal e intrapsíquico. Caminho este, das aprendizagens de linguagem
e desenvolvimento do pensamento, possível pela conscientização das
mediações com que lidamos cotidianamente e conceitualmente. Na
prática realizamos isto ouvindo quem chega, oferecendo materiais,
técnicas e vivências criativas lúdico expressivas, que proporcionam
a criação de inúmeras imagens. Estas permitem movimentar ferra-
mentas sensíveis, criativas, imaginativas e intelectuais, em conso-
nância ao levantamento de acervos simbólicos, exposição de pro-
duções, textos imagéticos riquíssimos, em sentidos e significados e
todo processo é continuamente avaliado.
A avaliação assim como as demais ações da Pedagogia Imagé-
tica, corresponde a momentos de rememoração dos processos viven-
ciados, incentivo a exposição e sondagem de interpretações sentidos
e significações, que se vislumbram dos textos visuais criados. Propõe
reconfiguração dos passos, nova caminhada em meio as imagens e
símbolos, que seguem vivas, desde o lavrado amazônico roraimense,
lugar de nossa fala, onde a floresta dá lugar a campo de cerrado aber-
to, entrecortado por igarapés com os sentinelas buritis mantendo,
pela sua presença altiva e filtragem de suas raízes, o curso de água
doce e pura, que brota de inúmeros olhos d’água nesta terra. Terri-
tório de grande diversidade cultural, caracterizada pela migração de
várias regiões do Brasil e de outros países, em diálogo com a cosmo-
visão dos povos originários, donos destas terras mantenedores de
rico arcabouço simbólico, de onde resistem os sopros da intuição, a
fomentar os movimentos e esclarecimento da razão.
Referências
- 71 -
ginação da matéria. Tradução: Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
BAKHTIN, Mikhail M. Por uma filosofia do ato responsável. Tradu-
ção: Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.
BOHM, David. Diálogo: comunicação e redes de convivência . Tradu-
ção: Humberto Mariotti. São Paulo, Palas Athena, 2005.
___________ Sobre a criatividade. Tradução Rita de Cássia Gomes.
São Paulo: Editora Unesp, 2011.
GONÇALVES, Larissa Silva. O lugar do ato criativo na aprendizagem
da criança na educação infantil. 2008. 130 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências Humanas) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008.
____________. Arte e infância: sensibilização, representação e forma-
ção por meio da educação do olhar. In: BRITO, Luiz Carlos Cerqui-
nho de (org.) Fundamentos da educação infantil. Manaus: CEFORT,
EDUA, 2007.
KOPENAWA, Davi., BRUCE, Albert. A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduar-
do Viveiros de Castro — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2019.
LURIA, Alexander; VYGOTSKY, Lev. S. Estudos sobre a história do
comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Tradução de Lólio
Lourenço de Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução: Maria D. Ale-
xandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005.
_____________ A cabeça bem feita: repensar a reforma reformar o
pensamento. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2014.
_____________ Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tra-
dução: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cor-
tez Editora, 2015.
- 72 -
VYGOTSKY, Lev. S. A formação social da mente. Tradução: José Ci-
polla Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
_______________ Imaginação e criação na infância: ensaio psicológi-
co. Tradução: Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.
- 73 -
- 74 -
O CONTEXTO AMAZÔNICO NOS EXPERI-
MENTOS DE CIÊNCIAS NATURAIS:
O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS?
Introdução
- 75 -
dos rios - ou melhor, nas várias cores de cada rio -, ou seja, é muito
comum pensar apenas nos aspectos naturais e nos recursos amazô-
nicos. No entanto, cabe indagar o que mais faz parte do contexto
além desses elementos? A Amazônia é só floresta? E os povos que a
habitam?
No trabalho de Oliveira e Costa (2019, p. 178), busca-se proble-
matizar tal perspectiva, enfatizando a multiplicidade de discursos so-
bre a Amazônia. Concordamos com as autoras, quando colocam que
- 76 -
nais sem ao menos serem cientistas. Além disso cultivam, plantam
e pescam para sobreviverem, enfrentam as cheias dos rios, têm sua
cultura magnífica porém pouco valorizada.
Por outro lado, as pessoas que vivem nas cidades – sejam es-
tas pequenas, médias ou grandes, como Manaus -, embora inseridas
neste contexto, tendem a ignorar a complexidade e natureza da sua
realidade. Em termos educacionais, é comum observar que os estu-
dantes pouco compreendem a química ligada ao seu cotidiano, mais
intrinsecamente aquela ligada ao contexto regional amazônico (FA-
RIAS, 2018). Em vista dessa problemática, como o professor pode fa-
zer esta aproximação? Uma boa ideia seria utilizar a contextualização
vinculada a uma metodologia ativa, em específico a experimentação.
A contextualização é uma ferramenta que pode ser utilizada
vastamente em sala de aula, pois ajuda o aluno a entender alguns
conceitos que, em química, são apresentados de forma abstrata. No
trabalho de Wartha (2005), há uma análise quantitativa e qualitativa
sobre os conteúdos contextualizados nos livros didáticos (LD) dos
anos 1999 e 2001. Nele, o autor conceitua a contextualização e como
ela deve ser abordada nos livros didáticos. A PCNEM coloca a con-
textualização como um pilar considerável, uma vez que ela permite o
diálogo dos temas com a vivência do aluno com o objetivo de formar
um cidadão, além de desenvolver discussões sobre questões ambien-
tais, econômicas, éticas e sociais, problematizando e construindo
oportunidades para o estudante compreender diversas questões pre-
sentes na sua realidade.
Logo, contextualizar é uma estratégia fundamental para a
construção de significações, ou seja, ela não se resume em exempli-
ficar e sim construir significados e incorporar valores explicando o
cotidiano.
Para se analisar os aspectos da contextualização deve-se, em
primeiro, identificar termos que contextualizem o conhecimento quí-
mico, como informações e ideias de senso comum com as quais se
possa relacionar conceitos científicos. No segundo aspecto, é analisa-
do se as palavras/termos estão contextualizadas e como estão sendo
empregados no Livro Didático. No terceiro aspecto, analisa-se se há
motivação que instigue a curiosidade dos alunos, se são usados temas
sociais, ambientais e econômicas e a criação de questionamentos.
Em vista dos aspectos mencionados, há certas diferenças nas
análises quantitativas que variam entre as coleções, mas em análises
- 77 -
qualitativas os LD’s são semelhantes. Wartha (2013) observou que a
contextualização assumiu apenas papel ilustrativo, isto é, apresenta-
va os conceitos químicos ou temas, mas sem uma discussão crítica,
ou seja, não foi construída de maneira motivadora e facilitadora para
a aprendizagem do aluno. Há uma intensa discussão sobre o cotidia-
no e a contextualização, distinguindo quanto aos seus usos para o
ensino de química, buscando abordagens teórico-metodológicas e
epistemológicas para compreender tais abordagens, utilizando mé-
todos bibliográficos e descritivos para melhor delinear os dois ter-
mos que, frequentemente, são confundidos (WARTHA, 2013).
O termo cotidiano é o mais conhecido e de fácil uso, porém,
segundo pesquisas essa conceituação não existe. É utilizado para rela-
cionar situações comuns e aproximá-las aos conhecimentos científicos,
usado apenas para exemplificar os conhecimentos químicos, tornando
o conteúdo mais compreensível. Porém, tal abordagem se torna algo su-
perficial, uma vez que as situações apresentadas não são aprofundadas e
o conhecimento adquirido pelo aluno não instiga-o e não lhe dá subsí-
dios para construir análises críticas sobre o meio em que se insere.
A ação de contextualizar, reconhece antes de tudo que, nas
aulas, todo o conhecimento que engloba a relação entre sujeito e
objeto, garantindo assim uma aprendizagem mais significativa, pois
ela irá permitir associação com as vivências dos alunos e os conhe-
cimentos pré-existentes. No entanto, conforme amplamente relata-
do na literatura, é observado que a contextualização é utilizada de
maneiras diferentes e, em sua maioria, o método não é utilizado de
forma aprofundada, servindo apenas como exemplificação e ilustra-
ções de contextos para ensinar conteúdo químico. Apenas alguns
apresentam o entendimento da contextualização na perspectiva da
compreensão da realidade social.
Até aqui, procurou-se apresentar como os termos de cotidiano
e de contextualização possuem diferentes significados e perspectivas
para o ensino de química, em especial para a pesquisa e organização
do trabalho docente. É de suma importância que o professor assuma
o papel de mediador e consiga estar atento à aplicação desses méto-
dos. Em relação ao cotidiano e contextualização, no âmbito da pes-
quisa, é necessário maiores avanços para que se tenha um comum
entendimento e, assim, o ensino de química seja eficiente. O traba-
lho de Giordan (2007) discute como a experimentação é um fator
importante para a elaboração do pensamento científico, traçando-a
- 78 -
como um dispositivo sociotécnico que contribui positivamente para
uma melhor aprendizagem.
No trabalho de Ferreira (2010), é observada uma integração
entre a experimentação e a contextualização, em que é apresenta-
da uma proposta diferente para se abordar experimentos em sala de
aula, de forma contextualizada e que fuja da tradicional “receita de
bolo”, na qual o aluno só segue instruções. Na proposta sugerida,
os alunos são os protagonistas de suas experiências e realizam ob-
servações através de relatórios, avaliando assim o que foi aprendido
e se tornando capazes de resolver problemas. Além disso, insere a
pesquisa na vida acadêmica do aluno, o qual tem a oportunidade de
colocá-la em prática através de produção de textos argumentativos,
como o relatório.
Nesta abordagem, são valorizadas situações problemas e a
criação de grupos cooperativos, em que haja diálogo e harmonia en-
tre os alunos, professor e o LD, sendo uma abordagem mais contex-
tualizada, proporcionando ao aluno formular explicações a partir de
evidências. No primeiro momento, os alunos receberam explicações
sobre o conteúdo, e em segundo, foram feitas leituras de volumes em
proveta, em que só foram expostos os conhecimentos e não se envol-
veu nenhuma situação problema. Após essa prévia, foram apresenta-
dos textos informativos, dos quais os alunos conhecem os aspectos
principais sobre o assunto abordado - gasolina - e se direcionou a
discussão para a formulação de uma situação problema. Após a lei-
tura de texto, os alunos debatiam e planejavam a resolução do pro-
blema que foi levantado. Ao final, foi solicitado um relatório, no qual
o aluno poderia expor soluções e resultados da pesquisa.
Diante disto, destaca-se que é de suma importância que a ex-
perimentação de fato acrescente na vida acadêmica do aluno e que
sirva como uma maneira de aproximar o conteúdo estudado com a
sua realidade, tornando-o capaz de resolver problemas e de com-
preender mais profundamente o assunto abordado. Também, é im-
portante uma intimidade com a pesquisa, fugindo de métodos tradi-
cionais e, assim, tornando uma aprendizagem mais eficiente. Neste
sentido, a presente pesquisa buscou analisar como o contexto ama-
zônico está sendo abordado em experimentos das ciências naturais
dos livros didáticos do ensino médio aprovados no PNLD de 2021 e
se essa abordagem restringe-se a exemplificações ou configuram-se
como contextualizações de fato.
- 79 -
Desenvolvimento
Trazemos a análise do contexto amazônico em experimentos
presentes em 42 volumes, divididos em 7 coleções, dos novos PNLD
2021, da área de ciências da natureza, que nos revelou a existência
de 99 experimentos. Para uma análise mais completa em cada livro,
observou-se, por volume, a organização, abordagem, experimentos,
seção que se inserem, a necessidade de laboratório, facilidade de
acesso aos materiais. Por fim, e o mais importante, se cada experi-
mento apresentava um contexto amazônico.
Submetemos as coleções à Análise Textual Discursiva (ATD),
buscando possibilitar reflexões e discussões sobre aspectos quantita-
tivos e qualitativos, o que caracteriza uma pesquisa mista.
A ATD, como discutido por Moraes e Galiazzi (2007), é um
procedimento que se assemelha a uma rede sistemática, ou seja, não
segue uma ordem fixa, pode ser mudada durante todo o processo,
tornando a ATD como um processo recursivo. Segundo Moares e
Galiazzi (2007) a ATD é:
- 80 -
Quadro 1: Análise geral das coleções frente à contextualização e interdis-
ciplinaridade (fonte: os autores)
Coleção Análise
Contextualizado. Não apresenta muita
interdisciplinaridade, as matérias são
A. Ser protagonista
bem divididas, trazem curiosidades e
atividades de pesquisa.
- 81 -
comparação a este último. A contextualização deste é observada na
sua apresentação, quando se aborda sobre sua importante função no
combate aos microganismos patógenos, o que se configura como um
ponto de partida fértil para discussões sobre a pandemia por CO-
VID-19.
- 82 -
28 experimentos abordam de maneira parcialmente contex-
tualizada, visto que apresentam breve contextualização e problemati-
zação acerca de um material que pode estar inserido no cotidiano do
aluno, aproximando-ode um conhecimento mais crítico,. O exemplo
que trazemos aqui é o do experimento intitulado ‘queima da palha
de aço’ (Figura 2). Neste experimento, vemos um objeto do cotidiano
do aluno, entretanto eles não levantam hipóteses, eles seguem um
passo a passo, para no final concluir a veracidade da estequiometria
da reação.
Figura 2: Exemplo de experimento Parcialmente contextualizado. Coleção
“Ser protagonista: Matérias e suas Transformações”, p. 29.
- 83 -
Os outros 54 experimentos não apresentaram qualquer nível
de contextualização, isso porque carecem de problematização e não
se inserem no contexto do aluno, servindo apenas como uma breve
exemplificação de um conteúdo recém administrado. Um exemplo
bem conhecido e encontrado nas coleções é o experimento ‘teste de
chama’, no qual o aluno apenas segue um manual de instruções e
identifica a coloração da chama, para assim poder discutir as cama-
das de valência que cada elemento testado apresenta
Com relação ao contexto amazônico, dentre os 99 experi-
mentos elencados, nenhum deles apresentam uma contextualização
Amazônica. Apenas 2 experimentos apresentam uma proposta e po-
tencial para o professor contextualizar, contudo a Amazônia não é
citada nem mesmo como exemplo. Nos livros em si, a Amazônia é
comentada somente de forma rasa, principalmente de forma históri-
ca, geográfica e em aspectos vegetais, o que reforça o reducionismo
nos discursos apontado anteriormente.
Alguns pontos interessantes que também precisamos elen-
car e discutir neste capítulo, sendo eles particularidades positivas,
que não envolvem os experimentos, mas que achamos interessantes
em algumas coleções.
Em uma das coleções (Moderna Plus), os experimentos ser-
vem somente para análise, isto é, não há aprofundamento e discus-
sões que façam o aluno refletir. O que chama atenção nesta coleção, é
que há um grande incentivo para que os alunos produzam conteúdos
digitais, para divulgação do que foi analisado nos experimentos. Essa
dinâmica de análise e produção de um material para divulgação é
muito interessante, visto a importância de mostrar para os alunos
a aplicabilidade dos conceitos/conteúdos estudados em seu cotidia-
no, além da interatividade do aluno, com o conhecimento científi-
co e a comunidade. No trabalho de Sá, Meier e Faria (2022) vemos
exatamente isso, os alunos fizeram pesquisas e análises, discutiram
em sala de aula, produziram cartazes digitais e divulgaram em redes
sociais, o que nos mostra um incentivo e valorização do trabalho
construído por eles.
Na coleção Diálogo, não há experimentos, ou pelo menos não
é possível encontrar roteiros de experimentos no LD. É trabalhada
uma abordagem diferente de investigação, na qual o aluno é instiga-
do a fazer uma atividade de análise/pesquisa, de modo a incentivá-lo
- 84 -
a elaborar hipóteses e explicar dados experimentais sob uma pers-
pectiva científica, muito parecido com os relatórios desenvolvidos
na graduação.
Já na coleção “Matéria, Energia e Vida”, os experimentos ficam
inseridos em uma série de atividades que são divididas por etapas. O
experimento não vem avulso no livro, e sim através de uma sequên-
cia de atividades até chegar ao experimento em si, ou seja, há uma
construção dos conceitos e contexto. Também há outras atividades
nas quais o aluno pode se aprofundar no experimento, fazendo ob-
servações, em especial no livro “Materiais, energia: transformações e
conservação” há uma série de experimentos curtos, que servem para
se comparar alguns resultados.
Considerações Finais
- 85 -
os estudantes possam construir suas próprias opiniões e conclusões
(TESTASICCA, 2020).
Percebeu-se também que, dentre os 99 experimentos de quí-
mica, apenas 17 foram classificados como contextualizados, os res-
tantes se apresentavam como exemplificações. O trabalho de Pereira
e Menezes (2022) nos evidencia que a ideia de contextualização, ain-
da se limita ao uso de exemplos do dia a dia para os professores. E de
acordo com os autores,
- 86 -
duas propostas que poderiam elevar seu nível, quando apresentados
no contexto amazônico, visto que derramamento de óleo é um pro-
blema grave com impactos irreversíveis para a biodiversidade ama-
zônica e a piscicultura é a principal fonte de renda de ribeirinhos da
região.
Vivemos numa sociedade multicultural, de pluralidade, de de-
sigualdade, portanto, um único meio ou forma de educação, não irá
atingir a todos, pois os conhecimentos e a cultura das populações
tradicionais devem ser valorizados e aproximados do conhecimento
científico
Referencias
- 87 -
MORAES, R. Uma tempestade de luz: A compreensão possibilitada
pela análise textual discursiva. Ciência & Educação, v. 9, n. 2, p. 191–
211, 2003.
MORAES, R.; GALIAZZI, M. C. Análise textual: discursiva. 1. ed.
Ijuí: Editora Unijuí, 2007.
OLIVEIRA, C. B.; COSTA, M. O. Travessia nos múltiplus modos de
ver a Amazónia. Areté, v. 12, n. 25, p. 166-182, 2019.
WARTHA, E. J.; SILVA E. L.; BEJARANO, N. R. R. Cotidiano e Con-
textualização no Ensino de Química. Química Nova na Escola. n. 2,
Vol. 35, 2013. p. 84-91.
WARTHA, E.J. e ALÁRIO, A.F. A contextualização no ensino de quí-
mica através do livro didático. Química Nova na Escola, n. 22, 2005.
p. 42-47
PEREIRA, B. S. A., & MENEZES, J. M. S. Livro didático de Química
e contextualização no Ensino Médio: prática docente em um município
do Amazonas (Brasil). RECH- Revista Ensino de Ciências e Humani-
dades – Cidadania, Diversidade e Bem Estar, v. VI, n.1, pp. 101-117,
2022.
SÁ, N., MEIER, L., & FARIA, F. L. (2022). Por que as frutas escure-
cem? Uma proposta de webquest para o ensino de química. Ensino De
Ciências E Tecnologia Em Revista – ENCITEC, v.12, n.1, p.87-103,
2022.
TESTASICCA, M. C. S., ARAÚJO, T. M., & OLIVEIRA, A. R. (2020).
Abordagem do tema “poluição” em questões do ENEM e em livros di-
dáticos: um estudo comparativo em torno de competências e habilida-
des. Research, Society and Development, v.9, n.11, 2020.
- 88 -
Espetáculo Kedacery e semiótica peirceana1
Introdução
Este estudo problematiza a seguinte questão: Como a semió-
tica Peirceana pode auxiliar a análise das interpretações dos alunos
as práticas corporais presentes na dança do espetáculo Kedacery, da
Companhia de dança Uatê? (Cia de dança indígena da Região Nor-
te). Para auxiliar no desenvolvimento do presente trabalho, a hipó-
tese deste estudo se respalda no pressuposto de que dança não se
comunica de forma literal ou em tradução direta ao que o artista
intenta mostrar, sendo neste prospecto da interpretação, que a pes-
quisa pretende investigar. Tal hipótese é fundamentada na lógica de
que o campo de atuação da semiótica é relativamente complexo e
os pesquisadores ainda não adquiriram resiliência suficiente para
lidarem com a gama de possibilidade aferentes e eferentes que esta
ciência oferece.
O foco da pesquisa será a análise semiótica peirciana, levando
em conta a percepção da interpretação do aluno espectador e re-
lacionando-a com a proposta apresentada pelo coreógrafo. Diante
disso, buscar-se-á compreender a interpretação de cada aluno espec-
tador, considerando a conclusão analítica e se cada coreógrafo (a) e/
ou bailarino (a) está conseguindo fazer com que o expectador reco-
nheça o que está sendo proposto por eles em sua obra.
Com relação a abordagem, a pesquisa foi de cunho qualita-
tivo, sendo o espetáculo Kedacery o objeto de pesquisa dentre os
espetáculos de dança do Brasil. Tem como objetivo analisar as in-
terpretações dos alunos através da semiótica peirceana uma cena
do espetáculo Kedacery, da UATÊ Companhia de Dança da Região
Norte. E seus objetivos específicos são: relacionar as interpretações
dos alunos espectadores frente a cena do espetáculo Kedacery à ideia
repassada pelo coreógrafo durante a apresentação; identificar se a
obra pode ou não revelar a tricotomia Peirceana; verificar se a inter-
1 Este texto é uma reelaboração do Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em
Dança defendido em 2021 sob orientação da Profa. Dra. Amanda da Silva Pinto, pela Univer-
sidade do Estado do Amazonas.
- 89 -
pretação dos alunos espectadores estão sendo de acordo tal como o
coreógrafo quis propor ao seu público.
Um dos motivos que levou ao proponente do estudo a desen-
volver esta pesquisa foi o pioneirismo da temática no contexto da
dança e a importância de se compreender o significado no dizer ar-
tístico da obra, de modo a se verificar se o público-alvo está conse-
guindo compreender o significado através do gestual da dança e dos
elementos usados para compor a cena. Essa abordagem se faz per-
tinente, pois durante a desenvoltura dos referidos artistas, ao longo
de um espetáculo, surgem diversos comentários do público em geral
acerca do que fora encenado, atribuindo-se possíveis significados às
ações realizadas. Menciona-se que tais interpretações são importan-
tes e condutoras pois instigam o imaginário do público em conhecer
o real significado por detrás de tamanha criatividade quando o que
está em questão é o cerne da interpretação como fenômeno semió-
tico em evidência.
O presente manuscrito tem como pretensão mostrar as diver-
sas interpretações de cada aluno espectador para se chegar a valida-
ção ou não da hipótese elaborada, a partir da tentativa de resolução
da problemática proposta. Pretende-se verificar se cada aluno espec-
tador tem uma interpretação diferente do espetáculo apresentado e
se o (a) coreógrafo (a) e/ou bailarino (a) consegue fazer o público
reconhecer a significação da proposta cênica por eles executada.
Salienta-se que esta pesquisa se justifica devido ao seu pro-
ponente acreditar que há necessidade de amplo colóquio para um
debate de melhor entendimento sobre como o aluno espectador
compreende a obra do espetáculo em uma perspectiva semiótica.
Acredita-se que o espetáculo Kedacery possui um valoroso trabalho
de criatividade e inovação com um repertório de apresentações po-
tenciais no que tange à cenários, ao figurino, à música e à coreogra-
fia, que permitem realizar o espetáculo sem perder a essência de um
discurso claro e diversificado.
Justifica-se ainda, a realização deste estudo pelo aprofunda-
mento da semiótica no contexto da coreografia contemporânea que
reflita uma posição de reflexão crítica ampliada no atual cenário da
temática. Tal justificativa perfaz uma delimitação respaldada tam-
bém no ensino pedagógico das artes, com um caminho metodoló-
gico baseado em um estudo inicialmente de ordem teórica-reflexiva
- 90 -
para, posteriormente, assumir um caráter pragmático. Essa discus-
são, portanto, faz-se necessária por abarcar possíveis resultados ain-
da desconhecidos por grande parte da sociedade e comunidade cien-
tífica.
- 91 -
mágica” que é o receptar do espírito de Biciu, que finalmente se in-
corpora no jovem Kedacery. Nesse momento Biciu começa a tocar e
fazer benzimentos e o velho pajé compartilha ensinamentos para o
aprendiz não perder o poder. Então eles passam a noite conversan-
do sobre os benzimentos e no intervalo tocam as músicas, e quando
acordam, o candidato a pajé já é considerado literalmente “pajé”. A
mulher do pajé prepara o mingau e o peixe para o pajé e é ela que
passa a cuidar dele pelos próximos anos.
A primeira cena do espetáculo, denominada O tempo, o ce-
nário está envolto a uma fumaça. No palco tem-se totens com gra-
fismos dos Tariana sinalizando as passagens do tempo. Um bailari-
no dança com movimentos que sugerem o nascimento, a infância e
adolescência de Kedacery e cada canto do palco denota o passar do
tempo. Kedacery percorre as linhas de sua infância e adolescência
até estar pronto para ser pajé. A segunda cena do espetáculo intitu-
lada Rito de Passagem, bailarinos simbolizam as varas formando um
corredor. Entra em cena Kedacery e passa por eles, os quais começam
a dança com movimentos que lembram chicotes, em referência ao
rito de passagem do jovem tariana.
A terceira cena nomeada Duo, há o solo de uma bailarina
mostrando toda a sua sensualidade, enquanto Kedacery a observa
toda a movimentação da futura mulher. Em seguida Kedacery se
apresenta com um solo, mostrando toda a sua força de guerreiro.
Durante seu solo ele a hipnotiza e a envolve usando o tipiti (objeto
usado nas brincadeiras e conquistas dos indígenas tariana) e pega
moça, e dançam em um duo até que os corpos se entrelaçarem. A
quarta cena chamada de A invocação, Kedacery dança um solo em
meio a fumaça e a luz azul, surgem os pássaros que dançam numa
coreografia leve, com movimentos rápidos, envolvem Kedacery e
dançam ao redor dele, também se envolvem em um tecido e em se-
guida o envolvem também. Todos dançam envolvidos num clima de
mistério e fantasia. Em seguida entra Biciu e dança com movimentos
fortes, pesados, e nesse momento Kedacery dança com movimentos
de animais, Biciu o envolve para assim passar toda a sua sabedoria e
encantamento ao futuro pajé.
A quinta cena designa a passagem da sabedoria para o novo
pajé, entra a ritual um intérprete representando o pajé velho que
dança em redor de Kedacery e em gestos lhe oferece uma bebida. Em
- 92 -
seguida, o jovem dança com movimentos cambaleantes, sinuosos, e
depois sobe no tecido, momento solo de Kedacery em que demonstra
o momento de êxtase sob o poder de Biciu. Nas duas cenas seguin-
tes nominadas, respectivamente, Os rituais de Pajelança e Dabacuri,
entram em cena dois bailarinos representando os outros dois pajés
(onça e pajé sacaca) e dançam. Depois Kedacery faz o ritual da paje-
lança e, nesse momento, ouve-se a voz do verdadeiro pajé Sr. Keda-
cery (gravação de voz). Surge um canto de chamado para o dabucuri
(voz da esposa do verdadeiro Kedacery), os bailarinos entram em
cena com bastões de ritmo e convidam o público para a grande festa
em homenagem ao grande Pajé Kedacery.
Desenvolvimento
Aluna J.L.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, ou seja, o espetá-
culo em si em geral, verificamos em primeiridade, no quali-signo,
que a aluna identificou as cores da iluminação e das roupas, que na
sua percepção eram cores fortes e claras, como o azul marinho, pre-
- 93 -
to, marrom e verde; em secundidade; o sin-signo é definido que seja
algo indígena pelos objetos, identificando a cuia; e em terceiridade; o
legi-signo define que realmente a cuia, percebida no sin signo, leva ao
legi signo de que se trata de um ambiente indígena.
Nessa junção das cores das roupas do cenário, da iluminação,
e dos objetos indígenas usados na cena, pode-se concluir que a aluna
percebeu o(s) representamen(s) da cena, ou seja informações que a
levaram a perceber que se tratava de um ambiente indígena.
Aluno A.B.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, verificamos em
primeiridade, no quali-signo, o aluno identificou a cor verde da ilu-
minação; o sin-signo é definido que seja algo indígena pelos objetos
centrais, tais como um pote de barro, um vaso que carrega algo que
se assemelha a um cachimbo; e em terceiridade; o legi-signo define
que os objetos estão relacionados a um ambiente indígena.
Para entender melhor sobre a função do representamen, faz
se entender que é aquilo que funciona como representante do signo
para quem o percebe. A 1ª. tricotomia mostra o processo de iden-
tificação desse representamen, das cores e formas até a definição
concreta do mesmo. Relacionando isso as interpretações dos alunos,
vimos que eles conseguem perceber essas representações do objeto
da cena.
Vale ressaltar que segundo Peirce (2005, p.52), O Qualissigno
é a qualidade do signo; o Sinsigno é formado por vários qualissignos,
mas de um tipo particular que só constituem um signo quando se
corporificam; já o Legissigno geralmente é estabelecido pelo homem
e que todo o signo é um legissigno, e possui um caráter de lei, esse
signo descreve inúmeros objetos, de ordem generalizada, sobre o
que e como ele representa.
- 94 -
particular e só constituem um signo quando realmente se corporifi-
cam. Um Legissigno é uma lei que é um signo. Normalmente, esta
lei é es estabelecida pelos homens. Todo signo convencional é um
legissigno (porém a reciproca não é verdadeira). Não é um objeto
singular, porém um tipo geral que tem-se concordado, será signifi-
cante. Todo legissigno significa através de um caso de sua aplica-
ção, que pode ser denominada Réplica. [...] (PEIRCE, 1977, p. 52).
Aluna J.S.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, ou seja, ao assunto da obra
artística, do que ela se trata, em primeiridade, identifico que o ícone
em relação ao elemento cênico não há um objeto icônico que tenha
uma relação direta com o ritual indígena; em secundidade, o índice é
o objeto cênico, a cuia, mesmo tendo outros objetos na cena, a aluna
deu ênfase a esse objeto usado na cena do espetáculo, que dá uma re-
lação direta ao objeto, exemplo, na hora que ele usa a cuia para dar a
bebida aos índios (onde já entra o gestual); em terceiridade, o objeto
cênico também podem ser o símbolo, pois eles têm uma associação
direta e de lei com o assunto da obra que definem a ideia de se tratar
de um ritual indígena.
Aluno A.B.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, em primeiridade, identifico
que o ícone em relação ao elemento cênico não há um objeto icônico
que tenha uma relação direta com o ritual indígena; em secundida-
de, o índice é tudo que indica esse objeto cênico, objetos centrais, tais
como pote, cuia, vaso, peneira, o aluno não consegue dizer quais,
mas visualmente sabe que o objeto é característico do cotidiano dos
povos indígenas; em terceiridade, o objeto cênico também podem
ser o símbolo, pois eles têm uma associação direta que definem uma
ideia, a “lei” desta ideia, por exemplo, uma roupa de penas e palhas
revestindo o corpo dos atores e os utensílios manipulados.
O objeto traz o signo de uma forma abstrata, não é o signo
propriamente dito, mas ele se assemelha ao signo, podendo ser uma
imagem, palavra ou som. Dando um exemplo através das interpre-
tações dos alunos, é a forma como eles relacionam os objetos, ilumi-
nação e figurinos àquilo que o espetáculo está propondo enquanto
obra, então através desses elementos cênicos conseguem identificar
que se trata de um ritual indígena.
- 95 -
Aluna J.S.
Por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante, ou
seja, àquilo que se compreendeu, interpretou, a partir dos elementos
cênicos. Em primeiridade, a rema vem como a primeira hipótese,
primeira interpretação, quase que instintiva. De início as cores, rou-
pas e objetos trouxeram uma compreensão de que se travava de algo
da natureza e indígena, mas ainda sem um contexto; em secundida-
de, o discente afirma que as cores e o objeto cênico definem se tratar
de um ritual indígena; em terceiridade, o argumento é algo pessoal, é
a complexidade racional do signo. E sobre os objetos cênicos a aluna
diz:
“[...] As cores das roupas, chamavam mais atenção, as cores do fun-
do, eram umas cores fortes, tipo umas cores claras, isso me chamou
mais atenção. Foi que atrás era tipo que meio azul marinho com
algumas partes pretas, um marrom bem escuro mesmo, outras par-
tes eram as que estavam nas roupas, era um verde. Deixa dar um
exemplo, um verde bem claro e o preto, um preto bem forte e havia
uma outra cor, mas só que eu me esqueci qual era que me chamam
bastante atenção também. [...]. “Eu acho que era uma origem deles,
uma origem indígena, acho que era isso, pelo o que eu vi assim, do
modo que ele deu a bebida na cuia”.
Aluno A.B.
Por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante. Em
primeiridade, a rema vem como primeira hipótese. De início a ilu-
minação, roupas e objetos trouxeram uma compreensão, mas ainda
sem um contexto, quando ele diz que a cor verde da iluminação lhe
traz em mente uma floresta. Podemos afirmar, portanto, que em ter-
mos iniciais, o aluno percebeu o ambiente indígena e que a cena se
trataria de algo neste contexto, apesar de serem percepções apenas
iniciais; em secundidade, o discente observa que as cores e os objetos
cênicos afirmam se tratar de um lugar que não seja uma cidade e que
realmente está ligado a algo indígena; em terceiridade, o argumento
é algo pessoal, é a complexidade racional do signo e sobre os objetos
cênicos o aluno diz:
- 96 -
Essa tricotomia é o foco desta pesquisa, onde se vê a capaci-
dade de interpretação do signo, onde o sujeito começa a ter sua a
relação íntima com o signo, é onde suas experiências com o signo faz
com que cada um tenha uma ideia e percepção diferente relaciona-
do ao mesmo signo. Deste modo, vemos que os alunos conseguiram
identificar através do cenário, iluminação, junto com os figurinos e
os objetos usados em cenas, que o vídeo contento a cena do espetá-
culo Kedacery se tratava de um ritual com origens indígenas.
Análise da Sonoridade
Aluna J.S.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, que seria tudo
aquilo no campo da audição (neste caso) que representa a obra ar-
tística em si, em primeiridade, do quali-signo a aluna identificou o
som, levando a uma sensação de estar em um lugar leve, suave, em
estado de paz e tranquilidade, sem concreta existência em relação ao
espetáculo; em secundidade; o sin-signo é definido que o som traz
melodias que não fazem parte do contexto na qual a aluna reconhe-
cesse que se tratava do espetáculo; e o legi-signo analiso que não há
uma relação direta e de lei com o ritual indígena.
Aluno A.B.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, em primeiridade,
do quali-signo o aluno identificou que o som se remetia a algo que
não é na cidade, mas que era sobre indígena; em secundidade o sin-
-signo é definido que o som traz melodias que fazem parte do contex-
to na qual o aluno identificou sobre o espetáculo (ou seja, ambiente
indígena); e o legi-signo analiso que não há uma relação direta e de
lei com o ritual indígena.
Conseguimos identificar que tivemos definições adversas re-
lacionadas a música: para um levou a um estado de sensações que
não se referia ao contexto do espetáculo, e o outro aluno já conse-
guiu relacionar a música a algo indígena.
Aluna J.S.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, tudo que a sonoridade pode
levar a uma relação com o assunto da obra, em primeiridade, identi-
- 97 -
fico que icônica, indicial e simbolicamente não há relação ao assunto
da obra, ao ritual indígena, o que também foi constatada na resposta
da aluna que a sonoridade não faz relação ao ritual indígena.
De acordo com Peirce (2005, p. 52-53), podemos dizer que
o ícone possui sim um caráter significativo independentemente da
existência ou não do seu objeto, já o índice pode ser pensado como
um signo que carrega em si características que dar referência ao ob-
jeto real, o índice não é o objeto em si, porem pode revelar através de
outras conexões o real objeto, em relação ao símbolo podemos pon-
tua-lo na qual a sua qualidade é a generalidade da lei, regra hábito ou
convenção que lhe é de direito.
Aluno A.B.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, tudo que a sonoridade pode
levar a uma relação com o assunto da obra, em primeiridade, identi-
fico que icônica, indicial e simbolicamente não há relação ao assunto
da obra, ao ritual indígena, o que também foi constatada na resposta
do aluno que a sonoridade não faz relação ao ritual indígena.
Pensando em objeto, os alunos tiveram interpretações dife-
rentes em relação a suas percepções em contato com o som, com a
música, suas definições não foram condizentes ao assunto da obra.
Aluna J.S.
Por último, a 3ª tricotomia interpretante, em primeiridade,
a rema vem como a primeira hipótese sobre o assunto da obra. A
música instrumental trouxe uma percepção estranha, mas ainda
sem um contexto; em secundidade, o discente mostra que as músicas
usadas no espetáculo trazem um estado de paz e tranquilidade; em
terceiridade, o argumento é algo pessoal, é a complexidade racional
do signo e sobre a passagem sonora. A aluna diz:
- 98 -
“[...]. A música era leve, suave, parecia que a gente estava em lugar
um tranquilo, um lugar cheio de paz, harmonia, alegria, eu me senti
assim com a música, bem suave, me fazia relaxar sobre a vida, era
isso”.
Aluno A.B.
Por último, a 3ª tricotomia interpretante, em primeiridade, a
rema vem como a primeira hipótese. A música instrumental trouxe
uma percepção estranha mas sem um contexto também, assim como
J.S.; em secundidade, o discente mostra que as músicas usadas no
espetáculo trazem um sentimento de felicidade; em terceiridade, o
argumento é algo pessoal, é a complexidade racional do signo e sobre
a passagem sonora o aluno diz:
- 99 -
Análise dos Gestos e movimentos:
Aluna J.S.
Analisando a interpretação da aluna espectadora, a 1ª trico-
tomia em relação ao representamen, ou seja, todos aqueles gestos
que representam o assunto da obra em si. Temos em primeiridade,
o quali-signo, as formas, que segundo a aluna diz que alguns movi-
mentos eram expressivos e outros leves e corpo parado; em secundi-
dade o sin-signo é concretizado que se trata de algo indígena através
dos movimentos na qual se deslocavam, movimentos de animais e
outros com movimentos contínuo; e em terceiridade, o legi-signo
define que está relacionado a um ritual e a vida indígena.
Aluno A.B.
Analisando a interpretação do aluno espectador, a 1ª tricoto-
mia em relação ao representamen. Temos em primeiridade, o quali-
-signo, as formas, que segundo o aluno diz que destacam-se nos mo-
vimentos expressivos, deslocamento e giratórios; em secundidade o
sin-signo é identificado os movimentos na qual o índio conduz a cuia
até o outro índio, os movimentos de animais de quatro patas e mo-
vimentações do corpo girando; e em terceiridade, o legi-signo define
que está relacionado a um ritual e a vida indígena.
Como diz Lucia Santaella “Precisamos dar aos signos o tempo
que eles precisam para se mostrarem” (2002). Qualquer coisa nes-
se mundo perceptivo ao nosso olhar pode ser um signo e essas três
propriedades formam a identificação de um signo. O nosso cérebro
é capaz de identificar isso em milésimos de segundos e a tricoto-
mia como um todo mostra esse processo de reconhecimento. Neste
caso do representamen, os alunos conseguiram identificar os gestos
e movimentos o que o autor estava propondo em sua obra, desde as
linhas e formas do quali-signo, os aspectos que individualizam no
sin-signo (identificando do que se tratavam tais formas) e as aplica-
ções de perspectivas no legi-signo.
Aluna J.S.
A 2ª tricotomia em relação ao objeto, ou seja, tudo que os ges-
tos e movimentos podem provocar de relação direta com o assunto
- 100 -
da obra: em primeiridade, relacionado ao ícone a aluna se referiu
indiretamente a expressão dos movimentos dizendo que represen-
tava um ritual; em secundidade, deu referência ao índice, disse que
esses movimentos e gestos fortes usados pelos bailarinos na cena do
espetáculo fizeram com que ela identificasse que eram movimentos
indígenas; em terceiridade, esses gestos e movimentos fortes e ex-
pressivos colocados pela aluna também foram utilizados para identi-
ficar os símbolos de danças indígenas.
Aluno A.B.
A 2ª tricotomia em relação ao objeto: em primeiridade, rela-
cionado ao ícone o aluno se referiu a expressão dos movimentos que
eram movimentos de característicos a de animais e movimentos gi-
ratórios; em secundidade, deu referência ao índice, dizendo que esses
gestos giratórios e as expressões de animais usados pelos bailarinos
na cena do espetáculo fizeram com que ele identificasse que eram
movimentos indígenas; em terceiridade, esses gestos e movimentos
giratórios, expressando animais colocados pelo aluno também fo-
ram utilizados para identificar os símbolos.
Vimos que ficou bem evidente as semelhanças das interpre-
tações desses movimentos e gestos, que a cena onde os índios estão
expressando efeito da erva, os faz realizar movimentos estranhos.
Dois interpretes, um faz movimentos giratórios ao beber o líquido
e o outro se comporta como animal andando em quatro patas, esses
movimentos chamaram a atenção dos alunos, fazendo com que eles
tivessem o foco total a esses movimentos, de onde tiraram suas con-
clusões de que se tratava de um ritual indígena.
Aluna J.S.
E por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante, ou
seja, toda a interpretação dada pelos gestos e movimentos que gira
em torno da compreensão da obra como um todo, em primeiridade,
a rema, a aluna disse que esses movimentos trazem uma percepção
indígena pela qualidade dos movimentos e formas pelas quais se mo-
vem; em secundidade, sobre o discente disse que os movimentos e os
gestos afirmaram se tratar de um ritual indígena; em terceiridade, o
argumento, sua interpretação foi:
- 101 -
“[...], um índio começa a fazer uma dança esquisita e o outro ele
começa a se transformar em bicho se arrastando pelo chão, [...]. “Os
gestos já foram um pouco diferentes. Os gestos que eles faziam não
repetiam junto com a música, a música era suave e tranquila, já os
gestos eram bem diferentes, não combinavam era como se houvesse
briga, raiva”.
Aluno A.B.
E por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante,
em primeiridade, a rema, o aluno disse que esses movimentos tra-
zem uma percepção indígena pela qualidade de movimento e formas
pelas quais se movem; em secundidade, sobre o discente disse que os
movimentos e os gestos usados pelos intérpretes afirmaram se tratar
de um ritual indígena; em terceiridade, o argumento, sua interpreta-
ção foi:
- 102 -
cenário e as roupas, os gestos e movimentos dos bailarinos, e os ob-
jetos usados em cena lhe chamaram muita a atenção e contribuíram
para que eles chegassem à conclusão que se tratava de um ritual de
origem indígena.
Devemos levar em consideração que foi apenas uma cena do
espetáculo disponibilizados aos alunos que fizeram parte desta pes-
quisa, que talvez a disponibilidade do espetáculo em sua totalida-
de faria os alunos terem um entendimento maior, porém tornaria a
pesquisa cansativa a eles, levando em consideração que precisamos
trabalhar com uma metodologia mais lúdica com esse tipo de públi-
co adolescentes.
Conclusão
- 103 -
Através da obra conseguimos identificar que a mesma pode
sim nos revelar a tricotomia peirceana. Nas análises é nítido identi-
ficar a primeiridade, secundidade e terceiridade de cada tricotomia
em relação ao espetáculo. Em relação a interpretação está de acordo
tal como o coreógrafo quis propor ao seu público, entretanto vimos
a diferença das interpretações, o que é comum acontecer. Isso depen-
de da experiência de cada pessoa em relação a vivência com a arte
e/ou com o signo (ritual indígena e cena contemporânea) que ela
tem contato. Sabemos que é impossível termos interpretações iguais,
podemos ter interpretações e pensamentos parecidos, mas nunca
iguais, a experiência pessoal é a chave principal para ter um resul-
tado significativo sobre as interpretações. Deste modo foi assinalado
que as interpretações dos alunos espectadores foram alcançadas tal
como o coreógrafo estava propondo em sua obra, mas de maneira
sucinta e objetiva.
Trabalhar com a semiótica foi algo desafiador, porém muito
satisfatório. Ver cada análise, saber como cada signo se constitui na
mente, de como o nosso cérebro é capaz de reconhecer e interpretar
um signo. Enquanto pesquisador tive todas as minhas dúvidas e an-
seios totalmente supridos, tive uma realização e satisfação enorme
de trabalhar com essa pesquisa, venho amadurecendo essa ideia des-
de do momentos que tive contato com a Semiótica no quinto perío-
do do curso de Licenciatura em Dança, e foi enaltecedor conhecer a
semiótica, principalmente a parte interpretativa, saber a capacidade
das pessoas de interpretar um signo e que cada signo identificado
tem uma representatividade de acordo com cada pessoa. Isso tudo
foi alcançado nessa pesquisa, visto as diferenças nas interpretações
e experiências de cada aluno, poucos deles com facilidades, pois ti-
veram a oportunidade mesmo sendo mínima de ter um contato no
passado com algo que se remeta as artes, de modo geral, ou ao co-
tidiano indígena, suas crenças, ritos e danças, e a maioria com ne-
nhuma oportunidade ou experiência com a arte ou de conhecer os
costumes dos povos indígenas.
Aproveito para expor a importância do ensino das artes den-
tro do âmbito escolar, o quanto é importante proporcionar essas ex-
periências para os alunos, fazendo com que eles se tornem pessoas
mais críticas e capazes de sentir a experiência de ter as artes em suas
vidas. Quando falo artes é de modo geral, dança, música, teatro, ar-
- 104 -
tes visuais, não só a arte, mas a cultura do nosso país, a cultura do
nosso povo, das nossas raízes que cada vez mais perde seu espaço e
memória dentro da sociedade. Portanto, finalizo esta pesquisa com
êxito, tendo todas as minhas expectativas e resultados alcançados de
maneira satisfatória. Como um bom pesquisador, esse trabalho de
pesquisa terá continuidade, mas de uma outra forma e com outro
objetivo, porém com o mesmo pensamento teórico.
Referências:
- 105 -
- 106 -
JUVENTUDES UNIVERSITÁRIAS E SAÚDE
MENTAL: REFLEXÕES A PARTIR DE
ATENDIMENTOS PSICOLÓGICOS NO
PROJETO ESPAÇO DE ATENDIMENTO
PSICOSSOCIAL (EPSICO)
RESUMO
Em um mundo em que cada vez mais a competitividade, a corrida contra o
tempo e a produtividade são eleitos como valores que devem pautar proje-
tos de vida é comum encontrarmos jovens apreensivos e esgotados em vários
ambientes, entre eles o universitário. Acerca disso, este estudo surgiu a partir
da vivência das autoras e autor enquanto docentes universitários e responsá-
veis por atendimentos psicológicos junto ao projeto de extensão Espaço de
Atendimento Psicossocial (EPSICO) da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA), que atende a comunidade discente da instituição por meio de acompa-
nhamento psicoterápico. No amálgama das demandas apresentadas pelas(os)
acadêmicas(o) do serviço, muitas estão associadas diretamente ao sofrimento
psíquico causado pelas experiências oriundas de um espaço universitário que
reproduz a lógica de uma sociedade que valoriza a produção, a competitividade
e o sucesso.
Conhecendo o EPSICO
- 107 -
Ao longo do processo de criação e consolidação do EPSICO,
pudemos identificar que a categoria juventude não é constituída por
um grupo social homogêneo, mas emerge a partir de um processo
de construção de identidades e valores no contexto social e histórico,
conforme já argumentado por Boghossian e Minayo (2009).
Trancoso e Olivera (2014) observam que o termo juventu-
de traz em si uma complexidade implícita das significações que se
transformam à medida que a realidade muda, não sendo possível,
por isso, conceituá-la de forma unívoca, sobretudo pelos múltiplos
sentidos que adquire atualmente. Muito mais que uma fase da vida
demarcada por uma idade cronológica média de uma população que
vive o ápice de seu processo de socialização e se prepara para partici-
par ativamente do sistema de produção e reprodução da vida social,
como destaca Abramo (2005), o termo passou a se referir também
a um ideal a ser alcançado e conservado independentemente da ida-
de cronológica (KAFROUNI, 2009).
Além disso, à juventude, na atualidade, passaram a ser atribuí-
das características relacionadas ao protagonismo e resistência.
Ainda sobre o fato de que é difícil definir juventude, Sposito
(2002), nos adverte de que é uma noção socialmente variável: muda
ao longo do tempo entre sociedades e dentro dos grupos de uma
mesma sociedade.
Soma-se a esse cenário, a grande importância que a categoria
alçou nas últimas décadas junto a ações do Estado Brasileiro, que a
partir de 2005 tornou a juventude mais visível no campo da política
pública, criando o Conselho Nacional da Juventude (CNJ) com o
intuito de promover políticas públicas para este público, alavancar
estudos e pesquisas acerca da realidade socioeconômica juvenil e o
intercâmbio entre organizações nacionais e internacionais (Lei n.
11.129, 2005, p. 1-2), o que denota que no campo político ela passou
a ser vista como possuindo importância estratégica para ao país.
Diante de um conceito tão complexo, sinalizamos que neste
artigo consideramos juventude não a partir de marcadores tão so-
mente biológicos ou cronológicos, que partem de uma ideia de na-
tureza humana única e universal. Defendemos aqui uma concepção
ancorada na cultura, o que nos permite pensar em “juventudes”
como construções histórias e culturais com diferentes significações
sociais, como defende Dantas (2007).
- 108 -
Mais propriamente no campo da psicologia, partimos da pers-
pectiva histórico-cultural de periodização do desenvolvimento psí-
quico, desenvolvida por autores como Vigotski e Leontiev. Tal teoria
nos permite superar os limites impostos por concepções universali-
zantes e a-históricos, pois considera que é partir de um conjunto de
relações com os outros e em condições concretas de vida que ocorre
o processo de desenvolvimento. Etapas da vida surgem em determi-
nados momentos históricos e culturas a partir de transformações so-
ciais e da emergência de novas necessidades humanas. Sobre tais eta-
pas recairão uma série de exigências e desafios e na relação dialético
do indivíduo com o social poderão ou não ser construídas condições
que permitam a realização do pleno potencial de desenvolvimento
(ABRANTES; BULHÕES, 2016).
No trabalho junto ao EPSICO, temos contato direto com a ju-
ventude que ao adentrar no espaço da universidade é confrontada
com novas exigências, como a de planejamento e autonomia, resolu-
ção de problemas, processo de criação e constituição de identidade
profissional, o que acaba por impactar diretamente no projeto de vida.
Tal projeto é aqui entendido como uma necessidade humana de satis-
fação pessoal e de participação ativa da sociedade, no aspecto de trans-
formá-la. Reconhecer-se como uma pessoa capaz de contribuir com
causas que escapam o interesse individual e, ao mesmo tempo, tragam
sentido e satisfação à vida pessoal, significa que a fusão entre projeto
individual e coletivo foi levada a cabo (KLEIN; ARANTES, 2016).
Cabe aqui ressaltarmos que a UEA, instituição na qual se en-
contra vinculado o EPSICO tem como missão promover a educação,
desenvolver conhecimento científico relacionado à pessoa humana e
ao meio ambiente amazônicos, integrar a pessoa à sociedade e apri-
morar a qualidade dos recursos humanos existentes na região, com
base em valores como a Democracia, Educação, Comprometimento
Social, Cidadania, Pluralidade e Integração, o que está em consonân-
cia com a ideia de projeto de vida aqui exposta.
Sabemos, no entanto, que o contexto do mundo trabalho e da
vida universitária, no âmbito de um sistema capitalista, impõe uma série
de entraves à construção de um projeto de vida na acepção aqui adota-
da, tendo em vista a promoção de um individualismo exacerbado.
Na sociedade atual, preparar-se para exercer uma profissão
envolve múltiplos determinantes e apresenta exigências e desafios
- 109 -
que podem tornar jovens mais vulneráveis ao sofrimento psíquico.
Em um estudo sobre as motivações da procura pelo serviço de saúde
mental em universidades, observou-se que a busca por atendimento
se deu pelo fato de jovens se sentirem paralisados diante de exigên-
cias acadêmicas que não conseguem realizar ou por descrença em
relação à possibilidade de um futuro profissional. A falta de esperan-
ça e a impossibilidade de se ver como adulto de sucesso e produtivo
pode levar o jovem a adiar a saída da universidade, evitando uma
conclusão, o que pode instaurar uma crise subjetiva (MALAJOVI-
CH et al., 2017).
Estudos como o de Graner (2017) têm evidenciado que tanto
o início quanto a etapa final da formação universitária tendem a ser
mais estressantes: a entrada no contexto da universidade traz consigo
complexas mudanças a serem administradas na vida pessoal/social e
universitária (como novos métodos de estudo e extensa grade curri-
cular). Nos últimos anos de graduação, dúvidas em relação ao mer-
cado de trabalho, angústias relativas à antecipação do desemprego
(NEIVA, 1996), por exemplo, tendem a aumentar o nível de estresse,
que pode “passar despercebido” pelos indivíduos ou ser considerado
“normal”; porém, quando elevado pode constituir-se em sofrimento
psíquico intenso.
Aliado a isso, não podemos esquecer diversos outros fatores,
que podem contribuir para um quadro de maior vulnerabilidade.
Sem querer esgotar a questão, basta citar, por exemplo, duras rea-
lidades econômicas, que aumentam a expectativa e a cobrança em
torno de sucesso acadêmico e profissional; vivencia da experiência
de morar, pela primeira vez, longe da família de origem; dúvidas
em relação à escolha profissional; dificuldade no estabelecimento
de amizades; discriminação em relação a cor, classe social e gênero,
dentre outros; competitividade e cobranças exageradas em relação
ao próprio rendimento.
Diante do exposto, o EPSICO tem o objetivo de proporcionar
um espaço de acolhimento e escuta nos quais estudantes possam fa-
lar a respeito de seus incômodos e ressignificar dificuldades no cam-
po socioafetivo e cognitivo, repensando, ainda, seus projetos de vida.
A iniciativa de criação do projeto deu-se a partir de questões parti-
lhadas entre nós, um conjunto de docentes (também profissionais da
área de psicologia) da instituição, uma vez que era comum o fato de
- 110 -
sermos procuradas (os) por acadêmicos de vários cursos, em busca
de resolução de problemas (NEVES et al., 2019).
Uma vez que a resiliência não é um potencial inato e nem
constante ao longo de nossa vida, e que a universidade se constitui
em um espaço significativo, não apenas do ponto de vista da partilha
e construção do conhecimento científico, faz-se importante cons-
truir redes de proteção que possam fortalecer as pessoas, diante das
dificuldades cotidianas.
- 111 -
Vale destacar que o EPSICO é o único serviço de referência
de atendimento psicoterápico a estudantes da universidade, e que a
UEA não dispõe de curso de graduação em Psicologia. Todavia, por
ter professoras e professores com formação na área, que atuam em
disciplinas de Psicologia e/ou afins nos diversos cursos da institui-
ção, tanto no nível graduação quanto no de strictu senso, se formou
um colegiado gestor para atuar e realizar as ações do projeto.
A justificativa para a exequibilidade do EPSICO permanece
na intenção de garantir a promoção da saúde mental da comunidade
acadêmica da UEA. Ademais, a partir da pandemia de COVID-19,
observou-se o aumento do sofrimento psíquico junto a mesma, ten-
do em vista o elevado número de óbitos ocorridos no Estado do
Amazonas, seus decorrentes desafios no sistema de saúde (como a
falta de oxigênio), lutos e obviamente as intensas modificações da
rotina acadêmica como um todo.
Entendemos que o cenário de curso e de pós-curso da pande-
mia foi fator catalisador de agravos em saúde mental de estudantes
universitários (MAIA; DIAS, 2020). A literatura aponta a necessi-
dade de se oferecer possibilidades de prevenção de adoecimento e
reparação de quadros desenvolvidos, estimulando a criação de pro-
gramas e projetos que tragam como desfecho o aprimoramento de
competências sociais e emocionais nos(as) estudantes. Sobre isso,
apontamos no tópico seguinte os principais resultados encontrados
pelas profissionais e pelo profissional proponentes quanto à expe-
riência a partir do trinômio “juventudes universitárias-projeto de vi-
da-saúde mental” e é imprescindível esclarecermos que toda discus-
são e reflexão está pautada na ética e providências de sigilo imbuídos
na profissão da Psicologia.
- 112 -
universitárias-projeto de vida-saúde mental”, exposta no quadro se-
guinte como três eixos analíticos que essa experiência relatada nos
permitiu analisar:
- 113 -
e praticá-las requer recursos internos bem elaborados e comporta-
mentos responsivos, haja vista que as exigências científicas são inten-
sas, pois educar-se e viver em meio a ciência requer aprendizagem
embasada em resolução de problemas, como previsto por Laudan:
“a ciência é essencialmente uma atividade de solução de problemas”
(2011, p.17).
Consequentemente, quando a escolha por uma área acadêmi-
ca é feita de modo impulsivo, alguns enfrentamentos surgem e com
eles muitas vezes as queixas centrais de sensação de incompetência
e/ou de deslocamento dentro do curso escolhido.
Além desse item aqui explorado, consideramos também que
dentro do contexto universitário apresenta-se a desgastante e desa-
fiante tentativa de conciliação entre trabalho, lazer e estudos, espe-
cialmente para aqueles que, oriundos de classes menos privilegiadas,
precisam de um emprego para custear os estudos, pois embora a
universidade seja pública, os materiais solicitados nas aulas, espe-
cialmente em algumas áreas de saúde, são de alto investimento fi-
nanceiro.
Não podemos deixar de frisar, ainda, que em diversos cursos,
dada a especificidade da UEA e do Estado do Amazonas, tem-se a
presença de estudantes indígenas que enfrentam, além das saudades
de casa - pois muitas vezes precisam se deslocar sozinhos do interior
do Estado para capital a fim de estudar - barreiras como a língua e a
carência de domínio de conhecimentos que deveriam ter sido adqui-
ridos ao longo do percurso escolar, o que dificulta a leitura de textos
e compreensão dos diálogos a reflexões entabuladas em classe.
Consubstanciado a isso, temos os amplos casos de jovens es-
tudantes que trabalham em regime de 20h ou 40h, conforme a Con-
solidação das Leis de Trabalho (CLT), ou mesmo estão em empregos
informais/autônomos, em áreas laborais distantes de seus cursos
universitários. O cansaço físico excessivo, o acúmulo de noites mal
dormidas e dificuldades financeiras, aliadas ao obstáculo de encon-
trar tempo para dar conta de leituras e atividades do curso são as
principais queixas identificadas, e estas denunciam um sistema de
classes perverso e desigual no acesso a oportunidades e benefícios
em nossa sociedade, que esgota e desumaniza o estudante trabalha-
dor, e que não raro contribui para converter a individualidade em
individualismo.
- 114 -
Sobre isso, Silva e Lehfeld (2019) observam que o discurso da
meritocracia:
- 115 -
são vistas como opções de menor prestígio e baixa pretensão salarial.
Essa desvalorização pode afetar a autoestima dos universitários e sua
motivação para perseverar no curso escolhido. Decerto, é notável
que a expectativa da universidade é sempre promover formação de
qualidade e tenta-se construir e rever projetos políticos pedagógicos
pautados em humanidades e competências correspondentes à rea-
lidade brasileira atual, todavia, embora esse seja um esforço da ins-
tituição, quando o acadêmico percebe o prestígio social da área em
que está se graduando, bem como suas possibilidades empregatícias
mercado, vão surgindo indagações sobre a expectativa construída
até então e a condição real de exercício profissional no mercado de
trabalho.
Além disso, surge outro fator complexo e não menos impor-
tante para ser citado, no que tange a empregabilidade versus a em-
presabilidade, e que também está ligado a des/valorização profissio-
nal. Este é citado principalmente pelos(as) alunos(as) oriundos(as)
dos cursos de artes, que apontam para o fato de que o ensino da
mesma no ambiente escolar sobreviveu e hoje resiste sob uma re-
trógrada circunstância: embora tenha sido uma vitória ser inserida
no currículo das escolas com respaldo da legislação vigente, e pro-
fissionais tenham ganhado espaço para trabalho, lamentavelmente,
existe uma violência simbólica (BOURDIEU, 2009) no fenômeno
da polivalência do profissional de arte, como no caso de professores
e professoras que não são da área específica, mas assumem as emen-
tas das quatro linguagens artísticas (quando não possuem em sua
formação universitária conhecimentos, habilidades e vivências teó-
rico-práticas sobre todas elas). Assim, é comum um professor(a) da
área ser graduado(a) e especializado(a) na área de música, com habi-
lidade instrumental, e ter de ministrar obrigatoriamente a ementa de
dança, teatro, artes visuais, e assim por diante, quando passa em um
concurso público da Secretaria de Estado de Educação e Desporto
(SEDUC-AM), porque só estão dispostas vagas para polivalência.
Esses fatos sociais dão uma noção do tanto de inquietação e
demandas internas que jovens universitários(as) enfrentam e como
é necessário construir resiliência para completarem a graduação em
uma área que nem sempre é respeitada à altura que merece.
Aliado a isso, soma-se o momento paradoxal na garantia de
acesso, permanência de jovens no mercado de trabalho, como sinali-
- 116 -
zam Silva e Lehfeld (2019): ao mesmo tempo em que uma base legal
tenta oportunizar aos jovens mais tempo de estudo e inserção poste-
rior no mundo do trabalho, esta ainda não é suficiente para garantir
renda e boas condições salariais para quem busca oportunidade de
ingresso e ascensão no mercado laboral. Isso porque a crise atual do
capitalismo, os desmontes da proteção do trabalho e sua constante
precarização atinge a todos, incluindo os mais jovens.
As condições expostas alienam cada vez mais trabalhadoras e
trabalhadores, obstrui capacidades críticas e criativas e limitam pers-
pectivas de crescimento.
No tocante ao terceiro eixo, “Exames de avaliação pós con-
clusão do curso” nota-se que alguns cursos exigem exames de ava-
liação pós conclusão, como as residências médicas e as residências
multiprofissionais. Esses exames podem ser bastante desafiadores e
exigir grande dedicação e esforço por parte dos profissionais. Além
disso, a possibilidade de mudança de cidade para realizar a residên-
cia pode gerar desconforto e insegurança.
Outra forma de avaliação pós conclusão do curso são as sele-
ções de mestrado, bastante concorridas e que exigem um alto nível
de conhecimento e dedicação por parte dos candidatos. A aprovação
em um programa de mestrado pode abrir portas para a carreira aca-
dêmica e para o desenvolvimento de pesquisas, e embora a aprova-
ção seja extremamente desejável, comumente ao processo seletivo
angariam-se vários motivos de sofrimento psíquico dada a competi-
vidade intensa ao longo do processo e altos padrões de cobrança dos
candidatos e candidatas.
Os três eixos aqui categorizados decerto são apenas um re-
flexo do quanto as juventudes acadêmicas passam por conflitos que
podem abalar a saúde mental, durante e após a graduação. Sabemos
que não teríamos como discutir nestas linhas cada uma das deman-
das e queixas centrais que encontramos no EPSICO, mas reconhece-
mos que é imprescindível e desejável que haja uma rede de acolhida
e assistência. Porém, sem romantizarmos, reconhecemos que gran-
des são os embates para que projetos como este sejam efetivados nas
universidades.
Dar visibilidade a ações como as desenvolvidas pelo EPSICO
nos fortalece enquanto corpo universitário, sendo por isso tão im-
- 117 -
portante a partilha desses dados, inclusive por meio de oportuni-
dades e iniciativas como a deste livro, oferecida pelo Programa de
Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade
Federal do Amazonas, instituição parceira da Universidade do Esta-
do do Amazonas. Quanto mais divulgação cientifica, mais cobranças
aos responsáveis envolvidos são feitas, mais reflexões são propostas,
mais melhorias são estimadas, entre outras ações.
Algumas considerações
É a partir de um conjunto de relações com os outros
e em condições concretas de vida que ocorre o processo de
desenvolvimento humano. Etapas da vida surgem em determinados
momentos históricos e culturas a partir de transformações e da
emergência de novas necessidades humanas.
A preparação para a atividade de produção social por meio do
trabalho é uma das principais tarefas cobradas dos jovens em nossa
sociedade, e para parte deles tal preparação tem ocorrido no âmbito
das formações universitárias. s
Na conjuntura histórica atual, de dificuldades de acesso ao
mercado de trabalho pelos jovens, de vivência em um ambiente uni-
versitário altamente competitivo, que exige altos padrões de perfor-
mance e que muitas vezes desconsidera as condições concretas de
vida de seus estudantes o adoecimento psíquico se torna recorrente.
Assim, emergem sentimentos de impotência e incompetência, es-
gotamento físico e mental, isolamento social e cisão do eu que em-
pobrece diferentes dimensões da vida, não raro contribuindo para
converter a individualidade em individualismo.
Pensar a importância de projetos como o EPSICO, que opor-
tunizam o acolhimento e a escuta terapêutica, é refletir sobre a cria-
ção de oportunidades que podem contribuir para a promoção da
saúde mental também enquanto um processo educativo que permite
desvelar a realidade, desenvolver consciência, emergir da alienação
com maior potência para investir em projetos de vida e expandir o
processo de desenvolvimento humano.
Referências
- 118 -
ABRAMO, H. W. O uso das noções de adolescência e juventude no
contexto brasileiro. In: M. V. Freitas (Org.). Juventude e adolescência
no Brasil: referências conceituais. São Paulo: Ação Educativa, 2005,
p. 19-39.
BRASIL. Lei n. 11.129. Cria o Conselho Nacional da Juventude e a Se-
cretaria Nacional da Juventude. Diário Oficial União: seção 1, Brasília,
DF, 30 de junho de 2005.
BOGHOSSIAN, C. O.; MINAYO, M. C. S. Revisão sistemática sobre
juventude e participação nos últimos 10 anos. Saúde e sociedade, v. 18,
p. 411-423, 2009.
BOHOSLAVSKY, R. Vocacional: teoria, técnica e ideologia. São Pau-
lo: Cortez, 1983.
BOURDIEU, P;. O poder simbólico. 12.ed. Traduzido por Fernando
Tomaz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2009.
DANTAS, M. C. C.. Vale à pena ver de novo: juventude, escola e
televisão. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2007.
GRANER, K. M. Revisão integrativa: Sofrimento psíquico em estu-
dantes universitários e fatores associados. Ciência & Saúde Coletiva
[periódico na internet] (2017/Set). [Citado em 05/09/2018]. Disponível
em: http://www.cienciaesaudecoletiva.com.br/artigos/revisao-integra-
tiva-sofrimento-psiquico-em-estudantes-universitarios-e-fatores-asso-
ciados/16374?id=16374.
KAFROUNI, R. A dimensão subjetiva da vivência de jovens em um
programa social: contribuições à análise das políticas públicas para a
juventude. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2009.
KLEIN, A. M.; ARANTES, V. A.. Projetos de vida de jovens estudantes
do ensino médio e a escola. Educação e realidade, v. 41, n. 1, p. 135-
154, 2016.
LAUDAN, Larry. O progresso e seus problemas: rumo a uma teoria do
crescimento científico. Tradução R ed. São Paulo: EdUNESP, 2011.
LAURENT, Éric. O analista cidadão, Curinga, n. 13, Belo Horizonte,
EBPMinas, 1999.
MAIA, B. R.; DIAS, P. C. Ansiedade, depressão e estresse em estudan-
- 119 -
tes universitários: o impacto da COVID-19. Estud. psicol. (Campinas),
Campinas, v. 37, e200067, 2020.
MALAJOVICH, Nuria et al. A juventude universitária na contempora-
neidade: a construção de um serviço de atenção em saúde mental para
estudantes. Mental, Barbacena, v. 11, n. 21, p. 356-377, dez. 2017.
Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttex-
t&pid=S1679-44272017000200005&lng=pt&nrm=iso>. acessos em
15 mar. 2023.
MARTINS, Lígia Márcia; ABRANTES, Angelo Antonio & FACCI,
Marilda Gonçalves (Org.). Periodização histórico-cultural do desen-
volvimento psíquico: do nascimento à velhice. Campinas, SP: Autores
Associados, 2016.
NEIVA, K. M. C. Fim dos estudos universitários: efeitos das dificulda-
des do mercado de trabalho na representação do futuro profissional e no
estabelecimento de projetos pós-universitários dos estudantes. Psicolo-
gia USP, São Paulo, v.7, n.1/2, p.203-224, 1996.
NEVES, A. L. M. et al. Saúde mental e universidade: experiência do
“Espaço de atendimento psicossocial” (EPSICO). Trabalho (En)Cena,
[S. l.], v. 4, n. 2, p. 531–542, 2019. Disponível em: https://sistemas.uft.
edu.br/periodicos/index.php/encena/article/view/7482. Acesso em: 15
mar. 2023.
SILVA, A. P. , LEHFELD, N. A. S. Trabalho e juventude no contexto
contemporâneo: reflexões introdutórias. Revista da Faculdade de Di-
reito da UFG, v. 43, 2019, p. 1-20.
SPOSITO, M. P. (Org.). Juventude e escolarização (1980/1998). Bra-
sília: INEP/MEC, 2002.
TRANCOSO, A. E. R.; OLIVEIRA, A. A. S. . Produção social, histórica
e cultural do conceito de juventudes heterogêneas potencializa ações políti-
cas. Psicologia & Sociedade, v. 26, n. Psicol.Soc., 2014 26(1), p. 137-147,
jan. 2014.
- 120 -
MITOPOÉTICA E DESEJO MIMÉTICO
EM PESQUISAS ETNOGRÁFICAS NA
AMAZÔNIA
Harald Sá Peixoto Pinheiro
Tomando como referência estudos etnográficos e etnológicos
na Amazônia, em especial aqueles que se debruçaram sobre a com-
pilação e tradução de importantes narrativas míticas de diferentes
povos indígenas – Barbosa Rodrigues, na Poranduba Amazonen-
se (1890) e Nunes Pereira, no Moronguetá, um Decameron Indíge-
na (1980) –, daremos destaques nesse ensaio para as condições de
possibilidade de se trilhar os caminhos inaugurais de uma estética
amazônica que entrelaça diferentes perspectivas tanto da semiótica
da cultura quanto dos elementos indispensáveis para uma crítica li-
terária.
Nessa constituição e elaboração de uma poética local com ba-
ses nas narrativas indígenas algumas categorias apresentam destaque
especial e se encontram em bases bem articuladas por meio de uma
escuta-recepção, de uma mitopoética e da perspectiva de tradução-
-transcrição das próprias narrativas, mediadas pela tensão oralida-
de-escritura, bem como pelos elementos impulsionadores de traição
e errância como condição essencial no processo de uma poética do
traduzir (MECHONNIC, 2010).
Identificaremos os processos e os desmoronamentos do reino
do unívoco e os limites da fidelidade no processo de compilação et-
nográfica das narrativas míticas, conduzindo também a arte de tra-
duzir pelo horizonte do equívoco, em que a língua nos remete e nos
surpreende por meio de sua natureza polissêmica. Na oportunidade
enfatizaremos também conceitos como desejo mimético (GIRARD,
1998) e intertextualidade (KRISTEVA, 1969). Observamos como re-
sultado de nossas investigações que entre duas culturas, dois textos e
duas línguas a relação não se reduz a mera transmissibilidade mecâ-
nica e, como processo de mitocriação, ocorre – inadvertidamente –
efeitos de uma aproximação dialógica e igualmente poética. É nessa
tessitura delicada e sensível que ocorre a sutileza quase imperceptível
de substâncias tão caras aos processos de Mitopoética e desejo mi-
mético pelo qual queremos investigar.
- 121 -
Como nascem e se transformam as narrativas?
- 122 -
Esses dois pesquisadores que utilizamos como provocação
epistêmica e estética para nossa contribuição nessa coletânea do
PPGSCA, extraíram suas fontes de investigação motivadas por um
caráter iminentemente científico e não se ativeram aos aspectos ex-
clusivamente religiosos como muitos pesquisadores que os antecede-
ram no estudo sobre os povos indígenas na Amazônia. A escolha de-
les não se deu de forma arbitrária ou aleatória; deve-se, em especial,
pela coincidência na vasta compilação de narrativas orais indígenas,
por meio de uma ampla peregrinação etnográfica que enfatizou um
caráter estético e científico, do qual resultou nas obras monumentais
do estilo de uma Poranduba e de um Moronguetá.
Entre a publicação de suas maiores obras Poranduba Amazo-
nense, que é de 1890 e Moronguetá, um Decameron Indígena, que é
de 1967 (em sua primeira edição), passaram-se precisamente setenta
e sete anos. Considerando o fato de Nunes Pereira ter começado suas
pesquisas ao Moronguetá, no território de Roraima, nos idos de 1918
(com apenas 9 anos da morte de Barbosa Rodrigues) e, em outras
etnias e regiões da Amazônia nos anos de 1946, 1949 e entre 1960-
1961, respectivamente, a diferença entre a produção etnográfica de
um e de outro oscila entre trinta a cinquenta anos, aproximadamente.
É certo que o trabalho de um autor diz respeito ao seu tempo e, pela
distância e diferentes experiências adquiridas entre eles (no plano
da Amazônia e da própria etnografia) é plenamente compreensivo a
aquisição de novas visões, reelaboração de conceitos e reformulação
de teorias. E foi o que ocorreu. Neles, percebemos vários confrontos
de análises em torno das narrativas e de eventuais conceitos, como é
o caso de cultura, identidade e o próprio mito.
O mito foi pensado como dimensão poética, produto da sen-
sibilidade. As narrativas míticas são poiesis, à medida que se tornam
arte criadora. A mitopoética recupera, no plano poético das imagens,
o sentido estético perdido ou desencantado que o conhecimento
científico em sua trajetória unidimensional nos retirou ou discipli-
nou. Etnopoesia refere-se ao estudo – por vezes assistemáticos – dos
conceitos e das experiências estéticas situado no campo do imaginá-
rio poético de certas narrativas locais. Daí serem também chamadas
de Etno-estéticas. Demos especial relevo a etnografia e etnologia de
Nunes Pereira por entender que suas pesquisas não ficaram circuns-
critas e limitadas apenas ao império da palavra poética, o que fez di-
recionar sua atenção para a performatividade do narrador indígena.
- 123 -
Durante séculos as narrativas surgidas na tensão do contato
– primárias (orais) ou derivativas (escritas); indígenas ou não indí-
genas – possibilitaram um efeito poético marcado por um desdizer,
às vezes por um dizer além ou aquém, uma espécie de clivagem, mais
precisamente um desvio inventivo por uma sedução que remete ao
desejo de aventura errante da palavra do qual o registro escrito e
as próprias narrativas orais não conseguiam aprisionar ou aclimatar
por muito tempo. O espírito humano cioso por peripécias sempre
deu um jeito de acrescentar um tom, um suspiro, um sentido e um
som transgressor as suas narrativas e delas elaborar um terreno fértil
à criação. Policromia e polifonia como tributárias da Mitopoética do
qual se produz uma dissonância criativa e cognitiva.
Numa obra primorosa, intitulada Poética do Traduzir, Henri
Meschonnic (2010, p. XXXVII), empresta-nos uma linha de racio-
cínio que acompanha o sentido mitopoético de nossa pesquisa no
tocante a traduzibilidade das narrativas:
- 124 -
turas humanas não é resultado do isolamento dos grupos, mas antes,
das relações de proximidade e tensão à semelhança de um “jogo de
espelhos”. Para ele, o outro está sempre às margens da tribo. Nessa
dinâmica é comum a inversão de polaridades entre vilões e heróis,
mocinhos e bandidos, índios e brancos, de onde as identidades são
inventadas se retroalimentando mutuamente.
Lamentavelmente ainda persistia a ideia (se é que deixou de
persistir) que só uma identidade preservada e monolítica seria capaz
de narrar o passado em toda a sua fonte de verdade e beleza. Da mes-
ma forma em que os compiladores de mitos não podiam deixar-se
levar demasiadamente pelo imaginário pueril das narrativas indíge-
nas, imunizando-se – sempre que possível – de todo risco de conta-
minação que elas continham na mais inocente palavra, nos gestos
histriônicos, na oscilação entre o olhar frenético e catatônico do nar-
rador mais entusiasmado; nos delicados gracejos de sua onomato-
peia em torno de uma “zoologia mestiça”, onde o homem era animal
e o animal era humano (LAPLANTINE; NOUSS: 2002, p.50); num
tempo onde a “literatura” aproximava cultura e natureza, humanida-
de e animalidade, desmoronando fronteiras à semelhança dos contos
de Esopo e La Fontaine, compiladores dessa memória poética em
plena equivalência com a ancestralidade de muitas narrativas orais.
O narrador e o conjunto das narrativas mitológicas foram
reduzidos à técnica mnemônica – mnemotécnica – pretensamente
capaz de descrever o passado imemorial em sua fidedignidade e pu-
reza. Aqui, o sentido de arte poética e, mais particularmente, de mi-
topoética das narrativas indígenas se vê fadado à mera reprodução
de imagens mentais quase sempre confusas e contraditórias em sua
natureza pueril, desarticulada de toda fonte criadora e autonomia
inventiva do qual o narrador é plenamente capaz em sua performa-
tividade artística.
Diferentemente da mitologia a Mitopoética enseja atuar sua
complexidade num campo mais hermenêutico, ensaiando o desejo
incontido de interpretação à semelhança de uma semiótica da cultu-
ra e dos meandros da linguagem humana que, por ser poética e não
apenas prosaica, se revela em doses homeopáticas e sempre às bordas
dos cânones da ciência. Talvez por essa razão o sentido de compila-
ção das narrativas seja menos gravação-reprodução, escondendo um
desejo de aprendizado ontológico por onde transita a rede de fios
- 125 -
invisíveis da palavra poética e seus efeitos. No percurso dessa dupla
aventura (cognitiva e semiótica) ocorrem desvios, rupturas, descon-
tinuidades, descaminhos e, sobretudo, oscilação entre a tradição e
tradução.
Esse aspecto da tensão entre tradição e tradução já havia sido
observado por Stuart Hall, no tocante a emergência de identidades
culturais em transição, por onde a tradução de uma cultura a outra,
mediadas aqui pelas narrativas, ensaiam a busca por novas possibili-
dades de reconfigurações identitárias. Vejamos:
- 126 -
A esse aspecto acrescenta novamente Meschonnic (2010, p.
30):
- 127 -
mundos construídos sob a herança do etnocentrismo e dos escom-
bros da colonização.
No prefácio a obra de Meschonnic, Jerusa Pires Ferreira ofe-
rece-nos um comentário acerca da arte de traduzir e as tensões em
ritmar a oralidade e a escritura como um exercício de uma laboriosa
poética do inacabamento à semelhança de um ourives e a lapidação
de seu diamante:
- 128 -
realizações e efeitos poéticos entre a Europa (Decameron, de Bocac-
cio), África (Decameron Negro, de Frobenius) e América (Decame-
ron Indígena, do próprio Nunes Pereira). E aquilo que eram apenas
homologias e “propriedades comuns” adquire o status de mutabi-
lidade, nomadismo e movência poéticas, face ao vigoro esforço de
suas reinvenções, transpondo tempos e lugares. A arte da sedução
das narrativas vem de longe, transpõe fronteiras e se fortalece em
seus efeitos mitopoéticos um sujeito de enunciação mais coletiviza-
do. Deleuze (1997, p. 14-15) percebeu essa idiossincrasia no proces-
so de escritura literária: “embora remeta sempre a agentes singulares,
a literatura é agenciamento coletivo da enunciação”.
Barbosa Rodrigues produziu o conjunto de suas compilações
baseadas em narrativas indiretas, nas adjacências de aldeias e po-
voados ribeirinhos, mestiços e destribalizados; ainda assim manteve
contato com pajés e narradores indígenas. O mais grave de tudo, no
entanto, talvez tenha sido o “método” de sua etnografia funcionalista
e monovalente, centrada apenas na fala, na palavra e no texto do
que lhe convém a traduzibilidade semântica, no conteúdo que inter-
liga a trajetória Améria-Ásia e, principalmente, a fala que se torna
agradável aos ouvidos por meio de uma obsessão cromática pelas
pedras encantadas. Descreve a atmosfera daquilo que almeja escutar
e justificam suas hipóteses apresentada por uma escrita unidirecio-
nal de um observador centrado em si mesmo. Ainda que os crité-
rios tenham sido monológicos, sem perceber, realizou sua criação
mitopoética. Aquilo que seria o resultado de uma densa coleta de
materiais, de investigação sólida, plenamente metrificada em dados
e cálculos, felizmente se transmutou de um estágio itinerante e cons-
ciente a uma etnografia poeticamente “itinerrante” em meio a uma
Amazônia nômade e imaginária.
De acordo com Meschonnic (2010, p. XXXI): “a poética é um
nomadismo das obras, dos discursos, não das palavras. O menor
poema, o menor conto infantil frustra uma armadilha grosseira que
já serviu demais, e em que estão embaraçados os tradutores”.
Sua Mitopoética é baseada pelo assombro do que se fala (e
não pela escuta atenta de quem fala) e da palavra-signo do narrador
mestiço do qual o seu texto também carregará essa marca de mesti-
çagem. Sendo influenciado pela linguística de Max Müller, preocu-
pou-se mais com uma etnografia da língua e dos códigos classificató-
- 129 -
rios que ela contém, negligenciando os cuidados com a estrutura do
discurso, o que desencadeou um nivelamento etnocêntrico da tradu-
ção. Ainda nesse aspecto Meschonnic (2010, p 31) adverte-nos das
armadilhas da tradução em querer “transformar o outro no mesmo.
A tradução é, então, aquilo que é muitas vezes, o etnocentrismo e a
lógica da identidade – a apagamento da alteridade”.
Em Barbosa Rodrigues operou-se o registro de um escriba en-
feitiçado pelas narrativas que curiosamente pouco escutava em razão
de estar obcecado pelos signos que compensassem sua investigação.
Segundo Barthes, em O Óbvio e o Obtuso (1990, p. 217), “ouvir é
um fenômeno fisiológico; a escuta é um ato psicológico”. Na ocasião,
Barthes diferencia três tipos de escuta, sendo oportuno registrá-las
aqui, situando melhor o nível de escuta do naturalista em sua obsti-
nação pelos signos filológicos que a palavra carrega:
Segundo um primeiro tipo de escuta, o ser vivo dirige sua
audição (o exercício de sua faculdade fisiológica de escutar) para
índices; neste nível, nada distingue o animal do homem: o lobo escu-
ta um ruído (eventual) de caça, a lebre um ruído (possível) de agres-
sor, a criança, o namorado, escutam os passos que se aproximam e
que poderão ser os passos da mãe ou do ser amado. Esta primeira
escuta é, se assim podemos dizer, um alerta. A segunda é uma de-
cifração; o que se tenta captar pelo ouvido são os signos; aqui, sem
dúvida, é a vez do homem; escuto da mesma maneira que leio, isto
é, mediante certos códigos. A terceira escuta, enfim, cuja abordagem
é moderna (o que não quer dizer que seja superior às outras duas),
não visa – ou não espera – signos determinados, classificados: não
aquilo que é dito, ou emitido, mas aquele que fala, aquele que emite:
deve ser desenvolvida em um espaço intersubjetivo, em que “escuto”
na verdade quer dizer “escuta-me”; a escuta apodera-se, pois, para
transformá-la e lançá-la sem cessar no jogo da transferência, de uma
“significância” geral, que já não é concebível sem a intervenção do
inconsciente.
Possuído pela mãe das musas, Mnemosine, em seu estado ar-
caico que buscava tão somente o registro e decifração da fidelidade
precisa dos signos em sua pura identidade perdida na memória do
tempo e que só inspirou ainda mais sua neurose e, simultaneamente,
sua criação mítico-literária. Foi o efeito do Inãron (já descrito ante-
riormente) que permitiu sua inspiradora jornada solipsista em rios
- 130 -
e matas amazônicas e voltar à cidade de Manaus e mais tarde ao Rio
de Janeiro para compor sua polifonia mitopoética.
Em Nunes Pereira produziu-se um contato com narrativas
em fontes primárias, convivendo em aldeias com diferentes etnias
o que lhe permitiu maior interação e sensibilidade em marcar sua
escritura sob o signo de uma poética da escuta, enriquecida pela dia-
logia do contato mais intimista com os narradores, atento em sua
performatividade e arte verbal. Sem dúvida que sua etnografia tem
a marca de outra mestiçagem, da ciência salvacionista de um lado
e da sensibilidade indígena, de outro. Enquanto a mestiçagem et-
nográfica de um Moronguetá e Bahira são mescladas entre ciência,
escuta e experiência indígena, o hibridismo cultural de uma Poran-
duba Amazonense e O Muyraquitã acontecem no engendramento
entre ciência positiva, signos linguísticos do espólio indígenas e sua
traduzibilidade em si mesma, tomando a experiência fonética de
muitos nativos em seu nivelamento e proximidade com línguas de
outros continentes, sempre em razão de suas “propriedades comuns”.
O próprio Nunes Pereira registra por caminhos diferentes o aspecto
de sua mestiçagem etnográfica numa passagem de Bahira e suas Ex-
periências (1940, p. 9-10):
- 131 -
mesmo tendo o caráter coloquial, não prescindia de um alto grau de
formalização do diálogo encenado. Saber falar e saber escutar cons-
titui um princípio de reciprocidade, uma troca simbólica, por meio
de polos equidistantes que representam uma escala de sociabilidade
poética.
As narrativas coletadas por Nunes Pereira não contradizem,
em princípio, os argumentos de Benjamin, no entanto, percebe-se
uma separação entre o tempo e o lugar que melhor acolhe os relatos
míticos, bem como a diversidade desses relatos adequados – cada
um em seu tempo e lugar – conforme o tema e as circunstância como
se deles presumíssemos uma espécie de geopoética, aquilo que cons-
titui sua topofilia. Disso decorre uma etnografia do limiar: uma et-
nopoesia dos muyraquitãs, porandubas e moronguetás.
A oposição dia e noite não constitui critério exclusivo das nar-
rativas e elas podem ocorrer a qualquer momento, muito embora
em alguns povos ocorram sanções e algumas restrições em relação a
participação de mulheres. Ainda assim, narrar parece ser uma ativi-
dade essencialmente noturna, quando a atividade produtiva é desa-
celerada e todos se veem extasiados pela elocução dos mais velhos;
de longe os animais noturnos abrilhantam e corroboram com o en-
redo, poupando por vezes o narrador do recurso da onomatopeia,
dada a coincidência em que a língua dos bichos se pronunciava em
diferentes tons e intensidades como quem participa ativamente da
cena. Como num efeito de magia as polaridades se invertem e, em
razão de instantes, o narrador deixa de ser protagonista do enredo e
assiste atento, a “fala” dos bichos como mero expectador ou figuran-
te. Natureza e cultura combinam arte e magia.
A fala durante a noite é mais coloquial, geralmente acompa-
nhada de maior inspiração poética, estimulando o alimento da alma
e aguçando os sentidos da imaginação, sendo um convite aos espíri-
tos (bons ou maus) se reconciliarem com quem os afrontou; do con-
trário, aterrorizando ainda mais aqueles que os desafiaram. Podemos
arriscar em dizer que a mitopoética de Nunes Pereira foi enluarada
pelo regime noturno, na atmosfera crepuscular, assistindo ao espetá-
culo que inaugura ao longe o cintilar dos primeiros raios de sol. Ao
passo que as narrativas de Barbosa Rodrigues carregam um estigma
solar, do regime diurno, mas também engendrado pela imagem cre-
puscular de quando o sol se põe. Lua e sol carregam esse estigma de
- 132 -
natureza e cultura do qual as narrativas nos dão conta em sua eterna
proximidade-distância, de “equidistantes erráticos” e “simétricos in-
vertidos”. O crepúsculo simboliza a dialogia desse encontro poético e
Rudá, gênio do amor, é o grande demiurgo desses efeitos.
O que se pretende destacar é, entre outras coisas, o mecanismo
de auto-criação do mito, sua dispersão e refração do qual as narrati-
vas atingem certo grau de refinamento do enredo e elevada condição
de mobilidade estético-ritual. Esse aspecto foi bem registrado por
Barthes, em sua obra Mitologias (2001, p. 153-154), vejamos:
- 133 -
abrigos. Tuas ideias iniciais só repetem palavras antigas. Jovem:
velho papagaio. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra
grega pedagogia. Aprender lança a errância.
- 134 -
O mimetismo gera desdobramentos como resultado da obra
imitada e quando não conduz o foco da imitação para o campo de
divergências pontuais, certamente acabará por gerar rivalidades.
Esse efeito fica mais evidente no caso das narrativas literário-cien-
tíficas de Barbosa Rodrigues que toma o mito como oponente da
ciência e recorre a eles como alegorias e pistas para a afirmação de
sua tese sobre a origem do homem americano e o lugar de origem
dos muyraquitãs. Já em Nunes Pereira essa fratura do mito e razão
não é tão acentuada e em muitos casos ele percebe nas narrativas
indígenas um desdobramento das representações do qual a ciência
deve reconhecer sua importância. Em ambos os casos a mitopoé-
tica potencializa oposições complementares, divergências pontuais,
rivalidades miméticas de profusão criativa, mais também tenta cica-
trizar – quando possível – resquícios de quaisquer ressentimentos
poético-literários que porventura se dera no ato da recepção-tradu-
ção-transcrição, já que seus interlocutores reinventam caminhos de
sublimação por meio de novas narrativas.
À semelhança de uma mandala, início e fim se encontram e
dançam como um arlequim multifacetado na roda-viva da criação
em seus efeitos poéticos mais variados. Metáfora utilizada por Mi-
chel Serres no primeiro capítulo de sua Filosofia Mestiça (1993) e
representa a ideia de multiculturalidade e a compreensão de outro
dentro de si, a acolhida ao diferente por meio da multiplicidade que
agrega elementos de mestiçagem. Seu corpo é multifacetado e prova-
velmente sua visão configure um caleidoscópio.
Aprendemos com René Girard que o desejo é sempre uma
potência mimética e surge – no caso da oposição entre narrativas
indígenas e científicas – como elemento mediado. Desejamos indire-
tamente e o objeto de nosso desejo não é determinado por nós cons-
cientemente, mas aparece nas tramas, nas armadilhas cognitivas, nas
redes invisíveis de significação, nos rizomas que nos envolvem e na
vibração constante entre memória e esquecimento.
É dessa fonte de criação invisível ao imediatismo da consciência
que nascem os insights imaginativos, as sinapses inventivas e do qual
denominamos mitopoética. Dela, surge um sem número de outras
narrativas escritas que, por sua vez, se colocaram na escuta de ou-
tras narrativas orais indígenas. Esse exercício também acrescenta
certa excelência no ofício estético-ritual daquela autoridade indíge-
- 135 -
na responsável pela narração que agregará sempre novos elementos
ao enredo, alterando as peripécias sempre que possível e dotando o
conteúdo de refinada mobilidade e leveza.
Essa autonomia permite que uma narrativa nunca seja conta-
da da mesma forma pelo mesmo narrador e sempre se mostre ajustá-
vel ou transgressora conforme a dialogia entre reminiscências e ima-
ginação do narrador, alterando os condimentos conforme a atenção
e interesse do receptor. Disso resultará o sabor de cada tempero, o
paladar de sua combinação e, sobretudo, a digestão saudável e criati-
va da mitopoética como prato principal. Essa tensão entre imitação
e elaboração foi bem analisada por Girard (1998, p. 186) no tocante
ao desejo mimético:
Referências
- 136 -
São Paulo: Editora 34, 1997.
FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura das Bordas. São Paulo: Ateliê,
2010.
GIRARD, René. A violência e o Sagrado. Tradução de Martha Concei-
ção Gambini. Prefácio e revisão técnica de Edgard de Assis Carvalho.
São Paulo: Paz e Terra, 1998.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Tradu-
ção de Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.
KOCK-GRÜNBERG, Theodor. Del Roraima al Orinoco. Vol. I, II e
III. Caracas: Banco Central da Venezuela, 1979-1982.
KRISTEVA, Júlia. Séméiôtiké: Recherches pour une sémanalyse. Pa-
ris: Seuil, 1969.
KRISTEVA, Júlia. Introdução à Semanálise. Tradução de Lúcia Helena
França Ferraz. São Paulo: Perspectiva, 2005.
LAPLANTINE, François. NOUSS, Alexis. A Mestiçagem. Tradução
de Ana Cristina Leonardo. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. Tradução de Ma-
ria Celeste da Costa e Almir de Oliveira Aguiar. São Paulo: Nacional/
EDUSP, 1970.
MESCHONNIC, Henri. Poética do Traduzir. Tradução de Jerusa Pi-
res Ferreira e Suely Fenerich. Prefácio de Jerusa Pires Ferreira. São
Paulo: Perspectiva, 2010.
PEREIRA, Nunes. Bahira e suas Experiências. Etnologia Amazônica.
(Edição do Autor). Belém: Composto e impresso na Livraria Escolar e
Casa Editora, 1940.
__________. Moronguetá. Um Decameron Indígena. Vol. I e II. Rio de
Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1980.
PINHEIRO, Harald. Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e
Moronguetás: ensaios de antropologia, estética e etnologia amazônica.
São Paulo/Manaus: Alexa Cultural – EDUA, 2021.
RODRIGUES, Barbosa. Poranduba Amazonense. Annaes da Biblio-
teca Nacional. Tomo XIV. Rio de Janeiro, 1890.
- 137 -
__________. O Muyraquitã. Estudo da Origem Asiática da Civiliza-
ção do Amazonas nos tempos Prehistóricos. Vol. 1. Manaus: Typografia
do Amazonas, 1889.
__________. O Muyraquitã e os Ídolos Simbólicos. Estudo da Ori-
gem Asiática da Civilização do Amazonas nos tempos Prehistóricos.
Vol. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1899.
SAMOYAULT, Tiphaine. Intertextualidade. Tradução de Sandra Ni-
trini. São Paulo: Hucitec, 2008.
SERRES, Michel. A Filosofia Mestiça. Le Tiers-instruit. Tradução de
Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
- 138 -
MANAUS: UM CAMPO LITERÁRIO?
AUTORES E OBRAS MULTIFACETADAS1
Resumo
O presente capítulo apresenta uma reflexão literária e sociológica dos livros pu-
blicados entre os anos de 1976 e 2000, todos com temática referente a Manaus
e de diferentes gêneros literários. São eles: As folias do látex, de Márcio Souza
(1976), O tocador de charamela, de Erasmo Linhares (1979), Visgo da terra, de
Astrid Cabral (1986), Manaus, as muitas cidades, de Aldísio Filgueiras (1994),
Chão e graça de Manaus, de Genesino Braga (1995) e Dois irmãos, de Milton
Hatoum (2000). O objetivo foi compreender de que forma a história, a sociologia
e a literatura se entrecruzaram nestas produções literárias. Para isso, foram con-
siderados elementos linguísticos e extralinguísticos. Tais elementos compuseram
a leitura transversal dos livros, ação que culminou na percepção da gênese his-
tórico-sociológica do campo literário manauara e nas instâncias de legitimação
e na representação de Manaus nos livros de literatura, resultando em uma crítica
aos modelos de percepção da realidade empiricamente representada. O aporte
teórico do estudo tem base epistemológica em Bourdieu (1968), Loureiro (2001),
Benchimol (2009), dentre outros de mesma relevância.
A título de introdução
- 139 -
ca das condições sociais nas quais os autores estavam imersos e que,
possivelmente, predeterminaram a escolha de Manaus como tema,
em circulação à época, a ser representado. Assim como os diferentes
períodos históricos retratados, os diversos gêneros literários que cir-
culavam e os variados assuntos abordados, ou seja, as modalidades
de percepção do objeto, que foram escolhidas para a representação
artística realizada pelos autores.
Tais autores e seus escritos foram escolhidos consoante os se-
guintes critérios de seleção: tema, gênero literário, nível de lingua-
gem, período de publicação e reconhecimento pelo público em geral.
A intenção foi produzir uma análise em que fosse possível perceber
como os fatores intrinsecamente relacionados ao campo da literatura
se interrelacionam com os da sociologia, resultando em uma investi-
gação mais completa e estruturada do assunto em questão.
Quanto ao tema2, os autores escreveram a respeito de Manaus
em diferentes possibilidades de sentido, ou seja, representando-a po-
sitiva ou negativamente. A depender dos assuntos abordados, como
os problemas sociais da época; as características visuais dos monu-
mentos; os pontos da cidade, como ruas, lojas, mercados, praças,
palacetes; os aspectos naturais, como o clima, a geografia, os rios, a
floresta, a flora e a fauna.
O gênero literário corresponde às produções escritas no cam-
po da literatura. Essa categorização possui em sua estrutura o as-
pecto formal que permite uma “classificação” quanto aos aspectos
semântico, sintático e morfológico, que oferecem à analise diferentes
elementos a serem observados.
Em relação aos níveis de linguagem, todos os textos foram edi-
tados e publicados, ou seja, estão no nível da escrita. Excluindo-se as
produções literárias orais, não por contestar a autenticidade destas
produções, mas por considerar os objetivos e limites desta pesquisa.
Já o período de publicação, refere-se aos livros publicados na
fase dita “modernista” da produção escrita do Estado do Amazonas.
Por mais que o tema retrate outras épocas históricas, todos eles fo-
ram publicados nessa mesma fase.
- 140 -
Por fim, o reconhecimento pelo público em geral. Este critério
revela que os escritores já foram homenageados ou premiados por
alguma instituição de premiação literária ou cultural, ao menos no
âmbito local, sendo assim, os referidos escritores passaram pelas crí-
ticas de consagração e legitimação.
Esses critérios permitiram a escolha dos autores dentro de um
universo de difícil estatística, pois muitos escritores locais, e até mes-
mo de outros lugares, produziram textos referente à cidade de Ma-
naus. Todavia, os critérios de seleção foram baseados nos elementos
de análise e crítica literária realizadas no campo intrínseco à produ-
ção literária, principalmente, mas também no campo da sociologia,
quando se propõe a estudar a posição dos escritores na estrutura do
campo da produção literária e artística.
- 141 -
de Edinea Mascarenhas Dias (1999; 2007), Ana Maria Daou (2014),
Márcio Souza (2009) e Mário Ypiranga Monteiro (1977) – mesmo
que seus escritos tenham sido referentes a diferentes teorias e escolas
de pensamento) uma orientação, ou melhor, uma análise sociológica
do modo como a literatura vinha se desenvolvendo no Estado. Já
apontando claramente os modelos de representação que os escritores
da região Norte, e de outras regiões também, estavam sempre indu-
zidos a “reproduzir”. Ou seja, uma literatura “importada”, que mes-
clava a abordagem dos temas locais à forma “padronizada” dos gêne-
ros literários produzidos pelos escritores do sul do país.
Para Mário Ypiranga Monteiro (1977), tanto os escritores
quantos os estudiosos da literatura local deveriam evitar o simples
conhecimento dos modelos preconcebidos da historiografia literária
– essa crítica refere-se aos manuais que abordam a história da lite-
ratura brasileira, incluindo, certamente, os livros de Sílvio Romero
(1980) e José Veríssimo (1963).
Monteiro (1977, p. 13) aponta algumas razões pelas quais seria
inviável tentar despertar uma consciência literária na região partin-
do das “histórias da literatura”, mesmo estes sendo registros extensos
e documentados. Eis as razões que o autor elencou:
a) “Seleção de autores pelos tratadistas e portanto limitação a
nível de conhecimento”;
b) “Maneira de encarar o fenômeno literário brasileiro”;
c) “Omissão de alguns Estados nas antologias, por suspeita hi-
postásica de carência de valores”;
d) “Decisão arbitrária na redução ao máximo das representa-
ções ditas em tom pejorativo ‘provincianas’”;
e) “Carência de competence de tratadista em assuntos amazô-
nicos, consoante se tem observado à continuidade (1)”;
f) “Encarecimento progressivo das enciclopédias que tentam
encarar e resolver com honestidade as dificuldades margina-
das”;
g) “Ignorância dos conteúdos das obras e de uma longa pers-
pectiva literária universal da parte do usuário, tanto quanto
presumidamente do professor”.
- 142 -
essa percepção a partir da maneira como foi encarado o fenômeno
literário e, consequentemente, o conhecimento desse escritor acerca
do campo literário, pois disso dependeu, por exemplo, a escolha
dos literatos que comporiam a “história da literatura”. Para essa
seleção, o escritor deveria ter um amplo conhecimento das variadas
manifestações literárias, nas suas mais diversificadas formas, e das
várias culturas coexistentes à época.
A falta da inclusão de livros pela não percepção do seu devido
valor, enquanto livro de literatura, por terem sido escritos distantes
dos “grandes centros” culturais, corrobora uma decisão estigmatiza-
da em relação aos Estados descentralizados do sul e sudeste do país.
Atitude que certamente excluiu livros de grande valor histórico/li-
terário, como foi o caso do romance histórico do alto Amazonas,
Simá (1857) – que narra as lutas entre indígenas e portugueses –, do
escritor Lourenço da Silva Amazonas, que não apareceu em nenhum
dos dois livros, no de Romero (1980) e no de Veríssimo (1963), de
história da literatura brasileira.
O não conhecimento aprofundado das realidades das provín-
cias (em termos de crenças, costumes, valores, cultura de uma forma
geral), preconceituosamente vistas como inferiores, portanto, sem
ou de baixo teor literário, colocava à margem um grupo significativo
de escritores que, em outros momentos, foram eleitos como grandes
personalidades locais por contribuírem com o desenvolvimento da
cultura literária local. É o caso de alguns autores que compõem esta
pesquisa.
O desconhecimento dos conteúdos dos livros, uma vez que as
“histórias” retratam majoritariamente de forma descritiva, quando
muito temática. Em decorrência disso, os livros elencados impossi-
bilitavam uma reflexão crítica da leitura e das especificidades intrin-
sicamente referentes ao seu conteúdo.
E por fim, mas tão importante quanto os demais itens, o difícil
acesso aos livros, devido ao seu alto custo, condicionando apenas a
determinados grupos o privilégio de ter o contato mais próximo e
mais aprofundado com os escritos.
Dessa crítica realizada por Monteiro (1977), é válido fazer re-
ferência ao modo como a atividade literária deveria ser realizada.
Nesta questão, ele dialoga com um dos escritores da História da lite-
- 143 -
ratura, Sílvio Romero, ao defender a ideia de que a literatura devia
abordar em suas análises as questões de outros campos do conheci-
mento, como a filosofia, sociologia e antropologia, negando a ideia
de que a literatura não deveria ser apenas um meio de ensino da gra-
mática normativa, porque têm em sua linguagem, em muitos casos,
estruturas formais eruditas da língua.
O autor afirma o seguinte a esse respeito:
- 144 -
deficiente, ou melhor, reduzida, uma das funções mais importantes
do texto literário, que é despertar o senso crítico para as questões
culturais em que os homens estão imersos. Em consequência, o ter-
ceiro ponto, a não consciência dessa função, que torna o leitor, cada
vez mais, um mero recebedor do que lhe é imposto como verdade.
O último ponto, que está de certa forma relacionado ao ante-
rior, diz respeito aos meios de divulgação, que a depender do interes-
se de quem ocupa os cargos, “autoriza” o que deve e o que não deve
ser publicado. Essas escolhas, muitas vezes, acontecem de maneira
arbitrária, não considerando a verdadeira importância do material,
em termos de conteúdo, mas, sim, considerando-se o interesse co-
mercial, visando primeiramente o lucro. Sendo assim, são esses “crí-
ticos” – os que selecionam os textos para publicação – que compõem
as editoras, ou seja, umas das instâncias de legitimação.
Diante desse cenário, as produções escritas foram sendo cria-
das mais isoladamente, salvo em alguns raros casos de escritores
que possuíam condições econômicas para custear os investimentos
na carreira de escritor (se é que posso ousar em afirmar que exista/
existiu profissional que vive/viveu exclusivamente deste ofício em
Manaus), cujo próprio campo demandava e, até certo ponto, ainda
demanda. Essa circunstância excluiu um relativo número de auto-
res que produziram literatura, principalmente a partir da criação do
movimento Clube da Madrugada, mas não tiveram quase nenhuma
visibilidade no campo literário.
Porém, a existência de um campo intelectual literário conso-
lidado na cidade seria necessária para o estabelecimento de relações
sociais capazes de sistematizar a atividade da produção intelectual.
E estar inserido no campo possibilitaria ao escritor o conhecimento
de sua obra por seus pares e, posteriormente, também a consagra-
ção ou não por membros que possuíam a condição de “julgadores”.
Bourdieu (1968, p. 126-127) oferece certos dispositivos analíticos
para chegar a essa conclusão quando afirma, referindo-se à noção
de campo, que
- 145 -
função, por sua posição nesta estrutura e, pela autoridade, mais ou
menos reconhecida, isto é, mais ou menos forte e mais ou menos
extensa, e sempre mediatizada por sua interação, que elas exercem
ou pretendem exercer sobre o público, ao mesmo tempo capital e,
em certa medida, árbitro da competição pela consagração e legiti-
midades intelectuais.
- 146 -
informações contribuem para uma análise mais apropriada e singu-
lar das obras em questão. Contudo, é valido ressaltar que a contex-
tualização se fará a partir da ideia e noção de Amazônia tal qual foi
construída por produtores intelectuais da região, e que foi cristali-
zada nos discursos reproduzidos institucionalmente, tornando-se
verdade natural3; em confronto com uma crítica que se faz aos es-
quemas interpretativos sobre a Amazônia de um modo geral.
A essas verdades naturais, Almeida (2008) apresenta a ideia de
arquivo (archivo), afirmando,
- 147 -
Estes dois lugares são os que aparecem com muita frequência
nos textos literários. Desta forma, são apresentadas as vivências ora
nas cidades, ora no ambiente rural. Loureiro (2001, p. 65) apresenta,
de forma esclarecedora, e de acordo com o seu ponto de vista, as ra-
zões pelas quais esses dois ambientes divergem e se complementam
(em algum momento), ao afirmar que:
- 148 -
a última citação longa, a de Loureiro (2001, p. 65) já apresentada
acima, dando-se maior ênfase às expressões em negrito.
O Forte de São José do Rio Negro (a atual cidade de Manaus)
registra a sua fundação no ano de 1669 (SOUZA, 2010, 2009; DIAS,
2007; DAOU, 2014). Com a população majoritariamente formada
por indígenas que conviviam dentro do mesmo espaço geográfico,
sem “leis” que determinassem ou proibissem nenhum lugar especí-
fico para a habitação, a convivência se dava a partir das práticas de
diferentes costumes, específicos das diferentes etnias da região, ou
seja, práticas que se originaram da relação entre o homem amazô-
nico e o seu ambiente natural. Essa tradição, herdada culturalmente
dos antepassados, tentava perpetuar a cultura através do convívio
entre os nativos.
Porém, em meados do século XIX os viajantes que passaram
registraram não somente o modo de vida dos indivíduos, mas o quão
promissora era essa região, tanto por suas especificidades naturais
(fauna e flora) quanto pelos diversos costumes das povoações que
habitavam – viam, justamente nesta questão, a necessidade de “civi-
lização” dos nativos. Desta forma, Francisco da Mota Falcão ergue a
atual cidade de Manaus:
- 149 -
to de anarquia social das massas incultas, perdendo-se assim um dos
fios da meada do processo histórico da Amazônia” (SOUZA, 2009,
p. 211).
Os próximos episódios registraram a continuidade do proces-
so de transculturação pela qual passou a população local após a colo-
nização europeia chegar à Amazônia. Os historiadores Souza (2008)
e Dias (2007) descreveram esse processo que retirou dos habitantes
da região o direito de ser índio, impondo novos costumes e tradições
por meio dos conflitos, principalmente os armados, realizados em
toda a região, exterminando, muitas vezes, nações indígenas inteiras,
como é o caso da nação Muhra, fato que inclusive proporcionou ao
soldado lusitano, João Wilkens, o codinome de “poeta do genocídio”,
por ter versificado o poema A muhraida, uma espécie de louvor à
subjugação da nação Muhra pelas tropas portuguesas. Acrescentan-
do-se, ainda, que se trata do primeiro poema escrito na Amazônia,
portanto sendo registrado historicamente como o primeiro texto
literário da região, “a poesia do genocídio”. As palavras de Souza
(2008, p.12-13) confirmam o fato histórico desta forma:
- 150 -
de transformação urbana extremamente acelerados, segregadores e
agressivos, nos quais a população pobre (consciente ou inconscien-
temente) perdeu o direito à prática de uma série de ações culturais
que formavam a sua identidade.
O resultado desse acontecimento histórico implicou a mo-
dificação da cultura local e, o pior, fez com que o próprio nativo,
na maioria das vezes, se envergonhasse da sua identidade cultural,
passando a adotar comportamentos estrangeiros incoerentes com a
realidade local. Por exemplo, a imitação do modelo de construção
de casas e edifícios, que inclusive ainda estão na região central de
Manaus, resistindo à ação do tempo; os hábitos alimentares, dando-
-se preferência à comida em conserva; a vestimenta, optando-se por
roupas de “estilo europeu”, mesmo tendo de suportar a alta tempe-
ratura local, enfim, esses são alguns exemplos oferecidos para se ter
noção da proporção do aculturamento que se deu na região. Con-
tudo, ainda se tem registro de etnias indígenas, principalmente as
que vivem mais distantes do centro da cidade, as ribeirinhas, que
lutaram/lutam para manter as suas tradições.
Benchimol (2009, p. 73) reafirma essa dificuldade durante a
colonização dos nativos dizendo: “(...) a grande luta foi a consolida-
ção dessa conquista em face à rebeldia das populações nativas, que
se opunham à escravidão, aos descimentos e às tropas de resgate,
mediante as quais se procurava a mão-de-obra nativa aos trabalhos
de colonização (...)”. Evidencia-se, cada vez mais, que apesar da pro-
funda influência portuguesa na cultura e na vida dos habitantes da
região amazônica, o processo de colonização não foi uma tarefa fácil,
pelo contrário, foi “dura e penosa”.
Já após o auge da exportação do látex, outro período históri-
co-socialmente significativo para a região, o declínio da sua comer-
cialização foi estarrecedor para a população de um modo geral, mas
também desesperador para os representes políticos e a classe domi-
nante à época, isso porque essa mesma classe não pensou em uma
forma de desenvolvimento de criação de políticas econômicas de
acordo com a realidade da região, além de não estabelecer também
políticas de desenvolvimento socioeconômicos. A ausência destas
ações beneficiou as firmas estrangeiras de importação e exportação e
as casas aviadoras que foram implementadas na região durante a co-
mercialização da goma elástica, isso porque seus investimentos não
eram pensados para o desenvolvimento local.
- 151 -
Além de tudo, o sistema implantado nos seringais amazônicos
para a extração do látex revela a exploração praticamente escrava
dos seringueiros (na maioria nordestinos, que fugiam da seca do
nordeste do país), e a técnica predatória da árvore produtora da ma-
téria prima permite perceber o quanto esses dois princípios foram
nocivos tanto à população local e à natureza, resultando numa série
de acontecimentos onde nem mesmo a classe dominante conseguiu
manter o status tão almejado e tão europeizado.
Outro marco importante da consolidação histórica da região
foi a implementação da Zona Franca de Manaus, criada em 1967
com a “intenção de modificar o sistema de transações e de criar um
acúmulo de poupanças locais (ou atraídas para a cidade), para a for-
mação de uma infraestrutura industrial e agropecuária (...)” (BATIS-
TA, 2007, p. 357), o que atraiu grande parte da população interiora-
na a morar na Capital. Consequentemente, por conta da imigração
desordenada, a cidade teve um grande “inchaço” populacional, re-
sultando numa incompatibilidade entre a oferta de mão de obra e
a demanda. Mais uma vez a população local mais desfavorecida se
encontrava sem políticas públicas que a amparasse e sem condições
dignas de alcance do objetivo de melhoria das condições de vida.
Souza (2010) registra que nesse período toda a geografia da ci-
dade se modificou, mas, principalmente, aumentou a marginalidade,
a prostituição, o tráfico de drogas, os assassinatos, enfim, a crimina-
lidade cresceu em grandes proporções e desenfreadamente, aumen-
tando ainda mais a distância da população mais carente à ascensão
social e econômica.
Já em relação ao campo intelectual, após um longo período de
tempo de estagnação no âmbito das produções literárias realizadas
academicamente, surgiu um manifesto literário chamado Clube da
Madrugada, em 1954, cujo objetivo principal era reagir à estagnação
cultural. Eles apresentaram críticas aos padrões culturais conserva-
dores e ao anacronismo moral e político, que embasavam o fazer his-
tórico da maioria dos escritores, até aquele momento. O manifesto
possuía um Estatuto cujo capítulo que tratava da natureza e finali-
dade do Clube apresentava determinações que autorizavam a livre
manifestação do pensamento, além de ter como propósito o estudo
dos diversos ramos das ciências, das letras e das artes.
A fundação do Clube possibilitou fazer com que muitos escri-
tores locais se sintonizassem com os novos ideais de “modernidade”
- 152 -
que surgiram na Semana de arte Moderna, realizada em 1922, em
São Paulo – porém foi com a geração de 45 que o clube teve uma
sintonização mais direta. Mesmo se considerando um longo perío-
do de tempo para a assimilação do Modernismo brasileiro, pois o
Clube surgiu trinta e dois anos após a Semana de Arte. Os artistas
locais sofreram os influxos desse movimento, garantindo à região
uma produção artística que representasse a realidade local. Contudo,
deve-se considerar que prenúncios dessa nova estética já acontecia
mesmo antes do surgimento do Clube, no entanto, como afirma o
prof. Marcos Frederico Krüger,
- 153 -
própria da região amazônica), próximo ao Café do Pina, localizado
no centro da cidade de Manaus. E, como afirma Telles (2014, p.
28), “sob a fronde da velha árvore, os jovens escritores realizavam
suas reuniões literárias e lançamento de seus livros”. Desta forma,
é notório que o Clube da Madrugada teve um importante papel
durante as lutas nacionalistas e, principalmente, “na formação
política e ideológica de Manaus”.
Esses acontecimentos, que marcaram a história da cidade de
Manaus, estão representados literariamente nos livros apresentados
neste texto. A literatura representa cada fato ocorrido por meio de
seu discurso literário, de sua ficcionalidade e pelo singular ponto de
vista escolhido pelo escritor. Desta maneira, percebe-se, por meio
dos diversos gêneros literários, munidos de suas especificidades, o
quanto o campo do fazer poético entrelaça realidade, sentimento,
ficcionalidade, sociedade e cultura, permitindo uma reconstituição
histórica distintiva, diferente de qualquer outro discurso dito cientí-
fico, que somente o campo artístico propicia.
Por fim, dois dos seis livros selecionados para o estudo foram
escritos pelos autores Astrid Cabral e Erasmo Linhares, ex-integran-
tes do Clube da Madrugada. Mas é necessário, antes de tudo, deixar
evidente que as análises feitas exercitam um olhar crítico a respeito
das noções de biologismos, geografismos e dualismos, assim como
apresentadas por Almeida (2008), somando-se ao rigor da literatura.
Isso porque a intenção na análise foi fazer uma interpretação das in-
terpretações, um plano epistemológico que os autores realizaram da
cidade, em interlocução com diferentes campos do conhecimento.
- 154 -
para produção temática de vários textos literários, resultando numa
série de escritos, que variam em termos de gênero, mas representam
a cidade de Manaus literariamente até os tempos atuais.
Almeida (2008) explica a seleção dos temas que foram, e que
ainda são, usados por escritores a partir da ideia de “biologismos”,
“geografismos” e “dualismos” que se cristalizaram no imaginário so-
cial.
Para o antropólogo, essas ideias merecem análises críticas,
pois colocam à margem uma diversidade cultural que o senso co-
mum erudito, neste caso sendo representado pelos “interpretes e
comentadores” da região, ignora. Portanto, ele orienta que há neces-
sidade de se praticar uma investigação “detida” e “sistemática” desses
discursos, tendo como finalidade a compreensão do modo como a
percepção da realidade vai sendo construída no imaginário social a
partir das “autoevidências” e do uso de “metáforas hiperbolizantes”,
utilizadas pelos escritores. Que, muitas vezes, não passam de repe-
tições que se reproduzem e se difundem na academia e em muitas
instâncias de legitimação.
As leituras, análises e interpretações dos livros e dos escritores
permitiram compreender a forma, ou as formas, como a cidade de
Manaus foi representada nos livros de literatura, buscando-se exer-
citar um esforço de pesquisa que pretende também realizar uma crí-
tica a essas formas de percepção da realidade que foi empiricamente
representa pelos literatos. Portanto, acredito que fica explicado o fato
de analisar um conjunto de escritores que atuam no campo intelec-
tual, em específico o literário.
- 155 -
políticas públicas voltadas à classe baixa, e tantos outros assuntos
dessa ordem.
Assim, é notório que o escritor está preso às condições histó-
ricas de seu tempo e ao contexto em que está inserido, levando para
o seu texto o legado histórico das especificidades de tempos passa-
dos, apresentando ao leitor as representações que faz da realidade.
Tal representação pode ser remissiva a outros textos ou pode ser o
resultado da construção feita de reflexões ao longo da sua carreira e
das suas experiências, ou simplesmente das leituras que faz das coi-
sas que o cercam. As instâncias de legitimação analisam essas duas
possibilidades, emitindo o aval a partir da leitura interpretativa rea-
lizada, podendo ser apreciativa ou depreciativa. A noção de livro e
obra está intrinsecamente relacionada a essa questão.
Por outro lado, a restrição de divulgação dos objetos literários,
seja pela dificuldade de publicação ou pela ausência de um públi-
co formado por leitores críticos, relega os escritores ao anonimato.
Consequentemente, os seus textos ficam com a circulação restrita
nas universidades, e mais restrita, ainda, nos cursos específicos de
Letras.
Esse cenário favorece o aparecimento das “Sociedades de ad-
miração mútua”, isto é, grupos que passam a avaliar e apreciar as pro-
duções literárias de seus pares, emitindo pareceres que podem não
estar diretamente relacionados à análise do objeto artístico-literário,
mas à deferência que se tem pelo escritor. Que também pode estar
relacionado à questão do tipo de relação social que este desempe-
nhada no campo da produção intelectual. Essas sociedades passam a
nutrir uma adoração mútua.
- 156 -
estrutura dinâmica do campo literário, onde existem agentes (ou
escritores) isolados, mas também aqueles que estão bem inseridos,
com função bem definida e com uma posição na estrutura do cam-
po, com autoridade suficientemente capaz de consagrar e legitimar
as produções intelectuais dos seus pares.
No entanto, é necessário inserir à análise a existência de escri-
tores que, em busca de reconhecimento por parte do público e das
agências de consagração, tenta agenciamento fora do campo literário
local. Esses escritores passam a construir uma certa autonomia em
relação ao seu campo local, escrevendo e publicando independente-
mente das instâncias legitimadoras de sua região de origem. Contu-
do, é certamente possível que a relação que esse autor estabeleceu em
outro lugar, ou outro campo – como o político –, já o consagrou num
campo de produção intelectual.
Referências
- 157 -
FILGUEIRAS, Aldísio. Manaus, as muitas cidades. Manaus: Edição
do autor, 1994.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das letras,
2000.
LINHARES, Erasmo. O tocador de charamela. Org. Tenório Telles.
3. ed. Manaus: Valer / Governo do Esatdo do Amazonas / Edua / Uni-
Norte, 2005.
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Obras reunidas: poesia. São Paulo:
Escrituras, 2001.
MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fases da literatura amazonense. Ma-
naus, Imprensa Oficial, 1977.
ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. 7. ed. Rio de Ja-
neiro: J. Olympio; Brasília: INL, 1980.
SOUZA, Márcio. As folias do látex: vaudeville. Manaus: Prefeitura de
Manaus, 1976; 2007.
SOUZA, Márcio. A literatura no Amazonas: as letras na pátria dos
mitos. Poligramas 29, 9-26, jun, 2008.
SOUZA, Márcio. História da Amazônia. Manaus: Valer, 2009.
SOUZA, Márcio. A expressão amazonense – do colonialismo ao neo-
colonialismo. 3. Ed. Manaus: Valer, 2010.
TELLES, Tenório. Clube da Madrugada – Presença modernista no
Amazonas. Manaus: Valer, 2014.
VERÍSSIMO, José. História da Literatura brasileira: de Bento Tei-
xeira, 1601 a Machado de Assis, 1908. 4. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1963.
- 158 -
ARAÚJO LIMA E OS ESTIGMAS SOBRE O
CLIMA E O HOMEM DA AMAZÔNIA
Resumo: Este artigo procura recuperar o debate crítico de Araújo Lima, a partir
de seu livro Amazônia - a terra e o homem, a fim de refutar a tese de que o
clima, o meio físico e a raça eram os fatores responsáveis pelo atraso social,
econômico e cultural da Amazônia. Destacando seu papel como intelectual
comprometido em repor a Amazônia na agenda nacional e sua ação política
diante dos inúmeros cargos públicos que ocupou durante sua vida.
Introdução
- 159 -
relevância. Título acadêmico que expõe por inteiro o processo e os
mecanismos sociais de deslocamento que os jovens, oriundos dos se-
tores dominantes da região, eram obrigados a fazer para os grandes
centros no Brasil e na Europa1, em busca de formação em direito ou
em medicina2.
Automaticamente os filhos dos setores dominantes que pos-
suíssem formação em Direito ou Medicina se habilitavam para assu-
mir funções na esfera pública e ao mesmo tempo conferia legitimi-
dade para organizar a esfera cultural. Não é sem sentido que Araújo
Lima exerceu o cargo de diretor da Instrução Pública do Amazonas
entre os anos de 1917 a 1919; exerceu o cargo de prefeito de Manaus
de 1924 a 1929, ao mesmo tempo, que era membro ativo da Acade-
mia Amazonense de Letras participando de suas discussões na esfera
local e nacional. (BITTENCOURT, 1985, p. 100).
As ambivalências e contradições que atravessavam as relações
sociais e as lutas entre as varias frações de classe dominante, pelo
poder legítimo de conduzir os rumos políticos e culturais da região,
se alargavam com o processo de mudanças mais amplas em curso
no Brasil.
Esse momento indica as estratégias e práticas utilizadas, por
esses grupos, a fim de se reproduzirem e manter o papel hegemô-
nico na organização da vida social regional. Jovens intelectuais que
foram estudar em Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro ou até
mesmo na Europa, sem romper as ligações sentimentais, culturais e
históricas com a própria terra. Retornam a região com a missão de
1A propósito da necessidade de se deslocar para os grandes centros em busca de formação por
parte dos filhos das classes dominantes na Rússia Gramsci nos fala: “uma elite dentre as pes-
soas mais ativas, enérgicas, empreendedoras e disciplinadas vai para o exterior, assimila a
cultura e as experiências históricas dos países mais desenvolvidos do Ocidente, sem com isso
perder as características mais essenciais da própria nacionalidade, isto é, sem romper as li-
gações sentimentais e históricas com o próprio povo; feito assim seu aprendizado intelectual,
retornam ao país, obrigando o povo a um despertar forçado, a uma marcha acelerada para
frente (...)”(Gramsci,2004; 27). Há uma semelhança estrutural no processo de formação das
elites na Rússia e no Brasil e em particular no Amazonas, a missão de despertar o povo para
o progresso e a civilização é uma disposição comum em Araújo Lima, Arthur Cezar, Djalma
Batista e Tocantins.
2 Nas sociedades onde a base industrial é restrita e não se desenvolveram superestruturas
complexas, a maior parte dos intelectuais é do tipo tradicional, já que domina a produção
agrária e o latifúndio, daí nasce à vocação bacharelesca do advogado e do médico (Gramsci,
2004; 31). O fato da Amazônia não possuir uma base industrial explica a escolha feita pelos
filhos das classes dominantes entre direito ou medicina. Em uma sociedade que tem como
base econômica o extrativismo, as profissões que denotam prestígio são tradicionalmente di-
reito e medicina.
- 160 -
despertar a consciência do povo para o desenvolvimento e o pro-
gresso difundido pelo ideário positivista e romântico. Ideais que se
ajustavam as suas aspirações privadas (tornar-se escritor reconhe-
cido socialmente) e sua missão pública de repor a região na agenda
política nacional.
Uma geração amazônica desfrutou dos encantos da civiliza-
ção européia e trouxe para sua terra os hábitos de bom gosto, o poli-
mento social, o amor pelas coisas do espírito.
[...] há vários exemplos, relembre-se a figura do poeta amazonense,
Raimundo Monteiro, neto de um dos desbravadores dos seringais
do Madeira (seu avô fundou a cidade de Humaitá, que personifica
bem o homem de inteligência, de família abastada, graças à bor-
racha, típico da geração que viveu entre oitocentos e os primeiros
anos do século atual. Monteiro, muito moço, vai estudar na França,
como tantos outros jovens conterrâneos. E lá se enternece pelo vi-
ver parisiense [...]. (TOCANTINS, 1982, p. 125).
- 161 -
frações e classes dirigentes a fim de manter o status quo do grupo. Os
esquemas de pensamento adquiridos por meio das experiências esco-
lares, associado a uma ampla rede de relações sociais, foram decisivas
para que Araújo Lima tivesse um papel de destaque na esfera políti-
ca e cultural regional e ao mesmo tempo o habilitaram para assumir
a Inspetoria de Educação e a Intendência Municipal (prefeitura) de
Manaus. É possível afirmar que a maior parte do quadro dos intelec-
tuais da região tinha origem social em frações dos setores médios (ma-
gistrados, militares graduados, profissionais liberais, e políticos pro-
fissionais), na burguesia comercial e extrativa em declínio com o fim
do período da borracha. Suas aspirações políticas e literárias - como
ocupar cargos chaves na esfera pública, escrever em jornais, poesia
e romances - estavam condicionadas aos títulos, aos diplomas e ao
capital de relações sociais que mobilizavam como trunfo em meio às
lutas por posições mais relevantes. (MICELI, 2001, p. 53-68).
O fato é que entre as décadas de 1890 a 1935 havia uma dis-
puta no meio científico, literário, artístico e filosófico por uma de-
finição legítima do complexo bio-sócio-cultural da Amazônia. No
centro desse campo de lutas encontravam-se Emílio Goeldi, Jacques
Huber, Orville Derbe, Ferreira de Castro, Silvino Santos, Euclides
da Cunha, Alberto Rangel, Raul Bopp, Nunes Pereira, Álvaro Maia,
Alfredo da Matta, Péricles Morais, Abguar Bastos, Dalcídio Jurandir,
Araújo Lima e outros. A despeito dos distintos métodos, teorias e
gêneros literários em jogo nesse debate, é possível afirmar no limite,
que as obras desses autores, estejam polarizadas em torno da An-
tropogeografia de Friedrich Ratzel, da geografia humana de Vidal
de La Blache, das teorias raciológicas de Gobineau, do positivismo
de Augusto Comte, do evolucionismo de Spencer e das concepções
humanistas de Alexander Von Humboldt. Entretanto, a questão que
nos interessa é a disputa em torno da questão nacional presente nos
escritos de cientistas, escritores e ensaístas brasileiros. Nesses termos
é que a Amazônia- a terra e o homem, de Araújo Lima constitui uma
das expressões mais dramáticas desse debate.
- 162 -
amazonense, o caboclo... Perdura o erro anthropologico, sociológi-
co e histórico. A inaptidão aos hábitos de progresso e civilização,
que lhe attribuem, continúa arrolada entre as fatalidades ethnicas
que envilecem certas raças, compulsoriamente excluídas do conví-
vio da civilização. (LIMA, 2001, p. 37-38).
- 163 -
índio, o caboclo puro, arrancado das suas florestas pela ferocidade
do sertanista ou pela unção do missionário, é absolutamente inci-
vilizável, é inteiramente refratário a qualquer influxo educativo, no
sentido de sua arianização. Parece que sua estrutura mental é mais
sólida do que a do negro e daí, desta sua menor maleabilidade, a
sua invencível resistência a ação dos agentes civilizadores. [...]”.
Não devemos aceitar, sem exame, o julgamento condenatório da
capacidade assimiladora e fixadora do índio no seio da civilização.
A incivilidade do índio, isto é, a sua capacidade para assimilar a
educação e para ser incorporado à civilização, é uma tese arriscada,
para não dizer temerária. (LIMA, 2002, p. 76-77).
- 164 -
A observação expressa por Daniel Pécaut, em Os intelectuais
e a política no Brasil, nos diz muito sobre as relações estruturadas
entre o conjunto das elites dominantes e a atmosfera intelectual que
dominava o cenário do início do século XX. Para os intelectuais a
realidade brasileira e regional oferece um espetáculo de um povo
ignorante de sua identidade, de sua cultura e de seu destino. Eles,
os intelectuais, assumem a missão de ajudar o povo a tomar cons-
ciência de sua identidade, de sua cultura e ao mesmo tempo criar as
condições ideológicas para proporcionar a unidade nacional. Daí a
ambivalência entre o seu compromisso com os interesses populares
e um projeto nacional de feição autoritária.
[...] Mas, que culpa temos nós que os iniciados do Rio e de São Paulo
collassem errado os valores modernistas!... (BARBOSA, 2001, p. 3-5).
A disputa pela definição legítima da cultura e da identidade
nacional contrapõe intelectuais de distintas regiões. Nesse sentido
Clóvis Barbosa faz uma ressalva ao caráter mimético do modernis-
mo do Rio e de São Paulo. Para Barbosa, escritores situados naquelas
- 165 -
cidades copiaram o estilo estrangeiro sem acrescentar algo de si e de
sua região no processo criativo. Ele, parte do princípio que devemos
nos modernizar, mas sem abandonar nossas raízes hybridas, essas
devem se atualizar continuamente no interior das novas experiências
estéticas modernas que emergiram na Europa e nos Estados Unidos
da América. Não podemos simplesmente copiar os modelos euro-
peus, precisamos, segundo ele, reabilitar os valores locais e fundi-los
com as concepções de modernas. É nesse mesmo sentido que Araújo
Lima denuncia que o atraso de nossa região não tem como causa o
meio-físico e o homem, e sim a falta de políticas de educação, sani-
tárias e de desenvolvimento sócio econômico. A posição desses dois
autores denota a luta entre os intelectuais pela definição e classifica-
ção legítima da identidade e da cultura regional e nacional.
As obras produzidas em meio a essas disputas, particular-
mente a de Araújo Lima, denotam de maneira relativa à estrutura do
mundo social, os esquemas de percepção e de pensamento que estão
dispostos nas práticas sociais das classes e frações sociais nas quais
tem origens os agentes envolvidos nessa luta. Essa estrutura social e
os esquemas mentais podem ser observados a partir dos temas, dos
princípios científicos dispostos para interpretar, explicar e descre-
ver a Amazônia, no dizer de Roberto Schwarz tanto a história como
a estrutura social ficam cifrados na obra, assinalando as condições
sociais que lhe deram origem. Basta observarmos o que significou
as obras Os Sertões e Amazônia, um paraíso perdido de Euclides da
Cunha, do ponto de vista simbólico em meio aquela luta pela defini-
ção da cultura e da identidade nacional.
Euclides da Cunha é quem, primeiro, desperta o brasileirismo-
-amazônico. Num sentido sociológico-político de integração da Ama-
zônia no Brasil tão afastado e até ignorante de suas deformações sociais
e econômicas, da aspereza de um meio que o homem amava anonima-
mente. Esquecido do mundo, jogado no tumulto das paixões, vítimas
das doenças, de uma sociedade defeituosa, da crueldade dos sobas.
É na Amazônia que Euclides da Cunha viu um novo Brasil: um
Brasil em que a mestiçagem étnica afirmava a presença do homem
na terra e sua vitória sobre o meio[...]
Os Sertões abrem ao exame brasileiro o problema que o País tinha
de enfrentar e até hoje desafia a sua capacidade de solucioná-lo: as
desigualdades regionais. (TOCANTINS,1992, p. 13-27).
- 166 -
Essas obras entendidas como modelos, vão pautar o campo
intelectual nos mais variados aspectos: na estética da narrativa, no
modo de organização estrutural da exposição, na arguta percepção
de uma cultura/ identidade nacional (constituída pela diversidade
de tipos sociais regionais), na lucidez com que trata a questão re-
gional de um Brasil profundo. Todos esses elementos sincronizados
num estilo no qual arte e ciência se confundem assumiram um papel
crucial na aspiração dos jovens que se lançavam no campo literário
daquele período. Haja vista, que os aspectos mais densos do livro
Os Sertões, converteram-se em princípios que modularam as tendên-
cias comuns aos intelectuais daquela geração. Com efeito, os inves-
timentos sociais, depositados na elaboração do livro por Euclides da
Cunha levaram-no a Academia Brasileira de Letras. À proporção
que aumentava seu prestígio intelectual, tornavam-se rarefeitas as
críticas ao conjunto de seus escritos naquele ambiente intelectual do
início do século XX. Consagração, que não evitou a crítica empreen-
dida por Araújo Lima em Amazônia- a terra e o homem, a concepção
de seleção telúrica a qual Euclides da Cunha atribuía a seleção dos
homens mais fortes para ocupar o espaço físico da Amazônia.
- 167 -
atraso, abandono e esquecimento nos quais a Amazônia foi lançada
por setores da Nação.
Considerações Finais
O homem só escoteiro, sem guia; sem saúde nem cultura; sem de-
fesa nem proteção; sem preparo nem prévio trabalho adaptativo, o
homem do Amazonas campeia naquele cenário como um gigante,
inconsciente de sua bravura. (LIMA, 2001, p. 54).
- 168 -
frações dos setores dominantes regionais nos quais Araújo Lima
estava enredado do ponto de vista de suas origens sociais. Tratava-
se de assegurar a coesão interna da nação por meio da educação
pública, pois nas nacionalidades não há unidade antropológica,
mas deve haver unidade psíquica. A estrutura cerebral não oferece
barreira à transformação mental dos homens, independentemente de
contingências raciais. A educação é o fator máximo de transformação
histórica das raças, traçando as diretrizes das nacionalidades. (LIMA,
2001, p. 48, grifo nosso). Não é o meio, nem a raça a razão da deca-
dência, do abandono e do atraso da Amazônia senão fatores históri-
cos que acompanharam uma economia destrutiva, juntamente com
uma ocupação predatória que dissipou toda a riqueza nativa. Toda-
via a educação, o desenvolvimento técnico-científico e uma política
de saúde podem reverter esse quadro. Com um só lance Araújo Lima
postula a saída dos impasses regionais (atraso, declínio, abandono e
esquecimento) e as bases de um projeto nacional via educação. Os
distintos tipos físicos característicos da diversidade racial brasileira
seriam condensados em uma unidade nacional por meio da educa-
ção, a fim de superar o fatalismo e o determinismo que nos precipi-
tavam na barbárie e no atraso.
Referências
- 169 -
TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o paraíso perdido. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992.
TOCANTINS, Leandro. Amazonas, natureza, homem e tempo: uma
planificação ecológica da Amazônia. 2.ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército/ Civilização Brasileira, 1982.
- 170 -
MEU CORPO, MINHA PESCA: TÉCNICAS
CORPORAIS DE MULHERES AMAZÔNICAS
PESCADORAS ARTESANAIS DE CAMARÃO
- 171 -
zônia pois nossa análise está relacionada ao corpo e corporeidade
dessas mulheres. Dividimos esta produção científica em três seções:
na primeira seção iremos abordar as técnicas corporais das mulheres
pescadoras artesanais de camarão na perspectiva de David Le Bre-
ton, mostrando que no trabalho com a pesca artesanal também estão
inclusas as técnicas do corpo, principalmente tratando sobre o corpo
feminino nos aspectos físico e mental, analisando biologicamente as
peculiaridades do corpo da mulher que o diferencia do corpo do
homem.
Na segunda seção, mostraremos com aproximação etnográfi-
ca o processo da pesca artesanal do camarão realizado por mulheres,
identificando as diferenças entre elas ao exercer o mesmo trabalho,
na perspectiva das técnicas corporais utilizadas por cada uma delas.
Na terceira seção, identificaremos por nomes fictícios as nossas cola-
boradoras, bem como suas peculiaridades no trabalho com a pesca
artesanal.
Trazemos algumas imagens permitidas por elas, que corro-
boram com as observações da pesca artesanal do camarão, mas em
preto e branco por conta da não identificação real das mulheres, con-
forme solicitado. Que no caso, devido a não permissão de fotografias
faciais, por causa de não estarem à vontade em relação a condição
de trabalho, para elas é importante que a imagem do corpo registada
esteja de acordo com a beleza feminina construída através de acessó-
rios e cosméticos (WOLF, 2020).
- 172 -
relacionado ao trabalho, afirmando que o corpo é o principal instru-
mento do homem, como nos mostra Mauss (1974: 407) “O corpo é o
primeiro e o mais natural instrumento do homem”.
As técnicas corporais como citado acima se constitui no prin-
cipal estudo trazido por Le Breton com base na visão de Marcel
Mauss. Para Mauss (1934), todas as ações humanas estão relaciona-
das às técnicas que o corpo faz, desde uma ação simples até uma
ação mais complexa. No caso das mulheres pescadoras de camarão,
a pesca artesanal é algo muito difícil de fazer, requer prática cor-
poral, esforço físico e principalmente, concentração. Sendo a pesca,
historicamente uma ação masculina, as mulheres da comunidade da
Brasília, por meio da pesca artesanal do camarão, rompem com essa
tradição ao protagonizar-se-á deste trabalho.
A pesca artesanal do camarão foi um legado deixado por uma
mulher, ex-moradora da comunidade São Sebastião da Brasília, cha-
mada Ana Gomes Lima, que iniciou a pesca aos seus catorzes (14)
anos de idade, natural de Parintins, com ascendência portuguesa,
nasceu na comunidade da Brasília em 1945 (DIÓGENES, 2014).
A partir deste legado, muitas mulheres aprenderam a prática
da pesca artesanal do camarão, experiências e conhecimentos adqui-
ridos de tais ensinamentos, tanto da pesca artesanal quanto do uso
das ferramentas utilizadas para a pesca artesanal; daquele período
em diante, as mulheres começaram a praticar a pesca artesanal do
camarão na comunidade. Esse tipo de trabalho artesanal, foi se tor-
nando uma prática especificamente das mulheres, bem como de de-
mais mulheres de comunidades próximas, as quais também exercem
a prática da pesca artesanal do camarão (BRASIL, 2015).
Apesar de praticarem a mesma atividade, cada comunidade
possui suas peculiaridades na pesca artesanal do camarão. Uma des-
sas peculiaridades encontradas são os instrumentos de pesca arte-
sanal utilizados pelas mulheres. As comunidades utilizam o tipo de
instrumento de acordo com o local a ser pescado o camarão, em rios,
em furos, em lagos. Lugares diferenciados que fazem com que os
instrumentos de pesca sejam desiguais uns dos outros. Neste con-
texto, com relação aos “instrumentos”, nos reportamos ao que o an-
tropólogo Mauss enfatiza: “antes das técnicas de instrumentos, há o
conjunto das técnicas do corpo” (1934: 407). Cada sociedade tem a
sua própria maneira de manifestar-se, de apresentar as suas técnicas
- 173 -
corporais, conforme as experiências desenvolvidas no percurso his-
tórico, cultural e social.
Sobre a relação instrumento e corpo, o autor, também contri-
bui afirmando que:
- 174 -
vezes, elas não desejarem estar nessa situação. Porém, a necessida-
de do trabalho, seja por motivo do sustento familiar ou obtenção
de renda, torna-se essencial para a vida dessas pessoas. Nessa linha,
trazemos Le Breton (2018) quando se reporta ao desaparecimento
do trabalho, dizendo que é um desejo para muitos indivíduos, mas
a necessidade devido à situação econômica torna obrigatória a sua
prática, no que causa o desaparecimento simbólico do trabalhador.
Para as mulheres pescadoras de camarão, a concentração no
trabalho é um dos fatores essenciais para o exercício da pesca artesa-
nal. Entendemos que se trata de uma rotina cansativa e que, tanto o
cansaço físico do corpo como o mental estão relacionados à prática
repetitiva do trabalho, principalmente porque é uma atividade reali-
zada sobre as águas, portanto, em condição totalmente diferente do
cotidiano, o que demanda grande e apurada concentração para que
não aconteça nenhum acidente de trabalho ou algo que possa preju-
dicar o exercício da pesca artesanal ou que coloque em risco a vida
da mulher. Nesse contexto, pontua-se que:
Os casos de adaptação são de natureza psicológica individual. Mas
geralmente são comandados pela educação, e no mínimo pelas
circunstâncias da vida em comum, do convívio. (...). Creio que a
educação fundamental dessas técnicas consiste em fazer adaptar o
corpo a seu uso. (MAUS, 1934: 421).
- 175 -
O corpo masculino é condicionado biologicamente a ser mais
forte do que o corpo feminino. A mulher tem, por certo período,
desde sua pré-adolescência até a entrada da terceira idade, de 28 em
28 dias, o período do ciclo menstrual2. Algumas das mulheres que
praticam a pesca artesanal de camarão da comunidade afirmaram
que já trabalharam durante o período menstrual e que a dificuldade
é muito maior, mas que o trabalho é necessário, pois, contribui no
sustento familiar, e, com isso, para seu desenvolvimento social.
Na perspectiva biológica, este período que ocorre com as mu-
lheres é a principal peculiaridade, já que não acontece com os ho-
mens, ou seja, para as mulheres o trabalho torna-se mais difícil e
cansativo ao considerarmos estas desigualdades.
- 176 -
O início da pesca artesanal do camarão realizado pelas mu-
lheres nos instigou a uma atenção das riquezas de informações, e
tivemos que registrar nos cadernos e nas câmeras fotográficas tudo
o que pudéssemos, sem interferir no trabalho delas. O trabalho do
pesquisador está no olhar, no ouvir e no escrever, sobre o objeto ou
colaboradores pesquisados. O pesquisador tem que estar totalmente
disciplinado quanto ao olhar, atencioso ao ouvir, e por fim cauteloso
ao escrever, pois a pesquisa em campo requer um trabalho de dedi-
cação total do pesquisador nos momentos exatos da coleta de dados
(OLIVEIRA, 1996).
Como citado, tivemos a autorização das mulheres para regis-
tro de fotografias e filmagens, desde que não fossem revelados os
nomes das colaboradoras da pesquisa. O processo da pesca artesanal
do camarão requer das mulheres muito esforço e concentração, exi-
gindo o máximo do corpo para a realização do trabalho. Das mulhe-
res que praticam o ofício da pesca na comunidade, trabalhamos com
três colaboradoras que nos permitiram observá-las desde o processo
inicial até o processo final.
Utilizamos nomes fictícios para as mulheres, dando-lhes no-
mes de plantas aquáticas da Amazônia para distinguir a peculiari-
dade que elas têm em relação as técnicas corporais do trabalho com
a pesca artesanal, ou seja, forma simbólica em mostrar a beleza das
plantas aquáticas da região amazônica, para com o trabalho das mu-
lheres sobre as águas.
Nossas colaboradoras serão identificadas da seguinte forma:
Vitória-régia (60), Ninféia (45), Mururé (34); os números ao lado
dos nomes correspondem a idade das mulheres no período da pes-
quisa de campo.
Mulheres pescadoras artesanais de camarão e suas narra-
tivas: Vitória-régia, Ninféia e Mururé
- 177 -
Ninféia, que com seus 45 anos prefere pescar pela manhã, bem cedo,
das 05h até 08h, que para ela é o horário que há bastante camarão na
água. Já Mururé, aos seus 34 anos de idade, também tem por prefe-
rência pescar no fim do dia, pois algumas vezes tem a companhia de
Vitória-régia.
Moradora da comunidade desde a sua adolescência, Vitória-
-régia aprendeu a pescar camarão para contribuir com o sustento fa-
miliar e passou a ensinar outras mulheres da comunidade a praticar
o ramo da pesca artesanal. Mururé foi uma das mulheres que apren-
deu com Vitória-régia esse oficio. Ninféia nos afirmou que aprendeu
observando outras mulheres com mais idade e experiência, e perce-
beu que o trabalho com a pesca artesanal do camarão tinha como
tirar uma renda financeira para a sua família.
No dia da observação, Vitória-régia nos levou ao lago do “Tre-
me”, pertencente à comunidade; Ninféia e Mururé também utilizam
a mesma localidade para pescar. De acordo com nossa observação, é
o local onde há presença abundante do camarão. Antes de partirmos
neste dia, elas nos mostraram as ferramentas utilizadas para a prática
da pesca artesanal do camarão. Os instrumentos de trabalho utiliza-
dos pelo homem são como suportes do próprio corpo, sendo o corpo
o principal instrumento (LE BRETON, 2010).
Na figura 01, temos Ninféia iniciando a pesca artesanal do
camarão, colocando na água sua principal ferramenta de trabalho,
denominada por elas de “camaroeiras”, cujo objeto contém o tecido
da fibra da juta, com duas travessas amarrados em forma de “X”.
- 178 -
Figura 01 – Ninféia com sua camaroeira
- 179 -
na parte traseira do veículo, elas colocam um tronco de árvore, que,
conforme nos foi informado tem como finalidade manter o equi-
líbrio da canoa na hora da pesca, sem o que a parte de trás ficaria
elevada, podendo promover o desequilíbrio da pescadora. O tronco
utilizado por Vitória-régia pesava um pouco menos que o próprio
peso de seu corpo, ou seja, é como se ela estivesse conduzindo outra
pessoa, exigindo-lhe grande esforço.
Vimos a técnica utilizada por ela para colocar os instrumen-
tos necessários na canoa. Inicialmente ela coloca o tronco que está à
margem do igarapé próximo a canoa, na popa do veículo. O processo
que ela utilizou para colocar este tronco na canoa consistiu em por-
tar uma peça de madeira, tipo uma ripa forte, para levantar e lançar
o tronco fixando–o na canoa, de forma que ao remar movimentan-
do-se no momento da condução, ele não caia na água. A inclina-
ção para lançar o tronco a canoa feita por Vitória-régia requer certa
força corporal, e pelo que foi observado isso exige muito da coluna
vertebral de seu corpo neste tipo de ação. Este tronco muitas vezes
é utilizado por Ninféia e Mururé, pois essas três mulheres pescam
artesanalmente sozinhas, por isso a necessidade do tronco na canoa.
Em seguida elas colocam nas canoas, cada uma na sua, de três a cin-
co camaroeiras, um saco de polietileno que é usado para prender o
camarão pescado e por fim os remos.
Assim que a canoa e todos os instrumentos de pesca artesanal
estão preparados, Vitória-régia é conduzida por um de seus filhos por
uma canoa grande com motor a gasolina na parte de trás, conhecida
como motor rabeta. Ninféia também é conduzida por este mesmo
transporte nos seus dias de pesca artesanal, bem como Mururé, pois
é mais rápido para chegar ao local da pesca artesanal. Elas amarram
suas pequenas canoas na canoa motorizada e sendo conduzidas até
um dos lagos próximos à comunidade. São as canoas sendo condu-
zidas por uma embarcação maior e motorizada até o local da pesca.
Diariamente, no período da pesca do camarão, é feito este tipo de
locomoção. Ao chegar ao local da pesca é desligado o motor rabeta,
pois segundo elas o som que produz o motor “espanta” o camarão.
Após o reboque, na chegada ao lago, como citado, os motores
são desligados, e neste momento o corpo passa a ser a máquina fun-
cional locomotora para o trabalho. O remar no local da pesca exige
muito das mulheres. A figura abaixo comprova a ação das mulheres
- 180 -
com remos e canoas, e toda a preparação inicial da pesca artesanal
do camarão, a qual exige concentração e habilidades físico-motoras
exigidas pelo corpo.
- 181 -
de madeira para prender as camaroeiras. Mururé, nossa terceira co-
laboradora também utilizou-se do mesmo recurso feito pelas outras.
Vimos então que a técnica da pesca artesanal do camarão tem
uma forma padrão entre essas três mulheres. O corpo de Vitória-ré-
gia realiza um esforço muito grande, pois a mesma utiliza os braços
para condução do remo e para colocar as camaroeiras na água. As
técnicas corporais que utiliza, mesmo com grande habilidade, com o
passar dos anos poderá provocar problemas ergonômicos pela repe-
tição dos movimentos.
Todas elas faziam o mesmo processo, tanto com os remos
quanto com as camaroeiras, o que exige bastante de seus membros
superiores. Para bom desempenho, o movimento corporal requer a
execução de uma técnica que não prejudique muito os segmentos
corporais na hora da pesca; com a prática, o corpo se acostuma ao
tipo de trabalho realizado, entretanto ao fim do dia elas apresentam
como consequência, as dores localizadas nos ombros e pescoço além
do cansaço resultante das tarefas do seu trabalho realizadas sob o
sol.
Observamos Vitória-régia colocando a camaroeira na água;
com o remo em uma de suas mãos, ela senta na frente da canoa
para melhor condução. Na sua frente está uma panela contendo as
iscas utilizadas para pegar o camarão A cada camaroeira colocada
na água, também é colocada a isca. A isca, como informado, são
pedaços de peixe não totalmente cozidos, para atrair a presença do
camarão para dentro da camaroeira. Assim que Vitória-régia coloca
a camaroeira com a isca, aguarda cerca de três a cinco minutos para
retirá-la da água e colocar dentro da canoa.
Este processo requer técnica apurada, pois exige habilida-
de para a movimentação do corpo de forma correta e econômica.
Quando colocada na água, a camaroeira fica em forma de “X”. O
centro do “X” é local de manuseio da camaroeira, facilitando a reti-
rada da água e direcionada para parte de trás do corpo da pescadora.
Assim que Vitória-régia retira a primeira camaroeira da água, estan-
do sentada na parte da frente da canoa, é necessário rotar seu cor-
po para trás, para colocar o camarão pescado para dentro da canoa,
realizando um movimento, cuja técnica corporal exige bastante de si.
Ação como argumentado, exige muito dos braços e principalmente
da coluna vertebral. Este movimento é feito repetidamente pelas mu-
- 182 -
lheres; pelo que foi observado, é o movimento mais comum e prático
para colocar e retirar as camaroeiras da água. Na figura abaixo, Vi-
tória-régia mostra o procedimento da pesca artesanal do camarão.
- 183 -
a boca do saco. Em seguida recolhem as camaroeiras, secando-as,
sacudindo-as no ar, enrolando-as, prendem todas juntas com uma
corda, colocam dentro da canoa, e aguardam pela condução para re-
tornar à comunidade, ou seja, o mesmo processo na ida para a pesca
repete-se na volta para a comunidade, desta vez com a satisfação de
missão cumprida, com o trabalho realizado por mulheres que são
agentes da pesca artesanal na Amazônia.
As técnicas corporais utilizadas por essas mulheres formam-
-se com o decorrer do tempo, e se desenvolvem com o mesmo grau
de dificuldade exercida nas atividades diárias. Neste sentido nos ba-
seamos em Le Breton sobre o domínio das técnicas do corpo:
Algumas considerações
- 184 -
para o manejo e utilização dos instrumentos de trabalho, domínio
dos saberes produzidos de geração em geração no contexto social
em que estão inseridos. Por mais árdua que sejam as atividades do
cotidiano e as responsabilidades individuais, apesar dos conheci-
mentos adquiridos e desenvolvidos ao longo do tempo é necessário
encontrar significado e valora a sua existência, buscando o seu lugar
de pertencimento no meio social e a sua autonomia, e para isso o
indivíduo precisa ajustar-se às circunstâncias que estão em constante
transformação na atualidade (LE BRETON, 2018).
Neste contexto, as contribuições dos autores Furtado e Nasci-
mento (2002: 33), pontuam que “as comunidades pesqueiras se orga-
nizam segundo sua lógica própria construída e influenciada por diver-
sos fatores (sociais, étnicos, culturais e ambientais) que lhes atribuem
feições e modos de viver particulares, sem deixar de ser parte do todo
mais amplo”. Neste sentido, entende-se que o corpo humano busca as
adaptações necessárias para as atividades da pesca artesanal.
Assim, no que diz respeito ao trabalho das mulheres pescado-
ras artesanais de camarão, a experiência, a prática diária e a convi-
vência, ou seja, a troca de conhecimentos com outras mulheres pra-
ticantes da mesma atividade ajudam no desenvolvimento de novas
técnicas corporais para auxiliar em todas as etapas desde o início do
percurso até a comercialização do produto, passando obviamente,
pela realização da pesca artesanal.
Apesar dos desafios encontrados no caminho, o cansaço físico
e mental, e do esforço constante para a prática diária da atividade
pesqueira, foi possível perceber a agilidade e habilidades dessas mu-
lheres, considerando a diferença de idade e tempo de experiência
apresentados nas técnicas e manuseio dos instrumentos de trabalho.
Para as mulheres pescadoras artesanais de camarão da comunidade
São Sebastião da Brasília, o exercício da atividade, apesar de cansa-
tivo, faz com que elas contribuam diretamente no sustento familiar.
Portanto, o trabalho realizado pelas mulheres pescadoras de
camarão da comunidade São Sebastião da Brasília está imbuído nas
significações pluralizadas da Amazônia, e a participação da mulher
inclui-se também na propagação dos conhecimentos repassados aos
moradores de sua comunidade por meio dos “sistemas simbólicos”,
produzidos nas técnicas corporais apreendidas na experiência com a
pesca artesanal do camarão.
- 185 -
Se confirma o poder da adaptação do corpo às exigências do
seu contexto cultural, neste caso a aprendizagem e execução de mo-
vimentos exigidos para a pesca do camarão, denotando assim, que as
práticas corporais são aprendidas e assimiladas. O trabalho é reco-
nhecidamente árduo e cansativo, mas as mulheres suportam o cansa-
ço e as intempéries da natureza a exemplo o sol sob o corpo, a força
das águas em seus veículos, além de insetos e animais peçonhentos
presentes nos locais de pesca, tudo pela necessidade de sobrevivên-
cia que faz com que o corpo reaja mostrando sua fortaleza na região
amazônica.
Referências
- 186 -
nea. Tradução Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
LEAL, João. DIÁRIO DE CAMPO: modos de fazer, modos de usar.
In: Revista Os Arquivos dos Antropólogos. Lisboa, 2016, pp. 145-159.
MAUSS, Marcel. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: Marcel
Mauss. Sociologia e Antropologia, 1934.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: _____. Sociologia e antro-
pologia. Vol. 1. São Paulo: Edusp, 1974, p.399-422.
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O TRABALHO DO ANTROPÓLO-
GO: olhar, ouvir, escrever”. In: Revista de Antropologia. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1996, v. 39, nº 1, pp. 14-23.
SILVA, Júlio Cláudio da; TORRES, Iraildes Caldas. “Memórias ama-
zônicas nas narrativas de pescadoras de camarão da comunidade São
Sebastião da Brasília, Parintins (AM) ”. In: Dossiê de História Oral.
Manaus, vol. 22, n.1, p. 81-101, jan/jun 2019.
WOLF, Naomi. O mito da beleza: como a imagem de beleza são usadas
contra as mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. – 15ª ed. Rio de Janei-
ro: Rosa dos Tempos, 2020.
- 187 -
- 188 -
PESQUISAS E PRÁTICAS
INTERDISCIPLINARES EM
ENVENENAMENTOS OFÍDICOS NA
AMÉRICA LATINA
Introdução
- 189 -
especialistas na área. Os homens, mulheres e crianças, que residem
áreas rurais e exercem atividades de subsistência como: caça, agri-
cultura, pesca e extrativismo compõem as populações vulneráveis
(CHIPPAUX, 2017a; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020).
Estima-se que ocorram 2,7 milhões de envenenamentos anualmen-
te no mundo, causando aproximadamente 81.000 a 138.000 óbitos
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021). Nas Américas a in-
cidência média anual é de 57.500 casos, causando 370 mortes, com
uma taxa de letalidade de 0,6%, no entanto esses dados podem es-
tar subestimados, devido informações limitadas em diversos países
(CHIPPAUX, 2017b). Na América Latina e no Caribe os envenena-
mentos constituem um sério problema de saúde, dados hospitalares
estimam que 70.000 casos ocorrem anualmente, embora seja prová-
vel que os números reais sejam maiores, pois pode ocorrer subno-
tificação principalmente em áreas rurais, isoladas geograficamente.
Na região, grande parte dos acidentes são causados pelas espécies do
gênero Bothrops e Crotalus, classificados na família Viperidae, sendo
apenas 1% dos acidentes causados pelo gênero Micrurus da família
Elapidae (GUTIÉRREZ, 2018; JOSÉ MARÍA GUTIÉRREZ, 2011).
Um progresso significativo foi alcançado nos últimos anos,
através de pesquisas sobre o veneno das serpentes, mecanismos de
ação e toxinas. No entanto, apesar dos esforços em melhorar o anti-
veneno e do investimento realizado em pesquisas na América Latina
ainda são escassos os estudos quanto a acessibilidade e aceitabilidade
ao tratamento, a relação homem-animal, a frequência de contato, a
procura a assistência médica, uso de medicina tradicional e indígena
e ações de prevenção dos acidentes (GUTIÉRREZ, 2014). Portanto
nesse capítulo uma visão geral de estudos interdisciplinares na Amé-
rica Latira sobre os envenenamentos ofídicos será abordada.
- 190 -
nessa região reflete o destaque que as comunidades ameríndias pré-
-colombianas davam a esses animais (BOCHATON, 2022) As ser-
pentes também podem ser importante fonte de alimento em regiões
tropicais, subtropicais e temperadas, além do comércio de peles que
representam uma ameaça a sobrevivência (KLEMENS; THORB-
JARNARSON, 1995). Em algumas áreas rurais partes do corpo das
serpentes mortas são utilizadas com amuletos, pois possuem sig-
nificado simbólico, assim como gordura (banha) no tratamento de
doenças (FIDEL et al., 2013). A afeição de muitos indivíduos não
indígenas, por animais de estimação exóticos, como as serpentes pe-
çonhentas, que possuem um status simbólico nos quadros culturais,
tem sido associada aos acidentes em várias partes do mundo (BAL-
ZER M, 2010; LA LAINA et al., 2021; WONG et al., 2009). Existem
ainda os cultos de ofidianos entre as sociedades aborígenes e indíge-
nas isolados em toda parte das Américas. Critérios da arqueologia e
etnografia sugerem que a ofiolatria é uma das primeiras importações
culturais nas Américas e que seus vínculos mais fortes estão no nor-
deste da Ásia, particularmente a Sibéria (MUNDKURU, 1976).
Em área endêmica, a população é capaz de perceber como
mais perigosa a serpente causadora de maior incidência, gravidade e
mortalidade (DA SILVA et al., 2019b; FITA; NETO; SCHIAVETTI,
2010). A literatura sobre o tema baseia-se na descrição de atividades
em períodos do dia ou épocas do ano em que há maior atividade ou
abundância de serpentes, aumentando o risco de contato, e não pro-
priamente em investigações etnográficas que permitam a compreen-
são de fatores culturais das próprias populações humanas. Assim,
a maior prevalência de picadas de jararacas na Amazônia durante
a estação chuvosa (MONTEIRO et al., 2020b) é explicada em uma
perspectiva de história natural, sem maiores detalhes sobre compor-
tamentos humanos que também podem estar associados, com por
exemplo os indígenas Waorani do Equador que costumam andar
descalços e possuem o hábito de perseguir a caça com os olhos fixos
no animal na densa floresta (LARRICK, J. W.; YOST, J. A.; KAPLAN,
1978). Uma melhor compreensão dos papéis culturais, sociais e tra-
dicionais que envolvem essa relação são fundamentais para estabele-
cer estratégias de conservação das serpentes e prevenção de envene-
namentos ofídicos.
- 191 -
Cosmologia e interação humano-serpente
- 192 -
tes são inimigas que apresentam consciência e intenção, as causas
dos acidentes podem ser naturais ou sobrenaturais, nesse contexto
o chá de ayahuasca é utilizado pelos cuidadores para identificar a
causa, além disso os acidentes graves ou letais são entendidos como
frutos de feitiçarias (DE FARIAS et al., 2023). Ainda são escassos
os estudos que buscam compreender a visão das diferentes popula-
ções sobre a serpente e sua relação com os seres humanos. Descrever
essa perspectiva é essencial para oferecer um parâmetro aos futuros
profissionais da região, para que possam compreender a singularida-
de de culturas e dessa forma oferecer um tratamento humanizado e
adequado.
Etnofarmacologia e cuidado de si
- 193 -
SALAZAR et al., 2021), animais e substâncias diversas e pedras so-
bre o local da picada (acredita-se que absorva veneno de cobra) (DA
SILVA et al., 2019b; FIDEL et al., 2013) e foi produzido por meio
de entrevistas com praticantes tradicionais ou residentes em áreas
endêmicas por meio da aplicação de questionários semiestrutura-
dos. Curiosamente, três famílias ‘quentes’ (Apocynaceae, Lamiaceae
e Rubiaceae) foram recuperadas em uma comparação etnofarmaco-
lógica intercultural usando dados do Brasil, Nicarágua, Nepal, China
e África do Sul (MOLANDER et al., 2012). Na Amazônia brasileira
e no Sri Lanka, analgésicos orais, como metamizol e paracetamol,
também eram comumente usados pelos pacientes (CRISTINO et al.,
2021).
Na América Central as populações indígenas usavam plantas
como remédios, e existem alguns curandeiros tradicionais que são
especializados no tratamento dos acidentes (COE; ANDERSON,
2005). Um estudo realizado na região encontrou 208 espécies de
plantas usadas para tratar picadas, essas espécies pertencem a 146
gêneros distribuídos por 74 famílias de plantas. Entre as famílias
com mais espécies registradas para tratar estão: Fabaceae (22 espé-
cies), Piperaceae (18), Rubiaceae (13 espécies), Araceae (8 espécies),
Apocynaceae (7 espécies), Aristolochiaceae 8 (espécies), Asteraceae
(6 espécies), Convolvulaceae (6 espécies), Passifloraceae (5 espécies),
Polygonaceae (5 espécies) e Solanaceae (5 espécies) (GIOVANNINI;
HOWES, 2017). Na Colômbia, espécies de plantas para o tratamen-
to dos acidentes, foram encontradas sem nenhum relato etnobotâ-
nico. Além disso, plantas sendo descritas como novas espécies e er-
vas, como Plantago major foram encontradas (Plantaginaceae) e são
utilizadas por muitos grupos étnicos. Herbáceos como Renealmia
alpinia (Zingiberaceae), cuja atividade antiofídica foi comprovada
experimentalmente através de ensaios in vivo e in vitro ensaios (VÁS-
QUEZ et al., 2013). Em alguns povos indígenas amazônicos, as víti-
mas envenenadas por picadas de cobra são obrigadas a cumprir ri-
gorosamente as exigências dietéticas, não apenas delas, mas também
de seus familiares (MONTEIRO et al., 2020a). Os indivíduos são
proibidos de comer peixes capazes de morder e picar, além daquelas
cujas características físicas (lisos, viscosos, sem escamas, venenosos)
se assemelham às de cobras. O veneno que circula no sangue dessas
pessoas representa uma grave ameaça de transmutação em animal,
- 194 -
razão pela qual sua condição humana e seus laços de parentesco
precisam ser reafirmados por meio de disciplinas corporais que po-
tencializem a capacidade de controlar os impulsos e reafirmem os
laços sociais com seus semelhantes. humanos (LUIZA GARNELO,
2007). Em outras populações camponesas amazônicas, o consumo
de leite foi alegado para reduzir os sintomas de envenenamento, e
o consumo de água e alimentos gordurosos foi contraindicado. Na
Amazônia brasileira, os ribeirinhos utilizam três principais sistemas
de cura, são eles: autocuidado usando técnicas diversas; cuidados
médicos oficiais geralmente combinados com práticas tradicionais e
autocuidado usando práticas tradicionais combinadas com medica-
mentos ocidentais (MACIEL SALAZAR et al., 2021).
- 195 -
Práticas de prevenção de envenenamentos ofidicos
- 197 -
Rica. Representantes dos Ministérios da Saúde de países na Améri-
ca Latina participaram do evento foram apresentadas experiências
de programas de treinamento para equipes de saúde sobre o uso
correto de antivenenos (GUTIÉRREZ et al., 2009). A preocupação
com o conhecimento do profissional de saúde e o manejo clínico
dos envenenamentos é uma lacuna, pois estudos revelam a neces-
sidade de formação continuada sobre o assunto (BECK et al., 2022;
MONTOYA-VARGAS et al., 2022). No Brasil, um estudo realizado
indicou que existe a necessidade de equipamentos adequados e in-
fraestrutura nas unidades de saúde para melhorar o atendimento. O
estudo também mostrou a falta de medicamentos, incluindo antive-
neno. Além de indicar a necessidade ações educativas e iniciativas
comunitárias para desenvolver estratégias e ferramentas sobre prá-
ticas de primeiros socorros para profissionais de saúde (STRAND et
al., 2023). Na Amazônia brasileira, os profissionais de saúde relatam
insegurança no manejo dos acidentes, em razão da falta de treina-
mentos sobre a administração do antiveneno, durante a graduação
e no ambiente de trabalho. Algumas das práticas de cuidados inade-
quadas incluem: classificação clínica, dosagem do antiveneno, uso de
protocolos de pré-medicação não validados, terapia antimicrobiana,
práticas tradicionais e orientações sobre não consumir água foram
citadas (ROCHA et al., 2022). Ainda sobre os profissionais um es-
tudo realizado revelou que eles recomendam fortemente uma abor-
dagem bicultural para o tratamento de envenenamentos ofídicos e
que as populações indígenas são passíveis de receber o tratamento
(MURTA et al., 2023). Apesar da escassez de informações a respeito
dos profissionais de saúde na América Latina, os pesquisadores es-
tão fazendo um grande esforço, buscando parcerias com diferentes
municípios no estado do Amazonas e outros estados da região norte
do Brasil.
Conclusão
Referências
- 199 -
BADANTA, B. et al. Healthcare and health problems from the pers-
pective of indigenous population of the peruvian amazon: A qualitative
study. International Journal of Environmental Research and Public
Health, v. 17, n. 21, p. 1–18, 1 nov. 2020.
BALZER M, D. K. Snake bites and strange pets. 2010.
BECK, T. P. et al. Mapping of clinical management resources for snake-
bites and other animal envenomings in the Brazilian Amazon. Toxicon:
X, v. 16, p. 100137, 1 dez. 2022.
BERNARDE, P. S. et al. AÇÕES EDUCATIVAS SOBRE PRIMEI-
ROS SOCORROS E PREVENÇÃO DE ACIDENTES OFÍDICOS
NO ALTO JURUÁ (AC) EDUCATIONAL ACTIONS ON FIRST
AID AND PREVENTION OF SNAKEBITES IN ALTO JURUÁ
(AC). [s.l: s.n.].
BOCHATON, C. First records of modified snake bones in the Pre-Co-
lumbian archaeological record of the Lesser Antilles: Cultural and pa-
leoecological implications. Journal of Island and Coastal Archaeolo-
gy, v. 17, n. 1, p. 126–141, 2022.
CHIPPAUX, J. P. Snakebite envenomation turns again into a neglected
tropical disease! Journal of Venomous Animals and Toxins Inclu-
ding Tropical Diseases, v. 23, n. 1, p. 1–2, 2017a.
CHIPPAUX, J.-P. Incidence and mortality due to snakebite in the Ame-
ricas. PLoS Neglected Tropical Diseases, 2017b.
COE, F. G.; ANDERSON, G. J. Snakebite ethnopharmacopoeia of
eastern Nicaragua. Journal of Ethnopharmacology, v. 96, n. 1–2, p.
303–323, 4 jan. 2005.
COSTA-NETO, E. M. Recursos Animais Utilizados na Medicina Tra-
dicional dos Índios Pankararé que Habitam no Nordeste do estado da
Bahia, Brasil. Actual Biol, 1999.
CRISTINO, J. S. et al. A painful journey to antivenom: The therapeutic
itinerary of snakebite patients in the Brazilian Amazon (the QUALIS-
nake study). PLoS Neglected Tropical Diseases, v. 15, n. 3, 1 mar.
2021.
DA SILVA, A. M. et al. Ethno-knowledge and attitudes regarding sna-
kebites in the Alto Juruá region, Western Brazilian Amazonia. Toxicon,
v. 171, p. 66–77, 5 dez. 2019a.
- 200 -
DA SILVA, J. L. et al. The deadliest snake according to ethnobiological
perception of the population of the Alto Juruá region, western Brazilian
Amazonia. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical,
v. 53, 2019b.
DANIEL MUNDURUKU. O Karaíba: Uma História do pré-Brasil.
[s.l: s.n.].
DE FARIAS, A. S. et al. Building an explanatory model for snakebite
envenoming care in the Brazilian Amazon from the indigenous caregi-
vers’ perspective. PLOS Neglected Tropical Diseases, v. 17, n. 3, p.
e0011172, 10 mar. 2023.
DE LA GALVEZ MURILLO E, P. L. hort Communication Abundancia
y estructura poblacional de la lagartija jararank’o (Liolaemus signifer;
Liolaemidae-Lacertilia-Reptilia) en zonas con y sin extracción comer-
cial en el Altiplano de Bolivia. Tropical Conservation Science, 2009.
FIDEL, H. et al. Injuries caused by venomous animals and folk me-
dicine in farmers from Cuité, State of Paraiba, Northeast of Brazil
Relatos de acidentes por animais peçonhentos e medicina popular
em agricultores de Cuité, região do Curimataú, Paraíba, BrasilRev
Bras Epidemiol. [s.l: s.n.].
FITA, D. S.; NETO, E. M. C.; SCHIAVETTI, A. “Offensive” snakes:
cultural beliefs and practices related to snakebites in a Brazilian ru-
ral settlement. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v. 6, 26
mar. 2010.
GIOVANNINI, P.; HOWES, M. J. R. Medicinal plants used to treat
snakebite in Central America: Review and assessment of scienti-
fic evidence. Journal of EthnopharmacologyElsevier Ireland Ltd, ,
6 mar. 2017.
GUTIÉRREZ, J. M. et al. Stability, distribution and use of antivenoms
for snakebite envenomation in Latin America: Report of a workshop.
Toxicon, v. 53, n. 6, p. 625–630, 1 maio 2009.
GUTIÉRREZ, J. M. Reducing the impact of snakebite envenoming in
latin America and the Caribbean: Achievements and challenges ahead.
Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygie-
ne, v. 108, n. 9, p. 530–537, 2014.
GUTIÉRREZ, J. M. Snakebite Envenoming in Latin America and the
Caribbean. Em: [s.l: s.n.]. p. 51–72.
- 201 -
GUTIÉRREZ, J. M.; FAN, H. W. Improving the control of snakebite
envenomation in Latin America and the Caribbean: A discussion
on pending issues. Transactions of the Royal Society of Tropical
Medicine and HygieneOxford University Press, , 1 dez. 2018.
JOKIC, Z. The living ancestors: Shamanism, cosmos and cultural
change among the Yanomami of the Upper Orinoco. [s.l.] Berghahn
Books, 2015.
JOSÉ MARÍA GUTIÉRREZ. Envenenamientos por mordeduras de
serpientes en América Latina y el Caribe_ Una visión integral de carác-
ter regional. Boletín de Malariología y Salud Ambiental, 2011.
KLEMENS, M. W.; THORBJARNARSON, J. B. Reptiles as a food
resourceBiodiversity and Conservation. [s.l: s.n.].
LA LAINA, D. Z. et al. Illegal online pet trade in venomous snakes and
the occurrence of snakebites in Brazil. Toxicon, v. 193, p. 48–54, 15
abr. 2021.
LARRICK, J. W.; YOST, J. A.; KAPLAN, J. Snake bite among the
Waorani Indians of eastern Ecuador. Transactions of the Royal So-
ciety of Tropical Medicine and Hygiene, p. 17–18, 1978.
LEME, A. Animais medicinais : conhecimento e uso entre as popula-
ções ribeirinhas do rio Negro , Amazonas , Brasil Medicinal animals :
knowledge and use among riverine populations from the Negro River ,
Amazonas , Brazil INTRODuçãO. p. 343–357, 2008.
LUIZA GARNELO. Cosmologia Baniwa. História, Ciências, Saúde
– Manguinhos, 2007.
MACIEL SALAZAR, G. K. et al. Snakebites in “Invisible Popula-
tions”: A cross-sectional survey in riverine populations in the remote
western Brazilian Amazon. PLoS neglected tropical diseases, v. 15, n.
9, p. e0009758, 1 set. 2021.
MCDONALD, J. A.; STROSS, B. Water lily and cosmic serpent: Equi-
valent conduits of the maya spirit realm. Journal of Ethnobiology, v.
32, n. 1, p. 74–107, mar. 2012.
MOLANDER, M. et al. Cross-cultural comparison of medicinal floras
used against snakebites. Journal of Ethnopharmacology, v. 139, n. 3,
p. 863–872, 15 fev. 2012.
MONROY-VILCHIS O, CABRERA L, SUÁREZ P, ZARCO-GON-
- 202 -
ZÁLEZ MM, RODRÍGUEZ-SOTO C, U. V. Uso tradicional de verte-
brados silvestres en la Sierra Nanchititla, México. Interciencia, 2008.
MONTEIRO, W. M. et al. Bothrops atrox, the most important snake in-
volved in human envenomings in the amazon: How venomics contribu-
tes to the knowledge of snake biology and clinical toxinology. Toxicon:
X, v. 6, p. 100037, 1 jun. 2020a.
MONTEIRO, W. M. et al. Providing Antivenom Treatment Access
to All Brazilian Amazon Indigenous Areas: ‘Every Life Has Equal
Value’. ToxinsMDPI, , 1 dez. 2020b.
MONTOYA-VARGAS, W. et al. Preliminary assessment of antivenom
availability and management in the public health system of Costa Rica:
An analysis based on a survey to pharmacists in public health facilities.
Toxicon: X, v. 16, p. 100139, 1 dez. 2022.
MUNDKUR, B. by The Wenner-Gren Foundation for Anthropolo-
gical ResearchCURRENT ANTHROPOLOGY. [s.l: s.n.]. Disponí-
vel em: <http://www.journals.uchicago.edu/t-and-c>.
MURTA, F. et al. “Two Cultures in Favor of a Dying Patient”: Expe-
riences of Health Care Professionals Providing Snakebite Care to Indi-
genous Peoples in the Brazilian Amazon. Toxins, v. 15, n. 3, p. 194, 3
mar. 2023.
ROCHA, G. D. S. et al. Validation of a Culturally Relevant Snakebite
Envenomation Clinical Practice Guideline in Brazil. Toxins, v. 14, n.
6, 1 jun. 2022.
RÔMULO R. N. ALVES; HUMBERTO N. ALVES. The faunal drugs-
tore: Animal-based remedies used in traditional medicines in Latin
America. Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, v. 7, p. 1–80,
2011.
SCHIAVETTI., D. S. F. E. C. M. N. A. “Offensive” snakes: Cultural be-
liefs and practices related to snakebites in a Brazilian rural settlement.
Journal of Ethnobiology and Ethnomedicine, p. 1–38, 2010.
STRAND, E. et al. Perspectives on snakebite envenoming care needs
across different sociocultural contexts and health systems: A compa-
rative qualitative analysis among US and Brazilian health providers.
Toxicon: X, v. 17, p. 100143, 1 mar. 2023.
VAIYAPURI, S. et al. Multifaceted community health education pro-
- 203 -
grams as powerful tools to mitigate snakebite-induced deaths, disabili-
ties, and socioeconomic burden. Toxicon: X, v. 17, 1 mar. 2023.
VÁSQUEZ, J. et al. Snakebites and ethnobotany in the Eastern region
of Antioquia, Colombia - The traditional use of plants. Journal of Eth-
nopharmacology, v. 146, n. 2, p. 449–455, 27 mar. 2013.
WONG, O. F. et al. A preliminary survey of Hong Kong snake shops
and the potential snake bite risks for the healthcare system. Transac-
tions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene, v. 103,
n. 9, p. 931–936, set. 2009.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Snakebite envenoming: A
strategy for prevention and control. [s.l: s.n.].
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Snakebite envenoming: What
is snakebite envenoming? 2020.
YAHUARCANI A, MOROTE K, CALLE A, C. M. Estado de conser-
vación de Crax globulosa en la Reserva Nacional Pacaya Samiria, Lo-
reto. Rev peru biol, 2009.
ZIEMENDORFF S. Sustancias estimulantes y brebajes afrodisíacos en
la tradición de la Amazonía peruana. Culturas Populares, 2008.
- 204 -
DE LAVRADOR A QUILOMBOLA: ME-
MÓRIA, TRABALHO E IDENTIDADE NA
COMUNIDADE DA CAVEIRA
Introdução
- 205 -
escravos. Tanto a caça, a pesca, a extração de madeira para lenha
foram diminuindo, como também as “terras livres” para a forma-
ção de novos grupos domésticos com o adensamento populacional
resultante das disputas por recursos fundiários. A economia políti-
ca do turismo e da especulação imobiliária acentuaram os conflitos
fundiários e a pressão sobre as condições de reprodução social do
campesinato negro da Caveira.
Como veremos, a identidade quilombola tem uma de suas for-
tes referências a memória deste processo de expropriação fundiária e
dos conflitos com os fazendeiros que tentaram expulsá-los da terra de
modo coercitivo e violento. Os registros de memória da luta pela terra
na Fazenda Campos Novos vêm se materializando em vídeos, áudios,
reportagens, relatórios de identificação territorial, dissertações e teses.
Constitui um importante acervo de fontes de evidência oral sobre a
história do campesinato negro e das formas de exploração e subordi-
nação da força de trabalho rural na Região dos Lagos. Privilegiamos os
relatos orais dos sujeitos, coletados através de entrevistas e trabalho de
campo na comunidade, realizadas em diferentes momentos nos anos
de 2017, 2018 e 2019; selecionando apenas alguns deles para a redação
deste artigo. Todavia, articulamos o conteúdo destes relatos orais aos
outros arquivos de história oral existentes para a formulação das aná-
lises e interpretações aqui apresentadas.
Como disse Dona Almerinda, expressando o modo como per-
cebem a precarização das condições de reprodução da vida campo-
nesa: “foi acabando o espaço da lavoura”. Dona Almerinda, utiliza a
expressão “gente diferente” para marcar a sensação de estranhamen-
to e distanciamento social diante destes adventícios. “A gente agora
está no meio do estreito” (Dona Almerinda): este termo utilizado pe-
los quilombolas refere-se a uma modalidade de acesso a terra fora do
controle social da comunidade. Nós veremos que famílias “de fora”
foram se estabelecendo, como estratégia para fortalecer a luta pela
terra, por intermédio do próprio povo da Caveira. Foram se fixando
também os “infiltrados” pelos fazendeiros, incluindo jagunços, para
espionar o movimento do povo da Caveira e pressionar sua expulsão
restringindo as terras disponíveis através de loteamentos ocupados
por “gente diferente” (Dona Almerinda, apud LUZ, 2019, p. 59).
Todavia, o modo de vida camponês não está só na memória.
Os mais velhos preservam, mesmo diante de condições objetivas
- 206 -
difíceis, uma existência de lavrador, de quem insiste em viver dos
frutos do trabalho na terra. São exemplos vivos e vigorosos da resis-
tência do campesinato negro. Mesmo completamente cercados por
fazendas, eles reproduzem nos seus pequenos sítios o microambien-
te rural de antigamente. Como eles sempre dizem: sua armas são
a enxada e a foice, símbolos máximos da sua existência e trajetória
social, da sua percepção de si mesmos e do mundo. Os mais velhos
com os seus sítios representam mais plenamente a história reificada
(feita coisa, materializada) e incorporada (história feita corpo, como
nos diz Bourdieu, 1989) dos conflitos fundiários, da resistência cam-
ponesa e da demanda por reparação histórica ao povo da Caveira.
- 207 -
da relação dos entrevistados da Caveira com os fazendeiros. Inclu-
sive, delimita dois períodos: um no qual havia uma relação “harmo-
niosa” com os Honold (“Ele não incomodava aqui”) e outro marcado
por violências e arbitrariedades na época do Marquês. Quando digo
“harmoniosa” não me refiro a ausência de conflito ou subordinação
da força de trabalho, mas a um tempo em que imperava um pac-
to moral de convivência entre fazendeiro e os moradores da fazen-
da que tinham acesso à terra (a casa e a roça) em troca de serviços
prestados ao dono. O Sr. Genil fala de George Honold como alguém
integrado com a comunidade, que participava das festas de Santo
Inácio e demonstrava uma conduta devota com o santo. A esfera re-
ligiosa é mencionada como lócus de aproximação entre fazendeiros
e colonos. Contribuía com a festa, em contraposição ao Marquês que
acabou com a vila que existia próxima a sede da fazenda.
O Sr. Afonso também não conheceu pessoalmente o Euge-
nio Honold. Só conheceu de nome, mas afirmou: “Esse aí era muito
bom! A turma trabalhava, era um clima de família, ela dava festa
em final de ano. Matava aquele boi, era churrasco pra tudo quanto
é lado!”. Ele conheceu o Sr. Joaquim Português “que andava muito
a cavalo”: “Ele não era um sujeito mal não, ele era um cara… ele
era administrador da fazenda Campos Novos. […] Só piorou mesmo
depois que venderam a fazenda. Antes de vender...”. O armazém do
Seu Armando concentrava toda a produção da região, de lá ia para o
Porto do Carro, em Cabo Frio. Seu depoimento descreve uma época
de fartura em contraste com o tempo do Marquês, que acabou com
aquela “harmonia na fazenda”. Mas o Sr. Gabriel foi citado, pelo Sr.
João, como o símbolo da resistência. Falou como o Marquês enganou
as pessoas da Vila em Campos Novos. “Sr. Gabriel foi o único que
resistiu e não saiu dali. Ele tirava a família da casa prometendo uma
nova e ia e derrubava a casa.” Lembrou também do armazém do Sr.
Armando que tinha em Campos Novos: “o italiano acabou com o
Armazém do Sr. Armando”.
O Sr. João relatou um pouco da história da sua família, como
seus antepassados se deslocaram do lugar chamado Restinga para a
Caveira. Seu pai foi para a Caveira através de “Negozinho” (Sr. Se-
verino) e do “Véio Marciano”, “trouxe Vitor, que é meu pai”. “Véio
Peixoto, na altura de Tribobó, município de São Gonçalo, na tarde de 09/02/1949. “O fazen-
deiro e capitalista”, como foi designado pelo jornal A Noite (09/02/1949), ia para Cabo Frio
inspecionar as fazendas.
- 208 -
Severino veio pra tocar a lavoura e administrar a turma na Fazenda
Campos Novos. […] Até essa época a Fazenda Campos Novos era
as mil maravilhas”. Seu pai e Marciano vieram como arrendatários,
eles não eram empregados da fazenda. Pagavam dois dias por mês e
tocavam sua lavoura. Seu João não conheceu o George Honold, mas
conheceu o Marquês: “A Fazenda Campos Novos era uma potência
produtiva. Havia uma harmonia na fazenda”. O tempo do Marquês é
caracterizado pela ruptura unilateral com esta economia moral que
legitimava vínculos e relações de obrigação e favores assimétricos
(um sistema de subordinação da força de trabalho) expressos no di-
reito a moradia e roçado nas terras do patrão (THOMPSON, 1998).
O Sr. Genil delineou a nova situação com a imposição de no-
vas relações de trabalho na fazenda: “Ele arrumou um tal de con-
trato”; como também a estratégia de expulsão ao soltar “os bois na
roça” destruindo as plantações. Ele aponta Botafogo como a origem
da resistência, o “pessoal de Botafogo” que não assinaram contrato;
e como personagens principais nesse ato de insubmissão o seu tio
Negozinho e Sílvio, seu cunhado e presidente da associação de lavra-
dores, que “sabia o que era direito” por ter morado no Rio de Janeiro
onde aprendeu muitas coisas. A organização em moldes associativis-
tas, em torno da categoria de lavrador, remete a uma percepção dos
conflitos em termos de sentimentos de injustiça e indignação diante
de direitos violados. A representação política e mobilização coletiva
em torno das categorias posseiro, lavrador e trabalhador rural, sob a
forma de associação civil e sindicato, forneceu uma linguagem pú-
blica para mobilização de sentimentos de morais de privação e sofri-
mento, assim como repertórios de ação e alianças, diante da ruptura
dos padrões morais de subordinação da força de trabalho e acesso a
terra.
Um fato culminante na história dos moradores da Caveira que
mudou a forma como o trabalho estava configurado foi quando, na
década de 1950, o Marquês queria impor regras mais duras e proi-
bir os lavradores que fumassem o cachimbo e estabelecer horários
até mesmo para urinar e beber água. Em ato de resistência os mais
velhos retiraram o cachimbo do bolso e começaram a fumar. O Mar-
quês ordenou que eles retirassem o cachimbo da boca e voltassem
ao trabalho e, um deles, o Sr. Marcelino respondeu que ele estava em
seu tempo de descanso e que não iria retirar o cachimbo da boca. O
- 209 -
Marquês ao se reportar em direção ao Sr. Marcelino parou quando
percebeu os outros lavradores se posicionarem ao lado dele, do se-
nhor Marcelino, para defendê-lo. O fazendeiro, raivoso, ordenou que
ele não pisasse mais em suas terras. Quando foram embora eles se
reuniram e, juntos, decidiram não mais pagar suas terras cultivando
as do fazendeiro, mas sim, pagando em dinheiro o dia de trabalho.
A proibição do fumo do cachimbo foi a gota d’água, somada às
outras regras mais duras e, também, ao fato do Marquês não querer
dar o recibo do dia do arrendamento, como eles começaram a exigir,
conforme recordou dona Lola, em situação de entrevista. A proibi-
ção ao cachimbo foi o estopim para deflagrar a organização e união
do grupo que culminou na criação da associação de lavradores. Os
quilombolas da Caveira possuíam uma noção legitimadora, apoia-
da na crença de que estavam defendendo um costume, de fumar o
cachimbo, mobilizando o consenso mais amplo da comunidade. As
queixas operavam dentro de um consenso popular a respeito do que
eram as práticas legítimas e ilegítimas, havia um pacto moral tácito
orientando as atitudes recíprocas entre fazendeiros e lavradores.5
Neste sentido, o direito de fumar o cachimbo é um símbolo
da ruptura do pacto moral que regia as relações entre fazendeiros e
o campesinato negro na Fazenda Campos Novos: “Ele começou logo
proibindo as pessoas de fumar, coisa que na roça quase todo mundo
fumava cachimbo e cigarro”. O conflito é deflagrado pela agressão a
um costume apreciado coletivamente (um valor moral), uma afronta a
dignidade camponesa. É um expediente verbal de enunciação da me-
mória da resistência camponesa, mas é também o recurso simbólico
de expressão e compreensão do confronto entre duas modalidades de
(re)produção da vida social. Por isso, os camponeses da Caveira nos
relatos orais sobre tal acontecimento se referem a ele como o “tempo
do Marquês”, o “tempo do cativeiro”, em contraposição ao “tempo dos
Honold”, “tempo da harmonia”, “tempo da fartura”. Também são tem-
pos opostos em termos de autonomia e dependência: “Nós não fomos
empregados deles aqui, não. O pessoal só pagava a renda”.
A metáfora da escravidão, a alegoria moral de injustiça, é acio-
nada não para o período logo posterior a abolição, marcado pela au-
5 O diálogo com a noção de economia moral do historiador E. P. Thompson (1998) é pertinente
para elaborar um quadro analítico que permita compreender melhor a significação sociológica
deste evento na construção social de disposições constestatórias e como fator de mobilização,
pois tal episódio é paradigmático na memória das lutas pela terra.
- 210 -
sência ou baixa frequência dos fazendeiros até a morte de George
Honold e “venda” da fazenda, feita por Luiz Honold ao Marquês.
Na memória dos quilombolas da Caveira é quando foi inaugurado
o conflito com os fazendeiros e todas as violências e crueldades co-
metidas contra eles. É quando a solidariedade do grupos se expressa
mais incisivamente, depois assumindo uma forma associativa de or-
ganização política. “Então tira o cachimbo da boca! Tira o cachim-
bo da boca!”, o cachimbo como signo dos direitos (nesse caso, ao
descanso) agressivamente atacados pelo fazendeiro, como o Outro
antagonista, categoria informada e incorporada na memória pela ex-
periência sindical passada. “Era os 15 minutos que ele... a lei daria o
direito à ele”, cabe destaque às referências ao direito e a lei. Na verda-
de trata-se do direito e lei no sentido costumeiro (usos ou hábitos),
mas no seio de uma memória perpassada pela experiência sindical
na qual o quadro normativo estatal (sistemas legislativo e judiciário)
eram acionados nos conflitos.
Nos depoimentos também observamos a reação camponesa
à imposição pelo Marques de um “clima de escravo” por meio de
contratos formais e procedimentos disciplinares rígidos (segundo
os critérios dos sujeitos) de controle do tempo e do trabalho. “E ele
botou uma lei pra ninguém fumar no serviço”, “Por que ele queria
obrigar o pessoal a ficar no regime deles!”. Lei, regime, significa um
padrão de subordinação considerado opressivo porque fora das ba-
ses morais de legitimidade então vigentes, proporcionando então as
condições para a emergência de disposições de protesto, sentimentos
coletivos de indignação (THOMPSON, 1998). Eles resolvem então
radicalizar, não pagando mais a “renda” em trabalho, mas em dinhei-
ro, depositando no Banco o valor correspondente. Tal ação corres-
ponde a uma manifestação de autonomia frente ao patrão, sendo o
pagamento em dinheiro uma sinalização de libertação. Mas a reação
do fazendeiro (enquanto uma posição social) resultou na substitui-
ção de uma economia moral do arrendamento por uma economia
política do terror, a partir da venda para o Dácio Pereira e da criação
de gado como principal forma de investimento capitalista nas terras
da fazenda em detrimento da lavoura. A partir daí os patrões im-
põem uma política de expulsão em vez de exploração / subordinação
da força de trabalho. “Aí o Marques passa essa briga pro Dácio”, essa
fórmula é reveladora do processo em tela: a variação de “grileiros”
- 211 -
(nova categoria engendrada na luta) como fato marcante na memó-
ria do conflito fundiário.
O cenário descrito é extremamente grave, implicando a con-
tinuidade de um repertório de ação no qual o uso sistemático da
violência, com a conivência de delegados e policiais militares, real-
mente corresponde a imposição de um regime de terror: incêndio
de casas, tratores e gado destruindo roças, espancamento de adul-
tos e crianças, prisões arbitrárias, tortura… Podemos pensar neste
regime de terror como um padrão de relacionamento imposto por
grileiros a posseiros (enquanto categoriais que remetem a posições
sociais), que marcam a existência social na Fazenda Campos Novos
pelo encadeamento de experiências e narrativas de sofrimento que
rompem frequentemente com o cotidiano. Esse regime de terror im-
posto ao campesinato negro da Caveira perdurou por três décadas
(1950-1980).
Violência, memória e subjetividade: grileiro e posseiro, fazen-
deiro e lavrador são categorias que fazem todo sentido para os sujei-
tos, constituem a experiência e as narrativas sobre o passado funda-
mentais para a identidade quilombola no presente: a luta, a coragem
e o sofrimento dos mais velhos é o patrimônio simbólico deixado
para as gerações mais jovens, junto com o patrimônio material que
é a terra. Em uma entrevista com Seu João e Dona Almerinda, eles
relataram os eventos relativos às prisões e a repressão que sofreram
ao serem rotulados como “comunistas”, o que já os colocava em si-
tuação de vulnerabilidade política e física naquele contexto, porque
“a gente lutava com a fúria dos fazendeiros”, como eles disseram.6
Entretanto, os lavradores não eram passivos diante das pressões dos
fazendeiros. Eles acionavam estratégias de resistência, que fortale-
ciam a solidariedade entre eles e o senso de identidade e segurança.
Eles inovaram o repertório de ação da luta camponesa. Nas palavras
de Dona Almerinda: “Nós tinha nossa lavoura, tinha banana, que
tinha plantado. Então quando aqueles novo chegasse a gente rancava
6 Poucos dias depois de instaurada a ditadura militar a linguagem oficial para reprimir oposi-
tores já estava sendo usada por fazendeiros e administradores. Com o apoio da polícia militar
dezenas de camponeses foram presos e torturados na delegacia de Cabo Frio e no Estádio
Caio Martins, em Niterói, onde ficaram detidos por um mês até o fim do inquérito que lhes
foi imposto. Várias matérias jornalísticas vão registrar a cumplicidade de delegados, polícia
militar e os órgãos de repressão da ditadura militar na implantação deste regime de terror so-
bre as famílias camponesas residentes nas terras da Fazenda Campos Novos. Para citar apenas
um exemplo: “Lavradores de Cabo Frio sob terror: polícia e grileiros saqueiam casebres e
lavouras”, Última Hora, 07/07/1964.
- 212 -
da gente e botava na lavoura dele que é pra… como que ele já tava
ali”. O Sr. João apresentou um belo relato sobre a formação de tur-
mas de autoproteção contra as investidas dos jagunços e policiais, os
incentivos para a entrada de famílias de fora e o transplante de pés
de banana nos terrenos daqueles novos moradores: “E como naquela
época... quanto mais gente dentro de Botafogo tivesse mais seguran-
ça nós tinha pra gente firmar, então começou a vim gente de fora a
ponto da gente fazer casa de noite, pros caboclo morar, roça…”.
O trabalho nas roças, na casa de farinha de Dona Rosa e a ven-
da de seus produtos na feira foi o que sustentou e subsidiou o grupo
para pagar ao INCRA após decidirem não pagar o arrendamento
aos fazendeiros. Cultivar a terra, pagar e se cadastrar no Incra eram
estratégias camponesas na luta pela terra, disputando o reconheci-
mento oficial para afirmar seus direitos. Identidade e consciência de
classe construída na luta pela terra, na interlocução com o traba-
lho político de representação e mobilização dos mediadores (Incra e
Fetag), em situações extremas de confronto com antagonistas num
regime de terror.
Associativismo e sindicalismo: o lavrador versus o grileiro
Nos anos 1950 e 1960, camponeses e trabalhadores rurais sur-
gem como atores políticos e sujeitos de direitos, portanto como ca-
tegoria de mobilização coletiva em uma linguagem de expressão pú-
blica de privações e sofrimentos nos termos de sentimentos morais
ligados a noções de injustiça social (GRYNSZPAN & DEZEMORE,
2007). Surge a figura do grileiro – aquele que se apropria ilegalmente
de terras – como vilão social e antagonista do posseiro; e o conceito
de função social da propriedade adquire força política, para além de
sua definição jurídica já estabelecida em lei anteriormente. As de-
sapropriações se constituem na principal modalidade de ação dos
governos (estaduais e federal) para combater os latifúndios e para
resolver situações graves de conflito fundiário (MEDEIROS, 2010).
A reforma agrária emerge como problema público e a extensão dos
direitos trabalhistas ao meio rural se torna um tema relevante tanto
para a esquerda quanto para a direita. O sindicalismo rural adqui-
re reconhecimento oficial e trabalhador rural torna-se a categoria
abrangente, unificando as distintas situações de empregado sob re-
muneração e de condições de acesso a terra.
- 213 -
Foi no terreno do senhor Sílvio da Silveira, na década de 1950,
onde foi construída a primeira sede da Associação de lavradores de
São Pedro da Aldeia e Cabo Frio. Esta foi a primeira entidade orga-
nizada dos trabalhadores rurais.7 Foi neste mesmo espaço que foi
construída também a primeira escola do local. Foi esta organização
que incentivou a vinda de lavradores de fora para povoarem a região
e fortalecerem a luta local. A associação era liderada pelas famílias
Silveira, Santos e Marciano. O Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Cabo Frio e São Pedro da Aldeia foi formado em 1961 e fechado com
o golpe de 1964.
No processo de reorganização política dos camponeses da fa-
zenda Campos Novos foi criado o Sindicato de Trabalhadores Rurais
de São Pedro da Aldeia, em 1974, que teve como seu primeiro presi-
dente Sebastião Lan. Segundo Aline Maia (2018), a pauta de defesa
da reforma agrária foi incorporada e o sindicato coordenou o uso
e ocupação da terra e das primeiras feiras livres da região (MAIA,
2018). Em depoimento, em 1983, Dona Rosa afirma que a Fetag he-
sitava em atuar na região porque não havia um sindicato e que os
lavradores tinham medo por causa da repressão, “porque só em falar
em reforma agrária vinham prender” (Dona Rosa, depoimento con-
cedido a Leonilde Medeiros e Sonia Lacerda, apud MAIA, 2018,p.
399). Sebastião Lan, em depoimento, também em 1983, conta que
foi em reuniões na FETAG, em Niterói. Lá ficou sabendo que a fe-
deração não podia acompanhar o caso de Campos Novos porque
tinha outros municípios para atuar, a solução era mesmo formar um
sindicato (Sebastião Lan, entrevista concedida a Leonilde Medeiros,
apud MAIA, 2018,p. 399-400). Lan e Dona Rosa tinham pensado
primeiro em criar o sindicato em Cabo Frio, mas a Fetag desaconse-
lhou, pois os lavradores estavam muito visados como “comunistas e
7 Esse é um momento de acentuada mobilização pela reforma agrária e de crescente organi-
zação política de camponeses e trabalhadores rurais. A legislação trabalhista e previdenciária
não havia sido ainda estendida aos trabalhadores do campo, apesar de algumas tentativas nos
governos de Getúlio Vargas. Esse debate público girava em torno da definição do trabalhador
rural como categoria profissional, tanto na esfera parlamentar quanto na executiva. O direito a
formação de sindicatos, por exemplo, não estava legalizada no meio rural e qualquer forma de
organização política era reprimida pelas forças policiais e considerada uma ameaça ao direito
de propriedade e a ordem pública. Os grandes proprietários consideravam que a sindicalização
levaria a expansão da luta de classes para o campo e afirmavam que o camponês era incapaz
de ser organizar autonomamente. Venceu a proposta de associativismo misto, ou seja, que
congregava empregados e patrões, cujos interesses seriam supostamente convergentes. Na
segunda metade dos anos 1940 começaram a surgir as primeiras associações de lavradores,
constituídas com a colaboração do Partido Comunista do Brasil (PCB) (MEDEIROS, 2018).
- 214 -
subversivos”. Em uma assembleia, em 28/02/1974, que contou com
a presença de mais de 500 lavradores, foi criado o sindicato rural de
São Pedro da Aldeia (MAIA, 2018).
O sindicato de Cabo Frio teria sido resultado de dissenções
entre dirigentes do sindicato anterior (Cabo Frio e São Pedro), mas
consta também que o sindicato de São Pedro apoiou a fundação de
um sindicato independente em Cabo Frio (MAIA, 2018 e O Flumi-
nense, 14/04/1978). As duas possibilidades não se excluem. O presi-
dente do sindicato de Cabo Frio, Joanil Bento Pereira, era suplente da
presidência no sindicato de São Pedro. Na assembleia de fundação,
realizada na Câmara de Vereadores, em meados de abril de 1978, e
na entrevista concedida ao jornal O Fluminense, Joanil Pereira fez
questão de mencionar: “[…] o apoio do sindicato de São Pedro da
Aldeia, onde já existem 1.600 trabalhadores sindicalizados”.
Em 09/03/1983, foram promulgados dois decretos pelo presi-
dente João Baptista Figueiredo, relativos a desapropriação de parte
da Fazenda Campos Novos (O Fluminense, 12/03/1983). O Incra foi
autorizado a fazer a desapropriação e tinha o prazo de três anos para
intervir, remanejando as famílias e regularizando a área. A Fazenda
Campos Novos não foi integralmente atingida pelos decretos, mas
apenas uma faixa de 3.200 hectares., menos da metade.
Os moradores antigos8 (descendentes das três famílias fun-
dadoras) se opuseram aos critérios do Incra por serem muito restri-
tos e excludentes, pois iam de encontro aos princípios das famílias
(que se identificarão depois como quilombolas) de atribuição de di-
reitos de acesso a terra na Caveira. Pelas regras do órgão fundiário
ficavam excluídos aqueles que tivessem mais de 65 anos de idade e
aqueles que estivessem empregados em atividades não rurais e os ta-
manhos dos terrenos para assentamento eram menores do que aque-
les ocupados efetivamente e necessários a reprodução social campo-
nesa (TOSTA, 2005). Na comunidade Caveira, o trabalho na roça
sempre foi articulado com empregos urbanos, temporariamente ou
permanentemente, como forma de complementar a renda familiar,
seja em circunstâncias de queda na produção agrícola por causa de
8 Esta é uma categoria de autoidentificação, como apontado por Tosta (2005), da rede de
parentes oriunda das três famílias originais que se reconheceram como “remanescentes de co-
munidades de quilombo” nos anos 2000. A identificação como moradores antigos se constitui
em referência aos “de fora” e os “infiltrados”, que se estabeleceram na Caveira no período dos
conflitos com os fazendeiros.
- 215 -
fatores climáticos ou devido a condições ruins de comercialização
dos produtos. Sendo assim, muitas vezes alguém da família traba-
lhava no setor comercial ou industrial em Cabo Frio, São Pedro da
Aldeia ou Arraial do Cabo, enquanto outros integrantes ficavam na
Caveira cuidando da casa e da roça. Aquele que se empregava na
cidade, no fim de semana e feriados se tornava lavrador. Esse era
o caso, por exemplo, do Sr. João que foi empregado durante mui-
tos anos na Fábrica Alcális, em Arraial do Cabo. Alias, o que ocorre
com muitas famílias camponesas em muitos lugares, que intercalam
as chamadas ocupações agrícolas e não agrícolas. Estas últimas sen-
do em muitos casos atividades essenciais para a reprodução social
dos grupos domésticos e do modo de vida camponês, constituindo
fontes de recursos estratégicos para a permanência na terra. Excluir
aqueles que tinham mais de 65 anos era desrespeitar a experiência de
resistência e a liderança que exerceram na luta que lhes proporciona-
va o prestígio que tinham. Titular módulos de tamanho pequeno, era
inviabilizar as unidades sociais de reprodução camponesa.
Todavia, havia famílias que concordavam com as regras de
assentamento rural do Incra. Alguns moradores, principalmente os
que residiam nos limites com Cabo Frio, aceitaram o tamanho do
módulo proposto pelo órgão e venderam parcelas das suas terras
para não serem expulsos. O Incra pressionou para que os possei-
ros antigos acatassem as diretrizes oficiais para a desapropriação. O
Incra atuava a partir de classificações genéricas de posseiro e a apli-
cava burocraticamente, sem levar em consideração as especificida-
des históricas e modalidades sociais de ocupação fundiária daquela
situação local concreta, gerando insegurança quanto a garantia dos
direitos a terra arduamente defendidos e com tanta coragem. Alguns
antigos sítios foram fragmentados, sendo substituídos por terrenos
sem espaço para roça e ocupados pelos “de fora”. Isto resultou na di-
minuição da área cultivada, redução da produção agrícola e adensa-
mento populacional em Botafogo-Caveira, contribuindo para a atual
configuração rural-urbana do lugar (TOSTA, 2005).
- 216 -
A Constituição de 1988: novas categorias de percepção,
uma nova gramatica moral e novas formas político-orga-
nizativas
- 217 -
quebradeiras de coco de babaçu, pescadores artesanais, piaçabeiros,
castanheiros, faxinaleiros, ribeirinhos, seringueiros, etc. Estas novas
organizações vão apresentar demandas por direitos visando a garan-
tir a permanência ou recuperação do acesso e controle de terras de
uso comum, fundamentais para a reprodução social de modos de
vida coletiva (ALMEIDA, 2008).
O vocabulário militante das lutas sociais no campo deixa de
girar exclusivamente em torno dos termos trabalho e posse e passa a
girar também em torno das noções de identidade e território. A uma
linguagem política de luta de classes se sobrepôs um ativismo moti-
vado por demandas morais de reconhecimento, ou seja, por confron-
tos identitários (HONNETH, 2003). Critérios étnicos, de gênero e de
consciência ecológica são incorporados nesses movimentos sociais
nos processos de constituição como sujeitos políticos, em contextos
de confronto com antagonistas e interlocução com o Estado. Novas
concepções de direito ao uso e ocupação da terra são assim instituí-
dos e pressionam por mudanças legislativas e na burocracia estatal.
Amparados na Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), direitos territoriais são reconhecidos oficialmen-
te para a proteção de coletivos que exercem práticas econômicas de
baixo impacto sobre os ecossistemas, devido a suas formas especí-
ficas de relação com o meio ambiente e apropriação dos recursos
naturais (ALMEIDA, 2018). O cenário pós 1988, então, apresentou
um quadro institucional favorável a luta das comunidades negras
rurais (e urbanas também) em defesa da manutenção das terras que
ocupavam ou da recuperação daquelas que lhes foram expropriadas.
Os conflitos fundiários envolvendo tais coletivos adquiriram outra
configuração, pois agora tinham como elemento central as deman-
das morais de reconhecimento identitário sustentados na busca por
reparação histórica.
No relatório antropológico de identificação da área quilombo-
la da Caveira temos a informação sobre as assembleias que ocorriam,
em 2004, quando ainda existia a Associação de Moradores de Bota-
fogo-Caveira, na qual reivindicaram a titulação do seu território. Em
1998, foram realizados estudos de reconhecimento étnico promovi-
dos pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e Instituto de Terras e
Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj). Exatamente naquele
ano das assembleias da associação, a FCP emite a certificação de au-
- 218 -
torreconhecimento da Comunidade Caveira/Botafogo como “rema-
nescentes das comunidades dos quilombos”, em 17/06/2004. Nessas
assembleias aconteceu a conversão pública dos posseiros e lavrado-
res em quilombolas da Caveira, a etnização definitiva do conflito
fundiário na Fazenda Campos Novos. Os estudos antropológicos de
identificação e delimitação do território da comunidade de rema-
nescentes de quilombo da Caveira aconteceram nos anos de 2008 e
2009 (LUZ, 2019).
O depoimento do Sr. João e Dona Almerinda sobre o reconhe-
cimento oficial e a autoidentificação como quilombola é muito inte-
ressante. O Sr. João disse que a associação de moradores da Caveira
mudou para associação quilombola para obter recursos do governo
federal, por sugestão de um funcionário local do Incra, chamado
Celso. “Reunimos a comunidade, nós reunimos a comunidade e a
comunidade aprovaram e então foi criado a associação de remanes-
cente de quilombo”. O primeiro presidente da associação quilombo-
la foi o irmão do Sr. João, o Sr. Ilson. O levantamento do Incra é que
está marcado na memória deles, “esse levantamento da terra para
chegar a origem”, provavelmente se referem aos estudos antropoló-
gicos de identificação da área para titulação: “… e depois começa-
ram a entrar, pesquisar...”. Não fica muito claro, quando foi criada a
associação de moradores. O Sr. João diz que foi depois que acalmou
a repressão dos fazendeiros: “[…] mas depois que acalmou tudo, fa-
zendeiro passou a não perturbar mais, aquela coisa toda, porque foi
chamado atenção pelas autoridades [...]”. Eu suponho que tenha sido
na época das desapropriações de áreas na Fazenda Campos Novos (a
Caveira ficando de fora), e com a intervenção mais incisiva do Incra
nos conflitos com os fazendeiros, nos anos 1980, que eles criaram a
associação de moradores.
Nos anos 1980 os conflitos continuavam, mas na memória dos
mais velhos da Caveira esse período de desapropriações é percebido
como relativamente mais calmo. Não mais uma associação de lavra-
dores (os sindicatos rurais de São Pedro e de Cabo Frio já haviam
voltado a funcionar em 1974 e 1978), mas uma forma de expres-
são organizativa local, da comunidade da Caveira, que só mudou de
nome, para Associação dos Remanescentes de Quilombo da Caveira.
Logo, a Associação de Moradores de Caveira-Botafogo, que já tinha
uma referência territorial e comunitária, foi importante para a tran-
- 219 -
sição de uma forma organizativa sindical para uma de caráter étni-
co. Como o Sr. Francisco relatou para a antropóloga Andréia Franco
Luz: “O trabalho de remanescente faz uns dois anos e pouco… na
realidade, a associação sempre existiu, mas só que não era reconheci-
da como remanescente, usavam o termo lavrador, associação dos pe-
quenos lavradores. Agora, mudou para remanescente” (LUZ, 2009,
p. 55). O Sr. Francisco traça uma linha de continuidade entre duas
formas político-organizativas, ele diz “só que não era reconhecida
como remanescente”, demonstrando uma compreensão desta passa-
gem como natural, como se fosse apenas uma visibilização de um
aspecto (central, sim) que estava escondido, oculto. Lavrador (ou
trabalhador rural) e quilombola se complementam na construção
social da identidade do povo da Caveira.
A referência étnico-racial passa então a ser central e também
a demanda por direitos em termos de reparação histórica aos des-
cendentes de pessoas escravizadas. O Sr. João e Dona Almerinda
explicam a decisão de assumirem sua condição quilombola pelas
origens da comunidade, cuja denominação (Caveira) remete aos
restos mortais (ossadas) que marcam simbolicamente o lugar com
a dor do cativeiro. Esta memória e a terra são indissociáveis, ambos
são patrimônios coletivos dos Silveira, dos Souza e dos Santos; assim
como a memória das lutas pela permanência na Caveira. Os funda-
dores das famílias foram: Véio Severino, Véio Marcelino e Véio Ne-
gosinho. “Aqui era tudo… nego”, “… depois que foi vindo a mistura”,
“mas os fundador, os remanescente mesmo...”. É muito significativo
que o Véio Severino seja lembrado pela sua data de nascimento “no
dia da liberdade” (13/05/1888). O critério racial se combina com o
histórico (experiência ancestral de escravização), para a formulação
de uma identidade vinculada a um modo de vida coletiva construí-
da nas terras da antiga fazenda Caveira, onde seus avós e tataravós
viveram e morreram. O octogenário Sr. Afonso explica o que é ser
quilombola falando de sua avó Damiana que tinha as marcas das
correntes nos pés. Ela tinha a experiência da escravidão gravada no
corpo, a história incorporada (feita corpo). Vanda recordou as his-
tórias de seu tio e de seu pai que diziam que sua bisavó tinha sido
escrava. Quando assistiam novelas da época dos escravos eles fala-
vam assim: “Minha mãe contava que minha avó passou por isso”.
Memórias que circulavam no espaço doméstico, nas redes familiares
- 220 -
do campesinato negro; antes silenciadas nos espaços públicos, na
memória oficial do município e no espaço escolar, tornam-se fatores
de afirmação étnica, de surgimento de novas subjetividades políticas
e de fortalecimento da autoestima (POLLAK, 1989).
Conclusão.
- 221 -
pacto moral com os novos donos que viabilizava as condições para a
reprodução social do campesinato negro depois da abolição. Lavou-
ra, pesca, caça, criação de animais e comercialização de excedentes
(como a farinha e outros produtos agrícolas), atividades exercidas
em áreas de uso comum e áreas de uso familiar, sustentado em direi-
tos de acesso e ocupação da terra referenciados a normas coletivas
próprias a uma comunidade local de parentes, afins e vizinhos.
Essa economia moral não é rompida pelos Honolds, mas o
Marquês primeiro tenta impor uma disciplina rígida ao trabalho
das famílias negras residentes na fazenda; depois inaugura o regi-
me de terror e coercitivamente tenta impor a expulsão. Ele abalou
os alicerces materiais e simbólicos dos padrões de convivência entre
donos e moradores gerando o conflito que desaguou na revolta do
cachimbo. A estratégia de destruir plantações e casas desmontava
um sistema mais amplo de relações entre latifúndio e campesinato.
O gado em confronto com a lavoura também não deixa de ser uma
referência simbólica do embate entre dois sistemas de dominação de
classe e racial. A sociogênese do conflito fundiário e a formação de
um campesinato étnico reside neste processo social e histórico de
substituição de uma economia moral por um regime de terror na
Fazenda Campos Novos.
O direito a terra é enunciado na linguagem da permanência
no lugar onde ancestrais viveram a experiencia da escravidão, uma
terra que os descendentes tem o dever de deixar como herança para
gerações futuras, porque foi consagrada com o suor e o sofrimento
inerentes ao cativeiro. Por isso que muitos deles associam o tempo
do Marquês com a implantação de um novo regime de escravidão,
porque esta memória e narrativa do passado fornece a referência
temporal central para uma nova gramática moral das lutas pela ter-
ra. Antes a memória do cativeiro perpassava os relatos dos conflitos
fundiários, mas eram ofuscadas por outras metáforas privilegiadas
pelo discurso militante da reforma agrária: trabalho e posse como
categorias de justificação do acesso a terra e uso dos recursos natu-
rais.
Referências
- 222 -
ACCIOLI, Nilma. Pagando dia para morar. Considerações sobre a ocu-
pação Quilombola na Região dos Lagos – Rio de Janeiro, Brasil. Rev.
Diálogos Mercosur. Num. 5. Enero – Junio (2018), pp. 22-37.
ALMEIDA, Alfredo Wagner de. Terras Tradicionalmente Ocupadas:
Processos de Territorialização, Movimentos Sociais e Uso Comum. In:
Terra de Quilombo, terras indígenas, “babuçais livre”, “castanhais do
povo’, faxinais e fundos de pasto: Terras Tradicionalente Ocupadas.
Manaus: PGSCA-UFAM, 2008.
BARTH, Fredrik. Os grupos étnicos e suas fronteiras. In _____. O
guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:
Contra Capa Livraria, 2000.
BOURDIEU, Pierre. La mort saisit le vif. As relações entra a história
reificada e a história incorporada. O poder simbólico. Difel: Lisboa;
Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 1989.
GRYNZPAN, Mário. DEZEMORE, Marcus. As esquerdas e a desco-
berta do campo brasileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos
(1950-1964). In: FERREIRA, Jorge. REIS, Daniel Arão (ogs.). Nacio-
nalismo e reformismo radical: 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos
conflitos sociais. São Paulo: Ed. 34, 2003.
LUZ, Andréia Franco. Relatório Antropológico: “A comunidade Re-
manescente de Quilombo da Caveira”. Rio de Janeiro: INCRA/RJ/Fun-
dação Euclides da Cunha, 2009.
MAIA, Aline Borghoff. Conflitos fundiários, repressão e resistência
camponesa na Fazenda Campos Novos em Cabo Frio: de posseiros a
quilombolas. In: Medeiros, Leonilde Servolo de. Ditadura, conflito e
repressão no campo: A resistência camponesa no estado do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Transformações nas áreas rurais,
disputas por terra e conflitos sociais no estado do Rio de Janeiro (1946-
1988). In: Medeiros, Leonilde Servolo de. Ditadura, conflito e repres-
são no campo: A resistência camponesa no estado do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Consequência, 2018.
___________. Movimentos sociais no campo, lutas por direios e re-
forma agrária na segunda metade do século XX. In: CARTIER, Mi-
- 223 -
guel(org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a Reforma
Agrária no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Histó-
ricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura po-
pular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TOSTA, Alessandra. Contando Histórias: Uma etnografia das narra-
tivas e usos do passado em um povoado fluminense. Dissertação de
Mestrado do Programa de Pós –Graduação em Antropologia do Museu
Nacional. Rio de Janeiro: Fevereiro, 2005.
- 224 -
Sobre os(as) autores(as)
- 225 -
Erica Vidal Rotondano é Professora de Pedagogia da Univer-
sidade do Estado do Amazonas (UEA), Doutora em Saúde Coletiva
pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), Mestra em Educação e Graduada em Psicolo-
gia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
- 226 -
Gizelly de Carvalho Martins é Mestra em Psicologia pela
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Especialista em
Educação em Saúde pela Universidade do Estado do Amazonas
(UEA, Especialista em Gestão de Pessoas e Recursos Humanos pelo
Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA).
- 227 -
Kelly Caroline Oliveira é Mestre em Ensino de Ciências e
Matemática da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Li-
cenciada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA).
- 228 -
Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coor-
dena do Laboratório de Estudos sobre Movimentos Sociais, Traba-
lho e Identidade (LEMSTI).
- 229 -
- 230 -
- 231 -
- 232 -