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Caio Augusto Teixeira Souto
Ismael Maciel de Menezes Filho
Iná Isabel de Almeida Rafael
Organizadores

Perspectivas e leituras sobre cultura,


educação e identidade na Amazônia

Obra financiada/incentivada pela

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Comitê Científico Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Adailton da Silva (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid - Espanha)
Aldair Oliveira de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Arlete Assumpção Monteiro (PUC/SP - São Paulo/SP)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica - Costa Rica)
Débora Cristina Goulart (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Evandro Luiz Guedin (UFAM – Itaquatiara/AM)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Iraíldes Caldas Torres (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (USP/EcA - São paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UNIFESP - Guarulhos/SP)
Miguel Angelo Silva de Melo - (UPE - Recife/PE)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Renilda Aparecida Costa (UFAM – Manaus/AM)
Roberta Ferreira Coelho de Andrade (UFAM - Manaus/AM)
Sebastião Rocha de Sousa (UEA – Tabatinga/AM)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)

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Caio Augusto Teixeira Souto
Ismael Maciel de Menezes Filho
Iná Isabel de Almeida Rafael
Organizadores

Perspectivas e leituras sobre cultura,


educação e identidade na Amazônia

Embu das Artes / SP


2023

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL
Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz - Université de Versailles
Antônio Cattani - UFRGS
Alfredo Bosi - USP
Arminda Mourão Botelho - Ufam
Spartacus Astolfi - Ufam
Boaventura Sousa Santos - Universidade de Coimbra
Bernard Emery - Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira - UFC
Conceição Almeira - UFRN
Edgard de Assis Carvalho - PUC/SP
Gabriel Conh - USP
Gerusa Ferreira - PUC/SP
José Vicente Tavares - UFRGS
José Paulo Netto - UFRJ
Paulo Emílio - FGV/RJ
Élide Rugai Bastos - Unicamp
Renan Freitas Pinto - Ufam
Renato Ortiz - Unicamp
Rosa Ester Rossini - USP
Renato Tribuzy - Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitora
Therezinha de Jesus Pinto Fraxe

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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Aos autores e todos envolvidos nesta obra;

Ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na


Amazônia (PPGSCA) da Universidade
Federal do Amazonas (UFAM);

À FAPEAM pelo valioso incentivo.

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© by Alexa Cultural

Direção
Gladys Corcione Amaro Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
Klanger
Revisão Técnica
Caio Augusto Teixeira Souto
Revisão da língua portuguesa
Os autores
Edição e diagramação
Alexa Cultural

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S728 - SOUTO, C. A. T. M543 - MENEZES FILHO, I. M.


R136 - RAFAEL, I. I. A.
Perspectivas e leituras sobre cultura, educação e identidade na Amazô-
nia. Caio Augusto Teixeira Souto, Ismael Maciel de Menezes Filho e Iná
Isabel de Almeida Rafael (orgs.). Alexa Cultural: São Paulo, SP; EDUA:
Manaus,AM, 2023.

14x21cm - 232 páginas


ISBN - 978-85-5467-292-8

1. Sociologia - 2. Cultura - 3. Educação - 4. Identidade - 5. Amazô-


nia - I. Índice - II Bibliografia

CDD - 300/301

Índices para catálogo sistemático:


Sociologia
Cultura
Educação
Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610
É terminantemente proibida a reprodução parcial ou integral do conteúdo desta obra sem a
prévia autorização da autora e/ou editora.

Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do Amazonas


Rua Henrique Franchini, 256 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos,
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 n. 6200 - Coroado I, Manaus/AM
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www.alexaloja.com E-mail: ufam.editora@gmail.com
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Apresentação

Caio Augusto Teixeira Souto


Ismael Maciel de Menezes Filho
Iná Isabel de Almeida Rafael

A presente coletânea de textos intitulada Perspectivas e leitu-


ras sobre cultura, educação e identidade na Amazônia reúne quatorze
textos que abordam temas relevantes para a compreensão da realida-
de amazônica. Organizada pelo pesquisador vinculado ao Programa
de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA)
da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Prof. Dr. Caio Au-
gusto Teixeira Souto, pela egressa do mesmo programa, professora
de Língua Portuguesa e Literaturas, Profa. Dra. Iná Isabel de Almei-
da Rafael, e pelo Mestrando do mesmo programa, Ismael Maciel de
Menezes Filho.
A obra apresenta uma diversidade de perspectivas sobre ques-
tões culturais e educacionais da região. Os capítulos abrangem di-
ferentes áreas do conhecimento, como filosofia, pedagogia, ciências
naturais, dança e literatura. Destaca-se a importância dada à valori-
zação da cultura e das práticas amazônicas como forma de ampliar a
compreensão sobre a realidade amazônica e seu papel na formação
de diferentes identidades regionais e nacionais.
O primeiro capítulo, “Desafios na docência da disciplina de
filosofia no Ensino Médio Integrado durante a pandemia de CO-
VID-19 no estado do Amazonas”, de Caio Augusto Teixeira Souto e
Daniel Richardson Sena, traz uma reflexão sobre a docência de filo-
sofia em meio à pandemia de COVID-19, enfocando os desafios en-
frentados pelos professores do Ensino Médio Integrado no Instituto
Federal do Amazonas.
Em “Liberalismo reformista e educação: exploração do traba-
lho docente e suas perspectivas de aceleração no cenário pandêmi-
co”, de Victor Leandro da Silva, é discutido o impacto das políticas
neoliberais sobre o trabalho docente e a educação em geral, em um
contexto de pandemia e aceleração tecnológica.
O terceiro capítulo, “A filosofia e a formação do aluno do Ensi-
no Médio Integrado no Amazonas”, de Daniel Richardson de Carva-

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lho Sena, Pedro Eduardo Garcia de Andrade e José Galúcio Campos,
aborda a importância da filosofia na formação do aluno do Ensino
Médio Integrado, destacando sua contribuição para o desenvolvi-
mento da capacidade crítica e reflexiva dos estudantes.
Já “Pedagogia Imagética: processos de imaginar em meio a en-
contros intergeracionais no lavrado amazônico”, de Rosemara Staub
de Barros Zago e Larissa Silva Gonçalves, explora as relações entre
imaginação, pedagogia e cultura, a partir de encontros intergeracio-
nais na região do lavrado amazônico.
O quinto capítulo, “O contexto amazônico nos experimen-
tos de ciências naturais: o que dizem os livros didáticos?”, de Ettore
Paredes Antunes, Jullia Negreiros Moraes e Kelly Caroline Oliveira,
apresenta uma análise dos livros didáticos de ciências naturais uti-
lizados no Ensino Fundamental II no estado do Amazonas, com o
objetivo de identificar como o contexto amazônico é tratado nesses
materiais.
Em “O espetáculo de dança indígena Kedacery: uma análise
de semiótica peirceana”, de Ismael Maciel de Menezes Filho, é rea-
lizada uma análise semiótica do espetáculo de dança indígena Ke-
dacery, num exercício de leitura sobre a fricção interétnica provoca-
da pela apresentação de uma dança indígena numa comunidade de
não-indígenas.
O sétimo capítulo, intitulado “Juventudes universitárias e saú-
de mental: reflexões a partir de atendimentos psicológicos no Pro-
jeto Espaço de Atendimento Psicossocial (EPSICO)”, é um trabalho
coletivo assinado por André Luiz Machado das Neves, Erica Vidal
Rotondano, Érika da Silva Ramos, Gizelly de Carvalho Martins, Mu-
nique Therense Costa de Moraes e Socorro de Fátima Moraes Nina.
Nesse capítulo, os autores se debruçam sobre o tema da saúde mental
entre os jovens universitários da região, analisando os atendimentos
psicológicos realizados no Projeto EPSICO e refletindo sobre as pos-
síveis causas e consequências desse fenômeno.
Já o oitavo capítulo, intitulado “Para uma crítica da mitopoé-
tica na Amazônia”, tem como autor Harald Sá Peixoto Pinheiro. Nes-
se capítulo, o autor faz uma análise crítica das expressões culturais
dos povos amazônicos, a partir da mitologia amazônica. Ele discute
como os mitos da região são construídos e como eles refletem a rea-

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lidade local, trazendo à tona questões relacionadas à identidade, à
história e à cultura da região.
O nono capítulo, intitulado “Manaus: um campo literário?”, é
de autoria de Iná Isabel de Almeida Rafael. Nesse capítulo, a autora
discute a emergência de uma cena literária em Manaus, analisan-
do as obras de diversos autores que representam a cidade e a região
amazônica. Ela destaca a pluralidade cultural e étnica da região, pre-
sente nas obras literárias, e reflete sobre como essa cena literária se
desenvolve e se relaciona com outras regiões do país.
O décimo capítulo da coletânea se chama “Araújo Lima e os
estigmas sobre o clima e o homem da Amazônia” e é escrito por Ode-
nei de Souza Ribeiro. Analisa-se como a imagem da região amazôni-
ca, marcada por uma suposta hostilidade climática foi construída ao
longo do tempo e como ela tem sido perpetuada na cultura popular.
Ele também propõe uma reflexão sobre os efeitos desses estigmas na
vida das pessoas que habitam a região, questionando a necessidade
de uma revisão crítica dessas representações e propondo alternativas
mais justas e precisas para a compreensão da Amazônia e de suas
populações.
O capítulo “Meu corpo, minha pesca: técnicas corporais de
mulheres amazônicas pescadoras artesanais de camarão”, escrito por
Artemis de Araújo Soares e Everton Dorzane Vieira, traz uma abor-
dagem interessante sobre as técnicas corporais utilizadas pelas mu-
lheres pescadoras artesanais de camarão na Amazônia. O capítulo
mostra como essas mulheres desenvolvem habilidades específicas ao
longo do tempo, utilizando o próprio corpo como ferramenta para
a pesca.
No capítulo intitulado “Pesquisas e práticas interdisciplinares
em envenenamentos ofídicos na América Latina”, os autores Alícia
Patrine Cacau dos Santos, Altair Seabra de Farias, Jacqueline Sachett,
Felipe Leão Gomes Murta, Vinicius Azevedo Machado e Wuelton
Marcelo Monteiro apresentam uma abordagem interdisciplinar so-
bre o tema dos envenenamentos ofídicos na América Latina. Eles
discutem as implicações socioeconômicas e de saúde pública dos
envenenamentos, as estratégias para prevenção e tratamento, e apre-
sentam um panorama dos estudos sobre o assunto na região.
O último texto apresentado nesta coletânea, “De lavrador a
quilombola: memória, trabalho e identidade na Comunidade da Ca-

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veira”, assinado por Sidnei Peres e Gessiane Ambrosio Nazário, traz
reflexões relevantes sobre transformações em comunidades tradicio-
nais, memória, trabalho e identidade. Embora o texto não trate dire-
tamente de temas relacionados à Amazônia, sua análise é de grande
pertinência para compreender a complexidade sociocultural da re-
gião amazônica. Vale ressaltar que os autores possuem vínculos com
questões sociais e ambientais relevantes para a região, o que justifica
plenamente a inclusão do texto nesta coletânea sobre a Amazônia.
Com certeza, esta leitura proporcionará importantes insights sobre
a dinâmica e transformações das comunidades tradicionais, tema de
grande importância para o entendimento da região amazônica.
A coletânea Perspectivas e leituras sobre cultura, educação e
identidade na Amazônia é uma obra que se destaca pela sua riqueza e
pluralidade de abordagens e perspectivas. Ela é resultado do esforço
conjunto dos professores Caio Augusto Teixeira Souto, Ismael Maciel
de Menezes Filho e Iná Isabel de Almeida Rafael em sua organiza-
ção. Os textos apresentados na coletânea oferecem uma compreen-
são mais ampla e profunda da complexidade sociocultural da região
amazônica, e dos processos educacionais, culturais e identitários que
a permeiam. Além disso, a obra apresenta uma amostra do que é
desenvolvido pelos pesquisadores do programa de Pós-Graduação
em Sociedade e Cultura na Amazônia, demonstrando a relevância e
diversidade de temas e abordagens produzidos no programa. Assim,
essa coletânea se revela de grande importância para a reflexão e de-
bate acerca dos desafios e possibilidades do ensino, cultura e identi-
dade na Amazônia.

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SUMÁRIO
Apresentação
Caio Augusto Teixeira Souto, Ismael Maciel de Menezes Filho e
Iná Isabel de Almeida Rafael
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Desafios na docência da disciplina de filosofia no ensino médio integrado


durante a pandemia de covid-19 no Amazonas
Caio Augusto Teixeira Souto e Daniel Richardson de Carvalho Sena
- 15 -
Liberalismo reformista e Educação: exploração do trabalho
Docente e suas perspectivas de Aceleração no cenário pandêmico
Victor Leandro da Silva
- 25 -
A filosofia e a formação do aluno do ensino médio integrado:
um primeiro olhar
Daniel Richardson de Carvalho Sena, Pedro Eduardo Garcia de Andrade e
José Galúcio Campos
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Pedagogia imagética: processos de imaginar em meio a encontros
Intergeracionais no lavrado Amazônico
Larissa Silva Gonçalves e Rosemara Staub de Barros
- 59 -
O contexto amazônico nos experimentos de ciências naturais:
O que dizem os livros didáticos?
Jullia Negreiros Moraes, Kelly Caroline Oliveira e Ettore Paredes Antunes
- 75 -
Espetáculo Kedacery e semiótica peirceana
Ismael Maciel de Menezes Filho
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Juventudes universitárias e saúde mntal: reflexões a partir de atendimentos


psicológicos no Projeto Espaço de Atendimento Psicossocial (EPSICO)
André Luiz Machado das Neves, Erica Vidal Rotondano, Érika da Silva Ramos,
Gizelly de Carvalho Martins, Munique Therense Costa de Moraes e
Socorro de Fátima Moraes Nina
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Mitopoética e desejo mimético em pesquisas etnográficas na Amazônia
Harald Sá Peixoto Pinheiro
- 121 -
Manaus: um campo literário? Autores e obras multifacetadas
Iná Isabel de Almeida Rafael
- 139 -
Araújo Lima e os estigmas sobre o clima e o homem da Amazônia
Odenei de Souza Ribeiro
- 159 -
Meu corpo, minha pesca: técnicas corporais de mulheres
amazônicas pescadoras artesanais de camarão
Artemis de Araújo Soares e Everton Dorzane Vieira
- 171 -
Pesquisas e práticas interdisciplinares em envenenamentos ofídicos na
América Latina
Alícia Patrine Cacau dos Santos, Altair Seabra de Farias, Jacqueline Sachett
Felipe Leão Gomes Murta, Vinicius Azevedo Machado e Wuelton Marcelo Monteiro
- 189 -
De lavrador a quilombola: memória, trabalho e identidade na
Comunidade da Caveira
Gessiane Ambrosio Nazario e Sidnei Peres
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Sobre os(as) autores(as)


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Desafios na docência da disciplina de filosofia no
ensino médio integrado durante a pandemia de
covid-19 no Amazonas

Caio Augusto Teixeira Souto


Daniel Richardson de Carvalho Sena

Introdução
A pandemia da Covid-19 transformou profundamente a roti-
na escolar em todo o mundo. No Brasil, o estado do Amazonas foi
um dos mais afetados pela doença, com um elevado número de casos
e óbitos. Além do impacto na saúde pública, a pandemia também ge-
rou grandes prejuízos à educação, especialmente no que se refere ao
Ensino Médio. A suspensão das aulas presenciais e a transição para
o ensino remoto tiveram impactos significativos na aprendizagem
dos estudantes e na prática da docência pelos professores, que foram
forçados que se adaptar a um novo formato de ensino e enfrentar
desafios tais como: a instabilidade ou mesmo a falta de acesso à in-
ternet, e a falta de preparo específico dos professores para o ensino
à distância. Neste texto, discutiremos os impactos da Covid-19 no
Ensino Médio no estado do Amazonas, a partir da experiência de
dois docentes do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecno-
logia (IFAM), um deles lotado no Campus Manaus Centro, o outro
no Campus Presidente Figueiredo, que se situa a uma distância de
aproximadamente 120 km da capital. Este texto, portanto, tem como
objetivo analisar os desafios enfrentados e algumas de suas impli-
cações. Buscamos refletir sobre a resiliência dos professores e dos
alunos em lidar com as adversidades do ensino remoto, mas também
sobre a fadiga e o descaso que muitos deles têm enfrentado, reflexos
de problemas estruturais relacionados ao neoliberalismo e à desva-
lorização da educação no Brasil.

Campus Manaus Centro

Devido à grande extensão territorial do Amazonas e suas par-


ticularidades, o modo de lidar com essa nova realidade não ocorreu

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de maneira uniforme em todo o estado. O IFAM é uma instituição
multicampi, com 3 campi na capital e outros 14 espalhados pelo in-
terior do Amazonas. Na capital, as dificuldades e os prejuízos cau-
sados pela pandemia foram grandes, porém, muito menores que no
interior do estado. No campus Manaus Centro (CMC) as atividades
remotas se iniciaram apenas em agosto de 2020, após o recesso do
meio do ano. Nesse ínterim, os professores receberam treinamento
para a utilização da plataforma SIGAA (Sistema Integrado de Gestão
de Atividades Acadêmicas) de forma remota. Participaram também
de cursos on-line de capacitação, visando uma preparação mínima
para a realização das atividades educativas sob essa nova realidade.
Após várias reuniões, ficou estabelecido que as atividades de
retorno ocorreriam de forma remota, divididas em duas categorias:
aulas síncronas (encontros em tempo real pelo Google meet); e au-
las assíncronas (estudos dirigidos pelo sistema integrado SIGAA,
conteúdos pelo Google classroom, postagem de textos e vídeos, den-
tre outras atividades). Antes do retorno das atividades escolares, a
preparação para a retomada das aulas de filosofia iniciou-se com a
inserção na plataforma SIGAA (em todas as turmas) de um rotei-
ro contendo os objetivos de cada aula, de textos e de vídeos curtos
abrangendo os temas a serem trabalhados. Esses conteúdos seriam
posteriormente transmitidos de forma alternada nos encontros sín-
cronos e assíncronos.
Ainda relacionado à parte docente, realizaram-se (por con-
ta própria) alguns investimentos como a troca de plano da internet
residencial por um melhor e a colocação de um novo drive SSD no
computador, visando uma maior eficiência da máquina. Avalia-se
que tais intervenções permitiram melhor qualidade das transmis-
sões em tempo real. As aulas síncronas inicialmente apresentaram
algumas dificuldades oriundas da falta de conhecimento de como
lecionar por meios virtuais. Aos poucos foi se desenvolvendo uma
maior familiaridade com a plataforma Google meet e com o sistema
SIGAA.
Entretanto, a realidade de parte dos discentes não foi a mes-
ma. De acordo com relatos destes, muitos alunos não possuíam aces-
so à Internet, não conseguiam se concentrar nos encontros remotos
ou não assistiam às aulas em um local adequado, com silêncio ou
boa conexão. Tais situações podem ter comprometido, inicialmente,

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o bom aproveitamento das aulas síncronas. Essas considerações cor-
roboram com o relatado feito por Gross, Minoda e Fonseca (2020)
sobre os desafios presentes na educação remota, como por exemplo,
problemas de conectividade, famílias que não tem acesso aos recur-
sos tecnológicos e não têm condições de ajudar academicamente seus
filhos e alunos que não tem maturidade para estudar a distância.
Situações semelhantes também foram evidenciadas em maté-
ria do site Agência Senado (2022) sobre o ensino no período da pan-
demia, onde a necessidade de ensino remoto evidenciou dificulda-
des na maior parte das escolas brasileiras, em especial nas unidades
públicas, onde foi possível somar o despreparo tecnológico à falta
de conhecimento de como ensinar por meios virtuais. A situação foi
ainda mais crítica para quem não pôde contar com aparelhos (com-
putador, tablet ou celular) na residência e, muito menos, com acesso
adequado à internet.
A situação calamitosa da pandemia na cidade de Manaus não
permitiu que os setores institucionais (serviço social e setor pedagó-
gico), que tratam diretamente de problemas pontuais, tivessem um
contato mais efetivo com os estudantes e suas famílias, contato este
que poderia atenuar os problemas vividos. Ainda em relação à pan-
demia, o estado do Amazonas e, principalmente, a cidade de Manaus
sofreram no início de 2021 os efeitos de uma tragédia sanitária como
a lotação de hospitais, a falta de vacinas e de oxigênio e ainda a de-
sastrosa gestão do Governo Federal. Conforme matéria do SINASEF,
sindicato que representa os Servidores Federais da Educação Básica,
Profissional e Tecnológica (2023), o efeito da pandemia no Instituto
Federal do Amazonas (IFAM) foi devastador: apenas no mês de ja-
neiro de 2021 acorreram 14 mortes de servidores (incluindo o reitor
da instituição), 12 delas motivadas pela COVID-19.
Outra observação que merece destaque é o fato de que alguns
alunos se conectavam às aulas, porém, não participavam das discus-
sões ou sequer ligavam a câmera, ou seja, faziam de conta que esta-
vam acompanhando o conteúdo. Outros, por sua vez, se mostraram
muito assíduos e se comunicavam bastante. Avalia-se que a filosofia
como componente curricular no ensino médio se constitui como um
importante campo de realização de discussões e reflexões acerca de
temas variados da condição humana, capaz de contribuir para a for-
mação integral do educando. Nesse sentido, as aulas remotas restrin-

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giram e/ou dificultaram bastante o processo de diálogo e discussão
sobre os conteúdos e questões advindas destes.
Porém, apesar das dificuldades, as discussões nas aulas sín-
cronas posteriormente fluíram. Percebeu-se, nos momentos de con-
versa, que alguns alunos demonstravam ansiedade e se mostraram
apreensivos pelo retorno das atividades presenciais. Foi possível
notar que a pandemia causou efeitos nocivos na saúde mental dos
estudantes. Observa-se que as considerações de Vazquez, et. al. se
aplicam aos estudantes do IFAM:

Os jovens foram atingidos de forma duradoura pelo isolamento


social, com rompimento de vínculos e interrupção das principais
rotinas de estudo e lazer, em uma etapa da vida na qual as atividades
sociais são mais intensas e em que as fragilidades emocionais au-
mentam os riscos à saúde mental (VAZQUEZ, et. al. 2022, p. 305).

A partir de 2021, segundo ano da pandemia, os encontros re-


motos evoluíram significativamente, pois a instituição forneceu aos
estudantes tablets e chips para o acesso à internet. Tal fato aumen-
tou a assiduidade. Além disso, grande parte dos alunos desenvolveu
uma rotina e se adaptou ao ensino remoto. Esses fatores permitiram
um maior aproveitamento das temáticas e a melhoria na qualidade
das discussões sobre o conteúdo. Apesar das dificuldades vividas, foi
possível ainda a realização de dois projetos de iniciação científica em
filosofia. Um de natureza bibliográfica e o outro um estudo explo-
ratório de caráter qualitativo. Ambos os estudos transcorreram sem
grandes complicações e geraram dois artigos que posteriormente fo-
ram publicados em revistas científicas.
Com relação às atividades avaliativas, estas ocorreram por
meio de provas e trabalhos enviados aos e-mails dos respectivos alu-
nos e também pelo sistema SIGAA. Os critérios de avaliação consis-
tiram na capacidade de argumentação e interpretação dos conteú-
dos ministrados. É importante destacar que, apesar das dificuldades
enfrentadas pelo campus Manaus Centro, as condições ainda eram
relativamente melhores em comparação a outros campi localizados
no interior do estado, como é o caso de Presidente Figueiredo.

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Campus Presidente Figueiredo

No Campus Presidente Figueiredo, a suspensão das aulas,


ocorrida também em março de 2020, representou um grande desa-
fio para a direção e para os professores, que tiveram que se adaptar
rapidamente ao ensino remoto. A prorrogação por tempo indetermi-
nado da suspensão das aulas aumentou a incerteza e a preocupação
entre os professores, que precisaram buscar soluções para garantir
a continuidade do ensino. Para enfrentar esses desafios, a Reitoria
forneceu essa mesma formação online para capacitação dos profes-
sores por dois meses, durante os quais os professores começaram a se
familiarizar com as ferramentas tecnológicas necessárias para aulas
virtuais.
O recesso escolar de julho foi antecipado, medida que objeti-
vou proporcionar um tempo de preparo maior para os professores e
alunos, permitindo que a instituição se adaptasse às novas deman-
das do ensino à distância. Uma comissão de retorno foi formada
ainda em 2020, com o objetivo de planejar e preparar as medidas
necessárias para o retorno às aulas presenciais. No entanto, devido
ao surgimento da “segunda onda” da pandemia de COVID-19, to-
das as atividades presenciais continuaram paralisadas por um tempo
indeterminado. E mesmo com a capacitação, os professores enfren-
taram dificuldades em manter a comunicação e o engajamento dos
alunos no ensino remoto. A falta de estrutura tecnológica e de aces-
so à internet em algumas regiões do município também dificultou a
realização das aulas à distância. Desse modo, apenas em setembro
de 2020 é que as atividades escolares foram todas retomadas, por
meio de plataformas virtuais de ensino, modelo que foi mantido até
o encerramento do semestre em dezembro e que perdurou pelos três
primeiros bimestres de 2021.
O reinício, no modelo remoto, das atividades escolares pa-
receu um alívio para muitos estudantes e professores, que estavam
enfrentando dificuldades em manter o aprendizado e as atividades
escolares durante a suspensão das aulas presenciais. No entanto, o
ensino à distância apresentou desafios adicionais para os estudantes
e professores, especialmente nas regiões do município onde a conec-
tividade e o acesso à internet são limitados. A falta de interação pre-
sencial também afetou sensivelmente a motivação dos alunos. Para

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minimizar os impactos da suspensão das aulas presenciais no ano
letivo de 2020, foi tomada a decisão de que o ano seria dividido em
apenas três bimestres e que a nota do quarto bimestre seria obtida
através da multiplicação por dois da nota do terceiro bimestre.
Cada campus do IFAM teve relativa autonomia para buscar
soluções a essa situação emergencial, dentro dos limites estabeleci-
dos pela Reitoria. Por um lado, essa autonomia permitiu que as ins-
tituições de ensino encontrassem soluções criativas para garantir o
aprendizado dos alunos, como o uso de plataformas digitais para au-
las remotas, criação de atividades pedagógicas adaptadas ao ensino à
distância e a disponibilização de conteúdos online. No entanto, essa
autonomia também apresentou grandes dificuldades, uma vez que
cada campus possui suas próprias limitações em termos de recursos
tecnológicos, equipe pedagógica capacitada e estrutura física ade-
quada para o ensino remoto. Uma solução levada a cabo pelos ser-
vidores de Presidente Figueiredo foi a implantação do sistema quin-
zenal de rotas, que se mostrou uma solução bastante criativa e, até
certo ponto, eficaz. O sistema consistia em levar e buscar materiais
para as regiões rurais afastadas do município, onde muitos alunos
tinham dificuldades de acesso aos recursos digitais utilizados nas
aulas remotas. Essa iniciativa exigiu dos próprios professores – que
tinham que dirigir até essas localidades – uma grande dedicação e
empenho, além de um trabalho em equipe coordenado e bem plane-
jado. Cada professor ficava responsável por uma determinada rota,
e era necessário organizar os horários, os materiais a serem levados
e as orientações para os alunos. Esse sistema quinzenal de rotas foi
fundamental para garantir que certos alunos que habitavam áreas
rurais não fossem ainda mais prejudicados no processo de aprendi-
zagem durante a pandemia.
Essa logística quinzenal não envolvia apenas o transporte de
material didático, mas também a entrega de kits de alimentação para
os alunos, que muitas vezes vivem em situação de vulnerabilida-
de social e insegurança alimentar. Os professores, além de lidarem
com a sobrecarga de trabalho em decorrência do ensino remoto, se
dispuseram a realizar esse trabalho voluntário de levar e buscar o
material para os alunos. Inicialmente, os próprios docentes arcaram
com o custo desses alimentos, mas logo o valor que seria destinado
para as merendas escolares foi realocado para esse fim. Infelizmente,

- 20 -
essa não foi a única dificuldade enfrentada pelo campus durante a
pandemia. O número de servidores do IFAM que perderam a vida
para a COVID-19 é expressivo, deixando uma marca de tristeza e
saudade na comunidade escolar. Apesar disso, os professores e fun-
cionários continuaram a exercer seu trabalho com coragem e com-
prometimento, mostrando o verdadeiro espírito de solidariedade e
resiliência.
Como muitos servidores foram acometidos pela COVID-19 e
alguns vieram a falecer, isso agravou ainda mais a situação de escas-
sez de pessoal no campus. Essa falta de servidores também impac-
tou na realização de atividades que demandam mais presença física,
como a manutenção das instalações e equipamentos. Com menos
servidores disponíveis, a equipe de manutenção precisou se desdo-
brar para garantir o funcionamento adequado de salas de aula, labo-
ratórios e outros espaços. Apesar das adversidades, os servidores se
mantiveram firmes em sua missão de oferecer direitos básicos aos
estudantes, encontrando soluções criativas para os desafios que sur-
giram ao longo do caminho.
Com a implementação do ensino remoto, muitos servidores
precisaram adaptar-se às novas rotinas e às demandas da educação a
distância, o que pode ter gerado um maior nível de estresse e sobre-
carga. Além disso, alguns servidores precisaram afastar-se de suas
atividades por motivos de saúde ou para cuidar de familiares doentes
ou em situação de vulnerabilidade. A redução da equipe de servi-
dores, somada à sobrecarga de trabalho, certamente afetou a quali-
dade e a efetividade do ensino e do apoio pedagógico oferecido aos
alunos. Entre as vítimas da COVID-19, esteve inclusive o dirigente
máximo da instituição, Prof. Dr. Antônio Venâncio Castelo Branco,
que deixou um legado importante para a comunidade acadêmica. A
morte desses profissionais deixou uma lacuna irreparável, não só no
IFAM, mas em suas comunidades e famílias. A instituição se uniu
em luto e solidariedade, prestando homenagens e mantendo vivo o
legado desses servidores, que dedicaram suas vidas à educação.
Quanto especificamente à disciplina de Filosofia, o docente
responsável por ela experimentou, durante este período, uma condi-
ção peculiar. Com apenas uma disciplina por semana, esse professor
teve a responsabilidade de lecionar simultaneamente para 12 turmas
diferentes com um total de mais de 400 alunos, distribuídas nos três

- 21 -
anos do Ensino Médio Integrado. Essa situação sobrecarregou o
docente, que precisava preparar e dar aulas de filosofia para tantas
turmas em frações de tempo muito curtas, além de corrigir provas,
trabalhos e atividades de todos os alunos. Como o campus estava
sem um professor de filosofia há mais de um ano, o recém-empos-
sado professor teve de assumir, além das disciplinas do ano corrente
(2021), também as do ano anterior (2020) e as de um bimestre do
ano de 2019, chegando ao total de 23 disciplinas com carga horária
anual dentro de um mesmo ano letivo. Isso é a exata demonstração
da falta de investimento em recursos humanos para a educação que
se agravou nos anos Temer e Bolsonaro.
É importante destacar que a disciplina de filosofia tem um
papel fundamental no desenvolvimento crítico e reflexivo dos alunos,
contribuindo para a formação de cidadãos conscientes e atuantes
na sociedade. Portanto, é fundamental que haja investimentos na
formação de professores e na contratação de novos docentes para
suprir a demanda de disciplinas como filosofia em todas as escolas
do país. Corrigir mais de mil trabalhos em um único bimestre
é uma carga de trabalho extremamente exaustiva para qualquer
professor. Além de prejudicar a saúde física e mental do docente,
essa sobrecarga pode afetar negativamente a qualidade do ensino
e da avaliação. A correção de trabalhos é uma tarefa essencial
para avaliar o desempenho dos alunos, mas quando realizada em
grande quantidade e em um curto período, perde sensivelmente em
qualidade e deixa de permitir uma atenção individualizada para cada
estudante.
Apesar disso, em comparação com outras regiões do estado
do Amazonas, o município de Presidente Figueiredo é considerado
mais desenvolvido e tem uma estrutura um pouco mais adequada
em termos de acesso à saúde, educação e infraestrutura. Porém, ain-
da assim, a região enfrenta desafios em relação à educação, especial-
mente quando se trata do ensino remoto, que tem sido a única opção
durante a pandemia. Nos campi de outras localidades do Amazonas,
como Tabatinga ou São Gabriel da Cachoeira, por exemplo, a situa-
ção pode ter sido ainda mais desafiadora devido à distância e às con-
dições geográficas e socioeconômicas.

- 22 -
Conclusão

Estima-se que numa situação complexa como a vivida na pan-


demia de Covid-19 os conteúdos da disciplina filosofia puderam aju-
dar através do incentivo à reflexão sobre formas de se enfrentar esse
momento atípico, na ponderação de suas consequências e também
na avaliação da atuação dos governantes no enfrentamento desta cri-
se sanitária. Nesse sentido, tal prática corrobora com as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio na disciplina de filosofia, quando
estas se referem ao verdadeiro sentido da formação do jovem: “Os
conhecimentos de Filosofia devem ser para ele vivos e adquiridos
como apoio para a vida” (BRASIL, 2006, p.28). Essas considerações
também se mostram em consonância com a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Brasileira – LDB (1996) que enfatiza a importância do
aprimoramento do educando como pessoa humana, do desenvolvi-
mento de sua autonomia intelectual e do pensamento crítico.
Em resumo, a pandemia de COVID-19 trouxe inúmeros de-
safios para a educação no Brasil e não foi diferente no Instituto Fe-
deral do Amazonas. Desde a adoção do ensino remoto até a logística
de distribuição de materiais e alimentos para os alunos, foi neces-
sária muita inovação e trabalho em equipe para manter a qualida-
de da educação durante a pandemia. Infelizmente, também houve
perdas significativas, com a morte de servidores em decorrência da
COVID-19. A formação e a adaptação dos professores foram fun-
damentais para a continuidade do ensino, que passou a ocorrer de
forma remota. Com o tempo, foi possível perceber que a utilização
das tecnologias pode ser uma forma de complementar e enriquecer
o ensino presencial, e que a formação continuada dos professores é
fundamental para garantir a qualidade do ensino em qualquer for-
mato. O ensino à distância também trouxe novas perspectivas para
o futuro da educação, mostrando que é possível ampliar o acesso à
educação para pessoas que antes não tinham acesso. No entanto, é
importante que as políticas públicas de educação levem em conta as
desigualdades socioeconômicas e estruturais, garantindo que todos
os alunos tenham igualdade de oportunidades de acesso e qualidade
de ensino.

- 23 -
Referências:

AGÊNCIA SENADO. Educação busca superar estragos da pande-


mia. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomate-
rias/2022/03/educacao-busca-superar-estragos-da-pandemia#:~:text=-
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ensinar%20por%20meios%20virtuais. Acesso em: 26.fev.2023.
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Ministério da Educação. Lei número 9.394, 20 de dezembro de 1996.
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GROSSI, Marcia Gorett Ribeiro; MINODA, Dalva de Souza; FON-
SECA, Renata Gadoni Porto. “Impacto da pandemia do COVID-19 na
educação: reflexos na vida das famílias”. Revista Teoria e Prática da
Educação. v. 23, n. 3, p. 150-170, set-dez, 2020. Disponível em: ht-
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PANDEMIA_DO_COVID-19_NA_EDUCACAO_REFLEXOS_NA_
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SINASEFE. “Janeiro de luto: servidores do IFAM lamentam 14 mor-
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dores-do-ifam-lamentam-14-mortes/. Acesso em: 14.03.2023.
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saúde mental dos estudantes de escolas públicas na pandemia de Co-
vid-19”. Revista Saúde Debate, Rio de Janeiro, V. 46, N. 133, P. 304-
317, Abr-jun 2022.

- 24 -
LIBERALISMO REFORMISTA E
EDUCAÇÃO: EXPLORAÇÃO DO TRABALHO
DOCENTE E SUAS PERSPECTIVAS DE
ACELERAÇÃO NO CENÁRIO PANDÊMICO

Victor Leandro da Silva

Introdução

As relações de trabalho no Brasil sempre foram pautadas por


desigualdades intrínsecas, porém que encontravam nas legislações,
em especial a CLT, consideráveis pontos inflexivos, que as faziam
manter-se em um patamar mínimo de seguridade social em boa par-
te dos casos.
Contudo, as recentes modificações promovidas pela reforma
trabalhista da gestão Temer puseram praticamente a pique esse frágil
equilíbrio, e o que se tem visto é um aumento exponencial da ex-
ploração do trabalho por parte dos empregadores, o que, como não
poderia deixar de ser, afeta sobremaneira os trabalhadores da educa-
ção, que sofrem ainda de um constrangimento a mais por força das
mudanças nas diretrizes educativas, as quais modificaram também
os termos de sua prática docente.
Não bastassem essas circunstâncias, a pandemia provocada
pelo coronavírus conflui para a produção – intencional, e não inevi-
tável - de um quadro de ampla degradação das atividades dos profes-
sores, impondo-lhes condições cada vez mais precárias no exercício
de sua atividade, além de comprometerem-lhes o bem-estar e os pró-
prios meios de vida.
Dessa forma, tem-se uma concorrência de eventos que, uma
vez articulados, findam por exigir novas elaborações críticas, porém
que, longe de o repelirem, cobram uma sensível retomada do cabedal
perscrutativo da teoria marxista, no que devem ser considerados so-
bretudo os elementos da teoria da exploração, campo mais fecundo
e relevante da análise das recentes modificações e agravamentos no
contínuo processo de expansão predatória do capitalismo.

- 25 -
A retomada liberal no Brasil e o reformismo trabalhista:
construindo o precariado brasileiro

Ao longo das décadas recentes, até o ano de 2016, foram pou-


cas as mudanças legais ocorridas no cenário trabalhista. Nem mes-
mo os acentuados caracteres liberais do período FHC tiveram conse-
quências mais importante para mudar o cenário definido pela CLT,
no que a pauta pareceu ser vista como bastante estabilizada.
Já no governo Lula, houve tentativas de colocar em prática
uma nova ordem do trabalho no Brasil. Esta, seguindo as linhas cen-
trais que orientaram a prática política do PT enquanto governo, fica-
ria assentada nas bases do desenvolvimentismo, o qual se expandiria
aliado ao movimento sindical. Como resultado dessas diretrizes, é
que foi criado em 2003 o Fórum Nacional do Trabalho, o qual, se-
gundo Gelsom Rozentino de Almeida, tinha estabelecido por meta:

a proposta de promover a democratização das relações de trabalho


através da adoção de um modelo de organização sindical, baseado
em liberdade e autonomia. Através desse fórum, legitimado pela
participação de representantes de governo, empresários e traba-
lhadores, pretende-se, modernizar as instituições de regulação do
trabalho, especialmente a Justiça do Trabalho e o Ministério do Tra-
balho e Emprego; estimular o diálogo e o tripartismo e assegurar a
justiça social no âmbito das leis trabalhistas, da solução de conflitos
e das garantias sindicais.(ROZENTINO, 2007, p. 57)

A qual, uma vez alcançada, auxiliaria na realização do ideário


governista, pautado sobretudo na:

conciliação de interesses classistas e a promoção da colaboração


de classes através da mediação e coordenação do Estado. O PT e a
CUT, constituídos na luta contra a ditadura, articulando o binômio
negociação e confronto e representando o principal bloco de resis-
tência ao processo de arrocho salarial e implantação do Consenso
de Washington na década de 1980, de oposição à ‘flexibilização e
desregulamentação’ da legislação trabalhista e da defesa dos direi-
tos constitucionais no início da década de 1990, teria formulado a
proposta do FNT, acreditando nas teses de um desenvolvimentismo
nacional, tendo como interlocutores o Estado e organizações em-
presariais. (ROZENTINO, 2007, p. 64)

- 26 -
Hoje, à luz dos acontecimentos históricos, está evidente que a
proposta trazida pelo Partido dos Trabalhadores guardava remotas
possibilidades de execução. A tão desejada conciliação de classes re-
velou-se uma grande quimera, impossibilitada de efetuar-se diante
da resistência das camadas conservadoras e elitizadas da sociedade
brasileira. Já no governo Dilma Rousseff, muitas dessas posições fo-
ram não só descumpridas, como abandonadas por inteiro, cedendo
lugar a uma política de ajustes ocasionais e de interesse restrito, os
quais davam poucos indicativos de fluir para a execução de algum
plano mais abrangente.
De qualquer modo, o fato é que foram escassas as mudanças
promovidas no mundo do trabalho ao longo desse período, tendo
as reformas conjunturais sido substituídas por decretos paliativos,
os quais não ofereciam indícios mínimos para a imposição de uma
outra ordem laboral.
Contudo, esse panorama estava em vias de ser modificado. As
transformações estruturais da legislação brasileira ocorridas após a
ascensão à presidência de Michel Temer promoveram uma intensa
guinada liberal que atingiu diversos setores da sociedade, no que as
relações de trabalho, longe de passarem incolumemente, tornaram-
-se um dos eixos centrais desse plano de mudança político-econô-
mica.
Com a promulgação da LEI Nº 13.467, DE 13 DE JULHO DE
2017, instalou-se no país um horizonte totalmente novo e contrário
ao que estava definido na antiga Consolidação das Leis Trabalhistas,
cujo texto apontava para uma série de medidas protetivas de forte
impacto na garantia dos direitos do trabalhador, as quais, com as
alterações realizadas, passaram a assumir em diversos aspectos uma
forma limitada ou até mesmo inexistente.
A jornada intermitente de trabalho, a prevalência dos acordos
sobre o marco legal, a supressão de intervalos e do tempo de desloca-
mento como período de trabalho e tantas outras revisões, trouxeram
significativas vantagens para os regimes patronais e puseram os tra-
balhadores num estado de fragilidade conspícua, em que até mesmo
as possibilidades de contestação foram suprimidas, uma vez que eles
passaram a correr o risco de arcar com as custas de processos caso
estes viessem a ser julgados improcedentes.

- 27 -
Dessa maneira, o que se inaugura no Brasil é uma configura-
ção do mundo do trabalho que ruma para a ampliação do número
de trabalhadores atuantes em condições cada vez menos salutares e
exponencialmente degradantes, aumentando dessa maneira o leque
de indivíduos pertencentes ao extrato denominado por Guy Stan-
ding como precariado, o qual ele trata preliminarmente da seguinte
maneira:

o precariado poderia ser descrito como um neologismo que combi-


na o adjetivo “precário” e o substantivo relacionado “proletariado”.
Neste livro, o termo é frequentemente usado nesse sentido, embora
tenha limitações. Podemos afirmar que o precariado é uma classe-
-em-formação, se não ainda uma classe-para-si, no sentido marxista
do termo. (2014, p. 23)

Na esteira dessa conceituação inicial, Standing irá afirmar que


essa nova classe pode ser compreendida como perigosa, uma vez que
não dispõe dos elementos de organização presentes no proletariado
tradicional, o que a converte em um movimento imprevisível e su-
jeito a maiores vicissitudes e reações violentas na reivindicação de
seus direitos.
Tal posição é contestada por alguns autores, dentre eles o so-
ciólogo Ricardo Antunes, que, em O privilégio da servidão, manifesta
sua análise que propõe significativas ponderações acerca daquilo que
é postulado por Standing:

com esse desenho crítico - ainda que a descrição empírica de Stan-


ding seja ampla e com informações relevantes - sua análise confere
estatuto de classe ao que de fato é uma parcela do proletariado, e
a mais precarizada, geracionalmente jovem, que vive de trabalhos
com maior grau de informalidade, muitas vezes realizando ativi-
dades parciais, por tempo determinado ou intermitente. a resultan-
te desse equívoco analítico levou o autor, inclusive, a concebê-la
como “uma classe perigosa”, “em si” e “para si” diferenciada da
classe trabalhadora (ANTUNES, 2018, p. 58)

Para Antunes, o que Standing denomina como classe é ape-


nas uma parcela do proletariado, a qual, aliás, sempre existiu, porém
agora encontra-se em sobressalto devido às mudanças ocorridas nas
relações de trabalho. Dessa forma, o que o estudioso brasileiro enfa-
tiza é que não se trata de pensar uma categoria destacada de traba-
- 28 -
lhadores, mas sim de discutir os movimentos atinentes à dinâmica
ampla do proletariado, os quais permitem que surjam a cada mo-
mento nuances mais ressaltadas e proeminentes.
Seguindo por essa linha, cabe pensar na maneira como as
transformações vigentes afetam a classe proletária, dentro do que
iremos encontrar, como mais recente fenômeno, o da uberização, o
qual vem trazendo consequências bastante deletérias no que diz res-
peito às condições favoráveis aos trabalhadores e seus direitos.
Como o próprio nome indica, a uberização está ligada ao
modelo de negócios da famosa empresa detentora do aplicativo de
transportes, e que se situa no grupo da chamada economia de com-
partilhamento, cujo conceito fundamental traz a ideia de repartição
da propriedade e refreamento do consumo. Contudo, a realidade
mostra que tais propósitos, ao menos no caso da Uber, estão muito
distantes de suas práticas, que consistem sobretudo em buscar meios
de oferecer um serviço sem as mesmas obrigações que uma presta-
dora comum, podendo ampliar dessa maneira suas formas de lucro.
Em termos de trabalho, isso se reflete na relação que estabe-
lecida entre os trabalhadores da atividade-fim e os proprietários da
empresa. Numa vinculação legal comum, estes seriam funcionários
e poderiam gozar das vantagens atinentes ao cargo que ocupariam.
Porém, na lógica uberizada, a figura do empregador desaparece, res-
tando somente a abstrata imagem de um contratante, sem maiores
obrigações para com os contratados, e cujo único elo com estes é
mediar seu contato com clientes que porventura queiram ser trans-
portados, sem nenhum compromisso trabalhista adicional, tendo
no contrato um respaldo jurídico. Assim, como bem observou Tom
Slee, “a classificação como contratante independente livra a compa-
nhia de ter de pagar por direitos trabalhistas e de ter de respeitar os
padrões de emprego. O risco é inteiramente empurrado para o con-
tratado”(SLEE, 2017, p. 134).
Assim, o que resta ao trabalhador é tão somente se adequar
às normas vigentes e atuar dentro desse conjunto de diretrizes, nas
quais ele se vê legalmente em igualdade para com seus empregado-
res, vestido com o pomposo disfarce de empreendedor individual,
e assumindo dessa maneira uma rubrica própria para sua perda de
direitos, ao que a ideologia liberal dominante confere ainda, num
misto de credulidade e sadismo, a alcunha de liberdade.

- 29 -
No trabalho docente, tais mudanças também se fazem sentir,
provocando efeitos negativos sobre o já combalido cenário da valori-
zação profissional e garantias sociais. Se antes o professor procurava
a todo custo sair de uma condição exploratória, angariando meios
de legitimação de seu ofício pela procura do devido cumprimento
dos textos regulatórios de sua atividade, agora ele se vê retornado à
estaca zero, uma vez que seu estado precário encontra-se amparado
constitucionalmente. Esse é um problema que se mostra como emer-
gente e merecedor de atenção quanto aos seus aspectos intrínsecos.
Contudo, para se compreender a dimensão dos prejuízos cau-
sados a essa classe trabalhista, faz-se necessário discutir em um nível
básico os impactos dessas mudanças no regime econômico, no que
uma retomada dos conceitos da crítica marxista da economia políti-
ca é de importância precípua.

Trabalho docente: mais-valia e exploração

Um dos pontos mais discutidos na economia política de Marx


é o conceito de mais-valia, o qual constitui, dentro da teoria marxis-
ta, o elemento central da forma de exploração do trabalho no mundo
capitalista, e, por conseguinte, de todo o seu modo de funcionamen-
to e daquilo que nele pode ser tomado como objeto de crítica.
Para Marx, a jornada de trabalho se divide em dois períodos.
No primeiro, o trabalhador se dedica a produzir, por meio de sua
força de trabalho, o valor necessário para garantir seus meios de sub-
sistência. Assim, ele opera de maneira a receber como salário os re-
cursos que lhe garantirão o sustento mínimo.
No entanto, afirma Marx, a sua atividade não se encerra aí.
Para além desse primeiro momento, há ainda uma outra etapa, que
é onde se marca a assimetria entre o que é gerado e a quantia que o
trabalhador recebe:

O segundo período do processo de trabalho, em que o trabalhador


trabalha além dos limites do trabalho necessário, custa-lhe, de cer-
to, trabalho, dispêndio de força de trabalho, porém não cria valor
algum para o próprio trabalhador. Ele gera mais-valor, que, para
o capitalista, tem todo o charme de uma criação a partir do nada.
A essa parte da jornada de trabalho denomino tempo de trabalho
excedente [Surplusarbeitszeit], e ao trabalho nela despendido de-

- 30 -
nomino mais-trabalho [mehrarbeit] (surplus labour). Do mesmo
modo como, para a compreensão do valor em geral, é indispensável
entendê-lo com mero coágulo do tempo de trabalho, como simples
trabalho objetivado, para mero coágulo de tempo de trabalho ex-
cedente, como simples mais-trabalho objetivado. O que diferencia
as várias formações econômicas da sociedade, por exemplo, a so-
ciedade da escravatura daquela do trabalho assalariado, é apenas a
forma pela qual esse mais-trabalho é extraído do produtor imediato,
do trabalhador. (MARX, 2017, p. 293).

Segue daí o roteiro que culmina na acumulação de riqueza por


parte do capitalista. Esta, em sua configuração precípua, nada mais é
do que o valor correspondente ao que o trabalhador produziu e não
lhe foi concedido. A rigor, nenhuma atividade no capitalismo atua
fora desse esquema. Por esse motivo, é que este só pode ser com-
preendido por meio da análise de seu modelo exploratório, o qual
existe de maneira inescapável em termos estruturais.
Essa exploração, tão basilar ao sistema em seus constituintes,
desponta não só de início como anulatória do direito do indivíduo
ao produto de seu trabalho, como, com o passar do tempo, assume
aspectos sensivelmente mais opressivos, resultando na consolidação
desmesurada de diferenças cada vez maiores pelo lado do trabalha-
dor, entre o que se trabalha e o que se ganha, e pelo do capitalista,
entre o que se paga e o que se lucra com a mercadoria produzida.
Porém, o acirramento do regime de exploração não se se torna
assimétrico quanto aos preceitos legais, uma vez que as regulamen-
tações que o acompanham vão gradativamente tornando lícitas essas
práticas, ao passo que, na ordem produtiva, a percepção do caráter
desigual das relações definidas não é acessível diretamente pelo traba-
lhador, resultando em uma atitude conforme e resignada. Tais fatores
são observados por Netto e Braz (2012) com bastante acuidade:

No caso do trabalhador assalariado, o excedente lhe é extraído sem


o recurso à violência extra-econômica; o contrato de trabalho impli-
ca que o produto do trabalho do trabalhador pertença ao capitalista.
E a falsa noção de que o salário remunera todo o seu trabalho é
reforçada (para além da ideologia patrocinada pelo capitalista, se-
gundo a qual “o salário é o pagamento do trabalho”) pelo fato de a
jornada ser contínua e de ele trabalhar com meios de produção que
não lhe pertencem e num espaço físico que também é de proprieda-
de do capitalista. (p. 120)

- 31 -
Têm-se, assim, e a cada dia mais intensamente, as condições
próprias para o aumento da taxa de exploração. Esta, que também
integra o conjunto da economia política marxista, define-se pela li-
gação existente entre a mais-valia e o capital variável, sendo este o
custo da força de trabalho na confecção de um produto. Tomada essa
relação, considera-se que a taxa de exploração é medida por mv/cv,
ou a mais-valia dividida pelo capital variável, o que implica na fór-
mula mv/cv, cujo resultado é um cálculo percentual.
Obviamente, quando da efetivação desses números, há que
se observar diversos aspectos que interferem na mais-valia, princi-
palmente o capital constante. Também certas garantias trabalhistas
podem ser somadas aos valores relativos ao capital variável, dimi-
nuindo os índices extraídos como mais-valia, o que demonstra que
há um interesse direto do capitalista em tornar os benefícios con-
cedidos para além dos salários cada vez menores. Portanto, longe
de ser uma quantificação simples, o cálculo em questão pede que se
considere uma série de dados cuja natureza possui vínculo direto
com a ordem social em vigor.
Transpondo essa problemática para a realidade do trabalho
docente, é possível aferir em termos bastante concretos o quanto as
mudanças em curso no país alteram os valores em favor do capitalis-
ta e manifestam o seu claro proveito em acentuar as divergências em
vista do lucro, o qual pretende ver aumentado sempre que possível.
Contudo, antes que se arvore nessa problemática, é preciso res-
ponder a um questionamento fundamentalmente importante, e que
remete ainda às bases do pensamento de Marx. Dada a natureza do tra-
balho do educador, é possível falar em taxa de mais-valia docente? Este
é um ponto do qual depende em muito a continuidade dessa discussão.
A perspectiva adotada por Marx, ao longo de toda sua análise
da economia política, é uma perspectiva que considera por princípio
a sociedade industrial. Assim, a realização de trabalho se dá sobretu-
do na geração de mercadorias nas fábricas: “o processo de produção,
como unidade dos processos de trabalho e de formação de valor, é
processo de produção de mercadorias” (MARX, 2017, p. 273). Dessa
maneira, tomando-se por base os paradigmas constituídos, o traba-
lho docente, por não se voltar para a elaboração material de valores
de uso, não poderia ser considerado a partir de certas categorias com
que se aborda o modo de produção capitalista, dentre elas a mais-va-
- 32 -
lia em sentido estrito.
Tal visão, contudo, parece por demais rigorosa, e não agre-
ga o próprio movimento histórico do capital, cuja dinâmica é fre-
quentemente colocada por Marx como um item a ser acompanhado
permanentemente. As mudanças ocorridas no sistema econômico
tornaram setores que antes operavam de maneira diversa a agirem
segundo a lógica dominante do capitalismo, assumindo, portanto, a
sua forma de organização. Dentro desse cenário, uma das alterações
marcantes passou a ser percebida no ramo de serviços, que começou
a atuar num ordenamento industrial, convertendo suas atividades
em autênticas mercadorias. Desse modo, áreas como o ensino, antes
refratárias à mercantilização, passaram a não somente aceitar esse
novo direcionamento, como também a assumi-lo como a linha cen-
tral de sua sistemática produtiva.
Isso criou um plano a partir do qual tornou-se, senão plena-
mente possível quanto aos conceitos-chave da teoria marxista, ao
menos analogamente válido utilizar-se da mais-valia para analisar a
exploração sofrida pelos educadores em seu processo de atuação no
mundo do trabalho.
Obviamente, os limites dessa analogia são perceptíveis. A
impossibilidade de haver, por exemplo, uma base qualquer para de-
terminar a mesma taxa no que diz respeito ao ensino público, pelo
simples fato de ali perder-se a dimensão do lucro pela venda de mer-
cadorias, já demonstra a falibilidade dos procedimentos aqui aven-
tados numa escala mais abrangente, bem como preserva o estatuto
mais ortodoxo do pensamento de Marx.
Trata-se, portanto, de utilizar-se de um instrumental analítico
que pode ser útil para um certo fim, porém na certeza de que este
não pode ser validado como uma ferramenta universal para os casos
do tipo. Com isso, a posição a ser adotada adiante é de um pragma-
tismo tímido, mas que se pretende de alguma forma elucidativo.

Uberização trabalhista e trabalho docente: uma destrutiva


intersecção

É um engano pensar que apenas as profissões que exigem


menor qualificação estão sujeitas ao modelo uberizado de trabalho

- 33 -
vigente. Nos mais diversos setores, a instituição de uma lógica precá-
ria por parte dos empregadores tem se expandido de modo sistemá-
tico, no que a educação é um dos exemplos de atividade progressiva-
mente integrada a essas diretrizes.
Entretanto, cabe fazer algumas ponderações de caráter um
tanto histórico. Como profissionais liberais, os professores sempre se
encontraram na linha divisória para a informalidade, em especial no
mercado das aulas particulares e cursos preparatórios. No entanto,
para além desse quadro já estabelecido, a guinada ultraliberal recen-
te acentuou de maneira substantiva o problema, convertendo o que
antes era um cenário a ser revertido numa regra aceita e validada
legalmente, tornando as possibilidades de contraposição cada vez
mais diminuídas.
Senão, vejamos o caso notoriamente divulgado de uma insti-
tuição universitária privada que demitiu 1,2 mil (FOLHA DE SÂO
PAULO, 2019), de seus funcionários tão logo a reforma trabalhista
foi aprovada. Nesse caso, alguns dos professores foram recontratados
mediante a nova legislação, o que os reduziu ao estatuto de professo-
res horistas, passando a receber apenas por tempo de efetivo traba-
lho em sala de aula, sem mais considerar o período dispensado para
correções de provas e atividades de planejamento.
Tal medida, liberada pela nova lei, além de constituir uma
inocultável subtração indevida de pagamento, ainda altera de modo
basilar a relação existente entre aquilo que o professor gera enquanto
riqueza e o que recebe, aumentando de a taxa de exploração docente
a níveis antes inauditos.
Como se tal não fosse o bastante, o ano de 2020 apresentou
uma contingência inesperada, e que agravou ainda mais essas ten-
dências. A pandemia que se disseminou radicalmente teve um sen-
sível impacto nos sistemas de ensino, alterando com mais força os já
discrepantes acordos entre empresários e trabalhadores da educação,
causando prejuízos a estes que atingem de modo decisivo as suas
limitadas possibilidades de aquisição de direitos, e lançando-os num
regime de exploração altamente potencializado.
Convém ratificar novamente que os efeitos advindos pelo
chamado coronavírus de nenhum modo podem ser tomados como
protagonistas responsáveis por esse estado de coisas. Os processos

- 34 -
que ora se instalam nas relações trabalhistas, em especial quanto ao
trabalho docente, já se encontravam em ampla expansão, tendo sido
agora tão somente acelerados pelas circunstâncias sanitárias. Assim,
trata-se sobretudo de um processo de ampliação de procedimentos
já em voga, e que tiveram removidos agora alguns dos últimos obs-
táculos para o seu pleno desenvolvimento.
Provavelmente, o principal mecanismo de aumento de preca-
rização do trabalho docente encontra-se no emprego em larga esca-
la das aulas remotas para alunos do ensino superior e da educação
básica - embora esta o receba com maiores reticências, devido às
exigências fixadas no contato entre pais e empresa -. Em períodos
anteriores à pandemia, estas eram algo que se encontrava previsto,
mas que sofria resistência de diversos setores, inclusive na comuni-
dade de estudantes. Porém, com as dificuldades encontradas para
reuniões e mobilidade social, seu uso passou a apresentar-se como
solução única e, logo, inevitavelmente aceita, a despeito de todas as
dificuldades para sua implementação. Dessa forma, diante da difi-
culdade de contrapor-se a uma conjuntura global e totalizante, cou-
be ao professor tão só submeter-se ao novo modelo, num movimen-
to cujas consequências se mostram cada vez mais fragmentadoras de
suas condições de bem-estar, trabalho e valorização.
Para constatar isso, basta atentar, por exemplo, para a matéria
intitulada Professores relatam de aulas online com 300 alunos a de-
missões por pop-up, escrita por Thiago Domenici, vinculada no sítio
eletrônico UOL, em 23 de setembro de 2020. Nela são fornecidos
diversos dados acerca da condição de professores de ensino supe-
rior ao longo da retomada das aulas de modo remoto, tendo sido
estes submetidos a diversas situações aviltantes, como demissão via
mensagens em computadores e salários reduzidos a níveis irrisó-
rios. Como era de se esperar, os empresários do ramo defendem-se
alegando terem tido perdas significativas no período pandêmico:
“Como justificativa, as universidades citam a redução de alunos ma-
triculados, o aumento da evasão escolar e a inadimplência durante a
pandemia.” (DOMENICI, 2020). Contudo, conforme colocado por
um dos docentes, de nenhuma maneira podemos considerar que:
“está provado que ‘houve redução do número de matrículas que jus-
tificasse a redução na carga horária dos professores’ da Anhembi, por
exemplo” (DOMENICI, 2020).

- 35 -
Disso decorre que a análise mais pertinente é a de que os man-
tenedores dessas instituições aproveitaram-se da situação em vigor
para maximizar seus lucros, agindo com total indiferença para com
as consequências de suas ações em relação a professores e aos pró-
prios alunos.
Como resultado, o que se tem é uma condição insustentável
tanto do ponto de vista trabalhista quanto pedagógico, em que pro-
fessores e alunos tentam de maneira inglória atuar para garantir o
mínimo processo formativo e, no caso dos primeiros, as possibilida-
des de sustento.
Para se medir o quanto isso amplia a exploração docente em
tais instituições, podemos observar o caso citado do professor Enzo,
que teve sua carga horária reduzida de 21 para 3 horas semanais, no
que passou a receber um salário de r$ 500, ou seja, algo em torno de
r$ 42 a hora/aula. Ora, este mesmo professor afirma que o salto de
alunos por disciplina ministrada foi de 50 para 200. Um aumento
absolutamente exorbitante.
Seguindo o raciocínio, se tomarmos um valor médio pago por
aluno de r$ 1200, a uma margem de lucro de 25%, poderíamos dizer
que a instituição ganha r$ 300 por aluno. Multiplicado pelo número
de alunos na turma, o valor chega a r$ 60.000 por turma mensais.
Dessa maneira, ainda que somássemos os proventos das horas de
trabalho de cinco professores, teríamos o valor de r$ 2520. Logo, se
colocássemos tais números na fórmula clássica mais-valia/capital
variável, teríamos um percentual próximo de 2400%, que podería-
mos ligar à taxa de exploração docente em tais circunstâncias. Um
número muito maior do que qualquer métrica de ensino presencial
pré-pandêmico.
Obviamente, os cálculos apresentados são apenas esboços, e
carecem de maiores especificações para um estudo mais rigoroso.
Contudo, mesmo que apenas ilustrativos, eles servem para indicar
o fato insofismável de que a aceleração dos modos exploratórios do
trabalho docente, cuja marcha ruma não para a pauperização plena
dos sujeitos envolvidos, caminha também para fazer ruir o já frágil
edifício da educação brasileira por inteiro, haja vista que na outra
ponta o ensino público tem tido dificuldades crescentes nos últimos
anos para manter os padrões mínimos de qualidade do ensino.

- 36 -
Considerações finais

Um argumento resta entre os mais otimistas: os efeitos da


pandemia, por mais prolongados que sejam, continuam provisórios,
e serão minorados tão logo haja condições favoráveis de circulação
sem risco à saúde. Baseados nisso, os defensores dessa posição asse-
veram que é preciso somente aguardar por dias melhores.
Tal forma de pensar não deixa de ser um resquício da chama-
da ideologia de conciliação de classes, que continua a perseverar no
imaginário de diversos indivíduos, fazendo advir a noção de que de-
terminados acordos entre empregadores e empregados podem man-
ter-se mesmo quando não são vantajosos para os primeiros, com
base no princípio de melhores consequências sociais.
Contudo, nada nos fatos emergentes corrobora esse indicati-
vo. A escalada da eliminação de direitos trabalhistas e do aumento
da exploração encontra-se desde há muito sendo francamente ex-
pandida, e sua potencialização agora, por mais que sofra alguns reve-
zes dentro de um cenário de menor distanciamento social, apresen-
ta-se como irrevogável em suas linhas fundamentais, e seguirá com
uma tendência expressiva de avanço para sua completa realização, a
qual consiste no estabelecimento de uma força de trabalho docente
imanentemente rebaixada e submissa.
Assim, a reversão de tais movimentos só poderá se efetivar
por uma via estrutural, que promova rupturas de base com as nor-
mativas instituídas. Contudo, isso é algo que depende não apenas
de medidas locais, mas de uma ação coordenada e de amplo alcance
político, e que inevitavelmente encontrará forte resistência dos seto-
res cujos interesses são diametralmente contrários aos da massa de
trabalhadores. Eis, aí, o grande conflito a ser deflagrado no mundo
do trabalho, e que, a julgar pelo avanço das tensões entre as forças
em conflito, mostra-se como uma disputa rigorosamente necessária.

Referências:

ALMEIDA, Gelsom Rozentino de. O governo Lula, o Fó-


rum Nacional do Trabalho e a reforma sindical. Rev. ka-
tálysis,  Florianópolis ,  v. 10, n. 1, p. 54-64,  Junho de  2007.

- 37 -
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_art-
text&pid=S1414-49802007000100007&lng=en&nrm=iso>. Aces-
so em 30  de dezembro de  2020.  https://doi.org/10.1590/S1414-
49802007000100007.
ANTUNES, Ricardo. O Privilégio da Servidão. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2018.
BRASIL. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13467.htm.
Acesso em 11.11.2019.
DOMENICI, Thiago. Professores relatam de aulas online com
300 alunos a demissões por pop-up. UOL/Pública.org. Disponí-
vel em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-publi-
ca/2020/09/23/professores-relatam-de-aulas-online-com-300-alunos-a-
-demissoes-por-pop-up.htm>. Acesso em: 30.12.2020
FOLHA DE SÃO PAULO. Estácio de Sá demite 1,2 mil professores
após reforma trabalhista. Disponível em: <https://www1.folha.uol.
com.br/mercado/2017/12/1940980-estacio-de-sa-demite-12-mil-pro-
fessores-apos-reforma-trabalhista.shtml>. Acesso em: 30.12.2020
MARX, Karl. O capital: Crítica da Economia Política: Livro I: O
Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo: 2017.
NETTO, José Paulo; BRAZ, Marcelo. Economia Política: Uma Intro-
dução Crítica. São Paulo: Cortez, 2012.
SLEE, Tom. Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado.
São Paulo: Elefante, 2017.
STANDING, Guy. O Precariado: A Nova Classe Perigosa. Belo Ho-
rizonte: Autêntica Editora, 2014.

- 38 -
A FILOSOFIA E A FORMAÇÃO DO ALUNO
DO ENSINO MÉDIO INTEGRADO: UM
PRIMEIRO OLHAR1

Daniel Richardson de Carvalho Sena


Pedro Eduardo Garcia de Andrade
José Galúcio Campos

Introdução

É possível afirmar que definir o que significa Filosofia2 – e


por seu turno, ensinar filosofia – seja uma questão complexa, pois
é enorme a quantidade de autores, de correntes, de perspectivas e
de reflexões sobre a temática. De acordo com Abagnanno (1999, p.
442), a disparidade de “Filosofias” tem por reflexo, obviamente, a
disparidade de significações.
Etimologicamente a palavra Filosofia vem da união de dois
vocábulos gregos, philos (amizade) e sophia (sabedoria). Nesse senti-
do, a Filosofia seria uma espécie de “amor pela sabedoria”, um “dese-
jo pelo conhecimento”. Porém, sua significação vai muito além desta
aspiração ao saber.
Dentre as várias e possíveis definições, tomemos como exem-
plo algumas. Conforme Comte-Sponville (2002, p, 11) a Filosofia se
mostra como um ato de pensar por conta própria, mas também é um
trabalho, que requer esforços e leituras. Para Deleuze e Guattari, a Fi-
losofia é o ponto singular onde o conceito e a criação se remetem um
ao outro (1992, p, 10), ou seja, a Filosofia é um exercício de criação
de conceitos. Segundo Chauí (2000, p. 17), a Filosofia consiste numa
fundamentação teórica e crítica sobre o conhecimento e as práticas
humanas. O filósofo iluminista Immanuel Kant (1983, p. 407) por
sua vez, afirma que a Filosofia é um tipo de conhecimento que não
1 Este texto foi originalmente publicado na Revista PRISMA, Vol. 4, Nº 2, jul. / dez. de
2022, p. 57-79. Os autores expressam sua gratidão aos editores pela gentil autorização de
republicação.
2 Distingue-se, neste escrito, Filosofia (grafada com maiúscula) de filosofia (grafada com
minúscula). A primeira refere-se um a saber, um conhecimento substantivo; a segunda, a um
componente curricular.

- 39 -
se pode aprender, mas apenas se pode filosofar, ou seja, exercitar o
talento da razão, fazendo-a seguir seus próprios princípios univer-
sais. Essas diferentes definições permitem perceber a profundidade e
a amplitude do termo.
A filosofia é uma disciplina que faz parte do bloco de conhe-
cimento das Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006).
As Orientações curriculares para o ensino médio (2006, p. 28) ex-
pressam que a filosofia, juntamente com as demais disciplinas deve
compor o papel proposto para a formação do ensino médio. Porém,
esse componente não constitui uma mera oferta de conhecimentos
a serem assimilados pelo estudante, mas propõe o aprendizado de
uma relação com o conhecimento que lhe permita adaptar-se com
flexibilidade às novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento
posteriores. Portanto, mas que dominar um conteúdo, consiste em
saber ter acesso aos diversos conhecimentos de forma significativa.
Também a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
(Lei nº 9.394/96) afirma que a filosofia deve promover o pleno desen-
volvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania
e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996).
Estima-se que a filosofia no ensino médio possui predomi-
nantemente a tarefa de desenvolver um pensamento independente e
crítico em relação ao mundo e a si mesmo. Como bem expressaram
Aranha e Martins (2007, p. 88): a importância do ensino de filosofia
nas escolas consiste em aprimorar a reflexão crítica típica do filosofar
que é inerente a qualquer ser humano.
Assim, este artigo tem como objetivo elencar os fatores (variá-
veis) relativos à disciplina filosofia na formação do aluno do ensino
médio integrado, por meio de uma pesquisa exploratória e qualitati-
va. Para tanto, lançamos as seguintes questões:
a) – É o aluno do ensino médio integrado interessado em fi-
losofia, afinal?
b) – Quais as principais dificuldades de aprendizagem em re-
lação a essa disciplina, segundo os alunos?
c) – Que dizem os alunos com respeito aos méritos ou valores
que a filosofia pode agregar-lhes à vida pessoal ou profissio-
nal?

- 40 -
Os achados aqui contidos tornam-se pertinentes na medida
em que os alunos participantes da pesquisa são do ensino médio in-
tegrado e na instituição em que a pesquisa foi realizada, à exceção da
língua portuguesa, as disciplinas de humanidades, em particular a
filosofia, são deixadas em segundo plano.
Dessarte o exposto, acreditamos que as conclusões dessa in-
vestigação possam favorecer a prática de ações concretas voltadas à
melhoria do ensino de filosofia para o ensino integrado.

Material e Métodos

Tipo de pesquisa. — Esta é uma pesquisa qualitativa de ca-


ráter exploratório que buscou analisar as implicações da disciplina
filosofia na formação do aluno de ensino médio integrado (3º Ano).
É qualitativa, uma vez que se admite que as situações educacionais
são tão imbricadas que não se faz possível o isolamento preciso das
variáveis que norteiam o fenômeno educacional (LUDKE; ANDRÉ,
2015, p. 4). É exploratória, pois, segundo Gonsalves (2001, p. 65), os
estudos exploratórios se caracterizam por desenvolverem ideias que
poderão servir de base para estudos mais elaborados sobre determi-
nado tema.
Técnicas e instrumentos. — Esta pesquisa utilizou o formulá-
rio do tipo questionário (Apêndice 1). A escolha de tal instrumento
se deu pelo fato de ser possível a uniformidade na avaliação e a ob-
tenção de respostas rápidas e precisas, considerando o público ado-
lescente a ser abordado (LAKATOS; MARCONI, 1991). Além disso,
as respostas dos alunos passaram pelo crivo da análise interpretativa
com o fim de encerrá-las em categorias conceituais de análise (LUD-
KE; ANDRÉ, 2015).
Local de realização da pesquisa/população a ser estudada. —
Esta pesquisa foi realizada com alunos de uma escola da rede pública
e federal de ensino, localizada na cidade de Manaus, capital do es-
tado do Amazonas. A instituição oferece à sociedade amazonense
o ensino básico, técnico e tecnológico (EBTT), com o ensino médio
integrado, o pós-médio, além do EJA (educação de jovens e adultos).
No ensino médio integrado os estudantes passam o dia na escola
frequentando até dez tempos de aula por dia.

- 41 -
A pesquisa envolveu a aplicação de questionário a alunos (as)
do 3º ano do ensino médio integrado. A escolha de estudantes do 3º
ano residiu no fato destes se encontrarem na fase final dos estudos
secundários, onde, infere-se que exista um maior amadurecimento
intelectual e crítico.
Esse estudo foi realizado entre o segundo semestre de 2020 e
o primeiro de 2021. O questionário foi aplicado a 52 alunos, sendo
21 do curso integrado em química; 17 do curso integrado em ele-
trotécnica; 06 alunos do curso integrado em mecânica; 04 alunos do
curso integrado em edificações; e 04 alunos do curso integrado em
informática.
Os respectivos participantes, no momento da pesquisa, esta-
vam na faixa etária entre 17 e 18 anos. Nesse sentido, a participação
no estudo ocorreu mediante o consentimento de pais e/ou respon-
sáveis anuindo à participação dos menores de idade, bem como o
próprio assentimento desses menores e o assentimento dos partici-
pantes maiores de idade. Os modelos dos termos de consentimento e
assentimento utilizados se encontram nos apêndices 2, 3 e 4.
Devido à pandemia de Covid-19, provocada pelo vírus SARS-
COV-2, que impossibilitou a realização de aulas presenciais, a apli-
cação do questionário se deu por meio digital. Estima-se que muitos
alunos não participaram do estudo devido a problemas de acesso à
internet, à falta de comunicação e, também, de interesse. Assim, a
totalidade de discentes que poderiam ter participado do estudo seria
aproximadamente 150 alunos.
O critério de inclusão para participação do estudo consistiu
no aluno estar cursando o terceiro ano do ensino médio na institui-
ção. Participaram alunos de ambos os sexos, independente de idade,
etnia, gênero e religião. Quanto aos critérios de exclusão, os mesmos
se aplicam aos alunos que se encontravam em licença médica e/ou
que trancaram a matrícula durante o período da pesquisa.
A pesquisa possui risco mínimo (conforme Art. 21 da Reso-
lução 510/2016 que trata da ética na pesquisa na área de Ciências
Humanas e Sociais), no sentido das opiniões e do tempo gasto para a
participação do aluno. As perguntas não apresentam teor de ameaça
ou constrangimento. Apesar dos riscos serem mínimos, em razão da
aplicação do questionário, as respectivas perguntas foram elaboradas

- 42 -
no sentido de não causar desconforto, constrangimento ou danos
psicológicos.
Quanto aos benefícios, estima-se que um estudo desta nature-
za poderá evidenciar os pontos positivos e as dificuldades encontra-
das pelos alunos em relação à disciplina, fornecendo elementos para
o melhoramento significativo da prática do magistério realizado pe-
los professores de filosofia da instituição.
Os procedimentos éticos deste estudo basearam-se na Reso-
lução 510/2016 que trata da ética na pesquisa na área de Ciências
Humanas e Sociais. Antes de sua execução esta pesquisa passou pelo
Comitê de Ética na Pesquisa da instituição, sendo aprovada sob o pa-
recer número 4.349.238. Este procedimento se deu através do preen-
chimento do Protocolo de Pesquisa, submetido eletronicamente por
meio da Plataforma Brasil.

Resultados e discussão
A exposição e a discussão das respostas dos estudantes se ini-
ciam pelas perguntas diretas com respostas sim ou não, quais sejam:
as perguntas 1, 2 e 4. As respostas se encontram na Tabela 1.

Tabela 1: Respostas das perguntas diretas de sim ou não, perguntas 1, 2 e 4.


# Perguntas Sim Não
1 Você se identifica com a disciplina de filosofia? 35 17
Você tem alguma dificuldade de aprendizagem em relação
2 28 24
aos conteúdos da disciplina filosofia?
4 Você considera que a carga horária da disciplina é suficiente? 17 35
Fonte: Autores.

Interessante notar já pela Tabela 1, que a maioria dos 52 alu-


nos participantes, 35 precisamente, disseram nutrir algum apreço
pela disciplina, pois responderam que se identificam, se enxergam
e consideram interessante os temas abordados pela disciplina filo-
sofia. Diversamente, 17 alunos afirmaram não se identificar com a
disciplina.
Em relação às dificuldades de aprendizagem, item 2 na Tabela
1, 28 estudantes disseram ter alguma dificuldade na disciplina, ao
passo que 24 estudantes responderam que não. Conforme vemos a

- 43 -
discussão em Willingham (2011), capítulo 3, o interesse é premissa
à aprendizagem; é condição necessária, mas não suficiente. Portan-
to, embora a maioria dos estudantes se identifique com a disciplina
de filosofia, isto não implica que a maioria não terá dificuldade em
aprendê-la.
Ainda na Tabela 1, a maioria dos estudantes, 35 alunos, res-
pondeu ser curta a carga horária da disciplina em tela e 17 respon-
deram que é suficiente. Observa-se, portanto, que o mesmo número
de estudantes que não se identifica com a disciplina julga a carga de
1 hora semanal suficiente.
Em relação às principais dificuldades de aprendizagem en-
frentadas pelos estudantes participantes da pesquisa, obteve-se o se-
guinte ranking disposto na Tabela 2.

Tabela 2: Ranking das dificuldades de aprendizagem em filosofia.


Dificuldades de aprendizagem Estudantes Ranking
Compreensão de conceitos 19 1º
Elaboração de textos 16 2º
Argumentação 15 3º
Outros 8 4º
Metodologia 7 5º
Leitura 5 6º
Não têm dificuldade 2 7º
Fonte: Autores.

Pela Tabela 2 é possível observar a compreensão conceitual


como a principal dificuldade de aprendizagem indicada pelos es-
tudantes participantes. Por conseguinte, temos a escrita, com a ela-
boração de textos e a argumentação (falar), em segundo e terceiro
lugar, respectivamente. Porém, é digno de nota, que não há discre-
pância entre o quantitativo de alunos que as indicaram.
Convém dizer que não fizemos observação minuciosa para
afirmar se os alunos que disseram ter dificuldade conceitual também
tenham dificuldades em argumentar e elaborar textos. Porém, temos
motivos para acreditar que sim.
Em primeiro lugar, porque em sua obra a Construção do
Pensamento e da Linguagem, Vigotski (2009) apregoa que a fala e

- 44 -
a escrita são as manifestações do pensamento. Mais recentemente,
no manual de Psicologia Cognitiva de Sternberg e Sternberg (2015),
capítulos 8 e 9, os autores argumentam em favor de que se o sujeito
(aluno) não tem problemas e/ou transtorno de aprendizagem, é de se
esperar que a fala (argumentação) e a escrita (elaboração de textos)
sejam a manifestação do pensamento organizado, do raciocínio reto.
Assim, existe uma relação entre argumentação e escrita de textos.
Em segundo lugar, dada a abstração subjacente aos conceitos
filosóficos, torna-se desafiador o aprendizado dessa disciplina. Wil-
lingham (2011), no capítulo 4, discute as razões desta dificuldade em
aprender conceitos (ideais) abstratos e aprofunda o assunto explo-
rando os motivos de o aluno não conseguir aplicá-los (empregá-los)
em contextos reais fora da escola. É possível sintetizar os argumentos
de Willingham com as seguintes sentenças:
1. É um princípio cognitivo que aprendemos coisas novas por
meio das coisas concretas e, sobretudo, familiares, que já sa-
bemos (pp. 86-90).
2. Conhecimento profundo se relaciona com conhecimentos
antigos, assim o aluno consegue aplicá-los em diferentes con-
textos (pp. 91-95).
De 1 e 2 podemos concluir duas coisas. Em primeiro, no âm-
bito da educação formal ou escolar, os conceitos científicos e filo-
sóficos – como é o caso aqui – são apresentados prontos, acabados,
genéricos e universais, ou seja: na educação formal a abstração vem
primeiro, depois o professor ressignifica esses conceitos à luz de casos
particulares, reais e concretos. Então os conceitos espontâneos cons-
tituem-se numa ascendente do concreto ao abstrato e os conceitos
filosóficos (científicos), por outro lado, fazem o percurso contrário,
do abstrato em direção ao concreto (VIGOTSKI, 2009), capítulo 5.
Em segundo, a aprendizagem de conceitos abstratos não pre-
cede “transferência cognitiva” (WILLINGHAM, 2011, p. 95) – que
significa a transferência do aprendizado em sala de aula para o mun-
do fora da escola. Pedagogicamente, isso ressalta a relevância do em-
prego de analogias no ensino de filosofia, as chamadas de situações-
-problemas concretas. É por meio da transferência cognitiva que o
aluno consegue níveis de conhecimento mais profundos (STERN-
BERG; STERNBERG, 2016, pp. 385-390).

- 45 -
Pelo exposto, acreditamos que, enquanto não acontecer a de-
vida aprendizagem dos conceitos em níveis mais profundos, é de se
esperar que os alunos apresentam dificuldades na argumentação fa-
lada ou escrita.
A quinta questão indagou qual (ais) tema(s) da disciplina filo-
sofia o aluno considera mais importante(s)? (Tabela 3). Nessa ques-
tão o aluno pôde assinalar mais de uma opção.

Tabela 3: Temas da Filosofia considerados mais importantes.


Tema Estudantes Ranking
Ética 36 1º
Política 35 2º
Teoria do Conhecimento 34 3º
História da Filosofia 26 4º
Lógica 25 5º
Metafísica 22 6º
Estética 7 7º
Fonte: Autores.

As respostas dos participantes evidenciam um interesse em


temas que envolvem a vida prática: a ética e a política. Segundo
Abbagnano (1999, p. 380), a ética é a ciência que trata da condu-
ta humana. Uma reflexão sobre os princípios capazes de nortear as
práticas humanas na sociedade, tendo por finalidade a construção
de uma boa convivência. Apesar da filosofia no Ensino Médio abor-
dar predominantemente teorias éticas, seus conteúdos se reportam à
vida concreta dos estudantes, geram discussões e questionamentos e,
consequentemente, despertam interesse.
Sobre a política, Schlesener (1997, p.133) a define como a arte
de governar, de atuar na vida pública e nos assuntos de interesse co-
mum. É algo que não se restringe às atividades no âmbito institu-
cional, mas permeia a vida em todas suas formas de relacionamen-
to social. Some-se a isto o cenário político atual do Brasil que está
em constante evidência por motivos diversos. Dessa forma, se torna
compreensível o interesse por esse tema. Avalia-se que a abordagem
filosófica da política poderá contribuir para o desenvolvimento do
senso crítico em relação à compreensão das formas de poder vigen-
tes, além de promover o exercício da cidadania.
- 46 -
A teoria do conhecimento, também chamada de gnosiologia,
constitui uma explicação ou interpretação filosófica do conhecimen-
to humano (HESSEN, 2000 p. 19). As questões em torno do conheci-
mento permeiam a própria natureza da Filosofia: a busca pelo saber.
Dessa forma, se mostra coerente os alunos participantes dispensa-
rem importância e interesse por essa temática que está presente de
diversas formas nos conteúdos dos três anos do Ensino Médio.
Evidenciou-se também o interesse pela lógica. Essa temática
versa sobre as formas do raciocínio e da argumentação, visando de-
terminar o que é verdadeiro ou falso. Cabem aqui alguns comentá-
rios.
Infere-se que tal interesse pela lógica se relaciona à própria
natureza dos cursos do IFAM, cursos estes que possuem disciplinas,
em sua maior parte, formadas pelos núcleos das ciências naturais e
técnicas, cujo a física e a matemática são os fundamentos. Isso é de
tal sorte, que, por exemplo, é de praxe o recrutamento dos raciocí-
nios dedutivo e indutivo subjacentes à lógica.
Além disso, compreende-se também que pelas dificuldades
indicadas em argumentação falada e escrita, conforme Tabela 2, os
alunos reconhecem que a lógica pode auxiliá-los a superá-las. Con-
tudo, deve-se reconhecer que essa questão carece de investigação
detida.
Constatou-se ainda que a história da filosofia também foi bas-
tante citada. É preciso pontuar que a disciplina filosofia, na institui-
ção onde ocorreu o estudo em pauta, é ministrada numa perspec-
tiva histórica, isto é, o primeiro ano contempla a filosofia antiga e
a medieval; o segundo, a filosofia moderna; e o terceiro, a filosofia
contemporânea. Nesse sentido, a história da filosofia está presente
em todos os anos.
A temática metafísica, cujos conteúdos se concentram predo-
minantemente no primeiro ano, também foi considerada um com-
ponente importante. Ressalta-se que os assuntos que envolvem te-
mas da metafísica possuem certo grau de complexidade, no sentido
de constituir um exame da natureza ou essência do Ser, isto é, do que
existe, do que possui realidade.
A estética, por seu turno, se mostrou como o tema menos ci-
tado pelos estudantes. Conforme Rosenfield (2006, p. 7), a estética

- 47 -
avalia as implicações que envolvem as sensações e os sentimentos e
investiga a integração deles nas atividades físicas e mentais dos ho-
mens, debruçando-se sobre as produções da sensibilidade, com a fi-
nalidade de definir suas relações com o conhecimento, com a ética e
com a razão. Infere-se que essa temática, por ser abordada de forma
pontual dentro do pensamento de alguns filósofos, seja menos con-
siderada pelos estudantes participantes do estudo.
A sexta questão perguntou no que a disciplina de filosofia pode
contribuir para a vida pessoal ou acadêmica dos alunos entrevista-
dos. As respostas foram examinadas à luz da codificação qualitati-
va de dados conforme Ludke e André (2015), capítulo 4. Usando-se
dessa técnica emergiu, em uma primeira codificação, 14 categorias
conceituais que encerravam as respostas dos entrevistados. Em uma
segunda codificação, e em observância às possibilidades de conver-
gência entre as 16 categorias iniciais, elas reduziram-se a 3 grandes
categorias conceituais mais robustas.
Não é ocioso dizer que após a segunda codificação, as catego-
rias iniciais foram dispostas como subcategorias de análise. Dida-
ticamente separamo-las em Quadros para facilitar o entendimento,
mas não antes de qualificá-las individualmente como segue.

a. Categoria Pensamento

A categoria Pensamento aglutina as frases dos estudantes que


entendem a filosofia como uma área do saber capaz de melhorar o
pensamento, torná-lo mais claro, reto e reflexivo. Ademais, alguns
estudantes indicaram entender a filosofia como um conjunto teo-
rético que favorece o desenvolvimento do raciocínio crítico, senso
crítico ou pensamento crítico – termos estes usados indistintamen-
te – como se vê nos excertos dispostos no Quadro 1. É a filosofia
a disciplina que incute no estudante a postura reflexiva diante dos
diversos contextos que vivencia cotidianamente.
Aqui constam 4 subcategorias remanescentes da codificação
inicial, quais sejam: o pensamento crítico, pensamento reto/correto,
o pensamento reflexivo, e, abrir a mente.

- 48 -
Quadro 1 – Respostas dos alunos sobre a categoria Pensamento, código 01.
Categoria: Pensamento
Subcategorias: 1. Pensamento Crítico. 2. Pensamento Reto. 3. Pensamento
Reflexivo. 4. Abrir a Mente.
Quantidade: 20 respostas.

RESPOSTAS DOS ALUNOS


1. Permite o pensamento crítico na vida pessoal, profissional ou acadêmica;
sem a filosofia, provavelmente, teríamos pessoas sem senso crítico e alienadas. /
Melhoria da capacidade argumentativa e pensamento crítico. / Para estimular o
pensamento crítico, reflexão, o pensar. / Ajuda a compreender conceitos e estudos
de filósofos que nos permite obter novas visões acerca do que aprendemos e sobre
o mundo, nos dando senso crítico àquilo que percebemos e vemos ao nosso redor.
/ A filosofia nos instiga a pensar nos porquês da vida, de onde viemos, para onde
vamos; auxilia-nos a desenvolver um pensamento crítico. / A filosofia contribui
no nosso senso crítico fazendo com que possamos ir à busca de conhecimento e
respostas. / O conhecimento, em si, enriquece o ser humano em todos os âmbitos,
e a filosofia traz esse debate acerca da vida sociedade e sua relação com os
indivíduos, é importante para uma reflexão crítica o mundo, a política e a vida. /
Contribui para a formação de uma consciência crítica.
2. Ajuda criação de pensamentos corretos e de opiniões próprias. / Influencia no
meu modo de pensar. / O modo ou a forma de pensar e expressar. / Pode contribuir
com o jeito de pensarmos, e também pra entendermos como o pensamento veio
se modificando ao longo do tempo. / Na maneira como eu penso em relação a
tudo. / Contribui para o desenvolvendo do pensamento.
3. Estimular a reflexão e o questionamento antes de aceitar as coisas como são. /
A filosofia pode contribuir no âmbito pessoal na questão da reflexão sobre tudo;
com a ajuda da filosofia é possível atingir essa reflexão e aprender a questionar
sempre. / Nos leva a reflexão e nos ensina muitas coisas que aplicamos no
cotidiano.
4. Nos ajuda na busca pelo conhecimento e na melhora constante da nossa mente,
buscando aprender sobre vários temas como política e economia. / A disciplina
de filosofia pode abrir a minha mente para alguns conhecimentos que eu era
leiga e me ajuda a repensar atitudes que hoje em dia eu vejo como imaturas.
/ Compreender como o ser humano pensa e age, além de olhar o passado para
compreender os dias atuais.
Fonte: Autores.

b. Categoria Vida Prática.


Nesta categoria inserem-se as respostas em que foi verificado a
predominância da contribuição da filosofia nos assuntos de ordem prá-
tica da vida dos estudantes, sejam na vida pessoal ou profissional. Os es-
tudantes disseram ver a filosofia como um conjunto de conhecimentos

- 49 -
capaz de melhorar a qualidade da vida em sociedade. Assim, emergiram
muitas dimensões que remetem diretamente à ética e a política.
Nesse aspecto, 3 foram as subcategorias abarcadas por esta ca-
tegoria conceitual maior e mais robusta, quais sejam: a ética, a políti-
ca, compreensão do contexto intrapessoal e interpessoal.
Aqui, deve ficar claro, que os alunos fizeram alusão a vida em
sociedade no que concerne tanto ao entendimento das relações de
poder inerente ao estado democrático, quanto ao convívio em comu-
nidade local e, até mesmo, da convivência entre pares.
Ademais, no aspecto individual, o saber filosófico, segundo
os estudantes, funcionaria como um norte intelectual auxiliando o
julgamento das ações humanas de outrem, e contribuiria para a au-
torreflexão de nossas ações.
No Quadro 2, estão dispostas as 16 respostas aglutinadas nes-
sa categoria.

Quadro 2 – Respostas dos alunos sobre a categoria Prática, código 02.


Categoria: Prática
Subcategorias: 1. Ética. 2. Política. 3. Compreensão interpessoal e intrapessoal.
Quantidade: 16 respostas.
RESPOSTAS DOS ALUNOS
1. Pretendo ser médico, então acredito que o ensino da ética é muito útil. Além
disso, a filosofia contribui para melhor reflexão sobre a vida e a política. Assuntos
que todo cidadão precisa dominar ou pelo menos estar bem informado. /
Conhecimentos sobre a ética/ Ajuda muito a tomar certas decisões éticas e
repensar várias vezes novos pensamentos para construir melhores opiniões
ou debate-las com alguém. / Formas de pensar no coletivo, na sociedade e as
questões éticas envolvidas.
2. Nos ajuda ter uma melhor compreensão sobre a política. / Aprimora o senso
crítico e político do ser, permitindo melhor opinião em amplos sentidos, o que
possui grande importância, pois permite compreender as relações de poder
dentre outras coisas. / Obtenção de conhecimentos sobre a organização política
e social.
3. Me ajuda a entender e compreender as pessoas ao meu redor, a sociedade e os
costumes. / A filosofia nos permite debater, contemplar ou criticar os significados
das ações humanas. / A filosofia trás os aspectos do conhecimento sobre as
pessoas e formas de pensar, que pode nos colocar para refletir bastante no nosso
pessoal. / Para o entendimento de assuntos referentes à sociedade. / Contribui na
compreensão da sociedade e na forma de pensar. / Nos relacionamentos sociais,
pessoais, no conhecimento em uma determinada área, pensamentos diferentes
e mais abrangentes.
Fonte: Autores.

- 50 -
c. Categoria Instrumento Intelectual.

Que a Filosofia se constitui no assombro, como disse Aristó-


teles, forjando os questionamentos mais profundos, seja em primei-
ra ou em última análise, parece ser algo completamente pacificado
pelos acadêmicos. Não de outro modo, essa visão também encontra
moradia pacífica entre os estudantes participantes da pesquisa.
Ocorre, segundo os estudantes, que estes questionamentos,
ora vistos de per se, ora voltados aos meios específicos de se praticar
a filosofia, desenvolvem certas competências específicas (ou habili-
dades) encontrando-se em destaque na Base Nacional Comum Cur-
ricular, a BNCC (BRASIL, 2018) como a leitura diligente e a reflexão
cuidadosa, ou, o pensamento crítico. Estas competências, importa
dizer, são imprescindíveis para o entendimento das demais discipli-
nas colegiais.
Em adição, é pela especulação filosófica e bebendo de seus
métodos que as ideias de outras áreas do saber tornam-se inteligíveis
as mentes dos estudantes. Com efeito, eles disseram ver a filosofia
como um pano de fundo intelectual capaz de ajudá-los a aprender
(apreender) às demais disciplinas, aumentando o conhecimento e
fortalecendo a formação acadêmica.
Ainda acerca dessas mesmas competências, acrescenta-se o
seu papel majoritário para formação do caráter, da mediação qualita-
tiva entre os paradigmas da individualidade e da coletividade, enfim,
importa à emancipação do sujeito, importa à formação do cidadão
comprometido com o outro, como é mandatório observar na própria
BNCC (BRASIL, 2018).

- 51 -
Quadro 3 – Respostas dos alunos sobre a categoria Instrumento, código 03.
Categoria: Instrumento
Subcategorias: 1. Entender outras disciplinas. 2. Compreensão de texto. 3.
Conhecimentos diversos. 4. Formação acadêmica.
Quantidade: 12 respostas.

RESPOSTAS DOS ALUNOS


1. A filosofia também pode ajudar a entender outras disciplinas como história,
sociologia e até as ciências da natureza. Pode ainda ajudar na elaboração
de redações. / Ajuda no meu conhecimento, em relação a futuras provas e na
compreensão de outras disciplinas. / Contribui para a compreensão de todas as
outras matérias escolares e, consequentemente, na vida. / Na minha vida pessoal,
acho que ajuda a me entender melhor, a tentar entender o mundo e na vida
acadêmica, contribui em todas as disciplinas. Penso que necessitamos de filosofia.
2. Contribui com a leitura, pois graças a filosofia eu criei o habito de ler, o que me
faz repensar sobre meus próprios ideias. / A disciplina de filosofia pode incentivar
os alunos ao contato com a literatura. / Ajuda o estudante a compreender textos
mais difíceis que ajudem a dialogar com sua realidade.
3. Contribui na busca por conhecimentos lógicos. / Para obter conhecimentos
capazes de explicar as coisas/Contribui para aumentar o conhecimento.
4. Expansão no conhecimento adquirido pelo estudo da filosofia e novas
oportunidades profissionais e acadêmicas/ Contribui para o desenvolvimento
acadêmico. / Contribui para formação acadêmica, debates e compreensão do
mundo em que vivemos.
Fonte: Autores.

Discussão e formação de juízo


As respostas presentes nos Quadros 1, 2, 3, acima, encontram-
-se agrupadas em categorias, isto é, foram reunidas conforme partes
comuns existentes nos dados coletados. Do total de respostas, so-
mente dois estudantes não responderam a sexta questão.
Dessarte o exposto, constatou-se, segundo a opinião dos par-
ticipantes, que a principal contribuição proporcionada pela filosofia
consiste no desenvolvimento do pensamento, seja no fomento de
uma forma crítica de pensar (8 respostas) ou em ajudar a pôr o pen-
samento num caminho correto (6 respostas). Essas respostas se mos-
tram em consonância com o que Chauí (2000, p.15) afirma sobre o
modus operandi da Filosofia: um saber que trabalha com enunciados
precisos e rigorosos. A Filosofia busca encadeamentos lógicos entre
os enunciados, opera com conceitos construídos através de demons-
trações ou provas, exige, portanto, a fundamentação racional do que
é pensado.

- 52 -
Aranha e Martins (2007, p. 91) afirmam que a Filosofia consis-
te num modo de pensar que acompanha o ser humano na tarefa de
compreender o mundo e agir sobre ele, numa atitude diante da vida,
em suas diversas circunstâncias. Avalia-se que o cabedal teórico pro-
porcionado pela reflexão filosófica contribui para a vida concreta do
indivíduo, como citado pelos alunos em respostas como “estimula o
pensamento”, “ajuda a compreender o mundo” ou “ajuda a construir
pensamentos corretos”.
Os estudantes afirmaram reconhecer a existência de um cará-
ter interdisciplinar na filosofia, no sentido de que os temas filosóficos
podem ajudar na compreensão de outros saberes. De acordo com as
Orientações Curriculares para o Ensino Médio na área de Ciências
Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006, p. 25), a prática inter-
disciplinar é enriquecedora, pois estimula a criatividade, a curiosi-
dade e a afetividade. Além disso, incentiva a participação ativa na
formação do jovem e a capacidade para o diálogo com outras áreas
do conhecimento.
É possível afirmar que a filosofia (CAMPESTRINI, VANDRE-
SEN, PAULINO, 2000, p. 155) se configura como um referencial de
interdisciplinaridade, pois é entendida como princípio mediador de
comunicação entre as diferentes disciplinas ou ciências, como ele-
mento teórico metodológico da diferença e da criatividade e como
princípio da máxima exploração das potencialidades de cada ciência
ou disciplina.
Os participantes também afirmaram que a filosofia os auxilia a
desenvolver uma compreensão melhor de fatos envolvendo questões
de natureza ética e política e, também, de assuntos da vida prática,
como o conhecimento das ações humanas. Essas respostas corrobo-
ram com o interesse pela ética e pela filosofia política citadas na quin-
ta questão (Tabela 3). Entende-se que tratar de temas que abordam
questões envolvendo a ética e a política representa uma tarefa capaz de
promover a construção de um pensamento crítico e de uma consciên-
cia social, proporcionando ao estudante compreender os princípios, as
normas e estruturas sociais, bem como as relações de poder na socie-
dade. Essa compreensão permitirá uma participação mais consciente
e efetiva do estudante na vida pública enquanto cidadão.
Foi citada também a importância da filosofia como algo que
pode incentivar o hábito de ler e/ou de estimular a leitura de textos

- 53 -
considerados de difícil compreensão. Pode-se afirmar que a leitura
permite ao aluno vivenciar novas experiências, construir conheci-
mentos e viajar por lugares ainda desconhecidos. Pode também aju-
dar no desenvolvimento de um olhar crítico sobre os fatos, permitin-
do assumir uma postura ativa frente ao mundo.
Em relação à disciplina filosofia e a leitura, esta promove o de-
senvolvimento geral de competências comunicativas, o que implica
um tipo de leitura que envolve a capacidade de análise, de interpreta-
ção, de reconstrução racional e de crítica. Isso possibilita o exercício
da autonomia no sentido de concordar ou não com os propósitos de
um texto (BRASIL, 2006, p.31).
Constata-se que muitos filósofos ilustres, além de autores de
obras estritamente filosóficas, também foram escritores (Sartre), en-
saístas (Camus), poetas (Goethe) ou contistas (Voltaire). Esses filó-
sofos-escritores e outros, por meio de seu talento permitem, além da
experiência de ler suas obras, também uma “leitura” da realidade,
geralmente diferente do estabelecido pelo senso comum. A relação
entre filosofia, leitura e literatura, portanto, é muito estreita e pode
despertar no educando o hábito de ler e de se aventurar em textos
considerados mais complicados.
Conforme as respostas coletadas, a filosofia também promo-
ve a reflexão, não apenas de temas filosóficos, mas também sobre a
realidade que nos cerca. As Orientações Curriculares para o Ensino
Médio (2006, p.29) expressam que a filosofia tem como objetivo de-
senvolver a capacidade de responder questões advindas das mais di-
versas situações, ao mesmo tempo apoiadas em conhecimentos pré-
vios. Portanto, a filosofia como disciplina escolar do ensino básico
se constitui como um importante campo de realização de discussões
e reflexões acerca de temas variados da condição humana, capaz de
contribuir para a formação integral do educando.
Os alunos ainda disseram que a filosofia estimula a busca por
conhecimentos do mundo e, também, pode enriquecer a vida acadê-
mica. Estima-se que a filosofia ajuda-os a dialogar com a realidade e
com o mundo que os cerca, levando-os a desenvolver um pensar crí-
tico que lhe proporcione conhecimentos enriquecedores para além
dos conteúdos filosóficos.
Conforme Fabrini (2005, p. 25) o ensino de filosofia, seja nos
departamentos de filosofia, nos cursos universitários, no ensino mé-

- 54 -
dio, e mesmo fora deles, possui a tarefa de produzir um diálogo vivo,
entre múltiplos sujeitos de enunciação do presente coletivo. Isto sig-
nifica que a filosofia, ou antes, a realização de uma leitura filosófica
pode contribuir para suprir o déficit primário de análise do presente.
Outras respostas isoladas trataram de contribuições diver-
sas como ajuda a abrir a mente, ajuda a conhecer a sociedade, o ser
humano e os valores. Avalia-se que os temas presentes na filosofia
tratam da realidade em seus múltiplos aspectos, sejam eles éticos, es-
téticos, lógicos, políticos ou de outra natureza. Seus conteúdos tam-
bém possibilitam uma abertura para a própria subjetividade, condu-
zindo o indivíduo ao exercício socrático de “conhecer a si mesmo”.
Comte-Sponville (2002, p. 13) expressa que a Filosofia é uma
atividade realizada pelo homem e representa uma dimensão cons-
titutiva de sua existência. No entanto, é possível raciocinar sem fi-
losofar (como na ciência) ou viver sem filosofar (vida na paixão ou
na tolice). Porém, completa Comte-Sponville “não podemos, sem
Filosofia, pensar nossa vida e viver nosso pensamento: já que isso é a
própria Filosofia” (COMTE-SPONVILLE, 2002, p. 13). Nesse ponto
se encontraria uma das maiores contribuições da Filosofia: refletir
sobre o conhecimento, sobre a vida, sobre os valores e sobre os pró-
prios anseios, pois, nenhum outro saber basta para empreender essa
reflexão, nem nos dispensa dela. A partir do momento em que nos
interrogamos, damos um passo em direção à Filosofia. Mesmo o ato
de contestar qual a importância ou a utilidade da Filosofia representa
não uma saída, mas uma entrada nela.
Verificou-se ainda que, mesmo os estudantes que afirmaram
não se identificarem com a disciplina, souberam reconhecer que os
conteúdos filosóficos se impõem, mostrando pertinência, podendo
contribuir de alguma maneira para a vida, seja no âmbito acadêmico
ou no pessoal.
Estima-se que a filosofia e seus conteúdos, juntamente com
os demais componentes curriculares, constituem saberes necessários
para uma formação integral do homem através do processo educa-
tivo. Infere-se que essas considerações coadunam com as palavras
de Immanuel Kant: “O homem não pode tornar-se um verdadeiro
homem senão pela educação. Ele é aquilo que a educação dele faz”
(KANT, 1996, p. 15).

- 55 -
Considerações finais

Esse artigo apresentou o resultado de uma pesquisa qualitati-


va de caráter exploratório, cujo fim foi avaliar o papel da disciplina
filosofia na formação dos estudantes. Para tanto, participaram os alu-
nos do 3º ano do ensino médio integrado. Sabe-se que a modalidade
de ensino médio integrado aglutina duas formações, quais sejam: a
técnica, voltada ao trabalho especializado, e, a acadêmica, voltada à
formação humana integral. Assim, a concepção do ensino integrado
vê no trabalho um princípio educativo e não dissocia a ciência e a
tecnologia da formação humana do sujeito.
Conforme o exame do questionário aplicado, emergem algu-
mas considerações. Inicialmente, a maioria dos alunos participantes
do estudo tem apreço pela filosofia, e costumam se identificar com
ela. Isso foi de tal sorte que, parte dos estudantes, mostrou-se insatis-
feito com somente uma única hora de aula por semana.
A ética e a política mostraram-se estar no centro do interesse
dos estudantes finalistas. O que evidencia o reconhecimento de que
a filosofia não é um amalgamado de especulações sofisticadas e des-
pretensiosas, outrossim, é um saber que possibilita a condução da
vida prática do sujeito com maestria. A lógica também se destacou
e, naquela altura do texto, argumentamos que o ambiente de ensino
pode ser um fator de influência importante. Entendemos disto que o
olhar do finalista transcende o arsenal teorético da filosofia assentan-
do-se sobre o seu fim prático e concreto.
Mas, como se pode observar, o bom entendimento dos temas
filosóficos discutidos em sala de aula não foi um fruto espontâneo.
Houve o reconhecimento pelos estudantes da existência de certas
dificuldades de aprendizagem, embora tais dificuldades não justifi-
quem o desinteresse de alguns pela disciplina, conforme o expos-
to na seção de resultados. Três foram as principais dificuldades de
aprendizagem indicadas pelos alunos: a aprendizagem conceitual, a
elaboração de textos e a argumentação, respectivamente.
Teoricamente é possível relacionar todas elas fazendo de uma
consequência direta da outra, como se especulou naquela altura do
texto. Entretanto, pelo modo que a pesquisa foi realizada e diante dos
instrumentos de coleta e análise de dados empregados, não foi possí-

- 56 -
vel estabelecer se há algo de factual entre elas. Apenas foi obtido um
ranking estatístico conforme a concepção dos alunos partícipes. Isso
é algo que carece de investigação mais cuidadosa no futuro.
Os achados advindos da derradeira pergunta de pesquisa so-
bre a importância da filosofia para a condução da vida pessoal e pro-
fissional dos estudantes se mostrou em perfeita conformidade com
o exposto nas conclusões acima, porque, segundo os estudantes, a
filosofia contribui para o desenvolvimento do raciocínio reto, claro,
límpido e crítico.
Em adição, a disciplina em tela, conforme os alunos facilita a
compreensão dos diferentes saberes disciplinares e evita a visão uni-
lateral das vivências em sociedade e entre indivíduos de culturas di-
ferentes. Por fim, ainda segundo os alunos, a disciplina em destaque
fomenta a criação do hábito da leitura tendo como consequência o
desenvolvimento das competências comunicativas.
Em síntese, é possível concluir, diante das perguntas nortea-
doras desta investigação, que o papel da filosofia é fundamental para
a formação do sujeito, sobretudo na aquisição de conhecimentos
voltados à melhor condução dos aspectos de ordem prática na vida
pessoal ou profissional dos alunos finalistas.

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- 57 -
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34, 1992.
FABBRINI R. N. “O Ensino de Filosofia: a leitura e o acontecimento”.
Trans/Form/Ação, São Paulo, 28 (1): 7 - 27, 2005.
GONSALVES, E. P. Conversas sobre iniciação à pesquisa científica. 3ª
ed., Campinas, Alínea, 2001.
HESSEN, J. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
KANT, I. Crítica da razão pura. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KANT, I. Sobre a pedagogia. Piracicaba: UNIMEP, 1996.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de metodologia
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LUDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens
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ROSENFIELD, K. H. Estética. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
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Para filosofar. São Paulo: Scipione, 1997.
STERNBERG, R. J.; STERNBERG, K. Psicologia cognitiva. 2ª ed.
São Paulo: Cengage Learning, 2016.
VIGOTSKI, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. 2 ed.,
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
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postas da ciência cognitiva para tornar a escola mais atrativa e afetiva.
1ª ed., Porto Alegre: Artmed, 2011.

- 58 -
PEDAGOGIA IMAGÉTICA: PROCESSOS
DE IMAGINAR EM MEIO A ENCONTROS
INTERGERACIONAIS NO LAVRADO
AMAZÔNICO

Larissa Silva Gonçalves


Rosemara Staub de Barros

Apresentamos aqui resultados que sucederam nossa pesquisa


de Tese intitulada Trajetórias do Imaginar: migrações de afetos me-
mórias e sentidos, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação
Sociedade e Cultura na Amazônia – PRPPG da Universidade Federal
do Amazonas em 2018, com orientação da Profª Drª Rosemara Staub
de Barros Zago. Das compreensões e inspirações logradas com a tese,
seguiu-se ações de ensino, pesquisa e extensão, junto ao Curso de
Artes Visuais – CAV da Universidade Federal de Roraima - UFRR,
que partilhamos nestas linhas. Na Tese desenvolvemos uma meto-
dologia dialógica embasada em fundamentação interdisciplinar e na
construção de um método a posteriori, segundo referência de Mo-
rin, (2005; 20014; 2015) que motivou o encaminhamento das ações
de Programas de Extensão coordenados pela Profª Drª Larissa Gon-
çalves e a proposição de uma educação em arte, a partir de vivências
criativa lúdico estética com grupo intergeracional, que vem resultan-
do na Pedagogia Imagética. Conjunto de ações educativas vivenciais
envolvendo proposições expressivas, em busca do encontro com as
imagens que nos habitam, base simbólica para o desenvolvimento
da linguagem e pensamento, em consonância à teoria de Vygotsky
(1996; 1999; 2009). É sobre este conjunto de ações pedagógicas en-
volvendo escuta sensível, mediação simbólica e processos dialógicos,
embasados nos referenciais de Morin, Vygotsky, Bachelard, Bakhtin,
Bohm e Freire, que desenvolveremos o presente texto, com o objeti-
vo principal de promover a divulgação de estudos e pesquisas envol-
vendo processos socioculturais na Amazônia, mais especificamente
situado, em proposições de Arte Educação embasada em referencial
complexo, no lavrado roraimense.
Principiamos pontuando o que caracteriza a Pedagogia Ima-
gética, esta surge da percepção de constituição simbólica do huma-

- 59 -
no, do prazer que temos de nos movimentar em meio a imagens.
Imagens da realidade, imagens materializadas pela ação criativa
imagens sonhadas... Para além do grande conjunto de imagens visí-
veis, já criadas, existe número maior de imagens invisíveis, que nos
habitam e interferem na lida criativa diária, sob condução da imagi-
nação e da racionalidade. Esta afirmação congrega bases conceituais
diversas, desde a psicanálise freudiana de séculos passados, à discus-
são quântica da contemporaneidade, passando pela racionalidade
dos povos originários, que se posiciona como equilíbrio entre céu e
terra, entre mundos visíveis e invisíveis. (KOPENAWA, 2015; KRE-
NAK, 2019) Apesar de referenciais tão distintos em relação a seus
fundamentos, em uma proposição interdisciplinar é possível tecer
uma linha comum, que evidencia o tanto que desconhecemos e não
vemos, concomitante a tantas imagens externas, que nos transpas-
sam constantemente.
É deste cenário, que se exprime através de imagens, que a Pe-
dagogia Imagética propõe movimentar ferramentas sensíveis, cria-
tivas, imaginativas e intelectuais, para ir ao encontro das imagens
internas, pois são elas que induzem as conexões com as visões ex-
ternas. E tal conectividade é que movimenta nosso ser e estar no
mundo. Mais conscientes das imagens que nos constituem podemos
desenvolver as mais diversas ações humanas, com mais qualidade
e aprimoramento. Interseccionando discussões relativas à educa-
ção, embasado em dados de pesquisas desenvolvidas há mais de dez
anos junto ao Grupo de Pesquisa Criança, Educação e Arte – CrEAr/
UFRR vimos observando que a alfabetização das crianças em idade
escolar, encaminhada na interseção entre a Educação Infantil e Anos
Iniciais do Ensino Fundamental, está centrada em letras, números e
formas, com foco no domínio da escrita. A conquista do letramento
é dimensão importante de nossa humanidade e será tanto melhor
sucedida, quanto mais os alfabetizadores compreenderem sobre a in-
trínseca relação entre escrita e representação imagética, que envolve
expressividades múltiplas em suportes os mais variados, integrando
grafismos, corpo e imaginação.
Afirmamos que existe um déficit nos educadores, em relação
as aprendizagens e compreensões envolvendo textos visuais, que
abundam na expressividade das crianças. Textos estes que não tra-
tam apenas da imagem visual, como registro gráfico no desenho e

- 60 -
pintura, por exemplo, mas da experiência abrangente de imagens
incluindo corpo – gesto – sonoridade – dramaturgia lúdica, na cul-
tura da criança. (GONÇALVES, 2007; 2008) É então na contramão
deste analfabetismo visual, no sentido de um desconhecimento em
relação aos meandros da visualidade como base da constituição do
pensamento, (VYGOTSKY, 1999; 2009) que viemos trabalhando no
ensino, pesquisa e extensão, com ações voltadas as crianças, a par-
tir de vivências educativas intergeracionais, onde jovens, adultos e
idosos, se reúnem para criar conjuntamente e que tem resultado em
pesquisa e reflexões, acerca do papel do professor em prática de Arte
Educação especificamente, e na prática docente como um todo.
Para expor mais sentidos em relação as ações, que compõe a
Pedagogia Imagética vamos movimentar imagens ideias, que expli-
citam o desenho da metodologia desenvolvido no trabalho de tese
intermeando dados da realidade vivenciada com a Pedagogia Imagé-
tica, para desenvolver um discurso dialógico, quer dizer comprome-
tido com a movimentação e transformação tanto das ideias, quanto
da realidade e especialmente, da realidade educativa, fim mesmo de
nossa prática profissional. A Pedagogia Imagética versa sobre meto-
dologia em constante revisão, que se retroalimenta a partir de ações
concretas com coletivo intergeracional. Cada novo grupo com que
partilhamos ações criativas põe em xeque as considerações elenca-
das preteritamente. E este movimento recursivo constante, de revi-
são e renovação das bases conceituais, a partir dos dados da realida-
de foi iniciado na tese, com a reflexão sobre metodologia a posteriori
indicada por Morin. (2005; 2014)
Costuma-se, pelo método científico clássico herdado das
ciências duras, definir a priori os métodos que encaminharão a pes-
quisa. O autor por sua vez detalha as características de engessamento
desta prática chamando atenção para as possibilidades perdidas em
relação a criação científica. A escolha prévia do método é a escolha
de uma visão e com ela a sobreposição de filtros diante do que inte-
ressa investigar. Levando em conta os processos socioculturais, que
envolvem a educação, uma pesquisa que objetive à transformação
de visões e, por conseguinte, de realidades educativas problemáti-
cas, necessita apostar em métodos criativos. Estes, segundo Morin,
(2005; 2014) são possíveis quando há postura de abertura, ou seja,
de encontro diante da realidade a ser investigada. Postura caracte-

- 61 -
rizada no trabalho que desenvolvemos, por uma escuta sensível que
detalharemos a seguir reunida a dimensões de mediação simbólica e
o exercício de dialogia.
Através do exercício de uma escuta atenta, envolvendo silen-
ciamento e abertura à realidade, viemos desenvolvendo as ações do
Programa de Extensão CriAção representado pelo Projeto Encontros
CriAtivos vinculado ao CAV/UFRR, com grupo intergeracional com-
posto por crianças, adolescentes, adultos, idosos, da comunidade em
geral e universitária. Temos experimentado a cada encontro, um jogo
de silenciar, para poder ouvir a novidade, que se configura a partir
do coletivo de pessoas, que se reúnem livremente, em busca de mo-
vimentar a expressividade criativa. Movimento que, conforme indica
Bachelard (2001) acompanha a abertura e novidade da imaginação.
Para o autor, imaginação “[...] é antes a faculdade de deformar as ima-
gens fornecidas pela percepção, é sobretudo a faculdade de libertar-
-nos das imagens primeiras, de mudar as imagens. Se não há mudança
de imagens, união inesperada das imagens, não há imaginação, não há
ação imaginante.” (BACHELARD, 2001, p.01 grifo do autor)
Neste percurso libertar-nos das imagens primeiras, pré-con-
cebidas, é necessário se há o interesse em transformar as próprias
visões. Desse modo as falas e interações das pessoas presentes a cada
Encontro CriAtivo, se revelam como material expressivo reunido aos
elementos plásticos, desenhos, pinturas, esculturas, etc., produzidos.
A escuta sensível agrega gestos e expressividades as mais variadas,
incluindo o desejo, ou não, em realizar as atividades. A vivência dos
momentos criativos segue como em comunidades de fazeres tradi-
cionais, onde a produção matérica é permeada de conversas, diva-
gações, contação de histórias, rememorações, de jovens e velhos em
comunhão, perfazendo um emaranhado de significações. Cada en-
contro é composto de momento de escuta dos desejos e proposições
dos presentes, seguido de pesquisa e experimentação plástica, onde
são registrados em suportes diversos, as imagens e símbolos fruto
das memórias pessoais. Importante também é o momento de avalia-
ção do vivenciado para sondar percepções, sentidos e interpretações,
sobre as visualidades criadas e o ciclo é completo com o sonhar no-
vas possibilidades de ação criativa e construções de sentidos.
Na Tese desenvolvemos a imagem do oroboro intergeracio-
nal, para tratar do movimento mnemônico circular, que representa

- 62 -
o encontro de pontos da extremidade evolutiva humana, quais se-
jam, o velho e a criança. A relação entre os saberes dos mais velhos
e a motivação dos mais jovens para aprender, desenha a imagem de
um coletivo autopoiético, que se retroalimenta a partir do encontro.
Configuração que se renova a cada encontro, em função das pessoas
que participam a cada dia, de seus desejos e inspirações partilhados
nutrindo a continuidade da ação. Percebemos que ao se abrir para
um exercício de escuta com esta qualidade de aprofundamento e,
portanto, de respeito e acolhimento a quem chega, com a bagagem
que chega, se instaura energia de continuidade em fluxo contínuo.
É difícil querer sair dos Encontros CriAtivos e é comum as falas
dos familiares e das próprias crianças contando que acordam cedo
e animadas, para os dias de vivência. Mas permitir a instauração do
círculo de oroboros é aceitar viajar junto com a serpente, em seus
movimentos naturais e imaginários. Se contorcer, enrolar e estender,
por territórios de saberes desconhecidos, que nutrem a riqueza das
experiências simbólicas, de quem aceita se movimentar com ela. Tal
movimentação costuma ser de deleite, mas podem acontecer movi-
mentos vertiginosos tirando o chão das certezas docentes, quando
a instrumentalização da formação pedagógica perde sua função em
experiências educativas, que não se encaixam em padrões escolares
estabelecidos, como faixa etária predeterminada, espaços de apren-
dizagem diferentes da sala de aula, etc. Cabe então exercitar uma
abertura interna, para abrir mão do conhecimento preconcebido, em
prol do acolhimento da visão da alteridade, seja de um outo ser, seja
de diferentes espaços.
Para Morin, (2014) ao se pretender experimentar um método
criativo, há que se abrir ao exercício da dialogia, onde o papel da
alteridade assume sentido duplo.

É preciso destacar, aqui, algo de muito importante: no ‘Eu sou


eu’ já existe uma dualidade implícita – em seu ego, o sujeito
é potencialmente outro, sendo, ao mesmo tempo, ele mesmo.
É porque o sujeito traz em si mesmo a alteridade que ele pode
comunicar-se com outrem. É por ser o produto unitário de uma dua-
lidade (reprodução por cisão, nos unicelulares; por encontro de dois
seres de sexos diferentes, na maioria dos seres vivos) que ele traz
em si a atração por um outro ego. A compreensão permite conside-
rar a outro não apenas como ego alter, um outro indivíduo sujeito,
mas também como alter ego, um outro eu mesmo, com quem me

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comunico, simpatizo, comungo. O princípio da comunicação está,
pois, incluído no princípio de identidade e manifesta-se no princí-
pio de inclusão. (MORIN, 2014, p.123, grifo do autor)

Nesta perspectiva, o diálogo se internaliza e quanto mais


consciência da alteridade interna, maiores as possibilidades criati-
vas de expressões externas e desenvolvimento de sentidos e signifi-
cações, mais complexos. Internalização intrapsicológica dialógica é
termo caro também à teoria de Vygotsky, (1996; 1999) onde os pro-
cessos de desenvolvimento do pensar ocorrem em função de me-
diações simbólicas, que se processam a nível inter e intrapsíquico,
consoante interações externas sociais guardadas no arcabouço das
memórias.
As memórias se caracterizam como conjunto de imagens in-
ternas e são postas em movimento pela ação da imaginação. Esta
reside no aberto e encaminha as mediações em função da movimen-
tação simbólica, resultante das interações e interatuações humanas.
Para Vygotsky (1996; 1999) a mediação sígnica é conceito basilar e
diretamente proporcional à teoria de Zona de Desenvolvimento Pro-
ximal – ZDP, embasada na relação S – X – R, onde S é a referência, o
incentivo para ação e R a resposta em variáveis infinitas proporcio-
nal as possibilidades de mediação X. A mediação é processo simbóli-
co de movimentação e especialização de percepções, memórias, sig-
nos. Este são ferramentas intrapsicológicas desenvolvidas em meio
a resolução de questões interpsicológicas, que geram renovadas e
constantes, apropriações sígnicas, simbólicas, mediativas. Os signos
se processam em movimento recursivo, quer dizer, são experencia-
dos e interpretados em outros signos, em processo constante. E junto
a esta movimentação, são encaminhados os processos de interação,
mediação e apropriação, que correspondem à especialização das fun-
ções psicológicas superiores, resultante da articulação entre pensa-
mento e linguagem, ação e mediação. (VYGOTSKY, 1999)
As aprendizagens sígnicas articulam experiências colaterais,
que se estruturam em interpretação. A apropriação do conhecimen-
to na teoria de Vygotsky (LURIA; 1996) é evidenciada pelo aprofun-
damento simbólico do nível de desenvolvimento potencial – NDP
para o nível de desenvolvimento real – NDR, através das mais diver-
sas experiências de mediação processadas na ZDP. Processo comple-

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xo e infinito comparado a imagem de um espiral helicoidal indica
tendência cíclica de especialização das apropriações humanas a ní-
veis intra e interpsíquicos, em um movimento de memória e pensa-
mento, cíclico e ao mesmo tempo evolutivo, em meio a movimentos
internos de campos de força específicos. Em cada vivência humana,
criativa por natureza, é possível descrever movimento de circulari-
dade de retorno as lembranças à memória e a experimentação de
projeções imaginárias que encaminham gradualmente a um apro-
fundamento da capacidade cognitiva e o desejo de ampliação das
vivências emocionais. Observamos tal processo ao longo de nossas
pesquisas acompanhando a produção gráfica e simbólica de crianças
jovens e adultos. A fonte das criações recai sobre as experiências re-
gistradas na memória, continuamente revisitadas e postas em xeque,
pelos desafios que as interações com a materialidade disponibilizam
e com os movimentos de projeção e profundidade, das forças da
imaginação.
Vygotsky (2009) apresenta uma imagem de tal processo ao
tratar do circuito criativo. Segundo o autor, tudo o que existe exter-
namente é fruto das qualidades de reprodução e transformação, da
memória. A função mnemônica, enquanto capacidade plástica guar-
da em seus arcabouços, o legado das experiências vividas e enquanto
qualidade criativa, põe em movimento as imagens lembranças, por
entre tempos e espaços múltiplos, ao imaginar. Tudo o que se mani-
festa nesta dimensão resulta das mediações envolvendo memória e
imaginação criadora. Do computador, por meio do qual estas linhas
são escritas, passando pelos aviões, pela nanotecnologia e infinida-
de de criações humanas, o que existe é fruto do aperfeiçoamento de
memórias pessoais e da história humana submergindo e emergindo
continuamente, pela função psicológica da imaginação. Neste senti-
do, uma tríade se estabelece como estrutura dos movimentos criati-
vos, onde temos uma imagem-lembrança de referência que é posta
em movimento pelas qualidades da imaginação criadora resultando
em nova imagem-referência. Esta, por sua vez tende a se converter
em nova imagem lembrança, a nutrir movimentos circulares e he-
licoidais infinitos ∞ imagens em imagens, memórias em memórias,
signos em signos... ∞
Um exemplo, é comum as crianças em seu processo de de-
senvolvimento gráfico, desenharem casas dos mais diferentes tipos

- 65 -
e modelos. A casa desenhada é, e não é, a casa real. É na medida em
que o registro é fruto das memórias com sua casa. A imagem da casa
concreta dialoga com as imagens da casa afetiva, onde residem situa-
ções variadas e sensações, emoções, percepções diversas. Cada novo
desenho da casa resulta do jogo da imaginação, das imagens destas
inúmeras casas (real e simbólicas) postas em movimento. E quanto
mais exercitar o desenho, mais experimentará dos jogos de repre-
sentação, que permitirão aprimorar as aprendizagens envolvendo as
apropriações da escrita e interpretação, dos sentidos e significados, das
linguagens. (GONÇALVES, 2007; 2008) É retomada assim a ideia de
que os processos de aprendizagem envolvem dimensão dialógica, o
acolhimento a uma referência, um emissor, uma alteridade, e a movi-
mentação de sensações percepções e ideias, que oportunizam ampliar
as configurações de sentidos e significados. Por meio de interações
entre sujeitos na teoria de Vygotsky e interatuações que refletem as
expressões dos indivíduos – sujeitos, na fala de Morin, as mais diversas
atividades mediadoras são estimuladas e encaminham constantemen-
te, múltiplas apropriações internas e respostas externas.
Na concepção de Morin, (2005) a percepção da composição
dialógica, enquanto movimento de interação-escuta-ressignificação
do conhecimento, soma atributos biológicos. O autor caracteriza a
vida, como processo de organização auto-organização reorganiza-
ção, em um ritmo de ordem e desordem, compor e recompor com-
preensões, em um fluir repleto de complexidade, mas contínuo. Tal
conjunção, efetiva a realidade e as atividades dos seres vivos, carac-
terizando a existência como uma interatuação, quer dizer, atuação
constante e mediada entre sujeito-natureza-linguagem. A esta carac-
terística de ação entre situações, o autor explicita que existiria um
operar por três princípios fundamentais. O hologramático, onde a
parte representa o todo e o todo é maior que a soma das partes, que
inclui abertura infinita para as possibilidades de experiência e o co-
nhecer. O recursivo, em que a resposta é base para nova pergunta e
as causas são efeitos de ações e consequências pretéritas reforçando
a ideia de movimento infinito. E o princípio dialógico, que permeia
a reunião de noções antagônicas e complementares concomitante-
mente. Estes operadores da teoria da complexidade reverberam um
processo de respiração oxigenação de percepções, ligam e religam
visões de diferentes referências, experiências, saberes e fazeres, en-

- 66 -
caminhando à compreensão mais ampla das realidades manifestas.
(MORIN, 2005; 2014; 2015)
As teorias de Vygotsky (1996; 1999; 2009) e Morin (2005;
2014; 2015) explicitam que há movimentos externos e internos
agindo simultaneamente, enquanto o pensamento se processa. E as
aprendizagens intelectuais, são diretamente resultantes das afecções
e vivências sensíveis incentivadas a nível físico, natural, mas são pro-
cessadas internamente e emocionalmente. Há um contínuo exercício
de mediação dialógica encaminhando aprendizagens e desenvolvi-
mento. A dialogia é fruto de estruturas racionais de linguagem, pos-
tas em movimento pela ação da alteridade, depende de um outro, é
exercício de composição entre seres, espaços, situações, visões, com-
preensões.
Corrobora com esta reflexão a caracterização segundo Ba-
khtin, (2010) do encontro dialógico como processo ativo, que enca-
minha ao pensamento participante. Este resulta da escuta que fala,
quer dizer, de um exercício de escuta que recria o que ouve, a par-
tir de uma qualidade de presença atenta e interessada, com o que
se processa no diálogo. E ao escutar, desde um lugar de presença,
movimenta e transforma o que foi ouvido, recria visões e a própria
ação, tende à conscientização. Para o autor, o dialogismo se desen-
volve através de sua teoria da enunciação, que também evidencia a
importância do papel da alteridade à compreensão dos significados
do discurso. Quem fala comunica a alguém. O que é dito tem em
vista aquele que ouve e está permeado dos sentidos partilhados en-
tre os sujeitos que dialogam e os meandros da cultura, de onde são
estruturados os conteúdos, os sentidos, significações e a própria lin-
guagem. Os significados resultam proporcionais aos contextos e são
articulados, a cada novo diálogo, em movimentos sígnicos que ten-
dem a aprimorar sentidos – significados – diálogos, em movimento
contínuo.
Por sua vez, na concepção freiriana, o diálogo é conceito e prá-
tica, ação reflexão, com vistas à emancipação do sujeito, em meio ao
exercício de co-labor-ação, trabalho de conscientização acionado em
coletivo. (FREIRE, 1987) O autor nos convida ao exercício da escu-
ta, com vistas à apropriação dos sentidos e ideologias, presentes em
discursos coletivos, em consonância à experiência do silêncio, como
qualidade de autorreflexão, visando a liberdade individual e coletiva.

- 67 -
A dialogicidade freiriana reúne exercício de liberdade e experiência
criativa, enraizada no solo da materialidade, e transformadora do
indivíduo em ação social. Sendo este conceito, caro às teorias de base
materialista histórica, que tem na realidade e nas relações sociais,
imbricada teia de relações, a construir sentidos e significados, tão
diversos quanto as infinitas possibilidades de composição social.
E para complementar a revisão acerca do diálogo incluímos a
proposição dialógica de Bohm (2002; 2011), onde criação e diálogo,
estão intrinsecamente reunidos visando a conscientização e trans-
formação dos paradigmas científicos. Físico teórico, Bohm (IDEM)
desenvolveu teorias sobre variáveis ocultas, que não podem ser me-
didas por fórmulas matemáticas, mas que interferem nas medições e
movimentos das partículas. Seu trabalho contribui com as descober-
tas da Física Quântica, articulando as incertezas do que está oculto,
com o que se manifesta na realidade, enquanto padrões de movi-
mento. É seu o conceito de holomovimento, que sinteticamente indi-
ca “movimento de conexões”, como sendo a natureza básica da reali-
dade, onde o conhecido é parte de um fluxo dinâmico da totalidade,
composto por ordens explícitas referenciadas no que é visto e ordens
implícitas, espaço-fluxo para além e aquém, da dimensão visível. Na
integração entre o que se mostra e o que ainda não conseguimos
compreender, entre conhecido e desconhecido, o físico desenvolve a
técnica que ficou conhecida nas mais diversas áreas, como “diálogo
de Bohm”, onde propõe a articulação de uma experiência livre de juí-
zos pré-concebidos, em meio a movimentação de conceitos, possível
pela comunicação dialógica. Se caracteriza como proposta radical de
experiência da escuta, através da suspensão das visões conhecidas,
para buscar ouvir em inteireza e presença, os objetivos coletivos e
suposições individuais, que se estabelecem de acordo com o grupo
reunido para dialogar. Desse modo, o diálogo proposto por Bohm
(2005; 2011), articula exercício de pensamento coletivo e comuni-
cação inclusiva, com intuito de movimentar novidade à reflexão,
transformar e ampliar os campos de visão do conhecimento. Ilustra
a escuta, nesta perspectiva, o silenciar de si mesmo, com intenção
de agregar a voz da alteridade, reintegrar rearticular e renovar, as
próprias compreensões, através de um exercício de diálogo compro-
metido com a integração consciente do pensar e ampliação das po-
tencialidades reflexivas.

- 68 -
Na breve revisão teórica apresentada aqui, a concepção do co-
nhecimento é dialógica e cada autor apresenta interesse científico es-
pecífico, mas suas teorias demonstram cerne comum, na ideia da cir-
cularidade recursiva dos movimentos dialógicos. É ponto comum,
que para caracterizar a dialogicidade está se falando de movimento
repleto de contínuas disrupções e, portanto, complexo por nature-
za. Também é comum nas teorias referenciadas neste trabalho, a
perspectiva do encontro, caracterizando que só há diálogo, se hou-
ver reunião, conexão. E, consequentemente, a qualidade do diálogo
é aprimorada, com o aprofundamento da consciência da presença,
dos seres envolvidos na prática dialógica. A perspectiva da novidade,
como produto do dialogar é condicionada a uma maior conscienti-
zação dos meandros que compõe o processo dialógico, que incluem
dimensões estruturais, como os princípios complexos de Morin e
tem foco no caráter fluídico, que evidencia o dialogar com processo
de movimentar sentidos e significações sociais, no caso de Bakhtin
(2010) e Freire (1987) e epistemologias científicas como em Bohm
(2005; 2011) e Morin. (2005; 2014; 2015)
A profundidade da experiência do diálogo, reside então en-
quanto escuta atenta e sensível de um outro, autotransformação ex-
pressivo-criativa, pessoal e social. Diz respeito a movimentar lem-
branças, em busca de acessar a memória, enquanto fronteira entre
o profundo da imaginação e as experiências perceptivas vivencia-
das mais a nível externo, ou seja, que se dão a conhecer. A inter-
secção entre memória e imaginação é a base do circuito criativo de
Vygotsky (2009) e fundamenta os processos de mediação criativa,
as aprendizagens e desenvolvimento da linguagem e do pensar. E a
reunião de escuta sensível, mediação simbólica e dialogia, estruturam
as proposições da Pedagogia Imagética, que viemos desenvolvendo
concretamente nas ações de ensino, pesquisa e extensão, junto à co-
munidade acadêmica e em geral.
A cada novo Encontro CriAtivo, ação extensiva realizada com
grupos intergeracionais, temos a memória, recordações e lembran-
ças, como matéria-prima para as experimentações e recomposições
simbólicas dos participantes, a serem movimentadas em vivências
criativas lúdico estética. Exercitamos a escuta com qualidade, foca-
da no acolhimento da presença dos que chegam e como chegam,
para criar conexão e encaminhar as vivências com representação e

- 69 -
movimentação da imaginação, de maneira a proporcionar a quem
chega, se sentir livre para ter espaço e tempo reservado, a voar longe.
Retomamos a Bachelard, (2001; 2002) para salientar a importância
das experimentações envolvendo a imaginação poética, que se per-
mite devanear. E o papel desta, para vivência do imaginar, enquanto
capacidade humana de criar símbolos e refletir por meio de ideias,
que por sua vez, também são imagens símbolos. Na visão do autor, a
imaginação criadora nutrida pelas experiências físicas e simbólicas,
com os elementos naturais é a base da racionalidade. Fundamental
então vivenciar os devaneios da água, fogo, terra e ar, em busca de
um deleite estético, para recriar a contemplação e alcançar “os altos
voos da razão”.
Imaginar é movimentar e materializar imagens e nos Encon-
tros CriAtivos nutrimos a imaginação, com partilha de histórias vi-
vidas e inventadas, contos visíveis e invisíveis, que abundam nestas
terras do Extremo Norte brasileiro, onde os simbolismos dos povos
originários seguem vivos. Das histórias contadas, ouvidas e mate-
rializadas, em inúmeros suportes plásticos, como papel, tela, tecido,
argila, corpo, dentre outros, encaminhamos a exposição dos traba-
lhos criados, para exercitar a percepção dos sentidos e significações
advindas dos textos visuais, objetivando a ampliação da visão, pela
rememoração do produzido e exercícios de compreensão dos pro-
cessos vivenciados. Cada imagem criada, sintetiza memórias inter-
nas de quem a produziu e ofertam nova referência imagética, para
nutrir o movimento circular e helicoidal, do circuito criativo vigotis-
kiniano descrito nas linhas precedentes.
O método dialógico apresentado na revisão, que antecedeu es-
tas linhas e as demais dimensões que compõe a Pedagogia Imagética,
quais sejam, escuta sensível e a mediação simbólica, são vivenciadas
tanto na realidade das ações de Extensão, caracterizadas aqui pelas
partilhas referentes aos Encontros CriAtivos, quanto nos projetos de
pesquisa que coordenamos, sobre metodologias criativas e no ensino
acadêmico. Em todas estas frentes partimos do silêncio com a qua-
lidade sensível de acolhimento descrita no início deste texto, para
vivenciar experimentações criativas visando o encontro com os sim-
bolismos internos, formas abstratas, pensamentos, signos de realida-
de, expressos em desenhos, pinturas, cerâmica... corpo, som, letras,
emoção. Nutridos com o exercício e benesses da CriAção, crianças

- 70 -
jovens, adultos e idosos, experimentam cada um a sua maneira e
em virtude de maior, ou menor tempo de vivência com a Pedago-
gia Imagética, o incentivo à conscientização. E um convite contínuo
para caminhar buscando ampliar mais e mais, a visão da realidade
consoante a vivências expressivas e o exercício dialógico interpes-
soal e intrapsíquico. Caminho este, das aprendizagens de linguagem
e desenvolvimento do pensamento, possível pela conscientização das
mediações com que lidamos cotidianamente e conceitualmente. Na
prática realizamos isto ouvindo quem chega, oferecendo materiais,
técnicas e vivências criativas lúdico expressivas, que proporcionam
a criação de inúmeras imagens. Estas permitem movimentar ferra-
mentas sensíveis, criativas, imaginativas e intelectuais, em conso-
nância ao levantamento de acervos simbólicos, exposição de pro-
duções, textos imagéticos riquíssimos, em sentidos e significados e
todo processo é continuamente avaliado.
A avaliação assim como as demais ações da Pedagogia Imagé-
tica, corresponde a momentos de rememoração dos processos viven-
ciados, incentivo a exposição e sondagem de interpretações sentidos
e significações, que se vislumbram dos textos visuais criados. Propõe
reconfiguração dos passos, nova caminhada em meio as imagens e
símbolos, que seguem vivas, desde o lavrado amazônico roraimense,
lugar de nossa fala, onde a floresta dá lugar a campo de cerrado aber-
to, entrecortado por igarapés com os sentinelas buritis mantendo,
pela sua presença altiva e filtragem de suas raízes, o curso de água
doce e pura, que brota de inúmeros olhos d’água nesta terra. Terri-
tório de grande diversidade cultural, caracterizada pela migração de
várias regiões do Brasil e de outros países, em diálogo com a cosmo-
visão dos povos originários, donos destas terras mantenedores de
rico arcabouço simbólico, de onde resistem os sopros da intuição, a
fomentar os movimentos e esclarecimento da razão.

Referências

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do movimento. Tradução: Antonio de Padua Danesi. 2 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2001.
_______________________ A água e os sonhos: ensaio sobre a ima-

- 71 -
ginação da matéria. Tradução: Antonio de Padua Danesi. São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
BAKHTIN, Mikhail M. Por uma filosofia do ato responsável. Tradu-
ção: Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Carlos: Pedro &
João Editores, 2010.
BOHM, David. Diálogo: comunicação e redes de convivência . Tradu-
ção: Humberto Mariotti. São Paulo, Palas Athena, 2005.
___________ Sobre a criatividade. Tradução Rita de Cássia Gomes.
São Paulo: Editora Unesp, 2011.
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Ciências Humanas) - Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2008.
____________. Arte e infância: sensibilização, representação e forma-
ção por meio da educação do olhar. In: BRITO, Luiz Carlos Cerqui-
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KOPENAWA, Davi., BRUCE, Albert. A queda do céu: palavras de um
xamã yanomami. Tradução Beatriz Perrone-Moisés. Prefácio de Eduar-
do Viveiros de Castro — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2019.
LURIA, Alexander; VYGOTSKY, Lev. S. Estudos sobre a história do
comportamento: o macaco, o primitivo e a criança. Tradução de Lólio
Lourenço de Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução: Maria D. Ale-
xandre e Maria Alice Sampaio Dória. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2005.
_____________ A cabeça bem feita: repensar a reforma reformar o
pensamento. Tradução: Eloá Jacobina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2014.
_____________ Os sete saberes necessários à educação do futuro. Tra-
dução: Catarina Eleonora F. da Silva e Jeanne Sawaya. São Paulo: Cor-
tez Editora, 2015.

- 72 -
VYGOTSKY, Lev. S. A formação social da mente. Tradução: José Ci-
polla Neto. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
_______________ Imaginação e criação na infância: ensaio psicológi-
co. Tradução: Zoia Prestes. São Paulo: Ática, 2009.

- 73 -
- 74 -
O CONTEXTO AMAZÔNICO NOS EXPERI-
MENTOS DE CIÊNCIAS NATURAIS:
O QUE DIZEM OS LIVROS DIDÁTICOS?

Jullia Negreiros Moraes


Kelly Caroline Oliveira
Ettore Paredes Antunes

Resumo. Nesta comunicação é apresentada um breve discussão sobre o que é


o contexto amazônico e o papel da Contextualização no processo de ensino-
-aprendizagem em ensino de Ciências, sobre os quais se alicerçou a análise das
coleções dos Livros Didáticos (LD) aprovados no PNLD-2021. Por meio da
Análise Textual Discursiva, foram investigadas 8 coleções e nas quais foram
identificados 99 experimentos sobre conteúdos de ciências da natureza, classi-
ficados em graus de contextualização. Apenas 17 experimentos apresentaram
alguma contextualização, mas nenhum abordou o contexto amazônico. Discu-
timos e denunciamos a ausência da Amazônia nos LD, pois além de excluir a
possibilidade de contextualização nas realidades escolares da Amazônia, tam-
bém impede o a reflexão sobre essa importante região no restante do Brasil.
Palavras-chave: Contextualização e Interdisciplinaridade; Ensino de Ciên-
cias; Livro Didático.

Introdução

Amazônia... o que se pensa ao buscar compreender o que é


o contexto amazônico? O que é um contexto? E o que é Amazônia?
Que elementos a compõem? Aparentemente, são perguntas cujas as
respostas temos na ponta da língua, contudo sabemos que não é algo
tão trivial assim, visto que tratamos de um emaranhado de aspectos
(ecológicos, sociais, econômicos, socioculturais, dentre outros) e ele-
mentos (humanos e não-humanos) que os formam.
Este estudo nasce, portanto, da preocupação em aprofundar-
-se nesses aspectos que tornam única a região amazônica, embora
seja vasta e diversa. Focaremos, precisamente, no contexto amazô-
nico do norte brasileiro, este que abriga uma floresta colossal, po-
vos indígenas, culturas miscigenadas e tantas outras características
peculiares.
Quando pensamos em Contexto Amazônico, a idéia mais
corriqueira é pensar na fauna e flora, no verde da floresta, no azul

- 75 -
dos rios - ou melhor, nas várias cores de cada rio -, ou seja, é muito
comum pensar apenas nos aspectos naturais e nos recursos amazô-
nicos. No entanto, cabe indagar o que mais faz parte do contexto
além desses elementos? A Amazônia é só floresta? E os povos que a
habitam?
No trabalho de Oliveira e Costa (2019, p. 178), busca-se proble-
matizar tal perspectiva, enfatizando a multiplicidade de discursos so-
bre a Amazônia. Concordamos com as autoras, quando colocam que

a Amazônia que se fala não é algo individualizada, ela é plural:


natureza, índio, laboratório científico, povos tradicionais, urbani-
dade, madeira maciça, água em abundância, problemas ambientais,
reserva natural, manejo sustentável, desenvolvimento econômico e
industrial, cultura científica. (OLIVEIRA, 2019, p.178)

Escrever sobre o contexto amazônico pode chegar a ser até


um discurso inacabado, pois abrange uma rede complexa em que
homem, natureza, cultura e sociedade se enlaçam. Nela, o homem
amazônico e o não-amazônico compartilham o mesmo território,
desenvolvendo, pesquisando, degradando e usufruindo de seus re-
cursos. Nesta rede há um conjunto complexo de vários elementos:
ribeirinhos, indígenas, caboclo (que conhecem o local, os rios, as
cheias, que sobrevivem com uma renda baixa, conhecem plantas, e
cultivam e colhem os frutos do trabalho do interior), natureza, cul-
turas miscigenadas, problemas ambientais, contrastes entre capitais e
regiões isoladas, atraso científico e tecnológico, problemas políticos,
e pouco conhecimento do próprio contexto amazônico. Vasconce-
los e Freitas (2012) reforçam que muitas pessoas ainda imaginam a
Amazônia como um bioma, numa visão intimamente vinculada à
natureza pujante, selvagem e intocada.
O contexto amazônico que vivenciamos mostra-se a par-
tir de uma dinâmica em que o homem amazônico vive junto a um
dos ecossistemas mais lindos do mundo, porém onde se enfrentam
atualmente intensos problemas socioambientais como o desmata-
mento, mineiração, queimadas, dentre outros. Os povos tradicio-
nais se veem atravessados cada dia mais nos processos e impactos
da sociedade moderna, ao passo que detêm e preservam saberes
ancestrais. Eles conhecem as propriedades antioxidantes de frutos e
plantas, sabem que “cascas de árvores” têm propriedades medicinais
e são boas para a saúde em geral, conhecem e usam plantas medici-

- 76 -
nais sem ao menos serem cientistas. Além disso cultivam, plantam
e pescam para sobreviverem, enfrentam as cheias dos rios, têm sua
cultura magnífica porém pouco valorizada.
Por outro lado, as pessoas que vivem nas cidades – sejam es-
tas pequenas, médias ou grandes, como Manaus -, embora inseridas
neste contexto, tendem a ignorar a complexidade e natureza da sua
realidade. Em termos educacionais, é comum observar que os estu-
dantes pouco compreendem a química ligada ao seu cotidiano, mais
intrinsecamente aquela ligada ao contexto regional amazônico (FA-
RIAS, 2018). Em vista dessa problemática, como o professor pode fa-
zer esta aproximação? Uma boa ideia seria utilizar a contextualização
vinculada a uma metodologia ativa, em específico a experimentação.
A contextualização é uma ferramenta que pode ser utilizada
vastamente em sala de aula, pois ajuda o aluno a entender alguns
conceitos que, em química, são apresentados de forma abstrata. No
trabalho de Wartha (2005), há uma análise quantitativa e qualitativa
sobre os conteúdos contextualizados nos livros didáticos (LD) dos
anos 1999 e 2001. Nele, o autor conceitua a contextualização e como
ela deve ser abordada nos livros didáticos. A PCNEM coloca a con-
textualização como um pilar considerável, uma vez que ela permite o
diálogo dos temas com a vivência do aluno com o objetivo de formar
um cidadão, além de desenvolver discussões sobre questões ambien-
tais, econômicas, éticas e sociais, problematizando e construindo
oportunidades para o estudante compreender diversas questões pre-
sentes na sua realidade.
Logo, contextualizar é uma estratégia fundamental para a
construção de significações, ou seja, ela não se resume em exempli-
ficar e sim construir significados e incorporar valores explicando o
cotidiano.
Para se analisar os aspectos da contextualização deve-se, em
primeiro, identificar termos que contextualizem o conhecimento quí-
mico, como informações e ideias de senso comum com as quais se
possa relacionar conceitos científicos. No segundo aspecto, é analisa-
do se as palavras/termos estão contextualizadas e como estão sendo
empregados no Livro Didático. No terceiro aspecto, analisa-se se há
motivação que instigue a curiosidade dos alunos, se são usados temas
sociais, ambientais e econômicas e a criação de questionamentos.
Em vista dos aspectos mencionados, há certas diferenças nas
análises quantitativas que variam entre as coleções, mas em análises

- 77 -
qualitativas os LD’s são semelhantes. Wartha (2013) observou que a
contextualização assumiu apenas papel ilustrativo, isto é, apresenta-
va os conceitos químicos ou temas, mas sem uma discussão crítica,
ou seja, não foi construída de maneira motivadora e facilitadora para
a aprendizagem do aluno. Há uma intensa discussão sobre o cotidia-
no e a contextualização, distinguindo quanto aos seus usos para o
ensino de química, buscando abordagens teórico-metodológicas e
epistemológicas para compreender tais abordagens, utilizando mé-
todos bibliográficos e descritivos para melhor delinear os dois ter-
mos que, frequentemente, são confundidos (WARTHA, 2013).
O termo cotidiano é o mais conhecido e de fácil uso, porém,
segundo pesquisas essa conceituação não existe. É utilizado para rela-
cionar situações comuns e aproximá-las aos conhecimentos científicos,
usado apenas para exemplificar os conhecimentos químicos, tornando
o conteúdo mais compreensível. Porém, tal abordagem se torna algo su-
perficial, uma vez que as situações apresentadas não são aprofundadas e
o conhecimento adquirido pelo aluno não instiga-o e não lhe dá subsí-
dios para construir análises críticas sobre o meio em que se insere.
A ação de contextualizar, reconhece antes de tudo que, nas
aulas, todo o conhecimento que engloba a relação entre sujeito e
objeto, garantindo assim uma aprendizagem mais significativa, pois
ela irá permitir associação com as vivências dos alunos e os conhe-
cimentos pré-existentes. No entanto, conforme amplamente relata-
do na literatura, é observado que a contextualização é utilizada de
maneiras diferentes e, em sua maioria, o método não é utilizado de
forma aprofundada, servindo apenas como exemplificação e ilustra-
ções de contextos para ensinar conteúdo químico. Apenas alguns
apresentam o entendimento da contextualização na perspectiva da
compreensão da realidade social.
Até aqui, procurou-se apresentar como os termos de cotidiano
e de contextualização possuem diferentes significados e perspectivas
para o ensino de química, em especial para a pesquisa e organização
do trabalho docente. É de suma importância que o professor assuma
o papel de mediador e consiga estar atento à aplicação desses méto-
dos. Em relação ao cotidiano e contextualização, no âmbito da pes-
quisa, é necessário maiores avanços para que se tenha um comum
entendimento e, assim, o ensino de química seja eficiente. O traba-
lho de Giordan (2007) discute como a experimentação é um fator
importante para a elaboração do pensamento científico, traçando-a

- 78 -
como um dispositivo sociotécnico que contribui positivamente para
uma melhor aprendizagem.
No trabalho de Ferreira (2010), é observada uma integração
entre a experimentação e a contextualização, em que é apresenta-
da uma proposta diferente para se abordar experimentos em sala de
aula, de forma contextualizada e que fuja da tradicional “receita de
bolo”, na qual o aluno só segue instruções. Na proposta sugerida,
os alunos são os protagonistas de suas experiências e realizam ob-
servações através de relatórios, avaliando assim o que foi aprendido
e se tornando capazes de resolver problemas. Além disso, insere a
pesquisa na vida acadêmica do aluno, o qual tem a oportunidade de
colocá-la em prática através de produção de textos argumentativos,
como o relatório.
Nesta abordagem, são valorizadas situações problemas e a
criação de grupos cooperativos, em que haja diálogo e harmonia en-
tre os alunos, professor e o LD, sendo uma abordagem mais contex-
tualizada, proporcionando ao aluno formular explicações a partir de
evidências. No primeiro momento, os alunos receberam explicações
sobre o conteúdo, e em segundo, foram feitas leituras de volumes em
proveta, em que só foram expostos os conhecimentos e não se envol-
veu nenhuma situação problema. Após essa prévia, foram apresenta-
dos textos informativos, dos quais os alunos conhecem os aspectos
principais sobre o assunto abordado - gasolina - e se direcionou a
discussão para a formulação de uma situação problema. Após a lei-
tura de texto, os alunos debatiam e planejavam a resolução do pro-
blema que foi levantado. Ao final, foi solicitado um relatório, no qual
o aluno poderia expor soluções e resultados da pesquisa.
Diante disto, destaca-se que é de suma importância que a ex-
perimentação de fato acrescente na vida acadêmica do aluno e que
sirva como uma maneira de aproximar o conteúdo estudado com a
sua realidade, tornando-o capaz de resolver problemas e de com-
preender mais profundamente o assunto abordado. Também, é im-
portante uma intimidade com a pesquisa, fugindo de métodos tradi-
cionais e, assim, tornando uma aprendizagem mais eficiente. Neste
sentido, a presente pesquisa buscou analisar como o contexto ama-
zônico está sendo abordado em experimentos das ciências naturais
dos livros didáticos do ensino médio aprovados no PNLD de 2021 e
se essa abordagem restringe-se a exemplificações ou configuram-se
como contextualizações de fato.

- 79 -
Desenvolvimento
Trazemos a análise do contexto amazônico em experimentos
presentes em 42 volumes, divididos em 7 coleções, dos novos PNLD
2021, da área de ciências da natureza, que nos revelou a existência
de 99 experimentos. Para uma análise mais completa em cada livro,
observou-se, por volume, a organização, abordagem, experimentos,
seção que se inserem, a necessidade de laboratório, facilidade de
acesso aos materiais. Por fim, e o mais importante, se cada experi-
mento apresentava um contexto amazônico.
Submetemos as coleções à Análise Textual Discursiva (ATD),
buscando possibilitar reflexões e discussões sobre aspectos quantita-
tivos e qualitativos, o que caracteriza uma pesquisa mista.
A ATD, como discutido por Moraes e Galiazzi (2007), é um
procedimento que se assemelha a uma rede sistemática, ou seja, não
segue uma ordem fixa, pode ser mudada durante todo o processo,
tornando a ATD como um processo recursivo. Segundo Moares e
Galiazzi (2007) a ATD é:

[...] um processo auto-organizado de construção de compreensão


em que novos entendimentos emergem a partir de uma sequência
recursiva de três componentes: a desconstrução dos textos do “cor-
pus”, a unitarização; o estabelecimento de relações entre os elemen-
tos unitários, a categorização; o captar o emergente em que a nova
compreensão é comunicada e validada. (MORAES, 2007, p. 12).

Após a análise destes critérios apontados foi possível criar


categorias e classificar o experimento como: 1) contextualizado, em
que comportava de cinco a quatro os critérios de maneira positiva;
2) parcialmente contextualizado, em que comportava dois a três cri-
térios; 3) não contextualizado, atendia um ou nenhum critério. Em
seguida, foi analisado se estes experimentos tinham como foco uma
temática amazônica.
No Quadro 1 a seguir, apresentamos as coleções que foram
analisadas e uma análise geral da contextualização e interdisciplina-
ridade de cada uma, segundo os referenciais teóricos expostos ante-
riormente.

- 80 -
Quadro 1: Análise geral das coleções frente à contextualização e interdis-
ciplinaridade (fonte: os autores)
Coleção Análise
Contextualizado. Não apresenta muita
interdisciplinaridade, as matérias são
A. Ser protagonista
bem  divididas, trazem curiosidades e
atividades de pesquisa.

Somente em alguns volumes os livros


B. Matéria, Energia e vida uma
apresentam interdisciplinaridade e
abordagem interdisciplinar
abordagem contextualizada.

A interdisciplinaridade varia, são


C. Multiversos - ciências da
contextualizados e apresentam temas da
natureza.
atualidade como vacinas.
Interdisciplinaridade em alguns pontos,
D. Ciências da natureza- Lopes
propõe temas atuais e estimula a
e Rosso.
investigações.
Esta coleção é interdisciplinar, relacionada a
ciências da natureza e com ciências humanas
E. Diálogo: ciências da natureza e e sociais, como por exemplo, filosofia e
suas tecnologias. história são contextualizadas e apresentam
mapas mentais, que facilitam o aprendizado
do aluno
Pouco interdisciplinar, as matérias são bem
divididas e tem pouca interação entre si,
F. Moderna Plus: ciências da
são apresentadas muitas atividades com
natureza e suas tecnologias.
problemas e interativas que ajudam na
compreensão dos conteúdos.
Pouco interdisciplinar, contextualizada,
G. Conexões: Ciências da são propostas muitas atividades em grupos
natureza e suas tecnologias e presença de exercícios voltados para
vestibular.

Dentre os 99 experimentos encontrados, verificamos que 17
experimentos se apresentam de forma contextualizada, pois trazem
um assunto recorrente na vida do aluno, trabalhando problemáticas
reais e atuais, instigando o aluno a (re)pensar e tomar decisões em
seu próprio meio social, ou seja, ultrapassa o campo da exemplifi-
cação, trazendo de fato um conhecimento mais abrangente. Como
exemplo, o experimento que trata do álcool em gel, como reprodu-
zido na Figura 1, indicando como produzi-lo e a identificar as di-
ferenças entre ele e o álcool líquido, bem como suas vantagens em

- 81 -
comparação a este último. A contextualização deste é observada na
sua apresentação, quando se aborda sobre sua importante função no
combate aos microganismos patógenos, o que se configura como um
ponto de partida fértil para discussões sobre a pandemia por CO-
VID-19.

Figura 1: Exemplo de experimento contextualizado. Coleção “Ser prota-


gonista: Ambiente e Ser Humano”, p.98.

- 82 -
28 experimentos abordam de maneira parcialmente contex-
tualizada, visto que apresentam breve contextualização e problemati-
zação acerca de um material que pode estar inserido no cotidiano do
aluno, aproximando-ode um conhecimento mais crítico,. O exemplo
que trazemos aqui é o do experimento intitulado ‘queima da palha
de aço’ (Figura 2). Neste experimento, vemos um objeto do cotidiano
do aluno, entretanto eles não levantam hipóteses, eles seguem um
passo a passo, para no final concluir a veracidade da estequiometria
da reação.
Figura 2: Exemplo de experimento Parcialmente contextualizado. Coleção
“Ser protagonista: Matérias e suas Transformações”, p. 29.

- 83 -
Os outros 54 experimentos não apresentaram qualquer nível
de contextualização, isso porque carecem de problematização e não
se inserem no contexto do aluno, servindo apenas como uma breve
exemplificação de um conteúdo recém administrado. Um exemplo
bem conhecido e encontrado nas coleções é o experimento ‘teste de
chama’, no qual o aluno apenas segue um manual de instruções e
identifica a coloração da chama, para assim poder discutir as cama-
das de valência que cada elemento testado apresenta
Com relação ao contexto amazônico, dentre os 99 experi-
mentos elencados, nenhum deles apresentam uma contextualização
Amazônica. Apenas 2 experimentos apresentam uma proposta e po-
tencial para o professor contextualizar, contudo a Amazônia não é
citada nem mesmo como exemplo. Nos livros em si, a Amazônia é
comentada somente de forma rasa, principalmente de forma históri-
ca, geográfica e em aspectos vegetais, o que reforça o reducionismo
nos discursos apontado anteriormente.
Alguns pontos interessantes que também precisamos elen-
car e discutir neste capítulo, sendo eles particularidades positivas,
que não envolvem os experimentos, mas que achamos interessantes
em algumas coleções.
Em uma das coleções (Moderna Plus), os experimentos ser-
vem somente para análise, isto é, não há aprofundamento e discus-
sões que façam o aluno refletir. O que chama atenção nesta coleção, é
que há um grande incentivo para que os alunos produzam conteúdos
digitais, para divulgação do que foi analisado nos experimentos. Essa
dinâmica de análise e produção de um material para divulgação é
muito interessante, visto a importância de mostrar para os alunos
a aplicabilidade dos conceitos/conteúdos estudados em seu cotidia-
no, além da interatividade do aluno, com o conhecimento científi-
co e a comunidade. No trabalho de Sá, Meier e Faria (2022) vemos
exatamente isso, os alunos fizeram pesquisas e análises, discutiram
em sala de aula, produziram cartazes digitais e divulgaram em redes
sociais, o que nos mostra um incentivo e valorização do trabalho
construído por eles.
Na coleção Diálogo, não há experimentos, ou pelo menos não
é possível encontrar roteiros de experimentos no LD. É trabalhada
uma abordagem diferente de investigação, na qual o aluno é instiga-
do a fazer uma atividade de análise/pesquisa, de modo a incentivá-lo

- 84 -
a elaborar hipóteses e explicar dados experimentais sob uma pers-
pectiva científica, muito parecido com os relatórios desenvolvidos
na graduação.
Já na coleção “Matéria, Energia e Vida”, os experimentos ficam
inseridos em uma série de atividades que são divididas por etapas. O
experimento não vem avulso no livro, e sim através de uma sequên-
cia de atividades até chegar ao experimento em si, ou seja, há uma
construção dos conceitos e contexto. Também há outras atividades
nas quais o aluno pode se aprofundar no experimento, fazendo ob-
servações, em especial no livro “Materiais, energia: transformações e
conservação” há uma série de experimentos curtos, que servem para
se comparar alguns resultados.

Considerações Finais

Em suma, a maior parte dos experimentos encontrados não


apresentam nenhum nível de contextualização, na verdade eles são a
famosa “receita de bolo”, em que o aluno segue instruções, os resul-
tados já são previstos e usados somente como exemplo/comparação
da teoria.
No trabalho de Frazão, Gusmão & Antunes (2021), vemos
como a realização de experimentos tradicionais, prontos a serem se-
guidos e sem significado, causam fragilidade ao acadêmico quando
se é preciso formular hipóteses e conclusões. Isto é, experimentos
como um manual de instruções só contribuem com a aprendizagem
de conceitos e habilidades técnicas, porém, focar apenas nisso não
desenvolve o principal aspecto da formação escolar/cidadã: a com-
preensão crítica.
É importante destacar que, o LD é o recurso didático mais
utilizado pelos alunos, sendo uma das principais fontes de informa-
ção para aprendizagem, e, mais utilizado pelos professores, como
principal, e até mesmo único, recurso didático. Porém, limitar o en-
sino apenas a sua utilização acaba por tornar as aulas monótonas e
sem atrativo, não ocorrendo um aprendizado concreto (OLIVEIRA,
2019). Os LD´s devem promover a autonomia dos estudantes, e não
somente apresentar conteúdos e exemplificações rasas, eles devem
propor situações reflexivas, cotidianas e contextualizadas, para que

- 85 -
os estudantes possam construir suas próprias opiniões e conclusões
(TESTASICCA, 2020).
Percebeu-se também que, dentre os 99 experimentos de quí-
mica, apenas 17 foram classificados como contextualizados, os res-
tantes se apresentavam como exemplificações. O trabalho de Pereira
e Menezes (2022) nos evidencia que a ideia de contextualização, ain-
da se limita ao uso de exemplos do dia a dia para os professores. E de
acordo com os autores,

Somente incorporar a contextualização para justificar socialmente


o que está sendo ensinado não favorece a aprendizagem e o desen-
volvimento de competências, fazendo o aluno perceber a ciência no
seu dia a dia, porém reduzi-la apenas a uma informação. (PEREI-
RA, 2022, p. 111)

A educação na Amazônia sofre de evasão e distorção de idade,


os jovens e adolescentes cursam o Ensino Médio fora da idade espe-
rada — e evadem da escola com uma frequência maior do que a dos
jovens no restante do Brasil. É mais comum que as pessoas na região
busquem a Educação de Jovens e Adultos (EJA) – uma política pú-
blica redistribuitiva - para completar os estudos, e em etapas menos
avançadas do que no resto do país. O quadro é reflexo de uma série
de obstáculos, que incluem o número reduzido de vagas em escolas
na zona rural, as altas taxas de analfabetismo e reprovação, e a desi-
lusão do jovem em relação ao mercado de trabalho.
Se estamos numa região com forte presença dos povos ori-
ginários, por que não valorizar esta cultura? Trazendo para área da
química, uma boa proposta para que isso ocorra é que os professo-
res, durante suas aulas, tentem trazer abordagens temáticas voltadas
pra valorização da região. Por exemplo, ao fazer uma aula sobre ta-
bela periódica, ministrar sobre uma abordagem temática de terras
raras e suas aplicações, retratadas nas terras indígenas.
Os 2 experimentos mencionados com potencial para dialo-
gar com o contexto amazônico abordavam sobre derramamentos de
óleo e piscicultura. Ambos tratam de questões problemáticas, que
trazem consigo inúmeras controversas, culminando em discussão de
cunho cultural, político e econômico, e que demandam do aluno um
posicionamento, além de vários conhecimentos. Nestes termos, são

- 86 -
duas propostas que poderiam elevar seu nível, quando apresentados
no contexto amazônico, visto que derramamento de óleo é um pro-
blema grave com impactos irreversíveis para a biodiversidade ama-
zônica e a piscicultura é a principal fonte de renda de ribeirinhos da
região.
Vivemos numa sociedade multicultural, de pluralidade, de de-
sigualdade, portanto, um único meio ou forma de educação, não irá
atingir a todos, pois os conhecimentos e a cultura das populações
tradicionais devem ser valorizados e aproximados do conhecimento
científico

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- 88 -
Espetáculo Kedacery e semiótica peirceana1

Ismael Maciel de Menezes Filho

Introdução
Este estudo problematiza a seguinte questão: Como a semió-
tica Peirceana pode auxiliar a análise das interpretações dos alunos
as práticas corporais presentes na dança do espetáculo Kedacery, da
Companhia de dança Uatê? (Cia de dança indígena da Região Nor-
te). Para auxiliar no desenvolvimento do presente trabalho, a hipó-
tese deste estudo se respalda no pressuposto de que dança não se
comunica de forma literal ou em tradução direta ao que o artista
intenta mostrar, sendo neste prospecto da interpretação, que a pes-
quisa pretende investigar. Tal hipótese é fundamentada na lógica de
que o campo de atuação da semiótica é relativamente complexo e
os pesquisadores ainda não adquiriram resiliência suficiente para
lidarem com a gama de possibilidade aferentes e eferentes que esta
ciência oferece.
O foco da pesquisa será a análise semiótica peirciana, levando
em conta a percepção da interpretação do aluno espectador e re-
lacionando-a com a proposta apresentada pelo coreógrafo. Diante
disso, buscar-se-á compreender a interpretação de cada aluno espec-
tador, considerando a conclusão analítica e se cada coreógrafo (a) e/
ou bailarino (a) está conseguindo fazer com que o expectador reco-
nheça o que está sendo proposto por eles em sua obra.
Com relação a abordagem, a pesquisa foi de cunho qualita-
tivo, sendo o espetáculo Kedacery o objeto de pesquisa dentre os
espetáculos de dança do Brasil. Tem como objetivo analisar as in-
terpretações dos alunos através da semiótica peirceana uma cena
do espetáculo Kedacery, da UATÊ Companhia de Dança da Região
Norte. E seus objetivos específicos são: relacionar as interpretações
dos alunos espectadores frente a cena do espetáculo Kedacery à ideia
repassada pelo coreógrafo durante a apresentação; identificar se a
obra pode ou não revelar a tricotomia Peirceana; verificar se a inter-
1 Este texto é uma reelaboração do Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em
Dança defendido em 2021 sob orientação da Profa. Dra. Amanda da Silva Pinto, pela Univer-
sidade do Estado do Amazonas.

- 89 -
pretação dos alunos espectadores estão sendo de acordo tal como o
coreógrafo quis propor ao seu público.
Um dos motivos que levou ao proponente do estudo a desen-
volver esta pesquisa foi o pioneirismo da temática no contexto da
dança e a importância de se compreender o significado no dizer ar-
tístico da obra, de modo a se verificar se o público-alvo está conse-
guindo compreender o significado através do gestual da dança e dos
elementos usados para compor a cena. Essa abordagem se faz per-
tinente, pois durante a desenvoltura dos referidos artistas, ao longo
de um espetáculo, surgem diversos comentários do público em geral
acerca do que fora encenado, atribuindo-se possíveis significados às
ações realizadas. Menciona-se que tais interpretações são importan-
tes e condutoras pois instigam o imaginário do público em conhecer
o real significado por detrás de tamanha criatividade quando o que
está em questão é o cerne da interpretação como fenômeno semió-
tico em evidência.
O presente manuscrito tem como pretensão mostrar as diver-
sas interpretações de cada aluno espectador para se chegar a valida-
ção ou não da hipótese elaborada, a partir da tentativa de resolução
da problemática proposta. Pretende-se verificar se cada aluno espec-
tador tem uma interpretação diferente do espetáculo apresentado e
se o (a) coreógrafo (a) e/ou bailarino (a) consegue fazer o público
reconhecer a significação da proposta cênica por eles executada.
Salienta-se que esta pesquisa se justifica devido ao seu pro-
ponente acreditar que há necessidade de amplo colóquio para um
debate de melhor entendimento sobre como o aluno espectador
compreende a obra do espetáculo em uma perspectiva semiótica.
Acredita-se que o espetáculo Kedacery possui um valoroso trabalho
de criatividade e inovação com um repertório de apresentações po-
tenciais no que tange à cenários, ao figurino, à música e à coreogra-
fia, que permitem realizar o espetáculo sem perder a essência de um
discurso claro e diversificado.
Justifica-se ainda, a realização deste estudo pelo aprofunda-
mento da semiótica no contexto da coreografia contemporânea que
reflita uma posição de reflexão crítica ampliada no atual cenário da
temática. Tal justificativa perfaz uma delimitação respaldada tam-
bém no ensino pedagógico das artes, com um caminho metodoló-
gico baseado em um estudo inicialmente de ordem teórica-reflexiva
- 90 -
para, posteriormente, assumir um caráter pragmático. Essa discus-
são, portanto, faz-se necessária por abarcar possíveis resultados ain-
da desconhecidos por grande parte da sociedade e comunidade cien-
tífica.

Espetáculo Kedacery: contextualização e descrição das cenas

A roteirização do espetáculo Kedacery foi desenvolvida a par-


tir de diálogos com os tariana. “Os Tariana” são um dos 20 povos in-
dígenas que vivem na região do Alto Rio Negro, no estado do Ama-
zonas, e na região de fronteira com a Colômbia. E se concentram em
grande maioria às margens do rio Uaupés. O prólogo do espetáculo
Kedacery consiste no ritual de passagem dos povos: Primeiramente,
ocorre o ritual com o menino em sua fase jovem. Nesse ritual surge
o velho pajé e o apresenta aos quatro bastões-caniços, o pajé oferece
um rolo de pimenta para que o jovem possa aspirar o cheiro e passar
na superfície facial. Ele faz o “benzimento” dos bastões com a pimen-
ta e começa a bater no jovem, chicoteá-lo dos pés à cabeça para que
o protótipo infantil desvaneça e dê lugar ao espírito adulto. Depois
do ritual de passagem o Kedacery já pode ser considerado homem,
então escolhe uma esposa.
O benzimento ou a invocação serve para o futuro pajé ter o
dom da sabedoria e aprender a invocar os Deuses. Após o benzimen-
to se invoca um ser mítico conhecido como Biciu, pai da Floresta, o
maior ser capaz de engolir todos os seres humanos, e junto com ele
os espíritos do Miniá (três tipos de pássaros que o acompanham: o
Pássaro Verde Picu-picu que avisa sobre possíveis existências de hu-
manos na região; o Pássaro do Lago que traz as cordas da sabedoria
nas cores verde, preto, vermelho. E o Pássaro Arcaroti cujo som causa
uma espécie de embriaguez (capaz de deixar o indígena candidato a
pajé tonto). O mítico Biciu puxa a alma do indígena com seus braços
e dedos em formato de “bastão de ritmo”. O Biciu porta todas as mú-
sicas nativas dali (mawaco, cariçu). Daí, com a devida musicalidade,
ele invoca o espírito da bebida e torna a mente do Kedacery aberta
para receber todos os poderes.
Terminando a invocação, outro pajé leva um cigarro e o kaah-
pi (bebida) para o jovem que vai ser o pajé e sopra nele a “fumaça

- 91 -
mágica” que é o receptar do espírito de Biciu, que finalmente se in-
corpora no jovem Kedacery. Nesse momento Biciu começa a tocar e
fazer benzimentos e o velho pajé compartilha ensinamentos para o
aprendiz não perder o poder. Então eles passam a noite conversan-
do sobre os benzimentos e no intervalo tocam as músicas, e quando
acordam, o candidato a pajé já é considerado literalmente “pajé”. A
mulher do pajé prepara o mingau e o peixe para o pajé e é ela que
passa a cuidar dele pelos próximos anos.
A primeira cena do espetáculo, denominada O tempo, o ce-
nário está envolto a uma fumaça. No palco tem-se totens com gra-
fismos dos Tariana sinalizando as passagens do tempo. Um bailari-
no dança com movimentos que sugerem o nascimento, a infância e
adolescência de Kedacery e cada canto do palco denota o passar do
tempo. Kedacery percorre as linhas de sua infância e adolescência
até estar pronto para ser pajé. A segunda cena do espetáculo intitu-
lada Rito de Passagem, bailarinos simbolizam as varas formando um
corredor. Entra em cena Kedacery e passa por eles, os quais começam
a dança com movimentos que lembram chicotes, em referência ao
rito de passagem do jovem tariana.
A terceira cena nomeada Duo, há o solo de uma bailarina
mostrando toda a sua sensualidade, enquanto Kedacery a observa
toda a movimentação da futura mulher. Em seguida Kedacery se
apresenta com um solo, mostrando toda a sua força de guerreiro.
Durante seu solo ele a hipnotiza e a envolve usando o tipiti (objeto
usado nas brincadeiras e conquistas dos indígenas tariana) e pega
moça, e dançam em um duo até que os corpos se entrelaçarem. A
quarta cena chamada de A invocação, Kedacery dança um solo em
meio a fumaça e a luz azul, surgem os pássaros que dançam numa
coreografia leve, com movimentos rápidos, envolvem Kedacery e
dançam ao redor dele, também se envolvem em um tecido e em se-
guida o envolvem também. Todos dançam envolvidos num clima de
mistério e fantasia. Em seguida entra Biciu e dança com movimentos
fortes, pesados, e nesse momento Kedacery dança com movimentos
de animais, Biciu o envolve para assim passar toda a sua sabedoria e
encantamento ao futuro pajé.
A quinta cena designa a passagem da sabedoria para o novo
pajé, entra a ritual um intérprete representando o pajé velho que
dança em redor de Kedacery e em gestos lhe oferece uma bebida. Em

- 92 -
seguida, o jovem dança com movimentos cambaleantes, sinuosos, e
depois sobe no tecido, momento solo de Kedacery em que demonstra
o momento de êxtase sob o poder de Biciu. Nas duas cenas seguin-
tes nominadas, respectivamente, Os rituais de Pajelança e Dabacuri,
entram em cena dois bailarinos representando os outros dois pajés
(onça e pajé sacaca) e dançam. Depois Kedacery faz o ritual da paje-
lança e, nesse momento, ouve-se a voz do verdadeiro pajé Sr. Keda-
cery (gravação de voz). Surge um canto de chamado para o dabucuri
(voz da esposa do verdadeiro Kedacery), os bailarinos entram em
cena com bastões de ritmo e convidam o público para a grande festa
em homenagem ao grande Pajé Kedacery.

Desenvolvimento

Após coletar e ouvir as interpretações dos alunos, foi feito


uma análise semiótica seguindo a tricotomia (Representamen, Obje-
to e Interpretante), de Charles Sanders Peirce dos alunos J.L. e A.B.,
em relação a cena do espetáculo Kedacery da UATÊ cia de dança da
Região Norte. Através desse procedimento de análise de dados elen-
camos alguns tópicos principais para discussão e elaboração desta
análise, sendo eles: Elementos cênicos, Sonoridade e Gestos e movi-
mentos.

Concepção triádica de Peirce:


Objeto: O ritual indígena, assunto principal da cena.
Representamen: O próprio espetáculo (Que é a obra artística
que está representando o ritual indígena).
Interpretante: Tudo que o espectador compreendeu sobre o
ritual indígena na sua profundidade.

Análise dos Elementos cênicos:

Aluna J.L.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, ou seja, o espetá-
culo em si em geral, verificamos em primeiridade, no quali-signo,
que a aluna identificou as cores da iluminação e das roupas, que na
sua percepção eram cores fortes e claras, como o azul marinho, pre-

- 93 -
to, marrom e verde; em secundidade; o sin-signo é definido que seja
algo indígena pelos objetos, identificando a cuia; e em terceiridade; o
legi-signo define que realmente a cuia, percebida no sin signo, leva ao
legi signo de que se trata de um ambiente indígena.
Nessa junção das cores das roupas do cenário, da iluminação,
e dos objetos indígenas usados na cena, pode-se concluir que a aluna
percebeu o(s) representamen(s) da cena, ou seja informações que a
levaram a perceber que se tratava de um ambiente indígena.

Aluno A.B.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, verificamos em
primeiridade, no quali-signo, o aluno identificou a cor verde da ilu-
minação; o sin-signo é definido que seja algo indígena pelos objetos
centrais, tais como um pote de barro, um vaso que carrega algo que
se assemelha a um cachimbo; e em terceiridade; o legi-signo define
que os objetos estão relacionados a um ambiente indígena.
Para entender melhor sobre a função do representamen, faz
se entender que é aquilo que funciona como representante do signo
para quem o percebe. A 1ª. tricotomia mostra o processo de iden-
tificação desse representamen, das cores e formas até a definição
concreta do mesmo. Relacionando isso as interpretações dos alunos,
vimos que eles conseguem perceber essas representações do objeto
da cena.
Vale ressaltar que segundo Peirce (2005, p.52), O Qualissigno
é a qualidade do signo; o Sinsigno é formado por vários qualissignos,
mas de um tipo particular que só constituem um signo quando se
corporificam; já o Legissigno geralmente é estabelecido pelo homem
e que todo o signo é um legissigno, e possui um caráter de lei, esse
signo descreve inúmeros objetos, de ordem generalizada, sobre o
que e como ele representa.

[...]Um Qualissigno é uma qualidade que é um Signo. Não pode


realmente atuar como signo até que se corporifique; mas esta corpo-
rificação nada tem a ver com seu caráter como signo. Um Sinsigno
(onde a silaba sin é considerada em seu significado de “uma única
vez’”, como em singular, simples, no Latim semel, etc. é uma coisa
ou evento existente e real que é um signo. E só o pode ser através
de suas qualidades, de tal modo que envolve um qualissigno ou,
melhor, vários qualissignos. Mas estes qualissignos são de um tipo

- 94 -
particular e só constituem um signo quando realmente se corporifi-
cam. Um Legissigno é uma lei que é um signo. Normalmente, esta
lei é es estabelecida pelos homens. Todo signo convencional é um
legissigno (porém a reciproca não é verdadeira). Não é um objeto
singular, porém um tipo geral que tem-se concordado, será signifi-
cante. Todo legissigno significa através de um caso de sua aplica-
ção, que pode ser denominada Réplica. [...] (PEIRCE, 1977, p. 52).

Aluna J.S.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, ou seja, ao assunto da obra
artística, do que ela se trata, em primeiridade, identifico que o ícone
em relação ao elemento cênico não há um objeto icônico que tenha
uma relação direta com o ritual indígena; em secundidade, o índice é
o objeto cênico, a cuia, mesmo tendo outros objetos na cena, a aluna
deu ênfase a esse objeto usado na cena do espetáculo, que dá uma re-
lação direta ao objeto, exemplo, na hora que ele usa a cuia para dar a
bebida aos índios (onde já entra o gestual); em terceiridade, o objeto
cênico também podem ser o símbolo, pois eles têm uma associação
direta e de lei com o assunto da obra que definem a ideia de se tratar
de um ritual indígena.

Aluno A.B.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, em primeiridade, identifico
que o ícone em relação ao elemento cênico não há um objeto icônico
que tenha uma relação direta com o ritual indígena; em secundida-
de, o índice é tudo que indica esse objeto cênico, objetos centrais, tais
como pote, cuia, vaso, peneira, o aluno não consegue dizer quais,
mas visualmente sabe que o objeto é característico do cotidiano dos
povos indígenas; em terceiridade, o objeto cênico também podem
ser o símbolo, pois eles têm uma associação direta que definem uma
ideia, a “lei” desta ideia, por exemplo, uma roupa de penas e palhas
revestindo o corpo dos atores e os utensílios manipulados.
O objeto traz o signo de uma forma abstrata, não é o signo
propriamente dito, mas ele se assemelha ao signo, podendo ser uma
imagem, palavra ou som. Dando um exemplo através das interpre-
tações dos alunos, é a forma como eles relacionam os objetos, ilumi-
nação e figurinos àquilo que o espetáculo está propondo enquanto
obra, então através desses elementos cênicos conseguem identificar
que se trata de um ritual indígena.

- 95 -
Aluna J.S.
Por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante, ou
seja, àquilo que se compreendeu, interpretou, a partir dos elementos
cênicos. Em primeiridade, a rema vem como a primeira hipótese,
primeira interpretação, quase que instintiva. De início as cores, rou-
pas e objetos trouxeram uma compreensão de que se travava de algo
da natureza e indígena, mas ainda sem um contexto; em secundida-
de, o discente afirma que as cores e o objeto cênico definem se tratar
de um ritual indígena; em terceiridade, o argumento é algo pessoal, é
a complexidade racional do signo. E sobre os objetos cênicos a aluna
diz:
“[...] As cores das roupas, chamavam mais atenção, as cores do fun-
do, eram umas cores fortes, tipo umas cores claras, isso me chamou
mais atenção. Foi que atrás era tipo que meio azul marinho com
algumas partes pretas, um marrom bem escuro mesmo, outras par-
tes eram as que estavam nas roupas, era um verde. Deixa dar um
exemplo, um verde bem claro e o preto, um preto bem forte e havia
uma outra cor, mas só que eu me esqueci qual era que me chamam
bastante atenção também. [...]. “Eu acho que era uma origem deles,
uma origem indígena, acho que era isso, pelo o que eu vi assim, do
modo que ele deu a bebida na cuia”.

Aluno A.B.
Por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante. Em
primeiridade, a rema vem como primeira hipótese. De início a ilu-
minação, roupas e objetos trouxeram uma compreensão, mas ainda
sem um contexto, quando ele diz que a cor verde da iluminação lhe
traz em mente uma floresta. Podemos afirmar, portanto, que em ter-
mos iniciais, o aluno percebeu o ambiente indígena e que a cena se
trataria de algo neste contexto, apesar de serem percepções apenas
iniciais; em secundidade, o discente observa que as cores e os objetos
cênicos afirmam se tratar de um lugar que não seja uma cidade e que
realmente está ligado a algo indígena; em terceiridade, o argumento
é algo pessoal, é a complexidade racional do signo e sobre os objetos
cênicos o aluno diz:

“Acho que foi o ‘verdizinho’ que se encontra no fundo, tipo ‘umas


luzinha’ eu acho que, como se estivesse em uma floresta”.
“As vestimentas são bem típicas aos dos indígenas, foi a primeira
coisa que eu percebi, os objetos que estavam no local [...] que de-
ram para perceber que era um ritual”.

- 96 -
Essa tricotomia é o foco desta pesquisa, onde se vê a capaci-
dade de interpretação do signo, onde o sujeito começa a ter sua a
relação íntima com o signo, é onde suas experiências com o signo faz
com que cada um tenha uma ideia e percepção diferente relaciona-
do ao mesmo signo. Deste modo, vemos que os alunos conseguiram
identificar através do cenário, iluminação, junto com os figurinos e
os objetos usados em cenas, que o vídeo contento a cena do espetá-
culo Kedacery se tratava de um ritual com origens indígenas.

Análise da Sonoridade
Aluna J.S.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, que seria tudo
aquilo no campo da audição (neste caso) que representa a obra ar-
tística em si, em primeiridade, do quali-signo a aluna identificou o
som, levando a uma sensação de estar em um lugar leve, suave, em
estado de paz e tranquilidade, sem concreta existência em relação ao
espetáculo; em secundidade; o sin-signo é definido que o som traz
melodias que não fazem parte do contexto na qual a aluna reconhe-
cesse que se tratava do espetáculo; e o legi-signo analiso que não há
uma relação direta e de lei com o ritual indígena.
Aluno A.B.
Em relação a 1ª tricotomia representamen, em primeiridade,
do quali-signo o aluno identificou que o som se remetia a algo que
não é na cidade, mas que era sobre indígena; em secundidade o sin-
-signo é definido que o som traz melodias que fazem parte do contex-
to na qual o aluno identificou sobre o espetáculo (ou seja, ambiente
indígena); e o legi-signo analiso que não há uma relação direta e de
lei com o ritual indígena.
Conseguimos identificar que tivemos definições adversas re-
lacionadas a música: para um levou a um estado de sensações que
não se referia ao contexto do espetáculo, e o outro aluno já conse-
guiu relacionar a música a algo indígena.

Aluna J.S.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, tudo que a sonoridade pode
levar a uma relação com o assunto da obra, em primeiridade, identi-

- 97 -
fico que icônica, indicial e simbolicamente não há relação ao assunto
da obra, ao ritual indígena, o que também foi constatada na resposta
da aluna que a sonoridade não faz relação ao ritual indígena.
De acordo com Peirce (2005, p. 52-53), podemos dizer que
o ícone possui sim um caráter significativo independentemente da
existência ou não do seu objeto, já o índice pode ser pensado como
um signo que carrega em si características que dar referência ao ob-
jeto real, o índice não é o objeto em si, porem pode revelar através de
outras conexões o real objeto, em relação ao símbolo podemos pon-
tua-lo na qual a sua qualidade é a generalidade da lei, regra hábito ou
convenção que lhe é de direito.

[...]Um ícone e um signo que se refere ao Objeto que denota apenas


em virtude de seus caracteres próprios caracteres que ele igualmen-
te possui quer um tal Objeto realmente exista ou não. [...] Um Índi-
ce é um signo que se refere ao Objeto que denota em virtude de ser
realmente afetado por esse Objeto. [...] Um Símbolo é um signo que
se refere ao Objeto que denota em virtude de uma lei, normalmente
uma associação de ideias gerais que opera no sentido de fazer com
que o Símbolo seja interpretado como se referindo àquele Objeto.
[...] (PEIRCE, 2005, p. 52-53).

Aluno A.B.
Em relação a 2ª tricotomia objeto, tudo que a sonoridade pode
levar a uma relação com o assunto da obra, em primeiridade, identi-
fico que icônica, indicial e simbolicamente não há relação ao assunto
da obra, ao ritual indígena, o que também foi constatada na resposta
do aluno que a sonoridade não faz relação ao ritual indígena.
Pensando em objeto, os alunos tiveram interpretações dife-
rentes em relação a suas percepções em contato com o som, com a
música, suas definições não foram condizentes ao assunto da obra.

Aluna J.S.
Por último, a 3ª tricotomia interpretante, em primeiridade,
a rema vem como a primeira hipótese sobre o assunto da obra. A
música instrumental trouxe uma percepção estranha, mas ainda
sem um contexto; em secundidade, o discente mostra que as músicas
usadas no espetáculo trazem um estado de paz e tranquilidade; em
terceiridade, o argumento é algo pessoal, é a complexidade racional
do signo e sobre a passagem sonora. A aluna diz:
- 98 -
“[...]. A música era leve, suave, parecia que a gente estava em lugar
um tranquilo, um lugar cheio de paz, harmonia, alegria, eu me senti
assim com a música, bem suave, me fazia relaxar sobre a vida, era
isso”.

Percebe-se no relato da aluna que a relação com o argumen-


to não foi estabelecida no que diz respeito a sonoridade. A aluna
expressa sentir algo tranquilo, mas não caracteriza a música a um
ambiente indígena e nem ao ritual. Chama-se atenção aqui para
alguns procedimentos interpretativos que podem acontecer com
qualquer indivíduo que as camadas semióticas percebidas nem
sempre acontecem em sua totalidade, exemplificando assim uma
compreensão limitada de um determinado objeto artístico.

Aluno A.B.
Por último, a 3ª tricotomia interpretante, em primeiridade, a
rema vem como a primeira hipótese. A música instrumental trouxe
uma percepção estranha mas sem um contexto também, assim como
J.S.; em secundidade, o discente mostra que as músicas usadas no
espetáculo trazem um sentimento de felicidade; em terceiridade, o
argumento é algo pessoal, é a complexidade racional do signo e sobre
a passagem sonora o aluno diz:

. “Sobre música, acho que ajudou um pouco a perceber que era um


local que não fosse na cidade e que era sobre indígenas”.
“Sentimento acho que não, eu achei ‘legalzinha’, talvez um pouco
de felicidade”.

Portanto os alunos tiveram interpretações que se aproximam,


pensado que para J.S. as sensações de leveza e suavidade e o estado
de paz e tranquilidade, traz uma certa natureza e podemos conside-
rar que esses sentimentos e sensações entram na ideia contextual do
espetáculo, assim como o sentimento de felicidades fez com que A.B.
tivesse a percepção de que a música, o som “era sobre indígenas”.

- 99 -
Análise dos Gestos e movimentos:

Aluna J.S.
Analisando a interpretação da aluna espectadora, a 1ª trico-
tomia em relação ao representamen, ou seja, todos aqueles gestos
que representam o assunto da obra em si. Temos em primeiridade,
o quali-signo, as formas, que segundo a aluna diz que alguns movi-
mentos eram expressivos e outros leves e corpo parado; em secundi-
dade o sin-signo é concretizado que se trata de algo indígena através
dos movimentos na qual se deslocavam, movimentos de animais e
outros com movimentos contínuo; e em terceiridade, o legi-signo
define que está relacionado a um ritual e a vida indígena.

Aluno A.B.
Analisando a interpretação do aluno espectador, a 1ª tricoto-
mia em relação ao representamen. Temos em primeiridade, o quali-
-signo, as formas, que segundo o aluno diz que destacam-se nos mo-
vimentos expressivos, deslocamento e giratórios; em secundidade o
sin-signo é identificado os movimentos na qual o índio conduz a cuia
até o outro índio, os movimentos de animais de quatro patas e mo-
vimentações do corpo girando; e em terceiridade, o legi-signo define
que está relacionado a um ritual e a vida indígena.
Como diz Lucia Santaella “Precisamos dar aos signos o tempo
que eles precisam para se mostrarem” (2002). Qualquer coisa nes-
se mundo perceptivo ao nosso olhar pode ser um signo e essas três
propriedades formam a identificação de um signo. O nosso cérebro
é capaz de identificar isso em milésimos de segundos e a tricoto-
mia como um todo mostra esse processo de reconhecimento. Neste
caso do representamen, os alunos conseguiram identificar os gestos
e movimentos o que o autor estava propondo em sua obra, desde as
linhas e formas do quali-signo, os aspectos que individualizam no
sin-signo (identificando do que se tratavam tais formas) e as aplica-
ções de perspectivas no legi-signo.

Aluna J.S.
A 2ª tricotomia em relação ao objeto, ou seja, tudo que os ges-
tos e movimentos podem provocar de relação direta com o assunto

- 100 -
da obra: em primeiridade, relacionado ao ícone a aluna se referiu
indiretamente a expressão dos movimentos dizendo que represen-
tava um ritual; em secundidade, deu referência ao índice, disse que
esses movimentos e gestos fortes usados pelos bailarinos na cena do
espetáculo fizeram com que ela identificasse que eram movimentos
indígenas; em terceiridade, esses gestos e movimentos fortes e ex-
pressivos colocados pela aluna também foram utilizados para identi-
ficar os símbolos de danças indígenas.

Aluno A.B.
A 2ª tricotomia em relação ao objeto: em primeiridade, rela-
cionado ao ícone o aluno se referiu a expressão dos movimentos que
eram movimentos de característicos a de animais e movimentos gi-
ratórios; em secundidade, deu referência ao índice, dizendo que esses
gestos giratórios e as expressões de animais usados pelos bailarinos
na cena do espetáculo fizeram com que ele identificasse que eram
movimentos indígenas; em terceiridade, esses gestos e movimentos
giratórios, expressando animais colocados pelo aluno também fo-
ram utilizados para identificar os símbolos.
Vimos que ficou bem evidente as semelhanças das interpre-
tações desses movimentos e gestos, que a cena onde os índios estão
expressando efeito da erva, os faz realizar movimentos estranhos.
Dois interpretes, um faz movimentos giratórios ao beber o líquido
e o outro se comporta como animal andando em quatro patas, esses
movimentos chamaram a atenção dos alunos, fazendo com que eles
tivessem o foco total a esses movimentos, de onde tiraram suas con-
clusões de que se tratava de um ritual indígena.

Aluna J.S.
E por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante, ou
seja, toda a interpretação dada pelos gestos e movimentos que gira
em torno da compreensão da obra como um todo, em primeiridade,
a rema, a aluna disse que esses movimentos trazem uma percepção
indígena pela qualidade dos movimentos e formas pelas quais se mo-
vem; em secundidade, sobre o discente disse que os movimentos e os
gestos afirmaram se tratar de um ritual indígena; em terceiridade, o
argumento, sua interpretação foi:

- 101 -
“[...], um índio começa a fazer uma dança esquisita e o outro ele
começa a se transformar em bicho se arrastando pelo chão, [...]. “Os
gestos já foram um pouco diferentes. Os gestos que eles faziam não
repetiam junto com a música, a música era suave e tranquila, já os
gestos eram bem diferentes, não combinavam era como se houvesse
briga, raiva”.

Segundo Peirce (2005, p 53), com relação a terceira tricotomia


interpretante o rema traz como representação do seu objeto as suas
características, sem uma compreensão concreto sobre o objeto, já o
discente traz a existência real do objeto, a compreensão de sua exis-
tência, e por fim o argumento traz a interpretação e significado de
modo pessoal sobre o objeto.

[...]Um rema é um signo que é entendido como representando seu


objeto apenas em seus caracteres; que um dicissigno é um signo
que é entendido como representando seu objeto com respeito à exis-
tência real; e que um argumenta é um signo que é entendido coma
representando seu objeto em seu caráter de signo. [...] (2005, p 53).

Aluno A.B.
E por último, a 3ª tricotomia, com relação ao interpretante,
em primeiridade, a rema, o aluno disse que esses movimentos tra-
zem uma percepção indígena pela qualidade de movimento e formas
pelas quais se movem; em secundidade, sobre o discente disse que os
movimentos e os gestos usados pelos intérpretes afirmaram se tratar
de um ritual indígena; em terceiridade, o argumento, sua interpreta-
ção foi:

“[...], a movimentação é muito parecida com a de animais, pois um


dos índios fica andando igual um animal de quatro patas, enquanto
o outro apenas fica girando após ingerir o líquido[...]”.
“[...] um pouco dos movimentos deles que deram para perceber que
era um ritual”.
“Achei bem interessante, ainda mais na parte que parece que eles
incorporam algum espirito, e ficam agindo de modo como se fosse
animais”.

Sendo assim, os alunos J.S. e A.B. através dos gestos e movi-


mentos conseguiram identificar o que estava sendo proposto na cena
do espetáculo. De um modo geral, para eles as cores relacionadas ao

- 102 -
cenário e as roupas, os gestos e movimentos dos bailarinos, e os ob-
jetos usados em cena lhe chamaram muita a atenção e contribuíram
para que eles chegassem à conclusão que se tratava de um ritual de
origem indígena.
Devemos levar em consideração que foi apenas uma cena do
espetáculo disponibilizados aos alunos que fizeram parte desta pes-
quisa, que talvez a disponibilidade do espetáculo em sua totalida-
de faria os alunos terem um entendimento maior, porém tornaria a
pesquisa cansativa a eles, levando em consideração que precisamos
trabalhar com uma metodologia mais lúdica com esse tipo de públi-
co adolescentes.

Conclusão

Sobre tudo, o foco da pesquisa foi a análise semiótica peircia-


na, levando em conta a percepção da interpretação do aluno espec-
tador e relacionando-a com a proposta apresentada pelo coreógrafo.
Diante disso, buscou-se compreender a interpretação de cada aluno
espectador, considerando a conclusão analítica e se cada coreógrafo
(a) e/ou bailarino (a) conseguiu fazer com que o expectador reco-
nhecesse o que estava sendo proposto por eles em sua obra.
Teve como objetivo geral analisar as interpretações dos alunos
através da semiótica peirceana uma cena do espetáculo Kedacery,
da UATÊ Companhia de Dança da Região Norte. E seus objetivos
específicos foram: relacionar as interpretações dos alunos especta-
dores frente a cena do espetáculo Kedacery à ideia repassada pelo
coreógrafo durante a apresentação; identificar se a obra pode ou não
revelar a tricotomia Peirceana; verificar se a interpretação dos alunos
espectadores estão sendo de acordo tal como o coreógrafo quis pro-
por ao seu público.
Diante disso os alunos espectadores conseguiram identificar o
contexto histórico da cena do espetáculo Kedacery. Todos os objetos
de análise foram identificados em suas falas, tais como os objetos
cênicos, iluminação, cenário, sonoridade, gestos e movimentos usa-
dos na cena. De modo sucinto, os alunos espectadores conseguiram
identificar o contexto histórico da cena do espetáculo, alcançando
assim a proposta que o autor estava expondo em sua obra.

- 103 -
Através da obra conseguimos identificar que a mesma pode
sim nos revelar a tricotomia peirceana. Nas análises é nítido identi-
ficar a primeiridade, secundidade e terceiridade de cada tricotomia
em relação ao espetáculo. Em relação a interpretação está de acordo
tal como o coreógrafo quis propor ao seu público, entretanto vimos
a diferença das interpretações, o que é comum acontecer. Isso depen-
de da experiência de cada pessoa em relação a vivência com a arte
e/ou com o signo (ritual indígena e cena contemporânea) que ela
tem contato. Sabemos que é impossível termos interpretações iguais,
podemos ter interpretações e pensamentos parecidos, mas nunca
iguais, a experiência pessoal é a chave principal para ter um resul-
tado significativo sobre as interpretações. Deste modo foi assinalado
que as interpretações dos alunos espectadores foram alcançadas tal
como o coreógrafo estava propondo em sua obra, mas de maneira
sucinta e objetiva.
Trabalhar com a semiótica foi algo desafiador, porém muito
satisfatório. Ver cada análise, saber como cada signo se constitui na
mente, de como o nosso cérebro é capaz de reconhecer e interpretar
um signo. Enquanto pesquisador tive todas as minhas dúvidas e an-
seios totalmente supridos, tive uma realização e satisfação enorme
de trabalhar com essa pesquisa, venho amadurecendo essa ideia des-
de do momentos que tive contato com a Semiótica no quinto perío-
do do curso de Licenciatura em Dança, e foi enaltecedor conhecer a
semiótica, principalmente a parte interpretativa, saber a capacidade
das pessoas de interpretar um signo e que cada signo identificado
tem uma representatividade de acordo com cada pessoa. Isso tudo
foi alcançado nessa pesquisa, visto as diferenças nas interpretações
e experiências de cada aluno, poucos deles com facilidades, pois ti-
veram a oportunidade mesmo sendo mínima de ter um contato no
passado com algo que se remeta as artes, de modo geral, ou ao co-
tidiano indígena, suas crenças, ritos e danças, e a maioria com ne-
nhuma oportunidade ou experiência com a arte ou de conhecer os
costumes dos povos indígenas.
Aproveito para expor a importância do ensino das artes den-
tro do âmbito escolar, o quanto é importante proporcionar essas ex-
periências para os alunos, fazendo com que eles se tornem pessoas
mais críticas e capazes de sentir a experiência de ter as artes em suas
vidas. Quando falo artes é de modo geral, dança, música, teatro, ar-

- 104 -
tes visuais, não só a arte, mas a cultura do nosso país, a cultura do
nosso povo, das nossas raízes que cada vez mais perde seu espaço e
memória dentro da sociedade. Portanto, finalizo esta pesquisa com
êxito, tendo todas as minhas expectativas e resultados alcançados de
maneira satisfatória. Como um bom pesquisador, esse trabalho de
pesquisa terá continuidade, mas de uma outra forma e com outro
objetivo, porém com o mesmo pensamento teórico.

Referências:

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Net-


to. São Paulo: Perspectiva, 1977.
______. Semiótica e filosofia. Trad. Octanni Silveira da Mota e Leôni-
das Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1987.

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- 106 -
JUVENTUDES UNIVERSITÁRIAS E SAÚDE
MENTAL: REFLEXÕES A PARTIR DE
ATENDIMENTOS PSICOLÓGICOS NO
PROJETO ESPAÇO DE ATENDIMENTO
PSICOSSOCIAL (EPSICO)

André Luiz Machado das Neves


Erica Vidal Rotondano
Érika da Silva Ramos
Gizelly de Carvalho Martins
Munique Therense Costa de Moraes
Socorro de Fátima Moraes Nina

RESUMO
Em um mundo em que cada vez mais a competitividade, a corrida contra o
tempo e a produtividade são eleitos como valores que devem pautar proje-
tos de vida é comum encontrarmos jovens apreensivos e esgotados em vários
ambientes, entre eles o universitário. Acerca disso, este estudo surgiu a partir
da vivência das autoras e autor enquanto docentes universitários e responsá-
veis por atendimentos psicológicos junto ao projeto de extensão Espaço de
Atendimento Psicossocial (EPSICO) da Universidade do Estado do Amazonas
(UEA), que atende a comunidade discente da instituição por meio de acompa-
nhamento psicoterápico. No amálgama das demandas apresentadas pelas(os)
acadêmicas(o) do serviço, muitas estão associadas diretamente ao sofrimento
psíquico causado pelas experiências oriundas de um espaço universitário que
reproduz a lógica de uma sociedade que valoriza a produção, a competitividade
e o sucesso.

PALAVRAS-CHAVE: universidade, saúde mental, juventude.

Conhecendo o EPSICO

Este capítulo tem como proposta refletir sobre um conjunto


de demandas que surgem nos atendimentos psicoterápicos desen-
volvidos junto ao projeto EPSICO da UEA. Para isso, privilegiamos
um recorte temático sobre juventudes universitárias, projeto de vida
e saúde mental, considerando que muitos dos casos atendidos se ar-
ticulam com esses elementos.

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Ao longo do processo de criação e consolidação do EPSICO,
pudemos identificar que a categoria juventude não é constituída por
um grupo social homogêneo, mas emerge a partir de um processo
de construção de identidades e valores no contexto social e histórico,
conforme já argumentado por Boghossian e Minayo (2009).
Trancoso e Olivera (2014) observam que o termo juventu-
de traz em si uma complexidade implícita das significações que se
transformam à medida que a realidade muda, não sendo possível,
por isso, conceituá-la de forma unívoca, sobretudo pelos múltiplos
sentidos que adquire atualmente. Muito mais que uma fase da vida
demarcada por uma idade cronológica média de uma população que
vive o ápice de seu processo de socialização e se prepara para partici-
par ativamente do sistema de produção e reprodução da vida social,
como destaca Abramo (2005), o termo passou a se referir também
a um ideal a ser alcançado e conservado independentemente da ida-
de cronológica (KAFROUNI, 2009).
Além disso, à juventude, na atualidade, passaram a ser atribuí-
das características relacionadas ao protagonismo e resistência.
Ainda sobre o fato de que é difícil definir juventude, Sposito
(2002), nos adverte de que é uma noção socialmente variável: muda
ao longo do tempo entre sociedades e dentro dos grupos de uma
mesma sociedade.
Soma-se a esse cenário, a grande importância que a categoria
alçou nas últimas décadas junto a ações do Estado Brasileiro, que a
partir de 2005 tornou a juventude mais visível no campo da política
pública, criando o Conselho Nacional da Juventude (CNJ) com o
intuito de promover políticas públicas para este público, alavancar
estudos e pesquisas acerca da realidade socioeconômica juvenil e o
intercâmbio entre organizações nacionais e internacionais (Lei n.
11.129, 2005, p. 1-2), o que denota que no campo político ela passou
a ser vista como possuindo importância estratégica para ao país.
Diante de um conceito tão complexo, sinalizamos que neste
artigo consideramos juventude não a partir de marcadores tão so-
mente biológicos ou cronológicos, que partem de uma ideia de na-
tureza humana única e universal. Defendemos aqui uma concepção
ancorada na cultura, o que nos permite pensar em “juventudes”
como construções histórias e culturais com diferentes significações
sociais, como defende Dantas (2007).

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Mais propriamente no campo da psicologia, partimos da pers-
pectiva histórico-cultural de periodização do desenvolvimento psí-
quico, desenvolvida por autores como Vigotski e Leontiev. Tal teoria
nos permite superar os limites impostos por concepções universali-
zantes e a-históricos, pois considera que é partir de um conjunto de
relações com os outros e em condições concretas de vida que ocorre
o processo de desenvolvimento. Etapas da vida surgem em determi-
nados momentos históricos e culturas a partir de transformações so-
ciais e da emergência de novas necessidades humanas. Sobre tais eta-
pas recairão uma série de exigências e desafios e na relação dialético
do indivíduo com o social poderão ou não ser construídas condições
que permitam a realização do pleno potencial de desenvolvimento
(ABRANTES; BULHÕES, 2016).
No trabalho junto ao EPSICO, temos contato direto com a ju-
ventude que ao adentrar no espaço da universidade é confrontada
com novas exigências, como a de planejamento e autonomia, resolu-
ção de problemas, processo de criação e constituição de identidade
profissional, o que acaba por impactar diretamente no projeto de vida.
Tal projeto é aqui entendido como uma necessidade humana de satis-
fação pessoal e de participação ativa da sociedade, no aspecto de trans-
formá-la. Reconhecer-se como uma pessoa capaz de contribuir com
causas que escapam o interesse individual e, ao mesmo tempo, tragam
sentido e satisfação à vida pessoal, significa que a fusão entre projeto
individual e coletivo foi levada a cabo (KLEIN; ARANTES, 2016).
Cabe aqui ressaltarmos que a UEA, instituição na qual se en-
contra vinculado o EPSICO tem como missão promover a educação,
desenvolver conhecimento científico relacionado à pessoa humana e
ao meio ambiente amazônicos, integrar a pessoa à sociedade e apri-
morar a qualidade dos recursos humanos existentes na região, com
base em valores como a Democracia, Educação, Comprometimento
Social, Cidadania, Pluralidade e Integração, o que está em consonân-
cia com a ideia de projeto de vida aqui exposta.
Sabemos, no entanto, que o contexto do mundo trabalho e da
vida universitária, no âmbito de um sistema capitalista, impõe uma série
de entraves à construção de um projeto de vida na acepção aqui adota-
da, tendo em vista a promoção de um individualismo exacerbado.
Na sociedade atual, preparar-se para exercer uma profissão
envolve múltiplos determinantes e apresenta exigências e desafios

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que podem tornar jovens mais vulneráveis ao sofrimento psíquico.
Em um estudo sobre as motivações da procura pelo serviço de saúde
mental em universidades, observou-se que a busca por atendimento
se deu pelo fato de jovens se sentirem paralisados diante de exigên-
cias acadêmicas que não conseguem realizar ou por descrença em
relação à possibilidade de um futuro profissional. A falta de esperan-
ça e a impossibilidade de se ver como adulto de sucesso e produtivo
pode levar o jovem a adiar a saída da universidade, evitando uma
conclusão, o que pode instaurar uma crise subjetiva (MALAJOVI-
CH et al., 2017).
Estudos como o de Graner (2017) têm evidenciado que tanto
o início quanto a etapa final da formação universitária tendem a ser
mais estressantes: a entrada no contexto da universidade traz consigo
complexas mudanças a serem administradas na vida pessoal/social e
universitária (como novos métodos de estudo e extensa grade curri-
cular). Nos últimos anos de graduação, dúvidas em relação ao mer-
cado de trabalho, angústias relativas à antecipação do desemprego
(NEIVA, 1996), por exemplo, tendem a aumentar o nível de estresse,
que pode “passar despercebido” pelos indivíduos ou ser considerado
“normal”; porém, quando elevado pode constituir-se em sofrimento
psíquico intenso.
Aliado a isso, não podemos esquecer diversos outros fatores,
que podem contribuir para um quadro de maior vulnerabilidade.
Sem querer esgotar a questão, basta citar, por exemplo, duras rea-
lidades econômicas, que aumentam a expectativa e a cobrança em
torno de sucesso acadêmico e profissional; vivencia da experiência
de morar, pela primeira vez, longe da família de origem; dúvidas
em relação à escolha profissional; dificuldade no estabelecimento
de amizades; discriminação em relação a cor, classe social e gênero,
dentre outros; competitividade e cobranças exageradas em relação
ao próprio rendimento.
Diante do exposto, o EPSICO tem o objetivo de proporcionar
um espaço de acolhimento e escuta nos quais estudantes possam fa-
lar a respeito de seus incômodos e ressignificar dificuldades no cam-
po socioafetivo e cognitivo, repensando, ainda, seus projetos de vida.
A iniciativa de criação do projeto deu-se a partir de questões parti-
lhadas entre nós, um conjunto de docentes (também profissionais da
área de psicologia) da instituição, uma vez que era comum o fato de

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sermos procuradas (os) por acadêmicos de vários cursos, em busca
de resolução de problemas (NEVES et al., 2019).
Uma vez que a resiliência não é um potencial inato e nem
constante ao longo de nossa vida, e que a universidade se constitui
em um espaço significativo, não apenas do ponto de vista da partilha
e construção do conhecimento científico, faz-se importante cons-
truir redes de proteção que possam fortalecer as pessoas, diante das
dificuldades cotidianas.

Contexto da experiência: O EPSICO

Tendo em vista que a procura informal por suporte psicológi-


co passou a ser mais constante com o passar dos anos, e ainda que tal
constatação tenha sido referendada pela Coordenação de Assuntos
Comunitários (CAC), da UEA, a qual catalisou essas demandas para
a Escola Superior de Saúde (ESA), percebemos enquanto profissio-
nais da área que era chegado o momento de criar oficialmente um
serviço qualificado para atendimento da necessidade exposta, por
isso a criação de um projeto em caráter de extensão que pudesse be-
neficiar discentes de diversas áreas.
Ressaltamos que o EPSICO, em seu primeiro momento, foi
atuante nos anos de fevereiro de 2018 a fevereiro de 2020, através do
número de processo 2016/00033272 e portaria 111/2018 da UEA, e
que sua desenvoltura foi satisfatória tanto qualitativa quanto quan-
titativamente, além de alguns de seus resultados terem sido devida-
mente apresentados em eventos científicos (NEVES et al., 2019).
Na primeira 4 psicólogos estavam envolvidos e tivemos 300
alunos de graduação assistidos, totalizando o número médio de
1.100 sessões de psicoterapia, cada uma de 50 minutos. Na segunda
versão, o projeto apresentou uma ampliação tanto nas atividades de
psicoterapia individual quanto em grupo, haja vista que dispôs da
contratação de quatro profissionais, o que coadunou com o aumento
da quantidade e assertividade de atendimentos, com vistas a redução
da fila de espera1.
1 Os(as) acadêmicos(as) inscrevem-se como candidatos(as) a atendimento psicoterápico
através de formulário on-line. Os dados das incrições são tabulados e os(as) primeiros(as)
discentes inscritos(as) passam por triagem. A depender do grau de urgência identificado na
triagem inicia-se o tratamento, conforme a disposição das agendas e linhas de atuação da(os)
psicólogas(os). Quando o(a) acadêmico(a) é inserido no quadro de imediato ele passa a com-

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Vale destacar que o EPSICO é o único serviço de referência
de atendimento psicoterápico a estudantes da universidade, e que a
UEA não dispõe de curso de graduação em Psicologia. Todavia, por
ter professoras e professores com formação na área, que atuam em
disciplinas de Psicologia e/ou afins nos diversos cursos da institui-
ção, tanto no nível graduação quanto no de strictu senso, se formou
um colegiado gestor para atuar e realizar as ações do projeto.
A justificativa para a exequibilidade do EPSICO permanece
na intenção de garantir a promoção da saúde mental da comunidade
acadêmica da UEA. Ademais, a partir da pandemia de COVID-19,
observou-se o aumento do sofrimento psíquico junto a mesma, ten-
do em vista o elevado número de óbitos ocorridos no Estado do
Amazonas, seus decorrentes desafios no sistema de saúde (como a
falta de oxigênio), lutos e obviamente as intensas modificações da
rotina acadêmica como um todo.
Entendemos que o cenário de curso e de pós-curso da pande-
mia foi fator catalisador de agravos em saúde mental de estudantes
universitários (MAIA; DIAS, 2020). A literatura aponta a necessi-
dade de se oferecer possibilidades de prevenção de adoecimento e
reparação de quadros desenvolvidos, estimulando a criação de pro-
gramas e projetos que tragam como desfecho o aprimoramento de
competências sociais e emocionais nos(as) estudantes. Sobre isso,
apontamos no tópico seguinte os principais resultados encontrados
pelas profissionais e pelo profissional proponentes quanto à expe-
riência a partir do trinômio “juventudes universitárias-projeto de vi-
da-saúde mental” e é imprescindível esclarecermos que toda discus-
são e reflexão está pautada na ética e providências de sigilo imbuídos
na profissão da Psicologia.

Trinômio: Juventudes universitárias-projeto de vida-saú-


de mental

A partir das escutas psicológicas, encaminhamentos expe-


didos para profissionais de saúde, reuniões grupais para avaliação
do projeto, tabulação e sistematização dos dados centrais referentes
as queixas em comum encontradas, elencamos a tríade “Juventudes
por uma lista de espera que é mensalmente atualizada mediante a agenda dos profissionais e
necessidades dos casos.

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universitárias-projeto de vida-saúde mental”, exposta no quadro se-
guinte como três eixos analíticos que essa experiência relatada nos
permitiu analisar:

Quadro 1: Eixos de análise a partir da experiência do EPSICO.


Exames de avalia-
Incertezas da conclu- Desafios da construção de
ção pós conclusão
são do curso carreira
do curso
Desvalorização social do curso
Certeza da escolha do
escolhido e baixa pretensão Residência multi-
curso em andamento;
salarial (exemplo: as licencia- profissional
turas)
Conciliar trabalho, lazer Mudança de cidade natal para
e estudos; a cidade em que a unidade Residência médica
Conclusão do curso; universitária está situada
Desejos de retorno a cidade
Concursos
natal
Reprovações consecuti- Se adaptar a carreira exigida
vas na mesma disciplina pelo mercado e não a que
e com o mesmo pro- construiu afinidade durante a
fessor; formação Seleções de mes-
Empregabilidade versus em- trado
presabilidade
Fonte: Autoras e autor, 2023.

O primeiro eixo, categorizado como “Incertezas da conclu-


são do curso”, revela que uma das principais questões enfrentadas
pelas(os) estudantes durante a graduação é a dúvida em relação à
eleição do curso em andamento. Constatamos que muitas(os) alunas
(os) questionam se escolheram a carreira certa e se estão no caminho
correto para alcançar seus objetivos profissionais.
Bohoslavsky (1983) discute que a ação de uma pessoa esco-
lher sua carreira envolve concomitantemente expectativas de como
será no amanhã ou seja, pondera-se nesta seleção aspirações como
o status, as condições financeiras, o crescimento intelectual, o pres-
tígio e demais itens de autorrealização atrelados ao fenômeno de ser
alguém, ser um profissional e ter um futuro promissor.
Posterior ao estado de empolgação pela aprovação no curso
superior, as implicações ligadas a um rotina acadêmica aparecem,

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e praticá-las requer recursos internos bem elaborados e comporta-
mentos responsivos, haja vista que as exigências científicas são inten-
sas, pois educar-se e viver em meio a ciência requer aprendizagem
embasada em resolução de problemas, como previsto por Laudan:
“a ciência é essencialmente uma atividade de solução de problemas”
(2011, p.17).
Consequentemente, quando a escolha por uma área acadêmi-
ca é feita de modo impulsivo, alguns enfrentamentos surgem e com
eles muitas vezes as queixas centrais de sensação de incompetência
e/ou de deslocamento dentro do curso escolhido.
Além desse item aqui explorado, consideramos também que
dentro do contexto universitário apresenta-se a desgastante e desa-
fiante tentativa de conciliação entre trabalho, lazer e estudos, espe-
cialmente para aqueles que, oriundos de classes menos privilegiadas,
precisam de um emprego para custear os estudos, pois embora a
universidade seja pública, os materiais solicitados nas aulas, espe-
cialmente em algumas áreas de saúde, são de alto investimento fi-
nanceiro.
Não podemos deixar de frisar, ainda, que em diversos cursos,
dada a especificidade da UEA e do Estado do Amazonas, tem-se a
presença de estudantes indígenas que enfrentam, além das saudades
de casa - pois muitas vezes precisam se deslocar sozinhos do interior
do Estado para capital a fim de estudar - barreiras como a língua e a
carência de domínio de conhecimentos que deveriam ter sido adqui-
ridos ao longo do percurso escolar, o que dificulta a leitura de textos
e compreensão dos diálogos a reflexões entabuladas em classe.
Consubstanciado a isso, temos os amplos casos de jovens es-
tudantes que trabalham em regime de 20h ou 40h, conforme a Con-
solidação das Leis de Trabalho (CLT), ou mesmo estão em empregos
informais/autônomos, em áreas laborais distantes de seus cursos
universitários. O cansaço físico excessivo, o acúmulo de noites mal
dormidas e dificuldades financeiras, aliadas ao obstáculo de encon-
trar tempo para dar conta de leituras e atividades do curso são as
principais queixas identificadas, e estas denunciam um sistema de
classes perverso e desigual no acesso a oportunidades e benefícios
em nossa sociedade, que esgota e desumaniza o estudante trabalha-
dor, e que não raro contribui para converter a individualidade em
individualismo.
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Sobre isso, Silva e Lehfeld (2019) observam que o discurso da
meritocracia:

compreende uma construção ideológica da sociedade capitalista,


com fundamento nas condições de vida da classe burguesa, que
formatam a ideia de que qualquer pessoa pode atingir o topo do
sucesso no mundo do trabalho, se dispor de força física, mental
e suor para alcançar espaços que outros já atingiram. Só que esta
concepção não leva em consideração os níveis acentuados de desi-
gualdade e injustiça social que diferenciam a luta por espaço e o seu
tranquilo acesso, a partir da condição de classe à qual ricos e pobres
se inserem. Relacionar as condições e as oportunidades entre ricos
e pobres, e entre muito ricos e muito pobres com a afirmação de que
as elas estão dadas igualmente dadas para todos, é imoral e de uma
total ausência de reflexão crítica e leitura de uma realidade contra-
ditória e antagônica tecida no manto da injustiça social (p.08).

Outra questão que nos chama atenção são os relatos asso-


ciados a empecilhos para a conclusão do curso e a possibilidade de
reprovações consecutivas no mesmo componente curricular e com
o(a) mesmo(a) professor(a). A recorrência condiz com o fato de do-
centes da instituição serem concursados(as) para áreas específicas e
estarem vinculados como responsáveis permanentes naquela disci-
plina, sendo escassas as possibilidades de serem feitas substituições.
Esse fato pode gerar desgastes de cunho afetivo (docente-discente e
vice-versa), gerando frustração e desmotivação nos alunos, que po-
dem questionar sua capacidade de concluir o curso.
No que se refere ao segundo eixo “Desafios da construção
de carreira”, a experiência nos leva a observar que quanto mais se
aproxima a conclusão do curso, as narrativas dos empecilhos na
construção da carreira profissional persistem e se avolumam. Um
dos principais desafios é a concorrência no mercado de trabalho, es-
pecialmente em cursos estatisticamente mais disputados, como Me-
dicina e o Direito. Além disso, a adaptação à carreira exigida pelo
mercado, em detrimento daquela escolhida por afinidade durante a
formação, também pode gerar conflitos internos e desmotivação.
Ainda neste eixo, outro desafio enfrentado pelos estudantes é
a desvalorização social da área de graduação eleita, uma vez que nos-
sa sociedade hierarquiza áreas de conhecimento e profissões. Assim,
algumas carreiras, como as licenciaturas, por exemplo, muitas vezes

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são vistas como opções de menor prestígio e baixa pretensão salarial.
Essa desvalorização pode afetar a autoestima dos universitários e sua
motivação para perseverar no curso escolhido. Decerto, é notável
que a expectativa da universidade é sempre promover formação de
qualidade e tenta-se construir e rever projetos políticos pedagógicos
pautados em humanidades e competências correspondentes à rea-
lidade brasileira atual, todavia, embora esse seja um esforço da ins-
tituição, quando o acadêmico percebe o prestígio social da área em
que está se graduando, bem como suas possibilidades empregatícias
mercado, vão surgindo indagações sobre a expectativa construída
até então e a condição real de exercício profissional no mercado de
trabalho.
Além disso, surge outro fator complexo e não menos impor-
tante para ser citado, no que tange a empregabilidade versus a em-
presabilidade, e que também está ligado a des/valorização profissio-
nal. Este é citado principalmente pelos(as) alunos(as) oriundos(as)
dos cursos de artes, que apontam para o fato de que o ensino da
mesma no ambiente escolar sobreviveu e hoje resiste sob uma re-
trógrada circunstância: embora tenha sido uma vitória ser inserida
no currículo das escolas com respaldo da legislação vigente, e pro-
fissionais tenham ganhado espaço para trabalho, lamentavelmente,
existe uma violência simbólica (BOURDIEU, 2009) no fenômeno
da polivalência do profissional de arte, como no caso de professores
e professoras que não são da área específica, mas assumem as emen-
tas das quatro linguagens artísticas (quando não possuem em sua
formação universitária conhecimentos, habilidades e vivências teó-
rico-práticas sobre todas elas). Assim, é comum um professor(a) da
área ser graduado(a) e especializado(a) na área de música, com habi-
lidade instrumental, e ter de ministrar obrigatoriamente a ementa de
dança, teatro, artes visuais, e assim por diante, quando passa em um
concurso público da Secretaria de Estado de Educação e Desporto
(SEDUC-AM), porque só estão dispostas vagas para polivalência.
Esses fatos sociais dão uma noção do tanto de inquietação e
demandas internas que jovens universitários(as) enfrentam e como
é necessário construir resiliência para completarem a graduação em
uma área que nem sempre é respeitada à altura que merece.
Aliado a isso, soma-se o momento paradoxal na garantia de
acesso, permanência de jovens no mercado de trabalho, como sinali-

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zam Silva e Lehfeld (2019): ao mesmo tempo em que uma base legal
tenta oportunizar aos jovens mais tempo de estudo e inserção poste-
rior no mundo do trabalho, esta ainda não é suficiente para garantir
renda e boas condições salariais para quem busca oportunidade de
ingresso e ascensão no mercado laboral. Isso porque a crise atual do
capitalismo, os desmontes da proteção do trabalho e sua constante
precarização atinge a todos, incluindo os mais jovens.
As condições expostas alienam cada vez mais trabalhadoras e
trabalhadores, obstrui capacidades críticas e criativas e limitam pers-
pectivas de crescimento.
No tocante ao terceiro eixo, “Exames de avaliação pós con-
clusão do curso” nota-se que alguns cursos exigem exames de ava-
liação pós conclusão, como as residências médicas e as residências
multiprofissionais. Esses exames podem ser bastante desafiadores e
exigir grande dedicação e esforço por parte dos profissionais. Além
disso, a possibilidade de mudança de cidade para realizar a residên-
cia pode gerar desconforto e insegurança.
Outra forma de avaliação pós conclusão do curso são as sele-
ções de mestrado, bastante concorridas e que exigem um alto nível
de conhecimento e dedicação por parte dos candidatos. A aprovação
em um programa de mestrado pode abrir portas para a carreira aca-
dêmica e para o desenvolvimento de pesquisas, e embora a aprova-
ção seja extremamente desejável, comumente ao processo seletivo
angariam-se vários motivos de sofrimento psíquico dada a competi-
vidade intensa ao longo do processo e altos padrões de cobrança dos
candidatos e candidatas.
Os três eixos aqui categorizados decerto são apenas um re-
flexo do quanto as juventudes acadêmicas passam por conflitos que
podem abalar a saúde mental, durante e após a graduação. Sabemos
que não teríamos como discutir nestas linhas cada uma das deman-
das e queixas centrais que encontramos no EPSICO, mas reconhece-
mos que é imprescindível e desejável que haja uma rede de acolhida
e assistência. Porém, sem romantizarmos, reconhecemos que gran-
des são os embates para que projetos como este sejam efetivados nas
universidades.
Dar visibilidade a ações como as desenvolvidas pelo EPSICO
nos fortalece enquanto corpo universitário, sendo por isso tão im-

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portante a partilha desses dados, inclusive por meio de oportuni-
dades e iniciativas como a deste livro, oferecida pelo Programa de
Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia, da Universidade
Federal do Amazonas, instituição parceira da Universidade do Esta-
do do Amazonas. Quanto mais divulgação cientifica, mais cobranças
aos responsáveis envolvidos são feitas, mais reflexões são propostas,
mais melhorias são estimadas, entre outras ações.

Algumas considerações
É a partir de um conjunto de relações com os outros
e em condições concretas de vida que ocorre o processo de
desenvolvimento humano. Etapas da vida surgem em determinados
momentos históricos e culturas a partir de transformações e da
emergência de novas necessidades humanas.
A preparação para a atividade de produção social por meio do
trabalho é uma das principais tarefas cobradas dos jovens em nossa
sociedade, e para parte deles tal preparação tem ocorrido no âmbito
das formações universitárias. s
Na conjuntura histórica atual, de dificuldades de acesso ao
mercado de trabalho pelos jovens, de vivência em um ambiente uni-
versitário altamente competitivo, que exige altos padrões de perfor-
mance e que muitas vezes desconsidera as condições concretas de
vida de seus estudantes o adoecimento psíquico se torna recorrente.
Assim, emergem sentimentos de impotência e incompetência, es-
gotamento físico e mental, isolamento social e cisão do eu que em-
pobrece diferentes dimensões da vida, não raro contribuindo para
converter a individualidade em individualismo.
Pensar a importância de projetos como o EPSICO, que opor-
tunizam o acolhimento e a escuta terapêutica, é refletir sobre a cria-
ção de oportunidades que podem contribuir para a promoção da
saúde mental também enquanto um processo educativo que permite
desvelar a realidade, desenvolver consciência, emergir da alienação
com maior potência para investir em projetos de vida e expandir o
processo de desenvolvimento humano.

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jan. 2014.

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MITOPOÉTICA E DESEJO MIMÉTICO
EM PESQUISAS ETNOGRÁFICAS NA
AMAZÔNIA
Harald Sá Peixoto Pinheiro
Tomando como referência estudos etnográficos e etnológicos
na Amazônia, em especial aqueles que se debruçaram sobre a com-
pilação e tradução  de importantes narrativas míticas de diferentes
povos indígenas – Barbosa Rodrigues, na Poranduba Amazonen-
se (1890) e Nunes Pereira, no Moronguetá, um Decameron Indíge-
na (1980) –, daremos destaques nesse ensaio para as condições de
possibilidade de se trilhar os caminhos inaugurais de uma estética
amazônica que entrelaça diferentes perspectivas tanto da semiótica
da cultura quanto dos elementos indispensáveis para uma crítica li-
terária.
Nessa constituição e elaboração de uma poética local com ba-
ses nas narrativas indígenas algumas categorias apresentam destaque
especial e se encontram em bases bem articuladas por meio de uma
escuta-recepção, de uma mitopoética e da perspectiva de tradução-
-transcrição das próprias narrativas, mediadas pela tensão oralida-
de-escritura, bem como pelos elementos impulsionadores de traição
e errância como condição essencial no processo de uma poética do
traduzir (MECHONNIC, 2010).
Identificaremos os processos e os desmoronamentos do reino
do unívoco e os limites da fidelidade no processo de compilação et-
nográfica das narrativas míticas, conduzindo também a arte de tra-
duzir pelo horizonte do equívoco, em que a língua nos remete e nos
surpreende por meio de sua natureza polissêmica. Na oportunidade
enfatizaremos também conceitos como desejo mimético (GIRARD,
1998) e intertextualidade (KRISTEVA, 1969). Observamos como re-
sultado de nossas investigações que entre duas culturas, dois textos e
duas línguas a relação não se reduz a mera transmissibilidade mecâ-
nica e, como processo de mitocriação, ocorre – inadvertidamente –
efeitos de uma aproximação dialógica e igualmente poética. É nessa
tessitura delicada e sensível que ocorre a sutileza quase imperceptível
de substâncias tão caras aos processos de Mitopoética e desejo mi-
mético pelo qual queremos investigar.  

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Como nascem e se transformam as narrativas?

De que forma muitas narrativas de naturalistas do séc. XIX e


cientistas do séc. XX, que ambicionavam reproduzir os mitos tam-
bém se transformaram míticas? Estariam elas submetidas à dinâ-
mica das culturas e, portanto, suscetíveis a inúmeras composições
e reagrupamentos? Na pretensão de compilar e repetir as narrativas
míticas não havia sub-repticiamente um desejo latente de elaboração
e criação poética? Não havia nos compiladores e tradutores o desejo,
ainda que inconsciente, de assumir sua autoria já que o mito nunca
prescreve? Parece haver nessas indagações pendulares um ou mais
elementos de criação e reinvenção das narrativas no ato do conta-
to (narrativa oral e sua compilação para escritura), uma espécie de
interdependência criadora, um efeito poético do qual só aparecem
à luz de um “circuito recursivo” que preserve a ambivalência e as
tensões dialógicas que estão em jogo.
A coletânea de mitos armazenados por esses estudiosos da
Amazônia resultou num conjunto de textos mítico-literários do
porte de uma Poranduba Amazonense, de um Muyraquitã e de um
Moronguetá. Certamente outros estudiosos brindaram a cultura in-
dígena com obras de igual importância como Macunaíma, de Mário
de Andrade e Maíra, de Darcy Ribeiro, por vezes exaltando seu hi-
bridismo ou miscigenação num diálogo entre culturas.
No desejo mútuo de compreender, descrever e interagir as
narrativas acabavam por tecer um fio tênue, simultaneamente opos-
to e complementar, combinatório e complexo entre dois mundos tão
distantes e desiguais por onde o efeito poético tornou-se o combus-
tível perene de suas recriações.
As narrativas sobre os povos indígenas na Amazônia sofreram
– durante séculos – vários deslocamentos desde o século XVI e XVII
até os dias de hoje. O foco de nossa contribuição para os processos
socioculturais na Amazônia e PanAmazônia, delineia-se com maior
atenção e cuidado nas transposições interpretativas ocorridas entre
os séculos XIX e XX, tomando como parâmetro de análise as com-
pilações etnográficas de Barbosa Rodrigues e Nunes Pereira sobre as
narrativas orais indígenas desse período, bem como sua consequente
tradução e transposição em texto escrito.

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Esses dois pesquisadores que utilizamos como provocação
epistêmica e estética para nossa contribuição nessa coletânea do
PPGSCA, extraíram suas fontes de investigação motivadas por um
caráter iminentemente científico e não se ativeram aos aspectos ex-
clusivamente religiosos como muitos pesquisadores que os antecede-
ram no estudo sobre os povos indígenas na Amazônia. A escolha de-
les não se deu de forma arbitrária ou aleatória; deve-se, em especial,
pela coincidência na vasta compilação de narrativas orais indígenas,
por meio de uma ampla peregrinação etnográfica que enfatizou um
caráter estético e científico, do qual resultou nas obras monumentais
do estilo de uma Poranduba e de um Moronguetá.
Entre a publicação de suas maiores obras Poranduba Amazo-
nense, que é de 1890 e Moronguetá, um Decameron Indígena, que é
de 1967 (em sua primeira edição), passaram-se precisamente setenta
e sete anos. Considerando o fato de Nunes Pereira ter começado suas
pesquisas ao Moronguetá, no território de Roraima, nos idos de 1918
(com apenas 9 anos da morte de Barbosa Rodrigues) e, em outras
etnias e regiões da Amazônia nos anos de 1946, 1949 e entre 1960-
1961, respectivamente, a diferença entre a produção etnográfica de
um e de outro oscila entre trinta a cinquenta anos, aproximadamente.
É certo que o trabalho de um autor diz respeito ao seu tempo e, pela
distância e diferentes experiências adquiridas entre eles (no plano
da Amazônia e da própria etnografia) é plenamente compreensivo a
aquisição de novas visões, reelaboração de conceitos e reformulação
de teorias. E foi o que ocorreu. Neles, percebemos vários confrontos
de análises em torno das narrativas e de eventuais conceitos, como é
o caso de cultura, identidade e o próprio mito.
O mito foi pensado como dimensão poética, produto da sen-
sibilidade. As narrativas míticas são poiesis, à medida que se tornam
arte criadora. A mitopoética recupera, no plano poético das imagens,
o sentido estético perdido ou desencantado que o conhecimento
científico em sua trajetória unidimensional nos retirou ou discipli-
nou. Etnopoesia refere-se ao estudo – por vezes assistemáticos – dos
conceitos e das experiências estéticas situado no campo do imaginá-
rio poético de certas narrativas locais. Daí serem também chamadas
de Etno-estéticas. Demos especial relevo a etnografia e etnologia de
Nunes Pereira por entender que suas pesquisas não ficaram circuns-
critas e limitadas apenas ao império da palavra poética, o que fez di-
recionar sua atenção para a performatividade do narrador indígena.

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Durante séculos as narrativas surgidas na tensão do contato
– primárias (orais) ou derivativas (escritas); indígenas ou não indí-
genas – possibilitaram um efeito poético marcado por um desdizer,
às vezes por um dizer além ou aquém, uma espécie de clivagem, mais
precisamente um desvio inventivo por uma sedução que remete ao
desejo de aventura errante da palavra do qual o registro escrito e
as próprias narrativas orais não conseguiam aprisionar ou aclimatar
por muito tempo. O espírito humano cioso por peripécias sempre
deu um jeito de acrescentar um tom, um suspiro, um sentido e um
som transgressor as suas narrativas e delas elaborar um terreno fértil
à criação. Policromia e polifonia como tributárias da Mitopoética do
qual se produz uma dissonância criativa e cognitiva.
Numa obra primorosa, intitulada Poética do Traduzir, Henri
Meschonnic (2010, p. XXXVII), empresta-nos uma linha de racio-
cínio que acompanha o sentido mitopoético de nossa pesquisa no
tocante a traduzibilidade das narrativas:

O pensamento poético é a maneira particular pela qual um sujeito


transforma, inventando-se, os modos de significar, de sentir, de pen-
sar, de compreender, de ler, de ver – de viver na linguagem. É um
modo de ação sobre a linguagem. O pensamento poético é aquilo
que transforma a poesia.

Durante muito tempo acreditou-se que as narrativas indíge-


nas refletissem apenas a imagem fiel de um autoctonismo de origem,
paralisado na memória indígena como um arquétipo e do qual as
tensões do contato trariam prejuízos no tocante a sua preservação.
Da mesma forma que se pensou que o passado imemorial perderia
seu vigor, sua capacidade de conexão com o presente, esgotando sua
força criativa caso o contato cultural e trocas simbólicas com outros
povos viessem a ser mais recorrentes.
Para muitos mitólogos, antropólogos e linguistas do século
XIX e início do século XX o poder da memória imaginativa do índio
só teria validade se estivesse blindado e imunizado de toda impureza
do mundo exterior, passando a surgir nesse período um conjunto de
narrativas no âmbito da literatura científica onde o precioso sentido
de “purismo identitário” seria tributário de uma cultura isolada, lon-
ge das tensões e protegidas de todas as adversidades. Lévi-Strauss já
havia observado esse problema por onde a diversidade entre as cul-

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turas humanas não é resultado do isolamento dos grupos, mas antes,
das relações de proximidade e tensão à semelhança de um “jogo de
espelhos”. Para ele, o outro está sempre às margens da tribo. Nessa
dinâmica é comum a inversão de polaridades entre vilões e heróis,
mocinhos e bandidos, índios e brancos, de onde as identidades são
inventadas se retroalimentando mutuamente.
Lamentavelmente ainda persistia a ideia (se é que deixou de
persistir) que só uma identidade preservada e monolítica seria capaz
de narrar o passado em toda a sua fonte de verdade e beleza. Da mes-
ma forma em que os compiladores de mitos não podiam deixar-se
levar demasiadamente pelo imaginário pueril das narrativas indíge-
nas, imunizando-se – sempre que possível – de todo risco de conta-
minação que elas continham na mais inocente palavra, nos gestos
histriônicos, na oscilação entre o olhar frenético e catatônico do nar-
rador mais entusiasmado; nos delicados gracejos de sua onomato-
peia em torno de uma “zoologia mestiça”, onde o homem era animal
e o animal era humano (LAPLANTINE; NOUSS: 2002, p.50); num
tempo onde a “literatura” aproximava cultura e natureza, humanida-
de e animalidade, desmoronando fronteiras à semelhança dos contos
de Esopo e La Fontaine, compiladores dessa memória poética em
plena equivalência com a ancestralidade de muitas narrativas orais.
O narrador e o conjunto das narrativas mitológicas foram
reduzidos à técnica mnemônica – mnemotécnica – pretensamente
capaz de descrever o passado imemorial em sua fidedignidade e pu-
reza. Aqui, o sentido de arte poética e, mais particularmente, de mi-
topoética das narrativas indígenas se vê fadado à mera reprodução
de imagens mentais quase sempre confusas e contraditórias em sua
natureza pueril, desarticulada de toda fonte criadora e autonomia
inventiva do qual o narrador é plenamente capaz em sua performa-
tividade artística.
Diferentemente da mitologia a Mitopoética enseja atuar sua
complexidade num campo mais hermenêutico, ensaiando o desejo
incontido de interpretação à semelhança de uma semiótica da cultu-
ra e dos meandros da linguagem humana que, por ser poética e não
apenas prosaica, se revela em doses homeopáticas e sempre às bordas
dos cânones da ciência. Talvez por essa razão o sentido de compila-
ção das narrativas seja menos gravação-reprodução, escondendo um
desejo de aprendizado ontológico por onde transita a rede de fios

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invisíveis da palavra poética e seus efeitos. No percurso dessa dupla
aventura (cognitiva e semiótica) ocorrem desvios, rupturas, descon-
tinuidades, descaminhos e, sobretudo, oscilação entre a tradição e
tradução.
Esse aspecto da tensão entre tradição e tradução já havia sido
observado por Stuart Hall, no tocante a emergência de identidades
culturais em transição, por onde a tradução de uma cultura a outra,
mediadas aqui pelas narrativas, ensaiam a busca por novas possibili-
dades de reconfigurações identitárias. Vejamos:

Pois há uma outra possibilidade: a da Tradução. Este conceito


descreve aquelas formações de identidade que atravessam e in-
tersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram
dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm
fortes vínculos com seus lugares de origem e suas tradições, mas
sem ilusão de um retorno ao passado. Elas são obrigadas a nego-
ciar com as novas culturas em que vivem, sem simplesmente serem
assimiladas por elas e sem perder completamente suas identidades.
Elas carregam os traços das culturas, das tradições, das linguagens
e das histórias particulares pelas quais foram marcadas [...] elas são,
irrevogavelmente, o produto de várias histórias e culturas interco-
nectadas [...]. As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm
sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir
qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo étnico.
Elas estão irrevogavelmente traduzidas (HALL: 2001, p. 88-89).

No trabalho meticuloso de escuta, tradução e transcrição,


mediados pela tensão oralidade-escritura traição e errância formam
os signos pelo qual as estranhezas do Outro deixam de existir, tem-
porariamente suspensas, em razão de uma literatura emergente que
tematize a alteridade e lhe conceda certa cidadania. É provável que
no núcleo dessa suspensão o sentido de pertencimento brote da nar-
rativa compartilhada. A natureza movente do oral hibridiza-se com
a aparente fixidez da escrita, ampliando os horizontes interpretativos
da cultura. A tensão entre cidadania e ostracismo, familiaridade e
estranhamento parecem condições de uma natureza sempre fugidia,
teimosamente forasteira do qual a criação Mitopoética deseja en-
saiar em sua perene crise de pertencimento ao status de uma única
palavra oral ou escrita. O sentido de traduzir contém na sua etimo-
logia não apenas o de transferir e “transportar entre fronteiras”, mas
carrega secretamente o sentido de traição.

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A esse aspecto acrescenta novamente Meschonnic (2010, p.
30):

A primeira e última traição que a tradução pode cometer contra a


literatura é a de lhe roubar aquilo que a faz literatura – sua escritura
– pelo próprio ato que a transmite. O adágio traduttore traditore
indica há séculos que a tradução é o lugar de um conflito definido
por dois paradigmas irredutíveis um ao outro. A tradução está no
binário que opõe o autor original ao tradutor assim como a inven-
ção à reprodução, o autêntico ao edulcorado, a língua de partida à
língua de chegada como dois mundos que não podem se sobrepor,
a indissociável e misteriosa associação da forma e do sentido no
original da misera dissociação dos dois, para não reter mais que o
sentido, na tradução.

Laplantine e Nouss (2002), descrevendo uma espécie de “poé-


tica da mestiçagem” recorrem com frequência ao trabalho de Mes-
chonnic mencionado acima, para fundamentar sua análise em que
destrona o reino do unívoco e da fidelidade no processo da tradu-
ção, conduzindo a arte de traduzir pelo horizonte do equívoco, da
errância e da traição em que a língua nos remete e nos surpreende.
Sobre esse aspecto corrobora Laplantine e Nouss (2002, p. 40-41),
destacando que entre duas culturas e duas línguas a relação não se
reduz a mera transmissão e ambiciona chegar a um modelo de inter-
subjetividade por meio de uma aproximação dialógica:

Para além disto, é da natureza da língua e da cultura ser polissêmica


e estar em contínua transformação [...] A tradução de um texto nun-
ca será apenas a soma das suas traduções sucessivas e a fidelidade
permanece sempre por redefinir [...] A tradução poderia e deveria,
ao invés, marcar a distância entre as línguas, mostrar que existem
línguas diferentes.

A Mitopoética surge primeiramente como poética da diver-


sidade e constitui-se de uma autoria impessoal nas sutis relações de
troca e intercambialidade das narrativas, gestualidades e um conjun-
to de material de que é feito a etnocenologia da palavra imaginária.
Durante a feitura da compilação artesanal das narrativas e, portanto,
no momento do processo inerente às suas transcrições (recepção,
tradução, escritura) é possível observar identidades diaspóricas do
qual uma crise de pertencimento delineia o conflito entre diferentes

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mundos construídos sob a herança do etnocentrismo e dos escom-
bros da colonização.
No prefácio a obra de Meschonnic, Jerusa Pires Ferreira ofe-
rece-nos um comentário acerca da arte de traduzir e as tensões em
ritmar a oralidade e a escritura como um exercício de uma laboriosa
poética do inacabamento à semelhança de um ourives e a lapidação
de seu diamante:

Atravessar esse exercício intelectual que traz a experiência poéti-


ca, filosófica, histórica, antropológica, semiótica (mesmo que ele
a rejeite), é estar consciente de que traduzir um texto como esse,
proposto como um trabalho inacabado, em curso, e uma poética
infinita, é compreender que, sem uma adesão de entendimento e
sensibilidade, dificilmente adequaríamos o nosso a esse discurso de
tal forma elaborado (FERREIRA: 2010, p. XV).

Ali, no ato puro da escuta incauta e desavisada habita os re-


gistros supersensíveis da arte da sedução por onde a experiências de
diferentes seres e homens na terra é desejosamente mimetizada. Por
mais bem aparelhados que a atenção, os olhos e os ouvidos estejam
logo o destino da escritura – ciosa por errância – partirá, inadverti-
damente, para outro lugar de onde o seu topos de origem o extradi-
tou. Feitiço que remete ao canto das Sereias. Esse desvio por vezes
imperceptível da narrativa escrita só é possível graças a um desejo
mimético incontido de que se nutre a viagem ao aprendizado mi-
topoético: “a mestiçagem é uma invenção nascida da viagem e do
encontro”, reafirma Laplantine e Nouss (2002, p. 18).
Não podemos esquecer que a grande viagem literário-científi-
ca de Barbosa Rodrigues em sua busca exaustiva e imaginária pelas
pedras verdes caminha num esforço por aproximar culturas e inter-
ligar continentes. As razões de suas comparações e sempre à vista
a metrificação das “propriedades comuns” já havíamos discordado
anteriormente, mas do ponto de vista mitopoético sua aventura tem
em comum o pano de fundo que serviu de insight semelhante ao
Moronguetá de Nunes Pereira: aproximar as culturas e continentes à
luz de sua traduzibilidade poética.
O Moronguetá é fruto de vozes culturais polissêmicas e ecos
de oralidade estético-literários que se equivalem quanto ao valor das
narrativas mitopoéticas, principalmente por colocar em dialogia as

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realizações e efeitos poéticos entre a Europa (Decameron, de Bocac-
cio), África (Decameron Negro, de Frobenius) e América (Decame-
ron Indígena, do próprio Nunes Pereira). E aquilo que eram apenas
homologias e “propriedades comuns” adquire o status de mutabi-
lidade, nomadismo e movência poéticas, face ao vigoro esforço de
suas reinvenções, transpondo tempos e lugares. A arte da sedução
das narrativas vem de longe, transpõe fronteiras e se fortalece em
seus efeitos mitopoéticos um sujeito de enunciação mais coletiviza-
do. Deleuze (1997, p. 14-15) percebeu essa idiossincrasia no proces-
so de escritura literária: “embora remeta sempre a agentes singulares,
a literatura é agenciamento coletivo da enunciação”.
Barbosa Rodrigues produziu o conjunto de suas compilações
baseadas em narrativas indiretas, nas adjacências de aldeias e po-
voados ribeirinhos, mestiços e destribalizados; ainda assim manteve
contato com pajés e narradores indígenas. O mais grave de tudo, no
entanto, talvez tenha sido o “método” de sua etnografia funcionalista
e monovalente, centrada apenas na fala, na palavra e no texto do
que lhe convém a traduzibilidade semântica, no conteúdo que inter-
liga a trajetória Améria-Ásia e, principalmente, a fala que se torna
agradável aos ouvidos por meio de uma obsessão cromática pelas
pedras encantadas. Descreve a atmosfera daquilo que almeja escutar
e justificam suas hipóteses apresentada por uma escrita unidirecio-
nal de um observador centrado em si mesmo. Ainda que os crité-
rios tenham sido monológicos, sem perceber, realizou sua criação
mitopoética. Aquilo que seria o resultado de uma densa coleta de
materiais, de investigação sólida, plenamente metrificada em dados
e cálculos, felizmente se transmutou de um estágio itinerante e cons-
ciente a uma etnografia poeticamente “itinerrante” em meio a uma
Amazônia nômade e imaginária.
De acordo com Meschonnic (2010, p. XXXI): “a poética é um
nomadismo das obras, dos discursos, não das palavras. O menor
poema, o menor conto infantil frustra uma armadilha grosseira que
já serviu demais, e em que estão embaraçados os tradutores”.
Sua Mitopoética é baseada pelo assombro do que se fala (e
não pela escuta atenta de quem fala) e da palavra-signo do narrador
mestiço do qual o seu texto também carregará essa marca de mesti-
çagem. Sendo influenciado pela linguística de Max Müller, preocu-
pou-se mais com uma etnografia da língua e dos códigos classificató-

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rios que ela contém, negligenciando os cuidados com a estrutura do
discurso, o que desencadeou um nivelamento etnocêntrico da tradu-
ção. Ainda nesse aspecto Meschonnic (2010, p 31) adverte-nos das
armadilhas da tradução em querer “transformar o outro no mesmo.
A tradução é, então, aquilo que é muitas vezes, o etnocentrismo e a
lógica da identidade – a apagamento da alteridade”.
Em Barbosa Rodrigues operou-se o registro de um escriba en-
feitiçado pelas narrativas que curiosamente pouco escutava em razão
de estar obcecado pelos signos que compensassem sua investigação.
Segundo Barthes, em O Óbvio e o Obtuso (1990, p. 217), “ouvir é
um fenômeno fisiológico; a escuta é um ato psicológico”. Na ocasião,
Barthes diferencia três tipos de escuta, sendo oportuno registrá-las
aqui, situando melhor o nível de escuta do naturalista em sua obsti-
nação pelos signos filológicos que a palavra carrega:
Segundo um primeiro tipo de escuta, o ser vivo dirige sua
audição (o exercício de sua faculdade fisiológica de escutar) para
índices; neste nível, nada distingue o animal do homem: o lobo escu-
ta um ruído (eventual) de caça, a lebre um ruído (possível) de agres-
sor, a criança, o namorado, escutam os passos que se aproximam e
que poderão ser os passos da mãe ou do ser amado. Esta primeira
escuta é, se assim podemos dizer, um alerta. A segunda é uma de-
cifração; o que se tenta captar pelo ouvido são os signos; aqui, sem
dúvida, é a vez do homem; escuto da mesma maneira que leio, isto
é, mediante certos códigos. A terceira escuta, enfim, cuja abordagem
é moderna (o que não quer dizer que seja superior às outras duas),
não visa – ou não espera – signos determinados, classificados: não
aquilo que é dito, ou emitido, mas aquele que fala, aquele que emite:
deve ser desenvolvida em um espaço intersubjetivo, em que “escuto”
na verdade quer dizer “escuta-me”; a escuta apodera-se, pois, para
transformá-la e lançá-la sem cessar no jogo da transferência, de uma
“significância” geral, que já não é concebível sem a intervenção do
inconsciente.
Possuído pela mãe das musas, Mnemosine, em seu estado ar-
caico que buscava tão somente o registro e decifração da fidelidade
precisa dos signos em sua pura identidade perdida na memória do
tempo e que só inspirou ainda mais sua neurose e, simultaneamente,
sua criação mítico-literária. Foi o efeito do Inãron (já descrito ante-
riormente) que permitiu sua inspiradora jornada solipsista em rios

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e matas amazônicas e voltar à cidade de Manaus e mais tarde ao Rio
de Janeiro para compor sua polifonia mitopoética.
Em Nunes Pereira produziu-se um contato com narrativas
em fontes primárias, convivendo em aldeias com diferentes etnias
o que lhe permitiu maior interação e sensibilidade em marcar sua
escritura sob o signo de uma poética da escuta, enriquecida pela dia-
logia do contato mais intimista com os narradores, atento em sua
performatividade e arte verbal. Sem dúvida que sua etnografia tem
a marca de outra mestiçagem, da ciência salvacionista de um lado
e da sensibilidade indígena, de outro. Enquanto a mestiçagem et-
nográfica de um Moronguetá e Bahira são mescladas entre ciência,
escuta e experiência indígena, o hibridismo cultural de uma Poran-
duba Amazonense e O Muyraquitã acontecem no engendramento
entre ciência positiva, signos linguísticos do espólio indígenas e sua
traduzibilidade em si mesma, tomando a experiência fonética de
muitos nativos em seu nivelamento e proximidade com línguas de
outros continentes, sempre em razão de suas “propriedades comuns”.
O próprio Nunes Pereira registra por caminhos diferentes o aspecto
de sua mestiçagem etnográfica numa passagem de Bahira e suas Ex-
periências (1940, p. 9-10):

Somos, como se vê, por um movimento de inteligência e de sensi-


bilidade – contrário a um movimento de ciência e de sensacionalis-
mo, apenas – em louvor da cultura espiritual do Índio e, consequen-
temente, em favor da nossa própria cultura”.

Benjamin (1994), argumenta que o vigor da narrativa se cons-


titui de um gênero apropriado em contextos de onde a produção ar-
tesanal ganha maior vivacidade, sobretudo quando não se verifica a
racionalização do tempo, a alienação do trabalho, a mercantilização
da vida e, portanto, não havendo ruptura ou disjunção entre arte e
labuta diária, como passa a ocorrer em larga escala nas sociedades
industriais.
Os trabalhos de Nunes Pereira em relação ao conjunto de nar-
rativas compiladas ganham maior relevo em razão de ter captado as
falas dos narradores e interpretes com um “cerimonial de recepção”
que a ocasião dos encontros assim o exigia. Essa formalidade dava
credibilidade à autoridade indígena que falava e ajustava o ambiente
para uma performance social e cenicamente virtuosa, ponderada e,

- 131 -
mesmo tendo o caráter coloquial, não prescindia de um alto grau de
formalização do diálogo encenado. Saber falar e saber escutar cons-
titui um princípio de reciprocidade, uma troca simbólica, por meio
de polos equidistantes que representam uma escala de sociabilidade
poética.
As narrativas coletadas por Nunes Pereira não contradizem,
em princípio, os argumentos de Benjamin, no entanto, percebe-se
uma separação entre o tempo e o lugar que melhor acolhe os relatos
míticos, bem como a diversidade desses relatos adequados – cada
um em seu tempo e lugar – conforme o tema e as circunstância como
se deles presumíssemos uma espécie de geopoética, aquilo que cons-
titui sua topofilia. Disso decorre uma etnografia do limiar: uma et-
nopoesia dos muyraquitãs, porandubas e moronguetás.
A oposição dia e noite não constitui critério exclusivo das nar-
rativas e elas podem ocorrer a qualquer momento, muito embora
em alguns povos ocorram sanções e algumas restrições em relação a
participação de mulheres. Ainda assim, narrar parece ser uma ativi-
dade essencialmente noturna, quando a atividade produtiva é desa-
celerada e todos se veem extasiados pela elocução dos mais velhos;
de longe os animais noturnos abrilhantam e corroboram com o en-
redo, poupando por vezes o narrador do recurso da onomatopeia,
dada a coincidência em que a língua dos bichos se pronunciava em
diferentes tons e intensidades como quem participa ativamente da
cena. Como num efeito de magia as polaridades se invertem e, em
razão de instantes, o narrador deixa de ser protagonista do enredo e
assiste atento, a “fala” dos bichos como mero expectador ou figuran-
te. Natureza e cultura combinam arte e magia.
A fala durante a noite é mais coloquial, geralmente acompa-
nhada de maior inspiração poética, estimulando o alimento da alma
e aguçando os sentidos da imaginação, sendo um convite aos espíri-
tos (bons ou maus) se reconciliarem com quem os afrontou; do con-
trário, aterrorizando ainda mais aqueles que os desafiaram. Podemos
arriscar em dizer que a mitopoética de Nunes Pereira foi enluarada
pelo regime noturno, na atmosfera crepuscular, assistindo ao espetá-
culo que inaugura ao longe o cintilar dos primeiros raios de sol. Ao
passo que as narrativas de Barbosa Rodrigues carregam um estigma
solar, do regime diurno, mas também engendrado pela imagem cre-
puscular de quando o sol se põe. Lua e sol carregam esse estigma de

- 132 -
natureza e cultura do qual as narrativas nos dão conta em sua eterna
proximidade-distância, de “equidistantes erráticos” e “simétricos in-
vertidos”. O crepúsculo simboliza a dialogia desse encontro poético e
Rudá, gênio do amor, é o grande demiurgo desses efeitos.
O que se pretende destacar é, entre outras coisas, o mecanismo
de auto-criação do mito, sua dispersão e refração do qual as narrati-
vas atingem certo grau de refinamento do enredo e elevada condição
de mobilidade estético-ritual. Esse aspecto foi bem registrado por
Barthes, em sua obra Mitologias (2001, p. 153-154), vejamos:

O mito pode atingir tudo, tudo corromper, até o próprio movimento


que se lhe opõe, de modo que quanto mais a linguagem objeto re-
siste no início, tanto maior é a sua prostituição final: quem resiste
totalmente cede totalmente [...] o mito é uma linguagem que não
quer morrer: arranca aos sentidos, de que se alimenta, uma sobrevi-
vência insidiosa, degradada, provoca neles um adiamento da morte,
artificial, no qual se instala à vontade, faz deles cadáveres falantes.

Como se não bastasse a refração dos mitos e sua força reinven-


tiva rumo a um sem fim de possibilidades, a sua compilação, por sua
vez, deslocando-se para o plano da escritura não torna a narrativa
menos criativa. As narrativas se multiplicam tal qual o tempo em que
elas se inscrevem na memória coletiva. Dependendo da interação do
receptor-tradutor-compilador o passado narrado pode ser alterado
pelo narrador indígena, atribuindo novas nuances, cores, sons e sen-
tidos. Eis o tempo vivo da memória mitopoética em seu momento de
retificação criativa e subjetividade mestiça, pois, segundo Canevacci
(1996, p. 43):

Multiplicar as subjetividades do pesquisador significa que emoção


e razão, poética e cientificidade, gênero e número, não se confun-
dem, mas se dilacerem, se acrescentam, se diferenciam. Contami-
nar os gêneros não deve significar a sua homogeneização, e sim
incrementar das variações cromáticas, sonoras, estéticas.
Também estamos de acordo com Michel Serres (1993, p. 15)
para o qual o aprendizado é de natureza essencialmente mestiça:

Nenhum aprendizado dispensa a viagem. Sob a orientação de um


guia, a educação empurra para fora. Parte, sai. Sai do ventre de
tua mãe, do berço, da sombra oferecida pela casa do pai e pelas
paisagens juvenis. Ao vento, sob a chuva: do lado de fora faltam

- 133 -
abrigos. Tuas ideias iniciais só repetem palavras antigas. Jovem:
velho papagaio. Viagem das crianças, eis o sentido lato da palavra
grega pedagogia. Aprender lança a errância.

A intercambialidade entre oral e escrito no ato mesmo de sua


recepção-tradução-transcrição nos faz descobrir, perplexos, a raiz e
a alma de uma mestiçagem de sentido antes ignorada. A mitopoética
faz engendrar sua atuação estético-ritual na profundidade narrativa
que se constrói entre análogos atores: “ama o outro que engendra
em ti o espírito” (SERRES, 1993, p.62). O engendramento que se dá
oculto nesse aprendizado capacita aquele que escuta, traduz e codi-
fica a um duplo renascimento: ao mesmo tempo em que é erudito
ao transcrever, é também narrador potencial ao escutar. A mestiça-
gem surge aqui como efeito poético que conduz a criação sempre ao
jogo de outras narrativas. Tudo leva a crer que esse mimetismo de
interdependência das narrativas faz emergir não apenas o “terceiro
excluído”, mas despertar o que Serres chamou de um “terceiro ins-
truído”.
É claro que todo esse processo de criação não se dá numa
atmosfera romântica das relações aparentes da consciência. Pelo
contrário, as tensões ali dispostas e muitas vezes dispersas estão
colocadas desde o início como barricadas inconscientes, trincheiras
de um desejo em iminência de apropriação. Dessa colheita não
adquirimos em vão e sem esforço o fruto do pecado já que ela é
resultado do desejo mimético (René Girard, 1998), de laboriosa
estratégia de criação e de investimentos simbólicos que resultarão,
inevitavelmente, diferenças pontuais e, de fundo, rivalidades
mimetizadas. Desse e outros aspectos da mimese, Benjamin (1994,
p. 108) já havia chamado nossa atenção:

Um olhar lançado à esfera do semelhante é de importância fun-


damental para a compreensão de grandes setores do saber oculto.
Porém esse olhar deve consistir menos no registro de semelhanças
encontradas que na reprodução dos processos que engendram tais
semelhanças. A natureza engendra semelhanças: basta pensar na
mímica. Mas é o homem que tem a capacidade suprema de pro-
duzir semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas
funções superiores que não seja decisivamente co-determinada pela
faculdade mimética.

- 134 -
O mimetismo gera desdobramentos como resultado da obra
imitada e quando não conduz o foco da imitação para o campo de
divergências pontuais, certamente acabará por gerar rivalidades.
Esse efeito fica mais evidente no caso das narrativas literário-cien-
tíficas de Barbosa Rodrigues que toma o mito como oponente da
ciência e recorre a eles como alegorias e pistas para a afirmação de
sua tese sobre a origem do homem americano e o lugar de origem
dos muyraquitãs. Já em Nunes Pereira essa fratura do mito e razão
não é tão acentuada e em muitos casos ele percebe nas narrativas
indígenas um desdobramento das representações do qual a ciência
deve reconhecer sua importância. Em ambos os casos a mitopoé-
tica potencializa oposições complementares, divergências pontuais,
rivalidades miméticas de profusão criativa, mais também tenta cica-
trizar – quando possível – resquícios de quaisquer ressentimentos
poético-literários que porventura se dera no ato da recepção-tradu-
ção-transcrição, já que seus interlocutores reinventam caminhos de
sublimação por meio de novas narrativas.
À semelhança de uma mandala, início e fim se encontram e
dançam como um arlequim multifacetado na roda-viva da criação
em seus efeitos poéticos mais variados. Metáfora utilizada por Mi-
chel Serres no primeiro capítulo de sua Filosofia Mestiça (1993) e
representa a ideia de multiculturalidade e a compreensão de outro
dentro de si, a acolhida ao diferente por meio da multiplicidade que
agrega elementos de mestiçagem. Seu corpo é multifacetado e prova-
velmente sua visão configure um caleidoscópio.
Aprendemos com René Girard que o desejo é sempre uma
potência mimética e surge – no caso da oposição entre narrativas
indígenas e científicas – como elemento mediado. Desejamos indire-
tamente e o objeto de nosso desejo não é determinado por nós cons-
cientemente, mas aparece nas tramas, nas armadilhas cognitivas, nas
redes invisíveis de significação, nos rizomas que nos envolvem e na
vibração constante entre memória e esquecimento.
É dessa fonte de criação invisível ao imediatismo da consciência
que nascem os insights imaginativos, as sinapses inventivas e do qual
denominamos mitopoética. Dela, surge um sem número de outras
narrativas escritas que, por sua vez, se colocaram na escuta de ou-
tras narrativas orais indígenas. Esse exercício também acrescenta
certa excelência no ofício estético-ritual daquela autoridade indíge-

- 135 -
na responsável pela narração que agregará sempre novos elementos
ao enredo, alterando as peripécias sempre que possível e dotando o
conteúdo de refinada mobilidade e leveza.
Essa autonomia permite que uma narrativa nunca seja conta-
da da mesma forma pelo mesmo narrador e sempre se mostre ajustá-
vel ou transgressora conforme a dialogia entre reminiscências e ima-
ginação do narrador, alterando os condimentos conforme a atenção
e interesse do receptor. Disso resultará o sabor de cada tempero, o
paladar de sua combinação e, sobretudo, a digestão saudável e criati-
va da mitopoética como prato principal. Essa tensão entre imitação
e elaboração foi bem analisada por Girard (1998, p. 186) no tocante
ao desejo mimético:

O homem não pode obedecer ao imperativo “imita-me”, que ressoa


por toda parte, sem se ver quase imediatamente remetido a um “não
me imite” inexplicável, que vai mergulhá-lo no desespero e fazer
dele o escravo de um carrasco na maioria das vezes involuntário.
Os desejos e os homens são feitos de tal maneira que eles enviam
perpetuamente uns aos outros sinais contraditórios, cada um ainda
menos consciente de estar preparando uma armadilha para o outro,
pelo fato de estar ele próprio, caindo em uma armadilha análoga.

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Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.

- 138 -
MANAUS: UM CAMPO LITERÁRIO?
AUTORES E OBRAS MULTIFACETADAS1

Iná Isabel de Almeida Rafael

Resumo
O presente capítulo apresenta uma reflexão literária e sociológica dos livros pu-
blicados entre os anos de 1976 e 2000, todos com temática referente a Manaus
e de diferentes gêneros literários. São eles: As folias do látex, de Márcio Souza
(1976), O tocador de charamela, de Erasmo Linhares (1979), Visgo da terra, de
Astrid Cabral (1986), Manaus, as muitas cidades, de Aldísio Filgueiras (1994),
Chão e graça de Manaus, de Genesino Braga (1995) e Dois irmãos, de Milton
Hatoum (2000). O objetivo foi compreender de que forma a história, a sociologia
e a literatura se entrecruzaram nestas produções literárias. Para isso, foram con-
siderados elementos linguísticos e extralinguísticos. Tais elementos compuseram
a leitura transversal dos livros, ação que culminou na percepção da gênese his-
tórico-sociológica do campo literário manauara e nas instâncias de legitimação
e na representação de Manaus nos livros de literatura, resultando em uma crítica
aos modelos de percepção da realidade empiricamente representada. O aporte
teórico do estudo tem base epistemológica em Bourdieu (1968), Loureiro (2001),
Benchimol (2009), dentre outros de mesma relevância.

Palavras-chave: Manaus. Campo literário. Literatura. Sociologia. História.

A título de introdução

O presente estudo apresenta uma reflexão literária e socioló-


gica dos livros publicados entre os anos de 1976 e 2000. Todos com
temática referente a Manaus, e de diferentes gêneros literários. São
eles: As folias do látex, de Márcio Souza (1976), O tocador de cha-
ramela, de Erasmo Linhares (1979), Visgo da terra, de Astrid Ca-
bral (1986), Manaus, as muitas cidades, de Aldísio Filgueiras (1994),
Chão e graça de Manaus, de Genesino Braga (1995) e Dois irmãos, de
Milton Hatoum (2000).
Apresento os critérios usados para a seleção dos autores que
representaram Manaus literariamente, no período de 1976 a 2000,
num esforço de pesquisa que busca oferecer ao leitor evidências acer-
1 Este texto é parte integrante da Tese “Manaus como obra de arte: uma genealogia
da literatura produzida no Amazonas”, do Programa de Pós-graduação Em Socieda-
de e Cultura na Amazônia (PPGSCA), sob orientação do prof. Dr. Alfredo Wagner
Berno de Almeida. A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

- 139 -
ca das condições sociais nas quais os autores estavam imersos e que,
possivelmente, predeterminaram a escolha de Manaus como tema,
em circulação à época, a ser representado. Assim como os diferentes
períodos históricos retratados, os diversos gêneros literários que cir-
culavam e os variados assuntos abordados, ou seja, as modalidades
de percepção do objeto, que foram escolhidas para a representação
artística realizada pelos autores.
Tais autores e seus escritos foram escolhidos consoante os se-
guintes critérios de seleção: tema, gênero literário, nível de lingua-
gem, período de publicação e reconhecimento pelo público em geral.
A intenção foi produzir uma análise em que fosse possível perceber
como os fatores intrinsecamente relacionados ao campo da literatura
se interrelacionam com os da sociologia, resultando em uma investi-
gação mais completa e estruturada do assunto em questão.
Quanto ao tema2, os autores escreveram a respeito de Manaus
em diferentes possibilidades de sentido, ou seja, representando-a po-
sitiva ou negativamente. A depender dos assuntos abordados, como
os problemas sociais da época; as características visuais dos monu-
mentos; os pontos da cidade, como ruas, lojas, mercados, praças,
palacetes; os aspectos naturais, como o clima, a geografia, os rios, a
floresta, a flora e a fauna.
O gênero literário corresponde às produções escritas no cam-
po da literatura. Essa categorização possui em sua estrutura o as-
pecto formal que permite uma “classificação” quanto aos aspectos
semântico, sintático e morfológico, que oferecem à analise diferentes
elementos a serem observados.
Em relação aos níveis de linguagem, todos os textos foram edi-
tados e publicados, ou seja, estão no nível da escrita. Excluindo-se as
produções literárias orais, não por contestar a autenticidade destas
produções, mas por considerar os objetivos e limites desta pesquisa.
Já o período de publicação, refere-se aos livros publicados na
fase dita “modernista” da produção escrita do Estado do Amazonas.
Por mais que o tema retrate outras épocas históricas, todos eles fo-
ram publicados nessa mesma fase.

2 A título de explicação, informo que as palavras destacadas em itálico correspondem a nomes


de livros, termos conceituados por escritores, palavras estrangeiras ou, ainda, quando se tratar
de citação, na qual os próprios autores assim escreveram. No entanto, o itálico será usado
apenas na primeira vez em que aparecer no texto, exceto quando se referir a nome de livros,
por se tratar de norma da ABNT.

- 140 -
Por fim, o reconhecimento pelo público em geral. Este critério
revela que os escritores já foram homenageados ou premiados por
alguma instituição de premiação literária ou cultural, ao menos no
âmbito local, sendo assim, os referidos escritores passaram pelas crí-
ticas de consagração e legitimação.
Esses critérios permitiram a escolha dos autores dentro de um
universo de difícil estatística, pois muitos escritores locais, e até mes-
mo de outros lugares, produziram textos referente à cidade de Ma-
naus. Todavia, os critérios de seleção foram baseados nos elementos
de análise e crítica literária realizadas no campo intrínseco à produ-
ção literária, principalmente, mas também no campo da sociologia,
quando se propõe a estudar a posição dos escritores na estrutura do
campo da produção literária e artística.

A gênese histórico-sociológica do campo literário manauara

No que diz respeito às condições sociais em que os autores se-


lecionados produziram seus textos, é preciso considerar que o cam-
po literário em que eles estavam inseridos localizava-se na cidade de
Manaus, no Estado do Amazonas. Contudo, tal campo ainda não se
encontrava consolidado devido a alguns fatores, como: dificuldade
de publicação, à ausência de editoras locais; falta de incentivo na di-
vulgação das obras, ausência de iniciativa governamental ao desen-
volvimento da intelectualidade regional; e inexistência de institui-
ções comprometidas em apoiar os escritores e financiar suas obras.
Todos estes entraves dificultaram a consolidação de um campo lite-
rário, a fim de que os escritores pudessem produzir sistematicamente
uma literatura mais diversificada.
Esses impasses listados dificultaram o desenvolvimento de
uma cultura literariamente letrada em Manaus, ou seja, a compo-
sição de um público amplo e difuso, consumidor de publicações li-
terárias. Mas também orientaram aqueles que não se conformavam
com a condição de apenas recebedores do conhecimento advindo
das grandes cidades, chamadas de “centros culturais”, como Rio de
Janeiro e São Paulo, principalmente.
Assim, foi possível ver nos textos de autores (não necessaria-
mente referidos a uma formação acadêmica em história, como os

- 141 -
de Edinea Mascarenhas Dias (1999; 2007), Ana Maria Daou (2014),
Márcio Souza (2009) e Mário Ypiranga Monteiro (1977) – mesmo
que seus escritos tenham sido referentes a diferentes teorias e escolas
de pensamento) uma orientação, ou melhor, uma análise sociológica
do modo como a literatura vinha se desenvolvendo no Estado. Já
apontando claramente os modelos de representação que os escritores
da região Norte, e de outras regiões também, estavam sempre indu-
zidos a “reproduzir”. Ou seja, uma literatura “importada”, que mes-
clava a abordagem dos temas locais à forma “padronizada” dos gêne-
ros literários produzidos pelos escritores do sul do país.
Para Mário Ypiranga Monteiro (1977), tanto os escritores
quantos os estudiosos da literatura local deveriam evitar o simples
conhecimento dos modelos preconcebidos da historiografia literária
– essa crítica refere-se aos manuais que abordam a história da lite-
ratura brasileira, incluindo, certamente, os livros de Sílvio Romero
(1980) e José Veríssimo (1963).
Monteiro (1977, p. 13) aponta algumas razões pelas quais seria
inviável tentar despertar uma consciência literária na região partin-
do das “histórias da literatura”, mesmo estes sendo registros extensos
e documentados. Eis as razões que o autor elencou:
a) “Seleção de autores pelos tratadistas e portanto limitação a
nível de conhecimento”;
b) “Maneira de encarar o fenômeno literário brasileiro”;
c) “Omissão de alguns Estados nas antologias, por suspeita hi-
postásica de carência de valores”;
d) “Decisão arbitrária na redução ao máximo das representa-
ções ditas em tom pejorativo ‘provincianas’”;
e) “Carência de competence de tratadista em assuntos amazô-
nicos, consoante se tem observado à continuidade (1)”;
f) “Encarecimento progressivo das enciclopédias que tentam
encarar e resolver com honestidade as dificuldades margina-
das”;
g) “Ignorância dos conteúdos das obras e de uma longa pers-
pectiva literária universal da parte do usuário, tanto quanto
presumidamente do professor”.

O item “b” pode resumir praticamente todos os demais, à


exceção do item “f ” (que retrata o aspecto econômico). É possível

- 142 -
essa percepção a partir da maneira como foi encarado o fenômeno
literário e, consequentemente, o conhecimento desse escritor acerca
do campo literário, pois disso dependeu, por exemplo, a escolha
dos literatos que comporiam a “história da literatura”. Para essa
seleção, o escritor deveria ter um amplo conhecimento das variadas
manifestações literárias, nas suas mais diversificadas formas, e das
várias culturas coexistentes à época.
A falta da inclusão de livros pela não percepção do seu devido
valor, enquanto livro de literatura, por terem sido escritos distantes
dos “grandes centros” culturais, corrobora uma decisão estigmatiza-
da em relação aos Estados descentralizados do sul e sudeste do país.
Atitude que certamente excluiu livros de grande valor histórico/li-
terário, como foi o caso do romance histórico do alto Amazonas,
Simá (1857) – que narra as lutas entre indígenas e portugueses –, do
escritor Lourenço da Silva Amazonas, que não apareceu em nenhum
dos dois livros, no de Romero (1980) e no de Veríssimo (1963), de
história da literatura brasileira.
O não conhecimento aprofundado das realidades das provín-
cias (em termos de crenças, costumes, valores, cultura de uma forma
geral), preconceituosamente vistas como inferiores, portanto, sem
ou de baixo teor literário, colocava à margem um grupo significativo
de escritores que, em outros momentos, foram eleitos como grandes
personalidades locais por contribuírem com o desenvolvimento da
cultura literária local. É o caso de alguns autores que compõem esta
pesquisa.
O desconhecimento dos conteúdos dos livros, uma vez que as
“histórias” retratam majoritariamente de forma descritiva, quando
muito temática. Em decorrência disso, os livros elencados impossi-
bilitavam uma reflexão crítica da leitura e das especificidades intrin-
sicamente referentes ao seu conteúdo.
E por fim, mas tão importante quanto os demais itens, o difícil
acesso aos livros, devido ao seu alto custo, condicionando apenas a
determinados grupos o privilégio de ter o contato mais próximo e
mais aprofundado com os escritos.
Dessa crítica realizada por Monteiro (1977), é válido fazer re-
ferência ao modo como a atividade literária deveria ser realizada.
Nesta questão, ele dialoga com um dos escritores da História da lite-

- 143 -
ratura, Sílvio Romero, ao defender a ideia de que a literatura devia
abordar em suas análises as questões de outros campos do conheci-
mento, como a filosofia, sociologia e antropologia, negando a ideia
de que a literatura não deveria ser apenas um meio de ensino da gra-
mática normativa, porque têm em sua linguagem, em muitos casos,
estruturas formais eruditas da língua.
O autor afirma o seguinte a esse respeito:

Os cursos de literatura brasileira e mesmo os de portuguesa dos


ginásios limitam-se ao ciclo vicioso da “interpretação” sem crítica
fundamental, quando não a forma de expressão em que se exige
apenas o conhecimento dos “casos gramaticais”, confundindo-se
perigosamente Literatura com gramática, quando devia filiar-se a
Literatura à linguística e daí a ciências afins como Filosofia, An-
tropologia e Sociologia. Sem essa base crítica, afastado o interesse
do estudante pela cultura regional jamais se terá uma consciência
literária que escape às páginas omissas de dezenas de “histórias da
literatura”, com especial atenção aquelas trabalhadas à dependên-
cia de interesses comerciais (MONTEIRO, 1977, p. 14) (destaque
meu).

Ao menos quatro pontos da citação merecem ser discutidos.


O primeiro é a questão de se utilizar o texto literário apenas como
instrumento para análises da ordem das estruturais formais da língua
portuguesa, tomando-os como referência uma escrita padrão, que se
julga ter passado pelo crivo de instâncias de legitimação, como edi-
toras, clubes, jornais, revistas, concursos e, consequentemente, pelo
julgamento dos críticos de literatura.
Acontece que ao se dar atenção demasiada a “casos gramati-
cais”, redireciona-se o principal objetivo da análise literária que seria
a compreensão dos aspectos naturais, sociais ou sentimentais, que
o texto literário possivelmente apresentaria. Desta maneira, vê-se
impossibilitado um diálogo da literatura com os campos do conhe-
cimento como a filosofia, antropologia, sociologia, geografia, dentre
outros.
Outro ponto diz respeito à ausência de uma crítica acerca da
cultura regional, pois não se tem a preocupação em despertar o in-
teresse para o conhecimento das diversificadas práticas culturais,
restringindo-se o conhecimento somente às questões que são propa-
gandeadas pelos meios de divulgação mais comuns. Tal atitude deixa

- 144 -
deficiente, ou melhor, reduzida, uma das funções mais importantes
do texto literário, que é despertar o senso crítico para as questões
culturais em que os homens estão imersos. Em consequência, o ter-
ceiro ponto, a não consciência dessa função, que torna o leitor, cada
vez mais, um mero recebedor do que lhe é imposto como verdade.
O último ponto, que está de certa forma relacionado ao ante-
rior, diz respeito aos meios de divulgação, que a depender do interes-
se de quem ocupa os cargos, “autoriza” o que deve e o que não deve
ser publicado. Essas escolhas, muitas vezes, acontecem de maneira
arbitrária, não considerando a verdadeira importância do material,
em termos de conteúdo, mas, sim, considerando-se o interesse co-
mercial, visando primeiramente o lucro. Sendo assim, são esses “crí-
ticos” – os que selecionam os textos para publicação – que compõem
as editoras, ou seja, umas das instâncias de legitimação.
Diante desse cenário, as produções escritas foram sendo cria-
das mais isoladamente, salvo em alguns raros casos de escritores
que possuíam condições econômicas para custear os investimentos
na carreira de escritor (se é que posso ousar em afirmar que exista/
existiu profissional que vive/viveu exclusivamente deste ofício em
Manaus), cujo próprio campo demandava e, até certo ponto, ainda
demanda. Essa circunstância excluiu um relativo número de auto-
res que produziram literatura, principalmente a partir da criação do
movimento Clube da Madrugada, mas não tiveram quase nenhuma
visibilidade no campo literário.
Porém, a existência de um campo intelectual literário conso-
lidado na cidade seria necessária para o estabelecimento de relações
sociais capazes de sistematizar a atividade da produção intelectual.
E estar inserido no campo possibilitaria ao escritor o conhecimento
de sua obra por seus pares e, posteriormente, também a consagra-
ção ou não por membros que possuíam a condição de “julgadores”.
Bourdieu (1968, p. 126-127) oferece certos dispositivos analíticos
para chegar a essa conclusão quando afirma, referindo-se à noção
de campo, que

de fato, a estrutura dinâmica do campo intelectual não é outra coisa


senão o sistema de interações entre uma pluralidade de instância,
agentes isolados, como o criador intelectual, ou sistema de agen-
tes, como o sistema de ensino, as academias ou os círculos literá-
rios, que são definidos, ao menos no essencial, no seu ser e na sua

- 145 -
função, por sua posição nesta estrutura e, pela autoridade, mais ou
menos reconhecida, isto é, mais ou menos forte e mais ou menos
extensa, e sempre mediatizada por sua interação, que elas exercem
ou pretendem exercer sobre o público, ao mesmo tempo capital e,
em certa medida, árbitro da competição pela consagração e legiti-
midades intelectuais.

A ideia possibilita a compreensão da existência de um sistema,


efetivamente ainda não consolidado, em se tratando de Manaus, no
qual os agentes (escritores), as instituições, os editores, os clubes, as
revistas pudessem “avaliar”, ou até mesmo consagrar ou não, as pro-
duções literárias. O que, caso contrário, poderia oferecer ao escritor
a chance de ver a sua obra sendo mais largamente apreciada pelo
público, ou, na expressão de Bourdieu, o seu projeto criador, anga-
riando as diferentes instâncias de legitimação.
De qualquer forma, o tema a respeito de Manaus foi sendo
representado por meio de diferentes gêneros literários: narrativo ou
épico (romance, conto, crônica e narrativa mítica), lírico (poema) e
teatro (tragédia). E para entendimento da concepção de literatura
que permeia as produções literárias dos escritores, coadunando, em
certa medida, com os conceitos de literatura que foram apresenta-
dos por Romero (1980) e Veríssimo (1963), analisarei/interpretarei
diferentes textos literários, com a intenção de compreender, por um
viés sociológico, as diferentes representações literárias concernentes
à cidade de Manaus.
Do gênero narrativo ou épico, o autor selecionado foi Milton
Hatoum, com o Romance Dois irmãos; Erasmo Linhares, com o livro
de contos O tocador de charamela; Genesino Braga, com o livro de
crônicas Chão e graça de Manaus.
Do gênero lírico, Astrid Cabral, com o livro de poemas Visgo
da terra e Aldísio Filgueiras, com o livro Manaus, as muitas cidades.
Já o gênero dramático está sendo representado pelo autor
Márcio Souza, com o livro As folias do látex.
Para o exercício de reflexão das obras que representam Ma-
naus, contextualizo brevemente alguns aspectos da cultura amazô-
nica, assim como certos fatos históricos, uma vez que esses dados
aparecem, evidentes ou não, nos textos dos autores. Além disso, tais

- 146 -
informações contribuem para uma análise mais apropriada e singu-
lar das obras em questão. Contudo, é valido ressaltar que a contex-
tualização se fará a partir da ideia e noção de Amazônia tal qual foi
construída por produtores intelectuais da região, e que foi cristali-
zada nos discursos reproduzidos institucionalmente, tornando-se
verdade natural3; em confronto com uma crítica que se faz aos es-
quemas interpretativos sobre a Amazônia de um modo geral.
A essas verdades naturais, Almeida (2008) apresenta a ideia de
arquivo (archivo), afirmando,

Archivo como genealogia, consiste num registro variado de formu-


lações, argumentos, noções operacionais, impressões, metáforas e
figuras de retórica, que se acham “arquivados”, de maneira incons-
ciente, nas representações de diferentes explicadores, comentado-
res regionais e intérpretes, que os reproduzem acriticamente, num
automatismo de linguagem, de acordo com um léxico singular que
é acionado a cada vez que se fala de ou sobre Amazônia (ALMEI-
DA, 2008, p. 11).

Almeida (2008, p. 11) ainda chama a atenção para o fato de


que o archivo concerne também a uma modalidade de percepção
que acaba resultando num senso comum erudito. Observe:

(...) não é preciso agrupar e ler integralmente todos os chamados


naturalistas-viajantes para repetir os instrumentos de percepção dos
quais fazem uso para explicar a Amazônia. O archivo, em sendo re-
lação, concerne também a modalidades de percepção que, além de
enfatizarem o quadro natural, tem sido transmitidas por comentado-
res regionais, explicadores, intérpretes acadêmicos, classificadores
da produção intelectual e historiadores da ciência mesclados com
autoridades burocráticas administrativas, resultando num senso co-
mum erudito (ibid.).

Em primeiro lugar, é possível perceber, por meio dos textos


escritos por diferentes escritores e de diferentes áreas de atuação, que
o senso comum erudito apresenta a Amazônia a partir de dois es-
paços, sendo estes representados por: espaço da “cultura urbana” e
espaço da “cultura rural”.

3 Expressão usada pelo professor Dr. Alfredo Wagner B. de Almeida, na discus-


são sobre archivo, presente na Apresentação do livro Antropologia dos archivos da
Amazônia, de 2008.

- 147 -
Estes dois lugares são os que aparecem com muita frequência
nos textos literários. Desta forma, são apresentadas as vivências ora
nas cidades, ora no ambiente rural. Loureiro (2001, p. 65) apresenta,
de forma esclarecedora, e de acordo com o seu ponto de vista, as ra-
zões pelas quais esses dois ambientes divergem e se complementam
(em algum momento), ao afirmar que:

A cultura urbana se expressa na vida das cidades, principalmente


naquelas de porte médio e nas capitais dos Estados da região. Nas
cidades as trocas simbólicas com outras culturas são mais in-
tensas, há maior velocidade nas mudanças, o sistema de ensino é
mais estruturado, os equipamentos culturais são em muito maior
número e há o dinamismo próprio das universidades. No ambiente
rural, especialmente ribeirinho, a cultura mantém sua expressão
mais tradicional, mais ligada aos valores decorrentes de sua his-
tória. A cultura está mergulhada num ambiente onde predomina a
transmissão oralizada. Ela reflete de forma predominante a relação
do homem com a natureza e se apresenta imersa numa atmosfera
em que o imaginário privilegia o sentido estético da obra (destaques
meus).

A partir da perspectiva da citação como um todo, será fácil


perceber que os textos literários ora expressam comportamentos e
ações realizadas nos espaços ditos urbanos ora expressam costumes
e tradições exteriorizadas nos ambientes rurais (ou ribeirinhos).
Contudo, esses ambientes se interrelacionam em determinados mo-
mentos, como numa espécie de simbiose, de onde resulta uma mis-
tura que evidencia a natureza comum dessas diferentes culturas, que
é a cultura amazônica.
Desta forma, na percepção de Loureiro (2001, p. 65), “é preci-
so entender que a cultura do mundo ribeirinho se espraia pelo mun-
do urbano, assim como aquela é receptora das contribuições da cul-
tura urbana. Interpenetram-se mutuamente, embora as motivações
criadoras de cada qual seja relativamente distintas”. Dá para perceber
a ideia da coexistência de uma dualidade que coloca em evidência
características particulares de duas práticas culturais distintas, mas
que exclui muitas outras que podem compor uma pluralidade bas-
tante significativa.
Para o ponto de partida da contextualização de alguns signi-
ficativos momentos históricos pelos quais o Amazonas passou, será

- 148 -
a última citação longa, a de Loureiro (2001, p. 65) já apresentada
acima, dando-se maior ênfase às expressões em negrito.
O Forte de São José do Rio Negro (a atual cidade de Manaus)
registra a sua fundação no ano de 1669 (SOUZA, 2010, 2009; DIAS,
2007; DAOU, 2014). Com a população majoritariamente formada
por indígenas que conviviam dentro do mesmo espaço geográfico,
sem “leis” que determinassem ou proibissem nenhum lugar especí-
fico para a habitação, a convivência se dava a partir das práticas de
diferentes costumes, específicos das diferentes etnias da região, ou
seja, práticas que se originaram da relação entre o homem amazô-
nico e o seu ambiente natural. Essa tradição, herdada culturalmente
dos antepassados, tentava perpetuar a cultura através do convívio
entre os nativos.
Porém, em meados do século XIX os viajantes que passaram
registraram não somente o modo de vida dos indivíduos, mas o quão
promissora era essa região, tanto por suas especificidades naturais
(fauna e flora) quanto pelos diversos costumes das povoações que
habitavam – viam, justamente nesta questão, a necessidade de “civi-
lização” dos nativos. Desta forma, Francisco da Mota Falcão ergue a
atual cidade de Manaus:

Escolheu o outeiro, entre dois igarapés, situados três léguas acima


da confluência do rio Negro com o Solimões e levantou com seu
filho [...], especialista em fortificações, um reduto de pedra e barro,
de forma quadrangular. [...] O fortim, em que repousava segurança
e soberania portuguesa naquelas paragens, bastante para manter em
respeito a indiada, recebeu o nome de São José da Barra do Rio Ne-
gro [...]. Nas imediações da nova praça logo se localizaram algumas
famílias de Barés, Banibas e Passés, com que se formou a primeira
população do lugar da barra, nome que começou a ser conhecido
o nascente povoado. Estavam lançados os fundamentos da futura
Manaus (REIS, 1931, p. 47-48 apud DAOU, 2014, p. 66).

A partir desta “conquista” dos portugueses, a luta pelas rique-


zas da região deu início a vários confrontos entre brancos, índios e
mestiços. Um deles, digo um dos mais significativos, e que revela a
tentativa de desmantelamento da “empresa colonial”, foi a Cabana-
gem. Ela representou a tentativa de uma nova civilização de expres-
são amazônica que surgia, são os novos amazônidas: os caboclos.
Contudo, a tentativa não se efetivou, resultando em um “simples hia-

- 149 -
to de anarquia social das massas incultas, perdendo-se assim um dos
fios da meada do processo histórico da Amazônia” (SOUZA, 2009,
p. 211).
Os próximos episódios registraram a continuidade do proces-
so de transculturação pela qual passou a população local após a colo-
nização europeia chegar à Amazônia. Os historiadores Souza (2008)
e Dias (2007) descreveram esse processo que retirou dos habitantes
da região o direito de ser índio, impondo novos costumes e tradições
por meio dos conflitos, principalmente os armados, realizados em
toda a região, exterminando, muitas vezes, nações indígenas inteiras,
como é o caso da nação Muhra, fato que inclusive proporcionou ao
soldado lusitano, João Wilkens, o codinome de “poeta do genocídio”,
por ter versificado o poema A muhraida, uma espécie de louvor à
subjugação da nação Muhra pelas tropas portuguesas. Acrescentan-
do-se, ainda, que se trata do primeiro poema escrito na Amazônia,
portanto sendo registrado historicamente como o primeiro texto
literário da região, “a poesia do genocídio”. As palavras de Souza
(2008, p.12-13) confirmam o fato histórico desta forma:

(...) Além de ser a primeira tentativa poética da região, representa


um documento histórico inestimável. Publicado em Lisboa, pela
Imprensa Régia, no ano de 1819, quase trinta anos depois de sua
confecção, é o trabalho de um homem que se envolveu diretamente
no contato com os Muhra, habitantes do rio Japurá, onde exercia o
cargo de Segundo Comissário até 1787. Canto de glórias e certezas
(...). (...) limpa as lágrimas de um semblante benévolo e arma-se de
uma estética bem medida para desfilar um poema de crueldade e
catolicismo. João Wilkens, como os clássicos, pretendia que a poe-
sia, eloquente, semi- pagã e heróica, reproduzisse a figura inteira da
aventura da conquista (...).

Durante a invasão às terras amazônicas, houve a “descober-


ta” da hevea brasiliensis, árvore que produz o líquido (semelhante
ao leite, denominado de látex) que, após o processo de defumação,
mantém-se conservado para a exportação, chegando a lugares lon-
gínquos, para então ser utilizado, como matéria prima, na confec-
ção de objetos de borracha. A venda desse produto movimentou a
economia local, fazendo com que a Amazônia chegasse a represen-
tar 70% da economia brasileira. Esse fato fez com que o Amazonas
e o Pará, em específico Manaus e Belém, passassem por processos

- 150 -
de transformação urbana extremamente acelerados, segregadores e
agressivos, nos quais a população pobre (consciente ou inconscien-
temente) perdeu o direito à prática de uma série de ações culturais
que formavam a sua identidade.
O resultado desse acontecimento histórico implicou a mo-
dificação da cultura local e, o pior, fez com que o próprio nativo,
na maioria das vezes, se envergonhasse da sua identidade cultural,
passando a adotar comportamentos estrangeiros incoerentes com a
realidade local. Por exemplo, a imitação do modelo de construção
de casas e edifícios, que inclusive ainda estão na região central de
Manaus, resistindo à ação do tempo; os hábitos alimentares, dando-
-se preferência à comida em conserva; a vestimenta, optando-se por
roupas de “estilo europeu”, mesmo tendo de suportar a alta tempe-
ratura local, enfim, esses são alguns exemplos oferecidos para se ter
noção da proporção do aculturamento que se deu na região. Con-
tudo, ainda se tem registro de etnias indígenas, principalmente as
que vivem mais distantes do centro da cidade, as ribeirinhas, que
lutaram/lutam para manter as suas tradições.
Benchimol (2009, p. 73) reafirma essa dificuldade durante a
colonização dos nativos dizendo: “(...) a grande luta foi a consolida-
ção dessa conquista em face à rebeldia das populações nativas, que
se opunham à escravidão, aos descimentos e às tropas de resgate,
mediante as quais se procurava a mão-de-obra nativa aos trabalhos
de colonização (...)”. Evidencia-se, cada vez mais, que apesar da pro-
funda influência portuguesa na cultura e na vida dos habitantes da
região amazônica, o processo de colonização não foi uma tarefa fácil,
pelo contrário, foi “dura e penosa”.
Já após o auge da exportação do látex, outro período históri-
co-socialmente significativo para a região, o declínio da sua comer-
cialização foi estarrecedor para a população de um modo geral, mas
também desesperador para os representes políticos e a classe domi-
nante à época, isso porque essa mesma classe não pensou em uma
forma de desenvolvimento de criação de políticas econômicas de
acordo com a realidade da região, além de não estabelecer também
políticas de desenvolvimento socioeconômicos. A ausência destas
ações beneficiou as firmas estrangeiras de importação e exportação e
as casas aviadoras que foram implementadas na região durante a co-
mercialização da goma elástica, isso porque seus investimentos não
eram pensados para o desenvolvimento local.

- 151 -
Além de tudo, o sistema implantado nos seringais amazônicos
para a extração do látex revela a exploração praticamente escrava
dos seringueiros (na maioria nordestinos, que fugiam da seca do
nordeste do país), e a técnica predatória da árvore produtora da ma-
téria prima permite perceber o quanto esses dois princípios foram
nocivos tanto à população local e à natureza, resultando numa série
de acontecimentos onde nem mesmo a classe dominante conseguiu
manter o status tão almejado e tão europeizado.
Outro marco importante da consolidação histórica da região
foi a implementação da Zona Franca de Manaus, criada em 1967
com a “intenção de modificar o sistema de transações e de criar um
acúmulo de poupanças locais (ou atraídas para a cidade), para a for-
mação de uma infraestrutura industrial e agropecuária (...)” (BATIS-
TA, 2007, p. 357), o que atraiu grande parte da população interiora-
na a morar na Capital. Consequentemente, por conta da imigração
desordenada, a cidade teve um grande “inchaço” populacional, re-
sultando numa incompatibilidade entre a oferta de mão de obra e
a demanda. Mais uma vez a população local mais desfavorecida se
encontrava sem políticas públicas que a amparasse e sem condições
dignas de alcance do objetivo de melhoria das condições de vida.
Souza (2010) registra que nesse período toda a geografia da ci-
dade se modificou, mas, principalmente, aumentou a marginalidade,
a prostituição, o tráfico de drogas, os assassinatos, enfim, a crimina-
lidade cresceu em grandes proporções e desenfreadamente, aumen-
tando ainda mais a distância da população mais carente à ascensão
social e econômica.
Já em relação ao campo intelectual, após um longo período de
tempo de estagnação no âmbito das produções literárias realizadas
academicamente, surgiu um manifesto literário chamado Clube da
Madrugada, em 1954, cujo objetivo principal era reagir à estagnação
cultural. Eles apresentaram críticas aos padrões culturais conserva-
dores e ao anacronismo moral e político, que embasavam o fazer his-
tórico da maioria dos escritores, até aquele momento. O manifesto
possuía um Estatuto cujo capítulo que tratava da natureza e finali-
dade do Clube apresentava determinações que autorizavam a livre
manifestação do pensamento, além de ter como propósito o estudo
dos diversos ramos das ciências, das letras e das artes.
A fundação do Clube possibilitou fazer com que muitos escri-
tores locais se sintonizassem com os novos ideais de “modernidade”

- 152 -
que surgiram na Semana de arte Moderna, realizada em 1922, em
São Paulo – porém foi com a geração de 45 que o clube teve uma
sintonização mais direta. Mesmo se considerando um longo perío-
do de tempo para a assimilação do Modernismo brasileiro, pois o
Clube surgiu trinta e dois anos após a Semana de Arte. Os artistas
locais sofreram os influxos desse movimento, garantindo à região
uma produção artística que representasse a realidade local. Contudo,
deve-se considerar que prenúncios dessa nova estética já acontecia
mesmo antes do surgimento do Clube, no entanto, como afirma o
prof. Marcos Frederico Krüger,

cinco anos depois da Semana de Arte Moderna, ou seja, em 1927,


Pereira da Silva publicava, em Manaus, os seus poemas amazôni-
cos, primeiro livro de inspiração modernista no Amazonas. O poe-
ta, porém, confunde modernismo com ausência de rima e métrica.
Essas características formais da poética modernista eram suficien-
tes para escandalizar as mentes mais conservadoras da província
que se recusavam a aceitar poemas não rimados e não metrificados
(KRÜGER apud TELLES, 2014, p. 26).

Logo, cinco nomes marcaram o início do Modernismo no


Amazonas. Pereira da Silva, como mencionado por Krüger, Clovis
Barbosa (autor da Revista Equador, 1929), Violeta Branca (com o
livro de poemas Ritmos de inquieta alegria, 1935), Ferreira de Castro
(com o romance A selva, 1930) e Thiago de Mello (com livro Silêncio
e Palavra, 1951).
Contudo, foi com o aparecimento do Clube que os escritores
locais passaram a produzir uma literatura de cunho mais moderno,
tentando sintonizar com as produções dos estados do sul do país. Ele
foi também responsável por concretizar a produção literatura local e
romper com certos anacronismos moral e político que permeavam o
fazer literário de muitos artistas.
É válido ressaltar que o Clube da Madrugada foi assim
denominado devido aos encontros dos artistas acontecerem no
horário da noite, adentrando a madrugada. Como eles ficavam até
altas horas, acabavam sendo vistos como boêmios e, às vezes, loucos,
pela sociedade da época. O local onde aconteciam os encontros era
em uma praça pública chamada Heliodoro Balbi (mais conhecida
como praça da Polícia), e debaixo de um velho mulateiro (árvore

- 153 -
própria da região amazônica), próximo ao Café do Pina, localizado
no centro da cidade de Manaus. E, como afirma Telles (2014, p.
28), “sob a fronde da velha árvore, os jovens escritores realizavam
suas reuniões literárias e lançamento de seus livros”. Desta forma,
é notório que o Clube da Madrugada teve um importante papel
durante as lutas nacionalistas e, principalmente, “na formação
política e ideológica de Manaus”.
Esses acontecimentos, que marcaram a história da cidade de
Manaus, estão representados literariamente nos livros apresentados
neste texto. A literatura representa cada fato ocorrido por meio de
seu discurso literário, de sua ficcionalidade e pelo singular ponto de
vista escolhido pelo escritor. Desta maneira, percebe-se, por meio
dos diversos gêneros literários, munidos de suas especificidades, o
quanto o campo do fazer poético entrelaça realidade, sentimento,
ficcionalidade, sociedade e cultura, permitindo uma reconstituição
histórica distintiva, diferente de qualquer outro discurso dito cientí-
fico, que somente o campo artístico propicia.
Por fim, dois dos seis livros selecionados para o estudo foram
escritos pelos autores Astrid Cabral e Erasmo Linhares, ex-integran-
tes do Clube da Madrugada. Mas é necessário, antes de tudo, deixar
evidente que as análises feitas exercitam um olhar crítico a respeito
das noções de biologismos, geografismos e dualismos, assim como
apresentadas por Almeida (2008), somando-se ao rigor da literatura.
Isso porque a intenção na análise foi fazer uma interpretação das in-
terpretações, um plano epistemológico que os autores realizaram da
cidade, em interlocução com diferentes campos do conhecimento.

A representação de Manaus nos livros de literatura e uma


crítica aos modelos de percepção da realidade empirica-
mente representada

Desde tempos longínquos, os viajantes, em expedição pela


Amazônia legal produziram uma quantia significativa de narrativas
que retratam os aspectos naturais, as relações sociais, a vida animal, a
geografia da região, os monumentos da cidade, bem como as mudan-
ças ocorridas num determinado tempo, além de retratarem também
os sentimentos e as emoções humanas. Esses relatos contribuíram

- 154 -
para produção temática de vários textos literários, resultando numa
série de escritos, que variam em termos de gênero, mas representam
a cidade de Manaus literariamente até os tempos atuais.
Almeida (2008) explica a seleção dos temas que foram, e que
ainda são, usados por escritores a partir da ideia de “biologismos”,
“geografismos” e “dualismos” que se cristalizaram no imaginário so-
cial.
Para o antropólogo, essas ideias merecem análises críticas,
pois colocam à margem uma diversidade cultural que o senso co-
mum erudito, neste caso sendo representado pelos “interpretes e
comentadores” da região, ignora. Portanto, ele orienta que há neces-
sidade de se praticar uma investigação “detida” e “sistemática” desses
discursos, tendo como finalidade a compreensão do modo como a
percepção da realidade vai sendo construída no imaginário social a
partir das “autoevidências” e do uso de “metáforas hiperbolizantes”,
utilizadas pelos escritores. Que, muitas vezes, não passam de repe-
tições que se reproduzem e se difundem na academia e em muitas
instâncias de legitimação.
As leituras, análises e interpretações dos livros e dos escritores
permitiram compreender a forma, ou as formas, como a cidade de
Manaus foi representada nos livros de literatura, buscando-se exer-
citar um esforço de pesquisa que pretende também realizar uma crí-
tica a essas formas de percepção da realidade que foi empiricamente
representa pelos literatos. Portanto, acredito que fica explicado o fato
de analisar um conjunto de escritores que atuam no campo intelec-
tual, em específico o literário.

Condições históricas em que as produções literárias fo-


ram escritas e às restrições na divulgação dos livros ou das
obras

Os escritores estavam inseridos num contexto regional que


marca o seu lugar de fala, registrado com elementos da natureza
ou/e de abordagem social. Os aspectos naturais, como a paisagem, a
geografia e o clima, são frequentemente representados nos poemas,
contos, romances e crônicas. Da mesma maneira, as problemáticas
sociais, como a prostituição, o vício, o desemprego, a ausências de

- 155 -
políticas públicas voltadas à classe baixa, e tantos outros assuntos
dessa ordem.
Assim, é notório que o escritor está preso às condições histó-
ricas de seu tempo e ao contexto em que está inserido, levando para
o seu texto o legado histórico das especificidades de tempos passa-
dos, apresentando ao leitor as representações que faz da realidade.
Tal representação pode ser remissiva a outros textos ou pode ser o
resultado da construção feita de reflexões ao longo da sua carreira e
das suas experiências, ou simplesmente das leituras que faz das coi-
sas que o cercam. As instâncias de legitimação analisam essas duas
possibilidades, emitindo o aval a partir da leitura interpretativa rea-
lizada, podendo ser apreciativa ou depreciativa. A noção de livro e
obra está intrinsecamente relacionada a essa questão.
Por outro lado, a restrição de divulgação dos objetos literários,
seja pela dificuldade de publicação ou pela ausência de um públi-
co formado por leitores críticos, relega os escritores ao anonimato.
Consequentemente, os seus textos ficam com a circulação restrita
nas universidades, e mais restrita, ainda, nos cursos específicos de
Letras.
Esse cenário favorece o aparecimento das “Sociedades de ad-
miração mútua”, isto é, grupos que passam a avaliar e apreciar as pro-
duções literárias de seus pares, emitindo pareceres que podem não
estar diretamente relacionados à análise do objeto artístico-literário,
mas à deferência que se tem pelo escritor. Que também pode estar
relacionado à questão do tipo de relação social que este desempe-
nhada no campo da produção intelectual. Essas sociedades passam a
nutrir uma adoração mútua.

Para dar à Sociologia da criação intelectual e artística seu objeto


próprio e, ao mesmo tempo, seus limites, é preciso perceber e consi-
derar que a relação que o criador mantém com sua obra são afetadas
pelo sistema de relações sociais nas quais se realiza a criação como
ato de comunicação ou, mais precisamente, pela posição do criador
na estrutura do campo intelectual (BOUDIEU, 1968, p. 105).

Sendo assim, o resultado parcial deste estudo indica que a pu-


blicação, divulgação e consagração das obras literárias, produzidas
em Manaus, estão fortemente condicionadas aos fatores autor, livro
e instâncias de consagração. E os agentes estão inseridos em uma

- 156 -
estrutura dinâmica do campo literário, onde existem agentes (ou
escritores) isolados, mas também aqueles que estão bem inseridos,
com função bem definida e com uma posição na estrutura do cam-
po, com autoridade suficientemente capaz de consagrar e legitimar
as produções intelectuais dos seus pares.
No entanto, é necessário inserir à análise a existência de escri-
tores que, em busca de reconhecimento por parte do público e das
agências de consagração, tenta agenciamento fora do campo literário
local. Esses escritores passam a construir uma certa autonomia em
relação ao seu campo local, escrevendo e publicando independente-
mente das instâncias legitimadoras de sua região de origem. Contu-
do, é certamente possível que a relação que esse autor estabeleceu em
outro lugar, ou outro campo – como o político –, já o consagrou num
campo de produção intelectual.

Referências

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- 157 -
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do autor, 1994.
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3. ed. Manaus: Valer / Governo do Esatdo do Amazonas / Edua / Uni-
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xeira, 1601 a Machado de Assis, 1908. 4. ed. Brasília: Universidade de
Brasília, 1963.

- 158 -
ARAÚJO LIMA E OS ESTIGMAS SOBRE O
CLIMA E O HOMEM DA AMAZÔNIA

Odenei de Souza Ribeiro

Resumo: Este artigo procura recuperar o debate crítico de Araújo Lima, a partir
de seu livro Amazônia - a terra e o homem, a fim de refutar a tese de que o
clima, o meio físico e a raça eram os fatores responsáveis pelo atraso social,
econômico e cultural da Amazônia. Destacando seu papel como intelectual
comprometido em repor a Amazônia na agenda nacional e sua ação política
diante dos inúmeros cargos públicos que ocupou durante sua vida.

Palavras-chave: Amazônia, intelectual, clima, raça, educação, saúde.

Introdução

O livro, Amazônia-a terra e o homem de Araújo Lima, lançado


em 1931 sintetiza as posições de grande parte dos intelectuais locais
na luta contra os estigmas imputados à região. Araújo Lima muni-
do de um acervo de informações e com base no que havia de mais
avançado na medicina, na física, na geografia, na história, na eco-
nomia e na antropologia refutou e deu um duro golpe nas teses que
apontavam o clima e o meio físico como fator que impediria o desen-
volvimento da civilização moderna na Amazônia. Imediatamente o
livro Amazônia, a terra e o homem, tornou-se referência para quem
procurava uma explicação científica para o atraso da região, longe
dos estigmas e preconceitos difundidos por uma literatura incapaz
de compreender a problemática amazônica em sua integridade. O
livro de Araújo Lima ganhou destaque à medida que o sociólogo
pernambucano, Gilberto Freyre o citou várias vezes em Casa–Gran-
de & Senzala, dando relevância às qualidades científicas do estudo
minucioso empreendido pelo sanitarista amazonense.

O Intelectual e a Organização da Cultura

O título de médico sanitarista que Araújo Lima possuía, con-


feria a ele poder e prestígio no quadro social regional, conferiam dis-
tinção ao portador que o credenciava a ocupar cargos públicos de

- 159 -
relevância. Título acadêmico que expõe por inteiro o processo e os
mecanismos sociais de deslocamento que os jovens, oriundos dos se-
tores dominantes da região, eram obrigados a fazer para os grandes
centros no Brasil e na Europa1, em busca de formação em direito ou
em medicina2.
Automaticamente os filhos dos setores dominantes que pos-
suíssem formação em Direito ou Medicina se habilitavam para assu-
mir funções na esfera pública e ao mesmo tempo conferia legitimi-
dade para organizar a esfera cultural. Não é sem sentido que Araújo
Lima exerceu o cargo de diretor da Instrução Pública do Amazonas
entre os anos de 1917 a 1919; exerceu o cargo de prefeito de Manaus
de 1924 a 1929, ao mesmo tempo, que era membro ativo da Acade-
mia Amazonense de Letras participando de suas discussões na esfera
local e nacional. (BITTENCOURT, 1985, p. 100).
As ambivalências e contradições que atravessavam as relações
sociais e as lutas entre as varias frações de classe dominante, pelo
poder legítimo de conduzir os rumos políticos e culturais da região,
se alargavam com o processo de mudanças mais amplas em curso
no Brasil.
Esse momento indica as estratégias e práticas utilizadas, por
esses grupos, a fim de se reproduzirem e manter o papel hegemô-
nico na organização da vida social regional. Jovens intelectuais que
foram estudar em Recife, Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro ou até
mesmo na Europa, sem romper as ligações sentimentais, culturais e
históricas com a própria terra. Retornam a região com a missão de
1A propósito da necessidade de se deslocar para os grandes centros em busca de formação por
parte dos filhos das classes dominantes na Rússia Gramsci nos fala: “uma elite dentre as pes-
soas mais ativas, enérgicas, empreendedoras e disciplinadas vai para o exterior, assimila a
cultura e as experiências históricas dos países mais desenvolvidos do Ocidente, sem com isso
perder as características mais essenciais da própria nacionalidade, isto é, sem romper as li-
gações sentimentais e históricas com o próprio povo; feito assim seu aprendizado intelectual,
retornam ao país, obrigando o povo a um despertar forçado, a uma marcha acelerada para
frente (...)”(Gramsci,2004; 27). Há uma semelhança estrutural no processo de formação das
elites na Rússia e no Brasil e em particular no Amazonas, a missão de despertar o povo para
o progresso e a civilização é uma disposição comum em Araújo Lima, Arthur Cezar, Djalma
Batista e Tocantins.
2 Nas sociedades onde a base industrial é restrita e não se desenvolveram superestruturas
complexas, a maior parte dos intelectuais é do tipo tradicional, já que domina a produção
agrária e o latifúndio, daí nasce à vocação bacharelesca do advogado e do médico (Gramsci,
2004; 31). O fato da Amazônia não possuir uma base industrial explica a escolha feita pelos
filhos das classes dominantes entre direito ou medicina. Em uma sociedade que tem como
base econômica o extrativismo, as profissões que denotam prestígio são tradicionalmente di-
reito e medicina.

- 160 -
despertar a consciência do povo para o desenvolvimento e o pro-
gresso difundido pelo ideário positivista e romântico. Ideais que se
ajustavam as suas aspirações privadas (tornar-se escritor reconhe-
cido socialmente) e sua missão pública de repor a região na agenda
política nacional.
Uma geração amazônica desfrutou dos encantos da civiliza-
ção européia e trouxe para sua terra os hábitos de bom gosto, o poli-
mento social, o amor pelas coisas do espírito.
[...] há vários exemplos, relembre-se a figura do poeta amazonense,
Raimundo Monteiro, neto de um dos desbravadores dos seringais
do Madeira (seu avô fundou a cidade de Humaitá, que personifica
bem o homem de inteligência, de família abastada, graças à bor-
racha, típico da geração que viveu entre oitocentos e os primeiros
anos do século atual. Monteiro, muito moço, vai estudar na França,
como tantos outros jovens conterrâneos. E lá se enternece pelo vi-
ver parisiense [...]. (TOCANTINS, 1982, p. 125).

Araújo Lima faz parte dessa geração, nascido em 1884 na vila


de Muaná (Ilha de Marajó), Estado do Pará, cedo sua família trans-
feriu-se para Manaus, cidade na qual seu pai Dr. José Francisco de
Araújo Lima viera exercer a função de Juiz de direito na comarca
de Manaus, enquanto sua mãe D. Maria Amélia de Mendonça Lima
dirigia o Colégio Santa Catarina do qual era proprietária. A origem
familiar indica o espaço social no qual internalizara os primeiros ha-
bitus que serão atualizados e redefinidos a cada momento ao longo
de sua formação escolar e em contextos situacionais mais amplos.
(BOURDIEU, 1994, p. 46-81). Desse processo nascem as aspirações
e práticas objetivamente compatíveis ao conjunto das origens sociais
que dominavam a cena política, cultural e econômica de Manaus.
Araújo Lima
Fez o curso primário no Colégio Santa Catarina e o secundário,
no Ginásio Amazonense. Formou-se em Farmácia na Faculdade
de Medicina da Bahia, em 1902, doutorando-se em Medicina na
Faculdade do Rio de janeiro, em 1912. Diplomou-se em Medicina
Tropical, pela Universidade de Paris (1911-1912), conquistando o
atestado do Curso de Microbiologia do Instituto Pasteur de Paris.
(BITTENCOURT, 1985, p.100).

A trajetória de Lima abre uma clareira que nos possibilita vi-


sualizar o jogo de forças presentes nas disputas entre os membros das

- 161 -
frações e classes dirigentes a fim de manter o status quo do grupo. Os
esquemas de pensamento adquiridos por meio das experiências esco-
lares, associado a uma ampla rede de relações sociais, foram decisivas
para que Araújo Lima tivesse um papel de destaque na esfera políti-
ca e cultural regional e ao mesmo tempo o habilitaram para assumir
a Inspetoria de Educação e a Intendência Municipal (prefeitura) de
Manaus. É possível afirmar que a maior parte do quadro dos intelec-
tuais da região tinha origem social em frações dos setores médios (ma-
gistrados, militares graduados, profissionais liberais, e políticos pro-
fissionais), na burguesia comercial e extrativa em declínio com o fim
do período da borracha. Suas aspirações políticas e literárias - como
ocupar cargos chaves na esfera pública, escrever em jornais, poesia
e romances - estavam condicionadas aos títulos, aos diplomas e ao
capital de relações sociais que mobilizavam como trunfo em meio às
lutas por posições mais relevantes. (MICELI, 2001, p. 53-68).
O fato é que entre as décadas de 1890 a 1935 havia uma dis-
puta no meio científico, literário, artístico e filosófico por uma de-
finição legítima do complexo bio-sócio-cultural da Amazônia. No
centro desse campo de lutas encontravam-se Emílio Goeldi, Jacques
Huber, Orville Derbe, Ferreira de Castro, Silvino Santos, Euclides
da Cunha, Alberto Rangel, Raul Bopp, Nunes Pereira, Álvaro Maia,
Alfredo da Matta, Péricles Morais, Abguar Bastos, Dalcídio Jurandir,
Araújo Lima e outros. A despeito dos distintos métodos, teorias e
gêneros literários em jogo nesse debate, é possível afirmar no limite,
que as obras desses autores, estejam polarizadas em torno da An-
tropogeografia de Friedrich Ratzel, da geografia humana de Vidal
de La Blache, das teorias raciológicas de Gobineau, do positivismo
de Augusto Comte, do evolucionismo de Spencer e das concepções
humanistas de Alexander Von Humboldt. Entretanto, a questão que
nos interessa é a disputa em torno da questão nacional presente nos
escritos de cientistas, escritores e ensaístas brasileiros. Nesses termos
é que a Amazônia- a terra e o homem, de Araújo Lima constitui uma
das expressões mais dramáticas desse debate.

Na obra reaccionaria de rehabilitação que se vem operando, no seio


das elites brasileiras, contra as condenações pretensamente prophe-
ticas de Buckle ou de Gobineau, resta apenas, regenerada a nacio-
nalidade pela contradicta dos homens e dos feitos, só ao homem
amazônico o aviltamento daquella maldição. Resta o labéo sobre o

- 162 -
amazonense, o caboclo... Perdura o erro anthropologico, sociológi-
co e histórico. A inaptidão aos hábitos de progresso e civilização,
que lhe attribuem, continúa arrolada entre as fatalidades ethnicas
que envilecem certas raças, compulsoriamente excluídas do conví-
vio da civilização. (LIMA, 2001, p. 37-38).

Investido de um arsenal de informações científicas de diversas


áreas, Araújo Lima elabora uma crítica aos que acreditam na incapa-
cidade de o homem amazônico incorporar os ideais de civilização e
progresso. Nesses termos é que a questão nacional se mostra como
pano de fundo no qual estão dispostos os dilemas da integração re-
gional. Sua crítica endereçada aos estigmas imputados ao homem
e ao clima amazônico visa demonstrar que a verdadeira causa do
subdesenvolvimento regional é a falta de uma ação coordenada pelo
poder público federal na área sanitária para garantir a saúde dos ha-
bitantes locais, investir maciçamente na educação e criar um fundo
de investimento para financiar a indústria regional.
Cientistas europeus, brasileiros, viajantes, escritores, intelec-
tuais locais disputam a primazia pelo poder legítimo de ordenar,
classificar e explicar as relações sociais, a fauna, a flora e a paisagem
física da Amazônia, a raça e o meio constituem esquemas interpre-
tativos presentes nas disputas científicas e literárias. Escritores con-
sagrados como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Viana
contribuíram, de forma decisiva, para tornar esses esquemas (meio e
raça) procedimentos comuns às análises sociais elaboradas naquele
período. Esquemas de interpretação que atribuíam ao clima e ao
índio as causas do atraso cultural e econômico da Amazônia. Nes-
se aspecto, intelectuais como Araújo Lima, e os seus concorrentes
locais, Adriano Jorge, Alfredo da Matta, Agnello Bittencourt, Péri-
cles de Moraes, Álvaro Maia, Clóvis Barbosa e outros assumiram a
missão de refutar os estigmas que recaiam sobre a região. Munido
das técnicas mais modernas de pesquisa Araujo Lima refuta as teses
que apontavam o clima e o índio como obstáculo ao progresso e ao
desenvolvimento da Amazônia. A questão regional funciona como
estratégia para os grupos locais se posicionarem no jogo entre as for-
ças políticas que delineiam um projeto de nação naquele momento
da vida nacional.

Estudando o eugenismo do índio, na evolução da nossa raça e for-


mação de nossa nacionalidade, assim conceitua Oliveira Viana: “O

- 163 -
índio, o caboclo puro, arrancado das suas florestas pela ferocidade
do sertanista ou pela unção do missionário, é absolutamente inci-
vilizável, é inteiramente refratário a qualquer influxo educativo, no
sentido de sua arianização. Parece que sua estrutura mental é mais
sólida do que a do negro e daí, desta sua menor maleabilidade, a
sua invencível resistência a ação dos agentes civilizadores. [...]”.
Não devemos aceitar, sem exame, o julgamento condenatório da
capacidade assimiladora e fixadora do índio no seio da civilização.
A incivilidade do índio, isto é, a sua capacidade para assimilar a
educação e para ser incorporado à civilização, é uma tese arriscada,
para não dizer temerária. (LIMA, 2002, p. 76-77).

Ao ponderar sobre os limites da tese defendida por Oliveira


Viana, Araújo Lima situa o lugar do índio e da Amazônia na forma-
ção nacional, seus argumentos procuram reabilitar o índio, habitante
secular da Amazônia, face às concepções que o tem como um empe-
cilho a formação nacional. Contrário as teses de Bukle e Gobineau -
que setores da intelligentsia e frações das oligarquias aceitavam como
verdade científica – empreende um trabalho meticuloso de pesquisa.
Desloca, assim, a problemática do meio e da raça para os proces-
sos sócio-educacionais, a higiene e o desenvolvimento técnico. Não
podemos imputar ao meio físico e, tampouco ao homem, a causa
da decadência, da estagnação sócio-econômica e cultural a qual a
região encontrava-se. O suposto fenômeno de seleção telúrica que se
processa na região dos trópicos úmidos, tão propalado por Euclides
da Cunha e Oliveira Viana, não passava de analises precipitadas e
impressões claudicantes. Lima( 2001, p. 138)
O que está em jogo não é somente a disputa por uma interpre-
tação legítima da Amazônia, capaz de projetar e consagrar seu autor
no espaço do campo intelectual. A posição dos intelectuais expõe as
ambivalências, contradições e alianças presentes nas lutas entre for-
ças sociais (grupos, frações e classes sociais) que buscam delinear
um projeto nacional, no início do século XX. Isto porque o campo
intelectual sofre injunções do campo de lutas políticas em um cená-
rio de intensas disputas pela constituição de uma hegemonia.

Com efeito, os intelectuais brasileiros se entregam à ação política


sem nenhuma hesitação e como se tivessem qualificação especial
para fazê-lo. Em muitas ocasiões, eles se tornam protagonistas polí-
ticos centrais. Além disso, arrogam-se uma competência particular
para assumir a responsabilidade pela dimensão mais política do fe-
nômeno político: a Ideologia. (PÉCAUT, 1990, p. 07).

- 164 -
A observação expressa por Daniel Pécaut, em Os intelectuais
e a política no Brasil, nos diz muito sobre as relações estruturadas
entre o conjunto das elites dominantes e a atmosfera intelectual que
dominava o cenário do início do século XX. Para os intelectuais a
realidade brasileira e regional oferece um espetáculo de um povo
ignorante de sua identidade, de sua cultura e de seu destino. Eles,
os intelectuais, assumem a missão de ajudar o povo a tomar cons-
ciência de sua identidade, de sua cultura e ao mesmo tempo criar as
condições ideológicas para proporcionar a unidade nacional. Daí a
ambivalência entre o seu compromisso com os interesses populares
e um projeto nacional de feição autoritária.

“Organizar” a nação, esta é tarefa urgente, uma tarefa que cabe às


elites. Dela os intelectuais têm ainda motivos para participar, na
medida em que constitui um fato indissoluvelmente cultural e polí-
tico: forjar um povo também é traçar uma cultura capaz de assegu-
rar sua unidade. (PÉCAUT, 1990, p.15).

Os intelectuais de diferentes origens sociais e regionais não


ficaram imunes a essa tendência que permeava suas práticas, um
exemplo local pode ser observado na apresentação da revista Equa-
dor, lançada em Manaus, 1929 por Clóvis Barbosa.

O destino de Equador é trabalhar na preparação da consciência na-


cional. Incurvar-se-á no exercício das forças expressivas da raça,
investigando-as. Interpretando-as. Equador nasceu na hora de sol
animadora duma consciência nova. Batizou-se com um compro-
misso de esforço para achar o nosso rythmo. Preoccupa-se com a
mentalidade social e physica absolutamente brasileira. Quer olhar
duro para a realidade semi-barbaras do meio. Quer olhar assim: es-
pelhando um sentimento humano sem desacerto de espírito local.

Mas, engraçado! Equador anda vestido numa forma eccletica de


nacionalismo. Nacionalismo passadista e actualista [...]

[...] Mas, que culpa temos nós que os iniciados do Rio e de São Paulo
collassem errado os valores modernistas!... (BARBOSA, 2001, p. 3-5).
A disputa pela definição legítima da cultura e da identidade
nacional contrapõe intelectuais de distintas regiões. Nesse sentido
Clóvis Barbosa faz uma ressalva ao caráter mimético do modernis-
mo do Rio e de São Paulo. Para Barbosa, escritores situados naquelas

- 165 -
cidades copiaram o estilo estrangeiro sem acrescentar algo de si e de
sua região no processo criativo. Ele, parte do princípio que devemos
nos modernizar, mas sem abandonar nossas raízes hybridas, essas
devem se atualizar continuamente no interior das novas experiências
estéticas modernas que emergiram na Europa e nos Estados Unidos
da América. Não podemos simplesmente copiar os modelos euro-
peus, precisamos, segundo ele, reabilitar os valores locais e fundi-los
com as concepções de modernas. É nesse mesmo sentido que Araújo
Lima denuncia que o atraso de nossa região não tem como causa o
meio-físico e o homem, e sim a falta de políticas de educação, sani-
tárias e de desenvolvimento sócio econômico. A posição desses dois
autores denota a luta entre os intelectuais pela definição e classifica-
ção legítima da identidade e da cultura regional e nacional.
As obras produzidas em meio a essas disputas, particular-
mente a de Araújo Lima, denotam de maneira relativa à estrutura do
mundo social, os esquemas de percepção e de pensamento que estão
dispostos nas práticas sociais das classes e frações sociais nas quais
tem origens os agentes envolvidos nessa luta. Essa estrutura social e
os esquemas mentais podem ser observados a partir dos temas, dos
princípios científicos dispostos para interpretar, explicar e descre-
ver a Amazônia, no dizer de Roberto Schwarz tanto a história como
a estrutura social ficam cifrados na obra, assinalando as condições
sociais que lhe deram origem. Basta observarmos o que significou
as obras Os Sertões e Amazônia, um paraíso perdido de Euclides da
Cunha, do ponto de vista simbólico em meio aquela luta pela defini-
ção da cultura e da identidade nacional.
Euclides da Cunha é quem, primeiro, desperta o brasileirismo-
-amazônico. Num sentido sociológico-político de integração da Ama-
zônia no Brasil tão afastado e até ignorante de suas deformações sociais
e econômicas, da aspereza de um meio que o homem amava anonima-
mente. Esquecido do mundo, jogado no tumulto das paixões, vítimas
das doenças, de uma sociedade defeituosa, da crueldade dos sobas.
É na Amazônia que Euclides da Cunha viu um novo Brasil: um
Brasil em que a mestiçagem étnica afirmava a presença do homem
na terra e sua vitória sobre o meio[...]
Os Sertões abrem ao exame brasileiro o problema que o País tinha
de enfrentar e até hoje desafia a sua capacidade de solucioná-lo: as
desigualdades regionais. (TOCANTINS,1992, p. 13-27).

- 166 -
Essas obras entendidas como modelos, vão pautar o campo
intelectual nos mais variados aspectos: na estética da narrativa, no
modo de organização estrutural da exposição, na arguta percepção
de uma cultura/ identidade nacional (constituída pela diversidade
de tipos sociais regionais), na lucidez com que trata a questão re-
gional de um Brasil profundo. Todos esses elementos sincronizados
num estilo no qual arte e ciência se confundem assumiram um papel
crucial na aspiração dos jovens que se lançavam no campo literário
daquele período. Haja vista, que os aspectos mais densos do livro
Os Sertões, converteram-se em princípios que modularam as tendên-
cias comuns aos intelectuais daquela geração. Com efeito, os inves-
timentos sociais, depositados na elaboração do livro por Euclides da
Cunha levaram-no a Academia Brasileira de Letras. À proporção
que aumentava seu prestígio intelectual, tornavam-se rarefeitas as
críticas ao conjunto de seus escritos naquele ambiente intelectual do
início do século XX. Consagração, que não evitou a crítica empreen-
dida por Araújo Lima em Amazônia- a terra e o homem, a concepção
de seleção telúrica a qual Euclides da Cunha atribuía a seleção dos
homens mais fortes para ocupar o espaço físico da Amazônia.

“Aqueles caboclos rijos e esse saxônico excepcional não são efeitos


do meio: surgem a despeito do meio; triunfam num final de luta, em
que sucumbiram, em maior número, os que se não aparelhavam dos
mesmos requisitos de robustez, energia e abstinência”.
Esse derradeiro argumento, que o grande Euclides da Cunha invo-
cou para sustentar a “seleção telúrica” no alto Amazonas, é frágil,
fragilíssimo. (LIMA, 2001, p. 139, grifo do autor).

Nesses termos, Araújo Lima assinala que não é o meio físico


a causa que arruinava os homens. É a própria organização da vida
social-carente de um sistema de educação, de higiene e de alimenta-
ção- que impede os homens de sobressaírem nesse ambiente colos-
sal. A observação a que chegara Euclides da Cunha, sobre o homem
amazônico, não passava de nulidades, demonstradas pelas novas téc-
nicas alimentares e os novos tratamentos médicos que reduziram o
coeficiente de morbidade e letalidade das endemias tropicais. Araújo
Lima, conclui que o avanço da engenharia sanitária, dos procedi-
mentos médicos, concomitante a uma política de instrução educa-
cional constitui uma estratégia adequada para superar a situação de

- 167 -
atraso, abandono e esquecimento nos quais a Amazônia foi lançada
por setores da Nação.

Considerações Finais

Ao indicar os limites da seleção telúrica formulada por dois


grandes espíritos da vida intelectual brasileira, Euclides da Cunha e
Oliveira Viana, Araújo Lima se põe de uma só vez no centro das dis-
cussões sobre a cultura e a identidade nacional; e no centro da luta
em torno de projeto nacional, que deve ter por matriz a diversidade
cultural de nossas regiões, estabelecendo um pacto federativo mais
equilibrado entre os estados. A percepção de que os processos só-
cio-econômicos de ocupação da Amazônia se efetivaram historica-
mente por meio de ações solitárias, muitas vezes na base da aventura,
não podendo dessa forma subjugar as força da natureza, realidade
histórica que necessita de uma ação política coordenada do estado
para dar o suporte estratégico ao desenvolvimento sócio cultural e
econômico da Amazônia. Projeto político de caráter federal que deve
ter como eixo a saúde e a educação, por trás desse projeto de desen-
volvimento regional reside a missão dos intelectuais, que é dotar o
povo de consciência de seu papel na história. Cabe aos intelectuais,
por meio do poder público, formular projetos para conduzir os ho-
mens e a sociedade à civilização.

O homem só escoteiro, sem guia; sem saúde nem cultura; sem de-
fesa nem proteção; sem preparo nem prévio trabalho adaptativo, o
homem do Amazonas campeia naquele cenário como um gigante,
inconsciente de sua bravura. (LIMA, 2001, p. 54).

É dever do intelectual, fazer com que o povo adquira


consciência de seu destino histórico e que aspirem uma organização
do estado, disposto a criar as estruturas administrativas, jurídicas,
políticas necessárias para proteger, educar e curar os males dos
desbravadores de uma região tão inóspita. Essa concepção de um
estado coordenador das ações dos indivíduos em um espaço físico -
permitindo-lhes desenvolverem suas atividades privadas protegidas
por uma rede de instituições estatais de saúde, educação e orientação
– são percepções do mundo e da realidade amazônica comum as

- 168 -
frações dos setores dominantes regionais nos quais Araújo Lima
estava enredado do ponto de vista de suas origens sociais. Tratava-
se de assegurar a coesão interna da nação por meio da educação
pública, pois nas nacionalidades não há unidade antropológica,
mas deve haver unidade psíquica. A estrutura cerebral não oferece
barreira à transformação mental dos homens, independentemente de
contingências raciais. A educação é o fator máximo de transformação
histórica das raças, traçando as diretrizes das nacionalidades. (LIMA,
2001, p. 48, grifo nosso). Não é o meio, nem a raça a razão da deca-
dência, do abandono e do atraso da Amazônia senão fatores históri-
cos que acompanharam uma economia destrutiva, juntamente com
uma ocupação predatória que dissipou toda a riqueza nativa. Toda-
via a educação, o desenvolvimento técnico-científico e uma política
de saúde podem reverter esse quadro. Com um só lance Araújo Lima
postula a saída dos impasses regionais (atraso, declínio, abandono e
esquecimento) e as bases de um projeto nacional via educação. Os
distintos tipos físicos característicos da diversidade racial brasileira
seriam condensados em uma unidade nacional por meio da educa-
ção, a fim de superar o fatalismo e o determinismo que nos precipi-
tavam na barbárie e no atraso.

Referências

BARBOSA, Clovis (Editor). Equador. Manaus: Edições do Estado do


Amazonas/ Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 2001.
BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias:
vultos do passado. Rio de Janeiro: Conquista, 1973.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. São Paulo:
Ática, 1994.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. 2.ed. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 2004.
LIMA, Araújo. Amazônia-a terra e o homem. 5.ed. Manaus: Edições
do Governo do Amazonas, 2001.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e as políticas no Brasil: entre o
povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.

- 169 -
TOCANTINS, Leandro. Euclides da Cunha e o paraíso perdido. Rio
de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1992.
TOCANTINS, Leandro. Amazonas, natureza, homem e tempo: uma
planificação ecológica da Amazônia. 2.ed. Rio de Janeiro: Biblioteca do
Exército/ Civilização Brasileira, 1982.

- 170 -
MEU CORPO, MINHA PESCA: TÉCNICAS
CORPORAIS DE MULHERES AMAZÔNICAS
PESCADORAS ARTESANAIS DE CAMARÃO

Artemis de Araújo Soares


Everton Dorzane Vieira
Apresentação

As técnicas corporais é o principal fundamento de análise des-


te artigo a partir do trabalho das mulheres pescadoras artesanais de
camarão da comunidade rural de várzea São Sebastião da Brasília,
localizada aproximadamente a 7 km do município de Parintins, no
interior do Estado do Amazonas, região do Baixo Amazonas (IBGE,
2020), com base nos estudos do corpo nas áreas da antropologia e
sociologia do antropólogo francês David Le Breton. Através de seus
renomados estudos podemos analisar o corpo da mulher na ação
do trabalho com a pesca artesanal, analisando as técnicas utilizadas
por ela em todo o processo da pesca artesanal do camarão nas águas
doces da Amazônia.
O corpo é o principal instrumento de trabalho do homem,
como salienta Le Breton (2010). Em uma de suas importantes obras,
intitulada “Sociologia do Corpo”, o antropólogo utiliza um dos prin-
cipais estudiosos sobre as “técnicas corporais”, também francês e an-
tropólogo, Marcel Mauss (1872-1950). Le Breton (2010) argumenta
que Mauss enfatizou toda possível técnica do corpo, desde uma sim-
ples ação, como sentar ou deitar, quanto uma ação que exige mais do
corpo, como correr ou nadar.
As técnicas corporais realizadas no trabalho exigem muito do
corpo em diversos aspectos tanto físico quanto mental; no caso das
mulheres pescadoras artesanais de camarão presenciamos a exigên-
cia de seus corpos em um tipo de trabalho árduo e difícil que requer
muita técnica e prática. Na comunidade citada para esta pesquisa,
dentre muitas mulheres que vivem dessa atividade selecionamos
três, das quais aceitaram nossa proposta de trabalho.
Com respeito e ética sobre esse modo de vida peculiar, ire-
mos identificá-las por nomes fictícios de plantas aquáticas da Ama-

- 171 -
zônia pois nossa análise está relacionada ao corpo e corporeidade
dessas mulheres. Dividimos esta produção científica em três seções:
na primeira seção iremos abordar as técnicas corporais das mulheres
pescadoras artesanais de camarão na perspectiva de David Le Bre-
ton, mostrando que no trabalho com a pesca artesanal também estão
inclusas as técnicas do corpo, principalmente tratando sobre o corpo
feminino nos aspectos físico e mental, analisando biologicamente as
peculiaridades do corpo da mulher que o diferencia do corpo do
homem.
Na segunda seção, mostraremos com aproximação etnográfi-
ca o processo da pesca artesanal do camarão realizado por mulheres,
identificando as diferenças entre elas ao exercer o mesmo trabalho,
na perspectiva das técnicas corporais utilizadas por cada uma delas.
Na terceira seção, identificaremos por nomes fictícios as nossas cola-
boradoras, bem como suas peculiaridades no trabalho com a pesca
artesanal.
Trazemos algumas imagens permitidas por elas, que corro-
boram com as observações da pesca artesanal do camarão, mas em
preto e branco por conta da não identificação real das mulheres, con-
forme solicitado. Que no caso, devido a não permissão de fotografias
faciais, por causa de não estarem à vontade em relação a condição
de trabalho, para elas é importante que a imagem do corpo registada
esteja de acordo com a beleza feminina construída através de acessó-
rios e cosméticos (WOLF, 2020).

Mulheres pescadoras artesanais de camarão e suas técni-


cas corporais – uma análise na perspectiva de Le Breton
David Le Breton é o principal estudioso com especialidade
em estudo do corpo na atualidade. Suas observações sobre o corpo
são fundamentais para o enriquecimento do conhecimento da so-
ciedade contemporânea. Seus estudos estão presentes em tudo que
está relacionado ao corpo nos campos da sociologia e antropologia.
Utilizamos seus métodos, para analisar a trajetória das técnicas cor-
porais empregadas no trabalho das mulheres pescadoras artesanais
de camarão.
Sobre as técnicas do corpo, Le Breton (2010) traz aportes de
como o corpo é utilizado para vários tipos de ações, principalmente

- 172 -
relacionado ao trabalho, afirmando que o corpo é o principal instru-
mento do homem, como nos mostra Mauss (1974: 407) “O corpo é o
primeiro e o mais natural instrumento do homem”.
As técnicas corporais como citado acima se constitui no prin-
cipal estudo trazido por Le Breton com base na visão de Marcel
Mauss. Para Mauss (1934), todas as ações humanas estão relaciona-
das às técnicas que o corpo faz, desde uma ação simples até uma
ação mais complexa. No caso das mulheres pescadoras de camarão,
a pesca artesanal é algo muito difícil de fazer, requer prática cor-
poral, esforço físico e principalmente, concentração. Sendo a pesca,
historicamente uma ação masculina, as mulheres da comunidade da
Brasília, por meio da pesca artesanal do camarão, rompem com essa
tradição ao protagonizar-se-á deste trabalho.
A pesca artesanal do camarão foi um legado deixado por uma
mulher, ex-moradora da comunidade São Sebastião da Brasília, cha-
mada Ana Gomes Lima, que iniciou a pesca aos seus catorzes (14)
anos de idade, natural de Parintins, com ascendência portuguesa,
nasceu na comunidade da Brasília em 1945 (DIÓGENES, 2014).
A partir deste legado, muitas mulheres aprenderam a prática
da pesca artesanal do camarão, experiências e conhecimentos adqui-
ridos de tais ensinamentos, tanto da pesca artesanal quanto do uso
das ferramentas utilizadas para a pesca artesanal; daquele período
em diante, as mulheres começaram a praticar a pesca artesanal do
camarão na comunidade. Esse tipo de trabalho artesanal, foi se tor-
nando uma prática especificamente das mulheres, bem como de de-
mais mulheres de comunidades próximas, as quais também exercem
a prática da pesca artesanal do camarão (BRASIL, 2015).
Apesar de praticarem a mesma atividade, cada comunidade
possui suas peculiaridades na pesca artesanal do camarão. Uma des-
sas peculiaridades encontradas são os instrumentos de pesca arte-
sanal utilizados pelas mulheres. As comunidades utilizam o tipo de
instrumento de acordo com o local a ser pescado o camarão, em rios,
em furos, em lagos. Lugares diferenciados que fazem com que os
instrumentos de pesca sejam desiguais uns dos outros. Neste con-
texto, com relação aos “instrumentos”, nos reportamos ao que o an-
tropólogo Mauss enfatiza: “antes das técnicas de instrumentos, há o
conjunto das técnicas do corpo” (1934: 407). Cada sociedade tem a
sua própria maneira de manifestar-se, de apresentar as suas técnicas

- 173 -
corporais, conforme as experiências desenvolvidas no percurso his-
tórico, cultural e social.
Sobre a relação instrumento e corpo, o autor, também contri-
bui afirmando que:

A construção social e cultural do corpo não se completa somente


em jusante, mas também em montante, toca a corporeidade não só
na soma das relações com o mundo, mas também na determinação
de sua natureza. O “corpo” desaparece total e permanentemente na
rede da simbólica social que o define e determina o conjunto das de-
signações usuais nas diferentes situações da vida pessoal e coletiva.
(LE BRETON, 2010: 32).

Neste caso, podemos compreender que estes fatores desenvol-


vem as técnicas corporais abstrativas no homem que torna-se mate-
rialista no desenvolvimento, dependendo do que o diferencia tanto
no pessoal quanto no coletivo. O corpo é marcado pelas experiên-
cias socialmente construídas, cada sociedade possui suas técnicas
aprendidas de geração a geração. “Pela corporeidade, o homem faz
do mundo a extensão de sua experiência” (LE BRETON, 2010: 8);
seu corpo apreende as expressões corporais, primeiramente, quando
criança no seio da família, mas é na atividade e convivência com o
outro que os dados simbólicos se desenvolvem.
Devido à experiência convivida na comunidade com as mu-
lheres pescadoras artesanais, foi possível levar o conhecimento e
transformar a tarefa cotidiana de algumas mulheres em outras co-
munidades. O corpo da mulher é biologicamente diferente do corpo
do homem1. Le Breton (2003) aborda que com o passar dos anos as
transformações do corpo são marcadas pela influência do ser social
ou pelas marcas que são deixadas no corpo. Com relação ao trabalho
físico e mental praticado por essas mulheres, o qual é realizado du-
rante muitos anos, as marcas do trabalho estão de forma material e
simbólica pelo corpo.
Na região amazônica, onde o calor é excessivo e a umidade é
densa, nossas colaboradoras mostraram o quão cansativo é estar sob
o sol diariamente para manter o sustento familiar, demonstrando às
1 https://jornal.usp.br/atualidades/anatomicamente-o-genero-sexual-pode-ser-diferenciado-
-a-partir-de-poucas-celulas/#:~:text=Al%C3%A9m%20dos%20%C3%B3rg%C3%A3os%20
genitais%2C%20o,contorno%20mais%20angular%20do%20corpo. Acessado em 17 de abril
de 2022.

- 174 -
vezes, elas não desejarem estar nessa situação. Porém, a necessida-
de do trabalho, seja por motivo do sustento familiar ou obtenção
de renda, torna-se essencial para a vida dessas pessoas. Nessa linha,
trazemos Le Breton (2018) quando se reporta ao desaparecimento
do trabalho, dizendo que é um desejo para muitos indivíduos, mas
a necessidade devido à situação econômica torna obrigatória a sua
prática, no que causa o desaparecimento simbólico do trabalhador.
Para as mulheres pescadoras de camarão, a concentração no
trabalho é um dos fatores essenciais para o exercício da pesca artesa-
nal. Entendemos que se trata de uma rotina cansativa e que, tanto o
cansaço físico do corpo como o mental estão relacionados à prática
repetitiva do trabalho, principalmente porque é uma atividade reali-
zada sobre as águas, portanto, em condição totalmente diferente do
cotidiano, o que demanda grande e apurada concentração para que
não aconteça nenhum acidente de trabalho ou algo que possa preju-
dicar o exercício da pesca artesanal ou que coloque em risco a vida
da mulher. Nesse contexto, pontua-se que:
Os casos de adaptação são de natureza psicológica individual. Mas
geralmente são comandados pela educação, e no mínimo pelas
circunstâncias da vida em comum, do convívio. (...). Creio que a
educação fundamental dessas técnicas consiste em fazer adaptar o
corpo a seu uso. (MAUS, 1934: 421).

As técnicas do corpo são resultado da prática constante reali-


zada pelo homem, e tornam-se favoráveis ao indivíduo que está in-
serido em tais habilidades relacionadas a sua cultura e local de con-
vivência (MAUSS, 1934).
Portanto, para as mulheres pescadoras artesanais de camarão,
conforme as suas narrativas, a sua inclusão neste tipo de trabalho
deve-se ao fato de que este seria um trabalho “mais leve”, ou seja, em
relação à pesca tradicional do peixe. O termo “mais leve”, podemos
analisar em relação com o peso do produto, com os instrumentos de
pesca artesanal, e também pelo tempo de trabalho diário que dife-
rencia da pesca do camarão para a pesca do peixe. Para as mulheres,
a pesca tradicional do peixe é muito mais exaustiva do que a pesca
artesanal do camarão, mas neste sentido Le Breton (2010) diz que o
corpo sofre independente de qual seja a função que este exerce, da
mais simples até a mais brusca ação. Isso significa que embora mais
leve. O trabalho traz suas consequências para o corpo.

- 175 -
O corpo masculino é condicionado biologicamente a ser mais
forte do que o corpo feminino. A mulher tem, por certo período,
desde sua pré-adolescência até a entrada da terceira idade, de 28 em
28 dias, o período do ciclo menstrual2. Algumas das mulheres que
praticam a pesca artesanal de camarão da comunidade afirmaram
que já trabalharam durante o período menstrual e que a dificuldade
é muito maior, mas que o trabalho é necessário, pois, contribui no
sustento familiar, e, com isso, para seu desenvolvimento social.
Na perspectiva biológica, este período que ocorre com as mu-
lheres é a principal peculiaridade, já que não acontece com os ho-
mens, ou seja, para as mulheres o trabalho torna-se mais difícil e
cansativo ao considerarmos estas desigualdades.

O processo do trabalho com a pesca artesanal do camarão


na comunidade da Brasília

A comunidade São Sebastião da Brasília está localizada à mar-


gem esquerda do Rio Amazonas, cerca de 7 km do Município de Pa-
rintins, estado do Amazonas, região do Baixo Amazonas. De acordo
com Dom Arcângelo Cerqua, primeiro bispo de Parintins, a comu-
nidade foi criada oficialmente em 28 de março de 1968, pela Igreja
Católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que
tinha como missão reorganizar as localidades rurais e levar ensina-
mentos religiosos católicos aos comunitários do interior do Amazo-
nas (CERQUA, 1980).
Nossa presença na comunidade foi marcada para a observação
das mulheres e a prática protagonizada da pesca artesanal do camarão,
protagonismo que resultou na produção deste artigo. A pesca artesa-
nal do camarão ocorre anualmente nos meses de julho a novembro,
período de vazante no Rio Amazonas, onde há maior possibilidade da
presença abundante do crustáceo (SILVA; TORRES, 2019).
A aproximação etnográfica foi a metodologia que utilizamos
para este tipo de pesquisa, na qual pudemos registrar em um ca-
derno de campo tudo o que observamos sobre a pesca artesanal do
camarão. O caderno de campo é essencial para pesquisas antropoló-
gicas e etnográficas, onde o pesquisador pode anotar aleatoriamente
as observações do trabalho de campo (LEAL, 2016).
2 https://www.tuasaude.com/ciclo-menstrual. Acessado em 17 de abril de 2022.

- 176 -
O início da pesca artesanal do camarão realizado pelas mu-
lheres nos instigou a uma atenção das riquezas de informações, e
tivemos que registrar nos cadernos e nas câmeras fotográficas tudo
o que pudéssemos, sem interferir no trabalho delas. O trabalho do
pesquisador está no olhar, no ouvir e no escrever, sobre o objeto ou
colaboradores pesquisados. O pesquisador tem que estar totalmente
disciplinado quanto ao olhar, atencioso ao ouvir, e por fim cauteloso
ao escrever, pois a pesquisa em campo requer um trabalho de dedi-
cação total do pesquisador nos momentos exatos da coleta de dados
(OLIVEIRA, 1996).
Como citado, tivemos a autorização das mulheres para regis-
tro de fotografias e filmagens, desde que não fossem revelados os
nomes das colaboradoras da pesquisa. O processo da pesca artesanal
do camarão requer das mulheres muito esforço e concentração, exi-
gindo o máximo do corpo para a realização do trabalho. Das mulhe-
res que praticam o ofício da pesca na comunidade, trabalhamos com
três colaboradoras que nos permitiram observá-las desde o processo
inicial até o processo final.
Utilizamos nomes fictícios para as mulheres, dando-lhes no-
mes de plantas aquáticas da Amazônia para distinguir a peculiari-
dade que elas têm em relação as técnicas corporais do trabalho com
a pesca artesanal, ou seja, forma simbólica em mostrar a beleza das
plantas aquáticas da região amazônica, para com o trabalho das mu-
lheres sobre as águas.
Nossas colaboradoras serão identificadas da seguinte forma:
Vitória-régia (60), Ninféia (45), Mururé (34); os números ao lado
dos nomes correspondem a idade das mulheres no período da pes-
quisa de campo.
Mulheres pescadoras artesanais de camarão e suas narra-
tivas: Vitória-régia, Ninféia e Mururé

Nesta seção mostraremos passo a passo das atividades das


nossas colaboradoras, analisando a diferença no ato da pesca arte-
sanal do camarão entre elas, na perspectiva de análise das técnicas
do corpo. A primeira que observamos foi Vitória-régia, que contava
com a idade de 60 anos neste período. Ela tem por costume pescar
sempre ao fim do dia, no horário das 16h às 18h. Diferentemente de

- 177 -
Ninféia, que com seus 45 anos prefere pescar pela manhã, bem cedo,
das 05h até 08h, que para ela é o horário que há bastante camarão na
água. Já Mururé, aos seus 34 anos de idade, também tem por prefe-
rência pescar no fim do dia, pois algumas vezes tem a companhia de
Vitória-régia.
Moradora da comunidade desde a sua adolescência, Vitória-
-régia aprendeu a pescar camarão para contribuir com o sustento fa-
miliar e passou a ensinar outras mulheres da comunidade a praticar
o ramo da pesca artesanal. Mururé foi uma das mulheres que apren-
deu com Vitória-régia esse oficio. Ninféia nos afirmou que aprendeu
observando outras mulheres com mais idade e experiência, e perce-
beu que o trabalho com a pesca artesanal do camarão tinha como
tirar uma renda financeira para a sua família.
No dia da observação, Vitória-régia nos levou ao lago do “Tre-
me”, pertencente à comunidade; Ninféia e Mururé também utilizam
a mesma localidade para pescar. De acordo com nossa observação, é
o local onde há presença abundante do camarão. Antes de partirmos
neste dia, elas nos mostraram as ferramentas utilizadas para a prática
da pesca artesanal do camarão. Os instrumentos de trabalho utiliza-
dos pelo homem são como suportes do próprio corpo, sendo o corpo
o principal instrumento (LE BRETON, 2010).
Na figura 01, temos Ninféia iniciando a pesca artesanal do
camarão, colocando na água sua principal ferramenta de trabalho,
denominada por elas de “camaroeiras”, cujo objeto contém o tecido
da fibra da juta, com duas travessas amarrados em forma de “X”.

- 178 -
Figura 01 – Ninféia com sua camaroeira

Fonte: Arquivo Pessoal do Pesquisador (2020)

Em sua residência localizada na comunidade, feita de madeira


no modelo de palafitas, comum em local onde ocorre o fenômeno
da enchente e vazante dos rios da Amazônia, Vitória-régia nos mos-
trou os instrumentos que utiliza para a prática da pesca artesanal do
camarão. Já Ninféia e Mururé nos mostraram seus instrumentos de
trabalho na ida para o local da pesca artesanal. O principal instru-
mento, como citado, é a “camaroeira”, utilizada para pesca artesanal
do camarão.
A camaroeira é um instrumental artesanal feito da seguinte
forma segundo as narrativas das pescadoras. Elas precisam de alguns
materiais para montar a camaroeira, geralmente um metro e meio de
tecido de juta, dependendo do tamanho de preferência da pescadora;
duas travessas de paus, cilíndricos, parecido com cabo de vassoura;
cordas de barbante que são amarrados nas pontas dos paus com o
tecido de juta. Não existe um tamanho padrão para a camaroeira,
elas fazem conforme seu bio-tipo corporal para realização da pesca.
Além do instrumento, também é feito em casa a “isca” para o
camarão, que são peixes levemente cozidos. Uma canoa e um remo
são utilizados por elas para transporte da margem próxima a sua re-
sidência, até o local da pesca artesanal. Na popa da canoa, ou seja,

- 179 -
na parte traseira do veículo, elas colocam um tronco de árvore, que,
conforme nos foi informado tem como finalidade manter o equi-
líbrio da canoa na hora da pesca, sem o que a parte de trás ficaria
elevada, podendo promover o desequilíbrio da pescadora. O tronco
utilizado por Vitória-régia pesava um pouco menos que o próprio
peso de seu corpo, ou seja, é como se ela estivesse conduzindo outra
pessoa, exigindo-lhe grande esforço.
Vimos a técnica utilizada por ela para colocar os instrumen-
tos necessários na canoa. Inicialmente ela coloca o tronco que está à
margem do igarapé próximo a canoa, na popa do veículo. O processo
que ela utilizou para colocar este tronco na canoa consistiu em por-
tar uma peça de madeira, tipo uma ripa forte, para levantar e lançar
o tronco fixando–o na canoa, de forma que ao remar movimentan-
do-se no momento da condução, ele não caia na água. A inclina-
ção para lançar o tronco a canoa feita por Vitória-régia requer certa
força corporal, e pelo que foi observado isso exige muito da coluna
vertebral de seu corpo neste tipo de ação. Este tronco muitas vezes
é utilizado por Ninféia e Mururé, pois essas três mulheres pescam
artesanalmente sozinhas, por isso a necessidade do tronco na canoa.
Em seguida elas colocam nas canoas, cada uma na sua, de três a cin-
co camaroeiras, um saco de polietileno que é usado para prender o
camarão pescado e por fim os remos.
Assim que a canoa e todos os instrumentos de pesca artesanal
estão preparados, Vitória-régia é conduzida por um de seus filhos por
uma canoa grande com motor a gasolina na parte de trás, conhecida
como motor rabeta. Ninféia também é conduzida por este mesmo
transporte nos seus dias de pesca artesanal, bem como Mururé, pois
é mais rápido para chegar ao local da pesca artesanal. Elas amarram
suas pequenas canoas na canoa motorizada e sendo conduzidas até
um dos lagos próximos à comunidade. São as canoas sendo condu-
zidas por uma embarcação maior e motorizada até o local da pesca.
Diariamente, no período da pesca do camarão, é feito este tipo de
locomoção. Ao chegar ao local da pesca é desligado o motor rabeta,
pois segundo elas o som que produz o motor “espanta” o camarão.
Após o reboque, na chegada ao lago, como citado, os motores
são desligados, e neste momento o corpo passa a ser a máquina fun-
cional locomotora para o trabalho. O remar no local da pesca exige
muito das mulheres. A figura abaixo comprova a ação das mulheres

- 180 -
com remos e canoas, e toda a preparação inicial da pesca artesanal
do camarão, a qual exige concentração e habilidades físico-motoras
exigidas pelo corpo.

Figura 02 – Mulheres preparando-se para iniciar a pesca artesanal do


camarão

Fonte: Pesquisa de Campo (2020)

Nessa experiência, quando chegamos ao local da pesca, pre-


senciamos os movimentos das remadas feitas por Vitória-régia, mu-
lher de 60 anos de idade; a cada remada escorria o suor em seu rosto
e percebemos o quão árduo é este tipo de trabalho. O calor era inten-
so, mesmo ela utilizando roupas que protegem do sol e, na cabeça,
um chapéu de palha. Era por volta das 15h30 quando la chegamos,
sol forte, mas como ela mesma dizia “o trabalho tinha que ser feito”.
O corpo com a idade mais avançada perde sua evidência, relaciona-
do ao trabalho, algo que é exigido totalmente do homem; o corpo
torna-se desconfortável, mais estranho e há diminuição da perfor-
mance. (LE BRETON, 2018).
No local escolhido por Vitória-régia para ser realizada a pesca
do camarão ela distribui as camaroeiras não muito próximas umas
das outras. Para fazer este tipo de ação, Vitória-régia fica sentada na
parte da frente da canoa, utilizando o remo de um lado e outro, para
se deslocar, pois o remo é utilizado para conduzir e movimentar a di-
reção da canoa. Ninféia repete a mesma ação feita por Vitória-régia
no dia da sua pesca, mas colocou demarcações feitas com gravetos

- 181 -
de madeira para prender as camaroeiras. Mururé, nossa terceira co-
laboradora também utilizou-se do mesmo recurso feito pelas outras.
Vimos então que a técnica da pesca artesanal do camarão tem
uma forma padrão entre essas três mulheres. O corpo de Vitória-ré-
gia realiza um esforço muito grande, pois a mesma utiliza os braços
para condução do remo e para colocar as camaroeiras na água. As
técnicas corporais que utiliza, mesmo com grande habilidade, com o
passar dos anos poderá provocar problemas ergonômicos pela repe-
tição dos movimentos.
Todas elas faziam o mesmo processo, tanto com os remos
quanto com as camaroeiras, o que exige bastante de seus membros
superiores. Para bom desempenho, o movimento corporal requer a
execução de uma técnica que não prejudique muito os segmentos
corporais na hora da pesca; com a prática, o corpo se acostuma ao
tipo de trabalho realizado, entretanto ao fim do dia elas apresentam
como consequência, as dores localizadas nos ombros e pescoço além
do cansaço resultante das tarefas do seu trabalho realizadas sob o
sol.
Observamos Vitória-régia colocando a camaroeira na água;
com o remo em uma de suas mãos, ela senta na frente da canoa
para melhor condução. Na sua frente está uma panela contendo as
iscas utilizadas para pegar o camarão A cada camaroeira colocada
na água, também é colocada a isca. A isca, como informado, são
pedaços de peixe não totalmente cozidos, para atrair a presença do
camarão para dentro da camaroeira. Assim que Vitória-régia coloca
a camaroeira com a isca, aguarda cerca de três a cinco minutos para
retirá-la da água e colocar dentro da canoa.
Este processo requer técnica apurada, pois exige habilida-
de para a movimentação do corpo de forma correta e econômica.
Quando colocada na água, a camaroeira fica em forma de “X”. O
centro do “X” é local de manuseio da camaroeira, facilitando a reti-
rada da água e direcionada para parte de trás do corpo da pescadora.
Assim que Vitória-régia retira a primeira camaroeira da água, estan-
do sentada na parte da frente da canoa, é necessário rotar seu cor-
po para trás, para colocar o camarão pescado para dentro da canoa,
realizando um movimento, cuja técnica corporal exige bastante de si.
Ação como argumentado, exige muito dos braços e principalmente
da coluna vertebral. Este movimento é feito repetidamente pelas mu-
- 182 -
lheres; pelo que foi observado, é o movimento mais comum e prático
para colocar e retirar as camaroeiras da água. Na figura abaixo, Vi-
tória-régia mostra o procedimento da pesca artesanal do camarão.

Figura 03 – Vitória-régia pescando camarão

Fonte: Arquivo pessoal do pesquisador (2020)

O trabalho feito por Vitória-régia, Ninféia e Mururé se repete


várias vezes, exigindo muito da habilidade e esforço corporal. Assim
que elas retiram a camaroeira da água e colocam o camarão dentro
da canoa, tornam a colocar novamente na água o instrumento de
pesca artesanal, com a isca dentro, e em seguida, elas se deslocam
remando para a outra camaroeira e fazem novamente o mesmo pro-
cesso.
O sistema de pesca artesanal utilizado por elas parece ser efi-
caz. Ao remover a primeira camaroeira e retirar o camarão, é de-
senvolvido o mesmo processo utilizando as técnicas corporais: elas
vão a primeira camaroeira retirar o camarão, colocar na canoa, e de-
volver para a água a camaroeira com a isca, indo em seguida para
a segunda camaroeira fazendo o mesmo processo, bem como nas
demais camaroeiras. Vê-se, portanto, que elas executam um processo
repetitivo e exaustivo.
Assim que finalizam o processo na última camaroeira, elas
retornam para a primeira delas e fazem o mesmo processo várias
vezes. No final do trabalho elas primeiramente prendem todo o ca-
marão pescado em um saco grande de polietileno e amarram bem

- 183 -
a boca do saco. Em seguida recolhem as camaroeiras, secando-as,
sacudindo-as no ar, enrolando-as, prendem todas juntas com uma
corda, colocam dentro da canoa, e aguardam pela condução para re-
tornar à comunidade, ou seja, o mesmo processo na ida para a pesca
repete-se na volta para a comunidade, desta vez com a satisfação de
missão cumprida, com o trabalho realizado por mulheres que são
agentes da pesca artesanal na Amazônia.
As técnicas corporais utilizadas por essas mulheres formam-
-se com o decorrer do tempo, e se desenvolvem com o mesmo grau
de dificuldade exercida nas atividades diárias. Neste sentido nos ba-
seamos em Le Breton sobre o domínio das técnicas do corpo:

Outro domínio das técnicas do corpo é formado pelos conhecimen-


tos práticos do trabalhador. Esse conhecimento é o resultado da
competência profissional fundada num conjunto de gestos de base
e num grande número de movimentos coordenados nos quais o ho-
mem de profissão cristalizou, com o passar dos anos, sua experiên-
cia espetacular (LE BRETON, 2010: 42).

Acrescenta o autor que qualquer atividade relacionada com


o corpo é uma experiência a partir da construção social, da relação
dos sujeitos com o mundo que o cerca. O corpo não se apresenta
apenas como um objeto técnico, mas inclui significação e valor (LE
BRETON, 2010).
Além das dificuldades apresentadas em relação ao corpo e ao
trabalho das mulheres pescadoras de camarão da comunidade São
Sebastião da Brasília, existem outras dificuldades que também são
observadas na vida dessas mulheres para além da pesca, que vão da
preparação do camarão pescado até o momento da comercialização.
A pesca artesanal é um tipo de trabalho que elas protagoni-
zam, mesmo com o olhar invisível da sociedade, do governo, do pa-
triarcado, elas se tornam autoras de sua própria história, sendo agen-
tes atuantes e importantes nos múltiplos significados da Amazônia.

Algumas considerações

Qualquer que seja a atividade direcionada à pesca artesanal,


é necessário possuir habilidades motoras, técnicas e conhecimentos

- 184 -
para o manejo e utilização dos instrumentos de trabalho, domínio
dos saberes produzidos de geração em geração no contexto social
em que estão inseridos. Por mais árdua que sejam as atividades do
cotidiano e as responsabilidades individuais, apesar dos conheci-
mentos adquiridos e desenvolvidos ao longo do tempo é necessário
encontrar significado e valora a sua existência, buscando o seu lugar
de pertencimento no meio social e a sua autonomia, e para isso o
indivíduo precisa ajustar-se às circunstâncias que estão em constante
transformação na atualidade (LE BRETON, 2018).
Neste contexto, as contribuições dos autores Furtado e Nasci-
mento (2002: 33), pontuam que “as comunidades pesqueiras se orga-
nizam segundo sua lógica própria construída e influenciada por diver-
sos fatores (sociais, étnicos, culturais e ambientais) que lhes atribuem
feições e modos de viver particulares, sem deixar de ser parte do todo
mais amplo”. Neste sentido, entende-se que o corpo humano busca as
adaptações necessárias para as atividades da pesca artesanal.
Assim, no que diz respeito ao trabalho das mulheres pescado-
ras artesanais de camarão, a experiência, a prática diária e a convi-
vência, ou seja, a troca de conhecimentos com outras mulheres pra-
ticantes da mesma atividade ajudam no desenvolvimento de novas
técnicas corporais para auxiliar em todas as etapas desde o início do
percurso até a comercialização do produto, passando obviamente,
pela realização da pesca artesanal.
Apesar dos desafios encontrados no caminho, o cansaço físico
e mental, e do esforço constante para a prática diária da atividade
pesqueira, foi possível perceber a agilidade e habilidades dessas mu-
lheres, considerando a diferença de idade e tempo de experiência
apresentados nas técnicas e manuseio dos instrumentos de trabalho.
Para as mulheres pescadoras artesanais de camarão da comunidade
São Sebastião da Brasília, o exercício da atividade, apesar de cansa-
tivo, faz com que elas contribuam diretamente no sustento familiar.
Portanto, o trabalho realizado pelas mulheres pescadoras de
camarão da comunidade São Sebastião da Brasília está imbuído nas
significações pluralizadas da Amazônia, e a participação da mulher
inclui-se também na propagação dos conhecimentos repassados aos
moradores de sua comunidade por meio dos “sistemas simbólicos”,
produzidos nas técnicas corporais apreendidas na experiência com a
pesca artesanal do camarão.

- 185 -
Se confirma o poder da adaptação do corpo às exigências do
seu contexto cultural, neste caso a aprendizagem e execução de mo-
vimentos exigidos para a pesca do camarão, denotando assim, que as
práticas corporais são aprendidas e assimiladas. O trabalho é reco-
nhecidamente árduo e cansativo, mas as mulheres suportam o cansa-
ço e as intempéries da natureza a exemplo o sol sob o corpo, a força
das águas em seus veículos, além de insetos e animais peçonhentos
presentes nos locais de pesca, tudo pela necessidade de sobrevivên-
cia que faz com que o corpo reaja mostrando sua fortaleza na região
amazônica.

Referências

BRASIL, João Bosco dos Santos. Mulheres pescadoras da várzea


do município de Parintins- AM: a pesca artesanal do camarão nas
comunidades da Brasília e Catispera. Dissertação de Mestrado apre-
sentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia. Manaus: Uni-
versidade Federal do Amazonas, 2015.
CERQUA, Arcângelo. Clarão de fé no médio Amazonas. Manaus:
Imprensa Oficial, 1980.
DIÓGENES, Antônia Mara Raposo. As camaroeiras, as pescadeiras
e o arreio: pesca artesanal do camarão e conservação ambiental em
comunidades de várzea no município de Parintins-AM. Dissertação
de Mestrado. UFAM: Manaus, 2014.
FURTADO, L. G.; NASCIMENTO, I. H. Traços de uma comunidade
pesqueira no litoral amazônico: relato sobre organização em comuni-
dade Haliêutica. In: FURTADO, L. G.; QUARESMA, H. D. A. B. Gen-
te e Ambiente no mundo da Pesca Artesanal. Belém: Museu Paraense
Emílio Goeldi, 2002.
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LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Tradução de Sonia M.S.
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LE BRETON, David. Adeus ao corpo: Antropologia e sociedade. Tra-
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LE BRETON, David. Desaparecer de si: uma tentação contemporâ-

- 186 -
nea. Tradução Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes, 2018.
LEAL, João. DIÁRIO DE CAMPO: modos de fazer, modos de usar.
In: Revista Os Arquivos dos Antropólogos. Lisboa, 2016, pp. 145-159.
MAUSS, Marcel. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: Marcel
Mauss. Sociologia e Antropologia, 1934.
MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: _____. Sociologia e antro-
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OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O TRABALHO DO ANTROPÓLO-
GO: olhar, ouvir, escrever”. In: Revista de Antropologia. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 1996, v. 39, nº 1, pp. 14-23.
SILVA, Júlio Cláudio da; TORRES, Iraildes Caldas. “Memórias ama-
zônicas nas narrativas de pescadoras de camarão da comunidade São
Sebastião da Brasília, Parintins (AM) ”. In: Dossiê de História Oral.
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WOLF, Naomi. O mito da beleza: como a imagem de beleza são usadas
contra as mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. – 15ª ed. Rio de Janei-
ro: Rosa dos Tempos, 2020.

- 187 -
- 188 -
PESQUISAS E PRÁTICAS
INTERDISCIPLINARES EM
ENVENENAMENTOS OFÍDICOS NA
AMÉRICA LATINA

Alícia Patrine Cacau dos Santos


Altair Seabra de Farias
Jacqueline Sachett
Felipe Leão Gomes Murta
Vinicius Azevedo Machado
Wuelton Marcelo Monteiro
Resumo
Os envenenamentos ofídicos ocorrem principalmente em países tropicais e
subtropicais, localizados na África, Ásia e América Latina. Nestes locais, as
populações que residem em área ribeirinha e rural são as mais afetadas. Apesar
do imenso progresso alcançado nos últimos anos são poucos os estudos que
busquem compreender a relação entre as diferentes espécies, a acessibilidade
ao tratamento, aceitabilidade, cosmovisão sobre o problema, uso de medicina
tradicional e indígena, entre outros. Estudos realizados na América Latina ao
longo dos anos mostram que existem diversas lacunas a respeito do contato
entre serpente-humano, cosmologia, pois cada etnia indígena ou população
possui características e visões próprias, além das percepções e inseguranças
dos profissionais de saúde nesse contexto. A associação de diferentes áreas de
conhecimento pode fornecer insights sobre a frequência de contato com os ani-
mais, compreensão da relação entre homem-animal, homem-natureza, sobre
ferramentas, tecnologias de saúde e intervenções educacionais. O objetivo des-
se capítulo é expandir a visão de pesquisadores para a necessidade de pesquisas
interdisciplinares que incluam principalmente a antropologia e a pedagogia,
visando compreender o problema da forma como ele é, e não apenas sob o
domínio biomédico.

Palavras-chaves: Envenenamentos ofídicos; pesquisa qualitativa; interdisci-


plinaridade; medicina indígena; cosmologia.

Introdução

Os envenenamentos ofídicos são um problema de saúde pú-


blica em países localizados na África, Ásia e América Latina, o agra-
vo foi incluído na lista de doenças tropicais negligenciadas somente
em 2017 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), após apelos de

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especialistas na área. Os homens, mulheres e crianças, que residem
áreas rurais e exercem atividades de subsistência como: caça, agri-
cultura, pesca e extrativismo compõem as populações vulneráveis
(CHIPPAUX, 2017a; WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020).
Estima-se que ocorram 2,7 milhões de envenenamentos anualmen-
te no mundo, causando aproximadamente 81.000 a 138.000 óbitos
(WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021). Nas Américas a in-
cidência média anual é de 57.500 casos, causando 370 mortes, com
uma taxa de letalidade de 0,6%, no entanto esses dados podem es-
tar subestimados, devido informações limitadas em diversos países
(CHIPPAUX, 2017b). Na América Latina e no Caribe os envenena-
mentos constituem um sério problema de saúde, dados hospitalares
estimam que 70.000 casos ocorrem anualmente, embora seja prová-
vel que os números reais sejam maiores, pois pode ocorrer subno-
tificação principalmente em áreas rurais, isoladas geograficamente.
Na região, grande parte dos acidentes são causados pelas espécies do
gênero Bothrops e Crotalus, classificados na família Viperidae, sendo
apenas 1% dos acidentes causados pelo gênero Micrurus da família
Elapidae (GUTIÉRREZ, 2018; JOSÉ MARÍA GUTIÉRREZ, 2011).
Um progresso significativo foi alcançado nos últimos anos,
através de pesquisas sobre o veneno das serpentes, mecanismos de
ação e toxinas. No entanto, apesar dos esforços em melhorar o anti-
veneno e do investimento realizado em pesquisas na América Latina
ainda são escassos os estudos quanto a acessibilidade e aceitabilidade
ao tratamento, a relação homem-animal, a frequência de contato, a
procura a assistência médica, uso de medicina tradicional e indígena
e ações de prevenção dos acidentes (GUTIÉRREZ, 2014). Portanto
nesse capítulo uma visão geral de estudos interdisciplinares na Amé-
rica Latira sobre os envenenamentos ofídicos será abordada.

Informações etnológicas e contato serpente-humano

A relação serpente-humano está presente desde o início das


civilizações, alternando entre os extremos de adoração e explora-
ção. Populações pré-colombianas nas pequenas Antilhas (Caribe)
usavam ossos de serpente Boa para fabricar objetos decorativos e as
evidências cientificas indicam que a escassez extrema do gênero Boa

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nessa região reflete o destaque que as comunidades ameríndias pré-
-colombianas davam a esses animais (BOCHATON, 2022) As ser-
pentes também podem ser importante fonte de alimento em regiões
tropicais, subtropicais e temperadas, além do comércio de peles que
representam uma ameaça a sobrevivência (KLEMENS; THORB-
JARNARSON, 1995). Em algumas áreas rurais partes do corpo das
serpentes mortas são utilizadas com amuletos, pois possuem sig-
nificado simbólico, assim como gordura (banha) no tratamento de
doenças (FIDEL et al., 2013). A afeição de muitos indivíduos não
indígenas, por animais de estimação exóticos, como as serpentes pe-
çonhentas, que possuem um status simbólico nos quadros culturais,
tem sido associada aos acidentes em várias partes do mundo (BAL-
ZER M, 2010; LA LAINA et al., 2021; WONG et al., 2009). Existem
ainda os cultos de ofidianos entre as sociedades aborígenes e indíge-
nas isolados em toda parte das Américas. Critérios da arqueologia e
etnografia sugerem que a ofiolatria é uma das primeiras importações
culturais nas Américas e que seus vínculos mais fortes estão no nor-
deste da Ásia, particularmente a Sibéria (MUNDKURU, 1976).
Em área endêmica, a população é capaz de perceber como
mais perigosa a serpente causadora de maior incidência, gravidade e
mortalidade (DA SILVA et al., 2019b; FITA; NETO; SCHIAVETTI,
2010). A literatura sobre o tema baseia-se na descrição de atividades
em períodos do dia ou épocas do ano em que há maior atividade ou
abundância de serpentes, aumentando o risco de contato, e não pro-
priamente em investigações etnográficas que permitam a compreen-
são de fatores culturais das próprias populações humanas. Assim,
a maior prevalência de picadas de jararacas na Amazônia durante
a estação chuvosa (MONTEIRO et al., 2020b) é explicada em uma
perspectiva de história natural, sem maiores detalhes sobre compor-
tamentos humanos que também podem estar associados, com por
exemplo os indígenas Waorani do Equador que costumam andar
descalços e possuem o hábito de perseguir a caça com os olhos fixos
no animal na densa floresta (LARRICK, J. W.; YOST, J. A.; KAPLAN,
1978). Uma melhor compreensão dos papéis culturais, sociais e tra-
dicionais que envolvem essa relação são fundamentais para estabele-
cer estratégias de conservação das serpentes e prevenção de envene-
namentos ofídicos.

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Cosmologia e interação humano-serpente

Em uma variedade de populações tradicionais da América


Latina, um corpo de crenças baseado em tradições mitológicas e re-
ligiosas desempenha um papel decisivo na forma como os humanos
interagem com as cobras. Na civilização maia, existia o reino dos
espíritos, no qual uma cobra cósmica transportava os humanos para
moradas vividas dos deuses com base em recorrentes representações
de formas humanas agarradas aos corpos da serpente emplumada
(MCDONALD; STROSS, 2012). Na Amazônia brasileira, a comple-
xa relação entre o povo Baniwa, peixes e cobras é outro exemplo in-
teressante. Para esse povo, os peixes são descendentes das grandes
cobras, compartilhando a condição de perigosos inimigos da huma-
nidade (Walimanai), que dependem deles para se alimentar. No en-
tanto, as espécies de peixes com dentes e ferrões, ou cuja morfologia
se assemelha à de cobras, são consideradas as de maior potencial de
danos aos seres humanos. Nas narrativas Baniwa, a criação de pei-
xes depende da presença de cobras, que por sua vez são hostis. Em
uma dessas narrativas, Niãpirikoli, o deus criador, e seus parentes
brigam com as cobras, matando-as ou expulsando-as dos lagos, a
fim de abrir espaço para futura ocupação humana. Se, por um lado, a
derrota das cobras hostis é condição essencial para o acesso humano
aos recursos pesqueiros, importantes para a sobrevivência, também
desapareceu a grande capacidade multiplicadora dos peixes (LUIZA
GARNELO, 2007). Nessa relação ambígua, os homens se limitam ao
papel de predadores dos animais aquáticos, pois não possuem a ca-
pacidade de substituir os peixes, monopolizados pelas cobras.
Os Yanomami na Amazônia brasileira durante os rituais de
xamanismo concebem o cosmos como uma série de cinco cama-
das estratificadas encerradas no abdômen de uma gigantesca co-
bra cósmica, a hetu misi (JOKIC, 2015) Na mitologia Munduruku,
os répteis eram os únicos donos da noite, então muito esforço foi
necessário para convencê-los a compartilhar a noite com os seres
humanos. Por esse motivo as serpentes eram seres mágicos que es-
tavam sempre tentando retirar dos humanos a noite que um dia foi
somente delas (DANIEL MUNDURUKU, 2018). No Alto Solimões
um estudo qualitativo realizado com representantes das etnias Tiku-
na, Kokama e Kambeba revelou que na perspectiva deles as serpen-

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tes são inimigas que apresentam consciência e intenção, as causas
dos acidentes podem ser naturais ou sobrenaturais, nesse contexto
o chá de ayahuasca é utilizado pelos cuidadores para identificar a
causa, além disso os acidentes graves ou letais são entendidos como
frutos de feitiçarias (DE FARIAS et al., 2023). Ainda são escassos
os estudos que buscam compreender a visão das diferentes popula-
ções sobre a serpente e sua relação com os seres humanos. Descrever
essa perspectiva é essencial para oferecer um parâmetro aos futuros
profissionais da região, para que possam compreender a singularida-
de de culturas e dessa forma oferecer um tratamento humanizado e
adequado.

Etnofarmacologia e cuidado de si

Em áreas endêmicas da América Latina, diferentes grupos ét-


nicos ou culturais utilizam uma variedade de medicamentos popu-
lares com o objetivo de remover o veneno ou impedir sua propaga-
ção pelo organismo. Em geral, as populações utilizam esses métodos
tradicionais mesmo quando procuram atendimento médico, porém
este é preferencialmente procurado quando há sinais de alerta sistê-
micos (CRISTINO et al., 2021). Práticas como o uso de torniquetes,
incisões no local acometido e uso de substâncias de diversas pro-
cedências muitas vezes são práticas de autocuidado ineficazes ou
até mesmo deletérias, acarretando atendimento médico tardio e são
contraindicadas devido ao risco de necrose e infecção bacteriana se-
cundária
(DA SILVA et al., 2019a) As razões para a preferência pela
medicina popular incluem dificuldades de transporte, baixo custo
para a cura tradicional, falta de antiveneno nas unidades de saúde
e crenças tradicionais, pois essas práticas de cura estão enraizadas
em muitas culturas (CRISTINO et al., 2021). Assim, a formação e
integração dos curandeiros tradicionais nos primeiros socorros ade-
quados e encaminhamento para cuidados de saúde adequados é su-
gerida como uma estratégia para prevenir maus resultados ofídicos.
A maior parte da literatura sobre medicamentos populares
no tratamento de ofidismo apresenta listas de plantas de dezenas de
famílias (CRISTINO et al., 2021; DA SILVA et al., 2019a; MACIEL

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SALAZAR et al., 2021), animais e substâncias diversas e pedras so-
bre o local da picada (acredita-se que absorva veneno de cobra) (DA
SILVA et al., 2019b; FIDEL et al., 2013) e foi produzido por meio
de entrevistas com praticantes tradicionais ou residentes em áreas
endêmicas por meio da aplicação de questionários semiestrutura-
dos. Curiosamente, três famílias ‘quentes’ (Apocynaceae, Lamiaceae
e Rubiaceae) foram recuperadas em uma comparação etnofarmaco-
lógica intercultural usando dados do Brasil, Nicarágua, Nepal, China
e África do Sul (MOLANDER et al., 2012). Na Amazônia brasileira
e no Sri Lanka, analgésicos orais, como metamizol e paracetamol,
também eram comumente usados ​​pelos pacientes (CRISTINO et al.,
2021).
Na América Central as populações indígenas usavam plantas
como remédios, e existem alguns curandeiros tradicionais que são
especializados no tratamento dos acidentes (COE; ANDERSON,
2005). Um estudo realizado na região encontrou 208 espécies de
plantas usadas para tratar picadas, essas espécies pertencem a 146
gêneros distribuídos por 74 famílias de plantas. Entre as famílias
com mais espécies registradas para tratar estão: Fabaceae (22 espé-
cies), Piperaceae (18), Rubiaceae (13 espécies), Araceae (8 espécies),
Apocynaceae (7 espécies), Aristolochiaceae 8 (espécies), Asteraceae
(6 espécies), Convolvulaceae (6 espécies), Passifloraceae (5 espécies),
Polygonaceae (5 espécies) e Solanaceae (5 espécies) (GIOVANNINI;
HOWES, 2017). Na Colômbia, espécies de plantas para o tratamen-
to dos acidentes, foram encontradas sem nenhum relato etnobotâ-
nico. Além disso, plantas sendo descritas como novas espécies e er-
vas, como Plantago major foram encontradas (Plantaginaceae) e são
utilizadas por muitos grupos étnicos. Herbáceos como Renealmia
alpinia (Zingiberaceae), cuja atividade antiofídica foi comprovada
experimentalmente através de ensaios in vivo e in vitro ensaios (VÁS-
QUEZ et al., 2013). Em alguns povos indígenas amazônicos, as víti-
mas envenenadas por picadas de cobra são obrigadas a cumprir ri-
gorosamente as exigências dietéticas, não apenas delas, mas também
de seus familiares (MONTEIRO et al., 2020a). Os indivíduos são
proibidos de comer peixes capazes de morder e picar, além daquelas
cujas características físicas (lisos, viscosos, sem escamas, venenosos)
se assemelham às de cobras. O veneno que circula no sangue dessas
pessoas representa uma grave ameaça de transmutação em animal,

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razão pela qual sua condição humana e seus laços de parentesco
precisam ser reafirmados por meio de disciplinas corporais que po-
tencializem a capacidade de controlar os impulsos e reafirmem os
laços sociais com seus semelhantes. humanos (LUIZA GARNELO,
2007). Em outras populações camponesas amazônicas, o consumo
de leite foi alegado para reduzir os sintomas de envenenamento, e
o consumo de água e alimentos gordurosos foi contraindicado. Na
Amazônia brasileira, os ribeirinhos utilizam três principais sistemas
de cura, são eles: autocuidado usando técnicas diversas; cuidados
médicos oficiais geralmente combinados com práticas tradicionais e
autocuidado usando práticas tradicionais combinadas com medica-
mentos ocidentais (MACIEL SALAZAR et al., 2021).

Zooterapia no tratamento de envenenamentos ofidicos

A zooterapia é amplamente utilizada para o tratamento na


América Latina, estima-se que pelo menos 584 espécies de animais,
distribuídas em 13 categorias taxonômicas, venham sendo utilizadas
na medicina tradicional na região. No entanto, esse número é subes-
timado, uma vez que estudos sobre esse assunto ainda são limitados
(RÔMULO R. N. ALVES; HUMBERTO N. ALVES, 2011). Entre os
animais indicados e utilizados estão: abelha neotropical sem ferrão
(Melipona quadrifasciat), ouriço-do-mar verde (Lytechinus variega-
tus) corvina de prata sul-americana (Plagioscion squamosissimus),
lagarto (Ameiva ameiva), cascavel neotropical (Caudisona duris-
sa), veado (Mazama spp.), entre outros. Em sua maioria o consumo
envolve a utilização de gordura, carne, medula, cartilagem, cauda,
pele, concha, mel, moela, escama, coluna, pênis, carapaça, sangue,
bico, dentes, ovos, cascas, secreções, cabeça, coração, urina, vísceras,
unhas, chifres, a lista é extensa. No entanto, como essas partes são
sólidas, elas são expostas e secas ao sol, depois são maceradas até
que se tornem pó e sejam consumidas em chás e infusões, enquan-
to a gordura é utilizada como pomada (ALVES RRN, 2008; DE LA
GALVEZ MURILLO E, 2009; LEME, 2008; MONROY-VILCHIS O,
CABRERA L, SUÁREZ P, ZARCO-GONZÁLEZ MM, RODRÍGUE-
Z-SOTO C, 2008; YAHUARCANI A, MOROTE K, CALLE A, 2009;
ZIEMENDORFF S, 2008).

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Práticas de prevenção de envenenamentos ofidicos

A OMS deseja reduzir o número envenenamentos ao redor


do mundo até 2030, como uma solução o órgão orienta que ações
de saúde que visem a prevenção e o engajamento comunitário se-
jam levadas em consideração nos futuros projetos. Além de esta-
belecer parcerias com os curandeiros locais para uma boa aceita-
bilidade a qualquer intervenção ou tecnologia (WORLD HEALTH
ORGANIZATION, 2019). É importante pensar dessa forma, porque
as populações possuem cosmovisões, crenças, valores e cultura
diferentes, portanto não existe uma abordagem única para trabalhar,
por esse motivo é importante primeiro conhecer a região e popula-
ção alvo.
Em cidades ribeirinhas no estado do Amazonas (Norte do
Brasil) por exemplo, os dentes de jacaré-tinga (Caiman crocodilus)
e o jacaré-açu (Melanosuchus niger) são utilizados como amuletos
contra picada de serpentes (LEME, 2008). No estado da Bahia (Nor-
deste do Brasil), uma forma de prevenção relatada foi o consumo
de uma mistura líquida, na qual uma serpente coral (Micrurus sp.)
é ser colocada viva em uma garrafa de cachaça (bebida alcoólica)
e após o consumo dela acredita-se que a pessoa não terá nenhu-
ma complicação caso ocorra um acidente ofídico. Outra forma de
prevenção na região é a utilização de amuletos, geralmente de ori-
gem vegetal, animal ou mineral dentro das carteiras, deve-se usar
esse amuleto principalmente ao caminhar na mata. Duas espécies
de aves foram mencionadas para confecção de amuletos, sendo: o
tinamu solitário (Tinamus solitarius) e o tinamu de patas amarelas
(Crypturellus noctivagus zabele), nesse caso as cabeças dos passaros
são utilizadas. No local também são feitas intervenções mágico-
religiosas para prevenção, são realizadas orações principalmente ao
São Bento (santo protetor contra as cobras) (SCHIAVETTI., 2010).
Existem registros relatando que indígenas Pankararé, que habitam a
Bahia utilizam fezes secas de mamíferos e aves no preparo de defu-
madores, pois eles acreditam que a fumaça oferece proteção contra
maus olhados e serpentes (COSTA-NETO, 1999).
Os pesquisadores estão procurando cada vez mais proximi-
dade e compreensão do problema através de abordagens interdis-
ciplinares. Dessa forma, um estudo de mapeamento na Amazônia
- 196 -
Brasileira identificou os principais recursos e práticas disponíveis em
áreas remotas, esse estudo serve como base para desenvolver futuras
intervenções, ações de saúde e formular novas políticas ((BECK et
al., 2022). No Acre (Norte do Brasil) ações educativas de primeiros
socorros e prevenção foram realizadas com estudantes, o objetivo
das ações era atingir o maior número possível de pessoas através das
atividades planejadas sobre divulgação de informações sobre pre-
venção e primeiros socorros em acidentes ofídicos durante os qua-
tro meses de execução deste projeto, foram distribuídos panfletos e
exposições sobre animais peçonhentos para os alunos, a sociedade
em geral e membros da comunidade acadêmica (BERNARDE1 et
al., 2018). Em Roraima (Norte do Brasil) um programa de prevenção
e controle de picadas de cobras é realizado para fornecer informa-
ções básicas sobre medidas preventivas em diferentes comunidades,
populações rurais, indígenas, militares (exército) e imigrantes vene-
zuelanos. Além disso, a atividade atual do grupo se concentra em
disseminar o conhecimento em todo o Brasil através de mídia social
(VAIYAPURI et al., 2023). Na Costa Rica, uma atenção maior aos
grupos indígenas tem sido feita por meio da organização de cam-
panhas de prevenção em escolas e comunidades, a partir da distri-
buição de material impresso em seus próprios idiomas e outras es-
tratégias que envolvem esforços sinérgicos com organizações locais
e com saúde e educação pública instituições (GUTIÉRREZ, 2014).
Apesar dos esforços significativos para compreender os envenena-
mentos e suas circunstâncias, em relação a prevenção ainda são es-
cassas as ações e intervenções que produzam material educativo e
que promovam treinamento de primeiros socorros, levando em con-
sideração o contexto social e cultural do público. As ações educativas
devem ser pensadas promovendo a horizontalidade, dialogicidade e
amorosidade entre pesquisador e participantes para que sejam bem
aceitas pela população (GUTIÉRREZ; FAN, 2018).

Desempenho assistencial, conhecimento profissional e so-


brecarga do paciente pós-hospitalar

Em 2008, questões relacionadas a estabilidade, distribuição


dos antivenenos e treinamento de profissionais de saúde da Améri-
ca Latina foram discutidos no Instituto Clodomiro Picado, na Costa

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Rica. Representantes dos Ministérios da Saúde de países na Améri-
ca Latina participaram do evento foram apresentadas experiências
de programas de treinamento para equipes de saúde sobre o uso
correto de antivenenos (GUTIÉRREZ et al., 2009). A preocupação
com o conhecimento do profissional de saúde e o manejo clínico
dos envenenamentos é uma lacuna, pois estudos revelam a neces-
sidade de formação continuada sobre o assunto (BECK et al., 2022;
MONTOYA-VARGAS et al., 2022). No Brasil, um estudo realizado
indicou que existe a necessidade de equipamentos adequados e in-
fraestrutura nas unidades de saúde para melhorar o atendimento. O
estudo também mostrou a falta de medicamentos, incluindo antive-
neno. Além de indicar a necessidade ações educativas e iniciativas
comunitárias para desenvolver estratégias e ferramentas sobre prá-
ticas de primeiros socorros para profissionais de saúde (STRAND et
al., 2023). Na Amazônia brasileira, os profissionais de saúde relatam
insegurança no manejo dos acidentes, em razão da falta de treina-
mentos sobre a administração do antiveneno, durante a graduação
e no ambiente de trabalho. Algumas das práticas de cuidados inade-
quadas incluem: classificação clínica, dosagem do antiveneno, uso de
protocolos de pré-medicação não validados, terapia antimicrobiana,
práticas tradicionais e orientações sobre não consumir água foram
citadas (ROCHA et al., 2022). Ainda sobre os profissionais um es-
tudo realizado revelou que eles recomendam fortemente uma abor-
dagem bicultural para o tratamento de envenenamentos ofídicos e
que as populações indígenas são passíveis de receber o tratamento
(MURTA et al., 2023). Apesar da escassez de informações a respeito
dos profissionais de saúde na América Latina, os pesquisadores es-
tão fazendo um grande esforço, buscando parcerias com diferentes
municípios no estado do Amazonas e outros estados da região norte
do Brasil.

A busca pela assistência médoa em áreas remotas

A busca pela assistência médica envolve uma série de fatores


como: distâncias, meios de transporte, questões socioeconômicas,
características sociais e culturais. Comunidades indígenas no Peru
por exemplo, optam pela medicina indígena, principalmente medi-
camentos à base de plantas e curandeiros tradicionais, o profissional
- 198 -
de saúde geralmente é buscado em último caso. Fatores como a aces-
sibilidade ao local de atendimento podem influenciar nessa escolha,
assim como experiências prévias ruins em unidades de saúde. No lo-
cal, embora o sistema oficial de saúde peruano incorpore estratégias
de participação da comunidade para melhorar a assistência médica
dos povos indígenas, a escassez de material, recursos humanos e fa-
tores culturais dificulta isso (BADANTA et al., 2020). Na Amazônia
Brasileira, um estudo revelou que os pacientes podem demorar mais
de 12 horas para chegar na unidade de saúde, porque existe uma
fragmentação nos percursos, marcado por diversas mudanças de
transporte ao longo do caminho, alternando entre barcos de peque-
no porte, carros, motocicletas e percursos caminhando, isso ocorre
porque grande parte da população vulnerável vive em áreas remotas
(CRISTINO et al., 2021).

Conclusão

Pesquisas interdisciplinares são escassas até o momento na


América Latina, no entanto, expandir as abordagens englobando ou-
tras áreas principalmente a antropologia e pedagogia podem trazer
benefícios e diversas respostas para problemas que a comunidade
científica desconhece, assim como fornecer e estabelecer comunica-
ção direta com os principais afetado pelos agravos. As abordagens
forneceriam informações sobre frequência de contato, melhorando
os relatórios epidemiológicos na América Latina, também auxilia-
riam na compreensão da relação complexa que envolve homem-ani-
mal. Além disso, poderiam ser pensadas novas estratégias de saúde
e ferramentas, levando em consideração o significado experiencial,
histórico, cultural, mítico-religioso e ecológico.

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DE LAVRADOR A QUILOMBOLA: ME-
MÓRIA, TRABALHO E IDENTIDADE NA
COMUNIDADE DA CAVEIRA

Gessiane Ambrosio Nazario


Sidnei Peres

Introdução

No estado do Rio de Janeiro existem 34 comunidades certifi-


cadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP). O processo de titu-
lação das terras da Comunidade da Caveira está com os limites do
território reconhecido em portaria, com uma área de 220,8 ha, onde
residem 163 famílias cadastradas pelo Instituto de Colonização e Re-
forma Agrária (Incra).1 O território tradicional dos quilombolas da
Caveira está encravado no meio de fazendas, em um bairro periféri-
co (Botafogo) do município de São Pedro da Aldeia, no limite com
Cabo Frio; em uma paisagem mista entre o rural e o urbano.
Atualmente, as áreas de roça são muito reduzidas, em compa-
ração com o passado. O conflito fundiário, na Fazenda Campos No-
vos foi um fator fundamental na construção social do espaço físico
da Caveira.2 As atividades comandadas ou permitidas pelos fazen-
deiros (criação de gado e corte de madeira para carvoarias) causa-
ram desmatamento em grandes áreas de floresta que antes eram re-
servas de recursos naturais de uso comum das famílias quilombolas.
Isto reduziu muito as terras disponíveis para atividades produtivas
importantes à reprodução social das famílias dos descendentes de
1 Cf. http://www.incra.gov.br/sites/default/files/incra-andamentoprocessos-quilombolas_qua-
drogeral.pdf, acesso em 07/05/2020. Esta é uma fase do processo de titulação das terras
quilombolas, após a identificação, delimitação e publicação no Diário Oficial da União do
Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). Depois dessa fase, vem a emissão
de decreto de desapropriação e do título coletivo. Cf. http://www.incra.gov.br/media/docs/
editais/TDR-modulo-quilombolas-sigef.pdf, acesso em 07/08/2020.
2 Fundada no final do século XVII, a Fazenda Campos Novos, pertencia primeiramente a
Companhia de Jesus, ordem dos jesuítas, até serem expulsos em 1759 com a Reforma Pom-
balina. O território pertencente à fazenda abrangia várias localidades conhecidas hoje como
São Pedro da Aldeia, Arraial do Cabo, Armação dos Búzios e Iguaba. Os descendentes daque-
les que trabalhavam na fazenda sob regime de escravidão são hoje reconhecidos juridicamente
como quilombolas. Após a abolição da escravidão a Fazenda Campos Novos passa por um in-
tenso processo de fragmentação e desmembramento de seu território tendo sucessivos donos.

- 205 -
escravos. Tanto a caça, a pesca, a extração de madeira para lenha
foram diminuindo, como também as “terras livres” para a forma-
ção de novos grupos domésticos com o adensamento populacional
resultante das disputas por recursos fundiários. A economia políti-
ca do turismo e da especulação imobiliária acentuaram os conflitos
fundiários e a pressão sobre as condições de reprodução social do
campesinato negro da Caveira.
Como veremos, a identidade quilombola tem uma de suas for-
tes referências a memória deste processo de expropriação fundiária e
dos conflitos com os fazendeiros que tentaram expulsá-los da terra de
modo coercitivo e violento. Os registros de memória da luta pela terra
na Fazenda Campos Novos vêm se materializando em vídeos, áudios,
reportagens, relatórios de identificação territorial, dissertações e teses.
Constitui um importante acervo de fontes de evidência oral sobre a
história do campesinato negro e das formas de exploração e subordi-
nação da força de trabalho rural na Região dos Lagos. Privilegiamos os
relatos orais dos sujeitos, coletados através de entrevistas e trabalho de
campo na comunidade, realizadas em diferentes momentos nos anos
de 2017, 2018 e 2019; selecionando apenas alguns deles para a redação
deste artigo. Todavia, articulamos o conteúdo destes relatos orais aos
outros arquivos de história oral existentes para a formulação das aná-
lises e interpretações aqui apresentadas.
Como disse Dona Almerinda, expressando o modo como per-
cebem a precarização das condições de reprodução da vida campo-
nesa: “foi acabando o espaço da lavoura”. Dona Almerinda, utiliza a
expressão “gente diferente” para marcar a sensação de estranhamen-
to e distanciamento social diante destes adventícios. “A gente agora
está no meio do estreito” (Dona Almerinda): este termo utilizado pe-
los quilombolas refere-se a uma modalidade de acesso a terra fora do
controle social da comunidade. Nós veremos que famílias “de fora”
foram se estabelecendo, como estratégia para fortalecer a luta pela
terra, por intermédio do próprio povo da Caveira. Foram se fixando
também os “infiltrados” pelos fazendeiros, incluindo jagunços, para
espionar o movimento do povo da Caveira e pressionar sua expulsão
restringindo as terras disponíveis através de loteamentos ocupados
por “gente diferente” (Dona Almerinda, apud LUZ, 2019, p. 59).
Todavia, o modo de vida camponês não está só na memória.
Os mais velhos preservam, mesmo diante de condições objetivas

- 206 -
difíceis, uma existência de lavrador, de quem insiste em viver dos
frutos do trabalho na terra. São exemplos vivos e vigorosos da resis-
tência do campesinato negro. Mesmo completamente cercados por
fazendas, eles reproduzem nos seus pequenos sítios o microambien-
te rural de antigamente. Como eles sempre dizem: sua armas são
a enxada e a foice, símbolos máximos da sua existência e trajetória
social, da sua percepção de si mesmos e do mundo. Os mais velhos
com os seus sítios representam mais plenamente a história reificada
(feita coisa, materializada) e incorporada (história feita corpo, como
nos diz Bourdieu, 1989) dos conflitos fundiários, da resistência cam-
ponesa e da demanda por reparação histórica ao povo da Caveira.

“O tempo do Marquês” e a revolta do cachimbo: economia


moral e subordinação da força de trabalho
Não pretendemos aqui fazer um relato rigorosamente factual
dos conflitos fundiários na Fazenda Campos Novos, no pós-aboli-
ção, mas privilegiar as memórias dos quilombolas da Caveira sobre
tais acontecimentos, para evidenciar a ligação entre esta narrativa de
luta pela terra e a sociogênese da identidade quilombola atual. O que
nos interessa é o significado de fatos e eventos para uma coletividade
negra quando ordenados no processo de etnização de um conflito
fundiário, de transmutação de subjetividades políticas e categorias
de mobilização coletiva: de posseiros ou lavradores em quilombolas.3
A Fazenda Caveira fazia parte do complexo agrícola Campos
Novos. Campos Novos foi comprada pelo alemão Eugenio Honold
em 1919, muito lembrado pelos anciãos das comunidades quilom-
bolas que por ele foram explorados como “colonos” “pagando o dia
para morar” (ACCIOLI, 2018). No ano de 1952, a administração
da Fazenda foi passada para Antonino Paterno Castello (conhecido
como Marquês), italiano, e José Victor Rodrigues, brasileiro.
É interessante destacar que, durante a entrevista de Dona Lola,
ela contou que um dos filhos de Eugenio Honold, chamado George
é quem administrava a fazenda até vir a falecer num acidente de car-
ro.4 Este evento, a morte de George Honold, é um marco na memória
3 Entendemos etnização como a incorporação de critérios étnicos na formação de identidades
coletivas em contextos de luta pela terra e por direitos. No caso aqui abordado, envolve situa-
ções históricas de mudança nas categorias de percepção do mundo rural e na gramática moral
dos conflitos sociais no campo. Para o conceito de etnicidade, BARTH (2000).
4 O carro, uma caminhonete, no qual George era conduzido, derrapou na estrada Amaral

- 207 -
da relação dos entrevistados da Caveira com os fazendeiros. Inclu-
sive, delimita dois períodos: um no qual havia uma relação “harmo-
niosa” com os Honold (“Ele não incomodava aqui”) e outro marcado
por violências e arbitrariedades na época do Marquês. Quando digo
“harmoniosa” não me refiro a ausência de conflito ou subordinação
da força de trabalho, mas a um tempo em que imperava um pac-
to moral de convivência entre fazendeiro e os moradores da fazen-
da que tinham acesso à terra (a casa e a roça) em troca de serviços
prestados ao dono. O Sr. Genil fala de George Honold como alguém
integrado com a comunidade, que participava das festas de Santo
Inácio e demonstrava uma conduta devota com o santo. A esfera re-
ligiosa é mencionada como lócus de aproximação entre fazendeiros
e colonos. Contribuía com a festa, em contraposição ao Marquês que
acabou com a vila que existia próxima a sede da fazenda.
O Sr. Afonso também não conheceu pessoalmente o Euge-
nio Honold. Só conheceu de nome, mas afirmou: “Esse aí era muito
bom! A turma trabalhava, era um clima de família, ela dava festa
em final de ano. Matava aquele boi, era churrasco pra tudo quanto
é lado!”. Ele conheceu o Sr. Joaquim Português “que andava muito
a cavalo”: “Ele não era um sujeito mal não, ele era um cara… ele
era administrador da fazenda Campos Novos. […] Só piorou mesmo
depois que venderam a fazenda. Antes de vender...”. O armazém do
Seu Armando concentrava toda a produção da região, de lá ia para o
Porto do Carro, em Cabo Frio. Seu depoimento descreve uma época
de fartura em contraste com o tempo do Marquês, que acabou com
aquela “harmonia na fazenda”. Mas o Sr. Gabriel foi citado, pelo Sr.
João, como o símbolo da resistência. Falou como o Marquês enganou
as pessoas da Vila em Campos Novos. “Sr. Gabriel foi o único que
resistiu e não saiu dali. Ele tirava a família da casa prometendo uma
nova e ia e derrubava a casa.” Lembrou também do armazém do Sr.
Armando que tinha em Campos Novos: “o italiano acabou com o
Armazém do Sr. Armando”.
O Sr. João relatou um pouco da história da sua família, como
seus antepassados se deslocaram do lugar chamado Restinga para a
Caveira. Seu pai foi para a Caveira através de “Negozinho” (Sr. Se-
verino) e do “Véio Marciano”, “trouxe Vitor, que é meu pai”. “Véio
Peixoto, na altura de Tribobó, município de São Gonçalo, na tarde de 09/02/1949. “O fazen-
deiro e capitalista”, como foi designado pelo jornal A Noite (09/02/1949), ia para Cabo Frio
inspecionar as fazendas.

- 208 -
Severino veio pra tocar a lavoura e administrar a turma na Fazenda
Campos Novos. […] Até essa época a Fazenda Campos Novos era
as mil maravilhas”. Seu pai e Marciano vieram como arrendatários,
eles não eram empregados da fazenda. Pagavam dois dias por mês e
tocavam sua lavoura. Seu João não conheceu o George Honold, mas
conheceu o Marquês: “A Fazenda Campos Novos era uma potência
produtiva. Havia uma harmonia na fazenda”. O tempo do Marquês é
caracterizado pela ruptura unilateral com esta economia moral que
legitimava vínculos e relações de obrigação e favores assimétricos
(um sistema de subordinação da força de trabalho) expressos no di-
reito a moradia e roçado nas terras do patrão (THOMPSON, 1998).
O Sr. Genil delineou a nova situação com a imposição de no-
vas relações de trabalho na fazenda: “Ele arrumou um tal de con-
trato”; como também a estratégia de expulsão ao soltar “os bois na
roça” destruindo as plantações. Ele aponta Botafogo como a origem
da resistência, o “pessoal de Botafogo” que não assinaram contrato;
e como personagens principais nesse ato de insubmissão o seu tio
Negozinho e Sílvio, seu cunhado e presidente da associação de lavra-
dores, que “sabia o que era direito” por ter morado no Rio de Janeiro
onde aprendeu muitas coisas. A organização em moldes associativis-
tas, em torno da categoria de lavrador, remete a uma percepção dos
conflitos em termos de sentimentos de injustiça e indignação diante
de direitos violados. A representação política e mobilização coletiva
em torno das categorias posseiro, lavrador e trabalhador rural, sob a
forma de associação civil e sindicato, forneceu uma linguagem pú-
blica para mobilização de sentimentos de morais de privação e sofri-
mento, assim como repertórios de ação e alianças, diante da ruptura
dos padrões morais de subordinação da força de trabalho e acesso a
terra.
Um fato culminante na história dos moradores da Caveira que
mudou a forma como o trabalho estava configurado foi quando, na
década de 1950, o Marquês queria impor regras mais duras e proi-
bir os lavradores que fumassem o cachimbo e estabelecer horários
até mesmo para urinar e beber água. Em ato de resistência os mais
velhos retiraram o cachimbo do bolso e começaram a fumar. O Mar-
quês ordenou que eles retirassem o cachimbo da boca e voltassem
ao trabalho e, um deles, o Sr. Marcelino respondeu que ele estava em
seu tempo de descanso e que não iria retirar o cachimbo da boca. O

- 209 -
Marquês ao se reportar em direção ao Sr. Marcelino parou quando
percebeu os outros lavradores se posicionarem ao lado dele, do se-
nhor Marcelino, para defendê-lo. O fazendeiro, raivoso, ordenou que
ele não pisasse mais em suas terras. Quando foram embora eles se
reuniram e, juntos, decidiram não mais pagar suas terras cultivando
as do fazendeiro, mas sim, pagando em dinheiro o dia de trabalho.
A proibição do fumo do cachimbo foi a gota d’água, somada às
outras regras mais duras e, também, ao fato do Marquês não querer
dar o recibo do dia do arrendamento, como eles começaram a exigir,
conforme recordou dona Lola, em situação de entrevista. A proibi-
ção ao cachimbo foi o estopim para deflagrar a organização e união
do grupo que culminou na criação da associação de lavradores. Os
quilombolas da Caveira possuíam uma noção legitimadora, apoia-
da na crença de que estavam defendendo um costume, de fumar o
cachimbo, mobilizando o consenso mais amplo da comunidade. As
queixas operavam dentro de um consenso popular a respeito do que
eram as práticas legítimas e ilegítimas, havia um pacto moral tácito
orientando as atitudes recíprocas entre fazendeiros e lavradores.5
Neste sentido, o direito de fumar o cachimbo é um símbolo
da ruptura do pacto moral que regia as relações entre fazendeiros e
o campesinato negro na Fazenda Campos Novos: “Ele começou logo
proibindo as pessoas de fumar, coisa que na roça quase todo mundo
fumava cachimbo e cigarro”. O conflito é deflagrado pela agressão a
um costume apreciado coletivamente (um valor moral), uma afronta a
dignidade camponesa. É um expediente verbal de enunciação da me-
mória da resistência camponesa, mas é também o recurso simbólico
de expressão e compreensão do confronto entre duas modalidades de
(re)produção da vida social. Por isso, os camponeses da Caveira nos
relatos orais sobre tal acontecimento se referem a ele como o “tempo
do Marquês”, o “tempo do cativeiro”, em contraposição ao “tempo dos
Honold”, “tempo da harmonia”, “tempo da fartura”. Também são tem-
pos opostos em termos de autonomia e dependência: “Nós não fomos
empregados deles aqui, não. O pessoal só pagava a renda”.
A metáfora da escravidão, a alegoria moral de injustiça, é acio-
nada não para o período logo posterior a abolição, marcado pela au-
5 O diálogo com a noção de economia moral do historiador E. P. Thompson (1998) é pertinente
para elaborar um quadro analítico que permita compreender melhor a significação sociológica
deste evento na construção social de disposições constestatórias e como fator de mobilização,
pois tal episódio é paradigmático na memória das lutas pela terra.

- 210 -
sência ou baixa frequência dos fazendeiros até a morte de George
Honold e “venda” da fazenda, feita por Luiz Honold ao Marquês.
Na memória dos quilombolas da Caveira é quando foi inaugurado
o conflito com os fazendeiros e todas as violências e crueldades co-
metidas contra eles. É quando a solidariedade do grupos se expressa
mais incisivamente, depois assumindo uma forma associativa de or-
ganização política. “Então tira o cachimbo da boca! Tira o cachim-
bo da boca!”, o cachimbo como signo dos direitos (nesse caso, ao
descanso) agressivamente atacados pelo fazendeiro, como o Outro
antagonista, categoria informada e incorporada na memória pela ex-
periência sindical passada. “Era os 15 minutos que ele... a lei daria o
direito à ele”, cabe destaque às referências ao direito e a lei. Na verda-
de trata-se do direito e lei no sentido costumeiro (usos ou hábitos),
mas no seio de uma memória perpassada pela experiência sindical
na qual o quadro normativo estatal (sistemas legislativo e judiciário)
eram acionados nos conflitos.
Nos depoimentos também observamos a reação camponesa
à imposição pelo Marques de um “clima de escravo” por meio de
contratos formais e procedimentos disciplinares rígidos (segundo
os critérios dos sujeitos) de controle do tempo e do trabalho. “E ele
botou uma lei pra ninguém fumar no serviço”, “Por que ele queria
obrigar o pessoal a ficar no regime deles!”. Lei, regime, significa um
padrão de subordinação considerado opressivo porque fora das ba-
ses morais de legitimidade então vigentes, proporcionando então as
condições para a emergência de disposições de protesto, sentimentos
coletivos de indignação (THOMPSON, 1998). Eles resolvem então
radicalizar, não pagando mais a “renda” em trabalho, mas em dinhei-
ro, depositando no Banco o valor correspondente. Tal ação corres-
ponde a uma manifestação de autonomia frente ao patrão, sendo o
pagamento em dinheiro uma sinalização de libertação. Mas a reação
do fazendeiro (enquanto uma posição social) resultou na substitui-
ção de uma economia moral do arrendamento por uma economia
política do terror, a partir da venda para o Dácio Pereira e da criação
de gado como principal forma de investimento capitalista nas terras
da fazenda em detrimento da lavoura. A partir daí os patrões im-
põem uma política de expulsão em vez de exploração / subordinação
da força de trabalho. “Aí o Marques passa essa briga pro Dácio”, essa
fórmula é reveladora do processo em tela: a variação de “grileiros”

- 211 -
(nova categoria engendrada na luta) como fato marcante na memó-
ria do conflito fundiário.
O cenário descrito é extremamente grave, implicando a con-
tinuidade de um repertório de ação no qual o uso sistemático da
violência, com a conivência de delegados e policiais militares, real-
mente corresponde a imposição de um regime de terror: incêndio
de casas, tratores e gado destruindo roças, espancamento de adul-
tos e crianças, prisões arbitrárias, tortura… Podemos pensar neste
regime de terror como um padrão de relacionamento imposto por
grileiros a posseiros (enquanto categoriais que remetem a posições
sociais), que marcam a existência social na Fazenda Campos Novos
pelo encadeamento de experiências e narrativas de sofrimento que
rompem frequentemente com o cotidiano. Esse regime de terror im-
posto ao campesinato negro da Caveira perdurou por três décadas
(1950-1980).
Violência, memória e subjetividade: grileiro e posseiro, fazen-
deiro e lavrador são categorias que fazem todo sentido para os sujei-
tos, constituem a experiência e as narrativas sobre o passado funda-
mentais para a identidade quilombola no presente: a luta, a coragem
e o sofrimento dos mais velhos é o patrimônio simbólico deixado
para as gerações mais jovens, junto com o patrimônio material que
é a terra. Em uma entrevista com Seu João e Dona Almerinda, eles
relataram os eventos relativos às prisões e a repressão que sofreram
ao serem rotulados como “comunistas”, o que já os colocava em si-
tuação de vulnerabilidade política e física naquele contexto, porque
“a gente lutava com a fúria dos fazendeiros”, como eles disseram.6
Entretanto, os lavradores não eram passivos diante das pressões dos
fazendeiros. Eles acionavam estratégias de resistência, que fortale-
ciam a solidariedade entre eles e o senso de identidade e segurança.
Eles inovaram o repertório de ação da luta camponesa. Nas palavras
de Dona Almerinda: “Nós tinha nossa lavoura, tinha banana, que
tinha plantado. Então quando aqueles novo chegasse a gente rancava
6 Poucos dias depois de instaurada a ditadura militar a linguagem oficial para reprimir oposi-
tores já estava sendo usada por fazendeiros e administradores. Com o apoio da polícia militar
dezenas de camponeses foram presos e torturados na delegacia de Cabo Frio e no Estádio
Caio Martins, em Niterói, onde ficaram detidos por um mês até o fim do inquérito que lhes
foi imposto. Várias matérias jornalísticas vão registrar a cumplicidade de delegados, polícia
militar e os órgãos de repressão da ditadura militar na implantação deste regime de terror so-
bre as famílias camponesas residentes nas terras da Fazenda Campos Novos. Para citar apenas
um exemplo: “Lavradores de Cabo Frio sob terror: polícia e grileiros saqueiam casebres e
lavouras”, Última Hora, 07/07/1964.

- 212 -
da gente e botava na lavoura dele que é pra… como que ele já tava
ali”. O Sr. João apresentou um belo relato sobre a formação de tur-
mas de autoproteção contra as investidas dos jagunços e policiais, os
incentivos para a entrada de famílias de fora e o transplante de pés
de banana nos terrenos daqueles novos moradores: “E como naquela
época... quanto mais gente dentro de Botafogo tivesse mais seguran-
ça nós tinha pra gente firmar, então começou a vim gente de fora a
ponto da gente fazer casa de noite, pros caboclo morar, roça…”.
O trabalho nas roças, na casa de farinha de Dona Rosa e a ven-
da de seus produtos na feira foi o que sustentou e subsidiou o grupo
para pagar ao INCRA após decidirem não pagar o arrendamento
aos fazendeiros. Cultivar a terra, pagar e se cadastrar no Incra eram
estratégias camponesas na luta pela terra, disputando o reconheci-
mento oficial para afirmar seus direitos. Identidade e consciência de
classe construída na luta pela terra, na interlocução com o traba-
lho político de representação e mobilização dos mediadores (Incra e
Fetag), em situações extremas de confronto com antagonistas num
regime de terror.
Associativismo e sindicalismo: o lavrador versus o grileiro
Nos anos 1950 e 1960, camponeses e trabalhadores rurais sur-
gem como atores políticos e sujeitos de direitos, portanto como ca-
tegoria de mobilização coletiva em uma linguagem de expressão pú-
blica de privações e sofrimentos nos termos de sentimentos morais
ligados a noções de injustiça social (GRYNSZPAN & DEZEMORE,
2007). Surge a figura do grileiro – aquele que se apropria ilegalmente
de terras – como vilão social e antagonista do posseiro; e o conceito
de função social da propriedade adquire força política, para além de
sua definição jurídica já estabelecida em lei anteriormente. As de-
sapropriações se constituem na principal modalidade de ação dos
governos (estaduais e federal) para combater os latifúndios e para
resolver situações graves de conflito fundiário (MEDEIROS, 2010).
A reforma agrária emerge como problema público e a extensão dos
direitos trabalhistas ao meio rural se torna um tema relevante tanto
para a esquerda quanto para a direita. O sindicalismo rural adqui-
re reconhecimento oficial e trabalhador rural torna-se a categoria
abrangente, unificando as distintas situações de empregado sob re-
muneração e de condições de acesso a terra.

- 213 -
Foi no terreno do senhor Sílvio da Silveira, na década de 1950,
onde foi construída a primeira sede da Associação de lavradores de
São Pedro da Aldeia e Cabo Frio. Esta foi a primeira entidade orga-
nizada dos trabalhadores rurais.7 Foi neste mesmo espaço que foi
construída também a primeira escola do local. Foi esta organização
que incentivou a vinda de lavradores de fora para povoarem a região
e fortalecerem a luta local. A associação era liderada pelas famílias
Silveira, Santos e Marciano. O Sindicato de Trabalhadores Rurais de
Cabo Frio e São Pedro da Aldeia foi formado em 1961 e fechado com
o golpe de 1964.
No processo de reorganização política dos camponeses da fa-
zenda Campos Novos foi criado o Sindicato de Trabalhadores Rurais
de São Pedro da Aldeia, em 1974, que teve como seu primeiro presi-
dente Sebastião Lan. Segundo Aline Maia (2018), a pauta de defesa
da reforma agrária foi incorporada e o sindicato coordenou o uso
e ocupação da terra e das primeiras feiras livres da região (MAIA,
2018). Em depoimento, em 1983, Dona Rosa afirma que a Fetag he-
sitava em atuar na região porque não havia um sindicato e que os
lavradores tinham medo por causa da repressão, “porque só em falar
em reforma agrária vinham prender” (Dona Rosa, depoimento con-
cedido a Leonilde Medeiros e Sonia Lacerda, apud MAIA, 2018,p.
399). Sebastião Lan, em depoimento, também em 1983, conta que
foi em reuniões na FETAG, em Niterói. Lá ficou sabendo que a fe-
deração não podia acompanhar o caso de Campos Novos porque
tinha outros municípios para atuar, a solução era mesmo formar um
sindicato (Sebastião Lan, entrevista concedida a Leonilde Medeiros,
apud MAIA, 2018,p. 399-400). Lan e Dona Rosa tinham pensado
primeiro em criar o sindicato em Cabo Frio, mas a Fetag desaconse-
lhou, pois os lavradores estavam muito visados como “comunistas e
7 Esse é um momento de acentuada mobilização pela reforma agrária e de crescente organi-
zação política de camponeses e trabalhadores rurais. A legislação trabalhista e previdenciária
não havia sido ainda estendida aos trabalhadores do campo, apesar de algumas tentativas nos
governos de Getúlio Vargas. Esse debate público girava em torno da definição do trabalhador
rural como categoria profissional, tanto na esfera parlamentar quanto na executiva. O direito a
formação de sindicatos, por exemplo, não estava legalizada no meio rural e qualquer forma de
organização política era reprimida pelas forças policiais e considerada uma ameaça ao direito
de propriedade e a ordem pública. Os grandes proprietários consideravam que a sindicalização
levaria a expansão da luta de classes para o campo e afirmavam que o camponês era incapaz
de ser organizar autonomamente. Venceu a proposta de associativismo misto, ou seja, que
congregava empregados e patrões, cujos interesses seriam supostamente convergentes. Na
segunda metade dos anos 1940 começaram a surgir as primeiras associações de lavradores,
constituídas com a colaboração do Partido Comunista do Brasil (PCB) (MEDEIROS, 2018).

- 214 -
subversivos”. Em uma assembleia, em 28/02/1974, que contou com
a presença de mais de 500 lavradores, foi criado o sindicato rural de
São Pedro da Aldeia (MAIA, 2018).
O sindicato de Cabo Frio teria sido resultado de dissenções
entre dirigentes do sindicato anterior (Cabo Frio e São Pedro), mas
consta também que o sindicato de São Pedro apoiou a fundação de
um sindicato independente em Cabo Frio (MAIA, 2018 e O Flumi-
nense, 14/04/1978). As duas possibilidades não se excluem. O presi-
dente do sindicato de Cabo Frio, Joanil Bento Pereira, era suplente da
presidência no sindicato de São Pedro. Na assembleia de fundação,
realizada na Câmara de Vereadores, em meados de abril de 1978, e
na entrevista concedida ao jornal O Fluminense, Joanil Pereira fez
questão de mencionar: “[…] o apoio do sindicato de São Pedro da
Aldeia, onde já existem 1.600 trabalhadores sindicalizados”.
Em 09/03/1983, foram promulgados dois decretos pelo presi-
dente João Baptista Figueiredo, relativos a desapropriação de parte
da Fazenda Campos Novos (O Fluminense, 12/03/1983). O Incra foi
autorizado a fazer a desapropriação e tinha o prazo de três anos para
intervir, remanejando as famílias e regularizando a área. A Fazenda
Campos Novos não foi integralmente atingida pelos decretos, mas
apenas uma faixa de 3.200 hectares., menos da metade.
Os moradores antigos8 (descendentes das três famílias fun-
dadoras) se opuseram aos critérios do Incra por serem muito restri-
tos e excludentes, pois iam de encontro aos princípios das famílias
(que se identificarão depois como quilombolas) de atribuição de di-
reitos de acesso a terra na Caveira. Pelas regras do órgão fundiário
ficavam excluídos aqueles que tivessem mais de 65 anos de idade e
aqueles que estivessem empregados em atividades não rurais e os ta-
manhos dos terrenos para assentamento eram menores do que aque-
les ocupados efetivamente e necessários a reprodução social campo-
nesa (TOSTA, 2005). Na comunidade Caveira, o trabalho na roça
sempre foi articulado com empregos urbanos, temporariamente ou
permanentemente, como forma de complementar a renda familiar,
seja em circunstâncias de queda na produção agrícola por causa de
8 Esta é uma categoria de autoidentificação, como apontado por Tosta (2005), da rede de
parentes oriunda das três famílias originais que se reconheceram como “remanescentes de co-
munidades de quilombo” nos anos 2000. A identificação como moradores antigos se constitui
em referência aos “de fora” e os “infiltrados”, que se estabeleceram na Caveira no período dos
conflitos com os fazendeiros.

- 215 -
fatores climáticos ou devido a condições ruins de comercialização
dos produtos. Sendo assim, muitas vezes alguém da família traba-
lhava no setor comercial ou industrial em Cabo Frio, São Pedro da
Aldeia ou Arraial do Cabo, enquanto outros integrantes ficavam na
Caveira cuidando da casa e da roça. Aquele que se empregava na
cidade, no fim de semana e feriados se tornava lavrador. Esse era
o caso, por exemplo, do Sr. João que foi empregado durante mui-
tos anos na Fábrica Alcális, em Arraial do Cabo. Alias, o que ocorre
com muitas famílias camponesas em muitos lugares, que intercalam
as chamadas ocupações agrícolas e não agrícolas. Estas últimas sen-
do em muitos casos atividades essenciais para a reprodução social
dos grupos domésticos e do modo de vida camponês, constituindo
fontes de recursos estratégicos para a permanência na terra. Excluir
aqueles que tinham mais de 65 anos era desrespeitar a experiência de
resistência e a liderança que exerceram na luta que lhes proporciona-
va o prestígio que tinham. Titular módulos de tamanho pequeno, era
inviabilizar as unidades sociais de reprodução camponesa.
Todavia, havia famílias que concordavam com as regras de
assentamento rural do Incra. Alguns moradores, principalmente os
que residiam nos limites com Cabo Frio, aceitaram o tamanho do
módulo proposto pelo órgão e venderam parcelas das suas terras
para não serem expulsos. O Incra pressionou para que os possei-
ros antigos acatassem as diretrizes oficiais para a desapropriação. O
Incra atuava a partir de classificações genéricas de posseiro e a apli-
cava burocraticamente, sem levar em consideração as especificida-
des históricas e modalidades sociais de ocupação fundiária daquela
situação local concreta, gerando insegurança quanto a garantia dos
direitos a terra arduamente defendidos e com tanta coragem. Alguns
antigos sítios foram fragmentados, sendo substituídos por terrenos
sem espaço para roça e ocupados pelos “de fora”. Isto resultou na di-
minuição da área cultivada, redução da produção agrícola e adensa-
mento populacional em Botafogo-Caveira, contribuindo para a atual
configuração rural-urbana do lugar (TOSTA, 2005).

- 216 -
A Constituição de 1988: novas categorias de percepção,
uma nova gramatica moral e novas formas político-orga-
nizativas

Dona Rosa apresenta, num documentário de 2004, uma me-


mória dos conflitos fundiários e da luta pela terra, das décadas de
1950 a 1980, utilizando categorias oriundas do sindicalismo rural
(como grileiros e posseiros ou lavradores) combinadas com categorias
próprias de uma linguagem política de direitos étnicos vinculados a
experiência histórica da escravidão.9 Na ocasião em que foi produzi-
do o vídeo, o cenário institucional e simbólico de confrontação com
os fazendeiros tinha se modificado e a memória e representações so-
bre o passado se estabeleciam em torno da noção de quilombo. A
subordinação aos fazendeiros, através do regime de arrendamento,
nas primeiras décadas só século XX pós abolição, foi elaborada reto-
ricamente por ela em referência a escravidão. Mas em outras entre-
vistas de Dona Rosa é comum que ela se refira a si mesma e a seus
companheiros enquanto “camponeses”. Tal afirmativa nos conduz a
refletir sobre como e quando os camponeses da fazenda Caveira pas-
sam a se autodenominar como quilombolas.
O dispositivo constitucional (de 1988) que determina a titu-
lação das terras ocupadas permanentemente pelos “remanescentes
de comunidade de quilombo” resultou de um processo, durante o
período conhecido como redemocratização, de surgimento de novas
categorias de mobilização e representação políticas no campo. As ca-
tegorias de camponês e trabalhador rural, oriundas do sindicalismo
e da luta pela reforma agrária, abarcavam distintas modalidades de
subordinação do trabalho e de ocupação e uso dos recursos naturais.
Diferentes coletivos e grupos vão se constituir ou adquirir visibili-
dade no espaço público dos conflitos fundiários a partir de formas
associativas de expressão política que evidenciam as diversidades
das situações de uso e ocupação da terra: quilombolas, caiçaras,
9 “[…] Aos nove anos de idade eu tive a minha primeira luta contra a escravatura. Por que
já tinha terminado a escravidão, mas a escravatura continuava e continua até hoje. É só a
gente olhar um pouquinho, a gente vê como ainda existem pessoas escravas. E naquela época,
não era diferente de hoje. Meu pai era escravo. Ele trabalhava numa fazenda, onde ele tinha
que roçar o roçado, tirar lenha pro patrão e depois ele plantar milho. […]” (Depoimento de
Dona Rosa, 18 e 19/10/2004, no vídeo IFCS/UFRJ). Informações retiradas de uma entrevista
de Dona Rosa à Revista do Conselho Estadual dos Direitos da Mulher (CEDIM) como parte
do projeto Memória Viva.

- 217 -
quebradeiras de coco de babaçu, pescadores artesanais, piaçabeiros,
castanheiros, faxinaleiros, ribeirinhos, seringueiros, etc. Estas novas
organizações vão apresentar demandas por direitos visando a garan-
tir a permanência ou recuperação do acesso e controle de terras de
uso comum, fundamentais para a reprodução social de modos de
vida coletiva (ALMEIDA, 2008).
O vocabulário militante das lutas sociais no campo deixa de
girar exclusivamente em torno dos termos trabalho e posse e passa a
girar também em torno das noções de identidade e território. A uma
linguagem política de luta de classes se sobrepôs um ativismo moti-
vado por demandas morais de reconhecimento, ou seja, por confron-
tos identitários (HONNETH, 2003). Critérios étnicos, de gênero e de
consciência ecológica são incorporados nesses movimentos sociais
nos processos de constituição como sujeitos políticos, em contextos
de confronto com antagonistas e interlocução com o Estado. Novas
concepções de direito ao uso e ocupação da terra são assim instituí-
dos e pressionam por mudanças legislativas e na burocracia estatal.
Amparados na Convenção 169 da Organização Internacional
do Trabalho (OIT), direitos territoriais são reconhecidos oficialmen-
te para a proteção de coletivos que exercem práticas econômicas de
baixo impacto sobre os ecossistemas, devido a suas formas especí-
ficas de relação com o meio ambiente e apropriação dos recursos
naturais (ALMEIDA, 2018). O cenário pós 1988, então, apresentou
um quadro institucional favorável a luta das comunidades negras
rurais (e urbanas também) em defesa da manutenção das terras que
ocupavam ou da recuperação daquelas que lhes foram expropriadas.
Os conflitos fundiários envolvendo tais coletivos adquiriram outra
configuração, pois agora tinham como elemento central as deman-
das morais de reconhecimento identitário sustentados na busca por
reparação histórica.
No relatório antropológico de identificação da área quilombo-
la da Caveira temos a informação sobre as assembleias que ocorriam,
em 2004, quando ainda existia a Associação de Moradores de Bota-
fogo-Caveira, na qual reivindicaram a titulação do seu território. Em
1998, foram realizados estudos de reconhecimento étnico promovi-
dos pela Fundação Cultural Palmares (FCP) e Instituto de Terras e
Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (Iterj). Exatamente naquele
ano das assembleias da associação, a FCP emite a certificação de au-

- 218 -
torreconhecimento da Comunidade Caveira/Botafogo como “rema-
nescentes das comunidades dos quilombos”, em 17/06/2004. Nessas
assembleias aconteceu a conversão pública dos posseiros e lavrado-
res em quilombolas da Caveira, a etnização definitiva do conflito
fundiário na Fazenda Campos Novos. Os estudos antropológicos de
identificação e delimitação do território da comunidade de rema-
nescentes de quilombo da Caveira aconteceram nos anos de 2008 e
2009 (LUZ, 2019).
O depoimento do Sr. João e Dona Almerinda sobre o reconhe-
cimento oficial e a autoidentificação como quilombola é muito inte-
ressante. O Sr. João disse que a associação de moradores da Caveira
mudou para associação quilombola para obter recursos do governo
federal, por sugestão de um funcionário local do Incra, chamado
Celso. “Reunimos a comunidade, nós reunimos a comunidade e a
comunidade aprovaram e então foi criado a associação de remanes-
cente de quilombo”. O primeiro presidente da associação quilombo-
la foi o irmão do Sr. João, o Sr. Ilson. O levantamento do Incra é que
está marcado na memória deles, “esse levantamento da terra para
chegar a origem”, provavelmente se referem aos estudos antropoló-
gicos de identificação da área para titulação: “… e depois começa-
ram a entrar, pesquisar...”. Não fica muito claro, quando foi criada a
associação de moradores. O Sr. João diz que foi depois que acalmou
a repressão dos fazendeiros: “[…] mas depois que acalmou tudo, fa-
zendeiro passou a não perturbar mais, aquela coisa toda, porque foi
chamado atenção pelas autoridades [...]”. Eu suponho que tenha sido
na época das desapropriações de áreas na Fazenda Campos Novos (a
Caveira ficando de fora), e com a intervenção mais incisiva do Incra
nos conflitos com os fazendeiros, nos anos 1980, que eles criaram a
associação de moradores.
Nos anos 1980 os conflitos continuavam, mas na memória dos
mais velhos da Caveira esse período de desapropriações é percebido
como relativamente mais calmo. Não mais uma associação de lavra-
dores (os sindicatos rurais de São Pedro e de Cabo Frio já haviam
voltado a funcionar em 1974 e 1978), mas uma forma de expres-
são organizativa local, da comunidade da Caveira, que só mudou de
nome, para Associação dos Remanescentes de Quilombo da Caveira.
Logo, a Associação de Moradores de Caveira-Botafogo, que já tinha
uma referência territorial e comunitária, foi importante para a tran-

- 219 -
sição de uma forma organizativa sindical para uma de caráter étni-
co. Como o Sr. Francisco relatou para a antropóloga Andréia Franco
Luz: “O trabalho de remanescente faz uns dois anos e pouco… na
realidade, a associação sempre existiu, mas só que não era reconheci-
da como remanescente, usavam o termo lavrador, associação dos pe-
quenos lavradores. Agora, mudou para remanescente” (LUZ, 2009,
p. 55). O Sr. Francisco traça uma linha de continuidade entre duas
formas político-organizativas, ele diz “só que não era reconhecida
como remanescente”, demonstrando uma compreensão desta passa-
gem como natural, como se fosse apenas uma visibilização de um
aspecto (central, sim) que estava escondido, oculto. Lavrador (ou
trabalhador rural) e quilombola se complementam na construção
social da identidade do povo da Caveira.
A referência étnico-racial passa então a ser central e também
a demanda por direitos em termos de reparação histórica aos des-
cendentes de pessoas escravizadas. O Sr. João e Dona Almerinda
explicam a decisão de assumirem sua condição quilombola pelas
origens da comunidade, cuja denominação (Caveira) remete aos
restos mortais (ossadas) que marcam simbolicamente o lugar com
a dor do cativeiro. Esta memória e a terra são indissociáveis, ambos
são patrimônios coletivos dos Silveira, dos Souza e dos Santos; assim
como a memória das lutas pela permanência na Caveira. Os funda-
dores das famílias foram: Véio Severino, Véio Marcelino e Véio Ne-
gosinho. “Aqui era tudo… nego”, “… depois que foi vindo a mistura”,
“mas os fundador, os remanescente mesmo...”. É muito significativo
que o Véio Severino seja lembrado pela sua data de nascimento “no
dia da liberdade” (13/05/1888). O critério racial se combina com o
histórico (experiência ancestral de escravização), para a formulação
de uma identidade vinculada a um modo de vida coletiva construí-
da nas terras da antiga fazenda Caveira, onde seus avós e tataravós
viveram e morreram. O octogenário Sr. Afonso explica o que é ser
quilombola falando de sua avó Damiana que tinha as marcas das
correntes nos pés. Ela tinha a experiência da escravidão gravada no
corpo, a história incorporada (feita corpo). Vanda recordou as his-
tórias de seu tio e de seu pai que diziam que sua bisavó tinha sido
escrava. Quando assistiam novelas da época dos escravos eles fala-
vam assim: “Minha mãe contava que minha avó passou por isso”.
Memórias que circulavam no espaço doméstico, nas redes familiares

- 220 -
do campesinato negro; antes silenciadas nos espaços públicos, na
memória oficial do município e no espaço escolar, tornam-se fatores
de afirmação étnica, de surgimento de novas subjetividades políticas
e de fortalecimento da autoestima (POLLAK, 1989).

Conclusão.

A categoria “remanescentes de comunidades de quilombo”


é uma categoria jurídica, que define determinada situação ou con-
dição para a atribuição formal / oficial de direitos (fundiários, de
saúde, educação, etc.). É a base para a proposição de leis infracons-
titucionais e normas internas de órgãos governamentais. É também,
portanto, uma categoria administrativa pela qual agencias estatais
planejam e implementam programas de intervenção que reconhe-
cem a existência pública de grupos. Portanto, para muitas comuni-
dades negras (rurais ou urbanas) esta designação não era conhecida.
O que não quer dizer a inexistência de identidades coletivas, mas que
estas foram ressignificadas pela apropriação da categoria jurídica em
contextos de luta por direitos nos campos político, jurídico, acadê-
mico e das lutas étnicas e de classe. Por isso, a comunidade da Ca-
veira aproveitou a oportunidade política e transformou a associação
de moradores em associação de remanescentes de quilombo, “para
obter mais recursos do governo federal”.
O “Povo da Caveira” é a autodesignação de um coletivo cujo
eixo central são as três famílias (Silveira, Santos e Souza), “os troncos
originais”, que formam uma rede de parentes, que descendem daque-
les que foram escravizados na antiga fazenda Campos Novos e que se
contrapõem aos “de fora” e aos “infiltrados”. Há uma distinção bem
marcada e enfatizada pelos mais velhos diante daqueles que chega-
ram para fortalecer a luta pela terra e daqueles que foram colocados
pelos fazendeiros no meio deles para expulsá-los. Essa identidade
remete a uma época em que “aqui tudo era nego”, havia uma dispo-
nibilidade de terras (era “livre”) e vigorava uma lógica endogâmica
nas escolhas matrimoniais e formação de novos grupos domésticos.
Com o fim da escravidão, seus antepassados permaneceram nas
terras da fazenda sob uma nova modalidade de subordinação e ex-
ploração da força de trabalho, o arrendamento, legitimado por um

- 221 -
pacto moral com os novos donos que viabilizava as condições para a
reprodução social do campesinato negro depois da abolição. Lavou-
ra, pesca, caça, criação de animais e comercialização de excedentes
(como a farinha e outros produtos agrícolas), atividades exercidas
em áreas de uso comum e áreas de uso familiar, sustentado em direi-
tos de acesso e ocupação da terra referenciados a normas coletivas
próprias a uma comunidade local de parentes, afins e vizinhos.
Essa economia moral não é rompida pelos Honolds, mas o
Marquês primeiro tenta impor uma disciplina rígida ao trabalho
das famílias negras residentes na fazenda; depois inaugura o regi-
me de terror e coercitivamente tenta impor a expulsão. Ele abalou
os alicerces materiais e simbólicos dos padrões de convivência entre
donos e moradores gerando o conflito que desaguou na revolta do
cachimbo. A estratégia de destruir plantações e casas desmontava
um sistema mais amplo de relações entre latifúndio e campesinato.
O gado em confronto com a lavoura também não deixa de ser uma
referência simbólica do embate entre dois sistemas de dominação de
classe e racial. A sociogênese do conflito fundiário e a formação de
um campesinato étnico reside neste processo social e histórico de
substituição de uma economia moral por um regime de terror na
Fazenda Campos Novos.
O direito a terra é enunciado na linguagem da permanência
no lugar onde ancestrais viveram a experiencia da escravidão, uma
terra que os descendentes tem o dever de deixar como herança para
gerações futuras, porque foi consagrada com o suor e o sofrimento
inerentes ao cativeiro. Por isso que muitos deles associam o tempo
do Marquês com a implantação de um novo regime de escravidão,
porque esta memória e narrativa do passado fornece a referência
temporal central para uma nova gramática moral das lutas pela ter-
ra. Antes a memória do cativeiro perpassava os relatos dos conflitos
fundiários, mas eram ofuscadas por outras metáforas privilegiadas
pelo discurso militante da reforma agrária: trabalho e posse como
categorias de justificação do acesso a terra e uso dos recursos natu-
rais.

Referências

- 222 -
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ALMEIDA, Alfredo Wagner de. Terras Tradicionalmente Ocupadas:
Processos de Territorialização, Movimentos Sociais e Uso Comum. In:
Terra de Quilombo, terras indígenas, “babuçais livre”, “castanhais do
povo’, faxinais e fundos de pasto: Terras Tradicionalente Ocupadas.
Manaus: PGSCA-UFAM, 2008.
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guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro:
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BOURDIEU, Pierre. La mort saisit le vif. As relações entra a história
reificada e a história incorporada. O poder simbólico. Difel: Lisboa;
Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 1989.
GRYNZPAN, Mário. DEZEMORE, Marcus. As esquerdas e a desco-
berta do campo brasileiro: Ligas Camponesas, comunistas e católicos
(1950-1964). In: FERREIRA, Jorge. REIS, Daniel Arão (ogs.). Nacio-
nalismo e reformismo radical: 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização
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HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos
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MEDEIROS, Leonilde Servolo de. Transformações nas áreas rurais,
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1988). In: Medeiros, Leonilde Servolo de. Ditadura, conflito e repres-
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___________. Movimentos sociais no campo, lutas por direios e re-
forma agrária na segunda metade do século XX. In: CARTIER, Mi-

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guel(org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a Reforma
Agrária no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010.
POLLAK, Michel. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Histó-
ricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura po-
pular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
TOSTA, Alessandra. Contando Histórias: Uma etnografia das narra-
tivas e usos do passado em um povoado fluminense. Dissertação de
Mestrado do Programa de Pós –Graduação em Antropologia do Museu
Nacional. Rio de Janeiro: Fevereiro, 2005.

- 224 -
Sobre os(as) autores(as)

Alícia Patrine Cacau dos Santos é Doutoranda em Doenças


Tropicais e Infecciosas pela Universidade do Estado do Amazonas
(UEA) em conjunto com a Fundação de Medicina Tropical Heitor
Vieira Dourado (FMT-HVD) e Graduada em Biomedicina pelo
Centro Universitário FAMETRO.

Altair Seabra de Farias é Professor da Universidade do Esta-


do do Amazonas (UEA) e Doutorando no Programa de Pós-gradua-
ção em Medicina Tropical da Universidade do Estado do Amazonas,
em convênio com a Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Viei-
ra Dourado.

André Luiz Machado das Neves é Doutor em Saúde Coletiva


pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ).

Artemis de Araújo Soares é Professa do PPG Sociedade e


Cultura na Amazônia e Professora Titular da Faculdade de Educação
Física e Fisioterapia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM),
Doutora em Ciências do Desporto na Universidade do Porto, Mestra
em Educação Física na Escola de Educação Física e Esporte na Uni-
versidade de São Paulo (USP).

Caio Augusto Teixeira Souto é Professor do Departamento


de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cul-
tura na Amazônia (PPGSCA) da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM). Mestre e Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar).

Daniel Richardson de Carvalho Sena é Professor de Filoso-


fia do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, Campus
Manaus Centro (IFAM/CMC). É Graduado em Filosofia pela Uni-
versidade Federal do Amazonas e Mestre em Ciências do Ambiente
e Sustentabilidade na Amazônia pela mesma instituição.

- 225 -
Erica Vidal Rotondano é Professora de Pedagogia da Univer-
sidade do Estado do Amazonas (UEA), Doutora em Saúde Coletiva
pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro (UERJ), Mestra em Educação e Graduada em Psicolo-
gia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Érika da Silva Ramos é Doutora em Sociedade e Cultura da


Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Mestra
em Educação Especial da Universidade do Minho (Portugal), Mestra
em Educação e Ensino de Ciências da Amazônia pela Universidade
do Estado do Amazonas (UEA), Psicóloga (Uninorte) eLicenciada
em Dança (UEA).

Ettore Paredes Antunes é Professor do Departamento de


Química, do Programa de Pós-Graduação em Química e em Ensino
de Ciências e de Matemática pela Universidade Federal do Amazo-
nas (UFAM). É Doutor, Mestre e Graduado em Química pela Uni-
versidade Federal de São Carlos (UFSCar) e líder do Laboratório de
Filosofia e Ensino de Ciências (LAFECi).

Everton Dorzane Vieira é Mestre em Sociedade e Cultura


na Amazônia (PPGSCA), pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) e Graduado em História, pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA).

Felipe Leão Gomes Murta é Professor do Programa de Pós-


-Graduação em Medicina Tropical (UEA/FMT) e do Programa Pós-
-Graduação Stricto Sensu em Condições de Vida e Situações de Saú-
de na Amazônia (PPGVIDA) do ILMD/Fiocruz Amazônia, Doutor
em Doenças Tropicais e Infecciosas pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA) e Mestre em Medicina Tropical pela Fundação Os-
waldo Cruz (FIOCRUZ).

Gessiane Ambrosio Nazario é Professora da Rede Municipal


de Educação de Armação dos Búzios, Doutora em Educação pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Mestra em Socio-
logia pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

- 226 -
Gizelly de Carvalho Martins é Mestra em Psicologia pela
Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Especialista em
Educação em Saúde pela Universidade do Estado do Amazonas
(UEA, Especialista em Gestão de Pessoas e Recursos Humanos pelo
Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (CIESA).

Harald Sá Peixoto Pinheiro é professor do Departamento


de Teoria e Fundamentos, da Faculdade de Educação, da UFAM, do
PPGF/UFAM e do PPGSCA/UFAM. É Doutor em Ciências Sociais
(Antropologia) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP), Mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Uni-
versidade Federal do Amazonas e Mestrado em Educação pela Uni-
versidade Federal do Amazonas.

Iná Isabel de Almeida Rafael é Professora de Língua Portu-


guesa e Literaturas e Doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia
pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Mestra em Le-
tras-Estudos da linguagem pela Universidade Federal do Amazonas.

Ismael Maciel de Menezes Filho é Mestrando em Socieda-


de e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) e Licenciado em Dança pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA).

Jacqueline Sachett é Doutora em Doenças Tropicais e Infecciosas


pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Mestra em Enferma-
gem pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Graduada em
Enfermagem pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

José Galúcio Campos é Professor de Física do Instituto Fe-


deral de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) e
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso
(UFMT).

Jullia Negreiros Moraes é Licencianda em Química e aluna


de Iniciação Científica na área de Ensino de Química pela Universi-
dade Federal do Amazonas (UFAM).

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Kelly Caroline Oliveira é Mestre em Ensino de Ciências e
Matemática da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Li-
cenciada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do
Amazonas (UEA).

Larissa Silva Gonçalves é Professora Adjunta do Curso de


Artes Visuais da Universidade Federal de Roraima (UFRR), Doutora
em Sociedade e Cultura na Amazônia e Mestre em Educação e Gra-
duação em Artes Visuais pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM).

Munique Therense Costa de Moraes é Doutora em Saúde


Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Mestra em Psicologia pela Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Especialista em
Psicologia Clínica Fenomenológico-Existencial pela Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), e Psicóloga (UFRN).

Odenei de Souza Ribeiro é Professor de Ciências Sociais e do


PPGSCA da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Doutor
em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), e Mestre em Socio-
logia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Pedro Eduardo Garcia de Andrade é Graduando em Medici-


na pela Universidade do Estado do Amazonas.

Rosemara Staub de Barros é Professora Titular na Faculdade


de Artes da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), e Professo-
ra do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Ama-
zônia (PPGSCA) pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM),
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universida-
de Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Artes (Música) pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). É
Membro Imortal da Academia Amazonense de Música.

Sidnei Clemente Peres é Professor Titular de Ciências Sociais


da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Doutor em Ciências

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Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Coor-
dena do Laboratório de Estudos sobre Movimentos Sociais, Traba-
lho e Identidade (LEMSTI).

Socorro de Fátima Moraes Nina é Doutora em Socieda-


de e Cultura da Amazônia da Universidade Federal do Amazonas
(UFAM); Mestre em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na
Amazônia (UFAM).

Victor Leandro da Silva é Licenciado em Filosofia pela Uni-


versidade Federal do Amazonas (UFAM), Doutor e Mestre em So-
ciedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Ama-
zonas (UFAM).

Vinicius Azevedo Machado é Doutor em Saúde Coletiva pelo


Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Me-
dicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e
Mestre em Educação pelo CEFET-MG.

Wuelton Marcelo Monteiro é Diretor de Ensino e Pesquisa


da Fundação de Medicina Tropical Heitor Vieira Dourado (FMT-
-HVD), Professor de Epidemiologia Clínica da Universidade do
Estado do Amazonas e Membro do corpo docente permanente de
3 programas de Pós-Graduação: Medicina Tropical da UEA/FMT-
-HVD, Ciências Farmacêuticas da UFAM e Saúde Pública na Ama-
zônia da UEA/UFAM/CPqLMD/FIOCRUZ.

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