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“Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis

A Autora
Maria Firmina dos Reis (São Luís, Maranhão, 11 de março de 1822- 1917) foi
uma escritora do século XIX, considerada a primeira romancista
afrodescendente brasileira.

Idílio, tragédia e escravidão.


A obra de Maria Firmina dos Reis foi escrita em 3ª pessoa e é estruturada em
20 capítulos.
O romance trata de uma trágica história de amor entre dois jovens: a pura e
simples Úrsula e o nobre bacharel Tancredo.
O triângulo formado pela jovem Úrsula, seu amado Tancredo e pelo tio
Comendador, que surge como encarnação de todo o mal sobre a terra, ocupa o
plano principal das ações. Além de assassinar o pai e abandonar a irmã anos
entrevada numa cama, o Comendador compõe a figura sádica do vilão cruel
que explora a mão de obra cativa até o limite de suas forças.
A narrativa se inicia com o jovem Túlio (negro da decadente propriedade da
mãe de Úrsula) salvando a vida de um jovem chamado Tancredo num
acidente. O jovem Tancredo cavalgava abatido quando seu cavalo,
completamente esgotado, tombou junto com ele, deixando-o bastante
machucado. Tancredo é socorrido pelo escravo Túlio. O escravo o leva até o
pequeno sitio onde morava Úrsula e sua mãe, paralitica. Lá, aos cuidados de
Úrsula, o enfermo vai se recuperando lentamente.
Não por acaso, o primeiro capítulo, destinado à apresentação do cenário e dos
dois personagens, se intitula “Duas Almas Generosas” e logo sabe-se porquê.
De imediato, destaca-se a humanidade condoída do negro Túlio, rompendo-
se, assim, com o estereótipo racial que sempre deu ao negro uma conotação
negativa – o que podemos perceber na seguinte descrição de Túlio que é uma
verdadeira exaltação à raça negra: O homem que assim falava era um pobre
rapaz, que ao muito parecia contar 25 anos, e que na franca expressão de sua
fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O
sangue africano refervia-lhe nas veias; o mísero ligava-se à odiosa cadeia da
escravidão”
A escravidão “odiosa” não endureceu a sensibilidade do jovem negro Túlio.
(Eis a chave para compreender a estratégia da autora de combate ao regime
sem agredir em demasia as convicções dos leitores brancos.) Túlio era vítima,
não algoz. Sua revolta se fazia em silêncio, pois não tinha meios para
confrontar o poder dos senhores. Não os sabotava nem os roubava, seu
comportamento pautava-se pelos valores cristãos. Na Província do Maranhão
onde a própria Igreja Católica respaldava o sistema escravista. O primeiro
capítulo objetiva apresentar os dois heróis masculinos da história: Tancredo
( jovem branco) e Túlio (negro).
Assim, ao despertar Tancredo deparou-se com o negro à sua frente e, apesar
da febre que já lhe turvava novamente os sentidos, vislumbrou no escravo o
homem bom que o salvou. Com isso, num transporte de íntima e generosa
gratidão, o mancebo, arranca a luva, que lhe calçava a destra, estendeu a mão
ao negro que o salvara. Tal fato se constitui em verdadeira inversão de valores
numa sociedade escravocrata, cujas elites difundiam teorias “científicas” a
respeito da inferioridade natural dos africanos.
Ao abrigar o cavaleiro ferido na casa de Úrsula e sua mães, o escravo propicia
o encontro dos dois. Tancredo quando estava febril murmurava um nome:
Adelaide
Úrsula se comove com o estado do mancebo e, nos dias em que se
restabelecia, começou a surgir nela o sentimento do amor. A jovem evitava ver
Tancredo, haja vista sua perturbação diante dele.
Em um de seus passeios matinais, o jovem, que se recuperara quase
completamente, vai até Úrsula e declara seu amor para ela, ele explica que
Adelaide, de quem falara quando em delírio, era uma mulher do passado, que
o traiu e, que agora não significa nada para ele. Úrsula fica aliviada ao ouvir
esta afirmação e escuta a narração dos infortúnios de Tancredo.
Tancredo conta a Úrsula que após passar anos cursando Direito na
Faculdade de São Paulo, voltou para sua província, depara-se com profundos
sofrimentos da mãe que havia, acolhido Adelaide, que ficara órfã e estava
morando lá. O amor dele pela prima fol instantâneo e ele achou ser
correspondido. Conversando logo em seguida com o pai, obteve dele a
permissão para o casamento, conquanto que assumisse um emprego que
conseguira para o filho longe dali e por lá ficasse pelo período de um ano. A
proposta foi aceita. Com poucos meses, Adelaide foi escasseando suas cartas
até não mais enviar nenhuma. Meses depois, ao retornar à sua casa,
encontrou Adelaide no meio da sala, vestida luxuosamente. Ao demonstrar a
felicidade em revê-la, ela, secamente, pede que respeite a esposa de seu pai.
Tancredo descobre que a mãe faleceram de tristeza e o pai casou com
Adelaide, traindo sua confiança. Então, descarregando acusações às mais
diversas, saiu sem rumo à cavalo, indo ter o acidente em que foi socorrido por
Túlio.
Agora Úrsula e Tancredo trocavam suas juras de amor. Tancredo revela então
sua origem nobre . seu amor por Úrsula e tranquiliza a mãe moribunda quanto
ao futuro da filha.
Sobressai a todo momento o zelo e a dignidade de Túlio, que acabará
ganhando a alforria como sinal de gratidão de Tancredo. Um forte elo de
amizade passa a uni-los e, a partir de então, o negro torna-se companhia
inseparável de Tancredo. Túlio. de bom caráter, respeita e se julga em dívida
com aquele que o libertou.
No entanto, essa nova condição é questionada pela Mãe negra Susana,
quando esta ironiza a “liberdade” do alforriado: “– Tu! tu livre? Ah não me
iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. (…)
Liberdade… só na África! – continuou Suzana com amargura. Túlio, meu filho,
a liberdade não existe para alforriado num país racista. Bárbaros meteram-me
a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio em infecto porão de um
navio. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé
para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais.”
A narrativa da vida de Mãe Susana, na África, e de seu aprisionamento, ocupa
todo um capítulo e foi inscrita no texto justamente no momento em que se deu
a alforria de Túlio a fim de relativizá-la enquanto conquista da liberdade
individual.
Tancredo parte com Túlio, prometendo retornar em quinze dias. Úrsula vai
até o bosque, acompanhando com a vista a partida do amado.
Inesperadamente, um tiro ecoa e uma caí próximo a si. Assusta-se. O caçador
ao vê-la, fica apaixonado por ela. O homem passa a cercar Úrsula, dizendo
que ela é a única felicidade que ele poderia ter. Aquele estranho parecia saber
tudo sobre a família de Úrsula. No entanto Úrsula vai descobrir que o homem
que a perseguia era seu tio comendador, irmão da mãe, muito rico, tio que
nunca vira, chamado Fernando.
Fernando foi o assassino de Paulo, pai de Úrsula. Mesmo assim Fernando
enviou uma carta à mãe de Úrsula e pede uma conversa com ela. Sem
resposta, chega sem ser avisado. O Comendador quer possuir Úrsula,
promete sua herdeira. A mãe de Úrsula fica atônita com a revelação. O cruel
homem se despede dizendo que voltaria no dia seguinte com um padre para
consumar o casamento. Úrsula é chamada ao quarto de sua mãe que estava
em seus momentos finais por conta desta conversa. Luisa, mãe de Úrsula
falece e é enterrada no cemitério.
Tancredo e Túlio chegam, e ouvem da negra Suzana sobre a visita e
intenções do comendador. Ambos vão imediatamente ao encontro de Úrsula,
com receio de que Fernando poderia fazer para com a garota. No cemitério,
Úrsula cal desmaiada e, como não havia ninguém para socorrê-la, fica
prostrada até o inicio da noite, quando Tancredo e Túlio a encontram. Eles a
levam a um convento para que ela fique a salva da fúria do tio.
O comendador vai até a casa da irmã com um padre amigo e, ao escutar da
preta Suzana que a garota teria ido só ao cemitério, não acreditou. Manda
trazer a negra para sua fazenda, Santa Cruz, a fim de tortura-la até a morte.
Mesmo suas ações sendo condenadas pelo padre, Fernando não o dá ouvidos,
mandando prender o padre, para que este não o denunciasse.
Um escravo fala que Úrsula for vista com Tancredo e Túlio se dirigindo a um
convento. Túlio é emboscado por dois capangas do comendador levando-o até
ele. O comendador propõe que Túlio traia Tancredo. Túlio se opõe veemente.
O comendador manda levá-lo para que fique preso junto ao escravo Antero.
Surge então a figura decrépita de Pai Antero, sujeito de bom coração, mas
dominado pelo alcoolismo. Saudoso dos costumes de sua terra e do “vinho de
palmeira” bebido no ritual africano do descanso semanal, que Maria Firmina
nomeia “festa do fetiche”, Antero cumpre na trama o contraponto dramático ao
caráter elevado de Túlio. Além disso, ao ressaltar o vício do personagem, o
texto escapa à idealização pela qual todo negro seria perfeito e todo branco
ruim.
Túlio, sabendo do alcoolismo de Antero, consegue fugir, parte para o convento
a fim de avisar da emboscada de Fernando. Ao chegar no convento, avisa da
emboscada, sendo morto pelo comendador. Tancredo fere o comendador com
um tiro. Como estavam cercados pelos capangas deste, Úrsula cai prostrando-
se aos pés do tio, oferecendo-se como sacrifício para poupar a vida de
Tancredo, que é dominado pelos capangas do comendador e morto por este.
Úrsula enlouquece e, poucos dias depois, morre para desgosto do
Comendador.
Agora , atormentado pela paixão e culpa pela morte de Úrsula, o Comendador
termina seus dias em um convento, assumindo a identidade de Frei Luiz de
Santa Úrsula até morrer.

NARRADOR
A narrativa é em terceira pessoa. O narrador é um observador que se posiciona
com intenções oniscientes. O ponto-de-vista é declaradamente antiescravista.
Apoiado enfaticamente nos conceitos religiosos e amenizado no discurso
social. Percebe o narrador sem radicalismo buscando a harmonia, mas
revelando a situação do escravo como a maior injustiça perante Deus e os
homens. O exemplo da escrava Susana é um flagrante libelo acusatório da
agressão à liberdade. Da publicação do livro (1859) até a Lei Aurea (1888) é
um longo percurso para a situação de milhões que viviam situações as mais
diversas até a libertação

ESPAÇO/TEMPO / CONTEXTO
Embora o espaço e o tempo sejam indeterminados na obra, percebe-se que a
narrativa e contextualizada à época da publicação do livro - 1859 em ambiente
rural do Maranhão e um convento que presume-se na capital, destacando-se
sobremaneira o contexto da escravidão. A narrativa é linear, isto é, de tempo
cronológico, apesar da presença do flashback para contar sobre Adelaíde.

PERSONAGENS
As personagens não tem aprofundamento psicológico. São movimentadas mais
do ponto de vista externo, mas alguns momentos expressam atitudes de
sentimentos marcantes como narração da velha preta Susana, que expressa
sentimentos internos profundos.

Úrsula
Filha de Luísa e Paulo, tem o pai morto pelo tio materno, o comendador, por
não aceitar o casamento. Cuida de Tancredo, que é levado enfermo à sua
casa, apaixonando-se por este, sendo retribuída. Busca escapar da fúria do fio
que a deseja por esposa Morre louca com o assassinato de Tancredo. E o foco
principal do triangulo amoroso entre Tancredo e o comendador.

Tancredo
Jovem bacharel que, após ser iludido por Adelaide, a prima que amara, e seu
pai, foge. Conhece Úrsula, a quem se apaixona e se casa. É morto na noite do
casamento pelo vilão, tio e pretendente de Úrsula, o comendador Fernando.

Fernando (o comendador)
É um típico vilão romântico: traiçoeiro, misterioso-aquele tipo "capa e espada".
Fazendeiro cruel e prepotente. É extremamente perverso (sádico) para com
seus escravos: explora a mão-de obra cativa até o limite de suas forças.
Assassino. Como não concordara com o casamento da irmã, mata o cunhado,
Paulo. Fica completamente apaixonado Úrsula. Capaz de provocar muitas
mortes e sofrimentos para obtê-la. Ela enlouquece e morre. Ele, termina
remoendo suas culpas em um convento, onde morre. É a encarnação do mal
sobre a terra e passa a ocupar o plano principal das ações.

Túlio
É um bom momento de dignidade, solidariedade e elevação moral. Escravo da
decadente fazenda de Luísa, mãe de Úrsula, que tivera a morte da mãe
precocemente pelo comendador. Socorre Tancredo e consegue deste a
amizade, a confiança e a alforria. Morre tentando alertar o amigo da
emboscada que Fernando preparara para ele e Úrsula. Simboliza a
humanidade sofrida do afrodescendente que não reflete rancor, que suporta os
mais diferentes sofrimentos. Tem o marido morto a mando do irmão. Tem uma
vida de privações: paralitica e doente. Morre com ao saber que seu irmão
malvado pretende casar-se à força com sua filha.

Antero
É escravo do comendador. A autora faz o contraponto do caráter elevado de
Túlio com o escravo Antero, marcado pelo vício da bebida, quebrando o
aspecto da idealização de que o branco é ruim e o negro é bom.

Susana
Preta da casa de Úrsula que criou Túlio quando da morte de sua mãe. É morta
impiedosamente pelo cruel comendador. Narra a sua captura na África e de
como foi trazida e vendida como escrava. É um bom exemplo de dignidade
esforça de caráter. E ela que explica a Túlio o sentido da verdadeira liberdade.
Susana é o melhor exemplo do foco individual que reflete o coletivo. E o
discurso do outro fazendo ouvir pela primeira vez na literatura brasileira a voz
dos escravizados. É o momento mais politizado do romance. É o ponto alto do
discurso antiescravista de que relativiza a conquista da alforria de Túlio. A voz
dessa personagem é a voz da autora. A negra Susana é, de certa forma,
espécie de alter ego de Maria Firmina dos Reis.

Pais de Tancredo
O pai de Tancredo era uma pessoa extremamente despótica e patriarcal.
Dominador que impõe à sua esposa, uma mulher passiva e resignada, seus
desejos e vontades. Após a morte desta, desposa a noiva do filho que provoca-
lhe inúmeros desgostos. Morre arrependido de ter se casado com Adelaide.

Adelaide
Materialista, não consegue encontrar a felicidade ao lado de nenhum homem.

Considerações Finais
O romance Úrsula teve sua primeira publicação em 1859, é primeiro romance
escrito por uma mulher no Brasil. Ao publicar Úrsula em 1859, a autora, Maria
Firmina dos Reis, assinou com o pseudônimo “Uma Maranhense”, estratégia
muito utilizada por mulheres naquela época, por várias razões, entre elas
porque deviam ficar com mais liberdade para expressar suas idéias, sem se
preocupar tanto com as opiniões da sociedade.
No prólogo da obra, a autora afirma saber que “pouco vale este romance,
porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e
sem o trato e conversação dos homens ilustrados.” Por trás dessa declaração
de modéstia, a escritora revelou sua condição social: o fato de não ter
estudado na Europa, nem dominar outros idiomas, como era comum entre os
homens educados de sua época, por si só indicava o lugar que ocupava na
sociedade em que nasceu. É desse lugar intermediário, mais próximo da
pobreza que da riqueza, que Maria Firmina corajosamente levantou sua voz
através do que chamou “mesquinho e humilde livro”. E, mesmo sabendo do
“indiferentismo glacial de uns” e do “riso mofador de outros”, desafiou: “ainda
assim o dou a lume”.
No caso de Maria Firmina, as novas idéias eram não somente sobre a condição
feminina, mas também sobre a condição do negro. Úrsula não é apenas o
primeiro romance abolicionista da literatura brasileira, é também o primeiro
romance da literatura afro-brasileira, entendida esta como produção que
temática o“negro” a partir de uma perspectiva comprometida politicamente em
recuperar e narrar a condição do ser negro no Brasil. Logo se nota, pelo
tratamento dado aos personagens negros, às mulheres e à escravidão, que as
preocupações presentes em Úrsula destoa da literatura produzida em sua
época em muitos aspectos. Era 1859, momento em que a prosa de ficção dava
seus primeiros passos na literatura brasileira. Com seu gesto, sob muitos
aspectos inaugural, Maria Firmina apontou o caminho do romance romântico
como atitude política de denúncia de injustiças.
Do ponto de vista formal, o texto marca-se pela linearidade narrativa e por
personagens romantizados. Situando Úrsula no contexto da narrativa
folhetinesca.

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