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A LINGUAGEM NA VIDA

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim


Alessandra Coutinho Fernandes
Ana Paula Marques Beato-Canato
Clarissa Menezes Jordão
Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo
Juliana Zeggio Martinez
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A LINGUAGEM NA VIDA

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim


Alessandra Coutinho Fernandes
Ana Paula Marques Beato-Canato
Clarissa Menezes Jordão
Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo
Juliana Zeggio Martinez
Copyright © 2021 –
Coordenação Editorial: Pontes Editores
Diagramação: Vinnie Graciano
Capa:
Revisão:

PARECER E REVISÃO POR PARES


Os capítulos que compõem esta obra foram submetidos para avaliação e revisados por pares.

CONSELHO EDITORIAL:

Angela B. Kleiman
(Unicamp – Campinas)
Clarissa Menezes Jordão
(UFPR – Curitiba)
Edleise Mendes
(UFBA – Salvador)
Eliana Merlin Deganutti de Barros
(UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná)
Eni Puccinelli Orlandi
(Unicamp – Campinas)
Glaís Sales Cordeiro
(Université de Genève – Suisse)
José Carlos Paes de Almeida Filho
(UNB – Brasília)
Maria Luisa Ortiz Alvarez
(UNB – Brasília)
Rogério Tilio
(UFRJ – Rio de Janeiro)
Suzete Silva
(UEL – Londrina)
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
(UFMG – Belo Horizonte)

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Dedicatória

Para as leitoras que compartilham do interesse pelos estudos da linguagem.


Para professoras, que assim como nós, acreditam na educação.
Para nossas alunas que, a cada dia, nos inspiram e nutrem nossa
vontade de continuar a aprender.
Agradecimento

À Giuliana Mattos Brahim, uma adolescente nota 10, a nossa leitora


número 1, que se dispôs a ler as versões iniciais deste livro, comentá-las
conosco e nos instigar ainda mais nos caminhos da linguagem.
SUMÁRIO

PREFÁCIO................................................................................................................8

APRESENTAÇÃO...................................................................................................12

A LINGUAGEM QUE NOS CONSTITUI.................................................................18


O que entendemos por linguagem?.....................................................21
Qual o papel da linguagem escrita?.....................................................28
Qual a função social da escola?...........................................................31
Afinal, por que estudar a linguagem?...................................................37
LEITURA, PALAVRA-MUNDO E LETRAMENTOS................................................40
O que entendemos por leitura?...........................................................43
O que entendemos por letramentos?...................................................50
Afinal, por que tratar de leitura e de letramentos?................................58
LINGUAGEM E (DES)HUMANIDADE NAS REDES SOCIAIS...............................60
O que entendemos por multimodalidade?...........................................63
Como conversamos com o que/quem é diferente de nós?......................69
Afinal, o que linguagem (em sua multimodalidade) tem a ver com
ideologia?.........................................................................................72
A LINGUAGEM QUE NOS FAZ VIVER..................................................................74
Linguagem, interculturalidade e migração - (des)encontros..................76
Desafiar, criar e transgredir a/na linguagem.........................................80
Aprender, acolher, construir e transformar a/na linguagem...................84
Afinal, o que a linguagem e a escola têm a ver com a vida?....................92
PALAVRAS PARA UM FINAL PROVISÓRIO........................................................93

PARA SABER MAIS...............................................................................................96

POSFÁCIO.............................................................................................................99

BIODATAS...........................................................................................................102
A LINGUAGEM NA VIDA

PREFÁCIO

Linguagem, alfinetes, fios, carretéis e maternidade. O que


pode haver em comum entre essas palavras no campo de estudos
da linguagem? Há mais semelhanças entre elas do que as classes de
palavras às quais pertencem. O livro que chega em suas mãos, prezadas
leitoras, revela olhares de linguistas aplicadas voltadas para linguagem
como um alfinete: nos espetando e nos provocando a sair de posições
confortáveis.
Sim, vocês leram certo. Estamos nos dirigindo a vocês como
leitoras. Assim como as autoras do livro também o fazem e se
autodenominam como tais. Além disso, não é porque somos três
professoras-pesquisadoras - dentre tantos outros papeis que
vivenciamos - convidadas a escrever este prefácio. Guiadas pelo pacto
ficcional de Eco (1994), como diriam os mais tradicionais, aceitamos
ser levadas pelas tramas moventes (FABRÍCIO, 2006) de um mundo
líquido (BAUMAN, 2001), que tem colocado em xeque visões binárias
de usos de linguagem e, no qual, segundo as autoras, “[...] nossas antigas
certezas se dissolvem diante de nossos olhos e temos que constantemente
nos ressignificar”. Uma vez que estamos envolvidas nos fios dessas
tramas, estamos, desde o início, alfinetando todas vocês a saírem de
seus lugares cômodos para percorrer os labirintos móveis dos estudos
da linguagem conosco.
Nessa obra, o fio condutor é a vida da professora-pesquisadora
Laura, personagem fictícia, mas que pode representar muitas de nós.
Ao ler as situações vivenciadas por ela em cada abertura de capítulo,
vocês provavelmente se identificarão com as personagens e/ou com
suas histórias, o que as motivará a querer saber e aprender mais. Como

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A LINGUAGEM NA VIDA

seres emocionais (apesar de muitas vezes pensarmos que somos tão


racionais), aprendemos, aquilo que toca nosso coração, não é mesmo?
Nos quatro capítulos propostos, as leitoras mergulharão nos
debates e embates sobre língua, linguagem, função social da escola,
papel da professora e papel da aluna. Ao seguir os passos de Laura,
vivenciamos seus momentos reflexivos e percebemos que, quando
confrontada, (re)age e reflete em meio aos discursos do seu entorno:
“Hoje vejo minhas alunas sem medo de expressar suas opiniões. Isso
é bom, não é?”. E nós, como leitoras, vemos nossos sentimentos e
reflexões despertarem quase ao mesmo tempo.
A linguagem acessível adotada pelas autoras desenrola-se como
carretel, de forma rizomática (DELEUZE; GUATTARI, 1980), em direção
a temas como: a leitura e seu viés crítico, os letramentos (crítico e
visual), as práticas de linguagem, a interculturalidade, a migração e a
translinguagem. Tudo isso sem deixar de citar Paulo Freire e questões
atuais como: o tema da COVID-19 e as crescentes interações complexas,
por vezes, problemáticas nas redes sociais.
Este livro interessa, em especial, a todas aquelas que vivenciam
(ou já vivenciaram) a sala de aula, seja como alunas, professoras,
pesquisadoras e demais papéis que podemos assumir nesse espaço tão
complexo, no qual ideologias culturalmente marcadas permitem a (re)
construção de sentidos, a (trans)formação de crenças e a constituição
de identidades.
Em um determinado momento, Laura é desafiada a pensar sobre
“o quanto o corre-corre diário nos absorve e, muitas vezes, nos distancia
dos valores mais preciosos da humanidade”. Junto com ela, podemos
aprender a desenvolver a nossa criticidade para com os discursos que
nos cercam e nos posicionarmos diante deles para interagir com e agir
no mundo à nossa volta, isto é, exercermos nossa cidadania.
Em seguida, a mesma personagem nos leva a refletir sobre
uma crise global e de importante relevância: o papel fundamental
da linguagem no acolhimento das pessoas em processo de migração.
Novamente, somos incitadas a pensar criticamente na “linguagem que
nos faz viver” e no nosso papel social para com o outro.

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A LINGUAGEM NA VIDA

Esperamos, então, caras leitoras (talvez já acostumadas agora


com essa marcação linguística), que as discussões em torno dos estudos
da linguagem aqui propostas possam nos tornar um pouco Laura: um
misto de personagem protagonista-antagonista-coadjuvante daquilo
que pensamos, mas não ousamos verbalizar e, ao mesmo tempo,
sensíveis ao “pinicar” de pensamentos, lembranças, crenças e sonhos.
Além disso, esperamos que se sintam desafiadas a assumir outros
posicionamentos, assim como nós, na leitura maternal deste texto que
nasce nas mãos, na cabeça e no coração de quem o lê.
Boa leitura!

Angela Maria Hoffmann Walesko


Professora de Teoria e Prática de Ensino no Setor de
Educação da Universidade Federal do Paraná
Formadora de professoras, mãe de uma Laura de 7 anos
que também tem o espírito curioso e questionador como a
personagem do livro - talvez um pouco mais teimosinha.
angela.walesko@ufpr.br

Denise Akemi Hibarino


Professora de Língua inglesa no Departamento de Línguas
Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná
Filha da Dona Aurora, com quem alterna o papel de mãe
quando precisa alfinetá-la.
denise.hibarino@ufpr.br

Iara Maria Bruz


Professora de Língua inglesa no Setor de Educação
Profissional e Tecnológica da Universidade Federal do Paraná
Professora que, muitas vezes, sonha com suas alunas e suas histórias.
iarabruz@ufpr.br

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A LINGUAGEM NA VIDA

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar,


2001.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia. Rio
de Janeiro, RJ: Editora 34, 1996.
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo, SP: Companhia
das Letras, 1994.
FABRÍCIO, Branca Falabella. Linguística Aplicada como espaço de
desaprendizagem: redescrições em curso. In: MOITA LOPES, Luiz Paulo.
Por uma Linguística Aplicada INdisciplinar. São Paulo, SP: Parábola Editorial,
2006, p. 45-65.

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A LINGUAGEM NA VIDA

APRESENTAÇÃO

Eis aqui um livro escrito a 12 mãos. Foram 12 mãos com mangas


arregaçadas e profundamente engajadas no trabalho de escrever
de forma colaborativa para conversar com pessoas cujas trajetórias
são diferentes das nossas (que já são diferentes entre si). Somos
acima de tudo professoras, e com isso somos também pesquisadoras,
educadoras, formadoras, e várias outras -oras conforme os espaços
em que nos vemos existindo. Somos escritoras também, e pensadoras,
alfinetadoras de nossos próprios pensamentos e dos pensamentos das
leitoras do livro que escrevemos juntas. E que agora leremos juntas
também. Juntas nós, autoras, e você, leitora, num esforço interpretativo
que nos possibilitará crescer em colaboração; afinal, durante a sua
leitura nossas vozes estarão junto com a sua.
Nosso objetivo com este livro é possibilitar acesso, popularização,
reflexão e problematização sobre a linguagem e suas implicações para/
na vida. Escrevemos para pessoas que não estão necessariamente
familiarizadas com conceitos e teorias acadêmicas. Pelo menos não
enquanto cientificamente elaboradas, pois acreditamos que, como
existimos todas em linguagem, também todas nós desenvolvemos
nossos conceitos e teorias sobre e na linguagem. Vivemos com os pés
no chão e as cabeças e os corações na linguagem, movendo-nos nesse
veículo gasoso que nos sustenta: podemos pensar na linguagem como
uma teia que a gente mesmo tece e nos sustenta - foi assim que um
antropólogo chamado Clifford Geertz se referiu à cultura, e é assim
que nós entendemos também a linguagem. Você vai perceber isso em
mais detalhes conforme a leitura avance.
Este livro quer conversar com você, permitir que você traga sua
vida para a leitura e para a construção dos sentidos que a leitura suscitará

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A LINGUAGEM NA VIDA

em você. Não traremos, via de regra, citações diretas de autoras ou


teorias. Opa, mas já trouxemos uma referência no parágrafo anterior,
o nome de um antropólogo. E isso que o livro mal começou: sim, certo,
você está atenta. Mas isso acontece(rá) porque ocasionalmente tais
referências parecem criar vida própria em nossa linguagem, já que
estão entranhadas em nossa maneira de construir sentidos. Como
acadêmicas, às vezes não conseguimos (e nem queremos) deixar de
creditar as criações a suas autoras mais conhecidas. Essa imbricação
de linguagens (a acadêmica e a não-acadêmica) aparece aqui de forma
assumida, na busca de aproximar você das reflexões embasadas em
outras leituras para além da experiência concretamente vivida em
nossos cotidianos. Escrevemos a partir de nossas experiências, que se
relacionam bastante com a escola, uma vez que esse mundo constitui
nossa atuação. Como a escola é um ambiente pelo qual passa todo
mundo que chega a ler um livro como esse, imaginamos que tomar
tal espaço como referência significa apontar para um contexto com o
qual todas as nossas leitoras se identificarão de alguma forma. Nesse
sentido, a experiência vivida com a leitura da palavra, acreditamos, é
tão importante quanto a experiência vivida com a leitura do mundo.
Aqui a alusão é a Paulo Freire e à “palavra-mundo”, mas não vamos
estragar a surpresa - mais adiante conversaremos melhor sobre isso.
Para contarmos um pouco sobre a produção deste livro,
tomaremos como metáfora a ideia de maternidade, de gerar, gestar
e fazer crescer. Pensando no processo de crescer em colaboração,
queremos já de início esclarecer alguns pontos muito importantes
para nós a fim de que, ao iniciar a leitura dos capítulos deste livro,
você possa estar ainda mais perto de nós em sua liberdade de ler. Ao
explicitar esses pontos, pretendemos contribuir para que este livro
atinja os propósitos que sonhamos para ele, como mães sonham com
o futuro de suas filhas. Imaginamos as reverberações dos sentidos
construídos durante a leitura; imaginamos seus efeitos na vida das
leitoras. Esperamos que nosso livro ajude você a fazer sentido em sua
existência, suas histórias, suas comunidades.
O primeiro ponto a ressaltar chama nossa atenção para questões
relacionadas à representatividade das mulheres na linguagem. A essa

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A LINGUAGEM NA VIDA

altura você já deve estar se perguntando como é que, mesmo sendo


um de nós do sexo masculino, estamos nos referindo a nós mesmas
no feminino. É que queremos permitir a nosso livro bebê não tomar
como natural a convenção que determina a forma masculina como
incluindo a feminina; por isso, decidimos marcar na linguagem, na
nossa linguagem, o contrário do que comumente se faz. Explicamos:
em vez de ignorar questões de gênero e simplesmente escrevermos
“os alunos”, “os professores” ou “os pesquisadores”, escrevemos “as
alunas”, “as professoras” e “as pesquisadoras”, como um lembrete
constante sobre como o mundo aparece na linguagem e sobre a
importância de tomarmos a linguagem para nós e ressignificarmos
nossas práticas de vida. Essa intencionalidade tem também uma outra
consequência: além de remeter ao universo majoritariamente feminino
em termos quantitativos, o uso do feminino como generalizador na
linguagem homenageia as mulheres em sua dedicação ao mundo, e ao
mesmo tempo convida os homens (inclusive o homem que participou
da escrita deste livro) para que se sintam incluídos no feminino.
Sabemos que com isso corremos o risco de estarmos,
indiretamente, reforçando o binarismo culturalmente construído como
única possibilidade de existência (ou você é homem, ou é mulher), e
silenciando outras cores no espectro das identificações de gênero e
de sexualidade. Mas não queremos arriscar perturbar as leitoras em
excesso diante da pouca familiaridade com generalizadores do tipo
alunes e professorus, exemplos de linguagem não-binária. Nessa luta
quixotesca pela igualdade de gêneros, vamos devagar com o andor.
O segundo aspecto que trazemos é uma forma de revisitar a
percepção um tanto generalizada de que linguistas às vezes parecem,
especialmente a outras profissões, criaturas de outro mundo, um
mundo à parte, numa outra dimensão. A partir dessa ideia, a Linguística
faz o que mesmo? E essa tal de Linguística Aplicada, então? Mais
indecifrável talvez. Nós nos identificamos como sendo linguistas,
e especificamente nós autoras deste livro como linguistas aplicadas.
Por quê? Essa é uma pergunta de um milhão de dólares, mas podemos
dar à resposta um breve atalho: somos linguistas aplicadas porque
nos interessa investigar as relações entre a linguagem e a sociedade,

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A LINGUAGEM NA VIDA

buscando melhor compreender essa relação com base em uma gama


de saberes que não se limitam ao universo da linguística. A linguagem,
como a estudamos, é como se fosse o líquido amniótico que nutre
o feto. Sem linguagem, morremos. Estudamos a linguagem na vida,
como discutimos em vários exemplos trazidos neste livro, sempre
preocupadas com os impactos que a linguagem exerce sobre nossa
forma de ver o mundo, sobre nossas ações e relações com outras pessoas
e sobre nossas identidades. Olhar para a linguagem, como linguistas
aplicadas, envolve considerar os mais diferentes saberes produzidos
em várias áreas do conhecimento, pois a linguagem atravessa todas
elas; envolve considerar as vozes das pessoas em suas práticas diárias,
em seu cotidiano e inclusive em diferentes áreas do conhecimento.
Então, não nos vemos como ETs: somos deste planeta, cujas práticas
cotidianas de linguagem nos interessam na medida em que informam
o que fazemos, o que pensamos, quem somos, como nos vemos, como
existimos, como vemos as outras pessoas e o mundo. Estamos com os
pés no chão e com as cabeças, os corações e as mãos na linguagem.
É nesse sentido que para nós os estudos da linguagem constituem-
se numa área de conhecimento que se interessa pelo mundo e pelos
problemas existentes nele; portanto, suas contribuições são de
diversas ordens - sociais, educacionais, culturais, linguísticas, políticas,
dentre tantas outras. O trabalho que fazemos e compartilhamos com
você aqui neste livro é construído na interdisciplinaridade, em uma
interface direta com o campo da Educação e no diálogo com outras
áreas do conhecimento, como as Ciências Sociais e outras ciências que
também integram o que conhecemos por Humanidades. Os estudos da
linguagem a que nos referimos aqui caracterizam portanto uma área
do saber diretamente relacionada ao contínuo debate sobre sociedade,
educação, cultura, ética, relações de poder, desigualdades, diferenças.
O terceiro ponto a ressaltar está na elaboração de cada capítulo
como tendo um núcleo temático específico, mas não independente
dos núcleos temáticos de cada um dos outros capítulos. Neste livro,
tratamos de temas entrelaçados, todos enredados numa compreensão
de linguagem como prática social. Assim, nosso livro vai crescendo e
se desenvolvendo em sua infância, a partir das narrativas em torno das

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A LINGUAGEM NA VIDA

experiências de Laura, uma professora de inglês, que nos ajuda a trazer


os diferentes temas que tratamos aqui.
Já adolescente, nosso livro quer ousar: ao escolhermos a palavra
linguagem pretendemos fazer sempre referência a várias formas
de construir sentidos para além do verbal. Via de regra, em outros
espaços que não neste livro, há uma ênfase na linguagem verbal, oral
ou impressa. Partimos aqui da noção de que os sentidos são sempre
construídos de modo múltiplo, lançando mão de um repertório variado
que recorre a gestos, cheiros, cores, imagens, sensações, emoções,
histórias de vida que vão muito além das palavras ditas ou escritas. É
para remeter a essas múltiplas materialidades que usamos a palavra
linguagem.
Entendemos que, uma vez crescido, este livro esteja pronto para
ganhar o mundo. Nessa nova fase de sua vida, ele continuará aprendendo
e crescendo, se transformando a cada leitura. Reconhecemos que será
você, leitora, quem dará vida a este livro nas relações que estabelecerá
entre sua própria vida e a dele. Esperamos que você se sinta confortável
nessa função, e a considere produtiva.
De nossa parte, crescemos um bocado com este livro. Como parte
desse processo de crescimento, nossos quatro capítulos vêm precedidos
de narrativas que contam experiências vividas pela professora Laura -
personagem fictícia, inspirada em nós mesmas e em várias professoras
que conhecemos. Nessas narrativas Laura enfrenta a vida de mulher
professora e nos permite indagar com ela sobre assuntos da linguagem.
Assim, buscamos aproximar a leitora das autoras e da personagem,
numa demonstração de que a linguagem é a vida, de que existimos na
linguagem, de que a linguagem nos constitui a todas. Após os capítulos,
o livro também traz uma seção final chamada “Para saber mais”, na qual
indicamos leituras que nos foram inspiradoras dos principais aspectos
discutidos no livro. Desta forma, podemos continuar crescendo.
Escrever um livro a 12 mãos pode parecer uma missão impossível:
6 cabeças provenientes de gerações diferentes, com experiências de
vida e trabalho diferentes, mas compartilhando uma mesma profissão,
a de professora-pesquisadora. Essa identidade nos permitiu encontrar

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A LINGUAGEM NA VIDA

e trocar conhecimentos, (des)afetos, percepções, avaliações; de


forma generosa, pudemos debater perspectivas, argumentar, criar
e vivenciar conflitos. Sim, porque em vez de cada uma escrever
uma parte, escrevemos juntas cada frase, em reuniões online em
tempos de pandemia, utilizando aplicativos de vídeo chamada e de
compartilhamento de documentos em tempo real. Nesse encontro o
propósito de escrever um livro a 12 mãos resultou para nós em muito
mais do que um livro: resultou em construções de outros sentidos,
aprendizagens profundas, relações intensas, convivência produtiva
com o diferente.
Nossas 12 mãos também estão representadas na capa do livro
que retrata uma outra construção ocorrida durante a pandemia. Em
um momento tão complexo, duas famílias se uniram em uma mesma
casa e vivenciaram partilhas, afetos, amorosidades, ansiedades
e desestabilizações por muitos meses. Em um desses momentos
memoráveis, as duas menininhas da família experimentaram as tintas
em suas mãozinhas e começaram o que acabou se tornando uma obra
de arte. Elas lambuzaram as mãozinhas e as carimbaram em uma
parede que acabara de ser pintada. O que, a princípio, gerou surpresa
e insatisfação dos pais, acabou se tornando um momento de muita
alegria e um marco na casa desse momento tão inusitado que vivemos
conjuntamente em uma “quarentena maluquinha”, como as crianças
das famílias costumam dizer.
Esperamos que você também possa experimentar alegria, surpresa
e aprendizagens inusitadas na leitura deste livro e tornar encontros
com o diferente em algo recompensador e pleno de aprendizagem.

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A LINGUAGEM NA VIDA

A LINGUAGEM QUE NOS CONSTITUI

Na saída da escola, Laura conversa com Sandra, mãe de uma de suas


alunas, enquanto aguardam a chegada da filha de Sandra. Sandra,
demonstrando certa aflição, compartilha preocupações em relação à
escola e à aprendizagem de sua filha.

Sandra: Olha Laura, eu ando muito preocupada com a educação da


minha filha, e como você sabe ela só tem 8 anos e tá no terceiro ano do
Ensino Fundamental I. Ela é uma criança, não tá nem aí pro futuro, mas,
na minha opinião, o principal objetivo do ensino deve ser o vestibular
que minha filha vai prestar daqui a 9 anos. Parece muito tempo, mas
o tempo passa muito rápido! Mas pelo jeito a minha preocupação
não é a mesma dessa escola, sabe? A escola não está levando a sério a
preparação para o vestibular, pois as aulas de matemática, geografia
e história não estão de acordo com o que normalmente a gente vê
nas provas de vestibular. Isso sem contar minha preocupação com
o português que inclui a principal e mais difícil avaliação: a tal da
redação, não é? Como é que minha filha vai se sair bem no vestibular,
fazer uma boa redação e ser aprovada? Me diga, como é?

Laura: Mas...

Sandra (aflita, não deixa que Laura continue sua fala e retoma o turno
imediatamente): A gente sabe que uma das grandes dificuldades no
vestibular é a redação, e eu tenho acompanhado pela televisão como
estudantes em geral escrevem muito mal hoje em dia. Até o nosso
presidente da República comentou isso numa entrevista que eu assisti
dias atrás. Me lembro também de uma reportagem, não sei se você viu,

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A LINGUAGEM NA VIDA

que mostrava textos horríveis escritos por candidatos nas provas de


redação de uma universidade famosa dessas aí. Não dava para entender
os textos e ainda estavam escritos com uma caligrafia horrível! E eu sei
que é verdade essa situação tão triste, porque vejo minha própria filha
com uma letra muito feia e quase não dá para entender o que ela escreve
quando está fazendo as tarefas escolares. Fico pensando que isso deve
estar acontecendo porque as crianças hoje em dia não escrevem mais,
não praticam a língua, não se comunicam! Elas ficam o tempo todo
trocando mensagens pelo celular, abreviando tudo, usando memes e
figurinhas, uma coisa horrível que eu mesma não entendo. Eu quase
sempre tenho que pedir para minha filha me explicar as mensagens
que ela me envia. Veja a que ponto chegou!

Laura: Sandra, eu acho...

Sandra (quase sem fôlego, novamente interrompe Laura e retoma seu


turno): Como se não bastasse toda essa falta de preocupação da escola
com o vestibular e o fato de minha filha já ficar muito tempo no celular,
eu agora vejo que o uso do celular na sala de aula tá aumentando a
cada dia, porque várias professoras têm feito atividades em que as
crianças têm que usar o celular. Não sei o que você acha disso, se você
usa o celular dos alunos nas suas aulas de inglês, mas escuta isso: na
semana passada, aconteceu na aula de português. A professora deu
uma atividade e as crianças tinham que usar um aplicativo, que eu não
sei direito como funciona, para criar uma história todos juntos a partir
de uma experiência que elas tiveram. Como você sabe, a escola tem um
funcionário que é anão, não é mesmo? E uma menina da turma, um dia
desses na hora do recreio, falou alguma coisa ofensiva e a professora
ficou sabendo do acontecido e trouxe a situação para a aula de português,
fazendo um debate sobre discriminação, respeito à diversidade, etc.
Meu Deus! O que isso tem a ver com a aula de português? Laura, eu
fiquei indignada! Não estou entendendo! E além disso, a professora foi
pedir depois para as crianças criarem uma história a partir do debate
que foi promovido em sala usando o celular! É pra acabar com o peão,
como diria meu saudoso pai!

Laura: Eu te entendo, mas queria dizer que...

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A LINGUAGEM NA VIDA

Sandra (cada vez mais nervosa, não deixa que Laura termine de falar e
continua, aos borbotões): Olha, eu não sei onde as coisas vão parar... por
que a escola mudou dessa forma, Laura? Lembro que quando eu estava
no colégio a minha professora de português dava textos para copiarmos
no caderno de caligrafia. Nossa letra era linda, toda desenhadinha! A
gente escrevia muito. Me lembro que quando voltávamos das férias,
a primeira atividade já era para praticar a escrita. A professora pedia
uma redação com o título “Minhas férias”. Era ótimo! E as aulas eram
de explicação de gramática. A gente aprendia muito sobre a língua
portuguesa, repetindo a conjugação dos verbos. A gente decorava tudo
e quando chegava o dia da prova, a gente conseguia escrever muito,
completando os exercícios…

Laura: Sandra, minha amiga, são outros tempos, a escola precisa


acompanhar, precisa ser significativa para os jovens...

Sandra: Ah, olha, Laura, eu sei que você gosta dessa escola, mas como
mãe vejo que ela está cada vez menos preocupada em ensinar a língua
e não sei o que vai ser de minha filha no vestibular! Na minha época a
gente aprendia português, matemática, história, geografia de verdade!

Nesse momento a filha de Sandra chega correndo, abraça a mãe e elas vão
embora, deixando Laura com suas reflexões sobre a conversa que teve com
Sandra.

Na cena que abre este primeiro capítulo, temos uma mãe aflita
com a educação da filha. Embora Sandra considere que “o principal
objetivo do ensino deva ser o vestibular”, ela fala sob a impressão de que a
escola da filha tem outra intenção. Sandra demonstra maior apreensão
com a disciplina de português, porque, em sua opinião, apesar de as
pessoas “em geral escreverem muito mal hoje em dia, a escola está cada
vez menos preocupada em ensinar a língua”, bem diferente de sua época,
em que se “aprendia português de verdade!”. Em sua análise, a escola

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A LINGUAGEM NA VIDA

tem promovido debates que nada têm a ver com a aula de português e
estimulado o uso de tecnologias que impedem o aprendizado da língua.
Situações como essa são corriqueiras em nosso cotidiano e
revelam embates gerados por compreensões distintas sobre língua,
linguagem e educação, temas que vamos abordar neste capítulo. Para
isso, primeiramente, vamos conversar sobre a diferença entre língua e
linguagem a partir de exemplos e situações que remetem ao cotidiano.
Em seguida, a partir dessa diferença, fazemos algumas reflexões
sobre a linguagem escrita, que tem sido extremamente importante
em nossa sociedade. Depois, tendo esclarecido a perspectiva que vai
orientar nossas discussões sobre as narrativas de Laura, traçaremos
um breve histórico de como a educação institucionalizada de massa
passa por uma demanda do mundo da vida para se adaptar aos novos
tempos que vivemos. Por fim, com essa breve recuperação histórica em
mente, fecharemos essa discussão tratando de percursos educacionais
realizados nas práticas de linguagem nas esferas cotidiana, educacional
e de trabalho do mundo contemporâneo. Vamos lá?

O que entendemos por linguagem?

Um dos problemas levantados na narrativa acima diz respeito


à suposta falta de conhecimento de língua portuguesa e da pouca
capacidade de produção escrita por parte das alunas na escola.
De acordo com Sandra, em sua época, o trabalho com a língua era
completamente diferente, “as aulas eram sobre explicação de gramática
e se aprendia muito sobre a língua portuguesa”, com a repetição e
memorização de conjugações verbais. Também “se escrevia muito,
fazendo cópias com letras lindas, bem redondinhas”. Veja como o termo
língua é recorrentemente utilizado na narrativa e como tais afirmações
revelam uma crença específica sobre o que é língua e sobre o papel da
escrita na nossa sociedade.
Nesse contexto, uma compreensão comum é que a língua é um
instrumento de comunicação. Segundo essa percepção, a língua existe
para que informações, instruções, ordens, pensamentos, vontades,

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A LINGUAGEM NA VIDA

anseios, emoções, etc. sejam transmitidos de uma pessoa (emissor) a


outra pessoa (receptor). Ou seja, nessa concepção, o que está na mente
do emissor pode ser transmitido, como em telepatia, para o receptor,
com exatidão. Algumas pessoas ainda vão além e esperam que essa
transmissão implique ou resulte no entendimento completo - por parte
do receptor - tal qual como foi falado ou pensado pelo emissor. E o que
poderia ser visto como um erro, nesse caso? Um entendimento diferente
- pelo receptor - daquilo que foi enunciado pelo emissor. Quando isso
ocorre, um possível entendimento diferente é compreendido como
ruído de comunicação, ou seja, uma interferência de algum fator não
esperado.
Essa compreensão de língua como instrumento é bastante
problematizada nos estudos da linguagem. Uma das razões para tal
questionamento é que pensar em língua como um instrumento significa
pensá-la como algo externo ao sujeito. Pensemos, por exemplo, em
um telefone celular, ou um mapa, ou um martelo. Podemos dizer que
todos esses objetos são instrumentos que utilizamos para realizarmos
tarefas: o celular, para fazer chamadas, tirar fotos, jogar jogos
eletrônicos, dentre diversas outras possibilidades; o mapa, para nos
localizarmos ou para conseguirmos instruções que nos levem de onde
estamos para onde queremos chegar; e o martelo para fixarmos um
prego em algum lugar, ou para retirar um prego também. Notem que
todos esses instrumentos não são parte de quem os utiliza, eles são
externos aos sujeitos. Para nós, língua é diferente. Não se trata de algo
externo a cada uma de nós, mas de algo que faz parte de quem somos,
uma vez que não existimos de forma independente das línguas que nos
constituem.
Um outro questionamento com relação à ideia de língua como
instrumento de comunicação diz respeito justamente ao que fazemos
com ela. Nós não usamos a língua (no sentido instrumental discutido
até aqui) meramente para comunicarmos nossos desejos, vontades e
pensamentos, como muitas pessoas podem pensar. Nós a utilizamos
de forma a construir sentidos nela, estando dentro dela como estamos
dentro do ar; não apenas para dizer coisas, mas para pensar coisas,
entender o mundo, sonhar, imaginar, sentir, interagir. Isso quer dizer

22
A LINGUAGEM NA VIDA

que quando comunicamos algo concebemos nossas identidades e


construímos relações, afetos, sentimentos, dentre outras coisas.
Vejamos um exemplo simples: digamos que você está no
elevador sozinha e, ao entrar outra pessoa, você diz um simples “bom
dia”. A princípio, pode parecer que você está meramente desejando a
essa pessoa que ela tenha um dia agradável, feliz. No entanto, esse
simples “bom dia” provavelmente está fazendo várias outras coisas:
construindo uma identidade da pessoa que fala como alguém educada;
construindo uma relação agradável, mesmo que por alguns segundos,
entre as duas pessoas no elevador; estabelecendo uma conexão,
mesmo que rápida, entre essas pessoas; iniciando uma conversa
ou simplesmente reconhecendo a presença dessa pessoa, mas não
desejando iniciar uma conversa, dentre várias outras possibilidades.
Na verdade, se pensarmos bem, talvez a coisa que menos estejamos
fazendo é desejando um dia agradável a essa outra pessoa que mal
conhecemos. Importante indicar ainda que essa mensagem não é
construída pela simples junção de duas palavras: bom + dia, mas sim
por um emaranhado de elementos: as duas palavras “bom” + “dia”, a
entonação, os elementos gestuais, as emoções das participantes no
momento e até mesmo outros fatores como aparência física e papel
social, o lugar, os cheiros, a visão que as pessoas envolvidas têm uma
da outra, etc. Afinal, quem são essas pessoas no elevador? Todos esses
itens juntos são partes constitutivas desse momento e influenciam
diretamente a maneira como essas pessoas entendem esse simples
cumprimento.
Há um segundo entendimento comum sobre o que é língua:
um conjunto de estruturas. Língua, nesse caso, se refere a sistemas
de sons, palavras, classificações gramaticais e significados (literais e
pretendidos). Nesse entendimento, é através dessas estruturas que
relatamos as realidades que observamos e/ou que sentimos. É a partir
desse entendimento que Sandra, personagem de nossa narrativa,
expressa sua nostalgia pelo trabalho “sério” com a língua portuguesa
em seu tempo de escola, ao dizer que “as aulas eram de explicação de
gramática. A gente aprendia muito sobre a língua portuguesa, repetindo
a conjugação dos verbos. A gente decorava tudo e era muito bom”.

23
A LINGUAGEM NA VIDA

Destacamos o sobre a língua porque vemos aqui uma compreensão de


ensino de língua portuguesa em que se aprende a respeito da língua,
mas não necessariamente a praticá-la. Ainda destacamos repetir e
decorar, porque indicam um olhar bastante comum para a educação,
pautada em estímulo e resposta, em que não há espaço para construção
e reflexões, mas remete a uma atitude passiva diante das práticas de
linguagem, atitude que discutiremos no próximo tópico.
“Errar”, a partir dessa compreensão de língua e aprendizagem, é
fugir do que é esperado, abstrair-se das maneiras como essas estruturas
são supostamente utilizadas por falantes nativos, vistos como os
“donos da língua” (conforme discutiremos em nosso último capítulo)
ou falantes cultos, considerados os responsáveis por criar os usos
corretos (a norma padrão) de tais estruturas. Essas ideias explicam um
pouco das preocupações de Sandra sobre a importância de que sua filha
aprenda, ou decore, as normas de funcionamento da língua entendida
como instrumento a fim de fazê-la funcionar adequadamente.
Para nós, mesmo reconhecendo a existência das normas que
estruturam as línguas, os sentidos são construídos e desconstruídos,
negociados e ressignificados contingencialmente, e por isso não são
determinados a priori das situações de comunicação, nem fechados ou
imutáveis. Então, para marcar esse entendimento, usaremos a palavra
linguagem para nos referirmos a essa concepção, enquanto a palavra
língua fica reservada para quando estivermos pensando no sistema
linguístico, na norma padrão, nas línguas que têm nome (como língua
portuguesa, língua espanhola, etc.).
Para ilustrar essa nossa visão, observemos situações em que
aparece a palavra ótimo. Digamos que você está na rua e escuta alguém
dizendo “ótimo”! Se fôssemos levar em conta apenas o significado
da palavra em si, é provável que achássemos que a pessoa que
falou a palavra estivesse feliz com algum acontecimento. Sabemos,
entretanto, que essa palavra tem outros sentidos, podendo ser usada
para momentos em que estamos frustradas ou até mesmo irritadas.
Imagine, por exemplo, que você acaba de derrubar seu sorvete e diz:
“ótimo!”. Qual seria o sentido? De que foi desagradável. Ou seja,
você demonstra frustração. Ou você pede para sua filha fazer algo e

24
A LINGUAGEM NA VIDA

ela age de maneira completamente diversa e você, ironicamente,


diz: “Ótimo!”. Está querendo parabenizá-la? Obviamente não. O que
você faz é demonstrar irritação, desaprovação. Sem o entendimento
da situação, ou seja, sem conhecimento sobre questões contingentes e
contextuais (questões essas que prentendemos abarcar com a palavra
linguagem) não chegaríamos a esse sentido, pois “ótimo”, por si só,
não tem sentido negativo. O que esse exemplo ilustra bem, na nossa
interpretação, é que a língua não se esgota em entendimentos apenas
baseados em questões de estrutura, ou seja, que língua no fundo
sempre acontece como linguagem.
Os sentidos que construímos não são determinados simplesmente
de forma literal pelas palavras e por suas classificações gramaticais,
mas a partir de um conjunto de recursos semióticos (outras palavras,
gestos, imagens, cores, etc.), além de nossos contextos histórico-
culturais. Então, para determinar quais sentidos são mais aceitáveis em
cada instância comunicativa, é fundamental que saibamos perceber o
contexto, ler cada espaço onde acontece cada evento de comunicação
como um espaço para além da presença imediata dos corpos físicos das
pessoas que lá estão: o espaço comunicativo é um contexto sempre
multidimensional, cujas características informam possibilidades
diferentes de sentidos. Isso significa que não são apenas os elementos
visíveis, concretamente presentes nas interações, que fazem parte dos
contextos em que existimos - deles também fazem parte as percepções
das pessoas umas sobre as outras, os sentidos que elas fazem do que
está acontecendo naquele momento, suas histórias, seus processos
de formação como sujeitos, suas relações com as comunidades que as
constituem, com as línguas identificadas naquele espaço, etc., etc., etc.
Desse modo, preferimos usar a palavra linguagem ao invés de
língua, para destacar a existência de várias modalidades de construção
de sentidos. Nesta compreensão que estamos discutindo aqui,
produzimos sentidos lançando mão de um grande repertório desses
recursos semióticos. Nossa escolha pela palavra linguagem aponta
positivamente para a prática da professora de língua portuguesa
mencionada por Sandra na narrativa que abre esse capítulo. Você
lembra que Sandra comenta a solicitação da professora para que as

25
A LINGUAGEM NA VIDA

alunas fizessem uma produção coletiva de textos utilizando seus


celulares? Pois bem, Sandra questiona esse trabalho, dizendo que
“o uso do celular em sala de aula está aumentando a cada dia, porque
várias professoras têm feito atividades em que as crianças têm que usar o
celular.” Para ela, isso é um problema, afinal, as crianças “ficam o tempo
todo trocando mensagens pelo celular, abreviando tudo, usando memes e
figurinhas”. Ou seja, em seu entendimento, essas interlocuções não são
comunicação e nem escrita (“as crianças hoje em dia não escrevem mais,
não praticam a língua, não se comunicam!”).
Contudo, a partir da compreensão de linguagem enquanto
construção de sentidos, em um mundo cada vez mais conectado
virtualmente, propor tarefas dessa natureza pode propiciar usos da
linguagem mais próximos do cotidiano e possibilitar maior engajamento,
portanto, maior aprendizagem. Ao contrário, a manutenção do trabalho
analógico e de repetição pode não fazer sentido para as estudantes e
afastá-las do ambiente escolar e do interesse pela aprendizagem, seja
da língua ou seja de qualquer outro conteúdo. Além disso, a linguagem
abreviada do celular é uma linguagem adequada ao contexto, ou seja,
ao espaço onde ocorre a comunicação - conversas de bar, entrevistas
de emprego, palestras acadêmicas preconizam modos de falar e de
se comportar distintos: cabe às pessoas que se encontram nessas
situações avaliar se é o caso de romper com eles ou de seguir as regras
e protocolos de comunicação esperados em cada um desses espaços, e
em cada momento de interação dentro deles.
Você deve estar se perguntando: se cabe às pessoas então decidir
entre romper ou seguir regras sociais, qualquer coisa poderia ser dita
de qualquer forma? Sabemos que não é bem assim. Como já apontamos
neste capítulo, a linguagem nos constitui e nossa convivência com
outras pessoas se dá nas diversas comunidades (familiar, escolar,
profissional, religiosa, entre amigas, etc.) nas quais nos inserimos.
Nosso desafio está, portanto, em percebermos como determinados
modos de falar, de compreender, de se expressar, de se comportar são
mais ou menos legitimados socialmente (como discutiremos mais
adiante neste livro).

26
A LINGUAGEM NA VIDA

Considerando ainda as questões contingentes e contextuais na


linguagem, podemos nos perguntar: o que caracterizaria então um
erro, nessa perspectiva? Para pensarmos sobre isso, convidamos você
a observar a seguinte situação:

Uma professora está em sua sala de aula e diz o seguinte:

• Existem variações de algumas línguas em que dois negativos


juntos dão sentido negativo à frase. Por exemplo: “eu não
gostei não”, como falado em diversas localidades do Brasil. No
entanto, não há nenhuma variação de qualquer língua onde
dois positivos resultam em um sentido negativo.

Ao que uma aluna responde:

• Yeah, right. [Expressão comumente usada na língua inglesa


para indicar que alguém não acredita no que foi dito].

Você achou engraçado? Nós, sim. A graça para nós está em que,
nesse exemplo, a professora queria explicar questões de significado a
partir de estruturas gramaticais, sem levar em consideração que essas
estruturas analisadas em separado da situação em que são utilizadas
não dão conta de como usamos a linguagem, como vimos anteriormente.
Ao tratar a linguagem como algo pré-concebido e fechado, a professora
não se deu conta de que estava tentando limitar sentidos a essas
estruturas supostamente pré-estabelecidas, desconsiderando situações
específicas de contexto e de práticas sociais de linguagem. A aluna, ao
usar duas palavras de sentido positivo quando isoladas (yeah = sim +
right = certo), combina-as numa situação em que o sentido produzido
tem a intenção de ser negativo, desfazendo assim o sentido fixo e
descontextualizado que a professora apresentou em sua explicação.
Como nós entendemos o que seja linguagem, então, para
resumir? Entendemos que a linguagem constitui e é constituída por
pessoas. Isso significa dizer que a linguagem não é um instrumento ou
um conjunto de estruturas simplesmente, nem um sistema externo às

27
A LINGUAGEM NA VIDA

pessoas que a utilizam, nem foi construída a priori das situações de


interação. A linguagem é um processo que faz parte das pessoas. Isso
significa dizer que é construída continuamente. Por outro lado, isso
não significa dizer que não haja sistematicidade nas línguas, mas sim
que as estruturas não dão conta dos significados construídos a todo
momento pelas pessoas, contingencial e contextualmente; e que esses
sistemas são abertos a novas estruturas e novos significados. Nessa
perspectiva, produzir textos é um processo de construção de sentidos
usado para interagir com outras pessoas, para demonstrar empatia
ou indiferença (no caso de nosso exemplo de Bom dia); demonstrar
alegria, frustração ou repreensão (no caso de ótimo), etc. Vale ressaltar
também que a linguagem não existe apenas para interagirmos com
outras pessoas, pois também produzimos textos para nós mesmas, no
caso de listas de afazeres ou de supermercado, lembretes, diários, por
exemplo. Ainda, é importante lembrar que não produzimos textos orais
e escritos apenas com linguagem verbal; podemos fazer uso de diversas
linguagens e recursos, ou seja, podemos escrever no papel, mas também
podemos fazê-lo no computador, no celular ou em outros meios e usar
linguagem verbal, visual, corporal, etc. Todos esses diferentes recursos
e usos contribuem cotidianamente tanto para a constituição de quem
somos quanto para a construção e transformação da linguagem. Dito
de outro modo, a linguagem, assim como cada uma de nós, não existe
a priori de nossas práticas comunicativas; nós e ela somos criadas e
transformadas cotidianamente em nossas interações sociais. Em nossa
avaliação, é papel da escola contribuir para a formação cidadã de suas
alunas, incluindo aí a compreensão da potência que é a linguagem
enquanto prática social dinâmica, complexa, múltipla.

Qual o papel da linguagem escrita?

Antes de falarmos do papel da escola e encerrarmos a primeira


parte deste capítulo, destacamos um aspecto na narrativa inicial,
presente nas aflições de Sandra, que consideramos relevante de ser
discutido aqui. Como pudemos perceber, Sandra não se preocupa
apenas com o ensino que sua filha está (ou não) recebendo sobre a
língua portuguesa, mas também com o que deve ser, em sua opinião, a

28
A LINGUAGEM NA VIDA

prática com a linguagem escrita na escola. Como já apontamos, em seu


desabafo, ela diz que “as crianças hoje em dia não escrevem mais [...]. Elas
ficam o tempo todo trocando mensagens pelo celular, abreviando tudo,
usando memes e figurinhas”. Sandra ressalta ainda sua preocupação
em relação à prova de redação do vestibular, que, para ela, se trata da
avaliação mais difícil dentre todas as etapas de um vestibular. Segundo
Sandra, a escola interrompeu exercícios importantes de escrita quando
deixou de exigir das alunas a produção de textos como “Minhas férias!”,
por exemplo.
A compreensão de Sandra sobre o que seja a linguagem escrita
é interessante de ser analisada. Em sua forma saudosa de lembrar de
seu tempo como aluna, ela diz que “a gente escrevia muito”. No entanto,
ela parece não perceber a existência da escrita na vida cotidiana das
crianças atualmente e nem refletir sobre o que seja a linguagem
escrita. Podemos nos perguntar: as mensagens trocadas pelo celular
não seriam linguagem escrita? Ou ainda, a proposta da professora de
língua portuguesa em solicitar que sua turma crie uma história de
forma colaborativa em um aplicativo (“E além disso, a professora foi
pedir depois para as crianças criarem uma história a partir do debate que
foi promovido em sala usando o celular?”) também não seria linguagem
escrita?
Um primeiro aspecto a ser observado está no fato de as formas
de linguagem escrita terem se alterado em relação, digamos, ao século
passado, mas não terem deixado de ser linguagem escrita. Sabemos
que com o advento das novas tecnologias de comunicação, certamente
diferentes maneiras de escrever surgiram nas últimas décadas, tais
como blocos eletrônicos de anotações, e-mails, postagens em redes
sociais, mensagens de textos pelo celular, currículos virtuais, livros
digitais, etc. (conforme discutiremos mais adiante neste mesmo
capítulo e também no terceiro). Além disso, a preocupação de Sandra
remete ao fato de a linguagem escrita estar comumente associada à
norma gramatical de determinada língua em uma sociedade, como
podemos perceber nas frequentes aproximações que Sandra faz em
relação à necessidade de redação e ao ensino da gramática na escola.

29
A LINGUAGEM NA VIDA

Isso nos leva a pensar que não é raro encontrar pessoas, assim
como Sandra, entendendo que os textos escritos precisam estar
sempre gramaticalmente corretos. Essa compreensão acaba por gerar
uma linha divisória entre aquilo que é considerado “certo”, de um lado,
e “errado”, de outro. Os textos escritos por pessoas no mundo tendem,
portanto, a ser mais valorizadas quando essas pessoas que escrevem
dominam as normas gramaticais legitimadas em suas comunidades
e, assim, seus escritos são considerados legítimos em detrimento de
outros, que acabam desconsiderados ou não entendidos como válidos.
Se pensarmos, por exemplo, nas comunidades que têm a escrita como
essencial em sua organização, e acabaram por registrar suas histórias
nessa forma de linguagem (como é o caso da nossa sociedade), essas
comunidades acabaram sendo consideradas como mais avançadas em
relação a sociedades de tradição oral, que são muitas vezes entendidas
como primitivas, sem que haja uma reflexão sobre quais normas,
perspectivas são legitimadas ou consideradas para que tais avaliações
sejam feitas.
A linguagem está sempre atrelada à existência de pessoas que
a usam em determinadas situações culturais e histórico-sociais. Isso
significa que a forma escrita da linguagem também é dependente
das pessoas envolvidas no ato da escrita. Da mesma forma como na
linguagem oral, quando escolhemos modos de dizer e expressar, a
linguagem escrita também está atrelada à razão pela qual se escreve,
para quem se escreve, de que forma se escreve e quem é a pessoa que
desempenha o ato de escrever. Desse modo, simplesmente copiar
textos ou apenas reproduzir estruturas gramaticais da língua na escola,
ou mesmo escrever uma redação sobre “minhas férias” sem considerar
a relação intrínseca entre quem escreve e quem lê o texto, não
poderiam ser consideradas práticas que caracterizam a escrita como
uma atividade social, como uma prática de construção de sentidos no
mundo.
Vejamos, por exemplo, a questão da redação no vestibular.
Podemos nos perguntar: o que exatamente é uma redação? E o que
seria considerada uma redação de qualidade? O que acontece com uma
candidata ao vestibular no momento da produção de sua redação?

30
A LINGUAGEM NA VIDA

Sabemos que as respostas para essas perguntas não estão no ensino


tradicional das aulas de língua portuguesa, pois saber conjugar verbos,
diferenciar usos de maiúsculas e minúsculas, ter uma caligrafia bonita,
acentuar as palavras corretamente não garantem escrever uma boa
redação. Será por isso que muitas pessoas consideram a etapa da
redação como a mais difícil do vestibular?
Nossa ênfase está em entender que a produção de uma redação
é uma prática social de linguagem e em sua produção encontram-
se reunidas uma multiplicidade de complexidades que envolvem
aspectos de como a linguagem escrita se manifesta e é legitimada
socialmente. Quando escrevemos, trazemos para a forma escrita coisas
que pensamos e aprendemos no e com o mundo, coisas que queremos
que sejam aceitas e entendidas pelas nossas leitoras, reunindo nossa
própria voz com muitas outras vozes que ecoam em nossas mentes. E
os modos como escrevemos e como nos relacionamos com a linguagem
escrita também influenciam os modos como pensamos - são dois lados
da mesma moeda. Assim como a linguagem oral, a escrita também
se torna uma expressão de nossa identidade e uma forma social de
construir sentidos no mundo, de compartilhar compreensões que
temos sobre determinado assunto, por exemplo. É por essa razão que a
atividade proposta pela professora da filha de Sandra, quando solicita
que suas alunas escrevam uma história de forma colaborativa utilizando
um aplicativo, se mostra, em nossa opinião, como uma compreensão
da professora de que a linguagem é social, de que é compartilhada com
outras pessoas, de que escrever não significa solitariamente colocar
no papel as ideias mirabolantes que se passam em nossas mentes.
Mesmo quando escrevemos supostamente sozinhas, nossa escrita vai
além de nós mesmas e perpassa outras pessoas: aquelas com quem
discutimos e/ou aprendemos sobre o assunto do nosso texto, nossas
futuras leitoras, etc.
Até aqui tratamos da compreensão que temos sobre linguagem,
bem como sobre alguns dos efeitos da linguagem no mundo. A
seguir, retomamos o segundo objetivo deste capítulo que está em
relacionar a linguagem com a escola, a sociedade e as mudanças da
contemporaneidade.

31
A LINGUAGEM NA VIDA

Qual a função social da escola?

Estamos ainda nas primeiras décadas do século XXI, mas em


muitos aspectos o século XX já parece distante. A realidade que
vivemos hoje é rápida, fluida, nossas antigas certezas se dissolvem
diante de nossos olhos e temos que constantemente nos ressignificar.
Nesse mundo instantâneo, a vida nas escolas também está mudando,
mas as alterações nos parecem mais complexas do que as que estamos
vivenciando. A educação como a conhecemos historicamente vem se
transformando e a pandemia da Covid-19 escancarou essa urgência de
transformação, demandando o aprofundamento de diversas questões
relacionadas ao uso das atuais tecnologias no ensino e à percepção dos
grupos de estudantes que hoje frequentam as escolas. As tecnologias
em sala de aula, muitas vezes criticadas, parecem ter se tornado a
alternativa viável diante da suposta necessidade do ensino remoto
emergencial, resultante do isolamento físico prolongado que temos
vivenciado. Nesse contexto, o material divulgado em uma Campanha
Nacional pelo Direito à Educação se difundiu e gerou muitos debates
acalorados sobre a educação, seu papel, seus rumos.

Material da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2020).

32
A LINGUAGEM NA VIDA

Esse material foi construído a partir de uma obra de arte


surrealista do artista belga René Magritte, na qual, originalmente, há
uma imagem de um cachimbo e o texto: Ceci n’est pas une pipe (Isto
não é um cachimbo). No caso da campanha, o conflito entre a imagem
de um computador e o texto escrito: Ceci n’est pas une école (Isto não é
uma escola) nos leva a ponderar as (im)possibilidades da transposição
do espaço escolar para as telas de um computador, celular ou televisão,
em tempos de ensino remoto emergencial. Tal contexto torna ainda
mais urgente a compreensão da história da educação escolar em nosso
país e de políticas educacionais. Também torna improrrogáveis alguns
questionamentos: o que é educação? Para que(m) serve? Nos próximos
parágrafos, nos propomos a tratar desses temas.
Desde o início do processo de educação institucionalizada de
massa em meados do século XIX, temos experimentado um sistema
desigual de acesso à escola e ao conhecimento socialmente legitimado.
Somos um país que necessita de ações afirmativas, como políticas de
cotas nas universidades, e outras políticas educacionais que defendam
o direito à educação de grupos menos privilegiados, como a educação
de jovens e adultos, a educação do campo ou a indígena, dentre
tantas outras. As desigualdades existentes entre os mais diferentes
grupos sociais e identitários, com mais ou menos acesso à educação, à
tecnologia, à informação, ao conhecimento legitimado se escancararam
diante da impossibilidade de se manter aulas presenciais nas escolas
pela exigência de isolamento social em meio a pandemia, nos levando
a refletir sobre as mais diferentes realidades de vida das pessoas em
nosso país. Essa enorme parcela da população que não tem acesso à
tecnologia ou não se encontra em condições adequadas de realizar o
ensino remoto emergencial em seus domicílios, por diferentes razões,
nos mostra o quanto a questão da igualdade ainda precisa avançar.
Ao mesmo tempo, em cerca de duas décadas, o mundo como
o conhecíamos foi sacudido pela intensificação da globalização e o
surgimento da Internet, ampliando assim as complexidades sociais.
As mudanças são facilmente perceptíveis, passando pelo trânsito das
pessoas entre países, novas ondas migratórias, diferentes formatos
de trabalho com uma dependência maior da tecnologia, e chegando

33
A LINGUAGEM NA VIDA

até as nossas formas de conhecer, fazer sentido do mundo, buscar


informação e aprender. No plano da interação e da linguagem, as novas
mídias deram origem a novas formas de comunicação multimodais
como blogs, vlogs, posts, e-mails, memes, entre outros – muitas delas
fazendo uso de linguagem escrita com características mais próximas
da linguagem oral, e também de imagens, sons e movimentos. No
plano da disseminação de informações, em vez dos poucos canais de
TV aberta e dos poucos veículos de mídia impressa, incluindo jornais
e revistas, as pessoas pertencentes às classes mais abastadas da
população passaram a ter acesso a canais de TV por assinatura, por
exemplo, e, com a Internet, uma imensidão de conteúdos produzidos
por cidadãos comuns de diferentes classes e grupos sociais, e não
apenas por jornalistas renomadas, passou a existir em nossas vidas.
E isso não é tudo: também em decorrência das novas mídias, as
pessoas passaram a se relacionar de maneiras diferentes. Surgiram
as redes sociais como Orkut, Facebook, Instagram, Twitter, e outros
diversos aplicativos como WhatsApp e Telegram que tornaram ainda
mais difusas as barreiras entre o que se entende como vida “real”
e vida “virtual”, linguagem escrita (entendida como modalidade
mais formal) e linguagem oral (compreendida como mais informal),
criando diversos tipos de montagens com seus filtros e recursos
de photoshop. As pessoas passaram também a consumir produtos
culturais de maneiras diferentes – por exemplo, em vez de esperar
que suas músicas prediletas toquem no rádio, passaram a organizar
suas próprias playlists de músicas em aplicativos como Deezer e
Spotify; em vez de assistir a filmes na TV aberta, com dia e horário
marcados, passaram a flexibilizar essas restrições ao dar preferência a
assistir filmes pela Internet e aplicativos como Netflix; ao invés de se
restringirem a aprender em espaços educacionais oficiais, passaram
a buscar informações em fontes diversas, como em lives e cursos
organizados por movimentos sociais, por exemplo.
Todas essas mudanças fazem parte de nossas vidas na
contemporaneidade e entram em contradição com escolas que
continuam presas a uma arquitetura e a uma pedagogia mais
tradicional, sem considerar novas formas de linguagem e de construção

34
A LINGUAGEM NA VIDA

de sentidos no mundo, tampouco as diferentes realidades de vida das


alunas que chegam às escolas. No que diz respeito à arquitetura, por
exemplo, na maior parte das escolas as aulas continuam organizadas
em salas de aulas com carteiras individuais e dispostas em fileiras,
que fazem com que os corpos das alunas e da professora se fixem
em uma organização pré-determinada. As alunas sentam-se todas
olhando para a frente e para a professora, e a professora, muitas vezes
colocando-se em um pedestal pelo menos um degrau mais alto do que
o nível do chão, onde ficam as cadeiras das alunas, mantém sua figura
em evidência, como centro do processo de ensino e aprendizagem.
Nessa arquitetura tradicional, espera-se que as alunas mantenham
seus olhos na professora, ou no quadro negro ou no livro didático,
pois se prevê pouca ou nenhuma movimentação em sala e interação
entre as colegas. É como se a aprendizagem ocorresse em um caminho
solitário, individual e dependente da professora com o quadro negro e/
ou o livro didático.
Essa arquitetura tradicional faz uso de uma pedagogia também
tradicional, conhecida com o que Paulo Freire chamou de educação
bancária, que se caracteriza pela crença de que a função da educação
é a transmissão de conteúdos disciplinares valorizados cultural e
socialmente por grupos hegemônicos e legitimados. Desse modo, a
escola se organiza em disciplinas acadêmicas e conteúdos escolares
entendidos como fundamentais, como por exemplo português e
matemática, e assim concentra seus esforços em transmitir esses
conteúdos às alunas. Esse tipo de educação foi chamada de bancária
porque nela os conteúdos seriam depositados (como se faz nos bancos)
na cabeça das estudantes sem considerar quem são essas alunas e como
esses conteúdos se legitimaram. A educação bancária, ou educação
tradicional, é fortemente calcada no desenvolvimento de técnicas para
transmissão de conteúdos e averiguação de aprendizagem por meio
de testes, sendo que a nota obtida nesses testes representaria o que as
alunas aprenderam. Isso explica a pouca valorização da interação entre
alunas e professoras, e o foco em retenção de conteúdos comumente
cobrados em testes externos e massificados, como os vestibulares a

35
A LINGUAGEM NA VIDA

que Sandra se refere com ênfase quando reclama da escola na narrativa


que abre este capítulo.
Vemos nesse argumento de Sandra uma semelhança muito grande
com a compreensão de linguagem como veículo para transmissão de
mensagens: ou seja, na perspectiva dela, assim como uma mensagem
seria supostamente transmitida por um emissora para um receptora,
como discutimos no início deste capítulo, conteúdos disciplinares
poderiam também ser simplesmente transmitidos de uma professora
para uma aluna, como se a aluna não tivesse nenhuma influência sobre
a informação que está supostamente sendo depositada em sua cabeça. O
pressuposto seria de que a linguagem funcionaria como um código que
permitiria a transmissão direta do conhecimento da professora para as
alunas; nesse caso, a linguagem seria o que estamos aqui chamando
de língua, ou seja, um conjunto de estruturas supostamente neutras.
Caso não haja aprendizagem ou haja problemas de comunicação,
a interpretação é de que não houve interesse de alguma das partes,
emissora ou receptora, ou houve algum ruído que teria atrapalhado o
processo.
Essa compreensão de educação e de língua tem sido questionada
há bastante tempo por quem entende ser impossível esse tipo de
transmissão, como é o nosso caso. Para nós, tanto as práticas sociais
fora da escola quanto o ensino e a aprendizagem dentro da escola
são processos muito mais complexos do que a mera transmissão de
conteúdos: são processos dinâmicos que envolvem as particularidades
de cada participante, bem como interações, relações, construções
colaborativas, capacidade de tomada de decisões, pensamento crítico
e criatividade. Entendemos que a escola precisa abrir mais espaço
para aprendizagens que envolvam os usos das novas mídias, para a
participação ativa das alunas, para que elas trabalhem em pequenos
grupos, encontrando e avaliando suas próprias fontes de informação
e construindo conhecimento de forma coletiva. Para nós, é assim
que aprendemos: na multiplicidade de práticas sociais colaborativas,
estimulando a participação, criatividade e criticidade das alunas e das
professoras. Assim, a escola pode nos proporcionar uma compreensão
mais profunda do mundo e de quem somos neste mundo.

36
A LINGUAGEM NA VIDA

Entendemos, portanto, que o papel da educação na


contemporaneidade deve ir muito além de simplesmente preparar
para provas, vestibulares ou formar alunas para se encaixarem no
mercado de trabalho como se fossem meras executoras de tarefas,
acumulando conhecimentos disciplinares em sua memória para que
sejam reproduzidos quando necessário, sem que se leve em conta
suas identidades num mundo cheio de complexidade. A educação
precisa tornar as pessoas mais sensíveis às demandas do planeta, às
desigualdades e injustiças sociais, às questões econômicas, sociais,
biológicas, raciais, humanitárias, e dessa maneira transformar nossas
sociedades em melhores espaços de convivência, de aprendizagem
coletiva e colaborativa. A escola, assim, tem como um papel importante
fomentar a convivência na diversidade. Num mundo tão fortemente
interligado, onde o que acontece em um lugar específico reverbera
no planeta inteiro, ou onde uma forma de vida impacta outras, a
importância dessa empreitada educativa se torna ainda mais evidente.
É, certamente, um papel muito desafiador, e urgente.
Veremos um pouco mais sobre esse desafio em que percebemos
se encontrar a escola na contemporaneidade quando chegarmos ao
último capítulo. Por enquanto, vamos a uma retomada do presente
capítulo a fim de podermos seguir aos poucos, sem colocar a carroça
na frente dos bois.

Afinal, por que estudar a linguagem?

Depois de tudo isso, afinal para que e por que estudamos a


linguagem? Antes de mais nada, é preciso lembrar que refletir sobre
a linguagem não é responsabilidade apenas das especialistas que
a estudam diretamente, mas se estende a qualquer pessoa, uma vez
que a linguagem, sendo constitutiva de quem somos, nos afeta e
traz implicações para nossas relações no mundo, tanto no âmbito da
escola quanto para além dela. Nossa perspectiva sobre os estudos da
linguagem enfatiza a sua relevância nas práticas diárias, como estamos
vendo aqui e aprofundaremos nos próximos capítulos deste livro.

37
A LINGUAGEM NA VIDA

É fundamental observarmos que existem diferentes formas


de construir textos orais, visuais, escritos, em diversas modalidades
e conforme as situações comunicativas em que elas acontecem. Um
ponto importante seria a exploração, em sala de aula, da ideia de
que a linguagem nos constitui como o ar que respiramos, trazendo
à discussão uma ampla variedade de textos e linguagens, em mídias
diversas, observando como os sentidos se constroem na prática, em
diferentes espaços, por diferentes pessoas. Os estudos da linguagem
podem se debruçar tanto em questões do meio escolar, quanto familiar,
empresarial, midiático, religioso, jurídico, médico/hospitalar, etc.
Vejamos um exemplo. Quando conversamos com uma médica
e utilizamos certas maneiras de explicar o que estamos sentindo,
a linguagem que usamos está constituindo quem somos naquele
momento, o papel social que ocupamos. Claro que podemos subverter
esse papel, problematizá-lo, atender ou contrapor-nos às expectativas
que a situação comunicativa nos parece trazer. Por vezes, as médicas
falam conosco de maneiras que temos dificuldade de entender, porque
a linguagem médica as constitui. No entanto, nossas identidades não
são caracterizadas exclusivamente por nossas profissões ou papéis
sociais, mas também por nossas experiências de vida, nossas formas de
interpretar e de nos relacionarmos no e com o mundo. Existem, assim,
diversas dimensões em quem somos, dimensões que informam o
chavão “onde estamos, de onde viemos e para onde vamos”. Tudo muito
interligado na linguagem. Ao aprender a ser médica e/ou empresária e/
ou professora e/ou mãe e/ou filha e/ou amiga, aprendemos não apenas
como podemos (ou devemos, ou queremos) nos comportar e atuar
nesses diferentes papéis, mas também a usar a linguagem de formas
distintas.
Voltando para a escola, talvez algumas das maiores contribuições
dessa perspectiva sobre a linguagem na educação está na comunidade
escolar perceber que:

• a linguagem é sempre diversa, múltipla e dinâmica, ou seja, ela


se constrói e se modifica de acordo com as circunstâncias em que
acontece;

38
A LINGUAGEM NA VIDA

• cada pessoa tem práticas de linguagem diversas, construídas


em suas vivências em atividades e ambientes também diversos
como em casa, na escola, na padaria, no trabalho, no estádio de
futebol, ao jogar videogame, em consultas médicas, etc;
• a diversidade das práticas de linguagem tem impacto no
desenvolvimento da sensibilidade em relação às diferenças, uma
vez que os diversos modos de construir uma mensagem e usar
certas palavras, frases, estruturas, são maneiras de ser e existir
na linguagem e de se relacionar com outras pessoas no mundo e
com o mundo;
• o que se entende como “certo” e “errado” na linguagem depende
das circunstâncias em que ela está sendo praticada; por exemplo,
o que se conhece como norma gramatical legitimada é uma
forma de usar a linguagem (geralmente associada à escrita) que
se adequa a situações específicas, mas não a todas as práticas de
linguagem.

E assim chegamos ao final do primeiro capítulo. Entendemos


que nossos estudos podem nos ajudar a pensar em uma educação
linguística engajada com a compreensão e a transformação de questões
sociais. Reforçamos que além das questões educacionais enfatizadas
aqui, os estudos da linguagem lidam com diversos outros assuntos e
questionamentos, muitos dos quais serão explorados nos capítulos
subsequentes. Essas são, portanto, cenas dos próximos capítulos.

39
A LINGUAGEM NA VIDA

LEITURA, PALAVRA-MUNDO E LETRAMENTOS

Em um dia comum de sua rotina, Laura encontra, por acaso, Ana, uma
amiga de infância. Logo após se atualizarem quanto aos caminhos de vida
de cada uma, Ana acaba por trazer para a conversa sua “saudade dos bons
tempos” e de como a vida era boa no passado. Nessa altura da conversa,
as duas já estão confortavelmente acomodadas num café na vizinhança.

Ana: Nossa, Laura! Você professora, hein? Puxa….. E que saudades


da nossa turma! Que saudades do respeito que tínhamos pelas
professoras. Você lembra? Ninguém dava um pio nas aulas. A gente
prestava atenção em tudo o que a professora dizia, copiava o que estava
no quadro e estudava. Eu realmente não sei como você consegue ser
professora hoje em dia.
Laura: Sim, Ana, eu lembro bem que eu passava noites em claro,
memorizando conteúdos pra tirar notas boas nas provas. A verdade é que
se eu não tirasse notas boas meus pais ficariam muito decepcionados
comigo.
Ana: Eu lembro que seus pais eram muito rígidos mesmo!
Laura: Eram sim. Naquele tempo, nós não nos atrevíamos a contrariar
nossos pais. Na realidade, nem nossos pais e nem os nossos mestres
– essa é que é a verdade. O que eu mais ouvia dos meus pais e de
nossas professoras era: “Obedeça!”, “Faça silêncio!”, “Escute!”, “Não
me interrompa enquanto estou falando.”, “É assim porque que é, e
pronto!”.
Ana: Isso! Não tinha essa história de contestar professora não. E não
tinha essa de professora conversar com as alunas sobre tudo. Hoje

40
A LINGUAGEM NA VIDA

parece que o que menos importa é a matéria que vocês professoras


ensinam.
Laura: Eu acho que o mundo tá mudando, Ana, a educação tá mudando.
Eu lembro que quando eu discordava de alguma coisa que minhas
professoras ou meus pais diziam, eu não me sentia confiante para
expor minhas ideias. Não era que eu não discordasse, eu só não dizia
nada. Hoje vejo minhas alunas sem medo de expressar opiniões. Isso
é bom, né?
Ana: Ah, Laura, o mundo realmente está mudando, mas não sei se é pra
melhor não. Hoje vejo minha filha adolescente falar que é importante
ter pensamento crítico, que não dá para confiar cegamente no que a
gente lê. Sei não. Pra mim, essa história de pensamento crítico é o
que tá virando esse mundo de cabeça pra baixo. Que história é essa
que não dá para confiar no que a gente lê?! Você não imagina o que
aconteceu outro dia! Não é que minha filha veio dizer que eu estava
compartilhando fake news no grupo de WhatsApp da família!
Laura: Sério? Você não checou antes se a informação que você
compartilhou era confiável?
Ana: Como assim? Eu sei que era confiável! Foi minha vizinha de anos
quem me enviou!
Laura: Mas Ana, você não acha que, com a Internet, e a quantidade de
textos que surgem a todo momento tratando dos mesmos assuntos de
maneiras diferentes, se a gente não desconfiar, não questionar, a gente
vai comprar muito gato por lebre?
Ana: Não estou entendendo o que você quer dizer, Laura...
Laura: Estou dizendo que, atualmente, tem circulado muita notícia
falsa, que parece real, mas foi inventada. Sabe, Ana, minha filha é
parecida com a sua. Sempre muito atenta a tudo que lê. Um dia desses
ela veio me dizer que dá para ler imagens e que a gente tem que “ler se
lendo”. Nós duas então passamos um bom tempo conversando sobre
como o mundo realmente tá mudando e eu não sei mais se ainda tenho
tantas saudades daqueles velhos tempos...

41
A LINGUAGEM NA VIDA

As duas amigas continuam engajadas na conversa por mais alguns


minutos, antes de se despedirem, trocando telefones para criar um grupo
no WhatsApp e rememorar os velhos tempos.

O diálogo que abre este capítulo ilustra uma situação comum


em nosso cotidiano: encontros recheados de lembranças sobre a época
escolar das pessoas. Enquanto uma colega elogia a maneira como foram
educadas e tece comentários nostálgicos sobre o período escolar (“Que
saudades da nossa turma”; “Que saudades do respeito que os alunos
tinham pelos professores!”; “Ninguém dava um pio nas aulas.”), a outra,
mesmo demonstrando saudades, aponta questionamentos sobre aquele
período (“[...] fiquei pensando que o mundo realmente está mudando
e eu não sei mais se ainda tenho tantas saudades dos bons tempos.”).
Enquanto uma parece não gostar que aconteçam discussões em sala de
aula, nem do fato de as alunas terem espaço para se expressarem (“Pra
mim, essa história de pensamento crítico é o que está virando esse mundo
de cabeça pra baixo.”), a outra valoriza a possibilidade de debates e
de posicionamentos distintos (“O mundo está mudando. Os jovens
têm mais confiança para expressar suas opiniões. Isso é bom, não é?”).
Acreditamos que um exame atento da conversa nos ajuda a refletir
sobre as lentes usadas por cada uma das colegas para interpretar o
mundo de maneiras tão distintas. Talvez você esteja se perguntando o
que a linguagem tem a ver com isso.
Pois bem: como explicamos no primeiro capítulo, entendemos
que a linguagem e nossas experiências no mundo fazem parte de
quem nós somos; desse modo, nossos pensamentos, emoções, mentes
e corpos são formados em nossas vivências, que por sua vez formam
quadros de referências a partir dos quais agimos. Cenas como essa
entre as colegas são de interesse dos estudos da linguagem, porque são
pautadas em compreensões distintas de educação, leitura e linguagem,
e podem nos ajudar a construir outros entendimentos sobre situações
do nosso cotidiano, como essas trazidas na narrativa apresentada.
Neste capítulo, vamos abordar dois temas relevantes aos
estudos da linguagem: a noção de leitura e a de letramentos. Para
discutirmos esses temas, partimos do princípio de que alguns dos
objetivos da escola devam ser que o processo educacional contribua

42
A LINGUAGEM NA VIDA

para que estudantes: a) aprendam a conviver com o diferente de forma


ética e responsável; b) entendam que nossas ações são sociais; por
isso, também são políticas; c) percebam que nossas compreensões
são contextualizadas e contingentes, pautadas em entendimentos e
vivências diversas, e que as linguagens (verbal, visual, sonora, auditiva,
emocional, corporal) têm papel fulcral neste processo, como veremos
em mais detalhes no terceiro capítulo. Então cabe nos perguntarmos:
será que as perspectivas de educação e leitura das participantes da
narrativa possibilitam alcançar tais objetivos?

O que entendemos por leitura?

Iniciamos o capítulo anterior com uma discussão sobre os


diferentes entendimentos de linguagem. Naquela discussão, buscamos
deixar claro nosso posicionamento de que entendimentos de linguagem
enquanto língua, ou seja, como um instrumento de comunicação entre
duas ou mais pessoas, ou como um sistema de estruturas determinadas a
priori, são bastante limitados. Isso porque, como explicamos, a língua,
para nós entendida como linguagem, constitui quem somos, e com
ela construímos não apenas significados, mas identidades, relações,
emoções, dentre diversas outras coisas. Pensemos novamente em
como a linguagem constrói identidades e relações, como ilustrado com
o exemplo de “Bom dia” no capítulo anterior.
É importante lembrar que essas relações e identidades nem
sempre são tão positivas como no caso do exemplo de “Bom dia”. Em
tempos de trocas em mídias sociais, fica cada vez mais evidente o poder
destrutivo da linguagem no que se refere a identidades e relações. O uso
de fake news pode destruir a imagem pública de pessoas importantes,
por exemplo; assim como imagens e ideias que as pessoas postam em
suas redes podem criar para si identidades pouco favoráveis, o que
pode afetar suas relações com outras pessoas.
Vimos também que a linguagem se constitui contingencialmente
nas interações que temos com o mundo, sendo portanto, mutável,
aberta a alterações tanto momentâneas (ou seja, que ocorrem apenas
em uma determinada situação de interação e não se repetem), como
mais duradouras (mudanças que se generalizam e passam a fazer
parte do linguajar de uma comunidade inteira, por exemplo). Basta

43
A LINGUAGEM NA VIDA

olharmos para as gírias, e como algumas delas permanecem e outras


desaparecem: elas marcam identidades, definem o pertencimento de
alguém a certa comunidade, a certa faixa etária, ou mesmo a certa classe
social. Modos de falar são bons exemplos de como as mudanças podem
ser temporárias (quem viveu nos anos 60 e não lembra do “É uma brasa,
mora”?), ou podem vir para ficar, como é o caso de “cara”. Também na
escrita tais mudanças ocorrem: lembremos das abreviaturas usadas
em trocas de mensagens na Internet (como “vc”, “pfv”, “obg” e tantas
outras) e das reformas ortográficas, para citar dois exemplos.
Neste capítulo, beberemos um pouco das reflexões apresentadas
sobre linguagem anteriormente para discutirmos o que está envolvido
em nossas práticas de leitura. Observemos os seguintes enunciados de
Ana:

“A gente prestava atenção, copiava o que estava no quadro


e estudava.”; “Passava noites memorizando conteúdos.”;
“Hoje parece que o que menos interessa é a matéria que eles
ensinam.”

“Hoje vejo minha filha adolescente falar que é importante ter


pensamento crítico, que não dá para confiar cegamente no
que a gente lê. Sei não. Pra mim, essa história de pensamento
crítico é o que está virando esse mundo de cabeça pra baixo.
Que história é essa que não dá para confiar no que a gente
lê?! Você não imagina o que aconteceu outro dia! Não é que
minha filha veio dizer que eu estava compartilhando fake
news no grupo de WhatsApp da família!”

Quando Ana fica indignada diante da possibilidade de não


poder “confiar no que a gente lê”, depreendemos um entendimento de
leitura como decodificação, decifração de textos e de educação focada
exclusivamente em conteúdos selecionados a priori, os quais devem
ser memorizados pelas aprendizes. O que seria exatamente entender
leitura como decodificação e decifração de textos? Primeiramente,
tal ideia compreende a leitura como sendo a identificação de letras, a
associação dessas letras com determinados sons da fala, a construção
de sílabas a partir da junção de diferentes letras, e, posteriormente,
a memorização e o reconhecimento de palavras diversas às quais se

44
A LINGUAGEM NA VIDA

pensam estar associados significados específicos. Isso seria o que


se entende por decodificar. A decifração de textos, por sua vez, diz
respeito ao entendimento de que cada texto traz em si um sentido
que foi construído pela sua autora, que deve ser compreendido, tal e
qual, pela leitora. O papel da leitora, assim, é passivo, uma vez que
a ela cabe o simples trabalho de decodificar palavras isoladamente e,
mais tarde, agrupar os significados de cada palavra de modo a chegar
à “compreensão” do texto. Nesta maneira de entender o que é ler,
portanto, pouca atenção é dispensada às ideias geradas no ato da
leitura de um texto e, assim, a leitora é simplesmente a receptora de
um sentido que supostamente já fora atribuído ao texto previamente.
Decodificação e decifração dominaram o trabalho com
alfabetização no Brasil por décadas. Baseado num processo de
alfabetização pela imagem, tal trabalho começava com a apresentação
das letras associadas a imagens, como em “abelha”, na qual a letra A
aparecia inserida na imagem de uma abelha. Depois de reconhecidas as
letras, o foco recaia na silabação e, nos anos seguintes, o trabalho com
leitura focava na decodificação, com atividades de busca de informação
factual que supostamente estaria dentro dos textos. Vamos pensar, por
exemplo, sobre a história da Branca de Neve e os Sete Anões. Num
livro didático que partisse da concepção de leitura como decodificação,
provavelmente, encontraríamos uma atividade desse tipo:

Leia o texto e responda:

1. Quem era a personagem principal da história?


2. O que ela comeu?
3. O que aconteceu com ela?
4. Como se chamava cada um dos Sete Anões?
5. Quem era a inimiga da personagem principal?
6. A história acontece no presente ou no passado? Copie do texto
três exemplos de verbos para comprovar sua resposta.

45
A LINGUAGEM NA VIDA

Apesar de serem comuns, perguntas como essas apenas


desenvolvem a habilidade das leitoras em localizar informações no
texto. Esse entendimento de leitura, em que somente uma resposta
parece possível, não reconhece nem valoriza as interpretações que
cada leitora constrói com o texto. A compreensão dos sentidos aqui é
baseada no que é estabelecido como correto por alguém com autoridade
para tal (a autora do livro didático e/ou a professora, por exemplo). É
como se textos fossem entendidos por todas as pessoas de uma única
maneira.
Essa visão de leitura se aproxima bastante da visão de educação
bancária, como vimos no capítulo anterior, em que a função da escola,
e da professora, seria depositar nas cabeças das alunas conteúdos
avaliados a priori como imprescindíveis para a compreensão do mundo
como ele supostamente seria, independentemente do contexto das
alunas, da professora, da escola. A falta de espaço para discussões
e questionamentos seria natural, pois o objetivo do ensino seria a
transferência técnica de conhecimentos incontestáveis, ou pelo menos
incontestavelmente presentes nos textos, desconsiderando questões
sociais, históricas, emocionais, cognitivas, que poderiam influenciar o
processo de atribuição de sentidos aos textos e aos conhecimentos que
supostamente estariam contidos neles.
No caso do trabalho com línguas, por exemplo, importaria
trabalhar com um conjunto de vocábulos e regras, de modo
cumulativo, do simples para o complexo, e ensinar como decodificar
os textos escritos, ou seja, como encontrar neles os sentidos que se
supõe que a autora tenha inserido neles. Esse olhar para a educação
informa compreensões como a de Ana, na narrativa que abre este
capítulo, o que a leva em defesa da época em que professoras falavam
sem serem interrompidas ou questionadas e que, para aprender, era
preciso despender muito tempo memorizando conteúdos. Claro: se só
importam os significados que as autoras dos textos imprimem a eles,
e se esses significados estão fixados nos textos, independentemente
de quem os lê, então não há discussão cabível. Como disse Laura em
referência à sua própria escolarização, “É assim porque é, e pronto!”.
Ponto.

46
A LINGUAGEM NA VIDA

Mas para nós, em vez de “ponto”, é “vírgula”. Conforme estudos


em educação linguística, mais especificamente sobre processos de
ensino e aprendizagem, o processo de ler acontece de forma mais
complexa do que a simples decodificação e decifração de sentidos que
tenham sido atribuídos aos textos antes de cada situação de leitura.
Para nós, há várias dimensões a serem observadas quando pensamos
em práticas de leitura. Todas elas têm implicações importantes sobre
nossos processos de construção de sentidos.
Uma dessas dimensões está associada a quem desempenha o ato
de ler. É importante ter em mente que ao ler (e até mesmo antes de ler)
um texto, as leitoras fazem inferências a partir de seus conhecimentos
prévios. Tomemos como exemplo a capa do seguinte livro infantil,
escrito por Lenira Almeida Heck, ilustrado por Adriana Dessoy e
disponível no Portal Domínio Público.
Ao simplesmente olhar para a capa
do livro exibida ao lado, leitoras de várias
idades poderão inferir sobre a história
que irão ler: sobre suas personagens, seu
enredo, seu contexto/ambiente, o tom
da história (se será feliz ou triste, por
exemplo), dentre diversos outros fatores.
Essas inferências são construídas com base
nas experiências prévias e nas relações
que cada leitora estabelece com aquilo que
lê. Inferir não significa que serão capazes
de saber a história antes de lê-la (ou de
alguém lê-la para elas), mas que serão capazes de fazer suposições, dar
palpites sobre a história, prevendo o que poderá acontecer durante a
leitura do livro. Dizer que fazemos inferências ao lermos significa, por
exemplo, que não estamos apenas decodificando e decifrando sentidos
pré-estabelecidos, mas que o processo de ler envolve ativar vivências
anteriores, criar expectativas, construir hipóteses, checar se essas
hipóteses que fazemos sobre determinada leitura (antes e durante o
contato com o texto impresso) se confirmam ou não, e tomar decisões

47
A LINGUAGEM NA VIDA

sobre o que nos interessa e o que não é tão importante assim para cada
uma de nós.
Uma outra dimensão da prática de leitura se refere ao que é
percebido como texto. A construção dos sentidos acontece para além
das letras, sílabas e palavras que encontramos. Ela se relaciona com
elementos visuais e sensoriais como imagens, cores, texturas, formas,
cheiros, sabores, etc. Muitas pessoas se encantam, por exemplo, com o
cheiro de um livro novo, com a textura de determinado tipo de papel,
não é mesmo? Nossas experiências de leitura e de vida, nosso estado
físico, mental, emocional fazem parte de cada leitura, como apontamos
acima ao pensarmos em quem realiza a leitura. Em outras palavras,
a leitura é construída em várias dimensões simultâneas, a partir de
vários elementos e das formas como concebemos esses elementos
com base em nossas experiências anteriores, e também de como nos
sentimos no momento de cada ato de ler.
Não estamos com isso dizendo que qualquer entendimento seja
válido ou correto pelo simples fato de a leitora trazer para a leitura suas
interpretações. Dizemos, sim, que mais de um entendimento sobre
um texto, a partir das vivências das leitoras e de cada experiência de
leitura, é possível. O mais importante é aprendermos a identificar os
elementos que indicam quando uma leitura é válida ou não, ou melhor,
quando uma interpretação será aceita socialmente, no contexto em
que a leitura é realizada.
Dessa forma, entendemos ser papel da escola oportunizar
espaços em que as alunas leitoras se sintam capazes de construir
sentidos, de conversar com os textos que lêem, de trazê-los à vida; e
para que também sejam capazes de entender e explicar de onde vêm os
sentidos que elas estão atribuindo aos textos, por que elas entendem
determinado texto de certo modo, e por que outras pessoas podem
(e provavelmente irão) entender de outras formas. Isso sem falar na
riqueza em conversar com outras leitoras sobre as implicações desses
sentidos, sobre as pessoas, sobre as consequências que os sentidos têm
no mundo, sobre como alguns sentidos fazem bem, e outros não. Para
nós tais conversas são, ou deveriam ser, a cereja do bolo da atividade
de leitura, tanto na escola quanto na vida.

48
A LINGUAGEM NA VIDA

Em nossa experiência como professoras e leitoras, essa


perspectiva de leitura é diferente daquela muitas vezes praticada
no ensino formal, com provas escolares concebidas de forma mais
tradicional, principalmente nas famosas questões de múltipla escolha
nas quais os sentidos de certo e errado estão pré-determinados. Vale
lembrar aqui o caso do cantor Nando Reis, que discordou do gabarito
de duas questões de uma prova de vestibular que se baseavam em
uma de suas canções. Em um show subsequente, o cantor chegou a
ironizar o fato quando disse ao público: “Vou Te Encontrar, ao vivo,
sem reticências e com resposta de sua livre escolha”1. Para ele, assim
como para nós, a “escolha” de uma múltipla escolha não é “livre”, uma
vez que restringe as possibilidades de sentidos para a música.
A última dimensão do processo de leitura que destacamos diz
respeito à nossa compreensão de que ler é uma atividade social, e
que, portanto, vai além de compreender e interpretar as linhas e as
entrelinhas de um texto. Como já sinalizamos anteriormente, Paulo
Freire critica a abordagem que foca na transmissão de conteúdos e na
decodificação de enunciados aparentemente neutros, como Eva vê a
uva. Para Freire, seria preciso problematizar o que é lido, refletindo
sobre, por exemplo, quem plantou as uvas e quem lucra com isso. Seria
indispensável compreender posições sociais e entender que conhecer
e saber são parte integral de nossa personalidade, nossa constituição
cidadã. Vemos aqui a distinção entre leitura como decodificação e o que
chamamos de leitura a partir da palavra-mundo. Enquanto a primeira
perspectiva ocupa-se em ensinar a língua de forma neutra, apolítica,
atemporal, a segunda entende que a linguagem é social e, portanto,
está sempre carregada de valoração, ou seja, de ideologia. Numa
analogia com o ensino de ciências, por exemplo, a primeira perspectiva
seria o equivalente a que as alunas memorizassem a fórmula da água,
H2O, e pronto. Na segunda, as alunas discutiriam sobre os sentidos da
água em suas vidas e nas vidas de outras pessoas, podendo conversar
sobre as implicações da poluição ambiental e também sobre questões
econômicas e sociais que lhes permitem ter água potável e saneamento
básico, muitas vezes inacessíveis a outras pessoas, por exemplo. Ao

1 <https://twitter.com/nando_reis/status/941361327150387202>.

49
A LINGUAGEM NA VIDA

discutir tudo isso, aprenderiam a fórmula da água como uma espécie


de efeito colateral de toda essa problematização. Estariam, desse
modo, operando na perspectiva da palavra-mundo, que não separa o
entendimento da palavra do entendimento do mundo; ou seja, a idéia
de palavra-mundo enfatiza a relação entre a leitura da palavra e a
leitura do mundo.
Essa prática de ler a palavra e o mundo se refere também a ler
e buscar entender as realidades que nos constituem. Queremos dizer
com isso que o ato de ler não é independente da própria leitora nem
do mundo (do contexto social, cultural, ambiental, etc.) onde ela está
inserida. Pelo contrário, a leitura traz consigo a importância de que
possamos refletir e dialogar sobre nossas próprias vivências em cada
um dos nossos contextos – com a uva, com a fome, com a água, com a
falta de água, com as borboletas, plantas e demais elementos da fauna
e flora (no caso da leitura do livro A Borboleta Azul, ilustrado acima), e
com nossas relações com cada um desses elementos.
Por isso importa, e muito, compreendermos o que são letramentos
e como eles se diferenciam de alfabetização, em nossa concepção de
leitura. Vamos, então, a essa questão.

O que entendemos por letramentos?

Nosso entendimento sobre leitura, como pudemos ver na seção


anterior, é diferente daquele que informava (e, em alguns casos, ainda
informa) os processos de alfabetização em várias escolas brasileiras.
Em nossa concepção de leitura o papel protagonista é da leitora,
principal encarregada na produção de significados.
Para entender melhor essa perspectiva, precisaremos adentrar
aqui na discussão sobre autonomia e ideologia, que embasa nossa
compreensão de linguagem e leitura. Vimos anteriormente que o
processo de alfabetização percebe o contato com a leitura da palavra
de forma isolada de questões sociais, como se os textos fossem um
amontoado de sinais aos quais existem sentidos fixados previamente,

50
A LINGUAGEM NA VIDA

sentidos que um bom processo de leitura reconheceria e reproduziria. E


voilá, temos uma boa leitora. Ponto.
Mas, como já dissemos, em nossa concepção, é “vírgula” e não
“ponto”. Não entendemos esse modo de ler como caracterizando
uma boa leitora, mas uma leitora conformada a reproduzir sentidos
disponibilizados a ela. Uma leitora passiva, cordata, que reconhece e
reproduz. Para nós, uma boa leitora é aquela que produz sentidos, que
dialoga com os textos, que se transforma no contato com eles. Essa
forma de entender a leitura se relaciona, nos estudos da linguagem,
com o que entendemos por letramentos. Assim, letramentos são
sempre ideológicos. Isso quer dizer que, como processos de produção
de sentidos no mundo, nossas práticas de leitura nunca são apenas
da palavra, mas sempre da palavra e do mundo, juntos, em processos
interpretativos carregados de valores e relações de poder: lemos
sempre a palavra-mundo, como vimos anteriormente.
Quando pensamos em letramentos, entendemos que a produção
de sentidos vem sempre ancorada em procedimentos que se situam
em contextos específicos, procedimentos que são construídos,
valorados e hierarquizados socialmente por determinados grupos
de pessoas. Os conteúdos escolares, por exemplo, não são escolares
por acaso: algumas parcelas da sociedade sancionam tais conteúdos
como sendo (mais) relevantes para serem ensinados e com o passar
do tempo, vamos esquecendo que eles foram escolhidos, e passamos
a vê-los como se fizessem naturalmente parte dos currículos. Foi o
caso, por exemplo, das disciplinas de Educação Moral e Cívica e OSPB
(Organização Social e Política do Brasil), obrigatórias nos currículos
em 1969, em substituição à Filosofia e Sociologia durante o período da
ditadura no Brasil. Mais recentemente, essas duas últimas disciplinas
foram novamente retiradas do currículo, como se tivessem deixado de
ser relevantes. Tais movimentos de retirada e inclusão de disciplinas
se ancoram em ideologias específicas, ou seja, ações, atitudes,
comportamentos, pensamentos, interpretações se realizam a partir das
lentes que utilizamos, das visões de mundo construídas socialmente
em nossas vivências em diferentes contextos. Por isso, longe de
serem neutras, são sempre construídas ideologicamente, a partir de

51
A LINGUAGEM NA VIDA

valores específicos. Com isso estamos dizendo que todas as pessoas


têm ideologias, uma vez que nossas perspectivas são construídas de
acordo com certos quadros de referência e não caem do céu. Veremos
melhor essa questão no próximo capítulo. Por ora, voltemos a nossos
letramentos.
Ao pensarmos em letramentos como sendo sempre ideológicos,
percebemos que algumas formas de ler e construir sentidos são
dominantes e outras são marginalizadas. Infelizmente, a escola por
vezes tem sido um espaço que privilegia conhecimentos associados a
grupos sociais dominantes, invisibilizando e/ou inferiorizando aquilo
e aquelas que não fazem parte desses grupos. Desse modo, a escola,
muitas vezes, perde a oportunidade de fazer contato com uma enorme
variedade de conhecimentos que poderiam contribuir para um mundo
mais plural e assim mais inclusivo e acolhedor.
Tal valorização de certos letramentos, em detrimento de outros,
no espaço escolar e a compreensão desse trabalho como neutro e
imparcial reforçam formas específicas de ser, saber e poder, contribuindo
para a manutenção de certo status quo, que privilegia uma parcela da
população, discriminando e autorizando a desvalorização de outras
formas de existência dentro ou fora do espaço escolar. As formas de
contar uma história, por exemplo, são várias, mas quando a escola
legitima apenas alguns modos de contar, certas formas de organizar
os acontecimentos no tempo, de marcar mudanças temporais e, com
isso, inferioriza e invisibiliza outras formas, ela deixa de ser inclusiva
e silencia modos de narrar que existem fora desse conjunto pré-
determinado. Essas escolhas não são neutras, mas sim ideológicas.
Nessa altura, você deve estar se perguntando que coisa é essa
de letramentos, o que isso tem a ver com leitura e com linguagem.
Tem tudo a ver. Praticamente tudo o que discutimos até agora se
relaciona ao que entendemos como letramentos. Quando falamos em
letramentos estamos nos referindo a práticas sociais de linguagem, ou
seja, às formas em que existimos na linguagem nos diversos contextos
de que fazemos parte, dentro e fora da escola. Assim, letramentos vão
para além do que se diz ou do que se lê, englobando comportamentos,
atitudes, pensamentos, procedimentos, conhecimentos relacionados

52
A LINGUAGEM NA VIDA

aos espaços onde vivemos. Letramentos são protocolos, são coisas


ditas e não-ditas que informam nossas ações em contextos específicos
e que nos possibilitam interagir, compreender, transformar estruturas
que regulam nossas práticas sociais. Letramentos envolvem também
nossos contatos com livros, com ideias, com pessoas, com animais,
enfim, com seres de toda sorte. Ou azar.
Você já atentou para como a gente reconhece quando uma pessoa
é recém-chegada numa rede social com que estamos acostumadas, por
exemplo? Pode ser que seja porque ela não segue o “protocolo” não dito,
aquelas “regras” de comportamento que a gente nunca comenta mas
segue sem nem perceber? Isso também ocorre em jogos de videogame
online; jogadoras experientes logo percebem os comportamentos “não-
comuns” de novatas. Podemos pensar também nos comportamentos
característicos de núcleos familiares, e de como eles mudam de uma
família para outra. Tudo isso envolve letramentos, uma vez que estão
em jogo nossas percepções sobre os ambientes em que estamos, as
pessoas e/ou objetos, plantas e animais com os quais interagimos,
como entendemos quais os tipos de comportamento esperados e como
respondemos a eles, por exemplo. Consequentemente, falamos em
letramentoS para destacar a multiplicidade dessas práticas.
No contexto escolar, as práticas de letramento também seguem
determinados protocolos,ou seja,é preciso conhecer os comportamentos
e atitudes que as caracterizam para poder se sentir à vontade dentro
delas, ou mesmo para poder questionar tais práticas. A escola, nesse
sentido, muitas vezes reconhece melhor as práticas de letramentos
de certas comunidades do que de outras. Não apenas reconhece, mas
também legitima. É importante percebermos quem está inserida nesses
letramentos e quem não está. Além disso, os letramentos privilegiados
em determinadas escolas podem ser diferentes daqueles privilegiados
em outras, pois letramentos são práticas situadas, contingentes.
Muitas vezes a escola penaliza as alunas que não correspondem aos
letramentos escolares legitimados por ela, rotulando-as como más
aprendizes quando elas estão simplesmente aprendendo de forma
diferente, ou mesmo quando os conteúdos e as práticas escolares não
são desafiadoras ou não fazem sentido para elas.

53
A LINGUAGEM NA VIDA

Uma das práticas de letramento extremamente importante


para a formação da cidadania é o que temos chamado de letramento
crítico, ou seja, uma atitude crítica. Voltemos a esse trecho no final da
conversa entre Laura e Ana, em que Laura pergunta:

Ana, você não acha que, com a Internet e a quantidade de textos


que surgem a todo momento tratando dos mesmos assuntos de
maneiras diferentes, se a gente não desconfiar, não questionar,
a gente vai comprar muito gato por lebre?

Laura não quer comprar gato por lebre, então ela pede que a
amiga desconfie, questione. Nós diríamos que Laura está sugerindo a
Ana que desenvolva seu pensamento crítico.
Ler criticamente exige, cada vez mais, que consideremos a
justaposição de diversas culturas, modos de pensar, maneiras de existir
no mundo. Essa complexidade aparece ainda mais evidentemente agora
do que em outras épocas, e portanto se torna inegável; não podemos
ler o mundo de forma ingênua, como dizia Paulo Freire. Reconhecer
essa diversidade constitutiva do mundo contemporâneo nos impede
de sequer imaginar que os sentidos sejam “dados” e “incontestáveis”.
No entanto, quando Ana protesta dizendo “Que história é essa que não
dá para confiar no que a gente lê?!”, ela está remetendo à ideia de que
existiriam sentidos contidos no texto, e que esses sentidos deveriam
ser resgatados na leitura, independentemente das outras dimensões
da leitura que já vimos neste capítulo.
Paulo Freire afirma que esta maneira de ler, pressupondo a
decodificação e a decifração, é uma maneira ingênua de se relacionar
com a linguagem, e precisa ser substituída por uma forma de ler mais
rigorosa. Tal forma de ler não pode deixar de se pautar num processo
constante de reflexão crítica, em que o ato de produzir sentidos
na leitura se coloca num processo contínuo de questionamento,
movimento no qual as leitoras se indagam incessantemente sobre os
procedimentos de leitura de que lançam mão para entender os textos.
No caso da afirmação de Ana sobre “confiar” no que se lê, uma forma
crítica e produtiva de ler seria, por exemplo, se perguntar:

54
A LINGUAGEM NA VIDA

• Quais as características que eu percebo no texto compartilhado


que me levam a acreditar nele?
• Com base em quais experiências e leituras anteriores, eu percebo
essas características como estando presentes no texto?
• Quais outras formas de ler esse texto poderiam existir? Existe
mais alguém que esteja entendendo o texto como eu? Por que
leio da forma como leio?
• Que relações tem esse texto com acontecimentos históricos,
políticos, sociais, econômicos – recentes ou distantes no tempo?
• Como esse texto se relaciona com outros textos de quem o
assina? A autora me parece ser coerente com o que escreveu em
outros textos?
• Em que situação esse texto foi escrito (em casa, ao longo de
vários dias, em reação a algum acontecimento recente, no calor
da notícia, durante um ano inteiro, etc.)?
• Em que situação esse texto está sendo lido (logo após
tomar conhecimento de uma notícia, alguns anos após um
acontecimento a que o texto se refere, antes de ter lido outros
textos sobre o mesmo assunto, etc.)?
• O grupo social ao qual pertence a autora do texto é o mesmo
grupo social ao qual eu pertenço?
• Quando compartilho esse texto, por que faço isso?
• Que impactos, desdobramentos este texto pode causar em mim e
nas pessoas com as quais compartilho?

Esses são alguns dos questionamentos que podemos fazer


quando lemos de modo crítico, colocando-nos como corresponsáveis,
juntamente com as comunidades em que existimos, pelas construções
de sentidos no ato de ler (e escrever), por nossas interpretações,
reconhecendo que elas inevitavelmente estarão atreladas aos nossos
juízos de valor. Tais juízos são estabelecidos a partir dos sentidos
legitimados e compartilhados pelas coletividades, pelas comunidades
às quais pertencemos, nas quais vivemos antes e agora.

55
A LINGUAGEM NA VIDA

Não estamos dizendo que essas questões deveriam ser abordadas


com qualquer texto em qualquer situação de leitura. Como dissemos
antes, letramentos são práticas contextualizadas, situadas, que
dependem dos espaços em que acontecem e das pessoas que existem
neles. Tomando esses questionamentos, podemos pensar em como
faríamos uma leitura crítica da história da Branca de Neve, por
exemplo, numa sala de aula do segundo ano do Ensino Fundamental I.
Poderíamos discutir as seguintes questões:

• Você gosta dessa história? Por quê?


• Você gostaria de ser a Branca de Neve? Por quê (sim/não)?
• Você gostaria de ser a bruxa/madrasta? Por quê (sim/não)?
• Quais as opiniões de suas colegas sobre a Branca de Neve? E
sobre a bruxa/madrasta? Por que será que elas acham isso?
• Você relaciona essa história com outras que você conhece?
• Essa história tem alguma coisa a ver com sua vida fora da
escola?
• Vamos imaginar uma história diferente entre a Branca de Neve
e a madrasta? Imagine as duas como parceiras. Que perguntas
elas poderiam fazer para o espelho mágico?

O conjunto de percepções, crenças, desejos, modos de ver o


mundo, valores, etc., ou seja, o que nos constitui, o que somos e em que
acreditamos, influencia as nossas construções de sentidos e podem nos
indicar os motivos pelos quais interpretamos um texto de uma forma
e não de outra; quais são as nossas convicções sociais em relação aos
grupos sociais aos quais pertencemos – a comunidade profissional,
religiosa, familiar, escolar. É neste sentido que o processo crítico de
“ler se lendo”, como disse a filha da Laura, na narrativa de abertura
deste capítulo, se torna um exercício fundamental para a vida em
sociedade. Em nosso entender, pessoas de qualquer idade são capazes
de tornar discussões como essas em espaços de grande aprendizagem

56
A LINGUAGEM NA VIDA

sobre a vida, sobre o mundo. Não existem respostas certas ou erradas:


são perguntas para fomentar discussões e reflexões sobre quem somos,
quem são as outras pessoas em nosso entorno, e assim desenvolver
uma visão plural e inclusiva, que se abre para quem pensa diferente
de nós. A escola, na perspectiva do letramento crítico, é um espaço
privilegiado para a formação cidadã que promove a convivência com
as diferenças.
O crítico do letramento crítico que mencionamos acima está,
portanto, atrelado a um processo de questionamento constante, não
somente sobre as realidades percebidas nos textos e discursos nos quais
circulamos, mas também sobre as interpretações que construímos.
Nossas interpretações são geradas em relação a entendimentos sociais,
e por isso são sempre situadas, relativas a espaço e tempo específicos,
pautadas em várias dimensões da nossa existência, ou seja, sempre
contingentes.
Um aspecto que gostaríamos de retomar, presente também na
narrativa de abertura deste capítulo, mais especificamente na fala de
Laura, diz respeito ao trabalho com imagens, ou letramento visual,
em sala de aula. Lembremos quando ela comentou com surpresa o
fato de a filha dizer que é possível ler imagens. Talvez a surpresa de
Laura estivesse no fato de podermos “ler” uma imagem; talvez no fato
de que sua filha tivesse desenvolvido tal percepção aguçada sobre a
linguagem. De qualquer modo, entendemos, juntamente com a filha
de Laura, que imagens também precisam ser lidas e, como qualquer
outra forma de linguagem, é necessário entender que elas não são
imparciais ou neutras, nem têm a intenção de ser. Uma imagem é uma
leitura realizada por alguém: uma fotógrafa, uma pintora, uma artista
plástica, uma designer gráfica.
As imagens também têm autoria, como os textos verbais; elas
também são textos na medida em que as entendemos como unidades
de sentido. Assim, as leituras que fazemos das imagens, assim como
dos textos verbais conforme vimos acima, dependem do olhar e das
intenções de quem as produz, mas também precisam de uma reflexão
crítica partindo de um olhar não ingênuo, um olhar que leve em
conta o “ler se lendo”. Decisões sobre enquadre, ângulo, plano de

57
A LINGUAGEM NA VIDA

fundo e posicionamento, por exemplo, interferem nos efeitos que


uma imagem pode causar em quem a lê. Em uma sociedade cada vez
mais dinâmica, plural e com várias tecnologias de produção textual
(analógicas e digitais), pensar em texto como sendo verbal e/ou não-
verbal permite considerar a leitura como uma prática para além das
palavras impressas, assim como pensar em letramento vai muito além
de pensar em decodificação e decifração de textos.
Na verdade, a ideia de letramentos costuma ser expandida
para pensarmos em como todos os nossos sentidos contribuem nos
processos de leitura. Inclusive, é importante ressaltar que pessoas com
pouca ou nenhuma visão, com dificuldade de ouvir ou surdas, também
lêem, também produzem sentidos com seus sentidos. Isso significa
que ler é uma atividade que não está limitada à palavra impressa, ao
verbal, ao visual: ao ler, lançamos mão de qualquer recurso disponível
na linguagem.
Por isso, modos de ler tradicionais, baseados na palavra impressa,
não são adequados para formas de ler e interpretar o mundo, ainda mais
quando se consideram textos em dispositivos móveis ou diferentes
tecnologias de comunicação e informação que usamos atualmente.
Várias pesquisadoras da área de estudos da linguagem afirmam que
os modos de ler e de produzir textos em meios digitais são diferentes
daqueles que usamos no meio tipográfico. Práticas contemporâneas
educacionais precisam levar em conta as características das práticas de
linguagem atuais nas quais produzimos sentidos para além daquelas
do mundo tipográfico, com o uso dos mais diversos recursos presentes
no nosso cotidiano.

Afinal, por que tratar de leitura e de letramentos?

Na narrativa de abertura deste capítulo, Laura nos faz pensar


sobre como a educação tem buscado responder às práticas de leitura
em que vivemos. Talvez para Laura seja importante e necessário
desenvolver em sala de aula práticas voltadas para as realidades das
alunas, valorizando a pluralidade de conhecimentos e modos de ver

58
A LINGUAGEM NA VIDA

o mundo que existem também fora da escola; talvez Laura queira


fazer da educação de suas alunas um exercício de diálogo que as leve
a respeitar o direito de ser e existir de diferentes maneiras no mundo,
bem como a valorizar essas diferenças. Sim, talvez para Laura a escola
seja o lugar de aprender com o que é diferente de si, de crescer nessa
aprendizagem, de conviver com a produtividade do encontro, mesmo
que geralmente conflituoso, com modos diversos de pensar, ser, fazer.
Acreditamos que Laura possa pensar na escola dessa forma.
Desejamos que Laura pense assim, pois, como professora, ela aceitará
em sua sala de aula os jeitos peculiares de existir que identificam
nossas filhas, sobrinhas, primas como pessoas únicas que são. Se Laura
estiver pensando dessa forma, ela estará compartilhando conosco o
que entendemos como letramento crítico. Nossas leituras sobre o que
pensa Laura, como toda e qualquer leitura, são situadas, contingentes
e emergem da maneira como entendemos a linguagem e seu impacto
em nossas identidades e práticas sociais. São leituras desejosas de
uma escola acolhedora para todas, repleta de diferentes linguagens e
democrática, que ensine a conviver. Não sabemos com certeza se Laura
pensa assim, mas são essas compreensões cheias de esperança que
atribuímos aos comentários da professora Laura, e que gostaríamos de
também atribuir ao trabalho com leitura Brasil afora.

59
A LINGUAGEM NA VIDA

LINGUAGEM E (DES)HUMANIDADE NAS


REDES SOCIAIS

Assim que Laura termina suas aulas online após um longo dia de
trabalho, ela confere suas mensagens de WhatsApp enquanto degusta
um bom café feito em casa. Nisso, Laura se envolve em uma conversa
no grupo da família.

Andréia
Vocês viram essa história de um novo vírus
e a campanha para ficarmos em casa, né?
#FicaEmCasa. A minha chefe, Dra. Vanessa,
mandou avisar. A Laura já está dando
aulas online faz duas semanas!

Marcelo
Ficar em casa? Como assim? Vamos fazer a
economia parar. #BrasilNãoPodeParar.

João
Pois é, como vamos fazer isso? Só as
escolas é que vão conseguir! E os pais
que trabalham? O que vão fazer com as
crianças?

Andréia
Gente, precisamos manter o isolamento.
É hora de parar, de ficar em quarentena e
proteger a todos nós. Quem pode, precisa
trabalhar à distância. Quem trabalha em
serviços essenciais, como Júlia e Alison,

60
A LINGUAGEM NA VIDA

vão trabalhar, tomando os cuidados


necessários. #FicaEmCasa.

Pedro
Será mesmo que precisamos ficar em
casa? Eu estou em casa há uma semana e
não aguento mais. Ficar trancafiado por
causa de uma gripezinha não faz sentido.
Além disso, vejam os encontros entre
Doria, Lula, FHC etc. com os chineses. Será
que não é tudo invenção chinesa?

Laura
Invenção chinesa? Que irresponsabilidade!
#FicaEmCasa. Aproveitem pra perceber o
quanto o corre-corre diário nos absorve
e, muitas vezes, nos distancia dos valores
mais preciosos da humanidade. Curtam
a quarentena e busquem momentos de
reflexão, de conforto e aconchego na
família, nas amizades, na natureza, na arte.
Pelo amor de Deus, é hora de salvar vidas,
de mostrar empatia.

Andréia envia os índices oficiais com número de suspeitos, descartados,


confirmados e óbitos na cidade.

Marcelo
Mas e a economia? Eu enxergo o
lockdown vertical como uma estratégia
para manter pequenos e médios negócios.
Não acha, Laura? #BrasilNãoPodeParar.

Laura
Bem, não sou economista, mas o que sei é
que é preciso encontrar formas de salvar
vidas agora e que temos inconsequentes
mandando todo mundo pra rua. Sabe o

61
A LINGUAGEM NA VIDA

que vejo? Muita desinformação e atitudes


e sugestões inconsequentes. Vamos
presenciar muitas mortes e a economia
entrando em colapso do mesmo jeito.
Quem de nossa família pode morrer
pra manter a economia e para o Brasil
não parar? Precisamos preservar vidas,
como já falei. É hora de termos empatia.
#FicaEmCasa.

Pedro envia um chamado para carreata contra o isolamento social.

Andréia
Oi? Quem de nós vai pra carreata? Depois,
quem vai trabalhar, pegando ônibus
lotado? #FicaEmCasa

Pedro manda um vídeo chamando todos para as ruas, porque o


#BrasilNãoPodeParar.

Laura
Por que carreatas e não passeatas?

Silêncio.

Fernando envia imagem abaixo.1

1 Meme construído a partir de imagens do site Pixabay. As imagens utilizadas, ambas obtidas
gratuitamente, respeitam os Termos de Uso do site.

62
A LINGUAGEM NA VIDA

Laura
Desisto. Isso não era uma disputa
política, mas sim uma discussão sobre o
que devemos priorizar nesse momento.
Cansei. Nessa disputa #FicaEmCasa x
#BrasilNãoPodeParar, algumas perguntas
que não querem calar são: na nossa
família quem pode morrer pra economia
não parar? Que vidas importam? Que
vidas valem ser vividas e quais vidas são
descartáveis? Fica a sugestão para uma
reflexão e vamos ouvir música, meditar,
etc. pra ver se a gente caminha em busca
de um mundo mais humano.

Fernando mudou o nome do grupo para Lula X Bolsonaro.

Essa narrativa remete a trocas comunicativas bastante


familiares a várias de nós, em conversas do cotidiano explicitamente
polarizado em que temos nos sentido inseridas ultimamente. Você já
se perguntou alguma vez que linguagem é essa que usamos em nossas
trocas comunicativas e o que entendemos por dialogar e debater? Ou
o que nos leva a discordar e/ou a concordar com outras pessoas? Ou
ainda, de onde exatamente vêm nossas ideias sobre os mais variados
assuntos e discussões nas quais nos engajamos? Para refletirmos
sobre as complexidades de nossas trocas comunicativas, com base nas
mensagens de WhatsApp entre Laura e seus familiares, vamos abordar
aqui o entendimento de diálogo como sendo sempre uma luta de poder
e uma constante negociação de sentidos, explorando relações entre
ideologia e linguagem, e entre as várias modalidades de linguagem que
constituem nossos processos de comunicação.

O que entendemos por multimodalidade?

Sempre utilizamos mais do que palavras para nos comunicarmos


– na linguagem oral, fazemos uso de diferentes tons de voz, contato

63
A LINGUAGEM NA VIDA

visual, expressão facial, gestos, posturas, etc.; na linguagem escrita,


podemos dar ênfase a certos trechos, por meio do negrito ou do itálico,
e pela forma como a mensagem é visualmente organizada na página.
Mais recentemente, com a disseminação de textos digitais, ampliamos
ainda mais nossos repertórios para nos comunicarmos, pois esses
textos escancaram a presença de diversas modalidades na linguagem,
em qualquer que seja seu suporte – aparelho fonador, ondas sonoras,
tela de computador, para citar apenas algumas possibilidades. Em
nossas trocas de mensagens pelo celular, por exemplo, fazemos uso de
emojis e/ou de outras imagens e sons para produzir sentidos. Nossos
modos de usar a linguagem, ou seja, de linguajar no/com o mundo, nos
indicam que estudar a linguagem é uma tarefa muito mais complexa do
que possa parecer, pois a linguagem é muito mais do que simplesmente
palavras, como também vimos nos capítulos anteriores.
Nesse cenário contemporâneo, algumas áreas nos estudos da
linguagem têm se debruçado com afinco sobre as características
da comunicação, estudando como entendemos e atribuímos
sentidos às coisas do mundo, a partir de diferentes combinações de
recursos diversos: imagens estáticas e em movimento, sons, gestos,
palavras, entre outros. Essas combinações evidenciam portanto a
multimodalidade da linguagem, ou seja, como a linguagem se dá na
combinação de vários modos de produção de sentidos. É interessante
observar que diferentes pessoas podem fazer diferentes combinações
multimodais a partir dos recursos que estiverem disponíveis em suas
comunidades. Outro ponto a observar é que essas combinações não
são naturais ou óbvias; elas são construções a partir de determinadas
visões de mundo e de linguagem, de determinados conhecimentos e
com determinadas intenções e efeitos, nem sempre conscientes ou
racionais, mas sempre causando algum tipo de impressão nas pessoas
que participam de uma situação de construção de sentidos.
Podemos ver como a conversa de Laura com seus familiares no
WhatsApp é um exemplo explícito da multimodalidade da linguagem,
uma vez que nela os sentidos vão sendo construídos não apenas por
meio da linguagem verbal, mas também por meio do meme e do
vídeo que são compartilhados. Como indicado na narrativa, o meme

64
A LINGUAGEM NA VIDA

traz de um lado a imagem do presidente do Brasil naquele momento,


Bolsonaro, e do outro lado a imagem do ex-presidente, Lula; entre os
dois vemos um “X”. Essa construção de oposição, no caso “Bolsonaro
versus Lula”, é feita imageticamente, sem qualquer palavra. No
momento em que esse meme é inserido na troca de mensagens entre os
membros da família de Laura, quem o vê também lhe atribui sentidos
dentro dessa situação específica. A inserção dessa imagem na conversa
traz novos sentidos, tanto para a discussão quanto para as pessoas
envolvidas. O mesmo pode ser percebido com o compartilhamento
do vídeo na conversa. Para nós, estes dois exemplos ilustram o
quanto a multimodalidade contribui no processo de construção de
sentidos, podendo ampliar, redirecionar, silenciar, simplificar, reduzir,
complexificar a comunicação.
Importante relembrar que, em nosso entendimento sobre o
processo de leitura, a intenção de quem compartilhou tanto o vídeo
quanto o meme não garante nem determina por si só os sentidos
atribuídos ao texto pelas leitoras. A construção de sentidos é um
processo de ler a palavra-mundo, ou seja, envolve uma combinação de
várias dimensões: como vimos no capítulo anterior, ao ler trazemos
conosco nossas histórias de vida, nossos conhecimentos de mundo,
nossas posições sociais, nossas ideologias, e as relacionamos com o
que estamos lendo. Ao ler, dialogamos com essas dimensões do existir
que nos constituem, e esses diálogos podem levar ao reconhecimento
da necessidade de sermos diferentes daquilo que acreditamos ser por
muito tempo. Algumas leitoras terão mais abertura para se deixarem
afetar por leituras diferentes das suas; outras menos.
Um aspecto bastante importante para entender a multimodalidade
é considerar a mídia em que a comunicação se dá. Vejamos, por
exemplo, como isso acontece entre Laura e seus familiares. Será que
o fato de estarem em um grupo de bate-papo da família faz com que
se sintam mais ou menos à vontade para expressar suas opiniões em
relação a estarem numa conversa pessoalmente? E por que será que
isso acontece? Essas questões nos mostram a importância de relacionar
o que se diz e por quem é dito, com o onde e o quando algo está sendo
dito. No caso da conversa que abre este capítulo, o onde é o grupo no

65
A LINGUAGEM NA VIDA

WhatsApp da família de Laura. Vemos então que, quando pensamos na


linguagem como multimodal, a noção de contexto precisa se ampliar
e abarcar as inúmeras dimensões que influenciam os processos de
produção de sentidos. Além das pessoas e suas histórias de vida (seus
posicionamentos políticos, as relações que têm com outras pessoas, os
espaços ideológicos de onde falam, como elas percebem esses espaços
e como entendem e reagem ao que é dito/escrito/visto/escutado), a
noção de contexto envolve as mídias que participam no processo de
comunicação. Contexto, aqui, envolve ainda os modos como as pessoas
se relacionam com essas mídias, tudo inegavelmente entrelaçado nos
modos de construir e atribuir sentidos no/ao mundo.
As conversas em ambientes digitais têm merecido análises
aprofundadas sobretudo em relação a como a comunicação
multimodal atualmente está acontecendo e informando os processos
de construção de sentidos. Nesse aspecto, podemos pensar sobre como
os diálogos travados nesses espaços contribuem para o acirramento
de posicionamentos polarizados e sobre o desconforto que sentimos,
muitas vezes, com posições radicais nas quais nos percebemos
imersas e que podem nos soar como inaceitáveis. Estudar como esses
posicionamentos se dão em diferentes grupos sociais, nos textos
em diversas mídias, nas práticas de leitura e escrita, contribui para
ampliarmos nossa compreensão sobre linguagens e ideologias. Diálogo
pode ser entendido para além do encontro pacífico de opiniões, como
um espaço no qual embates ideológicos nem sempre acontecem de
forma tranquila: às vezes alguém “sai do grupo” ou “muda o nome do
grupo”, como fez Fernando no grupo de WhatsApp da família de Laura
que aparece na abertura deste capítulo.
Vejam como é interessante pensarmos que, no caso dessa
conversa no grupo de WhatsApp, Pedro, Marcelo, Andréia e Laura
trazem em suas mensagens não apenas suas opiniões ou dúvidas
formadas naquele momento específico. Suas ideias estão atravessadas
por outros sentidos, ou seja, suas mensagens são como partes de um
grande carretel de nós ou fios emaranhados, que vão sendo puxados
e aos poucos vão trazendo as coisas ditas por suas vozes, e por seus
entendimentos que são, na verdade, coisas já ditas por outras vozes,

66
A LINGUAGEM NA VIDA

ouvidas antes e que vão se enrolando com as vozes ali no grupo de


WhatsApp.
A complexidade dessa trama ainda aumenta quando lembramos
das várias vezes em que uma mensagem demora um pouco para ser
digitada e acaba aparecendo na hora “errada”, quando um outro
assunto já está sendo discutido. Outra situação comum é receber
uma mensagem encaminhada que “cai de pára-quedas” na conversa
e acaba por quebrar, de modo não intencional, a conversa em
andamento. Isso evidencia como podemos estar falando sobre várias
coisas simultaneamente. Em outras palavras, percebemos que nossos
processos de comunicação e atribuição de sentidos não são lineares:
são, na prática, interrompidos, retomados, emergenciais, e acontecem
num processo constante de fazer e refazer, dizer e retomar sentidos. Daí
a importância de ouvir, ou seja, de estarmos sempre prontas a negociar
os sentidos que construímos para nós e para as outras pessoas, de
checar nossas interpretações com as leituras das outras pessoas, de nos
abrirmos para os entendimentos das outras pessoas. Quando dizemos
algo, portanto, dizemos um conjunto de coisas ao mesmo tempo: quem
somos, de onde somos, o que pensamos e sentimos sobre o mundo,
aquilo que aprendemos e acreditamos. E tais dizeres são interpretados
por quem faz contato com eles também conforme seu próprio carretel,
emaranhadas que somos em sentidos múltiplos.
No caso da interação em mídias digitais, temos alguns recursos
característicos para marcar a força e/ou a autoridade do que está sendo
dito, como o uso de #: de início, a hashtag era utilizada simplesmente
para ajudar nas buscas nas redes sociais, como uma forma de localizar
temas semelhantes e pessoas com interesses semelhantes; mais
recentemente, ela tem sido utilizada também para indicar motes
como se fossem gritos de guerra, afirmações condensadas em poucas
palavras mas com grande força argumentativa, identitária e ideológica.
Na conversa do grupo da família de Laura nos parece que o uso da
hashtag remete mais a um mote do que a um tema a ser identificado,
especialmente quando consideramos os demais elementos da conversa,
e quando lembramos que, no WhatsApp, não existem mecanismos
de busca entre grupos, pois nessa mídia a busca se faz pelo comando

67
A LINGUAGEM NA VIDA

simples de pesquisar, e apenas internamente a cada grupo: quando


usamos # no WhatsApp, o que vem logo depois da hashtag não vira
automaticamente um link, como acontece no Facebook, por exemplo.
Parece confuso? Vamos destrinchar um pouco mais! O que estamos
querendo dizer é que a linguagem que usamos e compartilhamos
interrelaciona quem somos e aquilo que estamos dizendo (quer seja
ouvindo, escrevendo ou desenhando, estamos “dizendo”). O nosso
dizer sempre surge de algo prévio, de algo que já sabemos, pensamos,
com o que concordamos ou em que acreditamos; pode vir também do
que já fez sentido para nós e, portanto, agora é reverberado. É fácil
perceber isso em nosso dia-a-dia, pois sempre que conhecemos algo
novo, esse novo se dá relacionado a algo que já conhecíamos antes, e
é isso que fazemos na linguagem: precisamos conhecer o novo sempre
a partir do velho, relacionando o novo com os sentidos que já fazem
sentido para nós.
Podemos dizer, então, que, ao mesmo tempo em que Laura e
seus familiares estão batendo papo no WhatsApp, suas mensagens
refletem muito mais do que o bate-papo daquele momento. A forma
como cada membro da família responde à dúvida sobre a necessidade
de isolamento social é feita de maneira distinta, o que pode inclusive
nos levar a pensar se o grupo está realmente conversando ou apenas
repetindo suas próprias verdades. Ainda, pensando sobre a mídia onde
a conversa acontece, o que nos chama a atenção é que a interação
digital pode facilitar a ausência de cuidado ou atenção para o dizer
dos outros membros do grupo. Particularmente em interações virtuais
desse tipo, que não acontecem face-a-face, parece mais fácil e mais
comum que participantes se recusem a interagir com o dizer de outras
participantes, ignorando os sentidos produzidos por essas outras
participantes, em especial quando não ressoam com seus próprios
sentidos. Assim, em interações digitais não presenciais, sem o olho-
no-olho, muitas vezes temos a impressão de não estar havendo
interlocução, pois cada pessoa fala para si mesma, repetindo seus
argumentos sem estabelecer de fato um processo de comunicação que
leve em consideração a palavra da outra, que atribua sentidos ao que se
lhe apresenta como diferente dos sentidos já conhecidos.

68
A LINGUAGEM NA VIDA

Como conversamos com o que/quem é diferente de nós?

Nessa altura você deve estar se perguntando: mas então, se


partimos do conhecido para o desconhecido e se nos baseamos nos
sentidos que já nos fazem sentido, como aprendemos o novo, como
reagimos ao inesperado, como nos relacionamos com o diferente?
Buscar responder essas perguntas envolve entender que nossas trocas
comunicativas também estão imbuídas de questões relacionadas
a ideologia, poder, controle, competição - como se a conversa
pudesse ser um debate em que deve haver vencedoras e perdedoras.
Entretanto, na medida em que ninguém quer “perder”, a maior perda
é não aprender com outras pessoas, não se modificar, não aproveitar
a diferença para mover-se para além da posição inicial no argumento,
independentemente da mídia em que ele se apresente.
E por falar em ideologia, será que ideologia é uma coisa
ruim? Qual a relação entre ideologia e linguagem? Não entendemos
ideologia como algo ruim. Para nós, a ideia de ideologia está atrelada
aos modos de ver, de ser, de estar e de agir no mundo. E nós agimos no
mundo em nossas ações e em nosso linguajar, ou seja, nas maneiras
como nos expressamos no sentido amplo que estamos discutindo
neste livro. Ideologia e linguagem se entrelaçam de várias maneiras.
Mas, antes de começarmos a tratar dessas diferentes maneiras de
entrelaçar linguagem e ideologia, vale lembrar que, como já afirmamos
anteriormente, independentemente das mídias em que a comunicação
acontece, ou dos recursos utilizados, esses entrelaçamentos devem
ser compreendidos como construções feitas a partir de determinadas
perspectivas, interesses, possibilidades e restrições; diferentes
pessoas podem fazer diferentes construções dos mesmos eventos a
partir de outras perspectivas, interesses, possibilidades e restrições
em relações complexas que se dão entre o individual e o coletivo,
entre a vida privada e a vida pública, para mencionar apenas duas
dimensões das ideologias que nos constituem. Em nosso caso, por
exemplo, a concepção de linguagem como prática social nos leva a
perceber o mundo como sendo construído por nossas interpretações e
ações e isso confere a cada situação comunicativa uma singularidade.

69
A LINGUAGEM NA VIDA

Isso é ideológico. Assim como o contrário disso também é ideológico.


Estamos tratando aqui, portanto, de uma noção de ideologia que não
se relaciona apenas a determinados discursos ou posições políticas:
entendemos ideologia como visão de mundo e, portanto, todas nós
temos nossas ideologias.
Nas práticas de linguagem legitimamos e deslegitimamos
ideologias, ou seja, crenças, posicionamentos, entendimentos, versões
dos fatos, como veremos logo mais. Podemos, por exemplo, desenvolver
todo um raciocínio lógico que enumere argumentos e busque uma
determinada conclusão. Um argumento bastante familiar que temos
visto é a tentativa de validar o que dizemos argumentando que é
assim em todos os lugares, sempre foi assim e sempre será. Ou então
podemos utilizar palavras que suavizem nossos posicionamentos,
os famosos eufemismos, como quando dizemos que alguém está
“faltando com a verdade” em vez de “mentindo”; ou quando se falam
em “danos colaterais” em vez de “mortes” em relação a um ataque
militar. Os eufemismos podem ser utilizados para minimizar o impacto
do que dizemos, como quando se chama a COVID-19 de “gripezinha”.
Entretanto, não podemos deixar de perceber que o uso de eufemismos
também torna menos perceptíveis os efeitos da linguagem que podem
ser muito danosos para algumas pessoas; podemos nos perguntar:
quem se beneficia com o uso desses eufemismos? As ações de quem
estão sendo minimizadas? Quais são as possíveis consequências desses
eufemismos?
O deslocamento de termos típicos de uma área da atividade
humana para outra também é ideológico. Quando “alunas” passam
a ser “clientes”, “aulas” passam a ser “serviços”, “acompanhar o
desenvolvimento das alunas” passa a ser “gerenciar o rendimento
das alunas”, por exemplo. Ao pensar em educação como mercadoria,
estaríamos operando dentro de uma lógica de mercado que, a nosso
ver, é também uma perspectiva ideológica. Assim como é ideológico
entender a função social da educação de qualquer outra maneira.
Para nós, educação não é um produto que deva estar sujeito a
relações de compra e venda, ou seja, à lógica do mercado que considera
o conhecimento como passível de ser um objeto de propriedade de

70
A LINGUAGEM NA VIDA

algumas pessoas. Se pensarmos, por exemplo, na posse de um terreno,


essas pessoas teriam então a prerrogativa de transferir a propriedade
da terra, doando ou vendendo seu terreno. Essa lógica, que atinge tanto
a educação privada (na qual há pagamento direto de mensalidades
escolares) quanto a pública (na qual estão envolvidos recursos públicos),
a nosso ver, prejudica todas as pessoas envolvidas. Prejudica as alunas,
que, quando percebidas como clientes, ao escolherem o que querem
“comprar” (ou melhor, aprender), podem perder a oportunidade de
entrar em contato com algo diferente daquilo que elas já conhecem;
é como se a cliente buscasse encontrar o objeto que ela já conhece e,
com isso, perdesse a chance de conhecer um “produto” novo. Prejudica
as professoras que, quando percebidas como prestadoras de serviço,
ficam sujeitas a satisfazer os desejos de suas clientes, silenciando
conhecimentos que eventualmente tenham construído em seus
processos de formação profissional e enquanto cidadãs. Todas perdem
quando se afastam da ideia de educação como um processo relacional,
social, formativo, criativo, ou seja, um processo de crescimento e
transformação mútuos.
Portanto, referir-se à escola com a linguagem típica do mercado
normaliza, insidiosamente, uma determinada forma de ver e tratar a
formação das alunas, o papel das professoras e o espaço educacional.
Esse deslocamento de termos do mercado para a educação influencia
nossos modos de conceber a escola e seu papel social, o que ilustra o
quanto a linguagem é ideológica: vemos que nela se constroem sempre
sentidos, pois até o que parece não ter sentido já é um sentido, não é
mesmo?
Uma terceira dimensão do entrelaçamento entre linguagem e
ideologia, ao lado do uso de eufemismos e do deslocamento de termos
de uma área para outra, é construir uma sensação de pertencimento, um
sentimento de unidade. A partir desse sentimento, algumas pessoas são
construídas como amigas, outras como inimigas. Construir um grupo
de pessoas como semelhantes estabelece uma suposta identidade
entre elas, além de excluir aquelas que são entendidas como diferentes.
As hashtags #FicaEmCasa e #BrasilNãoPodeParar, que discutimos

71
A LINGUAGEM NA VIDA

anteriormente, criam esse efeito de marcar tais identidades e relações


de proximidade ou distanciamento.
No entanto, elas não significam por si sós: elas se relacionam
com sentidos que nossas diferentes experiências de leitura e de vida
e nossas diferentes ideologias constroem e atribuem, ou não, a elas.
Vejamos o que aconteceu com a #FicaEmCasa. Algumas pessoas podem
tê-la entendido como significando única e literalmente “ficar em
casa”. No entanto, ao relacionar essa hashtag com outras dimensões
ideológicas de nossas práticas de linguagem em espaços específicos,
a compreensão pode ter variado bastante: ela pode ter sido entendida
como apontando para o reconhecimento de que poder trabalhar de suas
casas era um privilégio; pode também ter indicado que ficar em casa
era contribuir para diminuir a taxa de disseminação do coronavírus.
Por outro lado, a hashtag pode ter sido compreendida como uma
referência ao medo da contaminação ao sair de casa, e mesmo como
indicador de que “ficar em casa” seria demonstração de egoísmo, de
falta de consideração com as pessoas que não podiam ficar em casa
sob pena de não terem renda para se manter. Uma evidência de como
essas dimensões de sentidos informam as práticas com essa hashtag
está inclusive no fato de que, com o passar do tempo, ela mudou para
#SePuderFiqueEmCasa, colocando a #FicaEmCasa em desuso.

Afinal, o que linguagem (em sua multimodalidade) tem a ver com


ideologia?

Os modos de entender essa e outras hashtags evidenciam,


portanto, que os textos não existem no mundo de forma independente:
eles não são nem independentes entre si, nem abstraídos das coisas do
mundo. São sempre multimodais. Textos (como no caso das hashtags)
se realizam no processo de leitura (como discutido em detalhes no
capítulo anterior), um processo que se torna produtivo quando a leitora
reconhece as relações entre textos; entre textos e contextos; entre
textos, suas leituras e leitoras, entre textos e sociedade, etc; em outras
palavras, quando o processo de leitura não perde de vista a dimensão
multimodal da linguagem. Esse reconhecimento informa o processo

72
A LINGUAGEM NA VIDA

de construção de sentidos que cada leitora e seus procedimentos


de leitura atribui aos textos e, desse modo, indica que quanto mais
relações a leitora fizer entre as diferentes modalidades da linguagem,
entre diversos textos e diversos modos de ler, mais complexa será a
leitura.
Poderíamos escrever um livro apenas sobre a relação entre
linguagem, multimodalidade e ideologia, mas acreditamos que os
pontos que apresentamos aqui já podem dar uma noção de que não
podemos simplificar essa relação, entendendo o termo ideologia como
algo prejudicial ou reduzindo a linguagem aos elementos verbais,
apagando a sua multimodalidade. Na família da Laura, como vimos na
conversa que abriu este capítulo, a linguagem, de caráter multimodal,
está sempre relacionada a entendimentos, interpretações que não
acontecem no vácuo, mas são informadas por visões de mundo, de texto
e de linguagem, sendo portanto sempre ideológicas. Essas ideologias
constituem a linguagem, as pessoas e também interferem na forma
como elas se relacionam, mostrando que os entrelaçamentos não se
dão apenas entre ideologia e uma linguagem supostamente exterior,
mas são constitutivos do ser, do estar e do existir no mundo.

73
A LINGUAGEM NA VIDA

A LINGUAGEM QUE NOS FAZ VIVER

Depois de uma semana de trabalho intenso preparando aulas, deslocando-


se de uma escola para outra (pois trabalha em 3 escolas diferentes),
corrigindo textos de suas alunas e fazendo as leituras exigidas em seu
curso de formação continuada, Laura finalmente consegue uma noite de
sono. Mas mesmo dormindo Laura está imersa em suas preocupações com
a educação, com o ensino, com suas alunas. Ela sonha com a escola. Segue
aqui uma descrição feita por Laura de seu sonho, que ela postou em seu
blog sobre formação de professoras.

“Na noite passada, tive um sonho cheio de detalhes, daqueles que


parece que aconteceram mesmo. Foi um sonho bem vivo, um sonho
em que eu lembrava de uma criança migrante, a Safira, que foi minha
aluna no sexto ano. Ela era uma menina pequena, magrinha, e no
sonho parecia ter talvez até menos do que os 10 ou 11 anos de idade
que tinha de verdade. No sonho, eu lembrava bem que ela tinha uma
irmã mais velha, Yasmin, que também tinha sido minha aluna uns anos
antes de Safira chegar e que, assim como Safira, tinha dificuldades em
aprender o que a gente achava que ela devia aprender.

Mas Safira era diferente. A Yasmin tinha chegado ao Brasil, vinda da


Síria, uns anos antes de ser minha aluna, mas Safira era recém-chegada
no país e na escola. Safira não era extrovertida nem descontraída como
a irmã dela. Com Safira era diferente. Ela tinha um olhar que às vezes
parecia desconfiado e às vezes triste, distante, solitário. No início ela
nem conversava com as outras colegas da turma dela, nem mesmo
com as poucas crianças que falavam árabe na escola. Parecia até que
ela sofria bullying das colegas que só falavam português quando ela
tentava se comunicar com elas. Além disso, Safira se recolhia ainda
mais quando, ao conversar com sua irmã em árabe, sentia os olhares

74
A LINGUAGEM NA VIDA

de censura e o estranhamento que a língua causava nas colegas.


Impressionante como eu lembro disso tudo e, como no sonho, isso
tudo passava pela minha cabeça muito rápido. Eu lembro da sensação
que tínhamos na escola de que a introspecção de Safira muitas vezes
parecia ser medo, um medo que a gente não sabia do que ou de quem
era. Na verdade, a gente nunca ficou sabendo. Afinal de contas, com
Safira era diferente.

O interessante era que no sonho eu lembrava que nós, as professoras


de inglês e espanhol da escola, achávamos que a nossa escola era muito
boa e acolhedora para as nossas alunas (brasileiras e migrantes). Na
verdade, a escola tinha, além de centenas de alunas brasileiras, algumas
dezenas de estudantes de países como Síria, Venezuela, Haiti e Congo.
A gente fazia um trabalho que ia além da sala de aula e que era feito
junto com a assistente social e com a pedagoga da escola, além das
outras professoras dali. Era bastante desafiador, mas nós do espanhol
e do inglês achávamos que nos cabia a maior responsabilidade pelo
acolhimento das alunas migrantes, já que éramos professoras de língua
estrangeira, afinal.

Mas a Safira era diferente. Sim, ela demonstrava vontade de aprender, ela
queria fazer mais amigas, participar das aulas, entender os conteúdos,
e se esforçava para fazer as tarefas na escola e em casa. A gente via que
ela queria fazer parte daquele contexto novo para ela. Mesmo assim,
apesar de ser tão criança, e de ter começado a se soltar aos poucos, ela
não era como as outras alunas… nem como as amigas que ela acabou
fazendo naquele período. Era angustiante conversar com ela, sempre
com a ajuda da Yasmin, e ver o quanto Safira era inteligente, esperta,
mas o quanto, ao mesmo tempo, parecia não pertencer àquele lugar.
Eu tinha essa impressão, e no sonho essa percepção ficava ainda mais
forte. Acho que essa impressão vinha de Safira ser muito calada, ou
então das dificuldades dela para se comunicar e, consequentemente,
aprender os conteúdos das matérias.”

75
A LINGUAGEM NA VIDA

A narrativa que abre este capítulo envolve um sonho de Laura


que lhe remeteu a um dos episódios marcantes de sua experiência
como professora. Através do sonho, ela enfatiza o impacto que a
presença de uma aluna migrante teve em suas reflexões sobre o fato de
que ensinar parece envolver muito mais do que transmitir conteúdos;
e sobre a comunicação ir muito além do uso de sistemas linguísticos,
como vimos nos capítulos anteriores.
Pode parecer que a história de Safira faz parte de um cenário
educacional específico, onde alunas migrantes buscam integrar-
se ao sistema educacional e social de seu novo país e, comumente,
apresentam dificuldades de pertencer a esse novo lugar. Sem dúvida,
a experiência de Laura está inserida nesse contexto, mas sua narrativa
explicita relações diretas também com uma conjuntura global e nos
convida a ampliarmos nossa compreensão sobre a linguagem na
questão migratória. Laura nos faz pensar sobre a função da educação
na contemporaneidade e, consequentemente, sobre as funções das
instituições escolares, uma das tarefas fundamentais a que se propõem
educadoras e estudiosas da linguagem no século XXI.
Neste capítulo, vamos abordar o contexto de Safira, a partir
da narrativa compartilhada por Laura em seu blog, em três temas
principais. O primeiro trata de linguagem, interculturalidade e
migração; o segundo enfoca a linguagem como espaço de criação
e transgressão; e o terceiro discute as relações entre identidade,
acolhimento e educação transgressora.

Linguagem, interculturalidade e migração - (des)encontros

Não é de hoje que práticas migratórias ocorrem mundo afora.


Se resgatarmos a história conhecida da humanidade, veremos que,
assim como os animais, somos seres originalmente migrantes em
busca de melhores condições de sobrevivência. Com o tempo, fomos
desenvolvendo conceitos, técnicas e regras que facilitam a mobilidade
e a comunicação, diminuindo as distâncias físicas e sociais. Assim,
continuamos tendo pessoas se movendo pelos mais diferentes motivos,

76
A LINGUAGEM NA VIDA

seja por escolhas pessoais ou por necessidades outras, políticas,


econômicas, sociais, culturais, ambientais, dentre tantas outras.
Por mais paradoxal que pareça, alguns países foram criando
regras cada vez mais rígidas que dificultam o trânsito de (certas)
pessoas. Consequentemente, ainda vemos com frequência tentativas
de migração supostamente “ilegal”, especialmente em busca de
sobrevivência. De acordo com a Agência da ONU para Refugiados, a
diferença mais marcante nos processos migratórios da atualidade está
no fato de estarmos diante do maior número de pessoas se deslocando
concomitantemente desde que há registros dessa prática. É interessante
pensar se essa diferença estaria relacionada à quantidade de pessoas
que migram, ou se ela se daria por causa das mudanças realizadas
por diferentes países em suas regras migratórias, que, se por um lado
permitem um registro mais fidedigno sobre a entrada de estrangeiras
nos seus países, por outro lado parecem buscar inviabilizar o ato de
sair de um país para outro em busca de uma vida melhor.
Essa expansão da crise migratória em nossa atualidade nos
mostra os desafios que pessoas, em diferentes partes do mundo, estão
enfrentando para sobreviver, para se adaptar a uma nova vida em um
novo país, nova cidade, nova comunidade, nova língua, nova cultura.
Migrar é recomeçar com tudo ao seu redor sendo diferente e, em muitos
casos, distante de suas referências anteriores, de seus valores, crenças,
afetos, histórias, sentimentos de pertencimento; é levar a outro lugar
um pouco de si, com a esperança de se sentir em casa novamente.
É nesse cenário migratório que vamos aprender um pouco do que
a história de Safira tem a nos ensinar, uma vez que tem sido cada vez
mais comum crianças, adolescentes e pessoas adultas – estrangeiras,
migrantes, refugiadas ou qualquer outro nome que se possa lhes
dar – buscarem acolhimento em cidades, escolas (e universidades),
igrejas e tantas outras comunidades e instituições. Podemos então
nos perguntar: como as escolas podem acolher essas pessoas? Qual a
função dos estudos da linguagem e da educação na atual globalização,
atravessada por tanta mobilidade e diversos tipos de conflitos e fluxos?
Como os estudos da linguagem podem nos ajudar a pensar a relação
entre linguagem, identidade, interculturalidade e migração? De que

77
A LINGUAGEM NA VIDA

forma histórias como a de Yasmin e Safira podem contribuir para essas


ponderações?
Como se percebe pela emotividade do relato no blog de Laura,
seu convívio com Yasmin e Safira marcou bastante sua vida. Assim
como muitas outras pessoas daquela comunidade escolar, a professora
não estava acostumada a lidar com migrantes. Na escola, o trabalho
era desafiador, envolvendo outras professoras, uma assistente social e
a pedagoga. A escola se esforçava para acolher crianças como Safira e
sua irmã. Contudo, Laura relata desconforto e frustração em perceber
que o trabalho da escola parecia não estar surtindo efeito. Talvez a
escola estivesse priorizando os conteúdos e deixando em segundo
plano questões relacionais, culturais e identitárias que estão no centro
de nossas experiências escolares e de nossas práticas de linguagem.
Pensar em práticas de linguagem sem considerar essa centralidade
reduz o impacto que a linguagem exerce sobre nós e silencia os modos
pelos quais nossas identidades se constroem nela. Em outras palavras,
talvez a sensação da professora quando afirma que Safira parecia
“não pertencer” à escola tivesse uma relação direta com os modos
como a cultura escolar estava tratando, ou silenciando, a presença de
mais de uma língua nomeada em suas práticas (explicaremos o que
queremos dizer com língua nomeada mais adiante). Talvez a escola
estivesse considerando que o melhor para Safira e Yasmin fosse que
elas deixassem fora dos muros escolares seus modos de existir na
multiplicidade de linguagens com que estavam convivendo. Talvez a
escola acreditasse ser melhor que as meninas assimilassem o português
e a cultura brasileira, já que planejavam permanecer no Brasil. Talvez
as meninas também pensassem assim. No entanto, existir em várias
línguas pode ser produtivo, como veremos em seguida.
Por ora, vamos pensar um pouco sobre a linguagem em sua
relação com a globalização e os fluxos de pessoas. No momento atual,
não apenas diferentes grupos passaram a conviver mais intensamente
e em diversos contextos, mas também línguas e culturas se encontram
justapostas com mais frequência. Tal justaposição pode ser percebida
em várias configurações de encontros entre diferentes pessoas,
independentemente de quão próximas sejam ou estejam: quando

78
A LINGUAGEM NA VIDA

se encontram, as pessoas trazem e compartilham suas perspectivas,


construídas na particularidade de suas trajetórias. No entanto, isso
pode ainda ser mais facilmente percebido em encontros de pessoas de
diferentes nacionalidades, portanto, vindas de contextos linguísticos e
culturais marcadamente distintos, como no caso de Laura e suas alunas.
É aqui, nesta justaposição entre linguagem, cultura e configurações
sociais, que a experiência de Laura com sua aluna Safira nos leva a
pensar sobre as mais diferentes dimensões que constituem o ensino
de línguas.
Compreendemos que, ao migrar, deixamos para trás um pouco
de nós nos lares que habitamos, nas pessoas que ficaram, nas histórias
que vivemos, mas de certa maneira isso tudo também nos acompanha,
pois nossas experiências, assim como a linguagem, nos constituem e
estão conosco onde estivermos. Sabemos que o novo contexto pode
gerar insegurança diante dos (des)encontros interculturais, ou seja,
das relações entre as diferentes práticas de linguagem, culturas,
experiências, conhecimentos em contato. Essas relações sempre
envolvem emoções, que por vezes nos fazem bem, por outras não.
No caso de Safira e suas novas vivências, podemos entender
seu desconforto de estar entre a cultura e a linguagem que lhe são
familiares, e a cultura escolar e as novas práticas de linguagem que
ela está aprendendo a conhecer. Esse lugar “entre” lugares, ocupado
por Safira, parece estar demandando dela também uma abertura
para aprender as práticas locais de letramento (como discutimos no
segundo capítulo) - assim, migrar significa ser acolhida e também
acolher, pois um movimento não acontece sem o outro. A exigência
local de que Safira aprenda essas novas práticas pode ser percebida
como um ato violento contra ela, e gerar uma sensação incômoda
de despertencimento ou, no mínimo, o questionamento sobre não
pertencer a nenhum dos dois mundos em que ela se percebe estar
envolvida. Ao mesmo tempo, Safira precisa desenvolver uma atitude
aberta para essas novas práticas. Não se trata de ser assimilada pelo
novo espaço, nem de recusar-se a participar dele. Trata-se, nas trocas
interculturais, de negociar, de ampliar repertórios, de abrir-se para o
local sem perder de vista o que nos constitui, numa compreensão de

79
A LINGUAGEM NA VIDA

que nossas identidades sempre interagem com o mundo e com isso


se transformam constantemente. Em outras palavras, é uma via de
mão dupla que precisa de abertura de ambos os lados para negociar as
práticas de letramento que oportunizarão um contato produtivo entre
as pessoas.
Ao mesmo tempo, é importante lembrar que existem pessoas
e instituições em torno de Safira, todas elas compartilhando a
responsabilidade por orientá-la nesse processo de contato com as
novas práticas de letramento em que ela está vivendo. Vamos falar
um pouco mais dessa rede na seção “Aprender, acolher, construir e
transformar a/na linguagem”, pensando especialmente sobre a escola
como um espaço de ensino-aprendizagem mais acolhedor, afetuoso,
construtivo e transformador.

Desafiar, criar e transgredir a/na linguagem

Até aqui, apontamos o quanto a migração e a escola podem


ser experiências sociais violentas e causar sofrimentos sem que seja
essa a intenção. Salientamos também a necessidade de realização
de um trabalho mais acolhedor, construtivo e transformador por
parte da sociedade e suas instituições, como escolas e universidades.
Perguntamos, então: isso seria possível? Se sim, como? Um dos passos
para isso nos parece ser problematizar as visões de linguagem e práticas
educativas mais comumente conhecidas para, em seguida, pensarmos
em outras práticas de letramento possíveis.
Na apresentação e no primeiro capítulo problematizamos o
entendimento de língua como conjuntos de estruturas linguísticas com
significados fixos. Desse modo, temos utilizado a palavra linguagem
por acharmos que esse entendimento de língua como fixa e neutra não
dá conta da complexidade das práticas linguísticas como as vemos em
sua relação com o mundo. Algo sobre o qual ainda não tratamos mais
especificamente, no entanto, diz respeito a como a compreensão de
línguas como unidades singulares está imbuído de questões políticas,
sociais e econômicas – e não apenas linguísticas. Então vejamos.

80
A LINGUAGEM NA VIDA

Tradicionalmente, as línguas têm sido entendidas como


pertencentes a determinados países, povos e culturas. Costumamos
pensar que o inglês é a língua dos Estados Unidos e da Inglaterra, o
francês é a língua da França, e assim por diante. No entanto, a relação
entre uma língua e um país começa a trazer problemas quando
lembramos que alguns países “dividem” uma língua, como no caso
do Brasil, Portugal e Angola, por exemplo. Nesses países, a “mesma”
língua parece muitas vezes ser bastante diferente. É importante
nos perguntarmos como essas relações foram (e continuam sendo)
estabelecidas. Parece-nos que, mais do que questões estritamente
linguísticas, entram na equação questões históricas (ligadas a processos
de colonização), políticas, culturais, relacionadas a fatores econômicos,
hereditários, e envolvendo relações de poder e legitimidade, que
autorizam ou desautorizam certos grupos de pessoas a determinar se
uma língua pertence a um ou a outro povo, país ou cultura.
O caso da Iugoslávia nos ajuda a ilustrar o quanto essas divisões
entre línguas e o processo de dar nomes a elas são complexos e mais
baseados em questões político-sociais do que em fatores linguísticos.
Antes da guerra da Iugoslávia, nos anos 1990, enquanto esse país
ainda existia como tal, havia uma língua nomeada como “servo-
croata”, língua que era considerada uma língua única, com diferentes
variações regionais. Depois da guerra, no entanto, principalmente
devido a questões étnicas e disputas entre a Sérvia e a Croácia, sérvio
e croata passaram a ser consideradas línguas distintas. É assim que
entender as línguas como restritas a determinadas fronteiras político-
geográficas parece ignorar dimensões importantes de como as línguas
são configuradas no mundo.
Em substituição a esse modo de perceber as línguas como se
fossem objetos pertencentes a Estados-nação específicos, trazemos
a ideia de repertório. Ao invés de nos preocuparmos se estamos
falando a língua X ou a língua Y, nossas interações nos mostram
que os processos de construção e negociação de sentidos são muito
mais intensos e fluidos do que podem parecer: eles integram nossos
repertórios, que também são constituídos por nossas histórias de vida,

81
A LINGUAGEM NA VIDA

nossas experiências de leitura, nossas visões de mundo. Tudo o que


sabemos e fazemos faz parte de nossos repertórios. Por isso, ao invés
de pensarmos se estamos falando essa ou aquela língua, ou mesmo
se estamos ou não “misturando” línguas, podemos pensar em um
acionamento dos recursos semióticos disponíveis conforme se fazem
necessários para a produção dos sentidos pretendidos e/ou para a
atribuição de sentido às trocas comunicativas em que nos engajamos.
Quando observamos crianças transitando entre duas ou mais
línguas supostamente diferentes, por exemplo, percebemos que para
elas não interessa em nada se estão se comunicando em uma ou outra
língua – as crianças bilíngues nos mostram que o que interessa para
elas é a comunicação, e não os limites entre as línguas. É por isso que
elas associam, desde muito pequenas, o tipo de comunicação que
precisam desenvolver às pessoas com quem interagem, e não a um
suposto sistema linguístico nomeado por nós como língua X ou língua
Y. Em seu processo de comunicação, essas crianças desenvolvem um
repertório de linguagem que ignora (ou desconhece) os limites entre as
línguas nomeadas: elas lançam mão dos recursos disponíveis em seus
repertórios para atingir o propósito comunicativo que desenvolvem
em cada situação, não interessando se tais recursos fazem parte de um
ou de outro sistema linguístico.
Tudo isso entra nas preocupações do que se conhece como
perspectiva translíngue ou translinguagem. Essa é uma visão que
desafia o entendimento de língua enquanto bloco fixo de estruturas
linguísticas e vocabulário, que procura englobar a natureza dinâmica
das práticas de linguagem ao compreendê-las como repertório. Nessa
perspectiva, o movimento que por vezes uma mesma pessoa faz entre
“duas” línguas é entendido como acontecendo dentro de um mesmo
repertório, e marcado positivamente enquanto estratégia para a
construção de sentidos.
Se entendemos linguagem enquanto práticas translíngues
que lançam mão de um repertório fluido, constituído de diferentes
recursos, a ideia de línguas enquanto entidades com identidades fixas
deixa de ser relevante. Na translinguagem, o que nos leva a entender

82
A LINGUAGEM NA VIDA

as línguas nomeadas como língua portuguesa, inglesa, espanhola,


etc, é um processo sócio-histórico, geopolítico e dinâmico. Portanto,
com esse olhar, mantemos a ideia de línguas distintas porque elas
são categorias importantes para entendermos as línguas no mundo,
mas abandonamos a visão tradicional de língua como “pertencendo” a
determinado(s) país(es), ou mesmo determinado(s) povo(s).
Voltemos à situação da Safira em suas relações no e com o novo
país. Podemos nos perguntar como as experiências dela em seus
diversos contextos no Brasil teriam sido diferentes caso a perspectiva
translíngue estivesse mais presente no cotidiano das pessoas.
Possivelmente, Safira se sentiria mais confortável ao falar árabe com
sua irmã, e mais confiante em seus procedimentos de construção de
sentidos a partir do repertório dela, sem a preocupação se estaria
dentro de uma ou outra língua. Se tivesse essa perspectiva, Safira
talvez não se sentisse mal em seus silêncios, nem em situações em que
não compreendesse ou não fosse compreendida, pois ela saberia que
aprender línguas é sempre negociar sentidos. Quem sabe ela não se
sentisse em falta, mas sim desafiada a aprender novos procedimentos
interpretativos e de construção de sentidos.
Não queremos dizer com isso que uma perspectiva translíngue
seja a solução milagrosa para todos os problemas de comunicação,
uma vez que o processo de construção de sentidos não é uma mera
transmissão de mensagens, mas envolve uma gama complexa de
fatores, inclusive ideológicos, como vimos nos capítulos anteriores.
No entanto, a translinguagem pode nos ajudar a desenvolver uma
atitude de maior acolhimento em relação a pessoas com práticas
de linguagem diferentes das nossas, ao mesmo tempo em que nos
ajuda a compreender e aceitar a nós mesmas em nossos processos de
aprendizagem.
Diante de todas essas colocações, talvez você ainda esteja se
perguntando: mas, então, o que significa Safira aprender e se comunicar
em português? O que seria esperado dela? De forma mais abrangente:
o que significa ensinar e aprender uma outra língua? Deixamos a
próxima seção para essa conversa.

83
A LINGUAGEM NA VIDA

Aprender, acolher, construir e transformar a/na linguagem

Os estudos da linguagem pensados com uma filosofia educacional


freireana compreendem que aprender uma língua é aprender a ser,
aprender a pensar sobre si em sua relação com o mundo, aprender
a narrar-se e a ouvir outras narrativas. A linguagem na formação de
nossos seres é, assim, fundamental em nossa existência: é na linguagem
que fazemos contato, que aprendemos a nos contar. Linguagem, como
vimos, é uma prática identitária que, além de nos levar a perceber a
nós mesmas enquanto seres sociais, nos coloca em relação com aquilo
e aquelas que não somos, que são diferentes de nós e que, justamente
por serem diferentes, nos possibilitam entender-nos como seres
individuais e coletivos ao mesmo tempo. É nesse processo narrativo
que vamos construindo (des)identificações com nós mesmas e com o
que percebemos como diferente de nós. É assim que somos e existimos
– na linguagem. Quanto maior nosso repertório, mais possibilidades
de existência se configuram para nós. É assim que vemos a importância
de aprender várias línguas. Safira, por exemplo, ao aprender português,
está alargando seu repertório de procedimentos comunicativos.
Evidentemente tal processo é bastante complexo, uma vez que, como
vimos, não se trata de aprender um sistema linguístico fechado, fixo,
acabado.
Precisamos, portanto, considerar diversas dimensões
relacionadas à aprendizagem de línguas. Vamos tomar Safira como
referência aqui, mas enfatizamos que essas dimensões também se
encontram em processos de aprendizagem de línguas de pessoas em
situações diferentes. Elas acontecem quando se aprende uma língua
em situação de imersão, ou quando se aprende uma língua em situação
de língua “estrangeira”, ou seja, num ambiente em que essa língua não
é usada no cotidiano daquela sociedade: sejam quais forem as línguas
envolvidas, sejam quais forem os espaços de aprendizagem (formais ou
informais; escola, família ou mundo social, país de nascimento ou país
estrangeiro), as dimensões que vamos destacar aqui se manifestam no
processo de aprendizagem de linguagem.

84
A LINGUAGEM NA VIDA

A primeira dessas dimensões diz respeito ao fato de que


aprender uma língua constitui-se em uma prática social e relacional
(o que corrobora nosso entendimento sobre linguagem defendido ao
longo deste livro). Isso significa que Safira aprenderá se comunicando,
em vivências na linguagem – tanto na escola, em suas aulas e nos
demais espaços que fazem parte dela, quanto na sua vida para além
dos muros escolares. Ou seja, Safira irá aprender português nas
relações com colegas, professoras, funcionárias e demais pessoas de
seu convívio educacional – dentro e fora da escola, em ambientes
formais e informais, porque afinal se aprende também fora da escola,
não é mesmo? Ela irá aprender quando for ao supermercado com sua
mãe, quando for pegar um ônibus, quando for comprar algo em uma
loja, quando for ao médico, e assim por diante. Ainda, mesmo que a
língua a ser aprendida não seja usada no cotidiano da sociedade em
que estamos vivendo, podemos pensar nas vivências que surgem nos
mais diversos contextos, tais como: bater papo na internet, ouvir
músicas, ler livros, jogar videogames online, assistir filmes e seriados,
fazer cursos em escolas de idiomas e pelo YouTube, estudar línguas
na escola regular, etc. Todos esses exemplos nos mostram que esse
entendimento de língua como prática social e relacional, ou seja, língua
como linguagem, se opõe à ideia, muitas vezes comum, de que Safira, ou
qualquer pessoa que aprenda uma língua, precisaria primeiro aprender
unidades específicas formais desta língua para somente depois poder
se comunicar.
Outra dimensão que enfatizamos está no fato de que aprender
é uma prática processual e contínua – ad infinitum. Pensando
especificamente na aprendizagem de línguas, você já se perguntou, por
exemplo, o que lhe faz dizer que sabe português, ou inglês, ou espanhol,
ou guarani, ou LIBRAS? Há um momento específico em que você passa
do “não saber” para o “saber” essas línguas? No nosso entendimento,
pode até ser que alguém sinta esse momento como tendo ocorrido em
suas experiências: muitas vezes, quando a gente passa a se sentir mais
confortável numa língua, parece que a gente finalmente “aprendeu”,
certo? No entanto, aprender uma língua não é uma atividade que
ocorre e acaba em um tempo específico: não conseguimos precisar o

85
A LINGUAGEM NA VIDA

momento exato em que começamos ou terminamos de aprender uma


língua – no máximo podemos saber quando começamos ou terminamos
de estudar formalmente uma determinada língua.
Uma última dimensão do processo de aprendizagem de línguas
que queremos discutir diz respeito à problematização da ideia de falante
nativa como modelo a ser imitado. Antes de mais nada, é importante
nos perguntarmos o que ou quem é uma “falante nativa”. Podemos
dizer que uma falante nativa é alguém que vive numa língua nomeada
desde que nasceu, aprendendo essa língua tanto no contexto familiar
quanto em outros contextos ao longo da sua vida, em seu país de
origem. Dessa noção vem uma idealização ou entendimento comum
de que falante nativa seria uma pessoa que possui uma “competência
perfeita” numa língua nomeada entendida como pertencendo a ela.
Ela seria, portanto, uma pessoa que usaria a língua da forma que deve
ser, “corretamente”.
Já vimos, no primeiro capítulo, o problema em pensarmos que
alguém “usaria” uma língua (o que chamamos de entendimento
instrumental), então não precisamos repetir isso. Precisamos
apontar, isso sim, que essa “falante nativa” é geralmente considerada
“autoridade” na língua e por isso um “modelo de proficiência
linguística” a ser copiado por (e por vezes imposto a) todas aquelas
pessoas que querem aprender essa língua. Esse entendimento nos
parece comum principalmente em contextos de ensino-aprendizagem
de línguas estrangeiras (aquelas nomeadas como “pertencendo” a
outro país que não o seu), nos quais muitas vezes se busca parecer o
máximo possível com as ditas “falantes nativas” da língua que se está
aprendendo.
Não é incomum, portanto, encontrarmos cartazes publicitários
anunciando que determinada escola de idiomas tem em seu corpo
docente as tais “falantes nativas”, ou ainda, no caso de escolas de
inglês, muito frequentemente se diz, como um ponto forte da escola,
que ela tem “professoras americanas”, por exemplo. Daí vêm também
perguntas que professoras de inglês costumam ouvir com frequência:
“seu inglês é americano ou britânico?”; “lá elas falam assim mesmo?”.
As nossas respostas a tais perguntas costumam ser que “nosso inglês

86
A LINGUAGEM NA VIDA

é brasileiro”, ou que falamos o “nosso inglês”, ou ainda “o inglês que


dá”; quanto ao “lá” e ao “elas”, respondemos com outras perguntas:
“onde fica lá?” e “quem são elas?”. Com isso, queremos ressaltar
que a posição central ocupada pela ideia de “falante nativa” não é
prerrogativa exclusiva das escolas de idiomas, mas é compartilhada
culturalmente por nossa sociedade em geral.
O que significa, no caso de Safira, essa ideia de ser ou não ser
“falante nativa”? Ela precisa, ou deve, ou deseja ser uma “falante nativa”
de português? A projeção de modelos ideais sobre ser proficiente em
uma determinada língua nomeada pode muitas vezes implicar em uma
generalização bastante simplista de todas as falantes nativas de uma
língua, como se todas tivessem a mesma proficiência e soubessem a
mesma língua do mesmo jeito. No entanto, é preciso problematizar
esse tipo de generalização, o que pode ser feito ao nos indagarmos, por
exemplo:

• ela seria “falante nativa” de onde? De que cidade, região?


• essa “falante nativa” pertenceria a qual classe social?
• que nível de escolaridade e formação teria essa “falante nativa”?
• a “falante nativa” em que Safira se transformaria falaria apenas
uma língua ou já teria aprendido outras?

Pensar nessas questões nos leva ainda mais além, refletindo sobre
como a ideia de “falante nativa” está atrelada a outras construções
sociais que nos rotulam e influenciam nossos olhares, determinando a
legitimidade que conferimos a quem consideramos ser “falante nativa”.
Obviamente, não sugerimos tudo isso como uma forma de discriminação
entre “falantes nativas” de determinadas regiões, cidades, classes
sociais, níveis de escolaridade, etnias, etc. – discriminações essas que
são bastante reais e que ocorrem diariamente, infelizmente, e contra
as quais temos que lutar, não apenas como pessoas interessadas em
linguagem mas também como cidadãs. Trazemos esse exercício de
levantar tais perguntas para ilustrar que, mesmo dentro da noção
idealizada de “falantes nativas”, elas seriam demasiado diversas para
generalizarmos todas elas em um único “modelo”, especialmente

87
A LINGUAGEM NA VIDA

quando esse modelo é usado para excluir “falantes não nativas” ou


mesmo hierarquizar as “falantes nativas”.
Pensando no caso de Safira, poderíamos, portanto, levantar os
seguintes questionamentos: se existe tanta heterogeneidade entre
“falantes nativas” e se reconhecemos essa heterogeneidade no nosso
dia-a-dia, por que é comum que se espere que pessoas como Safira se
adequem a um modelo ideal de “falante nativa” (isto é, que cheguem
o mais próximo possível desse modelo)? Por que algumas diferenças
causam estranhamentos e até rejeições, enquanto outras não?
Como você nessa altura provavelmente já consegue prever, nossa
visão é de que a busca por um modelo ideal geral, único, de falante
está imbricada com a rejeição de algumas diferenças e com a aceitação
tácita de outras. Essa busca e essa rejeição/aceitação são práticas ao
mesmo tempo de identidade e de linguagem. Querer falar como uma
“falante nativa”, ou seja, aproximar-se de um suposto falar ideal,
parece-nos bastante violento quando silencia outros modos de falar e,
com isso, outras identidades (que não as de “falante nativa” ou, ainda,
de “falantes nativas” não legitimadas), outras existências e outros
conhecimentos. Como sabemos, esse desejo, inatingível, pode criar
uma sensação permanente de frustração, que afeta de maneira negativa
o modo como nos percebemos enquanto aprendizes de linguagem e
nosso existir no mundo. Para nós, o que importa na aprendizagem de
línguas não é buscar ou imitar um modelo supostamente ideal, mas
existir e construir sentidos na linguagem, sentindo-se legitimada nesse
processo. Com isso, ressaltamos que aprender línguas nos possibilita
outras formas de existir e de nos relacionarmos umas com as outras e
com as coisas do mundo.
Você deve se lembrar que a narrativa de Laura na abertura deste
capítulo nos conta o sonho que a professora teve com sua aluna Safira,
quando ela era recém-chegada no Brasil. O fato da professora ter
sonhado com sua aluna evidencia o impacto de Safira nas reflexões
de Laura, que se mostrava preocupada com a escola funcionar muito
bem com as alunas migrantes, mas não com Safira. Laura parecia se
perguntar o porquê disso, especialmente ao repetir, em sua narrativa,
que com Safira “era diferente”. Acreditamos poder ajudar Laura nessas

88
A LINGUAGEM NA VIDA

reflexões, discutindo as particularidades da linguagem na situação


de Safira a partir das dimensões de aprendizagem de línguas que
discutimos aqui, ou seja, que aprender uma língua é uma prática
social, relacional, processual e contínua, uma prática que precisa
problematizar a ideia de “falante nativa”.
Como professora, Laura poderia se perguntar: “qual seria o papel
da escola no acolhimento de Safira e de sua irmã, tanto na comunidade
quanto no contexto escolar?” A perspectiva translíngue adotada por
nós, conforme exploramos neste capítulo, nos leva a pensar tanto na
linguagem quanto na escola como espaços complexos e dinâmicos,
demandando que se considere sempre a multiplicidade de vozes
envolvidas neles. Será que esse entendimento poderia transformar a
escola na qual Laura e Safira se conheceram em um ambiente mais
acolhedor, no qual houvesse maior espaço para o convívio com as
diferenças, para construção e transformação de práticas de construção
de sentidos? Acreditamos que sim.
No entanto, ser acolhedora não implica evitar ou encobrir
conflitos, nem mesmo resolvê-los; afinal, nossas vidas são repletas
de conflitos e a escola faz parte da vida. Os conflitos com que nos
encontramos dentro e fora da escola talvez fiquem mais visíveis nos
contatos interculturais com pessoas recém-chegadas à comunidade
escolar, mas não se limitam a essas situações. Safira pode ter
evidenciado as dificuldades da escola, das alunas e das professoras em
lidar com letramentos diferentes dos seus, mas sabemos que conflitos
acontecem sempre nas relações entre pessoas e das pessoas com o
mundo.
Na perspectiva de linguagem com que estamos trabalhando, os
processos de negociação de sentidos são uma constante, e os conflitos
fazem parte deles. Na verdade, pode-se dizer que os conflitos constituem
os sentidos: negociar sentidos envolve entrar em contato com aquilo
que é diferente do que já sabemos ou mesmo aceitamos, o que nos leva
a ter diferentes reações. Se entendemos que a linguagem nos constitui
e compreendemos que somos todas diferentes, não seria óbvio termos
diferentes interpretações das coisas? Para nós, sim, seria evidente.

89
A LINGUAGEM NA VIDA

Contudo, a perspectiva bastante difundida de que a linguagem


seria neutra e existiria a priori das situações comunicativas faz com
que muitas vezes os conflitos inerentes à comunicação sejam vistos
como ruídos, problemas a serem evitados ou sanados. Os conflitos
nos deixam inseguras, nos tiram de nossas zonas de conforto – talvez
justamente porque nos trazem a oportunidade de aprender. Aprender
significa confrontar, transformar, ver diferente. E isso nos coloca em
conflito, um conflito entre o que já sabemos e já aprendemos, o que
outras pessoas sabem e nos contam, em contraponto com o que viremos
a saber. Esse novo saber não se constrói no vácuo – ele se dá em relação
com os saberes anteriores, e nesse encontro todos se transformam: os
saberes novos e os anteriores, bem como as pessoas que os constroem.
Essa trama de linguagens, pessoas e saberes é informada também
pelos espaços que dão lugar a esses encontros e confrontos, pelas
experiências de vida das pessoas, por suas leituras sobre esses espaços
e saberes, pelas relações de poder que caracterizam tudo isso, e muito,
muito mais.
Um espaço onde essa trama se constrói é a escola, um lugar
de encontro das diferenças e, portanto, um lugar privilegiado para
esses confrontos e transformações. Nesse sentido, quais seriam as
características de uma escola que fizesse das diferenças oportunidades
para aprender? Deveria essa escola priorizar os conteúdos disciplinares
em detrimento do acolhimento das diferenças que as alunas trazem
consigo? Será que essa escola poderia ou deveria elencar conteúdos
para a promoção de uma formação cidadã? Seria uma questão de
ter que “escolher” entre, por um lado, conteúdos, e, por outro lado,
formação cidadã? Em que objetivos essa escola deveria se concentrar?
Em outras palavras, podemos agora retomar a função dessa escola em
nossa sociedade, expandindo o que apontamos sobre isso no primeiro
capítulo.
Para nós, a escola poderia começar sendo movida pelo desejo
de tornar visível aquilo que ela tem tradicionalmente excluído de
sua atenção, ou seja, abrir-se para configurações e saberes sociais,
familiares, econômicos, culturais que eventualmente não façam
parte das práticas legitimadas pela comunidade em que ela se

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A LINGUAGEM NA VIDA

insere. Uma vez visíveis na escola, essas configurações e saberes


fariam parte dos processos de aprendizagem como oportunidades de
pensar “fora da caixa”, de refletir sobre alternativas ao mundo “como
ele nos parece”, ou como ele nos é apresentado nas perspectivas
legitimadas das disciplinas escolares. No encontro entre diferentes
saberes, ideologias, pessoas, a aprendizagem abre horizontes e amplia
repertórios, construindo a possibilidade de que tenhamos mais do
que uma história única, mais do que uma linguagem única, mais do
que uma cultura única. Pense, por exemplo, em como os conteúdos
de disciplinas tais como História do Brasil têm sido modificados, a
partir do reconhecimento de perspectivas diversas sobre o que ocorreu
aqui, tanto antes quanto depois das chamadas grandes navegações
e do encontro entre ameríndios e europeus. É interessante perceber
como essas mudanças nos conteúdos disciplinares constroem para
nós outras formas de existir, de ver o outro, e assim ampliam nossas
interpretações e percepções de nós mesmas e das outras pessoas,
nações, países, comunidades, etc. Em nosso entendimento, toda
mudança acontece de forma complexa, tanto de fora da escola para
dentro, quanto de dentro dela para fora, em um processo constante,
afinal, a escola é uma instituição social e, portanto, em permanente
construção por todas as pessoas e os saberes que a constituem.
Importante destacar que esse processo de visibilização de si e
de outras pessoas e conhecimentos proporcionará aprendizagem
(entendida como um processo de transformação que está além da
mera reprodução de conteúdos) na medida em que os saberes forem
confrontados uns com os outros, e que a comunidade escolar possibilite
espaços de discussão sobre as diversas perspectivas que venham a fazer
parte da escola. Isso não significa legitimar o que não está legitimado,
nem deslegitimar o que está legitimado. Também não significa que
todos os conhecimentos tenham o mesmo valor perante a sociedade,
nem que devam vir a ter; não se trata de saberes neutros, despolitizados,
construídos num vácuo: conteúdos, disciplinas, conhecimentos,
saberes são sempre ideológicos, como vimos no capítulo 3. Aprender
confrontando saberes, para nós, significa relacionar, associar, cotejar, e
desse modo, desenvolver a reflexão e o pensamento crítico que existem

91
A LINGUAGEM NA VIDA

no reconhecimento de que há uma grande variedade de saberes e que


tais saberes são hierarquizados social, cultural e politicamente em
nossa sociedade. Aprender então, em meio à multiplicidade de saberes,
envolve ampliar as possibilidades de se posicionar diante do mundo.

Afinal, o que a linguagem e a escola têm a ver com a vida?

Quando olhamos para a escola mais de perto, vemos que ela é


um espaço onde estudantes com diferentes repertórios linguístico-
culturais entram em contato, aprendem umas com as outras e têm
incontáveis possibilidades de construção e transformação a partir de
diferentes olhares. Isso nos parece evidente. No entanto, nos parece
crucial que essas práticas de linguagem e aprendizagem sejam ainda
mais valorizadas do que têm sido pela escola. A multiplicidade dessas
práticas por vezes pode não ser considerada em seu potencial formativo,
sendo tratada como uma questão menor ou como efeito colateral dos
letramentos escolares. No entanto, acreditamos que se elas forem
ressignificadas como válidas e fundamentais, sendo incorporadas
explicitamente ao trabalho de sala de aula – por exemplo, através da
elaboração de atividades relacionadas aos conteúdos disciplinares –,
pode haver um alargamento das possibilidades de ser, existir, agir e
aprender no mundo pelas pessoas envolvidas na escola.
Talvez, se essas possibilidades tivessem sido exploradas na escola,
no caso de Safira, mais especificamente, ela pudesse ter se sentido mais
acolhida e tivesse tido maior sensação de pertencimento, não apenas à
escola, mas também à sociedade em geral. Talvez, nesse caso, o medo
que Safira parecia sentir pudesse ser compartilhado, visibilizado como
uma oportunidade de aprendizagem não apenas para ela, mas também
para as pessoas que interagiam com ela. No entanto, esse parece não
ter sido o seu caso, assim como não é o caso de tantas e tantas outras
crianças em diversos espaços, sejam elas migrantes ou não.

92
A LINGUAGEM NA VIDA

PALAVRAS PARA UM FINAL PROVISÓRIO

Chegamos ao final. Ou quase. Recordemos então, muito


sumariamente, que tivemos na apresentação do livro uma breve
narrativa sobre como escrevemos esta obra com os pés no chão e as
mãos, as cabeças e os corações na linguagem. Depois, passamos por
4 capítulos construídos a partir de experiências vividas por Laura,
uma professora de inglês, experiências que nos permitiram aproximar
a vida de Laura das nossas vidas e tratar de temáticas da Linguística
Aplicada com uma linguagem não acadêmica. No primeiro capítulo,
tratamos de linguagem como prática social - conceito que fundamenta
a proposta do livro em si e embasa todos os outros capítulos. Nos
desdobramentos do capítulo 1, abordamos a linguagem escrita, a noção
de recursos semióticos, a função social da escola (problematizando o
conceito de educação bancária) e o imbricamento entre linguagem
e sociedade. No capítulo seguinte, problematizamos os conceitos de
leitura, de palavra-mundo, de letramentos, de letramento visual e
de letramento crítico, bem como discutimos a materialidade desses
conceitos no mundo e na vida. O terceiro capítulo tratou dos conceitos
de multimodalidade e de ideologia, e de como eles estão imbricados nas
mudanças tecnológicas na contemporaneidade, trazendo profundas
implicações aos estudos da linguagem. No último capítulo discutimos
os conceitos de identidade, interculturalidade e migração a partir
da concepção de linguagem como prática social transgressora e da
escola como espaço de acolhimento e transformação: essa discussão
considerou os conceitos de translinguagem, repertórios linguísticos e
falante nativo.
Buscaremos, por fim e agora, neste final provisório, fazer presentes
os desafios que os anos de pandemia têm nos trazido e a importância

93
A LINGUAGEM NA VIDA

dos estudos da linguagem para a compreensão e transformação deste


cenário vivido por todas nós, autoras e leitoras.
Pensemos então um pouco mais sobre Laura, a professora que
nos oportunizou material para este livro e suscitou as reflexões que
compartilhamos com você. Por onde andará Laura hoje? Estará ela
em isolamento físico devido à pandemia da COVID-19? Será que ela
ou alguém próximo a ela sofreu diretamente com essa doença? Como
ela deve estar se sentindo com a iminência (ou não) da retomada das
atividades presenciais (ou remotas) nas escolas?
Só podemos imaginar o quanto a preocupação de Laura com a
saúde física e mental de suas alunas pode ter afetado seu estado de
espírito diante da situação pela qual o Brasil passa desde o ano de 2020,
ano em que escrevemos este livro. Não temos como saber em que ano
você, leitora, está lendo este livro; no entanto, podemos adivinhar que,
seja em que ano for que tenhamos nos encontrado, estaremos todas
enormemente impactadas pelos acontecimentos do ano em que este
livro foi escrito. Claro que, no fundo, este livro será reescrito a cada
leitura que dele for feita, e será novo para cada leitora e até para a
mesma leitora em diferentes momentos em que a leitura seja realizada.
Mesmo assim, o ano da escritura primeira terá sido marcante em nossa
história, em nossos pés, em nossas mãos, em nossas cabeças, em nossos
corações, em nossos corpos, enfim, em nossa existência. Literalmente
ou não. Queremos registrar aqui nosso pesar diante de tantas mortes
que talvez pudessem ter sido evitadas no decorrer deste ano.
No entanto, entendemos que este livro pode ser uma maneira
de lidar com tanta tristeza, de buscar uma vida com mais empatia e
colaboração. Sua escritura foi isso, certamente, para nós. Desejamos
profundamente que também o seja para você.
Mas calma, pois este livro quase acabou. Falamos bastante de
escola, encontramos uma professora em vários momentos de sua
vida. Como professoras nós também, autoras deste livro, temos uma
lição de casa para você. Apresentamos aqui então mais um desafio de
aprendizagem, à guisa de encerramento deste livro. Gostaríamos muito
que você pensasse sobre como sua leitura dele pode ter modificado,

94
A LINGUAGEM NA VIDA

estar modificando, ou vir a modificar suas práticas de letramento: este


livro causou algum impacto em quem você se percebe ser, em como
você percebe a linguagem no mundo, em como você percebe o mundo
e as outras pessoas, e outras formas de existência? Você sente que seu
repertório se expandiu de alguma maneira?
Se você responde “sim” às duas perguntas, ficamos extremamente
satisfeitas e convidamos você a continuar conosco em nossas redes
sociais, em nossos textos acadêmicos que se encontram em diversas
revistas de acesso gratuito no Portal de Periódicos da CAPES e em
outras revistas acadêmicas por aí.
Se sua resposta às perguntas é “não”, convidamos você a fazer
o mesmo que estamos convidando a fazer quem responde que sim;
afinal, esperamos que este livro tenha influenciado você, mesmo que de
forma leve, a se sentir motivada a continuar investigando, instigando
seu pensamento, sua percepção, sua interpretação de si e do mundo.
Esse fim (término e finalidade) provisório vem com a esperança
de que a leitura dos capítulos deste livro tenha sido tão construtiva para
você quanto escrever este livro foi para nós: um processo desafiador,
sem dúvida, e repleto de aprendizagem, sem dúvida.
Agradecemos pela companhia.

95
A LINGUAGEM NA VIDA

PARA SABER MAIS

ADICHIE, Chimamanda Adichie. O perigo da história única. Jul., 2009.


Disponível em: <https://www.ted.com/talks/chimamanda_ngozi_adichie_
the_danger_of_a_single_story/transcript?language=pt> Acesso em: 06 ago.
2020.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: O que é, como se faz. São Paulo:
Loyola, 1999.
BAZZONI, Cláudio. A concepção de linguagem determina o que e como
ensinar. Nova Escola. s/d. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=JUrY60mK2g8>. Acesso em: 12 ago. 2020.
FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & diálogo: As ideias linguísticas do
círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.
FERREIRA, Aparecida de Jesus. Formação de Professores - Raça/Etnia: reflexões
e sugestões de materiais de ensino em português e inglês. 2 ed. Cascavel, PR:
Assoeste, 2006.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler - em três artigos que se completam.
45.ed. São Paulo: Ed. Cortez, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
educativa. 14. ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra, 1996 [2000].
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Tolerância. Organização e Notas Ana Maria
Araújo Freire. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
FONSECA, André. Teoria de Paulo Freire Explicada em Vídeo. Nova Escola, 09
jun. 2015. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/4630/teoria-
de-paulo-freire-explicada-em-video>. Acesso em: 12 ago.2020.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

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A LINGUAGEM NA VIDA

GROISMAN, Serginho. Serginho Groisman entrevista Paulo Freire no


programa ‘Matéria Prima’ da TV Cultura. Disponível em: <https://www.
youtube.com/watch?v=Zx-3WVDLzyQ>. Acesso em: 06 ago. 2020.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2011.
JORDÃO, Clarissa Menezes. O ensino de línguas estrangeiras: de código
a discurso. In: KARWOSKI, Acir Mário & VAZ BONI, Valéria. Tendências
Contemporâneas no Ensino de Línguas. União da Vitória: Kaygangue, 2006, p.
26-32.
_______. (org.). A Linguística Aplicada no Brasil: rumos e passagens. Campinas,
SP: Pontes Editores, 2016.
_______ et.al. (org.). Letramentos em Prática na Formação Inicial de Professores
de Inglês. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018.
MATTOS BRAHIM, Adriana C. S. de; HIBARINO, Denise A. (orgs.). Entre
línguas: Letramentos em prática. Campinas, São Paulo, SP: Pontes, 2020.
MENEZES DE SOUZA, Lynn Mario. Professor Ruberval Maciel entrevista
Professor Lynn Mario Menezes de Souza. Disponível em: <https://www.
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MOITA LOPES, Luis Paulo da. (org.). Por uma linguística aplicada INdisciplinar.
São Paulo, SP: Parábola, 2006.
______. (org.). Linguística Aplicada na Modernidade recente: festschrift para
Antonieta Celani. São Paulo, SP: Parábola, 2013.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita - repensar a reforma e reformar o pensamento.
11ed. Rio de Janeiro, RJ: Bertrand Brasil, 2005.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. Por uma linguística crítica: linguagem, identidade
e questão ética. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.
RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante - cinco lições sobre a emancipação
intelectual. Trad. Lílian do Valle. 3 ed. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora,
2015.
REVISTA RESSONÂNCIAS. Publicação anual relacionada à temática de
migração e refúgio. UFPR. Volume 1, número 1, fev. 2020. Disponível em:
<https://issuu.com/ressonancias>. Acesso em: 12 ago. 2020.

97
A LINGUAGEM NA VIDA

RITA VAN HUNTY. A realidade é subjetiva. Tempero Drag, 2020. Disponível


em: <https://www.youtube.com/watch?v=kdHmy0_Rkcw>. Acesso em: 06
ago. 2020.
RITA VAN HUNTY. Ideologia. Tempero Drag, 2020. Disponível em: <https://
www.youtube.com/watch?v=cowTCfoegsI>. Acesso em: 06 ago. 2020.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. Para além do pensamento abissal: das linhas
globais a uma ecologia de saberes. Novos estud. - CEBRAP, São Paulo , n. 79, p.
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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era
dos meios de comunicação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais
do método sociológica na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo; Ekaterina
Vólkova Américo. São Paulo, SP: Editora 34, [1929] 2017.

98
A LINGUAGEM NA VIDA

POSFÁCIO

Depois de acompanharmos a trajetória da professora Laura,


propomos duas reflexões: será que não nos tornamos um pouco como
ela durante a leitura? Ou ainda, será que não somos, eventualmente,
Laura?
Assim como nós, vocês talvez tenham passado pelo processo de
laurear-se: identificar-se com a personagem, com suas inquietações,
com seus questionamentos e com seus sonhos. Ou, quem sabe, tenham
assumido suas características e sua personalidade ao seguirem a
tendência atual das mídias sociais #laure-se#.
. Dessa forma, as reflexões aqui presentes nos convidam a pensar
que o processo de formação do sujeito ocorre dentro e fora dos muros
da escola.
As doze mãos que escreveram o livro tiveram como preocupação
uma leitura acessível e que fosse, ao mesmo tempo, provocativa.
Ao inovar na adoção do feminino para designar autoras e autor, os
leitores podem tornam-se leitoras como oportunidade de vivenciar a
alteridade.
Ainda seguindo o raciocínio das mãos, podemos afirmar que
lidar com a linguagem e refletir sobre as mudanças no mundo no qual
estamos inseridas possibilita a construção de outros mundos, bem
como fazem as autoras ao escrever um texto colaborativamente e ao
tensionar diferentes visões e posicionamentos, frutos de seus esforços
interpretativos.
É necessário, então, estarmos com as cabeças abertas para nos
dedicarmos a um livro que parte de uma escrita ousada que não faz uso

99
A LINGUAGEM NA VIDA

de referências diretas, citações e tantas outras formas tradicionais de


legitimação de conhecimento.
No entanto, é uma leitura que não deixa de envolver a afetividade.
Isso significa que nossas emoções estão constantemente em jogo
nesse processo, evidenciando o quanto a linguagem toca o coração.
E, não é só isso: como colegas das autoras, também nos envolvemos
emocionalmente, uma vez que nossas existências e trajetórias se
entrecruzam dentro e fora da vida acadêmica. Gostaríamos de registrar
aqui nossa gratidão pela oportunidade de ler e escrever sobre esse livro.
Nos dois primeiros capítulos, Laura conversa com a mãe de uma
aluna e com uma amiga, fato que chama a atenção para a importância
das relações e das afetividades envolvidas. Do mesmo modo, nossos
engajamentos em conversas com mães de alunas, com colegas de
trabalho, com família e com amigas não deixam de envolver afetividade
e conflitos.
Para finalizar, retomamos o desfecho da personagem que sonha
com a história de sua aluna. Isso nos convida a pensar o quão intenso é
o processo de nos tornarmos educadoras, a ponto de não esquecermos
das alunas que marcam nossas vidas, das influências que exercemos
em suas vidas e vice-versa. Sendo assim, esperamos que essa leitura
traga outros sonhos para vocês, caras leitoras. E que esses sonhos se
concretizem em ações, projetos, futuras leituras e outros novos sonhos!

Angela Maria Hoffmann Walesko


Professora de Teoria e Prática de Ensino no Setor de
Educação da Universidade Federal do Paraná
Formadora de professoras, mãe de uma Laura de 7 anos
que também tem o espírito curioso e questionador como a
personagem do livro - talvez um pouco mais teimosinha.
angela.walesko@ufpr.br

100
A LINGUAGEM NA VIDA

Denise Akemi Hibarino


Professora de Língua inglesa no Departamento de Línguas
Estrangeiras Modernas da Universidade Federal do Paraná
Filha da Dona Aurora, com quem alterna o papel de mãe
quando precisa alfinetá-la.
denise.hibarino@ufpr.br

Iara Maria Bruz


Professora de Língua inglesa no Setor de Educação
Profissional e Tecnológica da Universidade Federal do Paraná
Professora que, muitas vezes, sonha com suas alunas e suas histórias.
iarabruz@ufpr.br

101
A LINGUAGEM NA VIDA

BIODATAS

Adriana Cristina Sambugaro de Mattos Brahim – Doutora e Mestre em


Linguística Aplicada (UNICAMP) e docente do Programa de Pós-graduação
em Letras da UFPR, e do SEPT/UFPR. É líder do GPELIN (Grupo de Pesquisa
em Educação Linguística - DGP/CNPq) e participa do grupo de pesquisa
Identidade e Leitura. adrianacsmbrahim@gmail.com

Alessandra Coutinho Fernandes – Docente do Curso de Letras Inglês


(UFPR). Doutora em Estudos Linguísticos (UFPR). Mestre em Letras Inglês
e Literatura Correspondente (UFSC). Realizou pós-doutorado na University
of Illinois at Urbana-Champaign e na USP. Participa do grupo de pesquisa
Identidade e Leitura (UFPR). alessandrawiggers@gmail.com

Ana Paula Marques Beato-Canato – Docente do Curso de Letras Inglês


e do Programa de Pós-Graduação em Letras na Universidade Federal do
Paraná; mestre e doutora em Estudos da Linguagem (UEL) e pós-doutora em
Linguística Aplicada (UFRJ). Integra o grupo de pesquisa Identidade e Leitura
(UFPR). anabeatocanato@gmail.com

Clarissa Menezes Jordão – Doutora em Letras (USP), mestre em Literaturas


de Língua Inglesa (UFPR) e graduada em Letras Português e Inglês (UFPR).
Realizou pós-doutorados na Universidade de Manitoba e no Glendon College,
Universidade de York, ambos com bolsa da CAPES. Professora sênior no
Programa de Pós Graduação em Letras da UFPR. Líder do grupo de pesquisa
Identidade e Leitura (UFPR). clarissamjordao@gmail.com

102
A LINGUAGEM NA VIDA

Eduardo Henrique Diniz de Figueiredo – Professor da Universidade Federal


do Paraná, na graduação e na pós-graduação em Letras. Doutor em Linguística
Aplicada pela Arizona State University. Possui graduação em Letras pela
Universidade Federal da Paraíba e mestrado em Letras (Inglês e Literatura
Correspondente) pela Universidade Federal de Santa Catarina. É vice-líder do
grupo de pesquisa Identidade e Leitura (UFPR). eduardo.diniz@ufpr.br

Juliana Zeggio Martinez – Professora no Curso de graduação e de pós-


graduação em Letras na Universidade Federal do Paraná. Doutora em Letras
pela Universidade de São Paulo, mestre em Letras pela UFPR e graduada em
Letras Português-Inglês também pela UFPR. Atua em projetos de formação de
professores/as no Núcleo de Assessoria Pedagógica (NAP-UFPR) e integra o
grupo de pesquisa Identidade e Leitura (UFPR). jumartinez@ufpr.br

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