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Mas agora ultrapassava esse instante, como quem dobra uma onda, e a respiração
voltava. Continuava a ser arrastada mas conseguia atravessar os obstáculos, que se
estilhaçavam, e não ela. Não sabia se deslizava na sua direcção, ou eles se aproximavam
vertiginosamente, tudo se transformara num turbilhão confuso de portas e janelas arrancadas,
estantes de livros caindo, gavetas flutuando, lençóis e rendas, luvas, toalhas bordadas, caixas
de chapéus, cristaleiras de onde jorravam porcelanas de Meissen e de Sèvres, copos e taças de
cristal com debrum dourado, colheres, garfos e facas de prata que dardejavam como
relâmpagos e desapareciam, entre o ruído de estilhaços de louça e de cristais partidos.
Agora tudo se diluía diante dos seus olhos, como palavras escritas a tinta, que a água
apagava. As casas da Breitstrasse, da Mengestrasse, e outras casas em que vivera
desintegravam-se e transformavam-se em espuma. E ela não sentia nada, a não ser alívio:
Nenhuma casa tornaria a prendê-la, e por isso ria das suas portas e janelas, jardins,
escadas, paredes e balcões, tectos de estuque e soalhos brilhantes, que de repente já não
estavam lá.
Poucos momentos antes ainda todos tomavam chá, Heinrich, Thomas, Viktor e Nelly,
mulher de Viktor.
Lula, a sua filha Júlia, viera antes dos irmãos, com o marido.
Talvez no dia anterior? Não sabia ao certo, mas tinha a certeza de que todos os que amava
tinham estado ali, e que, antes de saírem, ela lhes acenara, a despedir-se.
Lula e Jof, Heinrich, Thomas, Viktor e Nelly, ainda à sua volta. Todos tinham vindo.
Mas já não precisavam dela, o papel de mãe acabara. Acenaralhes, dizendo adeus.
Agora triunfava contra Lübeck, e as vozes do mundo eram-lhe, mais do que nunca,
indiferentes, chamassem-lhe o que quisessem, dissessem o que quisessem daquela
estrangeira, mulher do senador, ela não queria saber, faria o que quisesse, rindo e troçando
deles, em gargalhadas selvagens.
Agora era Júlia, e queria recuperar o tempo em que não fora. Para isso se deitara ao rio. Ins
Wasser gehen, dizia-se. Tão fácil, tão fácil. Deitara-se nos braços do rio, e o rio levá-la-ia até ao
mar, e o mar era infinito e seu amigo, ou seu amante. Talvez fosse o mar o amante que sempre
procurara. E agora ia finalmente ao seu encontro, partiria com ele até o fim do mundo, e
nunca voltaria. Nunca mais.
Mas por enquanto era ainda o Trave, à beira do qual gostava de passear, e em cuja foz
costumavam ir à praia, em Travemünde - dias felizes para as crianças, que corriam e brincavam
na areia, sem darem conta de como a água e o ar eram gelados, mesmo no calor do Verão. Só
ela não gostava especialmente daquelas ondas nem do vento agreste que por vezes se
levantava e os obrigava a vestir camisolas de lã. Mas o prazer das crianças era também o seu.
Naquela mesma praia a tia Elisabeth, quando era jovem, apai- xonara-se por um
estudante com ideias sociais novas, que não lhe saíram da memória, nem o rapaz que as
partilhara com ela. Nunca se sentira tão perto de nenhum outro, mas o rapaz era de condição
inferior, e casar com ele estava absolutamente fora de questão. Em vez disso casou três vezes,
foi três vezes infeliz como se esperava, e não esqueceu o rapaz de Travemünde, nem a barraca
da praia onde se tinham beijado.
A história da tia Elizabeth era a de Tonia Buddenbrook. Toda a família estava nos livros
em que Thomas a descrevia, e por vezes também nas histórias que Heinrich imaginava.
Heinrich aliás cedo se libertara da família e da sociedade em que viviam. Mas não
Thomas.
*
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Travemünde, para onde se fugia nos meses mais quentes, era uma curta respiração, uma leve
pausa numa partitura - porque ali tudo era sempre pautado, obedecia a estritas normas e
escrevia-se entre apertadas linhas paralelas, que se prolongavam, sem remédio, até à morte.
Mas a música que ela tocava ao piano e cantava, parà si mesma ou para as crianças,
era livre, alegre e diferente, tinha outro ritmo, outra melodia e leveza.
Na música ela podia voar e estar contente, sobretudo quando dançava nos braços de
um homem, e atraía os olhares e desejos de todos os outros homens na sala.
Mas depois a festa acabava, e ela ficava sozinha, num salão vazio. Ou numa praia deserta, em
Travemünde.
Gostava dos fins de tarde, à beira-mar, quando ainda havia luz do dia, e depois deixava de
haver. Naquela latitude a luz era fugaz, e a temperatura nunca subia o suficiente, mesmo no
Verão. E o mar cheirava pouco a mar, em Travemünde. Mas as crianças nunca tinham frio, e os
dias na praia eram felizes.
Lübeck estava ainda certamente lá, embora ela vogasse abaixo da superfície do rio e não
quisesse ver as suas fachadas sombrias - uma cidade de tijolo escuro, cheia de torres e
pináculos, de igrejas enormes, armazéns de sal, ruelas estreitas desembocando umas nas
outras, a partir da grande porta Holstentor, que se fechava contra o mundo e só abria para
dentro de si mesma.
Mas junto da outra porta, a Burgtor, havia um pequeno miradouro de onde se podiam
ver os dois braços do Trave confluindo. E na infância, quando chegara a Lübeck, ela gostava de
ir, duas vezes por mês, depois do almoço, a casa da avó Maria Luísa Bruhns, diante da Burgtor.
O Trave cercava a cidade velha, era bom passear à beira dele ou sobre as pontes,
andar de barco pelos seus canais, também isso era uma respiração, uma abertura contra a
claustrofobia. Sempre gostara de cidades à beira do mar, de um rio ou de um lago, se não
vivesse perto de água achava que morreria sufocada.
No entanto, por fora e por dentro era escura e sem ornatos, ao contrário das igrejas
festivas que ela conhecera anteriormente.
Nunca lhe tinham feito essa pergunta, mas, se tivessem, teria dito sim, sem saber o
que isso significava, e porque não poderia di- zer não. Sim era a vontade de todos e a resposta
que esperavam dela.
Apesar da pouca luz que entrava, via-se na Igreja de Maria um painel onde os vivos
dançavam com os esqueletos dos mortos, uma cena arrepiante, que lhe fazia medo e evitava
olhar.
A música era solene, mas ao mesmo tempo festiva, como vozes triunfais cantando,
afinal podia haver alegria e beleza, mesmo ali naquela igreja triste, sobre a qual se contavam
histórias assustadoras, como a do Diabo que queria destruí-la, ou a de um velho que ficou no
telhado à espera da morte, mas ela não veio, e ele esperou tanto que se transformou em
pedra.
Apesar das histórias sombrias e dos painéis de horror, apesar das enormes paredes
nuas, o grande órgão tocava, e as suas vozes vinham falar com ela.
Mais tarde soube que o jovem Bach de dezanove anos tinha andado quatrocentos
quilómetros a pé, desde Arnstadt, para ali chegar, quando o organista da igreja era Buxtehude,
e ficara a ouvi-lo, esquecido do tempo, e já três meses tinham passado. Por causa disso
perdera o emprego em Arnstadt, e depois ele próprio se tornara organista, naquela mesma
igreja.
Dessa história gostava, e a música de Bach era uma espécie de religião que ela
entendia: Tudo ocupava o seu lugar e era perfeito, nada estava a mais nem a menos, podiam
variar-se as notas até ao infinito, mas a soma de todas era sempre Deus.
E cada partitura, por mais pequena que fosse, era igual mente Deus: Como quando,
nas igrejas da sua vida anterior, se partia a hóstia, e Deus tanto estava inteiro nela intacta,
como em cada pedaço, se a partissem. Deus era o princípio e o fim de tudo, e das suas mãos
nada podia cair. Nem mesmo ela, Júlia.
Essa ideia era uma certeza, e uma benéfica sensação de segurança, enquanto a música
durava. Mas depois tudo voltava a ser incerto e desolado, e ela era outra vez estrangeira,
numa cidade que a recusava, e também ela recusara sempre. No entanto tinham-na acolhido
com gentileza, e sido bondosos com ela. A avó Maria Luísa e as irmãs, os tios Eduard e
Theodor, e, em geral, a família.
O pai nascera ali, numa família de comerciantes, e aos dezasseis anos embarcara para
o Brasil. (Porquê ele, e não por exemplo o seu irmão Eduard, que continuara a viver no seu
país, e tinha casado com a tia Emma?)
Júlia nascera nesse país onde o seu pai era estrangeiro. Passara os primeiros sete anos de vida
em Paraty, no Engenho Boa Vista, com idas frequentes à Ilha Grande, onde ficava a casa dos
avós maternos e muitas das terras que lhes pertenciam.
Era um tempo cheio de cores, música, cheiros, sabores, zumbidos, pássaros, animais
selvagens, mar e floresta, um tempo alegre, onde tudo estava povoado de pessoas, de riso e
de conversas, nas aldeias, ruas, igrejas e festas, e ela desconhecia a solidão, mesmo quando
brincava ou vagueava sozinha na praia.
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Nunca lhe ocorrera que Ana era negra e Leocádia e Luiziana mulatas, embora
obviamente isso fosse visível. Cada um era como era, e assim aceite e amado, e a felicidade de
Júlia era perfeita.
Talvez por ter cabelo louro como o pai, ele parecia preferi-la, entre os seus filhos. Era
um homem alto, pouco expansivo mas afável, que The inspirava um amor admirativo e
respeitoso. A mãe, pelo contrário, era pródiga em manifestações de afecto, e Júlia não poderia
amá-la mais. E a Ana também não-era uma espécie de segunda mãe, que lhe contava histórias,
a abraçava e cantava, penteava com desvelo os seus caracóis loiros, e com quem ela partilhava
tudo.
Houve depois uma altura em que a mãe passou a ficar longas horas deitada na rede, ao
ar livre, enquanto Júlia brincava ao seu lado. E, quando acabava de fazer seis anos, o pai
apareceu um dia ainda mais grave e silencioso, e levou-a, com Néné, até ao quarto onde a mãe
estava morta, no meio de velas e flores, deitada na cama, ao lado de um recém-nascido,
também morto.
Marcou o fim da infância, foi um golpe fundo que a dilacerou, e apenas a presença de
Ana a confortava.
Cerca de um ano depois embarcaram no Rio de Janeiro - o pai e os cinco filhos, Manoel
(Manu), Maria (Mana), Luiz, Júlia, Paulo (Néné), e Ana, a ama muito amada.
A viagem de barco durou dois meses, e a entrada em Lübeck foi tristemente "triunfal",
com um cortejo de crianças perseguindo-os e troçando, como se fossem criaturas nunca antes
vistas, onde sobressaía a pele negra de Ana e os vestidos inadequados, amarelos, que o pai
comprara às filhas em Hamburgo. Até que Ana atirou rebuçados às crianças da rua, que
deixaram de correr e de rir atrás deles, entretidas a disputar as gulodices.
No dia do aniversário da avó Maria Luísa foram recebidos em sua casa. A avó era viúva,
vivia com algumas das suas irmãs e filhos, e as crianças causaram-lhe uma impressão positiva,
porque, apesar de o pai lhes ter certamente escrito o contrário, eles esperavam, ou receavam,
que fossem negrinhos, e costumavam comentar entre si, em plattdeutsch, a chegada dos
"lütte schwatte".
A avó acolheu-os com afecto e, em todo o tempo que passaram juntas, Júlia nunca lhe
ouviu uma palavra ríspida ou desagradável. Desde o primeiro instante, gostou dela.
Também foram bem recebidas, dias depois, quando o pai levou as filhas a conhecer o
colégio interno de Teresa Bousset e de sua velha mãe, a quem chamavam Madame.
Júlia frequentou-o entre os sete e os quinze anos, mas, pelo menos desde os catorze,
ansiava por deixá-lo.
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Ainda mal tinha chegado a Lübeck, quando um novo desastre aconteceu. Não sabia
que a presença do pai ia durar escassos quinze dias, nem que tencionava embarcar logo, de
regresso a Paraty, levando Ana.
Proibiu-a de contar às crianças, mas Ana não obedeceu e foi dizer-lhes, de madrugada,
quando Júlia ainda dormia. Não queria partir sem a avisar, repetia abraçando-a, e jurando em
lágrimas que não queria deixá-la.
As crianças desataram num pranto, o pai apareceu e ralhou violentamente com Ana, o
que as fez ainda gritar mais - foi um momento horrível, um choque brutal, que Júlia nunca
esqueceu.
Mas ficou grata a Ana por ter vindo dizer-lhe, de contrário pensaria que ela a traíra, e
iria sentir-se a mais abandonada e miserável das criaturas.
Assim, pelo menos, o seu amor por ela ficou intacto. Onde quer que estivesse, mesmo
muito longe, Ana continuava a existir, e Júlia continuaria a ser amada.
De tal modo que mais tarde, no colégio, um dia em que o professor de Religião
mencionou o nome Hanna, Júlia ficou suspensa da palavra e alheou-se completamente do que
se passava em volta, repetindo o nome, dentro de si, como um mantra, e quando o professor a
viu distraída e a quis apanhar em falso, atirando-lhe a pergunta ameaçadora:
No colégio era a mais nova, quase não se encontrava com Maria, que pertencia ao
grupo das mais velhas, e olhava com receio e animosidade toda a gente.
- Vem cá!
- Vá-se embora!
Ao longo de anos, só se tornou próxima de Josefa, que também viera de muito longe, falava
espanhol e tinha aquele nome gutural, mexicano, que subia do fundo da garganta. Josefa e a
condessa Marie, a quem chamavam Miete, foram as únicas companheiras com quem manteve
depois um contacto breve, na idade adulta (Miete morreria, infelizmente, aos vinte e quatro
anos, e depois Júlia perdeu o contacto com Josefa).
O pai prometera regressar logo, mas era mentira, não voltaria durante anos. Deixava-os bem
entregues, Júlia e Maria em casa da mãe dele, Luísa Bruhns, de onde iriam logo de pois para o
colégio; os irmãos ficaram com a família von Bippe, e seguiriam também em breve para um
internato.
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Entretanto Júlia saíra de um mundo a cores e entrava noutro onde tudo era a preto e branco,
ou, na maior parte dos dias, cinzento. A cidade era escura, o céu era escuro, o ar, mesmo no
Verão, era frio, e todo aquele habitat inóspito a agredia.
Os contactos com Maria foram reduzidos, para não falarem português as duas.
A sua língua materna tornou-se proibida, e foi substituída por outras que
desconheciam, alemão, francês e inglês.
A vida anterior devia ser esquecida, como se não tivesse interesse nem valor. Não
houve qualquer esforço para conhecer o seu passado e o dos irmãos, nem o que agora lhes ia
no coração e na cabeça, mesmo quando já sabiam o suficiente da língua deles para contar-
lhes, se alguma vez lhes tivessem perguntado, ou dado espaço para se exprimirem. Mas isso
nunca aconteceu.
Agora, mergulhando mais fundo no Trave, tudo ganhava cada vez mais transparência:
Ninguém pensara em ouvi-los, eles deviam ouvir os adultos e adoptar os seus valores,
sem qualquer assomo de reciprocidade. Não era apenas adaptação que se exigia, mas a
obrigação de copia- -los, e ser tão iguais a eles quanto possível.
Júlia foi forçada a encaixar num mundo que não era o seu. O pai já lá não estava para
explicar que por exemplo chamar vó vó à avó Luísa não era ladrar-lhe em alemão wau-wau,
como ela de início interpretara, com desagrado.
Ninguém entendia nada. Perceberam quando muito que Vater em português se dizia
pai, mas desconheciam a palavra mãe (que se grafava mai). Nunca souberam que mana era o
nome familiar de irmã, e que ela chamava Mana a Maria como em inglês se poderia dizer Sis,
em vez de sister; que Néné era o diminutivo infantil dado ao filho mais novo, que no caso se
chamava Paulo; que à mãe, Maria Luísa da Silva, havia quem chamasse Senhorinha (pequena
senhora), não porque fosse o seu nome, mas porque se tinha casado muito jovem com um
noivo alemão de vinte e seis anos.
Não sabiam nem queriam saber nada sobre eles, como se a sua vida anterior não
existisse. E tudo o que pensavam sobre o mundo de onde vinham estava errado:
Acreditar no Diabo, por exemplo, era superstição, mas na lenda do Diabo e da Igreja de
Maria já não era, porque só os povos inferiores e atrasados tinham superstições e medo do
Diabo, e eles não.
Assim, num dia em que Júlia brincava na varanda de um pavilhão, no jardim da avó
Luísa, e ouviu pancadas fortes debaixo da varanda, teve medo e gritou:
- Diabo! Diabo!
Mesmo depois de ver quem fizera o barulho continuava assustada, e foi preciso o tio
Eduard aparecer e bater-lhe com um objecto ameaçador que trazia na mão.
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Segundo ele, o medo do Diabo era o resultado do contacto excessivo com os negros,
de que ela precisava de ser curada.
Pequenas "partidas" com que supunha divertir os adultos e cha- marlhes a atenção
não surtiam esse resultado, e só lhe traziam dissabores. Como quando, por exemplo, quis
pregar um leve susto a Madame, e fingiu sair da sala, abrindo e fechando a porta, mas ficou na
verdade escondida atrás das cortinas, enquanto a velha senhora fazia meia e de vez em
quando tirava uma pitada de tabaco, ou, provavelmente, de rapé.
Na verdade Madame assustou-se, mas não achou graça nenhuma, embora se limitasse
a dizer-lhe:
Esse foi o maior sucesso que Júlia conseguiu, nas suas tentativas de receber atenção.
De outra vez, em casa de uma visita, andou no jardim a apanhar rãs e libertou-as da
aba do avental, no meio da sala onde as senhoras comiam bolos e tomavam chá. Não podia
imaginar o terror com que fugiram, espavoridas e aos gritos, ao ver as rãs saltar pelo soalho.
Nem percebeu por que razão teve de pedir desculpa e prometer que nunca mais faria uma
loucura dessas.
Ninguém sabia que ela costumava apanhar borboletas, caracóis, formigas e outros
animais vivos, nascera e crescera entre papagaios e macacos, e nem dos severos urubus tinha
medo quando caminhavam perto, com ar sobranceiro, de bico adunco e plumagem escura,
enquanto ela se banhava no tanque do ribeiro, atrás da casa.
Desconheciam como era doce a cana de açúcar, o leite de coco, a lima, a goiaba
madura, de que a mãe fazia geleia, o abacaxi que apanhavam no caminho e lhe davam a comer
às rodelas, depois de o descascarem com uma faca de mato.
Não entendiam que a porção de doce que lhe davam no colégio não bastava, ela
precisava de mais, por isso pedira a uma externa que lhe comprasse bombons, com o dinheiro
de bolso que lhe entregara.
Logo uma empregada a denunciou a Teresa, e Júlia foi levada a Madame, que a
recebeu com ar de enorme escândalo, e Teresa deu-lhe uma bofetada que a desfez em
lágrimas - embora soubesse que Teresa a estimava, e que bater-lhe fazia parte da sua
educação.
-No seu lugar eu deitava logo o açucareiro todo, observou Madame sem
contemplações, esquecendo as boas maneiras que ensinava às alunas.
Socorro! Socorro! Ladrões! e depois suspirava, exausta, e pedia desculpa por acordar
as alunas:
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Ah, mon Dieu, mon Dieu! Ce sont me cauchemars; ils sont déjà passés - dormez, dormez
encore!
Outra vez ainda, Júlia viu pequenos sabonetes de amêndoa que Teresa iria distribuir,
mas tirou logo um, às escondidas, e quando deram pela falta não se acusou, aterrorizada.
Nesse dia o castigo foi ficar durante horas trancada na despensa, onde, para sua
vergonha, todas as outras a viam pela grade da porta ao passar.
Não sabia que desejara tanto roubar o sabonete porque se sentia profundamente
insatisfeita, e achava que o mundo lhe devia uma compensação qualquer, mesmo
insignificante como aquela.
Anos mais tarde recordara essas pequenas aventuras no colégio, e pensara mais de uma vez
em escrever a Josefa, seria divertido rirem agora as duas:
"Lembras-te quando todas regressavam a casa nas férias, mas nós íamos com Teresa
para Travemünde?
Lembras-te dos banhos de mar às seis da manhã? De sair da praia logo duas horas
depois?
Ah, meu Deus, e nós gostávamos de ir à praia, já que não tínhamos outra!
Se eles conhecessem as que havia lá em baixo, onde o sol e a areia eram dourados e
quentes!
Lembras-te quando uma professora me viu engolir um ou outra cereja com caroço e
disse que me ia nascer uma cerejeira na barriga, com os ramos a sair-me pela boca?
Ela não sabia o que era a vegetação crescendo sem medida, mas eu sim...
Lembras-te que acreditei e uivei de pânico, como um animal ferido, de tal modo que
tiveram de chamar Teresa para vir sossegar-me, e dizer que não era possível?...
Afinal nunca chegara a escrever essas cartas a Josefa. Talvez por timidez, ou receio.
Nunca soube ao certo.
Mas teria gostado de partilhar muita coisa com ela, ou com Miete. Por exemplo um
Natal em que dera seis marcos a um italiano que tocava realejo na rua. Fora repreendida pela
imprudência de esbanjar o dinheiro que receber a de presente, o homem iria gastá-lo em
vinho, já tinha sido visto bêbado, deitado na sarjeta.
Mas, ao contrário do que pensavam, ela não era imprudente nem esbanjadora. Apenas
gostara de ouvir o realejo, e o homem parecera-lhe desamparado e triste.
Acabara no entanto por escrever mais tarde as suas memórias, Da infância de Dodô,
nome que usavam em casa, ou ela dera a si mesma, quando ainda mal sabia falar.
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Tudo em Lübeck era, além de estranho, imprevisível. Mesmo o que parecia imensamente belo
podia no momento seguinte tornar-se inquietante, não raro assustador. Como, por exemplo, a
neve:
Quando a vira pela primeira vez ficara deslumbrada, pensando que a paisagem estava
coberta de açúcar - até então só no açúcar tinha encontrado uma brancura assim.
Correu a agarrá-la com as mãos, metendo-a avidamente na boca. Mas não só não era
doce como a sentiu gelada, e lhe deixou a língua entorpecida.
Ficou quieta, segurando o pedaço de neve, e, aos poucos, deixou de sentir: os dedos e
a língua ficavam cada vez mais rígidos, dormentes, e acabariam por morrer.
Também a sua língua de origem ficava mais e mais em botada e difusa, e morria lentamente
dentro dela.
No seu lugar, e sobre os seus escombros, Júlia aprendia outra, que não lhe pertencia,
mas teria de tornar-se a sua.
A língua da mãe, de Ana, do seu país e da infância fora proibida, rasurada. Assassinada.
Em nenhuma língua podia agora dizer a solidão, a ausência e a perda. Anos depois
ainda sonhava que a mãe lhe estendia os braços, e acordava em lágrimas, com as mãos vazias.
Já não tinha língua para escrever a Ana, que não sabia ler, mas tinha a certeza de que
encontraria quem lhe lesse as cartas, e lhe responderia o que Ana ditasse.
Mas não era possível, nunca mais seria. A língua fora cortada. Nas pouquíssimas cartas
que recebeu do pai, menos que os dedos de uma mão, ele dizia que Ana estava bem e
mandava saudades. O que era o mesmo que não dizer coisa nenhuma.
Foram reduzidos os encontros com Maria, para esquecerem a língua que falavam
entre si. E praticamente acabaria por perder o contacto com irmãos quando, poucos anos
depois, primeiro Manu, e mais tarde também Luís e Paulo regressaram ao Brasil.
Teresa ensinara-lhe alemão nomeando imagens que apontava num livro, e ela repetia o que
ouvia, como um papagaio.
Mas na altura não tinha pensamentos claros nem palavras, era um pequeno animal
que obedece a estímulos e é obrigado a imitar sons, acções e atitudes, à força de prémios ou
castigos.
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Não se podia correr, saltar, falar alto, fazer barulho, perturbar a tranquilidade dos
adultos. O tio Theodor zangava-se com o ruído das brincadeiras no jardim, quando ela ia com
os irmãos, duas vezes por mês, a casa da avó, via-os como pequenos selvagens, que era
preciso civilizar.
Mas esse mundo tornara-se silencioso, porque o tinham silenciado: as ruas da aldeia
inundadas, onde se andava de barco quando havia cheias, os cânticos nas procissões dos
santos, as ruidosas festas de Carnaval, as canoas que a levavam até à Ilha Grande, a casa dos
avós, o som dos remos cortando a água, o estalar dos foguetes que o avô Manuel Caetano
lançava da praia. Mas agora as imagens não tinham som.
Via tudo muito nítido, a água funcionava como lente, ou como um espelho de aumento:
Mas ela não queria esquecê-lo. Achava-o muito superior e mais belo, e era o mundo deles
que não lhe interessava.
Aparentemente resignava-se, porque não tinha alternativa. Contudo, uma parte dela resistia:
Fazia questão de manter da Silva no seu nome, Júlia da Silva Bruhns, e não apenas,
como às vezes lhe chamavam, Júlia Bruhns. E sublinhava a sua diferença escurecendo o cabelo
com óleo, embora, com o tempo, ele se tivesse já tornado mais escuro.
Lutava, portanto. Deixara as raízes na terra onde nascera e fora arrastada para outra,
onde deveria crescer em beleza e força. Mas nem todas as plantas se adaptavam sem luta a
um habitat onde não pertenciam. Sobretudo se tinham sido arrancadas sem raiz.
A morte da avó Luísa veio repetir a morte da mãe. Aos catorze anos, Júlia viveu a mesma cena:
A avó morta, deitada na cama, pálida, com as mãos muito magras e uma touca na cabeça, um
ser horrível que já não era ela, e de que Júlia fugiu, no terror de a fronteira entre dois mundos
se esbater e de repente a mulher deitada poder abrir os olhos, mover uma das mãos, ou um
braço.
Fora ela o seu maior afecto, nos anos que passara em Lübeck.
A água ampliava as imagens e ela conseguia ver o que antes não vira:
A ideia de a avó poder abrir os olhos, estar ao mesmo tempo viva e morta, ou entre
viva e morta, era apavorante porque esse lugar entre duas coisas incompatíveis era o lugar
dela, Júlia. Um não-lugar, entre dois mundos que reciproca mente se excluíam.
Dava conta, também, de que até aos seis anos guardara na memória tudo o que, quarenta e
cinco anos depois, passara para o papel, sem esquecer nada.
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Os seus olhos fixavam-se de repente em alguma coisa ou alguém, como por exemplo
no colégio a professora Minna. Reparara no seu modo saltitante de andar, na sua cara miúda,
como um desenho feito a lápis, e perdera a noção de tudo o que acontecia na sala.
Mas quase tudo o que gostaria de viver ou experimentar era vedado. Ir ao teatro, por
exemplo, foi uma revelação e um prazer de tal modo avassalador que decidiu que, quando
crescesse, iria ser dama do teatro (desconhecia ainda a palavra actriz).
Para seu espanto e desilusão, Teresa reprovou logo a ideia, sublinhando que todos
iriam ficar muitíssimo desgostosos se ela o dissesse à avó, ou a alguém da família. Esse desejo
era absolutamente impossível de concretizar.
Nunca mais deveria portanto pensar nisso, mas continuou a pensar. E mais tarde a sua filha
Carla viveu esse projecto, ou tentou vivê-lo.
Só não a contrariaram na paixão da música, que viera ainda antes da leitura e da escrita. Tinha
uma bela voz e cantava, segura do tom e do ritmo, e aprender piano deu-lhe tanto prazer que
nem dava conta de o tempo passar.
Também isso transmitiu aos filhos, sobretudo a Thomas, que tocava violino, e, já
adulto, ficava horas esquecidas, deitado num sofá, a ouvi-la tocar Nocturnos e Estudos de
Chopin.
Ela não a encarava assim. Mas os seus filhos eram muito complicados. Todos eles, à excepção
de Viktor.
A família e o colégio não a tinham maltratado, a verdade era o contrário disso: eram bem
intencionados, e, na perspectiva deles, tinham feito dela o melhor que podiam.
O erro fora justamente esse, via agora. Não deviam ter querido fazer nada dela, mas
apenas tê-la deixado ser Júlia.
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Sobretudo nunca perdoou que a forçassem num ponto essencial, que mudaria radicalmente a
sua vida:
Maria já deixara o colégio, e aos quinze anos Júlia quis também deixá-lo. Agora que a
avó partira, viviam com os tios Eduard e Emma, e outro ciclo de vida começou, com aulas de
dança, vestidos novos e pequenos bailes. Júlia rejubilava. Finalmente alguma coisa começara a
mudar.
Nessa altura Maria viveu o que quase todas as jovens sonham: Apaixonara-se por
Heinrich Nicolaus Stolterfoht, que obteve a permissão do pai dela e da família Bruhns para
pedir a sua mão, ainda antes de a própria Maria ser informada. Saber o seu amor
correspondido e sancionado foi o momento mais feliz da sua vida, e o casamento realizou-se
em festa, com todas as bênçãos do padre e da família.
Instada por Teresa, com quem continuara a conviver, Júlia revelou-lhe o seu segredo.
Percebeu mais tarde que os Bruhns deviam ter um ascendente sobre os Stolterfoht,
porque Carl foi enviado, contra a sua vontade, para o estrangeiro, sem Júlia saber, enquanto o
pai a levava a viajar pela Suíça, com uma breve entrada em solo francês, em Lyon. Johann
Ludwig Bruhns encheu a filha de presentes, como se quisesse apresentar-lhe o futuro que,
segundo ele, lhe convinha (ao mesmo tempo que avaliava ele próprio o grau de civilização que
ela alcançara). Nesses novos horizontes e paisagens Júlia comportou-se como era esperado,
jantando dignamente a seu lado em hotéis caros, e, seguindo as recomendações de Teresa,
mostrou admiração pela beleza das montanhas (embora tivesse preferido contemplá-las em
silêncio), e não deixou de agradecer de cada vez ao pai, como Teresa insistira, os generosos
presentes recebidos.
Continuava no entanto com o pensamento em Carl, registou por escrito o que visitava
em cada dia para depois o partilhar com ele, e foi com irritação que viu o jovem Paul Holzheu,
conhecido do pai, encontrar-se com eles a dada altura, supostamente por acaso.
A família cuidou também do seu afastamento de Maria, com quem comunicava quase
sempre por carta. Demasiada proximidade com a cunhada de Carl não convinha.
Até que numa festa conheceu, de novo supostamente por acaso, o homem com quem
iria casar-sem saber que o seu pai e os Bruhns lho tinham destinado.
Thomas Johann Heinrich Mann tinha herdado, aos vinte e três anos, uma firma de
comércio e exportação de cereais, estabelecida no século anterior, e era, sem qualquer dúvida,
um bom partido: devotado à firma e ao trabalho, bom comerciante e ambicioso, dono de uma
fortuna considerável e socialmente bem visto. Para mais aproximava-se agora dos trinta anos,
e era usual um homem bem nascido casar antes dessa data.
O encontro de ambos surgiu na altura certa: Thomas Johann casaria aos vinte e nove
anos. A noiva, Júlia, tinha dezassete.
Guardara a carta que o pai lhe escrevera do Brasil, depois da sua festa de noivado, a que ele
não assistira (mas estaria presente no casamento, e no baptizado de Heinrich):
"O teu noivo tem todas as qualidades para fazer qualquer jovem feliz, e é da tua
responsabilidade corresponder na mesma medida ao seu amor fiel. O amor ao homem que
escolheste levar-te-á a ser organizada, a saber economizar e governar bem a casa, o que todos
os maridos apreciam nas mulheres. No casamento, querida filha, há sol e trovoadas, mas estas
ultrapassam-se mais depressa se a mulher for sensata e mostrar bom feitio."
Mas tudo isso era mentira. E também o seu casamento fora uma mentira, uma armadilha em
que, sem perceber, se deixara apanhar.
Percorrera portanto um longo caminho, nos braços do Trave, depois sem transição talvez no
Elba, e agora, pelo cheiro e sabor da água, e pelo contacto ao longo de todo o corpo, dos
cabelos aos pés, sabia que tinha chegado ao mar.
Seria decerto o mar do Norte, que em breve se chamaria oceano, a tal ponto era
gigantesco - o Atlântico englobava vários mares, o Báltico, o mar do Norte e outros, e depois
prolongava-se até metade do mundo, e ainda muito para além.
Estava feliz, abaixo da superfície do mar. Talvez se tivesse tornado alga, ou peixe, ou
qualquer ser aquático. Parecia-lhe que tinha ganhado vontade própria e não se deixava apenas
arrastar pela força das correntes, podia escolher uma direcção dos pontos cardeais, como
quem escolhe uma estrela - mas não precisava de nadar até à superfície para olhar o céu, nem
de orientar-se por estrelas, tinha a certeza de que nadava para sul.
A luz atravessava no entanto a água e havia imagens que se formavam muito acima dos seus
olhos, e eram decerto ilusões de óptica: enrodilhavam-se em círculos, a uma velocidade
vertiginosa, que ela não conseguia acompanhar. Outras vezes abrandavam o ritmo, e
começavam a ganhar nitidez.
Agora julgava distinguir uma enorme sala iluminada e uma multidão de pessoas em
trajos de gala, enquanto um pequeno número de outras, sentadas numa espécie de palco, de
vez em quando se levantavam umas após outras, diziam algumas frases e faziam uma pequena
vénia, num ritual rigorosamente ensaiado e cumprido.
Viu-o levantar-se e inclinar-se, baixando ligeiramente a cabeça, diante de uma qualquer figura
pública sentada numa poltrona, que seria decerto o representante da mais alta autoridade.
Thomas!
Aquela voz era inconfundível. Não entendia as palavras, mas percebia o tom em que
eram ditas, e aquele vulto magro, distinto, elegantemente vestido com um fato escuro, só
podia mesmo ser ele. Susteve os movimentos, varada de espanto.
Thomas homenageado, louvado, reconhecido, era isso o que acontecia? A sua voz
repercutia-se para lá daquela sala, para lá do banquete que agora serviam em sua honra, numa
sala ainda mais sumptuosa que a primeira, a sua voz ecoava nos ouvidos de toda a gente,
atravessava os mares e chegava ao mundo, mesmo àquele lugar humilde e submerso, de onde
ela espreitava, escondida, e do fundo do coração o aplaudia?
Thomas, o seu filho, triunfava, e ela, sua mãe, resplandecia de gratidão e surpresa,
como se recebesse ela mesma uma coroa de glória. Sentia-se redimida e compensada, queria
abraçar Thomas, chorar de emoção e alegria, agradecendo aos céus a dádiva infinita desse
instante.
Mas nada disso era verdade, via agora. Apenas imaginara, ou sonhara.
Fora o maior desejo da sua vida, ver o trabalho de Thomas alcançar o maior prémio
literário do mundo, como ele, secretamente, ambicionava. Mas isso nunca acontecera, tinha a
certeza.
Talvez afinal ela devesse alegrar-se por ter sido apenas ilusão de óptica, ou
imaginação.
As imagens tinham-se esfumado, e era em Heinrich que agora se concentrava. Como ele
sofreria, se Thomas tivesse recebido o Nobel. O momento festivo deu lugar à tristeza e ao
desalento.
Toda a vida lutara em vão para que se entendessem, e substituíssem o ódio por amor.
Mas cada livro que escreviam era contra o outro, na esperança de o deixar de rastos. Não só os
livros, também as críticas recíprocas proferidas em público, ou publicadas em jornais. Ela vivia
no meio de ambos, sofrendo os golpes, e sabendo que a luta deles, e a dela, era sem fim.
Uma mãe nunca se separa dos seus filhos, pensou com amargura. Sofre se eles
sofrerem, é infeliz se eles forem infelizes.
Ser mãe seria então a tarefa mais ingrata do mundo, não havia outra mais dorida e
desgastante? Nunca se podia fazer nada, não era possível educar, mudar, transformar
ninguém?
Revia-se, como num espelho, em vestidos de festa, na casa da Breitstrasse, onde nascera
Heinrich, e depois na da Mengestrasse, onde Thomas viria ao mundo.
Era bela e jovem, e agradava-lhe ser admirada. Os Mann eram patrícios e faziam parte
da vida social da cidade. Ela era o centro das atenções, o que não agradava às outras mulheres,
e desagradava profundamente ao seu marido.
Thomas Johann Heinrich Mann era um comerciante respeitado e ambicioso, que dominava os
códigos da sua classe, sabia, sensato e contido, mas vivia inteiramente centrado no interesse
superior da firma, preocupado com o dever e o haver, controlando com rigor os lucros. Apesar
do seu auto-domínio, era um homem depressivo e nervoso.
Não só porque o centro das atenções lhe eram devidas a ele, dono da casa e chefe da
família, mas também porque as mulheres não deviam ser exuberantes, nem deixar-se
galantear.
Júlia tinha o inconveniente desagradável de ser mais alta do que ele, e oscilava no
limite do socialmente aceitável. Estava longe portanto de corresponder ao que ele merecia.
Mas também ele não correspondia às expectativas dela, disposta a ser mulher e mãe,
mesmo que ele não mostrasse entusiasmo por ser marido e pai, digamos que nos dois casos
era mais um dever que teria de cumprir, como era suposto. A cama, como aliás também a
mesa, a casa e a vida, foi para ambos um lugar de desencontro.
Apesar disso, o casamento duraria mais de vinte anos, e daria origem a Heinrich
Ludwig, Thomas Paul, Júlia Elisabeth Theresa (Lula, para a distinguir da mãe), Carla Augusta
Olga Maria, e, de- zanove anos depois de Heinrich, o filho mais novo, Viktor.
Júlia sabia que em Lübeck a sua beleza sensual escandalizava, além de ser mestiça, o
que significava inferior e diferente. Mesmo não pronunciadas, essas palavras ecoavam-lhe em
surdina aos ou- vidos, e ficaram-lhe gravadas na memória.
O avô era o português Manuel Caetano da Silva, que casara com Maria Luísa da Silva,
brasileira de origem índia (os Mann, tal como os Bruhns, sublinhavam deste modo que não
havia sangue negro na família).
A sua mãe era portanto mestiça, como também Júlia, mas Johann Bruhns não
desdenhara desposá-la, pois era branca, de estrato social elevado e extremamente bela (além
de a família ser dona de vastos bens, o que não era mencionado, mas estava presente em
todas as cabeças). Além disso viviam no Brasil, onde o casamento misto não constituía para
Johann um estigma.
Por conseguinte era preciso, também ali em Lübeck, analisar e julgar todas estas coisas
com o devido rigor:
Metade do sangue de Júlia era alemão, e toda a sua vida e educação, a partir dos sete
anos, se passara naquela cidade, com a família paterna. Sem dúvida que isso a tornava muito
mais alemã do que brasileira.
Havia assim em Júlia algo de aberrante para a sociedade alemã, patriarcal, puritana e
burguesa, onde a sexualidade feminina devia ser escondida, em lugar de assumida com
naturalidade: a natureza, desordenada e selvagem, tinha de ser domada pela educação e
cultura.
Ela era portanto perigosa para a ordem social e as famílias: A qualquer momento podia
resvalar para excessos, boémia ou devassidão.
Heinrich e Thomas sentiam esse tipo de convicções, difusa mas fortemente presentes, no ar
que respiravam, muito antes de serem capazes de as entender ou verbalizar.
Thomas costumava mesmo dizer que, sendo a sua mãe brasileira, mas o pai e um avô
alemães, apenas um quarto do sangue dele e dos irmãos era latino-americano, como se
quisesse afastar, para bem longe, essa mancha.
18
E havia frequentemente nos seus livros uma personagem estrangeira, por exemplo
uma mãe do Sul, que os filhos escondiam porque se envergonhavam dela. Não era uma
mulher nem uma mãe igual às outras.
Júlia recusava identificar-se com essas figuras (mas quase todos os pormenores
apontavam para ela).
Numa família, que Heinrich publicara aos vinte e três anos, o jovem Wellenkamp casa
com Ana, de dezassete, mas apaixona-se pela madrasta desta, Dora, de vinte e oito. Dora
tivera uma mãe crioula, que morrera quando ela era criança, e o pai, que vivia na América do
Sul, pagara ao marido de Dora um dote substancial.
Quando os noivos regressam da viagem de núpcias, Dora, por rivalidade com Ana,
seduz Wellenkamp. Mas, uma vez conquistado, revela-se uma dominadora extremamente
cruel.
Em Entre as raças Lola vive desde a infância na Alemanha, separada dos pais. Quando
tem dezasseis anos o pai morre no Brasil, e a Mai (mãe), "uma beleza morena e lânguida",
chega do Rio de Janeiro. Com o dinheiro que recebem da Ilha Grande, viajam pelo mundo, e a
Mai torna-se rival da filha em relação aos pretendentes. O alemão Arnold agrada a Lola, mas é
demasiado tímido para se declarar. O conde Pardi, de Florença, começa por cortejar a Mai
antes de se centrar na filha, que vê nele "um homem viril e completo". Quando regressa à
Toscânia, Lola e a mãe seguem-no da Alemanha até Mântua, onde Pardi as encontra. Lola
ouve-o gabar-se a um amigo de querer roubá-la a um alemão, para a ensinar a obedecer-lhe e
a entregar-se a ele sem limites.
Temendo que Pardi se volte de novo para a Mai, Lola escolhe o "direito a ser feliz". No
entanto hesita, pensando em Arnold, e suspeitando que Pardi pretende a Mai, e não ela.
Mas ele fá-la ceder e, depois de orgias que a levam ao auge do prazer e da dor,
maltrata-a e fá-la sentir-se "decaída" e "suja". A Mai regressa ao Brasil, Pardi arruina-se com
dívidas e múltiplas amantes, e Lola considera o suicídio, sobretudo depois de ler numa carta
que a Mai se deitou com Pardi, a troco de ele desposar a filha.
O contraste não podia ser mais explícito entre a virtude e a sensatez nórdica, e o
desregramento moral e sexual do Sul, atribuído na Europa aos italianos - já que a Itália era o
país mais a sul até onde, "autorizados" pelo nobre exemplo de Goethe, os seus filhos se
permitiam viajar. A muitos milhares de quilómetros de distância, a América do Sul, e nela o
Brasil, representavam, no seu imaginário, uma fonte inesgotável de perigos de ordem física,
mental e moral.
19
No entanto para Heinrich não apenas a mulher mestiça e do Sul era maligna. Por vezes
também simplesmente a mulher, inclusive a mulher alemã.
Assim n'A caça ao amor o jovem Claude apaixona-se por Ute, de vinte anos como ele,
que pretende ser actriz. Até à maioridade de Claude a enorme fortuna que ele herdara é
administrada pelo velho Panier, de sessenta e três anos. Este rouba-lhe Ute, a quem tira a
virgindade depois de lhe oferecer um bombom drogado, e, no papel de mecenas, "protege-a"
na carreira de actriz, pela qual ela está disposta a sacrificar tudo. Sem conseguir Ute, que em
todas as ocasiões o repudia, Claude envereda por uma vida sexual desregrada, com uma actriz
(italiana!) rival de Ute, depois com prostitutas. Adoece (provavelmente com sífilis), caem-lhe
os dentes e o cabelo, e morre velho aos trinta e cinco anos. Gastou entretanto quase tudo a
construir um teatro para Ute e encomendou uma peça com o papel principal à sua medida
(mas o espectáculo não terá sucesso, por falta de talento da actriz).
Nos últimos momentos de Claude, Ute confessa-lhe o seu amor, apenas com o intuito
de se tornar sua herdeira. Toda a sua vida é ficção, num palco imaginário. Acaba por ceder
sexualmente ao velho Archibald, professor na Escola de Teatro, que lhe promete um papel
noutra peça.
Esse era um tema recorrente em Heinrich: o desejo de amar, sem olhar aos riscos, a
grande sedutora, mesmo ao preço de ela o destruir (como em Professor lixo, de 1905).
Para Júlia o sexo era inocente, podia ser realizado e feliz. A procura do amor seria o
objectivo maior da vida dos seus filhos. Mas, tal como ela, todos tinham falhado. Excepto
Viktor.
Heinrich ficara tão perturbado que chorara. Agora, na dando nas águas do Atlântico,
eram os olhos dela que se enchiam de lágrimas. Sem ter ainda consciência de nada, Heinrich
entendera tudo:
A sua mãe era Ondina. Viera do fundo do mar para casar com um belo cavaleiro,
supostamente superior a ela. Mas ele não consegue amá-la, rejeita-a como a um ser estranho,
apesar da sua beleza, bondade e doçura.
Essa era a vida da sua mãe. Ele "sabia" tudo o que nunca fora dito, e adivinhava
mesmo o que ainda não tinha acontecido.
Agora ela revia a cena em pensamento, abraçava-o com ternura e chorava com ele,
mas as lágrimas diluíam-se no mar. Querido Heinrich.
Não podia negar que uma certa boémia e marginalidade lhe agradava. Nunca aceitara a
burguesia puritana e seguira o instinto, o desejo do corpo. O marido era frio e distante e ela
procurara o amor noutro lugar.
20
A mulher insatisfeita aparecia como personagem nos livros dos seus filhos, mas era
também um tema favorito da época, em várias literaturas, e surgira na Alemanha em Effi
Briest.
Viktor não era na verdade um dos Mann, mas fruto de uma relação com um
compositor e maestro polaco, de família nobre. (Essa condição era salientada porque, por
qualquer razão incompreensível, também os polacos eram considerados muito inferiores aos
alemães.) O aristocrático polaco passara a ir regularmente a sua casa, porque Júlia quisera
aprender violino. As lições serviram de pretexto. Depois nascera Viktor.
A relação fora breve, talvez nem sequer muito profunda. Mas a experiência da
liberdade agradava-lhe. Sempre procuraria outro homem e outra vida, não estava satisfeita
com a sua nem via no adultério o maior dos crimes, ao contrário dos romances e da sociedade,
que perseguiam as adúlteras com violência implacável, frequentemente até à morte. Não
havia perdão para a sua maldade, que levava os maridos ao suicídio, ou a arriscar a vida em
duelos fatais.
No entanto, o adultério masculino não só não merecia sanções, como nem era mal
visto, mas antes tolerado, ou mesmo aplaudido. Se as vítimas dos maridos infiéis fossem
abatidas, quantas mulheres casadas ainda estariam vivas?
Olhando para trás, tudo se ajustava, como as peças de um puzzle. Ao contrário do que
Heinrich escrevia, a vítima não era o homem, mas a mulher.
Pela primeira vez, via tudo muito claro. O padrão repetia-se, e era sempre o mesmo:
O seu pai, por exemplo, partira para o Brasil em busca de uma fortuna que em Lübeck
não tinha. E, com a sua ascendência de comerciantes, nascido numa cidade e num país de
comerciantes, possuía apuradíssimo faro para os meandros e subtilezas dos mercados, e tivera
artes de comprar uma noiva, com o dinheiro dela.
E quanto ganhara o seu marido, Thomas Johann Heinrich Mann, com a aquisição dela,
Júlia? Quanto valia, no leilão da sociedade de Lübeck, uma bela jovem de dezassete anos,
devidamente domesticada, ensinada, treinada, rebaptizada protestante e o mais possível
transformada em alemã casadoira, com os atributos necessários para dona de casa, anfitriã,
esposa e mãe competente, e além do mais, portadora de um dote irrecusável?
21
Fora vendida e comprada para as funções domésticas que desempenhava, mas ela
mesma, Júlia, nunca estivera à venda. Os seus sentimentos, desejos, escolhas e direitos,
também não.
E quanto valiam? Nada, absolutamente nada. Nem sequer deveriam existir, e talvez
nem existissem, tal como, aparentemente, também ela não existia.
Para as mulheres alemãs a situação era na verdade a mesma, mas talvez elas não se
sentissem tão presas e amordaçadas dentro da sua casa e do seu corpo. Viviam como tinham
visto viver as suas avós e bisavós, eram uma corrente sem fim de mulheres suspensas nos
quadros a óleo da parede, que se reflectiam nos espelhos entre jarras de flores, imóveis como
se estivessem mortas.
O mais absurdo de tudo, via ainda, era o pai ter-lhe desfeito a vida, com a melhor das
intenções. Meu Deus, pensar que ele agira por amor!
Era a sua filha preferida, a mais bela, inteligente e dotada. Heinrich Stolterfoht
parecera-lhe satisfatório para Maria, cuja beleza e capacidades lhe pareciam insuficientes para
exigir melhor. Mas para Júlia tinha aspirações mais altas do que um Stolterfoht, e estava
disposto a pagar um dote avultado para as concretizar.
Comprara portanto o lugar dela na burguesia de Lübeck, como numa sala de espectáculos se
paga um lugar caro, digamos, num camarote central. Cumpria a missão de pai deixando-a lá
instalada, e ela só podia ficar reconhecida.
Ao longo dos anos acontecera-lhe pensar no que iria dizer-lhe algum dia. Chegara por
vezes a começar uma carta:
"O passeio à Suíça foi uma tentativa de comprar-me com hotéis de luxo, vestidos caros e
extravagâncias absurdas, como por exemplo mandares vir de Paris uma caixa de madeira com
cintos e uma dúzia de luvas Jouvin, que eu deveria usar.
As mulheres recebiam prendas, como as crianças brinquedos, o que era uma forma de
lhes esconder que estavam destinadas à maternidade, à resignação e à tristeza; ou, nos piores
casos, a histórias de violência, humilhação e horror. Quando eu era muito jovem pensava que
o pior que podia acontecer a uma mulher era envelhecer solteira, definhando em casa de
familiares, sem estatuto definido nem formas estabelecidas de passar o tempo.
22
Quando escrevi as minhas memórias já sabia que afinal havia destinos muito piores do
que esse. E nessa altura a parte mais dolorosa da minha vida ainda nem sequer tinha
chegado."
"Culpo-te por a minha vida, e a dos meus filhos, ter sido um fracasso. Excepto Viktor,
porque não era filho do homem que me destinaste.
Também nunca te perdoarei por teres casado com a viúva do teu irmão Eduard.
Quando eu tinha vinte e dois anos iniciaste com ela uma vida nova, nas propriedades e
até na casa de Paraty, que era da minha mãe, e onde todos nós nascemos. Como todos os
homens, fizeste da tua vida o que quiseste, sem olhar a mais nada.
Deixei de gostar da tia Emma quando casaste com ela. A minha madrasta era uma
intrusa nesse mundo distante que era o meu, e não lhe pertencia. Nem a ti."
Na verdade, o pai não tinha chegado ao Brasil, aos dezasseis anos, como um emigrante
lutando pela sobrevivência, mas com o estatuto de cidadão de um país superior, do Norte da
Europa, que considerava o Brasil analfabeto, sem lei nem ordem, um país a saque, de
penetração fácil para quem aparecia com aspecto importante.
Fora tão ganancioso e sem princípios como qualquer colonizador, adoptara sem
reserva a escravatura porque lucrava com ela, e enriquecera não pelo seu trabalho, mas graças
ao casamento com uma mestiça, que devia ficar-lhe grata por ter sido escolhida.
No entanto esse país, que ele achava inferior e atrasado, acolhera-o, e a Emma, sem
preconceitos e generosamente, como se fossem nativos.
Na verdade, ele fingira integrar-se, quando Júlia era criança traduzira até o seu nome:
Mas claro que "seu Germano" nunca foi dali. Mudara o nome por razões tácticas, e a
máscara não lhe assentava ao rosto. Era um colonizador, treinado para explorar dinheiro
rápido, como, aliás, todos: Portugueses, italianos, alemães, holandeses, franceses, in- gleses
eram farinha do mesmo saco e queriam o maior lucro, e o mais rápido possível.
Por isso ele regressara depois ao Brasil com Emma, e se lançara, com outros
estrangeiros, no negócio de tornar navegável o rio Piracicaba, para nele instalar uma
companhia de transportes, cujo intuito principal era escoar os produtos das fazendas que tinha
comprado nessa zona. Foi preciso dinamitar os múltiplos desníveis do leito do rio, mas ele
tinha se prevenido com uma carga substancial de dinamite, clandestinamente escondida no
camarote. Era um percurso longo a tornar navegável, que pretendia chegar até aos Lençóis da
região paulista.
Acabaria por regressar à Alemanha com a segunda mulher, e morreria poucos anos
depois. A viúva, muito mais nova, iria sobreviver-lhe ainda muito tempo. Vivera com ela vinte
anos, com a mãe de Júlia apenas dez.
O pai voltara portanto para o Norte, e agora ela avançava, cada vez mais depressa, rumo ao
Sul.
Na verdade, ela e os filhos tinham sido expulsos de Lübeck. O marido pensara em tudo, ao
pormenor, e o testamento fora muito claro:
Todos os bens estariam sob o controlo dos executores, que tinham instruções para
liquidar a firma, e, no espaço de um ano, vender o navio e todo o stock da mercadoria
existente, bem como a casa da família e respectivo recheio.
Júlia não teria qualquer poder sobre o capital, e era obrigada a prestar informações a
um juiz, quatro vezes por ano, sobre a educação dos filhos.
Em relação a ela as disposições eram severas, o que não a surpreendeu: o marido sabia
da infidelidade, e, embora o assunto ti- vesse sido abafado, quisera puni-la.
Quanto a desvalorizar a a infidelidade, no leilão social? Mil por cento, milhões por
cento. Agora, aos trinta e nove anos, já não era, aparentemente, nada, nem ninguém.
Não a surpreendera ver como o marido desconhecia os filhos por completo, e errava
estrondosamente ao julgá-los:
"Os tutores dos meus filhos têm a obrigação de influenciá-los a seguir uma educação
prática. Deverão opor-se o mais possível à inclinação do meu filho mais velho para a actividade
literária. Na minha opinião ele não possui os requisitos necessários para trabalhar com solidez
e sucesso nesse campo, não tem estudos suficientes nem cultura vasta.
Júlia, a minha filha mais velha, deverá ser rigorosamente observada. A sua natureza
impulsiva terá de ser reprimida.
Heinrich tinha então vinte anos, Thomas dezasseis, Lula catorze, Carla dez, e Viktor
apenas um.
24
Júlia retirou-se para uma casa mais afastada e discreta, até todos os bens serem vendidos. A
fortuna rendeu quatrocentos mil marcos, de que apenas os juros foram pagos à família.
Então mudou-se com Lula, Carla e Viktor para Munique, cidade muito maior do que
Lübeck, mais aberta e mais a sul, atravessada pelo rio Isar.
Thomas iria depois ter com eles, e, segundo o desejo do pai, ainda trabalharia como
empregado num escritório de seguros. Mas logo decidira ser jornalista, frequentara a
Universidade e o Politécnico em cadeiras de História, Economia e Literatura, e passaria um ano
em Itália com Heinrich, decidido, também ele, a ser escritor.
Ambos tiveram nessa escolha o inteiro apoio de Júlia, que se instalara no bairro boémio de
Schwabing, onde numerosos artistas frequentavam regularmente a sua casa.
Não se sentia culpada, pensava atravessando o mar, onde a água se tornara entretanto mais
profunda, nunca se sentira culpada por ter sido infiel. Muito menos pela morte do marido,
cujas circunstâncias não tinham sido suficientemente esclarecidas. A versão oficial, pelo menos
em parte, era correcta, sequelas de uma cirurgia mal sucedida a um cancro da bexiga.
Mas, o que quer que tivesse acontecido, a culpa não era dela. Se a morte de Thomas
Johann tivesse sido voluntária, isso deviase à sua doença, ao seu carácter introvertido, à
tendência para a depressão e perturbações nervosas, que grassavam na família, e de que o seu
irmão Friedrich era o expoente mais notório.
Encontrava na família dos Mann um grão de loucura que não existia na família dela,
nem nela mesma. Assumia-se sem reserva miscigenada e do Sul, mas tinha a certeza de ser
uma mulher saudável e normal.
Como podia não ver o absurdo de travar a vocação literária de Heinrich, quando ele já
em 1890 publicara poemas na revista mais modernista da Alemanha, e tinha ido para Berlim,
decidido a ser escritor? Não o ouvira recusar peremptoriamente trabalhar numa firma?
Thomas e Carla eram elementos pacíficos da família? Meu Deus!!... Thomas estaria
bem numa profissão prática? Logo ele, que sempre se instalara num mundo imaginário?
O carácter impetuoso de Lula devia ser reprimido? Na verdade Lula iria ser tão
convencional como as mulheres da família Mann, esperara por um casamento vantajoso, e
conseguira-o com Josef Löhr, director de um banco em Munique, que lhe deu conforto
material, e crianças que vieram, no devido tempo.
Deus o proteja, porque eu não o farei, no testamento. Mas Deus protegera-o, sim, e
fora o mais feliz dos seus filhos. Porque não era um Mann.
Não importava que fosse pouco dotado, nem sequer inteligente, que a sua vida fosse
rasteira e comum, na esfera agrária, ignorante do mundo e ignorado pelo mundo, sem
realmente perceber o contexto político em que se encontrava, contente por partilhar a
mediania com uma mulher tão banal como ele. Para os irmãos era como se não existisse, o
que ele atribuía à enorme diferença de idade: Heinrich e Thomas eram quase adultos quando
ele nascera, sempre os vira como uma espécie de tios afastados. E em relação ao pai, podia
dizer-se que nem o conhecera.
Júlia amou-o e protegeu-o o mais que pôde e, quando todos já estavam noutros
caminhos, foi não só a sua mãe mas a sua família, e ele a âncora a prendê-la à vida.
Quando Heinrich nascera tinha vinte anos e não estava preparada para o assumir.
Procurava ainda retirar algum prazer da vida que levava, que aliás a defraudava em quase
tudo. Claro que amara o filho e se alegrara com ele, mas deixara-o demasiado entregue a
empregadas e cuidadoras. Também na infância assim acontecera consigo, mas no Sul a
capacidade de dar e receber afecto era outra, Ana tinha sido uma segunda mãe, que ela
guardara no coração para sempre. Esse tipo de relação não existia no Norte.
Meu Deus, mas ela amara a ambos com amor igual, amara o melhor que pudera todos
os seus filhos.
Talvez tivesse falado demais com eles? Sim, contara-lhes tanto da sua infância, da sua
vida anterior! Provavelmente as mães deviam calar o que lhes doía, não lamentar nada, não
deixar os filhos participar do seu mundo, mesmo quando, como ela, não tinham mais ninguém
com quem falar.
Fora uma má mãe. As boas mães transmitiam aos filhos paz e felicidade, e ela
transmitira aos seus insatisfação, angústia, frustração, desejo de qualquer coisa sem nome,
definitivamente perdida no passado e inatingível no presente e no futuro.
As boas mães eram felizes. Mas talvez as más mães como ela não devessem angustiar-
se tanto, quando já nada podia ser mudado. Não eram culpadas de ter sido manipuladas,
defraudadas no direito a ser felizes, ou pelo menos de ter tentado.
Não casara com quem quisera, nem pudera afirmar-se no mundo da arte, que era o
seu - na música, na escrita, no teatro.
Passara decerto esse desejo aos filhos, porque tinha sido a matriarca, a figura central
das suas vidas. Como poderia não ser? Johann demitira-se do papel de pai e nunca se
aproximara, também em relação aos filhos a deixara sozinha.
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Heinrich e Thomas eram escritores bem sucedidos, mas viviam em guerra um com o
outro, e tinham vidas difíceis.
No entanto, apesar de não terem obedecido ao pai nem o terem amado, sentia que
estavam do lado dele, e secretamente culpavam a mãe pelo que acontecera:
Johann nunca se mataria por amor, mas poderia tê-lo feito por vergonha, medo da sua
reputação manchada, raiva ou desespero. Poderia ter-se suicidado contra ela, a bela mulher
mais alta do que ele, e mais segura, centro das atenções e dos olhares, que se entregara a
outro. Ela devorava os homens, era cruel e não amava ninguém.
Era assim que a viam os seus filhos? Não deixava de ser uma mulher caída, talvez
mesmo não muito longe das prostitutas?
Tinham sido então uma família de loucos, em que cada um se lançava numa
desesperada caça ao amor, e devorava quem podia?
Na busca do amor, em que ela persistira até envelhecer, rivalizara com as filhas, muito
mais novas e sem dúvida mais belas:
Na sua casa boémia de Munique, uma mãe, cujos traços de juventude e beleza iam
desaparecendo, rivalizava, voluntária e involuntariamente, com as filhas casadoiras, e os
homens pareciam por vezes hesitar entre elas.
Em Entre as raças, Heinrich denunciara isso com uma clareza brutal: A Mai (mãe) é a
beleza morena e lânguida que vem do Rio de Janeiro, e Pardi, pretendente da filha, começa
por cortejá-la até se tornar seu amante - embora ela volte para o Brasil e se "sacrifique"
afastando-se, em troca de Pardi desposar Lola.
O nome Lola era demasiado semelhante a Lula, e Josef Löhr, quinze anos mais velho do
que a jovem, não deixara de admirar a sua mãe (talvez mais do que admirar?...) e ficara
incomodado com a publicação do livro, embora referisse apenas genericamente que ele
"retratava muitas pessoas conhecidas de Munique".
Seria possível que ela, estranha criatura "entre as raças", fosse uma mancha no
imaginário dos filhos?
Uma namorada de Heinrich, Ignès Schmied, não era filha de um alemão emigrado para
a América do Sul, onde possuía vastas plantações, e Ignès não viajava com a mãe pela Europa,
quando conhecera Heinrich em Florença? Como Lola, que tinha (como ela, Júlia) uma bela voz
de contralto, Ignès não pretendia ser cantora?...
Mas, via agora, na família a "caça ao amor" era uma luta de morte. Carla, a irmã
preferida de Heinrich, ligara-se a ele excessivamente, e tinha-lhe escrito, desesperada:
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"Ignès! Se bem percebi, tencionas casar com ela? Não consigo, de todo, imaginar-te
casado."
"Vou directa para Florença. Falas-me muito de Ignès e em breve farás dela um livro
magnífico.
Se no entanto, contra tudo o que é previsível, a tua relação com ela seguir outro
caminho... sabes que eu estou aqui, na retaguarda."
"Já que consideras o vosso noivado praticamente desfeito, digo-te claramente que espero que
não cases com ela. Se algum dia, para toda a vida, amares uma mulher mais do que à tua mãe,
então que seja uma em absoluto digna de ti e que te faça feliz; nessa altura serei de boa
vontade preterida."
Também ela estaria afinal doente, ou louca? Ela, que tantas vezes recomendava a
Heinrich que procurasse companhias femininas, quando ele não as tinha, tentava depois
afastá-lo delas?...
Como fora possível ser tão cega e fazer aos filhos a injustiça que ela própria sofrera?
Seria possível que Ignès atraísse Heinrich por ter tantos atributos dela mesma, Júlia - e
depois, pela mesma razão, ele se afastasse?
No testamento, Johann determinara que, "em relação a todos os filhos, a minha mulher
deverá mostrar-se firme, e mantê-los de- pendentes dela". Mas ela não o fizera para lhe
obedecer. Nesse ponto, queria ser justa com Johann: A culpa fora apenas sua. Tentar manter
os filhos dependentes fora uma distorção do instinto maternal, no sentido errado. Tinha medo
da solidão, se se soltassem dela.
Katia parecia-lhe impreparada para casar, por vezes quase apá- tica, e a família
oferecia ao futuro genro demasiada riqueza e conforto, o que o tornaria menos livre. Alguma
coisa naquela relação não batia certo, pressentia.
Mas Thomas ignorara as suas tentativas de dissuasão, e seguira em frente. Com o tempo
afastara-se dela, e estava agora muito mais próximo da família de Katia que da sua.
A Heinrich Júlia escrevia cartas às centenas, e estava sempre a convidá-lo para passar
alguns dias em sua casa. Na verdade ele respondia quase sempre, mas raramente vinha.
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Agora dava conta de como o importunara, e se tornara pesada para ele. Lieber
Heinrich. Cher Henri. Por vezes mudava de língua, talvez para não parecer tão repetitiva. E
pedia-lhe tantos favores, e tantas vezes.
Eram demasiado vulneráveis, os seus filhos, sujeitos a mudanças de humor, a diversos males
que os levavam a termas, clínicas, tratamentos.
Thomas fixava-se mais nos lugares onde estava, embora gostasse de mudanças, por
períodos breves, mas estava sujeito a dores de cabeça, estômago, e em todo o corpo, e mais
do que uma vez se sujeitou a internamentos, termas, e até a tratamentos eléctricos com o Dr.
Loeb.
Thomas parecia-lhe apesar de tudo mais estável. Heinrich ti- vera muitas mulheres,
mas as relações terminavam sempre. Casara finalmente com uma actriz, Maria Kanová, e
tinham a pequena Leonie. Meu Deus, oxalá, oxalá fossem felizes.
E Carla - oh não, não queria pensar nela agora, doía de mais, não iria aguentar-
Mergulhou mais fundo, fugindo, e tentou imaginar os grandes navios que atravessavam o
Atlântico, muito acima da sua cabeça, com uma vida movimentada a bordo, múltiplos deques
e cabines, tão diferentes do barco em que ela fizera esse percurso, no sentido contrário ao que
seguia agora - nessa altura não havia conforto, por vezes o balanço era tão grande e o enjoo
tão forte, que quase se preferia morrer.
Mas muito mais doloroso era ser transportado nos navios ne- greiros, que durante
séculos tinham levado cargas de escravos de África para a Europa e a América.
A escravatura ainda era mais cruel do que suspeitara, quando procurara saber mais.
Havia escravos no Brasil, ela via-os na infância, sem entender nada, ainda não conhecia
o lado negro do mundo e da vida.
Também Ana era escrava. Podia ser vendida, trocada, batida, maltratada. Quanto ela
tinha arriscado por desobedecer e ter vindo avisá-la de que ia partir!
Nunca vira o pai gritar assim, com a voz e o rosto alterados de fúria, por as suas ordens
não serem cumpridas. Ficara, também ela, aterrorizada, embora não tivesse então a menor
ideia dos perigos que os escravos corriam.
Mais tarde o pai dissera-lhe que, no regresso de Lübeck, lhe tinha dado a liberdade,
mas, admitindo que não mentia, isso significava exactamente o quê?
Ana tinha sido provavelmente despedida e entregue à sua sorte, quando já não havia
crianças para cuidar e não precisavam dos seus serviços. Deitada fora como um objecto
descartável, ou um cão que se abandona, porque já não se quer alimentar.
Oh, Deus, como a vida podia ser insuportável para os mais fracos, nunca mais deveria haver
escravos, sofrimento ou maus tratos, era urgente pôr fim a preconceitos de cor de pele,
costumes ou cultura, de ser do Norte ou do Sul, abandonar essas ideias doidas de sangue
impuro, misturado e mestiço.
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O mundo estava doente, era preciso salvá-lo da loucura- tudo estava errado e distorcido, as
pessoas eram monstros, os países destruíam-se em guerras infindáveis. Não era possível viver
num lugar assim.
Ela conhecia o sentimento de exclusão, uma dor constante, pervertendo tudo. Mas
nenhuma dor fora tão grande como a que sofrera pelos seus filhos, ou fizera sofrer aos seus
filhos.
Carla - Carla não tinha uma noção clara do real. Tentara tornarse independente, saíra de casa e
lançara-se no teatro, colocando acima de tudo uma carreira de actriz. Mas não tinha defesas
contra o mundo, nem talento para se afirmar.
A partir daí Lessing usou Carla, e também Katia, como armas de arremesso contra
Thomas.
Sob a ira de Thomas e a pressão da família, Carla regressou a casa de Júlia em Polling.
Desiludida com o teatro, desejava agora casar com Arthur Gibbo, filho de um industrial, que
impôs a condição de ela lhe pagar 43 000 marcos (que nem ela nem Júlia con- seguiram
reunir). Um amigo de Gibbo, usado para pressioná-la, revelou aventuras sexuais que ela vivera
no passado e, considerando-a "desclassificada" (e sobretudo sabendo-a sem dinheiro), Gibbo
rompeu o noivado.
Dias depois Júlia encontrou fechada a porta do seu quarto e, quando a fechadura
cedeu, Carla estava morta na cama, depois de ter ingerido uma dose letal de cianeto.
De certo modo Júlia morreu com ela. Nunca ultrapassou a perda e passou o resto dos
seus dias numa fuga permanente, de lugar em lugar, sem encontrar paz em nenhum lado.
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Sempre estivera deslocada, e, à medida que o dinheiro escasseava, residira em casas cada vez
mais modestas, mas a partir daí tornou-se interiormente uma figura errática, sem tecto nem
abrigo.
Como antes a sua mãe, também ela se via morta, segurando nos braços uma criança
igualmente morta, que não conseguira nascer nem vingar.
Até ao fim da vida preocupar-se-ia com a sepultura de Carla, e iria querer ser
enterrada junto dela.
Mas o calvário não terminara com a morte de Carla. Numa carta posterior a Heinrich,
lamentara o ar doente de Lula:
"Há muito tempo que o seu aspecto lamentável me preocupa muito. Ontem estava
ainda pior; é como se, a pouco e pouco, desaparecesse; olhos encovados, lábios brancos,
magreza extrema; entristece-me terrivelmente. Penso que precisava de passar alguns meses
num sanatório."
E certa vez alguém deixou cair a palavra "morfinómana”. Dia e noite Júlia lutava com a
palavra e a ideia, tremendo de horror, sem conseguir enfrentá-la, nem fugir-lhe.
E agora ali, no mar bem alto, a única coisa que queria era desaparecer, deixar de
existir, transformar-se em pedra e cair, cair sempre, até ao abismo mais fundo do mar.
Uma tempestade rebentara e uma corrente vertiginosa arrastava-a para baixo, cada vez mais
para baixo, até que ela chegou ao fundo e desapareceu no escuro.
Decerto muito depois, porque não tivera consciência de mais nada, a água foi-se tornando
menos violenta e profunda, e ela começou a voltar a si, exausta e confusa como se tivesse
dormido um século.
O Rio de Janeiro ficara para trás, nadava agora num mar azul e transparente, entre peixes de
muitas cores. A luz faiscava à superfície, e ela deixou-se ir, sem resistência, na corrente.
Passara também Angra dos Reis, seguia por entre muitas ilhas, como se voasse através
da água, avançando mais e mais depressa, até que uma onda se enrolou à sua volta, a levou
até à orla de uma praia, e pousou suavemente o seu pequeno corpo na areia.
Sabia que estariam perto as ruas e as casas de Paraty, azuis, amarelas, cor-de-rosa ou brancas,
com varandas de ferro forjado, portas de madeira pintadas de azul, e grandes faixas de cor em
volta das portas e janelas.
E haveria uma sucessão de montanhas, uma enorme mancha verde descendo até ao
mar, que se alongava em praias e baías -
Mas ainda não queria abrir os olhos. Queria deixar-se ficar ali, sem nenhuma pressa,
ouvindo a brisa nos ramos das palmeiras e o canto dos pássaros em volta.
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Quando finalmente olhasse veria a casa junto à praia, recortada contra o verde brilhante das
árvores, a casa estaria lá, com a sua varanda de madeira, de onde se podia ver o mar até ao
longe.
E ela poderia subir os degraus, como sempre descalça, abrir a porta e entrar.
Mas ainda não. Ainda queria ficar ali ao sol, de olhos fechados, sentindo a areia colar-se ao
corpo, agarrá-la com as mãos, deixá-la escorregar por entre os dedos, sem nenhum
pensamento, nem palavras.
A mãe tinha morrido, lembrou-se mais tarde. A mãe tinha morrido. Essa ferida doía muito.
Mas Ana estava lá, tinha a certeza de que Ana estava lá, e viria sempre abraçá-la,
contar-lhe histórias, cantar-lhe cantigas ao ouvido, pentear-lhe com jeito os cabelos, e dizer-
lhe que, quando crescesse e fosse mulher, iria ser feliz, imensamente feliz.