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Direitos autorais do texto original © 2020 Hisabelle Juncken


Todos os direitos reservados

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ÍNDICE

Prefácio
I – O Monastério
II – A Estalagem
III – A Liberdade
Texto Bônus: Leia agora o começo de O Dia V de graça!
Sobre a autora

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Olá, querides amigues!

Se você está chegando pela primeira vez ao universo de O Dia V, seja bem-
vinde! Sou H. Juncken, autora do livro que deu origem a este mundo no qual você está
prestes a entrar.
Queria fazer esta rápida introdução apenas para explicar que Travessia da Lua
é uma obra independente, então você não precisa ter lido O Dia V para curtir esta
história. Claro que, por fazer parte do mesmo universo, você pode aproveitar mais a
experiência lendo os dois para ser capaz de identificar as referências e se aprofundar
na ciência destes vampiros, contudo não é necessário.
Após o conto, eu deixei o começo de O Dia V para se você quiser dar aquela
olhadinha sem compromisso! ;)
Espero que você goste de Luna e Santiago!

Beijos,
H. Juncken

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Para David Silver,
meu amigo invisível que me ajudou
a criar um mundo impossível

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“Quem come a minha carne e
bebe o meu sangue permanece em mim
e eu nele.”

— João 6:56

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I – O Monastério

19 de dezembro de 1808
Toledo, Espanha

O corpo do homem pesava sobre os estreitos ombros de Luna. Era um enfermo


esquelético, porém, por estar desfalecido, a inconsciência o fazia pesar mais do que a
jovem noviça conseguia suportar. No entanto não havia escolha. Precisava tirá-lo dali.
Luna andava curvada, amparando a parte superior do tronco do enfermo,
enquanto desviava das pedras e madeiras que caíam ao seu redor. As explosões feriam
seus ouvidos, mas não pareciam acordar o homem. Ela olhou, de relance, para trás. A
enfermaria, que havia deixado há menos de cinco minutos, já não existia. Apenas
destroços e escombros ocupavam o caminho de volta. A única certeza era que
precisava seguir em frente.
Já era a segunda vez naquele ano que as tropas de Napoleão invadiam a cidade.
No entanto, Luna nunca imaginara que a guerra pela independência da Espanha poderia
trazer tamanha destruição ao mosteiro. O fogo se instalava por toda parte, enquanto ela
tentava desesperadamente salvar o homem em seus braços.
De repente, o peso sobre seus ombros se tornou mais leve. Encostada contra o
seu pescoço, a cabeça do homem começava a se mover. Seus pés começavam a tocar
o chão por conta própria e não mais a se arrastarem obedientes aos movimentos
impostos por Luna.
— Senhor! Acorde, senhor! Os franceses chegaram ao monastério. Precisamos
fugir!
Ele tossiu, deixando um pouco de sangue manchar o hábito branco de Luna.
— Onde...? — Sua frase foi interrompida por uma explosão que os empurrou
para frente, fazendo Luna perder o equilíbrio. O homem tentou segurá-la, mas foi inútil.
Ambos caíram no chão, catapultados um sobre o outro.
A noviça rapidamente se pôs de pé, tirando seu corpo de cima do dele.
— Vamos! Precisamos chegar às catacumbas, senhor. Levante-se!
Ele fez um muxoxo.
— Eu estou atrapalhando, o melhor é deixar-me. Salve-se, senhorita.
Luna olhou para o homem. Mesmo depois de tanto tempo dedicando cuidados a
ele naquela enfermaria, era como se, naquele momento, o enxergasse pela primeira
vez. Por trás das elevadas maçãs do rosto raquítico, havia um jovem. Devia ser tão
jovem quanto ela, cerca de dezesseis anos. Seus olhos estavam cansados e seu rosto

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angular dava ares de fragilidade, no entanto, suas palavras tinham força. Queria que ela
seguisse sem ele.
Apesar de ser noviça há quase um ano naquele monastério, Luna não havia
escolhido por opção própria uma vida religiosa. Contudo, ser boa não dependia disso.
Independentemente do que ele dizia, jamais o abandonaria. Jamais abandonaria
alguém.
— Desculpe a franqueza, senhor, no entanto, devo ressaltar que, no tempo que
estamos perdendo com a sua melancolia, já estaríamos a salvo.
Ele pareceu chocado com o comentário, mas assentiu. Forçou o corpo a se
erguer e se apoiou novamente em Luna. Os pedaços de madeira e rocha continuavam
a cair em torno das duas figuras, que seguiam sem olhar para trás.
— Não!
Luna nunca fora uma pessoa derrotista, contudo a visão do acesso às
catacumbas coberto por pedras a fez titubear. Entre os escombros, a mão de alguém
que havia sido atingido estava decepada ao lado de um braço soterrado.
O enfermo tentou proteger os olhos da jovem para que não visse a cena. Luna
tirou sua mão da frente, de forma abrupta, e focou no que importava.
— Precisamos entrar.
— Como, senhorita?
Ela se virou para ele como se subitamente despertasse.
— O altar!
Apoiou novamente o braço do rapaz sobre seus ombros e partiu para o interior
da igreja sem esperar por uma validação do homem.
O percurso até a igreja foi a visão mais assustadora que Luna já havia
experienciado. As balas de canhão já tinham passado por ali, transformando o frio
caminho em um verdadeiro inferno na Terra. Corpos mutilados, cabeças sem dono e
rostos familiares sem vida ornavam sua triste marcha, matando toda e qualquer
esperança que ainda alimentava.
O corpo do homem que segurava roçava contra o seu, sujando ainda mais seu
hábito. Todos à sua volta estavam mortos. Porém, não aquele homem. Apesar desses
pensamentos que tentavam tomar conta, ela percebeu que, enquanto ele vivesse, sua
esperança também viveria.
Chegaram ao altar. Luna sentou o doente em um longo banco de madeira que
ainda resistia intacto.
— O que a senhorita fará?

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Ela ignorou a pergunta. Por mais rebelde que fosse aos olhos de seu pai, sempre
fora extremamente educada e, em uma situação normal, jamais teria deixado uma
pessoa sem resposta. Entretanto, a polidez teria que esperar.
A jovem segurou a beirada do pesado altar de ouro e recuou o pé esquerdo para
ganhar estabilidade. Jogou seu corpo para frente, usando toda a sua força para tentar
mover o móvel, contudo, sem sucesso.
Ela percebeu que suas roupas a limitavam. Jogou os sapatos para o lado sem
cerimônias e aproveitou uma parte despedaçada da barra do seu hábito para aumentar
o rasgo e ganhar amplitude no seu movimento. Sua perna esquerda ficou
completamente aparente, revelando as suas roupas de baixo, mas Luna não se
importou. O tempo para pudores, assim como o para polidez, havia acabado.
Levou sua perna esquerda mais para trás, conseguindo a liberdade de
movimento que tanto buscava. Seus pés no chão frio de pedra criavam uma tração
maior, trazendo estabilidade. O enfermo estava sentado fora do seu campo de visão. O
que estaria pensando daquela mulher exposta e descalça profanando um altar católico
era um mistério.
Os esforços serviram seu propósito. Luna conseguiu mover o altar, arranhando
o chão com o ouro do pé da mesa. Depois de mais alguns impulsos de seu corpo,
misturando força e jeito, ela conseguiu finalmente expor o alçapão.
— Venha rápido, senhor. — disse correndo para ajudar o doente a se levantar.
Eles desceram a escada que se revelara embaixo da portinhola no chão. Estava
escuro, mas isso não impediu Luna de fechar a escotilha. No breu, tateou em busca de
um cadeado que sabia que estaria por perto. Encontrou o pequeno objeto e o usou na
tranca da porta.
Voltou-se para trás procurando o jovem enfermo. Sua mão encontrou o peito do
homem. Luna exalou um ar de alívio.
— Aí está, senhor. Com a graça de Deus!
Num ímpeto que não pôde controlar, abraçou-o. O rapaz devolveu o gesto.
— A senhora... Não me abandonou. — cochichou no seu ouvido.
Luna imediatamente se afastou, separando seus corpos.
— Precisamos de luz. Sei que deixam uma lamparina com velas em algum lugar
por aqui.
Assim que a luz se fez, Luna observou melhor o ambiente. O túnel perto da
escada dava para o caminho que encontrara soterrado antes de se dirigir à igreja. Do
outro lado da pequena câmara onde estava, podia ver a estreita entrada das
catacumbas. As pedras frias que os cercavam estavam empoeiradas pelos mais de mil
anos sem visitas. Aquele local havia sido criado para esconder os corpos cristãos de

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grupos pagãos, mas com o avanço do cristianismo, tornara-se obsoleto. Agora as
catacumbas só eram usadas para os castigos das noviças. E para isso não havia
necessidade de limpar nada.
— O senhor consegue andar?
O jovem tentou responder, porém foi interrompido por uma tosse intensa. Aparou
os lábios com a manga da sua camisola bufante branca, que ficou repleta de respingos
de sangue.
— Tenho que conseguir, senhorita.
Luna assentiu.
— Eu o ajudo.
Ela levantou o braço com os pingos de sangue e o passou por cima de seus
ombros, tornando-se, mais uma vez, a muleta do enfermo, e começou a andar
lentamente. Tentava focar no homem que precisava salvar e não nos barulhos distantes
das explosões que, infelizmente, persistiam.
— Senhorita, desculpe-me, porém não sei seu nome. Adoraria saber o nome...
— Ele tossiu entre as palavras. — O nome da minha salvadora.
— Luna. Luna Ortiz, senhor. — respondeu.
— Luna... — repetiu o enfermo. — É um nome encantador, Doña Luna. A
senhorita me trouxe luz quando me resgatou daquela enfermaria fétida e agora é meu
farol nesta catacumba escura. Um farol assim como a Lua é todas as noites em que
aparece no céu. Nome acertado. Escolhido por Deus, tenho certeza.
Ela não pôde deixar de sorrir. Fazia um ano que estava no monastério de San
Juan de los Reyes, contra a sua vontade. Sentia-se perdida e desesperançosa. Ser
chamada de farol dava a entender que sabia a direção a seguir. E isso não foi verdade
ontem e não seria verdade hoje.
— E o seu nome, senhor? Adoraria saber o nome do meu iluminado.
— Santiago Vázquez, ao seu dispor, Doña Luna.
Santiago, pensou Luna. Nome santo.
O corredor ficou mais apertado, impedindo que os dois seguissem um do lado
do outro. Luna o ajudou a se apoiar nas paredes e ficou atrás, seguindo seus passos de
perto.
As paredes. O local de túmulos milenares. Túmulos que ela tinha que tocar para
poder sair com vida da invasão francesa.
— Ouça, Doña Luna. — ele disse, parando de caminhar.
Luna forçou os ouvidos.
— Não ouço nada.
— Exatamente, senhorita. As explosões pararam.

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— Deus seja louvado!
— Amém, senhorita. Amém.
— Ainda precisamos sair daqui. — disse Luna, retomando seus passos e
gentilmente tocando o ombro de Santiago para que fizesse o mesmo. — Não temos
como voltar para trás, pois os soldados da tropa de Napoleão devem estar buscando
sobreviventes neste momento. Precisamos seguir em frente.
— A senhorita sabe onde esse caminho vai nos levar?
— Mais um quilômetro e encontraremos a cripta da Santa Missa, onde uma
escada de pedra leva a um alçapão para a superfície. Sairemos atrás da hacienda1
Gonzales e, se Deus permitir, longe das tropas francesas.
— Doña Luna parece conhecer muito bem esse lugar. Já esteve aqui antes?
— Para a nossa sorte, eu não sou a noviça que os Franciscanos da Observância
esperavam que eu fosse. Fui castigada algumas vezes, obrigada a ajoelhar em milho
enquanto rezava nessas catacumbas. E eles têm o hábito de se esquecerem de mim
aqui embaixo, o que me permite explorar.
— Para a nossa sorte, certamente.
Foi como Luna dissera. A cripta, repleta de imagens santas em vitrais castigados
pelo tempo, era ampla e gélida. No canto direito, a escada de pedra trazia a esperança
de salvação que eles tanto desejavam.
Ela sentou Santiago no primeiro degrau e subiu os outros cinco para tentar abrir
a porta dupla do alçapão. Curvou-se embaixo da porta e usou a força de suas pernas
para tentar fazê-la se abrir. Uma resistência de fora deixou claro que a passagem estava
trancada.
— Senhor Deus misericordioso! — murmurou Luna. Santiago se virou para ela,
entendendo que precisava de ajuda.
— O que passa, Doña Luna?
— A culpa é minha. — disse, sem perceber a intromissão de Santiago em seus
pensamentos.
— Doña Luna?
Ela se virou para ele, sentando-se no degrau mais alto.
— Eu fiz isso. Padre Gómez deve ter ficado cansado das minhas escapulidas e
resolveu acabar com a minha chance de fuga. A porta está trancada por fora. Estamos
presos aqui.
Santiago não respondeu, apenas a observou.
— O senhor não vai dizer nada?

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Tradução: fazenda

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— A senhorita é admirável, Doña Luna.
— Admirável? Eu estou lhe dizendo que nos sentenciei à morte por prisão
perpétua e o senhor me diz que sou admirável?
Ele deu de ombros com um sorriso no rosto.
Luna riu em resposta. Ela segurou a saia rasgada e desceu até o degrau de
Santiago, sentando-se ao seu lado.
— Perdoe-me, senhor Vázquez. Não fui um farol muito bom, não é?
— A senhorita salvou a minha vida. Isso, com certeza, lhe dá o direito de me
chamar de Santiago.
— Santiago. — repetiu. — Só Luna para mim então.
— Luna... Eu a chamarei assim. Afinal, é um nome muito lindo para ter qualquer
outra coisa no seu caminho.
— O senhor é bondoso demais. — Luna parou para fitar a porta trancada que
zombava da sua esperança. — Estou com medo.
Ela se virou na direção de sua própria mão. Santiago a segurava gentilmente,
mas de maneira firme. Olhava fixamente para o seu rosto.
— Eu também, Luna. Medo e gratidão são os dois sentimentos que gerem minha
alma. — A tosse veio intensa, fazendo com que Santiago tivesse que soltar a mão de
Luna.
Assim que terminou a crise, ela buscou a mão dele e a segurou novamente.
— Enquanto nós dois estivermos vivos, ainda há uma chance.
— Luna... — A tosse tornou a interrompê-lo. — Não sei por quanto tempo
consigo continuar vivo.
— Você não pode me deixar aqui sozinha, Santiago.
— Não estou ajudando muito. Mas você vai ficar bem, tenho certeza. Você é
boa, Luna. Pessoas assim merecem ficar bem.
As cavidades fundas dos olhos daquele homem corroboravam o que dizia. Não
havia muito tempo para ele. O fim estava próximo e não tinha nada que ela pudesse
fazer para impedir.
Ela levou uma de suas mãos ao rosto dele e o acariciou suavemente. Era um
gesto íntimo demais, algo que Luna nunca havia feito antes, mas a fuga os aproximara
de uma maneira inesperada. De uma hora para outra, ele havia se tornado a única
pessoa que ela tinha no mundo.
Santiago virou a face para se apoiar no toque de Luna, demonstrando que o
gesto dela era bem-vindo. Ela queria acalmá-lo, dizer que se curaria e que os dois
sairiam daquela situação impensável. Aquele jovem não merecia essa dor. Ele também
era bom. No entanto, ela sabia que a vida dele não estava nas suas mãos.

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— Não quero que você morra. — disse, tentando controlar as lágrimas sem
sucesso.
Santiago deixou o pranto acontecer.
— Eu também não. Não hoje. Não depois de conhecer você.
Ele aproximou o rosto, apoiando sua testa na de Luna. Por mais que a
proximidade lhe trouxesse um pouco de medo, ela não se afastou. Continuou a carícia
em Santiago, continuou a segurar sua mão.
Se aquele era o fim, que fosse nos seus termos: regido pelo seu coração.
No entanto, o barulho do alçapão abrindo revelou que não era o fim. Aquele era
o começo de uma nova luta. Uma luta contra os dois soldados franceses que a fraca luz
da noite revelava do outro lado.

***

— Arrête-la!2 — gritou o soldado que prendia o rosto de Santiago contra as


pedras da escada e imobilizava seus braços. Luna queria impedir, mas o outro homem
a agarrou por trás, impossibilitando seus movimentos.
Ela se remexia querendo se libertar o mais rápido possível. Sabia muito bem o
fim que a esperava. Santiago seria morto em breve e, depois, os dois homens a jogariam
contra o chão e a fariam desejar a morte. A pior dor de uma mulher. Ela seria invadida.
Seria destruída por dentro e por fora. E, quando não achasse que poderia enfrentar mais
dor, seria cruelmente assassinada aos pés do altar da cripta, sob os olhares atentos dos
santos nos vitrais.
O soldado que segurava Santiago tirou uma adaga da sua bota e puxou os
cabelos do rapaz, virando brutalmente o frágil corpo com a clara intenção cortar sua
garganta.
Luna continuou sua luta. Precisava parar o homem que o ameaçava. A única
coisa a que tinha acesso era o francês que a segurava. Ela aproveitou que ele a
apertava fortemente pelos braços para levantar as duas pernas e empurrar o altar à sua
frente, impulsionando os dois sobre Santiago e o outro soldado. O homem que segurava
a adaga levou um susto com os corpos que iam em sua direção e, por instinto, levantou
os braços, deixando a adaga atravessar a nuca do seu companheiro.
Ele empurrou para longe os dois corpos que o soterravam. Luna caiu no chão e
se desvencilhou do soldado que estava morrendo.

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Tradução: Pegue a garota!

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— Idiot! Qu'est-ce que t'as fait?3 — esbravejou o homem, olhando o amigo
engasgar-se no próprio sangue.
Ele caminhou na direção de Luna, contudo ela correu para o soldado agonizante
e pegou a adaga que ainda o sufocava.
O que estava de pé não parecia ter medo. A raiva pela perda do amigo deu lugar
a uma estranha alegria. Ele ria da imagem daquela mulher com o hábito branco rasgado
empunhando uma adaga e tentando proteger um enfermo que já estava mais morto do
que vivo. Os olhos de Santiago estavam fechados. Talvez já estivesse morto, mas ela
não podia desistir. Não agora.
— Tu penses que tu peux me tuer? Toi? Une femme?4
Ele investiu contra Luna, fazendo com que os dois tombassem sobre o corpo
desfalecido de Santiago. Segurou a adaga com as duas mãos em torno das de Luna,
tentando levá-la a ferir o próprio rosto. Ele era forte. O peso do seu corpo contra o de
Luna fazia ela ficar sem ar. Não tinha de onde mais tirar forças. Todavia, se ela não
estava ficando mais forte, teria que fazer com que ele ficasse mais fraco. Ela colocou
seu joelho entre as pernas do soldado e dobrou a perna com força; ele gritou com a dor
aguda, perdendo sua atenção por um segundo. Foi o suficiente para que ela ganhasse
a disputa pela adaga e enfiasse o objeto dentro da boca aberta do soldado, que rugia
de dor.
O sangue jorrou, caindo sobre o rosto de Luna, que imediatamente empurrou o
corpo do francês para o lado, deixando-o para a própria morte. Ela continuou deitada
sobre o peito de Santiago. Lágrimas vieram aos seus olhos. Ela estava viva e imaculada.
Tinha vencido. Sua felicidade ficou completa ao sentir a respiração de Santiago debaixo
dela. Levantou-se correndo e se virou para ajudá-lo. Mas aquele homem não precisava
de ajuda.
A mudança acontecia diante de seus olhos. Santiago tentava limpar o sangue do
soldado que tinha caído sobre a sua boca enquanto se levantava. Queria entender como
poderia estar se sentindo assim. Seu corpo ganhava massa, ganhava altura. Parecia
sadio, sem as olheiras fundas e as maçãs do rosto protuberantes que Luna observara
durante tantas noites na enfermaria. Ele estava se curando.
De seu corpo, assim como do de Luna, ainda pingava o sangue do morto, no
entanto ela não se deixou intimidar pela cena grotesca. Algo muito mais importante
acontecia. Ela caminhou na direção de Santiago sem quebrar o contato visual. Chegou
tão perto que conseguia sentir o calor da expiração contra a sua face. Ele estava tão

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Tradução: Idiota! O que você fez?
4
Tradução: Você acha que pode me matar? Você? Uma mulher?

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mais alto! Contudo, sua cabeça se voltava para baixo, observando com espanto a jovem
noviça, sem entender o que estava acontecendo.
Luna levantou a mão na direção do rosto dele, acariciando o sangue e as maçãs
do rosto que agora compunham uma fisionomia tão diferente. Apesar de ainda parecer
muito jovem, Santiago tinha contornos de homem. Músculos surgiram onde antes havia
apenas pele. Luna desceu as mãos devagar, assim como o seu olhar. Tocou-lhe os
ombros, seus braços, seu peito. Ela mantinha o cenho franzido enquanto explorava cada
centímetro dele. Ao contrário de São Tomé, ver não era o suficiente para crer. Ela
precisava tocá-lo.
— Luna...
A voz de Santiago também saiu diferente. Mais grave, mais intensa. Aquele
homem era a coisa mais hipnotizante que Luna já havia visto. Seu nome naqueles lábios
chamou de volta a sua atenção para o rosto dele. Os olhos de Santiago continuavam
fixos nela. A intensidade deles era demais para suportar. Parecia que ele conseguia vê-
la por inteiro, através de suas roupas e de sua pele. Ela engoliu em seco com o peso
daquele olhar.
— Eu não entendo... Como? — questionou a jovem.
— Eu também não entendo, Luna.
Aquele som. Ela sabia que era seu nome sendo dito novamente por ele, mas,
cada vez que saía da boca de Santiago, parecia que era uma palavra nova que ela
nunca tinha ouvido antes.
— É um milagre! Deus nos deu um milagre em meio a esse caos e essa
destruição, Santiago. Você está curado! Está... está... lindo.
Estavam ensanguentados, sujos, cansados e com corpos mortos ao seu redor,
porém, não viam nada disso. A mão de Luna continuava no peito de Santiago, sentindo
o seu coração. Aquele coração, que há pouco quase havia parado de bater, agora
estava em um ritmo acelerado e sufocante.
Ele ajeitou uma mecha do cabelo de Luna que estava caída, colocando os fios
juntos atrás da orelha da jovem. O toque suave fez com que ela fechasse os olhos e
inspirasse fundo. Algo correu pelo seu corpo queimando e surpreendendo-a. Era ele.
Ele fazia isso.
Santiago não tirou a sua mão dali. Desceu seus dedos, passando pelo pescoço
de Luna e tocando-a de um jeito que ela nunca havia experienciado antes. Havia
ousadia no movimento, que ampliava o ardor que ela sentia naquele instante, deixando
um rastro de brasas por debaixo de sua pele.
Quando seu toque chegou ao peito, espelhando a posição em que a mão de
Luna estava, Santiago parou. Ficaram os dois assim, sentindo o ritmo frenético das

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batidas internas que os despia de qualquer segredo. Ambos sabiam o que queriam,
sabiam o que precisavam.
— Luna. — Ela abriu os olhos, tomando a voz de Santiago como um comando.
Ele estava mais próximo, despertando seus sentidos. O peito dele parecia que fazia
parte da sua mão; a respiração, rápida e ritmada, era uma brisa intensa contra a pele
de Luna e atordoava seus ouvidos; a visão dela mostrava apenas ele e, então, apenas
a sua boca.
Os lábios se tocaram antes que qualquer um dos dois pudesse parar o que
estava acontecendo. As mãos permaneceram onde estavam, sentindo como aquele
contato os atormentava e os deliciava por dentro. Logo, Luna as levou para a nuca de
Santiago, puxando-o mais ainda para perto de seu corpo. Ele retribui abraçando sua
cintura, enquanto suas tímidas línguas abriam espaço entre os lábios, buscando
desesperadamente uma à outra.
Suor. Sangue. Santiago. Os sabores eram diversos e todos, inebriantes. Luna
não sabia o que estava acontecendo, só sabia que não queria parar.
Continuaram trancados naquele beijo durante um tempo que pareceu uma
eternidade, mas que também não parecia ter durado o suficiente.
Santiago apoiou sua testa na de Luna e ficou assim, parado naquele abraço.
Eles tentavam recuperar o fôlego e acalmar seus corações, embora sem sucesso.
— Eu... — Luna colocou o dedo contra os lábios de Santiago antes que ele
pudesse completar o que falaria.
— Nada do que você possa dizer será melhor do que ficar assim. Não se afaste,
Santiago. Eu te imploro. Não se afaste de mim. — Sua súplica era a coisa mais
verdadeira que poderia expressar.
— Eu não sonharia com isso, Luna. Acho... — Ele engoliu com dificuldade,
parecia temer o impacto de suas palavras ou de seu sentimento. — Acho que não tenho
como me manter longe de você. Nunca mais.
Santiago levou uma de suas mãos até o rosto de Luna. Suavemente, com o
polegar traçava os contornos dos seus lábios, enquanto a jovem noviça tentava controlar
a sua respiração.
Os dias no monastério eram sempre iguais: frios e vazios. As poucas felicidades
que Luna tinha eram encontradas em seus raros momentos de liberdade, como correr
pelo pasto da hacienda Gonzales ou aproveitar a acústica da igreja para cantar. Nada
disso era visto como algo bom pelo Padre Gómez. A cada segundo de liberdade, vinha
sempre uma punição em resposta, sendo a grande maioria exercida dentro daquelas
catacumbas. A sensação de poder encontrar a felicidade ali, naquele abraço, naquele

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beijo, a dominava e a libertava ao mesmo tempo. E era isso que significava estar nos
braços de Santiago: felicidade.
No entanto, como toda a alegria que ela buscava com tanto afinco nos seus dias
de penitência naquele lugar, aquele momento não poderia durar para sempre. Luna
abriu os olhos e percebeu de soslaio os corpos dos soldados mortos. Na mesma hora,
tornou-se cruelmente consciente do sangue que cobria o seu corpo e o do homem à sua
frente. A cena linda e perfeita que criara no seu imaginário estava manchada pelo terror
da guerra.
Santiago observou seus olhos se movimentando na direção dos cadáveres e
percebeu o que a afligia.
— Venha, Luna. — Ele segurou uma de suas mãos. — Temos que sair daqui
antes que mais soldados apareçam em busca dos amigos.
Luna assentiu. Era estranho estar sendo carregada por Santiago. Até aquele
momento, ela havia sido a sua guia. No entanto, ele demonstrava que também queria
cuidar dela e ela permitiu.
Subiram as escadas de pedra e se depararam com a escuridão da hacienda.
Santiago apressou o passo, quase correndo com Luna ao seu lado. O frio cortante de
dezembro os atingia. Na segurança das catacumbas, e até mesmo entre os escombros
do monastério, estavam protegidos dos elementos, mas agora haviam ficado expostos.
Ele tinha apenas uma camisola de doente envolvendo seu corpo, enquanto as vestes
de noviça de Luna estavam rasgadas, deixando as baixas temperaturas invadirem o seu
íntimo com facilidade.
Santiago passou o braço em seu entorno, tentando protegê-la mais uma vez. Por
mais que estar perto dele lhe oferecesse um calor interno, não estava conseguindo
minar o frio de suas extremidades, principalmente de seus pés descalços que estavam
em contato com a grama gelada. Mesmo assim, novamente, ela permitiu. Muito havia
sido tomado de Santiago; quase morrera uma morte assustadoramente horrível depois
de tanto tempo doente. Agora, podia finalmente resgatar a sua vida, tomar as rédeas
que há tanto tempo tivera que soltar devido à sua enfermidade. Ela o deixaria guiar para
que ele se familiarizasse com aquele sentimento — o de ser livre.
— Ali!
Santiago apontou para um varal com peças de roupa perto do riacho que
atravessava a hacienda. Luna correu para lá rezando para que estivessem secas, e
estavam. Ele pegou alguns itens e saiu do campo de visão da jovem. O tempo foi o
suficiente para que uma estranha solidão se apossasse de Luna. Ela sabia o que ele
estava fazendo, sabia onde estava e que não ia demorar, mas, mesmo assim, a
sensação não passava.

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O retorno do rapaz trouxe um alívio intenso. Ele havia lavado o sangue e as
marcas de cinzas no riacho, vestia uma camisa branca coberta por um sobretudo preto
e calças da mesma cor que o sobretudo. Os pés estavam cobertos por galochas
escuras. Aquele homem era mais lindo do que ela se lembrava.
— Achei esse par de botas perto do celeiro e encontrei outro para você. Devem
ficar largos, entretanto o frio não vai alcançá-la.
Luna reparou, pela primeira vez, nos calçados que ele carregava. Seus pés frios
urgiam por acalento, então ela rapidamente se calçou e foi até o riacho tentar se limpar
também. A água estava quase congelada. Rasgou um pedaço pequeno da sua saia e
usou como pano; não conseguiria entrar em contato direto com a água naquela
temperatura. Ela se perguntou como Santiago teria feito esse mesmo processo e por
um segundo se permitiu pensar nele sem suas vestes, acariciando-se com aquele
líquido gelado. Ele estava com o olhar alerta e intenso — o olhar de quem não quer fugir
de sensações fortes.
Ela vestiu, por cima do seu hábito, a saia pesada que havia encontrado no varal
e se cobriu com um xale espesso. Quando olhou para trás de si, Santiago a aguardava
com um sorriso nos lábios e a mão esticada. Ela devolveu o sorriso e correu em sua
direção, entrelaçando a mão com a dele.
Juntos, eles seguiram pela escuridão. Precisavam deixar aquele sombrio dia
para trás. No entanto, o mistério do amanhã trazia mais aflição do que esperança.

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II – A Estalagem

25 de dezembro de 1808
Toledo, Espanha

A luz da vela na mesa da taverna bruxuleava sobre os pratos de Luna e Santiago.


O pão e a sopa estavam quentes e o copo de sangria fazia ambos descerem bem. Neste
Natal, não haveria o leitão doado pelos fazendeiros do entorno do monastério. Não
haveria vinho da adega da igreja para os aquecer. Não haveria a benção do Padre
Gómez, nem o doce turrón feito pelas noviças. Neste Natal, só haveria esses pequenos
agrados, conseguidos graças à boa vontade do dono da taverna, e a sombra das
recordações do passado, tanto de vida quanto de morte.
Fazia poucos dias desde a fuga do monastério, contudo, enquanto comiam em
silêncio, parecia que meses os separavam daquela assustadora noite.
Santiago havia arranjado um emprego na taverna, ajudando na cozinha e
servindo mesas em troca de um quarto na estalagem que ficava no andar superior, ao
passo que Luna cuidava dos feridos que chegavam diariamente ao hospital de
campanha, que havia sido montado a três quilômetros dali. Também conseguiram
algumas roupas, ofertadas por caridosos voluntários que ajudavam no hospital.
Os franceses não haviam retornado. Tinham avançado, obstinados, no seu
propósito de conquista e abandonaram a cidade, assim como os corpos mortos,
mutilados e estuprados de seus cidadãos.
Por mais que ainda se sentisse diariamente desolada em ver o rastro de
destruição das tropas francesas e de sede de vingança dos espanhóis, era reconfortante
observar como o povo tinha a capacidade de se unir em um momento tão difícil. Eles se
ajudavam, cada um ofertando sua melhor habilidade; todos em prol de reerguer o local
que chamavam de lar.
Lar. A palavra fez Luna pensar na casa que tinha ficado no fundo da sua
memória. O local de onde seu pai a arrancara e onde ele dissera que ela não era mais
bem-vinda. “Deus saberá te educar. Eu lavo as minhas mãos e te entrego às d’Ele”,
essa foi a última coisa que ele falou antes de empurrá-la para fora da carroça e entregá-
la aos cuidados do Padre Gómez e das freiras no monastério.
Depois do ataque francês, Luna pensou em ir com Santiago para lá; no entanto,
se buscavam abrigo, aquele não seria o lugar mais indicado. De todos os sentimentos
que associava àquela casa, segurança nunca fora um deles.

19
Ela encarou Santiago, percebendo que não falavam há alguns minutos. O
pedaço de pão que ele segurava dentro do prato da sopa estava encharcado, com o
líquido já tocando os seus dedos, todavia ele parecia perdido em pensamento.
— Você não está com fome?
Santiago levantou a cabeça como se despertasse de um sonho. Seus lábios se
curvaram em um sorriso sem dentes que não alcançou seus olhos.
— Desculpe-me, estava distraído.
Ele levou o pão até a boca e engoliu quase sem mastigar. Depois arrastou o
prato para Luna.
— Acho que estou cansado demais para comer.
Luna já estava terminando seu prato e aceitou a oferta dele. Realmente parecia
cansado e ela desejava poder fazer algo para que ele se sentisse melhor.
— Sinto que devemos ser gratos mesmo em meio a essa guerra. É Natal e
estamos vivos, juntos e seguros. Sei que a situação ainda não é a ideal, mas eu não
consigo pensar em mais ninguém com quem quisesse estar nesta noite.
O sorriso seguinte de Santiago foi sincero. Ele arrastou a mão sobre a de Luna
e deu um leve aperto.
— Nunca consegui comemorar um Natal, Luna. Minha enfermidade não me
permitia. Estar aqui ao seu lado, sem a sentença de morte que caía sobre a minha
cabeça, é sem dúvida motivo para celebração.
Ela comeu em silêncio enquanto ele a observava sem soltar a sua mão. Por uma
noite, se permitiram a calma que havia nos seus gestos, a paz que queria entrar nos
seus corações. Não tinham um plano para o futuro, entretanto tinham um ao outro e,
naquela noite, isso bastava.

***

8 de janeiro de 1809
Toledo, Espanha

Luna sentiu o sol no rosto, antes de abrir os olhos. O feixe de luz que entrava
pelas brechas da janela de madeira fora o suficiente para despertá-la. Ela estava
sozinha no pequeno quarto da estalagem. As últimas semanas tinham transcorrido
dessa maneira: Santiago sempre se levantava antes do dia nascer e sempre retornava
assim que ela acordava. Era questão de tempo até a porta do quarto abrir, revelando a
figura dele com uma caneca de bronze com café e um pedaço de pão. Se sentia uma
dívida por ela tê-lo salvado da enfermaria em chamas, ou se queria se sentir ativo depois

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de anos convalescente, Luna não sabia. Contudo, a verdade era que ela gostava desse
simples ritual. Aquilo dava a ela uma sensação de rotina, de vida tranquila, de paz.
Santiago entrou correndo e trancou a porta atrás de si. Pálido e sem ao menos
piscar, ele parecia estar olhando através de Luna e não para ela. Não trazia nenhuma
comida ou bebida.
Ela se levantou imediatamente, passando por cima dos lençóis que cobriam a
cama de palha que Santiago havia montado para si aos pés de Luna.
— O que houve, Santiago? São os franceses? Eles voltaram?
Ela tocou nos ombros do rapaz tentando trazê-lo de volta para a realidade.
Absorto em pensamento, ele chacoalhou a cabeça antes de finalmente enxergá-la.
— Não, não. Está tudo bem. Acalme-se, Luna. — Ele a abraçou. — Perdoe-me
por te assustar. Está tudo bem.
— Não, Santiago, não está. Conte-me. O que aconteceu?
Ele a soltou e ficou observando sua face por um tempo, como se estivesse
tentando colocar em ordem as palavras que deveria dizer.
— Eu não sei. Acho que não estou bem. Eu vi... Eu...
— Você viu o quê?
— Na taverna, lá embaixo. Um soldado espanhol me pediu sangria, mas...
— Fale, por Deus, Santiago! Fale!
— Ele era igual a mim.
Luna virou levemente a cabeça para o lado tentando compreender a frase que
ouvira.
— Igual como?
— Igual a quem eu sou agora, Luna. Temos a mesma altura praticamente,
nossos olhos, cor de nossos cabelos, contornos do rosto.
— Você o conhece?
— Reconheço apenas seu rosto; vejo todos os dias quando me olho no espelho.
— Como isso é possível?
— Não sei, Luna. Mas estou lhe dizendo, somos iguais. Parecemos ter até a
mesma idade.
Luna não teve tempo de fazer mais perguntas. O barulho de batidas na porta
atrás de Santiago veio contido, ainda que forte. Três batidas. Três segundos em que
tanto ela quanto ele prenderam a respiração.
— Santiago? É você?
A voz do outro lado da porta era grave e rouca.

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— É ele. — disse Santiago, proferindo as palavras tão baixo que Luna as
entendeu mais por ler seus lábios do que por ouvi-las. — Eu não disse o meu nome;
como ele sabe?
— Só temos um jeito de descobrir.
Luna passou por Santiago e estendeu a mão na direção da maçaneta.
— Não! — Santiago esbravejou segurando o seu pulso. — Não conheço esse
homem, não quero arriscar a sua segurança.
Luna se desvencilhou e acariciou a face de Santiago.
— Está tudo bem. Estou com você; venha. — Ela estendeu a mão e segurou
Santiago. — Vamos abrir juntos.
Ele passou na frente, tentando usar o seu corpo como escudo para o de Luna.
Abriu a porta e deu dois passos para trás, fazendo com que a jovem caminhasse
também.
Aquilo era realmente impressionante. Ele era exatamente como Santiago. Talvez
o queixo fosse um pouco mais quadrado e o cabelo estava curto, entretanto, fora essas
pequenas diferenças, eles eram idênticos.
O homem abriu um sorriso farto. Seus olhos brilhavam vendo Santiago, que não
se movia. Nas suas mãos, seu quepe rodava entre os dedos, deixando claro que estava
nervoso.
— Eu achei... Achei que você estava morto.
— Quem é o senhor? Como sabe o meu nome?
— Chamo-me Alejandro Torres. E eu o conheço desde antes de você vir a este
mundo.
— Como o senhor me conhece?
— María Rosario não falou de mim?
— Quem?
A cada resposta que Alejandro dava, Santiago parecia mais confuso. Luna
continuava atrás dele, segurando sua mão e olhando de soslaio para o gêmeo, sem
proferir uma única palavra. Ele ainda não tinha passado do batente da porta. Mantinha
a distância, ainda que sua voz viesse em tom de súplica, como se quisesse se aproximar
por meio de suas palavras. No entanto, a resistência de Santiago o deixava rijo, emitindo
o claro sinal de que não queria que aquele estranho entrasse.
— Você não conhece María? — Alejandro estava tão confuso quanto Santiago,
que respondeu que não apenas com um movimento de cabeça. — María Rosario é a
sua mãe.
Santiago permaneceu calado. Sua mão apertou mais a de Luna. Pelas
conversas que haviam tido nas últimas três semanas, Santiago era órfão. Fora

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abandonado na capela do monastério quando era um bebê e cuidado pelas freiras na
enfermaria durante toda a sua vida. Ele não sabia nada sobre o seu passado, apenas
que sempre fora uma criança muito doente.
— Eu não tenho mãe.
As quatro palavras saíram duras da garganta de Santiago. Alejandro estava
invadindo seu passado, o que fazia com que ele se retraísse ao se sentir exposto.
Apesar de ter se aberto naturalmente com Luna nas conversas que tiveram naquela
estalagem, ele era um rapaz reservado. Entretanto, ali estava aquele estranho, que era
o seu reflexo vivo, trazendo informações sobre sua vida que ele desconhecia. Pela força
com que sua mão estava sendo apertada, Luna sabia que aquilo era demais para ele.
— O que foi que ela fez com você, Santiago?
— Eu não tenho mãe. — repetiu, sem saber como responder ao desconsolo na
face daquele estranho.
— Você teve uma mãe. Seu nome era María Rosario. — Alejandro engoliu com
dificuldade antes de continuar. O brilho no seu olhar denunciava que estava
lacrimejando. — E eu a amava.

***

Alejandro os guiou até uma mesa perto da entrada da taverna. Sentou-se no lado
direito, aguardando que Santiago e Luna se sentassem à sua frente.
A mão de Luna chegava a doer. Suada e pressionada, não havia tido um
segundo de descanso desde que abriram a porta de suas vidas para aquele homem.
Contudo, a verdade era que ela não se importava. Se aquilo pudesse acalmar o fardo
que se instalava no peito de Santiago, jamais impediria seu toque.
— Preciso saber de tudo, Santiago. O que você se lembra da sua infância?
Quem cuidou de você? Quando você... — Ele olhou para Luna. — Talvez fosse melhor
ela não estar presente.
A forma como ele a olhou, sem se dirigir diretamente a ela, irritou Luna. Antes
que percebesse, o seu cenho já estava contraído em uma expressão clara de desgosto.
— Ela sabe de tudo da minha vida. O que você quiser falar para mim, pode ser
falado para ela.
Alejandro inspirou em sinal de derrota.
— Está bem. Então conte-me sobre sua vida.
Por um átimo, ele cogitou não dizer nada. Seu espelho era um homem direto em
excesso, beirando a rude. Não inspirava confiança alguma. Porém, sua vida não tinha
sido nada de mais e ele parecia ter respostas que Santiago gostaria de descobrir.

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Ele contou, de forma breve e resumida, sua vida no monastério e sua doença.
Não entrou em detalhes, mas disse que Luna o ajudara a se curar e que agora estavam
ali. Alejandro não era o único que podia ser direto.
— Ela o ajudou a se curar? Como?
— Luna cuidava dos doentes na enfermaria.
— Santiago, tomar sopa e ser lavado não é o suficiente para curar isso. Quando
você bebeu?
— Bebi? Bebi o quê?
Alejandro olhou em volta, antes de proferir a sua resposta. Diminuiu o volume de
sua voz até quase não sair som algum.
— Sangue.
O choque de suas palavras pegou tanto Luna quanto Santiago de surpresa.
Nesses últimos dias, eles falaram bastante sobre a cura milagrosa de Santiago, contudo
providência divina parecia ser realmente a única possibilidade. Aquela afirmação de
Alejandro, de que sangue era a razão, foi um estalo para ambos.
— O francês. — disse Santiago, ao mesmo tempo em que seu cérebro chegava
à conclusão que ele queria evitar.
— Que francês?
— Eu e Luna fomos atacados. Caiu sangue de um soldado francês na minha
boca quando Luna o matou.
— Você matou um soldado? — Alejandro disse, virando-se para Luna. Ela
assentiu em silêncio. Ele manteve um semblante surpreso antes de se voltar novamente
para Santiago. — Se isso é verdade, então você estava certo no fim das contas. Ela, de
fato, o ajudou a se curar.
Luna tentava assimilar o que Alejandro revelava. Uma doença curada pela
ingestão de sangue. Com um efeito tão imediato que só poderia ser divino. Ela nunca
tinha ouvido falar de algo assim.
— Que enfermidade é essa? Ele está curado mesmo? É definitivo ou há chance
de recaída?
Alejandro virou-se para Luna como se tivesse acabado de perceber a sua
presença.
— Não tem como ser mais definitivo do que isso. Agora é só continuar se
alimentando e a morte nunca mais poderá tocá-lo.
— Nunca mais? — indagou Luna, sem conseguir esconder o alívio de ouvir
aquelas palavras.
— Nunca mais.
— Alimentar-me de quê?

24
A voz de Santiago trazia uma rouquidão que Luna jamais ouvira.
— Você sabe de quê.
— Sangue. — falou Luna, usando o mesmo tom de voz que Alejandro ao proferir
a mesma palavra alguns instantes antes. Ele meneou em afirmação.
— Deus! Eu sou um demônio. — exclamou Santiago, sem conseguir esconder
seu temor.
— Não. Você é um vampiro.
— O que é isso? — questionou Luna.
— É uma pessoa que precisa de sangue e que poderá viver para sempre. Só
isso, Santiago. — respondeu Alejandro. — Não se trata de anjos ou demônios. Você
apenas possui uma condição peculiar. Nada além disso.
— Peculiar... — murmurou Santiago. De alguma forma, aquela afirmação era
pior do que podia imaginar. Por instinto, ele afrouxou a mão que apertava com tanto
ímpeto segundos antes.
Luna sentiu a raiva que atravessou o corpo de Santiago, assim como o
nervosismo da mão que tremia junto à sua. Ela não podia deixar que ele fosse dominado
por aquilo, ao menos não enquanto não tinham todas as respostas.
— Como o senhor sabe tanto sobre essa condição?
— Porque é hereditário, senhorita. Eu também tenho.
— Isso significa que é passado através das gerações de uma família. — Ela
analisou o rosto de Alejandro. — Você é da família de Santiago?
A atendente trouxe uma jarra de sangria, fazendo com que todos instintivamente
parassem de falar e colocassem os corpos mais eretos, demonstrando desconforto.
Luna não sabia quando a bebida havia sido pedida, mas, pela forma como Alejandro
agradeceu, ele fora o responsável.
O soldado olhava o líquido frutado que virava em seu copo sem se importar em
voltar seu rosto para encará-la.
— Sou o pai dele.

***

A porta bateu com uma força descomunal com o impacto do pé de Santiago. Seu
chute expressava toda a frustação e a raiva que estava sentindo. Luna sentou-se na
beirada da cama e ficou estudando o jovem. Aquele rapaz tão lindo e tão amaldiçoado.
Depois de tudo o que sofrera ao longo de toda a sua vida, depois de quase morrer nas
mãos dos soldados franceses, agora ele se deparava com mais uma provação em seu
caminho.

25
— Não é possível, Luna. As coisas que esse homem disse... Como pode ser
meu pai se não aparenta ser nem um ano mais velho do que eu? Ele surge com o meu
rosto, vendendo fábulas sobre vampiros e vida eterna, e espera que eu acredite nisso?
— Sente-se aqui, Santiago. — Luna apoiou a mão na cama para indicar que ele
ficasse ao seu lado.
Desde que ouvira a palavra “vampiro”, Santiago havia se mantido distante. Ele
olhou para o espaço na cama e relutou. Depois de uma expiração profunda, se rendeu
e foi até ela.
— Você não me deixa vê-lo comendo. — disse Luna.
Santiago se remexeu na cama, com o rosto estático voltado para a sua frente,
evitando o escrutínio da jovem ao seu lado.
— Não fique assim, Santiago. Por favor, fale comigo. Todos os dias você traz o
café apenas para mim, depois eu só o vejo na hora do jantar, quando sobe com somente
um prato de comida aqui para o quarto. Eu achava que você estava apenas cuidando
de mim, mas percebo agora que não tivemos nenhuma refeição juntos em que você
também comia desde o Natal. Por quê?
— Porque a fome que eu tenho não passa com comida. — As palavras saíam
sussurradas. Ele estava envergonhado. — Comi nos nossos primeiros dias aqui, mas
não me sentia bem. Achei que pudesse ser algum mal-estar temporário, no entanto
percebi que não precisava comer, pelo menos não o que nos é ofertado aqui. Nenhum
grão é capaz de matar a minha fome.
— Você está se sentindo fraco?
— Um pouco. Mas sei que não adianta comer, Luna. Eu apenas sei.
Ela assentiu.
— Por que você não me contou?
— Não queria que se preocupasse mais comigo. Eu finalmente estava bem. Não
queria... Eu precisava estar bem. — Ele mexia uma mão na outra de forma quase
obsessiva. Focava apenas nesse movimento enquanto falava, quase como se
conversasse consigo mesmo.
— Santiago, eu preciso que você confie em mim.
Ele se virou assustado para ela.
— Eu confio a minha vida a você, Luna. Por favor, não pense que foi por isso
que não lhe contei.
— Eu sei, eu sei. — Ela segurou as mãos inquietas e as apertou contra o seu
peito. — Não me refiro a isso, Santiago. — Ela parou para se preparar, com medo da
reação que suas palavras receberiam. — Vou fazer um teste com você e preciso que
você me deixe fazê-lo.

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— Teste? Que teste?
Luna se levantou, decidida. Caminhou até a cômoda que ficava na frente dos
dois e abriu a primeira gaveta. Quando a luz do sol irradiou sobre o metal da tesoura
em suas mãos, Santiago se levantou sobressaltado.
— O que você está fazendo?
— Está tudo bem, Santiago. Confie em mim, por favor.
— Não, Luna. Não faça isso.
— Precisamos saber se sangue vai resolver a sua fome. E eu tenho de sobra.
— Ela tentou sorrir para tirar o peso do que pedia a Santiago, todavia sua solicitação
não foi bem recebida.
— Não! Eu já disse que não!
Lágrimas caíam dos seus olhos enquanto ele andava para trás, na direção da
janela, tentando se afastar da terrível cena que se desenrolava à sua frente.
Luna correu na direção dele, escondendo a tesoura atrás de si e levando sua
mão livre até o rosto de Santiago. Tentava secar a água salgada que trazia tanto pesar
para aquele rosto tão lindo.
— Por favor, por favor. — Ela sentiu suas próprias lágrimas tentando furar a
barreira que havia construído dentro de si. Tinha que ser forte por ele. Tinha que ser
forte para ele. — Escute, por favor! Você está sofrendo, é óbvio. Deixe-me fazer isso
por você. Eu não me importo.
— Mas eu me importo! Luna, eu não quero machucá-la.
— Você não vai.
— Como pode ter certeza? Se eu tiver um demônio que anseia sangue dentro
de mim, quem diz que vou conseguir parar?
— Eu digo! Eu conheço você. Eu... — Luna abraçou Santiago; seus lábios a
poucos centímetros de sua orelha. — Eu amo você.
Ele parou de se mexer na mesma hora. Ela o amava? Como era possível?
Depois de tudo que ouvira de Alejandro, depois de saber que ele teria que conviver com
uma sede de sangue eterna, como ela poderia amá-lo?
— Você não pode me amar. Eu sou um monstro, Luna.
— Não, meu amor. — Ela levou sua boca na direção da dele e o beijou
suavemente. — Você é a melhor coisa que já me aconteceu.
Entre lágrimas e dor, Santiago apertou forte a cintura de Luna, trazendo-a para
si em um beijo caloroso. Massageou sua língua com intensidade, deixando aquele
momento representar toda a paixão que ardia dentro dele.
— Eu a amo, Luna. Eu a amo tanto.

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A tesoura caiu no chão quando ela levou a outra mão até a nuca de Santiago.
Ele havia sido tão respeitoso nessas semanas que passaram juntos. Seus beijos eram
castos e sensíveis, mas não aquele. Aquele era vigoroso, aquele era fogo. Ela retribuía,
sentindo como se precisasse daqueles lábios para levar ar até seus pulmões. Ela
precisava dele, do seu corpo, da sua alma.
— Luna...
Sem se tolherem mais, sem pensarem mais, os dois caíram sobre a cama e
deixaram seus corpos dizerem tudo aquilo que mais queriam expressar.

***

Santiago acariciava as costas nuas de Luna enquanto ela, virada de bruços, o


observava. A noite já havia caído lá fora e a luz da lamparina refletia nos olhos do rapaz,
iluminando e absorvendo Luna ao mesmo tempo. Ela podia passar a vida inteira só
vendo o seu amado, mas algo importante exigia a sua atenção imediata.
— Santiago...
— Eu sei. — ele a interrompeu. — Eu sei o que você quer. E a amo ainda mais
por isso. Só me dê mais um minuto. Um minuto a mais antes de eu perder você para
sempre.
— Do que você está falando? — Ela se apoiou sobre os cotovelos, arqueando
as costas, na tentativa de encontrar sinais em seu rosto do que estaria passando pela
sua cabeça.
— O que você quer que eu faça... Sinto que não haverá volta, Luna. Você me
verá de uma forma diferente. Temo que nosso amor não vá suportar.
Ela se sentou, ignorando sua nudez e segurando o rosto de Santiago entre as
mãos.
— Olhe bem para mim. Preciso que você entenda o quanto eu o amo. Não há
nada que aconteça que vá mudar isso. Eu sou sua, Santiago. Para sempre.
— Para sempre pode ser muito tempo. Especialmente para um vampiro.
— Então é melhor você se acostumar com a ideia logo.
O riso leve de Luna quase o fez se esquecer do que viria a seguir. Depois de
beijar seus lábios intensamente, Luna se levantou e pegou a tesoura no chão do quarto.
Retornou para a cama com uma expectativa palpável.
— Pronto?
— Não... Mas, por favor, continue.
Ela abriu a tesoura e segurou uma das lâminas, apoiando a ponta afiada na parte
macia da outra palma. Seu rosto se contorceu um pouco quando empurrou a tesoura

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contra a sua pele, conseguindo abrir uma ferida de alguns centímetros e trazendo o
sangue para a superfície.
— Beba, Santiago. — disse, ofertando sua mão.
Ele a encarava com uma feição séria e impetuosa enquanto descia até encostar
os lábios no líquido espesso que fluía de sua amada.
A dor ficou mais intensa à medida que ele o sugava, contudo, de alguma
maneira, aquilo não a machucava. Vê-lo observando-a tão ferozmente enquanto puxava
seu sangue para si trazia um prazer que ela não esperava. Eles estavam sem roupa,
haviam acabado de fazer amor e, mesmo assim, aquele momento parecia ter mais
intimidade do que todos os outros juntos.
Demorou alguns minutos até que ele a soltasse. No entanto, assim que o fez, a
abraçou e a beijou. Aquela mulher havia deixado que ele se alimentasse dela. Para
alguém que nunca se sentira querido, o ato que acabou de presenciar havia sido a maior
prova de amor.
— Diga-me que ainda me ama. Diga que vai ficar comigo mesmo depois disso.
Diga-me, Luna.
— Não sei se é possível, Santiago, mas acho que o amo mais.
Ele pegou o lençol que estava entre eles e rasgou a ponta. Usou o tecido para
fazer uma atadura na mão ferida de Luna e beijou em cima do nó.
— Como você está se sentindo? Saciado?
— Sim. De fome, sim.
Seus lábios se curvaram em um meio sorriso convidativo. Luna riu e o empurrou
de volta para a cama, de onde só sairiam quando o sol trouxesse um novo dia.

***

Alejandro os aguardava na mesma mesa em que se sentaram no dia anterior.


Continuava vestido com a farda do exército espanhol, que, mesmo surrada, dava a ele
ares de uma formalidade que não havia no seu discurso.
Distraída observando Alejandro, Luna esbarrou em um homem de casaca
vermelha que vinha no sentido oposto.
— Perdão, senhorita.
Luna meneou, aceitando as desculpas, enquanto o homem seguia seu caminho
para os fundos da taverna. Santiago a puxou para si, segurando forte a sua mão.
Alejandro se levantou quando eles chegaram perto e se sentou novamente assim
que Luna assumiu seu lugar na mesa. Agora ele, com certeza, notava sua presença.
— Fiquei muito contente de receber o seu recado, Santiago.

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— Eu não tinha certeza se o receberia. Não sabia se estava no assentamento.
— Que bom que deu tudo certo no fim.
Com a mão que estava livre, Santiago batucou de leve a mesa antes de voltar a
falar.
— Peço desculpas por termos nos retirado tão rapidamente ontem. Espero que
entenda.
— Certamente. É muito para assimilar.
— Mas já consegui assimilar um pouco. Eu acho.
— Estou vendo. — Alejandro deu um gole na cerveja que estava à sua frente. —
Você está mais corado hoje.
O comentário não agradou a Santiago. Aquele homem sabia o que havia
acontecido na noite anterior, sabia que ele havia bebido o sangue de Luna. Era como
se adentrasse a intimidade dos dois sem ter sido convidado.
— Desculpe-me, não quero me intrometer. — afirmou Alejandro, percebendo a
inquietação que havia provocado. — Apenas gostei de saber que acreditou em mim e
que está se cuidando. Quero vê-lo bem, só isso.
— Agradeço a preocupação, no entanto agradeceria mais se contasse a parte
da minha história que eu desconheço.
— Será um prazer. Gosto de me lembrar de María. Apesar de saber que ela não
diria o mesmo se estivesse no meu lugar.
— Ela não amava o senhor?
— Amava sim, muito, até demais. Mas ela não lidou bem com o modo como eu
fiquei depois da transformação.
— Você a conheceu antes de se transformar?
— Sim. Eu tinha quinze anos e ela já tinha dezoito. Eu estava mal, mas ela me
ensinou o que fazer. Os pais dela eram vampiros, então ela nunca sofreu o que nós dois
passamos. Quando ela me deu sangue e a vida entrou em mim pela primeira vez, fui ao
céu. Era como se tudo fosse a primeira vez. Como se eu não tivesse realmente vivido
até aquele momento. A partir de então, passei a cortejá-la. Fazíamos tudo juntos,
inclusive nos alimentar. Ela possuía primos humanos que ajudavam a sua família nesse
processo, mantendo um suprimento constante de sangue há gerações em troca de
poderem usufruir da riqueza que seus pais haviam acumulado ao longo dos séculos.
Eles tinham nome e não podiam arriscar serem descobertos, por isso tudo era muito
familiar e secreto. Apesar de amá-la, eu era muito jovem e não queria me envolver
naquele esquema regrado que eles seguiam. Eu queria explorar o mundo, tentar coisas
novas e aproveitar a vida. Quando ela me contou que estava grávida, confesso que não
reagi bem. Aquela era mais uma pressão em cima de mim. Mais uma coisa que me faria

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ter que seguir as suas regras. Foi nesse dia que ela me encontrou em uma taverna,
tomando sangue de duas prostitutas enquanto elas... — Alejandro olhou para Luna e se
calou. — Desculpe-me, senhorita.
Luna mexeu a cabeça em resposta, sem falar nada, incentivando-o a continuar.
— Eu fui um calhorda, admito. Na verdade, nunca neguei, muito menos naquela
hora. Eu disse a María que eu era uma criança perdida, que não conhecia a vida e que
estava me afogando. Pedi para ela me ajudar, mas ela me rechaçou. E com razão, claro.
Mantive-me à distância, acompanhando sua gravidez por cartas que escrevia aos meus
sogros. Então, chegou o dia do parto e María Rosario desapareceu. Nem seus pais,
nem eu nunca mais a vimos. A única coisa que eu sabia era que ela queria que seu
nome fosse Santiago. Não posso imaginar o que passou pela cabeça dela para
renunciar a você. No entanto, pelo que seus pais me disseram, ela não estava bem nos
últimos meses. Chorava todos os dias, se trancava no quarto e recusava sangue. Tentei
falar com ela, mandei cartas, contudo nunca obtive resposta. María se fechou para mim.
E eu tive que crescer, aprender a ser melhor ao passo que sofria em silêncio por ter
perdido os meus dois grandes amores em uma mesma noite: sua mãe e você.
Santiago se recostou no seu assento, impactado pelas palavras de seu pai. Sua
mãe enlouquecera ao perdê-lo e isso criou um efeito dominó que destruiu tudo em seu
caminho, incluindo a chance de ele nascer na família ordenada e cheia de amor que
Alejandro descrevera.
Seu pai passava o polegar na beirada da caneca de cerveja, encarando o
recipiente com afinco.
— Eu nunca desisti de encontrá-la.
A frase se perdeu no ar de sua respiração pesada, mas Santiago a ouviu muito
bem.
— Obrigado por me contar. — Santiago afirmou, sem emoção.
Alejandro saiu de seu devaneio e encarou o filho.
— Quando eu o vi aqui ontem, meu retrato em vida, eu sabia que você só podia
ser meu filho perdido. Mesmo em meio a tanta destruição, agradecerei, em minhas
preces, pela eclosão dessa guerra. Foi ela que me colocou no seu caminho. Sem ela,
nenhum de nós dois estaria nesta taverna agora.
Santiago ignorou o comentário, mantendo-se incólume ao ser atingido pelo
sentimentalismo de seu pai.
— Preciso lhe perguntar; por que somos tão parecidos? Entendo que pais e filhos
muitas vezes o são, mas nesse caso até nossas idades parecem similares.
— Vampiros não envelhecem como os humanos. Apesar da feição
extremamente jovem, eu tenho trinte e três anos. Muitos consideram a vida nômade por

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causa disso. Se você ficar muito tempo em um mesmo lugar, as pessoas começam a
reparar que há algo estranho. Podem ficar com medo e acabar fazendo alguma tolice.
No entanto, se não nos ferirem na cabeça, continuaremos vivos. Meus sogros tinham
mais de cem anos e ainda aparentavam estar na casa dos vinte. É uma dádiva isso,
Santiago. Não veja de nenhuma outra forma. É uma benção.
— Um milagre. — exclamou Luna. Ela virou para Santiago e acariciou seu braço.
Ele estava bem e ficaria assim eternamente.
Alejandro voltou sua atenção para Luna.
— Aproveitem o tempo que terão juntos. Como alguém que teve que seguir a
vida sem o seu amor, posso garantir que não será fácil, mas as memórias aliviam a dor.
Santiago absorveu em seu peito as palavras que seu pai proferiu.
— A que você está se referindo? — perguntou em um tom um pouco mais
exaltado do que planejava.
— Ela é humana, Santiago. Por mais que viva uma longa vida, ainda será um
grão de areia na imensidão da sua.
Luna engoliu em seco. Eles haviam acabado de começar a vida juntos, por isso
não queria pensar sobre o fim. Aquilo estava tomando um rumo que não a agradava. E
pela expressão de Santiago, tampouco a ele.
— Por que está fazendo isso?
— Isso o quê? — respondeu Alejandro ao filho.
— Não bastou destruir a vida de minha mãe e a minha infância, agora você
também quer minar meu futuro? Criar um vão entre mim e Luna com suas palavras
maliciosas? Posso lhe garantir, meu senhor, que não vai conseguir. Você pode ter
defenestrado sua chance de felicidade ao se importar mais com o que tinha entre as
pernas do que com o que tinha no centro do peito, mas eu não seguirei seus passos.
Pode ter certeza.
Santiago puxou Luna para si e se levantou, deixando Alejandro sozinho e
perplexo. Estava a alguns metros de distância da mesa quando ouviu uma explosão. E,
então, tudo ficou escuro.

***

Luna demorou alguns segundos para recobrar a consciência. Seus ouvidos


zumbiam e o ambiente estava todo nebuloso pela fumaça causada pela bala de canhão.
Santiago, desfalecido ao seu lado, era o mais distante que ela conseguia enxergar.
Abaixo de si, percebeu que o chão escorregava, impossibilitando que ela ganhasse
estabilidade para se levantar. Luna olhou para suas mãos. O líquido viscoso que as

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englobava era vermelho. Tateou ao seu redor e sentiu algo macio. Puxou para si,
arrependendo-se na mesma hora; era carne humana.
Ela jogou para longe a tira sanguinolenta e começou a empurrar Santiago para
fazer com que despertasse. Ele se virou para Luna, sem compreender o que estava
acontecendo. Imediatamente olhou para trás, na direção da mesa em que estavam
sentados poucos minutos antes. O buraco na parede foi a primeira coisa a chamar a
atenção de ambos. Logo depois, seus olhares abaixaram e perceberam os pedaços em
volta deles — pedaços de Alejandro.
Santiago não conseguiu segurar o vômito. Deitado, entre o sangue e a carne de
seu pai, o líquido vermelho jorrou dele sem cerimônias. O instinto de sobrevivência de
Luna que os havia salvado no monastério ressurgiu. Ela segurou a mão de Santiago,
que parecia em choque, e começou a se arrastar pelo chão. A bala de canhão era só o
começo. Em breve, a infantaria iria chegar com as carabinas e eles seriam alvos fáceis.
Precisavam sair dali o quanto antes.
Uma nova explosão à distância trouxe de forma brusca a audição de Luna de
volta. Não havia mais dúvidas: os franceses estavam ali.
Talvez fosse um grupo solitário em busca de comida, talvez fosse uma tropa
completa ou, quem sabe, alguma que acabara de sair de Madri e seguia a anterior em
direção ao que acreditavam ser sua nova conquista; ela não tinha ideia. Só sabia que
precisavam correr.
Afastando-se do cerne da explosão, foi mais fácil conseguir tração contra o chão
para se levantarem. Luna e Santiago correram na direção da saída dos fundos da
taverna. Não viam o caminho, mas já haviam passado por ele muitas vezes, o que tornou
relativamente fácil encontrá-lo.
O ambiente de guerra que os aguardava tirou o ar dos pulmões de Luna. A visão
que tivera semanas antes dos seus conhecidos mortos no monastério havia sido
pavorosa, no entanto, ainda assim, não a havia preparado para aquilo. Se ao correr pela
enfermaria e pelas catacumbas, Luna tinha conseguido encontrar força e vontade de
viver, a cena que via apenas arrepiava a sua alma. A nuvem de fumaça e poeira irritava
seus olhos e seu nariz, tornando impossível respirar sem cobrir o rosto e trazendo a
noite para o meio do dia. O chão era uma lama de sangue e terra coberta por membros
e corpos desfalecidos. Ainda não havia ocorrido uma nova explosão desde que tinham
saído da taverna, mas ela sabia que ali seriam alvos fáceis.
Então, correram.
Mãos dadas, apertando forte. Eles só tinham um ao outro. Tudo que havia para
trás era morte e destruição. À frente, incerteza e medo. Aquelas mãos dadas eram a
única segurança.

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Quando a fumaça finalmente se dispersou, foram impactados pela visão do Rio
Tejo aos seus pés. Caminharam o rio acima, em silêncio, na esperança de encontrarem
em sua encosta alguma maneira de atravessar. Luna não sabia nadar, contudo já tinha
observado outras pessoas fazendo e acreditava que, no desespero, conseguiria. Porém,
as baixas temperaturas de janeiro tornavam a ação impossível. Ela olhava para si,
arrependida de não ter descido para a taverna com um agasalho a mais; as pessoas e
a bebida deixavam o local quente, então não imaginou que fosse precisar. Já era a
segunda vez que estava com frio e fugindo ao lado de Santiago e, apesar de não querer
trocar sua companhia, sonhava com um ambiente menos hostil.
— Ali. — disse Santiago apontando para uma canoa abandonada na margem.
Sua voz saiu áspera. Ainda não tinha falado desde a explosão e o vômito parecia ter
arranhado a sua garganta.
Quando chegaram mais perto, entenderam o motivo do abandono: um buraco
do tamanho de um punho atravessava o casco.
— O que vamos fazer? — questionou Luna, aflita.
Sem pensar muito, Santiago tirou seu casaco e o embolou, encaixando no
buraco o melhor que pôde.
— Isso vai segurar?
— É só até a outra margem, vai segurar. — A extensão até o outro lado era um
longo caminho, o que fazia a resposta de Santiago parecer mais uma prece do que uma
certeza.
Ele ajudou Luna a entrar, sentando-a no assento perto da popa e correu pelo
lado de fora para a proa, que estava engatada na terra. Santiago começou a empurrar
a canoa, tentando ignorar o frio em seus dedos pelo contato com a madeira gelada. A
embarcação cedeu e começou a flutuar sobre o rio. Ele pulou dentro, sentando-se na
frente de Luna e levantando o remo que estava entre seus pés. Seu casaco já estava
encharcado. Precisavam ser rápidos.
Luna também tirou seu casaco, bem mais fino que o de Santiago, enroscando-o
e colocando por cima, na vã tentativa de desacelerar o processo de naufrágio que se
desenrolava. Ao longe, novas explosões mostravam que aquela havia sido a decisão
correta. Se continuassem subindo o Tejo, a chance de encontrarem soldados era
grande. Precisavam atravessar e descer, talvez ir para Sevilha ou algum outro lugar ao
sul que ainda não tivesse sido afetado pela guerra.
Mas, primeiro, atravessar.
A água roçava o meio de suas botas e encharcava a barra do vestido de Luna
quando finalmente conseguiram chegar à outra margem. Ela se levantou rapidamente,
sendo auxiliada por Santiago para conseguir sair. Sem seus casacos e com os pés

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molhados, o frio fazia com que ambos tremessem. A corrida que começariam agora teria
que ser o suficiente para aquecê-los.
— Santiago!
O nome de Santiago foi gritado da outra beirada, chamando a atenção de ambos.
Por um instante, mesmo tendo consciência de que era impossível que seu pai tivesse
sobrevivido, ele torceu para ser Alejandro. Entretanto, não era.
Àquela distância, eles não conseguiam ver os detalhes de seu rosto, mas aquele
homem tinha cabelos mais claros que os de Alejandro e usava vestes vermelhas. Luna
se lembrava dele.
— Ele estava na taverna. Você o conhece? — questionou Luna.
Antes que ele fosse capaz de responder, outra explosão os alertou para o que
estava em risco. Precisavam esquecer aquele estranho e sair dali.
Havia muito chão até o próximo porto seguro.

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III – A Liberdade

23 de janeiro de 1809
Sevilha, Espanha

O cheiro de pão fresco inundava as narinas de Luna fazendo com que sua mente
não conseguisse pensar em mais nada. O padeiro o havia colocado na mureta do lado
de fora da cozinha para esfriar e atrair os clientes; e estava funcionando. Pessoas
simples que economizaram dias para ter aquele pão, serviçais que queriam garantir o
café da manhã de seus senhores, soldados espanhóis de passagem que, com certeza,
conseguiriam um bom negócio com o padeiro pelo seu serviço ao país; todos se
aglomeravam em volta da janela, à espera para garantir o seu.
Luna mantinha uma distância segura. Sair fugidos tinha feito com que deixassem
para trás os poucos trocados que Santiago havia conseguido com os bondosos
visitantes da taverna de Toledo. Não tinham como se sustentar, mas a fome de Luna
parecia não saber disso.
Santiago surgiu ao seu lado e, discretamente, entrelaçou seu dedo mindinho no
dela. Um leve toque, apenas para passar uma segurança que nenhum dos dois sentia.
— Vou tentar arranjar um trabalho aqui. Talvez a gente consiga o mesmo arranjo
que tínhamos na taverna: trabalho em troca de comida e moradia.
— Não temos tempo, Santiago. Você viu os soldados. A guerra está chegando
a toda Espanha. Precisamos sair daqui.
— Você não come há dois dias, Luna. Desde que conseguimos aquela sopa na
hacienda Ramirez. Você precisa comer.
— Eu sei. Mais do que por mim, sei que preciso estar bem para poder alimentá-
lo também.
Santiago abaixou a cabeça. Ele sabia que não podia beber de Luna enquanto
estivesse fraca, mas jamais falaria nada a respeito. Havia ficado anos sem tomar
sangue, ele aguentaria. No entanto, nada garantia que Luna sobreviveria aos próximos
dias. Suas olheiras fundas e a lentidão com que proferia as suas palavras faziam-no
perceber o impacto que aquela fuga estava tendo em sua amada. Ele precisava fazer
algo para remediar aquela situação. E rápido.
— Fique aqui. Não importa o que aconteça, fique aqui.
Luna o encarou sem entender seu pedido, mas assentiu. De onde estava podia
vê-lo se embrenhando entre as pessoas que se amontoavam na janela da padaria,
entretanto logo o rosto do jovem sumiu entre a multidão.

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De repente, uma confusão começou entre os clientes. Socos e gritos, corpos se
atacando e se empurrando; algo estava errado. O coração de Luna disparou sem saber
onde estava Santiago. Seu primeiro impulso foi querer ir até lá tentar encontrá-lo, mas
ele havia sido categórico em seu pedido: ela deveria ficar ali.
Um tiro gelou a sua alma. A mão elevada de um soldado empunhava uma arma.
Era um tiro de alerta, feito para dispersar a multidão. O povo começou a correr para
todos os lados, como uma manada assustada com o ataque de um predador.
Luna permaneceu parada no mesmo lugar. Até sentir uma mão capturando a
sua. Era Santiago.
Ele a puxou, fazendo com que a jovem saísse da inércia e começasse a correr
também.
O tempo parecia estar suspenso. Tudo parecia mais lento, mais difícil. Correr na
sua condição não era algo que almejasse, mas sabia que Santiago não exigiria que ela
o fizesse se não fosse importante. Então, correu. O mais rápido que suas pernas
cansadas podiam aguentar, Luna correu.
Até que ele parou.
Já não havia soldados ou multidão em volta, estavam sozinhos em uma ruela
similar a tantas outras de Sevilha. Luna respirou forte e apressadamente, tentando
recuperar seu fôlego. Ela se apoiou em um muro de pedras com a cabeça baixa, focando
em se recompor.
— Aqui, Luna.
Ela levantou o olhar para identificar o que Santiago queria. Na sua frente, estava
o pão da janela da padaria. Ela tirou o foco do alimento e mirou em Santiago.
— Você...
Luna não terminou a frase. Sabia o que ele havia feito; Santiago criara uma
distração para roubar a padaria. Mesmo que esse ato fosse contra tudo que acreditava,
a fome falava mais alto. Ela aceitou o alimento e começou a arrancar pedaços do pão
com os dentes. Não sabia se estava realmente gostoso ou se a fome realçava o sabor,
entretanto aquilo era a melhor coisa que ela se lembrava de já ter comido.
— Obrigada, Santiago. Obrigada. — suspirou.
Ele segurou as bochechas de Luna, levantando seu rosto em sua direção
enquanto a jovem ainda mastigava.
— Você me dá amor, me dá coragem e me dá sangue, Luna. O mínimo que eu
posso fazer é conseguir sua comida. Farei o que for preciso, mas fome você não passará
mais.
Luna meneou concordando. Os tempos que viviam eram duros demais. Santiago
não era o primeiro e não seria o último a tomar uma decisão extrema, contra os preceitos

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de Deus, para sobreviver. A guerra mudava as pessoas. Tornava atos impensáveis em
ações necessárias. Era questão de vida ou de morte. E, depois de tudo que eles já
haviam passado, morrer não era uma opção.

***

27 de fevereiro de 1809
Porto, Portugal

Luna caminhava pela Ribeira observando os pássaros. A paz que eles


transmitiam era a mentira mais bem contada que ela já havia visto. No entanto, naquele
momento, ela precisava daquela ilusão.
Estavam no Porto havia apenas uma semana. Viviam de comidas roubadas de
mercadores por Santiago e do sangue de Luna, enquanto tentavam a sorte de
estalagem em estalagem para descobrir se conseguiriam ter uma vida parecida com a
que levaram durantes aqueles poucos dias de paz na Espanha. Contudo, o clima de
guerra estava em todo o lugar. O país inteiro se preparava para Napoleão, e
estrangeiros querendo pegar o emprego dos locais não era algo bem visto pelos nativos.
A criação religiosa de Luna a dizia que aquilo era apenas mais uma provação
divina e que superariam mais esse fardo. Todavia, dormir ao relento, às margens do Rio
Douro, em pleno inverno, fazia com que ela duvidasse cada dia mais disso.
Luna se sentou em um banco de pedra para observar o rio. Santiago havia
pedido que ela o esperasse ali enquanto ele buscava seu alimento. A promessa que ele
fizera estava sendo cumprida. Luna estava mais saudável e já podia compartilhar seu
sangue, apesar de ele não lhe pedir que o fizesse todos os dias. Santiago ainda tinha
pudores em relação a isso, contudo ela sabia que aos poucos poderia tornar aquela
situação mais tolerável para ele.
Pensar nele lhe trouxe um aperto. Fazia apenas uma hora que ele havia partido,
entretanto a saudade já batia. Ela deixou seu olhar vagar pela calçada ao seu redor, na
esperança de que ele surgisse entre os transeuntes a qualquer segundo. Seu foco a
levou até uma figura familiar parada a poucos metros de distância. Ela já havia visto
aquele homem. E pela forma como ele a encarava, ele também a reconhecera.
Luna se levantou e caminhou vagarosamente, testando a teoria de que ele
estava à sua espera. Ele começou a andar na sua direção, confirmando sua suspeita.
Depois de tanto tempo correndo, ela estava cansada de só encontrar problemas e, com
certeza, aquele homem que a perseguia era exatamente isso.

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Luna parou a caminhada e começou a correr. Será que Santiago já estaria perto
de voltar? Deveria tentar confundir o homem e encontrar o caminho de volta para pedir
ajuda ao seu amado? Suas dúvidas a atordoavam de tal forma que ela não percebeu,
até que fosse tarde demais, que o seu caminho se encerrou em um beco. Atrás dela, o
homem parou, respirando ofegante. Ele apoiou as mãos nos joelhos e riu alto.
— A senhorita tem energia, Doña Luna. Obrigado por isso, fazia um tempo que
eu não precisava me desgastar tanto.
Luna se assustou ao ouvir seu nome carregado por um sotaque desconhecido
nos lábios daquele estranho. Apesar de não ter prestado atenção ao sotaque na primeira
vez que a ouvira, aquela voz não era nova para ela. Era do homem nas margens do
Tejo. Aquele que clamou por Santiago enquanto escapavam dos franceses.
Ele os havia perseguido até ali? Como os tinha encontrado?
— Já nos conhecemos, senhor?
— Ainda não, contudo já ouvi muito ao seu respeito. Permita-me apresentar:
William Blakey, emissário do Exército Inglês e soldado do sexagésimo regimento.
— O que um soldado inglês pode querer comigo?
Blakey começou a caminhar na direção de Luna, fazendo com que ela
instintivamente se movimentasse para trás.
— A senhorita não tem nada com o que se preocupar. Sou um amigo. Bem, um
amigo de um amigo, mas, no fim, o resultado é o mesmo: vim ajudá-la. Tanto a senhorita
quanto o jovem Santiago Vázquez.
O homem agora estava mais perto ainda; as costas de Luna se colocavam contra
a parede. Mesmo que suas palavras dissessem que era amigo, ela estava em um país
estranho, roubando para sobreviver e sendo perseguida por um homem que não
conhecia, mas que aparentava saber sobre a sua vida.
— Afaste-se dela!
A voz de Santiago fez Blakey olhar para trás e tirou seu foco de Luna. O ímpeto
de sobrevivência a instigou a não perder tempo e Luna deu uma joelhada no meio das
pernas do homem, fazendo com que ele perdesse o equilíbrio e precisasse se apoiar na
parede.
Ela correu na direção de Santiago.
— Ele nos conhece, Santiago. Sabe nossos nomes.
O homem voltou a rir; ação esta que não condizia em nada com a dor que ele
parecia estar sentido.
— Alejandro me disse que a senhorita era forte, mas eu não podia imaginar que
ele estava falando literalmente.

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— Alejandro? — questionou Santiago. Ouvir o nome de seu pai fez com que uma
onda gelada atravessasse o seu corpo. — Quem é o senhor?
Blakey riu de novo e, ainda curvado, olhou no fundo dos olhos de Santiago.
— Jovem, eu sou sua melhor chance de sair da Europa com vida.

***

30 de junho de 1809
Condado de Southampton, Inglaterra

Os últimos papéis que Santiago precisava para embarcar com Luna no Liberty
estavam finalmente em suas mãos. William Blakey os entregara como prometido, além
de uma bolsa com moedas suficientes para que sobrevivessem alguns dias nos Estados
Unidos, antes de buscarem a ajuda que ele lhes assegurara.
Assim que leu seus nomes, registrados como Santiago e Luna Torres, casados
dois anos antes em Barcelona, Santiago não pôde deixar de esboçar um sorriso.
— Muito obrigado, William. Que sorte a nossa em tê-lo encontrado!
— Você sabe muito bem que sorte não teve relação com isso. — O pesado
sotaque inglês ficou evidente quando o homem pronunciava seu espanhol perfeito. Ele
levantou a mão para apertar a de Santiago, que a recebeu de bom grado. — Seu pai
podia ter muitos defeitos, mas sei o quanto encontrá-lo era importante para ele.
William Blakey conhecia o pai de Santiago; ele estava servindo de emissário no
mesmo regimento de Alejandro. Assim que o encontrara na taverna em Toledo,
Alejandro havia falado com William para que pedisse ajuda ao Conselho Vampírico a
fim de cuidar do jovem. Acreditava que a guerra não era lugar para um vampiro que
tinha acabado de se transformar. No entanto, ele nunca tivera a chance de revelar para
o filho que pretendia tirá-lo daquele inferno.
Santiago não entendia muito bem como funcionava o tal Conselho, contudo, pelo
que William havia dito, eles cuidavam da comunidade vampírica, que aparentemente
era muito maior do que ele poderia imaginar.
— A sede dos Estados Unidos é a melhor chance de vocês encontrarem um
pouco de paz. — afirmou William.
— Pode repetir o nome da dama que devo procurar?
— Senhora Beatrix Bathoe. Ela o esperará em Massachusetts e o apresentará
aos outros membros do Conselho americano. O que ela lhe disser para fazer, faça. Essa
mulher é a melhor coisa que poderia acontecer a você, meu jovem. Ela vai ajudá-los no
que vocês precisarem para seguir adiante. Cuidem-se.

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— Você também, William.
Blakey caminhou na direção de Luna e passou direto por ela, que estava alguns
passos adiante nas docas, e meneou a cabeça se despedindo. Desde que Luna lhe
dera a joelhada, ele achava melhor manter uma distância segura.
A embarcação na frente de Luna era a maior que ela já havia visto. Quilômetros
de madeira e ferro ornados por seis velas e, no topo, a bandeira inglesa em constante
movimento devido à brisa de verão. A água reluzia com o brilho dos primeiros raios de
sol surgindo no horizonte e, mesmo com uma leve névoa, a paisagem parecia saída de
uma pintura.
Chegar até a Inglaterra tinha exigido muito, mas finalmente estar ali, frente a
frente com o seu futuro, enchia o coração de Luna de esperança.
— Preparada, senhora Torres? — sussurrou Santiago perto do seu ouvido.
— Sim, senhor Torres. — respondeu Luna, levantando suavemente os lábios em
um sorriso de cumplicidade.
— Em dois meses, estaremos em território americano. Eu vou arrumar um
trabalho, um lar para nós e a vida vai começar a ser mais fácil, Luna. Eu lhe prometo.
O sorriso tímido de Luna se alargou por completo e ela tocou o rosto de Santiago.
— Não, Santiago. A vida não será mais fácil. Mesmo que tudo o que você falou
aconteça, sei que ainda teremos muito a enfrentar. Porém, nada disso importa. Só estar
com você já será a vida que eu desejo para mim. Por mais breve que ela seja.
Apesar da expressão alegre, suas palavras trouxeram uma sombra para o rosto
de Santiago. Elas eram um eco do discurso que seu pai proferira tantos meses antes,
que sempre estivera à espreita em sua mente e agora via que estivera na de Luna
também. Ele a abraçou. Não se importava se alguém visse a intimidade que aquele
abraço demonstrava, ele precisava dela perto de si.
— Não há vida para mim sem você, Luna. O quão breve a sua for, a minha
também será.
Luna abaixou a cabeça, apoiando a testa no peito de Santiago e assimilando o
que ele estava dizendo. Ela soltou um ar forte e cansado.
— A minha felicidade está na sua felicidade. Quando eu me for, você tem que
fazer de tudo para ser feliz novamente. Não quero que me prometa uma vida mais fácil.
Quero que me prometa a sua vida, a existência dela.
— Não posso lhe prometer isso. — A frase fez com que Luna levantasse o rosto
para encará-lo.
— Se eu tiver partido e você também se for, quem ficará para lembrar da nossa
história? Você tem um dom, Santiago. Um dom divino. Agarre-o com todas as forças e
use-o ao máximo. Prometa-me que vai viver. Prometa-me que vai se lembrar de mim.

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Prometa-me que vai ser feliz, que vai permitir que outras pessoas vejam o quanto você
é maravilhoso. Permita a si mesmo uma nova vida depois que a minha chegar ao fim.
— Luna...
Ela levantou um dedo contra os lábios de Santiago fazendo o rapaz se calar.
— Eu o olharei lá de cima. Saberei se está cumprindo o que lhe peço. Só se você
fizer isso, eu poderei descansar em paz. Permita-me descansar, meu amor. Vendo a
sua alegria, só assim eu poderei.
As lágrimas brilhavam nos olhos de Santiago enquanto o peso forte em seu peito
parecia que o esmagaria. Uma vida eterna sem a mulher que o havia despertado, que
o havia acordado para o amor e com quem já havia dividido tanto seria insuportável. No
entanto, ele podia ver nos olhos de Luna o quanto a sua promessa significaria para ela.
Luna era essa pessoa desde o primeiro momento em que a conhecera: mais
preocupada com um estranho moribundo do que consigo mesma. A única coisa que ele
desejava era fazer aquela mulher feliz. Faria tudo por um semblante de alegria em seu
rosto. Inclusive viver uma vida eternamente miserável.
— Eu prometo.
Não havia mais como conter o lamento que desejava escorrer por sua face. Luna
acariciou a pele de seu amado, tentando secar seu pranto. Ela passou a mão para a
nuca de Santiago e o trouxe para perto de seus lábios, tentando consolá-lo com um
beijo.
— Eu não quero pensar em uma vida sem você. — ele murmurou.
— Então não pense. Apenas viva este momento comigo, meu amor.
Santiago a encarou, lembrando-se das palavras que Luna proferira na cripta das
catacumbas. Naquele momento, o fim de Santiago era iminente, e agora ele sabia
exatamente como Luna se sentia.
— Não quero que você morra.
— Eu também não. Mas não será hoje. — disse Luna, tentando instigar
esperança em Santiago. — Vamos; a nossa vida nos aguarda. E agora quem lhe fará
uma promessa serei eu: vou amar cada segundo.
Luna segurou a mão de Santiago e, juntos, eles embarcaram.
O fim ainda estava longe; tinham toda a vida de Luna pela frente.
E eles fariam valer suas promessas até que o último sopro de felicidade, enfim,
os alcançasse.

42
SANTIAGO RETORNARÁ EM
“CAMPO DE SANGUE”,
SEGUNDO VOLUME DA SAGA O DIA V.

***

Ainda não conhece “O Dia V”?


Leia a seguir os primeiros capítulos!

43
Texto Bônus:
Leia agora o começo de O Dia V de graça!

44
PRÓLOGO — A VÉSPERA

45
1 dia para o Dia V

— Senhor presidente?
O homem que entrava no escritório tirou Edgard Humphry de seu torpor. Ele
ainda massageava as têmporas ao virar sua cadeira para a voz que interrompera seus
pensamentos.
— McCalley?
— Está na hora, senhor. — Peter McCalley tirou um pequeno embrulho de dentro
do seu casaco e deixou sobre a mesa de Edgard. — O senhor precisa fazer isso agora.
Ainda tem duas coletivas hoje, uma no jardim e outra no Capitólio.
— Sei do que preciso, McCalley. Me deixe sozinho.
— Claro, senhor.
Edgard virou sua cadeira para a janela, na mesma posição em que se encontrava
antes da interrupção do diretor de comunicação da Casa Branca. Um observador
desatento poderia achar que ele estava olhando para os preparativos do seu discurso
no Rose Garden, mas seus olhos estavam fechados. Ele os abriu bruscamente e se
voltou para a mesa.
O embrulho o encarava enquanto repousava sobre o seu segundo discurso
daquele dia.
Edgard arrastou sua cadeira até as grossas cortinas que serviam de moldura
para o jardim e, sem ao menos ver o que fazia, as fechou. Ele se levantou, segurou o
embrulho com uma das mãos e caminhou, lentamente, até uma adega no canto da sala.
Abriu o pacote e observou o conteúdo, uma bolsa transparente com um líquido
vermelho. Ele esvaziou o líquido em um copo, expirando de forma cansada.
Andou um pouco pela sala, sem focar em absolutamente nada. Seus dedos
batiam de leve no copo que segurava. Ele se encaminhou para os dois sofás que
marcavam o centro do ambiente e escolheu sentar-se no que ficava à direita do selo
presidencial estampado no carpete. Virou o copo, bebendo o espesso líquido até não
sobrar nenhuma gota.
Alguém bateu à porta.
Ele se pôs de pé rapidamente e guardou o copo em uma gaveta do outro lado
da mesa.
— Pode entrar. — proferiu as palavras forçando um sorriso.
Era McCalley novamente.
— Desculpe, mas eu tenho uma ligação para o senhor. É o Eros Sete. Ele diz
que é urgente.
— Linha aberta?
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— Não, senhor.
— Obrigado, McCalley.
Enquanto ele se retirava da sala, Edgard tateou a parte de baixo da mesa. Um
clique pôde ser ouvido quando uma gaveta na estante à sua esquerda se abriu. Ele
atendeu o telefone que estava ali dentro.
— E-Sete?
A voz rouca do outro lado da linha proferiu a frase que Edgard mais desejava
ouvir.
— Nós o encontramos, Ed.

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PARTE I — O TRABALHO DE UMA NAÇÃO

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97 dias para o Dia V

Era a quarta vez que David Silver passava o seu crachá na estúpida roleta de
acesso à sua frente. Os seguranças observavam com atenção, deixando o rapaz mais
nervoso ainda.
— David?
Apenas uma pessoa tinha o poder de arrepiar a nuca de David com a simples
menção do seu nome.
— Miranda! — Sua mão começou a suar. — O que você está fazendo por aqui?
— Eu trabalho aqui... Esqueceu?
Como ele poderia esquecer? Miranda era a representante da CIA no seu
departamento. Ela era os olhos e os ouvidos do diretor da agência de inteligência mais
importante do mundo. O braço direito do homem que queria conhecê-lo.
— Eu te ajudo com isso.
A jovem virou o crachá ao contrário e voilà. David estava dentro. Ela começou a
caminhar ao seu lado.
— Sei que você está nervoso, mas relaxa. Você sabe que o seu trabalho é o
melhor, é o que move todo o Departamento Cinco. O máximo que pode acontecer é um
tapinha nas costas e um “continue assim”. Confia em mim.
A voz dela relaxava e inquietava David ao mesmo tempo. E aquele sorriso?
Como alguém conseguia ter dentes tão perfeitos? E pernas também...
— A sala dele é no décimo terceiro andar. Quer que eu vá com você?
— Não precisa, mas obrigado.
— Ok, até mais.
E lá ia Miranda pelo saguão da agência.
Deus, que pernas!, ele pensou por um segundo antes de finalmente voltar sua
atenção para o que aconteceria a seguir.
Do lugar onde David se sentou, o décimo terceiro andar se mostrava ligeiramente
assustador. Era um grande ambiente, com apenas uma porta, três poltronas e uma
secretária, que ele realmente achava que não tinha ido com a sua cara.
Esqueça a secretária, esqueça Miranda. Agora é o seu momento.
— Pode entrar, senhor.
A sala do diretor era muito maior do que parecia pelo lado de fora. Tapetes para
todos os lados, quadros enormes pendurados nas paredes e pouquíssima luz vinda de
um abajur na grande mesa posicionada no meio.
— Ah, agente Silver! Eu estava ansioso para te conhecer! — Saindo de trás de
sua mesa, Phil Watsen se levantou para apertar a suada mão de David.
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— Eu também estava ansioso para conhecê-lo, senhor, apesar de não saber o
que o senhor pode querer comigo.
— Relaxa, garoto. Sente-se.
David obedeceu. Watsen se apoiou, ainda em pé, contra sua mesa e cruzou os
braços. Ele era um homem imponente. Ombros largos, rosto quadrado e um terno
impecavelmente passado. David olhava para o diretor da CIA de baixo para cima,
sentindo-se como uma criança prestando atenção no professor.
— Agente Silver, como você sabe, o Departamento Cinco tem tido grandes
vitórias. É o mais ambicioso e o que traz mais resultados para a Diretoria de Ciência e
Tecnologia. E, pelo que eu escuto, é você quem eu devo parabenizar por esses feitos.
— Que isso, senhor. Só estou fazendo o meu trabalho.
— Não, Silver, não está. Você está indo muito além. E acho que, melhor do que
ninguém, você pode entender.
— Entender?
— Que fique claro que tudo o que eu disser a partir de agora é extremamente
confidencial e a quebra de sigilo será considerada traição.
— Sim, senhor.
Watsen andou pela sala pensativo. Deu a volta na mesa e se sentou. Parecia
preparar a sua abordagem na mente, focando em onde queria chegar com o seu
discurso.
— Silver, você não está cansado de fazer tantas coisas grandes e não ter um
lugar dentro deste prédio?
— Não entendi.
— Ninguém sabe que você existe, Silver. Ninguém sabe nem que o seu
departamento existe! Você está lá há quanto tempo?
— Seis anos.
— Seis anos... Seis anos mantendo o sigilo da nossa existência, salvando
nossos amigos, protegendo a nossa espécie. E para quê? E de quem?
— De idiotas humanos?
— Pois é... Idiotas que só comem, bebem, fodem e dormem sem ter a menor
noção do mundo maravilhoso que nós conhecemos. David... Posso te chamar de David?
— Claro, senhor.
— David, nosso sonho pode se tornar realidade. O lema que seguimos aqui na
agência, “O Trabalho de Uma Nação”, vai finalmente ser executado em sua plenitude.
— Como assim?

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— Esqueça o que você ouviu desde criança sobre viver nas sombras! Esqueça
de ter que se esconder! Nós vamos conseguir nosso lugar ao sol, David! Vamos
finalmente brilhar! Figurativamente falando, é claro.
— O senhor está querendo dizer que...?
— Sim, David. Conseguimos colocar o primeiro presidente vampiro à frente deste
país e agora é a hora. A hora do Dia V. Chega da supremacia humana, chega de viver
no escuro. Eu vou para a luz e quero você nesta luta comigo.

***

A primeira lembrança que David tinha de uma manhã de Natal era sua mãe com
a cabeça decepada, na sala de estar da sua casa. O corpo estava no chão perto do sofá
cinza de dois lugares e a cabeça havia rolado para perto da árvore. O crânio esmagado
manchava um dos presentes com sangue. A pessoa que a havia matado sabia que
vampiros só morrem se a cabeça for machucada com um impacto forte e não tinham
poupado esforços para ter certeza de que Linda Silver nunca mais acordaria.
O pequeno David travou ao ver o corpo da mãe e passou três dias em pé naquela
sala sem se mover. Apenas quando os vizinhos começaram a sentir o cheiro da
decomposição e chamaram a polícia é que ele fora encontrado e finalmente saiu
daquele triste estado.
Os detetives responsáveis pela investigação descobriram que todas as joias de
Linda haviam sido roubadas e classificaram como latrocínio. Depois de pouco tempo,
arquivaram o caso sem nunca terem encontrado o verdadeiro culpado. David logo
percebeu que as autoridades não sabiam da existência de vampiros e, sem a
informação sobre a real natureza de sua mãe, nada naquela investigação poderia ser
considerado verdadeiro. O pior era entender que ele não podia contar para ninguém.
Afinal, eles tinham que ficar nas sombras, era o que ela sempre dizia.
Ele achava que não tinha mais familiares vivos. Seu pai havia morrido quando
sua mãe estava grávida e desde sempre eram só os dois contra o mundo. Entretanto, o
Serviço Social conseguiu encontrar um parente distante e David foi morar com seu tio
Luke. Ele o amava como um pai, mas nunca se esqueceu daquele dia. Quando ficou
mais velho, prometeu a si mesmo que descobriria quem era o culpado pela morte de
sua mãe. E, quando isso finalmente acontecesse, o desgraçado morreria.

***

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David ficou em silêncio, seus lábios estavam levemente abertos e os olhos fixos
no rosto de Watsen, como se estivesse tentando assimilar o que acabara de ouvir.
— David? Você ainda está comigo?
Ele balançou a cabeça para os lados em um rápido movimento. Não era choque,
não era felicidade, não era medo. O único sentimento que pulsava em sua alma era de
realização.
— Claro, senhor. Sempre. O que o senhor precisar é só falar.
Watsen abriu um sorriso quase que assustador, alegria não parecia ser uma
expressão que aquele rosto costumava ver com frequência.
— Sabia que podíamos contar com você! Escute com atenção. Os próximos
passos que tomarmos serão fundamentais para a nossa ascensão e você é o nosso
trunfo.
Um enorme peso pareceu pressionar o peito de David. Como assim ele seria “o
trunfo”? Quem era ele para ser trunfo de alguma coisa?
— Eu não posso te dar todas as informações agora, até porque, se estamos
sendo sinceros, nem eu conheço a porra toda. Nosso presidente fez questão de dividir
bem o conhecimento para que, se alguém não conseguisse ficar com a boca fechada,
o Dia V não fosse por água abaixo. Mas o que eu posso te dizer é que deve acontecer
em menos de quatro meses e que a sua ajuda vai precisar ficar fora do radar até lá. Sei
que o Departamento Cinco é formado integralmente por vampiros, gente de bem e
focada apenas em criar inovações voltadas para a nossa raça, e sei também que você
deve ter amigos lá, mas nem eles podem saber o que vai acontecer.
Amigos no Departamento Cinco. Essa é boa.
O diretor da CIA não precisava saber dos seus problemas de relacionamento no
trabalho, então David ignorou o breve pensamento.
— Pode deixar, senhor. Ninguém vai saber de nada.
— Ótimo! Por enquanto, somos só eu e você nessa, garoto. E você já tem uma
primeira tarefa. Não sei se você sabe, mas eu fui um dos primeiros vampiros a conseguir
um alto cargo no governo dos Estados Unidos e isso foi há quinze anos. Estão aqui os
cabelos brancos que tenho que tingir que não me deixam mentir.
David deu um risinho de canto de boca e pensou em como essa empreitada
mudaria o futuro de sua raça. Sem ter que ficar nas sombras, os vampiros nunca mais
precisariam disfarçar a idade. Não que David tivesse passado por essa experiência
ainda. Aos trinta e quatro anos e com um rosto que não passava dos vinte, o máximo
com que ele sofria era sempre ter que mostrar a identidade em bares.
— Desde então — continuou Watsen. —, conseguimos nos infiltrar na NSA, nas
Forças Armadas, no FBI e, até mesmo, na NASA. A presidência era realmente a última

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peça do nosso quebra-cabeças. Eu e o Ed nos conhecemos há anos, a confiança entre
nós está estabelecida. O problema são os outros. Queremos cobrir a nossa retaguarda.
E é aí que você entra. Precisamos investigar os líderes vampiros do nosso país para
descobrir se realmente são de confiança.
David engoliu em seco. Os líderes vampiros estavam cercados de equipamentos
de segurança de alto nível. Ser pego hackeando e grampeando suas máquinas
significava ser preso ou algo bem pior se você fosse um vampiro. Ainda mais um
vampiro que ninguém sabia que existia...
— Sei o que você está pensando, mas por isso que eu estou aqui te fazendo
esse pedido. É perigoso? É. Você pode morrer? Pode. Mas, no que depender de mim,
vou te proteger, garoto. E é o seu país, a sua raça, a sua nação te chamando. Você vai
atender?

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Sobre a autora

H. Juncken é uma autora carioca, formada em Publicidade e em Cinema na PUC-Rio,


possui um MBA em Gestão do Entretenimento pela ESPM e cursou Filmmaking na New
York Film Academy. Ela publicou em 2019, de maneira independente, o seu primeiro
livro, um thriller sobrenatural chamado "O Dia V", que já teve mais de 5.000 downloads
no Kindle. Neste momento, está trabalhando na continuação, intitulada “Campo de
Sangue”.

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