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O REGRESSO DE JÚLIA MANN A PARATY

Só o primeiro embate fora doloroso, arremessando-a violentamente contra uma parede ou


uma muralha de água, e ela soubera que não poderia sobreviver à dor que a rasgara de alto a
baixo, cor- tando-lhe a respiração e sufocando-a, até que a dor se confundiu com todo o seu
corpo, e ela perdeu os sentidos.

Mas agora ultrapassava esse instante, como quem dobra uma onda, e a respiração
voltava. Continuava a ser arrastada mas conseguia atravessar os obstáculos, que se
estilhaçavam, e não ela. Não sabia se deslizava na sua direcção, ou eles se aproximavam
vertiginosamente, tudo se transformara num turbilhão confuso de portas e janelas arrancadas,
estantes de livros caindo, gavetas flutuando, lençóis e rendas, luvas, toalhas bordadas, caixas
de chapéus, cristaleiras de onde jorravam porcelanas de Meissen e de Sèvres, copos e taças de
cristal com debrum dourado, colheres, garfos e facas de prata que dardejavam como
relâmpagos e desapareciam, entre o ruído de estilhaços de louça e de cristais partidos.

Agora tudo se diluía diante dos seus olhos, como palavras escritas a tinta, que a água
apagava. As casas da Breitstrasse, da Mengestrasse, e outras casas em que vivera
desintegravam-se e transformavam-se em espuma. E ela não sentia nada, a não ser alívio:

Nenhuma casa tornaria a prendê-la, e por isso ria das suas portas e janelas, jardins,
escadas, paredes e balcões, tectos de estuque e soalhos brilhantes, que de repente já não
estavam lá.

Era curioso como tudo sucedia tão depressa:

Poucos momentos antes ainda todos tomavam chá, Heinrich, Thomas, Viktor e Nelly,
mulher de Viktor.

Recebera-os sentada na cama, encostada a grandes almofadas, e tinha sido um


momento agradável, como sempre que estavam juntos.

Lula, a sua filha Júlia, viera antes dos irmãos, com o marido.

Talvez no dia anterior? Não sabia ao certo, mas tinha a certeza de que todos os que amava
tinham estado ali, e que, antes de saírem, ela lhes acenara, a despedir-se.

E pensara, antes de adormecer: Tenho de ir comprar manteiga. Desde o tempo da


guerra que lhe ficara esse hábito de tomar nota, mentalmente, do que não poderia faltar na
próxima ocasião em que se reunissem para uma refeição em família, mesmo ligeira e breve,
como nessa tarde.

Depois, com a ajuda da enfermeira, estendera-se na cama, estava cansada e iria


repousar um pouco.

Adormecera no quarto de uma pensão em Wessling, e agora estava longe, corria no


Trave, que a levava consigo, e ela alegrava-se porque a água encontrava sempre o seu
caminho. Não queria a baía de Lübeck nem o Báltico, deixava-se ir, não importava se a favor da
corrente ou contra ela, o Trave saberia o rumo certo, poderia por exemplo levá-la ao Elba,
onde ela atravessaria sem dificuldade todas as comportas, e o Elba levá-la-ia depois até outro
mar.
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Lula e Jof, Heinrich, Thomas, Viktor e Nelly, ainda à sua volta. Todos tinham vindo.

Mas já não precisavam dela, o papel de mãe acabara. Acenaralhes, dizendo adeus.

Ainda sem saber que já se soltara, e partira.

Agora a liberdade entontecia-a, como se tivesse bebido de um trago um vinho


demasiado forte. A ideia de agir por impulso, sem pensar, dava-lhe um prazer intenso:
deslizava na água, cada vez mais depressa, sentindo-se louca e rindo com aquelas gargalhadas
excessivas, que muitos consideravam escandalosas. Sabia isso mas sempre os ignorara, e não
deixara de rir daquele modo, muito seu, vingando-se pelo riso do que a sociedade dizia e
pensava dela.

Agora triunfava contra Lübeck, e as vozes do mundo eram-lhe, mais do que nunca,
indiferentes, chamassem-lhe o que quisessem, dissessem o que quisessem daquela
estrangeira, mulher do senador, ela não queria saber, faria o que quisesse, rindo e troçando
deles, em gargalhadas selvagens.

Agora era Júlia, e queria recuperar o tempo em que não fora. Para isso se deitara ao rio. Ins
Wasser gehen, dizia-se. Tão fácil, tão fácil. Deitara-se nos braços do rio, e o rio levá-la-ia até ao
mar, e o mar era infinito e seu amigo, ou seu amante. Talvez fosse o mar o amante que sempre
procurara. E agora ia finalmente ao seu encontro, partiria com ele até o fim do mundo, e
nunca voltaria. Nunca mais.

Mas por enquanto era ainda o Trave, à beira do qual gostava de passear, e em cuja foz
costumavam ir à praia, em Travemünde - dias felizes para as crianças, que corriam e brincavam
na areia, sem darem conta de como a água e o ar eram gelados, mesmo no calor do Verão. Só
ela não gostava especialmente daquelas ondas nem do vento agreste que por vezes se
levantava e os obrigava a vestir camisolas de lã. Mas o prazer das crianças era também o seu.

Naquela mesma praia a tia Elisabeth, quando era jovem, apai- xonara-se por um
estudante com ideias sociais novas, que não lhe saíram da memória, nem o rapaz que as
partilhara com ela. Nunca se sentira tão perto de nenhum outro, mas o rapaz era de condição
inferior, e casar com ele estava absolutamente fora de questão. Em vez disso casou três vezes,
foi três vezes infeliz como se esperava, e não esqueceu o rapaz de Travemünde, nem a barraca
da praia onde se tinham beijado.

A história da tia Elizabeth era a de Tonia Buddenbrook. Toda a família estava nos livros
em que Thomas a descrevia, e por vezes também nas histórias que Heinrich imaginava.

Heinrich aliás cedo se libertara da família e da sociedade em que viviam. Mas não
Thomas.

Em Lübeck as famílias eram prisões, e a sociedade uma prisão maior, onde se


encarceravam todas as famílias.

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Travemünde, para onde se fugia nos meses mais quentes, era uma curta respiração, uma leve
pausa numa partitura - porque ali tudo era sempre pautado, obedecia a estritas normas e
escrevia-se entre apertadas linhas paralelas, que se prolongavam, sem remédio, até à morte.

Mas a música que ela tocava ao piano e cantava, parà si mesma ou para as crianças,
era livre, alegre e diferente, tinha outro ritmo, outra melodia e leveza.

Na música ela podia voar e estar contente, sobretudo quando dançava nos braços de
um homem, e atraía os olhares e desejos de todos os outros homens na sala.

A mulher mais bela da cidade, dizia-se em Lübeck.

Mas depois a festa acabava, e ela ficava sozinha, num salão vazio. Ou numa praia deserta, em
Travemünde.

Gostava dos fins de tarde, à beira-mar, quando ainda havia luz do dia, e depois deixava de
haver. Naquela latitude a luz era fugaz, e a temperatura nunca subia o suficiente, mesmo no
Verão. E o mar cheirava pouco a mar, em Travemünde. Mas as crianças nunca tinham frio, e os
dias na praia eram felizes.

Lübeck estava ainda certamente lá, embora ela vogasse abaixo da superfície do rio e não
quisesse ver as suas fachadas sombrias - uma cidade de tijolo escuro, cheia de torres e
pináculos, de igrejas enormes, armazéns de sal, ruelas estreitas desembocando umas nas
outras, a partir da grande porta Holstentor, que se fechava contra o mundo e só abria para
dentro de si mesma.

Mas junto da outra porta, a Burgtor, havia um pequeno miradouro de onde se podiam
ver os dois braços do Trave confluindo. E na infância, quando chegara a Lübeck, ela gostava de
ir, duas vezes por mês, depois do almoço, a casa da avó Maria Luísa Bruhns, diante da Burgtor.

O Trave cercava a cidade velha, era bom passear à beira dele ou sobre as pontes,
andar de barco pelos seus canais, também isso era uma respiração, uma abertura contra a
claustrofobia. Sempre gostara de cidades à beira do mar, de um rio ou de um lago, se não
vivesse perto de água achava que morreria sufocada.

Em Lübeck assistia-se a cerimónias na catedral, mas quase sempre preferia-se a Igreja


de Maria, construída pela corporação dos comerciantes e dos armadores, orgulhosa mente
mais alta do que a catedral e do que todos os edifícios da cidade, e se tornara símbolo do
poder e dinheiro da grande burguesia, que dominava tudo.

No entanto, por fora e por dentro era escura e sem ornatos, ao contrário das igrejas
festivas que ela conhecera anteriormente.

-Queres tornar-te protestante, não é verdade, Júlia?

Nunca lhe tinham feito essa pergunta, mas, se tivessem, teria dito sim, sem saber o
que isso significava, e porque não poderia di- zer não. Sim era a vontade de todos e a resposta
que esperavam dela.

Na verdade, ser católica ou protestante era-lhe indiferente, nem percebia a diferença,


a não ser aquele ambiente soturno das igrejas.
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Apesar da pouca luz que entrava, via-se na Igreja de Maria um painel onde os vivos
dançavam com os esqueletos dos mortos, uma cena arrepiante, que lhe fazia medo e evitava
olhar.

Felizmente por vezes um pequeno milagre acontecia: O órgão começava a ouvir-se, e o


coração dela ficava de repente leve, subia até ao cimo da grande nave, e depois até às nuvens,
e muito acima delas.

A música era solene, mas ao mesmo tempo festiva, como vozes triunfais cantando,
afinal podia haver alegria e beleza, mesmo ali naquela igreja triste, sobre a qual se contavam
histórias assustadoras, como a do Diabo que queria destruí-la, ou a de um velho que ficou no
telhado à espera da morte, mas ela não veio, e ele esperou tanto que se transformou em
pedra.

Apesar das histórias sombrias e dos painéis de horror, apesar das enormes paredes
nuas, o grande órgão tocava, e as suas vozes vinham falar com ela.

Mais tarde soube que o jovem Bach de dezanove anos tinha andado quatrocentos
quilómetros a pé, desde Arnstadt, para ali chegar, quando o organista da igreja era Buxtehude,
e ficara a ouvi-lo, esquecido do tempo, e já três meses tinham passado. Por causa disso
perdera o emprego em Arnstadt, e depois ele próprio se tornara organista, naquela mesma
igreja.

Dessa história gostava, e a música de Bach era uma espécie de religião que ela
entendia: Tudo ocupava o seu lugar e era perfeito, nada estava a mais nem a menos, podiam
variar-se as notas até ao infinito, mas a soma de todas era sempre Deus.

E cada partitura, por mais pequena que fosse, era igual mente Deus: Como quando,
nas igrejas da sua vida anterior, se partia a hóstia, e Deus tanto estava inteiro nela intacta,
como em cada pedaço, se a partissem. Deus era o princípio e o fim de tudo, e das suas mãos
nada podia cair. Nem mesmo ela, Júlia.

Essa ideia era uma certeza, e uma benéfica sensação de segurança, enquanto a música
durava. Mas depois tudo voltava a ser incerto e desolado, e ela era outra vez estrangeira,
numa cidade que a recusava, e também ela recusara sempre. No entanto tinham-na acolhido
com gentileza, e sido bondosos com ela. A avó Maria Luísa e as irmãs, os tios Eduard e
Theodor, e, em geral, a família.

O pai nascera ali, numa família de comerciantes, e aos dezasseis anos embarcara para
o Brasil. (Porquê ele, e não por exemplo o seu irmão Eduard, que continuara a viver no seu
país, e tinha casado com a tia Emma?)

Júlia nascera nesse país onde o seu pai era estrangeiro. Passara os primeiros sete anos de vida
em Paraty, no Engenho Boa Vista, com idas frequentes à Ilha Grande, onde ficava a casa dos
avós maternos e muitas das terras que lhes pertenciam.

Era um tempo cheio de cores, música, cheiros, sabores, zumbidos, pássaros, animais
selvagens, mar e floresta, um tempo alegre, onde tudo estava povoado de pessoas, de riso e
de conversas, nas aldeias, ruas, igrejas e festas, e ela desconhecia a solidão, mesmo quando
brincava ou vagueava sozinha na praia.
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Não tinha importância se o pai se ausentasse e os irmãos estivessem no colégio, em


casa estava a mãe, com a sua presença afectuosa e constante, Néné, o irmão mais novo, Ana, a
ama das crianças, além de Leocádia e da pequena Luiziana.

Nunca lhe ocorrera que Ana era negra e Leocádia e Luiziana mulatas, embora
obviamente isso fosse visível. Cada um era como era, e assim aceite e amado, e a felicidade de
Júlia era perfeita.

Talvez por ter cabelo louro como o pai, ele parecia preferi-la, entre os seus filhos. Era
um homem alto, pouco expansivo mas afável, que The inspirava um amor admirativo e
respeitoso. A mãe, pelo contrário, era pródiga em manifestações de afecto, e Júlia não poderia
amá-la mais. E a Ana também não-era uma espécie de segunda mãe, que lhe contava histórias,
a abraçava e cantava, penteava com desvelo os seus caracóis loiros, e com quem ela partilhava
tudo.

Houve depois uma altura em que a mãe passou a ficar longas horas deitada na rede, ao
ar livre, enquanto Júlia brincava ao seu lado. E, quando acabava de fazer seis anos, o pai
apareceu um dia ainda mais grave e silencioso, e levou-a, com Néné, até ao quarto onde a mãe
estava morta, no meio de velas e flores, deitada na cama, ao lado de um recém-nascido,
também morto.

Foi um momento de puro terror, de que Júlia fugiu aos gritos.

Mas a imagem permaneceu, e voltava nos pesadelos.

Marcou o fim da infância, foi um golpe fundo que a dilacerou, e apenas a presença de
Ana a confortava.

Ana, a natureza exuberante à sua volta, e sobretudo o mar.

Cerca de um ano depois embarcaram no Rio de Janeiro - o pai e os cinco filhos, Manoel
(Manu), Maria (Mana), Luiz, Júlia, Paulo (Néné), e Ana, a ama muito amada.

A viagem de barco durou dois meses, e a entrada em Lübeck foi tristemente "triunfal",
com um cortejo de crianças perseguindo-os e troçando, como se fossem criaturas nunca antes
vistas, onde sobressaía a pele negra de Ana e os vestidos inadequados, amarelos, que o pai
comprara às filhas em Hamburgo. Até que Ana atirou rebuçados às crianças da rua, que
deixaram de correr e de rir atrás deles, entretidas a disputar as gulodices.

No dia do aniversário da avó Maria Luísa foram recebidos em sua casa. A avó era viúva,
vivia com algumas das suas irmãs e filhos, e as crianças causaram-lhe uma impressão positiva,
porque, apesar de o pai lhes ter certamente escrito o contrário, eles esperavam, ou receavam,
que fossem negrinhos, e costumavam comentar entre si, em plattdeutsch, a chegada dos
"lütte schwatte".

A avó acolheu-os com afecto e, em todo o tempo que passaram juntas, Júlia nunca lhe
ouviu uma palavra ríspida ou desagradável. Desde o primeiro instante, gostou dela.

Também foram bem recebidas, dias depois, quando o pai levou as filhas a conhecer o
colégio interno de Teresa Bousset e de sua velha mãe, a quem chamavam Madame.

Júlia frequentou-o entre os sete e os quinze anos, mas, pelo menos desde os catorze,
ansiava por deixá-lo.
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Ainda mal tinha chegado a Lübeck, quando um novo desastre aconteceu. Não sabia
que a presença do pai ia durar escassos quinze dias, nem que tencionava embarcar logo, de
regresso a Paraty, levando Ana.

Proibiu-a de contar às crianças, mas Ana não obedeceu e foi dizer-lhes, de madrugada,
quando Júlia ainda dormia. Não queria partir sem a avisar, repetia abraçando-a, e jurando em
lágrimas que não queria deixá-la.

As crianças desataram num pranto, o pai apareceu e ralhou violentamente com Ana, o
que as fez ainda gritar mais - foi um momento horrível, um choque brutal, que Júlia nunca
esqueceu.

Mas ficou grata a Ana por ter vindo dizer-lhe, de contrário pensaria que ela a traíra, e
iria sentir-se a mais abandonada e miserável das criaturas.

Assim, pelo menos, o seu amor por ela ficou intacto. Onde quer que estivesse, mesmo
muito longe, Ana continuava a existir, e Júlia continuaria a ser amada.

De tal modo que mais tarde, no colégio, um dia em que o professor de Religião
mencionou o nome Hanna, Júlia ficou suspensa da palavra e alheou-se completamente do que
se passava em volta, repetindo o nome, dentro de si, como um mantra, e quando o professor a
viu distraída e a quis apanhar em falso, atirando-lhe a pergunta ameaçadora:

- Como se chamava a viúva, nesta história da Bíblia?

Hein? Como se chamava? ela balbuciou a medo, interrogativamente: Anna? e logo o


seu medo sossegou e se sentiu orgulhosa - afinal acertara, num golpe de pura sorte, ou então
porque Ana era um nome bendito.

Ao passo que outros nomes a desconcertavam, e ficava surpreendida por alguém se


poder chamar assim. Mesmo Teresa - te.re.sa, um nome afinal comum, lhe soava estranho.

Na verdade, tudo ali era estranho.

No colégio era a mais nova, quase não se encontrava com Maria, que pertencia ao
grupo das mais velhas, e olhava com receio e animosidade toda a gente.

Raras vezes dizia a alguém, em português:

- Vem cá!

e quase sempre gritava:

- Vá-se embora!

Ao longo de anos, só se tornou próxima de Josefa, que também viera de muito longe, falava
espanhol e tinha aquele nome gutural, mexicano, que subia do fundo da garganta. Josefa e a
condessa Marie, a quem chamavam Miete, foram as únicas companheiras com quem manteve
depois um contacto breve, na idade adulta (Miete morreria, infelizmente, aos vinte e quatro
anos, e depois Júlia perdeu o contacto com Josefa).

O pai prometera regressar logo, mas era mentira, não voltaria durante anos. Deixava-os bem
entregues, Júlia e Maria em casa da mãe dele, Luísa Bruhns, de onde iriam logo de pois para o
colégio; os irmãos ficaram com a família von Bippe, e seguiriam também em breve para um
internato.
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Ele voltou para os seus negócios, aliviado e em paz.

Entretanto Júlia saíra de um mundo a cores e entrava noutro onde tudo era a preto e branco,
ou, na maior parte dos dias, cinzento. A cidade era escura, o céu era escuro, o ar, mesmo no
Verão, era frio, e todo aquele habitat inóspito a agredia.

A língua que falavam era incompreensível, e ninguém entendia a dela.

Os contactos com Maria foram reduzidos, para não falarem português as duas.

A sua língua materna tornou-se proibida, e foi substituída por outras que
desconheciam, alemão, francês e inglês.

A vida anterior devia ser esquecida, como se não tivesse interesse nem valor. Não
houve qualquer esforço para conhecer o seu passado e o dos irmãos, nem o que agora lhes ia
no coração e na cabeça, mesmo quando já sabiam o suficiente da língua deles para contar-
lhes, se alguma vez lhes tivessem perguntado, ou dado espaço para se exprimirem. Mas isso
nunca aconteceu.

Agora, mergulhando mais fundo no Trave, tudo ganhava cada vez mais transparência:

Ninguém pensara em ouvi-los, eles deviam ouvir os adultos e adoptar os seus valores,
sem qualquer assomo de reciprocidade. Não era apenas adaptação que se exigia, mas a
obrigação de copia- -los, e ser tão iguais a eles quanto possível.

Poderem também os adultos aprender com as crianças recém-chegadas novas coisas,


que desconheciam, colocar-se no seu lugar e ver pelos seus olhos, mesmo só um instante,
nunca passou pela cabeça de ninguém.

Júlia foi forçada a encaixar num mundo que não era o seu. O pai já lá não estava para
explicar que por exemplo chamar vó vó à avó Luísa não era ladrar-lhe em alemão wau-wau,
como ela de início interpretara, com desagrado.

Ninguém entendia nada. Perceberam quando muito que Vater em português se dizia
pai, mas desconheciam a palavra mãe (que se grafava mai). Nunca souberam que mana era o
nome familiar de irmã, e que ela chamava Mana a Maria como em inglês se poderia dizer Sis,
em vez de sister; que Néné era o diminutivo infantil dado ao filho mais novo, que no caso se
chamava Paulo; que à mãe, Maria Luísa da Silva, havia quem chamasse Senhorinha (pequena
senhora), não porque fosse o seu nome, mas porque se tinha casado muito jovem com um
noivo alemão de vinte e seis anos.

Não sabiam nem queriam saber nada sobre eles, como se a sua vida anterior não
existisse. E tudo o que pensavam sobre o mundo de onde vinham estava errado:

Acreditar no Diabo, por exemplo, era superstição, mas na lenda do Diabo e da Igreja de
Maria já não era, porque só os povos inferiores e atrasados tinham superstições e medo do
Diabo, e eles não.

Assim, num dia em que Júlia brincava na varanda de um pavilhão, no jardim da avó
Luísa, e ouviu pancadas fortes debaixo da varanda, teve medo e gritou:

- Diabo! Diabo!

Mesmo depois de ver quem fizera o barulho continuava assustada, e foi preciso o tio
Eduard aparecer e bater-lhe com um objecto ameaçador que trazia na mão.
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Segundo ele, o medo do Diabo era o resultado do contacto excessivo com os negros,
de que ela precisava de ser curada.

E o tio Eduard era o seu tio preferido...

Pequenas "partidas" com que supunha divertir os adultos e cha- marlhes a atenção
não surtiam esse resultado, e só lhe traziam dissabores. Como quando, por exemplo, quis
pregar um leve susto a Madame, e fingiu sair da sala, abrindo e fechando a porta, mas ficou na
verdade escondida atrás das cortinas, enquanto a velha senhora fazia meia e de vez em
quando tirava uma pitada de tabaco, ou, provavelmente, de rapé.

Na verdade Madame assustou-se, mas não achou graça nenhuma, embora se limitasse
a dizer-lhe:

- Xô! Sai daqui, palerminha!

Esse foi o maior sucesso que Júlia conseguiu, nas suas tentativas de receber atenção.

De outra vez, em casa de uma visita, andou no jardim a apanhar rãs e libertou-as da
aba do avental, no meio da sala onde as senhoras comiam bolos e tomavam chá. Não podia
imaginar o terror com que fugiram, espavoridas e aos gritos, ao ver as rãs saltar pelo soalho.
Nem percebeu por que razão teve de pedir desculpa e prometer que nunca mais faria uma
loucura dessas.

Ninguém sabia que ela costumava apanhar borboletas, caracóis, formigas e outros
animais vivos, nascera e crescera entre papagaios e macacos, e nem dos severos urubus tinha
medo quando caminhavam perto, com ar sobranceiro, de bico adunco e plumagem escura,
enquanto ela se banhava no tanque do ribeiro, atrás da casa.

Desconheciam como era doce a cana de açúcar, o leite de coco, a lima, a goiaba
madura, de que a mãe fazia geleia, o abacaxi que apanhavam no caminho e lhe davam a comer
às rodelas, depois de o descascarem com uma faca de mato.

Não entendiam que a porção de doce que lhe davam no colégio não bastava, ela
precisava de mais, por isso pedira a uma externa que lhe comprasse bombons, com o dinheiro
de bolso que lhe entregara.

Logo uma empregada a denunciou a Teresa, e Júlia foi levada a Madame, que a
recebeu com ar de enorme escândalo, e Teresa deu-lhe uma bofetada que a desfez em
lágrimas - embora soubesse que Teresa a estimava, e que bater-lhe fazia parte da sua
educação.

O absoluto comedimento à mesa, sobretudo em guloseimas, era de regra, e até à


professora de Inglês foi chamada à atenção por deitar demasiado açúcar no café:

-No seu lugar eu deitava logo o açucareiro todo, observou Madame sem
contemplações, esquecendo as boas maneiras que ensinava às alunas.

Felizmente a professora não obedeceu.

Às professoras podiam ser tolerados pequenos desvios à nomalidade, como por


exemplo quando a suíça Mlle. Suzette gritava a dormir:

Socorro! Socorro! Ladrões! e depois suspirava, exausta, e pedia desculpa por acordar
as alunas:
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Ah, mon Dieu, mon Dieu! Ce sont me cauchemars; ils sont déjà passés - dormez, dormez
encore!

Outra vez ainda, Júlia viu pequenos sabonetes de amêndoa que Teresa iria distribuir,
mas tirou logo um, às escondidas, e quando deram pela falta não se acusou, aterrorizada.

Nesse dia o castigo foi ficar durante horas trancada na despensa, onde, para sua
vergonha, todas as outras a viam pela grade da porta ao passar.

Não sabia que desejara tanto roubar o sabonete porque se sentia profundamente
insatisfeita, e achava que o mundo lhe devia uma compensação qualquer, mesmo
insignificante como aquela.

Anos mais tarde recordara essas pequenas aventuras no colégio, e pensara mais de uma vez
em escrever a Josefa, seria divertido rirem agora as duas:

"Lembras-te quando todas regressavam a casa nas férias, mas nós íamos com Teresa
para Travemünde?

Lembras-te dos banhos de mar às seis da manhã? De sair da praia logo duas horas
depois?

Ah, meu Deus, e nós gostávamos de ir à praia, já que não tínhamos outra!

Se eles conhecessem as que havia lá em baixo, onde o sol e a areia eram dourados e
quentes!

Lembras-te quando uma professora me viu engolir um ou outra cereja com caroço e
disse que me ia nascer uma cerejeira na barriga, com os ramos a sair-me pela boca?

Ela não sabia o que era a vegetação crescendo sem medida, mas eu sim...

Lembras-te que acreditei e uivei de pânico, como um animal ferido, de tal modo que
tiveram de chamar Teresa para vir sossegar-me, e dizer que não era possível?...

Quantos mal entendidos se deviam às nossas diferentes experiências de vida e visões


do mundo... Eles não sabiam nada sobre nós!..."

Afinal nunca chegara a escrever essas cartas a Josefa. Talvez por timidez, ou receio.
Nunca soube ao certo.

Mas teria gostado de partilhar muita coisa com ela, ou com Miete. Por exemplo um
Natal em que dera seis marcos a um italiano que tocava realejo na rua. Fora repreendida pela
imprudência de esbanjar o dinheiro que receber a de presente, o homem iria gastá-lo em
vinho, já tinha sido visto bêbado, deitado na sarjeta.

Mas, ao contrário do que pensavam, ela não era imprudente nem esbanjadora. Apenas
gostara de ouvir o realejo, e o homem parecera-lhe desamparado e triste.

Em vez de cartas a Josefa escrevera um conto epistolar, através da correspondência de


duas amigas, Martha e Hertha. Uma história inventada, que não era a dela.

Acabara no entanto por escrever mais tarde as suas memórias, Da infância de Dodô,
nome que usavam em casa, ou ela dera a si mesma, quando ainda mal sabia falar.
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Todos os dados e pormenores eram rigorosamente verdadeiros. No entanto nada fora


assim, as emoções estavam abafadas, ou equivocadas. Tinha na altura cinquenta e dois anos e
escreveu as memórias adequadas para deixar a filhos e netos. Parcas em críticas, e pródigas
em agradecimento e louvor a todos os que tinham feito parte da sua vida. Um relato contido,
em que o não- dito só seria perceptível para ouvidos capazes de ouvir silêncios, e notas
discordantes em surdina.

Tudo em Lübeck era, além de estranho, imprevisível. Mesmo o que parecia imensamente belo
podia no momento seguinte tornar-se inquietante, não raro assustador. Como, por exemplo, a
neve:

Quando a vira pela primeira vez ficara deslumbrada, pensando que a paisagem estava
coberta de açúcar - até então só no açúcar tinha encontrado uma brancura assim.

Correu a agarrá-la com as mãos, metendo-a avidamente na boca. Mas não só não era
doce como a sentiu gelada, e lhe deixou a língua entorpecida.

E havia um enorme silêncio, no ar e nas árvores, um silêncio total debaixo do céu,


como se em redor tudo estivesse morto.

Ficou quieta, segurando o pedaço de neve, e, aos poucos, deixou de sentir: os dedos e
a língua ficavam cada vez mais rígidos, dormentes, e acabariam por morrer.

Também a sua língua de origem ficava mais e mais em botada e difusa, e morria lentamente
dentro dela.

No seu lugar, e sobre os seus escombros, Júlia aprendia outra, que não lhe pertencia,
mas teria de tornar-se a sua.

A língua da mãe, de Ana, do seu país e da infância fora proibida, rasurada. Assassinada.

Em nenhuma língua podia agora dizer a solidão, a ausência e a perda. Anos depois
ainda sonhava que a mãe lhe estendia os braços, e acordava em lágrimas, com as mãos vazias.

Mas viveu tudo isso em silêncio e sozinha.

Já não tinha língua para escrever a Ana, que não sabia ler, mas tinha a certeza de que
encontraria quem lhe lesse as cartas, e lhe responderia o que Ana ditasse.

Mas não era possível, nunca mais seria. A língua fora cortada. Nas pouquíssimas cartas
que recebeu do pai, menos que os dedos de uma mão, ele dizia que Ana estava bem e
mandava saudades. O que era o mesmo que não dizer coisa nenhuma.

Foram reduzidos os encontros com Maria, para esquecerem a língua que falavam
entre si. E praticamente acabaria por perder o contacto com irmãos quando, poucos anos
depois, primeiro Manu, e mais tarde também Luís e Paulo regressaram ao Brasil.

Teresa ensinara-lhe alemão nomeando imagens que apontava num livro, e ela repetia o que
ouvia, como um papagaio.

Estava a ser domesticada, via agora, deslizando ao sabor do Trave. Amestrada.

Mas na altura não tinha pensamentos claros nem palavras, era um pequeno animal
que obedece a estímulos e é obrigado a imitar sons, acções e atitudes, à força de prémios ou
castigos.
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Não se podia correr, saltar, falar alto, fazer barulho, perturbar a tranquilidade dos
adultos. O tio Theodor zangava-se com o ruído das brincadeiras no jardim, quando ela ia com
os irmãos, duas vezes por mês, a casa da avó, via-os como pequenos selvagens, que era
preciso civilizar.

Mas ninguém, nem ela mesma, tinha consciência disso.

Viera de paisagens sonoras, de mar e floresta, cantos de pássaros, zumbidos de


insectos, borboletas enormes, jogos de cor e luz, de uma casa na praia, onde o mar se via até
muito longe, da varanda, e rolava em baixo, em pequenas ondas, na areia onde ela andava
descalça, apanhando conchas e búzios.

Mas esse mundo tornara-se silencioso, porque o tinham silenciado: as ruas da aldeia
inundadas, onde se andava de barco quando havia cheias, os cânticos nas procissões dos
santos, as ruidosas festas de Carnaval, as canoas que a levavam até à Ilha Grande, a casa dos
avós, o som dos remos cortando a água, o estalar dos foguetes que o avô Manuel Caetano
lançava da praia. Mas agora as imagens não tinham som.

Via tudo muito nítido, a água funcionava como lente, ou como um espelho de aumento:

Queriam forçá-la a esquecer esse mundo, como se devesse envergonhar-se dele.

Mas ela não queria esquecê-lo. Achava-o muito superior e mais belo, e era o mundo deles
que não lhe interessava.

Aparentemente resignava-se, porque não tinha alternativa. Contudo, uma parte dela resistia:

Fazia questão de manter da Silva no seu nome, Júlia da Silva Bruhns, e não apenas,
como às vezes lhe chamavam, Júlia Bruhns. E sublinhava a sua diferença escurecendo o cabelo
com óleo, embora, com o tempo, ele se tivesse já tornado mais escuro.

Lutava, portanto. Deixara as raízes na terra onde nascera e fora arrastada para outra,
onde deveria crescer em beleza e força. Mas nem todas as plantas se adaptavam sem luta a
um habitat onde não pertenciam. Sobretudo se tinham sido arrancadas sem raiz.

A morte da avó Luísa veio repetir a morte da mãe. Aos catorze anos, Júlia viveu a mesma cena:
A avó morta, deitada na cama, pálida, com as mãos muito magras e uma touca na cabeça, um
ser horrível que já não era ela, e de que Júlia fugiu, no terror de a fronteira entre dois mundos
se esbater e de repente a mulher deitada poder abrir os olhos, mover uma das mãos, ou um
braço.

Recusara olhá-la, só queria recordá-la em vida, gentil e afectuosa, dois domingos do


mês em que tocava piano, cantava para eles e ria, e quando ria o seu velho nariz franzia-se em
pequenas rugas, que lhe pareciam cómicas.

Fora ela o seu maior afecto, nos anos que passara em Lübeck.

A água ampliava as imagens e ela conseguia ver o que antes não vira:

A ideia de a avó poder abrir os olhos, estar ao mesmo tempo viva e morta, ou entre
viva e morta, era apavorante porque esse lugar entre duas coisas incompatíveis era o lugar
dela, Júlia. Um não-lugar, entre dois mundos que reciproca mente se excluíam.

Dava conta, também, de que até aos seis anos guardara na memória tudo o que, quarenta e
cinco anos depois, passara para o papel, sem esquecer nada.
12

Sempre fora capaz de concentrar-se, numa solidão bem-vinda, observando e


registando tudo. A memória era um poço sem fundo, de onde as coisas podiam voltar,
recuperadas e prontas a usar de novo.

Passar à escrita o que a memória guardava, transformá-lo ou alterá-lo, era o que os


escritores faziam. Por alguma razão tivera dois filhos escritores. Tinham herdado dela essa
capacidade infinita de memória, e o poder de a recuperar, nos mínimos detalhes:

Os seus olhos fixavam-se de repente em alguma coisa ou alguém, como por exemplo
no colégio a professora Minna. Reparara no seu modo saltitante de andar, na sua cara miúda,
como um desenho feito a lápis, e perdera a noção de tudo o que acontecia na sala.

Quando a viram distraída e a chamaram, explicou:

Pareces um pássaro pequeno!

Todos riram, incluindo Minna, e a história pareceu acabar aí.

Mas na verdade prolongou-se pela vida fora.

Escreveu pequenos contos, notas, diários ocasionais, milhares de cartas. Precisava de


registar o mundo que ia descobrindo, e de o comunicar aos outros, à sua maneira.

Mas quase tudo o que gostaria de viver ou experimentar era vedado. Ir ao teatro, por
exemplo, foi uma revelação e um prazer de tal modo avassalador que decidiu que, quando
crescesse, iria ser dama do teatro (desconhecia ainda a palavra actriz).

Para seu espanto e desilusão, Teresa reprovou logo a ideia, sublinhando que todos
iriam ficar muitíssimo desgostosos se ela o dissesse à avó, ou a alguém da família. Esse desejo
era absolutamente impossível de concretizar.

Nunca mais deveria portanto pensar nisso, mas continuou a pensar. E mais tarde a sua filha
Carla viveu esse projecto, ou tentou vivê-lo.

Só não a contrariaram na paixão da música, que viera ainda antes da leitura e da escrita. Tinha
uma bela voz e cantava, segura do tom e do ritmo, e aprender piano deu-lhe tanto prazer que
nem dava conta de o tempo passar.

Também isso transmitiu aos filhos, sobretudo a Thomas, que tocava violino, e, já
adulto, ficava horas esquecidas, deitado num sofá, a ouvi-la tocar Nocturnos e Estudos de
Chopin.

Tinha a noção da profundidade da música, e um pequeno texto, Musik, que escrevera


aos trinta e oito anos na estância suíça de Ragaz, fora-lhe ditado por uma experiência vivida.

No entanto em Thomas a relação com a música exacerbara-se, tornando-se obsessiva e tensa.


Sentia-se culpado pelo simples facto de ouvi-la, como se pudesse ser viciante e perigosa.

Ela não a encarava assim. Mas os seus filhos eram muito complicados. Todos eles, à excepção
de Viktor.

A família e o colégio não a tinham maltratado, a verdade era o contrário disso: eram bem
intencionados, e, na perspectiva deles, tinham feito dela o melhor que podiam.

O erro fora justamente esse, via agora. Não deviam ter querido fazer nada dela, mas
apenas tê-la deixado ser Júlia.
13

Sobretudo nunca perdoou que a forçassem num ponto essencial, que mudaria radicalmente a
sua vida:

Maria já deixara o colégio, e aos quinze anos Júlia quis também deixá-lo. Agora que a
avó partira, viviam com os tios Eduard e Emma, e outro ciclo de vida começou, com aulas de
dança, vestidos novos e pequenos bailes. Júlia rejubilava. Finalmente alguma coisa começara a
mudar.

Nessa altura Maria viveu o que quase todas as jovens sonham: Apaixonara-se por
Heinrich Nicolaus Stolterfoht, que obteve a permissão do pai dela e da família Bruhns para
pedir a sua mão, ainda antes de a própria Maria ser informada. Saber o seu amor
correspondido e sancionado foi o momento mais feliz da sua vida, e o casamento realizou-se
em festa, com todas as bênçãos do padre e da família.

Júlia e o irmão de Heinrich, Carl Eduard Philipp Stolterfoht, tinham-se também


apaixonado e ela antevia um futuro risonho, com o homem que escolhera. Viveria perto de
Maria e seriam uma família acolhedora e alegre - guardara boas recordações das férias que ela
e a irmã tinham passado na quinta dos Stolterfoht.

Instada por Teresa, com quem continuara a conviver, Júlia revelou-lhe o seu segredo.

E Teresa traiu-a, contou à família, e a família escreveu de imediato ao pai, que se


precipitou a embarcar no Rio e chegou o mais cedo que pôde, com um plano estabelecido para
a afastar de Carl.

Percebeu mais tarde que os Bruhns deviam ter um ascendente sobre os Stolterfoht,
porque Carl foi enviado, contra a sua vontade, para o estrangeiro, sem Júlia saber, enquanto o
pai a levava a viajar pela Suíça, com uma breve entrada em solo francês, em Lyon. Johann
Ludwig Bruhns encheu a filha de presentes, como se quisesse apresentar-lhe o futuro que,
segundo ele, lhe convinha (ao mesmo tempo que avaliava ele próprio o grau de civilização que
ela alcançara). Nesses novos horizontes e paisagens Júlia comportou-se como era esperado,
jantando dignamente a seu lado em hotéis caros, e, seguindo as recomendações de Teresa,
mostrou admiração pela beleza das montanhas (embora tivesse preferido contemplá-las em
silêncio), e não deixou de agradecer de cada vez ao pai, como Teresa insistira, os generosos
presentes recebidos.

Continuava no entanto com o pensamento em Carl, registou por escrito o que visitava
em cada dia para depois o partilhar com ele, e foi com irritação que viu o jovem Paul Holzheu,
conhecido do pai, encontrar-se com eles a dada altura, supostamente por acaso.

A viagem demorou três semanas, e, quando regressaram, Carl estava no estrangeiro.


Júlia só tornaria a vê-lo anos depois, já casada e com filhos.

A família cuidou também do seu afastamento de Maria, com quem comunicava quase
sempre por carta. Demasiada proximidade com a cunhada de Carl não convinha.

Seguiu-se para Júlia um tempo de luto e revolta, que a levava a desprezar


ostensivamente todos os pretendentes. Teresa tentava em vão convencê-la de que não devia
recusar um homem só porque era careca ou tinha dentes estragados, mas Júlia foi perspicaz e
percebeu que para Teresa, que por desgraça era solteira, qualquer um seria bem-vindo. Mas
não para ela, Júlia.
14

Até que numa festa conheceu, de novo supostamente por acaso, o homem com quem
iria casar-sem saber que o seu pai e os Bruhns lho tinham destinado.

Thomas Johann Heinrich Mann tinha herdado, aos vinte e três anos, uma firma de
comércio e exportação de cereais, estabelecida no século anterior, e era, sem qualquer dúvida,
um bom partido: devotado à firma e ao trabalho, bom comerciante e ambicioso, dono de uma
fortuna considerável e socialmente bem visto. Para mais aproximava-se agora dos trinta anos,
e era usual um homem bem nascido casar antes dessa data.

O encontro de ambos surgiu na altura certa: Thomas Johann casaria aos vinte e nove
anos. A noiva, Júlia, tinha dezassete.

Guardara a carta que o pai lhe escrevera do Brasil, depois da sua festa de noivado, a que ele
não assistira (mas estaria presente no casamento, e no baptizado de Heinrich):

"O teu noivo tem todas as qualidades para fazer qualquer jovem feliz, e é da tua
responsabilidade corresponder na mesma medida ao seu amor fiel. O amor ao homem que
escolheste levar-te-á a ser organizada, a saber economizar e governar bem a casa, o que todos
os maridos apreciam nas mulheres. No casamento, querida filha, há sol e trovoadas, mas estas
ultrapassam-se mais depressa se a mulher for sensata e mostrar bom feitio."

Mas tudo isso era mentira. E também o seu casamento fora uma mentira, uma armadilha em
que, sem perceber, se deixara apanhar.

Dava conta de que a água se tornara entretanto salgada.

Percorrera portanto um longo caminho, nos braços do Trave, depois sem transição talvez no
Elba, e agora, pelo cheiro e sabor da água, e pelo contacto ao longo de todo o corpo, dos
cabelos aos pés, sabia que tinha chegado ao mar.

Seria decerto o mar do Norte, que em breve se chamaria oceano, a tal ponto era
gigantesco - o Atlântico englobava vários mares, o Báltico, o mar do Norte e outros, e depois
prolongava-se até metade do mundo, e ainda muito para além.

Estava feliz, abaixo da superfície do mar. Talvez se tivesse tornado alga, ou peixe, ou
qualquer ser aquático. Parecia-lhe que tinha ganhado vontade própria e não se deixava apenas
arrastar pela força das correntes, podia escolher uma direcção dos pontos cardeais, como
quem escolhe uma estrela - mas não precisava de nadar até à superfície para olhar o céu, nem
de orientar-se por estrelas, tinha a certeza de que nadava para sul.

A luz atravessava no entanto a água e havia imagens que se formavam muito acima dos seus
olhos, e eram decerto ilusões de óptica: enrodilhavam-se em círculos, a uma velocidade
vertiginosa, que ela não conseguia acompanhar. Outras vezes abrandavam o ritmo, e
começavam a ganhar nitidez.

Agora julgava distinguir uma enorme sala iluminada e uma multidão de pessoas em
trajos de gala, enquanto um pequeno número de outras, sentadas numa espécie de palco, de
vez em quando se levantavam umas após outras, diziam algumas frases e faziam uma pequena
vénia, num ritual rigorosamente ensaiado e cumprido.

Parecia-se estranhamente com a entrega de cartas de curso numa universidade,


embora os laureados lhe pareces sem poucos, talvez até fosse apenas um, e demasiado velho
para ser recém-formado.
15

Viu-o levantar-se e inclinar-se, baixando ligeiramente a cabeça, diante de uma qualquer figura
pública sentada numa poltrona, que seria decerto o representante da mais alta autoridade.

Em seguida aproximou-se de um cavalete, onde colocou algumas folhas de papel, e


começou a ler. Ao ouvir a sua voz conseguiu distinguir, quase nitidamente, o seu rosto:

Thomas!

Aquela voz era inconfundível. Não entendia as palavras, mas percebia o tom em que
eram ditas, e aquele vulto magro, distinto, elegantemente vestido com um fato escuro, só
podia mesmo ser ele. Susteve os movimentos, varada de espanto.

Thomas homenageado, louvado, reconhecido, era isso o que acontecia? A sua voz
repercutia-se para lá daquela sala, para lá do banquete que agora serviam em sua honra, numa
sala ainda mais sumptuosa que a primeira, a sua voz ecoava nos ouvidos de toda a gente,
atravessava os mares e chegava ao mundo, mesmo àquele lugar humilde e submerso, de onde
ela espreitava, escondida, e do fundo do coração o aplaudia?

Thomas, o seu filho, triunfava, e ela, sua mãe, resplandecia de gratidão e surpresa,
como se recebesse ela mesma uma coroa de glória. Sentia-se redimida e compensada, queria
abraçar Thomas, chorar de emoção e alegria, agradecendo aos céus a dádiva infinita desse
instante.

Mas nada disso era verdade, via agora. Apenas imaginara, ou sonhara.

Fora o maior desejo da sua vida, ver o trabalho de Thomas alcançar o maior prémio
literário do mundo, como ele, secretamente, ambicionava. Mas isso nunca acontecera, tinha a
certeza.

Talvez afinal ela devesse alegrar-se por ter sido apenas ilusão de óptica, ou
imaginação.

As imagens tinham-se esfumado, e era em Heinrich que agora se concentrava. Como ele
sofreria, se Thomas tivesse recebido o Nobel. O momento festivo deu lugar à tristeza e ao
desalento.

Toda a vida lutara em vão para que se entendessem, e substituíssem o ódio por amor.
Mas cada livro que escreviam era contra o outro, na esperança de o deixar de rastos. Não só os
livros, também as críticas recíprocas proferidas em público, ou publicadas em jornais. Ela vivia
no meio de ambos, sofrendo os golpes, e sabendo que a luta deles, e a dela, era sem fim.

Fechou os olhos, exausta, e deixou-se levar, para onde o mar quisesse.

Não queria pensar, nem recordar.

No entanto as memórias vinham, contra a sua vontade.

Uma mãe nunca se separa dos seus filhos, pensou com amargura. Sofre se eles
sofrerem, é infeliz se eles forem infelizes.

Ser mãe seria então a tarefa mais ingrata do mundo, não havia outra mais dorida e
desgastante? Nunca se podia fazer nada, não era possível educar, mudar, transformar
ninguém?

Deus, como a vida era difícil.


16

Como ela os amara, escutara, acompanhara, enquanto conseguira. Gostava tanto, na


infância, de ouvi-los e falar-lhes, tocar piano para eles e cantar. Dera-lhes tudo o que podia e
sabia. O gosto da música, da escrita, da imaginação e dos livros, o poder encantatório de ver as
histórias a acontecer, como num palco. Partilhava com eles tudo o que era ela, todos os dons
que possuía.

Tinham sido momentos tão felizes.

Revia-se, como num espelho, em vestidos de festa, na casa da Breitstrasse, onde nascera
Heinrich, e depois na da Mengestrasse, onde Thomas viria ao mundo.

Era bela e jovem, e agradava-lhe ser admirada. Os Mann eram patrícios e faziam parte
da vida social da cidade. Ela era o centro das atenções, o que não agradava às outras mulheres,
e desagradava profundamente ao seu marido.

Thomas Johann Heinrich Mann era um comerciante respeitado e ambicioso, que dominava os
códigos da sua classe, sabia, sensato e contido, mas vivia inteiramente centrado no interesse
superior da firma, preocupado com o dever e o haver, controlando com rigor os lucros. Apesar
do seu auto-domínio, era um homem depressivo e nervoso.

No contexto familiar revelara-se incapaz de compreender os filhos, e nunca chegara


realmente a aceitar, muito menos a amar, a mulher que vivia a seu lado. Fizera um casamento
de conveniência, motivado por um dote compensador. Tudo o que desejava era que ela
zelasse pelos móveis e objectos, organizasse com economia os serviços domésticos,
resolvendo sem o incomodar problemas de empregadas, preceptores e cozinheiras,
supervisionasse a educação social e escolar das crianças, e fosse uma boa anfitriã nas
recepções e jantares.

Uma boa anfitriã, não mais do que isso.

Não só porque o centro das atenções lhe eram devidas a ele, dono da casa e chefe da
família, mas também porque as mulheres não deviam ser exuberantes, nem deixar-se
galantear.

Júlia tinha o inconveniente desagradável de ser mais alta do que ele, e oscilava no
limite do socialmente aceitável. Estava longe portanto de corresponder ao que ele merecia.

Mas também ele não correspondia às expectativas dela, disposta a ser mulher e mãe,
mesmo que ele não mostrasse entusiasmo por ser marido e pai, digamos que nos dois casos
era mais um dever que teria de cumprir, como era suposto. A cama, como aliás também a
mesa, a casa e a vida, foi para ambos um lugar de desencontro.

Apesar disso, o casamento duraria mais de vinte anos, e daria origem a Heinrich
Ludwig, Thomas Paul, Júlia Elisabeth Theresa (Lula, para a distinguir da mãe), Carla Augusta
Olga Maria, e, de- zanove anos depois de Heinrich, o filho mais novo, Viktor.

Júlia sabia que em Lübeck a sua beleza sensual escandalizava, além de ser mestiça, o
que significava inferior e diferente. Mesmo não pronunciadas, essas palavras ecoavam-lhe em
surdina aos ou- vidos, e ficaram-lhe gravadas na memória.

A sua ascendência materna era sobejamente escrutinada:


17

O avô era o português Manuel Caetano da Silva, que casara com Maria Luísa da Silva,
brasileira de origem índia (os Mann, tal como os Bruhns, sublinhavam deste modo que não
havia sangue negro na família).

A sua mãe era portanto mestiça, como também Júlia, mas Johann Bruhns não
desdenhara desposá-la, pois era branca, de estrato social elevado e extremamente bela (além
de a família ser dona de vastos bens, o que não era mencionado, mas estava presente em
todas as cabeças). Além disso viviam no Brasil, onde o casamento misto não constituía para
Johann um estigma.

Por conseguinte era preciso, também ali em Lübeck, analisar e julgar todas estas coisas
com o devido rigor:

Metade do sangue de Júlia era alemão, e toda a sua vida e educação, a partir dos sete
anos, se passara naquela cidade, com a família paterna. Sem dúvida que isso a tornava muito
mais alemã do que brasileira.

No entanto essa ideia, aparentemente racional, não parecia na verdade convencer


ninguém. Todos a viam como exótica, alguém que surgira de um universo desconhecido, fora
do alcance dos olhares dali. Viera dos trópicos, onde tudo era diferente, até as estações do ano
estavam invertidas em relação ao hemisfério norte, onde ficava a Europa, que se tornara a
norma universal.

Nos países tropicais grassavam miasmas e doenças mortais ou incapacitantes, e o


próprio temperamento indolente dos nativos, avessos ao trabalho e ao progresso, era uma
degenerescência característica de povos biológica e intelectualmente inferiores.

Havia assim em Júlia algo de aberrante para a sociedade alemã, patriarcal, puritana e
burguesa, onde a sexualidade feminina devia ser escondida, em lugar de assumida com
naturalidade: a natureza, desordenada e selvagem, tinha de ser domada pela educação e
cultura.

A própria musicalidade que lhe reconheciam impressionava-os negativamente, não só


porque o tempo excessivo que passava ao piano era roubado aos deveres domésticos, mas
porque para ela a música estava associada à dança, à interacção dos corpos que rodopiavam
com visível prazer, enlaçados e a compasso.

Ela era portanto perigosa para a ordem social e as famílias: A qualquer momento podia
resvalar para excessos, boémia ou devassidão.

Como estudos médicos salientavam, os nativos do Sul, em especial as mulheres,


tendiam para a insanidade moral e mental, sobretudo se eram miscigenadas, de sangue
impuro.

Heinrich e Thomas sentiam esse tipo de convicções, difusa mas fortemente presentes, no ar
que respiravam, muito antes de serem capazes de as entender ou verbalizar.

Júlia era uma alemã incompleta ou desqualificada, na sociedade como na família, e o


profundo amor que os filhos lhe dedicavam não era isento de ambivalência e desconforto.

Thomas costumava mesmo dizer que, sendo a sua mãe brasileira, mas o pai e um avô
alemães, apenas um quarto do sangue dele e dos irmãos era latino-americano, como se
quisesse afastar, para bem longe, essa mancha.
18

E havia frequentemente nos seus livros uma personagem estrangeira, por exemplo
uma mãe do Sul, que os filhos escondiam porque se envergonhavam dela. Não era uma
mulher nem uma mãe igual às outras.

Isso acontecia desde logo em Tonio Kröger, e reapareceria, em múltiplas variações de


figuras femininas, em muitos dos seus contos e romances.

Júlia recusava identificar-se com essas figuras (mas quase todos os pormenores
apontavam para ela).

Também em alguns livros de Heinrich, de enredos melodramáticos, surgiam mulheres


mestiças, sedutoras e belas mas altamente perigosas, de quem os homens se tornavam
vítimas, depois de conquistá-las (aliás depois de elas os conquistarem):

Numa família, que Heinrich publicara aos vinte e três anos, o jovem Wellenkamp casa
com Ana, de dezassete, mas apaixona-se pela madrasta desta, Dora, de vinte e oito. Dora
tivera uma mãe crioula, que morrera quando ela era criança, e o pai, que vivia na América do
Sul, pagara ao marido de Dora um dote substancial.

Quando os noivos regressam da viagem de núpcias, Dora, por rivalidade com Ana,
seduz Wellenkamp. Mas, uma vez conquistado, revela-se uma dominadora extremamente
cruel.

Em Entre as raças Lola vive desde a infância na Alemanha, separada dos pais. Quando
tem dezasseis anos o pai morre no Brasil, e a Mai (mãe), "uma beleza morena e lânguida",
chega do Rio de Janeiro. Com o dinheiro que recebem da Ilha Grande, viajam pelo mundo, e a
Mai torna-se rival da filha em relação aos pretendentes. O alemão Arnold agrada a Lola, mas é
demasiado tímido para se declarar. O conde Pardi, de Florença, começa por cortejar a Mai
antes de se centrar na filha, que vê nele "um homem viril e completo". Quando regressa à
Toscânia, Lola e a mãe seguem-no da Alemanha até Mântua, onde Pardi as encontra. Lola
ouve-o gabar-se a um amigo de querer roubá-la a um alemão, para a ensinar a obedecer-lhe e
a entregar-se a ele sem limites.

Temendo que Pardi se volte de novo para a Mai, Lola escolhe o "direito a ser feliz". No
entanto hesita, pensando em Arnold, e suspeitando que Pardi pretende a Mai, e não ela.

Mas ele fá-la ceder e, depois de orgias que a levam ao auge do prazer e da dor,
maltrata-a e fá-la sentir-se "decaída" e "suja". A Mai regressa ao Brasil, Pardi arruina-se com
dívidas e múltiplas amantes, e Lola considera o suicídio, sobretudo depois de ler numa carta
que a Mai se deitou com Pardi, a troco de ele desposar a filha.

O idealista e virtuoso Arnold pretende então reabilitar a desesperada e doente Lola,


começa a acompanhá-la em longos passeios, até que ela recupera a sua verdadeira identidade
- alemã - e, levada pelo amor de um homem honesto e verdadeiro, regressa a uma situação
elevada e moralmente saudável.

O contraste não podia ser mais explícito entre a virtude e a sensatez nórdica, e o
desregramento moral e sexual do Sul, atribuído na Europa aos italianos - já que a Itália era o
país mais a sul até onde, "autorizados" pelo nobre exemplo de Goethe, os seus filhos se
permitiam viajar. A muitos milhares de quilómetros de distância, a América do Sul, e nela o
Brasil, representavam, no seu imaginário, uma fonte inesgotável de perigos de ordem física,
mental e moral.
19

No entanto para Heinrich não apenas a mulher mestiça e do Sul era maligna. Por vezes
também simplesmente a mulher, inclusive a mulher alemã.

Assim n'A caça ao amor o jovem Claude apaixona-se por Ute, de vinte anos como ele,
que pretende ser actriz. Até à maioridade de Claude a enorme fortuna que ele herdara é
administrada pelo velho Panier, de sessenta e três anos. Este rouba-lhe Ute, a quem tira a
virgindade depois de lhe oferecer um bombom drogado, e, no papel de mecenas, "protege-a"
na carreira de actriz, pela qual ela está disposta a sacrificar tudo. Sem conseguir Ute, que em
todas as ocasiões o repudia, Claude envereda por uma vida sexual desregrada, com uma actriz
(italiana!) rival de Ute, depois com prostitutas. Adoece (provavelmente com sífilis), caem-lhe
os dentes e o cabelo, e morre velho aos trinta e cinco anos. Gastou entretanto quase tudo a
construir um teatro para Ute e encomendou uma peça com o papel principal à sua medida
(mas o espectáculo não terá sucesso, por falta de talento da actriz).

Nos últimos momentos de Claude, Ute confessa-lhe o seu amor, apenas com o intuito
de se tornar sua herdeira. Toda a sua vida é ficção, num palco imaginário. Acaba por ceder
sexualmente ao velho Archibald, professor na Escola de Teatro, que lhe promete um papel
noutra peça.

Esse era um tema recorrente em Heinrich: o desejo de amar, sem olhar aos riscos, a
grande sedutora, mesmo ao preço de ela o destruir (como em Professor lixo, de 1905).

Júlia interpretava essa visão punitiva do prazer como consequência do puritanismo


burguês, em que a sexualidade era a tal ponto asfixiada que a sua libertação tinha de ser
punida. O sexo voluptuoso era sujo e culpado, a mulher um ser maléfico, e o homem a sua
vítima.

Para Júlia o sexo era inocente, podia ser realizado e feliz. A procura do amor seria o
objectivo maior da vida dos seus filhos. Mas, tal como ela, todos tinham falhado. Excepto
Viktor.

Lembrava-se de, na infância, lhes ter lido a história de Ondina.

Heinrich ficara tão perturbado que chorara. Agora, na dando nas águas do Atlântico,
eram os olhos dela que se enchiam de lágrimas. Sem ter ainda consciência de nada, Heinrich
entendera tudo:

A sua mãe era Ondina. Viera do fundo do mar para casar com um belo cavaleiro,
supostamente superior a ela. Mas ele não consegue amá-la, rejeita-a como a um ser estranho,
apesar da sua beleza, bondade e doçura.

A origem desconhecida de Ondina faz-lhe medo, e o cavaleiro acaba por considerá-la


uma criatura monstruosa. A história termina em sofrimento e morte.

Essa era a vida da sua mãe. Ele "sabia" tudo o que nunca fora dito, e adivinhava
mesmo o que ainda não tinha acontecido.

Agora ela revia a cena em pensamento, abraçava-o com ternura e chorava com ele,
mas as lágrimas diluíam-se no mar. Querido Heinrich.

Não podia negar que uma certa boémia e marginalidade lhe agradava. Nunca aceitara a
burguesia puritana e seguira o instinto, o desejo do corpo. O marido era frio e distante e ela
procurara o amor noutro lugar.
20

A mulher insatisfeita aparecia como personagem nos livros dos seus filhos, mas era
também um tema favorito da época, em várias literaturas, e surgira na Alemanha em Effi
Briest.

Secretamente, as mulheres burguesas reviam-se nessas histórias de adultério, embora


raramente o concretizassem, no pavor de terem a sociedade inteira voltada contra si.

Ela tinha sido uma das poucas mulheres que ousaram:

Viktor não era na verdade um dos Mann, mas fruto de uma relação com um
compositor e maestro polaco, de família nobre. (Essa condição era salientada porque, por
qualquer razão incompreensível, também os polacos eram considerados muito inferiores aos
alemães.) O aristocrático polaco passara a ir regularmente a sua casa, porque Júlia quisera
aprender violino. As lições serviram de pretexto. Depois nascera Viktor.

A relação fora breve, talvez nem sequer muito profunda. Mas a experiência da
liberdade agradava-lhe. Sempre procuraria outro homem e outra vida, não estava satisfeita
com a sua nem via no adultério o maior dos crimes, ao contrário dos romances e da sociedade,
que perseguiam as adúlteras com violência implacável, frequentemente até à morte. Não
havia perdão para a sua maldade, que levava os maridos ao suicídio, ou a arriscar a vida em
duelos fatais.

No entanto, o adultério masculino não só não merecia sanções, como nem era mal
visto, mas antes tolerado, ou mesmo aplaudido. Se as vítimas dos maridos infiéis fossem
abatidas, quantas mulheres casadas ainda estariam vivas?

Olhando para trás, tudo se ajustava, como as peças de um puzzle. Ao contrário do que
Heinrich escrevia, a vítima não era o homem, mas a mulher.

Pela primeira vez, via tudo muito claro. O padrão repetia-se, e era sempre o mesmo:

O seu pai, por exemplo, partira para o Brasil em busca de uma fortuna que em Lübeck
não tinha. E, com a sua ascendência de comerciantes, nascido numa cidade e num país de
comerciantes, possuía apuradíssimo faro para os meandros e subtilezas dos mercados, e tivera
artes de comprar uma noiva, com o dinheiro dela.

Melhor negócio não podia ter feito.

No leilão social onde as mulheres eram vendidas e compradas, adquirira a sua ao


preço de dar-lhe o seu nome, Bruhns, e pouco mais do que isso.

Um nome estrangeiro era sinónimo de prestígio em países atra- sados, e, em troca de


partilhar o nome, tornara-se dono de enormes plantações de café e de açúcar e respectivos
engenhos, numa vastidão de terras que ia de Santos até ao Rio de Janeiro, Angra dos Reis e
arredores.

E quanto ganhara o seu marido, Thomas Johann Heinrich Mann, com a aquisição dela,
Júlia? Quanto valia, no leilão da sociedade de Lübeck, uma bela jovem de dezassete anos,
devidamente domesticada, ensinada, treinada, rebaptizada protestante e o mais possível
transformada em alemã casadoira, com os atributos necessários para dona de casa, anfitriã,
esposa e mãe competente, e além do mais, portadora de um dote irrecusável?
21

Fora vendida e comprada para as funções domésticas que desempenhava, mas ela
mesma, Júlia, nunca estivera à venda. Os seus sentimentos, desejos, escolhas e direitos,
também não.

E quanto valiam? Nada, absolutamente nada. Nem sequer deveriam existir, e talvez
nem existissem, tal como, aparentemente, também ela não existia.

Para as mulheres alemãs a situação era na verdade a mesma, mas talvez elas não se
sentissem tão presas e amordaçadas dentro da sua casa e do seu corpo. Viviam como tinham
visto viver as suas avós e bisavós, eram uma corrente sem fim de mulheres suspensas nos
quadros a óleo da parede, que se reflectiam nos espelhos entre jarras de flores, imóveis como
se estivessem mortas.

Mas Júlia recusava seguir esses modelos.

O mais absurdo de tudo, via ainda, era o pai ter-lhe desfeito a vida, com a melhor das
intenções. Meu Deus, pensar que ele agira por amor!

Era a sua filha preferida, a mais bela, inteligente e dotada. Heinrich Stolterfoht
parecera-lhe satisfatório para Maria, cuja beleza e capacidades lhe pareciam insuficientes para
exigir melhor. Mas para Júlia tinha aspirações mais altas do que um Stolterfoht, e estava
disposto a pagar um dote avultado para as concretizar.

Comprara portanto o lugar dela na burguesia de Lübeck, como numa sala de espectáculos se
paga um lugar caro, digamos, num camarote central. Cumpria a missão de pai deixando-a lá
instalada, e ela só podia ficar reconhecida.

Ao longo dos anos acontecera-lhe pensar no que iria dizer-lhe algum dia. Chegara por
vezes a começar uma carta:

"Nunca falei contigo”, sempre me limitei a escutar-te e obedecer- te, como me


ensinaram.

Quando me apaixonei separaste-nos e enganaste-me, fazendo tábua rasa dos meus


sentimentos. Fui levada a casar com um homem que não escolhi, e foi pura hipocrisia teres
escrito o homem da tua escolha, na carta do meu noivado. Sabias perfeitamente que a minha
escolha era outra."

Mas acabara sempre por rasgar o que tinha escrito.

No entanto, absurdamente, reincidia em escrever-lhe.

Mesmo suspeitando que a carta nunca seria enviada:

"O passeio à Suíça foi uma tentativa de comprar-me com hotéis de luxo, vestidos caros e
extravagâncias absurdas, como por exemplo mandares vir de Paris uma caixa de madeira com
cintos e uma dúzia de luvas Jouvin, que eu deveria usar.

As mulheres recebiam prendas, como as crianças brinquedos, o que era uma forma de
lhes esconder que estavam destinadas à maternidade, à resignação e à tristeza; ou, nos piores
casos, a histórias de violência, humilhação e horror. Quando eu era muito jovem pensava que
o pior que podia acontecer a uma mulher era envelhecer solteira, definhando em casa de
familiares, sem estatuto definido nem formas estabelecidas de passar o tempo.
22

Quando escrevi as minhas memórias já sabia que afinal havia destinos muito piores do
que esse. E nessa altura a parte mais dolorosa da minha vida ainda nem sequer tinha
chegado."

Se pudesse, dir-lhe-ia agora:

"Culpo-te por a minha vida, e a dos meus filhos, ter sido um fracasso. Excepto Viktor,
porque não era filho do homem que me destinaste.

Também nunca te perdoarei por teres casado com a viúva do teu irmão Eduard.

Quando eu tinha vinte e dois anos iniciaste com ela uma vida nova, nas propriedades e
até na casa de Paraty, que era da minha mãe, e onde todos nós nascemos. Como todos os
homens, fizeste da tua vida o que quiseste, sem olhar a mais nada.

Deixei de gostar da tia Emma quando casaste com ela. A minha madrasta era uma
intrusa nesse mundo distante que era o meu, e não lhe pertencia. Nem a ti."

Mas nunca afinal lhe dissera nada disso.

Na verdade, o pai não tinha chegado ao Brasil, aos dezasseis anos, como um emigrante
lutando pela sobrevivência, mas com o estatuto de cidadão de um país superior, do Norte da
Europa, que considerava o Brasil analfabeto, sem lei nem ordem, um país a saque, de
penetração fácil para quem aparecia com aspecto importante.

Fora tão ganancioso e sem princípios como qualquer colonizador, adoptara sem
reserva a escravatura porque lucrava com ela, e enriquecera não pelo seu trabalho, mas graças
ao casamento com uma mestiça, que devia ficar-lhe grata por ter sido escolhida.

No entanto esse país, que ele achava inferior e atrasado, acolhera-o, e a Emma, sem
preconceitos e generosamente, como se fossem nativos.

Na verdade, ele fingira integrar-se, quando Júlia era criança traduzira até o seu nome:

Johann Ludwig Hermann passara a ser em português João Luís Germano, ou


simplesmente "seu" Germano. "Bruhns" praticamente desapareceu, como se ele pertencesse
ali, e dominasse uma língua que só a nível rudimentar lhe interessava.

Mas claro que "seu Germano" nunca foi dali. Mudara o nome por razões tácticas, e a
máscara não lhe assentava ao rosto. Era um colonizador, treinado para explorar dinheiro
rápido, como, aliás, todos: Portugueses, italianos, alemães, holandeses, franceses, in- gleses
eram farinha do mesmo saco e queriam o maior lucro, e o mais rápido possível.

Por isso ele regressara depois ao Brasil com Emma, e se lançara, com outros
estrangeiros, no negócio de tornar navegável o rio Piracicaba, para nele instalar uma
companhia de transportes, cujo intuito principal era escoar os produtos das fazendas que tinha
comprado nessa zona. Foi preciso dinamitar os múltiplos desníveis do leito do rio, mas ele
tinha se prevenido com uma carga substancial de dinamite, clandestinamente escondida no
camarote. Era um percurso longo a tornar navegável, que pretendia chegar até aos Lençóis da
região paulista.

Pouco importava se danificavam o rio, a fauna e a natureza em volta, desde que o


lucro fosse compensador. Mas não foram bem sucedidos. A empresa revelou-se menos
rentável do que era suposto, acabou por ser vendida, e ele contraiu malária no rio.
23

Acabaria por regressar à Alemanha com a segunda mulher, e morreria poucos anos
depois. A viúva, muito mais nova, iria sobreviver-lhe ainda muito tempo. Vivera com ela vinte
anos, com a mãe de Júlia apenas dez.

O pai voltara portanto para o Norte, e agora ela avançava, cada vez mais depressa, rumo ao
Sul.

Havia muito que se tinham separado, pertenciam a horizontes e geografias diferentes.


Agora já não lamentava não terem sido mais próximos, e nunca ter chegado a dialogar ou
discutir com ele. Teria sido inútil, falavam linguagens diferentes, tal como Júlia e o marido que
ele lhe comprara.

Porque naquela terra supostamente superior, avançada e culta, do Norte da Europa,


tudo se reduzia a transacções, e também as pessoas, homens e mulheres, podiam ser - e eram
- convertidas em dinheiro contado.

Na verdade, ela e os filhos tinham sido expulsos de Lübeck. O marido pensara em tudo, ao
pormenor, e o testamento fora muito claro:

Todos os bens estariam sob o controlo dos executores, que tinham instruções para
liquidar a firma, e, no espaço de um ano, vender o navio e todo o stock da mercadoria
existente, bem como a casa da família e respectivo recheio.

Júlia não teria qualquer poder sobre o capital, e era obrigada a prestar informações a
um juiz, quatro vezes por ano, sobre a educação dos filhos.

Em relação a ela as disposições eram severas, o que não a surpreendeu: o marido sabia
da infidelidade, e, embora o assunto ti- vesse sido abafado, quisera puni-la.

Quanto a desvalorizar a a infidelidade, no leilão social? Mil por cento, milhões por
cento. Agora, aos trinta e nove anos, já não era, aparentemente, nada, nem ninguém.

Não a surpreendera ver como o marido desconhecia os filhos por completo, e errava
estrondosamente ao julgá-los:

"Os tutores dos meus filhos têm a obrigação de influenciá-los a seguir uma educação
prática. Deverão opor-se o mais possível à inclinação do meu filho mais velho para a actividade
literária. Na minha opinião ele não possui os requisitos necessários para trabalhar com solidez
e sucesso nesse campo, não tem estudos suficientes nem cultura vasta.

O meu segundo filho tem um bom temperamento e conseguirá integrar-se sem


dificuldade numa profissão prática. Espero dele que venha a ser o apoio de sua mãe.

Júlia, a minha filha mais velha, deverá ser rigorosamente observada. A sua natureza
impulsiva terá de ser reprimida.

Carla será, como Thomas, um elemento pacífico.

O nosso pequeno Vicco - que Deus o proteja...

Em relação a todos os filhos, a minha mulher deverá mostrarse firme, e mantê-los


dependentes dela. No caso de hesitar, que leia o Rei Lear."

Heinrich tinha então vinte anos, Thomas dezasseis, Lula catorze, Carla dez, e Viktor
apenas um.
24

Júlia retirou-se para uma casa mais afastada e discreta, até todos os bens serem vendidos. A
fortuna rendeu quatrocentos mil marcos, de que apenas os juros foram pagos à família.

Então mudou-se com Lula, Carla e Viktor para Munique, cidade muito maior do que
Lübeck, mais aberta e mais a sul, atravessada pelo rio Isar.

Thomas iria depois ter com eles, e, segundo o desejo do pai, ainda trabalharia como
empregado num escritório de seguros. Mas logo decidira ser jornalista, frequentara a
Universidade e o Politécnico em cadeiras de História, Economia e Literatura, e passaria um ano
em Itália com Heinrich, decidido, também ele, a ser escritor.

Ambos tiveram nessa escolha o inteiro apoio de Júlia, que se instalara no bairro boémio de
Schwabing, onde numerosos artistas frequentavam regularmente a sua casa.

Tornara-se uma mulher independente, e gozava o ambiente de jantares, festas e


convívio. Podia agora ser admirada e cortejada, sem a pressão social que existia em Lübeck.

Não se sentia culpada, pensava atravessando o mar, onde a água se tornara entretanto mais
profunda, nunca se sentira culpada por ter sido infiel. Muito menos pela morte do marido,
cujas circunstâncias não tinham sido suficientemente esclarecidas. A versão oficial, pelo menos
em parte, era correcta, sequelas de uma cirurgia mal sucedida a um cancro da bexiga.

No entanto os filhos pareciam considerá-la culpada. Em Os Buddenbrook, o dono da


firma sucumbe estranhamente a uma infecção num dente, que se generalizara a todo o
organismo, quando já tudo na sua vida anunciava havia muito um desastre.

O teor do testamento de Johann, que pretendia prever e controlar tudo, como se


estivesse seguro de desaparecer em breve, também por vezes lhe levantava suspeitas. E se...?

Mas, o que quer que tivesse acontecido, a culpa não era dela. Se a morte de Thomas
Johann tivesse sido voluntária, isso deviase à sua doença, ao seu carácter introvertido, à
tendência para a depressão e perturbações nervosas, que grassavam na família, e de que o seu
irmão Friedrich era o expoente mais notório.

Encontrava na família dos Mann um grão de loucura que não existia na família dela,
nem nela mesma. Assumia-se sem reserva miscigenada e do Sul, mas tinha a certeza de ser
uma mulher saudável e normal.

Num mundo louco vivia o pai dos seus filhos.

Como podia não ver o absurdo de travar a vocação literária de Heinrich, quando ele já
em 1890 publicara poemas na revista mais modernista da Alemanha, e tinha ido para Berlim,
decidido a ser escritor? Não o ouvira recusar peremptoriamente trabalhar numa firma?

Thomas e Carla eram elementos pacíficos da família? Meu Deus!!... Thomas estaria
bem numa profissão prática? Logo ele, que sempre se instalara num mundo imaginário?

O carácter impetuoso de Lula devia ser reprimido? Na verdade Lula iria ser tão
convencional como as mulheres da família Mann, esperara por um casamento vantajoso, e
conseguira-o com Josef Löhr, director de um banco em Munique, que lhe deu conforto
material, e crianças que vieram, no devido tempo.

Afinal Johann só acertara em relação a Viktor.

O nosso pequeno Vicco - que Deus o proteja....


25

Implicitamente, portanto, rejeitava-o:

Deus o proteja, porque eu não o farei, no testamento. Mas Deus protegera-o, sim, e
fora o mais feliz dos seus filhos. Porque não era um Mann.

Não importava que fosse pouco dotado, nem sequer inteligente, que a sua vida fosse
rasteira e comum, na esfera agrária, ignorante do mundo e ignorado pelo mundo, sem
realmente perceber o contexto político em que se encontrava, contente por partilhar a
mediania com uma mulher tão banal como ele. Para os irmãos era como se não existisse, o
que ele atribuía à enorme diferença de idade: Heinrich e Thomas eram quase adultos quando
ele nascera, sempre os vira como uma espécie de tios afastados. E em relação ao pai, podia
dizer-se que nem o conhecera.

Júlia amou-o e protegeu-o o mais que pôde e, quando todos já estavam noutros
caminhos, foi não só a sua mãe mas a sua família, e ele a âncora a prendê-la à vida.

Contudo - via agora - não fora uma boa mãe.

Quando Heinrich nascera tinha vinte anos e não estava preparada para o assumir.
Procurava ainda retirar algum prazer da vida que levava, que aliás a defraudava em quase
tudo. Claro que amara o filho e se alegrara com ele, mas deixara-o demasiado entregue a
empregadas e cuidadoras. Também na infância assim acontecera consigo, mas no Sul a
capacidade de dar e receber afecto era outra, Ana tinha sido uma segunda mãe, que ela
guardara no coração para sempre. Esse tipo de relação não existia no Norte.

Só assumira a maternidade com Thomas. E agora interrogava-se se Heinrich, aos


quatro anos, teria sofrido um golpe terrível com a chegada do irmão, e se a rivalidade entre
eles não vinha, inconscientemente, desde o início. Teriam sempre lutado porque cada um a
queria, e ao seu amor, só para si?

Meu Deus, mas ela amara a ambos com amor igual, amara o melhor que pudera todos
os seus filhos.

Talvez tivesse falado demais com eles? Sim, contara-lhes tanto da sua infância, da sua
vida anterior! Provavelmente as mães deviam calar o que lhes doía, não lamentar nada, não
deixar os filhos participar do seu mundo, mesmo quando, como ela, não tinham mais ninguém
com quem falar.

Agora via tudo com uma nitidez que a dilacerava:

Fora uma má mãe. As boas mães transmitiam aos filhos paz e felicidade, e ela
transmitira aos seus insatisfação, angústia, frustração, desejo de qualquer coisa sem nome,
definitivamente perdida no passado e inatingível no presente e no futuro.

As boas mães eram felizes. Mas talvez as más mães como ela não devessem angustiar-
se tanto, quando já nada podia ser mudado. Não eram culpadas de ter sido manipuladas,
defraudadas no direito a ser felizes, ou pelo menos de ter tentado.

Não casara com quem quisera, nem pudera afirmar-se no mundo da arte, que era o
seu - na música, na escrita, no teatro.

Passara decerto esse desejo aos filhos, porque tinha sido a matriarca, a figura central
das suas vidas. Como poderia não ser? Johann demitira-se do papel de pai e nunca se
aproximara, também em relação aos filhos a deixara sozinha.
26

Heinrich e Thomas eram escritores bem sucedidos, mas viviam em guerra um com o
outro, e tinham vidas difíceis.

No entanto, apesar de não terem obedecido ao pai nem o terem amado, sentia que
estavam do lado dele, e secretamente culpavam a mãe pelo que acontecera:

Johann nunca se mataria por amor, mas poderia tê-lo feito por vergonha, medo da sua
reputação manchada, raiva ou desespero. Poderia ter-se suicidado contra ela, a bela mulher
mais alta do que ele, e mais segura, centro das atenções e dos olhares, que se entregara a
outro. Ela devorava os homens, era cruel e não amava ninguém.

Era assim que a viam os seus filhos? Não deixava de ser uma mulher caída, talvez
mesmo não muito longe das prostitutas?

A visão agressiva e sadomasoquista que Heinrich tinha do amor viria da atracção-


rejeição que ela lhe inspirava?

Tinham sido então uma família de loucos, em que cada um se lançava numa
desesperada caça ao amor, e devorava quem podia?

Todos contra todos, e a destruição uns dos outros começava em casa?

Meu Deus, era possível que isso tivesse acontecido?

Sim, agora parecia-lhe possível. Tudo adquiria uma lucidez insuportável.

Na busca do amor, em que ela persistira até envelhecer, rivalizara com as filhas, muito
mais novas e sem dúvida mais belas:

Na sua casa boémia de Munique, uma mãe, cujos traços de juventude e beleza iam
desaparecendo, rivalizava, voluntária e involuntariamente, com as filhas casadoiras, e os
homens pareciam por vezes hesitar entre elas.

Em Entre as raças, Heinrich denunciara isso com uma clareza brutal: A Mai (mãe) é a
beleza morena e lânguida que vem do Rio de Janeiro, e Pardi, pretendente da filha, começa
por cortejá-la até se tornar seu amante - embora ela volte para o Brasil e se "sacrifique"
afastando-se, em troca de Pardi desposar Lola.

O nome Lola era demasiado semelhante a Lula, e Josef Löhr, quinze anos mais velho do
que a jovem, não deixara de admirar a sua mãe (talvez mais do que admirar?...) e ficara
incomodado com a publicação do livro, embora referisse apenas genericamente que ele
"retratava muitas pessoas conhecidas de Munique".

Seria possível que ela, estranha criatura "entre as raças", fosse uma mancha no
imaginário dos filhos?

Uma namorada de Heinrich, Ignès Schmied, não era filha de um alemão emigrado para
a América do Sul, onde possuía vastas plantações, e Ignès não viajava com a mãe pela Europa,
quando conhecera Heinrich em Florença? Como Lola, que tinha (como ela, Júlia) uma bela voz
de contralto, Ignès não pretendia ser cantora?...

A relação de Heinrich e Ignès durara alguns anos, assente em múltiplas afinidades.

Mas, via agora, na família a "caça ao amor" era uma luta de morte. Carla, a irmã
preferida de Heinrich, ligara-se a ele excessivamente, e tinha-lhe escrito, desesperada:
27

"Ignès! Se bem percebi, tencionas casar com ela? Não consigo, de todo, imaginar-te
casado."

E a explosão de ciúme prosseguia:

"Vou directa para Florença. Falas-me muito de Ignès e em breve farás dela um livro
magnífico.

Se no entanto, contra tudo o que é previsível, a tua relação com ela seguir outro
caminho... sabes que eu estou aqui, na retaguarda."

E ela própria, Júlia, não o tentara afastar de Ignès?

"Já que consideras o vosso noivado praticamente desfeito, digo-te claramente que espero que
não cases com ela. Se algum dia, para toda a vida, amares uma mulher mais do que à tua mãe,
então que seja uma em absoluto digna de ti e que te faça feliz; nessa altura serei de boa
vontade preterida."

Também ela estaria afinal doente, ou louca? Ela, que tantas vezes recomendava a
Heinrich que procurasse companhias femininas, quando ele não as tinha, tentava depois
afastá-lo delas?...

Como fora possível ser tão cega e fazer aos filhos a injustiça que ela própria sofrera?

Haveria nela afinal um lado destrutivo e maligno?

Seria possível que Ignès atraísse Heinrich por ter tantos atributos dela mesma, Júlia - e
depois, pela mesma razão, ele se afastasse?

Sim, parecia-lhe possível e credível.

Dera-lhes demasiadas opiniões e conselhos, aprovara ou desaprovara possíveis


casamentos. Julgara ter esse dever, e não tinha sequer esse direito.

No testamento, Johann determinara que, "em relação a todos os filhos, a minha mulher
deverá mostrar-se firme, e mantê-los de- pendentes dela". Mas ela não o fizera para lhe
obedecer. Nesse ponto, queria ser justa com Johann: A culpa fora apenas sua. Tentar manter
os filhos dependentes fora uma distorção do instinto maternal, no sentido errado. Tinha medo
da solidão, se se soltassem dela.

Fora o maior dos seus erros.

Também na vida de Thomas se intrometera:

Katia parecia-lhe impreparada para casar, por vezes quase apá- tica, e a família
oferecia ao futuro genro demasiada riqueza e conforto, o que o tornaria menos livre. Alguma
coisa naquela relação não batia certo, pressentia.

Mas Thomas ignorara as suas tentativas de dissuasão, e seguira em frente. Com o tempo
afastara-se dela, e estava agora muito mais próximo da família de Katia que da sua.

Também Lula e o marido se tinham relativamente afastado dela.

A Heinrich Júlia escrevia cartas às centenas, e estava sempre a convidá-lo para passar
alguns dias em sua casa. Na verdade ele respondia quase sempre, mas raramente vinha.
28

Agora dava conta de como o importunara, e se tornara pesada para ele. Lieber
Heinrich. Cher Henri. Por vezes mudava de língua, talvez para não parecer tão repetitiva. E
pedia-lhe tantos favores, e tantas vezes.

Eram demasiado vulneráveis, os seus filhos, sujeitos a mudanças de humor, a diversos males
que os levavam a termas, clínicas, tratamentos.

Com a desculpa de não aguentar o clima, demasiado quente, demasiado frio,


demasiado seco, demasiado húmido, de ter febre muitas vezes, Heinrich tornara-se uma
espécie de nómada, sem morada certa.

Thomas fixava-se mais nos lugares onde estava, embora gostasse de mudanças, por
períodos breves, mas estava sujeito a dores de cabeça, estômago, e em todo o corpo, e mais
do que uma vez se sujeitou a internamentos, termas, e até a tratamentos eléctricos com o Dr.
Loeb.

Thomas parecia-lhe apesar de tudo mais estável. Heinrich ti- vera muitas mulheres,
mas as relações terminavam sempre. Casara finalmente com uma actriz, Maria Kanová, e
tinham a pequena Leonie. Meu Deus, oxalá, oxalá fossem felizes.

E Carla - oh não, não queria pensar nela agora, doía de mais, não iria aguentar-

Mergulhou mais fundo, fugindo, e tentou imaginar os grandes navios que atravessavam o
Atlântico, muito acima da sua cabeça, com uma vida movimentada a bordo, múltiplos deques
e cabines, tão diferentes do barco em que ela fizera esse percurso, no sentido contrário ao que
seguia agora - nessa altura não havia conforto, por vezes o balanço era tão grande e o enjoo
tão forte, que quase se preferia morrer.

Mas muito mais doloroso era ser transportado nos navios ne- greiros, que durante
séculos tinham levado cargas de escravos de África para a Europa e a América.

A escravatura ainda era mais cruel do que suspeitara, quando procurara saber mais.

Havia escravos no Brasil, ela via-os na infância, sem entender nada, ainda não conhecia
o lado negro do mundo e da vida.

Também Ana era escrava. Podia ser vendida, trocada, batida, maltratada. Quanto ela
tinha arriscado por desobedecer e ter vindo avisá-la de que ia partir!

Nunca vira o pai gritar assim, com a voz e o rosto alterados de fúria, por as suas ordens
não serem cumpridas. Ficara, também ela, aterrorizada, embora não tivesse então a menor
ideia dos perigos que os escravos corriam.

Mais tarde o pai dissera-lhe que, no regresso de Lübeck, lhe tinha dado a liberdade,
mas, admitindo que não mentia, isso significava exactamente o quê?

Ana tinha sido provavelmente despedida e entregue à sua sorte, quando já não havia
crianças para cuidar e não precisavam dos seus serviços. Deitada fora como um objecto
descartável, ou um cão que se abandona, porque já não se quer alimentar.

Oh, Deus, como a vida podia ser insuportável para os mais fracos, nunca mais deveria haver
escravos, sofrimento ou maus tratos, era urgente pôr fim a preconceitos de cor de pele,
costumes ou cultura, de ser do Norte ou do Sul, abandonar essas ideias doidas de sangue
impuro, misturado e mestiço.
29

O mundo estava doente, era preciso salvá-lo da loucura- tudo estava errado e distorcido, as
pessoas eram monstros, os países destruíam-se em guerras infindáveis. Não era possível viver
num lugar assim.

Ela conhecia o sentimento de exclusão, uma dor constante, pervertendo tudo. Mas
nenhuma dor fora tão grande como a que sofrera pelos seus filhos, ou fizera sofrer aos seus
filhos.

Carla - Carla não tinha uma noção clara do real. Tentara tornarse independente, saíra de casa e
lançara-se no teatro, colocando acima de tudo uma carreira de actriz. Mas não tinha defesas
contra o mundo, nem talento para se afirmar.

Theodor Lessing, um director de teatro amigo de Heinrich, tentara ajudá-la, e Carla


entrara durante anos numa relação com ele, em que havia, da parte dela, uma dose excessiva
de imaginação. Lessing era judeu e ela embrenhara-se na cultura e na mística judaicas,
colocando-se no papel de "judia inocente e caída", como se a sua realidade fosse essa.
Provavelmente seria uma forma de se aproximar de Lessing, mas também de atrair a atenção
de Hein- rich, em quem continuava platonicamente fixada, e que agora estava concentrado em
Ignès.

Lessing envolvera-se numa polémica com Samuel Lubblinski, e desgraçadamente


Thomas Mann decidira intrometer-se. Lessing ripostara com violentas críticas à sua obra, e
Thomas, que não su- portava opiniões negativas, influenciou (na verdade forçou) Carla a
romper com Lessing.

A partir daí Lessing usou Carla, e também Katia, como armas de arremesso contra
Thomas.

Queixou-se de ter recebido inesperadamente de "uma pa- rente próxima de Thomas


Mann uma carta brusca, dizendo que, na sua condição de judia, se sentia ofendida e cortava
relações com ele".

Refutando com veemência a condição de judia, de facto inexistente na família Mann,


Lessing refere uma época em que cortejou Katia, e define Carla, com quem convivera ao longo
de anos, como "uma jovem actriz que preenchia a sua vida resignada na chaise-longue, polindo
as suas belas mãos, lendo romances e de- sejando heroicamente um milionário [...]. Com
conselhos e acções procurei estimular a sua veia artística lânguida e tardia, em horas de
conversa nos bosques, e conversas sérias num quarto silencioso. Centenas de vezes ela me
agradeceu, oralmente e por escrito."

Sob a ira de Thomas e a pressão da família, Carla regressou a casa de Júlia em Polling.
Desiludida com o teatro, desejava agora casar com Arthur Gibbo, filho de um industrial, que
impôs a condição de ela lhe pagar 43 000 marcos (que nem ela nem Júlia con- seguiram
reunir). Um amigo de Gibbo, usado para pressioná-la, revelou aventuras sexuais que ela vivera
no passado e, considerando-a "desclassificada" (e sobretudo sabendo-a sem dinheiro), Gibbo
rompeu o noivado.

Dias depois Júlia encontrou fechada a porta do seu quarto e, quando a fechadura
cedeu, Carla estava morta na cama, depois de ter ingerido uma dose letal de cianeto.

De certo modo Júlia morreu com ela. Nunca ultrapassou a perda e passou o resto dos
seus dias numa fuga permanente, de lugar em lugar, sem encontrar paz em nenhum lado.
30

Sempre estivera deslocada, e, à medida que o dinheiro escasseava, residira em casas cada vez
mais modestas, mas a partir daí tornou-se interiormente uma figura errática, sem tecto nem
abrigo.

Como antes a sua mãe, também ela se via morta, segurando nos braços uma criança
igualmente morta, que não conseguira nascer nem vingar.

Até ao fim da vida preocupar-se-ia com a sepultura de Carla, e iria querer ser
enterrada junto dela.

Mas o calvário não terminara com a morte de Carla. Numa carta posterior a Heinrich,
lamentara o ar doente de Lula:

"Há muito tempo que o seu aspecto lamentável me preocupa muito. Ontem estava
ainda pior; é como se, a pouco e pouco, desaparecesse; olhos encovados, lábios brancos,
magreza extrema; entristece-me terrivelmente. Penso que precisava de passar alguns meses
num sanatório."

Falava-se de desgostos, de que tinha amantes, de que o casamento corria mal.

E certa vez alguém deixou cair a palavra "morfinómana”. Dia e noite Júlia lutava com a
palavra e a ideia, tremendo de horror, sem conseguir enfrentá-la, nem fugir-lhe.

E agora ali, no mar bem alto, a única coisa que queria era desaparecer, deixar de
existir, transformar-se em pedra e cair, cair sempre, até ao abismo mais fundo do mar.

Uma tempestade rebentara e uma corrente vertiginosa arrastava-a para baixo, cada vez mais
para baixo, até que ela chegou ao fundo e desapareceu no escuro.

Decerto muito depois, porque não tivera consciência de mais nada, a água foi-se tornando
menos violenta e profunda, e ela começou a voltar a si, exausta e confusa como se tivesse
dormido um século.

Todos os anos da sua vida se tinham apagado. Restavam apenas sete.

O Rio de Janeiro ficara para trás, nadava agora num mar azul e transparente, entre peixes de
muitas cores. A luz faiscava à superfície, e ela deixou-se ir, sem resistência, na corrente.

Passara também Angra dos Reis, seguia por entre muitas ilhas, como se voasse através
da água, avançando mais e mais depressa, até que uma onda se enrolou à sua volta, a levou
até à orla de uma praia, e pousou suavemente o seu pequeno corpo na areia.

Sabia que estariam perto as ruas e as casas de Paraty, azuis, amarelas, cor-de-rosa ou brancas,
com varandas de ferro forjado, portas de madeira pintadas de azul, e grandes faixas de cor em
volta das portas e janelas.

E haveria uma sucessão de montanhas, uma enorme mancha verde descendo até ao
mar, que se alongava em praias e baías -

Mas ainda não queria abrir os olhos. Queria deixar-se ficar ali, sem nenhuma pressa,
ouvindo a brisa nos ramos das palmeiras e o canto dos pássaros em volta.
31

Quando finalmente olhasse veria a casa junto à praia, recortada contra o verde brilhante das
árvores, a casa estaria lá, com a sua varanda de madeira, de onde se podia ver o mar até ao
longe.

E ela poderia subir os degraus, como sempre descalça, abrir a porta e entrar.

Mas ainda não. Ainda queria ficar ali ao sol, de olhos fechados, sentindo a areia colar-se ao
corpo, agarrá-la com as mãos, deixá-la escorregar por entre os dedos, sem nenhum
pensamento, nem palavras.

A mãe tinha morrido, lembrou-se mais tarde. A mãe tinha morrido. Essa ferida doía muito.

Mas Ana estava lá, tinha a certeza de que Ana estava lá, e viria sempre abraçá-la,
contar-lhe histórias, cantar-lhe cantigas ao ouvido, pentear-lhe com jeito os cabelos, e dizer-
lhe que, quando crescesse e fosse mulher, iria ser feliz, imensamente feliz.

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